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À Maria Gabriela e ao Augusto,

ao Texto,
Causa Amante

Ao jardim triangular de Herbais


Nota ............ ...... 11

Para uma Cartografia da Figura Llansol


Escrever é o duplo de viver............................................................ 15
Bio-geo-signografia do «espaço Llansol».. ............... ......... 36
Leitura de um encontro sem normas ......................... ..... .. ..... ... ... .... ....... 45

Eu leio assim este Texto


A Apetição - o desejo de ler. ........................................................... .... ............ 73
1. O improvável da leitura...................................................................................... 74
2. Do leitor e da leitura ... ..................... ............... ............ .............. 128
3. Do leitor ao legente . . ..... ...... ............... ....................... ..... 143

A Ideia - o desejo de pensar e entender .......... 172


1. Um primeiro pensamento verdadeiro .................................... . ...... ... 173
2. Um lugar e um idioma para o in-visível ...................... .. . .. ........ 181

O Movimento - o desejo de escrever...... ................................. ... 186


1. Uma forma simples de olhar 188
2. A Restante Vida . ......................... .......... ........ 191
3. Um Corp'a'screver Cem Memórias de Paisagem ... 197
4. O Corp'a'screver e o Poema sem-eu ............................... ..... ........................ 212
5. A língua e a figura do dom poético ................................................................ ...... 216

Uma estética afectuante


As pequenas percepções e a arte visual da palavra .................... ............... 225
Na luz do luar libidinal ........................................................................ ..... .....236
Uma estética literária para a geometria ........................... . ... . ......... ...... 249

Bibliografia ................. . ······ 253


quando uma espécie de segunda escuta conseguia emergir,
[os textos] soavam-me como uma pedra-pássaro que voa
Augusto Joaquim

Sempre que decidimos compreender, encontramo-nos perante a


impossibilidade, por exemplo, de perceber ao certo até onde se estende
a força de uma brisa ligeira que um dia passou por nós a caminho de
sabe-se lá que terra ou mundo. Mas se a vemos, se passamos a senti-la
como um «ar-onde», se nela desejamos criar pensamento. aumentamos
as suas possibilidades. e as nossas, de vir, um dia, a ser seiva de uma
qualquer árvore. Esse <<ar-onde», que aqui traçou o caminho, foi a leitu-
ra antiga do livro Causa Amante - um desconhecido abrindo portas
para a leitura da Obra de Maria Gabriela Llansol.
O Texto mostrava-se como «um companheiro filosófico» oferecendo
entendimento. Falando devagar, ia construindo mais desejo de leitura.
Decidir. depois. tê-lo por companheiro de estudo, foi aceitar correr o
risco de o perder pelo caminho ou perder o que ele tem de mais sedutor
- o seu <<improvável». Decisão tomada. risco aceite, restava manter o
desejo de leitura a abrir caminho ao diálogo - do Texto e seus textu-
antes - e ir entrançando, longamente, os tios que nestas páginas se
desenham. Édesse caminho que aqui fica o testemunho.
O que se segue deve muito ao ensinamento de Augusto Joaquim
- legente maior do texto llansoliano - e a todos os que, em diálogo
afectuante, comigo acreditaram que é possível falar do que se ama.
mantendo eterno o prazer do primeiro momento de sedução.
NOTA

As citações da Obra de Maria Gabriela Llansol, feitas ao longo do


livro e cujas páginas se indicam, dizem respeito às seg uintes edições e
surgem referenciadas com as seguintes siglas:

PE - Os Pregos na Erva. 2a ed.: Lisboa. Rolim. 1987.


DPE - Depois de Os Pregos na Erva. Porto. Afrontamento. 1973
LC - OLivro das Comunidades. 2a ed.: OLivro das Comunidades, seguido de Apon-
tamentos sobre a Escola da Rua de Namur. Lisboa. Relógio d'Agua. 1999.
RV - A Restante Vida. Porto, Afrontamento. 1983
CJA - Na Casa de Julho e Agosto. Porto. Afrontamento. 1984
CA - Causa Amante. Lisboa, A Regra do Jogo, 1984
CME - Contos do Mal Errante. Lisboa. Rolim. 1985
SS - Da Sebe ao Ser. Lisboa, Rolim, 1988
AC - Amar um Cão. Colares, Colares Editora, 1990
RL - O Raio sobre o Lápis. Lisboa/Bruxelas, Comissariado Europália, 1990.
BDMT - Um Beijo Dado Mais Tarde. Lisboa, Rolim, 1990
HH - Holder. de Holderlin. Colares, Colares Editora. 1993
LL 1 -Lisboaleipzig 1. Oencontro inesperado do diverso. Lisboa. Rolim, 1994
LL2 - Lisboaleipzig 2. Oensaio de música. Lisboa. Rolim, 1994
ATJ - Ardente Texto Joshua. Lisboa, Relógio d' Agua. 1999
OVDP- Onde Vais, Drama-Poesia? Lisboa, Relógio d' Agua. 2000
P- Parasceve. Puzzles e Ironias. Lisboa. Relógio d' Água. 2001
SH - O Senhor de Herbais. Breves ensaios literários sobre a reprodução estética
do mundo, e suas tentações. Lisboa. Relógio d' Água. 2002
CLEP - O Começo de Um Livro é Precioso. Lisboa, Assírio & Alvim. 2003
JLA - OJogo da Liberdade da Alma_ Lisboa. Relógio d'Água. 2003
AA -Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004. Lisboa. Assírio & Alvim, 2006

Diários
FP - Um Falcão no Punho. Diário 1. 2a ed.: Lisboa. Relógio d'Água. 1998.
F- Finita. Diário li. Lisboa. Rolim. 1987
IOC - Inquérito às Quatro Confidências. Diário Ili. Lisboa. Relógio d' Água. 1996

PARA UMA CARTOGRAFIA DA FIGURA LLANSOL


Escrever é o duplo de viver

É realmente extraordinário termos nascido numa dada


signografia do há em que a nossa biografia se cruza (e
tantas vezes se confunde) com a geografia dos mundos.
Maria Gabriela Llansol, Inquérito às Quatro Confidências

1.

Quase sempre redigida como uma necessária enumeração sequen-


cial de acontecimentos que ligam duas datas - nascimento e morte do
sujeito - a nota bi ográfica tende, paradoxalmente, para um relato que
se furta à possível verdade de uma vida. Porque uma vida é também
composta por todas as id ioss incras ias que resultam de contingências
por vezes consideradas menores aos olhos do mundo e que a este
se omitem. a possível verdade de uma biografia depende, em última
instância, do próprio sujeito. Entre os autores que com agrado aceitam
a escrita bio- e autobiográfica e aqueles a quem isso repugna, parece
haver lugar para os que preferem alargar o conceito da chamada
«biografia do autor», perspectivando-o de outro modo. Poderá ser o
caso dos que escrevem reescrevendo-se dentro da obra. habitando esse
universo textual não como narrador mas como figura que entra e sa i
da escrita, dialogando com todos os outros que aí falam, entrelaçando

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

muitas vezes fa ctos biográficos com outros e com diferentes níveis de gra o ente que somos numa relação com tudo o que existe fora desse
realidade, pretendendo que o leitor não faça qualquer distinção entre o ente - aquilo a que, embora com diferenças, surge nomeado como o
livro fechado e o livro aberto, ou seja. que reconsidere também aqu ilo a «Há>>, por exemplo, em Levinas. onde não há nem nada, nem ser, mas
que chamamos «o autor». que não estabeleça hierarquias nem atribua impersonalidade, ou em Blanchot. que se lhe refere como o «neutro» ou
funções determinadas a autores. personagens. leitores. assumindo, o «fora»:
assim, a possibilidade de a literatura, e a arte em geral, não ficarem
circunscritas a dicotomias como ficção/rea lidade ou arte/vida, e pode- De facto. insisto na impersonalidade do «há>>; «há», como «chove» ou «é de
rem situar-se fora de um mundo de hierarquias e poder. Significa enten- noite». Enão há nem alegria nem abundância: é um ruído que volta depois
der a bio-grafia no seu sentido mais literal - um registo de vida - e de toda a negação do ruído. Nem nada, nem ser. Emprego, por vezes. a
expressão: o terceiro excluído. Não pode dizer-se deste «há» que persiste,
aceitar que essa organicidade esteja presente em todas as man ifesta-
que é um acontecimento do ser. Não se pode também dizer que é o nada,
ções do ser. incluindo a da escrita , nunca colidindo com os diferentes ainda que não exista nada. (... ) [Para Blanchot) é um acontecimento que
reais em que se movimenta. A única salvaguarda é a de manter o sujei- não é nem o ser nem o nada. (... ) Blanchot chama a isso «desastre», o que
to fora de uma subjectividade estéril e inerte, na arte como na vida, e não significa nemmorte nem infelicidade, mas como se o ser se separasse
que ele esteja, na sua singularidade, à altura daquilo que lhe acontece. da sua fixidezde ser, da sua referência a uma estrela, de toda a existência
e se mostre aos outros. vivendo e/ou criando mundos. sob qualquer cosmológica, um des-astre. (Levinas. 1988a: 40-42)
forma digna desse acontecer. Entender a biografia como registo da
resposta que continuamente damos ao mundo - não como registo de Em Maria Ga briela Llansol, o «há» parece distinguir-se do de Blan-
um passado, mais ou menos anódino. centralizado em consanguinida- chot e de Levinas. Ao «há» como densidade existencial do próprio vazio,
des e fechado numa busca de «quem sow>, mas como um registo em acrescenta outra dimensão: não sendo um vazio como nada (a isso
devir, que se vai construindo e projectando para a frente. procura ndo chama o «não-há»). mas um vazio prenhe de poss ibil idades, de densida-
dar resposta a «quem me chama» . de existencial, não será um não-sentido (como em Levinas ). mas o lugar
de possibilidades de sentido; o «há» de Llansol é um lugar de encontro
Não sou portadora de uma verdade porque a verdade não pode ser trans- com o ser ou o lugar onde os seres chegarão à sua coincidência, logo,
portada mas sofro o impulso de formular perguntas à verdade que vejo à verdade do seu sentido; o «há» existe na relação com o sujeito e é na
como ajuste. Os seres têm um sentimento final de que há um lugar onde relação que o sentido se produz:
chegarão à sua coincidência./ Para cada um a sua.
eu sempre desejei que houvesse um ponto de coincidência de todo
a verdade não é subjectiva. nem objectiva mas o contorno final e acabado o espaço, de todos os factos. de todas as espécies. de todos os reinos.
da vida de cada um; a resposta dada, com recta intenção, ao justo apelo. Apenas do Há, entenda-se. Porque a sua força de coesão é sinónimo de
Perguntar «quem sou» é uma pergunta de escravo; perguntar «quem me memórias dispersas reunidas, de narrativas transactas em concórdia.
chamaȎ uma pergunta de homem livre. (Lansol, FP 129-130) (Llansol, P 42)
«mas todos nós somos há, apenas diferimos no uso da sua força de
Perguntar «quem sou» remete. apenas. para a nossa condição de coesão»(Llansol. P 67)
«ente», desligado do que existe «fora», esquecendo que somos num Se cada um escolhe o seu há. por mais motivos que tenha é
determinado contexto de existência; perguntar «quem me chama» inte- sempre urna inclinação e um querer pertinazes. Um gosto, e uma dada
grafia de corpo. (Llansol, /QC: 74)

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Enqua nto para Levinas, a única possibilidade de sair do «há» é o do imediato e do fácil, tendo como consequência a sujeição ao poder:
ser-para-o-outro, numa relação des-inter-essada, em Llansol não se
trata de sair do «há», mas de procurar no «há» a coincidência do próprio «Ouem colabora nesta desvitalização da literatura fá-lo em proveito de
ser. sendo que como esta coincidência implica a mútua não-anulação, uma posição de poder pessoal e de grupo que vai contra a memória e a
logo, não tem necessidade de se afirmar como ser-para-o-outro, pois dignidade daqueles que não usaram. e não usam, a literatura, aqueles
nessa coincidência está já implicada a responsabilidade pelo outro. que a retiraram, retiram, ao campo do poder, que é sempre o da fixação.»
(Lopes, 2003b: 23).
terra é todo o lugar onde uma consciência se encontra com o há, e aprende
a discernir-lhe as cores. A resistência à mudança e o gosto pela espectacularização, a opção
O que procuro é ver onde a continuidade do há se fractura, onde muda pela novidade em detrimento do novo, levam à «desvitalização da litera-
de registos e de sinais, (...). Quando nos apercebemos de que o há é há, tura», à transformação da obra em produto, à anu lação da capacidade e
não somos só parte dele. Acrescentamos-lhe um ver criador _ _ cria- possibilidade de ruptura, ao desaparecimento daquilo que nela é salva-
mos, modificando-lhe a paisagem. (... ) Oque hoje me cabe é ver sinais, e guarda de liberdade. Onovo cria instabilidade, gosto pela mudança, e
projectá-los com toda a força de impacto de que dispuser. Sobrepondo-os e quando se pactua com o «hori zonte de expectativa» vigente, deixa de
desenvolvendo as consonâncias que desenvolvem entre si. (...)Recomeçar haver lugar para o novo. O «culto do auto r» foi substituído pelo «culto
o ver todos os dias, tentar que a energia que me gasta me dê mais energia, da mercadoria», do descartável, da enganadora máscara do legível que
procurá-la nosfilamentos mais ténues do real que tenho à mão,( ...). Ver é
nada acrescenta e só cria imobilidade. Mas, por outro lado, este culto
fazer e desfazer. Écriar linguagem. Ecriar-me. (... ) Em qualquer mundo,/
serei dita e direi. (Llansol, IOC: 168-169) da mercadoria traz ainda consigo a recuperação de uma noção de autor.
que dissolvendo-se numa maioria a que se submete, paradoxalmente,
A arte poderá ser esse lugar, ou lugar do «há» onde o ser chega à vai no sentido de uma promoção do eu, mas de um eu que se esvazia do
sua coincidência. É também o lugar daquilo que Llansol designará por que lhe é singular. Recusar o «não-comum da singularidade» (ibid.: 12),
«mais-paisagem», ou ver criador, que intervém no «há», transformando-o. dissolver-se no comum e no mesmo, significa aceitar a lógica das insti-
Assim sendo, a arte não estará separada da vida, cada uma com a sua tuições que, ao excluir o diferente, pretende alisar e tornar homogéneo
função exterior; fazem parte uma da outra, implicam-se, pois enquanto o que de vital existe em cada um - a sua capacidade de insatisfação,
mundos do mundo, ou difere ntes níveis de real idade, elas só existem o direito de fuga ao mesmo, a possibilidade de devir e, na perspectiva
em relação, não estando previamente determinadas, mas interagindo llansoliana, o seu encontro com o «há>) ou a poss ibilidade de chegar à
na complexidade de um devir. A identidade de cada uma advém da rela- sua coincidência .
ção, e isso não separa a arte da vida, antes as põe em diálogo para Uma sociedade que exclui o heterogéneo só pode afirmar-se pelo
mostrar diferentes formas de inscrição do/no ((há». O que poderemos «Incaracterístico», «o protagonista destes tempos», «senhor absoluto
evitar não são as ligações entre a arte e a vida, sua condição, mas da acção, autor, actor, espectador, do novo irrisório espectáculo que
a queda em hierarquias, a servidão de uma à outra - por um lado, a traz à cena»:
arte encarada como culto ou transcendência, por outro, a voluntária
Em quem quer que se lhe oponha, o Incaracterístico vê um ser incompreen-
adaptação do artista ao mercado e ao consumo (tendência posta em sível (...). Para o Incaracterístico, quemnão lhe é idêntico não tem identi-
prática, por exemplo, pelo pós-modern ismo), que retira à arte o seu dade. nem temdireito ater identidade.
direito à muda nça, ao novo, ao im prováve l, perdendo-se nos caminhos A GrandeAbsurdidade é a fracção de universo percebida pelo lncaracterís-

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

tico. Inclui a rede planetária de circulação da mercadoria. e denega todo o O duplo não é a representação do outro, mas o que está quando
demais mundo. o outro se ausenta, a sua figura, o que age pelo outro, o que naque-
A palavra. vivaz e violenta, que era filtro efogo da estranheza do Eu perante le momento é ele e não o outro, ora um ora outro. O qu e nos leva a
o Ser, evolou-se e deixou um resíduo sem espessura. (Vieira, 1994: 8, 48) pensar que a escrita, no caso de Llansol, não procura representar o
real, é uma experiência de figuração do real - «escrever é o duplo
O Incaracterístico é, pois, o protagonista de uma época que não se de viver>i porque a vida e a escrita são o duplo uma da outra, são duas
aventura na espessura do mundo, que evita o desconhecido, o ri sco. o experiências pelas qua is se passa, e com as duas se caminha; como
estranho, ainda que estes possam ser sinais de mudança e de novas Maria Gabriela Llansol já tem dito, «a escrita é uma anotação progres-
possibilidades, uma época em que o uso da palavra parece reduzir-se siva da própria vida>> - anotar não significa representa r, é antes. como
à sua capacidade de comunicação imediata, demitindo-se da possibili- diria Spinoza 1, o «modo» ou extensão da rea lidade, como o corpo é a
dade de gera r pensamento, de se autoregenerar, de experimentar (sem extensão da mente, a sua figura; não dizemos que se representam um
cair em experimentalismos autotélicos) novos modos de dizer. E é essa ao outro, dizemos que são duas páginas de uma mesma folha, dois
possibilidade de ser outra coisa que não o mundo, que faz entrar a pala- modos de uma mesma essência; escrever será um modo de figurar o
vra no domínio do literário cujo campo há muito se alargou para além que existe na experiência da mente, aquilo que existe, embora não
dos domínios da ficção. seja real no mesmo plano (os «existentes não-reais»). O caminho da
arte pode não ser o da representação, mas o da figuração; enquanto
Não é o poder ser apresentada como exemplo de um mundo que é funda-
faz, enquanto figura, ela é acontec imento e gera o lugar do possível,
mental numa obra literária, é, pelo contrário. o ser a forma exacta que
não é um mundo. Essa forma exacta onde o mundo se dissipa só pode do que ainda não tinha tido «anotação», figuração - o que é preciso
ser acontecimento. e este implica sempre a linguagem como afirma- é juntar os sinais que, reunidos num determinado dispositivo, mostram
ção do duplo, que não é cópia nem consequência lógica de um original. onde a real idade do possível está; encontrar as palavras que «forçam a
(Lopes, 2003b: 102-103) pujança a manifestar-se no vivo» (Llansol, «O Espaço Edénico», in CJA,
2ª ed.: 157). Ao juntar sinais num determinado dispositivo, estamos a
A afirmação do duplo abre caminho a outra realidade possível, que inscrever a rea lidade do texto no mundo, texto que é um mundo rea l e
não é cópia como resultado de um original, mas criação a pa rtir de uma único no seu modo de dizer o mundo. Manuel Gusmão sub linha como,
matriz que se mo lda, e que pe lo trabalho da matéria verba l cria o novo. em Llansol, essa inscrição deve ser entendida literalmente:
É um trabalho de musica lidade e dissonâncias, de ritmo. «O texto não
se escreve com sentido, mas com ritmo» (Llansol, P 151 ); o que a pala- Na obra de Maria Gabriela Llansol, o mundo do texto torna-se caminho e
vra faz é figurar o rea l, ma is do que representá-lo. inscrição no utexto do mundo». A escrita e a leitura são o abrir de sendas ou
veredas, rios. jardins ou desertos no mundo e isso que fazemdeve ser tomado
Noto que eu não espero para escrever, nem deixo de escrever para passar <<literalmente e em todos os sentidos», como o escreveu Rimbaud. Esta incisão
pela experiência que produz a escrita; tudo é simultâneo e tem as mesmas da escrita no corpo da terra é possível enquanto experiência da plasticidade
raízes, escrever é o duplo de viver; poderia dar como explicação. que é da da matéria figural e da materialidade da figura, experiência que inventa ou dá
mesma natureza que abrir a porta da rua, dar de comer aos animais, ou forma a uma nova sensibilidade. (Gusmão, 2004: 284)
encontrar alguém que tem o lugar de sopro no meu destino. (Llansol, FP 73)
1 Sigo a grafia utilizada por Maria Gabriela Llansol para o nome do filósofo.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

A partir da experiência da plasticidade, há toda «uma nova forma com diferentes modos de descrição, com diferentes formas de verdade,
de sensibilidade» que pode ser criada . Não se trata aqui de recuperar a de crença e de ponto de vista. A questão do ver, segundo Goodman,
ideia tantas vezes referida relativamente à literatura, e à arte em geral, não diz respeito ao facto de vermos ou não vermos o que está à nossa
de que é possível criar mundos a partir do literário, o que também não frente, o que seria óbvio, mas de vermos ou não vermos o que não se
é alheio a esta escrita. Mas o que parece importante sa lientar como apresenta aos nossos olhos - neste caso, o ver depende de nós, do
«novo» na escrita llansoliana não é a capacidade de «criar mundos» a que fazemos (ou não) com isso. No capítulo intitulado «The Fabrication
partir de um imaginário concebido no texto, e sim o facto de esta escrita of facts», Goodman mostra a importância deste fazer, e expõe clara-
partir de dados muito concretos do real, não do imaginário mas dessa mente por que está em desacordo com « aqueles fundamentalistas que
«anotação progressiva da própria vida», e desencadear um processo de sabem muito bem que os factos se encontram e não se fabricam. que os
significa ção desse real através da «figuração intensamente metamór- factos constituem o único mundo real, e que o conhecim ento consiste
fica, ou regida por uma múltipla metamorfose de um espaço-tempo em acreditar nos factos.n(Goodman, 1978: 91). Para esses, «a expressão
de várias maneiras compósito. transtemporal ou transmigrante» (ibid.: «fabricação de factos» soa estranha, tornou-se sinónimo de «falsidade»
285). figuração adentro do discurso, que obriga a uma mudança de ou de (<ficção», contrastando com (<verdaden ou «facto»». O que Good-
olhar para poder ser li da, o que por sua vez desencadeia um modo dife- man salienta é que, embora se deva distingu ir (<falsidade» e <(ficção»
rente de estar no mundo, essa (<nova sensibilidaden de que fala Manuel de «verdade» e ((facto», «não podemos fazer essa distinção com base
Gusmão, pelo facto de se «viver o discurso e a sua dinâmica», como no pressuposto de que a <(ficção» se fabrica e o «facto» se encontra.»
refere Silvina Rodrigues Lopes, a propósito d' O Livro das Comunidades, (ibid.: 91 ). Para ele, não faz qualquer sentido manter a ideia de uma
e que nos parece possível alargar a toda a escrita llansol iana: rea lidade em si, independentemente das diferentes versões que dela
existem, pois estas constituem modos de representação dessa realida-
Não se trata de fazer mundos. mas de habitar, viver o discurso ea sua dinâ- de, fazendo assim parte dela. Ainda que controversa, o mais significati-
mica como uma espécie de encantamento. (Lopes, 2003a: 191) vo e enriquecedor nesta problemática é o facto de se poderem discutir
as diferentes versões e as suas vantagens e possibilidades. É neste
O que não exclui que essa ((coabitação» possa gerar alguma espe- aspecto que o livro de Goodman pode ler-se com a obra de Llansol -
rança, como Manuel Gusmão acrescenta: criar versões do mundo, criar linguagem a partir do ver criativo, é criar
uma rea lidade possíve l porque é criar acontecimento. Eo texto literário
Os mundos podem também ser compossíveis ou alternativos. Eu diria que o é hoje, na sua especificidade, a forma desse acontecer.
desejo da compossibilidade desses mundos torna o mundo-texto ((Llansol»
Se a partir de um ver criativo se cria li nguagem e esta tem a capaci-
alternativo à versão de mundo hoje dominante no mundo contemporâneo
dade de gerar pensa mento, a frase de Maria Gabriela Llansol. ((o jardim
e, se estou a ler bem, isso lhe agradeço. Se estiver a ler mal. agradeço-lhe
que o pensamento permite11, dá conta, até pela sua ambiguidade, de
na mesma. (Gusmão, 2005)
toda uma poética da criação - o «jardim» é apenas O Lugar onde o
pensamento e a linguagem podem trocar de presença, e nessa troca
Em Ways of Worldmaking, Nelson Goodman, cuja obra é muitas
criar mundos porque se trata de «viver o discurso e a sua dinâmica»
vezes referida a propósito de questões como as aqui enunciadas,
tenta mostrar como os (<Modos de fazer Mundos» (título da tradução (Lopes, 2003a: 191 ). O jardim, em Llansol, é o lugar onde o possível é
figurado e ganha realidade - o possível é o real que ainda não aconte-
portuguesa; Porto, Asa. 1995) estão relacionados com o conhecimento,
ceu porque ainda não foi anotado-, é o lugar de manifestação de uma

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

nova verdade. Quando o discurso deixou de ser manifestação da verda- particular pelos Formalistas russos e por toda a crítica estruturalista,
de do sujeito para passar a ser manifestação da verdade da própria ganha novos contornos numa sociedade que, se por um lado tende
linguagem, o literário continuou ainda na fase da representação e a a desconstruir as noções de testemunho e de ficçãd. alargando os
manter a dualidade mundo verdadeiro/mundo não verdadeiro, realida- respectivos campos e fazendo-os interagir, por outro, tende a neutralizar
de/ficção; foi preciso criar uma nova categoria - a do possível - para todo o efeito de estranheza que a palavra cria quando, dando lugar ao
perceber outros modos de ligação ao mundo. A realidade possível não possível. cria o novo. E é no novo que os estudos literários encontram
é man ifestação da verdade do sujeito, também não é uma manifesta- matéria de reflexão3.
ção da verdade da linguagem. com autonomia em relação ao sujeito, é Aristóteles falara da necessidade de a língua poética ter um carác-
antes a manifestação da verdade dessa possibilidade, a verdade dessa ter estranho ou surpreendente, e Chklovski, em 1917, em «A Arte como
figuração. Num breve diálogo com Musil, em Um Falcão no Punho, Llan- Processo», referia-se à necessidade de libertar o objecto do automatis-
sol dá conta do modo como. em lugar de trazer a rea lidade para o texto. mo perceptivo, para que se pudesse continuar para além do reconheci-
a escrita pode levar o possível para a realidade: mento: «A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão
e não como reconhecimento» (in, Todorov 1989, li: 73-95); ou , como dirá
Éfrequente em Herbais otempo, sem luz. tornar-se verde; em 1919 ao referir-se à literatu ra. «o caminho onde o pé sente a pedra»;
salientava nas grandes obras aquilo que definiu como o «processo de
Ele (Musil) diz: - O dom de envolver a realidade numa atmosfera singularização», que consistia em não chamar o objecto pelo seu nome.
sugestiva (o poeta). mas em descrevê-lo como se estivesse a ser visto pela primeira vez,
para que a percepção pudesse ser prolongada:
Eu digo: - Odom de envolver uma atmosfera sugestiva na realidade (que
procuro desenvolver pouco a pouco, e a que chamo escrita, seja ou não
Oacto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte
expressa verbalmente e incorporada, por sinais, no papel). (FP 63-64) é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se 11tornou11 não inte-
ressa à arte. (ibid.: 82)
A esta escrita que tem o dom de «envolver», que pode ser figuração
e não representação da realidade, também Llansol chama <<uma confi- O carácter estético é, assim, como também afirma, «criado cons-
dência envolta» ou «conto>>, remetendo para um tempo em que dizer ou cientemente para libertar a percepçã o do automatismo» (ibid.: 92).
contar era sinónimo de criar, ou de «envolver confidências»: Toda esta questão, continuamente referida como a especificidade do
Estou quase a acabar Contos do Mal Errante. Chamei-lhe contos, não
por ser um livro de contos mas porque, em cada parte de si mesmo, é uma 2 Veja-se a obra de Jacques Derrida, Demeure. Maurice Blanchot, publicada em 1998,
confidência envolta. (Llansol, FP 92) a propósito de L'instant de ma mort, de Blanchot, onde as noções de testemunho. de
ficção e de literatura são amplamente expostas; e também as Actas do Ili Congresso da
Associação Portuguesa de Literatura Comparada. Lisboa, 1998. particularmente Parte
1 - Literatura e Testemunho, pp. 25 a 415 e. mais recentemente, a obra A Anomalia
2. Poética. de Silvina Rodrigues Lopes. com referências indispensáveis para a análise
desta problemática.
A especificidade do literário, tantas vezes procurada no conceito de
3 Textos como OSenhor de Herbais, de Maria Gabriela Llansol. dão ampla resposta e
<<literariedade», a partir da primeira década do século XX e muito em ma terial de reflexão aos estudos literários.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

literário, é observada por Maria Gabriela Llansol de um modo mais Os mesmos princípios de coerência parecem aplicar-se aos dispositivos
abrangente - extravasando o domínio da arte, o ver para além do reco- antropológicos sobre os quais se constroem as sociedades. Esses disposi-
nhecimento do objecto é, em Llansol, um modo de vida, uma ética, e um tivos resultam de condições objectivas nas quais as sociedades se consti-
dos modos do seu Texto, já que a estética que o orienta se baseia num tuírame influenciam depois as suas trajectórias de desenvolvimento.
modo de ver, num processo de «mais-paisagem», que orienta também o Identificar os ethos. compreender as suas origens, prever os seus efeitos,
são os objectivos de uma análise etológica. (...)A partir dessa análise
seu ver quotidiano que é estético e sobre o qual uma contínua reflexão
chega-se à conclusão de que o desenvolvimento resulta da capacidade
ética se projecta, como se ética e estética dialogassem através de uma
de ultrapassar os hábitos criados pelos condicionalismos antropológicos e
etologia prospectiva que evolui na escrita. A etologia, ou estudo dos históricos próprios a cada sociedade. (ibid.: 16)
comportamentos em sociedade, inicialmente considerada em relação
às chamadas «sociedades animais», e hoje alargada às <<sociedades O texto llansoliano ultrapassou os condicionalismos literários da
humanas», parte do princípio de que as culturas são constituídas por narrativa; poderemos dizer que tem um modo de inserção, ou ethos.
conjuntos coerentes de comportamentos, e de que podemos caracte- estético, no sentido em que não se constitui através de um modo de
rizá-las através dos seus modos de inserção no real. A esses modos, pensar que toma uma determinada form a, nomeadamente dentro de
Jean-Éric Aubert chama «ethos», e acrescenta um exemplo elucidati- parâmetros narratológicos, mas através de um modo de ver que cria
vo que, aliás, não é despiciendo para o texto llansoliano, com o qual mais-ver; a qualidade do seu ver não se dá numa forma fechada de
poderíamos fazer uma análise deste tipo para tentar perceber algo que pensamento, mas no próprio acto de ver posto em linguagem. Como
há mu ito pre-ocupa os seus legentes - como é que este Texto produz Llanso l refere, é esse o seu modo ou «qualidade»:
significação, qual o modo de inserção deste Texto na chamada Litera-
tura e no real, sendo que o real é a parte da realidade que permanece Essa qualidade tem o nome de estética. É, pois. desse modo. que eles
indizível, «que resiste em acto ao instituído, à realidade, e impede que [os textos] se dirigem ao real. e não sob o modo filosófico ou teológico.
esta se feche, impede que esteja tudo dito» (Lopes, 2005: 256). Pode- (Llansol. LL 1: 140)
ríamos dizer «Oual o seu estilo?» (segundo Genette, também o estilo,
como os comportamentos, se encontra nos pormenores), mas teríamos Daí que a ética que orienta Llansol e o seu texto, como lugar de
de nos lim itar a analisá-lo apenas no seu interior, esquecendo que ele permanente reflexão em linguagem, não possa desligar-se do seu
tem também uma força centrífuga, o que nos leva a querer interrogá-lo «modo» ou ethos estético, pois é deste modo que o texto se dirige ao
na confluência de dois modos, o ético e o estético enquanto experiên- real e nele se insere, projectando na escrita, através de um ver criativo,
cias que se projectam uma na outra. novas formas de real e de comportamento que pa rtem de um ponto de
vista estético.
O ethos manifesta-se nos pormenores. {... ) Comparemos os jardins. Um Ponto de partida para aprender a olhar as coisas como se as esti-
jardim francês aparece como um dispositivo geométrico que fez tábua rasa véssemos a ver pela primeira vez, o «ver criativo» pode começar pela
do que existia. Um jardim inglês resulta de uma combinação com a natu- opção de sa ir da simetria, prolongando assim a percepção do objecto,
reza. como se se quisesse produzir um quadro. Um jardim japonês procura e em última instância levar, através dessa perspectiva estética, a uma
construir uma harmonia entre o homem e uma natureza cuidadosamente
maior consciência dos diferentes modos de estar no mundo, criando
cultivada. Daí resultam três modos diferentes de inserção no real. (Aubert,
2004: 15)
uma ética que dá a ver, que mostra ao ser humano como «trocar de
presença» com os outros vivos pa ra poder ser responsável pelo outro

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

e entrar num mundo de «mútua não-anulação», pois «ser-se humano é sempre que sei. não escondo _ __ _ __
evolutivamente um progresso de leitura mas não é um privilégo, nem
uma superioridade, nem um dado adquirido./ é um lado/ mais legível Ocontratoque me liga ao legente é da ordemda compaciência; avanço por
do que outros para dar contin uidade/ e orientação à emergência do vivo umcaminho que não garanto. e vou udizendon (Llansol, OVDP 185)
no seio do universo» (Llansol, OVDP. 187-188). Ver será, pois, e como «(.. .)uma confidência: um dos lugares onde começa o mundo.»/ «Um dos
resul tado, outra coisa ainda - a capacidade de assumir outro ponto lugares de ondejorra a imanência... » (Llansol. OVDP 47)
- Otexto é, então, a arte do verbal, do olhar. da confidência e do paraíso?
de vista, trazendo-o para a realidade e pondo-o a ag ir pela mútua não-
/ - Do verbal e do olhar. Do paraíso, talvez. / - Talvez? / - Depende
anulação entre os vivos:
do olhar. Éa arte do há. Do que há entre. / - Ea confidência? / - Éoque
estamos a sofrer... Oque há entre os olhares. (Llansol, /QC: 441
Viver com as imagens é a nossa arte de viver. Reparem, sem o seu fulgor.
não saímos da simetria. Enesta nada vemos. Vamos presumir uma saída.
(... )Não podemos desejar o novo e querê-lo sem surpresa. (ibid.: 34) A confidência pode, talvez, ser entendida como uma afecção, o
sentei-me fora da minha natureza, e reparei (ibid.: 182) efeito ou acção que um corpo produz sobre outro. uma affectio no dizer
A mudança de olhar abre um campo vastíssimo ao vivo (ibid.: 215) de Spinoza, e que constitui aquilo a que ele chama as «ideias-afecções»
sei-o porque aprendemos a trocar de presença./ em mim é humana./ nele · ou o primeiro grau do conhecimento, ainda só um conhecimento dos
sou cão (ibid. :299) efeitos sem as causas. Se a confidência «É o que estamos a sofrer...
O que há entre os olhares», como diz Llanso l, ela é uma afecção e,
Sentar-se fora da sua natureza é aprender a trocar de presença com como tal, pode gerar afectos, pois a capacidade de ser afectado va ria
o outro e entrar na mútua não-anulação. Sair da simetria passa por de corpo para corpo e gera diferentes afectos. O que define um corpo,
acrescentar ao ver um ver criador - ensa iar uma nova imagem a partir uma espécie, é a sua capac idade de ser afectado; o que distingue uma
da imagem dada ou, como Maria Gabriela Llansol mostra, passar da rã de um macaco, diz Deleuze continuando Spinoza, é o facto de eles
paisagem à «mais-paisagem»4. não serem capazes das mesmas afecções; em diferentes culturas, os
Nesta perspectiva, o conceito de «autor» reveste-se de uma parti- homens não são capazes das mesmas afecções nem dos mesmos afec-
cular incidência em Llansol. «Autor» é aquele que opera a mudança da tos - por isso, Deleuze fala da necessidade de se fazerem «mapas
pa isagem à <<ma is-paisagem», que age, não como quem tem autoridade de afectos» pa ra os homens e para os anima is, concluindo que esse
para, mas como um actor. que sabe «sentar-se fora da sua natureza», «mapa etológico» seria bem diferente das conhecidas class ificações
e como um ensaísta, em deriva, como quem vai ensaiando na escrita de espécies e géneros. Ao propor que cada um se «sente fora da sua
o que sabe e procurando o que daí advém, e mostrando, na própria natureza» e olhe, Llansol está a indicar-nos um modo de percebermos
escrita, esse seu modo; nesta relação está também implicado o legen- qual a capacidade que o nosso corpo tem de ser afectado e que afectos
te - quem aqui escreve, escreve para contar coisas àqueles que, por ele gera.
sua vez, pegam nelas para as contar a outros. É um processo, e um Tudo depende do olhar, do ponto de vista, das escolhas e dos encon-
contrato, ininterrupto - contos como «confidências envoltas», crenças, tros . Por isso, o autor ensaia e actua - é esse o seu drama (que na
encontros, qu e se vão levando e dando pela mão da escrita: origem sign ifica «acção»). esse o seu agir. Como o ensaísta. move-se
«segundo um impulso de aventura, não sistemático» (Lopes, 2003b:
165), e sabendo que «Não há propriamente verdade que o ensaio persi-
4 Esta ideia-noção de «mais-paisagem» é comentada na p. 197 e seg.s (2ª parte, Ili, 3).

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

ga, quando muito revérberos dela nas coisas.» (Barrento, «Geografia do texto - o da representação e o da recepção; é, portanto, uma figura da
Acaso», in Moura, 1997: 95); como o actor, sabe que a sua arte é devir e completude e o melhor comentador de um texto. Ao substituir o autor
o seu caminho errante. pelo scriptor, Barthes, anunciando a «morte do autor», não suspende a
escrita privando-a de um sujeito, o que faz é anunciar a metamorfose do
autor, a sua ressuscitação, acrescentando-lhe mais um ponto de vista,
3. e trazendo-o de imed iato ao seu tempo, através da figura do scriptor.
Paralelamente, em Maria Gabriela Llansol, a figura do legente 6 pode
Toda a reacção desencadeada nos finais dos anos sessenta por aparecer também com o S de scriptor, reunindo em si quem escreve e
Roland Barthes e Michel Foucault5, ao proclamarem a então chamada quem lê, e não apenas como um escritor-leitor a ler o seu texto; o duplo
«morte do autor», sa lientava principalmente o momento positivista aparece também no momento da escrita - «a lguém o escreveu que
como aquele que transformara a pessoa do autor numa figura de culto não sou só eu»:
e a obra numa espécie de relato subjectivo do autor. Embora referindo
autores pioneiros nessa reacção, como é o caso de Mallarmé ou do OLivro das Comunidades: / como este livro é belo; releio-o ao corrigir as
movimento su rrealista, que dessacralizou a imagem do autor, Barthes. últimas provas; alguém o escreveu que não sou só eu; se assim fo i, tornei-
cons idera. ainda em 1968. a existência de um verdadeiro «império do me profundamente seu amigo; tem um Spor nome - Sol de noite; sibilo;
mas só encontro o ar derramado por ele que circula na casa,/ scriptor.
autor». Embora as vozes de Barthes e de Foucault se centrem ambas na
(F: 182)
problematização do sujeito e no emergir da escrita. seguem, no entanto,
orientações dife re ntes. Barthes considera a escrita como um «neutro» e
O scriptor. em Llansol. está do lado de quem escreve. como em
destruição da voz. «o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a iden-
Barthes, mas espera, explicitamente. pelo outro que virá ler - está
tidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve» (Barthes,
do lado da escrita e da leitura, é um híbrido, escrevente e legente do
1984: 49). e afasta o autor e a ideia da sua anterioridade face ao texto,
texto, <<sol de noite», fazendo alternar luz e escuridão e conciliando-as
substituindo-o pelo <<scriptorm oderno [que] nasce ao mesmo tempo que
na claridade desse sol de noite.
o seu texto» (ibid.: 51). já que o único tempo que existe é o da enuncia-
Enquanto Roland Barthes. antecipando H.-R. Jauss e a «Estética da
ção. Sucedendo ao autor, o scriptor aponta para uma outra figura - a do
Recepção» , se centra já no emergir da figura do leitor, num texto conc iso
leitor - que não tem história, nem biografia, nem ps icologia, sendo o
em que opta por mostrar a inevitabilidade dessa substituição do autor
lugar para onde converge tudo o que está na escrita e, portanto, o seu
pelo leitor. Michel Foucault faz. no seu texto, uma análise detalhada
destino e não a sua origem. O leitor «é apenas esse alguém que tem
da figura do autor. Para Fouca ult. enquanto autor que dá um nome de
reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.»
escrita a um conjunto de textos. quem escreve não pode subtrair-se a
(ibid.: 53). Como também afirma. o preço a pagar pelo advento do leitor
determinados traços característicos constituintes daquilo a que chama
é a morte do autor.
a «função autor», mas pode demarcar-se de uma posição autoral que
Mas o scriptoré desde sempre a figura do copista, aquele que reúne
considera a superioridade de um dos vários «eus» presentes no discur-
quem escreve e quem lê, sobrepondo em si os dois momentos de um
so, relativamente aos outros também presentes:

5 Roland Barthes, «A Morte do AutoP> e Michel Foucault, <<O que é um Autor?». respec-
tivamente datados de 1968 e 1969. 6 A figura do legente é desenvolvida a partir da p. 143 (2ª p.. 1, 31.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

De facto, todos os discursos que são providos da função autor comportam Escrita e autor implicam-se e afectam-se, mas são diferentes formas de
esta pluralidade de «eusn. {. .. ) A função autor não é assegurada por um sujeito e as posições da tradição biografista e psicologista, bem como as
destes ((eus» à custa dos outros {. .. ), que aliás não seriam então senão da tradição formali sta são necessariamente subvertidas. se é a escrita
o seu desdobramento fictício. Importa dizer, pelo contrário. que em tais quem ironicamente («intimamente») conhece o seu (dela) «autor» e não o
discursos a função autor desempenha um papel de tal ordem que dá lugar seu suposto «primeiro autor>>, nem «pai» nem «proprietário». Esta escrita
à dispersão destes (... ) «eus» simultâneos. (Foucault, 1992: 55-56) de é matéria figural e figuração de um sujeito que indicia a singularização
de uma comunidade 'sem deus nem senhor'. (Gusmão, 2004: 280-282)
Foucau lt analisa toda esta problemática do «autoP> com vista a uma
análise histórica dos discursos, considerando a necessidade de os estu- Claro que é necessário não confundir uma análise da «função autor>>
dar nas modalidades da sua existência: com uma aná lise de vozes no interior de um texto. No entanto, em Llan-
sol, e segundo o que tem vindo a ser referido, essa fronteira é muito
«Talvez seja tempo de estudar os discursos não somente pelo seu valor ténue, às vezes praticamente inexistente. Ese isto acontece, talvez seja
expressivo ou pelas suas transformações formais, mas nas modalidades porque o que lhe interessa, quando escreve. «é saber em que real se
da sua existência: os modos de circulação, de valorização, de atribuição, entra, e se há técnica adequada para abrir cam inho a outros» (Llansol,
de apropriação dos discursos variam com cada cu ltura e modificam-se no. FP. 55). A diss ipação da «função autor» era algo que Foucau lt, em 1968,
interior de cada uma; a maneira como se articulam sobre relações sociais só poderia imaginar:
decifra-se de forma mais directa, parece-me. no jogo da função autor e
nas suas modificações do que nos temas ou nos conceitos que empregam. Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem
(ibid.: 68-69) recebidos sem que a função autor jamais aparecesse. Todos os discursos,
qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma. o seu valor, e qualquer que
A partir daí, importa saber que lugar um sujeito pode ocupar em fosse o tratamento que se lhes desse. desenrolar-se-iam no anonimato do
cada tipo de discurso, sob que condições e que funções ele pode murmúrio. (op. cit.: 70).
exercer; no entanto, e como «a função autor é apenas uma das espe-
cificações possíveis da função sujeito» (ibid.: 70). Foucault considera Talvez Foucault pensasse num possível «autor» já não como «autor-
não ser indispensável que a função autor permaneça constante na sua idade», mas também como actor e ensaísta de linguagem e de mundos,
forma, o que leva a conclu irmos que. em última aná lise, a sua posição essa figura da errância que não se fixa e que, pela fuga sempre latente,
se encontra com a de Beckett (que ele refere no seu texto). quando com pode manter-se à margem do poder; considerando desejável que um
ele afirma <<Oue importa quem fala», e com a perspectiva llansoliana de autor não repetisse o seu nome de cada vez que publicasse um livro,
indiferenciação de vozes no Texto. Manuel Gusmão, no posfácio que Foucau lt parec ia ambicionar não só que o suje ito não se encerrasse
escreve para a segunda edição de Contos do Mal Errante, ao analisar numa qualquer subjectividade estéril e comprometida, mas que a escri-
as diferentes vozes deste texto de Maria Gabriela Llansol, mostra como ta se afirmasse fugindo às malhas do poder e o escritor à sua trágica
a questão do «autor» se põe nesta escrita: condição de autor, que apenas se encontrasse naquilo que escreve com
os que têm um mesmo nome de escrita:
o texto é corpo-[e)-sujeito. e se nele todos poderão vir a escrever (ler). a
autoria pode entretanto ser pensada como a não coincidência consigo de um Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora. deve tornar-se
mesmo nome próprio que é simultaneamente várias figuras e uma assinatura . possível forma r para si próprio uma identidade através da qual se lê uma

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

genealogia espiritual inteira. (Foucault, 1983: 144) No ressa lto de uma frase se joga o literário - «a literatura tem de
continuar a destrinçar os mundos no mundo» (ibid.: 36) e quem escreve,
_ _ _ __ _ durante estes meses procurei uma geografia - não a viver com «o desconhecido que nos acompanha».
uma biografia, e muito menos uma ficção - , sobre as relações deslum-
bradas e doridas entre escritores. Parti em busca da natureza da relação
escriturai de obras {... )que não sendo, de facto, construídas nos mesmos
pressupostos./ acabam por chocar./ cada uma com a sua velocidade
própria./ com o mundo, a sua significação e a sua evanescência. A
certa altura, escrevi mesmo que essa geografia era, antes e sobretudo,
uma signografia-sobre-o-mundo. (Llansol, IOC: 167)

Se a biografia de algu ns «se cruza (e tantas vezes se confunde) com


a geografia dos mundos», como foi dito em epígrafe, é porque não está
presa nas malhas da subjectividade; considerando que um (<eu» pode
ser singu lar mas não subjectivo, quem escreve pode sempre entrar e·
sa ir do Texto, qual figura biotextual que. pertencendo à vida-no-plana-
da-escrita, não compromete nem anula o próprio de cada um. Assim
sendo, e como sugere Maria Gabriela Llansol, aqueles cujo nome pelo
qual são chamados é um verbo - <<escrever» - talvez entendam a
biografia como uma cartografia dos seus encontros de escrita, dos
múltiplos diálogos entre os que, em qualquer plano, se sentem <<seme-
lhantes na diferençai>, e cuja singularidade, na vida como na obra, tem
por base uma energia operante que é factor de mudança e de criação
do novo. em qualquer mundo ou «geografia imaterial por vir».

A quarta confidência/ é sobre o desejo e a repulsa da identidade. (. ..) De


facto, deram-nos um nome, o nome por que nos chamam, mas não é um
consistente - é um verbo./ O nosso verbo, por exemplo, é escrever.
(Llansol, /OC.: 48)
Entre Amar Um Cão e o cão que eu amei há apenas o ressalto de uma
frase. (...) Está em causa o que me move a escrever (o mundo) e o que
me faz sentir (a literatura). São quase sinónimos. E são-no quase porque,
entre a literatura e o mundo há ainda o ressalto de uma fra se. Este ainda
é precioso. {... )O ressalto da fra se é, propriamente falando, vital. Sem
ele, os nossos corpos não poderiam respirar. Teriam falta de desconhecido.
(Llansol, SH 234)

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Como uma pedra-pássaro que voa

árvores, paisagem que considera decisiva e donde surgirão as figuras


de beguinas e os pobres da História , tão presentes nas duas primei-
ras Trilogias, já a «vertente imaginária da li nguagem» se fazia sentir
na escrita dos primeiros contos e diálogos. É a busca de uma língua
((nova», uma (<língua sem impostura», tão presente depois em Um Beijo
dado Mais Tarde (1990), e que fará surgir um Texto novo. A Escola da
Rua de Namur propiciou a continuação dessa busca, pelo modo como
punha em prática uma experiência inovadora com a linguagem - (<era
muito importante, a mesmo título que a aquisição de conhecimentos, o
desbloqueio afectivo das crianças; ser capaz de tomar a pa lavra; expri-
Bio-geo-signografia do «espaço Llansol»7 mir, sem temor nem embaraço, os seus sentimentos.» Crescia também a
consciência de que não lhe interessava o <(atalho das representações»,
a geografia deste ser indómito e realista, sem traço de mas a ((floresta das intensidades». Reaprendia a ver, tentava outro
presunção no carácter e na escrita ponto de vista. mudava de forma na escrita. Começava a sentir-se em
Augusto Joaquim, rrA/gumas Coisas» consonância com lugares e figuras que desconhecia.
Havia sempre árvores em redor. Muitas folhas começavam a cair no
seu colo. A todas ia dando atenção. Também as vozes se iam multi-
«_ _ eu nasci em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um plicando. E as folhas cresciam em textos. As vozes vinham de tempos
poema». Lisboa, 24 de Novembro. A herança paterna, presente «na diferentes - percebia-se. Os diálogos não eram de pergunta-resposta.
verticalidade e na maneira fronta l de olhar», e o legado catalão que Não contavam acontecimentos do princípio ao fim. Eram falas que iam
lhe vem dos bisavós maternos, darão corpo de escrita ao nome Llansol. soando e deixando impressões. Foi um encontro inesperado e, no entan-
Entre a infância e a adolescência, entre Lisboa e Alpedrinha, vê crescer to, tinha a certeza de que há anos o esperava. Sabia que esse encontro
a consciência de que «Na casa, não se administrava bem a justiça da teria de ter lugar. E era. realmente. um ter lugar. o que acabava de
língua», o que fará surgir, mais tarde, a figura de Témia, a rapariga que acontecer. Percebia-se já a existência de uma vida que se orientava por
temia a im postura da língua. E esta casa é tanto a casa onde vivia como uma causa, aqui lo que viria a nomear por <(Causa Amante», uma força
o país que a albergava. criadora de amor e beleza. Nos textos, essa força assumiria diferentes
Concluído o Curso de Direito em 1955 e o Curso de Ciências Pedagó- formas sem hierarquias entre si. Podia surgir como um «torvelinho de
gicas em 1957, Maria Gabriela Llansol inicia um trabalho de experiência intensidades», um (<torvelinho de luz», um arbusto, um corvo amarelo,
pedagógica, em 1960, que terá continuidade na Bélgica, na chamada um piano, árvores.
Escola da Rua de Namur, em Lovaina (1971-79). Perceberia, em breve, a verticalidade daquela paisagem de árvo-
Ainda em Lisboa, antes de se confrontar com a paisagem do res inclinadas, no béguinage de Bruges, e de como ela correspondia à
béguinage de Bruges e com a estranha verticalidade oblíqua das suas necessidade desconstrutiva que marcava a sua escrita. Diria mais tarde,
em Lisboaleipzig 1, «Começou a vibrar um grande arco em que espalhei
a justiça e a desordem», e em Amar Um Cão, pela boca de Jade, (<Não
7 Nas páginas que se seguem, as expressões entre aspas provêm todas da Obra de
Maria Gabriela llansol. posso/ ser bom ser/ se não estiver na perpendicular do ceptro».

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Entendia que não havia retorno, que o caminho era para diante. antes, se recusara a participar na guerra colonial, e desertado; deixava
Como reaprendera a ver/ler, reaprendia a escrever - não segmento a um livro publicado e outro, embora já concluído, ainda inédito. (... )Vim
segmento, numa narrativa sequencial, mas articulando um diálogo de com muito temor e, ta mbém, com uma enorme sede de liberdade, de
notas dispersas que entram em consonância, tecendo e ligando fios, novo, de atingir o âmago do ser. Ninguém conseguirá ter uma pá lida
frases que, por intensidade ou aproximação sintáctica ou semântica, imagem da densidade do ar que, lá em baixo, se respirava. no exíguo
têm correspondência entre si, como feixes de luz que, irradiando de cubícu lo fechado das nossas vidas. Eu procurava evadir-me a escrever.»
diversos lugares, mas convergindo num determinado ponto, resultam Os anos da Bé lgica têm nome de lugares- Lova ina (1965-751. Jodoig-
numa cor que não estava em cada um de per si, que não é uma soma de ne (1975-80) e Herbais (1980-85). Longe da sua língua. é nela que evolui.
intensidades com vista a uma intensidade maior, mas a transformação desconhecendo (como diz nos anos de Lovaina) «o texto surpreendente
desse conjunto em algo diferente, como por exemplo, da luz em cor. que me espera». Eem Jodoigne, na casa onde plantou Prunu s Triloba (o
Como dirá em Amar Um Cão: «uma frase, lida destacadamente, apro- arbusto que será também figura dos seus livros). já quotidiano e texto
ximada de outra que talvez já lhe correspondesse em si lêncio, é uma cruzam enxertias: tal como as páginas dos Diários são fragmentos de
alma crescendo». livros futuros, também as figuras do texto com-vivem com Llansol na
Percebia agora que, para si, a leitura e a escrita se identificavam . casa e no texto concomitantemente - «Estou ainda em Jodoigne, na
com o prazer deste jogo de correspondências, com o prazer de ver pequena divisória onde eu moía farinha. Indo à garagem, onde insta-
almas crescendo. Por isso, pouco lhe interessara o «atalho das repre- lámos o forno, para cozer o pão, vejo Margarida a acender a vela. No
sentações», que só tem continuidade numa outra representação, e auge da chama, o pão tem um odo r quente .// - Não se virem para
escolhera a «floresta das intensidades» e a sua capacidade de produzir trás -disse Ana de Pefíalosa, que presidia à vida das nossas imagens.
o novo. Dos textos que acolhia no colo e nos quais se recostava, dizia: E assim foi feito, como se a nossa partida para Herbais se resumisse
«Leio algumas páginas e sinto que o que leio me atinge de maneira tão a uma troca de identidade». Para Herbais vai-se em busca da «esmola
directa e íntima que está naquele momento sendo escrito». Leitura e do sil ênc io». Mas esse silêncio e o isolamento que caracteriza Herba is
escrita reflectiam-se. Também era agradável escrever, «pelo gesto, pela não significam um afastamento da realidade; pelo contrário. esta passa
concentração, pela força empregue nos dedos e no pulso. Pela manga a ser vivida de modo mais intenso. Como se a realidade desse lugar
preta que se termina na palidez da pele. Pelo ângulo do dedo indicador. geográfico correspondesse a uma idêntica realidade no texto - uma
Pelo roçar da parte inferior da mão no lugar ainda intacto da escrita», ou espécie de «cena fu lgor», já que esta se define como um «lugar vibran-
pela sintonia entre reinos: «Prazer do reino animal, prazer de escrever te», um <dugar de abrigo», um «refúgio de uma inexpugnável beleza», o
com um aparo que traça as palavras como deslocações de insectos.» lugar que permite «a vibração pelo vivo e pelo novo». A língua do texto
No meio dessa experi ência, escreve O Livro das Comunidades llansoliano caminha cada vez mais com uma energi a tensiva que procu-
(1 977). o primeiro da Trilogia «Geografia de Rebeldes». ra dar a ver a coisa não através da representação, mas pela sua ampli-
A ida para a Bélgica traça um percurso de escrita que, apenas ficação. A busca da língua sem impostura. que tomará corpo na voz de
esboçado em Portugal (Os Pregos na Erva, 1962). reconheceria, a partir Témia, exercitava-se no texto pe la escolha de uma escrita que partia
de então, um caminho singular na escrita portuguesa. Maria Gabrie la da imagem e não se encerrava nela nem na metáfora. A imagem dá a
Llansol parte em 1965 e só em 1985 regressa a Portugal. Dirá da sua ver a coisa e pode amplificá-la, porque não a compara com um outro
ida para a Bélgica: «Não tinha mais do que trinta anos; acabara de me elemento, como faz a metáfora, podendo ainda amplificá-la através de
casar e vinha, sozinha, ter com o Augusto [Joaquim] que, umas semanas um processo de desidentificação com a co isa. deixando de ser «imagem

38 39
,-

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de»; na metáfora, os dois elementos em comparação fundem-se num a sobreimpressão, num mesmo tempo e lugar, de figuras arrancadas
só, como que anulando-se para dar vida a um terceiro. Na língua sem ao seu tempo histórico, que se transfiguram para que os «encontros
impostura, o sentido da posse tem de estar ausente. nada se anu la. A inesperados» e «de confrontação» possam ter lugar - «Fez-se ali o nó
«justiça da língua» pressupõe a não-anulação, o não-Poder, e constrói- de que depois desfiei o texto . Comecei nas beguinas; destas, passei a
se permanentemente, desconstruindo significados padronizados, utili- Hadewijch. a Ruysbroeck. Destes. a João da Cruz e a Ana de Pefíalosa.
zando a imagem como um incipit da figura, tornando-a imagem-figura, Fui conduzida por todos eles a Müntzer. à bata lha de Frankenhausen
um agente do texto. Maria Gabriela Llanso l recorda: «Lembro-me de ter e à cidade utópica de Münster, na Vestefá lia. Nos restos fracassados
dito/ quando chegar a Herbais, a minha língua perderá definitivamente destes homens. encontrei Eckhart, Suso. Espinosa. Camões e Isabel
o possessivo. Porque inútil. A língua que se tornaria lá transparente e de Portuga l. E foi por sua mão que fui até Copérnico, Giordano Bruno,
verde, não esta ria mais presa a um território; a mudança deu-se a 31 de Hólderlin. que todos eles anunciavam Bach, Nietzsche. Pessoa, e outros
Maio de 1980». No texto llansoliano. o possessivo passará a exercer. que a nossa memória ora esquece. ora lembra tão intensamente que
quase exclusivamente, o seu va lor afectivo. São os anos da segunda me parece outra forma de os esquecer». No texto llansoliano encontra-
Trilogia. «Ü Litoral do Mundo», e do começo de Lisboaleipzig 1. Oencon- mos Fernando Pessoa mudado em Aossê (AOSSEP). Jorge de Sena em
tro inesperado do diverso, texto que reúne Jodoigne, Herbais e Colares, . Jorge Anés, mas também Teresa de Lisieux, Emily Dickinson. Rimbaud
como reúne Lisboa e Leipzig, Bach e Pessoa. Neste livro, Llansol fa la e Maria Gabriela Llansol. entre outros. E Bach e Pessoa num lugar -
do significado que, no texto, assumem essas mudanças de lugar a que Lisboaleipzig. São figuras de escritores, de místicos, de rebeldes, para
chama «passagens-metamorfose1>: «Como se eu investigasse, no dia a quem a resignação não faz sentido, que não ace ita ram «ver a sua vida
dia de outrora. um fio condutor. correspondências temáticas e de preo- amputada de vibração, de intensidade e ampl itude», nem que a espécie
cupação, sob a forma geral da partida e da mudança: saída de Jodoigne pudesse ser fundada «na posse de uns sobre os outros». Nessa recusa.
para Herbais, e desta para Colares, e entrada em Portugal, após vinte tentaram abri r caminho à liberdade de consciência, ao direito à autono-
anos. Ao reler-me, porém, essas passagens-metamorfose revelara m-me mia da sua vida, e ao dom poético, para que fosse possível uma nova
que Jodoigne foi a casa das beguinas. que Herbais foi o lugar de encon- paisagem humana. Sabiam da existência, no mundo, do Mundo e da
tro de lnfausta, de Aossê e de Bach, e que em Colares acabaram por Restante Vida, e que só esta permite dar à vida um sentido e uma fonte
encontrar-se os membros dispersos da comunidade, nos seus extractos de alegria. Éuma história que, ainda hoje, continua a fazer-se e. nesse
de época. distintos, idênticos e evolutivos./ Eo mais curioso, é que me sentido, esses seres do passado vêm do futuro, continuando «com a
encontro face a um texto que não pressentira - porque não me dera sua consciência livre. a criação do mundo». Nos livros de Llansol. essas
conta de quando queriam encontrar-se. enfim. os membros -visíveis e figuras existem desde a primeira Trilogia. E ainda que, em livros mais
invisíveis - dessa comunidade». recentes (Parasceve, 2001 ). essa linhagem dê origem a uma «geração
Ao falar do seu texto nascente, Maria Gabriela Llansol lembra sem-nome», híbrida e «temível» porque «não só capaz de metabolismo,
(Bruxelas, Europália. 1991) o modo como, na Bélgica, a «sobreimpres- mas igualmente de metamorfose», o caminho do texto continua a ser o
são» da paisagem com a língua que levara de Portugal, fez surgir o mesmo.
«Locus/Logos» do texto - «Entre vós, na minha língua confrontada às São muitas as linhas que mostram o percurso feito e a experiên-
vossas paisagens». De visita ao béguinage de Bruges, apercebeu-se cia que resultou em texto novo. Ao longo dos Diários - Um Falcão no
de que «vários níveis de rea lidade ali aprofundavam a sua raiz, coexis- Punho (1985) Finita (1987) e Inquérito às Quatro Confidências (1996)-
tindo sem nenhuma intervenção do tempo». Dessa experiência surgirá que transmigram para os outros livros. desconstruindo assim questões

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

de género, e em livros como Lisboaleipzig 1 e 2 (1994) ou Onde Vais, de representação, nem critérios duais ou de verosimilhança. Porque à
Drama-Poesia? (2000), Maria Gabriela Llansol mostra como a experi- verosimilhança, este Texto contrapõe o fulgor, focos de luz que se vão
ência do rea l se transfig ura em rea lidade no texto - «eu não espero acendendo no texto, (<lugares vibrantes» qu e orientam quem lê - ((
para escrever, nem deixo de escrever para passar pela experiência que O meu texto não avança por desenvolvimentos temáticos. nem por
produz a escrita; tudo é simultâneo e tem as mesmas raízes, escrever enredo, mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor>>; «A escrita
é o duplo de viver». Mas. no seu Texto, a verosimilhança. tão cara ao que cultivo( ... ) Separa o inerte do fu lgorizável. Tudo o que é fulgori-
roma nce dito rea lista e a alguma narratividade, é um obstácu lo a essa zável integra o vivo». E o fulgor não fa la a linguagem capc iosa do ser,
mesma realidade textual. Llansol prefere fazer «deslizar» a narrativida- mas fala a do vivo. «No preciso momento em que um vivo entra em
de para a textualidade, sendo que esta <(tem por órgão a imaginação contacto com uma pessoa, isso torna-se vivo. e começa o pensamento.
criadora, sustentada por uma função de pujança o va ivém Vivo não é, po is. bio nem matéria. Não é carne. nem espírito. Não é
da intensidade», e que «pela mutação de estilo, pela mutação frásica e mecânico nem vital. Não é unidade, nem mú ltiplo./ Éuma relação entre
pela mutação vocabular, pelo tratamento do que mais universal foi dado pessoas, seja qual for a sua ordem, em busca de uma arte de viver, ou
ao homem - um lugar e uma língua - . ela abre caminho à emigração seja, da mútua não-anulação.» Considerando o vivo não como um ente,
das imagens./ dos afectos./ e das zonas vibra ntes da linguagem». É mas como uma relação que se estabe lece <(em busca de uma arte de
através de indicações precisas como estas que nos podemos encontrar viver», uma pedra. uma frase, um animal ou planta podem ser vivos, e
com a singularidade do texto llansoliano - a simplicidade e o efeito de os vivos podem tornar-se figuras, não personagens, com vida e morte
um rea 1 diferente - que pede ao leitor novos modos de ler (na predis- previsível, mas agentes, como qualquer ser humano pode ser ou não
posição para o conhecimento de uma gramática do sensível e de uma ser. figuras que são hóspedes e peregrinos do texto (as mesmas figuras
leitura de intensidades) e a disponibilidade de abertura ao novo. percorrem vários livros). e que não sendo necessariamente humanos,
A essa experiência textual. Maria Gabriela Llansol não chama se definem por uma energia criadora que não pertence a uma espécie
literatura, preferindo sempre falar de Escrita - «Não há literatura. humana ou outra, já catalogadas, mas a uma <( espécie criativa». E o
Quando se escreve só importa saber em que real se entra, e se há «legente», como (< gente que lê sinais» (e que Llansol contrapõe ao
técnica adequada para abrir caminho a outros». A escrita parece ser. <deitar»). a partir do momento em que aceita o pacto de entrar nesse
assim, um lugar, um determinado real onde se entra, um dos mundos do rea l, agindo com essa mesma energia criadora e prolongando a escrita
mundo ou um dos níveis de realidade do mundo. Esse é um lugar onde «como quem se torna descendente do autor do texto)), é também uma
se exercita linguagem e pensamento, onde se faz real( idade), onde se das suas figuras.
dá (outra) forma, como a um mineral em bruto. Nesse real grafado, o Alargando a noção de ponto de vista do humano - <(A mudança
mineral ganha novos nomes porque a sua rea lidade é outra . «Na reali- de olhar abre um campo vastíssimo ao vivo» - Maria Gabriela Llansol
dade, todos os acontecimentos importantes saem de livros. Quero dizer, mostra o caminho da liberdade de consciência e do dom poético, sendo
de uma grafia onde se guarda./ se acumula/ e se delapida (... )». Não que <<o dom poético é a língua tocada pela expansão do universo, /que
se trata, nesta escrita, de representar o real, mas de criar real. Este este caminha para o vivo./ e que o meu vivo é apenas uma forma dos
Texto não existe para ser referenciado a um rea l pré-existente e ser vivos que, de facto, existem». Procurará sempre dar a ver que <ineste
uma representação; ele é um outro real, com os seus modos próprios, mundo. há um mundo de mundos», que podemos alargar o humano a
onde se entra e fala, onde o leitor pode querer ou não entrar, aceitan- todos os vivos, já que «a vida não é essencia lmente nem principalmen-
do ou não o jogo de não ter protocolos de leitura fixos, nem esquemas te humana» e que «ser-se humano é evo lutivamente um progresso de

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Maria Etelvina Santos

leitura mas não é um privilégio, nem uma superioridade, nem um dado


adquirido». O combate a travar é pela não-hierarquização e pela mútua
não-anulação entre os vivos.
Obra aberta a várias linguagens, da qual também faz parte um
conjunto de autores estrangeiros trazidos por Llansol para a língua
portuguesa, com o objectivo de lhes prolongar a voz numa outra língua,
o texto llansoliano continua hoje, a vá rias vozes, o seu diálogo com os
diferentes modos estéticos do mundo.

