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NOSSA SENHORA

DE PARIS

Victor Hugo

• Civilização
Editora
([}autor

Victor Hugo nasceu em Besançon, em 1802.


Filho de um general do Império (que acompanhou em
algumas campanhas), sentiu-se atraído, ainda muito
novo, pela literatura clássica e pela poesia francesa do
século XVIII. Começou por escrever poemas ao jeito
clássico (Odes), mas depressa se tornou um inovador, de
modo que, com a publicação do Prefácio de Cromwell
e de Orientales e a representação de Hernani, passa a
ser considerado o chefe do romantismo francês. De 1830
a 1840, o seu prestígio atinge um ponto culminante.
Publica, então, Nossa Senhora de Paris, quatro compila­
ções de poesia lírica: Les Feuilles d'Automne, Les Chants du
Crépuscule, Les Voix Intérieures e Les Rayons et les Ombres,
assim como alguns dramas: Marion de Lorme, Lucrece
Borgia e Ruy Blas. Após a morte de sua filha Léopoldine,
dedica-se à política. Figura grada dos duques de Orleães,
torna-se membro da Câmara dos Pares e da Constituinte.
Mas uma tendência crescente para os ideais republica­
nos fá-lo cair em desgraça, e assim, após o golpe de
Estado de Luís Napoleão, a que se opusera, parte para
o exílio nas ilhas da Mancha. Dá-se então como que um
remoçamento do seu génio. A sua arte passa a exprimir
com vigor um ideal amplamente social dominado pelo
conceito absorvente de progresso humano e uma visão
apocalíptica do mundo. São desta fase os poemas satíri­
cos, Châtiments, de mistura com a lírica de La Légende
des Siecles, assim como Os Miseráveis e Os Homens do
Mar. Proclamada a República, regressa em 187 1 a Paris,
e volta a ser deputado, mas cedo abandona a política.

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Morreu em Paris em 1885. Objeto de acesas polémi­
cas no seu tempo, a obra de Victor Hugo acabou por
influenciar a literatura de muitos países, entre os quais
Portugal, onde marcou escritores como Mendes Leal,
Lopes de Mendonça, Guerra Junqueiro, Gomes Leal e
Eça de Queirós.

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f!liitrodueão •
*

A vida de Victor Hugo acompanha quase todo o século XIX ( 1802- 1885).
Por isso, necessário se torna fazer um esboço dos principais aconteci­
mentos da época que, como veremos, marcaram profundamente a vida
do poeta.
A uma análise ainda que superficial do século XIX francês não
pode passar despercebida a sua mais evidente característica : trata-se
de uma época de enorme complexidade. Tendo a Revolução de 1789
abolido o antigo regime, foi necessário construir um novo, o que le­
vou à França um século inteiro, em que conheceu todas as formas
de governo. O caminho para o regime republicano é longo e difícil,
passando por toda uma série de convulsões político-sociais, incluin­
do três revoluções até se estabelecer definitivamente. Sucedem-se as
violentas transformações políticas, aparecendo-nos assim como um
período de extrema instabilidade. Na realidade, entre 1800 e 1900,
a França conhece sete regimes políticos: o Consulado, o I mpério, a
Restauração, a Monarquia de Julho, a I I República, o I I I mpério e a
I I I República . Trata-se de um período de enorme agitação e rico em
contrastes: vemos o país passar do governo democrático instaurado
pela Revolução de 1789 a um poder ditatorial, numa alternância de
regimes autoritários e liberais; vemo-lo atingir o auge do poder e da
glória militar com Napoleão I para logo em seguida sofrer duas inva­
sões em 1 8 14 e 1 8 1 5 e uma terceira em 1870- 187 1 . Se a tomada do
poder por Napoleão aniquila algumas das liberdades conquistadas
pela Revolução, como a liberdade de imprensa , por outro lado ela

• Por ter sido escrita em 1975, esta introdução, incluída numa edição publicada
pela Livraria Civilização Editora , não segue o Novo Acordo Ortográfico. (N. do E.)

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consolida-se através da reorganização administrativa, financeira, j u­
rídica, religiosa e escolar que assegura a paz interior do país. Além
disso, com a sua política expansionista, Napoleão visara estender a
toda a Europa o espírito da Revolução Francesa, tentando destruir as
suas estruturas feudais e absolutistas. Por outro lado, a sociedade sob
o 1 I mpério é uma sociedade burguesa, por isso a queda do regime,
que arrasta uma restauração da monarquia imposta pelo estrangeiro,
tem como consequência uma tentativa da antiga aristocracia para re­
tomar um papel preponderante . Esta tentativa não resulta, opondo-se
a ela o poder económico cada vez maior da burguesia; ao mesmo
tempo, as classes populares tomam consciência da opressão de que
são vítimas e procuram libertar-se. Por isso, todo o século XIX se en­
contra marcado pelos medos sociais que se reflectem na literatura e
nas correntes de pensamento.
Sob a Restauração a luta entre partidários do antigo regime e de­
fensores da nova ordem desenvolve-se de novo. Luís XVI I I , tentando
uma solução de compromisso, outorga uma Carta Constitucional, dan­
do assim satisfação à burguesia. O assassinato do duque de Berry,
em 1820, fornece à nobreza ocasião para tentar restabelecer o an­
tigo regime (entre outras, aprova-se uma lei que concede valiosas
indemnizações aos emigrados para os compensar das perdas sofridas
durante a Revolução). O sucessor de Luís XVI I I , Carlos X, é coroado
solenemente na catedral de Reims. Em 1830, quando da publicação,
por Carlos X, de quatro leis que violavam a Carta Constitucional, o
povo de Paris amotina-se numa insurreição que durará três dias. Esta
revolução popular é habilmente utilizada pela burguesia, que apro­
veita para instalar no poder Luís Filipe.
Depois de 1830, a burguesia consegue controlar o poder político,
graças à monarquia parlamentar, e o seu poder económico é cada
vez maior, como consequência do desenvolvimento do capitalismo
comercial. Beneficiando de grande influência política e económica,
consciente da sua superioridade intelectual, a burguesia p rocura as­
segurar a sua estabilidade.
Em contraste , surge a desesperante miséria das classes populares
e a pavorosa realidade da vida operária: horários extenuantes, ofici­
nas insalubres, salários baixíssimos. A crise agrava-se e em Fevereiro
de 1848 estala uma nova revoluçã o : a burguesia, verificando que a

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monarquia se mostrou incapaz de resolver as contradições do regi­
me, alia-se ao povo e é proclamada a república. Um governo pro­
visório toma medidas importantes: sufrágio universal, abolição da
pena de morte. Mas a burguesia, mais uma vez, usurpa ao povo a
sua parte nas conquistas revolucionárias; uma nova insu rreição po­
pular rebenta em Junho de 1 848 e é brutalmente reprimida. Como
consequência as duas classes erguem-se implacavelmente uma con­
tra a outra . Na sequência da crise, um novo regime político, o I I
I mpério, faz a sua entrada e m cena. Começa então aquilo a que se
pode chamar a revolução industrial francesa: desenvolvimento dos
transportes, caminhos-de-ferro, rede de estradas; melhoramento dos
serviços postais; com a difusão da máquina a vapor, a concentração
das empresas e a renovação dos modos de financiamento, a indús­
tria conhece um desenvolvimento prodigioso. Acelera-se o êxodo dos
campos e assiste-se ao desenvolvimento do comércio e ao crescimen­
to das cidades.
Embora a I I I República sej a proclamada em Setembro de 1870, as
condições de vida dos operários agravam-se cada vez mais. O pro­
letariado começa a ter noção da sua força e aparecem as primeiras
organizações operárias. Funda-se a Primeira I nternacional . Estalam
greves para reivindicar melhores condições de trabalho. O sindica­
lismo procura organizar a sua luta fora de compromissos partidários.
Em 189 5 funda-se a Confederação Geral do Trabalho que procura
unificar os esforços dos militantes, evitando as dissensões do movi­
mento socialista em política.
Perante este mundo em convulsão, a literatura não reage de modo
unitário. Alguns escritores põem-se à margem da vida social e polí­
tica e refugiam-se na arte pela arte, como Théophile Gautier. Outros,
como Auguste Comte, vêem na ciência o futuro da humanidade.
Outros ainda, analisando com lucidez o mundo em turbilhão que
os rodeia, p rocuram descrever com precisão tudo o que observam,
levando a literatura pelos caminhos do realismo e do naturalismo.
Apenas um, precisamente Victor H ugo, se conservará fiel ao roman­
tismo liberal e humanitário, como adiante veremos, ao analisar a sua
obra .

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1- Resumo Cronológico da Vida de Victor Hugo ( 1802-1885)

1802 - Victor Hugo nasce em Besançon, a 26 de Fevereiro; terceiro


filho de Joseph-Léopold H ugo, oficial do exército, mais tarde
general, e de Sophie Trébuchet.

1803 - O pai é transferido para a Córsega e depois para a ilha de Elba.

1 804- 1807 - Victor Hugo vive com a mãe em Paris, na Rua de Clichy.

1807 - O pai é promovido a coronel e transferido para Nápoles, onde


M .m• Hugo se lhe reúne com os filhos.

1808 - O coronel Léopold Hugo desloca-se à Espanha; Victor Hugo re­


gressa a Paris com a mãe; instalam-se nas " Feuillantines"; este pe­
ríodo da infância deixará uma viva recordação na sua obra poética.

1 8 1 1 - 1 8 12 - M . m• Hugo reside algum tempo em Madrid com o marido;


Victor Hugo frequenta um colégio espanhol. Na sequência do
desentendimento entre os pais, cuj a separação se virá a efectivar
em breve, Victor Hugo regressa a Paris, às Feuillantines.

1 8 14- 1 8 1 6 - A mãe de Victor Hugo instala-se com os filhos na


Rua das "Vieilles-Tuilleries"; a separação dos pais é sancionada
legalmente; Victor Hugo é confiado ao internato Cordier e segue
estudos normais no Liceu Louis Le-Grand durante três anos
( 1 8 1 6 - 1 8 1 8 ) , tendo chegado a frequentar a Faculdade de Direito,
carreira de que desistiu em breve.

1 8 1 7 - 1 8 1 9 - A sua carreira literária começa a esboçar-se: recebe prémios


da Academia Francesa e da Academia dos Jogos Florais de Toulouse.
Tendo entretanto regressado a casa da mãe, funda, encorajado
por ela, e de colaboração com as irmãs, uma revista cujo título, o
"Conservador Literário", define bem as tendências do j ovem Hugo:
católico e monárquico, procura obter o apoio de Chateaubriand, a
quem admira fervorosamente; nesta revista publicará artigos sobre
Chénier e Lamartine e o romance exótico Bug-Jargal.

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1820 -Uma "Ode sobre a Morte do Duque de Berry" vale-lhe uma
gratificação do rei Luís XVI I I .

182 1 - M orte d a mãe.

1822 - Publica a sua primeira colectânea de poemas, Odes e Poesias


Diversas, o que lhe permite obter uma pensão de 2000 francos con­
cedida por Luís XVI I I ; casa a 12 de Fevereiro com Adéle Fouchet, a
quem o liga uma violenta paixão que lhe inspirou fervorosas cartas
de amor (publicadas postumamente) .

1823 Publica o seu primeiro romance em volume: Han d'Islande, obra


-

de que recebe pela primeira vez direitos de autor.


O seu primeiro filho morre com dois meses e meio.
Associando-se ao grupo do Cenáculo, cria uma nova revista, Musa
Francesa.

1824 - Nasce sua filha Léopoldine. Publica a sua segunda colectânea


de poemas, Novas Odes.

1825 - Carlos X distingue-o com a Legião de Honra.

1826 Nascimento do terceiro filho, Charles; publicação do terceiro li­


-

vro de poemas, Odes e Baladas, e da segunda versão de Bug-Jargal.

1827 - Victor Hugo trava conhecimento com Sainte-Beuve; instala a sua


residência na Rua Notre-Dame-des-Champs onde se reúne o novo
Cenáculo. Publica o drama Cromwell precedido por um longo prefá­
cio em que define o drama romântico e que virá a ser considerado
como um manifesto anticlássico.

1828 - Morte do pai (29 de Janeiro); nascimento do seu quarto filho,


François-Victor (2 1 de Outubro ) .

1829 - Publica as Orientais, em cuj o prefácio defende vigorosamente


o princípio da liberdade na arte; o romance de tendências humani­
tárias Ú ltimo Dia de Um Condenado; o seu segundo drama, Marion,
de Lorme é proibido pela censura.

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1829 Estreia de Hernani na Comédie Française. Hernani marca uma
-

revolução literária; o triunfo da peça, que sucede à viva polémica


por ela levantada entre clássicos e românticos, marca o sucesso do
j ovem poeta que se torna o chefe incontestado da escola romântica.
Com Hernani, Hugo exalta o herói romântico, fora da lei, sombrio,
generoso, em luta contra a sociedade, perseguido por um destino
hostil. Com menos de trinta anos, Victor Hugo é um j ovem deus,
aureolado de glória. Do grupo do Cenáculo, de que a sua casa é
o lugar de reunião, fazem parte Vigny, Dumas, Mérimée, Balzac,
Sainte-Beuve, Nerval e Gautier, entre outros.

183 1 - Publicação de Nossa Senhora de Paris; representação de Marion


de Lorme (anteriormente proibida) . Instala-se em Outubro no n.º 6
da Place Royale, hoj e Place des Vosges. Publica as Folhas de Outono.

1832 Proibição da peça O Rei Diverte-se ; Victor Hugo renuncia à sua


-

pensão de 2000 francos.

1833 Representação de Lucrécia Bórgia e Maria Tudor. A sua felicidade


-

conj ugal é gravemente atingida pela ligação entre Sainte-Beuve e


M . me Hugo. Victor Hugo encontra Juliette Drouet com quem inicia
uma ligação amorosa que durará 50 anos (até à morte de Juliette
que por ele renunciou à sua carreira de actriz) .

1834 - Mistura de Literatura e Filosofia. Claude Gueux.

1835 Publica Cantos do Crepúsculo (poemas) e Ângelo (drama); apre­


-

senta à Academia Francesa a sua candidatura que é recusada.

1837 - Publica Vozes Interiores.

1838 I naugura o teatro de Renascença com o drama em verso Ruy


-

Blas que obtém grande sucesso.

1839 - Victor H ugo intervém junto de Luís Filipe a favor de um con­


denado à morte; em companhia de Juliette Drouet faz uma longa
viagem pela Europa (Alsácia, Renânia, Suíça, Sul).

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1840 - Nova tentativa gorada de entrar na Academia; publica Os Raios
e as Sombras; nova viagem pelas margens do Reno e pelo vale
de N eckar; publicação em Dezembro de O Regresso do Imperador
(obra que comemora o regresso dos restos mortais de Napoleão 1) .

184 1 - Consegue finalmente entrar na Academia Francesa, com o


apoio de Thiers e Guizot.

1842- 1843 - Hugo leva uma intensa vida social; publica O Reno (narra­
tiva de viagem); conhece o insucesso com a peça Burgraves e decide
renunciar ao teatro. Viaj ando, no regresso de Espanha, com Juliette
Drouet, Hugo toma conhecimento, ao ler o j ornal, da morte de
sua filha Léopoldine, que se afogara com o marido em Villequier.
Este acontecimento trágico mergulha-o no desespero e inspira-lhe
alguns dos seus mais célebres poemas reunidos mais tarde na obra
intitulada As Contemplações.

1844- 1848 - Lança-se na vida pública: frequenta a residência do rei


Luís Filipe, é eleito par da França e obtém do rei o título de visconde.

1848- 185 1 - Após uma longa fidelidade a Luís Filipe cuj o conselheiro
sonhou talvez vir a ser e depois de ter em vão defendido o proj ecto
de regência da duquesa de Orleães, muda de orientação, aliando-se
à II República como deputado por Paris à Assembleia Constituinte e
depois à Assembleia Legislativa. Defende então ideais de orientação
socialista: liberdade de imprensa, ensino democratizado, bem-estar
do povo, abolição da pena de morte. Julgando ser o príncipe Luís
Napoleão o homem indicado para realizar o seu programa de ordem
e de progresso, Victor Hugo apoia entusiasticamente a sua candida­
tura para presidente da República . Por razões pessoais e ideoló­
gicas, depois da eleição, Hugo passa à oposição e aproxima-se da
esquerda. Denuncia as ambições ditatoriais de Luís Napoleão. A sua
oposição ao príncipe-presidente e a tentativa gorada de organizar
a resistência ao golpe de Estado de 2 de Dezembro, fomentando
a subversão do povo de Paris, levam-no ao exílio: refugia-se em
Bruxelas.

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1852 - Juliette Drouet e um dos filhos do poeta reúnem-se-lhe em
Bruxelas. V. Hugo publica o panfleto " Napoleão Pequeno". Fixa resi­
dência na ilha inglesa de Jersey, em Marine-Terrace.

1853 -A notável obra satírica intitulada Châtiments (Punições) é


impressa em Bruxelas e introduzida clandestinamente na França.
V. Hugo compõe Pequenas Epopeias (primeiro título da obra mais
tarde publicada com o nome de A Lenda dos Séculos) . Escreve ainda
a Visão de Dante e trabalha noutras obras como Fim de Satanás e
Deus, que serão conhecidas postumamente.

1856 - Expulso de Jersey, o poeta instala-se na ilha de Guernesey, onde


adquire uma casa a que dá o nome de Hauteville-House. Publica
As Contemplações que obtêm um imenso sucesso.

1859 - Recusando uma amnistia, V. Hugo opta pela continuação no exí­


lio, renunciando a regressar à França. Publica a A Lenda dos Séculos.

1 8 6 1 - Viaja pela Bélgica e visita Waterloo, em cuja proximidade, Mont­


-Saint-Jean, termina Os Miseráveis.

1862 - Publicação de Os Miseráveis; nova viagem (Reno e Ardenas).

1863 - Aparece em Paris um livro escrito por sua mulher Adéle - Victor
Hugo contado por uma testemunha da sua vida.

1864 - Publicação de William Shakespeare; o poeta inicia Os Trabalha­


dores do Mar; de Agosto a Setembro viaja (Ardenas, Renânia e Bélgica).

1865 - M . me Hugo parte de Guernesey e passa a viver com os dois filhos


em Bruxelas; V. Hugo conclui Os Trabalhadores do Mar e A Avó; viaj a
entre Agosto e Setembro e assiste em Bruxelas ao casamento do seu
filho Charles. Publica Canções das Ruas e dos Bosques.

1866 - V. Hugo escreve Mil Francos de Recompensa e publica Traba­


lhadores do Mar; desloca-se a Bruxelas onde começa O Homem
Que Ri.

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1867 Estada de M .m• Hugo em Hauteville-House (seis semanas); nas­
-

cimento do primeiro neto, Georges-Hugo, em Bruxelas. Reposição


de Hernani em Paris. Vinda de V. Hugo a Bruxelas onde assiste ao
baptizado do neto; pequena viagem à Zelândia e estada em Chaud
Fontaine com M .m• Hugo.

1868 Depois da morte do pequeno Georges, V. Hugo reúne-se à famí­


-

lia em Bruxelas; conclui O Homem Que Ri; M .m• Hugo morre a 27 de


Agosto. V. Hugo regressa a Guernesey em Outubro.

1869 V. Hugo escreve A Espada; publica O Homem que Ri. Desloca-se à


-

Bélgica, viaja pela Suíça e preside em Lausana ao Congresso da Paz.

1870 Reposição em Paris de Lucrécia Bórgia; de Novembro a Julho


-

composição de poemas que serão publicados em Os Anos Funestos e


Toda a Lira. Em Setembro regressa a Paris. Após dezanove anos de
exílio, V. Hugo aparece aos olhos da população corno o símbolo da
fidelidade aos ideais democráticos; daí a sua imensa popularidade.

1871 Eleito deputado por Paris. V. Hugo parte para Bordéus, onde se
-

vai reunir a Assembleia Nacional. A 8 de Março demite-se. Volta a


Paris para assistir ao funeral do seu filho Charles que morreu subi­
tamente.

1872 V. Hugo publica o Ano Terrível. Discordando da orientação


-

reaccionária do governo francês, regressa a Guernesey, onde com­


põe o poema " Escrito no Exílio". Sua filha Adéle enlouquece e é
internada em Saint-Mandé.

1873 - V. Hugo termina Noventa e Três. Morte do filho François-Victor.

1874 Publicação de Noventa e Três e Os Meus Filhos; fixa residência


-

em Paris, Rua de Clichy.

1875 - Pronuncia um discurso no funeral de Edgar Quinet que des­


perta a hostilidade da imprensa católica. Publica Actos e Palavras
( 1 .0 e 2.0 volumes) .

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1876 - A 30 de Janeiro é eleito senador de Paris; intervém no Senado
defendendo a amnistia para os membros da Comuna. Publica Actos
e Palavras (3.º volume).

1877 - Publicação de A Lenda dos Séculos (2.ª parte) , da Arte de Ser Avô
e História dum Crime (l.ª parte).

1878- 1880 - V. Hugo publica a segunda parte da História dum Crime,


O Papa e o Discurso sobre Voltaire. Preside ao Congresso Literário
I nternacional pronunciando o discurso de abertura. A sua saúde
começa a degradar-se, na sequência dum derrame cerebral (Junho
de 1878). Após uma estada em Guernesey regressa a Paris onde
fixa definitivamente residência na Avenida d'Eylau . Deixa pratica­
mente de escrever. Até à sua morte publicará obras já elaboradas
anteriormente: Piedade Suprema ( 1879) , Religiões e Religião ( 1880 ) ,
O Burro ( 1880) .

188 1 - 27 de Fevereiro, grande manifestação em honra do aniversá­


rio de V. Hugo: cerca de 600 000 pessoas desfilam em frente da
sua residência na Avenida d'Eylau (que pouco depois virá a ser a
Avenida de Victor H ugo) . Publicação de Os Quatro Ventos do Espírito.
Disposições testamentárias legando todos os seus manuscritos à
Biblioteca Nacional .

1882 - Victor Hugo ceia com os intérpretes da peça Noventa e Três (26
de Março). Publica Torquemada (fim de Maio). Oferece um banquete
aos intérpretes de O Rei Diverte-se ( 18 de Dezembro ) .

1 8 8 3 - Morte de Juliette Drouet ( 1 1 de Maio) - Publicação do tomo


I I I de A Lenda dos Séculos - Disposições testamentárias ("Recuso a
oração de todas as igrej as; peço uma oração a todas as almas. Creio
em Deus") - V. Hugo faz uma estada em Villeneuve, no Hotel Byron
- Publica em Outubro o Arquipélago da Mancha.

1884 - Viagem à Suíça no Verão. Dirige uma curta alocução aos alunos
da escola primária de Veules.

14
1885 - Atingido por um edema pulmonar a 1 5 de Maio, morre a 22
do mesmo mês, aquele que foi uma das maiores figuras do século.
O funeral teve honras de Estado e os seus restos mortais repousam
no Panteão.

Obras póstumas: O Fim de Satanás; Teatro em Liberdade ( 1886 ) ; Coisas


Vistas ( 1887- 1900 ) ; Toda a Lira ( 1888- 1899) ; A lpes e Pirenéus
( 1890 ) ; Deus ( 1891 ) ; França e Bélgica ( 1892); Correspondência ( 1896 ) ;
O s Anos Funestos, Amy Robsart, O s Gémeos ( 1898); Cartas à Noiva,
Post-Scriptum da Minha Vida ( 190 1 ) ; Último Feixe ( 1902); Oceano,
Monte de Pedras ( 1942 ) .

II - O homem e a obra

Victor Hugo ocupa um lugar excepcional na história da literatura


francesa: domina todo o século XIX, pela extraordinária duração da
sua vida (83 anos) e da sua carreira. Dotado de um génio surpreenden­
temente fecundo, cria uma obra de dimensões prodigiosas. Possuidor
de uma deslumbrante virtuosidade verbal, muito cedo se impõe
como chefe dos escritores românticos cuj a luta conduz até à vitória.
A característica mais impressionante da sua obra é o gigantismo: cul­
tiva com sucesso todos os géneros literários (poesia, romance, teatro).
Proclama-se revestido de uma missão sagrada:

O poeta vem, em dias ímpios,


Preparar dias melhores.
É ele o homem das utopias,
Com os pés na terra, os olhos no além.
É ele que, em todas as épocas,
Semelhante aos profetas,
Acima de todas as cabeças,
Na sua mão, que tudo pode abarcar,
Deve, como se brandisse um archote,
Indiferente a louvores e insultos,
Fazer resplandecer o futuro.

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Os pontos culminantes da sua carreira literária são o resultado de
duas crises violentas, uma provocada pela morte da sua filha Léopoldine
e a outra pelo exílio: é na gloriosa solidão de Guernesey, em contacto
com a imensidade do céu e do mar, que desabrocha plenamente o seu
génio criador, amadurecido pelo sofrimento e pela experiência política.
O seu pensamento ardente e visionário leva-o a reflectir sobre os
grandes problemas da vida social e os grandes enigmas do Universo;
a sua imaginação inesgotável faz da sua obra um mundo de imagens,
de símbolos, de ritmos, de palavras; estas faculdades aliadas a uma
técnica impecável, que lhe permite o domínio constante da palavra,
possibilitam-lhe a criação de uma obra excepcional pela qualidade,
diversidade e extensão.
Victor Hugo é o grande poeta que sabe exprimir os sentimentos,
com uma potência ou uma simplicidade comoventes, em versos admi­
ravelmente bem timbrados e fortemente cadenciados. A sua poesia
dá expressão ao amor, à j uventude, à maturidade, à alegria e à dor,
aos sentimentos patrióticos e ao culto de uma figura nacional como
Napoleão, mas também a sentimentos mais universais: um humanismo
de inspiração evangélica que tende a suprir o direito dos homens com
a j ustiça divina, o respeito de todas as criaturas, a familiaridade com
a natureza . O seu sentido de humanitarismo leva-o a defender ideias
generosas consideradas na sua época como utópicas e que hoj e vemos
realizar-se: democratização e laicização do ensino, supressão da pena
de morte, humanização das prisões, trabalho para todos. Por tudo isso
conseguiu uma imensa popularidade, não só na França mas também
além-fronteiras; a sua obra consegue atingir vastas camadas de público
e mesmo as massas populares. Por isso François Mauriac fala a propó­
sito de Victor Hugo de "heroísmo da banalidade".
Mas este é apenas o aspecto mais superficial e evidente; um conhe­
cimento mais profundo revela-nos uma obra extremamente complexa
e multifacetada, produto de uma personalidade imensamente rica em
contradições e cuj o enigma o próprio Hugo se confessa incapaz de
desvendar:

Ignoro-me; sou para mim mesmo desconhecido.


Só Deus sabe quem eu sou e como me chamo.

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Por isso, Henri Guillemin diz a propósito do poeta: "Victor Hugo?
Qual deles? As quatro sílabas deste nome suscitam uma colecção de
seres discordantes. "
Na impossibilidade de fazer a narração pormenorizada de uma vida
de 83 anos bem ricos em vivências tentaremos reconstituir algumas
das suas facetas mais significativas.
Vimos já, ao fazer o resumo cronológico da sua vida, como o des­
tino literário de V. Hugo aparece nitidamente desenhado desde muito
cedo; com 15 anos obtém um prémio da Academia Francesa e pouco
mais tarde, aos 17, é distinguido pela Academia dos Jogos Florais de
Toulouse; escreve o seu primeiro romance Bug-Jargal e funda uma
revista, O Conservador Literário; a sua ambição é já imensa como ele
próprio declara: "Quero ser Chateaubriand ou nada. " Podemos con­
siderar esta fase da sua vida como os anos de aprendizagem. Uma
espécie de instinto aristocrático leva-o a enfileirar ao lado da tradição;
encorajado por estes primeiros sucessos, procura a protecção e o apoio
financeiro do rei , celebrando a restauração da monarquia. Cultiva o
género oficial da ode com as obras Odes e Poesias Diversas ( 1822) e
Odes e Baladas ( 1827).
Os seus primeiros romances, Bug-Jargal (já citado) e Han d'Island
( 1823), estão de acordo com as tendências da época, mostrando nítida
influência de Walter Scott. Obtém uma pensão do rei Luís XVI I I (que
lhe dá a possibilidade de desposar Adéle Foucher) . Recebe a cruz da
Legião de Honra em 1824 e é convidado para a sagração do rei Carlos X
em Reims, acontecimento que motivará uma nova ode. V. Hugo sobe
orgulhosamente os degraus que conduzem ao sucesso.
Introduzido por Charles Nodier no Cenáculo (grupo de literatos
favoráveis a uma renovação das letras francesas e às chamadas ideias
românticas) , V. Hugo participa na elaboração de uma nova revista,
de tendência moderada, Musa Francesa. Por volta de 1827, Hugo
atravessa uma tempestade: outrora legitimista, tradicionalista, cató­
lico, monárquico, coloca-se agora ao lado dos liberais e do seu j ornal
O Globo. Fascinado pela gesta imperial, celebra Napoleão Bonaparte e
volta-se para o drama com Cromwell em que trata o tema, enquadrado
na Revolução I nglesa, do grande chefe político saído do povo, e cuj o
p refácio foi considerado como um manifesto anticlássico, porque nele
pretende o autor destruir "teorias, poéticas e sistemas", p reconizando,

17
para conseguir uma pintura total da realidade, a mistura dos géneros
literários, a união do trágico e do cómico, do sublime e do grotesco,
a abolição da regra clássica das três unidades, admitindo apenas a
unidade de acção e a liberdade de inspiração. Torna-se assim o chefe
incontestado da escola romântica. A sua residência é adaptada como
sede do Cenáculo. O seu sucesso alarga-se ainda com a publicação de
uma colectânea de poemas, As Orientais ( 1829) , de uma narrativa de
tom humanitário, Ú ltimo Dia de Um Condenado, de uma peça, Marion
de Lorme (proibida pela censura). Em 1830, a primeira representação
de Hernani desencadeia uma verdadeira batalha em que se defrontam
clássicos e românticos. Estes viram no drama, que celebrava o herói
romântico, fora de lei, lutando contra a sociedade e o destino hostil,
um protesto contra todas as formas de tirania. O sucesso de Hernani
marca o triunfo não só do seu autor, mas também da nova escola
romântica.
A partir de 1830, passada a fase de aprendizagem e definida a sua
orientação estética, multiplica-se a sua actividade literária. A sua fama
estende-se ao grande público com um romance, Nossa Senhora de Paris
( 183 1 ) , em que evoca a cidade de Paris no século XV, com as suas mul­
tidões de burgueses, estudantes e vagabundos e a sua catedral que se
anima, na sua imponência, de uma vida misteriosa e fantástica; o pessi­
mismo de inspiração faz cair sobre as personagens um fatalismo som­
brio que os leva ao crime e à morte; o romance aproxima-se de Hernani
pelo facto de condenar a sociedade, que é encarada como responsável
das infelicidades que se abatem sobre Quasímodo e Esmeralda. Por
outro lado, a obra vale como um grande fresco histórico à maneira de
Walter Scott.
Durante estes anos laboriosos e fecundos, em que a França assiste
a mais uma mudança de regime (um rei constituciona l , Luís Filipe,
sobe ao poder, após as jornadas gloriosas de Junho de 1830), V. Hugo
publica ainda mais quatro colectâneas de poemas: Folhas de Outono
( 183 1 ) , Cantos do Crepúsculo ( 1835), Vozes Interiores ( 1837), Os Raios e
as Sombras ( 1840) .
Partindo de u m a poesia de inspiração íntima, familiar e meditativa
em Folhas de Outono, medita sobre problemas e ideias políticas em
alguns poemas de Cantos do Crepúsculo, para reflectir sobre temas de
alcance filosófico como o sentido da vida, Deus e o futuro do homem,

18
em Vozes Interiores. Em Os Raios e as Sombras retoma estes diferentes
temas, ao mesmo tempo que mostra uma reflexão mais profunda sobre
a missão do poeta que tem o dever de guiar os homens e o direito
de criticar os códigos humanos, porque a poesia é conhecimento das
verdades eternas; daí que a sua inspiração se alargue a temas mais
universais, como meditações perante a natureza e o mistério da morte.
Alguns poemas desta fase anunciam j á as visões de As Contemplações
e de A Lenda dos Séculos.
É também nesta fase da sua evolução que a sua actividade literária
se volta para o teatro; após ter conseguido fazer representar em 183 1 a
sua peça Marion de Lorme (proibida em 1829) , publica O Rei Diverte-se
( 1832, peça também proibida) e escreve de seguida três dramas em
prosa, Lucrécia Bórgia, Maria Tudor ( 1833 ) , Ângelo, Tirano de Pádua
( 1835) e dois dramas em verso, Ruy Blas ( 1838) e os Burgraves ( 1843) .
D e entre estas últimas salienta-se Ruy Blas, drama e m 5 actos, que
obtém um franco sucesso: o drama tem como base a história de amor
entre um criado, Ruy Blas, vítima da sua condição social, e a rainha da
Espanha; a sua nobreza de sentimentos, que contrasta com a corrupção
e a inépcia dos nobres de nascimento, confere à peça certa convicção
democrática. Se Ruy Blas foi um sucesso, o mesmo não se passa com
os Burgraves, drama épico que foi pareado pelo público e que marca o
fim da carreira teatral de V. Hugo. O exílio e elaboração de outras obras
impedi-lo-iam de voltar a escrever para o teatro, exceptuando algumas
peças em que domina a fantasia e que aparecerão postumamente com
o título de Teatro em Liberdade.
Vendo os seus trabalhos consagrados em 184 1 , pela sua eleição
para a Academia Francesa e pela sua nomeação, em 1845, para a
Câmara dos Pares, procura na actividade política uma compensação
para a funda crise moral provocada pela morte, em 1843 , de sua filha
Léopoldine. A sua actividade literária parece ressentir-se disso, mas o
facto é que V. Hugo continua a escrever, embora não publique. Compõe
alguns dos poemas de As Contemplações e trabalha num novo romance
popular e humanitário, intitulado provisoriamente Misérias e que virá a
ser mais tarde Os Miseráveis. Leva uma intensa vida social, frequenta as
festas da corte, aproxima-se do rei Luís Filipe e da duquesa de Orleães,
ao mesmo tempo que se deixa absorver pelo trabalho. O seu génio
amadurece e os seus escritos reflectem o profundo sofrimento causado

19
pela morte de Léopoldine e as preocupações sociais que caracterizam
o ambiente que o rodeia.
Os acontecimentos de Fevereiro de 1848 vêm interromper a sua
actividade literária.
Liberal sem ser republicano, humanitário sem ser socialista, depois
de ter apoiado a candidatura à regência da duquesa de Orleães,
V. Hugo alia-se à II República e é eleito deputado por Paris em 1848
e depois em 1849. Funda um j ornal, O Acontecimento, e escolhe como
divisa " Ódio Vigoroso da Anarquia, Terno e Profundo Amor do Povo".
Combate o governo de Cavaignac que ameaça a liberdade de imprensa,
mas a sua posição política é muito indecisa, como ele próprio afirma:

Liberal, socialista, dedicado ao povo, não sendo ainda republi­


cano, tendo ainda uma multidão de preconceitos contra a Revolução,
mas execrando o estado de sítio, as deportações sem julgamento e
Cavaignac1 com a sua falsa república militar.

Isto explica que V. Hugo tenha apoiado a candidatura à presidên­


cia da República de Luís Napoleão Bonaparte. Depois da eleição, dissi­
dências pessoais e ideológicas levam-no a passar à oposição; em 185 1 ,
Hugo denuncia num discurso violento perante a Assembleia a s ambições
ditatoriais do príncipe-presidente. V. Hugo aparece assim em política
como um independente, ora confundido com a direita, ora aplaudido
pela esquerda, facilmente detestado por ambas. Por isso após o golpe de
Estado de 2 de Dezembro de 185 1 (que inaugura o II Império), V. Hugo
toma o caminho do exílio. Depois de uma curta estada em Bruxelas, refu­
gia-se com a família na ilha de Jersey, de onde é expulso em Outubro de
1855 pelas autoridades inglesas. Instala-se então na ilha de Guernesey, na
sua propriedade de Hauteville-House. No exílio que deveria prolongar-se
por vinte anos, V. Hugo reencontra-se a si próprio. Entrega-se totalmente
ao labor literário, o que não o impede de estar a par dos acontecimentos,
de defender grandes ideais, como o apoio aos povos oprimidos e a fé no
triunfo final da liberdade e da justiça. Torna-se republicano entusiasta.

1 O general Cavaignac, que foi chefe do poder executivo em 1848, reprimiu


brutalmente a insurreição de Junho e candidatou-se à presidência da República em
oposição a Luís Napoleão.

20
Recusa orgulhosamente a amnistia concedida por Napoleão I I I . É a época
mais prestigiosa da vida de V. Hugo. Engrandecido pelo exílio, o proscrito
de Guernesey alcança fama mundial. Realiza a parte mais importante e
mais marcadamente original da sua obra. Os títulos sucedem-se com pou­
cos anos de intervalo: Punições (1853); As Contemplações (1856) ; A Lenda
dos Séculos (1859); Os Miseráveis (1862) . Na solidão quase completa de
Guernesey, longe de Paris e dos seus salões literários, em contacto com
a natureza, o seu génio desabrocha plenamente e torna-se um dos mais
espantosos fenómenos de criação na literatura francesa. De início, consa­
grou à história e à sátira dos recentes acontecimentos as suas primeiras
obras, Napoleão Pequeno (1852) e História de Um Crime; a explosão de
cólera contra o usurpador Luís Napoleão inspira-lhe uma das mais notá­
veis obras satíricas da poesia francesa, Punições, em que censura, além
da mediocridade do imperador, a corrupção dos altos funcionários e da
grande burguesia, profetiza o desmoronamento das tiranias, e o acesso do
povo ao poder; por vezes, ultrapassa o tom satírico, sobretudo na última
parte da obra em que Hugo se volta para o futuro e tenta dar forma con­
creta aos seus sonhos; surge então o visionário que descobre o universo
supra-real: vê na estrela da manhã a mensageira da liberdade, ouve soar
os clarins que anunciam o fim da tirania e extasia-se perante a visão
sublime dos tempos futuros. Fatigado da poesia exclusivamente política,
Hugo retoma as suas poesias inéditas dos anos 1840-1850 e dedica-se
à composição de um volume de "poesia pura", As Contemplações. Esta
obra, que o próprio Hugo designa de "memórias de uma alma", contém
poemas anteriores à morte de Léopoldine e poemas concebidos durante
os anos de luto ou de exílio e reconstitui o itinerário moral e espiritual
do poeta durante um quarto de século, de 1830 a 1855; está dividida
em duas partes: antes e depois do acontecimento trágico, que enlutou a
alma do poeta - a morte da filha; ele próprio declara: "é uma alma que
se desvenda nestes dois volumes. Outrora. Hoje. Um abismo os separa, o
túmulo". As Contemplações constituem como que o coroamento de todo
o seu lirismo, nelas desabrocha a maturidade do homem, do pensador
e do artista. Foca os mais diversos temas: poesia da infância - evoca­
ção da sua própria infância, da filha prematuramente desaparecida, dos
encantos da adolescência; poesia do amor - Hugo canta os prazeres,
os sofrimentos, os êxtases do amor e persuade-se de que o amor é a
grande lição da natureza: "Tudo conjuga o verbo amar"; poesia da dor

21
- amadurecido pelo sofrimento, depois do acontecimento trágico que o
marcou, dedica à filha alguns poemas de comovente lirismo, mas não se
fecha egoisticamente na sua dor; denuncia os vícios da sociedade con­
temporânea, alarga a sua indulgência a toda a Criação; lamenta o cavalo
porque está submetido ao jugo; ama as aranhas e as urtigas porque são
criaturas sempre odiadas; poesia do Além - a meditação sobre a própria
dor e o espectáculo do sofrimento universal leva o poeta à reflexão meta­
fisica e deixa-nos entrever o mundo alucinante do pensador: procura
ultrapassar o seu desespero e decifrar o enigma do universo. Obcecado
pelas questões da imortalidade da alma, do problema do mal, do destino
do homem e do mundo, que não consegue resolver, forja uma filosofia
compósita em que se misturam o cristianismo, o pitagorismo, o pante­
ísmo. A alma culpada sofrerá depois da morte a transmigração, encar­
nando no corpo de um animal ou tomando a forma de uma árvore ou de
uma pedra, podendo depois da expiação reintegrar-se no seio de Deus;
pelo contrário, a alma pura tornar-se-á cavaleiro andante, mago, poeta,
anjo ou serafim. Na sua mente visionária, Hugo vê o universo possuído
de um prodigioso animismo: " . . . ventos, ondas, chamas, / Árvores, jun­
cos, rochedos, tudo vive/ Tudo está cheio de almas". A função do poeta
torna-se então ainda mais grandiosa: a mensagem que ele transmite é
uma revelação sobrenatural; ele é o profeta, o mago, o vidente. É impor­
tante notar que Hugo lança os fundamentos de uma poética inteiramente
nova: ele crê no carácter sobrenatural do seu verbo poético que lhe per­
mite traduzir a voz do Além. Por isso, ele afirma que a palavra é um ser
vivo e que " . . . a palavra , é o Verbo, e o Verbo, é Deus"; a palavra aparece,
pois, dotada de um poder mágico, é a metáfora, tal como V. Hugo a uti­
liza em As Contemplações, deixa de ser apenas ornamento poético, para
ter um valor de conhecimento, de revelação, abrindo ao nosso espírito
perspectivas inexploradas:

Pássaros aprisionados nas malhas do ser, rastejamos;


Livres e prisioneiros, o imutável penetra
Todas as nossas vontades;
Cativos sob a rede das coisas necessárias,
Sentimos fios ligarem-se às nossas misérias
Nas imensidades.

22
Esta visão apocalíptica que invade a inspiração do poeta já desde
As Contemplações passa a dominar longos poemas épicos ou metafísicas
que despertam cada vez mais a admiração da moderna crítica; assim
poemas como Fim de Satanás e Deus elaborados entre 1854 e 1860,
que deveriam constituir as peças mestras de uma epopeia cósmica,
só foram publicados postumamente; o primeiro, inacabado, anuncia
a desaparição do mal: Satanás obtém o perdão de Deus, depois de ter
acedido à súplica do Anjo da Liberdade que lhe pede que deixe de
perseguir a Criação com o seu ódio, iniciando-se assim uma era de paz
e felicidade para a humanidade libertada. O segundo poema, " Deus",
interroga-se sobre o problema do conhecimento de Deus, passando em
revista diferentes atitudes do homem em relação à divindade desde o
ateísmo até ao cristianismo e ao racionalismo.
A conselho do seu editor, Hugo renuncia a terminar os seus poe­
mas cósmicos e começa a trabalhar activamente numa colectânea de
"pequenas epopeias", poemas narrativos inspirados em parte nos livros
santos, na mitologia e na história universal.
Nesta obra que virá a intitular-se A Lenda dos Séculos, o poeta atinge
o ponto culminante da sua épica. Segundo o próprio Hugo, o livro é "a
epopeia humana, áspera, imensa, desmoronada" e o seu obj etivo ao
elaborá-lo seria "exprimir a humanidade numa espécie de obra cíclica;
pintá-la sucessiva e simultaneamente sob todos os seus aspectos, his­
tória, lenda, filosofia, religião, ciência . . . fazer aparecer essa grande
figura una e múltipla, lúgubre e resplandecente, fatal e sagrada, o
Homem". Reconstitui a ascensão da Humanidade, através das lutas
contraditórias entre o Bem e o Mal. Um fio liga o passado desde a cria­
ção ao presente e ao futuro, que se vislumbra , "o grande fio misterioso
do labirinto humano, o Progresso". A Lenda dos Séculos é, portanto, a
história da humanidade, concebida não pelo historiador que atende
exclusivamente à verdade dos factos, mas pelo poeta a quem interessa
a verdade simbólica dos mitos. Por isso, se a epopeia tem o seu herói
- o homem - e o seu tema a ascensão da humanidade, estes mesmos
aspectos conferem-lhe grandeza e dimensão simbólica. Daí que Hugo
renove o maravilhoso introduzindo no poema mitologias sucessivas,
que exprimem as aspirações e as crenças dos homens, ou criando ele
próprio mitos. O maravilhoso não é, na obra de Hugo, um simples
ornamento, mas antes a expressão de uma visão do mundo; pode ter

23
um sentido moral, ao traduzir uma justiça imanente ou a intervenção
sobrenatural da Providência; pode ainda ter um sentido metafísico:
as coisas estão dotadas de vida, porque "tudo está cheio de almas".
O maravilhoso em A Lenda dos Séculos manifesta-se sob duas formas
principais: prodígios (animais e coisas participam no drama humano) e
o maravilhoso difuso (pequenas notações que despertam o sentido do
mistério: "o vento parecia falar-me baixinho" ou "uma imensa bondade
caía do céu").
Nos poemas iniciais inspirados sobretudo na Bíblia, Hugo apre­
senta a criação da Humanidade em Sagração da Mulher, evoca perso­
nagens bíblicas (Caim, Daniel, Booz, Cristo); seguidamente foca a Idade
Média cristã em poemas como "Casamento de Roland", "Aymerillot",
" Pequeno Rei da Galiza"; resume num poema, "O Sátira", o espírito do
homem renascentista, liberto de enfeudamentos religiosos e políticos,
caminhando para a descoberta do Universo, e termina com as visões
finais de " Pleno Mar - Pleno Céu" e a "Trombeta do Julgamento"; o
primeiro destes poemas, inspirando-se nas esperanças da aeronáutica,
exprime a fé do poeta no progresso contínuo e solidário da técnica
científica e da consciência moral; o segundo, pelo contrário, lembra
que a condição humana depende da Providência divina, a cuj o arbítrio
se encontra submetida.
Uma filosofia progressista da história inspira esta epopeia da aven­
tura humana, em que Hugo mostra que, em definitivo, os homens mar­
cham em direcção a uma nova era.
Depois de uma intensa actividade literária dedicada à poesia,
tendo publicado, como vimos, três grandes volumes de poemas num
curto espaço de tempo, por volta de 1860, Hugo regressa à prosa,
retomando o romance Misérias, abandonado em 1848. Durante dois
anos de intenso trabalho, reelabora-o e publica-o em 1862, com o
título de Os Miseráveis. A obra obtém um sucesso prodigioso tanto
na França como no estrangeiro, sendo em breve traduzida em várias
línguas, o que contribuirá para o alargamento da sua popularidade.
O romance é inspirado por uma intenção social : Hugo quer denunciar
"a degradação do homem pelo proletariado, da mulher pela fome, da
criança pela noite"; para isso, toma como tema central a história de
Jean Valj ean, antigo forçado de coração puro restituído ao caminho
do bem pelo exemplo de um bispo humanitário, que suporta todos

24
os sofrimentos de um longo martírio moral e social. Mas, para além
disto, Os Miseráveis constituem uma obra extremamente prolixa e mul­
tifacetada: ora ingénua como uma narrativa edificante, ora movimen­
tada como um romance de aventuras, ora realista como um estudo
de costumes. Hugo compõe um fresco de tom épico, em que evoca os
anos da sua j uventude (na personagem de Marius) , pinta com cores
vigorosas os formigueiros humanos da escória parisiense, descreve
com minúcia o convento, o tribunal, uma rua, um interior burguês,
ou faz reviver, perante o leitor deslumbrado, evocações gloriosas dos
cortej os de forçados, da revolta de 1832, da Batalha de Waterloo ou
dos esgotos de Paris.
No fundo, a ideia que o romance desenvolve e que já encontrámos
em obras anteriores é a do combate da consciência humana contra as
forças do mal, "a marcha do mal para o bem".
O êxito de Os Miseráveis encoraj ou V. Hugo a compor outros roman­
ces: Os Trabalhadores do Mar ( 1866) e O Homem Que Ri ( 1869) ; o pri­
meiro é dedicado à ilha de Guernesey e tem como tema a luta dos
marinheiros contra o mar; o segundo, evoca a Inglaterra do século XVI I
e a luta d o povo contra o sistema feudal; a luta entre o bem e o mal
enforma a obra: são os aristocratas que encarnam o mal e a deprava­
ção, enquanto o bem e a consciência moral são simbolizados por um
grupo de três seres abandonados: um saltimbanco, uma j ovem e um
j ovem cujo rosto fora mutilado por ordem do rei. Num combate desi­
gual triunfa o egoísmo dos poderosos, perante o aniquilamento dos
humildes. Para além da reivindicação dos direitos do povo, que dá à
obra um tom humanitário de tendência socializante, o texto aparece
povoado de misteriosos simbolismos e de visões surrealistas que lhe
conferem certa complexidade.
Entretanto, não abandonara inteiramente a poesia e publica em
1865 Canções do Mar e dos Bosques, deliciosa colectânea de poesias
ligeiras em que canta o Sol, o amor, a alegria de viver, a natureza,
manej ando habilmente metros curtos como o octossílabo e dando
plena expansão à sua fantasia verbal.
Com o ano de 1870, verifica-se uma grande mudança na vida do
poeta: proclamada na França a I I I República, a 4 de Setembro, eis o
fim do exílio e o regresso a Paris, onde é aclamado e eleito deputado
à Assembleia Nacional, cargo a que renuncia um mês depois. Embora

25
sempre pronto a combater por causas generosas, V. Hugo já não é
o mesmo homem. Numerosas vicissitudes dos últimos anos de exílio
tinham-no envelhecido (em 1863, fuga de sua filha Adêle que acabaria
por enlouquecer; em 1868, morte da mulher) e em breve novos golpes
do destino se abaterão sobre ele: morte dos filhos Charles (1871) e
François-Victor (1873) . Apesar disto, a sua actividade literária continua
a desdobrar-se; goza de uma imensa popularidade, publica em 1872
O Terrível Ano e em 1874 Noventa e Três, romance que se enquadra na
Revolução Francesa e retoma mais uma vez o tema da justiça humana
e da caridade evangélica. Em 1877, aparece A Arte de Ser Avô, obra em
que Hugo reúne os poemas inspirados pelos seus dois netos, Georges
e Jeanne.
Participa ainda na vida pública , sendo eleito senador em 1876. Mas
em 1878 é atingido por um derrame cerebral, de que se recompõe em
breve. Embora afastado da vida política, a sua glória é imensa e em
1881 a cidade de Paris celebra oficialmente o seu octogésimo aniver­
sário. Morre a 22 de Maio de 1885, coberto de glória. A morte do poeta
cobrirá de luto uma nação inteira, tendo-se realizado um funeral com
honras de Estado e o seu corpo sido depositado no Panteão.
No entanto, apesar do declínio nos últimos anos da sua vida,
V. Hugo não deixa de publicar e, embora a sua actividade criadora
tenha diminuído, surgem obras provavelmente meditadas no exílio a
que se aliam obras de circunstância; em 1872 tinham aparecido os três
volumes de Actos e Palavras (compilação dos seus discursos políticos) ;
em 1877 e 1883 aparecem complementos de A Lenda dos Séculos,
que será publicada em edição completa e definitiva no mesmo ano
de 1883. Publica ainda quatro poemas de combate, de tom didáctico
e satírico: "O Papa" (1878), "A Piedade Suprema" (1879) , " O Burro"
(1880) " Religião e Religiões" (1880). Os quatro principais aspectos da
sua inspiração poética, satírico, dramático, lírico e épico, aparecem
documentados em Os Quatro Ventos do Espírito (1881), compilação de
poemas compostos ao longo dos últimos quarenta anos da sua vida.
Em 1882 publica ainda um último drama em verso, Torquemada (com­
posto em 1869). Depois da sua morte aparecem ainda numerosas
obras póstumas2•

2 Vide Resumo Cronológico, p. 16.

26
É tarefa extremamente difícil condensar em algumas breves pági­
nas a totalidade dos aspectos de uma obra tão complexa e variada.
Parece-nos, no entanto, que conseguimos pôr em evidência alguns dos
seus aspectos mais salientes e, em especial, as razões da extraordi­
nária celebridade de Victor Hugo. Como notou Henri Picon, Hugo é
ainda hoj e "o mais popular dos poetas franceses. Um imenso público
admirou nele não só a imagem eloquente e simples dos sentimentos
humanos fundamentais, mas também uma mitologia política e social
com a qual o seu coração se identifica" .

Maria Manuela Marques da Silva

27
Nota preliminar

Quando há anos o autor deste livro visitava ou, melhor, esquadrinhava


a igreja de Nossa Senhora de Paris, descobriu, no obscuro recanto duma
das torres, esta palavra que na parede alguém entalhara:

ANAI'KH.

O autor ficou profundamente impressionado ante aquelas maiúsculas


gregas, enegrecidas pela velhice e gravadas profundamente na pedra,
impregnadas, na sua forma, de não sei que sinais próprios da caligrafia
gótica, como a desvendarem a mão medieval que ali as escrevera, e, mais
do que isso, sentiu encerrar-se nelas um certo lúgubre indício de fata/idade.
Perguntou para consigo, procurou adivinhar, qual teria sido a acabru­
nhada alma que não quisera abandonar este mundo sem deixar aquele
estigma, de crime ou de desgraça, na fronte da vetusta igreja.
De seguida, rebocaram ou rasparam a parede - não sei já qual - e a
inscrição sumiu-se. Porque é assim que se procede de há duzentos anos
para cá com as maravilhosas igrejas da Idade Média. De todos os lados
lhes infligem mutilações, tanto os de dentro como os de fora. O padre
reboca-as, o arquiteto raspa-as, depois aparece o povo que as derruba.
Portanto, excetuando a frágil evocação que aqui o autor deste livro
lhe consagra, nada mais hoje subsiste da misteriosa palavra esculpida na
sombria torre de Nossa Senhora, nada desse ignoto destino que ela tão
melancolicamente sintetizava.
Há muitos séculos que desapareceu de entre as gerações o homem que
escreveu aquela palavra na parede, a palavra por sua vez desapareceu
dali e a própria igreja talvez em breve também desapareça deste mundo.
Sobre essa palavra se escreveu este livro.

Fevereiro de 183 1 .

29
Aditamento à edição definitiva (1832)

Erradamente se anunciou que esta edição seria acrescida de vários


capítulos novos. I néditos é que se deveria dizer. Se deveras se enten­
der por novos os feitos de novo, não são novos os capítulos ajuntados a
esta edição. Escreveram-se ao mesmo tempo que o resto da obra, datam
da mesma época, surgiram da mesma ideia e sempre fizeram parte do
manuscrito de Nossa Senhora de Paris. Mais ainda: o autor não admitiria
a possibilidade de se darem retoques suplementares a obra desta espécie.
Não é coisa que se faça como se quer. Em seu parecer, um romance nasce
com uma urdidura de certo modo necessária, com todos os seus capítu­
los, como um drama nasce com todas as suas cenas. Não imagineis que
arbitrariamente se fixa o n úmero de partes de que esse todo se compõe - o
misterioso microcosmo a que chamais drama ou romance. A enxertia ou a
soldadura ligam mal em obras desta natureza, as quais devem brotar dum
só jato e ficar tais como são. Depois do trabalho acabado é inútil mudardes
de opinião ou tornardes a revê-lo. Publicada a obra e reconhecido e pro­
clamado o seu sexo, viril ou não, já que a criança solto u o primeiro vagido,
foi feita assim e nem o pai nem a mãe lhe podem introduzir já qualquer
modificação. Pertence ao ar e ao sol e deixem-na viver ou morrer tal qual
ela é. O vosso livro falho u ? Paciência! Não junteis mais nenhum capítulo
a uma obra malograda. Ficou incompleto? Tivéssei-lo acabado quando o
engendrastes. A vossa árvore nasceu raquítica? Não a conseguireis endi­
reitar. O vosso romance está tísico? O vosso romance não é viável? Não vos
será possível insuflar-lhe o alento de que carece. O vosso drama saiu coxo?
Acreditai-me: não o ampareis com uma perna de pau.
É por isso que o autor deseja particularmente que o público deveras
saiba que os capítulos aqui agregados não se escreveram de propósito para
esta reimpressão. Se não se publicaram nas edições precedentes do livro,

31
a razão é simplicíssima. Na altura em que pela primeira vez se imprimiu
Nossa Senhora de Paris, perdera-se o caderno que continha estes três capí­
tulos. Ou se escreviam de novo ou se passava sem eles. Entendeu o autor
que os únicos dois capítulos de alguma importância devido ao seu desen­
volvimento tratavam de arte e de história, e como de maneira nenhuma
penetravam no âmago do drama e do romance, o público não lhes daria
pela falta e só ele, autor, saberia da lacuna. Resolveu passar adiante. Além
disso - deve-se dizer toda a verdade - a preguiça negou-se à tare(a de
rescrever os três perdidos capítulos. Mais depressa faria um romance novo.
Como hoje já os capítulos reapareceram, aproveitou logo o ensejo para
os repor no seu lugar.
Aqui está, portanto, a obra completa, como ele a sonhou, como ele a
escreveu, boa ou má, durável ou frágil, mas tal como a pretendeu.
Decerto aos olhos das pessoas que, aliás muito judiciosamente, só pro­
curaram em Nossa Senhora de Paris o drama, o romance, os recuperados
capítulos pouco valor lhes apresentam. Talvez haja, porém, outros leito­
res que não acharam baldado o estudo da ideia de estética e de filosofia
oculta neste livro e que quiseram, ao ler Nossa Senhora de Paris, delei­
tar-se a destrinçar sob o romance mais outra coisa sem ser o romance, e a
acompanhar o sistema do historiador e o propósito do artista, através da
sua criação de poeta. Perdoem-nos estas expressões um tanto ambiciosas.
Principalmente para estes é que os capítulos acrescentados a esta edi­
ção completarão Nossa Senhora de Paris, isto partindo-se do princípio de
que valia a pena completar Nossa Senhora de Paris.
Acerca da atual decadência da arquitetura e da morte que, em sua
opinião, fere quase inevitavelmente esta arte régia, o autor expressa e
desenvolve, num desses capítulos, uma opinião infelizmente nele muito
enraizada e ponderada. Sente, todavia, o desejo de aqui declarar que for­
mula ardentes votos para que um dia o futuro lhe prove que se enganou.
Sabe que a Arte, sob todos as formas, tem o direito de esperar tudo das
novas gerações, cujo talento, a inda em embrião, se ouve já a fermentar nas
nossas salas de trabalho. A semente caiu no rego e a colheita será decerto
magnífica. Apenas ele receia, e isso se poderá verificar mais adiante nesta
obra, que a seiva tenha secado no velho solo da arquitetura, que durante
tantos séculos constituiu o melhor terreno da Arte.
Mesmo assim, verifica-se hoje na mocidade artista tanta vitalidade,
tanta pujança e, por assim dizer, tanta predestinação, que, sobretudo nas

32
nossas escolas de arquitetura, na hora que passa, os professores, apesar
de detestáveis, formam, não só sem darem por isso, mas também mau
grado seu, alunos que saem excelentes: justamente o contrário daquele
oleiro de que fala Horácio, o qual planeava ânforas e produzia potes.
Currit rota, urceus exit.
De qualquer maneira, seja qual for o futuro da arquitetura, seja qual
for o modo como os nossos jovens arquitetos resolvam um dia a questão
da sua arte, enquanto se espera pelos monumentos novos, conservemos
os antigos.
Inspiremos à nação, se isso for possível, o amor pela arquitetura nacio­
nal. O autor declara ser esse um dos principais propósitos deste livro; é
esse um dos primordiais intuitos da sua vida.
Talvez Nossa Senhora de Paris abrisse algumas verdadeiras pers­
petivas sobre a arte da Idade Média, essa maravilhosa arte até agora igno­
rada de uns ou, o que ainda é pior, menosprezada por outros. Contudo,
o autor de modo algum dá por concluída a tare{a a que voluntariamente
se consagrou. Mais duma vez advogou a causa da nossa velha arquite­
tura; já em alta voz denunciou muita profa nação, muita demolição, muita
impiedade, mas nem por isso desanimará. Jurou a si próprio reverter mui­
tas vezes ao assunto e assim o há de cumprir. Mostrar-se-á na defesa
dos nossos edifícios históricos, que os nossos iconoclastas de escolas e
de academias se encarniçam em atacar. Porque é aflitivo ver-se em que
mãos caiu a arquitetura medieval e a forma como os atuais caldeado­
res de gesso tratam as ruínas dessa grande arte. É mesmo vergonhoso
para nós, homens inteligentes, assistirmos ao que fazem, contentando-nos
em apupá-los. E não se fala aqui do que ocorre na província, mas sim
do que se pratica em Paris, à nossa porta, debaixo das nossas janelas,
na grande cidade, na cidade letrada, na cidade da imprensa, da pala­
vra, do pensamento. Para findarmos esta nota não podemos resistir à
necessidade de apontar alguns dos atos de vandalismo todos os dias pla­
neados, debatidos, encetados, continuados e calmamente concluídos sob
os nossos olhos, sob os olhos do público artista de Paris, perante a crí­
tica abismada ante tamanho atrevimento. Acabam de demolir o palácio
do arcebispo, edifício de gosto medíocre, pelo que não se perdeu grande
coisa, mas juntamente com ele arrasaram o paço episcopal, invulgar relí­
quia do século XIV e que o arquiteto do bota-abaixo não soube distinguir
do restante. Arrancou o trigo com o joio; para ele era tudo o mesmo.

33
Dizem que vão derrubar a admirável capela de Vincennes, para com as
suas pedras construírem não sei que fortificação, mesmo que Daumesnil
não precisasse dela. Enquanto esbanjam um dinheirão nas obras desse
pardieiro que é o Palácio Bourbon deixam que a ventania do equinó­
cio estilhace os vitrais magníficos da Santa Capela. Ergueram há dias
um andaime na torre de Saint-Jacques-de-la-Boucherie e uma manhã
destas lá teremos o alvião. Arranjaram um pedreiro que construísse uma
casita branca entre as venerandas torres do Palácio da Justiça; outro para
mutilar Saint-Germain-des-Prés, a feudal abadia dos três campanários.
Hão de desencantar mais outro ainda - não o duvidem - para derrubar
Saint-Germain-l'Auxerrois. Todos esses pedreiros blasonam de arquitetos,
cobram da prefeitura ou dos subalternos e envergam casacas verdes. Todo
o dano que o mau gosto pode causar ao bom gosto eles o praticam. À hora
a que escrevemos - deplorável espetáculo! - um deles a tira-se às Tulherias,
outro acutila Filiberto Delorme mesmo em cheio na cara, e decerto não é
dos menores escândalos da nossa época ver-se o descaramento com que
esse senhor se vem atravessar diante duma das mais mimosas fachadas
do Renascimento!

Paris, 20 de outubro de 1832.

34
LIVRO PRI MEIRO

A sala grande

Faz hoj e trezentos e quarenta e oito anos, seis meses e dezanove


dias que os Parisienses despertaram com a barulheira de todos os si­
nos a badalar com quanta força tinham, no tríplice pátio da Cité, da
Universidade e da Cidade.
Não obstante, a História não registou para a posteridade esse dia
de 6 de janeiro de 1482. O sucesso que dessa maneira sacudia os sinos
e os burgueses de Paris nada oferecia de especial. Nem assalto de pi­
cardos ou de borgonheses, nem relicário passeado em procissão, nem
revolta de estudantes na cidade de Laas, nem qualquer entrada do nos­
so mui temido soberano o senhor rei, nem sequer um belo enforcamento
de ladrões ou de ladras pela justiça de Paris. Tão-pouco se tratava da
chegada inopinada, tão useira no século XV, de qualquer embaixada,
empenachada e faustosa. Apenas dois dias antes entrara em Paris a úl­
tima cavalgada desse género: a dos enviados flamengos encarregados
de aj ustar o casamento do delfim com Margarida da Flandres, isso com
sumo enfado do senhor cardeal de Bourbon que, para agradar ao rei, ti­
vera de mostrar cara alegre a toda essa labrega horda de burgomestres
flamengos e de os regalar, no seu palácio de Bourbon, com uma mui
bela moralidade, sotia e farsa, enquanto uma chuva pertinaz lhe enchar­
cava à porta os seus magníficos tapetes.
A 6 de j aneiro, o que emocionava todo o povo de Paris, como diz
Jehan de Troyes, celebrava-se a dupla solenidade, agregada desde ime­
moriais tempos, do Dia de Reis e da Festa dos Loucos.
Ateariam, nesse dia, na Greve, uma fogueira em sinal de regozij o;
verificar-se-ia, na capela de Braque, a plantação de maia e no Palácio

35
da Justiça representariam um mistério. Na véspera, os homens do se­
nhor preboste, envergando bonitas fardas de archeiros, de camelão
violeta com grandes cruzes brancas no peito, haviam lançado, nas en­
cruzilhadas, o pregão ao som de trompas.
Portanto, logo de manhã, com todas as casas e lojas fechadas, ma­
gotes de burgueses e de burguesas surgiam de todos os cantos, dirigin­
do-se a um dos três locais apontados. Uns tinham escolhido a vistosa
fogueira, outros a maia e outros ainda o mistério. Deve-se dizer, em
abono do velho bom senso dos basbaques de Paris, que o grosso dessa
multidão se dirigia para a fogueira, como o mais indicado para a esta­
ção, ou para o mistério, que se representaria na sala grande do palácio,
convenientemente tapada e resguardada. Os curiosos estavam todos de
acordo em que se deixasse a maia mal florida a tiritar sozinha sob o céu
de janeiro, no cemitério da capela de Braque.
O povo afluía principalmente para as avenidas do Palácio da Justiça,
pois sabia que os embaixadores flamengos, chegados na antevéspera,
se propunham assistir à representação do mistério e à eleição do papa
dos loucos, a qual se efetuaria também na sala grande.
Embora essa sala grande gozasse da reputação de ser o maior recinto
coberto do mundo de então, dificilmente ali se entrava nesse dia. (É ver­
dade que Sauval ainda não medira a sala grande do castelo de Montargis.)
Apinhada de povo, a praça do palácio oferecia aos curiosos das janelas
o aspeto de um mar onde cinco ou seis ruas, tais como embocaduras de
rios, derramavam a todo o momento novas torrentes de cabeças. As on­
das dessa multidão, engrossando sem cessar, chocavam com as esquinas
dos prédios que avançavam, aqui e além, como outros tantos promontó­
rios pela bacia irregular da praça. A meio da alta frontaria gótica3 do palá­
cio, a grande escadaria, sem descanso subida e descida por uma corrente
dupla que, depois de se quebrar contra o patamar exterior intermédio,
se espraiava em largas ondas pelas duas rampas laterais; a grande esca­
daria - dizia eu - jorrava incessantemente na praça, como uma cascata
num lago. A gritaria, as gargalhadas, o tripúdio daqueles milhares de pés

3 A palavra gótico no sentido em que geralmente se emprega é em absoluto im­

própria, mas em absoluto consagrada. Aceitamo-la, portanto, e adotamo-la, como


toda a gente, para caracterizar a arquitetura da segunda metade da I dade Média,
aquela cujo princípio é a ogiva, que sucede à arquitetura do primeiro período, cuj o
gerador é o arco de volta inteira . (Nota d o A u tor. )

36
provocavam enorme barulheira e não menor clamor. De vez em quando,
esse clamor e essa barulheira redobravam e a corrente que impelia todo
aquele povoléu para a grande escadaria recuava, desordenava-se e rede­
moinhava. Era o empurrão dum archeiro ou o cavalo dum meirinho do
prebostado que escouceava para restabelecer a ordem, admirável tradi­
ção que o prebostado legou ao tribunal do Condestável, este à maréchaus­
sée4 e a maréchaussée à nossa gendarmaria de Paris.
Às portas, às j anelas, às trapeiras, em cima dos telhados, formiga­
vam milhares de boas caras burguesas, serenas e honestas, olhando
para o palácio, olhando para a balbúrdia e dando-se por satisfeitas
porque muita gente em Paris contenta-se com o espetáculo dos espec­
tadores, e para nós o muro detrás do qual alguma coisa se passa já é
qualquer coisa de muito curioso.
Se nos fosse dado a nós, homens de 1830, misturarmo-nos em pen­
samento com esses parisienses do século XV e, de súcia com eles, en­
trarmos sacudidos, acotovelados, derribados, na imensa sala do palácio,
embora tão acanhada nesse dia 6 de janeiro de 1482, o espetáculo não
seria desprovido de interesse nem de atrativo e, à nossa roda, veríamos
coisas tão velhas, que chegariam a parecer-nos novinhas em folha !
Se o leitor dá licença, tentaremos reconstituir em pensamento a im­
pressão que, na nossa companhia, sentiria ao transpor a porta da am­
pla sala, entre aquela turbamulta de gibões, de fardas de alabardeiros
e de cotas de malha.
Logo de entrada, zumbidos nos ouvidos e deslumbramento para os
olhos. Sobre as nossas cabeças, uma dupla abóbada ogival, revestida
de talha, pintada de azul, ornamentada de flores-de-lis douradas; de­
baixo dos pés, um pavimento de mármore, onde o preto e o branco se
alternam. A poucos passos, um pilar enorme, depois outro e outro; um
total de sete pilares a todo o comprimento da sala, sustendo, a meio da
sua largura, as bases da dupla abóbada . À roda dos quatro primeiros
pilares, loj as de mercadores, reluzentes de vidros e de lantej oulas; em
volta dos últimos, bancos de carvalho, gastos e puídos pelos calções
dos pleiteantes e pela toga dos procuradores. Envolvendo a sala ao
longo da parede, entre as portas, entre as j anelas, entre os pilares,
a fileira interminável das estátuas de todos os reis da França, desde

4 Antigo corpo francês de polícia montada.

37
Faramundo; os reis mandriões, de braços caídos e olhos no chão; os
reis valentes e batalhadores, de cabeças e mãos denodadamente ergui­
das para o céu. Depois, nas esguias j anelas de ogiva, vitrais de mil co­
res; nas amplas saídas da sala, preciosas portas finamente entalhadas;
e tudo - abóbadas, pilares, paredes, alizares, lambrins, portas, estátuas
- coberto de alto a baixo, de uma esplêndida iluminura azul e ouro que,
já um pouco desbotada na altura em que a vemos, quase por completo
desaparecera sob o pó e as teias de aranha, quando, no ano da graça
de 1549 , Ou Breu! a admirava ainda por tradição.
Imaginem agora essa imensa sala oblonga, à luz descorada dum
dia de janeiro, invadida por uma multidão variegada e barulhenta que
se expande ao longo das paredes e gira em volta dos sete pilares, e
formar-se-á uma ideia confusa do conj unto do quadro de que vamos
tentar apontar, com maior precisão, os pormenores pitorescos.
É certo que se Ravaillac não assassinasse Henrique IV não haveria
arquivadas, no cartório do Palácio da Justiça, as peças do processo
de Ravaillac, nem cúmplices interessados em que tais peças desapa­
recessem. Por conseguinte, nada de incendiários forçados, à falta de
melhor expediente, a largar fogo ao cartório para queimar as peças, e
a queimar o Palácio da Justiça para queimar o cartório. Em conclusão:
se não deflagrasse o incêndio de 1 6 18, o velho palácio estaria ainda de
pé mais a sua velha e espaçosa sala e eu poderia aconselhar o leitor:
"Vá vê-la. " Desse modo ficaríamos ambos dispensados, eu de a descre­
ver e ele de ler esta descrição - o que demonstra esta nova verdade: os
grandes acontecimentos trazem resultados incalculáveis.
É certo que seria muito possível que, primeiro, Ravaillac não tivesse
cúmplices e, segundo, caso os tivesse, que eles não concorressem em
nada para o incêndio de 1 6 18. Há para isso outras duas explicações mui­
to plausíveis: primeira, a grande estrela inflamada, da largura de um pé e
da altura dum côvado, que, como todos sabem, caiu do céu sobre o palá­
cio, a 7 de março, depois da meia-noite; segunda, a quadra de Théophile:

Uma triste brincadeira


Quando em Paris D. Justiça
Por abusar das especiarias
Ao seu palácio o fogo atiça.

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Seja o que for que se pense acerca da tríplice explicação política, fisi­
ca e poética do incêndio do Palácio da Justiça em 1 6 18, o facto infeliz­
mente certo é o mesmo incêndio. Tal catástrofe pouca coisa nos deixou, e
hoje, também devido às consequências sobretudo resultantes dos vários
e sucessivos consertas que acabaram com o que as chamas pouparam,
pouca coisa resta dessa primitiva residência dos reis da França, desse
paço mais velho do que o Louvre e já tão antigo no tempo de Filipe, o
Belo, que nele se buscavam vestígios dos magníficos edificios construí­
dos pelo rei Roberto e descritos por Helgaldus. Quase tudo desapareceu.
Que sucedeu à câmara da chancelaria onde S. Luís consumou o seu
casamento? E ao jardim onde ministrava j ustiça, "vestido com uma cota
de camelão, com um gibão de tiritana sem mangas, e com um manto de
sândalo negro, e deitado sobre tapetes, com Joinville"? Onde está o quar­
to do imperador Sigismundo? E o de Carlos IV? E o de João Sem-Terra?
Que é feito da escada de onde Carlos VI promulgou o seu édito de per­
dão? A laje onde, na presença do delfim, Marcelo degolou Roberto de
Clermont e o marechal de Champanha? E o postigo onde rasgaram as
bulas do antipapa Benedito e de onde abalaram os que as trouxeram,
encapados e mitrados por chacota, a impetrarem por toda a cidade de
Paris? E a sala grande, com os seus dourados, o seu lápis-lazúli, as suas
ogivas, as suas estátuas, os seus pilares, a sua abóbada imensa, toda ela
incrustada de esculturas? E a câmara dourada? E o leão de pedra que,
de cabeça baixa e rabo entre as pernas, se conservava à porta como os
leões do trono de Salomão na mesma humilhada atitude que convém à
força na presença da Justiça? E as formosas portas? E os vistosos vitrais?
E as cinzeladas ferragens que desanimaram Biscornette? E a delicada
talha de Ou Hancy? . . . Que fez o tempo, que fizeram os homens, a estas
maravilhas? Com que nos retribuíram tudo isso, toda essa história gau­
lesa, toda essa arte gótica? Em paga da arte, os pesados arcos superaba­
tidos do Sr. De Brosse, o canhestro arquiteto do pórtico de S. Gervásio,
e, quanto à História, ficamos com as palradoras recordações do grosso
pilar, ainda todo ele repercutindo as mexeriquices dos Patrus.
Não foi lá grande coisa ! - Voltemos à verdadeira sala grande do
verdadeiro palácio antigo.
Ocupavam os dois extremos desse gigantesco paralelogramo, de um
lado a famosa mesa de mármore, tão comprida, tão larga e tão grossa
que nunca se vira, segundo afirmam os velhos alfarrábios, num estilo que

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provocaria o apetite de Gargântua, semelhante talhada de mármore neste
mundo; do outro, a capela onde Luís IX se fez esculpir de joelhos aos pés
da Virgem e para onde, sem se importar com os dois nichos que deixa­
va vazios na fileira das estátuas reais, mandou transportar as figuras de
Carlos Magno e de S. Luís, dois santos que imaginava de muito crédito no
Céu como reis da França. Apenas construída seis anos antes, estava essa
capela ainda nova e toda ela no gosto encantador de fina arquitetura, de
escultura maravilhosa, de cinzeladura ao mesmo tempo leve e profunda
que entre nós assinala o termo da era gótica e que se perpetua, quase
até os meados do século XVI , nas mágicas fantasias do Renascimento.
A pequena rosácea perfurada, aberta por cima do portal, era sobretudo
uma obra-prima de tenuidade e de graça; dir-se-ia uma estrela de renda.
A meio da sala, fronteiro à grande porta, erguia-se contra a parede
um estrado de brocado de ouro e para o qual abriram uma entrada
própria, servindo-se da j anela do corredor da câmara dourada; desti­
nava-se aos enviados flamengos e às outras importantes personagens
convidadas para a representação do mistério.
De acordo com o usual, em cima da mesa de mármore se represen­
taria o mistério. Para isso a prepararam logo de manhã; a sua preciosa
placa de mármore, toda riscada pelos tacões da gente do foro, aguentava
uma armação bastante alta, de madeira, cuja parte superior, visível de
todos os pontos da sala, serviria de teatro e cujo interior, disfarçado por
tapeçarias, se utilizaria como vestiário das figuras da peça. Uma escada,
ingenuamente colocada do lado de fora, estabeleceria a comunicação
entre o palco e o camarim e pelos seus íngremes degraus se fariam tanto
as entradas como as saídas. Não havia personagem por mais imprevista
nem peripécia ou lance teatral que não tivesse de subir aquela escada.
Inocente e venerável infância da arte e dos artifícios espetaculares!
Quatro meirinhos do bailio do palácio, guardiões forçados de todas
as folganças do povo, tanto em dias de festa como nos de execuções,
conservavam-se de pé aos quatro cantos da mesa de mármore.
A peça só começaria ao soar a duodécima badalada do grande reló­
gio do palácio. Muito tarde, sem dúvida, para uma representação tea­
tral, mas tiveram de aceitar a hora dos embaixadores.
Ora desde manhã que toda aquela turba estava à espera. Boa por­
ção desses honrados curiosos tiritava, desde o romper do dia, em frente
da escadaria do palácio; havia até alguns que afirmavam ter passado

40
a noite atravessados na porta principal, para ficarem com a certeza de
que seriam os primeiros a entrar. De momento a momento, a multi­
dão engrossava e, como água que trasborda, começava a trepar pelas
paredes, a enfiar por entre as colunas, a extravasar pelos entablamen­
tos, pelas cornijas, pelos parapeitos das j anelas, sobre todas as saliên­
cias arquitetónicas, sobre todos os relevos da escultura. Igualmente o
mal-estar, a impaciência, o enfado, a liberdade de um dia de cinismo
e de desatino acentuavam já, muito antes da hora a que os embaixa­
dores deviam chegar, o azedume e hostilidade dos protestos de toda
aquela gente fechada, enlatada, apertada, pisada, asfixiada. Só se ou­
viam queixas e imprecações contra os flamengos, contra o presidente
do município, contra o cardeal de Bourbon, contra o bailio do palácio,
contra Margarida de Áustria, contra os meirinhos de bastão, contra o
frio, contra o calor, contra o mau tempo, contra o bispo de Paris, contra
o papa dos loucos, contra os pilares, contra as estátuas, contra esta
porta fechada, contra aquela janela aberta, tudo com grande gáudio
da estudantada e dos lacaios disseminados por entre o povo, os quais
misturavam a todo esse descontentamento as suas impertinências e
motejos e, por assim dizer, espicaçavam o aborrecimento geral.
Entre outros havia um grupo desses jocosos diabretes que, depois
de meterem dentro a vidraça duma janela, se sentaram descaradamen­
te no entablamento de onde sucessivamente atiravam as olhadelas e as
chufas, tanto para o interior como para o exterior, ora para a turba da
sala, ora para a chusma da praça. Esses j ovens escolares facilmente da­
vam a perceber nas mornices, nas estrondosas gargalhadas, nos escar­
ninhos apelos que de um a outro extremo da sala dirigiam entre si, que
a arrelia e o cansaço da assistência não os contagiavam ; pelo contrário,
sabiam perfeitamente tirar partido, para sua própria diversão, do que
se lhes oferecia à vista como um espetáculo que lhes permitia esperar
pacientemente o outro.
- Pela minha alma, sois vós, Joannes Frollo de Molendino! - gritava um
deles a uma espécie de diabrete louro, de cara bonita e maldosa, agarrado
aos acantos dum capitel. - Em boa hora vos chamastes Jehan du Moulin5
pois os vossos dois braços e as vossas duas pernas parecem quatro velas
a girar ao vento. Há quanto tempo estais aqui?

5 Jehan du Moulin, à letra: João do Moinho.

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- Pela misericórdia do Diabo - respondeu Joannes Frollo -, há mais de
quatro horas, as quais muito sinceramente espero que me sejam descon­
tadas no meu tempo de Purgatório! Já cá estava quando os oito chantres
do rei da Sicília entoaram o primeiro versículo da missa cantada das sete,
na Santa Capela.
- São frescos esses chantres! - criticou o outro. - De vozes ainda mais
agudas do que os barretes que usam ! O rei faria melhor, antes de mandar
dizer a missa ao Sr. S. João, se apurasse primeiro se o Sr. S. João gosta do
latim salmodiado com sotaque provençal.
- Foi para dar trabalho a esses malditos chantres do rei da Sicília! -
berrou azedamente uma velha, de entre a turba de baixo da janela. - Até
brada aos céus! Mil libras parísias por uma missa! E ainda por cima co­
bradas do peixe de mar dos mercados de Paris!
- Cale-se, criatura! - interveio uma personalidade gorda e solene, ta­
pando o nariz para se dirigir à peixeira. - A missa tinha de se rezar!
Ou queria que o rei caísse outra vez doente?
- Bem dito, sire Gilles Lecomu, mestre peleiro-forrador das vestes de
Sua Majestade! - berrou o estudanteco aferrado ao capitel.
O malfadado apelido do pobre peleiro-forrador das vestes reais arran-
cou uma gargalhada unânime aos estudantes.
- Lecomu6! Gilles Lecomu ! - diziam uns.
- Cornutus et hirsutus7 - acrescentava outro.
- Mas com certeza ! - prosseguiu o diabrete do capitel. De que vos
estais a rir? Honrado homem Gilles Lecomu, irmão de mestre Jehan
Lecomu, preboste do paço real, filho de mestre Mahiet Lecomu, primeiro
porteiro do bosque de Vincennes, todos burgueses de Paris, todos casa­
dos de pais para filhos!
Redobrou a galhofa. Sem dar resposta, o gordo peleiro-forrador diligen­
ciava escapar aos olhares que de todos os lados nele se fixavam, mas debal­
de suava e resfolgava: como uma cunha que se espeta na madeira, por mais
esforços que empregasse só conseguia encaixar mais solidamente nos om­
bros dos vizinhos o carão apoplético que o despeito e a cólera enrubesciam.
Até que finalmente um suj eito gordo, baixo e venerável como ele,
acudiu em seu socorro.

6 Lecornu , à letra: O Cornuda.


7 Carnudo e hirsuto.

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- Parece impossível! Uns escolares a falarem assim a um burguês!
No meu tempo, tê-los-iam fustigado com um feixe de varas e depois
queimado!
Todo o bando explodiu:
- Olá! Que cantiga é essa? Quem é esse bufo a agoirar desgraças?
- Olha, estou a conhecê-lo! - disse um. - É mestre Andry Musnier.
- Como é um dos quatro livreiros ajuramentados da Universidade . . . !
- comentou outro.
- É tudo a quatro nessa espelunca ! - gritou um terceiro. - Quatro
nações, quatro faculdades, quatro festas, quatro procuradores, quatro
eleitores, quatro livreiros.
- Pois bem ! - sugeriu Jehan Frollo. - Temos de lhe arranj ar o diabo
a quatro !
- Musnier, vamos queimar os teus livros!
- Musnier, zurziremos o teu lacaio!
- Musnier, havemos de enxovalhar a tua mulher!
- A "bucha" da menina Oudarde.
- Tão fresca e alegre como se j á estivesse viúva.
- Diabos vos levem! - resmungou mestre Andry Musnier.
- Mestre Andry - tornou Jehan, sempre pendurado do capitel - ca-
la-te senão caio-te em cima da tola!
Mestre Andry ergueu os olhos; pareceu, por instantes, medir a al­
tura da coluna e o peso do engraçado; multiplicou mentalmente esse
peso pelo quadrado da velocidade e calou-se.
Senhor do campo da batalha, Jehan, triunfalmente, continuou:
- É o que lhe faria, apesar de eu ser irmão dum arcediago !
- Galantes sires esta nossa gente d a Universidade! N e m a o menos
fizeram respeitar os nossos privilégios num dia como este ! Enfim, há
maia e fogueira de festa na Cidade; mistério, papa dos loucos e embai­
xadores flamengos na Cité . . mas na Universidade, nada !
.

- Embora seja bem ampla a Praça Maubert! - recordou um dos ra­


pazes instalado no rebordo da j anela.
- Abaixo o reitor, os eleitores e os procuradores! - gritou Joannes.
- Temos esta noite que acender uma fogueira no Champ-Gaillard -
acrescentou outro - com os livros de mestre Andry.
- E as carteiras dos escribas - lembrou o vizinho.
- E os bastões dos bedéis!

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- E os escarradores dos decanos!
- E os bufetes dos procuradores!
- E as uchas dos eleitores !
- E os escabelos do reitor!
- Abaixo ! - repetiu, em fabordão, o pequeno Jehan. - Abaixo o mes-
tre Andry, os bedéis e os escribas, os teólogos, os médicos e os decre­
talistas; os procuradores, os eleitores e o reitor!
- É então o fim do mundo ! - murmurou mestre Andry, tapando os
ouvidos.
- A propósito de reitor - gritou um dos da j anela. - Ali vai ele no
largo!
Era ver-se a pressa com que todos se viraram para a praça.
- É deveras o nosso venerável reitor, mestre Teobaldo? - perguntou
Jehan Frollo du Moulin que, agarrado à coluna interior, não conseguia
ver o que se passava lá fora.
- É, é! - responderam os outros todos -; é ele, sem tirar nem pôr, é
o reitor mestre Teobaldo!
Era deveras o reitor com todos os dignitários da Universidade que,
caminhando processionalmente ao encontro da embaixada, atravessa­
vam, naquele momento, a praça do palácio. Apinhados nas j anelas,
os estudantes, quando eles passaram, acolheram-nos com chuflas e
chocarreiras ovações. Como era o reitor que abria o cortej o, foi quem
sofreu a primeira bordada. Bem rude ela foi !
- Bons dias, Sr. Reitor! Olá ! Bom dia aí!
- Como conseguiu esse velho j ogador deitar até cá? Deixou então
os dados?
- Como ele trota na mula ! A azémola tem as orelhas mais pequenas
do que o dono !
- Olé! Bons dias, Sr. Reitor Teobaldo! Tybald aleator!ª Velho imbeci l !
Refinado batoteiro !
- Deus vos guarde! Saiu-vos muitas vezes esta noite o carrão?
- Olhem para aquela cara ! Velha, lívida, chupada, desanimada !
Tudo por causa do j ogo e dos dados!
- Aonde ides nesse preparo, Tybalde ad dados, virando as costas
para a Universidade e seguindo para a cidade a trote?
--- �---- --

8 Aleator, jogador.

44
- Vai pela certa à procura de casa, na Rua Teobaldo dos Dados! -
berrou Jehan du Moulin.
O bando inteiro repetiu a graçola, com voz trovej ante e frenéticas
palmas.
- Ides à procura de casa na Rua Teobaldo dos Dados, Sr. Reitor,
j ogador da parte do Diabo?
Chegou depois a vez dos outros dignitários.
- Fora com os bedéis! Abaixo os maceiras!
- Ouve lá, Robin Poussepain, quem é aquele que vem ali?
- É Gilberto de Suilly, Gilbertus de Soliaco, o chanceler do colégio de
Autun.
- Toma lá o meu sapato; daí podes acertar-lhe melhor na cara.
- Saturnalitias mittimus ecce nuces. 9
- Abaixo os seis teólogos mais as suas sobrepelizes brancas!
- Aqueles é que são os teólogos? Pensei que fossem as seis gan-
sas brancas oferecidas à cidade por Santa Genoveva para o feudo de
Roogny.
- Fora os médicos!
- Fora os debates solenes e quodlibetários!
- Toma lá o meu barrete, chanceler de Santa Genoveva ! Fizeste-me
uma injustiça. Não estou a mentir! Deu o meu lugar na nação da
Normandia ao pequeno Ascânio Falzaspada, da província de Bourges
e que é italiano.
- Uma injustiça ! - proclamaram os estudantes todos. - Fora o chan­
celer de Santa Genoveva !
- Olá ! Mestre Joaquim de Ladehors! Olá, Luís Dahuille! Olá,
Lamberto Hoctement!
- O Diabo estrafegue o procurador da nação da Alemanha!
- E os capelães da Santa Capela mais as suas murças pardas; cum
tunicis grisis!
- Seu de pellibus grisis fourratis!
- Salve, mestres em artes! Com essas lindas capas pretas! Com essas
lindas capas vermelhas!
- Que formam uma formosa cauda ao reitor!
- Parece um doge de Veneza quando vai aos esponsais do mar!

9 Olha, nós enviamos nozes das Saturnais. ( Marcial, Epigramas VII, 9).

45
- Repara agora, Jehan! Olha para os cónegos de Santa Genoveva !
- Que toda essa conezia vá para o Diabo !
- Abade Cláudio Choart ! Doutor Cláudio Choart ! Ides à procura da
Maria Giffarde?
- Mora na Rua de Glatigny.
- Está a fazer a cama ao rei dos desavergonhados!
- Está a pagar os seus quatro dinheiros; quatuor denarios.
- Aut unum bombum1 0 •
- Quereis que ela vos pague nas ventas?
- Camaradas ! Mestre Simão Sanguin, o eleitor da Picardia, com a
mulher na garupa!
- Póst equitem sedet atra cura 1 1 .
- Isso é que é coragem, mestre Simão !
- Bons dias, Sr. Eleitor!
- Boas noites, Sr.ª Eleitora !
- Aqueles é que estão a gozar um bom espetáculo ! - comentou,
suspirando, Joannes de Molendino, sempre empoleirado na folhagem
do seu capitel.
Entretanto, o livreiro ajuramentado da Universidade, mestre Andry
Musnier, inclinava-se ao ouvido do peleiro-forrador das vestes reais,
mestre Gilles Lecornu.
- É como vos digo, senhor! É o fim do mundo ! Nunca se viu ta­
manha devassidão na estudantada! A culpa disto tudo cabe a essas
malditas invenções do século ! Às artilharias, às serpentinas, às bom­
bardas e, principalmente, à impressão, essa nova peste da Alemanha.
Acabaram-se os manuscritos, acabaram-se os livros! A impressão mata
a livraria. É o fim do mundo a aproximar-se.
- Bem o noto no progresso dos tecidos de veludo - opinou o mer-
cador forrador.
Nesse momento bateu meio-dia.
- Ah ! - vozeou a multidão inteira em uníssono.
Os estudantes calaram-se. Verificou-se, a seguir, enorme rebuliço,
grande movimento de pés e de cabeças e uma estrondosa descarga de
tosses e de fungadelas. Cada um acomodou-se, instalou-se, ergueu-se,

10
Ou uma bomba.
11
Atrás do cavaleiro vai sentada a sombria inquietação. ( Horácio, Odes I l i , 1401.

46
agrupou-se. Depois, silêncio profundo. Todos os pescoços ficaram es­
ticados, todas as bocas escancaradas, todos os olhares virados para
a mesa de mármore. Nada ali apareceu. Os quatro meirinhos do bai­
lio lá se mantinham, hirtos e imóveis como quatro estátuas pintadas.
Os olhares viraram-se em conjunto para o estrado reservado aos em­
baixadores flamengos. A porta continuou cerrada e o tablado vazio.
Desde pela manhã que a turba esperava por três coisas: o meio-dia,
a embaixada da Flandres e o mistério. Só o meio-dia chegara a horas.
Como pirraça, era pesada de mais.
Esperaram um, dois, três, cinco minutos, um quarto de hora e nada
de novo. O estrado continuava deserto e o teatro silencioso. Entretanto,
a cólera sucedia à impaciência. Circulavam protestos irritados, embora
ainda em voz abafada.
- O mistério! O mistério! - murmuravam em surdina.
As cabeças fermentavam. À superfície daquela multidão paira­
va uma tempestade que, por enquanto, apenas bramia. Foi Jehan du
Moulin quem lhe arrancou a primeira faísca.
- Toca com o mistério e mandem os flamengos para o Diabo ! - ber­
rou a plenos pulmões, torcendo-se como uma serpente em torno do
capitel.
A turba bateu palmas e repetiu:
- O mistério! Mandem a Flandres para o I nferno!
- Precisamos imediatamente do mistério - insistiu o escolar - ou
então sugiro que se enforque o bailio do palácio, para substituir a co­
média e o auto !
- Bem dito - berrou o povo. - Comecem os enforcamentos pelos
seus meirinhos.
Rompeu vibrante aclamação. Os quatro pobres-diabos começaram a
empalidecer e a entreolhar-se. A turba avançou para eles, que já viam
a débil balaustrada de madeira, que os separava, a vergar e a fazer
barriga sob a pressão da populaça.
Era crítica a situação.
- Ao saque ! Ao saque! - bradaram de todos os lados.
Nesse instante, a tapeçaria do vestiário que descrevemos atrás so­
ergueu-se e deu passagem a uma personagem cuj o aspeto bastou para
travar de repente a turba e, como por encanto, lhe transformar a fúria
em curiosidade.

47
- Silêncio ! Silêncio !
O indivíduo, muito pouco tranquilo e a tremer dos pés à cabeça,
adiantou-se até à borda da mesa de mármore, multiplicando-se em
mesuras que, à medida que se aproximava, mais se assemelhavam a
genuflexões.
A tranquilidade, porém, restabelecera-se a pouco e pouco, deixan­
do apenas esse leve rumor que sempre se desprende do silêncio das
massas.
- Senhores burgueses - arengou ele - e meninas burguesas, te­
remos a honra de declamar e representar perante Sua Eminência o
Senhor Cardeal uma formosíssima moralidade que se chama O Bom
Discernimento da Senhora Virgem. Sou eu que faço de Júpiter. Neste mo­
mento, Sua Eminência acompanha a mui nobre embaixada do Senhor
Duque de Áustria, a qual presentemente está retida na Porta Baudets
a escutar a alocução do Sr. Reitor da Universidade. Começaremos mal
chegue o Eminentíssimo Cardeal .
A verdade é que, para salvar o s quatro infelizes meirinhos d o bailio
do palácio, foi precisa nada menos do que a intervenção de Júpiter.
Se nos coubesse a satisfação de inventar esta muito verídica história e,
por conseguinte, a de assumirmos, perante Nossa Senhora a Crítica, a
sua responsabilidade, não seria contra nós que haveria razão de invo­
car o clássico preceito: Nec deus intersit12• Aliás, o Sr. Júpiter apareceu
vestido a primor, o que não contribuiu pouco para sossegar o povo,
atraindo-lhe por completo a atenção. Júpiter envergava uma brigan­
dina coberta de veludo preto e enfeitada a pregos dourados; cobria-se
com um gorro guarnecido de botões de prata dourada e se não fosse
o vermelhão e as grandes barbas que lhe guarneciam cada metade
da cara e o rolo de papelão dourado que empunhava, semeado de
vidrilhos e todo eriçado de correias com lantej oulas e no qual os olhos
argutos reconheceriam, à primeira vista, o raio, bem como os seus pés
cor de carne, enfitados à grega, facilmente o comparariam, pela severi­
dade do porte, com um archeiro bretão da corporação do Sr. De Berry.

12 E que um Deus não intervenha (Horácio, Arte Poética, 19 1- 1921 .

48
II

Pedro Gringoire

Contudo, enquanto discursava, foram-se dissipando a satisfação e o


apreço provocados pela sua indumentária. Depois, caiu na asneira de
rematar:
- Começaremos mal chegue o Eminentíssimo Cardeal.
Uma trovoada de vaias abafou-lhe a voz.
- Começai j á ! Venha o mistério ! O mistério imediatamente! - ber­
rava a turba, enquanto, dominando-lhe a vozearia, guinchava, como
um pífaro num charivari de Nimes, o timbre penetrante de Johannes
de Molendino:
- Começai sem demora !
- Fora o Júpiter mais o Cardeal de Bourbon ! - vociferavam Robin
Poussepain e os outros estudantes empoleirados na j anela.
- Venha daí a moralidade! - repetia a chusma. - Já! Sem tardança !
Tragam o saco e a corda para os cómicos e para o cardeal!
O infeliz Júpiter, esgazeado, espavorido, lívido debaixo do carmim,
deixou cair o raio, desbarretou-se e começou às mesuras, balbuciando
a tremer:
- Sua Eminência . . . os embaixadores. . . Madame Margarida da
Flandres . . . - Não sabia o que dizer. No fundo, estava cheio de medo de
que o enforcassem.
Enforcado pelo populacho por esperar, enforcado pelo cardeal por
não ter esperado, de ambos os lados só via um abismo, ou sej a: uma
forca.
Felizmente alguém veio livrá-lo de apuros e assumir a responsa­
bilidade.

49
Da banda de cá da balaustrada, no espaço que ficara liberto à roda
da mesa de mármore, estava um suj eito em que ninguém ainda repara­
ra, pois era tão esguio e magro que o diâmetro do pilar a que se encos­
tava o eclipsava das vistas de todos. Este indivíduo, dizíamos, era alto,
magro, pálido e ainda moço, embora já mostrasse rugas na testa e no
rosto. De olhar brilhante e lábios risonhos, vestia de sarja preta, coçada
e lustrosa pelo uso. Acercou-se da mesa de mármore e fez um sinal ao
infeliz paciente. Mas o outro, assarapantado, já nem via.
O recém-chegado aproximou-se mais e chamou:
- Júpiter! Meu caro Júpiter!
O outro estava surdo de todo.
Por fim, impaciente, o gigante louro berrou-lhe quase debaixo do
nariz:
- Miguel Giborne !
- Quem me chama? - exclamou Júpiter, como se acordasse sobres-
saltado.
- Eu - respondeu a personagem vestida de preto.
- Ah! - proferiu Júpiter.
- Começai imediatamente - tornou o outro. - Fazei a vontade ao
povo. Eu encarrego-me de acalmar o Sr. Bailio, que por sua vez acal­
mará o Sr. Cardeal.
Júpiter respirou aliviado e gritou a plenos pulmões para a turba que
continuava a protestar:
- Senhores burgueses, vamos começar imediatamente.
- Evoe, Jupiter! Plaudite, cives!13 - gritaram os estudantes.
- Viva ! Viva ! - berrou o populacho.
Estrugiram ensurdecedoras palmas e a sala ainda estremecia com
tantas ovações quando Júpiter desapareceu por baixo da tapeçaria.
Entretanto, a anónima personagem, que de maneira tão mágica
transformara a tempestade em bonança , como diz o nosso velho e queri­
do Corneille, regressara modestamente à penumbra da pilastra e ali se
manteria, invisível, imóvel e silenciosa como antes da sua intervenção,
se duas raparigas, colocadas na primeira fila dos espectadores e que
observaram o seu colóquio com Miguel Giborne-Júpiter não o chamas­
sem, fazendo-lhe sinal uma delas.

13 Bravo, Júpiter! Aplaudi, cidadãos!

50
- Mestre !
- Calai-vos, querida Leonarda - interveio a companheira, rapariga
bonita, fresca e toda louçã no traj o domingueiro -, não é um cléri­
go, mas sim um secular; não o deveis tratar por mestre, mas sim por
messire!
- Messire! - emendou Leonarda.
O desconhecido acercou-se da balaustrada e perguntou, interessado:
- Que desej ais de mim, minhas meninas?
- Oh, nada - respondeu atrapalhadíssima Leonarda. - Aqui a minha
vizinha Gisquette Gencienne é que pretende falar-lhe .
- Deixe-a lá! - protestou Gisquette, corando. - A Leonarda é que
chamou mestre e eu expliquei-lhe que se dizia messire.
As duas j ovens baixaram os olhos, mas o outro, encantado por me-
ter conversa, observava-as risonho.
- Nesse caso, nada me tendes a dizer, minhas meninas?
- Absolutamente nada - confirmou Gisquette.
- Nada - corroborou Leonarda.
O j ovem e desempenado louro deu um passo para se afastar, mas
as duas curiosas não pretendiam de maneira nenhuma largar a presa.
- Messire - disse de repente Gisquette, impetuosa como a represa
que se abre ou como uma mulher que toma uma decisão. Conhece
aquele soldado que vai representar o papel da Virgem Nossa Senhora
no mistério?
- Refere-se ao papel de Júpiter? - tornou o desconhecido.
- Pois claro ! - exclamou Leonarda. - Ela é parva ! Conhece então o
Júpiter?
- Miguel Giborne? - respondeu o anónimo. - Sim, senhora.
- Tem umas barbas soberbas! - comentou Leonarda.
- Será bonito o que vão recitar acolá em cima? - perguntou timida-
mente Gisquette.
- Lindíssimo, menina ! - afirmou o desconhecido, sem a menor
hesitação.
- Que vem a ser? - inquiriu Leonarda.
- É O Bom Discernimento da Senhora Virgem. Uma moralidade se
dais licença.
- Ah, isso é diferente - tornou Leonarda.
Seguiu-se breve silêncio que o desconhecido quebrou:

51
- Trata-se de uma moralidade inteiramente nova e que é represen­
tada pela primeira vez.
- Então - observou Gisquette - não é a mesma que representaram
há dois anos, no dia em que chegou o Sr. Legado e onde, entre as figu­
ras, havia três raparigas muito bonitas . . .
- Eram sereias - disse Leonarda.
- E vinham completamente nuas - acrescentou o rapaz.
Leonarda baixou pudicamente os olhos e Gisquette, vendo-a, imi­
tou-a. Risonho, o outro continuou:
- Um verdadeiro regalo para a vista ! Mas hoj e é uma moralidade
escrita de propósito para a Sr.ª Donzela da Flandres.
- Cantam pastorais? - perguntou Gisquette.
- Isso sim ! - exclamou o desconhecido. - Numa moralidade? ! . . . Não
confundamos os géneros! Santo Deus, isso só numa sotia !
- É pena . . . - lamentou Gisquette. - Nesse dia havia também, no
chafariz de Ponceau, vários homens e mulheres selvagens a lutarem
uns com os outros e adotavam diversas posturas, ao mesmo tempo que
cantavam uns motetozitos e umas pastorais.
Com certa secura , o homem redarguiu:
- O que convém para um legado não serve para uma princesa !
- Junto deles - continuou Leonarda - tocavam, em conj unto, vários
instrumentos graves, a que arrancavam esplêndidas melodias.
Gisquette continuou as evocações:
- Para refrescar os que passavam, o chafariz deitava, pelas três
bocas, vinho, leite e hipocraz; bebia quem quisesse !
- E um pouco abaixo de Ponceau - prosseguiu Leonarda na
Trindade, havia uma paixão, com figuras, mas que não falavam.
- Bem me lembro ! - exclamou Gisquette. - Era Nosso Senhor cruci­
ficado entre os dois ladrões.
Nesta altura as duas moças tagarelas, arrebatadas pela lembrança
da receção ao Sr. Legado, desataram a falar ao mesmo tempo:
- Mais adiante, defronte da Porta dos Pintores, havia mais gente,
toda vestida com muita riqueza.
- E no chafariz do Santo Inocente, aquele caçador atrás duma cerva,
no meio de enorme alarido de cães e de trompas de caça !
- E no açougue de Paris aqueles andaimes que figuravam a bastilha
de Diepe !

52
- E quando o Legado passou, sabes, Gisquette, atiraram-se ao
assalto e cortaram as goelas a todos os ingleses !
- Que lindíssimas personagens estavam j unto da Porta do Châtelet!
- E a Ponte do Câmbio, toda ela alcatifada !
- Quando o Legado passou, largaram de cima da ponte mais de
duzentas dúzias de toda a espécie de passarinhos. Um espetáculo lin­
díssimo, Leonarda !
- Hoj e ainda vai ser mais bonito - ajuntou finalmente o interlocutor,
que parecia já impaciente de as ouvir.
- Promete-nos que este mistério vai ser bonito? - insistiu Gisquette.
- Decerto ! - respondeu ele, aj untando com certa ênfase: - Tanto
mais, meninas, que sou eu o seu autor.
- Deveras? - exclamaram as raparigas, verdadeiramente maravilhadas.
- Sem tirar nem pôr! - confirmou o poeta , pavoneando-se um pouco.
- Isto é . . . somos dois: Jehan Marchand, que serrou as tábuas e ergueu
todo o arcaboiço do teatro e toda a guarnição de madeira, e eu que
escrevi a peça. Chamo-me Pedro Gringoire.
O autor do Cid não teria pronunciado com mais orgulho: Pedro
Corneille.
Decerto que os leitores já notaram que decorrera algum tempo
desde a ocasião em que Júpiter desapareceu debaixo da tapeçaria
até o momento em que o autor do novo auto se revelara assim de
improviso à ingénua admiração de Gisquette e de Leonarda. Facto a
assinalar: toda aquela gente, que minutos antes se mostrava tão baru­
lhenta, esperava agora com paciência, confiada na palavra do come­
diante, o que demonstra a eterna verdade, ainda hoje todos os dias
verificada nos nossos teatros, de que a melhor maneira de fazer com
que o público espere com resignação é afirmar-lhe que vai começar
imediatamente o espetáculo.
O académico Joannes, porém, não se deixara embalar com promes­
sas, pois, de repente, no meio da pacífica expectativa que se sucedera
ao tumulto, bradou:
- Eh lá, ó Júpiter! ó Senhora Virgem ! ó saltimbancos do Diabo,
estais a mangar? Então essa peça? Venha a peça ! Começai ou então
quem recomeça somos nós!
Não foi preciso mais nada. Ouviu-se no interior do arcaboiço de
tábuas uma música de instrumentos agudos e graves, e a tapeçaria

53
ergueu-se. Saíram quatro personagens pintadas de variegadas cores
que marinharam pela íngreme escada do teatro e, assim que atingiram
a plataforma superior, alinharam diante do público, saudando-o com
profundas mesuras, após o que se calou a sinfonia. Era o mistério que
começava.
As quatro figuras, depois de colherem abundantes aplausos em
paga das reverências, encetaram, no meio de religioso silêncio, um
prólogo a que de bom grado poupamos o leitor. Para mais, como acon­
tece frequentemente nos nossos dias, o público interessava-se mais
com os traj os que os atores envergavam do que com o papel que inter­
pretavam, o que na verdade se compreende. Todos os quatro vestiam
túnicas, metade amarelas e metade brancas, de que só a qualidade do
tecido as diferençava umas das outras: a primeira era de brocado de
ouro e de prata; a segunda de seda; a terceira de lã, e a quarta de brim .
A primeira das figuras brandia na mão direita uma espada, a segunda
duas chaves de ouro, a terceira uma balança e a quarta uma enxada
e, para aj udar as inteligências preguiçosas que não percebessem cla­
ramente a transparência daqueles atributos, lia-se, bordado a letras
pretas e enormes: na fímbria da túnica de brocado, CHAMO-ME NOBREZA;
na de seda , CHAMO- M E CLERO ; na túnica de lã, CHAMO-ME M ERCANCIA e, por
baixo da de brim, CHAMO- M E TRABALH O . O espectador judicioso claramente
distinguia o sexo das duas alegorias masculinas pelas túnicas menos
compridas e pela coifa que as cobria, ao passo que as duas alegorias
fêmeas, de túnicas mais compridas, traziam uma capucha na cabeça.
Só com muito má vontade não se entenderia na poesia do prólogo
que o Trabalho era casado com a Mercancia e o Clero com a Nobreza
e que os dois ditosos casais possuíam de sociedade um precioso golfi­
nho de ouro que pretendiam não conceder senão à mais formosa das
damas. Andariam, portanto, por esse mundo fora a inquirir onde pode­
riam encontrar essa beldade e, depois de rej eitarem sucessivamente a
rainha de Golconda, a princesa de Trebizonda, a filha do Grão-Cão da
Tartária e assim sucessivamente, Trabalho e Clero, Nobreza e Mercancia
acabaram por ir descansar para cima da mesa de mármore do Palácio
da Justiça , onde impingiam, ao honrado auditório, tantas sentenças e
máximas quantas as que nesse tempo na Faculdade das Artes era pos­
sível distribuir, com os sofismas, as figuras e os atos em que os mestres
recebiam os seus gorros de licenciados.

54
Tudo aquilo era realmente muito bonito, mas, naquela assistên­
cia sobre a qual as quatro alegorias despejavam à porfia torrentes de
metáforas, não havia ouvido mais atento, coração mais palpitante,
olhar mais desvairado, pescoço mais erguido do que o olhar, o ouvido,
o pescoço e o coração do autor, do poeta, desse bom Pedro Gringoire
que momentos antes fora incapaz de resistir à satisfação de revelar o
seu nome às duas formosas raparigas. Afastara-se um pouco delas e
voltara para trás da sua coluna, de onde escutava, olhava, saboreava.
Ainda lhe ressoavam nos tímpanos os benevolentes aplausos que aco­
lheram o início do prólogo e absorvera-se por completo nessa espécie
de extática contemplação em que o autor vê as suas ideias cair uma
a uma da boca do ator, no silêncio de um numeroso auditório. Digno
Pedro Gringoire !
Temos muita pena de o dizer, mas a verdade é que não tardou que
aquele êxtase inicial depressa se perturbasse. Mal Gringoire chegara
aos lábios a taça inebriante da alegria e do triunfo, logo lha azedou
uma gota de amargura .
Um andraj oso mendigo, incapaz de amealhar receita, perdido como
estava no meio da multidão e decerto sem se poder desforrar suficien­
temente nos bolsos dos vizinhos, lembrou-se de se empoleirar num
ponto bem à vista de onde atraísse os olhares e as esmolas.
Por isso, enquanto se ouviam os primeiros versos do prólogo,
içara-se, graças aos pilares do estrado reservado, até à cornija que
debruava a balaustrada pela parte de baixo e, sentando-se aí, solici­
tava a atenção e a piedade da assistência, com os seus farrapos mais a
hedionda chaga que lhe alastrava no braço direito. Aliás, não proferia
qualquer palavra.
Como se conservava calado, não impedia que o prólogo prosse­
guisse sem entraves, e nenhuma perturbação sensível ocorreria se
a desventura não quisesse que o estudante Joannes avistasse, do
seu poleiro no cimo da coluna, o mendigo com as suas intruj ices.
Uma incontida vontade de rir apoderou-se do j ovem brincalhão, o
qual, sem se importar em interromper o espetáculo, bradou sem
cerimónia:
- Olha aquele aleij ado a pedir esmola!
Quem já alguma vez atirou uma pedra a um charco de rãs ou dis­
parou um tiro contra um bando de pássaros pode fazer uma ideia do

55
efeito causado por aquelas palavras, que tão pouco a propósito vinham
distrair a atenção geral. Gringoire estremeceu corno sob urna descarga
elétrica; o prólogo suspendeu-se e, desordenadamente, viraram-se
todas as cabeças para o pedinte que, em vez de se atrapalhar, viu no
incidente urna boa oportunidade para colheita e desatou a lamuriar
com os olhos semicerrados:
- Caridade, por favor!
- Mas, por minha alma, é o Clopin Trouillefou ! - exclamou Joannes.
- Olá, amigo, a tua chaga incomodava-te tanto a perna, que resolveste
transferi-la para o braço?
Enquanto assim falava, atirou, com a destreza dum macaco, urna
rnoedita de prata para o sebento feltro que o mendigo estendia no
extremo do braço enfermo. O pedinte recebeu imperturbável a esmola
e o sarcasmo e prosseguiu na mesma inflexão larnurienta:
- Caridade, por favor!
Este episódio desviou consideravelmente a atenção do auditório e
grande número de espectadores, com Robin Poussepain e todos os
escolares à frente, aplaudiram alegremente o estranho dueto que se
acabava de improvisar mesmo a meio do prólogo e em que figuravam
o estudante com a sua voz esganiçada e o mendigo com a sua imper­
turbável salrnodia.
Contrariadíssirno, Gringoire, logo que se recobrou da surpresa ini­
cial, esforçou-se para que as quatro personagens em cena o ouvissem
bradar:
- Continuai ! Que diabo, continuai !
Nem sequer se dignou lançar um olhar de desdém para os que
haviam interrompido a representação, mas naquele instante sentiu
que lhe puxavam pela aba do capote. Voltou-se, um tanto irritado, e
mal esboçou um sorriso que, contudo, se impunha. Gisquette enfiara
o airoso braço por entre a balaustrada e desse modo chamava-lhe a
atenção.
- Senhor - perguntou -, vão continuar?
- Sem dúvida - respondeu Gringoire, muito estornagado com a
pergunta.
- Nesse caso, messire - prosseguiu a rapariga -, quer ter a bondade
de me explicar. . . ?
- O que vão dizer? - atalhou Gringoire. - Pois bem, escutem-nos!

56
- Não - emendou Gisquette -; o que eles têm estado a dizer até
agora.
Gringoire deu um pulo como se lhe tocassem numa ferida em carne
viva e resmungou entre dentes:
- Que peste esta estúpida e obtusa rapariga !
A partir desse momento, Gisquette baixou por completo no seu
conceito.
Entretanto, os atores obedeceram-lhe à ordem e, como o público
reparou que eles voltavam a recitar, tornou outra vez a escutá-los, não
sem perder bastantes mimos na espécie de soldagem com que ligaram
as duas partes tão subitamente separadas. Gringoire comentava amar­
gamente, em voz baixa, o percalço, embora se restabelecesse gradual­
mente o sossego, o estudante se calasse, o mendigo passasse a contar
as moedas recolhidas no chapéu e a peça retomasse o curso normal.
Tratava-se deveras duma bela obra e da qual nos parece que, depois
de algumas emendas, se poderia muito bem tirar partido ainda hoje.
A exposição, um tanto estirada e oca, isto é, dentro das regras, era sim­
ples, e Gringoire, no ingénuo santuário do seu íntimo, admirava-lhe a
clareza. Como facilmente se depreende, as quatro figuras alegóricas,
depois de terem percorrido as três partidas do mundo, sem consegui­
rem desfazer-se convenientemente do seu delfim de ouro, sentiam-se
um tanto cansadas. Ainda por cima, elogiavam o peixe maravilhoso,
com mil delicadas alusões ao j ovem noivo de Margarida da Flandres,
àquela hora tristissimamente fechado em Amboise e mal calculando
que o Trabalho, o Clero, a Nobreza e a Mercancia, por sua causa , aca­
bavam de dar a volta ao mundo. Era , contudo, j ovem o dito delfim,
belo, forte e sobretudo (magnífica origem de todas as virtudes reai s ! )
era fi l h o do leão da França. Declaro admirável esta atrevida metáfora,
e a história natural do teatro, em dia de alegoria e de epitalâmio real,
de modo algum se espanta que haj a um delfim, filho de um leão.
Justamente são estas raras e pindáricas misturas que provam o entu­
siasmo. Não obstante, para armar também em crítico, parece-nos que
o poeta podia muito bem desenvolver tão bonita ideia em menos de
duzentos versos. É verdade que, conforme ordenara o Sr. Preboste, o
mistério devia durar do meio-dia às quatro horas e assim tinha de se
dizer qualquer coisa durante esse tempo todo. Aliás, escutavam arma­
dos de paciência.

57
De repente, mesmo no meio duma discussão entre a menina
Mercancia e a D. Nobreza , na altura em que mestre Trabalho recitava
este verso mirífico:

Nunca se viu nos bosque alimária mais triunfante!

a porta do estrado reservado, e que até ali se conservara fechada nada


a propósito, abriu-se ainda com menos oportunidade e a voz retum­
bante do meirinho anunciou de repente:
- Sua Eminência Monsenhor Cardeal de Bourbon.

58
III

O senhor cardeal

Pobre Gringoire ! O estrondo de todas as bombas de duas respostas


do S. João, a descarga de vinte arcabuzes de forquilha, o estampido
dessa formosa serpentina da Torre de Billy que no cerco de Paris, no
domingo 29 de setembro de 1465, só de um tiro matou sete borgo­
nheses, a explosão de toda a pólvora empaiolada na Porta do Templo,
dilacerar-lhe-ia menos rudemente os tímpanos naquele instante solene
e dramático do que a meia dúzia de palavras saídas da boca de um
oficial de justiça: Sua Eminência Monsenhor Cardeal de Bourbon.
Não que Pedro Gringoire temesse ou desprezasse o Sr. Cardeal. Não
era homem para essa fraqueza ou fatuidade. Gringoire era, como hoj e
se diria, um verdadeiro eclético; um desses espíritos elevados e firmes,
moderados e plácidos, que se sabem sempre manter no meio-termo
(stare in dimidio rerum) e conservar-se plenos de senso e de liberal filo­
sofia, mesmo quando se trata de cardeais. Preciosa raça de filósofos
j amais interrompida, a quem a sagacidade, como uma nova Ariadne,
parece ter dado um novelo de fio que eles vêm dobando desde o princí­
pio dos tempos, por entre o labirinto das coisas humanas. Encontram-se
em todas as épocas, são sempre os mesmos - quer dizer: são sempre os
mesmos conforme as épocas. E sem falar no nosso Pedro Gringoire, seu
representante no século XV, se conseguíssemos outorgar-lhe a mere­
cida ilustração, era com certeza o seu espírito que animava o padre
Ou Breul quando, cem anos mais tarde, escrevia estas palavras can­
didamente sublimes, mas dignas de qualquer século: "Sou parisiense
de nação e parrhisiano de linguagem, pois parrhisia em grego significa
liberdade de falar, com a qual cheguei a visar os próprios senhores

59
cardeais, tio e mano do monsenhor príncipe de Conty, mas sempre com
o devido respeito pela sua grandeza e sem ofender ninguém do seu
séquito, o que é muito".
Por isso, a desagradável impressão causada em Pedro Gringoire
não provinha de embirração nem desdém pelo cardea l , mas antes
pelo contrário, pois o nosso poeta era suficientemente atilado e pos­
suía uma camisola grosseira e por de mais usada até o fio para que
não lhe interessasse sobremaneira que as repetidas alusões do seu
prólogo e , em particular, a glorificação do delfim, filho do leão da
França , chegassem a tão eminentíssimos ouvidos. Mesmo assim, não
é o interesse que prevalece na nobre natureza dos poetas. I magine-se
que a entidade do poeta se representa pelo número dez; a verdade
é que o químico que o analisasse e o "farmacopolizasse" , como diz
Rabelais, achá-lo-ia composto de uma parte de interesse contra
nove partes de amor-próprio. Ora sucedeu que, na altura em que
se escanca rava a porta para ingresso do cardeal , as nove partes do
amor-próprio de Gringoire, inchadas e tumefactas com o incitamento
da admiração popular, atingiam um estado de prodigioso desenvol­
vimento, sob o qual sufocava e extinguia essa impercetível molécula
de interesse que há instantes distinguíamos na constituição dos poe­
tas; aliás ingrediente precioso, visto ser o lastro de realidade e de
humanidade sem o qual não conseguiriam poisar no chão. Gringoire
deleitava-se a sentir, a ver, a palpar por assim dizer toda aquela
assembleia, pouco se importando de que fosse afinal composta de
marotos, mas que ouviam estupefactos, petrificados, como asfixiados
com as incomensuráveis tiradas que a cada passo brotavam de todas
as partes do seu epitalâmio. Garanto que ele próprio partilhava do
arroubo geral e , ao contrário de La Fontaine que, quando represen­
tavam a sua comédia Florentino, perguntava "Quem foi o sensaborão
que escreveu esta rapsódia?", Gringoire de bom grado perguntaria
ao espectador mais próximo: "De quem é esta obra-prima?" Por aqui
se pode avaliar o efeito que lhe causou a súbita e intempestiva che­
gada do cardeal .
O s seus piores receios justificaram-se ainda muito para além d o que
temia. A assistência perdeu a cabeça com a entrada de Sua Eminência.
Todas as cabeças se voltaram para o estrado. Ninguém se entendia,
repetindo unanimemente:

60
- O Cardeal ! O Cardeal !
O malfadado prólogo pela segunda vez se interrompeu.
O cardeal parou por momentos à entrada do estrado e passeou pela
assistência um olhar por de mais indiferente, enquanto o tumulto redo­
brava, pois cada um procurava vê-lo o melhor que pudesse. Era quem
mais depressa espetava a cabeça por cima dos ombros do vizinho.
Tratava-se, realmente, duma ilustre personagem e, como espetá­
culo, valia bem qualquer outra comédia. Carlos, cardeal de Bourbon,
arcebispo e conde de Lião, primaz das Gálias, era ao mesmo tempo
parente de Luís XI, por seu irmão Pedro, senhor de Beauj eu, casado
com a filha mais velha do rei, e parente de Carlos, o Temerário, por
sua mãe, Inês de Borgonha. Ora o primaz das Gálias possuía como
traço dominante, como sinal característico e distinto, o espírito de cor­
tesão e a devoção pelos poderosos. Forma-se, portanto, uma ideia das
inúmeras complicações que lhe criava aquele duplo parentesco e a
soma de escolhos temporais por entre os quais tinha de bordejar a sua
barca espiritual para não se despedaçar nem contra Luís, nem contra
Carlos, nessa Caríbdis e nessa Cila que engoliram o duque de Nemours
e o condestável de Saint-Pol. Graças a Deus, levara a bom termo a
travessia e chegara sem contratempos a Roma. Embora , porém, esti­
vesse em porto de abrigo, e precisamente porque alcançara esse porto,
recordava sempre com inquietação as várias fases da sua vida política,
durante tanto tempo laboriosa como inquieta. Por isso, costumava
dizer que o ano de 1476 fora para ele preto e branco, entendendo-se
por isso que, como nesse mesmo ano lhe morrera a mãe, a duquesa
de Bourbonnais, e o primo, o duque de Borgonha, um luto consolara-o
do outro.
Aliás, era boa pessoa. Levava folgada vida de cardeal , alegrava-se
de bom grado com as cepas reais de Chaillot, não virava a cara nem
à Ricarda Garmoise, nem à Tomásia Saillarde, dava mais depressa
esmola às raparigas bonitas do que às velhas, e, por todas estas
razões, a massa popular de Paris gostava bastante dele. Quando saía,
fazia-se acompanhar de uma cortezinha de bispos e abades de alta
linhagem, galantes, descarados e, se fosse preciso, pândegas também;
mais de uma vez, as boas das devotas de Saint-Germain d'Auxerre,
quando de noite passavam por baixo das j anelas iluminadas do solar
dos Bourbons, escandalizavam-se de ouvir as mesmas vozes que lhes

61
cantaram as vésperas nos ofícios do dia a salmodiarem, com o acom­
panhamento do tilintar dos copos, o provérbio báquico de Bento XI I ,
esse papa que juntou terceira coroa à tiara: Bibamus papaliter14.
-

Decerto tal popularidade , por tão merecidos títulos conquistada ,


evitou que, ao entrar na sala, se verificasse qualquer mau acolhimento
da parte da chusma momentos antes tão aborrecida, e nada propensa
ao respeito por um cardeal, justamente no dia em que ia eleger um
papa. Os Parisienses, porém , são pouco de ressentimentos e, como os
bons burgueses tinham imposto a sua autoridade para que a repre­
sentação começasse sem a presença do purpurado, contentaram-se
com esse triunfo. Para mais, era o cardeal de Bourbon homem de
guapa figura, que vestia a primor uma linda batina encarnada, que o
mesmo era dizer-se que contava com todas as mulheres a seu favor e,
por conseguinte, a metade mais preponderante da assistência. Apupar
um cardeal de tão cativante figura e tão aprumado na batina vermelha
representaria decerto inj ustiça e prova de mau gosto.
Entrou, pois; cumprimentou o auditório com o hereditário sorriso
que os grandes dispensam à plebe e encaminhou-se sem pressa, e
com semblante de quem vai a pensar em coisa muito diferente, para
a sua poltrona de veludo escarlate. Logo a seguir, irrompeu no palan­
que o cortej o, a que hoj e chamaríamos o estado-maior, de bispos e
de abades. Claro que a agitação e a curiosidade da plateia redobra­
ram. Era vê-los a apontá-los, a nomeá-los. Era ver quem mais depressa
demonstrava conhecer pelo menos um. Aqui, salvo erro, é o Sr. Bispo
de Marselha, Alaudet; acolá, o primicério de S. Dinis; além, Roberto
de Lespinasse, abade de St. Germain-des-Prés e irmão libertino duma
amante de Luís XI : isto tudo com muitas confusões e cacofonias. Por
seu lado, os estudantes praguej avam. Estavam no seu dia, na sua festa
de malucos, na sua saturnal, na anual orgia do foro e da escola. Nesse
dia não havia torpeza que não fosse legítima e aceite como coisa
sagrada. Além disso, na multidão encontravam-se marafonas como a
Simone Quatro Libras, a Inês Gadine e a Robine Pé de Bode. Era, por­
ventura, de mais praguejar à vontade e j urar um pouco em nome de
Deus, estando um dia tão bonito e sendo tão escolhida a companhia
da gente da Igrej a e das raparigas de maus costumes? Por isso, não

14 Bebamos como papa.

62
estavam com meias-medidas e, no meio da balbúrdia, ouvia-se uma
horrível chinfrineira de blasfémias e de enormidades proferidas por
todas aquelas línguas desenfreadas, línguas de escreventes e de estu­
dantes que, no resto do ano, eram mais comedidos, com medo do ferro
em brasa de S. Luís. Coitado do santo, tão ultrajado por eles no seu
palácio de j ustiça ! Cada um tomara à sua conta uma sotaina preta, ou
parda, ou branca, ou violeta, de entre as que sucessivamente surgiam
no estrado. Quanto a Joannes Frollo de Molendino, na sua qualidade
de irmão dum arcediago, atirara-se coraj osamente à púrpura e can­
tava a plenos pulmões, cravando os olhos impudentes no cardeal:
- Cappa repleta mero!15
Todas estas particularidades, que pomos a nu para edificação do
leitor, abafavam-se de tal maneira sob o rumor geral, que se extingui­
ram antes de chegar ao palanque reservado. Aliás, como nesse dia era
da praxe que se permitissem todas as liberdades, o cardeal pouco se
ralaria. Para mais, como bem o dava a perceber, outra coisa mais de
perto o preocupava e que com ele entrou simultaneamente no estrado:
era a embaixada da Flandres.
Não que fosse político profundo a ponto de se afligir com as possí­
veis consequências do casamento da senhora sua prima Margarida de
Borgonha com o senhor seu primo Carlos, delfim de Viena. Tão-pouco
o inquietavam o tempo que duraria o bom entendimento artificial do
duque da Áustria com o rei da França e a maneira como o rei da
I nglaterra aceitaria essa desfeita a sua filha, e todas as noites fazia
honra ao vinho das cepas reais de Chaillot, sem desconfiar de que algu­
mas garrafas desse mesmo vinho (é verdade que depois de estudado
e levemente corrigido pelo médico Coictier) , cordialmente oferecido
por Luís XI a Eduardo IV, numa bela manhã desembaraçariam Luís
XI de Eduardo IV. Embora a mui nobre embaixada do Senhor Duque da
Á ustria não trouxesse ao cardeal qualquer preocupação dessa ordem,
importunava-o por outro lado. Era realmente um pouco duro de roer,
como já o dissemos na segunda página deste livro, ver-se forçado,
ele, Carlos de Bourbon, a fazer boa cara e a dispensar a mável rece­
ção a uns burgueses quaisquer. Ele, um cardeal, com tais atenções
por uns almotacéis; ele, francês e j ovial conviva, a aturar flamengos,

15 Capa cheia de vinho.

63
bebedores de cervej a ! E tudo isto em público ! Pela certa nunca fizera
salamaleques mais fastidiosos do que esses a que se sacrificava para
agradar a Sua Maj estade.
A voz sonora do meirinho anunciou:
- Os senhores enviados do Senhor Duque da Á ustria.
O cardeal voltou-se então para a porta, com a melhor graça deste
mundo, pois ensaiara-se cuidadosamente. Escusado será dizer que a
sala inteira voltou-se também.
Apareceram então, a dois e dois e com uma gravidade em perfeito
contraste com o petulante cortej o eclesiástico de Carlos de Bourbon,
os quarenta e oito embaixadores de Maximiliano da Áustria, levando
à frente o reverendo pai em Deus, Jehan, abade de Saint-Bertin , chan­
celer do Tosão de Ouro, e Tiago de Goy, sieur Dauby, sumo bailio de
Cante. Na assembleia reinava profundo silêncio, apenas perturbado
por alguns risinhos abafados, quando escutavam os nomes estapa­
fúrdios e todas as qualificações burguesas que cada um daqueles
suj eitos transmitia imperturbavelmente ao meirinho, o qual atirava,
para cima da multidão, apelidos e qualidades, à matraca e estropia­
díssimos. Era mestre Loys Roelof, almotacel da cidade de Lovaina;
messire Clays d ' Etueld e , almotacel de Bruxelas; messire Paulo de
Baeust, sieur de Voirmizelle, presidente da Flan dres; mestre Jehan
Coleghens, burgomestre da cidade de Antuérpia; mestre Jorge de
la M oere, primeiro almotacel da kuere da cidade de Gante; mestre
Gheldolf van der Hage, primeiro-almotacel da cidade da Haia, e o
sieur de Bierbecques, e Jehan Pinnock e Jehan Dymaerzelle, etc . ,
etc . , etc . , bailios, almotacéis, burgomestres, almotacéis, bailios; muito
empertigados, presunçosos, afetados, com os seus fatos dominguei­
ros de veludo e de damasco, encarapuçados de coifas de veludo
preto com grossas borlas de fios de ouro de Chipre; no fundo boas
cabeças flamengas, figuras dignas e severas da família daquelas que
tão dominantes e graves avultam sobre o fundo negro da Ronda da
Noite de Rembrandt, personagens que traziam bem escrito na testa
que Maximiliano da Áustria fizera bem em confiar plenamente, como
o seu manifesto dizia, no seu senso, bravura, experiência, lealdade e
bons feitos de intrepidez.
Havia, todavia, uma exceção. Tratava-se de certo semblante fino,
inteligente, astuto, uma espécie de macaco e de diplomata, para o qual

64
o cardeal avançou três passos e se inclinou profundamente, embora o
outro se chamasse apenas Guilherme Rym, conselheiro e pensionário da
cidade de Cante.
Pouca gente nessa altura sabia quem era Guilherme Rym. Um talento
invulgar que em tempos de revolução surgiria brilhantemente à tona
dos acontecimentos, mas que no século XV se via reduzido às caverno­
sas intrigas e a viver na sapa, como diz o duque de Saint-Simon. Aliás,
apreciavam-no como o primeiro sapador da Europa, pois maquinava
familiarmente com Luís XI e amiúde prestava uma aj uda às secretas
precisões do rei . Tudo isto são particularidades desconhecidas daquela
turba espantada com a delicadeza do cardeal ante aquela insignificante
figura de bailio flamengo.

65
IV

Mestre Jacques Coppenole

Enquanto o pensionário de Gante e a eminência baixavam a cabeça


um ao outro e trocavam breves palavras ainda mais baixas do que
a mesura, um homem muito alto, de cara enorme e ombros hercú­
leas, preparava-se para entrar ao mesmo tempo que Guilherme Rym:
dir-se-ia um dogue com uma raposa ao lado. O seu gorro de feltro
e a véstia de cabedal formavam uma verdadeira mancha entre tanto
veludo e tanta seda. O meirinho imaginou tratar-se de algum palafre­
neiro transviado e embargou-lhe o passo.
- Eh, amigo, aqui não se passa !
Com um encontrão, o homem da veste de couro repeliu-o e
gritou-lhe num timbre que atraiu para o diálogo a atenção da sala
inteira:
- Que me quer este patusco? Não vês quem sou?
- Como vos chamais? - perguntou o meirinho.
- Jacques Coppenole.
- Qual o vosso cargo?
- Fabricante de meias, em Gante, na loj a das "Três Cadeiazinhas".
O meirinho recuou. Vá que anunciasse almotacéis e burgomestres,
mas um fabricante de meias passava as marcas. O cardeal parecia
sobre brasas. Toda a gente olhava, de ouvido à escuta.
Apesar de a eminência andar havia dois dias a alisar o pelo daque­
les ursos flamengos, para os tornar um pouco mais apresentáveis à
assistência, o despropósito era de monta. Entretanto, com um sorriso
matreiro, Guilherme Rym aproximou-se do meirinho e sussurrou-lhe
em voz multo baixa:

66
- Anunciai mestre Jacques Coppenole, escrevente dos almotacéis da
cidade de Gante.
- Meirinho - emendou o cardeal, em voz alta -, anunciai mestre
Jacques Coppenole, escrevente dos almotacéis da nobre cidade de Gante !
Foi pior a emenda do que o soneto. Guilherme Rym, sozinho, apla­
naria as dificuldades, mas Coppenole ouviu o cardeal e por isso bra­
dou, numa voz trovejante:
- Não, pela cruz de Deus! Jacques Coppenole, fabricante de meias.
Ouves, meirinho? Nem mais nem menos! Pela cruz de Deus, fabricante
de meias já enche bem a boca. Quantas vezes o Sr. Arquiduque veio à
procura da sua luva entre as minhas meias!
Estrugiram gargalhadas e aplausos. Em Paris vitoriam sempre uma
piada, pois atingem-lhe o alcance imediatamente.
Aj untemos, ainda, que Coppenole pertencia ao povo e todo aquele
público que o rodeava era do povo. Por isso se estabeleceu entre eles
uma comunicação imediata, elétrica e a bem dizer do mesmo nível.
A altiva arremetida do fabricante de meias flamengo ao humilhar os
cortesãos agitara em todas as almas plebeias um certo sentimento de
dignidade, ainda vago e impreciso no século XV. O fabricante de meias
era um seu igual que fizera frente ao príncipe da I grej a !
Tal reflexão inebriava os pobres diabos habituados a o respeito e à
obediência ante os servos dos meirinhos do abade de Santa Genoveva,
caudatário, do cardeal.
Coppenole saudou sobranceiramente Sua Eminência, que retribuiu
o cumprimento do todo-poderoso burguês temido por Luís XI . Depois,
enquanto Guilherme Rym, sapiente homem e malicioso, como diz Filipe
de Comines, seguia os dois com um sorriso de mofa e superioridade,
cada um alcançou o seu lugar - o cardeal muito preocupado e confuso,
e Coppenole sereno e altivo, e a pensar decerto que, no final de contas,
o seu título de fabricante de meias valia tanto como qualquer outro e
que Maria de Borgonha, mãe daquela Margarida que Coppenole des­
posava hoj e, temê-lo-ia menos se ele fosse cardeal em vez de fabri­
cante de meias. Porque não foi um cardeal que amotinou os Ganteses
contra os favoritos da filha de Carlos, o Temerário; não foi um cardeal
que, com uma só palavra, revigorou a plebe contra as suas lágrimas e
súplicas, quando a donzela da Flandres veio pedir por eles ao povo até
os degraus do cadafalso, onde bastara ao fabricante de meias levantar

67
o cotovelo de couro para fazer cair as vossas duas cabeças, distintís­
simos senhores Guy d'Hymbercourt e chanceler Guilherme Hugonet !
As provações, todavia, não haviam ainda acabado para o pobre do
cardeal que tinha de sorver até às fezes o cálice só porque se ligara
com tão má companhia.
O leitor não se esqueceu talvez ainda do descarado mendigo que,
desde o começo do prólogo, se aferrara às franjas do estrado principal.
De modo algum a chegada de tão ilustres convidados o fez largar a
presa e, enquanto prelados e embaixadores se comprimiam como sar­
dinha em lata, tais como verdadeiros arenques flamengos, nas cadeiras
da tribuna o pedinte instalou-se à sua vontade, de pernas despreocupa­
damente cruzadas, sobre a arquitrave. lnaudita insolência, mas como
as atenções se desviavam para outro lado, ninguém de entrada deu por
ela. Simultaneamente, o maltrapilho não reparava em coisa nenhuma
da sala e baloiçava a cabeça, numa indiferença de napolitano, repetindo
volta e meia entre aquele burburinho e como que num hábito maquinal:
- Caridade, por favor!
Sem dúvida foi o único, em toda a assistência, que não se dignou
virar a cabeça ante a discussão travada entre Coppenole e o meirinho.
Quis, porém, o destino que o fabricante de meias de Cante, tão sim­
pático j á à assistência e no qual se fixavam todos os olhos, se fosse
justamente sentar na primeira fila do estrado e por cima do mendigo.
Não causou pequeno espanto verem o embaixador flamengo, depois
de observar o miserável colocado sob os seus olhos, bater-lhe amis­
tosamente no ombro coberto de andraj os. O mendigo voltou-se; veri­
ficou-se surpresa, reconhecimento e manifestação de alegria nos dois
semblantes; depois, sem se preocuparem de maneira nenhuma com os
espectadores, o fabricante de meias e o maltrapilho puseram-se a con­
versar em voz baixa, de mãos dadas, enquanto a trapagem de Clopin
Trouillefou , em estendal sobre o brocado de ouro do estrado, lembrava
uma lagarta em cima duma laranj a.
Como a novidade desta cena singular provocou na sala enorme
barulheira de doidice e de contentamento, o cardeal depressa reparou
nele. Inclinou-se um pouco e, como do sítio onde estava só imperfei­
tamente entrevia a ignominiosa capa de Trouillefou, imaginou, muito
naturalmente, que o mendigo pedia esmola e, por isso, bradou, revol­
tado com o atrevimento:

68
- Senhor Bailio do Palácio, pregai-me com esse patife no rio !
- Pela cruz de Deus, Monsenhor Cardeal ! - interveio Coppenole,
sem largar a mão de Clopin. - É um amigo meu !
- Viva ! Viva ! - berrou a turba.
A partir daquele momento, mestre Coppenole beneficiou, tanto em
Paris como em Gante, de grande crédito com o povo, porque gente dessa
envergadura - disse Filipe de Comines - conquistam-na quando é assim
desordenada.
O cardeal mordeu os lábios. I nclinou-se para o seu vizinho, o abade
de Santa Genoveva, e disse-lhe em voz baixa:
- Que embaixadores tão divertidos o Senhor Arquiduque encarre­
gou de nos apresentar Madame Margarida !
- Vossa Eminência - respondeu o abade - malbarata as suas aten­
ções com estes cevados flamengos. Margaritas ante porcos1 6 .
- Dizei antes - retorquiu-lhe, sorrindo, o cardeal - Porcos ante
Margaritam1 7 •
Toda a cortezinha de sotaina se extasiou com este j ogo de pala­
vras. O cardeal sentiu-se mais aliviado, pois aj ustara as contas com
Coppenole e ouvira aplausos pelo seu trocadilho.
Chegou a altura de os nossos leitores que dispõem da faculdade de
generalizar uma imagem e uma ideia, como se diz no estilo de hoj e , nos
autorizarem a perguntar-lhes se são capazes de imaginar nitidamente o
espetáculo oferecido pelo vasto paralelogramo da sala grande do palá­
cio, na ocasião em que lhe chamamos a atenção para ela. Ao centro da
quadra, encostado à parede do poente, amplo e magnificente estrado
de panejamentos de ouro, no qual processionalmente entram, por uma
portinha ogival, graves personagens anunciadas sucessivamente pela
voz estridente do meirinho. Nos primeiros bancos sentam-se já bastan­
tes figuras venerandas, embiocadas de arminho, veludo e escarlate.
À roda do estrado que se conserva silencioso e digno, em baixo, de
frente e por toda a parte grande multidão e grande barulho. Mil olha­
res da assistência para cada fisionomia do estrado, mil sussurros para
cada nome. Evidentemente, é espetáculo curioso e bem merecedor da
atenção do auditório. Mas que vem a ser lá em baixo, mesmo na ponta,

16 Pérolas diante de porcos.


17 Os porcos diante de Margarida.

69
aquela espécie de andaime com quatro fantoches pintalgados em cima
e outros quatro por baixo? E quem é também, ao lado dessa carangue­
j ola, um homem de balandrau preto e semblante lívido? Ai, meu caro
leitor, é o Pedro Gringoire mais o seu prólogo !
Esquecemo-nos todos por completo dele !
Era j ustamente isso o que ele temia.
Para salvar o seu prólogo, Gringoire não cessara de se agitar, desde
que o cardeal chegara. Primeiro, insistiu com os atores, que ficaram
suspensos, para que prosseguissem com voz mais forte. Verificou,
porém, que ninguém os ouvia e assim mandou-os parar. Contudo, a
interrupção durava havia já quase um quarto de hora, sem que ele
parasse de bater o pé, de se agitar, de interpelar Gisquette e Leonarda,
de encorajar os vizinhos para que o prólogo continuasse. Tudo em vão.
Ninguém despegava a vista do cardeal , da embaixada e do estrado,
único centro nesse vasto círculo de raios visuais. Era também de admi­
tir, e com pena o observamos, que o prólogo começava a enfastiar
um pouco o auditório, na altura em que Sua Eminência aparecera a
distraí-lo de forma tão tremenda. No fim de contas, o espetáculo era
o mesmo, tanto no estrado como na mesa de mármore: a luta do
Trabalho e do Clero, da Nobreza e da Mercancia. Naquela gente havia
bastantes que preferiam vê-los muito simplesmente a viver, a respirar,
a debater-se, a acotovelar-se, em carne e osso, na embaixada flamenga,
na corte episcopal, sob a batina de Sua Eminência, sob a véstia de
Coppenole, a vê-los pintados, embonecados, a declamarem em verso
e, por assim dizer, empalhados sob as túnicas amarelas e brancas com
que os enfarpelara Gringoire.
Até que o poeta notou que a calmaria se restabelecera um tanto e
então imaginou um estratagema capaz de salvar a situação. Voltou-se
para um dos seus vizinhos, homem nutrido, pacato e de semblante
paciente, e sugeriu-lhe:
- E se recomeçássemos?
- Recomeçássemos o quê? - exclamou o interpelado.
- Ora, o mistério! - esclareceu Gringoire.
- Isso é lá convosco - replicou-lhe o vizinho.
Bastou a Gringoire esta semiaprovação para o levar a tomar pesso­
almente a iniciativa e começar a berrar, confundindo-se o mais possível
com a assistência:

70
- Recomeçai o mistério! Recomeçai!
- Diabo ! - exclamou Joannes de Molendino. - Que estão para acolá
a cantar? - (Porque Gringoire fazia bulha por quatro. ) - Escutai lá,
camaradas, então o mistério ainda não acabou? Querem recomeçá-lo?
Não está certo !
- Não, não ! - protestaram os estudantes todos. - Fora o mistério!
Fora !
Gringoire, porém, multiplicava-se e cada vez gritava com mais força:
- Recomeçai! Recomeçai!
Aqueles brados chamaram a atenção do cardeal que se virou para
um homenzarrão negro, a alguns passos dele.
- Senhor Bailio do Palácio, aqueles velhacos j ulgam-se ainda na pia
da água benta para provocarem tão infernal algazarra?
Era o bailio do palácio uma espécie de magistrado anfíbio, como
que um morcego da ordem j udiciária, rato e pássaro, j uiz e soldado, ao
mesmo tempo.
Aproximou-se do purpurado e, não sem temer bastante o seu des­
contentamento, explicou-lhe, gaguej ando, a inconveniência do povo.
Como o meio-dia chegara antes de Sua Eminência, os cómicos viram-se
constrangidos a começar sem esperarem por Sua Eminência.
O cardeal desatou a rir.
- Palavra que o senhor Reitor da Universidade podia bem ter feito a
mesma coisa ! Não sois de igual parecer, mestre Guilherme Rym?
- Monsenhor - respondeu o interpelado -, contentemo-nos por
escapar a metade da comédia. Alguma coisa já se ganhou !
- Aqueles tratantes podem seguir com a sua farsada? - consultou
o bailio.
- Continuem, continuem - assentiu o cardeal. - É me indiferente.
Aproveitarei o tempo para ler o breviário.
O bailio adiantou-se até à borda do estrado, fez um gesto a impor
silêncio e gritou:
- Burgueses, aldeões e residentes, para satisfazer os que pretendem
que se recomece e também os outros que desej am que se termine, Sua
Eminência ordena que se prossiga.
Ambas as partes não tiveram outro remédio senão resignar-se,
embora, por largo tempo ainda, tanto o autor como o público ficassem
a abominar o cardeal.

71
Logo as figuras em cena voltaram à sua lengalenga. Gringoire aca­
lentou de novo a esperança de que ao menos escutassem o resto da
sua obra. Como as suas demais ilusões, esta esperança não tardou tam­
bém a sofrer nova deceção. Com efeito, o silêncio restabelecera-se de
certo modo no auditório, mas Gringoire não reparou que, na altura
em que o cardeal transmitira a sua ordem para continuarem, ainda
o estrado estava longe de se encher e que, depois dos delegados fla­
mengos, outras personalidades apareceriam incorporadas no cortej o e
cuj os nomes e funções, atirados como calhava na berrata do meirinho,
de permeio com o seu diálogo, produziam neste consideráveis devas­
tações. Façam ideia, realmente, do que seria, no meio duma peça de
teatro, os guinchos dum porteiro a abrir, entre duas rimas e amiúde
entre dois hemistíquios, parênteses como estes:
- Mestre Jacques Charmolue, procurador dei-rei no tribunal ecle­
siástico !
- Jehan de Harlay, escudeiro, guarda do serviço de cavaleiro da
ronda noturna da cidade de Paris!
- Messire Galiot de Genoilhac, cavaleiro, senhor de Brussac, mestre
da artilharia dei-rei!
- Mestre Dreux-Raguier, questor das águas e florestas dei-rei nosso
senhor, em terras da França, da Champanha e da Brie!
- Messire Luís de Graville, cavaleiro, conselheiro e camareiro dei-rei,
almirante da França, guardião do Bosque de Vincennes!
- Mestre Dinis Le Mercier, guarda do asilo dos cegos de Paris!
Etc . , etc . , etc.
I sto tornava-se insustentável.
Este estranho acompanhamento, que tornava a peça cada vez mais
difícil de perceber, indignava tanto mais Gringoire quanto este não
podia dissimular que o interesse crescia com o desenrolar da ação e
que à sua obra não faltava mais nada senão escutá-la. Era efetivamente
difícil imaginar contextura mais engenhosa e dramática. Estavam as
quatro figuras do prólogo a lamentar-se da sua mortal atrapalhação,
quando Vénus em carne e osso - vera incessu patuit dea 18 - lhes apa­
receu vestida duma bela cota de malha, tal como a apresentam na
caravela do escudo da cidade de Paris. Vinha pessoalmente reclamar

18
A verdadeira deusa reconhece-se no seu modo de andar.

72
o delfim prometido à mais formosa. Júpiter, cujo trovão se ouvia rugir
nos bastidores, apoiava-a e a deusa ia arrebatar a vitória, isto é, ia,
em sentido nada figurado, casar-se com o senhor delfim, quando uma
criancinha, vestida de damasco branco e empunhando uma marga­
rida (transparente personificação da donzela da Flandres) , surgiu a
pelejar com Vénus. Lance teatral e peripécia. Após discutirem, Vénus,
Margarida e as demais personagens concordaram em se entregar ao
bom discernimento da Santa Virgem. Havia ainda outro belo papel - o
de D. Pedro, rei da Mesopotâmia. Contudo, entre tanta interrupção cus­
tava a destrinçar às ordens de quem ele servia. Toda esta gente subira
pela escada do tablado.
Mas a peça estava irremediavelmente perdida. Nenhum daqueles
mimos se ouvia ou compreendia. Dir-se-ia que, quando o cardeal che­
gara, um fio invisível e mágico puxara de repente todos os olhares da
mesa de mármore para o estrado, da extremidade meridional da sala
para o lado ocidental. Todos os olhares continuavam ali fixos e todos
os que continuavam a chegar com os seus malditos nomes, os sem­
blantes, os trajos, provocavam constante distração. Uma lástima! Com
exceção de Gisquette e de Leonarda, que de vez em quando se viravam
quando Gringoire lhes puxava pela manga, e com exceção do gordo e
paciente vizinho, ninguém voltava a cara para a pobre e desprezada
moralidade. Gringoire só via as pessoas de esguelha.
Com que amargura assistia ao desmoronar, peça por peça, de todo
o seu edifício de glória e de poesia! E lembrar-se de que aquela mesma
gente estivera quase a revoltar-se contra o bailio, na impaciência de lhe
ouvir a obra, e agora, que ali a tinham, não lhe ligavam importância!
Essa mesma representação, que começara entre aplausos tão unâni­
mes! O eterno fluxo e refluxo do favor popular! E pensar que por pouco
não enforcaram os meirinhos do bailio ! Quanto não daria Gringoire
para se encontrar ainda nessa hora de mel !
Contudo, o brutal monólogo do meirinho cessou. Para alívio de
Gringoire, j á chegara toda a gente. Os atores continuaram com toda
a coragem. Mas eis que mestre Coppenole, o negociante de meias, se
levanta de repente e Gringoire ouve-o pronunciar, perante a atenção
geral, esta arenga abominável:
- Senhores burgueses e fidalgos de Paris, não sei, pela cruz de Deus,
o que estamos para aqui a fazer! Bem vejo acolá, em cima daquela

73
geringonça, uns indivíduos que parecem com vontade de se engalfi­
nharem. Não sei se é a isso que chamais um mistério. Só sei que não
tem graça nenhuma. Muita conversa e nada mais! Estou há um quarto
de hora à espera da primeira cena de pancadaria mas nada aparece.
Não passam de uns cobardões que só se agatanham com injúrias.
Deviam convocar lutadores de Londres ou de Roterdão e, então, sim,
é que ferveriam aqui murros que até se ouviriam na praça! Aqueles,
porém, fazem-me dó! Se ao menos nos brindassem com uma dança
mourisca ou qualquer outra mascarada! Não foi disto que me falaram.
Prometeram-me uma festa de loucos, com eleição do papa. Também
em Cante temos o nosso papa de loucos e nisso, pela cruz de Deus, não
vos ficamos atrás ! É assim que procedemos: junta-se uma chusma de
povo como aqui. Depois, um de cada vez enfia a cabeça por um buraco
e faz uma careta para os outros. O que faz a carantonha mais horrenda
é, com a aclamação de todos, eleito papa. E pronto ! É engraçadíssimo !
Quereis que elejamos o vosso papa à moda da minha terra? Sempre
será menos enfadonho do que escutar estes tagarelas. Se eles quiserem
ir fazer caretas ao postigo, podem entrar também no j ogo. Que dizeis a
isto, senhores burgueses? Há aqui uma coleção bastante grotesca dos
dois sexos, para que se possa rir à flamenga e nós somos suficiente­
mente feios para se contar com umas boas caretas.
Gringoire desejaria protestar, mas o espanto, a ira, a indignação
embargavam-lhe a fala. Para mais, aqueles burgueses, todos ufanos
por levarem roda de fidalgos, acolheram com tal entusiasmo a moção
do popular fabricante de meias, que lhe inutilizaram qualquer espécie
de resistência. Não lhe restava outro remédio senão deixar-se levar pela
torrente. Gringoire escondeu o rosto entre as mãos porque não se lhe
deparou um manto com que tapasse a cabeça tal como o Agamémnon
de limantes.

