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A porteira do mundo - 001.

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"Um dos maiores êxitos de Hermi-
lo Borba Filho, a meu ver, está no fato
dele ter sabido unir organicamente, evi-
tando os expedientes da crônica naturalis-
ta, a evolução pessoal de seu personagem
à história do Brasil no final do Estado
Novo."
Leandro Konder

"Uma exuberância vital e dionisía-


ca percorre como um vendaval a pujante
escritura henniliana. C. . . ) Esse pujante
erotismo está ligado a sensações de vio-
lenta pureza."
Nelly Novaes Coelho

"O universo de Hermilo é feito de


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carne, pele, sangue, sêmen, excremento,


dor, suavidade, beleza, paixão e morte. É
duro e terno. Pleno de força vital."
Ricardo Carle

"Um fortíssimo, definitivo e emo-


cionado depoimento sobre um tempo re-
cente. Sobretudo, uma profunda reflexão
sobre a condição humana que, para re-
cordarmos a imagem de Albert Camus,
como um Sísifo, define-se em sua huma-
nidade não s6 pelas sucessivas quedas
quanto por sua capacidade de levantar-se
e voltar a lutar e resistir."
Antônio Hohlfeldt t

"Seu eroti.s mo aflora como elegia,


suave e ao mesmo tempo frenético, dilu-
indo-se nos liquidos vitais e nos gemidos,
no prazer sem repressão das gentes sim-
ples, tão recifense em seu caráter
fescenino, de palavreado coloridissimo,
quase sem metáforas, apresentando neste
aspecto nada desprezível e tão apreciado
pelos leitores páginas inovadoras na lite-
ratura brasileira."
Márcio Souza
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UM CAVALHEIRO DA SEGUNDA DECADENCIA I 2

a porteira
do mundo
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Hennilo Borba Filho

2 !.! EDIÇÃO

fit:IKADO (/1;j Al:>t:IHO


1994 • SÉRIE NOVO ROMANCE N 2 29 • PORTO ALEGRE - RS
Capa: Leonardo Menna Barreto Gomes sobre
detalhe d e "Nu junto.\ cad eira de virne", de E. Munch.

Editoração Eletrônica: Rudimar Bemardes


Revisão: Henrique Griiwer, )oycinara Moreira
e Sandro Waldez Andretta
Supervisão: Rosane Cava

Editor: Roque }acoby

a porteira
CIP-BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
Bibliotecária responsável: Rosemarie B. dos Santos CRB 10/797
do mundo
B726u Borba Filho, Hermilo
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Um cavalheiro da segUJ1da decadência:


A porteira do mUJ1dO I Hermilo Borba Filho - 2. ed.
Porto Alegre: Mercado Aberto, 1994.
312 p. (Novo Romance)

Conteúdo: V. 2. A porteira do mUJ1do


I. Título ll. Série

CDU 869.0(81)-31

o
Índices alfabéticos para Catálogo Sistemático

Literatura brasileira: Romance 869.0(81)-31


Romance: Literatura brasileira 869.0(81}-31 Dos três caminhos, oh minha alma, nos quais vagueias entre
as sereias, dos três caminhos, oh minha alma: ou te entregas
inteiramente às alegrias da terra e apodreces, ou te absténs
de toda a alegria e morres em odor d e santidade; ou
ISBN 85-280-0277-2 escolhes o terceiro, o de Ulisses insaciável e enganado, que
ainda é o melhor.

NIKOS KAZANTZAKIS
Todos os direitos reservados a
Editora Mercado Aberto Ltda
Rua da Conceição, 185 - Fones: (051} 221 8595 - 221 8311
Fax: (051) 227 2829 - Cx. Postal 1432 ·
90030-030 Porto Alegre - RS
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Ah! Ouçam-me! Ouçam-me! É aqui que


começa a história, porque até agora tenho
confundido tudo. Agora, quero lembrar-me
de tudo, de todos os pormenores, das mais
insignificantes particularidades.

DOSTOIÉVSKI
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Se viste, é como se não houvesses visto, e se ouviste, sê surdo.
HERMES
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Água, água, água, mais água. Outra cidade-água,


era inútil, dela não podia fugir, meus olhos se habitua-
vam à chatice das superfícies planas, niqueladas ou azul-
esverdeadas, porque então tinha, não somente as águas
brancas do rio, mas as do mar, para mim um pouco
repugnantes, sempre em movimento, para baixo, para
cima, para os lados, iam e vinham, agrediam, torna-
vam-se oleosas, mudavam de cor, invadiam, infiltravam-
se, recuavam como cadelas com um pontapé no trasei-
ro para, logo depois, avançar raivosas, ululantes. Eu
estava suspenso no ar, era alado, por isto podia observá-
las muito bem. Balançava o rabo e, colocando o queixo
nas mãos, olhava a cidade, também como a outra inun-
dada pelas águas: dos mangues fedorentos de onde sur-
giam os caranguejos de patas peludas, obscenos, profé-
ticos; dos braços de mar com jangadas decorativas feitas
de propósito para a paisagem; dos dois rios que se
acasalavam, subindo e descendo na força das marés,
ân sia de devorarem carnes, deixando que os corpos es-
com mariscos, barcos, baronesas, pontes, edifícios refle- tremecessem aos apitos dos barcos escandinavos, ori-
tidos, atletas, pescadores. Nas nesgas de terra, nas pe- entais, latinos, adornados de bandeiras esquisitas, imó-
quenas ilhas que as águas houveram por bem deixar veis, cansados das travessias, somente à espera da noite
aos homens vinham, do centro para a periferia, os se- para se transformarem em massas misteriosas, atraen-
res humanos: meninos de barriga grande e mãos sujas, tes, despejando o sêmen dos m arinheiros nas vulvas
mulheres feias, negros e mulatos musculosos, adoles- a lugadas que passeavam nos bares, nos cafés, nos bote-
centes arrogantes hábeis no m anejo das peixeiras, de- quins, nos cabarés, nos quartos alugados, debaixo dos
sembocando na rua colorida e oriental com gritos, mú- oitizeiros ou nas escadas dos sobrados de dois, três an-
sica, dança, lenços d e seda, b ibelôs, louça, frutas, dares, antigas residências senhoriais dos donos do açú-
sobretudo as frutas, que davam os cheiros melados e car. Toda esta multidão na m orte, no comer, no copu-
os gostos afrodisíacos, toda a multidão invadindo o mer- lar, no dormir, no andar, contra a outra dos bairros
cado, indiferente ao odor dos p eixes de barrigas aber- importantes onde a água era filtrada, gelada ou esquen-
tas e aos pretos camarões recurvos, meditativos na mor- tada, andando na primeira dos bondes ou nos automó-
te, às carnes sang rentas de bois, cabritos e bodes, veis para as festas, os cinemas, os jogos, os piqueni-
assu stando as galinhas e os pombos, mergulhando as ques, os comes-e-bebes. Faziam os mesmos gestos e os
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mãos nos sacos de fe ijão, farinha e arroz, comprando mesmos m ovimentos, m as a direção era outra; usando
miçangas, pela garganta abaixo fazendo descer os o mesmo idioma, falavam uma linguagem diferente. E
copázios do grosso caldo-de-cana, engolindo cachaças, entre as duas, eu, nascido na aurora, de um santo e
tudo às gargalhadas, aos berros, aos cantos, cuspindo uma m ártir, de uma gruta para aquele que vem nas-
nas cuias dos mendigos e parando na roda para ouvir cendo, colocando-me num cimo elevado, ao abrigo das
o último romance queixoso, monocórdio, das aventuras nuvens e dos ventos, das vítimas, de fora manobrando
e desventuras de uma lsmália em preto e branco, re- o rebanho com pensamentos e não com a tos, que era
cortada em ângulos, um punhal à altura do peito es- anônimo, embora de origem divina, mas até então nin-
querdo; traziam a lama viscosa nos pés descalços e ben- guém sabia e me divertia em diabruras e cabriolas na-
ziam-se automaticamente defronte das igrejas geladas quele céu azul de sangue crepuscular. Sentia que preci-
ao sol ardente, rodeadas de casinhas coloridas, uma de- sava desenvolver minhas forças, doadas, não distinguia
las em azul forte, debruçada na pequena varanda uma o que era bom do que era ruim, mas estava apto para o
moça de amarelo, seios fartos, deixando ver as coxas comércio, sobretudo o sexual, e para o roubo, que não
pelas aberturas das tábuas gastas por chuvas de cem é senão uma modificação do comércio, pois nada se dá
invernos; e nos becos estreitos se acotovelavam de cara em troca de nada. Quando me resolvia a descer does-
feia, coçan.d o a cintura, subindo escadas empinadas e paço postava-me nas encruzilh adas dos caminhos ou
escuras para o jogo-do-bicho, a nota de entrega, o amor nas esquinas das ruas e procurava fazer com que os
em p é, de sexos melados, ainda com o cigarro apagado viandantes lessem inscrições morais gravadas no meu
no canto da boca que se torcia para um lado; e defron- sexo, sendo verdade que a moral se baseia, quase sem-
te era o cais, os compridos armazéns, a poeira do açú- pre, em algo relacionado com o membro viril. Então o
car e d a farinha de trigo colada aos torsos nus de tou- expunha enquanto os astrólogos me atribuíam a
ros transformados em homens, os bigodes eriçados na
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bissexualidade e certa dose de perfídia necessária para deixava e não se tinha outra visão do mundo: as ne-
a atividade artística, exercida, a princípio, na Arcádia cessidades eram satisfeitas apressadamente e gabava-
de saudosa memória. Bati as asas e caí na terra, mistu- se o gosto dos escrevinhadores, dos desenhistas, tão de
rando-me ao rebanho, aparentemente um dentre todos, acordo o real com o imaginado. Para lá se ir e voltar
mas uno, indivisível, orientado como uma flecha. tinha-se de passar pelo gabinete de Zoroastro, a chave
Quem abria as portas era eu. Logo chegavam o posta em cima da sua mesa contra um mata-borrão
servente para a limpeza sumária e a datilógrafa angu- branco.
losa, sem atrativos, vestidos sempre desbotados e sal- Geralmente atendíamos a dez candidatas por dia,
tos cambados dos sapatos, um permanente odor de axi- encaminhando-as, se aprovadas, aos escritórios de ban-
las misturado a pó-de-arroz barato. Quinze minutos cos, fábricas, casas comerciais. Eram entrevistadas por
depois, de uma precisão rigorosa, Zoroastro invadia o mim e Zoroastro, no seu gabinete, preenchendo-se uma
escritório com os seus cem quilos de carne rosada, es- ficha, exigindo-se referências: nome, filiação, estado ci-
palhafatoso, rindo alto, dono daquele mundo, e come- vil, empregos anteriores, onde nasceu, toda essa
çava mais um dia da Agência Olimpo, empregos só baboseira, com a pergunta final que nos interessava de
para mulheres. Trancava-se no pequeno gabinete, onde p erto: "É virgem?" Só para saber a vantagem que se
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o telefone tilintava de instante em instante, vez por ou- podia tirar, porque o lucro da Olimpo se baseava no
tra abrindo a porta para gritar recomendações, a má- primeiro ordenado da mulher que empregávamos e no
quina de D. Zulmira marcando o compasso, enquanto coito: primeiro Zoroastro, depois eu . Nem todas con-
eu distribuía fichas, entrevistava candidatas, saía e vol- cordavam com a segunda modalidade e não nos arris-
tava, azougadamente, no meu mister de mensageiro. cávamos em vão, conduzindo-as com a habilidade e o
Nos momentos de pausa olhava as paredes levantadas faro que a prática nos indicava. Via de regra, em cada
com areia salgada, a umidade impondo desenhos ca- dez mulheres tínhamos, pelo menos, três cópulas, o que
prichosos, paisagens, figuras humanas. Sempre era atra- era uma média excelente. Quando virgens e acessíveis
ído por um profeta do Antigo Testamento que, na al- ganhávamos carícias, mas nunca insistíamos para não
tura da barriga, ostentava um rombo: a parte seca da abalar a reputação da agência. Neste caso aumentáva-
cal. Mas me divertia também com anjos rechonchudos, mos um pouco nossa percentagem em dinheiro para
mulheres longas como caniços, animais que não apare- compensar a frustração. Quase sempre, quando a can-
ciam na escala zoológica mergulhados em água leitosa didata não satisfazia as exigências profissionais e não
ou espiando por entre os juncos. A porta da latrina per- lhe podíamos dar um emprego, se era boa de cama pa-
manecia sempre fechada, mas mesmo assim o fedor do gávamos-lhe um jantar e, depois de fornicarmos, se ela
mijo invadia a nossa sala, nenhuma creolina o fazia de- concordava, uma pequena quantia em dinheiro, não
saparecer. Era apenas um buraco onde se mijava em mais de dez mil-réis, que era a tabela das prostitutas
pé ou se defecava acocorado, lendo as quadrinhas es- na rua das Flores, localizada atrás da Olimpo.
critas às pressas por seus ocasionais ocupantes ou ob- Se por ocasião do habilidoso interrogatório e
servando o triângulo simbólico e o falo-voador meti- do preenchimento da ficha a candidata sentia vonta-
dos entre as palavras pornográficas. Lá não se podia de de satisfazer necessidades naturais, cochichando
ficar muito tempo que a dormência das pernas não com D. Zulmira, o chefe se adiantava sorridente e

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compreensivo, apresentando-lhe, com as duas mãos es- Findo o interrogatório, já tínhamos a noção exata
tendidas, o mata-borrão branco onde descansava a cha- do encaminhamento da candidata e se a intimidade se
ve, à maneira de um deslocado pajem medieval condu- fizera com rapidez um de nós marcava encontro para
zindo a almofada para que a castelã nela colocasse os depois do expediente. A princípio, Zoroastro se valia
mimosos pés. E mal a candidata se trancava na latrina, das suas prerrogativas de chefe e s.empre era o primei-
ele se postava de um lado do tabique fazendo-me sinais ro na posse, mas quando nos tornamos mais amigos do
frenéticos, e eu do outro, ambos de frente, colando os que chefe e empregado, esportivamente decidíamos a
olhos em pequenos orifícios que passavam despercebi- mulher no jogo da porrinha. A cerimônia era sempre a
dos a estranhos, um pouco curvados olhando a cena. A mesma. Ela chegava, real ou fingidamente pudica, soli-
mulher erguia o vestido, arriava as calças, todas assu- citando licença para entrar, com uma vozinha ingênua,
miam uma atitude de seriedade que não condizia com eu me dispunha a quinze minutos de conversa, pouco
o ato, acocorava-se e nos apresentava aquele mundo a pouco avançando no terreno desconhecido, primeiro
sempre estranho. Eu via a pele dos joelhos luzidia de a mão na mão, em seguida a mão na coxa, num mer-
tão esticada pela posição, as coxas entreabertas, o sexo gulho beijando-a no pescoço, daí em diante era mais
era apenas uma risca escura, somente o ruído nos indi- fácil. No canto do gabinete do chefe, de porta fechada,
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cava a que deleite se entregava. Comumente apenas uri- estava uma poltrona maior que as comuns, com a pro-
navam, enxugando-se com a própria combinação, quan- priedade de se transformar num divã de assento duro,
do se erguiam víamos o triângulo escuro, ventres as almofadas facilitando as posições. Lá nos entregáva-
batidos ou salientes, coxas de todas as dimensões. mos aos prazeres do amor.
Zoroastro excitava-se tremendamente qu?ndo defeca- Zoroastro não tinha minha delicadeza, era de pou-
vam, limpando-se com pequenos retângulos de papel de ca conversa e mal a mulher apontava na porta ele já
jornal presos à parede por um prego. Eu ficava imagi- estava passando a chave na fechadura, despindo-se
nando substantivos, adjetivos, verbos, advérbios, nomes apressadamente e mandando que a fêmea se livrasse
próprios decalcados no períneo: pátria, açúcar, formidá- também das roupas. Muitas vezes o ouvi no ato, bu-
vel, contemporiza, simplesmente, Vargas; e até mesmo fando, resmungando palavras incompreensíveis, quase
frases completas: "A hegemonia da nação depende da gritando no fim.
compreensão dos partidos", avançando pela parte inter- - São umas vacas, meu irmão - costumava dizer.
na da coxa esquerda. - Para que cerimônias? Então elas não sabem o que vêm
Quando saíam, quase sempre de olhos baixos, já fazer aqui? Tenho horror a perder tempo.
estávamos sentados fingindo interesse na papelada, os Os dias passavam e as vacas de Zoroastro desfi-
sexos espremidos entre as pernas. Levantávamos a ca- lavam: morenas, mulatas, negras, louras oxigenadas,
beça ao mesmo tempo e examinávamos o rosto da baixas, altas, médias, gordas, magras, bem ou mal fei-
candidata para descobrir indícios que nos possibilitas- tas, cada uma com a sua história, dispostas a qualquer
sem uma conversa mais aberta. Mas isto raramente negócio para conseguirem um emprego, o salário desti-
ocorria porque elas procuravam afetar, com atitudes nando-se a pais, irmãos menores, maridos, amantes, re-
várias, que jamais na vida haviam urinado ou defeca- médios, comida, bugigangas, espalhando-se na praça do
do e nós nos prestávamos ao jogo. Recife, às vezes me acontecia entrar numa loja e avistar

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uma delas, muito compenetrada, tendo comprado sua azuis e róseos, bebericar gim-tônica e jogar roleta. Até
manutenção ou a dos seus parentes com uma trepada às dez horas da noite deixava-me ficar sentado numa
na cadeira-cüvã e o salário de um mês. Poucas ficaram das mesinhas do Café Lafaiete, saboreando chope e con-
amigas. Quase sempre fugiam da lembrança de que eu versando com a mesma turma de sempre. Pouco a pou-
era portador, fingindo desconhec.i mento, ou mesmo com co a noite ia entrando em mim, o ar se tornava mais
palavras ásperas dando a entender que não permitiri- refrescante, as pessoas que circulavam não eram as mes-
am intimidades, desfilando depois do expecüente de bra- mas que enfrentavam o sol. Os casarões transformavam-
ços dados com namorados ou sozinhas, apressadas, se e o velho rio absorvia ruídos, canções, sombras. Eu
comprimindo-se na pequena multidão à espera do bon- era um homem noturno acompanhando a marcha das
de. estrelas e a forma das nuvens que se deslocavam em-
Minha ligação maior foi com Irene: baixinha, bem purradas pelos ventos que vinham do mar.
feita, de um moreno carregado, apareceu na Olimpo Naquela noite atravessei a ponte sozinho, deva-
com uma bolsinha de miçanga e um vestido branco que gar, parando de vez em quando para olhar os pescado-
acentuava ainda mais a cor da sua pele, falando de olhos res de siri e as luzes mortiças dos barcos ancorados, e
baixos, arrasada diante do mundo. Seus méritos eram sem me aperceber fui além do Taco de Ouro, contor-
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medíocres, ainda mais porque não desejava ser caixeira nando a praça para me ver diante do Balança-Cu de
de loja, mas empregada de escritório, sem aptidões, Sinhá, um cabaré de terceira categoria freqüentado por
mostrando-se um pouco insultada no olhar que me lan- embarcacüços, estivadores, operários das companhias de
çou, quando lhe fiz a proposta. Minhas investidas no petróleo que se comprimiam na dança, a orquestra mui-
campo sexual não obtiveram êxito, apenas sorriu quan- to estridente, as mesas cheias de garrafas de cerveja, o
do lhe perguntei se era virgem e balançou a cabeça mulherio saracoteante, uma briga surgindo de vez em
numa negativa quando a convidei para jantar, acres- quando. Subi a comprida escada de degraus gastos para
centando logo em seguida: dar uma olhadela e a cena era a mesma, o suor e o
- Nunca tenho fome. perfume barato subindo na poeira, nos momentos em
E como nãq acüantasse perder tempo com ela des- que a orquestra descansava um pederasta borrifava o
pachei-a com uma certa brusquidão, solicitando-lhe o piso com um regador, passando depois a vassoura e
endereço que se recusou a dar, acüantando que passa- recolhendo o lixo com uma pá. Abri caminho por entre
ria sempre na agência para saber se conseguiramos al- os pares e procurei uma mesa cüante de uma das jane-
guma coisa como desejava. las que davam para o mar, pedindo uma cerveja que
Duas ou três vezes por semana eu atravessava a era o mínimo de despesa, vendo aquilo: homens em
ponte Maurício de Nassau em direção ao Taco de Ouro, mangas de camisa com braços assemelhando-se a co-
o cabaré mais famoso da cidade, menos atrás de mu- xas, outros de paletó para ocultar as armas, o suor alar-
lheres pois a Olimpo as fornecia em quantidade e qua- gando cada vez mais a roda debaixo das axilas, mulhe-
lidade, que para misturar-me àquele mundo: gostava res muito pintadas com um cigarro na boca e um vago
de ver os tipos - o cabaretier com ares de gigolô apre- sorriso estereotipado, com as horas pela frente e a in-
sentando números de segunda categoria - ouvir e dan- certeza da féria. Já estava no segundo copo quando duas
çar os tangos argentinos dentro de refletores vermelhos, mãos descansaram nos meus ombros, por detrás, eram

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de mulher. Com a direita peguei a sua esquerda e pas- para alcançarmos outra escada, atingindo um terceiro
sei-a por cima da minha cabeça num movimento de andar. Na porta do seu quarto, que ela abriu com uma
minueto: Irene sentou-se com um sorriso de mangação. chave que tirou do seio, havia um número nove escrito
Não aparentei surpresa, mas ela não se deixou enga- à tinta vermelha. Aquela era a sua casa: apenas um
nar. guarda-roupa e uma cama encostada à janela. !rene pas-
- Mundo pequeno, não é? - comentou. sou a chave na fechadura e, voltando-se, chamou-me
Era um pouco tata e quando falava a üngua cor- para ela, beijando-me. O desejo veio logo e sem perda
de-rosa saía um pouco da boca roçando nos dentes pe- de tempo nos despimos, caindo na cama para o ato, ela
quenos e alvos. contorcendo-se como se quisesse fugir, arranhando-me
-Arranjou emprego?- gracejei. as costas, grunhindo, foi tudo muito rápido, em p oucos
Ela pegou meu copo, bebeu um gole e enxugou minutos estávamos saciados e nos postamos de costas,
os lábios com um lencinho que era uma bola escondida eu com a mão descansando em seu ventre, ouvindo a
na m ão. música dos cabarés, refrescando-me com a brisa que vi-
-Era desse emprego que eu queria sair. nha do mar. Quando me sentei na cama, como sinal de
Ficou séria, olhando para a frente, de pernas cru- despedida, ela apressou-se a trazer a bacia com água e
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zadas, balançando o pé no ribno da música. Chamei o uma toalhinha limpa, um pano entre as coxas, com mui-
garçom e pedi outra garrafa de cerveja, enchendo nos- ta delicadeza fazendo minha higiene. Vesti-me de cos-
sos copos, mantendo o silêncio porque sabia que ela tas para que ela fizesse a sua e pus o dinheiro contra o
terminaria falando. lençol alvo e amassado. Quando cheguei à porta e vol-
-Quer que lhe conte a minha vida?- perguntou. tei-me para acenar-lhe um adeus ela já estava deitada,
- Não. Quero dançar. nua, as pernas ligeiramente contraídas, sorrindo.
Levantou-se já com o braço esquerdo erguido para - Tudo o que eu tenho é seu - disse, virando-se
colocá-lo no meu ombro e fomos para o meio do salão, de bruços.
sua cabeça à altura da minha boca, os cabelos com um Foi uma frase mágica e eu senti, imediatamente,
vago cheiro de sabonete. Dançamos sem paJavras du- a excitação descomunal que ia da ponta do dedo gran-
rante bastante tempo, passando do samba ao Jox-trot e de do pé à raiz do cabelo da cabeça. Num instante es-
do tango argentino à valsa, ora verdes, ora azuis ou tava sobre ela tentando varar suas nádegas, enlouque-
amarelos, de vermelho parecíamos seres de outros mun- cido na busca daquela escuridão, não ligava aos seus
dos. À música se misturavam sons de garrafas, garga- gemidos, num grito consegui penetrá-la, todo o mundo
lhadas e o apito de um navio dentro da noite intrigando- girou e as sacudidelas bruscas me trouxeram um esva-
me, seria um rebocador. Com as luzes brancas que ziamento doloroso, exaustivo. Deixei-me ficar ainda al-
vieram, !rene parou de dançar sem descolar o corpo de gum tempo com as unhas enterradas nos seus seios até
mim, ergueu o rosto e depois de soprar devagarinho que o membro, encolhendo-se, saiu do seu corpo. Rolei
no meu, falou: para o outro lado da cama, enquanto ela se levantava e
- Vamos lá pra casa. eu via, no lençol, o sangue.
Paguei as despesas, descemos as escadas e sem- Foi nu como estava, também ensangüentado,
pre de mãos dadas atravessamos a rua mal iluminada que voei pela janela e pairei acima dos edifícios, um

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molho de cravos brancos na mão, enquanto a cidade Foi o calor do sol que me fez abrir os olhos. Esta-
se dividia, m etade brilhante e metade azulada, de um va só no quarto, agarrado a um travesseiro, mas pouco
lado o sol, do outro a lua, os rios correndo em verti- tempo depois !rene entrou sorrindo, muito fresca, com
cal, as pontes ligando o nada a outro nada, as náde- café e pão que comemos mesmo na cama. Desse dia
gas de !rene formando um arco-íris incandescente so- em diante, nossa ligação estreito u-se, eu tinha de fazer
bre a minha cabeça, eu verificava que possuía os dois esforços inauditos para atender às candidatas na
sexos, era o enviado Hermafrodita, o ânus se asseme- Olimpo, comecei a ficar meio irritado, os amigos me
lhava aos sóis infantis, enquanto o pênis era a cauda achando um chato. E o pior era que !rene não queria
de um cometa, ambos jamais se encontrariam, eu pas- mais receber homens, eu tendo de arcar com as despe-
seava meu carneiro e, à sombra das grutas, m e unia sas, a começar pelo aluguel do quarto. A princípio, a
ora a ninfas, ora a sátiros, sem jamais saber se era o situação era nova e me encantava, mas aos poucos fui
homem ou a mulher quem mais gozava nos prazeres me cansando e passei a inventar desculpas para faltar
do amor, contra riando o velho que afirmava hoje uma noite, amanhã outra, na semana. Isto trouxe
corresponder à mulher dez das dezenove partes que as inevitáveis cenas de ciúmes por parte de !rene, as
compõem o prazer amoroso, embora ele houvesse mu- discussões aos gritos, as bofetadas para depois cairmos
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dado de sexo sete vezes, mas eu tinha os dois e ali na cama como porcos, logo depois estávamos às garga-
estava, na madrugada, vendo apenas a mancha no len- lhadas, éramos dois sem-vergonha.
çol e o sangue coagulado na ponta da minha vara, dei- - C uidado com essa vaca - aconselhava-me
xando livre o buraco e os pêlos empoados do púbis, Zoroastro. - Escute aqui, m eu irmão: não se prenda a
o mar crescendo na linha do horizonte, cortando a mulher nenhuma que todas elas são iguais, com o mes-
abóbada celeste m as sem invadir a terra porque uma mo brinquedo entre as pernas. Eu também já tive uma
criança loura, apenas com uma tanguinha, detinha as ligação assim, quando era mais ou menos da sua idade
águas de bracinho erguido. E logo todas as luzes se e não tinha esta barriga. Eu era um Apolo- arrematou,
extinguiram: do sol, da lua, das estrelas, dos postes, pavoneando-se com a s ua gordura e os pés
das casas, dos fifós, era uma treva asfixiante, minha esquisitamente pequenos dentro dos sapatos de duas
barba crescia e formava uma escada por onde iam su- cores.
bindo os bêbados, as prostitutas, os pederastas, todos Eu sabia que devia me afastar e por isso procurei
os cornos do mundo, padres simoníacos, políticos, la- não aparecer mais nos cabarés, mas !rene me perseguia,
drões e assassinos e, enquanto subiam, alcançando a postando-se à saída da agência e grudando-se a rrúm
minha boca eu os cuspia para o infinito e era engra- como uma ostra, os olhos derramados e o choro na voz.
çado de ver as cabriolas que davam, um olho para Então, de comum acordo com Zoroastro, tomei férias
aqui, um culhão para ali, um baço acolá, todos os co- de uma semana, trancando-me no quarto da pensão,
rações se reunindo num só, crescendo, ainda opaco, mas ela descobriu o meu endereço e invadiu a sala de
pouco a pouco iluminando-se e tom ando-se rubro, cer- jantar no momen.to em que todos os hóspedes estavam
cado por estrelas de espinhos que se enterravam cada sentados para o almoço, acrescentando mais um escân -
vez mais na carne, tudo isto porque, mais uma vez, dalo à nossa coleção. Nesse dia, surrei-a sem dó nem
eu encontrara Deus na merda. piedade, mas as pancadas só fizeram aumentar seu

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rabicho. Então, surrei-a durante uma semana seguida, três mulheres à sua volta: uma dando-lhe cafunés, a
todas as noites, provocando alvoroço, intervenção da outra lhe cortando as unhas dos pés, a terceira fazen-
polícia, Irene como uma fera gritando que ninguém ti- do-o comer um enorme prato de torresmo com farinha.
nha nada com aquilo, que nos deixassem em paz. A cena era cômica e um pouco nojenta. Zoroastro sol-
Enfim, numa madrugada, depois de nos amarmos, tou um grito de satisfação e levantou-se com dificul-
tomei-a pelo braço e atravessamos a ponte em direção dade.
à cidade. Do outro lado, encostei-a ao paredão e du- - Esse é meu irmão, putada. Querido, aqui estão
rante muito tempo falei-lhe de coisas que ela não en- as minhas vacas: Zazá, Zezé e Zizi. Não sei como vá
tendia ou entendia pela metade, mas tornando muito fazer para ba tizá-las até à sétima, depois de Zozó e
claro, com palavras gentis, que ali nos separaríamos para Zuzu. Abanque-se.
sempre. Ela ficou me olhando o tempo todo, sem lágri- Sentei-me num tamborete e ele voltou à espregui-
mas, batida, uma mulherzinha desamparada, só. Dei- çadeira, enquanto as mulheres, de p é, nos olhavam,
xei-a lá, esperando a todo instante seus passos na car- sorridentes.
reira, seus gritos, o apelo. Mas não. Quando cheguei à - Mostrem-se, queridas - comandou o gordo. - A
esquina do Café Lafaiete, voltei-me e ainda a avistei especialidade de Zazá são os seios. Vamos lá, q uerida,
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caminhando, na calçada da ponte, de cabeça baixa, em meu irmão quer ver esses melões.
direção ao mar, uma .figura cada vez menor. Irene de- A negra não se fez de rogada: desceu as alças do
sapareceu tão completamente como se houvesse subido vestido e seus enormes e reluzentes seios brilharam ao
aos céus. sol da manhã. Eu os olhava fascinado, passeando por
Retomei minhas funções na Olimpo sentindo todo aquelas colinas escuras onde as auréolas de um preto
o cansaço do mundo, de propósito rara era a noite em mais suave faziam destacar-se os bicos semelhantes a
que deixava o quarto de pensão na rua da Aurora, de- mamilos de uma bezerra, ouvindo música de flauta e
bruçado à janela olhando o rio e mais além o mar, len- vendo peregrinos jovens apoiados a bordões que desci-
do novelas policiais, cada vez mais certo da inutilidade am pelas encostas à procura do leite de um amarelo
de tudo, não via nenhuma brecha por onde entrasse muito claro. Com o vento, a carne se encrespava um
para tomar um rumo diferente. Zoroastro estava atra- pouco, eram dunas, jamais os peregrinos alcançariam o
vessando uma grande fase de jovialidade porque alu- vale para se dessedentarem da água fresca ocul ta no
gara uma casa para os lados de Beberibe e nela hospe- rego. De repente, estourou uma gargalhada, eu me vol-
dara suas vacas: uma morena, uma loura oxigenada e tei e era o rosto avermelhado de Zoroastro olhando para
uma negra. o céu, enquanto Zazá se recompunha e tudo desapare-
- Realizei o m eu sonho - dizia a todo o momen- da.
to. - Sempre quis ter um curral com vacas somente mi- - Que tal, meu irmão? Melhores do que uma bun-
nhas. Acho que vou juntar umas sete. Uma para cada da, posso lhe garantir. Só falta o cheiro.
dia da semana, até o coração agüentar. Domingo você As mulheres me olhavam sorrindo, muito natu-
vai almoçar comigo. rais, e Zezé, a morena, obedecendo a um sinal do gor-
Fui encontrá-lo por volta das dez horas deitado do, já se desfazia do vestido, pondo-se nua à sombra
numa espreguiçadeira, à sombra das mangueiras, as da mangueira.