Leitura de um encontro sem normas

À medida que ousei sair da escrita representativa em que me


sentia tão mal, como me sentia mal na convivência. e em
Lisboa, encontrei-me sem normas, sobretudo mentais.
Maria Gabriela Llansol. Um Falcão no Punho

Chegados à escrita, cada um traz consigo um instrumento próprio


para medir os caminhos a percorrer. Seja qual for a matriz de compreen-
são que o sujeito tem do mundo, a escrita do texto criará coordenadas
próprias, um ritmo e um modo independentemente dos modos do seu
executante, pois, embora afectando-se, escrita e escrevente são formas
diferentes de um mesmo sujeito.
«Por que se escreve?» Deve ser uma das perguntas retóricas mais
vezes grafada. Já não espera resposta. Diz e passa adiante. Muitos
adaptam o (<Fingir é conhecer-se», poucos contam como não fingem,
não ficcionam e, no entanto, escrevem.

sabendo ambos que vamos escrever porque.


porque há uma experiência à procura da sua geografia, no entendível da
língua comum (Llansol. IOC: 64)

Na leitura de um texto literário, é-nos. por vezes, mais difícil enten-


der o alcance de uma frase assertiva e exp lícita do que o sentido figu-

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

rado de uma metáfora. O texto llansoliano, que se apresenta com uma ao estudo da forma e do funcionamento da narrativa. alargando o seu
dizibilidade de «natureza catafática» 8, no seu modo de ir dizendo sem campo de reflexão muito para além da análise de códigos técnico-
metáfora, interroga-nos permanentemente e quando menos espera- literários, principalmente no que diz respeito ao romance. e. por outro,
mos. «Oue diz o texto quando diz ... » - foi já um motivo de reflexão, este género narrativo tem sido objecto de grandes mutações estrutu-
reunindo em colóquio alguns pensadores deste Texto (Co lóquio realiza- rais, estas duas aberturas não nos garantem, no entanto, uma imediata
do no Convento da Arrábida, em 2003). A perplexidade que nos deixa o aproximação crítica ao texto llansoliano. As implicações que este texto
simples é, muitas vezes, não da ordem do indecifrável, mas da ordem da levanta e as que conhecemos relativamente aos cânones do romance
estranheza. Uma «estranheza irredutível», como diz Silvina Rodrigues não se situam em terreno comum. Não será, contudo, impossíve l tentar
Lopes a propósito desta escrita - estranheza que não pretende deixar uma aproximação. com o objectivo de encontrar uma perspectiva crítica
de o ser, porque o que lhe é próprio é justamente o seu agir contra a paz de abordagem que, afastando aquelas categorias da narrativa que mais
do inerte, criando um tranquilo desassossego. Llansol di-lo abertamen- têm sido objecto de desconstrução (espaço. tempo, acção, narrador e
te: personagens), dirija o olhar para algo que permita uma análise a partir
de um outro ponto de vista. Ainda antes de considerar os aspectos mais
Através de mim. os animais assumiram melhor a sua condição humana. ligados à efa bulação, propomos um olhar e uma reflexão a partir do
Eu não fiz senão correr através do mundo, e assumi, como pude, a minha ponto de vista da Língua, que incida sobre os conceitos de «código»,
condição animal. Começou a vibrar um grande arco em que espalhei a enquanto processo semiótica, e de «coerência», no âmbito da linguísti-
justiça e a desordem (Llansol. LL 1: 82) ca textual. considerando que é a partir do código que o texto llansolia-
no opera uma maior mutação, podendo ser esta a que orienta todas as
Para tentar perceber como a escrita llansoliana provoca uma ruptu- outras qu e. no plano semântico e pragmático, vão sendo recorrentes, e
ra na narra tiva de expressão portuguesa, partimos de uma reflexão que comportam a noção de «coerência» 9.
sobre os modos desta escrita durante os séculos XIX e XX, desde o Não pretendendo fazer uma síntese dos caminhos percorridos pelo
advento do romance, na tentativa de definir pressupostos orientadores conceito de «código». objecto de análise sistemática principalmente a
da especificidade deste género narrativo e cujo modelo a escrita de partir da segunda metade do século XX, lembramos apenas algumas
Llansol subverte, introduzindo uma mudança de paradigma em todas das dominantes teóricas que estruturam esse conceito. Ao implicar uma
as categorias da narrativa e na dinâmica de produção textua l, com as competência comunicativa entre um emissor e um receptor, a activação
respectivas repercussões nos modos de ler. Se, por um lado, a narra- e descodificação de um determinado código depende essencialmente da
tologia, enquanto disciplina teórico-metodológica, tem estabelecido adesão das partes envolvidas e do entendimento das regras de func io-
relações com outras áreas de investigação, principalmente a partir da namento desse código. Desde que ambos reúnam essas condições para
Linguística pós-saussuriana, com o objectivo de não se circunscrever que a semiose se efective. podemos dizer que a competência comunica-
tiva pode ser activada. Respeitadas as componentes internas que dizem
8 ÉAugusto Joaquim quem chama a atenção para a «natureza catafática»da escrita de respeito a uma determinada gramática e também as componentes de
Llansol: "ºtexto /lansoliano, dentro dos limites impostos pela polissemia, é inteiramen- ordem social e espaço-temporais, a «vertente institucional» do código
te definível. dada a natureza catafática - afirmativa e exp!fcita - da sua dizibilidade.
Ou seja, o texto não se constrói sobre a probabilidade aleatória de significação, mas
pela sua produção consciente, tecnicamente pensada.»(«Algumas Coisas». in Llansol. 9 Chama-se a atenção para as entradas do Dicionário de Narrato/ogia. de Carlos Reis e
FP. 157). Ana Cristina Lopes, que estão na base desta reflexão.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

é respeitada, variando a sua componente normativa apenas consoante noção de coerência se mantém. Este aspecto é singularmente observa-
as áreas em que se movimenta. Chegados a este ponto, podemos dizer do na escrita de Llansol. através da sugerida e necessária ligação entre
que a linguagem literária subverte o código e a sua vertente institu- núcleos fortes de intensidade significante, as diferentes «cenas-fulgor»,
cional, porque cria uma situação de instabilidade a partir do momen- um dos modos que a textualidade llansoliana cria como alternativa ao
to em que a «vigência do código» deixa de ser observada. No que diz fio sequencial da narrativa. A tarefa do leitor será chegar ao reconheci-
respeito à narratividade. definem-se três características para a vigência mento dessa coerência textual, ao lugar onde ele próprio se faz textu-
dos códigos: as características modais da narrativa, a pluralidade dos ante desse texto, onde, como um scriptor, a sua leitura copia o texto,
códigos que a estruturam e a especificidade dos signos que integram comentando-o, continuando-lhe a escrita como descendente de quem o
esses códigos. Quanto aos modos da narrativa, eles convocam deter- escreveu, copiando esse texto coerente porque reconhecido, pois, para
minados sistemas de signos entre si; quanto à pluralidade dos códigos, além de todas as competências linguísticas e outras a que se possa
podemos dizer que são eles que projectam as diferentes lingu agens, e recorrer, é ainda pela recuperação de uma complexa estratégia de reco-
em última instância, é essa pluralidade que explica a diversidade dos nhecimento, que cada leitor faz a partir da intersecção do conceito de
signos. Nesta ordem de factores, é a capacidade de reconhecer esses «uso» da sua própria li nguagem com o da linguagem do texto, que este
signos que possibilita ao receptor o processo de descodificação. A essa mostra, ou não, a sua coerência textual.
capacidade chamamos «competência narrativa». Podemos perguntar:
que acontece quando o receptor-leitor se sente capaz de reconhecer as Ocontrato que me liga ao legente é da ordem da compaciência; avanço por
diferentes linguagens, ou códigos, e a diversidade dos seus signos, mas um caminho que não garanto, e vou udizendo» (Llansol. OVDP 185)
não reconhece o processo aglutinador dos diferentes sistemas que os Spinoza enunciou que as palavras só têm uma significação precisa em
virtude do uso habitual que fazemos delas. (Llansol. F 63)
signos, a partir das características modais da narrativa. convocam entre
Gostaria que falar fosse sempre experiência de linguagem. (ibid.: 109)
si? Não será, talvez, a competência narrativa do receptor-leitor que aí
está em causa. mas a sua competência em relação à coerência interna
Qualquer destes enunciados pode também ser pensado através da
do texto que está a ser objecto de leitura. É essa «coerência» textual
filosofia da linguagem, a partir de Wittgenstein, e do contributo que ela
que, sendo o resultado de estratégias e intenções específicas, resulta
trouxe aos estudos literários. As <<observações» 23 e 432 das Investiga-
também num todo estrutural e semanticamente coerente. A noção de
ções Filosóficas, parte 1, são disso exemplo:
«coerência» é, por isso, uma das noções fundamentais para a noção de
textualidade. E embora possam ser considerados vários mecanismos 23 Mas quantas espécies de proposições há? (... ) Há um número incon-
para a construção da coerência textual, podemos dizer que talvez seja tável de espécies (... ) E esta multiplicidade não é nada de fixo. dado de
este um dos pontos de fuga que permite a passagem para o «novo». uma vez por todas; mas antes novos tipos de linguagem. novos jogos de
Consideramos que a chamada «progressão remática», ou <<progressão linguagem. como poderiamas dizer. surgem e outros envelhecem e são
de informação no interior do texto», permite uma tal abertura a nível esquecidos. (.. .)A expressão jogo de linguagem deve aqui realçar o facto
transfrásico que poderá, em última análise, vir a atingir o código. Pode de que falar uma língua é uma parte de uma actividade ou de uma forma
ser esta uma das vias do texto llansol iano, ao situar-se no domínio da de vida. (Wittgenstein. 1987: 189)
textualidade, mais do que no da narratividade. Mantendo uma coesão 432 Todo o símbolo [sinal], isolado. parece morto. O que é que lhe dá
lexica l interna, urna progressão remática relevante e a interacção entre vida? - Só o uso lhe dá vida. Tem. então. em si o sopro da vida? Ou é o uso
o verbalizado e o universo operante no texto, poderemos dizer que a que é o sopro da vida?» (ibid. : 413)

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

A noção de uso é entendida como algo que dá vida. A partir dessa as diferentes «formas de vida». Écomo se ao dar um determinado uso a
noção já não é possível entender a linguagem como mero instrumento uma palavra que. no dicionário, está deitada. inerte, lhe atribuíssemos
- ela só poderia ter apenas esse carácter instrumental se fosse possí- vida, a iluminássemos («fulgorizar» é a palavra que Llansol usa). como
vel atribuir-lhe um estatuto fora da prática ou uso, e como isso não é se ela fosse um objecto que nós pomos a andar. E não se fa la aqui
possfvel, ela tem de ser algo mais. Esse <<sopro» parece ser o que dá metaforicamente; as palavras só «andam» se as pusermos em texto
fisionomia às pa lavras. E isto é um processo interminável, que torna a fulgori zável; af elas circulam, alteram-se (depende dos olhos de quem
leitura de um texto também um processo sem fim: lê) e formam significado(s) que, mais uma vez. irão depender do «uso» e
da «forma de vida», neste caso. de quem lê. Por isso também a imagem
«( ... ) ler é nunca
chegar ao fim de um livro respeitando-lhe a sequência da «esponja embebida» (embebida de <<uso» e com «forma» aberta) e
coercitiva das frases, e das páginas. Uma frase. lida destacadamente, a das «rochas com faces pontiagudas e reentrâncias» . explicavelmen-
aproximada de outra que talvez já lhe correspondesse em silêncio. é uma te «ali deixadas pela erosão»; o tempo - agente de mutação - é
alma crescendo. Eu não consigo abranger a intinitude do número e da
também um factor determinante para podermos definir os conceitos
harmonia das almas. nem o texto de um verdadeiro livro, nem a terra de
de «uso» e de «forma de vida» que. enclausurados num sistema teórico
um jardim que se mantém há gerações.» (Llansol, AQ
espartilhado, poderiam correr o risco da imobi lidade, como as palavras
«de itadas por ordem no dicionárion - sem uso. Se «Ü acesso ao livro
A linguagem recusa ser apenas instrumento de comunicação - a
é imediato», é apenas enquanto as palavras «estão deitadas por ordem
fuga à narratividade faz apelo a um modo de ler que dê conta daquilo
no dicionário» (para alguns, esse «enquanto» não existe, porque usam
que emana de cada frase ou palavra - o seu fulgor. aquilo que delas
as palavras sempre nesse estado de imobilidade). Pode fa zer-se esse
irradia - no seu uso adentro do texto; daí que se fale de textualidade
tipo de uso na leitura de um romance? Será um percurso mais ou menos
e não de narratividade; é o uso da palavra no texto (o seu uso interno)
estático, mas a narrativa pode entender-se. Na escrita de Llansol, essa
que lhe confere significado e deixa ver a «coerência» textual.
leitura da imobi lidade das palavras não é possível; as pa lavras têm de
Não é porque as palavras estão deitadas por ordem no dicionário que ser postas a andar para criar significado. Aquilo que na leitura é «extra-
imaginamos o texto liso, e sem relevo. Nós sentimos que as palavras têm vio», exactamente porque extravasa não só a ordem das palavras, o
normalmente a forma de esponja embebida ou, se se quiser, o relevo de significado de cada uma delas, mas também aquilo que o corpo de cada
pequenas rochas com faces pontiagudas e reentrâncias ali deixadas pela leitor desconhecia poder abarcar, esse extravio é o caminho (que se faz
erosão. Se se tirasse uma fotografia aérea a um livro gigante, confundi- caminhando) do «uso» e da «forma de vida», um caminhar permanen-
lo-íamos com a imagem circular de uma cidade que se defende. Oacesso te para nunca chegar à imobilidade. Por isso, o texto llansoliano é um
ao livro é imediato. Só depois, já nele, principia o extravio. São João da <<lugar que viaja», aliás, um dos poucos lugares onde. desde sempre. as
Cruz diz melhor: «Chegaremos aonde não sabemos por caminhos que não palavras saem da imobilidade, onde o <cuso» não é um conceito estáti-
sabemos». (Llansol, FP 135) co, onde a <cforma de vida» extravasa e desestrutura a noção fechada
de «forma», abrindo-a à dinâmica da significância, pelos relevos que o
O «uso» da língua do dicionário tem de implicar metamorfoses nas texto nos põe no caminho, e dando-lhe a mobilidade necessária para
palavras, na linguagem escrita - novas «formas de vida» (Wittgens- que «uso» e «forma de vida» sejam conceitos operatórios. porque
tein). Uma palavra «deitada no dicionário» não tem uso; pode ser objec- móveis, cujo uso serve um novo modo de ler que nos é ped ido por um
to de variadíssimos usos- e é esta multiplicidade que origina também texto novo.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Serei capaz de segregar festas de pensamento e de língua. numa narrati- muito significativas diferenças de comportamento lexical, semântico e
va? (Llansol, FP 136) estrutural, ainda assim, o romance continuava a ser reconhecido. e a
realidade a partir dele a ser um retorno do mesmo. O romance, enten-
Que relações estabelece o texto llansoliano com o romance? dido como uma narrativa mais ou menos estruturada segundo os câno-
Observemos alguns aspectos mais ligados à efabulação e que têm nes tradicionais e o poder da verosimilhança. continuava sob qualquer
sido recorrentes na definição do modo romance. máscara a tomar como referência um «desconhecido» abarcável; ainda
Em A Palavra do Romance. Ensaios de Genologia e Análise. publi- que surreal, no entanto, padronizável; apesar de tudo, uma representa-
cado em 1986, Maria Alzira Seixo refere-se ao romance definindo-o ção.
como «uma organização discursiva que procede à articulação serial Ainda que a crítica literária osci le entre considerar que não houve
de uma funcionalidade estritamente narrativa com conjuntos indiciais propriamente «evolução» no caso do romance ou que. apesar de tudo.
que, praticando rupturas e possibilidades de irradiação significante houve significativos momentos de ruptura. mais do que uma linha de
no relato, o abrem às potencialidades textuais» (Seixo. 1986: 21-27); continuidade, poderemos considerar que a escrita de Maria Gabrie-
pondo ênfase nessa «articulação» relativamente à forma romanesca, la Llansol é sinónimo de uma rad ica lidade dentro da chamada ficção
considera que a partir desse modelo se desenvolvem depois, nos dife- portuguesa. que necessita de ser estudada não só na sua inserção
rentes autores. «aplicações semânticas ou sintagmáticas particu lares adentro da nossa literatura e dos estudos literários. mas também como
que lhes podem eventualmente conferir um sentido estético epocal uma prática de escrita que a teoria da literatura em geral. e muito
determinado». Concluímos que, apesar das «diferentes aplicações particularmente as teorias da leitura, devem levar em linha de conta em
semânticas ou sintagmáticas particu lares», o «modelo» do romance relação a novos paradigmas. É pela recusa de uma concepção repre-
como forma narrativa se mantém ao longo de dois séculos. pois aquela sentacionalista da linguagem, não enveredando, contudo, pela pura
«articulação serial de uma func iona lidade estritamente narrativa», sa lvo textualidade como universo autónomo. que a escrita llansoliana segre-
alguns autores como Raul Brandão. em Húmus, Carlos de Oliveira. com ga o novo. Maria Alzira Seixo considera que a prática desenvolvida na
Finisterra. ou Maria Velho da Costa (para referir só alguns com cortes forma-romance não se põe tanto em termos de evolução, mas antes de
muito significativos). mantém-se ainda hoje. E. embora subvertendo as busca e desenvolvimento de determinados propósitos como, por exem-
categorias em princípio mais consistentes da estrutura do romance e plo, «a problemática do «outro» em vários dos seus níveis»:
do seu câ none (em momentos como o do «nouveau rornan», uma das
tentativas mais radicais). mesmo abalando os limites da ficcionalidade. [a problemática da alteridade) detém-se no entanto quase sempre. na
poderemos dizer que o romance passou pelo século XX sem deixar que forma-romance. ao nível da sua organização semântica (personagens,
este desestruturasse o seu «ar de família» - a representação como o situações. relações e configurações temáticas); quanto ao resto (lingua-
traço distintivo da narratividade. Talvez porque se tenha questionado gem, género e narração) tem sido sempre marca deste tipo de organização
todas as categorias da narrativa. mesmo em simultâneo. mas não o discursiva a tentativa de. pelo contrário. o «identificar», mimeticamente. e
lugar a partir do qual a representação construía o seu ponto de vista. e de acordo com o registo mais comum da notação verbal da nossa civiliza-
ção que é oda «representação», à entidade «mundo» no seio da qual ele se
a importância que este podia ter na mutação de uma categoria como a
processa. e por isso o romance se tem aberto apenas às diferenças que um
narratividade - a representação, enquanto modo de dizer. alterava-se. mesmo ponto de partida permite, ao ccoutrou imaginável por um «eun cuja
mas a real idade enquanto ponto de vista do real continuava a marcar natureza à partida o condiciona. à alteridade que é o reverso previsível de
as coordenadas e a ser o centro donde tudo irradiava. Com algumas e uma identidade de base. (Seixo. op.cit.: 22)

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Apesar de tudo, o romance foi conseguindo instau rar fracturas que roman», o romance tinha que se desembaraçar da intriga e abolir a moti-
permitissem a pa ssagem, conforme também é sugerido por alguns vação psicológica ou sociológica das personagens prestando uma atenção
autores: aos objectos. Épor isso que o autor de Ociúme define este romance como
«uma narrativa sem intriga», povoada de «janelas sem vidros. minutos sem
[a ideia que] centrava o romance no indivíduo enquanto personalidade e dias. uma casa sem mistério, uma paixão sem ninguém». Pôr em ordem os
consequentemente subordinava a escrita à história, às personagens. à acontecimentos cronológicos duma narrativa não é senão a evidenciação
mensagem (...). não foi nunca uma imposição absoluta. Contra a rigidez da de um trabalho de escrita e do acontecimento (ficcional ou real). O que
ordem do discurso, e consequente exigência de verosimilhança, o romance conta é a ordem realizada do texto que lemos tal como ele é. (Mourão,
segregou os seus próprios antídotos e desenvolveu-se como género plural «Funambulismos», in www.triplov.com)
que levou a sua capacidade de metamorfose do literário ao ponto de poder
dar lugar ao que não encontra classificaçã o na terminologia dos géneros. E acrescenta, ao finalizar o artigo:
É o que se passa com aqueles livros em que não há personagens. ou não
há história, livros fragmentárias em que, ao nível sintáctico e semântico, a No contexto caótico em que vivemos é cada vez mais difícil descobrir
interrupção prevalece sobre a continuidade. (Lopes. 2003a: 207) identidades. É verdade que a literatura. desde Kafka e Pessoa, dinamitou
a identidade. manifestando a caoticidade das formas de vida, agora sem
Estes textos, a que num outro momento. Si lvina Rodrigues Lopes centro e sem dono. A literatura orgânica vive da atracção do caos. não da
chama «textos de irradiação inconformista» (ibid.: 203), que nos apare- ordem. do eu acentrado. não do eu gestor (Augusto Joaquim). Há, aqui e
cem como «interpelação» e «incitação», são a garantia de que o literá- ali alguns pontos de contactos entre a literatura que produzem Rui Nunes
e Maria Gabriela Llansol e a literatura electrónica: a deflagração da narra-
rio sobrevive e recupera energias. sempre que um leitor aberto a um
tiva. fazer variar a sequência topológica para encontrar outra sequência
processo de desaprendizagem permite que um texto, através da sua
significante, a passagem do eu gestor (narrador) a um eu acentrado (hete-
leitura. possa diverg ir, voltar de outro modo. nunca o mesmo. mas ronímico). Mas acabam aqui as semelhanças. Porque aqui não há vestí-
sempre com corpo, fragmento mas inteiro. Cons iderado como o grande gios da natureza energética da vibração. Aqui não há matéria figural no
momento de ruptura, o «nouveau roman» francês veio introdu zir a ar. não há corpo orgânico, mas agenciamentos maquínicos cegos. que não
auto-referencialidade e a «mise-en-abyme» discursiva como elementos ligam figuras. mas regimes de frases desconectadas. comandadas por um
novos de fuga ao estatuto simbólico do social, ao seu reflexo, à sua eu gestor (o leitor. que usurpou o lugar do autor) onde, finalmente, quem
projecção. Epor onde caminhou o desejo de «contar>>? ordena o mundo narrativo é o demónio da redundância. (ibid.)
No artigo «Funambulismos. A narrativa e as formas de vida tecnológi-
ca», José Augusto Mourão percorre alguns autores da moderna narrati- A aproximação entre textos corre sempre o risco de anular singula-
va, numa tentativa de sistematizar o percurso traçado desde o «nouveau ridades e forçar linhas de continuidade que só remotamente cami nham
roman» até às na rrativas em rede e à chamada escrita electrón ica, para a par. Algumas vezes, a ruptura que certos textos provocam num deter-
concluir que, apesar de existir o perigo de uma aproximação fácil, atra- minado contexto cultural, tem sobretudo a ver com razões pessoais de
vés da fragmentação, rapidamente se conclui que estamos a falar de assimilação e/ou rejeição de valores morais e estéticos. numa postura
textos muito diferentes: ética que segrega o seu próprio texto. O texto llansoliano, surgindo em
Portugal nos finais dos anos sessenta. põe desde logo à crítica o proble-
Ofascínio pelas histórias que não se chega a pôr em ordem é partilhado ma do seu enquadramento. Pedro Eiras refere. entre mu itas outras. a
hoje por muitos escritores. Para Alain Robbe-Grillet. o pai do «nouveau posição de Eduardo Lourenço como uma das que melhor captou o lugar

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desse texto: exigiu de mim mesma uma mutação para a qual nada, nem ninguém, me
tinha preparado.
O enquadramento do texto llansoliano no contexto cultural português é
igualmente problemático. Para Eduardo Lourenço, se todo o texto implica Eis o que aconteceu realmente:
e é implicado por uma cultura englobante. o texto llansol iano afirma-se
num espaço limítrofe e questionável da cultura ou mesmo para lá dela.( ...) Sei hoje que é nessa sobreimpressão que eu habito o mundo, e vejo, com
«Oue Cultura corresponde a um tal Texto não é fácil dizê-lo. Ou melhor: é nitidez, que outros vieram ter comigo:
impossível. Justamente por isso é essa enigmática prosa contemporânea
por excelência.»(Eiras. 2005: 541) «concebe um mundo humano que aqui viva, nestas paragens onde não há
raízes». (ibid: 124)
A cultura que correspondia à escrita llansol iana. podemos dizê-lo
hoje, era tão só a que em ergia do próprio texto. Como Maria Alzira Embora ausente de Portugal, pelo laço da língua reconhecia que
Seixo indicia. essa escrita estava «em desacerto com o seu ou nosso nunca pertencera a um outro país: «Reconheço que sempre vivi nesse
tempo», e abalava-o através de uma «mutação discursiva que, sentimo- país [Bélgica] sem tentar mergu lhar nele, e torná-lo meu; mas como
lo, passa por esse «corp'a'screver», entidade prolongada, de forma por poderia ser diferente, se eu própria me afastava daquele em que tinha
assim dizer inconsútil, entre o eu e a terra, o sujeito e essa tal paisa- nascido e, pouco a pouco, não possuía do passado senão uma língua/
gem de que só o corpo em escrita é memória concretizável». Texto de de que nada, nem ninguém, consegu iriam separar-me. / E, hoje,
«alteridade pura», livros de 1<irradiação plura l», que «reencontram a sei que essa língua se tinha tornado o meu único ponto firme - a
matéria verbal que é o seu primeiro sentido. se não intenção; porque minha âncora: o meu real; o nó de certeza do meu corpo com o mundo.
o próprio sentido se afere pela transformação do dizer». (Seixo, 1986: O meu órgão de convicção, se assim vos aprouver chamar-lhe.» (ibid.:
26-27). Mais do que contemporânea. a escrita llansoliana mostrava o 126). O seu real foi sempre a língua, embora numa outra realidade e
que advém do texto - «o que advém do texto é a construção da frase» apenas porque sentia a presença de «uma realidade inconfundível,
(Llansol, OVDP 9). Era na língua que o texto llansoliano ia exercer incomunicável, incompreensível e inimaginável mas que é, como nós,
mudança. Llanso l voltava a afirmá-lo em 1988: «É minha convicção à sua imagem, unicamente presença» (ibid.: 139); por isso, a sua vida
que, na linguagem dos homens, as palavras que nos libertam do Poder tem um ún ico propósito: fazer «viver as coisas inertes, simplesmente
desde sempre lá se encontravam disponíve is. que lá repousam as afirmando, por ser rea l, que elas têm vida» (ibid.: 136). O rea l de uma
palavras que darão outro desfecho à batalha de Frankenhausen.» (LL 1: realidade outra, improvável, mas existente. dava origem a uma escrita
93). Apesar de considerar estranho que os seus textos só irrompessem que só podia fazer-se, como diz, «na tensão entre criar e salvaguar-
em português «porque no interior dessa língua não havia uma cultura dar o meu caminho no horizonte próximo do quotidiano». Era deste
para os receber» (ibid.: 96). foi nessa língua que sempre escreveu, e foi modo que Llansol escrevia, e escreve, numa relação com o mundo e
o exílio que permitiu a distância necessária para que eles pudessem com os leitores, que não tem nada de abstracto, pois como diz «não
surgi r, na «sobreimpressão» dessa língua com essa outra paisagem, me reconheço chamada a representar nenhum papel, nem a constituir
mas não numa paisagem se ntida como estranha: pólo de identificação» (ibid.: 87). Oque sempre lhe interessou foi tentar
anular a feri da que «nos separa, entre humanos, uns dos outros», e os
Esta sobreimpressão, à primeira vista discordante e contraditória, não humanos de todos os vivos. não só a que separa pobres de ricos mas.
surgiu por minha livre vontade. Impôs-se-me, embaraçante e complexa. e

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como afirma. a que separa «os atentos e os distraídos. os mornos dos interessa é o seu próprio movimento, a sua apetição e força centrífuga
intensos, os necessitados de misericórdia e os orgulhosos.» (ibid.: 85). e os modos como a linguagem diz e cria essa apetição. É a passagem
Em trinta anos de escri ta, o texto llansoliano segue ainda e sempre por da narratividade pa ra a textualidade, ainda que também esta se revista
este caminho, acreditando que «üuem escreve e quem lê, em mútuo. de características muito particulares na escrita de Llansol.
encontrarão o como seguir a linha da nova colina» (ibid.: 87). Nesse Percorrendo o que o estruturalismo francês, nomeadamente Ro land
mútuo e com essa nova linguagem estava a nascer o que permitiria que Barthes, com um livro decisivo como Le Plaisir du Texte, de 1973, trouxe
o romance não morresse. que continuasse o seu cam inho olhando no de contributo para a noção de 11textualidade», poderemos constatar que
futuro a sua origem, não como regresso, mas como ressuscitação ou Llansol, embora parta de pressupostos idênticos, reveste a sua «textu-
capacidade de voltar com novos modos de dizer. alidade» de aspectos singulares quando, num texto programático sobre
Que movimento tem o romance na sua origem? (desde sinónimo de essa noção - «Para que o romance não morra» (in, Lisboa!eipzig 1. O
«l íngua vulgar», por oposição ao latim, até à definição de «conto» ou encontro inesperado do diverso, pp . 116-123) - propõe a textualidade
«romance», por estes começarem por ser escritos nessa língua). Oue como «a geografia [de uma] criação improvável e imprevisível», que nos
verbo o conduz? O romance traz consigo a energia de uma língua, e o pode dar «um acesso ao novo, ao vivo. ao fulgor». Aí se apresentam as
que faz é narrar, contar, é essa a sua condição - ser um agir; o que ide ias-noções que são recorrentes em todo o texto llanso liano. Re la-
lhe é próprio não é «ser narrativa» ou «representação de», com carac- tivamente ao conceito de 1<textualidade», convém relembrar não só o
terísticas definidas, como «ser humano» ou «ser árvore» (que é muito contributo de Barthes na distinção que propõe entre «texto de prazer>>
pouco para definir as capacidades de cada vivo). o que lhe é próprio e 1<texto de fruição», mas também a noção de «significância» (a partir
é a capacidade de desejar ou de ir atrás de um desejo, de perseguir de Julia Kristeva) como lugar de fru ição, bem como toda a 11teoria do
uma ideia - e esse é o desejo de 11contar», de ir dizendo, para que texto» que vê o texto como produção e não como produto, enunciação e
não acabe esse agir, qua l Sherazade usando o contar como processo de não enunciado. estruturação e não estrutura. optando por uma noção de
sedução para adiar a morte, prolongar a própria vida o mais possível, devir que desde então nos habituámos a considerar. Estes são aspectos
como que «experimentando» nessa pujança a condição de ser eterno. que nos parecem coincidentes com o modo como em Llansol se entende
O que se vai contando não parece tão importante como o facto de se a escrita.
poder contar, para sempre. Ao antigo desejo de contar. o romance Barthes faz a distinção entre «texto de prazer» e 1<texto de fruição»:
acrescentou ainda o desejo de pôr uma 1<experiência» no «entendfvel da
língua comum» - para cada experiência, a sua geografia. E se. durante Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá euforia; aquele que vem
todo o século XIX e grande parte do XX. para todas as experiências o da cultura. não rompe com ela. está ligado a uma prática confortável da
romance mostrou uma geografia da representação e da narratividade, leitura . Texto de fruição: aquele que coloca em situações de perda. aquele
que desconforta (ta lvez até chegar a um certo aborrecimento). faz vacilar
com os seus modos próprios, o texto llansoliano. renovando o primado
as bases históricas. culturais. psicológicas. do leitor. a consistência dos
do desejo de contar, abrindo-lhe a forma, renovando a língua. anuncia
seus gostos. dos seus valores e das suas recordações. faz entrar em crise a
uma nova geografia para a experiência de que fala. Desfazendo toda sua relação com a linguagem. (Barthes. 1974: 49)
a identificação possível entre o enunciado e aquilo de que ele fa la, a Com o escritor de fruição (e com o seu leitor) começa o texto insustentável,
linguagem passa a ser vista como significância, admitindo uma grande o texto impossível. Este texto está fora-do-prazer. fora-da-crítica (ibid.: 59)
abertura para o exterior. amplificando significados, o que leva a que se Prazer do texto. Clássicos. Cultura (.. .) Inteligência. Ironia. Delicadeza.
possa deixar de conside rar o texto como representação. pois o que lhe Euforia. Domínio. Segurança( .. .) lugar e tempo de leitura: casa, província,

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refeição imediata, candeeiro, família onde é precisa (... ) Extraordinário seu va lor erótico» (Coelho, 1974: 25)1°, mas para a usar como uma cons-
reforçamento do ego {... )inconsciente acolchoado. O prazer pode ser dito: ciência-mais. capaz de inverter a direcção da perda, transformando-a
é daí que vem a crítica. num instrumento de subversão do código, o que, por sua vez, amplifica
Texto de fru ição. O prazer aos bocados; a língua aos bocados; a cultu- ainda a fruição do texto e invoca, pela criação de um código paralelo (a
ra aos bocados. São perversos porque estão fora de qualquer finalidade
cami nho do idioma?) a possibilidade de um mundo alternativo? Manuel
imaginável - mesmo a do prazer Ubid.: 96-97)
Gusmão faz uma leitura desta possibilidade no texto llansoliano, atra-
vés da «suscitação»:
Pretende-se com as frases de Roland Barthes aqui citadas, fazer
soar um registo que acompanhará o raciocínio que, a partir de agora, Penso que o modelo de enunciação mais adequado para compreender a
procura ver no texto llansoliano um texto de frui ção amplificada, o que. acção do texto sobre a humanidade do humano é odo oráculo e o da susci-
parecendo um paradoxo ou uma redundânc ia (como pode a significância tação. Da palavra oracular. retém-se, na imprevisibilidade. a sua dimensão
ainda ser amplificada?). pretende trazer para a «fruição» uma abertura de fórmula enigmática e ambígua. Da suscitação, guarda-se a forma de um
ma ior, que se amplifica porque é não só o lugar da irredutibil idade do apelo. de uma invocação a que o não actual advenha ou venha a ser.
significado, mas também o da irredutibilidade do tempo, do espaço e [e acrescenta em nota]: Oque o texto tece é, não a ficção, ou a mimese de
das figuras que constitu em o «espaço Llansol>) . Considerando o carácter algo que pode ou poderia acontecer, mas precisamente a suscitação de um
ilimitado da significância e o seu lugar como suspensão do significado, mundo alternativo. (Gusmão, 2005)
a fruição pode ser a epochê que privi legia o apareci mento da figura-
ção no texto ou do texto como figura - «A figura ção seria o modo de A alternativa à ((representação», como procedimento textual que
aparição do corpo erótico (em qualquer grau e sob qualquer modo) no estabelece uma relação de interdependência activa entre representan-
perfil do texto>) (ibid.: 102). Podemos estar a um passo do entendi mento te e representado, pode pôr-se através da (<suscitação», atrás referida,
do que possa ser «o luar libidi nal» e o «sexo de ler» do texto de Llansol ou através da ((figuração». já evocada por Roland Barthes.
- a necessária suspensão da luz do Sol para que a Lua se transforme Se considerarmos a noção de ((figura» proposta por Lyotard (que
em luar. não é coincidente com a noção de (<figura» no texto llansoliano, embora
Em «Ervil has e Bach», Eduardo Prado Coelho, a propósito de Lisboa- dela se aproxime pela força energética), poderemos dizer que estamos
leipzig 1. o encontro inesperado do diverso, lembra também a dicoto- perante a passagem da representação à figuração, movimento que Silvi-
mia de Barthes, para incluir o texto llansoliano nos textos de fru ição. na Rodrigues Lopes desenvolve em ((A Literatura no Limite da Ficção»
(Coelho, 1997: 266-270) (Lopes, 2005: 45-87). Cito de Lyotard:
Como é que o texto llansoliano nos propõe uma textualidade que.
passando por uma prática textual, como preconizava a «teoria do texto», a transcendência do símbolo é a figura, quer dizer, uma manifestação
espacial que o espaço linguístico não pode incorporar sem ser aba lado,
não se encerra nela? Como é que considerando uma subjectividade do
uma exterioridade que ele não pode interiorizar em significação. A arte é
não-sujeito (como Barthes), Llansol se assume como uma das figuras do colocada na alteridade enquanto plasticidade e desejo, espaço curvo. face
seu texto? Como é que o seu texto não é atópico nem utópico? Como à invariabilidade e à razão, espaço diacrítico. A arte quer a figura. a beleza
é que nela Texto e Obra podem coincidir? Como é que. do seu ponto
de vista, aquele que escreve não escreve apenas para ((perder a sua 1o Em «Aplicar Barthes», prefácio à tradução portuguesa de Le Piais ir du Texte, Eduar-
consciência no ilimitado da significância (... )[onde] o texto adquire o do Prado Coelho faz uma análise onde mostra esta e outras orientações do discurso de
Barthes.

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é «figural», não-ligada. rítmica. (Lyotard, 2002: 13) ção especular com o outro». Éuma holofrase.

Lyotard chama a atenção para a passagem do símbolo à figura e, (Ainda que se diga milhares de vezes. eu-amo-te não entra no dicionário; é
ao considerá-la como «uma man ifestação espacial», abre caminho para uma figura cuja definição não pode exceder o intitulado.)
aquilo que no texto lansoliano chamamos «espaço Llansol» ou Lugar
- esse lugar-idioma-texto, plasticidade e desejo, lugar de encontro Não sendo um enunciado nem uma enunciação, só pode ser uma
(com todas as implicações qu e a noção de «encontro» tem neste texto), proferição. E acrescenta:
espaço aberto aos múltiplos <<encontros de confrontação» que preci-
sam de acontecer. Embora a noção de figura tenha, em Llansol, outros Na proferição não há lugar científico: eu-amo-te não depende da linguísti-
ca nem da semiologia. A sua instância (isso a partir de quê se pode falar)
contornos. a questão da figuração parece pôr-se do mesmo modo.
estaria antes na Música. À semelhança do que se passa com o canto. na
Se considerarmos que o modo de «afecção» da forma do romance
proferição de eu-amo-te, o desejo (... ) [é) simplesmente: sentido. Oprazer
é aquele que antes enunciámos, o desejo de ir atrás de. uma apetição, não se diz; mas fala e diz: eu-amo-tei>. (Barthes. s. d.: 138-139)
o desejo e o movimento desse desejo, ou aqui lo a que Spinoza chama
conatus ou pujança, e para o qual Lyotard remete ao fa lar da arte na sua Nos livros de Maria Gabriela Llansol. há palavras que são holofra-
relação com um espaço figural, poderemos dizer que o romance reúne, ses e outras que, híbridizadas, podem ser vistas desse modo: preten-
na sua essência, as condições que lhe permitem evoluir no tempo, ser dem escrever o sensfvel mais do que dizer significados, porque no texto
mutante. Oque Llansol mostra com o seu Texto é esta possibilidade, e llansol ia no «as palavras são vivos e não instrumentos. » (OVDP 82). por
por isso escreve «Para que o romance não morra», como que podando isso. no dicionário. <<sobre a página. as palavras estão a andar» (P: 9).
essa imensa árvore. para que a realidade e o imaginário advenham Se a leitura se vo ltasse apenas para as palavras do dicionário. poderí-
espaço imaginante a ser contado - romance. amos perguntar: o que é um «vivo-por-dizen> (P 75)? Assim, só podere-
Equal o discurso que melhor fa la a linguagem do romance? mos repetir: «Ah, tudo isto é tão longe, mas tão longe da facilidade das
No ensa io de Silvina Rodrigues Lopes referido atrás, chama-se a gramáticas.» (José Tolentino de Mendonça)
atenção para o modo como Roland Barthes, em Le Plaisir du Texte. ao Em nenhum outro caso, o dizer e o dito são tão inseparáveis como
distinguir representação de figuração, descreve esta como «o modo de na proferição, essa escrita do vislumbre e da figuração.
aparição do corpo erótico( ... ) no perfil do texto», e a representação Como Llansol (escreve)-A.Borges (lê). na primeira página d' O Livro
como «uma figuração embaraçada, estorvada por outros sentidos que das Comunidades.
não o do desejo: um espaço de álibis (realidade, moral, verosimilhança.
legibilidade, verdade, etc.)» (Barthes. 197 4: 102). É ainda a figuração Escrever vislumbra. não presta para consignar. (... ) E sabe-se lá o que é
que. sendo necessária à fruição, pode estar associada a um discurso um Corpo Cem Memórias de Paisagem.
que usa a «proferição», no conhecido exemplo que Barthes dá, em Frag-
mentos de um Discurso Amoroso, da expressão eu-amo-te, considerada
não como uma frase. mas como uma ho lofrase: «Um Corpo Cem Memórias de Paisagem» não será uma proferição?
Uma holofrase? Pertence a um espaço figural e, na escrita llansolia-
Eu-amo-te não é uma frase: não transmite um sentido, mas prende-se na, pode ser uma figura - talvez a prime ira que surge neste Texto, a
a uma situação limite: «aquela em que o sujeito está suspenso numa rela- pri meira de <<um primeiro pensamento verdadeiro» .

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Ao contrário da figuração, a representação pretende «fixar» e to. ou da «ideia-afecção», é ainda um conhecimento só dos efeitos, sem
«consignar»; parte do símbolo, diz Nelson Goodman, para o objecto; no compreensão das causas, é aquele que corresponde às paixões e às
outro processo. a que Goodman chama de exemplificação (e que aqui ideias inadequadas ou confusas, e em que ainda estamos sepa rados da
aproximamos da proferição e da figuração). parte-se do objecto para a nossa potência de agir; o segundo grau é o da (<ideia-noção», ou conhe-
figura, e é sempre possível «figurar» mesmo o que não podemos «reco- cimento que já se eleva à compreensão da causa; é o conhecimento das
nhecer». É neste sentido que Silvina Rodrigues Lopes. no ensaio atrás ide ias adequadas, quando já compreendemos o que nos afectou de tris-
citado, afirma que no discurso literário «se atinge o ponto extremo do teza ou de alegria, e podemos, assim, agir e escolher os nossos (<encon-
potencial inovador da linguagem, a intensificação da experiência singu- tros», no sentido do aumento da nossa potência de agir (com a alegria
lar contra as fórmulas da experiência repetitiva» (Lopes, op. cit.: 83). aumenta. com a tristeza diminui); como a (ddeia-noção» resulta daquilo
Ou, no dizer llansoliano, se atinge esse «ponto-voraz», ponto extremo que nos afectou. e nós somos afectados diferentemente. daqui decorre
de potencial ou pujança, de intensidade máxima, para onde se caminha que a «ideia-noção» não pode ser abstracta . o que leva a entender que.
com o desejo de chegar o mais perto possível. porque é nele que se para Spinoza, não possa haver noções abstractas de bem e de ma l. de
vê; aí se vislumbra, desde que não se ultrapasse, no dizer de Spinoza, belo e de feio. e que ele fale apenas de (<bons» ou <(maus» encontros
aquilo de que o nosso corpo é capaz, a sua capacidade máxima de ser para definir o bem e o mal 11 . Quando se chega ao tercei ro grau de
afectado (questão física e não moral). o nosso limiar de intensidade conhecimento, o das intensidades ou da (ddeia-essência», percebemos
ou o limiar de intensidade que o nosso corpo admite. É esse limiar a nossa (<essência singular», através do conhecimento do nosso limiar
de intensidade que define a nossa «potência de agir», a possibilidade de intensidade, mas apenas ainda como ((essência singular» porque,
de nos deixarmos surpreender, a nossa capacidade de encantamento como nenhum de nós tem limiares de intensidade iguais qualquer que
(também ela presente na essência do romance) - daí que a Ética de seja a espécie a que pertencemos. esta essência só pode ser defini-
Spinoza não seja considerada uma moral, pois não estamos perante da como <(singular». O conhecimento da nossa «essência». em última
«o dever», mas perante ((a potência», aquilo que o nosso corpo pode, instância, resu ltará da junção daquele segundo grau de conhecimento,
a sua capacidade de afectar e ser afectado. Para lelamente, podemos composto por aquilo que nos caracteriza no plano das partes extensivas
dizer que o essencial do romance também não é a apresentação de do nosso corpo. com o conhecimento do nosso limiar de intensidade. no
uma moral (como tem por vezes acontecido, desvirtuando-o ou, pelo plano das essências. ou terceiro grau de conhecimento - é o caminho
menos, diminuindo-lhe as potencia lidades). mas a apresentação de um da «essência singular» à <(essência».
agir como modo de comportamento, como o seu modo de contar, que O facto de se ter em consideração os três graus de conhecimento
se define por essa capacidade de encantamento. Se quando se atinge em Spinoza. está assoc iado à constatação de que o texto llansoliano
esse limite de intensidade, ou gradus, que define, segundo Spinoza, a continua. através de um percurso que é literário. uma idêntica forma de
nossa ((essência singulan>, isso significa que se atingiu o terceiro grau caminho ou método, que va i da vontade à tentativa de atingir um grau
do conhecimento. o conhecimento das intensidades ou das essências, de conhecimento que lhe permita saber o que pode o humano. não atra-
então, conhecer a forma do romance, deste ponto de vista, é caminhar vés de angústias e de dúvidas existencia is, mas pela via da Alegria:
para o conhecimento daquilo que lhe é essencial, que se mantém fora
do tempo libertando-o para a possibilidade do «novo». Só conhecendo-o 11 Propõe-se, a partir deste ponto, a utilização da «ideia-noção» de Spinoza para definir
1tconceitoll, como ele aparece no texto llansoliano, uma vez que Llansol também recusa
deste modo, será possível continuar a sua escrita sem ca ir no mesmo. a abstracção em favor da singularidade, propondo a mobilidade e mutação adentro da
Convém recordar que, para Spinoza. o primeiro grau de conhecimen- Obra. reagindo contra aquilo a que chama 1to reumatismo dos conceitos)) (OVDP 227).

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Por que me envolvi precisamente nesta escrita? / Quando deixei de da imaginação-visão que pode aproximar-se da surrea lista e que condu-
escrever histórias, para alinhavar as passagens do Ser subtil nas nossas zirá à ideia de uma realidade mais real do que a rea lista, a escrita de
vidas? Quando me devo ter apercebido que só na proximidade desse lugar, Llansol tem objectivos muito concretos no que diz respeito ao seu fazer
seguindo as bermas dessa passagem, a vida poderia talvez alcançar as poético. Para além de enunciar as múltiplas diferenças textuais que o
fontes da Alegria? (Llansol, F: 22) texto llansoliano pratica no seu caminho de «estranheza irredutível»
(como os diferentes tipos de discurso e as múltiplas justaposições de
Sendo «o caso mais revelador de um processo de mutação na nove- processos sintácticos e semânticos que desestruturam a inteligibilida-
lística portuguesa contemporânea» (Seixo, op. cit.: 28). Maria Gabriela de de quem lê), Silvina Rodrigues Lopes põe ênfase num aspecto que
Llansol altera os «protocolos de leitura» (Scholes) através da desestru- parece ser o ponto aglutinador de sentido do texto de Llansol - «o de
ração genológica, fazendo coincidir vários registos discursivas, e de partir de um em-comum (... ) para desenvolver dispositivos de des-iden-
um processo de transformação sintáctica e semântica, que pede uma tificação. (... ). de elevar o que julgávamos conhecer ao desconhecido
leitura da coesão discursiva e não de narrativas sequenciais. O texto do seu tempo próprio, (.. .)do novo na sua condição de absoluta surpre-
llansoliano parece aproximar-se. como dissemos atrás, de uma vontade sa.» (Lopes, 2003a: 207-208), e através de uma «composição figural»
de «contar» que está nos primórdios do romance, pois «como na estru- como «movimento descentrado que. ao quebrar o espelho através do
tura versicular dos cânticos ou no versejado dos romances populares, qual o mundo é fixado numa sucessão descontínua de imagens, compõe
(... )os versos aliam-se numa seriação narrativa próxima» e constituem um contínuo cujo equ ilíbrio, à semelhança do equilíbrio plástico entre
«i luminações subjectivas que subl inham o instante (lírico) ou sínteses formas e entre estas e as cores, reúne o sensível e o inteligível no dina-
privilegiadas de comunicação entre o sujeito e a escrita ou entre os mismo da apresentação que constitui as formas vivas.» (ibid.: 191). Por
próprios elementos componentes da escrita.» (Seixo, ibid.: 30), o que f~z partici parmos de vários mundos. cada um com a sua verdade própria,
com que, devido à «perfeita libertação semântica e sintáctica» Mana o importante será abolir a dicotomia sensível/inteligível, não situar a
Alzira Seixo considere que podemos falar, relativamente a Llansol, de Verdade, o Belo, o Bem numa «pureza de um mundo das Ideias,> (como
uma «fi cção lírica>i - «este tipo de representação, mais conforme c~m em Platão). mas constatar que elas fazem parte tanto do sensível como
a realidade do que a de um romance clássico (... ) acaba por ser muito do inteligível. que estes são o duplo um do outro, e que tudo nos é dado
menos evidente e aceitável, já que não procede por mimese. por espe- a conhecer através do raciocínio mas também das afecções que fazem
lhagem perfeita ou nítida, mas po r uma espéc ie de decorrência obl íqua parte do nosso quotidiano - o conhecimento é um todo, e nesse todo
onde o trabalho do sujeito discursivo é fundamental nas distorções ou está o mais-saber. Por isso, é na figura, «um todo múltiplo que não é
efeitos especia is que pratica, e daí a sua dimensão lírica marcada.» «figura de»» (ao contrário da imagem que mantém com o objecto uma
(ibid.: 32). relação de analogia, o que faz dela uma totalidade). é na figura como
Posicionando-se numa linha de continuidade com os movimentos um múltiplo, cheia de vazios de energia transformadora (os vazios de
literários anteriores (nomeadamente a reescrita modernista) pela ruptu- significação). que é possíve l ocorrer a metamorfose - «nem todo o
ra que estabelece com a ideia de utilização da linguagem enqua~to nosso dizer se converte em dito, nem tudo o que nos rodeia é reconhe-
instrumento de representação da realidade. e pela abertura que pratica cível. (... ) As figuras (.. .) ajudam-nos a ver o inacabado do mundo, os
relativamente aos processos do inconsciente. mas também demarcan- seus vazios ou presenças sem imagem.» (ibid.: 210-211 ). Éaqui lo a que
do-se de movimentos como o surrea lismo, por não procurar no quotidia- Levinas chama o Rosto, o que é insubstituível, único, um potencial inde-
no aquilo que parece estranho, bizarro até, embora com uma concepção terminado, homem sem imagem, Figura, e que, portanto, pode ser porta

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Maria Etelvina Santos

para sair do egocentrismo, porque a vida não é apenas humana. «todo o horizonte perfila-se. queira-se ou não, uma revisão profunda da teoria
ser é possível», apenas «é preciso uma outra descrição» (Llansol, OVDP. da literatura.»(inllansol, SH: 160-164).
211 e 125). O Texto pede-nos que mudemos de cu ltura literária e de vida. já
Eo Texto foi em busca dessa outra descrição do mundo. Em OSenhor que ele explora novas facetas do humano e as mostra na escrita de um
de Herbais, conta-se, na escrita, como a escrita se foi escrevendo: modo que nos exige a disponibilidade e a abertura ao novo. Se quem lê
tiver para com ele essa abertura, ele mostra caminho, sugere opções.
Demorei praticamente quinze anos a encontrar uma saída viável para os e conduz a verda des (de le e nossas). Para isso. pede-nos entrega. Não
diversos realismos. (.. .) Sei como é muito fácil errar pelos terrenos limítro- será pouco, é o seu modo. A quem não se recusa. mostra-se. Age pelo
fes do realismo. Tentei quase todas as estéticas a que se refere o presente literário. e se caminha por limiares de intensidade, é porque sabe que
livro. Sei que criar um outro modo de significar é muito mais do que uma só perto do «ponto-voraz», a escrita é vislumbre.
questão de escrita. envolve uma mudança radical do modo de vida. Épreci-
Se entendermos que o «ponto-voraz» no texto llansoliano define
so desejar ardentemente - é praticamente uma questão vital - um outro
esse limiar de intensidade a partir do qual se ultrapassa o nosso poder
mundo que se acrescente aos demais. É preciso deitar tora a maior parte
das armas e bagagens que herdámos da literatura. do pensamento. da de ser afectado, e que o discurso literário pretende levar-nos até ao
cultura e do meio social. Compreendo muito bem os que tentaram sa ir do limite donde podemos vislumbrar esse ponto, que não é o sublime da
realismo. e voltaram ao seu redil. (... )O crítico referido [Augusto Joaquim] estética romântica porque o sujeito não se mede com a transcendência,
designa o conjunto dos realismos por escrita potenciométrica, chamando mas com a imanência da linguagem, percebe-se como o texto de Llan-
orgânica à escrita que iniciei. Creio que vale a pena entender as diferen- sol reage «para que o romance não morra», renovando continuamente a
ças. (Llansol. SH: 160) «essência singu la r» do romance - o seu antigo desejo de contar num
modo sempre novo de dizer. A «vocação idiomática» de Maria Gabriela
ÉAugusto Joaquim quem primeiramente dia loga com o texto llanso- Llansol, assim referida por Eduardo Prado Coelho. aquando da publi-
liano e dele deixa linhas de le itura que ainda hoje continuam a orientar- cação de Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, poderá estar na
nos. Procurando o que faz a singularidade desse texto, definiu-o como origem do texto llansoliano, que tem sido, desde O Livro das Comuni-
«texto orgânico» e mostrou-l he as diferenças. face ao que chamou dades, ((criação de um espaço partilhável. que é um idioma» (Coelho,
«texto potenciométrico». Dessas diferenças. sal ientamos principal- 2006). esse limite em que a língua, enquanto sistema de sina is. nos
mente o que nos parece estar na origem desse Texto: «Ü texto orgânico pode afectar. e para além do qua l só existe ritmo.
convida-nos, de facto, a mudar de cultura literária, e do que esta nos
inculcou como paradigma da forma esteticamente correcta e do social-
mente aceitável. (... ) O que o texto potenciométrico fez. o texto orgâ-
nico pode desfazer, como nada impede que aquele se renove. enquanto
este explora novas facetas do humano. Aliás, a mutação do paradigma
não se limita apenas à fruição estética. passa igualmente pela nossa
mutação enquanto leitores e por uma alteração profunda da natureza
da própria literatura. (... ) este texto exige que a actividade crítica se
exerça não no sentido de aplicar esses saberes [semiologia. linguística.
psicanálise] ao texto, mas de os questionar a partir do próprio texto. No

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EU LEIO ASS IM ESTE TEXTO
A Apetição - Odesejo de ler

Toda a coisa se esforça, enquanto está em si, por perseve-


rar [perseverare] no seu ser.

Oesforço pelo qual toda a coisa tende a perseverar no seu


ser não é senão a essência actual dessa coisa.