74
V

Quasímodo

Num abrir e fechar de olhos, a ideia de Coppenole ficou pronta a


executar-se. Burgueses, estudantes e beleguins lançaram mãos à obra.
Para teatro das caretas escolheram a capelinha existente defronte da
mesa de mármore. Partiram um vidro na bonita rosácea por cima da
porta e assim ficou aberto um círculo de pedra pelo qual, conforme
se combinou, os concorrentes meteriam a cabeça. Para lá chegarem,
bastava trepar a duas barricas, que tinham ido buscar algures e equili­
brado de qualquer maneira em cima uma da outra. Estabeleceu-se que
cada convidado, homem ou mulher (pois também podiam eleger uma
papisa), cobriria a cara e manter-se-ia escondido até o momento em
que aparecesse, para desse modo deixar virgem e intacta a sensação
da sua careta. Em menos dum fósforo, a capela encheu-se de concor­
rentes, a quem fecharam por dentro.
Do lugar que ocupava, Coppenole dava ordens, dirigia tudo, arran­
j ava tudo. Durante a balbúrdia, o cardeal, tão aborrecido como Gringoire,
pretextara ter que fazer e ter de rezar as vésperas, e retirou-se com toda
a comitiva, sem que aquela multidão, que à sua chegada tanto se agi­
tara, nem ao de leve se impressionasse com a retirada. Só Guilherme
Rym notou a derrota de Sua Eminência. A atenção popular, porém, tal
como o Sol, prosseguia a sua revolução. Largara dum extremo da sala,
detivera-se depois ao meio e atingira agora a outra porta. Depois de a
mesa de mármore e o estrado de brocado desfrutarem a sua hora de
predomínio, chegara a vez da capela de Luís XI . Ficava, portanto, livre
o campo para toda a espécie de doidices. Só lá ficaram os flamengos
e a canalha.

75
Começaram os esgares. A primeira figura a aparecer à j anela, de
pálpebras reviradas e vermelhas, boca escancarada e testa tão enru­
gada como as nossas botas de hussardo do Império, provocou tão
inextinguíveis gargalhadas, que Homero tomaria todos aqueles labre­
gos por deuses. A sala grande, contudo, não era menos do que um
Olimpo e melhor do que ninguém o sabia o pobre Júpiter de Gringoire.
Sucederam-se segunda, terceira caretas e depois outra e mais outra,
sempre com redobradas gargalhadas e explosões de gáudio. Seria difí­
cil dar ao leitor dos nossos dias e dos nossos salões uma ideia da verti­
gem especial e do arrebatamento e fascinação que imperavam naquele
espetáculo. Imagine-se uma sequência de fisionomias que sucessiva­
mente apresentavam todas as formas geométricas desde o triângulo ao
trapézio, desde o cone ao poliedro; todas as expressões humanas, desde
a cólera à luxúria; todas as idades, desde as pregas do recém-nascido
às rugas duma velha moribunda; todas as fantasmagorias religiosas,
desde o Fauna a Belzebu; todos os perfis animais, desde a fauce até
o bico, desde a cabeça de porco até o focinho de cão. Faça-se ideia de
que todas as carrancas da Ponte Nova, esses pesadelos petrificados
pela mão de Germano Pilon, adquiriam vida e alento e vinham, atrás
umas das outras, mirar-nos de frente, de olhos em brasa; de que todas
as máscaras do Carnaval de Veneza se sucediam ante o nosso binóculo;
em suma, de um caleidoscópio humano.
Cada vez era mais flamenga a orgia. Téniers só imperfeitamente
conseguiria reproduzi-la. Suponha-se a batalha de Salvator Rosa trans­
formada em bacanal. Desapareceram os estudantes, os embaixadores,
os burgueses, os homens, as mulheres; nem Clopin Trouillefou, nem Gil
Lecornu, nem Simone Quatro Libras, nem Robin Poussepain. No desa­
tino geral, tudo se confundia. A sala grande mais não era do que uma
vasta fornalha de desaforo e de folguedo, onde cada boca era um grito,
cada olho um relâmpago, cada face uma careta, cada indivíduo uma
condição: tudo berrava e bramia. As fisionomias extravagantes que
sucessivamente arreganhavam os dentes na rosácea eram como que
uns brandões acesos atirados para o braseiro. E de toda aquela chusma
em efervescência escapava-se, como o vapor duma fornalha, um rumor
acre, agudo, acerado, sibilante como as asas dum mosquito.
- Ohê! Maldição!
- Olha para aquela cara !

76
- Não vale dois caracóis!
- Venha lá outra !
- Guillemette Maugerepuis, olha para aquele focinho de touro ! Só lhe
faltam os cornos! Não é o teu marido.
- Outra !
- Pela barriga do Papa ! Que raio é aquela careta?
- Eh lá, nada de batotas! Só se pode mostrar a cara !
- Danada da Perrette Callebotte! É muito capaz disso!
- Viva! Viva !
- Falta-me o ar!
- Ali está um que não é capaz de enfiar as orelhas!
Etc . , etc.
Não obstante, há que prestar justiça ao nosso amigo Jehan. No meio
daquele pandemónio, viam-no ainda no cimo da coluna, como um gru­
mete na vela da gávea. Agitava-se num furor incrível. De boca escan­
carada, gritava, mas sem que fosse possível ouvi-lo, não que o clamor
geral o abafasse, por muito intenso que este fosse, mas porque sem
dúvida atingira o limite dos sons agudos percetíveis, as doze mil vibra­
ções de Sauveur ou as oito mil de Biot.
Quanto a Gringoire, passado o primeiro instante de desânimo, reco­
brara o sangue-frio. Encortiçara-se contra o azar.
- Continuai ! - determinou, pela terceira vez, aos seus atores, máqui­
nas falantes.
Depois, enquanto passeava a passos largos diante da mesa de már­
more, deu-lhe a fantasia para ir por sua vez mostrar-se à janela da
capela, quanto mais não fosse para fazer uma careta àquela gente
ingrata.
"Mas não", repetia para consigo. "Seria impróprio de nós. Nada de
despiques! Lutemos até o fim! A poesia exerce forte influência no Povo;
hei de reconquistá-lo. Veremos quem leva a melhor: se as mornices, se
as belas-letras! "
I nfelizmente, porém, o único espectador que restava d a sua peça
era apenas ele!
A situação piorara, pois agora só via costas voltadas.
Perdão! O paciente gorducho, já consultado pelo autor num momento
crítico, continuava virado para o teatro. Gisquette e Leonarda, essas
havia muito que tinham desertado.

77
A fidelidade do seu único espectador sensibilizou profundamente
Gringoire, que se aproximou dele e lhe falou, sacudindo-o ao de leve
pelo braço. O bom do homem encostara-se à balaustrada e passava
pelo sono.
- Senhor - disse-lhe Gringoire -, estou-lhe muito grato.
O obeso bocej ou e inquiriu:
- Porquê?
- Compreendo o seu enfado - continuou o poeta. - Este barulho
todo não o deixa ouvir à sua vontade. Mas descanse que o seu nome há
de passar à posteridade . Diga-me, por favor, como se chama.
- Reinaldo Château, guarda do selo do Châtelet de Paris, para o
servir.
- É aqui o único representante das musas - afirmou Gringoire.
- Favores de mais, senhor - respondeu o guarda do selo do Châtelet.
- É o único - prosseguiu Gringoire - que escutou devidamente a
peça. Que tal a achou?
- Bem ! Bem ! - respondeu o robusto magistrado, ainda meio a dor­
mir. - Realmente, tem a sua graça.
Gringoire resignou-se com este elogio, pois interrompeu-lhe a con­
versa uma trovoada de palmas, de mistura com uma aclamação pro­
digiosa . Estava eleito o papa dos loucos. De todos os lados o povo
berrava:
- Viva ! Viva ! Viva !
Realmente, era maravilhosa a careta que naquele momento radiava
do buraco da rosácea. Após os rostos pentagonais, hexaganais e hete­
róclitos, que se sucederam naquele postigo sem que satisfizessem o
ideal do grotesco concebido nas imaginações que a orgia exaltara, só
a carranca sublime que acabava de deslumbrar a assembleia podia
conquistar os votos unânimes. O próprio mestre Coppenole aplaudiu
e Clopin Trouillefou, que também concorrera e só Deus sabe a soma
de fealdade que a sua fisionomia podia alcançar! - deu-se por vencido.
Nós faremos o mesmo. Nem tentaremos dar uma ideia ao leitor do que
era esse nariz tetraédrico, essa boca em ferradura, esse minúsculo olho
esquerdo obstruído por uma hirsuta sobrancelha ruiva enquanto o olho
direito desaparecia por completo sob uma enorme verruga; esses den­
tes em desalinho, amossados aqui e ali como as ameias duma fortaleza,
esse beiço caloso, por cima do qual se alongava um dente como a presa

78
dum elefante; esse queixo fendido e, principalmente, a expressão espa­
lhada sobre tudo isso num misto de maldade, de pasmo e de tristeza .
Sonhem, se puderem, o que era este conj unto.
Depois das unânimes ovações, correram todos para a capela e trou­
xeram dali em triunfo o ditoso papa dos loucos. Então, o espanto e a
admiração atingiram o auge. Afinal, o rosto daquele ente era uma per­
pétua careta. Ou, melhor, toda a sua pessoa o era.
Enorme cabeça eriçada de cabelos ruivos; entre os dois ombros uma
boj uda corcova que se alargava visivelmente para a frente e para trás;
um sistema de coxas e de pernas, aleijadas de modo tão estranho, que
só nos j oelhos se podiam tocar e que, vistas de frente, lembravam dois
crescentes de foices que se j u ntassem pelos cabos. Pés enormes, mãos
monstruosas e, aliado a toda aquela deformidade, não sei que aspeto
temível de força, de ligeireza e de coragem; estranha exceção à regra
eterna que quer que a força, tal como a formosura, resulte da harmo­
nia. Era este o papa que os loucos acabavam de escolher.
Dir-se-ia um gigante partido e mal soldado.
Ao surgir à porta da capela esta espécie de ciclope, imóvel e acha­
parrado, quase tão largo como alto, quadrado pela base, como diz um
grande homem, com um capote metade vermelho e metade violeta,
semeado de campainhas de prata, e principalmente pela sua total
fealdade, a populaça reconheceu-o imediatamente, pois gritou numa
só voz:
- É Quasímodo, o sineiro ! É Quasímodo, o corcunda de Nossa
Senhora ! O Quasímodo vesgo! O Quasímodo cambaio! Viva ! Viva !
Como se vê, o pobre diabo tinha muito por onde escolher em maté-
ria de alcunhas.
- Cuidado com as mulheres grávidas! - gritavam os escolares.
- Ou com as outras com vontade de o serem! - acrescentou Joannes.
Efetivamente, o mulherio tapava as caras e uma exclamava:
- Que macaco tão feio!
- Tem tanto de repelente como de mau - aj untava outra.
- É o Diabo - acrescentava uma terceira.
- Para mal dos meus pecados, moro ao pé de Nossa Senhora; toda
a noite o ouço a rondar pela goteira.
- Com os gatos.
- Anda sempre por cima dos nossos telhados.

79
- Atira-nos bruxedo pelas chaminés abaixo.
- Uma noite destas, foi-me fazer caretas para a minha trapeira.
Imaginei que era um homem. Sempre apanhei um desses sustos!
- Estou convencida de que ele vai ao sabbat. Uma vez esqueceu-se
duma vassoura em cima da minha pia de despej os.
- Que horrenda cara de marreco !
- O alma danada !
- Livra !
Em compensação, os homens, encantados, aplaudiam.
Quasímodo, o obj eto daquela balbúrdia, não arredara pé da porta
da capela, sombrio e solene, deixando-se admirar.
Um dos estudantes, salvo erro Robin Poussepain, foi-se rir mesmo
nas suas bochechas e aproximou-se exageradamente. Quasímodo con­
tentou-se em agarrá-lo pelo cinto e atirá-lo, por entre a multidão, para
dez passos de distância. Tudo isto sem proferir uma só palavra.
Maravilhado, mestre Coppenole aproximou-se dele.
- Pela cruz de Deus! Padre Santo ! Nunca vi em toda a minha vida
coisa mais feia ! M erecias o papado, tanto em Roma como em Paris!
Enquanto isto dizia, colocou-lhe j ovialmente a mão no ombro.
Quasímodo não se mexeu. Coppenole continuou:
- És um velhaco com o qual tenho um desejo danado de fazer uma
patuscada, nem que me custe um douzain 19 novo de doze torneses. Que
te parece?
Quasímodo não respondeu.
- Pela cruz de Deus - exclamou o fabricante de meias -, és porven­
tura surdo?
Com efeito era surdo.
Todavia, começavam-no a impacientar os modos de Coppenole, de
forma que se virou de repente para ele, rangendo os dentes em tão for­
midável ameaça, que o gigante flamengo recuou como um buldogue
diante de um gato.
Alargou-se então, em volta da estranha criatura, um círculo de terror
e de respeito que media pelo menos quinze passos geométricos de raio.
Uma velha esclareceu mestre Coppenole de que Quasímodo era surdo e
o fabricante de meias, no seu estrondoso gargalhar flamengo, motejou:

19 Antiga moeda francesa, de cobre.

80
- Surdo? Pela cruz de Deus, é um papa completo !
- Olha, estou a conhecê-lo! - exclamou Jehan, que descera do seu
capitel para ver mais de perto Quasímodo. - É o sineiro de meu mano
arcediago. Bons dias, Quasímodo!
- Diabo do homem ! - resmungou Robin Poussepain, ainda ator­
doado com a queda. - Aparece: é marreco ! Caminha: é canej o ! Olha
para a gente: é vesgo ! Falamos-lhe: é surdo! Que foi que este polifemo
fez à língua?
- Fala quando quer - explicou a velha. - Ensurdeceu a tocar os
sinos. Mudo não é !
- É s ó o q u e l h e falta ! - comentou Jehan.
- E tem um olho a mais - aj untou Robin Poussepain.
- Não - comentou j udiciosamente Jehan. - Um vesgo é mais incom-
pleto do que um cego, pois sabe o que lhe falta.
Entretanto, todos os pedintes, todos os lacaios, todos os larápios,
de súcia com os estudantes foram processionalmente buscar ao armá­
rio do tribunal a tiara de papelão e a samarra do papa dos loucos.
Sem pestanejar, Quasímodo deixou que o paramentassem, mantendo
uma espécie de orgulhosa docilidade. A seguir, sentaram-no numa
padiola pintalgada. Doze oficiais da confraria dos loucos ergueram-no
aos ombros e uma espécie de contentamento amargo e desdenhoso
espalhou-se no semblante tristonho do ciclope ao ver, sob os seus pés
disformes, todas aquelas cabeças de homens esbeltos, direitos, bem
apessoados. Seguidamente, a procissão ululante e desordenada pôs-se
em marcha para dar, segundo o costume, a volta pelo lado de dentro
das galerias do palácio, antes do passeio pelas ruas e encruzilhadas.

81
VI

"La Esmeralda"

Com o maior prazer informamos os nossos leitores de que, durante


toda esta cena, Gringoire e a sua peça haviam-se mantido firmes.
Os atores, esporeados por ele, não cessaram de declamar a comédia e
ele não parara de a ouvir. Tirou partido da balbúrdia e resolveu ir até
ao fim, ainda na esperança de que o público tornasse a dispensar-lhe
atenção. Este clarão de esperança ainda mais se reanimou quando viu
que Quasímodo, Coppenole e o ensurdecedor cortejo do papa dos lou­
cos saíam em tumulto da sala. A turba precipitou-se avidamente atrás
deles.
- Bem - comentou o poeta . - Até que enfim se vão embora todos os
zaragateiros.
Infelizmente, todos esses zaragateiros eram o público e assim, num
abrir e fechar de olhos, o vasto recinto esvaziou-se.
Para falar com franqueza , ficaram ainda alguns espectadores, uns
dispersos, outros agrupados à roda das colunas, mulheres, velhos e
crianças, já fartos de balbúrdia e de barulho.
Alguns estudantes continuaram encavalitados no entablamento das
j anelas, a olhar para a praça.
Gringoire pensou para consigo:
" Bem, ficam ainda os suficientes para ouvirem o final do meu misté­
rio. São poucos, mas é público escolhido, é público letrado. "
Dali a pouco, a sinfonia, que produziria um grande efeito quando a
Santa Virgem aparecesse, falhou em cheio e Gringoire verificou que a
sua música abalara na procissão do papa dos loucos.
- Passemos adiante - disse com estoicismo.

82
Aproximou-se dum grupo de burgueses que lhe deram a impressão
de estarem a falar na peça, mas apanhou este fragmento de conversa:
- O mestre Cheneteau lembra-se daquele palácio de Navarra que
pertenceu ao senhor de Nemours?
- Sim, em frente da capela de Braque . .
- Pois ficai sabendo que o fisco acaba d e o arrendar a o historiador
Guilherme Alexandre, por seis libras e oito soldos parísios ao ano!
- Que caras que estão as rendas!
- Bem - comentou Gringoire, soltando um suspiro -; ao menos os
outros estão a ouvir . . .
- Camaradas - gritou de repente um desses j ovens malandretes
postados às j anelas. La Esmeralda! La Esmeralda está na praça !
-

Esta palavra provocou um efeito mágico. Todos os que ficaram na


sala precipitaram-se para as j anelas, repetindo:
- La Esmeralda! La Esmeralda!
Simultaneamente, estrugiam Já fora nutridos aplausos.
- Que querem eles dizer com isto de La Esmeralda ? - perguntou
Gringoire, juntando desanimadamente as mãos. - Valha-me Deus,
parece que chegou agora a vez das j anelas !
Virou-se para a mesa de mármore e viu que se interrompera a repre­
sentação, j ustamente na altura em que Júpiter devia surgir mais o seu
raio. Ora Júpiter estava especado na parte de baixo do teatro.
- M iguel Giborne! - gritou-lhe, com irritação, o poeta. - Que estás
para aí a fazer? O teu papel é esse? Sobe, vamos!
- Não posso - declarou Júpiter. Um escolar levou agora mesmo a
escada.
Gringoire verificou que Júpiter dissera a pura verdade. Estavam
completamente cortadas as comunicações entre o enredo e o seu
desenlace.
- Patife! - murmurou o autor. - Mas por que diacho levou ele a escada?
- Para ir ver a Esmeralda - respondeu tristemente Júpiter. Ele disse:
"- Olha, aqui está uma escada que não serve para nada ! " E levou-a !
Era o golpe derradeiro. Gringoire aceitou-o, resignado.
- Vão para o Diabo que os carregue! - bradou para os comediantes.
- Se me pagarem, também vocês receberão !
Bateu então em retirada, de cabeça baixa, mas em último lugar,
como um general que batalhou com denodo.

83
Enquanto descia as tortuosas escadas do palácio, resmungava entre
dentes:
- Estes parisienses são uma boa récua de cavalgaduras e de alarves!
Vêm ouvir um mistério e não prestam atenção a coisa nenhuma ! Toda
a gente lhes interessou: o Clopin Trouillefou, o cardeal, o Coppenole, o
Quasímodo, o Diabo ! Mas à Virgem Nossa Senhora não ligaram qual­
quer importância ! Soubesse eu isso que vos daria as Virgens Marias,
paspalhos! E eu que vim para lhes ver as caras e afinal só lhes vi as
costas! Um poeta tratado como um boticário! É verdade que Homero
mendigou pelos burgozitos da Grécia e Naso morreu exilado entre os
Moscovitas. O Diabo me leve, porém, se percebo o que querem dizer
com a sua Esmeralda ! Que palavra é essa? Egípcia, decerto !

84
LIVRO SEGUNDO

De Cila para Caríbdis

Em janeiro anoitece cedo. Quando Gringoire saiu do palácio, as ruas


mergulhavam já na sombra. Agradava-lhe aquele escurecer; ia ansioso
por encontrar qualquer viela obscura e deserta onde meditasse à sua
vontade e também para que o filósofo fizesse o primeiro penso ao feri­
mento do poeta. Aliás, a filosofia era o seu único abrigo, visto não
saber onde dormir. Não se atrevia a regressar à casa onde morava, na
Rua Grenier-sur-l'Eau, defronte do " Porto do Feno", já que, depois do
retumbante aborto da sua tentativa teatral, não podia contar com o que
o Sr. Preboste lhe daria pelo epitalâmio, para pagar a mestre Guilherme
Doulx-Sire, rendeiro legal do pied-fourché de Paris, os seis meses de
renda que lhe devia, ou fossem doze soldos parísios; doze vezes o valor
dos seus bens neste mundo, incluindo os calções, a camisa e o gorro.
Depois de provisoriamente se resguardar na porta mais pequena da pri­
são do tesoureiro da Santa Capela , refletindo rapidamente que, quanto
à escolha de albergue a eleger para essa noite, dispunha à sua vontade
de todas as ruas de Paris, recordou-se de que na semana passada desco­
brira, na Rua dos Remendões, à porta dum conselheiro do Parlamento,
um degrau destinado a quem montasse nas mulas e que dissera para
consigo ser essa pedra, em caso de necessidade, excelente travesseiro
para um mendigo ou para um poeta. Agradeceu à Providência por lhe
inspirar tão boas ideias, mas, ao preparar-se para atravessar a Praça
do Palácio, a fim de enveredar pelo tortuoso labirinto da Cité, por onde
serpenteiam todas essas venerandas manas, que são as ruas da Velha
Fábrica de Panos, da Tanoaria, dos Remendões, da Judiaria, etc . , hoj e
ainda de pé com os seus prédios de nove andares, avistou a procissão

85
do papa dos loucos, que também saía do palácio, no meio de grande
alarido, ofuscante fulgor de archotes, e a sua música, a música dele,
Gringoire, se atravessava no seu caminho. Os arranhões no amor-pró­
prio reavivaram-se-lhe ante aquele espetáculo; fugiu. Qualquer coisa
que lhe recordasse a festa desse dia azedava-o e, na amargura da sua
dramática desdita, fazia-lhe sangrar a ferida.
Quis meter pela Ponte de S. Miguel; andavam ali crianças a correr
com fogo preso e outras peças incandescentes.
- A peste devora os fogos de artifício ! - praguejou Gringoire, que
bateu em retirada para a Ponte do Câmbio.
Arvoraram nas casas da entrada da ponte três drapels representando
o rei, o delfim e Margarida da Flandres, e seis pequenos drapelets, onde
estavam retratados o duque da Áustria, o cardeal de Bourbon, o senhor
de Beauj eu, D. Joana da França, o senhor bastardo de Bourbon e não
sei quem mais ainda, tudo iluminado a brandões. A turba admirava.
- Ditoso pintor é Jehan Fourbault! - comentou Gringoire, com um
profundo suspiro e virando as costas aos drapels e aos drapelets.
Na sua frente, abria-se uma rua; achou-a tão escura e abandonada,
que esperou poder por ali escapar a todo o fragor e irradiação da festa.
Enfiou por ela. Ao cabo de instantes, tropeçou num obstáculo, dese­
quilibrou-se e caiu. Era o ramo de maias que os escreventes do foro
tinham de manhã colocado à porta do presidente do Parlamento, num
preito à solenidade do dia. Heroicamente, Gringoire aguentou este
novo encontro.
Levantou-se e alcançou a borda de água. Deixou para trás a tor­
rinha civil e a torre criminal e, seguindo ao longo do enorme muro
dos j ardins reais por aquela praia não calcetada e onde a lama lhe
chegava aos tornozelos, alcançou a porta ocidental da Cité e olhou,
durante algum tempo, para a ilhota do Barqueiro das Vacas, a qual
mais tarde desapareceria sob o cavalo de bronze e sob a Ponte Nova.
O ilhéu surgiu-lhe na sombra como uma massa negra para além do
estreito curso de água esbranquiçada que a isolava. Adivinhava-se ali,
no reflexo duma luzita, a espécie de choupana, em forma de colmeia,
onde, de noite, se abrigava o barqueiro que passava as vacas duma
margem para a outra .
"Venturoso barqueiro de vacas! " , pensou Gringoire. "Nem sonhas
com a glória nem escreves epitalâmios! Não te preocupam os reis que

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se casam nem as duquesas de Borgonha. Não conheces mais nenhu­
mas margens senão as que o teu relvado em abril oferece em pasto às
tuas vacas ! Enquanto eu sou um poeta apupado, tiritante, devo doze
soldos e trago as solas tão transparentes que podiam servir de vidros
à tua lanterna. Obrigado, barqueiro de vacas, a tua cabana repousa-me
os olhos e faz-me esquecer Paris! "
Uma enorme bomba d e S. João, d e dois estalos, repentinamente
deitada da bem-aventurada cabana, arrancou-o do êxtase quase lírico.
O barqueiro de vacas também tomava parte nos festej os do dia e
queimava fogo de artifício.
O petardo eriçou a pele de Gringoire.
- Maldita festa ! - bradou. - Vais então perseguir-me por toda a
parte? Santo Deus, até o barqueiro das vacas!
Olhou depois o Sena, a seus pés, e experimentou uma horrível
tentação.
- Afogar-me-ia com prazer se a água não estivesse tão fria!
Ocorreu-lhe nessa altura uma resolução desesperada: j á que não
conseguia evadir-se do papa dos loucos, dos drapelets de Jehan
Fourbault, dos ramos de maias, dos foguetes e das bombas, mergulha­
ria então coraj osamente em pleno coração da festa e iria para a Praça
da Greve.
- Ao menos - monologou -, talvez arranj e o tição duma fogueira
para me aquecer e consiga cear alguma migalha dos três enormes
brasões feitos de açúcar real e que decerto ergueram sobre o bufete
público da cidade.

87
II

A Praça de Greve

Apenas um impercetível vestígio subsiste hoj e da Praça de Greve,


tal como então era. É a encantadora torrinha que ocupa a esquina
setentrional da praça e que, submergida sob o ignóbil betume que
empasta as vivas arestas das suas esculturas, talvez em breve desa­
pareça engolida por essa enchente de prédios novos que tão rapida­
mente devoram todas as vetustas frontarias parisienses.
Pessoas que como nós nunca atravessam a Praça de Greve sem lan­
çarem uma olhadela de pesar para essa pobre torrinha estrangulada
entre dois pardieiros do tempo de Luís XV podem facilmente reconsti­
tuir na mente o conj unto de edifícios que a ela pertenciam e encontrar
completa a velha praça gótica do século XV.
Era , tal como hoj e, um trapézio irregular, bordado de um lado pelo
cais e dos outros três por uma série de altos prédios, estreitos e som­
brios. De dia, podia-se admirar a variedade dos seus edifícios, todos
esculpidos em pedra e madeira e a apresentarem já perfeitas amostras
das diferentes arquiteturas nacionais da Idade Média, remontando do
século XV ao século XI , desde o retângulo que começava a destronar
a ogiva, até o arco de abóbada romano que a ogiva suplantara e que
ainda ocupava, por baixo dela, o primeiro andar dessa velha casa da
Torre Roland, à esquina da praça sobre o Sena, do lado da Rua da
Fábrica de Curtumes. De noite, dessa massa de edificações apenas
se percebia o negro rebordo denteado dos telhados que desenrola­
vam, à roda da praça, a sua cordilheira de ângulos agudos. Uma das
diferenças radicais entre as cidades de antanho e as coevas reside
no facto de serem hoj e as fachadas que olham para as praças e para

88
as ruas, ao passo que outrora eram as empenas. Em dois séculos, as
casas viraram-se.
Do lado oriental da praça erguia-se ao centro uma construção pesada
e híbrida, constituída por três residências sobrepostas. Designavam-na
por três classificações que explicam a sua história, destino e arquite­
tura: a Casa do Delfim, visto ter morado nela Carlos V, quando delfim; a
Mercancia, pois servia de Câmara Municipal; a Casa dos Pilares (domus
ad pilaria) , devido a uma sequência de grossos pilares que lhe aguen­
tavam os três pisos. Encontrava-se ali tudo aquilo de que necessitava
uma boa cidade como Paris: uma capela para orar a Deus, um plaidoyer
para as audiências e também para se chamar à ordem, quando preciso
fosse, a gente d'el-rei e, nas águas-furtadas, um arsenal abarrotado
de artilharia. Porque os burgueses de Paris sabem que não basta que
em qualquer conjuntura se reze e se querele para se garantirem as
imunidades da Cité e assim guardam sempre de reserva, num sótão da
Câmara Municipal, algum bom arcabuz ferrugento.
A partir de então, a Greve ofereceu sempre esse sinistro aspeto que
ainda hoj e lhe conservam a execrável ideia que desperta e a sombria
Câmara Municipal de Domingos Boccador, substituta da Casa dos
Pilares. Deve-se dizer que uma forca e um pelourinho permanentes,
uma justiça e uma escada como então se dizia, erguidos lado a lado no
meio do largo, concorriam bastante para que as pessoas desviassem a
vista daquela praça fatal onde agonizavam tantos seres trasbordantes
de saúde e de vida e onde dali a cinquenta anos nasceria essa febre de
Saint- Vallier, a doença do terror do patíbulo, a enfermidade mais mons­
truosa entre todas, pois provinha do Homem e não de Deus.
Consola-nos, dizemo-lo de passagem, pensar que a pena de morte
que há trezentos anos atravancava ainda, com as suas rodas de ferro,
as suas forcas de pedra, todo o arsenal de suplícios permanentemente
chumbados ao pavimento, a Greve, os M ercados, a Praça Delfina, a
Cruz do Trahoir, o Mercado dos Porcos, esse hediondo Montfaucon,
as Portas dos Sargentos, a Praça dos Gatos, a Porta de S. Dinis,
Champeaux, a Porta Baudets, a Porta de Saint-Jacques, sem falar de
inúmeras "escadas" dos prebostes, do bispo, dos capítulos, dos abades,
dos priores com alçada de j ustiça, sem contar os afogamentos jurídicos
no rio Sena; é consolador que hoj e , depois de sucessivamente perder
todas as peças da sua armadura, o seu luxo de torturas, as suas penas

89
de imaginação e de fantasia, o suplício que obrigava todos os cinco
anos a voltarem a fazer uma cama de couro no Grand-Châtelet, a velha
suserana da sociedade feudal se encontre quase fora das nossas leis
e das nossas cidades, perseguida por sucessivos códigos, corrida de
praça para praça, não disponha, na nossa imensa Paris, senão de um
canto desonrado da Greve, senão duma miserável guilhotina, furtiva,
receosa, envergonhada, parecendo sempre com medo de que a apa­
nhem em flagrante delito, tal a pressa com que desaparece mal desfe­
cha o golpe!

90
III

"Besos para golpes"

Pedro Gringoire ia enregelado quando chegou à Praça de Greve.


Metera pela Ponte dos Moleiros a fim de evitar a barafunda da Ponte
do Câmbio e os drapelets de Jehan Fourbault, mas as rodas de todos
os moinhos do bispo tinham-no, ao passar, salpicado de lama, dei­
xando-lhe a veste numa sopa. Além disso, ia com a impressão de que a
queda da peça ainda mais friorento o tornara. Por isso, estugou o passo
para se abeirar da fogueira que crepitava magnífica a meio do largo.
Considerável multidão rodeava-a, porém.
- Parisienses danados! - proferiu para consigo, pois Gringoire, como
verdadeiro poeta dramático, era muito dado aos monólogos. - Agora
tapam-me o lume! E se eu necessito do canto da lareira ! . . . Os sapatos
estão-me numa sopa e todos esses malditos moinhos em cima. Diabo
leve o bispo de Paris mais os seus moinhos! Sempre gostava de saber
para que é que um bispo quer um moinho ! . . . Porventura espera passar
de bispo a moleiro? Se para isso precisa apenas da minha maldição
dou-lha mais à sua sé e aos seus moinhos! Vejam lá se aqueles paspa­
lhos se mexem! Sempre gostava de saber o que fazem ali ! Aquecem-se;
não está má distração! Veem arder uma centena de feixes de lenha
miúda; bonito espetáculo !
Observando, porém, mais de perto, reparou que o círculo era muito
maior do que o indicado para se acalentarem ao fogo dei-rei e tal aflu­
ência de espectadores não se devia apenas ao encanto de cem molhos
de maravalhas em combustão.
No amplo espaço franqueado entre a turba e a fogueira uma rapa­
riga dançava.

91
Se essa rapariga era um ser humano, uma fada ou um anjo, é que
Gringoire, por muito filósofo cético e muito poeta irónico que fosse, não
conseguiu definir logo de entrada, a tal ponto aquela deslumbrante
visão o fascinou.
Não era alta, mas parecia-o, pois empertigava altivamente o delicado
busto. Morena, adivinhava-se-lhe, contudo, que, à luz do Sol, a pele
refulgiria no belo reflexo das Andaluzas e das Romanas. Andaluz era,
igualmente, o pé minúsculo, pois ao mesmo tempo estava apertado e à
vontade nos graciosos sapatos. Dançava, volteava, turbilhonava sobre
um velho tapete da Pérsia, estendido despreocupadamente a seus pés,
e de cada vez que a rodopiar passava ante a vista dos presentes no seu
radioso rosto os grandes olhos pretos despediam relâmpagos.
À sua volta, todos os olhares imobilizados e todas as bocas escan­
caradas; realmente, enquanto assim bailava, acompanhada com o gui­
zalhar do pandeiro que os seus dois braços roliços e puros erguiam
acima da cabeça, delicada, frágil e viva como uma vespa e com o
corpete de ouro sem uma ruga, o vestido pintalgado que se enfunava,
os ombros nus, as pernas airosas e que a saia por instantes revelava,
os cabelos negros e os olhos flamej antes faziam dela uma criatura
sobrenatural.
" Realmente", pensou para consigo Gringoire, "é uma salamandra,
uma náiada, uma deusa, uma bacante do monte Menálio ! "
Uma trança d o cabelo d a "salamandra" desmanchou-se naquele
momento, e uma moeda de cobre dourado presa nela soltou-se e rebo­
lou pelo chão.
- Ah, não é ! - monologou o poeta. - É apenas uma cigana . . .
Sumiram-se-lhe as ilusões.
A rapariga continuou a dançar. Apanhou do chão duas espadas,
cuja ponta encostou à testa, e pô-las a girar para um lado enquanto
ela rodopiava para o outro. Efetivamente não passava duma boémia.
Não obstante, a despeito da sua desilusão, Gringoire não deixava de
reconhecer certa magia e interesse no conj unto do quadro iluminado
pelo clarão duro e rubro da fogueira e a tremer muito vivo no círculo
de rostos da assistência, na testa morena da rapariga, e, ao fundo, a
praça a proj etar um pálido reflexo de mistura com a vacilação das suas
sombras a contorcerem-se, de um lado, na velha frontaria da Casa dos
Pilares e, do outro, nos braços de pedra da forca.

92
No milheiro de caras tintas de escarlate com o revérbero da fogueira,
uma havia que, mais do que qualquer outra, parecia absorta a con­
templar a bailarina . Era um semblante másculo, austero, calmo e
taciturno. Oculto pela turba, não se via o traj o desse homem aparen­
temente de não mais de trinta e cinco anos; era, contudo, calvo, pois
apenas nas fontes conservava uns escassos tufos de cabelos ralos e
grisalhos. A fronte, ampla e alta, começava a sulcar-se de rugas, mas
nos olhos enterrados nas órbitas luzia-lhe extraordinária j uventude,
vital ardor, uma paixão profunda. Não os desprendia da boémia e,
enquanto a fogosa rapariga de dezasseis anos dançava e volteava
para diversão de todos, ele, pelo contrário, parecia cada vez mais
absorto em sombria meditação. De vez em quando j untavam-se-lhe
nos lábios um sorriso e um suspiro, mas aquele era mais doloroso do
que o segundo.
Exausta, a j ovem parou finalmente e a assistência ovacionou-a com
carinho.
- Dj ali - chamou a zíngara.
Gringoire viu então aparecer uma linda cabrinha branca, esperta,
viva, lustrosa, de chifres dourados, patas douradas, coleira dourada;
ainda não reparara naquele animal que até essa altura se conservara
aninhado a uma ponta do tapete a ver a dona bailar.
- Dj ali - repetiu a dançarina -, chegou a tua vez.
Sentou-se, estendeu graciosamente o pandeiro para a cabra e per­
guntou-lhe:
- Djali, em que mês do ano estamos?
A cabra ergueu uma pata dianteira e bateu uma pancada no pan­
deiro. Estavam realmente no primeiro mês. A turba aplaudiu.
- Djali - continuou a rapariga, virando para outro lado o pandeiro -,
em que dia do mês estamos?
Dj ali levantou a patita dourada e bateu seis vezes no instrumento.
- Djali - prosseguiu a egípcia, variando sempre a posição do pan­
deiro -, que horas são?
Djali bateu sete pancadas. No mesmo instante, o relógio da Casa
dos Pilares fez ouvir as sete horas.
O povo estava embasbacado.
Uma voz sinistra proferiu no magote:
- Há ali bruxedo.

93
Quem falara fora o homem calvo, que não despregava os olhos da
cigana.
A boémia estremeceu e voltou-se, mas as palmas estrugiram, aba­
fando o lúgubre comentário.
Varreu-se-lhe mesmo tão completamente da memória, que a rapa­
riga continuou a interrogar a cabra .
- Dj ali, como faz o mestre Guichard Grand-Rémy, capitão dos pis­
toleiros da cidade, quando vai na procissão da Candelária?
Dj ali equilibrou-se nas patas traseiras e começou a bailar, cami­
nhando com tão gentil gravidade, que a toda a roda os espectadores
desataram a rir, apreciando aquela paródia à interesseira devoção do
capitão dos pistoleiros.
- Dj ali - prosseguiu a pequena mais animada por aquele crescente
êxito -, como é que prega mestre Jacques Charmolue, procurador
dei-rei no tribunal eclesiástico?
A cabra sentou-se nas patas traseiras e pôs-se a bailar, agi­
tando as patas da frente de modo tão extravagante que, excetuando
o francês, tão mau como o latim, de Jacques Charmolue, todo o
resto - gestos, postura, sotaque - era Jacques Charmolue, escrito e
escarrado.
A turba aplaudia cada vez com maior entusiasmo.
- Sacrilégio ! Profanação ! - volveu o calvo.
A boémia voltou-se outra vez e exclamou:
- Ah, que mauzão aquele !
Depois estendeu o lábio inferior para além do superior, fez um bei­
cinho que, segundo parecia, lhe era habitual , executou uma pirueta
sobre o calcanhar e começou a recolher num pandeiro as dádivas da
multidão.
Choviam moedas de prata, grandes e pequenas, escudos e liards­
-à- l 'aigle2º. De repente, passou diante de Gringoire. Este levou tão
desorientado a mão ao bolso, que a bailarina parou diante dele.
- Diacho ! - exclamou o poeta, encontrando a realidade no fundo
da algibeira, isto é , o vácuo.
A linda rapariga , porém, continuava à espera com os seus grandes
olhos fixos nele e o pandeiro estendido. Gringoire suava em bica.

20
Antiga moeda francesa de cobre.

94
Sem dúvida ofereceria o Peru à bailarina se o tivesse na algibeira,
mas Gringoire não possuía o Peru e, além disso, a América estava ainda
por descobrir.
Felizmente, um facto inesperado salvou-o. Do canto mais sombrio
do largo uma voz azeda perguntou:
- Não sais daí, gafanhoto do Egito?
A j ovem voltou-se, assustada. Não era a voz do calvo, mas sim a de
uma mulher, uma voz malévola de beata.
Aliás aquela interpelação, apesar de assustar a boémia, divertiu
imenso um bando de crianças que rondavam por ali,
- É a enclausurada da Torre Roland - gritaram elas, a rir destem­
peradamente. - É essa seresma a rosnar! Ainda não ceou? Nesse caso,
vamos dar-lhe umas migalhas do bufete da cidade!
Abalaram todos em tropel para a Casa dos Pilares.
Entretanto, Gringoire aproveitou-se do susto da bailarina para se
escapulir. O clamor da garotada lembrou-lhe que ainda não ceara.
Correu, por isso, para o bufete. Os velhaquetes, porém, tinham melho­
res pernas do que ele e, quando lá chegou, já haviam feito uma lim­
peza total. Nem sequer restava um mísero camichon de cinco soldos
a libra. Na parede ficaram apenas as delicadas flores-de-lis, entrela­
çadas de rosas e pintadas, em 1434, por Mateus Biteme. Bem magra
ceia !
Deitar sem ceia é desagradável, mas menos graça ainda tem não
cear nem saber onde dormir. Tal era a situação de Gringoire. Nem pão
nem abrigo; por todos os lados se via apertado pela necessidade e
achava essa necessidade desabrida de mais. Havia muito que chegara
à conclusão de que Júpiter criou os homens num acesso de misantro­
pia e de que o destino do sábio lhe põe durante a vida inteira a filosofia
em estado de sítio. Quanto a si, nunca se vira tão bloqueado: ouvia a
barriga a dar horas e achava muito fora de propósito que a pouca sorte
lhe trocasse a filosofia pela fome.
Absorvia-o cada vez mais essa melancólica meditação quando um
canto singular, se bem que repassado de doçura , o arrancou de repente
aos seus pensamentos. Era a j ovem egípcia que cantava.
Passava-se com a sua voz o mesmo que com a sua dança e com a
sua formosura: era indefinível e bela, por assim dizer qualquer coisa
de límpido, de sonoro, de aéreo, de alado. Sucediam-se continuamente

95
os alegres gorj eios, as melodias de inesperadas cadências, a seguir as
frases singelas salpicadas de notas agudas e sibilantes, depois arpej os
que deixariam mal um rouxinol, mas onde a harmonia reaparecia sem­
pre, seguida de brandas modulações de oitavas que subiam e desciam
como o seio da j ovem cantora. O gracioso rosto acompanhava, com
singular mobilidade, todos os caprichos da toada, desde a mais desen­
freada inspiração até à mais casta dignidade. Tanto parecia uma louca
como uma rainha.
Gringoire não percebia a língua em que ela cantava e que pare­
cia também desconhecida da própria cantora, em vista de a expressão
imprimida ao canto se harmonizar um pouco com o sentido das pala­
vras. Assim, estes quatro versos soavam na sua boca com desatinada
alegria:

Um cofre de gran riqueza


Hallaron dentro un pilar,
Dentro dei, nuevas banderas
Com figuras de espantar.

E logo a seguir o sentimento que infundia a esta estância:

Alarabes de cavallo
Sin poderse menear,
Con espadas, y los cuellos,
Ballestas de buen echar.

fez apontar as lágrimas aos olhos de Gringoire. Não obstante, era


sobretudo a alegria que respirava na sua música e, como um pássaro,
parecia cantar por desfastio e por acalmia.
A canção da boémia perturbara a meditação de Gringoire tal como
o cisne perturba a água. Ouvia-a como que arroubado, esquecido do
resto do mundo. Após muitas horas era aquela a primeira ocasião em
que não experimentava sofrimento.
Foi , porém, curto o instante. A mesma voz de mulher que interrom­
pera a dança da cigana interrompeu-lhe agora o canto.
- Não te calas, cigarra do Inferno? - gritou-lhe, sempre do mesmo
recanto obscuro da praça.

96
A pobre cigarra calou-se imediatamente; Gringoire tapou os ouvidos
e lamentou:
- Maldita serra desdentada que vem quebrar a lira !
A o mesmo tempo, o s outros espectadores murmuravam como ele, e
mais de um praguejava:
- Diabos levem essa centopeia !
Talvez a velha desmancha-prazeres, invisível, se viesse a arrepen­
der das suas invetivas contra a zíngara se j ustamente naquela altura
não os distraísse a procissão do papa dos loucos que, depois de calcor­
rear inúmeras ruas e travessas, desembocou na Praça de Greve, com
todos os seus archotes e todo o seu barulho.
A procissão, a cuj a partida do palácio os nossos leitores assistiram,
organizara-se pelo caminho e, recrutando tudo o que em Paris havia de
pior em matéria de biltres, de gatunos vadios e de vagabundos disponí­
veis, ao chegar à Praça de Greve apresentava já um aspeto respeitável.
O Egito abria o cortej o. À frente, o duque do Egito, a cavalo, com
os seus condes a pé, segurando-lhe a brida e o estribo; atrás deles, os
egípcios e as egípcias, todos misturados com os filhitos a berrarem-lhes
encavalitados nos ombros; todos - duques, condes, arraia-miúda - com
andraj os e ouropéis. Depois, vinha o reino do calão, isto é, todos os
ladrões da França, escalonados por ordem de dignidade; os menos
categorizados caminhavam à frente. Desfilavam assim a quatro e
quatro, com as várias insígnias dos seus graus nesta extravagante
faculdade, na maior parte estropiados, uns coxos, outros manetas, os
courtauds de boutanche, os coquillards, os hubins, os sabouleux, os calots,
os francs-mitoux, os polissons, os pietres, os capons, os malingreux, os
rifodés, os marcandiers, os narquois, os orphelins, os archisuppôts, os
cagoux, uma enumeração de estafar o próprio Homero21• Ao centro do
conclave dos cagoux (chefes de quadrilha) e dos archisuppôts (gatunos
eméritos) custava a distinguir o rei do calão, o grande coesre acocorado

21
São na maioria intraduzíveis estas várias designações da escória parisiense
do século XV. Se há registo de língua que mais evolua e se modifique constantemen­
te é o calão. Estes termos, quase todos obsoletos, perderam em grande parte a pro­
priedade e algumas das atividades ilegais que designavam e que ainda subsistem,
têm hoj e, no chamado argot, designação muito diversa . Na nossa língua - felizmen­
te de calão muito mais " modesto" - destas palavras poucas há mesmo hoj e que em
gíria tenham uma equivalência, quanto mais recuando até o longínquo século XV!

97
numa carrocita puxada por dois corpulentos cães. A seguir ao reino da
gíria, sucedia-se o império da Galileia. Guilherme Rousseau , imperador
da Galileia, caminhava maj estoso na sua toga de púrpura manchada de
vinho, precedendo os bailarinos que se entrebatiam e dançavam pír­
ricas, rodeado dos seus maceiras, dos seus esbirros e dos escreventes
do tribunal de contas. Finalmente, vinha a gente do foro, com as suas
maias coroadas de flores, as togas pretas, a música digna de um sabbat
e as grossas tochas de cera amarela. No meio desta turba, os grandes
oficiais da confraria dos loucos levavam aos ombros um andor mais
carregado de velas do que o relicário da Santa Genoveva em tempo de
peste. E sobre essa caranguej ola resplandecia, de báculo, capa e mitra,
o novo papa dos loucos, o Quasímodo corcunda, o sineiro de Nossa
Senhora.
Cada secção deste grotesco préstito levava música própria. Os egíp­
cios faziam ouvir, desafinados, os balafos e os tamboris africanos.
Os cultores do calão, raça pouquíssimo dada à música , ainda estavam
na antiga violeta, na corneta de chifre e na rubebbe gótica do século XI I .
Não s e encontravam mais adiantados o s d o império d a Galileia; mal
se lhes distinguia nos instrumentos alguma mísera rabeca da infân­
cia da arte e ainda aprisionada no ré-lá-mi. Era, sobretudo, à roda do
papa dos loucos que, numa magnífica cacofonia, se ouviam todas as
riquezas líricas do tempo. Só se percebiam agudos de rabecas, con­
traltos de rabecas, tenores de rabecas, isto para não falar nas flautas e
nos metais. Coitados! Os nossos leitores ainda se recordam de que era
aquela a orquestra de Gringoire !
N ã o é fácil d a r u m a ideia d o grau de contentamento orgulhoso e
beatífico a que, no percurso do palácio à Greve, chegara o semblante
triste e horrendo de Quasímodo. Nunca gozara tamanha satisfação no
amor-próprio. Só conhecera até então humilhações, desdém pela sua
situação e repugnância pela sua pessoa. Também, por muito surdo
que fosse, saboreava, como um verdadeiro papa, os aplausos daquela
chusma a quem odiava porque se sentia odiado. Pouco se lhe dava que
o seu povo fosse uma caterva de doidos, de estropiados, de gatunos,
de mendigos! Não deixava por isso de ser um povo e ele um sobe­
rano. Tomava a sério aquelas ovações irónicas, aquelas chocarreiras
demonstrações de respeito onde, cumpre-nos dizê-lo, mesmo assim se
misturava na turba certa dose de autêntico temor. Porque o corcunda

98
era forte; porque o cambado era ágil; porque o surdo era mau: três
qualidades que temperam o ridículo.
Aliás estamos longe de nos convencermos de que o novo papa dos
loucos verificava pessoalmente os sentimentos que experimentava e os
sentimentos que inspirava . O espírito aloj ado naquele corpo falhado
possuía evidentemente dentro de si qualquer coisa de incompleto e
de surdo. Por isso, o que naquela ocasião sentia era uma coisa abso­
lutamente vaga, indistinta e confusa. Apenas a alegria o penetrava e
o orgulho se impunha. Em torno daquela figura desgraçada e sombria
irradiava luz.
Foi, portanto, com espanto e susto que, de repente, quando Quasímodo,
nesta semiembriaguez, passava triunfalmente diante da Casa dos Pilares,
viram um homem romper da multidão e arrebatar-lhe das mãos, num
rompante de cólera, o dourado báculo de pau, insígnia do seu papado
de folia.
Este homem, este temerário, era a personagem de fronte calva que,
momentos antes, misturada com os espectadores da cigana, enregelara
a pobre rapariga com palavras de ameaça e de ódio. Envergava traj o
eclesiástico. Quando saiu de entre a turba, Gringoire, que ainda não
atentara nele, identificou-o.
- Espera ! - exclamou, surpreendido. - É o meu mestre de hermenêu­
tica, o arcediago D. Cláudio Frollo ! Que diabo quer ele daquele repug­
nante zarolho? Vai lançar-se às feras!
Realmente, soou um grito de terror. O formidável Quasímodo ati­
rou-se abaixo da padiola e as mulheres desviaram os olhos para não o
verem despedaçar o arcediago.
Deu um pulo para o padre, olhou para ele e caiu de j oelhos.
O sacerdote arrebatou-lhe a tiara, partiu-lhe o báculo e rasgou-lhe
o pluvial de lantej oulas.
Quasímodo, sempre de j oelhos, baixou a cabeça, de mãos postas.
Depois, travou-se entre os dois um estranho diálogo de sinais e
de gestos, pois nem um nem o outro falava. De pé, o padre, irritado,
ameaçador, imperioso; prosternado, humilde, suplicante, Quasímodo.
Todavia, não restava a menor dúvida de que Quasímodo podia facil­
mente, com o polegar, esmagar o padre.
Por fim, o arcediago abanou com rudeza o ombro potente de
Quasímodo e fez-lhe sinal para que se levantasse e o seguisse.

99
Quasímodo pôs-se em pé.
Foi então que a confraria dos loucos, passado o primeiro instante
de surpresa, quis defender encarniçadamente o seu papa destronado.
Os egípcios, os do calão e os do tribunal puseram-se todos a vociferar
à roda do padre.
Quasímodo postou-se à frente dele, exibiu os musculosos pulsos
de atleta e encarou os assaltantes, rangendo os dentes como um tigre
assanhado.
O sacerdote retomou a sua taciturna gravidade, fez um sinal a
Quasímodo e afastou-se silencioso.
Quasímodo caminhava-lhe à frente, e ao passar dispersava a turba.
Atravessado o povoléu e a praça, o enxame de curiosos e de vadios
quis ir atrás deles. Quasímodo saltou então para a retaguarda e seguiu
o arcediago, caminhando às arrecuas, atarracado, feroz, monstruoso,
eriçado, contraindo os membros, lambendo as defesas de javali, ros­
nando como uma fera e imprimindo, pelo gesto e pelo olhar, fortes
ondulações na multidão.
Deixaram-nos meter sem contrariedade por uma rua apertada e
escura onde ninguém se atreveu a persegui-los, pois bastava-lhes ima­
ginar Quasímodo a ranger os dentes para lhes vedar a entrada da viela.
- Verdadeiramente maravilhoso - reconheceu Gringoire. Mas onde
diabo hei de desencantar a ceia?

100
IV

Os inconvenientes de seguir de noite


na rua uma mulher bonita

Gringoire resolveu seguir, ao sabor do acaso, a cigana. Viu-a meter,


mais à cabra, pela Rua da Cutelaria e por isso enfiou também pela
mesma rua.
- Porque não? - monologara.
Como filósofo habituado às ruas de Paris, aprendera que nada é
mais próprio à meditação do que ir atrás duma mulher bonita, de quem
se ignora o destino. Existe, nesta voluntária abdicação do livre-arbítrio,
nesta fantasia que se submete a outra fantasia, sem que esta o sus­
peite, um misto de independência caprichosa e de cega obediência,
encerrando um não sei quê de intermédio entre a escravidão e a liber­
dade, muito do gosto de Gringoire, natureza particularmente mesclada,
indecisa e complexa, indo sempre às do cabo e constantemente sus­
pensa entre todas as progressões humanas que uma a uma neutrali­
zava. Comprazia-se em comparar-se com o túmulo de Maomet, atraído
em sentido inverso por duas pedras-ímanes e eternamente hesitante
entre o alto e o baixo, entre a abóbada e o pavimento, entre a queda e
a ascensão, entre o zénite e o nadir.
Se Gringoire vivesse nos nossos dias, que bem ficaria ele entre o
clássico e o romântico !
É pena que não fosse suficientemente primitivo para viver trezentos
anos! Hoj e em dia faz-se sentir bastante a sua falta !
Além disso, nada mais propício para andar pelas ruas atrás dos tran­
seuntes (e principalmente das transeuntes), o que Gringoire gostava
bastante de fazer, do que não saber onde pernoitar.

101
Ia, portanto, meditabundo atrás da rapariga que estugava o passo e
obrigava a linda cabrinha a trotar quando via que os burgueses reco­
lhiam a casa e as tabernas, únicos estabelecimentos nesse dia abertos,
estavam j á a fechar.
Dali a pouco o poeta dizia para consigo:
" Nalguma parte ela há de residir! Ora as boémias possuem bom
coração e quem sabe se . . . ?"
Nas reticências que ficavam em suspenso no seu espírito havia não
sei quê de bastante gracioso.
De vez em quando, porém, ao passar j unto de alguns grupos de bur­
gueses que fechavam as portas, apanhava fragmentos de conversas, os
quais lhe quebravam o encanto das suas risonhas hipóteses.
Ora eram dois velhotes que se abordavam:
- M estre Teobaldo Fernicle, que me dizeis a este frio?
( Desde o começo do inverno que Gringoire tinha muito a dizer a
esse respeito. )
- Não me faleis nisso, mestre Bonifácio Disome! Estar-nos-á reser­
vado outro inverno como o de há três anos, em 80, em que a lenha
chegou a custar oito soldos a medida?
- Ora, mestre Teobaldo, esse não foi nada comparado com o inverno
de 1407, em que caiu neve desde o S. Martinho até à Candelária! E com
uma dessas fúrias que até a pena do escrivão do Parlamento, mesmo
na grande câmara, gelava de três em três palavras, o que interrompia
o registo da j ustiça !
Ora eram mais adiante vizinhas, de velas acesas à janela, com as
chamas a contorcerem-se no nevoeiro:
- M enina La Boudraque, o seu marido já lhe contou a desgraça?
- Não. Qual desgraça, menina Turquant?
- A do cavalo de mestre Gil Godin, notário do Châtelet, que se espan-
tou com os flamengos mais com a sua procissão e derrubou mestre
Philippot Avrillot, oblato dos Celestinos.
- Palavra?
- É como lhe digo !
- Essa é boa ! Um cavalo burguês! . . . Ainda se fosse um cavalo de
cavalaria, vá lá! . . .
Fechavam-se as j anelas, mas Gringoire nem por isso deixava de
perder o fio às ideias.

1 02
O que valia era depressa o reencontrar e sem dificuldade voltar a
emendá-lo, graças à cigana e graças à Dj ali que caminhavam sempre à
sua frente. Duas criaturas airosas, delicadas e bonitas, das quais admi­
rava os pezitos, as esbeltas formas, os ademanes graciosos, quase as
confundindo ao contemplá-las. Em inteligência e boa amizade, pare­
ciam-lhe duas raparigas; em ligeireza, agilidade e destreza com que se
deslocavam, tanto achava cabrinha uma como a outra.
Entretanto, de minuto a minuto as ruas ficavam cada vez mais escu­
ras e vazias. Havia muito que tocara a recolher e começava a encon­
trar, já só de longe em longe, um transeunte pela rua ou uma luz nas
janelas. Atrás da egípcia, Gringoire embrenhara-se por esse inextricá­
vel dédalo de vielas, de travessas e de becos que envolviam o velho
sepulcro dos Santos I nocentes e que recorda um novelo emaranhado
por um gato.
- Aqui estão umas ruas bem falhas de lógica ! - monologou Gringoire,
perdendo-se nesses mil circuitos que vão parar sempre ao mesmo sítio,
mas por onde a j ovem cigana prosseguia, por caminho que lhe parecia
bastante familiar, sem qualquer hesitação e em passo cada vez mais
rápido. Quanto ao poeta, nunca saberia onde estava se não distinguisse,
ao virar duma esquina, a massa octogonal do pelourinho do mercado,
cuja cúpula arrendada se recortava, nítida num contorno escuro, sobre
a luz acesa ainda numa janela da Rua Verdelet.
A pequena havia instantes percebera que ele a seguia e várias vezes
o olhara assustada. Chegara até uma vez a estacar e a aproveitar uma
réstia de luz coada pela porta entreaberta dum padeiro para o mirar
fixamente de alto a baixo. Após este exame, Gringoire viu-a esboçar o
trej eitozinho que j á lhe notara e continuar o seu caminho.
Aquele breve beicinho deu que pensar a Gringoire. Percebia-se, evi­
dentemente, desdém e troça naquele gracioso esgar. Por conseguinte,
começou a alargar cada vez mais a distância que o separava da cigana
e, de olhos no chão, a contar as pedras da calçada.
Eis que, ao virar a esquina duma rua, onde a perdera de vista, a
ouviu soltar um penetrante grito.
Estugou o passo.
A treva enchia por completo a viela. Mesmo assim, graças a uma tor­
cida de estopa embebida em óleo e que ardia numa gaiola de ferro aos
pés da Santa Virgem da esquina da rua, Gringoire conseguiu avistar a

103
boémia a debater-se nos braços de dois homens que faziam toda a dili­
gência por lhe abafarem os clamores. A pobrezinha da cabra baixara,
muito assustada, os chifres e balava.
Corajosamente, Gringoire avançou, bradando:
- Aqui dei-rei!
Um dos homens que segurava na j ovem voltou-se para ele. Era a
figura formidável de Quasímodo.
Gringoire não fugiu, mas também não avançou nem mais um passo.
Quasímodo atirou-se a ele e, com um sopapo, proj etou-o a qua­
tro passos de distância na calçada. Seguidamente mergulhou na som­
bra, levando a pequena dobrada debaixo do braço como se fosse uma
écharpe de seda. O companheiro seguiu-o e a pobre cabra correu atrás
de todos com o seu balido lastimoso.
- Querem matar-me! - clamou a infeliz cigana. - Querem matar-me!
- Façam alto, miseráveis, e larguem-me j á a cachopa ! - ordenou, de
repente, em voz de trovão, um cavaleiro que, de improviso, desembo­
cou das trevas próximas.
Era um capitão dos archeiros da guarda dei-rei, armado até os den­
tes e empunhando o espadagão.
Arrebatou a zíngara dos braços do estupefacto Quasímodo, atraves­
sou-a na sela e, na altura em que o formidável corcunda se recompunha
da surpresa e corria para ele, para reaver a presa, quinze ou dezasseis
archeiros, que de perto seguiam o capitão, surgiram de estramazão em
punho. Era uma esquadra da guarda real em serviço de patrulha por
ordem de messire Roberto d'Estouteville, guarda do prebostado de Paris.
Cercaram Quasímodo, agarraram-no e garrotaram-no, apesar de ele
rugir, de escumar e de morder. Fosse dia claro e pela certa bastaria a
sua cara, que a fúria tornaria mais hedionda ainda, para fazer deban­
dar o esquadrão. A noite, porém, inutilizara-lhe a sua arma mais tre­
menda: a fealdade.
Durante a luta o companheiro sumira-se.
A boémia endireitou-se graciosamente na sela do oficial, apoiou
ambas as mãos nos ombros do j ovem e observou-o fixamente durante
uns segundos, como que deslumbrada com o seu magnífico aspeto e
com o oportuno socorro que acabava de lhe prestar. De seguida, que­
brando o silêncio, ela disse-lhe numa inflexão ainda mais doce da sua
voz j á de si meiga:

104
- Como vos chamais, senhor gendarme?
- Capitão Febo de Châteaupers, para vos servir, minha bela menina
- respondeu o oficial, pavoneando-se.
- Obrigada - agradeceu ela.
Enquanto o capitão Febo retorcia o bigode à borgonhesa, a rapariga
deslizou como uma flecha do cavalo, saltou para o chão e fugiu.
Um relâmpago sumir-se-ia com menos rapidez.
- Pelo umbigo do Papa - praguej ou o capitão, ao mesmo tempo
que apertava mais as correias de Quasímodo -, antes queria ficar com
a cachopa!
- Que se há de fazer, Capitão? - comentou um gendarme. - Fugiu a
toutinegra, ficou o morcego.

105
V

Sucedem-se os contratempos

Ainda atordoado com o trambolhão, Gringoire ficou caído na cal­


çada, diante da bondosa Virgem da esquina. Voltou gradualmente a si,
pairando, primeiro, uns minutos numa espécie de delírio meio sono­
lento e onde as aéreas figuras da boémia e da cabra se casavam com o
peso do punho de Quasímodo. Durou pouco aquele estado. Uma pene­
trante sensação de frio na parte do corpo em contacto com as pedras
da rua acordou-o de súbito e fez com que a consciência regressasse à
superfície.
- Que humidade é esta? - exclamou, de repente.
Percebeu então que caíra mais ou menos no meio da valeta.
- Diabo do ciclope corcunda ! - resmungou por entre dentes, esfor­
çando-se por se pôr em pé.
Ficara, porém, atordoado e confuso de mais para isso. Não viu outro
remédio senão conservar-se ali. Como, aliás, dispunha de uma mão
livre, tapou resignadamente o nariz.
"A lama parisiense", pensou com os seus botões e deveras conven­
cido de que teria a valeta por cama;

E que fazer numa cama, a não ser que se sonhe?

"a lama de Paris é particularmente fedorenta. Deve conter muito sal


volátil e nitroso. Aliás, mestre Nicolau Flamel mais os herméticos pen­
sam da mesma maneira . . ."

A palavra herméticos lembrou-lhe de repente o arcediago Cláudio


Frollo. Recordou-se da violenta cena que antes presenciara de relance;

106
de que a boémia se debatia entre dois homens; de que Quasímodo ia
acompanhado; e assim, nas suas evocações, perpassou vagamente o
semblante sombrio e altivo do arcediago.
"Seria deveras esquisito ! " , pensou para consigo.
Partindo desse elemento, começou então a arquitetar um fantástico
edifício de hipóteses, esse castelo de cartas dos filósofos. De chofre,
tornou mais uma vez à realidade e exclamou:
- Ui, estou gelado !
Realmente, o sítio era cada vez menos suportável. Como cada molé­
cula de água da regueira arrebatava uma molécula do calor que radiava
dos rins de Gringoire, o equilíbrio entre a temperatura do seu corpo e a
da valeta começava a estabelecer-se com bastante brutalidade.
De súbito, assaltou-o contrariedade de outra espécie. Um grupo de
crianças, esses selvagenzinhos de pé descalço que em todos os tempos
calcorrearam as ruas de Paris sob o eterno nome de gamins e que,
quando fomos também crianças, nos alvejavam, à pedrada, todas as
tardes ao sair da escola, porque não levávamos as calças rotas, um
enxame desses marotitos correu para a travessa onde Gringoire j azia
e, entre gargalhadas e gritos, patentearam que pouquíssimo se pre­
ocupavam com o sono da vizinhança. Arrastavam não sei que saco
informe e faziam tamanho barulho com os tamancos, que acordariam
um morto. Como Gringoire ainda não se podia considerar morto de
todo, soergueu-se um pouco.
- Eh, H ennequin Dandéche! Eh, Jehan Pincebourde! - gritavam
desaforadamente. - O velho Eustáquio Moubon, o mercador da esquina,
morreu agora mesmo. Vamos fazer uma fogueira com a sua enxerga.
Hoj e é dia dos Flamengos!
Atiraram com a enxerga justamente para cima de Gringoire, de
quem se aproximaram sem o ver. Ao mesmo tempo um deles agarrou
numa mancheia de palha que foi acender na lamparina da bondosa
Virgem.
- Pela morte de Cristo ! - resmungou Gringoire. - Querem ver que
agora vou passar calor de mais?
Crítica situação! Vendo-se apanhado entre o fogo e a água, executou
um esforço sobrenatural, um esforço de moedeiro falso a quem vão
meter em água fervente e que procura libertar-se. Levantou-se, atirou
com a enxerga para cima dos gaiatos e fugiu.

107
- Virgem Santa ! - berravam os miúdos. - O mercador ressuscitou !
Chegou a vez de serem eles a fugir.
Ficou a enxerga senhora do campo de batalha. Belleforêt, o padre
Juge e Corrozet asseguram que, no dia seguinte, o clero do bairro
levantou-a com grande solenidade e conduziu-a para o tesouro da
igrej a de Santa Oportuna, onde, até 1 789, o sacristão tirou pingue ren­
dimento graças ao grande milagre que a imagem da Virgem da Rua
Mauconseil realizara, apenas pela sua presença, na memorável noite
de 6 para 7 de janeiro de 1482, quando exorcismara o finado Eustáquio
Moubon, o qual, para pregar uma pirraça ao Diabo, quando morrera,
ocultara maliciosamente a alma na sua enxerga.

108
VI

A bilha quebrada

Depois de ter corrido a bom correr durante algum tempo sem saber
para que destino, dando com a cabeça em várias esquinas de ruas,
pulando muita regueira, cruzando muita viela, muito beco, muita tra­
vessa, procurando fugir, passando por entre todos os meandros das
velhas artérias dos Mercados (Halles) , explorando, no seu pavor pânico,
o que o lindo latim dos forais denomina tota via, cheminum et viaria, o
nosso poeta estacou de repente, primeiro por ir j á sem fôlego e depois
porque, de certo modo, fora agarrado pelo pescoço por um dilema que
acabara de lhe surgir na mente. Apoiou o dedo na testa e disse com os
seus botões:
" Quer-me parecer, mestre Pedro Gringoire, que correis como um
insensato. Não vos assustastes menos com esses malandrecos do que
eles convosco. Sempre vos declaro que pareceis ter ouvido a bulha
dos seus tamancos, que fugiam para o sul, enquanto vós fugíeis para
o norte. Ora das duas uma: ou desataram a fugir e então a enxerga,
de que decerto se esqueceram no seu terror, é j ustamente essa hospi­
taleira cama atrás da qual correis desde manhã e que a Virgem Nossa
Senhora miraculosamente vos envia como recompensa de terdes,
em sua honra, composto uma moralidade, acompanhada de triunfos
e mornices, ou as crianças não fugiram e , nesse caso, chegaram o
brandão à enxerga e é esse precisamente o excelente fogo de que
necessitais para vos reconfortar, secar e aquecer. Em qualquer dos
casos, bom lume ou boa cama, a enxerga surge como uma dádiva
do Céu . Talvez a bem-aventurada Virgem Maria da esquina da Rua
Mauconseil só por causa disso fizesse morrer Eustáquio Moubon; e

109
sois doido em fugir como um desatinado, como um picardo diante de
um francês, deixando para trás o que procurais na vossa frente. Sois
um tolo ! "
Retrocedeu pois e , orientando-se e esquadrinhando, d e nariz n o ar
e ouvido à escuta, diligenciou encontrar outra vez a bendita enxerga.
Baldado intento ! Apenas esquinas de casas, becos, encruzilhadas, nas
quais hesitava, constantemente indeciso, e ainda mais embaraçado do
que enredado, naquele dédalo de vielas negras, do que se sentiria no
próprio labirinto do palácio das Tournelles. Acabou por perder a paci­
ência e exclamar solene:
- Amaldiçoadas sejam as encruzilhadas! Inventou-as o Diabo à
imagem da sua forquilha!
Ficou mais aliviado com este desabafo, acabando de lhe levantar
o moral uma espécie de clarão vermelho que avistou, nessa altura, ao
fim duma viela comprida e estreita.
- Louvado sej a Deus! - disse. É acolá ! Lá está a minha enxerga a
-

arder !
Comparou-se ao timoneiro a afogar-se em plena noite e acrescen­
tou piedosamente:
- Salve, salve, maris stella!22
Dirigiu este fragmento de ladainha à Santa Virgem ou à enxerga?
De maneira nenhuma o poderemos saber.
Mal dera meia dúzia de passos na extensa viela, em declive e sem
lajedo, e, assim, cada vez mais íngreme e lamacenta, quando reparou
numa coisa bastante estranha: a rua não estava deserta. A todo o com­
primento, aqui e além, rastej avam não sei que indecisos e informes
vultos, todos dirigindo-se para o clarão que vacilava ao cabo da rua
corno esses pesados insetos que se arrastam de noite, de ervinha em
ervinha, direitos a urna fogueira de pastor.
Não há nada que mais incite à aventura do que levar a barriga
pegada às costas. Gringoire continuou sempre para a frente e não tar­
dou a alcançar o verme que mais preguiçosamente rastej ava atrás dos
seus companheiros. Quando se acercou dele, reparou que outra coisa
não era senão um aleijado sem pernas, que saltitava sobre as duas
mãos como uma aranha dos campos, ferida e a que restassem apenas

22
Salve, salve, estrela do mar!

1 10
duas patas. Quando passou j u nto dessa espécie de aranha com rosto
humano, ouviu-a suplicar-lhe num tom lamuriento:
- La buona mancia, signor! La buona mancia!23
- Vai para o diabo ! - atirou-lhe Gringoire. - E faço-te companhia, se
perceber o que queres dizer!
Passou adiante.
Alcançou outra dessas massas ambulantes e examinou-a. Era um
paralítico, coxo e maneta, tão coxo e tão maneta que o complicado
sistema de muletas e de pernas de pau que o aguentavam dava-lhe
o aspeto de um andaime de pedreiros em marcha. Gringoire, sempre
pronto para as comparações nobres e clássicas, igualou-o mentalmente
ao tripé vivo de Vulcano.
Esse tripé animado saudou-o ao passar, mas colocou-lhe o chapéu
à altura do queixo, como se fosse uma bacia de barba, e berrou-lhe aos
ouvidos:
- Sefíor caballero, para comprar un pedaso de pan!
- Parece que também fala ! - comentou Gringoire. - Mas numa lín-
gua áspera e em que terá mais sorte do que eu se a perceber.
Numa transição súbita, bateu na testa e lembrou:
- A propósito: que diabo quereriam dizer esta manhã com a sua
Esmeralda?
Quis dobrar o passo, mas pela terceira vez uma coisa qualquer
vedou-lhe o caminho. Essa coisa qualquer era um cego, um ceguinho
com cara barbuda de j udeu, o qual, remando à sua volta no espaço,
com um bordão, enquanto um cão enorme o rebocava, fanhoseou num
sotaque húngaro:
- Facitote caritatem!24
- Até que enfim! - exclamou Pedro Gringoire. - Aqui está ao menos
um que fala língua cristã ! Devo ter cara de muito esmoler para que
implorem desta maneira a caridade no estado de magreza em que
trago a bolsa ! - Meu amigo - ajuntou, virando-se para o invisual -,
vendi a semana passada a minha última camisa. Isto é, já que só com­
preendeis a língua de Cícero: Vendidi hebdomade nuper transita meam
ultimam chemisam.

2 3 Dê-me u m a esmolinha, Senhor! Dê-me u m a esmolinha.


24 Fazei a caridade!

111
Dito isto, voltou as costas ao cego e continuou o seu caminho, mas
aquele tratou de alargar o passo e, ao mesmo tempo que ele, eis que o
paralítico, eis que o aleijado, surgiram, cada um de seu lado, apressada­
mente e fazendo muita bulha com a escudela e as muletas na calçada .
De seguida , os três, aos pulos atrás do pobre Gringoire, desataram
a entoar a sua canção.
- Caritatem ! cantava o cego.
-

- La buona mancia ! cantava o estropiado das pernas.


-

E o coxo, em contracanto, repetia:


- Un pedaso de pan!
Gringoire tapou os ouvidos, gritando:
- Que torre de Babel!
Desatou a correr. O cego correu. O coxo correu. O aleijado correu.
Depois, à medida que avançava pela rua , estropiados, cegos, coxos,
pululavam à sua roda, e manetas, zarolhos e chaguentos leprosos, aqui
saindo das casas, acolá surgindo das ruazitas adj acentes, mais além
dos respiradoiros dos subterrâneos, ululando, bramindo, guinchando,
todos a manquejarem, uns mais outros menos, corriam para a luz a
espojarem-se na lama como lesmas depois da chuva.
Sempre com os três perseguidores atrás, Gringoire, sem saber bem o
que dali resultaria, caminhava espavorido no meio dos outros, evitando
os coxos, saltando por cima dos sem pernas, emaranhando-se-lhe os
pés naquele formigueiro de estropiados, como o capitão inglês que se
enredou numa colónia de caranguej os.
Pensou ainda em voltar para trás. Era, porém, tarde de mais para
isso. Toda a legião se lhe fechara nas costas e via-se nas unhas dos seus
três pedintes. Continuou, portanto, impelido ao mesmo tempo pela
onda irresistível, pelo medo e por uma vertigem que lhe transformava
aquilo tudo num sonho horroroso.
Chegou, enfim, ao cabo da rua. Esta desembocava numa imensa
praça, onde vacilavam, na bruma confusa da noite, mil luzes dispersas.
Gringoire enfiou pelo largo na esperança de escapar, graças à velo­
cidade das suas pernas, aos três espectrais enfermos que se haviam
aferrado a ele.
- Onde vas, hombre? - gritou o paralítico, atirando com as mule­
tas fora e correndo atrás do poeta com as duas melhores pernas que
alguma vez traçaram um passo geométrico no pavimento de Paris.

1 12
Entretanto, o aleij ado "sem pernas", bem firme nos seus pés, cobria
Gringoire com a pesada escudela ferrada, enquanto o cego o encarava
de olhos flamej antes.
- Onde estou? - perguntou, aterrado, o vate.
- No Pátio dos Milagres - respondeu o quarto espectro, que se apro-
ximou deles.
- Por minha alma ! - exclamou Gringoire. - Bem verifico que os
cegos veem e que os coxos correm, mas onde está o Salvador?
Responderam-lhe com uma sinistra gargalhada.
O pobre poeta lançou uma olhadela à sua volta. Estava com efeito
nesse temível Pátio dos Milagres onde a uma hora daquelas nunca
entrara um homem honesto; nesse círculo mágico, os funcionários do
Châtelet e os meirinhos do prebostado, que ali se aventuraram, desa­
pareceram desfeitos em migalhas; cidadela dos gatunos, hedionda ver­
ruga no rosto de Paris; esgoto de onde todas as manhãs escorria, para
voltar a estagnar à noite, esse enxurro de vícios, de mendicidade e de
vagabundagem, que sempre trasbordou nas ruas das capitais; mons­
truosa colmeia, onde, à noite, recolhiam com a presa todos os zângãos
da ordem social; mentiroso hospital onde o boémio, o monge apóstata,
o estudante perdido, os patifes de todas as nacionalidades - espanhóis,
italianos, alemães -, de todas as religiões - j udeus, cristãos, maometa­
nos, idólatras -, cobertos de chagas pintadas, mendigos de dia que de
noite se transfiguravam em salteadores, numa palavra, camarim onde
se vestiam e despiam nessa época todos os atores dessa eterna comé­
dia que o roubo, a prostituição e o assassínio representam nas ruas de
Paris.
Era uma praça vasta, irregular e mal calcetada, como todas as pra­
ças desse tempo em Paris. Aqui e além, crepitavam fogueiras em redor
das quais formigavam estranhos grupos. Toda aquela gente ia, vinha,
gritava. Ouviam-se gargalhadas agudas, vagidos de crianças, vozes de
mulheres. Sobre o fundo luminoso, as mãos, as cabeças daquela chusma
desenhavam mil gestos extravagantes. Havia ocasiões em que no chão,
onde tremia o clarão das fogueiras de mistura com grandes sombras
indefinidas, se podia ver passar um cão que parecia um homem, um
homem que parecia um cão. Dir-se-ia que as fronteiras das raças e das
espécies se apagavam naquela cidade como um pandemónio. Homens,
mulheres, animais, idade, sexo, saúde, doença, tudo parecia partilhado

1 13
em comum entre aquela gente, tudo se j untava, misturava, confundia,
sobrepunha: cada um participava no conj unto.
A radiação oscilante e pobre das fogueiras permitiu a Gringoire dis­
tinguir, no meio da sua perturbação, todo o âmbito da imensa praça,
repelente enquadramento de casas decrépitas, de fachadas carcomi­
das, encorreadas, mirradas, cada uma furada por uma ou duas trapei­
ras iluminadas e que, na sombra, lhe davam a impressão de enormes
cabeças de velhas, reunidas em círculo, monstruosas e rabugentas, que
assistissem ao sabbat, piscando os olhos.
Era como que um mundo novo, inaudito, disforme, réptil, formi­
gante, fantástico.
Cada vez mais assustado, Gringoire, seguro pelos três mendigos
como por três tenazes, ensurdecido por uma turbamulta de outras
fisionomias que se encrespavam e ladravam à sua volta, o malfadado
Gringoire tentava recuperar a presença de espírito para pensar se
estava deveras a um sábado. Eram, porém, baldados os seus esforços;
quebrara-se-lhe o fio da memória e do pensamento e, desconfiado de
tudo, flutuando entre o que via e o que sentia, formulava a si próprio
esta insolúvel pergunta:
- Se aqui estou, isto que é? Se isto é assim, estou eu cá?
Naquela altura, na malta sussurrante que o rodeava ergueu-se um
nítido clamor:
- Levemo-lo ao rei ! Levemo-lo ao rei !
- Virgem Santa ! - murmurou Gringoire. O rei disto deve ser u m
bode!
- Levem-no ao rei ! Levem-no ao rei ! - repetiam todas as Vozes.
Arrastaram-no. Era ver o que primeiro lhe deitava as garras. Os men­
digos, porém, não largavam a presa e arrancavam-na aos outros,
berrando:
- É nosso !
O gibão, j á enfermo, do poeta, rendeu naquela luta o último suspiro.
Quando atravessava a horrível praça, dissipou-se-lhe a vertigem.
Dados alguns passos, voltou-lhe o sentimento da realidade. Começava
a habituar-se ao ambiente local. Nos primeiros instantes, da sua cabeça
de poeta , ou talvez, muito simples e prosaicamente, do seu estômago
vazio, elevou-se uma exalação, um vapor, por assim dizer, que, ao
espalhar-se entre ele e os obj etos, não lhos deixara entrever senão na

1 14
névoa incoerente do pesadelo, nas trevas dos sonhos que fazem estre­
mecer todos os contornos, contorcer todas as formas, aglomerarem-se
os obj etos em grupos desmesurados, dilatando as coisas em quimeras
e os homens em fantasmas. A pouco e pouco, a essa alucinação suce­
deu-se uma observação menos desvairada e menos avultante. O real
definia-se melhor à sua volta , batia-lhe nos olhos, pisava-lhe os pés e
demolia-lhe, peça por peça, toda a pavorosa poesia de que, de entrada,
se imaginara rodeado. I mpunha-se-lhe deveras perceber que não cami­
nhava no Estige, mas sim na lama; que não o acotovelavam demónios,
mas sim ladrões; que não tinha a alma em perigo, mas muito nitida­
mente a vida (pois faltava-lhe esse precioso conciliador que tão eficaz­
mente se coloca entre o bandido e o homem honrado: a bolsa).
Finalmente, ao examinar a orgia mais de perto e com maior san­
gue-frio, caiu de súbito na taberna.
Com efeito, o Pátio dos Milagres não passava duma taberna, mas
uma taberna de bandidos, tão tinta de sangue como de vinho.
Quando a sua escolta de maltrapilhos o depôs enfim no termo da
viagem, ofereceu-se-lhe à vista um espetáculo nada propício a fazê-lo
regressar à poesia, mesmo que se tratasse da poesia do Inferno. Era,
mais do que nunca, a prosaica e brutal realidade da taberna. Se não
estivéssemos no século XV, diríamos que Gringoire descera de M iguel
Ângelo para Callot.
À roda duma grande fogueira, a arder sobre uma larga pedra cir­
cular e lambendo com as suas chamas as hastes vermelhas de uma
trempe, vazia de momento, algumas mesas carunchosas, postas ao
acaso aqui e ali e sem que o mais ínfimo lacaio geómetra se dignasse
acertar-lhes o paralelismo ou evitar, ao menos, que não se desarru­
massem em ângulos excessivamente extravagantes. Sobre essas mesas
luziam alguns canj irões e em volta desses canj irões agrupavam-se
muitas fisionomias báquicas, encarniçadas pelo fogo e pela bebida.
Ou era um homem barrigudo e de rosto prazenteiro, que beij ava
ruidosamente uma prostituta, espessa e carnuda , ou era um pseudos­
soldado, um narquois, como se dizia em calão, que, a assobiar, des­
manchava as ligaduras do seu falso ferimento e que desentorpecia o
j oelho são e robusto, desde pela manhã entrapado num milhar de liga­
duras. Ao invés, era um "aleij adinho" que, com celidónia e sangue de
boi, preparava, para o dia seguinte, a sua perna de Deus. Duas mesas

115
mais adiante, um coquillart25, vestido irrepreensivelmente de pere­
grino, soletrava a lamentação da Rainha Santa, sem esquecer a salmo­
dia nasalada. Mais além, um j ovem caloiro tomava lições de epilepsia,
ministradas por um velho sabouleux26, que lhe ensinava a arte de deitar
espuma pela boca, mastigando um bocado de sabão. A seu lado, um
hidrópico esvaziava-se como um balão e obrigava a tapar o nariz a
quatro ou cinco ladras que se disputavam, à mesma mesa, uma criança
roubada naquela tarde. Todas as circunstâncias que dali a dois séculos
pareceram tão ridículas à Corte, como disse Sauval, que serviram de dis­
tração a el-rei e de introdução para o bailado real da noite, dividido em
quatro partes e dançado no Teatro do "Petit Bourbon ". "Nunca", acres­
centa uma testemunha ocular de 1653, "se representaram com maior
felicidade as súbitas metamorfoses do Pátio dos Milagres. Benserade
preparou-nos para elas com versos bastante galantes. "
Por todos o s lados estrondeavam gargalhadas e canções obscenas.
Cada um tratava de si, criticando e praguej ando, sem dar ouvidos ao
vizinho. Os canj irões tocavam-se e, com o seu chocalhar, nasciam as
disputas e, ao esbeiçarem-se, provocavam mais rasgões nos andrajos.
Um canzarrão, sentado sobre a cauda, olhava para a fogueira. Havia
petizes misturados naquela orgia. A criança roubada chorava e gritava.
Outra, um rapaz gordo, de quatro anos, sentado, de pernas à dependura,
no cimo de um mocho alto de mais, roçava com o queixo pela mesa e não
proferia palavra. Um terceiro estendia gravemente com o dedo, por cima
da mesa, o sebo derretido que escorria duma vela. Um último, pequeno,
agachado na lama, quase desaparecia num caldeirão que raspava com
uma telha e de que arrancava um som de fazer desmaiar Stradivarius.
Junto do lume, um barril e , em cima do barril, um mendigo. Era o
rei no seu trono.
Os três que levavam Gringoire conduziram-no diante desse barril e
toda a bacanal emudeceu num momento de silêncio, com exceção do
caldeirão habitado pela criança .
Gringoire nem a respirar se atrevia, nem tão-pouco a levantar os
olhos.

2s
De coquil/e (concha ) , distintivo dos romeiros.
26
De sabouler (dar safanões) , "estrebuchar", por extensão, sintoma com que esta
casta de mendigos fingia os ataques epiléticos.

116
- Hombre, quita tu sombrero! disse-lhe um dos três patifes que o
-

guardavam.
Antes de perceber o que aquelas palavras queriam dizer, o outro
arrebatou-lhe o chapéu. Um mísero gorro, é certo, mas mesmo assim
ainda bom para um dia de sol ou para um dia de chuva. Gringoire sol­
tou um suspiro.
Entretanto, o rei, do alto do casco, dirigia-lhe a palavra:
- Quem vem a ser este maroto?
Gringoire estremeceu. Aquela voz, apesar de acentuada pela ame­
aça, recordou-lhe outra voz que nessa mesma manhã lhe despedira
o primeiro golpe no seu mistério quando, fanhosa, lamuriava entre o
auditório:
- Caridade, por favor!
Levantou a cabeça. Era efetivamente Clopin Trouillefou.
Clopin Trouillefou, revestido das insígnias reais, não exibia um
andrajo a mais ou a menos. A chaga do braço desaparecera-lhe.
Empunhava um desses chicotes de tiras de cabedal branco de que
então se serviam os "meirinhos de chibata" para conter o povoléu e a
que chamavam boullayes. Cobria-se com uma espécie de toucado cir­
cular e tapado por cima, mas custava a distinguir se se tratava de uma
touca almofadada de criança ou de uma coroa de rei , tanto uma coisa
se parece com a outra.
Entretanto, Gringoire, sem bem saber porquê, readquirira alguma
esperança quando reconheceu, no rei do Pátio dos M ilagres, o seu
amaldiçoado mendigo da sala grande.
- Mestre - balbuciou -, Monsenhor. . . Sire . . . Como vos devo tratar? -
disse por fim, chegando ao ponto culminante do seu crescendo e sem
saber já como subir ou descer.
- Dá-me roda de Monsenhor, de Sua Maj estade ou de camarada,
como te apetecer, contanto que te despaches! Que alegas em tua defesa?
"Em tua defesa ?'', repetiu Gringoire, para consigo. " Não me agrada
isto ! "
Gaguej ando, declarou:
- Eu sou aquele que esta manhã . . .
- Pelas unhas do Diabo ! - interrompeu-o Clopin. - Dize-me como te
chamas, maroto, e pronto ! Escuta: estás diante de três poderosos sobe­
ranos: de mim, Clopin Trouillefou, rei de Tunes, sucessor do grande

1 17
coesre, supremo suserano do reino do calão; de Matias Hungadi Spicali,
duque do Egito e da Boémia, esse velhote amarelento que vês acolá
com uma rodilha amarrada à cabeça, e de Guilherme Rousseau, impe­
rador da Galileia, aquele gorducho que não nos está a ouvir e que fez
festas àquela descarada. Somos os teus juízes. Entraste no reino do
calão sem pertenceres à confraria e violaste os privilégios da nossa
cidade. Mereces o castigo, a não ser que sejas franc-mitou ou rifodé ou
capon, como quem diz, no calão das pessoas sérias, gatuno, mendigo
ou vagabundo. És alguma destas coisas? Justifica-te. Declina as tuas
qualidades.
- Infelizmente - lamentou Gringoire -, não tenho essa honra. Sou o
autor. . .
- É quanto basta - atalhou Trouillefou sem o deixar concluir. - Vais
ser enforcado. Uma coisa das mais simples, senhores honrados burgue­
ses ! Como tratais os nossos na vossa casa é assim que vos tratamos na
nossa . A lei que aplicais aos vagabundos é a que os vagabundos vos
aplicam a vós. Se é desagradável, é vossa a culpa. Sempre é bom que,
de tempos a tempos, se vej a o esgar de um homem honesto por cima
do colar de cânhamo; isso nobilita a coisa . Vamos, amigo, partilha ale­
gremente com estas meninas a tua trapagem. Vou-te mandar enforcar
para entreter os mendigos de ofício e tu oferecer-lhes-ás a bolsa para
beberem uma pinga. Se tens qualquer reza a fazer, há acolá, no almofa­
riz, um esplêndido Padre Eterno, de pedra, que roubámos em S. Pedro
dos Bois. Dispões de quatro minutos para lhe atirares com a tua alma
à cabeça .
Formidável discurso ! Tanto que o imperador da Galileia exclamou,
depois de partir o seu canj irão para escorar a mesa:
- Bem dito, pela minha alma ! Clopin Trouillefou prega como o Santo
Padre o Papa!
- Monsenhores, imperadores e reis - pronunciou Gringoire, com
grande sangue-frio, pois não sei como recuperou tanta segurança e tal
firmeza no falar -, não penseis nisso ! Chamo-me Pedro Gringoire e sou
o poeta de quem se representou esta manhã uma moralidade, na sala
grande do Palácio da Justiça .
- Ai, és tu , Mestre? - exclamou Clopin. - Pela cabeça de Deus,
também lá estive ! Mas então, camarada, lá porque nos chateaste esta
manhã, é isso motivo para que te não enforquemos à noite?

118
" Não me será fácil safar-me'', pensou Gringoire que, todavia, ence­
tou nova diligência.
- Não vej o a razão por que os poetas não se incluem entre os vaga­
bundos! Vagabundo foi-o Esopo, mendigo foi-o Homero, gatuno foi-o
Mercúrio . . .
Clopin interrompeu-o:
- Está-me a cheirar que nos queres engrolar com o teu palavreado !
Que diabo, deixa-te enforcar e acaba com as esquisitices!
- Perdão, monsenhor Rei de Tunes - replicou Gringoire, a disputar
o terreno palmo a palmo. - Merece a pena . . . Um instante . . . Ouvi-me . . .
Não me condenareis sem me escutar. . .
Realmente, a sua malfadada voz abafava-se sob a barulheira que
estrugia em redor. O rapazito raspava o seu caldeiro com maior ener­
gia do que nunca e, para cúmulo, uma velha acabara de colocar sobre
a trempe em brasa uma frigideira cheia de gordura, a qual chiava ao
lume com uma bulha parecida com os berros dum magote de crianças
a perseguirem uma máscara.
Todavia, Clopin Trouillefou pareceu conferenciar por momentos
com o duque do Egito e com o imperador da Galileia, bêbado como um
cacho. Depois, gritou com aspereza:
- Caluda aí!
Como o caldeirão e a frigideira não o ouviam e continuavam o
dueto, saltou abaixo do barril, pregou um pontapé no primeiro, que
rolou a dez passos de distância j untamente com o miúdo, pespegou
outro pontapé na frigideira, cuja gordura se derramou completamente
pelo lume, e voltou a trepar solenemente para o trono, sem ligar impor­
tância ao pranto abafado da criança nem aos grunhidos da velha, cuj a
ceia se sumia transformada numa linda chama branca.
Trouillefou fez um sinal e o duque, o imperador, os capitães de
ladrões e os mestres postaram-se à sua volta, numa ferradura ocupada
ao centro por Gringoire, sempre agarrado por mãos rijas. Um semicír­
culo de andrajos, de farrapos, de ouropéis, de forquilhas, de machados,
de pernas trôpegas pelo vinho, de grossos braços nus, de rostos sórdi­
dos, apagados e embrutecidos. Ao meio desta távola redonda de miséria,
Clopin Trouillefou, como o doge deste senado, como o rei desta câmara
de pares, como o papa deste conclave, dominava, primeiro a toda a altura
do seu barril, depois não sei com que ar altivo, feroz e formidável que

119
fazia cintilar-lhe a pupila e corrigia, no seu bravio perfil, o tipo bestial
da raça vagabunda. Parecia uma cabeça de animal rodeada de focinhos.
- Escuta - disse a Gringoire, afagando, com a mão calosa, o queixo
disforme -, não vej o razão para que não sejas enforcado. É verdade que
isso parece repugnar-te . . . Simplesmente porque vós, os burgueses, não
estais habituados! Fazeis do caso um bicho de sete cabeças. No fim de
contas, não te queremos mal . Há uma maneira de, por agora, te livrares
de sarilhos. Queres ser dos nossos?
Faz-se uma ideia do efeito que esta proposta causou em Gringoire
que via a vida a fugir-lhe e começava a perder a esperança de poder
conservá-la. Por isso, agarrou-se-lhe com unhas e dentes.
- Claro que quero, com certeza ! - declarou.
- Concordas - continuou Clopin - em te alistar entre a gente da
" Pequena Flâmula"27?
- Da "Pequena Flâmula"? Precisamente ! - respondeu Gringoire.
- Reconheces-te membro da franca-burguesia? - prosseguiu o rei
de Tunes.
- Da franca-burguesia.
- Súbdito do reino do calão?
- Do reino do calão.
- Mendigo profissional?
- Mendigo profissional .
- Do fundo da alma?
- Do fundo da alma.
- Observo-te - prosseguiu o rei - que não é por isso que deixarás
de ser enforcado.
- Diabo! - exclamou o poeta.
- Só com a diferença - continuou imperturbavelmente Clopin - de
que serás enforcado mais tarde, com maior cerimonial, por conta da
boa cidade de Paris, numa bonita forca de pedra e por pessoas hones­
tas, o que é uma consolação.
- Dizeis muito bem - assentiu Gringoire.
- Há outras vantagens. Na qualidade de franco-burguês, não terás
de pagar as custas, nem os pobres, nem as lanternas, como sucede aos
burgueses de Paris.

27 Quadrilha de gatunos daquele tempo.

120
- Seja assim - aquiesceu o poeta. - Anuo. Sou mendigo profissio­
nal, pertenço ao calão, sou franco-burguês, sou da " Pequena Flâmula",
estou por tudo o que quiserdes. Tudo isso j á eu era antes, Sr. Rei de
Tunes, pois sou filósofo, et omnia in philosophia, omnes in philosopho
continentur26, como sabeis.
O rei de Tunes franziu a testa.
- Por quem me tomas, ó amigo? Que gíria de j udeu húngaro me
estás para aí a cantar? Não sei hebreu. Para ser bandido não se precisa
de ser j udeu. Nem sequer já roubo. Estou acima dessas coisas: mato.
Abrir goelas, sim; abrir bolsas é que não !
Entre aquelas breves palavras que a cólera sacudia cada vez mais
Gringoire procurou introduzir algumas desculpas.
- Peço-vos, perdão, monsenhor. Não é língua hebraica, é latim.
- Já te disse - continuou o arrebatado Clopin - que não sou j udeu e
que te mando enforcar, meu barriga de sinagoga ! Assim como a esse
regateirozito da Judeia aí à tua beira e que espero ainda ver um dia
pregado em cima dum balcão, como à moeda falsa que é!
Enquanto isto dizia, apontava com o dedo o j udeuzinho húngaro,
barbudo, que abordara Gringoire com o seu facitote caritatem e que,
como não compreendia outra língua, via, admirado, o mau humor do
rei de Tunes extravasar para cima dele.
Monsenhor Clopin acabou por serenar.
- Velhaco - disse para o nosso poeta -, queres então o ofício de
mendigo?
- Sem dúvida - respondeu o vate.
- Não é só dizer que queres - insistiu o casmurro do Clopin. - Não é
com boa vontade que se acrescenta mais uma cebola só que seja à sopa,
pois apenas serve para ganhar o paraíso. Ora paraíso é uma coisa e
calão é outra. Para ser aceite no calão é preciso demonstrares que pres­
tas para alguma coisa e, para isso, deves passar revista ao manequim.
- Passarei revista a tudo o que quiserem - prometeu Gringoire.
Clopin fez um sinal. Alguns dos súbditos do calão saíram do círculo
e regressaram dali a momentos. Transportavam dois postes que na
extremidade inferior terminavam por duas espátulas de madeira, por

28
Todas as coisas se encontram na filosofia, assim como todos os homens se
encontram no filósofo.

12 1
meio das quais facilmente assentavam no chão. Na extremidade supe­
rior dos dois postes colocaram uma viga transversal, formando todo o
conj unto uma lindíssima forca portátil e que Gringoire teve a satisfação
de ver erguer-se na sua frente, num abrir e fechar de olhos. Nada ali
faltava, nem sequer a corda que graciosamente oscilava por baixo da
travessa horizontal.
"Aonde quererão eles chegar?", perguntou Gringoire para consigo,
com certo receio.
Um rumor de campainhas, que se ouviu ao mesmo tempo, pôs-lhe
termo à ansiedade. Era um manequim que os mendigos penduraram
pelo pescoço à corda, uma espécie de espantalho de pardais, vestido
de encarnado e carregado com tantos guizos e campainhas, que che­
gariam para arrear trinta mulas castelhanas. Estes mil chocalhos vibra­
ram durante algum tempo com as oscilações da corda, depois foram-se
calando a pouco e pouco e só pararam quando o manequim foi recon­
duzido à imobilidade por essa lei do pêndulo que destronou a clepsidra
e a ampulheta.
Clopin indicou então a Gringoire um velho escabelo trémulo, colo­
cado por baixo do manequim.
- Trepa para ali !
- Diabo ! - obj etou Gringoire. - Vou partir a cabeça ! O vosso escabelo
manqueja como um dístico de Marcial ; tem um pé hexâmetro e um pé
pentâmetro.
- Trepa - repetiu Clopin.
Gringoire subiu para o mocho e conseguiu, não sem oscilações da
cabeça e dos braços, encontrar o seu centro de gravidade.
- Agora - prosseguiu o rei de Tunes - passa o pé direito por detrás
da perna esquerda e equilibra-te na ponta do pé esquerdo.
- Monsenhor - observou Gringoire -, estais absolutamente empe­
nhado em que eu parta um braço ou uma perna?
Clopin abanou a cabeça.
- Ouve, amigo, falas de mais! Eis em duas palavras do que se trata:
levantas-te, como te digo, na ponta do pé e assim chegarás à algibeira
do boneco. Procuras o que lá tiver dentro. Tirarás uma bolsa que ali se
encontra. Se executares a manobra toda sem que se oiça o tinir duma
campainha, bem está e empregar-te-ás como mendigo. Só nos restará
então moer-te de pancada durante oito dias.

122
- Safa ! - exclamou Gringoire. - Terei cautela. E se faço cantar as
campainhas?
- Nesse caso, enforcam-te. Percebes?
- Não percebo mesmo nada - redarguiu Gringoire.
- Ouve mais uma vez: vais passar revista ao manequim e palmar-lhe
a bolsa. Se se ouvir, durante a operação, uma campainha só que seja,
serás enforcado. Compreendes isto?
- Bem - concordou Gringoire -, isso compreendo. E depois?
- Se conseguires tirar a bolsa sem que se oiçam os guizos, ficas
mendigo e serás espancado durante oito dias consecutivos. Agora, com
certeza, compreendes.
- Não, monsenhor, continuo a não compreender absolutamente
nada ! Onde está então a vantagem? Numa das alternativas enfor­
cam-me; na outra, zurzem-me.
- E ser mendigo? - exclamou Clopin. - E ser mendigo? Não vale
nada? É para teu bem que te sovamos, para te enrij ar o corpo.
- Não está mau favor. . . - comentou o poeta.
- Bem, despachemo-nos - determinou o rei, batendo com o pé no
barril que ressoou como um bombo. - Passa revista ao manequim e
acabemos com isto. Pela última vez te previno de que, se ouvir um
guizo só que seja, ocuparás o lugar do boneco.
O bando do calão aplaudiu as palavras de Clopin; dispuseram-se
em círculo em volta da forca, rindo tão impiedosamente, que Gringoire
percebeu que os divertia o suficiente para ter tudo a recear deles. Não
lhe ficava pois mais nenhuma esperança senão a débil probabilidade
de se sair bem na temível operação que lhe impunham. Decidiu cor­
rer-lhe o risco, mas não sem dirigir primeiro uma fervorosa oração ao
manequim que ia roubar e que seria mais fácil de enternecer do que os
vagabundos. Aquela miríade de campainhas, com as suas linguazitas
de cobre, pareciam-lhe outras tantas goelas de áspides escancaradas e
prontas a morder e a sibilar.
Muito baixinho, comentou:
- Como é possível que a minha vida dependa da mínima vibração
do menor destes guizos! - Implorou de mãos postas: - Campainhas,
não badaleis! Guizos, não guizalheis!
Procurou ainda obj etar a Trouillefou , num esforço mais.
- E se se levanta um pé de vento?

123
- Serás enforcado - respondeu o outro, sem hesitação.
Vendo que não havia nem moratórias nem dilações, nem subterfú­
gios possíveis, tomou corajosamente o seu partido: traçou o pé direito
por detrás do pé esquerdo, empoleirou-se no pé esquerdo e esticou
o braço. Contudo, no momento em que tocava no manequim, o seu
corpo, equilibrado apenas num pé, oscilou no escabelo, que não se
equilibrava senão em três. Maquinalmente, quis-se apoiar ao mane­
quim, perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente no chão, ensurdecido
pela vibração fatal das mil campainhas do espantalho, o qual, cedendo
ao impulso da mão, rodou sobre si mesmo, ficando depois a baloiçar
maj estosamente entre os dois postes.
- Maldição ! - gritou o poeta ao cair, ficando como morto, de cara
virada para o solo.
Ouviu ao mesmo tempo o temível carrilhão por cima da sua cabeça,
as gargalhadas diabólicas dos vagabundos e a voz de Trouillefou a
ordenar:
- Levantem-me esse patife, e enforquem-no sem contemplações!
O poeta pôs-se em pé. Já tinham desprendido o manequim para que
lhe cedesse o lugar.
Os do calão fizeram-no subir para o escabelo. Clopin aproximou-se,
passou-lhe a corda ao pescoço, bateu-lhe no ombro e despediu-se:
- Adeus, amigo! Agora j á não te podes livrar, mesmo que digerisses
as tripas do Papa.
Nos lábios de Gringoire expirou a palavra misericórdia. Passeou a
vista em redor, mas nenhuma esperança o animou: toda a gente ria.
- Bellevigne da Estrela - disse o rei de Tunes para um gigantesco
vagabundo que se adiantou das fileiras -, marinha para cima da trave.
Bellevigne da Estrela subiu agilmente para a viga transversal e, dali
a instantes, Gringoire, erguendo os olhos com terror, viu-o acocorado
no alto do madeiro e por cima da sua cabeça.
- Agora - continuou Clopin Trouillefou -, quando eu bater as pal­
mas, tu, André Vermelho, ferras uma joelhada no escabelo. Tu, Francisco
Chante-Prune, penduras-te nos pés do bandalho e tu, Bellevigne, atiras-te
para cima dos seus ombros. Todos os três ao mesmo tempo, ouviram?
Gringoire estremeceu.
- Estais prontos? - perguntou Clopin aos três bandidos, prestes a
atirarem-se a Gringoire como três aranhas a uma mosca.

124
O pobre condenado sofreu um momento de horrível expectativa
enquanto Clopin impelia tranquilamente para o lume, com a ponta do
pé, algumas hastes de vidonho que a chama não atingira.
- Estais prontos? - repetiu , abrindo as mãos para bater as palmas.
Um segundo mais e estaria tudo acabado.
Deteve-se, porém, como se lhe ocorresse de repente uma ideia.
- Um momento ! . . . j á me esquecia. É da praxe que não se enfor­
que um sujeito sem se perguntar se há alguma mulher que o queira.
Camarada, é o teu último recurso. Tens que te casar ou com uma vaga­
bunda ou com a corda.
Por muito extravagante que esta lei cigana possa parecer ao leitor,
ainda hoj e ela continua minuciosamente escrita na velha legislação
inglesa. Vide Burington's Observations.
Gringoire respirou. No espaço de meia hora, era a segunda vez
que voltava à vida. Contudo, não se atrevia já a alimentar grandes
esperanças.
- Olá! - gritou Clopin outra vez, do alto do barril. - Olá! Mulheres,
fêmeas, há entre vocês, desde a feiticeira à gata, alguma brej eira que
queira este brej eiro? Eh lá, N icolina Devassa ! Isabel Trouvain ! Simone
Jodouyne! Maria Pé de Bode! Eh, Thonne " Comprida"! Eh, Bérarde
Fanouel ! Micaela Genaille ! Cláudia " Rói a Orelha" ! Mathurine Girorou!
Olá, Isabel Thierrye ! Venham ver. Um homem de borla! Quem é que o
quer?
No estado em que se encontrava, Gringoire era decerto pouco de
apetecer. As megeras mostravam-se mediocremente impressionadas
com a proposta. O desgraçado ouviu-as responder:
- Não, não! Enforquem-no. Assim gozaremos todas.
Houve, no entanto, três que saíram do magote para o irem farej ar.
A primeira era uma rapariga gorda, de cara quadrada. Examinou aten­
tamente o deplorável gibão do filósofo. A veste estava no fio e mais
esburacada do que um assador de castanhas. A rapariga torceu o nariz
e resmungou para Gringoire:
- Trapagem velha. Mostra a capa.
- Perdi-a - explicou Gringoire.
- O teu chapéu?
- Tiraram-mo.
- Os teus sapatos?

125
- Começam a largar as solas.
- A tua bolsa?
- Infelizmente - gaguej ou Gringoire -, não possuo nem um dinheiro
parísio.
- Então deixa-te enforcar. É até caso para lhes agradeceres! - rema­
tou a mendiga, voltando-lhe as costas.
A segunda, velha, negra, hedionda, de uma fealdade de envergo­
nhar o Pátio dos Milagres, andou à roda de Gringoire que quase tremia
com receio de que ela o quisesse . Mas a megera resmungou entre den­
tes, antes de se afastar:
- É um trinca-espinhas.
A terceira era uma rapariga bastante fresca e não muito feia.
O pobre-diabo implorou-lhe em voz baixa:
- Salvai-me!
A moça olhou-o por momentos com compaixão, depois baixou os
olhos, começou a fazer pregas na saia e permaneceu indecisa. Gringoire
seguia-lhe com a vista todos os movimentos. Era o derradeiro lampejo
de esperança.
- Não - disse, por fim, a mulher. - Nada, senão o Guilherme " Cara
Longa" espancava-me.
- Camarada - disse Clopin -, andas em maré de azar.
Pôs-se então de pé em cima do barril e gritou, imitando com grande
gáudio de todos o sotaque de um meirinho de leilões:
- Ninguém o quer? Ninguém o quer? Dou uma, dou duas, dou três!
- Voltou-se a seguir para a forca e , com um meneio de cabeça, con-
cluiu: - Arrematado !
Bellevigne da Estrela, André Vermelho e Francisco Chante-Prune
tornaram a aproximar-se de Gringoire.
Nesse momento, ouviu-se um grito entre a malta.
- La Esmeralda! La Esmeralda!
Gringoire estremeceu e virou-se para o lado de onde partira o cla­
mor. A multidão abriu alas e deu passagem a uma pura e deslumbrante
rapariga.
Era a cigana.
- A Esmeralda! - repetiu Gringoire, estupefacto, no meio da sua
perturbação, com a forma repentina como essa palavra mágica ligava
todas as recordações daquele dia.

126
Dir-se-ia que aquela invulgar criatura até no Pátio dos M ilagres
exercia o seu domínio de encanto e de beleza. Homens e mulheres
alinhavam-se docilmente para ela passar e os seus semblantes brutais
iluminavam-se quando os olhava.
Com o seu passinho ligeiro, aproximou-se do condenado. Seguia-a
a linda Djali. Gringoire estava mais morto do que vivo. A cigana obser­
vou-o silenciosamente durante instantes e perguntou, muito séria, a
Clopin:
- Ides enforcar este homem?
- Sim, irmã - respondeu o rei de Tunes. - A não ser que o aceites
por marido.
Ela esboçou o tal beicinho com o lábio inferior e respondeu:
- Aceito.
Gringoire nesta altura convenceu-se firmemente de que desde pela
manhã não fizera outra coisa senão sonhar e que aquilo era ainda a
continuação.
Realmente, a peripécia, apesar de graciosa, era de força.
Alargaram o nó corredio e fizeram descer do escabelo o condenado.
O poeta teve de se sentar, tão forte comoção o perturbava.
Sem dizer coisa alguma, o duque do Egito apareceu com uma bilha
de barro. A boémia apresentou-a a Gringoire e disse-lhe:
- Atira-a ao chão.
A bilha partiu-se em quatro.
- I rmão - disse então o duque do Egito, colocando-lhe as mãos na
testa -, ela é tua mulher; irmã, ele é teu marido. Por quatro anos. Ide.

127
VII

Uma noite de núpcias

Ao cabo de poucos momentos, encontrou-se o nosso poeta num


quartito de abóbada em ogiva, bem fechado, bem quente, e sentado
diante duma mesa que não parecia desejar outra coisa senão utilizar-se
um pouco de um guarda-comidas pendurado ali ao lado, e com uma
boa cama em perspetiva e uma bonita rapariga por companhia. A aven­
tura continha qualquer coisa de encantamento. O poeta começava a
tomar-se a sério por uma personagem de conto de fadas; volta e meia
deitava uma olhadela à roda, como a ver se ainda ali estaria o carro de
fogo, atrelado a duas quimeras aladas, único transporte possível para
tão rapidamente passar do Tártaro ao Paraíso.
Também olhou por instantes, penetrantemente, para os buracos do
seu gibão, a fim de se agarrar à realidade e de não perder de todo o pé.
Porque a sua razão, sacudida nos espaços imaginários, só se mantinha
presa por esse fio.
A rapariga não parecia ligar-lhe qualquer espécie de atenção; ia,
vinha, desarrumava um escabelo, conversava com a cabra e, de vez em
quando, fazia o tal trejeitozinho. Acabou por se sentar j unto da mesa e
Gringoire pôde examiná-la à vontade.
O leitor foi criança e talvez seja ainda suficientemente venturoso
para o continuar a ser. Decerto mais de uma vez (e, pela parte que me
toca, levei nisso dias inteiros, os mais bem empregados da minha vida)
perseguistes, de sarça em sarça, pela margem de um curso de água e
num dia de sol, alguma formosa libélula, verde ou azul, quebrando o
voo em ângulos súbitos e beijando as extremidades de todos os ramos.
Lembrai-vos com que amorosa curiosidade o pensamento e o olhar se

128
vos prendiam a esse turbilhão sibilante e zumbidor, de asas de púrpura
e anil, no meio do qual flutuava uma forma inacessível, velada pela
própria rapidez do movimento. O ser aéreo que confusamente se dese­
nhava por entre este frémito de asas parecia-vos quimérico, imaginário,
impossível de tocar, impossível de ver. Quando, porém, a libélula des­
cansava na ponta dum caniço, permitindo-vos observar, de respiração
suspensa, as longas asas de gaze, o comprido vestido de esmalte, os
dois globos de cristal, que surpresa vos causava e que receio vos incutia
o verdes outra vez aquela forma sumir-se na sombra e aquele ente evo­
lar-se em quimera ! Recordai-vos destas impressões e formareis facil­
mente uma ideia daquilo que Gringoire experimentou ao contemplar,
sob a sua forma visível e palpável, aquela Esmeralda que, até então, só
entrevira através de um turbilhão de dança, de canto e de tumulto.
Cada vez mais imerso na meditação, dizia para consigo, enquanto
vagamente a seguia com a vista:
"Aqui está, então, o que é La Esmeralda! Uma criatura celestial! Uma
bailarina das ruas! Tanto e tão pouco ! Aquela que despediu o golpe de
misericórdia no meu mistério desta manhã e que me salvou a vida esta
noite ! O meu mau génio ! O meu anj o bom ! Uma linda mulher, à fé de
quem sou ! E que deve querer-me até à loucura para me aceitar desta
maneira ! "
- A propósito - disse, levantando-se d e repente e com esse senti­
mento de sinceridade, base de todo o seu caráter e de toda a sua filo­
sofia. - Não sei bem ao certo como isso sucedeu, mas a verdade é que
sou VOSSO marido !
Com esta ideia n a cabeça e nos olhos, aproximou-se d a pequena
com uns modos ao mesmo tempo tão marciais e galantes, que aquela
recuou e disse:
- Que pretendeis então de mim?
- Podeis perguntar-mo, adorável Esmeralda? - proferiu Gringoire,
com tão apaixonada inflexão, que até se admirou de si próprio.
A cigana abriu os olhos enormes e exclamou:
- Não sei o que quereis dizer!
- Mas quê! - estranhou o poeta, cada vez mais admirado e pensando
que, afinal, não estava a contas com mais nada senão com uma virtude
do Pátio dos M ilagres. - Não sou teu, minha doce amiga? Não és minha?
E, com a maior das simplicidades, agarrou-a pela cintura.

129
O corpete da boémia escorregou-lhe por entre as mãos como se
fosse a pele duma enguia. De um salto, aquela pulou para a outra
extremidade do cubículo, baixou-se e, quando se levantou, empunhava
um pequeno punhal, sem que Gringoire tivesse ao menos tempo para
ver de onde saíra aquela arma; irritada, orgulhosa e de lábios inchados,
as narinas palpitantes e as faces vermelhas como uma maçã-camoesa.
Simultaneamente com a dona, a cabrinha branca postou-se diante dela
e, apresentou a Gringoire uma frente de batalha eriçada com dois chi­
fres bonitos, dourados e bastante aguçados. Tudo isto se passou num
abrir e fechar de olhos.
A libélula transformara-se em vespa e não pretendia outra coisa
senão picar.
O nosso filósofo ficou assarapantado, olhando surpreendido ora
para a cabra , ora para a dona.
Finalmente, quando o espanto o deixou articular algumas palavras,
exclamou:
- Virgem Santa, que duas valentonas estas!
Por sua vez, a boémia quebrou o silêncio em que até então se con­
servara e comentou:
- Sempre é preciso que sejas um velhaco muito atrevido ! . . .
- Perdão, menina - observou-lhe Gringoire, sorrindo. - Porque me
aceitou então para seu marido?
- Devia então deixar-te enforcar?
- Nesse caso - disse o poeta, um tanto descoroçoado nas suas espe-
ranças amorosas -, quando vos casastes comigo não vos animou outro
propósito senão o de me salvardes da forca?
- Que outra ideia querias que eu tivesse?
Gringoire mordeu os lábios e respondeu:
- Bem . . . o meu triunfo como Cupido não foi tão grande como ima­
ginava . . . Para que valeu então a pena quebrar-se aquela pobre bilha?
Entretanto, tanto o punhal de Esmeralda como os chavelhos da
cabra continuavam na defensiva.
- Menina Esmeralda - propôs o poeta -, capitulemos. Não sou aj u­
dante de escrivão no Châtelet e não vos querelarei por usardes assim
em Paris uma adaga nas barbas dos éditos e proibições do senhor pre­
boste. Não ignorais, mesmo assim, que há oito dias condenaram Noel
Lescripvain em dez soldos parísios por andar com um chifarote. Não

130
tenho, porém, nada com isso e passo ao que interessa. Juro-vos, sobre
a minha parcela no Paraíso, que não me aproximarei de vós sem vossa
licença e permissão. Mas dai-me de cear!
No fundo, Gringoire era, como o Sr. Despréaux, "muito pouco
voluptuoso". Não pertencia a essa espécie cavalheiresca e mosqueteira
que toma as meninas de assalto. Em questões de amor, como noutro
qualquer capítulo, optava, de bom grado, pelas temporizações e pelos
meios-termos, e uma boa ceia em amável companhia parecia-lhe, prin­
cipalmente quando tinha fome, intervalo excelente entre o prólogo e o
desfecho duma aventura de amor.
A egípcia não lhe deu resposta. Esboçou o seu beicinho desdenhoso,
espetou a cabeça como um pássaro, depois desatou a rir, e o punhal
minúsculo desapareceu como surgira sem que Gringoire pudesse ver
onde a abelha escondia o ferrão.
Dali a momentos havia na mesa um pão de centeio, um naco de tou­
cinho, algumas enrugadas batatas e uma caneca de cerveja. Gringoire
começou sofregamente a comer. Quem lhe ouvisse o furioso tilintar do
garfo no prato de louça diria que todo o seu amor se transformara em
apetite.
Sentada na sua frente, a rapariga observava-o, silenciosa, preocu­
pada evidentemente com outra coisa que de vez em quando lhe provo­
cava um sorriso. Ao mesmo tempo afagava, com mão terna, a cabeça
inteligente da cabra, indolentemente apertada entre os seus j oelhos.
Uma vela de cera amarela iluminava esta cena de voracidade e de
meditação.
Todavia, acalmados os primeiros balidos do estômago, Gringoire
sentiu uma espécie de falsa vergonha ao reparar que não deixara mais
do que uma batata.
- Não comeis, menina Esmeralda?
A rapariga respondeu-lhe com um meneio negativo de cabeça e o
olhar pensativo concentrou-se na abóbada da cela .
" Em que diabo estará a pensar?", disse Gringoire para consigo,
levantando os olhos para o mesmo ponto que ela fitava. "É impossível
que sej a a carantonha daquele anão de pedra, esculpida na chave da
abóbada, que lhe absorve desta maneira a atenção. Que diabo ! Posso
sair-me bem do confronto ! "
Ergueu a voz:

131
- Menina !
Pareceu não o ouvir.
Repetiu ainda mais alto:
- Menina Esmeralda !
Trabalho baldado. A rapariga andava com o espírito por muito longe
dali e não era a voz de Gringoire que possuía força para o chamar.
Felizmente, a cabra meteu-se no assunto. Começou a puxar brandamente
pela manga da dona, a qual, como despertada em sobressalto, exclamou:
- Que queres, Djali?
- Tem fome - sugeriu Gringoire, encantado por meter conversa .
A Esmeralda começou a desfazer pão em migalhas e Djali a
comer-lho, com toda a graciosidade, na palma da mão.
Para mais, Gringoire não deu tempo a que a rapariga voltasse à
meditação, pois atreveu-se a dirigir-lhe uma pergunta delicada:
- Não me quereis então para marido?
A j ovem olhou-o fixamente e respondeu:
- Não.
- Nem para vosso amante?
Ela fez o beicinho e retorquiu:
- Não.
- Nem para vosso amigo? - continuou Gringoire.
A cigana olhou-o mais uma vez fixamente e, após um instante de
reflexão, redarguiu:
- Talvez.
Este talvez, tão querido do filósofo, tornou Gringoire mais ousado
para perguntar:
- Sabeis o que é a amizade?
- Sei - respondeu a egípcia . - É ser irmão e irmã; duas almas que se
tocam sem se confundirem; os dois dedos da mão.
- E o amor? - prosseguiu Gringoire.
- Oh ! o amor! - proferiu ela, em voz trémula e olhar radioso. -
É serem dois e não ser senão um. Um homem e uma mulher que se
fundem num anjo. É o céu.
Ao falar assim, a bailarina das ruas resplandecia numa formosura
que impressionava estranhamente Gringoire, o qual a achava inteira­
mente conforme a exaltação quase oriental das suas palavras. Aqueles
lábios rosados e puros abriam-se num leve sorriso; a fronte cândida e

132
serena ficara perturbada durante instantes com os pensamentos, tal um
espelho embaciado pelo hálito, e das longas pestanas meio fechadas
evolou-se uma espécie de inefável luminosidade que lhe imprimia ao
perfil essa doçura ideal que Rafael depois encontrou no ponto de inter­
seção mística da virgindade, da maternidade e da divindade.
Gringoire nem por isso se deteve:
- Que é preciso ser então para vos agradar?
- Ser homem.
- E que sou, pois? - estranhou o poeta.
- Um homem usa capacete na cabeça , espada em punho e esporas
de ouro nos tacões.
- Bem - filosofou Gringoire -, sem cavalo não temos homem . . .
Amais alguém?
- Com amor?
- Com amor.
Ficou pensativa por instantes e respondeu depois, numa inflexão
especial:
- Em breve o saberei.
- Porque não já esta noite? - insistiu ternamente o poeta. - Porque
não hei de ser eu?
A j ovem deitou-lhe uma olhadela grave e respondeu:
- Só poderei amar o homem que consiga proteger-me.
Gringoire corou e ficou-se por ali. Evidentemente, a pequena alu­
dia ao escasso apoio que lhe dispensara na crítica situação em que a
rapariga se vira duas horas antes. O poeta voltou a recordar-se desse
incidente, obliterado pelas outras aventuras da noite, e bateu na testa:
- A propósito, menina: eu deveria ter começado por aí. Perdoai as
minhas desatinadas distrações. Como conseguistes escapar às garras
de Quasímodo?
Esta pergunta fez estremecer a boémia que escondeu o rosto entre
as mãos e, tiritando como se sentisse intenso frio, exclamou:
- Que horrendo corcunda !
- Horrendo, realmente - assentiu Gringoire, ainda apegado à sua
ideia. - Como conseguistes, porém, escapar-lhe?
Esmeralda sorriu-se, suspirou e ficou calada.
- Sabeis porque vos seguiu? - continuou Gringoire, procurando vol­
tar à pergunta por portas travessas.

133
- Não sei - respondeu a j ovem, aj untando, porém, com vivacidade:
- E vós também porque me seguistes?
- Para vos falar com franqueza, também não sei - respondeu
Gringoire.
Estabeleceu-se uma pausa. Gringoire golpeava a mesa com a faca.
A pequena sorria e parecia fixar qualquer coisa para lá da parede.
De repente, começou a cantar numa voz apenas articulada:

Quando las pintadas aves


Mudas estan, y la tierra . . .

Calou-se de repente e pôs-se a afagar Djali. Gringoire comentou:


- Tendes aí um lindo animal .
- É minha irmã - respondeu a cigana.
- Porque vos chamam La Esmeralda ? - inquiriu o poeta.
- Não sei.
- Nem calculais?
Ela tirou do seio uma espécie de saquinho oblongo, preso ao pes­
coço por uma cadeia de grãos de adrézarach, saquinho esse que exa­
lava penetrante cheiro a cânfora. Cobria-o uma seda verde e tinha ao
centro um grosso vidro verde imitando uma esmeralda,
- É talvez por causa disto - explicou a rapariga.
Gringoire quis pegar no saquinho, mas ela recuou.
- Não lhe toques! É um amuleto. Farias mal ao feitiço ou o feitiço
a ti.
O poeta cada vez ardia mais em curiosidade.
- Quem vo-lo deu?
A jovem levou um dedo aos lábios e escondeu o amuleto no seio.
O poeta tentou outras perguntas, mas ela mal lhe deu resposta.
- Que quer dizer essa palavra La Esmeralda?
- Não sei - respondeu a rapariga.
- A que língua pertence?
- Julgo que à egípcia29.

29 É tempo de reco rdar que não só na Paris quatrocentista designavam os ciga­


nos por egípcios, como também tal qualificação se introduziu na Inglaterra. Aliás,
o gypsy e o gitano não provirão de uns possíveis *egypsy* e egitano? Em Portugal
também assim se designaram esses pouco simpáticos nómadas. Brás Luís de Abreu,

134
- Bem me queria parecer - acentuou Gringoire. - Não sois da França?
- Não faço ideia.
- Tendes ainda os vossos pais?
Ela pôs-se a cantar uma velha melodia:

Meu pai é pássaro,


Minha mãe é ave,
Atravesso a água sem barquinha,
Atravesso a água sem batel.
Minha mãe é ave,
Meu pai é pássaro.

- Está bem - disse Gringoire. - Com que idade viestes para a França?
- Muito pequena.
- E para Paris?
- O ano passado. Na ocasião em que entrávamos pela Porta Papal
vi abalar no céu a toutinegra dos canaviais; era pelos fins de agosto.
Tanto que disse: "O inverno vai ser áspero".
- Se foi ! - concordou Gringoire, encantado por a conversa começar
tão auspiciosa. - Levei-o a soprar nos dedos. Dispondes assim do dom
da profecia?
A j ovem recaiu no laconismo.
- Não.
- O chefe da vossa tribo é esse a quem tratais por duque do Egito?
-
É .

- Pelo menos, foi quem nos casou - lembrou timidamente o poeta.


Com o lindo esgar do costume a j ovem proferiu:
- Nem sequer sei o teu nome !

o "Olho de Vidro", de Camilo, escreveu no século XVI I I no seu Portugal Médico que
" . . . peca mortalmente aquele que oferecer a mão a uma cigana ou egípcia . . . " . O pró­
prio termo mais vulgarizado de "cigano", que segundo uns vem do russo tzigaene,
para outros proveio do latino aegyptianu, onde é transparente a alusão a "egípcia",
decerto porque os antigos os supunham dessa raça . " Boémios'', como igualmente
lhes chama o Autor, é também outro sinónimo português. O facto de Victor Hugo nos
apresentar a sua " Esmeralda" com um nome e cantares espanhóis apenas sugere
a hipótese não controversa de os ciganos, que vagueavam pela Paris do tempo da
dona de Dj ali, provirem de aquém-Pirenéus, mesmo que nem Gringoire nem a pró­
pria Esmeralda conhecessem a língua castelhana, o que também não é de estranhar.

135
- O meu nome? Se o quereis saber, ei-lo: Pedro Gringoire.
- Conheço um mais bonito - redarguiu ela.
- Má! - exclamou o poeta. - Não faz mal, não me fazeis zangar.
Escuta i ! Talvez gosteis mais de mim quando me conhecerdes melhor.
Além disso, contastes-me a vossa história com tanta confiança, que
devo-vos de algum modo a minha. Sabei então que me chamo Pedro
Gringoire e que sou filho do rendeiro do tabelionado de Gonesse.
Os Borgonheses enforcaram meu pai e os Picardos estriparam minha
mãe, quando do cerco de Paris, há quatro lustros. Assim, fiquei órfão
aos seis anos e sem outra sola nos pés que não fosse o pavimento de
Paris. Nem sei como transpus a distância dos seis aos dezasseis anos.
Ou era uma vendedeira de fruta que me dava uma ameixa, ou era um
padeiro que me atirava uma côdea, e à noite fazia com que os guardas
me apanhassem e metessem no calabouço, onde sempre encontrava
um feixe de palha. Isto tudo não me impediu de crescer e de ema­
grecer, como estais vendo. De inverno, aquecia-me ao sol no portal
do Palácio de Sens, achando muito disparatado que reservassem para
a canícula as fogueiras de S. João. Aos dezasseis anos quis arranjar
emprego. Tentei, sucessivamente, tudo. Fiz-me soldado, mas não era
suficientemente coraj oso. Fiz-me frade, mas não era suficientemente
devoto. Além disso, aguento mal a bebida. Desesperado, entrei como
aprendiz de carpinteiro de machado, mas não era suficientemente
robusto. Tinha mais propensão para mestre-escola; é certo que não
sabia ler, mas isso não é razão. Ao cabo de algum tempo percebi que,
fosse para o que fosse, me faltava qualquer coisa e, assim, reconhe­
cendo que não prestava para nada, tornei-me, por minha alta recrea­
ção, poeta e compositor de ritmos. Uma situação a toda a hora ao nosso
alcance quando se é vagabundo e que sempre é melhor do que rou­
bar, como me aconselhavam alguns j ovens ratoneiros meus amigos.
Felizmente, um belo dia, encontrei D. Cláudio Frollo, o reverendo arce­
diago de Nossa Senhora. Interessou-se por mim e a ele devo o facto
de hoj e ser um verdadeiro letrado, sabendo o latim desde os Ofícios de
Cícero até o Mortuológio dos padres celestinos, não sendo leigo nem em
escolástica, nem em poética, nem em rítmica, nem mesmo em hermé­
tica, essa ciência das ciências. Sou eu o autor do mistério que hoj e se
representou, com grande triunfo e grande concurso de povo, em plena
sala grande do palácio. Fiz também um livro, que atingirá seiscentas

136
páginas, acerca do prodigioso cometa de 1465, que fez enlouquecer
um homem. Obtive ainda outros êxitos. Sendo de certo modo mesteiral
de artilharia, trabalhei na grande bombarda de João Maugue, a qual,
como sabeis, rebentou na Ponte de Charenton no dia em que a expe­
rimentavam e matou vinte e quatro basbaques. Vede, pois, que não
sou de todo um mau partido para casamento. Tenho algumas ideias
para umas habilidades muitíssimo engraçadas e que ensinarei à vossa
cabra, como, por exemplo, imitar o bispo de Paris, esse maldito fari­
seu que, de um extremo a outro da Ponte dos Moleiros, encharca os
transeuntes com os seus moinhos. Depois, o meu mistério render-me-á
bom dinheiro em metal sonante, se mo pagarem. Em suma, coloco
ao vosso dispor a minha pessoa, o meu espírito, a minha ciência e as
minhas letras, pronto a viver convosco, donzela, como vos aprouver;
casta ou j ovialmente; como marido e mulher, se achardes bem; como
irmão e irmã, se achardes melhor.
Gringoire calou-se à espera do efeito causado na rapariga pela sua
arenga, mas aquela mantinha os olhos fixos no chão.
- Phoebus proferiu ela, a meia voz. Voltou-se depois para o poeta
-

e perguntou-lhe: - Que quer dizer Phoebus?


Gringoire, sem perceber bem que relação existiria entre a sua alocu­
ção e a pergunta, não desgostou contudo de fazer brilhar a sua erudi­
ção. Com ares de grande importância explicou:
- É uma palavra latina que significa Sol.
- Sol ! - repetiu a j ovem.
- É o nome dum formosíssimo archeiro que foi deus - acrescentou
Gringoire.
- Deus! - repetiu a egípcia.
Havia na sua acentuação qualquer coisa de pensativo e de apaixo­
nado.
Nessa altura, uma das suas pulseiras soltou-se e caiu. Gringoire
abaixou-se, pressuroso, para a apanhar. Quando se levantou, a rapa­
riga e a cabra tinham desaparecido. Ouviu o correr dum ferrolho. Era
decerto uma portinha que dava para outra sala contígua e que se
fechava pelo lado de fora.
- Deixar-me-ia ao menos uma cama? - monologou o nosso filósofo.
Deu a volta à cela. Não havia ali nenhum móvel propício ao sono,
senão uma comprida arca de madeira e ainda por cima com a tampa

137
lavrada, o que provocou em Gringoire, quando nela se estendeu, sensa­
ção mais ou menos parecida à que experimentaria Micrómegas quando
se deitou ao comprido nos Alpes.
- Vamos - murmurou, acomodando-se o melhor que pôde - tenha­
mos paciência. Ora aqui está uma bem estranha noite de núpcias!
É pena . . . Havia neste casamento de bilha quebrada qualquer coisa de
ingénuo e de antediluviano que me agradava.

138
LIVRO TERCEIRO

Nossa Senhora

A igreja de Nossa Senhora de Paris é decerto ainda um majestoso


e sublime edifício. Contudo, por muito formosa que se tenha mantido
ao envelhecer, a custo se contém um suspiro e não nos indignamos
perante as degradações, as inúmeras mutilações que simultaneamente
o tempo e os homens causaram ao venerável monumento, sem res­
peitarem Carlos Magno, que assentou a primeira pedra, nem Filipe
Augusto, que colocou a última.
No rosto desta idosa rainha das nossas catedrais, ao lado duma ruga
depara-se-nos sempre uma cicatriz. Tempus edax, homo edacior3°, o que
de bom grado assim traduziria: O tempo é cego, o homem é estúpido.
Se dispuséssemos de vagar para examinar um a um os vários ves­
tígios de destruição impressos na velha igreja, a responsabilidade do
tempo aparecer-nos-ia minorada, a pior parte caberia aos homens, em
especial aos homens de a rte, visto ter havido indivíduos que, nos últi­
mos dois séculos, se arvoraram em arquitetos.
De entrada, para citar apenas alguns exemplos capitais, com cer­
teza pouco mais belas páginas arquitetónicas existem semelhantes
a esta fachada onde, sucessiva e simultaneamente, à nossa vista se
desenvolvem em profusão e sem desordem, com os seus inúmeros
pormenores de estatuária, de escultura e de cinzelamento, reunidos
poderosamente à tranquila grandiosidade do conj unto, os três por­
tais recortados em ogiva, o cordão bordado e arrendado dos vinte e
oito nichos reais, a imensa rosácea central flanqueada pelas suas duas

30 O tempo é voraz, o homem mais voraz ainda.

139
j anelas laterais como o oficiante com o diácono e o subdiácono, a alta
e delicada galeria de arcadas de trifólio, aguentando uma pesada pla­
taforma sobre as suas finas colunatas; finalmente as duas torres maci­
ças e negras, com os telheiros de ardósia, harmoniosas partes de um
todo magnífico, sobrepostas em cinco gigantescos andares. Por assim
dizer, uma vasta sinfonia de pedra ; obra colossal de um homem e de
um povo, em todo o seu conj unto una e complexa, como as Ilíadas e
os romanceiros de que é irmã; produto prodigioso da quotização de
todas as energias duma época , onde de cada pedra se veem brotar as
cem maneiras da fantasia do artífice disciplinado pelo génio do artista;
espécie de criação humana, numa palavra poderosa e fecunda como
a criação divina à qual parece ter roubado o duplo caráter: variedade
e eternidade.
E o que aqui dizemos da fachada, devemo-lo dizer de toda a igrej a ;
e o q u e dizemos da s é catedral de Paris, cumpre dizê-lo de todas a s
igrejas d a cristandade, na Idade Média. Tudo s e encerra nesta arte nas­
cida de si mesma, lógica e bem proporcionada. Medir o dedo do pé é
medir o gigante.
Voltemos à frontaria de Nossa Senhora, tal como agora nos aparece,
quando vamos devotamente admirar a grave e poderosa catedral que,
na opinião dos seus cronistas, aterroriza: quae mole sua terrorem incutit
spectantibus3 ' .
Faltam hoje, nessa fachada, três coisas importantes: primeiro, a
escadaria de onze degraus que dantes a erguia do solo; depois, a série
de estátuas que ocupavam os nichos dos três portais e a série superior
dos vinte e oito mais antigos reis da França que guarnecia a galeria
do primeiro andar, desde Childeberto até Filipe Augusto, segurando
"o pomo imperial".
A escadaria sumiu-a o tempo ao elevar, num desenvolvimento lento
mas irresistível, o nível do pavimento da Cité. Apesar de que, enquanto
essa praia-mar do solo de Paris lhe devorava um a um os onze degraus
que aumentavam a maj estosa altura do edifício, talvez o tempo tenha
dado à igreja mais do que aquilo que lhe tirou, pois foi o tempo que lhe
espalhou na frontaria essa sombria cor dos séculos que faz da velhice
dos monumentos a idade da sua formosura.

31 Que pela sua mole aterroriza os espectadores.

140
Quem, porém, deitou abaixo as duas filas de estátuas? Quem dei­
xou os nichos vazios? Quem retalhou, mesmo a meio do portal cen­
tral, aquela ogiva nova e bastarda? Quem teve a audácia de enquadrar,
ao lado dos arabescos de Biscornette, essa insípida e pesada porta de
madeira lavrada à Luís XV? Os homens, os arquitetos, os artistas dos
nossos dias.
E se passarmos ao interior do edifício, quem derrubou esse colos­
sal S. Cristóvão, proverbial entre as estátuas da mesma forma que a
sala grande do palácio o era entre as salas e a flecha de Estrasburgo
entre os campanários? E essas miríades de estátuas, de j oelhos, em
pé, equestres, homens, mulheres, crianças, reis, bispos, gendarmes,
de pedra, de mármore, de ouro, de prata, de cobre, até de cera, que
povoavam todos os intercolúnios da nave e do coro, quem brutalmente
as varreu? Não foi o tempo.
E quem trocou o velho altar gótico, esplendidamente atulhado de
relicários e molduras, por esse pesado sarcófago de mármore, com
cabeças de anjos e nuvens e que parece uma amostra desirmanada do
Val-de-Grâce ou dos Inválidos? Quem foi que estupidamente soldou
esse pesado anacronismo ao pavimento carlovíngio de Hercandus?
Não foi Luís XIV cumprindo o voto de Luís XI II?
E quem colocou as frias vidraças brancas no lugar desses vitrais
"de excelsa cor" que faziam hesitar a vista maravilhada de nossos pais,
entre a rosácea do grande portal e as ogivas da abside? E que diria
um subchantre do século XVI se visse a linda pintura a têmpera ama­
rela com que os nossos vândalos arcebispos enlambuzaram a sua sé?
Recordar-se-ia de que era a mesma cor com que o carrasco pintava os
edifícios pervertidos; lembrar-se-ia do palácio do Petit-Bourbon, também
todo besuntado de oca, devido à traição do Condestável, uma oca que,
como diz Sauval, era "no fim de contas de tão boa têmpera e tão bem
preparada que mais de um século não conseguiu ainda fazer-lhe perder
a cor". Convencer-se-ia de que o santo lugar se tornara infame, e fugiria.
E se subirmos ao telhado da catedral, sem nos determos nas mil
barbaridades de toda a espécie que fizeram desse delicioso campa­
nariozinho, que se apoiava no ponto de interseção do transepto e
que, não menos delicado nem menos ousado do que a sua vizinha
a flecha (destruída também) da Santa Capela, enfiava pelo céu mais
adiante em relação às torres, esbelto, pontiagudo, sonoro, arrendado?

141
Um arquiteto de bom gosto ( 1 787) amputou-o e achou que bastava
disfarçar a chaga com um enorme emplastro de chumbo que recorda a
tampa duma marmita.
Deste modo trataram em quase todos os países a maravilhosa arte
da Idade Média e, em especial, na França. Podem distinguir-se na sua
ruína três espécies de lesões, todas elas penetrando-a a diferentes pro­
fundidades: primeiro, o tempo que insensivelmente esbeiçou aqui e
além e enferruj ou por toda a parte a superfície; a seguir, as revoluções
políticas e religiosas que, cegas e coléricas por natureza, se atiraram
tumultuosamente a ela, dilaceraram um rico revestimento de escul­
turas e de cinzelamentos, rebentaram-lhe as rosáceas, quebraram-lhe
os colares de arabescos e de figurinhas, arrancaram-lhe as estátuas,
tanto por causa da mitra como por causa da coroa; enfim, as modas,
cada vez mais grotescas e tolas, que desde os anárquicos e esplêndidos
desvarios do Renascimento se sucederam na necessária decadência
da arquitetura. As modas causaram mais danos do que as revoluções.
Retalhando a fundo, atacaram o ossudo arcaboiço da arte, cortaram,
talharam, desorganizaram, mataram o edifício, tanto na forma como no
símbolo, tanto na sua lógica como na sua beleza. E depois fizeram de
novo - uma pretensão que ao menos nem o tempo nem as revoluções
alguma vez manifestaram. Em nome do bom gosto, enxertaram, por
cima dos ferimentos da arquitetura gótica, os seus miseráveis arrebi­
ques de um dia, as suas fitas de mármore, as suas borlas de metal, ver­
dadeira lepra de óvulos, de volutas, de cercaduras, de panej amentos,
de grinaldas, de franjas, de chamas de pedra, de nuvens de bronze,
de amores empanturrados, de querubins papudos, esse bom gosto
que começa a devorar a fisionomia da arte no oratório de Catarina de
Médicis e a faz soltar o último suspiro, dois séculos mais tarde, ator­
mentada e contorcida, no toucador da Dubarry.
Assim, para resumirmos os pontos que acabámos de assinalar, três
qualidades de assolações hoj e desfiguram a arquitetura gótica: rugas
e verrugas na epiderme são obra do tempo; vias de facto, brutalida­
des, contusões, fraturas, obras das revoluções, de Lutero a Mirabeau;
amputações, luxações dos membros, restaurações, trabalho grego,
romano e bárbaro, dos professores como Vitruve e Vignole. Essa arte
magnífica que os vândalos produziram, mataram-na as academias. Aos
séculos, às revoluções que devastam pelo menos com imparcialidade

142
e grandeza, aj untou-se o enxame dos arquitetos de escola, patentea­
dos, aj uramentados e refinados, degradando com o discernimento e
a escolha do mau gosto, substituindo pelas chicórias de Luís XV as
rendas góticas, para maior glória do Partenão. É o coice do burro no
leão moribundo. É o velho roble que se coroa e que, para cúmulo, as
lagartas picam, mordem e corroem.
Como vai longe a época em que Roberto Cenalis, ao comparar
Nossa Senhora de Paris com esse famoso templo de Diana em Éfeso,
tão exaltado pelos antigos pagãos e que imortalizara Eróstrato, achava
a catedral gaulesa "mais excelente em comprimento, largura, altura e
estrutura"32.
Aliás, Nossa Senhora de Paris não é o que se pode chamar um monu­
mento definido, completo, classificado. Já não é uma igreja românica
e ainda não é uma igreja gótica. Este edifício não é um tipo. Nossa
Senhora de Paris não tem, como a abadia de Tournus, a grave e maciça
estrutura, a abóbada larga e redonda, a glacial nudez, a majestosa sim­
plicidade dos edifícios gerados pelo arco de abóbada de curvatura semi­
circular. Não é, como a catedral de Surges, o produto magnífico, leve,
multiforme, prolixo, eriçado, eflorescente, da ogiva. Torna-se impossível
alinhá-la nessa antiga família de igrejas escuras, misteriosas, baixas e
como que esmagadas pelo arco de abóbada; quase egípcias perto do
teto, todas hieroglíficas, todas sacerdotais, todas simbólicas: mais carre­
gadas nos seus ornatos de losangos e de ziguezagues do que de flores,
mais de flores do que de animais, mais de animais do que de homens;
obra mais do arquiteto do que do bispo; primeira transformação da arte,
toda impregnada de disciplina teocrática e militar, que vai buscar as raí­
zes ao Baixo Império e para em Guilherme, o Conquistador. Impossível
colocar a nossa catedral nessa outra família de igrejas altas, aéreas, ricas
de vitrais e de esculturas, agudas na forma, ousadas nas atitudes, comu­
nais e burguesas como símbolos políticos; livres, caprichosas, desen­
freadas como obras de arte; segunda transformação da arquitetura, não
já hieroglífica, imutável e sacerdotal, mas sim artística, progressiva e
popular, que se inicia no regresso das cruzadas e acaba em Luís XI.
Nossa Senhora de Paris não é de pura raça românica, como as primeiras,
nem de pura raça árabe como as segundas.

32 História galicana, liv. II, período I I I , f. 130, pág. 1. (Nota do Autor. )

143
É um edificio da transição. Acabara o arquiteto saxão de erguer os
primeiros pilares da nave quando a ogiva, que chegava da cruzada, se
foi instalar, como conquistadora, nesses largos capitéis românicos que
só deviam sustentar arcos de abóbada. A ogiva, senhora desde então,
construiu o resto da igreja. Todavia, inexperiente e tímida nos primeiros
passos, expande-se, alarga-se, mas contém-se e não se atreve a lan­
çar-se em flechas e a alongar-se, como mais tarde fez em tantas cate­
drais maravilhosas. Dir-se-ia que se ressente da vizinhança das pesadas
colunas românicas.
Aliás, estes edifícios da transição do românico para o gótico não
são menos preciosos de estudar do que os tipos puros. Exprimem um
cambiante de arte que se perderia sem eles. É a enxertia da ogiva sobre
o arco de abóbada.
Nossa Senhora de Paris é sobretudo um curioso espécime desta varie­
dade. Cada face, cada pedra do venerável monumento, é uma página,
não só da história do país, como também da história da ciência e da
arte. Assim, para não se indicarem aqui senão os principais pormenores,
enquanto a pequena Porta Vermelha quase atinge os limites das deli­
cadezas góticas do século XV, as colunas da nave, pela sua gravidade
e volume, recuam até à abadia carlovíngia de Saint-Germain-des-Prés.
Imaginar-se-ia terem decorrido seis séculos entre esta porta e estas colu­
nas. Até aos herméticos, não apareceu ninguém que não achasse, nos
símbolos do grande portal, um satisfatório compêndio da sua ciência e
que a igreja de Saint-Jacques de la Boucherie era um hieróglifo tão com­
pleto. Por isso, a abadia romana, a igreja filosofal, a arte gótica, a arte
saxónica, a pesada coluna redonda que recorda Gregório VI I, o simbo­
lismo hermético pelo qual Nicolau Flamel preludiava Lutero, a unidade
papal, o cisma, Saint-Germain-des-Prés, Saint-Jacques de la Boucherie,
tudo se funde, combina, amalgama em Nossa Senhora. Esta igreja central
e geradora é, entre as velhas igrejas de Paris, uma espécie de quimera;
tem a cabeça de uma, os membros de outra, o dorso de outra ainda e
alguma coisa de todas.
Tornamos a dizer que estas construções híbridas não são menos
interessantes para o artista, para o antiquário, para o historiador. Fazem
sentir até que ponto a arquitetura é coisa primitiva, pois demonstram o
que também demonstram os vestígios ciclópicos, as pirâmides do Egito,
os gigantescos pagodes indianos, ou seja que os maiores produtos da

144
arquitetura são menos obras individuais do que sociais; mais a criação
dos povos a trabalhar do que o j ato dos homens de génio; o resíduo
que uma nação deixa; a acumulação formada pelos séculos; o que fica
das sucessivas evaporações da sociedade humana; numa palavra, espé­
cies de formações. Cada onda do tempo sobrepõe o seu aluvião, cada
raça depõe no monumento a sua camada, cada indivíduo traz a sua
pedra. Assim fazem os castores, assim fazem as abelhas, assim fazem
os homens. Babel, o grande símbolo da arquitetura, é uma colmeia.
Tanto os grandes edifícios como as grandes montanhas são a obra
dos séculos. Muitas vezes a arte transforma-se, mas eles prosseguem
imutáveis: pendent opera interrupta33; continuam-se placidamente con­
forme a arte transformada. A nova a rte vai buscar o monumento aonde
ele se encontra, incrusta-se nele, assimila-o, desenvolve-o conforme
a sua fantasia, e conclui-o, se lhe é possível. A obra realiza-se sem
complicações, sem esforços, sem reação, segundo uma lei natural e
tranquila. É uma enxertia que aparece, uma seiva que circula, uma
vegetação que desabrocha. Decerto há nisto assunto para volumosís­
simos livros e, amiúde, a H istória Universal da Humanidade, nestas
soldaduras sucessivas de diversas artes, em alturas diferentes, sobre o
mesmo monumento. O homem, o artista, o indivíduo apagam-se sobre
essas enormes massas sem nome de autor, nelas se resume e totaliza a
inteligência humana. O tempo é o arquiteto, o povo é o pedreiro.
Apreciando apenas aqui a arquitetura europeia cristã, essa irmã mais
nova das grandes obras de alvenaria do Oriente, ela aparece à vista como
a formação imensa, repartida por três zonas bem definidas e que se
sobrepõem: a zona romana34; a zona gótica; a zona do Renascimento,
que de bom grado denominaríamos greco-romana. A camada românica,
a mais antiga e profunda, é ocupada pelo arco de abóbada que reapa­
rece, suportado pela coluna grega, na camada moderna e superior do
Renascimento. A ogiva está entre as duas. Os edificios que pertencem

33 Os trabalhos interrompidos ficam suspensos.


34 É a mesma que igualmente se denomina, conforme os sítios, os climas e as es­
pécies, lombarda, saxónica e bizantina. São quatro arquiteturas irmãs e paralelas, cada
qual com o seu caráter peculiar, mas derivando do mesmo princípio - o arco de abóbada.