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- Essa é toda uma perfeição - continuou m eu ami- geladas, enquanto eu sentia, cada vez mais penetrante,
go, com voz de cicerone orgulhoso mostrando uma obra o cheiro da buchada que vinha da cozinha, onde as
de arte. - Faça o favor: olhe os ombros, vá descendo o mulheres tagarelavam e riam sem parar. O gordo me
olhar pela suave curva dos seios, agora estamos no ven- contava uma complicada história de juventude onde
tre batido com o buraquinho do umbigo, o triângulo é surgia uma jovem que engravidava e era expulsa pelo
uma beleza em cima das coxas. Vire-se, menina. Veja, pai, indo morar numa gruta, lá matando uma serpente,
meu irmão, as costas, os quadris, essas nádegas firmes. depois casando-se e desaparecendo da região, mas eu
Já viu uma fêmea assim? não lhe prestava muita atenção, todo o meu pensamen-
Zoroastro babava-se de gozo. to voltad o para aquelas mulheres esquisitas, excitando-
- Agora, vai ver a sua especialidade. Sabe ·qual é? me à imagem dos seios da negra e do esfíncter vaginal
Seu esfíncter vaginal morde mais do que uma boca cheia da morena, desejando descansar o rosto no pássaro pe-
de dentes. Quando a penetro e ela o contrai, por m ais lado da loura oxigenada.
esforços que faça não consigo retirar o m embro. As travessas, finalmente, chegaram fumegantes e
Apanhou uma vela grossa em cima do tambore- nos sentamos à mesa com enormes copos de vinho, de-
te, ao lado da garrafa de cachaça e dos copos, atirou-a vorando aquelas vísceras, os miúdos, os livros, as fo-
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para Zezé que, imediatamente, deitando-se na grama e lhas, as cartilagens, os tutanos, tudo lambuzado pelo
abrindo as pernas, enfiou-a no próprio sexo. Seu rosto pirão e ardido pela pimenta, o suor me corria pela tes-
coloriu-se um pouco, as coxas tremeram levemente e, ta, o carneiro espatifado nos oferecia seus rins, fígado,
inesp eradamente, a vela foi arrem essada contra a man- coração, em pedacinhos contidos no bucho costurado e
gueira, onde bateu com um ruído seco. Zoroastro sau- que, aberto, desprendia um odor de sexos abafados.
dou o feito com palmas e Zezé levantou-se com um Zazá, defronte de mim, me cutucava por baixo da mesa,
agradecimento, à m aneira das artistas de circo, tratan- a perna nua roçando na minha, consegui tirar o sapato
do de vestir-se. Meu amigo estalou os dedos e, de um com a ajuda do outro pé, alcançando seu joelho com o
só golpe, Zizi ergueu o vestido até à altura da barriga, dedo grande. Ela, comicamente, revirava os olhos,
mostrando o sexo. enquanto as outras duas riam e Zoroastro, na fumaça
- É glabra! - gritou Zoroastro. - Se duvida, pode do vinho, sorria beatificamente, engolindo grandes bo-
aproximar-se. cados, mastigando alto, a gordura lhe escorrendo pelos
Fui até junto da mulher e toquei-lhe o púbis com cantos da boca, a apoplexia não teria melhor ocasião
a palma da mão. Era como um filhote de pombo, recém- do que aquela. Parei um instante para olhá-lo no ato:
nascido, ali jamais houvera pêlos, p alpitava um pouco comia com o corpo todo, a comida lhe entrava pelos
e o clitóris, avermelhado, apontava entre os lábios. Ela olhos e até pelos ouvidos saíam tripas finas, as narinas
deixou cair o vestido enquanto meu amigo, que se le- acesas como as de um garanhão, as mãos eram garras
vantara, descansava a mão gorda em meu ombro. destripando pedaços, os perdigotos saltavam nas gar-
- Não sou d ono de umas belas vacas? Vamos, galhadas e as travessas diminuíam rapidamente entre
meninas, para dentro, queremos almoçar. um cálice de cachaça e um copázio de vinho. Afastei
Fomos para o alpendre, em cortejo. Zoroastro fa- meu prato com uma pontinha de repugnância, acentu-
lando sem cessar, abancamo-nos em tomo de cervejas ada pelo arroto formidável do gordo e seu comentário:

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- Agora tem mais espaço. Zoroastro, que bons astros me levavam até lá, se eu
Atacou tudo como se estivesse começando e eu q ueria um doce, que havia sido ótimo ter ido para que-
me sentia fascinado. As mulheres apoiavam os rostos brar a chatice daqueles dias da semana que se arrasta-
nas palmas das mãos e os cotovelos na mesa, éramos vam em busca dos domingos, conversas desse tipo. Fiz-
espectadores do festim para um homem só. Ele piscava lhes a proposta:
um olho e se exibia, o porco vermelho de roupa man- - Que tal irmos tomar banho em Passarinho?
chada, que sua roupa tam bém comia, ainda sobravam Era um local de banhos de safadeza, com vários
migalhas para o chão. Fui para a varanda, enquanto ele remansos à sombra de mangueiras, cajueiros, manga-
gritava: beiras, verdadeiras casas de tolerância naturais, os ca-
- Não quer sobremesa? Tem doce de jaca. sais ou os grupos respeitando o privilégio de quem se
Nada respondi e espichei-me na rede, ouvindo as apossasse do primeiro e não os perturbando jamais. As
risadas, o barulho dos pratos, o arrastar de cadeiras, a mulheres se entreolharam e caíram na gargalhada, acei-
tagarelice das mulheres, os urros de Zoroastro. A brisa tando o convite com alvoroço. Saím os num grupo ale-
soprava e com ela adormeci, à sombra. gre, debaixo do sol quente, parando para comprar uma
Quando acordei a casa estava silenciosa e a tarde garrafa de cachaça numa bodega e cajus amarelos numa
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caía. Com um gosto de azinhavre na boca atravessei as quitanda, elas corriam como crianças em férias e eu. as
salas sem procurar ninguém e caminhei para o poste pajeava alegremente com brincadeiras malucas.
do bonde, naquele domingo melancólico de caixeiros O remanso escolhido não podia ser mais discreto:
vestidos de branco, crianças nas mesmas brincadeiras, a campina se interrompia na entrada de um túnel natu-
famílias com cadeiras nas calçadas, moças casadouras ral formado por árvores fechadas e a águ a estava
perfumadas para a atração, todos já com a tristeza da salpicada de pequenas estrelas formadas pelos raios de
segunda-feira e a preocupação das ingentes tarefas. sol que conseguiam atravessar as copas. A garrafa pas-
Durante a semana não consegui tirar da cabeça sou de boca em boca, a aguardente adoçada pelos ca-
as mulheres de Zoroastro. Como num quadro surrealista jus. Sem nenhum aviso, iniciei a festa despindo-me ra-
eu via o esfíncter vaginal descansando num dos enor- pidamente, um cigarro aceso na boca, elas riam alto, os
mes seios pretos, enquanto, do outro lado, o sexo glabro olhos brilhando, pararam um instante, mas Zazá me se-
abria sua boca vertical num sorriso vermelho. Mas tam- guiu e num segundo exibia os seios pretos como azeito-
bém os via separadam ente, ora um, ora outro, numa nas descomunais. Logo, todos estávamos nus e eu me
planície verde absolutamente sem acidentes perdendo- extasiava com aqueles corpos de tonalidades diferen-
se no horizonte; contra uma montanha ou no azul do tes, todos bem feitos, naquela sombra amarelo-azulada,
céu; n uma parede am arela; boiando sobre a face das os pêlos levemente eriçados pela brisa fresca. Uma ti-
águas. A lembrança d a água me trouxe a lembrança do nha a perna direita m eio curva, numa postura galante,
rio e foi isto que me deu a idéia. Numa tarde de quin- outra erguia um pouco o braço deixando ver a penu-
ta-feira pedi licença a Zoroastro pa1;a faltar à Olimpo e, gem acetinada da axila, a glabra descansava a mão so-
a fim de andar mais depressa, tomei um carro de praça bre o ventre, o dedo indicador um pouco destacado
para Beberibe, onde ficava a vivenda do chefe. As mu- como se de propósito apontasse o vale liso. A fumaça
lheres me receberam com alvoroço, indagando de do cigarro m e queimava os olhos semicerrados, mas eu

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nada perdia do quadro, de pernas abertas bem planta- às cegas para as três matrizes mas sem jamais atingi-
das no capim, enquanto o membro se ergwa e aponta- las. Os últimos jatos que chegaram à superfície foram
va para as carnes, latejando em pequenos impulsos, pul- saudados com palmas pelas mulheres e eu fingi mor-
sando, distendendo-se como se fosse destacar-se do meu rer, desaparecendo num mergulho prolongado para sur-
corpo. Os risos eram comentários que substituíam as gir à margem do rio, provocando outras gargalhadas.
palavras, nos entendíamos com gestos e trejeitos, quase Estávamos deitados, os quatro, deixando que a
dançávamos, eu tinha cada vez maior consciência do água secasse por si mesma, o capim me provocava uma
quadro fixado na paisagem e as mulheres fizeram um ligeira comichão nas nádegas e costas, elas de olhos fe-
movimento único num salto para o espaço. Eu me jun- chados, mas eu com os meus bem abertos para admirá-
tei a elas e iniciamos uma dança desordenada, ofegan- las quando, de repente, rompendo a folhagem, ouvi-
tes, aos trambolhões, as gargalhadas cresciam, o cheiro mos que alguém se aproximava, pelo barulho dir-se-ia
subia dos lugares que cheiram, caímos e rebolamos na um animal de porte avantajado, as mulheres encolhe-
grama, para logo nos levantarmos, correndo em dire- ram-se assustadas, eu apenas me ergui um pouco, apoi-
ção à água, mergulhei primeiro, a frieza líquida quei- ado num cotovelo, e esperei: Zoroastro estava diante
mou minha pele, boiei, recebi uma folha seca na cabeça de nós, avermelhado, bufando, querendo mas não
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molhada, num movimento de cão balancei a cabeça e podendo abrir a boca para falar. Levantei-me e encarei-
chamei-as com as mãos como borboletas prateadas, já o, deixando que se recompusesse e dissesse o que teria
estávamos aos brincos, éramos crianças, boiavam os sei- para dizer. Falou, finalmente, aos pedaços:
os de Zazá como nádegas de peixe-boi, separando as - Nunca ... pensei... nunca ... Você ... você
águas e orientando dois pequenos filetes, à flor d'água roubou ... as minhas vacas!
surgia o sexo liso de Zizi, crustáceo desconhecido na- - Estávamos apenas tomando um banho, Zoroas-
quelas paragens intrigando os peixes pequenos ainda tro - disse eu.
mal nascidos para a vida, Zezé navegava de lado, com Ele, então, fez uma coisa que me abalou: sentou-
os quartos abrindo sulcos líqwdos, ludibriava o vento se no capim e pôs-se a chorar, a cabeça enterrada nas
que fingia adormecer um instante para voltar em movi- mãos, o corpanzil agitado por soluços. Olhei de lado e
mentos caprichosos, enquanto meu cetro, subindo e bai- vi que as mulheres, já vestidas, escapuliam por entre a
xando, navegava por entre aquelas ilhas, tocando aqui folhagem. Aproximei-me do gordo e coloquei uma mão
num pé, ali numa orelha, acolá numa coxa, em redemo- em seu ombro, mas ele, num repelão, afastou o gesto,
inhos luxuriantes, um raio de sol muito fino e mwto falando sem mostrar o rosto:
reto trespassando o toque ao rubro, a ramagem se incli- - Eu considerava você um irmão. E me fazer uma
nava cada vez mais, num mergulho o sêmen esguichou coisa dessas! Três vezes traido! Três vezes.
espontaneamente e surgiu na superfície de súbito cal- Apanhei a roupa e, andando, fw me vestindo,
ma para recebê-lo, em pequenos grumos branco-amare- afastando-me do lugar, ouvindo apenas os soluços de
lados, duzentos milhões de seres espalhando-se por Zoroastro. Antes de entrar no bosque voltei-me e lá es-
aquelas paragens, vindos de tão longe, a princípio em tava ele, agora deitado de bruços, a cabeça mergulhada
blocos, depois cada vez mais dispersos, tontos, afoga- no capim, as costas subindo e descendo no choro.
dos, asfixiados, engolidos por pei>ánhos, orientando-se

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procurar chefes de fumas que tinham relações com a
Olimpo, que Zoroastro já devia ter rasgado a minha fan-
tasia, bloqueando os prováveis empregos. Nu e deitado
na cama de colchão duro, a janela abrindo para o rio e
para o mar, o vento zunindo naquele terceiro andar,
fumei dezenas de cigarros, pensando em voltar a
Palmares, mas afastando a idéia de enfurnar-me na ci-
dade pequena para onde escrevia ao Capitão contando
2 mentiras descabeladas a meu respeito, no rrúnimo apa-
A eamomia é uma das formas da covardia. recendo como sócio do Jóquei Clube e orador do Clube
Provérbio japonês de Tênis de Boa Viagem, ganhando um bom salário e
vivendo a vida forra.
No terceiro dia, depois do jantar, ganhei a rua, de
propósito evitando a travessar a ponte para não encon-
trar caras conhecidas nos cabarés, preferindo, antes, ver
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o mulherio da rua das Flores. Estudantes formavam fi-


las diante da casinha de Elvira, a Boceta Universitária,
cinco mil-réis por coito. Na rua estreita desfilavam ma-
rinheiros, empregados de comércio, embarcadiços, numa
algazarra, entrando e saindo de pensões, bebendo cer-
vejas e comprando camisas-de-vênus em tabuleiros. Na
Fui expulso da Olimpo. Dois dias depois do ba- pensão de Margot, uma velha francesa de verruga na
nho no Passarinho recebi, num envelope comercial, a ponta do nariz, as mulheres sentavam-se, muito tesas,
comunicação oficial que se fazia acompanhar de um mês em cadeiras encostadas à parede, expostas aos visitan-
de salário, além de uma declaração, a quem interessar tes, de vez em quando uma delas, a um sinal de dedo,
pudesse, onde se afirmavam as minhas qualidades de levantando-se e caminhando com um homem para os
empregado competente, nada desabonando a minha con- quartos nos fundos. Passei a vista na mercadoria, mas
duta, da fuma me retirando por livre e espontânea von- nenhuma me agradou e já ia saindo quando ouvi um
tade. Assinei o recibo de quitação, rasguei os dois do- barulho, as mulheres correndo assanhadas para a porta
cumentos e meti o dinheiro no bolso, vendo-me, assim, que dividia a casa, todas na ponta dos pés querendo
sem eira nem beira. Passei dois dias trancado no meu ver a cena. Corri também. Um homem, nu, com uma
quarto de pensão quebrando a cabeça para descobrir tatuagem de sereia desenhada na barriga, reclamava o
caminhos, mas reconhecendo no final que teria de con- tratamento que recebera por parte de uma das mulhe-
fiar tudo ao acaso, desconhecido como era na cidade, res. Margot, de cigarro no canto da boca, esforçava-se
meus conhecimentos limitando-se apenas aos escassos para entender os desaforos, de repente pondo a mão
farristas de cabaré, alguns vagabundos do cais do porto amiga no ombro do freguês com o intuito de acalmá-
e umas tantas prostitutas. Nem por sonhos gostaria de lo, gritando para dentro:

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- Judith! Viens ici! ô, gê, agá, galega,
Um instante depois e a mulherzinha apareceu, so- é Ungua grega,
mente de combinação, acanhada, como uma menina é grega Ungua,
apanhada em falta. Margot investiu para ela, enquan- é gê, lê, grê, agá.
to o homem, de m ãos nos quadris, esperava o resulta-
do. Andei rua abaixo e rua acima acenando para mu-
- Comme est esse negoce qui l'homme faire la lheres, recusando convites, espiando os tipos, entrando
reclamation qui vous non chupe la pique? Pourquoi, e saindo das pensões, ouvindo gargalhadas, piadas,
alors? Pourquoi? cantorias, vendo os pares que desapareciam nos quar-
Judith, convencionalmente, torcia um pedaço do tos, outros que saíam ainda se recompondo, a mulher
tecido, sempre de cabeça baixa, apanhada em falta. novamente se postando na janela pronta para outro en-
- Je chupe la pique encore pra ganar une misêre contro, o homem se perdendo no fim da rua, saciado,
de vingt mil par jour. Toma vergonha na puta da carra! quase sempre enojado. As orquestrinhas misturavam
Pôs o braço, amigavelmente, nos ombros do ho- suas melodias, todo o ar se impregnava do cheiro de
mem, conduzindo-o para o interior, enquanto arrema- perfume barato, álcool, desinfetantes, cigarros e charu-
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tava: to, suores. Abanquei-me numa salinha diante dum gim-


- Monsieur, retoume ici n'autre semaine qui Judith tônica e comecei a embebedar-me metodicamente, sor-
chupe la pique de signeur. Oui, oui? vendo pequenos tragos, enquanto as mulheres
Judith ainda permaneceu de cabeça baixa duran- continuavam no seu vaivém, vez por outra uma delas
te alguns instantes, mas inesperadam ente ergueu o ros- sentando-se ao meu lado, bebendo um gole do meu
to e, em contraste com a sua atitude, tinha um ar brin- copo, formulando o convite e sendo recusada, apalpa-
calhão. Piscou para o nosso grupo e entrou no quarto. va-me, eu tocava nos seios moles, deslizava a mão na
Sai para a rua. Um mulato muito magro rodopiou coxa macia, apenas uma leve ponta de desejo, não esta-
na frente de um grupo de mulheres tocando bandolim va para o sexo. Somente quando me senti bastante bê-
e cantando com voz de falsete: bado é que fui para a cama com uma delas, levantan-
do-me depois para vomitar e tornar a beber, e outra
Ai, venha cá, minha nega, vez copular, e de novo vomitar, e voltar à bebida. Du-
ô, gê, agá, galega, rante três dias não sai daquela zona, comendo o míni-
é lfngua grega, mo e bebendo o máximo, já não conseguia coordenar
é grega língua, as idéias, tudo girava à minha volta e tinha dificuldade
é gê, lê, grê, agá. de falar, imundo, do meu corpo subia um odor de lama.
6 gê, lê, grê, agá, minha nega. Até que o dinheiro acabou e vol~ei à p ensão, caindo na
eu atirei no pé da pega, cama para dormir vinte e quatro horas seguidas.
vi o peneiro avoá. Despertei e era noite. Então caminhei pelo corre-
Mas se essa pega se soltá dor, olhando as portas de um e outro lado, fechadas,
e essa nega não pegá, guardando segredos, davam-me a impressão de sentine-
ai, que eu pego essa nega, las, atrás de uma delas estava o casal que espiávamos

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por um buraquinho habilmente feito no tabique: ele for- fininhos, cortando-me por dentro com mil navalhas afi-
rava um lençol no chão, já despido, ela se desnudava adas que rangiam no esmeril do Capitão, a mão dece-
vagarosamente, acocorava-se em seu rosto, ele, aos pou- pada criando asas e voando por todas as dependências
cos, entrava em ereção, passavam para a cama e jamais da pensão, alcançando as partes íntimas de damas e ca-
se possuíam que não fosse na posição normal, bem com- valheiros, aceitando umas e repugnando outras, embo-
portados, medidos. O corredor da pensão assemelhava- ra num prazer muito secreto, esmagando sapotis que ca-
se vagamente a todos os corredores do passado, sobre- íam mordidos pelos morcegos, ainda verdes, seus bagos
tudo os da infância, eram um túnel onde se poderia transformando-se em notas de dinheiro, ensebadas, mas
encontrar surpresas, dentro de mim jamais partiam de valiosas, aceitas para a compra de cromos, medalhas,
um ponto determinado, milito menos atingindo um lu- alfenins, muitos anos depois cortando em diagonal as
gar fixado, um estado a outro, da vida à morte, da pre- pág inas de um livro com iluminuras, onde um frade re-
meditação ao acaso. Eu corria no corredor em direção a dondo ostentava um príapo róseo, a batina sustentada
alguma coisa que não sabia o que fosse, sentindo-me nos dentes de rato, os olhinhos redondos, apontado para
cansado, arfante, preguiçoso, fina lmente parando na as nádegas ainda mais róseas de um adolescente
metade do caminho e uma mão segurava a minha, con- coroinha, enquanto uma monja espiava pelo buraco da
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duzindo-me para um quarto escuro onde somente os ru- fechadura, também de hábito erguido, a fenda cor-de-
ídos, de bichos e homens, onde somente o tato, de coi- rosa despontando no meio da mata escura e as coxas
sas e carne, indicavam-me o mundo. Até que se acendia desmedidamente grossas. As idéias estavam mutiladas
uma lâmpada e e u ficava, fascinado, olhando o fio de pela me tade e as palavras n ão chegavam a formar-se
tonalidade verde, as sombras no teto, a luz no chão, a completamente: ... sivo . .. tório ... lhadq... tado ...
forma da lâmpada associada a peras geladas, seios, bun- ragem... sempre o final, com exceção dos monossílabos,
das-de-chupeta, glandes dilatadas, mamadeiras, uma era uma castração e as letras pendiam, inertes, vagamen-
enorme gota d'água, uma lágrima grossa como punho te balançadas pelo vento que entrava pela janela e con-
dos folhetins de Perez Escrich, mas sempre sa lpicada de seguia erguer uma ponta do lençol manchado pelo san-
bosta de mosca, balançando levemente de um lado para gue dos percevejos, sangue que de mim viera e me
o outro, um dia morrendo para voltar à escuridão, eu nauseava, enquanto eu, no meio do quarto, fazia gestos
tateava à sua procura, encontrava-a, desligava-a do que não estavam jamais de acordo com as palavras que
suporte e, chegando à janela, atirava-a ao calçamento, cuspia para as paredes, os próprios pensamentos cons-
ouvindo o estouro. No banheiro, tudo era pegajoso: o truindo um terceiro caminho, vez por outra colocando
mosaico em verde e marrom com as flores viscosas, a uma mão nos quadris ou fazendo que ela dançasse no
bacia da privada, as paredes limosas. O sabão escorre- ar em ritmo de castanholas, defronte do espelho consi-
gava, com os olhos fechados eu o procurava na banhei- derando-me vagamente homossexual por uma maneira
ra escorregadia e tocava numa lesma que subia do es- peculiar dos olhos, um torcer de boca, uma contração
goto. Então sentia um corte dentro de mim, uma parada dos músculos, embora o ânus nada acusasse de pareci-
súbita, balançava a mão para livrar-me da gosma e, de do, antes contraía-se como o dos oradores de praça pú-
repente, os dedos estavam ligados por visgo de jaca blica ao receberem uma ovação ou uma vaia. Assumia
com o patas de passarinho com gritos esfiapados, agudos, uma atitude de ator e improvisava uma tirada trágica

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para, sem mutação, descarregar um fluxo de palavras tifóide, parto. Corria para a janela da frente e via a pon-
cômicas como oxalá, outrossim, quiçá, mancebo, senão te do lado direito, em ferro velho, ligando as margens,
vejamos, amigo atencioso e obrigado, salvo erro e omis- deixando o rio livre, com os pilares gemendo contra as
são, embora terminasse batendo nos peitos e murmuras- baronesas e envolvidos pelos crustáceos, sobretudo as
se, corno as beatas, Cordeiro de Deus que tirais os peca- ostras, em cima dela desfilando as pessoas mais diferen-
dos do mundo, doce Jesus, aleluia, clarins d a glória, tes, ligando dentro de mim o nada ao nada ou o perce-
sacrossanto, dançando no assoalho à maneira efeminada vejo da cama ao mastodonte de César Cantu, os simpá-
dos bailarinos, leve como uma pluma ou pesado como ticos aos antipáticos, as vítimas aos assassinos, os
um elefante, parando ofegante e, outra vez diante do es- roedores aos carrúvoros, o sangue aos ossos, os voado-
pelho, querendo transmitir para mim mesmo, por rrúmi- res aos quintonianos, a p eçonha à cobra.
ca, outra coisa que não eram os meus pensamentos, que Sentado na cama estava e sentado fiquei, o cigar-
todos giravam em torno de fatos obscenos, de tudo re- ro esquecido entre os dedos, olhando sem ver as nu-
sultando que os tais gestos, horas depois, eram sempre vens que se deslocavam, a tarde passando para a noite,
os mesmos. O suor me corria pelo corpo e, para re- comprazia-me em recordar fatos passados e estórias con-
frescar-me, debruçava-me à janela do oitão e avaliava as tadas como a daquela mulher que meteu na cabeça fa-
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casas, a começar pela igreja dos ingleses que ficava bem bricar ouro, saindo de madrugada para catar nos ve-
defronte, amparada por árvores de um verde escuro, a lhos qui nta is de Palmares qualquer a dereço o u
grade abraçada pela hera e as colunas gregas perdendo bugiganga que tivesse urna cor dourada, inclusive pe-
o branco, de lá subindo urna sensação de frieza. Corria daços de cobre e latão, pondo tudo a ferver num tacho,
o olhar ao longo da rua e via as outras casas mudando a fogo lento, desesp erando-se e emagrecendo n a
conforme fosse noite ou dia, cada uma com o seu limo, impossibilidade, até que passou a querer comprar obje-
o lodo, as janelas pintadas de verde ou vermelho ou mar- tos caros com moedas realmente da cor do ouro, desco-
rom ou branco ou amarelo desbotado pela chuva ou azul brindo-se logo que se tratava de vinténs que ela, com o
queimado pelo sol, as portas seguindo o mesmo desti- auxílio de cinza e limão, esfregava no cimento até con-
no, os jardins mal ou bem tratados com as mesmas flo- seguir o brilho, o amarelo. Podia ser vista pelas ruas,
res: uma rosa-chá, uma papoula, um cravo-dedefunto, um tabuleiro na cabeça, gritando com voz fanhosa:
uma sempre-viva, um jasmim, a grama tostada e alta "Ouro! Ouro! Vende-se ouro!"
com ervas daninhas; recortadas contra o céu que mal Senti que não estava sozinho no quarto e, real-
variava durante oito meses do ano. Eu tinha o cuidado mente, voltando-me, avistei um vulto enquadrado na
de examinar, de longe, as figuras formadas pelo mofo e porta quase na escuridão: vestia urna capa de gabardi-
a mudança que nas casas se operava: alegres ou tristes, ne, as mãos nos bolsos, o chapéu desabado sobre os
meditativas ou cômicas, às vezes trágicas, dependendo olhos, imóvel, apenas a perna direita balançava ritmada
da lua, do sol, da chuva, da neblina, das nuvens, de uma e apressadamente. Não falei logo, tentando reconhecê-
moça ou de um velho que assomava à janela, em rela- lo ou apreender suas intenções e quando a voz me saiu
ção à rua brigando urnas com as outras em tamanho, cor, da garganta eu a ouvi como se se tratasse da de outra
avanço, abastança, uma janela iluminada na madruga- pessoa.
da fazendo-me pensar em crime a punhal, cópula, febre - Quem é o senhor?