Este esforço [Conatus] enquanto se refere apenas à Alma


[Mens] chama-se Vontade [Voluntas]; mas, quando se
refere ao mesmo tempo à Alma e ao Corpo, chama-se
Apetite [Appetitus]. (. .. ) entre o apetite e o desejo
[Cupiditas] não há nenhuma diferença, a não ser que o
desejo se aplica geralmente aos homens quando têm cons-
ciência do seu apetite [apetição] e, por conseguinte, pode
ser assim definido: o desejo é o apetite de que se tem cons-
ciência. É, portanto, evidente, em virtude de todas estas
coisas, que nos não esforçamos por fazer uma coisa que
não queremos, não apetecemos nem desejamos qualquer
coisa porque a consideramos boa; mas, ao contrário, julga-
mos que uma coisa é boa porque tendemos para ela, porque
a queremos, a apetecemos e desejamos.
Spinoza, Ética, Plll. Prop.VI, VII, IX-esc.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

1. O improvável da leitu ra Ou ando. por uma experiência de escrita. se recordam os dias em que
ainda não se sabia ler em letra. percebe-se que. nesse tempo. o nosso
Interessa-me, agora. entre nós, o improvável. Não tem entendimento do mundo era constituído por formas e cores que tinham
prova. mas abre ao gosto. voz. E a capacidade de as ouvir existia; para os atentos. a inquietação
Augusto Joaquim. 11A Hora Sexta de Herbais» (inéditol sobrevinha, mas apenas pelo facto de ser possível ler em toda a parte:

e penetro na minha cena de criança - eu água-. a olhar o texto que


Ler e Ver: o mundo e suas estéticas assimi lo a um vulto repartido por livros. páginas. imagens. / histórias orais,
/pupila inquieta que vê/ o sofrimento de ler em toda a parte. «Ainda
No princípio, pode ter sido um murmúrio encantatório - a leitura. não sei ler e quero ler», lembro-me. ( Llansol, IQC. 107)
«Oua lquer arte visual. tomada nos lábios, me encanta. / Por exemplo:
rezar a le itu ra.» (Llansol, AA: 20). Essa leitura do mundo, a da intensidade das coisas. não passava
O verbo ali presente, do latim recitare, diz-nos que «rezar» é «ler por saber ler nos livros. Mas era já uma leitura em voz alta e uma arte
em voz alta»; mas também é recitar. dizer de cor, de movimento lento e visual capaz de encantamento. Talvez um tempo privilegiado para
som baixo, com o ritmo de quem copia e soletra cadenciado. Na leitura «rezar a leitura» . Depois. viria o tempo de juntar letras, de partir com
em voz alta, entendida como uma arte visual, quem ouve, porque é ao elas em busca do sentido, de com elas o perder. de perder-se. e depois
ouvido que essa leitura se dirige. pode focalizar toda a atenção. não de depois o desejo de que as formas e as cores voltassem a ter voz,
no significado do texto. mas no que dele emana acusticamente - é para perceber, mais consc ientemente. como «a beleza da fo rma e das
a experiência dos fonemas na voz, que constitui o modo dessa arte. cores é a santidade das coisas» (Llanso l, SH: 48). o lado mais iluminado
E o texto aconselha: «Não ligues excessivamente ao sentido. A maior e deslumbrante da sua essência. Tempo de verbalizar essa «conversa-
parte das vezes. é impostura da língua.» (Llansol. BDMT: 112-1 13). Ao ção», agora através do signo. em linguagem escrita. mas tomando-a.
apreender fonemas. pode não se ligar ao sentido. e simplesmente ouvi- ainda e sempre, por uma <<aprendizagem de leitura»:
los ou vê-los em imagens concretas, como em Causa Amante: «Pés de
fonemas corriam pelo jardi m. e cercavam o ramo que se fazia rei)) (Llan- desconhecia atentamente o que era ler. mas quando a claridade da manhã
sol, CA: 80). Seria muito pouco querer ler apenas o sentido, ainda que penetrou a casa na claridade do escritório. uma emoção de aprend izagem
ele seja possível sem impostura; talvez por isso, «Ana de Pefíalosa não de leitura. acompanhou-a. (Llansol. AA: 40).
amava os livros; amava a fonte de energia visível que eles constituem
quando descobria imagens e imagens na sucessão das descrições e dos O texto llansoliano, num desejo de leitura do mundo. amplifica
conceitos)) (Llansol, LC: 75). e «estere)). um dos nomes da mulher de o acto de ler no ver, faz deles verso e reverso. e um caminho para o
Amigo e Amiga. Curso de silêncio de 2004, apercebe-se de que «em conhecimento. Interroga-se. permanentemente, sobre o modo de olhar,
cada leitura em voz alta há uma acústica estimulante» (Llansol. AA: e apercebe-se de como esse modo pode decidir o real. a verdade dele e
205). Éa voz a chega r primeiro a um primeiro significado. o som a gerar a sua cosm ogonia.
pensamento. Ler não ligando excessivamente ao sentido. mas seguindo Na vertente juda ico-cristã, o texto fundador do homem ocidental (o
a linha que vai do som ao pensamento, porque é nesta que pode inscre- Antigo Testamento) inicia-se com um Deus implacável, objecto de fé e
ver-se a não impostura. Um texto é o pensamento que ele permite. de temor, que seria omnisciente, omnipotente, omnipresente - «mas

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

[o Catecismo] nunca diz que seria omnisensíveln (Llansol, LL1: 145). Aí Pensa-se que só há três posições face a Deus: a religiosa, a mística e a
reside o mistério: se o Deus criador deseja ser amado e reconhecido, agnóstica. Os textos mostram que há ainda outra: há uma nova prática
como é possível ter criado um ser-humano que não O sabe amar? - libidinal de grupo, a que chamas [dirige-se a Llansol) gestalt criativa
<(se o homem não sabe amar. que faz o Amor que o ama?» (ibid.: 145). incorporada em mulheres, homens. animais, plantas e paisagem. / que
É. pois. ao ser-humano que cabe a mutação , a tarefa de continuar o que toma a seu cargo a realização da boa nova anunciada à natureza e aos
humanos. /Essa gente/ ou forma /cujo primórdio é o texto de Job /são
foi criado. mas que permanece da ordem do imprevisível. Para tanto.
os que verdadeiramente desejam e querem o eterno retorno do mútuo
o homem deverá encontrar a arte que lhe permita transformar-se em
(in Llansol, F: 119)
«forma-humana» - uma forma entre as outras. sem hierarquias. sem
até que o Homem, como poderia imaginar Nietzsche, tudo integrando, se
privilégios. mas consciente de que, por o homem ser «um progresso torne criança semrosto e sem susto. (ibid: 120-121)
de leitura» (Llansol, OVOP 187). é a si que cabe zelar pela mútua não-
-anulação entre os vivos. Llansol encontra-a na arte da escrita. Éo texto Otexto llansoliano inscreve-se nessa linhagem de gestalt(forma ou
que, ao ((definir em que consiste a centralidade da forma-humana» espécie) criativa. e escreve-se com uma convicção:
(Llansol. LL 1: 146) - tendo-lhe atribuído um corpo de afectos e de
sensações -vai dar a essa forma a possibilidade de ser <(os sentidos» «todas as diferentes espécies de seres têm o gosto profundo de viver num
da Presença não-humana: mundo estético. A noção de beleza que os move pode ser muito específica
e inabitual. mas todos eles se reequilibram na beleza que geram; sofrem
no Amor, ser os sentidos (a sensualidade e os sentimentos) da Presença quando o tecido de beleza que os envolve se rompe; vibram. porque esse
não-humana; no Amor. ser a consciência das formas-animais e vegetais. a tecido se recompõe.!) (Llansol, ((O Espaço Edénico», in CJA. 2ª ed.: 143-4).
consciência da paisagem. (ibid: 146)
No ((espaço edénicon (o lugar onde o homem será, a partir da acção
Apenas deverá saber que a comunidade de não-hierarquização que dessa <(espécie criativa>), lugar que não tem de coincidir com o Éden
o texto cria é um ((espaço-nó», que é «um espaço de perigo pois nele do Génesis). a beleza e o conhecimento andam juntos. Mas não signi-
se desenvolvem grandes mutações de energia que podem pôr em risco ficam a mesma coisa - «o conhecimento é a palavra formada. justa;
o corpo e. com toda a certeza. modificam a maneira de ser e de viver.>) a beleza é das coisas e das relações.( ... ) está ligada ao inesperado,
(ibid. : 142). O texto não fa la por metáforas. Dentro ou fora dele. qua ndo ao novo, odeia o monótono, o fixo pelo fixo. o seguro por medo; impele
o objectivo dos homens é provocar grandes mutações. ou persistir no o movimento e, sobretudo, inscreve no vivo um princípio de bondade.»
amor. trata-se sempre de «virar do avesso as próprias estrelas que (ibid. : 144). Por isso. ((a estética é o meio da procura do 'bem supremo'»
orientam as suas vidas» (ibid.: 136). porque se trata realmente de mudar (ibid.: 145). e aparece, em Llansol. como que sobreimpressa numa ética.
de vida, mudando as vidas. em verso e reverso uma da outra.
O Deus temível «dissolveu-se. à medida que isso que será homem Nesse espaço, o conhecimento está directamente ligado à vida
procura, de modo hábil, tomar conta do seu destino.)) (Llansol. F 119). - viver é querer conhecer, é apetência de conhecimento, é desejar
Éessa «a boa nova da criação anunciada a todo o vivente>> (Llansol, LL 1: crescer segundo a lei do seu crescimento. perseverando no seu ser.
143). a que se chamará também ((o eterno retorno do mútuo». Deste modo, tentando não perder o anel, <(a cadeia de anéis através da qual somos»
a partir do momento em que assume o seu papel e faz alguma coisa pelo (ibid.: 145). O espaço edénico define-se por esse modo duplo, ético e
seu destino. alarga-se o ponto de vista do homem face à criação: estético. um modo du al de viver/conhecer que não é, porém, privilégio

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

do humano; no espaço edénico, todos os vivos se «reconhecem,, como começar numa pa lavra. Numa palavra qualquer se conta>, (Llansol.
fazendo parte do universo; todos sentem. cada um a seu modo. neces- BOMT: 112).
sidade de estima e de respeito pela sua autonom ia. Pondo o conheci- A leitura pode começar em qualquer página de um qualquer livro.
mento a trabalhar o belo. o texto llansoliano faz de qualquer vivo um e a partir daí ganhar força de caminhante. Porque um texto pode ser
ser digno. Eé a estética que imprime o ritmo dessa postura. seja ou não «eixo de mu itas janelas e poços abertos até à entrada da clareira onde
como resposta à narrativa da criação: estava atada a cabra que balia, com ausência de companhia. e muita
fome. dispersa por vários frutos inatingíveis nas árvores,, (LL2: 32).
Dá a impressão de que fundas o texto sobre uma estética poderosa. e não como aconteceu com Témia. A leitura pode começar num improvável,
sobre a razão, oque seria raro; mas. todo esse tipo de textos tem. no Géne- e deseja acabar num improvável. pa ra que possa continuar ininterrup-
sis. a sua fundação figural. pois no Éden a tudo se disse sim (não havendo tamente. No improvável de uma página aberta se aprende, como se ela
nessa narrativa genésica uma só negativa). a tudo se chamou belo.
fosse a primeira de um livro de leitura concebido para aprendizagem do
acto de ler; depois. a leitura segue. e apesar de o pé se firmar em algu-
sei que. para ele [refere-se ao interlocutor acima], o plano da criação. se
existe. está-se realizando banalmente neste instante. Nisso. é ele que terá mas estacas, continua a ler-se na irredutibilidade do texto a um senti-
razão. Não há extraordinário. é o banal que está a mais no nosso olhar. do; mas a leitura só acaba num improvável se à intenção de encontrar
(Llansol. F: 121 -2) o sentido se sobrepuser o desejo/vontade de ler. de reler. de continuar
sempre a ler. como água que cria sede de mais água:
Dirigir-se ao rea l do ponto de vista estético traz consequências que
podem põr em risco o modo como os corpos se movem habitualmente; Como poderia eu. ou poderíamos nós. / fonte de texto. fazer entrar na
romper o tecido do quotidiano pode significar uma quebra de simetria, vossa água, água/ que não criasse sede de mais água?(Llansol. /QC: 108)
de ritmos interiorizados, mas se as figuras conseguem reconstruir o
tecido. alcançam um novo patamar de beleza. Será um «belo mais belo,,, A suspensão do sentido. que interrompe qualquer forma de interpre-
como o que nos é mostrado na imagem do «pregueamento dos cacos,,, tação, é, como a define Husserl. uma epoche que permite determo-nos
numa cena fulgor em Parasceve. Puzzles e ironias (pp. 15-16); sign ificou na natureza intrínseca ou fenomenológica da experiência. neste caso,
uma mudança de vida. mas não a perda do anel. porque não se quebrou da experiência de leitura. O improvável da leitu ra não se encontra na
o triplo registo em que os corpos se movem e a ligação entre os seus impossibilidade de chegar à verdade de um sentido. não está relacio-
elementos: o belo, o pensamento e o vivo - a que Llansol chama «o nado com «os limites da interpretação,, (U. Eco); é improvável por não
afecto,,. Éeste ímpar que é necessário preservar. haver provas para a experiência da leitura e por esta ser imprevisíve l. ao
participar do inesperado que ela constitui. Mas. o improvável que «abre
ao gosto,, é a suspensão como desejo/vontade de persistir no acto de
ler - suspensão que é movimento porque se define como apetição, o
A leitura como epochê
desejo e o movimento que ele implica; neste caso. e paradoxalmente.
movimento que é suspensão de si. Éa falta dessa epochê, que constitui
«Como ensiná-la a ler sem lhe contar uma história? (...) cada um
a «pobreza da experiência)) no mundo moderno. a que Walter Benjamin
aprende na página que estiver aberta_,, (Llansol. LL2: 31 ); apenas uma
se referia no ensaio sobre «Ü Narrador)); essa pobreza não tem a ver
sugestão de leitura: «nunca olhes os bordos de um texto . Tens que
com a narração propriamente dita. mas com a <<aura,, que o narrador lhe

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

imprime; é ela que não é objectivável, enquanto experiência de quem de companhia que tinha origem na origem de len>; aí se
narra, e que imprime ao texto esse carácter de irredutibilidade que está pode ver «Ana e Myriam a lerem uma à outra o amor que reciproca-
contido na marca de quem escreve; não como estilo, mas como o que mente se dedicam»; aí se descobre lnfausta e Aossê «centrados num
há de intransmissível na sua experiência. Se a essa aura correspondia grande afecto tal como Ana e Myriam. sem o qual não poderiam sequer
a noção de <<mistério», que a modernidade tende a anular, ao texto lite- segurar o livro nos joelhos»; ai, olhando «a pequena estátua de leitura»,
rário não se reconhece, hoje, a tarefa de recuperar o mistério. mas de o quem lê poderá sentir e dizer, com Jade: «vim glorificar o laço que une
interrogar, assumindo esse intransmissível da experiência como o que Ana e Myriam na sua estátua» (Llansol, BDMT: 24, 25, 89, 102).
há de improvável e singularmente importante na experiência de escrita «Ana ensinando a ler a Myriam é uma ideia» (ibid. : 117) - uma
e de leitura; como aquele «ressalto de uma frase» (Llansol) que está ideia de leitura; não só de aprendizagem e ensinamento, mas de afecto
entre a realidade e a experiência dela na arte - o improvável dessa e continuidade de genealogias. No texto llansoliano. essa ideia - a
experiência oscilante, de se situar entre a vontade de chegar ao sentido estátua polícroma de leitura - desdobra-se em actos de criação. Atra-
e o desejo de continuar a escrever/ler/ver: vés dela, na sua proximidade, outras figuras, como Jade, irão mostrar
o que significa, em Llansol, ensinar um cão a ler, e aprender com ele
Perguntas à Maria Adélia se a chama vaci lante da lamparina não vai outras formas de linguagem. Jade «foi deixado suspenso sobre um
apagar-se (... ). [ela] conta que uma lamparina de azeite nunca se apaga. medronheiro» e nasceu «sobre as bagas purpúreas/ dos medronhos, / e
Éuma luz que realiza sempre a função da luz - extrair objectos ilumina- o ruído dos ramos partidos» (Llansol, ACi. Onascimento de Jade numa
dos dos objectos apagados. (... ) sem a luz, não se distingue o que se vê árvore e o seu desejo de aprender a ler, ecoam o nascimento-criação
(Llansol. BDMT: 103)
da estátua polícroma: «Ó Ana/ eu queria ir ao interior da madeira para
saber./ finalmente./ qual é a tua relação com a pequena estátua onde/
ensinas a ler.»; «encontrei-me numa grande clareira, de mãos unidas,
A ideia de leitura: o desejo de ler
sob a árvore frondosa em que tinham sido talhados os vossos (de Ana e
Myriam] corpos de carvalho.» (Llansol, BDMT: 81-2). Em Llansol, parece
De que natureza é a luz de ler?
haver uma relação directa entre a aprendizagem da leitura, o nascimen-
Se «compreender um texto é como compreender um cão, uma
to e a criação: Témia, a rapariga que temia a impostura da língua, é
previsão do tempo./ ou seja./ é aceitar que não se fala./ que se não
a figura da «aprendizagem da leitura» e «o conjunto de Sant' Ana e da
compreende, excepto pela companhia» (Llansol, ATJ: 74). é possível
aprendiza de leitura, é a imagem do seu nascimento [de Témia]. a meu
ter a experiência da leitura em companhia da estátua polícroma em
lado.>) (ibid.: 28).
madeira «em que Sant'Ana ensina a ler a uma jovem», em Um Beijo
O improvável da experiência da leitura parece ser, afinal, «o esfor-
Dado Mais Tarde. Tê-la em companhia significa compreender como, a
ço ininterrupto de ler», esse esforço ou pujança que permite «fugir da
partir dela, o texto llansoliano se vai desdobrando em ideias e figura s
impotência humana», que é desejo/vontade de leitura transformadora
que, de algum modo, regressam sempre a essa imagem fundadora. A
do mundo, e inabalável quando definidor da essência do ser - «Ela
ela se ligam, directamente, Témia e Jade, mas também todos os que
queria fugir da impotência humana, encontrar formas estáveis de
passam pela experiência da leitura e da escrita como modo de olhar o
pujança» (Llansol, «Ü Pensamento de Algumas Imagens», in RV. 2ª ed.:
mundo, o que implica. em Llansol, que todas as figuras tenham assento
113) e continuar. ainda e sempre, a ler/ver na proximidade da estátua
à volta da estátua de leitura. Aí se vê a «terna reciprocidade feminina
de leitura, observando-a. e a reler o que ficara da véspera:

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Maria Etelvina Santos
Como uma pedra-pássaro que voa

Um decote de vestido, três pregas de saia , uma nuvem que protege, e o A noção de dom poético associada à possib ilidade de um corpo
esforço ininterrupto de ler. Ler, lendo, antes de ler, depois de ler. lembran-
possuir várias humanidades não é equ ivalente à interpretação que
do que estava a ler, lem brando a leitura, lembrando o pequeno tapete, ou
fazemos do desejo pessoano de «sentir tudo de todas as maneiras»
quadro, em que pousamos os pés. / Leio, / ela lê: / «quando a tarde cai, '
reacendo as luzes que ficaram / quase acesas da outra noite.» (Llansol, pois este continua no pla no do «humano», enquanto a perspectiva llan-
BDMT: 117) sol iana se alarga ao plano do «vivo». O dom poético é o que permi te
rea lizar a intenção, ind icada atrás, de «fundar a pujança no vivo». E o
Sempre o desejo de ler como motivação primeira. E a convicção vivo é toda a relação desinteressada que o ser estabe lece no caminho
de que «crescer é aprender a querer preservar a potência com que se da mútua não-anulação. Não é só bio, nem matéria, é o que resulta
nasce, a desejar sentir o conhecimento dessa experiência» (Llansol, SH: de um diálogo que faz crescer no conhecimento e em liberdade, naqui-
189). A apetição, enquanto desejo consciente, desencadeia um movi- lo que o texto também chama 1diberdade de consciência». Por isso, o
mento em direcção ao conhecimento, que é não só desejo de penetrar texto também diz que «muitas mais, refiro-me a 'humanidades', serão
no íntimo do mundo, mas também desejo de crescer no conhecimento. necessárias para que se constitua o dom poético» (ibid. : 103). Porque o
Encontrando na leitura da Ética de Spinoza uma forma de diálogo cam inho para o dom poético é um caminho de liberdade e de entendi-
com esse desejo - através da distinção entre potência e impotência, mento. Diz-se que «há infinitos no ínfimo de cada esca la», mas também
entre ideias adequadas e não adequadas, e da análise dos três graus que «essa esca la é ínfima quando se decide quem é o vivo (em simul-
de conhecimento - Llansol decide-se por um texto que (de modo tâneo matéria e consciência)», e que é este «o quê» que importa que
«conclu inte» relativamente à Ética) pudesse «fundar a pujança no vivo «o texto liberte na consciência)) (ibid. : 103) - o conhecimento de que
e não em qua lquer necessidade geométrica». Por exemplo, criando «um todo o vivo tem direito à dign idade da sua essência. O dom poético, que
objecto novo que forçasse o pensamento de Spinoza a evolu ir na di rec- «espera em cada centelha de consciência>), só emerge nessa convicção;
ção desejada» (ibid. : 98). como acontece em Lisboaleipzig 2. o ensaio de no olhar atento, na escuta como troca mútua e verdadeira, na aceita-
música. Aí, o objecto novo é Aossê e, através dele e da sua 1<bi-huma- ção dos vários mundos no mundo, e na vontade/desejo de expand ir o
nidade», o texto vai dar a ver, transformando, a ideia de Spinoza de que «humano)) a todo o vivo .
não sabemos o que pode um corpo, e concebe, a partir dessa ideia, uma Como «fundar a pujança no vivo», possibilitando que a <<l iberdade
das noções centrais no texto llansoliano - «o dom poético»: de consciência» e o udom poético» cam inhem para le lamente?
Partindo da convicção de que existe um mundo físico que pode ser
Se não sabemos o que pode um corpo, sabemos que o seu poder é propria- transformado através do que é esteticamente desdobrável, Llanso l
mente infinito... desde que cada corpo possua várias humanidades dife- considera central o papel da literatura, como instrumento técnico e
rentes, compatíveis e contemporâneas, se possível em mundos diferentes. cognitivo na operação de «destrinça interactiva dos mundos» (ibid.: 46),
Oque é uma outra maneira de definir o dom poético. Toda a operação é de tornando possíve l a equivalência entre ética e estética, não como deve-
natureza imagética e não emocional. Ora, convém saber que a pujança é res instaurados por uma moral, ou padrões estéticos canon izados, mas
definida por esse filósofo no terreno das paixões e emoções, numa quadrí- como opções que passam por uma profunda reflexão e desejo de conhe-
cula lógico-geométrica.
cer, de modo a definir va lores que possam proporcionar uma sociedade
(... ) Há infinitos no ínfimo de cada escala. Há um dom poético poderosís-
de mútua não-anulação. Nesse cam inho, pretende-se encontrar uma
simo à espera em cada centelha de consciência. Importa apenas saber de
quê .. . (ibid : 98-9). nova definição de «hu mano»: «O Alguém por que chama a estética que
cu ltivo, é humano e não-humano. Ésimplesmente a consciência do vivo,

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

seja qual for a forma como se apresenta à retina o Olho Prim itivo» (ibid.: necessariamente umodos» dessa essência. A essência do modo é parte
104). Que acontece se a liberdade de consciência e o dom poético, não dessa pujança da substância única; o modo passa a existir quando a
se unindo, não se encontrarem com a consciência do vivo? infinidade de partes extensivas da substância se relacionam. definindo
a essência do modo, isto é, o seu grau de pujança. Esta essência do
Que mal há nisso? Mal, não há nenhum. Apenas o humano não poderá ser modo é nomeada por Spinoza como conatus. ou grau de pujança desse
um vário simultâneo. modo do ser, e define-se pela vontade e desejo que o ser tem de perma-
E que mal há nisso? Mal não há nenhum. Apenas. à falta desse estado,
necer idêntico a si mesmo; não deve ser entendida como uma <(tendên-
não se operará o eterno retorno do diálogo mútuo.
cian para existir. uma vez que ela só se manifesta na existência - é a
E que mal há nisso? Mal, não há nenhum. apenas nos será impossível
vencer a morte, que é tão só ficar-se reduzido a humano. Um agente impró- partir do momento em que existe que o modo tem essa essência, essa
prio para levar a evolução do vivo a seu termo. (ibid.: 105) pujança determinada. O modo é uma rea lidade física. não uma possi-
bilidade no sentido de algo que, num futuro. terá existência; e quando
Ficar reduzido ao ((humanon, que sem se expandir a todo o vivo não existe. existe com uma determinada essência. também ela real.
é capaz de transformar-se em (<forma-humanan, uma forma mais perfei- Esse esforço [conatus] pelo qual uma coisa tende a perseverar. a
ta porque mais digna. é anular a possibilidade de uconferir uma expres- persistir no seu ser. é a essência dessa coisa. a sua ((quididaden;
são actual a gritos humanos e não humanos. abafados pelo 'assim é' esse grau de pujança é vontade e desejo de permanecer com as suas
da história. do mundo, do poder de espezinhar.n (ibid. : 323). Étambém características intrínsecas. Spinoza distinguia uvontaden de udesejo»,
inviabilizar o diálogo com esse <(desconhecido que nos acompanhan - a partir do que considerava os dois modos da substância única de onde
o mundo como fonte de pujança e de júbilo. É, por fim, recusar fazer tudo deriva: o modo do pensamento ou ((realidade espiritualn, e o modo
caminho no conhecimento . da extensão ou urealidade materialn (uma ufísica» qu e se exprimia
O que há de mal. ou de inadequado. nisso. é o quebrar da linha de em termos de geometria!; Joaquim de Carva lho. na sua introdução à
continuidade que nos une ao íntimo do mundo. na qual se desenha a tradução portuguesa da Etica. faz a distinção entre modos e atributos
essência desse (<fora de nósn que em nós se prolonga - quebrar a da substância. caracterizando-os sucintamente. A substância. ou natu-
possibilidade de sentir que. em continuidade, podemos permanecer em reza naturante. ser ontologicamente infinito. tem uma infinidade de
essência. atributos e tem modos de se manifestar; os atributos exprimem a sua
essência - que é existir; os modos podem ser «infinitos imediatos» (se
«resultam imediatamente da natureza infinita dos atributos. pelo que
Excurso: A ler o mundo - Spinoza, Leibniz, Descartes são infinitos e eternos como ela», como. por exemplo. o movimento).
uinfinitos mediatos» (se uresultam dos atributos enquanto afectados
A essência de uma coisa é, para Spinoza. uma necessidade e conse- por uma modificação eterna e infinita, pelo que também são eternos e
qu ência da Substância única que, em virtude da sua ((pujança» [poten- infinitos. como. por exemplo. <(a face do Universo na sua totalidade») e.
tia] (um uagir», um acto. que define a sua própria essência)12, engendra ainda. «finitos» (os modos dos atributos «enquanto são determinados a

potestas, não tem em Spinoza o significado de fazer exercer uma vontade, é antes uma
12 Deleuze diferencia pouvoir [potestas) de puissance [potentia). considerando que a capacidade inerente à sua própria essência, logo. não tem a ver com um Deus que por
essência do Deus de Spinoza é potentia, e dela depende o que esse Deus pode. a sua vontade. tirania ou esclarecimento, exerce um determinado poder; ele não tem outro
potestas, o que ele ((pode» e não o que ele ((quer» por vontade ou decisão: o poder. entendimento senão o da sua própria essência.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

agir de certa e determinada maneira»; são as coisas particulares). Estes ser do mundo. uma vez que é a razão que liga a consequência ao prin-
modos são afecções ou modificações da substância, são a sua conse- cípio donde ela advém. isto é, toda a natureza naturada (cuja essência
quência necessária e. quando considerados independentemente dela. é perseverar no seu ser) como consequência natural de uma natureza
na sua expressão finita e particular. sendo ou «da ordem do pensamen- naturante (cuja essência é manifestar-se). o que nos deixa em situação
to» ou ((da ordem da extensão», são «espírito» e «corpo», indissociavel- de poder entender o tantas vezes citado Deus sive Natura, de Spinoza,
mente. O ser único (ou substância. ou Deus). enquanto pensamento ou não como «Deus ou a Natureza», mas «Deus. logo, a Natureza». numa
espírito (ele não pensa. (<é» pensamento). gera a inteligência e desta relação não de identidade. mas lógica e consequente. Conhecer a liga-
derivam as ideias que são modos do pensamento; do ser único enquan- ção do efeito à causa era. para Spinoza. a maneira de compreender,
to extensão derivam os corpos. que são modos da extensão; e porque daí a opção pelo método geométrico, pois considerava que toda a
ambos resultam dos atributos do ser único. há entre eles um parale- causalidade lógica é de ordem geométrica. A relação do homem com o
lismo ou correspondência (entre a ordem modal conceptual e a ordem mundo é da ordem da explicação, da razão; tudo aquilo que se manifes-
modal material) - são indissociáveis, um implica o outro. No entan- ta resulta da necessidade inerente à substância única de se manifestar.
to, não deve pensar-se que não há diferença entre a substância e os e compreender essa necessidade imanente ao universo é alcançar o
seres finitos (o que levaria a identificar os objectos físicos. visíveis, os conhecimento que traz consigo «a fruição eterna da suprema e contínua
da experiência sensível. com a substância. e resultaria numa forma de alegria» (Spinoza. 1987: 22). pois quem está consciente da sua união
panteísmo); há diferença. embora haja correspondência (lógica) entre a com o universo saberá que faz parte e resulta dessa necessidade que
substância única e aquilo que na natureza é inteligível e racionalmente a substância tem de se manifestar. Essa relação ao Outro. ser único
explicável. Não será, assim. correcto falar de panteísmo em relação a disseminado pelo universo. nomeou-a Spinoza como «Amor», e nela
Spinoza. a não ser que o distingamos da intuição sensíve l, e conside- baseou uma ontologia, uma teoria do conhecimento e uma ética.
remos como um panteísmo da razão - a natureza é consequência da Ao comparar o «monismo substancialista» de Spinoza com outras
substância única ou da sua manifestação. formas de compreensão do mundo. verificamos que ele se opõe a
À representação aristotélico-esco lástica, de um mundo criado por Descartes. basicamente porque, por um lado. considera a substância
uma vontade livre e transcendente, um mundo substancializado em que única não substantivável em outras substâncias finitas e. por outro
as coisas são substâncias finitas e independentes, hierarqu izadas. e lado. não considera a distinção que Descartes faz. no ser fin ito. entre
onde o ser humano é um reino à parte. Spinoza contrapõe um univer- uma << res cogitans» e uma «res extensa», pois. como vimos. para Spino-
so inteligível. como (<derivação» de uma substância que é a razão da za, pensamento (espirita) e extensão (corpo) são indissociáveis. Relati-
essência, da existência e da compreensão de tudo o que existe, logo, vamente a Leibniz. e apesar de a «mónada» estar presente em ambos
um mundo onde o homem não está separado da natureza, onde não é o como substância única. ela é, em Leibniz. distinta da substância única
centro. e cujo destino consiste em adequar o seu pensamento à ordem de Spinoza e também da substância substantivável de Descartes. Leib-
que é imanente ao mundo - o mundo e a sua fenomenalidade tem niz considera a mónada, quanto à sua natureza externa, uma substância
uma razão de ser. é racionalmente pensável; tudo o que ocorre. ocorre simples. sem partes, indivisível, que não pode nascer nem perecer. e
necessariamente. pois esse ser único é um ser imanente ao próprio que constitui o elemento primordial de todos os seres; as mónadas
universo e. como age segundo a lei da sua própria essênc ia, não com são resultado de fulgurações contínuas da divindade, circundadas pela
uma finalidade mas por necessidade. daí resulta que não haja nada de receptividade natural dos seres. Internamente. duas características as
casual ou contingente no mundo; o que deve ser pensado é a razão de

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definem: a percepção e a apetição13 , que se implicam mutuamente. noção de substância, encontra na mónada uma unidade mais rea l do
Como não é constituída por partes, já que é uma substância simples, que os átomos de matéria de Demócrito (na «doutrina física da subs-
Leibniz considera que as modificações da mónada só podem dar-se tância», a substância é um real, mas a sua unidade é aparente) e tão
por um princípio interno de mudança; os seus estados, originando-se exacta quanto os pontos matemáticos de Descartes (na «doutrina mate-
uns nos outros, vão diferenciá-las por graus, criando multiplicidade. E mática da substância». as coisas são pontos matemáticos, indivisíveis.
como explicar essa multiplicidade numa substância simples? Esta liga- mas são apenas modalidades. sem existência real). Contrariamente a
ção entre o uno e o múltiplo, que Platão ju lgou impossível conciliar na Spinoza, Le ibn iz parece ter dotado o homem de um privilégio em relação
substância material, e só encontrou no mundo das essências, na Ideia, aos outros seres, mas se, por um lado. o considera superior, dotado de
anterior às coisas, encontra-a Leibniz no sujeito pensante através da um maior grau de perfeição no seu caminho em direcção às percepções
percepção 14. Conclu i, assim, que o sujeito não é forma, matéria, mas distintas, por outro, retira-lhe a possibilidade de essa via depender de
força, tendência para a «percepção distintan; e a «apetição» é a acção si, uma vez que ele é consequência de um princípio interno de mudan-
desse princípio interno que origina a passagem de percepções confu- ça que tem origem e continuidade na chamada monas monadum. ou
sas a percepções distintas. Daí que percepção e apetição sejam o que divindade.15 Assim, a superioridade hierárqu ica do homem não parece
caracteriza, internamente, a mónada. Consideradas quanto à sua natu- dotá-lo de uma maior capacidade de agir livremente, pois, criado por
reza e quanto aos seus graus de percepção, as mónadas têm graus de uma vontade não imanente (que o criou por vontade. como também
perfeiçã o diferentes. Pela passagem da percepção confu sa à percep- em Descartes; e não por necessidade. como em Spinoza). o homem vê
ção distinta, naquele que considera ser o caminho da alma (e só esta, a sua acção limitada por um princípio interno de mudança, que lhe é
enquanto «pensante», é dotada de percepção). caminho em direcção a transcendente. Em Spinoza. pelo contrário. o ser é parte da substância
uma perfeição maior, Leibniz estabelece uma hierarqu ia entre os seres, porque é uma sua necessidade, logo, há uma parte da transcendên-
distinguindo três graus: os vivos, os animais, e o homem (e só nos dois cia que passa para o plano do imanente e. consequentemente, dá ao
últimos é possível a percepção, só estes podem ter alma). homem a possibilidade e responsabilidade de exercer a sua vontade e
Da prova da existência de Deus, pelo princípio da razão suficiente, ser ele próprio um princípio de mudança.
até à noção de mundo enquanto relação harmón ica preestabelecida e
hierarquizada, «o melhor dos mundos possíveis» (ironicamente tratado
por Voltaire no seu Candide). Leibniz, que resumia às teorias de Demó- Ler o im-provável - dúvida, fé, crença, convicção
crito e de Descartes o que considerava importante relativamente à
As posições de Descartes, de Leibniz, de determinismo e optim ismo,
13 A percepção inclui em si a possibilidade de representação; a apetição é não só o
15 Recorde-se que o termo (<mónada» foi usado pela primeira vez por Giordano Bruno
desejo, como também o movimento desse desejo, a acção que ele envolve. Joaquim
11548-1600). que assim definia «os elementos das coisas»; a diferença maior entre Leib-
de Carvalho, na sua introdução à Ética de Spinoza. explica a opção de traduzir cupiditas
niz e G. Bruno pode estar no facto de a mónada ser para este uma «substância-coisa»
não por desejo, mas por apetição, para que não se confunda comdesiderium. quetraduz
que se realiza numa forma, enquanto para Leibniz ela é uma «substância-sujeito», cuja
por desejo. Em Leibniz, é o termo apetição que aparece como uma das características
forma é um exterior porque desprovida de inteligência. sendo que aquilo que faz de um
da mónada.
ser uma substância e não uma coisa fenomenal. é a sua capacidade de percepção e
14 ((O estado, não duradouro. que envolve e representa uma multiplicidade na unidade representação do universo, de um modo cada vez mais perfeito. É por esta valorização
ou na substância simples, só pode ser aquilo a que chamamos percepção.» !Leibniz, que Leibniz faz do elemento interno da mónada, e por tudo o que daí derivou. que se
1991: 129). associa o uso do conceito a este autor.

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bem como as do atomismo antigo, da busca (como finalidade) do prazer Ando a ver se o fulgor que. por vezes. há nas coisas. é melhor guia do
e da felicidade neste Mundo, todas essas posições. ainda que com que as crenças que temos sobre elas, ou do que os pensamentos que. a
significativas diferenças. deixam poucas alternativas ao ser humano. propósito delas. nos ocorrem. (Llansol. LL2 página introdutória)
quanto à sua possibilidade de entender e/ou melhorar o mundo em que
se movimenta . No entan to. uma nova categoria -a de um sujeito auto- É nesse sentido que a palavra surge, preferindo-se, assim. um
-afirmativo - começava a surgir. a partir do substancialismo de Le ibniz. conhecimento que venha do fu lgor das coisas. que parta delas e não
e viria a fazer caminho na história do pensamento moderno e contem- de nós ou daquilo que pensamos sobre elas. Embora a crença possa
porâneo. Este processo. que envolve momentos tão significativos para surgir. num outro momento, também associada a um acto de fé, no uso
a teoria do conhecimento, como a crítica kantiana e o perspectivismo dos adjectivos crente e descrente, ainda assim, não nos parece que.
nietzschiano. a filosofia do idea lismo alemão ou o chamado <dinguistic em Llansol. o uso de crença e de fé seja muito diferente daquele que
tum», chega até à pós-modernidade através do desenvolvimento de se definiu para Peirce. A questão está em não limitar a crença a uma
uma consciência perspectivista actual de cambiantes muito diversos. fé religiosa. em Peirce; e. em Llansol, em salvaguardar o ponto de vista
Partindo da ideia de que a base do conhecimento não é a dúvida. no qual nos situamos relativamente à ideia de acreditar. assum indo a
como em Descartes. mas uma crença. ou pelo menos a crença como crença como uma convicção profunda:
resposta imediata a uma dúvida (o que desde logo tem implicações
completamente diferentes daquelas que têm origem na dúvida carte- De Esse/ Presença, cujo nome próprio não nomearei (e que nos meus
siana). e de que a crença é uma regra de acção. Charles S. Peirce textos escrevo em letras minúsculas. ou então Eus. embora não se trate.
desencadeava. principalmente a partir do início do século XX. uma de modo algum. do mesmo género de presença) eu aceitei o seu convite
a uma relação pessoal. como o texto que citei claramente indica. E. no
série de propostas que davam origem ao que viria a ser conhecido por
entanto. não sou crente. nem aliás descrente. porque não posso ter actos
«pragmatismo». A análi se de uma ideia não tanto do ponto de vista da de fé sobre o que aceitei viver e que os meus textos e os diários qua litati-
sua eficácia (ou capacidade de produzir um determinado efeito). mas vamente escrevem. Essa qualidade tem o nome de estética. É, pois. desse
antes do ponto de vista das suas consequências. e o estudo da lingua- modo. que eles se dirigem ao real. e não sob o modo filosófico ou teológi-
gem associado a uma dimensão prática na acção humana. aliança que co. (Llansol. LL 7: 140)
considerava necessária no processo do conhecimento, são caminhos
que Peirce ana lisa a partir da noção de «crença». Llanso l mostra que o seu ponto de vista é o estético (o do fulgor) e
Importa chamar a atenção para o facto de «crença» (belien não não o filosófico (o da crença) ou o teológico (o da fé). Aquilo que acei-
ter a ver com «fé» (faíth). e ser um modo de guiar as nossas acções. tou viver. como diz. assenta numa relação de ordem pessoa l. expressa
para que possamos satisfazer os nossos desejos. a nossa apetição. nos seus textos, só tendo, por isso. a verdade que para essa relação foi
Em Maria Gabriela Llansol, na página introdutória a Lisboaleipzig 2. O definida por si; entre os diferentes modos que temos de nos dirigir ao
ensaio de música. refere-se a crença associada a um conhecimento do real. o seu. sendo o estético - e é essa a sua convicção profunda -
senso comum. mas usa-se «crença sobre», chamando a atenção para o só pode usar o vocábulo que, para si, define esse ponto de vista, e que
«sobre» em itálico. como necessidade de se evitar ter crenças sobre as não sendo o conceito mais comum de belo. é o que define o «belo mais
coisas. cobrindo-as. fazendo com que elas desapareçam. fiquem soter- belo» do texto llansoliano - o «fulgor».
radas pelas crenças que delas temos: Para Peirce. e paralelamente podemos pensar também para Llansol.
a crença tem uma identidade e um significado: propicia uma regra de

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acção, um hábito; e estabelece uma articulação entre o seu enunciado oriundo de uma pri meira troca verdadeira que resulta em fulgor. energia
e a prática que ele desencadeia. ou forma primeira de captação. Esse pensamento que emana do fulgor,
ou pensamento primeiro, é o começo de um diálogo transformador, e
Crenças diferentes distinguem-se pelos diferentes modos de acção a que nele se põem a agir intervenientes de mudança que vão provocar muta-
dão lugar. Se as crenças não diferem neste ponto, se elas acalmam a ções naqueles que nesse diálogo se envolvem - é o caminho do «dom
mesma dúvida produzindo a mesma regra de acção. então nenhuma mera
poético», a condição e possibilidade existente na língua de intervir
diferença na maneira como são consciencializadas as pode tornar crenças
diferentes, como nenhuma melodia tocada em diferentes claves se torna- como mutante e de se abrir ao diálogo com o un iverso amplo. O pensa-
ria numa melodia diferente. {Peirce, 1978: § 5395) mento que emana do fulgor põe-se a agir, como elo de uma cadeia. em
Se considerarmos que efeitos poderiam concebivelmente ter implicações busca da troca verdadeira e da mútua não-anulação. Resulta, deste
práticas, concebemos os que o aspecto da nossa concepção tem. Então. modo, uma cadeia cuja figura é o ane l, pois o último elemento vai ligar-
a nossa concepção desses efeitos é toda a nossa concepção do objecto. se ao primeiro e continuar. desse modo, ininterruptamente, através de
{ibid.) novos elos. como que expandindo o próprio anel: Fulgor - Pensamento
- Comportamento - Troca verdadeira - Fulgor ... É «o eterno retorno
O sentido de um pensamento, a partir de uma crença ou convicção do mútuo»; não uma repetição arbitrária, mas uma sempre renovada
profunda, como W. James interpretou relativamente a Peirce, pode ser «conversação» que, de cada vez que se estabelece. gera fulgor, e ampli-
observado no comportamento que ele suscita, e além desse comporta- fica o anel.
mento não tem outro significado para nós. Podemos estar perto daquilo Esta abordagem do conhecimento a partir não da dúvida, mas da
que o texto llansoliano entende por «troca verdadeira»: um pensamento crença como convicção profunda, e de um eterno retorno, parece-nos
que, coerentemente, suscita um comportamento (como uma troca de seguir uma linhagem de pensamento que, afa stando-se de Descartes,
identidades). comportamento este que inclu i mú ltiplas trocas entre os se encontra com Spinoza, e passa por Nietzsche e Maria Gabriela L/an-
diferentes seres, tendo sempre por base a mútua não-anulação. Como sol. Uma crença é, em Spinoza, o pensamento donde se parte. Também
diria William James, <<Uma rica e activa troca (... ) entre os nossos em Llansol, é a crença num «primeiro pensamento verdadeiro» que se
pensamentos particu lares e o grande universo de outras experiências» vai tornar na convicção profunda que orientará toda a sua escrita 16, e
(James, 1997: 53). Em Ll ansol, a troca verdadeira deve ser procurada no que Llansol nomeia por diversas vezes em diferentes livros:
«fulgor»(como «crença »estética e com toda a si ngularidade que a pala-
vra assume no texto llansoliano) e no pensamento que ele projecta: Spinoza ensinou-me a pensar. (... ) Durante muito tempo me inquietou.
Témia torna-se a rapariga que temia a impostura da língua, quando ele
O salvífico, em troca da perda definitiva do júbilo, ou este, em troca da insiste que tudo, mas mesmo tudo, depende de se partir ou não de um
dissolução da identidade, são alternativas fundadas numa troca não verda- primeiro pensamento verdadeiro. (Llansol, «O Espaço Edénico», in CJA. 2ª
deira. / Otexto diz-lhe que não há troca verdadeira entre os três sexos. / ed.: 164)
nem no sagrado, nem no erótico, / que há que a procurar no fulgor, / e no
pensamento que esse permite vis lumbrar. {Llansol, OVDP 136) A crença que o sujeito decide como sendo «um primeiro pensamento
verdadeiro» responsabiliza-o pelo seu caminho no conhecimento e pela
A troca verdadeira entre os três sexos (inclu indo neles o «sexo da
paisagem») só pode dar-se a partir de um pensamento também ele 16 Esta ideia, bem como a noção de «verdade» associada à de «crença». que também
ocupou o pragmatismo, é desenvolvida na p.172 e segs (Segunda Parte, li).

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definição de verdade que sustentará a sua interpretação do mundo e as é apresentado com os seus próprios valores, em lugar de ser confrontado
relações que com este estabelecer. Na modernidade, embora o pragma- com um único ideal». (Marques, 1993: 122)
tismo ainda em finais do século XIX comece a ocupar-se desta relação,
é só a partir de meados do sécu lo XX que começam a desenvolver-se Também no texto llanso liano, a figura de Nietzsche é significativa
condições para que essas ideias tenham repercussão mais alargada. na linhagem que passa por Spinoza e por Llansol:
Apesar de as ideias de Peirce serem, quase de imediato. conti-
nuadas por William James (com as oito lições sobre o pragmatismo. Nietzsche ensinou-me a atravessar o tempo, excluindo dele qualquer forma
publicadas em 1907). podemos dizer que só a partir dos anos setenta de desterro ou de resignação. Mostrou-me que o tempo era perpendicular.
que havia nele lugares privilegiados. por onde se passa ciclicamente. Só
a herança pragmática americana, associada a valores desencadeados
que no que ele nisso via de fatalidade. eu via a possibilidade do mútuo.
pela filosofia analítica - sobretudo com Quine e Davidson a propor Com esse viajante infatigável. que não parava quieto. aprendi a detectar.
uma teoria da interpretação e da verdade baseada na intersubjectivida- nos lugares mais inesperados, a vontade de pujança (Llansol. «O Espaço
de - consegue libertar-se do positivismo europeu, que entretanto se Edénico», in CJA, 2ª ed.: 165).
impusera na filosofia americana, e, associando-se à filosofia europeia
pós-estrutura lista. com Foucault, Habermas e Derrida, desencadeia uma
nova problematização e transformação no pensamento contemporâneo. Ler ao encontro do mútuo
Assim, em campos como os da filosofia da linguagem (de Peirce e
Quine a Davidson e à fi losofia analítica). da fi losofia da arte (Nelson A descoberta desses lugares privilegiados, por onde se passa cicli-
Goodman). da ética (John Rawls e Hi lary Putnam). da perspectiva prag- camente, e a sua transformação em lugares de encon tros decisivos para
mática associada a uma forte dimensão política (Dewey), da análise que a pujança não seja vontade de poder, mas de mudança, dá-se no
da ciência feita por Kuhn, ou do chamado «pragmatismo holístico» ou texto llansoliano (lugar de possibi lidade para a realização do «mútuo»)
cultural de Morton White, é a continuação da consciência perspectivis- através dos cha mados (<encontros de confrontação» - encontro de
ta desencadeada por Nietzsche. que em mu itos casos se faz senti r: figuras que, vindas de tempos e lugares diferentes, entram em diálo-
go para rea lizar o que não lhes foi possível no seu tempo, o acesso à
O universo definido, a partir do qual é possível conhecer e exprimir um liberdade de consc iência e ao dom poético (fo rmas de pujança que o
sentido pode ser múltiplo e é essa variedade que faz de muito do pensa-
próprio texto explicitará). São esses encontros que geram o «mútuo».
mento contemporâneo um perspectivismo de muitas faces. assim como
a «conversação» que estabelece o elo da troca verdadeira - mais um
pode haver uma notável multiplicidade de realismos. (Marques, 1989: 48)
[perspectivismo] essa mobi lidade adquirida e desenvolvida e que envolve encontro. mais um possível elo na cadeia ou na formação do anel. Como
tantas e tão importantes coisas como o poder de autodistanciação, de refere Augusto Joaquim. que Llansol cita em Lisboaleipzig 1. Oencon-
relativização, de comparação e diferenciação. certamente de aceitação tro inesperado do diverso (p. 143). «O mútuo começa por ser o que. em
e tolerância. De certo modo só uma cultura que desenvolva este tipo de tempos, se chamava 'conversação espiritual', mas desenvolvendo-
consciência pode ao mesmo tempo singularizar (a anterior categori a) e -se em relação textual, (.. .). Destes encontros. cada participante sa i
igua lizar. Isto é, pode realçar o singular como qualidade, sem se impedir modificado, (. ..) o mútuo não é um acidente, nem repetível arbitrário,
de valorizar como igual aquilo que é diferente. Como lembra Todorov a mas o autêntico motor da mudança das narrativas e da metamorfose
respeito de Las Casas [in A Conquista da América]. este «descobre essa dos corações. Porque só isso passa, para volta r sempre mais próximo
forma superior de igualitarismo que é o perspectivismo, no qual cada um

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do Amante. (.. .) O homem só no encontro com o Amante poderá particulares a cada encontro», para criar «em linguagem. ou em outro
advir». Em Llansol, essa ((conversação» é desejável e pode acontecer sinal. o pensamento do fulgor que já estava criado» (ibid. : 135).
porque se aceitou, como o texto diz. o «convite a uma relação». Como O cumprir desse contrato é obra do mútuo - continuar a manter
aconteceu esse convite? Oue relação é essa? viva a conversação que se iniciou. Essa conversação é, no texto llan-
Podemos dizer que há «um primeiro pensamento verdadeiro» inegá- soliano, mostrada na vida afectiva dos homens; esta é o lugar da
vel : a criação. Formas e mais formas. sinais diante de sinais. forma - metamorfose e, por isso. o lugar onde se arrisca a identidade. O ser-
-humana. formas não-humanas. e essa Presença constante a que o -humano, o único capaz de arriscar a identidade. como Llansol refere
texto chama «Amante»: «Sempre tomei essa Presença não-humana por (op.cit. : 140-141). constitui-se <ma proximidade de um ponto de não-
Amanten (ibid. : 144). Estabelece-se. assim. uma relação entre o «eu» e -humanidade», mas não deve anular-se nele (o risco é a perda do prazer
o «fora de si», natureza ou presença não-humana. que é da ordem do e da alegria) nem deixar que esse «apelo fusão)) se transforme numa
afecto. Depois. toda a forma fará caminho e. de modos diferentes. será espécie de «sobre-humanidade». É esta a lição das «cenas fulgor» no
ser em relação. Para toda a forma se define «uma vida e um destino texto llansoliano: nelas se dá o apelo. a relação e a possibilidade da
que não são leis que a mente e a consciência moral interpretam. lêem, epifania, desde que o ser-humano não deixe a cena anular-se nem se
apagam, e deixam escritos» (ibid. : 146). Haverá, consequentemente, o anule nela. mas chegue o mais perto possível (sem nele cair) daquilo a
«convite» ou a ausência dele. dependendo de haver ou não o desejo de que Llansol chama «o ponto voraz» - «simu ltaneamente a fonte de luz
chegar ao «íntimo do mundo»: intensa que ilumina a cena fulgor. e o lugar onde ela se anula)> (ibid.:
140). O risco de o ser-humano se anular nessa Presença não-humana
Sempre o afecto me pareceu o caminho que me levaria ao íntimo do mundo nada tem de metafísico, apenas não é objectivável. A questão é que.
_ _ _ _ _ desejo. inteligência, corpo (ibid.: 135).
como também é dito, «a maior parte das cosmogonias tradicionais dá à
forma-humana um lugar central de intermediação entre o mundo criado
Assumindo esse desejo de chegar ao íntimo do mundo, o texto
e o criador. mas não definem funções operativas)> (ibid.: 145). o que faz
passa a vê-lo como um convite, e celebra, com a Presença não-humana
com que. ao procurá-las. o homem se veja perante o enigma da criação.
e com as outras formas humanas e não-humanas. um contrato de e crie as suas próprias explicações e modos de agir.
mútua não-anulação que assenta em premissas como as seguintes: O texto assume e explica-se: «Eu aceito que eu. ser-humana. fui
primeiro - como todas as formas se relacionam entre si. com diferen- criada à imagem dessa presença de não-humanidade. (... ) mas daí
tes modos de comunicação, e «a palavra é uma forma de comunicação nunca inferi, porque contrária à minha experiência. que eu tenha a
rara, mesmo entre seres-humanos. e não é, de modo algum, a mais mesma forma que essa imagem. Oser-humano é uma forma inconfundí-
fiável», daí advém que cabe ao ser humano, por ser «um progresso de vel, inalienável. e exclusiva de nós mesmos.» (ibid.: 141). Desse modo,
leitura» (Llansol. OVDP 187). aprender/ensinar diferentes linguagens; a propósito de Ad, o menino que «queria ver Deus», o texto reflecte e
segundo - 1cnada está em nada. apesar das múltiplas implicações das aconselha:
form as entre si. mas o conhecimento mútuo e. sobretudo, o reconheci-
mento (... ) elabora-se entre as formas concretas que, estabelecendo Não lhe passava pela cabeça que esse deus que. em tempos. por vezes
uma relação preferencial, decidem cuidar umas das outras>) (ibid.: 142); se mostrava. em terrível. em pastor. ou em pobre. há muito se tornara
terceiro - dar atenção a todas as formas é ir olhando para uma e para longínquo e ocioso. Nem eu lho disse; não valia a pena; isso aprenderia
outra, desenhando «a curva dos afectos». apreendendo «as tona lidades ele, se tivesse de aprender; nem eu lhe diria que esse deus já muito me

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

fizera chorar, que não voltaria a mostrar-se, que um outro, cuja forma era texto llansoliano) baseado na (<vibração pensante)) que emana desses
o inimaginado, tinha vindo e que, de tão evidente, passava . por norma, encontros. A leitura do registo, ou dessa escrita , depende de um
despercebido. (... )como dizer-lhe que uma boa-nova fora anunciada a toda processo de reconhecimento, não de recordação. Como acontece, por
a criação? (ibid.: 137-138). exemplo, com a mulher de Parasceve. Puzzles e ironias. ou com «a
rapariga desmemoriada», de OJogo da Liberdade da Alma, foi preciso
Ad, não é preciso pensá-lo [Deus) de outro modo; é preciso deixar de o
pensar. Colocar o coração na proximidade da sua paisagem, deve bastar. fazer o voto da decepação, que passa pela decepação da memória, para
(ibid.: 139). poder escrever ou ler:

Sei que foi ter com ela um diálogo pacífico [com a imagem da Senhora
Por isso. o texto propõe a «emigração para uma paisagem onde não
decepada], // e que o azul angustiante que ela apaziguara acabou por lhe
há poder sobre os corpos (... ). Apenas sentir, ao nosso lado. dentro e
ser dado sob aforma de um voto - o voto da decepação. A mulher deveria
fora de nós, perto e longe, uma realidade inconfundível. incomunicável. escrevê-lo para escrever menos incerto. Devia, sobretudo, observá-lo na
incompreensível e inimaginável mas que é, como nós, à sua imagem. emanação das suas fontes de inteligência. (.. .) Enquanto se lava o escrito
un ica mente presença » (ibid.: 121 ). Esse é o lugar-Texto, desse voto, pensou: «Todos os objectos lêem. ou são dados a ler». (Llansol.
o «Locus/Logos» onde os encontros do diverso podem acontecer; onde P. 21-2)
as figuras, como «agentes do mútuo». têm uma identidade plural; onde À medida que [a mulher] aprende a decepar os nós da sua mente (.. .).
o «mútuo», como arte visual da palavra, pode dar a ver na voz. sobreim- Afinal. não decepara ainda o nó do imaginário. (... )o voto de decepação
pressas. a sensualidade da Presença não-humana e a consciência da tornara a mulher experiente em linguagem (ibid.: 24-5)
paisagem, através da «vibração pensante» que nesse lugar se origina: O não-recordar, o não-conseguir recordar não consistem numa recorda-
ção soterrada, mas no nome a dar ao que está a ser confrontado nesse
Depois da partida de João. Müntzer, Nietzsche. Suso. Hadewijch. Eckhart, confronto (ibid.: 147)
Médicis. lbn Arabi e AI Hallaj, diferentes tipos de pensamento invadiram a
casa. Tinha acabado a leitura de «Às damas do Amor Completo», e vários Mas essa memória a decepar é a do não-uso. a supérflua, a cumula-
personagens se sentavam à mesa. A. Borges, ele próprio - Luís M.. e as tiva, a que não age, a que só possibi lita a recordação e não o reconhe-
restantes figuras que, com as suas visões. definitivamente faziam desa- cimento; não aquela que começando no ver se prolonga na consciência
parecer o sentimento de monotonia da vida na casa . Várias inteligências e faz agir. como se diz n' OJogo da Liberdade da Alma:
autónomas traçavam seu destino sobre os livros que fazia e que eram
secundários, primordial era o registo de uma vibração pensante e reflec- Há uma intimidade entre a memória do olhar e a memória da consciência
tida num lugar e num material perfeitamente desconhecido. Sua eficácia ____ _ _ _ quanto mais intimidade uma coisa ou obra tem.
não dependia da memória mas do conhecimento. Olhando os escritores quanto mais a imagem que decai se lembra da explosão de luz/ que a deu
sentados à volta da mesa. verificou que este termo era vazio, e que suas à consciência.
imagens se definiam. sobretudo. pela posição do olhar, e pelo abandono da
antiga forma de leitura e de escrita. (Llansol, CJA: 14, sublinhado nosso). tanto mais age e menos perece e sofre. (Llansol, JlA: 75)

Os «encontros de confrontação» reúnem diferentes tipos de pensa- Na intimidade dessa união, entre a memória do olhar e a memória
mento e de inteligência que, dialogando. dão origem a um registo (o da consciência. origina-se a potência de agir que proporciona o pensa-

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Maria Etelvina Santos

menta das «ideias adequadas» (Spinoza). ou «vibração pensante» (Llan-


sol) que. por sua vez. origina mais potência de agir, de modo a gerar
adequadamente mais pensamento. Pelo contrário, fora da intimidade
dessas duas memórias, só é possível a recordação e nesta. pode dizer-
-se. só há acasos. ou fenómenos contingentes. que não geram «vibra-
ção pensante» - o «achar» (ou encontrar na recordação) não dá origem
O projecto continua em aberto( ... l /A dobra mantém-se forte e misterio-
a nada; achar sem reconhecer. de nada serve. não age. É. portanto, o
sa. Sonhar fisicamente a nova variedade de seres. desejá-la intensamente.
reconhecimento (gerado na intimidade dos diferentes tipos de memória)
aprender a dar-lhe a forma de criança e saber finalmente qual o destino
e não a recordação (dos acasos. gerados pela contingência) que produz que coube à vida . (Llansol, F 123-125)
pensamento. De nada serve saber. sem reconhecer.
O reconhecimento é, simultaneamente, um processo de desposses- É neste caminho. através da leitura do intenso e de intensamente
são e de intimidade; é um modo mais selectivo do que cumulativo; deci- sonhar o mútuo, lendo a dobra, que o texto lla nsol iano se define e
de-se aquilo de que se pode prescindir, cultiva-se o que pode crescer e mostra o seu método: os encontros de confron tação originam cenas
expandir-se. vibrar. no sentido de suscitar elos. de encontrar textuan- fulgor; para fazer a leitura da cena fulgor é preciso abandonar a antiga
tes. arriscando o novo. Os encontros de confrontação geram-se durante forma de leitura e aprender. como o texto também diz. a aproximar as
processos de reconhecimento. O reconhecimento, que será definido no frases que. em si lêncio, se correspondem. nesse processo que não é
texto (como no exemplo anterior retirado de Na Casa de Julho e Agosto. de recordação do lido. mas de reconhecimento do lido no que se está
p. 14) é o que a escrita vê. e que a leitura há-de ver; tudo dependendo a ler. num reconhecimento que é uma leitura da dobra. Em O Senhor
apenas da «posição do olhar» e da decisão de «aba ndono da antiga de Herbais, no capítu lo X, intitulado «Amar um Cão», ao reconstituir
forma de leitura e de escrita». Éo caminho do mútuo e do novo, através o episódio do nascimento de Jade, o texto mostra o qu e entende por
da dobra ou da leitura da dobra do mundo, a única leitura que oferece dobra e como se avança nesse caminho. Lemos essa cena-fulgor de dois
ao homem. através de um desejo intenso, a capacidade de dar corpo modos: primeiro. vendo como Jade nasce para um livro futuro. compa-
aos seus sonhos. de lhes dar uma forma física dentro da espécie viva: rando com o que lemos nesse livro -Amar Um Cão-futuro-passado
deste outro (O Senhor de Herbais). e articulando esse nascimento com
tudo depende do modo como nos manuseamos. porque é nesse manusea-
o passe io à Serra da Arrábida onde Jade se perdeu momentaneamente.
mento que tocamos. que tecemos a dobra. ou mútuo. Tudo o que é. existe
em dobra ou dobrado: em ser e porque é?. renascendo pelas mãos do dono; mas. em segundo lugar, de um outro
modo, podemos ver nessa cena como se pode ler na dobra. E a cena
Não é verdade que todos os seres vivos procuram permanecer fixando-se passa a mostrar o seu método e a se r ensinamento. Por que razão se
em certezas quanto à face do real, e sabendo que o seu reverso, além de pode considerar que estamos perante um modo de ler a dobra? Veja-
existente. lhe é particularmente inacessível? Viver seguro e esperar que mos o que acontece e como.
da dobra. seu próprio mútuo, não lhe surjam surpresas, resume o modo de
estar do ser vivo. (... l

Quando é que o homem. de forma mais capaz. se julgou forma única e


exclusiva?.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Ler na dobra dois, lendo e pensando essa dobra e já adivinhando uma outra. a deste
mundo agora e a de um depois no tempo; mas a cena só irá constitui r-
Jade (Llansol, SH: 234-238). atraído pelo cheiro forte dos medro- se como cena-fulgor se o pensamento a continuar. Caminha-se para um
nhos, segue essa «fragrância» e, por desconhecer que o caminho «de segundo bordo do anel: agora é pensamento e cena, desdobrando-se -
cheiro em cheiro» não é caminho «de solo firme», acaba por ficar preso «no meio de muito non-sense. parte desse diverso acabaria por faiscar.
sobre um precipício, porque «a fragrância não era contínua», tendo Sabíamos que no centro do anel, na ara vazia da promessa, crepitava
pelo meio «fragas»; o caminho dos cheiros estava além, o do solo firme uma chama. / Por vezes, a chama inflama o diverso. O fogo espalha-
aquém; Jade, fora da adequação dos caminhos, fica em perigo; o seu se momentaneamente por toda a área do anel, e surge entre nós uma
modo de entendimento está essencialmente na pituitária. Por outro cena fulgor. Atinai, era a sua epifania que buscávamos. Cena fulgor e
lado, os donos de Jade conseguem ver «as rupturas bruscas de terreno»; pensamento adequado do ambo tinham-se tornado quase sinónimos na
sentem a fragrância, mas sabem que as fragas provocam rupturas no nossa convivência de proxi midade.» (Llansol. SH: 236).
caminho; percebem que o ladrar de Jade os chama, aproximam «fraga» Aprender a ler aquele diverso e na intensidade foi o que levou os
de «fragrância», vêem que Jade corre perigo, e o dono vai salvá-lo. A donos de Jade a ver a cena-fu lgor. a tropeçar numa palavra que lhes
cena acaba ou começa? Começa para a leitura da dobra. trará o sentido desse acontecimento - a palavra «essência»:
Como é que esta cena ensina a ler a dobra? Os donos de Jade
pensam o acontecimento; a dona interroga-se sobre os diferentes cami- Tantas vezes essa polissemia [de essence] já tinha sido pensada. Spinoza
nhos presentes em «fraga» e «fragrância»; o dono interroga-se sobre (.. .)fundara sobre ela o seu pensamento. o trajecto surpreendente que une
a «matéria» e a sua possível existência em tempos (presente e futuro) o infinito diverso que exteriormente nos envolve às intensidades por nós
diferentes , e sobre a necessidade de homologia para que, não sendo o activamente pensadas. A travessia cerebral. afectiva e sensível, que da
ideia inadequada nos pode levar à adequada e, em certos momentos raros,
sentido único. possa haver caminho. No diálogo que acontece entre este
ao cerne intuitivo da nossa própria existência. «Nós sentimos e experimen-
«ambo» (dono e dona), as frases vão surgindo paralelamente, mais por tamos que somos eternos». Mas não era tanto esse trajecto que ali me
homologia do que por analogia; como que inadequadas a um e a outro saltara ao caminho. Não. Esse trajecto sobre o qual tanto meditara nos
interveniente, estão, no entanto, em dobra, porque o sentido irá surgir meus livros, subitamente, havia pousado na imagemque Jade me ofertara
(mais adiante). como revelação, da confluência dos dois pensamentos. da sua bondade. Soube, para mim. que esse trajecto nunca me seria aces-
«Cada um no seu reino» , como estavam com Jade: «cada um de nós sível pelo encadeado de escólios e de axiomas mas exclusivamente pela
lançava o seu óbulo», sem preocupação de sentido; «para pensar como força (essence. dínamos) da bondade.( ... )
tu. já bastas tu, não é verdade. Jade?». Dentro de todo esse diverso, A linha dos altos e baixos da intensidade tinha um nome, o pacto de
duas coisas acontecem : o movimento que dará origem à cena-fulgor. bondade. ESpinoza sonhara com essa linha. vira esse pacto mas. pruden-
e o pensamento que ele suscita. A cena irá constituir-se através desse temente, disse não saber o nome que tinha (.. .).
desdobramento. Se para pensar como Jade. existe Jade, a partir daí, A trela fora essa linha, selara na minha sensibilidade de escrita indelevel-
mente esse pacto. Eu dera a pata, ele dera-me o seu olhar à cão. Seria.
os donos. procedendo «por inadequado», cada um a seu modo, passam
para sempre, assim. a eternidade por mim experimentada. (ibid.: 238-9).
a pensar o lugar do «vivo» no mundo - matéria, os diferentes cami-
nhos, fraga e fragrância, caminho além, cam inho aquém. t «o primeiro
Como pensara o dono de Jade. ainda antes de surgir a palavra
bordo do anel», diz-se. Será o movimento que levará à cena : Jade num
essence, «'quando há apenas um sentido, se não há homologia, não há
reino. os donos no outro. os donos vendo a correspondência entre os