Facies non omnibus una,


Non diversa tamen, qualem, etc. ( Nota do Autor. )

145
exclusivamente a uma destas três camadas são perfeitamente distintos,
unas e completos. É a abadia de Jumiéges, é a catedral de Reims, é Santa
Cruz de Orleães. As três zonas, contudo, misturam-se e amalgamam-se
pelos bordos como as cores no espectro solar. Daí os monumentos com­
plexos, os edifícios de cambiantes e de transição. Um é românico nos pés,
gótico no meio, greco-romano na cabeça. Isto porque levaram seiscentos
anos a construí-lo. É rara esta variedade. Temos um exemplo no torreão
do castelo de Étampes. Contudo, os monumentos de duas formações são
mais frequentes. É Nossa Senhora de Paris, edifício ogival, que mergu­
lha os primeiros pilares nessa zona românica onde assentam o portal de
S. Dinis e a nave de Saint-Germain-des-Prés. É a deliciosa sala do capítulo,
meio gótica, de Bocherville, onde a camada românica sobe até metade do
corpo. É a catedral de Ruão, que seria inteiramente gótica se, pela extre­
midade da flecha central, não se banhasse na zona do Renascimento35•
Aliás, todos estes cambiantes, todas estas variedades, não afetam senão
a superficie dos edifícios. A arte é que mudou de pele. A própria consti­
tuição da igreja cristã não sofreu. É sempre o mesmo arcaboiço interior, a
mesma disposição lógica das partes. Seja qual for o invólucro esculpido e
bordado de uma catedral, por baixo encontra-se sempre, pelo menos em
estado de germe e de rudimento, a basílica românica. Desenvolve-se eter­
namente sobre o solo, de acordo com a mesma lei. Imperturbavelmente,
temos duas naves que se entrecortam em cruz e cuja extremidade supe­
rior, arredondada em abside, forma o coro; são sempre as naves laterais
para as procissões interiores, para as capelas, espécie de promenoirs late­
rais onde a nave principal se derrama pelos intercolúnios. Assente isto, a
quantidade de capelas, de portarias, de campanários, de agulhas, modi­
fica-se infinitamente, conforme a fantasia do século, do povo, da arte.
Depois de organizado e assegurado o serviço do culto, a arquitetura faz o
que melhor lhe parece. Estátuas, vitrais, rosáceas, arabescos, rendilhados,
capitéis, baixos-relevos, ela combina todas estas imaginações, conforme
o logaritmo que lhe convém. Daí a prodigiosa variedade exterior desses
edifícios, no fundo dos quais reside tanta ordem e unidade. Se o tronco da
árvore é imutável, a sua vegetação é caprichosa.

35 Essa parte da flecha, que era de madeira, foi j ustamente a que o fogo do céu
consumiu em 1823. (Nota do Autor. )

146
II

Paris d e relance

Acabamos de procurar fazer com que o leitor repare nessa admi­


rável igreja de Nossa Senhora de Paris. Sumariamente, apontámos a
maioria das belezas que ali existiam no século XV e que hoj e lhe fal­
tam; omitimos, porém, a principal: esse panorama de Paris, que então
se desfrutava do alto das suas torres.
Com efeito, quando, depois de se tatear muito tempo na tenebrosa
espiral que fura perpendicularmente a espessa parede das torres, se
desembocava, finalmente, num dos dois elevados terraços, inundados de
luz e de ar, desenrolava-se um magnífico quadro, um espetáculo sui gene­
ris, de que facilmente podem formar uma ideia os nossos leitores que
tiveram a felicidade de ver inteira, completa, homogénea, uma cidade
gótica, como ainda restam algumas: Nuremberga na Baviera, Vitória em
Espanha, ou mesmo amostras mais pequenas, contanto que as conser­
vem devidamente, tais como Vitré na Bretanha, Nordhausen na Prússia.
A Paris de há trezentos e cinquenta anos, a Paris do século XV, já
era uma cidade gigante. Em geral , nós, os Parisienses36, enganamo-nos
acerca do terreno que imaginamos ter depois conquistado. A partir
de Luís XI , Paris não aumentou muito mais do que um terço37 e sem
dúvida perdeu muito mais em beleza do que ganhou em tamanho.
Paris nasceu, como se sabe, nesta velha ilha da Cité que tem o feitio
dum berço. A praia de areia grossa desta ilha constitui a sua primeira

36 Victor Hugo considerava-se , sem dúvida, parisiense por adoção, pois nascera
em Besançon.
37 Depois de Victor Hugo, Paris aumentou cerca de cinquenta por cento no seu
perímetro.

147
muralha, o Sena o seu primeiro fosso. Vários séculos se manteve Paris
no estado de ilha, com duas pontes, uma ao norte e outra ao sul, e
duas cabeças de ponte servindo-lhe ao mesmo tempo de portas e de
castelos, o Grand-Châtelet, da margem direita, e o Petit-Châtelet, da
margem esquerda. Depois, a partir dos reis da primeira dinastia, muito
apertada na sua ilha, Paris, não tendo já lado para onde se voltar,
atravessou a água. Então, para lá do Grand e do Petit-Châtelet, uma
primeira cinta de muralhas e de torres começou a invadir os campos
dos dois lados do Sena. Desta antiga cerca ainda no século passado38
restavam alguns vestígios. Hoj e só perdura a sua recordação, uma
tradição por aqui e por acolá, e a Porta Baudets ou Baudoyer Porta
Bagauda. A pouco e pouco, a onda de casas, constantemente impelida
do coração da cidade para o exterior, trasborda, corrói, gasta e desfaz
esta muralha. Filipe Augusto arranja-lhe uma nova represa. Aprisiona
Paris numa cadeia circular de torres grossas, altas e robustas. Durante
mais de um século, as casas apertam-se, multiplicam-se e sobem de
nível nesta bacia, como a água num reservatório. Começam a tornar-se
mais fundas, amontoam andares sobre andares, encavalitam-se umas
nas outras, espigam para o alto como toda a seiva reprimida e é ver a
que primeiro espeta a cabeça por cima das vizinhas para respirar um
pouco mais de ar. A rua escava-se e contorce-se cada vez mais; não há
espaço que se não encha e não desapareça. Por fim, as casas saltam a
muralha de Filipe Augusto e espalham-se alegremente pela planície,
sem ordem e à trouxe-mouxe, como foragidas. Ali se repimpam, talham
jardins nos campos, põem-se à vontade. A partir de 1367, a cidade
expande-se de tal maneira pelos arredores, que se impõe nova mura­
lha, principalmente na margem direita. Constrói-a Carlos V. Cidades
como Paris estão, porém, numa cheia constante. Só estas metrópoles
se tornam capitais. Formam funis onde vão desembocar todas as ver­
tentes geográficas, políticas, morais, intelectuais, de um país, todas
as naturais inclinações de um povo; são, por assim dizer, poços de
civilização e também esgotos, onde comércio, indústria, inteligência,
população, tudo o que é seiva, tudo o que é vida, tudo o que é alma
numa nação, se infiltra e se empilha sem cessar, gota a gota, século a
século. As muralhas de Carlos V sofreram, portanto, a mesma sorte das

38 O século XVI I I , evidentemente.

148
de Filipe Augusto. Desde os finais do século XV são cavalgadas, ultra­
passadas e o arrabalde corre para mais longe. No século XVI parecem
que recuam a olhos vistos e enterrar-se cada vez mais na cidade velha,
a tal ponto uma cidade nova se condensa já no exterior.
Deste modo, desde o século XV, para nos determos aí, Paris já inu­
tilizara os três círculos concêntricos de muros que desde o tempo de
Julião, o Apóstata, se encontravam, por assim dizer, em germe no
Grand-Châtelet e no Petit-Châtelet. A poderosa cidade já rebentara
sucessivamente quatro cintas de muralhas, como uma criança que
cresce e rebenta os fatos do ano anterior. No tempo de Luís XI viam-se,
de vez em quando, surgir, desse mar de prédios, alguns grupos de tor­
res arruinadas das velhas muralhas, como cimos de colinas numa inun­
dação, como arquipélagos da velha Paris submergidos debaixo da nova.
Desde então Paris, infelizmente para os nossos olhos, transfor­
mou-se mais uma vez, mas só atravessou mais uma muralha, a de Luís
XV, esse miserável muro de lama e de cuspo, digno do rei que o levan­
tou, digno do poeta que o cantou:

O muro murando Paris torna Paris murmurante.

Paris, no século XV, dividia-se ainda em três cidades completamente


separadas e distintas, cada uma com a sua fisionomia, a sua especia­
lidade, os seus costumes, os seus privilégios, a sua história: a Cité, a
Universidade e a Cidade. A Cité, que ocupava a ilha, era a mais antiga,
a mais pequena e a mãe das outras duas, apertada entre uma e outra,
como - desculpem-nos a comparação uma velhinha entre duas gua­
pas raparigas. A Universidade cobria a margem esquerda do Sena, da
Tournelle à torre de Nesle, pontos que na Paris de hoj e correspondem,
um ao Mercado de Vinhos e outro à Moeda . A sua muralha chanfrava
amplamente esses campos onde Juliano edificara as suas termas. Nele
se encontrava a montanha de Santa Genoveva. O ponto culminante
desta curva de muralhas era a Porta Papal, ou sej a , mais ou menos,
no sítio do atual Panteão. A Cidade, que era a maior das três partes de
Paris, detinha a margem direita. O seu cais, embora quebrado ou inter­
rompido em vários pontos, corria ao longo do Sena, da torre de Billy à
torre do Bosque, isto é, do local onde hoj e é o Celeiro da Abundância até
onde são hoj e as Tulherias. Esses quatro pontos, onde o Sena cortava

149
a cerca da capital, a Tournelle e a torre de Nesle à esquerda, a torre
de Billy e a torre do Bosque à direita, chamavam-se, por excelência, as
quatro torres de Paris. A Cidade entrava nas terras mais profundamente
ainda do que a Universidade. O ponto culminante da cerca da Cidade
(a de Carlos V) eram as portas de S. Dinis e de S. Martinho, cuja posição
não mudou .
Como acabamos de o dizer, cada uma destas três grandes divisões
de Paris formava uma cidade, mas uma cidade especial de mais para
ser completa , uma cidade que não podia passar sem as outras duas.
Igualmente possuíam três aspetos perfeitamente à parte. Na Cité abun­
davam as igrej as; na Cidade, os palácios; na Universidade, os colé­
gios. Desprezando aqui as originalidades secundárias da velha Paris,
tais como os caprichos do direito dos serviços de limpeza, diremos,
numa vista de olhos geral e não falando senão dos conj untos e das
massas, que no caos das jurisdições comunais a ilha era do bispo, a
margem direita era do preboste dos mercadores, a margem esquerda
era do reitor. O preboste de Paris, funcionário real e não municipal,
superentendia no conj unto. A Cité possuía Nossa Senhora; a Cidade,
o Louvre e a Câmara Municipal ; a Universidade, a Sorbona. A Cidade
tinha os Mercados; a Cité, o Hospital; a Universidade, o Prado dos
Clérigos. O delito perpetrado pelos estudantes na margem esquerda,
no seu Prado dos Clérigos, julgavam-no na ilha, no Palácio da Justiça,
e puniam-no na margem direita, em M ontfaucon, a não ser que o rei­
tor, sentindo a força da Universidade e a fraqueza de el-rei, interviesse,
pois os escolares desfrutavam do privilégio de serem enforcados em
família.
(Diga-se de passagem que a maioria destas regalias, e algumas havia
melhores do que esta, extorquiam-nas aos reis com revoltas e motins.
É a marcha imemorial: o rei não larga senão quando o povo arranca.
Existe um velho foral que ingenuamente conta o facto no tocante a
fidelidade: Civibus fidelitas in reges, quae tamen aliquottes seditionibus
interrupta, multa peperit privilegia. 39
No século XV, o Sena banhava cinco ilhas no âmbito de Paris: a
ilha Louviers, onde então havia árvores e onde agora só há madeira;

39 A fidelidade aos reis, interrompida, no entanto, por algumas revoluções, pro­


porcionou muitos privilégios aos cidadãos.

1 50
a ilha das Vacas e a ilha de Nossa Senhora, ambas desertas, quase
somente com um pardieiro, ambas feudos do bispo (no século XVI I,
destas duas ilhas fizeram uma, onde se procedeu a construções e a
que chamamos a ilha de S. Luís) ; finalmente, a Cité e, na sua ponta, a
ilhota do Barqueiro passador de vacas, ilha que depois se esborrachou
debaixo das terraplenagens da Ponte Nova. Possuía então a Cité cinco
pontes: três à direita - a Ponte de Nossa Senhora e a Ponte do Câmbio,
de pedra, e a Ponte dos Moleiros, de madeira; duas à esquerda - a
Ponte Pequena, de pedra, a Ponte de S. Miguel, de madeira, e todas
carregadas de casas. Seis portas abriu Filipe Augusto na Universidade
que eram, a partir da Tournelle, a Porta de S. Vítor, a Porta Bordelle,
a Porta Papal, a Porta de S. Tiago, a Porta de S. Miguel e a Porta de
S. Germano. A Cidade tinha seis portas, mandadas construir por Carlos
V, a saber, partindo da torre de Billy: a Porta de Santo António, a Porta
do Templo, a Porta de S. Martinho, a Porta de S. Dinis, a Porta de
Montmartre e a Porta de Santo Honorato. Eram rijas todas estas portas,
e bonitas também, o que não prej udica a força .
Largo e profundo fosso, de corrente viva nas cheias de inverno,
lavava o sopé das muralhas que rodeavam Paris; o Sena fornecia a
água. De noite, fechavam as portas, barravam o rio nos dois extremos
da cidade por meio de duas grossas correntes de ferro, e Paris dormia
sossegado.
Olhados de relance estes três burgos - a Cité, a Universidade e a
Cidade - ofereciam à vista uma rede inextricável de ruas extravagan­
temente emaranhadas, mas reconhecia-se-lhe logo no primeiro aspeto
que estes três fragmentos de aglomerado urbano formavam um único
corpo. Surgiam-nos imediatamente duas compridas ruas paralelas,
ininterruptas e sem quebra, quase em linha reta, que atravessavam
simultaneamente, de um extremo a outro, os três burgos de sul a norte
e perpendicularmente com o Sena, ligavam-nas, misturavam-nas, con­
fundiam-nas, despejavam e transvasavam incessantemente o povo de
uma para dentro dos muros da outra , e das três faziam apenas uma
única. A primeira destas duas ruas ia da Porta de S. Tiago à Porta de
S. Martinho; chamava-se Rua de S. Tiago, na Universidade, Rua da
Judiaria, na Cité, Rua de S. Martinho, na Cidade, e atravessava duas
vezes a água com o nome de Ponte Pequena e de Ponte de Nossa
Senhora. A segunda , que na margem esquerda se chamava Rua da

151
Harpa, Rua da Tanoaria na ilha e Rua de S. Dinis na margem direita,
Ponte de S. Miguel sobre um braço do Sena, Ponte do Câmbio em cima
de outro, ia da Porta de S. M iguel, na Universidade, à Porta de S. Dinis,
na Cidade. Aliás, com tantos nomes diferentes, nunca deixavam de ser
duas ruas, embora as duas ruas-mães, as duas ruas-geradoras, as duas
artérias de Paris. Todas as demais veias da tríplice cidade iam-se ali
abastecer ou despejar.
Independentemente destas duas ruas principais, diametrais, furando
Paris de lado a lado na sua largura, comuns a toda a capital, a Cidade e
a Universidade dispunham cada uma da sua grande rua particular que
corria no sentido do comprimento, paralelamente ao Sena, e, ao passar,
cortava , em ângulo reto, as duas ruas arteriais. Desse modo, na Cidade,
descia-se em linha reta da Porta de Santo António à Porta de Santo
Honorato; na Universidade, da Porta de S. Vítor à Porta de S. Germano.
Estas duas grandes vias, cruzadas com as duas primeiras, formavam a
armação sobre a qual repousava, atada e apertada em todos os senti­
dos, a rede labiríntica das ruas de Paris. No ininteligível desenho desta
rede distinguiam-se ainda, quando atentamente se examinava, como
que dois feixes desatados, um na Universidade, o outro na Cidade, dois
molhos de grandes ruas que se iam dilatando desde as pontes até às
portas.
Ainda hoje subsiste alguma coisa deste plano geométrico.
Agora, qual o aspeto deste conj unto, observado em 1482 do alto das
torres de Nossa Senhora? É o que vamos tentar referir.
Ao espectador que chegava esfalfado ao cabo dessa ascensão sur­
gia, logo de entrada, um deslumbramento de telhados, de chaminés,
de ruas, de pontes, de praças, de flechas, de campanários. Saltava-lhe
tudo à vista ao mesmo tempo, a empena afeiçoada, o telhado bicudo,
o torreão suspenso nos ângulos das paredes, a pirâmide de pedra do
século XI, o obelisco de ardósia do século XV, a torre redonda e nua do
castelo, a torre quadrada e cinzelada da igrej a, o grande, o pequeno, o
maciço, o aéreo. Demorada e profundamente se perdia o olhar imerso
naquele labirinto, onde não havia nada que não apresentasse a sua
originalidade, a sua j ustificação, o seu génio, a sua beleza , nada que
não proviesse da arte, desde a mais modesta casa de frontaria pintada
e esculpida, de vigamento exterior, de porta acachapada, de andares
desaprumados, até o realengo Louvre, então ornado com uma colunata

1 52
de torres. Eis, todavia, quais as massas principais quê se distinguiam
quando a vista se começava a habituar a essa confusão de edifícios.
Primeiro, a Cité. A ilha da Cité, como diz Satival, que entre a sua
miscelânea tem às vezes destes felizes acasos de estilo, é feita como um
grande navio enterrado no lodo e encalhado na corrente de água lá para
o meio do Sena. Acabamos de explicar que, no século XV, este navio
estava amarrado, por cinco pontes, às duas margens do rio. Este feitio de
embarcação impressionou também os escribas heráldicos, pois, na opi­
nião de Favyn e de Pasquier, vem daí, e não do cerco dos Normandos,
a nau que figura no velho brasão de Paris. Para quem o sabe decifrar, o
brasão é uma álgebra, o brasão é uma língua. Está escrita nesse brasão
toda a história da segunda metade da Idade Média, tal como a história
da primeira metade no simbolismo das igrejas românicas. São os hie­
róglifos do feudalismo depois dos da teocracia.
Assim, a Cité oferecia-se, antes de mais nada, aos olhos com a popa
para o nascente e a proa para o ocaso. Quando nos virávamos para a
popa, aparecia-nos pela frente inumerável rebanho de velhos telhados,
sobre os quais se arredondava com amplidão o lívido hemiciclo do
coro da Santa Capela, parecido com o lombo de um elefante carregado
com a sua torre. Apenas com a diferença de que aqui essa torre repre­
sentava a flecha mais audaciosa, mais trabalhada, mais recortada que
alguma vez deixou ver o céu através do seu cone de renda. Diante de
Nossa Senhora, do lado do vento, três ruas desaguavam no adro, linda
praça de vetustas casas. Do lado sul deste largo debruçava-se a fronta­
ria rugosa e carrancuda do Hospital Principal mais o seu telhado, que
parece coberto de pústulas e de verrugas. Depois, à direita, à esquerda,
a nascente, a poente, nessa cintura de muralhas, embora apertada,
da Cité, erguiam-se as torres das suas vinte e uma igrejas, de todas
as datas, de todas as formas, de todos os tamanhos, desde a baixa e
carunchosa campânula românica de S. Dinis do Passo (carcer Glaucini),
até às finas agulhas de S. Pedro dos Bois e de S. Landry. Atrás de Nossa
Senhora, desenrolavam-se, ao norte, o claustro com as suas galerias
góticas, ao sul, o palácio semirromânico do bispo; a nascente, a ponta
deserta do Terrain. N este amontoado de casas, a vista distinguia ainda,
pelas suas altas mitras de pedra, perfuradas e que então coroavam,
sobre o próprio telhado, as j anelas mais elevadas dos palácios, o paço
oferecido pela cidade, no tempo de Carlos VI, a Juvenal de Ursins; um

1 53
pouco mais longe, as barracas alcatroadas do Mercado do Paul; noutro
sítio ainda, a nova abside de S. Germano-o-Velho, acrescentado, em
1458, com uma ponta da Rua dos Fevbes e depois, sucessivamente,
uma encruzilhada atravancada de gente, um pelourinho erguido a uma
esquina de rua, um lindo trecho do Calçada de Filipe Augusto, magní­
fico laj edo riscado, a meio da rua, pelas patas dos cavalos e tão mal
substituído no século XVI pelo miserável calcetamento denominado
calçada da Liga, um saguão deserto com uma dessas diáfanas torri­
nhas de escada como se construíam no século XV e como ainda se vê
uma na Rua dos Bourdormais. Finalmente, à direita da Santa Capela,
para poente, o Palácio da Justiça assentava, à borda da água, o seu
grupo de torres. Os bosques dos jardins reais, que cobriam a ponta oci­
dental da Cité, encobriam a ilhota do Barqueiro. Quanto à água, do alto
das torres de Nossa Senhora mal se via dos dois lados da Cité. O Sena
desaparecia sob as pontes, as pontes sob as casas.
E quando a vista passava essas pontes, cuj os vãos se punham ver­
des diante dos olhos, abolorecidos antes de tempo pelos vapores da
água, se se virava para a esquerda, para a Universidade, o primeiro
edifício que lhe chamava a atenção era um volumoso e atarracado feixe
de torres, o Petit-Châtelet, de vestíbulo escancarado a devorar a extre­
midade da Ponte Pequena, para, de seguida, se o olhar percorria a
margem do nascente ao poente, da Tournelle à Torre de Nesle, dar com
um longo cordão de prédios de barrotes esculpidos, de vidraças colori­
das, um andar em cima de outro a inclinar-se para a rua, um intermi­
nável ziguezague de empenas burguesas, cortado frequentemente pela
embocadura duma rua e, de tempos a tempos, também pela fachada ou
pela esquina de um grande palácio de cantaria, repimpando-se à sua
vontade, com pátios e jardins, alas e corpo principal, entre este povo­
léu de prédios apertados e acanhados, como um grande senhor num
magote de labregos. No cais erguiam-se uns cinco ou seis destes sola­
res, desde a residência de Lorena, que partilhava com os Bernardos a
grande tapada vizinha das Tournelles, até o palácio de Nesle, cuja torre
principal limitava Paris e cujos telhados pontiagudos desfrutavam da
autoridade de chanfrarem, três meses no ano, com os seus triângulos
negros, o disco escarlate do Sol poente.
Era, aliás, este lado do Sena o menos comercial dos dois e onde a
estudantada fazia mais barulho e balbúrdia do que os artesãos. A bem

1 54
dizer, não havia ali nenhum cais senão desde a Ponte de S. Miguel
à Torre de Nesle. O resto da margem do Sena ora era uma praia de
cascalho nua, como para lá dos Bernardos, ora um aglomerado de pré­
dios com a base dentro de água, como entre as duas pontes. Ouvia-se
grande algazarra de lavadeiras a gritarem, a falarem, a cantarem, de
manhã até à noite, pela margem fora e a baterem com força a roupa,
como nos nossos dias. Não é essa uma das facetas menos alegres de
Paris.
A Universidade formava um bloco bem visível. De um extremo a
outro, constituía um todo homogéneo e compacto. Aqueles mil telha­
dos, espessos, angulosos, aderentes, compostos quase todos do
mesmo elemento geométrico, ofereciam, vistos do alto, o aspeto, da
cristalização duma mesma substância. O barranco caprichoso das ruas
não cortava essa empada de prédios em fatias excessivamente despro­
porcionadas. Disseminavam-se por ali, de modo bastante uniforme, os
quarenta e dois colégios existentes por todos os cantos. Os topos varia­
dos e álacres desses bonitos edifícios constituíam produto da mesma
arte dos singelos telhados que eles dominavam e, no fim de contas,
não passavam duma multiplicação, ao quadrado ou ao cubo, da mesma
figura geométrica. Portanto, complicavam o conj unto sem o perturbar e
completavam-no sem o carregar. A geometria é uma harmonia. Alguns
bonitos solares formavam também, num ponto e noutro, magníficas
saliências sobre as pitorescas mansardas da margem esquerda, como a
residência de Nevers, a residência de Roma, a residência de Reims que
desapareceram; o palácio de Cluny, que ainda subsiste para consolação
dos artistas e ao qual tão estupidamente, há anos, descoroaram a torre.
Perto de Cluny, esse palácio românico de lindas arcadas abobadadas,
existiam as Termas de Juliano. Havia também muitas abadias, de beleza
mais devota, de grandeza mais solene do que os palácios, mas não
menos formosas nem mais pequenas. As que primeiro saltavam à vista
eram: os Bernardos, com os seus três campanários; Santa Genoveva, de
que ainda existe a torre quadrada a provocar-nos saudades do restante;
a Sorbona, meio colégio, meio mosteiro e da qual ficou uma nave tanto
de apreciar; o lindo claustro quadrilateral dos Maturinos; o seu vizinho
convento de S. Bento, dentro de cujos muros houve tempo de encaixar
atabalhoadamente um teatro, entre a sétima e a oitava edição deste
livro; os Franciscanos Menores, com as suas três enormes empenas

155
sobrepostas; os Agostinhos, onde a graciosa agulha criava, depois da
Torre de Nesle, a segunda mol dura rendilhada deste lado de Paris, a
contar do poente. Ocupando o centro na monumental sequência de
palácios e abadias, os colégios, que com efeito formavam o anel inter­
mediário entre o claustro e o mundo, ofereciam uma severidade plena
de elegância, uma escultura menos vaporosa do que a dos solares uma
arquitetura menos grave do que a dos conventos. I nfelizmente, quase
nada resta destes monumentos onde a arte gótica com tanta precisão
alternava a riqueza com a economia. As igrejas (eram numerosas e
esplêndidas na Universidade, escalonando-se também por todas as
épocas da arquitetura , desde os arcos de abóbada de S. Julião até às
ogivas de S. Severino), as igrejas dominavam tudo e, como mais uma
harmonia nesse conj unto de harmonias, varavam a todo o momento
o múltiplo recorte das empenas de flechas trabalhadas, de perfuradas
torres, com agulhas soltas onde a linha não era também senão um
magnífico exagero do ângulo agudo dos telhados.
Era acidentado o solo da Universidade. A sueste, a montanha de
Santa Genoveva formava-lhe uma enorme ampola; e era bem digna
de ver-se do cimo de Nossa Senhora aquela chusma de ruas estreitas
e tortuosas (hoj e o Bairro Latino ) , esses cachos de prédios espalhados
em todas as direções e que do alto dessa eminência se precipitavam em
desordem e quase a pique sobre os seus flancos até à borda de água,
parecendo uns prestes a caírem, outros a treparem e todos a ampara­
rem-se mutuamente. Um contínuo fluxo de mil pontos negros, que se
entrecruzavam na via pública, fazia movimentar tudo à nossa vista. Era
o povo, visto assim de cima e de longe.
Finalmente, nos intervalos desses telhados, dessas flechas, desses
acidentes de inúmeros edifícios que de forma tão singular dobravam,
torciam e arrendavam a última linha da Universidade, entreviam-se,
de espaço a espaço, a ampla face duma parede musgosa, uma espessa
torre redonda, uma porta da cidade ameada, representando a fortaleza:
era a cerca de Filipe Augusto. Para além verdejavam os prados, para
além desapareciam as estradas, ao longo das quais ainda se notavam
algumas casas arrabaldinas, tanto mais raras quanto mais longe fica­
vam. Eram importantes alguns destes subúrbios. Aparecia, primeiro,
a partir da Tournelle, o burgo de S. Vítor, com a ponte só de um arco
sobre o Biévre, a sua abadia, onde se lia o epitáfio de Luís, o Gordo,

156
epitaphium Ludovici Grossi, e a sua igreja de flecha octogonal flan­
queada por quatro agulhas do século XI (pode-se ver uma parecida
em Étampes; ainda a não demoliram) ; depois, o burgo de S. Marcelo,
que possuía já três igrejas e um convento; a seguir, deixando para
a esquerda o moinho dos Gobelinos e as suas quatro paredes bran­
cas, ficava o arrabalde de Sant'Iago com a bela cruz esculpida da sua
encruzilhada; a igrej a de Sant'Iago do Passo Alto, que então era gótica,
pontiaguda e encantadora; S. Magloire, bonita nave do século XIV,
de que Napoleão fez um palheiro; Nossa Senhora dos Campos, onde
havia mosaicos bizantinos. Finalmente, após se abandonar em pleno
campo o convento das Cartuxas, opulento edifício contemporâneo do
Palácio da Justiça, com os seus jardinzinhos de divisórias e as ruínas
mal-afamadas de Vauvert, a vista caía, para poente, sobre as três agu­
lhas românicas de Saint-Germain-des-Prés.
Mais para trás estendia-se o burgo de S. Germano, já uma importante
comuna, com as suas quinze a vinte ruas. A torre bicuda de S. Sulpício
assinalava um dos cantos do burgo. M esmo ao lado, distinguia-se a
muralha quadrilateral da feira de S. Germano, onde hoj e fica o mer­
cado; depois, o pelourinho do abade, bonita torrinha redonda, bem
toucada com um cone de chumbo. Ficava mais longe a fábrica da telha
e a Rua do Forno, que levava ao forno vulgar, ao moinho sobre o seu
cabeço e à gafaria, casinha isolada e mal vista. Porém, o que sobretudo
atraía o olhar e o fixava demoradamente nesse ponto era a própria
abadia. É verdade que este convento, de aspeto imponente quer como
igreja quer como senhorio, este palácio abacial onde os bispos de Paris
se davam por felizes quando uma noite ali dormiam, esse refeitório a
que o arquiteto concedera o aspeto, a beleza e a esplêndida rosácea
duma catedral, essa elegante capela da Virgem, esse monumental dor­
mitório, esses amplos j ardins, essa grade de ferro, essa ponte levadiça,
esse envoltório de ameias que a nossos olhos entalhava a verdura dos
prados circunvizinhos, esses pátios onde cintilavam homens de armas
misturados com pluviais de ouro, tudo agrupado e reunido à roda
das três flechas de arcos de abóbada, bem assentes sobre uma abside
gótica, faziam, no horizonte, magnífica figura.
Quando por fim, depois de se ter demoradamente observado a
Universidade, se olhava para a margem direita, para a Cidade, o espe­
táculo mudava subitamente de caráter. Com efeito, a Cidade, muito

157
maior do que a Universidade, era também menos unida . No primeiro
relance, ela parecia dividir-se em várias massas singularmente diferen­
tes. Primeiro, para nascente, nessa zona que ainda hoj e recebe o nome
de pântano40 onde Camulogénio atolou César, era um amontoado de
palácios. O aglomerado estendia-se até à margem do rio. Quatro solares
quase ligados - Jouy, Sens, Barbeau, a residência da Rainha - espelha­
vam no Sena os seus telhados de ardósia, cortados de esbeltos torreões.
Estes quatro edifícios enchiam o espaço da Rua das Nonaindiéres até
à abadia dos Celestinos, cuj a agulha salientava graciosamente a sua
linha de empenas e de ameias. Não eram alguns pardieiros esverdea­
dos, debruçados sobre o rio e diante dessas sumptuosas mansões, que
cortavam a vista dos bonitos ângulos das suas fachadas, das j anelas
quadradas de caixilhos de pedra, dos pórticos ogivais sobrecarregados
de estátuas, das arestas vivas das suas paredes sempre nitidamente cor­
tadas e todos esses encantadores acasos de arquitetura que fazem que
a arte gótica pareça que vai recomeçar as suas combinações em cada
monumento. Por detrás destes palácios corria, em todos os sentidos,
ora defendida, guarnecida de paliçadas e ameada como uma cidadela,
ora velada por grandes árvores como uma cartuxa, a cerca imensa e
multiforme desse milagroso solar de Saint-Pol, onde o rei da França
tinha com que alojar soberbamente vinte e dois príncipes da qualidade
do delfim e do duque de Borgonha, com a criadagem e séquitos, sem
contar os grandes senhores, e o imperador quando vinha ver Paris, e os
guardas, que tinham a sua casa à parte no paço real. Digamos aqui que
os aposentos de um príncipe não se compunham então de menos de
onze salas, desde a câmara de estado até o oratório, sem falar das gale­
rias, dos banhos, das estufas e de outros "lugares supérfluos", de que
cada apartamento estava munido; sem falar dos j ardins particulares de
cada hóspede do rei; sem falar das cozinhas, das despensas, das copas,
dos refeitórios gerais da casa, dos pátios interiores onde havia vinte e
duas oficinas gerais, desde os fornos à ucharia; jogos de mil géneros,
a malha, a pela, a argola, aviários, peixarias, estábulos, cavalariças,
currais; bibliotecas, arsenais e fundições. Eis o que era nesse tempo um
paço real, um Louvre, um palácio de Saint-Pol. Uma cidade na cidade.

40 O Marais (pântano), que na Paris atual pertence aos terceiro e quarto arron­
dissements (bairros) .

1 58
Da torre onde nos colocámos, o palácio de Saint-Pol, quase meio
escondido pelas quatro grandes residências de que acabamos de falar,
era ainda muito considerável e um encanto para os olhos. Percebiam-se
ali à maravilha, apesar de habilmente soldados ao corpo principal por
longas galerias de vitrais e de colunelos, os três edifícios que Carlos V
amalgamara ao seu palácio: o Petit M uce, com a balaustrada de renda
a orlar-lhe graciosamente o telhado; a residência do abade de S. Mauro,
com o relevo duma fortaleza, uma boj uda torre, bastiões, seteiras, balu­
artes, e por cima da larga porta saxónica, a pedra de armas do abade
entre os dois ganzepes da ponte levadiça; o solar do conde de Étampes,
cuj o torreão, arruinado no cimo, se arredondava à vista, recortado
como a crista de um galo. Aqui e além, três ou quatro velhos carva­
lhos com as copas agrupadas como enormes couves-flores; cisnes brin­
cando, nas límpidas águas dos viveiros, todas pregueadas de sombra
e de luz; muitos pátios de que se avistavam os pitorescos recantos; o
palácio dos Leões, com as suas ogivas baixas sobre atarracados pilares
saxões, as suas grades de ferro e o seu rugido perpétuo ; por entre todo
este conj unto a flecha lascada da Ave-Maria; à esquerda, a residên­
cia do preboste de Paris, flanqueada de quatro torrinhas finamente
esculpidas; a meio, ao fundo, o palácio de Saint-Pol propriamente dito,
com as suas multiplicadas frontarias devidas aos sucessivos acréscimos
introduzidos desde Carlos V, as excrescências híbridas com que a fan­
tasia dos arquitetos as carregou de há dois séculos para cá, com todas
as absides das suas capelas, todas as empenas das suas galerias, mil
grimpas aos quatro ventos e as suas duas altas torres contíguas cujo
telhado cónico, cercado de ameias na base, lembrava esses chapéus de
bicos de aba revirada.
Continuando a subir os degraus deste anfiteatro de palácios, que
ao longe avulta sobre o solo, transposto um profundo fosso aberto nos
telhados da Cidade, a marcar a passagem da Rua de Santo António,
isto limitando-nos sempre aos principais monumentos, enxergava-se
o palácio de Angoulême, vasta construção de variadas épocas, onde
havia algumas partes novinhas em folha e muito brancas que pouco
melhor se harmonizavam no conjunto do que um remendo encarnado
num gibão azul. Entretanto, o telhado estranhamente bicudo e ele­
vado do palácio moderno, eriçado de goteiras cinzeladas, coberto de
chapas de chumbo onde se contorciam em mil arabescos fantasiosos

159
cintilantes incrustações de cobre dourado, esse telhado tão curiosa­
mente embutido erguia-se graciosamente no meio das pardacentas
ruínas do velho edifício, cujas vetustas e grossas torres, barrigudas
pela idade como pipas curvando-se sobre si mesmas com a velhice e
rasgando-se de cima a baixo, lembravam bojudas panças rebentadas.
Por detrás elevava-se a floresta de agulhas do palácio das Tournelles;
nenhum panorama no mundo, nem em Chambord, nem no Alhambra,
nenhum mais fantástico, mais aéreo, mais prestigioso, do que este bos­
que de flechas, de agulhas, de chaminés, de cata-ventos, de espirais
em parafuso, de claraboias por onde entrava a luz e que pareciam fura­
das por vazador, de pavilhões, de torrinhas fusiformes, ou como então
se dizia, tournelles, todas diferentes, tanto na forma como na altura e no
aspeto. Dir-se-ia gigantesco tabuleiro de xadrez em pedra.
À direita das Tournelles, este feixe de enormes torres de um negro
de tinta, entrando umas nas outras e por assim dizer atadas por um
fosso circular, este torreão muito mais esburacado de seteiras do que
de j anelas, essa ponte levadiça sempre erguida, essa grade de ferro
sempre descida, é a Bastilha. Essas espécies de bicos pretos que
saem de entre as ameias e que de longe tomamos por goteiras são
canhões.
Sob os seus pelouros, ao pé desse formidável edifício, fica a Porta de
Santo António, refugiada entre as suas duas torres.
Para lá das Tournelles, até à muralha de Carlos V, desenrolava-se,
com férteis rincões de verdura e flores, um aveludado tapete de cul­
turas e de parques reais, no meio dos quais se identificava, pelo seu
labirinto de árvores e de ruazinhas, o famoso j ardim Dédalo que Luís
XI oferecera a Coictier. O observatório do doutor elevava-se sobre esse
dédalo como uma grossa coluna isolada com uma casinha por capitel.
Nessa oficina realizou o doutor astrologias tremendas.
É hoje aí a Praça Real.
Como acabámos de dizer, o bairro do palácio, de que tentámos
dar uma ideia ao leitor, embora só lhe indicássemos o principal , ocu­
pava o ângulo que, a nascente, a muralha de Carlos V formava com
o Sena. O centro da Cidade era preenchido por um montão de casas
do povo. Efetivamente, era ali que desembocavam as três pontes da
Cité sobre a margem direita, e as pontes fazem casas antes de palá­
cios. Este amontoado de habitações burguesas, comprimidas como os

160
favos duma colmeia , possuía a sua beleza própria. Sej am os telhados
duma capital, sej am as vagas dum mar, qualquer das coisas é gran­
diosa. Primeiro, as ruas cruzadas e baralhadas, criando no conj unto mil
divertidos desenhos; em redor dos mercados, alargava-se como que
uma estrela de mil pontas. As ruas de S. Dinis e de S. Martinho, com
as suas inúmeras ramificações, subiam atrás uma da outra como duas
grossas árvores cuj os ramos se misturassem. Depois, em linhas tortu­
osas, as ruas do Gesso, da Vidraria, da Tecelagem, etc . , serpenteavam
sobre este conj unto. Havia também belos edifícios que perfuravam a
petrificada ondulação deste mar de empenas. Era, à entrada da Ponte
dos Cambistas, por detrás da qual se via espumar o Sena sob as rodas
da Ponte dos Moleiros, era o Châtelet, não já torre romana, como no
tempo de Julião, o Apóstata, mas sim torre feudal do século XI I I e de
pedra tão rija, que o picão em três horas não lhe arrancava a grossura
de um punho; era o opulento campanário quadrado de Saint-Tacques
de la Boucherie, com os ângulos todos recamados de esculturas, já de
admirar, mesmo que só o concluíssem no século XV. ( Faltavam-lhe,
sobretudo, esses quatro monstros que ainda hoje, empoleirados nas
esquinas do telhado, oferecem o aspeto de quatro esfinges a proporem
à Paris moderna que adivinhe o enigma do antigo; Rault, o escultor,
só em 1 526 lá os colocou, recebendo vinte francos pelo trabalho. ) Era
a Casa dos Pilares, que dava para a Praça de Greve e de que já demos
certa ideia ao leitor. Era S. Gervásio, depois estragado por um portal de
bom gosto; Saint-Méry, cuj as velhas ogivas eram ainda quase arcos de
abóbada; S. João, cuja magnífica agulha se tornara proverbial; eram
mais outros vinte monumentos que não se importavam de mergulhar
as suas maravilhas nesse caos de ruas escuras, apertadas e profundas.
Acrescentem-se as cruzes de pedra esculpida, ainda mais numerosas
nas encruzilhadas do que as forcas; o cemitério dos I nocentes, de que
se avistava ao longe, por cima dos telhados, a cerca arquitetónica; o
pelourinho dos Mercados, com o topo a aparecer entre duas chaminés
da Rua da Cossonnerie; a escada da Cruz do Tahoir, na sua encruzi­
lhada sempre negra de povo; os casebres circulares do mercado do
trigo; os restos da velha muralha de Filipe Augusto, distinguindo-se
aqui e além, afogados nos prédios, torres roídas pela hera, portas em
ruínas, lances de muro aluídos e deformados; o cais com o seu milheiro
de loj as e os açougues sangrentos; o Sena pej ado de barcos, desde o

161
Porto do Feno ao Foro do Bispo, e obtereis uma imagem confusa do
que era, em 1482, o trapézio central da Cidade.
Com os seus dois bairros, um de palácios, outro de casas, o ter­
ceiro elemento do aspeto que a Cidade proporcionava era uma longa
zona da abadias que a orlavam, em quase todo o seu contorno, do nas­
cente ao poente, e que, na retaguarda da divisória de fortificações que
fechava Paris, lhe criava uma segunda muralha interior, de conventos
e de capelas. Assim, logo ao lado do parque das Tournelles, entre a
Rua de Santo António e a velha Rua do Templo, havia Santa Catarina,
com o seu imenso terreno de cultura e que só a muralha de Paris
limitava . Entre a velha e a nova Rua do Templo erguia-se o Templo,
sinistro molho de torres, alto, de pé e isolado no centro de um vasto
recinto ameado. Entre a Rua Nova do Templo e a Rua de S. Martinho,
no meio de jardins, elevava-se a abadia de S. Martinho, soberba igreja
fortificada, com uma cintura de torres e uma tiara de campanários só
ultrapassada em poder e em esplendor por Saint-Germain-des-Prés.
Entre as duas ruas de S. Martinho e de S. Dinis, estendia-se a cerca
da Trindade. Finalmente, entre a Rua de S. Dinis e a Rua Montorgueil,
as Filhas de Deus. Ao lado, percebiam-se os telhados apodrecidos e a
cerca desempedrada do Pátio dos M ilagres, único elo profano nessa
devota cadeia de conventos.
Finalmente, o quarto compartimento, que se desenhava por si no
aglomerado de telhados da margem direita e que ocupava o ângulo oci­
dental da cerca e, a j usante, a margem do rio, era um novo núcleo de
palácios e solares, apertados aos pés do Louvre. O velho Louvre de Filipe
Augusto, esse desmesurado edifício cuja torre maior reunia à sua volta
vinte e três torres mestras, para não falar nas torrinhas, de longe parecia
encaixado nos telhados góticos do paço de Alençon e do Petit-Bourbon.
Esta hidra de torres, gigantesca guarda de Paris, com vinte e quatro cabe­
ças sempre espetadas, dorsos monstruosos, guarnecidos de chumbo ou
cobertos de escama das ardósias, todos a jorrar reflexos metálicos, ter­
minava, de maneira surpreendente, a configuração da Cidade a poente.
Assim, oferecia-se-nos um imenso amontoado, isso a que os
Romanos chamavam insula, de casas burguesas, flanqueado, à direita
e à esquerda, por dois blocos de palácios, coroados, um pelo Louvre,
outro pelas Tournelles, limitado a norte por uma comprida cintura de
abadias e de recintos cultivados, tudo aparecendo à vista amalgamado e

1 62
fundido. Dominando esses mil edificios, cujos telhados de ardósia e de
telhas recortavam, por cima uns dos outros, tantas cordilheiras extrava­
gantes, as torres tatuadas, estampadas e guilhochadas das quarenta e
quatro igrejas da margem direita; miríades de ruas ao través; por limite,
a um lado, uma cerca de altas muralhas com torres quadradas (a da
Universidade era de torres redondas); do outro lado, o Sena, cortado de
pontes e arrastando grande número de barcos: eis a Cidade do século XV.
Para lá das muralhas, alguns arrabaldes comprimiam-se às portas,
mas menos numerosos e mais dispersos do que os da Universidade.
Eram, por detrás da Bastilha, vinte casebres enovelados à roda das
curiosas esculturas da Cruz Faubin e dos arcobotantes da abadia de
Santo António dos Campos; depois, Popincourt, perdido entre as searas;
a seguir, a Courtille, bonita aldeia de tabernas; o burgo de S. Lourenço,
com a sua igreja e respetivo campanário que de longe parecia j un­
tar-se às torres agudas da Porta de S. Martinho; o arrabalde de S. Dinis,
com o vasto cercado de Saint-Ladre; para lá da Porta Montmartre, a
Grange-Bateliére, cingida de muralhas brancas; atrás dela, com as suas
encostas de cré, Montmartre, que então possuía quase tantas igrej as
como moinhos e que só ficou com os moinhos, pois a sociedade agora
não pede mais nada senão o pão do corpo. Finalmente, para além do
Louvre, via-se alongar pelos prados o subúrbio de Santo Honorato, já
então assaz importante, e verdej ar a Pequena Bretanha e alargar-se a
Feira dos Porcos, no meio da qual avultava o horrível forno destinado
a assar os moedeiras falsos. Entre a Courtille e S. Lourenço, o olhar já
notara, na coroa de um outeiro acocorado sobre planícies desertas,
uma espécie de edificio que lembrava de longe uma colunata em ruí­
nas, erguido sobre um envasamento escavado. Não se tratava nem do
Parténon, nem de um templo a Júpiter Olímpico: era Montfaucon.
Agora, se a enumeração de tantos edifícios, por muito resumida que
a quiséssemos fazer, não pulverizou no espírito do leitor, à medida que
a construíamos, a imagem geral da velha Paris, resumi-la-emos em
breves palavras. Ao centro, a ilha da Cité, lembrando pela forma uma
enorme tartaruga e espetando as suas pontes escamadas de telhas,
como patas, debaixo da sua carapaça cinzenta de telhados. À esquerda,
o trapézio monolítico, firme, denso, cerrado, eriçado, da Universidade.
À direita, o amplo semicírculo da Cidade, muito mais salpicado de
jardins e de monumentos. Os três blocos Cité, Universidade, Cidade
-

163
- sulcado de inúmeras ruas. Atravessando-a de ponta a ponta, o "nutri­
tivo Sena", como lhe chama o P.e Ou Breu!, obstruído de ilhas, de pontes
e de barcos. A toda a roda, imensa planície remendada de mil espécies
de culturas e semeada de lindas aldeias; à esquerda, Issy, Varivres,
Vaugirard, Montouge, Gentilly com a sua torre quadrada, etc . ; à direita,
outras vinte, desde Conflans até Ville-L'Évêque. No horizonte, uma orla
de cerras dispostos em circulo como o rebordo de uma bacia. Por fim,
a distância, ao nascente, Vincennes com as suas sete torres quadrangu­
lares; ao sul, Bicêtre e as suas pontiagudas torrinhas; ao norte, S. Dinis
e a sua agulha ; para oeste, Saint-Cloud e o seu torreão. Era esta a Paris
que viam, do alto das torres de Nossa Senhora, os corvos que viviam
em 1482.
Não obstante, foi desta cidade que Voltaire disse que antes de Luís
XIV ela não possuía senão quatro monumentos bonitos: a cúpula da
Sorbona, o Val-de-Grâce, o Louvre moderno e já não sei qual era o
quarto - talvez o Luxemburgo. Felizmente não foi por isso que Voltaire
deixou de escrever o Cândido, nem tão-pouco deixou de ser, entre todos
os homens que se têm sucedido na longa série da humanidade, aquele
que possuiu o riso mais diabólico. O que aliás demonstra que se pode
ser um talento notável e não perceber patavina de uma arte que não é
a nossa . Não era Moliere que imaginava render grande preito a Rafael
e a Miguel  ngelo quando lhes chamava esses Mignards41 do seu tempo?
Mas voltemos a Paris e ao século XV.
Não era nessa época apenas uma linda cidade; era uma cidade
homogénea , um produto arquitetónico e histórico da Idade Média, uma
crónica de pedra. Era uma urbe formada apenas de duas camadas,
a camada românica e a camada gótica, pois a camada romana havia
muito que se sumira, exceto nas Termas de Juliano, onde ainda perfu­
rava a crosta espessa da Idade Média. Quanto à camada céltica , nem
sequer se encontrava uma amostra quando se escavavam poços.
Dali a cinquenta anos, quando o Renascimento veio j untar a esta
unidade tão severa e, mesmo assim, tão variada o luxo deslumbrante
das suas fantasias e dos seus sistemas, as suas orgias de arcos plenos
romanos, de colunas gregas e abatimentos góticos, a sua escultura
tão terna e tão ideal, o seu gosto particular pelos arabescos e pelos

41 I rmãos pintores do século XVI I I .

164
acantos, o seu paganismo arquitetural contemporâneo de Lutero, Paris
foi talvez ainda mais formoso, embora mais escasso de harmonia à
vista e ao pensamento. Este esplêndido instante durou , contudo, pouco.
O Renascimento não foi imparcial; não se contentou em edificar, quis
também deitar abaixo. É verdade que precisava de espaço. Também a
Paris gótica não esteve completa mais de um minuto. Mal acabavam
Saint-Jacques de la Boucherie, começavam a demolir o velho Louvre.
Depois, a grande cidade foi-se deformando de dia para dia. A Paris
gótica, debaixo da qual desaparecia a Paris românica, apagou-se por
sua vez. Pode-se, porém, dizer qual foi a Paris que a substituiu?
Há a Paris de Catarina de Médicis, nas Tulherias42, a Paris de
Henrique I I , na Câmara Municipal - dois edifícios ainda de requintado
gosto -; a Paris de Henrique IV, na Praça Real - fachadas de tij olos com
esquinas de cantaria e telhados de ardósia, casas tricolores -; a Paris
de Luís XI I I , no Val-de-Grace - uma arquitetura esmagada, atarracada,
de abóbadas em asa de cesto, não sei o quê de pançudo na coluna e de
marreco na cúpula -; a Paris de Luís XIV, nos I nválidos - grande, rico,
dourado e frio -; a Paris de Luís XV, em S. Sulpício - volutas, laços de
fitas, nuvens, aletrias e chicórias, tudo de pedra -; a Paris de Luís XVI ,
no Panteão - S. Pedro de Roma mal copiado (o edifício tem-se desen­
volvido desaj eitadamente, o que não lhe corrigiu as linhas) -; a Paris da
República na Escola de Medicina - um pobre gosto grego e romano, que
se parece tanto com o Coliseu ou com o Parténon, como a Constituição

42 Vimos, com dor misturada de indignação, que se pensava em aumentar, em


refundir, em transformar, isto é , em destruir, este admirável palácio. Os arquitetos
do nosso tempo têm a mão pesada d e mais para tocarem nestas delicadas obras do
Renascimento. Continuamos sempre à espera de que não se atreverão a tanto. Aliàs,
esta demol ição das Tulherias não seria agora apenas uma brutal via de facto que
faria corar um vândalo ébrio, mas também seria um ato de traição. As Tulherias não
são apenas uma obra-prima da arte do século XVI I , mas sim uma página da História
do século XIX. Este palácio j á não é do rei , mas sim do povo. Deixemo-lo tal como
está . A nossa revolução marcou-o duas vezes na fronte. Numa das suas fachadas, há
as balas do 10 de agosto; na outra, as balas do 29 de j ulho. É santo.
Paris, 7 de abril de 183 1 . (Nota do A u tor na quinta edição. )

Apesar desta santidade, o Autor ainda viu, em 184 1 , esse mesmo povo incendiar
o palácio durante os vandalismos da Comuna e , treze anos depois, decretada por de­
cisão do Parlamento, consumada a sua demolição, pulverizando os últimos vestígios
do paço rea l . Victor Hugo apenas lhe sobreviveu um ano.

165
do ano I I I se parece com as leis de Minas: chama-se em arquitetura o
gosto Messidor -; a Paris de Napoleão, na Praça Vendôme - aquela é
sublime, uma coluna de bronze feita de peças de artilharia -; a Paris
da Restauração, na Bolsa - um peristilo muito branco, aguentando um
friso muito liso, tudo quadrado e que custou vinte milhões.
A cada um destes característicos monumentos liga-se por uma
identidade de gosto, de modo e de atitude, certa porção de prédios
dispersos pelos vários bairros e que o olho do conhecedor distingue
e facilmente data. Quando se sabe ver, encontra-se o espírito de um
século e a fisionomia de um rei até na aldraba duma porta .
Por isso, a Paris atual não oferece nenhuma fisionomia geral. É uma
coleção de amostras de vários séculos, as melhores das quais desa­
pareceram. A capital só aumenta em prédios, e que prédios! No j eito
como vai Paris, há de renovar-se de cinquenta em cinquenta anos.
Também o significado histórico da sua arquitetura se apaga todos os
dias. Cada vez mais rareiam os monumentos e até parece que os vemos
submergirem-se a pouco e pouco, afogados nos prédios. Os nossos pais
tiveram um Paris de pedra; os nossos filhos terão um Paris de estuque.
Quanto aos monumentos modernos da nova Paris, de bom grado
nos escusamos a falar neles. Não que os não admiremos como cumpre.
A Santa Genoveva do senhor Sotifflot é decerto o mais lindo pastel de
Saboia que até hoj e se fabricou em cantaria. O palácio da Legião de
Honra é igualmente um primor de pastelaria, muito distinto. A cúpula
do Mercado do Trigo é um boné de j óquei inglês, alçado a grande
escala. As torres de S. Sulpício são dois grossos clarinetes, um feitio
como qualquer outro; o telégrafo retorcido e truanesco cria uma amá­
vel variante em cima da sua cobertura. S. Roque possui um portal
só comparável em magnificência a S. Tomás de Aquino. Tem tam­
bém um calvário, esculpido em relevo, num subterrâneo, e um sol de
talha dourada. Tudo coisas absolutamente maravilhosas. A lanterna
do labirinto do Jardim das Plantas é também extremamente enge­
nhosa. Quanto ao palácio da Bolsa , grego pela sua colunata, romano
pelo arco pleno das suas portas e j a nelas, do Renascimento pela sua
grande abóbada de arco abatido, é indubitavelmente um monumento
muito correto e muito puro. A prova está em que o coroaram dum ático
como nem em Atenas se encontra, bela linha reta, graciosamente cor­
tada aqui e além por tubos de chaminé. Aj untemos que, se é de regra

166
que a arquitetura dum edifício se adapte ao seu destino de modo
tal que esse destino salte à vista apenas pela aparência do edifício,
não despertará. muita admiração um monumento que pode ser indi­
ferentemente um paço real, uma câmara dos comuns, uma câmara
municipal, uma escola, um picadeiro, uma academia, um armazém,
um tribunal, um museu, um quartel , um sepulcro, um templo, um tea­
tro. Por enquanto é uma Bolsa. Por outro lado, um monumento deve
estar de acordo com o clima. Este foi evidentemente construído para
o nosso céu frígido e pluvioso. Possui um telhado quase chato como
no Oriente , o que faz com que, de inverno, quando cai neve, varram o
telhado e, claro, os telhados foram feitos para serem varridos. Quanto
ao destino de que há pouco falámos, cumpre-o às mil maravilhas: é
Bolsa na França como podia ser templo na Grécia. Sem dúvida que o
arquiteto se viu em palpos de aranha para esconder o mostrador do
relógio, que destruiria as belas linhas da fachada, mas, em compen­
sação temos essa colunata que circula à roda do monumento e pela
qual, em dias de grande solenidade religiosa, pode desfilar maj es­
tosamente a procissão dos agentes de câmbios e dos corretores de
comércio.
Estão ali, pela certa, soberbíssimos monumentos. Juntemos-lhes
ruas estupendas, divertidas e variadas, como a Rua de Rívoli, e não
perco a esperança de que Paris, visto de balão, ofereça um dia aos
olhos essa opulência de linhas, essa riqueza de minudências, essa
variedade de aspetos, esse não sei quê de grandioso no simples e de
inesperado no belo, que caracteriza um tabuleiro de xadrez.
Contudo, por muito admirável que acheis a Paris atual, restaurai a
Paris do século XV, reconstruí-a no pensamento, olhai o dia por entre
essa surpreendente sebe de agulhas, de torres e de campanários,
espalhai por essa imensa cidade, rasgai na ponta das ilhas, dobrai
nos arcos das pontes o Sena, com as suas largas poças verdes e ama­
relas, mais mutável do que a pele duma cobra, destacai nitidamente
no horizonte azul o perfil gótico desta velha Paris, fazei-lhe flutuar o
contorno numa neblina de inverno que se agarre às suas numerosas
chaminés, envolvei-a numa noite profunda e observai o jogo extrava­
gante das trevas e das luzes nesse sombrio labirinto de edifícios; atirai
com um raio de luar que a desenhe vagamente e faça sair do nevoeiro
as grandes cabeças das torres, ou retomai esta negra silhueta, retocai

167
a sombra dos mil ângulos agudos das flechas e das empenas e fazei-a
ressaltar, mais denteada do que a maxila dum tubarão, sobre o céu
acobreado do sol-posto. - E depois comparai.
E se quiserdes receber da velha urbe uma impressão que a moderna
já não vos seria capaz de transmitir, subi, numa manhã de festa, ao nas­
cer do Sol da Páscoa ou do Pentecostes, subi a qualquer ponto elevado
de onde domineis a cidade inteira e assisti ao acordar dos carrilhões.
Vede como, a um sinal partido do céu, pois é o Sol que o dá, estas mil
igrej as estremecem todas ao mesmo tempo. São primeiro badaladas
soltas que vão duma igreja à outra, como músicos a prevenir de que se
vai começar; depois, de repente, vede, pois parece que há ocasiões em
que as orelhas também têm o dom da visão, vede elevar-se no mesmo
instante, de cada torre, como que uma coluna de som, como que um
fumo de harmonia. Primeiro, a vibração de cada sino sobe direita, pura
e, por assim dizer, separada das outras, no esplêndido céu matinal.
Depois, pouco a pouco, ao avolumarem-se, fundem-se, misturam-se,
apagam-se umas nas outras e amalgamam-se num concerto magnífico.
Já não é mais do que uma massa de vibrações sonoras que sem cessar
se desprende dos inúmeros campanários e que flutua, ondula, salta,
turbilhona sobre a cidade e prolonga, muito para lá do horizonte, o
círculo ensurdecedor das suas oscilações.
Contudo, este mar de harmonia não é um caos. Por muito grande
e profundo que seja, não perdeu a transparência. Vereis ali serpen­
tear à parte cada grupo de notas que se evola dos repiques; podereis
ali seguir o diálogo, ora grave, ora penetrante, da matraca e do sino
grande; vereis ali saltar as oitavas duma torre para outra; vereis desfe­
rirem voo, ligeiras e sibilantes, as do sino de prata; caírem quebradas
e coxas as do sino de pau; admirareis, no meio delas, a opulenta gama
que desce e sobe sem cessar pelos sete sinos de Santo Eustáquio; vereis
correr, de um lado para o outro, notas claras e rápidas que traçam três
ou quatro ziguezagues luminosos e desaparecem como relâmpagos. Lá
em baixo, é a abadia de S. Martinho, cantora áspera e fanhosa; aqui, a
voz sinistra e desabrida da Bastilha; do outro lado, a enorme torre do
Louvre, com a sua voz de baixo cantante. O real carrilhão do Palácio
lança, sem descanso, por todos os lados, resplandecentes trilos sobre
os quais caem, com intervalos iguais, as pesadas badaladas do sino
de correr de Nossa Senhora que o fazem chispar como a bigorna sob

168
o martelo. De vez em quando vedes passar sons de todas as formas,
que provêm do tríplice dobre de Saint-Germain-des-Prés. Depois, tam­
bém de tempos a tempos, esta massa de ruídos sublimes entreabre-se
e dá passagem à stetta da Ave-Maria, que brilha e cintila como um
penacho de estrelas. Por baixo, no mais profundo do concerto, distin­
guis confusamente o canto interior das igrej as que transpira através
dos vibrantes poros das suas abóbadas. É sem dúvida uma ópera que
merece a pena ser ouvida. Geralmente, o rumor que de dia se escapa
de Paris é a cidade que fala; à noite, é a cidade que respira; aqui é a
cidade que canta . Apurai, portanto, o ouvido para todas estas torres,
espalhai sobre o conj unto o murmúrio de meio milhão de homens, o
queixume eterno do rio, o sopro do vento, o quarteto grave e longínquo
das quatro florestas dispostas sobre os cerros do horizonte como imen­
sas caixas de órgãos, apagai assim, como que numa meia-tinta, tudo o
que o carrilhão central tiver de excessivamente rouco e de demasiado
agudo e dizei se conheceis no mundo algo de mais rico, de mais alegre,
de mais dourado, de mais deslumbrante, do que este tumulto de sinos
e de repiques; do que esta fornalha de música; do que estas dez mil
vozes de bronze a cantarem ao mesmo tempo nas flautas de pedra com
trezentos pés de altura; do que esta cidade, que já não é mais do que
uma orquestra; do que esta sinfonia que travej a como uma tempestade.

1 69
LIVRO QUARTO

As boas almas

Dezasseis anos antes da época em que esta história decorre, numa


bela manhã de domingo de Quasímodo43, após a missa na igreja de Nossa
Senhora, haviam deposto uma criatura viva sobre a banca de madeira
chumbada no adro, do lado esquerdo, diante dessa grande imagem de
S. Cristóvão que a figura esculpida em pedra do cavaleiro messire António
des Essarts desde 1413 contemplava de j oelhos, até que acharam por bem
derrubar o santo e o fiel. Era sobre esta banca que costumavam expor as
crianças abandonadas à caridade pública. Levava-as dali quem as qui­
sesse. Diante da banca havia uma bacia de cobre destinada às esmolas.
A espécie de ente vivo que jazia naquelas tábuas na manhã de
Quasímodo do ano do Senhor de 1467 parecia despertar, em alto grau,
a curiosidade do grupo, bastante considerável, que se aglomerara à roda
da banca. Esse grupo compunha-se em grande parte de criaturas do
belo sexo, quase todas velhas.
Na primeira fila, e mais debruçadas sobre a banca, notavam-se qua­
tro que, pela cogula cinzenta, espécie de sotaina, se adivinhava estarem
ligadas a qualquer confraria religiosa. Não vejo razão para que a História
não transmita à posteridade os nomes destas quatro discretas e vene­
randas damas. Eram Inês la Herme, Jehanne de la Tarme, Henriqueta la
Gaultiere e Gauchere la Violette, todas as quatro viúvas, todas as quatro
zeladoras da capela Estêvão Haudry, saídas de sua casa, com autoriza­
ção da superiora e em conformidade com os estatutos de Pedro d'Ailly, a
fim de irem ouvir o sermão.

43 O primeiro domingo depois da Páscoa, também denominado de Pascoela.

170
Aliás, se estas ilustres haudriettes44 observavam, naquela altura, os
estatutos de Pedro d 'Ailly, violavam, pela certa e com grande satisfa­
ção, os de Miguel de Brache e do cardeal de Pisa, que tão desumana­
mente lhes impunham o silêncio.
- Que vem a ser isto, minha irmã? - perguntava Inês à Gauchére
enquanto examinava o entezinho exposto que, assustado com tantos
olhares, chiava e se contorcia sobre a banca de madeira.
- Que vai ser de nós - comentava Jehanne - se é assim que agora
fazem os filhos?
- Não percebo nada de crianças - retorquiu Inês - mas deve ser
pecado olhar para esta.
- Não é uma criança, I nês.
- É um macaco atrofiado - observava a Gauchére.
- É um milagre - tornava H enriqueta la Gaultiére.
- Nesse caso - notava Inês -, é o terceiro desde o domingo de
Laetare45 para cá. Porque ainda não há oito dias que tivemos o milagre
daquele que caçoava dos peregrinos, castigado divinamente por Nossa
Senhora de Aubervilliers, e já era o segundo milagre do mês.
- Este tal menino abandonado é um autêntico monstro de abomina­
ção - comentava Jehanne.
- Berra a ponto de ensurdecer um chantre - continuava a Gauchére.
- Vê se te calas, meu chorãozeco !
- E dizer-se que é o Sr. de Reims quem expede ao Sr. de Paris avan-
tesmas destas!
- Calculo - afirmou Inês la H erme - que isto é um brutinho, um ani­
mal, o produto de um j udeu com uma porca; qualquer coisa enfim que
não é cristã e que é melhor atirar à água ou à fogueira.
- Estou convencida - prosseguia a Gaultiére - de que não há nin­
guém que lhe pegue.
- Santo Deus! - exclamava Inês. - I maginai que levam este mons­
trozinho a amamentar às pobres amas que estão nos hospicios dos
enj eitados, ali da parte de baixo da viela, quando se desce para o rio,
mesmo pegado com o Sr. Bispo! Eu antes queria dar de mamar a um
vampiro !

4 4 Religiosas hospitaleiras estabelecidas e m Paris, n o século XI I .


4 5 O quarto domingo da Quaresma.

171
- É mesmo uma inocente esta pobre Herme! - lamentava Jehanne.
- Pois não vedes, minha irmã, que este monstrozinho tem pelo menos
quatro anos e que lhe apeteceria mais um pedaço de carne assada no
espeto do que o vosso mamilo?
Realmente já não era um recém-nascido o tal "monstrozinho". (Nós
mesmos sentir-nos-íamos bastante atrapalhados para o qualificar de outra
maneira.) Era uma massa pequena, muito angulosa e muito irrequieta,
aprisionada num saco de lona, que tinha impresso o monograma de mes­
sire Guilherme Chartier, nessa altura bispo de Paris, saco esse do onde saía
uma cabeça. Esta cabeça era uma coisa bastante disforme. Apenas se via
um matagal de cabelos ruivos, um olho, uma boca e alguns dentes. O olho
chorava, a boca gritava e os dentes pareciam não pretender outra coisa
senão morder. Tudo isso se debatia no saco, com grande estupefação do
magote que engrossava e se renovava constantemente à sua roda.
Dona Aloísa de Gondelaurier, mulher rica e fidalga que levava pela
mão uma bonita menina de uns seis anos e que trazia um comprido véu
pendente do prego de ouro da touca, parou ao passar diante da banca e
observou, por instantes, a desgraçada criatura, enquanto a sua encanta­
dora filhinha, Flor-de-lis de Gondelaurier, toda vestida de seda e veludo,
soletrava com o seu lindo dedito o letreiro permanentemente preso à
banca: ENJ EITADOS.
- Na verdade - comentou a senhora, virando-se com repugnância -,
supunha que aqui só expunham crianças.
Voltou as costas, atirando para a bandeja com um florim de prata que
tilintou entre os liards e fez arregalar os olhos das pobres irmãs da capela
Estêvão Haudry.
Dali a instantes, o grave e douto Roberto Mistricolle, protonotário
do rei, passou segurando um enorme missal com um braço e a mulher
(dona Guillemette la Mairesse) com o outro, trazendo assim à ilharga os
seus dois orientadores, espiritual e temporal.
- Um enjeitado! - disse, depois de examinar o objeto. Ao que parece,
encontraram-no em cima do parapeito do rio Flégeton!
- Só se lhe vê um olho - observou dona Guillemette. - Tem uma ver­
ruga a tapar o outro.
- Não é uma verruga - corrigiu mestre Roberto Mistricolle. - É um
ovo que encerra outro demónio exatamente igual, o qual traz outro avi­
nho que por sua vez esconde outro diabo, e assim sucessivamente.

1 72
- Como sabeis isso? - perguntou Guillemette la Mairesse.
- Sei-o, porque o devo saber - respondeu o protonotário.
- Sr. Protonotário - perguntou a Gauchére -, que prognosticais a
respeito desta suposta criança abandonada?
- As maiores desgraças - agoirou M istricolle.
- Valha-me Deus! - exclamou uma velha do auditório. Por isso é que
já houve uma medonha peste o ano passado e dizem que os Ingleses
vão desembarcar, em grande força, em Harefleu.
- Se calhar, isso vai impedir a rainha de vir a Paris no mês de setem­
bro observou outra. - O negócio corre já tão mal !
- Sou de parecer - exclamou Jehanne de la Tarme - que mais valia,
para os camponeses de Paris, que deitassem este magicozinho em
cima de um molho de lenha do que sobre uma prancha.
- Um molho de lenha a arder e dos bons! - acrescentou a velha.
- Seria mais prudente, sim ! - concordou Mistricolle.
Havia instantes que um padre ainda novo escutava o raciocínio das
haudriettes e as sentenças do protonotário. Era um semblante severo,
de testa espaçosa e olhar profundo. Afastou silenciosamente a turba,
examinou o magicozinho e estendeu a mão sobre ele. Era tempo, pois
todas as beatas lambiam já os beiços na perspetiva do molho de lenha
a arder e dos bons.
- Adoto esta criança - declarou o sacerdote.
M eteu-a debaixo da batina e levou-a. A assistência seguiu-o com
olhares espavoridos. Dali a instantes, o padre desaparecia pela Porta
Vermelha que nesse tempo ligava a igreja com o claustro.
Passado o primeiro espanto, Jehanne de la Tarme inclinou-se para
o ouvido da Gaultiére e cochichou-lhe:
- Bem vos dizia eu, minha irmã, que este j ovem clérigo, o Sr. Cláudio
Frollo, é um feiticeiro.

1 73
II

Cláudio Frollo

Com efeito, Cláudio Frollo não era uma personagem vulgar.


Pertencia a uma dessas famílias médias que, na impertinente lin­
guagem do século passado, se chamavam, indiferentemente, alta-bur­
guesia ou pequena-nobreza.
Herdara esta família dos irmãos Paclet o feudo de Tirechappe,
dependente do bispo de Paris e cuj as vinte e uma casas tinham sido,
no século Xl l l , objeto de tantas querelas perante o provisor eclesiás­
tico. Cláudio Frollo, como senhor desse feudo, era um dos vinte e sete
senhores que se pretendiam foreiros de Paris e seus arrabaldes, e por
muito tempo o seu nome se inscreveu, nessa qualidade, entre o palácio
de Tancarville, pertença de mestre Francisco de Rez, e o colégio de
Tours, no cartulário depositado em S. Martinho dos Campos.
Desde criança que Cláudio Frollo fora destinado ao estado eclesiás­
tico. Tinham-no ensinado a ler em latim e a baixar os olhos e a falar de
mansinho. Ainda pequeno, o pai enclausurara-o no colégio de Torchi,
na Universidade. Ali crescera, sobre o missal e o léxico.
Era , aliás, uma criança grave, séria, que estudava com ardor e
aprendia depressa. No recreio, não soltava gritos, misturava-se pouco
com as bacanais da Rua do Fouarre, não sabia o que era dare alapas
et capillos laniare46 e não fizera figura nenhuma nesse motim de 1463,
que os analistas solenemente registam sob o título de "sexto motim da
Universidade". Raras vezes motejava dos pobres escolares de Montagu
por causa das cappettes de que tiravam o nome, ou dos bolseiros do

46 Dar estalos e arrancar os cabelos.

1 74
Colégio de Dormans devido à sua tonsura rasa e ao seu capote tripar­
tido de pano esverdeado, azul e violeta, azurini coloris et bruni, como
diz o alvará do cardeal das Quatro Coroas.
Em compensação, era assíduo às grandes e pequenas aulas da Rua
João Beauvais. O primeiro aluno que o abade de S. Pedro do Vale,
no momento de começar a lição de Direito Canónico, sempre desco­
bria, mesmo diante da sua cátedra, encostado a uma coluna da escola
Saint-Vendresile, era Cláudio Frollo, armado do seu tinteiro de chifre,
mascando a pena, rabiscando sobre o joelho coçado e, de inverno, a
soprar nos dedos. O primeiro ouvinte que messire Miles d'Isliers, dou­
tor em Direito, via chegar, todas as segundas-feiras de manhã, muito
esbaforido, logo que abriam as portas da escola do Chef-Saint-Denis, era
Cláudio Frollo. Por isso, aos dezasseis anos, o jovem estudante pôde fazer
frente, em teologia mística, a um padre da Igreja; em teologia canónica, a
um padre dos concílios; em teologia escolástica, a um doutor da Sorbona.
Passada a Teologia, precipitara-se no Direito. Do Mestre das Sentenças
caíra nos Capitulares de Carlos Magno. E, sucessivamente, devorara, no
seu apetite de ciência, decretais sobre decretais, como as de Teodoro,
bispo de Hispália; as de Bouchard, bispo de Vórmia; as de Ivo, bispo de
Chartres; de seguida, o Decreto de Graciano que sucedeu aos Capitulares
de Carlos Magno; depois a coletânea de Gregório IX; a seguir a epístola
Super specula de Honório I l i . Tornou-se-lhe familiar, tornou-se-lhe trans­
parente, este vasto e tumultuoso período do direito civil, do direito canó­
nico, em luta e em trabalho, no caos da Idade Média, período esse que
o bispo Teodoro inicia em 6 18 e que o papa Gregório encerra em 1227.
Digeridas as leis, virou-se para a M edicina e para as artes liberais.
Estudou a ciência das ervas, a ciência dos unguentos. Especializou-se
em febres e em contusões, em ferimentos e em apostemas. Jacquer
d ' Espars recebê-lo-ia como médico-físico, e Ricardo H ellain, como
médico-cirurgião. De igual forma percorreu todos os graus de licen­
ciatura, magistério e doutorado das artes. Estudou línguas, o latim, o
grego, o hebraico, tríplice santuário nesse tempo pouco frequentado.
Uma autêntica febre de adquirir e de entesourar, no que respeitava a
ciência. Aos dezoito anos, passara nas quatro faculdades. Parecia que,
para aquele rapaz, a vida só visava um fim: saber.
Foi mais ou menos por essa altura que a excessiva estiagem de
1466 fez grassar essa grande peste que arrebatou mais de quarenta

175
mil criaturas no viscondado de Paris e, entre outras, diz João de Troyes,
"mestre Arnaldo, astrólogo do rei, que era um homem muito honrado,
sábio e agradável". Espalhou-se o rumor na Universidade de que a Rua
Tirechappe fora particularmente devastada pela epidemia. Ali residiam,
no centro do seu feudo, os pais de Cláudio. O jovem estudante correu
alarmadíssimo à casa paterna. Ao entrar, depararam-se-lhe o pai e a mãe
mortos desde a véspera. Um irmão muito pequeno, ainda de peito, man­
tinha-se vivo, chorando abandonado no berço. Era tudo o que restava a
Cláudio da sua família. O moço pegou na criança debaixo do braço e saiu
preocupado. Até ali vivera apenas na ciência; agora começava a viver na
vida.
Esta catástrofe abriu uma crise na existência de Cláudio, órfão,
primogénito, chefe de família aos dezanove anos, viu-se brutalmente
arrebatado das meditações da escola para as realidades do mundo.
Então, movido de piedade, dedicou-se apaixonadamente a esse irmão­
zinho. Estranha e enternecedora coisa era essa afeição humana em
quem até ali só amara os livros.
Essa amizade atingiu proporções singulares. Separado dos pais
desde criança, mal os conhecendo, enclausurado e como que empare­
dado nos seus livros, ávido, sobretudo, de estudar e de aprender, atento
exclusivamente, até então, à sua inteligência que se dilatava na ciência,
à sua imaginação que se expandia nas letras, o pobre estudante ainda
não dispusera de tempo para reparar onde tinha o coração. Esse irmão
pequeno, sem pai nem mãe, criancinha que de repente lhe caía do
céu para os braços, transformou-o num homem novo. Reconheceu que
havia no mundo outras coisas além das especulações da Sorbona e dos
versos de Homero; que o homem precisa de afeição; que a vida, sem
ternura e sem amor, não passava duma engrenagem seca, estridente,
dilacerante. Somente, contudo, admitiu - pois estava ainda na idade
em que as ilusões não se substituem senão por outras ilusões - que o
amor do sangue e da família era o único necessário e que querer a um
irmãozinho era o bastante para preencher uma existência inteira .
Passou , pois, a amar o s e u pequeno Jehan c o m a paixão de um
carácter já profundo, ardente, concentrado. Essa pobre e frágil cria­
tura, bonita , loura, rosada e de cabelos anelados, esse órfão sem mais
amparo senão o de outro órfão, agitava-o desde o fundo das entranhas;
e, grave pensador como era, consagrou-se, com infinita misericórdia,

176
à ponderação no que respeitava a Jehan. Preocupou-se e cuidou dele
como de uma coisa frágil e muito recomendada. Tornou-se, para a
criança, mais do que um irmão: foi a sua mãe.
O pequeno Jehan ainda mamava quando perdera a mãe. Cláudio
pô-lo numa ama. Além do feudo de Tirechappe, herdara do pai o feudo
do Moinho, dependente da torre quadrada de Gentilly. Era um moinho
no alto duma colina, j unto do castelo de Winchestre (Bicêtre). A moleira
andava a criar uma bonita criança e não ficava longe da Universidade.
Cláudio levou-lhe pessoalmente o pequeno Jehan.
A partir de então, sentindo que tinha um fardo a aguentar, tomou
a vida muito a sério. O pensamento no irmãozinho tornou-se não só
o recreio, como também a meta dos seus estudos. Resolveu consa­
grar-se por completo a um futuro de que se considerava responsá­
vel perante Deus e de não tomar outra esposa ou outro filho que não
fosse a felicidade e a fortuna de seu irmão. Consagrou-se assim, mais
do que nunca, à vocação sacerdotal . O seu merecimento, sapiência
e condição de vassalo imediato do bispo de Paris franqueavam-lhe
de par em par as portas da I grej a . Por dispensa especial da Santa
Sé, aos vinte anos sagrava-se padre e celebrava, como o mais novo
dos capelães de Nossa Senhora, no altar que tem a designação de altare
pigrorum47 , por causa da missa tardia que ali se reza.
Mais do que nunca enfronhado nos seus queridos livros, que só
fechava para correr, por uma hora, ao feudo do Moinho, essa mistura
de erudição e de austeridade, tão rara nos seus anos, conquistara-lhe
imediatamente o respeito e a admiração do claustro. Do claustro, a sua
reputação de douto passara ao povo, entre o qual, como era frequente
nesses tempos, ela se desviara um pouco para a fama de feiticeiro.
Foi no momento em que, no domingo de Quasímodo voltava de
dizer a missa dos preguiçosos no seu altar, que ficava do lado da porta
do coro, pegada à nave da direita, próxima da imagem da Virgem, que
o grupo de velhas, a rosnarem em volta da cama das crianças abando­
nadas, lhe despertara a atenção.
Aproximara-se então da desgraçada criaturinha, tão odiada e tão
ameaçada. Aquela miséria, aquela deformidade, aquele abandono,
a lembrança do irmãozinho, a hipótese, que de repente lhe tocou o

47 Altar dos preguiçosos.

177
espírito, de que, se morresse, também o seu queridinho Jehan poderia
igualmente vir a ser atirado miseravelmente para a prancha das crian­
ças abandonadas, tudo isso acudira-lhe simultaneamente ao coração;
movera-o uma grande compaixão, e ele levara a criança.
Quando a tirou do saco, achou-a, realmente, bem disforme. O pobre
diabito tinha uma verruga sobre o olho esquerdo, a cabeça entalada
entre os ombros, a, coluna vertebral arqueada, o esterno proeminente,
as pernas tortas, mas parecia vivaz e, apesar de se tornar impossível
saber a língua em que tartamudeava, gritava de maneira a anunciar
certa força e alguma saúde. Esta fealdade ainda mais acentuou a com­
paixão de Cláudio que formulou o voto íntimo de criar aquela criança
por amor de seu irmão, a fim de que, fossem quais fossem no futuro as
culpas do j ovem Jehan, a seu favor militasse aquela esmola feita em
sua intenção. Era uma espécie de investimento de boas obras, que ele
realizava sobre a cabeça do irmão mais novo; era um maço de boas
ações que queria antecipadamente averbar em seu nome para o caso
de o velhaquito se ver algum dia em apuros por falta dessa moeda,
única em curso na portagem do Paraíso.
Batizou o filho adotivo, dando-lhe o nome de Quasímodo, ou porque
quisesse assinalar assim o dia em que o encontrara, ou por preten­
der caracterizar, com tal nome, até que ponto o mísero entezinho era
incompleto e mal esboçado. Na verdade, Quasímodo, cego de um olho,
corcunda, cambaio, pouco mais era do que um quase.

178
III

"lmmanis pecoris custos, immanior ipse"4ª

Ora, em 1482 , Quasímodo estava crescido. Havia alguns anos que


se tornara sineiro de Nossa Senhora, graças a Cláudio Frollo, seu pai
adotivo, que se tornara arcediago de Josas, graças ao seu suserano,
messire Luís de Beaumont, o qual, em 1472, se tornara bispo de Paris,
por morte de Guilherme Chartier, graças ao seu patrono, Olivério, o
Gamo, barbeiro de Luís XI, rei por graça de Deus.
Quasímodo era, portanto, sineiro de Nossa Senhora.
Com o tempo, estabelecera-se não sei que íntimo laço que ligava
o sineiro à igrej a . O pobre desgraçado, que a dupla fatalidade do seu
nascimento ignorado e da sua natureza disforme para sempre isolara
da sociedade, aprisionando-o, desde a infância, nesse duplo círculo
intransponível habituara-se a não ver neste mundo mais nada além
das muralhas religiosas que o acolheram à sua sombra. Para ele, Nossa
Senhora foi sucessivamente, à medida que ele crescia e se desenvolvia,
o ovo, o ninho, a casa, a pátria, o universo.
Existia, sem dúvida, uma espécie de misteriosa e preexistente har­
monia entre essa criatura e esse edifício. Quando, muito pequeno ainda,
rastej ava tortuosamente e aos sacões sob as trevas das suas abóbadas,
parecia, com o seu rosto humano e os membros de animal, o réptil
natural daquelas laj es húmidas e escuras, sobre as quais a sombra dos
capitéis românicos proj etava tantas formas estranhas.
Mais tarde, da primeira vez em que maquinalmente se agarrou à
corda das torres e dela se dependurou, pondo o sino a oscilar, causou

48 Para monstruoso rebanho, guardião ainda mais monstruoso.

179
a Cláudio, seu pai adotivo, o efeito da criança cuj a língua se solta e
começa a falar.
Foi assim que, a pouco e pouco, desenvolvendo-se sempre no
sentido da catedral, ali vivendo, ali dormindo, quase nunca saindo
e recebendo-lhe a toda a hora a misteriosa pressão, acabou por
assemelhar-se-lhe, incrustar-se-lhe, por assim dizer, por fazer parte inte­
grante dela. As suas arestas salientes encaixavam-se - desculpem-nos
esta expressão - nos ângulos reentrantes do edifício de que parecia ser
não só o habitante como também o conteúdo natural. Quase se poderia
dizer que lhe adquirira a forma, como o caracol que adota o feitio da
sua casca. Era a sua morada, a sua toca, o seu invólucro. Existia entre a
velha igrej a e ele próprio uma tão profunda simpatia instintiva, tantas
afinidades magnéticas, tantas afinidades materiais, que aderia a ela de
certa maneira, como a tartaruga à sua concha. A rugosa catedral era a
sua carapaça.
Torna-se desnecessário advertir o leitor de que não deve tomar à
letra as imagens que somos obrigados a empregar aqui para exprimir
este emparelhamento singular, simétrico, imediato, quase consubstan­
cial, de um homem e de um edifício. Igualmente é ocioso dizer até que
ponto se familiarizara ele com toda a catedral, numa coabitação tão pro­
longada e íntima. Era a sua própria residência. Não havia fundo algum
aonde Quasímodo não descesse , altura a que não subisse. Muitas vezes
sucedeu escalar a fachada até muito alto, servindo-se apenas das saliên­
cias das esculturas. As torres, sobre cuj a superfície exterior o viam mui­
tas vezes rastejar como um lagarto que desliza por um muro a pique,
essas duas gigantescas jumelles49 tão altas, tão tenebrosas, tão amea­
çadoras, não lhe provocavam nem tonturas, nem medo, nem abalos de
estonteamento. Ao vê-Ias tão mansas sob a sua mão, tão dóceis para a
escalada, dir-se-ia que as domesticara. À força de saltar, de marinhar,
de se divertir entre os abismos da gigantesca catedral, transformara-se,
de certo modo, num macaco e numa camurça, como a criança calabresa
que nada antes de caminhar e, ainda pequenina, já brinca com as vagas.
Para mais, não só o corpo parecia ter-se amoldado de acordo
com a catedral, como também o espírito. Em que estado se encon­
trava aquela alma, que hábito contraíra, que forma tomara sob esse

49 Antigos canhões franceses, de dois canos.

180
invólucro amarfanhado nessa vida selvagem, seria custoso de definir.
Quasímodo nascera vesgo, corcunda, coxo. Só com enorme dificuldade
e santa paciência Cláudio Frollo conseguira ensiná-lo a falar. Uma
fatalidade, porém, se j untara às da pobre criança abandonada. Sineiro
de Nossa Senhora, aos catorze anos nova moléstia viera completá-lo.
Os sinos tinham-lhe rebentado com o tímpano ; ficara surdo. A única
porta que a natureza lhe deixara aberta de par em par para o mundo
fechara-se-lhe, de repente, para sempre.
Ao cerrar-se, ela intercetou o único raio de alegria e de luz que
ainda penetrava na alma de Quasímodo. Aquela alma despenhou-se
numa noite profunda. A melancolia do miserável tornou-se incurá­
vel e completa como a sua deformidade. Acrescentemos que a surdez
o fez, até certo ponto, mudo. Porque, para não servir de motejo aos
outros, assim que se viu surdo, tomou a firme resolução de adotar um
mutismo que apenas rompia quando estava só. Voluntariamente amar­
rou aquela língua que tanto trabalho dera a Cláudio Frollo para soltar.
Disso resultava que, quando, por necessidade, tinha de falar, a língua
mostrava-se entaramelada, inepta, e como uma porta cuj os gonzos se
tivessem enferruj ado.
Se experimentássemos agora penetrar até à alma de Quasímodo
através dessa crosta espessa e dura, se pudéssemos sondar as profun­
dezas daquela mal feita organização, se nos fosse dado contemplar,
com uma luz pelo lado de trás, esses órgãos sem transparência, explo­
rar o interior tenebroso dessa criatura opaca, aclarar-lhe os recantos
escuros, os becos absurdos, e proj etar, de repente, uma luz viva sobre
a alma agrilhoada no fundo daquele antro, encontraríamos incontes­
tavelmente a desgraçada numa triste situação, definhada e raquítica,
como esses prisioneiros dos piombi de Veneza que envelheciam, dobra­
dos ao meio, numa caixa de pedra excessivamente baixa e acanhada.
É certo que o espírito se atrofia num corpo defeituoso. Quasímodo
mal percebia que se movia às cegas dentro de si uma alma feita à
sua imagem. A impressão dos obj etos sofria uma refração considerável
antes de lhe alcançar o pensamento. O seu cérebro era um ambiente
especial: as ideias que o atravessavam saíam de lá todas deformadas.
A reflexão proveniente dessa refração era necessariamente divergente
e quebrada. Daí mil ilusões de ótica, mil aberrações de raciocínio, mil
desvios onde o seu pensamento divagava, ora louco, ora idiota.

181
O primeiro efeito desta fatal organização era transtornar-lhe a vista
que lançava sobre as coisas. Não recebia delas quase nenhuma perceção
imediata. O mundo exterior parecia-lhe muito mais afastado do que a nós.
O segundo efeito da sua desgraça era tomá-lo mau.
Efetivamente, era mau porque era selvagem e era selvagem porque
era feio. Na sua natureza, como na nossa, havia uma lógica.
A sua força, tão extraordinariamente desenvolvida, era mais uma
causa da sua maldade. Malus puer robustus5 0 , dizia Hobbes.
Aliás, há que lhe prestar esta j ustiça: a maldade não era talvez inata
nele. Desde que ensaiara os primeiros passos entre os homens, sen­
tira-se, e depois viu-se, vilipendiado, espezinhado, repelido. Para ele a
palavra humana era sempre uma caçoada ou uma maldição. Ao cres­
cer, só encontrou ódio à sua roda. Apoderara-se dele. A maldade geral
inoculara-se-lhe. Apanhara a arma com que o tinham ferido.
Para mais, só contrariado virava a cara para o lado dos homens.
A sua catedral bastava-lhe. Ela estava povoada de figuras de mármore,
de reis, de santos, de bispos que, ao menos, não lhe se riam na cara
e só tinham para ele um olhar sereno e benevolente. As outras está­
tuas, as dos monstros e dos demónios, não lhe demonstravam ódio.
Pareciam-se de mais com ele para que tal sucedesse. Motejavam mais
depressa dos outros homens. Os santos eram seus amigos e abenço­
avam-no; os monstros eram seus amigos e guardavam-no. Por isso,
tinha prolongados desabafos com eles. Desta sorte, passava às vezes
horas esquecidas acocorado diante de uma dessas estátuas, a conver­
sar solitariamente com ela. Se aparecia alguém, escapulia-se como um
amante surpreendido numa serenata.
E a catedral não era apenas a sua sociedade, mas também o uni­
verso e igualmente toda a natureza. Não sonhava com outras !atadas
que não fossem os vitrais sempre em flor; com outra sombra senão a das
folhagens de pedra que se estendiam, carregadas de pássaros, no tufo
dos capitéis saxões; com outras montanhas além das torres colossais da
igreja; com outro oceano senão a Paris que marulhava a seus pés.
O que ele acima de tudo apreciava no edificio maternal, o que desper­
tava a sua alma e lhe fazia abrir as pobres asas que conservava tão tris­
temente dobradas na sua caverna, o que o tornava por vezes venturoso,

50 O menino robusto é mau.

182
eram os sinos. Amava-os, acarinhava-os, falava-lhes, compreendia-os.
Desde o carrilhão da agulha do cruzeiro, até o sino grande do pórtico,
dispensava a todos a mesma ternura. O campanário do transepto, as
duas torres, eram para ele como três enormes gaiolas cuj os pássaros,
que amestrara, só para ele cantavam. Contudo, eram os mesmos sinos
que o tinham tornado surdo, mas as mães muitas vezes querem mais ao
filho que mais as fez sofrer.
É verdade que a única voz que Quasímodo conseguia ainda ouvir
era a dos sinos. Por esse motivo, a sua bem-amada era o sino grande.
Era o que preferia naquela família de buliçosas raparigas51 que se sara­
coteavam à sua roda, nos dias festivos. Esse sino grande chamava-se
Maria. Era o único na torre meridional, com a sua irmã Jaquelina,
sino de menor estatura, encerrado numa gaiola mais pequena ao lado
da sua. Jaquelina recebera tal nome porque assim se chamava a mulher
de João de Montagu que o oferecera à igreja, o que o não impedira de
ir figurar, sem cabeça, em Montfaucon. Na segunda torre existiam mais
seis sinos e, finalmente, os seis mais pequenos habitavam o campaná­
rio do cruzeiro, com o sino de madeira e que só tocava desde o fim da
tarde de quinta-feira de Endoenças até à manhã de sábado de Aleluia.
Quasímodo tinha assim quinze sinos no seu serralho, mas o grande, a
Maria, era o favorito.
Não se pode formar uma ideia da sua satisfação nos dias em que
todos tocavam. No momento em que o arcediago o largava e lhe dizia:
"Vai ! " , ele subia a escada de caracol da torre mais depressa do que
qualquer outra pessoa a desceria. Enfiava esbaforido pelo quarto aéreo
do sino grande, observava-o durante momentos com recolhimento e
amor e depois dirigia-lhe ternamente a palavra, acariciava-o com a
mão, como a um dócil cavalo que vai tomar parte numa grande corrida,
lastimava-o pelo trabalho que ia ter e, depois destes primeiros afagos,
gritava para os ajudantes, postados no andar inferior da torre, para
que começassem. Estes penduravam-se aos cabos, o cabrestante guin­
chava e a enorme cápsula de metal oscilava lentamente. Palpitante,
Quasímodo acompanhava-a com a vista. O primeiro choque do badalo

51 Em francês, o termo cloches (sinos) pertence ao género feminino. Daí esta


comparação, bem como os nomes de mulher com que, a seguir, o autor designa os
de Nossa Senhora.

183
contra a parede de bronze fazia estremecer a armação de madeira
sobre a qual o sino estava montado. Quasímodo vibrava com o sino.
- Assim ! - gritava ele, com uma gargalhada de demente.
Entretanto, o movimento do grande sino acelerava-se e, à medida que
descrevia um ângulo mais aberto, o olho de Quasímodo arredondava-se
também cada vez mais, fosforescente e flamejante. Finalmente, o grande
repique começava. Toda a torre estremecia, vigamentos, chumbos, can­
taria, tudo troava ao mesmo tempo, desde as estacarias dos alicerces
até os trifólios do remate. Quasímodo, então, transfigurava-se; vinha,
tremia com a torre dos pés à cabeça. O sino, desencadeado e furioso,
apresentava alternadamente às duas paredes do campanário a sua goela
de bronze, donde se escapava esse sopro de tempestade que se ouve a
quatro léguas de distância. Quasímodo colocava-se diante dessa goela
aberta; agachava-se, erguia-se com as voltas do sino, aspirava-lhe o sopro
demolidor, olhava ora para a praça profunda, que formigava a duzentos
pés abaixo dele, ora para a enorme língua de cobre que, de segundo em
segundo, lhe berrava às orelhas. Era a única palavra que o surdo ouvia,
o único som que lhe perturbava o silêncio universal. Dilatava-se nele
como um pássaro ao sol. De repente, conquistava-o o frenesi do sino: o
olhar luzia-lhe num fulgor extraordinário. Esperava o sino na passagem,
como a aranha espreita a mosca, e atirava-se às cegas e bruscamente
para cima dele. Então, suspenso sobre o abismo, levado pelo balanço for­
midável da campânula, agarrava o monstro de bronze pelas suspensões,
apertava-o entre os joelhos, esporeava-o com ambos os calcanhares e
redobrava ainda mais, com o embate e o peso do seu corpo, a potência do
dobre. Contudo, a torre vacilava; Quasímodo gritava e rangia os dentes,
eriçavam-se-lhe os cabelos ruivos, o peito produzia o resfolegar de um
fole de forja, o olhar despedia chispas, o sino monstruoso relinchava ofe­
gante debaixo dele e nessa altura já não era nem o sino grande de Nossa
Senhora, nem Quasímodo, mas sim um sonho, um turbilhão, uma tem­
pestade, a vertigem a cavalo no ruído; um espírito aferrado a uma garupa
volante; um estranho centauro meio homem, meio sino; uma espécie de
Astolfo horrível arrebatado sobre um prodigioso hipógrifo de bronze vivo.
A presença deste ente extraordinário fazia circular por toda a cate­
dral não sei que sopro de vida. Parecia que se escapava dele, pelo
menos ao que diziam as superstições crescentes das turbas, uma ema­
nação misteriosa que animava todas as pedras de Nossa Senhora e fazia

184
palpitar as profundas entranhas do velho templo. Bastava que o soubes­
sem ali para que imaginassem ver animadas e a mexer as mil estátuas
das galerias e dos portais. E, de facto, a catedral parecia, sob a sua mão,
uma criatura dócil e obediente; esperava a vontade dele para depois
erguer a voz grossa; estava possuída e repleta de Quasímodo como de
um génio familiar. Dir-se-ia que ele fazia respirar o imenso edifício. Com
efeito, estava em toda a parte, multiplicava-se sobre todos os pontos do
monumento. Ora se avistava, com espanto, no cimo mais alto de uma
das torres um estranho anão que marinhava, serpenteava, rastejava de
gatas, para descer pelo lado de fora, sobre o abismo, saltando de saliên­
cia em saliência, e ia mexer no ventre de alguma górgone esculpida; era
Quasímodo à cata de ninhos de corvos. Ora se esbarrava num recanto
da igreja com uma espécie de quimera viva, acocorada e carrancuda;
era Quasímodo pensativo. Ora distinguiam, debaixo de uma torre, uma
cabeça enorme e um feixe de membros desordenados a baloiçarem-se
furiosamente na ponta duma corda; era Quasímodo a tocar a vésperas
ou a Ave-Marias. Amiúde, de noite, via-se a vaguear um vulto hediondo
sobre a frágil balaustrada, recortada em renda, que coroa as torres e
debrua o contorno da abside. Era ainda o corcunda de Nossa Senhora.
Então as vizinhas diziam que a igreja inteira adquirira qualquer coisa
de fantástico, de sobrenatural e de horrível. Aqui e além arregalavam-se
olhos e bocas, ouviam-se ladrar os cães, as serpentes, as tarascas de
pedra que velam noite e dia, de pescoço espetado e fauces abertas, em
volta da monstruosa catedral. E se era noite de Natal, enquanto o sino
grande, que parecia estertorar, chamava os fiéis à ardente missa do
galo, pairava sobre a sombria fachada um tal ar, que se podia dizer que
o grande portal devorava a multidão sob o olho da rosácea. E tudo isto
provinha de Quasímodo. O Egito tomá-lo-ia pelo deus daquele templo;
a Idade Média julgá-lo-ia o demónio; era a sua alma.
A tal ponto que, para aqueles que sabem da existência de Quasímodo,
Nossa Senhora está hoj e deserta, inanimada, morta. Sente-se que desa­
pareceu dali qualquer coisa. Este corpo imenso está vazio; é um esque­
leto. O espírito deixou-o; vê-se o seu lugar e mais nada. E como um
crânio onde persistem ainda as órbitas para os olhos, mas de onde
desapareceu a vista.

185
IV

O cão e o dono

Havia, contudo, uma criatura humana que Quasímodo excetuara


da sua maldade e do seu ódio pelos outros e a quem queria tanto, ou
talvez mais ainda, como à sua catedral. Era Cláudio Frollo.
A coisa era simples. Cláudio Frollo recolhera-o, adotara-o, criara-o,
educara-o. M uito pequeno, era nas pernas de Cláudio Frollo que ele
se acostumara a refugiar-se quando os cães e as crianças ladravam
atrás dele. Cláudio Frollo ensinara-o a falar, a ler, a escrever. Cláudio
Frollo, enfim, fizera-o sineiro. Ora, dar o sino grande em casamento a
Quasímodo era o mesmo que Julieta a Romeu.
Por isso a gratidão de Quasímodo era profunda, apaixonada, sem
limites e, embora o semblante de seu pai fosse com frequência nebu­
loso e severo, embora a sua palavra fosse habitualmente curta, dura,
imperiosa, nunca esse reconhecimento se desmentira num instante
só que fosse. O arcediago tinha em Quasímodo o mais submisso dos
escravos, o mais dócil dos servos, o mais vigilante dos mastins. Quando
o pobre sineiro ensurdeceu, estabeleceu-se entre ele e Cláudio uma lin­
guagem de sinais, misteriosa e que só eles percebiam. Deste modo, era
o arcediago o único ser humano com quem Quasímodo se conservara
em comunicação. Neste mundo só estava em contacto com duas coisas:
Nossa Senhora e Cláudio Frollo.
Nada se podia comparar ao domínio exercido pelo arcediago sobre
o sineiro nem à dedicação do sineiro pelo arcediago. Bastaria um sinal
de Cláudio e a ideia de que lhe daria satisfação para que Quasímodo se
precipitasse do alto das torres de Nossa Senhora. Facto notável era toda
essa força física, que em Quasímodo atingira um desenvolvimento tão

186
extraordinário, posta cegamente por ele à disposição de outro. Havia
nisso, sem dúvida, dedicação filial, apego servil, mas havia também
a fascinação de um espírito por outro espírito. Era uma organização
pobre, canhestra e inapta, que se mantinha de cabeça baixa e de olhos
suplicantes diante de uma alta e profunda inteligência, poderosa e
superior. Finalmente, e dominando tudo, havia a gratidão. Gratidão de
tal modo elevada ao seu extremo limite, que nem sabemos a que a
comparar. Esta virtude não é daquelas de que se registem, entre os
homens, os mais belos exemplos. Diremos, portanto, que Quasímodo
queria ao arcediago como nunca um cão, um cavalo, um elefante, qui­
seram ao seu dono.

187
V

Continuação de Cláudio Frollo

Em 1482 Quasímodo tinha uns vinte anos e Cláudio Frollo cerca de


trinta e seis; um crescera, o outro envelhecera.
Cláudio Frollo já não era o simples estudante do colégio Torchi, o
terno protetor duma criancinha e o j ovem filósofo sonhador que sabia
muitas coisas e ignorava outras tantas. Era um padre austero, grave,
taciturno; um cura de almas; o senhor arcediago de Josas, o segundo
acólito do bispo, tendo sob a sua alçada os dois decanatos de Montlhéry
e de Châteaufort e cento e sessenta e quatro párocos rurais. Era uma
personagem imponente e sombria, perante a qual tremiam os meninos
do coro, de alva e roquete; os cantores e os irmãos de Santo Agostinho;
os clérigos das matinas de Nossa Senhora, quando ele passava sob as
altas ogivas do coro, lentamente, maj estoso, pensativo, braços cruza­
dos e cabeça tão pendida sobre o peito, que não se lhe via do rosto
senão a ampla fronte calva .
Aliás, D. Cláudio Frollo não abandonara nem a ciência, nem a edu­
cação do seu j ovem irmão, as duas ocupações da sua vida. Mas, com
o tempo, alguma amargura viera misturar-se com estas coisas tão
doces. Diz Paulo Diacre que, com o tempo, até o melhor toucinho cria
ranço. O pequeno Jehan Frollo, com a alcunha do Moinho por causa
do lugar onde fora criado, não crescera na orientação que Cláudio lhe
quisera imprimir. O irmão mais velho contava com um aluno piedoso,
dócil, culto, decoroso. Ora o irmãozinho, como essas árvores novas que
atraiçoam o esforço do jardineiro e se viram obstinadamente para o
lado de onde lhes vem o ar e o sol , o irmãozinho não crescia nem
se multiplicava , não espetava viçosos ramos repolhudos e luxuriantes

188
senão para a banda da preguiça, da ignorância e da estúrdia. Era um
autêntico diabo, muito desordenado, o que fazia com que D. Cláudio
franzisse as sobrancelhas, mas muito engraçado e manhoso, o que
arrancava um sorriso ao irmão mais velho. Cláudio confiara-o a esse
mesmo colégio de Torchi, onde passara os primeiros anos no estudo
e no recolhimento, e era para o arcediago uma dor de alma que esse
santuário, outrora nobilitado pelo nome de Frollo, fosse escandalizado
agora por esse mesmo apelido. Às vezes, pregava a Jehan extensíssi­
mos e severíssimos sermões, que este aguentava intrépido. No fim de
contas, o jovem valdevinos possuía bom coração, como se vê em todas
as comédias. Mas, acabada a prédica, não era por isso que deixava de
menos tranquilamente retomar o curso das suas sedições e enormi­
dades. Ora era um béjaune (assim se chamava aos estudantes novatos
na Universidade) a quem ele infligira maus tratos como receção - tra­
dição preciosa que cuidadosamente se perpetuou até os nossos dias
-, ora era Jehan que incitara um grupo de estudantes a assaltarem
uma taberna quasi classico excitati52, onde, depois de sovarem o taber­
neiro "com bordões ofensivos", j ovialmente tinham pilhado a tasca até
rebentarem com as pipas de vinho na adega. Depois, aparecia um lindo
relatório em latim, que o vice-monitor de Torchi levava piedosamente a
D. Cláudio com esta dolorosa nota à margem : Rixa, prima causa vinum
optimum potatum53• Dizia-se, finalmente, o que era um horror num
menor de dezasseis anos, que os seus excessos chegavam frequentes
vezes até à Rua de Glatigny.
Por causa disto tudo, Cláudio, desolado e desanimado nos seus
afetos humanos, lançara-se ainda com maior exaltação nos braços da
ciência, essa irmã que ao menos não se ri na nossa cara e sempre
nos paga, embora às vezes em moeda um tanto chocha, os cuidados
que lhe dispensamos. Tornou-se, portanto, cada vez mais sapiente e,
ao mesmo tempo e numa consequência natural, cada vez mais severo
como padre, cada vez mais triste como homem. Todos temos certos
paralelismos entre a nossa inteligência, os nossos costumes e o nosso
carácter que se desenvolvem sem descontinuidade e não se interrom­
pem senão nas grandes perturbações da vida.

52 Como que estimulados pelo toque da trombeta .


53 Uma rixa , cuj a causa primeira foi o esplêndido vinho bebido.

189
Como Cláudio Frollo percorrera desde a mocidade o círculo quase
completo dos conhecimentos humanos positivos, exteriores e lícitos,
indispensável lhe foi, a não ser que parasse ubi defuit orbis54, ir mais
além e procurar outros alimentos para a insaciável atividade da sua
inteligência. O antigo símbolo da serpente que morde a própria cauda
convém sobretudo à ciência. Parece que Cláudio Frollo o sentira. Várias
graves personalidades afirmavam que, depois de esgotado o fas55 do
saber humano, ousara penetrar no nefas56• Dizia-se que provara suces­
sivamente todas as maçãs da árvore da inteligência e, por fome ou por
fastio, acabara por morder o fruto proibido. A pouco e pouco tomou
lugar, como os nossos leitores viram, nas conferências dos teólogos, na
Sorbona; nas assembleias dos artiens57 à imagem de Santo Hilário; nas
disputas dos decretistas à imagem de S. Martinho; nas congregações dos
médicos, no batistério de Nossa Senhora, ad cupam Nostrae Dominae.
Todos os pratos autorizados e aprovados, que essas quatro grandes cozi­
nhas denominadas as quatro faculdades podiam elaborar e servir a uma
inteligência, tinha-os ele devorado e a saciedade aparecera-lhe antes de
mitigada a fome. Então, cavara mais adiante, mais fundo, por baixo de
toda essa ciência acabada, material, restrita; arriscara talvez a alma e
sentara-se na caverna, à mesa misteriosa dos alquimistas, dos astrólogos,
dos herméticos, de que Averróis, Guilherme de Paris e Nicolau Flamel
ocuparam a cabeceira na Idade Média e que se prolonga no Oriente, ao
clarão do candelabro de sete braços, até Salomão, Pitágoras e Zoroastro.
Era o que pelo menos, com razão ou sem ela, se imaginava.
É verdade que o arcediago visitava frequentemente o cemitério
dos Santos Inocentes, onde o pai e a mãe estavam enterrados com as
outras vítimas da peste de 1466; mas também é verdade que parecia
muito menos devoto da cruz da sua campa do que das figuras estra­
nhas de que estava carregado o túmulo de Nicolau Flamel e de Cláudio
Pernelle, erguido mesmo ao lado.
É verdade que o tinham visto amiúde seguir pela Rua dos Lombardos
e entrar furtivamente numa casita que fazia esquina com a Rua dos

54 Onde o círculo terminou.


55 O lícito.
56 O ilícito.
57 Estudantes que nas antigas universidades francesas, depois de cursarem hu­
manidades, passavam à cadeira de filosofia .

190
Escreventes e a Rua Marivault. Era a casa construída por Nicolau Flamel,
onde aí por 1417 morrera e que, sempre deserta a partir dessa altura, já
começava a cair em ruínas, de tal modo os herméticos e os alquimistas
de todos os países lhe tinham gasto as paredes só de gravarem nelas
os nomes. Havia até vizinhos que afirmavam ter uma vez visto, por um
respiradoiro, o arcediago Cláudio a cavar, a remexer e a remover a terra
nesses dois subterrâneos cujos pilares tinham sido cobertos com inú­
meros versos e hieróglifos do próprio N icolau Flamel. Supunha-se que
Flamel enterrara a pedra filosofal nesses subterrâneos, e os alquimistas,
durante dois séculos, desde Magistri até o padre Pacifique, só cessaram
de atormentar o solo quando a casa, tão cruelmente esquadrinhada e
revolvida, acabou por se desfazer em pó debaixo dos seus pés.
É ainda verdade que o arcediago se enfeitiçara , com singular pai­
xão, da portaria simbólica de Nossa Senhora, essa página de magia
traçada em pedra pelo bispo Guilherme de Paris, o qual com certeza
foi condenado às penas eternas por ter afixado frontispício tão infernal
no santo poema que canta eternamente o resto do edificio. O arcediago
Cláudio passava também por ter aprofundado o colosso de S. Cristóvão
e aquela comprida estátua enigmática que então se erguia à entrada do
adro e que o povo tratava, nas suas zombarias, por Monsieur Legris58 •
Mas o que toda a gente pudera notar eram as intermináveis horas
que ele amiúde passava sentado no parapeito do adro, a contemplar
as esculturas da portaria, examinando ora as virgens loucas, com as
suas lâmpadas invertidas, ora as virgens sensatas, com as lâmpadas
direitas; em outras ocasiões, calculando o ângulo do olhar desse corvo
que está empoleirado no portal da esquerda e que fixa, no interior da
igreja, um ponto misterioso onde certamente se encontra escondida a
pedra filosofal, no caso de esta não ter ficado no subterrâneo de Nicolau
Flamel. Era, digamo-lo de passagem, um singular destino para a igreja
de Nossa Senhora ser nessa época amada assim, em dois graus dife­
rentes e com tanta devoção, por dois entes tão dissemelhantes, como
Cláudio e Quasímodo; amada por um, espécie de semi-homem instin­
tivo e selvagem, pela sua beleza, pela sua estatura, pelas harmonias que
se desprendiam do seu magnífico conjunto; amada pelo outro, imagina­
ção culta e apaixonada, pelo seu significado, pelo seu mito, pelo sentido

58 Senhor Pardo.

19 1
que ela encerra, pelo símbolo disperso pelas esculturas da sua fachada
como o primeiro texto sob o segundo num palimpsesto; numa palavra,
pelo enigma que eternamente propõe à inteligência.
Finalmente, é verdade que o arcediago se instalara numa das suas
torres que dão para a Greve, mesmo ao lado da gaiola dos sinos, numa
celazinha muito secreta onde ninguém entrava, nem mesmo o bispo,
segundo se dizia, sem a sua autorização. Esta cela fora em tempos feita
quase no cimo da torre, entre os ninhos dos corvos, pelo bispo Hugo de
Besançon59, que no seu tempo ali havia praticado bruxedos. N inguém
sabia o que essa cela encerrava, mas tinha-se visto com frequência, à
noite, dos areais do Terrain, a uma trapeira virada para as traseiras da
torre aparecer, desaparecer e tornar a aparecer, a intervalos curtos mas
iguais, um clarão vermelho, intermitente e estranho, que parecia acom­
panhar as aspirações ofegantes de um fole, e provir mais duma chama
do que duma luz. No escuro e a uma altura daquelas, provocava um
efeito extravagante e as boas mulheres murmuravam :
- Lá está o arcediago a soprar e o inferno a crepitar acolá em cima.
Ao fim e ao cabo, não se encontravam naquilo tudo grandes indícios
de feitiçaria, mas era sempre tanto o fumo, que chegava para j ustificar a
existência de fogo, e assim o arcediago adquirira bem temível nomeada.
Deve-se, não obstante, dizer que as ciências do Egito, a nigromancia, a
magia, mesmo da mais branca e inocente, não contavam mais encar­
niçado inimigo nem delator mais impiedoso perante os senhores da
oficialidade de Nossa Senhora. Quer se tratasse de sincero horror quer
de manha do gatuno que grita: "Agarra que é ladrão ! " , isso não impedia
que as doutas cabeças do capítulo considerassem o arcediago como
uma alma a vaguear no vestíbulo do Inferno, perdida nos antros da
cabala, tateando nas trevas das ciências ocultas. O povo tão-pouco se
equivocava a tal respeito e, para qualquer pessoa com um pouco de
sagacidade, Quasímodo passava pelo demónio e Cláudio Frollo pelo
feiticeiro. Era evidente que o sineiro devia servir o arcediago durante
determinado tempo, expirado o qual lhe levaria a alma à guisa de paga­
mento. Por isso, o arcediago andava, a despeito da excessiva austeri­
dade da sua vida, em mau odor entre as boas almas e não havia nariz de
beata , por mais inexperiente que fosse, que não farejasse nele o bruxo.

59 Hugo II de Bizâncio, 1326-1332. (Nota do Autor. I

192
E se, ao envelhecer, se haviam formado abismos na sua sapiên­
cia, também se lhe tinham formado no coração. Era-se, pelo menos,
levado a admiti-lo ao examinar-se aquele semblante, no qual só através
de uma nuvem sombria se conseguia ver-lhe reluzir a alma. De onde
lhe vinha aquela ampla fronte calva, aquela cabeça sempre inclinada,
aquele peito sempre arquejante de suspiros? Que secreto pensamento
lhe fazia contrair a boca com tamanha amargura, ao mesmo tempo que
as sobrancelhas franzidas se juntavam como dois touros que vão lutar?
Porque já estava grisalho o que lhe restava de cabelos? Que fogo inte­
rior era aquele que lhe luzia por vezes nas pupilas no ponto em que os
olhos pareciam buracos abertos na parede duma fornalha?
Estes sintomas duma violenta preocupação moral adquiriam sobre­
tudo alto grau de intensidade na época em que esta história decorre.
Por mais de uma vez um menino de coro fugira assustado por o encon­
trar sozinho na igrej a , de tal modo o seu olhar era esquisito e fulgu­
rante. Por mais de uma vez no coro, à hora dos ofícios, o seu vizinho de
estala o ouviu misturar, com o cantochão ad omnem tonum60 , parênteses
incompreensíveis. Por mais de uma vez a lavadeira do Terrain encarre­
gada de "lavar o capítulo" notara, não sem susto, marcas de unhas e de
dedos crispados na sobrepeliz do senhor arcediago de Josas.
Aliás, este redobrava de severidade e nunca se mostrara mais exem­
plar. Tanto por estado como por feitio conservara-se sempre afastado
das mulheres e parecia abominá-las mais do que nunca. Bastava o rugir
de qualquer peça de vestuário de seda para que o capuz caísse para os
olhos. Era, nesse sentido, tão cioso da austeridade e da reserva, que,
quando a senhora de Beauj eu, filha do rei , fora, no mês de dezembro
de 148 1 , visitar o claustro de Nossa Senhora, ele opôs-se seriamente
a que ela lá entrasse, recordando ao bispo o estatuto do Livro Negro,
datado da vigília de S. Bartolomeu, de 1334, que proibia o acesso ao
claustro a qualquer mulher "sej a ela quem for, velha ou nova, ama ou
camareira". Pelo que o bispo se vira obrigado a lembrar-lhe o ordenado
pelo legado Odo que excetua certas grandes damas, aliquae magnates
mulieres, quae sine scandalo evitari non possunt6 1 • O arcediago protestou
mais uma vez, obj etando que o decreto do legado, o qual remontava

60 Em todos os tons.
61 Algumas damas nobres que não possam ser expulsas sem escândalo.

193
a 1207, era anterior cento e vinte e sete anos ao Livro Negro e, por
consequência, se encontrava anulado de facto por ele. E negara-se a
comparecer diante da princesa.
Além disso, notava-se que o seu horror pelas egípcias e pelas ciga­
nas parecia redobrar nos últimos tempos. Solicitara do bispo um édito
a proibir expressamente que as boémias viessem dançar e tamborilar
para a praça do adro e ao mesmo tempo consultava os bafientos arqui­
vos do provisor eclesiástico, no intuito de coligir os processos de feiti­
ceiros e feiticeiras condenados à fogueira ou à forca por cumplicidade
de malefícios com bodes, porcas ou cabras.

194
VI

Impopularidade

Como já dissemos, o arcediago e o sineiro eram mediocremente


estimados da gente miúda e graúda das imediações da catedral.
Quando Cláudio e Quasímodo saíam j untos, facto que frequentemente
sucedia, e os viam atravessar ambos, o criado atrás do amo, pelas
ruas frescas, estreitas e escuras do aglomerado de Nossa Senhora,
mais de um palavrão, mais de uma irónica cantarola, mais de uma
insultante piada, os inquietava à passagem, a não ser que Cláudio
Frollo, o que raramente acontecia, caminhasse de cabeça direita e
erguida, exibindo a fronte severa e quase augusta aos chocarreiros
confundidos.
Lá no bairro eram ambos como "os poetas" de que fala Régnier:

Toda a espécie de criaturas seguem os poetas,


Como as toutinegras a gritar atrás dos mochos.

Ora era um gaiato manhoso que arriscava a pele e os ossos só pela


inefável satisfação de espetar um alfinete na bossa de Quasímodo, ora
uma galante rapariga, folgazã e mais descarada do que seria lícito, que
se roçava pela batina preta do padre, cantando-lhe, mesmo na cara, o
sardónico estribilho:

Surriada, surriada, o Diabo foi apanhado!

Às vezes, um esquálido rancho de velhas, escalonadas e acocoradas


na sombra pelos degraus de um portal, resmungavam sem rebuço à

195
passagem do arcediago e do carrilhanor e atiravam-lhes, praguejando,
esta animadora saudação:
- Hum! Aqui vai um que tem a alma feita como o outro tem o corp o !
O u então era um bando de escolares e de soldados de infantaria que
j ogavam ao "homem" e se viravam em massa para os cumprimentar
classicamente com alguma assuada em latim:
- Eia! Eia! Claudius cum claudo!62
Na maioria dos casos, porém, a injúria passava despercebida do padre
e do sineiro. Para ouvirem todas essas graciosas coisas, Quasímodo era
exageradamente surdo e Cláudio pensativo em demasia.

62
Eia ! Eia ! Cláudio e o coxo.

196
LIVRO QUI NTO

"Abbas Beati Martini"63

A fama de D. Cláudio estendera-se até longe. M ereceu-lhe, pouco


mais ou menos na época em que se negou a ver a senhora de Beauj eu,
uma visita de que tão cedo se não esqueceu.
Certo dia, de tarde, acabara de se retirar, depois dos oficios, para a sua
cela canonical do claustro de Nossa Senhora, cela esta que, excetuando
talvez alguns frascos de vidro, de gargalo estreito, relegados para um
canto e cheios de um pó bastante equívoco, muitíssimo parecido com
pólvora, não oferecia nada de estranho nem de misterioso. Havia real­
mente, aqui e ali, algumas inscrições pela parede, que, no entanto, não
passavam de puros axiomas de ciência ou de piedade, extraídos de bons
autores. Acabava o arcediago de se sentar, alumiado por um candeeiro de
três bicos, de cobre, e diante duma vasta banca carregada de manuscri­
tos. Apoiara o cotovelo sobre o livro, completamente aberto, de Honorius
d'Autun, De praedestinatione et libero arbítrio, e folheava, com profunda
atenção, um in-fólio impresso que acabara de trazer, único produto tipo­
gráfico que aquela cela continha. A meio da meditação, bateram à porta.
- Quem está aí? - gritou o sábio, no tom gracioso do mastim esfo-
meado que desviam do osso.
- O vosso amigo, Jacques Coictier.
Foi abrir.
Era efetivamente o médico do rei , personagem de uns cinquenta
anos cuj a fisionomia rude só um olhar astuto amaciava. Acompa­
nhava-o outro homem. Ambos traziam compridas togas cor de ardósia,

63 Abade de S. Martinho.

197
guarnecidas de peles de esquilo, cintadas e fechadas, e gorros da
mesma cor. As mãos desapareciam dentro das mangas, os pés debaixo
das togas, os olhos debaixo dos gorros.
- Valha-me Deus, messires! - exclamou o arcediago, mandando-os
entrar. - Estava longe de contar a esta hora com tão honrosa visita.
E, continuando a exprimir-se dessa maneira cortês, passeava do
médico para o companheiro um olhar inquieto e perscrutador.
- Nunca é tarde de mais para se visitar sábio de tanta considera­
ção como D. Cláudio Frollo de Tirechappe - respondeu o Dr. Coictier,
cuj o sotaque do Franco-Condado o fazia arrastar todas as frases com a
majestade dum vestido de cauda.
Iniciou-se então entre o médico e o arcediago um desses preâmbulos
encomiásticos que, como era de uso nesse tempo, precedia qualquer
conversa entre sábios, o que não impedia que se detestassem o mais
cordialmente deste mundo. Aliás, o mesmo ainda hoje acontece: toda a
boca de sábio que cumprimenta outro sábio é um vaso de fel melado.
As felicitações de Cláudio Frollo a Jacques Coictier provinham prin­
cipalmente das numerosas vantagens temporais que o digno médico
soubera extrair, no decurso da sua tão invej ada carreira, de cada
doença do rei , operação duma alquimia melhor e mais segura do que
a busca da pedra filosofal.
- Na verdade, Sr. Dr. Coictier, causou-me grande satisfação saber
que vosso sobrinho, o meu reverendo Sr. Pedro Versé, foi sagrado
bispo. Não foi nomeado bispo de Amiens?
- Foi efetivamente, Sr. Arcediago, por graça e misericórdia de Deus.
- Sabeis que estáveis com excelente aspeto, Sr. Presidente, no dia de
Natal, à frente da vossa companhia da Câmara de Contas?
- Vice-presidente, D. Cláudio! Infelizmente, sou isso e nada mais.
- Em que estado vai a vossa soberba casa da Rua de Santo André
dos Arcos? É um Louvre. Gosto muito do abricoteiro esculpido por cima
da porta, com este gracioso jogo de palavras: O ABRIGO COSTEI RO.
- Infelizmente, mestre Cláudio, toda essa cantaria custa-me os olhos
da cara ! À medida que a casa se edifica, arruíno-me eu.
- O quê ! Não recebeis os proventos da Cadeia e do bailiado do
Palácio e as rendas de todas as casas, açougues, pousadas e barracas
da Cerca? Isso é ordenhar uma esplêndida teta !
- Este ano, a minha castelania de Poissy não me deu qualquer lucro.

198
- Mas as vossas portagens de Triel, de Saint-James e de Saint-
-Germain-en-Laye continuam a ser boas.
- Cento e vinte libras, que nem mesmo são parísias!
- Tendes o vosso cargo de conselheiro do rei. Esse tem ordenado fixo.
- Pois é, confrade Cláudio, mas o maldito senhorio de Poligny, com
que enchem a boca, não me deixa sessenta escudos de ouro, seja ano
bom, seja mau.
Havia nos cumprimentos que D. Cláudio Frollo dirigia a Jacques
Coictier esse tom sardónico, azedo e surdamente mordaz, esse sorriso
triste e cruel de um homem superior e desgraçado, que se distrai por
momentos a brincar com a espessa prosperidade dum homem vulgar.
O outro não dava por isso.
- Pela minha alma! - disse finalmente Cláudio, apertando-lhe a
mão. - Folgo por vos ver de tão florescente saúde.
- Obrigado, mestre Cláudio.
- A propósito - exclamou D. Cláudio -, como passa o vosso real
enfermo?
- Não paga o suficiente ao seu médico - respondeu o doutor, dei­
tando uma olhadela de soslaio para o companheiro.
- Achais isso, compadre Coictier? - observou o referido companheiro.
Esta pergunta, pronunciada num tom de espanto e de censura, cha­
mou a atenção do arcediago para a personagem desconhecida. Para
dizer a verdade, o sacerdote nunca, nem sequer por instantes, deixara
por completo de observar aquele estranho desde que ele transpusera o
limiar da cela. Foram mesmo precisas as mil razões que o obrigavam a
tolerar o Dr. Jacques Coictier, o todo-poderoso físico do rei Luís XI, para
que ele o recebesse assim acompanhado. Também foi com uma cara
amável que ouviu Jacques Coictier dizer-lhe:
- A propósito, D. Cláudio, trago-vos um confrade que, atraído pela
vossa nomeada, desej ou conhecer-vos.
- Este senhor é da ciência? - perguntou o arcediago, fixando no
companheiro de Coictier o seu olhar penetrante.
Sob as sobrancelhas do desconhecido encontrou um olhar não
menos penetrante e desconfiado do que o seu.
Tanto quanto a tíbia claridade do candeeiro o permite avaliar, era
um velho de uns sessenta anos, de estatura mediana e que parecia
bastante doente e alquebrado. Embora o perfil fosse de linhas muito

199
burguesas, possuía algo de poderoso e de severo; a pupila luzia sob
uma arcada superciliar muito profunda, como uma luz no fundo duma
caverna, e debaixo do gorro puxado para a frente e que lhe pendia
sobre o nariz sentiam-se avolumar as largas bossas duma fronte genial.
Encarregou-se de responder pessoalmente e numa voz grave à per­
gunta do arcediago:
- Reverendo mestre, o vosso renome chegou até mim e quis con­
sultar-vos. Não passo dum pobre fidalgo da província, que descalça os
sapatos antes de entrar em casa dos sábios. É preciso que saibais como
me chamo. Sou o compadre Tourangeau.
"Singular nome para um fidalgo! ", pensou o arcediago.
Mesmo assim , sentia-se diante de algo forte e sério. O instinto da
sua alta inteligência fazia-o adivinhar outra não menos elevada sob o
gorro forrado do compadre Tourangeau, e ao observar aquele sem­
blante grave, desvaneceu-se a pouco e pouco, como o crepúsculo no
horizonte noturno, a expressão motej adora que a presença de Jacques
Coictier lhe fizera nascer na fisionomia taciturna. Voltara a sentar-se,
sorumbático e silencioso, na ampla poltrona; o cotovelo retomara o
lugar habitual à mesa e a fronte sobre a mão. Após alguns momentos
de meditação, fez sinal às duas visitas para que se sentassem e dirigiu
a palavra ao compadre Tourangeau.
- Mestre, vindes consultar-me a respeito de que ciência?
- Reverendo - respondeu o compadre Tourangeau -, estou doente.
Dizem-vos abalizado esculápio e vim pedir-vos um conselho de medicina.
- Medicina ! - repetiu o arcediago, abanando a cabeça. Pareceu
recolher-se por instantes e prosseguiu: - Compadre Tourangeau, já que
é esse o vosso nome, voltai a cabeça. Encontrareis a minha resposta
escrita integralmente aí na parede.
O compadre Tourangeau obedeceu e leu, por cima da sua cabeça,
esta inscrição gravada na parede:

A Medicina é filha dos sonhos. - JAMBLIQUE

Entretanto, o Dr. Jacques Coictier ouvira a pergunta do companheiro


com um despeito que a resposta de D. Cláudio redobrou. Inclinou-se
para o ouvido do compadre Tourangeau e disse-lhe, suficientemente
baixo para que o arcediago não o ouvisse:

200
- Prevenira-vos de que era um louco. Quisestes vê-lo! . . .
- É que este louco pode muito bem ter razão, Dr. Jacques! - respon-
deu no mesmo tom o compadre, com um sorriso amargo.
- Como vos aprouver! - replicou secamente Coictier. Voltou-se
depois para o arcediago: - Sois expedito na resposta, D. Cláudio, e
pouco mais importância ligais a H ipócrates do que um macaco a uma
avelã. A medicina, um sonho ! Duvido que os farmacopolas e os mes­
tres do ofício se contivessem sem vos lapidar se estivessem aqui. Logo,
negais a influência dos filtros sobre o sangue, dos unguentos sobre a
carne! Negais esta eterna farmácia de flores e de metais, que se chama
o Mundo, feita de propósito para esse eterno doente que se chama o
Homem?
- Não nego - redarguiu friamente D. Cláudio - nem a farmácia nem
o doente. Nego o médico.
- Portanto, não é verdade - ripostou Coictier, acalorado - que a gota
é uma impigem interior, que se cura uma ferida de artilharia com a
aplicação de um rato assado, que um sangue novo convenientemente
infundido restitui a mocidade a veias senis; não é verdade que dois e
dois são quatro e que o emprostótono sucede ao opistótono !
Sem se impressionar, o arcediago respondeu:
- Existem determinadas coisas acerca das quais penso de certa
maneira.
Coictier corou de furor.
- Então, então, meu bom Coictier, não nos zanguemos! - interveio o
compadre Tourangeau. - O Sr. Arcediago é nosso amigo.
Coictier acalmou-se, mas resmungou a meia voz:
- No fim de contas, é um doido!
- Coa breca, mestre Cláudio! - prosseguiu o compadre Tourangeau,
depois de breve silêncio. - Contrariais-me bastante. Tencionava con­
sultar-vos acerca de dois assuntos, um respeitante à minha saúde e o
outro relativo à minha estrela.
- Senhor - respondeu o arcediago -, se a vossa pretensão é essa,
mais avisado andaríeis se nunca vos fatigásseis a subir os degraus da
minha escada. Não acredito na medicina. Não acredito na astrologia.
- De verdade? - exclamou, espantado, o visitante.
Coictier riu-se com uma gargalhada forçada e comentou, muito baixo,
para o compadre:

201
- Bem vedes como é mentecapto. Não acredita na astrologia !
- A forma de imaginar - continuou D. Cláudio - que cada raio de
estrela é um fio ligado à cabeça de um homem ! . . .
- Então em que acreditais? - exclamou o compadre Tourangeau.
O arcediago ficou por momentos indeciso; depois deixou escapar
um sombrio sorriso que pareceu desmentir-lhe esta resposta:
- Credo in Deum.
- Dominum nostrum - aj untou o compadre Tourangeau, persig-
nando-se.
- Amen - completou Coictier.
- Reverendo mestre - continuou o compadre -, a alma enche-se-me
de encanto por vos encontrar tão devoto, mas, como grande sábio que
sois, chegastes então ao ponto de já não acreditar na ciência?
- Não - respondeu o arcediago, agarrando no braço do compadre
Tourangeau, enquanto um relâmpago de entusiasmo se lhe reacendia
nas amortecidas pupilas -, não, não nego a ciência. Não rastej ei tanto
tempo de barriga e unhas pelo chão, através das inúmeras ramifica­
ções da caverna, sem que distinguisse, ao longe e na minha frente, no
extremo duma escura galeria, uma luz, uma chama, qualquer coisa, o
reflexo, sem dúvida, do ofuscante laboratório central onde os pacientes
e os sábios surpreenderam Deus.
- Em conclusão - atalhou Tourangeau -, que coisas aceitais como
verdadeiras e certas?
- A alquimia.
Coictier protestou :
- Pelo amor de Deus, D. Cláudio ! Sem dúvida a alquimia tem a sua
razão de ser, mas para que blasfemais da medicina e da astrologia?
- A vossa ciência do Homem nada vale, a vossa ciência do Céu
tão-pouco ! - proferiu autoritariamente o arcediago.
- É ligar exagerada importância a Epidauro e à Caldeia - replicou,
escarninho, o médico.
- Escutai, messire Jacques. Digo-vo-lo de boa fé. Não sou físico real
e Sua Majestade não me permitiu que observasse as constelações no
Jardim Dédalo. Não vos amofineis e escutai-me. Que verdade obtives­
tes j á , não digo da medicina, que é coisa insensata de mais, mas da
astrologia? Citai-me as virtudes do bustrofédon vertical, os achados do
número sirufe e os do número sefirote.

202
- Negareis - retorquiu Coictier - a força simpática da clavícula e que
dela deriva a cabalística?
- Erro, messire Jacques! Nenhuma dessas vossas fórmulas atin­
giu a realidade, ao passo que a alquimia alguma coisa descobriu.
Contestareis resultados como este? O vidro enterrado durante mil anos
transforma-se em cristal de rocha. O chumbo é o antepassado de todos
os metais. ( Porque o ouro não é um metal: o ouro é a luz ! ) Apenas qua­
tro períodos, cada um de duzentos anos, bastam para que o chumbo
passe sucessivamente do estado de chumbo para o de arsénico verme­
lho, de arsénico vermelho para estanho, de estanho para prata. Não é
isto um facto? Mas acreditar na clavícula, na linha plena e nas estrelas
é tão ridículo como acreditar, com os habitantes do Grande Catai, que
o verdelhão se transforma em toupeira e os grãos de trigo em peixes
do género ciprino !
- Estudei a hermética - vociferou Coictier - e afirmo . . .
O fogoso arcediago não o deixou concluir.
E eu estudei a medicina, a astrologia, a hermética. Só aqui reside a
verdade - ajuntou, tirando do baú um frasco de gargalo esguio, cheio
daquele pó de que atrás falámos -, só aqui reside a luz! Hipócrates é
um sonho; Urânia é um sonho; Hermes é um pensamento. O ouro é o
sol; fazer ouro é ser Deus. Eis a única ciência. Já vos disse que sondei
a medicina e a astrologia ! Mas nada, nada ! O corpo humano, trevas; os
astros, trevas!
E deixou-se cair na cadeira, numa postura dominadora e inspirada.
O compadre Tourangeau observava-o em silêncio. Coictier esforçava-se
por gracejar; encolheu impercetivelmente os ombros e repetiu em voz
baixa:
- É doido !
- E - perguntou de repente Tourangeau - esse fim mirífico, chegas-
tes a atingi-lo? Já fizestes ouro?
- Se o tivesse feito - respondeu o arcediago, articulando pausada­
mente as palavras, como um homem que pesa bem o que diz - o rei da
França chamar-se-ia Cláudio e não Luís.
O compadre franziu as sobrancelhas.
- Mas que estou para aqui a dizer? - continuou D. Cláudio, com um
sorriso de desdém. - Para que me serviria o trono da França quando eu
poderia reconstruir o Império do Oriente?

203
- Ainda bem ! - exclamou o compadre.
- Pobre maluco ! - murmurou Coictier.
Como se apenas estivesse a responder aos seus pensamentos, o
arcediago prosseguiu:
- Mas não; continuo ainda a rastej ar. Arranho a cara e os j oelhos no
cascalho do caminho subterrâneo. Entrevejo, não contemplo ! Não leio;
soletro !
- E quando souberdes ler - perguntou o compadre -, fareis ouro?
- Quem o põe em dúvida? - exclamou o arcediago.
- Nesse caso, Nossa Senhora bem sabe quanto preciso de dinheiro
e muito gostaria de aprender a ler nos vossos livros. Dizei-me, reve­
rendo mestre, a vossa ciência não é adversa ou desagradável a Nossa
Senhora?
A esta pergunta do compadre, D. Cláudio contentou-se em respon­
der com tranquila altivez:
- De quem sou eu arcediago?
- Isso é verdade, meu mestre. Pois bem ! Agradar-vos-ia iniciar-me?
Fazei-me soletrar convosco.
Cláudio adotou a atitude maj estosa e pontifical dum Samuel para
redarguir:
- Velho, são precisos muitos mais anos do que os que vos restam
para empreender essa viagem através das coisas misteriosas. Tendes
a cabeça já bastante grisalha! Não se sai da caverna senão com os
cabelos brancos, mas não se pode lá entrar senão com os cabelos pre­
tos. A ciência sabe muito bem sozinha enrugar, definhar e dissecar
os rostos humanos; não precisa que a velhice lhe leve caras já todas
enrugadas. Se, contudo, vos assaltou o desej o de entrardes, com essa
idade, para a escola e de decifrar o temível alfabeto dos sábios, está
bem, vinde comigo e experimentarei. Não vos direi, pobre ancião, para
irdes visitar as câmaras sepulcrais das pirâmides, de que fala o velho
Heródoto, nem a torre de tijolo de Babilónia, nem o imenso santuá­
rio de mármore branco do templo indiano de Eclinga. Vi tão pouco
como vós as construções caldaicas, edificadas de acordo com a fórmula
sagrada do Sicra, nem o templo de Salomão que foi destruído, nem as
portas de pedra do sepulcro dos reis de Israel , as quais foram despeda­
çadas. Contentar-nos-emos com os fragmentos do livro de H ermes, que
aqui existe. Explicar-vos-ei o que é a estátua de S. Cristóvão, o símbolo

204
do Semeador e o dos dois anj os que dominam o portal da Santa Capela,
um com uma das mãos num vaso e a outra numa nuvem . . .
Nesta altura, Jacques Coictier, confundido pelas fogosas respostas
do arcediago, retomou a segurança e interrompeu-o na inflexão triun­
fante do sábio que corrige outro :
- Erras, amice Claudi64• O símbolo não é o número. Tomais Orfeu
por Hermes.
- Vós é que errais - retorquiu-lhe gravemente o sacerdote. - Dédalo
é o envasamento, Orfeu é a muralha, H ermes é o edifício. Mais nada.
- Voltou-se depois para Tourangeau e prosseguiu: - Vinde quando qui­
serdes. Mostrar-vos-ei as parcelas de ouro que ficaram no fundo do
cadinho de N icolau Flamel e compará-las-eis com o ouro de Guilherme
de Paris. Ensinar-vos-ei as secretas virtudes da palavra grega peristera.
Antes de mais nada, porém, far-vos-ei ler, umas a seguir às outras, as
letras de mármore do alfabeto, as páginas de granito do livro. I remos do
pórtico do bispo Guilherme e de S. João Redondo à Santa Capela, depois
à casa de N icolau Flamel, na Rua Marivault, ao seu túmulo que está
nos Santos Inocentes, aos seus dois hospitais da Rua de Montmorency.
Far-vos-ei ler os hieróglifos de que se cobrem os quatro cães da chaminé
de ferro do pórtico do H ospital de S. Gervásio e da Rua do Ferronnerie.
Soletraremos ainda j untos as fachadas de S. Cosme, de Santa Genoveva
dos Ardentes, de S. Martinho, de Saint-Jacques-de-la-Boucherie.
Havia j á bastante tempo que Tourangeau, por muita inteligência que
denotasse no olhar, parecia não compreender O. Cláudio. Interrompeu-o:
- Coa breca ! Que livros são então os vossos?
- Este! - respondeu o arcediago.
E, escancarando a j anela da cela, apontou com o dedo para a
imensa igrej a de Nossa Senhora que, recortando sobre um céu estre­
lado a silhueta negra das duas torres, as ilhargas de pedra e a garupa
monstruosa, lembrava uma esfinge enorme de duas cabeças, sentada
no centro da cidade.
O arcediago olhou por instantes silenciosamente para o gigantesco
edifício; depois, com um suspiro, estendeu a mão direita para o volume
impresso aberto em cima da mesa e, com a mão esquerda virada para
Nossa Senhora, disse, passeando um triste olhar do livro para a igreja:

6 4 Estás enganado, amigo Cláudio.

205
- Infelizmente, isto há de matar aquilo.
Coictier, que se aproximara interessadamente do livro, não pôde
conter-se que não exclamasse:
- Mas quê! Que há então de terrível nisto? GLossA I N EPISTOLAS
D. PAU LI . Norimbergae, Antonius Koburger"5, 1474. Já não é novo.
É um livro de Pedro Lombarda, o Mestre das Sentenças. É por estar
impresso?
- Vós o dissestes ! - respondeu Cláudio, que parecia absorto em pro­
funda meditação e se conservava de pé, apoiando o indicador vergado
sobre o in-fólio saído da famosa tipografia de Nuremberga. Depois,
aj untou estas misteriosas palavras: - Infelizmente, infelizmente, as
coisas pequenas acabam por liquidar as grandes, um dente triunfa
duma massa. O mangusto mata o crocodilo, o espadarte mata a baleia,
o livro matará o edifício!
O toque de recolher soou no claustro no momento em que o
Dr. Jacques repetia muito baixo o seu eterno estribilho ao companheiro:
- É louco.
Ao que o companheiro desta vez respondeu:
- Creio que sim.
Era a hora a que nenhuma pessoa estranha podia permanecer no
claustro. Os dois visitantes retiraram-se. Ao despedir-se do arcediago,
o compadre Tourangeau disse-lhe:
- M estre, gosto dos sábios e dos grandes espíritos, e consagro-vos
singular estima. Ide amanhã ao palácio das Tournelles e perguntai
pelo abade de S. Martinho de Tours.
O arcediago voltou para dentro, estupefacto, compreendendo final­
mente que personagem era aquele compadre Tourangeau e recor­
dando-se desta passagem do cartulário de S. Martinho de Tours:

Abbas beati Martini, sc1ucET REX FRANCIAE, est canonicus de consuetu­


dine et habet parvam praebendam quam habet sanctus Venantius et debet
in sede thesaurarii66•

65
Comentários às Epístolas de S. Pa ulo. Nuremberga; editor Antonius Koburger.
66
O abade de S. Martinho, isto é, o rei da França, segundo a costume, é cónego
e tem uma pequena prebena que tem S . Venâncio e deve desempenhar o cargo de
tesoureiro.

206
A partir dessa época, afirmava-se que o arcediago tinha frequentes
conferências com Luís XI, quando Sua Maj estade ia a Paris, e que o cré­
dito de D. Cláudio fazia sombra a Olivério, o Gamo, e a Jacques Coictier, o
qual, segundo o seu costume, tratava, por isso, muito mal o rei.

207
II

Isto há de matar aquilo

Que os nossos leitores nos perdoem por nos determos um momento


a investigar qual podia ser a ideia que se escondia sob estas enigmá­
ticas palavras do arcediago: Isto há de matar aquilo. O livro matará o
edifício.
Quanto a nós, este pensamento oferecia duas faces. Antes de mais
nada, era um pensamento de padre. Era o sacerdócio assustado perante
um agente novo - a imprensa. Era o espanto e o deslumbramento do
homem do santuário ante o prelo luminoso de Gutenberg. Era o púlpito
e o manuscrito, a palavra falada e a palavra escrita alarmadas com a
palavra impressa . Coisa parecida com o pasmo dum pardal que visse
o anj o Legião abrir os seus seis milhões de asas. Era o grito do profeta
que ouve já a humanidade emancipada zoar e agitar-se e que vê, no
futuro, a inteligência a minar a fé, a opinião a destronar a crença, o
mundo a abalar Roma. Prognóstico do filósofo que vê o pensamento
humano, volatizado pela imprensa, evaporar-se do recipiente teocrá­
tico. Terror do soldado que examina o aríete de bronze e diz:
- A torre há de ruir.
Isto significava que uma potência ia suceder a outra potência. Isto
queria dizer: A imprensa há de matar a igreja.
Mas debaixo desta ideia, decerto a primeira e a mais simples, havia,
em nosso entender, outra, mais nova , corolário da anterior, menos fácil
de distinguir e mais fácil de contestar, um modo de ver, também intei­
ramente filosófico, mas do sábio e do artista. Era a presciência de que
o pensamento humano, ao mudar de forma, ia mudar o modo de se
exprimir, que a ideia capitular de cada geração deixar-se-ia de escrever

208
com a mesma matéria e da mesma maneira, que o livro de pedra,
tão sólido e duradoiro, ia ceder o lugar ao livro de papel, ainda mais
sólido e duradoiro. Sob este aspeto, a fórmula vaga do arcediago encer­
rava segundo sentido: significava que uma arte ia destronar outra arte.
Queria dizer: A tipografia há de matar a arquitetura.
Efetivamente, desde a origem das coisas até o século XV da era
cristã, inclusive, a arquitetura é o grande livro da Humanidade, a prin­
cipal expressão do Homem nas suas várias fases de desenvolvimento,
quer como força, quer como inteligência.
Quando a memória das primeiras raças se sentiu sobrecarregada,
quando a bagagem de recordações do género humano se tornou tão
pesada e tão confusa, que a palavra, nua e volátil, se arriscou a perder-se
no caminho, transcreveram-nas no solo do modo mais visível, mais per­
durável e mais natural. Perpetuou-se cada tradição com um monumento.
Os primeiros monumentos foram simples blocos de rocha que, como
disse Moisés, o ferro não tocara. A arquitetura começou como qualquer
outra forma de escrita. Foi o primeiro alfabeto. Erguia-se uma pedra ao
alto e era uma letra, cada letra era um hieróglifo e sobre cada hieróglifo
repousava um grupo de ideias, como o capitel sobre a coluna. Desse
modo procederam, por toda a parte, as primeiras raças e, ao mesmo
tempo, à superfície do mundo inteiro, encontra-se a pedra levantada
dos Celtas, na Sibéria asiática, nas pampas americanas.
Mais tarde, formaram-se palavras. Sobrepôs-se pedra sobre pedra,
reuniram-se essas sílabas de granito, o verbo ensaiou algumas com­
binações. O dólmen e o cromeleque celtas, o túmulo etrusco, o galgai
hebraico, são palavras. Alguns, sobretudo os túmulos, são nomes pró­
prios. Havia até ocasiões, quando se dispunha de muita pedra e de
uma região ampla, em que se escrevia uma frase. O imenso amontoado
de Karnac é já uma fórmula completa.
Finalmente, fizeram-se os livros. As tradições geraram os símbolos
debaixo dos quais desapareciam como o tronco da árvore escondido
pela folhagem; estes símbolos todos, em que a H umanidade acredi­
tava, iam crescendo, multiplicando-se, cruzando-se, complicando-se
cada vez mais. Os primeiros monumentos não chegavam já para os
conter: trasbordavam por todos os lados. Quando muito, esses monu­
mentos ainda exprimiam a tradição primitiva, como eles simples, nua
e não se erguendo do chão. O símbolo necessitava de se expandir

209
pelo edifício. A arquitetura desenvolveu-se então com o pensamento
humano; tornou-se o gigante de mil cabeças e de mil braços e fixou,
sob urna forma eterna, visível, palpável, todo esse simbolismo flutu­
ante. Enquanto Dédalo, que é a força, media; enquanto Orfeu, que é a
inteligência, cantava; a colina, que é urna letra, a arcada, que é urna
sílaba, a pirâmide, que é urna palavra, postas todas em movimento,
ao mesmo tempo, por urna lei de geometria e por urna lei de poesia,
agrupavam-se, combinavam-se, amalgamavam-se, desciam, subiam,
justapunham-se no solo, escalonavam-se no céu, até conseguirem
escrever, ditadas pela ideia geral duma época, esses maravilhosos
livros que também eram maravilhosos edifícios: o pagode de Eclinga, o
Rharnseion do Egito, o templo de Salomão.
A ideia-mãe, o verbo, não soava apenas no fundo de todos esses
edifícios, mas também na forma. O templo de Salomão, por exemplo,
não era somente a encadernação do livro santo, mas o livro santo pro­
priamente dito.
Em cada urna das suas muralhas concêntricas podiam os sacerdotes
ler o verbo traduzido e manifestado aos olhos, e seguiam assim as suas
transformações de santuário em santuário, até que o colhiam no seu
último tabernáculo sob a forma mais concreta e que era ainda arquite­
tura: a arca. Desse modo, estava o verbo encerrado no edifício, mas a
sua imagem avultava no invólucro corno a figura humana no sarcófago
duma múmia.
E não só a forma dos edifícios mas também o local que eles elegiam
revelavam a ideia que representavam. Conforme era gracioso ou som­
brio o símbolo a exprimir, assim a Grécia coroava as suas montanhas
com um templo harmonioso à vista, a Í ndia estripava as suas monta­
nhas para aí cinzelar disformes pagodes subterrâneos, aguentados por
gigantescas fileiras de elefantes de granito.
Desse modo, durante os seis mil primeiros anos do mundo, desde
o pagode mais imemorial do I ndostão até à catedral de Colónia, foi a
arquitetura a grande escrita do género humano. E isto é de tal modo
verdadeiro, que não só todo o símbolo religioso, corno também todo
o pensamento humano, têm a sua página nesse livro imenso e o seu
monumento.
Toda a civilização começa pela teocracia e acaba pela democracia.
Esta lei da liberdade, sucedendo-se à unidade, está escrita na arquitetura.