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A resposta foi uma gargalhada do homem que forma, onze ejaculações livraram a filosofia b rasi leira
avançou no aposen to, descobrindo-se e apertando-me de onze p laquetes.
nos seus braços. Era LL. Refiz-me do susto, também às -E como se arranjou?
gargalhadas, sentamo-nos na cama. - Arranjei um emprego num compartimento do
- Por esta você não esperava, hein? - falou meu mercado para vender alpercatas, redes, chapéus de pa-
arrugo. lha, essas porcarias todas. Só então mandei notícias para
Já estávamos fu mando e mergulhados na prosa. o mano, aquele que tem uma garagem na rua da Con-
Chegara naquela manhã da Bahia, a chamado de um córdia, você sabe. Agora, ele me mandou buscar. Acho
irmão, o perigo, se não passara de todo, p elo menos que não vai acontecer nada, no Brasil a gente se esque-
podia ser evitad o, a polícia já pouco interessada na pri- ce de tudo e se for preciso eu dou até a bunda ao chefe
são d e intelectuais comunistas. de p olícia.
Riu largamente e era o mesmo riso. Pegou-me pelo
-Quando saí da Detenção - contou LL - tomei o
braço e pediu-me notícias minhas. Con tei-lhe, resumi-
primeiro trem na Estação Central e fui parar em Rio
damente, tudo o que me acontecera depois que nos ha-
Branco. De lá, em caminhão, toquei p ara a Bahia, dor-
víam os separado .
.mi em pés de escada, alim entei-m e de sobras, a té que
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- Quer dizer que está liso e sem emprego? Por


me lembrei de um velho amigo dos temp os de Oxford,
o Pedro Sebip ira, professor na Faculdade de Filosofia, hoje não tem importância, a gente pensa nisso amanhã.
Vamos sair por ai.
com o defeito de ser católico cheio de preconceitos, m as
m e acolheu de boa vontade, embora tentando doutri- Jan tamos num pequeno restaurante discreto do
nar-me. Enquanto arranjava um emprego deixei-m e por Cais de Santa Rita e depois fomos para a zona das
m ulheres, onde nos embebedamos, voltando para dor-
lá ficar, comendo os seus p irões.
mir no quarto da pensão, LL estirado no assoalho, en-
LL levantou-se da cama, foi à janela e lançou um
volvido no lençol, ouvi novamente os seus roncos e as-
olhar largo pela cidade.
sobios.
- Já estava com saudades dessa merda - disse. Durante uma semana trocam os pernas pela cida-
Postei-me ao seu lado. de, à noite LL sempre metido na capa de gabardine e o
-E ficou em casa desse Sebipira até agora? chapéu desabado sobre os olhos parecia uma figura de
- Que nada! - exclamou o arrugo, cuspindo p ara novela policial, evitando as ruas mais movimentadas e
a rua e acompanhando a queda do cuspo. - Não agüen- os lugares de reunião. No m ais, era o mesmo d e sem-
tei muito tempo. Não suportei os seus m odos. Sebipira pre, falando pelos cotovelos e bebendo garrafas de cer-
trancava-se todas as noites no gabinete, traduzia umas veja enq uanto tivemos dinheiro. Mas chegou o dia em
cinco p áginas de Kan t, outras tantas de Spinoza ou q ue ficamos comple tamente lisos, a dona da pensão me
Hegel, fazia de tudo um resumo que lia em voz alta, ameaçando constantem ente, fazendo barulho pela dor-
rasgava-as e ia p ara a cam a fazer um menino na mu- mida de LL, não querendo fornecer o alm oço que eu,
lher. Já tem onze. A filosofia era a sua literatura eróti- quase semp re, levava para o quarto e dividia com o
ca. Você suportava um tipo desses p or muito tempo? - arrugo. Foi então que encontramos Laurita, afastada
Antes que eu respondesse acrescentou: - De qualquer da prostituição de p orta aberta para amigar-se com um

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sujeito do interior que só aparecia aos sábados. Assim, apresentou ao coronel como primos recém-chegados do
nosso problema resumiu-se ao fim de semana, nos ou- sul, fingimos um sotaque carioca falsificado e lá fica-
tros dias dormíamos na cama larga de Laurita, os três, mos dormindo no divã da sala de visitas, naquele se-
com direito ao café da manhã. A convivência ficou de gundo andar da rua do Rangel. O homem era ingênuo
tal modo normal que já nem tínhamos mais relações e boa praça, muito admirado dos costumes dos sulistas
com ela, que nos contava sua vida de maneira engraça- e da fala, que lhe impingíamos histórias mais próprias
da, achando humor nas coisas mais negras. de japoneses, poloneses, noruegueses que de brasileiros.
Acordávamos, tomávamos o café e saíamos para "É outro mundo", dizia ele, enrolando o cigarro de fumo
a rua à caça de empregos, aprendemos a viver de bis- desfiado. Na segunda semana consegui arrancar-lhe cem
cates. Durante uma semana LL viveu de escrever cartas mil-réis, sob o pretexto de que o banco atrasara a re-
para um português do Cais de Santa Rita, cartas amo- messa que meus pais haviam feito. Passamos uma noi-
rosas dirigidas a uma senhora casada, jamais respondi- te de bebedeira para amanhecer outra vez sem tostão e
das, enquanto tentei vender bilhetes de loteria aos pas- o jeito foi apelar mesmo para Laurita, de quem, até en-
sageiros da Estação Central, evitando os conhecidos. O tão, havíamos recusado ajuda financeira. Uns trocados
almoço e o jantar eram sempre um problema, mas in- para bonde e cigarros. Durante algum tempo vivemos
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variavelmente comprávamos dois pães besuntados de de pequenas facadas em amigos, LL tendo uma habili-
manteiga na padaria Flor da Penha e, atravessando a dade extraordinária para inventar uma boa história, en-
ponte Maurício de Nassau, à uma hora da tarde, íamos quanto eu o secundava, explorando, sobretudo, sua con-
para o Instituto do Café, onde Resende, um ex-compa- dição de fora-da-lei. Outras vezes levava bilhetes seus,
nheiro de pensão, nos fornecia café em xícaras de bar- quase sempre em versos, a pessoas importantes, médi-
ro, escondidas no arquivo de aço destinado às pastas cos e advogados que também hàviam estado na Deten-
de correspondência. ção.
Passávamos uma vista nos jornais, não somente à Sem que Laurita desconfiasse, aproveitando uma
cata de emprego, mas para tomar conhecimento dos das suas ausências conseguimos abrir um buraquinho
óbitos importantes, com carros à disposição na Casa no alto da parede onde nos revezávamos nas noites de
Agra, agentes funerários. Então nos abancávamos num sábado espiando seus amores com o velho, tristes amo-
Chevrolet ou num Ford e acompanhávamos o féretro, res onde ela se esforçava em devolver-lhe a virilidade
ora como amigos, ora como parentes. Quase diariamente quase perdida, lançando mão de toda a técnica para
fazíamos uma visita ao cemitério de Santo Amaro, pas- reavivar a chama, o homem mais morto que vivo, ala-
seando por entre os túmulos de mau gosto, acenando gado de suor no fim do ato caricato.
para os anjos, as efígies, as estátuas, de cada vez desco- Nos~o abrigo teve um fim quando os filhos do
brindo inscrições curiosas: "Saudades mais do que eter- Tavares, que assim se chamava o amante, invadiram a
nas do seu amantíssimo esposo", "Aqui jaz uma alma casa de Laurita dando-lhe uma surra e quebrando tudo
pura", "Espera-me no céu, querida", "Aqui jaz Clotilde o que podia ser quebrado. Laurita voltou à pensão de
AJves de Lima, inupta". Alzira e nós aos bancos das praças do Recife, os ami-
Quando chegou a estação invernosa a situação gos enfastiados dos empréstimos jamais resgatados, nos-
se complicou, mas Laurita, cheia de artimanhas, nos sa refeição diária limitando-se ao café com pão do

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Resende. Quando já estávamos desesperados, LL che- uma engrenagem que envolvia párias do Extremo Ori-
gou com uma notícia salvadora: arranjara-me, com o ente e matutos do interior de Pernambuco. Até então, o
irmão da garagem, um lugar numa companhia de pe- mecanismo da vendagem de gasolina me parecera nor-
tróleo, a Glory Oil Company of Brazil. Lembro-me da- mal, eu não o realizava daquele modo, as bombas asse-
quela sexta-feira ensolarada quando me apresentei ao melhando-se a estranhos habitantes dum outro planeta,
Cavalcanti, chefe do escritório, homem alto, alourado e apenas de longe, da outra margem do rio, distinguia os
cantudo que - eu verificaria depois - vivia das glórias enormes depósitos de gasolina ou querosene com as le-
do pai, um ilustre historiador falecido. Postaram-me di- tras azuis ou vermelhas diferençando a Glory Oil da
ante duma máquina de escrever para o necessário teste Texaco ou da Atlantic. Mas ali estava uma das células
e eu batuquei o maldito texto em inglês apenas com que manobravam tonéis, latas, caminhões-tanques, bom-
dois dedos, policiado pelo funcionário que ostentava um bas, borrachas, óleos finos ou grossos, fluido para is-
sorriso irônico, não se contendo mais diante de minha queiros, postos, homens de maior ou menor posição,
imperícia: tudo através de letras, telefonemas curtos ou longos,
- Parece um frango comendo milho. telegramas, obedecendo a instruções do suJ do país pro-
Depois vieram as inevitáveis cartas de solicitação venientes dos Estados Unidos, milhares e milhares de
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de emprego, de resposta a um pedido de cem tambores pessoas ligadas à Glory Oil, direta ou indiretamente,
de gasolina, de cobrança de um débito. Findo o martí- comendo peru à brasileira ou charque com feijão, be-
rio, agarraram toda aquela papelada e pediram-me com bendo uísque ou cachaça, vestindo linho irlandês ou
voz de coveiro que voltasse na próxima segunda-feira. m acacão de m escla, puxados por cordéis invisíveis mas
Na manhã do dia marcado, mais como quem vai para no entanto existentes, numa confusão de línguas e sons
a forca, Já estava eu, para ouvir a sentença condenatória. que atravessavam os ares e os oceanos, sem possibiJi-
-Só tem lugar de contínuo. Interessa? dade de erro, qualquer pequeno deslize sendo punido
Durante dois meses servi cafezinho aos funcioná- com a maior severidade. Ali, os homens não contavam;
rios, copos d'água com analgésico ao Mr. Bruce, o ge- só os números, que atestavam o aumento das vendas
rente, permanentemente embriagado, ia e voltava da rua convertidas em mil-réis e transformados em dólares para
com sanduíches, colocava selos nos envelopes e os le- um casaco de peles, um diamante, um iate, de qual-
vava para o correio, tudo contra a fantástica quantia de quer modo tão estranhamente ligados à lama, à fome, à
cento e setenta mil-réis por mês. Se queria fumar um doença, ao desespero. As máquinas de somar vomita-
cigarro trancava-me no sanitário e ficava ouvindo o ba- vam compridas e estreitas folhas de papel grávidas de
rulho das máquinas de escrever, as ordens expedidas números, uma fração do mil-réis era procurada com afã
em poucas palavras, o ruído de ferro velho do eleva- como se se tratasse de descobrir a cura para o câncer,
dor. Olhava aquelas três dezenas de escravos, curvados um erro d e soma provocava uma verdadeira avalanche
sobre os papéis amarelos, cor-de-rosa, azuis claros, ma- de correspondência, a subtração de dois litros de gaso-
nuseando as folhas de carbono, escrevendo, sempre es- lina poderia ter conseqüências que iam da repreensão
crevendo peJos meios mecânicos ou com lápis de pon- ao interrogatório policial. Um ou outro dos funcionários
tas afiadas, empenhados numa tarefa de que eles tinha humor, quase todos se curvavam obedientes
mesmos não tinham consciência, simples nomes em toda sobre os relatórios e os mapas, saindo às carreiras ao

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bater das seis horas da tarde, fugindo do ambiente, mas O dia seguinte já me viu na rua tratando dos pa-
fazendo prevalecer, cada um, a importância do cargo. péis necessários à inscrição na Escola de Engenharia,
Eu estava no fim da escala, juntamente com Anastácio, contratando professor particular para cumprir o progra-
o negro, o outro contínuo, já com dez anos de serviços, ma de matemática dentro de dois meses, à tarde apre-
fatalista, quase nunca pronunciando uma palavra, ja- sentando-me ao chefe da tal seção técnica, um gringo
mais uma frase, a não ser "Sim, senhor", andando de- de cara fechada que me recebeu sem ao menos erguer
vagar para ganhar tempo, nos olhos o ódio concentra- a cabeça de uma ficha que estava consultando, apenas
do. Descobri, depois, que ele cuspia nas xícaras de café com o dedo indicando-me o lugar onde me sentaria dali
e nos copos de refresco que servia ao pessoal mais por diante. Meu primeiro ato, após arrumar as gavetas,
graduado. Adotei sua forma de vingança e me senti foi tocar a campainha chamando Anastácio.
melhor. - Traga-me um refresco.
No fim de dois meses fui chamado à subgerência, O preto não manifestou nenhuma surpresa, mur-
que havia sido ocupada por um cara chegado do sul, murou o "Sim, senhor" e logo depois voltou com o copo
de voz suave e aveadada, revelando-se depois, no en- que coloquei em cima da mesa. Durante todo o dia ele
tanto, um dos poucos que se salvavam naquele primei- lá ficou como símbolo de minha posição, que eu não ia
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ro círculo do inferno. beber o cuspo de Anastácio, era claro.


- O senhor tem o curso ginasial completo? Passei, então, a viver no laboratório, estudando
Afirmei-lhe que sim. Então ele me fez a proposta, maquinaria de usinas de açúcar para indicar os óleos
com base na observação dos meses a que me submete- necessários à sua lubrificação; dissecando motores de
ram: mudavam-me para a seção técnica, contanto que automóvel com a mesma finalidade; aprendendo, de
eu me inscrevesse no vestibular de Química Industrial. cor, as tabelas de viscosidade e a finura do produto;
A transferência significava o duplo do salário e apenas lendo uma literatura enorme sobre o petróleo e seus
um expediente no período das aulas. Indaguei-lhe fran- derivados, vistoriando carros-tanques, bombas,
camente o motivo do interesse por mim. oleodutos, navios petrolíferos que descarregavam a
- Você tem pinta para ser um dos nossos - res- mesma essência para as diversas companhias que a ro-
pondeu o subgerente. tulavam com a sua própria marca, toda a publicidade
Senti-me arrasado e já me via, contrito, rastejan- girando em torno de símbolos, cada uma querendo
do aos pés dos mandatários da Glory Oil, mas valia a apresentar um lucro maior. Sentia o cheiro do óleo, da
pena colocar os escrúpulos de lado em honra ao dobro gasolina e do querosene (o nosso tinha como emblema
do que ia ganhar e ao meio expediente, embora me apa- um jacaré nacionalista que me transportava para as la-
vorasse o curso, já que eu não conseguia suportar os gartixas de minha infância, mortas a bodoque e de bar-
matemáticos, homens que pensavam por algarismos e rigas abertas com quicés bem amoladas) no banho e na .
não por palavras, com certeza apreciando o sexo femi- comida da nova pensão, sempre na rua da Aurora, ten-
nino, por exemplo, pelo número de pêlos do púbis, os do LL como vizinho de quarto, que o irmão lhe arran-
centímetros de fenda, a espessura dos lábios, o diâme- jara livre trânsito e ele voltara a ocupar-se com a pa-
tro do orifício. Mas mergulhei de cabeça e aceitei a pro- pelada de despachante. Encantava-me a cor do óleo,
posta do alto funcionário. de acordo com a luz apresentando-se como âmbar ou

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ligeiramente esverdeado, escorregadio, somente no as- no entanto, sentados os três em volta de gins-tônicas,
pecto assemelhando-se ao rícino dos velhos purgantes. dessa vez na pista de danças do Taco de Ouro, à espe-
Metido numa bata branca eu o m anipulava, ima- ra de mulher, lembrei-me do qualificativo de Cláudio e
ginando-me um alquimista medieval, quimera sobre interroguei-o:
quimera, armando equações que me permitissem a des- - Escuta, ó cara, você é colecionador de quê?
coberta da pedra filosofai que me daria, para todo o Ele já ia bebendo, mas parou o gesto, voltou o
sempre, a vida eterna e a potência imutável, além do copo à mesa e sorriu.
poder da transmutação dos metais vis em ouro e pra- - Desculpem - disse, com muita delicadeza - nun-
ta, sobretudo ouro. Mas nada. Me us dedos ficavam im- ca pensei que se interessassem por minha coleção. Que-
pregnados do forte cheiro do óleo e eu tinha sonhos rem. vê-la?
onde me via mergulhado em grandes tonéis, de repente Nossa curiosidade ficou de tal modo aguçada que
enterrando a cabeça naquela matéria para quando re- desistimos de mulher, naquela noite, para irmos em pe-
tornasse à tona ver tudo como a través de uma névoa: regrinação à pensão do amigo, na rua da Concórdia,
a cara do Mr. Bruce, a do chefe da seção técnica, a de por coincidência bem defronte da Agência Olimpo. Su-
Cláudio Sobral, o único colega com quem me dava, su- bimos os dois andares crivando-o de perguntas, mas
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jeito ambicioso que sonhava com um concurso para o ele só fazia dizer:
Banco do Brasil, onde acabou m esmo vários anos de- - Esperem, esperem... Deixem de ser curiosos.
pois, de barriga crescida pelo comodismo. Na época, O quarto de Cláudio tinha as paredes cobertas
porém, era um tipo, com quem passei a sair nas noites com fotografias de mulheres nuas, aquelas detestáveis
de folga das aulas, isto é, sábados e domingos, junta- fotografias onde o púbis é retocado para aparecer liso,
mente com LL. dando-nos a sensação ao mesmo tempo atraente e re-
Comparecíamos, graças a ele, a umas festinhas pulsiva de estarmos tentando estuprar menores de doze
familiares, bolinando umas mocinhas cloróticas, mas anos. Uma cama, um guarda-roupa e uma mesinha
onde tínhamos a oportunidade de forrar a barriga com constituíam o mobiliário.
quitutes caseiros. A princípio não liguei importância ao - Essa é a coleção? - perguntei, apontando para
seu modo de corresponder a uma apresentação: as fotos.
- Colecionador - cumprimentava ele, risonho. Cláudio foi à mesinha, abriu a gaveta e dela reti-
Eu dizia sempre para LL: rou um livro, ricamente encadernado, nome do autor
- Esse Cláudio é uma bola. Colecionador! e título gravados em letras douradas: Visconde de
E nunca lhe perguntávamos de quê. Preocupava- Taunay, Inocência. Sentamos os três na cama, ele no
se muito em ter sempre uma namorada e mal acabava meio, suas mãos tremiam levemente. Quando virou a
um namoro já o sabíamos às vol tas com uma morena capa vimos uma folha em branco e, à medida que ele
do Largo da Paz ou uma loura da Benfica, dançando passava as outras páginas, constatamos a mesma coi-
no Clube de Tênis de Boa Viagem ou no Palacete Azul sa.
do Jóquei Clube onde, afinal, entramos como sócios para - Esse é o prefácio - disse.
nos divertirmos em meio mais familiar nas tardes de - Prefácio de que, porra? - não se conteve LL.
domingo ou dançar nas festas tradicionais. Uma noite, - De minha coleção - afirmou.

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Virou a última página em branco daquilo que cha- Ficamos caJados. Acendi um cigarro e fui à jane-
mava o prefácio e, na seguinte, ao alto, um nome de la. De lá, ouvi LL perguntar a Cláudio:
mulher em letra bem caprichada, gótica: Serrúramis. No - Você já leu Joyce?
meio, pêlos louros encaracolados, crespos, amarrados Cláudio não respondeu logo. Voltei-me e ele es-
com um laço de fita azul. tava de cabeça baixa, com a unha do indicador da m ão
-Que diabo é isso?- gritei. direita limpando o sujo da do polegar esquerdo. Res-
- A primeira peça de minha coleção. pondeu, afinal, sem sair da postura.
- Mas você coleciona o quê? - bradou LL. - Nunca leio nada. Somente Inocência.
Cláudio olhou-nos, sorridente, penalizado com a - Pois você é um plagiador, seu merda - disse
nossa burrice, balançando ligeiramente a cabeça. LL.- No Ulisses, Jeová coleciona prepúcios.
- Não compreenderam, seus bestas? Eu sou um Cláudio ofendeu-se:
colecionador de pentelhos. - Não é a mesma coisa! Prepúcio é uma coisa no-
Ao nosso espanto seguiu-se uma gargalhada. jenta e eu quero que esse tal Jeová tome no cu!
Cláudio não se ofendeu e logo que nos acalmamos pas- Rimos os dois. Cláudio recompôs-se.
sou a virar as outras páginas. Havia-os de todos os ti- - Ando atrás de um manchado de sangue, mas
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pos: louros, pretos, castanhos, fulvos, grisalhos, oxige- nenhuma delas quer dar.
nados, acajus, cada cachinho com uma fitinha diferente, - Pega uma puta- falou LL.
de acordo com a tonalidade, no alto da página sempre - De puta não serve - respondeu Cláudio. - Só
o nome da mulher: Leonora, Arminda, Fátima, de virgens.
Mercedes, Poliana e outros, em número de vinte. Voltei-me para as fotografias, enquanto Cláudio
- Esta é minha peça de maior estimação - disse se dirigia à mesinha para guardar o livro, LL debruça-
Cláudio, erguendo um cachinho preto com fita verme- do na janela olhando a rua deserta. Notei, nos púbis
lha. Li o alto da página: "Plácida". lisos das fotografias, algumas manchas. Aproximei-me
Cláudio continuou: e toquei algumas com o dedo. Estavam meio viscosos.
-Vejam. Ela tinha vinte e dois anos, jovem, mui- - Que diabo é isso, Cláudio?
to jovem, de pêlos negros, mas reparem, com um fio - O quê? - perguntou ele, ainda passando a cha-
branco muito puro, todo enroscadinho. ve na gaveta.
Olhava o troféu com uma imensa ternura nos LL voltara-se. Cláudio ergueu-se e veio para jun-
oihos e reparamos que ele estava com ereção. Ficou en- to de mim, eu ainda mantinha o dedo no lugar.
simesmado algum tempo, para logo cair na realidade. - Também vocês querem saber de tudo - protes-
- Desculpem - disse, sentando-se, colocando oca- tou.
cho no meio da página e fechando o livro. Mas eu farejava alguma coisa oculta e insisti:
- Você tem pentelhos de todas as mulheres com - Vai, rapaz, desembucha.
que conviveu? - indagou LL. Ele sentou -se na cama, acendeu um cigarro com
Cláudio suspirou. mãos trêmulas e finalmente falou:
-Nem de todas. Muitas se recusam a presentear- - Cada fo tografia corresponde a um pentelho.
me. Tudo é estudado detalhadamente, mesmo porque cada

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uma d essas mulheres assemelha-se à antiga dona do
pentelho. Quando sinto saudades de Tomásia, por exem-
plo, colo o pentelho naquela fotografia - apontou-a com
o dedo - fico nu e me masturbo. É como se ela estives-
se em meus braços.
Estava novamente com ereção. Pisquei o olho para
LL e saímos sem que ele nos chamasse, de tal maneira
embevecido nas .recordações. Na rua, LL me pegou pelo
braço: 3
- Vamos tomar um trago, depressa, para lavar A sorte do indivíduo, da pessoa, importa rruzis que a sorte
do mundo inteiro e o bem-estar do imperador da China.
toda essa porcaria.
BEUNSKI
Atravessamos a rua e demos uma última olhadela
à janela do quarto de Cláudio. Já devia ter iniciado o
cerimonial, Tomásia nos seus braços, desesperado.
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Andava com boas roupas, principalmente linho


irlandês tremendo ao vento, confeccionadas na elegan-
te Alfaiataria Inglesa, postava-me à saída d a matinê do
Parque n as tardes de domingos e ganhava prestígio jun-
to aos altos poderes da Glory Oi1, onde me destacava
d os demais colegas pela maneira aparente como sabia
cumprir minhas obrigações, sempre na manipulação dos
óleos e no preenchimento dos f9rmulários A-5, B-21, C-
33, de pouca conversa no trabalho, mesmo quando cur-
tia uma daquelas ressacas que nos dão vontade de mor-
rer em pé.
O vasto salão onde os empregados matraqueavam
as máquinas de escrever, curvados sobre os papéis,
manipulando as máquinas de somar e as que, a um gol-
pe de manivela, faziam as quatro operações, tornava
aspectos diferentes conforme fosse manhã ou tarde.
Às vezes, do meu gabinete, com a porta entreaberta, eu

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ficava olhando uma réstia de sol, imaginando as cam- - Dolly!
pinas, o mar, as árvores, a brisa agitando os papéis. As- Uma loura magra, porém cheia de carne,
saltava-me uma raiva de prisioneiro, vontade de man- imaculadamente de branco, veio ao nosso encontro. O
dar tudo aquilo para as profundas dos infernos e sair americano fez as apresentações e nos deixou com tapas
vagando ao léu, mas o maldito dinheiro e a lembrança amigáveis, ambos de copo na mão. Sentamo-nos a um
da fome me prendiam ao cargo, não podendo conter canto e foi preciso que ela me servisse o segundo uís-
uma pequena alegria quando o Mr. Bruce aparecia lá que para me desatar a língua. Dentro de pouco tempo
pelas nove horas e, pondo a cabeça dentro do gabinete, eu já a fazia rir com histórias levemente picantes, mui-
saudava-me: to íntima agarrando-me pelo braço e pondo a mão em
-Helio! minha perna com gesto de familiaridade.
O gringo, a cada dia, tomava-se mais chegado, Nessa altura, mister Bruce postou-se no meio da
passando das enfadonhas conferências técnicas que gi- sala, batendo palmas, chamando a atenção de todos:
ravam sempre em torno do assalto às usinas, ao coló- -O batizado! Vamos começar o batizado!
quio mais íntimo, incorporando-me ao seu cerimonial Diabo de cerimônia tardia aquela, pensei comigo.
do copinho de uísque puro antes da saída para o almo- Várias luzes se apagaram, dando-nos uma atmosfera de
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ço, a garrafa guardada numa gaveta do birô, à boa ma- penumbra, enquanto a vitrola tocava um hino protes-
neira americana. Por isto não tive surpresa quando, ao tante, Dolly puxando-me pela mão para o meio da sala,
meio-dia de um sábado, bateu-me no ombro e no seu impondo-me silêncio com o alvo dedinho na boca
português macarrônico convidou-me: avermelhada. Já desembocava na sala a procissão, to-
-Hoje, na minha casa, uma reunião íntima. Apa- dos muito sérios, compenetrados, um olhar, um sorri-
reça. so, um gesto, no entanto, a traírem o folguedo, que de
Quando lá cheguei, às oito da noite, o palacete, folguedo se tratava, foi o que compreendi imediatamen-
na Madalena, estava iluminado, muita gente se espa- te ao ver o gringo que se fazia de padrinho pajear a
lhando pelos terraços e aposentos vários. Eram, sobre- gringa-madrinha portadora do objeto do batismo: uma
tudo, estrangeiros, os poucos brasileiros falando inglês, cachorrinha felpuda e preta, cujo nome soube por um
ao contrário de mim, que tive um desejo súbito de vol- cochicho de Dolly:
tar da porta, pouco à vontade no colarinho duro e na - É a Du Barry Segunda...
casimira espinhenta. Mas Mr. Bruce já atravessava a Um bigodudo, metido num vestido preto imitan-
saleta, avermelhado, os ralos cabelos louros especados, do uma batina, pronunciava palavras mágicas num la-
espalhafatoso. Era outro homem. tim inventado, enquanto outro sacripanta lhe passava
- Boy, boy, boy. sal e óleo que tirava de uma galheta, o focinho do ani-
Agarrou-me pelo braço e enveredou comigo dire- mal próximo à chama da vela, a língua vermelha lim-
tamente para o bar, servindo-me generosamente de uís- pando-os com lambidas rápidas. Vi-me, refletido no es-
que, sem parar de falar, misturando as línguas, mas de pelho, de copo na mão, participando daquela farsa de
tudo deixando que eu percebesse a sua satisfação, que ricaços desocupados e logo senti uma náusea forte. Des-
ficasse à vontade, que o batizado começaria dentro de prendi-me da mão de Dolly e fui de casa adentro à pro-
pouco tempo. Deu um grito: cura do banheiro, indicado por um dos garçons que me