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

caminho, a questão fica suspensa'». O texto llanso liano pede e mostra um outro patamar de beleza (o novo). É um processo não de ascese,
a quem lê, como para encontrar a palavra que se deseja, para chegar mas de secularização do sagrado: através de novas leituras (diferentes
à sua coincidência, é preciso aprender a ler de outro modo - proce- posições do olhar). de jogos de intimidade entre os diferentes tipos de
dendo, aparentemente, «por inadequado» ou, como o texto também diz, memória, trazer para o quotidiano aquilo que se considerava ser privi-
«desculpindo»; depois, «a travessia cerebral, afectiva e sensível», pode légio do misticismo, ou. como se diz em Parasceve, Puzzles e ironias,
levar-nos ao «adequado», e a perceber que da leitura da dobra - dos tentar «transpor para a consciência quotidiana o que. durante sécu los .
mundos, ou das palavras - a palavra justa surgirá, e a partir daí há fora atribuído ao êxtase» (Llansol, P 1O).
mais caminho a fazer:
A natureza da minha mesa de trabalho (... ). Sete fontes de luz. pois.
Se é verdade que o mundo é feito de mundos estéticos - e esse é o cerne Tantas são as moradas que muitos místicos descreveram nos relatos da
deste livro - , que destino dar à frase de Walter Benjamin (citada por sua experiência.// _ _ mas não é mística a minha mesa de trabalho;
Manuel Gusmão): «Ü mundo é a nossa tarefa»?. Creio que Benjamin ainda se o fosse, unir-se-ia a Deus num movimento da sua natureza de madeira
acreditava na distinção entre compreender e transformar. que herdámos verdadeira; deste modo. só se une à beleza( ... ). Incapaz de ascese- mas
dos Gregos. Não creio que tenha chegado a «ver» que o transformável é não de leitura-. segue as variações dos sinais sejam coloridos,
o esteticamente desdobrável, que o instrumento estético e cognitivo da sonoros, ou ainda de outra natureza (Llansol, /QC: 91).
literatura é central nessa operação e que a sua utilidade mais preciosa
consiste na destrinça interactiva dos mundos. (Llansol, SH 45-6) Essa nova leitura do/ no quotidiano é de ordem estética, e não
mística. Procurar os modos de que dispomos, hoje, para ler «as varia-
Pode ser esse o modo de ler o texto llansoliano - a procura do ções dos sinais», saber como ler essas variações no plano do imanente.
reconhecimento do mútuo, na leitura da dobra mais do que do signi- e como esses modos se ligam com outros modos de ler o mundo, são
ficado, naquilo a que poderemos chamar um processo narrativo de os percursos que fazemos para tentar perceber o íntimo do mundo e
inflorescência. uma vez que o processo de contar não se enquadra a nossa relação com ele, de modo a desenhar o perfi l da mútua não-
nos modos habituais de encadeamento sequencial. encaixe ou alter- -anulação no rosto do humano.
nância, não segue os processos de sucessão ou de integração (Claude
Bremo nd). aproximando-se talvez de uma totalidade de significação
(Greimas), mas encontrada na convergência das cenas fulgor, recons- Da leitura assimétrica como leitura do intenso
truindo aquilo a que Llansol chama «o desenho do encadeado» (Llansol,
«Ü Espaço Edénico», in CJA. 2ª ed.:163). como que respirando «num Para que algo aconteça aos nossos olhos. para que eles vejam esse
interior de anel», como num processo de sístole e diástole. Por isso, acontecimento e. ao mesmo tempo, que algo a eles aconteça para que
sugerimos inflorescência para este modo de ir dizendo, amplificando a nossa perspectiva seja outra. o texto llansoliano propõe-nos um olhar
por reconhecimento, e como que desdobrando. O reconhecimento acentrado para as coisas do mundo. Na tentativa de desvendar esse
do mútuo, desdobrando-se, origina pensamento e faz surgir o novo: pensamento acentrado presente no texto, não linear e não-hierarquiza-
continua-se o belo fraccionando/desconstruindo a imagem da presença do. propomos uma incursão pelas folhas de um livro como Parasceve.
não-humana para que esta se mostre na sua verdadeira forma (reco- Puzzles e ironias, de modo a perceber como a essa escrita acentrada
nhecimento). e reconstruindo-a num belo mais belo, de modo a atingir poderá corresponder uma leitura assimétrica. fora das leis da simetria

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

pois, como o texto diz, na simetria nada vemos (Llansol, OVDP 34). Que forma de representação e de verosimilhança no texto llansoliano. Mas
poderá ser uma leitura assimétrica? Poderemos proceder caminhan- a leitura que poderemos fazer, a partir desse facto, deverá ser, por essa
do do inadequado para o adequado, como na cena do nascimento de razão, diferente, não se limitando à constatação do facto. Qual seria o
Jade? Quem lê poderá propor algum caminho: deixando-se envolver, sentido de ler em simetria, digamos linearmente, num texto que nos
num primeiro momento, por um «aparecer» (Erscheinung, no sentido propõe passar a ver fora da simetria e descobrir essa diferença? O que
heideggeriano). vendo o que emerge do texto, o que «vem ao de cim a» pode deixar ver de outro modo é uma leitura que tente acompanhar o
(zum-Vorschein-kommen) e, com brilho, se dá a ver; depois, num segun- movimento e o ritmo do texto, em vez de seguir exclusivamente a linea-
do momento, deixar-se contaminar pelo desejo de apropriação do texto, ridade de um possível sentido. Por exemplo, como descobrir com o olhar
no sentido de provocar o seu «desencobrimemto» (Entbergung). de (er-augnen), ou ver acontecer (er-eignen). as cenas que em Parasceve
des-ocultar o que, não estando ausente, se esconde, como que preser- são (dugares vibrantes», os lugares que podem fundar o ritmo deste
vando a sua identidade e singularidade (como se nos voltássemos para texto? Ao afirmar: «No espaço onde estivemos, estaremos e sempre
uma verdade ontológica enquanto Unverborgenheit, termo pelo qual estamos, o texto não se escreve com sentido, mas com ritmo.» (Llansol,
Heidegger designa a aletheia grega); num terceiro momento. esta leitu- P.: 151). Llansol parece querer chamar a atenção para o facto de o senti-
ra assimétrica poderá avançar olhando para trás, para aquele instante do ser apenas um dos constituintes da escrita e não. necessariamente,
primeiro em que o texto se mostrou - nesta coincidência/ confluência o mais importante. O ritmo, como sugere Meschonnic, pode ser motor
estará. talvez, o lugar de onde podemos ver, a outra luz, o que antes de grandes alterações no texto: ((Le rythme est explicitement ce qui
aparecia como enigma. Como afirma Heidegger: renouvelle» (Meschonnic, 1982 : 377). e renovar, transmudar, é também,
em Maria Gabriela Llansol, um processo metamórfico que passa por
A nossa tarefa consiste em ver o enigma [da arte). (.. .)A estética toma a uma atenção especial ao ritmo do texto. Parasceve, no seu movimento
obra como objecto, nomeadamente como objecto (...)do perceber sensível e ritmo, mostra a própria ideia de metamorfose. Como caminhar, no
em sentido lato. A este perceber chamamos hoje «vivenciar» [Erleben). É texto, em direcção a esses lugares e «refúgios de uma inexpugnável
o modo como o homem vivencia a arte que deve prestar-se a esclarecer- beleza » onde algo se transforma? Propomos a leitura de uma cena a
nos acerca da sua essência. A vivência [Erlebnis] é a fonte canónica, não que chamamos do <(Grande Maior» {ibid.: 11 ):
só da fruição artística, mas mesmo da criação artística. Tudo é vivência.
O texto começa com um movimento dos olhos, não do olhar (o que
(Heidegger, 2002: 85).
seria mais abstracto; mover os olhos implica talvez mover também a
cabeça, quem sabe se também o corpo, sendo, por isso, um movimen-
Neste modo de ler, as correspondências não se fazem linearmente.
to mais concreto e visível do que o de mover o olhar). Alguém ergue
Parasceve, por exemplo, parece responder a Onde Vais, Drama-Poesia?.
os olhos - o movimento é ascendente e intencional. E prossegue-se
Poderá ser um drama-poesia vivenciado em cenas (não actos) que se
alterando as direcções do movimento no texto: os olhos de quem lê,
sucedem interl igando-se, cruzando falas que aparecem e desaparecem,
movendo-se da esquerda para a direita, são obrigados a olhar para cima
com outras que ficam a soar. Começa-se por um ((Prelúdio», onde se fa la
e para baixo, para seguir a direcção dos olhos que se movimentam no
de um livro (um dicionário) que começa na página 33. Acaba-se numa
texto, interseccionando-se com eles. Poderíamos dizer que essas inter-
espécie de epílogo, que foge a esse título para, deixando o livro escrito,
secções vão construindo nós rítmicos, núcleos de energia. Também as
mas aberto, ficar ((À Beira do Rio da Escrita». A ausência de uma possí-
linhas que se vão desenhando. no sentido ascendente e descendente,
vel estrutura linear. como sabemos, corresponde à recusa de qualquer
criam um ritmo próprio, interno ao texto: cada movimento (um «som»)

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

regressa, pelo movimento seguinte e contrário, a uma imobilidade (uma «vazios entre as folhas», produzem «praças verdes>> - o primeiro híbri-
«pausa») descritiva. Assim: do de Parasceve?
A segunda pausa fala mesmo de imobilidade e, no entanto, há movi-
1° movimento: mento porque se dá uma metamorfose na mulher:
«ergo os olhos para a cúpula da árvore.» «Ü meu corpo sentado perdeu-se e fiq uei visível e invisível.
1ª pausa: Dois cães não tiveram medo da minha imobilidade, e o meu
«Próximo, há uma fonte, a fonte do Plátano, e o que me
encontro com eles foi breve, pois estavam de passagem.»
atraiu foi a humidade do lugar, e a anfractuosidade da pedra
para apoiar as costas. Mas. já sentada. apoiei a nuca sobre a O corpo ganha uma qualidade: a de ser simultaneamente visível e
rocha e( .. .)» invisível. Porque. na imobil idade, foi capaz de movimento. Esclarece-se,
2º movimento: a seguir, o possível paradoxo:
uprincipiei a ver que. por cima da minha cabeça,( ... )» «Tinha o senti mento de que( ... )»
2ª pausa: Este conhecimento é da ordem do sensível e não do inteligível. Não
«Ü meu corpo sentado (... ) há aqui representação, há o assumir de uma vivência-em-devir que se
Dois cães não tiveram medo da minha imobilidade( ... )» apresenta «sob a forma de um empirismo transcendental ou ciência do
sensfvel» (Carlos S.C .. 2001: 38). Esse possível paradoxo de um corpo
Aquando do segundo movimento, que continua o primeiro. cria-se que, permanecendo imóvel, materialmente se desloca apenas com
um lugar e uma relação espacial, entre a mulher que olha e o objecto o seu próprio olhar - «com um simples olhar, eu própria deslocara
olhado; mais propriamente, entre a nuca da mulher e a cúpula da árvore. o meu corpo. E o corpo estava onde estava o olhar>> - só pode ser
Esse lugar entre, que é um vazio pleno, é um alguém-lugar que pode ver explicado por um conhecimento da ordem do sensível. «Uma filosofia
a mulher a olhar para cima e o objecto a olhar para baixo. Poderia ser o do sensível ou que dele procure dar conta confina com uma estética das
lugar do legente, um terceiro olhar que introduz o ímpar, o elemento da intensidades, na medida em que é a qualidade e potência diferenciante,
dissimetria - o lugar de encontro dos dois olhares. confundida no diverso. que importa» (ibid.: 38). A mulher via «um lugar
Vemos a mu lher a principiar a ver, porque seguimos, com o olhar, habitado, elevado à potência da copa de uma árvore»; «fiquei visível
o movimento dos olhos dela («principiei a ver que, por cima da minha e invisível», diz a mulher, o que torna esta vivência diferenciante pelo
cabeça, seguindo os raios de luz que desejavam partir, havia») - os excesso. pelo intenso - é o in-expressivo que fala e expressa. marca-
olhos dela movimentam-se na li nha ascendente desenhada pelos do pelo sensível.
raios de luz; olhos e raios de luz coincidem neste percurso - ambos O olhar desta mulher tem a capacidade de deslocar o seu corpo,
se caracterizam pelo desejo de partir. A luz irá mais longe do que os como também a mulher do 1<Lugar 1» d' OLivro das Comunidades «tinha
olhos, ou deter-se-á onde os olhos se fixarem? De qualquer modo. essa uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela palavra» (Llan-
luz poderá ter a capacidade de metamorfosear a copa da árvore porque sol, LC: 11 ). Distante mas intensa, porque diferenciante. Também em
pode dar a ver o que, estando lá, não é visto por quem não usa essa luz Parasceve é possível esse tipo de vivência porque esta mulher não
para mudar as coisas de lugar, transformando-as. A mulher opera essa é, está a ser. É mãe e filha da sua própria metamorfose, e só esta é
metamorfose. E neste processo começa um outro - o de hibridismo portadora do dom de ver. Na 11cena do plátano», a mulher ainda está
(que culminará, talvez, na «cena do lobo», e que dará à luz a «geração «às portas» da «cidade-árvore» - «cidade invisível e que só eu via. A
sem-nome»). Plano do humano e plano do vegetal: «ruas», «orifícios», árvore, essa, poderia ser vista por toda a gente» -, mas continuará o

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seu percurso metamórfico até chegar a uma ponte «à beira do rio da que todos os sentidos colaboram) e da linguagem que a veicula. A
escrita». Dará à luz uma «geração sem-nome», já diferente da geração- reelaboração é uma intensificação, a evidência caracteriza-se pelo seu
das-comunidades, híbrida e temível porque «Não só capaz de metabolis- excesso. Porque se trata de um da do primordial. a procura da evidência
mo, mas igualmente de metamorfose» (Llansol, P.: 56). Quando a «crian- está no cerne da inteligibilidade. (... ) A evidência dá-se também como
ça-asa» ainda era «um corpo de criança com o rosto completamente por intuição, como se acedêssemos ao sentido por um contacto directo.» (F.
formar», já era «evidente para a mulher que teria olhos de lobo», e<( ... ) Gil. 1998: 400).
<cPelo corpo ainda não chegara a nascer», pensou. Mas, pelos olhos Sendo (<a forma primordial da inteligibilidade», essa língua da
que se previa, era já um animal feito. Seria um olhar seguro, que não evidência poderia resultar, no texto llansoliano. do encontro e fusão
toma o mundo por ilusão» (ibid. : 53). No processo de transferir-se para. da Voz (o sopro, ainda sem som) com Phoné (o som que se vem juntar
a mulher terá encontros onde serão os olhos a ditar o movimento e o à Voz, depois da criação do Nome) e com Imagem (não nos sentidos
ritmo que ela deve imprimir ao seu corpo . No encontro com o lobo, ela retórico, icónico e pictórico. ma s como figura de pensamento - como
c<transfere-se para a alegria» porque sabe que «o lobo não acredita na hipotipose, no sentido de mostração, de «pôr debaixo dos olhos»). Essa
morte mas no movimento. Quando a presa pára. ele mata.» (ibid.: 56). língua seria a própria matéria da palavra, ou seja , a «substância lenho-
Por isso, <e Há mesmo prazer. um prazer que o lobo estu pefacto sente, na sa da língua, a qu e os antigos chamavam silva (floresta )». Por isso, para
alegria que sente.»( ...) «Algo se ergue na mulher.( ... ) É um levantado Agamben, «Quem nunca alca nçou, como num sonho. esta substância
que parece sair do corpo da mulher. O lobo deseja-o em movimento, lenhosa da língua, ( ... )ainda que se cale, está prisioneiro das represen-
vivo. e penetra isso. Afina l. a vontade é apreensível no seu excesso. E a tações» (Agamben, 1985: 29). Língua qu e permite <caceder ao sentido
mu lher lembrou-se que já fora mãe.» (ibid.: 56). por um contacto directo», como na intuição:
É pelo movimento e pelo excesso que a mulher foge à morte e dá à
luz. Mas é pelo olhar que movimento e excesso acontecem. E quando Errante intimidade com o dia. Passo-o no jardim de Prunus Triloba. à
luz e olhar se unem, produzem o intenso, a possibilidade de ver. Esta- sombra do arbusto central que é o ma is desenvolvido. A planta. na base,
mos no lugar de uma cena-fulgor. a que dá a ver. no sentido fenomeno- tornou-se forte. e agarro-me a essa parte lenhosa. (Llansol. FP 52)
lógico de «pôr em 'evidência'»:
É o encontro com a substância lenhosa da língua (a silva, floresta)
A luz que deveria ser a de uma lâmpada não é luz que. a princípio, provenha que faz acontecer a língua da mostração e não da representação. Não a
de fonte de luz visível. Éapenas porque olho. ela acende-se quando língua do signo. da palavra. mas a do Nome no seu sentido primordial.
desejo ver e compreender intensamente. vem ao meu encontro quando O signo nunca é a coisa, nem o acontecimento. mas a sua representa-
descobre esse meu desejo de saber no sítio mais profundo. (ibid.: 31 ). ção. estabelecendo-se. assim, a diferença e distância entre a presença
real e a presença na representação; um signo nunca acontece só uma
A marca própria da «evidência», como assinala Fernando Gil. está vez. tem uma estrutura repetitiva; por isso. sempre que Husserl queria
no facto de ser um conhecimento que dispensa a prova. «uma forma salientar o sentido da intuição original. recordava que ela é c<a expe-
que é a forma primordial (. .. ) da inteligibilidade. Primordial porquan- riência da ausência e da inutilidade do signo» (Husserl, Sexta Investi-
to a evidência corresponderia (... ) a um estado arcaico da mente. que gação: «conteúdos intuitivos»/ «conteúdos significativos», in Derrida,
é o modo originário de doação do sentido. A evidência constitui uma 1996c: 75).
reelaboração da experiência sensoria l imediata (uma experiência em Procurar outros modos nos modos de ler o mundo, tentar uma leitura

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assimétrica e das intensidades; procurar ler o movimento e o ritmo de ções entre elas nos permite, ao usá-las. estabelecer as relações mais
um texto que lê o mundo, querendo ler o seu íntimo e a nossa relação convenientes para as nossas necessidades, e saber se esses modos de
com ele; ou ler com o desejo de trazer ao plano da evidência um rosto relacionamento são os melhores. A sua pos ição face ao conhecimento
mais «humano» é um caminho que o homem não poderá fazer fora de detém-se na análise das consequências. portanto, mais do ponto de
uma linguagem de permanente leitura, entendendo-se por esta, sejam vista de uma pragmática do que de uma epistemolog ia do conheci-
quais forem os seus modos, uma linguagem que privilegia a atenção. mento. Como afirma Silvina Rodrigues Lopes. «para Rorty, o confronto
entre teorias no interior de urna cultura. ou entre culturas diferentes,
é urn importante exercício da racionalidade, o processo por excelência
Outros modos de ler e ser: o ponto de vista pragmático que nos pode levar a abandonar aquilo que tinhamas como verdadeiro
e a adaptar uma ideia melhon> (Lopes, 1994: 93). o que leva a admitir
Na tentativa de identifica r valores do «humano», e na linha do prag- diversas formas de saber e a não considerar o conhecimento teórico
matismo de Peirce e William James, a obra de Richard Rorty, princi- como o modelo obrigatório da racionalidade. Trata-se de recusar mode-
palmente a partir de 1982, com A Filosofia e o Espelho da Natureza, los absolutos, anal isando os argumentos nos diversos contextos, não
tem vindo a ser considerada como das mais influentes, embora também reconhecendo privilégios e respeitando a autonomia entre os diferentes
controversa. no pensamento actua l. Rorty chama a atenção para sectores do saber, e, por outro lado, alertando o indivíduo para a tomada
mudanças de paradigma como. por exemplo. o de pares de opostos de decisões eticamente responsáveis. A ideia de que o pragmatismo de
considerados. a partir de Derrida, como «as oposições binárias da meta- Rorty pode estar apenas a ficciona r o que pode ser um mundo melhor,
fisica ocidental» (Rorty, 1995: 13-14): absoluto/relativo ou realidade/ não reduz a sua importância, pois «no modo como cada indivíduo vive
aparência vêem-se agora subsumidos por pares como passado/futuro as ficções da sua comunidade, confirmando-as, alterando-as e criando
ou diferença/semelhança. com os quais se propõe uma mudança signi- outras. é que reside a dimensão crítica da razão, e não nos juízos feitos
ficativa de ponto de vista ao sugerir, por exemplo. que, relativamente a partir de critérios intemporais» (ibid.: 95). E se pensarmos como a
aos outros animais. o homem tente, mais do que continuar a aperceber- interpretação e a compreensão estão ligadas aos jogos de linguagem
se de diferenças. encontrar o que com eles tem em comum. Pretende-se (Wittgenstein). e como esta está associada à capacidade de persuasão
discutir. reconceptualizar e reconfigurar 17 , na área do conhecimento ou e de invenção, percebemos melhor a sua importância na possibilidade
do saber em geral. valores como a esperança (como sugere o título de de prever e reformular modos de interacção numa comunidade. através
Rorty, publicado em 1995 em França, L'espoir au lieu du savoir. lntroduc- das suas descrições do mundo.
tion au pragmatisme, na sequência das lições que aí proferiu em 1994, Salvaguardando as diferenças de registo, podemos pôr em confron-
lembrando a herança de Ernst Bloch). a solidariedade. ou a defesa de to algumas das ideias do pragmatismo com o texto de Maria Gabriela
uma definição de verdade como consenso (com Habermas). Segundo Llansol. A realidade mostrada no texto llansoliano não constitui uma
Rorty (op.cit.: 101). para o pragmatismo a questão não está em saber descrição «possível» do mundo (o que seria uma ficção). mas uma
se o conhecimento que temos das coisas corresponde ao que elas real- descrição (<virtual»:
mente são, mas se a nossa maneira de as observar e descrever as rela-
Um Xvirtual (em que Xé um substantivo comum) é algo que, não sendo X.
17 Catherine Z. Elgin propunha em 1996, em Considered Judgement. os conceitos tem a eficácia (virtus) de um X. Este é o verdadeiro significado da palavra.
de «reconception>> e «reftective equilibrium» como termos a integrar num sistema de mas é muitas vezes confundido com «possível» (potentia~. que é quase o
pensamento de campo epistemológico mais alargado.

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seu contrário. Porque o X possível é da mesma natureza que o X. mas sem um conhecimento da ordem da causalidade relativamente ao que elas
eficácia real. Uma velocidade virtual. é algo que não é uma velocidade. são, mas relativamente ao que elas podem vir a ser; esse conhecimento
mas é um deslocamento. (Peirce. 1978: §6.372. p. 261) resulta da intenção do sujeito. e pode assumir-se como uma resultante
virtual do objecto. que é real porque existente nas infinitas realizações
Assumindo o significado de virtual dado por Peirce. a realidade que resu ltam da observação de um objecto fe ita por um observador.
virtual descrita no texto de Llansol tem a mesma eficácia ou é tão real, Este tipo de conhecimento poderá ter ligações com a fenomenologia da
como a realidade; se. pelo contrário, o texto descrevesse uma realida- percepção. nomeadamente com Merleau-Ponty, por aí se estabelecer
de possível (verosímil, no plano da ficção). essa poderia ser da mesma uma relação muito directa entre conhecimento. percepção e experiên-
natureza da realidade, mas não teria a eficácia dela, o que nos permite cia - o sujeito do conhecimento possui um corpo que não existe sepa-
dizer que a realidade virtual que a arte propõe pode ter uma dimensão rado do mundo nem dos objectos (não é autónomo, como considerava
crítica e operante, ajudando a definir novos valores consensuais, e ser Descartes) e. como ta l, a consciência que esse sujeito tem do mundo
considerada como mais uma proposta a ava liar na alteração de para- é uma consciência perceptual, depende da natureza experienciada da
digmas. percepção; por seu lado, daí se infere que a percepção também não
De um ponto de vista pragmático, o que o texto llansoliano faz é existe em si mesma, mas in-corpo-rada. e que a experiência assume
tentar perceber se o cam inho do «belo mais belo» é o que serve melhor. particular importência neste processo. Assim, qualquer coisa percep-
mas sempre enquanto processo, pois é o processo em si, de passar do cionada por um sujeito é equivalente ao que a linguagem desse sujeito
belo ao «belo mais belo». isto é, a decisão de desconstruir para poder diz a respeito dessa coisa, e a certeza das suas ideias baseia-se na
ver de outro ponto de vista. que pode produzir as mutações necessá- certeza das suas percepções, que só uma investigação fenomenológica
rias e constantes para preservar a singularidade do ser. Ensa iar essa pode vir a confirmar.
virtualidade pode ser mais real do que ensaiar qualquer verosimilhança Este modo do conhecimento assume particular importância no texto
relativamente à realidade. llansoliano, não só através da percepção que o sujeito tem dos objec-
tos, e do carácter intencional que existe nele, mas. sobretudo, através
do tipo de intenção que ele decide ter; a intencionalidade do sujeito,
Uma fenomenologia da percepção estética
em Llanso l, ultrapassa a diferenciação kantiana entre o «fenómeno» (o
objecto como ele aparece à consciência) e o «númeno» (o objecto como
A relação suje ito/objecto não é estáve l, e a nossa relação com as
ele é em si). e mesmo a intencionalidade em Husserl (mais ligada às
coisas passa não só por uma reflexão sobre a sua possível verdade,
experiências elementares). para assumir uma postura ética e estética
sobre o que elas possam realmente ser, e pela relação representacional
- pensada esteticamente, a intencionalidade é, em Llansol, um modo
que com elas estabelecemos, com as consequências que daí advêm
de gerar conhecimento.
para o conhecimento delas e para o acesso ao conhecimento em geral,
Assim, no texto llansoliano. o objecto e a sua capacidade de gerar
mas também (ponto de vista llansoliano) por um conhecimento que, não
acontecimento amplificam-se através de uma transformação de ordem
estando nelas, nem em nós, resulta de transformações (em Llansol,
estética, operada intencionalmente pelo observador, que implica uma
estas transformações são de ordem estética) que. intencionalmente,
nova ordem de belo; esta nova leitu ra resulta, não de propriedades
o nosso olhar opera nelas. Essas transformações são desencadeadas
intrínsecas do objecto. do seu aspecto fenoménico, mas do modo como
como que a experimentar o pensamento e, portanto, não constituem
se pôs em prática uma mudança de perspectiva baseada numa recon-

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figuração estética; a fenomenalidade do objecto passa a depender de Dar a cada objecto o lugar que lhe pertence é uma regra de justiça
uma perspectiva estética. Alarga-se o conhecimento que podemos ter imanente. Escrever é a única arte que o permite. Temos momentos, quando
das coisas. na sua possibilidade de múltiplas reconfigurações que, estamos sós com o nosso trabalho. em que nos dedicamos a essa arte de
não alterando as suas categorias intrínsecas, as amplifica através de formular hipóteses sem muralhas. (Llansol . LL 1: 18)
O mundo «tal como én, «assim>1, carece de evidência./ Essa ferida [marca
virtualidades suscitadas. e lhes atribui novos olhares. No âmbito de
distintiva que nos separa. entre os humanos. uns dos outros] não separa os
uma fenomenologia da percepção, poderíamos considerar que estamos
ricos dos pobres. nem os opressores dos oprimidos {... ). Não, essa ferida
perante uma fenomenologia da percepção estética.
separa os atentos e os distraídos, os mornos dos intensos. os necessitados
Observemos como o texto llansoliano assume este ponto de vista, e de misericórdia e os orgulhosos. {... ) nós somos epifanias do mistério, e
o modo como ele se liga à nossa percepção das coisas: mistério que nos nossos balbuciamentos se desenrola. (ibid.: 85)

Sim. as coisas são veículo de conhecimento. à medida que se dispõem


Estabelecer novas relações entre os objectos, a partir de um ponto
experimentam o nosso pensamento e submetem à prova a nossa manei-
de vista simultaneamente ético e estético, é um novo modo de formular
ra de agir; disponho-as de certa maneira e já outras percepções surgem.
mudo-as de lugar. estabeleço entre elas outras possíveis relações. e já leituras do mundo e de ensaiar outras formas de conhecimento. Se no
novos seres estão presentes e começam a exprimir-se {a mim) para que eu «espaço imag inante», onde toda essa problemática tem lugar, aconte-
não os abandone. os descreva. os mantenha, os reforce na sua realidade cerem momentos de epifania, onde novos modos de conhecer são reve-
nascente; quando tudo por mim for abandonado (penso na morte). haverá lados, por que não considerá-los cam inhos de conhecimento também
objectos que. em outras casas que os herdarem. chamarão alguém a seu fora desse espaço?
destino. (Llansol. F: 186) Em busca de uma ética sem pretensões universalistas. Rorty
sugere que não se entenda o «progresso intelectual e moral» como um
As coisas são veículo de conhecimento. através das suas posições progresso em direcção à Verdade, ao Bem ou à Justiça, mas como um
relativas - entendida como um dos caminhos do conhecimento. essa alargamento da capacidade de imaginar, o que mostra o papel que atri-
fenomeno logia de ordem estética pressupõe, não o que é o conheci- bui à actividade da imaginação, afirmando a necess idade de não criar
mento. não como é que ele resulta na prática. mas como é que o divisões entre actividades mais contemplativas e outras mais activas:
sujeito o pode desenvolver. Em Llansol, os objectos são ((uma real idade
nascente», o conhecimento através deles pode ((chamar alguém a seu A imaginação é, para nós. o lado mais mordaz da evolução cultural; é o
destino» e a transformação pode fazer-se esteticamente. Esta não é só, poder que - em período de paz e de prosperidade - age sem tréguas
no texto llansoliano, uma percepção das coisas do mundo feita através para dar ao homem um futuro melhor do que o passado. A imaginação é,
por sua vez. a origem dos novos enquadramentos científicos do universo
de um ponto de vista estético, é também uma reflexão ética do seu
físico e de novas concepções de comunidades possíveis. Éisso que Newton
modo de se mostrar ao mundo. O texto, como ele próprio diz e mostra, é
e Cristo. Freud e Marx têm em comum: a capacidade de redescrever o que
também o lugar onde a escrita pode restituir a cada objecto, a cada ser. é familiar de um modo não familiar. {Rorty, 1995: 127)
a verdade de uma justiça - é essa a bondade que ele propõe. fundindo A diferença entre a concepção grega da natureza humana e essa concepção
a ética e a estética numa nova etologia do ser. 18 depois de Darwin e de Dewey, é a mesma que a diferença entre aberto e
fechado ou entre a segurança que produz o imutável e, como em Whitman.
a aventura de se lançar na mudança. ( ... ) esse empenho em substituir a
18 Como já foi proposto na p. 26

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certeza pela imaginação e o orgulho pela curiosidade, anulam a distinção rentes mundos do mundo. que avancem. essencialmente, com critérios
grega entre contemplação e acção. Para Dewey, era esse ogrande projecto de mútua não-anulação.
que a vida intelectual do ocidente deveria disputar. (ibid.: 128) Ter a capac idade de racionalmente decidir como expressar num
espaço imaginante uma vontade, responsabil iza também o homem pe lo
O pragmatismo de Dewey era, como referiu Hilary Putnam, uma seu «poder de decisão» (Ll ansol). dentro e fora desse espaço. A histó-
insistência na supremacia do ponto de vista do sujeito que age. Essa ria da cultura e da arte têm mostrado, factual e esteticamente. quer
supremacia. como afirma Rorty, deverá resu ltar num agir de maneira as diferentes faces dessa capacidade de decidir. quer as imagens e a
a «criar novos modos de ser humano», usando para tal uma faculda- noção de humano que elas transmitem 19.
de como a imaginação. Em Llansol. a dicotomia grega contemplação Levinas, cujo contributo no campo da ética é inestimável, fala da
versus acção, resolve-se pondo em evidência a importância do belo na responsabilidade como sendo a ((estrutura essencia 1, primeira. funda-
aquisição de conhecimento - o belo surge como um elo de ligação mental da subjectividade», e da necessidade de o ser humano ensa iar
que permite manter indissociáveis a vita activa e a vita contemplativa, uma postura ((de outro modo que ser» (tftulo do livro publicado em
uma vez que é transposto do plano mais restrito ou metafísico da vita 197 4, Autrement qu'être ou au-delà de /'essence). lembrando com
contemplativa. para o plano mais alargado do quotidiano. este enunciado o llansoliano (<sentar-se fora da sua natureza», ambos
apelando para a necessidade de nos colocarmos no ponto de vista do
outro, esvaziando-nos de características do ser:
rrDe outro modo que ser»
É na ética entendida como responsabilidade que se dá o próprio nó do
Com o objectivo de anular a antiga distinção entre vita activa e subjectivo. / Entendo a responsabilidade como responsabilidade por
vita contemplativa, podendo assumir a complementaridade dessas outrem (.. .) desde que o outro me olha. sou por ele responsável, sem
duas atitudes sob o ponto de vista estético (perspectiva llansoliana). mesmo ter que assumir responsabilidades a seu respeito; a sua respon-
importa-nos hoje não só a substituição de determinados paradigmas sabilidade incumbe-me. Éuma responsabilidade que vai além do que faço.
por outros (como Rorty propôs, a partir de Derrida). mas uma abertura à (... )a responsabilidade é inicialmente um por outrem. Isto quer dizer que
própria noção de ponto de vista, que, perante a possibi lidade de novos sou responsável pela sua própria responsabilidade. (... ) a relação inter-
paradigmas, cri e condições, através de um ponto de vista estético subjectiva é uma relação não-simétrica. Neste sentido. sou responsável
por outremsem esperar a recíproca. (Levinas, 1982: 87-90)
ou outro, para pôr em movimento a capacidade de esquecer que nos
Ser humano significa: viver como se não se fosse um ser entre os seres.
situamos no ponto de vista do humano. e amplificar, não num imag i- Como se, pela espiritualidade humana. se invertessem as categorias do
nário ficcionável, mas em «espaços imaginantes» reais. humanos e ser. num <1de outro modo que ser». Não apenas num <1ser de modo diferen-
não humanos (com a possibilidade de trocas verdadeiras de diferentes
modos de ser), o conhecimento de modo a possibi litar novos modos de
19 Vejam-se. só a título de exemplo, os livros de Aby Warburg e de Oidi-Huberman.
acção, ma is conformes à totalidade dos seres. Daí poderá resultar um sobre a noção de "sobrevida" das imagens (Nachleben, survivance ou survivan. a
agir em conformidade com noções mais-humanas de comunicabilidade importância dessa "polirritmia " e "memória" da imagem para a história da cultura
que, através da troca de experiências num espaço imaginante, e do (Walter Benjamin fa lava do "inconsciente da visão"). e a necessidade de interrogar
alargamento das potencialidades da linguagem verba l, possam resu ltar esse "inconsciente do tempo".(Didi-Huberman, 2002 e 2003). Para além de muitos
outros pensadores, refira-se ainda as obras de Hannah Arendt (1 958). Jean-Luc Nancy
numa troca de possibilidades responsáveis e reconfiguráveis nos dife-
(2003) e Jacques Ranciêre (2000 e 2003), indicadas na bibliografia.

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Como uma pedra-pássaro que voa

te»; ser diferente é ainda ser. O«de outro modo que ser», na verdade, não te ao desejo de persistir. Observar. por exemplo. de que modo a vita
tem verbo que designe o acontecimento da sua in-quietude. do seu des-
activa e a vita contemplativa definiram esse mesmo desejo de perma-
inter-esse. da impugnação deste ser - ou do esse- do ente. (ibid.: 92)
necer, embora distintamente, pode levar-nos a perceber a necessidade
De facto. trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da
responsabilidade. isto é. a partir da posição ou da deposição do eu sobera- de não dissociar essas duas atitudes. de as usar complementarmente
no na consciência de si. deposição que é, precisamente. a sua responsabi- como forma de conhecimento. e de tentar perceber como as entende-
lidade por outrem. A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe mos hoje.
e que, humanamente, não posso recusar. (ibid.: 92-931 Que desejo/vontade é esse, o de perseverar ou persistir. e como é
gue o homem o põe em movimento? Será um desejo de imortalidade?
Levinas considera. assim. que uma das características diferencia- E a consciência de ser mortal que o diferencia dos anima is. ou estará
doras do humano (ou. ta lvez. aquela que é diferenciadora). é o sentido essa apetição. no homem. ma is associada ao desejo da experiência
de responsabilidade - sentido. como mais um dos sentidos de que o do eterno? Poderemos dizer que o perseverar no ser é, nos animais. o
homem dispõe e que. justamente. o diferencia dos outros anima is que. desejo-instinto de não sucumbir à condição de ser mortal (embora não
como ele. vêem. ouvem. cheiram. têm paladar e tacto. Esse sentido de possa ser a consciência do que é ser imortal) e no homem é o apelo ao
responsabi lidade (do humano) deverá estar directamente ligado ao seu eterno? O homem deseja a imortalidade ou a experiência do eterno?
poder de decisão. Como averiguar de um sentido de responsabilidade E que deveremos considerar por «experiência do eterno»? Poderemos
nos animais? Terão a responsabilidade do seu poder de decisão? Ou dizer que uma dessas vontades é mais humana, que é privilégio de
será que o seu poder de decisão não os responsabiliza? Será. então, alguns. ou que o homem passou de um desejo de imortalidade a um
um mesmo poder? Seguindo o pensamento de Levinas. poderemos desejo de eternidade?
dizer que é irrelevante o averiguar dessa responsabilidade no animal. Hannah Arendt, nas suas reflexões sobre a condição humana. faz
uma vez que a minha responsabilidade, ao ser responsabilidade por remontar ao momento de ascendência do pensamento político na
ele, inclui. reciprocamente, também a responsabilidade dele. E isso escola socrática e às diferenças entre vita activa e vita contemplativa.
torna-nos mais responsáveis. Como diz Levinas. «o eu tem sempre uma o surgimento da preocupação com o par eternidade versus imortalida-
responsabilidade a mais do que todos os outros» (ibid.: 91). já que a de. Esc larecendo o modo como usa as expressões - «o uso que dou à
relação é não-simétrica. expressão vita activa pressupõe qu e a preocupação subjacente a todas
Associando o poder de decisão ao sentido de responsabil idade, e as actividades não é a mesma preocupação central da vita contempla-
considerando este como uma das características diferenciadoras do tiva, ta l como não lhe é superior» (Arendt, 2001: 29) - Hannah Arendt
humano que. por sua vez. se define pela vontade e desejo de perseverar salvaguarda o facto de as duas posições corresponderem a preocupa-
no ser. e de penetrar no íntimo do universo, poderemos observá-los em ções humanas completamente distintas. e salienta esse momento como
conjunto na tentativa de ir formulando novos valores para o humano. a aquele a partir do qual se passou a distinguir os cchomens de acção» dos
partir de novas leituras do mundo. lnterroguemo-nos. agora mais apro- <chomens de pensamento», sendo que era à vita activa que iria estar
ximadamente. sobre essa apetição de persistir. de permanecer adentro associada a ideia de imortalidade.
do que lhe é próprio enquanto ser que está aí. e vejamos como também No universo grego, onde tudo era imortal (natureza e deuses) menos
essa vontade se associa aos dois modos. activo e contemplativo. e o homem. e onde não havia um Deus eterno, a preocupação do homem
ainda como o belo pode. de novo. anular diferenças. agora relativamen- era assemelhar-se aos deuses, já que estes. sendo da mesma natureza
do homem (anthropophyseis), eram. no entanto. imortais. Só através

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da realização de obras, feitos imortais, os homens poderiam elevar-se que não encontra exp licação nas duas experiências anteriores e que,
à condição de deuses. É, portanto, à vita activa, que está associada a portanto, deverá ser procurada fora delas.
noção de imortalidade; daí que a experiência do eterno como a tem o É observando o que são as preocupações do homem, aquilo que
filósofo não possa ser compatível com a luta pela imortalidade: realmente o pre-ocupa, aquilo que <<o chama», e não na ausência de fé
religiosa, que poderemos encontrar resposta para a sua incursão numa
A experiência do eterno tal como a tem o filósofo - experiência que, para vida amputada de crença, de convicções profundas, e desligada de
Platão, era arrheton («indizível») e. para Aristóteles. aneu togou («sem quaisquer valores relacionados com uma atitude mais contemplativa.
palavras») e que. mais tarde foi conceptualizada no paradoxal nunc stans A moderna preocupação desmedida com o ego !principalmente a parti r
(<<aquilo que é agora») - só pode ocorrer fora da esfera dos negócios
de Descartes) tem sido «uma tentativa de reduzir todas as experiên-
humanos efora da pluralidade dos homens. {.. .)a experiência eterna. dife-
cias, com o mundo e com outros seres humanos. a experiências entre
rentemente da experiência do imortal. não corresponde a qualquer tipo de
actividade nem pode nela ser convertida. {Arendt, 2001 : 32) o homem e si mesmo. (... )O que distingue a era moderna é a alienação
em relação ao mundo.» (ibid.: 317). Ao deixar de assumir o Outro como
A experiência do eterno. também chamada contemplação ou vita transcendência, mas também não se assumindo como um si-mesmo lo
contemplativa, contrapunha-se a todas as outras atitudes que poderiam eu na sua relação com os outros). o homem perde-se num solipsismo.
apenas aspirar à imortalidade. É, no entanto, em consequência de facto- isolado num mundo que lhe está cada vez mais barrado.
res históricos, e não pela mãos dos filósofos, que a aspiração à vida Constatando essa alienação, faz sentido recorrer a um pensamento
eterna começa a fazer mais sentido - a queda do Império Romano e de William James, enunciado na conferência «Pragmatismo e Humanis-
a ascensão do Cristianismo vinham mostrar que nenhuma obra humana mo», que ajuda a perceber por que porta o homem poderá «ver entrar o
é imorta l e que não faz sentido a procura da imortalidade terrena . Era Messias» !Walter Benjamin), concretamente, e sem qualquer misticis-
assim que o homem se voltava, agora mais, para o eterno. No entanto, mo, ver onde há passagem. James punha a questão deste modo:
talvez o mais significativo não seja a mudança de atitude, mas o facto
Oque dizemos sobre a realidade depende da perspectiva emque a projec-
de, apesar de as duas experiências se constituírem com preocupações tamos. Oque é propriedade sua; mas o quê depende de quat. e qual depen-
distintas, como salienta Arendt. ainda assim, não privarem o homem de de n6s. (James. 1997: 119)
de dar um sentido à sua vida. Daí que a hi stória nos venha mostrar que
«a moderna perda de fé não é de origem religiosa», nem o seu alcance Poderá estar em nós a passagem. mas só será passagem se não nos
se limita a essa esfera, já que «mesmo que admitíssemos que a era fecharmos numa egologia estéril. Assumir que a vita activa não exclui
moderna teve início com um súbito e inexplicável eclipse da trans- a vita contemplativa, que pensar e agir não se excluem, pode fazer com
cendência, da crença de uma vida após a morte, isto não significaria que o homem conquiste um mundo de ma ior justeza. Tudo depende, não
absolutamente que essa perda tivesse lançado o homem de volta ao da fé, mas da crença ou convicção profunda donde se parte - em Llan-
mundo. Pelo contrário, a história demonstra que os homens modernos sol. como vimos atrás. é a convicção de que é possível unificar ética e
não foram arremessados de volta a este mundo, mas para dentro de estética como modos de acção. numa vida afectiva (que não exclui nem
si mesmos.» (ibid.: 317). A descrença na possibilidade do eterno não a vita activa nem a vita contemplativa. antes as unifica nessa outra).
voltou os homens para um possível desejo de imortalidade terrena, como lugar de metamorfose. lugar onde se arrisca a identidade para
provocou antes uma viragem egocêntrica, um alheamento do mundo, que algo possa mudar.

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Ao fa lar do «espaço edénico» no seu texto, definindo-o como um estética da bondade (Llansol). Ao homem que não sabe quem o chama.
<(espaço imaginante)) ou «a pa isagem a descoberto», Maria Gabrie- ninguém chama. Exercitar o poder de decisão no bom uso da identidade
la Llansol chama a atenção para uma das dificuldades com que lida pode tornar o homem mais livre, mais responsável e mais sabedor -
uma noção como esta (dificuldades que não estão apenas na atitude porque, ao sa ir de uma identidade egocêntrica para uma identidade do
simplista de a conotar com qualquer forma de Éden): a maior parte si-mesmo (a da relação com os outros). o homem encontra-se com o
dos humanos, como diz, «está muitfssimo mais disposta a aceitar que que nos outros e nele próprio o chama, ao mesmo tempo que exerce a
o inferno existe, do que alguma vez aceitará o espaço edénico como sua responsabilidade pelo outro: «a decisão é sempre um passo para
possível. quanto mais real» (!<Ü Espaço Edénico», op. cit.: 150). e isso fora (de si, do legado).» (Lopes, 2005a: 165).
porque um dos problemas actuais é o empobrecimento da capacidade A desejada conciliação entre víta activa e víta contemplativa pode
imaginante para gerar mundos novos, e a valorização de uma identi- levar o homem a percorrer o caminho de uma identidade que não exclui
dade autotélica que desconhece o outro. O espaço edénico pode ser a responsabilidade pelo outro e, desse modo, a aperceber-se de que
o lugar de resolução daquela viragem egocêntrica que provocou no é parte de um todo que é eterno - o mundo que está aí e que se lhe
homem o alheamento do mundo. No espaço edénico. a identidade não oferece como forma de conhecimento.
encontra com que identificar-se. As personagens do romance conven-
cional. pela sua visível identidade, apelam para o leitor no sentido da
identificação; diferentemente, as figuras do texto llansoliano, não tendo A leitura como experiência do eterno
propriamente identidade, existindo <!Sob a forma de linhagens, como
indivíduos da mesma pessoa» (ibid.: 151). dificultam a identificação. Na Spinoza parece ter-se empenhado em mostrar como o poder de
identidade, promove-se a identificação, há um dono; as figuras, pelo decisão (a começar na decisão de querer saber ((quem chama») e a
contrário, deixam o leitor sem dono; nelas não há posse: são livres, não experiência do eterno, como caminho de conhecimento (que consiste
perguntam <(quem sou?», seguem quem as chama - como um homem no entendimento de que existe uma relação de continuidade entre o ser
livre, que «segue, mas não pertence à voz que o chama)) (ibid.: 151 ): e o íntimo do mundo e que, portanto, o ser também é eterno, fora do
tempo, embora sendo mortal), podem não estar necessariamente liga-
A identidade, as mais das vezes, é estritamente inútil e acaba em pape- dos a uma noção de transcendência, nem depender de uma contingên-
lada ou disco magnético de um computador qualquer. As pessoas, na sua cia, e de que, portanto, a experiência do eterno é possível ao homem
maioria, encontraram esse dono. ao quererem saber quem são. Ao mesmo
no seu quotidiano. A responsabilidade joga-se no plano da imanência.
tempo - o que é extremamente triste - vivemuma vida inteira sem que
ninguém chame por elas. Sabem quem são e não servem para ninguém. e também aí se pode ter a experiência do eterno, do <(fora do tempo»
Ignoram que são chamadas a ser «figura». (ibid.: 151l - <!Nós experimentamos que somos eternos»é uma das frases mais
comentadas da Ética1°, e também uma das que mostra como o desejo
Ser chamado a ser figura poderá ser o bom uso da identidade. de persistir (que implica o conhecimento de si) não pode desligar-
Ser figura, como no texto llansoliano, é encontrar-se com aquilo que se da responsabilidade, nem esta do poder de decisão, uma vez que
o chama. descobrir qual é, em si, o desejo de perseverar no seu ser, constituem as vias de acesso à experiência do eterno. A via de conhe-
qual o movimento que esse desejo/vontade pode pôr a agir, e o modo
como nessa via fará uso do seu «poder de decisão)), a caminho de uma 20 Cf., por exemplo, as lições de Deleuze, in Spinoza: immortalité et eternité, double
CD. Paris. Gallimard, 2001 .

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cimento que leva à experiência da eternidade advém de um camin ho de mente perm ite esse acesso ao intenso e que, portanto, essa via estética
responsabilidade e de decisão consciente, porquanto é na relação com é a via da possibilidade de experienc iar o eterno. Ler esteticamente o
o si-mesmo e com o outro que o homem se apercebe da experiência do mundo é lê-lo intensamente, e de modo eterno. sub specie aeternitatis,
eterno. São dois caminhos de conhecimento, que se implicam. Ese é ao como Spinoza sugeriu e o texto llansoliano mostra:
ser, em geral, que cabe a responsabilidade pelo vivo, é ao homem, em
particu lar, que cabe preservar essa cond ição, não como privilégio, mas A fina lidade de ler não é guardar na memória. Eu esqueço-me do que leio
por ele ser «evolutivamente um progresso de leitura )): mas encontro-me, ao ca ir da noite, com ele. O fundamento da minha leitu-
ra é a pergunta seguinte:
qualquer vivo que se forme em qualquer dos sexos de ler./ é responsável «Por quanto tempo lês um pequeno período extenso?»
por todo o vivo, / a partir dos modos particulares de existir desse sexo Por um segundo, um minuto, um ano, toda esta noite, ou toda esta vida?
o Jade é responsáve l, o pinheiro l etra é responsável, ler estende-se pelo tempo e quer o espaço do dia-a-dia para projecta r a
Prunus Triloba é responsável; // eu, Maria Gabriela llansol, sou respon- sua sombra. Ler estende-se por vertentes desconhecidas, e eu leio pouco,
sável pelo texto que dou a ler, / ser-se humano é evolutivamente um mas infinitamente. Desses metais preciosos escolho um metal, e torno-o
progresso de leitura mas não é um privilégio, nem uma superioridade, nem integralmente minha estrela.
um dado adquirido,// é um lado/ mais legível do que outros para dar conti- Não estou cansada, nem excitada. Caminho com o meu pulso. Faço círcu-
nuidade e orientação à emergência do vivo no seio do un iverso (llansol, los com o coração, que vejo geometricamente vibrando dentro de mim.
OVDP 187-8) (llansol. F 132).

O progresso no conhecimento está associado a um progresso de A decisão de ler intensamente é de ordem estética. Ler estetica
leitura. Ser humano é apenas «um lado mais legível do que outros», ou intensamente começa na decepação da memória como recordação,
mas é esse mais que lhe pode dar acesso à experiênc ia do eterno. em favor da via do reconhecimento , como modo ma is criativo de estar
A linguagem verbal pode dotar o homem de maior poder de decisão, no mundo; ao situar-se no intenso, fora do tempo como duração, ler é
mas à realização do mútuo e à experiência do eterno, esse conhecimen- do domínio do eterno; o seu espaço, sendo da ordem do quotidiano, é
to das intensidades (Spinoza) que corresponde a um progresso, por ser infinito; no acto de ler aceita-se o desconhecido. arrisca-se a identida-
o terceiro grau de conhecimento, só se pode aspirar através de uma de, caminha-se em direcção ao novo; determina-se um «pensamento
leitura do mundo que seja da ordem do intenso (admitindo a possibilida- verdadeiro» - «Desses metais preciosos escolho um metal, e torno-o
de de diálogo e entendimento entre linguagens diversas). criando uma integralmente minha estrela))-, uma convicção profunda, que se põe
noção de entendimento no duplo sentido da palavra: a compreensão a vibrar no pulso e na proximidade da vida afectiva, e segue-se lendo.
racional e perceptiva, mas também o acordo entre as partes envolvi- Lendo, reaprendendo a ler, sabendo que a leitura não é do domínio da
das em diálogo. Talvez por isso. e como introdução à sua Ética, Spinoza recordação, mas do reconhecimento e do improvável, do que «não tem
ten ha começado por escrever o Tratado da Reforma do Entendimento, prova, mas abre ao gosto» (Augusto Joaquim); é desejo/vontade de
que propunha ser a explicitação de um método de leitura. Reavaliar o conhecer, que leva a crescer no conhecimento, «se em vez da cobiça
modo como lemos o mundo, reescrever um método que assuma que ler que domina a retina, nesta for implantada um módulo de pujança»
o mundo intensamente é, não só uma necessidade como a única possi- (Llansol, SH: 97). Essa pujança, esforço, ou conatus, ao unir-se à <<fonte
bilidade de experiência do eterno, é ta mbém perceber que ler estetica- de energia visível» que sai dos livros (e que Ana de PeFíalosa neles
tanto amava), pode levar-nos a experimentar que somos eternos e a

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

desenvolver a bondade como dádiva para trazer outros à nossa presen- A leitura é transformadora ... Mas tal transformação não
ça. prolongando o seu pensamento em mais modos no mundo: pode efectuar-se de qualquer maneira: exige protocolos de
leitura. Por que não dizer francamente: não encontrei ainda
Ler é trazer a si, mas não cenas e imaginação. Trazer o real de outra vida um que me satisfizesse.
que nos chame humanos. {Llansol, uO Pensamento de Algumas Imagens», Jacques Derrida, Limited lnc.
in RV, 2ªed.: 113).
A leitura transformadora
Será o real de outra vida que tenha para connosco uma memória de
eternidade, ou a memória já decepada do tempo, como têm as figuras. O respeito pela leitura - ser responsável pelo texto, reagindo à
Se o contrato for de bondade. o processo é biunívoco, e a memória de sua voz; dizer o meu texto, sentindo «meu)) não como um possessivo,
eternidade une-se a uma memória de (re)conhecimento, num impro- mas como um afectivo. Le r é reagir ao lido. Re-agir, como voltar a agir.
vável que cria passagem entre o «modo de extensão» e o «modo do agir «contra», em direcção a. ao encontro de. Sempre que a leitura se
pensamento» (Spinoza). permitindo o acesso à experiência do eterno rodeou de protocolos, fixando modos de ler. assistiu ao desmoronar da
- através do improvável da leitura, «nós experimentamos e sentimos poética que a alimenta, reduzindo drasticamente o seu poder maior -
que somos eternos»: o acesso ao que está para além da interpretação, das classificações
e das categorias do cânone. através da possibilidade de reagir e do
- Desejo encontrar alguém que me ame com bondade e saiba ler. gosto pelo inconformismo. A leitura diferenciadora começa depois da
- Alguém que queira ressuscitar para ti?
interpretação, e exige ao leitor o assumir de um paradoxo: ler com a
- Sim, alguém que tenha para comigo essa memória.
{Llansol, JLA: 92) sua própria experiência, esquecendo os protocolos de leitura que a sua
experiência incorporou. As vertentes da leitura transformadora osci lam
e equilibram-se nessa dualidade. O leitor abre-se à leitura como força
No processo de leitura, quem ressuscita quem?
perturbadora, enfrentando-a com a sua experiência. Terá de aceitar a
Em quem se encontra essa memória da ressuscitação?
perturbação, sentir o atrito sem o qual se arrisca à imobilidade; e, por
outro lado, usar a sua experiência como uma arma que. no entanto,
respeita o adversário. É a leitura a desenrolar-se como um combate,
2. Do leitor e da leitura
pois só através dele se sai da imobilidade do já dito para o movimento
Havia no nosso jardim um pavilhão abandonado e carco- do a dizer. só assim a leitura poderá constituir-se como um gesto de
mido. Eu gostava dele por causa das janelas coloridas. «defesa do atrito», como se diz da literatura (Silvi na Rodrigues Lopes),
Quando, lá dentro. ia passando a mão de vidro em vidro, de defesa da instabilidade em favor de uma paz menos inerte:
transformava-me: ganhava a cor da paisagem que via na
janela, ora flamejante, ora empoeirada, agora mortiça, Não são as dificuldades de leitura que devemos recusar, é a ilegibilidade.
depois luxuriante. no sentido de uma facilidade excessiva, de uma não resistência à leitura
Walter Benjamin, Imagens de Pensamento que só pode significar que não se sai do círculo fechado do mesmo, isto é,
que aquela não tem nenhum efeito, não nos faz negar nada. não dá lugar a
nenhuma experiência, nenhum ccsim». (.. .)
Um poeta como Paul Celan. habitualmente considerado um poeta herméti-

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

co, põe justamente em causa a definição de «sim» como oposto de «não». Paradoxo, regra livre. A leitura como acto de sedução. De pedidos como
Mostra-nos que este irrompe do mais secreto, de um «sim» à vida de que o «luta comigo», e de onde se sai «venc ido. mas com rebeldia». Também
sujeito não podeter memória. e que não supõe nenhuma aptidão específica na leitura-combate, a identidade se vai forjando «através do outro»,
no campo cultural, nenhum domínio de técnicas de decifração. mas supõe «em face do outro» e «sob o seu olhar». Leitura como devir. Todos os
uma capacidade de atenção que é abandono (negação) da visão universal. que participam do combate são seres sendo. Actores nesse drama de
objectivista e estereotipada. (Lopes, 2003b: 26) ler, os dois seres que se enfrentam olham-se no rosto. Nesse olhar se
joga a escolha entre o Poder e a possibi lidade da mútua não-anulação.
Para além de um processo de descodificação. a leitura é, sobretudo, Se a escolha estiver do lado do Poder, a atenção ao outro não passará
aqui lo que suscita. E, também por isso, não existe leitura na facilidade de um meio para o vencer, desejando o fim desse combate; se, por outro
excessiva, na passividade e fora de uma relação empenhada e atenta. lado, existir a possi bil idade de ver o outro como um ser «através de» e
Relação que transforma, que opera mudança nos intervenientes, que «em face de» quem se vai forjando a identidade, esse rosto fala e o
evolui. Por isso se escreve «para acabar com a paz na leitura» (Rui outro responde, num discurso que marca a responsabilidade de ambos,
Nunes). para retirar o leitor da imobilidade a que se habituou e que a e constrói-se uma relação autêntica, uma troca verdadeira - entra-
indústria da cultura, ao usar o livro como mercadoria, tende a perpe- -se no espaço da mútua não-anulação. Neste espaço, o drama (como
tuar. A leitura que ca i na banalidade do uso fácil e descomprometido acção) passa a ser um combate desejável. Quando, em Amar Um Cão,
é desrespeito pela pa lavra, e pura perda de tempo naqu ilo que este se parece querer resolver o combate de dois seres que estão frente a
oferece de mais precioso - a possibilidade de pensar. Ler, enquanto frente, e criar a figura de um vencedor («É-me dito, finalmente: - Ou
exercício de pensamento, possibilita o acesso a um conhecimento mais tu me vences a mim; ou eu te venço a ti.»), é o próprio texto que anula
livre, menos instrumentalizado, permitindo resistir à mediocridade do essa hipótese, abrindo o combate a uma outra luz, pela introdução de
que não é capaz de obstácu lo e corre desenfreado. A leitura privi legia um novo elemento - o Sol e a sua grandeza luminosa: «Através do
a lentidão, o deixar-se surpreender; constrói-se no intenso; troca o Sol que há nessa palavra, faço uma aliança com o Sol». Este é mais
certo pela promessa, deseja o improvável e a mutação. Assumindo a um ser ímpar, só separado do cão «por uma divisão natural», e com o
dramaticidade do combate, revela-se como uma «cena» que, a partir de qual vai ser possível fazer uma aliança, o que permite sair do reino do
uma acção (o acto de ler), se orienta para um sujeito e lhe propicia uma Poder e entrar no reino da liberdade livre: ter uma «dona», que é minha
experiência - a leitura só é transformadora quando o acto (de ler) se «adversária», mas que «me ama», a quem se pode pedir «luta comigo»
transforma em experiência (de leitura). Da dimensão cognitiva, como e donde se pode sair «vencido, mas com rebeldia».
acto, a leitura deseja passar a uma dimensão afectiva ou interpelativa, É no «leal combate corpo a corpo» que estes seres estabelecem o
dialógica, na qual se reúnem factores de ordem intertextual com facto- princípio dessa aliança, princípio da mútua não-anulação - cão-dona-
res que resu ltam da experiência vivencial e estética do sujeito. -sol, seres ímpares na mesma linhagem. Ainda que o So l os vença, ao
Como o texto llansoliano mostra em Amar Um Cão, ace ita-se que «meio-dia», com todos os seus invisíveis, estes são «adversári os» dese-
«ler é ser chamado a um combate, a um drama», e deseja-se esse jáveis para que o combate prossiga, para que as «grandes distânciasn
combate como um «leal combate corpo a corpo». Na leitura como se correspondam («em miniaturas de fogo ao sol»). como no processo da
combate, não há intenção de trazer, ou de transportar para o outro, leitura (pelo fulgor) - «Uma frase. lida destacadamente» aproxima-se
as «qualidades» de cada um. O drama, ou combate, é uma luta a que de «outra. que talvez já lhe correspondesse em silêncio». «Não desejar
se é chamado, mas voluntária. Réplica e entrega, aceitação e recusa. o fim do combate» é aceitar a mobilidade e a mutação como condição