210
Porque - insistimos neste ponto - não nos devemos convencer de que
a alvenaria só tem poder para edificar o templo, para exprimir o mito e
o simbolismo sacerdotal, para transcrever, em hieróglifos, sobre as suas
páginas de pedra, as misteriosas tábuas da lei. Se assim fosse, como acon­
tece em toda a sociedade humana, na altura em que o símbolo sagrado
se gasta e se oblitera sob o livre-pensamento, em que o homem se furta
ao padre, em que a excrescência das filosofias e dos sistemas corrói a
face da religião, a arquitetura não poderia reproduzir este novo estado do
espírito humano; as suas folhas, carregadas no rosto, estariam vazias no
verso; a obra estaria truncada; o livro estaria incompleto. Mas não.
Tomemos por exemplo a Idade Média, onde vemos mais claro por­
que está mais perto de nós. Durante o seu primeiro período, enquanto
o Vaticano reúne e congrega à sua volta os elementos duma Roma feita
com a Roma que jaz desmoronada em torno do Capitólio; enquanto o
Cristianismo anda à procura, pelos escombros da civilização anterior,
de todas as camadas da sociedade e reconstrói, com as suas ruínas,
novo universo hierárquico de que o sacerdócio é a chave da abóbada,
ouve-se primeiro surgir neste caos, depois vê-se a pouco e pouco, com
o sopro do Cristianismo, debaixo da mão dos Bárbaros, aparecer ves­
tígios das arquiteturas mortas, grega e romana, essa misteriosa arqui­
tetura românica, irmã das cantarias teocráticas do Egito e da Índia,
emblema inalterável do catolicismo puro, imutável hieróglifo da uni­
dade papal. Efetivamente, todo o pensamento do tempo se escreve
nesse sombrio estilo românico. Sente-se por toda a parte a autoridade,
a unidade, o impenetrável, o absoluto, Gregório VI I ; por toda a parte
o padre, nunca o homem; por toda a parte a casta, nunca o povo. Mas
vêm as Cruzadas. É um grande movimento popular, e qualquer grande
movimento popular, sejam quais forem a sua causa e o seu fim, faz
sempre desprender do seu último precipitado o espírito da liberdade.
Surgirão à luz algumas novidades. Eis que se inicia a fase tempestu­
osa das Jacqueries67 , das Pragueries68 e das Ligas. A autoridade estre­
mece, a unidade bifurca-se. O feudalismo pede que a teocracia reparta
com ele, enquanto espera que o povo inevitavelmente surj a e arrebate,

67 I nsurreição popular contra os nobres em França, em 1358.


68 Revoltas contra as reformas de Carlos V I I , uma delas chefiada pelo próprio
Luís XI, quando ainda delfim.

211
como sempre, a parte do leão. Quia nominor leo69• O senhorio trans­
parece, pois, por baixo do sacerdócio, a comuna por baixo do senho­
rio. Transformou-se a face da Europa . Pois bem ! Também a face da
arquitetura mudou. Como a civilização, ela virou a página e o espírito
novo dos tempos encontra-a pronta a escrever sob a sua inspiração.
Regressou das Cruzadas com a ogiva, como as nações com a liber­
dade. Então, ao mesmo tempo que Roma se desmembra a pouco e
pouco, a arquitetura românica morre. O hieróglifo abandona a cate­
dral e vai brasonar o solar para criar prestígio ao feudalismo. A própria
catedral, o edifício dantes tão dogmático, agora invadido pela bur­
guesia, pela liberdade, escapa-se ao padre e cai em poder do artista.
O artista edifica-o a seu belo talante. Adeus mistério, mito, lei ! Eis a fan­
tasia e o capricho. Desde que o padre desfrute da sua basílica e do altar,
nenhuma razão de queixa tem. As quatro paredes são do artista . O livro
arquitetural deixou de pertencer ao sacerdócio, à religião, a Roma; é
da imaginação, da poesia, do povo. Daí as rápidas e inúmeras trans­
formações dessa arquitetura que apenas conta três séculos, tão surpre­
endentes depois da estagnada imobilidade da arquitetura românica,
que conta seis ou sete. A arte, contudo, caminha a passos de gigante.
O engenho e a originalidade populares ocupam-se da tarefa que cabia
aos bispos. Ao passar, cada raça escreve no livro a sua linha; rasura, da
fachada das catedrais, os velhos hieróglifos românicos e quando muito
vê-se apenas o dogma furar, aqui e além, por baixo do novo símbolo
que ela ali depôs. Mal se adivinha a ossada religiosa por baixo da rou­
pagem popular. Não se faz a menor ideia das liberdades tomadas então
pelos arquitetos, mesmo com a Igrej a . São capitéis, ornados de frades
e freiras, vergonhosamente acasalados, como na sala dos Fogões do
Palácio da Justiça, em Paris. É a aventura de Noé, esculpida com todas
as letras, como no grande pórtico de Surges. É um monge báquico, de
orelhas de burro e copo na mão, que ri na cara de toda a comunidade,
como no lavatório da abadia de Bocherville. Existe nessa época, para o
pensamento escrito em pedra, um privilégio perfeitamente comparável
à nossa atual liberdade de imprensa. É a liberdade da arquitetura.
Vai bem longe esta liberdade. Às vezes, é um portal, uma fachada, uma
igrej a inteira, que oferece significado simbólico inteiramente estranho ao

6 9 Porque me chamo leão.

212
culto ou até mesmo hostil à Igrej a . No século XI I I , Guilherme de Paris,
no século XV, Nicolau Flamel, escreveram dessas páginas sedicio­
sas. Saint-Jacques-de-la-Boucherie era positivamente uma igreja de
oposição.
Nesse tempo, o pensamento só assim era livre, por isso só se escre­
via inteiramente nesses livros que se chamavam edifícios. Sem essa
forma de edifício, ver-se-ia queimado sob a forma de manuscrito, na
praça pública, pela mão do carrasco, se se mostrasse imprudente bas­
tante para correr tal perigo. O pensamento, pórtico de igrej a, presen­
ciaria o suplício do pensamento como um livro. Como, portanto, só
dispunha desse caminho, a construção, para avançar, precipitava-se
nele por todos os lados. Eis a razão da imensa quantidade de catedrais
que cobriram a Europa, em tão prodigioso número que até custa a crer,
apesar de se verifidar com os próprios olhos. Para esse mesmo ponto
- a arquitetura - convergiam todas as forças materiais, todas as forças
intelectuais da sociedade. Desta maneira, com o pretexto de edificar
igrejas para Deus, a arte desenvolveu-se em magníficas proporções.
Nesse tempo, todo aquele que nascia poeta fazia-se arquiteto.
O génio disperso nas massas, comprimido por todos os lados pelo feu­
dalismo, como um testudo70 de broquéis de bronze, só encontrando
saída pelo lado da arquitetura, expandia-se por esta arte, e as suas
Ilíadas assumiam a forma de catedrais. Todas as demais artes curva­
vam-se obedientes e disciplinadas perante a arquitetura. Eram os artífi­
ces da grande obra . O arquiteto, o poeta, o senhor, totalizavam, na sua
pessoa, a escultura que lhes cinzelava as fachadas, a pintura que lhes
iluminava os vitrais, a música que lhes tangia os sinos e lhes assoprava
nos órgãos. Nem sequer a pobre poesia propriamente dita, a que se
obstinava em vegetar nos manuscritos, deixou de ver-se obrigada, para
ser alguma coisa, a enquadrar-se no edifício sob a forma de hino ou de
prosa; o mesmo papel , ao fim e ao cabo, que representaram as tragé­
dias de Ésquilo nas festas sacerdotais da Grécia, o Génesis no Templo
de Salomão.
Assim, até Gutenberg, a arquitetura é a escrita principal, a escrita
universal. Neste livro granítico começado pelo Oriente, continuado

70 Tartaruga - dispositivo de defesa que os soldados armavam com os escudos,


colocando-os sobre as cabeças.

213
pela antiguidade grega e romana, a Idade Média escreveu a última
página. Aliás, este fenómeno duma arquitetura popular sucedendo a
uma arquitetura de casta, que acabámos de observar na Idade Média,
reproduz-se com qualquer outro movimento análogo na inteligência
humana de outras grandes épocas da H istória. Assim, para só enunciar
aqui sumariamente uma lei que exigiria para o seu desenvolvimento
alguns volumes, no Alto Oriente, berço dos tempos primitivos, depois
da arquitetura indiana, a arquitetura fenícia, essa mãe opulenta da
arquitetura hindu; na antiguidade, depois da arquitetura egípcia, de
que o estilo etrusco e os monumentos ciclópicos não passam duma
variedade, a arquitetura grega, da qual o estilo romano é apenas um
prolongamento sobrecarregado com a cúpula cartaginesa; nos tempos
modernos, depois da arquitetura românica, a arquitetura gótica. E, des­
dobrando essas três séries, encontra-se, nas três irmãs mais velhas - a
arquitetura hindu, a arquitetura egípcia e a arquitetura romana - o
mesmo símbolo, ou seja, a teocracia, a casta, a unidade, o dogma, o
mito, Deus, e, para as três irmãs mais novas, a arquitetura fenícia, a
arquitetura grega, a arquitetura gótica, seja qual for, aliás, a diversi­
dade de forma inerente à sua índole, o mesmo significado também , isto
é, a liberdade, o povo, o homem.
Chame-se ele brâmane, mago ou papa, nas construções hindu, egíp­
cia ou romana, sente-se sempre o padre, apenas o padre. Não acontece
a mesma coisa nas arquiteturas do povo. São mais ricas e menos san­
tas. Na fenícia percebe-se o comerciante; na grega, o republicano; na
gótica, o burguês.
Os carateres gerais de qualquer arquitetura teocrática são a imuta­
bilidade, o horror ao progresso, a conservação das linhas tradicionais,
a consagração dos tipos primitivos, a constante subjugação de todas as
formas do Homem e da Natureza aos incompreensíveis caprichos do
símbolo. São livros tenebrosos que somente os iniciados sabem deci­
frar. Demais, não há forma , não há mesmo deformidade que não tenha
aí um sentido que a torna inviolável . Não peçam à arquitetura hindu,
egípcia, romana , que reformem o seu desenho ou melhorem a sua
estatuária. Para elas qualquer aperfeiçoamento constitui uma impie­
dade. Nessas arquiteturas dir-se-ia que a rigidez do dogma se espalhou
pela pedra como uma segunda petrificação. Pelo contrário, os carate­
res gerais das edificações populares são a variedade, o progresso, a

2 14
originalidade, a opulência, o movimento perpétuo. Estão já suficiente­
mente desprendidas da religião para pensarem na sua beleza, para a
tratar, para corrigir sem cessar o seu atavio de estátuas ou de arabes­
cos. São do século. Possuem qualquer coisa de humano que sem cessar
misturam com o símbolo divino, debaixo do qual ainda se produzem.
Daí edifícios acessíveis a todas as almas, a todas as inteligências, a
todas as imaginações, e que, apesar de serem ainda simbólicos, já são
fáceis de entender como a Natureza. Entre a arquitetura teocrática e
esta existe a diferença duma língua sagrada para uma língua vulgar,
do hieróglifo para a arte, de Salomão para Fídias.
Se se resumir o que indicámos até aqui muito sumariamente, dei­
xando de lado mil provas e também mil obj eções de pormenores,
chega-se a esta conclusão: a arquitetura foi, até o século XV, o principal
registo da Humanidade; que durante este intervalo não apareceu no
mundo pensamento um tanto complicado que não se transformasse
em edifício; que qualquer ideia popular, como qualquer ideia religiosa,
possui os seus monumentos; finalmente, que o género humano nunca
acalentou um pensamento importante que não o escrevesse na pedra.
E porquê? Porque todo o pensamento, sej a ele religioso ou filosófico,
tem interesse em se perpetuar; porque a ideia que agitou uma geração
quer agitar as outras e deixar vestígios. Ora há imortalidade mais pre­
cária do que a do manuscrito? Ao passo que o edifício é um livro de
solidez, duração e resistência bem diferentes! Para destruir a palavra
escrita basta um archote e um turco. Para demolir a palavra construída,
é preciso uma revolução social, uma revolução terrestre. Os Bárbaros
passaram sobre o Coliseu, o dilúvio talvez sobre as Pirâmides.
No século XV, tudo se modifica.
O pensamento humano descobre, para se perpetuar, um processo
não só mais duradoiro e mais resistente do que a arquitetura, como
também mais simples e mais fácil. A arquitetura é destronada. Às letras
de pedra de Orfeu vão suceder as letras de chumbo de Gutenberg.
O livro vai matar o edifício.
A invenção da imprensa é o maior acontecimento da História. É a
revolução-mãe. É o modo de expressão da Humanidade que se renova
totalmente; é o pensamento humano que se despoj a duma forma e se
reveste de outra; é a mudança completa e definitiva da pele dessa ser­
pente simbólica que, de Adão para cá, representa a inteligência.

215
Sob a forma tipográfica o pensamento fica mais imorredouro do que
nunca; torna-se volátil, inacessível, indestrutível . Mistura-se com o ar.
No tempo da arquitetura, ele fazia-se montanha e apoderava-se pode­
rosamente de um século e de um lugar. Agora transforma-se em bando
de pássaros, dispersa-se aos quatro ventos e ocupa ao mesmo tempo
todos os pontos do ar e do espaço.
Repetimos: quem não vê que deste modo ele é muito mais indelé­
vel? De sólido que era, torna-se vivaz. Passa da duração à imortalidade.
Pode-se demolir uma massa, mas como se extirpar a ubiquidade? Venha
um dilúvio, que a montanha terá há muito desaparecido debaixo das
ondas, mas os pássaros continuam a voar e basta que uma só arca flu­
tue à superfície do cataclismo para que eles ali poisem, sobrenadando
com ela, assistindo com ela à descida das águas, e o novo mundo que
sair deste caos verá, quando despertar, adejando por cima dele, alto e
vivo, o pensamento do mundo submerso.
E quando se verifica que esta forma de expressão não só é a mais
conservadora, como também a mais simples, a mais cómoda, a mais
praticável de todas; quando se pensa que ela só arrasta uma grande
bagagem e não lida com pesada tralha; quando se compara o pensa­
mento forçado, para se traduzir num edifício, a pôr em ação quatro
ou cinco outras artes, e toneladas de ouro, uma montanha inteira de
pedras, uma completa floresta de madeira, uma multidão de operários;
quando o comparamos ao pensamento que se faz livro e para o qual
bastam umas folhas de papel , umas gotas de tinta e uma pena, porque
havemos de mostrar-nos tão espantados por a inteligência humana ter
trocado a arquitetura pela imprensa? Corte-se, de repente, o leito pri­
mitivo dum rio com um canal aberto abaixo do seu nível, e o rio aban­
donará o seu leito.
Repare-se, pois, como, a partir da invenção da imprensa, a arqui­
tetura definha a pouco e pouco, se atrofia e desnuda. Que bem que
se percebe a água a baixar, a seiva a desaparecer, o pensamento dos
tempos e dos povos a abandoná-la! O resfriamento é quase insensível
no século XV, pois a imprensa é ainda muito fraca e arranca, quando
muito, à poderosa arquitetura uma superabundância de vida. A partir,
porém, do século XVI , é visível a doença da arquitetura; j á não exprime
essencialmente a sociedade; torna-se miseravelmente arte clássica ;
de gaulesa , de europeia, de indígena, transforma-se em grega e em

216
romana, de verdadeira e moderna, em pseudoantiga. É a esta decan­
tada decadência que se chama o Renascimento. Decadência mesmo
assim magnífica, pois o velho génio gótico, esse sol que se esconde por
detrás da gigantesca tipografia de Mogúncia, ainda penetra, durante
algum tempo, com os seus raios em todo esse amontoado híbrido de
arcadas latinas e de colunatas coríntias.
É este sol-poente que tornamos por alvorada.
Todavia, desde o momento em que a arquitetura j á não é senão
urna arte corno qualquer outra, desde que já não é a arte total, a arte
soberana, a arte tirânica, falta-lhe a força para dominar as outras artes.
Portanto, elas emancipam-se, quebram o j ugo do arquiteto e vai cada
urna para o seu lado. Qualquer delas ganha com este divórcio. O isola­
mento engrandece tudo. A escultura torna-se estatuária, a imaginária
transforma-se em pintura, o cânone passa a ser música. Dir-se-ia um
império que se desmembra com a morte do seu Alexandre e cujas pro­
víncias se tornam reinos.
Daí Rafael, Miguel Ângelo, João Gouj on, Palestrina, esses esplendo­
res do deslumbrante século XVI .
A o mesmo tempo que a s artes, o pensamento emancipa-se por
todos os lados. Os heresiarcas da Idade Média haviam já dado grandes
golpes no catolicismo. O século XVI quebra a unidade religiosa. Antes
da imprensa, a Reforma não passou de um cisma; a imprensa provocou
a revolução. Retirai a imprensa e a heresia perde força. Fatal ou provi­
dencial, Gutenberg é o precursor de Lutero.
Não obstante, quando o sol da Idade Média está de todo no ocaso,
quando o génio gótico para sempre se apagou no horizonte da arte,
a arquitetura vai empalidecendo, descarando, sumindo-se cada vez
mais. Esse verme roedor do edifício, que é o livro impresso, suga-a e
devora-a. Despoj a-se, desfolha-se, emagrece a olhos vistos. E mesqui­
nha, pobre, nula, já não exprime nada, nem mesmo a recordação de
urna arte de outros tempos. Reduzida a si mesma, abandonada pelas
outras artes porque o pensamento humano a abandona, chama traba­
lhadores à falta de artistas. O vidro substitui o vitral. O canteiro sucede
ao escultor. Adeus seiva, originalidade, vida, inteligência ! Arrasta-se,
lamentável mendiga de oficina, de cópia em cópia. M iguel Ângelo, que
desde o século XVI a sentia decerto morrer, tivera urna última ideia,
urna ideia desesperada! Este titã da arte encavalitou o Panteão em

217
cima do Parténon e obteve São Pedro de Roma. Grande obra que mere­
cia ficar única, derradeira originalidade da arquitetura, assinatura dum
artista gigante por baixo do colossal registo de pedra que se fechava.
Morto Miguel Ângelo, que faz essa miserável arquitetura que sobrevi­
via a si mesma num estado de espectro e de sombra? Toma São Pedro
de Roma, decalca-o e parodia-o. É uma mania. É uma lástima. Cada
século tem o seu São Pedro de Roma: no século XVI I , o Val-de-Grâce;
no século XVI I I , Santa Genoveva. Cada país tem o seu São Pedro de
Roma. Londres tem o seu. Petersburgo tem o seu. Paris tem dois ou
três. Testamento insignificante, último desatino duma grande arte
decrépita que cai na infantilidade antes de morrer.
Se em vez de monumentos característicos como os de que acaba­
mos de falar examinarmos o aspeto geral da arte do século XVI ao
século XVI I I , notamos os mesmos fenómenos de decrescimento e de
tísica . A partir de Francisco I I , a forma arquitetural do edifício apaga-se
cada vez mais e deixa sobressair a forma geométrica, como a ossa­
tura esquelética dum doente emagrecido. As belas linhas da arte dão
lugar às frias e inexoráveis linhas do geómetra. Um edifício deixa de
ser um edifício para passar a ser um poliedro. Contudo, a arquite­
tura atormenta-se para esconder esta nudez. Eis o frontão grego que
se inscreve no frontão românico e vice-versa. Sempre o Panteão no
Parténon, São Pedro de Roma. Vêm as casas de tij olos de Henrique IV,
com esquinas de pedra; a Praça Real, a Praça Delfina. Vêm as igrej as
de Luís XI I I , pesadas, atarracadas, arqueadas, encolhidas, ajoujadas
com um zimbório como com uma corcunda. Vêm a arquitetura maza­
rina, o mau pasticcio italiano das Quatro Nações. Vêm os palácios de
Luís XIV, longas casernas de cortesãos, inteiriçadas, glaciais, enfado­
nhas. Vêm, finalmente, Luís XV, com as chicórias e a aletria, e todas
as verrugas e todos os fungos que desfiguram esta velha arquitetura
caduca, desdentada e gaiteira . De Francisco II a Luís XV, o mal cresceu
em progressão geométrica. A arte ficou somente com a pele e o osso.
Agoniza miseravelmente.
Entretanto, que acontece à imprensa? Toda esta vida que foge da
arquitetura passa para aquela. À medida que a arquitetura baixa, a
imprensa inflama-se e cresce. Este capital de forças que o pensamento
humano despendia em edifícios, gasta-o de futuro em livros. Por isso,
a partir do século XVI a imprensa, elevada ao nível da decrescente

218
arquitetura, luta com ela e mata-a. No século XVI I , j á é suficientemente
vitoriosa, suficientemente segura do seu triunfo, para dar ao mundo o
festival dum grande século literário. No século XVI I I , por muito tempo
em repouso na corte de Luís XIV, retoma a velha espada de Lutero, arma
com ela Voltaire e corre tumultuosa ao ataque dessa antiga Europa de
quem já matara a expressão arquitetural. No momento em que finda o
século XVI I I , j á destruíra tudo. Vai reconstruir no século XIX.
Perguntamos então agora : qual das duas artes representa deveras,
de há três séculos para cá, o pensamento humano? Qual o traduz?
Qual exprime, não só as suas manias literárias e escolásticas, como
também o seu movimento vasto, profundo, universal? Qual se sobrepõe
constantemente, sem interrupção nem lacuna, ao género humano que
caminha, monstro de mil pés? A arquitetura ou a imprensa?
A imprensa. Não alimentem ilusões, a arquitetura está morta, morta
sem remissão, morta pelo livro impresso, morta porque dura menos
tempo, morta porque custa mais caro. Qualquer catedral representa
um bilião. I maginem agora o capital necessário para transcrever o livro
arquitetural; para fazer formigar novamente no solo alguns milhares
de edifícios; para se voltar a essas épocas onde era tamanha a multidão
de monumentos, que segundo as palavras duma testemunha ocular
"dir-se-ia que o mundo ao sacudir-se atirara com as velhas roupagens
para se cobrir dum níveo vestido de igrejas". Erat enim ut si mundus,
ipse excutiendo semet, rejecta vetustate, candidam ecclesiarum vestem
indueret (Glaber Radulphus) .
Um livro faz-se num instante, custa tão pouco e pode ir tão longe!
Porque se admiram então de que todo o pensamento humano se escoe
por essa ladeira? Isto não quer dizer que a arquitetura não apresente
ainda, aqui e além, um bonito monumento, uma obra-prima isolada.
Pode-se muito bem ter ainda, de tempos a tempos, no reinado da
imprensa, uma coluna feita, suponho, por um exército inteiro de canhões
amalgamados, como se obtinham no reinado da arquitetura Ilíadas e
Romanceros, Mahabâhrata e Niebelungen, feitos por todo um povo com
rapsódias amontoadas e fundidas. A grande obra dum arquiteto de génio
pode sobreviver ao século XX, como a de Dante sobreviveu ao século
XII I . Mas nessa altura já a arquitetura terá deixado de ser a arte social,
a arte coletiva, a arte dominante. O grande poema, o grande edifício, a
grande obra da Humanidade já não se edificará, mas sim imprimir-se-á!

219
E doravante, se a arquitetura se levantar de novo acidentalmente,
não será já como senhora. Aplicar-se-lhe-á a lei da literatura, que dan­
tes a recebia dela. Inverter-se-ão as posições das duas artes. É verdade
que, no período arquitetural, os poemas, sem dúvida raros, parecem-se
com os monumentos. Na índia, Vyasa é difusa, estranha, impenetrável
como um pagode. No Oriente egípcio, a poesia tem, como os edifí­
cios, a grandeza e a serenidade das linhas; na Grécia Antiga, a formo­
sura, a tranquilidade, a calma; na Europa cristã, a majestade católica,
a ingenuidade popular, a opulenta e luxuriante vegetação duma época
de renovação. A Bíblia parece-se com as Pirâmides, a Ilíada com o
Parténon, Homero com Fídias. Dante, no século XI I I , é a última igreja
românica; Shakespeare, no século XVI , a última catedral gótica.
Assim, para resumir o que dissemos até aqui duma forma neces­
sariamente incompleta e truncada, o género humano tem dois livros,
dois registos, dois testamentos: a obra de alvenaria e a obra tipográfica,
a bíblia de pedra e a bíblia de papel. Decerto, quando se contemplam
estas duas bíblias, tão largamente abertas nos séculos, é lícito sentir
saudades da majestade visível da escrita de granito, desses alfabetos
gigantescos formulados em colunatas, em pilares, em obeliscos, essas
espécies de montanhas humanas que cobrem o mundo e o passado,
desde a pirâmide até o campanário, de Quéops a Estrasburgo. Deve-se
ler o passado nessas páginas de mármore. Deve-se admirar e folhear
sem descanso o livro escrito pela arquitetura, mas não se deve negar a
grandiosidade do edifício que por seu turno a imprensa ergue.
É colossal este edifício. Não sei que fazedor de estatísticas calculou
que, sobrepondo-se uns aos outros todos os volumes saídos das tipo­
grafias depois de Gutenberg, encher-se-ia o intervalo da Terra à Lua.
Mas não é desta espécie de grandeza que queremos falar. Todavia,
quando se procura recolher no pensamento uma imagem total do con­
j unto dos produtos da imprensa até os nossos dias, este conj unto não
nos aparece como uma imensa construção apoiada sobre o mundo
inteiro, em que a Humanidade trabalha sem descanso e cuja monstru­
osa cabeça se perde nas densas brumas do futuro? É o formigueiro das
inteligências. É a colmeia aonde todas as imaginações, essas abelhas
douradas, vão depor o seu mel. É um prédio de mil andares. Aqui e ali,
veem-se pelas balaustradas as bocas das tenebrosas cavernas da ciên­
cia que se cruzam nas suas entranhas. Por toda a sua superfície, a arte

220
faz vicejar aos olhos os seus arabescos, florões e rendas. Ali tem o seu
lugar e a sua preponderância cada obra individual, por muito capri­
chosa e ímpar que pareça. A harmonia provém do conj unto. Desde a
catedral de Shakespeare à mesquita de Byron, mil torres se amontoam
a trouxe-mouxe sobre esta metrópole do pensamento universal. Na sua
base reproduziram-se alguns antigos títulos da Humanidade que a
arquitetura não registara ainda. À esquerda da entrada, chumbaram o
velho baixo-relevo de mármore branco de Homero e, à direita, a Bíblia
poliglota espeta as suas sete cabeças. Eriça-se mais adiante a hidra
do Romancero e outras formas híbridas, os Vedas e os Niebelungen.
Aliás, o prodigioso edifício continua ainda incompleto. A imprensa,
essa máquina gigantesca que chupa sem cessar toda a seiva intelectual
da sociedade, vomita constantemente novos materiais para a sua obra.
Fixa-se sobre essa base todo o género humano. Cada espírito é um
pedreiro. O mais humilde fecha um buraco com uma pedra . Rétif de
la Bretonne aparece com o seu cesto de argamassa. Todos os dias se
ergue nova camada. Fora o lançamento original e individual de cada
escritor, há os contingentes coletivos. O século XVI I I dá a Enciclopédia,
a Revolução dá o Monitor. Decerto existe também aí uma construção
que aumenta e se acumula em infinitas espirais; também aí há a con­
fusão das línguas, incessante atividade, infatigável labor, encarniçado
concurso da Humanidade inteira, refúgio prometido à inteligência con­
tra um novo dilúvio, contra uma submersão de bárbaros. É a segunda
torre de Babel do género humano.

22 1
LIVRO SEXTO

Imparcial relance de olhos pela antiga magistratura

Era , no ano da graça de 1482, uma personagem muito feliz o nobre


homem Roberto d ' Estouteville, cavaleiro e senhor de Beyne , barão
de Yuri e de Saint-Andry na Marca, conselheiro e camarista do rei e
guarda do prebostado de Paris. Havia j á quase dezassete anos que
recebera do monarca , a 7 de novembro de 1465, o ano do cometa71 ,
esse lindo cargo de preboste de Paris, considerado mais senhorio d o
q u e ofício e q u e , como diz Joannes Loemnoeus, dignitas quae c u m non
exígua potestate politiam concernente atque praerogativis multis et juri­
bus conjunta est72. Maravilhosa coisa haver em 82 um gentil-homem
com comissão do rei e cuj as cartas de nomeação remontavam aos tem­
pos do casamento da filha natural de Luís XI com o senhor bastardo
de Bourbon . No mesmo dia em que Roberto d'Estouteville substituíra
Jacques de Villiers no prebostado de Paris, mestre João Dativet substi­
tuía messire Hélie de Thorrettes na primeira presidência do tribunal do
parlamento. João Jouvenel des Ursins suplantava Pedro de Morvilliers
no cargo de chanceler da França, Regnault des Dormans desaloj ava
Pedro Puy do lugar de referendário ordinário do paço real. Ora , sobre

71 Este cometa, contra o qual o papa Calisto, tio de Bórgia, ordenou preces públi­
cas, é o mesmo que reaparecerá em 1835. (Nota do A u tor. )
- Deve ser gralha tipográfica, aliás encontrada em mais duma edição. Estes co­
meta - o de Halley -, que tornou a passar perto de nós em 1 9 1 0 e se espera de novo
em 1985/6, fez essa sua visita em 1456. Para mais, em 1465 o papa Calisto não
podia ordenar preces públicas, pois j á estava morto havia sete anos.
72 A dignidade que anda j u nta a um imenso poder de polícia e a muitos direitos
e prerrogativas.

222
quantas cabeças a presidência, a chancelaria e o magistério passearam
desde que Roberto d ' Estouteville tinha o prebostado de Paris! D iziam
as cartas patentes que ele lhe fora dado em guarda e sem dúvida o
guardava bem ! Agarrara-se-lhe com unhas e dentes, incorporara-se
nele, identificara-se com ele. Tanto e tão bem, que escapara à fúria
de transformações que atacava Luís XI, rei desconfiado, serrazina e
laborioso, empenhado em conservar, graças a frequentes nomeações e
exautorações, a elasticidade do seu poder. Para mais, o bom do cava­
leiro conseguira para o filho a sobrevivência do cargo e havia dois
anos já que o nome do aristocrático senhor Jacques d'Estouteville,
escudeiro, figurava ao lado do seu à cabeça do registo do ordinário do
prebostado de Paris. Mercê, sem dúvida, rara e insigne! É certo que
Roberto d'Estouteville era bom soldado, erguera lealmente o pendão
contra a liga do bem público e oferecera à rainha um mui maravilhoso
veado, feito de doce, no dia da sua entrada em Paris, em 14 Contava
. . .

ainda com a preciosa amizade de messire Tristão, o Eremita, preboste


dos alveitares do paço real. Era, pois, uma vida suavíssima e ditosa
a de messire Roberto. Em primeiro lugar, magnífico ordenado, a que
se prendiam e de onde pendiam, como cachos a mais na sua vinha,
os emolumentos dos cartórios civil e criminal do prebostado, mais os
civis e criminais das audiências d'Embas du Châtelet, isto sem falar
nalguma portagenzinha da ponte de Mantes e de Corbeil e dos pro­
ventos sobre os medidores de lenha e de sal . Acrescente-se a isto a
satisfação de se exibir nas cavalgadas da cidade e de fazer realçar
nas túnicas, metade encarnadas e metade castanhas, dos almotacéis
e dos chefes de polícia do bairro o seu belo trajo de guerra e que
ainda hoj e se pode admirar esculpido no seu túmulo da abadia de
Valmont, na Normandia, bem como o seu morrião, todo cinzelado, em
M ontlhéry. E depois, não significava nada dispor de total supremacia
sobre os meirinhos da dozena, sobre o porteiro e vigia do Châtelet, os
auditores do Châtelet a uditores Castelleti , sobre os dezasseis comis­
- -

sários dos dezasseis bairros, sobre o carcereiro do Châtelet, sobre os


quatro oficiais dos feudos, sobre os cento e vinte meirinhos a cavalo,
sobre os cento e vinte meirinhos de vara, sobre o cavaleiro de atalaia
com a sua ronda, a sua ronda auxiliar, a contrarronda e a ronda da
retaguarda? Não queria dizer nada exercer alta e baixa j ustiça, direito
de roda, de forca e de arrastar, sem falar na j u risdição ordinária em

223
primeira instância, in prima instantia, como diziam os alvarás, sobre
o viscondado de Paris, tão gloriosamente dotado com sete nobres
bailiados? Pode-se imaginar coisa mais doce do que presidir a j ulga­
mentos e proferir sentenças, como todos os dias fazia messire Roberto
d'Estouteville, no Grande Châtelet, sob as largas e abatidas ogivas de
Filipe Augusto? E ir, como era seu costume, todas as noites para essa
encantadora residência situada na Rua Galilée, na cerca do Paço Real,
que lhe viera de sua mulher Sr.a Ambrósia de Loré, descansar das fadi­
gas de ter mandado algum pobre diabo passar por sua vez a noite
"nesse cubiculozinho da Rua da Escorcherie, na qual os prebostes e os
almotacéis de Paris costumavam fazer a sua prisão, tendo o dito onze
pés de comprimento, sete pés e quatro polegadas de lado e dez pés
de altura"73?
E messire Roberto d 'Estouteville não exercia apenas a sua j ustiça
particular de preboste e de visconde de Paris, mas também tinha parte
no olho e no braço da alta j ustiça do rei. Não havia cabeça um tanto
elevada que não lhe passasse pelas mãos antes de ir ter às do carrasco.
Fora ele quem levara , da Bastilha de Santo António para os Mercados,
o senhor de Nemours e que conduzira para a Greve o senhor de
Saint-Pol, o qual se debatia e protestava, com grande gáudio do senhor
preboste que não gostava do senhor condestável.
Há aqui, certamente, mais do que o preciso para proporcionar uma
vida deleitosa e ilustre e para merecer um dia uma notável página
nessa interessante história dos prebostes de Paris, por onde se sabe
que Oudard de Villeneuve tinha uma casa na Rua dos Açougues, que
Guilherme de Hangast comprou a grande e a pequena Saboia, que
Guilherme Thiboust doou as suas casas da Rua Clopin às religiosas
de Santa Genoveva, que Hugues Aubriot residia no Palácio do Porco
Espinho, e mais outros factos nacionais.
Não obstante, apesar de tantas razões para levar vida alegre e
paciente, messire Roberto d'Estouteville acordou, na manhã de 7 de
janeiro de 1482, muito trombudo e numa disposição insuportável.
Qual a origem dessa irritação? Nem ele o saberia explicar. Seria por
estar pardacento o céu? Por trazer mal apertada a fivela do seu velho
cinturão de Montlhéry que lhe cingia demasiado militarmente a sua

73 Relação do património do Estado, 1383. (Nota do Autor. I

224
gordura de preboste? Por ter visto passar debaixo das suas j anelas uns
rnalandrins que troçavam dele e caminhavam em grupos de quatro, de
gibão sem camisa, chapéu sem fundo, sacola e garrafa à cinta? Seria o
vago pressentimento das trezentas e setenta libras, dezasseis soldos e
oito dinheiros que o futuro rei Carlos VI I I no ano seguinte lhe cercearia
nos rendimentos do prebostado? O leitor que escolha. Pela nossa parte
somos mais singelamente levados a acreditar que ele estava de mau
humor porque estava de mau humor,
Para mais, era dia seguinte a urna festa, dia aborrecido para toda
a gente e principalmente para o magistrado com o encargo de varrer
todo o lixo, no sentido próprio e figurado, que urna festa em Paris sem­
pre deixa. Depois, tinha sessão no Grande Châtelet. Ora já reparámos
que os juízes arranjam em geral as coisas de modo a que o seu dia de
audiência coincida com o seu dia de aborrecimento, de forma a dispo­
rem de alguém sobre quem o possam comodamente descarregar, em
nome do rei, da lei e da justiça.
A audiência começara, contudo, sem ele. Os seus substitutos no
cível, no criminal e no particular faziam as suas vezes, corno era cos­
tume; desde as oito da manhã, algumas dezenas de burgueses e de
burguesas, apertados e espezinhados num canto escuro do Tribunal
d'Ernbas du Châtelet, entre urna rij a vedação de carvalho e a parede,
assistiam enlevados ao variado e divertido espetáculo da justiça civil
e criminal administrada por mestre Florian Barbedienne, auditor no
Châtelet, substituto do senhor preboste, um tanto atrapalhadarnente e
absolutamente ao acaso.
Era urna sala pequena, baixa, abobadada. Ao fundo, urna mesa com
flores-de-lis, ampla poltrona de madeira de carvalho entalhada, desti­
nada ao preboste e vazia, e, à esquerda, um escabelo para o auditor,
mestre Florian. Por baixo, estava o escrivão a garatuj ar. Na frente, o
povo e, diante da porta e da mesa, muitos meirinhos do prebostado, de
fardas de alabardeiros, de carnelão cor de violeta com cruzes brancas.
Em frente duma porta baixa, fechada e que se avistava ao fundo, por
detrás da mesa, faziam sentinela dois aguazis do Parloir-aux-Bourgeois,
envergando as suas capas do Dia de Todos os Santos, metade encarna­
das e metade azuis. Apenas urna j anela ogival, estreitamente encaixada
na grossa parede, iluminava, com um pálido raio do Sol de j aneiro,
duas figuras grotescas: a do caprichoso demónio de pedra esculpido

225
em florão na chave da abóbada e a do j uiz sentado ao fundo da sala
em cima das flores-de-lis.
Realmente, imaginem, à mesa prebostal, mestre Florian
Barbedienne, auditor do Châtelet, instalado entre duas rimas de pro­
cessos, apoiado nos cotovelos, o pé em cima da cauda da garnacha de
pano liso e castanho, a cara metida na peliça de cordeiro branco, de
que parecia terem sido tiradas as sobrancelhas, vermelho, rabugento,
piscando os olhos, ostentando com maj estade as banhas das boche­
chas que se juntavam debaixo do queixo.
Ora o auditor era surdo. Leve defeito para um auditor. Nem por isso
mestre Florian deixava de j ulgar inapelavelmente e com muita con­
gruência. É verdade que ao juiz basta dar a impressão de escutar, e o
venerável auditor satisfazia tanto melhor esta condição, a única essen­
cial para uma justiça equitativa, quanto era certo nenhum ruído poder
distraí-lo.
Havia, aliás, no auditório, um impiedoso fiscalizador dos seus atos
e gestos na pessoa do nosso amigo Jehan Frollo du Moulin, esse estu­
dantinho de ontem, esse peão que era certo encontrar-se em todos os
recantos de Paris, exceto diante da cátedra dos professores.
Dizia ele muito baixo para o seu companheiro Robin Poussepain,
que se ria a seu lado, enquanto ele comentava as cenas que se desen­
rolavam sob os seus olhos:
- Olha, ali está a Jehanneton du Buisson. A guapa filha do madraço
do Mercado Novo ! Pela minha alma, o velho condena-a ! Está-se a ver
que não tem melhores olhos do que orelhas! Quinze soldos e quatro
dinheiros parísios por ter trazido dois rosários! É um tanto caro. Lex
duri carminis74• Quem é aquele? Robin Chief-de-Ville, armeiro ! Por ter
sido examinado e aceite como mestre do dito ofício? É a sua patente.
Olha, dois fidalgos no meio destes bandalhos! Aiglet de Soins, Hutin de
Mailly. Dois escudeiros, corpus Christi! Ah, jogaram aos dados! Quando
será que hei de ver aqui o nosso reitor? Multado em cem libras parísias
para o rei ! O Barbedienne bate como surdo que é! Quero ser o meu
mano arcediago se isso me impede de j ogar, j ogar de dia, j ogar de
noite, viver no j ogo, morrer no j ogo e jogar a alma depois da camisa !
Virgem Santa, tanta cachopa! Uma atrás da outra, minhas pécoras!

7 4 O artigo da lei é severo.

226
Ambrósia Lécuyére ! Isabel Paynette ! Berarda Gironin! Conheço-as
todas, graças a Deus! Multai-as, multai-as! É para aprenderem a andar
com cintos dourados! Dez soldos parísios, minhas presumidas! Ai ,
o focinho do ginja do j uiz, mouco e parvo ! Eh, Florian labroste ! Eh,
Barbedienne alarve ! Toca a sentar à mesa ! Come do pleitante, come
do processo, come, mastiga, empanturra-se, enfarta-se ! M ultas, causas
perdidas, impostos, preparas, custas legais, salários, perdas e danos,
tortura, cadeia, calabouço e grilhões pagos, tudo isto são para ele
bolos de Natal e maçapães de S. João ! Olha-me para aquele porco !
Bem, cá temos outra mulher amorosa ! Nem mais nem menos do que a
Thibaude la Thibaude ! Só porque saiu da Rua Glatigny! Quem é este?
Geoffroy Mabonne, gendarme besteiro. Blasfemou contra o nome do
Padre Eterno. Multai a Thibaude ! Multai o Geoffroy! M ultai-os a ambos !
Aquele velho mouro ! Deve ter baralhado os dois processos! Dez con­
tra um em como fez pagar à rapariga a blasfémia e ao gendarme o
amor! Repara, Robin Poussepain! Quem são esses a quem mandaram
agora entrar? O que ali vai de aguazis! Por Júpiter! Estão ali todos os
lebréus da matilha! Deve ser a peça grossa da caçada. Algum javali.
E é mesmo, Robin, e é mesmo ! É por sinal uma formosura ! Herde! É o
nosso príncipe de ontem, o nosso papa dos doidos, o nosso sineiro, o
nosso zarolho, o nosso marreco, a nossa carranca ! É Quasímodo !
Nem mais nem menos.
Era Quasímodo, apertado, cercado, atado, garrotado e bem guar­
dado. A esquadra de aguazis vinha acompanhada pessoalmente pelo
cavaleiro da ronda, com as armas da França bordadas no peito e as
armas da cidade nas costas. Aliás, tirando a sua disformidade, não
havia em Quasímodo coisa que j ustificasse aquele aparato de alabar­
das e de arcabuzes. Vinha taciturno, calado e sereno. Só de vez em
quando o seu único olho dardejava para as cordas que o manietavam
uma olhadela dissimulada e furiosa.
Chegou mesmo a passear uma vista de olhos à sua roda, mas tão
mortiça e dormente, que as mulheres só o apontavam com o dedo para
se rirem.
Entretanto, mestre Florian, o auditor, folheou cuidadosamente o auto
da queixa levantado contra Quasímodo, que o escrivão lhe apresentou.
Em seguida, pareceu refletir por momentos. Graças a esse cuidado
que sempre tomava na ocasião em que ia proceder a um interrogatório,

227
conhecia antecipadamente como o acusado se chamava, as suas
qualidades e delitos, j á sabia como retorquir a respostas previstas e
conseguia livrar-se de todas as sinuosidades do interrogatório sem
deixar adivinhar muito a surdez. Para ele, a papelada do processo era
o cão do cego. Se porventura sucedia que, numa altura ou noutra , a
sua enfermidade o traía, ora com qualquer incoerente apóstrofe, ora
nalguma pergunta ininteligível, isso por uns era interpretado como
profundeza, por outros como estupidez. Em ambos os casos ficava
impoluta a honra da magistratura , porque vale mais que um j uiz sej a
considerado estúpido ou profundo, do que mouco. Assim , esforçava-se
ao máximo por disfarçar a surdez aos olhos dos outros e, geralmente,
conseguia-o com tal perfeição, que chegara até a iludir-se a si próprio,
o que aliás é mais fácil do que se imagina. Todos os corcundas cami­
nham de cabeça erguida, todos os gagos peroram, todos os surdos
falam baixo. Quanto a ele, considerava-se, quando muito, um pouco
duro de ouvido. Era a única concessão que, nos seus momentos de
franqueza e de exame de consciência, a esse respeito fazia à opinião
pública.
Assim , bem ruminado o processo de Quasímodo, o auditor deitou a
cabeça para trás e fechou um pouco os olhos, para se dar ares de maior
maj estade e imparcialidade; fê-lo tão bem que nessa altura ficou surdo
e cego. Dupla condição sem a qual não há j uiz perfeito. Nessa magistral
postura iniciou o interrogatório:
- Como vos chamais?
Ora aqui está um caso não previsto pela lei: o de um surdo que pre­
cisa de interrogar outro surdo.
Como nada avisou Quasímodo de que lhe fora dirigida uma per­
gunta, continuou a olhar fixamente para o j uiz e não respondeu. O j uiz,
surdo e a quem nada advertiu de que o réu também era surdo, j ulgou
que ele lhe respondera , como em geral todos os acusados faziam, e
continuou com o seu aprumo mecânico e estúpido.
- Está bem. Que idade tendes?
Quasímodo não respondeu tão-pouco a esta pergunta . O juiz jul­
gou-a satisfeita e prosseguiu:
- Agora, dizei o vosso estado.
Sempre o mesmo mutismo. Entretanto o auditório começava a
entreolhar-se e a cochichar.

228
- Basta - continuou o imperturbável magistrado quando j ulgou
que o réu completara a terceira resposta. - Sois acusado, perante nós,
primo, de distúrbio noturno; secundo, de vias de facto desonestas na
pessoa duma mulher leviana, in praejudicium meretricis; tertio, de rebe­
lião e deslealdade pelos archeiros do rei nosso senhor, encarregados
de manter a ordem. Explicai-vos acerca destes pontos todos. Escrivão,
tendes escrito o que o réu até esta altura disse?
A esta desastrada pergunta, estalou uma gargalhada da mesa do escri­
vão para a assistência, tão violenta e desatinada, tão contagiosa e uni­
versal, que até os dois moucos forçosamente deram por ela. Quasímodo
voltou-se, encolhendo desdenhosamente a corcunda, enquanto mes­
tre Florian, tão admirado como ele e imaginando que a hilaridade dos
espectadores resultara dalguma irreverente réplica do réu, tornada visí­
vel para ele naquele encolher de ombros, apostrofou-o indignado:
- Destes uma resposta, velhaco, que merecia o vincelho ! Sabeis com
quem estais a falar?
Não era tirada propícia para deter a explosão da j ocosidade geral.
Todos a acharam tão heteróclita e extravagante, que as divertidas gar­
galhadas contagiaram os próprios meirinhos do Parloir-aux-Bourgeois,
espécie de valetes de espadas em quem a estupidez era uniforme.
Apenas Quasímodo se conservou sério, pela simples razão de que não
percebia patavina do que se passava à sua roda. O j uiz, cada vez mais
irritado, entendeu que devia continuar no mesmo tom, contando assim
aniquilar o incriminado com um pavor que reagiria sobre o auditório e
o reconduziria ao respeito.
- Com que então, mestre perverso e larápio, permitis-vos faltar
ao respeito ao auditor do Châtelet, ao magistrado da polícia popular
de Paris encarregado de proceder à investigação dos crimes, delitos
e maus procedimentos, de fiscalizar todos os ofícios e de proibir o
monopólio, de manter cuidados os pavimentos, de vigiar os regatões
de criação, de aves de capoeira e bravias; de mandar medir a lenha e
qualquer outra sorte de madeira ; de limpar a cidade das lamas e o ar
das doenças contagiosas; em suma, de se ocupar continuamente do
bem público, sem soldo nem esperanças de salário! Sabeis que me
chamo Florian Barbedienne, aj udante do senhor preboste e ainda por
cima comissário, inquisidor, fiscalizador e examinador com igual poder
no prebostado, bailiado, conservação e tribunal presidiai !

229
Não há motivo para que um surdo quando fala com outro surdo se
detenha. Sabe Deus quando e onde seria que mestre Florian tocaria em
terra , lançado como ia a toda a força de remos na alta eloquência, se
não se abrisse de repente a porta baixa do fundo para dar passagem ao
senhor preboste em pessoa .
Com a sua entrada, mestre Florian não se deteve, mas, dando meia­
-volta nos calcanhares e fazendo incidir sobre o preboste a arenga com
que instantes antes ainda fulminava Quasímodo, disse:
- Monsenhor, requeiro a pena que vos aprouver contra o réu aqui
presente, por grave e espantosa falta de respeito à j ustiça.
E sentou-se ofegante, limpando grossas gotas de suor que lhe caíam
da testa e molhavam, como lágrimas, os pergaminhos desdobrados
na sua frente. Messire Roberto d'Estouteville franziu a testa e dirigiu a
Quasímodo um gesto a chamar-lhe a atenção, tão imperioso e signifi­
cativo, que o surdo percebeu qualquer coisa.
O preboste dirigiu-lhe a palavra com severidade.
- Que fizeste para estar aqui, maroto?
O pobre diabo, imaginando que o preboste lhe perguntava o nome,
quebrou o mutismo que normalmente mantinha e respondeu em voz
rouca e gutural:
- Quasímodo.
A resposta coincidiu tão pouco com a pergunta, que o divertido riso
recomeçou a circular, de modo que messire Roberto exclamou, rubro
de fúria :
- Também caçoas de mim, velhaco incorrigível?
- Sineiro em Nossa Senhora - respondeu Quasímodo, j ulgando que
se tratava de explicar ao j uiz quem ele era.
- Sineiro ! - repetiu o preboste que naquela manhã acordara muito
maldisposto, como já referimos. - Sineiro ! Eu é que te mando repicar
nos lombos um carrilhão de vergastadas pelas encruzilhadas de Paris.
Ouves, patife?
- Se é a minha idade que pretendeis saber - disse Quasímodo -,
julgo fazer vinte anos pelo São Martinho.
Era de mais! O preboste não se pôde conter.
- Ah, motej as do prebostado, miserável ! Senhores meirinhos da
vara, conduzi este velhaco ao pelourinho da Greve, zurzi-o e rodai-o
durante uma hora. Há de pagar-mas, por Deus o j uro ! E que se faça um

230
pregão do presente j ulgamento, com a assistência de quatro trombetei­
ros aj uramentados, nas sete castelanias do viscondado de Paris.
O escrivão começou imediatamente a rabiscar a sentença.
- Pelo ventre de Deus! - exclamou, do seu canto, o estudanteco
Jehan Frollo du Moulin. - Isto é que é julgar bem!
O preboste voltou-se e fixou outra vez em Quasímodo as pupilas
cintilantes:
- Parece-me que o patife disse "ventre de Deus" ! Escrivão, acres­
centai doze dinheiros parísios de multa por praguejar, e que a fábrica
de Santo Eustáquio receba metade. Tenho uma devoção particular por
Santo Eustáquio.
Nalguns minutos ficou lavrada a sentença. O teor era simples e
breve . Os usos do prebostado e do viscondado de Paris ainda não
haviam recebido os aperfeiçoamentos do presidente Thibaut Baillet
e de Roger Barmne, advogado do rei . Não tinham sido ainda obs­
truídos por essa alta flo resta de chicanas e de processos que esses
dois j u risconsultos lhe introduziram no começo do século XVI . Tudo
ali era claro, expedito e explícito. Caminhava-se direito até ao fim
e, sem matagais nem desvios, avistava-se imediatamente, ao cabo
do atalho, a roda, a forca ou o pelourinho. Sabia-se, ao menos, para
onde se ia.
O escrivão apresentou a sentença ao preboste que lhe apôs o selo e
saiu para continuar a digressão pelos auditórios, numa disposição de
espírito que devia povoar, nesse dia, todos os cárceres de Paris. Jehan
Frollo e Robin Poussepain riam-se à socapa. Quasímodo olhava para
tudo com uma cara indiferente e espantada.
Entretanto, quando mestre Florian Barbedienne por sua vez lia a
sentença para a assinar, o escrivão condoeu-se do pobre diabo conde­
nado e, na esperança de conseguir alguma diminuição de pena, abei­
rou-se o mais que pôde da orelha do auditor e disse-lhe, apontando
para Quasímodo:
- Aquele homem é surdo.
Esperava que esta comunidade de doença despertasse o interesse
de mestre Florian a favor do condenado. Mas, como já o observámos,
primeiro mestre Florian não se ralava de que reparassem na sua sur­
dez; depois, tinha o ouvido tão duro, que não percebeu uma palavra
do que lhe disse o escrivão, embora fingisse ouvir e respondesse:

231
- Ah, ah, então é diferente ! Não sabia disso. Nesse caso, mais uma
hora de pelourinho.
E assinou a sentença desse modo alterada.
- Bem feito - disse Robin Poussepain que tinha asco a Quasímodo.
- É para aprender a não maltratar as pessoas.

232
II

A toca dos ratos

Consinta-nos o leitor que o levemos outra vez à Praça de Greve, de


onde ontem saímos com Gringoire, para irmos atrás da Esmeralda.
São dez horas da manhã. Tudo ali assinala o dia imediato a uma
festa. Pelo chão espalham-se restos, fitas, trapos, penas de penachos,
pingos de cera dos brandões, migalhas da festança pública. Grande
número de burgueses {Lanam, como hoj e dizemos, de um lado para o
outro, remexendo com os pés nos tições extintos das fogueiras, exta­
siando-se diante da Casa dos Pilares, evocando as bonitas armações
da véspera e observando hoj e apenas os pregos, última satisfação. Por
entre os grupos, os vendedores de sidra e de cervej a rebolam os bar­
ris. Transeuntes apressados vão e vêm. Os mercadores conversam e
interpelam-se da porta das lojas. A festa, os embaixadores, Coppenole,
o papa dos loucos estão em todas as bocas. É ver o que melhor os
glosa e lhes acha mais graça. E, contudo, quatro beleguins a cavalo,
que acabam de se postar nos quatro cantos do pelourinho, concen­
traram já à sua roda uma boa porção da gentalha dispersa pela praça,
que se condena à imobilidade e ao aborrecimento na esperança duma
execuçãozinha.
Agora se o leitor, após contemplar esta cena animada e barulhenta,
representada em todos os cantos da praça, virar os olhos para essa
velha casa meio gótica, meio românica, da Torre Roland, à esquina do
cais do lado poente, poderá notar, no ângulo da fachada, um enorme
breviário público, de ricas iluminuras, abrigado da chuva por um
telheirozinho e dos gatunos por uma grade que, contudo, permite que
o folheiem. Ao lado deste breviário existe uma estreita fresta ogival

233
fechada por duas barras de ferro cruzadas que dava sobre a praça; é
a única abertura que deixa entrar um pouco de ar e de luz numa cela
minúscula e sem porta , feita no rés do chão, na espessura da parede da
vetusta residência e repleta dum sossego tanto mais profundo, de um
silêncio tanto mais melancólico, se se tiver em conta que em volta dela
formiga e guincha uma praça pública das mais populosas e ruidosas
da cidade.
Era célebre esta cela na Paris de há perto de três séculos, desde
que a Sr.ª Rolanda da Torre Roland , pranteando seu pai morto na
cruzada, a mandara escavar na muralha da sua própria casa, para
aí se encerrar para sempre, só conservando do palácio aquele aloj a ­
mento cuj a porta estava murada e cuj a fresta se conservava aberta
tanto de verão como de inverno, dando todos os seus restantes bens
aos pobres e a Deus. A desolada donzela esperou com efeito vinte
anos pela morte naquele túmulo antecipado, a rezar de dia e de noite
pela alma do pai, dormindo na cinza, sem ao menos ter uma pedra
como travesseiro, vestida com um saco de cor preta e vivendo apenas
do pão e da água que os transeuntes, por compaixão, colocavam no
parapeito do postigo, e recebendo assim esmolas depois de as ter
distribuído. Por sua morte , no momento de passar para outro sepul­
cro, legara este perpetuamente às mulheres aflitas, mães, viúvas ou
filhas que tivessem muito que rezar por outros ou por si e que se
quisessem enterrar vivas num grande sofrimento ou numa grande
penitência . Os pobres do seu tempo tinham-lhe feito um magnífico
funeral de lágrimas e de bênçãos, mas, com grande mágoa deles, a
piedosa j ovem não pudera ser canonizada santa por falta de prote­
tores. Os que dentre eles eram um pouco ímpios tinham alimentado
a esperança de que a coisa se resolveria mais facilmente no Paraíso
do que em Roma e haviam muito simplesmente rezado a Deus pela
defunta, na falta do papa. A maioria contentara-se em considerar
sagrada a memória de Rolanda e , fazer relíquias dos seus andraj os.
Por seu lado, a cidade criara , em intenção da donzela, um brevi­
ário público que chumbara perto da janelita da cela, para que os
transeuntes ali se detivessem uma vez por outra, pelo menos para
rezar, visto que a oração faz pensar na esmola, e para que as pobres
reclusas, herdeiras do j azigo de Rolanda, não morressem ali comple­
tamente à fome e ao abandono.

234
Este género de túmulo não era, aliás, coisa muito rara nas cidades
da Idade Média. Encontrava-se amiúde nas ruas mais frequentadas, nos
mercados mais animados e mais ensurdecedores, mesmo no meio, sob
as patas dos cavalos, quase sob a roda das carroças, um subterrâneo,
um poço, uma cela murada e gradeada, no fundo da qual rezava noite
e dia um ser humano, voluntariamente consagrado a qualquer lamen­
tação eterna, a qualquer grande expiação. E todas as reflexões que em
nós hoje despertaria esse estranho espetáculo, esse horrível cubículo,
espécie de anel intermediário da casa e da sepultura, do cemitério e
da cidade, esse vivo separado da comunidade humana e incluído já
entre os mortos, essa lâmpada que consome na sombra a sua última
gota de óleo, esse vacilante resto de vida numa fossa, esse sopro, essa
oração eterna numa caixa de pedra, essa voz, esse rosto voltado para
sempre para o outro mundo, esse olhar já iluminado por outro sol,
esse ouvido colado às paredes do túmulo, essa alma prisioneira nesse
corpo, esse corpo prisioneiro nessa masmorra, e, sob esse duplo invó­
lucro de carne e de granito, o rumor dessa alma aflita, em nada disso
atentava a multidão. A piedade pouco raciocinadora e pouco subtil des­
ses tempos não descobria tantas facetas num ato religioso. Tomava a
coisa em bruto, honrava, venerava e santificava, se preciso fosse, o
sacrifício, mas não lhe analisava os sofrimentos e compadecia-se dele
mediocremente. De vez em quando, levava qualquer pitança ao mísero
penitente, espreitava pelo buraco para ver se ele ainda estava vivo,
ignorava-lhe o nome e sabia apenas há quantos anos ele começara a
morrer. Ao estranho, que perguntava quem era o esqueleto vivo que
apodrecia naquele subterrâneo, os vizinhos respondiam apenas, se se
tratava de um homem:
- É o recluso.
Se era uma mulher:
- É a reclusa.
Nesse tempo, via-se tudo assim sem metafisica, sem exagero, sem
vidro de aumentar, a olho nu. Ainda não se inventara o microscópio,
nem para as coisas da matéria nem para as coisas do espírito.
Para mais, mesmo que se admirassem pouco, eram realmente fre­
quentes, como há pouco dissemos, os exemplos desta espécie de clau­
sura no seio das cidades. Havia por Paris bastantes destas celas de orar
a Deus e de fazer penitência; quase todas estavam ocupadas. É certo

235
que o clero não se importava que as deixassem vazias, o que implicava
tibieza nos devotos, e que metiam lá leprosos quando não havia peni­
tentes. Além do cubículo da Greve, havia um em Montfaucon, um no
ossário dos Inocentes, outro não sei já onde, mas parece-me que na
residência de Clichon. Outros ainda por muitos sítios, cuj os vestígios,
à falta de monumentos, se encontram nas tradições. A Universidade
tinha também o seu . Na montanha de Santa Genoveva, uma espécie
de Job da Idade Média cantou durante trinta anos os sete salmos peni­
tenciais em cima duma estrumeira, no fundo duma cisterna, recome­
çando quando acabava, salmodiando mais alto de noite, magna voce
per umbras75, e hoj e o antiquário j ulga ainda ouvir a sua voz quando
entra na Rua do Poço-Que-Fala.
Pelo que se refere à cela da Torre Roland, devemos dizer que nunca
lhe faltaram reclusas. Desde que a Sr.3 Rolande morreu, raras vezes
esteve vazia mais de um ou dois anos. Numerosas mulheres ali foram
chorar, até à hora da morte, parentes, amantes, delitos. A malícia pari­
siense, que em tudo se intromete, até nas coisas que menos lhe devem
importar, afirmava que poucas viúvas se tinham lá visto.
Conforme a moda do tempo, na parede esculpiram um letreiro em
latim a indicar ao transeunte letrado o piedoso destino daquela cela. Até
meados do século XVI manteve-se o costume de explicar um edifício
por meio de uma curta divisa, escrita por cima da porta. Assim, ainda
se lê na França, sobre o postigo da prisão senhorial de Tourville: Sileto
et spera76; na I rlanda , debaixo da pedra de armas que domina a porta
do castelo de Fortescue: Forte scutum, salus ducum77; na I nglaterra, por
cima da entrada principal do hospitaleiro solar dos Condes Cowper:
Tu um est78 . É que nesse tempo todo o edifício era um pensamento.
Como não havia porta na cela murada da Torre Roland, por cima da
janela gravaram, em grandes carateres, estas duas palavras:

TU O RA79.

75 Uma g rande voz na noite.


76 Cala-te e espera.
77 Forte escudo, saúde dos chefes.
78 É teu.
79 Tu , reza .

236
O que fez com que o povo, cuj o bom senso não vê tanta delicadeza
nas coisas e traduz da melhor vontade Ludovico Magno por Porta de
S. Dinis, desse a essa cavidade negra, sombria e húmida, o nome de
Trou aux Rats60 • Explicação talvez menos sublime do que a outra, mas,
em compensação, mais pitoresca.

ªº Do TU, ORA, lido à francesa tiu ôrá, saiu a "toca dos ratos".

237
III

História dum bolo d e farinha d e milho

Na época em que esta história decorre, estava ocupada a cela da


Torre Roland. Se o leitor desej a saber por quem, basta-lhe escutar a
conversa de três boas comadres que, na altura em que lhe chamamos
a atenção para a Toca dos Ratos, se encaminhavam justamente para
o mesmo lado, subindo do Châtelet em direção à Greve, pela borda de
água.
Duas dessas mulheres vestiam como as boas burguesas de Paris.
A fina gargantilha branca, a saia de tiritana às riscas vermelhas e
azuis, as meias de malhas brancas bordadas a cores, bem j ustas à
perna , os sapatos quadrados de cabedal ruço e solas pretas e princi­
palmente o chapéu , essa espécie de bico de lentej oulas, sobrecarre­
gado de fitas e de rendas, ainda hoj e usado pelas Champanhesas, em
concorrência com os granadeiros da Guarda Imperial Russa , anuncia­
vam que pertenciam a essa classe de mercadoras ricas que ocupam
o meio termo entre o que os lacaios chamam uma mulher e o que
denominam uma dama . Não traziam nem anéis, nem cruz de ouro, e
facilmente se observava que o não faziam por pobreza, mas sim muito
simplesmente com medo da multa. A companheira ia ataviada mais ou
menos da mesma maneira, mas havia no seu porte e na sua presença
um não sei quê que denunciava a mulher do notário de província.
Via-se, no modo como o seu cinto lhe subia acima das ancas, que não
estava havia muito tempo em Paris. Acrescente-se a isso a gargantilha
plissada, laços de fitas nos sapatos, as riscas da saia no sentido da
largura e não do comprimento e outras mil enormidades com que se
indignava o bom gosto.

238
As duas primeiras caminhavam com esse passo peculiar das pari­
sienses que mostram Paris às provincianas. A provinciana levava pela
mão um garoto gordo que segurava na sua um enorme bolo.
Contraria-nos ter de acrescentar que, em vista do rigor da estação, o
miúdo fazia da própria língua lenço de assoar.
O garoto ia rebocado non passibus aequis8 1 , como diz Virgílio, trope­
çava a todo o instante, com grandes recriminações da mãe. É certo que
ele olhava mais para o bolo do que para o chão. Sem dúvida, razão de
peso o impedia de lhe dar uma dentada (no bolo) , pois contentava-se
em contemplá-lo com ternura. A mãe, contudo, procederia melhor se
tomasse conta do bolo. Era uma crueldade fazer do bolachudo garoto
um Tântalo.
Não obstante, as três donas (pois o nome de damas só se reservava
então para as fidalgas) falavam todas ao mesmo tempo.
- Despachemo-nos, dona Mahiette - dizia a mais nova das três,
a provinciana, e que era também a mais nutrida. - Estou com muito
medo de que cheguemos tarde de mais. Disseram-me no Châtelet que
o iam levar para o pelourinho.
- Ora, ora, o que estais para aí a dizer, dona Oudarde Musnier?
- exclamava a outra parisiense. - Ficará duas horas no pelourinho.
Temos tempo. Nunca vistes funcionar o pelourinho, minha querida
Mahiette?
- Já - respondeu a provinciana. - Em Reims.
- Ora, ora ! Que vem a ser esse vosso pelourinho de Reims? Uma
gaiola ruim onde só amarram campónios. Olhai a grande coisa !
- Quais campónios! - protestou Mahiette. - No Mercado dos Panos,
em Reims? Já ali vimos esplêndidos criminosos que tinham assassi­
nado pai e mãe ! Campónios! . . . Por quem nos tomais, Gervásia?
A verdade é que a provinciana estava quase a zangar-se por causa
do seu pelourinho. Felizmente que a discreta dona Oudarde Musnier
desviou a tempo a conversa.
- A propósito, dona Mahiette, que dizeis dos nossos embaixadores
flamengos? Tende-los assim tão bonitos em Reims?
- Confesso - reconheceu Mahiette - que não há como Paris para ver
flamengos assim.

81
A passos i rregulares.

239
- Vistes na embaixada aquele grão-embaixador que é fabricante de
meias? - perguntou Oudarde.
- Vi - respondeu Mahiette. - Tem um ar de Saturno.
- E aquele gordo, com uma cara que parece uma barriga nua? -
continuou Gervásia . - E o outro mais pequeno, com uns olhinhos cir­
cundados de pálpebras encarnadas, enrugadas e franjadas como uma
cabeça de cardo?
- Dignos de ver-se são os seus cavalos - observou Oudarde - aj ae­
zados à moda da sua terra !
- Ai, minha querida - interrompeu a provinciana Mahiette, arvo­
rando, por sua vez, um ar de superioridade. - Que não diríeis se vís­
seis, em 6 1 , na sagração de Reims, há dezoito anos, os cavalos dos
príncipes e do séquito real? Eram arneses e gualdrapas de toda a sorte,
uns de pano de damasco, de fino tecido de ouro, forrados de pele de
marta-zibelina; outros, de veludo, cobertos de peles de arminho; outros
ainda, todos recamados de j oias e de grandes borlas de ouro e de
prata ! E o dinheiro que aquilo custo u ! E os belos paj enzinhos que iam
montados!
- Isso não obsta - replicou secamente a dona Oudarde - que os
flamengos possuam belíssimos cavalos e que estivessem ontem numa
ceia magnífica, em casa do Sr. Preboste dos Mercadores, na Câmara
Municipal, onde lhes serviram confeitas, hipocraz, especiarias e outros
mimos.
- Que estais dizendo, vizinha? - exclamou Gervásia. - Foi em casa
do Sr. Cardeal, no Petit-Bourbon, que os flamengos cearam.
- Não foi. Foi na Câmara Municipal.
- Foi no Petit-Bourbon !
- É tão certo ter sido n a Câmara Municipal - retorquiu asperamente
Oudarde - como o Dr. Scourable lhes ter dirigido uma arenga em latim,
com a qual ficaram muito lisonj eados. Disse-me meu marido, que é
livreiro-j urado.
- É tão certo ter sido no Petit-Bourbon - respondeu Gervásia, com
não menor vivacidade - como o procurador do Sr. Cardeal lhes ter apre­
sentado exatamente isto: doze duplos quartos de hipocraz branco, cla­
rete e tinto ; vinte e quatro caixas de maçapão duplo dourado, de Lião;
outras tantas tochas de duas libras cada uma e seis meias-pipas de
vinho de Beaune, branco e palhete, o melhor que se pôde encontrar.

240
Espero que isto não ofereça dúvidas! Contou-mo o meu marido, que
é cinquentenário no Parloir-aux-Bourgeois e que esta manhã esteve
a comparar os embaixadores flamengos com os do Preste João e do
imperador de Trebizonda que vieram da Mesopotâmia a Paris, no rei­
nado anterior, e que traziam argolas nas orelhas.
- É tão certo que eles cearam na Câmara Municipal - replicou
Oudarde, um pouco perturbada com aquele estendal - como nunca se
ter visto maior espavento em carnes e doces.
- Pois eu digo-vos que quem os serviu foi Le Sec, agente de polícia,
no Petit-Bourbon, e é isso que vos está a causar confusão.
- Na Câmara M unicipal, já vos disse!
- No Petit-Bourbon, minha querida. E tanto que iluminaram com
vidros mágicos a palavra Esperança que está escrita por cima do portão
principal.
- Na Câmara Municipal! Na Câmara Municipal ! Até o Husson le Voir
lá esteve a tocar flauta!
- Já vos disse que não.
- Já vos disse que sim!
- Já vos disse que não !
A boa da obesa Oudarde preparava-se para replicar e a discussão
talvez se azedasse ainda mais se Mahiette não exclamasse de repente:
- Vede aquela gente que se amontoou lá adiante no fim da ponte !
Há no meio deles qualquer coisa para que estão a olhar.
- É verdade - disse Gervásia. - Oiço o rufar de tamboris. Calculo que
seja a Esmeraldinha a fazer as suas mornices mais a cabra. Apressai-vos,
Mahiette! Estugai o passo e puxai pelo vosso rapaz. Viestes aqui para
visitar as curiosidades de Paris. Vistes ontem os flamengos; é preciso
ver hoj e a egípcia.
- A egípcia? - exclamou Mahiette, voltando de repente para trás e
apertando com força o braço da criança. - Deus me defenda! Roubava-me
o meu filho ! Anda, Eustáquio !
E desatou a correr pelo cais, direita à Greve, até deixar a ponte
muito para trás de si. Entretanto a criança, que ela levava quase de
rastos, caiu de j oelhos; a mulher parou, ofegante. Oudarde e Gervásia
alcançaram-na por fim.
- Essa egípcia roubar-vos o filho? - exclamou Gervásia. - Aí está
uma fantasia singular!

24 1
Mahiette abanou a cabeça com ar pensativo.
Oudarde observou:
- O que é mais singular ainda é que a penitente do saco tem a
mesma mania a respeito das egípcias.
- Que vem a ser a penitente do saco? - inquiriu Mahiette.
- Ora ! - respondeu Oudarde. - É a irmã Gúdula.
- E que vem a ser a irmã Gúdula? - insistiu Mahiette.
- Bem se vê que sois de Reims, para não a conhecerdes - comentou
Oudarde. - É a reclusa da Toca dos Ratos.
- Como ! - exclamou Mahiette. - Essa pobre mulher para quem leva­
mos este bolo?
Oudarde respondeu com um aceno afirmativo da cabeça.
- Justamente. Ides vê-la lá pela j anelinha da Greve. Tem a mesma
maneira de pensar que vós acerca desses vagabundos do Egito que
tangem pandeiro e leem a sina ao público. Não se sabe de onde lhe
vem esse horror pelos zíngaros e pelos egípcios. Mas vós, Mahiette,
porque fugis assim mal os vedes?
- O h ! - exclamou Mahiette, agarrando entre as duas mãos a cabeça
redonda da criança. - Não quero que me aconteça o que aconteceu à
Paquette, a Chantefleurie.
- Ora aí está uma história que me ides contar, minha boa Mahiette !
- declarou Gervásia, dando-lhe o braço.
- Com todo o gosto - acedeu Mahiette -, mas é preciso que sej ais
muito da vossa Paris para não a conhecerdes! Dir-vos-ei então . . .
mas não é preciso pararmos para contar a coisa . . . que a Paquette,
a Chantefleurie, era uma linda rapariga de dezoito anos quando eu
o era também, isto há dezoito anos, e a culpa é sua se não é hoj e ,
como e u , u m a boa e perfeita mãe de trinta e seis anos, ainda fresca ,
com um marido e um filho. Com efeito, desde a idade de catorze anos
que isso j á não é possível! Era filha de Guybertaut, menestrel de bar­
cos em Reims, o mesmo que tocara na presença de Carlos VI I , na
sua sagração, quando o rei desceu o nosso rio de Vesle desde Silley
até Muison, na mesma altura em que madame la Pucelle ia também
no barco. O pai morreu já velho quando a Paquette era ainda uma
criança; ela não ficou , pois, com mais ninguém senão a mãe, mana
do Sr. Mateus Pradon, mestre latoeiro e caldeireiro em Paris, na Rua
Parin-Garlin, o qual morreu o ano passado. Bem vedes que ela era

242
de boas famílias. A mãe era uma bondosa criatura , mas, por azar, só
ensinou à Paquette a fazer alguns lavores e brinquedos, o que não
impediu que a pequena crescesse muitíssimo e ficasse extremamente
pobre. Moravam as duas em Reims, j unto do rio, na Rua Folle-Peine.
Notai isto: estou convencida de que foi o que deu azar à Paquette.
Em 6 1 , o ano da sagração do nosso rei Luís XI, que Deus guarde, a
Paquette era tão folgazã e guapa, que por toda a parte lhe chamavam
a Chantefleurie. Pobre moça ! Como tinha uns lindos dentes, gostava
de rir para que lhos vissem. Ora cachopa que gosta de rir prepara-se
para chorar; os dentes bonitos perdem os olhos bonitos. Era, portanto,
a Chantefleurie. Tanto ela como a mãe ganhavam duramente o pão
de cada dia. Desde que morrera o menestrel , ficaram muito em baixo.
Os lavores pouco mais lhes rendiam do que seis dinheiros por semana,
o que não chega a fazer ao todo dois liards de águia. Bons tempos
em que o pai Guybertaut, só numa sagração, ganhava doze soldos
parísios com uma canção. Foi num inverno . . . nesse mesmo ano de
6 1 . . . em que as duas mulheres não tinham nem achas nem lenha e
fazia um frio de rachar, o que dava tão lindas cores à Chantefleurie,
que, se alguns homens lhe chamavam Paquette, outros tratavam-na
por Pâquerette . . . foi nesse inverno que ela se perdeu. ( Eustáquio, se
te apanho a morder no bolo ! ) Vimos imediatamente que estava per­
dida, num domingo em que apareceu na igrej a com uma cruz de ouro
ao pescoço . . . Aos catorze anos, imaginai ! . . . Primeiro foi o j ovem vis­
conde de Cormontreuil, cuj a torre se ergue a três quartos de légua
de Reims; depois, messire H enrique de Triancourt, estribeira do rei ;
a seguir, menos d o q u e isso, o sargento Chiart de Beaulion; depois,
sempre a descer, Guery Aubergeon, criado trinchante do rei; depois,
Macé de Frépus, barbeiro do Sr. Delfim; depois, Thévenin le Moine,
cozinheiro do rei ; em seguida, sempre assim cada vez de menos j ovem
para menos fidalgo, caiu em Guilherme Racine, menestrel de sanfona,
e em Thierry de Mer, lanterneiro. Então, a pobre da Chantefleurie foi
toda de todos. Chegara ao último soldo da sua moeda de ouro. Que
mais vos hei de dizer? Na sagração, nesse mesmo ano de 6 1 , foi ela
que fez a cama do rei dos libertinos! No mesmo ano!
Mahiette suspirou e enxugou uma lágrima que lhe rolava dos olhos.
- Aí está uma história que não tem nada de extraordinário - comen­
tou Gervásia - e não vej o nisso tudo nem egípcios nem crianças.

243
- Paciência ! - respondeu Mahiette. - Mas crianças já ides ver uma.
Em 6 6 , faz dezasseis anos este mês pela Santa Paula, Paquette deu
à luz uma menina. A desgraçada ficou contentíssima ! Havia muito
tempo que queria um filho. A mãe, santa criatura que nunca soube
fazer mais nada senão fechar os olhos, morrera. Paquette não tinha já
neste mundo mais nada de quem gostar, nem mais ninguém que gos­
tasse dela. Nesses cinco anos em que pecou, a Chantefleurie tornara-se
uma pobre criatura. Vivia sozinha, sozinha neste mundo, apontada
a dedo, apupada pelas ruas, espancada pelos aguazis, vaiada pelos
miúdos esfarrapados. E, além disso, os vinte anos chegaram e vinte
anos representam a velhice para as mulheres que vendem amor. A má
vida começava a não lhe render mais do que antigamente os lavores.
Por cada ruga que lhe aparecia era um escudo que se ia. O inverno
tornava-se-lhe duro, a lenha voltara a rarear-lhe na lareira assim como
o pão na arca. Já não podia trabalhar, porque quando se tornou volup­
tuosa fez-se mandriona e sofria muito mais porque, ao fazer-se pregui­
çosa, tornara-se voluptuosa . . . Pelo menos é assim que o senhor prior
de São Remígio explica a razão por que essas mulheres, quando são
velhas, têm mais frio e fome do que as outras pobres.
- Sim - admitiu Gervásia - , mas os egípcios?
- Esperai lá, Gervásia ! interveio Otidarde, de curiosidade menos
impaciente. - Que é que haveria no fim, se tudo estava ainda no princí­
pio? Continuai , Mahiette, peço-vos. Coitada da Chantefleurie.
Mahiette continuou:
- Como dizia, ela andava bem triste, bem miserável, com as lágrimas
a cavarem-lhe as faces. Contudo, na sua vergonha, na sua leviandade
e abandono, achava que seria menos vergonhosa, menos leviana e
menos abandonada se houvesse alguma coisa neste mundo ou alguém
a quem se pudesse dedicar e que lhe pudesse querer bem. Tinha de ser
uma criança, pois só uma criança podia ser suficientemente inocente
para o fazer. Chegou a esta conclusão depois de tentar estimar um sal­
teador, o único homem que lhe poderia querer, mas não levou muito
tempo a verificar que o salteador a desprezava. Essas mulheres preci­
sam de um amante ou de um filho para lhes encher o coração. Senão
sentem-se muito desgraçadas. Como não podia ter amante, devotou-se
toda ao desej o de ter um filho e, como nunca deixou de ser piedosa,
rezava constantemente ao Pai do Céu. Nosso Senhor compadeceu-se

244
dela e deu-lhe uma filhinha. A sua alegria nem se descreve. Foi um
delírio de lágrimas, de carícias e de beij os. Ela própria amamentou a
criança, fez-lhe cueiros com o único lençol que tinha na cama e nunca
mais sentiu frio nem fome. Embelezou-se outra vez. A rapariga ave­
lhentada transformou-se em mãe j ovem. Voltou à galanteria , voltou a
ser a Chantefleurie, tornou a encontrar clientes para a sua mercadoria
e de todos esses horrores fez enxovais, toucas e babadoiros, corpinhos
de rendas e touquinhas de cetim , sem querer lembrar-se de comprar
outra vez um lençol. (Senhor Eustáquio, já vos disse que não comêsseis
o bolo ! ) É bem certo que a pequena I nês . . . tal era o nome da criança,
pois, quanto a apelido, havia muito tempo que a Chantefleurie não
tinha nenhum . . . é bem certo que essa pequena andava mais enfeitada
de fitas e de bordados do que uma delfina do Delfinado ! Tinha entre
outras coisas um par de sapatinhos como com certeza o rei Luís XI os
não teve iguais! A própria mãe lhos fez e bordou e nisso empregou
todas as suas prendas de lavores e todos os arrendados dum manto
de Nossa Senhora . Eram deveras os dois mais engraçados sapatinhos
cor-de-rosa que se podiam admirar. Não eram mais compridos do que
o meu polegar e necessitava-se de ver sair deles os pezinhos da criança
para nos convencermos de que lhe serviam. É verdade que esses pezi­
nhos eram tão pequenos, tão lindos, tão cor-de-rosa ! Mais cor-de-rosa
do que o próprio cetim dos sapatos! Quando a Oudarde tiver filhos, vai
ver que não há nada mais bonito do que esses pezinhos e do que essas
mãozinhas!
- Tomara eu ! - exclamou Oudarde, soltando um suspiro. Mas estou
à espera de que isso dê na gana ao Sr. Andry Musnier.
- Para mais - prosseguiu Mahiette -, nem só os pés da filha da
Paquette eram bonitos. Vi-a quando só contava quatro meses. Era
um amor! Tinha os olhos maiores do que a boca. E os mais lindos e
finos cabelos pretos, já a encaracolarem-se. Aos dezasseis anos devia
fazer-se uma morena de mão-cheia ! De dia para dia a mãe tornava-se
mais doida por ela. Acariciava-a, fazia-lhe cócegas, lavava-a, embone­
cava-a, comia-a com beijos! Perdia a cabeça por causa da filha, mas
dava graças a Deus! Principalmente com aqueles pezinhos rosados
era um nunca acabar de exclamações, um delírio de alegria ! Andava
sempre com os lábios colados a eles e não se convencia de que pudes­
sem ser tão pequeninos. Calçava-lhes os sapatinhos, descalçava-os,

245
admirava-os, maravilhava-se, via a luz através deles, entristecia-se
com a experiência de os fazer caminhar em cima da cama e, com todo
o enlevo, levaria a vida de j oelhos a calçar e a descalçar aqueles pés
como se fossem os do Menino Jesus.
- O conto é bom e bonito - concordou a Gervásia, a meia-voz -, mas
que tem que ver isso tudo com o Egito?
- Já ides ver - respondeu Mahiette. - Chegou um dia a Reims uma
espécie de cavaleiros muito esquisitos. Eram mendigos e vagabun­
dos que andavam de terra em terra, guiados pelo seu duque e pelos
seus condes. Trigueiros, de cabelos todos ondulados, usavam argolas
de prata nas orelhas. As mulheres ainda eram mais feias do que os
homens. Tinham a cara mais negra e sempre destapada, um roquete
ruim em cima do corpo, um trapo velho tecido com cordéis amarrado
ao ombro, o cabelo em rabo de cavalo. As crianças que se lhe agarra­
vam às pernas assustariam os macacos. Um bando de excomungados.
Tudo aquilo vinha direito do Baixo Egito para Reims, pela Polónia.
Ao que se dizia, o papa confessara-os e dera-lhes por penitência anda­
rem sete anos seguidos pelo mundo, sem se deitarem em camas. O seu
corpo exalava um cheiro nauseabundo. Parece que, em tempos que
já lá vão, tinham sido sarracenos, o que fazia com que acreditassem
em Júpiter e reclamassem, de todos os arcebispos, bispos e abades
de báculo e mitra, dez libras turnesas. Foi uma bula do papa que lhes
deu esse direito. Vinham a Reims ler a sina em nome do rei de Argel e
do imperador da Alemanha . Estais bem a ver que não foi preciso mais
nada para que os proibissem de entrar na cidade. Então o rancho todo
acampou, sem se ralar nada, j unto da Porta de Braine, naquele outeiro
onde existe um moinho, ao lado das antigas covas de que se tirava
greda. E era ver em Reims quem não os queria visitar! Olhavam-nos
para a mão e faziam-nos maravilhosas profecias. Eram capazes de pro­
fetizar a Judas que viria a ser papa ! Corriam, contudo, a respeito deles
certos rumores acerca de crianças roubadas, de bolsas golpeadas e de
carne humana comida. As pessoas de j uízo diziam aos tontos: "Não
vades lá ! " Mas eles, por seu lado, lá iam às escondidas. Isso era, porém,
por veneta. O certo é que diziam coisas que deixariam um cardeal de
boca aberta. As mães impavam de orgulho pelos filhos, desde que as
egípcias lhes liam na mão toda a casta de milagres, escritos em pagão
e em turco. Uma tinha um imperador, outra um papa, outra um capitão.

246
A curiosidade assaltou a pobre da Chantefleurie. Quis saber quem lá
tinha em casa e se a Inêsinha não seria um dia imperatriz da Arménia
ou qualquer outra coisa. Levou-a, pois, aos egípcios e às egípcias para
admirarem a criança, fazerem-lhe festas, beijarem-na com as negras
bocas e maravilharem-se com as suas mãozinhas. I sto tudo, infeliz­
mente, com grande alegria da mãe! Festejavam-lhe principalmente
os lindos pés e os lindos sapatos. A criança não contava ainda um
ano. Já balbuciava, ria-se para a mãe como uma tontinha, era gorda
e muito rechonchuda e fazia mil gestozinhos encantadores dos anj os
do Paraíso. Assustou-se muito com as egípcias e desatou a chorar. Mas
a mãe beij ou-a ainda mais e foi-se embora encantada com a sina que
as adivinhadoras leram à sua Inês. Devia ser uma beleza, uma vir­
tude, uma rainha. Voltou, portanto, ao seu casebre da Rua Folle-Peine,
impando de orgulho por levar para lá uma rainha. No dia seguinte,
aproveitando uma altura em que a menina estava a dormir na sua
cama, porque deitava-a sempre com ela, deixou, sem fazer nenhum
rumor, a porta encostada e correu a contar a uma vizinha, da Rua da
Séchesserie, que chegaria o dia em que a sua filha Inês seria servida
à mesa pelo rei da I nglaterra e pelo arquiduque da Etiópia, além de
muitas outras surpresas. Quando regressou, como não ouvisse coisa
alguma ao subir a escada, disse para consigo: " Bem, a menina con­
tinua a dormir". Encontrou a porta mais aberta do que a deixara . . .
A menina j á lá não estava, o leito achava-se vazio. Não ficara mais nada
da criança senão um dos seus lindos sapatinhos. A mãe correu para
fora do quarto, atirou-se pela escada abaixo e desatou a bater com a
cabeça nas paredes, e a gritar: " Minha filha ! Quem tem a minha filha?
Quem me levou a minha filha?" A rua estava deserta, a casa ficava num
ermo. Ninguém lhe soube dizer nada. Andou pela cidade, esquadri­
nhou por todas as ruas, correu de um lado para o outro o dia inteiro
louca, desgrenhada, terrível, farej ando às portas e às j anelas, como um
animal feroz que perdeu as crias. Ofegante, despenteada, medonha de
ver, ardia-lhe nos olhos um fogo que lhe secava as lágrimas. Detinha
os que passavam e gritava-lhes: "A minha filha ! A minha filha ! A minha
linda filhinha ! Serei a escrava daquele que me restituir a minha filha,
serei a criada do seu cão e deixo-lhe que me coma o coração, se quiser. "
Encontrou o senhor prior d e São Remígio e disse-lhe: "Senhor Cura,
lavrarei a terra com as unhas, mas restituí-me a minha filha ! "

247
" Era de cortar o coração, Oudarde, e vi um homem bem severo,
como era mestre Ponce Lacabre, o procurador, a chorar! . . . Pobre
mãe ! . . . À noite, recolheu a casa. Durante a sua ausência, uma vizinha
vira duas egípcias subirem lá às escondidas, com um embrulho nos
braços, e depois descerem, fecharem a porta e fugirem a sete pés. Logo
que se foram embora, ouviu-se em casa de Paquette como que uma
espécie de gritos de criança. A mãe riu às gargalhadas, subiu a escada
como se tivesse asas, arrombou a porta como uma peça de artilharia
e entrou . . . Uma coisa horrenda, Oudarde! Em lugar da sua linda Inês,
tão rosadinha e fresca como uma verdadeira dádiva de Deus, encon­
trou uma espécie de monstrozinho, hediondo, coxo, zanaga, disforme,
que se arrastava, choramingando, pelo laj edo. Paquette tapou os olhos,
horrorizada, e exclamou:
"- Ai, as bruxas transformariam a minha filha neste animal horrendo?
"Apressaram-se a levar dali o pequeno aborto, pois fá-la-ia perder o
juízo. Era um monstrozinho, filho de qualquer egípcia que se entregara
ao Diabo. Parecia ter uns quatro anos e falava uma língua que não era
nada língua humana, mas sim palavras impossíveis . . . A Chantefleurie
lançara-se sobre o sapatinho, tudo o que lhe restava de quanto amara.
Ficou assim por muito tempo imóvel, calada, sem respirar; estremeceu
dos pés à cabeça, cobriu a sua relíquia com furiosos beijos e desfez-se em
soluços como se lhe tivesse estalado o coração. Garanto-vos que todas nós
chorávamos também. "Oh, minha filhinha, minha linda filhinha ! " Era de
nos torcer as entranhas! Só de me lembrar, ainda choro. Compreendeis . . .
os nossos filhos são a medula dos nossos ossos! . . . Meu pobre Eustáquio!
És tão bonito, tu! Se soubésseis como é gracioso ! Ainda ontem me dizia:
" Eu cá quero ser gendarme! " Ó meu Eustáquio! Se eu te perdesse . . . !
"A Chantefleurie levantou-se de repente e abalou a correr por Reims,
de um lado para o outro, gritando:
"- Vamos ao acampamento dos egípcios ! Vamos ao acampamento
dos egípcios ! Meirinhos, vinde queimar as bruxas!
"Os egípcios tinham-se ido embora. Era noite cerrada. Impossível
persegui-los. No dia seguinte, a duas léguas de Reims, numa charneca
entre Gueuxe e Tilloy, encontraram-se as cinzas duma enorme fogueira,
umas fitas que haviam pertencido à filha de Paquette, alguns pingos
de sangue e excremento de cabras. Aquela noite caíra justamente a
um sábado. Não restaram mais dúvidas de que os egípcios tinham

248
festejado o sábado naquela charneca e devorado a criança, na compa­
nhia de Belzebu, como fazem os Maometanos. Quando a Chantefleurie
soube destas horrorosas coisas, não chorou, mas mexeu os lábios para
dizer qualquer coisa, sem o conseguir. No dia seguinte, tinha os cabe­
los grisalhos. No imediato, desapareceu. "
- A í está, efetivamente, uma história horrível - concordou Oudarde.
- Capaz de fazer chorar até um borgonhês!
- Já não me admiro então de que os egípcios vos causem tanto
medo - concordou Gervásia.
- E fizestes realmente muito bem - prosseguiu Oudarde - em fugirdes
há bocado com o vosso Eustáquio, pois aqueles são egípcios da Polónia.
- Não - discordou Gervásia. - Dizem que vêm da Espanha e da
Catalunha.
- Catalunha? - repetiu Oudarde. - Pode ser. . . Polónia, Catalunha,
Valónia são três províncias com que faço sempre baralhada. O certo é
que são egípcios.
- E sem dúvida de dentes bem aguçados para comerem criancinhas
sublinhou Gervásia. - Não me admiraria nada se a Esmeralda tam­
bém as provasse, mesmo que finj a que não gosta. A sua cabra branca
executa habilidades bastante maliciosas para que por baixo disso não
esconda qualquer patifaria.
Mahiette caminhava calada. Ia absorta nessa meditação que é de
certo modo o prolongamento duma dolorosa narrativa e que não acaba
senão depois de o abalo se propagar, de vibração em vibração, até às
últimas fibras da alma. Entretanto, Gervásia dirigiu-lhe a palavra:
- Nunca se conseguiu saber o que aconteceu à Chantefleurie?
Mahiette não respondeu. Gervásia repetiu a pergunta sacudindo-lhe
o braço e chamando-a pelo nome. Mahiette pareceu despertar dos seus
pensamentos e disse, repetindo maquinalmente as palavras de que os
ouvidos guardavam a impressão ainda totalmente fresca:
- Que aconteceu à Chantefleurie? . . .
Então, num esforço para virar a atenção para o sentido daquelas
palavras, respondeu com vivacidade:
- Ah ! . . . Nunca se soube.
Após breve pausa, acrescentou:
- Uns disseram que a viram sair de Reims à boca da noite, pela
Porta Fléchembault; outros, ao romper do dia, pela velha Porta Basée.

249
Um pedinte encontrou-lhe a cruz de ouro dependurada da cruz de
pedra, no campo onde se faz a feira. Foi essa j oia que a perdeu, em 6 1 .
Era um presente d o formoso visconde de Cormontreuil, seu primeiro
amante. Paquette nunca se quisera desfazer dela, mesmo quando a
miséria lhe batia à porta. Queria-lhe como à própria vida . Por isso,
quando viram aquela cruz abandonada, todos pensámos que a rapa­
riga morrera. Contudo, há gente de Cabaret-les-Vantes que diz tê-la
visto passar em direção a Paris, caminhando descalça pelas pedras.
Para isso, porém , seria preciso que saísse pela Porta de Vesle, o que
não j oga certo. Ou, para melhor dizer, convenço-me de que realmente
passou pela Porta de Vesle, mas para sair deste mundo.
- Não compreendo . . . - murmurou Gervásia .
- O Vesle - esclareceu Mahiette, com um sorriso melancólico - é
o rio.
- Pobre Chantefleurie! - lamentou Oudarde, estremecendo. - Afogada !
- Afogada . . . - repetiu Mahiette. - Q u e diriam ao b o m do tio
Guybertaut, quando passava sob a ponte de Tinqueux, rio abaixo, a
cantar na sua barca, que um dia a sua querida Paquette passaria tam­
bém debaixo daquela ponte, mas sem cantiga nem barco ! . . .
- E o sapatinho? - inquiriu Gervásia.
- Desapareceu como a mãe - respondeu Mahiette.
- Pobre sapatinho ! - gemeu Oudarde.
Esta, mulher gorda e compassiva, muito gostaria de se carpir na
companhia de Mahiette, mas Gervásia, mais curiosa, ainda não acabara
com as perguntas.
- E o monstro? - exclamou de repente para Mahiette.
- Qual monstro? - perguntou aquela.
- O monstrozinho egípcio que as bruxas deixaram em casa da
Chantefleurie em troca da filha. Que fizeram dele? Julgo que também
o afogaram!
- Não - respondeu Mahiette.
- Como? Ah, então queimaram-no? Realmente foi mais acertado.
Uma criança feiticeira . . .
- Nem uma coisa nem outra, Gervásia. O Sr. Arcebispo interessou-se
pela criança do Egito, exorcismou-a, abençoou-a, tirou-lhe cuidadosa­
mente o Diabo do corpo e mandou-a para Paris, a fim de a exporem na
cama de pau, em Nossa Senhora, como criança abandonada.

250
- Esses bispos! . . . - resmungou Gervásia. - Lá porque são doutos,
não fazem nada como as outras pessoas. Sempre quero que me expli­
queis, Oudarde, para que serviu meter o Diabo misturado com as crian­
ças expostas! Porque não resta dúvida de que esse monstrozinho era
o Diabo! . . . Enfim, Mahiette, que lhe fizeram em Paris? Acho que não
houve nenhuma alma caridosa que o quisesse !
- Não sei - respondeu ela. - Foi justamente por essa altura que
meu marido comprou o cartório de tabelião de Beru, a duas léguas da
cidade, e não pensámos mais nessa história. Tanto mais que em frente
de Bem se elevam os dois morros de Cernay que nos roubam a vista
das torres da catedral de Reims.
Enquanto assim conversavam, as três dignas burguesas chegaram
à Praça da Greve. Na sua preocupação, passaram, sem parar, pelo bre­
viário público da Torre Roland e encaminharam-se maquinalmente
para o pelourinho, em torno do qual a multidão engrossava a todo o
momento. É provável que o espetáculo, que para ali atraía todos os
olhares, lhes fizesse esquecer por completo a Toca dos Ratos e a para­
gem que ali tencionavam fazer, se o gordo Eustáquio, de seis anos, que
Mahiette rebocava pela mão não as chamasse subitamente a capítulo,
como se qualquer instinto o prevenisse de que a Toca dos Ratos ficava
precisamente nas suas costas:
- Mãe, agora já posso comer o bolo?
Se Eustáquio fosse mais esperto, isto é, menos guloso, esperaria um
bocado mais e só na volta à Universidade, já de portas adentro da resi­
dência de mestre Andry Musnier, na Rua Madame-la-Valence, quando
tivesse os dois braços do Sena e as cinco pontes da Cité entre a Toca dos
Ratos e o bolo, é que devia arriscar esta tímida pergunta:
- Mãe, agora já posso comer o bolo?
Esta mesma pergunta, imprudente na ocasião em que Eustáquio a
fez, despertou a atenção de Mahiette que exclamou:
- A propósito; esquecíamo-nos da reclusa ! Mostrai-me a vossa Toca
dos Ratos para que lhe leve o seu bolo.
- É para já - disse Oudarde. É uma obra de caridade.
-

Não era com isto que Eustáquio contava, pois esfregando alternada­
mente as duas orelhas nos dois ombros, o que em tais casos é, indício
de supremo descontentamento, comentou:
- Lá se vai o meu bolo ! . . .

251
As três mulheres retrocederam e, quando chegaram às proximida­
des da casa da Torre Roland , Oudarde disse para as outras duas:
- Não devemos olhar as três ao mesmo tempo pelo buraco, para
não se assustar a penitente do saco. Fingi que estais a ler dominus
no breviário, enquanto eu vou meter o nariz pela fresta. A penitente
conhece-me um pouco. Avisar-vos-ei quando chegar a vossa altura.
Dirigiu-se sozinha para o postigo. No momento em que enfiou por
ele a vista , imensa comiseração se lhe espelhou nas feições e o seu
jovial e franco semblante mudou tão de repente de expressão e de cor
como se passasse dum raio de sol para um raio de luar. Os olhos hume­
deceram-se-lhe e a boca contraiu-se-lhe como quando se vai chorar.
Um momento depois levou um dedo aos lábios e fez sinal a Mahiette
para que fosse ver.
Aquela aproximou-se comovida e calada, em bicos de pés, como
quando nos abeiramos do leito dum moribundo.
Era realmente um triste espetáculo o que se oferecia aos olhares das
duas mulheres, enquanto observavam, sem se mexerem nem respira­
rem, pela fresta gradeada da Toca dos Ratos.
Era acanhada a cela, mais larga do que funda, abobadada em
ogiva, e, vista por dentro, parecia-se bastante com o alvéolo duma
grande mitra episcopal. No laj edo nu que servia de pavimento estava
a um canto uma mulher sentada, para não dizer agachada. Apoiava o
queixo nos j oelhos e os dois braços cruzados apertavam com força o
peito. Desse modo, encolhida sobre si mesma, vestida com um saco de
cor parda e que por completo a envolvia nas suas amplas pregas, os
cabelos grisalhos e compridos caíam-lhe para a frente, tapavam-lhe
a cara e desciam ao longo das pernas até aos pés. À primeira vista,
mostrava apenas uma forma estranha, recortada sobre o fundo tene­
broso do cubículo, uma espécie de triângulo escuro que o raio de luz,
penetrando pela fresta, dividia cruamente em dois tons: um sombrio,
o outro iluminado. Era um desses espectros bipartidos de sombra e de
luz, como se veem nos sonhos e na obra extraordinária de Goya, páli­
dos, imóveis, sinistros, agachados sobre um túmulo ou encostados à
grade duma masmorra. Não era uma mulher nem um homem, nem um
ser vivo, nem uma forma definida; era um vulto, uma espécie de visão
sobre a qual se entrecortavam o real e o fantástico, como a sombra e a
luz. A custo se distinguia, sob aqueles cabelos espalhados até o chão,

252
o perfil dum pé descalço que se crispava sobre o pavimento rígido e
glacial. O pouco da forma humana que se entrevia debaixo daquele
invólucro de luto bastava para provocar calafrios.
Aquela figura, que se imaginaria chumbada ao laj edo, parecia care­
cer de movimento, de pensamento e de alento. Debaixo do seu frágil
saco de linhagem, em j aneiro deitada sem resguardo nenhum sobre o
chão de granito, sem lume, na sombra dum cárcere cuj o respiradouro
oblíquo só consentia que de fora entrasse o vento norte e nunca o sol,
a criatura não parecia sofrer, nem sequer sentir. Dir-se-ia que se petrifi­
cara com a masmorra, que se tornara de gelo com a estação. Mantinha
as mãos j untas e os olhos parados. À primeira vista tomá-la-iam por um
espectro; à segunda, por uma estátua.
Não obstante, de vez em quando os lábios azuis entreabriam-se
num sopro e tremiam, mas tão mortos e tão maquinais como folhas
que o vento dispersa.
Dos seus olhos tristes escapava-se, contudo, uma expressão inefá­
vel, uma expressão profunda, lúgubre, imperturbável, incessantemente
cravada num canto da cela e que se não podia ver do exterior; uma
expressão que parecia condensar todos os sombrios pensamentos
daquela alma angustiada, votados a não sei que misterioso obj eto.
Tal era a criatura que por causa do seu habitáculo recebera o nome
de reclusa e que, pela forma como se vestia, alcunharam de penitente
do saco.
As três mulheres - pois Gervásia reunira-se a Mahiette e a Oudarde
- espreitavam pela fresta. Com as cabeças intercetavam a pálida luz do
cárcere, sem que a mísera que dela privavam parecesse atentar nelas.
Em voz baixa, Oudarde disse para as outras:
- Não a incomodemos . . . Está em êxtase . . . a rezar. . .
Mahiette, porém, observava com uma ansiedade sempre crescente
aquela cabeça desfigurada, mirrada, desgrenhada, e os olhos marej a­
ram-se-lhe de lágrimas.
- Ora aqui está uma coisa que seria bem singular. . . - murmurou .
Meteu a cabeça por entre os varões do postigo e conseguiu chegar
com a vista até o canto onde o olhar da desgraçada se mantinha inva­
riavelmente preso.
Ao afastar a cabeça do postigo, trazia a cara inundada de lágrimas.
- Como chamais a esta mulher? - perguntou a Oudarde.

253
Esta respondeu :
- Chamamos-lhe a irmã Gúdula .
- E eu - redarguiu Mahiette - chamo-lhe Paquette a Chantefleurie.
Depois, levando um dedo aos lábios, acenou a Oudarde, estupe­
facta , para que metesse a cabeça pelo postigo e olhasse.
Oudarde obedeceu e viu, no canto onde o olhar da reclusa se fixava
naquele sombrio êxtase, um sapatinho de cetim cor-de-rosa, bordado
com mil enfeites de ouro e de prata.
Gervásia olhou depois de Oudarde e então as mulheres, enquanto
contemplavam a infeliz mãe, desataram a chorar.
Todavia, nem os seus olhares, nem as suas lágrimas distraíram a
reclusa. Continuou de mãos postas, lábios emudecidos, olhos fixos e,
para as que conheciam a sua história , aquele sapatinho, contemplado
assim, cortava o coração.
As três mulheres não haviam ainda proferido uma só palavra; nem
sequer se atreviam a falar em voz baixa. Aquele profundo silêncio, aquela
imensa dor, aquele total esquecimento onde tudo desaparecera menos
uma coisa, causava-lhes o efeito de um altar-mor na Páscoa ou no Natal.
Caladas, recolhidas, estavam quase a cair de joelhos. Sentiam a impres­
são de terem entrado numa igreja em Quarta-Feira de Trevas.
Finalmente, Gervásia, a mais bisbilhoteira das três e por conse­
guinte a menos sentimental, tentou fazer falar a reclusa.
- Irmã ! I rmã Gúdula !
Três vezes repetiu o apelo, de cada vez em voz mais forte. A interpe­
lada não se mexia. Nem uma palavra , nem um olhar, nem um suspiro,
nem um sinal de vida.
Por sua vez, Oudarde, numa inflexão mais suave e cariciosa disse:
- Irmã ! I rmã Santa Gúdula !
O mesmo silêncio, a mesma imobilidade.
- Estranha mulher! - comentou Gervásia. - Nem uma bombarda a
acordaria.
- Talvez seja surda - aventou Oudarde com um suspiro.
- Ou talvez cega - aj untou Gervásia.
- Talvez esteja morta - lembrou Mahiette.
É verdade que, se a alma ainda não abandonara aquele corpo inerte,
adormecido, letárgico, pelo menos retirara-se e escondera-se em pro­
fundidades aonde não chegavam as perceções dos órgãos externos.

254
- Tem-se então que deixar o bolo na fresta - disse Oudarde. Qualquer
rapaz o leva . . . Como a havemos de acordar?
Eustáquio, que até àquela altura estivera entretido a ver uma carro­
cita que acabara de passar puxada por um enorme cão, reparou que a
mãe e as suas companheiras olhavam para qualquer coisa pelo postigo
e, chegando a vez de a curiosidade o assaltar, espetou-se nos bicos dos
pés e aplicou a cara bolachuda e vermelhaça à abertura, ao mesmo
tempo que gritava:
- Mãe, também quero ver!
Ao ouvir esta voz infantil, clara, fresca, sonora, a reclusa estreme­
ceu. Virou a cabeça com um movimento seco e repentino duma mola
de aço, as suas duas mãos compridas e descarnadas subiram a afas­
tar os cabelos da testa e fixou no pequeno dois olhos surpreendidos,
desesperados, tristes. Este olhar não passou dum relâmpago.
- Oh, meu Deus! - gritou de súbito, escondendo a cabeça nos j oe­
lhos e parecendo que a sua voz rouca, à passagem, dilacerava o peito.
- Ao menos não me mostres os dos outros!
- Bom dia, minha senhora - cumprimentou gravemente a criança.
Contudo, aquele abalo despertara, por assim dizer, a reclusa. Per­
correu-lhe o corpo todo, dos pés à cabeça, um prolongado tremor: os
dentes bateram-lhe, ergueu a cabeça um pouco e disse, ao mesmo
tempo que apertava os cotovelos contra as ancas e agarrava os pés
entre as mãos para se aquecer:
- Ai, tanto frio !
- Pobre mulher - lamentou, muito condoída, Oudarde -, quereis um
bocadinho de fogo?
A interpelada abanou a cabeça numa recusa.
- Nesse caso - continuou Oudarde, apresentando-lhe um frasco -,
tendes aqui hipocraz em sua substituição. Bebei.
De novo abanou a cabeça, olhou fixamente para Oudarde e res-
pondeu:
-Água.
Oudarde insistiu:
- Não, irmã, isso não é bebida para j aneiro. Tendes de beber uma
pinguinha de hipocraz e comer este bolo de farinha de milho que vos
fizemos.
Repeliu o bolo que Mahiette lhe oferecia e disse:

255
- Pão negro.
- Vamos - ajuntou Gervásia, por sua vez tomada de compaixão e
desatando o seu roquete de lã -, está aqui um abafo que ao menos é
um pouco mais quente do que o vosso. Deitai-o pelas costas.
Recusou o roquete como recusara o frasco e o bolo e retorquiu:
- Um saco.
- Mas tendes ao menos que reparar - insistiu a bondosa da Oudarde
- que ontem houve festa.
- Reparei - disse a reclusa. - Há já dois dias que não tenho água na
minha bilha.
Depois duma breve pausa , acrescentou :
- Há festa . . . esquecem-se de mim. Fazem bem . . . Para que há de o
mundo pensar em mim se eu não penso nele? Para carvão apagado,
cinzas frias . . .
E, como extenuada por falar tanto, deixou cair a cabeça sobre os
j oelhos. A simples e caridosa Oudarde, que julgou perceber pelas últi­
mas palavras que a desgraçada continuava a queixar-se de frio, per­
guntou-lhe ingenuamente:
- Nesse caso quereis um bocadinho de calor?
- Calor! - repetiu a penitente numa estranha inflexão. - E dá-lo-eis
também à pobre criança que está há quinze anos debaixo da terra?
Todos os membros lhe estremeceram, as palavras vibraram, os
olhos luziram e ergueu-se sobre os j oelhos. Estendeu de repente a mão
branca e magra para a criança que a observava com um olhar espan­
tado e bradou:
- Levai essa criança ! A egípcia vai passar!
Então caiu de cara no chão e a testa bateu no lajedo com o ruído
duma pedra contra outra pedra. As três mulheres imaginaram-na
morta . Todavia, dali a instantes mexeu-se e viram-na arrastar-se sobre
os j oelhos e cotovelos até o canto onde estava o sapatinho. Não se
atreveram a olhar; não a tornaram a ver, mas ouviram mil beijos e mil
suspiros misturados com gritos dilacerantes e pancadas surdas, como
as de uma cabeça que bate numa parede. Depois, a seguir a uma des­
sas pancadas, a tal ponto violenta que as três estremeceram, nada mais
sentiram.
- Ter-se-ia matado? - aventou Gervásia , atrevendo-se a meter a
cabeça pela fresta . I rmã ! I rmã Gúdula !

256
- I rmã Gúdula ! - repetiu Oudarde.
- Ai meu Deus, não dá acordo de si! - exclamou Gervásia. Estará ela
morta? - Gúdula ! Gúdula!
Mahiette, sufocada a pontos de não conseguir falar, fez um esforço
e disse:
- Esperai. - Depois, debruçando-se para o postigo, chamou : -
Paquette ! Paquette Chantefleurie!
A criança que ingenuamente sopra na mecha mal acesa dum
petardo e o faz explodir nos olhos não fica mais assustada do que ficou
Mahiette com o efeito desse nome repentinamente atirado, para a cela
da irmã Gúdula.
A reclusa estremeceu toda, ergueu-se nos pés descalços e saltou
para a fresta, com os olhos tão flamej antes, que Mahiette, Oudarde e a
outra mulher com a criança recuaram até o parapeito do cais.
Não obstante, a cara sinistra da penitente apareceu colada à grade
da fresta, de onde bradou com uma gargalhada arrepiante:
- Oh, oh, a egípcia está-me a chamar!
Nesse momento, uma cena que se passava no pelourinho deteve-lhe
a vista alucinada. A testa franziu-se-lhe de medo, espetou os dois bra­
ços esqueléticos para fora do cubículo e gritou numa voz que parecia
o estertor:
- És tu então, filha do Egito ! És tu então que me chamas, ladra de
crianças! Pois bem ! Maldita sejas tu ! Maldita ! Maldita ! Maldita !

257
IV

Uma lágrima por uma gota de água

Foram estas palavras, por assim dizer, o ponto de reunião de duas


cenas que até ali se representaram paralelamente na mesma ocasião,
cada uma no seu teatro próprio: uma, a que se acaba de ler, na Toca
dos Ratos; a outra , que se vai ler, na escada do pelourinho. A primeira
tivera apenas por testemunhas as três mulheres que o leitor conheceu
agora; à segunda assistiu, como espectador, todo o público que mais
atrás vimos agrupar-se na Praça da Greve, em torno do pelourinho e
da forca.
Esta multidão, a que os quatro meirinhos, colocados a partir das
nove horas da manhã , nos quatro cantos do pelourinho, tinham feito
esperar por uma execução sem importância - não decerto um enforca­
mento, mas sim uma flagelação, um corte de orelhas, qualquer coisa
enfim -, esta multidão engrossara tão rapidamente, que os quatro mei­
rinhos, excessivamente bloqueados, necessitaram, por mais de uma
vez, de a afastar com as ancas dos seus cavalos.
Este povoléu, disciplinado pela expectativa das execuções públicas,
não manifestava impaciência excessiva . Entretinha-se a contemplar o
pelourinho, espécie de monumento extremamente simples formado
por um cubo oco de alvenaria , de uns dez pés de altura. Uns degraus
muitíssimo íngremes de pedra bruta e a que por excelência chamavam
a escada conduziam à plataforma superior, na qual se distinguia uma
roda horizontal de madeira de carvalho maciço. Amarravam a essa roda
o paciente de j oelhos e com os braços atrás das costas. Uma viga, que
acionava um cabrestante oculto no interior da pequena armação, impri­
mia uma rotação à roda sempre mantida no plano horizontal, desse

258
modo apresentando sucessivamente a cara do condenado a todos os
pontos da praça. Era o que se denominava rodar um criminoso.
Como se vê, o pelourinho da Greve estava longe de oferecer todos
os atrativos do pelourinho dos Mercados. Nada de arquitetural. Nada
de monumental. Nada de cobertura de ferros cruzados, nada de lan­
terna octogonal, nada de delicados colunelos que se dilatavam até o
rebordo do telhado, em capitéis de acantos e de flores; nada de quimé­
ricas e monstruosas goteiras, nada de vigamentos esculpidos, nada de
finas esculturas, profundamente entalhadas na pedra.
Tinham de se contentar com essas quatro faces de tosca alvenaria.
com duas faixas de grés e com uma forca ordinária de pedra, magra e
nua.
Seria mesquinho presente para os apreciadores da arquitetura gótica.
É certo que ninguém havia com menos curiosidade pelos monumentos
do que os bons basbaques da Idade Média, os quais escassamente se
importavam com a beleza dum pelourinho.
O paciente apareceu, enfim, amarrado à traseira duma carroça, e,
quando o içaram para o estrado, quando de todos os cantos da praça
o puderam ver, preso com cordas e correntes à roda do pelourinho,
estrugiu uma algazarra prodigiosa misturada com gargalhadas e vivas.
Tinham reconhecido Quasímodo.
Realmente era ele. Estranho regresso ! Amarrado ao pelourinho da
mesma praça onde, na véspera, o haviam saudado, aplaudido e pro­
clamado papa e príncipe dos loucos, no cortej o do duque do Egito, do
rei de Tunes e do imperador da Galileia ! A verdade é que não havia na
multidão uma só alma, nem sequer ele, sucessivamente triunfante e
condenado, que discernisse com clareza tal contraste. Gringoire e a sua
filosofia estavam ausentes daquele espetáculo.
Não tardou que Miguel Noiret, trombeta ajuramentado do rei nosso
senhor, impusesse silêncio à gentalha e proclamasse a sentença, em
conformidade com as ordens e os mandados do senhor preboste.
Depois encolheu-se atrás da carroça com o seu pessoal fardado de
alabardeiros.
Quasímodo, impassível, não pestanej ou. Não podia esboçar qual­
quer espécie de resistência, devido ao que então se denominava, em
estilo de chancelaria criminal, a veemência e a solidez das prisões, o
que significa que as correntes lhe penetravam provavelmente na carne.

259
Trata-se, de resto, duma tradição de cárcere e de forçados que se não
perdeu e que as algemas conservam ainda preciosamente entre nós,
povo civilizado, dócil, humano (as galés e a guilhotina entre parênteses) .
Deixara-se levar e empurrar, transportar, empoleirar, amarrar e
ligar. Não se podia descobrir-lhe no semblante mais do que um espanto
de selvagem ou de idiota. Sabiam-no surdo; dir-se-ia que era cego.
Puseram-no de j oelhos no estrado circular sem que ele resistisse.
Deixou que lhe despissem a camisa e o gibão até à cintura .
Ataram-no com um novo sistema de correias e de fuzilhões e con­
sentiu que o manietassem e afivelassem. Apenas de vez em quando
resfolegava ruidosamente, como um vitelo cuja cabeça se inclina e
oscila na borda da carroça do magarefe.
- O alarve - disse Jehan Frollo du Moulin para o seu amigo Robin
Poussepain (pois os dois estudantes, como não podia deixar de ser,
seguiram o paciente) - compreende tão pouco o que se passa como um
besouro encafuado numa caixa !
Estrugiu na turba homérica gargalhada quando viram a nu a cor­
cunda de Quasímodo, o peito de camelo, os ombros calosos e peludos.
Durante toda esta explosão de alegria um homem com a libré da cidade,
de estatura baixa e compleição robusta, subiu para o estrado e postou-se
ao lado do paciente. Não tardou que o seu nome circulasse pela assis­
tência . Era mestre Pierrat Torterue, verdugo ajuramentado do Châtelet.
Começou por colocar a um canto do pelourinho uma ampulheta
negra cuj a cápsula superior se enchia de areia encarnada, a qual escor­
ria para o recipiente inferior; depois, despiu o seu capote bipartido e
viram-no agarrar, com a mão direita, num delgado chicote guarnecido
de compridas correias brancas, luzentes cheias de nós, entrançadas, e
com garras de metal. Com a mão esquerda arregaçou negligentemente
a camisa em torno do braço direito, até à axila.
Entretanto Jehan Frollo, elevando a cabeça loura e anelada por cima
da multidão (para isso trepara para as costas de Robin Poussepain) ,
gritava :
- Vinde ver, senhores e senhoras! Eis que se vai flagelar perentoria­
mente mestre Quasímodo, o sineiro de meu mano e senhor arcediago
de Josas, esquisita arquitetura oriental que tem as costas em cúpula e
as pernas em colunas salomónicas!
E a multidão a rir, principalmente as crianças e as raparigas.

260
Por fim, o verdugo bateu com o pé no chão. A roda começou a girar.
Quasímodo estremeceu sob os grilhões. O espanto que de repente se
lhe pintou no rosto disforme redobrou, em volta, as gargalhadas.
De súbito, no momento em que a roda, na sua revolução, apresentou
àquele as costas montanhosas de Quasímodo, mestre Pierrat ergueu o
braço, as finas correias sibilaram agudamente no ar como um punhado
de cobras e voltaram a cair furiosas nos ombros do miserável.
Quasímodo saltou sobre si mesmo, como despertado em sobres­
salto. Começou a perceber. Torceu-se sob as cordas; violenta contra­
ção de surpresa e de sofrimento decompôs-lhe os músculos da cara,
mas não soltou um suspiro. Apenas voltou a cabeça para trás, para a
direita, depois para a esquerda, baloiçando-a como faz o touro picado
na ilharga por um moscardo.
Segunda chicotada seguiu-se à primeira, depois terceira e outra e
outra sucessivamente. A roda não parava de girar nem as vergastadas
de chover. Dali a pouco o sangue rebentou e viram-no escorrer em mil
fiozinhos pelas costas escuras do corcunda, e as esguias correias, na
rotação com que cortavam o ar, salpicavam com ele a assistência.
Quasímodo, pelo menos na aparência, retomara a impassibili­
dade interior. Primeiro tentara, sorrateiramente e sem grande agita­
ção exterior, partir as amarras. Viram-lhe o olho luzir, os músculos
retesarem-se, os membros unirem-se e as correias e as correntes esti­
carem-se. Esforço potente, prodigioso, desesperado, mas os velhos ins­
trumentos de tortura do prebostado resistiram. Estalaram e mais nada.
Quasímodo desistiu, extenuado. O espanto deu lugar, na sua fisiono­
mia, a uma expressão de amargo e profundo desânimo. Fechou o seu
único olho, deixou pender a cabeça para o peito e ficou como morto.
A partir de então não mais buliu. Coisa alguma conseguiu arran­
car-lhe um movimento. Nem o sangue que não cessava de manar nem
as vergastadas que redobravam de fúria nem a cólera do atormentador,
que se excitava a si próprio e se embriagava com a execução, nem o
zunir das horríveis tiras cada vez mais afiadas e sibilantes.
Finalmente, um oficial de diligências do Châtelet, vestido de preto
e montado num cavalo preto, parado desde o início da execução a um
lado da escada, estendeu para a ampulheta a sua varinha de ébano.
O verdugo parou. A roda imobilizou-se. O olho de Quasímodo rea­
briu-se sem pressa .

261
Acabara a flagelação. Dois aj udantes do verdugo lavaram as cos­
tas ensanguentadas do paciente, esfregaram-lhas não sei com que
unguento que imediatamente fechou as feridas e atiraram-lhe para
os ombros com uma espécie de túnica amarela, cortada em feitio de
casula. Entretanto, Pierrat Torterue fazia escorrer para o chão as tiras
vermelhas e ensopadas de sangue.
Ainda não acabara tudo para Quasímodo. Precisava de sofrer ainda
aquela hora de pelourinho que mestre Florian Barbedienne tão judi­
ciosamente acrescentara à sentença de messire Roberto d'Estouteville,
tudo isso para maior glória do velho trocadilho, fisiológico e psicoló­
gico, de João de Cuméne: Surdus absurdus.
Viraram, pois, a ampulheta e deixaram o corcunda amarrado à
tábua, para que a justiça se cumprisse até o fim.
O povo, sobretudo na Idade Média, é na sociedade o que a criança é
na família. Enquanto se conserva nesse estado de ignorância primária,
de menoridade moral e intelectual, pode-se dizer dele como da criança:

Esta idade é impiedosa.

Já fizemos ver que Quasímodo era geralmente odiado, é verdade que


por mais de uma razão de peso. Só por acaso haveria naquela multidão
algum indivíduo que não se considerasse com razão de queixa do mau
corcunda de Nossa Senhora. Fora geral o contentamento quando o viram
aparecer no pelourinho, e o duro castigo que acabara de sofrer e o lamen­
tável estado em que o tinham deixado, longe de enternecer a populaça,
tornara o seu ódio mais malévolo, armando-o de acerada j ocosidade.
Assim, satisfeita a vindicta pública, como ainda hoj e se diz, chegou
a vez das mil vinganças particulares. Aqui, tal como na sala grande,
as mulheres eram as mais salientes. Todas lhe votavam algum rancor,
umas pela sua malícia, outras pela sua fealdade. As últimas eram as
mais iracundas.
- Eh, máscara do Anticristo! - bradava uma.
- Cavaleiro de cabo de vassoura ! - gritava outra .
- Linda careta trágica ! - berrava uma terceira. - Quem te fez papa
dos loucos tanto acertou ontem como acertaria hoje.
- Está bem - continuava uma velha. - Cá está a carantonha do
pelourinho. Quando será a da forca?

262
- Quando estarás metido dentro do teu sino, a cem pés abaixo da
terra , sineiro maldito?
- E afinal é este diabo que toca as ave-marias !
- Eh, surdo! Eh, zanaga ! Eh marreco ! Eh, monstro !
- Cara capaz de abortar uma gravidez melhor do que todas as mezi-
nhas e boticadas.
E os dois estudantes, Jehan du Moulin e Robin Poussepain, canta­
vam a plenos pulmões o velho estribilho popular:

Um baraço
Pró madraço!
Um tição
Pró macacão!

Choviam mil outras injúrias e os apupos, e as imprecações, e os


risos, e as pedradas de vez em quando.
Quasímodo era surdo, mas via bem, e o furor público não estava
pintado com menos energia nos semblantes do que nas palavras. Para
mais, as pedradas explicavam as gargalhadas.
A princípio, aguentou. Mas a pouco e pouco aquela paciência tão
hirta sob o chicote do verdugo fraquej ou e reagiu com todas aquelas
ferroadas de insetos. O touro das Astúrias, que pouco se impressionou
com os ataques do picador, irrita-se com os cães e com as bandarilhas.
Primeiro passeou lentamente o olhar ameaçador pela multidão.
Contudo, amarrado como estava, com esse olhar não conseguiu expul­
sar aquelas moscas que lhe picavam as chagas. Então sacudiu-se nos
seus laços e essas furiosas contrações fizeram guinchar, nos delgados
eixos, a velha roda do pelourinho. Com isso tudo, as chufas e os apupos
aumentaram.
Então o mísero, como não podia quebrar a coleira de besta-fera
acorrentada, voltou a ficar sossegado. Apenas de vez em quando um
suspiro enraivecido elevava-lhe todas as cavernas do peito. No rosto
não mostrava nem vergonha nem rubor. Estava longe de mais do
estado de sociedade e perto de mais do estado de natureza para saber
o que é a vergonha. Além disso, naquele grau de deformidade, a infâ­
mia é coisa sensível? A cólera, o ódio, o desespero faziam, contudo,
descer lentamente sobre aquela cara hedionda uma nuvem cada vez

263
mais sombria, cada vez mais carregada duma eletricidade que fuzilava
em mil relâmpagos no olho do ciclope.
Essa nuvem, contudo, iluminou-se por instantes quando passou
por entre a turba um padre montado numa mula. Logo que avistou
ao longe aquela mula e aquele padre, o semblante do pobre paciente
suavizou-se. À fúria que o contraía sucedeu um estranho sorriso,
pleno de uma doçura, de uma mansidão e de uma meiguice inefá­
veis. À medida que o padre se aproximava, aquele sorriso definia-se
melhor, mostrava-se mais nítido e radiante. Era como a chegada dum
salvador que o desgraçado saudava. Não obstante, na ocasião em que
a mula se aproximou suficientemente do pelourinho para que quem a
montava conseguisse identificar o paciente, o padre baixou os olhos,
voltou de repente para trás, esporeou a montada, como com pressa
de se ver livre de reclamações humilhantes e pouquíssimo interes­
sado em que o pobre diabo, em semelhante situação, o reconhecesse e
cumprimentasse.
Este padre era o arcediago Dom Cláudio Frollo.
A nuvem tornou a descer mais negra sobre a fronte de Quasímodo.
O sorriso ainda pairou de mistura com ela durante algum tempo, mas
amargo, desanimado, profundamente melancólico.
O tempo ia passando. Havia pelo menos já hora e meia que para
ali estava, esfarrapado, maltratado, vaiado constantemente e quase
lapidado.
De repente, sacudiu-se outra vez nas cadeias, num redobramento
de desespero que fez estremecer todo o vigamento que o aguentava; e ,
quebrando o silêncio em q u e obstinadamente até então s e mantivera,
gritou com voz rouca e furiosa, que mais parecia um rugido do que um
clamor humano e que cobriu o ruído dos apupos:
- Beber!
Longe de mover à compaixão, esta exclamação de angústia provo­
cou um redobramento de alegria no bom populacho parisiense que
rodeava a escada e que, há que dizer-se, tomado em conj unto e como
multidão, pouco menos cruel e brutal então era do que essa horrível
tribo de maltrapilhos ao recinto da qual já levámos o leitor e que for­
mava muito simplesmente a camada mais baixa do povo. Nem uma voz
se ergueu em torno do desgraçado paciente senão para motej ar da sua
sede. É verdade que nessa altura era ainda mais grotesco e repugnante

264
do que lastimável, com a cara avermelhada e lustrosa, o olhar desnor­
teado, a boca a espumar de cólera e de dor e a língua meio pendente.
Deve-se igualmente dizer que, se houvesse na plebe alguma caridosa
alma de burguês ou de burguesa tentada a levar um copo de água
àquela miserável criatura aflita, reinava em volta dos degraus infames
do pelourinho tal preconceito de pej o e de ignomínia que teria bastado
para repelir o bom samaritano.
Ao cabo de minutos, Quasímodo passeou pela multidão um olhar de
desespero e repetiu numa voz ainda mais dilacerante:
- Beber!
E todos a rirem-se.
- Bebe isto ! - berrava Robin Poussepain, atirando-lhe à cara uma
esponj a arrastada na valeta. - Toma, surdo vilão ! Tenho umas contas
a aj ustar contigo.
Uma mulher lançava-lhe uma pedra à cabeça.
- Toma para aprenderes a acordar-nos de noite com o teu carrilhão
de danado !
- Então, filho - exclamava um aleij ado esforçando-se por o atingir
com a muleta -, continuarás a atirar-nos azar de cima das torres de
Nossa Senhora?
- Toma lá uma escudela para beberes! - prosseguia um homem,
arremessando-lhe ao peito o caco duma bilha. - Bastou passares ao
pé da minha mulher para que ela tivesse um filho com duas cabeças!
- E a minha gata, um gato com seis patas! - guinchou uma velha,
atirando-lhe com uma telha.
- Beber. . . - repetiu, ofegante, Quasímodo pela terceira vez.
Nesse momento, viu-se a população afastar-se. Uma rapariga ves­
tida extravagantemente saiu da multidão. Acompanhava-a uma cabri­
nha branca, de chifres dourados, e levava na mão um pandeiro.
O olho de Quasímodo cintilou. Era a cigana que ele tentara raptar
na véspera à noite, delito pelo qual confusamente sentia que o estavam
naquele momento a castigar, o que aliás não era de modo algum exato,
pois puniam-no apenas pela infelicidade de ser surdo e de ser julgado
por um surdo. Não duvidou de que ela viesse também vingar-se e tirar
o seu despique, como todos os demais.
Viu-a com efeito subir rapidamente a escada. Sufocavam-no a
cólera e o despeito. Bem desejaria poder derrubar o pelourinho e, se

265
o relâmpago do seu olho tivesse o poder de fulminar, a cigana ficaria
pulverizada antes de atingir o estrado.
A rapariga , sem proferir palavra, aproximou-se do paciente que
debalde se contorcia para lhe escapar e , desprendendo uma cabaça do
cinto, chegou-a suavemente aos lábios ressequidos do miserável.
Então, desse olho até ali tão seco e tão queimado, viu-se rebolar
uma grossa lágrima que lentamente deslizou ao longo daquela cara
disforme, havia tanto tempo contraída pelo desespero. Era talvez a pri­
meira que o desgraçado vertia em toda a sua vida.
Entretanto, esquecia-se de beber. A cigana esboçou o seu trej eito de
impaciência e apoiou, sorrindo, o gargalo à boca gretada de Quasímodo
que bebeu a longos tragos. Era ardente a sua sede.
Quando acabou, o miserável alongou os lábios negros, sem dúvida
para beijar a bela mão que acabara de lhe valer. A pobre pequena,
porém, que não estava decerto sem desconfiança e se recordava da
violenta tentativa daquela noite, fugiu com a mão, no gesto assustado
duma criança que teme que um animal lhe morda .
Então o pobre surdo fixou nela um olhar cheio de pesar e de inex­
primível tristeza.
Seria em qualquer parte um espetáculo tocante o daquela formosa
rapariga , fresca, pura, encantadora e, ao mesmo tempo, tão frágil e que
tão piedosamente acorrera em socorro de tanta miséria, deformidade e
malvadez. No cimo dum pelourinho era sublime o espetáculo.
Conquistou toda aquela gente que desatou a bater palmas e a gritar:
- Viva ! Viva !
Foi nessa ocasião que a reclusa avistou, pela fresta da sua toca, a
cigana no pelourinho e lhe lançou a sua sinistra imprecação:
- Maldita sejas tu, filha do Egito ! Maldita ! Maldita !

266
V

Fim da história do bolo

A Esmeralda empalideceu e desceu, a tremer, do pelourinho. A voz


da reclusa continuou a persegui-la:
- Desce, desce, ladra do Egito, que hás de tornar a subir para aí!
- Lá está a penitente do saco com as suas manias - murmurou o
povo.
Mais nada disseram, porque tal espécie de mulheres era temida, o
que as tornava sagradas. Nesse tempo não atacavam por prazer quem
rezava noite e dia.
Chegou a hora de levarem Quasímodo. Desprenderam-no e a turba
dispersou-se.
Perto da Ponte Grande, Mahiette, que regressava com as duas com­
panheiras, parou de repente.
- A propósito, Eustáquio, que fizeste do bolo?
- Mãe - respondeu o miúdo -, enquanto falavas com aquela senhora
que estava no buraco, apareceu um cão muito grande que deu uma
dentada no meu bolo. Então comi dele também.
- Como ! - exclamou ela. - Comeste-o todo?
- Foi o cão, mãe ! Bem lhe disse, mas ele não fez caso. Por isso
dei-lhe também uma dentada, pronto !
- É uma criança terrível - comentou a mãe, ralhando e sorrindo ao
mesmo tempo. - Imaginai, Oudarde, que ele sozinho já come todas as
cerej as da cerejeira da nossa cerca de Charlerange ! Também o avô diz
que ele há de ser um capitão ! Se vos apanho noutra , Sr. Eustáquio! . . .
Ande lá, seu leãozão! . . .

267
LIVRO SÉTIMO

Do perigo de confiar o seu segredo a uma cabra

Tinham decorrido várias semanas.


Estava-se nos primeiros dias de março. O Sol, que Dubartas, esse
antepassado clássico da perífrase, ainda não cognominara de grão-duque
das velas, nem por isso brilhava menos alegre e radioso. Era um des­
ses dias de primavera tão cheios de doçura e beleza, que Paris inteiro,
espalhado pelas praças e passeios, festeja como domingos. Nesses dias
de claridade, de calor e de paz, há sobretudo uma hora em que se deve
apreciar o portal de Nossa Senhora. É a altura em que o Sol , já incli­
nado para o ocaso, olha quase de frente a catedral . Os seus raios, cada
vez mais horizontais, retiram-se lentamente do pavimento da praça
e sobem a pique ao longo da fachada, cujas mil bossas arredondas
sobressaem da sombra, ao mesmo tempo que a grande rosácea central
flameja como o olho dum ciclope inflamado pelo revérbero da forja.
Era essa a hora .
Diante da alta catedral avermelhada pelo poente, na varanda de
pedra aberta sobre o pórtico duma opulenta residência gótica, à esquina
do largo e da Rua do Adro, umas formosas raparigas riam-se, cavaque­
ando com a maior graciosidade e alegria. Pelo comprimento do véu que
descia do píncaro da sua pontiaguda coifa, recamada de pérolas, até
os tacões; pela finura da camiseta bordada, que lhes cobria os ombros,
embora deixando à mostra , conforme a tentadora moda da época, o
começo das airosas gargantas de virgens; pela opulência das saias de
baixo, mais preciosas ainda do que as de cima (maravilhosa invenção ! ) ,
d e gaza, seda e veludo com que todo o conj unto era feito, e, principal­
mente, pela brancura das mãos, que lhes passavam atestado de ociosas

268
e indolentes, facilmente se adivinhava nelas fidalgas e ricas herdeiras.
Tratava-se, efetivamente, de damoiselle Flor-de-lis de Gondelaurier e
das suas companheiras, Diana de Christeuil, Amelotte de Montmichel,
Colombe de Gaillefontaine e da pequena de Champchevrier, todas
meninas de boas famílias, reunidas nessa ocasião em casa da senhora
viúva de Gondelaurier, porque monsenhor de Beaujeu e a senhora sua
esposa deviam chegar, no mês de abril, a Paris, para escolherem as
damas de honor para a senhora Delfina Margarida, quando a fossem
receber, à Picardia, das mãos dos flamengos. Ora todos os fidalgotes
de trinta léguas em redor disputavam esse favor para suas filhas, e
bom número deles já as haviam trazido ou enviado para Paris. Os pais
tinham-nas confiado à discreta e veneranda custódia da senhora Aloísia
de Gondelaurier, viúva dum antigo mestre dos besteiros do rei, a qual se
isolara, com a única filha, na sua residência do adro de Nossa Senhora,
em Paris.
A varanda em que essas meninas se encontravam dava para uma
câmara ricamente forrada de um couro de Flandres, de cor fulva com
folhagens de ouro estampadas. As vigas que dividiam paralelamente
o teto entretinham a vista com as suas mil curiosas esculturas pinta­
das e douradas. Sobre cinzeladas arcas, reluziam, dispersos, esmaltes
esplêndidos; uma cabeça de javali, feita de faiança, coroava um magní­
fico aparador, cuj os dois degraus anunciavam que a dona da casa era
esposa ou viúva dum cavaleiro senhor de pendão e caldeira. Ao fundo,
junto dum alto fogão brasonado e armoriado de alto a baixo, sentava-se,
numa rica poltrona de veludo vermelho, a senhora de Gondelaurier,
cuj os cinquenta e cinco anos se lhe viam estampados mais no traj o
que no rosto. A seu lado conservava-se de pé um mancebo de aspeto
bastante altivo, embora um tanto fútil e fanfarrão, um desses perfei­
tos rapazes na opinião de todas as mulheres, apesar de, a tal respeito,
os homens sisudos e fisionomistas encolherem os ombros. Esse j ovem
cavaleiro envergava a vistosa farda de capitão de archeiros da orde­
nança do rei, a qual se parecia a tal ponto com a andaina de Júpiter, que
já se apreciou no primeiro livro desta história, que não impingiremos ao
leitor segunda descrição.
Algumas das meninas estavam sentadas na sala, outras na varanda,
algumas em coxins de veludo de Utreque, com cantoneiras de ouro,
outras ainda em escabelos de carvalho, entalhados com flores e figuras.

269
Nos j oelhos de cada uma delas descansava a secção duma enorme
tapeçaria feita a agulha, em cuj o conjunto trabalhavam e, da qual uma
boa parcela se arrastava pelo pavimento.
Conversavam umas com as outras nesse tom cochichado e com as
abafadas risadinhas de um conciliábulo de raparigas quando entre elas
se encontra um homem ainda novo. O rapaz, cuja presença bastava
para pôr em alvoroço todos esses amores-próprios femininos, parecia,
por seu lado, importar-se mediocremente com o caso; e, ao passo que
as guapas meninas porfiavam em ver qual lhe despertava a atenção,
ele dir-se-ia principalmente ocupado em lustrar, com a sua luva de pele
de gamo, a fivela do cinto.
De vez em quando, a velha dama falava-lhe em voz baixa, a que
ele respondia o melhor que lhe era possível, numa espécie de cerimó­
nia canhestra e contrafeita. Pelos sorrisos, pelos sinalinhos cúmplices de
D. Aloísia, pelas piscadelas de olho para a filha, Flor-de-Lis, ao mesmo
tempo que segredava ao capitão, facilmente se depreendia que se tratava
de algum noivado assente, de casamento decerto próximo, entre o rapaz e
Flor-de-Lis. Mas, pela embaraçada frieza do oficial, sem custo se percebia
que, pelo menos da parte dele, não se tratava bem de amor. Tudo no seu
aspeto exprimia a ideia de mal-estar e enfado que os nossos alferes de
guarnição hoje admiravelmente traduziriam por: "Que grande estopada ! "
A boa senhora, toda embevecida n a filha, como pobre mãe que era,
não reparava no escasso entusiasmo do oficial e empenhava-se em
fazer-lhe notar, em voz baixa, a infinita perfeição com que Flor-de-Lis
movia a agulha ou desemaranhava a sua meada.
- Olhai, priminho - dizia, puxando-lhe pela manga para lhe falar ao
ouvido. - Reparai! Lá está ela a abaixar-se.
- É verdade - respondia o rapaz, que imediatamente recaía no seu
distraído e glacial mutismo.
Dali a momentos tinha de se debruçar outra vez para D. Aloísia lhe
dizer:
- Já vistes figura mais donairosa, mais engraçada do que a da vossa
prometida? Poder-se-á ser mais branca e mais loura? Não estão ali umas
mãos perfeitas? E aquele pescoço não imita à maravilha todos os reque­
bras de um cisne? Há ocasiões em que muito vos invejo ! A sorte que ten­
des em ser homem, meu mauzão libertino ! Não é verdade que a minha
Flor-de-lis é linda de ser adorada e que estais mesmo perdidinho?

270
- Sem dúvida - respondia ele, ao mesmo tempo que pensava noutra
coisa.
- Mas então falai-lhe! - exclamou de súbito O. Aloísia, empurrando-o
pelo ombro. Nesse caso dizei-lhe qualquer coisa. Tomastes-vos tão tímido! . . .
Podemos asseverar aos nossos leitores que a timidez não era nem a
virtude nem o defeito do capitão. Contudo, tentou fazer o que se lhe pedia.
- Formosa prima - disse, aproximando-se de Flor-de-Lis o que
representa esse trabalho de tapeçaria em que vos ocupais?
- Gracioso primo - respondeu Flor-de-Lis, com uma ênfase de des­
peito -, já vo-lo disse três vezes. É a gruta de Neptuno.
Era evidente que Flor-de-Lis via, muito mais nitidamente do que a
mãe, os modos glaciais e distraídos do capitão. Este sentiu a necessi­
dade de alimentar a conversa. Assim , perguntou:
- E para que é toda essa neptunice?
- Para a abadia de Saint-Antoine-des-Champs - respondeu Flor-de-Lis,
sem erguer os olhos.
O capitão agarrou numa ponta da tapeçaria.
- Minha formosa prima, quem vem a ser este gordo gendarme que
sopra a plenos pulmões numa trombeta?
- É Tritão - respondeu ela.
Nas palavras de Flor-de-Lis havia sempre certa inflexão de melindre.
O rapaz apercebeu-se da necessidade de lhe segredar qualquer coisa ao
ouvido: uma tolice, uma galanteria, fosse o que fosse. Inclinou-se, por­
tanto, mas não encontrou na imaginação nada de mais meigo e íntimo
do que isto:
- Porque é que vossa mãe anda sempre com uma vasquinha armo­
riada como as das vossas avós do tempo de Carlos VII? É melhor dizer-lhe,
formosa prima, que isso agora já não é elegante e que o seu quício e a
sua coroa bordados em brasão no vestido lhe dão o aspeto duma cober­
tura de fogão a andar. Por minha fé, vos digo que já ninguém hoj e se
apresenta assim com o seu pendão.
Flor-de-Lis levantou para ele os olhos plenos de censura e pergun­
tou em voz baixa:
- É tudo o que me j urais?
Entretanto, a boa da D. Aloísia, encantada por os ver assim inclina­
dos a cochichar, dizia, ao mesmo tempo que brincava com os fechos do
seu livro de horas:

271
- Tocante quadro de amor!
O capitão, cada vez mais embaraçado, voltou-se para a tapeçaria,
exclamando:
- É deveras um trabalho encantador!
A esse respeito, Colombe de Gaillefontaine, outra formosa loura
de pele branca, muito bem vestida de damasco azul, arriscou timida­
mente uma palavra para Flor-de-lis, esperando que o garboso capitão
lhe respondesse:
- Minha querida Gondelaurier, vistes as tapeçarias do palácio da
Roche-Guyon?
- Não é o palácio onde se encontra o jardim da Roupeira do Louvre?
- perguntou , risonha, Diana de Christeuil, que possuía lindos dentes e,
por conseguinte, ria a torto e a direito.
- E onde existe essa torre, muito grande e velha, da antiga mura­
lha de Paris - acrescentou Amelotte de Montmichel , formosa morena,
fresca e de cabelo anelado, a qual tinha o costume de suspirar, como a
outra o tinha de rir, sem saber porquê.
- Minha querida Colombe - redarguiu D. Aloísia -, quereis refe­
rir-vos ao palácio que no reinado de Carlos VI pertenceu ao senhor de
Bacqueville?
- Carlos VI ! O rei Carlos VI ! - resmungou o j ovem capitão, retor­
cendo o bigode. - Valha-me Deus! Como a boa da senhora se lembra
dessas velharias todas!
A senhora de Gondelaurier prosseguia:
- Lindas tapeçarias, realmente ! Uma obra tão apreciada que passa
por única no seu género.
Nessa altura, Bérangére de Champchevrier, esbelta pequenita de sete
anos e que olhava para a praça por entre os trevas da varanda, exclamou:
- Oh, linda madrinha Flor-de-lis, vede acolá na rua a bonita baila­
rina a dançar e a tamborilar entre os labregos burgueses!
Realmente ouvia-se o rufar sonoro dum pandeiro.
- Alguma egípcia da Boémia? . . . - comentou Flor-de-lis, voltando-se
pouco interessada para a praça.
- Vamos ver! Vamos ver! - bradaram as suas azougadas compa­
nheiras.
E todas correram a debruçar-se da varanda, enquanto Flor-de-lis,
a pensar na frieza do noivo, as seguia lentamente, e ele, aliviado por

272
aquele incidente que cortava cerce uma conversa embaraçosa, regres­
sava para o fundo da sala com o ar satisfeito do soldado que renderam.
De qualquer maneira, era agradável e gentil estar ao serviço da bela
Flor-de-lis e assim ao princípio lhe parecera. O capitão, porém, enfas­
tiara-se a pouco e pouco e a perspetiva dum próximo casamento arrefe­
cia-o cada vez mais de dia para dia. Além disso, era de feitio inconstante
e - devemos dizê-lo? - de gostos um tanto vulgares. Apesar de bem-nas­
cido, com a farda adquirira hábitos de tarimbeiro. Gostava de tabernas e
do mais que se lhes segue. Só se sentia bem com palavrões, namoricos
de tropa, beldades fáceis e fáceis triunfos. Não obstante, recebera da
família certa educação e algumas maneiras. Começara, porém, muito
cedo a correr o país, muito novo a viver na caserna. Assim o seu verniz
de fidalgo fora-se gradualmente desfazendo por obra e graça do boldrié
de gendarme. Embora continuasse a visitá-la de vez em quando, gra­
ças a uns restos de respeito humano, sentia-se duplamente aborrecido
em casa de Flor-de-lis: primeiro, porque, à força de dispersar o amor
por toda a casta de sítios, pouquíssimo reservava para a noiva; depois
porque, no meio de tantas formosas damas, empertigadas, apuradas e
honestas tremia constantemente com receio de que a sua boca, habi­
tuada às pragas, tomasse de repente o freio nos dentes e lhe soltasse
alguma bojarda de taberna. Imagine-se que lindo!
Tudo isto, aliás, se misturava nele com grandes pretensões de ele­
gância, de atavios e de boa aparência. Resolvam lá isto como puderem;
não passo dum historiador.
Conservava-se, portanto, havia um bocado, a pensar ou não pen­
sar, silenciosamente encostado ao alizar esculpido do fogão de sala,
quando Flor-de-lis, de repente, se virou e se lhe dirigiu.
No fim de contas, a pequena só se mostrava ressentida por instinto
de defesa.
- Meu belo primo, não nos falastes duma boemiazita a quem salvas­
tes das mãos duma dúzia de ladrões, quando há dois meses fazíeis de
noite a ronda?
- Julgo que sim, formosa prima - confirmou o capitão.
- Pois bem - retorquiu a menina -, talvez seja a boémia que está
a dançar acolá no adro. Vinde ver se a reconheceis, belo primo Febo.
Neste meigo convite transparecia um secreto desej o de recon­
ciliação, não só ao pedir que fosse para j unto dela, como também

273
pela maneira como o chamou pelo nome próprio. O capitão Febo de
Châteaupers (pois é ele que o leitor está a ver desde o começo deste
capítulo) aproximou-se vagarosamente da varanda.
- Vede - disse-lhe Flor-de-lis, poisando com ternura a mão no braço
de Febo. - Vede aquela pequena que dança acolá na roda. É a vossa
boémia?
Febo olhou e respondeu:
- É, reconheço-a pela cabra.
- Oh! Realmente é linda a cabrinha ! . . . - exclamou Amellote, j un-
tando, com admiração, as mãos.
- Os seus chifres são de ouro autêntico? - perguntou Bérangere.
D. Aloísia, sem se mexer da poltrona, disse então:
- Não é uma dessas boémias que entraram, o ano passado, pela
Porta Gibard?
- Senhora minha mãe - respondeu brandamente Flor-de-lis -, essa
porta chama-se hoj e Porta do Inferno.
A menina de Gondelaurier sabia até que ponto o capitão estranhava
a maneira antiquada como sua mãe falava. Efetivamente, ele já come­
çava a motejar entre dentes: " Porta Gibard ! Porta Gibard ! É para fazer
passar por ela o rei Carlos VI ! "
- Madrinha - exclamou Bérangere, cuj os olhos, constantemente em
movimento, se levantaram de repente para o alto das torres de Nossa
Senhora.
- Quem é aquele homem negro acolá em cima?
Todas as meninas olharam para esse ponto. Realmente, da balaus­
trada culminante da torre norte, que dava para a Greve, debruçava-se
um homem. Era um padre. Distinguia-se-lhe perfeitamente a batina
e tinha o rosto apoiado nas duas mãos. Para mais, conservava-se tão
imóvel como uma estátua. O olhar lixo mergulhava no largo.
Havia nele qualquer coisa da imobilidade do milhafre que acaba de
dar com um ninho de pardais e que o observa.
- É o senhor arcediago de Josas - disse Flor-de-lis.
- Ricos olhos que conseguem reconhecê-lo daqui ! - observou
Gaillefontaine.
- Como ele fita a pequena bailarina ! - comentou Diana de Christeuil .
- Que a cigana se acautele, pois ele não gosta do Egito ! - proferiu
Flor-de-lis.