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tomou por um bêbado prematuro, ainda longe a hora desanimado para o cagalhão que balançava levemente
dos vômitos e dos disparates. No banheiro cor-de-rosa, no pequeno lago, desafiador, zombando de mim. Não
com um forte cheiro de antisséptico, debrucei-me so- tive outra solução: arregacei a m anga do paletó e, mer-
bre a pia, aos engulhos, mas nada consegui expelir. La- gulhando o braço, agarrei o condenado. A massa era,
vei a boca, tomei um gole prolongado da bebida e de- ao mesmo tempo, consistente e macia. Esmaguei-o e ele
sabotoei-me p ara urinar, contempla ndo na bacia um se dividiu em dois. Juntei as duas metades e voltei a
daqueles cagalhões permanentes que por mais descar- esmagá-las, a merda se insinuando entre os dedos, pu-
ga que se dê teimam em boiar. Meu jato o alcançou, lou até um caroço de feijão incrivelmente amarelado, a
tirando-lhe pedacinhos, amarelando a água, eu imagi- água passando do claro ao marrom. Manipulei todo ele
nando de que ânus teria saído, o sujeito ou a sujeita como se estivesse preparando m assa para um bolo, o
com certeza não sofria de hemorróidas com toda aquela fedor subindo, eu nem sequer sentia nojo. Quando re-
dilatação, era como um toro daquelas árvores canaden- duzi tudo a uma papa puxei a corrente da descarga e
ses que os lenhadores empurram para o rio, deslizan- vi, com alegria, aquilo desaparecendo nas profundas.
do de água abaixo, só que aquele se transformaria em Fui à pia, enquanto ouvia uma das moças dizer: "Só se
vermes e não em mesas, cadeiras ou camas, trazendo for arame farpado". Lavei as m ãos, furiosamente, com
A porteira do mundo - 031.jpg

na sua massa segredos ocultos dos intestinos, mais além o sabonete de bola cheirando a desinfe tante, pedacinhos
as iguarias que o formaram. Puxei a corrente da des- de merda se haviam infiltrado nas unhas, mas eu que-
carga e, como esperava, o cagalhão resistiu ao rede- ria era sair dali. Olhei uma última vez a bacia, a água
moinho, voltando placidamente a boiar depois qu e a cristalina, calma. Abri a porta e sem olhar para as m o-
água acabou. Foi justamente naquele instante que sen- ças fugi como um pé-de-vento, apupado por mais uma
ti alguém forçar a porta do banheiro. Instintivamente, gargalhada.
gritei: Parei um pouco numa salinha onde duas mulhe-
- Tem gente! res estavam contemplando um quadro q ue representa-
. Em resposta, o uvi risadas femininas e cochichos. va um conquistador norte-americano ap ertando a m ão
Puxei de novo a corrente, já aflito, para ouvir o utras dum pele-vermelha, enquanto tirava um cigarro com a
risadas, enquanto o maldito tolete girava, entrava no mão esquerda, evitando a direita emporcalhada, fazen-
redemoinho, embicava para a saída, mas voltava a boi- do ginásticas com o fósforo. Depois, cheirei a ponta dos
ar. As moças continuavam na porta à espera que eu dedos, para sentir o vago odor d a bosta. À direita fica-
saísse, sempre nas risadinhas, cheguei a ouvir uma de- va a copa, onde entrei, pedindo sabão de cozinha. En-
las dizer baixinho: "Vai hoje". Fui tomado por um medo treguei-me, então, à operação completa de limpeza,
irracional, como se do desaparecimento d aquele bolo esgravatando as unhas com um fósforo. Diante da cara
fecal dependesse a minha salvação: eu não podia abrir intrigada dos garçons derramei gim nas mãos: o cheiro
a porta e permitir que as prendadas senhoritas pensas- desapareceu e foi como se me tirassem um peso. Voltei
sem que aquilo havia saído de mim. Então, com um ao salão.
desespero cada vez mais crescente, puxei continuada- Mr. Bruce estava sentado numa roda, falando flu-
mente a corrente, as risadas se a'lolurnaram, as donas entemente, todos o ouviam com muita atenção. Ele me
já não mais cochich avam, as piadas se sucediam. Olhei fez um sinal e eu me aproximei para compreender de

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sua algaravia que se tratava da história do petróleo, das Enquanto DoUy falava, eu bebia, aos goles, em pe-
glórias dos Estados Unidos, do sacrifício dos pioneiros. quenos sorvos, sem parar. Era só colocar o copo vazio na
Aquilo me enjoou mais que o tolete e, olhando em vol- bandeja e apanhar outro, parecia que a bandeja nunca
ta, vi uma bandeja com copos de uísque em cima de deixava de ter copos. Dolly parou o monólogo, jogou o
uma mesinha. Bebi o primeiro de uma só vez, o líqui- copo no jardim e estendeu-me as mãos. Levantei-me e
do me queimando. Apanhei o segundo e esgueirei-me pusemo-nos a dançar, eu não sentia mais os pés, somente
para o terraço onde alguns pares dançavam ao som as pontas duras dos seus seios e a agitação de todo o seu
duma vitrola, Dolly sentada a um canto, meio bêbada, corpo que parecia estar tremendo por dentro. Ela encos-
podia ver-se logo, mantendo o copo num equilibrio ins- tou a cabeça no meu ombro e continuou a falar nomes-
tável na palma da mão. Quando me sentei ao seu lado mo tom monocórdio coisas sem nexo, às vezes parando
o copo desequilibrou-se, espatifando-se no chão. Nin- para trautear uma musiquinha que não era a da vitrola
guém deu a mínima importância, nem mesmo ela, vol- ou para rir em i, uma risada infantil de deboche, aper-
tando-se para mim com um sorriso distante, dizendo tando-se muito contra mim, mas eu estava longe de sen-
apenas: tir qualquer excitação, o corpo morto, distante, queren-
- Quero outro. do apenas beber. Deixei-a por um instante para apanhar
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Dei-lhe o meu e levantei-me para buscar mais be- mais um copo na bandeja inesgotável e ela deitou-se so-
bida. Trouxe a bandeja toda, coloquei-a no chão e no- bre mim, sua cabeça pousando nas minhas costas, minha
vamente me sentei ao lado da moça. Ela tomou um gole, cabeça no vértice de suas coxas, éramos um animal es-
fechou os olhos e começou a falar sem inflexão, baixi- tranho. Recompusemo-nos e eu bebi todo o copo, retira-
nho. do da minha mão por Dolly e atirado para o jardim, en-
- Todo o mês é isso... vem e vai... todo o mês... q u anto voltávamos a dançar sem sair do lugar.
De onde vem? Pra onde vai? Vai e vem... Primeiro Subitam ente eu a senti afrouxar nos meus braços. Segu-
como flores ... você gosta de flores? Se não gostar, faz rei-a e vi que estava dormindo. Estendi-a, então, no divã,
favor de sair de junto de mim... Não suporto que me agarrando outro copo e contornando o terraço para en-
contem histórias de fada ... Fale antes de repolho. . . trar numa saleta iluminada apenas por um quebra-luz
onde encontrar as crianças... vão e vêm... É um ca- azul, um sofá num canto. Lá m e sentei, bebendo, obser-
minho esquisito, não é mesmo? Se me tocarem eu não vando um quadro de paisagem japonesa, de um mau
sinto nada ... só penso no dia quinze do mês... Cada gosto nojento, mas atraído pelas cerejeiras em flor e foi
m ês tem um dia quinze, não tem? Pois então não m e à sombra delas que me deitei, engolindo o último gole.
toque ... Mas não sinto nada mesmo... Ouço dizer.. . A cabeça ainda rodopiou um pouco, as cerejeiras cresce-
mas eu ouço dizer tanta coisa .. . Que tem ano-luz .. . ram e numa das raras vezes na minha vida pude deter-
que tem petróleo debaixo da terra... E eu vou acredi- minar com precisão a passagem da vigília para o sono.
tar nisso? A mesma coisa quando falam que sentem... A sensação era muito agradável dentro da escuri-
eu não sinto .. . por isso não me toque .. . Amanhã n ão dão, eu sentia os dedos que passeavam pelo meu cor-
é quinze? Experimente tocar e eu lhe parto este copo po, detendo-se na raiz dos cabelos da cabeça e pro-
na cara ... Mas se quiser tocar aqui neste dedo... pode vocando uma cócega de trazer lágrimas aos olhos,
tocar.. . para logo me desabotoarem a camisa, enroscando-se nos

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~
pêlos do peito, aí parando em pequenos movimentos - Por favor... por favor ...
circulares, descendo depois em direção à braguilha e Era só o que dizia.
desabotoando-a como fizeram com a camisa, delicada- - Já volto - falei.
mente percorrendo o comprimento do meu membro que Ele voltou-se e me olhou, incrédulo:
inchava e crescia. Ouvia palavras ciciadas, sem sentido, - Volta mesmo? Por favor . ..
mas sabia q ue eram de amor. " É Dolly", pensei, aquela Fiz sinal que sim com a cabeça e saí do divã. En-
que os cronistas sociais chamam de m enina-moça, com tão ele terminou de arriar as calças e deitou-se de
as fontes do prazer em desenvolvimento, formando-se, bruços, mergulhando o rosto nos braços. A porta que
o que se acariciar hoje será diferente amanhã, mais dava para o terraço estava fechada, mas consegui abrir
polpuda, mais peluda, mais irrigada, enquanto as auré- uma portinha ao fundo e me vi na copa, completamen-
olas dos seios se espraiarão e o ventre se tornará um te deserta, com o deveria estar toda a casa, através da
pouco, só um pouco abaulado para form ar o janela constatei q ue o dia não tardaria a nascer. O que
contraponto carnoso com as nádegas. As palavras eram eu queria era fugir, mas de súbito meus olhos ba teram
ditas no meu ouvido, cada vez mais insistentes, perfu- numa la ta de azeite de oliva, Galo, posto numa mesinha
rando-me, os dedos não paravam na viagem, indo e vol- branca. Peguei a lata e voltei à saleta, o homem estava
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tando, senti que ia despertar e perder a ilusão. na mesma posição, empin o u-se um pouco ao sentir que
- ... vamos, meu bem, vamos... me aproximava. Ergui a lata e deixei que o azeite se
A voz era rouca e quando abri os olhos vi as ce- derramasse nas nádegas q ue ele, desfazendo a posição
rejeiras, mas logo a cabeça junto da minha atraiu-me. dos braços, abria com as duas mãos, contorcendo-se.
Tinha óculos, não era Dolly, apertei as pálpebras e tor- - Já volto - disse-lhe.
nei a abri-las, afugentando a embriaguez. O homem retomou a p osição anterior, amparan-
-Acordou. Você acordou! do o rosto nos braços, enquanto eu, continuando com a
Era uma cara horrível, de homem, sua mão ainda lata embarcada chegava à copa, atingia outra sala, der-
agarrando o meu sexo, mas eu estava tão cansado do ramava o óleo sobre tapetes e poltronas, cadeiras e so-
sono e de tal maneira tonto do uísque que não o repeli fás, mesas e m esinhas, abria a porta da rua e continua-
logo. Ele falou m ais claro: va irrigando a calçada, o calçamento, jogando fora a
-Você quer? Quer? lata vazia e tomando, em movimento, um bonde ma-
Sem esp erar minha resposta deitou-se ao meu drugador, às gargalhadas já então, os raros passageiros
lado, de costas para mim, eshegando-se, arriando as olhando-me com reprovação, um deles balançando a
calças, sua bunda era cadavérica pelo efeito do quebra- cabeça e informando à manhã que surgia:
luz azul. Eu já estava absolutamente frio, além de es- - É um bêbado.
pantado.
- Por favor ... por favor. .. meu bem.. . - gemia
o coitado.
Fiz m enção de me levantar e sua voz, querendo Na segunda-feira, Mr. Bruce não fez nenhum
impedir-me, tinha um tom de súplica de melodrama comentário sobre a festa. Convidou-me para o uisqui-
barato: nho da hora do almoço e falou apenas de assuntos de

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serviço. Não seria de bom-tom comentar a vida priva- -Você quer alguma coisa, Anastácio?
da nos escritórios da Glory Oil Company of Brazil, onde Ele ergueu a cabeça.
só havia lugar para a alta percentagem das vendas do -Acho que você podia ser um dos nossos.
petróleo e seus derivados. Não entendi. Ele compreendeu e continuou:
Na hora da saída, à noite, fui abordado por Anas- - Só aceitamos aqueles que não perderam a pure-
tácio. za completamente.
-Posso lhe dar uma palavrinha? Pensei que se tratava de uma seita protestante
Pus a mão no ombro do preto, indagando: qual quer.
- Precisa de alguma gaita, caboclo? - Você é nova-seita?
Ele balançou a cabeça numa negativa enérgica. Ele balançou a cabeça, negando, enquanto o gar-
- Vamos ao Gambrinus, então - disse-lhe. çom depositava as bebidas na mesa. O preto tomou o
Lá nos sentamos e fizemos o p edido: um chope cálice, olhou-o contra a luz e emborcou-o de uma vez.
para mim e uma cachacinha para ele. Só então aceitou o cigarro que eu lhe oferecera antes.
- Que é que há?- interroguei-o. - É difícil de explicar - falou. - Só você vendo.
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Anastácio rolou o cálice nas mãos nodosas de - Tente sempre - animei-o.


unhas sujas, bebeu um gole e olhou para o alto, mos- Ele esmagou o cigarro no tampo da mesa, afas-
trando o branco dos olhos. tou-o com um peteleco e, olhando fixo para a frente,
- Venho lhe observando há muito tempo .. . indiferente ao barulho do bar, às pessoas, iniciou o seu
-Que é isso, velho? Você é secreta? recitativo:
Ele sorriu e eu vi que o seu sorriso era como o de - Eu pertenço ao Mistério de Barnabé e Flora .. .
um adolescente. Era a primeira vez, aliás, que eu o via Desviou o olhar para mim, tentando captar, na
desmanchar a carranca. certa, minha estranheza, mas nada deixei transparecer.
- Num certo sentido, sou. - Bebeu outro gole. - - . .. e nossa religião, segundo o livrinho que es-
Acontece que você é o mais puro de toda aquela cana- crevi para explicá-la aos iniciados, remonta a certas al-
lha. turas místicas, mas a sua finalidade maior se relaciona
Fiquei envaidecido e bati na sua mão, amigavel- Àquele que cavalgará as nuvens, na Noite Maior, rea-
mente. firmando o ato do batismo, que foi ele quem deu aos
- Muito obrigado pela declaração. cristãos o nome de cristãos, mas já existia muito antes,
como Criador da Luz, Filho do Sol, Senhor do Raio.
Anastácio p areceu encabulado. Tomou outro go-
Durante a noite quem reina é Flora, mas quando o dia
linho e tamborilou, sem som, no tampo de mármore da
vai despontar Barnabé se une a ela e passa a reinar como
mesinha.
Amo.
- Pois é ... - gaguejou.
Falava de maneira monocórdia, empregando aque-
O garçom ia passando. Segurei-o pela manga
la voz tão comum aos padres e pastores protestantes,
do paletó e pedi-lhe que repetisse as bebidas. Anastá-
como se estivéssemos sozinhos no bar que se enchia
cio continuava olhando o movimento das mãos. Enco-
cada vez mais.
rajei-o.

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- Não estou entendendo muito bem - disse-lhe. Anastácio calou-se e eu emborquei o resto da cer-
Ele sorriu, complacente, um brilho matreiro no veja do meu copo, sem saber o que dizer depois de ou-
olhar. vir aquela misturada mitológico-pagã-apocalíptica, en-
- Vai entender. Você é inteligente. Repare: o prin- quanto ele me olhava, atento, tentando descobrir até que
cípio se tme com o fim nas altas esferas. Barnabé com ponto suas palavras me haviam atingido. Mas eu esta-
Flora, o Dia com a Noite e nós somos seus veículos ma- va sem jeito m esmo, procurando sem resultado uma
teriais. Cada um de nós é um Barnabé e cada mulher palavra qualquer.
com quem nos acasalamos na passagem da treva para - Vejo que está impressionado - falou o negro.
a luz é uma Flora. No princípio era o Caos, mas Barnabé - Estou mesmo - respondi, com aquilo a que se
sempre existiu como benfeitor dos homens, roubando o chama um riso amarelo.
fogo de Deus, do sol ou do relâmpago, que os homens Anastácio passou a língua no cálice, chupando a
até então viviam tendo olhos e não vendo, ouvidos e última gota da cachaça. Depois, aprumou-se, falando
não ouvindo, flutuando como seres em sonho, tudo con- com uma voz que me pareceu muito al ta:
fuso, misturado, sem alimento, água e remédio. Barnabé - Hoje temos florais!
desceu ao centro da Terra, encontrou Flora e a ela se - É? - perguntei, para dizer alguma coisa.
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uniu justamente numa madrugada. Quando chegaram -Quer participar de nossa reunião?
à superfície. O convite era intempestivo e eu hesitava entre me
- É meio complicado - disse. ver naquela ridicularia e na curiosidade de saber como
Anastácio não me deu atenção. se processava o culto. Finalmente, decidi-me.
- Tudo na vida é reprodução: nos vegetais e nos
- Posso ir.
animais, o eterno macho se unindo com a eterna fê-
Anastácio tirou um toco de lápis d o bolso, apa-
mea, até que o Ancião aponte aqueles que estão com
nhou do chão um pequeno pedaço de papel e, com a
vestes brancas, os que sofreram tribulações e lavaram
língua de fora, no esforço de escrever, gara tujou o en-
suas vestes e as alvejaram no sangue do Cordeiro. Não
dereço, entregando-me o papelucho.
terão mais fome, nem sede, nem o sol cairá sobre eles,
nem terão calor algum, que estarão eternamente mer- - Pronto, não tem errada. Pode perguntar, no
terminal de Beberibe, que todo o mundo lhe diz onde é
gulhados nas fontes das águas da vida. Para isto atra-
a rua. Chegue à meia-noite.
vessaremos as estações, vivendo os dias e as noites,
pelo menos uma vez por semana cumprindo nossa fun- Levantou-se sem mais explicações e nem chegou
ção reprodutora para uma plena floração, que Flora a a despedir-se, saindo por uma das portas largas. Olhei
princípio era somente uma mas se reproduziu em para o papel: Travessa das Horas, 9, era o que estava
vinte e quatro, em sessenta vezes vinte e quatro, em escrito. Gritei, pedindo mais um chope, e quando a be-
sessenta vezes sessenta vinte e quatro. Daí estar pre- bida chegou, que a levei aos lábios, lembrei-me do há-
sente em todos os atos dos mortais, mas a sua hora ver- bito que Anastácio tinha de cuspir nos copos d'água
dadeira, eu já lhe disse, é a da alvorada, quando do gerente e ri com gosto.
Barnabé se encarna em mim e Flora na mulher que está Pensei em chamar LL para me acompanhar à ce-
comigo. rimônia mas desisti, receoso de desgostar o negro.

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Melancolicamente, consta tei que dispunha de uma gran- Cálcio Alemão serve até para o sucesso noturno. É isso
de parte da noite à minha frente, sem ter o que fazer. mesmo. Você chega em casa, cansado, arruinado, sem
Ali mesmo, no Gambrinus, jantei um triste bife com ba- ânimo, scis e meia, toma o Gluconato de Cálcio Ale-
tatas fritas, pensando vagamente num cinema, mas a mão e é meio-dia na mesma hora.
rigor nada queria fazer. Paguei a conta e sai andando a Alguns fregueses avançaram para adquirir a ma-
esmo, vendo as pessoas, divertindo-me em imaginá-las, ravilha e eu me afastei em direção ao cais. Longe, no
o que seriam por sua aparência física: este, um modes- horizonte marítimo, surgia uma lua avermelhada, era
to funcionário público regressando à casa com o pacote a mesma que iluminava os m ortos da batalha de
de pão debaixo do braço; esse, um guarda-livros de Waterloo num filme mudo da minha infância, precisa-
unhas s uj as, leitor exclusivo do jornal Pequeno, mente Os miseráveis, de Victor Hugo. Na coberta de um
comprazendo-se com o retrato da vítima, na secreta sa- rebocador um velho marinheiro comia sua comida com
tisfação dos crimes sexuais; aquele, um empregado do as mãos, de olhos fitos para a frente, indiferente ao
comércio, hóspede crônico de uma pensão na rua do mundo, talvez nunca houvesse saído d aquele porto,
Rangel, da janela do seu quarto descortinando a paisa- ocupado nas manobras de atracação e desatracação dos
gem das prostitutas ba ratas no seu arranjo noturno; o paquetes estrangeiros. Andei todo o cais, o longo cais
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outro, um negro, estivador de músculos bem divididos, do Recife, com suas sombras e guindastes, seus homens
morador na beira do mangue, alegre na cachaça e de- rudes, as prostitutas costumeiras, os guardas da alfân-
sesperado na ânsia. Na calçada do Taco de Ouro, de por- dega nostálgicos de uma farda da Marinha, os arma-
tas fechadas, um camelô se esbofava para uma diminu- zéns fechados, portões de ferro, calçadas altas, embar-
ta assistência, tentando desesperadamente seus últimos cações de todos os tipos levemente oscilantes, a água
níqueis: suja batendo nos degraus das escadas de pedra que de-
-Venham! Venham, senhores! Vejam a maravi- sapareciam além da superfície, um toque de violão, pró-
lha do século! O Gluconato de Cálcio Alemão! O ximo ou distante, impossível saber, acelerava a música
Gluconato de Cálcio Alemão serve para todas as doen- com a subida da lua. Meu cigarro descreveu uma cur-
ças contagiosas, todas sem exceção. Como o amigo sabe, va e, na água, ponto branco, chocava-se com laranjas
os intestinos do homem contêm todos os micróbios: da podres, algas, tufos de capim, serragem, óleo. Cordas
febre amarela, d a opilação, da febre tifóide, do reuma- grossas e correntes de ferro, frases soltas no ar, em su-
tismo, da gonorréia e o mais terrível de todos, o micró- eco ou armênio, vigias iluminadas, mastros, bandeiras,
bio da sífilis. O micróbio da sífilis é o mais antigo do tudo aquil o nada tinha de real no ar que cheirava a
mundo. Quando Cristo estava na terra ia, certa vez, com maresia e no vento levemente iodado.
Pedro, pela Via Appia, muito cansado, debaixo do sol, Quando tomei o bonde eram , precisamente, onze
quando viu uma pedra à sombra duma árvore. Cristo horas. Acomodei-me e fechei os olhos, cansado da ca-
encaminhou-se para lá e já ia se sentando quando Pedro minhada, deixando que a brisa me refrescasse, emba-
gritou: "Não senta nessa pedra, Cristo, que tu pega sí- lando-me com os ruídos das rodas e as vozes dos p as-
filis!" Pois bem, meus senhores, este produto mata tudo sageiros, não procurava fixar um só motivo, mas forçava
o que for micróbio da sífilis, deixando a pessoa inteira- mesmo a imaginação em detalhes passados, da infân-
mente boa. E não serve só pra isso. O Gluconato de cia àquele momento. Com certeza dormi, porque só tive

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certeza da realidade balançado pelo condutor, no fim largo, acenando com. a mão para a assistência e logo
da linha de Beberibe: todos retomaram a conversa interrompida, num relan-
- Ei, moço, vai ficar? ce chamando-me a atenção o fato de que, qualquer que
Desci, meio tonto, orientando-me na praça, cami- fosse a maneira como se dispunham, sempre havia, en-
nhando em direção ao coreto rococó, onde os suburba- tre um homem e outro, uma mulher.
nos gozavam a lua. Ensinaram-me onde ficava a Tra- Anastácio pôs a mão em meu ombro, já traziam
vessa das Horas e, durante a caminhada, pedindo mais cadeiras, e, logo que me sentei, ao meu lado postou-se
algumas indicações, consegui encontrar a rua, uma pla- uma negra nova, bonita, toda sorrisos. Meu amigo, pelo
ca de madeira na casa da esquina, logo adiante o nú- que eu podia ver, estava se divertindo, o que confir-
mero 9. Ainda não era meia-noite. O 9, muito grande, mou com uma risada franca aberta, agradável.
era uma tabuleta na ponta de uma vara, pois a casa - Está estranhando?
ficava distante da cerca. Bati palmas, mas era difícil que Eu ri, meio sem jeito.
alguém as ouvisse no fundo do sítio. Esperei um pouco - Venha ver a nossa casa - disse ele, levantando-
e soltei a tramela, invadindo o terreno. Ainda não dera
se.
vinte passos quando ouvi uma voz:
As mulheres permaneceram sentadas, enquanto
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- Que deseja?
entrávamos. Era uma sala ampla, sem móveis, na pare-
Parei, orientando-me. Surgiu um negro de trás de
de do fundo várias imagens impossíveis de identificar
uma árvore, sem avançar, porém, esperando que me
naquela penumbra leitosa. Mas de repente a luz se fez,
explicasse. Disse-lhe a que vinha. Então ele me apon-
Anastácio ligando o interruptor. Adiantei-me e vi, de
tou a casa, ao longe, com o dedo, enquanto concordava
mistura, quadros baratos da Via Sacra; uma reprodu-
com um movimento de cabeça. Segui o caminh.o estrei-
ção pintada da clássica figura de Flora, Flora como a
to, aberto por entre o capim alto, um. ligeiro medo de
Terra, descalça, o etéreo vestido transparente adornado
cobras que sempre me assaltava nessas ocasiões, deten-
de palmas, ramos, folhas, distribuindo frutos, os longos
do-me diante das janelas e porta fechadas, mas somen-
cabelos louros enfeitados de florzinhas silvestres; e ou-
te um. instante, porque logo rodeei a casa, ouvindo vo-
tra reprodução, de Prometeu, Prometeu-Barnabé, uma
zes, descobrindo uma pequena multidão colorida à luz
tocha-fálica na mão direita, no ato do lançamento, o cor-
da lua, todos negros, sentados ou de pé, entre as man-
po musculoso contrastando com a pequenez pudica do
gueiras capadas.
sexo.
- Bem-vindo!
Voltei-me e vi Anastácio com uma camisa verme- Anastácio apagou a luz e, de qualquer parte, um
lha e uma calça azul, sentado numa cadeira de espal- relógio deu doze pancadas, logo seguidas por batidas
dar alto, de fabricação doméstica. Ao lado dele, em ca- v.iolentas de atabagues. Então, o canto elevou-se, com
deiras menores, duas negras de blusa azul e saia vozes masculinas e femininas. O negro postou-se em-
vermelha. Caminhei ao seu encontro enquanto ele se baixo das imagens, de braços abertos em cruz, a pro-
levantava e me estendia a mão. A conversa havia ces- cissão invadindo a sala e distribuindo-se em forma de
sado e eu me sentia um pouco incômodo, pressentin- estrela, seus componentes voltados para as paredes,
do a cerimônia, intruso. Mas o preto abriu um sorriso as mulheres portando gamelas cheias de frutas, uma

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delas, a mais alta, segurando gentilmente uma pomba ajustarem ao seu movimento, morrendo, extinguindo-
branca. se, os três abraçados, colados, em espasmos, tudo ter-
Afastei-me para uma das janelas abertas para o minando num grito do coro, fazendo-se a luz elétrica.
sítio, ouvindo, às minhas costas, uma risadinha. Era a E foi como se despertassem de um sonho, recompon-
jovem negra que se sentara ao meu lado. Ri para ela e do-se aos poucos, enxugando-se com toalhas brancas, a
quando me voltei para a sala as mulheres se iam desfa- jovem negra que me fora destinada estava diante de
zendo da estrela, enquanto os homens recuavam, avan- mim com os seios empinados, sorrindo vagamente, sa-
çando em direção a Anastácio, aos seus pés depositan- indo do transe.
do as oferendas. O canto mudou. As batidas de Sem nenhum sinal começaram a conversar nor-
atabaque tornaram-se macias, a portadora da pomba malmente, acenderam cigarros, Anastácio desprendeu-
avançou por último, oferecendo o pescoço alvo do pás- se das mulheres e passou a percorrer os grupos, afinal
saro ao sacerdote que, se curvando, beijou-o. Um dos dirigindo-se para onde eu estava.
negros, o companheiro da que oferecera a pomba, já -Agora, vamos aos comes e bebes.
estava ao lado, Anastácio recompondo-se em seguida Pegou-me pelo braço e saímos para o terreiro,
com um copo na mão. O negro levou a mão à cintura, acompanhados pela pequena multidão. Andamos uns
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puxou uma faca, a negra espichando o pescoço da pom- cinqüenta metros e paramos diante da mesa comprida,
ba que ele, de um só golpe, decepou, o sangue caindo rodeada de bancos, onde as iguarias já estavam distri-
no vaso. Anastácio voltou-se para as imagens, ergueu o buídas. Anastácio sentou-se, ladeado por suas mulhe-
copo para Flora, em seguida para Barnabé e, de costas res, fazendo-me um sinal para que me aboletasse, ao
para a pequena multidão, bebeu o sangue quente do meu lado postando-se a jovem negra. Todos os outros
animal sacrificado. O canto tornou-se mais frenético, se abancaram, numa algazarra. Olhei a mesa e vi, em
novamente os pares se reuniram e iniciaram uma dan- grandes travessas de barro, os frutos da terra e os do
ça onde somente os quadris se movimentavam em mar: carás, inhames, batatas, macaxeira, bananas cozi-
umbigadas, olhos nos olhos, 1.ms tocando nas pontas das, camarões, lagostas, siris, unhas-de-velho. A cacha-
dos dedos dos outros. As duas companheiras do meu ça corria livremente em cálices grossos e todos comiam
amigo dividiam com ele o jogo da dança, cada vez mais com satisfação, as piadas provocavam gargalhadas, os
agitado, Anastácio voltando-se ora para uma, ora para pratos passavam de mão em mão. Minha negra cutu-
outra. Um cheiro de machos e fêmeas invadia a sala, cou-me:
onde a poeira subia, transformando em nevoeiro a at-
- Não vai comer?
mosfera lunar, tudo se movimentando no quadro estra-
nho e eu via, sem parar o olhar, seios trêmulos, esgares, Tinha a boca cheia e seus olhos eram travessos.
contorsões de quadris, mãos agitadas, pernas velozes, Sorri para ela e virei o prato, servindo-me do que esta-
no rodopio umas coxas escuras, o branco dos olhos, ho- va mais à mão. A comida era gostosa, com dois cálices
mens visivelmente excitados. Logo se fez uma roda e de cachaça fui deixando que a alegria me invadisse, den-
Anastácio, com as duas mulheres, executou uma coreo- tro em pouco conversando com os companheiros de
grafia cada vez mais lenta, a princípio em contraste com mesa sobre os assuntos mais variados, onde a constan-
a rapidez do ritmo para, em seguida, os atabaques se te era o próximo jogo do Santa Cruz e a situação desse