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de vida, opondo-lhe uma lei. «a lei do hábito de servir», a que rege os Teorias da leitura
que são iluminados pela <duz comum», os que não buscam outro «lugar
à mesa» fora daquele que lhes foi, previamente. determinado. Sob essa A leitura à luz da «luz comum», com o texto soterrado pela fil iação
luz. os objectos parecem estar sossegados. mas são desassossegantes; com o autor. e o leitor correndo atrás de uma intenção autora! hipoteti-
encerram-se numa qui etude que poderá ser inabaláve l. se aqueles que camente expressa no texto. foi um hábito que só se alterou a partir de
os ol ham não escolherem o «sossego de sair. a alegria de não inter- inícios do século XX. Ese é certo que o Formalismo introduziu alterações
ceptar as vozes que me falam. e o sentimento de ter um movimento de comportamento no leitor. no entanto, só a partir dos anos setenta o
idêntico ao de Jade». O espaço iluminado por essa luz só poderá ser leitor surge como um complemento importante da obra e do autor.
um lugar de possibilidades se a «coisa» enquanto «rosto do qu ieto» Na passagem do impressionismo para o positivismo. em finais do
(Llansol. BDMT: 16) for fulgorizada; esses rostos «do quieto» habitam século XIX. tanto a crítica científica (Brunetiêre). que defende a neces-
a impostura da língua. não aspirando a uma «relação de não hipocrisia sidade de objectividade e de método. como a crítica histórica (Lanson).
com a palavra» (ibid.: 19). Outro será o caminho dos que se afastam apelando a uma leitura «atenta» e a uma interpretação «fiel» dos textos
da <<luz comum >>: «Vou por um caminho. longe dali, e sinto-me retida literários. abrem caminho ao historicismo e depois ao formalismo. Do
pelo nó do verbo onde os rostos, tão próximos uns dos outros. são o apelo à contextualização da obra (historicismo) se passa à perspectiva
horizonte da palavra fechada; meu olhar não se levanta para o contor- forma lista que se foca liza no texto e na sua imanência. Otraba lho assim
no do inerte.» (ibid.: 16). Por isso se foge dessa luz que não ilum ina desenvolvido com o texto, desloca ndo-se de uma perspectiva autora!
verdadeiramente. porque paralisa. encandeia. torna inerte - permite para uma perspectiva formalista ou estruturalista. continua a não
que se durma «tranquilamente a comer o amor», numa tranquilidade atribuir grande importância ao leitor. Também o New Criticism, entre
privada de apetição. Nesse espaço, nem mesmo dizendo bruscamente as duas guerras. ao considerar a obra como uma entidade orgânica e
«a abóbada celeste acaba de ruir», nem assim se alteraria a ordem dos auto-suficiente, propõe uma leitura objectiva, através do método que
lugares à mesa. Qua lquer quebra da simetria levava a que esta fosse ficou conhecido como e/ase reading; neste tipo de leitura. descritiva.
imediatamente reposta - o elemento <<quebrado» seria substituído por o texto é visto como um sistema fechado e estável. separado tanto da
um igual. não por um equivalente - não havendo, portanto. espaço sua produção como da recepção. Raros foram os autores que. como 1.
para uma troca verdadeira, a que admite a diferença do outro. A. Richards. um dos fundadores do New Criticism, admitiram a hipótese
A leitura diferenciadora. porém. transforma o in erte num fu lgorizá- de leituras mais subjectivas. o que, por seu lado, veio a originar de novo
vel; assemel ha-se a um «encontro de confrontação», como os que Llan- posições extremas que levaram à necessidade de se voltar a fazer apelo
sol propicia, para que as figuras completem o que não lhes foi possível à leitura objectiva, di stanciada do leitor; o chamado «leitor empírico»
realizar; por isso regressam e desejam esse combate. através do qual é, então. rejeitado em favor de um <<leitor abstracto», ideal. que deve
selam um «pacto afectivo» - o mesmo que permite crescer na leitura. conformar-se com o que o texto espera dele. que existe como «função»
ser <<uma alma crescendo». No lugar onde. pela presença do outro. o do texto. Riffaterre chama- lhe «arqu i-leitor» - um leitor omnisciente
sujeito recusa a imobilidade. a leitura não pode ser senão transforma- com o qual nenhum leitor real se pode identificar. pois este terá sempre
dora. capacidades interpretativas limitadas em relação ao arqui-leitor.
Estas posições mostram alguma desconfiança pelo leitor «real», em
favor de um leitor que seja «competente» ou «ideal». O estruturalismo
dos anos sesse.nta continuou esta tendência dos estudos literários,

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embora com alguns indícios teóricos que mostravam já outro ponto de ser identificado com qualquer leitor real. porque é uma construção do
vista. Éo caso de Roland Barthes apelando ao scriptor, figura que anun- texto, um guia que sugere um modelo ao leitor rea l; é o que o texto vem
cia a do leitor como entidade igua lmente importante na tríade autor- trazer ao leitor; por seu lado. o leitor também traz a sua experiência
obra-leitor; no entanto. apesar de assumir que o texto. sem o leitor. para a leitura do texto, aquilo a que lser chama «reportório» (semelhan-
seria um inerte, Barthes prossegue com uma análise que não concede te ao conceito de «horizonte de expectativa» de Jauss) - o sentido do
liberdade ao leitor. uma vez que continua a abordar a leitura do ponto texto, um efeito experienc iado pelo leitor e que não está definido antes
de vista do texto. da leitura. surgirá da intersecção entre o «leitor implícito» e o «reportó-
Podemos considerar que só a partir dos anos setenta o leitor é rio», como que unindo os efeitos do texto às respostas do leitor. Assim,
realmente admitido na cena do texto. Entretanto. algumas tendências todo o texto tem um efeito potencial que se realiza no acto de leitura
começam a fazer-se sentir: a crítica criativa (Albert Thibaudet. Georges e é com base nesse efeito que o leitor constrói um objecto coerente.
Poulet), a hermenêutica fenomenológica (Roman lngarden). a estética As duas obras mais significativas de lser. O Leitor Implícito e O Acto
da recepção (H.-R. Jauss, Wolfgang lser) ou a reader-response theory de Leitura, datam respectivamente de 1972 e 1976, mas já em 1961
(Stanley Fish. U. Eco). como teoria do «efeito-de-leitura», são algumas Wayne Booth, em The Rhetoric of Fiction, propunha, paralelamente.
das perspectivas críticas que vêm alterar a posição do leitor: a interac- o conceito de «autor implícito» (recusando a futura «morte do autor»,
ção texto-leitor pressupõe um modo de ler que faz apelo ao desenvol- que viria a ser proposta pelos estrutura listas). para mostrar que o autor
vimento da capacidade intertextual, e o leitor será tanto mais «expe- nunca pode ser totalmente retirado da obra e que o texto literário pede
rimentado» quanto maior for a sua capacidade de relacionação com e <<forma» o seu leitor; de qualquer modo, começa a sentir-se nele uma
outras obras e autores. A recepção, e não tanto a produção, passa a ser tendência para a valorização do papel do leitor. e em 1988, com The
amplamente considerada; mais do ponto de vista individual, como nos Company we keep, Booth apresenta leitor e texto ccem companhia» do
trabalhos de lser, ou através de uma recepção mais do ponto de vista autor, nessa tríade que vinha sendo proposta desde os anos sessenta.
social e da historicidade do processo. caso dos trabalhos desenvolvidos Em síntese, podemos dizer que tanto o «autor implícito» como o «leitor
por Jauss e por Gadamer. a importância dos estudos de recepção nunca implícito» são figura s que. face ao texto, admitem um potencial de
mais deixou de ser tida em conta. A estética fenomenológica, principal- sentido que o leitor não pode desprezar, mas que é apenas um ponto de
mente com lngarden. referia-se ao texto como uma «estrutura poten- partida para a leitu ra - esta só se realiza. verdadeiramente. no próprio
cial» a ser concretizada pelo leitor que, ao trazer para o texto as suas acto de ler. como se tudo o que está «implícito>> no texto só pudesse vir
normas e valores. as suas referências do mundo, a sua experiência de a ter existência pela mão experienciada do leitor.
leitura. impossibilita a existência de leituras inocentes ou transparen- Outra referência importante é a perspectiva de Hans-Robert Jauss.
tes de um texto . Este é um ponto de vista que, por exemplo. já no inf cio lançada em 1967. mas cujo texto prog ramático só é publicado em 1974.
do século XX, Proust anunciava em «Sur la lecture» e deixava antever onde propõe A história da literatura como desafio à ciência da literatura
na concepção da Recherche. através da interligação leitura-escrita que (Literaturgeschichte ais Provokation der Literaturwissenschaft). indican-
propõe. do o caminho da «estética da recepção» (proposta pe la «Escola de Cons-
Para lser. a leitura é uma espécie de viagem durante a qual o leitor tança») como alternativa metodológica. ao cons iderar qu e o público é
vai registando tudo o que a sua atenção capta. mas sem a possibilidade uma força histórica que imprime um carácter dinâmico à obra literária.
de ter uma visão completa do itinerário; é um processo e o leitor é uma Como tal. propõe restituir a consciência histórica aos estudos literários
figura errante. lser propõe a figura do «leitor implfcito», que não pode (criticando as abordagens marxista e estrutura lista) e deslocar o ponto

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de vista da produção e representação para o da recepção, considerando e que ao longo da leitura podem vir a ser modeladas. corrigidas. modifica-
que a experiência da leitura e a «energia» do leitor são os factores que das ou ainda simplesmente reproduzidas. (... ) A recepção interpretativa
fazem entrar a obra no «horizonte dinâmico da experiência» sem o qual de um texto pressupõe sempre o contexto anterior da experiência em que
o texto não tem realidade. Na continuação do que Gadamer propunha se inscreve a percepção estética. A questão da subjectividade da inter-
em Verdade e Método (Wahrheit und Methode, 1960). Jauss traz aos pretação e dos gostos de diferentes leitores, só pode ser posta de forma
estudos literários a possib ilidade de renovar a história da literatura pertinente depo is de ter sido reconstituído o horizonte trans-subjectivo da
compreensão que condiciona o efeito produzido pelo texto. (ibid.: 67-68)
através de uma perspectiva hermenêutica e fenomenológica:
Reconstituir assim o horizonte de expectativa de uma obra permite deter-
minar o seu carácter artístico, em função da natureza e do grau do seu
No triângulo formado pelo autor. a obra e o público, este último não é de
efeito sobre um dado público. Se designarmos como distância estética a
forma alguma um elemento passivo, que apenas reagiria em cadeia, mas
distflncia entre o horizonte de expectativa pré-existente e o aparecimento
antes uma fonte de energia que contribui para fazer a própria história. A
de uma nova obra. cuja recepção pode provocar uma 11mudança de hori-
vida da obra na hi~tória não é pensável sem a participação activa daqueles
zonte" (Horizontwandel ). (. .. )esta distância estética. (. .. )pode tomar-se
a quem se dirige. Ea sua intervenção que faz entrar a obra na continuidade
historicamente objectivada. Omodo como uma obra literária, no momento
de um horizonte dinâmico de experiência (Jauss, 1992: 56-57)
histórico do seu aparecimento. responde à expectativa do seu primeiro
A obra literária não é um objecto existente em si mesmo. oferecendo a
público. a ultrapassa. a desaponta ou contradiz. fornece evidentemente um
cada observador, em cada momento, a mesma aparência. Não é um monu-
critério para o juízo sobre o seu valor estético. (ibid.: 71)
men~o oferecendo. em monólogo. a revelação da sua essência intempo-
ral. E muito mais como uma partitura. construída sobre as ressonâncias
sempre renovadas das leituras. as quais arrancam o texto da materialidade É a (necessidade de) «mudança de horizonte» que define o valor
das palavras e actualizam a sua existência. (ibid: 62) estético da obra, que será diminuto se esta não exigir nenhuma
mudança de horizonte, correspondendo inteiramente às expectativas
Através de conceitos como «horizonte de expectativa», «distância reinantes. confirmando hábitos. sendo completamente aceite por ir ao
estética» e «fusão de horizontes», Jauss pretende mostrar. como já encontro dos desejos do públ ico. Quando a distância entre o horizon-
enunciara Gadamer, que compreender um texto é sempre um proces- te de expectativa e a obra se encurta. como diz Jauss. «a consciência
so de fusão ( Verschmelzung) de horizontes que. à partida, poderiam receptora não é já forçada a reorientar-se em direcção ao horizonte de
parecer separados uns dos outros. A importância de um conceito como uma experiência ainda desconh ec ida, a obra aproxima-se do domínio
o «horizonte de expectativa» não reside no facto de poder ser referi- da arte «culinária» ou de uma simples diversão.» (ibid.: 72).
do àqu ilo que o leitor espera da obra; a sua operatividade tem a ver Parece-nos ser este o aspecto mais importante para o qua l a esté-
com a própria experiência do leitor, experiência que. segundo Jauss, é tica da recepção alertou. Independentemente de toda a valorização
uma espécie de reservatório ou reportório de que o leitor dispõe e que do leitor. que foi absolutamente necessária na mudança de ponto de
condiciona o seu modo de ler; é com essa experiência que o leitor parte vista. é sobretudo a noção de «distância estética» e a necessidade de
para a leitura do texto, é esse o «horizonte de expectativa» que lhe é «mudança de horizonte» que vêm permitir. hoje, distinguir consciente-
possível. e que varia de leitor para leitor: mente as obras editadas. Se esquecermos a necessidade de caminhar
com (<o desconhecido que nos acompanha)> (Llansol), anulando a possi-
Cada novo texto evoca para o leitor (ouvinte) o horizonte de expectativas bil idade de o incorporarmos e darmos a ver. necessariamente através
e de regras de jogo que se tornaram familiares a partir de outros textos. de um efeito de «estranheza», o mundo não terá hipótese de mudança.

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insistindo-se na repetição. no já garantido. no estéril, na segurança do intenção ou verdade do texto (postulada por uma posição de carácter
«mesmo lugar à mesa». A mudança pressupõe um momento de anteci- hermenêutico). defendendo a problemática da escrita contra a do sujei-
pação, sem o qual dificilmente poderá advir: to, isto é, considerando que a escrita é o espaço onde a compreensão é
possível e que a leitura de um texto é interminável, só entendida como
Ohorizonte de expectativa próprio da literatura distingue-se do da praxis um ((abismo», um ((jogo», uma ((alegoria», como defende Pau l De Man
histórica da vida pelo facto de não apenas conservar os traços das expe- (A/legarias of Reading, 1977), ou como uma <(hermenêutica radica l» nas
riências feitas. mas de antecipar também as possibilidades ainda não palavras de John O. Caputo (Radical Hermeneutics. 1987). A indecidibili-
realizadas. alargando os limites do comportamento social. ao suscitar dade do próprio conceito de desconstrução é muitas vezes referida para
aspirações. exigências e objectivos novos. e abrindo assim as vias da aludir a uma prática de leitura que rejeita a perspectiva hermenêutica.
experiência futura . (ibid.: 109) o papel do leitor, a estética da recepção, ou qualquer contextualização
de ordem socia l, como fundamentais para a leitura do texto; apenas se
t este «poder criador da literatura» que Jauss admite ser orientador considera a autoridade imanente do texto e uma hermenêutica que se
da nossa experiência, se percebermos que a «forma nova» não aparece atenha à intentio operis. Para Hillis Miller, esta é mesmo a única posi-
para substituir uma outra forma que assim perde o seu valor; ela pode ção possível. Em The Ethics of Reading, 1987, Miller aponta o respeito
é «tornar possível uma outra percepção das coisas, ao prefigurar um
ao texto como uma ética, e mesmo como regra de leitura que deve ser
conteúdo de experiência que se exprime através da literatura, antes
vista como uma lei implacável.
de aceder à realidade da vida.» libid.: 109-11 O). Jauss mostra como é Embora considerando a necessidade da teoria literária e de toda a
imprescindível que a literatura não se limite a ser uma arte da repre- fundamentação teórica na prática de leitura, afirmando que a «resis-
sentação, que ao leitor não seja fornecida a chave para entrar no texto, tência à teoria» é uma resistência à leitura, pois é ((uma resistência à
que a hi stória literária não se limite a descrever o social como se ele utilização da linguagem sobre a li nguagem» (De Man, 1989: 33). e não
estivesse dentro das obras, mas «configure» o social nas obras sem o prescindi ndo do rigor, a desconstrução não teve por objectivo consti-
restringir à verosimilhança. pois só ass im o potencial de significação da tuir-se como uma ciência da literatura, à seme lhança do que tentara
obra pode ser um modo de fazer mundos. o estruturalismo. Aceitou, antes. a leitura como sujeita à errância e à
A partir dos anos setenta, os estudos literários voltam-se tenden- deriva, e o significado de um texto como indete rminado e indecidível.
cialmente para o leitor e pa ra uma prática de análise que seja ma is O texto literário não contém em si um significado verdadeiro que se
consentânea com a interrelação autor-obra-leitor. Uma das mais influen- possa desocultar. e tanto a gramática como a retórica se interligam em
tes tendências tem sido a desconstrução, que através de Derrida levou movimentos não coincidentes, sendo aquela subvertida pelas intenções
a um outro olhar sobre os textos literários. Sujeita tanto a elogios como desta, constituindo-se assim um carácter enigmático através de uma
a fortes ataques, a desconstrução não pôde desde o seu surgimento disfunção ou suspensão do discurso. A plurissignificação depende não
ser ignorada. Criticada pelos mais conservadores (René Wellek, Gerar só daquela errância e deste carácter enigmático, mas também do carác-
Graff) como niilista e pondo em causa um certo estatuto institucional ter instável que se opõe à visão do texto como um organ ismo (concep-
dos estudos literários, ou por outros mais radica is (Terry Eag leton, Frank ção aristotélica) e que impede que ele seja visto como uma totalidade
Lentricchia) que a vêem como autista em relação a problemas ideoló- abarcável semanticamente.
gicos e políticos, julgando-a continuadora de uma atitude formalista, O que se pratica na desconstrução é o respeito pela autoridade do
a desconstrução consolidou o seu caminho através da recusa de uma texto, aceitando a verdade relativa da compreensão, mas recusando

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

qualquer anarquia interpretativa pelo recurso ao estudo da filologia ges Steiner que. ou entendendo o segredo como algo a desocultar (Eco).
e da retórica (considerada, por De Man, como uma estrutura anterior ou concebendo uma «ética da recepção» (Steiner, Real Presences, 1989)
à gramática e à lógica), como prática do respeito devido ao texto. A que consiste em aceitar a soberania da arte e de um sentido que nos
desconstrução, que é em De Man essencialmente um traba lho peda- é oferecido, parecem anular a promessa mais desejada que a arte nos
gógico e didáctico, procurando mostrar aquilo que o texto faz, tem dife- oferece - uma busca interminável (do sentido) como a questão da nossa
rentes prioridades noutros autores. Em Derrida, o respeito pelo texto é existência, a que Jean-Luc Nancy chama a <1decisão de existência» (Une
vivido como respeito pelo potencial de mudança que nele existe, por pensée finie, 1990) e que é sempre movimento para o sentido, devir.
aquilo que é da ordem do não-reconhecimento (o reconhecimento é Para salientar a perspectiva aberta e actual que Derrida propõe
possível nos diferentes momentos de leitura, mas não como finalida- para a desconstrução, convém lembrar a singularidade evidenciada
de); recusando a unidade do texto como resultado da vontade do autor, no debate que trava com Paul De Man. Ao considerar que De Man
Derrida recusa também a possibilidade de o leitor conhecer toda a desenvolveu uma interpretação mais <<retoricista» da desconstrução,
historicidade de que ele próprio faz parte, aqui lo a que chama a «insa- Derrida põe ênfase no facto de, para além da atenção que se deve dar
turabi lidade do contexto» (Marges de la philosophie, 1972). criando-se à linguagem e à retórica, ser importante não esquecer essa «marca» do
assim da parte do leitor também a impossibilidade de poder ver o texto segredo, que está para além da retórica. da linguística ou do discurso
como uma unidade, pois haverá sempre um «fora», para o texto e para propriamente dito. Derrida chama-lhe «marca», ou «traço», e introduz
nós, ao qual não temos acesso - é este «o segredo» que Derrida vê essa instância para assinalar os limites do estruturalismo (daí que não
existir na obra. seja compreensível que se lhe atribua esta filiação):
O movimento pelo qual um texto se afirma está muito para além
do que é conhecido e conhecível; será segredo, mas não um segredo a É também por isso que prefiro falar de umarca» mais do que de lingua-
desocultar- o segredo é a condição que faz o texto continuar sendo, a gem. A «marca». antes do mais. não é antropológica; é pré-linguística; é
sua condição de existir: a possibilidade da linguagem. e está sempre presente quando há relação
com uma outra coisa ou com o outro. Para isso, a «marca» não precisa de
Pretender que um texto responda por si é sempre invariavelmente reduzi- linguagem. (Derrida e Ferraris, 2006: 130).
-lo à auto-reflexão ou auto-consciência. é anular a obra enquanto decisão,
responsabilidade de existir que não tem medida comum, pois aquilo que Éneste uso da <<marcan ou «traço», como instância que está presen-
lhe é mais próprio é o segredo, se por segredo entendermos algo de não te na relação com o outro ainda antes de esta passar pela linguagem,
desocultável (um segredo revelado deixa de ser segredo). A obra não podemos dizer na virtualidade da linguagem, que nos parece residir
possui, como pretendia a interpretação clássica, um segredo a revelar a singu laridade e o maior interesse da desconstrução em Derrida.
através do pôr em evidência de um conteúdo, um estilo, uma forma ou uma Chamemos-lhe uma instância de energia criadora, de pujança, e à luz
imagem: o segredo existe na obra como o «haver segredo» não assinalável da qual se pode voltar a ler e pensar o literário e. particularmente, a
enquanto tal, algo que confere à obra o estatuto de um simulacro ou de obra de Maria Gabriela Llansol, pelo carácter de «vislumbre» que aí se
uma potência, algo que pode ser mas também pode não ser. desencade- atribui à escrita. Como em Derrida, a escrita é guardiã de um segredo.
ando a partir daí não só o desejo de resposta mas a paixão da resposta, o
de uma marca que não se pretende desocultar mas testemunha r:
movimento que excede a subjectividade. (Lopes, 1994: 449).
Escrever vislumbra. não presta para consignar. (Uansol. LC: 1O)
Diferentes são as posições. por exemplo, de Umberto Eco e de Gear-

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Escrever e dizer não são sinónimos como qualquer pessoa. 3. Do leitor ao legente
tenho opiniões sobre o processo do mundo; essas opiniões são di tos; o
texto vê e não opina nem aconselha; «Não te esqueças de voltar a ler o que já perdeste, pois no
reler é que está a frescura e. na reacção, a resistência
por vezes. o que penso avulsamente é tão distante do que ele vê que
humana.>>
seria levada a pensar que uma das partes está certamente equivocada
Maria Gabriela Llansol, Amigo e Amiga
_ __ o que aprendi. no entanto. é que ambas estão no seu certo
(Llansol, OVDP 185)
Modos de ler
Escrever traz uma marca, um ichnos, segundo o qual se mostra como
diferente do opinar, do pensar avulso. Simplesmente porque tem outra O leitor começa por olhar o texto como algo a desvendar. Tem velei-
condiçã o, porque guarda o traço do indecidível. Segundo Derrida, a dades de chegar ao sentido, ao «traçon; procura desocultar, retirar o
escrita é essa forma - cita Platino e conclui ««a forma é traço (ichnos) véu de Sa'is. Percorre um caminho em busca de «ideias de», referidas a
do informe»; o mesmo é dizer que qualquer Gebild e qualquer Gestalt um ideatum. quer assumir o ponto de vista da verdade, põe-se do lado
traz consigo um segredo (Derrida e Ferraris, 2006: 11 ). Para Platino visível da leitura; usa uma capacidade adqu irida, o saber ler, um poder
(Enéades, VI, 7, 30-38), o informe engendra a forma (pois esta é o traço que lhe permitirá procurar a verdade na relação entre a co isa e a ideia
do informe) e quando se aproxima da forma engendra matéria (não é da coisa. Nesse percurso, diversos são os mei os ao seu dispor, quase
a matéria que busca a forma); amáve l é, não a matéria, mas o que é todos enraizados numa experiência de que faz uso como de uma moral.
formado pela forma, isto é, amável é o informe, não a matéria - a Porque é um caminho normativo que ele segue, se procura a verdade do
natureza antes do Belo é sem forma. Daí que Derrida, partindo da exis- texto e não o seu valor ou «virtude)) (que Spinoza considera ser outro
tência do seg redo em qualquer forma, como ma rca do informe, conside- nome para a pujança) e que é o modo de verdade de um texto. Assim,
re que na «forma» da escrita exista necessariamente esse segredo, ou quando escolhe, o le itor não decide, apenas usa aquilo de que dispõe
ichnos, donde se depreende que a escrita possa ser «uma iconografia - um hábito de leitura.
[icnografia] em que se recolhem, escrevem ou descrevem traços, isto é, Mas se o leitor pergunta «Ouem me chama?» na cena da leitura,
no fundo, segredos» (Derrida e Ferraris, 2006: 11 ). procede de outra maneira: começa por deixar-se afectar, predispõe-
O texto, a escrita, é testemunha e garante desse traço que asse- se a aceder ao imprevisto. e aceita o texto como jogo; vai ligando as
gura, no ser, o desejo de persistir, e na natureza o desejo do Belo - palavras de forma adequada entre elas, esquece a relação que as
desejo ou traço do in-forme que engendra a forma. uma evidência, um palavras possam ter com os objectos, o serem «ideias de», e aceita-as
improvável. como ideias adequadas umas às outras, nesse jogo improvável mas que
A escrita pode, assim. ser consid erada uma iconografia de pontos pode não ser meramente experimenta l ou contingente. Nesse percurso.
luminosos, de vislumbres captados na lentidão da leitura: desconhece que caminhos tem ao seu dispor. Mas quando escolhe. usa
o poder de decisão, porque se decide pelo não-uso de um hábito de
«lendo, não se sabe do que se fala. Mas demorando a ler. verifica que se ler - a ver onde o leva a leitura.
lê. E o que não se apreende directamente. sente-se no fulgor que emana Quem lê «assim»? No início de O Livro das Comunidades, texto
do sentido do sentimento./ Sensualmente, a inteligência vai buscar o seu fundador da obra de Llanso l, uma pág ina prévia21 dá conta da prime ira
referente. O fulgor oscilante da leitura / que é o verso e reverso deste
enigma sem nenhum mistério contundente».»(Llansol, M: 102) 21 Este «prólogo» é objecto de uma análise comentada a partir da p.186

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leitura desta obra; mostra o seu primeiro leitor - «Eu leio assim este mãos. e viu osci lar diante de seus olhos verdes. linhas sem sentido que
livro)), diz A. Borges. que assina essa página e comenta, enumerando, o desesperavam. pois sabia ler e não sabia ler
as suas razões. Quem é A. Borges, esse primeiro leitor? Será que o texto aquele caminho; / a amante fiel, analfabeta, tocou com a ponta de um
lla nsoliano se apresenta, apresentando o seu leitor? Será A. Borges o pano a fonte que estava próxima, e inclinou-se para limpar. até reluzirem.
leitor «ideal)) desse texto? Será possfvel lê-lo de outro modo? Será A. as letras dotítulo de ouro que ocultava o caminho. (Llansol, BOMT: 106).
Borges um leitor «modelo»? Será o leitor a primeira «figura)) do texto
llansoliano? Ler é deixar cair o olhar que se inclina sobre a palavra até esta
Todas estas interrogações desencadeiam. só por si, um «modo» de re-/uz-ir. O que se diz a quem não vê? - «está escuro. diz Elvira. /
ler Llansol. Talvez não seja necessário saber quem é A. Borges. mas o acenda o texto, respondo-lhe)) (Llansol, OVDP. 27 4) - se não vê, procu-
que faz A. Borges no limiar deste texto. Quem o chama a esse texto e re criar luz à volta, acendendo um texto. um corpo, um desejo, uma
o que nesse texto chama por ele. A. Borges pode ser, na leitura. um lem brança. «Assender» em Causa Amante é <(fazer ser», dar vida; em
sinal daquele «traço» que Derrida refere como algo que está presente Amar Um Cão. Jade (<quer aprender a ler sobre um texto que eu porei
na escrita, e que é o traço do informe da leitura, do seu segredo, do seu a arder por ele», um texto que será escrito e dado a ler, um texto que
improvável; ou. no dizer de Jacques Ranciêre, «o pormenor in-signifi- terá vida ao ser lido, porque «o sopro de vida é leitura». Em Um Beijo
cante» que actua como um golpe, um choque que afecta quem lê, «a Dado Mais Tarde, ler é ver e deixar que o corpo seja afectado pelo que
impressão [/a frappe] forte de uma verdade inarticulável» (Ranciêre, se lê; fa la-se já em ((braços de ler» - «Rodeio com os braços de ler
2001: 58-59). Um «assim)) que se mostra desejando outros que o acom- os ombros da rapariga que lia)) (ibid.: 61) - a que se irá juntar, mais
panhem. o próprio desejo chamando para a leitura. Não sabemos o que tarde, ((o sexo de ler», possivelmente a dobra de «um corp'a'screver))
para si é ler, se lê <(bem» (e o que é ler (<bem»?). se o modo como lê é o anunciado na primeira página d' O Livro das Comunidades. Os «braços
certo. O que percebemos é que A. Borges não fecha a cena da leitura de ler» rodeiam a rapariga que lê; o livro «aberto no colo»e Myriam a
- abre-a. Não lê para passar adiante, a outro livro. Lê para reler. Sabe ser (<beijada na boca pelas letras)) chamam o corpo para a leitura:
que «<dendo, não se sabe do que se fala. Mas demorando a ler. verifica
As persianas estão descidas como sempre; vê-se na secretária, sob o vidro
que se lê» (Llansol, AA: 102). A. Borges é uma figura com sede de leitu-
grosso do tampo o manuscrito. / Ali, arde a substância onde
ra. Como Témia, em Um Beijo Dado Mais Tarde. Éaquele que convoca. Ana está ens inando a ler a Myriam. Ana sentada numa cadeira, com o livro
porque nasce para reunir à sua volta. Como Ana de Peíialosa, ao convo- aberto no colo, Myriam de pé. a olhar um dos primeiros textos. cc que é
car as figuras da comunidade. Como Maria Adélia que, não sabendo ler, um cavalo que va i saltar». Está sendo beijada na boca pelas letras (. .. ).
adquiriu a virtude de exercitar um olhar atento sobre as coisas, o que «Ouem for clemente. lê». Se a linguagem. segundo diz Ana, for aprendida
lhe concedia o dom de ser mestra de leitura, e «onde estiver um Mestre na visão, ela, no fim, tirará da estante ardente a chave de leitura, e metê-
de Leitura estará o caminho que desconhecemos» (Llan- la-á no bolso de Myriam. (Llansol, BOMT: 56)
sol, BDMT: 61). o caminho aberto do pensamento, a possibilidade de
um ma is-conhecer: Só quem sabe fazer as letras reluzirem. pode convocar à leitura.
Convoca outros, convoca-se a si próprio, o seu próprio corpo; faz reluzir
O livro, amplificado entre ambas [na estátua de Ana ensinando a ler a e reluz, põe a arder, po rque aprendeu a ler na visão (concretamente,
Myriam). atraiu Filipe e a Maria Adél ia, por razões diferentes. para cada usando o sentido da visão). procurando um mais-ver através de um
lado do que estava inerte como texto; o homem pousou a cabeça entre as desejo de ver intensamente; nada há de metafisico nesta prática. não

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pretende ter semelhanças com a visão mística. é antes um modo de ver «assim» numa determinada leitura do mundo - como A. Borges. no
que se exercita no quotidiano - procurar no visto o que nele ainda há limiar d' O Livro das Comunidades, poderá dizer «eu leio assim este
para ver. livro», ou mundo. Como Llansol. em Onde Vais. Drama-Poesia?, donde
retiramos alguns exemplos sobre os modos de ler. Vejamos um primeiro
- «Vinde ler» - diz Ana aos objectos. e o primeiro que dela se aproxima exemplo:
é uma jovem viva que. à medida que lê nos seus joelhos. mais viçosa fica,
e mais mulher se torna. _ _ _ __ _ _ quereis um exemplo? / para o meu eu opinativo.
as vacas loucas. apesar da minha alimentação pouco ou nada carnívora.
Os outros objectos também querem ler. e o segundo. após a jovem. é um são um problema de segurança alimentar (... ); / para o texto. todavia. o
grande carneiro deitado. que eu julgava paralítico; mas move-se para ler. e saliente não é a alimentação humana. não são as próprias vacas. nem. a
rodeia a estátua policroma balindo. com o focinho ponteagudo, em desejo maior distância, a relação entre os homens e as vacas nem. mais distante
intenso( ... ) ainda, a relação dos homens com os animais;

- «Venham todos ler» - diz Ana. a que ensina. / - Um de cada vez. e Indo directamente ao cerne, / o texto vê uma relação amorosa, libidinal,
durante longos anos, para que o prazer dure. A jovem volta ao seu lugar. não só degradada mas. provavelmente/ perdida. entre os sexos humanos
na estátua, e quebra o que lê em mil pedaços. sem quebrar o livro onde o e o sexo da natureza. / o ódio profundo que a natureza nutre, num cres-
ler circula. Otestamento que leu foi-lhes lido; todos os objectos são agora cendo. pelo humano. a desilusão que a invade por o homem. no ciclo do
- imagina - móveis por si mesmos herdados e carbono. representar uma solução de facilidade e de felicidade relativa-
estão presentes no acto permanente de ler. (ibid.: 25). mente a outras formas naturais e ser. cada vez mais. uma espécie autista.
proliferante e conquistadora; / mais profundamente ainda, / o texto vê a
Quando o texto llansoliano convoca deste modo à leitura. através agonia irreparável de dionísio (não o mito). fonte autónoma de ser e de
de Ana. está a ensinar e a aprender a ler: não está a usar uma lingua- pujança. de diferença irredutível e nutritiva./ e como o mundo vai perden-
gem metafórica ao falar em objectos que querem ler e que se movem do o seu encanto; / o texto. todavia, não é ecologista. não vê a natureza
para ler; simplesmente, o modo desses objectos é-lhes dado por quem como um todo, como um fundo harmónico da espécie humana. o há do
convoca - quem convoca à leitura, chama de um modo que está de texto é problemático; /o que ele afirma é que qualquer vivo que se forme
acordo com o que tem para oferecer e nesse «predispor-se a» (dádiva) em qua lquer dos sexos de ler, / é responsável por todo o vivo. / a partir
dos modos particulares de existir desse sexo (Llansol. OVDP
está a inscrever a sua leitura do/no mundo. Sendo o humano um
186-7)
«progresso de leitura», pode posicionar-se de vários modos para ler o
mundo, e o modo que escolhe está intimamente ligado com aqueles que
O que aqu i se mostra são dois modos distintos de ver/ler: o de um
escolhe convocar. Quem convoca, está a ler. a ser lido, e a percepcionar
eu opinativo e o do texto. Importa-nos. sobretudo, reter deste primeiro
novos modos de ler. Se a linguagem «for aprendida na visão» (Llansol,
exemplo <<os modos particulares de existir desse sexo [de ler]».
BDMT: 56). percebe-se que o processo de ler não se fa z de uma só vez, Num segundo exemplo, um diálogo entre Anna e lnfausta:
não tem ponto de partida e ponto de chegada, e que cabe também a
quem lê decidir do seu modo de ler. Ser ou não legente. Quem lê (como Anna trouxe um copo de água. Levou-a aos lábios. deixando cair uma gota
no excerto atrás) ao «grande carneiro deitado», senta-se ((fora da sua de água sobre a mesa servida entre elas/ - Fulgor ou verosimilhança? -
natureza», predispõe-se a percepcionar o que se altera e inscreve-se perguntou lnfausta. referindo-se à gota de água. / Anna tomou a pergunta

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pelo que ela era - uma interrogação sobre a natureza da luzde ler e veri- provoca alterações nos modos de ver/ler. Que significa «mudar de
ficou, ao abrir a janela, que. por ter escolhido o fulgor, nevava. de facto, olhar>>? O«vivo» é o terceiro sexo, o sexo da natureza?
sobre Lisboaleipzig. (ibid.: 194-5) Reúnem-se nestes excertos algumas coordenadas pa ra ler o texto
llansoliano que, de certo modo, indicam outros modos de ler. O texto
Podemos perguntar: qual é «a natureza da luz de ler>>? fornece instrumentos para a sua leitura; não conceitos (o que implicaria
E ainda integrado neste segundo exemplo, um excerto da conversa um maior grau de abstracção). mas «ideias-noções» (na acepção em
com um jorna lista, imediatamente a seguir ao diálogo anterior: que Spinoza usa o termo, re lativamente ao segundo grau de conheci-
mento) que estão de acordo com a leitura que propõe. Destacamos:
Quando chegou. colocou o casaco nas costas da cadeira. Eu vi e, de
num primeiro grupo, «a natureza da luz de ler», «o sexo da natureza», «o
súbito, pensei: uEm termos de realismo estrito, na cadeira apoia-se um
casaco morto.» Para si, é simplesmente um casaco. suponho. Nem morto, sexo de ler>>; num segundo, «O saliente», o «fulgor», o «vivon 22 . Pergun-
nem vivo. Para mim, ou antes, para o texto que cultivo, essa fronteira é tar «qual a natu reza da luz de ler» pode implicar a decisão de mudar o
fundamental. (.. .) O lugar por onde passam as fronteiras do seu mundo modo de ler. Nesse modo de formular a pergunta, há pressupostos de
foi-lhe indicado pela sua cultura (... ).A escrita que cultivo não estabelece que se parte (que são os deste texto): há uma «luz» de ler, que pode
as fronteiras no mesmo lugar. Separa o inerte do fulgorizável. Tudo o que é ter um modo (uma natureza) diferente do que é conhecido como «saber
fulgorizável integra o vivo. (ibid.: 195-6) len>; seria importante tentar perceber qual é esse modo e o que a ele
está associado - por exemplo, todo o campo semântico de (<luz», o
Perguntamos : a natureza da luz de ler depende do lugar por onde seu significado em diferentes campos científicos, a relação luz/sombra,
passam as fronte iras do nosso mundo? luz/cor, brilho, energia, vibração, bem como outros campos semânticos
E, por fim, com um terceiro exemplo, voltamos à já anotada gota de dentro do texto llansoliano como, por exemplo, luz/noite obscura, meta-
água : noite/luar libidinal, em que os termos não se opõem. antes se comple-
tam. Éesta «luz de ler» que perm ite ((o saliente», que irrompe do texto,
Quer um exemplo? Oempregado, ao servi-lo, deixou cair uma gota de água. e o <!fulgor». Esse modo (ou luz) de ler pode ser uma das coordenadas
Por regra tem de ser limpa 1. .. ). Epor que acabará por ser limpa? Respos- deste texto, para a qual ele remete quem lê, ao escolher o vocábulo
ta - porque suja. Imagine agora que eu escrevo ua gota acabará por ser <duz» . Sabemos que a luz faz parte de um comprimento de onda sensí-
removida» . Removida supõe uma pergunta totalmente diferente. Do campo vel ao olho humano, e que a onda é energia que se propaga, tal como o
semântico da pureza, passamos para o campo semântico do movimento,
som, associado a um movimento oscilatório, a uma vibração. Que modo
do fluir que, de facto, é muito mais consentâneo com a sua natureza de
de ler nos é proposto ao interrogarmo-nos sobre «a luz de ler»? 23
fluido, indeciso entre forças de gravidade que se neutralizam. Por que não
se levanta a gota de água e se vai embora? /Para o romance canónico, a
natureza é um neutro( ... }. Para o texto que escrevo é o terceiro sexo. A
mudança de olhar abre um campo vastíssimo ao vivo. De quem é esta gota
22 Outras «<ideias-noções» se vêm juntar a estas ao longo da obra de Llansol, como se
de água? Éminha, ou pertence-lhe a si?/ Por que não sobe ela aos nossos verá a propósito do «luar libidinal)}.
lábios? / Estas interrogações transformam a gota num vivo, num sexo que
se vem situar em relação aos nossos. (ibid.: 215-6) 23 Sem poder entrar em áreas de conhecimento específicas. chama-se a atenção para
o trabalho pioneiro desenvolvido por Augusto Joaquim. a partir da termodinâmica, que
vai no sen tido de tentar perceber como é que o texto llansoliano produz significação,
Concluímos que o movimento de um campo semântico para outro ensaiando outros modos de ler.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Interessava-me saber como o texto orgânico produz, com os meios concre- fronteiras do nosso mundo, podemos voltar a pensar a citada frase de
tos de que dispõe, os seus próprios actantes. Na prática, como detectar William James: «o que dizemos sobre a realidade depende da perspec-
nesses meios a presença e o modo de agir da vibração. (.. .)A questão que tiva em que a projectamos. O que é propriedade sua; mas o quê depen-
eu me colocava poderia formular-se do seguinte modo: sendo a vibração de de qual; e qual depende de nós». (James. 1997: 119). As fronteiras
e a informação formas de energia, por que razão esta era detectável no do mundo podem passar, como o texto mostra nos exemplos atrás cita-
suporte/texto e a outra não? (... f Era talvez possível que a vibração só dos, pe lo par vivo/morto ou antes pelo par inerte/fulgorizável, sendo o
fosse aproximadamente detectável, se na sua abordagem fosse adaptado
inerte um ser da incompletude e o fulgorizável o seu contraponto. Do
um método equivalente aos praticados na detecção da informação. Ou
ponto de vista da verosimilhança, o real é estreito (com poucas passa-
seja, uma análise material dos signos (fonemas, sílabas. palavras. frases).
resvés à letra do texto a ler. Talvez fosse necessário suspender a c<leitura gens ou alternativas entre bem/ma l, verdadeiro/falso), de estrutura
por meio de sign ificantes/signifi cados11 e tentar a travessia da gramática do rígida (com pouca maleabilidade entre vivo/morto) e formas fechadas
texto como processo de aproximação à vibração. (Joaquim. 2004: 30-31) (padronizadas e conceptualizadas); do ponto de vista do fulgor. o real
é aberto, a sua estrutura móvel e errante, as suas formas são fractais
O que Augusto Joaquim propõe é uma leitura que, para além da (porque as figuras ou actantes são capazes não só de metabolismo,
relação significante/significado, inclua uma aproximação ao conceito mas também de metamorfose, como se diz em Parasceve). ccTudo o que
de vibração, uma vez que estamos perante um texto que. como afirma, é fulgorivável integra o vivo», disse o texto. atrás. Etambém disse: «No
nos está sempre a levar para fora da nossa «frase-standard» (ibid. : 48-9) preciso momento em que um vivo entra em contacto com uma pessoa,
que procura encontrar regularidades para nomear e transmitir informa- isso torna-se vivo e começa o pensamento» (Llansol, P 61). É, pois. com
ção; uma leitura que cause estranheza está mais perto da vibração, pela desejo/vontade de pensamento que o texto se vai fazendo e fazendo o
simples razão de que o leitor não está desse lado. Daí a importância real «de outra vida que nos chame humanos». Tudo depende do ponto
de associar à leitura do texto llansoliano também uma perspectiva que de vista: fulgor ou verosimil hança. É uma escolha de quem escreve, de
inclua um outro instrumentário, neste caso. um conceito como «vibra- quem lê, de quem vê. Eo texto é, por vezes, explicativo nesse seu modo
ção». de fazer, de gerar pensamento mostrando, de gerar «mais-paisagem»,
O que o texto llansoliano faz é sugerir modos de ler; não pretende de ir ajudando quem lê a mudar de ponto de vista:
apresentar um modelo de leitura para o seu texto, mas ensaiar leitu-
ras. caminhar do ver para o mais-ver. para a «mais-paisagem», um ver De repente, o pensamento de todos os presentes tornou-se veloz, ou seja,
intuitivo.( .. .) sentiam uma pujança enorme no pensamento. Não lhes seria
que faz entrar o leitor num modo de estar no mundo pelo qual ele é
difícil transferirem-se para a infância. Aliás. ela está no chão do quarto a
responsável, onde pode encontrar fonte de conhecimento e de alegria,
brincar com um grão de poeira. uEstou à espera que cintile a luz do sol, ou
um modo operante para viver esteticamente; criar mundos através da a energia de qualquer outra estrelan. Estava à espera do seu princípio de
visão, na convicção profunda de que existe um modo estético de estar criação.
no mundo, que pode não ser só do domf nio da arte:
Todos se baixaram. A luz incidiu, o pensamento concentrou-se como algo
Ver é fulminantemente belo. como maravilhosa é a qualidade da visão. de floral. de térmico, de facto somado a outro facto. Era tão fácil soprar
(Llansol, OVDP. 216) aquele grão de pó que, sem ansiedade, foi adquirindo a forma global de
uma folha de afecto. (Llansol, P. 65).
Se a natureza da luz de ler depende do lugar por onde passam as

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O gerar pensamento através do modo de dizer, significa, em Llansol, claro» o texto literário caminha ((do inerte para o activo»:
ir imprimindo um ritmo ao texto, adequado ao que está a ser pensado
e dito, sem se restringir à semântica. A interligação é muito forte, de É possível que o texto literário, não sendo um formulário administrativo
grande coesão, como no exemplo anterior: {... ), não vise. (...) a transmissão de uma informação potencial, mas a
primeiro - o pensamento, ao tornar-se «veloz», «intuitivo», origina inoculação (ou, se preferirem, a inscrição) de um potencial de vibração. Há
«pujança», que resulta num determinado movimento (dado pelo verbo nele uma vontade performativa evidente. A informação que fornece não se
destina a utentes. Não é essa a postura objectiva preferencial que preten-
«transferir») associ ado ao pensamento: «Não lhes seria difícil transfe-
de encontrar-se com os seus eventuais destinatários. mas a de abertos,
rirem-se para a infância» (transferir-se, passar para; movimento mais
inoculáveis. Ou seja, de leitores. {... ) Não presta um serviço, antes quer
rápido do que «ir>>); fazer do aberto um instrumento. Ler um texto literário é aceitar ser instru-
segundo - grão de poeira, luz, sol, energia, estrela, criação, são mento informaciona l do seu intento vibratório. / Se assim for. o texto lite-
fac ilmente agrupados num campo semântico, como também é possível rário caminha do inerte para o activo, mais do que do obscuro para o claro.
associar-lhes «algo de floral», «de térmico»; de notar também o para- {... ) Ou seja, não sabe exactamente o que quer fazer de mim, enquanto
lelismo (<estou à espera»/ «estava à espera»; para além da semântica, leitor, salvo que quer mexer comigo. Por isso, faz e desfaz. Dissolve infor-
podemos perceber que a introdução destes vocábu los gera uma suspen- mação em vibração. {... ) Não podemos, com efeito, perder de vista que
são, uma pausa, de acordo com a (<espera» enunciada - a infância informação e vibração são subsumíveis pelo conceito mais geral de ener-
está no chão à espera da luz que será princípio de criação; gia. {Joaquim, 2004: 18-19)
terceiro - gera-se mais pensamento e o movimento dele: «Todos
A vibração [é] autocriadora de pujança nos corpos (. ..) a vibração não se
se baixaram», «a luz incidiu» (baixou tambéml; desenvolve-se calor
apresenta em estado puro {...). Não há uma vi braçã~. como não há uma
(«algo de térmico»); depois, o pensamento concentra-se, há calor e luz,
energia. Há naturezas, há espécies. há estados. {... ) E pouco provável que
e gera-se o sopro, o ruah da criação («era tão fácil soprar aquele grão
a vibração não tenha diversos pontos de vista. (ibid.: 23).
de pó» - «fácil », como antes «velov>, «intuitivo, «não difícil»);
quarto - surge como inevitável a criação de uma (<folha de afecto». Assim deixa perceber o texto llansoliano, no seu modo de dizer.
E perguntamos: o que vemos nesta «folha de afecto», imagem ou Voltando aos exemplos que nos levaram até aqui: para um eu opinativo,
pensamento? ((as vacas loucas (... )são um problema de segurança alimentar», mas o
Ainda que vendo em imagem, o desenho, e o que possa ser uma texto vê outra coisa - «o texto vê uma relação amorosa, libidina l, não
dolha de afecto», importa perceber também como o texto foi fazendo só degradada mas, provavelmente/ perdida, entre os sexos humanos e
coincidir, através do pensamento, todas as instâncias presentes numa o sexo da naturezan; o texto «não é ecologista, não vê a natureza como
simu ltaneidade espacio-tempora l, através de uma forte concentração um todo, como um fundo harmónico da espécie humana»; (<o que ele
de energia (também dita concretamente, luz e calor) que movimenta afirma é que qualquer vivo que se forme em qualquer dos sexos de ler.
quem lê para dentro da cena do texto. Quem lê é, de certo modo, atraído / é responsável por todo o vivo, / a partir dos modos particulares de
para esse núcleo irradiante, energético . O que o texto diz, o modo como existir desse sexo » ( Llansol, OVDP. 186-7). Se uma gota
va i gerando esse pensamento e o que acontece a quem lê co incidem. de água for «limpa», como acontece habitualmente, é porque se enten-
Chegar a essa coincidência pode ser o objectivo de quem lê este texto de que ela suja; mas se for escrito «a gota acabará por ser removida»,
ou o que ele nos propõe. o rea l em que nos situamos já é outro po is, como o texto diz, passa-se
Como refere Augusto Joaquim, mais do que «do obscuro para o

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

do campo semântico da pureza para o do movimento e do fluir, que está muitas vezes. dizer mais do que o sentido das suas frases. Édeste modo
muito mais de acordo com a natureza da gota de água, um fluido. A que alguns livros podem ser cons iderados como objectos. formas que se
natureza da gota de água. e a natureza propriamente dita. não são um dão a ver. que significam. independentemente do que querem significar
neutro para o texto llansoliano: «Para o texto que escrevo é o terce iro naqu ilo qu e verbalm ente dizem: há uma configuração final. externa. do
sexo (... ) um sexo que se vem situar em relação aos nossos» (ibid. : texto. que se sobrepõe a qualquer intenção interna. e que tem a ver com
215-6). O texto pede-nos que nos posicionemos do lado da natureza. o modo como eles chegam à sua própria coincidência. com eles e com
do lado daquilo que lhe é intrínseco. que faz parte do seu sexo (a gota os leitores. Éessa a sua liberdade, o que escapa aos pontos de vista do
de água como ser fluido. em vez de ser olhada como suja ou limpa). se autor e do leitor. isto é. o modo como o texto existe com corpo próprio. o
queremos entender a sua linguagem. e se queremos dialogar com um que faz dele uma entidade no triângu lo autor-leitor-obra. Quanto maior
texto que tem a maleabilidade de assumir os pontos de vista dos três for a sua liberdade, maior será a sua capacidade de autonom ia em rela-
sexos. os dois humanos e o da natureza. ção a essas duas outras entidades. maior a sua possibil idade de vir a
Em síntese. que mostra o texto através da sua escrita? Como ser olhado também como um «objecto estético», independentemente
mostra? Oue instrumentos nos sugere para o ler? das suas linhas de sentido. Cabe ao leitor a capacidade e vontade de
De modo amplo. o texto mostra como a mudança de olhar abre um descobrir neles essa outra leitura.
campo vastíssimo ao vivo. e leva-nos à conclusão de que. para além dos Nesta perspectiva. os livros de Llansol são objectos que desafiam
sexos humanos. existe o sexo da natureza, concluindo que a natureza é a nossa capacidade de olhar e a ampliam porque. ao serem livres em
o terceiro sexo. e ((não um fundo harmónico da espécie terrestre». relação ao seu sentido interno. e ganhando uma forma que fala por si,
Eque dirá o texto quando diz ((0 sexo de ler»? A quem ou a que modo fazem-nos perceber que um texto. como qualquer quadro ou escultura.
de olhar lança esse repto? Esse ((sexo de ler» será, provavelmente, um tem uma forma externa independentemente da interna que configura
modo de olhar que faz. que actua, que não se limita a ler passivamen- significados, e que também esta se dá ao olhar. A diferença, no caso
te, mas que deseja fazer alguma coisa. transformar e transformar-se da literatura e das artes visuais, por exemplo, é que quem lê esquece.
com essa leitura, não ser o mesmo depois dela. mas um duplo dela, um muitas vezes, que também pode (e deve) ver. e esquece essa forma
mútuo. Como ler ((assim» estes livros que <(assim» significam? externa e o olhar de fora para dentro; por outro lado. quem vê comete
Os livros de Maria Gabriel a Llansol lêem-se como objectos esté- o erro contrário e. olhando um objecto, vê apenas formas externas,
ticos : lentamente lendo e vendo, não apenas as imagens que neles esquecendo que pode (e deve) fazer a leitura de linhas e significados
surgem e se destacam através de um procedimento textual imagético que internamente são um núcleo energético em expansão.
orientado para o sentido do texto, mas também com um olhar aberto a O mundo mostra-se na confluência desses dois modos. e não na
um leitura mais centrífuga (que saia do texto). mais orientada para um eleição de um deles. Ler uma escultura ou ver um texto não nos pede
modo estético do pensamento, isto é, não só à procura do sentido. mas um olhar diferente; ambos pedem leitura - cabe a nós interagir com
também do pensamento que configura a obra, que lhe fazem o corpo - eles através de todos os olhares de que o nosso corpo dispõe; sem
uma leitura que permita também ver o texto como um modo de pensa- hierarqu ias. sem barreiras. apenas, como diria Spinoza. afectando e
mento que lhe dá forma e sem o qual qua lquer análise do sentido ficará deixando-se afecta r, para que a linha que liga essas afecções defina os
incompleta (ver não só uma forma interna que configura significados, afectos de que o nosso corpo é capaz. Énessa capacidade de afectar e
mas ainda uma forma externa. relacional, que se dá a ver para além de ser afectado que as espécies se diferenciam. É através desse modo de
qualquer ponto de vista interno). O texto fala com um corpo que pode. ser que o «sexo» se define e se mostra com ou sem «sexo de ler», isto é,

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com ou sem o desejo de ler o mundo. nentes que darão origem a respostas e caminhos por onde se possa
Os livros que configuram o texto llansoliano são objectos estéticos ensaiar o que faz o sentido na leitura, isso que proporciona. na re lação
no sentido em que afectam; são afecções que nos deixam perceber texto-leitor, o surgimento de um outro sentido para além do qu e o texto
aquilo que o nosso corpo pode. E, por isso, são geradores de afectos e já trazia, que tem origem nessa relação, e tão singular e autónomo como
descobrido res de sexos de ler. Oeste modo, são ta mbém, desde O Livro o que caminhava com o texto antes de se dar o encontro. Éo surgimento
das Comunidades, livros-figura, no sentido em que a figura surge nestes dessa nova possibilidade no corpo do leitor, quando ele advém legente,
livros - não como um corpo de personagem ou person ificado, mas que permite pôr a agir, não protocolos (que por definição são regras
como um corpo figural, energético; como uma energia cujo referente de conduta), mas linhas de força que vão definindo uma cartografia de
(espaço) não é estável, antes está cheio de virtualidades oferecendo-se leituras e das suas irradiações que vão configurar um novo sentido. Sem
à mobilidade. O substrato das figuras, como refere Augusto Joaqu im isso, não faremos mais do que tentar descobrir linhas de sentido narra-
no posfácio à segunda edição de Causa Amante, «não é o contínu o tivo, em textos que estão pa ra além delas, porque se posicionam face
espácio-te mporal, mas o contínuo libidinal e mental» (Joaquim, CA: a uma leitura relacional e não a microleituras autoté licas. Aquilo que
191 ); a figura é <<um campo de forças» de intensidades diferentes mas poderá mover textos como o llansoliano é o fazer caminho através do
conjugáveis, nunca hierarquizadas no sentido de uma ter poder sobre a pensamento, a partir de núcleos de onde o sentido visivelmente irradia,
outra a fi m de a subjugar, porque a sua vontade-de-sentido não ganha e ir estabelecendo a linha definidora desses encontros dentro do texto
em anular outras, a sua intenção é descobrir outras que sejam, como e fora dele. Só deste modo ele continua a dizer e a ter uso para fora de
ela, uma singularidade, e fazer caminho em conjunto. Daí que se possa si. E parece ser este o seu desejo maior - contribuir para a criação
dizer que a sua dinâmica evolutiva é a do fractal, e não a da linearidade de um mundo de textos a lerem-se uns aos outros, onde pensamentos
espác io-temporal. singulares, encontrando-se e dialogando, vão gerando mais pensamen-
Remetemos, deste modo, para novos usos de conceitos como os de to. Só deste modo a leitura. sendo «sede de mais água», é não aquilo
objecto, imagem ou figura que podem, pelo seu uso no texto llansolia- que mata a sede, mas o que dá vida por ser «desejo de».
no, fazer repensar as teorias da leitura e os processos de representa- Comecemos por pensar como se devém legente de Llansol, como se
ção. Do ponto de vista de uma teoria da literatura que não caminhe com lê um texto que pede àque le que o lê que participe do texto como qual-
este texto no sentido de desfazer <<os nós presos/ pelo reumatismo dos quer outra figura que nele se inscreve, que o prolongue com responsa-
conceitos» (Llansol, OVOP. 227) e não se abra, sem medo de perder o bilidade e que o use para um mais-ver. para agir, para ma is facilmente
ri gor, a uma teoria literária menos rígida, que permita a contaminação se «sentar fora da sua natureza», dentro e fora dos textos.
e abertura dos conceitos e a sua desconstrução, de modo a redefinir
novos modos de ler, estes livros serão estranhos que não falam a
mesma língua, e nunca hóspedes que nos perm item o prazer de lhes Do modelo à cópia como prática de inscrição
dar abrigo. Porque, litera lmente, eles não fala m (com) a mesma língua
- sobre ela, não nos é fácil ter um olhar atento e novo, pois já interio- Parece-nos útil, neste passo, partir de três excertos, de Umberto
rizámos modos de representação e estratégias de leitura, mimetiza ndo, Eco, de Walter Benjamin e de Maria Gabri ela Llansol, que impl icam a
mais do que criando. É de saber ler que sempre se trata, na literatura tarefa da leitura ou o modo de nos posiciona rmos perante ela. Oexcer-
como na vida; de partir à descoberta de noções que sejam operatórias to de Umberto Eco, retirado de Seis passeios nos bosques da ficção,
nos textos. deixando que sejam eles a mostrar quais as perguntas perti- põe-nos, mais uma vez, perante a diferença entre dois tipos de leitor;

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podemos partir daí, mas para os distinguir do legente de Llansol: ela. a cada curva. faz saltar do terreno plano (que para o aviador é apenas
a extensão da planície) objectos distantes. miradouros. clareiras, perspec-
«Há duas maneiras de passear num bosque. Uma é experimentar um ou tivas. como a voz do comandante que faz avançar soldados na frente de
vários caminhos (de modo a sair do bosque o mais depressa possível(. .. ); batalha. Do mesmo modo. só quando copiado o texto comanda a alma de
a segunda é caminhar de modo a descobrir como o bosque é e por que são quem dele se ocupa, enquanto o mero leitor nunca chega a conhecer as
acessíveis certas veredas, e outras não.»(Eco, 1994: 33) novas vistas do seu interior. que o texto - essa estrada que atravessa
a floresta virgem. cada vez mais densa. da interioridade - vai abrindo:
Eco compara este passeio pelo bosque com o modo de percorrer um porque o leitor segue docilmente o movimento do seu eu nos livres espa-
texto, para lembrar a diferença entre o leitor de primeiro e o de segundo ços aéreos da fantasia. ao passo que o copista se deixa comandar por ele.
nível (este o chamado «leitor modelo»). A distinção, que poderá ser útil A arte chinesa de copiar livros era garantia. incomparável. de uma cultura
para uma teoria da leitura de textos narrativos, não parece contribuir literária . e a cópia uma chave dos enigmas da China. (Benjamin. 2004: 14)
para o entendimento do que é ser legente. O «leitor modelo» de Eco
não é o legente de Maria Gabriela Llansol. O «leitor modelo», mesmo A «garantia de uma cultura literária» não parece estar nas mãos do
depois de ter passado por todas as veredas do texto e de as conhecer «leitor modelo» de Eco, mas no punho do copista, leitor atento capaz de
pode não se ter inscrito nele, o que implica ir para além da interpre~ dar continuidade ao texto inscrevendo-o numa cultura; paradoxalmente.
tação, da análise e do comentário, procurando continuar onde o outro o copista é ma is livre do que o leitor (de Eco). porque a cópia, dando-
-lhe a facilidade de ter quem o conduza, o deixa mais livre para olhar
texto parou. continuando-o como co-autor, como entidade que. por ter
um outro horizonte de expectativa, e tendo percebido como o texto age, com atenção os pormenores, e são estes que lhe despertam o desejo
decide continuar esse modo de agir. No legente. a leitura passa obri ga- de inscrição, que poderá dar origem a novas formas de pensamento. A
toriamente pelo corpo que lê e por uma forma de escrita do texto nesse cultura garante-se pelo novo, não pela novidade .
corpo, porque é uma leitura que se inscreve no texto e o inscreve em si; O excerto de Maria Gabriela Llansol. retirado de Onde Vais. Drama-
Poesia? (pp.142-145). aludindo também à cópia, mostra como ela é.
ao relacionar-se com um outro corpo de diferentes atributos e com um
desde sempre, uma prática fundamental para a leitura de um texto.
diferente horizonte de expectativa - o texto-. o legente inscreve-se
como contraponto do texto lido. Desde O Livro das Comunidades (!!ali copiavam a Subida do Monte
Carmelo, de São João da Cruz») que a cópia surge, nos seus textos.
Parece-nos, por isso. mais esclarecedor o excerto de Walter Benja-
min, de ((Mercadoria chi nesa» (incluído em Rua de Sentido Único[ l 928]. associada à leitura. à qualidade de ser paciente, ao «sexo de ler», ao
prazer e à lentidão. Poderá ser esse o caminho do legente:
na tra?ução portuguesa em Imagens de Pensamento). que põe em jogo
conceitos que, a uma nova luz, podem iluminar o de legente. O que é
Nesse lugar. me sentei a ler o Cântico. e a copiá-lo para um caderno vezes
dito da cópia pode aproximar-se da inscrição que o legente pratica: sem conta; (... )li Nesse lugar. me sentei a copiar o Cântico.// porque
copiar um texto/ o abre sem o violar e. quando pensamos que o sabemos
A força com que uma estrada no campo se nos impõe é muito diferente. de cor. muitas vezes adulteramos o que está escrito/ mas esse adultério é
consoante ela seja percorrida a pé ou sobrevoada de aeroplano. Do mesmo pleno de ensinamentos. revela-nos o que o nosso sexo de ler está vendo,
modo. também a força de um texto é diferente, conforme é lido ou copiado. ou desejando, em contraponto à matéria do texto/ e ao seu pensamento
Ouem voa. vê apenas como a estrada atravessa a paisagem; para ele. ela _____ o motivo ou móbil por que foi escrito/ vai-se desenhando./
desenrola-se segundo as mesmas leis que regem toda a topografia envol- muito longe da mente e da letra da sua história;/ como qualquer ser// o
vente. Só quem percorre a estrada a pé sente o seu poder e o modo como

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

texto deseja ser copiado por gosto, ter a sua presença acentuada./ folhe- cepa lavra vem, palavra vem, por favor.» indecisa, mal decidida ainda,
ado e não desfolhado/ cópia e criação/ entre verde e poeira// lentamente, /é uma recém-nascida/ no lento lendo. (Llansol. AA: 27)
foi-me indicando pelas imagens que me suscitava I este Mas, num segundo momento, adquire veloc idade para criar-se
lento étambém deveras surpreendente/ quando o texto se escreve é ve loz, texto-figura, Texto; «torna-se veloz», ágil. pa ra recolher as imagens «em
e a agilidade é particularmente conforme à sua natureza, as imagens/ catadupa » na escrita, para depois se espa lhar, «a dividir-se pelos legen-
caem em catadupa na escrita levantam-se como poeira/ e,
tes», pelos que vão co lher «ao ralentn> - os que têm sede de leitura;
colhidas ao ralenti, a vê-las cair/ o sexo de ler reconhece como a lentidão
não a sede elucidativa do leitor, que se satisfaz através da sua maior
convém a quem se abre (Llansol, OVOP 143-145)
ou menor destreza, mas uma sede criativa, ávida, uma «sede de mais
água», aquela que aflora ao «sexo de ler»:
Ser legente - copiar vezes sem conta. para poder «rezar a leitu-
ra», recitar o texto; lendo em volta alta, aprendendo de cor nos lábios;
O texto vem sempre depois, / é muito mais amplo do que o acontecido,
vendo e transmudando, aprendendo de cor nos olhos; cultivando a leitu-
muito mais veloz do que a vida que descreve./ Só depois de escrito perce-
ra como uma «arte visual», como encantamento. escutando-lhe o som, bemos que tudo se passou no futuro. /o que eu vivi, tão imperfeitamente.
a articulação dos fonemas, a sua vibração, e não ligando «excess iva- virá mais perfeitamente ao coração legente, I eis por que lhe escrevo.
mente ao sentido». No primeiro momento, aceitar que o texto «não tem (Llansol, OVOP 134)
prova, mas abre ao gosto». Ser aquele a quem se diz (quase) tudo: Hoje, cada um a seu modo, / sabemos que o sexo de ler, sem o qual
o encanto do mundo não pode ser sentido, nem escrito,/ é uma obra de
Há quase quinze anos que deixei Herbais. Quase tudo o que tenho conver- cópia de copista paciente e de instantâneos de fotograma/ e,
sado com Eusébia foi apenas a mim que o disse, e ao legente, meu compa- nas horas em que, finalmente, perdemos o medo./ uma conjectura criada,
nheiro desconhecido. (Llansol, SH. 351 querida e amada. (ibid.: 142)

Esse companheiro desconhecido, por quem o texto diz ter espera- Momentos de escrita, de cópia e de leitura são como «corpos
do pacientemente, é alguém que se sente nascer figura com o texto, unidos a ler>> (ibid.: 9); podemos considerá-los como diferentes modos
e surge a partir do momento em que este diz passar a ter com quem de um mesmo olhar - o dos que desejam a «mais-paisagem», em
dividir-se: busca de «um belo ma is be lo)), ma is conforme aos três sexos. Como
modos equivalentes, são homologias de leituras, como as qu e podem
Eu sei que se faz li de dentro para fora desse ser da natureza que tem ler-se na vontade de alguém que se decide por entrar «na biblioteca
mais de meio século,/ um nocturno trabalho figural;/ caem as folhas outo- que lhe oferecia a serra» - tantos são os modos de escrever e ler
nais, e já começa a dividir-se pelos legentes que vão/ chegando// o texto
uma simples frase como esta - como alguém que regista: «Pequena
esperou pacientemente que chegassem (Llansol, OVOP 1661
divisória do meio. na biblioteca da serra, ou escritório de absorção (.. .)
4 árvores, 2 eucaliptos no grupo de quatro, um só, velho e imenso, à
Um dos modos do ser-texto também faz, primeiramente, o seu traba-
direita, no grupo de um. (... ) A ligação entre céu e bi blioteca fez-se,
lho de cópia - as «cópias da noite)); nisso assemelha-se ao legente.
naque le momento, através do som. O que a massa de livros cria e cicia
Olha atentamente, transforma em «mais-paisagem» o que vê, desfo lha
é céu, que eu apreendo através da vibração, colocando de parte o que
pacientemente o que lê/vê:
induz ao sentido. 11 (Llansol. M: 199). Se nos interrogarmos sobre o que
ali poderia estar a acontecer - se o momento era de escrita, de cópia,

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ou de leitura - veremos sobressair um em-comum que preside a esses Derrida faz entre futur e avenii), aquilo que no futuro pode, de modo
três actos: a existência de um sexo a ler e de mais-paisagem a formar im previsível, advir:
pensamento. Quem assim lê, escreve ou copia tem um mesmo sentido
de orientação - transmudar; e nesse acto de criação de real apenas Omeu texto não é compulsivo. Quem o escreve não projecta uma acção,
os modos serão diferentes. A introjecção é uma constante. nem oferece identificação. «Quem» emerge dessa fonte de ser que referi,
Otexto, mais amplo e perfeito do que o acontecido (como ele próprio ou seja, a figura. cuida constantemente de si( ...). A escrita não imagina.
A escrita é o que a figura vê. é o que fica depositado nos que a lêem (ibid.:
diz). tem com o legente um contrato que é «da ordem da compaciência))
201)
(Llansol, OVDP. 185). Muitas vezes interrompe a escrita e dirige-se a
ele, lembrando-o de que sabe da sua presença: diz-lhe. de modo íntimo,
Se no olhar de quem lê nada ficar depositado, se não houver intro-
«e abri a porta que dava para o teu rosto legente» (ibid.: 9). ou ((Legen-
jecção por parte de quem lê, se nã o houver sexo de ler envolvido,
te, que diz o texto? (ibid. : 18); às vezes. de outro modo, adverte: ((Que
anulando-se a possibilidade de ver o fulgor que há nas coisas, ler será
o legente nem um só instante pense» (ibid. : 138); noutros momentos,
mais uma parcela informativa, uma soma de olhares que não faz mudar
dá-lhe a entender como sabe que ele conhece o texto que está a ler. e
de olhar. A quem lê. o texto llansoliano não pede que veja o mesmo que
como este o convida a agir: «compreende o legente que não há qualquer
ele, mas pede que o veja como mútuo e que leia. como ele, na dobra:
translúcido nem. al iás, qualquer obscuro neste tecido que o texto é ou
cose no corpo, no modo como o projecta no seu futuro, / mais forte, o Na realidade. para escrever este tipo de texto. o escritor tem de se deixar
convida para o seu agir mais andante e inteligente./ sensível» (ibid. : fulgorizar em parte. E a quem lê sucede o mesmo, no espaço da leitura.
278); também lhe lembra o contrato de compaciência. e o adverte: «eu (ibid.: 215).
gostaria que o legente não temesse encaminhar-se com igo para o ponto
voraz que se avizinha » (ibid. : 85); por vezes, responsabiliza-
-o abertamente, quando lhe transmite alguma «confidência envolta)): Odevir legente
legente o mundo está prometido ao drama-poesia. (ibid.: 10). O legente, amante da leitura, não é apenas o leitor do texto llan-
soliano. Étodo aquele que lê para crescer com os textos, que dia loga
É forte o laço que une o texto ao legente; transmite responsabili- com eles, que estabelece pontes entre os textos e os mundos. que pode
dade, porque o legente é um leitor que responde ao texto, não para transformar-se a partir do que lê, agir pela metamorfose. A sua leitura
lhe dizer o que ele poderia querer ouvir. como uma confirmação, mas dirige-se não a um futuro abstracto, mas a um devir; aquil o que o texto
agindo, respondendo ao desafio que o texto lhe lançou, de ir com ele em lhe pode dar é a possibilidade de transformar o que leu em mais pensa-
busca do espaço edénico. A escrita. ao dar-se a ler, deseja permanecer mento gerador de mais texto, entendendo por este um devir-mundo:
em quem lê como fonte de mais leitura, não como poço de informação. <(quando o legente entende, sem se dar conta está a entender algo de
O legente, leitor que aceita o contrato de compaciência (porque é preci- mu ito longe. no seu futuro)) (ibid.: 35). Aquilo que o texto de ixa deposi-
so aceitá-lo). percebe que o seu diálogo se faz com as figuras. que elas tado no olhar. projecta-se no devir do legente. porque é aí que ele pode
oferecem o que vêem na sua procura do espaço edénico, e que a leitu- agir no futuro:
ra que o legente faz do real que elas mostram é o que lhe possibilita
caminhar no texto e num futuro que desconhece (como na distinção que Leia. disse-lhe imperiosa e mansa. Quando chegar a sua vez de escrever.