274
- É realmente pena que aquele homem a olhe assim - acrescentou
Amelotte de Montmichel -, pois ela dança que é uma maravilha.
- Belo primo Febo - disse de repente Flor-de-lis -, j á que conheceis
essa boemiazita, fazei-lhe então sinal para que suba. Divertir-nos-emos.
- Sim, sim! - aplaudiram todas as pequenas, batendo as palmas.
- Isso é uma loucura ! - retorquiu Febo. - Com certeza já se esque-
ceu de mim e nem sei sequer como se chama. No entanto, já que o
desejais, mesdamoiselles, vou ver o que consigo. - E, debruçando-se do
parapeito da varanda, desatou a chamar: - Pequena !
- Nesse momento, a bailarina não tamborilava. Virou a cabeça para
o lado de onde soara o apelo e, quando o seu brilhante olhar se fixou
em Febo, estacou de repente.
- Pequena ! - repetiu o capitão, fazendo-lhe sinal com o dedo para
que subisse.
A j ovem olhou-o mais uma vez, depois corou como se uma laba­
reda lhe subisse às faces e, entalando o pandeiro debaixo do braço, a
passos lentos, trémula, com o olhar perturbado de uma ave que cede
ao encanto duma serpente, encaminhou-se, por entre os espectadores
surpreendidos, para a porta da casa de onde Febo a chamava.
Dali a um instante ergueu-se o reposteiro da tapeçaria e, entre as
portas da câmara, apareceu a cigana, corada, surpreendida, ofegante,
com os grandes olhos postos no chão e não se atrevendo a dar nem
mais um passo.
Bérangére bateu palmas.
A bailarina, porém, deixou-se ficar imóvel no limiar da porta. A sua
aparição produzira um efeito singular naquele grupo de meninas.
A verdade era que a todas ao mesmo tempo animava o vago e indistinto
desej o de agradar ao garboso oficial, e a deslumbrante farda constituía
ponto de mira de todas as suas garridices; desde que o capitão estava
presente, existia entre elas certa rivalidade secreta e abafada, que mal
confessavam a si próprias e que nem por isso menos evidente surgia,
a todo o instante, nas suas palavras e gestos. Não obstante, equiva­
lendo-se todas mais ou menos em beleza, lutavam com armas iguais e
qualquer delas podia esperar a vitória.
A chegada da cigana quebrou de repente este equilíbrio. Era duma
formosura tão rara que, no momento da sua entrada na sala, dir-se-ia
que espalhara uma espécie de luz que lhe era peculiar. Naquela divisão

275
acanhada, naquele sombrio enquadramento de tapeçarias e de talhas,
mostrava-se incomparavelmente mais bonita e mais radiosa do que na
praça pública. Era como um archote transportado da luz do dia para a
penumbra. Sem querer, as nobres donzelas ficaram estonteadas e cada
uma sentiu-se de algum modo atingida na própria beleza. Desta forma, o
seu campo de batalha - desculpem-nos a expressão - modificou-se imedia­
tamente, sem que proferissem uma só palavra. Elas, porém, entendiam-se
às mil maravilhas. Os instintos das mulheres compreendem-se e corres­
pondem-se mais depressa do que as inteligências dos homens. Acabara
de lhes aparecer uma inimiga; todas o sentiam, todas se juntavam. Chega
uma gota de vinho para tingir um copo cheio de água; para cobrir de certo
azedume uma assembleia de mulheres bonitas, basta que a recém-chegada
seja mais bonita, sobretudo quando está presente um homem apenas.
Por isso, o acolhimento dispensado à cigana foi extremamente gla­
cial . Miraram-na de alto a baixo, depois entreolharam-se e ficaram por
aí. Perceberam-se perfeitamente umas às outras. Entretanto a pequena
esperava que lhe falassem, tão comovida estava que nem se atrevia a
levantar as pálpebras.
O primeiro a quebrar aquele silêncio foi o capitão.
- Por minha fé - exclamou num tom de intrépida fatuidade -, eis
uma criatura encantadora ! Que dizeis a isto, formosa prima?
Um admirador mais delicado teria, pelo menos, feito em voz baixa
esta observação, de modo algum suscetível de dissipar as invejas femi­
ninas que analisavam a boémia.
Flor-de-lis respondeu ao capitão com uma açucarada afetação de
desdém:
- Não está mal.
As outras cochicharam.
Por fim D. Aloísia, de modo nenhum a menos ciumenta, pois o era
por amor da filha, dirigiu a palavra à bailarina:
- Aproximai-vos, pequena.
- Aproximai-vos, pequena - repetiu, com cómica solenidade, Bérangére,
que se encostara ao quadril da dona da casa.
A cigana avançou para a nobre dama.
Por sua vez, Febo deu alguns passos para ela e proferiu com ênfase:
- Formosa criança, não sei se tenho a suprema felicidade de ser
reconhecido por vós . . .

276
A interpelada interrompeu-o, erguendo para ele um sorriso e um
olhar cheios de infinita doçura:
- Oh, sim ! - afirmou.
- Tem boa memória . . . - comentou Flor-de-lis.
- Ora a verdade - continuou Febo - é que nessa noite depressa vos
escapulistes. Meto-vos medo?
- Oh, não! - afiançou a boémia.
Na inflexão com que pronunciara esse "oh, não ! " depois do "oh, sim ! "
havia qualquer coisa d e inefável que melindrou Flor-de-lis.
- No vosso lugar, minha linda - continuou o capitão, a quem a lín­
gua se soltava quando falava a uma rapariga da rua -, deixastes-me um
velhaco assaz carrancudo, zanaga e marreco, sineiro do bispo, segundo
creio. Disseram-me que era bastardo dum arcediago e diabo de nasci­
mento. Tem um nome divertido: chama-se Têmporas, Páscoa Florida,
Terça-Feira Gorda, não sei que mais ! Enfim, um nome de dia santo com
repique de sinos! Tomou, portanto, a liberdade de vos raptar como se
fôsseis destinada a sacristães! Essa é forte ! Que diabos vos queria então
esse corujão? Vamos, explicai-vos!
- Não sei - respondeu a j ovem.
- Se se concebe uma insolência assim ! Um sineiro raptar uma
cachopa, como se fosse um visconde ! Um boçal caçador furtivo a cobi­
çar caça de fidalgos! É raro isso. De resto, pagou caro a brincadeira .
Mestre Pierrat Torterue é o palafreneiro mais bruto que até hoj e zurziu
um bandalho e dir-vos-ei, se isso vos pode agradar, que o coiro do
vosso sineiro experimentou-lhe galantemente o peso das mãos.
- Pobre homem! - lamentou a boémia, ao recordar a cena do pelou­
rinho, reavivada por aquelas palavras.
O capitão desatou a rir-se.
- Ora bolas! Aí está uma compaixão tão mal empregada como uma
pena no rabo dum porco ! Que eu sej a pançudo como um papa se . . .
Calou-se de repente.
- Perdão, minhas senhoras! Parece-me que ia largar asneira . ..
- Ora, senhor! - disse Gaillefontaine.
- Fala a linguagem própria dessa criatura ! - acrescentou a meia-voz
Flor-de-lis, cuj o despeito aumentava a cada instante.
Esse despeito não enfraqueceu de modo algum quando viu o capi­
tão, encantado com a cigana e sobretudo consigo próprio, fazer uma

277
pirueta sobre os calcanhares e repetir, com um pesado galanteio, ingé­
nuo e soldadesca:
- Uma guapa cachopa, por minha alma !
- Vestida muito à moda dos selvagens - comentou Diana de
Christeuil, com o seu sorriso dos dentes bonitos.
A observação surgiu como uma luminosa inspiração para as demais.
Mostrou-lhes o lado vulnerável da egípcia. Como não lhe podiam abo­
canhar a formosura , atiraram-se-lhe à vestimenta.
- Mas é verdade! - aprovou Montmichel . - Pequena, que ideia foi a
tua de andares a correr assim pelas ruas, sem camiseta nem gargantilha?
- Tem uma saia tão curta, que até provoca calafrios! - acrescentou
Gaillefontaine.
- Minha querida - continuou, em tom bastante ácido, Flor-de-lis -,
fareis, com esse cinto dourado, que os meirinhos da dozena vos apanhem.
- Pequena, pequena - sugeriu Christeuil, com um sorriso implacá­
vel -, se enfiasses decentemente uma manga no braço, o sol queimar-te-ia
menos.
Era realmente um espetáculo digno de espectador mais inteligente do
que Febo ver como essas lindas meninas, de línguas peçonhentas e irri­
tadas, serpeavam, deslizavam e se contorciam em volta da bailarina das
ruas. Eram cruéis e graciosas. Esquadrinhavam, bisbilhotavam maldosa­
mente com as palavras na sua pobre e extravagante indumentária de lan­
tejoulas e ouropéis. Eram risadas, ironias, humilhações sem fim. Sobre a
cigana choviam os sarcasmos, a benevolência altiva e as olhadelas malévo­
las. Imaginar-se-ia ver as jovens damas romanas que se divertiam a espe­
tar alfinetes de ouro no seio duma escrava formosa. Dir-se-iam elegantes
galgas caçadoras, cercando, de narinas dilatadas e olhos flamejantes, uma
pobre corça do mato, que o olhar do dono lhes proibia de devorar.
No fim de contas, que era uma miserável bailarina da praça pública para
essas meninas de casa nobre? Não pareciam ligar a menor importância à
sua presença e falavam dela, diante dela e a ela própria, em voz alta, como
se se tratasse de qualquer coisa bastante ordinária, bastante abjeta e bas­
tante bonita.
A cigana não era insensível às alfinetadas. De vez em quando, o rubor
da vergonha, ou um relâmpago de cólera inflamava-lhe os olhos ou as
faces; uma palavra desdenhosa parecia hesitar-lhe nos lábios; com des­
prezo, esboçava o trejeitozinho que o leitor lhe conhece, mas calava-se.

278
Imóvel, olhava para Febo, numa, expressão resignada, triste e suave.
Nesse olhar havia também felicidade e ternura. Dir-se-ia que se continha,
com medo de que a expulsassem.
Quanto a Febo, ria-se e tomava o partido da boémia, numa mistura
de impertinência e de comiseração.
- Deixai-as falar, pequena ! - repetia, fazendo tilintar as esporas de
ouro. - Sem dúvida que vestis de forma um tanto extravagante e bár­
bara; mas, guapa cachopa como sois, que vos importa isso?
- Valha-me Deus! - exclamou a loura Gaillefontaine, empertigando
o pescoço de cisne e com um amargo sorriso -, vej o que os senhores
archeiros da ordenança do rei facilmente se inflamam com o fogo dos
lindos olhos egípcios!
- Porque não? - redarguiu Febo.
Esta resposta, descuidadamente atirada pelo capitão como uma
pedra perdida que se não repara sequer onde vai cair, provocou uma
gargalhada a Colombe, Diana, Amelotte e Flor-de-lis a quem ao mesmo
tempo aflorou uma lágrima entre as pálpebras.
A boémia, que baixara os olhos ao ouvir as palavras de Colombe de
Gaillefontaine, ergueu-os, radiosos de alegria e de orgulho, e fixou-os
outra vez em Febo. Estava, nesse momento, deveras bela.
A velha dama, que observava a cena sem a compreender, sentia-se
ofendida.
- Virgem Santa ! - exclamou de repente. - Que, tenho eu aqui a
mexer-me nas pernas? Ai, que horror de bicho!
Era a cabra que acabava de chegar à procura da dona e que, ao correr
para esta, começara por embaraçar os chifres na rima de fazenda que o
vestido da nobre senhora lhe amontoava aos pés quando estava sentada.
Isto constituiu uma diversão. Sem proferir palavra, a boémia desen­
vencilhou-a.
- Olha a cabrinha das patas de ouro ! - exclamou Bérangére, pulando
de contente.
A cigana colocou-se de j oelhos e encostou à face a cabeça caridosa
da cabra. Dir-se-ia que lhe pedia perdão por a ter assim abandonado.
Entretanto Diana inclinara-se para o ouvido de Colombe.
- Valha-me Deus! Porque não me lembrei mais cedo? É a boémia
da cabra ! Dizem que ela é feiticeira e que a sua cabra executa mornices
muito miraculosas.

279
- Nesse caso - alvitrou Colombe -, é preciso que a cabra por sua vez
nos divirta e nos faça um milagre.
Diana e Colombe dirigiram-se impetuosamente à cigana:
- Pequena , manda a tua cabra fazer um milagre.
- Não sei o que quereis dizer - respondeu-lhes a bailarina.
- Um milagre, uma magia, enfim, uma feitiçaria !
- N ã o sei. - E começou a afagar o lindo animal, a o mesmo tempo
que dizia : - Dj ali! Dj ali !
Nesse momento, Flor-de-lis reparou num saquinho de cabedal bor­
dado, pendurado ao pescoço da cabra.
- Que é isso? - perguntou à egípcia.
A interpelada levantou para ela os seus olhos enormes e respondeu
muito séria:
- É o meu segredo.
"Gostaria muito de saber qual é esse teu segredo'', disse para con­
sigo Flor-de-lis.
Entretanto a boa dama levantara-se, maldisposta:
- Ora essa, boémia, se nem tu nem a tua cabra tendes nada para nos
dançar, que fazeis aqui dentro?
A cigana , sem responder, dirigiu-se lentamente para a porta. Mas
quanto mais se aproximava da saída, mais demorava o passo. Um íman
invencível a retardava. De repente, voltou os olhos vidrados para Febo
e parou .
- Deus do Céu ! - exclamou o capitão. - N ã o vos ides assim embora !
Esperai e dançai qualquer coisa para a gente ver ! A propósito, como
vos chamais?
- La Esmeralda - disse a bailarina, sem despregar dele os olhos.
Quando as meninas ouviram aquele estranho nome, soltaram uma
estrondosa gargalhada.
- Aí está um nome terrível para uma donzela! - comentou Diana.
- Bem vedes - observou Amelotte - que é uma feiticeira !
- Minha querida - proferiu solenemente D. Aloísia -, vossos pais
não vos pescaram esse nome na pia batismal!
Contudo, havia minutos que, sem que reparassem nela, Bérangére
atraíra, com um maçapão, a cabra para um canto da sala. Num instante
tornaram-se ambas duas boas amigas. A curiosa criança desprendera o
saquinho suspenso do pescoço da cabra, abriu-o e despejou o que ele

280
continha em cima da esteira. Era um alfabeto com cada letra escrita iso­
ladamente numa tabuinha de buxo. Mal essas peçazinhas ficaram espa­
lhadas em cima do tapete, a criança, admirada, viu a cabra executar sem
dúvida um dos seus milagres e tirar algumas dessas letras, com a sua pata
dourada, para as dispor, empurrando-as suavemente, numa determinada
ordem. Ao cabo de instantes formou uma palavra que a cabra parecia
habituada a escrever, tal a limitada hesitação que demonstrou para a com­
por. De repente, Bérangére exclamou, juntando, estupefacta, as mãos:
- Madrinha Flor-de-Lis, vinde ver o que a cabra acaba de fazer!
Flor-de-Lis acorreu e estremeceu. As letras dispostas no chão forma-
vam esta palavra: FEBO.
- Foi a cabra que escreveu isto? - perguntou, com a voz alterada.
- Sim, madrinha - respondeu Bérangére.
Não havia possibilidade de dúvidas, pois a criança não sabia
escrever.
"Aí está o segred o ! " , pensou Flor-de-Lis.
Entretanto, com a exclamação da menina acorreram todos - a mãe,
as j ovens, a cigana e o oficial.
A cigana reparou no disparate que a cabra praticara. Fez-se primeiro
encarnada, depois pálida e começou a tremer, como uma culpada, diante
do capitão, que a olhava com um sorriso satisfeito e surpreendido.
- Febo! - sussurravam as raparigas, estupefactas. - E o nome do
capitão!
- Tendes uma memória maravilhosa ! - comentou Flor-de-Lis para
a petrificada cigana. Depois desatou a soluçar, balbuciando dolorosa­
mente com o rosto escondido nas belas mãos: - Ai, é uma feiticeira !
- Mas ouvia uma voz ainda mais amarga a dizer-lhe do fundo do cora­
ção : " É uma rival ! " Caiu sem sentidos.
- Minha filha! Minha filha ! - bradou, horrorizada, a mãe. Vai-te,
boémia do Inferno !
Num abrir e fechar de olhos, La Esmeralda apanhou as letras azia­
gas, fez sinal a Dj ali e saiu por uma porta, enquanto levavam Flor-de-Lis
pela outra .
O capitão Febo ficou sozinho, hesitou p o r instantes entre as duas
portas; depois foi atrás da cigana.

281
II

Um padre e um filósofo são dois

Era, com efeito, o arcediago Cláudio Frollo o padre que as meninas


tinham notado, no cimo da torre setentrional, debruçado sobre a praça
e tão atento à dança da boémia.
Os nossos leitores não se esqueceram da misteriosa cela que o arce­
diago reservara para si nessa mesma torre. (Não sei - de passagem o
digo - se não será a mesma de que ainda hoje se pode ver o interior por
uma frestazinha quadrada, aberta para o nascente, à altura dum homem
e existente na plataforma de onde se elevam as torres: um cubículo,
presentemente despido, vazio e arruinado, cujas paredes mal reboca­
das estão ornadas, aqui e além, a esta hora, por algumas más gravuras
amarelentas que representam fachadas de catedrais. Presumo que os
morcegos e as aranhas disputam esse buraco para habitação e que, por
conseguinte, nele se faz às moscas dupla guerra de extermínio. )
Todos os dias, uma hora antes do pôr do Sol, o arcediago subia
a escada da torre e fechava-se na cela, onde às vezes passava noites
inteiras. Nesse dia, na ocasião em que, chegando em frente da porta
baixa do reduto, metia na fechadura a complicada chavinha que trazia
sempre consigo na escarcela que lhe pendia ao lado, chegou-lhe aos
ouvidos o rumor de pandeiro e castanholas. Esse som subia da praça
do Adro. Já dissemos que a cela tinha apenas uma janela que dava
sobre o telhado da igrej a. Cláudio Frollo voltou a guardar precipitada­
mente a chave e, dali a um instante, parava no cimo da torre, na atitude
sombria e recolhida em que as donzelas o haviam !obrigado.
Lá estava ele, grave, imóvel, absorto num olhar e num pensamento.
Paris inteira jazia a seus pés com as mil flechas dos seus edificios e o seu

282
horizonte circular de brandas colinas, com o rio a serpentear sob as pon­
tes e o povo a ondular nas ruas, a nuvem dos seus fumos e a acidentada
cadeia de telhados a comprimirem Nossa Senhora nas suas malhas redo­
bradas. Mas, o arcediago só olhava para um ponto de toda esta cidade: a
praça do Adro; para uma figura apenas de toda esta multidão: a cigana.
Seria difícil de dizer de que natureza era esse olhar e de onde nascia
a chama que dele fluía. Era um olhar fixo e, contudo, repleto de pertur­
bação e tumulto. E na profunda imobilidade de todo o seu corpo, ape­
nas sacudido a intervalos por um tremor maquinal, como uma árvore
ao vento, pela rigidez dos cotovelos mais de mármore do que o próprio
parapeito em que se apoiava, ao ver-se o sorriso petrificado que lhe
contraía o rosto dir-se-ia que Cláudio Frollo só tinha vivos os olhos.
A cigana dançava. Fazia voltar o pandeiro na ponta dos dedos e ati­
rava-o ao ar, enquanto bailava sarabandas provençais; ágil, ligeira, alegre
e sem sentir o peso do olhar temível que lhe caía a prumo sobre a cabeça.
Em volta dela formigava a multidão; e de vez em quando um homem,
vestindo ridiculamente um casacão amarelo e encarnado, reorganizava o
círculo de espectadores; depois voltava a sentar-se numa cadeira a pou­
cos passos da bailarina e poisava a cabeça da cabra sobre os j oelhos. Este
homem parecia ser o companheiro da cigana. Do elevado ponto onde se
encontrava, Cláudio Frollo não conseguia distinguir-lhe as feições.
Desde o momento em que o arcediago avistou o desconhecido, a
atenção como que se lhe dividiu entre a dançarina e aquele, e o sem­
blante tornou-se-lhe cada vez mais duro. De repente endireitou-se e
uma tremura percorreu-lhe o corpo todo. Entre dentes, murmurou:
"Quem vem a ser aquele homem? Sempre a vi sozinha ! "
Então, mergulhou d e novo na tortuosa e abobadada escada e m cara­
col e voltou para baixo. Quando passou em frente da porta entreaberta da
torre sineira, viu u ma coisa que o admirou, viu Quasímodo que, debru­
çado de uma abertura desses telheiros de ardósia parecidos com enor­
mes gelosias, também observava a praça. Prendia-o uma contemplação
tão profunda, que nem atentou na passagem de seu pai adotivo. No olho
selvagem luzia uma expressão singular: um olhar extasiado e meigo.
"Ali está uma coisa esquisita ! " , murmurou Cláudio. " É para a egípcia
que ele olha assim?"
Continuou a descer. Após alguns minutos, o preocupado arcediago
saía para a praça pela porta situada na base da torre.

283
- Que foi feito da boémia? - inquiriu, misturando-se no grupo dos
espectadores atraídos pelo pandeiro.
- Não sei - respondeu um dos seus vizinhos. - Acaba de desapa­
recer. j ulgo que foi tocar qualquer fandango à casa acolá defronte, de
onde a chamaram.
N o lugar da cigana, nesse mesmo tapete, cuj os arabescos
momentos antes desapareciam sob o caprichoso desenho da sua
dança, o arcediago viu somente o homem vermelho e amarelo que
para ganhar também alguns tostões passeava à roda do círculo,
de cotovelos nas ancas, cabeça deitada para trás, cara vermelha,
pescoço esticado e com uma cadeira nos dentes. Sobre essa cadeira
amarrara um gato em prestado por uma vizinha e que miava muito
assustado.
- Nossa Senhora ! - exclamou o arcediago no momento em que o
saltimbanco, a suar em bica, passou diante dele, com a sua pirâmide
de cadeira e gato. - Que está a fazer mestre Pedro Gringoire?
A voz severa do arcediago causou no pobre diabo tamanha como­
ção, que este perdeu o equilíbrio com todo o seu edifício e cadeira e
gato caíram de cambulhada sobre a cabeça dos assistentes, no meio
de inextinguível tumulto.
É provável que mestre Pedro Gringoire (pois era deveras ele)
tivesse umas desagradáveis contas a aj ustar com a vizinha do gato
e com todas as caras contusas e arranhadas que o cercavam se não
se apressasse a aproveitar a barafunda para se refugiar na igrej a, por
onde Cláudio Frollo lhe fez sinal que o seguisse.
Estava já escura e vazia a catedral. As naves enchiam-se de tre­
vas e as lâmpadas das capelas começavam a tremeluzir, tão sombrias
se tornavam as abóbadas. Apenas a grande rosácea da fachada, de
mil cores banhadas por um horizontal feixe de raios solares, reluzia
na penumbra como um sortido de diamantes e repercutia no outro
extremo da nave o seu espectro ofuscante.
Depois de darem alguns passos, D. Cláudio encostou-se a um pilar
e olhou fixamente para Gringoire. Não era bem o olhar que Gringoire
receava , de envergonhado que ficara por pessoa tão grave e douta o
surpreender naquela andaina de palhaço. A expressão do padre nada
mostrava de troça ou de ironia; era séria , calma e penetrante. Foi o
arcediago quem primeiramente quebrou aquele silêncio.

284
- Vinde cá mestre Pedro ! Ides esclarecer-me muitas coisas. Antes
de mais nada, como se explica que não vos vejam, vai para dois
meses, e agora sej ais encontrado nas encruzilhadas, num lindo pre­
paro, não há dúvida ! Meio amarelo, meio vermelho, como uma maçã
de Caudebec!
- Messire - disse tristemente Gringoire -, é com efeito uma prodi­
giosa farpela e vedes-me mais envergonhado do que um gato com
uma cabaça enfiada na cabeça. É muito mal feito, concordo, expor os
senhores aguazis da ronda a terem de malhar, debaixo deste casa­
cão, no lombo de um filósofo pitagórico. Mas que quereis, meu reve­
rendo mestre? A culpa cabe ao meu velho gibão que cobardemente
me abandonou, no começo do inverno, com o pretexto de que caía
em farrapos e p recisava de ir descansar na alcofa do trapeiro. Que
fazer? A civilização não chegou ainda ao apuro de se poder andar em
pelote, como queria o antigo Diógenes. Acrescentai que soprava um
vento muito frio e não é no mês de janeiro que se pode ensaiar com
êxito esse novo passo da humanidade. Deparou-se-me este casacão ;
aproveitei-o, trocando-o pelo meu velho gibão preto que, para um
hermético como eu, era pouquíssimo hermeticamente fechado. Aqui
me tendes em trajo de histrião, como S . Genésio. Que quereis? É um
eclipse. Apolo não se dignou apascentar os rebanhos de Admeto?
- Arranjastes um belo ofício! - tornou o arcediago.
- Concordo, meu mestre, que mais vale filosofar e poetar, soprar a
chama do forno ou recebê-la do céu, do que andar a fazer mornices
com gatos. Por isso, quando me apostrofastes, fiquei tão atarantado
como um asno diante dum espeto. Mas que quereis, messire? Temos
de viver todos os dias e os mais belos alexandrinos não valem, para
um dente, um naco de queij o de Brie. Ora eu escrevi para a Dona
Margarida da Flandres esse famoso epitalâmio que sabeis e a cidade
não mo paga, com a desculpa de que não era excelente, como se por
quatro escudos se pudesse proporcionar uma tragédia de Sófocles.
Ia, por conseguinte, morrer de fome. Felizmente, senti-me um pouco
rij o do lado da queixada e disse a essa queixada: Pratica prodígios de
força e de equilíbrio e alimentar-te-ás a ti mesma. A le te ipsam. Uma
choldra de vagabundos, que se tornaram meus bons amigos, ensi­
naram-me vinte espécies de sortes hercúleas e agora todas as noites
ofereço aos meus dentes o pão que ganharam, de dia, com o suor do

285
rosto. No fim de contas, concedo, concordo ser isto triste emprego das
minhas faculdades intelectuais e que o homem não foi talhado para
levar a vida a rufar num pandeiro nem a morder em cadeiras. Mas,
reverendo mestre , não basta levar a vida, é preciso também ganhá-la.
D. Cláudio escutava-o em silêncio. De repente, o seu olhar encovado
tomou uma expressão tão sagaz e penetrante, que Gringoire sentiu-se,
por assim dizer, devassado até o fundo da alma por esse olhar.
- Muito bem, mestre Pedro, mas porque andais agora na companhia
dessa bailarina do Egito?
- Ora essa ! - exclamou Gringoire. - É porque ela é minha mulher e
eu sou seu marido.
O olhar tenebroso do padre inflamou-se.
- Serias capaz disso, miserável? - gritou, agarrando com furor no
braço de Gringoire. - Ficarias tão abandonado por Deus que tocasses
com a mão nessa rapariga?
- Pelo meu quinhão no Paraíso, monsenhor! - respondeu Gringoire,
a tremer como varas verdes. - Juro-vos que jamais lhe toquei, se é isso
o que vos aflige.
- Para que falas então de marido e de mulher? - objetou o sacerdote.
Gringoire tratou logo de lhe descrever, o mais sucintamente possí­
vel, tudo o que o leitor já sabe, a sua aventura no Pátio dos Milagres e
o casamento da bilha quebrada. Parecia, de resto, que esse casamento
não conduzira ainda a qualquer resultado e que a boémia todas as noi­
tes lhe escamoteava a noite de núpcias, como no primeiro dia.
- Uma sensaboria - concluiu -, mas isso é resultado da minha pouca
sorte em me ter casado com uma virgem.
- Que quereis dizer? - estranhou o arcediago que, à medida que
escutara , se acalmara a pouco e pouco.
- É algo difícil de explicar-vos - respondeu o poeta. - Trata-se de
uma superstição. Minha mulher é, pelo que me contou um velho patife
que entre nós tratam como duque do Egito, uma criança encontrada ou
uma criança perdida, o que vem a dar na mesma82• Traz ao pescoço um
amuleto que, ao que afirmam, lhe permitirá encontrar um dia os pais,

82 Tra ta-se aqui de um trocadilho. No original é : "um enfant trouvé, ou perdu . . . "
.

Ora enfant trouvé signi fica criança enjeitada (à letra seria, como aparece acima, crian­
ça encon trada).

286
mas que perderá a virtude se a pequena perder a sua. Resulta daí que
continuamos ambos muito virtuosos.
- Assim - continuou Cláudio, com a fronte cada vez mais desanu­
viada - acreditais, mestre Pedro, que essa criatura nunca foi tocada por
homem algum?
- Que quereis, D. Cláudio, que um homem faça a uma superstição?
Meteu-se-lhe essa na cabeça ! . . . Acho que é indubitavelmente uma rari­
dade essa pudicícia de monja que se conserva ferozmente entre as
raparigas boémias tão facilmente complacentes. Tem, contudo, três
coisas a ajudá-la: o duque do Egito, que a tomou sob a sua proteção,
contando talvez vir a vendê-la a algum indigno abade; toda a sua tribo,
que lhe consagra singular veneração como a uma Nossa Senhora , e um
certo punhalito, muito engraçadinho, que a espertalhona traz sempre
consigo não sei onde, a despeito das determinações do preboste, e que
lhe surge nas mãos quando se lhe aperta a cintura. É uma intrépida
vespa, acreditai !
O arcediago crivou Gringoire de perguntas.
No conceito do filósofo, La Esmeralda era uma criatura tão ino­
fensiva como encantadora, bonita se excetuarmos um trejeito que
lhe era peculiar; uma pequena ingénua e apaixonada, ignorando
tudo e entusiasmando-se por tudo; não conhecendo ainda, nem
sequer em sonhos, a diferença entre uma mulher e um homem;
feita assim mesmo, doida sobretudo pela dança, pelo bulício e pelo
ar livre; uma espécie de mulher-abelha, de asas invisíveis nos pés, e
vivendo num turbilhão. Devia essa índole à vida errante que sempre
levara . Gringoire conseguira apurar que, ainda pequena, percorrera a
Espanha, a Catalunha e até a Sicília. Ele julgava até que fora levada,
com a caravana de zíngaros de que fazia parte, ao reino de Argel, país
situado na Acaia, essa Acaia que de um lado confina com a pequena
Albânia e com a Grécia e, do outro, com o mar das Sicílias, que é o
caminho de Constantinopla. Dizia Gringoire que os boémios eram vas­
salos do rei de Argel, na sua qualidade de chefe da nação dos M ouros
brancos. O certo era que Esmeralda aparecera na França muito nova
ainda, proveniente da Hungria. De todos esses países trouxera a moça
fragmentos de extravagantes algaraviadas, cânticos e ideias estra­
nhas, que faziam da sua linguagem uma coisa tão matizada como o
seu traj o meio parisiense, meio africano. Aliás, a gente dos bairros que

287
frequentava estimavam-na pela sua alegria, pela graciosidade, pelos
modos vivos, pelos seus bailados e canções. Em toda a cidade só se
julgava odiada por duas pessoas, de quem falava muitas vezes com
pavor: a penitente da Torre Roland, uma desagradável reclusa que
votava não se sabia que espécie de rancor às egípcias e que amaldi­
çoava a pobre dançarina de todas as vezes que lhe passava diante da
fresta, e um padre que nunca a encontrara sem lhe dirigir olhares e
palavras que lhe causavam medo. Esta última circunstância pertur­
bou bastante o arcediago, sem que Gringoire reparasse muito nessa
turvação, tanto mais que haviam bastado dois meses para fazerem
esquecer ao despreocupado poeta os singulares acontecimentos dessa
noite em que encontrara a cigana e a presença do arcediago em tudo
isso. De resto, a bailarinazita nada mais temia. Não lia a sina, o que a
colocava a coberto dos processos por magia , tão amiúde instaurados
contra as ciganas. E, além disso, Gringoire ocupava o lugar de irmão,
senão de marido. No fim de contas, o filósofo suportava com evangé­
lica paciência esta espécie de casamento platónico. Sempre era um
abrigo e um pão. Todas as manhãs saía do covil dos vagabundos, a
maior parte das vezes com a cigana, e aj udava-a na colheita de bro­
quéis e de moedinhas de prata. Todas as noites recolhia com ela sob
o mesmo teto, deixava-a aferrolhar-se no seu cubículo e adormecia
no sono dos justos. Sem dúvida uma existência extremamente suave,
como ele dizia, e muito propícia à meditação. Depois, em sua alma e
consciência, o filósofo não tinha muito a certeza de estar perdidamente
apaixonado pela cigana. Gostava quase tanto dela como da cabra que
era um animal encantador, meigo, inteligente, espirituoso - uma cabra
sábia. Nada de mais vulgar, na Idade Média, do que esses animais
sábios que surpreendiam tanto as gentes e que levavam frequente­
mente os donos à fogueira . Todavia, eram traquinices bem inocentes
os feitiços da cabra de patas douradas. Gringoire explicou-as ao arce­
diago que parecia vivamente interessado por essas particularidades.
Bastava, na maioria dos casos, mostrar o pandeiro à cabra, desta ou
daquela maneira , para obter dela a mornice que se pretendia . A cigana
treinara o animal para tais habilidades e, com um talento tão raro, que
lhe tinham bastado dois meses para o ensinar a escrever, com letras
móveis, a palavra ' Febo'.
- Febo ! - disse o padre. - Febo, porquê?

288
- Não sei - confessou Gringoire. - É talvez palavra que ela julga
dotada de alguma virtude mágica e secreta . Repete-a muitas vezes a
meia-voz, quando se julga só.
- Tendes a certeza - insistiu Cláudio, com olhar penetrante que é
apenas uma palavra e não um nome?
- Nome de quem? - estranhou o poeta.
- Sei lá! - redarguiu o sacerdote.
- Eis o que eu suponho, messire: esses boémios são um tanto gue-
bros e adoram o Sol; daí Febo.
- Não acho a explicação tão clara como vos parece, mestre Pedro.
- De resto, isso não me interessa. Pode murmurar à sua vontade o
nome desse seu Febo. O que é certo é que Djali já gosta tanto de mim
como dela.
- Quem é essa Djali?
- É a cabra .
O arcediago poisou o queixo na mão e pareceu meditar por instan-
tes. De repente, voltou-se para Gringoire e atirou-lhe:
- Jurais-me que nunca lhe tocastes?
- Em quem? - exclamou Gringoire. - Na cabra?
- Não, nessa mulher.
- Na minha mulher? Juro-vos que não !
- E costumais estar muita vez sozinho mais ela?
- Todas as noites, uma boa hora.
D. Cláudio franziu o sobrolho.
- Oh! Oh! Solus cum sola non cogitabuntur orare Pater nostef33 •
- Pela minha alma, poderia dizer o Pater, a Ave-Maria e o Credo in
Deum patrem omnipotentem, sem que ela me ligasse mais importância
do que uma galinha a uma igreja.
- Jurais-me, pelo ventre de vossa mãe - repetiu, com violência, o
arcediago -, em como não tocastes nessa criatura nem sequer com um
dedo?
- Jurá-lo-ia também pela cabeça de meu pai, pois essas duas coi­
sas apresentam mais de uma relação. Mas, meu reverendo padre, per­
miti-me, por meu turno, uma pergunta.
- Falai, senhor.

83 Sozinho com sozinha não se pensará que rezam o Padre-Nosso.

289
- Que vos importa isso?
O rosto lívido do arcediago tornou-se vermelho como o duma don­
zela. Ficou por momentos sem responder e depois disse, visivelmente
perturbado :
- Escutai, mestre Pedro Gringoire. Que eu saiba , não estais ainda
condenado às penas eternas. Interesso-me por vós e estimo-vos. Ora
o menor contacto com essa egípcia do Demónio tornar-vos-ia vassalo
de Satanás. Sabeis que é sempre o corpo que perde a alma. A desgraça
aniquilar-vos-á se vos aproximardes dessa mulher. É por isso.
- Uma vez tentei - confessou Gringoire, coçando uma orelha. Foi no
primeiro dia, mas saiu-me o gado mosqueiro.
- E tivestes esse desaforo, mestre Pedro? - exclamou o padre, de
semblante de novo carrancudo.
- Doutra vez - continuou o poeta, sorridente - antes de me deitar
espreitei pelo buraco da fechadura e vi a mais deliciosa mulher em
camisa que até hoj e fez gemer as tiras duma cama debaixo do seu pé
descalço.
- Vai-te para o Diabo ! - vociferou o padre, com um olhar terrível
E, empurrando pelos ombros o atónito Gringoire, enfiou, em largas
passadas, por baixo das sombrias arcadas da catedral.

290
III

Os sinos

Os vizinhos de Nossa Senhora julgaram aperceber-se de que, depois


da manhã do pelourinho, o arrebatamento carrilhonesco de Quasímodo
esfriara muitíssimo. Dantes eram repiques por tudo e por nada, pro­
longadas alvoradas que duravam desde a hora de prima a completas,
toques dos sinos grandes para a missa solene, opulentas escalas dedi­
lhadas pelos sinos mais pequenos quando dum casamento ou dum bati­
zado, entrecruzando-se no ar com um bordado de toda a espécie de
sons maviosíssimos. A velha igreja, toda vibrante e sonora, rejubilava
num perpétuo festival de sinos. Sentia-se sem cessar a presença dum
espírito de ruído e de capricho que cantava por todas essas bocas de
cobre. Agora, porém, esse espírito parecia ter desaparecido, e a catedral
mantinha-se como que abatida e calada de propósito. Festas e enterros
tinham o seu toque singelo, seco e nu, apenas como o ritual o exigia e
nada mais. Do ruído duplo que uma igreja produz, com o órgão no inte­
rior e o sino no exterior, só o do órgão ficara. Era caso para dizer que já
não havia música nos campanários. Quasímodo, porém, continuava lá
na mesma. Que lhe acontecera então? Seria a vergonha e o desespero do
pelourinho que ainda lhe perduravam no fundo do coração, as chicota­
das do verdugo a repercutirem-se infinitamente na sua alma e a tristeza
de tal tratamento que fizera com que tudo acabasse nele, mesmo a sua
paixão pelos sinos? Ou então era Maria que tinha uma rival no coração
do sineiro de Nossa Senhora, e o sino grande e os seus catorze manos
haviam sido desprezados por outra coisa mais amável e mais bela?
Deu-se o caso de que, nesse gracioso ano de 1482, a Anunciação
calhou na terça-feira 25 de março. Nesse dia, o ar estava tão puro e

29 1
fagueiro que Quasímodo sentiu despertar certa parcela do seu amor
pelos sinos. Subiu, portanto, à torre norte, enquanto lá em baixo o
bedel escancarava as portas do templo, que nessa época eram de enor­
mes almofadas de rija madeira revestida de couro, bordadas de pregos
de ferro dourado e emolduradas de esculturas "Muito artificialmente
elaboradas".
Mal chegou à alta gaiola da torre sineira, Quasímodo olhou durante
algum tempo, meneando tristemente a cabeça, para os seis sinos,
ao mesmo tempo que gemia como se qualquer coisa de estranho se
lhe interpusesse no coração entre ele e eles. Mas quando os pôs em
movimento, quando sentiu aquele cacho de sinos a agitar-se sob a sua
mão, quando viu, pois não ouvia, a palpitante oitava subir e descer a
escala sonora como um pássaro que salta de ramo em ramo, quando o
diabo-música, esse demónio que agita um feixe de cintilantes finais de
fugas, de trilos e de arpej os, se apoderou do pobre surdo, então voltou
a ser feliz, esqueceu tudo, e o coração, dilatando-se, fez-lhe radiar o
semblante.
Ia e vinha, batia as palmas, corria duma corda para outra, animava,
com a voz e com o gesto, os seis cantores, como um diretor de orques­
tra que incita virtuosos inteligentes.
- Anda - dizia -, anda, Gabriela ! Despej a todo o teu ruído na praça.
Hoj e há festa. Teobaldo, nada de preguiças! Estás a relaxar-te. Então,
anda, anda ! Enferruj aste-te, mandrião? . . . Assim está bem ! Depressa,
depressa ! Para que te não vejam o badalo. Torna-os todos surdos
como a mim! Assim, Teobaldo, força Guilherme! Guilherme! És o mais
gordo e o Pasquier é o mais pequeno, mas o Pasquier porta-se melhor.
Apostemos em que os que ouvem o ouvem melhor do que tu. Bem,
bem, minha Gabriela ! Forte ! Mais forte ! Eh , lá, que estão vocês a fazer
os dois lá em cima, Pardais? Não vos vej o fazer o mais leve ruído. Que
vêm a ser esses focinhos de cobre acolá, que parecem bocejar quando
deviam cantar? Vamos, trabalhai ! É hoj e a Anunciação. E está um sol
esplêndido. Tem que haver um carrilhão magnífico. Pobre Guilherme,
já estás para aí todo esfalfado, meu gorducho !
Todo ele se multiplicava a espicaçar os seus sinos que saltavam os
seis ao mesmo tempo a ver qual deles levava a palma, sacudindo as
garupas luzidias como um azougado tiro de mulas espanholas, estimu­
ladas de vez em quando pelas apóstrofes do arreeiro.

292
De repente, ao deixar cair o olhar por entre as largas escamas
de ardósia que recobrem, a certa altura, a parede a pique da torre,
Quasímodo viu na praça uma rapariga extravagantemente ataviada e
que parou e estendeu no chão um tapete, onde logo uma cabrinha se
deitou, fazendo com que um grupo de espectadores os rodeasse. Este
quadro modificou de súbito o curso das ideias do sineiro e petrificou-lhe
o entusiasmo musical como um sopro congela a resina em fusão. Parou,
virou as costas ao carrilhão e acocorou-se atrás do telheiro de ardósia,
fixando na bailarina esse olhar meigo e suave que já uma vez deixara
atónito o arcediago. Entretanto, os sinos, esquecidos, calaram-se brus­
camente todos ao mesmo tempo, com profunda deceção dos amadores
de repiques que escutavam com deleite o carrilhão de cima da Ponte
do Câmbio e se afastaram contrariados como o cão a quem mostram
um osso e lhe dão uma pedra.

293
IV

ANAf KH

Deu-se o caso de que, numa bela manhã desse mesmo mês de


março - julgo eu que foi no sábado 29, dia de Santo Eustáquio - o
nosso j ovem amigo, o estudante Jehan Frollo du Moulin, reparou,
quando se vestia, que as suas bragas, onde guardava a bolsa, não emi­
tiam nenhum som metálico.
- Coitada da bolsa ! - monologou, tirando-a da algibeira. O quê? Nem
o mais insignificante parísio? Como os dados, os canj irões de cerveja e
Vénus te estriparam com tanta crueldade ! . . . Como estás vazia, enrugada
e flácida ! Até lembras o gasganete duma fúria ! Sempre gostaria de saber,
messer Cícero e messer Séneca, cuj os exemplares, tão encarquilhados,
vej o por aí dispersos pelo laj edo, para que me serve saber, melhor do
que um intendente da moeda ou de um judeu da Ponte dos Cambistas,
que um escudo de ouro de coroa vale trinta e cinco unzains de vinte
e cinco soldos e oito dinheiros parísios cada um e que um escudo de
crescente vale trinta e seis unzains de vinte e seis soldos e seis dinheiros
torneses por moeda, se nem sequer possuo um mísero liard negro para
arriscar no carrão! Mas, cônsul Cícero, isto não é calamidade que se con­
jure com perífrases, com quemadmodum e com verum enim vera!
Com semblante muito compungido, vestiu-se. Quando atacava as
botas acudira-lhe uma ideia, mas primeiramente repeliu-a; contudo,
ela voltou-lhe à mente e ele vestiu o colete do avesso, indício flagrante
de violento combate íntimo. Por fim, atirou com toda a força o gorro
para o chão e exclamou :
- Tanto pior! O que tem de ser tem muita força . Vou procurar meu
mano. Apanho um sermão, mas hei de apanhar também um escudo.

294
Enfiou então rapidamente o casacão forrado, pegou no gorro e saiu,
desesperado, pela porta fora.
Desceu a Rija da Harpa, direito à Cité. Quando passou diante da Rua
de Huchette, o cheiro desses admiráveis espetas que giravam incessan­
temente cocegou-lhe o aparelho olfativo e fê-lo deitar uma olhadela
amorosa para a ciclópica cozinha, que um dia arrancou esta exclama­
ção patética ao franciscano Calatagirone: Veramente, queste rotisserie
sono cosa stuependa! Como Jehan não tinha com que almoçar, soltou
um profundo suspiro e enfiou pelo pórtico do Petit Châtelet, enorme
trevo duplo de torres maciças que guardava o acesso à Cité.
Nem sequer perdeu tempo a atirar, de passagem, uma pedrada,
como era da praxe, à miserável estátua desse Périnet Leclerc que entre­
gara a Paris de Carlos VI aos Ingleses, crime que a sua efígie, de cara
escavada pelos calhaus e emporcalhada de lama, expiou, durante três
séculos, à esquina das ruas da Harpa e de Suei, como num eterno
pelourinho.
Atravessada a Ponte Pequena, e transposta, duma pernada, a Rija
Nova de Santa Genoveva, Jehan de M olendino encontrou-se diante
de Nossa Senhora. Voltou-lhe então a hesitação e começou a passear,
durante momentos, à roda da estátua do Sr. Legris, repetindo aflito:
- O sermão é certo, mas o escudo é duvidoso.
Deteve um bedel que saía do claustro:
- Onde está o Sr. Arcediago de Josas?
- Suponho que no seu esconderijo da torre - respondeu o bedel -,
mas aconselho-vos a que não o incomodeis, a não ser que lhe leveis
recado da parte de alguém como o papa ou o rei.
Jehan bateu as palmas:
- Diacho ! Cá está uma magnífica ocasião para ver o famoso cubí­
culo dos bruxedos!
Encoraj ado com esta reflexão, enfiou resolutamente pela portinha
negra e começou a subir a escada em caracol que leva aos andares
superiores da torre. Pelo caminho, monologava:
- Vamos a ver! Pela Santa Virgem, deve ser coisa curiosa essa cela
que o meu reverendo mano esconde como o seu pudendum! Dizem
que, nela acende os fogões do Inferno para cozer, a lume forte, a pedra
filosofal. Por Deus! I mporta-me tanto a pedra filosofal como qualquer
matacão e apreciaria mais encontrar-lhe no fogareiro uma omeleta de

295
ovos de Páscoa com toucinho do que a mais descomunal pedra filoso­
fal do mundo !
Quando chegou à galeria dos colunelos, deteve-se por um instante
para tomar fôlego e praguej ou contra a interminável escada, com não
sei quantos milhões de carradas de diabos. Depois retomou a ascensão
pela apertada porta da torre norte, hoj e vedada ao público. Minutos
depois de ultrapassar a gaiola dos sinos, encontrou um pequeno pata­
mar aberto num rebaixo lateral e, sob a abóbada, uma porta atarra­
cada ogival, na qual uma seteira, aberta em frente na parede circular da
escada, lhe permitia observar a enorme fechadura e a potente armação
de ferro. As pessoas que estiverem interessadas em visitar hoje essa
porta, reconhecê-la-ão por esta inscrição gravada em letras brancas na
parede escura:

ADORO CORÁ LIA. 1829 . ASSI NADO UG E NE.

O assinado está no texto.


- Safa ! - exclamou o estudante. - É sem dúvida aqui.
Viu a chave na fechadura. A porta estava encostada. Empurrou-a ao
de leve e meteu a cabeça pela abertura.
Sem dúvida o leitor não deixou de folhear a obra admirável de
Rembrandt, esse Shakespeare da Pintura. Entre tantas gravuras mara­
vilhosas, existe em particular uma água-forte que representa, ao que
se supõe, o Doutor Fausto e que é impossível contemplar sem deslum­
bramento. É uma cela sombria. No meio há uma mesa carregada de
hediondos objetos: caveiras, esferas, alambiques, compassos, perga­
minhos hieroglíficos. Está o doutor sentado à mesa, com um grosso
capote vestido e o gorro de peles enfiado até às sobrancelhas. Só lhe
vemos metade do corpo. Está semierguido da sua imensa cadeira de
braços, os punhos crispados apoiados na mesa, e observa, com curiosi­
dade e terror, um grande círculo luminoso formado de letras mágicas,
que brilha na parede do fundo como o espectro solar numa câmara
escura. Este sol cabalístico parece tremer à vista e enche a sinistra cela
com a sua misteriosa radiação. É horrível e é belo.
Coisa bastante semelhante à cela de Fausto se ofereceu ao olhar
de Jehan, quando se atreveu a enfiar a cabeça pela porta entreaberta .
Era igualmente um reduto sombrio e mal iluminado. Havia também

296
ali uma grande cadeira de braços e uma grande mesa, compassos,
alambiques, esqueletos de animais pendurados do teto, uma esfera
que rebolava pelo chão, hipocéfalos de mistura com boiões onde estre­
meciam palhetas de ouro, caveiras colocadas sobre velinos recama­
dos de desenhos e de caracteres, volumosos manuscritos empilhados e
escancarados sem piedade pelas dobras feitas no pergaminho, enfim,
todo o lixo da ciência; por todos os cantos, pó e teias de aranha, mas
sem circulo de letras luminosas, sem doutor extasiado a contemplar a
flamej ante visão, como a águia encara o Sol.
A cela, contudo, não estava deserta. Via-se um homem sentado na
cadeira de braços, curvado sobre a mesa. Como se encontrava de costas
voltadas, Jehan só lhe podia ver os ombros e a parte de trás do crânio,
mas não sentiu qualquer dificuldade em identificar aquela cabeça calva,
onde a natureza abrira uma tonsura eterna, como se quisesse marcar,
com um símbolo exterior, a irresistível vocação clerical do arcediago.
Jehan reconheceu, portanto, o irmão. Mas a porta abrira-se tão de
mansinho, que coisa alguma avisou O. Cláudio da visita. O curioso estu­
dante aproveitou para examinar a cela à sua vontade, durante alguns
instantes. Um enorme forno, em que de entrada não reparara, ficava à
esquerda da cadeira de braços por baixo da fresta. O feixe de luz que
penetrava por esta abertura atravessava uma redonda teia de aranha,
a qual inscrevia com gosto na ogiva da trapeira a sua rosácea delicada,
enquanto o inseto-arquiteto se conservava imóvel ao meio, como o cubo
daquela roda de renda. Sobre o forno acumulava-se, desarrumada, toda
a espécie de recipientes, cadinhos, retortas de vidro, matrases de carvão.
Jehan notou, suspirando, que ali nem a mais pequena caçarola existia.
" É fresca a bateria de cozinha ! " , pensou.
Para mais, não havia lume no forno e até parecia que não lho acen­
diam há muito tempo já. A um canto, coberta de poeira e como que
esquecida, Jehan reparou numa máscara de vidro, perdida entre os
utensílios de alquimia e que servia sem dúvida para defender o rosto
do arcediago quando preparava qualquer substância perigosa. Ao lado
j azia um fole, não menos coberto de pó e cuj a folha superior mostrava
esta legenda incrustada em letras de cobre: SPIRA, SPERA.
Segundo o hábito dos herméticos, outros dísticos se liam em grande
número pelas paredes; uns desenhados a tinta, outros gravados com
um estilete de metal. Eram, aliás, letras góticas, letras hebraicas, letras

297
gregas e letras romanas de mistura; inscrições estendendo-se, ao acaso,
umas sobre as outras, as mais recentes apagando as mais antigas e
todas encavalitadas umas nas outras como os ramos dum carrasca! ,
como chuços n u m combate. Tratava-se, efetivamente, duma mistura
bastante complicada de todas as filosofias, de todas as lucubrações, de
todos os conhecimentos humanos. Aqui e além, uma havia que brilhava
sobre as demais como uma flâmula entre os ferros das lanças. Na maior
parte dos casos consistia numa breve divisa latina ou grega, como tão
bem as formulavam na Idade Média: Unde? inde? - Homo homini mons­
trum. - Astra, castra, nomem, numen. - M&ya Bl{3J.. ÍOv µÉya xaxóv - Sapere
aude. - Flat ubi vult. - etc. Às vezes, uma palavra aparentemente desti­
tuída de qualquer significação: Avayxo<fmya· , o que talvez ocultasse uma
alusão amarga ao regime do claustro; por vezes, uma simples máxima de
disciplina clerical, formulada num hexâmetro regulamentar: Coeleslem
dominum, terrestrem dicito dominum. Havia também passim engrimanços
hebraicos e de que Jehan, já de si muito fraco em grego, não percebia
patavina, tudo atravessado, a torto e a direito, por estrelas, figuras de
homens ou de animais, e triângulos que se intercetavam, o que não
contribuía pouco para que a parede garatujada da cela se parecesse com
uma folha de papel na qual um macaco passeasse uma pena ensopada
de tinta.
O conj unto do cubículo apresentava, aliás, um aspeto geral de aban­
dono e de ruína, e o mau estado dos utensílios deixava supor que o seu
dono havia muito que se distraíra do trabalho, absorvido por outras
preocupações.
Esse dono, porém, debruçado sobre um vasto manuscrito ornado de
extravagantes pinturas, parecia atormentado por uma ideia que, sem
cessar, vinha misturar-se com as suas meditações. Foi pelo menos o
que Jehan pensou quando o ouviu exclamar, com intermitências pen­
sativas dum visionário que sonha alto:
- Sim, disse-o Manou e Zoroastro ensinou-o, o Sol nasce do fogo, a
Lua do Sol . O fogo é a alma do grande todo. Os seus átomos elemen­
tares derramam-se e jorram incessantemente sobre o mundo por meio
de correntes infinitas. Nos pontos onde, no céu, se entrecruzam essas
correntes, produzem luz; nos seus pontos de interseção na terra, pro­
duzem ouro. Luz, ouro, coisas iguais! Fogo no estado concreto. A dife­
rença do visível para o palpável, do fluido para o sólido, para a mesma

298
substância, do vapor de água para o gelo, nada mais. Isto não são
sonhos . . . é a lei geral da natureza. Que se deve, porém, fazer para
desvendar na ciência o segredo desta lei geral? Pois esta luz que me
inunda a mão é ouro ! Basta condensar, conforme certa lei diferente,
estes mesmos átomos que se dilatam de acordo com uma lei estabele­
cida. Como há de ser? Alguns imaginaram esconder um raio de Sol . . .
Averróis . . . sim, foi Averróis . . . Averróis enterrou um por baixo do pri­
meiro pilar da esquerda do santuário do Alcorão, na grande mesquita
de Córdova, mas não se pode abrir o j azigo para ver se a operação foi
coroada de êxito, senão daqui a oito mil anos.
- Diacho ! - comentou Jehan, em aparte. -
É tempo de sobra para
esperar por um escudo !
- . . . Outros imaginaram - continuou o meditativo arcediago - que
valia mais a pena trabalhar um raio de Sírius . . . Mas é bastante difícil
obter esse raio em estado puro, por causa da presença simultânea de
outras estrelas que vêm interferir. Flamel calcula que é mais simples
trabalhar o fogo terrestre . . . Flamel, um nome predestinado! Flamma! . . .
Sim, o fogo. Aí está tudo ! . . . O diamante está no carvão, o ouro está
no fogo . . . Como, porém, se lho há de arrancar? . . . Magistri afirma que
existem nomes de mulher dum encanto tão doce e tão misterioso, que
basta pronunciá-los durante a operação. Leiamos o que a tal respeito diz
Manou: "Onde se presta honra às mulheres, as divindades regozijam-se;
onde as desprezam, é escusado orar a Deus . . . A boca duma mulher é
de constante pureza; é uma água corrente, é um raio de Sol . . . O nome
duma mulher deve ser agradável, suave, imaginário, terminar em vogais
longas e parecer-se com palavras de bênção" . . . Sim, o sábio tem razão;
com efeito, Maria, Sofia, Esmerai . . . Maldição ! Esta ideia constante !
E fechou o livro com violência.
Passou a mão pela testa, como se quisesse expulsar um pensamento
que o obcecava. Em seguida, tirou de cima da mesa um prego e um mar­
telinho cujo cabo estava singularmente pintado de letras cabalísticas.
- De há tempos para cá - comentou, com um sorriso amargo - enca­
lho em todas as experiências que empreendo ! A ideia fixa domina-me e
calcina-me o cérebro como uma marca de fogo. Nem sequer logrei des­
cobrir o segredo de Cassiodoro, cuja lâmpada ardia sem torcida nem
óleo. Afinal, uma coisa simples!
- I rra ! - disse Jehan com os seus botões.

299
- . . . Basta , portanto - continuou o padre -, apenas um miserável pen­
samento para tornar um homem débil e louco ! Como Cláudia Pernelle
se riria de mim, ela que nem por um só instante conseguiu distrair
Nicolau Flamel de prosseguir na grande empresa ! Pois quê! Empunho
na minha mão o martelo mágico de Zéchiélé ! Por cada pancada que,
do fundo da sua cela, o temível rabino descarregava sobre este prego,
com este martelo, cada inimigo seu que condenara, a duas mil léguas
de distância que se encontrasse, enterrava-se um côvado na terra que
o devorava. O próprio rei da França, que uma noite bateu ansioso à
porta do taumaturgo, enterrou-se até aos joelhos no solo de Paris . . . Isto
aconteceu não há três séculos . . . Pois bem! Possuo o martelo e o prego,
mas nas minhas mãos são utensílios tão inofensivos como um boneco
nas mãos dum ferreiro . . . Por isso basta apenas descobrir a palavra
mágica que Zéchiélé pronunciava ao cravar o seu prego.
"Uma ninharia ! '', pensou Jehan .
- Bem, vej amos o que se consegue - continuou arrebatadamente o
arcediago. - Se me sair bem, verei saltar da cabeça do prego uma faísca
azul. - Emen-hétan! Emen-hétan! . . . Não é esta . . . Sigéani! Sigéani! . . .
Que este prego abra a sepultura, seja onde for, a quem use o nome de
Febo . . . Maldição! Sempre, e mais uma vez, eternamente a mesma ideia !
E, encolerizado, atirou o martelo fora. Depois enterrou-se de tal
forma na cadeira, debruçando-se sobre a mesa , que Jehan o perdeu de
vista por detrás do alto espaldar. Durante minutos só lhe viu o punho
convulsivo, crispado sobre um livro. De repente, D. Cláudio levan­
tou-se, pegou num compasso e, silenciosamente, esculpiu na parede,
em letras capitais, esta palavra grega :

ANAfKH

" O meu mano é maluco", disse, para consigo, Jehan. "Seria mais
fácil escrever Fatum. Nem toda a gente é obrigada a saber grego ! "
O arcediago voltou a sentar-se n a cadeira e poisou a cabeça entre as
duas mãos, como faz o doente que sente o cérebro pesado e a escaldar.
O estudante observava, espantado, o irmão. Não sabia, ele cujo cora­
ção era transparente, ele que da lei do mundo só cumpria a boa lei da
natureza, ele que deixava trasbordar as suas paixões conforme a própria
tendência e que mantinha sempre seco o lago das grandes emoções, pois

300
todas as manhãs lhe escavava largamente novas valas, não sabia com
que fúria esse mar de paixões humanas fermenta e referve quando se lhe
veda qualquer espécie de escoante; como ele se acumula, incha e trans­
vasa, como corrói o coração, como rebenta em soluços íntimos e surdas
convulsões, até que estoira os diques e cava o seu leito. O austero e glacial
invólucro de Cláudio Frollo, essa superficie fria, de escarpada e inacessível
virtude, sempre iludira Jehan. Nunca o alegre escolar imaginara quanta
lava ardente, furiosa e profunda, rugia sob a fronte nervosa do Etna.
Não sabemos se compreendeu imediatamente aquelas ideias, mas,
por muito estouvado que fosse, percebeu, ainda assim, que acabara
de devassar a alma de seu irmão mais velho numa das suas manifes­
tações mais secretas, o que não convinha que Cláudio viesse a saber.
Ao ver que o arcediago mergulhara de novo na sua imobilidade ante­
rior, recuou muito cautelosamente a cabeça e provocou certo ruído da
porta, como de alguém que chegasse e desse sinal da sua aproximação.
- Entrai! - bradou o arcediago, do interior da cela. - Esperava-vos.
Deixei de propósito a chave na porta. Entrai, mestre Jacques.
O estudante entrou, cheio de coragem. Tal visita, naquele local, con­
trariou muitíssimo o arcediago, o qual estremeceu na cadeira.
- O quê! Sois vós, Jehan?
- Sempre é um J . . . - respondeu o escolar, com a sua cara estranha,
vermelhaça e j ovial.
A fisionomia de D. Cláudio readquiriu a habitual expressão severa.
- Que vindes aqui fazer?
- Meu mano - respondeu o estudante, esforçando-se por apresentar
uma atitude decente, piedosa e modesta e, com ar de inocência, tor­
cendo nas mãos o gorro -, vinha-vos pedir. . .
- O quê?
- Um pouco de moral de que bem preciso.
Jehan não se atreveu a acrescentar em voz alta: "E um pouco de
dinheiro, de que ainda preciso mais! "
Esta última parte d a frase ficou inédita.
- Senhor - declarou-lhe friamente o arcediago -, ando muito des­
contente convosco.
- Ai de mim ! - suspirou o estudante.
D. Cláudio fez a cadeira descrever um quarto de círculo e olhou
fixamente para Jehan.

301
- Ainda bem que aparecestes.
Era um tremendo exórdio. Jehan preparou-se para um rude embate.
- Jehan, todos os dias me chegam queixas contra vós. Que briga
foi essa em que moestes com paulada um tal viscondezito Alberto de
Ramonchamp? . . .
- Olha a grande coisa ! - desfechou o acusado. - U m reles pajem que
se entretinha a emporcalhar os estudantes lançando o seu cavalo em
correrias pela lama!
- E quem é esse tal Mahiet Fargel - prosseguiu o arcediago - a quem
rasgastes a túnica? Tunicam dechiraverunt, diz a queixa.
- Ora, ora ! Uma capeta de Montaigu, que não valia dois caracóis !
- A queixa diz tunicam e não cappettam. Não sabeis latim?
Jehan não respondeu.
- Sim - prosseguiu o padre, abanando a cabeça. - Eis a que agora
estão reduzidos os estudos e as letras. Mal conhecem a língua latina,
desconhecem a siríaca, a grega é de tal modo odiosa, que não se con­
sidera ignorância que os mais doutos saltem, sem a ler, uma palavra
grega e que se diga: Graecum est, non legitur.
O estudante levantou resolutamente os olhos.
- Senhor meu mano, desejais que vos explique, em boa linguagem
francesa, aquela palavra grega que está ali escrita na parede?
Que palavra?
- ANAfKH.
Nas amarelentas maçãs do rosto do arcediago espalhou-se um rubor,
como os jatos de fumo que anunciam, externamente, as comoções dum
vulcão. O estudante mal reparou nisso.
- Pois bem, Jehan - balbuciou, com dificuldade, o mais velho -, que
quer dizer aquela palavra?
- FATALI DADE.
D. Cláudio empalideceu e o estudante continuou em tom despreo­
cupado:
- E a palavra que está por baixo, gravada pelo mesmo punho, 'AvayvfÍa,
significa impureza Estais a ver que se sabe alguma coisa de grego . . .
..

O arcediago ficou calado. Aquela lição de grego deixava-o pensativo.


O pequeno Jehan, que possuía todas as manhas do menino amimado,
julgou chegado o momento azado para arriscar a petição. Adotou para
isso uma voz extremamente meiga e começou:

302
- Meu bondoso mano, porventura me votais tamanho ódio, para me
mostrardes má cara só por causa duns reles sopapos e murros, distri­
buídos em legítima defesa a não sei que mancebos chochinhas, quibus­
dam marmosetis? Como vedes, bondoso mano Cláudio, aqui também se
sabe latim ! . . .
Toda esta cariciosa hipocrisia não exerceu, porém, no severo irmão
mais velho o efeito habitual. Cérbero não mordeu no bolo de mel . Nem
uma ruga se desfez na testa do arcediago.
- Aonde quereis chegar? - perguntou com secura.
Jehan respondeu, destemido:
- Pois bem, a isto ! Ei-lo! Preciso de dinheiro.
Esta descarada declaração imprimiu no semblante do arcediago
uma expressão inteiramente pedagógica e paternal.
- Sabeis, senhor Jehan, que o nosso feudo de Tirechappe, mesmo
j u ntando o censo e as rendas de vinte e uma casas, não rende senão
trinta e nove libras, onze soldos e seis dinheiros parísios. É metade
mais do que era no tempo dos irmãos Paclet, mas ainda assim é
pouco.
- Preciso de dinheiro - repetiu estoicamente Jehan.
- Sabeis que o provisor decidiu que as nossas vinte e uma casas
pertenciam ainda ao feudo do episcopado e que só poderíamos reunir
esse foro pagando ao reverendo bispo dois marcos de prata dourada do
preço de seis libras parísias. Ora, como não ignorais, ainda não conse­
gui j untar esses dois marcos.
- Só sei que preciso de dinheiro - repetiu Jehan pela terceira vez.
- Precisais, para quê?
A pergunta acendeu um lampej o de esperança no olhar de Jehan,
Por isso retomou a fisionomia hipócrita e licodoce.
- Escutai, querido mano Cláudio, não recorrerei a vós com maus
fins. Não se trata de andar na pândega, pelas tabernas, com os vossos
unzains, ou passear pelas ruas de Paris, de caparazão de brocado de
ouro, com o meu lacaio, cum meo laquasio. Não, meu mano, é para uma
boa obra.
- Que boa obra? - perguntou Cláudio, um tanto admirado.
- Dois amigos meus gostariam de comprar o enxoval para o
recém-nascido duma pobre haudriette viúva. Uma obra de caridade.
Custa três florins e eu desej aria contribuir com o meu .

303
- Como se chamam os vossos dois amigos?
- Pedro Espancador e Batista Trinca-Patos.
- Hum! - resmungou o arcediago. - Têm uns nomes que assentam
tão bem numa obra de caridade como uma bombarda em cima dum
altar-mor! . . .
A verdade é que Jehan escolhera pessimamente os nomes dos seus
dois amigos. Tarde de mais o verificou.
- Além disso - continuou o sagaz Cláudio - que enxoval é esse que
custa três florins? E para o filho duma haudriette?84 Desde quando as
haudriettes viúvas têm filhos ainda na idade dos cueiros?
Jehan perdeu mais uma vez a vergonha:
- Pois muito bem, sim ! Preciso de dinheiro para ir esta noite visitar
a Isabel Thierrye, ao Vale do Amor!
- Miserável impuro ! - vociferou o padre.
- Avayv1da - pronunciou Jehan.
Esta citação, que o estudante aproveitou, com malícia talvez, da
parede da cela, causou singular efeito no sacerdote. Mordeu os lábios
e a cólera desfez-se em rubor.
- Ide-vos - disse então a Jehan. - Estou à espera de alguém.
O escolar envidou novo esforço:
- Mano Cláudio, dai-me ao menos um reles parísio para comer.
- Como ides nos decretais de Graciano? - perguntou D. Cláudio.
- Perdi os cadernos.
- Como ides nas humanidades latinas?
- Roubaram-me o meu exemplar de H orácio.
- Como ides a respeito de Aristóteles?
- Falando a sério, mano, quem foi esse padre da Igreja que disse
que os erros dos heréticos sempre escolheram para caio o matagal da
metafísica de Aristóteles? Não quero sacrificar a minha religião à sua
metafísica .
- Mancebo - redarguiu o arcediago -, quando da última visita do rei
apareceu um gentil-homem, chamado Filipe de Comines, que, no xairel
do seu cavalo, trazia bordada a sua divisa, a qual vos aconselho que
mediteis: Qui non laborat non manducet.

84 Como já atrás se anotou, haudriettes eram as religiosas duma ordem hospita­


leira francesa.

304
O estudante ficou por momentos calado, com o dedo numa orelha,
o olhar cravado no chão e semblante aborrecido. De repente, voltou-se
para Cláudio com a viva rapidez duma lavandisca.
- Assim, bondoso mano, recusais-me um soldo parísio para comprar
uma bucha num padeiro?
- Qui non laborat non manducet.
Ante esta resposta do inflexível arcediago, Jehan escondeu a cabeça
entre as mãos, como uma mulher que soluça, e exclamou numa explo­
são de desespero:
- 'AvayvEÍa.
- Que quer isso dizer, senhor? - perguntou Cláudio, espantado com
aquele despropósito.
- Que quer dizer? - repetiu o estudante, erguendo para Cláudio os
olhos descarados, onde acabara de carregar com os punhos para lhes
imprimir a vermelhidão do choro. - É grego ! É um anapesto de Ésquilo
que exprime perfeitamente o sofrimento.
Nessa altura soltou uma gargalhada tão cómica e estridente, que
arrancou um sorriso ao arcediago.
Realmente, a culpa era de Cláudio. Porque amimara aquela criança?
- Ai, bondoso mano Cláudio - continuou Jehan, encorajado por
aquele sorriso. - Vedes os meus borzeguins esburacados. Há coturno
mais trágico neste mundo do que uma botina com as solas a rirem-se?
O arcediago voltara prontamente à severidade precedente.
- Mandar-vos-ei botinas novas. Dinheiro é que não.
- Um pobre parisiozinho só, mano! - continuou o suplicante Jehan.
'
Aprenderei o Graciano de cor, acreditarei deveras em Deus, serei um
verdadeiro Pitágoras da ciência e da virtude. Mas, por mercê, um pari­
siozinho só! Quereis que a fome me trinque com a sua bocarra, que
vej o acolá escancarada diante de mim, mais negra, mais fedorenta,
mais profunda, do que um tártaro ou do que um nariz de frade?
D. Cláudio abanou a enrugada cabeça.
- Qui non laborat . . .
Jehan não o deixou acabar.
- Pois bem! - bradou. - Com todos os diabos! Viva a alegria! Embor­
rachar-me-ei, bater-me-ei, quebrarei louça e irei para as raparigas!
Dito isto, atirou com o gorro à parede e deu estalidas com os dedos
como se fossem castanholas.

305
O arcediago deitou-lhe uma olhadela sombria .
- Jehan, não tendes alma.
- Nesse caso, segundo Epicuro, falta-me um não sei quê, feito de
qualquer coisa que não tem nome.
- Jehan, é preciso pensar a sério em emendar-vos.
- Ah, sim? - exclamou o estudante, olhando ora para o irmão, ora
para os alambiques do forno. - Aqui tudo é retorcido, desde as ideias
às garrafas!
- Jehan, deslizais por uma ladeira bem escorregadia ! Sabeis aonde
isso vos conduzirá?
-
À taberna.
- A taberna conduz ao pelourinho.
- É uma lanterna como qualquer outra , e foi talvez com uma dessas
que Diógenes encontrou o seu homem.
- O pelourinho conduz à forca.
- A forca é uma balança com um homem dum lado e a terra inteira
do outro. É bom ser-se o homem.
- A forca conduz ao Inferno.
- Uma grande fogueira.
- Jehan, Jehan, o fim será mau !
- O começo foi bom.
Nesse momento ouviu-se rumor de passos na escada.
- Silêncio ! - atalhou o arcediago, pondo o dedo na boca. - Vem aí
mestre Jacques. Escutai, Jehan - aj untou em voz baixa. - Livrai-vos
de alguma vez repetir o que virdes ou ouvirdes aqui! Tende cuidado!
Escondei-vos depressa debaixo desse forno e nem sequer respireis!
O estudante encolheu-se debaixo do forno. Ali ocorreu-lhe uma
ideia fecunda.
- A propósito, mano Cláudio, um florim para que eu não respire !
- Silêncio ! Prometo-vo-lo.
- É preciso dar-mo.
- Toma lá então ! - bradou o arcediago, atirando-lhe, furioso, com a
escarcela.
Jehan enterrou-se mais por baixo do forno enquanto a porta se abria.

306
V

Os dois homens vestidos de preto

A personagem que apareceu trazia uma toga preta e uma cara car­
rancuda. O que logo de entrada impressionou o nosso amigo Jehan
(que, como é de calcular, amesendara-se no seu canto, de forma a
poder ver e ouvir tudo à sua vontade) foi a perfeita melancolia do traj o
e do semblante do recém-chegado. Não obstante, havia certa ternura
espalhada naquele rosto, mas uma ternura de gato ou de j uiz, uma
ternura adocicada. Era muito grisalho, enrugado, roçava pelos sessenta
anos, piscava os olhos, tinha as sobrancelhas brancas, lábio pendente
e mãos grossas. Quando Jehan viu que era apenas isso, ou fosse incon­
testavelmente um médico ou um magistrado, e que o homem tinha o
nariz muito longe da boca, sinal de estupidez, aninhou-se mais no seu
buraco, desesperado por ter de passar um tempo indefinido em tão
incómoda posição e em tão má companhia .
O arcediago, contudo, nem sequer se levantara para essa persona­
gem. Fez-lhe sinal para que se sentasse num escabelo j unto da porta
e, após alguns momentos de um mutismo que parecia continuar uma
meditação precedente, disse-lhe com um certo ar protetor:
- Bons dias, mestre Jacques.
- Viva, mestre ! - respondeu o homem de negro.
Nas duas maneiras como se pronunciou dum lado esse mestre
Jacques e, do outro, esse mestre, por excelência, havia a diferença do
monsenhor para o senhor, do domine para o domne. Era evidentemente
o encontro do doutor com o discípulo.
- Então - inquiriu o arcediago, depois de nova pausa que mestre
Jacques teve o cuidado de não perturbar -, conseguistes?

307
- Infelizmente, meu mestre - disse o outro com um sorriso triste -
farto-me de soprar. Cinza, toda a que eu queira. Mas nem uma centelha
de ouro.
D. Cláudio fez um gesto de impaciência .
- Nos vos falo disso, mestre Jacques Charmolue, mas sim do pro­
cesso do vosso mágico. Não lhe chamais Marcos Cenaine, a esse copeiro
do Tribunal de Contas? Confessa a sua magia? Obtivestes algum resul­
tado da tortura?
- Infelizmente, não - respondeu mestre Jacques, sempre com o seu
sorriso triste. - Não temos essa consolação. Esse homem é uma pedra;
é mais fácil fazê-lo cozer no Mercado dos Porcos do que dizer qual­
quer coisa. E, no entanto, não nos poupamos a esforços para obtermos
a verdade. Já está todo desconj untado. Empregamos nisso todas as
ervas-de-são-j oão, como diz o velho cómico Plauto:

Advorsum stimulos laminas crucesque, compedesque,


Nervos, catenas, carceres, numellas, pedicas, boias85•

Nada feito; esse homem é terrível. Perco com ele o meu latim.
- Não encontrastes novidade nenhuma em sua casa?
- De facto, encontrámos este pergaminho - respondeu mestre
Jacques, rebuscando na escarcela. - Tem aí umas palavras que não
percebo. O senhor advogado do crime, Filipe Lheulier, sabe, porém,
um bocado de hebraico que aprendeu no processo dos judeus da Rua
Kantersten em Bruxelas.
Enquanto assim falava , mestre Jacques desenrolava um perga­
minho.
- Deixai ver - pediu o arcediago que, lançando os olhos para e,
escrito, exclamou: - Pura magia, mestre Jacques! Emen-hétan! é o grito
das estriges quando chegam ao sabbat. Per ipsum, et cum ipso, et in
ipso!, a voz de comando que acorrenta o Diabo no Inferno. Hax, pax,
max! é medicina. Uma fórmula contra a mordedura dos cães danados.
Mestre Jacques! Sois procurador do rei no tribunal eclesiástico. Este
pergaminho é abominável !

85 Contra os aguilhões, lâminas, cruzes, estorvos, ferros, cadeiras, cárceres, go­


lilhas, peias, argolas.

308
- Submeteremos outra vez o homem à tortura . Aqui está ainda -
acrescentou mestre Jacques remexendo de novo na sacola - o que
encontrámos em casa de Marcos Cenaine.
Era um recipiente da família dos que se viam sobre os fornos de
D. Cláudio.
- Ah - comentou o arcediago -, um cadinho de alquimia !
- Devo confessar-vos - continuou mestre Jacques, com o seu sor-
riso tímido e acanhado - que o experimentei no forno, mas não obtive
melhor resultado do que com o meu.
O arcediago passou a examinar o vaso.
- Que está gravado neste cadinho? Och! och!, a palavra que enxota
as pulgas ! Esse Marcos Cenaine é um ignorante ! Estou deveras certo
de que não será com isto que fareis ouro ! Serve para pôr no verão na
vossa alcova, e nada mais!
- Já que estamos a falar de erros - acrescentou o procurador real -,
antes de subir para aqui estive a estudar o portal lá de baixo. Vossa
Reverência tem bem a certeza de que é a capa da obra do físico que se
encontra representada do lado do Hospital Principal, e que das sete
figuras nuas que se veem aos pés de Nossa Senhora a de asas nos
calcanhares é Mercúrio?
- Tenho - respondeu o padre. - Quem escreveu isso foi Agostinho
Nypho, esse doutor italiano que tinha um demónio barbudo que
lhe ensinava fosse o que fosse. De resto, vamos para baixo e expli­
car-vos-ei isso no próprio texto.
- Muito obrigado, meu mestre - agradeceu Charmolue, incli­
nando-se até o chão. - É verdade, esquecia-me! Quando vos apraz
que mande prender a pequena mágica?
- Que mágica?
- A boémia que sabeis, a qual vem todos os dias dançar para o
adro, a despeito da proibição do provisor eclesiástico ! É dona duma
cabra que tem chifres do Diabo, que lê, que escreve, que sabe mate­
mática como Picatrix e que só por si bastaria para fazer enforcar
toda a Boémia. O processo está pronto. É u m instante enquanto o
executamos. Linda criatura , por minha alma, essa bailarina ! E que
bonitos olhos preto s ! Dois carbúnculos do Egito ! Quando começa­
mos?
O arcediago estava excessivamente pálido.

309
- Depois vo-lo direi - balbuciou numa voz que mal se percebia.
A seguir, ajuntou a custo: - Ocupai-vos de Marcos Cenaine.
- Ficai descansado - afirmou Charmolue a sorrir. - Logo que che­
gar, vou mandá-lo outra vez para a cama de couro. É um diabo esse
homem ! Consegue estafar o próprio Pierrat Torterue, que tem as mãos
mais rij as ainda do que eu. Como disse o bom Plauto,

Nudus vinctus centum pondo, es quando pendes per pedes86•

A tortura do potro ! É o que temos de melhor. Há de sofrê-la.


D. Cláudio parecia mergulhado numa sombria meditação. Voltou-se
para Charmolue.
- Mestre Pierrat . . . . Mestre Jacques, queria eu dizer . . . ocupai-vos de
Marcos Cenaine!
- Sim, sim, D. Cláudio! Coitado do homem! Deve ter sofrido como
Mummol. Também que ideia aquela de ir ao sabbat! Um despenseiro
do Tribunal de Contas, que devia conhecer o texto de Carlos Magno,
Stryga vel masca! . . . ª7 Quanto à pequena . . . Smelarda, como lhe cha­
mam . . . aguardarei as vossas ordens . . . Ali ! Ao passar pelo portal, expli­
car-me-eis também o que quer dizer o jardineiro do baixo-relevo que
se vê ao entrar-se na igreja . Não é o Semeador? . . . Eh, mestre, em que
estais a pensar?
D. Cláudio, ensimesmado, já não o ouvia. Charmolue seguiu-lhe a
direção do olhar e viu que aquele se fixara maquinalmente na grande
teia de aranha que velava a mansarda. Nesse momento, uma mosca
atordoada, que procurava o sol de março, lançou-se através dessa
rede e ali ficou envisgada. Ao sentir a teia, a enorme aranha pulou
de repente do seu núcleo central e num salto, logo, atirou-se à mosca
e dobrou-a em duas, com as suas antenas dianteiras, enquanto a sua
hedionda tromba lhe apalpava a cabeça .
- Pobre mosca ! - lamentou o procurador real como se fora no tribu­
nal eclesiástico, levantando a mão para a salvar. O arcediago como que
despertou sobressaltado; agarrou-lhe no braço, com convulsiva violên­
cia, e bradou-lhe:

86 Nu e vencido pesas cem libras quando estás pendurado pelos pés.


8 7 É uma estrige ou uma bruxa.

310
- Mestre Jacques, deixai agir a fatalidade!
O procurador voltou-se espantado. Parecia-lhe que uma tenaz de ferro
lhe prendia o braço. O padre continuava com o olhar fixo, alucinado, cha­
mejante, cravado no pequeno grupo horrível da mosca e da aranha.
- Oh, sim - continuou o padre, numa voz que lhe devia subir das
entranhas -, aí está um símbolo de tudo ! Ela voa, é alegre, acaba de
nascer; procura a primavera, o ar livre, a liberdade. Oh, sim ! Mas há de
chocar com a rosácea fatal, de onde sai a aranha, a aranha hedionda !
Pobre bailarina ! Pobre mosca predestinada! Mestre Jacques, deixai!
É a fatalidade . . . Ai ! Cláudio, tu és a aranha. Cláudio, tu és também a
mosca ! . . . Voavas para a ciência, para a luz, para o Sol, só te preocupavas
em alcançar o ar livre, a luz da verdade eterna ! Mas quando te precipi­
taste para a janela ofuscante que dá para o outro mundo, o mundo da
claridade, da inteligência e da ciência, mosca cega, doutor insensato,
não viste essa subtil teia de aranha que o destino estendeu entre ti e a luz
e precipitaste-te, de cabeça despedaçada e de asas arrancadas entre as
hastes de ferro da fatalidade ! M estre Jacques! Deixai a aranha à vontade !
- Asseguro-vos - afirmou Charmolue q u e o olhava sem perceber
- que não lhe tocarei. Mas largai-me o braço, mestre, por piedade !
A vossa mão parece uma tenaz!
O arcediago não o ouvia e continuou, sem desviar os olhos da fresta:
- Oh, insensato! E quando conseguisses romper, com as tuas asas
de mosquito, aquela teia temível, julgas que poderias atingir a luz? Mas
ai! Essa vidraça, que fica muito longe; esse obstáculo transparente, essa
muralha de cristal, como a transporias tu? Ó vaidade da ciência ! Quantos
sábios vêm de tão longe, a esvoaçar, para ali quebrarem a fronte! Quantos
sistemas esbarram de cambulhada e a zumbir contra essa vidraça eterna!
Calou-se. Estas últimas ideias, que insensivelmente o transportaram
de si mesmo para a ciência, pareceram serená-lo. Jacques Charmolue
fê-lo regressar completamente à realidade ao dirigir-lhe a pergunta:
- Então, meu mestre, quando me vireis aj udar a fazer ouro? Já é
tempo de eu triunfar.
O arcediago abanou a cabeça com um sorriso amargo e respondeu:
- Mestre Jacques, lede Miguel Psellus em Dialogus de energia et ope­
ratione daemonum88• O que nós fizemos não é de absoluta inocência.

88
Diálogo sobre a força e a ação dos demónios.

311
- Falai mais baixo, mestre ! Também desconfio disso - confessou
Charmolue. - Mas forçoso é que se faça um bocado de hermética
quando não se passa de procurador do rei no tribunal eclesiástico, com
trinta escudos torneses por ano. Convém, contudo, falarmos baixo.
Nesse momento, um ruído de maxilas e de mastigação, que saía de
debaixo do forno, chegou aos ouvidos assustados de Charmolue.
- Que é isto? - perguntou.
Era o estudante que, muito aborrecido e contrafeito no esconde­
rij o, conseguira descobrir uma velha bucha e um triângulo de queij o
bolorento e se pusera a comer com a maior sem-cerimónia, à laia de
consolação e de almoço. Como estava com muita fome, provocava forte
ruído que mais se acentuava a cada dentada, o que sobressaltara o
alarmado procurador.
- É um gato que tenho - explicou apressadamente o arcediago - e
que se regala ali debaixo com algum rato.
A explicação satisfez Charmolue.
- Efetivamente, mestre - respondeu com um sorriso respeitoso -
todos os grandes filósofos possuem o seu animal familiar. Bem sabeis
o que Servius disse: Nullus enim locus sine genio est89•
D. Cláudio, porém, que receava nova travessura de Jehan, recordou
ao seu digno discípulo que havia algumas figuras do portal para jun­
tos, estudarem e ambos saíram da cela, com um grande ufa! do escolar,
que começava seriamente a temer que no seu j oelho ficasse o queixo
marcado.

89 Não existe lugar algum onde não haja um génio.

312
VI

O efeito que podem causar sete pragas ao ar livre

- Te Deum laudamus! - exclamou mestre Jehan quando saiu do seu


buraco. Lá se foram os dois corujões. Och! och! Hax! pax! max! Pulgas !
Cães danados! O Diabo ! Já me chegou tanta conversa ! Tenho a cabeça
a zumbir como um campanário! Ainda por cima, queij o com bolor!
Livra ! Desçamos, peguemos na escarcela do meu ilustre mano e con­
vertamos todas estas moedas em garrafas!
Lançou uma olhadela de ternura e de apreço para o interior da pre­
ciosa bolsa, compôs a indumentária, esfregou as botinas, sacudiu as
pobres mangas perdidas, todas pardacentas de cinza, assobiou uma
cantiga, fez uma pirueta, observou se na cela não ficaria nada que lhe
conviesse levar, larapiou num e noutro ponto do forno alguns amuletos
de vidro que servissem para oferecer, à laia de joia, à I sabel Thierrye,
e acabou por empurrar a porta que o irmão deixara aberta, numa der­
radeira concessão, e que o rapaz, por sua vez, numa última pirraça,
deixou também aberta para, de seguida, descer a escada em caracol,
saltitando como um pássaro.
Na escuridão da escada ferrou uma cotovelada em qualquer coisa
que se chegou , resmungando, para a parede e que ele calculou que
fosse Quasímodo. Achou o encontro tão cómico que desceu o resto da
escada a rir-se, de mãos nas ilhargas. Quando desembocou na praça
ainda se ria.
Logo que se encontrou em baixo, bateu com o pé no chão, mono­
logando:
- Bom e digno solo de Paris ! Maldita escada aquela, capaz de tirar
o fôlego aos anj os da escada de Jacob ! Que lembrança a minha a de

313
me ir encafuar nessa verruma de pedra que perfura o céu, no fim de
contas para comer queij o com barbas e para ver as torres de Paris por
um postigo.
Deu mais uns passos e avistou os dois coruj ões, ou fossem O. Cláudio
e mestre Jacques Charmolue, em contemplação diante duma escultura
do portal. Nos bicos dos pés, aproximou-se deles e ouviu o arcediago a
dizer em voz baixa a Charmolue:
- Quem mandou esculpir um Job nesta pedra cor de lazulite e de
arestas douradas foi Guilherme de Paris. Job figura na pedra filoso­
fal, que precisa de sofrer provações e martírios para se tornar perfeita,
como diz Raimundo Lulo: Sub conservatione formae speciflcae salva
anima90 .
- Pouco me importa - comentou Jehan. - Quem tem a bolsa sou eu.
Nesse momento ouviu nas suas costas uma voz forte e sonora arti­
cular uma formidável coleção de pragas:
- Com mil diabos! Raios partam isto ! Pelos cornos de Satanás! Pelas
barbas de Belzebu !
- Pela minha alma - exclamou Jehan -, não pode ser outro senão o
meu amigo capitão Febo !
Este nome de Febo chegou aos ouvidos do arcediago na ocasião
em que explicava ao procurador do rei o dragão que esconde a cauda
num banho de onde sai fumo e a cabeça dum rei. O. Cláudio estreme­
ceu, calou-se, com profundo espanto de Charmolue, voltou-se e viu seu
irmão Jehan que se dirigia para um oficial de alta estatura que estava
à porta da casa dos Gondelaurier.
Era efetivamente o senhor capitão Febo de Châteaupers. Encostado
à esquina da casa da noiva, praguejava como um pagão.
- Palavra de honra, capitão Febo - exclamou Jehan, apertando-lhe
a mão -, praguejais com admirável fluência !
- Com mil diabos! - respondeu o oficial.
- Que vos façam muito bom proveito! - replicou o estudante. - Ora dizei,
gentil capitão, qual o motivo dessa aluvião de formosas palavras?
- Perdoai, bom camarada Jehan - exclamou Febo, apertando-lhe
efusivamente a mão -, mas cavalo lançado não estaca de repente.
Ora eu praguej ava à rédea solta. Venho de casa dessas delambidas e

90 A alma é salva sob a conservação da forma específica.

3 14
sempre que saio de lá trago a garganta atafulhada de p ragas. Se não as
escarro, sufoco, com mil diabos!
- Não vai uma pinga? - propôs o estudante.
A proposta serenou o capitão.
- I r ia, mas estou sem dinheiro.
- Tenho-o eu!
- Sério?
Com maj estade e singeleza, Jehan exibiu a escarcela aos olhos do
capitão. Entretanto o arcediago, que deixara Charmolue de boca aberta,
aproximara-se deles e parara a alguns passos de distância, observando
os dois e sem que estes reparassem nele, de tal modo os absorvia a
contemplação da escarcela.
Febo exclamou:
- Uma bolsa na vossa algibeira, Jehan, é como a Lua num balde
de água ! Vemo-la, mas não está lá. Só lá está o reflexo. Por Deus! Até
aposto que são calhaus!
Jehan respondeu-lhe com frieza:
- Vede os calhaus com que calceto a minha bolsa.
E, sem dizer mais nada, esvaziou a escarcela sobre um marco de
pedra próximo, isso com o ar dum romano a salvar a pátria.
- Com um raio ! - exclamou Febo. - Broquéis, pratas grandes e
pequenas, mealhas de torneses de dois, dinheiros parísios, autênticos
liards de águia ! Que deslumbramento !
Jehan continuou, digno e impassível. Alguns liards rolaram pela lama;
o capitão, no seu entusiasmo, abaixou-se para os apanhar. Jehan deteve-o:
- Não têm importância, capitão Febo de Châteaupers!
Febo contou o dinheiro e voltou-se com solenidade para Jehan:
- Sabeis, Jehan, que estão aí vinte e três soldos parísios? A quem
assaltastes então esta noite na Rua Corta-Goelas?
Jehan deitou para trás a cabeça loura e anelada e respondeu semi-
cerrando os olhos com desdém:
- É que se tem um mano arcediago e imbecil . . .
- Por Deus! - exclamou Febo. - Que digno homem!
- Toca a beber! - propôs Jehan.
- Aonde havemos de ir? - perguntou Febo. - À Maçã de Eva? Não,
capitão, vamos antes à Velha Ciência. Uma velha que serra uma asa.
Um autêntico enigma. Gosto disso.

315
- Diabos levem os enigmas, Jehan ! Na Maçã de Eva o vinho é
melhor. Além disso, junto da porta há uma parreira ao sol, que me
alegra enquanto bebo.
- Está bem ! Vamos lá à Eva e à sua maçã - concordou o estudante,
dando o braço a Febo. - A propósito, meu caro capitão: falastes-me há
bocado na Rua Corta-Goelas. É uma palavra muito feia. Nos dias que
correm j á não se usam essas barbaridades. Diz-se Rua Corta-Gargantas.
Os dois amigos puseram-se a caminho da Maçã de Eva. Escusado
será dizer que primeiro apanharam o dinheiro e que o arcediago os
seguia.
O arcediago seguia-os, sombrio e desorientado. Seria aquele o Febo
cuj o nome maldito, depois da sua conversa com Gringoire, se emara­
nhava com todos os seus pensamentos? Não sabia, mas, enfim, sem­
pre era um Febo e bastava esse nome mágico para que o arcediago
seguisse, com pezinhos de lã, os dois despreocupados companheiros,
escutando-lhes a conversa e observando-lhes os menores gestos com
atenta ansiedade. E depois, nada mais fácil do que ouvir tudo o que
diziam, tão alto falavam, pouquíssimo lhes importando que os que pas­
savam ficassem ao corrente das suas confidências. Falavam de duelos,
de raparigas, de tolos, de pândegas.
Ao dobrarem uma esquina, o som dum pandeiro chegou-lhes
duma encruzilhada próxima. Dom Cláudio ouviu o oficial dizer para o
estudante:
- Com seiscentos diabos! Aceleremos o passo!
- Porquê, Febo?
- Tenho medo de que a boémia me veja.
- Qual boémia?
- A miúda que tem uma cabra.
- A Esmeralda?
- Exatamente, Jehan. Esqueço-me sempre do diabo do seu nome.
Despachemo-nos, senão ela reconhece-me. Não quero que essa rapa­
riga me aborde na rua.
- Conhecei-la, Febo?
Aqui o arcediago viu Febo soltar uma gargalhada escarninha, che­
gar-se ao ouvido de Jehan e dizer-lhe qualquer coisa em voz baixa.
Febo desatou a rir e acenou com a cabeça, em ar triunfante.
- Palavra? - exclamou Jehan.

316
- Pela minha alma ! - afirmou Febo.
- Esta noite?
- Esta noite.
- Tendes a certeza de que ela aparece?
- Estais doido, Jehan? São coisas que se ponham em dúvida? -
Capitão Febo, sois um ditoso gendarme!
O arcediago ouviu toda esta conversa. Os dentes batiam-lhe uns nos
outros. Percorreu-lhe todo o corpo uma tremura bem visível. Parou por
momentos, encostou-se a um marco, como um homem embriagado, e
depois prosseguiu na peugada dos dois alegres pândegas.
Na ocasião em que os alcançou, tinham mudado de conversa.
Ouviu-os cantar desenfreadamente o velho estribilho:

Les enfants des Petits-Carreaux


Se font pendre comme des veaux.

317
VI I

O fantasma

A ilustre taberna da Maçã de Eva situava-se na Universidade, à


esquina da Rua Rondelle e da Rua do Bâtonnier. Era uma sala no rés
do chão, muito ampla e baixíssima, com uma abóbada cuja base central
se apoiava num grosso pilar de madeira pintado de amarelo; mesas por
toda a parte, reluzentes canj irões de estanho, pendurados da parede;
sempre bebedores de tomo, raparigas a rodas, uma parreira à porta e,
por cima desta, uma rangente chapa apodrecida pela chuva, girando
ao vento sobre uma haste de ferro e com uma maçã e uma mulher
pintadas. Esta espécie de cata-vento voltado para o chão era a tabuleta.
Caía a noite. A encruzilhada estava muito escura. A taberna, cheia
de velas, rebrilhava ao longe como uma forja na sombra. Pelas vidra­
ças estilhaçadas ouvia-se o ruído de copos, de patuscadas, de pragas,
de discussões. Através da humidade que o calor da sala espalhava pela
montra envidraçada viam-se formigar cem vultos confusos, de onde
sobressaía, de vez em quando, uma gargalhada sonora. Os transeuntes
que iam para a sua vida passavam, sem olhar para dentro, j unto dessa
tumultuosa vidraça. Apenas uma vez ou outra algum gaiato esfarra­
pado, erguendo-se nos bicos dos pés, atirava para dentro da taberna
a velha vaia zombeteira com que nessa época perseguiam os ébrios:
- Aos Houls, saouls, saouls, saouls!
Havia, contudo, um homem que passeava imperturbável por diante
da taberna, para onde, consecutivamente, deitava os olhos, sem se
afastar mais do que um piqueiro se arreda da sua guarita. Subia-lhe
até o nariz uma capa que ele acabara de comprar ao algibebe vizinho
da Maçã de Eva, decerto para se defender do frio da noite de março,

318
talvez para esconder o trajo. De vez em quando parava em frente da
vidraça translúcida, escutava, olhava e batia o pé.
Por fim, abriu-se a porta da taberna. Era do que parecia estar à
espera. Saíram dois bebedores. O feixe de luz que se escapou pela porta
avermelhou por instantes os seus rostos prazenteiros. O homem da capa
postou-se em observação debaixo dum portal do outro lado da rua.
- Com mil diabos! - disse um dos bebedores. - Vão bater as sete
horas. A hora da minha entrevista.
- É como vos digo - continuou o companheiro, com língua pastosa
-, não moro na Rua das Más Palavras, indignus qui inter mala verba
habitat. Resido na Rua do João Pão Mole, in vico Johannis-Pain-Mollet.
Sois mais carnudo do que um unicórnio se afirmais o contrário . . . Toda
a gente sabe que quem uma vez monta num urso nunca mais tem
medo, mas estais com o nariz virado para a guloseima, como Santiago
do Hospital.
- Jehan, meu amigo - afirmou o outro -, estais como um cacho!
O companheiro retorquiu, cambaleando:
- Apraz-vos falar assim, Febo, mas está provado que Platão tinha o
perfil dum cão de caça.
Decerto o leitor já reconheceu os nossos dois bons amigos, o capitão
e o estudante. Parece que o homem que os espreitava na sombra tam­
bém os reconhecera, pois seguia a passo lento todos os ziguezagues
que o escolar obrigava o capitão a fazer; este, bebedor mais aguerrido,
mantivera todo o seu sangue-frio. Escutando-os com a máxima aten­
ção, o embuçado conseguira apanhar na íntegra o interessante diálogo
seguinte:
- Com a breca ! Vede se conseguis caminhar a direito, senhor bacha­
rel. Sabeis que tenho de vos deixar. São sete horas. Tenho um encontro
com uma mulher.
- Deixai-me então ! Vej o estrelas e j atos de fogo. Sois como o castelo
de Dampmartin , que rebenta a rir.
- Pelas verrugas da minha avó, Jehan, isso é que é disparatar com
bastante encarniçamento ! A propósito, Jehan: não vos sobrou nenhum
dinheiro?
Senhor reitor, não há engano: o talhozinho, parva boucheria.
- Jehan, meu amigo Jeha n ! Sabeis que fiquei de me encontrar com
essa pequena no extremo da Ponte de S. Miguel, que não a posso levar

319
senão a casa da Falourdel, a alcaiota da ponte, e que tem de se pagar
o quarto. A velha ribalda de bigodaça branca não me fiará ! Jehan, por
favor ! Bebemos toda a escarcela do cura? Nem um parísio vos ficou?
- A consciência de ter aproveitado bem as outras horas é um justo e
saboroso condimento para a mesa.
- Raios vos partam! Basta de palavrório ! Dizei-me, Jehan do Diabo,
resta-vos alguma moeda? Dai-ma, por Deus, senão passo-vos revista,
nem que sejais leproso como Job e sarnento como César!
- Senhor, a Rua Galiache é uma rua com uma entrada pela Rua da
Verrerie e outra pela Rua da Tixeranderie.
- Está bem, sim, meu bom amigo Jehan, meu pobre camarada.
A Rua Galiache é assim mesmo, está muito bem ! Mas, em nome do Céu,
recuperai o j uízo ! Basta-me só um soldo parísio e é para as sete horas!
- Silêncio na roda e atenção ao estribilho:

Quand les rats mangeront les cats,


Le roí sera seigneur d'Arras;
Quand la mer, qui est grande et lée,
Sera à la Saint-Jean gelée,
On verra, par-dessus la glace,
Sortir ceux d'Arras de leur place.

- Pois bem, estudante do Anticristo, estrangulado sejas tu com


as tripas da tua mãe! - berrou Febo, que empurrou brutalmente o
companheiro embriagado, o qual escorregou contra a parede e caiu
devagar sobre a calçada de Filipe Augusto. Por uns restos dessa fra­
ternal comiseração que nunca abandona o coração dum bebedor,
Febo impeliu Jehan com o pé, rebolando-o para cima dum desses
travesseiros do pobre, que a Providência mantém p rontos à esquina
de todas as ruas de Paris e que os ricos amesquinham desdenho­
samente com o nome de monte de imundícies. O capitão aj ustou a
cabeça de Jehan sobre um plano inclinado de troços de couve e ime­
diatamente o estudante começou a ressonar com um magnífico baixo
cantante. Apesar disso, o rancor não se extinguira de todo no íntimo
do capitão.
- Tanto pior se a carroça do Diabo te apanha quando passar! - disse
para o pobre escolar adormecido antes de se afastar dali.

320
O homem da capa, que não cessara de o seguir, deteve-se um ins­
tante indeciso diante do estudante caído. Depois, soltando um pro­
fundo suspiro, afastou-se também na cola do capitão.
Como eles, deixemos Jehan a dormir sob a benévola proteção da abó­
bada celeste e, se o leitor está de acordo, acompanhá-los-emos também.
Quando desembocou na Rua de Santo André dos Arcos, o capitão
Febo notou que alguém o seguia. Ao olhar para trás, reparou numa
espécie de sombra que deslizava atrás dele, cosida com as paredes.
Parou e a sombra parou também. Voltou a andar e a sombra retomou
a marcha. O facto só mediocremente o preocupou. Disse para consigo:
"Ora ! Nem um soldo tenho ! . . . "

Parou em frente da fachada do Colégio de Autun. Fora nesse colégio


que esboçara aquilo a que chamava os seus estudos e, por um hábito
de estudante travesso que lhe ficara , nunca passava em frente daquele
prédio sem fazer sofrer à estátua do cardeal Pedro Bertrand, esculpida
à direita do portal, a espécie de afronta de que tão amargamente se
queixa Priapo na sátira de Horácio Olim trulicus eram ficulnus91 • Punha
nisso tanto encarniçamento, que a inscrição Eduensis episcopus92 estava
quase apagada. Parou então, como de costume, diante da estátua.
A rua estava totalmente deserta. No momento em que, despreocupado,
tornava a atar os atacadores, de nariz espetado ao vento, viu a sombra
que se aproximava dele a passos compassados, tão devagar, que teve
tempo de observar que essa sombra levava uma capa e um chapéu.
Ao chegar a seu lado, parou e ficou mais imóvel do que a estátua do
cardeal Bertrand. Contudo, cravava em Febo dois olhos fixos, cheios
dessa luz vaga que de noite sai da pupila dum gato.
O capitão era coraj oso e pouquíssimo se intimidaria diante dum
ladrão de estoque em punho. Porém, aquela estátua que avançava,
aquele homem petrificado, enregelou-o. Corriam então pelo mundo
não sei que histórias de um fantasma, errante notívago das ruas de
Paris, que lhe acudiram confusamente à memória. Ficou por minutos
estupefacto e, por fim, quebrou o silêncio, esforçando-se por galhofar:
- Senhor, se sois um gatuno, como suponho, causais-me a impres­
são duma garça real às voltas com uma casca de noz. Meu caro, não

9 1 Dantes eu era um tronco de figueira.


92 Bispo de Autu n.

321
passo de um filho-família arruinado. Dirigi-vos aí ao lado. Na capela
desse colégio há madeira da verdadeira cruz, incrustada em prata.
A mão da sombra saiu debaixo da capa e caiu sobre o braço de Febo,
com o peso duma garra de águia ! Ao mesmo tempo a sombra falou:
- Capitão Febo de Châteaupers !
- Como diacho sabeis o m e u nome? - exclamou Febo.
- Não é somente o vosso nome que sei - continuou o embuçado,
com a sua voz sepulcral. - Tendes uma entrevista esta noite.
- Pois tenho ! - respondeu, estupefacto, Febo.
- À s sete horas.
- Dentro de um quarto de hora.
- Em casa da Falourdel.
- Exatamente.
- A alcoveta da Ponte de S. Miguel.
- De São Miguel Arcanj o, como diz a reza.
- Í mpio! - resmungou o espectro. - Com uma mulher?
- Conflteor.
- Que se chama . . .
- La Smeralda - respondeu alegremente Febo, pois toda a sua des-
preocupação lhe voltara gradualmente.
Ao ouvir aquele nome, a garra da sombra sacudiu com furor o braço
de Febo.
- Capitão Febo de Châteaupers, mentes!
Quem pudesse ver naquele instante o rosto exasperado do capitão,
o salto que deu à retaguarda, tão violento que se desprendeu da tenaz
que o prendia, o movimento altivo com que levou a mão à guarda da
espada e, perante esse rompante, a sombria imobilidade do homem da
capa, quem presenciasse a cena assustar-se-ia. Era qualquer coisa do
combate de Don Juan e da estátua.
- Por Cristo e Satanás! - bradou o capitão! - É essa uma palavra
que raras vezes se atira ao ouvido dum Châteaupers ! Não te atreverias
a repeti-la.
- Mentes! - proferiu friamente a sombra.
O capitão rangeu os dentes. Alma-penada, fantasma, superstições,
tudo nesse instante ele esqueceu. Não via senão um homem e um insulto.
- Ah, é isso? - balbuciou com a voz enrouquecida pela raiva. Desem­
bainhou a espada e depois gaguejou, pois a ira faz tremer tanto como o

322
medo: - Aqui j á ! Vamos! As espadas! As espadas! Que o sangue ensope
estas pedras!
'
Contudo, o outro não se mexia. Quando viu o adversário em guarda
e pronto a investir, disse numa inflexão onde vibrava a amargura:
- Capitão Febo, esqueceis-vos da vossa entrevista !
Os arrebatamentos de homens como Febo são sopas de leite onde
basta uma gota de água fria para baixar a fervura. Essas simples pala­
vras fizeram baixar a espada que cintilava na mão do capitão.
- Capitão - prosseguiu o homem -, amanhã, depois de amanhã,
daqui a um mês, dentro de dez anos, tornar-me-eis a encontrar, pronto
a cortar-vos as goelas, mas ide primeiro à vossa entrevista.
- Realmente - disse Febo, como se procurasse capitular consigo
mesmo -, são duas coisas encantadoras para encontrar numa entre­
vista: uma espada e uma rapariga; mas não vejo porque hei de perder
uma por causa da outra, quando posso ter as duas! . . .
Voltou a embainhar a espada.
- Ide à vossa entrevista - insistiu o desconhecido.
Um tanto atrapalhado, Febo respondeu:
- Senhor, grande mercê é a vossa cortesia. De facto, há muito tempo
amanhã para nos cortarmos às fatias e abrir casas no gibão do pai
Adão. Fico-vos grato por me consentirdes que passe mais um quarto
de hora agradável. Contava deveras atirar-vos para a valeta e chegar
ainda a tempo junto da beldade, tanto mais que é de boa política fazer
esperar um bocado as mulheres em semelhante caso. Mas tendes ar de
valentão e é mais seguro adiarmos a partida para amanhã. Vou pois
à minha entrevista; é para as sete horas, como sabeis. - Nessa altura
Febo coçou a orelha. - Ai, cos diabos, já me esquecia! Não disponho
de um soldo sequer para pagar o aluguer da espelunca, e a velha mas­
tronça quererá receber adiantado. Desconfia de mim.
- Aqui tendes para lhe pagar.
Febo sentiu a mão gelada do desconhecido fazer deslizar para a sua
uma moeda grande. Não pôde deixar de agarrar nesse dinheiro e de
apertar aquela mão.
- Por Deus - exclamou -, sois um bom rapaz!
- Com uma condição ! - proferiu o homem. - Provai-me que me enga-
nei e que éreis vós que dizíeis a verdade. Escondei-me num canto qual­
quer de onde possa ver se essa mulher é deveras aquela de que falastes.

323
- Ora ! - respondeu Febo. - Pouco me importo ! Ocuparemos o quarto
de Santa Marta. Podeis ver à vontade do canil que fica ao lado.
- Vinde, então - disse a sombra.
- À s vossas ordens! - respondeu o oficial. - Não sei se sois messer
Diabo em pessoa; esta noite, porém, sejamos bons amigos. Amanhã
pagar-vos-ei todas as minhas dívidas, da bolsa e da espada.
Puseram-se rapidamente a caminho. Ao cabo de minutos, o maru­
lho do rio anunciou-lhes que estavam sobre a Ponte de S. Miguel, nesse
tempo carregada de casas.
- Primeiro vou meter-vos lá dentro - disse Febo para o compa­
nheiro -; depois, irei à procura da beldade, que me deve esperar perto
do Petit-Châtelet.
O companheiro nada redarguiu. Não proferira palavra desde que
caminhavam ao lado um do outro. Febo parou diante duma porta baixa
e bateu com toda a força . Apareceu uma luz nas fendas da porta.
- Quem está aí? - gritou uma voz desdentada.
- Com um milhão de demónios! - respondeu o capitão.
A porta abriu-se imediatamente e os recém-chegados puderam
ver uma velha e um velho candeeiro, ambos a tremer. A velha andava
dobrada em duas, vestida de andraj os, cabeça oscilante onde se perfu­
ravam dois olhos miúdos e coberta com um farrapo. Rugas por toda a
parte: nas mãos, na cara, no pescoço; os lábios reentravam-lhe sob as
gengivas e a toda a volta da boca espetavam-se pincéis de pelos bran­
cos que lhe davam o aspeto enganador de um gato. O interior do antro
não era menos decrépito do que ela. Paredes de cal, teto de barrotes
negros, uma chaminé desmantelada, teias de aranha por todos os can­
tos. Ao centro um rebanho periclitante de mesas e de escabelos coxos,
uma criança suja nas cinzas e, ao fundo, uma escada, melhor dizendo,
um escadote, que subia para um alçapão no teto. Quando penetrou
naquele covil, o misterioso companheiro de Febo puxou a capa até aos
olhos. Entretanto, o capitão, sempre a praguejar como um sarraceno,
apressou-se a fazer com que num escudo rebrilhasse o Sol, como diz o
nosso admirável Régnier.
- O quarto de Santa Marta - disse ele.
A velha deu-lhe roda de monsenhor e encafuou o escudo numa
gaveta . Era a moeda que o homem da capa preta dera a Febo. Quando
a apanhou de costas voltadas, o rapazinho cabeludo e esfarrapado, que

324
brincava nas cinzas, aproximou-se destramente da gaveta, agarrou no
escudo e pôs em seu lugar uma folha seca que arrancara dum molho
de lenha.
A velha fez sinal aos dois fidalgos, como lhes chamava, para que a
acompanhassem, e subiu a escada à frente deles. Logo que chegou ao
andar de cima, poisou o candeeiro em cima duma arca e Febo, como
quem conhece os cantos à casa, abriu uma porta que dava para um
obscuro cubículo.
- Entrai para aí, meu caro - disse o capitão para o companheiro.
O embuçado obedeceu sem dizer uma só palavra. A porta fechou-se
sobre ele. Ouviu Febo correr o ferrolho e, dali a um instante, tornar a
descer a escada mais a velha. A luz desaparecera.

325
VI I I

Utilidade d a s j anelas que dão para o rio

Cláudio Frollo (pois presumimos que o leitor, mais inteligente do


que Febo, não viu em toda esta aventura nenhum fantasma mas sim
o arcediago), Cláudio Frollo tateou durante uns instantes no tenebroso
recinto onde o capitão o aferrolhara. Tratava-se dum desses desvãos
como os que os arquitetos reservam para o ponto de j unção do telhado
e da parede de apoio. O corte vertical deste canil, como tão bem o qua­
lificara Febo, daria um triângulo. Para mais, não tinha nem j anela nem
postigo e o plano inclinado do telhado impedia que se conservasse
alguém de pé. Cláudio acocorou-se, portanto, no pó e na caliça que
se desfaziam debaixo dele. A cabeça escaldava-lhe. Esquadrinhando à
volta de si com as mãos, encontrou no chão um bocado de vidro que
apoiou na testa e cuj a frescura o aliviou um pouco.
Que se passava naquele momento na alma sombria do arcediago?
Só ele e Deus o saberiam.
Que ordem fatal era essa que alinhava, na sua ideia, a Esmeralda,
Febo, Jacques Charmolue, o seu j ovem irmão tão querido e que deixara
abandonado na lama, a sua batina de arcediago, talvez a sua reputa­
ção, arrastada por casa da Falourdel, todas essas imagens, todas essas
aventuras? Não o poderei dizer. O certo é que essas ideias formavam
um conj unto horrível no seu espírito.
Havia um quarto de hora que esperava; parecia-lhe ter envelhecido
um século. De repente, ouviu estalar os degraus da escada de madeira;
alguém subia. O alçapão reabriu-se e reapareceu a luz. Havia uma fenda
bastante larga na porta carunchosa do cubículo; colou a ela a cara. Desse
modo podia ver tudo o que se passava no quarto vizinho. A primeira

326
pessoa a surgir do alçapão foi a velha com cara de gato; empunhava o
candeeiro. Depois Febo, retorcendo o bigode, e em seguida uma terceira
pessoa, a linda e graciosa figura de Esmeralda. O padre viu-a surgir
do chão como uma aparição deslumbrante. Cláudio estremeceu, uma
nuvem passou-lhe pela vista, as artérias latejaram-lhe com força, tudo
zumbia e redopiava à sua volta. Não viu nem ouviu mais nada.
Quando tomou a si, Febo e Esmeralda estavam sozinhos, senta­
dos na arca de madeira e ao lado do candeeiro que fazia avultar, aos
olhos do arcediago, aqueles dois rostos j uvenis e um miserável catre
ao fundo do sótão.
Ao lado do catre havia uma j anela cuj os caixilhos, envidraçados,
esburacados como uma teia de aranha na qual a chuva caiu, deixavam
ver uma nesga do céu e a Lua deitada ao longe sobre um edredão de
nuvens macias.
A rapariga estava corada, indecisa, palpitante. As longas pestanas
descidas sombreavam-lhe as faces de púrpura. O oficial, para o qual
não se atrevia a levantar os olhos, rej ubilava. Maquinalmente e com
um gesto de delicioso enleio traçava linhas encoerentes na arca com a
ponta do dedo, do qual não tirava os olhos. Não se lhe via o pé, pois a
cabrinha aninhara-se-lhe em cima.
O capitão apresentava-se com requintada galanteria, de colarinho e
punhos ornados de rendas, a grande elegância desse tempo.
Através do zumbido do sangue que lhe fervia nas fontes, só com
dificuldade D. Cláudio conseguiu perceber o que diziam.
(Coisa assaz banal um diálogo de namorados. É um amo-te perpé­
tuo. Frase musical bastante nua e bastante insípida para os indiferentes
que a ouvem quando não a enfeita algum floreado. Cláudio, porém,
não a escutava como indiferente.)
Sem levantar os olhos, a rapariga dizia:
- Não me desprezeis, senhor Febo. Sinto que é mau o que faço.
- Desprezar-vos, formosa criança? - redarguiu o oficial num tom de
superior e distinta galanteria. - Desprezar-vos, Deus me livre ! E porquê?
- Por vos ter acompanhado.
- Quanto a isso, minha bela, não nos entendemos! Não devia des-
prezar-vos, mas sim odiar-vos.
A rapariga olhou-o, assustada.
- Odiar-me? Que fiz então?

327
- Por vos terdes feito rogar tanto.
- Ai de mim! - explicou ela. - É que falto a uma promessa . . . Não
tomarei a encontrar os meus pais . . . o amuleto perderá a virtude . . .
Mas que importa? Para que preciso agora de pai e de mãe?
Dizendo isto, fixava no capitão os grandes olhos negros, húmidos
de alegria e de ternura .
- Diabos me levem se vos entendo ! - exclamou Febo.
A Esmeralda ficou silenciosa por instantes; depois, uma lágrima
brotou-lhe dos olhos, dos lábios evolou-se um suspiro, e disse:
- Oh, senhor, amo-vos!
Pairava em redor daquela j ovem um tal perfume de castidade, um
tal encanto de virtude, que a seu lado Febo não se sentia completa­
mente senhor de si. Contudo, aquela palavra incitou-o.
- Amais-me! - disse, arrebatado e passando o braço em tomo da
cintura da cigana. Era a ocasião de que estava à espera .
O padre viu-o e experimentou c o m a cabeça do dedo o bico dum
punhal que escondia no peito.
- Febo - prosseguiu a cigana, desprendendo delicadamente da
cintura as mãos tenazes do capitão -, sois bom, sois generoso, sois
belo. Salvastes-me, a mim que não passo duma pobre pequena per­
dida na Boémia. Há muito tempo que sonhava com um oficial que me
salvaria a vida. Era convosco que sonhava antes de vos conhecer, meu
Febo. O meu sonho vestia uma linda farda como a vossa, tinha uma
nobre aparência, uma espada. Amo o vosso nome, amo a vossa espada.
Desembainhai-a então, Febo, para que a veja .
- Criança ! - comentou o capitão, obedecendo-lhe, com um sorriso.
A cigana observou o punho da espada, a lâmina, remirou com ado­
rável curiosidade o monograma da guarda e beijou-o, dizendo:
- Sois a espada dum valente. Amo o meu capitão.
Febo aproveitou o ensej o para depor, no lindo pescoço inclinado,
um beijo que fez com que a pequena se erguesse escarlate como uma
cerej a. Nas suas trevas, o padre rangeu os dentes.
- Febo - continuou a cigana -, deixai-me falar-vos. Andai um boca­
dinho para vos ver em toda a vossa altura e para que oiça tilintar as
esporas. Como sois belo!
O capitão levantou-se para lhe fazer a vontade e, com um sorriso
satisfeito, motej ou:

328
- Sois uma criança ! A propósito, encanto, já me vistes com o uni-
forme de gala?
- Infelizmente, não ! - respondeu a j ovem.
- Esse ainda é mais bonito.
Febo voltou a sentar-se a seu lado, mas muito mais chegado do que
antes.
- Escutai, minha querida . . .
A cigana deu-lhe umas palmadinhas na boca, com a linda mão e
numa puerilidade plena de alegria, de graça e de vivacidade.
- Não, não vos escutarei. Amais-me? Quero que me digais se me
tendes amor.
- Se te amo, anj o da minha vida ! - exclamou o capitão, aj oelhando-se
levemente. - O meu corpo, o meu sangue, a minha alma, tudo é teu,
tudo é para ti!
O capitão repetira tanta vez aquela frase, em tanta conj untura pare­
cida, que a despej ou toda dum j ato, sem uma só falha de memória.
Ante essa apaixonada declaração, a cigana ergueu para o teto suj o, que
lhe servia de céu, um olhar repassado de angélica felicidade.
- Oh - murmurou -, eis o momento em que se devia morrer!
Febo achou "o momento" azado para lhe roubar um beij o que foi
torturar, no seu canto, o mísero arcediago.
- Morrer? - exclamou o amoroso capitão. - Que estais para aí a dizer,
belo anj o? É caso para se viver ou então Júpiter não passa dum brej eiro !
Morrer no começo duma coisa tão boa ! Raio dum raio, que chalaça
essa ! . . . Nada disso . . . Escutai, minha querida Similar. . . Esmenarda . . .
Perdão, mas tendes-um nome tão prodigiosamente sarraceno que não
me consigo desenredar. É uma sarça que me faz estacar de repente.
- Valha-me Deus! - exclamou a pobre rapariga. - E eu que ima­
ginava este nome bonito pela sua singularidade ! Mas j á que ele vos
desagrada, mais valia que me chamasse Rameira.
- Não merece a pena chorar por tão pouco, minha graciosa ! É um
nome a que é preciso acostumarmo-nos e mais nada. Assim que o
souber de cor, as coisas irão pelo seu pé. Ouvi então, minha querida
Similar: adoro-vos com paixão. Amo-vos verdadeiramente, o que é um
milagre. Sei duma pequena que estoira de raiva . . .
A ciumenta rapariga interrompeu-o:
- Quem é?

329
- Que nos importa isso? - exclamou Febo. - Amais-me?
- Se vos amo ! . . .
- Pois bem ! É quanto basta. Vereis como vos amo também. Que o
grande diabo do Neptuno me espete no seu tridente se não vos tornar
a mulher mais feliz do mundo. Arranjaremos uma linda casinha em
qualquer parte. Farei desfilar em parada os meus archeiros debaixo
das vossas j anelas. M ontam todos a cavalo e metem num chinelo os do
capitão Mignon. São infantes armados com foices de guerra, besteiros
e colubrineiros manuais. Conduzir-vos-ei às grandes paradas dos pari­
sienses na granj a de Rully. É verdadeiramente magnífico. Oitenta mil
homens armados, trinta mil arneses brancos, cotas ou brigantinas; os
sessenta e sete pendões dos ofícios, os estandartes do parlamento, da
câmara de contas, do tesouro dos gerais, dos auxiliares das moedas,
enfim, uma equipagem dos diabos! Levar-vos-ei a ver os leões do paço
real , que são animais ferozes. Todas as mulheres apreciam isso.
Havia instantes que a pequena, absorta nos seus deliciosos pensa­
mentos, sonhava ao som da sua voz, sem ouvir o sentido das palavras.
- Oh, sereis feliz! - continuou o capitão, ao mesmo tempo que, sua-
vemente, desafivelava o cinto da cigana.
- Que estais a fazer? - exclamou ela, de repente . .
Aquela via de facto arrancara-a a o sonho.
- Nada - respondeu Febo. - Dizia apenas que é preciso deixar
toda essa fatiota extravagante e de esquina de rua , quando estiverdes
comigo.
- Quando estiver contigo, meu Febo ! - corrigiu a j ovem , com ternura.
Voltou a ficar pensativa e calada.
Animado pela sua ternura, o capitão agarrou-a pela cintura, sem
que ela oferecesse resistência, e começou a desatar discretamente o
corpete da pobre criança, mas desmanchou-lhe tão brutalmente a gor­
j eira, que o padre, ofegante, viu sair da gaza o formoso ombro nu da
cigana, redondo e moreno, como a Lua que se eleva na neblina do
horizonte.
A pequena não oferecia resistência a Febo. Nem parecia dar por
isso. O olhar do atrevido capitão cintilava.
De repente virou-se para ele e disse-lhe, com a expressão de um
infinito amor:
- Febo, instruí-me na tua religião.

330
- Na minha religião ! - exclamou o capitão, desatando a rir. - Eu ins­
truir-vos na minha religião! Com mil diabos! Que quereis fazer com a
minha religião?
- É para nos casarmos - respondeu ela.
O rosto do oficial denunciou uma expressão mista de surpresa, de
desdém, de indiferença e de paixão libertina.
- Ah, bom . . . - comentou. - Temos então casório?
A cigana empalideceu e deixou cair, com tristeza, a cabeça sobre o
peito.
- Bela amorosa - continuou ternamente Febo -, que tontice é essa?
Vale bem a pena o casamento ! . . . Porventura ama-se menos por se não
escarrar o latim na loja dum padre?
Enquanto assim falava, na sua voz mais melosa, aproximou-se o
mais possível da cigana; as mãos cariciosas retomaram o lugar em
volta da cintura tão fina e delicada, o olhar brilhava-lhe cada vez mais
e tudo anunciava que o senhor Febo atingia evidentemente uma des­
sas ocasiões em que o próprio Júpiter pratica tanta sandice, que o bom
Homero vê-se forçado a pedir socorro a uma nuvem.
D. Cláudio, entretanto, assistia a tudo. Como a porta era feita de
tábuas estreitas e todas podres, através dela passava com facilidade o
seu olhar de ave de rapina. Aquele padre, de pele trigueira e ombros
largos, condenado até ali à austera virgindade do claustro, tremia
e abrasava-se diante dessa cena de amor, de mistério e de volúpia.
A j ovem e formosa rapariga, entregue desordenadamente àquele
ardente mancebo, fazia com que nas veias lhe corresse chumbo der­
retido. Sucediam-se nele movimentos extraordinários: mergulhava a
vista, com lascivo ciúme, por baixo de todos aqueles alfinetes soltos.
Quem visse naquele momento o rosto do desgraçado colado às tábuas
carunchosas j ulgaria divisar um focinho de tigre a espreitar, do fundo
da j aula, um chacal a devorar uma gazela. A pupila luzia-lhe como uma
vela por detrás das frestas da porta.
De repente, num gesto rápido, Febo arrancou a gargantilha da
cigana. A pobre criança, que permanecia pálida e pensativa, desper­
tou como que em sobressalto. Afastou-se rápida do atrevido oficial e,
lançando a vista para o seu pescoço e ombros nus, corada e confusa,
emudecida pelo pej o, cruzou os esbeltos braços sobre o seio, para o
ocultar. Se não fosse o calor que lhe abrasava as faces, quem a visse

331
assim, silenciosa e imóvel, julgá-la-ia a estátua do Pudor. Conservava
os olhos no chão.
Entretanto, o capitão pusera a descoberto, com o seu gesto, o miste­
rioso amuleto que ela trazia ao pescoço.
- Que é isto? - inquiriu ele, aproveitando aquele pretexto, para se
aproximar da formosa criatura que acabava de assustar.
- Não lhe toqueis! - respondeu ela, apressadamente. - É a minha
guarda . É ela que me permitirá encontrar a minha família, se me con­
servar digna. Deixai-me, senhor capitão! Minha mãe! Minha pobre
mãe! Onde estás tu? Acode-me ! Por favor, senhor Febo! Dai-me a
gargantilha !
Febo recuou e proferiu com frieza:
- Ai, menina, como vej o claramente que não me tendes amor! . . .
- Não vos tenho amor? . . . - exclamou a pobre e desgraçada criança,
ao mesmo tempo que se dependurava do pescoço do capitão, fazendo-o
sentar-se a seu lado. - Não te amo, meu Febo? Que estás a dizer, meu
mau, para me dilacerares o coração? Está bem . . . Toma-me ! Leva-me
tudo! Faze o que quiseres de mim! Sou tua ! Que me importa o amuleto !
Que me importa a minha mãe ! Tu é que és a minha mãe, visto que te
amo! Febo, meu Febo bem amado, vês-me? Sou eu, olha para mim!
É esta pequena que acedes em não repelir e que vem ela mesma procu­
rar-te. A minha alma, a minha vida, o meu corpo, a minha pessoa, tudo
isto é uma coisa que vos pertence, meu capitão. Está bem, então não !
Não nos casemos, se isso te enfada. Além disso, que sou eu, afinal?
Uma mísera filha da valeta , enquanto que tu, meu Febo, és um fidalgo.
Bonita coisa, realmente ! . . . Uma bailarina a casar-se com um oficial!
Eu estava doida ! Não, Febo, não; serei tua amante, a tua distração, o
teu prazer, quando quiseres, uma rapariga que será tua; não fui feita
para outra coisa senão para ser maculada, desprezada, desonrada, mas
isso que importa se sou amada? Serei a mais orgulhosa e a mais alegre
das mulheres. E quando for velha ou feia, Febo, quando não prestar já
para vos amar, senhor, suportar-me-eis ainda para vos servir. Outras
vos bordarão charpas. Eu tratarei delas, como criada. Permitir-me-eis
que vos lustre as esporas, que vos escove o uniforme, que vos engraxe
as botas de montar. Não é verdade, meu Febo, que tereis essa indul­
gência? Entretanto, toma-me! Aqui me tens, Febo, tudo isto te pertence,
basta que me ames! A nós, egípcias, apenas isto nos basta: ar e amor.

332
Enquanto assim dizia, lançou os braços em volta do pescoço do
oficial, ao mesmo tempo que o olhava de alto a baixo, suplicante, com
um lindo sorriso, todo ele lágrimas, e com a delicada garganta roçando
pelo gibão de fazenda e pelos grosseiros bordados. Contorcia sobre os
j oelhos dele o seu formoso corpo seminu. Arrebatado, o capitão colou
os lábios ardentes naquelas belas espáduas africanas. A rapariga, de
olhos perdidos no teto e deitada para trás, estremecia, toda palpitante,
sob aquele beijo.
De repente, por cima da cabeça de Febo, viu outra cabeça, um sem­
blante lívido, verde, convulso, com um olhar de réprobo. Junto desse
rosto havia alguém que empunhava um punhal. Era o rosto e a mão do
padre. Arrombara a porta e ali estava. Febo não o podia ver. A j ovem
ficou imóvel, gelada , emudecida pelo pavor daquela aparição, qual
pomba que erguesse a cabeça no instante em que o xofrango, com os
olhos redondos, fita o seu ninho.
Nem sequer pôde soltar um grito. Viu o punhal cair sobre Febo e
levantar-se, fumegante.
- Maldição ! - praguej ou o capitão, antes de tombar.
Esmeralda desmaiou.
No momento em que os olhos se lhe fechavam, em que toda a espé­
cie de sensação se dispersava nela, julgou sentir imprimir-se nos seus
lábios, como um contacto de fogo, um beij o mais ardente do que o
ferro em brasa do carrasco.
Ao tornar a si, cercavam-na os soldados da polícia, levavam o capi­
tão banhado no próprio sangue, o padre desaparecera, a j anela do
fundo do quarto e que dava sobre o rio estava aberta de par em par,
apanhavam uma capa que julgavam pertencer ao oficial e ela ouviu
dizer à sua volta:
- Foi uma feiticeira que apunhalou um capitão.

333
LIVRO OITAVO

O escudo transformado em folha seca

Gringoire e todo o Pátio dos Milagres viviam em mortal inquietação.


Havia mais de um mês que não sabiam o que era feito de Esmeralda, o
que profundamente contrariava o duque do Egito e os seus amigos vaga­
bundos, nem o que acontecera à cabra, o que redobrava o sofrimento de
Gringoire. A cigana desaparecera uma noite e, a partir de então, não dera
mais sinais de vida. Resultaram inúteis todas as pesquisas. Alguns falsos
epiléticos turbulentos diziam a Gringoire tê-la nessa noite encontrado para
as bandas da Ponte de S. Miguel, acompanhada de um oficial, mas aquele
marido à moda da Boémia era um filósofo incrédulo e, além disso, sabia
melhor do que ninguém até que ponto sua mulher era virgem. Apreciara o
pudor inexpugnável resultante das duas virtudes combinadas do amuleto
e da cigana e calculara matematicamente a resistência dessa castidade
elevada ao quadrado. Por isso, por esse lado, sentia-se tranquilo.
Mas também não podia explicar aquela desaparição. Sentia profundo
desgosto. Emagreceria, se tal fosse possível. Esqueceu tudo, até as suas
predileções literárias, até a sua grande obra De figuris regularibus et
irregularibus93 que contava mandar imprimir com o primeiro dinheiro
que tivesse. (Porque perdera a cabeça com a tipografia desde que vira o
Didascalon de Hugues de Saint-Victor impresso com os célebres caracte­
res de Vindelin de Spire.)
Um dia em que tristemente passava diante da Tournelle criminal,
reparou que a uma das portas do Palácio da justiça se aglomerava
algum povo.

93 Acerca das figuras regulares e irregulares.

334
- Que é aquilo? - perguntou a um rapaz que vinha a sair.
- Não sei, senhor - respondeu o jovem. - Dizem que estão a julgar uma
mulher que assassinou um gendarme. Como parece que anda, ainda por
cima, bruxedo no caso, o bispo e o provisor eclesiástico intervieram no
processo, e o meu irmão, que é o arcediago de Josas, passa lá o dia. Ora
queria-lhe falar, mas a turba é tamanha, que não consigo aproximar-me
dele, o que bastante me contraria, pois preciso de dinheiro.
- Infelizmente, senhor - declarou Gringoire -, gostaria de vo-1o
poder emprestar, mas se ando com as bragas esburacadas não é por
causa dos escudos.
Não se atreveu a confessar ao mancebo que conhecia seu irmão
arcediago, pois após a cena da igreja não voltara a procurá-lo, negli­
gência essa que o embaraçava.
O estudante seguiu o seu caminho e Gringoire meteu-se atrás da
multidão que subia a escada da grande câmara. Achava o poeta que
não havia nada melhor para dissipar a melancolia do que o espetáculo
dum processo criminal, a tal ponto os juízes são, em geral, dotados
duma divertida estupidez. O povo com que se misturara caminhava e
acotovelava-se silenciosamente. Depois de demorado e insípido pas­
seio por um comprido corredor escuro, que serpeava pelo palácio como
o canal intestinal do velho edifício, chegou a uma porta baixa. Esta
dava acesso a uma sala que Gringoire, graças à sua alta estatura, con­
seguiu explorar com a vista por cima das cabeças da turba.
A sala era ampla e sombria, o que ainda a fazia parecer mais vasta.
Caía a tarde; pelas compridas j anelas ogivais apenas se coava uma
luz pálida e que se apagava antes de alcançar a abóbada formada
por enorme rede de traves esculpidas com milhares de figuras que
pareciam mexer-se confusamente na sombra. Aqui e ali, em cima de
mesas, havia já muitas velas acesas que alumiavam sobre as cabeças
dos escrivães debruçados sobre a papelada. A multidão enchia a parte
anterior da sala; à direita e à esquerda, sentavam-se às mesas homens
de toga; ao fundo, em cima dum estrado, muitos j uízes cujas últimas
filas mergulhavam nas trevas; semblantes imóveis e sinistros. As pare­
des estavam semeadas de inúmeras flores-de-lis. Por cima dos juízes,
distinguia-se confusamente um grande crucifixo e, por toda a parte,
piques e alabardas, em cujas extremidades a luz das velas acendia pon­
tas de fogo.

335
- Senhor - perguntou Gringoire a um vizinho -, que vêm a ser todas
aquelas pessoas enfileiradas ali em baixo como prelados num concílio?
- Senhor - explicou o vizinho -, à direita, são os conselheiros da
câmara alta ; à esquerda, os conselheiros das devassas; os mestres, de
togas negras, e os messires, de togas vermelhas.
- E por cima deles - continuou Gringoire -, quem é aquele gorducho
vermelhaço que transpira?
- É o senhor presidente.
- E aqueles carneiros por detrás? - prosseguiu Gringoire que, como
já dissemos, não gostava da magistratura. Consequência, talvez, do
rancor que votava ao Palácio da Justiça depois da sua malograda aven­
tura dramática.
- São os senhores referendários do Paço Real.
- E aquele javali, em frente dele?
- É o senhor escrivão do foro do Parlamento.
- E o crocodilo que está à direita?
- É mestre Filipe Lheulier, advogado extraordinário do rei.
- E o gatarrão preto, à esquerda?
- Mestre Jacques Charmolue, procurador real no tribunal eclesiás-
tico, com os senhores do provisorado.
- Mas, senhor - insistiu Gringoire -, que está a fazer toda essa boa
gente?
- Estão a julgar.
- Julgam quem? Não vej o o réu.
- É uma mulher, senhor. Não a podeis ver. Está de costas voltadas
para nós e a multidão oculta-a da vista. Reparai; está acolá onde avis­
tais um grupo de alabardas.
- Quem é essa mulher? - perguntou Gringoire. - Sabeis como se
chama?
- Não, senhor. Cheguei agora mesmo. Só calculo que se trate de
feitiçaria, pois o provisor eclesiástico assiste ao j ulgamento.
- Bem ! - comentou o nosso filósofo. - Vamos lá então ver essa gente
de toga a comer carne humana. É um espetáculo como outro qualquer.
- Senhor - observou o vizinho -, não achais que mestre Jacques
Charmolue aparenta um ar muito meigo?
- Hum! - resmungou Gringoire. - Desconfio da meiguice de nariz
seco e lábios delgados.

336
Nesta altura, os vizinhos impuseram silêncio aos dois tagarelas.
Estavam a escutar um importante depoimento.
- Monsenhores - dizia, no meio da sala, uma velha cuja cara se escon­
dia de tal modo debaixo da vestimenta, que mais parecia um monte de
trapos ambulante. - Monsenhores, a coisa é tão verdadeira como ver­
dade é eu ser a Falourdel, estabelecida há quarenta anos na Ponte de
S. Miguel, e pagando, com toda a pontualidade, rendas, licenças e feudos,
na porta mesmo em frente da casa de Tassin-Caillart, o tintureiro que
mora do lado de cima do rio. Sou agora uma pobre velha, monsenhores,
mas fui nos meus tempos uma bonita moçoila. De há uns dias para cá
que me andavam a dizer: "Falourdel, não fieis muito, à noite, na roca pois
o Diabo gosta de pentear com os chifres a estriga das velhas. É garantido
que o fantasma que o ano passado andava lá para os lados do Templo,
ronda agora pela Cité. Tende cautela, Falourdel, não vos vá o Demo bater
à porta ! " Ora uma noite, quando eu fiava na minha roca, eis que me
batem à porta. Pergunto quem é. Vou abrir. Entram dois homens. Um de
preto e um guapo oficial. Do de preto só se enxergavam os olhos: duas
brasas! Todo o resto só era chapéu e capa. Eis o que me dizem: "O quarto
de Santa Marta. " É o meu quarto lá de cima, o mais limpo que tenho.
Dão-me um escudo. Fecho o escudo na minha gaveta e digo com os meus
botões: "Há de ser para amanhã comprar tripas no açougue da Gloriette."
Subimos. Chegámos ao quarto lá de cima e, quando voltei as costas, o
homem de preto desapareceu. Fiquei um tanto atarantada. O oficial, que
era belo como um grande senhor, volta para baixo comigo. Sai. Mal eu
acabara de fiar um quarto da meada, volta ele com uma linda rapariga,
uma boneca que brilharia como um sol se viesse coberta. Trazia consigo
um bode, um bode enorme, já não sei bem se preto, se branco. Foi isso
que me deu que pensar. . . A rapariga . . . não tenho nada com isso . . . mas
o bode! . . . Não gosto desses bichos de barbas e de cornos. Fazem-me
lembrar um homem. E depois, é coisa que me cheira a sábado . . . Apesar
disso, não tinha nada a dizer. Já cá tinha o escudo. É justo, não é verdade,
senhor juiz? Consigo que a rapariga e o capitão subam para o quarto lá
de cima e deixo-os sozinhos, que é como quem diz com o bode. Volto
para baixo e continuo a fiar. Devo dizer-vos que a minha casa tem rés do
chão e primeiro andar; as traseiras dão para o rio, como as outras casas
da ponte, e a janela do rés do chão e a do primeiro andar deitam para a
água. Estava então eu a fiar. Não sei porquê pensava na alma-penada que

337
o bode me fizera vir à lembrança, além disso na rapariga, que era bonita,
mas se ataviava um pouco à maneira dos selvagens. De repente, oiço um
grito lá em cima, cair qualquer coisa no chão e abrir-se a janela. Corro
à minha, que fica por baixo, e vejo passar diante dos olhos uma massa
negra que cai na água. Era um fantasma vestido de padre. Fazia luar. Vi-o
perfeitamente. Nadou para o lado da Cité. Então, toda a tremer, chamo a
ronda. Esses senhores da dozena entram e, logo para começo, como não
sabiam do que se tratava e vinham alegres, zurziram-me. Expliquei-lhes
o que se passara. Subimos, e que havíamos de encontrar? O meu pobre
quarto todo cheio de sangue, o capitão estiraçado ao comprido com um
punhal no pescoço, a rapariga a fazer de morta e o bode muito assustado.
Disse com os meus botões: "Bom, tenho aqui para mais de quinze dias a
esfregar o soalho. Tem que ser raspado; vai ser uma trabalheira. " Levam
o oficial, coitado do rapaz!, e a rapariga toda descomposta . . . Mas ides
ouvir o pior! No dia seguinte, quando fui buscar o escudo para comprar
as tripas, encontrei em seu lugar uma folha seca.
A velha calou-se. Pelo auditório circulou um murmúrio de horror.
- Aquele fantasma, aquele bode, tudo isso cheira a magia - disse
um vizinho de Gringoire.
- E a folha seca ! - aj untou outro.
- Não há dúvida - acrescentou um terceiro - que é uma bruxa de
súcia com o fantasma para depenar os oficiais.
O próprio Gringoire não repelia de todo a hipótese de que aquele con­
junto de circunstâncias oferecia um aspeto tão assustador como verosímil.
- Mulher Falourdel - proferiu maj estosamente o senhor presidente
do tribunal -, não tendes mais nada a dizer à j ustiça?
- Não, monsenhor - respondeu a velha -, a não ser que, no relatório,
trataram a minha casa de pardieiro perverso e fedorento, o que é uma
maneira ultrajante de falar. As casas da ponte não mostram grande
aparência porque vive ali muita gente, mas mesmo assim os marchan­
tes não deixam de lá morar, embora se trate de gente rica e casada com
bonitas mulheres, muito desenxovalhadas.
O magistrado, que dera a Gringoire a impressão de um crocodilo,
levantou-se e exclamou:
- Basta ! Rogo-vos, senhores, que não percais de vista que a ré tinha
um punhal consigo. Mulher Falourdel, trouxestes essa folha seca em
que se transformou o escudo que o Diabo vos dera?

338
- Trouxe, monsenhor - respondeu ela. - Encontrei-a; aqui está !
Um meirinho levou a folha seca ao crocodilo, que meneou lugu­
bremente a cabeça e a passou ao presidente, o qual a reenviou para o
procurador real do tribunal eclesiástico, de maneira que a folha deu a
volta à sala.
- É uma folha de bétula - identificou mestre Jacques Charmolue. -
Nova prova de magia.
Um conselheiro usou da palavra:
- Testemunha, dois homens entraram em vossa casa ao mesmo
tempo. O homem negro que, primeiro, vistes desaparecer, depois
nadar no Sena com vestes de padre, e o oficial. Qual dos dois vos deu
o escudo?
A velha refletiu por instantes e respondeu:
- O oficial.
Por entre a assistência correu um murmúrio.
Gringoire disse para consigo:
"Isto é que me faz hesitar na convicção . . .
"

Entretanto, mestre Filipe Lheulier, o advogado extraordinário do rei,


interveio outra vez:
- Recordo-vos, senhores, que, no depoimento escrito à sua cabe­
ceira, o oficial assassinado, ao declarar que, na ocasião em que o
homem negro o abordou, lhe acudira vagamente a ideia de que se
podia muito bem tratar do fantasma, acrescentava que o fantasma
apertara insistentemente com ele para que se fosse encontrar com
a ré e , quando lhe observara que estava sem dinheiro, ele dera-lhe
o escudo com que pagara à Falourdel . Portanto, o escudo era uma
moeda infernal.
Tão concludente observação pareceu dissipar as últimas dúvidas de
Gringoire e dos restantes céticos do auditório.
Ao sentar-se, o advogado real concluiu:
- Tendes, senhores, o processo. Podeis examinar as declarações de
Febo de Châteaupers.
Ao ouvir este nome, a arguida pôs-se em pé. A sua cabeça ficou
acima da multidão. Espantado, Gringoire reconheceu a Esmeralda.
Estava pálida; os seus cabelos, dantes tão graciosamente entrança­
dos e recamados de cequins, caíam em desalinho; tinha os lábios azuis
e os olhos encovados metiam pavor. Desgraçada !

339
- Febo ! - exclamou, alucinada. - Onde está ele? ó monsenhores,
antes que me matem, fazei-me a mercê de me dizer se ainda está vivo !
- Calai-vos, mulher! - respondeu o presidente. - Isso não é connosco.
- Oh, por piedade, dizei-me se está vivo! - insistiu ela, juntando
as belas mãos emagrecidas, ao mesmo tempo que se lhe ouviam as
cadeias tilintar ao longo do vestido.
- Pois bem - respondeu secamente o advogado real -, está a mor­
rer! Estais contente?
A infeliz deixou-se cair no mocho, sem dizer palavra, sem verter
uma lágrima, branca como cera.
O presidente debruçou-se para um homem colocado a seus pés que
trazia um gorro dourado, vestia uma toga preta, cingia o pescoço com
uma cadeia e empunhava uma vara .
- Meirinho, fazei entrar a segunda acusada.
Todos os olhos se voltaram para uma portinha que se abriu e que,
com forte emoção de Gringoire, deu passagem a uma linda cabra de
chifres e patas de ouro. O elegante animal deteve-se uns momentos à
porta, esticou o pescoço como se, empoleirada no bico dum rochedo,
tivesse diante da vista um imenso horizonte. De repente, avistou a
cigana e, pulando por cima da mesa e da cabeça dum escrivão, em
dois saltos estava nos seus j oelhos. Depois enroscou-se graciosamente
sobre os pés da dona a solicitar uma palavra ou um afago. A ré, con­
tudo, ficou imóvel, sem conceder um simples olhar à pobre Djali.
- Ai, mas . . . é o meu horrível bicho! - exclamou a velha Falourdel. -
Reconheço perfeitamente as duas!
Jacques Charmolue interveio:
- Se vos apraz, senhores, procederemos ao interrogatório da cabra .
Era c o m efeito a segunda incriminada. Nada de mais simples nesse
tempo do que um processo de bruxedo instaurado contra um animal.
Encontra-se, entre outros, nas contas do prebostado referentes a 1466,
um curioso estendal das custas do processo de Gillet-Soulart e da sua
porca , executados, em Corbeil, pelos seus malefícios. Tudo lá está, o custo
da pocilga para a porca, os quinhentos feixes de lenha miúda trazidos
do porto de Morsant, os três pintos de vinho e o pão, última refeição do
condenado partilhada fraternalmente com o carrasco, até os onze dias
de guarda e de alimentação da porca , à razão de oito dinheiros parísios
cada um. À s vezes iam mais longe do que os animais. Os capitulares de

340
Carlos Magno e de Luís, o Piedoso, infligem sérios castigos aos fantas­
mas inflamados que tomassem a liberdade de aparecer no ar.
Entretanto, o procurador do tribunal eclesiástico exclamara:
- Se o Demónio que tornou esta cabra possessa e que resistiu a
todos os exorcismos persistir nos seus malefícios, se ele assustar o tri­
bunal com isso, prevenimo-lo de que seremos forçados a requerer para
ele a forca ou a fogueira.
Gringoire encheu-se de suores frios. Charmolue tirou de cima da
mesa o pandeiro e, apresentando-o de certa maneira à cabra , perguntou:
- Que horas são?
A cabra olhou-o numa expressão inteligente, levantou a pata dou­
rada e bateu sete vezes. Eram efetivamente sete horas. Um movimento
de terror percorreu a assistência.
Gringoire não se pôde conter e exclamou em voz alta:
- Está perdida ! Vedes perfeitamente que ela não sabe o que faz!
- Silêncio, canalha do fundo da sala ! - ordenou, irritado, o meirinho.
Jacques Charmolue, com o auxílio das mesmas manobras de pan­
deiro, fez com que a cabra executasse muitas mais peloticas, a res­
peito da data daquele dia, mês do ano, etc . , e a que o leitor já assistiu.
E, numa ilusão de ótica própria dos debates judiciais, esses mesmos
espectadores que talvez mais de uma vez tinham aplaudido, na praça,
as inocentes traquinices de Djali, assustavam-se ao presenciá-las sob
as abóbadas do Palácio da Justiça. A cabra era decididamente o Diabo.
Foi pior ainda quando o procurador real despej ou no chão certo
saco de cabedal cheio de letras soltas, que Djali trazia ao pescoço, e se
viu esta extrair, com a pata, do alfabeto disperso o nome fatal: FEBO.
Pareceram indiscutivelmente demonstrados os sortilégios que tinham
vitimado o capitão e, aos olhos de todos, a cigana, essa encantadora
bailarina que, com a sua graciosidade, tantas vezes deslumbrara os
transeuntes, não passava dum pavoroso vampiro.
Aliás, não mostrava qualquer sinal de vida. Nem as graciosas evolu­
ções de Djali, nem as ameaças do tribunal, nem as surdas imprecações
do auditório, nada lhe chegava ao espírito.
Para a despertar, teve um aguazil de a abanar sem compaixão e o
presidente elevar solenemente a voz:
- Moça, sois de raça boémia, dedicada a malefícios. De cumplicidade
com a cabra enfeitiçada, implicada no processo, na noite de 29 de março

341
último, e de harmonia com as potências das trevas e auxiliada por encan­
tos e práticas, contundistes e apunhalastes um capitão dos archeiros da
ordenança real, chamado Febo de Châteaupers. Persistis em negar?
- Horror! - gritou a rapariga, escondendo o rosto entre as mãos. -
O meu Febo ! Oh, isto é um inferno!
- Persistis em negar? - perguntou friamente o presidente.
- Claro que nego ! - declarou a j ovem, numa inflexão terrível e
levantando-se com os olhos a luzir.
O presidente continuou em tom perentório:
- Como explicais então os factos de que vos acusam?
A infeliz respondeu em voz entrecortada:
- Já o disse. Não sei. Foi um padre. Um padre que não conheço.
Um padre infernal que me persegue.
- É isso - admitiu o juiz. - A alma-penada.
- M onsenhores, tende compaixão! Não passo duma pobre rapariga . . .
- Do Egito - acentuou o juiz.
Mestre Jacques Charmolue tomou melosamente a palavra:
- Em vista da dolorosa obstinação da ré, requeiro a aplicação da tortura.
A desgraçada estremeceu dos pés à cabeça. Levantou-se, contudo,
ante a intimação dos alabardeiros e caminhou com passo bastante firme,
levando à frente Charmolue e os padres do provisorado, entre duas filas
de alabardas, para uma vulgar porta de um só batente, que logo se
abriu e fechou nas costas da acusada, o que deu ao triste Gringoire a
impressão de uma horrenda goela que acabava de a devorar.
Quando ela desapareceu, ouviu-se um queixoso balido: era a cabri­
nha a chorar.
Suspenderam a audiência . Tendo um conselheiro observado que os
senhores se encontravam fatigados e que seria uma espera bem longa
até o final da tortura, o presidente respondeu que um magistrado deve
saber sacrificar-se ao seu dever.
- Essa impertinente e displicente descarada - protestou um velho
juiz - faz com que a torturem quando ainda não ceámos!