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clube popular na tabela do campeonato. A negra não nhado pelas duas mulheres, entrou na casa; depois, os
parava de me servir e eu não parava de comer, com a outros, cada um com o seu par, na barra do dia, por
impressão de que há horas estávamos ali sentados, mas entre o arvoredo, nos caminhos, em taperas que se avis-
mesmo com tanta comida não me sentia pesado. Quan- tavam nos fundos do sítio, ocultos pelas mangueiras
do, finalmente, paramos, Anastácio levantou-se e, de um frondosas, debaixo de moitas. No meio do terreiro fica-
jarro de barro vidrado, encheu vários cálices de uma mos eu e a jovem negra, de mãos dadas, ela, com um
bebida escura, mandando distribui-los por todos os co- sorriso de namorada, eu, observador amanhecido, jun-
mensais. Provei o meu: era cachaça com qualquer coi- tando conclusões, para tudo olhando, e vendo: o céu
sa. A negra me sussurrou: afogueado para os lados do mar, o vôo dos pássaros, o
- Catuaba. leve agi tar das folhas, as galinhas cacarejando, sentin-
Ri e emborquei o cálice. Todos já se levantavam do: um arrepio de pele, a boca amarga, um vago dese-
da mesa, dispondo os bancos para a pequena orques- jo, a ardência dos olhos. A jovem negra desprendeu-se
tra: violão, cavaquinho, bandolim, reco-reco, triângulo para me fitar de frente, recuou a lguns passos c, com
e pandeiro, a música logo atacada, os pares dançando gestos vagarosos, medidos, artísticos, desnudou-se. Seu
com entusiasmo. Enlacei a minha negra e pus-me na corpo gritava contra o róseo do ambiente e o verde da
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dança também, dentro do luar, debaixo das manguei- folhagem, os pés plantados na areia fria, a carapinha
ras, os cabel.o s assanhados pelo vento, numa alegria sim- como recorte no céu pálido, a boca aberta engolindo
ples. Vez por outra circulava a bandeja com os cálices toda a brisa que podia engolir, seios empinados e far-
de aguardente-catuaba e a negra agarrava-se a mim, rin- tos, ventre batido, o escuro do sexo como greta de arcan-
do muito, sentindo a minha ereção, era uma brincadeira jos, as coxas se abrindo, ela se deitando no chão, deu-
agradável, o mundo girava de maneira um tanto cômi- sa, puta, oferenda, bacante agraciada, receptáculo para
ca, tudo estava bem e em paz. Não sei quanto tempo mim que me curvei e cobri-a, roupa contra carne, o sol
durou aquilo, mas em dado momento a orquestrinha espoucando, noite contra dia, primavera de gotas
atacou uma imitação do hino nacional e Anastácio, le- ambarinas chovendo na escuridão da mucosa oculta,
vantando-se, bateu palmas. Todos pararam e ele anun- vibrátil.
ciou com a voz meio pastosa, alta:
- Acabou a madrugada!
Todos se deram as mãos, numa grande roda, eu
com eles, entoando uma cantiga: Jamais houve transição entre aquele estado c a
minha presença nos escritórios da Glory Oil Company
~i, cô-cô-rô-cô, moreninha, of Brazil, na manhã da terça-feira. Apenas um relógio
foi-se a madrugada. me indicou o atraso considerável e a voz do chefe do
Ei, cô-cô-rô-cô, morená, escritó rio-técnico me lembrou a descida ao tanque nú-
venha, minha amada. mero três, em tenenos do Brum, uma varinha na mão,
uma vara de medida, para verificar possíveis avarias,
No silêncio, um galo cantou. Os pares foram quando seco, apto para receber a carga de navio-petro-
desaparecendo: primeiro, Anastácio, sempre acampa- leiro esperado a qualquer momento nas docas recifenses.

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Eu pisava em nuvens e minha cabeça tocava numa das Luminosos, os urros mais de dor que de prazer, de suas
Ursas, ardente, fofa, confundindo nomes e prenomes, gargantas saía fogo líquido espalhando-se em estrelinhas
medidas e pesos, gostos e cores, animais e coisas. Do de São João, na pele produzindo bolhas como as de lava
alto do tanque espreitei o abismo redondo, suas dimen- de vulcões, várias caindo na cabeça de um velhinho (eu
sões marcadas por listras vermelhas, a escadinha bran- já o vira numa das ilustrações de um livro de CharJes
ca, o cheiro forte e embriagador da essência que me Dickens, num conto de Nata l) que amontoava moedas
tomava em rodopios. O primeiro degrau, pensei, seria de ouro ao rubro, as mãos queimadas, a pele despren-
o m rus diHcil, o passo perigoso, ou resvalaria para o dendo-se e mostrando os dedos descarnados, mas sem
fundo do abismo ou me firmaria e iria a té o fim. Dei o parar, apenas com gestos bruscos com o se apanhasse
passo, confiante, numa gargalhada que não saía de mim, castanhas quentes. O chão baixou um pouco e· sozinho,
era de outro, e assim fui a té ao oitavo, quando minhas no centro d o grande círculo, um homem gordo,
mãos se crisparam no quarto ou terceiro, não sei dizer apoplético, gritava contra pessoas imaginárias, a baba
a altura das mãos para os pés, porque o fundo subira no canto da boca era espumosa e nela se agitavam pe-
até ali, à minha altura, à altura dos meus pés, e eu vi, quenos seres indefiniveis (eu já vira todas aquelas coi-
vi com estes olhos que a terra há de comer, figuras es- sas em algum lugar) que, nas costas ou nos peitos, os-
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curas ajoelhadas comendo os próprios joelhos, cada uma tentavam cruzes de fogo tão minúsculas quanto um grão
com um urubu na cabeça e uma cruz de fogo às costas, de poeira, suas atitudes variando entre o horror e a re-
aos poucos perfilando-se, nuas, sem sexo, desprenden- signação, mas o utros desprendiam-se da baba e, pulan-
do um odor de santidade e o desespero na cara, as bo- do para o chão, começavam a avançar contra as p are-
cas sem som transmitindo-me sua virtude e sua falta des do círculo, esmurrando-as, à proporção que iam
de fé, num grito mudo que varava igrejas abandonadas crescendo, numa ostentação de bíceps, punhais, revól-
e santos de pedra. Agarrei-me nos degraus e senti o veres, socos ingleses, navalhas, um deles parando hor-
ardor das mãos, fechando os ol hos para afugentar a vi- rorizado diante d um homúnculo que copulava uma
são, o mundo em rodopios, e assim fiquei, pobre, vaca, a vaca se transformando em ovelha, cadela, ca-
abandonado, ouvindo a risada pura da irmã morta e bra, porca, sem q ue nunca o acasalamento terminasse
vendo os pimentões vermelhos da horta de Lucas, o (onde?). Uma velha passeava por entre toda aquela
irmão, num engenho sem nome, apegando-me a essas multidão arbitrária, cochichando no ouvido, ora de um,
imagens refrescantes. Quando abri os olhos estava no ora de outro, obtendo como resultado bofetadas, cri-
tanque da Glory O il, encarregado de uma tarefa, a va- mes, cusparadas na cara, embora outros surgissem
rinha havia caído produzindo um som cavo no resto dispondo-se a adular cidadãos importantes que se pa-
da gasolina não evaporada. voneavam ao som de suas palavras (num quadro?),
Desci outros degraus, mais confiante, quando no- nada menos que bispos de mitra negociando com os
vamente o fundo do tanque subiu como um alçapão negócios da Igreja, vendendo, de cambulhada, absolvi-
de teatro, não consegui fechar os olhos e tive de con- ções, extrema-unções, bigamias, ostensórios, crucifixos,
templa r o quadro degradante dos sacanas e das lésbi- hóstias, jovens freiras seminuas que se prostravam
cas, dos sodomitas e dos felácios, unidos num blo- aos pés de adivinhos de longas barbas e varinha m ági-
co, revesando-se, as ejacul ações eram jorros candentes, ca nas m ãos, com mantos salpicados de lacraus de fogo,

74 75

I...
trapaceando, com deleite, partes do corpo humano, so-
bretudo corações espetados em garfo de cobre (num de-
senho!), assumindo os ares mais hipócritas deste mun-
do, piscando o olho ao verem que eram roubados por
outros comparsas em jóias falsas, moedas de niquel, co-
lares de contas logo entregues a um pequeno g rupo es-
pecializado em fa lsificações que, num segundo, trans-
formava todo aquele amontoado inútil em objetos de
aparência dourada ou prateada, comerciando algu ns 4
deles com uma mulher alta, de buço forte, chata de pei- Pode Ievnr os seus óleos. Eu estou frito.
tos, ancas estreitas, de braços dados com uma outra, esta O ator Poisson
nua, resplandecente, ocultando em seu vastíssimo monte
de Vênus os dedos ágeis da primeira, deixando ador-
nar as auréolas dos seios com os tais brincos, o lábio
inferior trêmulo como se fosse chorar (que inferno!).
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Tudo desapareceu como se arrastado por um re-


demoinho ao som de uma voz que, a princípio, não pen-
sei me fosse dirigida:
-Está com medo de descer?
Olhei para cima e vi a cabeça de um dos v1g1as
da Glory Oil, sua cara de zombaria. Terminei a descida
e, no fundo do tanque, antes da inspeção, quedei-me a Minha ressaca durou três dias: tudo o que chei-
espiar uma mosca de asas azuis, gorda, mal podendo rasse ou comesse tinha odor e gosto de catuaba mistu-
voar, embriagada. rada a gasolina. A própria pasta de dentes provocava-
me engulhos e, nos sonhos, eu me via envolto por uma
névoa espessa, perdido, arranh ado por ga lhos secos pa-
recidos com braços, roçado por heras que se asseme-
lhavam a barbas. Acordava em suores frios, a boca seca,
bebendo a água da quartinha sentia a náusea voltar com
um sabor de morte.
Voltei ao trabalho para receber uma repreensão
quase amigável de Mr. Bruce, a quem não consegui en-
ganar com a minha desculpa de pertinaz d iarréia, suas
palavras sendo mais uma exortação a que me mirasse
no seu espelho: podia beber litros durante a noite que
na manhã seguinte estaria firme no trabalho, sem
demonstrar no mais mínimo sinais de ressaca, ao que

l
76
retruquei dizendo-lhe que nem todo organismo era . e centenas de utilíssimos produtos - aren-
igual, para receber uma lição dilicil de ser cumprida: gava o galego, citando os graus das várias obtenções.
bebesse leite, tomasse uma papa de aveia, engolisse uma Alguns balançavam a cabeça da direita para a es-
dose de sal de frutas, comesse grapejruit. A misturada querda como se achassem aquilo inacreditável e outros
não me agradou. de cima para baixo numa concordância sabichona, en-
Naquele dia tivemos uma reunião com o pessoal quanto eu me espichava na cadeira e acendia um cigar-
do escritório técnico, os químicos assemelhando-se mui- ro para me entreter com outra coisa que não fosse aque-
to mais a meros vendedores de óleos, os preços de ta- la porcaria, repetindo de memória palavras como matim,
bela decorados com diligência, muitos deles dando pre- proegúmeno, reboludo, zoopsia, anatásio, visagra,
ferência à venda dos pneumáticos Atlas, de mais gorda ululíneo, siderotério, tantra, remífero. Repetindo-as bai-
comissão. Aquelas reuniões eram, para mim, verdadei- xinho, para sentir-lhes o gosto, embora o besta do
ros pesadelos, sob a chefia de outro mister, um tal de Cunningham julgasse que eu procurava decorar suas
Cunningham que, na sua algaravia anglo-lusitana, sem- estultices, o que me enchia de gozo.
pre nos recordava a história do petróleo, chamando-nos Muito m ais interessantes eram as reuniões com
a atenção para a beleza dessa designação latina, petra os mecânicos, uma ve'? por mês, nos depósitos do Brum,
A porteira do mundo - 042.jpg

(pedra) + oleum (óleo), os pedaços de giz rangendo no entre goles de cachaça e tira-gostos os mais variados:
quadro-negro, quebrando-se e pulando no ar, espalhan- carne de charque ou de sol, siri, polvo, fígado-de-ale-
do uma leve poeira branca, enquanto ele repisava os mão. Discutiam, com termos próprios, os motores de
mesmos temas e eu via restos orgânicos, em épocas re- explosão e era como se falassem de pessoas íntimas,
motas, decompondo-se e, aos poucos, formando a tal com preferências para essa ou aquela peça. Montavam
pedra de óleo: olhos gelatinosos, mucosas fofas, cartila- e desmontavam um motor de automóvel, viravam-no
gens, tutanos, raramente um braço ou uma perna per- em seguida, experimentando os óleos e a gasolina pura
feitos; os hidrocarbonetos assumiam aspecto de trêfegas ou misturada, sérios dentro das piadas, compenetrados
bailarinas, suas moléculas e átomos em permanente dan- mesmo quando emborcavam um gole de cachaça, dois
ça, de mãozinhas dadas, o processo atravessava aque- ou três curvados sobre o carro em atitudes de cirur-
les chatos períodos de formação das camadas da terra, giões. Via-se que levavam o trabalho a sério, embora
indiferente a assírios, babilônios, etruscos, egípcios, reis não dessem a impressão disto. Sempre sobrava tempo
e rainhas, felás, espadachins, dramaturgos, bêbados, cáf- para uma história, quase todas ingênuas, jamais se la-
tens, senadores, até o dia em que um falo de aço entra- mentavam da dura vida, brincavam uns com outros às
va no solo e o esguicho vinha de dentro para fora, os tapas, às carreiras, chamando-se por apelidos, descobrin-
operários lavando a mão e a cara naquela matéria féti- do os ridículos, contando casos.
da, rindo para as câmaras das atualidades cinematográ-
- Tom a uma bicada, Arreliado! - gritava um.
ficas. Os extensos oleodutos varavam os campos, desa-
lojando pequenos agricultores, até desembocarem nas O chamado Arreliado estava num canto, ocupado
refinarias de processos complicadissimos, onde eram com uma peça, soprando-a, limando-a, virando-a em
obtidos a gasolina, o querosene, os óleos e as graxas todos os sentidos. Riu um pouco sem jeito, sem dar res-
lubrificantes. posta, sem largar o trabalho.

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-
- Pergunta a ele por que não bebe mais - cochi- sereno de uma dancinha, de lá olhava de vez em quan-
chou um para mim, espremendo-se de riso. do para mim, piscando um olho. Eu estava p regado n a
Aproximei-me de Arreliado. janela, não podia arredar pé.
- Não vai nada, companheiro? -Desapareceu, o bicho? - quis saber.
Ele me olhou de boa vontade, parando d e traba- - Desapareceu coisa nenhuma. Ficou assim, me
namorando, uma porção de tempo, a té q ue veio de vol-
lhar.
- Deixei de beber. ta, tirou de novo a cartola, dizendo "Até amanhã". Foi
- Por quê? só ai que desapareceu.
Ar reliado descansou a peça numa estopa suja de Arreliado espichou-se, meio encabulado, h avia
óleo e ferrugem, com os d edos pretos acendeu um ci- uma pontinha de medo n o seu olhar.
garro, espichou as pernas e falou: - Nunca m ais viu o cachorro?
-Eu vivia beben do demais. Quando largava o ser- - Não. Vi coisa pior.
viço m e juntava com a turma e ia numa pisada só até -Como foi?
d epois d e m eia-noite. - Naquela n oite eu não consegui dormir, pensei
- Só cachaça? - perguntei. que ia endoidecer. Saí então p ara beber, deixando a
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- Mais cachaça, não é?, por causa do preço. De- mulher dormindo. De volta, lá pelas quatro h oras d a
pois, comecei a sentir umas coisas esquisitas, fui ao dou- manhã, eu vinha trocando pernas, a rua era estreita pra
tor, ele me disse que era da bebida, mas eu não liguei, mim, quando ouvi outro barulhinho nas minhas costas.
continuei na mesma cadência, até que naquele domin- Será o maldito d o cachorro? - pensei comigo. Voltei-
go vi uma coisa que me deixou de cabelo em pé. me e - juro por Deus como é verd ade - vi uma cobra
Fez uma pausa acariciando a peça, deu uma ba- de bigode, em pé. Sai numa carreira danada, mas por
forada e voltou a encolher as pernas. mais que corresse a danada estava sempre ali no pé da
- Não gosto nem de falar nisso. conversa. Só agüentei um mês, porque ela passou a me
-Que foi? perseguir toda a noite. Não fazia nada, não, só me acom-
- Eu estava na janela de casa, podia ser nove ho- panhava, com aqueles bigodes que mais pareciam um
ras, era noite de lua, tudo claro, quando ouvi uns pas- espanador de cada lado.
sos. Virei-me para ver quem vinha e qu ase caí de cos- - Q ue foi que você fez?
tas: era um cach orro em pé n as patas traseiras, de - Voltei ao médico e ele me disse que era uma tal
de tremedeira q ue dá nas pessoas que bebem muito.
cartola.
- De cartola? Uma espécie de delírio. Aí deixei de beber. A cobra ain-
llisos espou caram de todos os lad os, mas o ho- da me apareceu uns dias, mas depois desapareceu até
menzinho n ão se deu por ach ado. hoje.
- De cartola, sim senh or, d aquelas coloridas que Os mecânicos riam às gargalhad as, sujos de óleo,
a gente usa pelo carnaval. Quando ele passou por mim ch eirando a aguardente, baforand o cigarros ordiná-
tirou a cartola com a pata dianteira e cumprimen- rios, eu com eles, à sombra d os enormes tanques de
tou-me, d ando boa-noite. Apesar do meu espanto fi - gasolina naquela nesga de terra que se defrontava
quei olhando o bicho que foi até à esquina, parando no com Olinda, a faustosa do século dezessete: mu lheres

80 81

w
adornadas de jóias, cavalheiros de espadim, senhores coleção, estando noivo e de casamento marcado com a
inquisitoriais alisando as pedras do calçamento, resva- dona da dádiva, perguntou-me um dia:
lando nas ladeiras, comparecendo a saraus, assistindo - Você conhece alguém que me faça uns mono-
a missas rezadas por padres portugueses bem nutridos gramas?
a vinho verde e bacalhau de coco, tudo tragado pelos Assim logo de saída, sem pensar, respondi-lhe que
holandeses a golpes de espada, incêndios, canhões, sur- não, mas logo depois lembrei-me do Policarpo e pedi
gindo dos verdes mares, enxotando-os p ara terras inós- ao Santos que me desse as letras. Ele escreveu, num
pitas de mosquitos e mangues. pedaço de papel:
Nada mudara - pensava eu - apenas trocáramos
os flamengos pelos americanos e a escravidão do açú- CS (Cláudio Santos)
car pela da gasolina, óleos e seus derivados, enquanto IS (Ivanise-Santos).
Anastácio, que não mais trocara uma palavra comigo
desde as florais, continuava a servir refrescos e cafés, Enquanto o pedinte se afastava, ainda meio aé-
copos d'água contaminados por seu cuspo. Eu era um reo, escrev.i, por minh.a vez:
empregadinha d e escritório como podia ter sido um
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escriba dos outros tempos, preparando meu vestibular CS = Cabra safado


de Química com pretensões a técnico, recebendo as in- IS = Invertido sexual.
suportáveis aulas de matemática todas as noites, com
um tal de Genaro, residente no Derby, num sossegado Ri da piada e guardei o papelucho no bolso da
beco sem saída. O professor morava com a família: sua calça. À no ite, Genaro estava, como de costume, pro-
mulher, grávida de meses, a mãe, d uas tias e um ir- vando-me por um raciocínio claro a beleza de um tri-
mão esquisito, meio esquizofrênico, forte como um tou- ângulo escaleno, quando Policarpo, chegando da rua
ro e muito há bil nas artes do desenho, de nome para o jantar tardio, veio apertar minha mão, um pou-
Policarpo, inexplicavelmente afeiçoando-se a mim, em- co cerimonioso como era de seu hábito. Lembrei-me do
bora eu fosse prevenido com ele, por conselho, aliás, pedido do Santos:
do professor. - Policarpo, meu caro, você me poderia fazer uns
Enquanto Genaro desenvolvia, no quadro-negro, monograrnas com estas iniciais?
as equações, as combinações, as raizes cúbicas, Policarpo Meti a mão no bolso e entreguei-lhe o papelucho.
postava-se a um canto, muito calado, desenhando sem Ele riu, satisfeito por me poder prestar um favor e de-
parar, daquilo saindo nossos retratos com andorinhas, sapareceu no interior da casa. Voltamos ao quadro-ne-
ramos de flores, num fundo de mar, eram uma cópia gro e às agruras da trigonometria, mas não demorou
viva, eram como os originais. Eu louvava suas qualida- muito ouvimos gritos aflitos de mulheres em pranto,
des e ele se desmanchava num sorriso de animal agra- uma corrida desabalada de escada abaixo, Policarpo sur-
decido, geralmente acompanhando-me até o poste do gindo na sala de revólver em punho, a cunhada grávi-
bonde com conversas sem pé nem cabeça. da agarrada ao seu braço. Tudo o que se seguiu foi
Foi quando o Cláudio Santos, nessa altura muito muito rápido e confuso e a custo compreendi que ele,
feliz d a vida porque encontrara a última peça de sua espumando pelo canto da boca, de olhos arregalados,

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visava-me com o revólver, despejando uma série de pa- como o senhor deveriam estar afastados do convíviO
lavrões. A primeira bala foi cravar-se no quadro-negro das fanúlias cristãs, porque são uma constante ameaça
e a segunda passou raspando minha cabeça, mas nessa à tranqüilidade dos lares e à honra das pessoas de bem".
altura Genaro já estava a tracado com o irmão, enquan- Cláudio Santos, a quem contei o incidente, fez
to uma das tias conseguia dizer-me: q uestão de procurar o Policarpo para dar-lhe explica-
- Ele quer lhe matar... quer lhe matar ... vá ções que ele não aceitou. Tentei comunicar-me com o
embora... pelo amor de Deus, vá embora ... ! Genaro, mas também não obtive melhores resultados.
Ainda perguntei, ingenuamente: Assim, armei-me com um velho revólver Colt empres-
- Por quê? tado por Anastácio, disposto a não permitir que o ma-
Mas ela me agarrava pelo braço e me conduzia, luco me quebrasse a cara, mas da primeira vez em que
apressadamente, em direção à porta da rua. Continua- nos encontramos, passando um bem junto do outro na
vam os gritos de Policarpo, em luta com o irmão, os calçada estreita da Madre de Deus, Policarpo virou o
olhos fora das órbitas e foi só quando eu chegava ao rosto para o lado da parede, numa rabiçaca, como fa-
jardim que, por uma frase dele, consegui compreender zem as namoradas suburbanas.
do que se tratava: O incidente deixou-me sem professor e foi q uan-
A porteira do mundo - 045.jpg

- ... faço você engolir o papel. .. os insultos! do o Leite, mais tarde um dos mais famosos físicos do
O papelucho, com as iniciais do Santos e da noi- país, ministrou-me as últimas aulas de preparação ao
va, Policarpo o tomara como um ataque pessoal. Quan- vestibular de Química Industrial, realizado finalmente
do atingi a calçada da moradia, ainda ouvindo o alvo- num casarão da rua do Hospício, submetendo-me àque-
roço- gritos, pragas, choro- fui assaltado por um medo la tortura louca, tentando inutilmente, na prova escrita,
animal, quase não podendo andar de ladeira abaixo, aos penetrar na significação daqueles hieróglifos que teri-
poucos as pernas, como se agissem independentes de am como resultado a solução do problema sádico, o exa-
minha vontade, acelerando o movimento, apressando- minador todo se babando de gozo diante da tortura da
se, tornando-se velozes, e disparei como um foguete, maioria. Graças a um esforço de raciocínio dos m ais
os pés quase tocando na parte em que terminam as cos- violentos que jamais pratiquei na minha vida e a al-
tas. Foi uma carreira só até o poste do bonde, onde che- guns sopros dos mais sabidos, consegui safar-me da pri-
guei botando os bofes pela boca, pegando o carro, sen- meira parte da tarefa, pelo pau do canto, tendo sorte
tando-me no banco duro, rememorando o incidente. Mal em algumas orais, claud icando noutras, tudo dando
consegui dormir naquela noite para, na manhã seguin- como resultado que, por um culhonésimo, eu fora re-
te, receber uma carta de Policarpo: p rovado. Um justo prêmio pela minha ignorância em
"O senhor, ontem, com a sua agressão covarde, ia matérias tão herméticas como as matemáticas, o dese-
comprando a sua vida. Devolvo-lhe os insultos que não nho, a física e a química, cujos compêndios queimei num
me atingem e que partem de um caráter sujo. Pode vi- a to de fé dos mais purificadores para a minha alma de
ver os anos que quiser que não irei manchar as minhas especulador das ciências não exatas.
mãos n um patife da sua marca, mas previno-lhe que Mr. Bruce torceu a cara com a notícia da minha
evite encontrar-se comigo se não quiser ter essa cara reprovação, que já me via como um dos seus q uímicos-
imunda quebrada por minhas mãos justiceiras. Homens vendedores, totalmente sujeito à fascinação do petróleo

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e seus derivados, de corpo e alma dedicado ao desen- adulterada. Restava o problema do formulário de esto-
volvimento cada vez m ais crescente da Glory Oil para que, um A-12 ou A-15 nas referências epistolares entre
o bem-estar do nosso subdesenvolvido país. Sua pri- a filial e a matriz, mas eu descarregava a diferença na
meira medida, como castigo, foi designar-me para me- coluna de evaporação. A princípio tudo aquilo era nor-
didor das bombas de gasolina, serviço até então de- mal, principalmente porque estávamos no verão, quan-
sempenhado por um dos funcionários menos do a média de gasolina evaporada subia muito, mas
importantes. Entendi sua intenção: humilhar-me, obri- com o passar do tempo o Cláudio Santos, que era jus-
gando-me a pedir demissão. Mas não caí na armadilha, tamente o conferente dos tais formulários, começou a
o emprego era bem remunerado e dele eu dependia para achar esquisita a massa de evaporação. Isto e os recibos
as minhas folganças úteis e inúteis. Então, todas as ma- que eu dava aos bombeiros, geralmente homens anal-
nhãs lá ia eu, com urna vara milimetrada, saltando de fabetos mas que ganhavam a comissão baseada no mo-
um bonde e tomando outro, em p é ou agarrado ao vimento de venda, começaram a preocupar-me. Com -
balaústre, dando balanço em todas as bombas num raio preendi que estava num atoleiro, que a maldita gasolina
de não sei quantos quilômetros, informando ao cami- me subira à cabeça, que me embriagara com seu cheiro
nhão-tanque ·a quelas que estavam precisando de abas- e fora até à falca trua. Apesar disto, continuava. Perdi-
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tecimento. Media o tanque, cotejava o depósito com o do p or um, perdido por cem. Pensei em rasgar toda
marcador da bomba, extraía o recibo da diferença e re- aquel a papelada, mas havia as cópias enviadas à m a-
cebia o dinheiro do bombeiro. Chegando ao escritório, triz, acusadoras.
no fim da tarde, preenchia o formulário de recolhimen- O tormento foi até o dia em que Cavalcanti, o che-
to ao caixa e o outro do estoque geral, deixando uma fe do escritório, filho do renomado historiador, chamou-
margem para a evaporação. O trabalho era chato e sem me com cara de poucos amigos:
imaginação até o dia em que descobri que poderia, em - Escute aqui, meu caro, à Glory Oil não interes-
meu benefício, escamotear o dinheiro de alguns litros sam os escândalos. Você poderia parar na cadeia por
de gasolina. A técnica empregada consistia no seguin- tudo o que fez, mas a repercussão disto não seria boa
te: para a companhia, dando a entender que não somos
bastante organizados para permitir que, às nossas bar-
Depósito na bomba 300 litros bas, um funcionário tenha passado tanto tempo impu-
Leitura do marcador 275 litros ne na adulteração de formulários.
- Como é que descobriram? - perguntei, com
Diferença a pagar 25 litros curiosidade.
Cavalcanti fez uma cara de como quem diz: "Que
O bombeiro m e entregava a impor tân cia cínico" e, acendendo seu charutinho, informou:
correspondente aos litros vendidos, eu lhe dava o reci- -A matriz reclamou o excesso de evaporação. Na
bo, mas na cópia que uma delgada folha de zinco im- sua ausência examinamos a papelada e seu truque pri-
pedia o carbono de transcrever a quantidade exata da mário num instante foi desvendado.
gasolina vendida e a quantia em dinheiro, eu anotava Tinha um ar de de tetive de novela p olicial
apenas 22 ou 23 litros, a terceira via indo para o caixa desmascarando o criminoso, bonacheirão, ligeiramente