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escolherá afuga de tempo que me lhor lhe aprouver,/ mas antes compreen- resu ltante-de-sentido que sai do cruzamento da sua leitura com a do
da,/ e a rapariga que temia a impostura da língua avançou sobre a objecto escrevente; para esse fazer não há especialização nem competências
de beleza. de pergunta em riste . (Llansol, ibid.: 91) a adquirir, porque estas pressupõem conceitos abstractos válidos para
um leitor anónimo, correspondente ao «leitor modelo» de Umberto Eco.
Avançar de pergunta em riste, para que a «forma legente» adve- O legente é uma singu laridade; pode falar-se de um conjunto de legen-
nha legente-figura, num mundo de formas (espécie, Gestalt) criativas. tes, mas não de um legente anónimo, abstracto, pois esse conjunto
Pergunta a pedir resposta, responsabilidade, que algo se faça. desenha-se pela aproximação das diferentes singularidades e não por
Podemos, talvez, dizer que a re lação que o legente estabelece com o uma singularidade estandardizada, abstracta, o que anularia a própria
texto (e este com ele) é de ordem quiasmática24 , considerando o quias- ideia de singularidade:
ma como um cruzamento de ordem sintáctica (em forma da letra grega
khi, ou X). que dispõe em cruz as partes simétricas de duas frases, um O texto precisa de encontrar, não o leitor abstracto, mas o leitor real,
processo de permutação que permite mostrar antíteses ou analogias. aquele a que, mais tarde, acabei por chamar legente - que não o tome
Entre o emitente do texto e o legente pode existir uma relação desse nem por ficção, nem por verdade, mas por caminho transitável. (Llansol,
tipo, pois o que se deseja é uma leitura que resulte da intersecção 2001. carta a Eduardo Prado Coelho, in http/www.ciberkiosk.pt/arquivo/
desses dois modos, o de quem escreve e o de quem lê. Essa leitura, ciberkiosk7 /)
por sua vez, pode dar origem a novas intersecções que saem dela e
se autonomizam (como tractais). porque um sentido lido no texto é um O texto llansoliano olha o legente como um corpo concreto, não
processo, um devir e diferimento. como uma abstracção; ao dirigir-se a ele, não se dirige a todos os leito-
Nesse processo, a relação que o legente estabelece com o texto res, mas aos que entre eles aceitam o pacto de ler «assim», de ler o
começa por ser de ordem espacial, geométrica (como uma figura da texto como «um caminho transitável>>, não como ficção. Por isso, vê um
forma num texto); o primeiro diálogo entre o legente e o texto faz-se leitor real, que também o olha desse ponto de vista, que aceita o real
à deriva, caminhando por ele, registando as atecções que ele provo- do texto. O texto não é elitista. qualquer leitor pode entrar, ser recebi-
ca, mais do que procurando linhas de sentido (como procura o «leitor do e encontrar-se com este modo de ler. Se sabe ao que vem e aceita,
modelo»). As diferentes afecções desenham uma curva que une pontos recebe; se não sabe, pode sempre partir, munir-se de competências, ser
significantes, mas a leitura para que se caminha só surge do cruzamento leitor, prosseguir nesse outro traba lho. O legente não tem por objectivo
do ponto de vista do legente com o do escrevente/texto. O leitor escava adquirir competências - o que deseja é ensaiar caminhos; o que não
no texto, enquanto o legente cruza enxertias. O trabalho do leitor significa que o seu modo de ler não evolua, mas essa evolução não é
pode orientar-se para a especialização, adquirindo mais competência uma soma de competências. de aquisição de protocolos; é transmuta-
de leitura (e ele será, como ironicamente, se mostra em O Senhor de ção de um modo de ler/ser/pensar; o legente muda com o texto. E nem
Herbais, um «experto» do/no texto). Mas o legente tem de desenhar a todos os que lêem se predispõem a mudar. Como nem todos os que
escrevem se orientam para essa mudança. Há textos que se esgotam
na sua leitura . que não pedem ma is do que a decifração de mecanismos
24 Em oftalmologia, chama-se ccquiasma óptico» ao lugar, no cérebro, onde os nervos
ópticos se cruzam (em X) para transmitir a informação recebida pelos olhos; uma boa estruturais, conceptuais, de sentido, elaborados em maior ou menor
visão resulta desse cruzamento, da intersecção do que é visto pelo olho direito e pelo grau, que apelam a uma maior ou menor perícia e competência do lado
esquerdo; as anomalias desse trajecto em direcção ao cére bro provocam distúrbios de de quem lê. A complexidade estrutura l do romance moderno, por exem-
visão ou mesmo cegueira.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

pio. vai neste sentido; o apelo que faz ao leitor continua a ser da ordem O que pode advir na leitura, no encontro com certos textos, no ler e
da decifração. O jogo que se joga num texto que pede legência não reler transmudando, é uma consciência cada vez mais forte de um cami-
pressupõe só a decifração de regras e o desenvolvimento de compe- nho de legência, e do cresc imento que nesse cam inho vai acontecendo
tências; pede e possibilita que algo se altere por ele ter sid o escrito. a quem lê; mas decisiva terá sido a vontade de ler de outro modo, e
Quem lê. só através de uma convicção e vontade/desejo de legência vai de continuar a aprender a ler - um continuum de aprendizagem. sem
ao encontro dos textos que pedem essa forma de leitura. e através do protocolos, a fazer-se na apetição, na sede de leitura que cresce como
seu poder de decisão escolhe entre um modo quantitativo ou um modo (<desejo de mais água»:
qualitativo: acrescentar leituras ou crescer na leitura, como <(uma alma
crescendo», uma mente a gerar pensamento no corpo envolvido na - Não bebas toda a água - pediu-lhe Ana./ - Ou pousa as mãos que
leitura. Desse modo, o legente procura estabelecer na sua leitura um abandonas sempre na mesma página. No amor de ler, há uma física que
compromisso entre o inteligível e o sensível. não separando o corpo da serve as direcções de mudança (Lansol, BDMT: 58)
mente que o consciencializa; o seu investimento é de ordem libidinal, o
que não implica que a sua leitura seja meramente subjectiva. referida
a si como um sujeito que lê, que ele sempre é; o legente não esquece o A qualidade legente
facto de ser responsável pela sua leitura dentro de um campo literário,
o que faz com que não se encerre na subjectividade, pelo desejo cons- Oque cresce no legente é o destino de mudança que a escrita lhe cria:
ciente de abrir os textos a outros, e de lentamente ir desfolhando livros
Somos ventos e sementes, trajectos e fragmentos.
e crescendo em conhec imento, agindo para fora de si.
Entre o leitor e o legente o que existe são diferentes vontades/
Sempre havia pensado que somos feitos à distância . Talvez fosse descobrir
desejos de aproximação aos textos, pontos de vista que não se opõem.
que essa distância é uma das mais puras criações do texto. Perguntar-me o
antes diferem na leitura. Diferentes caminhos e diferentes modos de os que sucedera à pequena biblioteca de ciências que deixara no último está-
percorrer. Diferentes interesses e sensibilidades à mudança. Modos de bulo do corredor. ou que destino tinham levado as plantas que criara na
estar no mundo. Dualidades. antiga granja de palha, não era diferente de procurar saber o que acontece
Se se advém legente? Talvez se passe de uma predisposição à ao legente. que destino lhe cria a escrita ou qua l a distância que as muitas
vontade e decisão de o ser. Pode passar-se de leitor a legente, mas leituras vão gerando e a tornam definitivamente texto (Llansol, SH: 84).
só por vontade. Há caminho e crescimento. há evolução, e trabalho de
leitura. Como no leitor. mas não como o deste. A passagem de «leitor À distância de muita leitura, a escrita torna-se texto; à distância do
empírico» a «leitor modelo» faz-se através de um processo de aquisição texto estará o lugar onde o legente advém forma-humana, a partir da
de competências literárias; a passagem de leitor a legente é uma deci- (<forma legente» e da «qualidade legente» (ibid.: 257).
são que se realiza pela introjecção do lido no real de quem lê. Há leito- As comunidades, que surgiram pela mão de Ana de Peíialosa e
res e há legentes. Não são graus mais ou menos avançados, mas modos depois do livro que lhes deu nome, «haviam adm itido no seu seio uma
de leitura distintos. Ao propor «o legente», o texto llansoliano não está nova qualidade, o legente. alguém, (... )que tinham gosto em nomear,
a estabelecer hierarquias entre o que é ser leitor ou ser legente; o que sonhar e escrever.» (ibid.: 258). Essa nova qualidade, diz o texto, «era
o texto faz é reconhecer o legente não como uma categoria abstracta, uma forma simples de olhar para mim»; saudava o texto dizendo-lhe: «
mas como um ser real que decide experienciar o real do texto. - Encontro-me no princípio das interrogações (.. .) Vim ler. Ler atenta-

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

mente.» (ibid.: 259). Essa qua lidade legente pede ao texto, em OSenhor (que já começa nele). E o texto diz-nos, tempo depois:
de Herbais, que a conduza até um «mestre de generosidade»; de modo
semelhante, também o texto e as comunidades através dele têm tido O legente foi escrito por João, mas já existia no bater à porta. na chave
os seus mestres: de firmeza (Müntzer). de eternidade (Nietzsche). de protegida pela maçã, no desejo mais inconfesso do livro. Chamava-se
generosidade (São João da Cruz). «companheiros filosóficos» do texto, assim (Llansol, SH 258).
oferendas que lhes deixou o «mestre de santidade» (Spinoza). para que Nunca viram assim. Assim quer dizer. / no texto, / fulgor que / capta 0
inventassem «uma estética literária para a geometria (.. .)e não conver- fascínio/ que a todo o olhar fo i dado/ para reconhecer o belo que surpre-
gissem para o uno» (ibid.: 243-4). que lutassem pelo mútuo, que vissem ende e, I contrariamente às formas imaturas do encanto respeitar o que
lhe é dado para fazer e cuidar. Isto é, isto é,/ o enlevo pela forma construí-
na dobra. porque «reparar no rea 1faz eclodir o real que, no invisível,
da do/ lugar do vivo (Llansol, LL2 151)
lhe corresponde)) (ibid.: 246). Só vendo na dobra é possível perceber as
homologias da escrita:
<<Assim)) é o modo do legente deste texto. Suspender a leitura em
por exemplo, as flores em amentilhos, das plantas com ramos longos.
cada palavra e ver: ver a palavra e o que dela se desprende, como se
finos e flex íveis. correspondem na invisibilidade ao livro das comunidades vê o objecto e o que dele emana; o «assim» é um modo de olhar; é
(ibid. : 246) o modo da «mais-paisagem», o modo das figuras. um modo estético e
o modo que serve à mútua não-anulação, sua ética - «assim» é um
Quando assim acontece, o legente encontra com alegria a chave modo estético e ético, um processo de metamorfose, o modo do texto
de leitura - encontra-se «com a chave apanhada no cesto das maçãs, llansoliano. Criar «mais-paisagem», como o texto mostra, é «respeitar
li sob uma maçã» (ibid.: 245). como Myriam, em Um Beijo Dado Mais o que lhe é dado para fazer e cuidar» (Llansol, LLZ. 151). é criar «o elo
Tarde, quando a descobria no seu bolso, onde Ana a tinha guardado. O da cura e da beleza», como em Amigo e Amiga. Curso de silêncio de
texto refere-se assim a esse momento legente: «nesse instante, é deus 2004 (p. 159). para que através da captação de imagens inflorescentes
sive legens (... )ei-lo habitante do livro, faz escorregar suavemente a - «uma imagem inflorescente é composta por várias imagens» - se
porta. Esta é a clareza. O súbito I é de repente, sente-se tão hesitante possa criar «a rosa da inflorescência», a que, rodando, faz encontrar
que o interior da casa se pode desvanecer na oscilação (... ) não sabe, esse «devir maior» que é evocação do mútuo e poss ibil idade de anu la-
sente a chave no ombro, a luz do pânico a reflu ir, a ofertar-lhe um ver ção da morte; «fazer e cuidar>> será, assim. um equivalente de criar «o
mais claro (.. .)ao longe há o casario resplandecente do espaço edéni- elo da cura e da beleza» - à pergunta c<se as imagens inflorescentes
co (.. .)sinto-me descentrada de quem era, I sou outra, Ia que escreve, seriam também imagens curativas>> (AA: 159) poderemos responder que
11 meus dedos reconhecem a chave e a maçã» (ibid.: 247). A escrita elas se equivalem sempre que o ser, reconhecendo «o belo que surpre-
encontra-se com o legente, que é uma sua consequência (sive); simbio- ende» e respeitando «o que lhe é dado para fazer e cuidar>>, a mútua
se que o texto mostra quando a figura da escrita surge descentrada de não-anulação e «o enlevo pela forma construída do lugar do vivo» (LL2:
quem era - escrevente? legente? - uma resultante-de-sentido que a 151), se decida por esse «trabalho minucioso de cura e de beleza» (AA:
legência originou. 161) que implica, em simultaneidade, uma postura ou uma ética da
No início d' OLivro das Comunidades, A. Borges dizia: «Eu leio assim atenção e um olhar ou uma estética afectuante, o caminho indiscernível
este livro». Como um primeiro legente que mostra o seu modo. um da bondade e do belo. Um caminho que se pode aprender na leitura,
c<assim» que ele nos deixa ler, antes de começarmos a leitura do livro lendo:

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

teve um gesto que o texto anota,/ com um respeito infinito. Ter respeito, «se a página estiver vazia de manhã, /talvez já não flutue, vazia, à noite,
no texto, é parar/ e ler infinito porque, /porque /porque é pelo seu fulgor / sobrevém o movimento, e o transversal; / oscila no invisível que pede
que se dá com o lugar incerto/ e se acerta esse lugar em ler sempre/ outra _ _ _ ler. / lança-se o pedido no fogo, espera. e a / concretude
vez «lendo, antes de ler, / a ler, depois de ler» _ __ _ _ __ de quem lê, finalmente, apa rece; / apenas quem lê a seguir não sabe
(Llansol, LL2 152-3) _ _ __ /que já está presente no que ela escreve / agora.» (Llansol,
M : 232-3)
Ler sempre, como se mostrava em Um Beijo Dado Mais Tarde, para
dar com o lugar incerto e o acertar, o lugar do vivo, e sentir «uma alegria Eo texto diz: «sou um legente que escreve» (Llansol, SH: 247).
que esvoaça, que vê»; que vê o «novo lugar/ que vem ao pensamento
__ / o vivo é o atributo escondido, Baruch» (Llansol, LL2: 153). Para
Spinoza, os atri butos da Substância originam, através da sua essência
(potentia, pujança), os modos do vivo (da ordem da extensão e da ordem
do pensamento), e a essência do modo (conatus, apetição), ou grau de
pujança desse modo do ser, é parte dessa pujança da substância única
- o que nos leva a perceber que «o vivo», como prolongamento neces-
sário do atributo da substância, possa ter uma parte desse atributo que
se esconde, que precisa de ser fulgorizada para poder ser vista, e que
o ser tem capacidade de ver esse fu lgor que existe em si e em todas as
coisas, desde que se sirva do seu conatus ou potência de agir, que a
potentia da substância orig inou necessariamente em si. O homem pode
descobrir que «se cuidar da / chama num interior de anel, / o vivo da
parte incerta deixará de ser um perigo1> (ibid.: 154) e que, ao ser reco-
nhecido como prolongamento do atributo, permitirá ao homem transfor-
mar o «infinito» no «sempre11, concluindo que «a chama num interior de
anel é o outro nome da metanoite11 (ibid.: 157), o modo do <<sempren , o
modo de «tirar da pedra para a luz de todas as recordações» (ibid.: 157).
«Assim>1 e «sempre», como no texto llansoliano.
O «assimn é de quem lê e de quem escreve. Por isso, a primeira
página do texto llansoliano, espécie de prólogo d' O Livro das Comuni-
dades e de todo o texto, tem a marca de quem escreve e de quem lê
- Llansol e A. Borges oferecem-nos «assim11 o seu texto.
A. Borges, «assim11, o legente; concretude e desejo - vozes do
texto a querer saber quem o chama e quem ele convoca à leitura:

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Como uma pedra-pássaro que voa

1. Um primeiro pensamento verdadeiro

Ana de Pefialosa é alguém que. historicamente. ajudou


João da Cruz com os bens de que dispunha. Assim, na
horda humana, houve humanidade. Um vislumbre. E a sua
grandeza consistiu em ter acreditado nesse vislumbre.
Maria Gabriela Llansol, Um Falcão no Punho

Escrever vislumbra. não presta para consignar


Maria Gabriela Ll ansol. OLivro das Comunidades

A Ideia - O desejo de pensar e entender


Falando de Ana de Penalosa. o texto considera que a sua grandeza
a minha ocupação principal é ligar-me a uma ideia, e consistiu em ter acreditado num vislumbre. um modo de aproximação
examiná-la cuidadosamente; quando um pensamento é ao conhecimento que parece apoiar-se numa verdade dos sentidos. O
verdadeiro podem deduzir-se, sem interrupção, outros vislumbre, pe lo seu modo perceptivo imediato, aproxima-se da evidên-
pensamentos verdadeiros.
cia, conhecimento que dispensa a prova, cujo pensamento se constrói
Maria Gabriela Llansol, Causa Amante
na relação percepção-linguagem e que se capta e enuncia como ve rda-
de - a evidência é um dos modos como se revela a nossa experiência
Teria eu construído a minha vida sobre um primeiro
pensamento verdadeiro? do mundo. Conside rado como apodfctico. o modo de conhecimento da
Maria Gabriela Llansol, Causa Amante evidência torna-se uma espécie de necessidade. pois existindo para
além de qualquer dúvida e concedendo ao sujeito uma intuição da
verdade através da linguagem e da percepção, é desejado por aquele
por lhe permitir estruturar a sua relação com o mundo de um modo inte-
ligível e di recto. Associada a conceitos como «certeza» ou <<atenção», a
evidência, com o seu efeito de verdade, contribui para definir contornos
e modelos de inteligibilidade; e embora a neurofisiologia tenha vindo
demonstrar que a percepção não coincide com a informação regis-
tada pelos sentidos e que não se faz mecanicamente. considera-se
ainda que. não sendo imediata, a percepção continua a ser directa, e
reconhece-se nela a estrutura natural da evidência. A relação entre
a percepção e o percebido, vista como harmonia pelo gesta/tismo.
assume contornos mu ito diversos; a sua conceptolog ia agrupa também
conceitos muito diversificados que vão desde a intuição como consci-
ência imediata, como contacto ou mesmo coincidência com o objecto

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

quase não se distinguindo dele. que funde as modalidades sensoriais Num texto sobre a estética de Leibniz e sobre a percepção como
numa «atenção especial izada» ou «visão directa» (Bergson). até formas experiência do sujeito, Fernando Gil considera significativamente a
de apresentação co mo a ostensão, ou figuras como a ilusão e a inferê n- experiência artística como um modo de intel igibilidade, relacionando-o
cia. Figuras como estas podem ajudar-nos a perceber o que um conce ito com o conhecimento do verdade iro:
como «vislumbre» pode implicar.
Considerando a ilusão como uma deformação inerente a certas Ainda que não discursiva, a experiência artística é um modo de inteligibi-
percepções, e a inferência como confirmação de uma realidade que é lidade.( ... ) o sentimento vivo da beleza do universo e a satisfação própria
percebida embora não totalmente vista, podemos entender estas figu- à arte revelam a inteligibilidade do mundo melhor do que a compreensão
científica e filosófica porquanto o conhecimento discursivo permanece
ras como um prolongamento do visível; este é um dos aspectos desen-
sendo uma experiência de incompletude. Não se desdobra imediatamente
volvidos pela ecologia da percepção (G ibson) que, segundo Fernando
em alegria. (... ) o artista é fonte de pregnâncias (.. .l a arte é performati-
Gil, sugere que <(este pro longamento do visível decorre das reservas va e antecipadora de efeitos. Mas. à maneira da ciência, a arte participa
adaptativas da percepção: o aparelho da percepção projecta-a para na inteligência do verdadeiro - a saber, a harmonia do ser-. que é a
além de si própria a fim de suprir o percebido ausente. (... )A percepção mesma verdade e a única verdade. A arte revela-o: enquanto que o pensa-
reporta-se ao percebido ao qual a experiência consciente do sujeito mento discursivo o elucida. o verdadeiro lê-se directamente no belo. (F. Gil.
julga referi-la. Ela é directa sem ser passiva; a passividade conota-se 1998: 438).
de uma imediatidade ilusória.» (F. Gil, 1996: 68). A organização da expe-
riência a partir de um conhecimento da evidência, e considerando a Ler directamente, revelar e participar da inteligência do verdadeiro
poss ibilidade de a percepção ser «projectada para além de si própria», ou antecipar efeitos são atri butos da experiênc ia artística que lhe reco-
pode levar o sujeito a associar-lhe formas de crença e de convicção; nhecem um modo de inteligibilidade directo, ainda que não imediato.
estas orientam-se para um tipo de conhecimento inferencial que, não Poderemos dizer que se reserva à arte a possibilidade de se relacionar
sendo imediato, se baseia numa realidade que pode ser percebida e com o mundo de um modo indiciai, através de indícios ou do vislumbre,
confirmada. Evidência, crença e fé surgem, assim, mu itas vezes asso- um entrever que pode usar o discurso da proferição e a figura da infe-
ciadas, ou mesmo interligadas, como modos de intelig ibilidade. Fernan- rência.
do Gil refere que Husserl fala de uma <(crença-mãe» [Urglaube] que, Ao acreditar no vislumbre, Ana de Pefía losa assumia assim, etica-
situada antes do juízo, não se deixa enunciar; e Freud postula um pano mente, um ponto de vista estético: ao acred itar nesse modo percepti-
de fundo do juízo que é igua lmente do domínio da fé, e esta. embora vo que se aproxima da evidência como conhecimento que dispensa a
não verse sobre a experiência antepredicativa, é também «matricial»: prova, o seu comportamento orientava-se por um ponto de vista que
é o da experiência artística, um modo de inteligibilidade que opera
a evidência é uma forma de crença: uma crença «absoluta» à qual não não para elucidar, mas para revelar. cujo pensamento se constrói na
nos podemos esquivar. De um certo ângulo, poder-se-ia dizer também o relação percepção-linguagem e que se capta e enuncia como verdade.
contrário: a crença, como a evidência, não se prova, dispensar a prova é o «Ü verdadeiro lê-se directamente no belo» (F. Gil, 1998: 438) Ana de
carácter peculiar da evidência. (F. Gil. 1998: 3-4)
Pefía losa age esteticamente ou. pelo menos, será desse modo que se
dirige ao real.
Aquém do juízo de existência ede predicação existe a fé, o modo da crença
«certa»(ibid.: 4) Revelar o verdadeiro implica ainda dirigir-se ao real não de um
modo estático, aceitando que quando se obtém uma ideia verdadeira

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nada mais há a fazer, mas de um modo dinâmico. pois «verdadeiro» O texto llansoliano põe-se a agir a partir de uma ideia verdadeira
significa apenas um momento de onde se pode partir para continuar a porque considera essa ideia inata o começo de um processo de verifi-
verificação de outras verdades. Éesta divergência de opiniões que opôs cação, um primeiro momento que va leu a pena e qu e pode conduzir a
intelectualistas e pragmatistas, e que William James sintetiza na sua outros: «quando um pensamento é verdade iro podem deduzi r-se, sem
sexta conferência sobre «A concepção de verdade do pragmatismo»: interrupção, outros pensamentos verdadeiros» (Llanso l, CA: 17). Essa
ideia verdadeira tem a função, diria W. James, de uma «orientação que
Ogrande pressuposto dos intelectualistas é o de que a verdade representa valeu a pena»:
essencialmente uma relação inerte e estática. Quando se obtém uma ideia
verdadeira sobre qualquer coisa nada mais há a fazer. Está-se na posse Quando um momento da nossa experiência. seja de que espécie for. nos
de; sabe-se; cumpriu-se o destino pensante. (... ) Epistemologicamente inspira um pensamento que é verdadeiro. isso significa que mais cedo ou
está-se num equilíbrio estável. O pragmatismo. por outro lado. põe a sua mais tarde mergulhamos mais uma vez nas particularidades da experiência
questão habitua l: «Concedendo que uma ideia ou crença é verdadeira. sob a orientação desse pensamento, estabelecendo com elas conexões
que diferença concreta fará a sua verdade na vida real de alguém? Como vantajosas. (James, op. cit.: 104)
se realizará essa verdade? Que experiências são diferentes das que se
sucederiam se a crença fosse falsa?» (... ) No preciso momento em que Este processo, que para Wi lliam James radica na «orientação»,
o pragmatismo põe esta questão a resposta surge desde logo: Ideias parece idêntico ao pressuposto spinozista que orienta a Ética: para
verdadeiras são as que podemos assimilar. validar. corroborar e verificar.
perseverar no seu ser, toda a coisa se orienta por ((ideias adequadas»; o
As ideias falsas são as que não o permitem. (.. .) É esta tese que quero
que, como podemos perceber. é ainda a orientação de Llansol - esse
defender. A verdade de uma ideia não é uma propriedade estável que lhe
seria inerente. A verdade acontece a uma ideia. Ela toma-se verdadeira. seu pri meiro pensamento é verdadeiro porque adequado :
é feita verdadeira pelos acontecimentos. A sua veracidade é de facto um
Por ideia adequada. entendo uma ideia que, enquanto é considerada
acontecimento. um processo: nomeadamente o processo de severificar a si
mesma. da sua verificação. A sua validade é o processo da sua validação. em si mesma, sem relação com o objecto, tem todas as propriedades ou
(James. 1997: 102). denominações intrínsecas de uma ideia verdadeira. (Spinoza, Ética. Pll.
Expl., p. 197)
Toda a ideia que em nós é absoluta. isto é, adequada e perfeita. é verda-
Parece ser deste modo que o texto llansoliano se dirige ao real -
deira . (ibid.:, P. li. Prop. XXXIV. p. 2371
parte de ((um primeiro pensamento verdadeiro» para o ir vali dando;
encara-o como processo; não como um fim em si mesmo, mas como
Este modo de raciocinar, a partir de noções claramente definidas e
uma matriz que permite ir gerando e validando pensamentos verda-
numa ordem lógica, que não podemos desligar da conjuntura científica
deiros, em sintonia com a tese de William James de que «a posse de
seiscentista, é o que está na base do «modo geométrico» que Spinoza
pensamentos verdadeiros representa sempre a posse de inestimáveis põe em prática na sua Ética. Admitindo que toda a causalidade lógica
instrumentos de acção; e de que o nosso dever de obter a verdade, é de ordem geométrica, e qu e compreender significa estabelecer a
longe de ser um imperat ivo vazio vindo do nada, ou um 'fascínio' ligação do efeito à causa, Spinoza orienta-se por uma razão lóg ica e
auto-imposto pelo nosso intel ecto. se justifica por excelentes razões
um pensamento «demonstrante», que põem em para lelo a derivação
práticas. (... ) a procura de tais ideias é um dever humano primordial.»
das propriedades das figuras geométricas com a das paixões hum~nas,
(op. cit.: 103).
«como se se tratasse de linhas, de superfícies ou de volumes» (Etica,

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Ili, prefácio: 265), mostrando que as relações que as coisas e as ideias o qual se conforma, não sendo, no entanto, necessário recorrer a ele
estabelecem entre si e com o que lhes deu razão de ser são análogas, para ajuizar da sua verdade. A adequação a um objecto é apenas uma
nas figuras geométricas. às propriedades deduzidas a partir de cada consequência, não a sua condição de verdade.
definição dessas mesmas figuras. É essa sistematização dedut iva que Este optimismo de Spinoza parece-nos ecoa r em Llansol. Para ele,
imprime um movimento característico à Ética de Spinoza, e define o seu como para o texto llansoliano. toda a ideia adequada aumenta a nossa
ritmo: um método de exposição e demonstração, movimento ondulató- potência de agir, tal como as ideias inadequadas a diminuem; e é desse
rio, não linear, obrigando a atenção a movimentar-se entre definições modo que se definem as emoções de alegria e de tristeza, como o
e axiomas, demonstrações e corolários, fazendo com que o pensa- aumento ou a diminuição de potência oriunda de ideias adequadas ou
mento se vá revelando no próprio acto de pensar, uma vez que a «ideia inadequadas. É nosso dever progredir no conhecimento caminhando ao
verdadeira», apesar de ser inata . só se dá a conhecer pondo em acção encontro das ide ias adequadas.
os mecanismos do entendimento. Como afirma Maria Luísa Ribe iro Também ao explicar o processo de «orientação», W. Jam es se serve
Ferreira, «o método em Espinosa não é como em Descartes a procura do verbo «adequar»:
de algumas verdades privilegiadas. Não há que partir do 'cogito'; aliás,
não há que seleccionar qualquer ponto de partida. A ideia verdadeira de O essencial é o processo de orientação. Qualquer ideia que nos ajude a
que fala Espinosa é-nos dada, é inata. Mas conhecemo-la produzindo-a lidar. prática ou intelectualmente, com uma realidade (ou com algo que
(.. .)>>(Ferreira, 2003: 99). E conclui: esteja relacionado com ela). que não enrede o nosso progresso em frus-
tações. que se adeqúe de facto e que adapte a nossa vida à forma geral
«não há elementos anteriores ao método que o determinem. não há qual- dessa realidade, corresponderá o bastante para satisfazer as exigências.
quer critério que devamos previamente conhecer. O método é intrínseco Será verdadeiro quanto a essa realidade. (James. op. cit.: 107)
à própria actividade pensante, revela-se no pensar. (. ..) O método é. no
fundo, a descoberta da potência do nosso entendimento. A nossa obrigação de procurar a verdade faz parte da obrigação de
Talvez seja absurdo falar-se de método, pois na verdade ele coincide com aumentar a nossa potência de agir, de desenvolver emoções de alegria
uma instância do conhecimento - o conhecimento reflexivo ou ideia da e não de tristeza; o verdadeiro será aquilo que para cada um é ma is
ideia. ou seja, com o conhecimento que se redobra e reforça pela cons- eficaz nesse processo de «experiência-veri ficação»; não é o facto em
ciência da sua génese. O método é aprender a gerir a ideia verdadeira, é si que é verdadeiro ou falso, mas a crença que se desenvolve em torno
aprender a gerir aquilo que é nosso. E aquilo que é nosso não se confun- dele. Ainda W. James: « 'O verdadeiro', para resumir o mais possíve l,
de com representações mais ou menos objectivas do rea l (...)As ideias é simplesmente o que é mais eficaz para o nosso espírito, tal como 'o
não nos são dadas. são produzidas através de um esforço reflexivo. justo' é simplesmente o que é mais eficaz para o nosso comportamen-
(ibidem: 99)
to». (op. cit.: 11 O).
Em Llansol, «verdadeiro» e (<justo» estão directamente ligados à
Para Spinoza, a ideia não é representativa (como em Descartes,
nossa obrigação de desenvolver emoções de alegria . O pensamento
sendo quadro ou imagem de, com correspondência entre a idea e o seu verdadeiro, a justiça da língua e o júbilo de viver e agir são indisso-
idea do). mas expressiva. A ideia impõe-se. como que obrigando-nos a
ciáveis, estão unidos naquilo a que João Barrento chama «o projecto
aceitá-la. é verdade ira por uma qualidade intrínseca, e assim se expres-
eudemonista da ucronia llansoliana»:
sa - não há necessidade de recorrer a algo de exterior para confirmar
a verdade da ideia, pois toda a ideia verdadeira tem um ideado com

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

O texto llansoliano será ucrónico e não utópico porque não corresponde. mas também como aumento da nossa potência de agir. única fonte que
nem à noção de não-lugar (ou-topos). nem também à de lugar-do-não (de permite transformar o mundo no sentido de uma conjectura jubilosa:
uma qualquer negatividade). porque ele é lugar de <dugares», e porque a
energia que o percorre é afirmativa.( ... ) situa-se. assim. desde logo fora do O texto, sem os humanos a abocanharem a sua rea lidade («o estado
espaço utópico de uma literatura que chega até nós. vinda da modernidade sólido», diz ele) é mais feliz.
de há cem anos. e cujo traço dominante é o da consciência crítica, isto é, - Para que servem os leitores. então?
negativa e da crise. Essa literatura é uma literatura dilacerada e trágica - Para mergulhar no texto e na sua felicidade.
(de Kafka a Rui Nunes). O texto llansoliano corresponde a um projecto Escrevo mergulhar. e não aprender( ... )
jubiloso. atravessado por uma dupla esperança, a esperança como afecto (Llansol. /QC: 43)
e a esperança como sabedoria (a docta spes de Nicolau de Cusa). ( ... )É a
esperança e o júbilo de figuras que, vindas de outros espaços. têm de facto
origem num futuro e se encontram num lugar fora do tempo, lugar ucrónico
2. Um lugar e um idioma para o in-visfvel
onde «nada era trágico, mesmo se a alma caminhasse como de noite e na
obscuridade» [Llansol. «Dizer com o Lugar 1 de O Livro das Comunidades].
Definindo a utopia numa obra já clássica, Karl Mannheim escreve: «Utópica <(Terei eu construído a minha vida sobre um primeiro pensamento
é a consciência que se não encontra em convergência com o 'ser' em que verdadeiro?» pode ser a dúvida que orienta também todo processo cria-
se insere» [ldeologie und Utopie. Frankfurt. 1952. 3ª ed.: 169). Otexto llan- tivo. nomeadamente em Llansol, uma ideia clara, ou adequada . sujeita
soliano vive. pelo contrário, de uma noção de «verdade» enquanto «ajuste», a verificação. Importante, no entanto, para fazer caminho, não é saber
coincidência dos seres consigo próprios num tempo-outro: «Os seres têm se esse primeiro pensamento é verdade iro, mas ape rceber-se de qua l é
um sentimento final de que há um lugar onde chegarão à sua coincidência» esse primeiro pensamento orientador. Em Causa Amante, Llansol põe-
[Llansol, FP 59]. Este lugar é um lugar do tempo fora do tempo (da história). -nos perante essa constatação:
lugar do futuro e lugar de futuro. O projecto llansoliano (. .. )aquilo a que
Augusto Joaquim chama a sua «conjectura espiritual afirmativa» («Lugar Não devo temer forjar uma ficção desde que clara e distintamente tome
1», p. 8). e eu o projecto eudemonista da ucronia llansoliana. (Barrento, posse da coisa imaginada. Criei esta rapariga que nos chama impostoras
2004 b: 5 - 7 )ZS da língua; eu precisava de trazê-la ao primeiro horizonte do cabo Espichei,
que é uma ideia assente e clara.( ... ) - Não quero comer convosco -
É essa oferenda que Llansol põe nas mãos do legente - a possi- afirma ela. - Quero a vossa língua de impostura. - Se fosse uma impos-
bilidade de ''mergulhar» na prática jubilosa que é o seu texto. ao tura - respondo-lhe-. não seria clara e distinta. - E. assim. verdadeira
encontro da alegria como dever de existir, como busca da felicidade, - acrescenta ela. - Começo a duvidar se. neste texto, esta rapariga sou
eu ( .. . ). «Verifiquei que nenhuma das coisas que eram para mim objecto
25 Eudemonismo, eudemonia (gr. eu-daimon-ia): doutrina segundo a qual a finalidade de terror, continham bom ou mau, em si mesmas. A não ser em relação
de toda a existência e de todo o agir é a felicidade (etimologicamente: modo de exis- ao movimento que suscitavam na alma ... ». A rapariga não mexia o corpo,
tência em que o deus [daimon) nos é propício: Aristóteles. Ética a Nicómaco /, 1098a, ( ... ).No fim disse: - Teria eu construído a minha vida sobre um primeiro
14-16; Retórica 1. 5-6). Para os Estóicos. a eudemonia representa a condição de felici-
pensamento verdadeiro? Respondi-lhe antes que procurasse saber qual:
dade pela ataraxia (a indiferença do sábio) e pela renúncia aos bens materiais. Kant
(Metafísica dos Costumes) irá rejeitar o eudemonismo em nome da necessidade da lei
- Que a língua é uma impostura. (Llansol, CA: 18-20)
moral: «Se a eudemonia (o princípio da felicidade) for elevada a fundamento primeiro
em vez da eleuteronomia (o princípio deliberdade da lei interior). o resultado será a «A língua é uma impostura» será o primeiro pensamento orienta-
eutanásia(morte suave) de toda a moral»! (nota de J. Barrento, op. cit.).

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

dor. Terá sido, em primeiro lugar, uma constatação, e esta deverá ter Aque le <mão-dito» que pairava na casa teve como contraponto esse
resultado de um momento prévio que a desencadeou. Poderemos tentar «onde»que terá sido o primeiro apelo do espaço edénico, «o primeiro
perceber esse encadeamento indo ao encontro da figura que nasce para sinal de que era necessário revolver o mundo» (ibid.: 156) - e que
temer e fazer frente à impostura da língua - Témia. Na necessidade de tomou forma como «um primeiro pensamento verdadeiron, espécie de
criar Témia se conclui o processo de experiência-verificação e se decide imagem fundadora deste Texto. a que se vai associar um desejo profun-
quanto à veracidade desse primeiro pensamento. o facto de a língua ser do de beleza. para que beleza e conhecimento operem como um ambo,
impostora. Témia passa a existir para que esse pensamento possa ser com a estética a substituir a moral na procura do «bem supremon, cami-
verdadeiro, e com ele se desencadear a verdade de outros que lhe são nhando deste modo para o que será chamado de «dom poéticon, um
anteriores e precisam de ser validados. nomeadamente o de que «Na modo de dizer que une a ética e a estética.
casa, não se administrava bem a Justiça da língua» (Llansol, BDMT: A necessidade de criar o Lugar e as figuras que farão acontecer
7). que tem ainda contraponto num outro: «havia um segredo - (... ) os <<encontros de confrontação» (que. por seu lado, libertam a energia
e 'sobre esta casa pairou um mistério, um não-dito, que alisou. numa necessária para que a ligação entre tempos não se quebre, para que
pequena pedra. uma irreprimível vontade de dizer. Oeste mistério. exista um continuum) poderá ser a ideia oriunda desse «primeiro pensa-
e no fim de um trabalho executado a som e a cinzel. fez-se a rapariga mento verdadeiro» que origina toda a escrita de Llansol - criação de
que temia a impostura da língua e que queria'. / através da palavra, / um lugar e de uma voz, um id ioma, para o in-visível, para que as figuras
fazer ressoar fortemente,/ o seu irmão morto. (... )tinha a obrigação de se encontrem. tenham lugar e possam. a partir daí. prosseguir naqui-
cumprir a penitência imposta pela impostura e, sobretudo, de morder a lo para que vieram: assegurar o eterno retorno do mútuo, mantendo o
claridade» (Llansol. BDMT: 12). anel e a sua condição de «seres sendon, revelando a inteligibilidade do
Éesse primeiro pensamento verdadeiro que chama a-narradora-que mundo e a possibilidade de ressuscitação. Desses encontros. sabemos
chama-Témia-que-chama-Jade que espreita Témia do outro lado do que é a linguagem que os cria e pouco mais. Não obedecem a qualquer
coreto, no Jardim da Estrela, Jade que chama «a objecto de beleza» e lei, a qualquer regra. Éna linguagem que as palavras. correspondendo-
que a trará de volta depois do desaparecimento desta. porque se acre- -se. geram acontecimento. E. gerados na correspondência. esses encon-
dita que o in-visível existe e só precisa de um lugar e de uma língua, tros sem normas serão consequentes.
um <<ar-onde» as figuras criadas e a criar lhe dêem existência. Por isso, Encontro sem normas. A escrita de Maria Gabriela Llansol poderá.
na casa onde havia aquele segredo, se dizia também: «- Menina. nã o talvez, levar pela mão uma frase como esta. Vive de encontros - que
diga que não existe, porque não sabe, procure onde está». Eesse era o a palavra procura. esco lhe. movimenta em todos os seus livros - ines-
sinal de que havia um «onde», um lugar. e de que era preciso procurá-lo perados. desconhecidos, da ordem do diverso. livres. De encontros que
para lhe dar existência. reunir as forças que forçam a pujança a mani- irão surgir e possibilitar a criação do Lugar. espaço de encontro onde a
festar-se: permuta desinteressada e a mútua não-anulação dos seres acontece.
Esse espaço do(s) encontro(s). o Lugar. não se define pelas habituais
O texto [Amar Um Cão) mostra a figura da criança a aprender como coordenadas espacio-temporais, mas por coordenadas provocadas
se juntam os sinais desta espécie que reunidos num dado dispositivo pelos encontros. N' OLivro das Comunidades, texto fundador da escri-
indicam com toda a segurança o «onde está». (Llansol. «O Espaço Edéni- ta llansoliana. a separação entre as diferentes partes ou textos que
co», in CJA. 2ª ed. : 157) o constituem é feita pe la enumeração dos diferentes lugares. assim
chamados desde o «Lugar 1n; noutros livros, essa noção de Lugar, fora

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do espaço e do tempo, é nomeada diferentemente, mas mantendo o apenas, da sua enxertia num tronco principal - o de um primeiro
mesmo significado e a mesma organicidade no Texto. pensamento verdadeiro - aquele pensamento ou consciência que
A busca do Lugar poderá ser, assim, a ideia que constrói toda a nasce da necessidade não de saber quem sou, mas de saber quem me
escrita de Llansol. Obra que vive da apetição de mudança e de movi- chama, porque o ser é sempre um ser em relação, e é o apelo do outro
mento («texto nómada», como já foi dito) e que observou desde muito que me faz agir e ter um pensamento livre, não enclausurado numa
cedo aspectos essenc iais às formas de vida e de escrita. As duas busca fechada de mim. Esse será o primeiro encontro. não comigo mas
primeiras páginas d' OLivro das Comunidades são disso testemunho. Aí com o outro que será outro comigo - uma causa amante.
se enunciam as premissas que nos levarão às coordenadas desta Obra:
primeiro - realidade e existência não são a mesma coisa - «Há
muito real que não consegue existir, e há muitíssima existência que não
tem (nem nunca teve) rea lidade alguma. A maior parte do que existe é
miséria alucinada.» (Llansol, «O Espaço Edénico», in CJA. 2ª ed.: 156);
segundo - a escrita não concebe, muitas vezes. a hipótese de
vislumbrar outros mundos no mundo - «Dar à vida só seres humanos,
revelou-se de uma grande monotonia. e fatalmente sujeito a erro)) -,
esquecendo a sua capacidade de, vislumbrando, gerar mundo (Llansol,
CA: 162);
terceiro - há «linhagens» que têm origem em vozes textuantes e
não em meras consanguinidades portadoras de tirania. de sedentaris-
mo, castradoras da voz livre. a única que não almeja o Poder- «Nestas
coisas, não há hereditariedade, mas há continuidade de problemática
e. o que é bem mais importante, permanência do vórtice vibratório» («O
Espaço Edénico», in Llansol, CJA. 2ª ed.: 158).
Oprimeiro aspecto referido assumirá no texto llansoliano as formas
de «Vida» e «Restante Vida»; o segundo fará o caminho do inerte ao
«vivo»; o terceiro desenvolve-se através de uma comunidade de seme-
lhantes, mais tarde continuada por uma «geração sem-nome», que
reúne condições para poder criar uma língua sem impostura, através de
um contrato de mútua não-anulação. 26
Muito do percurso llansoliano va i-se ramificando a partir de um
tronco comum de onde saem esses três ramos; outros se cruzarão com
eles. sem hierarquias, até todos se tornarem indistintos e conscientes,

26 Estes aspectos terão desenvolvimento na análise que. seguidamente. se fará do


prólogo d' O Livro das Comunidades.

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Como uma pedra-pássaro que voa

A segunda é a Tradição, segundo o espírito que muda onde sopra.


Todos cremos saber o que é o Tempo, mas suspeitamos. com razão. que só
o Poder sabe o que é o Tempo: a Tradição segundo a Trama da Existência.
Este livro é a história da Tradição, segundo o espírito da Restante Vida.
Mais uma razão para o não tomarmos a sério.
Há, pela última vez o digo, três coisas que metem medo. A terceira é um
corp'a'screver. Só os que passam por lá sabem o que isso é. E que isso
justamente a ninguém interessa.
Ofalar e negociar o produzir e explorar constroem, com efeito, os aconteci-
mentos do Poder. Oescrever acompanha a densidade da Restante Vida. da
Outra Forma de Corpo, que, aqui vos deixo qual é: a Paisagem.
Omovimento - Odesejo de escrever Escrever vislumbra, não presta para consignar. Escrever, como neste livro,
leva fatalmente o Poder à perda de memória. E sabe-se lá o que é um
Corpo Cem Memórias de Paisagem.
A leitura de A. Borges, no início d' OLivro das Comunidades. parece Quem há que suporte o Vazio?
ser elucidativa, como atrás ficou dito, das linhas orientadoras do texto Talvez Ninguém, nem Livro.
llansoliano. Recordemos essas duas primeiras páginas para, num olhar
atento sobre elas , podermos ir segui ndo o movimento do Texto e desdo- A. Borges
bra ndo alguns fios que o tecem. Assim, leia-se o prólogo que apresenta Jodoigne, 4 de Janeiro de 1977,,
OLivro das Comunidades e cuja frase de abertura (em tipo redondo, e
não em itá lico como o restante texto) remete para uma leitura - a de
A. Borges, no lugar de Jodoigne, em 4 de Janeiro de 1977:

«Eu leio assim este livro:

há três coisas que metem medo: a primeira, a segunda e a terceira.


A primeira chama-se vazio provocado, a segunda é dito o vazio continuado,
e a terceira é também chamada o vazio vislumbrado.
Ora sabe-se que o Vazio não se apoia sobre Nada.
Há, assim, três coisas que metem medo.
A primeira é a mutação. Ninguém sabe o que é um homem. Os limites da
espécie humana não são consequentemente conhecidos. Podem, no entan-
to, ser sentidos. Omutante é o fora-de-série, que traz a série consigo. Este
livro é um processo de mutantes, fisicamente escorreitos. É um processo
terrível. Convém ter medo deste livro.
Há, como disse, três coisas que metem medo.