342
II

Continuação do escudo transformado em folha seca

Depois de subir e descer alguns degraus por corredores tão escuros


que, mesmo em pleno dia, os iluminavam a candeeiros, a Esmeralda,
sempre rodeada do seu lúgubre cortejo, viu-se empurrada pelos aguazis
do palácio para urna sinistra câmara. Esta dependência, de forma cir­
cular, ocupava o rés do chão duma dessas grossas torres que no nosso
século ainda furam a camada de prédios modernos com que a nova Paris
cobriu o antigo. Nessa cripta, nada de j anelas e, corno abertura, apenas
a entrada, baixa e guarnecida por urna enorme porta de ferro. Não obs­
tante, não faltava ali claridade. Na espessura da parede tinham cavado
um nicho onde acenderam um fogo vivo que enchia o compartimento de
reverberações vermelhas e roubava toda a radiação a urna mísera vela
espetada a um canto. A grade de ferro, que servia para fechar esse forno
e que naquele momento estava erguida, não permitia ver no espaço do
respiradoiro flamejante na parede tenebrosa senão a extremidade infe­
rior das barras de ferro, tal urna fileira de dentes negros, aguçados e
intervalados, o que fazia com que a fornalha se assemelhasse a urna
daquelas bocas de dragões que, nas lendas, vomitam chamas. A luz que
dela se escapava pôde a prisioneira ver, a toda a volta da sala, assustado­
res instrumentos cuja aplicação desconhecia. Ao centro j azia um colchão
de couro, quase assente no chão e sobre o qual pendia urna correia com
fivela, presa a urna argola de cobre, mordida por um monstro de nariz
achatado, esculpido na chave da abóbada. Tenazes, pinças, largos fer­
ros de charrua atafulhavam o interior do forno e avermelhavam-se em
monte sobre o brasido. O sangrento clarão da fornalha não iluminava
naquele recinto senão urna confusa mistura de coisas horríveis.

343
Aquele tártaro chamava-se simplesmente a câmara da tortura.
No leito sentava-se despreocupadamente Pierrat Torterue, o algoz
aj uramentado. Os aj udantes, dois gnomas de face quadrada, aventais
de couro e suspensórios de tela, remexiam os ferros nos carvões.
A pobre rapariga bem quis armar-se de coragem, mas ao penetrar
naquele antro estremeceu de pavor.
Os aguazis do bailiado do Palácio arrumaram-se a um lado e os
padres do provisorado eclesiástico a outro. A um canto havia um escri­
vão, uma escrivaninha e uma mesa. Mestre Jacques Charmolue aproxi­
mou-se da cigana, com um sorriso muito melífluo.
- Minha querida filha - perguntou -, persistis então em negar?
- Sim - respondeu ela, numa voz já extinta.
- Nesse caso - continuou Charmolue -, ser-nos-á muito doloroso
interrogar-vos com maior insistência do que desej aríamos. Quereis
dar-vos ao incómodo de vos sentardes neste leito? Mestre Pierrat, dai
lugar a esta menina e fechai a porta.
Pierrat levantou-se com um grunhido.
- Se fecho a porta - murmurou -, apaga-se-me o lume.
- Nesse caso, meu caro - redarguiu Charmolue -, deixai-a aberta.
A Esmeralda, entretanto, conservava-se de pé. Assustava-a aquela
cama de couro onde se haviam contorcido tantos desgraçados. O terror
enregelava-lhe a medula dos ossos. Ali estava, atónita e apavorada.
Charmolue fez um sinal e os dois servos agarraram-na e obrigaram-na
a sentar-se na cama. Nenhum mal lhe fizeram, mas quando esses
homens lhe tocaram e quando sentiu o contacto do cabedal, como que
todo o sangue lhe refluiu ao coração. Lançou um olhar desvairado em
volta de si. Pareceu-lhe ver moverem-se e avançarem para ela, de todos
os lados, para lhe marinharem ao longo do corpo, mordê-la e beliscá-la,
aqueles informes utensílios de tortura que eram, entre os instrumentos
de várias espécies que até ali conhecera , o que entre os insetos e os
pássaros são os morcegos, as centopeias e as aranhas.
- Onde está o médico? - perguntou Charmolue.
- Aqui - respondeu uma toga negra em que ela ainda não reparara .
A desgraçada estremeceu.
- Menina - proferiu de novo a voz caridosa do procurador do tribu­
nal eclesiástico -, insistis pela terceira vez em negar os factos de que
vos acusam?

344
Desta vez ela conseguiu somente acenar com a cabeça. Faltou-lhe
a VOZ.
- Persistis? - perguntou Jacques Charmolue. - Nesse caso, é com
profunda mágoa que sou forçado a cumprir o dever do meu cargo.
- Senhor procurador real - disse rudemente Pierrat -, por onde
começamos?
Charmolue hesitou um instante com a visagem ambígua de um
poeta que procura uma rima.
Finalmente resolveu:
- Pelo borzeguim!
A infortunada sentiu-se tão profundamente abandonada de Deus e
dos homens, que deixou descair a cabeça para o peito, como uma coisa
inerte, sem força.
O verdugo e o médico aproximaram-se dela ao mesmo tempo.
Simultaneamente, os dois criados começaram a procurar no seu
hediondo arsenal.
Com o tinir dessa assustadora ferragem, a infeliz criança estreme­
ceu como uma rã morta que se galvaniza .
- Oh! - murmurou tão baixo, que ninguém a ouviu. - Oh, meu Febo !
Depois mergulhou outra vez na imobilidade e no seu silêncio de
mármore. O espetáculo dilaceraria outro coração que não o de j uízes.
Dir-se-ia uma pobre alma pecadora torturada por Satanás, no pórtico
escarlate do Inferno. O mísero corpo a que iam aferrar aquele pavoroso
formigueiro de serras, rodas e cavaletes, o ser que ia sentir as duras
mãos dos carrascos e as tenazes, era pois aquela doce, branca e frágil
criatura, pobre grão de milho que a j ustiça humana dava a moer às
espantosas más da tortura !
Entretanto, as mãos calosas dos servos de Pierrat Torterue desnu­
daram brutalmente a encantadora perna e o pé minúsculo que tantas
vezes maravilhara, com a sua graciosidade, a sua formosura, os tran­
seuntes das praças de Paris.
- É pena! - resmungou o verdugo, apreciando aquelas formas tão
donairosas e delicadas.
Se estivesse presente o arcediago, decerto se lembraria, naquele
momento, do seu símbolo da aranha e da mosca. Não tardou que a
desgraçada, por entre a nuvem que lhe cobriu os olhos, visse apro­
ximar-se o borzeguim; não tardou que visse o seu pé, encaixado nas

345
talas ferradas, desaparecer no tremendo aparelho. Então, o pavor insu­
flou-lhe forças para gritar, arrebatada:
- Tirai-me isso ! - E, empertigando-se, desgrenhada: - Por miseri­
córdia !
Precipitou-se para fora da cama, para se lançar aos pés do procura­
dor real , mas tinha a perna presa no pesado cepo de carvalho e ferra­
gens, e caiu em cima do borzeguim, ainda mais aniquilada do que uma
abelha com chumbo na asa.
Charmolue fez um sinal e tornaram a colocá-la no leito, onde duas
mãos grossas lhe afivelaram, à cintura delgada , a correia que pendia
da abóbada.
- Pela última vez, confessais os factos do processo? - perguntou
Charmolue, com a sua benignidade imperturbável.
- Estou inocente.
- Então, menina, como explicais as circunstâncias de que vos acusam?
- Infelizmente, monsenhor, não sei.
- Portanto, negais?
- Tudo !
- Vamos! - ordenou Charmolue a Pierrat.
Pierrat deu a volta ao manípulo da máquina, o borzeguim fechou e
a desgraçada soltou um desses gritos horríveis que em língua alguma
humana se pode ortograficamente reproduzir.
- Parai - ordenou Charmolue a Pierrat. - Confessais? - perguntou
à cigana.
- Tudo ! - gritou a mísera rapariga. - Confesso! Misericórdia !
Não medira as próprias forças quando enfrentara a tortura. Pobre
criança, cuja vida até aquele momento decorrera com tanta alegria,
tanta suavidade, tanta meiguice, bastara a primeira dor para a vencer!
- O sentimento de humanidade obriga-me a dizer-vos - observou o
procurador real - que, se confessardes, será com a morte que deveis
contar.
- Bem o espero - murmurou a infeliz, caindo outra vez no leito de
couro, mais morta do que viva , dobrada em duas e pendente da correia
afivelada ao peito.
- Então, minha linda, vede se vos aguentais - disse mestre Pierrat,
levantando-a. - Assim pareceis o carneiro de ouro que o Sr. de Borgonha
traz ao pescoço.

346
Jacques Charmolue ergueu a voz.
- Escrivão, escrevei.
"Jovem boémia, confessais ter participado nos ágapes, sabbats
e malefícios do Inferno, com as larvas, as bruxas e os vampiros?
Respondei. "
- Confesso - respondeu ela, tão baixo, q u e a palavra s e perdeu num
sopro.
- Confessais ter visto o carneiro que Belzebu faz aparecer nas
nuvens para convocar o sabbat e que só os feiticeiros veem?
- Confesso.
- Reconheceis ter adorado as cabeças de Boforné, esses abominá-
veis ídolos dos Templários?
- Confesso.
- Ter tido comércio habitual com o Diabo sob a forma duma cabra
familiar, j unta ao processo?
- Confesso.
- Finalmente, confessais e proclamais terdes, com a ajuda do
Demónio e do fantasma, atentado contra a vida e assassinado, na noite
de 29 de março último, um capitão chamado Febo de Châteaupers?
Ergueu para o magistrado os grandes olhos imóveis e, como que
maquinalmente, respondeu sem convulsão nem abalo:
- Confesso.
Era evidente que nela tudo se aniquilara.
- Escrevei , escrivão - disse Charmolue que, voltando-se para os ver­
dugos, ordenou: - Desprendei a prisioneira e reconduzi-a à audiência.
Depois de descalçarem a cativa, o procurador do tribunal eclesiás­
tico foi-lhe examinar o pé ainda entorpecido pela dor e comentou:
- Vá lá, que o mal não foi grande! Gritastes a tempo . . . Ainda podeis
dançar, minha linda ! . . .
Voltou-se seguidamente para os seus acólitos do provisorado.
- Eis finalmente a justiça elucidada ! I sto alivia, senhores! Esta
menina servir-nos-á de testemunha de que procedemos com a maior
doçura possível.

347
III

Fim d o escudo transformado e m folha seca

Quando ela reentrou, pálida e coxeando, na sala da audiência, aco­


lheu-a um murmúrio geral de satisfação. Da parte do auditório, era esse
sentimento de impaciência satisfeita que se experimenta quando, no
teatro, finda o último intervalo da comédia e o pano sobe para começar
o desfecho. Da parte dos j uízes, era a esperança de que não faltava
muito para cearem. Também a cabrinha baliu de alegria. Quis correr
para a dona, mas tinham-na prendido ao banco.
Anoitecera por completo. Não tinham acendido mais velas, de modo
que havia tão pouca luz, que não se viam as paredes da sala. As trevas
envolviam todos os obj etos numa espécie de nevoeiro. Mal se distin­
guiam alguns apáticos rostos de juízes. Mesmo em frente destes, na
extremidade da comprida sala, conseguiam divisar um ponto de vaga
brancura que se destacava no fundo sombrio. Era a ré.
Arrastara-se até o seu lugar, enquanto Charmolue se instalava
magistralmente no seu. Sentou-se para logo se levantar e proferir, sem
deixar transparecer excessiva vaidade pelo seu triunfo:
- A ré confessou tudo.
- Moça boémia - perguntou o presidente -, confessastes todos os
vossos atos de magia, de prostituição e de assassínio sobre Febo de
Châteaupers?
Apertou-se-lhe o coração. Ouviram-na soluçar na sombra . Depois
respondeu em voz débil:
- Tudo o que quiserdes, mas matai-me depressa.
- Senhor procurador real no tribunal eclesiástico - declarou o presi-
dente -, a câmara está pronta a escutar as vossas petições.

348
Mestre Charmolue exibiu um assustador caderno e começou a ler,
com grandes gestos e exagerada acentuação, um discurso em latim,
onde todas as provas do processo se empoleiravam sobre perífrases
ciceronianas, flanqueadas de citações de Plauto, seu cómico favorito.
Lamentamos não poder oferecer aos nossos leitores este notável mimo.
O orador papagueava-o com maravilhosa eficiência. Ainda não acabara
o exórdio e já suava em bica, com os olhos a saltarem-lhe da cara.
De repente, mesmo a meio de um período, estacou e o olhar, habitual­
mente muito meigo e até estúpido, faiscou, fulminante.
- Senhores - berrou (desta vez em francês, pois não estava no
caderno) -, Satanás misturou-se de tal forma neste processo, que até
assiste aos nossos debates e caçoa de Sua Maj estade! Vede!
Falando assim, apontou com a mão para a cabrinha que, ao ver
Charmolue gesticular, j ulgara efetivamente que vinha a talho de foice
fazer o mesmo e sentara-se nas patas de trás, imitando o melhor pos­
sível, com as patas dianteiras e com a cabeça barbuda, a patética pan­
tomina do procurador real no tribunal eclesiástico. Era esta, se bem se
recordam, uma das suas mais graciosas habilidades. O incidente, essa
última prova, causou grande sensação. Amarraram as patas à cabra e o
procurador real retomou o fio à eloquência.
O discurso nunca mais acabava, mas foi uma admirável peroração.
Eis a última frase, a que se deve acrescentar a voz enrouquecida e o
gesto ofegante de mestre Charmolue:
- Ideo, Domni, coram stryga demonstrata, crimine patente, inten­
tione criminis existente, in nomine sanctae ecclesiae Nostrae-Dominae
Parisiensis, quae est in saisina habendi omnimodam altam et bassam justi­
tiam in ilia hac intemerata Civitatis insula, tenore praesentium declaramus
nos requirere, primo, aliquandam pecuniariam indemnitatem; secundo,
amendationem honorabilem ante portalium maximum Nostrae-Dominae,
ecclesiae cathedralis; tertio, sententiam in virtute cujus ista stryga cum
sua capella, seu in trivia vulgariter dieta a Greve, seu in insula exeunte in
fluvio Sequanae, juxta pointam jardini rega/is, executatae sint!94

94 E assim, Senhor, perante uma vampira comprovada , o crime provado, a exis­


tência de intenção do crime, em nome da Santa Igreja de Nossa Senhora de Paris,
que possui o pleno direito de Alta e Baixa justiça sobre tudo, nesta ilha intacta da Cité,
pelo teor dos presentes, declaramos requerer, em primeiro lugar, uma indemnização
em dinheiro, em segundo lugar, uma confissão pública diante do pórtico principal

349
Voltou a pôr o gorro e sentou-se novamente.
- Eheu! - suspirou, aborrecido, Gringoire -, bassa latinitas!95
Outro suj eito de toga negra levantou-se j unto da ré. Era o seu advo­
gado. Os juízes, em j ejum, começaram a murmurar.
- Advogado, sede breve ! - disse o presidente.
- Senhor presidente - respondeu o advogado -, visto a minha cons-
tituinte ter confessado o crime, só tenho uma palavra a dizer, senhores:
"Se uma vampira comer um homem, e ela disso não tiver dúvidas,
pagará uma multa de oito mil dinheiros, que fazem duzentos soldos
de ouro. " É um texto da lei sálica . Apraza à câmara condenar a minha
constituinte nesta multa.
- Texto revogado - declarou o advogado extraordinário do rei .
- Nego! replicou o advogado.
-

- Vote-se ! - propôs um conselheiro. - Está provado o crime e faz-se


tarde.
Votaram sem sair da sala. Os j uízes aprovaram com a cabeça, pois
estavam com pressa . Via-se-lhes na sombra as cabeças tirarem atrás
umas das outras os capelos, em resposta à lúgubre pergunta que em
voz baixa o presidente lhes dirigia . A pobre acusada parecia olhá-los,
mas a vista turva já nada via.
Depois o escrivão desatou a escrever, para a seguir passar ao presi­
dente um extenso pergaminho.
Então a desgraçada ouviu o povo agitar-se, as lanças entrechoca­
rem-se e uma voz glacial dizer:
- Moça boémia, no dia que aprouver ao rei nosso senhor, à hora do
meio-dia, sereis conduzida, em camisa e descalça, de baraço ao pescoço
e numa carroça, diante do portal principal de Nossa Senhora e aí pedi­
reis perdão, empunhando um cirio de cera, de duas libras de peso, e dali
sereis levada à Praça da Greve, onde sereis enforcada e estrangulada na
forca da cidade, assim como esta vossa cabra, e pagareis ao provisor ecle­
siástico três leões de ouro como reparação dos crimes por vós praticados
e por vós confessados de feitiçaria, de magia, de luxúria e de homicídio
na pessoa do Sr. Febo de Châteaupers. Deus receba a vossa alma !

da Igrej a catedral de N ossa Senhora, em terceiro lugar, uma sentença, em virtude da


qual a vampira com a sua cabra, ou na praça vulgarmente chamada a Grêve, ou fora
da ilha do rio Sena, ao lado da ponta do jardim real , sej am "executadas".
95 Oh! [ ] baixa latin idade.
. . .

350
- Oh, isto é um sonho ! - murmurou ela, ao mesmo tempo que sentia
umas mãos rudes levá-la.

351
IV

"LASCIATE OGNI SPERANZA m 6

Na Idade Média um edifício, quando completo, tinha quase tanto de


subterrâneo como de exterior. A menos que fosse construído sobre esta­
caria, como Nossa Senhora, um palácio, uma fortaleza, uma igreja, eram
sempre de fundo duplo. Nas catedrais havia de certo modo outra catedral
subterrânea, acaçapada, escura, misteriosa, cega e muda, por baixo da
nave superior que regurgitava de luz e ressoava de órgãos e de sinos, de
dia e de noite; às vezes, era um sepulcro. Nos palácios, nas bastilhas, era
uma prisão, em certos casos também uma sepultura, por vezes as duas
coisas juntas. Estas potentes construções, de que noutro sítio explicámos
a maneira como se formavam e ramificavam, não dispunham de meros
alicerces, mas sim, por assim dizer, de raízes que se iam ramificando
pelo solo em câmaras, em galerias, em escadas, tal como o edifício lá
de cima. Deste modo, as igrejas, palácios e bastilhas estavam com terra
até metade do corpo. As caves de um edifício eram outro edifício para
o qual se descia em vez de subir e onde os seus andares subterrâneos
se dispunham por baixo do monte de andares externos do monumento,
como essas florestas e esses montes que se espelham invertidos na água
de um lago, sob as florestas e os montes das margens.
Na bastilha de Santo António, no Palácio da Justiça de Paris, no
Louvre, eram prisões esses edifícios do subsolo. Os andares desses cár­
ceres, afundando-se no solo, cada vez se estreitavam mais, sempre mais
escuros. Eram outras tantas zonas onde se escalonavam os cambiantes

9 6 Abandonai toda a esperança (da Divina Comédia de Dante; trata-se de uma


inscrição que o poeta lê no momento em que desce aos infernos) .

352
do horror. Dante não descobriria melhor para o seu Inferno. Esses funis
de masmorras iam geralmente acabar numa enxovia como o fundo da
cuba onde Dante colocou Satanás e onde a sociedade encerrava o con­
denado à morte. Enterrada ali uma mísera existência, bem podia dizer
adeus à luz, ao ar, à vida, a ogni speranza. Só saía dali para a forca ou
para a fogueira. Por vezes apodrecia lá. A justiça humana chamava a
isso esquecer. Entre si e os homens, o condenado sentia pesar-lhe na
cabeça um montão de pedras e de carcereiros, e toda a prisão, toda
essa maciça bastilha, mais não era do que uma enorme e complicada
fechadura que o enclausurava a cadeado, isolando-o do mundo vivo.
Foi no fundo duma cuba desse género, nos ergástulos cavados por
São Luís, no in-pace da Tournelle, que, sem dúvida com medo de que
ela fugisse, deixaram a Esmeralda, condenada à forca, com o colossal
Palácio da Justiça em cima da cabeça. Pobre mosca que nem sequer
poderia remover a mais pequena das suas pedras!
Sem dúvida que a providência e a sociedade se mostraram tão
inj ustas uma como a outra , pois tamanho luxo de desgraça e de tortura
tornava-se escusado para quebrar criatura tão frágil.
Ela estava ali, perdida nas trevas, sepultada, escondida, empare­
dada. Se alguém lograsse observá-la naquele estado, depois de a ver
rir e dançar ao sol, estremeceria. Fria como a noite, fria como a morte,
sem que já nem um sopro de ar lhe agitasse os cabelos, sem que mais
nenhum ruído humano lhe vibrasse nos ouvidos, sem que mais nenhum
resquício de luz lhe brilhasse nos olhos, dobrada ao meio, esmagada
de correntes, acocorada ao pé duma bilha e dum pão, em cima de meia
dúzia de palhas a nadarem na poça de água que as infiltrações da
masmorra formavam, sem se poder mexer, sem quase poder respirar,
quase que já nem sequer sofria. Febo, o Sol, o meio-dia, o ar livre, as
ruas de Paris, as danças aplaudidas, os doces devaneios de amor com o
oficial, depois o padre, o punhal, o sangue, a tortura, a forca, tudo isso
lhe desfilava ainda bem vivo na mente, ora como uma visão canora e
dourada, ora como um informe pesadelo. Não era , contudo, mais do
que uma luta horrível e confusa que se esfumava nas trevas, ou uma
música ao longe, a tocar lá em cima a superfície e que deixara de se
ouvir nas profundezas para onde a desgraçada tombara .
Desde q u e a l i s e encontrava, n ã o dormia n e m s e mantinha acor­
dada. Nesse infortúnio, nessa enxovia, já não conseguia distinguir a

353
vigília do sono, o sono da realidade, tanto como o dia da noite. Tudo
se misturara, partira, flutuando, espalhado confusamente no seu pen­
samento. Já não sentia, já não sabia, já não pensava; sonhava, quando
muito. Nunca uma criatura viva penetrara tão longe no nada.
Entorpecida daquela maneira, gelada, petrificada, mal dera pelo
ruído da tampa do alçapão a abrir-se umas duas ou três vezes, num
ponto qualquer por cima dela, sem contudo deixar entrar um fio de luz
quando por ali uma mão lhe atirava uma côdea de pão negro. M esmo
assim, era essa a única comunicação que lhe ficara com os homens, ou
fosse a visita periódica do carcereiro.
Só uma coisa lhe ocupava ainda maquinalmente o ouvido: por cima
da cabeça a humidade filtrava-se por entre as pedras bolorentas da
abóbada e, a intervalos iguais, desprendia-se dali uma gota de água.
A cigana escutava apática o rumor causado pela gota de água a pingar
no charco a seu lado.
Era essa gota de água, tombando na poça, o único movimento que
se fazia à sua volta, o único relógio que marcava o tempo, o único
ruído que até ela chegava de todos os ruídos que soam à superfície
da terra .
Para tudo dizer, também sentia de vez em quando, naquela cloaca
de lodo e de trevas, qualquer coisa fria que lhe passava aqui e além
num braço ou num pé e que lhe provocava um arrepio.
Não sabia há quanto tempo ali se encontrava. Recordava-se duma
sentença de morte pronunciada algures contra alguém, que depois
a tinham levado e que acordara de noite, gelada, na escuridão e no
silêncio. Arrastara-se de gatas, mas uns grilhões de ferro tinham-lhe
magoado o tornozelo e sentira o som de correntes. Percebera que à sua
volta era tudo parede e que por baixo havia um laj edo coberto de água
e um feixe de palha. Mas nem lâmpada nem respiradouro. Sentara-se
então na palha e, de vez em quando, para mudar de posição, no último
degrau de pedra que havia no ergástulo. A certa altura , ainda tentara
contar os negros minutos que a gota de água marcava, mas não tardara
que essa triste ocupação de um cérebro enfermo se quebrasse por si
mesma, na cabeça, e a deixasse entorpecida.
Finalmente, certo dia ou certa noite (pois meia-noite ou meio-dia
eram da mesma cor naquele sepulcro), ouviu por cima de si um ruído
mais forte do que o causado habitualmente pelo aj udante de carcereiro

3 54
quando lhe levava o pão e a bilha. Ergueu a cabeça e viu um raio
avermelhado infiltrar-se pelas fendas da espécie de porta ou alçapão
praticada na abóbada do in-pace. Ao mesmo tempo, a pesada tampa
de ferro gemeu, o alçapão rangeu sobre os gonzos ferrugentas, depois
escancarou-se e a cigana viu uma lanterna, uma mão e a parte de baixo
do corpo de dois homens cuj as cabeças não conseguiu divisar, pois a
porta era excessivamente baixa. A luz feriu-a com tanta intensidade,
que fechou os olhos.
Ao voltar a abri-los, a porta fechara-se, o lampião estava poisado
no degrau da escada e, de pé na sua frente, viu apenas um homem.
Nada se percebia da sua pessoa, nem cara nem mãos. Uma cogula
negra caía-lhe até aos pés, um capuz da mesma cor escondia-lhe o
rosto. Era um longo sudário preto que se conservava de pé e debaixo
do qual se sentia mexer qualquer coisa. A rapariga olhou fixamente,
durante alguns minutos, aquela espécie de espectro. Entretanto, nem
ela nem ele falaram. Dir-se-iam duas estátuas a observarem-se mutua­
mente. Apenas duas coisas pareciam viver naquele túmulo: a torcida da
lanterna, que crepitava por causa da humidade ambiente, e a gota de
água da abóbada, que cortava aqueles estalidas irregulares com o seu
pingar monótono, fazendo estremecer a luz da lanterna em ondulações
concêntricas na água oleosa do charco.
Por fim a presa quebrou o silêncio.
- Quem sois?
- Um padre.
A palavra, a inflexão, o som da voz, provocaram-lhe um calafrio.
O sacerdote continuou, numa articulação rouca:
- Estais preparada?
- Para quê?
- Para morrer.
- Oh! - exclamou ela. - Está para breve?
- Amanhã.
A cabeça que ela levantara com j úbilo voltou a descair-lhe sobre o
peito.
- Falta ainda muito tempo ! - murmurou. - Que diferença lhes fazia
se fosse hoj e?
- Sois então muito infeliz? - perguntou o padre, após uma pausa.
- Tenho muito frio - respondeu ela.

355
Meteu os pés entre as mãos, no gesto usual dos desgraçados que
sentem frio e como já vimos fazer a reclusa da Torre Roland. Os dentes
batiam-lhe.
O padre pareceu passear o olhar de fogo, por baixo do capuz, ao
examinar a enxovia.
- Sem luz! Sem fogo! Metida na água ! I sto é horrível!
- Pois é - respondeu ela, com o ar espantado que a infelicidade lhe
imprimira. - O dia é para toda a gente. Porque é que só me dão a noite?
- Sabeis - prosseguiu o padre depois de nova pausa - porque estais
aqui?
- Parece-me que já o soube - respondeu a j ovem, passando os
dedos magros pelas sobrancelhas, como que para ajudar a memória -,
mas agora não sei .
De repente, ela desatou a chorar como uma criança:
- Queria sair daqui, senhor! Tenho frio, tenho medo e há por aí
bichos que me sobem pelo corpo - continuou a enclausurada.
- Pois bem, vinde comigo.
Dizendo isto, o padre agarrou-lhe no braço. A desgraçada estava
enregelada até às entranhas, mas mesmo assim aquela mão deu-lhe
uma sensação de frio.
- Ai! - murmurou ela. - É a mão gelada da morte. Quem sois então?
O padre levantou o capuz. Ela olhou-o. Era o rosto sinistro que havia
tanto tempo a perseguia , a cabeça de demónio que lhe surgira em casa
da Falourdel, por cima da adorada cabeça do seu Febo, esses olhos que
vira brilhar, pela última vez, j unto dum punhal.
Esta aparição, sempre tão fatal e que assim a empurrara de desgraça
em desgraça até o suplício, arrancou-a ao entorpecimento. Pareceu-lhe
que a espécie de véu que se lhe adensara sobre a memória se rasgava.
Voltaram-lhe ao mesmo tempo à ideia, não confusos e indecisos como
até ali, mas distintos, ao vivo, incisivos, palpitantes, terríveis, todos os
pormenores da sua lúgubre aventura, desde a cena noturna no antro
da Falourdel até à condenação na Tournelle. Essas recordações meio
apagadas e quase obliteradas pelo excesso do sofrimento, reavivou-as
o semblante sombrio que tinha na sua frente, tal como a aproximação
do fogo faz aparecer, na folha de papel em branco, completamente
nítidas, as letras invisíveis nele traçadas a tinta simpática. Pareceu-lhe
que todas as chagas do seu coração se reabriam e sangravam à uma.

356
- Ai ! - gritou, tapando os olhos e estremecendo convulsivamente.
- É o padre !
Depois, c o m desalento, deixou pender os braços e continuou sen­
tada, de olhos cravados no chão, muda, sem parar de tremer.
O padre observava-a com o olhar do milhafre que por muito tempo
pairou, às voltas, no mais alto do céu, em redor da pobre cotovia escon­
dida nos trigais, que por muito tempo apertou, em silêncio, cada vez
mais os círculos formidáveis do seu voo e que, de repente, se precipita
sobre a presa como a flecha do raio e a mantém, anelante, nas suas
garras.
A cigana começou a murmurar muito baixinho:
- Acabai ! Acabai ! O último golpe !
E escondia a cabeça, com terror, entre os ombros, como a ovelha
que espera a marretada do magarefe.
- Causo-vos assim tanto horror? - perguntou, finalmente, o padre.
Ela não respondeu.
Contraíram-se-lhe os lábios, como se sorrisse.
- Porventura, causo-vos horror? - repetiu ele.
- Sim - respondeu -, o carrasco diverte-se com o condenado.
Há meses que me persegue, que me ameaça, que me assusta ! Sem ele,
santo Deus, como eu seria feliz! Foi ele que me atirou para este abismo !
Justo céu ! Foi ele que matou ! Foi ele que o matou ! Ao meu Febo !
Aqui, desatando aos soluços e erguendo os olhos para o padre,
proferiu:
- Miserável! Quem sois? Que mal vos fiz? Odiais-me então assim
tanto? Ai de mim ! Porque é essa sanha com que me perseguis?
- Amo-te ! - bradou o padre.
A cigana parou de repente de chorar. Olhou-o numa expressão de
idiota. O padre caíra de j oelhos e envolvia-a num olhar ardente.
- Ouves? - tornou ele a bradar. - Amo-te !
- Que amor! - proferiu a desgraçada a tremer.
Ele respondeu:
- É o amor de um réprobo.
Ficaram ambos mudos durante alguns minutos, esmagados sob o
peso das suas emoções: ele, insensato, ela, atónita.
- Ouve - disse por fim o padre, e sobreviera-lhe uma calma estra­
nha -, vais ver tudo. Vou dizer-te o que até hoj e só a custo me atrevi

357
a confessar a mim mesmo, quando furtivamente interrogava a minha
consciência, nessas horas profundas da noite onde é tanta a escuridão,
que até parece que nem Deus nos vê. Escuta. Antes de te encontrar,
rapariga , eu era feliz!
- Também eu ! - suspirou ela, debilmente.
- Não me interrompas. Sim, era feliz; acreditava sê-lo, pelo menos.
Era puro. Inundava-me a alma uma límpida claridade. Não havia
cabeça que mais altiva se elevasse, nem mais radiosa do que a minha.
Os padres consultavam-me a respeito da castidade e os doutores a res­
peito da doutrina. Sim, a ciência era tudo para mim. Era uma irmã e
bastava-me ter uma irmã. Não que com a idade outras ideias me não
aparecessem. Por mais de uma vez a minha carne estremeceu com a
passagem duma forma de mulher. Essa força do sexo e do sangue do
homem que, louco adolescente, imaginara ter sufocado para toda a
vida, por mais de uma vez ergueu convulsivamente a cadeia de votos
férreas que me agrilhoavam, miserável, às frias pedras do altar. Mas o
j ejum, a oração, os estudos, as macerações do claustro, fizeram a alma
senhora do corpo. E, depois, eu evitava as mulheres. Aliás, bastava-me
abrir um livro para que todos os impuros fumos do meu cérebro se
esvaíssem diante do esplendor da ciência. Bastavam poucos minutos
para eu sentir fugirem para longe as coisas espessas da terra, e tornava
a encontrar-me calmo, deslumbrado e sereno, na presença da tranquila
radiação da verdade eterna. Enquanto o Demónio não me mandou para
me atacar senão vagas sombras de mulheres que passavam, indiferen­
tes aos meus olhos, na igreja , nas ruas, nos campos, e que reapareciam
apenas durante os meus sonhos, eu facilmente o vencia. Infelizmente,
se a vitória me não ficou, a culpa cabe a Deus que não fez o homem e
o Demónio dotados de força igual. Ouve. Certo dia . . .
Aqui o padre deteve-se e a prisioneira sentiu saírem-lhe do peito
suspiros que se assemelhavam a estertor de angústia.
Continuou:
- . . . Um dia, estava eu apoiado à j anela da minha cela . . . Que
livro estava a ler nessa altura? Ai, tudo isto forma um turbilhão na
minha cabeça ! Estava a ler. A j anela dava para uma praça. Eis que
oiço um ruído de tambor e de música. Aborrecido por perturbarem
assim a minha meditação, olho para o largo. O que vi, outros como
eu o estavam a ver e, contudo, não se tratava de espetáculo feito para

358
olhos humanos. Ali, a meio da praça . . . era meio-dia e o Sol brilhava
esplendoroso . . . uma criatura dançava. Uma criatura tão bela que Deus
tê-la-ia preferido à Virgem, tê-la-ia escolhido para Sua Mãe e teria que­
rido nascer dela se ela existisse quando foi feito homem ! Tinha uns
olhos negros e esplêndidos e, no meio da sua cabeleira também negra,
alguns cabelos, por onde o sol penetrava, luziam como fios de ouro.
Desapareciam-lhe os pés, no seu movimento, como os raios duma
roda que gira muito depressa. Em volta da cabeça, nas tranças negras,
havia placas de metal que cintilavam ao sol e lhe faziam na fronte
uma coroa de estrelas. O vestido, semeado de lantej oulas, cintilava,
azul e salpicado de mil fulgores como uma noite de verão. Os braços
flexíveis e trigueiras atavam-se e desatavam-se em volta da cintura,
como duas charpas. A forma desse corpo era de surpreendente beleza .
Oh, q u e resplandecente figura s e destacava, como qualquer coisa d e
luminoso, mesmo à plena l u z do Sol ! . . . Infelizmente, rapariga, eras tu!
Surpreendido, inebriado, encantado, fiquei a olhar para ti. Olhei para
ti tanto que de repente estremeci de medo, porque senti que o Destino
se apoderara de mim.
Oprimido, o padre parou mais uma vez, por instantes. De seguida
prosseguiu:
- Já meio fascinado, tentei agarrar-me a qualquer coisa que deti­
vesse a minha queda. Lembrei-me das armadilhas que Satanás já me
estendera. A criatura que via debaixo dos meus olhos possuía essa
beleza sobre-humana que só pode vir do Céu ou do Inferno.
"Aquilo não era uma simples rapariga feita com um pouco do nosso
barro e debilmente iluminada por dentro pelo vacilante clarão duma
alma de mulher. Era um anjo, mas um anj o de trevas, mas um anjo de
fogo e não de luz! Na altura em que pensava assim, avistei a teu lado
uma cabra, um animal de sabbat, que olhava para mim a rir. O Sol do
meio-dia tornava-lhe de fogo os chifres. Divisei então a ratoeira do
Demónio e não alimentei mais dúvidas de que tu chegasses do Inferno
e de que viesses para a minha perdição. Acreditei-o.
Nesta altura o padre olhou bem de frente para a prisioneira e, com
frieza, acrescentou:
- Continuo convencido disso. Não obstante, o encanto agia a pouco
e pouco; a tua dança rodopiava-me no cérebro, sentia operar em mim
um misterioso maleficio e tudo o que devia estar de vigília na minha

359
alma adormecia. Tal como aqueles que morrem na neve, eu sentia pra­
zer em deixar que o sono se apoderasse de mim. De repente come­
çaste a cantar. Que podia eu fazer, pobre de mim, se o teu canto era
ainda mais sedutor do que a tua dança? Quis fugir. Não pude. Estava
pregado, estava enraizado ao solo ! Sentia a impressão de que o már­
more do pavimento me subira até os j oelhos. Tinha de me conservar
ali até o fim. Se os meus pés eram de gelo, a cabeça escaldava-me.
Enfim, talvez te compadecesses de mim, porque paraste de cantar,
desapareceste. A pouco e pouco, nos meus olhos e nos meus ouvidos
atenuou-se o reflexo da deslumbrante visão, o ressoar da música feiti­
ceira. Deixei-me então cair a um canto da janela, mais entorpecido e
mais fraco do que uma estátua tombada do pedestal. Despertou-me o
sino de vésperas. Levantei-me, fugi, mas, ai de mim ! , no meu ser caíra
qualquer coisa que já não se podia levantar, qualquer coisa sucedera a
que já não podia fugir.
Calou-se mais uma vez, por momentos, para continuar:
- Sim, a partir desse dia apareceu em mim um homem que eu não
conhecia. Quis empregar todos os recursos ao meu alcance: o claustro,
o altar, o trabalho, os livros. Loucura ! Ai, como a ciência soa a oco
quando contra ela esbarra, desesperada , uma cabeça atafulhada de
paixões! Sabes tu, rapariga, o que eu dali para diante sempre vi entre
mim e o livro? A ti, a tua sombra , a imagem da luminosa aparição que
um dia atravessara o espaço na minha frente. Essa imagem, porém, já
não tinha a mesma cor; era sombria, fúnebre, tenebrosa como o círculo
negro que persegue durante muito tempo a vista do imprudente que
olhou com fixidez para o Sol.
"Como já não podia desembaraçar-me, pois sempre continuava a
ouvir a tua canção a zumbir-me na cabeça, a ver sempre os teus pés
a dançar sobre o meu breviário, a sentir sempre, à noite, em sonhos,
as tuas formas deslizarem sobre a minha carne, quis tornar a ver-te,
tocar-te, saber quem tu eras, verificar se te achava deveras igual à ideal
imagem que me ficara de ti, quebrar talvez o sonho com a realidade.
Em todo o caso esperava que uma impressão nova apagasse a pri­
mitiva, pois a primeira tornara-se insuportável. Procurei-te. Tornei-te
a ver. Desgraça ! Quando te vi duas vezes, quis ver-te mil vezes, quis
ver-te sempre. Então . . . como parar neste declive do Inferno? . . . Deixei,
desde essa altura, por completo de pertencer a mim mesmo. A outra

360
ponta do fio que o Demónio me atara às asas amarrara-se ao teu pé.
Tornei-me errante e vagabundo como tu. Esperava-te na sombra dos
portais, espiava-te à esquina das ruas, espreitava-te do alto da minha
torre. Todas as noites voltava para dentro de mim mesmo, mais encan­
tado, mais desesperado, mais enfeitiçado, mais perdido !
"Soube que eras egípcia, boémia, cigana, zíngara, e como podia
nesse caso duvidar da magia? Escuta! Esperava que um processo me
desembaraçasse do encantamento. Uma feiticeira embruxara Bruno
d 'Ast; ele mandou-a queimar e ficou curado. Eu sabia disso. Quis expe­
rimentar o remédio. Antes de mais nada, procurei proibir a tua entrada
no adro de Nossa Senhora, na esperança de te esquecer se não tornas­
ses ali mais. Não ligaste importância a isso. Depois, lembrei-me de te
raptar. Tentei-o uma noite. Éramos dois. Já nos havíamos apoderado de
ti quando apareceu esse miserável oficial. Libertou-te. Começou assim
a tua desgraça, a minha e a sua. Finalmente, não sabendo já o que mais
fazer e para que lado me voltar, denunciei-te ao provisor eclesiástico.
Julguei que me curaria como Bruno d'Ast. Lembrava-me também con­
fusamente de que um processo te entregaria a mim; que, numa prisão,
te manteria, te possuiria, que ali não me poderias escapar, pois, como
tu me possuías havia j á tanto tempo, era a altura para que também, por
minha vez, te possuísse. Quando se faz o mal tem de se praticar esse
mal até o fim. É demência parar-se a meio do monstruoso ! No extremo
do crime existem delírios de contentamento. Um padre e uma feiticeira
podem fundir-se em delícias sobre o feixe de palha duma masmorra !
" Portanto, denunciei-te. Era nessa altura que, quando me encontra­
vas, te assustavas. O conluio que tramava contra ti, a tempestade que
amontoava sobre a tua cabeça escapava-se-me sob a forma de ameaças
e de relâmpagos. Continuava, porém, hesitante. O meu p roj eto conti­
nha aspetos assustadores que me obrigavam a recuar.
"Talvez até renunciasse a ele, talvez mesmo os meus hediondos
pensamentos se desvanecessem no meu cérebro sem produzirem fruto.
Convencia-me de que continuava a depender de mim ir para a frente
ou evitar o processo. Mas toda a ideia má é inexorável e quer tornar-se
uma realidade; mas aí, onde me julgava todo-poderoso, a fatalidade
mostrou-se mais poderosa do que eu. Infelizmente, foi ela que se asse­
nhoreou de ti e te entregou à terrível rodagem da máquina que eu
tenebrosamente construíra ! Escuta, estou a chegar ao fim.

361
"Um dia . . . era outro lindo dia de sol . . . vi passar na minha frente um
homem que pronunciou o teu nome, que ria e em cuj os olhos cintilava
a luxúria ! Maldita hora ! Fui atrás dele. O resto já o sabes. "
Calou-se. A rapariga s ó encontrou uma exclamação:
- Oh, meu Febo !
- Esse nome não ! - bradou o padre, agarrando-lhe com força no
braço. - Não profiras esse nome! Que miseráveis nós somos! Esse nome
é que nos perdeu ! Ou, antes, perdemo-nos todos uns aos outros pelo
inexplicável jogo da fatalidade! Sofres, não é verdade? Tremes de frio, a
noite cega-te, a enxovia envolve-te, mas talvez ainda alguma luz te ilu­
mine no fundo de ti mesma, quanto mais não seja o teu amor de criança
por esse jovem vazio e que brincava com o teu coração! Ao passo que eu
trago a enxovia dentro de mim mesmo. Dentro de mim existe o inverno, o
gelo, o desespero; trago a noite na alma. Sabes tudo o que tenho sofrido?
Assisti ao teu processo. Encontrava-me sentado no banco do provisor
eclesiástico. Sim, debaixo de um desses capuzes de padre havia as con­
torções dum réprobo. Quando te levaram, lá estava; quando te interroga­
ram, lá estava. Caverna de lobos! . . . Era o meu crime, era a minha forca
que eu via levantar-se lentamente sobre a tua fronte. Em cada testemu­
nha, em cada prova, em cada contestação, lá estava eu sempre; conse­
guia contar cada um dos teus passos na via dolorosa; lá estava ainda
quando esse animal feroz . . . Ai, não previra a tortura ! . . . Ouve. Segui-te à
câmara do sofrimento. Vi que te despiam e que, seminua, te agarravam
as mãos infames do algoz. Vi o teu pé, esse pé que eu quereria, a troco
de um império, oscular apenas com um beijo só que fosse e morrer,
esse pé debaixo do qual com tanto prazer eu sentiria a minha cabeça
esmagar-se, vi-o fechado nesse horrendo borzeguim que torna os mem­
bros dum ente vivo numa lama sangrenta. Que miserável ! Enquanto eu
assistia a isso, sentia debaixo do meu sudário o punhal que me picava o
peito. Quando do grito que soltaste, cravei-o na minha carne; se soltasses
segundo grito, penetrar-me-ia no coração! Olha. Julgo que ainda sangra.
Desabotoou a batina. Realmente o peito estava dilacerado como que
por uma garra de tigre e, no flanco, havia uma chaga bastante larga e
mal fechada.
A prisioneira recuou horrorizada.
- Oh! - proferiu o padre - rapariga, tem piedade de mim! Julgas-te
infeliz, mas, ai ! , ainda não sabes o que é a infelicidade ! Oh, amar uma

362
mulher! Ser padre ! Ser odiado ! Amá-la com todas as veras da alma,
sentir que daria o seu sangue em troca do menor dos seus sorrisos,
que daria as suas entranhas, o seu bom nome, a sua salvação, a imor­
talidade e a eternidade, esta vida e a outra; lamentar que não seja rei,
génio, imperador, arcanj o, deus, para se lhe rojar aos pés um maior
escravo; para a estreitar, de noite e de dia, com os seus sonhos e com
os seus pensamentos, e vê-la apaixonada por uma farda de soldado !
Não ter outra coisa que lhe oferecer senão uma suja sotaina de padre,
que lhe inspira medo e repugnância ! Estar presente, com o seu ciúme
e a sua fúria, enquanto ela prodigaliza, ao miserável e imbecil fan­
farrão, tesoiros de amor e de beleza ! Ver esse corpo, cuja forma nos
incendeia, esse seio que tem tanta doçura, essa carne palpitar e corar
debaixo dos beij os de outro ! Oh, Céu ! Amar o seu pé, o seu braço, o seu
ombro, pensar nas suas veias azuis, na sua pele trigueira, ao ponto de
contorcer-se, noites inteiras, no laj edo da cela, e ver todas as carícias
que sonhara para ela transformarem-se em tortura ! Não obteve mais
nada senão deitá-la na cama de couro ! Oh, essas é que são as verdadei­
ras tenazes aquecidas ao rubro pelo fogo do Inferno! Ai, feliz daquele
a quem serram entre duas tábuas e que esquartejam com quatro cava­
los! Sabes o que é o suplício que nos infligem, durante longas noites,
as a rtérias que fervem, o coração que estala, a cabeça que estoira, os
dentes que mordem nas próprias mãos; algozes encarniçados que nos
voltam sem cessar, como numa grelha em brasa, sobre um pensamento
de amor, de ciúme e de desespero? Rapariga, perdão ! Um momento
de tréguas! Uma pouca de cinza em cima desta brasa ! I mploro-te que
enxugues o suor que escorre, em grossas bagadas, da minha testa !
Criança ! Tortura-me com uma das mãos, mas acaricia-me com a outra!
Piedade, rapariga ! Tem piedade de mim !
O padre contorcia-se na água do laj edo e martelava o crânio contra
as esquinas dos degraus de pedra. A rapariga ouvia-o, olhava-o. Depois
de ele se calar, extenuado e ofegante, ela repetiu a meia-voz:
- Oh, meu Febo!
O padre arrastou-se, de j oelhos, até ela.
- Suplico-te - bradou -, se tens entranhas, não me rejeites! Oh,
como te amo! Sou um miserável! Quando articulas esse nome, desgra­
çada, é como se mastigasses, entre os dentes, todas as fibras do meu
coração! Misericórdia! Se vens do Inferno, vou para lá contigo. Tenho

363
feito tudo para isso. O inferno onde estiveres será o meu paraíso; a
tua vista é mais encantadora do que a de Deus ! Responde: não me
queres então? No dia em que uma mulher repelisse tamanho amor,
convencer-me-ia de que os montes se abalariam! Ah, se tu quisesses! . . .
Como poderíamos ser felizes! Fugiríamos . . . Far-te-ia fugir . . . I ríamos
para qualquer lado, procuraríamos um ponto da Terra onde haja mais
sol, mais árvores, mais céu azul. Amar-nos-íamos, verteríamos as nos­
sas duas almas uma na outra e viveríamos numa inextinguível sede de
nós mesmos, sede que saciaríamos em comum e sem cessar na taça
dum inexaurível amor!
A cigana interrompeu-o com uma terrível e estrondosa gargalhada.
- Reparai, meu padre, que tendes sangue junto das unhas!
O padre ficou por momentos como que petrificado e com os olhos
fixos na própria mão.
- Está bem, sim! - prosseguiu depois, com uma estranha doçura.
- Ultraj a-me, escarnece-me, acabrunha-me, mas vem, vem ! Despa-
chemo-nos! Já te disse que está marcado para amanhã. A forca da Greve,
sabes? Está sempre erguida. Será horrível ver-te seguir para ali naquela
carroça ! Misericórdia! Nunca senti, como neste momento, até que ponto
te amava . . . ! Anda, acompanha-me ! Terás tempo para me amar depois
de te ter salvo. Também me poderás abominar todo o tempo que quise­
res. Mas anda. Amanhã ! Amanhã ! A forca ! O teu suplício ! Oh, salva-te !
Poupa-me !
Desvairado, agarrou-lhe no braço, no desej o de a levar.
Esmeralda cravou, com fixidez, os olhos nele e perguntou:
- Que é feito do meu Febo?
- Ai - lamentou o padre, largando-lhe o braço -, sois impiedosa !
- Que é feito do Febo? - repetiu ela, friamente.
- Morreu ! - bradou o sacerdote.
- Morreu ! - repetiu a j ovem, sempre glacial e imóvel. - Então para
que me falais em viver?
Ele não a ouvia e continuou como se se dirigisse a si próprio:
- Oh, sim, deve estar bem morto ! A lâmina penetrou profundamente.
Julgo que lhe toquei o coração com a ponta. Oh! Cravei o punhal com
vontade!
A rapariga atirou-se a ele como um tigre furioso e empurrou-o con­
tra os degraus da escada, com força sobrenatural.

364
- Vai-te embora, monstro ! Vai-te embora, assassino ! Deixa-me mor­
rer! Que o sangue de nós dois te faça na testa uma nódoa eterna ! Ser
tua, padre? Nunca ! Nunca ! Nada nos reunirá, nem mesmo o Inferno !
Vai-te, maldito ! Nunca !
O padre tropeçara na escada. Em silêncio, desembaraçou os pés das
dobras da sotaina, pegou na lanterna e começou a subir lentamente os
degraus que conduziam à porta; abriu-a e saiu.
De repente, a rapariga viu-lhe reaparecer a cabeça e, no rosto, uma
expressão medonha; o padre gritou-lhe, num estertor de raiva e de
desespero:
- Já te disse que morreu !
A cigana tombou de rosto contra o laj edo e, nas trevas daquela mas­
morra, não se ouvia mais nenhum ruído senão o suspiro da gota de
água que fazia palpitar o charco.

365
V

A mãe

Não creio que exista no mundo nada mais ridente do que as ideias
que, no coração duma mãe, desperta a vista dos sapatinhos do seu filho.
Sobretudo se é o sapato dos dias de festa, dos domingos, do batismo;
o sapato com bordados até debaixo da sola, o sapato com o qual a
criança nem sequer ainda deu um passo. Esse sapato possui tanta graça
e pequenez, é tão impossível com ele caminhar que, para a mãe, é como
se estivesse a ver o filho. Sorri, beija-o, fala-lhe. Pergunta a si mesma se
realmente é possível haver um pé tão pequeno e, se a criança não está
presente, basta-lhe o lindo sapato para lhe trazer ante os olhos a doce
e frágil criatura. A mãe julga vê-lo; vê-o, completo, vivo, alegre, com as
mãos delicadas, a cabeça redonda, os lábios puros, os olhos serenos
onde a esclerótica é azul. Se é de inverno, lá está o filhinho, de gatas
pela alcatifa, a escalar laboriosamente um tamborete e a mãe toda a
tremer não vá ele aproximar-se do lume. Se é de verão, engatinha pelo
pátio, pelo jardim, arranca as ervas que brotam por entre as pedras,
olha ingenuamente para os grandes cães, para os grandes cavalos, sem
medo, brinca com conchinhas, com flores, e faz com que o jardineiro res­
mungue, pois encontra areia nos canteiros e terra nas alamedas. Tudo ri,
tudo brilha, tudo brinca à roda do filhinho, tal como ele. Até a lufada de
ar e o raio de Sol se debatem à compita nos caracóis travessas dos seus
cabelos. Tudo isto o sapato mostra à mãe e derrete-lhe o coração como
o fogo liquefaz a cera.
Mas quando essa criança se perdeu, as mil imagens de alegria, de
encanto, de ternura, que se apertam em volta do sapatinho, transfor­
mam-se em outras tantas coisas horríveis. O lindo sapato bordado passa a

366
ser apenas um instrumento de tortura que macera eternamente o coração
da mãe. É sempre a mesma fibra a vibrar, a fibra mais profunda e mais
sensível, mas em vez de ser um anjo que a acaricia é um demónio que a
aperta.
Certa manhã, enquanto o Sol de maio subia num desses céus de
azul-ferrete, em que Garófalo gosta de colocar as suas descidas da
cruz, a reclusa da Torre Roland ouviu um rumor de rodas, de cavalos
e de ferros, na Praça da Greve. Despertou um pouco, atou os cabelos
sobre as orelhas, para ficar mais surda, e voltou a contemplar de j oe­
lhos o inanimado obj eto que adorava assim havia quinze anos. Aquele
sapatinho, como já o dissemos, representava para ela o universo. Nele
se encerrava o seu pensamento que só dali sairia com a morte. Quantas
amargas imprecações, comoventes súplicas, orações e soluços, a pro­
pósito daquela encantadora futilidade de cetim cor-de-rosa , ela dirigira
ao Céu, só o sombrio subterrâneo da Torre Roland o soube. Nunca
tanto desespero se derramou sobre objeto mais gentil e mais gracioso.
Parecia que naquela manhã o sofrimento se manifestava com maior
violência ainda do que de costume, e, do lado de fora, ouviam-na
lamentar-se numa voz forte e monótona que cortava o coração.
- Oh, minha filha - dizia ela -, minha filha! Minha pobre e querida filhi­
nha! Então não te verei mais. Acabou-se assim tudo. E continua a parecer
que ainda foi ontem! Meu Deus, meu Deus, para ma levares tão depressa,
mais valia que não ma desses! Não sabes então que os nossos filhos per­
tencem ao nosso ventre e que uma mãe que perdeu o filho deixa de acredi­
tar em Deus? Ai, miserável que sou, ter saído naquele dia! Senhor! Senhor!
Se ma tiraste assim é porque não me viste com ela, quando a aquecia,
toda contente, com o meu calor, quando se ria para mim a mamar, quando
fazia com que os seus pezinhos me subissem pelo peito até aos lábios!
Ai, se tivesses visto isso, meu Deus, terias compaixão da minha alegria,
não me terias levado o único amor que me restava no coração! Fui então
uma criatura tão miserável, Senhor, que nem me pudeste examinar antes
de me condenar? Ai de mim! Ai de mim! Está ali o sapato, mas o pé onde
está? Onde está o resto, onde está a criança? Minha filha! Que fizeram
de ti? Senhor, restitui-ma ! Esfolei os joelhos quinze anos a rezar-Te, meu
Deus; não é ainda suficiente? Restitui-ma por um dia, por uma hora, por
um minuto. Por um minuto, Senhor! Depois, atira comigo ao Demónio,
para toda a eternidade! Soubesse eu por onde se arrasta a fimbria da Tua

367
túnica e agarrar-me-ia a ela, com as minhas duas mãos, e havias de me
restituir a minha filha ! Porventura, Senhor, não tens compaixão do seu
sapatinho? Podes condenar uma pobre mãe a este suplício de quinze
anos? Bondosa Virgem! Bondosa Virgem do Céu ! Dá-me o meu Menino
Jesus! Levaram-no ! Roubaram-mo ! Comeram-no numa charneca, bebe­
ram-lhe o sangue, mastigaram-lhe os ossos! Bondosa Virgem, compa­
dece-Te de mim! A minha filha ! Preciso da minha filha! Que me interessa
que ela esteja no Paraíso? Não quero o Teu anjo, quero a minha filha ! Sou
uma leoa, quero a minha leoazinha! . . . Ai, contorcer-me-ei no chão, com
a minha testa quebrarei as pedras, serei condenada e amaldiçoar-Te-ei,
Senhor, se ficas com a minha filha! Bem vês como tenho os braços todos
mordidos, Senhor! Porventura o pai do Céu não tem piedade? Não me dês
mais do que sal e pão negro, mas que eu tenha a minha filha e que ela me
aqueça como um sol ! Ah, Deus e meu Senhor, não passo duma vil peca­
dora, mas a minha filha fazia-me piedosa. Eu trasbordava de devoção por
amor dela e olhava através do seu sorriso como por uma abertura do céu.
Que eu possa ao menos uma vez, uma vez mais, uma só vez, calçar este
sapato no seu lindo pezinho cor-de-rosa e que eu morra, bondosa Virgem,
a abençoar-Te! Ai, quinze anos! Seria agora crescida. Desgraçada criança!
O quê, é então realmente verdade que não a voltarei a ver, nem sequer no
Céu? Porque eu não irei para lá . . . Ah, que desgraça! E dizer que só tenho
ali o seu sapato e mais nada!
A infeliz lançara-se sobre o sapato, sua consolação e desespero de
tantos anos, e as entranhas desfizeram-se-lhe em soluços como no pri­
meiro dia. Porque, para uma mãe que perdeu o filho, é sempre o pri­
meiro dia. Essa dor não envelhece. Podem os trajos de luto coçarem-se
e ficarem esbranquiçados, mas o coração continua negro.
Naquele momento passaram diante da cela frescas e alegres vozes
infantis. Sempre que crianças lhe apareciam à vista ou as ouvia, a pobre
mãe retirava-se para o canto mais sombrio do seu sepulcro, e era caso
para dizer que procurava esconder a cabeça na pedra, só para que não
as ouvisse. Desta vez, pelo contrário, endireitou-se com um sobressalto
e ficou avidamente à escuta. Um dos rapazitos acabara de dizer:
- É porque vão enforcar hoj e uma egípcia.
Com o brusco ímpeto dessa aranha que vimos atirar-se a uma mosca
mal lhe estremeceu a teia, a reclusa correu para a fresta que, como
se sabe, dava para a Praça da Greve. Realmente, via-se uma escada

368
encostada à forca permanente, e o carrasco ocupava-se a reaj ustar as
correntes enferrujadas pela chuva. A volta havia algum povo.
O risonho grupo de crianças já ia longe. A reclusa procurava com os
olhos algum transeunte a quem pudesse interrogar. Reparou, mesmo
ao lado do cubículo, num padre que parecia ler no breviário público,
mas que estava muito menos interessado nas letras sob as grades de
ferro, do que com a forca, para a qual de vez em quando lançava uma
olhadela sombria e feroz. A reclusa reconheceu nele o senhor arce­
diago de Josas, um santo homem.
- Meu padre - perguntou -, a quem vão acolá enforcar?
O padre olhou para ela e não respondeu. A mulher repetiu a per­
gunta. Desta vez ele disse:
- Não sei.
- Estavam aí umas crianças a dizer que era uma egípcia - observou
a penitente.
- Parece que sim - confirmou o padre.
Então, Paquette, a Chantefleurie, soltou uma gargalhada de hiena.
- Minha irmã - observou o arcediago -, odiais assim tanto as egípcias?
- Se as odeio? - exclamou a emparedada. - São vampiros, são ladras
de crianças! Devoraram-me a minha filhinha, a minha filha, a minha
única filha ! Já não tenho coração. Comeram-mo !
Estava assustadora. O padre observava-a com frieza.
- Há sobretudo uma que odeio e que amaldiçoei - continuou a
mulher. - É uma ainda nova, com a idade que a minha filha teria se a
mãe dela não tivesse comido a minha filha. Cada vez que essa jovem
víbora passa diante da minha cela transtorna-me o sangue!
- Pois bem, minha irmã, alegrai-vos - disse o padre, glacial como
uma estátua de sepulcro. É essa que ides ver morrer.
Descaiu a cabeça sobre o peito e afastou-se lentamente.
A reclusa torcia os braços de contente.
- Eu bem lhe tinha predito que ela havia de ali subir! Obrigada,
padre ! - gritou.
E começou a passear de um lado para o outro, em passos largos, diante
das grades da fresta, os cabelos desgrenhados, o olhar flamejante, a bater
com os ombros na parede e com o aspeto feroz duma loba enjaulada,
com fome há muito tempo e que sente aproximar-se a hora do repasto.

369
VI

Três corações de homem formados


de maneira diferente

Febo, contudo, não morrera. Os homens daquela espécie têm sete


fôlegos. Quando mestre Filipe Lheulier, advogado extraordinário do rei,
dissera à pobre Esmeralda: Está a morrer, foi por erro ou por gracej o.
Quando o arcediago repetira à condenada: Morreu, a verdade é que ele
não sabia nada, mas que o supunha, contava, não alimentava dúvidas,
desejava que assim fosse. Ser-lhe-ia excessivamente duro fornecer à
mulher que amava boas notícias do seu rival. Qualquer homem, no seu
lugar, faria o mesmo.
Não que o ferimento de Febo não fosse grave, mas menos do que
aquilo de que o arcediago se vangloriava. O físico, para cuja casa o
haviam transportado imediatamente os soldados da ronda, durante oito
dias receara-lhe pela vida e dissera-lho mesmo em latim. Não obstante,
a mocidade fez valer os seus direitos e, como tantas vezes acontece,
apesar de prognósticos e diagnósticos, a natureza divertiu-se em salvar
o doente mesmo nas barbas do médico. Enquanto ele ainda jazia no
catre do esculápio, Filipe Lheulier e os investigadores do provisor eclesi­
ástico procederam aos primeiros interrogatórios, o que muito aborreceu
o capitão. Por isso, uma bela manhã em que se sentia melhor, deixara as
esporas de ouro como pagamento ao farmacopola e escapulira-se. Isto,
aliás, não trouxera qualquer perturbação à instrução do processo. A jus­
tiça desses tempos importava-se muito pouco com a lisura e clareza dum
processo criminal. Contanto que se enforcasse o réu, não era preciso mais
nada. Ora os juízes dispunham de bastantes provas contra a Esmeralda.
Convenceram-se de que Febo morrera e tudo ficou arrumado.

370
Por seu lado, Febo não fugira para muito longe. Limitara-se sim­
plesmente a voltar para o seu batalhão, que estava aquartelado em
Queue-en-Brie, na Ilha de França, a algumas mudas de Paris.
No fim de contas, não lhe agradava de forma alguma comparecer
pessoalmente nesse j ulgamento. Sentia a vaga impressão de fazer ali
uma ridícula figura. No fundo, não sabia bem o que pensar de toda
aquela questão. Incrédulo e supersticioso, como todo o soldado que não
passa dum soldado, quando se interrogava a si próprio acerca daquela
aventura não ficava muito tranquilo a respeito da cabra, da maneira
estranha como conhecera a Esmeralda, da forma não menos extrava­
gante como ela lhe deixara adivinhar o seu amor, a propósito da sua
qualidade de cigana, enfim, a respeito do fantasma. Entrevia naquela
história muito mais magia do que amor; provavelmente era uma feiti­
ceira, talvez mesmo o Diabo. Para encurtar razões: uma comédia ou,
para falar na linguagem do tempo, um mistério muito desagradável
onde ele representara papel bastante estúpido, o papel das bordoadas e
das chufas. O capitão ficara muito envergonhado. Experimentava essa
espécie de pej o que o nosso La Fontaine tão admiravelmente definiu:

Envergonhado como uma raposa que uma galinha apanhou.

Esperava, aliás, que a questão não se tornasse pública, que o seu


nome, estando ele ausente, fosse apenas pronunciado e mais nada e
que, em qualquer caso, não soasse para além da barra da Tournelle.
Nisso não se enganava muito, pois nesse tempo não existia Gazeta dos
Tribunais e, como quase não se passava uma semana sem o seu moe­
deiro falso cozido, ou a sua feiticeira enforcada, ou o seu herético quei­
mado numa das inúmeras justiças de Paris, já se estava tão habituado
a ver por todas as praças a velha Témis feudal, de mangas arregaçadas
e braços nus, a desempenhar-se da sua tarefa, nas forcas, nas escadas
e nos pelourinhos, que já quase não lhe ligavam importância. A boa
gente dessa época mal conhecia o nome do paciente que passava a
esquina da rua, e, quando muito, era a populaça que se regalava com
esse petisco grosseiro. Uma execução era um incidente habitual da via
pública, tal como uma fogueira ou um açougue. O carrasco não pas­
sava duma espécie de magarefe, um pouco mais carrancudo do que
qualquer outro.

371
Febo, portanto, prontamente descansou o espírito acerca da sedu­
tora Esmeralda, ou Similar, como lhe chamava, a propósito da punha­
lada da cigana ou do fantasma (pouco lhe importava), e a respeito do
resultado do julgamento. Contudo, assim que por esse lado lhe ficou
vago o coração, repôs ali a imagem de Flor-de-lis. É que o coração do
capitão Febo, como a física de então, sentia horror ao vazio.
Era, aliás, uma vida muitíssimo insípida a que levava em Queue­
-en-Brie, aldeia de ferradores e de vaqueiras de mãos gretadas, longo
cordão de casebres e de choças que orlam a estrada real, de ambos os
lados, durante uma meia légua; enfim, uma estopada.
Era Flor-de-lis, a sua penúltima paixão, uma bonita rapariga e um
dote encantador; por isso, uma bela manhã, completamente restabe­
lecido, e presumindo, com razão, que passados dois meses o caso da
cigana devia estar arrumado e esquecido, o apaixonado cavaleiro apa­
receu , todo garboso, à porta da residência dos Gondelaurier.
Não ligou importância a uma chusma bastante numerosa que se
aglomerava na Praça do Adro, em frente do pórtico de Nossa Senhora;
lembrou-se de que se estava no mês de maio; calculou que se tratava
de alguma procissão, de algum Pentecostes, de qualquer festa. Pren­
deu o cavalo à argola do portal e subiu alegremente a escada da sua
formosa noiva.
Encontrou-a sozinha com a mãe.
Flor-de-lis nunca mais se esquecera da cena da feiticeira, da cabra,
do seu alfabeto maldito e das longas ausências de Febo. Contudo,
quando viu entrar o seu capitão, achou-o com tão bom aspeto, com
uma farda tão nova , com um talabarte tão reluzente e um ar tão
apaixonado, que corou de satisfação. Por seu lado, a nobre donzela
estava mais encantadora do que nunca. Os magníficos cabelos lou­
ros j untavam-se numas deliciosas tranças, estava completamente ves­
tida de azul-celeste que fica tão bem às peles brancas, casquilhice que
Colombe lhe ensinara, e espalhava-se-lhe no olhar essa languidez de
amor que ainda melhor lhes fica.
Febo, que no capítulo de beleza nada vira além das labregas de
Queue-en- Brie, ficou extasiado diante de Flor-de-lis, o que imprimiu
ao nosso oficial uns modos tão pressurosos e galantes, que a paz fir­
mou-se imediatamente. A própria senhora de Gondelaurier, sempre
maternalmente sentada na sua enorme poltrona, não teve coragem

372
para se zangar. Quanto às censuras de Flor-de-Lis, expiraram em ter­
nos arrulhas.
A menina estava sentada à j anela, ainda a bordar a sua gruta de
Neptuno. O capitão apoiava-se nas costas da sua cadeira e ela diri­
gia-lhe a meia-voz caridosas censuras.
- Que é feito de vós, seu mau , de há dois longos meses para cá?
- Juro-vos - respondeu Febo, um pouco atrapalhado com a per-
gunta - que sois formosa a ponto de tirar o sono a um arcebispo.
A j ovem não conteve um sorriso.
- Está bem, está bem, senhor. Deixai lá a minha formosura e res­
pondei-me. Bela formosura, não haja dúvida ! . . .
- Pois bem, querida prima, convocaram-me para ficar de guarnição.
- De guarnição onde, fazei favor de me dizer? E porque não viestes
dizer-me adeus?
- Em Queue-en-Brie.
Febo ficou encantado por a primeira pergunta o aj udar a esqui­
var-se à segunda.
- Mas isso é muito perto daqui, senhor! Porque não me visitastes
uma só vez que fosse?
Nesta altura Febo ficou bem seriamente atrapalhado.
- Foi porque . . . o serviço . . . e depois, encantadora prima, estive
doente.
- Doente ! - exclamou a jovem, assustada.
- Sim . . . Ferido.
- Ferido!
A pobre menina ficou completamente transtornada.
- Oh, não vos assusteis por isso ! - disse despreocupadamente Febo.
- Não foi nada. Uma discussão, uma espadeirada; porque vos ralais
com tão pouco?
- Porque me ralo? - protestou Flor-de-Lis, erguendo os lindos olhos
cheios de lágrimas. - Oh! com certeza, ao dizerdes isso não dizeis o que
pensais. Porque foi essa espadeirada? Quero saber tudo !
- Pois bem, bela querida, tive uma discussão com Mahé Fédy . . .
sabeis? . . . o tenente de Saint-Germain-en-Laye . . . e descosemos um ao
outro algumas polegadas de pele e mais nada.
O mentiroso do capitão sabia muito bem que uma pendência de
honra sempre realça um homem aos olhos duma mulher. Efetivamente,

373
Flor-de-lis encarava-o, perturbada pelo medo, pelo prazer e pelo apreço.
Mesmo assim, não ficou totalmente tranquila.
- Contanto que ficásseis completamente curado, meu Febo ! . . . Não
sei quem é esse vosso Mahé Fédy, mas é um homem muito mau. E por­
que foi essa discussão?
Neste ponto, Febo, que era duma imaginação criadora demasiado
medíocre, começou a já não saber como se havia de desenvencilhar
airosamente da proeza.
- Oh! Sei lá ! . . . Uma ninharia, um cavalo, um dito ! Formosa prima
- exclamou , para mudar de conversa -, que bulha é essa aí no Adro?
Chegou-se à janela.
- Oh, meu Deus, formosa prima, tanta gente na praça !
- Não sei - disse Flor-de-lis. - Parece que é uma feiticeira que vai
pedir perdão, esta manhã, diante da igrej a, para depois a enforcarem.
Estava o capitão tão convencido de que o caso da Esmeralda ficara
arrumado, que as palavras de Flor-de-lis pouquíssimo o impressiona­
ram. Todavia , ainda fez uma ou duas perguntas:
- Como se chama essa feiticeira?
- Não sei - respondeu ela .
- E de que a acusam?
A interpelada encolheu mais uma vez os níveos ombros.
- Não sei .
- Oh, Jesus meu Deus! - exclamou a mãe. - Há agora tantos fei-
ticeiros, que parece-me que os queimam mesmo sem saberem como
se chamam. Seria o mesmo que pretender conhecer o nome de cada
nuvem do céu. No fim de contas, podemos ficar descansados. Nosso
Senhor lá tem o Seu registo.
Ditas estas palavras, a venerável dama levantou-se e foi à janela.
- Senhor! - exclamou. - Tendes razão, Febo. Está realmente ali
muito povo. Bendito seja Deus! Até há gente em cima dos telhados.
Sabeis, Febo? Isto faz-me lembrar os meus bons tempos. A entrada do
rei Carlos VI I , quando também se aglomerou assim tanta gente. Já não
me lembro em que ano foi. Quando vos falo destas coisas, isto dá-vos
a impressão de que se trata duma coisa muito antiga, não é verdade?
Mas, para mim, é uma coisa nova. Oh! Era gente muito mais agradável
do que a de agora. Até havia povo em cima dos machicólis da Porta de
Santo António. O rei trazia a rainha à garupa e, atrás de suas altezas,

374
vinham todas as damas na garupa de todos os senhores. Lembro-me
de que se ria muito, porque ao lado de Amanyon de Garlande, que era
muito franzino, vinha o senhor de Matefelon, cavaleiro de gigantesca
estatura que matara ingleses aos montes. Era muito belo. Uma procis­
são de todos os fidalgos de França, com as suas auriflamas a encande­
arem-nos a vista. Havia nobres de pendão e nobres de bandeira. Que
sei eu? O senhor de Calan, de pendão; João de Châteaumorant, de ban­
deira; o senhor de Coucy, de bandeira e com ar mais pomposo do que
qualquer dos outros, com exceção do duque de Bourbon . . . Ai, como é
triste o lembrar-me de que tudo isso existia e que já nada existe !
Os dois namorados não davam ouvidos à respeitável e nobre viúva.
Febo voltara a apoiar-se nas costas da cadeira da noiva, lugar delicioso
de onde o seu olhar libertino mergulhava em todas as aberturas do pei­
tilho de Flor-de-lis. A gorjeira entreabria-se tão a propósito, deixava-lhe
ver tantas encantadoras coisas e adivinhar outras tantas, que Febo, des­
lumbrado por aquela pele de reflexos de cetim, dizia com os seus botões:
"Como se pode amar outra mulher que não sej a uma branca? ! "
Ambos s e mantinham calados. A j ovem erguia para ele, d e vez em
quando, uns olhos encantadores e meigos, e os seus cabelos mistura­
vam-se num raio do Sol da primavera.
- Febo - disse de repente Flor-de-lis, em voz baixa. - Devemos
casar-nos dentro de três meses. Jurai-me que nunca amastes outra
mulher que não fosse eu.
- Juro-vos, belo anj o ! - respondeu Febo, enquanto, com um olhar
apaixonado, procurava convencer Flor-de-lis da sinceridade impri­
mida à resposta. Era capaz, talvez, naquela altura, de ele próprio se
convencer de que falara verdade.
Entretanto a boa mãe, encantada por ver os noivos em tão perfeita
comunhão de ideias, acabava de sair da sala para resolver qualquer
assunto doméstico. Febo reparou nisso e essa solidão incitou de tal
forma o aventuroso capitão, que lhe acudiram ao cérebro ideias algo
extravagantes. Flor-de-lis amava-o, era sua noiva, encontrava-se sozi­
nha com ele; o antigo apetite por ela despertou , não em toda a sua
frescura, mas com todo o ardor; no final de contas, não é um crime por
aí além comer um pouco do seu trigo ainda verde. Não sei se tal ideia
lhe passou pelo espírito, mas o certo foi que Flor-de-lis ficou de súbito
assustada com a expressão do rapaz. Olhou à sua volta e não viu a mãe.

375
- Meu Deus - exclamou, corada e inquieta -, que calor eu tenho!
- Parece-me que, efetivamente - concordou Febo -, pouco falta
para o meio-dia. O sol é incomodativo. Basta correrem-se as cortinas.
- Não, não ! - protestou a pobre pequena. - Pelo contrário, preciso
de ar.
E, como uma corça que sente o resfolegar da matilha, levantou-se,
correu à janela, abriu-a e fugiu para a varanda.
Muito contrariado, Febo seguiu-a.
A Praça do Adro de Nossa Senhora, para a qual, como se sabe, dava
a varanda, oferecia, naquela altura, um espetáculo tão singular e sinis­
tro, que mudou de repente a natureza do medo da tímida Flor-de-lis.
I mensa multidão, que refluía por todas as ruas adjacentes, atravan­
cava o largo propriamente dito. O murozinho de apoio que rodeava o
adro não bastaria para o manter desimpedido se não o guarnecesse
uma espessa muralha de guardas e de soldados de colubrina em
punho. Graças a este matagal de chuços e de arcabuzes, o adro ficara
vazio. Guardava-lhe a entrada o grosso dos alabardeiros, com o brasão
do bispo. As largas portas da igrej a estavam fechadas, em contraste
com as inúmeras janelas da praça que, abertas sobre as empenas, dei­
xavam ver milhares de cabeças empilhadas, quase como os montões
de pelouros num parque de artilharia.
A superfície dessa massa era parda, suj a e terrosa. O espetáculo
que esperavam era evidentemente daqueles que gozam do privilégio
de pôr à vista e de atrair o que de mais imundo existe no interior dum
povo. Nada mais hediondo do que o rumor que subia desse formi­
gueiro de coifas amarelas e de cabeleiras imundas. Nessa multidão
havia mais gargalhadas do que gritos, mais mulheres do que homens.
De vez em quando uma voz áspera e vibrante perfurava o rumor geral.

- Eh, lá, Mahiet Baliffre ! Vão enforcá-la ali?


- Imbecil ! Aqui é a confissão pública, em camisa. O Pai do Céu
vai-lhe tossir latim na cara ! É sempre aqui, ao meio-dia, que isso se
faz. Se é a forca que queres, vai para a Greve !
- Irei depois.

376
- Ouvi lá, oh Boucandry! É verdade que ela não se quis confessar?
- Parece que sim, Bechaigne.
- Imaginai que pagã !

- Senhor, é este o costume. Quando se trata de um leigo, o bailio


do Palácio é obrigado a entregar o malfeitor, depois de j ulgado, ao
preboste de Paris, para que o executem; se é um clérigo, ao provisor
eclesiástico do arcebispado.
- Obrigado, senhor.

- Oh, meu Deus! - murmurou Flor-de-Lis. - Pobre criatura !


Esta ideia enchia de sofrimento o olhar que ela passeava sobre a
turba. O capitão, muito mais interessado nela do que naquele magote
de povo, amarrotava-lhe amorosamente, por detrás, a cintura. A jovem
voltou-se, suplicante e sorridente.
- Por favor, deixai-me, Febo ! Se a minha mãe entrasse, ver-vos-ia
a mão !
Naquele momento, o relógio de Nossa Senhora bateu lentamente o
meio-dia. Soou na multidão um murmúrio de contentamento. Mal se
extinguira a derradeira vibração da duodécima pancada, logo todas as
cabeças se encapelaram como ondas a uma lufada de vento e imenso
clamor subiu da praça, das j anelas e dos telhados:
- Lá vem ela !
Flor-de-Lis pôs as mãos nos olhos para não ver.
- Encanto - convidou-a Febo -, não quereis voltar para dentro?
- Não - respondeu ela; e aqueles olhos que acabava de fechar com
medo, reabriu-os com curiosidade.
Acabara de desembocar no largo, vinda da Rua de São Pedro dos
Bois, uma carroça puxada por um robusto cavalo normando e toda
rodeada de cavalaria, de uniforme violeta com cruzes brancas. Os mei­
rinhos da ronda abriam passagem por entre o povo, à força de basto­
nadas. Ao lado da carroça cavalgavam alguns oficiais de justiça e de

377
polícia, identificáveis pelo trajo negro e pela maneira atrapalhada como
se aguentavam nas selas. À frente deles pavoneava-se mestre Jacques
Charmolue.
Na carruagem fatal ia sentada uma rapariga de braços amarra­
dos atrás das costas e sem padre a sua beira. la em camisa, com os
compridos cabelos pretos (nesse tempo era moda só os cortarem ao
pé da forca) caindo-lhe dispersos sobre a garganta e sobre os ombros
semidescobertos.
Por entre essa ondulante cabeleira, mais reluzente do que as penas
de um corvo, viam-se torcer e prender os nós de uma grossa corda
parda e rugosa que lhe esfolava as frágeis clavículas e se enrolava em
volta do encantador pescoço da pobre rapariga, como uma minhoca
numa flor. Por baixo dessa corda luzia um amuletozinho guarnecido de
missanga verde e que não lhe haviam tirado, decerto porque nada se
recusa aos que vão morrer. Os espectadores postados nas janelas con­
seguiam divisar no fundo da carroça as pernas nuas que a condenada
tentava esconder debaixo de si , num derradeiro instinto feminino. Aos
pés levava uma cabrinha fortemente amarrada. A condenada segurava
com os dentes a camisa mal presa. Dir-se-ia que sofria ainda mais
nessa desgraça de assim ser exposta , quase despida, aos olhares de
todos. Infelizmente, não foi para tais lances que se fez o pudor,
- Jesus! - exclamou de repente Flor-de-Lis para o capitão. - Mas
reparai, belo primo ! É aquela horrível boémia da cabra !
Ao dizer isto, virou-se para Febo. Este tinha os olhos cravados na
carroça e estava muito pálido.
- Qual boémia da cabra? - balbuciou.
- O quê? - exclamou Flor-de-Lis. - Porventura não vos lembrais? . . .
Febo atalhou:
- Não sei o que quereis dizer. . .
Deu um passo para voltar para dentro. Flor-de-Lis, porém, cuj o
ciúme, anteriormente tão espicaçado por aquela mesma cigana, aca­
bava de despertar de novo, lançou-lhe um olhar de penetração e de
desconfiança.
Naquele momento acudiu-lhe vagamente à ideia que ouvira falar
num capitão envolvido no processo de certa feiticeira.
- Que tendes? - perguntou a Febo. - Dir-se-ia que aquela mulher
vos perturbou ! . . .

378
Febo tentou gracejar:
- A mim? De maneira nenhuma !
- Nesse caso, ficai - retorquiu ela, em tom imperioso. - Assistamos
até o fim.
O desastrado capitão não teve outro remédio senão ficar. O que
ainda o tranquilizava um pouco era a condenada não tirar os olhos das
tábuas que lhe serviam de pavimento na carroça. Era efetivamente a
Esmeralda. Naquele último escalão do opróbrio e da infelicidade, con­
tinuava sempre formosa; os seus enormes olhos pretos pareciam ainda
maiores por causa da magreza das faces, o seu perfil lívido era puro e
sublime. Parecia-se com o que fora, tal como uma Virgem de Masaccio
se parece com uma Virgem de Rafael : mais frágil, mais delgada, mais
magra.
Aliás, dir-se-ia que tudo nela ia de certo modo agitado e, com exce­
ção do seu pudor, deixava-se ir ao acaso, de tal maneira o espanto e o
desespero a haviam aniquilado. O corpo cedia a todos os solavancos
da carroça como uma coisa morta ou partida. A expressão do olhar era
apagada e demente. Notava-se-lhe ainda uma lágrima nos olhos, mas
imóvel e, por assim dizer, solidificada.
Entretanto, a lúgubre cavalgada atravessara a multidão por entre
gritos de alegria e atitudes de curiosidade. Devemos, contudo, dizer,
para que se seja historiador fiel, que, quando a viram tão bela e tão
acabrunhada, muitos se comoveram de compaixão e, com eles, os mais
duros. A carroça entrara no adro.
Parou em frente do pórtico central. A escolta postou-se de ambos os
lados, em linha de batalha. A turba emudeceu e, no meio deste silên­
cio cheio de solenidade e de ansiedade, giraram os dois batentes da
enorme porta, como movidos por si próprios sobre os gonzos que ran­
geram com um guincho de pífaro. Viu-se então, em todo o seu compri­
mento, a igreja profunda, sombria, coberta de luto, iluminada apenas
por algumas velas que ao longe cintilavam no altar-mor, aberta , como
uma garganta de caverna no meio da praça ofuscante de luz. Mesmo ao
fundo, na sombra da abside, entrevia-se uma gigantesca cruz de prata,
destacando-se sobre um pano negro que descia da abóbada até o chão.
Toda a nave estava deserta. No entanto, viam-se mexer confusamente,
nos longínquos cadeirais do coro, algumas cabeças de padres, e, na
altura em que a grande porta se abriu, veio da igreja um cântico suave,

379
sonoro e monótono, que atirava , como que em baforadas, para a cara
da condenada fragmentos de lúgubres salmos.
". . . Non timebo millia populi circumdantis me: exsurge, Domine; sal­
vum me fac, Deus!
" . . . Salvum me fac, Deus, quoniam intraverunt aquae usque ad ani­
mam meam.
" . . . In{lxus sum in limo profundi; et non est substantia. ''97
Ao mesmo tempo, outra voz, isolada do coro, entoava no degrau do
altar-mor este melancólico ofertório:
"Qui verbum meum audit, et credit ei qui misit me, habet vitam aeter­
nam et in judicium non venit; sed transit a morte in vitam. •'9a
Este cântico que alguns velhos perdidos nas suas trevas de longe
cantavam àquela formosa criatura, plena de mocidade e de vida, que
o ar tépido da primavera acariciava e inundava de sol, era a missa dos
defuntos.
O povo escutava com recolhimento.
A infeliz, apavorada, parecia errar com a vista e com o pensamento
pelas escuras entranhas da igreja. Mexia os lábios descorados como
numa oração, e quando o aj udante do carrasco se aproximou dela para
a aj udar a descer da carroça, ouviu-lhe repetir em voz baixa estas pala­
vra : Febo.
Desataram-lhe as mãos, obrigaram-na a apear-se, acompanhada
pela cabra que desataram também e que balia de satisfação por se sen­
tir livre, e fizeram-na caminhar pelo rij o laj edo até junto do primeiro
degrau do portal. Arrastava atrás de si a corda que levava amarrada ao
pescoço. Dir-se-ia que uma serpente a seguia.
Então, na igreja, o canto suspendeu-se. Na sombra uma grande cruz
de ouro e uma fila de tochas puseram-se em movimento. Ouviram-se
ressoar as alabardas dos suíços pintalgados e, instantes depois, uma
longa procissão de padres com casulas e de diáconos com dalmáticas,

97 "Não temo as grandes mu ltidões que de todo o lado me cercam. Levanta-Te,


Senhor, salva-me, ó Deus!" (Salmo 3,7).
"Salva-me, ó Deus, porque as águas quase me submergem ". (Salmo 69, 2-3 ) .
"Estou a afu ndar-me num lamaçal profu ndo; n ã o tenho ponto d e apoio. " (idem ) .
9 8 "Em verdade, em verdade vos digo: q u e m o u ve a m i n h a palavra e crê naquele
que me enviou tem a vida eterna e não é sujeito a julgamento, mas passou da morte
para a vida. " (João, V, 24.)

380
que caminhava gravemente e salmodiando em direção à condenada,
apareceu à sua vista e aos olhos da multidão. Contudo, o olhar da rapa­
riga deteve-se naquele que vinha à frente, logo a seguir ao cruciferário ;
estremeceu e murmurou baixinho:
- Oh! Ele outra vez! O padre !
Era efetivamente o arcediago. Tinha à esquerda o subchantre e à
direita o chantre armado da vara do seu ofício. Avançava, de cabeça
inclinada para trás, os olhos fixos e abertos, cantando com voz forte:

"De ventre inferi clama vi, et exaudisti voeem meam,


"Et projecisti me in profundum in carde maris, et flumen
circumdedit me". 99

No momento em que apareceu em plena luz debaixo do alto portal


em ogiva, envolto numa ampla capa de prata de asperges com uma
cruz negra, estava tão pálido, que mais de uma pessoa, na multidão,
imaginou tratar-se de um dos bispos de mármore, ajoelhados nas
pedras sepulcrais do coro, que se levantara e viera receber ao limiar do
túmulo aquela que ia morrer.
Esta, não menos pálida e não menos estátua, mal reparou que lhe
haviam metido na mão uma pesada tocha acesa de cera amarela; não
ouviu a voz esganiçada do escrivão a ler o texto fatal da confissão pública;
quando lhe tinham dito que respondesse Amen ela respondera Amen. Para
lhe insuflarem alguma vida e alguma força, foi preciso que visse o padre
fazer aos guardas sinal de que se afastassem e avançar sozinho para ela.
Sentiu então que o sangue lhe fervia na cabeça e um resto de indig­
nação reacendeu-se naquela alma já entorpecida e fria.
O arcediago aproximou-se dela lentamente. Mesmo naquele momento
extremo, viu-o passear-lhe sobre a nudez um olhar a luzir de luxúria, de
ciúme e de desejo. Depois, ele proferiu em voz alta:
- Rapariga, pedistes perdão a Deus pelos vossos erros e pelas vos­
sas faltas?
Inclinou-se para o ouvido da jovem e acrescentou (os espectadores
supuseram que lhe estava a receber a última confissão) :

9 9 "Clamei a t i do meio d a morada dos mortos e Tu ouviste a minha voz. Lançaste-me


ao abismo, ao seio dos mares, e as correntes das águas envolveram-me. " (Jn 2, 1-4)

38 1
- Queres-me? Ainda te posso salvar!
Ela olhou-o com fixidez e respondeu:
- Vai-te, demónio, senão denuncio-te !
Ele redarguiu-lhe com um sorriso horrível:
- Não te acreditavam. Apenas acrescentarias um escândalo a um
crime. Responde depressa ! Queres-me?
- Que fizeste do meu Febo?
- Morreu - respondeu o padre.
Nesse momento, o miserável arcediago ergueu maquinalmente a
cabeça e viu no outro extremo da praça, à varanda da residência dos
Gondelaurier, o capitão, de pé, junto de Flor-de-lis. Estremeceu, passou
a mão pelos olhos, olhou de novo, murmurou uma maldição e todas as
feições se lhe contraíram com violência. Entre dentes murmurou:
- Pois bem ! Morre ! Ninguém te possuirá.
Então ergueu a mão sobre a cigana e bradou numa inflexão fúnebre:
- I nunc, animta anceps, et sit tibi Deus misericors!1°0
Era a temível fórmula com que costumavam encerrar estas sombrias
cerimónias. Era o sinal combinado do padre para o carrasco.
O povo aj oelhou .
- Kyrie Eleison - rezaram os padres que tinham ficado sob a ogiva
do portal.
- Kyrie Eleison - repetia a turba com esse murmúrio que corre por
cima de todas as cabeças como o marulho de um mar agitado.
- Amen - respondeu o arcediago.
Voltou as costas à condenada, de novo descaiu a cabeça sobre o peito,
cruzou as mãos, voltou para junto do seu cortejo sacerdotal e dali a um
momento viram-no desaparecer com a cruz, as tochas e os pluviais, sob
as arcadas enevoadas da catedral, e a sua voz sonora foi-se gradualmente
extinguindo no coro, enquanto cantava este versículo de desespero:
"Omnes gurgites tui et fluctus tui super me transierunt! "101
Ao mesmo tempo o intermitente martelar dos contos ferrados das
alabardas dos suíços, morrendo a pouco e pouco sob os intercolúnios
da nave, causava o efeito da pancada do relógio a bater a última hora
da condenada.

1 0º
"Vai agora, alma ambígua, e que Deus tenha misericórdia de ti! "
w• "As tuas vagas e torrentes passaram sobre m i m ! " (SI 4 1 ,8)

382
Entretanto, as portas de Nossa Senhora haviam ficado abertas, mos­
trando a igrej a vazia, desolada, de luto, sem velas e sem voz.
A condenada ficou imóvel no seu lugar, à espera de que dispuses­
sem dela. Um dos meirinhos de vara teve de chamar então mestre
Charrnolue, o qual durante toda esta cena se consagrara ao estudo do
baixo-relevo do grande pórtico, que, segundo uns, representa o sacrifí­
cio de Abraão e, segundo outros, a operação filosofal em que um anj o
figura o Sol, o molho de lenha o fo g o e Abraão o artífice.
Tiveram bastante dificuldade para o arrancar a essa contemplação,
mas acabou por se voltar e, a um sinal que fez para dois homens ves­
tidos de amarelo, os ajudantes do carrasco aproximaram-se da cigana
para lhe atarem outra vez as mãos.
Quando a infeliz subia novamente para a fatal carroça e se encami­
nhava para a última estação, assaltou-a talvez certa dilacerante saudade
da vida. Ergueu os olhos avermelhados e secos para o céu, para o Sol,
para as nuvens de prata cortadas num ponto e noutro por trapézios e por
triângulos azuis, depois desceu a vista em torno de si, para a terra, para
a multidão, para os prédios . . . De repente, enquanto o homem de ama­
relo lhe atava os cotovelos, soltou um grito terrível, um grito de alegria.
Lá em baixo naquela varanda, à esquina da praça, acabara de o
avistar a ele, ao seu amigo, ao seu senhor, a Febo, à outra aparição da
sua vida! O j uiz mentira ! O padre mentira ! Era deveras ele, disso não
lhe restava a menor dúvida; estava ali, belo, vivo, envergando o des­
lumbrante uniforme, de plumas na cabeça e de espada à cinta !
- Febo! - bradou. - Meu Febo!
Quis estender para ele os braços a tremerem de amor e de arrebata­
mento, mas tinha-os amarrados.
Viu então o capitão carregar as sobrancelhas, urna rapariga muito
bonita que se encostava a ele fitá-lo com olhos irritados e lábios de
desprezo, depois Febo pronunciar algumas palavras que não chegaram
até ela e os dois eclipsarem-se precipitadamente por detrás da vidraça
da varanda que se fechou.
- Febo! - gritou desesperadamente a cigana. - Porventura acreditas
nisto?
Ocorrera-lhe naquele instante urna monstruosa ideia. Lembrou-se
de que fora condenada por homicídio contra a pessoa de Febo de
Châteaupers.

383
Até aquela altura suportara tudo. Mas esse último golpe era severo
de mais. Caiu imóvel no laj edo.
-Vamos - ordenou Charmolue. - Levai-a para a carroça e acabemos
com isto !
Ainda ninguém atentara em que, na galeria das estátuas dos reis,
esculpidos logo por cima das ogivas do pórtico, estava um estranho
espectador que até aquela altura assistira a tudo com tal impassi­
bilidade, d e pescoço tão espetado, de semblante tão disforme, que,
se não fosse a sua farpela metade vermelha e metade violeta, con­
fundi-lo-iam com um desses monstros de pedra por cuj a goela se
despejam, há seiscentos anos, as longas goteiras da catedral. Esse
espectador nada perdera do que se passara desde o meio-dia em
frente do portal de Nossa Senhora. E desde os primeiros instantes,
sem que ninguém se lembrasse de nisso reparar, amarrara forte­
mente a uma das colunetas da galeria uma grossa corda com nós,
cuj a ponta se arrastava lá em baixo sobre a escadaria. Feito isso,
passara a observar com toda a tranquilidade e a assobiar de vez em
quando sempre que um melro lhe passava pela frente. D e súbito, na
altura em que os aj udantes do carrasco se preparavam para obede­
cer à fleumática ordem de Charmolue, passou a perna por cima da
balaustrada da galeria, agarrou a corda com os pés, os j oelhos e as
mãos, e depois viram-no escorregar pela fachada, como um pingo
de chuva desliza ao longo duma vidraça , de seguida correr para os
dois verdugos com a rapidez dum gato caído do telhado, derrubá-los
com dois enormes murros, com uma das mãos erguer a egípcia, tal
como uma criança pega numa boneca, e , de um pulo, saltar para a
ig rej a , erguendo a infeliz acima da sua cabeça e bradando com voz
formidável :
- Asilo !
Aconteceu tudo tão depressa que, se fosse de noite, observar-se-ia
toda a cena ao clarão de um único relâmpago.
- Asilo ! Asilo ! - repetiu a multidão e logo dez mil mãos aplaudiram,
arrancando fulgores de contentamento e de orgulho do único olho de
Quasímodo.
O abalo restituiu a consciência à condenada. Levantou as pálpebras,
viu Quasímodo e depois fechou-as outra vez, de repente, como assus­
tada com o seu salvador.

384
Charmolue ficou estupefacto, bem como os algozes e a escolta toda.
Efetivamente, de portas adentro de Nossa Senhora a condenada era
inviolável. A catedral era um lugar de refúgio. Qualquer justiça humana
expirava à sua porta.
Quasímodo deteve-se sob o grande portal. Os pés enormes pare­
ciam tão firmes sobre o pavimento da igrej a como os pesados pilares
romanos. Enterrava-se-lhe nos ombros a volumosa cabeça cabe­
luda, igual às dos leões, que também têm j uba mas não pescoço.
Conservava a j ovem, palpitante, suspensa das suas mãos calosas,
como uma roupagem branca , mas sustinha-a com tamanhas pre­
cauções, que parecia recear parti-la ou murchá-la. Dir-se-ia perce­
ber que se tratava duma coisa delicada, rara e preciosa, feita para
outras mãos diferentes das suas. Por instantes, parecia mesmo não
se atrever a tocar-lhe nem sequer com o hálito. Depois, de repente,
estreitou-a nos braços contra o seu peito anguloso, como um bem
muito seu, como se fosse o seu tesouro, como se fosse a mãe daquela
criança. O olho do gnomo, descido sobre ela, inundava-a de ternura,
de dor e de compaixão, e erguia-se outra vez, de golpe, a esfuziar
relâmpagos. Enquanto as mulheres riam e choravam, a multidão
batia, entusiasmada, com os pés no chão, porque naquele momento
Quasímodo possuía deveras a sua beleza . Sim, era belo aquele órfão,
aquele enj eitado, aquele rebatalho que se sentia augusto e forte, que
olhava cara a cara para essa sociedade que o banira e na qual tão
poderosamente intervinha, para essa justiça humana a que arreba­
tara a presa , para todos esses tigres obrigados a ficarem a mastigar
em seco, para esses esbirros, esses j uízes, esses carrascos, para toda
essa força do rei que ele acabava de quebrar, ele, o mais pequeno de
todos, com a força de Deus!
E depois era uma coisa impressionante que essa proteção viesse de
um ser tão disforme sobre um ser tão infeliz; que Quasímodo salvasse
uma condenada à morte. Eram as duas misérias extremas da natureza
e da sociedade que se contactavam e se aj udavam reciprocamente.
Todavia, depois de alguns minutos de triunfo, Quasímodo enfiou
de repente pela igrej a, com o seu fardo. O povo, apreciador de toda
a espécie de proezas, procurava com a vista na sombria nave, las­
timando que tão depressa se furtasse aos seus aplausos. De súbito,
tornaram a vê-lo surgir numa das extremidades da galeria dos reis

385
da França, que atravessou a correr como um insensato, erguendo nos
braços a sua conquista e bradando:
- Asilo!
A multidão estrugiu de novo em aplausos. Depois de atravessar a
galeria, Quasímodo tornou a desaparecer no interior da igreja. Dali a
instantes reapareceu na plataforma superior, sempre com a cigana nos
braços, sempre como um doido a correr e sempre a gritar:
- Asilo!
E o povo a aplaudir. Por fim apareceu pela terceira vez no cimo da
torre do sino grande; desse ponto pareceu mostrar, orgulhosamente, a
toda a cidade aquela que salvara , e a sua voz trovejante, essa voz que
tão raras vezes se ouvia e que ele nunca ouvia, repetiu por três vezes
com frenesi que chegou às nuvens:
- Asilo ! Asilo ! Asilo !
- Viva ! Viva ! - bradou por sua vez a turba, e essa imensa aclamação
ia surpreender, na outra margem, a multidão da Greve e a reclusa que
continuava à espera, com a vista cravada na forca.

386
LIVRO NONO

Febre

Cláudio Frollo já não estava em Nossa Senhora quando o seu filho


adotivo tão bruscamente cortou o nó fatal em que o desgraçado arce­
diago prendera a cigana e se prendera a si mesmo. Entrando na sacris­
tia, arrancara a alva, o pluvial e a estola, atirara com tudo para as mãos
do estupefacto bedel, enfiara pela porta escura do claustro, ordenara a
um barqueiro do Terrain que o transportasse para a margem esquerda
do Sena e embrenhara-se nas ruas acidentadas da Universidade sem
saber para onde ir, cruzando-se a todo o momento com grupos de
homens e de mulheres que se dirigiam alegremente para a Ponte de
São Miguel, na esperança de ainda chegarem a tempo de verem enforcar
a feiticeira . la pálido, alucinado, mais transtornado, mais cego e feroz
do que uma ave noturna estremunhada e perseguida, em pleno dia,
por um bando de crianças. Já nem sabia onde estava, no que pensava
e se sonhava. Lá ia, caminhava, corria, enfiando ao acaso por qualquer
rua, sem escolher, apenas impelido sempre para a frente pela Greve,
pela horrível Greve que ele, confusamente sentia ficar-lhe para trás.
Seguiu assim ao longo da montanha de Santa Genoveva e acabou
por sair da cidade pela Porta de São Vítor. Continuou à fugir enquanto
pôde ver, voltando-se, a cercadura de torres da Universidade e as raras
casas do arrabalde; mas quando, finalmente, uma prega do terreno lhe
furtou por completo a vista dessa odiosa Paris, quando se pôde j ulgar
a cem léguas de distância, nos campos, no deserto, parou e pareceu-lhe
que respirava.
Então temíveis ideias lhe comprimiram o espírito. Viu a claro na
sua alma e estremeceu . Pensou naquela infeliz rapariga que o perdera

387
e que ele perdera . Passeou o olhar esgazeado pela dupla via tortuosa
que a fatalidade fizera os seus dois destinos percorrerem, até o ponto
de interceção onde impiedosamente os despedaçara um contra o outro.
Pensou na loucura dos votos eternos, na fragilidade da castidade, da
ciência, da religião, da virtude, na inutilidade de Deus. Mergulhou
ardorosamente nos maus pensamentos, e quanto mais mergulhava
mais sentia estrugir dentro de si uma gargalhada satânica.
Ao escavar assim a própria alma, quando notou o amplo espaço
que nela a natureza preparara para as paixões, riu-se ainda com maior
amargura. Remexeu no fundo do coração todo o seu ódio, toda a sua
malvadez, e reconheceu, com o olhar glacial do médico que observa
um doente, que esse ódio, essa malvadez mais não eram do que amor
viciado; que o amor, essa fonte de todas as virtudes do homem, se
transformava, num coração de padre, em coisas horríveis e que um
homem constituído como ele, fazendo-se padre, fazia-se demónio.
Desatou então assustadoramente a rir. De súbito, empalideceu ao con­
siderar o lado mais sinistro da sua paixão fatal, desse amor corrosivo,
venenoso, odiento, implacável, que apenas conduzira uma à forca, o
outro ao Inferno: ela condenada à morte, ele maldito, condenado às
penas eternas.
Depois voltou a rir-se quando se lembrou de que Febo estava vivo;
que, no fim de contas, o capitão vivia, andava alegre e contente, enver­
gava a mais vistosa farda que até ali vestira e possuía uma nova amante
que ele convidara para irem ver enforcar a anterior. O riso escarninho
redobrou quando Frollo refletiu que, dos seres vivos a quem desejara
a morte, a cigana, a única criatura a quem não odiava, era a única que
não escapava.
Em seguida, do capitão passou a pensar no povo, e surgiu-lhe um
ciúme duma inaudita espécie; lembrou-se de que também o povo, o povo
todo, gozara o espetáculo da mulher que ele amava, vestida apenas com
a camisa, quase nua. Torceu os braços ao pensar que essa mulher, cujas
formas entrevistas na sombra só por ele teriam constituído a sua felici­
dade suprema, tinham sido expostas em pleno dia, em pleno meio-dia,
a um povo inteiro, vestida como para uma noite de volúpia. Chorou de
raiva sobre todos esses mistérios de amor profanados, conspurcados,
desnudados, murchas para sempre. Chorou de raiva ao imaginar quan­
tos olhares imundos haviam dado conta dessa camisa mal presa e como

388
essa formosa rapariga, esse lírio virgem, essa taça de pudor e de delícias,
de que não se atrevera a aproximar os lábios senão a tremer, acabava
de ser transformada numa espécie de gamela pública onde a mais vil
populaça de Paris - os gatunos, os mendigos, os lacaios - tinham vindo
beber em comum num prazer afrontoso, impuro e depravado.
E quando procurava formar uma ideia da felicidade que ele pode­
ria encontrar na terra se ela não fosse cigana e ele não fosse padre, se
Febo não existisse e se ela lhe consagrasse amor; quando idealizou que
também para ele poderia ser possível uma vida de calma e de afeto, que
havia, naquela altura precisa, aqui e além, sobre a terra, casais felizes,
perdidos em longos devaneios sob os laranjais, na margem dos regatos,
em presença dum sol-poente ou duma noite estrelada, e que, se Deus
quisesse, ele poderia formar com ela um desses lares abençoados, o
coração fundia-se-lhe em ternura e em desespero.
Oh, ela, sempre ela ! Era esta ideia fixa que voltava constantemente,
que o torturava, que lhe mordia o cérebro e que lhe retalhava as entra­
nhas. Não tinha pena, não se arrependia; tudo o que fizera estava pronto
a repeti-lo; antes queria vê-la nas mãos do carrasco do que nos braços
do capitão, mas ele sofria, e sofria tanto que, por instantes, arrancou
cabelos às mãos-cheias para ver se não tinham embranquecido.
Houve entre outros um momento em que lhe acudiu a ideia de que
era talvez aquele o minuto em que a hedionda corrente, que de manhã
vira, fechava o nó de ferro em volta daquele pescoço tão frágil e tão
gracioso. Este pensamento fez-lhe saltar o suor por todos os poros.
Houve outra ocasião em que, enquanto se ria diabolicamente de si
próprio, imaginou simultaneamente a Esmeralda tal como a vira no pri­
meiro dia, animada, despreocupada, alegre, enfeitada, dançante, alada,
harmoniosa, e a Esmeralda do dia derradeiro, em camisa e subindo
lentamente, descalça , de corda ao pescoço, a angulosa escada da forca;
visionou de tal forma este duplo quadro, que soltou um grito terrível.
Enquanto esse furacão de desespero transtornava, despedaçava,
arrancava, torcia e desenraizava tudo na sua alma, observou a natu­
reza à sua roda. A seus pés, umas galinhas remexiam, a debicar, no
matagal; os escaravelhos esmaltados corriam ao sol; por cima da sua
cabeça, alguns grupos de nuvens, pardas e arredondadas, fugiam num
céu azul; no horizonte, a flecha da abadia de São Vítor furava a curva
da colina com o seu obelisco de ardósia e o moleiro do alto de Copeaux

389
observava , assobiando, o giro das asas laboriosas do seu moinho. Toda
esta vida ativa , organizada, tranquila, que à sua volta se reproduzia
debaixo de mil formas, fez-lhe mal. Recomeçou a fugir.
Assim correu por entre os campos até anoitecer. Esta fuga à natu­
reza, à vida, a si mesmo, ao homem, a Deus, a tudo, durou o dia inteiro.
Umas vezes atirava-se de cara para o chão e com as unhas arrancava os
pés de trigo ainda pouco crescidos. Outras vezes parava na rua duma
aldeia deserta , mas os seus pensamentos eram tão insuportáveis, que
agarrava a cabeça com as duas mãos e tentava arrancá-la dos ombros
para a despedaçar contra o solo.
Aí pela hora em que o Sol declinava, examinou-se de novo e reco­
nheceu-se quase louco. A tempestade que nele durava desde o ins­
tante em que perdera a esperança e a vontade de salvar a cigana, essa
tempestade não lhe deixara na consciência uma única ideia sã, um só
pensamento de pé. Jazia ali a razão quase por completo destruída. Não
via mais do que duas imagens distintas no espírito: a Esmeralda e a
forca . Todo o resto era treva. Estas duas imagens aproximadas apre­
sentavam-lhe um grupo horrível , e quanto mais nelas fixava o que lhe
restava de atenção e de pensamento, mais as via aumentar de acordo
com uma progressão fantástica, uma enchendo-se de graciosidade, de
encanto, de formosura, de luz, a outra de horror; de forma que, por fim,
a Esmeralda surgia-lhe como uma estrela e a forca como um enorme
braço descarnado.
Uma coisa notável é que, durante toda esta tortura, não lhe ocorreu
a sério a ideia de morrer. O miserável era feito assim. Conservava o
apego à vida; talvez avistasse realmente, por detrás dela, o Inferno.
Entretanto continuava a anoitecer. O ente vivo que ainda existia
nele lembrou-se confusamente de regressar. Julgava-se longe de Paris,
mas, orientando-se, percebeu que mais não fizera do que andar à roda
do recinto da Universidade. A flecha de Saint-Sulpice e as três altas
agulhas de Saint-Germain-des-Prés avultavam à direita do horizonte.
Encaminhou-se para esse lado. Quando ouviu o "quem vem lá?" dos
guardas do abade, em volta da circunvalação ameada de Saint-Germain,
voltou-se, meteu por um atalho que se lhe ofereceu entre o moinho da
abadia e a gafaria do burgo, e ao cabo de instantes encontrou-se na orla
do Pré-aux-Clercs. Este prado celebrizara-se pelos tumultos que ali reben­
tavam de dia e de noite; era a hidra dos pobres frades de Saint-Germain,

390
quod monachis Sancti-Germani pratensis hydra fuit, clericis nova semper
dissidiorum capita suscitantibus1 02. O arcediago receava encontrar ali
alguém; tinha medo de qualquer rosto humano; acabava de evitar a
Universidade, o burgo de Saint-Germain, e não queria entrar outra vez
nas ruas senão o mais tarde possível. Seguiu ao longo do Pré-aux-Clercs,
meteu por um atalho deserto e que o separava do Dieu-Neuf e alcançou
finalmente a margem do rio. Aqui, D. Cláudio encontrou um barqueiro
que, a troco de alguns dinheiros parísios, o conduziu pelo Sena acima
até à ponta da Cité e o depôs naquela língua de terra abandonada, onde
o leitor já viu Gringoire meditando e que se prolongava para além dos
jardins reais, em paralelo com a ilha do Passador de Vacas.
A monótona ondulação do barco e o murmúrio da água provocaram
certo entorpecimento no desgraçado Cláudio. Depois de o barqueiro se
afastar, ficou estupidamente especado na praia, a olhar para a frente
mas sem já distinguir os objetos senão por entre oscilações amplifica­
doras que lhe deformavam tudo como que numa espécie de fantasma­
goria. Não é raro que o cansaço provocado por um grande sofrimento
cause no espírito este efeito.
O Sol desaparecera por detrás da alta Torre de Nesle. Era o momento
do crepúsculo. O céu estava branco, a água do rio estava branca. Entre
estas duas brancuras, a margem esquerda do Sena, na qual cravara
os olhos, proj etava a sua massa sombria e, cada vez mais esbatida
pela perspetiva, mergulhava na neblina do horizonte como uma flecha
preta. Essa margem estava carregada de casas, de que apenas se aper­
cebia o contorno escuro, vivamente destacado em trevas contra o fundo
claro do céu e da água. Aqui e ali as j anelas começavam a cintilar como
orifícios em brasa. Esse imenso obelisco negro, isolado assim entre as
duas toalhas brancas do céu e do rio, o qual, naquele ponto, era muito
largo, causou a D. Cláudio uma impressão singular, comparável à que
sentiria um homem que, deitado de costas no chão, ao pé do campa­
nário de Estrasburgo, visse a enorme agulha enfiar, por cima da sua
cabeça, nas penumbras do crepúsculo. Apenas com a diferença de que
aqui era Cláudio que estava de pé, e o obelisco, deitado; como, porém,
o rio, ao mesmo tempo que refletia o céu, prolongava o abismo por

1 02
Que para os monges de Saint-Germain-des-Prés foi uma hidra,
suscitando sempre os clérigos novas causas de disputas.

391
baixo dele, o imenso promontório parecia tão ousadamente lançado no
espaço como qualquer flecha de catedral; e a impressão era a mesma.
Esta impressão tinha até isto de singular e de mais profundo: era deve­
ras o campanário de Estrasburgo, mas um campanário de Estrasburgo
com a altura de duas léguas - qualquer coisa de inaudito, de gigan­
tesco, de incomensurável; um edifício como nunca olhares humanos
alguma vez tinham visto ; uma torre de Babel. As chaminés das casas,
as ameias das muralhas, as empenas recortadas dos telhados, a flecha
dos Agostinhos, a Torre de Nesle, todas essas saliências que abriam
brecha no perfil do colossal obelisco, aumentavam a ilusão, represen­
tando extravagantemente, em relação à vista, o mesmo que os recortes
duma escultura frondosa e fantástica. No estado de alucinação em que
se encontrava, Cláudio j ulgou ver, ver com os seus próprios olhos, o
campanário do Inferno; as mil luzes espalhadas por toda a altura da
torre espantosa pareceram-lhe outros tantos pórticos da imensa forna­
lha interior; as vozes e os rumores que dali saíam, outros tantos gritos,
outros tantos estertores. Então apavorou-se, pôs as mãos nos ouvidos
para não ouvir mais, voltou as costas para não ver mais, e, a passo
largo, afastou-se da visão assustadora.
Mas a visão estava dentro dele.
Quando regressou às ruas, os transeuntes que se acotovelavam à
claridade das portas das lojas causavam-lhe o efeito de um eterno vai­
vém de espectros à sua roda . Sentia nos ouvidos estranhos estrondos.
Fantasias extraordinárias perturbavam-lhe o espírito. Não via nem as
casas, nem o chão, nem as carroças, nem os homens, nem as mulheres,
mas sim um caos de obj etos indeterminados que pelas extremidades
se fundiam uns nos outros. À esquina da Rua da Tanoaria havia uma
tenda cujo alpendre estava , conforme um costume imemorial, guarne­
cido a toda a volta com esses aros de folha, dos quais pendia um círculo
de velas de pau que, batendo com o vento umas nas outras, produ­
zem um som de castanholas. Pareceu-lhe ouvir na sombra agitar-se o
molho de esqueletos de M ontfaucon.
- Oh! - murmurou . - O vento da noite atira uns contra os outros e
mistura o tinir das correntes com o ruído dos ossos! Talvez ela esteja
ali entre eles!
Desorientado, não soube para onde ia. Após dar alguns passos, viu-se
em cima da Ponte de S. Miguel. Na janela de um rés do chão havia luz.

392
Aproximou-se. Através do vidro rachado notou uma sala sórdida que lhe
acordou no espírito uma recordação confusa. Nessa sala mal iluminada
por um tíbio candeeiro estava um rapaz louro e vigoroso, de cara j uve­
nil, que abraçava , entre estrondosas gargalhadas, uma rapariga espa­
ventosamente enfeitada. E, j unto do candeeiro, estava uma velha a fiar
e cantando numa voz trémula. Como o j ovem nem sempre ria, a canção
da velha chegava, aos bocados, até os ouvidos do padre. Era algo de
ininteligível e medonho:

Greve, ladra, Greve, ruge!


Fia, fia, minha roca,
Fia a corda para o carrasco,
A assobiar lá no pátio.
Greve, ladra, Greve, ruge!

A bela corda de cânhamo!


Semeai de Issy a Vanure
Cânhamo e não trigo.
O gatuno não roubou
A bela corda de cânhamo.

Greve, ruge, Greve, ladra!


Para ver aquela galdéria
Pendurada na forca ramelosa,
As janelas são os olhos.
Greve, ruge, Greve, ladra!

Entretanto, o moço ria e afagava a companheira. A velha era a


Falourdel; a rapariga, uma mulher pública; o rapaz era Jehan, o j ovem
irmão de D. Cláudio.
Este continuou a observar. Tanto valia aquele espetáculo como outro
qualquer.
Viu Jehan assomar a uma j anela que ficava ao fundo da sala, abri-la,
lançar uma olhadela para o cais, onde ao longe luziam mil vidraças
iluminadas, e ouviu-o dizer ao fechar a janela:
- Por minha alma! Já é noite. Os burgueses acendem as suas velas
e o Pai do Céu as suas estrelas.

393
De seguida Jehan voltou para junto da galdéria e partiu uma gar­
rafa que estava em cima duma mesa, exclamando:
- Já vazia, com mil diabos! E eu sem dinheiro ! Isabel, minha que­
rida, só ficarei satisfeito com Júpiter quando ele vos transformar esses
dois mamilos brancos em duas garrafas pretas, onde dia e noite suga­
rei vinho de Beaune.
Este lindo gracej o provocou o riso da rapariga, e Jehan saiu.
O. Cláudio só teve tempo para se atirar ao chão, a fim de que o irmão
não o encontrasse, esbarrasse com ele e o reconhecesse. Felizmente a
rua estava escura e o estudante bêbado. Mesmo assim, descobriu o
arcediago deitado em cima da lama e comentou:
- Oh! Oh! Aqui está um que hoj e levou a vida alegremente.
Com o pé empurrou O. Cláudio, que continha a respiração.
- Bêbado como um cacho - comentou Jehan. - Está completamente
bêbado! Uma autêntica sanguessuga desprendida duma pipa. É careca
- acrescentou, baixando-se. É um velho! Fortunate senexf1 03
-

A seguir, O. Cláudio ouviu que ele se afastava dizendo:


- Vem a dar na mesma. O juízo é uma coisa muito bonita e meu
mano arcediago tem muita sorte por ser sensato e dispor de dinheiro.
O arcediago levantou-se então e, esfalfado, correu para Nossa Senhora,
cujas torres enormes via surgirem na sombra por cima dos prédios.
Na altura em que chegou ofegante à Praça do Adro, recuou e não se
atreveu a erguer os olhos para o funesto edifício. Disse em voz baixa:
- Oh! É portanto bem verdade que uma coisa dessas aqui, hoj e
mesmo, nesta mesma manhã, aconteceu !
Entretanto conseguiu coragem para contemplar a igreja. Estava
escura a fachada. Por detrás o céu cintilava de estrelas. O crescente,
que acabava de subir no horizonte, parara por instantes por cima da
torre da direita e parecia empoleirado, como um pássaro luminoso, na
borda da balaustrada recortada em trevas negros.
A porta do claustro estava fechada, mas o arcediago trazia sempre
consigo a chave da torre onde tinha o laboratório. Utilizou-a para entrar
na igrej a.
Encontrou aqui uma escuridão e um silêncio de caverna. Pelas som­
bras enormes que amplamente desciam por todos os lados percebeu

103
Feliz velho! - (Virgílio, Bucólicas, 1 , 46).

394
que ainda não haviam desmanchado a armação da cerimónia dessa
manhã. A enorme cruz de prata cintilava ao fundo das trevas, salpi­
cada por pontos luminosos, como a via-láctea dessa noite de sepulcro.
As altas janelas do coro mostravam por cima dos panos negros a extre­
midade superior das ogivas, onde os vitrais, atravessados pelo luar,
apenas ofereciam as cores duvidosas da noite, uma espécie de violeta,
de branco e de azul, tons esses que só se encontram nas faces dos
mortos. O sacerdote, ao divisar a toda a volta do coro essas lívidas
pontas das ogivas, imaginou ver mitras de bispos condenados às penas
eternas. Cerrou os olhos e, ao tornar a abri-los, convenceu-se de que o
olhava um círculo de rostos lívidos.
Desatou a fugir pela igreja adiante. Então pareceu-lhe que tam­
bém a igrej a oscilava, se agitava, se animava, adquiria vida; que cada
grossa coluna se transformava numa enorme pata que batia no chão
com a larga espátula de pedra, e que a gigantesca catedral mais não
era do que uma espécie de prodigioso elefante, a resfolegar e caminhar
tendo por pés os pilares, por trombas as duas torres e por carapaça a
imensa cobertura negra.
Deste modo a febre ou a loucura tinham atingido tal grau de inten­
sidade, que o mundo exterior passou a ser, para o infortunado, como
que um apocalipse, palpável, medonho.
Por instantes sentiu-se aliviado. Quando enfiou pelas baixas abóba­
das laterais, vislumbrou, para além de um maciço de pilares, um cla­
rão avermelhado. Correu para ele como para uma estrela. Era a pobre
lamparina que noite e dia iluminava o breviário público de Nossa
Senhora, resguardado sob a sua grade de ferro. Lançou-se avidamente
sobre o livro santo, na esperança de ali encontrar qualquer consolação
ou qualquer encoraj amento. Estava aberto o livro nesta passagem de
Job, pela qual passeou fixamente os olhos: "Um sopro perpassou pelo
meu rosto e arrepiaram-se-me todos os pelos do corpo ! "
A esta lúgubre leitura, sentiu o mesmo que o cego que sofre a pan­
cada do bastão que levantou do solo. Dobraram-se-lhe os joelhos e ele
tombou no lajedo, a pensar naquela que nesse dia morrera. Sentia passa­
rem e expandirem-se-lhe pelo cérebro tantos fumos monstruosos que lhe
parecia que a cabeça se lhe transformara numa das chaminés do Inferno.
Deve ter ficado longo tempo neste estado, sem pensar, aniquilado e
passivo sob a mão do Demónio. Finalmente recuperou algumas forças

395
e lembrou-se de se ir refugiar na torre, junto do seu fiel Quasímodo.
Levantou-se e, como estava com medo, levou para se alumiar a lâm­
pada do breviário. Era um sacrilégio, mas não se encontrava em condi­
ções de se preocupar com tão pouco.
Subiu devagar a escada das torres, tomado do secreto terror que
aos raros transeuntes do adro devia propagar a luz misteriosa da sua
lâmpada a subir, a hora tão tardia, de seteira em seteira , até o cimo do
campanário.
De repente, sentiu no rosto certa frescura e encontrou-se debaixo
da porta da galeria mais alta. O ar estava frio; pelo céu arrastavam-se
nuvens cuj as largas lâminas brancas se estendiam umas por cima das
outras, esmigalhando-se nos cantos e figurando a cheia de um rio no
inverno. O crescente da Lua, encalhado no meio das nuvens, parecia
um navio celeste apanhado naqueles blocos aéreos de gelo.
O padre baixou os olhos e, por instantes, contemplou , entre a rede
de colunelos que liga as duas torres, ao longe, através de um véu de
brumas e de fumos, a multidão silenciosa dos telhados de Paris, bicu­
dos, inúmeros, comprimidos e pequenos como as ondas de um mar
calmo numa noite de verão.
A Lua proj etava uma débil claridade que dava ao céu e à terra um
tom de cinza.
Nessa altura o relógio fez ouvir a sua voz aguda e fanhosa. Bateu a
meia-noite. O sacerdote lembrou-se do meio-dia. Eram as doze horas
que voltavam.
- Ai - disse muito baixinho -, a esta hora já deve estar fria !
D e súbito uma lufada d e vento apagou-lhe a lâmpada e quase ao
mesmo tempo viu surgir, na esquina oposta da torre, uma sombra,
uma coisa branca, uma forma, uma mulher. Estremeceu. Ao lado dessa
mulher havia uma cabrinha que misturava o balido com o derradeiro
balido do relógio.
O sacerdote arranj ou forças para olhar. Era ela.
Vinha lívida, vinha sombria. Como de manhã, os cabelos caíam-lhe
pelas costas. Mas já sem o baraço ao pescoço, já sem as mãos amarra­
das. Estava livre, estava morta . . .
Vestia de branco e um véu branco cobria-lhe a cabeça.
Aproximou-se dele, devagar, com os olhos no céu. A cabra sobrena­
tural seguia-a . O padre sentia-se de pedra e pesado de mais para fugir.

396
Por cada passo que ela dava para a frente, ele dava outro à retaguarda.
Nada mais. Assim regressou à abóbada escura da escada. Enregelava-o,
a ideia de que ela talvez ali entrasse também; se o fizesse, Frollo mor­
reria de terror.
Realmente, ela chegou em frente da porta da escada, parou por
instantes, olhou com fixidez para a sombra, mas sem parecer ver ali o
padre, e seguiu em frente. Achou-a mais alta do que quando era viva;
viu o luar através das vestes brancas; ouviu-lhe a respiração.
Depois de ela se afastar, Cláudio voltou a descer a escada com a
lentidão que vira no espectro, j ulgando-se ele mesmo um espectro, alu­
cinado, os cabelos eriçados, e sem largar da mão a lâmpada apagada.
Enquanto descia os degraus em espiral, ouvia distintamente uma voz
que ria e que repetia:
" . . . Um sopro perpassou pelo meu rosto e arrepiaram-se-me todos
os pelos do corpo ! "

397
II

Corcunda, cego d e um olho, coxo

Todas as cidades da Idade Média e, até Luís XI I , todas as cidades


da França tinham os seus lugares de asilo. Estes lugares de asilo, no
meio do dilúvio de leis penais e de j urisdições bárbaras, que inunda­
vam a cidade, representavam como que ilhas que se erguiam acima
do nível da justiça humana. Qualquer criminoso que a ela abordasse
estava salvo. Num subúrbio havia quase tantos lugares de asilo como
de lugares patibulares. Era o abuso da impunidade ao lado do abuso
dos suplícios, duas coisas más que procuravam corrigir-se uma à outra.
O paço real, os palácios dos príncipes e, sobretudo, as igrejas possuíam
direito de asilo. Em certas ocasiões transformavam temporariamente
em lugar de refúgio uma cidade inteira necessitada de se repovoar.
Luís XI fez de Paris um asilo em 1467.
Mal punha pé no asilo, o criminoso era sagrado, mas precisava de
ter cautela em não sair de lá; um passo fora do santuário e voltava a
cair na corrente. A roda, a forca, a polé montavam atenta guarda em
volta do lugar de refúgio e espreitavam sem cessar a presa como os
tubarões em redor de um barco. Viram-se condenados encanecer assim
num claustro, no topo da escadaria de um palácio, na clausura duma
abadia, debaixo do portal de uma igreja; deste modo o asilo era uma
prisão como qualquer outra. Sucedia por vezes que uma solene decisão
do Parlamento violava o refúgio e restituía o condenado ao carrasco;
mas era raro que isso acontecesse. Os Parlamentos tinham medo dos
bispos e, quando as duas vestimentas solenes por acaso se entrecho­
cavam a beca não levava a melhor com a batina. Por vezes, contudo,
como no caso dos assassinos de Petit-Jean, carrasco de Paris, e no de

398
É mery Rousseau, assassino de Jean Valleret, a justiça saltava por cima
da Igreja e tratava de executar as sentenças; mas sem um acórdão
do Parlamento, ai de quem violasse à mão armada o lugar de asilo !
Sabe-se qual foi a morte de Roberto de Clermont, marechal da França,
e de João de Châlons, marechal de Champanha e, apesar disso, não se
tratava senão de um tal Perrin Marc, criado dum cambista e miserável
assassino, mas os dois marechais arrombaram as portas de São Méry.
Foi essa a enormidade.
Rodeava esses refúgios um tal respeito, que, pelo que diz a tradi­
ção, alcançava por vezes até os animais. Conta Aymoin que um veado
caçado por Dagoberto se refugiou junto do túmulo de S. Dinis e a mati­
lha estacou de repente a ladrar.
As igrejas possuíam habitualmente um cubículo preparado para
receber os suplicantes. Em 1407, Nicolau Flamel mandou-lhes construir,
sobre as abóbadas de Saint-Jacques-de-la-Boucherie, uma câmara que
lhe importou em quatro libras, seis soldos e dezasseis dinheiros parísios.
Em Nossa Senhora havia uma cela aberta sobre a armação das naves
laterais e por baixo dos botaréus, virada para o claustro, j ustamente no
ponto onde a mulher do atual porteiro das torres fez um j ardim que
está para os jardins suspensos da Babilónia como uma alface está para
uma palmeira ou como uma porteira está para Semíramis.
Foi ali que, depois da sua correria desenfreada e triunfal por cima
das torres e das galerias, Quasímodo depusera a Esmeralda. Enquanto
a corrida durara, a rapariga não pudera recuperar os sentidos, meio
entorpecida, meio acordada, sem perceber senão que ia a subir no ar,
que flutuava, que voava, que qualquer coisa a arrebatava acima da
terra . De vez em quando ouvia, j unto da orelha, a gargalhada estron­
dosa ou a voz sonora de Quasímodo; entreabria os olhos e então, por
baixo dela, avistava confusamente Paris, matizado com os seus mil
telhados de ardósias e de telhas, como um mosaico encarnado e azul,
e, sobre a sua cabeça, a cara assustadora e alegre de Quasímodo. Então
descia outra vez as pálpebras; convenceu-se de que tudo acabara, de
que a tinham executado durante o desmaio e de que o disforme espí­
rito que presidira ao seu destino de novo se assenhoreara dela e a
levava. Não se atrevia a olhá-lo e deixava-se conduzir.
Contudo, quando o sineiro desgrenhado e ofegante a depôs na cela de
refúgio, quando lhe sentiu as mãos grossas desatarem-lhe meigamente

399
a corda que lhe magoava os braços, experimentou essa espécie de abalo
que acorda em sobressalto os passageiros do navio que fundeia em ple­
nas trevas da noite. As ideias também se lhe despertaram e voltaram-lhe
uma a uma. Reconheceu que estava em Nossa Senhora, lembrou-se de
ser arrancada das mãos do carrasco, que Febo estava vivo, que Febo
já não a amava; e estes dois pensamentos, um derramando sobre o
outro tanta amargura, apresentaram-se j untos à pobre condenada que
se voltou para Quasímodo, de pé na sua frente e que a amedrontava.
Perguntou-lhe:
- Porque me salvaste?
Olhou-a com ansiedade, como procurando adivinhar o que ela lhe
dizia. A cigana repetiu a pergunta . Então ele lançou-lhe um olhar de
profunda tristeza e fugiu.
Esmeralda ficou atónita.
Dali a instantes, Quasímodo reapareceu , trazendo um embrulho que
lhe lançou aos pés. Era roupa que algumas caridosas mulheres tinham
deposto no limiar da igreja e que se destinava à refugiada. A rapariga
baixou então os olhos sobre si mesma, viu-se quase nua e corou. A vida
regressava.
Quasímodo pareceu sentir qualquer coisa deste pudor. Tapou a
vista com a mão enorme e mais uma vez se afastou, mas a passo lento.
A cigana tratou logo de se vestir. Era um vestido branco com um véu
branco. Um hábito de noviça do Hospital.
Mal terminara, viu Quasímodo voltar. Debaixo de um braço trazia
um cesto e, debaixo de outro, uma enxerga. No cesto havia uma gar­
rafa, pão e algumas provisões. Poisou o cesto no chão e disse:
- Comei.
Estendeu a enxerga no laj edo e disse:
- Dormi.
O que o sineiro trouxera fora a sua própria refeição e a sua própria
cama .
A cigana levantou os olhos para lhe agradecer, mas não conseguiu
articular palavra. O pobre diabo era verdadeiramente horrível. A j ovem
baixou a cabeça com um calafrio de medo.
Ele disse-lhe então:
- Assusto-vos. Sou muito feio, não é verdade? Não olheis para mim.
Ouvi-me apenas. De dia, ficareis aqui; de noite, podeis passear por toda

400
a igreja. Mas não saiais da igreja, nem de dia nem de noite. Estaríeis
perdida. Matar-vos-iam e eu morreria.
Comovida , levantou a cabeça para lhe responder, mas ele desapare­
cera. De novo se encontrou sozinha, a pensar nas singulares palavras
daquele ser quase monstruoso e impressionada pelo som da sua voz,
que era tão rouca e, apesar disso, tão doce.
Seguidamente, examinou a cela. Era uma câmara de uns seis pés
quadrados, com um pequeno postigo e uma porta para o plano leve­
mente inclinado do telhado de pedras lisas. Diversas goteiras com figu­
ras de animais pareciam debruçar-se em volta dela e esticar o pescoço
para a verem pelo postigo. A beira do telhado descobria a parte de cima
de mil chaminés que faziam subir ante os seus olhos os fumos de todos
os fogos de Paris. Triste espetáculo para a pobre cigana, enj eitada, con­
denada à morte, desgraçada criatura , sem pátria , sem família, sem lar.
Na ocasião em que a ideia do seu isolamento assim lhe aparecia,
mais pungente do que nunca, sentiu uma cabeça peluda e barbuda des­
lizar-lhe por entre as mãos e sobre os j oelhos. Estremeceu (agora tudo a
assustava) e olhou. Era a pobre cabra, a ágil Djali, que fugira atrás dela
no momento em que Quasímodo dispersara a escolta de Charmolue e
que se expandia em carícias aos seus pés, havia quase uma hora , sem
que conseguisse obter sequer um olhar. A cigana cobriu-a de beij os.
- Ai, Djali - lastimou ela -, como me esqueci de ti! Tu é que nunca
deixas de pensar em mim! É que tu não és ingrata ! . . .
Ao mesmo tempo, como se mão invisível a aliviasse do peso que lhe
comprimia as lágrimas no coração havia tanto tempo, desatou a chorar
e, à medida que as lágrimas lhe corriam, sentia desfazer-se com elas o
que havia de mais azedo e de mais amargo no seu sofrimento.
Entardeceu e Esmeralda achou tão linda a noite, tão doce a Lua, que
deu a volta à elevada galeria que envolve a igreja. Experimentou certo
alívio com isso, de tal modo a terra lhe pareceu serena, vista daquela
altura.

401
III

Surdo

No dia seguinte, de manhã, Esmeralda verificou que conseguira


dormir, o que assaz a admirou, pois havia muito tempo que se desabi­
tuara do sono. Um alegre raio do sol-nascente entrou pela fresta e foi
bater-lhe no rosto. Ao mesmo tempo que o sol, viu nessa abertura uma
coisa que a assustou: o desgraçado rosto de Quasímodo. Voltou, invo­
luntariamente, a fechar os olhos, mas debalde; j ulgou continuar sempre
a ver, por entre as pálpebras rosadas, aquela máscara de gnomo, sem
um olho e desdentada. Então, enquanto continuava de olhos fechados,
ouviu uma voz rude dizer com extrema doçura:
- Não tenhais medo. Sou vosso amigo. Vim ver-vos dormir. Não
vos fez mal, não é verdade, que viesse ver-vos dormir? Que mal vos
fará que eu estej a ali quando conservardes os olhos fechados? Agora
vou-me embora . Olhai, coloquei-me por detrás da parede. Podeis abrir
os olhos outra vez.
Algo de mais suplicante ainda do que as palavras era a inflexão com
que as pronunciou . Comovida, a cigana abriu os olhos. Efetivamente, o
corcunda já não estava à janela. A j ovem foi até ali e viu o pobre mar­
reco encolhido a um canto da parede, numa postura dolorosa e resig­
nada. A cigana empregou certo esforço para dominar a repugnância
que o aleijado lhe inspirava. Disse-lhe com ternura:
- Vinde.
Quasímodo, pelo movimento dos lábios da cigana, imaginou que
ela o expulsava; levantou-se então e retirou-se a coxear, lento, cabis­
baixo, sem sequer ousar erguer para a rapariga o olhar a trasbordar de
desespero. Ela gritou:

402
- Mas vinde !
Ele, contudo, continuou a afastar-se. Então a jovem lançou-se para
fora da cela, correu para ele e agarrou-lhe no braço. Quando sentiu que
ela o tocava, Quasímodo estremeceu dos pés à cabeça. Ergueu implo­
rativo o olho, mas, ao ver que ela o puxava para si, todo o seu rosto
se tornou radiante de alegria e de ternura. Esmeralda quis obrigá-lo a
entrar na cela, mas ele teimou em ficar à porta .
- Não, não - disse ele. - O mocho não entra no ninho da cotovia.
Então a rapariga acocorou-se graciosamente sobre o catre, com a
cabra adormecida a seus pés. Durante instantes, os dois ficaram imó­
veis, a observarem, silenciosamente, ele tanta graciosidade, ela tanta
fealdade. Descobria a todo o instante em Quasímodo uma deformidade
mais. Passeou a vista desde os j oelhos cambaios às costas corcovadas,
das costas corcovadas ao único olho. Custava-lhe a compreender que
existisse um ser tão toscamente delineado. Havia, no entanto, em tudo
aquilo tanta melancolia e meiguice, que começou a habituar-se a ele.
Foi ele o primeiro a interromper o silêncio:
- Dizíeis-me então que voltasse?
A cigana acenou afirmativamente com a cabeça, ao responder:
- Sim.
Quasímodo compreendeu o sinal da cabeça .
- Infelizmente - disse, como que hesitando em continuar é que . . .
sou surdo.
- Pobre homem ! - exclamou a cigana, numa expressão de benevo­
lente piedade.
Ele começou a sorrir dolorosamente.
- Achais que só me faltava isto, não é verdade? Sim, sou surdo. Sou
feito desta maneira. É horrível, não é verdade? E vós sois tão bela ! . . .
Havia na expressão do mísero tão profunda consciência da sua
miséria, que a rapariga não teve forças para proferir uma só palavra.
Aliás, ele não a ouviria. Quasímodo continuou:
- Nunca me reconheci tão feio como agora. Quando me comparo con­
vosco, sinto deveras pena de mim, pobre e desgraçado monstro que sou !
Dizei. . . causo-vos decerto a impressão de um animal, ao passo que vós
sois um raio de Sol, uma gota de orvalho, o cantar dum passarinho ! Eu sou
qualquer coisa de horrendo, nem homem, nem animal, um não sei quê
de mais áspero, de mais espezinhado e mais disforme do que um calhau !

403
Então desatou a rir e essa gargalhada era o que há de mais dilace­
rante no mundo. Continuou:
- Sim, sou surdo. Mas falai-me por gestos, por sinais. Tenho um
senhor que conversa assim comigo. Além disso, não tarda que saiba qual
é a vossa vontade, pelo movimento dos vossos lábios, pelo vosso olhar.
- Pois bem ! - respondeu ela, sorrindo. - Dizei-me porque me sal­
vastes.
O surdo olhou-a com toda a atenção enquanto ela falava.
- Compreendi - respondeu ele. - Perguntais-me porque vos sal­
vei. Esquecestes-vos dum miserável que certa noite vos tentou rap­
tar? Do miserável que, logo no dia seguinte, socorrestes no seu infame
pelourinho? Uma gota de água e um pouco de compaixão, aí está mais
do que aquilo que eu pagaria com a própria vida. Esquecestes-vos
desse miserável, mas ele lembrou-se.
Esmeralda escutava-o com profunda comoção. Uma lágrima rebo­
lou do olho do sineiro, mas não caiu. Ele pareceu encarar como ponto
de honra o devorá-la.
- Ouvi - continuou, quando deixou de recear que essa lágrima se
escapasse. Temos por aí torres bem altas e o homem que delas caísse
antes de tocar no chão já iria morto. Quando vos apetecer que eu caia,
nem precisais mesmo de dizer uma palavra; bastar-vos-á um olhar.
Levantou-se então e aquele ser estranho, por muito infeliz que a
cigana se sentisse, conseguia ainda despertar-lhe alguma compaixão.
Fez-lhe sinal para que ficasse.
- Não, não - disse ele. - Não devo ficar aqui tempo de mais. Não
me sinto à vontade quando olhais para mim. É por compaixão que não
desviais o olhar. Vou para qualquer lado de onde vos possa ver sem
que me vejais. Assim será melhor.
Tirou da algibeira um apitozinho de metal e disse:
- Tomai; quando precisardes de mim, quando quiserdes que eu
apareça, quando não sentirdes demasiado horror por me ver, assobiai
com isto. Esse ruído oiço-o eu.
Depôs o apito no chão e fugiu.

404
IV

Grés e cristal

Sucederam-se os dias.
A serenidade voltou a pouco e pouco à alma de Esmeralda. Tanto o
excesso do sofrimento como o excesso da alegria é uma coisa violenta
que dura pouco. O coração do homem não pode manter-se durante
muito tempo num dos extremos. A cigana sofrera tanto, que não lhe
restava agora mais do que o espanto.
Com a segurança, a esperança renascera-lhe. Encontrava-se fora
da sociedade, fora da vida, mas percebia vagamente que talvez não
lhe fosse impossível tornar a entrar ali. Era como que uma morta que
conservava de reserva uma chave da sepultura.
Sentia afastarem-se a pouco e pouco dela as terríveis imagens que
durante tanto tempo a tinham obcecado. Todos os hediondos fan­
tasmas - Pierrat Torterue, Jacques Charmolue - apagavam-se-lhe da
ideia, até o próprio padre.
Além disso, Febo estava vivo; tinha a plena certeza, pois vira-o. A vida
de Febo era tudo. Depois da série de abalos fatais que haviam desmo­
ronado tudo nela, não encontrara de pé na sua alma senão uma coisa,
senão um sentimento: o seu amor pelo capitão. É que o amor é como uma
árvore que cresce por si mesma, que enterra profundamente as raízes em
todo o nosso ser e continua a vicejar sobre um coração em ruínas.
E o que há de inexplicável é que quanto mais cega é essa paixão,
mais tenaz se mostra. Quanto menos razão tem, mais sólida se afirma.
Evidentemente, não era sem amargura que Esmeralda pensava no
capitão. Era decerto horrível que também ele se tivesse enganado, que
acreditasse nessa coisa impossível, que admitisse que a punhalada fora

405
vibrada por quem daria mil vidas por ele. Mas, enfim, não havia neces­
sidade de lhe querer muito mal: não tinha ela própria confessado o seu
crime? Não cedera, fraca mulher, à tortura? A culpa cabia apenas a ela.
Deveria ter consentido que antes lhe arrancassem as unhas do que tal
palavra. Enfim, bastar-lhe-ia tornar a ver Febo uma única vez que fosse,
um minuto só, bastaria apenas uma palavra, um olhar, para o dissua­
dir daquela ideia, para o convencer. Disso não lhe restavam dúvidas.
E divagava também acerca de muitas coisas estranhas, acerca do acaso
da presença de Febo no dia da confissão pública, acerca da rapariga
com quem ele estava. Tratava-se sem dúvida da irmã. Explicação que
carecia de senso, mas com que a cigana se contentava, porque precisava
de se convencer de que Febo a continuaria a amar e só a ela. Não lho
jurara o capitão? De que mais precisava ela, ingénua e crédula criatura?
E, além disso, naquele caso, não eram as aparências muito mais contra
ela do que contra ele? Portanto, aguardava. Acalentava esperanças.
Acrescentemos que a igreja, essa ampla igreja que por todos os
lados a envolvia, que a guardava, que a salvava, era j á por si um sobe­
rano calmante. As linhas solenes dessa arquitetura, o aspeto religioso
de todos os obj etos que rodeavam a rapariga, as ideias piedosas e sere­
nas que se espalhavam, por assim dizer, por todos os poros dessa pedra,
influenciavam-na sem que ela desse por isso. Possuía, também, o edifí­
cio rumores duma tal bênção e duma tal majestade, que adormentavam
aquela alma doente. O cântico monótono dos oficiantes, as respostas do
povo aos padres, umas vezes desarticuladas, por vezes como um tro­
vão, o estremecer harmonioso dos vitrais, o órgão ressonante como cem
trombetas, os três campanários a zumbirem como colmeias de gigan­
tescas abelhas, toda essa orquestra sobre a qual ressaltava uma gama
imensa a subir e a descer, sem cessar, duma multidão ao campanário,
ensurdeciam-lhe a memória, a imaginação e o sofrimento. Sobretudo,
os sinos embalavam-na. Era como que um poderoso magnetismo que
aqueles vastos aparelhos espalhavam por cima dela em largos jorras.
Era por isso que, quando o Sol nascia em cada manhã, a encon­
trava mais calma, menos pálida, a respirar melhor. À medida que se
lhe fechavam as chagas interiores, refloriam-lhe no rosto a graciosi­
dade e a beleza, mas mais recolhidas e mais serenas. Igualmente lhe
voltava o antigo carácter, alguma coisa mesmo da sua j ovialidade, o
bonito esgar, o amor pela cabra, o gosto pelas cantigas, o pudor. Tinha

406
o cuidado de se vestir, de manhã, a um canto do cubículo, com medo
de que algum habitante dos sótãos vizinhos a visse pela j anelita.
Quando a recordação de Febo lhe deixava tempo para isso a cigana
pensava às vezes em Quasímodo. Era o único laço, o único contacto,
a única comunicação que lhe restava com os homens, com os vivos.
Infeliz! , encontrava-se mais fora do mundo do que Quasímodo ! Não
compreendia coisa alguma do estranho amigo que o acaso lhe ofe­
recera. Por vezes censurava-se de não sentir uma gratidão que lhe
fechasse os olhos, mas na verdade era-lhe impossível habituar-se ao
pobre sineiro. Era feio de mais.
Não apanhara do chão o apito que ele lhe dera. I sso não impedia
que Quasímodo, nos primeiros dias, reaparecesse de vez em quando.
Esmeralda fazia todo o possível para não lhe voltar as costas com acen­
tuada repugnância quando ali lhe ia levar o cesto das provisões ou a
bilha da água, mas o pobre nunca deixava de notar o mais leve movi­
mento desse género, e então afastava-se tristemente.
Em certa ocasião apareceu na altura em que ela acariciava Djali.
Permaneceu pensativo durante momentos ante o grupo gracioso da
cabra e da cigana. Por fim disse, abanando a cabeça pesada e mal feita:
- O meu mal é parecer-me ainda de mais com um homem. Gostaria
de ser completamente um animal, como essa cabra.
A j ovem levantou para o sineiro um olhar de espanto.
Ele respondeu a esse olhar:
- Ai, eu sei bem porquê !
E foi-se embora.
Noutra ocasião apareceu à porta da cela (onde nunca entrava) no
momento em que Esmeralda cantava uma velha balada espanhola, de
que não percebia a letra, mas que lhe ficara no ouvido porque com
ela as ciganas a tinham embalado em pequenina. Quando viu aquela
desagradável figura que aparecia inesperadamente no meio da canção,
a rapariga calou-se com um gesto de susto involuntário. O desgraçado
sineiro caiu de j oelhos à entrada da porta e j untou, suplicante, as enor­
mes e disformes mãos para dolorosamente implorar:
- Oh, rogo-vos, continuai e não me expulseis !
N ã o o quis afligir e, toda trémula, continuou a romança. Gradu­
almente, porém, foi-se-lhe dissipando o medo e deixou-se por com­
pleto embalar com a ária melancólica e arrebatadora que entoava. Ele

407
continuou de joelhos, de mãos postas como em oração, atento, mal
respirando, com o olhar fixo nos olhos brilhantes da cigana. Dir-se-ia
que lhe lia nos olhos o significado da canção.
Ainda de outra vez, procurou-a com um ar acanhado e tímido e,
com dificuldade, disse:
- Ouvi-me, tenho uma coisa a dizer-vos.
Esmeralda fez-lhe sinal de que o estava a escutar. Então ele começou
a suspirar, entreabriu os lábios, pareceu por instantes pronto a expli­
car-se, depois observou-a, acenou negativamente com a cabeça e reti­
rou-se devagar, com a fronte nas mãos e deixando a cigana estupefacta.
Entre as grotescas personagens esculpidas na parede havia uma de
que ele particularmente gostava e com a qual parecia frequentemente
trocar olhares fraternais. Uma vez a cigana ouviu-o dizer:
- Ai, não ser de pedra como tu ! . . .
Finalmente, certo dia de manhã Esmeralda adiantou-se até à beira
do telhado e olhou para a praça, de cima da cobertura angulosa de
Saint-Jean-le-Rond. Quasímodo encontrava-se atrás dela. Ocupava
espontaneamente essa posição, a fim de poupar o mais possível à rapa­
riga o desagrado de o ver. De repente a j ovem estremeceu, uma lágrima
e um relâmpago de contentamento brilharam-lhe simultaneamente nos
olhos, aj oelhou no rebordo do telhado e estendeu, angustiosa, os braços
para a praça, gritando:
- Febo! Anda, anda ! Uma palavra, uma palavra só, em nome do
Céu ! Febo ! Febo !
A voz, o rosto, o gesto, toda a sua pessoa tinham a dilacerante
expressão dum náufrago que acena, aflito, para o alegre navio que
passa ao largo, no horizonte, banhado pelo sol.
Quasímodo debruçou-se para a praça e viu que o obj eto daquela
terna e dilacerante súplica era um rapaz, um capitão, um garboso
cavaleiro todo reluzente de armas e de atavios, que passava caracole­
ando ao fundo do largo e cumprimentava com petulância uma formosa
dama que lhe sorria duma varanda. Aliás, o oficial não ouvia a infeliz
que o chamava; encontrava-se muito longe.
O pobre surdo, porém, ouviu. Profundo suspiro ergueu-lhe o peito.
Voltou-se. O coração estava cheio de todas as lágrimas que ele devo­
rava, e os dois pulsos convulsos chocaram contra a cabeça; quando os
retirou, levava em cada mão um punhado de cabelos ruivos.