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displicente. Inexplicavelmente eu me sentia desafogado Dobrei a carta, coloquei-a novamente dentro do enve-
como quem tira um peso das costas, feliz por tudo aqill- lope e, com gestos me ticulosos, lentos, meilldos, ras-
lo haver chegado ao fjm. Não era somente a descoberta guei-a em pedacinhos cada vez menores, colocando tudo
de minha fraude, mas o fato de me ver livre daquela em cima do mata-borrão verde que protegia o tampo
escravidão de horário, do cheiro da gasolina, do quero- de vidro da sua escrivaninha. O chefe do escritório gru-
sene, dos óleos, das graxas, dos formulários, das má- nhiu as palavras:
quinas de escrever, das festinhas em que se premiavam - Que gesto cretino ...
os caixeiros-viajantes e os vendedores com illstintivos Curvei-me sobre ele e, colocando uma mão em
banhados a ouro, um minúsculo jacaré como símbolo seu ombro, disse-lhe ao ouvido, no tom o mais amigá-
daquela confraria, da correspondência em inglês para vel possível:
os Estados Unidos e em português para os agentes do - Cretina é a quenga da sua mãe.
interior. Símbolos, cóillgos, percentagens, cifrões, graus, Cavalcanti quis levantar-se, mas eu, com um im-
literatura especializada, cartazes, tudo, tudo à merda, pulso da mão pousada em seu ombro, obriguei-o a fi-
inclillndo o Gomes que descia todas as tardes para com- car sentado. Dei-lhe as costas e saí, fechando a porta
prar seu embrulho de pão, Ataulfo que tinha a mania do seu gabinete com a maior delicadeza do mundo.
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de rimar pornograficamente toda a frase que se disses- Arrumei as gavetas, separei os meus pertences,
se, Matos que lia às escondidas, a gaveta aberta, na fol- deles fazendo um embrulho, não respondi a nenhuma
ga do serviço, Amor e perdição, o sanitário fedorento, o das perguntas que me fizeram, passei pelo caixa, recebi
elevador rangedor, os tabiques, à puta que os pariu. a generosidade da Glory Oil, ganhei a rua, a noite cain-
Cavalcanti continuava falando: do, rumei para o cais do porto, entrei no Ship Chandler,
- Não queremos prejudicar a sua vida. Aqui está velho bar mantido por um inglês, com fotos do rei e da
uma carta de apresentação. Passe no caixa e receba o rainha, pipas de carvalho, mesas toscas, garrafas
saldo dos seus vencimentos. empoeiradas, num propósito evidente de assemelhar-se
Abri o envelope e li a carta, ao alto o meu nome a uma taberna inglesa, pedi um uísque duplo. O inci-
e a referência ao assunto: dente me deixara vazio, de propósito eu evitava pensar
"A quem interessar possa. A Glory Oil Company nele, em rrum estavam misturadas as sensações de
of Brazil declara que o senhor acima mencionado dei- alívio e apreensão, teria de andar à cata dum empre-
xou os nossos serviços por sua livre e espontânea von- go, cheguei a pensar em comprar uma passagem para
tade, nada havendo que desabone a sua conduta mo- qualquer lugar do mundo, mas o espírito da aventura
ral, tendo demonstrado, durante o tempo em que estava ausente, o que eu queria naquela hora era
emprestou os seus serviços à nossa organização, apti- embebedar-me, depois veria como as coisas paravam.
dões que o recomendam para ocupar cargo compatível O bar se enchia aos poucos e, como faltassem lugares,
com o seu tirocínio". dois sujeitos, pela aparência comerciantes da rua do
A assinatura de Mr. Bruce, sobre o carimbo da Bom Jesus, pediram-me licença e abancaram-se ao
companhia, era um garrancho indecifrável. Cavalcanti meu lado, conversadores, falando em partidas de baca-
me olhava por cima dos óculos, o charutinho no canto lhau, cotações da Bolsa, cargas e descargas de navios,
da boca, os olhos semicerrados por causa da fumaça. CF, FOB, faturas, duplicatas, operações bancárias, uma

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bosta. O vapor do uísque me subia à cabeça, tudo se cada uma com seu timbre, seu cacoete, sua falha, nas
clistanciava, a princípio ouvi, apenas, uma voz, vinda vigílias, nos enterros, nas festas, nas anedotas porno-
do mais fundo do tempo, era a da irmã mais moça que gráficas, nas repreensões à minha curiosidade de p onta
morrera em trabalhos de parto, rouca, grave, eu teria de rama, caçula segregado das suas serestas, das suas
uma filha, um clia, com os seus traços, sua ingenuidade orgias, dos seus cigarros. A voz de Mãe Néa, ciciante,
cliante da vida, mas naquele momento era apenas sua na leitura a meio-tom dos velhos folhetins, o ciciado
voz que me chegava filtrada pela morte, pronunciando interrompido a intervalos regulares quando levava o
aquelas palavras sem sentido gramatical próprias de indicador à boca, molhando-o de saliva para virar a pá-
carinho privado, mágicas e esotéricas, "Tica ma caçorra, gina do grosso volume. Vozes de namoradas infantis,
pissepisse do culuzinho do fagozô das duvica dele", de mulheres no coito, de mestres de samba-de-matuto,
banhando-me o corpo e gravadas para sempre como de professores e professoras, de todos os velhos da fa-
recordação do terraço sombrio, refrescante, onde as mília, das solteironas frustradas em engenhos decaden-
avencas e as samambaias balançavam levemente ao ven- tes numa vasta zona de tristeza em verdes, roxos, ama-
to da tarde, naquele engenho humilhante onde o Capi- relos, bosta de boi e lama. Até mesmo vozes de tipos
tão obedecia às ordens de um senador da repúbüca ves- que por acaso haviam surgido em minha vida, nos bi-
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tido sempre de branco, o cavanhaque bem tratado, os lhares, nos cafés, no meio da r ua, em lojas, igrejas,
filhos passeando de cabriolé nas noites de lua apenas prosnbulos, retretas, piqueniques, banhos de rio. As vo-
de gravata e chapéu. E logo foi a voz fanhosa do Major zes formavam um bloco, tinham uma consistência, mas
Dedé, as palavras saindo como silvos através do seu eu as distinguia, uma a uma, com seu p eso, seu volu-
lábio leporino, uma pequena espuma de saliva gruda- me, sua música, no bruaá cada vez m ais alucinante, ver-
da no canto da boca, muitos anos depois fui encontrar tiginoso, rodopiante.
aquela mesma bolinha, a mesm a cor, o mesmo ta ma- Lembro-me que cheguei ao pé da comprida esca-
nho, aninhada entre os grandes lábios da mulher ama- da escura, cheirando levemente a verniz, que me leva-
da, à minha espera através do tempo, ligando o amor ria ao terceiro andar da pensão e, na minha bebedeira,
aos mom entos da meninice, dois atos puros e fortes. O comecei a imaginar a melhor maneira de subi-la. Tinha
velho Zuza gritava sem propósito, pois que sendo m ou- receio de deixar o corrimão escorregar e cair de costas
co acreditava que todos o eram, num som de tuba de- por todos aqueles degraus ou, de gatinhas, falsear o pé,
safinada, falando em contos de réis, até que os paren- partindo os dentes. Sentei-me, então, no primeiro de-
tes se retiravam, deixando-o com a sua obsessão, as grau, vendo o m undo girar, tentando resolver o que
notas guardadas num lenço cheio de nós. A voz calma me parecia um problema tão grande que somente o tem-
do meu médico nas inquietações da madrugada, mo- po, o tempo da ressaca, poderia levar a bom termo. E o
dulada, científica, preparando o suplicio do óleo de rí- tempo passou, quanto não sei, permitindo-me, apruma-
cino misturado ao café ou do caJomelano em pílulas do, numa digna valentia, subir, para encontrar LL sen-
gelatinosas que provocavam arrotos de urubu choco. As tado à minha cama, o chão juncado de pontas de cigar-
várias vozes do Capitão nas desculpas à mulher, no ros. Seu acolhimento foi, ao m esmo tempo, de alivio e
mando, nas piadas, na leitura dos contratos de casa- apreensão.
mentos e as vozes de todos os irmãos, v:ivos ou mortos, -Porra! Por onde andou?

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Esbocei um gesto vago, começando a despir-me Capitão ia chegando ao fim e eu m e via, no alto de
no desejo de um banho frio, enquanto LL se debruçava uma janela, num miserável quarto de pensão, queren-
à janela, vez por outra olhando-me com o rabo do olho. do gritar para o rio e para a noite: ilustre e nobre auru-
Voltei nu do banheiro, pingando, de propósito sem en- tório, tão descrente como honrado, dê-me atenção de
xugar-me para que a sensação de frieza me curasse o ouvido, pra tudo ser explicado, que nesta excelente noi-
resto da bebedeira, mais do q ue nunca desejando uma te, noite tão resp.landecente, vai morrendo o Capitão,
cama onde me espichasse sem pensar que haveria um vai perder sua patente. Mas e u divagava como sempre
rua seguinte. Mas LL já estava no meio do quarto com e tudo se embaralhava, eu sentia, desde o beijo q ue ele
um envelope na mão, estendendo-o para mim. Meu me costumava dar na bochecha com seu leve perfume
nome, no sobrescrito, nada me indicava do remetente, de água-de-cheiro para barba até ver seu gesto ca-
meu nome numa caligrafia primária de quem começa- racterístico de, com o polegar e o indicador, localizar
va a aprender a arte da escrita. Rasguei-o e, lendo o as batidas da aorta na altura do pescoço, que era do
bilhete, custei a entendê-lo, até que, não querendo acre- coração que morria, um coração sustentado às custas
ditar, olhei a assinatura: "Mãe Néa". Jamais eu a vira de bromureto de sódio, as gotas caindo na água pura
escrever o que quer que fosse, sempre fugindo aos meus do copo e tingindo-a de uma leve cor acastanhada; de
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rogos para que me mostrasse como era a sua letra. "Des- um coração resistente a tantos embates: morte de filhos,
de mocinha que não escrevo. Não sei mais escrever." E traições à mulher amada, subterfúgios, decadência so-
se então o fazia era que algo de errado, de grave, de cial, fome; de um coração em luta contra as reminis-
extraordinário estava acontecendo. A custo, decifrei seus cências e os fatos cotidianos; de um coração agônico na
garranchos: "Seu pai não está passando bem. Não era cópula e nos pratos de charque com feijão. Chegava ao
bom você vir, m eu filho?" fim, cansado, cumprindo sua vida, que mais não podia
Sem uma palavra mostrei o bilhete a LL, que o agüentar, já bastavam os sessenta e seis anos de pulsa-
leu franzindo o alto da testa, colocando-o, depois, em ção. Sempre conheci o Capitão lutando contra o órgão
cima da mesinha. rebelde nos raros momentos de alegria e nos constan-
- Trem só às seis da manhã - disse. tes atropelos, dele lançando mão até para uma chanta-
Concordei com um gesto de cabeça e fui à janela. gem sentimental quando a mulher o pegava com uma
O rio corria manso, em maré vazante, naquela hora tar- nova amante. "Cui dado com o coração dele" - reco-
rua, cortando a cidade deserta . No primeiro instante, mendava o médico, e Mãe Néa interrompia suas vigí-
limitei-me a contemplá-lo, com restos de canções e lem- lias resmungonas, deixando-o em paz, um pouco ame-
branças de outras águas, mas logo o choque invaruu- drontada com a advertência do esculápio. Isto desde os
me sem apelação: o Capitão ia morrer. O assunto era dezoito anos de idade, quando os dois se haviam ca-
terrivelmente grave para obrigar Mãe Néa a escrever- sado, atravessando quarenta e oito anos de nascimen-
me, russo eu tinha certeza. Por que não encarregara ou- tos, batizados, mortes, fartura, fome, festinhas, brigas,
tra pessoa de escrever-me como acontecia quando que- doenças, o coração pulsando na ânsia de atingir pelo
ria comunicar-se com alguém? Porque era uma questão menos os sessenta e seis, afinal de contas uma boa ida-
de morte, simplesmente e, nessa morte, ela queria estar de para quem muito viveu na palha da cana ou no es-
ligada a mim: pai, mãe e filho, num mesmo cordão. O critório com correntão trespassado no colete, atolando-

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se no barro como carreira ou presidindo a lauta mesa Caminhei ao longo do corredor e fui encontrá-Ia como
do almoço dominical, administrando um reles mercado sempre, a té hoje, ela se fixou em mim: curvada sobre
de cidadezinha do interior ou esquipando num cavalo uma panela, de colher de pau na mão, uma mecha de
alazão. Chegara o tempo! cabelos grisalhos, rebelde, caindo do lado esquerdo da
LL bateu-me amigavelmente no ombro: cabeça. Seu sorriso, quando me viu, era o mesmo, sem
-Você precisa dormir um pouco. surpresa, econômica de palavras, apenas os olhos bri-
Balancei a cabeça numa negativa e continuei na lhando num prazer fugidio.
janela a olhar o rio, agora enevoado pelas lágrimas, to- Estávamos os dois sentados à mesa terminando
talmente de volta à infância. Mais um pouco e, do lado uma xícara de café, quando a interpelei:
do mar, o dia começaria a nascer, chegaria a hora do - Que há com ele?
trem, novamente Palmares, os parentes, os velhos co- Mãe Néa tirou da boca o cigarro de fumo desfia-
nhecidos, a entrevista com a morte do Capitão. Cada do.
um com a sua m orte em tempo de agonia.
- O médico não me disse tudo, mas eu adivinhei
Acho que dormi em pé, porque sem perceber a que ele não está passando bem. À noite tem pesadelos,
passagem do tempo fui, novamente, sacudido por LL fala alto, sua muito, acorda com falta de ar.
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e, abrindo os olhos, vj que tudo estava claro, embora - Está tomando os remédios?
ainda sem sol. Arrumei a maleta, despedi-me do amigo
- Está. Mas anda com medo, agarrando-se a mim
e desci as escadas ainda mergulhadas na escuridão, le-
durante a noite, a respiração alta. Ontem disse uma coi-
vemente cheirando a madeira velha, para ganhar a rua
sa que me deixou arrepiada.
que se enchia do barulho dos primeiros bondes e dos
- Que foi?
gritos dos primeiros pregões. Fui a pé para a estação,
comprei m eu bilhete, aboletei-me no assento d e - Ele disse: "Se eu tivesse certeza que existia ou-
tra vida, viveria mais tranqüilo".
palhinha do restaurante, encomendando um café com
pão e manteiga, logo aos balanços do trem executando - Onde está agora?
uma ginástica complicada para não entornar a bebida, - Foi fazer um casamento.
terminando-a, fechando os olhos e adormecendo sem Levantei-me para tomar um banho, Mãe Néa vol-
sonhos. tou à cozinha. Perto de meio-dia o Capitão chegou, eu
Por um desses misteriosos compromissos oníricos o tinha visto de longe, o andar meio arrastado, mas re-
acordei justamente em Palmares, de olhos ardendo, a colhi-me logo. Mãe Néa gritou:
boca amarga ("Gosto de cabo de chapéu-de-sol d e ita- - Veja quem está aqui!
liano"- como dizia o Capitão), o corpo moído, e de ma- Encontramo-nos e ele me beijou na face, rindo com
leta na mão desci a ladeira para o vale da cidade, que- os olhos claros, queria saber que era que eu estava fa-
rendo e não querendo chegar à casa, não sabia o que me zendo, menti-lhe que andava de licença, consegui en-
esperava, mas afinal cheguei, metendo a mão no bura- caixar na conversa a frase como por acaso:
quinho da porta para abrir a tramela. A casa estava -E a saúde?
calma e refrescante, mas eu podia distinguir os rui- Riu e bateu com a mão fechada no peito esquer-
dos, sentir o cheiro da comida, da cozinha de Mãe Néa. do:

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- Esse bicho quer me fazer um susto, mas eu ain- Puxei uma cadeira, por minha vez acendi um ci-
da vou longe, ouviu? garro e fiquei sofrendo o deürio do Capitão. Vez por
llimos os dois e ele achou logo de preparar uma o utra ele dizia uma frase clara, embora sem nexo, a
cachacinha com limão, desobediente às reclamações da maior parte do tempo resmungando coisas incompre-
mulher, o resto do di a transcorrendo em bate-papos, ensíveis, uma ou outra palavra destacando-se nítida e
informações sobre a vida da cidade, um joguinho de clara. Quase ao romper do dia começou a cantar velhas
cartas para terminar a noite. No quarto ao lado eu o u- canções esquecidas no tempo, de voz rouca, quase sem-
via sua tosse seca e palavras resmungadas, o arrastar pre desafinada, seu rosto revelava uma alegria de sau-
do penico para a mijada costumeira, o rangido da cama dade, até que tudo não foi m ais que um murmúrio e
na insônia. E então veio a luta contra os gigantes, p er- ele adormeceu, respirando de boca aberta. Mãe Néa
nas enormes passeando sobre o meu corpo, mãos não levantou-se, a camisola de algodãozinho maJ ocultando
menos grandes sustentando-me nas palmas e jogando- o corpo, pôs um ves tido por cima e dirigiu-se à cozi-
me para o ar, eu voltando à superfície de linhas sinuo- nha. Fiquei olhando o Capitão na penumbra leitosa da
sas como uma bola de borracha, sentindo a poderosa alvorada, presente ao princípio da sua morte, até que
sucção que me levaria a desaparecer no oco da desme- fui chamado para um café quente e amargo.
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dida boca, lutando em vão, tendo de me conformar com A p artir daquele dia assumi os negócios do cartó-
a viagem através do canal do esôfago, vasculhando um rio, m andando apenas que ele assinasse os papéis, sua
estômago onde se erguiam obeliscos de carne, depois mão cada vez m ais insegura, comboiando-o para as ce-
nas circunvoluções de quilômetros de intestinos mal- rimônias de casamentos, lendo por ele os termos anti-
cheirosos, sendo finalmente cagado com grandes estou- páticos. Durante o dia via-o estendido numa espregui-
ros, para acordar banhado em suor e ouvir o Capitão çadeira, alimentado de papas, recebendo visitas, quando
gritando dentro da m adrugada: se animava mais um pouco, embora o p olegar e o indi-
- Aos quinze dias do mês de janeiro do ano de cador quase nunca deixassem a exploração do pescoço,
mil novecentos e .. . contando as batidas do coração, tomando cada vez mais
O resto da frase perdendo-se numa algaravia de- remédios, cochi lando de boca aberta, até mesmo aí as-
lirante, transformando-se em gemidos cortados pelas pa- sustando-se com o próprio ronco. As noites tornavam-
lavras de Mãe Néa: se cada vez piores, o delírio crescendo, mais monocórdio
- Sossegue... vamos ... se acalme ... e obsessivo em torno de petições e certidões, atestados
Levantei-me e empurrei a porta do quarto dos ve- de óbito e para efeito miJ itar. Já não dormíamos, minha
lhos. A mãe estava sentada na cam a, fumando um ci- barba crescia, sua respiração al ta e opressa respondia
garro, coçando as costas nuas do marido, as lágrimas ao canto dos galos, ao apito dos trens, ao chocalho da
lhe correndo pela cara. Erg ueu os olhos para mim. carroça d'ág ua. Numa inquietação maior ele se aferra-
va à minha mão e e u deixava que ele a apertasse quase
- Está delirando. ..
me quebrando os ossos, sentindo seu suor frio e vendo
Fiquei engasgado du rante algum tempo.
sua tortura na ânsia do ar. Chorava como uma criança
- Posso ajudar em alguma coisa? e se acusava de crimes passados, vergonhosamente im-
- Em nada, m eu filho. É assim todas as noites. plorando à mulher que o perdoasse pelos desmandos

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da carne, rememorando as dezenas de amantes, seus - O velho está inconsciente, padre Rufino. Não
nomes, suas intintidades. Uma noite, gritou: vou submetê-lo a esta farsa.
- Por que essa morte não vem logo? O padre olhou-me demoradamente, apanhou a
Então eu vi que estava irremediavelmente perdi- maleta e saiu sem despedir-se. Fui ao quarto. O Capi-
do, ele que tinha pavor a morrer, apegado à vida como tão, coberto com um lençol ralo, movia a cabeça cada
um carrapato a um cão. Seu braço inchava por efeito vez mais lentamente, o rosto empapado de suor, as
de uma injeção que lhe haviam aplicado, já por ele não mãos crispadas, o braço direito não lhe pertencia, tal a
passava a manga da camisa, a carne avermelhada late- inchação. Senti um cansaço imenso vendo Mãe Néa sen-
java e não cedia com as compressas e cataplasmas de tada à cabeceira da cama e ouvindo o zunzum das con-
linhaça. Sem os óculos seus olhos esverdeados dança- versas na sala ao lado. Vi que não tinha mais forças
vam à procura de um ponto, procurando os do m édico para resistir à vigília de dias e noites, passou-me uma
num fio de esperança, sempre mergulhado em suor, uri- névoa pelos olhos, as pernas quase dobraram, o que eu
nando gotas, picado de injeções, afogado em líquidos queria era fugir daquela atmosfera. Sem uma palavra
amarelos, vermelhos, azuis, sua exsudação já despren- deixei o quarto, alcancei a porta e, atravessando a rua,
dia um odor de folhas mortas. estendi-me numa cama em casa da irmã mais velha,
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A verdadeira agonia estendeu-se por setenta e caindo no sono.


duas horas bem contadas, quando o Capitão perdeu a Acordei com alguém de mão no meu peito, ba-
consciência, a cabeça movendo-se como um pêndulo, lançando-me. Não me lembro mais quem foi. Lembro-
sem reconhecer os filhos que chegavam dos vários lu- me do anúncio:
gares onde moravam, a casa enchendo-se de gente, dia -O velho descansou.
e noite, cada um com seu palpite, sua história, seus ca- Não compreendi logo a frase, mas depois ela me
sos, bebendo bules de café, apenas matando o tempo chegou como um coice na cara. Ergui-me e atravessei a
enquanto aguardavam o trespasse. rua para vê-lo sendo vestido, primeiro as meias, o cor-
Padre Rufino procurou-me num fim de tarde. po ainda nu, olhei seu pênis. Já agora é difícil imaginá-
- Menino, quero falar com você. lo, pois o vi inutilizado, morto, encolhido, enrugado,
Mandei que ele se sentasse e fiquei esperando. sem cor, sem consistência, um caramujo. E, no entanto,
- Não há engano possível, não é? - disse ele. - aquele pênis tivera um dia uma rigidez, uma despro-
Seu pai está morrendo. porção quando excitado, uma vermelhidão, latejante,
- Eu sei que ele está morrendo. agressivo, movimentando-se entre as carnes, dando pra-
- Eu queria, então, sua licença, para ministrar-lhe zer, ejaculando. São dois pênis, não há relação entre
a extrema-unção. ambos. Não é uma questão de mocidade ou velhice, mas
Minha reação foi instantânea: de dois entes inteiramente diversos. Um deles sempre
- Nada de extrema-unção, padre. Pode economi- esteve duro, o ou tro sempre flácido, fixado pela morte.
zar os seus óleos. O pranto invadia a casa e derramava-se p ela rua,
-Mas por quê? enquanto o relógio batia as seis horas e eu me prepara-
- Simplesmente porque ele é ateu. v a para a guarda do corpo.
- Mas é isso que eu quero salvar.

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tinta de o utra cor, a data dos que morreram, o Capitão
de mãos um pouco sardentas garatujando a dor, aba-
lando ainda mais o fraco coração e marejando os olhos
de lágrimas sentimentais. Outra caderneta, mais volu-
mosa, assinalava as tonelagens de canas-de-açúcar nos
vários engenhos e usinas por que passara, as avalia-
ções, receitas onde o bromureto estava sempre constan-
te, o nome de um gato, Kerlô, a linhagem de um puro-
5 san gue, fornecedores, outras mortes, de amigos e
Eu não tenho dinheiro, mas tenho um coração sem maldade. parentes, aqui e ali o nome desconhecido de uma mu-
Um motorista de táxi lher, aniversários de netos, o apurado do cartório. De
tudo fiz um embrulho, jogando-o para dentro do baú
que Mãe Néa levaria com ela para a casa da filha mais
velha, o genro já tendo tomado as necessárias pro-
vidências para ser nomeado oficial do registro civil, o
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devido prêmio para quem ficaria com a sogra às cos-


tas.
À boca da noite, Mãe Néa abandonou a casa, um
pouco curvada, um xale nos ombros, com uma escova
de dentes dentro de um copinho de ágata verde ador-
Morto e enterrado o Capitão, dispus-me também nado de florzinhas amarelas. Comigo atravessou a rua,
a enterrá-lo em minha lembrança, no campo das coisas arrastando levemente os pés, de olhos vermelhos, a me-
passadas e sem jeito, nada de chorar sobre o irremediá- cha de cabelo grisalho teimando em ocultar-lhe o olho
vel, de maceração, de cultivo da dor. Ele passava a ser esquerdo. A filha recebeu-a, abraçaram-se e desapare-
uma coisa abstrata como Deus, do qual se fala ao mes- ceram no fim do corredor, enquanto eu permanecia pa-
mo tempo com crença e descrença, um pouco em dúvi- rado, sem saber o que queria, apenas uma vontade
da a respeito de suas aventuras com profetas e pecado- imensa de me deitar no capim, em qualquer campina,
res, prostitutas e incestuosos, reis e camponeses. esmagado pelas estrelas, sol ou lua, vento ou tempesta-
Dispus-me a ordenar os papéis do velho: centenas de de, sempre levado, livre de atos ou palavras. Mas ter-
notas tomadas no decorrer dos anos, com a sua caligra- minei voltando à casa onde os irmãos estavam senta-
fia bem comportada, de traços firmes, as maiúsculas um dos em volta da mesa de jantar, cada um deles com
pouco floreadas e muito pouco de respeito à ortografia, uma particularidade sobre o Capitão, repisando as mes-
que para comer, dormir e beber, além de outros atos, mas histórias, só que dessa vez todas eram favoráveis,
ele não tinha necessidade de gramática ou dicionários. ninguém ousava falar sobre as mazelas do pai que se
Numa caderneta amarelecida pelo tempo fui encontrar purificara com a morte, quase em odor de santidade,
o registro dos primeiros acontecimentos na vida dos fi- defunto fresco e alma penada. Todos estavam de
lhos: data do nascimento, batizado, padrinhos e, com .fisionomia séria, não se atreviam a um sorriso sequer,

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não se permitiam esta falta de respeito, numa homena- obtinham resposta, levando negativas na cara ou des-
gem um pouco esquisita para com aquele que, segun- culpas esfarrapadas. No fim de uma manhã entrei na
do crera, voltara ao nada, à escuridão absoluta, às coi- igreja da Penha, sem nenhuma devoção, atraído apenas
sas. pela frescura da penumbra e o descanso para as per-
Atirei-me à cama e dormi um sono pesado, acor- nas. Urna lâmpada votiva dava relevo, em claros-escu-
dando com a sensação de alívio de que o pior já havia ros, a um santo que não era do meu conhecimento, o
passado. Os irmãos dispersavam-se naquele dia, cada cheiro adocicado e enjoativo do incenso colava-se à mi-
um voltando a sua casa em terras de Alagoas ou usinas nha roupa, entrava-me pelas ventas, causava-me uma
de Pernambuco, às suas mulheres e aos seus filhos, às vaga náusea que se localizava precisamente na gargan-
suas mesquinhas porém satisfatórias ocupações: um ta. Voltando-me, vi, ao lado, num dos altaies, um São
metido com secos e molhados, outro com destilação de José de botas, meio efeminado, com o pezinho de lado
aguardente, o terceiro alugando sua experiência contábil e um cajado na mão, os cachos da barba assemelhan-
a firmas em grosso ou a varejo, somente o quarto fica- do-se a puxa-puxas amarelados. Levantei-me e fui a té
ria ali mesmo manuseando fichas e cartas de baralho, ele, era de lá que partia a fumaça do incenso, postei-
arrancando o minguado pão de batotas e falcatruas nas m e diante da figura, toquei com a ponta dos dedos o
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mesas de jogo. Restava o quinto, que era eu, o ponta- óleo da lamparina, meio m orno, coloquei um níquel de
de-rama com pretensões a intelectual, sem emprego, sem duzentos réis à sua direita e perguntei-lhe, baixinho:
rumo, sem vontade. Meu primeiro ato foi vender tudo "Escute, meu velho, não dá um jeito na minha vida? O
o que restava do p atrimônio móvel que se esfacelara dinheiro está acabando e aqui o cansado de guerra está
aos poucos, embora a irmã mais velha já houvesse rei- às portas da fome. Veja se funciona com o seu prestígio
vindicado a guarda das cadeiras austríacas que supor- junto aos altos poderes. Afinal, que diabo, você é o pai
tara muita bunda desde os áureos tempos de 1911. O do filho do Pai". Dito o que, voltei-me para sair da igre-
que restava? Um velho relógio de carrilhão, a larga ja, tapei os ouvidos com as mãos para retirá-las do lado
cama torneada, duas cômodas, uns três consolos, a mo- de fora, na certeza de que a primeira voz que ouvisse
bília da sala de jantar. Por tudo, Leo, o marceneiro, me seria a resposta à minha pergunta. Mal pus o pé na
entregou algumas poucas centenas de mil-réis. O cu- calçada e destapei os ouvidos, ouvi o despautério de
nhado, num gesto de última hora, ofereceu-me o cartó- uma vizinha, gritando dum lado para o outro da rua:
rio, quando tudo já estava entabulado para sua nomea- - Quenga da bunda torta!
ção, meu gesto de recusa, portanto, ·não tendo muito Ainda estava rindo quando cheguei ao mercado
significado. de São José, dobrando a gargalhada ao ouvir os versos
Voltei ao Recife numa tarde chuvosa, deixando cantados de um cego que dedilhava uma viola desafi-
Mãe Néa em prantos, de coração apertado, sem saber nada:
com exatidão o que tencionava fazer. LL escafedera-se
no oco do mundo, ninguém sabia para onde e durante Não fala em caixão de gás
uma semana troquei pernas pela cidade à cata d um que é obra bem profunda,
emprego vasqueiro, batendo em portas, entrevistando- mete teu nariz na bunda,
me com sujeitos abusados, escrevendo cartas que jam ais no buraco de detrás.