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1. Uma forma simples de olhar que. embora com outra linguagem, também fala; e captando das coisas.
despretensiosamente. o olhar que elas nos devolvem, o olhar que se
Nunca viram assim. Assim quer dizer, projecta em quem as olha. Deste modo, não haverá na paisagem olhada
no texto, «insignificação», pois o que nos é devo lvido é o que os olhos, agindo,
fulgor que
captam porque foi posto a significar- não um significado determinado
capta o fascfnio
e instituído, mas a própria significância como um envolvente e um nós
que a todo o olhar foi dado
para reconhecer o belo que surpreende e,
visto da outra margem.
contrariamente às formas imaturas do encanto respeitar o que lhe é dado para fazer Se olharmos este prólogo do ponto de vista da sua estrutu ra, pode-
e cuidar. Isto é, isto é, mos vê-l o organizar-se em quatro momentos, cada um com o seu lugar
o enlevo pela forma construída do próprio adentro deste texto. mas todos como lugares de sentido recor-
lugar do vivo rentes na Obra. O texto abre com um enunciador, um eu. referenciado
(llansol, Lisboaleipzig 2. Oensaio de música) no fina l como A. Borges, signatário, que assim se confunde com um
narrador-emitente/leitor-legente, tal como na Obra se irão entrecruzar
A primeira voz do texto llansoliano parece ser a voz do legente. «Eu as diferentes vozes sem preocupações de identificação, e porta-voz de
leio assim este livro» - assim abre O Livro das Comunidades. A cons- uma vontade. que aqui se afirma e repete, de recusa e fuga a um mundo
ciência e a proposta de mudança operada pelo acontecer da escrita- de Poder - é uma voz que denuncia. sugere e afirma repetidamen-
-leitura estão presentes neste texto fundador. espécie de prólogo a te. O facto de esse «eu» (A. Borges) se situar num determinado lugar
toda a obra de Maria Gabriela Llansol, onde se evidenciam, desde logo, (Jodoigne) e numa data precisa (4 de Janeiro de 1977) pode ser visto
rejeições, caminhos. modos de fazer e ideias recorrentes na Obra. Quem não como um índice de verosimilhança, mas corno um mero indicativo
lê «assim este livro»27 mostra um novo modo de ler, mostra um modo de lugar e tempo de leitura-escrita , igual a tantos outros onde alguém
para este Texto. Eparte da consciência de que o novo é como um vazio lê ou escreve. Estas indicações aparecem muitas vezes no texto llan-
pleno de possibilidades. melhor dizendo, disponível. Assusta. por nos soliano mas, mesmo nos Diários, são informantes que podem vir a ser
deixar sem referências e por ser grande a sua capacidade de mudan- desconstruidos na arquitectura dos diferentes livros, assumindo outro
ça. Ea mudança começa por operar-se no olhar dessa figura do leitor/ nível de significado. Os espaços fundem-se, o tempo é atemporal - as
legente, primeiro enunciador do texto. o primeiro a responder-lhe (a ser figuras que percorrem o texto encontram-se em lugares que podem não
responsável por ele). a saber ver o olhar que o texto lhe devolve. Quem corresponder a um determinado espaço geográfico e num tempo que
lê assim este livro assume essa forma simples de olhar que consiste muitas vezes lhes é anterior ou posterior; aliás, aqu ilo que procuram é o
em ver as coisas não para as utilizar como informantes, passando encontro. um lugar de diálogo (a resultante da confrontação e sobreim-
depois a designá-las - documentando-se, acumulando e devolvendo pressão de dois ou mais espaços geográficos), lugar que está fora do
informação - . mas ouvindo-as em diálogo consigo, considerando a tempo e do espaço que lhes foi determinado pela História. Deste modo,
paisagem não como um fundo, mas como uma outra forma de corpo o primeiro e o último momento do texto dão-nos indicações que são
tão precisas quanto abertas do acto de ler-escrever. «Eu leio assim este
livro», diz-se. Éo «assim» que faz a diferença. Éo «como» que importa a
27 A posição de A. Borges. como legente que se mostra nestas duas primeiras páginas
d' O Livro das Comunidades, foi já desenvolvida nas pp. 128 - 171 (Do leitor e da leitura quem lê (esse será todo o segu ndo momento). Num terceiro momento.
e Do leitor ao legente). antes do final - «Quem há que suporte o Vazio?/ Talvez Ninguém. nem

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Livro.» - lança-se uma pergunta e sugere-se a resposta: qual o destino mente evidentes e verdadeiras embora indemonstráve is. vai va lidando
desta escrita? Só haverá resposta se houver quem leia «assim», esse e deduzindo outras ideias verdadeiras, acrescentando, desenhando uma
(< assim» que é o momento de toda a segunda parte. mais propriamen- «ondulatura» rítmica onde pensar e sentir se entrelaçam e lança m em
te, o corpo deste prólogo. Aí se fala das coordenadas deste livro que perguntas-respostas alternantes - uma forma simples de ir tecendo
agora se apresenta. Quem aí escreve/lê (A. Borges). vai caminhando e os fios do olhar com linhas de pensamento.
concluindo; enuncia, repete. volta atrás para acentuar; designa certos
conceitos. destaca e reformu la-os. suscita outros a partir de novas
ideias. Não será também assim que se lê o texto llansoliano? Não está 2. A Restante Vida
ele. desde esta primeira página a indicar o seu modo? Diria mais: o seu
modo e a sua substância. Vai dizendo «o quê» e <(como». Apresenta-se. Este texto diz que não havendo memória de ser humano
A qualidade legente mostra-se e dá a ver. como se pudesse antecipar mais vale guardar em memória o resto, todos os restos. a
desde o primeiro momento todo um caminho, tal como o livro onde restante vida.
está inserido é o primeiro passo, e irreversível, para uma escrita que Maria Gabriela Llansol. A Restante Vida
se demarca da tradição rea lista, porque se reconhece com outro objec-
tivo. É o que Llansol mostra no epílogo de O Senhor de Herbais (2002). O prólogo começa por referir-se ao medo como consequência última
ao referir-se a esse primeiro momento que é O Livro das Comunidades de três coisas - <(há três coisas que metem medo»-, indiciando a
(1977) como <'o livro fonte da minha escrita e do meu lugar no mundo»: possibilidade de este poder mostrar-se de dois modos: para lisante,
criando a impossibil idade de movimento, ou motivante, pela possibili-
aí selei um contrato com o vivo. e dei o passo irreversível que tanto hesi- dade de ser ele próprio motor de movimento. tornando o ser conscien-
tei em dar para um texto capaz de conferir uma expressão actual a gritos te, como a mulher de Amigo e Amiga, de que (<Não serão o poder e o
humanos e não humanos. abafados pelo uassim é» da história. do mundo. medo/ que lhe imporão o seu movimento./ Mas será ela mesma que
do poder de espezinhar. (Llansol, SH: 323) animará o movimento» (Llansol, AA: 172). Daí poder concluir-se que o
mistério. como se afirma em O Senhor de Herbais, «não é o medo que
E este prólogo é a ideia clara dessa vontade. A vontade de um texto tol he os passos, mas a servidão que trazemos acorrentada às mãos e
que possa ser voz de uma forma de vida onde pensamento. afecto, nos impede de tactear a chave sob a impotência e o júbilo de viver»
crítica (como conflito que faz crescer) e liberdade coexistam, que juntos (Llansol, SH: 323). Não o medo do outro. mas a anulação de si. como
sejam um modo de pensar a linguagem, para que o conhecimento aceitação de um «eterno retorno do mesmo», pode leva r à impotência
evolua com ela e ambos sejam expressão de um valor ético e esté- perante o «assim é» da História e do Poder. O medo de que aqui se
tico de liberdade - o dom poético. Pondo em causa o <(assim é» da fala não é o que paralisa, mas o que se propõe corno movimento de
História. o texto escolherá recusar a verosimilhança e a sua linearidade transformação.
enu nciativa, para criar um modo de pensar. e pensar-se em linguagem. Das batalhas perdidas ficou um Resto, uma virtualidade, um vazio
que sirva ades-hierarquização e a mútua não-anulação entre os seres e disponível, a ser preenchido pelo homem livre. por aquele que olha
o júbi lo de estar vivo. Édessa vontade que fala o prólogo. E para lhe dar a quem o chama. pelo que não para lisa face ao medo. No segundo
voz ele vai-se construindo, lembrando Spinoza, «de modo geométrico»: volume da Geografia de Rebeldes, A Restante Vida, num posfácio assi-
partindo de defini ções e axiomas, premissas consideradas necessaria- nado também por A. Borges, dá-se uma possível explicação para esse

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mistério que é o facto de o homem se ter deixado acorrentar pelo Tempo todas as reacções dos seres vivos podem ser consideradas como exte-
e pelo Poder. ambos simbolizados nas múltiplas batalhas e vitórias dos riorizações implícitas nessa fonte de energia que originou o universo.
príncipes: Manifestada através da matéria. essa <(consciêncian, não sendo ineren-
te ao mundo objectivo. manifesta-se segundo o modo peculiar de cada
Uma batalha continuamente perdida (essa a definição mais genérica do coisa. de cada ser. O que faz com que ela se manifeste diferentemente
tempo). para benefício dos príncipes e. quando estes mortos e ultrapassa- permanece um mistério. Omistério não é o vazio, mas o que o actual iza
dos. em benefício de seus sucessores poderosos. Ficou-nos uma concep- num modo de ser.
ção de real, uma sombra. um espaço vazio e uma virtualidade.
Das três coisas que metem medo, a primeira, a segunda e a tercei-
A série dos êxitos, nossa derrota, confirmou os príncipes no seu intento:
ra, é-nos dito no prólogo que são três formas de Vazio: o vazio provo-
queriam um só real. acabamos por pensar que só um real havia. Mesmo
cado, o vazio continuado e o vazio vislumbrado. Como «o Vazio não se
mortos, há três séculos mortos. ficou-nos esse reflexo: o real é o social,
real só há um, e esse não é nosso (. . .). Que outra coisa é a história senão apoia sobre Nadan, talvez por isso o Vazio meta medo. Este prólogo,
esse lugar onde os poderosos realizam os seus fantasmas(. .. )? Este texto este livro, esta Obra, fala do medo que não paralisa; fala do medo
des-diz esses outros que anularam este resto, este imenso resto. (. .. ). que os príncipes quiseram infligir aos vencidos, mas que, não tendo
provocado nestes a imobilidade, se voltou contra os próprios príncipes,
Este texto diz que não havendo memória de ser humano mais vale guardar sendo eles agora que devem ter medo do medo que não paralisou e
em memória o resto, todos os restos, a restante vida. (Llansol. RV: 100) se transformou em força e movimento - energia. Aqui se fala dessa
mutação e suas consequências. Por isso também se diz, repetindo com
Acabámos por pensar que só um rea l havia; desenhou-se um vazio, outros nomes, que essas três coisas que metem medo (primeiramente
mas um vazio que pode ser preenchido porque é uma virtua lidade, que nomeadas como três formas de Vazio) são a mutação. a restante vida
está disponível para deixar de ser visto como um vazio continuado e e um corpo a escrever - a escrever toda a mutação disponível e em
transformar-se num vazio vislumbrado, a concretude do que é restante. movimento. O texto escreve essa paisagem, a paisagem da mutação e
A ciência mostra-nos que o vazio está cheio de alguma coisa que o seu movimento. Eé o que daí advém que pode também causar medo,
não é matéria. que nesse «nada» há informação, variações de campos mas aos novos príncipes - a possibilidade de o homem poder vir a ser:
eléctricos que, tendo sido provocados pelo epicentro da matéria, podem «Ü homem será. / Tudo que tem corpo de gente poderá ser humano»
persistir como vestígios quando a matéria já lá não está (Henri Laborit); (Llansol, RV: 100).
existe uma espécie de «ordem implícita)) (David Bohm). a matéria está Dos três Vazios - o provocado. o continuado e o vislumbrado -
implícita no «nada», o que leva a dizer que no vazio há pré-forma, algo poderemos dizer que o primeiro, quando não paralisa. provoca a muta-
como um molde invisível do molde visível que são os seres e as coisas, ção. o modo de sair de le. É imprevisível o que possa acontecer já que
uma «constante cosmológica)) (Einstein) que nega a existência de um «Ninguém sabe o que é um homem. Os limites da espécie humana não
«nada abso luton; referido pela ciência actual como (<nada quânticon, é são consequentemente conhecidos». O mutante. figura que não parali-
algo que transcende o mundo das partículas constitutivas do universo sa e pode ir abrindo caminho à espécie humana é, como se dirá mais
detectável e nos leva a dizer que. mesmo o que ainda não foi criado. tarde em Parasceve, capaz não só de metabolismo como também de
existe como «informação», faz parte de um potencia l que já estava meta morfose; é a figura da «geração sem-nome» a partir de Parasceve,
implícito na origem, e que pode ser uma espéci e de «fonte de consci- um híbrido, e desde sempre um «fora-de-série que traz a série consigo)).
ência» que existe para além da estrutura da matéria - deste modo. O prólogo anuncia O Livro das Comunidades como «um processo de

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mutantes», «um processo terrível)), e avisa: «Convém ter medo deste A Restante Vida é, assim, a possibilidade que a realidade tem de
livro». Será essa a primeira coisa de que se deve ter medo porque não concretizar aquilo que do futuro é inesperado (o avenirdo futur, no dizer
se sabe como pode transformar-se e a que pode dar origem. Mas, no de Derrida ); de continuar a ter existencialidade, a cond ição de vir a
Texto, o medo do desconhecido não paralisa, motiva, e o ser vive com existir; é a sua possibilidade de mutação ou virtualidade, por ser a parte
«o desconhecido que o acompanha» - «porque todas as ruas do mundo da realidade que continua disponível, aberta à mudança, ao movimento
nos levam a esse desconhecido que nos acompanha>> (Llansol, SH: 67). das transformações. A realidade, a Vida, está ligada ao Poder e. por
A primeira coisa que mete medo é, poi s, esse vazio provocado isso. define-se no Tempo - «só o Poder sabe o que é o Tempo», diz-se
que pode provocar mutação e ajudar a redefinir a espécie humana. A no prólogo d' O Livro das Comunidades. A Restante Vida, pelo contrário,
segunda, que tende a ser um vazio continuado - a Tradição enquanto é atemporal; a sua condição é a de existencialidade, a condição de vir a
Tempo e Poder, ou «segundo a Trama da Existência» pode transformar- existir, não a existência como rea lidade.
-se «segundo o espírito que muda onde sopra» e vir a ser, como o livro Ao falar de «reais não-existentes» e de «existentes não-reais», o
que se anuncia, «a história da Tradição, segundo o espírito da Restante texto llansoliano não está a referir-se aos conceitos tradicionalmente
Vida»; pode não ser tomado a sério, como aconteceu com todos os que definidos pela filosofia, mas a posicionar-se face a dois pontos de vista,
restavam das batalhas e que não eram os vencidos, mas, co mo se disse textualmente assumidos como sendo o da Vida. e o da Restante Vida.
atrás, convém ter medo deste livro pelo seu potencial de mudança. A considerando que esta é a da existencialidade ou da condição de vir a
«pré-forma,, ou «molde invisível» que a ciência diz estar presente no existir. 28 Os «reais não-existentes» são aqueles que fazendo parte da
«nada» é comparável ao «pré-homem» do texto llansoliano, o «sobrevi- rea lidade não têm, contudo, existência na Restante Vida, pois desco-
vente» ou «pobre» como também lhe chama: nhecem a sua condição de existencia lidade. Estão na realidade sem
pertencerem à parte da realidade que é real, a indizível. a restante.
Por que escolher esta imagem de pré-homem. de preferência a todas as Apelidados de reais embora não pertencendo ao real da realidade, terão
outras? Por que identificar este texto à imagem do sobrevivente? de ser nomeados como «reais não-existentes» ou reais não-existentes-
Porque ele é o único que nos permite passar além do Princípe. (. ..) O texto no-real. ou na restante vida. Por outro lado, os «existentes não-reais»
não avança razões. Escreve só a paisagem que olha e nela vê que foi nisto
são aqueles que não estando na realidade (a do Tempo e do Poder)
que dá pelo nome de corpo humano (. .. ) que há três séculos nasceu a
estão, contudo, naquela parte da realidade que é real. a qu e conserva a
nostalgia de ser homem. A nostalgia que, contrariamente ao que se crê.
não alcança o passado. mas é acto «aguado>> de futuro. do que não se poss ibilidade de vir a existir. ou a sua condição de existencial idade. Não
poderá por muito mais tempo dispensar que advenha (. . .). Desenha-se são reais. por não estarem na realidade. mas existem na sua condição
assim, não um mito fundador, mas um mito final. de existencialidade- são «existentes não-reais», permanecem fora do
Ohomem será. (. ..)
28 Do ponto de vista da Vida, poderemos admitir que os «existentes não-reais)) são
Assim sendo, as finalidades do humano estarão a cargo exclusivo da os que não agem nem participam da vida; mas do ponto de vista da Restante Vida,
própria espécie pré-humana. (Llansol. RV. 101-103) eles são o que há de real, pois é neles que a possibilidade de mutação acontece. Há
um primeiro momento no texto llansoliano em que esta posição ainda não está tão
A história da Trad ição, segundo o espírito da Restante Vida, é a histó- clara (Finita: 22). porque se refere a expressão «reais-não-existentes!) a partir do ponto
ria da parte da realidade que permanece indizível, isto é, o real - como de vista inicial e rigoroso de A. Joaquim, como aqueles que é necessário criar; mas,
posteriormente. é a expressão ((existente não real)) (Lisboaleipzig 1: 122) que passará
já foi referido, o «que resiste em acto ao instituído, à realidade, e impede a designar. no texto llansoliano. a comunidade de todos os que. ainda que não visíveis,
que esta se feche. impede que esteja tudo dito» (Lopes, 2005: 256). existem na textualidade.

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Maria Etelvi na Santos Como uma pedra-pássaro que voa

tempo, e o seu lugar é o lugar in-visível da Restante Vida. Os «existen- «só os que passam por lá sabem o que isso é». E o que pode ser Um
tes não-reais» são «intensos» que se dão a ver como vislumbre, pois o Corp'a'screver Cem Memórias de Paisagem? Que corpo é esse que
seu tempo, que não é o tempo do Poder. é um diferido. Essas figuras parece definir-se no movimento do texto llansoliano?
não são da ordem do visível, mas da ordem do vislumbre.
A terceira coisa que mete medo é, diz-se. «um corp'a'screver», a
possibi lidade de um vazio vislumbrado que anuncia e dá forma de escri- 3. Um Corp'a'screver Cem Memórias de Paisagem
ta a uma evidência ou crença improvável; precisamente por essa impos-
sibilidade de prova, diz-se que «isso justamente a ninguém interessa», «Esabe-se lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem.>'
apenas é evidente para o próprio, pois só os que passam pelo vislumbre Maria Gabriela Llansol. OLivro das Comunidades
sabem o que o vislumbre é.
De um lado o Poder, do outro a Restante Vida. Do lado do Poder. que têm os cientistas a dizer acerca dos mecanismos que
acções como falar. negociar, produzir. explorar, consignar; do lado da suporta a recordação de uma paisagem?
Restante Vida, o escrever. Escrever. para Llansol. não consigna nada, António Damásio, OErro de Descartes
não designa. Escrever está ligado ao vislumbre. e por isso leva o poder
à perda de memória, e aí abre-se o infinito de par em par e deixa de Seja qual for o nome que se dê à coisa. há uma presença
que se manifesta, como um cão, um vizinho, um outro que
haver limites para a espécie humana. A Restante Vida. também chama-
canta, murmura ou vocifera, que pede ou exige. é confor-
da «a Outra Forma de Corpo» ou «Paisagem», está ligada ao vislumbre
me, para ser acolhido e esposado pelo corpo e pela mente
como este está ligado ao escrever. A Restante Vida escreve-se vislum- de quem escreve. Imagino que escrever é viabilizar esta
brando. Em Llansol. não há escrita sem vislumbre. A grandeza de Ana presença. e que fazer uma obra é fruto da virtu com que se
de Peiialosa consistiu em ter acreditado num vislumbre. diz o Texto. Por acolhe, na vontade constante. (. .. ) esse insistente murmú-
isso, ela é, no texto llansoliano, «a moldura de um retrato de família» . rio.
O vazio vislumbrado, o do corp'a'screver, «só os que passam por Augusto Joaquim. «Algumas coisas>>, posfácio a Causa Amante
lá sabem o que isso é», e se <eisso justamente a ninguém interessa»
é também porque causa medo. Porque num «corp'a'screver» se abre As vozes em epígrafe. e a singularidade da sua coincidência, podem
a possibi lidade de redefinir «o humano» e de. reescrevendo-o, o fazer dar a ver o modo particular como o texto llansoliano deseja e propõe
existir. um fim para a dualidade que preside ao nosso mundo, a da separação
Através da Restante Vida. o homem será. E será com «um Corpo entre humanos e não-humanos e também dos humanos entre si. duali-
Cem Memórias de Paisagem». dade essa que «enquanto dualidade pensada e assumida. tem causado
No final do prólogo d' O Livro das Comunidades estabelece-se uma imensas e incalculáveis perdas ao ser humano ma is comum. A ele, mas
relação entre «Restante Vida)), «a Outra Forma de Corpo)), e «Paisa- também a esta pedra, a este arbusto, a este bicho.,, (Llansol, LL 1: 99).
gem», sendo que esse todo se define como um «Corpo Cem Memórias Maria Gabriela Llansol parece escrever para dar voz a todos aqueles
de Paisagem» e se intensifica materializando-se num «corp'a'screver». que tentaram abrir caminho a um mundo onde a convivência justa, que
Este poderá ser a forma visível que a pré-forma tomou. a forma que o está nas linhas do seu «contrato de mútua não-anulação». permita
pré-homem esco lheu para redefinir o «humano». O Homem. ficou dito, uma proximidade enriquecedora e nunca redutora e opressiva; para
<minguém sabe o que é)); o Tempo, «só o Poder sabe)); um corp'a'screver. que desse esforço e caminhos não se continue a regressar de passos

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

vazios. Não nos adianta muito. a não ser por um acto de fé, pensar que ção e reconstituição, e por outro como algo de incompleto e inacabado.
há um outro mundo para além deste. mas pode ser muito gratificante (Benjamin. 1925; 2004: 32)
sabermos que, como nos diz, «há um outro, neste» (ibidem: 19).
Em Llansol. o modo e a postura descomprometida que escolhe. Esse lado inacabado e incompleto do passado. que como origem
nas primeiras páginas d' O Livro das Comunidades. para o início da se actua liza num dado momento do presente. pode ser o que Maria
frase «E sabe-se lá o que é um Corpo Cem Memórias de Paisagem», Gabriela Llansol procura ao sugerir a decepação da memória. Lembre-
fazendo soar esse breve mas intenso «lá». abrem para a hipótese de -se a frase que vem do diálogo entre a árvore e a mulher de Parasce-
não se poder vir a saber «o que é» aquele corpo (o «Üuem sou», neste ve: «Acho que ter um tronco e equ ilibrá-lo é preferível a ter memória»
texto. sabemo-lo. apresenta-se como uma pergunta de escravo e não (Llansol, P 131 ). Éesse o ponto de vista da árvore e o seu ensinamento.
de homem livre, aquele que pergunta «Üuem me chama?»); esse modo Decepar a memória para que o corpo não adquira uma posição involu-
e postura mostram, assim. que não é tanto a essência desse corpo que tiva, de valorização imediata e estaticista do presente face ao passado
está em causa . mas a sua existência - importa saber que existe um (o que se aproximaria de uma visão idealista e também transcendente
corpo e que ele estabelece uma relação com a paisagem. O que ele da experiência humana. a que. segundo John Dewey, o cristianismo nos
«é» estará, em parte e provavelmente, no facto de ser um corpo que habituou). e que possa evoluir através de uma dinâmica da recordação,
terá tido necessidade de decepar a memória. para que. liberto do «ter» naqu ilo que do passado se actualiza em cada momento presente. No
e do «haver», do «guardar» para «ganhar» - ponto de vista do Poder já citado ensaio «A Voz dos Tempos e o Si lêncio do Tempo. O projecto
- pudesse fazer um uso mais livre das recordações. sem desejos de inacabado da História n' O Livro das Comunidades», João Barrento fala
finalidade, apenas com a ambição de estabelecer com o outro, consigo desse passado que chega ao presente não como recordação, mas como
e com todos os outros-diferentes-de-si (também seres da paisagem). ((presentificação anamnésica»:
uma verdadeira. porque desinteressada. troca das imagens inscritas em
cada um. Um corpo. portanto. que funda as suas raízes não num passa- Maria Gabriela Llansol introduzum <<corte>> no fluxo da história (da história
do inerte ou num uso comprometido da tradição. mas num passado vivo política e da história da literatura e do pensamento) e atribui-lhe um ufim))
que «está sendo» porque realiza. no presente, o que de disponível o (te/os. finalidade). ao dar forma (textual) a um lugar em que se concentra
passado não pôde cumprir. É um corpo que continuamente procura a uma elevada carga tensional e pulsional. Esse lugar funciona como uma
mónada aberta (ucom janelas». escreveu um dia Adorno a propósito da
sua origem. não a sua génese. no sentido em que Walter Benjamin as
obra de arte). em que circulam. num campo de forças dinâmico. momentos
definiu: do passado transformados em matéria viva do presente (em Benjamin. tais
momentos dão pelo nome de Jetztzeit, Tempo-do-Agora). Aí, interrompe-
Mas. apesar de ser uma categoria plenamente histórica, a origem se o processo da hi stória como catástrofe do c<sempre igual», gera-se um
(Ursprung) não tem nada emcomum com a génese (Entstehung). uürigem»
espaço em quetudo se concentra. não na recordação neutra ou comemora-
não designa o processo de devir de algo que nasceu. mas antes aquilo que tiva. mas na <<presentificação anamnésica» (o Eingedenken das Teses) e na
emerge do processo de devir e desaparecer. A origem insere-se no fluxo «salvação» defiguras e upujançasn soterradas pela história dos vencedores
do devir como um redemoinho que arrasta no seu movimento o material (... ). (Barrento, 2004 b: 18-19)
produzido no processo de génese. O que é próprio da origem nunca se
dá a ver no plano do factual. cru e manifesto. O seu ritmo só se revela
A recordação estática está parada a olhar para trás; a dinâmica
a um ponto de vista duplo. que o reconhece. por um lado como restaura-
faz-se no tempo, na durée (Bergson). assume-se no tempo como se

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

percorrendo um espaço. é tempo e espaço. per-curso. Traça a geogra- é um Corpo com Cem memórias e não sem memórias29; assim sendo, à
fia de uma procura; anda em busca de. e o seu desenho é traçado na ambiguidade do significado («com» ou «sem» não significaria a mesma
paisagem. Éneste sentido que. em Llansol. poderemos falar do «eterno coisa). a frase de Llansol prefere a amplificação do sentido (o que cons-
retorno do mútuo». titui uma das singularidades do texto llansoliano), pela abertura que dá
Só a procura leva ao encontro. Muitas vezes, do inesperado. Esse ao conceito de «memória»: quando o corpo reconhece a limitação a que
é um encontro improvável. mas existente (podemos chamar-lhe um o sujeita a sua. por assim dizer. memória instituída, e toma consciência
<<existente não-real»); os outros. os anunciados. são apenas os que já do peso esmagador que a sociedade lhes foi infligindo. sente-se livre
sabemos que serão possíveis, futuros. e que. como atrás nos mostrou para. decepando a memória, a voluntária, se abrir às justas inscrições.
a perspectiva da árvore. nada acrescentam à necessária mobilidade de que constituirão as diferentes justas memórias, cada uma com a sua
um estado de equilíbrio, antes acentuam a inércia de uma realidade que fala própria, mas com uma língua única - «mais solitária que o mar,
já não se interroga sobre a existência e a sua condição de equilíbrio sempre pronta e dócil: Babel. minha irmã, a Mulher Cem Cabeças»
nela, porque a tem como um dado adquirido, e por isso lhes podemos (Max Ernst)- e capazes de reconstituir na linguagem. a cada momento
chamar «reais não-existentes», não actuantes. O corpo que decepou a presente. o que do passado se actualiza. dando Nome, existindo. sendo
memória para poder ir em busca do seu equilíbrio, poderá faci lmente que dar nome também é fazer existir. Cresce, assim, a im-provável hipó-
reconhecer a «memória virtual» de que dispõe (virtual porque disponí- tese de uma «língua sem impostura», aquela que pelo devir e pelo ritmo
vel) e viver ao encontro de, em busca do irromper do que é próprio da restabeleceria a justeza nome-coisa. a que é própria das origens.
origem [Ursprung]: E por que se diz que essas «Cem Memórias» são «Memórias de

(... ) toda a experiência original contém, como que encerradas no seu


âmago, sementes destinadas a germinar posteriormente. (Benjamin. 2006: 29 Faz-se aqui uma referência ao possível cruzamento com o romance-colagem de Max
190) Ernst. La Femme 100 Têtes, primeira edição: Éditions du Carrefour. Paris. 1929. baseado
em estampas de xilogravuras extraídas de revistas e livros do século XIX; a cada uma
das imagens. marcadamente surrealistas, Max Ernst acrescentou, em francês, uma
É desse modo. como «memória virtual», que Augusto Joaquim. no subscriptio; pensa-se que o autor as terá concebido em alemão (aparece uma referência
posfácio a Causa Amante. nomeia a memória que atribui às figuras do a dois versos de Goetlie) e que terão sido traduzidas para francês aquando da 1ªedição.
texto llansoliano, e a que também chama a «memória das coincidên- Oque aqui mais poderia interessar desenvolver, para além da aproximação ou distância
fonética [100 por <<Sem» em português, 100 por 1<Sans11 em francês e «Hundertkopfige
cias», uma vez que as figuras, como diz, no seu maior acto de liberda-
Frau11 em alemão). seria principalmente a inversão de valores que Max Ernst faz da
de vão ao encontro de «quem as chama». andando todas «à procura misógina tradição popular francesa do «ferreiro que trabalha na sua forja as cabeças
de dar vibração». Ir ao encontro de quem o chama é caminhar para o das mulheres más. eventualmente decapitando-as e tornando-as assim boas (caladas,
futuro ao encontro da origem. é responder à pergunta do homem livre. é ou pelo menos sem o vício da maledicência)11, inversão esta que é paralela ao modo
saber fazer uso da «memória das coincidências», é encontrar-se. Assim como o texto llansoliano usa a Tradição - mudando-a de perspectiva - e que. prova-
velmente. não ficará indiferente ao texto intercalado entre o VIII e o último capítulo
o corpo, fazendo viver a sua «memória virtual» fica aberto. disponível
onde se diz que 11a mulher 100 cabeças>• lcom 100 e não com uma, ou «sem cabeça»
para qualquer encontro com o outro. seja este outro «quem» ou o «que» depois da acção do ferreiro/ é uma mulher «que nunca teve relações com o espectro
or. Aí reside também a sua maior liberdade. Dele arriscamos dizer que do repovoamenton. Deixam-se duas perguntas: pretenderá «a mulher 100 cabeçasn de
Max Ernst mostrar a sua recusa em pactuar com um mundo que continuará a exprim ir-
-se do mesmo modo. sem hipóteses de mudança?; e não será ela uma 11textuante11 da
mulher do Lugar 1 d' OLivro das Comunidades, de Maria Gabriela Llansol?

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Pa isagem>1? Primeiro. dêmos atenção ao facto de se dizer «memórias suficiente para. sem ficar preso a formulações essencialistas. continu-
de» e não «memórias da». Parece-nos estar. de novo, perante um caso ar a ler as inscrições que nele se fazem e as que ele inscreve noutros
de amplificação do sentido. Um corpo pode ter ou não ter memórias da como. por exemplo. na relação muito particular que o corpo estabelece
paisagem. pode ter ou não ter (as) memórias de uma paisagem (aqui já com a Escrita.
o sentido se abre como um fractal). mas só terá «Memórias de Paisa- A partir dos seus estudos em neurologia, António Damásio fala da
gem» (como Emily, a gata, ti nha «olhos de ver a noite» e nós podemos. existência de «mecanismos» que suportam a recordação de uma paisa-
de um determinado ponto de vista ou sob certas condições. ter olhos de gem, para salientar a relação que um organismo estabelece com um
gato ou. como diz a mulher de Onde Vais. Drama-Poesia?, olhos de «ver meio ambiente físico e socia l (o «Corpo11e «a Outra Forma de Corpo»,
ao perto», de <1ver ao longe», mas não 1<olhos de ver o invisível»), mas em Llansol); e num outro momento, ao interrogar-se sobre o processo
um corpo só terá «Memórias de Paisagem» se em vez de olhar a paisa- de viver uma emoção. serve-se também do termo 1<paisagem», agora
gem como um lá-fora inerte e passivo que não lhe fala porque não fa la para mostrar que a essência de um sentimento <1não é uma qualidade
a sua linguagem, aprender a olhá-la como «a Outra Forma de Corpo» mental ilusória associada a um objecto. mas sim a percepção directa de
(no dizer de Llansol). como esse corpo-lugar que está fora. que não é uma paisagem específica: a paisagem do corpo» (Damásio. 2003: 16), o
o seu corpo, que também não é o corpo dos seus semelhantes. mas que justifica a sua rejeição do dua lismo cartesiano. de uma res cogitans
é um outro que também tem corpo, «o terceiro sexo» (ou um sexo de separada de uma res extensa. ou do acto de pensar como uma activi-
outra espécie). o corpo-lugar de todos os outros que são seme lhantes dade separada do corpo. Para Damásio. o erro estaria não só no facto
na diferença. Quando o corpo não tem «memória de paisagem>1, porque de se considerar que a mente podia ser perfeitamente explicada em
não sabe ver essa outra forma de corpo, de que terá ele memórias? termos de fenómenos cerebrais. pondo de lado todo o resto do organis-
Certamente de si. E dos outros. Mas onde e o que será esse lugar do mo. mas também no facto de se deixar de lado o meio ambiente físico e
encontro propício à troca senão um fora-de-si? Só este estado-lugar social. Éesta relação com o fora-de-si. a da 1<percepção directa de uma
parece permitir a completa disponibil idade para o encontro. E que lugar paisagem específica: a paisagem do corpo», no dizer de Damásio, que
é esse senão uma outra forma de corpo? Quando o corpo é «um Corpo está presente no <1Corpo Cem Memórias de Paisagem», de Llansol. Ao
Cem Memórias de Paisagem», porque reconhece <1a Outra Forma de dizer que a paisagem é o terceiro sexo, para além de mostrar como este
Corpo» onde todas as formas se abrigam. ele é um corpo com «Memó- ponto de vista pode alterar a nossa perspectiva quanto ao sentido da
ria de Pa isagem». expressão «ser humano» (com o duplo significado que a língua portu-
Por isso. quando alguém diz à mu lher do texto (Llansol. OVDP guesa aqui permite, de «sen> usado como substantivo e como verbo, o
111) <1reina na natureza uma grande desilusão quanto aos humanos e que faz pensar no «ente» mas também na acção que ele desenvolve).
muitos destes( ... ) estão a voltar à natureza», ela conclui: 1<eu não iria Llansol posiciona-se de um modo equivalente ao de Damásio - propõe
voltar à natureza, pelo/ contrário; iria tentar trazer a natureza de volta uma reflexão sobre a unidade mente-corpo-paisagem, sendo que a
_ _ _ __ » (ibid.: 112). É a mesma vontade que está na interroga- relação que se estabelece entre a mente-corpo e a paisagem se faz na
ção da mulher de Parasceve ao dizer «na nuca da criança-asa»: <iVamos projecção biunívoca entre um corpo e o que está fora dele. A memória
apagar a linha de rivalidade que separa os mundos?» que então se estabelece só pode ser uma memória activa. dinâmica.
O facto de se saber que o corpo existe numa relação com a paisa- dissonante porque não se faz na continuidade (pelo uso do intelecto).
gem, essa <10utra Forma de Corpo», e com a possibilidade de um mas de modo disruptivo e com um ritmo imprevisível (pelo uso do
medium mu ltifacetado e pluridiscursivo que será a memória, é um dado sensível). Através deste tipo de memória, também referenciada como

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

anamnese, «memória afectiva» ou involuntária (Proust), a recordação mente temporal, da relação <<do que foi» com o «Agora», que considera
transcende-se a si própria, actualizando, como vimos atrás. o passado como uma relação dia léctica, e afirma que a natureza desta relação não
em cada momento presente onde irrompe; é o que permite a um corpo, é temporal mas imagética, e que só as imagens dia lécticas são imagens
a um texto, actualizar-se . É. poderemos dizer. o bom uso da Tradição. autenticamente históricas. isto é. não arcaicas:
Esse «potencia l infinito de memória» (Silvina Rorigues Lopes) é o
que faz com que a obra se caracterize por um diferir, que ela não esteja Imagem é aquela realidade na qual o que foi se encontra com o Agora.
somente no tempo, mas que seja tempo. Como «memória excessiva», formando uma constelação fulminante. (. ..) De facto, enquanto a relação
poderemos aproximá-la da expressão de Llansol, um «cem memórias», do presente com o passado é puramente temporal, a relação do que foi
um reencontro eterno ou «o eterno retorno do mútuo)), mas de uma com o Agora é dialéctica: a sua natureza não é temporal. mas imagética
[bi/d/ich]. Só as imagens dialécticas são imagens autenticamente históri-
eternidade imanente já que, «como memória excessiva, essa energia
cas, isto é, não arca icas. A imagem lida, que o mesmo é dizer a imagem
dissonante nem é relação com um indizível exterior à linguagem. nem
no Agora da sua possibilidade de ser conhecida, traz consigo, em alto
corresponde a um dizer enquanto revelação. Ela apresenta-se simples- grau. a marca do momento crítico e de perigo subjacente a toda a leitura.
mente como a falha de um anterior à linguagem (um Deus, uma Natu- (Benjamin, N3, 1, 2002: 463)
reza. uma Voz) que faz com que para o poeta não exista um passado a
conservar na memória. mas um passado sempre a reencontrar, a rein- Parece-nos ser paralelo, a dois níveis, o uso que Maria Gabrie-
ventar - isso mesmo que faz com que o poeta renasça a cada momen- la Llansol faz da imagem nos seus textos: num primeiro momento, a
to no poema.,, (Lopes, 2003b: 76). Como no poema de Eliot, ((apenas imagem do passado é diferente da imagem no Agora porque este Agora
pelo tempo o tempo é conquistado»: lhe acrescenta o momento da le itura. o que faz com que a sua possi-
bilidade de ser conhecida e trazida para o Agora lhe imprima o perigo
Otempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no
do desconhecido; por outro lado, a imagem llansoliana é já dialéctica
tempo futuro, / E o tempo futuro contido no tempo passado. / Se todo o
no seu próprio caminho adentro do texto, pois ao evoluir de «imagem-
tempo é eternamente presente/ Todo o tempo é irredimível. /O que podia
ter sido é uma abtracção /Permanecendo possibilidade perpétua /Apenas -nua» - espécie de diamante em bruto - para a possibilidade de uma
num mundo de especulação. /O que podia ter sido e o que foi /Tendem «cena-fu lgoP, (Benjamin fa la de (<conste lação fu lminante,,). podendo
para um só fim. que é sempre presente. / Ecoam passos na memória/ Ao vir a transformar-se em figura, ela está dialectica e internamente a
longo do corredor que não seguimos/ Em direcção à porta que nunca abri- relacionar-se com o Agora .
mos/ Para o roseira l. As minhas palavras ecoam/ Assim. no teu espírito. A imagem llansoliana pa rece ser a «imagem dialéctica>, de Benja-
/ Mas para quê / Perturbar a poeira numa taça de folhas de rosa / Não min, e ta lvez tenha sido esse mesmo princípio que sugeriu a T. S. Eliot a
sei./ Outros ecos / Habitam o jardim. Vamos segui-los?/( ...) / O tempo ideia de «correlativo objectivo))30 .
passado e o tempo futuro/ Oque podia ter sido e o que foi/ Tendem para A partir das poéticas modernistas do início do século XX, o reco-
um só fim. que é sempre presente. / (...) / Apenas pelo tempo o tempo
é conquistado. (Quatro Quartetos, tradução portuguesa de Maria Amélia 30 ccO único modo de exprimir uma emoção de forma artística é encontrando um 'corre-
Neto, Li sboa, Ática. 1963) lativo objectivo'; por outras palavras. uma série de objectos, uma situação. uma cadeia
de acontecimentos que representem a fórmula daquela emoção particular; de tal modo
Ainda sobre o Tempo, num fragmento d' O Livro das Passagens, que. no momento em que são dados os factos externos que farão parte da experiên-
cia sensorial. a emoção seja de imediato evocada.» IEliot. T.S., «Hamletu. in Selected
Walter Benjamin distingue a relação presente-passado, que é pura-
Essays, London. Faber and Faber. 1947)

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

nhecimento daquele potencia l de memória activa aliado a um conceito que não tem de estar directamente associada a um contexto religio-
como o de «correlativo objectivo» cria a possibilidade da dessujectiva- so ou mesmo sagrado - «Apenas sentir, ao nosso lado, dentro e fora
ção do Eu, abrindo as portas à impersona lidade e à alteridade poéticas. de nós, perto e longe, uma realidade inconfundível, incomun icável,
Si lvina Rodrigues Lopes, ao estabelecer na poesia uma relação entre a incompreensível e inimagináve l mas qu e é, como nós, à sua imagem,
imagem e aquela espécie de memória em que as recordações se trans- un icamente presença». Era difícil explicar a Ad que «uma boa-nova fora
cendem, fala de «corredores para as emoções» e relaciona-as com o anunciada a toda a criação», que ela é «o eterno retorno do mútuo» e
«correlativo objectivo» de Eliot: que, quanto a Deus, «não é preciso pensá-lo de outro modo (... ).Colocar
o coração na proximidade da sua paisagem. deve bastar>, (Llansol, LL 7:
Como núcleos poéticos, as imagens funcionam como recordações que se 139). Essa paisagem que, fora de nós, é «O terceiro sexo,,, inclui aquela
transcendem, que abrem corredores para as emoções. ou melhor, que presença, aquele murmúrio ou «corpo de afectos» que nos chama e
funcionam como <<correlativo objectivo» (Lopes. 2003 b: 741 com quem se estabelece o diálogo que perm ite, no dizer de Llansol, «o
vivo», a relação, a <<mais-paisagem»- vários modos de dizer a mesma
Essa «memória excessiva», representativa da «falha de um anterior ideia-noção e na qual consiste a boa nova anunciada à natureza. a do
à linguagem (um Deus, uma Natureza, uma Voz)», como atrás ficou dito, «eterno retorno do mútuo» ou «O retorno do ser como Belo» (Llansol). e
e que é marca de um passado a reencontrar, pode ser o que, através do para a qual contribui um pensamento estruturado por imagens ou em
irromper da «imagem dialéctica,,, permite a escrita. «imagens de pensamento» (Walter Benjamin).
Fazendo também apelo a esse tipo de memória afectiva, Augusto Pela voz que nos é trazida pelo texto «A BOA NOVA ANUNCIADA À NATU-
Joaquim descreve no posfácio a Causa Amante um momento singular REZA)) (Llansol. OVDP. 44-47). seja ela a voz de Hõlderlin ou de Llansol,
em que Vergílio Ferreira. entrando na Casa da Saudação, em Co lares, podemos reconhecer um dos muitos momentos em que surge a relação
se aproximou de uma mesa de jardim pintada de verde escuro que entre a paisagem, a escrita e a beleza , pois sabemos que é de um ponto
se encontrava perto de uma das janelas. se sentou e. afirma Augusto de vista estético que, segundo Llansol, os seus textos se dirigem ao
Joaquim, «Só disse que ali escreveria». Embora não houvesse qualquer real, «e não sob o modo fi losófico ou teológico» (Llansol, LL 7: 140):
objecto sobre a mesa. continua, «o corpo do Vergílio colocou-se espon-
taneamente na postura de escrever». Eacrescenta: «Era a presença do Na paisagem , ou na geografia imaterial da espécie terrestre, os seres
daiínon sonoro grego. Foi breve. mas todos entendemos.1, (Joaqu im, op. humanos distribuem-se em vagabundos, em formadores, em construtores
cit.: 171 ). Essa presença é um «insistente murmúrio» que bate à janela e em poetas.
e que, como diz, se liga inteiramente com a escrita - «Imagino que
escrever é viabilizar esta presença» (ibid.: 171). Chama-lhe uma ELOV Os vagabundos erram à procura de uma nova paisagem. São, desde
- Energia Livre de Origem Vibratogénea - e, observando-a deste sempre, exteriores à comunidade. Os construtores são os elementos esta-
modo, pôde ler o texto llansoliano, embora este dê a essa «presença» bilizadores que prendem toda a geografia imaterial à vida quotidiana. Os
formadores sentem essa geografia porque o seu órgão é o coração. Os
ou «insistente murmúrio>, outros nomes e conte uma outra história - a
poetas vêem, e anunciam a geografia imaterial por vir.
do rapa zinho que se chamava Ad e queria ver Deus. Nas páginas de
Os construtores. os formadores são peregrinos.
Lisboaleipzig 1, Llansol oferece-nos esse episódio para nos falar dessa Os poetas também o são, de certo modo. Há uma grande afinidade que os
presença, desse «corpo de afectos», que nos seus textos aparece como liga aos vagabundos. Porque são os únicos que desejam o retorno do ser
Esse, Eus ou O Amante, que é uma presença de «não-humanidade», e como Belo.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

Évital conhecer a paisagem. (.. .) Desejado ou não desejado, Esse. o novo, o mundo, formas d' «o
Sempre que avança ao seu encontro, sob a forma de Beleza, o que têm desconhecido que nos acompanha», vem dizer-nos «o corpo que temos
de mais verdadeiro. deveriam acolhê-lo com gratidão porque precisam do e qual a sua lei de escuta e de prazer» (A. Joaquim), mas só a Um Corpo
sexo da paisagem. fonte única de toda a Beleza.» (Llansol. OVDP: 45) Cem Memórias de Paisagem ele fala.
Ao propor um contrato de «mútua não-anulação» entre os seres,
O que Maria Gabriela Llansol pretende mostrar através dessa Maria Gabriela Llansol desloca o conceito de «humano», tirando-lhe
presença, que já aqui surgiu nomeada como «esse insistente murmúrio», a rigidez e imobi lidade, e, ao propor a sua emigração para aquele
Esse ou Eus. é também a possibilidade daquele LOCUS/LOGOS ou «paisa- «LOCUS/LOGOS, paisagem onde não há poder sobre os corpos» (Llan-
gem onde não há poder sobre os corpos». Llansol refere-o como «lugar sol, LL1: 121). abre-o a todo o (<Vivo». Convém entender que este «vivo»
imaginante», propiciador de «imagens de pensamento>>, ou ainda como é, como a paisagem, um Esse cuja existência assenta numa relação
«espaço edénico» (que não é o que está no começo do universo), «que - um inerte que se tulgoriza, que se acende. que passa a ter corpo
não é fixo. como sugere a tradição, mas elaborável segundo o desejo a partir do momento em que os nossos olhos são levados a fazer am_or
criador do homem. (... ) que vive confrontado com o poder (.. .). com com ele. Não se trata aqui, como sabemos. de usar a metáfora po is,
a opressão política e/ou a obrigatoriedade de viver identificado com ao evocar a mulher do Lugar 1 d' O Livro das Comunidades, pretende-se
status sociais» (Llansol, «Ü Espaço Edénico», in CJA, 2ª ed.: 141-168). mostrar que este (<fazer amor com os olhos» é uma realidade poiética.
Esse é um Lugar que inscreve o seu princípio de bondade mostrando- um fazer existir - faz-se amor dando-lhe uma forma para ele existir,
se esteticamente, o que faz com que a estética possa ser «o meio da um corpo, trazendo para o real, através de um modo intenso de ver que
procura do 'bem supremo'». Nessa presença está inscrita a Boa Nova está na sua condição de «corpo de afectos», a presença de um novo Ser
Anunciada; como se lê na frase: «Ü melhor-do-humano é-me devolvido que, como sabemos, pode ser uma pedra. um cão, um vaso quebrado.
pela pa isagem» (Llansol, LL 1: 32). e corno Augusto Joaquim lembra, ao uma frase ...
falar da escrita onde Esse surge como «o novo»: O texto diz-nos que «No preciso momento em que um vivo entra em
contacto com uma pessoa, isso torna-se vivo, e começa o pensamen-
«Quando o novo aparece, num rompante de transfiguração. diz-se que
to. Vivo não é, pois. bio nem matéria. Não é carne nem_ espírito. Não
houve uma iluminação (.. .). Quando persiste. dá que pensar (... ). Se dá
mostras que veio para ficar. e insiste, mais vale abrir a mente e dialogar. é mecânico, nem vital. Não é unidade, nem múltiplo. / E uma relação
Em ambos os casos. não va le a pena resistir. Num caso não se pode; no entre pessoas, seja qual for a sua ordem. em busca de uma arte de
outro. para quê? Ou se dialoga com ele. ou nos enchemos de entulho, para viver, ou seja, de mútua não-anulação» (Llansol, P 61 ). Sendo uma rela-
não ver. Ofacto é que deixámos de estar sós (... ). Amante ou inquietante, ção, como a paisagem também é, compreende-se que Llansol fale do
esperado ou inesperado. o novo é um visitante. desejado ou não. A princi- vivo como uma espécie de ar onde, nem que seja na fugacidade de um
pal informação que a sua simples presença nos trazé dizer-nos o corpo que instante. a comunicação é possível, e nos diga: «esse ar-onde é o vivo
temos e qual a sua lei de escuta e de prazer(. .. ). Não sei se é uma presen- mais precioso que conheço» (Llansol. OVOP: 221 ).
ça para desejar. mas. por vezes, chegámos a um ponto que constitui, por Estamos de volta ao lugar da Paisagem. o da outra forma de vida,
si só, um pedido de que se revele: o nosso ponto extremo de nada mais- o da Restante Vida - a disponível, a da mútua não-anulação. O lugar
-poder. Esse ponto é o dele. do novo. em nós. Quem nunca viveu o chegar a onde se pode «assenden> (fazer ser). o lugar d' «o jardim que o pensa-
um fim. são de espírito e nada mais. nunca viu o novo, nem conheceu a sua
mento permite» ou a ponte para a <(mais-paisagemn, a que é o lugar de
forma visitante.» (Joaquim. op. cit.: 172- 173).
«um corp'a' screvern.

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No final de Parasceve, a mulher diz-nos: «Percorro com o olhar o que Esse ser é «Dom Arbusto». E depois de o ramo se fazer rei, o jardim
logo ao olhar pertence». Aí se mostra a passagem. O momento em que torna-se paisagem e ma is-paisagem, ininterruptamente - um «lugar
se entra «no âmago da paisagem» (Llansol, LL1: 128). quando os seres imaginante» onde a escrita tomou corpo.
naturais se misturam com entes criados à procura de vibração, e surge
a mais-paisagem. Sabendo ou não se há outro mundo para além deste, o texto llan-
Augusto Joaquim definia a pa isagem dizendo: «Uma paisagem é a soliano mostra-nos que «há um outro, neste,>. Eum corp'a'screver pode
descida da língua à natureza e, quando sobre a Paisagem se estende rea lmente mudar mundos, porque age a nível de uma estrutura profun-
a escrita, abre-se de par em par o universo comunicante» (Joaquim. da. Mais do que inventariar nos textos sinais de intertextual idade, a
op.cit.: 199). literatura pode ter a ambição de agir no mundo, de sair de uma escrita
Será que a pa isagem, em Llansol, é também uma figura, uma «força autista e autotélica e de se inscrever fora do texto. único modo de não
virtua l>,, integra lmente aberta (como a «imagem-nua», o «homem nu», perecer enredada no seu fechamento. Reag indo contra uma perspectiva
a <<mão nua», de um Nu como um Vazio pleno de pré-formal. que se antropocêntrica, que é ainda em muitos casos a de alguma ecologia
transforma transfigurando-se em mais-paisagem à medida que o corpo (com excepção de alguns movimentos da chamada «ecologia profun-
a escreve? da», com nomes como Aida Leopold nos Estados Unidos, Hans Jonas
A «mais-paisagem» foi-nos anunciada por Parasceve: parte Ili (0 na Alemanha, ou ainda Michel Serres e Luc Ferry em França). Maria
Textuante), na subdivisão 8 - «Ter voz para o passeio»-. no diálogo Gabriela Llansol parece colocar-se do lado de uma perspectiva ecocên-
entre a mu lher e o «menino-vê». Saem de casa «para o dom do passeio»; trica - o respeito pela diferença assume nos seus textos uma pos ição
ela ouve-o não no pensamento, mas «No passeio-pópó», e quando ouve ética, o sentar-se fora da sua natureza, que é também, como propõe,
dizer «Tens a minha voz para o passeio?», não ouve essa voz no pensa- uma estética, a de um corp'a'screver.
mento, mas «na paisagem que se está a abrir»; «Não há nada de novo Parece-nos ser esse o modo ou movimento do seu texto:
na paisagem», mas «há um novo difícil de definin,; «Não há qualquer
aparição, nem espíritos, nem morte e outras vulgaridades. Não há nada _ __ _ _ estava eu na cama trocando palavras de ternura
que se veja. A paisagem é a de sempre. É apenas / mais-paisagem. quando acordei
(... )E. ali, parada, no espaço imenso e ainda des-coordenado, percebeu por ouvir abater uma árvore; sentei-me fora da minha natureza.
vagamente que a mais-pa isagem surge quando a terra onde pomos os e reparei
pés // não é apenas terra. propriedade nossa. / mas a presença de um
cuidado. Um nós, visto de outra margem,>. que o pinheiro abatido, envolto em hera,
me entregava uma mensagem
Assim sendo, compreende-se que quando «o jardim que o pensa-
mento permite» é apresentado em Causa Amante se diga:
«um eu é pouco para o que está em causa>>. (Llansol, OVDP 182)
começou por ser este jardim a ideia de asa triangular,
terra coberta das mesmas espécies,
ervas.
e eu disse que aqui poria um ser.
alguém a ser. (Llansol. CA: 79).

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4. O Corp'a'screvere o Poema sem-eu -corpo de um Poema sem-eu. Vejamos as Causas:


primeiro, a consciência de que «na casa não se administrava bem
Poderfamos construir outro corpo a partir a Justiça da língua» - impostura protagonizada pela figura do senhor
Do pensamento com imagens e emoções de da casa (ou Senhor de Herbais), imagem do Poder que sabe o que é
Menor engano. Inscrever na química que o Tempo, marca da «Tradição segundo a Trama da Existência»; essa
Nos vai lembrando memórias de um corpo consciência leva à intenção, depois transformada numa Causa. de dar
Onde não estejamos biologicamente tanto. voz aos gritos abafados ao longo da História. e de repor a justiça entre
Lembrar à fantasia que tudo o que não sou humanos e não-humanos. estendendo a justiça a todo o vivo. É a luta
Éeu. Salpicá-lo de respiração conjunta com
pela liberdade de consciência, Causa que motiva. na Obra, o nascimen-
As árvores. Pedir ao mito que os livros não
to da figura de Témia, a rapariga que temia a impostura da língua, e o
Se enredem nas silvas por destino. Saber que
Luar é este que vem de fora, ir procurando.
aparecimento de Ana de Penalosa. a figura da grande Mãe, a que viria
Desenhar. porque não?, o seu centro num a ser capaz de reunir os membros da comunidade;
Ponto que pronto se desloca. Poderíamos. segundo, a consciência de que na casa havia um «não-dito» (esse
Llansol, OComeço de Um Livro é Precioso «enigman considerado o que de melhor terá sido deixado em herança)
- o segredo que escondia um irmão que não chegou a nascer, indizível
O movimento do texto llansoliano, sua disposição e modo de se dar no real da real idade. sem realidade mas existente. «um existente não-
a ver, como parece ter ficado claro pela análise feita a partir do prólogo real» que era preciso trazer de volta para que a justiça fosse restaurada.
d' O Livro das Comunidades. segue a mão que vai entrançando, num Essa possibilidade de ressuscitação, de «trazer de volta», é transmitida
ritmo ondu latório. a conjectura espiritual da Restante Vida na textu- a Témia pela figura de Maria Adélia, mãe existente-não-real de Témia
alidade de um corp' a'screver. Ao evidenciar um primeiro pensamento e do irmão não nascido, a que acredita na existência do in-visível. Éa
verdadeiro, o Texto desconhecia aonde o levava a escrita, mas assinava luta para provar que o in-visível existe. que é preciso procurá-lo. que
com ela um pacto de inconforto para a vida: existem reais não-existentes e existentes não-reais. que «há um outro
/ mundo nesten. Para esta Causa, Témia faz nascer Jade, o «cão-futuro»
e este livro, ao dirigir-se às comunidades. é explícito sobre a primeira com quem brinca no Jardim da Estrela. e que a ensinará a ressuscitar
cond ição do interrogativo. pensar é inconfortar um animal inexcedível. e quem ama. como ele fará com <<a objecto de beleza», através de um
fina é a película que o separa do delírio, como tão raro é conseguirmos olhar estético sobre o mundo;
distinguir entre sonho e vigília ou. para os mais afoitas. saber dizer em que terceiro, a consciência de ser «absolutamente só», mas de poder
se diferencia um primeiro pensamento verdadeiro da conclusão ousada vir a não ser «uma singularidade vã» - protagonizada na figura de
que nos coloca à beira da evidência. lllansol. SH: 274) Tém ia e das suas textuantes. por vezes só apelidadas de «a mulher»,
a do corp'a'screver. A sua luta orienta-se pe la busca do Lugar: simul-
As consequências de um primeiro pensamento verdadeiro foram- taneamente o lugar e os lugares onde possam acontecer os «encon-
-se desdobrando e dando origem a Causas (Amantes ou de convicção tros de confrontação» que reunem os «semelhantes na diferença»
íntima) que determinadas figuras tomaram em mãos. São essas Causas (a linhagem dos «absolutamente sós» ). o lugar das figuras e o lugar
qu e. recorrentes na Obra. desenham o movimento desse Texto e lhe de um corp'a'screver - o Lugar do dom poético que toma forma no
propõem uma forma aberta, disseminada, dessubjectivada, a forma- «Poema sem-eun. A esta forma de escrita, que surge com O Livro das

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Comunidades e é conforme a toda a Obra de Llansol, só é dado nome nida, va i ter de passar por três momentos: primeiro vê definhar a parte
num livro que lhe é futuro - é em Onde Vais, Drama-Poesia? que o humana da voz; depois parece ter de escolher entre a voz (a restante) e
Poema sem-eu toma corpo e passa a poder ser o modo (género) do o poema. e escolhe a voz; finalmente recua, por imaginar que perdera o
Texto llansoliano; aí se descrevem dois nascimentos simultâneos: o do poema em virtude de ter escolhido a voz (sabendo, no entanto. que «sem
«corp'a'screver» e o do «poema sem-eu». Estes dois nascimentos são ele, a voz não teria companhia»). e só então se caminha para a junção
o contraponto de outros dois no contexto da obra de Llanso l: o apare- do corpo com o poema. que é feita através da voz - deste modo. a voz
cimento d' O Livro das Comunidades e o aparecimento de Onde Vais, (restante) sairá do corpo, o poema (que andava à procura de um corpo)
Drama-Poesia?. Estes são dois momentos a que poderemos chamar. o irá tocar essa voz, e o corpo vestir-se-á libidinalmente para receber o
primeiro de decisão, e o segundo de incisão e nova enxertia na Obra, poema (e a voz tocada por ele). e será uma «voz a escrever» ou «um
a que correspondem grandes mutações: a primeira com o surgimento corp'a'screver)). Otexto será o lugar do encontro, e o poema. que nasce
da escrita llansol iana, a segunda com uma nova dimensão na obra. que simu ltaneamente nesse momento, será um «poema sem-eu)), como se
começa a ficar mais clara a partir desse livro - à liberdade de consci- deseja. Liberto da subjectividade, que a parte só humana da voz trazia
ência deverá associar-se o dom poético. cons igo, terá uma voz singular, individual mas não subjectiva. o que
Éesclarecedor ver de que modo os nascimentos do <<corp'a'screver» lhe permitirá ser voz com outros por ter sido escolhida a voz restante, a
e do «poema sem-eu»se implicam um ao outro. No início de Onde Vais, que pode ser a voz de um poema sem-eu. Entretanto, o corpo nascente
Drama-Poesia? há um corpo de alguém a nascer. Há voz(es). E há um aprendera com a árvore que presidiu ao seu nascimento, que essa voz-de-
poema a passar. Uma árvore pres ide a este acontecimento. A voz vem escrita seria a voz do dom poético, desde que se assumisse como «língua
cindida em duas: uma voz humana, própria daquele corpo nascente, e tocada pela expansão do vivo». Através dela, reconhecia que o seu vivo
uma outra voz que quer ir ao encontro do poema e dar-lhe o corpo que era apenas «uma forma dos vivos que, de facto existem» (ibid.: 21 ).
traz consigo. O corpo, através de um conhecimento inteligível, desco- Fora o «rumorejar)) da linguagem da árvore que, falando àquela que
nhece que traz uma voz dupla e quando fa la diz «a voz», como se esta «crescera deitada de costas, e não a correr pelo corredor)), levando-a
tivesse uma única identidade. Mas um saber da ordem do sensíve l «aos lodos do rio, ao so l, ao sistema so lar, à via láctea. às infinitas
põe o corpo a agir no cam inho que traz como destinação, e «mostra- galáxias» (ibid.: 21). através de um conhecimento da ordem do sensí-
-lhe» a existência, a virtualidad e da outra voz. Enquanto dura o acto de vel, presidira ao nascimento desse corpo com voz-de-escrita que fora
nascer (que lhe parece ser uma espécie de espaço sem tempo). o corpo, procurar a voz em todos os lugares onde ela fala, e nasceu como um
à vista do poema que está a passar, resolve mudar de ponto de vista corp 'a 'screver um poema sem-eu.
- descobre que, no seu acto de nascer, se em vez de se concentrar na A partir desse duplo nascimento. o da textuante que será um
sombra do corredor que tem à sua frente (onde se reconhece a parte corp'a'screver e o do poema sem-eu, reúnem-se as condições que
humana da voz e onde se projectam pensamentos. domínio do inteligí- permitem fazer o caminho da liberdade de consciência com o dom
vel). se deitar de costas e olhar a «mancha rutilante» que o sol inscreve, poético - «trazer de volta» as figuras da Restante Vida continuadas
a certas horas, na passadeira de oleado do corredor (onde se projectam na «geração sem-nome», figuras errantes, vivos como Jade, vivos seja
imagens, domínio do sensível e da voz restante). «poderá realizar o qual for o seu corpo, nómadas que a partir de Amigo e Amiga. Curso
caminho inverso da luz e pousar no ramo mais alto da árvore e aprender de silêncio de 2004, terão na figura de A. Nómada o seu «mestre-de-
com esta a produzir clorofila - a primeira matéria do poema» (Llansol, -procura)), como os legentes o têm como mestre de legência do Poema
OVDP 12). Até ao encontro com o poema, o corpo, de voz ainda indefi- sem-eu.

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5. A língua e a figura do dom poético chamar «a força gestual do sentido», já que reúne aquilo que no sentido
há de energia e de movimento, e que implica no pensamento a existên-
Criar lugares vibrantes a que se possa ascender pelo ritmo. cia de «núcleos de intensidade pensante>> («des intensifs de la pensée»)
criar na linguagem comum lugares de abrigo, refúgios de que tomam forma e que não existem independentemente desta, tal
uma inexpugnável beleza, como a alma não existe independ entemente do corpo - «durante
reconhecer-se nobre na partilha da palavra pública. Corpore», é a expressão de Spinoza, que poderíamos pôr em paralelo
do dom de troca com o vivo da espécie terrestre. com o «corp'a'screver>> de Llansol. A análise do sentido terá, assim, de
Maria Gabriela Llansol, Onde Vais. Drama-Poesia?
passar por uma anál ise rítmica, a que Meschonnic se refere como «une
sémantique de position», uma semântica do lugar relativo das pa lavras
OPoema sem-eu, realizando a forma do modo Voz-de-escrita+ Corpo, na frase ou , como no texto llansoliano, de frases lida s destacadamente
e tendo como substância o 1<drama-poesia», ou conjectura agonística e e aproximadas de outras que lhe correspondem em si lênc io (como se
dramática de huma nos e não-humanos, clarifica o movimento do texto diz em Amar Um Cão) . Ler a Obra de Llanso l também passa pela leitu-
llansolia no no seu caminho para dar a ver A Boa Nova Anunciada à ra de uma «semântica da posição relativa» das palavras, das frases,
Natureza. Esta dissemina-se por vários ramos: o «eterno retorno do e eventua lmente dos diferentes livros, qualquer coisa como o traçado
mútuo», uma ideia de «humano» redefinida e alargada a todo o «vivo» geométrico das cenas-fulgor31 , que não corre em busca de um sentido
(o vivo como relação e troca verdadeira), o singu lar dessubjectivado, ou, (que «a maior parte das vezes é impostura da línguan). mas que encon-
de um modo conciso, o pensamento associado ao afecto, os dois defi- tra um sentido na confluência desse traçado, uma leitura ma is conforme
nindo um ritmo próprio para essa sua dualidade inseparável, e que só com o carácter de disseminação do texto llansoliano. Dentro de uma
pode mostrar-se através de uma língua comunicante como um idioma, análise deste tipo, poderemos ainda tentar perceber, com Meschonnic,
que se estende à compreensão sem anulação, que faz parte do sensí- aquilo que se considera ser. em Spinoza - e parece-nos semelhante
vel e do inteligível juntos, que pode, portanto, vir a ser uma lfngua não em Llansol - a sensualidade do discurso, ou seja, o modo como ritmo,
impostora, a lfngua do dom poético ou o dom poético como idioma. movimento e energia levam essa dimensão dos sentidos para a escrita,
Entendido como um id ioma, o dom poético será não apenas a língua (a energeia de Humbold).
como meio de expressão e uso de um código que serve o sentido, Consideremos, com Spinoza , que a li nguagem (expressão) não está
mas também a energia e o movimento dessa expressão a construirem des ligada dos afectos, pois o afecto é a expressão de uma afecção, a
sentido. O dom poético, enquanto idioma, pode definir-se como uma ideia da afecção, o seu pensamento, a sua linguagem, o modo que a
língua que, através da energia contida na apetição do diálogo com o afecção tem de se expressar: podemos dizer que o afecto é a coinci-
outro, reabilita o que de «sensível» existe nela e mostra-se como um dência, o encontro, de uma afecção no corpo com a consciência dela na
instrumento idiófono. cujo som é produzido pela vibração do seu próprio
mente (sendo que esta é a ideia de corpo); se considerarmos ainda que
corpo, vibração da qual o sentido não pode estar separado. Oseu modo todo o afecto que aumenta a nossa potência de agir (sendo resultado de
de significar acrescenta significado, conduzindo à amplificação do senti- uma causa adequada) é chamado propriamente Afecto, e se distingue
do através de um ma is-d izer. daquele que é nomeado como Pa ixão, por esta diminuir a potência de
Henri Meschonnic, ao falar do latim de Spinoza e dos problemas que
ele levanta à tradução, afirma que o seu modo de significar passa por
«une gestuelle du sens» (Meschnnic, 2002: 191), algo a que poderíamos 31 Chamo a atenção para a «leitura» singular e clarividente de Amar Um Cão, feita por
Augusto Joaquim : Amar Um Cão. Desenhos a lápis com fala, Assírio e Alvi m, 2008.