408
A cigana não lhe prestou qualquer atenção. Quasímodo dizia em
voz baixa, rangendo os dentes:
- Maldição ! Ali está, pois, como se deve ser! Basta ser bonito por fora !
Entretanto Esmeralda permanecia de j oelhos e gritava com extraor­
dinária agitação:
- Oh, lá está a apear-se do cavalo ! Vai entrar naquela casa ! Febo ! . . .
Não me ouve ! . . . Febo ! . . . Como aquela mulher é má ao falar-lhe ao
mesmo tempo que eu ! . . . Febo ! Febo !
O surdo observava-a. Compreendia aquela mímica. O olho do pobre
sineiro vidrava-se de lágrimas, mas não deixava nenhuma correr.
De repente puxou-lhe com delicadeza pela ponta da manga. A cigana
voltou-se. Quasímodo adotara um ar tranquilo ao dizer-lhe:
- Quereis que vo-lo vá buscar?
A j ovem soltou um grito de contentamento.
- Oh! Vai ! Ide! Corre ! Depressa ! Esse capitão! Esse capitão!
Trazei-mo! Amar-te-ei !
Abraçava-lhe o s j oelhos e ele não pôde deixar d e abanar dolorosa­
mente a cabeça ao dizer numa voz débil:
- I rei buscá-lo para vós.
Depois, virou a cabeça e precipitou-se a passo largo pela escada
abaixo, sufocado pelos soluços.
Quando chegou à praça, não viu mais nada senão o formoso cavalo
preso à porta da residência Gondelaurier. O capitão acabara de entrar
ali.
Quasímodo ergueu o olhar para o telhado da igreja. Esmeralda conti­
nuava no mesmo sítio e na mesma posição. O corcunda fez-lhe um triste
sinal com a cabeça. Depois encostou-se a um dos marcos de pedra do
portal dos Gondelaurier, resolvido a esperar que o capitão saísse.
No palácio Gondelaurier havia nesse dia uma festa como as que
precedem as núpcias. Quasímodo viu entrar para ali muita gente, mas
não sair ninguém. De vez em quando levantava o olhar para o telhado.
A cigana não se mexia mais do que ele. Um palafreneiro veio despren­
der o cavalo e levou-o para a cavalariça da casa.
Todo o dia se passou assim: Quasímodo encostado ao marco, Esmeralda
no telhado, e Febo, sem dúvida, aos pés de Flor-de-lis.
Por fim, anoiteceu; noite sem luar, noite escura. Quasímodo, por
mais que cravasse a vista em Esmeralda, em breve não viu mais nada

409
do que uma claridade no crepúsculo e, seguidamente, coisa nenhuma.
Tudo se apagou, tudo se tornou negro.
Quasímodo viu iluminarem-se, de cima a baixo da fachada, as jane­
las da residência dos Gondelaurier. Viu iluminarem-se a seguir umas
às outras as demais vidraças do largo; viu também apagarem-se até à
última porque permaneceu a noite inteira no seu posto. O oficial não
saiu. Quando os últimos transeuntes recolheram a suas casas, quando
a luz desapareceu das janelas de todos os outros prédios, Quasímodo
ficou completamente só, completamente na sombra. Nessa época não
havia luzes no adro de Nossa Senhora.
Entretanto as janelas do palácio Gondelaurier permaneceram ilumi­
nadas mesmo depois da meia-noite: o corcunda, imóvel e atento, via pas­
sar, por detrás dos vitrais de mil cores, uma multidão de sombras vivas
e dançantes. Se não fosse surdo, à medida que se extinguia o rumor de
Paris adormecido ouviria cada vez mais distintamente, no interior da
residência Gondelaurier, um ruído de festa, de risos e de músicas.
Aí pela uma hora da manhã, os convidados começaram a retirar-se.
Envolto em trevas, Quasímodo via-os passar a todos por baixo do pór­
tico iluminado a archotes. N enhum deles era o capitão.
O sineiro estava cheio de tristes pensamentos. Às vezes olhava para
cima, como aqueles que se aborrecem. Enormes nuvens negras, pesa­
das, desfeitas, esburacadas pendiam como redes de crepe sob o cimbre
estrelado da noite. Dir-se-iam as teias de aranha da abóbada celeste.
Numa dessas ocasiões viu de repente abrir-se misteriosamente a
janela envidraçada da varanda cuj a balaustrada de pedra se lhe recor­
tava por cima da cabeça. A delgada porta de vidro deu passagem
a duas pessoas, em cujas costas ela se fechou sem ruído. Eram um
homem e uma mulher. Quasímodo teve certa dificuldade para conse­
guir reconhecer o garboso capitão e , na mulher, a j ovem dama que,
de manhã, vira dar as boas-vindas ao oficial, do alto dessa mesma
varanda . A praça estava completamente às escuras e uma dupla cortina
carmesim fechara-se por detrás da janela na altura em que esta se cer­
rou, quase não deixando que chegasse à varanda a luz da sala.
Tanto quanto podia aj uizar o nosso surdo, que não percebia pala­
vra do que diziam, o rapaz e a rapariga pareciam consagrar-se a um
diálogo extremamente terno. A menina como que consentira que o ofi­
cial lhe cingisse a cintura com o braço e resistia debilmente a um beijo.

410
Quasímodo assistia, de baixo, a esta cena mais graciosa de ver j usta­
mente por ser feita para que se não visse. Com amargura, contemplava
aquela felicidade, aquela beleza. No fim de contas, a natureza não era
muda naquele pobre diabo e a sua coluna vertebral, por muito desaj ei­
tadamente torcida que fosse, nem por isso vibrava menos do que outra
qualquer. Pensava na mísera parte que a Providência lhe deixara e que
a mulher, o amor e a volúpia passar-lhe-iam eternamente de largo e
que nunca faria outra coisa senão assistir à felicidade dos outros. Mas
o que mais o dilacerava naquele espetáculo, o que aj untava indignação
ao seu despeito, era lembrar-se de quanto sofreria a cigana se tal visse.
É certo que estava uma noite muito escura, que Esmeralda, se continu­
asse no seu lugar (e disso não lhe restava dúvida) , encontrava-se muito
afastada e mesmo ele mal conseguia divisar os namorados na varanda.
Isto consolava-o.
Todavia, a conversa deles tornava-se cada vez mais animada.
A j ovem dama parecia suplicar ao oficial que não lhe pedisse mais
nada. De tudo aquilo Quasímodo não distinguia senão as lindas mãos
j untas, os sorrisos misturados de lágrimas, o olhar da menina erguido
para as estrelas e os olhos do capitão ardentemente abaixados sobre
ela.
Felizmente, porque a j ovem começava a debater-se com menos
força, reabriu-se de repente a porta da varanda, apareceu uma senhora
idosa, a formosa menina pareceu atrapalhada, o oficial adotou um ar
de contrariado e os três voltaram para dentro.
Instantes depois, um cavalo batia impaciente com as patas sob o
portal e o brilhante oficial, envolto na sua capa noturna, passou rapida­
mente diante de Quasímodo.
O sineiro deixou-o virar a esquina da rua e depois desatou a correr
atrás dele, com a sua agilidade de macaco, e a gritar:
- Eh, capitão !
O capitão parou.
- Que quer de mim este velhaco? - monologou, avistando na
sombra essa espécie de ente desengonçado que, a coxear, corria
para ele.
Entretanto Quasímodo alcançara-o e deitara ousadamente a mão à
cabeçada do cavalo.
- Segui-me, capitão, há aqui alguém que vos quer falar.

411
- Com seiscentos diabos! - resmungou Febo. - Não me é estranho
este pássaro bisnau esguedelhado. Ouve lá, mestre! Fazes-me o favor
de largar a cabeçada do cavalo?
- Capitão - redarguiu o surdo -, não me perguntais quem é?
- Já te disse que me largasses o cavalo ! - tornou a dizer Febo, com
impaciência. - Que quer este patusco pendurado da testeira do meu
corcel? Julgas que o meu cavalo é uma forca?
Quasímodo, em vez de largar a cabeçada do animal, preparava-se
para o fazer voltar para trás. Como não conseguia explicar a resistência
do capitão, apressou-se a dizer-lhe:
- Vinde, capitão, é uma mulher que vos espera. - Com dificuldade,
acrescentou : - Uma mulher que vos ama.
- Esquisito mariola - disse o capitão - que me j ulga obrigado a ir a
casa de todas as mulheres que me amam . . . ou que o dizem! E se por
acaso ela é parecida contigo, cara de mocho-real? Dize a essa que te
mandou que me vou casar e que ela vá para o Diabo !
- Ouvi - bradou Quasímodo, convencido de que com uma palavra
venceria a sua hesitação -; vinde, monsenhor, é a egípcia que sabeis!
Realmente aquela palavra causou em Febo profunda impressão,
mas não a que o surdo contava. Recordam-se de que o nosso galante
oficial retirara-se com Flor-de-lis momentos antes de Quasímodo sal­
var a condenada das mãos de Charmolue. Depois, em todas as suas
visitas à casa Gondelaurier, o oficial tivera sempre o cuidado de não
falar nessa mulher cuja lembrança, no fim de contas, lhe era penosa, e,
por seu lado, Flor-de-Lis não achara de boa política informá-lo de que
a cigana estava viva. Por isso Febo convencera-se da morte da pobre
Similar e que isso já acontecera um ou dois meses atrás. Acrescentemos
que havia momentos que o capitão pensava, na profunda escuridão
noturna, na sobrenatural fealdade, na voz sepulcral do estranho men­
sageiro, que já passava da meia-noite, que a rua estava deserta como
na noite em que o fantasma o abordara e que o cavalo resfolegava ao
olhar para Quasímodo.
- A egípcia ! - exclamou, quase assustado. - Nesse caso, vens do
outro mundo?
E levou a mão ao punho da espada.
- Depressa, depressa - disse o surdo, procurando puxar pelo cavalo.
- Por aqui !

412
Febo pregou-lhe um vigoroso pontapé no peito.
O olho de Quasímodo faiscou . Esboçou um movimento para se ati-
rar ao capitão, mas optou por dizer, empertigando-se:
- Como sois feliz em terdes alguém que vos ama!
Acentuou a palavra alguém e, largando as rédeas do cavalo disse:
- Ide-vos!
Febo cravou as duas esporas nos flancos da montada e abalou pra­
guejando. Quasímodo viu-o desaparecer na neblina da rua e murmu­
rou baixinho:
- Ai, recusar uma coisa destas!
Voltou para N ossa Senhora , acendeu a lâmpada e subiu outra
vez para a torre. Como imaginara, a cigana não saíra do mesmo
sítio.
Assim que o avistou ao longe, correu para ele e exclamou, j un-
tando aflitivamente as lindas mãos:
- Sozinho !
- Não o consegui encontrar - declarou friamente Quasímodo.
- Devias esperá-lo toda a noite ! - retorquiu-lhe ela, arrebatada.
Ele viu o seu gesto de cólera e compreendeu a censura .
- Para a outra vez, vigiarei melhor - prometeu baixando a cabeça .
- Vai-te embora ! - disse-lhe ela.
Deixou-a. A j ovem estava zangada com ele. Preferira ser maltra­
tado a afligi-la. Guardara para si o sofrimento todo.
Desde esse dia, a cigana não o tornou a ver. Deixou de lhe apare­
cer na cela. Quando muito, entrevia por vezes, no alto duma torre, a
cara do sineiro a olhar melancólica e fixamente para ela. Mas, assim
que a rapariga o divisava , desaparecia.
Cumpre-nos dizer que afligia-a pouco esta voluntária ausência
do pobre corcunda. No fundo do coração até lhe agradecia. Aliás,
Quasímodo não alimentava ilusões a esse respeito.
Já não o via, mas sentia a presença dum bom génio à sua roda.
Uma mão invisível renovava-lhe as provisões durante o sono. Certa
manhã encontrou por cima da j anela uma gaiola de pássaros. Sobre
a cela havia uma escultura que a assustava . Mais de uma vez o mos­
trara na presença de Quasímodo. Uma manhã (pois todas estas coisas
sucediam de noite) deixou de a ver. Tinham-na despedaçado. Aquele
que marinhara até à escultura devia ter arriscado a vida.

413
Por vezes, à tardinha, ouvia uma voz, escondida sob os anteparos
da torre, cantar, como que para a adormecer, uma canção triste e estra­
nha. Eram versos sem rima e como só um surdo os pode fazer:

Não fa ças caso da cara,


Moça, olha o cora ção.
O cora ção dum garboso rapaz é amiúde disforme.
Há cora ções onde o amor não se conserva.

Moça, o abeto não é bonito,


Tão bonito como o choupo.
Mas no inverno não perde a folha.
Mas ai! para que serve dizer isto!
O que não é belo faz mal em não o ser;
A beleza só ama a beleza,
Abril volta costas a janeiro.

A beleza é per{eita,
A beleza pode tudo,
A beleza é a única coisa que não existe só em metade.

O corvo só voa de dia,


O mocho só voa de noite,
O cisne voa de noite e de dia.

Certa manhã, Esmeralda viu em cima da janela duas jarras cheias


de flores. Uma era de cristal, muito bonita e muito brilhante, mas
rachada. Deixara escorrer a água que a enchia, e as flores nela conti­
das estavam murchas. A outra era um grosseiro e vulgar pote de barro,
mas que conservara a água toda e as flores mantinham-se frescas e
vermelhas.
Não sei se o fez com intenção, mas a Esmeralda pegou no ramo
murcho e trouxe-o todo o dia ao peito.
Nesse dia não ouviu cantar a voz da torre.
Preocupou-se mediocremente com isso. Levava os dias a fazer fes­
tas a Djali, a espiar a porta do palácio Gondelaurier, a falar baixinho de
Febo e a deitar migalhinhas de pão às andorinhas.

4 14
De resto, deixara por completo de ver e de ouvir Quasímodo.
O pobre sineiro parecia ter desaparecido da igreja. Contudo, uma noite
em que ela não dormia e pensava no seu belo capitão, ouviu j unto da
cela alguém suspirar. Levantou-se assustada e viu ao luar uma massa
informe deitada ao través da porta. Era Quasímodo que estava a dormir
ali em cima da pedra.

415
V

A chave da porta vermelha

Entretanto, a voz pública informara o arcediago da maneira miracu­


losa como a cigana fora salva. Ao receber esta notícia, nem soube o que
sentia. Conformara-se com a morte da Esmeralda. Assim, ficara calmo,
pois chegara ao âmago do sofrimento possível. O coração humano
(D. Cláudio meditara acerca destes assuntos) só pode conter determinada
porção de desespero. Depois de embebida a esponja, pode-lhe passar um
mar por cima que não lhe consegue acrescentar nem mais uma lágrima.
Ora, morta a Esmeralda, a esponja estava embebida, a D. Cláudio
nada mais havia a dizer neste mundo. Mas senti-la viva, e a Febo tam­
bém, eram as torturas que recomeçavam, os choques, as alternativas, a
vida. E Cláudio estava cansado de tudo isso.
Ao saber a novidade, encerrou-se na sua cela do claustro. Não
compareceu nem às conferências capitulares, nem aos ofícios. Fechou
a porta a todos, até ao próprio bispo. Desta forma se manteve empare­
dado várias semanas. Supuseram-no doente. Com efeito, estava.
Que fazia assim encerrado? Com que ideias se debatia o infeliz?
Feria a derradeira luta contra a sua temível paixão? Arquitetava o
último plano de morte para ela e de perdição para ele?
O seu Jehan, o seu irmão querido, o seu menino mimado, apare­
ceu-lhe uma vez à porta, bateu, praguejou, implorou, disse dez vezes
quem era. Cláudio não abriu.
Levava os dias inteiros com o rosto colado aos vidros da janela. Desta
janela, situada no claustro, via o cubículo da Esmeralda, via-a muita vez
com a cabra, nalgumas ocasiões com Quasímodo. Notava os mil cui­
dados do hediondo surdo, a sua obediência, os seus modos delicados

416
e submissos com a cigana. Lembrava-se, pois tinha boa memória, e a
memória é o tormento dos ciumentos, lembrava-se do estranho olhar
que o sineiro certa noite deitara à bailarina. Perguntava para consigo
qual a razão que levara Quasímodo a salvá-la. Testemunhou mil peque­
nas cenas entre a boémia e o surdo, cuja mímica, vista de longe e comen­
tada pela sua paixão, lhe pareceu extremamente terna. Desconfiava
da extravagância das mulheres. Então sentiu confusamente despertar
nele um ciúme que jamais esperaria, um ciúme que o fazia corar de
pej o e de indignação. O capitão, vá lá, mas este! . . . Semelhante ideia
desorientava-o.
Passava noites horríveis. Desde que sabia que a cigana estava viva,
desfizeram-se-lhe as frias ideias de espectro e de túmulo que o tinham
obcecado um dia inteiro e a carne voltava a aguilhoá-lo. Contorcia-se na
cama ao sentir que a trigueira rapariga estava tão perto dele.
Todas as noites, a imaginação delirante representava-lhe a Esmeralda
nas diversas atitudes que mais lhe haviam feito ferver as veias. Via-a
estendida sobre o capitão apunhalado, de olhos fechados, com a bela
garganta nua, tinta pelo sangue de Febo, nesse momento de delícia em
que o arcediago comprimira os lábios pálidos nesse beij o que a desgra­
çada, embora semimorta, sentira como uma queimadura. Visionava-a
de novo despida pelas mãos selvagens dos algozes, deixando desnudar
e encaixar no borzeguim de parafusos de ferro o pé minúsculo, a perna
delicada e roliça, o j oelho branco e esbelto. Via ainda outra vez esse
j oelho de marfim que o horrível aparelho de Torterue deixara a des­
coberto. Via, finalmente, a rapariga em camisa, de corda ao pescoço,
ombros à mostra, pés descalços, quase nua, tal como a vira no último
dia. Estas imagens de volúpia faziam-no crispar os punhos e um calafrio
correr-lhe ao longo das vértebras.
Uma noite entre muitas escaldou-o tão cruelmente nas artérias o seu
sangue de virgem e de padre, que mordeu o travesseiro, saltou da cama,
lançou uma sobrepeliz por cima da camisa e saiu da cela, seminu, de
lâmpada na mão, espavorido, o olhar em fogo.
Sabia onde encontrar a chave da porta vermelha que punha em
comunicação o claustro com a igreja e trazia sempre consigo, como se
sabe, uma chave da escada das torres.

417
VI

Continuação da chave da porta vermelha

Naquela noite, a Esmeralda adormecera no seu cubículo, descuidosa,


cheia de esperança, de doces pensamentos. Havia já algum tempo que dor­
mia, a sonhar, como sempre, com Febo, quando lhe pareceu sentir ruído
em redor dela. Tinha um sono leve e desassossegado, um sono de pás­
saro. Um nada a acordava. Abriu os olhos. Estava uma noite muito escura.
Mesmo assim, viu à janela um rosto a observá-la. Uma lâmpada iluminava
esta aparição. Na altura em que aquela figura percebeu que Esmeralda
reparara nela, apagou a lâmpada. Entretanto, a rapariga tivera tempo de a
entrever. Voltou a fechar, aterrada, as pálpebras e disse, numa voz extinta:
- Ai, o padre !
Todas as suas desgraças passadas voltaram-lhe como num relâm­
pago. Enregelada, deixou-se cair outra vez na cama.
Dali a instantes, sentiu ao longo do corpo um contacto que a fez
estremecer de tal forma, que se sentou de súbito na cama, sobressaltada
e furiosa.
O padre acabava de se introduzir furtivamente a seu lado e envolvia-a
nos braços.
A jovem quis gritar e não pôde.
- Vai-te, monstro ! Vai-te, assassino - disse ela em voz trémula e aba­
fada pela força da irritação e do espanto.
- Perdão! Perdão ! - murmurou o padre, imprimindo-lhe os lábios nos
ombros.
Ela agarrou-lhe na cabeça calva, segurando-lha com as duas mãos
pelo que lhe restava de cabelos, e esforçou-se por afastar aqueles beijos
que pareciam mordeduras.

418
- Perdão ! - repetiu o infortunado. - Se soubesses como é este meu
amor por ti ! É fogo, é chumbo derretido, são mil facas no meu coração !
E deteve-lhe os braços com força sobre-humana. Desesperada, ela
bradou-lhe:
- Deixa-me ou escarro-te na cara !
Largou-a.
- Avilta-me, bate-me, sê má, faze o que quiseres ! Mas perdoa-me,
ama-me !
Então ela bateu-lhe com um furor de criança. Retesava as lindas
mãos para lhe contundir as faces.
- Vai-te, demónio !
- Ama-me! Ama-me! Piedade ! - implorava o pobre do padre, rebo-
lando-se sobre ela e respondendo com carícias às pancadas.
De repente, a cigana sentiu-o mais forte do que ela.
- É preciso acabar com isto ! - disse Cláudio, rangendo os dentes.
Esmeralda estava subj ugada, palpitante, aniquilada, entre os seus
braços, à sua discrição. Sentiu uma mão lasciva passear sobre ela.
Empregou um derradeiro esforço e começou a gritar:
- Socorro ! Acudam-me ! Um vampiro ! Um vampiro !
Nada apareceu . S ó Dj ali estava acordada, balindo angustiosamente.
- Cala-te ! - ordenou , ofegante, o padre.
De repente, enquanto se debatia, a mão da cigana, ao roçar pelo
chão, encontrou uma coisa fria e metálica. Era o apito de Quasímodo.
Apanhou-o numa convulsão de esperança, levou-o aos lábios e soprou
com toda a energia que ainda lhe restava. O apito soltou um som claro,
agudo e penetrante.
- Que é isso? - perguntou o padre.
Quase no mesmo instante, sentiu-se puxado por um braço vigoroso;
a cela estava escura, não pôde distinguir nitidamente quem o segurava
assim, mas ouviu dentes martelarem enraivecidos e havia suficiente luz
dispersa na sombra para poder vislumbrar, por cima da cabeça, a larga
lâmina dum facalhão.
O sacerdote j ulgou distinguir o vulto de Quasímodo. Calculou
que só poderia ser ele. Lembrou-se de que, ao entrar, tropeçara num
fardo estendido ao través da porta, do lado de fora. Como, porém, o
recém-chegado não proferiu uma palavra, não sabia o que pensar.
Atirou-se ao braço que empunhava o facalhão e gritou:

419
- Quasímodo!
Naquele instante de aflição esqueceu-se de que Quasímodo era surdo.
Sentiu-se derrubado num abrir e fechar de olhos, enquanto um j oe-
lho de chumbo lhe carregava no peito. Pela pressão angulosa desse
j oelho identificou Quasímodo. Que havia, contudo, de fazer? Como
poderia, por seu lado, conseguir que ele o reconhecesse? Porque a
noite tornava o surdo cego.
Estava perdido. A rapariga, impiedosa como um tigre assanhado,
não interviria em seu socorro. O facalhão aproximou-se-lhe da cabeça.
Era crítica a situação. De repente, o adversário pareceu hesitar e disse
numa voz rouca:
- Sangue sobre ela, não !
Era efetivamente a voz do Quasímodo.
Então o padre sentiu a grosseira mão arrastá-lo por um pé para fora
da cela. Seria ali que devia morrer. Felizmente para ele, momentos
antes a Lua começara a brilhar.
Depois de transporem a porta do cubículo, um pálido luar caiu sobre
o rosto do padre. Quasímodo olhou-o de frente, estremeceu, largou-o
e recuou.
A cigana, que se adiantara até à porta da cela, viu com espanto
inverterem-se de repente os papéis. Era agora o padre quem ameaçava
e Quasímodo quem suplicava.
O sacerdote, que dominava o surdo com gestos de cólera e de cen­
sura, fez-lhe violentamente sinal para que se afastasse.
O surdo baixou a cabeça, mas depois foi pôr-se de j oelhos diante da
porta da cigana e, numa voz grave e resignada, implorou:
- Monsenhor, depois fazei o que vos aprouver; mas primeiro matai-me.
Falando assim, apresentava ao padre o facalhão. Arrebatado, o amo
atirou-se a ele, mas a jovem ainda foi mais rápida. Arrancou a faca das
mãos de Quasímodo e, desatando furiosamente a rir, disse para Frollo:
- Aproxima-te agora !
Mantinha erguida a faca em atitude de desafio. Cláudio deteve-se,
indeciso, de contrário ela tê-lo-ia ferido, com toda a certeza.
- Não te atreverias a aproximar-te, cobarde! - bradou-lhe. Depois,
numa expressão implacável e sabendo muito bem que ia trespassar o
coração do padre com mil ferros em brasa, acrescentou: - Ah, já sei que
Febo não morreu !

420
O sacerdote derrubou Quasímodo com um pontapé e enfiou, tré­
mulo de furor, pela abóbada da escada.
Depois de ele partir, Quasímodo apanhou o apito que acabara de
salvar a cigana.
- Estava a enferruj ar-se - disse ele, entregando-lho. Depois deixou-a
sozinha.
A rapariga, transtornada por aquela cena violenta, caiu sem forças
na cama e desatou a chorar, soluçando. O horizonte voltava a mostrar­
-se-lhe sinistro.
Por seu lado, o padre regressara, às apalpadelas, à sua cela.
Não havia dúvida: D. Cláudio tinha ciúmes de Quasímodo!
Num ar pensativo, repetiu as suas palavras fatais:
- Ela não há de ser de ninguém !

42 1
LIVRO DÉCIMO

Gringoire tem sucessivamente várias ideias


boas na Rua dos Bernardos

Assim que Pedro Gringoire viu o caminho que todo aquele negó­
cio levava e que decididamente meteria corda, enforcamento e outros
dissabores para as principais personagens da comédia, não se preocu­
pou mais com o assunto. Os vagabundos, entre os quais permanecera
por reconhecer que, no fim de contas, constituíam a melhor sociedade
de Paris, continuaram, porém, sempre a interessar-se pela cigana.
Considerara isso extremamente simples da parte de pessoas que, como
ela, não tinham outra perspetiva senão Charmolue e Torterue e não
cavalgavam, como ele, pelas legiões imaginárias, entre as duas asas do
Pégaso. Pela conversa deles soubera que a sua desposada da bilha par­
tida se refugiara em Nossa Senhora, e ele folgava muito com isso. Mas
nem sequer sentiu tentação de a ir visitar ali. Lembrava-se de vez em
quando da cabrinha e mais nada. Aliás, praticava de dia habilidades de
força para viver e, de noite, elucubrava uma memória contra o bispo
de Paris, porque se recordava de as rodas dos seus moinhos o terem
encharcado e não lho perdoava. Ocupava-se também com o comentá­
rio da bela obra de Baudry le Rouge, bispo de Noyon e de Tournay, de
Cupa Petrarum104, o que lhe provocara um gosto violento pela arquite­
tura, inclinação que, no seu coração, substituíra a paixão pelo herme­
tismo e de que aliás não passava de um natural corolário visto existir
íntima ligação entre a hermética e a arte de pedreiro. Gringoire passara
do amor por uma ideia para o amor pela forma dessa ideia.

1 04
Do Corte das Pedras.

422
Certo dia, deteve-se junto de Saint-Germain-l'Auxerrois, à esquina
duma residência a que chamavam For-l'Evêque, fronteira a outra que
se chamava o For-le-Roi. Havia neste For-l' Évêque uma encantadora
capela do século XIV, cuj o hemiciclo do coro dava para a rua. Gringoire
examinava devotamente as esculturas externas. Tratava-se de um des­
ses momentos de egoísta, exclusivo e supremo prazer, em que o artista
só vê no mundo a arte e vê o mundo na arte. De súbito, sente uma mão
poisar-se-lhe gravemente no ombro. Volta-se. Era o seu antigo amigo,
o seu antigo mestre, o senhor arcediago.
Ficou estupefacto. Não via o arcediago havia muito tempo e O. Cláudio
era um desses homens solenes e apaixonados, cujo encontro sempre
perturba o equilíbrio dum filósofo cético.
O arcediago conservou-se silencioso durante alguns instantes que
Gringoire aproveitou para o observar. Achou O. Cláudio muito mudado,
pálido como uma manhã de inverno, olhos encovados, cabelos quase
brancos. Finalmente, foi o padre que quebrou o mutismo ao dizer em
tom tranquilo, mas glacial :
- Como passais, mestre Pedro?
- Perguntais pela minha saúde? - respondeu Gringoire. - Bem . . .
posso dizer que vai assim-assim . . . N o entanto, no conj unto, está boa.
Não tomo nada com excesso. Sabeis, mestre, que o segredo para pas­
sarmos bem é, segundo Hipócrates, id est cibi, potus, somni, Venus,
omnia moderata sint105.
- Nada tendes então que vos preocupe, mestre Pedro? - continuou
o arcediago, olhando com fixidez para Gringoire.
- Palavra que não.
- E que fazeis agora?
- Estais a vê-lo, meu mestre. Examino o talhe destas pedras e a
forma como está trabalhado este baixo-relevo.
O padre começou a sorrir, com um desses sorrisos amargos que
apenas arreganham um dos cantos da boca.
- E isso diverte-vos?
- É o paraíso ! - exclamou Gringoire. Inclinou-se para as esculturas
com o ar, deslumbrado duma pessoa que apresenta fenómenos vivos
e prosseguiu: - Porventura não achais, por exemplo, este baixo-relevo

10 5 Q ue as comidas, as bebidas, os sonos, Vénus, tudo sej a moderado.

423
executado com muita destreza, mimo e paciência? Reparai neste colu­
nelo. Em torno de que capitel já vistes folhas mais tenras e mais bem
acariciadas pelo cinzel? Aqui temos três altos-relevos, da autoria de
João Maillevin. Não se trata dos trabalhos mais belos desse grande
génio. No entanto, a ingenuidade, a doçura dos rostos, a j ovialidade
das atitudes e das roupagens e esse inexplicável atrativo que se mis­
tura com todos os defeitos tornam as figurinhas bem divertidas e muito
delicadas, talvez até de mais. Não achais isto divertido?
- Com certeza ! - disse o padre.
- E se vísseis o interior da capela ! - continuou o poeta, no seu entu-
siasmo tagarela. - Esculturas por toda a parte. É um interior repolhudo
como o olho duma couve! A abside é duma traça muito devota e tão
particular como nunca vi outra igual fosse onde fosse !
D. Cláudio interrompeu-o:
- Sois então feliz?
Gringoire respondeu-lhe, arrebatado:
- Por minha honra que sim ! Primeiro, amei as mulheres; depois, os
animais. Agora amo as pedras. É tão divertido como os animais e as
mulheres, e é menos pérfido.
O sacerdote levou a mão à testa, Era o seu gesto habitual. Con­
cordou:
- Na verdade . . .
- Olhai! - disse Gringoire. - Temos os nossos gozos! - Deu o braço
ao padre, que se deixou levar, e fê-lo entrar por baixo da torrinha da
escada do For-l' Évêque. - Há aí uma escada! De cada vez que a vej o,
considero-me ditoso. É a escada do estilo mais simples e mais raro de
Paris. Todos os degraus são chanfrados em baixo. A sua beleza e sim­
plicidade residem na largura de todos eles, de mais ou menos um pé;
são entrelaçados, encravados, encaixados, encadeados, embutidos e
entretecidos uns nos outros, como que entremordendo-se duma forma
verdadeiramente firme e graciosa !
- E não desej ais nada?
- Não.
- E não tendes saudades de coisa nenhuma?
- Nem saudades, nem desejos. Cá organizei a minha vida.
- O que os homens organizam - sublinhou Cláudio -, desorgani-
zam-no as coisas.

424
- Sou um filósofo pirrónico - respondeu Gringoire - e consigo equi­
librar tudo.
- E como ganhais a vida?
- Escrevo ainda, de vez em quando, epopeias e tragédias, mas o
que me rende mais é a indústria do vosso conhecimento, meu mestre:
aguentar com os dentes pirâmides de cadeiras.
- Profissão grosseira para um filósofo !
- É ainda equilíbrio - observou Gringoire. - Quando temos uma
ideia, encontramo-la em toda a parte.
- Bem sei - respondeu o arcediago.
Após uma pausa, o padre continuou:
- Nem sequer vos sentis bastante miserável?
- Miserável, sim; desgraçado, não.
Naquela altura, ouviu-se o tropear de cavalos e os nossos dois inter­
locutores viram desfilar, no extremo da rua, uma companhia de archei­
ros da ordenança real, de lanças em riste e com um oficial à frente.
A cavalgada era brilhante e ressoava na calçada.
- Como olhais para aquele oficial ! - estranhou Gringoire ao arcediago.
- É que me parece que o conheço.
- Como se chama ele?
- Julgo - respondeu Cláudio - que se chama Febo de Châteaupers.
- Febo! Curioso nome! Há também um Febo, conde de Foix. Estou-me
a lembrar de que conheci uma rapariga que não falava senão de Febo.
- Vinde - disse o padre. - Tenho uma coisa a dizer-vos.
Desde a passagem da cavalgada, uma certa agitação perfurava o
glacial invólucro do arcediago. Começou a andar. Habituado a obede­
cer-lhe, Gringoire seguiu-o como todos os que alguma vez contactaram
com aquele homem cheio de autoridade. Silenciosamente, alcançaram
a Rua dos Bernardos, que era bastante deserta. Aqui D. Cláudio parou .
- Que tendes a dizer-me, meu mestre? - perguntou-lhe Gringoire.
- Porventura não achais - respondeu o arcediago, com o ar de pro-
funda reflexão - que o traj o desses cavaleiros que acabamos de ver é
mais bonito do que o vosso ou do que o meu?
Gringoire abanou a cabeça.
- Palavra que gosto mais da minha farpela amarela e encarnada, do
que daquelas escamas de ferro e de aço. Não está mau divertimento produ­
zir, ao andar, o mesmo ruído que o Cais da Sucata com um tremor de terra !

425
- Nesse caso, Gringoire, nunca vos causaram inveja esses garbosos
rapazes em traj es de guerra?
- Inveja de quê, senhor arcediago? Da sua força, da sua armadura,
da sua disciplina? Mais valem os farrapos da filosofia e da independên­
cia. Prefiro ser cabeça de mosca a rabo de leão.
- Isso é singular - comentou, meditativo, o sacerdote. - Um farda­
mento bonito é, contudo, sugestivo.
Como Gringoire o viu pensativo, deixou-o para ir admirar o pórtico
duma casa próxima. Voltou, a esfregar as mãos e dizendo:
- Se o senhor arcediago estivesse menos preocupado com os vis­
tosos trajos dos homens de guerra pedir-vos-ia que fôsseis ver aquela
porta. Sempre disse que a residência do sieur Aubry tem a entrada mais
soberba do mundo.
- Pedro Gringoire - disse o arcediago -, que fizestes daquela baila-
rinazita egípcia?
- A Esmeralda? Mudais de conversa bem repentinamente !
- Não era a vossa mulher?
- Sim, graças a uma bilha quebrada. Estávamos unidos por quatro
anos. A propósito - aj untou Gringoire, olhando para o sacerdote com
um ar um tanto irónico -, continuais a pensar ainda nisso?
- E vós, já não pensais?
- Pouco . . . Tenho tantas coisas . . . ! Deus meu, como a cabrinha era
bonita !
- Essa boémia não vos salvou a vida?
- Com a breca, é verdade !
- Pois bem ! Que é feito dela? Que fizestes dela?
- Não vo-lo sei dizer, porque me parece que a enforcaram.
- Julgais isso?
- A certeza não tenho. Quando vi que a queriam enforcar, retirei-me
do j ogo.
- É tudo o que sabeis a tal respeito?
- Esperai então. Disseram-me que se refugiara em Nossa Senhora,
onde se encontrava em segurança; estou encantado, mas não consegui
apurar se a cabra se salvara mais ela. É tudo o que sei.
- Vou informar-vos melhor - bradou D. Cláudio, cuja voz, até
àquela altura, baixa, lenta e quase surda, se tornara trovejante. Efeti­
vamente, refugiou-se em Nossa Senhora. Mas, dentro de três dias, a

426
justiça tornará a capturá-la para a enforcar na Greve. Há um acórdão
do Parlamento.
- Isso é que é aborrecido - comentou Gringoire.
Num abrir e fechar de olhos, o padre voltara a ficar frio e calmo.
- Mas quem diabo - prosseguiu o poeta - se entreteve então a
solicitar um acórdão de reintegração? Porventura não podia deixar
sossegado o Parlamento? Que mal faz que uma pobre rapariga se abri­
gue debaixo dos botaréus de Nossa Senhora, ao lado dos ninhos das
andorinhas?
- Há demónios neste mundo - respondeu o arcediago.
- Isso é demoniacamente mal feito - observou Gringoire.
Após uma pausa, o arcediago insistiu:
- Com que então, ela salvou-vos a vida?
- Lá entre os meus bons amigos vagabundos. Mais minuto menos
minuto, e enforcavam-me. Hoj e estariam arrependidos.
- Não quereis fazer nada por ela?
- Não pretenderia outra coisa, D. Cláudio. Mas se me vou meter
numa camisa de onze varas? ! . . .
- Que importa !
- Essa é boa ! Que importa ! . . . É que tenho duas grandes obras
começadas.
O padre bateu na testa. Embora afetasse tranquilidade, de vez em
quando um gesto violento denunciava-lhe as convulsões íntimas.
- Como salvá-la?
Gringoire respondeu-lhe:
- Dir-vos-ei, meu mestre: il padelt, o que em turco significa Deus é
a nossa esperan ça.
- Como salvá-la? - repetiu , pensativo, Cláudio.
Chegou a vez de Gringoire bater na fronte.
- Ouvi, meu mestre. Possuo imaginação. Vou arranj ar-vos alguns
expedientes. Se se pedisse o seu perdão ao rei?
- Um perdão, a Luís XI?
- Porque não?
- É ir arrancar um osso a um tigre !
Gringoire lançou-se à cata de outras soluções.
- Pois bem, escutai! Quereis que dirija às parteiras um requerimento
a declarar que a rapariga está grávida?

427
A solução arrancou uma faísca da pupila cava do padre.
- Grávida! Ridículo ! Percebes alguma coisa disso?
O ar de D. Cláudio espavoriu Gringoire que se apressou a justificar-se:
- Oh, não de mim! O nosso casamento era um autêntico forismarita-
gium 106. Fiquei de fora. Mas, enfim, obter-se-ia uma suspensão de pena.
- Loucura ! Infâmia ! Cala-te !
- Fazeis mal em zangar-vos - resmungou Gringoire. - Consegue-se
uma suspensão de pena, o que não faz mal a ninguém e permite que as
parteiras, que são umas pobres mulheres, ganhem quarenta dinheiros
parísios.
O padre não o ouvia. Murmurou:
- Seja como for, é preciso que ela saia dali. O acórdão é executório
dentro de três dias! Além disso, se não houvesse o acórdão, havia o
Quasímodo! Como as mulheres têm gostos depravados! - Ergueu a voz:
- Mestre Pedro, pensei bem e só há uma maneira de a salvar.
- Qual? Não vejo nenhuma !
- Escutai, mestre Pedro, e lembrai-vos de que lhe deveis a vida. Vou
dizer-vos francamente a minha ideia. Vigiam dia e noite a igreja. Não
deixam sair dali senão os que viram entrar. Podeis, portanto, entrar.
Vireis comigo. Conduzir-vos-ei aonde ela está. Trocareis a vossa roupa
com ela. Ela vestirá o vosso gibão e vós a sua saia.
- Até aqui tudo vai bem - concordou o filósofo. - E depois?
- E depois? Ela sairá com a vossa roupa; vós ficareis com a sua.
Talvez vos enforquem, mas ela ficará salva
Gringoire coçou a orelha com uma cara muito séria e disse:
- Ora aí está uma ideia de que sozinho nunca me lembraria! Ante
a inesperada proposta de D. Cláudio, a fisionomia franca e benigna
do poeta toldou-se de repente, como uma risonha paisagem de Itália
quando se desencadeia forte ventania que esmaga uma nuvem contra
o Sol.
- Então, Gringoire, que dizeis ao meu plano?
- Digo, meu mestre, que não me enforcarão talvez, mas sim que me
enforcarão indubitavelmente.
- Isso não nos interessa.
- Ai não, não interessa ! - exclamou Gringoire.

1 06
Um casamento visto de fora.

428
- Salvou-vos a vida; é uma dívida que lhe pagais.
- Há muitas outras que não pago !
- M estre Pedro, é absolutamente preciso.
O arcediago falava autoritariamente.
- Escutai, D. Cláudio - respondeu, muito consternado, o poeta. -
Agarrastes-vos a essa ideia e fazeis mal. Não vejo motivo para me fazer
enforcar em lugar de outra pessoa.
- E que é que assim tanto vos prende à vida?
- Ah, mil razões!
- Dizei quais são, por favor !
- Quais são? O ar, o céu, a manhã, a noite, o luar, o s meus bons
amigos vagabundos, as paródias com as cachopas, as lindas arquitetu­
ras de Paris para estudar, três volumosos livros para escrever, um dos
quais contra o bispo e seus moinhos, que sei eu? Anaxágoras dizia que
estava no mundo para admirar o Sol, E depois, tenho a felicidade de
passar os dias inteiros, de manhã à noite, com um homem de génio,
que sou eu, o que é muito agradável.
- Cabeça de guizo ! - resmungou o arcediago - Dize lá então: e quem
te conservou esta vida que levas tão cheia de encantos? A quem deves
tu o respirar este ar, ver este céu e poderes ainda entreter esse teu espí­
rito de cotovia com frivolidades e disparates? Sem ela, onde estarias tu?
Queres então que ela morra, ela, graças a quem estás vivo? Que morra
essa criatura formosa, doce, adorável , necessária à luz do mundo, mais
divina do que Deus! Ao passo que tu, meio sensato e meio demente,
vão esboço de qualquer coisa, espécie de vegetal que julgas caminhar
e que julgas pensar, continuarás a viver com a existência que lhe rou­
baste, tão inútil como uma luz em pleno meio-dia? Vamos, Gringoire,
um pouco de comiseração! Sê, por tua vez, generoso ! Foi ela quem
começou.
O padre fora veemente. Primeiro, Gringoire escutou-o com um ar
indeciso, depois comoveu-se e acabou por fazer um trágico esgar: a sua
fisionomia assemelhava-se à de um recém-nascido com cólicas.
- Sois patético - comentou, enxugando uma lágrima. Pois bem, vou
pensar nisso . . . Tivestes uma ideia algo patusca ! . . . No fim de contas -
continuou, após uma pausa -, quem sabe? Talvez não me enforquem . . .
Nem sempre se casa com aquela de quem estamos noivos . . . Quando
me encontrarem nesse cubículo, matrafonado tão grotescamente de

429
saia e de coifa, talvez desatem a rir. . . E depois, se me enforcarem,
paciência ! A corda é uma morte como outra qualquer ou, para melhor
dizer, não é uma morte como outra qualquer. É uma morte digna de
sábio que toda a sua vida oscilou, uma morte que não é nem carne nem
peixe, tal como o espírito do verdadeiro cético, uma morte toda impreg­
nada de pirronismo e de hesitação, que se mantém entre o céu e a terra
e que nos deixa em suspenso. É uma morte de filósofo para a qual
talvez eu estej a predestinado. É magnífico morrer tal como se viveu.
O padre atalhou:
- Está combinado?
- Afinal de contas, que é a morte? - prosseguiu, exaltado, Gringoire.
- Um mau instante, uma portagem, a passagem de pouca coisa para
nada. Quando alguém perguntou a Cercidas, o megalopolitano, se
morria de bom grado, ele respondeu: " Porque não? Porque depois da
minha morte verei esses grandes homens: Pitágoras entre os filósofos,
H ecateu entre os historiadores, Homero, entre os poetas, Olimpo entre
os músicos."
O arcediago estendeu-lhe a mão:
- Portanto, está combinado? Aparecereis amanhã.
Este gesto restituiu Gringoire à realidade e, no tom do homem que
desperta, protestou:
- Ah, lá isso não ! Ser enforcado ! É excessivamente absurdo! Não
quero !
- Nesse caso, adeus! - e entre dentes o arcediago acrescentou : -
Hei de encontrar-te outra vez! . . .
" Não quero que o diabo deste homem me torne a encontrar" - pen­
sou Gringoire, que desatou a correr atrás de D. Cláudio.
- Escutai, senhor arcediago, nada de zangas entre velhos amigos!
Interessais-vos por essa rapariga, por minha mulher, quero dizer. . . Está
bem. Imaginastes um estratagema para a fazer sair a salvo de Nossa
Senhora, mas arranjastes um processo extremamente desagradável
para mim, Gringoire . . . Se ao menos eu encontrasse outro ! . . . Aviso-vos
de que me acaba neste instante de ocorrer uma inspiração muito lumi­
nosa ! . . . Se eu tivesse um processo expedito para a tirar dessa má situa­
ção sem arriscar o pescoço com o menor nó corredio, que diríeis a isso?
Não vos bastaria? É absolutamente indispensável que me enforquem
para que fiqueis satisfeito?

430
O padre, impaciente, arrancava os botões da batina.
- Que chorrilho de palavras! . . . Qual é o teu processo?
- Sim - continuou Gringoire a falar consigo próprio e tocando no
nariz com o indicador, em sinal de meditação. - É isso ! . . . Os vagabun­
dos são bons rapazes . . . A tribo do Egito adora-a . . . Levantar-se-ão à
primeira voz . . . Nada mais fácil . . . Um ataque imprevisto . . . Favorecidos
pela balbúrdia . . . arrebatá-la-emos facilmente . . . A partir de amanhã à
noite . . . eles não quererão outra coisa !
- O processo, diz! - ordenou o padre, abanando-o.
Gringoire virou-se maj estosamente para ele:
- Então largai-me ! Bem vedes que estou a delineá-lo! - Refletiu
ainda mais uns momentos; depois bateu as palmas à ideia que lhe
ocorrera e bradou: - Admirável ! Êxito garantido !
- O processo ! - insistiu Cláudio, encolerizado.
Gringoire estava radiante.
- Chegai-vos aqui, para que vo-lo explique muito baixinho. É uma
contramina verdadeiramente atrevida e que nos tira a todos de emba­
raços. Com a breca, há que concordar que não sou nenhum imbecil !
Deteve-se.
- É verdade ! A cabrinha está com a rapariga?
- Está. Que te leve o Diabo !
- Eles enforcá-la-iam também, não é verdade?
- Que me interessa isso?
- Sim, enforcá-la-iam. Como enforcaram uma porca o mês pas-
sado. O verdugo aprecia essas coisas, porque, depois, come o animal.
Enforcar a minha linda Djali ! . . . Pobre cordeirinho !
- Maldição ! - bradou D. Cláudio. - O carrasco és tu ! Que meio de
salvação descobriste afinal , velhaco? É preciso arrancar-te a ideia a
ferros?
- Devagar, mestre ! Cá está.
Gringoire inclinou-se para o ouvido do arcediago e falou-lhe muito
baixinho, enquanto deitava um olhar inquieto de um extremo ao
outro da rua, apesar de não ir ninguém a passar. Logo que terminou,
D. Cláudio agarrou-lhe na mão e disse-lhe com frieza:
- Está bem. Até amanhã.
- Até amanhã - repetiu Gringoire. E, enquanto o arcediago se afas-
tava para um lado, ele seguiu para o outro, dizendo a meia-voz: - Eis um

43 1
bonito serviço, Sr. Pedro Gringoire! . . . Não faz mal. Não se há de dizer,
lá porque se é pequeno, que um grande empreendimento nos assusta.
Biton carregou com um touro enorme às costas; as alvéolas, as toutine­
gras e as abetardas atravessam o oceano.

432
II

Fazei-vos vagabundo

Quando o arcediago regressou ao claustro, encontrou à porta da


sua cela seu irmão Jehan du Moulin que o esperava e que entreti­
vera os aborrecimentos da espera desenhando na parede , com um
carvão, o perfil do irmão mais velho, enriquecido por um descomu­
nal nariz.
D. Cláudio mal olhou para o irmão. Ia a pensar noutras coisas.
O rosto j ovial do valdevinos, cuja irradiação tantas vezes aliviara a
fisionomia sombria do padre, não conseguia agora dissipar a bruma
que cada dia mais se condensava sobre aquela alma corrompida, rnefí­
tica e estagnada.
- Meu mano - disse timidamente Jehan -, venho visitar-vos.
O arcediago nem sequer ergueu para ele os olhos.
- Depois?
- Meu mano - repetiu o hipócrita -, sois tão bom para mim e
dais-me tão bons conselhos, que volto sempre à vossa procura.
- E que mais?
- Infelizmente, meu mano, tendes bem razão quando me dizeis:
"Jehan! cessat doctorum doctrina, discipulorum disciplina107• Jehan,
tende j uízo, Jehan sede outro; Jehan, não pernoiteis fora do colégio
sem legítima justificação e licença do mestre. Não batais nos picar­
dos, noli, Joannes, verberare picardos. Não apodreçais corno um asno
iletrado, quasi asinus illitteratus, sobre a palha da escola. Jehan, deixai
que o mestre vos puna à discrição. Jehan, ide todas as noites à capela

107 Q ue cessem a doutrina dos doutos, a disciplina dos discípulos.

433
e cantai ali uma antífona com versículo e oração à gloriosa Virgem
Maria Nossa Senhora . " Ai, como eram excelentes conselhos! . . .
- E depois?
- Meu mano, estais a ver um culpado, um criminoso, um miserável,
um libertino, um homem espantoso ! Meu querido mano, Jehan fez dos
vossos graciosos conselhos palha e estrume para calcar aos pés. Fui
bem castigado e o Pai do Céu é extraordinariamente j usto. Enquanto
tive dinheiro, andei no regabofe, levei vida leviana e alegre. Ai, como
a libertinagem, tão bonita pela frente, é feia e engelhada por detrás!
Agora nem um chavo tenho, vendi a camisa, a toalha da mesa e a das
mãos! Acabou-se a vida airada ! A bonita vela apagou-se e não dispo­
nho de mais nada senão duma ruim torcida de sebo a fumegar-me
debaixo do nariz! As raparigas fazem pouco de mim. Bebo água. Estou
carregado de remorsos e de credores.
- O resto? - proferiu o arcediago.
- Ai, meu querido mano, bem gostaria de alinhar numa vida
melhor. Venho à vossa procura, cheio de contrição. Sou penitente.
Confesso-me. Bato no peito com grandes murros. Tendes bem razão
em querer que eu um dia me faça licenciado e vice-prefeito do colégio
de Torchi. Eis que me sinto agora com magnífica vocação para esse
estado. Mas já não tenho tinta e necessito de comprá-la; já não tenho
penas e necessito de comprá-las; j á não tenho papel, já não tenho
livros e necessito de comprá-los. Para isso preciso muito de algum
dinheiro, razão por que venho ter convosco, meu mano, com o coração
pleno de contrição.
- E é tudo?
- Sim - disse o estudante. - Algum dinheiro.
- Não o tenho.
O estudante disse então com um ar grave e resoluto ao mesmo
tempo :
- Pois bem, meu mano, lamento ter de dizer-vos que recebi de outro
lado belíssimas ofertas e propostas. Não me quereis dar dinheiro? . . .
Não? Nesse caso, vou fazer-me vagabundo.
Quando pronunciou esta palavra monstruosa, o rapaz adotou um ar
de Ájax, à espera de ver cair o raio em cima da sua cabeça.
O arcediago declarou-lhe friamente:
- Fazei-vos vagabundo.

434
Jehan saudou-o profundamente e desceu as escadas do claustro,
assobiando.
No momento em que passava no pátio do claustro e por baixo da
j anela da cela do irmão, esta abriu-se; ele levantou o nariz e viu surgir
pela abertura a cabeça severa do arcediago.
- Vai para o diabo ! - disse D. Cláudio. - Aí tens o último dinheiro que
receberás de mim.
Ao mesmo tempo, o padre atirou a Jehan uma bolsa que provocou
na testa do estudante enorme contusão e com a qual ele se foi, simul­
taneamente aborrecido e contente, como um cão a que arremessassem
um osso com tutano.

435
III

Viva a alegria !

Talvez o leitor não se esquecesse de que uma parte do Pátio dos


Milagres ficava dentro do antigo muro que cercava a cidade e do qual
um bom número de torres j á nesse tempo começavam a cair em ruí­
nas. Os mendigos haviam convertido uma dessas torres em recinto de
diversões. Existia uma taberna na sala térrea e nos andares superiores
o resto. Era esta torre o sítio mais animado e, por conseguinte, o mais
hediondo do reino da vadiagem. Formava uma espécie de monstruosa
colmeia que zumbia noite e dia. De noite, quando a maior parte desses
mendigos dormia, quando já não havia sequer uma j anela iluminada
nas fachadas terrosas da praça, quando se deixara de ouvir qualquer
grito sair desses inúmeros casebres, desse formigueiro de gatunos, de
meretrizes e de crianças roubadas ou bastardas, reconhecia-se sempre
a alegre torre pela bulha que nela se fazia e pela luz avermelhada
que, irradiando ao mesmo tempo das frestas, das janelas, das rochas,
das paredes gretadas, se escapava, por assim dizer, por todos os seus
poros.
O subterrâneo era, portanto, a taberna. Descia-se para ali por uma
porta baixa e por uma escada tão aprumada como um alexandrino
clássico. Em cima da porta havia, à guisa de tabuleta, uma maravilhosa
garatuj a a representar soldos novos e frangos mortos e este trocadilho
por baixo: Aos que tocam a finados.
Uma noite, no momento em que soava o toque de recolher por
todas as torres de Paris, os meirinhos da ronda, se lhes fosse permitido
entrar no temível Pátio dos Milagres, teriam notado que na taberna
dos mendigos se fazia mais barulho ainda do que de costume, que ali

436
bebiam mais do que o habitual e praguejavam ainda melhor. Do lado
de fora, havia vários grupos a conversar em voz baixa, como quando
se prepara uma grande empresa, e aqui e além um facínora acocorado
afiava numa pedra alguma ruim lâmina de ferro.
Entretanto, na própria taberna o vinho e o j ogo formavam uma
diversão tão poderosa às ideias que nessa noite preocupavam a vaga­
bundagem, que teria sido difícil de adivinhar, pelas conversas dos
bebedores, do que se tratava. Apenas mostravam aspeto mais alegre
do que o costumado e via-se em todos luzir entre as pernas uma arma,
uma podoa, um machado, uma enorme espada de dois gumes ou o
gancho de um velho arcabuz.
Era muito ampla a sala, de forma redonda, mas as mesas estavam
tão chegadas e eram tantos os bebedores, que tudo o que a taberna
continha - homens, mulheres, bancos, canj irões de cerveja, o que
bebia, o que dormia, o que jogava, os saudáveis, os estropiados -
parecia empilhado à trouxe-mouxe com tanta ordem e harmonia como
um montão de cascas de ostras. Havia algumas velas de sebo acesas
em cima das mesas, mas a verdadeira iluminação da taberna, o que
desempenhava na tasca o papel do lustre duma sala de ópera, era o
fogo. Este subterrâneo era tão húmido, que nem mesmo no pino do
verão deixavam apagar-se o lume; no fogão, enorme, com um pano
esculpido, todo eriçado de pesados cães de ferro e de utensílios de
cozinha, ardia uma dessas grandes fogueiras de lenha e de turfa que,
à noite, nas ruas da aldeia, fazem destacar tão ao rubro, nas paredes
fronteiras, os espectros das bocas de forja. Um canzarrão, gravemente
sentado na cinza , virava diante do braseiro um espeto carregado de
carne.
Apesar da confusão, logo a seguir ao primeiro relance conseguia-se
distinguir naquela multidão três grupos principais que se comprimiam
em volta de três personagens j á conhecidas do leitor. Uma destas,
extravagantemente ornamentada de ouropéis orientais, era Matias
Hungadi Spicali, duque do Egito e da Boémia. O marau estava sen­
tado em cima duma mesa, pernas cruzadas e dedo erguido, e em voz
alta procedia à distribuição da sua ciência de magia branca e negra
pelas numerosas caras embasbacadas que o cercavam. Outro magote
apertava-se à roda do nosso velho amigo, o valente rei de Tunes,
armado até aos dentes. Clopin Trouillefou , com um ar muito sério e

437
em voz baixa, dirigia o assalto a uma enorme barrica cheia de armas,
profundamente arrombada na sua frente e de onde trasbordavam , em
montão, achas, espadas, bacinetes, cotas de armas, escudos, ferros
de lança e azagaias, flechas e virotões, como maçãs e uvas duma cor­
nucópia de abundância. Cada um tirava do monte, aqui um morrião,
acolá um estoque, mais além uma adaga de punhos em cruz. Até as
crianças se armavam e havia mesmo estropiados que, de capacete e
couraça, se metiam por entre as pernas dos bebedores como enormes
escaravelhos.
Finalmente, um terceiro auditório, o mais barulhento, o mais alegre
e o mais numeroso, pejava os bancos e as mesas por entre as quais
perorava e praguejava uma voz aflautada que saía debaixo de uma
pesada armadura completa desde o capacete às esporas. O indivíduo
que desta forma aparafusara ao corpo uma panóplia desaparecia tão
completamente por baixo do seu traj o de guerra, que só se lhe via da
pessoa o nariz atrevido, vermelho, arrebitado, uma melena de cabelos
louros, uma boca rosada e uns olhos descarados. Enchera o cinto de
adagas e punhais, ao flanco pendurara uma enorme espada, do lado
esquerdo uma balestra enferruj ada e na sua frente um grande canj irão
de vinho, sem falar que à sua direita tinha uma gorda e descomposta
rapariga. Todas as bocas em torno dele riam, praguej avam e bebiam.
A estes juntem-se vinte grupos secundários, as raparigas e os rapa­
zes do serviço a correr com os jarros à cabeça, os j ogadores acocora­
dos sobre as bolas, sobre as pedras, sobre os dados, aferrados ao j ogo,
as discussões a um canto, os beijos noutro, e formar-se-á uma ideia
daquele conjunto, por cima do qual vacilava o clarão de um vivo lume
flamejante que fazia bailar nas paredes da taberna mil desmesuradas
e grotescas sombras.
Quanto ao barulho, imaginai o do boj o de um sino a repicar.
A pingadeira, onde espirrava uma chuva de gordura, enchia com o
seu constante rechinar os intervalos desses mil diálogos que se entre­
cruzavam de uma ponta à outra da sala.
Entre esta barulheira via-se, ao fundo da taberna, no banco inferior
do fogão, um filósofo a meditar, de pés na cinza e olhos nos tições. Era
Pedro Gringoire.
- Vamos, depressa ! Despachemo-nos, armai-vos! Pôr-nos-emos em
marcha dentro de uma hora !

438
I sto dizia Clopin Trouillefou para os seus companheiros.
Uma rapariga trauteava:

Boas noites, meu pai e minha mãe!


Que os últimos apaguem a luz.

Dois j ogadores de cartas disputavam entre si:


- Valete ! - gritava o mais encarniçado dos dois, ameaçando o outro
com o punho. - Vou-te cortar os paus! Estás bom para substituir Mistigri
no j ogo de cartas de monsenhor o rei !
- Safa! - berrou um normando, identificável por causa do seu sotaque
anasalado. - Está-se para aqui apertado que nem os santos de Caillouville!
- Filhos - dizia para o auditório o duque do Egito, falando em fal­
sete -, as bruxas da França vão para o sabbat sem vassoura, nem graxa,
nem montada, mas só com algumas palavras mágicas. As bruxas da
Itália têm sempre um bode à porta, à espera. São todas obrigadas a sair
pela chaminé.
A voz do moço armado de ponto em branco dominava o bulício:
- Viva ! Viva ! - berrava. - É hoj e o meu batismo de sangue!
Vagabundo! Sou vagabundo, c'os diabos! Deem-me de beber! . . . Meus
amigos, chamo-me Jehan Frollo du Moulin e sou fidalgo. Sou de opi­
nião que, se Deus fosse gendarme, tornar-se-ia larápio. I rmãos, vamos
realizar uma expedição magnífica. Somos uns valentes. Cercar a igreja,
arrombar as portas, tirar de lá a bela rapariga, salvá-la dos j uízes,
pô-la ao abrigo dos padres, desmantelar o claustro, queimar o bispo
dentro do bispado, tudo isso faremos enquanto o Diabo esfrega um
olho. É justa a nossa causa, pilharemos Nossa Senhora e não se fala
mais nisso. Enforcaremos Quasímodo. Conheceis Quasímodo, minhas
meninas? Nunca o vistes a suar em bica em cima do sino grande num
dia de solene Pentecostes? Com mil diabos! É uma coisa lindíssima. Até
parece um diabo a cavalo numa tacha arreganhada . . . Ouvi-me, meus
amigos, sou vagabundo do fundo do coração, do fundo da alma per­
tenço ao calão, nasci para vadio. Fui muito rico, mas comi tudo o que
tinha. M inha mãe queria que eu tomasse ordens, meu pai sonhava-me
subdiácono, minha tia, conselheiro de devassas, minha avó, protonotá­
rio do rei , minha tia-avó, tesoureiro de toga curta, mas eu fiz-me vaga­
bundo! Bem o disse a meu pai que me escarrou na cara a sua maldição,

439
a minha mãe que, pobre velhota, desatou a chorar e a babar-se como
esta acha no cão da chaminé. Viva a alegria ! Sou um autêntico Bicêtre !
Taberneira, querida amiga, mais vinho ! Tenho ainda com que o pagar.
Não quero mais essa zurrapa de Suresnes. I rrita-me o gasganete.
Dá-me coisa melhor, cum raio !
Entretanto a malta aplaudia entre gargalhadas, e o estudante, ao ver
que a balbúrdia redobrava à sua roda, bradou:
- Mas que esplêndida barulheira ! Pop uli debacchantis populosa
debacchatio! 1 0 8
Então desatou a cantar, a olhar como mergulhado na meditação e
no tom de um cónego a entoar as vésperas:
- Quae cantica! quae organa! quae cantilenae! quae melodiae hic sine
fine decantantur! sonant melliflua hymnorum organa, suavissima angelo­
rum melodia, cantica canticorum mira!1 09 - Deteve-se. - Botequineira
. . •

do diabo, traz-me a ceia !


Seguiu-se um instante quase de silêncio durante o qual por sua vez
se ergueu a voz áspera do duque do Egito a ensinar aos seus boémios:
- . . . A doninha chama-se Aduína, a raposa Pata Azul ou Corredor
dos Bosques, o lobo, Pata Parda ou Pata Dourada, o urso, o Velho ou
o Avô O gorro de um gnomo torna invisível e faz com que se vejam
. . .

as coisas invisíveis . . . Sempre que se batiza um sapo deve-se vesti-lo de


veludo encarnado ou preto, pendurar-lhe um guizo no pescoço e uma
campainha nas patas; o padrinho segura-lhe na cabeça e a madrinha no
rabo . . . É o demónio Sidragasum que dispõe do poder de fazer dançar as
raparigas completamente nuas em pelo.
- Coa breca ! - interrompeu Jehan. - Quem me dera ser o demónio
Sidragasum !
Entretanto, n a outra ponta da taberna os vagabundos continuavam
a armar-se, falando baixinho.
- Coitada da Esmeralda! - lamentava um cigano. - É irmã nossa . . .
É preciso tirá-la dali.
- Continua então em Nossa Senhora? - inquiriu um vendilhão com
cara de j udeu.
108
Popu loso frenesi dum povo frenético.
1 09
Que cân ticos! Que instrumentos! Que refrãos! Que melodias sem fim aqui se
ca ntam! Ressoam, como mel, os instru mentos dos hinos, as suavíssimas melodias dos
anos, maravilhosos câ nticos dos cân ticos.

440
- Com certeza !
- Nesse caso, camaradas - exclamou o vendilhão -, toca para Nossa
Senhora ! Ainda para mais, há lá, na capela de S. Féréol e S. Ferrution,
duas estátuas, uma de S. João Batista, outra de Santo António, todas de
ouro, que pesam juntas dezassete marcos de ouro e quinze esterlinas, e
com peanhas de prata dourada que pesam à vontade dezassete marcos
e cinco onças. Sei-o muito bem. Sou ourives.
Serviam então a ceia a Jehan que exclamou, deitando-se para cima
do peito da rapariga sua vizinha:
- Por S. Voult-de-Lucques, a quem o povo chama S. Goguelu !
Sinto-me completamente feliz. Vej o na minha frente um imbecil a olhar
para mim com o ar deslavado de um arquiduque. Está aqui um à minha
esquerda com os dentes tão compridos, que até lhe escondem o queixo.
E além disso estou como o marechal de Gié no cerco de Pontoise: tenho
a direita apoiada a um mamelão . . . Com os diabos, camarada ! Tens
cara de mercador de estofos e vens sentar-te a meu lado ! Sou fidalgo,
amigo ! A mercancia não é compatível com a nobreza. Põe-te a andar! . . .
Olá, vós, outros! não vos batais! O quê, Batista Papa-Patos, com um
nariz tão bonito, vais arriscá-lo contra os grossos punhos desse alarve?
Imbecil ! Non cuiquam datum est habere nasum11º. És verdadeiramente
divina, Jaquelina Rói-a-Orelha ! Que pena não teres cabelo ! . . . Eh lá,
chamo-me Jehan Frollo e meu mano é arcediago ! Vá para o Diabo que
o carregue! Tudo o que vos digo é a pura verdade. Ao tornar-me vaga­
bundo, renunciei com todo o prazer a metade duma casa situada no
Paraíso e que meu mano me prometera. Dimidiam domum in paradiso.
Cito o texto. Possuo um feudo na Rua Tirechappe e todas as mulheres
andam apaixonadas por mim, tão verdade como é verdade Santo Elói
ter sido um ourives excelente e os cinco ofícios da boa cidade de Paris
serem os curtidores, os surradores, os correeiros, os bolseiros e os ser­
radores, e São Lourenço ter sido queimado vivo em cascas de ovos.
Juro-vos, camaradas,

Que não beba ambrosia


Antes de um ano, se nisto eu minto!

1 10
Ter nariz não é para qualquer um.

441
Meu encanto, está luar; repara, portanto, ali para baixo, pelo respira­
douro, como o vento esfrangalha as nuvens! Tal como eu faço à tua gor­
jeira . . . Eh, raparigas! . . . Limpai o ranho às crianças e às tochas . . . Cristo
e Maomet! Que é que eu estou aqui a comer, Júpiter? Mas que megera !
Os cabelos que faltam às tuas marafonas aparecem-nos nas tuas ome­
letas! Eh, velha, prefiro as omeletas carecas! Pede ao Diabo que te dê
vergonha ! . . . Linda hospedaria de Belzebu, onde as sirigaitas se penteiam
com os garfos!
Dito isto, atirou com o prato ao chão, onde se despedaçou, e desatou
esganiçadamente a cantar:

E eu que não tenho,


Pelo sangue de Deus!
Nem fé, nem lei,
Nem fogo, nem poiso,
Nem rei,
Nem Deus.

Entretanto, Clopin Trouillefou acabara de distribuir as armas.


Aproximou-se de Gringoire que parecia mergulhado em profunda
meditação, com os pés apoiados a um cão do fogão. O rei de Tunes
disse-lhe:
- Amigo Pedro, em que diabo estás a pensar?
Gringoire voltou-se para ele com um sorriso melancólico:
- Aprecio o fogo, meu caro senhor. Não pelo trivial motivo de o
fogo nos aquecer os pés ou nos cozinhar a sopa, mas sim porque tem
centelhas. Passo às vezes horas esquecidas a contemplar as centelhas.
Descubro milhares de coisas nestas estrelas que polvilham o fundo
negro da lareira. Também aquelas estrelas são mundos.
- Raios me partam se te percebo ! - exclamou o vagabundo. - Sabes
que horas são?
- Não sei - respondeu Gringoire.
Clopin aproximou-se então do duque do Egito.
- Camarada Matias, o momento não é bom. Consta que o rei Luís XI
está em Paris.
- Mais uma razão para lhe arrebatarmos das garras a nossa irmã -
respondeu o velho cigano.

442
- Falas como um homem, Matias - disse o rei de Tunes. - Além
disso, trabalharemos expeditamente. Não há que recear na igreja qual­
quer resistência. Os cónegos são como as lebres e nós estamos na mó
de cima. Essa gente do parlamento vai ficar amanhã de boca aberta,
quando a forem buscar! Pelas tripas do papa, não quero que se enfor­
que a linda rapariga !
Clopin saiu da taberna.
Entretanto, Jehan berrava em voz rouca:
- Eu bebo, eu como, estou bêbado, sou Júpiter! . . . Eh, Pedro Espan­
cador, se olhas para mim dessa maneira, sacudo-te a poeira do nariz a
piparotes!
Gringoire, por seu lado, arrancado às suas meditações, passara a
observar a fogosa e barulhenta cena que o envolvia, enquanto murmu­
rava entre dentes:
- Luxuriosa res vinum et tumultuosa ebrietasrn . Ai, como tenho car­
radas de razão por não beber, como São Bento avisadamente disse:
Vinum aposta tare facit etiam sapientes!1 12
Nesse momento Clopin reapareceu e gritou em voz trovejante:
- Meia-noite!
A esta palavra, que causou o mesmo efeito do toque de montar num
regimento em descanso, todos os vagabundos, homens, mulheres e
crianças, precipitaram-se em magote para fora da taberna, com grande
alarido de armas e de ferros.
A Lua escondera-se.
O Pátio dos Milagres encontrava-se completamente às escuras. Nem
uma luz brilhava; contudo, não estava deserto. Distinguia-se ali um
montão de homens e de mulheres a falar em voz baixa. Ouviam-se
zumbir e nas trevas via-se rebrilhar toda a espécie de armas. Clopin
subiu a uma grande pedra e gritou:
- Aos vossos postos, Argot ! Aos vossos postos, Egito ! Aos vossos
postos, Galileia!
Na sombra operou-se um movimento. Aquela multidão imensa
pareceu formar-se em coluna. Ao cabo de minutos o rei de Tunes vol­
tou a erguer a voz:

rn O vinho e a embriaguez são coisas luxuriosas.


1 12
O vinho faz apostatar até os sábios.

443
- Agora, silêncio ao atravessar Paris! A palavra de passe é Pequena
flâmula vagabunda! Só se acendem os archotes em Nossa Senhora ! Em
marcha !
Dali a dez minutos os cavaleiros da ronda fugiam a sete pés diante
duma longa procissão de homens negros e silenciosos que desciam
para a Ponte do Câmbio através das tortuosas ruas que em todos os
sentidos perfuram o maciço bairro das Halles.

444
IV

Um amigo desastrado

Nessa mesma noite, Quasímodo não dormia. Acabara de fazer a


última ronda na igreja. No momento em que fechava as portas, não
notara que o arcediago passara a seu lado e manifestara certo aborre­
cimento ao vê-lo aferrolhar e trancar com cuidado a enorme armadura
de ferro que dava aos seus largos batentes a solidez duma muralha.
D. Cláudio mostrava ar ainda mais preocupado do que o habitual . Além
disso, desde a aventura noturna da cela, maltratava constantemente
Quasímodo; mas, por mais asperamente que o tratasse, embora mesmo
nalgumas ocasiões lhe batesse, nada abalava a submissão, a paciência e
a dedicada resignação do fiel sineiro. Sofria tudo ao arcediago: injúrias,
ameaças, pancadas, sem por isso murmurar uma censura ou soltar um
queixume. Quando muito, seguia-o inquieto com a vista no momento
em que D. Cláudio subia a escada da torre, mas o arcediago abstivera-se
espontaneamente de tornar a aparecer aos olhos da cigana.
Por isso, naquela noite, Quasímodo, depois de dar uma vista de
olhos aos seus pobres sinos tão desprezados, à Jaquelina, à Maria, ao
Teobaldo, subira até ao alto da torre norte e ali, poisando na cober­
tura de chumbo a lanterna furta-fogo bem fechada, ficou a contem­
plar Paris. Já dissemos que a noite estava muito escura. Paris que,
por assim dizer, não era iluminada nesse tempo, oferecia à vista um
confuso amontoado de massas negras, cortado aqui e além pela curva
esbranquiçada do Sena. Quasímodo não avistava uma única luz senão
a da j anela de um prédio distante e cujo vago e sombrio perfil se dese­
nhava muito acima dos telhados, do lado da Porta de Santo António.
Também ali havia alguém de vigília.

445
Ao mesmo tempo que deixava flutuar o seu único olho sobre esse
horizonte brumoso e escuro, o sineiro sentia dentro de si próprio uma
inexprimível inquietação. Havia dias que andava de atalaia. Via inces­
santemente rondar, em volta da igrej a, uns homens de aspeto sinistro
que não tiravam a vista do asilo da rapariga. Pensou que talvez se
tramasse qualquer conj ura contra a infeliz refugiada. I maginava que
havia um rancor popular contra ela, tal como contra ele, e que era bem
possível que em breve sucedesse qualquer coisa. Por isso, mantinha-se
em cima do campanário, de prevenção, sonhando no seu sonhar1 13,
como diz Rabelais, com o olho ora na cela, ora em Paris, fazendo uma
guarda segura, como um bom cão, e com mil desconfianças no espírito.
De repente, enquanto perscrutava a grande cidade com aquele olho
que a natureza , numa espécie de compensação, tornara tão penetrante
a ponto de quase substituir os outros órgãos de que carecia, pareceu a
Quasímodo que o contorno do cais da Vieille-Pelleterie oferecia qual­
quer coisa de estranho, que havia nesse ponto certo movimento, que a
linha negra do parapeito, destacando-se sobre a brancura da água, não
era direita e serena tal como a dos outros cais, mas sim ondulava à vista
como as vagas dum rio ou como as cabeças duma multidão em marcha.
Achou aquilo esquisito. Redobrou de atenção. O movimento parecia
dirigir-se para a Cité. Aliás, sem qualquer luz. Demorou algum tempo
no cais, depois desfez-se a pouco e pouco, como se o que passava
entrasse para o interior da ilha, a seguir cessou por completo e a borda
de água voltou a ficar direita e imóvel.
No momento em que Quasímodo se desfazia em conjeturas, achou
que o movimento reaparecia na Rua do Adro, a qual se prolonga pela Cité
perpendicularmente à fachada de Nossa Senhora. Finalmente, por muito
espessa que fosse a escuridão, viu uma cabeça de coluna desembocar por
esta rua e, num instante, espalhar-se no largo uma multidão da qual, na
treva, não podia distinguir mais nada senão que era uma multidão.
Aquele espetáculo continha o seu quê de terror. É provável que
aquela procissão singular, que parecia tão interessada em se ocultar
sob uma profunda escuridão, não mantivesse um silêncio menos pro­
fundo. Não obstante, algum rumor dela se escaparia, nem que fosse
apenas o roçar dos pés no chão. Mas este ruído nem sequer chegava

' 13 No texto : rêvant dans son rêvoir.

446
ao nosso surdo, e aquela enorme multidão, de que apenas via alguma
coisa e de que nada ouvia, a agitar-se e a caminhar assim tão perto
dele, causava-lhe a impressão de uma turba confusa de mortos, muda,
impalpável, perdida num fumo. Parecia-lhe ver avançar para ele um
nevoeiro cheio de homens, ver moverem-se sombras na sombra .
Então despertaram de novo nele os seus receios, a ideia de uma
tentativa contra a cigana desenhou-se-lhe no espírito. Sentiu confu­
samente que se aproximava uma situação violenta. Neste momento
crítico, reuniu-se em conselho consigo próprio e raciocinou melhor e
mais depressa do que seria de esperar de um cérebro tão mal elabo­
rado. Devia acordar a cigana? Fazê-la fugir? Por onde? As ruas esta­
vam invadidas, a igreja pegada com o rio. Nenhum barco ! Nenhuma
saída ! . . . Restava somente um recurso : deixar-se matar no limiar de
Nossa Senhora, resistir pelo menos até que surgisse uma aj uda, se é
que ela havia de surgir, e não perturbar o sono de Esmeralda. A des­
graçada tinha muito tempo de acordar para morrer. Tomada esta deci­
são, passou a examinar o inimigo com mais serenidade.
A turba parecia engrossar a cada instante no adro. Segundo calcu­
lou, porém, ela fazia a menor bulha possível, pois as janelas das ruas e
da praça mantinham-se fechadas. De súbito, brilhou uma luz e num ins­
tante sete ou oito archotes acesos passearam sobre as cabeças a sacu­
direm na sombra as suas cabeleiras de chamas. Quasímodo viu então
distintamente contorcer-se no adro um assustador rebanho de homens
e de mulheres andraj osos, armados de foices, de chuços, de podoas,
de partasanas, com mil pontas a cintilar. Aqui e ali, forquilhas negras
pareciam chifres em caras hediondas. Recordou-se vagamente dessa
populaça e j ulgou reconhecer todas as cabeças que, uns meses atrás, o
tinham aclamado papa dos loucos. Um homem, que empunhava numa
das mãos um archote e na outra uma alabarda, subiu a um marco de
pedra e pareceu arengar. Ao mesmo tempo, o estranho exército ope­
rou algumas evoluções como se tomasse posições em volta da igreja.
Quasímodo agarrou na lanterna e desceu para a plataforma entre as
torres para ver mais de perto e divisar os meios de defesa.
Logo que Clopin Trouillefou chegou em frente do alto portal de Nossa
Senhora, dispôs efetivamente a sua tropa em linha de batalha. Apesar de
não esperar qualquer resistência, queria, como general prudente, con­
servar uma disposição capaz de permitir, em caso de necessidade, fazer

447
frente a um súbito ataque da ronda. Por isso escalonou a sua brigada de
forma tal que, vista de cima e de longe, dir-se-ia tratar-se do triângulo
romano da batalha de Écnomo, a cabeça-de-porco de Alexandre ou o
famoso ângulo de Gustavo Adolfo. A base deste triângulo apoiava-se
no fundo da praça, de forma a barrar a passagem da Rua do Adro; um
dos lados virava-se para o Hospital e o outro para a Rua de S. Pedro dos
Bois. Clopin Trouillefou colocara-se na vértice, mais o duque do Egito, o
nosso amigo Jehan e os mendigos mais coraj osos.
Não era de maneira nenhuma coisa muito rara, nas cidades da Idade
Média, uma empresa como a que os vagabundos naquele momento
tentavam contra Nossa Senhora. Aquilo que nós hoj e chamamos polícia
não existia nesses tempos. Nas cidades populosas, principalmente nas
capitais, não havia um poder central uno, regulador. O feudalismo
construíra de modo extravagante essas grandes comunas. Uma cidade
consistia no conj unto de mil senhorios que a dividiam em comparti­
mentos de todas as formas e de todos os tamanhos. Disso resultavam
mil polícias contraditórias, ou seja, nenhuma polícia. Por exemplo, em
Paris, independentemente dos cento e quarenta e um senhores com
direitos de senhorio, existiam vinte e cinco que desejavam exercer j us­
tiça e feudo, desde o bispo de Paris, possuidor de cento e cinco ruas, até
o prior de Nossa Senhora dos Campos, senhor de quatro. Todos estes
justiceiros feudais só nominalmente reconheciam a suserania do rei.
Todos tinham o direito da administração municipal. Todos se considera­
vam em sua casa. Luís XI , esse infatigável obreiro que tão amplamente
começou a demolição do edificio feudal, obra continuada por Richelieu
e por Luís XIV em proveito da realeza, e acabada por Mirabeau em pro­
veito do povo, Luís XI tentou também esburacar essa rede de senhorios
que cobria Paris e atirou violentamente de pernas para o ar com duas
ou três ordenações da polícia geral. Assim, em 1465, ordena-se aos
habitantes que, ao cair da noite, acendam velas nas j anelas e prendam
os cães, sob pena de serem enforcados; no mesmo ano, dá-se ordem
de fechar à noite as ruas com correntes de ferro e proíbe-se o porte
de adagas ou armas ofensivas, de noite, nas ruas. Mas dali a pouco
tempo todos esses ensaios de legislação comunal caíram em desuso.
Os burgueses deixaram que o vento lhes apagasse as velas nas jane­
las e que os cães andassem à solta; as correntes de ferro só se estica­
vam em casos de cerco; a proibição de trazer adagas não conduzia a

448
outras modificações senão à do nome da Rua Corta-Goelas para Rua
Corta-Gargantas, o que representa um evidente progresso. Ficou de pé
a velha armadura das j urisdições feudais; imenso amontoado de bailia­
dos e de senhorios cruzando-se sobre a cidade, molestando-se, encava­
litando-se, enredando-se, chanfrando-se uns aos outros; inútil matagal
de rondas, sub-rondas e contrarrondas, pelo meio do qual passavam,
de mão armada, o latrocínio, a rapina e a sedição. Por conseguinte, não
constituíam um acontecimento inaudito estes ataques imprevistos de
uma parte da populaça contra um palácio, contra um solar, contra uma
casa, nos bairros mais povoados. Na maioria das ocasiões a vizinhança
não ligava importância ao facto, a não ser que a pilhagem lhe chegasse
a casa. Tapava os ouvidos à mosquetaria, fechava as janelas por dentro,
barricava as portas, deixava que a questão se dirimisse com ou sem
ronda e, no dia seguinte, dizia-se por Paris: " Esta noite forçaram a casa
de Estêvão Barbette. " "O marechal de Clermont foi preso, etc . "
Assim, não eram s ó as habitações reais, o Louvre, o Palácio, a
Bastilha, as Tournelles, como também as simples residências senho­
riais, o Petit-Bourbon, o Palácio de Sens, o de Angoulême, etc . , que
mostravam seteiras nas muralhas e matacães por cima das portas.
As igrejas guardavam-se apenas com a própria santidade. Algumas, no
entanto, no número das quais não figurava Nossa Senhora, eram forti­
ficadas. O abade de Saint-Germain-des-Prés ameara-se como um barão
e em casa dele havia mais cobre gasto em bombardas do que em sinos.
Em 1 6 1 0 ainda se lhe via a fortaleza; hoj e resta-lhe apenas a igreja.
Voltemos a Nossa Senhora.
Concluídas as primeiras disposições - e devemos dizer em louvor da
disciplina dos vagabundos que as ordens de Clopin foram executadas
em silêncio e com precisão admirável - o digno chefe do bando subiu
ao parapeito do adro e, erguendo a voz rouca e ríspida, voltado para
Nossa Senhora e agitando o archote cuja luz, fustigada pelo vento e a
todo o instante velada pelo próprio fumo, fazia com que aparecesse e
desaparecesse da vista a fachada avermelhada da igreja, disse:
- A ti, Luís de Beaumont, bispo de Paris, conselheiro na corte de
parlamento, eu, Clopin Trouillefou, rei de Tunes, grande coesre, prín­
cipe do calão, bispo dos loucos, declaro:
"- Nossa irmã, falsamente condenada por magia, refugiou-se na
tua igrej a; deves-lhe asilo e salvaguarda. Ora a corte de Parlamento

449
quer reavê-la e tu consentes nisso; tanto que amanhã a enforcariam na
Greve se cá não estivessem Deus e os vagabundos. Por isso, aqui esta­
mos diante de ti, bispo. Se a tua igrej a é sagrada, também o é a nossa
irmã; se a nossa irmã não é sagrada, também a tua igrej a deixa de o
ser. É por isso que te intimamos a restituir-nos a rapariga, se queres
salvar a tua igreja, senão reavemos a rapariga e pilhamos-te a igreja.
O que será bem bom ! À fé do que a rvoro aqui o meu estandarte, e que
Deus te acuda, bispo de Paris! "
Infelizmente, Quasímodo não pôde ouvir estas palavras proferidas
numa espécie de sombria e selvática majestade. Um vadio apresentou
a sua flâmula a Clopin que, solenemente, a cravou entre duas lajes. Era
uma forquilha de cuj os dentes pendia, sangrento, um quarto de carne
podre.
Feito isto, o rei de Tunes virou-se e passeou a vista pelo seu exército,
feroz multidão onde os olhares brilhavam quase tanto como as lanças.
Depois de uma curta pausa, bradou:
- Avante, filhos! Mãos à obra, valentes!
Trinta homens entroncados e robustos, com cara de serralheiros,
saíram das fileiras carregando às costas martelos, alavancas e barras
de ferro. Encaminharam-se para a porta principal da igreja, subiram os
degraus e logo os viram agachados por baixo da ogiva, a mexerem na
porta com as barras e as alavancas. Seguiu-os uma multidão de vadios
para os aj udar ou observar. Enchiam por completo os onze degraus da
portaria.
Entretanto, a porta aguentava.
- Diabo ! - disse um. - É rija e teimosa!
- Está velha e tem as cartilagens empedernidas - comentou outro.
- Coragem, camaradas! - tornou Clopin. - Aposto a cabeça contra
um chinelo velho em como vós abris a porta, agarrais na rapariga e
despis o altar-mor antes que haja um bedel acordado ! Reparai, parece
que a fechadura está a dar de si.
Um estrondo terrível, que naquele momento ouviu por trás de si,
fê-lo calar-se. Clopin voltou-se. Uma enorme viga acabara de cair do
céu, esmagara no degrau da igreja uma dúzia de vagabundos e rico­
cheteou no pavimento com o estampido duma peça de artilharia, par­
tindo ainda, aqui e além, algumas pernas na multidão que se afastava
com gritos de pavor. Num abrir e fechar de olhos, esvaziou-se o espaço

450
reservado ao adro. Os valentes, embora protegidos pelas profundas
curvaturas do portal, largaram a porta e o próprio Clopin recuou para
respeitosa distância da igreja.
- Escapei de boa ! - gritou Jehan. - Ainda lhe senti o vento, c'um
raio! O Pedro Matador, esse, já está morto !
É impossível de dizer o espanto, misturado de terror, que, com aquela
viga, caiu sobre os maltrapilhos. Ficaram, durante alguns minutos, de
olhos cravados no ar, com mais medo daquele bocado de madeira do
que de vinte mil archeiros do rei. O duque do Egito resmungou:
- Satanás, aqui está uma coisa que cheira mesmo a magia ! . . .
- Foi a Lua que nos atirou com essa acha - observou Andry, o
Vermelho.
- Por isso - comentou Francisco Chanteprune - é que dizem que a
Lua é amiga da Virgem !
- Com mil diabos! - bradou Clopin. - Sois todos uns imbecis!
Não obstante, não sabia como explicar a queda do pranchão.
Entretanto, não se distinguia nada na fachada, a cujo alto não che-
gava o clarão dos archotes. O pesado tabuão j azia no meio do adro e
percebiam-se os gemidos dos miseráveis que tinham recebido o pri­
meiro embate e ficado com o ventre cortado em dois contra a esquina
do degrau de pedra.
Passada a primeira surpresa, o rei de Tunes encontrou finalmente
uma explicação que os companheiros acharam plausível.
- C'o diabo! Com que então os cónegos defendem-se? Nesse caso,
ao saque! Ao saque!
- Ao saque ! - repetiu a turba, em furiosos gritos.
Zuniu uma descarga de bestas e de virotões contra a frontaria da
igreja.
Ao ouvirem a detonação, os pacíficos habitantes das casas circun­
vizinhas acordaram, viram-se muitas janelas abrirem-se, e barretes de
dormir e mãos empunhando velas apareceram nas vidraças.
- Disparai contra as janelas! - comandou Clopin.
As janelas fecharam-se imediatamente e os pobres burgueses, que
mal haviam tido tempo de deitar um olhar assustado sobre aquele qua­
dro de clarões e de tumulto, voltaram, a escorrer suores frios, para junto
das esposas que perguntavam se o sabbat se reunia agora no Adro
de Nossa Senhora , ou se havia algum assalto de borgonheses como

451
em 64. Então os maridos ficaram a pensar nos roubos e as mulheres
nas violações, e todos tremeram.
- Ao saque! - repetiam os do calão.
Não se atreviam, porém, a aproximar-se. Ora olhavam para a
igreja, ora para a viga. Esta mantinha-se imóvel. O edifício conservava
o mesmo ar calmo e deserto, embora alguma coisa enregelasse os
vagabundos.
- Então, mãos à obra, valentes ! - berrou Trouillefou . - Arrombem a
porta !
Ninguém mexeu um pé.
- Raios vos partam! - praguej ou Clopin. - Ora aqui estão uns homens
que têm medo duma tábua !
Um velho disse-lhe então:
- Capitão, não é a trave que nos mete medo; é a porta que é toda
forrada de barras de ferro. As alavancas não entram com ela.
- De que necessitais então para a arrombar? - perguntou Clopin.
- Ora, precisaríamos de um aríete !
O rei de Tunes correu corajosamente para o formidável pranchão e,
pondo-lhe um pé em cima, bradou:
- Aqui está um; foram os cónegos que no-lo mandaram!
E, fazendo uma irónica mesura para o lado da igreja, concluiu:
- Agradecido, cónegos!
Esta fanfarronada causou efeito e quebrou o encanto do pranchão.
Os vagabundos readquiriram coragem e, dali a pouco, a pesada viga,
erguida como uma pena por duzentos braços vigorosos, foi lançada
com furor contra a enorme porta que haviam j á tentado abalar. Ao ver
assim, na luz fraca espalhada na praça pelos raros archotes dos vadios,
aquela comprida trave conduzida por essa multidão de homens, que a
precipitavam a correr contra a igreja, j ulgar-se-ia ver um monstruoso
animal de mil pés a atacar, de cabeça baixa, o gigante de pedra.
Com o choque da viga, a porta semimetálica ressoou como um imenso
tambor. Não se fendeu, mas a catedral estremeceu de alto a baixo e
ouviram-se roncar as profundas cavidades do edifício. No mesmo ins­
tante, uma chuva de grossas pedras começou a cair do alto da fachada
por cima dos assaltantes.
- Diabo ! - bradou Jehan. - Porventura as torres sacodem as balaus­
tradas para cima das nossas cabeças?

4 52
O impulso, porém, estava dado, o rei de Tunes servia de exemplo.
Era com certeza o bispo a defender-se, por isso atacaram a porta ainda
com maior furor, apesar das pedras que partiam cabeças à direita e à
esquerda.
É de assinalar que todas estas pedras caíam urna a urna; mas
seguiam-se de perto. Os assaltantes sentiam sempre duas ao mesmo
tempo: urna nas pernas, outra nas cabeças. Poucos havia que não esti­
vessem já marcados, e larga camada de mortos e de feridos sangrava e
palpitava debaixo dos pés dos assaltantes, os quais, agora enfurecidos,
se revezavam sem cessar. A comprida viga continuava a bater na porta,
a compasso, corno o cabeçalho de um sino, corno a chuva de pedras e
corno o ranger dos batentes.
Decerto o leitor não deixou de adivinhar que esta inesperada resis­
tência, que exasperava os vadios, provinha de Quasírnodo.
O acaso servira, por desgraça, o bom do surdo.
Ao descer para a plataforma entre as torres, os pensamentos bara­
lharam-se-lhe na cabeça. Andara durante minutos a correr de um lado
para o outro pela galeria, corno um louco, vendo lá de cima a compacta
massa de bandidos prontos a atirarem-se à igreja enquanto ele pedia
ao Diabo ou a Deus que salvasse a cigana. Lembrara-se de subir à torre
meridional para tocar a rebate, mas antes de conseguir pôr o sino em
movimento, antes que a voz da Maria lograsse lançar um só clamor que
fosse, não teria a porta da igreja tempo para ser arrombada dez vezes?
Justamente naquele instante os serralheiros avançavam para ela com
as ferramentas. Que fazer?
De súbito, lembrou-se de que os pedreiros tinham andado a traba­
lhar todo o dia no conserto da parede, do vigamento e da cobertura da
torre do sul. Foi um lampej o de luz. A parede era de pedra, a cobertura
de chumbo, o vigamento de madeira. Esse prodigioso vigamento era
tão espesso, que até lhe chamavam a floresta.
Quasírnodo correu para essa torre. Efetivamente, as câmaras infe­
riores estavam cheias de materiais. Havia para ali pilhas de pedra de
alvenaria, chapas de chumbo enroladas, feixes de fasquias, fortes vigas
já mordidas pela serra, montes de entulho. Um arsenal completo.
O tempo urgia. Lá em baixo trabalhavam as alavancas e os mar­
telos. Com urna força decuplicada pelo sentimento do perigo, ergueu
urna das vigas mais pesadas e compridas, fê-la sair por urna janela e,

453
depois, agarrando-a pelo lado de fora da torre, deixou-a escorregar pela
esquina da balaustrada que rodeia a plataforma e largou-a no abismo.
A enorme trave, nessa queda de cento e sessenta pés, roçou pela mura­
lha, partiu esculturas e rodopiou várias vezes sobre si mesma como a
asa de um moinho que abalasse sozinha pelo espaço fora. Finalmente
tocou no chão, ergueu-se um horrível alarido e o negro madeiro, sal­
tando no lajedo, parecia uma serpente a pular.
Quasímodo viu os vadios dispersarem-se com a queda do pranchão,
tal como cinza soprada por uma criança . Aproveitou-se da surpresa e,
enquanto fixavam um olhar supersticioso na clava tombada do céu e
vazavam os olhos aos santos de pedra do portal com uma descarga de
flechas e de chumbo grosso, ele amontoava silenciosamente entulho,
pedra miúda e graúda, e até as ferramentas dos operários, no rebordo
dessa balaustrada de onde j á precipitara a viga.
Por isso, assim que eles começaram a bater na grande porta, iniciou
a saraivada de pedras, dando-lhes a impressão de que toda a igreja se
lhes desfazia na cabeça.
Quem nesse momento tivesse podido ver Quasímodo, ficaria espa­
vorido. Independentemente da pilha de proj éteis que j untara na balaus­
trada, reunira montes de pedras na própria plataforma. Logo que se
esgotaram as coisas que pusera no rebordo exterior, recorreu ao monte.
Então baixava-se e levantava-se, tornava a baixar-se e a levantar-se com
uma atividade incrível. A sua volumosa cabeça de gnomo curvava-se
sobre a balaustrada, depois caía uma pedra enorme, a seguir outra,
depois outra. De vez em quando acompanhava com a vista uma pedra
maior, e, quando ela matava bem, resmungava:
- Hum!
Entretanto, os vagabundos não desanimavam. Já mais de vinte
vezes a grossa porta, contra a qual se encarniçavam, tremera com o
peso do seu aríete de carvalho, multiplicado pela força de cem homens.
As almofadas estalavam, os cinzelamentos voavam em estilhas, a cada
sacudidela os gonzos saltavam sobressaltados nos pitões, as tábuas
mais delgadas desconjuntavam-se, a madeira caía desfeita em pó por
entre as nervuras de ferro. Felizmente para Quasímodo, havia ali mais
ferro do que madeira.
Sentia, contudo, que a enorme porta vacilava. Posto que não ouvisse,
cada pancada do aríete repercutia-se simultaneamente nas cavernas da

454
igreja e nas suas entranhas. Via lá de cima os vadios, transbordando
de triunfo e de raiva, ameaçar com o punho a tenebrosa fachada, e o
corcunda invejava, para a cigana e para si, as asas dos mochos que em
revoadas lhe esvoaçavam por cima da cabeça.
A sua chuva de pedras não bastava para repelir os assaltantes.
Foi nesse instante de aflição que notou, num plano mais baixo do
que a balaustrada de onde esmagava os bandidos, duas compridas
goteiras de pedra que desembocavam imediatamente por cima da
grande porta. O orifício interior dessas goteiras dava para o pavimento
da plataforma. Acudiu-lhe uma ideia. Foi a correr à procura de um
feixe de lenha ao seu cubículo de sineiro, poisou sobre esse feixe mui­
tos molhos de fasquias e numerosos rolos de chumbo, munições estas
de que ainda se não servira , e, depois de colocar muito bem esta pira
diante dos buracos das goteiras, chegou-lhe fogo com a lanterna.
Como, entretanto, as pedras j á não caíssem, os mendigos haviam
deixado de olhar para cima. Ofegantes como uma matilha que força
o j avali no seu covil , comprimiam-se tumultuosamente j unto da porta
principal, já toda deformada pelo aríete mas ainda de pé. Aguardavam,
trémulos, a suprema pancada, a pancada que a ia arrombar. Cada qual
procurava manter-se mais perto dela para ser dos primeiros a entrar,
quando ela se escancarasse, naquela opulenta catedral, amplo reser­
vatório onde tinham vindo a acumular-se as riquezas de três séculos.
Recordavam uns aos outros, com rugidos de contentamento e de avi­
dez, as belas cruzes de prata, os lindos pluviais de brocado, as bonitas
urnas argentinas, a grande magnificência do coro, as deslumbrantes
festas, os Natais cintilantes de luzes, as Páscoas esplendorosas de sol,
todas essas grandiosas solenidades em que relicários, castiçais, cibó­
rios, tabernáculos, relíquias, recamavam os altares de uma crosta de
ouro e de diamantes. Sem dúvida naquele magnífico instante, ladrões,
vadios, mendigos e coxos preocupavam-se muito menos com a liberta­
ção da cigana do que com a pilhagem de Nossa Senhora. Acreditemos
mesmo de bom grado que, para bom número deles, Esmeralda não pas­
sava de um pretexto, para o caso de gatunos precisarem de pretextos . . .
De repente, na altura em que se reagrupavam para um derradeiro
esforço com o aríete, cada um sustendo o fôlego e retesando os mús­
culos para imprimir a força toda ao empurrão decisivo, um urro, ainda
mais pavoroso do que o que estrugira e expirara debaixo do pranchão,

455
ergueu-se do meio deles. Os que não gritavam, os que ainda estavam
vivos, olharam: dois jatos de chumbo derretido jorravam do alto do
edifício sobre o ponto onde era mais densa a multidão. Aquele mar de
homens acabava de se abater sob o metal fervente que provocara, nos
dois pontos onde caíra, dois buracos negros e fumegantes na turba,
como a água quente os faria na neve. Viam-se moribundos contorce­
rem-se com dores e já meio calcinados. Em volta dos dois jatos princi­
pais, pingavam gotas dessa chuva horrível que salpicava os assaltantes
e lhes penetrava nas cabeças como verrumas de fogo. Era um lume
pesado que crivava aqueles miseráveis com mil pedras de granizo.
Ergueu-se dilacerante clamor. Fugiram em tropel, atirando com o
tabuão para cima dos cadáveres, tanto os mais destemidos como os
mais tímidos, e, pela segunda vez, o adro se esvaziou.
Todos os olhos se tinham levantado para o cimo da igreja. Era extra­
ordinário o que viam. No cimo da mais elevada galeria, mais alta do
que a rosácea central, elevava-se uma chama enorme que subia entre
as duas torres num turbilhão de fagulhas, uma chama enorme, desorde­
nada e furiosa, da qual por instantes o vento arrebatava um farrapo para
o fumo. Por baixo dessa labareda, por baixo da sombria balaustrada de
trifólios em brasa, duas goteiras, como goelas de monstros, sem cessar
vomitavam aquela chuva ardente, cujo escorrer argentino se destacava
nas trevas da fachada inferior. À medida que se aproximavam do solo, os
dois jatos de chumbo líquido expandiam-se em feixes, tal como a água
que brota dos mil orifícios dum regador. Por cima da chama, as enormes
torres, de cada uma das quais se viam duas faces nuas e recortadas,
uma toda negra, a outra toda vermelha, e parecendo ainda maiores na
imensidade de sombras que proj etavam até o céu. As suas inúmeras
esculturas de diabos e de dragões adquiriam um aspeto lúgubre. Via-se
perfeitamente agitarem-se ao clarão inquieto da chama. Havia serpen­
tes que pareciam rir, gárgulas que se julgaria ouvir latir, salamandras
a soprarem no fogo, tarascos a espirrarem com o fumo. E entre estes
monstros assim despertados do seu sono de pedra por essa chama, por
esse ruído, havia um que caminhava e que de vez em quando se via
passar diante da ardente fogueira como um morcego diante duma vela.
Sem dúvida aquele farol estranho ia acordar ao longe o lenhador
das colinas de Bicêtre, espantado por ver estremecer sobre as suas
estevas a sombra gigantesca das torres de Nossa Senhora.

456
Entre os vadios estabeleceu-se um silêncio aterrador durante o
qual não se ouviram senão os gritos de socorro dos cónegos encer­
rados no seu claustro e mais assustados do que cavalos numa estre­
baria a arder, o rumor furtivo das j anelas rapidamente abertas e
ainda mais rapidamente fechadas, a confusão interior das casas e
do Hospital, o vento soprando as chamas, o último estertor dos
moribundos e o crepitar constante da chuva de chumbo no pavi­
mento.
Entretanto, os principais vagabundos retiraram-se para debaixo
do portal da residência dos Gondelaurier e reuniram-se em conse­
lho. O duque do Egito, sentado num marco de pedra, contemplava,
com religioso temor, a fantasmagórica fogueira que resplandecia a
duzentos pés de altura. Clopin Trouillefou mordia de raiva os grossos
punhos e, entre dentes, murmurava :
- Impossível entrar!
- Uma velha igrej a feiticeira ! - resmungou o idoso boémio Matias
Hungadi Spicali.
- Com mil diabos! - retorquiu um vadio grisalho que servira no
exército. - Ora ali estão umas goteiras de igrej a que nos escarram
chumbo derretido melhor do que os matacões de Lectoure.
- Não vedes esse demónio que anda de um lado para o outro
diante do lume? - interrogou o duque do Egito.
- C'um raio! - exclamou Clopin. - É o danado do sineiro, é Quasí­
modo !
O cigano abanou a cabeça.
- Pois eu digo-vos que é o espírito Sabnac, o grande marquês, o
demónio das fortificações. Tem a forma de um soldado armado, com
cabeça de leão. Por vezes monta um desgrenhado cavalo. Transforma
os homens em pedras para erguer com elas torres. Comanda cin­
quenta legiões. É deveras ele. Reconheço-o. À s vezes anda vestido
com uma bonita túnica de ouro lavrado, à moda dos turcos.
- Onde está Bellevigne da Étoile? - perguntou Clopin .
- Morreu - respondeu u m a marafona.
Andry, o Vermelho, ria-se com um riso idiota e dizia:
- Nossa Senhora dá que fazer ao Hospital .
- Não há então maneira de arrombar essa porta? - bradou o rei de
Tunes, batendo o pé.

457
O duque do Egito apontou-lhe tristemente os dois riachos de
chumbo a ferver, que não cessavam de riscar a fachada negra, como
se fossem duas longas colunas de fósforo.
- Já se têm visto igrej as que se defendem sozinhas - observou com
um suspiro. - Há uns quarenta anos, Santa Sofia, de Constantinopla,
atirou três vezes seguidas ao chão com o crescente de Maomet ao
sacudir os zimbórios, que são as suas cabeças. Quem construiu esta
foi Guilherme de Paris, que era um mágico.
- Temos então de nos ir lastimavelmente embora como lacaios
postos no olho da rua? - disse Clopin. - Deixar ali a nossa irmã para
estes lobos de capuz amanhã a enforcare m !
- E a sacristia, o n d e há carradas de ouro ! - acrescentou um vadio,
de quem lamentamos não saber o nome.
- C'um milhão de diabos! - berrou Trouillefou.
- Façamos mais uma tentativa - sugeriu um vagabundo.
Matias Hungadi abanou a cabeça.
- Não entraremos pela porta . Tem que se descobrir a falha na
armadura da velha bruxa. Um buraco, uma falsa poterna, uma fenda
qualquer.
- Quem quer vir? - perguntou Clopin. - Eu volto.
- A propósito : onde está esse estudanteco Jehan que trazia tão boa
ferragem a protegê-lo?
- Com certeza que morreu - respondeu um qualquer. - Já não o
ouvimos rir!
O rei de Tunes franziu a testa .
- Tanto pior! Debaixo daquela ferragem toda havia um valente
coração . . . E mestre Pedro Gringoire?
- Capitão Clopin - esclareceu Andry, o Vermelho -, escapuliu-se
ainda a gente não vinha na Ponte dos Cambistas.
Clopin bateu o pé.
- Pela goela de Deus ! É ele que nos impele para isto e pisga-se
mesmo a meio da tarefa ! . . . Cobarde tagarela, coberto por uma
pantufa !
- Capitão Clopin - bradou Andry, o Vermelho, que estava a olhar
para a Rua do Adro -, ali vem o estudanteco !
- Louvado sej a Plutão ! - proferiu Clopin. - Mas que diabo traz ele
a reboque?

458
Era efetivamente Jehan que corria tão depressa quanto lhe permi­
tiam o pesado traj o de paladino e uma comprida escada que heroica­
mente arrastava pela calçada, mais esbaforido do que uma formiga
atrelada a uma haste de erva vinte vezes mais comprida do que ela.
- Vitória ! Te Deum! - bradou o estudante. - Aqui está a escada dos
descarregadores do porto de Saint-Landry.
Clopin aproximou-se dele.
- Criança ! Que queres tu fazer com esta escada? Raios te partam !
- Cá a tenho - respondeu, ofegante, Jehan. - Sabia onde ela estava.
Debaixo do alpendre da casa do tenente. Vive lá uma rapariga minha
conhecida e que me acha bonito como um cupido . . . Servi-me dela para
arranj ar a escada e cá a tenho. A pobre rapariga veio-me abrir a porta
em fralda de camisa !
- Sim - disse Clopin -, mas que queres tu fazer com essa escada?
Jehan olhou-o com uma expressão astuciosa e esperta e fez estalar
os dedos como se fossem castanholas. Estava sublime naquela altura.
Na cabeça trazia um desses pesadíssimos capacetes do século XV que
espavoriam o inimigo com as suas quiméricas cimeiras e se eriçava
com dez bicos de ferro, de forma que Jehan poderia disputar o temível
epíteto de &xɵf3oyoç1 14 ao navio homérico de Nestor.
- O que quero fazer com isto, augusto rei de Tunes? Vedes essa
fileira de estátuas com caras de parvos, acolá por cima dos três portais?
- Vejo. E depois?
- É a galeria dos reis da França.
- Que me interessa isso? - proferiu Clopin.
- Esperai! . . . No extremo dessa galeria existe uma porta que está
sempre fechada só com o trinco; trepo acolá com esta escada e estou
dentro da igreja.
- Rapaz, deixa-me subir eu primeiro.
- Não, camarada, a escada é minha. Subi, mas atrás de mim.
- Que Belzebu te estrangule ! - exclamou o casmurro do Clopin. -
Não quero ficar atrás de ninguém.
- Nesse caso, Clopin, vai procurar outra escada!
Jehan desatou a correr para a praça, arrastando a sua escada e
berrando:

1 14
Armado de dez esporões.

459
- A mim, camaradas!
Foi um instante enquanto ergueram a escada e a apoiaram à balaus­
trada da galeria inferior e por cima de um dos portais laterais. A turba
de vadios, soltando clamorosos vivas, apertava-se em baixo para subir
por ela. Jehan, porém, não abdicou dos seus direitos e foi o primeiro
a colocar o pé nos degraus. Era uma ascensão bastante prolongada.
A galeria dos reis da França ergue-se hoj e a uns sessenta pés acima do
solo. Os onze degraus da escadaria ainda a tornavam mais alta. Jehan
subia devagar, muito empecilhado pela pesada armadura, a segurar
com uma das mãos a escada e com a outra a balestra. Ao chegar a
meio da escada, deitou uma melancólica vista de olhos para os pobres
vadios mortos e que j uncavam os degraus. Disse:
- Coitados! Ali está um montão de cadáveres digno do quinto cân­
tico da Ilíada!
Continuou a subir. Os vadios seguiam-no. Em cada degrau havia
um. Ao ver-se trepar ondulando na sombra, aquela linha de costas
couraçadas dir-se-ia uma serpente de cascavéis de aço que se erguia
contra a igreja. Jehan que ia à cabeça a assobiar, completava a ilusão.
O estudante tocou finalmente na varanda da galeria, que cavalgou
com muita ligeireza entre aplausos de toda a vadiagem. Deste modo
senhor da cidadela, lançou um grito de contentamento e de repente
parou petrificado. Acabava de avistar, por detrás da estátua de um rei,
Quasímodo escondido nas trevas e com o olho a luzir.
Antes de que segundo assaltante conseguisse pôr pé na galeria, o for­
midável corcunda saltou ao topo da escada; sem proferir palavra, agar­
rou, nas mãos potentes, dois banzas, ergueu-os, afastou-os da parede,
baloiçou por momentos, no meio de clamores de angústia, a comprida e
frágil escada repleta de vadios de cima a baixo e subitamente, com força
sobre-humana, arremessou-a para a praça, levando consigo aquele
cacho de homens. Houve um instante em que os mais resolutos palpita­
ram. A escada, repelida para trás, ficou por um momento a direito e de
pé, parecendo hesitar, mas depois oscilou e, a seguir, de súbito, descre­
veu um temível arco de circulo de oitenta pés de raio e abateu-se sobre
o laj edo, mais a sua carga de bandidos, mais rapidamente do que uma
ponte levadiça a que as correntes se partissem. Elevou-se uma intensa
imprecação, depois tudo se extinguiu e alguns desgraçados mutilados
retiraram-se de rastos de debaixo do montão de cadáveres.

460
Um rumor de sofrimento e de cólera sucedeu, entre os assaltantes,
aos primeiros gritos de triunfo. Impassível, Quasímodo, com os dois
cotovelos apoiados na balaustrada, olhava. Parecia um velho rei cabe­
ludo à sua janela.
Quanto a Jehan Frollo encontrava-se numa situação bastante crítica.
Via-se na galeria, sozinho com o temível sineiro e separado dos compa­
nheiros por uma parede vertical de oitenta pés. Enquanto Quasímodo
manobrava com a escada, o estudante correra para a paterna que ima­
ginara aberta. Não estava. Ao passar para a galeria, o surdo fechara-a
atrás de si. Então Jehan escondera-se atrás de um rei de pedra, sem
se atrever a respirar e com uma cara muito assustada virada para o
monstruoso corcunda, como esse homem que, andando a fazer a corte
à mulher do guarda duma exposição de animais, foi uma noite a uma
entrevista de amor e, enganando-se na parede que escalara, viu-se
inesperadamente frente a frente com um urso branco.
Nos primeiros momentos, o surdo não se importou com ele, mas
por fim virou a cabeça e empertigou-se de súbito. Acabara de reparar
no estudante.
Jehan preparou-se para um rude combate, mas o surdo ficou imó­
vel; apenas se virara para o escolar, para quem olhava.
- Oh, oh! - disse Jehan. - Porque estás a olhar para mim com esse
olho zanaga e melancólico?
E, enquanto dizia isto, o manhoso do moço preparava matreira­
mente a besta .
- Quasímodo! - gritou . - Vou-te modificar o apelido. Passarão a
chamar-te o cego.
A seta partiu. O virotão empenachado sibilou e foi cravar-se no
braço esquerdo do corcunda. Este preocupou-se tão pouco como com
um arranhão no rei Faramundo. Levou a mão à flecha, arrancou-a do
braço e tranquilamente partiu-a contra o seu volumoso joelho. Depois,
deixou cair, em vez de atirar para o chão, os dois pedaços. Jehan, toda­
via, não teve tempo de disparar segunda vez. Logo que partiu a flecha,
Quasímodo soprou ruidosamente, saltou como um gafanhoto e caiu
sobre o estudante, cuja armadura se achatou , com a pancada, contra
a muralha.
Então nessa penumbra em que flutuava a luz dos archotes, entre­
viu-se uma coisa horrível.

461
Quasímodo agarrou com a mão esquerda nos dois braços de Jehan,
que não se debatia, tão perdido se considerava. Com a direita, o surdo
arrancou-lhe uma atrás da outra, em silêncio e com uma sinistra len­
tidão, todas as peças da armadura, a espada, os punhais, o capacete,
a couraça, os braçais. Dir-se-ia um macaco a descascar uma noz.
Quasímodo atirava para o chão, pedaço a pedaço, a casca de ferro do
estudante.
Quando este se viu desarmado, despido, fraco e nu naquelas tre­
mendas mãos, não tentou falar com o surdo, mas desatou a rir-lhe
descaradamente na cara e a cantar, com a intrépida despreocupação
de rapaz de dezasseis anos, a canção então em voga:

Está bem vestida


A cidade de Cambraia.
Marafm pilhou-a . . .

Não terminou. Viu-se Quasímodo de pé em cima do parapeito da


galeria, a segurar, só com uma das mãos, no estudante, pelos pés
e fazendo-o voltear sobre o abismo como uma funda. De seguida
ouviu-se um ruído como o de uma caixa óssea que rebenta contra uma
parede e viu-se cair qualquer coisa que só parou a um terço da queda,
detida por uma saliência da arquitetura. Era um corpo morto que ali
ficou pendurado, dobrado ao meio, de costas partidas, de crânio vazio.
Um grito de horror ergueu-se entre os bandidos.
- Vingança ! - bradou Clopin.
- Ao saque! - respondeu a multidão.
- Ao assalto ! Ao assalto !
Seguiu-se então um prodigioso urro em que se misturavam todas
as línguas, todos os dialetos, todos os sotaques. A morte do pobre estu­
dante lançou furioso ardor naquela multidão. Sentiu vergonha e raiva
por ser por tanto tempo estorvada diante duma igreja, e apenas por um
marreco. O furor descobriu escadas, multiplicou os archotes, e, ao cabo
de alguns minutos, Quasímodo, desorientado, viu aquele assustador
formigueiro subindo por todos os lados ao assalto de Nossa Senhora.
Os que não tinham escadas tinham cordas com nós, os que não tinham
cordas marinhavam pelos relevos das esculturas. Dependuravam-se
dos farrapos uns dos outros. Não havia meio algum para resistir a essa

462
maré ascendente de caras assustadoras. A fúria fazia com que aqueles
rostos ferozes resplandecessem; as testas terrosas escorriam de suor;
os olhos faiscavam-lhes. Todos aqueles esgares, toda aquela fealdade
investiam contra Quasímodo. Era caso para se dizer que outra igrej a
qualquer destacara para o assalto a Nossa Senhora as suas górgonas,
os seus dogues, as suas bruxas, os seus demónios, as suas esculturas
mais fantásticas. Era como que uma camada de monstros vivos sobre
os monstros de pedra da fachada.
A praça, entretanto, estrelara-se com milhares de archotes. Essa
desordenada cena, até àquela altura refugiada na treva, de repente
abrasara-se de luz. O adro resplandecia e lançava uma radiação para o
céu. A fogueira acesa em cima da plataforma continuava a arder e a ilu­
minar ao longe a cidade. O vulto enorme das duas torres, alastrado ao
longe sobre os telhados de Paris, provocava nessa claridade uma larga
chanfradura de sombra. A cidade parecia ter-se agitado. Ao longe soava
o queixume dos toques a rebate; os vagabundos berravam, palpitavam,
praguejavam, subiam, e Quasímodo, impotente contra tantos inimigos,
tremia pela cigana ao ver as caras furibundas aproximarem-se cada vez
mais da sua galeria, enquanto ele pedia ao Céu um milagre e contorcia
desesperadamente os braços.

463
V

O retiro onde o senhor Luís de França


reza as suas horas

Talvez o leitor se não esquecesse de que momentos antes de


Quasímodo avistar o bando noturno dos vadios, ao inspecionar Paris
de cima da sua torre, não vira luzir senão uma luz, a qual estrelava
numa vidraça do andar mais alto dum elevado e sombrio edifício das
bandas da Porta de Santo António. Este edifício era a Bastilha. Essa
estrela era a vela de Luís XI .
Com efeito, havia dois dias que Luís XI se encontrava em Paris.
Devia tornar a partir dali a outros dois dias para a sua cidadela de
Montilz-lés-Tours. As suas aparições na sua boa cidade de Paris eram
sempre raras e curtas, pois não sentia à sua volta suficientes ratoeiras,
forcas e archeiros escoceses.
Nesse dia viera à Bastilha. Agradava-lhe pouco o enorme quarto de
cinco toesas quadradas que tinha no Louvre, com o seu grande fogão
carregado com doze gigantescos animais e treze grandes profetas, e a
cama enorme de onze por doze pés. Perdia-se no meio de tantas gran­
dezas. Esse rei, bom burguês, preferia a Bastilha com um cubículo e
uma camita. E, além disso, a Bastilha era mais forte do que o Louvre.
Este cubículo, que o rei reservara para si na famosa prisão, era ainda
assim amplo e ocupava o andar mais alto duma torrinha engastada na
fortificação. Constituía um reduto de forma circular, atapetado de estei­
ras de palha lustrosa, com o teto de traves recamadas de flores-de-lis
feitas de estanho dourado e com os intervalos de cor, guarnecidos de
rica talha semeada de rosetas de estanho branco e pintada de lindo e
alegre verde, feito de erva-pinheira e delicado anis.

464
Só havia ali uma janela, uma longa ogiva guarnecida de rede de
arame e de barras de ferro, aliás obscurecida por bonitos vidros colori­
dos com as armas do rei e da rainha e cuj o caixilho importara em vinte
e dois soldos.
Como acesso, dispunha apenas de uma porta moderna, de arco
abatido, guarnecida interiormente por um reposteiro e, por fora, com
um desses pórticos de madeira da Irlanda, frágeis obras de marcenaria
curiosamente trabalhadas e que se viam ainda em quantidade nas casas
antigas de há cento e cinquenta anos. " Embora desfigurem e embara­
cem os locais, os nossos velhos, mesmo assim, não se querem desfazer
deles e conservam-nos apesar de tudo" - diz desesperadamente Sauval.
Naquele quarto não se encontrava nada do que costumava mobi­
lar os aposentos normais: nem bancos, nem cavaletes, nem sofás, nem
escabelos comuns em feitio de caixa, nem bonitos escabelos sustidos por
pilares e por contrapilares de quatro soldos cada um. Apenas se via ali
uma cadeira dobrável, com braços e de grande magnificência. A madeira
mostrava rosas - pintadas sobre fundo vermelho, o assento era de cordo­
vão encarnado, enfeitado com longas franjas de seda e salpicado por mil
pregos de ouro. A solidão desta cadeira mostrava que apenas uma pessoa
dispunha do direito de se sentar na sala. Ao lado da cadeira e muito perto
da janela havia uma mesa coberta por um pano com figuras de pássaros.
Em cima desta mesa um tinteiro manchado de tinta, vários pergaminhos,
algumas penas e uma grande taça de prata cinzelada. Um pouco mais
longe, uma escalfeta, um genuflexório de veludo carmesim, enfeitado de
chapas de ouro. Ao fundo, finalmente, uma cama simples de damasco
amarelo e encarnado, sem lantejoulas nem passamanes; quanto às fran­
jas, modestas. Era esta cama, famosa por ter conhecido o sono ou a insó­
nia de Luís XI, que ainda se podia contemplar, há duzentos anos, em casa
de um conselheiro de Estado, onde a viu a velha senhora Pilou, célebre
no Cyrus sob o nome de Arricidie e de Moral viva.
Tal era a câmara que se chamava "o retiro onde o senhor Luís de
França reza as suas horas".
Estava muito escuro nesse retiro na altura em que ali introduzimos
o leitor. Havia uma hora que tocara a recolher, era noite e, para ilumi­
nar as cinco personagens que formavam um grupo variado no apo­
sento, não havia mais do que uma bruxuleante vela de cera colocada
em cima da mesa.

465
A primeira sobre a qual caía a luz era um senhor soberbamente ves­
tido com um calção e um gibão j ustos ao corpo, de cor escarlate com
riscas de prata e com uma capa de ornatos de pano de ouro com dese­
nhos negros. Este esplêndido traj o, cintilando à luz, parecia inundado
de chama em todas as suas dobras. O homem que o vestia mostrava
no peito o seu brasão bordado a cores vivas: um chaveirão acompa­
nhado na ponta por um gamo que passava. Um ramo de oliveira ocu­
pava a direita do escudete, enquanto uma haste de veado preenchia a
esquerda. O homem cingia uma rica adaga cujo punho de prata dou­
rada era cinzelado em forma de elmo, tendo por cima uma coroa con­
dal. Tinha má cara o suj eito, semblante altivo e cabeça empertigada.
Ao primeiro olhar, distinguia-se-lhe no rosto a arrogância, ao segundo,
a velhacaria.
Conservava-se de cabeça descoberta, com um comprido perga­
minho na mão, de pé atrás da cadeira de braços na qual se sentava,
com o corpo desaj eitadamente dobrado em dois, os joelhos a cavalo
um no outro, o cotovelo apoiado à mesa, uma figura muito mal ama­
nhada. Realmente, imaginem-se, sobre o opulento assento de couro
de Córdova, duas rótulas cambaias, duas coxas magras pobremente
tapadas por uma malha de lã preta, um torso envolto num balandrau
de fustão com uma pele e de que se via menos pelo do que cabedal;
finalmente, como remate, um velho chapéu ensebado, do mais ruim
dos feltros pretos e bordado com um cordão circular de figurinhas de
chumbo. Aqui está, com um sujo solidéu que mal deixava passar um
cabelo, tudo o que se distinguia da personagem sentada. Conservava
tão inclinada para o peito a cabeça, que nada se lhe distinguia no sem­
blante coberto de sombras, a não ser a ponta do nariz que devia ser
comprido e no qual batia um raio de luz. Pela magreza da mão enge­
lhada adivinhava-se um velho. Era Luís XI .
A certa distância por detrás deles conversavam em voz baixa dois
homens vestidos à moda flamenga e que não estavam tão perdidos na
sombra que qualquer das pessoas que tivesse assistido à representação
do mistério de Gringoire não houvesse podido reconhecer neles dois
dos principais enviados flamengos, Guilherme Rym, o sagaz pensio­
nário de Gand , e Jacques Coppenole, o popular fabricante de meias.
Devem-se recordar de que estes dois homens andavam imiscuídos na
política secreta de Luís XI.

466
Finalmente, mesmo ao fundo, j unto da porta, conservava-se de pé na
sombra, imóvel como uma estátua, um homem vigoroso, de membros
atarracados e arnês de guerra, túnica armoriada e cuja cara retangular,
furada por olhos à flor da testa, rasgada por uma imensa boca, com as
orelhas escondidas debaixo de dois largos anteparos de cabelos lisos,
sem fronte, tinha simultaneamente qualquer coisa do cão e do tigre.
Com exceção do rei , todos estavam de cabeça descoberta.
O senhor que se encontrava j unto do monarca lia-lhe uma espécie
de extensa exposição que Sua Maj estade parecia ouvir muito atento.
Os dois flamengos cochichavam.
- Pela cruz de Deus! - resmungava Coppenole -, estou farto de estar
de pé! Então aqui não há uma cadeira?
Rym respondeu com um gesto negativo acompanhado por um sor­
riso receoso.
- Pela cruz de Deus! - repetiu Coppenole, muito aborrecido por ser
obrigado a baixar assim a voz -, sinto uma vontade danada de me sen­
tar no chão, de pernas cruzadas, à laia de fabricante de meias, como
faço na minha loja.
- Livre-se dessa, mestre Jacques!
- Oh! mestre Guilherme! Então aqui não se pode estar senão em pé?
- Ou de j oelhos - disse Rym.
Naquela altura, ergueu-se a voz do rei. Eles calaram-se.
- Cinquenta soldos os trajos dos nossos criados e doze libras as
capas dos clérigos da nossa coroa ! É isto ! . . . Despejais o ouro às tonela­
das! Ensandecestes, Olivier?
Ao dizer isto, o velho erguera a cabeça. Via-se luzirem-lhe no pes­
coço as conchas de ouro do colar de São Miguel. A vela iluminava em
cheio o seu perfil descarnado e taciturno. Arrebatou os papéis das mãos
do outro e bradou enquanto passeava os olhos cavas pelo caderno:
- Arruinais-nos! Que vem a ser isto tudo? Que necessidade temos
de uma casa tão esplendorosa ! Dois capelães à razão de dez libras
por mês cada um e um menino de capela por cem soldos! Um criado
de quarto por noventa libras por ano! Quatro escudeiros de cozinha a
seiscentas e vinte libras por ano cada um! Um copeiro, um moço, um
ajudante, um salsicheiro, um cozinheiro, um despenseiro para as arma­
duras, dois moços de cozinha a oito libras! Um palafreneiro e seus dois
auxiliares a vinte e quatro libras por mês! Um estafeta, um pasteleiro,

467
um padeiro, dois carreteiros, cada um com sessenta libras por ano! E o
ferrador, seiscentas e vinte libras! E o mestre da câmara dos nossos
dinheiros, mil e duzentas libras, e o fiscal, quinhentas! . . . Sei lá! . . . É um
excesso ! As soldadas dos nossos criados põem a França a saque! Todos
os proventos do Louvre derreter-se-ão com tal fogo de esbanjamento !
Temos de vender a nossa baixela ! E para o ano que vem, se Deus e
Nossa Senhora nos derem vida (aqui ergueu o chapéu) , beberemos as
nossas tisanas por um púcaro de estanho.
Ao dizer isto, deitou uma olhadela para a enorme taça de prata que
cintilava em cima da mesa. Tossiu e continuou:
- Mestre Olivier, os príncipes que reinam nos grandes senhorios,
como os reis e os imperadores, não devem consentir que a sumptuo­
sidade invada as suas casas; porque esse fogo propaga-se daqui para
a província . . . Portanto, mestre Olivier, fica-te com esta: a nossa des­
pesa cresce todos os anos. Tal facto desagrada-nos. Como foi, Santo
Deus, que até 79 não passou de trinta e seis mil libras? Em 80, atingiu
quarenta e três mil seiscentas e dezanove libras . . . Sei os números de
cor. . . Em 8 1 , sessenta e seis mil seiscentas e oitenta libras; e este ano,
pela fé da minha alma, chegará às oitenta mil libras! Em quatro anos,
duplicou-se! Monstruoso !
Deteve-se ofegante e depois continuou com arrebatamento:
- Só vej o à minha volta gente que engorda à custa da minha
magreza ! Sugais-me os escudos por todos os poros!
Todos se mantinham calados. Era uma dessas fúrias que convinha
deixar passar. O rei continuou:
- É como esse requerimento em latim dos senhores de França para
que nós restabeleçamos o que eles chamam os grandes encargos da
coroa ! Efetivamente são encargos! . . . Encargos que nos esmagam! Ah,
senhores, dizeis que nós não somos um rei, para reinar dapifero nullo,
buticulario nullo!115 Havemos de vo-lo fazer ver, Santo Deus, se somos
ou não somos um rei !
Neste passo sorriu-se com a consciência d o seu poderio, a m á dis­
posição abrandou-lhe e virou-se para os flamengos:
- Estais vendo, compadre Guilherme? O despenseiro-mor, o copeiro-
-mor, o camarista-mor, o senescal-mor, não valem o mais ínfimo dos

1 15
Sem escudeiro, nem copeiro.

468
servos . . . Não vos esqueçais disto, compadre Coppenole; não prestam
para nada ! Conservando-se tão inúteis em volta do rei dão-me a impres­
são dos quatro evangelistas que cercam o mostrador do grande relógio
do palácio e que Philippe Brille acaba de consertar. São dourados mas
não marcam as horas e o ponteiro pode passar muito bem sem eles.
Conservou-se por instantes a meditar e acrescentou, abanando a
cabeça de velho:
- Ai, ai, por Nossa Senhora, eu não sou Philippe Brille e não doura­
rei de novo os grai'l.des vassalos. Sou da mesma opinião do rei Eduardo:
salvai o povo e matai os senhores. Continua, Olivier.
A personagem que designou por este nome recebeu o caderno das
mãos reais e continuou a ler em voz alta:
- " . . . A Adam Tenon, destacado para a guarda dos selos do pre­
bostado de Paris, para a prata, feitio e gravação dos ditos selos que se
fizeram de novo porque os outros anteriores, pela sua antiguidade e
caducidade, não podiam já decentemente servir . . . doze libras parísias.
"A Guilherme Frére, a importância de quatro libras e quatro soldos
parísios, pelos seus trabalhos e salários por ter nutrido e alimentado os
pombos dos dois pombais do Palácio das Tournelles, durante os meses
de janeiro, fevereiro e março deste ano, e para isso deu sete alqueires
de cevada.
"A um frade franciscano, por confessar um criminoso, quatro soldos
parísios. "
O rei ouvia calado e d e vez em quando tossia. Então levava a taça
aos lábios e bebia um trago, fazendo uma careta.
- " Neste ano fizeram-se por ordenança de justiça a som de trom­
beta, pelas praças de Paris, cinquenta e seis pregões . . . conta ainda por
pagar. "
" Por ter vasculhado e procurado em determinados locais, tanto de
Paris como de outros sítios, dinheiros que se diziam ali estar escondi­
dos, mas nada se encontrando . . . quarenta e seis libras parísias. "
- Enterrar um escudo para se desenterrar um soldo! - comentou
o rei.
- " . . . Por ter afinado, no palácio das Tournelles, seis caixilhos de
vidro branco no sítio onde está a gaiola de ferro, treze soldos . . . Por
fazer e entregar, por ordem do rei, no dia dos monstros, quatro brasões
com as armas do dito senhor, adornados de grinaldas de rosas a toda

469
a volta, seis libras . . . Por duas mangas novas para o gibão velho do rei,
vinte soldos . . . Por uma caixa de graxa para engraxar as botas do rei,
quinze dinheiros . . . Por uma pocilga feita de novo para alojar os por­
quinhos negros do rei, trinta libras parísias . . . Vários tabiques, tabuados
e alçapões feitos para encerrar os leões da tapada de Saint-Paul, vinte
e ,duas libras."
- Aqui estão uns animais que saem caros! - comentou Luís XI. - Não
faz mal ! É uma bela magnificência do rei. Há um grande leão ruivo que
estimo pelas suas gentilezas . . . já o vistes, mestre Guilherme? . . . Convém
que os príncipes possuam destes miríficos animais. Para nós, reis, os cães
devem ser leões e os nossos gatos, tigres. A grandeza fica bem às coroas.
Nos tempos dos pagãos de Júpiter, quando o povo oferecia às igrejas cem
bois e cem ovelhas, os imperadores davam cem leões e cem águias. Isso
era feroz e bastante belo. Os reis da França sempre ouviram, em volta do
trono, destes rugidos. Ao menos, far-me-ão a justiça de concordar que
eu com isto ainda gasto menos dinheiro do que eles e que sou muito
mais modesto em leões, ursos, elefantes e leopardos . . . Prossegui, mestre
Olivier. Queríamos apenas dizer isto aos nossos amigos flamengos.
Guilherme Rym inclinou-se profundamente enquanto Coppenole,
com a sua cara carrancuda, tinha o ar de um desses ursos de que
falara Sua Maj estade. O rei não ligou importância; acabara de molhar
os lábios na taça e cuspia a beberagem, dizendo:
- Livra ! Que desagradável tisana!
O que estava a ler continuou:
- " Para sustento de um miserável peão aferrolhado há seis meses
na cela do matadouro, à espera de que se saiba o que se há de fazer
dele . . . seis libras e quatro soldos."
- Que vem a ser isso? - interrompeu o rei. - Alimentar quem se
deve enforcar! Santo Deus, não darei nem mais um soldo para esse
sustento ! . . . Olivier, entendei-vos a esse respeito com o senhor de
Estouteville e começai esta noite a tratar dos preparativos do casa­
mento desse galã com uma forca. Continuai.
Olivier fez uma marca com o polegar no artigo do miserável peão e
passou adiante.
- "A Henriet Cousin, mestre executor das altas obras da j ustiça de
Paris, a importância de sessenta soldos parísios, que lhe foi taxada e
ordenada pelo senhor preboste de Paris por ter comprado, por ordem

470
do sobredito senhor preboste, uma grande espada de lâmina que serve
para executar e decapitar as pessoas que por justiça são condenadas
pelos seus desmerecimentos, a qual ele mandou guarnecer de bainha
e de tudo o que lhe pertence; e igualmente fez repor em condições e
corrigir a velha espada que estalara e abrira bocas ao executar messire
Luís de Luxemburgo, como melhor se pode . . . "

O rei interrompeu:
- Basta. Aprovo com todo o prazer essa importância. São gastos
para que não olho. Nunca chorei esse dinheiro. Continuai.
- " Por fazer de novo uma grande gaiola . . .
"

- Ah ! - exclamou o rei, agarrando com as duas mãos nos braços da


cadeira. Eu bem sabia que viera a esta Bastilha para alguma coisa ! . . .
Esperai, mestre Olivier, quero eu mesmo ver a gaiola. Enquanto a exa­
mino, ler-me-eis o seu custo. Senhores flamengos, vinde ver; é muito
interessante isto.
Então, levantou-se, apoiou-se ao braço do seu interlocutor, fez sinal
à espécie de mudo que se mantinha de pé diante da porta para seguir
à sua frente, aos dois flamengos para que andassem, e saiu da câmara.
A real companhia foi aumentada, à saída do retiro, com homens
de armas todos carregados de ferro, e franzinos paj ens empunhando
archotes. Seguiu durante algum tempo pelo interior do sombrio cas­
telo, perfurado por escadas e corredores até ao âmago das muralhas.
O capitão da Bastilha marchava à frente e fazia abrir as estreitas portas
diante do velho monarca, doente e alquebrado, que caminhava a tossir.
Em cada porta todas as cabeças eram obrigadas a inclinarem-se,
exceto a do velho dobrado pelos anos.
- Hum . . . - disse por entre as gengivas, porque já não tinha den­
tes -, estamos j á prontos para a porta do sepulcro. Para porta baixa,
pessoa curvada.
Finalmente, depois de passar uma última portita, tão complicada
de fechaduras que gastaram um quarto de hora para a abrir, entra­
ram numa alta e ampla sala ogival, no centro da qual se distinguia, ao
clarão dos archotes, um volumoso cubo maciço de alvenaria, ferro e
madeira.
Por dentro era oco. Tratava-se duma dessas famosas j aulas para
prisioneiros do Estado e a que chamavam as meninas do rei. Tinha
nas paredes duas a três j anelinhas, tão espessamente emaranhadas de

471
grossas barras de ferro, que nem se lhe via a vidraça. A porta era uma
enorme laj e de pedra lisa, como as dos túmulos, dessas portas que só
servem para entrar. A única diferença era que aqui o morto era um vivo.
O rei pôs-se a andar lentamente à roda do pequeno edifício, que
examinava com cuidado, enquanto mestre Olivier, atrás dele, lia em
voz alta o memorial:
- " Por ter feito de novo uma grande j aula de madeira, de grossas
pranchas, traves e travessas, medindo nove pés de comprido por oito
de largura e de altura dez pés entre os dois pavimentos, aplainada e
caravelhada com grossas caravelhas de ferro, a qual foi assente numa
quadra sita numa das torres da bastilha de Saint-Antoine, em cuja
gaiola está metido e detido, por ordem do rei nosso senhor, um p risio­
neiro que habitava anteriormente uma velha j aula caduca e decrépita.
Empregaram-se nesta dita jaula nova noventa e seis pranchas deitadas
e cinquenta e duas pranchas ao alto, e dez travessas de dez toesas de
comprimento e ocuparam-se dezanove carpinteiros para esquadriar,
preparar e lavrar toda a dita madeira, trabalhando durante vinte dias
no pátio da Bastilha . . . "
- Esplêndido cerne de carvalho ! - comentou o rei, batendo com o
punho na madeira.
- " . . . Aplicaram-se nesta gaiola - continuou o outro - duzentas e
vinte grossas cravelhas de ferro, de nove pés e de oito, o resto de com­
primento médio, com as porcas, cabeças e outras partes das ditas cra­
velhas, pesando todo o dito ferro três mil setecentos e trinta e cinco
libras, além de oito grossas barras de ferro destinadas a prender a
dita gaiola, com os grampos e pregos pesando no conjunto duzentas
e dezoito libras de ferro, sem contar o ferro das grades das janelas
da câmara onde a gaiola foi colocada, as barras de ferro da porta da
câmara e outras coisas . . . "
- Aí está bastante ferro - comentou el-rei-para conter a leviandade
de um espírito !
- " . . . Tudo ficou em trezentas e dezassete libras, cinco soldos e sete
dinheiros . "
- Santo Deus! - exclamou o soberano.
Esta exclamação, a favorita de Luís XI , pareceu despertar alguém no
interior da gaiola. Ouviram-se correntes que arranhavam ruidosamente
o sobrado e ergueu-se uma voz débil que parecia sair dum túmulo:

472
- Sire! Sire! Misericórdia !
Não se podia ver quem assim falava.
- Trezentas e dezassete libras, cinco soldos e sete dinheiros! - repe­
tiu Luís XI .
A lamentosa voz que saíra da j aula enregelara todos os presentes,
incluindo mestre Olivier. Apenas o rei parecia não a ter ouvido. Deu
ordem para que mestre Olivier prosseguisse com a leitura e sua maj es­
tade continuou a examinar friamente a gaiola.
- " . . . Além disso, pagou-se a um pedreiro que abriu os orifícios para
assentar as grades das j anelas e o pavimento da câmara onde está a
gaiola, porque o sobrado não pôde aguentar esta j aula devido ao seu
peso, vinte e sete libras e catorze soldos parísios . . . "
A voz recomeçou a gemer:
- M isericórdia, sire! Juro-vos que foi do senhor cardeal d'Angers que
partiu a traição e não de mim.
- O pedreiro é exigente ! - disse o rei. - Continua, Olivier..
Olivier continuou:
- " . . . A um carpinteiro, pelas j anelas, leitos, abertura da sentina e
outras coisas, vinte libras e dois soldos parísios . . . "
Também a voz continuou:
- Ai, sire! Não me escutareis? Afirmo-vos que não fui eu quem escre­
veu essa coisa a monsenhor de Guyenne, mas sim o senhor cardeal La
Balue!
- O carpinteiro leva caro ! - observou o rei. - Não há mais nada?
- Não, sire. "A um vidraceiro, pelos vidros da dita câmara, quarenta
e seis soldos e oito dinheiros parísios. "
- Tende misericórdia, sire! Não foi já então suficiente que désseis
todos os meus bens aos meus juízes, a minha baixela ao senhor de
Torcy, a minha livraria a mestre Pedro Doriolle, as minhas tapeçarias
ao governador do Rossilhão? Estou inocente! Há catorze anos que
tremo de frio dentro duma j aula de ferro. Sede misericordioso, sire!
Tereis a paga no Céu .
- Mestre Olivier - chamou o rei. - Quanto soma?
- Trezentos e sessenta e sete libras, oito soldos e três dinheiros
parísios.
- Nossa Senhora ! - exclamou el-rei. - Aqui está uma gaiola vergo­
nhosa !

473
Arrebatou o caderno das mãos de mestre Olivier e pôs-se a contar
pelos dedos, olhando ora para o papel, ora para a gaiola. Entretanto,
ouvia-se o prisioneiro a soluçar. Na sombra, isto era tão lúgubre que
olhavam uns para os outros, muito pálidos.
- Catorze anos, sire! Há catorze anos! Desde o mês de abril de 149 6 !
E m nome d a Santa M ã e de Deus, sire, escutai-me ! Durante todo este
tempo, tendes gozado do calor do Sol. Eu, mesquinho, não voltarei a ver
a luz do dia? Por mercê, sire, sede misericordioso ! A clemência é uma
bela virtude real que quebra as correntes da ira. Vossa Maj estade acre­
dita que seja uma grande satisfação para um rei, à hora da morte, não
ter deixado nenhuma ofensa impune? Demais, sire, não fui eu quem
atraiçoou Vossa Majestade, mas sim o senhor de Angers. E tenho no
pé uma corrente bem grossa com uma enorme bola de ferro na ponta,
muito mais pesada do que é razoável. Ai, sire, tende piedade de mim!
- Olivier - disse o rei, abanando a cabeça -, reparo que me levam
o gesso em pó a vinte soldos quando ele não vale senão doze.
Emendar-me-eis este memorial.
Virou as costas à gaiola e preparou-se para abandonar a câmara.
Pelo afastamento dos archotes e dos rumores, o mísero prisioneiro cal­
culou que o rei se ia embora e bradou desesperado:
- Sire! Sire!
Fechou-se a porta. Não escutou mais nada e só ouviu a voz rouca do
guarda-chaves que lhe cantava aos ouvidos a canção:

Mestre Jean Balue


Perdeu de vista
Os seus bispados;
O senhor de Ferdun
Nem um já tem;
Todos foram despachados.

O rei subia em silêncio para o seu retiro, seguido do cortejo ainda


aterrorizado pelos últimos gemidos do condenado. De repente, sua
maj estade virou-se para o governador da Bastilha e perguntou:
- A propósito, não havia ninguém naquela gaiola?
- Por Deus, sire! - exclamou o governador, estupefacto com a pergunta.
- Quem então?

474
- O senhor bispo de Verdun.
Melhor do que ninguém o sabia o rei, mas era uma mania sua !
- Ah ! - disse com o ar ingénuo de quem pela primeira vez se lembra
disso. - Guilherme de Harancourt, o amigo do senhor cardeal La Balue.
Uma boa peste esse bispo ! . . .
Ao cabo de alguns instantes, reabriu-se a porta do retiro para se
voltar a fechar sobre as cinco personagens que o leitor ali encontrou
no princípio deste capítulo e que retomaram os seus lugares, os seus
diálogos a meia-voz e as suas atitudes.
Durante a ausência do rei tinham deixado em cima da mesa alguns
despachos a que ele próprio quebrou o selo. A seguir começou imedia­
tamente a lê-los um a seguir ao outro, fez sinal a mestre Olivier, que
parecia desempenhar j unto dele ofício de ministro, para que pegasse
numa pena e, sem lhe comunicar o teor dos despachos, começou a
ditar-lhe em voz baixa as respostas, enquanto o outro escrevia, aj oe­
lhado, bem incomodamente, diante da mesa.
Guilherme Ryrn observava .
O rei falava tão baixo, que os flamengos não ouviam coisa alguma
do seu ditado, a não ser uma vez ou outra alguns fragmentos truncados
e pouco inteligíveis:
- . . . manter os lugares férteis pelo comércio e os estéreis pelas
manufaturas . . . Mostrar aos senhores Ingleses as nossas quatro bombar-
das: a " Londres", a " Brabante", a " Bourg-en-Bresse", a "Saint-Omer" . . .
A artilharia faz com que a guerra agora se fira mais j udiciosamente . . .

Ao senhor de Bressuire, nosso amigo . . . . Sem os tributos não se susten­


tam os exércitos . . . Etc.
Certa vez ergueu a voz:
- Santo Deus! O senhor rei da Sicília sela as suas cartas com lacre
amarelo como um rei da França! Talvez façamos mal em lho consen­
tir! O meu bom primo de Borgonha não dava brasões com campo de
vermelho. A grandeza das casas afirma-se com a integridade das suas
prerrogativas. Nota isto, compadre Olivier.
Noutra ocasião:
- Oh! Oh! - exclamou. - A grande mensagem ! Que nos reclama o
nosso mano imperador? - percorreu com os olhos a missiva, cortando
a leitura com interj eições. - Decerto, as Alemanhas são tão grandes e
poderosas, que até custa a crer! . . . Mas não nos esqueçamos do velho

475
provérbio: "O mais belo condado é a Flandres; o mais belo ducado,
Milão; o mais belo reino, a França. " Não é verdade, senhores flamengos?
Desta vez, Coppenole inclinou-se com Guilherme Rym. O patrio­
tismo do fabricante de meias fora lisonj eado.
Uma última comunicação encrespou a testa de Luís XI, que proferiu:
- Que é isto? Queixas e clamores contra as nossas guarnições
da Picardia ! Olivier, escrevei urgentemente ao senhor marechal de
Rouault! . . . Que afrouxam a disciplina ! . . . Que os gendarmes das orde­
nanças, os nobres de pregão, os franco-archeiros, os suíços, causam
infinitos prej uízos aos camponeses . . . Que o militar, não se conten­
tando j á com os bens que encontra em casa dos lavradores, os força,
à paulada e a golpes de partazana, a irem à cidade buscar o vinho,
o peixe, as especiarias e outras coisas excessivas . . . Que o senhor rei
sabe disto . . . Que nós entendemos defender o nosso povo das inconve­
niências, dos latrocinios e das pilhagens . . . Que é esta a nossa vontade,
por Nossa Senhora ! . . . Que, além disso, não nos apraz que qualquer
rabequista de aldeia, barbeiro ou moço de guerra ande vestido como
um príncipe, de veludo, de pano de seda e anéis de ouro . . . Que estas
vaidades são ofensivas a Deus . . . Que nós contentamo-nos, nós que
somos fidalgos, com um gibão de pano que custa dezasseis soldos
cada vara . . . Que esses senhores rústicos podem muito bem também
rebaixar-se até isto . . . Notificai e ordenai . . . Ao senhor de Rouault,
nosso amigo . . . Bem.
Ditou esta carta em voz alta, num tom firme e sacudido. Na altura
em que terminava, abriu-se a porta e deu passagem a nova persona­
gem que enfiou pelo quarto, muito assustada, a gritar:
- Sire! Sire! Há uma sedição popular em Paris!
O rosto grave de Luís XI contraiu-se, mas o que houve de visível
na sua comoção passou como um relâmpago. Conteve-se e disse com
tranquila severidade:
- Compadre Jacques, entrais muito estouvadamente!
- Sire! Sire! Há uma revolta ! - repetiu, esbaforido, o compadre
Jacques.
O rei pôs-se em pé, agarrou-lhe com rudeza no braço e com con­
centrada cólera disse-lhe ao ouvido, de forma que só ele o percebesse,
enquanto deitava um olhar oblíquo para os flamengos:
- Cala-te ou fala baixo !

476
O recém-chegado compreendeu e tratou logo de, em voz submissa,
lhe fazer uma descrição muito espavorida, mas que o rei escutou com
serenidade, enquanto Guilherme Rym chamava a atenção de Coppenole
para a cara e para o traj o da nova personagem, para o seu capuz for­
rado, caputia fourrata, para a epítoga curta, epitogia curta, para a toga
de veludo preto, que anunciava um presidente do tribunal de contas.
Mal esta criatura forneceu ao rei algumas explicações, logo Luís XI
exclamou, desatando a rir:
- Na verdade! . . . Contai em voz alta, compadre Coictier! Que tendes
para falar assim em voz baixa? Nossa Senhora sabe que não guarda­
mos segredos para os nossos bons amigos flamengos.
- Mas, sire . . .
- Falai alto !
O "compadre Coictier" ficou mudo de espanto.
- Portanto - insistiu o rei -, falai, senhor. . . Há um motim de vilões
na nossa boa cidade de Paris?
- Há, sire.
- E que se dirige, dizei, contra o senhor bailio do Palácio da Justiça?
- Assim parece . . . - respondeu o compadre que, ainda atordoado
com a súbita e inexplicável modificação que acabava de se operar nas
ideias do rei, balbuciava.
Luís XI continuou:
- Onde foi que a rusga encontrou essa turbamulta?
- Quando ia da Grande-Truanderie para a Ponte dos Cambistas. Eu pró-
prio a encontrei quando me dirigia para aqui, para obedecer às ordens de
Vossa Majestade. Ouvi alguns gritar: "Morra o bailio do Palácio! "
- Q u e razões de queixa têm contra o bailio?
- Ah ! - explicou o compadre Coictier. - É o seu senhor.
- Deveras?
- Sim, sire. São os patifes do Pátio dos Milagres. Há muito tempo
que se queixam do bailio, de quem são vassalos. Não o querem aceitar
nem como justiceiro nem como senhor.
- Sim, na verdade! . . . - comentou o rei com um sorriso de satisfação
que debalde procurava disfarçar.
- Em todos os seus memoriais ao Parlamento - prosseguiu o
compadre Jacques -, pretendem não ter senão dois senhores: Vossa
Maj estade e o seu deus, o qual é, segundo julgo, o Diabo.