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És filho do velho Braz, diante. Humberto mastigava alto, batia a faca contra o
vindo ao mundo numa cesta, garfo e não levantava a cabeça do prato, engolindo
para seres uma besta aquele mundo mulato de caroços, toucinho, charque,
só faltas mijar pra trás. paio, pé de porco. Arrematou tudo com um último gole
de cachaça, arrotou sem cerimônia, inclinou-se para trás
Bons versos para quem se dedicava a atos mági- e depois de afastar um detrito do dente com a ponta
cos e ridículos, invocando, contra pagamento, os bene- da unha comprida do dedo mínimo, falou:
fícios de um santo de gesso. Entrei no Dudu para urna - Comi corno um frade.
feijoada e já engolira a cachacinha quando me bateram Concordei gravemente, enquanto ele gritava pelo
às costas com uma certa aspereza, reconhecendo eu o garçom, encomendando doce de jaca com queijo de co-
Humberto, com quem não mantinha intimidade, mas alho. O café grosso e amargo, com gosto de chaleira,
que conhecera numa farra na pensão de Alzira, nos servido em xícaras grandes e grossas, completou a re-
meus tempos de dinheiro fácil, ele sempre re- feição. Cocei-me à procura do dinheiro, mas Humberto
rnernorando, todas as vezes em que me encontrava, a antecipou-se, atirando níqueis e cédulas ensebadas em
carcaça de um frango assado que atiráramos, por cima cima da mesa.
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do tabique, no provecto professor de direito que, às es- - Pago eu.


condidas, imitava o animal de duas costas. Fingi protesto, enquanto meu companheiro acen-
- Matando o bicho, campeão? dia um charutinho e servia-se de mais urna cachaça,
Abancou-se e gritou, pedindo uma cachaça. depositando o cálice na toalha de chita, com um cuida-
- Vai na feijoada? do reverencioso, erguendo os olhos para mim.
Confirmei.
-Que é que há com você?
-Também eu.- Ajeitou o prato e veio com a eter-
Eu ia dar urna desculpa qualquer, mas ele não
na história. - Estou me lembrando daquela noite, na
pensão de Alzira... permitiu.
E desfiou o conto, com os mesmos detalhes e os - Não me venha com história fiada.
mesmos risos, eu meio sem jeito, ele muito espalhafato:. Foi, portanto, a minha vez de servir-me uma ca-
so, olhando para os lados a ver se contava com um au- chaça, bebendo-a aos golinhos, enquanto dava ordem à
ditório. Mas todos comiam, apressados, que ali só dava minha história, logo depois desembuchando toda a
embarcadiços, homens da resistência,· calungas de ca- cantilena, a partir da morte do Capitão. Humberto ou-
minhão, prostitutas matinais, verdureiros, apenas aos viu tudo com atenção, baforando o charuto e brincan-
sábados hospedando urna roda de intelectuais, sempre do com o cálice. Ainda bem eu não terminara e ele já
um poeta, um crítico, um sociólogo, um dramaturgo, bradava:
um ensaísta, à procura de ambientes exóticos, comendo - Não se aperreie, homem! Eu dou um jeito na
folclore e fingindo-se à vontade com a ralé. sua vida.
A feijoada chegou e por algum tempo come- Curvou-se sobre a mesinha, como se quisesse to-
mos calados, eu pensando que devia entulhar o estô- mar-me as mãos e, sem que eu soubesse por que, falou
mago, não sabia quantas refeições poderia fazer dali em em voz de segredo:

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- Eu represento umas fábricas de tecidos do sul caprichosa infinidade de desenhos irregulares, agradá-
do país. Umas fabricazinhas meio vagabundas, mas dá veis ao olho.
para ir vivendo. Você quer ser meu vendedor? Num terceiro andar da rua do Bom Jesus, de es-
- Não sei - gaguejei. cada bolorenta, localizava-se o escritório de Humberto:
- Você ganha uma comissão e eu lhe pago um uma velha máquina de escrever, duas escrivaninhas, um
mínimo de cem mil-réis por mês. armário com pastas e classificadores, muita teia de ara-
Inexplicavelmente eu me sentia meio desarvorado nha e os indefectíveis objetos antipáticos: mata-borrão
em abandonar aquela vagabundagem, trocando pernas cor-de-rosa, penas enferrujadas, tinteiro manchado, ré-
pelas ruas, acordando a qualquer hora, sem obrigações, gua, grampeador, um cinzeiro da Cinzano. Ele traçou
vogando na aventura, entregue ao acaso. um gesto imponente e designou-me a outra escrivani-
-Não tenho prática nesse ramo- objetei. nha, defronte da sua, onde se aboletara:
Humberto gritou: - Ai está seu lugar.
-Porra! Parece que você não quer trabalhar. A oferenda tinha qualquer coisa da condescendên-
- Não é isso, mas me apavora não dar conta do cia do mando, mas olhando seus olhos azuis nada vi
recado. neles. Sentei-me sem jeito e a cadeira rotativa gemeu,
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- E custa tentar? protestando. Já me trazia uma pasta com listas de pre-


Fiquei calado, enquanto ele me dava as primeiras ços e as possibilidades dos descontos, além do mostru-
instruções, desfilando nomes de firmas, quase todas lo- ário que, a princípio, tomei como um álbum de foto-
calizadas na rua do Imperador; qualidade dos tecidos: grafias, mas o que nele se viam eram tiras de pano,
opalinas, organdis, voiles, brins; tabela de preços, des- largas, coloridas, numeradas, abandonando tudo em
contos, pagamentos à vista ou a prazo, extração de pe- minhas mãos para refugiar-se num pequeno mictório
didos. de tabique. Folheei aquele livro estranho, a variedade
-Vamos ao escritório - concluiu. de cores lembrando-me os vestidos que passavam na
Saímos do Dudu para a tarde quente e, ao passo retreta de Palmares, sentindo-lhe o cheiro agradável da
que meu novo patrão continuava falando, eu olhava os tinta ou do verniz, eu não sabia, mas ao tato as amos-
homens e as coisas: negros, quinquilharias, cascas de tras eram agradáveis, lisas ou ásperas, a estamparia em
banana, prédios altos e baixos, janelas descascadas, mu- vermelho ou azul, amarelo ou verde formando combi-
lheres feias e bonitas, automóveis e carroças, barcas, es- nações p ictóricas o u sugerindo vagamente figurinhas de
tátuas, o Recife. Que era também o dos cheiros: maresia, cromos.
suor, açúcar, mangue, gasolina, m elado, peixes, o Humberto saía do mictório abotoando a bragui-
indefinível da pessoa humana. E das cores: verde-ama- lha, logo depois cascavilhando num dos bolsos da cal-
relado das árvores do Nordeste, az ul do mar, ça, de onde extraiu uma. cédula de vinte mil-réis, pon-
policromado dos vestidos, vistas as imagens belas, como do-a em minha mão e despachando-me:
se eu estivesse dentro dum tubo, os objetos de diver- - Vamos, toque para a rua. Na rua é que se ga-
sos tons assemelhando-se a fragmentos de vidro, nha dinheiro.
miçangas, papelinhos, pedacinhos de renda, refletin- Ajudou-me a recolher o m ostruário, uns cinco ál-
do-se em espelhos, num movimento rotatório, numa buns, meteu-me no bolso a tabela de preços e a lista

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dos fregueses, comboiando-me até à escada, sempre me Eu estava entre fardos, no meio do armazém, in-
dando pancadinhas amigáveis nas costas. terrogado por um velhinho de cabelos brancos e ralos,
- Ganharás o pão com o suor do teu rosto! - gri- de um sorriso bondoso. Sem uma palavra, apenas com
tou, ainda, enquanto eu tateava os velhos degraus com um gesto, indiquei-lhe o mostruário. Ele me tomou as
os pés. amostras, colocou-as em cima dum balcão e voltou-se
para mim.
Vi-me na tarde ensolarada, vibrante de gritos e
-Começando a vida, hein?
ruídos os mais diversos. Caminhei em direção à rua do
Imperador, centro dos armazéns em grosso, de propó- Confirmei, encabulado. O velhinho não olhava as
sito retardando os passos, a vergonha era cada vez mai- amostras, mas a mim. Senti um vago receio de sua ati-
or, enquanto o rio passava com os seus reflexos, des- tude, mas logo me tranqüilizei, que nada nele indicava
cia um anjo do céu de azul agressivo, eu já podia vê-lo, maldade.
e as suas asas eram dois punhais, ruflando, parindo re- - Fale-me sobre isso- pediu.
lâmpagos que passavam despercebidos aos mortais, Eu não sabia o que dizer. Afora o nome da fábri-
mas a mim dirigidos, mensageiro do comércio, deus ca e o do representante, dos preços dependendo de uma
dos ladrões, caído em desgraça, os signos, os signos! E consulta, se eram CIF ou FOB também dependendo de
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quanto mais o anjo descia, espalhando ventos no ar tór- outra consulta, eu não entendia de mais nada. Ele con-
rido, mais zuniam as amostras protegidas por meu tinuava sorrindo, enquanto abria o álbum de amostras,
abraço, até que rodopiei, equilibrando-me à custa no ao acaso, indagando:
parapeito da ponte, querendo guardá-las, mas logo sol- - Que fazenda é esta?
tei-as para a tarde e elas se transformaram em papa- Arrisquei um palpite:
gaios com rabos irisados, cada um deles, regularmen- - Organdi.
te, explodindo em fogos de artifício, envolvendo o anjo Ele, então, riu francamente, com uma risada cla-
que viu impossibilitada sua vinda, ele também ra, musical:
espoucando num imenso esbanjamento de estrelas, co-
- Acertou, meu filho.
metas, chuva de fogos coloridos, os punhais atraves-
sando o espaço com a velocidade do raio para atingir Tomou-me pelo ombro e levou-me para o fundo
do armazém, com amostras e tudo. Sentamo-nos a uma
o coração da Ursa Maior que, desgarrada, pousou no
mesa larga, de frente para o rio, através das grades eu
bico alaranjado da Pomba.
podia ver os grandes tabuleiros de frutas e os mastros
Durante essa revolução eu havia chegado à porta das barcaças. Durante mais de uma hora o velhinho ins-
do primeiro armazém de tecidos em grosso, hesitante, truiu-me sobre a profissão, suas malandragens, como
sem as palavras necessárias para a venda dos meus pro- abordar os fregueses, como perceber aqueles que fingi-
dutos. Embatucava-me, principalmente, a primeira fra- am recusar a mercadoria para maiores vantagens, os que
se: "Meu caro senhor" .. . Ou: "Cavalheiro" ... Talvez: cumpriam ou não seus compromissos, o que era linho,
"Boa tarde", simplesmente. .. Mais francamente: "Re- brim, algodão, seda, como distinguir as variedades,
presento a fábrica Tucano ... " como descobrir o ponto fraco de cada um dos compra-
- Que deseja? dores.

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- O meu você adivinhou por sorte - disse, justifi- aqui, no Santa Isabel, uma opereta sobre Pedro o Gran-
cando-se. - Comecei assim também, cego, quando en- de, da Rússia. O libreto já está pronto e a música tam-
tendi de ser ourives. Isto lá pelo ano de. . . deixe-me bém. Mas tem de ser tudo a valer: botas de couro da
ver... pelo ano de... 1383. Rússia, legítimas, cossacos do Dom, cinqüenta galgos,
-E o senhor é tão velho assim? - foi o que achei bailarinas do Cáucaso, russos brancos da velha aristo-
de perguntar. cracia czarista, uma orquestra com cem figuras. E eu
- Agora, só tenho sessenta e cinco. na batuta! Vai ser um espetáculo inesquecível.
-Agora? O velhinho calou-se e começou a brincar com o
Ele abriu uma gaveta da larga mesa, de lá tiran- monte das cascas de banana. Não interrompi o silêncio,
do duas bananas. que se prolongou não sei por quanto tempo. Subitamen-
-Coma uma. te, aprumou-se na cadeira, enfiou os polegares no
Aceitei a fruta. Descascamos as bananas em silên- suspensório e soltou-o com um ruído seco contra o pei-
cio, por nada no mundo eu interromperia su as confi- to.
dências. Quando dei a primeira dentada olhei em volta -Vamos aos negócios.
e só vi pilhas e mais pilhas de fardos, prateleiras, esca- Curvou-se sobre as amostras, consultou a lista de
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das. Nenhuma outra pessoa viva. Quando me voltei ele preços, tomou o talão de pedidos e, conscienciosamen-
já terminara de comer e limpava a boca com as costas te, formulou a compra que me pareceu muito boa, tal o
da mão. seu tamanho em fardos e quantidades. Assinou o pedi-
- Lembro-me de todas as minhas vidas. Às vezes do com uma letra muito clara, legível, um pouco infan-
confundo uma com a outra, mas os fatos mais impor- til: Hefesto de Albuquerque e Souza. Sobre a sua assi-
tantes não desaparecem, principalmente os terremotos. natura, um carimbo da firma: Albuquerque e Souza &
Assisti a tremores de terra em todas as partes do mun- Companhia Limitada. Recolhi o material, ele me acom-
do e sempre me horrorizou o espetáculo de crianças panhando até à porta:
soterradas, somente as crianças, que interrompem o seu - Apareça. Apareça para conversarmos. Gostei
ciclo, pois os adultos, bem ou mal, já caminharam, não muito de você.
e, mesm.o?. Apertei-lhe a mão e voltei à rua. Escurecia e eu
Meteu a mão na gaveta e tirou mais bananas que não sentira o tempo passar, mergulhado nas histórias
fomos descascando e comendo, enquanto ele falava de de seu Hefesto, a quem não queria julgar, pouco me
processos econômicos de épocas passadas, servidão so- importando suas mentiras ou verdades. Embora as
cial, costumes, vida familiar ou pública, política, siste- amostras me pesassem debaixo do braço o pedido esta-
mas de governo, guerras e revoluções, arte. va no bolso e nada poderia ter sido melhor para o pri-
- Agora, no fim desta minha nova etapa, só pen- meiro dia, embora nenhum mérito me coubesse naque-
so numa coisa: as operetas. la operação. Mas me incentivava e eu já me via como
-Operetas?- estranhei. um dos pracistas mais importantes no comércio de te-
- Que acha de extraordinário nisto? Ah, a bel/e cidos em grosso. Merecia um chope. Sentei-me na calça-
époque! Lehar, Offenbach, Strauss! Tudo dourado: as da do Café Lafaiete, refrescando-me com a cerveja,
mulheres, o champanha, as luzes. Sabe? Conto montar olhando os passantes, os bondes, as primeiras estrelas,

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vez por outra passando uma vista no pedido de Hefesto, eu o recolhia à boca da noite, suado, de pernas doendo
de vez em quando apalpando o bolso onde guardava o do muito caminhar, cada vez com uma maior sensação
papel mágico. de incompetência. Passei, então, a ajudá-lo no escritó-
A surpresa de Humberto, no dia seguinte, foi rio e vez por outra saía a pajeá-lo, para observar sua
enorme. técnica, seu modo de expor as q ualidades dos tecidos,
- Você conseguiu uma coisa inacreditável. Esse quase sempre arrancando um pedido, ora pequeno, ora
tal de Hefesto é um esquisitão: vive sozinho naquele grande. Minhas tentativas, p orém, continuavam sem re-
armazém, sem empregados, há anos que não faz um sultado, para a minha maior humilhação. E ainda por
pedido e se recusa até a vender aos fregueses do inte- cima eu sentia que Humberto já não era o mesmo, per-
rior. É podre de rico. dendo a esp ontaneidade, destilando com uma visível
Eu me babava de gozo. Humberto continu ava: má vontade notas de dez mil-réis que eu logo consu-
- Ninguém entra mais naquele armazém, porque mia em refeições magras, só chegando à pensão muito
não rende nada e porque seu Hefesto conta umas his- tarde para evitar encontros com a dona, a quem já esta-
tórias de arrepiar cabelo sobre reencarnação e todas es- va devendo bons meses de aluguel. Para cúmulo do azar
sas baboseiras. Diz ele que se lembra até de quando LL andava pelo interior de Alagoas, de onde me man-
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era macaco pulando de galho em galho. dara um bilhete apressado, e eu não tinha a quem re-
Riu, enquanto manipulava o pedido, gritando: correr. Então, entreguei o corpo às varas. Saía com o
- Vamos, toque pra rua! mostruário, m as me deixava ficar sentado a uma das
E lá me fui em nova peregrinação, as amostras mesinhas na calçada do Lafaiete, alternando cafés pe-
p esando debaixo do braço, constantemente mudando- quenos e chopes, numa moleza de fazer dó, incapaz de
as de um para o outro. Mas foi em vão que entrei e saí enfrentar os pançudos portugueses. No escritório, ain-
dos tecidos em grosso, ora despachado com uma des- da era de alguma utilidade, batucando a correspondên-
culpa delicada, ora secam ente, sem habilidade para ven- cia na máquina, levando recados a despachantes, fazen-
der a mercadoria, completamente inibido e sem conhe- do contas, mas aquilo não dava para justificar os cem
cimentos para criar uma literatura oral que convencesse mil-réis de Humberto, cuja prevenção era fácil de com-
os prováveis compradores. O sol queimava e eu, de pro- provar por haver cortado, definitivamente, qualquer re-
pósito, m e demorava na sombra dos armazéns, obser - ferência à nossa tão decantada farra na pensão de Alzira.
vando os empregados nas tarefas, os patrões portugue- Numa tarde de muito sol, quando eu me deixara
ses de barriga grande na prosperidade, os comerciantes ficar debruçado na pequena varanda de gradil de ferro,
do interior que especulavam as qualidades dos brins, olhando o p orto, vendo sem ver, como se diz, metido
gente a mais diversa que falava, discutia, contava ane- em meus pensamentos e carente de mulher, ouvi vaga-
dotas, dava cusparadas, baforava cigarros ou charutos m ente uns passos, mas não me voltei, de preguiça, como
e tecia com entários sobre o tempo, a política, a carestia um lagarto que se esquentava, sonolento. Uma mão caiu
de vida. no meu ombro e a voz conhecida bradou:
Não consegui sequ er um pedido e embora - Acorda, rufião!
Humberto me animasse todas as manhãs em que ia bus- LL já me abraçava e logo, em seguida, com pas-
car o mostruário, fazia uma cara de desânimo q uando sadas largas examinava o escritório, falando sem parar:

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-Que porcaria é essa aq ui? Você está numa deca- Para mim era uma fortuna, mas inacessível, por-
dência desgraçada mesmo. Vamos, homem, toca a an- que para chegar a ela faltavam-me, de modo total, co-
dar que eu trouxe uns cobres daqueles burros lá de nhecimentos da matéria. Mas LL já tinha todo o plano
Alagoas e ternos o bastante para comida, bebida e mu- armado.
lher. Isto aqui está cheirando a mofo e já vejo teias de - Não quer dizer nada. Quem é que não sabe que
aranha nos seus olhos, nariz, boca, ouvidos, larga tudo, você não sabe? Mas aquilo não é bicho-de-sete-cabeças,
ó infeliz. Não basta ver a tarde, é preciso viver a tarde. não. Preste atenção: a escrita deles está atrasada em mais
E além do mais eu tenho um bom emprego para você. de seis meses, que o guarda-livros anterior era incom-
Te esperei pra burro ontem na pensão. A propósito, já petente e preguiçoso. Sob esse pretexto, então, depois
paguei o que você estava devendo. Esperei e você não de fingir examinar os livros, você vai propor levá-los
apareceu. Deu trabalho descobrir onde é que você esta- para casa, que vai fazer serão para colocar a escrita em
va socado. Mexa-se, homem, fecha esta porcaria e va- dia. Compreendeu?
mos sair por aí. Temos de passar no Fagundes e Irmãos, - Não compreendi nada.
mas o negócio já está acertado, eles querem ver sua cara. - Deixe de ser burro. Leva os livros para a pen-
Tenho boas histórias para lhe contar, mas histórias que são e lá eu te ensino tudo.
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devem ser lavadas com muito chope, um barril de cho- A idéia já com eçava a me agradar, mas ainda ob-
pe, com batatas fritas, que eu nunca mais comi batatas jetei que aquele troço de contabilidade devia ser uma
fritas, e depois aquelas empadas de peixe do Munich coisa tão difícil quanto acariciar o rabo de Satanás.
Bar, com mais chope e aquele trio de merda de piano, - Coisa nenhuma- rebateu LL.- É uma canja.
violino e não sei o que mais. Ainda não botou o pale- Inteiramente convencido descemos do carro na
tó? Puta que o pariu! porta de Fagundes e Irmãos, Secos e Molhados, Arma-
Eu ria e me sentia feliz. Fechei o escritório, deixei zém de Estivas, na rua Direita, assaltando-me logo o
a chave debaixo da tábua marcada e ganhamos a rua. ch eiro de charque misturado ao do fígado-de-alemão e
LL chamou um carro de praça e, no percurso, m e ex- bacalhau. Foi o próprio Fagundes quem nos recebeu,
plicava o emprego: LL dando-lhe pancadinhas nas costas, na barriga e nos
-Você vai trabalhar com Fagundes e Irmãos, se- peitos com as costas das mãos. Apresentou-me ao ho-
cos e molhados. mem que me estendeu uma mãozinha suada e gorda,
- Que diabo eu vou fazer lá?- indaguei. voltando-se depois para o meu amigo, dizendo-lhe qua-
- Vai ser o guarda-livros da fuma - disse, com se em tom confidencial:
maior descaramento. - Mas é muito moço...
Quase saltei do carro. LL sorriu com indulgência e com uma cara muito
- Mas você está louco, ventão! Eu não entendo expressiva levou o indicador à testa, de olhos voltados
nada desse negócio. para mim, como quem diz: "Mas tem tutano".
- Mas não está precisando? Quanto é que você Os detalhes foram combinados embaixo de uma
ganha naquele escritório de merda? folhinha cuja ilustração da Emulsão de Scott figurava
- Cem mil-réis. um homenzinho de cara aparvalhada carregando um
-Lá são setecentos. Basta este argumento? bacalhau às costas, nós três sentados em torno da

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escrivaninha do Fagundes, uma daquelas de tampa de - Acho que n ão vou me dar bem - falei, quando
sanfona, podendo-se ver papéis amarelecidos, contas já estávamos desembocando na Praça da Independên-
especadas num furador, moedas de cobre, tinteiro sujo cia.
e penas escarrapichadas. - Bobagem - retrucou LL. - Pobre não tem luxo.
Fagundes foi dogmático: Entramos no Munich Bar e iniciamos nossa farra ,
- O expediente em nossa firma é de sete da ma- que se prolongaria pela noite adentro, repetição de tan-
nhã ao meio-dia e de uma e meia às sete da noite. O tas outras que já fizéramos juntos, do estômago partin-
senhor vai ganhar setecentos mil-réis por mês, com des- do para a cabeça as imagens dis torcidas, até nos sentir-
canso aos domingos. V amos fazer uma experiência por mos ricos e acharmos que a mistura de mulheres,
três meses. É mais cômodo para ambas as partes. Con- estrelas, música barata, filé com fritas, vômito, cama
corda? dura e orgasmo aquoso era o maravilhoso da vida; a té
Ele já devia ter usado aquela fórmula muitas ve- que me apresentasse, às sete da manhã, com cara de
zes, porque o recitativo tinha a característica da repeti- missa de sétimo dia, ao enxundioso Fagundes, achando
ção. a vida uma merda e eu mesmo um bom salafrário.
- Quando podemos começar? - insistiu o -O senhor está doente?- foi a pergunta do chefe
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Fagundes. da firma, ao me encontrar postado diante das grandes


- Amanhã - respondi. portas fechadas, pouco antes das sete, sem haver dor-
- Muito bem - tomou ele. - Devo dizer-lhe que a mido, sequer feito a barba, de olhos injetados.
escrita está atrasada de seis meses, mas isto não deve Desculpei-me aos resmungos e, ao abrir-se a por-
ter dificuldades para o senhor devido à sua competên- ta principal, penetrei na penumbra fétida, assaltado por
cia, como me asseverou aqui o nosso amigo. um odor indefinível, talvez ondas de odores os mais
Concordei com um gesto de cabeça. Fagundes diversos, contendo a náusea para observar como os ra-
levantou-se e estendeu -me a mão. tos e as baratas corriam para seus esconderijos, enquanto
- Então, até amanhã. o grupo de empregados se distribuía nas ingentes tare-
Apertei de novo aquela mão de sapo, enquanto fas.
LL se derramava em elogios à minha pessoa, exageran- Por indicação de Fagundes abanquei-me no tam-
do tudo na base da gozação, Fagundes com um sorriso borete alto da mesa alta, alinhados os livros que me
fixo, ao mesmo tempo delicado e incrédulo; que diabo lembravam os do Capitão no Cartório do Registro Ci-
de gênio seria eu? Ao chegarmos à porta, jogou a pri- vil, tendo sido apresentado antes aos dois únicos em-
meira pá de terra na minha genialidade: pregados do escritório: um magricela chamado H eitor
- Um aviso: não permito que empregado meu e uma morena mais baixa que alta, de cara espinhenta,
fume aqui no armazém. mas de pernas e nádegas bonitas seg1.mdo pude ver de
Tão fora de propósito era a advertência que eu e relance naquele primeiro contato, portadora de um
LL ficamos parados, de cara no ar, bonecos sem pala- nome esquisito: H ildebrande. Estava eu diante dos
vras, Fagundes cumprimentando-nos pela última vez meus inimigos, os livros, como burro olhando para pa-
com a cabeça e voltando para o interior do Secos e Mo- lácio, a cabeça rodando, sem saber como deveria en-
lhados. cher o dia, que gestos fazer, que palavras dizer. Li os

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títulos: Diário, Razão, Livro Caixa, Contas Correntes, Bor- explicando-lhe que precisava levar os livros, a fim de
rador. Apanhei o primeiro, o Razão, partindo da página pôr a escrita em dia, seria trabalho de algwnas sema-
primeira, folheando-o devagar, sem entender picas de nas fazendo serão à noite, impossível dar vencimento
toda aquela escrituração complicada. E folha por folha ao atraso no expediente comum. Fagundes só fez di-
fui matando os minutos com colunas numéricas, nomes zer:
de fregueses, quantidades de mercadoria, traços - Faça como entender, mas não lhe pago extraor-
diagonais e horizontais simples ou duplos, transporte, dinário.
deve e haver, créditos e débitos, tudo se embaralhava, eu Dei-lhe as costas e voltei ao meu canto, ao fingi-
não acreditava que pudesse penetrar naquele mundo do estudo dos livros, colecionando centenas de faturas,
frio, objetivo, hermético, onde falavam números e não duplicatas, recibos, vales que deveriam ser lançados nos
palavras, a diferença de um tostão causando pesadelos, livros competentes. Por várias vezes meti a mão no bol-
transtornando toda aquela combinação estruturada se- so para puxar um cigarro, mas a recomendação do che-
gundo leis próprias e imutáveis. fe logo me acudia e eu murmurava um palavrão, sen-
Mas atingi o meio-dia, enquanto Hildebrande ba- tindo a raiva na garganta como uma gosma amarga.
tucava numa velha máquina de escrever e Heitor co- Heitor veio em meu auxilio:
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piava faturas numa prensa de cor verde desbotado, pou- - Por que não vai fumar no aparelho? É o que eu
cas palavras tendo sido trocadas naquelas cinco horas, faço.
a vontade de fumar me torturava, a lingua grossa mal Segui seu conselho e tranquei-me na casinha de
cabendo na boca. Quando o relógio de parede bateu as telha vã, teia de aranha por todos os cantos, algumas
doze pancadas a m oça interrompeu a correspondência baratas cascudas, o cheiro amoniacal do mijo mishua-
com a mão no ar, nem mais a batida de uma tecla, agar- do ao enjoativo das fezes fazia os olhos arderem e o
rou a bolsa que estava ao lado e resmungou um "Até buraco que recebia os dejetos deveria atingir o Japão,
mais tarde", escafedendo-se, nas pegadas dela saindo no outro lado do mundo. Fumei aquilo tudo. A cada
Heitor, eu atrás, sem nem ao menos olhar para os la- tragada que dava engolia um pouco de merda e urina,
dos. alguns insetos, o rabo comprido dum rato, as patas de
Encontrei LL na Gruta Azul, onde costumávamos duas aranhas, as antenas duma barata, ânus e pênis de
fazer refeições, onde podíamos pendurar a despesa todos os empregados, pêlos, mucosa intestinal, gotas
quando não tínhamos dinheiro, contando com a genti- blenorrágicas, cuspo, suor, nomes feios, salários de fome,
leza de Rivadavia, espanhol desbocado, que tinha pra- sonhos. Mas era melhor que nada. Só que tinha de per-
zer em gritar para o caixa, o restaurante cheio: "Tercei- manecer em pé, recostado contra a parede de cimento
ra mesa à direita, despesa de oito mil e oitocentos réis, áspero, pesquisando detetivescarnente as menores coi-
o Borba só tem cinco, pendura!" sas para matar o tempo: formigas na tarefa, pequenos
LL me consolou das agruras da primeira manhã, grãos de areia na junção dos tijolos, um caibro podre, a
enquanto bebíamos uma cerveja e eu fumava um ci- mancha verde de wna telha.
garro após outro. Aquela pausa m e serenou um p ouco - Matou a vontade? - perguntou Heitor, quando
e foi mais disposto que voltei à furna, pronta a arma- voltei.
dilha para o Fagundes. No meio da tarde procurei-o, Dei de ombros e agradeci com um sorriso.