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agir (resultado de uma causa inadequada). algo que faz sofrer, que traz Iasa, figura agregadora, terão abrigo todos os «pobres>> da História, e
consigo a passividade, podemos dizer, com Spinoza, que sempre que esta poderá vir a ori entar-se pela «liberdade de consciência»; mas há
os corpos aumentam a sua potência de agir - «ipsius Corporis agendi ainda uma outra vontade, um outro caminho a percorrer - sabendo
potentia augetun> (Spinoza, Ética, P. Ili, Def.111) - é porque estão a ser que o nosso vivo, como diz o texto, é apenas um dos muitos vivos que
tocados por Afectos . É através dessa dimensão expressiva, a lingua- existem, de pouco nos servirá a liberdade de consciência se a não
gem dos Afectos, que é linguagem e pensamento por ser «ideia de», estendermos a todo o vivo, numa abertura de espírito e de diálogo com
que o nosso corpo é «afectado» por uma mesma energia «afectuante», todos os que, diferentes por condição, fazem o todo que nos envolve;
uma mesma pulsão (ritmo, força, movimento) que é um «afectuantei> na de pouco nos servirá continuarmos a fazer caminho se não juntarmos à
mente e no corpo simultaneamente. Meschonnic fala de uma energia liberdade de consciência, ao desejo de mútua não-anulação, um olhar
espantosa, inebriante - «une énergie stupéfiante» (op. cit.: 193) - criador que proponha uma nova forma de linguagem, um idioma que.
no pensamento de Spinoza; diz mesmo que o seu pensamento é essa sob forma estética e sensível, vibratogénea, trace o caminho da língua
energia. E conclui que, no filósofo da Ética é visível «uma erotização sem impostura, essa possibilidade de diálogo entre o vivo como uma
generalizada da linguagem», que é «um erotismo do pensamento». troca verdadeira, o criar de uma memória de eternidade que possibi-
Como em Llansol, não se trata de encontrar no Texto motivos locali- lite a «ressuscitação», um continuum que teça esse grande «xale da
zados de erotismo - é a própria ideia de erotismo que está presente mente». A essa outra vontade se chamou «dom poético», e a figura de
nesse «corp' a'screver». Jade é a primeira a mostrá-la no texto de Llansol.
Neste mesmo caminho, e depois do nascimento do Poema sem-eu, Jade só vai aparecer, e ter voz, quando já estão delineadas algumas
o Texto propõe ainda outros nascimentos - o de figuras do dom poéti- das figuras da comunidade, que reunidas em volta de Ana de Peíialosa
co, seres-de-anunciação como Jade, um entresser que mostra a língua têm voz para mostrar a existência da restante vida, a que advirá, a que
tocada pela expansão do universo e o cam inho deste do inerte para o não conhece hierarquias, a da «mútua não-anu lação». Mas, para que
VIVO. essa vida se estenda a todo o universo, é preciso que o vivo não-huma-
Jade, o da Boa Nova. que desenha algumas das linhas que movi- no também tenha voz. Jade será a figura desses seres-da-diferença e
mentam o texto llansoliano, é a figura anunciadora do dom poético. a voz dessa outra linguagem. Efará o seu caminho, paralelo ao de Ana
Como jasmim, n' A Casa de Julho e Agosto, é <<o ser da diferença»; de Peíialosa, conduzindo, levando o humano pela trela. até outro reino,
como Lu ís M., em Causa Amante, parece ter «uma forma amativa» de traduzindo-o. para que aquele possa ter um outro ponto de vista; e aí,
conhecimento; como um «Fiel do Amor», é testemunha e fiel depositário Jade será também testemunha de um contrato de mútua não-anulação.
de um contrato: «A meu lado, lembras-me que devo ser o que ainda não Omovimento de Jade é ritmado pelas diferentes linhas que orientam
sei ... »(Llansol, LL2: 162). o texto e as suas figuras. Em Onde Vais. Drama-Poesia?, Jade testemu-
Nas primeiras Trilogias, é a luta pela «liberdade de consciência» nha o nascimento, melhor dizendo, o acto de nascer do «drama-poesia»
que é premente na obra de Llansol; a voz do texto e das figuras ocupa- e a criação do «poema sem-eu», a forma aberta e o modo dessubjec-
-se dela. Caminha-se para fazer encontros com os da mesma linhagem, tivado do texto llansoliano, e que neste livro se explicitam. Em Amar
para dar voz aos que a História silenciou, para completar o esforço dos Um Cão, ensina, com os seus nascimentos e o modo de se relacionar, o
que caíram antes de virar o rumo dos acontecimentos, para trazer do que é um «ser sendo» e uma «a lma crescendoi>, mostrando-se como um
futuro esses-outros capazes de uma justiça des-hierarquizada e não da ser-de-re lação e um ser-de-afecto; e quando. no final desse livro, na sce
justiça que actua segundo as leis do Poder. No se io de Ana de Pena- para outro lugar, indicia a possibilidade deste outro lugar existir como

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

dobra do mundo, embora numa condição de invisível. Em O Senhor de De homens nem sombra. Vários são, numerosos sendo, a negarem-se mutu-
Herbais, Jade, ser de excepção como o ambo, é o interlocutor a quem amente esse nome, o seu que de todos fosse. (Llansol, RV 99);
se diz qual o caminho a seguir em Herbais-Texto, a quem se enuncia os príncipes (... ) queriam um só real. acabámos por pensar que só um
um dos modos da estética llansoliana: «Exercitaremos os pés por entre real havia.( ... ) ficou-nos esse reflexo: o real é o social, real só há um
imagens, e as mãos sobre a escrita>> (Ll ansol, SH: 37). (ibid. : 100)
Jade será, ainda e sempre, um mediador entre os mediadores, os Este texto diz que não nos ficou só uma ideia de real ( .. ). Este texto diz
que são capazes de ((troca verdadeira» e que desenham a lin.hagem do que não havendo memória de ser humano mais vale guarda r em memória o
por-vir. São figuras como Bach, Hõlderlin, Aossê, ou o própno Jade. E resto, todos os restos, a restante vida. (... )O homem será. (ibid.: 100-2).
estando, como os poetas, mais perto do ((sexo da paisagem», por fazer
parte dessa (<fonte única de toda a Beleza», Jade pode ser uma figura A figura desse Resto, como já vimos anteriormente, a que o texto
chama o (<pobre», «pré-homem», ou ((sobrevivente», e que consi-
de anunciação, da Boa Nova, a que diz que tudo participa de tudo e que
a paisagem é o terceiro sexo. dera como um arquétipo, é alguém que é ninguém no espaço social,
É em Onde Vais, Drama-Poesia? que o movimento de Jade assume se considerarmos a existência de uma ún ica rea lidade; aí. no espaço
mais explicitamente o modo de c(dom poético» . E este modo configu- socia l, ele é, como o texto diz, ((uma coisa de nada» (ibid.: 101 ); por
ra a substância do ((drama-poesia». O ((dom poético», sendo ((a língua isso, nele se dese nvolveu c<a f acu idade de criação do dentro», não
tocada pela expansão do universo», un iverso este que (ccaminha para pretendendo vingar ou redimir outros, mas sim transformar-se, pôr-se
o vivo» (ibidem: 21), sendo (cdom de troca com o vivo» (ibidem: 25) e de a cam inho (como a mulher em Parasceve), desmunir-se da memória
(( troca verdadeira» (ibidem: 55, 121) poderá, manifestar-se em seres (como a rapariga desmemoriada de O Jogo da Liberdade da Alma),
não-humanos como Jade ou Prunus Triloba; poderemos chamar-lhes transfigurar-se (como quase todas as figuras dos diferentes livros ao
seres-de-afecto, cuja linguagem permite. por um lado, uma relação des- assumi rem o corpo umas das outras), com o objectivo de crescer a pa rtir
-hierarquizada com os humanos e, por outro, desenvolver nos próprios de dentro, de estabelecer relações de (<alma crescendo», para vir a ser
humanos a capacidade de entre si partilhar a palavra como (ctroca o ((homem» que ainda não há. Nessa ((faculdade de criação do dentro»
verdadeira», ou seja, usando-a para estabelecer relações verdadeiras reside a mudança que o texto llanso liano opera - mudar não o fora
(as que se celebram por contratos de mútua não-anulação) e, como o mas o dentro de cada um, pa ra faze r o caminho do dom poético. Ou,
texto ind ica, ((reconhecer-se nobre na partilha da palavra pública./ do como se anuncia desde a primeira Tri logia e expressamente se diz em
dom de troca com o vivo da espécie terrestre.» (ibidem: 25). E porque a Onde Vais, Drama-Poesia?, «evoluir para pobre)) para poder juntar voz e
troca da pa lavra, numa relação verdadeira, é uma troca de afecto, esses corpo no poema sem-eu e ser a língua sem impostura do drama-poesia:
seres-de-re lação têm a capac idade de, através dessa troca, transformar
Se vim para acompanhar a voz,
o ((humano não-humano» no humano que ainda não há. Porque, como irei procurá-la em qua lquer lugar que fale.
se diz n'A Restante Vida- lugar do texto llansoliano onde pela primei- montanha,
ra vez aparece a figura de Jade 32 - . ((homem» ainda não há: campo raso,
praça de cidade,
32 ((na casa os seres encontravam-se não se reconhecendo, ou passavam uns pelos prega do céu_ conhecer o Drama-Poesia desta arte. Sentir como bate,
outros fascinados; e assim se tecia um tecido consistente, em que o espaço e o tempo
não deixavam nem rugas, nem vestígios; ninguém era louco nem célebre, nem pobre,
nem ignorante. nem velho, nem novo, e o próprio cão Jade se sentava à mesa e, com os olhos tão doces, tomava a palavra» (Llansol, RV. 44).

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Maria Etelvi na Santos

num latido, na minha mão fechada. Como, ao entardecer, solta, tantas


vezes, um grito súbito: - Poema, que me vens acompanhar, por que me
abandonaste? - Como me pede que não oiça, nem veja, mas me deixe
absorver, me deixe evoluir para pobre e me torne, a seu lado, uma espécie
de poema sem-eu. (Llansol, OVDP 13)

Jade está também presente na substância do drama-poesia, pois


surge como representante de um dos troncos da grande árvore dos
vivos, o dos animais, os seres-lugar onde nasce o drama-poesia, ou
seres-anunciação da «primeira matéria do poema»(ibid.: 12) - a cloro-
fila -, conforme nos é dito no final da longa apóstrofe diri gida aos
animais: «Ó queridos anima is, (... ) só quem nunca viu a concentração UMA ESTÉTICA AFECTUANTE
(. .. ), o combate (... ), os gemidos (... ), // pode imaginar que o drama-
-poesia nasce, algures, que não em vós, arautos da clorofila no
limiar da criação.»(ibid.: 173-5).
No drama-poesia se encontra a matéria de que é feita a língua
desses seres-de-afecto como Jade, matéria «lida» pelo dom poético,
esse idioma, simultaneamente língua e tala, que advirá ao homem, a
esse homem que ainda não há, para que se realize a promessa feita
ao drama-poesia - o «trazer a natureza de volta», isto é, a possibili-
dade de ressuscitação do mundo, promessa que só o dom poético, sob
a forma de linguagem, pode vir a rea lizar: «Legente, o mundo
está prometido ao Drama-Poesia.» (ibid. : 1O), como se afirma no texto,
propondo também ao legente esse pacto de inconforto, que é descober-
ta e possibilidade única de «salvação».
Assim sendo, a Restante Vida - a da s figuras, que é também o real
onde o homem será - nasce no seio do drama-poesia e manifesta-se
através do dom poético, o modo como o drama-poesia se encontra com
a sua voz-de-escrita, que é ritmo ou modus operandi de uma língua sem
impostura, que é um idi oma, uma língua afectuante.

222
As pequenas percepções e a arte visual da palavra

Várias inteligências autónomas traçavam o seu destino


sobre os livros que fazia e que eram secundários, primordial
era o registo de uma vibração pensante e reflectida num
lugar e num material perfeitamente desconhecido. Sua
eficácia não dependia da memória, mas do conhecimento.
Llansol, Na Casa de Julho e Agosto

Ler o mundo até que o ser olhado nos devolva o seu olhar, ler os
textos até que as letras brilhem: «E a única realidade a que acedi, que
tive de aprender, foi a de estar sempre atenta, de não deixar escapar
nenhma cena diante do princípio da não contradição, de olhar o que
está advindo. a propor-se ao futuro.» (Llansol, Lisboaleipzig 1. O encon-
tro inesperado do diverso).
Ter a percepção do olhar que nos é devolvido é sentir no desejo a sua
reciprocidade, e é também a convicção profunda de que esse de-volver
é inesgotável e de que é esse horizonte o que se deseja - água que
cria «sede de mais água», desejo insaciável de leitura que incansavel-
mente acontece como desejo do mundo. Esse desejo do mundo, que em
Llansol é desejo de conhecimento ou de interpretação do mundo, que
se assume como uma ética do encontro, sabendo que não se compre-
ende senão pela companhia, pode entender-se, através do pensamento
de Gianni Vattimo, como uma hermenêutica que é a «secularização

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

da metafísica» . A «pietas» de Vattimo «o amor pe lo vivo e pelos seus (ibid.: 48). mas é preciso procurar as coisas, ver onde elas estão, estar
vestígios» (in Lopes. 1994: 100) espécie de princípio (ou movimento) de disponível para elas. E o Texto afirma: «De uma coisa estou certa: não
misericórdia ou solidariedade (Rorty), que Vattimo considera como um será um Deus que no-los dirá» (ibid. : 48). como ta mbém já afirmara
dos aspectos importantes daquela secularização, estabelece uma rela- em Lisboaleipzig 1, através da história de Ad, o menino que queria ver
ção com o passado e seus vestígios que é sempre um religare. mas de Deus. que nunca veremos outro deus senão a imagem do ser que está à
uma religião no plano da imanência. como uma celebração do quotidia- nossa frente, e que, quanto a Deus, «colocar o coração na proximidade
no; ligação a um passado que não está cristalizado em formas de signi- da sua paisagem deve bastar» (Llansol. LL1: 139). Através das peque-
ficação. mas que se actualiza (como em Walter Benjamin) através de nas percepções. que são o estar no pátio, se mostram as formas e as
uma experiência no Agora (uma «experiência de verdade», a Erfahrung cores antes de a linguagem as transformar em signos verbais. antes de
de Hegel e Gadamer). Pela pietas. a comunicação entre os seres faz-se qualquer inscrição. É como que urna metafenornenologia da percepção
não para informar. mas para «tornar comum» (para fazer <<comunidade»). o que está em causa - onde se mostra a «imagem-nua», o antes da
o que pressupõe, partindo de um princípio de mútua não-anulação das con-figuração, o perceptivo de urna «vibração invisível». Na pequena
singularidades. que à comunicação se associe todo o campo dos afec- percepção (mínima e de máxima intensidade). que se dá na suspensão
tos e das percepções. A pietas de Vattimo. movimento de bondade na dessa leitura (semiótica ) do real. se mostra o rea l que no invisível se
relação que estabelece com o outro. texto ou mundo, pode ser idêntica esconde. que não é o invisível do visível, mas a sua dobra - «plis
à sanctitas de Spinoza. a quem o texto llansoliano chama «o mestre-de- dans /es plis, sur plis. selon plis. (... ) pequenas percepções, obscuras.
-santidade»: o que mostra o caminho porque aprendeu a estar na conflu- confusas. que integram as macropercepções» (Oeleuze. 1988: 115)33 -
ência de dois movimentos. o que ilumina (porque dá a luz necessária) porque visível e invisível são modos autónomos que a realidade tem
e o que deslumbra (pelo excesso de luz ou brilho). Nessa intersecção, para se mostrar. e por isso «reparar no rea l faz eclodir o real que. no
na confluência desses dois modos se mostra o visível e o invisíve l. o invisível, lhe corresponde» (Llansol, SH: 246).
inteligível e o sensível, se encontram a fenomenologia da percepção e A «vibração invisível», assim nomeada por José Gil na obra A
a metafenomenologia das pequenas percepções, porque também aí se Imagem-Nua e as Pequenas Percepções. Estética e Metafenomenolo-
«mostram» as pequenas percepções que fazem aceder ao invisível. Se a gia. pode aproximar-se da ideia-noção de «cena-fulgor» em Llansol (e
santidade é iluminação e deslumbramento, é esse, no texto llansoliano. a que se ligam também as de «sobreimpressão e de «mais-pa isagem»,
o lugar da «cena-fulgor», o limite antes do «ponto-voraz», o lugar de corno «modos» dessa mesma ideia). Associada à experiência da «aura»
um contra-sub lime ou sublime imanente. o lugar da epifania, do nome na arte moderna, e a partir da noção de aura de Walter Benjamin. José
verdadeiro. do bom, do belo. do adequado (da virtude, diria Spinoza). o Gil fala dessa «vibração invisível», como de um invisível que «se liga
terceiro grau do conhecimento, o das intensidades ou das essências. o ao inconsciente e ao tempo (individual e histórico))), uma vibração que
da justeza - isso que é isso e não pode se r outra coisa: «não é percebida pe los sentidos, mas segundo uma outra modalidade
que Benjamin não explicita» (J. Gil, 1996: 63). Essa outra modalidade
se o livro perguntasse às comunidades «o que é, para vós. a santidade?» ou modo de apreensão do olhar do outro parece estar ligada às «peque-
estas diriam sem hesitar «a santidade deste pátio é estar no pátio com nas percepções» e à própria noção de «invisível». Entendido como
esse nome» (Llansol. SH: 284)

Ta l como «a beleza da forma e da cor é a santidade das coisas» 33 Uma das frases de Deleuze foi. propositadamente. deixada em francês para se
manter o jogo do significante.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

experiência de limiar, o campo das pequenas percepções é, normalmen- movimentos e acontecimentos extrafenomenais que ocorrem na génese e
te, estudado a partir das noções de visível/invisível e de consciente/ na recepção do objecto de arte. (. ..) Enão se trata já de fenomenologia,
inconsciente, sendo que, consoante as diferentes disciplinas das mas de metafenomenologia: o estudo do vastíssimo campo de fenómenos
ciências humanas em que essas noções são estudadas. elas adquirem de fronteira e de uminvisível rad ical, não-inscrito. não-manifesto, mas que
tem efeitos (por isso mesmo) no visível. Metafenómenos que se definem
uma operacionalidade distinta. Interessa-nos, particularmente no caso
como feixes de forças.
do texto llanso liano, uma reflexão sobre as pequenas percepções e as
( ... )
noções de invisível e de inconsciente para, embora sem pretensões Digamos apenas que o inconsciente metafenomenológico - 11indiciado11
conclusivas, deixar claro que, em Llansol, a experiência do limite e do pelas pequenas percepções - não é nem um recalcado originário nem um
invisível não deve ser relacionada com a experiência mística, mas com qualquer «sub» ou «pré-consciente» subliminar. Mas que se define como
uma experiência da percepção estética que no seu caso vive. de modo opacidade fundamenta l 11branca», inconsciente no seio da consciência.
quase exclusivo, da apreensão e tratamento estético das pequenas im-presença no meio da presença perceptiva. (ibíd.: 18-20)
percepções, essas com as quais o artista trabalha habitualmente e que
nele são «experiência da verdade», uma Erfahrung. A experiência do Nessa nova teoria da consciência, o inconsciente metafenomenoló-
imperceptível é uma experiência do não-consciente, passe ele por esca- gico, sendo um «inconsciente no seio da consciência>>e não um sub- ou
las tão diferenciadas como. por exemplo. as que vão do que é ouvir mal pré-consciente, estabelece uma passagem entre as noções de cons-
até ao ouvido absoluto, ou por toda a experiência pela qual passamos ciente e inconsciente, realizando aquela linha de continuidade entre um
sem dela ter consciência (como a de todos os fenómenos subliminares e outro. que José Gil diz ter faltado a Freud. Assim sendo. podemos
a que estamos sujeitos). Como afirma José Gil, neste tipo de experiên- talvez estabelecer um paralelo entre esse in-consciente (metafenome-
cia importa «manter a descontinuidade entre o inconsciente e a consci- nológico). essa «im-presença no meio da presença perceptiva», e as
ência, e no entanto considerar uma espécie qualquer de contínuo que duas formas de «inconsciente estético» que Jacques Ranciêre observa
dê conta dos 'fenómenos de limiar'.( ... ) nem Freud nem Leibniz, e por na análise das obras.
razões opostas - fal ta de continu idade do primeiro. fa lta de descon- Em L'inconscient esthétique. Ranciêre refere-se a um método de
tinuidade no segundo - abriam o campo à fenomenologia desses leitura que se baseia nos pormenores in-significantes de uma obra, para
fenómenos de fronteira.» (ibid.: 14). Estas questões levantam a dúvida destacar duas formas de inconsciente estético: a que procura o traço
sobre a possibilidade de a noção de inconsciente ser ou não compatível que perm ite reconstituir todo o processo (história) da/na obra, a partir
com a de fenomenologia; como articular. por exemplo, o inconsciente do que ne la está representado ou, de outro modo, a que procura na obra
freud iano com a anál ise das percepções feita pela fenomenologia? Se a a impressão («/a frappe») directa de uma verdade não inscrita, mas que
experiência é a vida mesma da consciência, como falar de uma «expe- nela se dá a ver. Éeste o modelo seguido, por exemplo, pelos historia-
riência inconsciente»? José Gi l considera que «este é o campo de uma dores de arte que. contrariando a perspectiva de Panofsky, não preten-
possível 'metafenomenologia'» e que «a chave que dá acesso a este dem fazer uma análise do quadro a partir do que nele se representa,
novo campo é uma semiótica das pequenas percepções» (ibid.: 17): mas fundar um modo de leitura a partir de um olha r que vê no porme-
nor in-significante a verdade da pintura. que mais do que reconstituir
É de uma nova teoria da consciência que se requer (desde há muito) pretende recriar. Esta tendência, que se reclama de Freud, pode ser hoje
a elaboração. Uma teoria da consciência, e da consciência do corpo, da observada em autores como Louis Marin ou Georges Didi-Huberman. O
multiplicidade de consciências e de «sujeitos», que permita descrever os pormenor in-significante (que não se reconstitui com vista a uma linha

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

de continuidade discursiva como traço) funciona como um fragmento inconsciente estético de que fala Ranciêre. O caminho para o figural,
não ajustável que desconstrói a ordem da representação, para assumir em Llansol , situa-se algures entre a vontade de contemplação (inerente
e repor uma ordem de verdade (inconsciente) - espécie de antigo à arte antiga) e a vontade de imersão (na arte contemporânea, e como
mosaico de cerâmica, tessera, que se desvia para poder continuar esta é referida por exemplo por Bill Viola34); imersão no mesmo sentido
completando (processo idêntico ao que é referido por Harold Bloom, n'A em que se fala. a propósito da arte moderna, em «habita r a imagem»35
Angústia da Influência, para mostrar um dos modos como um poeta se (neste caso, opondo «habitar» a «contemplar»). a propósito, por exem-
desvia de outro, continuando-o). Deste modo, desconstruindo a ordem plo, de uma forma como a <cinstalação». Entrar na obra como se entra
figurativa, escolhe-se a des-ordem do figural, a da im-presença, a do num organismo vivo, na obra como numa cena do quotidiano, pode ser a
visual sobre o visível representado. Em Maria Gabriela Llansol, proces- regra da arte a partir de finais do sécu lo XX. O texto llansoliano parece
sos como a <<mais-paisagem» ou a «sobreimpressão» (a que é utilizada propor ao legente o mesmo tipo de relação - apresenta-se como um
pelas figuras do texto, que olham as diferentes paisagens, da natureza organismo vivo que se dá como transformável pela imersão do leitor
e da língua, como vários estratos em movimento, deslizando e sobre- («texto orgânico» lhe chamou Augusto Joaquim. embora referindo-se
pondo-se) parecem poder incluir-se nesse mesmo processo de leitura mais propriamente à diferença de processos em comparação com os do
de um inconsciente estético que lê o pormenor in-significante impresso texto dito «realista»). propondo, no entanto, que a dimensão estética (no
(la frappe). para chegar a uma verdade do texto que não é da ordem da sentido da aisthesis, como contemplação) não seja reduzida, como na
figuração - pretende-se desconstruir o figurativo para que ele deixe contemporaneidade, mas que essa dimensão contemplativa se ampli-
ver o figural. Este objectivo, que poderia à partida remeter para um fique através da relação com o leitor. de modo a que este, situando-se
processo idêntico ao do abstraccionismo na pintura - de valorização face à obra de um modo idêntico ao que era pedido pela arte antiga ,
da forma e da cor, como mostra a tendência da arte abstracta para redu- alargue o campo do «estético», não o referindo só ao plano da arte, mas
zir a pintura aos seus elementos constitutivos (forma. cor, espaço), de como um dos modos do pensamento (afectuante). Otexto escol he assu-
Mondrian, Kandinsky ou Ma levitch - revela-se, em Llanso l, de modo mir o risco de «transpor para a consciência quotidiana o que, durante
diverso: também não segue o caminho para o figural como ele acontece, séculos fora atribuído ao êxtase» (Llanso l, P. 10), de se relacionar com
por exemplo, no cubismo (em quadros como a Guernica de Picasso) ou a obra também num plano que era reservado à «vida contemplativa» -
no expressionismo. onde a desconstrução das figu ras como um sistema trazer a imersão da aisthesis para a ordem do quotidiano pressupõe o
complexo de linhas estruturais ainda remete pa ra uma figuração de tipo alargamento da noção de «estético» para fora dos limites da teoria da
narrativo; nem tão pouco segue o caminho do figural como ele se faz, arte. Étambém deste modo que. em Le partage du sensible, Ranciêre
já a partir de meados do século XX, por exemplo, nas telas de Bacon se refere a «estético» - não como algo que diga respeito só à teoria
(numa des-figuração que é como que uma desincarnação cirúrgica, ao da arte, mas como a um certo «fazer>>, às suas formas de vis ibilidade
pretender reduzir a figura aos seus elementos essenc iais). Em Llansol, e ao modo de pensar as relações entre essas formas. o que na sua
o caminho do figural não é um processo de abstracção nem de redução,
34 «Vocês estão exactamente no interior - mais: estão dentro da instalação (piece) e
mas de suspensão - o caminho do figural faz-se com a intenção de
dentro da imagem que se projecta sobre vós e que se move à volta da sala. Écomo um
dar a ver não a «verdade» da escrita (como a da pintura). através de mergulho na água: para ver a obra. é preciso molharmo-nos» (Bill Violla a propósito da
um processo de redução aos seus elementos constitutivos (que poderia sua obra Récit tournant lentement, 1992, in Mêredieu, 2004: 596).
ca ir num experi mentalismo). mas uma verdade que o «espectador» des-
35 «Habiter L'lmage» é a expressão utilizada por Florence de Mêredieu em Histoire
cobre através da leitura do pormenor in-significante. pondo a ag ir esse matériel/e et immatérie/le de /'art moderne. Paris. Larousse, 2ª ed .. 2004. pp. 596-61 O

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

expressão, implica uma certa ideia de, «efectividade do pensamento». (...) A lógica das obras de Rothko repousa no «timbre)) da sua escrita.
Idêntica parece ser a proposta de Maria Gabriela Llansol ao dizer que pulsionalidade da pulsão ou superfície télica sobreinvestida de cor, a cor
os seus textos se dirigem ao real de um modo estético: não a estética indizível, do indecidível. do indiscernível. (Costa, 2001: 208-2121
enquanto teoria da arte, mas como um modo de pensamento (afectu-
ante). o que, aliás, nos faz pensar no uso não mu ito antigo do vocábulo A leitura do pormenor in-significante, que se situa na passagem do
«estético» como referido à teoria da arte, pois só a partir dos românti- figurativo ao figural, e que se situa nessa «opacidade branca», parece
cos alemães, assim passou a ser considerado; ainda no século XVIII, ser, segundo Ranciêre, o último desafio lançado pelo inconsciente esté-
Baumgarten designava a estética como o domínio do conhecimento tico ao inconsciente freudiano; enquanto Freud propunha o «decifrável>l,
sensível, um conhecimento «claro» mas ainda «confuso», que se opõe fa zendo apelo à interpretação, o inconsciente estético, reafirmando a
ao conhecimento «claro» e c<di stinto» da lógca; e em Kant reconhece-se autonomia anti-representativa da obra e reconhecendo na palavra uma
apenas o adjectivo «estético» como designação de um determinado tipo margem de irredutível. situando-se para além da hermenêntica, parece
de juízo, já que para ele não faz sentido a ideia de uma estética como fazer apelo à imersão. Pode ser objectivo do artista, captar e de-volver
uma teoria do conhecimento confusa (a partir de Baumgarten e da ideia ao legente esse estrato não-verbal que existe nas coisas, esse sentido
do sensível como um inteligível confuso). Esse modo alargado de ser não exprimível por signos verbais, que no entanto apela à linguagem;
estético - a estética como um dos modos do pensamento - que o é um espaço de não-inscrição, de emanação de forças, que está em
texto llansol iano mantém em ligação com a aisthesis como contempla- permanente articulação com novas inscrições, num movimento de
ção, e com uma praxis quotidiana, permite que o texto reúna em si uma sístole e diástole que oscila entre o visível e o invisível, o consciente
dimensão «contemplativa» e uma dimensão «activall, com elas conviva e o inconsciente, os fenómenos e os metafenómenos. A esse percep-
e se equi libre. Solicitando ao legente o mesmo tipo de aproximação à tivo que escapa à linguagem se chama imagem-nua, e o seu campo é
leitura. o modo de imersão deste pode, em certos momentos, aproxi- vastíssimo: «entre dois visíveis. é infinito o in tervalo» (J. Gil, 1996: 49).
mar-se daquela «opacidade branca>) de que fa la José Gil, e que tanto O invisível, que para Merleau-Ponty estava sempre na expectativa da
faz pensar nas telas de um pintor como Rothko, talvez um dos que mais visibilidade, e se situava fora da esfera do ver. adquire na experiência
dialoga com Llansol, embora a sua escolha tenha sido a da celebração das pequenas percepções um outro modo de ser: o invisível não é a
do trágico e não a celebração do júbilo, como faz Llansol: «impercepção da percepção» , na apreensão do sensível, e não tem
necessariamente de corresponder a um «para ver» (ibid.: 34). subme-
As pinturas inquietantes de Rothko conjuram o figurativo. procurando tendo-se sempre ao primado do visível. O invisível é, ainda e sempre.
relevar em si mesmas, o figural. ou seja, o resto, a cor. como estruturan- um excesso de significado, um mais de significância cuja condição é a
tes eidéticos ou puras estruturações materiais do corpo da pintura, como de assim permanecer, um virtual, um disponível com uma margem de
corpos de intensidade. (.. .}Ecrã de meditação (... )a pintura prima por uma significado indisponível:
sintética transcendental, excedendo-se na privação e quase se anulando
na mítica figura do Excesso. ou esvaziando-se como pura Presença. Quando Em suma. o mundo oferece sempre muito mais sentido virtual do que o
Rothko refere a <dntensidade figural)) da sua pintura. ela deve ser entendi- significado actualmente nele pela linguagem. mas também por todos os
da como potência suspensa ou imobilizada na tela. a «privação suspensa>> significantes disponíveis. Há «significado flutuante» infinito transbordando
(Lyotard). Pintura de silêncios e de pura potência. pintura de um quietismo o mundo que é exprimido. e são as pequenas percepções que se encarre-
inquietante. de serenidade desassossegada, do obscuro luminoso - tal o gam de o significar. (ibid.: 99)
oxímoro Rothko; mas também santidade e trágico (mais doque tragédia}.

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

O húmus de Llansol é o das pequenas percepções. Caminha ao física, mas um trazer da metafísica para a esfera do quotidiano. como
encontro desse «'significado flutuante' infinito», que transborda e se também se deseja não um regresso à natureza, mas o trazer a natureza
dá como «resto não-articulado, não organizado em conteúdo de uma de volta; e através do inconsc iente estético, pondo o pensamento a agir
expressão, deixado sempre pela operação metalinguística», sabendo sobre as pequenas percepções, no plano de uma metafenomeno logia,
que esse «resto não semiotizado (. .. ) é precisamente aquilo que faz trazê-las à leitura na esfera do quotidiano. Transformando o vazio, cele-
aderir as pequenas percepções ao sentido, impedindo-as de se semio- brando o júbilo.
tizare m» (ibid.:101). O Texto de Llansol é o desejo insaciável da orga-
nização desse resto, aceitando que dele permaneça sempre um resto
entrópico - é, por isso. um combate do qual se sai, como Jade em
Amar Um Cão, «vencido, mas com rebeldia», um combate desejado
e repetido em pedidos como «luta comigo», porque é nessa luta que
se evolui para «uma alma crescendo», a que nasce de uma relação de
singularidades que não se anulam porque sabem que é nesse in-comum
que está a essência da comunidade.
Eé esse movimento do inconsciente estético que vai trazer à leitu-
ra as pequenas percepções, esse resto que é, no texto, não de ordem
metafísica (porque a traz para o quotidiano). mas de ordem metalinguís-
tica - o não semiotizado a aproximar-se do sentido, mas sempre em
resto, não-dito, mas «precisamente aquilo que faz aderir as pequenas
percepções ao sentido,> (J. Gil). É essa leitura restante, que na pintura
de Rothko é «santidade e trágico,, (Costa, op. cit.: 212). que permite,
em Llansol, a «ressuscitação>,: o «trazer de volta», no plano textual -
como Jade fez com «a objecto de beleza»( em OVDP 56 a 153), trazendo
à memória a figura de quem ama, através de um olhar atento que trans-
forma a imagem de um bando de pássaros na imagem d'«a objecto de
beleza», que ele amava e que vira partir («não fiques a recordar; se a
amas, trá-la de volta», o que Jade põe em prática) - que também é,
na esfera do quotidiano, o «trazer à fa la,,, como a pa rtir da experiência
que foi a «tentativa inabalável de reconduzir à fala e à convivência de
grupo, uma criança espanhola aparentemente autista que fora levada
à escola onde eu ensinava,, (Llansol, LL1: 98; também pp. 127-128 da
mesma obra; e em «Apontamentos Sobre a Escola da Rua de Namur», in
O Livro das Comunidades, 2ª ed.: 78). A leitura restante, isso que é isso
e não pode ser outra coisa, que, como «a santidade do pátio», é «estar
no pátio com esse nome» (Llansol, SH: 284). não é um regresso à meta-

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Corno urna pedra-pássaro que voa

vai apressada e não sabe para onde vai», a mu lher que (<no emaranha-
do rápido e selvagem do bosque. é bosque». a mu lher a quem o texto
não dá nome antes de definir «o sexo da paisagem em que a mergulha»
(ibid.: 269). O sexo da paisagem faz-se sentir como um flu ido, como o
vivo que também ((aparece sempre em fluidez» (ibid.: 263); desde que
há humanos, o sexo da paisagem para si próprio pergunta o que é a
inteligência; e alguns humanos, poucos. reconhecem-no em si: ((meu
sexo. meu sexo, murmurava. meu sexo onde eu não fala» (ibid.: 101 ).
Osexo da pa isagem pode ser o corpo do vivo. da natureza («o tercei-
ro sexo») no olhar do humano; é uma relação. um ((difundido de sensibi-
lidade» que se mostra aos que aceitam com a natureza um contrato de
Na luz do luar libidinal
mútua não-anu lação, que aceitam trocar de presença com ela, escutar
Sempre que avança ao seu encontro, sob a forma de Beleza. o drama de ter de interrogar-se sobre o que é a inteligência. Os que em
o que têm de mais verdadeiro, deveriam acolhê-lo com si reconhecem a natureza como «o terceiro sexo», podem vir a sentir
gratidão porque precisam do sexo da paisagem, fonte única essa consciência estética difundida pelo corpo como relação libidinal.
de toda a Beleza. amorosa. aqu ilo a que o texto. concretamente. chama «o sexo da paisa-
Maria Gabriela Llansol, Onde Vais, Drama-Poesia? gem»; os que consciencializam essa libido esteticamente, transpondo
para o seu corpo a ideia de que a natureza é um terceiro sexo e não ((um
fundo harmónico da espécie terrestre», sabem transformar uma gota de
Otexto do mundo, que de tão longe nos fala, mostra-nos «um difun- água «num sexo que se vem situar em relação aos nossos» (ibid.: 216).
dido de sensibi lidade, lentes a ler lentes. todas elas ampliando-se. / Os animais. que o texto refere como os ((arautos da clorofila no
sexos como insiste em escrever (... ); e se limiar da criação» (ibid. : 175). estão prontos a revelar-nos como se vive
trocássemos de sexo?» (Llansol. OVDP 298). propõe o texto, para nos com o sexo da paisagem - a penetração de um animal num jardim
apercebermos do ponto de vista do outro. pondo a agir a leitura restan- dá conta dessa relação; o texto sabe reconhecer isso nos animais:
te. que é a das pequenas percepções. «não escondeis o sexo da vossa paisagem. / antes o revelais aos que
O que quer o texto dizer quando se refere ao «sexo da paisagem» o olham como vosso; a vossa penetração no jardim, e o desenho dessa
e à paisagem como «o terce iro sexo»? Primeiro surge a constatação relação que são os lugares próprios em que pernoitais durante o sono;
da existência de uma relação amorosa. libidinal. degradada ou até as manifestações guturais que atravessam a porta. até ao meu quarto;
perdida. «entre os sexos humanos e o sexo da natureza» (ibid. : 187); o adormecer profundamente encostados uns aos outros)) (ibid.: 173)
ao reconhecer essa relação. o texto continuará a refe rir-se ao sexo - toda essa relação se mostra aos humanos, mas só alguns a vêem e
da natureza, mas passará a referir o «sexo da paisagem» como «fonte sentem como relação libidinal. Há, assim. diferentes modos de ver; por
única de toda a Beleza» (ibid.: 45). como o que «não nos deixa imaginar- isso. o texto propõe que o humano, através das pequenas percepções.
-lhe as margens» (ibid.: 268). mas de que nos apercebemos: «sempre veja a «mais-paisagem)>. Neste modo de ver/ler. ((((as árvores falam
que sentir um fluido que não se deixa imaginar. / que apenas fl ui, é o através dos ângulos que criam»>), o humano entenderá através de outra
seu sexo da paisagem que está a sentir»; isso que sente «a mulher que luz (a que o texto chamará «o luar libidinal»). e passa a ser possível ter

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

uma árvore por amante: a mulher esbarra com o entardecer suspenso entre luz e
plátano, na área de nervuragem das árvores. (. .. ) Na zona
o mais óbvio é não podermos ser amantes. tecnicamente «loversn, /dado de nervuragem. sexo não tem o sentido comum. Tudo é sexo
termos planos de construção diferentes; //se eu tivesse uma árvore por e nada é sexo. Éo sexo-de-ler que guarda a porta, e espera
amante. só subindo ao tronco me poderia / deitar com ela; / talvez eu o sexo-de-reenvio do legente.
tenha uma árvore por amante {ibid.: 178). Maria Gabriela Llansol. Amigo e Amiga

Sabemos. pelo texto. que a paisagem não tem um sexo simples. O legente do texto llansoliano. o que «tem sede de mais água», não
nem o homem, nem a mulher, que é vital conhecer a paisagem. e que se satisfaz com o facto de saber que a natureza pode ser vista como o
esses são «os três sexos que movimentam a dança do vivo: a mu lher, o terceiro sexo e que o sexo da paisagem, na sua relação com os sexos
homem. a pa isagem» (ibid.: 44). Mas a paisagem de que o texto fa la, a humanos. pode rea lizar «a geografia imaterial por vir». O legente quer
paisagem como «o terceiro sexo» no olhar do humano. recordemos que ver o texto a agir nesse sentido e, por isso, pergunta-lhe como esta-
é «a geografia imaterial da espécie terrestre» (ibid.: 45); nela. «os seres belece essa relação - como é essa relação descrita? O texto não se
humanos distribuem-se em vagabundos, em formadores, em construto- furta, responsabi liza-se pelo que diz. não inventa, e mostra essa consig-
res e em poetas», e são estes últimos que anunciam <<a geografia imate- nação escrevendo, isto é, não através da designação ou representação
rial por vir», que será o resultado das diferentes forças unidas, os sexos da realidade, mas através da escrita como vislumbre do real (porque
humanos e o sexo da natureza, relação que passa pelo sexo da paisa- «escrever vislumbra, não presta para consignar»). Em Onde Vais. Drama-
gem. Cada uma das «raças» da paisagem (floresta, mar, animais, fa lé- Poesia? e, mais concretamente, em Lisboaleipzig 2. Oensaio de música
sia. deserto, jardim. encosta, vale) «induz a uma modalidade particular e em O Senhor de Herbais, o texto mostra o que quis dizer, associando
de relacionamento». e é dela e nela «que se formam e se modificam as a figura de Aossê a um sexo que desconhecemos, o sexo <eque vem do
forças que ora dividem. ora unificam os sexos propriamente humanos» futuro11, e a que chama «Qu imera,,:
(ibid.: 45). Para o texto, espec ificamente, é nas florestas que se reúnem
a maior parte das forças que se vão constituir como «personalidades Veja se consegue ver o que tento dizer-lhe sem qualquer juízo de valor. No
renovadas e enriquecidas» nos seres humanos. Qualquer falha de aten- corpo que cresce e evolui. sobretudo quando está prestes a degenerar e a
ção da parte do humano barra cam inho à geografia imaterial por vir. morrer. vai-se formando uma espécie de monstro, um ser compósito feito
Que mal há nisso? (perguntaria alguma voz que assim se exprimisse em de vários sexos. /o que temos, / aquele com que nascemos. / aquele que
o texto nos dá e que é o mais profundo. /aquele que experimentámos no
OSenhor de Herbais) Mal não há nenhum, apenas não será possível «o
amor./ o sexo dos que amamos./ o das plantas que nos dão beleza. o dos
eterno retorno do mútuo» e o espaço edénico ficará mais longe. animais que nos dão sensibilidade/ e, em certos casos, o sexo da paisa-
gem. por exemplo, o seu plátano.// Mas há um sexo que desconhecemos.
* o que vem do futuro. chame-lhe vontade de mudança. vaga aspiração,
desejo fortíssimo. como quiser, / é a Quimera (Llansol, OVDP 263-4)

E o texto apresenta também a sua Quimera, esse <enovo sexo»,


«efeito de uma gestação que vem do futuro» e que vem «dar-se num dos
sexos que temos» - o sexo do texto llansoliano apresenta-se como:

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

<<Uma forma literária que funde a comunidade no fulgor». (ibid.: 264-5). virmos a ser o que não fomos» (Llansol. OVOP. 266):
Esta Qu imera, o sexo deste texto, não se mostra, como ele próprio já
disse, dirigindo-se ao rea l de um ponto de vista fi losófico ou teológico, se a procura da beleza não se inscrever nessa potência para a transformar
mas de um ponto de vista estético. e por isso não parte de uma crença em ágape, haverá belo que vibre no humano? Haverá vontade esclarecida?
ou da fé, mas do fulgor como «convicção profunda» de que este existe Vi-me sentada à beira da água, // que era um leitor de corpo aberto, e
nas coisas e de que é possível soltar essa emanação. «fulgorizá-las». vi o texto ansioso por ele( ... l [o texto] estava ansioso pelo seu espelho
deixando que o «inconsciente estético» as re-conheça. Fundar uma profundo. / as águas onde ia poder distender e florescer o seu corpo
ferido. envolto em linho (... ). Debrucei-me na toalha líquida, e compreendi
comunidade no fulgor. escrevendo-a - desejo que o texto unifica numa
que ela lhe dava sentido - segundo o lugar fértil para onde o levasse - .
vontade ética e estética. Percepcionável através de uma sensua lética (. .. l «é, certamente, segundo as suas forças e a sua consciência, o seu
(como se sugere em Parasceve) - como uma metafenomenolog ia fulgor de leitor», pensei. (Llansol, /OC: 106)
das pequenas percepções - que una o sensível ao inteligível, como
único modo de ver o belo que existe nas coisas e de poder fulgorizá- Através do sexo da paisagem, o humano vê a beleza das coisas,
-lo, essa forma literária. como esse sexo que vem do futuro, «faz-nos aproxima-se da sua essência (daquilo que as faz perseverar no seu ser).
sentir o que não sentíamos./ pensar coisas que os outros irão censurar crescendo no conhecimento; e a pujança que sente nelas e que passa
/ fantasias que acharão inverosímeis. / impossíveis que vêm destruir o para o seu corpo através do olhar. é um modo de transformação estéti-
que havíamos construído com bom senso.» (ibid.: 264); deseja-se como ca. Esse olhar, a voz que com poder de decisão dá corpo ao texto, é um
uma forma que «abra o humano para a prática jubilosa do imprevisíveh> sexo de ler. «um sexo de ler imperecfveh> (ibid.: 159) que pode unir todo
(ibid. : 264) e do improvável. como o modo de ser do própri o desejo. O o diverso, que pode literalmente «fazer amor com os olhos», como acon-
vector dessa Quimera é Aossê, diz o texto. por ser o que se encontra tecia com a mulher do Lugar 1 d' O Livro das Comunidades - «Tinha
mais distante do equilíbrio. por sentir «que a literatura está a morrer. uma maneira distante de fazer amor: pelos olhos e pela palavra»; como
incapaz de explorar o estranho da vida, o estranho da linguagem. o acontece na longa cena-fulgor que é todo «Ü Aestheticum Convivium»
estranho do humano. o estranho das coisas existirem», e por se entre- em Onde Vais, Drama-Poesia?(pp. 27-38).
gar à tarefa inverosímil «de chocar o ovo da falcão» {ibid.: 264), no texto Através do sexo de ler. um ponto vibrante do corpo humano cruza-se
a figura de Elizabeth; essa «vontade nova» é um ser futuro que nasce com o belo, e numa leitura que se faz pela intensidade. a do incons-
de um falcão, uma ave de rapina cujo fa lcoeiro só podia ser uma figura ciente estético e das pequenas percepções. o ser tem acesso ao íntimo
com vontade de mudança. Através da figura de Aossê, o texto diz e do texto e do mundo, à consciência «da necessidade vital para cada
mostra (em Lisboa/eipzig 2. O ensaio de música) como Aossê «descobre homem de poder alimentar-se de alegria, e poder viver com sentido»
a sua bi-humanidade como paradigma de muitos humanos vindouros», (Llansol, LL 1.: 109), e ao caminho que poderá percorrer. O acesso ao
como Baruch «encontra o nome escondido da sua fi losofia, Deus sive dom poético faz-se por essa via. reconhecendo pelo seu sexo de ler o
vivens», como Bach compõe a sua Missa em Si. E o texto expl ica que sexo da paisagem. A liberdade de consciência, a que as sociedades
um texto possui várias vozes, mas precisa de passar por um processo contemporâneas podem ter acesso através da igualdade de direitos. é
de montagem; num dado momento, silencia-se para que o humano. o de apenas uma parte daque la necessidade vital do homem - a de «pode r
uma única voz. mostre o seu poder de decisão e lhe dê corpo - nesse alimentar-se de alegria, e pode r viver com sentido» (ibid.: 109). A outra
momento, está a gerar-se no escrevente o olhar do sexo de ler: «o sexo parte só poderá realizar-se quando à liberdade de consciência se asso-
de ler que se vai gerando no escrevente. um ou vários, sem vergonha de

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

ciar o dom poético. o olhar do sexo de ler no sexo da paisagem; quando se desenvolvem todos os outros: a tristeza e a alegria. respectivamen-
o dom poético se manifestar. como um idioma. «no carisma que a todo te. a diminuição ou o aumento da potência de ag ir. O conhecimento
o homem foi entregue: o de continuar. com a sua consciência livre. a só é uma al egria crescendo quando ao homem é dado perceber. como
criação do mundo» (ibid.: 112): (<de facto, / na natureza criadora - a mostra o texto llansoliano. que a pujança de que dispomos se pode
única que existe durável e evanescente -. somos os sexos singulares consciencializar. des-dobrando evolutivamente todas as formas que um
do ler» (Llansol. /OC: 107). Não respeitar o mundo é destruir a possibi- sexo de ler pode assumir, e através de um corpo a escrever o sexo da
lidade de o continuar - diz o texto - não o olhar com o sexo de ler é paisagem. Se não sabemos o que pode «um corp'a'screven>, também
retirar-lhe a sua condição de continuar esteticamente. não saberemos o que pode um sexo a ler, «onde começa realmente a
Quando se escreve com um sexo de ler. a escrita continua a nature- gestaçã o de uma visão» !Llansol, JLA: 71):
za criadora. prolonga-a no seu imperecível; nesse processo, o legente
também cresce no seu sexo de ler e prolonga a escrita em algo a que algures. uma luz explodiu no Sexo de Ler.
poderemos chamar uma leitura lib id ina l - a energia da leitura quando mas quando essa luz decai.
esta se encontra em estado de transformar (como a energia ao trans- decai-nos apenas em imagens
formar-se em libido). «de extrair do ruído sinais. de transformar estes (. .. }
em apetecível e em mais força» (Joaquim. 1987: 210). A libido, explica Ou seja, Témia. ninguém sabe o que a Leitura pode fazer. e se esse
poder tem algum limite _ _ _ _ __ _ __
Augusto Joaquim. como resultado de uma energia a produzir formas
ninguém conhece de que é feito
de organização. só existe a partir do momento em que essa força (o
exactamente esse Sexo, como respira (... ).
impulso de uma trajectória) encontra o obstáculo que impede que o seu (ibid. :72).
movimento continue uniforme; o mesmo é dizer que só ao encontrar-
-se com os corpos a energia se pode transformar em libido; a mutação
*
desse movimento. que se dá quando a força se reflecte. é uma «vitali-
dade experiente», um «impulso que se dobra e integra. no movimento.
a todo o momento. a memória pode, de novo, esvair-se
o obstácu lo que o fez desviar da trajectória» (ibid. : 211 -2). Por isso. o mas o Luar libidinal tem o poder de lembrar-se
lugar da libido é o corpo, e um corpo é «um fazedor de reali>, sendo que Maria Gabriela Llansol, OJogo da Liberdade da Alma
o real é essa força que é, ao mesmo tempo, motor e obstáculo.
Desconhecemos o porquê da existência de um corpo e é neste senti- Oque eu peço ao jardim edénico - na invisibilidade - é a
do também que poderemos entender. com Spinoza. que mais do que alegria do amor sensual; luar libidinal. será esse o termo?
saber o que um corpo é, importa saber o que ele pode - o seu conatus. Maria Gabriela Llansol, Amigo eAmiga
que é a sua essência, desejo/vontade de perseverar no seu ser. Cons-
ciente dessa capacidade e apetição. o homem tenderá a crescer cam i- O luar libidi nal pode ser uma memória de eternidade ou memória da
nhando no conhecimento através das «ideias adequadas». associando o ressuscitação - uma alegria restante. Ninguém sabe o que pode um
que para a sua essência é da ordem do bem. porque lhe é adequado. e corpo nem o que a leitura pode fazer, mas sabemos que a libido repou-
afastando o que lhe é inadequado - nessa escolha permanente e cons- sa em cada texto. em cada vivo. à espera de ser tocada e que através
ciente se decidem todos os afectos que, originariamente, dependem do da luz do <<luar libidinal» poderemos chegar ao entend imento do que
dese10; este origina em primeiro lugar os dois afectos a partir dos quais significa ser a misericórdia «a única palavra que a morte é realmente

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Maria Etelvina Santos Como uma pedra-pássaro que voa

incapaz de corromper» (Llansol, OVDP. 233): -se. pois. o porquê da estética hidrofóbica que cultivo. Escrevo. muitas
vezes. fluir, mas deixei de o referir à água (já o fiz). apesar de ser um
o pensamento; o pensamento é a luz daquele quarto. impregna a libido líquido com propriedades físicas surpreendentes. A partir de certa
que repousa em cada texto. haja ou não luar. sou um legente que escreve altura. o fluir tornou-se quase exclusivo de outra matéria, a luz. que
enquanto subo as escadas, que escreve que o desejo amoroso sobe. faz nada tem de amniótico.» (Llansol, SH: 121 ). O caminho do conhecimen-
parte de subir( ... ) «Dá-me de beber», é o que me responde essa voz libidi- to não parece. assim, fazer-se num regresso às origens mergulhando
nal. (Llansol. SH: 247-8). numa qualquer água redentora; a origem. como em Walter Benjamin,
se o amor não transforma os corpos e os torna refulgentes, I gloriosos,
experientes de luar libidinal, I que oferece a ágape que não ofereça o vem do futuro - em Llansol, é um caminho para cima. no sentido de
uma elevação, como a que aconteceu a Aossê, em Lisboaleizig 2. O
eras? (Llansol, OVOP. 232).
ensaio de música, quando Bach o eleva no ar:
O texto, na sua generosidade de dar a ver o que é ser legente,
decide-se pelo que sente vir, uma imagem sobe-lhe pelo corpo e pela
mostra-nos o caminho do <duar libidinal», ora mostrando-o, ora escre-
mente, deixa-a vir em leves pancadas. ao princípio, para em breve se tornar
vendo-o: imensa ondulatura, e consegue dizer ainda: - Que estranhos amigos o
Senhor tem- .
Ler é ser chamado a um combate. a um drama. Um poema que procura um sem parar de rir
corpo sem-eu. e um eu que quer ser reconhecido como seu escrevente. e levantando
(.. .)li O luar libidinal é o nome que dou. hoje, a esse compromisso. Uma nos braços
jubilosa difusão do caminhante pelas ruas. I a escrever cópias da noite. gigantes
(Llansol, OVDP 18) o frágil
Aos sê.
Tenho esse foco de luz libidinal aceso sobre o lugar onde estou a escrever.
(... ) deixo-me inundar de puro luar libidinal. I/ Há sexo envolvido? Há - Nunca discordara tanto de alguém - e nunca iria amar tanto outro homem
respondo, a quem imagina a pujança sob essa forma de prazer. Mas. para como descobrira. na imagem. que iria amar este. (Llansol. LL2:59)
o poema não há. li Não há, então, sexo envolvido? Há. Para o poema é
inconcebível não haver um corpo humano que o não suporte. (ibid.: 17) O poeta [Aossê] que. nesse gesto de elevação. muda de escala, virá a
deslocar o centro de gravidade do pensamento de Spinoza. Música e
Ver na luz do luar libidinal é um caminho de conhecimento, da pensamento, texto e trabalho crítico. terão de coincidir nesse ponto alto a
«ideia-noção» para a «ideia-essência» (Spinoza). Nos diferentes modos que se eleva o poeta. a sua bi-humanidade - revelada. aliás. no alto de
de fazer caminho, importa que ele se faça em cada legente/escrevente uma montanha. Muitas mais. refiro-me a «humanidades», serão necessá-
através do «modo de adequar». rias para que se constitua o dom poético. (Llansol, SH: 103)
Podemos dizer que em Llansol, o caminho se tem feito da água para
a luz. Percebemo-lo na referência à sua estética como sendo «hidrofóbi- Aquela «ondulatura», que mesmo visualmente se lê na pagina,
ca», em O Senhor de Herbais. «O mapa da intriga [do romance realista] é a imagem do conhecimento que pode sa lvar Aossê e o seu texto, a
foi laboriosam ente explicitado (... ) voltou seguro o leitor ao líquido mudança de escala que lhe permite ter «a consciência do vivo»; é nessa
amniótico (.. .). E estamos de volta à Atlântida materna. Compreende- mudança de escala que desabrocha. segundo Llansol, uma poética

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Maria Etelvina Santos

poderosíssima - a que chama do fulgor - aquela que é «capaz de «ideias adequadas>), aquele que permite a passagem da «ideia-noção»
deslocar o fundamento mecanicista das paixões e de apelar a novas (o segundo grau de conhecimento em Spinoza) à «ideia-essência)) (o
sonoridades.)) (ibid.: 104). É como se Aossê dialogasse com Spinoza, e terceiro grau de conhecimento, o mais elevado, o conhecimento das
chegasse a entender como um conhec imento crescendo é aquele que, intensidades). Ocam inho da água para a luz tende a se r um caminho de
progressivamente, passa da «ideia-paixão)) à «ideia-noção)) e desta à intensidades que se orienta para ver «o fogo do luar libidina l» (Llansol,
«ideia-essência)). Essa consciência a que acede Aossê, acontece-lhe M: 174).
por «ser elevado nos ares pelos braços possantes do músico, em vez de O luar libidinal é o brilho que guia o decurso da noite obscura para a
ser banhado nas águas de um qualquer baptismo.i> (ibid.: 104). Éesse meta noite (como do fenómeno para o metafenómeno). e nesta, a passa-
ponto alto a bi-humanidade de Aossê, aquela a que Pessoa não teve gem de uma geometria a outra, como Elizabeth fez com Aossê: «fica-
acesso, ou teria escrito com a alegre consciência disso. rei sempre contigo, meu amado, ensinar-te-ei a tua nova geometria»
A passagem da água para a luz, concretizada na cena em que Bach (Ll anso l, LL2.: 125). Porque «há, no rea l, um lugar envolvente e sublime,
levanta Aossê nos ares (explicitada no ca pítulo VI de O Senhor de a que chamo metanoite, que está para além da noite,/ quando se cam i-
Herbais), é também a imagem de três outras passagens recorrentes em nha porque é o único caminho (ibid.: 13) - «a chama num interior de
Llansol: anel é o outro nome da metanoite.» (ibid.: 157):
- a passagem de uma genealogia das origens (no texto, por exem-
plo, a referência ao «líquido amniótico>)) para uma linhagem de seme- Edisse a Aossê que, naquela encruzilhada, eu aprendera que a metanoite
lhantes, a da <<geração sem-nome)), a da comunidade futurante que luta é colorida (o que ele já sabia). e que (segunda conclusão, a que ele nunca
pela liberdade de consciência; chegara em vida) só pelo poder das palavras a que estávamos habituados
não chegaríamos a ela. a não ser que mudasse de lugar. de estrela em
- a passagem de uma tradição cultura l (a das Descobertas) para
estrela. (...) Chamei a este passeio, no dia seguinte, o xale da metanoite,
uma tradição restante (a «tradição segundo o espíri to da Restante
e tive finalmente a certeza de que nada se interrompia. salvo que mudava.
Vida»), que será a de uma errância em busca do Lugar que propicie (ibid.: 27).
os «encontros de confrontação», o diálogo do mútuo, a «conversação
espiritual>> que permita a «mudança de escala>) (no texto, o encontro
A pujança, como desejo consciente de perseverar no seu ser, que se
de Bach com Aossê, que permite a este uma mudança de poética), que
dá a ver como fulgor na luz do luar libidinal, só é sentida e se exercita
permita o Lugar que é este texto;
como convicção profunda no homem que é livre, no que pergunta quem
- a passagem, na relação com o mundo, da «fé» (ponto de vista o chama e vai atrás, porque sabe que essa é uma pergunta «adequada»
teológico, simbolizado na água do baptismo) para a «convicção profun- ao desejo de persistir. Só através desse desejo e do «modo de adequam
da)) de que o mundo é estético e que se revela através do «fulgor» que (Llansol, LLl 125), Elizabeth se encontrou com Aossê para salvar a
existe nas coisas (ponto de vista das pequenas percepções e do incons- Quimera e o «ovo-pedra de falcão)), uma pedra-pássaro que pode voar;
ciente estético, dado não através da água, mas da luz e da elevação), e Spinoza e o seu sistema podem continuar a ser «lidos na alta voz de
passagem que será expressa na luz do luar libidinal, essa memória da alguém» (ibid.: 165), porque ao dizer: «existo e, enqua nto for pensado,
eternidade e de ressuscitação, a que permite o acesso ao dom poético. sou indestrutível)) (ibid.: 164), Spinoza conhec ia e estava a mostrar-nos
É a luz e a elevação aqui lo que permite a mudança de escala que o modo estético do pensamento, o pensamento afectuante, e o caminho
transforma o poeta Aossê; o conhecimento de si-mesmo e do Outro, da ressuscitação, como Jade ao trazer de volta «a objecto de beleza».
«a consciência do vivo)), são momentos de um conhecimento feito de

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Maria Etelvina Santos

Osexo de ler, de pensamento afectuante, pensa a luz que se reflec-


te no sexo da paisagem; reciprocamente, o sexo-de-reenvio do legente
encontra-se com o texto e este, ao sentir-se iluminado pelo luar libidi-
nal, e por se aperceber da extensão do «xale da metanoite» - essa
memória de eternidade -, vislumbra <<o fogo do luar libidinah>e a
possibilidade de a sua voz ser recebida entre os cantores de leitura:

«Eu digo, em borboleta:


- Eu sou uma borboleta. Mas queria ter um sabor breve dos sentimen-
tos humanos. É, de toda a evidência. uma cabeça humana que me está
a pensar, o que não impede que o que aqui fica escrito seja o sentido na
minha alma de borboleta que defronta a criatura humana que me está a Uma estética literária para a geometria
ver - essa, que nunca quereria ser caçadora de borboletas,
e vimos Spinoza a espreitar-nos com o seu novo olhar, um
mas cantora de leitura, olhar à cão, e mal nos reconheceu dizer-nos (. ..) «entrem,
como já é cantora de escrever. entrem, é urgente»

Se os cantores de leitura me admitirem no interior da sua voz, como a voz e no atropelo que se gerou ainda teve tempo para dizer que
com que lêem lhes dirá que admitam, eu vacilarei entre ser e não ser da nos deixava companheiros filosóficos.(. . .) haveis de inventar
mesma espécie. Preciso de estudar, perto e longinquamente, sobre mim uma estética literária para a geometria
mesma - e a sua perda. A minha vida é arriscada e breve.» Llansol, O Senhor de Herbais
Ofogo do luar libidinal é isto.
(Llansol, AA: 174)
Uma estética literária para a geometria ou uma forma literária que
funde a comunidade no fulgor-
Procurar o adequado. Adequar com um pensamento de forma amati-
va, estético, afectuante, como o de Luís M. em Causa Amante, como o
de Elizabeth em Lisboaleipzig 2. O ensaio de música, quando se deita
com Aossê para chocar o ovo-pedra do falcão, que deve ter o peso e
a leveza de uma pedra-pássaro que voa, como uma Quimera que cria
mundo no pensamento - «ficarei sempre contigo, meu amado, ensi-
nar-te-ei a tua nova geometria» - , com uma forma amativa de contar
- porque <<O instrumento de criação são os afectos», e porque «sempre
o afecto me pareceu o caminho que me levaria ao íntimo do mundo»
-, como uma «confidência envolta», a afirmar-se como uma estética
afectuante, que se deseja a «escoar-se para a poesia»:

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Maria Etelvina Santos

Imagina a imagem-fonte de um escritor _ __ _ __


ó manes. o romance dos livros existe. São muitas cabeças
Pesadas sobre corpos humanos. acreditem. Se sabedoria e
Tempo me concederdes, é isso que vos vou contar. Jamais
Haveis ouvido manancial inesgotável de narrativas.
Fá-lo-ei escoar-se para a poesia. Permiti que meu jardim não
Cultive a rima. mas a prova pelo poético. De que se trata?
De uma corrente de oiro. Uma corrente de relógio que todos
Os livros sincroniza. Falta apenas a chave de ouro. o rneu
Romance final. Nunca visto! Nunca visto!
Esta, creio. a imagem de Poe _ __ _ __ _ __ _
Aplicou-a ao enigma do ponto-voraz e gerou quimeras sem
Fim
(Llansol. CLEP. 200)

Um pensamento de forma amativa. um trabalho estético como um


movimento de «trazer de volta», de «trazer à fala», que é ressuscitação
e rememoração, Apófrades, sexo-de-reenvio, como celebração de um
regresso na distancia, estabelecendo a passagem entre o visível e o
in-visível:

À distância, tornar-se-á evidente a natureza do trabalho estético.


Eeste. o que é, senão ver à sombra do que se não vê?
Há um não-vê que vela pelo vivo. Os seus efeitos são imprevisíveis. é um
facto, mas não duvido.
o que o texto tece advirá ao homem como destino.
(Llansol, SH 21 O)

Uma estética afectuante, como um desejo de Legente - ainda e


sempre, A. Borges, A. Nomade, o Nómada, o que foi chamado a ser
figura. o da <<forma amativa», o Fiel do Amor, o que «sob a toalha da
leitura» espalha «a poalha de dissonâncias luminosas que sustentam a
estética da pobreza» (Llansol, AA: 179), o eterno mestre-da-procura:

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2002 A Philosophy of Culture.· The Scope of Holistic Pragmatism, Princeton and
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notas do leitor ;'(

Como uma pedra-pássaro que voa - Llansol e o improvável da leitura


Maria Etelvina Santos

Mariposa Azual - Colecção: Rio da Escrita


1ª Edição - 300 exemplares
Lisboa - Novembro 2008

©Maria Etelvina Santos e Mariposa Azual

ISBN: 978-972-8481 -12-4

Impressão: Digital XXI

Mariposa Azual
mail@amariposa. net
www.amariposa.net

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