477
- Ah ! Ah ! - gargalhou o rei.
Esfregava as mãos e ria-se numa gargalhada interior que lhe ilu­
minava o semblante. Não conseguia esconder a satisfação, embora
tentasse por momentos dominar-se. Ninguém percebia coisa alguma,
nem sequer mestre Olivier. Conservou-se por instantes calado, com ar
meditativo, mas alegre.
- São em grande número? - perguntou de repente.
- Sim , sem dúvida, sire - respondeu o compadre Jacques.
- Quantos?
- Pelo menos seis mil.
O rei não pôde deixar de dizer:
- Bem ! - E continuou logo a seguir: - Estão armados?
- Com foices, chuços, lanças e alviões. Toda a espécie de armas
muito violentas.
O rei não pareceu de maneira nenhuma inquietar-se com esta enu­
meração. O compadre Jacques j ulgou de seu dever acrescentar:
- Se Vossa Maj estade não manda imediatamente socorro ao bailio,
este está perdido!
- Enviá-lo-emos - declarou o rei, com um ar de seriedade postiça. -
Está bem. Sem dúvida enviaremos. O senhor bailio é nosso amigo. Seis
mil! São uns velhacos bem resolutos. Maravilhoso atrevimento que nos
deixou muito melindrado. Esta noite temos pouca gente à nossa volta . . .
Ficará para amanhã de manhã.
O compadre Jacques protestou:
- Tem de ser já, sire! Há tempo para que saqueiem vinte vezes o
bailiado, violem o senhorio e enforquem o bailio ! Por Deus, sire, enviai
antes de amanhã de manhã !
O rei olhou-o de frente.
- Já vos disse que amanhã de manhã !
Era um desses olhares a que se não replica.
Após uma pausa , Luís XI ergueu de novo a voz.
- Meu compadre Jacques, deveis saber isso . . . Qual era . . . - Corrigiu:
- Qual é a jurisdição feudal do bailio?
- Sire, o bailio do Palácio tem a Rua da Calandre até à Rua da
Herberie, a Praça de Saint-M ichel e os lugares vulgarmente designa­
dos pelos Mureaux, sitos junto da igreja de Notre-Dame-des-Champs -
(aqui Luís XI levantou a aba do chapéu) - cuj os palácios são em número

478
de treze, mais o Pátio dos Milagres, mais o Hospício denominado o
Banlieue, mais toda a calçada que começa nesse hospício e acaba na
Porta Saint-Jacques. Ele é senhor destes diversos locais: alto, médio e
baixo j usticeiro, pleno senhor absoluto.
- Oh! - exclamou o rei, coçando a orelha esquerda com a mão direita.
- Isso representa uma boa talhada da minha cidade ! Ah, o senhor bailio
era o rei de tudo isso ! . . .
Desta vez não se reprimiu. Continuou, meditativo e como que se
falasse consigo próprio:
- Muito bem, senhor bailio, tendes entre os dentes um bonito naco
da nossa Paris!
De repente explodiu:
- Santo Deus! Que vem a ser essa gente que se pretende armar em
inspetores, em j usticeiros, em senhores e em donos na nossa casa? Que
por todos os cantos têm a sua portagem, a sua justiça e o seu carrasco
a cada esquina, no meio do nosso povo? De forma que, assim como o
Grego j ulgava ter tantos deuses como chafarizes e o Persa tantos como
as estrelas que via, o Francês conta com tantos reis quantas as forcas
que vê ! Por Deus, isto assim é mau e a confusão desagrada-me. Muito
gostaria de saber se é por graça de Deus que existe outro fiscal além
do rei, outra justiça que não seja o nosso parlamento, outro impera­
dor deste império sem sermos nós! À fé da minha alma, bem preciso
é que chegue o dia em que não haja senão um rei na França, senão
um senhor, senão um j uiz, senão um decapitador, assim como não há
senão um Paraíso e senão um Deus!
Tornou a erguer o seu barrete e continuou, sempre extático, com a
cara e a inflexão de um caçador que incita e solta a sua matilha:
- Muito bem, meu povo! Corajosamente, destrói esses falsos senhores
e executa a tua missão! Vamos, vamos, pilha-os, enforca-os, saqueia-os! . . .
Os monsenhores querem então ser reis? Anda, povo, anda ! . . .
Calou-se de repente, mordeu o lábio como para agarrar a ideia que
em parte lhe fugira, apoiou sucessivamente o olhar penetrante sobre
cada uma das cinco personagens que o rodeavam e, de repente, agar­
rou no chapéu com as duas mãos e, olhando-o de frente, disse-lhe:
- Queimar-te-ia se soubesses o que se passa na minha cabeça!
Depois, passeando outra vez à sua roda o olhar atento e inquieto da
raposa que regressa matreiramente ao covil, disse:

479
- Não faz mal ! Socorreremos o senhor bailio. Infelizmente, nesta
ocasião só temos aqui muito pouca tropa contra tanta populaça. Tem
que se esperar até amanhã. Restabelecer-se-á a ordem na Cité e serão
enforcados sem apelo nem agravo todos quantos forem apanhados.
- A propósito, sire! - disse o compadre Coictier -, com a confusão do
primeiro momento esqueci-me de vos dizer que a ronda apanhou dois
retardatários do bando. Se Vossa Maj estade quer ver esses homens,
estão ali.
- Se os quero ver! - bradou o rei. - O quê, Santo Deus! Esqueceste-te
de semelhante coisa? . . . Corre depressa , tu, Olivier! Vai buscá-los quanto
antes!
Mestre Olivier saiu e regressou dali a instantes com os dois pre­
sos rodeados pelos archeiros da ordenança. O primeiro tinha uma cara
enorme de idiota, de bêbado e de espantado. Vinha vestido de andrajos
e caminhava dobrando o j oelho e arrastando o pé. O segundo tinha um
semblante pálido e sorridente, que o leitor j á conhece.
O rei observou-os por momentos sem nada dizer e, depois, pergun-
tou de súbito ao primeiro:
- Como te chamas?
- Gieffroy Pincebourde.
- A tua profissão?
- Vagabundo.
- Que ias tu fazer nessa danada sedição?
O vagabundo olhou para o rei, baloiçando os braços com ar embrute­
cido. Era uma dessas cabeças mal conformadas, onde a inteligência
está quase tão à vontade como a luz debaixo do apagador.
- Não sei - respondeu. - Como iam para lá, eu fui também.
- Não íeis ultrajantemente atacar e pilhar o vosso senhor, o bailio
do Palácio?
- Só sei que se ia buscar uma coisa qualquer em casa não sei de
quem. Mais nada.
Um soldado mostrou ao rei uma podoa que apreendera ao vadio.
- Reconheces esta arma? - perguntou o rei.
- Reconheço, é a minha podoa. Sou vinhateiro.
- E reconheces este homem por teu companheiro? - acrescentou
Luís XI, apontando para o outro preso.
- Não, não o conheço.

480
- Já chega - disse o rei, fazendo um sinal com o dedo para a perso­
nagem silenciosa, imóvel junto da porta, e para a qual já chamámos a
atenção do leitor. - Compadre Tristan, aqui está um homem para vós.
Tristan l'Hermite inclinou-se. Deu uma ordem em voz baixa a dois
archeiros que levaram o pobre vagabundo.
Entretanto, o rei aproximou-se do segundo preso, que suava em
bica, e perguntou-lhe:
- Como te chamas?
- Pedro Gringoire, sire.
- A tua profissão?
- Filósofo, sire.
- Como te permitiste, tu, velhaco, ir atacar o nosso amigo, o senhor
bailio do Palácio, e que tens a dizer deste motim popular?
- Sire, eu não estava lá.
- Essa é boa! Então a ronda não te prendeu nessa má companhia,
libertino?
- Não, sire, há um equívoco. Foi uma fatalidade. Eu escrevo tra­
gédias. Sire, imploro a Vossa Maj estade que me escuteis. Sou poeta.
A melancolia da gente da minha profissão faz com que andemos de
noite pelas ruas. Ia a passar esta noite por ali. Foi um grande azar.
Prenderam-me por engano. Estou inocente desta tempestade civil.
Vossa Majestade bem viu que o mendigo não me reconheceu. Conjuro
Vossa Maj estade . . .
- Cala-te! - ordenou o rei, entre duas goladas da tisana. - Estás-nos
a moer a cabeça.
Tristan l'Hermite aproximou-se e perguntou, apontando com o dedo
para Gringoire:
- Sire, também posso enforcar este?
Foram as primeiras palavras que proferiu.
- Ora ! - respondeu desinteressadamente o rei. - Não vej o nisso
qualquer inconveniente.
- Pois eu cá vej o muitos! - contestou Gringoire.
Naquele momento, o nosso filósofo estava mais verde do que uma
azeitona. Percebeu, pelo aspeto frio e indiferente do rei, que não
lhe restava outro recurso senão uma cena muito patética e, assim,
precipitou-se aos pés de Luís XI, bradando numa desesperada ges­
ticulação:

48 1
- Sire, Vossa Maj estade dignar-se-á ouvir-me! Sire, não rebenteis
como o trovão sobre tão pouca coisa como eu sou ! O grande raio de
Deus não bombardeia uma alface. Sire, sois um augusto monarca,
muito poderoso; tende misericórdia de um pobre homem honrado, tão
incapaz de atiçar uma revolta como um pedaço de gelo de despedir
uma faísca ! Muito gracioso senhor, a indulgência é a virtude do leão
e do rei. Infelizmente, o rigor só faz amedrontar os espíritos; as raj a­
das impetuosas do vento norte não conseguirão arrebatar a capa a
quem passa, enquanto o Sol, dardejando a pouco e pouco os seus
raios, aquece de tal forma, que o fará pôr-se em camisa. Sire, vós sois
o Sol. Protesto-vos, meu soberano, dono e senhor, que não sou um
vadio, qualquer ladrão e desordeiro. A revolta e os assaltos de ban­
doleiros não figuram na equipagem de Apolo. Não sou eu quem se
irá precipitar nessas nuvens que rebentam em estrondos de sedições.
Sou um fiel vassalo de Vossa Maj estade. O mesmo zelo que sente o
marido pela honra de sua mulher, a lembrança que nutre o filho pelo
amor de seu pai, deve tê-los o bom vassalo para glória do seu rei;
deve porfiar na dedicação pela sua casa, pelo engrandecimento do
seu serviço. Qualquer outra paixão que o transportasse não passaria
de arrebatamento. São estas, sire, as minhas convicções políticas. Por
conseguinte, não me considereis sedicioso e larápio por causa do meu
traj o gasto nos cotovelos. Se me perdoardes, sire, gastá-lo-ei também
nos j oelhos a pedir a Deus por vós de manhã à noite ! Não sou , infeliz­
mente, extremamente rico, lá isso é verdade ! Sou até bastante pobre.
Mas não é por isso que sou vicioso. Não tenho culpa. Todos sabem que
as grandes riquezas não se amealham com as belas-letras e os que
mais se consomem sobre os bons livros nem sempre se aquecem a um
fogo vivo no inverno. Todo o grão vai apenas para a advocacia, que
não deixa mais do que a palha para as outras profissões científicas.
Existem quarenta provérbios muito bons acerca da capa esburacada
dos filósofos. Oh, sire, a clemência é a única luz que pode iluminar
o interior de uma grande alma. À frente de todas as demais virtudes,
é a clemência que empunha o facho. Sem ela, todas são como cegos
que procuram Deus às apalpadelas. A misericórdia, que é a mesma
coisa que a clemência, cria o amor dos súbditos, o que constitui a mais
poderosa guarda de corpo da pessoa de um príncipe. Que importância
tem para vós, Maj estade, cuj as faces resplandecem, que exista um

482
pobre homem a mais ao de cima da terra? Um pobre e inocente filó­
sofo, chafurdando nas trevas da calamidade, com a bolsa vazia a bater
sobre o seu ventre encovado. Além disso, sire, eu sou um letrado. Para
os grandes reis proteger as letras representa uma pérola para a sua
coroa. Hércules não desdenhava o título de Muságeta. Matias Corvin
favoreceu João de Monroyal, ornato das matemáticas. Ora constitui
um mau processo de proteger as letras o enforcar os letrados. Que
nódoa para Alexandre se ele tivesse mandado enforcar Aristóteles! Tal
passo não constituiria um pequeno mosquito no semblante da sua
reputação para a aformosear, mas sim uma úlcera maligna para a
desfigurar. Sire, elaborei um epitalâmio muito expressivo para made­
moiselle da Flandres e para monsenhor o muito augusto Delfim. I sto
não é de um amotinador de rebeliões. Vossa Maj estade vê que não sou
um pedante, que estudei devidamente e que possuo muita eloquên­
cia natural. Perdoai-me, sire. Procedendo assim, praticareis uma ação
agradável a Nossa Senhora, e juro-vos que me sinto muito assustado
com a ideia de que me enforquem !
Enquanto assim falava, o desolado Gringoire beij ava as pantufas do
rei e Guilherme Rym dizia em voz baixa para Coppenole:
- Faz bem em roj ar-se pelo chão. Os reis são como o Júpiter de
Creta: só têm orelhas nos pés.
E, sem se ocupar com o Júpiter de Creta, o fabricante de meias res­
pondeu com um sorriso pesado e o olhar cravado em Gringoire:
- É mesmo assim! Até parece que estou a ouvir o chanceler Hugonet
a pedir-me misericórdia !
Quando, finalmente, Gringoire parou muito esbaforido, levantou a
tremer a cabeça para o rei, que raspava com a unha uma nódoa que os
seus calções tinham no j oelho. Depois, Sua Maj estade bebeu mais um
gole da sua tisana. Quanto ao resto, não dizia palavra e esse silêncio
torturava Gringoire. Finalmente, o monarca olhou para ele e disse:
- Falas pelos cotovelos ! - Virou-se depois para Tristan l'Hermite e
ordenou-lhe: - Bem, deixa-o . . .
Gringoire caiu sobre os calcanhares, tonto de contentamento.
- Em liberdade! - resmungou Tristan. - Vossa Maj estade não quer
que o guardemos ao menos um bocado na gaiola?
- Compadre - redarguiu Luís XI -, imaginas que foi para pássaros
destes que mandámos fazer gaiolas de trezentas e sessenta e sete libras,

483
oito soldos e três dinheiros? . . . Larga-me imediatamente este devasso 1 16
( Luís XI gostava muito desta palavra que formava, com Santo Deus, a
base da sua jovialidade) e põe-no no olho da rua com um encontrão !
- Safa ! - exclamou Gringoire. - Isto é que é um grande rei !
E com medo de alguma contraordem, precipitou-se para a porta
que Tristan lhe abriu de muita má vontade. Os soldados saíram com
ele, empurrando-o na sua frente com grandes murros que Gringoire
aguentou como um verdadeiro filósofo estoico.
A boa disposição do rei, desde que lhe anunciaram a revolta contra
o bailio, transparecia em tudo. Não era disso um medíocre sinal aquela
invulgar clemência. No seu canto, Tristan l'Hermite mostrava o aspeto
trombudo de um dogue que viu e não agarrou.
Entretanto o rei tamborilava alegremente com os dedos, no braço
da cadeira, a marcha de Pont-Audemer. Era um príncipe dissimulado,
mas que sabia esconder muito melhor os desgostos do que o contenta­
mento. Por vezes, essas manifestações exteriores de alegria, ante qual­
quer boa notícia, iam muito longe; por exemplo, quando da morte de
Carlos, o Temerário, chegou a prometer umas balaustradas de prata a
S. Martinho de Tours; quando subiu ao trono, foi ao ponto de se esque­
cer de ordenar as exéquias por seu pai.
- Então, sire! - exclamou de repente Jacques Coictier -, como vai
essa aguda pontada por causa da qual Vossa Maj estade me mandou
chamar?
- Ai - lamentou el-rei -, realmente sofro muito, meu compadre ! Sinto
zumbidos nos ouvidos e ancinhos de fogo a arranharem-me o peito.
Coictier pegou na mão do soberano e começou a apalpar-lhe o pulso
com ares de pessoa entendida.
- Reparai, Coppenole - disse Rym em voz baixa. - Ali o temos entre
Coictier e Tristan. Está acolá toda a sua corte. Um médico para ele, um
carrasco para os outros.
Coictier, enquanto tomava o pulso do rei, assumia uma cara cada
vez mais alarmada. Luís XI observava-o com certa ansiedade. A fisio­
nomia de Coictier entristecia a olhos vistos. O bom do homem não pos­
suía outro rendimento senão a má saúde do rei e explorava-a o melhor
que podia.

1 16
No orig inal: paillard.

484
- Oh, oh! - murmurou por fim. - Isto efetivamente está grave.
- Sério? - exclamou , assustado, o rei .
- Pulsus creber, anhelans, crepitans, irregularis117 - continuou o médico.
- Santo Deus!
- Em menos de três dias isto pode levar um homem.
- Nossa Senhora ! - bradou o rei . - E o remédio, compadre?
- Estou a pensar nisso, sire.
Mandou Luís XI deitar a língua de fora, abanou a cabeça, fez uma
careta e, de mistura com toda esta exibição, disse de repente:
- Valha-me Deus, sire, é preciso que vos explique que está vaga
uma cobrança de receitas régias e que tenho um sobrinho!
- Dou a minha cobrança ao teu sobrinho, compadre Jacques - res­
pondeu o rei -, mas arranca-me este fogo do peito.
- Visto que Vossa Maj estade é tão clemente - continuou o médico -,
não se recusará a aj udar-me um bocadinho na construção da minha
casa da Rua de Saint-André-des-Arcs.
- Ah ! - disse o monarca.
- Estou quase sem dinheiro - prosseguiu o doutor - e seria deveras
uma pena que a casa ficasse sem telhado. Não pela casa, que é simples
e completamente burguesa, mas sim pelas pinturas de Jehan Foubault
que lhe enfeitam o lambril. Há lá uma Diana que voa no ar, mas tão bem
feita, tão terna, tão delicada, de movimentos tão ingénuos, de cabeça
tão bem toucada e coroada de um crescente e de carnes tão brancas,
que desperta a tentação naqueles que a observam com excessiva curio­
sidade. Há também uma Ceres. Trata-se igualmente duma formosís­
sima divindade. Está sentada sobre molhos de trigo e coberta com uma
graciosa grinalda de espigas entrelaçadas com cercefis e outras flores.
Não há nada de mais amoroso para admirar do que os seus olhos, de
mais roliço do que as suas pernas, de mais nobre do que o seu aspeto,
de mais elegante do que as suas roupagens. É uma das beldades mais
inocentes e mais perfeitas que o pincel até hoj e produziu.
- Carrasco - resmungou Luís XI -, aonde queres chegar com isso?
- Preciso de um telhado para cobrir essas pinturas, sire, e, mesmo
que se trate de pouca coisa, estou sem dinheiro.
- Quanto custa esse teu telhado?

117
Pulso agitado, ofegante, barulhento e irregular.

485
- Mas . . . um telhado de cobre, decorado e dourado, duas mil libras
quando muito.
- Ah, assassino! - bradou o rei. - Não me arranca um dente que não
sej a um diamante !
- Posso contar com o meu telhado? - perguntou Coictier.
- Podes e vai para o Diabo, mas cura-me!
Jacques Coictier inclinou-se profundamente e disse:
- Sire, o que vos há de salvar é um repercussivo. Aplicar-vos-emos
sobre os rins o grande defensivo, composto de cerato, bolo arménio,
clara de ovo, azeite e vinagre. Continuai com a vossa tisana e respon­
deremos por Vossa Maj estade.
Uma vela a brilhar só atrai um mosquito; mestre Olivier, ao ver a
liberdade do rei e julgando ser altura propícia , aproximou-se por sua vez:
- Sire . . .
- Que mais há? - perguntou Luís XI.
- Sire, Vossa Maj estade sabe que mestre Simon Radin morreu?
- E depois?
- É que ele era conselheiro real em assuntos da justiça do tesouro.
- E depois?
- Sire, deixou uma vaga.
Enquanto assim falava, o rosto altivo de mestre Olivier trocara a
expressão de arrogância por uma expressão servil . É a única modifica­
ção que se opera na cara de um cortesão. O rei encarou-o bem de frente
e disse num tom seco:
- Compreendo.
Prosseguiu depois:
- Mestre Olivier, o marechal de Boucicaut dizia: " Não há mercê
senão de rei nem pescador senão no mar". Estou vendo que sois da
opinião do senhor de Boucicaut. Agora escutai esta. Possuímos boa
memória . Em 68, fizemo-vos paj em da nossa câmara. Em 69, guarda
do castelo da Ponte de Saint-Cloud, com o estipêndio de cem libras tor­
nesas (embora as preferísseis parísias). Em novembro de 73, por cartas
escritas em Gergeole, instituímos-vos guarda do bosque de Vincennes,
em lugar de Gilbert Acle, escudeiro; em 75, grueiro, da floresta de
Rouvray-lez-Saint-Cloud, em vez de Jacques Le Maire; em 78, doá­
mos-vos graciosamente, por cartas patentes e seladas em dupla fita,
com cera verde, uma renda de dez libras parísias para vós e para vossa

486
mulher, sobre a praça dos Mercadores, sita na escola de Saint-Germain ;
em 79, fizemos-vos grueiro da floresta de Senart, e m vez desse pobre
Jehan Daiz; depois, capitão do castelo de Loches; depois, governador
de Saint-Quentin; depois, capitão da Ponte de Meulan, de que vos inti­
tulais conde. Sobre os cinco soldos de multa que paga todo o barbeiro
que trabalhe em dia de festa recebeis três soldos e nós o resto. Bem
quisemos modificar-vos o apelido de O Mau, que se parecia demasiado
com a vossa cara, Em 74, outorgámos-vos, com grande desagrado da
nossa nobreza, brasões de mil cores, que vos fazem um peito de pavão.
Santo Deus, não estais ainda satisfeito? A pescaria não é suficiente­
mente lauta e miraculosa? Não receais que um salmão a mais vos faça
voltar o barco? Há de ser o orgulho que vos há de perder, meu compa­
dre ! O orgulho é sempre seguido de perto pela ruína e pela vergonha.
Pensai nisto e calai-vos.
Estas palavras, proferidas com severidade, fizeram com que a inso­
lência voltasse ao semblante despeitado de mestre Olivier.
- Bem - murmurou quase em voz alta -, bem se vê que o rei está
hoj e doente; dá tudo ao médico.
Longe de se zangar com este despropósito, Luís XI continuou com
certa doçura:
- Esperai, esquecia-me ainda de que vos nomeei meu embaixa­
dor em Gand, j unto de madame Marie. Sim, senhores - aj untou o rei,
virando-se para os flamengos. - Este já foi embaixador. Vamos, meu
compadre - prosseguiu, voltando-se para mestre Olivier -, não nos zan­
guemos porque somos amigos velhos. Mas já é muito tarde. O nosso
trabalho terminou. Barbeai-me.
Sem dúvida que os nossos leitores não esperaram até esta altura
para reconhecerem em mestre Olivier esse terrível Fígaro que a
Providência, essa grande autora de dramas, tão artisticamente mis­
turou com a extensa e sangrenta comédia de Luís XI . Não será aqui
que procuraremos desenvolver essa singular figura. Este barbeiro do
rei tinha três nomes. Na corte, chamavam-lhe delicadamente Olivier,
o Gamo; entre o povo, Olivier, o Diabo. O seu verdadeiro nome era
Olivier, Le Mauvais (O Mau) .
Olivier, o Mau, ficou, portanto, imóvel, despeitado com o rei e
olhando de soslaio para Jacques Coictier, enquanto dizia entre dentes:
- Sim, sim o médico !

487
- Sim, o médico - repetiu Luís XI , com singular bonomia. O médico
merece mais crédito ainda do que tu. Nada mais simples. Ele tomou-nos
conta do corpo todo, enquanto tu só nos seguras pelos queixos. Anda,
meu pobre barbeiro, isso ainda se arranja! Que dirias então tu e que
seria do teu cargo se eu fosse um rei como o rei Chilpérico, cujo gesto
favorito era segurar a barba com uma das mãos? . . . Vamos, meu com­
padre, ocupa-te do teu oficio e barbeia-me. Vai buscar o que é preciso.
Como Olivier reparou que o rei adotara o partido de se rir e que não
havia mesmo forma de o irritar, saiu, resmungando, para executar as
suas ordens.
O rei pôs-se em pé, acercou-se da janela e, de repente, abriu-a com
uma extraordinária agitação e exclamou, batendo as palmas:
- Oh, sim ! Há um clarão no céu acolá, por cima da Cité. É o bailiado
a arder. Não pode ser outra coisa. Ah, meu bom povo, até que enfim me
aj udas no desmoronamento das senhorias!
Virou-se então para os flamengos e disse-lhes:
- Senhores, vinde ver isto. Aquele clarão não é de um incêndio?
Os dois ganteses aproximaram-se e Guilherme Rym concordou
Um grande incêndio.
- Oh! - acrescentou Coppenole, com os olhos de repente a cintilar. -
Faz-me lembrar quando ardeu a casa do senhor de Hymbercourt! Deve
haver acolá uma grande revolta .
- Julgais isso, mestre Coppenole? - perguntou Luís XI, com o olhar
quase tão satisfeito como o do fabricante de meias. - Será difícil resis­
tir-lhe não é verdade?
- Pela cruz de Deus, sire! Vossa Maj estade inutilizará ali bastantes
companhias de homens de guerra !
- Ah, comigo o caso é diferente ! . . . - redarguiu o rei. - Se eu
quisesse ! . . .
Atrevidamente, o fabricante de meias respondeu:
- Se esta revolta é o que eu suponho, o vosso querer de nada vos
valerá, sire!
- Compadre - disse Luís XI -, com duas companhias da minha
ordenança e uma descarga de canhão levar-se-á a melhor sobre uma
chusma de labregos.
O fabricante de meias, porém, a despeito dos sinais que Guilherme
Rym lhe fazia, parecia de peito feito para discutir com o rei.

488
- Sire, os suíços também eram labregos. O senhor duque de
Borgonha foi um grande fidalgo e desdenhava essa canalha. Na bata­
lha de Grandson, sire, ele gritava: " Homens das peças, fogo sobre esses
vilões! " E gritava por São Jorge. O magistrado Scharnachtal, porém,
atirou-se ao bom do duque com a sua clava e o seu povo, e, no encon­
tro com os camponeses de peles de búfalo, o brilhante borgonhês esta­
lou como uma vidraça quando leva uma pedrada. Muitos cavaleiros
foram mortos pelos vilões e encontrou-se o senhor de Château-Guyon,
o maior fidalgo da Borgonha, morto com o seu enorme cavalo pigarço,
num pequeno prado pantanoso.
- Amigo - redarguiu o rei -, falais duma batalha. Aqui trata-se dum
motim. E a esse esmagá-lo-ei quando me apetecer franzir a testa.
O outro replicou em tom indiferente:
- Pode ser assim, sire . . . Nesse caso, é que a hora do povo ainda não
chegou.
Guilherme Rym achou oportuno intervir:
- Mestre Coppenole, estais a falar com um poderoso rei.
- Bem sei - respondeu gravemente o fabricante de meias.
- Deixai-o falar, senhor Rym e meu amigo - disse o monarca. -
Gosto que falem com franqueza. Meu pai, Carlos VII , dizia que a ver­
dade estava doente. Pois eu acreditava que ela estava morta e que não
encontrara confessor. Mestre Coppenole desengana-me.
Então colocou familiarmente a mão no ombro de Coppenole e
insistiu:
- Estáveis então a dizer, mestre Jacques . . . ?
- Eu digo, sire, que talvez tenhais razão e que a hora do povo ainda
não chegou ao vosso país.
Luís XI fitou-o com o seu penetrante olhar e inquiriu:
- E quando chegará essa hora, mestre?
- Haveis de a ouvir soar.
- Em que relógio, dizei, por favor . . .
Coppenole, na sua postura calma e rústica, convidou o rei a aproxi­
mar-se da j anela.
- Ouvi, sire! Há aqui uma fortaleza, uma torre, canhões, burgueses,
soldados. Quando a torre badalar, quando os canhões troarem, quando
a fortaleza se desmoronar com enorme fragor, quando os burgueses e
os soldados se enfrentarem e matarem uns aos outros, soará essa hora .

489
O semblante do rei tornou-se sombrio e pensativo. Ficou calado por
instantes; depois bateu suavemente com a mão na grossa muralha da
fortaleza, como quem acaricia a garupa de um corcel, e disse:
- Oh, isso não ! Não é verdade que tu não te desmoronarás com
tanta facilidade, minha boa Bastilha?
Voltou-se então, num movimento sacudido, para o atrevido fla-
mengo e perguntou-lhe:
- Já vistes uma revolta, mestre Jacques?
- Até as fiz! . . . - respondeu o fabricante de meias.
- Como procedeis - inquiriu o rei - para fazerdes uma revolta?
- Ora - respondeu Coppenole -, não é coisa muito difícil! Existem
cem maneiras. Primeiro, é preciso que lavre o descontentamento na
cidade. A coisa não é rara. Depois, o carácter dos habitantes. Os de
Gand são bons para a revolta. Gostam sempre do filho do príncipe, mas
nunca do príncipe. Pois bem, uma manhã imaginemos que me entram
na loja e me dizem: "Tio Coppenole, há isto, há aquilo, a menina da
Flandres quer salvar os seus ministros, o grande bailio duplica os
impostos, ou outra coisa qualquer". O que se quiser. Eu largo o traba­
lho, saio da loja, vou para a rua e berro: "Ao saque! " Há sempre por ali
alguma barrica arrombada. Salto-lhe para cima e digo muito alto as pri­
meiras palavras que me vêm à cabeça e que trago no coração; quando
se é do povo, sire, tem-se sempre qualquer coisa no coração. Então
arregimentam-se, gritam, tocam a rebate, armam-se os vilões com o
que se arrebata aos soldados, a gente dos mercados junta-se a nós e
vai-se para a frente ! E há de ser sempre assim enquanto houver senho­
res nas senhorias, burgueses nos burgos e camponeses pelas terras.
- Contra quem vos revoltais? - perguntou o rei. - Contra os vossos
bailios? Contra os vossos senhores?
- Às vezes, é conforme . . . Em certas ocasiões, também é contra o duque.
Luís XI voltou a sentar-se e disse, sorrindo:
- Ah, por enquanto aqui é só contra os bailios!
Naquele instante voltou Olivier, o Gamo. Seguiam-no dois paj ens
que traziam o toucador de el-rei, mas o que impressionou Luís XI foi o
ele vir também acompanhado pelo preboste de Paris e pelo cavaleiro
da ronda, ambos com caras de consternados. Igualmente com um ar
muito triste vinha o rancoroso barbeiro, embora, por dentro, satisfeito.
Foi ele que usou da palavra:

490
- Sire, peço perdão a Vossa Maj estade pela calamitosa nova que lhe
trago.
Ao voltar-se repentinamente, o rei arranhou, com os pés da cadeira,
a esteira do sobrado e perguntou:
- Que tens a dizer?
- Sire - respondeu Olivier, o Gamo, com o aspeto malévolo do
homem satisfeito por ir despedir um golpe violento -, não é contra o
bailio do Palácio que se levanta esta sedição popular.
- Contra quem é então?
- Contra vós, sire.
O velho rei endireitou-se e pôs-se empertigadamente em pé, como
um rapaz, ao ordenar:
- Explica-te, Olivier! Explica-te ! E segura bem a tua cabeça, meu
compadre, pois te juro, pela cruz de Saint-Lô, que, se neste momento
nos mentes, a espada que cortou o pescoço do senhor de Luxemburgo
não está tão cheia de bocas que não serre ainda o teu !
Formidável juramento. Só duas vezes, em toda a sua vida, Luís XI
jurou pela cruz de Saint-Lô.
Olivier abriu a boca para responder:
- Sire . . .
- Põe-te de j oelhos! - interrompeu violentamente o rei. Tristan, toma
conta neste homem !
Olivier ajoelhou-se e disse com frieza:
- Sire, o vosso parlamento condenou à morte uma feiticeira. Ela
refugiou-se em Nossa Senhora. O povo quer arrancá-la de lá à viva
força. O senhor preboste e o senhor cavaleiro da ronda, que vêm do
motim, aí estão para me desmentirem se esta não é a verdade. É Nossa
Senhora que o povo está a assaltar.
- Realmente . . . - comentou, em voz baixa, o rei, muito pálido e a tre­
mer de ira, dos pés à cabeça. - Nossa Senhora ! Assediam Nossa Senhora,
a minha boa padroeira, na sua catedral ! . . . Levanta-te, Olivier, tens razão.
Concedo-te o cargo de Simon Radin. Tens razão . . . É a mim que atacam.
A feiticeira está sob a salvaguarda da igreja e a igreja está sob a minha
salvaguarda. E eu a julgar que se tratava do bailio! É contra mim!
Então, rej uvenescido pelo furor, começou a andar de um lado para
o outro, em grandes passadas. Já não ria. Estava terrível; ia e vinha.
A raposa transformara-se em hiena, parecia sufocado por não poder falar,

49 1
mexia os lábios e crispava os punhos descarnados. Repentinamente,
levantou a cabeça, o seu olhar cavo pareceu encher-se de luz e a voz
ressoou como um clarim:
- Mão baixa, Tristan ! Mão baixa sobre esses velhacos! Vai, Tristan,
meu amigo, mata, mata !
Passada esta erupção, voltou a sentar-se e disse com uma raiva fria
e concentrada:
- Aqui , Trista n ! . . . Há junto de nós, nesta Bastilha, as cinquenta lan­
ças do visconde de Gif, o que perfaz trezentos cavalos. Levá-los-eis.
Há também a companhia de archeiros da nossa ordenança, do senhor
de Châteaupers. Levá-la-eis. Sois preboste dos alveitares, tendes a
vossa gente do prebostado. Tomá-la-eis convosco. Encontrareis no
Palácio de Saint-Pai quarenta archeiros da nova guarda do senhor
Delfim. Levá-los-eis. E com tudo isto correreis a Nossa Senhora . . . Ah,
senhores vilões de Paris, assim vos atravessais diante da coroa da
França, da santidade de Nossa Senhora e da paz desta república ! . . .
Exterminai, Tristan, extermina i ! E que nem u m escape senão para
Montfaucon!
Tristan inclinou-se e disse:
- Está bem, sire!
Após uma pausa, acrescentou:
- E que devo fazer da feiticeira?
A pergunta levou o rei a refletir. Depois exclamou:
- Ah, a feiticeira ! . . . Senhor de Estouteville, que queria o povo fazer
dela?
- Sire - respondeu o preboste de Paris -, suponho que, visto o povo
a ir arrebatar ao seu asilo de Nossa Senhora, esta impunidade o magoa
e a quer levar à forca .
O rei pareceu meditar profundamente e depois dirigiu-se a Tristan
l'Hermite:
- Pois bem, meu compadre, extermina o povo e enforca a feiticeira !
- É assim mesmo - disse, muito baixo, Rym a Coppenole -; castigar
o povo por querer e fazer o que ele quer.
- É o bastante, sire - respondeu Tristan. - Se a feiticeira estiver ainda
em Nossa Senhora , devemo-la prender, apesar do asilo?
- Santo Deus, o asilo ! - disse el-rei, coçando a orelha. É preciso,
-

contudo, que essa mulher seja enforcada.

492
Nessa altura, como assaltado por repentina ideia, deixou-se cair de
j oelhos diante da sua cadeira, tirou o chapéu, colocou-o no assento e,
olhando devotamente para um dos amuletos de chumbo que o carre­
gavam, implorou de mãos postas:
- Nossa Senhora de Paris, minha graciosa padroeira, perdoai-me !
Não o tornarei a fazer. É preciso castigar esta criminosa. Garanto-vos,
Virgem e Senhora, minha boa ama, que se trata de uma feiticeira
indigna da vossa amável proteção. Sabeis, Senhora , que muitos prín­
cipes bastante piedosos violaram o privilégio das igrejas pela glória
de Deus e necessidade do Estado. São Hugo, bispo da I nglaterra, deu
licença ao rei Eduardo para prender um mágico na sua igreja. São Luís
de França, meu senhor, invadiu, para o mesmo fim, a igrej a do Senhor
São Paulo, e o senhor Afonso, filho do rei de Jerusalém, a própria igreja
do Santo Sepulcro. Perdoai-me, pois, por esta vez, Nossa Senhora de
Paris. Não o farei mais e dar-vos-ei uma bonita imagem de prata, igual
àquela que o ano passado dei a Nossa Senhora de Ecouys. Assim seja.
Benzeu-se, levantou-se, cobriu-se e disse a Tristan:
- Andai depressa, meu compadre. Levai convosco o senhor de
Châteaupers. Mandareis tocar a rebate e esmagareis a populaça.
Enforcareis a feiticeira. Mais nada. Entendo que dirigireis a ação pesso­
almente. Dar-me-eis disso contas . . . Vamos, Olivier, esta noite não me
deito. Barbeai-me.
Tristan l'Hermite inclinou-se e saiu. Então o rei despediu, com um
gesto, Rym e Coppenole e disse:
- Deus vos guarde, senhores e meus bons amigos flamengos. Ide
descansar um bocado. A noite vai alta e estamos mais perto da manhã
do que da tarde.
Retiraram-se os dois e, quando se dirigiam para os seus aposen­
tos, conduzidos pelo capitão da Bastilha, Coppenole disse a Guilherme
Rym:
- Hum! Já estou farto deste rei que tosse ! Vi Carlos de Borgonha
bêbado, mas era menos ruim do que Luís XI doente.
- Mestre Jacques - respondeu Rym -, é que os reis não têm o vinho
tão mau como a tisana.

493
VI

Pequena flâmula vagabunda

Ao sair da Bastilha, Gringoire desceu a Rua de Saint-Antoine com


a velocidade de um cavalo desenfreado. Logo que chegou à Baudoyer,
foi direito à cruz de pedra que se erguia a meio da praça como se con­
seguisse distinguir no escuro a figura de um homem vestido e encapu­
chado de preto que estava sentado nos degraus do cruzeiro.
- Sois vós, mestre? - perguntou Gringoire,
A personagem de preto levantou-se e exclamou:
- Morte e paixão ! Fazeis-me ferver, Gringoire. O homem lá em cima
na torre de Saint-Gervais acaba de gritar que é uma e meia da manhã !
- Oh! - redarguiu Gringoire -, a culpa não foi minha, mas sim da
ronda e do rei . Acabo de escapar de boa ! Pouco faltou para ser enfor­
cado. É predestinação minha.
- Também escapais de tudo! . . . - retorquiu o outro. - Mas vamos
depressa. Sabes a palavra de passe?
- Imaginai, mestre, que vi o rei ! Venho de lá. Usa calções de fustão.
Que aventura !
- Que chorrilho de palavras! Que me interessa a tua aventura? Sabes
a palavra de passe dos vadios?
- Sei. Estai descansado. Pequena flâmula vagabunda.
- Bem. De outra maneira não poderíamos chegar até à igreja.
Os vadios barram as ruas. Parece, felizmente, que encontraram resis­
tência. Talvez ainda cheguemos a tempo.
- Sim, mestre. Como entraremos, porém, em Nossa Senhora?
- Tenho a chave das torres.
- E como sairemos de lá?

494
- Há, por detrás do claustro, uma portinha que dá para o Terrain e
dali para o rio. Arranj ei a chave e esta manhã amarrei lá um barco.
- Só por um triz escapei de ser enforcado! - repetiu Gringoire.
- Depressa, vamos! - incitou o outro.
A passo largo, desceram ambos para a Cité.

495
VII

Châteaupers, acode !

Talvez o leitor se recorde da crítica situação em que deixámos


Quasímodo. O valente surdo, assaltado por todos os lados, perdera,
senão toda a coragem, pelo menos toda a esperança de salvar, não a si,
pois nele não pensava, mas sim a cigana. Corria desatinado pela galeria.
Nossa Senhora ia ser conquistada pelos vadios. De repente, grande tro­
pel de cavalos encheu as ruas próximas, e, com uma longa fila de archo­
tes e uma compacta coluna de cavaleiros de lanças em riste e a toda a
brida, estes ruídos furiosos desembocaram na praça como um furacão.
- França ! França! Desbaratai os vilões! Châteaupers, acode ! - Pre­
bostado ! Prebostado!
Espavoridos, os vadios voltaram-se de repente.
Quasímodo não ouviu, mas viu as espadas desembainhadas, os
archotes, os ferros das lanças, toda aquela cavalaria, à cabeça da qual
reconheceu o capitão Febo; viu a confusão dos vadios, o susto de alguns,
a desorientação nos melhores, e colheu deste inesperado socorro tanta
força, que repeliu para fora da igreja os primeiros assaltantes, que já
passavam a perna por cima da galeria.
Eram efetivamente as tropas do rei que apareciam.
Os vagabundos portaram-se coraj osamente. Defenderam-se como
desesperados. Apanhados de flanco pela Rua de S. Pedro dos Bois e,
por detrás, pela Rua do Adro, encurralados em Nossa Senhora, que
ainda assaltavam e que Quasímodo defendia, todos ao mesmo tempo,
assaltantes e assaltados, encontravam-se nessa singular situação como
a que depois se viu, no famoso cerco de Turim, em 1 640, entre o prín­
cipe Tomás de Saboia, que ele sitiava, e o marquês de Leganez, que o

496
bloqueava, o conde Henrique de Harcourt, Taurinum obsessor idem et
obsessus, como reza o seu epitáfio.
Foi urna horrível confusão. Para carne de lobo, dente de cão, corno diz
o padre Mathieu. Os cavaleiros do rei, entre os quais Febo de Châteaupers
se comportava com valentia, não davam quartel e a cutilada acabava o
que escapara ao estoque. Mal armados, os vadios espumavam e mor­
diam. Homens, mulheres, crianças atiravam-se às garupas, aos peitorais
dos cavalos e, corno gatos, agarravam-se com unhas e dentes aos quatro
membros dos animais. Outros arremessavam os archotes às caras dos
archeiros. Outros ainda lançavam ganchos de ferro ao pescoço dos cava­
leiros e puxavam-nos para si. Retalhavam os que caíam.
Notou-se um que tinha urna comprida foice reluzente e que ceifou,
durante muito tempo, as pernas dos cavalos. Era pavoroso. Cantava urna
canção anasalada e, sem descanso, atirava e recolhia a foice. A cada
golpe, traçava em volta de si um grande círculo de membros cortados.
Avançava deste modo para o mais denso da cavalaria, caminhando com
tranquila lentidão, baloiçando a cabeça e com a respiração regular de
um ceifeiro que penetra numa seara de trigo. Era Clopin Trouillefou.
Urna arcabuzada abateu-o.
Entretanto, voltaram a abrir-se as janelas dos prédios. Quando a vizi­
nhança ouviu os gritos de guerra da gente do rei, misturou-se com a refrega
e de todos os andares choveram projéteis sobre os vagabundos. Enchia o
adro urna fumaceira espessa, raiada do fogo da mosquetaria. Mal se distin­
guia a fachada de Nossa Senhora, e o decrépito Hospital, com alguns lívi­
dos doentes a observarem de cima do seu telhado escamado de trapeiras.
Por fim, os vadios cederam. A fadiga, a falta de armas em condições,
o susto daquela surpresa, a mosquetaria das janelas, o valente ímpeto da
gente do rei, tudo isto os abateu. Forçaram a linha dos atacantes e aba­
laram a fugir em todas as direções, deixando o adro atulhado de mortos.
Quando Quasírnodo, que nem por um momento deixara de combater,
verificou esta derrota, caiu de j oelhos e levantou as mãos ao céu; depois,
ébrio de alegria, correu e subiu com a velocidade dum pássaro àquela
cela de que tão intrepidamente defendera as vizinhanças. Só o animava
agora urna ideia: ajoelhar diante daquela que acabara de salvar pela
segunda vez.
Quando entrou na cela, encontrou-a vazia.

497
LIVRO UNDÉCIMO

O sapatinho

Esmeralda dormia quando os vadios tinham assaltado a igrej a.


Em breve o rumor sempre crescente em volta do edificio e os assus­
tados balidos da sua cabra acordada diante dela haviam-na arrancado
desse sono. Sentou-se, escutou, olhou e, depois, amedrontada com o
clarão e com a bulha, lançara-se para fora da cela e fora ver. O aspeto da
praça, a visão que ali se agitava, a desordem daquele assalto noturno, a
hedionda turba, pulando como uma nuvem de rãs, meio entrevista nas
trevas, o coaxar daquela multidão rouca, os archotes rubros a correrem
e a entrecruzarem-se nessa sombra, como os fogos-fátuos que riscam
a superfície enevoada dos pântanos, toda aquela cena causou-lhe o
efeito duma misteriosa batalha travada entre os fantasmas do sabbat e
os monstros de pedra da igreja. Impregnada desde criança de supersti­
ções da tribo cigana, a primeira ideia que lhe ocorreu foi de que surpre­
endera, em malefício, os estranhos seres próprios da noite. Assustada,
correu então a encolher-se na sua cela, pedindo ao catre um pesadelo
menos horrível.
A pouco e pouco, porém, os primeiros vapores do medo tinham-se
dissipado; ao barulho que aumentava sem cessar, e a vários outros sinais
da realidade, sentiu-se atacada, não por espectros, mas sim por seres
humanos. O susto então, sem aumentar, transformara-se. Lembrara-se da
possibilidade de um motim popular para a arrancar ao seu asilo. A ideia
de perder ainda uma vez mais a vida, a esperança, Febo, que continuava
a entrever no seu futuro, o profundo aniquilamento da sua fraqueza, o
facto de estar privada de qualquer forma de evasão, sem nenhum apoio,
o seu isolamento, estas e mais outras mil ideias acabrunharam-na. Caiu

498
de j oelhos, com a cabeça sobre o leito, as mãos postas sobre a cabeça,
cheia de ansiedade e de tremuras, e, apesar de cigana, idólatra e pagã,
começou a pedir, soluçando, misericórdia ao bom Deus cristão e a rezar
a Nossa Senhora, sua hospedeira. Porque mesmo que não se creia em
coisa nenhuma, há ocasiões na vida em que se professa sempre a reli­
gião do templo que se encontra mais próximo.
Assim ficou prostrada durante muito tempo, embora, para se dizer a
verdade, mais a tremer do que a rezar, enregelada pelo bafo cada vez
mais próximo da turba furiosa, sem compreender nada daquela fúria,
desconhecendo o que se tramava, o que se fazia, o que se queria, mas
p ressentindo um desenlace terrível.
Eis que no meio desta aflição ouve passos perto de si. Volta-se.
Acabavam de entrar na cela dois homens, um deles com uma lanterna.
A rapariga soltou um débil grito.
Uma voz, que não lhe era desconhecida, disse-lhe:
- Nada temais, sou eu.
- Quem sois vós? - perguntou ela.
- Pedro Gringoire.
Este nome tranquilizou-a. Levantou os olhos e reconheceu que era
efetivamente o poeta. Ao lado dele, porém, havia uma figura negra e
embuçada da cabeça aos pés e cuj o mutismo a impressionou.
- Ai ! - lamentou Gringoire, em tom de censura. Djali conheceu-me
primeiro do que vós!
Na verdade, a cabrinha não esperara que Gringoire se identificasse.
Mal ele entrara, fora meigamente roçar-se-lhe pelos j oelhos, cobrindo
o poeta de carícias e de pelos brancos, pois estava na muda. Gringoire
retribuía-lhe os afagos.
- Quem está aí convosco? - perguntou a cigana, em voz baixa.
- Sossegai - tranquilizou-a Gringoire -, é um dos meus amigos.
Então o filósofo colocou a lanterna no chão, acocorou-se no laj edo e
exclamou entusiasmado, apertando nos braços Dj ali:
- Que animal tão gracioso, e sem dúvida mais apreciável pela sua
limpeza do que pelo tamanho, mas engenhoso, subtil e letrado como
um gramático ! Vejamos, minha Djali, ainda te não esqueceste das tuas
lindas habilidades? Como faz mestre Jacques Charmolue? . . .
O homem de preto não o deixou acabar. Aproximou-se de Gringoire
e empurrou-o com rudeza pelo ombro. O filósofo pôs-se de pé e disse:

499
- É verdade, esquecia-me de que estamos com pressa . . . Embora
isso não sej a razão, meu mestre, para empurrar assim as pessoas! . . .
Minha querida e formosa filha, corre perigo a vossa vida e a da Djali.
Insistem em enforcar-vos. Como somos vossos amigos, vimos sal­
var-vos. Segui-nos.
- Isso é verdade? - exclamou ela, transtornada.
- É inteiramente verdade. Vinde depressa !
- De bom grado - balbuciou a j ovem -, mas porque é que o vosso
amigo não fala?
- Ora ! - exclamou Gringoire. - É que o pai e a mãe dele eram pes­
soas esquisitas e fizeram-no de feitio taciturno.
Esmeralda teve de se contentar com esta explicação. Gringoire agar­
rou-lhe na mão, o companheiro levantou a lanterna e seguiu à frente.
A pequena ia entorpecida pelo medo. Deixou-se conduzir. A cabra
seguia-os aos pulos, tão contente por tornar a ver Gringoire, que a
todo o instante o fazia tropeçar ao meter-lhe os chifres entre as pernas.
De cada vez que o filósofo estava prestes a desequilibrar-se dizia:
- A vida é assim ! Muitas vezes são os nossos melhores amigos que
nos fazem cair.
Desceram rapidamente a escada das torres, atravessaram a igrej a
envolta em trevas e solidão e ressonante com o barulho, o que formava
um assustador contraste, e saíram para o pátio do claustro pela porta
vermelha. O claustro estava deserto, os cónegos haviam fugido para
o paço episcopal onde rezavam em comum; estava também vazio o
pátio, e alguns espavoridos lacaios encolhiam-se nos cantos escuros.
Dirigiram-se para a porta que dava deste pátio para o Terrain. O homem
de preto abriu-a com uma chave que levava. Sabem os nossos leitores
que o Terrain era uma língua de terra encravada entre muros do lado
da Cité e pertencia ao capítulo de Nossa Senhora, que fechava a ilha,
para o oriente, na retaguarda da igrej a . Encontraram completamente
deserto este recinto. Aqui sentia-se já menos tumulto no ar. O rumor
do assalto dos vagabundos chegava-lhes mais confuso e menos baru­
lhento. O vento fresco, que segue o fio da água, agitava, com um ruído
já apreciável, as folhas da única árvore plantada na ponta do Terrain.
Apesar disso, achavam-se ainda demasiado perto do perigo. Os pré­
dios que lhe ficavam mais próximos eram o paço episcopal e a igrej a.
Reinava visivelmente grande tumulto interior na residência do bispo.

500
Toda a sua tenebrosa massa listrava-se de luzes que corriam duma
j anela para outra, como quando se acaba de queimar papel fica um
sombrio edifício de cinzas onde vivas centelhas se deslocam em mil
correrias extravagantes. Ao lado, as enormes torres de Nossa Senhora,
vistas assim por detrás com a comprida nave contra a qual se erguem,
recortadas a negro sobre o vermelho clarão que enchia o adro, recorda­
vam duas gigantescas chaminés de um fogão de ciclopes.
O que por todos os lados se via de Paris oscilava diante dos olhos
numa sombra misturada de luz. Rembrandt tem fundos assim nos seus
quadros.
O homem da lanterna seguiu direito à ponta do Terrain. Havia ali,
mesmo à beira da água, os restos carunchosos de um tapume de esta­
cas ligadas por fasquias, onde uma pobre vide prendia alguns ramos
magros e esticados como os dedos duma mão espalmada. Por detrás,
na sombra formada por esta rede, escondia-se um barquito. O homem
fez sinal a Gringoire e à sua companheira para entrarem. A cabra
acompanhou-os. O homem foi o último a descer. De seguida, cortou a
amarra do barco, afastou-o da terra com um comprido craque e, agar­
rando nos dois remos, sentou-se à proa a remar com toda a força para
o largo. Neste sítio, o Sena é muito rápido e o barqueiro teve bastante
dificuldade para deixar a ponta da ilha.
O primeiro cuidado de Gringoire quando entrou no barco foi o de
instalar a cabra sobre os j oelhos. Tomou lugar à popa, e a rapariga, a
quem o desconhecido inspirava uma indefinível inquietação, sentou-se
muito encostada ao poeta.
Quando o nosso filósofo sentiu o barco baloiçar, bateu as palmas,
beijou Djali no meio os chifres e disse:
- Oh! Cá estamos os quatro a salvo ! - Com o aspeto de um profundo
pensador, acrescentou: - Ficamos reconhecidos, umas vezes à fortuna,
outras à manha, pelo feliz desenlace dos grandes empreendimentos.
O barco vogava lentamente para a margem direita. A j ovem obser­
vava, com secreto terror, o desconhecido. Este voltara a tapar cuidado­
samente a luz da sua lanterna de furta-fogo. Entreviam-no no escuro,
à proa do barco, como um espectro. O capuz, que continuava abai­
xado, fazia-lhe uma espécie de máscara e, de cada vez que, ao remar,
entreabria os braços, de onde pendiam as largas mangas negras, estas
dir-se-iam duas grandes asas de morcego. Para mais, ainda não dissera

50 1
uma só palavra nem soltara um só suspiro. No barco não havia qual­
quer outro ruído senão o do vaivém dos remos, de mistura com o fré­
mito das mil rugas da água ao longo do barco.
- Pela minha alma ! - exclamou de repente Gringoire -, estamos
alegres e bem-dispostos como ascálafos! Mantemos um mutismo
de pitagóricos ou de peixes! Santo Deus, meus amigos, bem gosta­
ria que alguém falasse comigo ! . . . A voz humana é música ao ouvido
humano. Não sou eu que o digo, mas sim Dídimo de Alexandria, e,
portanto, são palavras ilustres. Certamente Dídimo de Alexandria não
é um filósofo medíocre . . . Uma palavra, minha bela menina; dizei-me,
suplico-vos, uma palavra ! . . . A propósito, tínheis um esgarzinho muito
singular e engraçado; continuais a fazê-lo? Sabeis, amiga minha, que
o Parlamento exerce jurisdição completa sobre os lugares de asilo e
que corríeis grande perigo no vosso esconderij o de Nossa Senhora?
Infelizmente, o passarinho chamado colibri faz o ninho na goela do
crocodilo . . . Mestre, eis a Lua que reaparece. Oxalá que não nos vej am . . .
Apesar de praticarmos uma louvável ação salvando esta menina, se
nos apanhassem enforcar-nos-iam em nome do rei . Ai, os atos huma­
nos têm duas asas! Censuram em mim o que premeiam em ti. Há quem
admire César e critique Catilina. Não é verdade isto, meu mestre? Que
dizeis desta filosofia? Quanto a mim, possuo a filosofia do instinto, da
natureza, ut apes geometriam 1 18• Então, ninguém me responde? Que má
disposição tendes os dois! Obrigam-me a ir para aqui a falar sozinho!
É aquilo a que chamamos, em tragédia, um monólogo. Santo Deus! . . .
Previno-vos de que acabo de ver o rei Luís XI e que aprendi com ele
esta exclamação. Portanto, Santo Deus! Na Cité continuam ainda com
grande berraria. Esse velho monarca é mau como as cobras. Vive enca­
fuado em peles. Continua a dever-me o dinheiro do meu epitalâmio e
por pouco esta noite não me mandou enforcar, o que me causaria sério
transtorno. É sovina com os homens de mérito. Bem precisaria de ler
os quatro livros de Salviano de Colónia Adversus avaritiam. Na verdade,
é um rei acanhado nos seus modos com os homens de letras e pratica
crueldades muito bárbaras. Para apanhar o dinheiro do povo é uma ver­
dadeira esponja. Enche-se à custa da magreza de todos os outros mem­
bros. Por isso, as queixas contra o rigor dos tempos transformam-se em

1 1"
Como as abelhas a geometria.

502
murmúrios contra o príncipe. Sob a regência desse doce senhor devoto,
os patíbulos vergam de enforcados, os cepos apodrecem com o sangue,
as prisões estalam como ventres repletos. Este rei agarra com uma das
mãos e com a outra enforca. É o procurador do senhor Imposto e do
senhor Patíbulo. Os grandes são despojados das suas dignidades e os
pequenos sem cessar esmagados com novas violências. É um príncipe
exorbitante. Não gosto deste monarca. E vós, meu mestre?
O homem de preto deixava o loquaz poeta palrar. Continuava a lutar
contra a violenta e apertada corrente que separa a proa da Cité da popa
da ilha de Nossa Senhora e que hoj e denominamos a ilha de São Luís.
- A propósito, mestre ! - exclamou de repente Gringoire. - Na altura
em que chegámos ao adro, por entre aqueles enraivecidos vadios, Vossa
Reverência não reparou naquele pobre diabito a quem o vosso surdo
estava a esmigalhar o crânio contra a balaustrada da galeria dos reis?
Sou curto de vista e não consegui reconhecê-lo. Sabeis quem possa ser?
O desconhecido não respondeu uma só palavra. Contudo, parou de
súbito de remar, os braços descaíram-lhe como que quebrados, a cabeça
tombou-lhe para o peito e Esmeralda ouviu-o convulsivamente suspirar.
Por seu lado, ela estremeceu também. Já ouvira daqueles suspiros.
Abandonado a si próprio, o barco derivou por instantes ao sabor da
água. Finalmente, o homem de negro endireitou-se, agarrou de novo
nos remos e continuou a remar contra ela. Dobrou a ponta da ilha de
Nossa Senhora e dirigiu-se para o cais do Port-au-Foin.
- Ah! - exclamou Gringoire ali está em baixo a residência Barbeau.
Reparai, mestre; vede aquele grupo de telhados escuros que formam
singulares ângulos, acolá, por baixo daquele amontoado de nuvens bai­
xas, fibrosas, enfarruscadas e sujas, onde a Lua está toda esborrachada
e derramada como uma gema de ovo de que se partisse a casca . . . Rico
palácio aquele! Dispõe de uma capela coroada por uma abobadazinha
cheia de bem lavrados ornatos. Podeis ver, por cima, o campanário
burilado com muita delicadeza. Tem também um agradável jardim que
consiste num lago, num aviário, num eco, num j ogo de pela, num labi­
rinto, numa casa para animais ferozes e em grande cópia de frondosas
avenidas muito agradáveis a Vénus. Tem também um diabo de árvore
que chamam a luxuriosa, por ter servido aos prazeres duma famosa
princesa e de um condestável da França, galante e de cintilante espírito.
Infelizmente, nós, pobres filósofos, estamos para um condestável como

503
uma plantação de couves e de rabanetes está para o jardim do Louvre.
No fim de contas, que importa isso? Tanto para nós como para os gran­
des, na vida humana o bem e o mal misturam-se. A dor anda sempre ao
lado da alegria, e o espondeu a seguir ao dáctilo. Meu mestre, tenho de
vos contar esta história do palácio Barbeau. Acabou de maneira trágica.
Foi em 1 3 1 9 , no reinado de Filipe V, o mais longo dos reis da França.
A moralidade da história é que as tentações da carne são perniciosas e
malignas. Não demoremos demasiado o olhar na mulher do próximo,
por muito suscetíveis que os nossos sentidos sejam à sua formosura.
A fornicação é um pensamento libertino. O adultério é uma curiosidade
da volúpia de outrem . . . Olá, o barulho está a redobrar lá adiante!
Com efeito, aumentava o tumulto em volta de Nossa Senhora.
Puseram-se à escuta. Ouviam-se claramente brados de vitória. De repente,
cem archotes, que faziam cintilar os capacetes dos homens de armas,
espalharam-se pela igreja, todos os andares, pelas torres, pelas galerias,
pelos botaréus. Esses archotes pareciam procurar qualquer coisa e em
breve os afastados clamores chegaram nitidamente até os fugitivos:
- A egípcia ! A feiticeira ! À morte a egípcia!
A infeliz deixou cair a cabeça entre as mãos e o desconhecido pôs-se
a remar furiosamente para a margem. Entretanto, o nosso filósofo refle­
tia. Apertava a cabra entre os braços e afastava-se muito suavemente
da cigana que se chegava cada vez mais para ele, como para o único
asilo que lhe restava.
É verdade que Gringoire se encontrava numa cruel perplexidade.
Pensava que também a cabra, segundo a legisla ção vigente, seria enfor­
cada se a apanhassem, o que constituiria um grande desgosto, coitada
da Djali; que era de mais duas condenadas agarradas assim a ele; e,
que no fim de contas, o seu companheiro não desejava mais nada senão
ocupar-se da egípcia. Travava-se-lhe no cérebro violento combate, no
qual, como o Júpiter da Ilíada, pesava sucessivamente a egípcia e a
cabra; a olhar ora para uma ora para a outra, de pupilas vidradas de
lágrimas, dizia entre dentes: "Eu é que não posso salvar as duas ! "
Um solavanco avisou-os de q u e p o r fim o barco tocava em terra.
O sinistro alarido continuava a encher a Cité. O desconhecido pôs-se
em pé, aproximou-se da egípcia e quis-lhe segurar no braço para a aju­
dar a desembarcar. Ela repeliu-o e pendurou-se da manga de Gringoire,
o qual, por seu lado, ocupado com a cabra, quase a empurrou. Então

504
ela saltou sozinha do batel . Encontrava-se tão transtornada , que nem
sabia o que fazia nem para onde ia. Assim ficou por momentos estu­
pefacta, a ver a água correr. Quando recuperou um pouco a consci­
ência, encontrou-se sozinha no cais com o desconhecido. Parece que
Gringoire aproveitara o momento do desembarque para se esquivar
com a cabra pelo dédalo de casas da Rua do Grenier-sur-l'eau.
A pobre cigana teve um calafrio quando se viu sozinha com aquele
homem. Quis falar, gritar, chamar Gringoire, mas a língua imobili­
zara-se-lhe inerte na boca e som algum lhe saiu dos lábios. De repente,
sentiu na sua a mão do desconhecido. Era uma mão fria e forte. Os den­
tes bateram-lhe e ficou mais pálida do que o luar que a iluminava.
O homem não proferiu palavra. Começou a subir a passos largos para
a Praça da Greve, levando a rapariga pela mão. Naquele momento,
Esmeralda sentiu vagamente que o Destino é uma força irresistível. Não
encontrava já forças para reagir e deixava-se levar a correr enquanto
ele caminhava a passo. Naquele ponto o cais era em ladeira. Apesar
disso, a pequena teve a impressão de que ia a descer um declive.
Olhou para todos os lados; nem vivalma. O cais encontrava-se abso­
lutamente deserto; não ouvia ruídos e só sentia os homens na tumul­
tuosa e avermelhada Cité, de que apenas a separava um braço do Sena
e de onde lhe chegava o seu nome, de mistura com brados de morte.
O resto de Paris espalhava-se à sua roda em grandes blocos de sombra.
Entretanto o desconhecido continuava a arrastá-la no mesmo
mutismo e rapidez. Esmeralda não encontrava na memória recordação
de qualquer dos lugares por onde passava. Junto duma janela ilumi­
nada fez um esforço, empertigou-se de repente e gritou:
- Socorro !
O burguês que ali morava abriu a j anela, apareceu em camisa,
segurando um candeeiro, olhou com ar aparvalhado para o cais, pro­
nunciou quaisquer palavras que a pequena não ouviu e voltou a fechar
a janela. Apagara-se o derradeiro lampej o de esperança.
O homem de preto não articulou uma só sílaba; segurava-a bem e
forçou-a a caminhar mais depressa. Ela deixou de resistir e seguiu-o
aniquilada.
De vez em quando sempre arranjava um pouco de coragem e
perguntava, numa voz entrecortada pelos tropeções nas pedras e pelo
esfalfamento da corrida:

505
- Quem sois? Quem sois?
Ele não lhe dava qualquer resposta.
Deste modo chegaram, sempre pelo cais fora, a uma praça bastante
ampla. Iluminava-a um débil luar. Era a Greve. Ao meio, distinguia-se
uma espécie de cruz negra. Era a forca ao alto. Esmeralda reconheceu
isso tudo e percebeu onde se encontrava.
O homem parou, virou-se para ela e levantou o capuz. Petrificada,
a pequena gaguejou:
- Ai, bem me parecia que era outra vez ele! . . .
Era o padre. Tinha o a r do seu fantasma. Efeito do luar. Parece que
a esse clarão não se veem senão os espectros das coisas.
- Escuta - disse-lhe ele, provocando-lhe um tremor quando a j ovem
percebeu aquela voz funesta e que havia muito tempo não lhe chegava
aos ouvidos. Ele continuou. Articulava com estes intervalos curtos e
arquej antes que pela sua comoção denunciam profundas emoções inte­
riores. - Escuta. Estamos aqui. Vou-te falar. Estamos na Greve. É este
um ponto extremo. O Destino entrega-nos um ao outro. Vou decidir da
tua vida; tu, da minha alma. Eis uma praça e uma noite para lá das
quais não se vê mais coisa alguma. Portanto, escuta-me. Vou-te dizer. . .
Antes de mais nada, não me fales no teu Febo ! - (Ao exprimir-se assim,
andava de um lado para o outro como homem que não pode estar
parado no mesmo sítio, e puxava-a atrás de si. ) - Não fales nele, enten­
des? Se pronuncias esse nome, não sei o que farei, mas será terrível!
Proferida esta ameaça, tal como um corpo que encontra o seu cen­
tro de gravidade, ficou imóvel. Não obstante, nem por isso as suas
palavras denunciavam menos agitação. Falava cada vez em voz mais
baixa.
- Não voltes assim a cara. Escuta-me. É um caso muito sério. Antes
de mais nada, eis o que se passou. Juro-te que não se ficarão a rir
disto tudo ! Que te dizia eu? Repete-me, anda! . . . Há um acórdão do
Parlamento que te restitui ao cadafalso. Acabo de te arrancar das suas
mãos e eis que eles te perseguem. Olha!
Estendeu o braço para a Cité. Efetivamente, parecia que continua­
vam ali com as buscas. Os ruídos. aproximavam-se. A torre da casa do
Lieutenant, situada diante da Greve, enchia-se de bulha e de luzes, e
viam-se soldados correr no cais oposto, com archotes e a gritar:
- A egípcia ! Onde está a egípcia? À morte! À morte!

506
- Bem vês que te perseguem e que não minto. Eu amo-te . . . Não
abras a boca, é melhor que não fales se é para me dizeres que me odeias.
Estou decidido a não ouvir mais isso ! Acabo de te salvar. Deixa-me,
antes de mais nada, concluir a minha obra. Posso libertar-te por com­
pleto. Tenho tudo preparado. É só tu quereres. Se quiseres, poderei.
Deteve-se de repente e disse:
- Não, não é isso que se deve dizer.
Deitou então a correr, obrigando-a a correr também, porque não a
largava; foi direito à forca e apontou para ela com o dedo para, fria­
mente, dizer:
- Escolhe entre nós dois.
Esmeralda arrebatou-se-lhe das mãos e caiu aos pés da forca, abra­
çando aquele fúnebre esteio. Depois voltou um pouco a formosa cabeça
e olhou para o padre, por cima do ombro. Dir-se-ia uma Santa Virgem
aos pés da Cruz. O arcediago ficara imóvel, com o dedo ainda erguido
para a forca, no mesmo gesto de estátua.
Finalmente, a cigana disse-lhe:
- Causa-me ainda menos horror do que vós.
Então ele deixou tombar lentamente o braço e, no mais profundo
acabrunhamento, baixou os olhos para o chão. Murmurou:
- Se estas pedras pudessem falar, sim, diriam que está aqui um
homem bem desgraçado . . .
Prosseguiu. A rapariga, d e j oelhos diante da forca e envolta na sua
opulenta cabeleira, deixou-o falar sem o interromper. Ele exprimia-se
agora num tom lastimoso e doce, contrastando dolorosamente com a
altiva dureza das suas feições.
- Pois eu amo-vos. Oh, isto é deveras verdade ! Não transparece
nada deste fogo que me devora o coração? Ai, rapariga, noite e dia,
sim, noite e dia, e isso não merece nenhuma comiseração? Um amor
de noite e de dia, repito, é uma tortura . . . Oh, sofro demasiado, minha
pobre criança ! . . . Garanto-vos que é uma coisa digna de compaixão.
Bem vedes a doçura com que vos falo. Bem desejaria que deixásseis
de sentir horror por mim. Enfim, um homem não tem culpa de amar
uma mulher! . . . Ai, meu Deus! Pois quê, nunca mais me perdoareis?
Odiar-me-eis sempre? Está, portanto, tudo terminado? É isto que me
torna mau, vede, e horrível aos meus próprios olhos! . . . Nem sequer
olhais para mim! Estais talvez a pensar noutra coisa enquanto vos

507
falo, de pé e a tremer, acerca do limite da eternidade, de nós ambos!
Principalmente não me faleis do oficial ! . . . O quê, lançar-me-ia aos vos­
sos j oelhos! O quê, beij aria, não os vossos pés, pois não mo consenti­
ríeis, mas sim a terra que eles calcam! Pois quê, soluçaria como uma
criança, arrancaria do peito, não palavras, mas o meu coração e as
minhas entranhas, para vos dizer que vos amo e tudo seria inútil, tudo!
Todavia, na vossa alma não há senão ternura e clemência, irradiais a
mais bela doçura, toda vós sois suave, boa, misericordiosa e encanta­
dora. Ai, só para mim é que mostrais maldade! Que fatalidade esta !
Escondeu o rosto entre as mãos. A j ovem ouvia-o chorar. Era a pri­
meira vez. De pé e sacudido pelos soluços, era mais mísero e mais supli­
cante do que de j oelhos. Continuou a chorar assim durante mais algum
tempo. Só depois de passadas essas primeiras lágrimas, continuou:
- Vamos, já não encontro palavras. Apesar de ter refletido bem no
que vos iria dizer. Agora tremo e estremeço, desfaleço no instante deci­
sivo. Sinto qualquer coisa de definitivo envolver-nos e balbucio. Oh,
tombarei no chão se não tendes piedade de mim, piedade de vós. Não
nos condeneis a ambos. Se soubésseis quanto vos amo, que coração é
o meu ! Que deserção de toda a espécie de virtude, que desesperado
abandono de mim mesmo ! Doutor, mofo da ciência ! Fidalgo, rasgo o
meu pergaminho. Sacerdote, faço do missal travesseiro de luxúria e
escarro no rosto do meu Deus! Tudo isto por ti, sedutora ! para ser mais
digno do teu inferno, e tu não queres este condenado ! Tenho de te dizer
tudo! Ainda mais, há uma coisa mais horrível, oh, sim, mais horrível ! . . .
Ao pronunciar estas últimas palavras, mostrava um aspeto comple­
tamente desvairado. Calou-se por momentos para logo prosseguir
como se falasse consigo próprio, mas numa voz forte:
- Caim, que fizeste de teu irmão?
Nova pausa e continuou:
- O que fiz, Senhor? Recolhi-o, criei-o, alimentei-o, amei-o, idolatrei-o
e matei-o! Sim, Senhor, eis que acabam de lhe esmigalhar a cabeça na
minha frente contra a pedra do Vosso templo, e foi por minha culpa, por
culpa desta mulher, por culpa dela . . .
Tinha o olhar esgazeado. A voz ia-se-lhe amortecendo; repetiu ainda
várias vezes, maquinalmente, com intervalos j á bastante demorados,
como o sino que prolonga a sua última vibração:
- Por culpa dela . . . Por culpa dela . . .

508
Depois, a sua língua deixou de articular qualquer som percetível,
embora os lábios continuassem sempre a mexer-se. De repente, caiu
sobre si mesmo, como uma coisa que se desmorona, e ficou no chão,
imóvel, com a cabeça nos j oelhos.
Um leve toque da rapariga ao retirar o pé de debaixo dele fê-lo
voltar a si. Passou lentamente a mão pelas faces cavadas e olhou por
instantes, admirado, para os dedos húmidos. Murmurou:
- O quê, eu chorei!
E, virando-se de chofre para a cigana, exclamou com inexprimível
angústia:
- Ai, vistes-me chorar sem vos enternecerdes! Criança, não sabes
que estas lágrimas são Java? É então bem verdade que do homem que
se odeia ninguém se comove? Ver-me-ias morrer e rir-te-ias. Mas, ai, eu
não te quero ver morrer! Uma palavra, uma só palavra de perdão ! Não
me digas que me amas, dize-me apenas que me queres. I sso bastará
para que eu te salve, senão . . . Oh, as horas passam e imploro-te, por
tudo o que há de sagrado, que não esperes que eu me torne de pedra
como esta forca que também te reclama ! Lembra-te de que tenho na
mão os nossos dois destinos, que sou insensato, que isto é terrível, que
posso deixar que tudo se perca, pois há por baixo de nós, desgraçada,
um abismo sem fundo onde a minha queda seguirá a tua durante a
eternidade ! Uma palavra generosa, uma palavra ! Uma palavra apenas!
Esmeralda abriu a boca para lhe responder. O padre roj ou-se de
j oelhos diante dela, para recolher com adoração a palavra, talvez enter­
necida, que ia sair dos seus lábios. A donzela disse-lhe:
- Sois um assassino!
O padre agarrou-a entre os braços, com furor, e desatou a rir numa
abominável gargalhada.
- Pois bem, sim, assassino ! - disse ele. - Mas obter-te-ei. Não me que­
res para escravo, mas ter-me-ás como senhor. Possuir-te-ei! Tenho um
esconderijo para onde te vou arrastar. Hás de seguir-me. É deveras pre­
ciso que me sigas ou entrego-te! Minha bela, morrerás ou serás minha !
Ser do padre ! Ser do apóstata ! Ser do assassino! E esta noite, ouves?
Vamos, haja alegria! Vamos, beija-me, tonta ! O túmulo ou a minha cama !
Os olhos cintilavam-lhe de impureza e de raiva. A boca Jasciva
avermelhava o pescoço da pequena. Esta debatia-se-lhe nos braços.
O padre cobria-a de beij os furiosos.

509
- Não me mordas, monstro ! - bradou ela. - Oh, o odioso e infecto
monge ! Deixa-me ! Vou-te arrancar esses malditos cabelos grisalhos e
atirar-tos, aos punhados, à cara !
Cláudio corou, empalideceu e depois largou-a e olhou-a com ar
sombrio. Esmeralda j ulgou ter vencido e continuou:
- Digo-te que sou do meu Febo e é a Febo que amo, é Febo que é
belo! Tu, padre, és velho, és feio! Vai-te !
Ele soltou um grito violento, como o miserável a quem aplicam um
ferro em brasa. Por entre os dentes que rangiam, disse:
- Então, morre !
A cigana viu-lhe o assustador olhar e quis fugir. Ele agarrou-a, sacu­
diu-a, atirou-a ao chão, caminhou a passo rápido para a esquina da
Torre Roland, arrastando-a atrás de si pela calçada, segura pelas mãos.
Quando ali chegou, virou-se para ela:
- Pela última vez: queres ser minha?
Esmeralda respondeu-lhe energicamente:
- Não.
Então Cláudio gritou em alta voz:
- Gúdula ! Gúdula ! Está aqui a egípcia ! Vinga-te!
A j ovem sentiu de repente agarrarem-na pelo pulso. Olhou. Era um
braço descarnado que saía duma fresta na parede e que a segurava
como uma mão de ferro.
- Segura-a bem ! - disse o padre . - É a egípcia que fugiu. Não a lar­
gues. Vou buscar os esbirros. Vê-la-ás enforcar.
Uma gargalhada gutural respondeu de dentro da parede àquelas
sangrentas palavras:
- Ah ! Ah ! Ah !
A cigana viu o padre afastar-se a correr em direção à ponte de Nossa
Senhora. Ouviam-se cavalos para aquelas bandas.
A pequena reconhecera a maldosa reclusa. Aflita de terror, ten­
tou libertar-se. Torceu-se, fez várias contrações de agonia e de deses­
pero, mas a outra segurava-a com inaudita força. Os dedos ossudos
e magros que a martirizavam crispavam-se na carne da rapariga e
fechavam-se como um torno. Dir-se-ia que aquela mão se lhe soldara
ao braço. Era mais do que uma cadeia, mais do que uma golilha, mais
do que um grilhão de ferro, era uma tenaz forte e viva que saía duma
parede.

510
Exausta, a cigana caiu contra o muro e então apoderou-se dela o
receio da morte. Lembrou-se da beleza da vida, da mocidade, da vista
do céu, dos aspetos da natureza, do amor, de Febo, de tudo o que se
afastava e de tudo o que se aproximava, do padre que a denunciava, do
carrasco que ia chegar, da forca que já ali se erguia. Então sentiu que
o pavor subia nela até à raiz dos cabelos e ouviu a gargalhada lúgubre
da reclusa que lhe dizia em voz baixa:
- Ah! Ah ! Ah! Vais ser enforcada.
Esmeralda virou-se para a fresta, como uma moribunda, e viu o rosto
lívido da ensacada, por entre as grades. Quase exânime, perguntou:
- Que mal vos fiz eu?
A reclusa não respondeu e começou a murmurar com uma entoação
cantante, irritada e escarninha:
- Filha do Egito ! Filha do Egito ! Filha do Egito !
A infeliz rapariga deixou de novo cair a cabeça sob os cabelos, per­
cebendo que não estava a lidar com um ser humano.
De súbito, a penitente exclamou, como se a pergunta da cigana
levasse aquele tempo todo para lhe chegar ao cérebro :
- Que me fizeste, dizes tu? . . . Ai, o que me fizeste, egípcia ! Pois bem,
escuta ! . . . Eu tinha uma filha; sim, eu, estás a ver? Tinha uma filha!
Uma filha, digo-to eu! Uma linda menina ! A minha I nês . . . - volveu ela,
exaltada e beijando no escuro uma coisa qualquer. - Pois bem, estás
a ver, filha do Egito? Levaram a minha filha, roubaram a minha filha,
comeram-me a minha filha ! Foi isto o que me fizeste.
A pequena respondeu como o cordeiro:
- Ai, talvez nessa altura ainda, nem fosse nascida ! . . .
- Eras, sim ! - redarguiu a reclusa. - Já devias ter nascido. Devias,
sim. Ela seria da tua idade! Assim ! . . . Há quinze anos que estou para
aqui, há quinze anos que sofro, há quinze anos que rezo, há quinze
anos que bato com a cabeça contra estas quatro paredes. - Digo-te
que foram egípcias que ma roubaram, ouves? E que a comeram com
os seus dentes. Tens coração? Faz ideia do que é uma criança que
brinca , uma criança que mama, uma criança que dorme. Um ser tão
inocente ! . . . Pois bem, foi isso, foi isso que me roubaram, que me mata­
ram ! Nosso Senhor sabe-o muito bem ! . . . H oj e chegou a minha vez e
vou comer uma egípcia. Ai, como eu te morderia bem se as grades mo
não impedissem! Mas tenho a cabeça grande de mais! . . . Pobre criança !

511
Foi enquanto dormia ! E se a acordaram quando a levaram, debalde ela
chorou, pois eu não estava lá! . . . Ah ! Mães egípcias, comestes a minha
filha ! Vinde ver a vossa.
Então desatou a rir ou a ranger os dentes, duas coisas que se asse­
melhavam naquele ente furioso. Começava a romper o dia. Um refluxo
de cinza iluminava vagamente a cena, e a forca tornava-se cada vez
mais nítida na praça. Do outro lado, para as bandas da Ponte de Nossa
Senhora, a pobre condenada j ulgava perceber o tropel de cavalos que
se aproximavam.
- Minha senhora ! - implorou, pondo as mãos e caindo de j oelhos,
desgrenhada, desorientada, louca de terror. - Minha senhora, tende
piedade! Eles aproximam-se. Não vos fiz nada. Quereis ver-me morrer,
ante os vossos olhos, dessa maneira horrível? Tereis piedade, tenho a
certeza. É horrendo de mais. Deixai-me fugir. Largai-me! Misericórdia!
Não quero morrer assim!
- Restitui-me a minha filha! - proferiu a reclusa.
- Misericórdia ! Misericórdia !
- Restitui-me a minha filha!
- Largai-me, em nome do Céu !
- Restitui-me a minha filha!
Desta vez ainda, a rapariga voltou a cair, exausta, quebrada, j á com
o olhar vítreo de alguém que desceu à sepultura. Gaguejou:
- Ai , vós procurais a vossa filha; eu procuro os meus pais.
- Restitui-me a minha pequena ! - prosseguiu Gúdula. - Não sabes
onde ela está? Então, morre! . . . Vou-to dizer. Eu era uma rapariga
leviana. Tive uma filha e levaram-ma. Foram as egípcias. Bem vês que
deves morrer. Quando a tua mãe egípcia te vier reclamar, dir-lhe-ei:
"Mãe, olha para aquela forca ! . . . Ou então restitui-me a minha filha".
Sabes onde está a minha filhinha? Olha o que te vou mostrar. Aqui está
o seu sapato, que é tudo o que dela me resta. Sabes onde está o outro
igual? Se o sabes, dize-mo; nem que seja no outro extremo da terra, irei
buscá-lo, arrastando-me de j oelhos.
Enquanto assim falava, com o outro braço estendido para fora da
fresta mostrava à cigana o sapatinho bordado. Havia já suficiente clari­
dade para se lhe distinguirem a forma e as cores.
- Mostrai-me esse sapato ! - disse a cigana, estremecendo. - Deus!
Deus!

5 12
Ao mesmo tempo, com a mão que lhe ficava livre, abria apressada­
mente o saquinho guarnecido de vidrilhos verdes que trazia ao pescoço.
- Anda ! Anda ! - resmungava Gúdula. - Procura o teu amuleto do
demónio !
De repente calou-se, um estremecimento abalou-a dos pés à cabeça
e bradou com uma voz que vinha do mais profundo das entranhas:
- Minha filha!
A cigana acabara de tirar do saquito um sapatinho absolutamente
igual ao outro. Nesse sapatinho estava preso um pergaminho no qual
se lia:

Quando o igual encontrares,


Tua mãe te estenderá os bra ços.

Mais rápida que o relâmpago, a penitente comparara os dois sapa­


tos, lera a inscrição do pergaminho e, colando às grades da fresta o
rosto radiante de celestial alegria, bradou:
- M inha filha! Minha filha!
- Minha mãe ! - respondeu a cigana.
Aqui desistimos de descrições.
Entre as duas erguiam-se a parede e as barras de ferro. A reclusa
gritou:
- Oh, a parede! Oh, vê-la e não a abraçar! A tua mão ! A tua mão!
A j ovem meteu o braço pela fresta, a reclusa lançou-se sobre essa
mão e colou-lhe os lábios, ficando aniquilada nesse beijo, sem dar mais
qualquer outro indício de vida senão o soluço que de vez em quando
lhe sacudia o corpo. Entretanto, chorava copiosamente, em silêncio, na
sombra, como uma chuva noturna. A pobre mãe despej ava em torren­
tes, sobre aquela adorada mão, o negro e profundo poço de lágrimas
que havia dentro de si e onde todo o seu sofrimento se filtrara gota a
gota, havia quinze anos.
De repente, levantou-se, afastou da testa os longos cabelos grisalhos
e, sem dizer uma palavra, começou a sacudir com as duas mãos, mais
furiosa do que uma leoa, as grades da cela. Estas resistiram. Então foi
procurar a um canto do cubículo um grosso pedregulho que lhe servia
de travesseiro e atirou-o contra os varões com tamanha violência que
um dos ferros se quebrou, proj etando mil faíscas. Segunda pancada

513
destruiu por completo a velha cruz de ferro que barricava a abertura.
Então, com ambas as mãos, acabou por parti-la e afastar os bocados
enferrujados das barras! Há ocasiões em que as mãos duma mulher
possuem força sobre-humana.
Aberta a passagem, e nem um minuto para isso foi preciso, agarrou
na filha pelo meio do corpo e puxou-a para dentro da cela, murmurando:
- Vem ! Hei de libertar-te do abismo !
Assim que teve a pequena no cubículo, colocou-a suavemente no
chão, depois pegou-lhe e , transportando-a nos braços como se conti­
nuasse a ser a querida Inês, andava de um lado para o outro na aca­
nhada cela, inebriada, fora de si, alegre, gritando, cantando, beij ando a
filha, falando-lhe, desatando a rir, desfazendo-se em lágrimas, tudo ao
mesmo tempo e com arrebatamento.
- A minha filha ! A minha filha ! - dizia ela. - Tenho a minha filha ! Ei-la.
Nosso Senhor restituiu-ma. Eh, lá, vocês! Vinde todos! Há alguém aí
para ver que eu tenho a minha filha? Senhor Jesus, como é bonita! Meu
bondoso Deus, fizeste-me esperar por ela quinze anos, mas foi para ma
devolveres mais linda. Afinal, as egípcias não a comeram! Quem foi que
disse isso? Minha filhinha, minha filhinha, beija-me ! Essas boas egíp­
cias! Gosto das egípcias. És deveras tu. Por isso, o coração me pulava de
todas as vezes que aí passavas ! . . . E eu que julgava que era por ódio ! . . .
Perdoa-me, minha Inês, perdoa-me ! Achaste-me muito má, não é ver­
dade? Amo-te. Ainda tens aquele sinalinho no pescoço? Vamos lá ver.
Continuas a tê-lo. Oh, como és bonita ! Fui eu que te dei esses olhos tão
grandes, minha menina. Beij a-me. Quero-te muito. Pouco me importa
que as outras mães tenham filhos, pois agora rio-me delas. Basta cá
virem. Está aqui a minha. Aqui está o seu pescoço, os seus olhos, os seus
cabelos, a sua mão. Descubram-me outra coisa tão bonita como isto. Ah,
garanto-vos que esta vai ter muitos apaixonados! Chorei quinze anos.
Toda a minha formosura desapareceu e passou para ela. Beija-me!
Dirigia-lhe mil outras frases extravagantes, cuja inflexão constituía
toda a sua beleza; desmanchava as roupas da pobre rapariga até fazê-la
corar, alisava-lhe os cabelos de seda com a mão, beijava-lhe o pé, o
joelho, a testa, os olhos, extasiava-se com tudo. A pequena deixava-a
fazer o que ela queria, repetindo, de vez em quando, muito baixo e com
infinita doçura :
- Minha mãe!

5 14
- Estás a ver, minha filhinha - continuava a reclusa, cortando com bei­
jos todas as suas palavras -, estás a ver? Amar-te-ei muito. Ir-nos-emos
daqui para fora. Vamos ser muito felizes. Herdei em Reims, nossa terra,
alguma coisita! Sabes onde é Reims? Ai, não, não o podes saber, pois
eras muito pequena ! Se soubesses como, aos quatro meses, eras linda !
Os pezinhos eram tão pequenos, que as pessoas curiosas vinham vê-los,
de Epernay, distante sete léguas! Meu Deus! Teremos uma quinta e uma
casa. Deitar-te-ei na minha cama. Meu Deus! Meu Deus! Quem é que
acreditaria numa coisa assim? Tenho a minha filha !
- Oh! minha mãe! - disse a rapariga, encontrando finalmente forças
para, no meio da sua comoção, poder falar. - Bem mo dissera a egíp­
cia ! Havia connosco uma bondosa egípcia que morreu o ano passado
e que sempre cuidou de mim como uma ama. Foi ela que me pôs este
saquinho ao pescoço. Andava sempre a dizer-me: "Pequena, guarda
bem esta j oia. É um tesouro. Fará com que encontres a tua mãe. Trazes
a tua mãe ao pescoço. " Bem o predisse a egípcia.
A penitente estreitou mais uma vez a filha nos braços.
- Chega-te, para que te beij e ! Dizes isso com tanta graça ! Quando
estivermos na terra, havemos de calçar o Menino Jesus lá da igreja com
os sapatinhos. Bem o devemos à bondosa e santa Virgem. Meus Deus,
que linda voz a tua ! Parecia música quando, há bocado, estavas a falar!
Ah, meu Deus e Senhor, encontrei outra vez a minha filha ! Mas há quem
acredite nesta história? Não se morre de nada, pois não morri de alegria.
Depois desatou a bater palmas, a rir e a gritar:
- Vamos ser felizes!
Naquele momento ressoou na cela o tinir de armas e um galope
de cavalos que pareciam desembocar da Ponte de Nossa Senhora e
avançar cada vez mais pelo cais. A cigana lançou-se, aflita, nos braços
da reclusa.
- Salvai-me! Salvai-me, minha mãe ! Ei-los que chegam!
Gúdula empalideceu.
- Oh, Céus, que estás a dizer? Esqueci-me de que te perseguem !
Que fizeste então?
- Não sei - respondeu a desgraçada criança -, mas estou condenada
à morte.
- À morte? - exclamou Gúdula, estremecendo como atingida por um
raio. - À morte ! - repetiu devagar, encarando fixamente a filha.

515
- Sim, minha mãe - tornou , desorientada, a rapariga -, querem-me
matar! Aí vêm eles prender-me. Aquela forca é para mim ! Salvai-me,
salvai-me ! Lá vêm eles ! Salvai-me !
A penitente ficou por instantes imóvel, como que petrificada; depois,
abanou a cabeça em sinal de dúvida e, de repente, com uma garga­
lhada, aquela assustadora gargalhada que lhe voltava, proferiu:
- Oh, oh, não! É um sonho que me estás a contar. Pois quê, depois
de a ter perdido há quinze anos, havia de reencontrar-te e ter-te só
durante um minuto? Haviam de me tornar a roubar . . . agora que ela é
formosa, que está crescida, que me fala, que me ama . . . era agora que
ma haviam de vir comer ante os meus olhos, a mim que sou sua mãe?
Oh, não, tais coisas não são possíveis! Nosso Senhor não permite uma
coisa dessas!
Então a cavalgada pareceu parar e ouviu-se uma voz ao longe dizer:
- Por aqui, messire Tristan! O padre disse que a encontraremos na
Toca dos Ratos.
Recomeçou o tropel de cavalos. A reclusa levantou-se com um grito
desesperado:
- Foge, foge, minha filha ! Estou a ver tudo outra vez. Tens razão. É a
tua morte ! Horror ! Maldição ! Salva-te !
Deitou a cabeça de fora da fresta, mas logo apressadamente a
retirou.
- Fica - disse em voz baixa, breve e lúgubre, apertando convulsiva­
mente a mão da cigana, mais morta do que viva. - Fica e nem respires!
Há soldados por toda a parte. Não podes sair. Já é dia claro.
Tinha os olhos secos e ardentes. Ficou por instantes sem dizer
nada. Apenas caminhava a largos passos pela cela e parava de vez
em quando para arrancar punhados de cabelos grisalhos que a seguir
dilacerava com os dentes. De repente, disse:
- Aproximam-se. Vou-lhes falar. Esconde-te nesse canto; não te
verão. Dir-lhes-ei que fugiste, que te larguei, darei a minha palavra de
honra !
Colocou a filha (pois a trazia ainda a o colo) num canto d a cela que
se não via do lado de fora. Fê-la agachar-se, dispô-la cuidadosamente
de forma que nem o pé nem a mão saíssem da sombra, desatou-lhe os
cabelos negros e espalhou-os sobre o vestido branco para a esconder,
colocou-lhe em frente a bilha e a pedra, os únicos móveis que possuía,

516
calculando que essas duas coisas a esconderiam. Feito isso, mais tran­
quila, aj oelhou e pôs-se a rezar. O dia, que apenas despontara minutos
antes, deixava ainda bastantes sombras na Toca dos Ratos.
Naquele momento a voz do padre, aquela voz infernal, soou muito
perto da cela, dizendo:
- Por aqui, capitão Febo de Châteaupers!
Quando ouviu aquele nome e aquela voz, Esmeralda, escondida no
seu canto, mexeu-se. Gúdula disse-lhe:
- Não bulas!
Mal acabada de dizer isto quando um tropel de homens, de espa­
das e de cavalos estacou junto da cela. A mãe pôs-se Jogo em pé e foi
postar-se diante da fresta para a tapar. Viu uma grande multidão de
homens armados, a pé e a cavalo, formados na Greve. O que os coman­
dava saltou para o chão e dirigiu-se para ela. Tinha um semblante atroz
ao dizer-lhe:
- Velha, procuramos uma feiticeira para a enforcar; disseram-nos
que eras tu que a tinhas.
A pobre mãe adotou o ar mais indiferente que pôde e respondeu:
- Não sei bem o que quereis dizer.
O outro exclamou:
- Cum raio ! Que me esteve então a cantar esse desvairado arce­
diago? Onde se meteu ele?
- Senhor - respondeu um soldado -, desapareceu .
- Ouve lá, velha tonta - continuou o comandante. - Não me mintas.
Deram-te uma feiticeira a guardar. Que fizeste dela?
A reclusa não quis negar por completo, com receio de levantar sus­
peitas, pelo que respondeu num tom sincero e aborrecido:
- Se estais falando duma rapariga alta que há bocado me prende­
ram às mãos, dir-vos-ei que me ferrou uma dentada e que a larguei.
Pronto. Deixai-me descansada.
O comandante fez uma careta de deceção e insistiu:
- Não me mintas, velho espectro ! Chamo-me Tristan l'Hermite e sou
compadre do rei. Tristan l'Hermite, estás a ouvir? Olhou a Praça da
Greve que o cercava e acrescentou: - É um nome que tem eco nestas
redondezas.
- Fôsseis Satanás, o Eremita - replicou Gúdula, mais animada -, que
eu não teria outra coisa a dizer-vos nem sentiria medo de vós.

517
- Cos diabos! - exclamou Tristan. - Que comadre esta ! Com que
então a rapariga feiticeira escapuliu-se ! E para que lado abalou?
Gúdula respondeu num tom despreocupado:
- Parece-me que para a Rua do M outon.
Tristan voltou a cabeça e fez sinal ao seu bando para se preparar
para continuar em marcha. A reclusa respirou .
- Senhor - disse de repente um archeiro -, perguntai então à velha
bruxa porque é que tem partidas dessa maneira as grades da sua
fresta?
Esta observação encheu de novo de aflição o coração da pobre mãe.
Não perdeu, todavia, por completo a presença de espírito e gaguej ou:
- Sempre estiveram assim.
- Qual história ! - protestou o archeiro. - Ainda ontem formavam
uma linda cruz preta que até inspirava devoção.
Tristan deitou uma olhadela oblíqua para a reclusa.
- Quer-me parecer que a comadre está atrapalhada !
A infortunada percebeu que tudo dependia do seu sangue-frio e ,
c o m o coração gelado, desatou a rir. A s mães possuem destas energias.
Disse:
- Ora, esse homem está bêbado! Há mais de um ano que as trasei­
ras de uma carroça de pedra chocaram com a minha fresta e me arre­
bentaram com a grade. Bem mas ouviu o carroceiro !
- É verdade - confirmou outro archeiro. - Eu estava aqui.
Encontra-se sempre por toda a parte gente que tudo vê. Este ines­
perado testemunho do archeiro reanimou a reclusa , a quem o interro­
gatório forçava a atravessar um abismo por cima do gume duma faca.
Estava, porém, condenada a uma contínua alternativa de esperança
e de susto.
- Se foi uma carroça que fez isso - insistiu o primeiro soldado -, os
bocados das barras deviam estar metidos para dentro, quando, afinal,
estão espetados para fora.
- Eh ! eh! - gracej ou Tristan para o soldado -, tens faro de inquiridor
do Châtelet. Responde ao que ele disse, velha !
- Valha-me Deus! - exclamou ela , desnorteada e numa voz involun­
tariamente prenhe de lágrimas. - Juro-vos, senhor, que foi uma carroça
que partiu esses ferros. Já ouvistes que aquele homem assistiu a isso.
Demais, que tem o caso que ver com a vossa egípcia?

518
- Hum! - resmungou Tristan.
- Diabo ! - tornou o soldado, lisonj eado pelo elogio do preboste. -
Estão ainda bem frescas as fraturas dos varões!
Tristan abanou a cabeça e a reclusa empalideceu.
- Há quanto tempo disseste que foi isso da carroça?
- Há um mês, há talvez quinze dias, senhor. Já nem sei.
- Primeiro, disse que foi há mais de um ano - observou o soldado.
- Aqui está uma coisa suspeita ! - comentou o preboste.
- Senhor - gritou ela, sempre colada à j anelita e receosa de que as
desconfianças os levassem a meter a cabeça pelo buraco e a olharem
para dentro da cela -, senhor, juro-vos que foi uma carroça que partiu
esta grade. Juro-vos pelos santos anj os do Paraíso. Se não foi uma car­
roça, seja eu condenada às penas eternas e que renegue a Deus!
- Com que calor fazes esse j uramento ! - observou Tristan, com o
seu olhar de inquiridor.
A pobre mulher sentia desfalecer cada vez mais o sangue-frio.
Praticava erros sobre erros e, aterrorizada, compreendia que dizia coi­
sas que mais valia calar.
Então outro soldado apareceu, gritando:
- Senhor, a velha bruxa mente. A feiticeira não fugiu pela Rua do
Mouton. A corrente da rua ficou posta toda a noite e o guarda não viu
passar ninguém.
Tristan, mais sinistro de momento a momento, interpelou a reclusa:
- Que tens a dizer a isto?
Gúdula tentou ainda enfrentar este novo percalço:
- Que não sei, meu senhor. Que me posso ter enganado. Julgo que,
no fim de contas, ela atravessou o rio.
- Para o lado oposto? - comentou o preboste. - Não é muito crível
que quisesse voltar para a Cité, onde lhe moviam caça. Estás a mentir,
velha.
- Além disso - acrescentou o primeiro soldado -, não há barco nem
desta banda da água nem da outra.
- Terá atravessado a nado - replicou a reclusa, defendendo palmo
a palmo o terreno.
- Porventura as mulheres nadam? - estranhou o soldado.
- Raios te partam, velha ! Estás a mentir! Estás a mentir! - bra-
dou, encolerizado, Tristan. - Sinto uma vontade danada de largar essa

519
feiticeira e de te enforcar a ti. Um quarto de hora de tortura talvez te
arranque a verdade do gasganete. Vamos, virás daí connosco!
Gúdula agarrou avidamente nestas palavras.
- Como quiserdes, meu senhor. Está bem. Está bem. Não me importo
com a tortura . Levai-me. Depressa , depressa, partamos imediatamente !
"Entretanto, a minha filha salvar-se-á'', pensava para consigo.
- C'os diabos! - exclamou o preboste. - Que apetite de cavalete! Não
percebo nada desta doida.
Um velho esbirro da ronda, de cabeça grisalha, adiantou-se das
fileiras e dirigiu-se ao preboste:
- Com efeito é doida, senhor! Se largou a egípcia, não teve culpa,
porque ela não gosta das egípcias. Há quinze anos que faço aqui a
ronda e a oiço todas as noites amaldiçoar as mulheres boémias, com
pragas sem fim. Se aquela a quem perseguimos é, segundo julgo, a
dançarinazita da cabra , detesta-a mais do que a qualquer outra.
Com esforço, Gúdula confirmou :
- Principalmente essa.
O unânime testemunho dos homens da ronda confirmou ao pre­
boste as palavras do velho meirinho. Desistindo de arrancar alguma
coisa da reclusa , Tristan l'Hermite voltou-lhe as costas e ela viu-o, com
inexprimível ansiedade, encaminhar-se lentamente para o seu cavalo,
enquanto resmungava entre dentes:
- Vamos, a caminho; voltemos às nossas pesquisas. Não dormirei
enquanto não enforcarem a egípcia.
Não obstante, ainda hesitou alguns instantes antes de montar a
cavalo. Gúdula palpitava entre a vida e a morte ao vê-lo passear à roda
da praça com esse ar inquieto do cão de caça que sente perto de si a
toca do animal e resiste a afastar-se. Por fim abanou a cabeça e saltou
para a sela. O coração de Gúdula, tão horrivelmente apertado, dila­
tou-se e ela disse, em voz baixa, deitando uma olhadela para a filha,
para quem não se atrevera a olhar desde que eles estavam ali:
- Estás salva !
A pobre criança ficara este tempo todo no seu canto, sem respirar,
sem se mover, com a ideia da morte na sua frente. Nada perdera da
cena entre Gúdula e Tristan , e cada uma das aflições da mãe havia-se
repercutido nela. Ouvira os sucessivos estalidas do fio que a manti­
nha suspensa sobre o abismo, convencera-se vinte vezes de que o

520
via quebrar-se, até que, finalmente, começava a respirar e a sentir-se
apoiada em terra firme. Naquele momento ouviu uma voz dizer para
o preboste:
- Cum raio, senhor preboste, a mim, homem de armas, não com­
pete enforcar feiticeiras ! Essa ralé pertence à baixa j ustiça ! Deixo-vos
sozinho com a tarefa. Concordareis certamente que me vá à minha
companhia, pois deixei-a sem capitão.
Esta voz era a de Febo de Châteaupers. Foi inefável o que nela se
passou. Estava pois ali o seu amigo, o seu protetor, o seu amparo, o
seu asilo, o seu Febo ! Esmeralda levantou-se e, antes que a mãe lho
pudesse impedir, atirou-se para a fresta a gritar:
- Febo! Socorro, meu Febo !
Febo já ali não estava. Acabava de dobrar, a galope, a esquina da
Rua de Coutellerie. Tristan, porém, não se fora ainda embora.
A penitente precipitou-se, com um rugido, sobre a filha. Puxou-a
violentamente para trás, enterrando-lhe as unhas no pescoço. Uma
mãe-tigre não mede aquilo que faz. Era, todavia , tarde de mais. Tristan
ouvira.
- Eh ! Eh ! - exclamou com uma gargalhada que lhe descarnava os
dentes todos e lhe assemelhava a cara ao focinho dum lobo. - Dois
ratos na ratoeira !
- Bem me queria parecer. . . - comentou o soldado.
Tristan bateu-lhe no ombro:
- És um bom gato ! . . . Vamos - acrescentou -, onde está o Henriet
Cousin?
Um homem que não tinha nem traj o nem aspeto de soldado saiu
das fileiras, Envergava uma farpela meio cinzenta, meio castanha,
cabelos lisos, mangas de cabedal e, na mão calosa, segurava um rolo
de cordas. Era o homem que acompanhava sempre Tristan, o qual
acompanhava sempre Luís XI.
- Amigo - disse Tristan l'Hermite -, quer-me parecer que está ali a
feiticeira de que andamos à procura. Vais-me enforcar aquilo. Trouxeste
a tua escada?
- Há acolá uma, debaixo do alpendre da Maison-aux-Pilliers - res­
pondeu o sujeito. - É naquele patíbulo que faremos a coisa? - aj untou,
apontando para a forca de pedra.
- É.

52 1
- Ah ! ah! - motej ou o homem, numa estrepitosa gargalhada, ainda
mais bestial do que a do preboste. - Não teremos muito que andar. . .
- Despacha-te ! - ordenou Tristan. - Rir-te-ás depois.
Entretanto, desde que Tristan lhe vira a filha e que ela perdera
por completo as esperanças, a reclusa não pronunciara ainda uma
só palavra . Atirara com a pobre cigana, semimorta, para um canto e
voltara para a fresta , apoiando as duas mãos no rebordo do entabla­
mento, como se fossem duas garras. Nesta postura , viam-na passear
intrepidamente o olhar sobre todos aqueles soldados, olhar esse que
se tornara feroz e desvairado. No momento em que H enriet Cousin se
aproximou do cubículo, mostrou-lhe tal expressão selvagem, que ele
recuou.
Voltou a consultar o preboste:
- Senhor, qual se deve prender?
- A nova.
- Ainda bem ! Porque a velha parece-me difícil . . .
- Pobre dançarinita da cabra ! - lamentou o velho meirinho da ronda.
Henriet Cousin voltou a aproximar-se da fresta. O olhar da mãe obri-
gou-o a baixar o seu. Com a maior timidez, disse:
- Senhora . . .
A penitente interrompeu-o numa voz muito baixa e furiosa :
- Que procuras?
- Não é a vós - respondeu ele. - É à outra.
- Qual outra?
- A nova.
Gúdula desatou a sacudir a cabeça e a gritar:
- Não está aqui ninguém ! Não está aqui ninguém ! Não está aqui
ninguém !
- Está ! - redarguiu o carrasco. - Sabeis isso muito bem. Deixai-me
prender a jovem. A vós não pretendo fazer mal.
A penitente retorquiu-lhe com uma gargalhada estranha:
- Ah, a mim não me pretendes fazer mal ! . . .
- Deixai-me a outra, senhora; é ordem do senhor preboste. Numa
inflexão de demência, a reclusa repetiu:
- Não está aqui ninguém !
- Já vos disse que sim ! - replicou o carrasco. - Todos vimos que
éreis duas.

522
- Olha então! - convidou-a, escarninha. - Enfia a cabeça pela fresta.
O carrasco examinou as unhas da mãe e não se atreveu.
- Despacha-te ! - bradou Tristan, que acabava de dispor a sua tropa
em círculo em volta da Toca dos Ratos e se conservava a cavalo j unto
da forca.
Muito atrapalhado, Henriet foi mais uma vez ter com o preboste.
Poisou a corda no chão e, com ar acanhado, dava voltas ao chapéu
entre as mãos.
- Senhor, por onde se há de entrar? - perguntou.
- Pela porta.
- Não há.
- Pela janela.
- É apertada de mais.
- Alarga-a - ordenou, encolerizado, Tristan. - Não tens alviões? Do
fundo do seu antro, a mãe, sempre de atalaia, observava. Não contava
com mais coisa nenhuma, já nem sabia o que queria, mas não desejava
que lhe levassem a filha.
Henriet Cousin foi buscar a caixa de ferramenta das baixas obras ao
alpendre da Maison-aux-Pilliers. Trouxe também a escada dupla que
encostou imediatamente à forca. Cinco ou seis homens do prebostado
armaram-se de picaretas e de alavancas, e Tristan dirigiu-se com eles
para a fresta.
- Velha - ordenou, em tom severo, o preboste -, entrega-nos, sem
mais delongas, essa rapariga.
A interpelada olhou para ele como se o não percebesse, e Tristan
tornou:
- Cum raio! Porque hás de obstar a que essa feiticeira seja enfor-
cada como é vontade do rei?
A mísera desatou a rir na sua enfurecida gargalhada e respondeu:
- Porque hei de obstar? É minha filha.
A inflexão com que proferiu essa palavra fez estremecer o próprio
Henriet Cousin.
- Sinto muito - retorquiu o preboste. - Mas é essa a vontade do rei.
A reclusa, rindo ainda de maneira mais estridente e horrível, afir­
mou então:
- Quero cá saber do teu rei ! Já te disse que é minha filha.
- Arrombai a parede - ordenou Tristan.

523
Bastava, para abrir uma passagem suficientemente larga, deslocar
uma fiada de pedras por baixo da janela. Assim que a mãe ouviu as pica­
retas e as alavancas minarem-lhe a fortaleza , soltou um grito arrepiante,
depois desatou às voltas, com espantosa rapidez, em torno da cela, cos­
tume de animal feroz que a jaula lhe criara. Já não dizia nada, mas os
olhos flamejavam-lhe. Os soldados estavam enregelados no fundo do
coração.
De repente, ela agarrou na pedra que lhe servia de travesseiro, riu-se
e, com ambas as mãos, atirou-a contra os trabalhadores. A pedra, mal
lançada devido à tremura das mãos, não atingiu ninguém e foi rolar
por baixo do cavalo de Tristan. Gúdula rangeu os dentes.
Durante este lapso de tempo, embora ainda não tivesse rompido o
sol, já fazia dia claro e uma bonita tonalidade cor-de-rosa animava as
velhas chaminés carcomidas da Maison-aux-Pilliers. Era a hora a que
as janelas mais madrugadoras da grande cidade se escancaram ale­
gremente nos telhados. Alguns rústicos, alguns vendedores de fruta,
dirigiam-se nos burros para os mercados, começando a atravessar a
Greve onde se detinham um momento ante aquele grupo de soldados
amontoados em volta da Toca dos Ratos e que eles observavam com ar
aparvalhado, para seguirem depois à sua vida.
A penitente fora-se sentar à frente da filha, cobrindo-a com o corpo,
com o olhar fixo, a ouvir a pobre criança imóvel e que, como única
palavra , apenas murmurava em voz baixa :
- Febo ! Febo !
À medida que o trabalho dos demolidores parecia avançar, a mãe recu­
ava maquinalmente e apertava cada vez mais a rapariga contra a parede.
De súbito, a reclusa viu a pedra (pois fazia sentinela e não a largava
de vista) oscilar e ouviu a voz de Tristan encorajar os trabalhadores.
A mulher saiu então do torpor em que caíra havia momentos e excla­
mou, numa voz que ora dilacerava o ouvido como uma serra, ora bal­
buciava , como se todas as maldições se lhe comprimissem nos lábios
para rebentarem ao mesmo tempo:
- Oh! Oh! Oh! Isto é horrível! Sois uns bandidos! Vindes realmente
buscar-me a filha? Já vos disse que ela é minha filha ! Oh, cobardes!
Oh, lacaios! Carrascos! Miseráveis assassinos! Socorro ! Socorro ! Fogo!
Mas eles vão-me levar assim a minha filha? Que vem a ser isso a que
chamam o Deus de bondade?

524
Voltou-se então para Tristan, furiosa, olhar desvairado, de gatas
como uma pantera e toda ela eriçada:
- Chega-te aqui para me levares a minha filha ! Não compreendes
que esta mulher te disse que ela é a sua filha ! Sabes o que é uma
criança que é nossa? Eh, lobo-cerval, nunca passaste uma noite com
a tua loba? Nunca tiveste um lobinho? E, se tens crias, quando elas
uivam não sentes porventura mexer nada dentro de ti?
- Deitai abaixo a pedra - ordenou Tristan. - Já não se aguenta .
As alavancas levantaram a pesada laj e . Já dissemos que se tra­
tava da derradeira proteção da mãe. Esta atirou-se-lhe para cima, quis
segurá-la, arranhou a pedra com as unhas, mas o maciço bloco, des­
locado por seis homens, escapou-se-lhe e deslizou suavemente até o
chão, ao longo das alavancas de ferro.
Quando a mãe viu a passagem franqueada, caiu atravessada diante
da abertura, barricando-a com o corpo, torcendo os braços, batendo na
laje com a cabeça e gritando numa voz tão enrouquecida pelo cansaço,
que mal se ouvia:
- Socorro ! Fogo! Fogo !
- Agarrai agora a rapariga - ordenou Tristan, sempre impassível.
A mãe olhou para os soldados numa expressão tão formidável, que
eles sentiram mais vontade de recuar do que de avançar.
- Então, vamos! - repetiu o preboste. - Anda, Henriet Cousin!
Ninguém se moveu.
O preboste praguejou:
- Cum raio, os meus homens de guerra com medo de uma mulher!
- Senhor - observou Henriet -, chamais àquilo uma mulher?
- Tem juba de leão ! - comentou outro.
- Vamos! - insistiu o preboste. - É suficientemente larga a entrada.
Avançai por ela ao mesmo tempo, como na brecha de Pontoise.
Acabemos, com isto, c'os diabos ! Racho em dois o primeiro que recuar!
Colocados entre o preboste e a mãe, qualquer deles ameaçador, os
soldados hesitaram um instante e depois, resolutos, avançaram para a
Toca dos Ratos.
Assim que a penitente viu aquilo, ergueu-se de chofre sobre os joe­
lhos, afastou os cabelos do rosto, depois deixou cair as mãos magras e
esfoladas em cima das coxas. Então, grossas lágrimas tombaram a uma
e uma dos olhos e desceram por uma ruga ao longo das faces, como

525
uma torrente pelo leito que cavara. Ao mesmo tempo desatou a falar,
mas num tom tão implorativo, tão doce, tão submisso e tão pungente
que no séquito de Tristan mais de um velho beleguim, capaz de comer
carne humana, enxugava os olhos.
- Senhores ! Senhores soldados, uma palavra ! Há uma coisa que
tenho de vos dizer. Ela é minha filha, não estais a ver? A minha que­
rida filhinha que eu perdera . Escutai! É uma história. I maginai que eu
conheço muito bem os senhores soldados. Sempre foram bons para
mim quando os garotitos me atiravam pedras porque eu me dedi­
cava à vida do amor. Estais a ver? Quando souberdes, deixar-me-eis a
minha filha ! Sou uma pobre mulher da vida. As boémias roubaram-ma,
embora eu conservasse durante quinze anos o seu sapato. Olhai, está
acolá . Ela tinha um pé assim. Em Reims! A Chantefleurie! Na Rua do
Louco Penar! Talvez conhecêsseis. Era eu. Na vossa mocidade . . . Bons
tempos esses ! Passavam-se lá ricos quartos de hora. Tereis piedade
de mim, não é verdade, senhores? As egípcias roubaram-ma e escon­
deram-na durante quinze anos. Julgava-a morta. Calculai, meus bons
amigos, que eu supunha-a morta ! Passei aqui quinze anos, neste sub­
terrâneo, sem lume no inverno. Isto é duro. O pobre e querido sapati­
nho! Tanto chorei, que Nosso Senhor ouviu-me. Esta noite restituiu-me
a minha filha. É um milagre de Nosso Senhor. Não estava morta. Não
ma levareis, tenho a certeza. Ainda se fosse eu, está bem, mas ela, uma
criança de dezasseis anos! Dai-lhe tempo para que vej a o Sol ! Que mal
vos fez ela? Absolutamente nenhum. Eu também não. Se soubésseis
que só a tenho a ela , que estou velha, que é uma bênção que a Santa
Virgem me manda ! Além disso sois todos tão bons! Não sabíeis que
era minha filha, mas agora já sabeis. Oh, como eu lhe quero ! Senhor
e grande preboste, antes queria um buraco nas minhas entranhas do
que um arranhão num dedo dela ! Vós tendes um aspeto tão bondoso,
senhor! O que vos estou a dizer explica tudo, não é verdade? Oh, se vós
tivestes uma mãe, senhor, vós que sois o capitão, deixai-me a minha
filha ! Reparai que vos imploro de j oelhos como se reza a Jesus Cristo !
Não peço nada a ninguém. Sou de Reims, senhor. H erdei uma terrazita
de meu tio Mahiet Pradon. Não sou uma indigente. Não quero nada,
só quero a minha filha ! Oh, quero conservar a minha filha. O bondoso
Deus Nosso Senhor não ma devolveu sem um motivo. O rei ! Dizeis o
rei ! Ele não há de gostar que matem a minha filha ! O rei é bom ! É a

526
minha filha ! A minha filha ! Pertence-me ! Não é do rei ! Não é vossa !
Quero-me ir embora ! Queremo-nos ir embora ! Enfim, duas mulheres
que passam, uma é a mãe e a outra a filha, deixem-nos passar! Dei­
xais-nos seguir! Somos de Reims. Sois muito bons, senhores soldados,
quero-vos muito a todos. Não me levareis a minha querida pequena,
isso é impossível! Não, é verdade que é absolutamente impossível?
A minha filha ! A minha filha!
Não tentaremos dar uma ideia dos seus gestos, da sua inflexão, das
lágrimas que sorvia enquanto falava, das mãos que j untava e depois
torcia, dos sorrisos dolorosos, dos olhares profundos, dos gemidos,
dos suspiros, dos gritos míseros e lancinantes que misturava com as
palavras desordenadas, loucas e desconexas. Quando se calou, Tristan
l'Hermite franziu as sobrancelhas, mas foi, para esconder uma lágrima
que rebolava do seu olho de tigre. Todavia, venceu essa fraqueza e
disse num tom seco:
- É a vontade do rei.
De seguida, inclinou-se para o ouvido de Henriet Cousin e disse-lhe
em voz muito baixa:
- Acaba depressa !
O temível preboste sentia também que até a ele o coração fraquej ava.
O carrasco e os esbirros entraram no cubículo. A mãe não ofere-
ceu qualquer resistência, limitou-se a arrastar-se para j unto da filha
e a atirar-se, desesperada, para cima dela. A cigana viu os soldados
aproximarem-se. O horror da morte reanimou-a e, numa inexprimível
inflexão de angústia, bradou:
- Minha mãe! Minha mãe! Cá estão eles! Defendei-me!
- Sim, meu amor, defendo-te ! - respondeu a mãe, numa voz extinta;
e, apertando-a estreitamente entre os braços, cobriu-a de beij os.
As duas assim no chão, a mãe resguardando a filha, formavam um
espetáculo digno de piedade.
Henriet Cousin agarrou na pequena pelo meio do corpo, sob os for­
mosos ombros. Quando ela sentiu aquela mão, soltou um grito e des­
maiou. O carrasco, que deixava cair gota a gota grossas lágrimas sobre
ela, quis levá-la ao colo. Tentou desprendê-la da mãe que, por assim
dizer, amarrara as duas mãos em volta da cintura da filha; mas estava
tão segura, que foi impossível separá-las. Henriet Cousin arrastou então
a j ovem para fora da cela, com a mãe atrás. Esta ia de olhos fechados.

527
Surgiu o Sol naquele momento e aglomerava-se já na praça bas­
tante povo que observava de longe o que assim era arrastado pelo
lajedo em direção à forca. Era este o costume do preboste Tristan nas
execuções. Ele tinha a mania de impedir a proximidade dos curiosos.
Não havia ninguém nas j anelas. Só ao longe se avistavam, no alto
da torre de Nossa Senhora que fica sobranceira à Greve, dois homens
recortados a preto sobre o céu claro da manhã e que pareciam muito
atentos.
H enriet Cousin parou com o que arrastava para j unto da escada
fatal e, respirando a custo, tanto aquilo o impressionava, passou a
corda em volta do adorável pescoço da rapariga. A desgraçada criança
sentiu o horrível contacto do cânhamo. Levantou as pálpebras e viu o
braço descarnado da forca de pedra estendido por cima da sua cabeça.
Então contorceu-se e gritou numa voz forte e dilacerante:
- Não! Não ! Não quero !
A mãe, com a cabeça escondida e perdida sob os vestidos da filha,
não articulou uma palavra; apenas lhe viram estremecer o corpo todo
e ouviram-na multiplicar os beijos na filha. O carrasco aproveitou esse
momento para desprender rapidamente os braços com que ela estrei­
tava a condenada. Fosse pela fadiga ou pelo desespero, a mãe não se
opôs. Então o verdugo deitou a rapariga ao ombro, de onde a encan­
tadora criatura pendia graciosamente, dobrada em duas, sobre a sua
enorme cabeça. Depois poisou o pé na escada para subir.
Naquele momento, a mãe, acocorada no lajedo, abriu muito os
olhos. Sem soltar um só grito, empertigou-se com uma terrível expres­
são e, depois, como uma fera contra a presa, lançou-se sobre a mão do
carrasco e mordeu-a. Foi como que um relâmpago. O verdugo bramiu
de dor. Todos acorreram. A custo lhe arrancaram a mão ensanguentada
de entre os dentes da mãe. Esta conservava-se em profundo silêncio.
Empurraram-na brutalmente e notaram que a sua cabeça caía pesada­
mente na calçada. Levantaram-na. Deixou-se cair outra vez. É que ela
estava morta.
O carrasco, que não largara a rapariga, recomeçou a subir a escada.

528
II

" LA CREATURA BELLA BIANCO VESTITA"


(Dante)

Quando Quasímodo viu a cela vazia, que a cigana j á ali não


estava, que, enquanto ele a defendia, a tinham roubado, agarrou os
cabelos com as mãos ambas e bateu os pés de espanto e de sofri­
mento. A seguir, desatou a correr por toda a igrej a , à procura da sua
boémia, urrando em estranhos g ritos por todos os recantos e seme­
ando os seus cabelos ruivos pelo chão. Era precisamente na altura
em que os archeiros do rei entravam vitoriosos em N ossa Senhora ,
também à procura da cigana. S e m desconfiar d o s seus fatais inten­
tos, Quasímodo, o pobre surdo, aj udou-os, convencido de que eram
os vadios os inimigos da egípcia. Acompanhou pessoalmente Tristan
l'Hermite a todos os esconderij os possíveis, abriu-lhe as portas secre­
tas, os fundos falsos do altar, as traseiras das sacristias. Estivesse
lá a infeliz e seria ele quem a entregaria. Quando estafado de não
encontrar coisa nenhuma desanimou Tristan , que não desistia facil­
mente, Quasímodo continuou sozinho a procurá-la. Percorreu vinte
vezes, cem vezes, a igrej a, de uma ponta a outra, de cima a baixo,
subindo, descendo, correndo, chamando, gritando, farej ando, esqua­
drinhando, explorando, metendo a cabeça por todos os buracos,
levando uma tocha por todas as abóbadas, desesperado, doido. Não
é mais furioso nem mais desorientado o macho que perdeu a fêmea.
Quando ficou, finalmente, convencido, convencido por completo, de
que ela j á não estava ali, de que, evidentemente, lha haviam rou­
bado, subiu lentamente a escada das torres, a mesma escada que
com tanto entusiasmo e triunfo escalara no dia em que a salvara .

529
Tomou a passar pelos mesmos sítios, de cabeça pendida, sem voz,
sem lágrimas, quase sem alento.
Estava de novo deserta a igrej a e outra vez mergulhada no seu silên­
cio. Os archeiros tinham-na abandonado para irem cercar a feiticeira na
Cité. Quasímodo, sozinho naquela vasta Nossa Senhora, tão assediada
e tão tumultuosa momentos antes, retomou o caminho da cela onde a
cigana tantas semanas dormira sob a sua vigilância. Ao aproximar-se
daquele ponto, ia a fantasiar que talvez já a lá encontrasse. Quando,
ao virar a galeria que dá para o telhado das naves laterais, avistou o
estreito cubículo com a sua j anelinha e acanhada porta, escondido sob
um grande botaréu , como um ninho de pássaros debaixo dum ramo,
faltou-lhe de todo a coragem e teve de se apoiar a uma coluna para não
cair. Imaginou que talvez ela tivesse voltado, que um bom génio sem
dúvida a teria trazido, que aquela celazinha era bastante sossegada,
bastante segura e bastante graciosa para que a j ovem não estivesse
ali, e não se atrevia a dar um passo mais, com medo de quebrar essa
ilusão. Dizia para consigo:
"Sim, talvez esteja a dormir ou a rezar. Não a incomodemos."
Finalmente, armando-se de toda a sua coragem, avançou nos bicos
dos pés, olhou, entrou. Vazia ! A cela continuava vazia. O infeliz surdo,
a passo lento, deu a volta ao recinto, levantou a cama e espreitou
por baixo, como se a rapariga se pudesse esconder entre o laj edo e
o colchão. Depois, abanou a cabeça e ficou como que embrutecido.
De súbito, esmagou furiosamente a tocha com o pé e, sem dizer uma
palavra, sem soltar um suspiro, precipitou-se velozmente de cabeça
contra a parede e caiu desmaiado no chão.
Quando voltou a si, atirou-se para a cama, rebolou-se nela, beijou
com frenesi o lugar ainda tépido onde a rapariga dormira, ficou por
minutos imóvel como se fosse ali render o último suspiro e depois tor­
nou a levantar-se, escorrendo em suor, ofegante, desvairado, e pôs-se
outra vez a bater com a cabeça pelas paredes com a terrível regulari­
dade do badalo dos seus sinos e a decisão do homem que a quer des­
pedaçar. Por fim, caiu segunda vez, esgotado. Arrastou-se de j oelhos
para fora da cela e agachou-se em frente da porta, numa atitude de
surpresa. Assim permaneceu mais de uma hora, sem fazer um movi­
mento, com o olhar colado na cela deserta, mais sombrio e mais pensa­
tivo do que uma mãe sentada entre um berço vazio e um caixão cheio.

530
Não pronunciou uma palavra; apenas, com prolongados intervalos, um
soluço sacudia-lhe violentamente o corpo todo, mas um soluço sem
lágrimas, como esses relâmpagos de verão que não provocam ruído.
Parece que foi então que, ao procurar no fundo da sua desolada medi­
tação, lhe veio à mente quem podia ser o inesperado raptor da cigana,
se lembrou do arcediago. Recordou-se de que D. Cláudio era o único
que possuía uma chave da escada que conduzia à cela. Lembrou-se
das suas tentativas noturnas contra a donzela, a primeira das quais ele,
Quasímodo, auxiliara, e a segunda impedira. Acudiram-lhe à memó­
ria mil pormenores e não lhe restaram mais dúvidas de que fora o
arcediago quem lhe levara a egípcia. Era, contudo, tão grande o seu
respeito pelo padre, o reconhecimento, a dedicação, o amor por esse
homem tinham ganho raízes tão fundas no seu coração, que resistiam,
mesmo naquele momento, às garras do ciúme e do desespero.
Pensava que fora o arcediago quem fizera aquilo, e a sangrenta
cólera e desejo de morte que experimentaria contra qualquer outro,
transformava-se no pobre surdo num acréscimo de sofrimento, desde
que se tratava de Cláudio Frollo.
No momento em que o seu pensamento se fixava assim no sacer­
dote, a madrugada, ao embranquecer os botaréus, deparou-lhe no
andar superior de Nossa Senhora, no cotovelo formado pela balaus­
trada exterior que envolve a abside, um vulto a caminhar. Esse vulto
dirigia-se para o lado dele. Reconheceu-o. Era o arcediago. Cláudio
vinha a passo lento e solene. Não olhava em frente, dirigia-se para
a torre setentrional , mas levava o rosto voltado de lado, para a mar­
gem direita do Sena, e a cabeça erguida, como quem procura qualquer
coisa por cima dos telhados. O mocho exibe por vezes esta atitude
oblíqua. Voa para um lado e olha para outro. Assim, o padre passou por
Quasímodo sem o ver.
Petrificado por esta inesperada aparição, o surdo viu-o enfiar pela
porta da escada da torre norte. O leitor já sabe que é esta a torre de
onde se avista a Câmara Municipal. Quasímodo levantou-se e foi atrás
do arcediago.
Subiu, por subir, a escada da torre e por saber que o padre a subia
também. Demais, o pobre sineiro não sabia o que faria, diria ou que­
ria. Estava cheio de raiva e de receio. O arcediago e a cigana deba­
tiam-se-lhe no seu coração.

53 1
Logo que atingiu o alto da torre, antes de sair da sombra da escada
e de passar para a plataforma, observou cautelosamente onde o padre
estava. Este voltava-lhe as costas. Há uma plataforma rendilhada que
cerca o campanário. O sacerdote, com os olhos mergulhados na cidade,
apoiara o peito a um dos quatro lados dessa balaustrada, voltado para
a Ponte de Nossa Senhora .
Quasímodo aproximou-se p o r detrás, em pezinhos de lã, para ver o
que o outro assim observava. Aliás, o padre estava com a atenção de tal
modo absorvida, que nem ouviu os passos do surdo perto dele.
Magnífico e encantador espetáculo o de Paris, sobretudo o de
Paris desse tempo, desfrutado de cima das torres de Nossa Senhora,
no fresco alvor duma madrugada de verão. Aquele dia podia ser de
julho. Um céu completamente sereno. Algumas estrelas retardatárias
apagavam-se em sítios diversos e havia uma muito brilhante a nas­
cente, no ponto mais claro do céu . Era a hora do romper do Sol . Paris
começava a agitar-se. Uma luz muito branca e muito límpida fazia
ressaltar nitidamente à vista todos os planos que as suas mil casas
apresentam a nascente. A sombra gigante das torres ia de telhado em
telhado, dum extremo ao outro da grande cidade. Nos bairros havia
já quem falasse e quem fizesse barulho. Aqui um toque de sino, além
uma martelada. Lá em baixo, o complicado chocalhar duma carroça
que rodava. Já num ponto e noutro se elevavam nuvens de fumo por
toda essa superfície de telhados, tais como as fendas duma imensa
sulfatara . O rio, cuj a água se enruga nos arcos de tantas pontes, na
ponta de tantas ilhas, ia todo ondulado de pregas de prata. Em redor
da cidade, para além das muralhas, a vista perdia-se num enorme
circulo de vapores flocosos, por entre os quais confusamente se per­
cebia a linha indefinida das planícies e o gracioso contorno das coli­
nas. Toda a espécie de rumores flutuantes se dispersava sobre aquela
cidade semiacordada. Para oriente, o vento da manhã expulsava, pelo
céu fora , alguns brancos flocos de algodão em rama, arrancados ao
velo de brumas dos montes.
No adro, umas boas mulheres, levando na mão a bilha do leite,
apontavam com espanto os singulares estragos da porta principal de
Nossa Senhora e os dois riachos de chumbo coagulado entre as fendas
da cantaria. Era tudo o que restava do tumulto dessa noite. Apagara-se
a fogueira acesa por Quasímodo entre as torres. Tristan já mandara

532
desobstruir a praça e lançar os mortos ao Sena. Os reis como Luís XI
têm o cuidado de lavar depressa o chão depois duma carnificina.
Do lado de fora da balaustrada da torre, precisamente por baixo do
ponto onde se detivera Cláudio Frollo, havia uma dessas goteiras de
pedra, fantasticamente esculpidas, que eriçam os edifícios góticos, e,
numa anfractuosidade dessa goteira, dois lindos goivos em flor, sacudi­
dos e como que animados de vida pela brisa, saudavam-se em alegres
cumprimentos. Por cima das torres, lá no alto, bem longe e no fundo
do céu, ouvia-se o pipilar de pássaros.
O padre, porém, não ouvia nem via nada disso. Era desses homens
para quem não há manhãs, nem pássaros, nem flores. Nesse horizonte
imenso, que à sua volta assumia tantos aspetos, contemplava apenas
um único ponto.
Quasímodo estava ansioso por lhe perguntar o que fizera da egíp­
cia. O arcediago, porém, não parecia, naquela altura, pertencer a este
mundo. Mergulhara visivelmente num desses violentos minutos da
vida em que nem sentiria a terra afundar-se. Com os olhos invariavel­
mente cravados em determinado sítio, mantinha-se imóvel e calado;
e esse silêncio e essa imobilidade continham qualquer coisa de tão
temível, que o selvático sineiro estremecia e não se atrevia a aproxi­
mar-se. Somente - e isso foi também maneira de interrogar o arcediago
- seguiu a direção do seu raio visual e, deste modo, o olhar do desgra­
çado surdo caiu sobre a Praça de Greve.
Viu assim o que o padre observava. A escada estava encostada
à forca permanente; na praça havia algum povo e muitos soldados.
Um homem arrastava pelo chão uma coisa branca, com uma coisa
preta agarrada. Esse homem parou ao pé da forca.
Aqui passou-se qualquer coisa que Quasímodo não viu bem. Não
porque o seu único olho não mantivesse o seu longo alcance, mas por­
que um magote de soldados o impediam de distinguir fosse o que fosse.
Para mais naquele instante rompeu o Sol e sobre o horizonte trasbordou
tal jorro de luz, que era caso para dizer que se tinham incendiado ao
mesmo tempo todos os cimos de Paris: flechas, claraboias e empenas.
Entretanto, o homem começou a subir a escada. Nesse momento,
Quasímodo viu perfeitamente. Levava uma mulher ao ombro, uma
rapariga vestida de branco, e essa rapariga tinha um nó no pescoço.
Quasímodo reconheceu-a. Era ela.

533
Deste modo, o homem atingiu o cimo da escada. Ali arranj ou-lhe
melhor o nó do pescoço. Nesta altura o padre, para ver melhor, pôs-se
de j oelhos em cima da balaustrada.
De súbito, o homem repeliu bruscamente a escada com o calca­
nhar, e Quasímodo, que havia instantes já não respirava, viu baloiçar
do extremo da corda, a duas toesas acima do solo, a desgraçada criança
com o homem de pés assentes sobre os ombros dela. A corda des­
creveu várias voltas sobre si mesma e Quasímodo viu correr horríveis
convulsões ao longo do corpo da cigana. Por seu lado, o padre, de pes­
coço esticado, os olhos a saltarem-lhe das órbitas, contemplava aquele
grupo arrepiante do homem e da donzela, da aranha e da mosca.
No momento em que o espetáculo era mais horrível, uma garga­
lhada de demónio, uma gargalhada que só se pode soltar quando já se
não é homem, explodiu no rosto lívido do padre. Quasímodo não ouviu
essa gargalhada, mas viu-a. O sineiro recuou alguns passos para detrás
do arcediago e, de repente, lançando-se furioso contra ele, com as suas
duas grossas mãos empurrou-o pelas costas para o abismo sobre o
qual D. Cláudio se debruçava.
O padre, antes de cair, gritou:
- Maldição !
A goteira por cima da qual se encontrava deteve-o na queda.
Agarrou-se a ela com mãos desesperadas e, no momento em que
abriu a boca para soltar segundo grito, viu debruçar-se no rebordo da
balaustrada, por cima da sua cabeça, a figura imóvel e vingativa de
Quasímodo. Então, calou-se.
Por baixo dele abria-se o abismo. Uma queda de mais de duzen­
tos pés e o solo. Nessa terrível emergência, o arcediago não proferiu
uma palavra, não soltou um gemido; limitou-se a contorcer-se sobre a
goteira, envidando inauditos esforços para subir. As mãos, porém, não
se agarravam ao granito e os pés riscavam a muralha escurecida, sem
lhe penetrarem . As pessoas que subiram às torres de Nossa Senhora
sabem que existe uma intumescência de pedra logo por baixo da
balaustrada. Era nesse ângulo reentrante que o miserável arcediago se
esfalfava. Não tinha sob os pés uma parede a pique, mas uma parede
que fugia debaixo dele.
Para o salvar do abismo, bastava que Quasímodo lhe estendesse a
mão, mas este nem o olhava. Só tinha olhos para a Greve, contemplava

534
a forca, observava a cigana. O surdo debruçara-se da balaustrada no
ponto onde momentos antes se encontrava Cláudio Frollo, e ali, sem
desprender a vista do único objeto que naquela altura existia no mundo
para ele, conservava-se imóvel e silencioso como um homem fulmi­
nado, enquanto um longo riacho de pranto corria mudamente daquele
olho que até então não vertera uma única lágrima.
Entretanto o arcediago arquej ava. Da fronte calva escorria-lhe o
suor. As unhas sangravam-lhe na pedra, os j oelhos esfolavam-se-lhe
na parede. Ouvia a batina, presa à goteira, estalar e descoser-se a cada
sacudidela que lhe dava. Para cúmulo da pouca sorte, essa goteira
acabava num cano de chumbo que se vergava sob o peso do seu
corpo. O arcediago sentia esse cano vergar-se lentamente. Pensava o
miserável que, quando as suas mãos estivessem quebradas de fadiga,
quando se lhe tivesse rasgado por completo a sotaina, quando aquele
chumbo se dobrasse, ele cairia fatalmente e o pavor apossava-se-lhe
das entranhas. À s vezes olhava alucinado para uma espécie de estreita
platibanda formada, a uns dez pés mais abaixo, pelos acidentes da
escultura e, do fundo da sua angustiada alma, pedia ao Céu que lhe
consentisse acabar a vida naquele espaço de dois pés quadrados, nem
que essa vida tivesse de durar cem anos. De uma vez olhou para baixo,
para a praça, para o abismo e, quando tornou a levantar a cabeça,
tinha os olhos fechados e os cabelos em pé.
Havia qualquer coisa de pavoroso no mutismo daqueles dois
homens. Enquanto o arcediago, a poucos pés dele, agonizava daquela
horrenda maneira, Quasímodo chorava de olhos na Greve.
Quando o arcediago verificou que todas as suas contrações só con­
corriam para abalar o frágil ponto de apoio que lhe restava, decidiu
não se mexer mais. Para ali ficou, abraçado à goteira , mal respirando,
não voltando a mexer-se, sem outro movimento além dessa maquinal
convulsão do ventre que sentimos em sonhos quando temos a impres­
são de estarmos a cair. Os seus olhos fixos estavam abertos de uma
forma doentia e alucinada. Entretanto, a pouco e pouco ia perdendo
terreno, os dedos escorregavam-lhe pela goteira. Sentia aumentar-lhe
cada vez mais a fraqueza dos braços e o peso do corpo, enquanto o
chumbo que o aguentava se inclinava, a cada instante, um pouco
mais para o abismo. Via por baixo dele, num pavoroso espetáculo, o
telhado de Saint-Jean-le-Rond, pequeno como um cartão dobrado em

535
dois. Olhava sucessivamente para as impassíveis esculturas da torre,
suspensas como ele sobre o precipício, mas sem terror por elas nem
compaixão por ele. À sua volta, tudo era pedra : ante os seus olhos, os
monstros hiantes; mesmo ao fundo, lá em baixo, na praça, o laj edo; por
cima da sua cabeça, Quasímodo que chorava.
Havia no adro alguns grupos de ingénuos curiosos que tranquila­
mente procuravam adivinhar quem podia ser o maluco que se divertia
de maneira tão estapafúrdia. O padre ouvia-os dizer, pois as suas vozes
chegavam-lhe claras e esganiçadas:
- Mas ele vai partir as costelas!
Quasímodo chorava.
Finalmente, o arcediago, escumando de raiva e de medo, percebeu
que tudo era inútil. Mesmo assim, reuniu todas as forças que ainda
lhe restavam para uma derradeira tentativa. Empertigou-se na goteira,
fincou na parede os dois j oelhos, agarrou-se a uma fenda das pedras e
conseguiu marinhar talvez até à altura dum pé, mas este movimento fez
vergar de súbito o bico de chumbo em que se apoiava. Simultaneamente,
a batina rasgou-se. Então, ao sentir que tudo lhe faltava debaixo de si,
não lhe restando outra coisa senão as mãos entorpecidas e exaustas
para o susterem, o infortunado fechou os olhos e largou a goteira. Caiu.
Quasímodo viu-o cair.
Queda de tamanha altura raras vezes é perpendicular. Lançado
no espaço, o arcediago caiu primeiro de cabeça para baixo e as duas
mãos estendidas, depois descreveu várias voltas sobre si mesmo.
O vento atirou-o para o telhado duma casa onde o desgraçado come­
çou a despedaçar-se. Todavia, não estava ainda morto quando ali che­
gou. O sineiro ainda o viu tentar agarrar-se com as unhas à empena.
O plano, contudo, era excessivamente inclinado e ele estava j á sem
forças. Escorregou rapidamente pelo telhado, como uma telha que se
desprende, e foi estatelar-se no solo. Ali, não mais se mexeu.
Quasímodo então levantou o olho para a cigana, de quem via o
corpo, suspenso da forca, estremecer ao longe sob o seu vestido branco,
nas últimas tremuras da agonia, depois baixou-o outra vez para o arce­
diago, estendido na base da torre e não aparentando já qualquer forma
humana, e disse com um soluço que lhe ergueu o profundo peito:
- Oh, tudo o que eu amei!

536
III

Casamento de Febo

Ao entardecer daquele dia, quando os oficiais j udiciários do bispo


foram levantar do laj edo do adro o cadáver desconj untado do arce­
diago, Quasímodo desaparecera de Nossa Senhora.
Acerca desta aventura correram muitos boatos. Ninguém duvidou
de que chegara o dia em que, após o seu pacto, Quasímodo, que é
como quem diz o Diabo, devia levar Cláudio Frollo, que é como quem
diz o feiticeiro. Presumiu-se que lhe despedaçara o corpo ao tirar-lhe a
alma, tal como os macacos quebram a casca para comer a noz.
Foi por isso que não inumaram o arcediago em solo sagrado.
Luís XI morreu no ano seguinte, no mês de agosto de 1483.
Quanto a Pedro Gringoire, conseguiu salvar a cabra e obteve êxitos
na tragédia. Parece que, depois de ter apreciado a astrologia, a filo­
sofia, a arquitetura, a hermética, todas as maluqueiras, voltou para a
tragédia, que é a mais maluca de todas. Foi o que ele chamava ter um
desfecho trágico. A respeito dos seus triunfos dramáticos, eis o que se
lê, desde 1483, nas contas do Ordinário:
"A Jehan Marchand e Pedro Gringoire, carpinteiro e compositor,
que fizeram e compuseram o mistério realizado no Châtelet de Paris,
quando da entrada do senhor legado, ensaiaram as personagens e as
adornaram e vestiram como para o dito mistério era requerido; e tam­
bém por terem feito os tablados para isso necessários, por tudo, cem
libras."
Febo de Châteaupers também teve um desfecho trágico: casou-se.

537
IV

Casamento de Quasímodo

Acabamos de dizer que Quasímodo desaparecera de N ossa Senhora


no dia da morte da cigana e do arcediago. Com efeito, nunca mais o
viram, nem se soube o que lhe acontecera.
Na noite que se seguiu ao suplício de Esmeralda, o pessoal da baixa
justiça desprendeu-lhe o corpo da forca e transportou-o, conforme o
costume, para a sepultura de Montfaucon.
Era M ontfaucon, como diz Sauval, "a mais antiga e a mais soberba
forca do reino". Entre os arrabaldes do Templo e de Saint-Martin, a
umas cento e sessenta toesas das muralhas de Paris, a alguns tiros
de besta da Courtille, via-se, no cimo duma suave eminência, insensí­
vel, mas suficientemente elevada para que o distinguissem de algumas
léguas em redor, um edifício de forma estranha que se parecia bastante
com um cromeleque céltico, e onde também se efetuavam sacrifícios
humanos.
Imagine-se, no alto duma colina de gesso, um grosso paralelepí­
pedo de cantaria, com quinze pés de altura, trinta de largo e quarenta
de comprimento, com uma porta, uma rampa exterior e uma plata­
forma. Por cima desta plataforma, erguiam-se dezasseis enormes colu­
nas de pedra em bruto, altas, de trinta pés, dispostas em colunata em
volta de três dos quatro lados da mole que as suportava, ligadas entre
si na parte superior por fortes vigas, de onde, de intervalo a intervalo,
pendiam correntes. Em todas essas correntes, esqueletos; nas imedia­
ções, na planície, uma cruz de pedra e duas forcas de segunda ordem,
que parecem ter pegado de estaca à roda do patíbulo central; por cima
de tudo isto, no céu, um esvoaçar constante de corvos. Eis M ontfaucon.

538
Nos fins do século XV, a formidável forca, que datava de 1328, já
estava muito caduca. As vigas encontravam-se carunchosas, as cor­
rentes enferruj adas, as colunas esverdeadas de musgo. As fiadas de
pedra de cantaria estavam todas fendidas nas junturas e a erva rompia
sobre esta plataforma onde os pés não tocavam. Era horrível o perfil
deste monumento recortado no céu, principalmente de noite, quando
batia tíbia luar sobre aqueles crânios esbranquiçados, quando a nor­
tada noturna vergastava as correntes e os esqueletos e tudo aquilo se
contorcia na sombra. Bastava a presença daquele patíbulo para trans­
formar todas as imediações em lugares sinistros.
Era oco o maciço de pedra que servia de base ao odioso edifí­
cio. Tinham aberto ali um amplo subterrâneo, fechado por um velho
portão de ferro desconj untado, para onde atiravam, não só os restos
humanos que se desprendiam das correntes de Montfaucon, como
também os corpos de todos os infelizes justiçados nas outras forcas
permanentes de Paris. A este profundo ossário, onde tantas poeiras
humanas e tantos crimes apodreceram j untos, muitos grandes deste
mundo, muitos inocentes foram sucessivamente levar os seus ossos,
desde Enguerrand de Marigni, que estreou Montfaucon e que era um
justo, até o almirante de Coligni, que o encerrou e que também era
um justo.
Quanto à misteriosa desaparição de Quasímodo, eis tudo o que con­
seguimos apurar:
Coisa de dois anos ou dezoito meses depois dos acontecimentos
que encerram esta história, quando foram procurar ao depósito de
Montfaucon o cadáver de Olivier, o Gamo, que fora enforcado dois
dias antes e ao qual Carlos V I I I concedia a mercê de ser enterrado
em Saint-Laurent em melhor companhia, encontraram-se, entre todas
aquelas hediondas carcaças, dois esqueletos, um a abraçar singular­
mente o outro. Um destes dois esqueletos, e que era de mulher, conser­
vava ainda alguns farrapos de um tecido que fora branco e via-se-lhe,
em volta do pescoço, um colar de grãos de adrezarach , com um saqui­
nho de seda, enfeitado de missanga verde, aberto e vazio. Eram obj e­
tos de tão pouco valor, que sem dúvida o carrasco não os quisera .
O outro, que mantinha este estreitamente abraçado, era um esque­
leto de homem. Notou-se que tinha a coluna vertebral deslocada, a
cabeça entre as omoplatas e uma perna mais curta do que a outra .

539
Não apresentava , aliás, qualquer fratura de vértebra na nuca e evi­
dentemente não fora enforcado. Por conseguinte, o homem a que o
esqueleto pertencera fora para ali e ali morrera . Quando o quiseram
desprender do esqueleto que abraçava, caiu desfeito em pó.

540
Í ndice

O autor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
I ntrodução. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Nota preliminar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Aditamento à edição definitiva 1 1 832) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31

Livro Primeiro

1 - A sala grande . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 35
I I - Pedro Gringoire . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49
I I I - O senhor cardeal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 59
IV - M estre Jacques Coppenole . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
V - Q uasímodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 75
VI - " La Esmeralda" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 82

Livro Segundo

1 - De Cila para Caríbdis . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 85


I I - A Praça de Gréve . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88
I I I - " Besos para golpes" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 91
IV - Os inconvenientes de seguir de noite n a rua uma mulher bonita . . . . . . . 101
V - Sucedem-se o s contratempos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
VI - A bilha quebrada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 109
V I I - Uma noite de núpcias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 128

Livro Terceiro

1 - N ossa Senhora . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 139


I I - Paris de relance . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Livro Quarto

I - As boas almas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 170


I I - Cláudio Frollo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 174
I I I - " I mmanis pecoris custos, immanior ipse" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179
IV - O cão e o dono . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186
V - Continuação de Cláudio Frollo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188
VI - I mpopularidade. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 194

Livro Quinto

1 - "Abbas Beati Martini" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 197


II - I sto há de matar aquilo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 208

Livro Sexto

1 - Imparcial relance de olhos pela antiga magistratura . . . . . . . . . . . . . . . . . . 222


II - A toca dos ratos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 233
I I I - H istória dum bolo de farinha de milho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 238
IV - Uma lágrima por uma gota de água . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 258
V - Fim da história do bolo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 267

Livro Sétimo

1 - Do perigo de confiar o seu segredo a uma cabra . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 268


II - Um padre e um filósofo são dois . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 282
I I I - Os sinos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29 1
IV - ANAíKH . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 294
V - Os dois homens vestidos de preto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 307
VI - O efeito que podem causar sete pragas ao ar livre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313
V I I - O fantasma . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 318
V I I I - Utilidade das janelas q u e d ã o para o rio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 326

Livro Oitavo

1 - O escudo transformado em folha seca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 334


II - Continuação do escudo transformado em folha seca . . . . . . . . . . . . . . . . . . 343
I I I - Fim do escudo transformado em folha seca . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 348
IV - " Lasciate ogni speranza" . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 52
V - A mãe . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 366
VI - Três corações de homem formados de maneira diferente . . . . . . . . . . . . . 370

Livro Nono

I - Febre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 387
I I - Corcunda, cego de um olho, coxo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 398
III - Surdo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 402
IV - Grés e cristal . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 405
V - A chave da porta vermelha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 416
VI - Continuação da chave da porta vermelha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 418

Livro Décimo

I - Gringoire tem sucessivamente várias ideias boas na Rua dos Bernardos . . . 422
II - Fazei-vos vagabundo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 433
III - Viva a alegria ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 436
IV - Um amigo desastrado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 445
V - O retiro onde o senhor Luís de França reza as suas horas. . . . . . . . . . . . . . 464
VI - Pequena flâmula vagabunda . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 494
VII - Châteaupers, acode ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 496

Livro Undécimo

I - O sapatinho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 498
II - " La creatura bella bianco vestita" (Dante) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 529
I I I - Casamento de Febo. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 537
IV - Casamento de Quasímodo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 538
OUTROS TÍTULOS D ESTA C O LEÇÃO:

A Túlipa Negra , Alexandre Dumas

Jane Eyre, Charlotte Bronte

Orgulho e Preconceito , Jane Austen

A Queda dum A njo, Camilo Castelo Branco

O Mon te dos Vendavais, Emily Bronte

Madame Bovary, Gustave Flaubert

O Primo Basílio, Eça de Queirós

Título original Notre-Dame de Paris 1 C<'.'> 2 0 1 2 Civil ização Editora 1 Todos os d i reitos reservados
Tradução: José da Natividade Gaspar
Revisão: Departamento Editorial 1 Design da capa: Departamento Editorial
Pré-impressão, i m p ressão e acabamentos: CEM Artes Gráficas
L ' edição em outubro de 2012 1 I S B N 978-972-26-3 587-5 1 Depósito Legal 34959 5 1 1 2
Civilização Editora 1 Rua Alberto Aires de Gouveia, 27 1 4050-023 Porto 1 Tel . 226 050 9 0 0
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