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-Vou lhe ensinar o truque- continuou o magri- manchados de tinta, encharcado de vinho, m etendo o
cela. bedelho em todos os recantos do armazém, muito ami-
Re tirou da gaveta um vidro de água de Colônia e go do Soares, um velhote careca que era o caixa, tam-
um chumaço de algodão. bém apreciador de vinho, facilitando-me vales contra
- Isto para a venta - disse, rindo. - E de passa- as ordens do Fagundes, raramente eu chegando ao fim
gem você pega meia garrafa de vinho. do mês com algum saldo, mas sempre sacando às es-
Hildebrande riu alto, surpreendendo-me. Seu riso condidas com a sua conivência.
era claro, musical, agradável, mas quando me voltei ela O armazém era um mundo, a começar pelo mate-
já se ocupava novamente com o trabalho, sisudamente rial humano: Fagundes e seu filho estudante de medi-
batendo nas teclas, era com o se dela não houvesse saí- cina que ajudava na extração dos pedidos em horas de
do o riso. Heitor continuava explicando: folga; o sócio menor, Tavares, de q uem eu tinha a im-
-Naquele monte de caixas à esquerda de quem pressão que estava sempre me fiscaJizando; os caixei-
entra no aparelho contando da esquerda para a direita, ros suados e malcheirosos, avermelhados, quase todos
na sétima fila, contando de baixo para cima a quinta portugueses, um deles não passara ainda dos dezoito
caixa, dê a volta, contornando a pilha que, no lugar cor- anos, com duas rosas nas faces e uma bunda bem feita;
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respondente, você encontra uma caixa cuja tampa está e os fregueses do interior, gente do litoral, da zona-da-
somente encostada . Meta a m ão na palha e arranque mata, do agreste, do sertão, de fala engraçada, com os
de lá sua garrafinha. seus casos, deslumbrados com as pensões da rua do
Meia hora depois eu estava novamente na latrina, Rangel, discutindo como se se tratasse de uma questão
fumando um cigarro e bebendo vinho, as narinas de vida ou morte os prazos de pagamento, invocando
entupidas com algodão embebido em água de Colônia. a seca ou a enchente. Com a escrita em dia eu andava
A experiência era boa e engraçada e eu a repeti a inter- por entre os fardos de charque, aspirando o cheiro de
valos, até o cair da noite, já meio zonzo pelo efeito da estopa, observando o mutismo do bacalhau m etido em
bebida, saindo um pouco antes da hora para apanhar barricas, apenas os rabos me lembravam um peixe, es-
um carro, nele metendo os livros de contabilidade e preitava as sardinhas de barrica nadando numa salm ou-
rumando para a pensão. LL só chegou muito ta rde, mas ra amarelo-esverdeada e minha boca se enchia d'água,
mesmo assim mergulhamos naquele mundo chato, aos ficava minutos esperando que o galo do azeite de oliva
poucos eu descobrindo os truques, esforçando-me por emitisse um canto que me pudesse lembrar as paisa-
achar alguma graça naquilo que me daria setecentos gens do Douro onde nunca estivera, parava d iante das
bagarotes por mês, um salário de príncipe. E de tanto latas muito bem arrumadas das azeitonas pretas ou ver-
verrumar a cabeça durante noites seguidas e de mais des imaginando paisagens bíblicas e Cristo com aquela
ainda o uvir as explicações de LL, ditando-me as opera- cara muito bem lavada e barba bem aparada em túnica
ções enquanto eu, obedientemente, as copiava nos vo- bem alva e pés bem limpos pregando para pescadores
lumosos carta pácios, consegui apreender o segredo e camponeses coloridos de rostos sem expressão; pre-
daquela baboseira . parava m entalmente um a farofa com coentro, cebola e
Nos meses que se seguiram, dominei minha falsa pimenta malagueta, tu do regado a cachaça, de olhos
competência com ares de escriba medieval, os dedos muito fixos nas m antas de fígado-de-alemão que na

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guerra de 14 era comida de gente ruim e gente boa, mulheres, homens, homens, homens de todas as cores,
transformados os bofes dos reprodutores e dos zebus de todos os hábitos, de todos os defeitos, de todos os
naquela carne de sal-presa, passava em revista as sar- brins, em g ravatas e sapatos para djsfarçarem, mas eu
dinhas em lata, no tomate ou no azeite, a manteiga os descobria pelas palavras e por um tique particular
Salinger, a banha de porco, os temperos - colorau, pi- de cada um: eram homens.
menta-do-reino, cominho - açúcares: de primeira, de LL não viajou mais para o interior e seus negó-
segunda, mascavo, demerara; extasiava-me com os vi- cios andavam vasgueiros, chegara a minha vez: paga-
nhos! O velho Alcobaça do Capitão Hermilo, um de va-lhe os cigarros, as cervejas, as mulheres, a pensão,
nome francês, outro alemão, aquele espanhol, nenhum graças à liberalidade do Soares no adiantamento dos
brasileiro a não ser o Zezito, sempre a predominância vales, situação tornada incômoda quando descobri que
dos portugueses, em cores, gravuras, letras, evocação, ele era pederasta e me namorava com olhares tão com-
desenhos, uma torre de castelo, uma saia de mulher, pridos quanto meu débito. Soares bebia, chorava, amu-
uma jaqueta de veludo, um cacho de uvas, campos, ava-se a um canto, eu fingia nada perceber, mas a an-
montanhas, guitarras, ora porra! E o sal! Graúdo ou re- gústia crescia, abri-me com LL.
finado, mas sobretudo o graúdo, claro, alvo, eram pe- - Come ele - respondeu-me.
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pitas, os índios não conheciam o sal, dava gosto às lá- -Vai te lascar! -gritei.
grimas ou ao sexo, à pele suada, falava-se do sal da Ele riu e acendeu um cigarro, dizendo, fatalista:
vida, Mãe Néa provava a comida e dizia num muxoxo: - Então larga o emprego.
"Está insosso"; eu não resisti ao gosto e, passando a -E como vai ser?- retruquei.
língua na anca suada do cavalo, cuspi para o lado, di- -A gente se arranja- filosofou.
zendo: "É salgado". De tudo o que estava no armazém Mas eu continuei agüentando o Soares, já meio
subia um cheiro e parava no ar, nas roupas, nas viri- manjado pelo pessoal do armazém que, com indiretas,
lhas, nas mãos. Uma coisa dava cheiro à outra e tudo me encabulava. Eram bilhetinhos, versos, canções obs-
era um cheiro só, raramente se distinguia o próprio de cenas, um deles chegando-se a mim, com ar canalha,
uma, a não ser que se pegando esta uma a esfregasse asseverando: "Tás com tudo, hein?" A repugnância cres-
nas ventas, logo depois esvanecendo-se e predominan- ceu no sábado de carnaval, com propostas do caixa para
do o geral. Mas o armazém eram também as aranhas, uma farra, o armazém fecharia à uma da tarde para
as baratas, os catitas e os guabirus, os lacraus, até uma abrir na quarta-feira ao meio-dia, teríamos todo o tem-
cobra, embora pequena, os sapos nas noites de chuva po. Dei-lhe as costas e fui salvo por Hildebrande que,
procurando um lugarzinho mais quente, as centopéias, já saracoteando, preparava-se para ir embora:
os grilos, os pregões que vinham da rua, os contraban- - Se quiser me encontrar é no Batutas.
distas, as putas que alisavam as calçadas desde as seis Agarrei-me à moça e ganhamos a rua, ela logo se
horas da noite, a mulher que lá entrava por engano, desprendendo e desaparecendo no meio da multidão
indagando: "O senhor tem ácido bórico?", os mendigos colorida, enquanto eu desistia de procurá-la, voltando-
à procura de restos, irmãs de caridade mendigando gê- me para os lados do armazém e vendo na calçada a
neros para orfanatos, comissões para festas religiosas figura ridícula do Soares, as calças frouxas, os suspen-
ou profanas, pracistas de secos e molhados, homens, sórios coloridos, na careca um minúsculo chapéu em

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-
forma de funil. Fui arrastado pela onda, aos trambo- parafuso, a folha-seca, muito sérios de cara em contras-
lhões, quase não pisava na terra e o mundo era outro: te com a alegria de dentro, entregues à dança e à bebe-
nada do Recife cotidiano, mas um pais boschjano onde deira, dignos, dir-se-iam indiferentes ao bruaá, mas com
se cruzavam peixes, caveiras, um homem de malha com a consciência de que, somados uns aos outros, forma-
um letreiro na bunda onde estava escrito "Fechado para vam a pândega gorda; e eu me sentia um intruso por-
balanço", outro com um tridente na mão, outro caval- que somente observava e ria e tinha desgosto ou nojo e
gando uma vassoura, outro nu metido numa barrica, novamente alegria, separando a multidão em indiví-
mulheres vestidas de fitas de seda, mascarados horren- duos, era um erro, de repente mandei tudo à puta que
dos, pierrôs saidos de Watteau, lá vinha o Urso lanzudo os pariu e me deixei posswr pelo espírito da folia em-
dançando ao som de um. pandeiro, o sol queimando borcando cálices de cachaça que já me formjgavam nos
tudo e tornando mais irrea l aquela mascarada à luz crua, pés e não tardou que também bradasse o meu Evoé,
fanfarras anunciavam os frevos e batuques de maracatus aos pulos como um leve bailarino atravessando a praça
faziam agitar as bundas crescidas de mulatas que des- e pulando para dentro do Munich Bar, de mesas chei-
ciam dos bondes, tudo eram cores, confetes, jetones, ser- as, a orquestrinha de valsas vienenses tocando desajei-
pentinas, os primeiros jatos de lança-perfume perfuma- tadamente frevos-canções para acompanhamento de um
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vam o ar, os gritos se encontravam e se espatifavam moço vaselinado que se esganiçava cantando "Mandei
em gargalhadas, bebia-se em boca de garrafas, um ne- fazer um buquê pra minha amada", mas ninguém acre-
gro abraçava uma branca segurando um dos seus seios ditava na amada do efebo e gritava pedindo cerveja,
com a mão grande de unhas sujas, todos desemboca- gim, conhaque, chope, todos falando em voz alta, cada
vam na Praça da Independência, espalhando-se pelos um com a sua rustória, era um monólogo em coro, lá
cantos, formando grupos fechados na dança frenética, estava LL de bacorinha branca com fita verde, verme-
esquecidos, perdidos, alheados dos abortos e demissões, lho como uma baeta, gritava ou cantava eu não sabia,
possuidos pelo carnaval que escaldava àquela hora, um só que sua boca fazia de conta, os sons não eram audí-
adolescente de pica branca mjjava calmamente na es- veis, não olhava para nada em especial, não me reco-
quina, a cabeça ligeiramente pendida, um negro vomi- nheceu quase colado à sua cara, terminando o discurso
tava tranqüilamente amparado por um sarará meio in- incompreensível e deixando-se cair na cadeira que, com
diferente, enquanto uma loura vestida de verde gritava o peso, virou, levando-o na queda, logo pondo-se de
"Evoé!" e deixava à mostra as axilas peludas, os braços pé com toda a juventude, reconhecendo-me afinal e
levantados como se qwsesse agarrar uma tira de pano abraçando-me em cheiro de suor, perfume barato, háli-
pendurada no fio elétrico, o garoto precoce procurando to acervejado, às gargalhadas, os perillgotos arrasando-
olhar debaixo de suas saias, a cabeça metida entre as me a cara, um grito, uma praga, um nome feio abafa-
p ernas, dando-me a impressão de que a mulher o ca- dos pela orquestra do bloco que já transpunha as portas
valgava; um bloco em verde, amarelo, encarnado e azul largas, LL desprendendo-se e caindo no passo, uma ca-
fazia sua entrada triunfal na praça e arregimentava to- brocha incentivando-me com bamboleios de barriga e
dos os bandos, braços entrelaçando-se a braços, apenas riso inocente, agarrei-a, mas ela negaceou, peguei-a por
as pernas livres para o frenesi, logo depois haveriam detrás e nossa dança, na gargalhada dos outros, era cô-
de separar-se para o chá-de-barriguinha, a tesoura, o mjca, fui arrastado pela gola do paletó, nunca mais vi

124 125
esse paletó, estatelei-me na mesa de mármore, derra- muito tempo depois da trégua e retinindo na crista das
maram-me cerveja na cara, engoli alguma, voltei para ondas violetas do mar noturno. Mas a voz roufenha cha-
o bloco e fiz meus requebros, suando como uma cha- mava-me ao carnaval da terra, repetindo, repetindo, sem
leira no fogo, mas não tinha imagens na cabeça, só o fôlego, "Você me conhece?" - eu estava bastante bêba-
imediato, de braços dados não sabia com quem, não os do para dar-lhe um pontapé nas partes carnudas e vê-
conhecia mas os amava e as notas sincopadas enchiam lo, não cair, mas dar uma cambalhota e, já de pé, agar-
minha cabeça e me levavam para o limbo, cada vez r ar o primeiro ao alcance da mão, com a cansada
mais, ouvindo uma voz roufenha, numa cara sem olhos, pergunta: "Você me conhece?" Tudo isto num sábado
apenas um traço na boca, careca, perguntando-me in- de carnaval, talvez não houvesse passado uma hora,
sistentemente, sem espera r a resposta: "Você me conhe- como seriam o resto do dia, o domingo, a segunda, a
ce?", tuna bolha estourando, talvez uma garrafa de terça, a manhã de quarta? Vlan e Pierrô, em listras ama-
champanha gasta por um usineiro no meio do povo, os relas, azuladas, fálicos, estavam em minhas mãos e no
gases formando uma nuvem e, nela, uma antevisão de cangote da mulata eu os despejava sem descer o dedo
Cundunga, não a Cundunga de todos os dias e de to- dos ga tilhos, era uma mijada fininha, de um elfo foi o
dos os olhos, mas aquela a quem, mesmo no escuro, que pensei, formando-se uma crosta branca na pele, de-
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reconheceria entre milhares pelos dedos longos, os sei- pois seria uma ferida ostentada na quarta-feira de ci n-
os grandes inexplicavelmente de sangue negro com au- zas como uma cicatriz da batalha; mas os pensamentos
réolas róseas, um tufo de pêlos saindo pela perna direi- não podiam parar e, levado de um lado para o outro,
ta da calça, os sinai s espalhados pelo corpo corno misturava as garrafas em suas cores e as bebidas nelas
estrelas isoladas nostálgicas de uma constelação, que ela contidas, um clube trovejava na rua, o bar durante ins-
seria uma estrela fixa, imutável, chispante, queimando- tantes esvaziando-se pois todo o mundo queria partici-
me, mas na peregrinação de minhas mãos e lábios eu par de tudo, eu com eles agarrando todos os momen-
teria, mesmo no escuro, repito, o sedoso nunca iguala- tos, pulando meio metro de altura e metro e meio de
do das coxas cosquentas, as axilas que gostaria pelu- largura, a roda de suor debaixo dos braços já se unia
das, um forte cheiro de ervas machucadas do sexo sem- com as outras manchas, a bebida fugia na transpiração,
pre molhado, da sua boca podendo sair palavras mas logo pela garganta passavam goles grossos e a m á-
impossíveis de combinação como Deus e Cu, Caridade quina se mantinha azeitada.
e Grelo, Arte e Ca ral ho, culminando com os sons gutu- Às quatro horas da tarde cai debaixo de uma
rais da garganta no momento do Gozo, mantendo a boca mesa, leito fofo, quando acordei era noite alta, ouvindo
afastada da minha, toda para dentro de si mesma, eu restos de canções antigas e daquele ano, a mistura de
era apenas um instrumento para sua realização maior, lança-perfume com cerveja não era tão enjoativa, su-
tudo se esfacelando em guizos de anjos que balança- portável bastante para que me levantasse quase lépido
vam as palmas dos coqueiros e explodiam nos crepús- e emborcasse restos de copos, indiferentemente, era a
culos sanguinolentos, tão vermelhos quanto as suas sede que me torturava e, mais do que ela, o pianista
mucosas não importa de que parte recurva do corpo: careca que, anacronicamente, batucava uma valsa de
boca, narinas, ânus, vagina. E tudo com sons e odores serenata para uma prostituta gorda e fanada, chorosa,
somente dela, Cundunga, inigualáveis, permanecendo as lágrimas traçando sulcos na cara bastante pintada

126 127
de vermelho, um sinal preto em cada uma das faces; baile dos casados, matinal das dez horas num segundo
fugi por uma das portas laterais; foi quando descia a andar da rua do Ranget onde fui encontrar LL, embo-
calçada que encontrei o Soares à minha espera, um ros- ra todos estivessem nus, homens e mulheres, havia a
to debochado, com o mesmo chapeuzinho em forma de ingenuidade do desafogo. Mal transpus a porta e já me
funil, indolentemente recostado num poste, a luz da agarravam, despojavam-me das roupas e jogavam-me
lâmpada variando sua fisionomia conforme o bambo- para o meio do salão onde os corpos suados se esfrega-
leio do seu corpo, a boca se abrindo num sorriso mais vam ao som da música, nem sempre o ritmo era o mes-
largo ao me ver parado, surpreso, enojado. mo na suruba musical mas ninguém ligava para aqui-
-Vem cá, merúno - disse, aflautando a voz.- És lo, aü a liberdade atingia o auge, os a tos transforman-
meu. do-se em coisa natural. Minha irúbição inicial causou
Avançou devagar e eu já podia sentir seu cheiro: gargalhadas da loura oxigenada nos braços de quem
o mesmo do armazém, que entranhado estava na sua caí, mas com dois porres de lança-perfume eu já entra-
pele e nas suas vísceras. A raiva subia em mim, mas va em ereção e com o pênis entre suas coxas gingava e
ele não sabia, talvez contando com a minha embriaguez, adquiria meu próprio ritmo mais sincopado que o do
embora embriagado eu de todo não estivesse, passo a frevo, mais rápido que o floreio das notas, enquanto
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passo, como um felino, aproximava-se, eu quase ao seu ela executava sua dança privada, as unhas pontiagudas
alcance, m as ao meu alcance ele é quem estava. Recuei cravando-se em minhas costas, num movimento de
o braço, fechei o punho e o soco entre seus olhos foi sobe-e-desce, cada um en tregue a si próprio. E a ma-
como um bote de cascavel. Ele não fechou os olhos, ao nhã se foi, com novos vômitos, pouca comida, outras
contrário, abriu-os como se fossem saltar das órbitas, o bebidas, a tarde nos encontrando em Água Fria à espe-
sangue espirrando do nariz num jato em curva muito ra do Maracatu Elefante, a noite caindo e o som dos
gracioso, só então ele se curvando, cada vez m ais do- atabaques percutindo no estômago, eu segurando um
brado, choramingando como uma criança. Dei-lhe as candeeiro de carbureto, LL no bamboleio, pelas ruas dos
costas e rumei para a Aurora, perscrutando o céu à pro- subúrbios em direção à cidade, o fartum me embriaga-
cura de vermelhos do dia, mas o azul era escuro e, já va mais que a cachaça bebida na boca da garrafa, os
deitado na cama, cansei-me de esperá-los. negros se compenetravam nas suas fantasias vistosas e
No domingo, as ruas fervilhavam de manchas co- eram Rainha, Rei, Dama, com espadas, bonecas, totens,
loridas espalhadas em ruas, becos, vielas, praças, vidrilhos, miçangas, na música sem canto, na religião,
donzelas sentadas em capotas de automóveis, donzéis na noite africana, escura, de repente um grito fazendo
correndo atrás delas com sacos de confetes e rolos de tudo silenciar, um mulato contorcendo-se à espera da
serpentinas, a caçada haveria de repetir-se sem passar morte imediata, amorosamente segurando o cabo da
daquele jogo; as ondas iam e vinham e as gargantas peixeira que fora até à raiz da vida. O bando disper-
repetiam marchas: "Esse sonho ideal foi o meu carna- sou-se em correrias e choros, tornamos nosso rumo e,
val, a mais linda canção..."Todos ingênuos, vivos, na munidos de nossas senhas, entramos no Batutas, onde
mais pura alegria onde quer que se chegasse: nos bares em vão procurei Hildebrande, terminando por carregar
e nas mesinhas de calçadas, nos coretos, no meio da LL para a pensão onde vomitou os lençóis e dormi.u de
rua, com seus cartazes e seus ditos. E até mesmo no boca aberta com um som sibilante.

128 129

J
Com poucas variantes os a tos se repetiram na se-
gunda-feira, já com a nostalgia da metade do tempo,
vez por outra a dura vida chamando-me à realidade:
que a quarta-feira chegaria e com ela o comportamento
normal das necessidades, a rotina da barba, do banho,
das refeições, das obrigações, quais eu não sabia, das
coisas sem rumo lógico. Mas ainda na segunda, à noi-
te, encontrei Hildebrande e seu corpo já perfurado me
consolou no resto da madrugada, não nos largamos mais 6
e varamos a terça em freges do cais do porto, abraça- Eu estou tão na merda que se puxarem minha gravata dau descarga.
dos nas ruas, na safadeza dos cafés, nos refugiávamos Um Lixeiro
num pé de escada e nos satisfazíamos às pressas, repe-
tindo a dose em outras ocasiões e em outros lugares
escuros, quantas vezes eu já nem mais sabia, só que
estávamos flutuando e nos esgotando, nossas forças
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eram a própria canseira, uma despedida em regra, tudo


se acabava, já estávamos na quarta, os últimos bêbados
passavam cantando "Vamos chorar, vamos chorar, que
amanhã é quarta-feira, acabou-se o carnaval", e eu, mais
uma vez, menina, se queres vamos, não se ponha a ima-
ginar, desabotoava a braguilha, suspendia-lhe o vesti- Não pisei mais no Secos e Molhados para não ver
do, um sujeito batia em meu ombro, tome vergonha, a cara do Soares; o Fagundes, com certeza, mordendo-
Hildebrande nem sequer sentia mais nada, já dormia, se de raiva pelos vales insolvíveis, Hildebrande marti-
sonhava, eu nem chegava a terminar, virava-me de lado, rizando o bestunto para adivinhar em que havia erra-
com a sua cabeça em meu ombro mijava um pouco do. Mas eu pouco ligava e andava ao Deus-dará com
d'água sanguinolenta e tentava novamente, em vão, os magros mil-réis produto de picaretagens de LL, be-
querendo apagar-me, sumir, não ser mais eu mesmo, e bendo os mesmos chopes e caçando as mesmas mulhe-
na verdade já não era, morria, eu era a morte do carna- res, correndo as noites, o problema da comida era sem-
val. pre grave, meu ânim o não dava para resoluções
salvadoras, executava apenas atos cotidianos: amolar a
gilete no copo, lavar o corpo com sabão de cozinha,
escovar os dentes com sapóleo. E tudo se agravou quan-
do LL teve, novamente, de sair nas suas andanças pelo
interior dos quatro Estados, papéis na pasta e lábia na
boca, vendendo apólices de seguro, títulos da dívida
pública, registros comerciais, ações de urna companhia
de mineração.

130
Mas numa noitada do Café Lafaiete transformei- e garante seus trabalhos em qualquer cir-
me em mago, quiromante renomado, graças à inspira- cunstância nos segredos da ciência oriental.
ção do Farias, secretário do vespertino A Tarde, que pre- Indica os meios necessários à remoção de
tendia inaugurar no se u jornal um Consultó rio qualquer dificuldade na vida de uma pes-
Sentimental, mais um truque para aumentar a tiragem soa, com segurança, pois muitos anos de
da folha às custas de mocinhas românticas, solteironas prática nas grandes capitais onde tem tra-
suspirosas e viúvas nostálgicas. Ali mesmo na mesa do balhado atestam que seus trabalhos são sin-
café preparamos o plano, mudei de sexo para transfor- ceros, rápidos e garantidos, à disposição de
mar-me em Madame Sarides, redigimos um volante que todos.
deveria a nteceder minha contratação. De madrugada,
já, estávamos revendo as provas e no dia seguinte ga- Escrevam para Caixa Postal 72.
rotos de pés descalços espalhavam pela cidade, nas pon- Os assuntos serão mantidos em abso-
tes e nos bondes, nos cafés e casas comerciais, nos su- luto sigilo. MADAME SARIDES, como
búrbios, meu anúncio em verde: benfeitora da human idade, nada cobra
pela prestação dos seus serviços.
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CIENTISTA Depois que a cidade foi inundada pelos papelu-


chos e que as primeiras consultas chegaram à Caixa Pos-
Não vacile- Procure imediatamente tal, A Tarde publicou uma nota, em destaque, anuncian-
do a contratação de Madame Sarides, posta à disposição
MADAME SARIDES de todos os leitores, inteiramente grátis, cartas à reda-
ção. N esse meio tempo eu lia O Livro de São Cipriano, O
Livro das Bruxas, As Profecias de Nostradamus, enfronhava-
Cientista de nome revela a vida do cliente me no Anuário Perpétuo, devorava tratados de quiroman-
com a maior clareza, os fatos mais impor- cia e cartomancia, estudava a fundo os signos do Zodí-
tantes da vida humana. Com diversos anos aco, armava horóscopos, conselhos do dia, inclusive vida
na prática d a ciência compromete-se a fazer de santos, para maior edificação.
qualquer trabalho sobre qualquer fim. O salário que o jornal me p agava era p equeno,
Quereis saber de vossa vida? De vosso des- m as em compensação o trabalho era divertido, às vol-
tino? Necessitais que se descubra alguma tas com a estupidez humana, suas esperanças numa pa-
coisa q ue vos preocupa? Quereis fazer vol- nacéia, suas confissões tragicômicas: "Madame Sarides.
tar à vossa companhia alguém que se tenha Tenho vinte e oito anos, sei costurar, bordar e fazer ar-
sep arado? Destruir algum malefício? Facili- ranjos domésticos, todos m e acham muito simpática,
tar um casamento difícil? Vosso am or não é gosto de fazer o bem e não poupo esforços para aten-
correspondido? Almeja uma união rápida der a urna pessoa necessita da. Sinto necessidade de
com o ente querido? Madame Sarides trata amar e de ser amada, mas de um amor humano, se é
de todos os casos ao alcance de sua ciência que a senhora me entende, de ter, ao meu lado, um

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ente do sexo oposto que me estreite em seus braços e confidencial: gritos de socorro, conselhos, desesperos,
me faça m ãe. Creio que este é o anelo de toda moça malcriações por não haver alcançado aquilo que fora
solteira. Mas a natureza foi madrasta comigo, porque vaticinado. Todas as mazelas humanas passavam por
embora não tenha um corpo mal feito sou feia, além de minhas mãos: "Meu marido é impotente. Devo procu-
ter o rosto coberto de espinhas que inflamam e me dão rar outro homem?" "Não suporto mais o fedor dos pés
um aspecto desagradáveL Que devo fazer? Aconselhe- do meu marido. Que devo fazer?" "Meu marido tem
me nesta encruzilhada dolorosa de rrúnha vida". Ao que uma amante, mas eu o amo. Aconselhe-me." "Traí o
eu respondia: "Minha querida senhorita. O Grande Deus meu marido com um homem a quem não amo. Devo
Buda diz que a mais alta beleza humana é a do espírito confessar-lh e minha culpa?" "Minha filha é minha ri-
e pela sua carta verifico que os seus dotes morais são val Devo renunciar?" "Tenho vinte anos, solteira, e es-
esplendorosos. A beleza física é transitória, enquanto tou grávida. Salve-me." "Sinto um amor pecaminoso por
os dotes espirituais contribuem para a maior meu irmão mais velho. Como devo agir?"
fraternidade entre os homens, míseros seres que cum- Eu brincava com os sentimentos humanos, mas
p rem sua missão neste vale de lágrimas. Aconselho-a a vez por outra não conseguia que o cinismo fosse mais
ter paciência, ou tra virtude pregada pelos ascetas forte que a piedade e lá me punha, sinceramente, a es-
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hindus, dando-lhe a feliz notícia de que, estudando seu tudar o problema, tratando-o com seriedade, mas o di-
horóscopo, posso anunciar-lhe que dentro de pouco abo é que não conhecia as pessoas, tornando-as como
tempo seu destino mudará com o aparecimento do prín- abstrações, seus apelos quase sempre não me comovi-
cipe dos seus sonhos. Entretanto, aconselho-a a procu- am e eu fabricava as respostas sem pensar nas conse-
rar um dermatologista, para livrá-la do seu incômodo. qüências. Devo ter sido responsável por suicídios, abor-
Tenha fé nos poderes espirituais, mantendo correspon- tos, lares desfeitos, adultérios, de cambulhada com
dência com esta sua serva que, em suas orações, roga casamentos de conveniência e mesmo casamentos por
ao Ser Supremo pela sua feli cidade". amor, aquietando vulvas inquietas, possibilitando o nas-
Para meu maior espanto, pouco tempo depois a cimento de crianças proibidas. De qualquer modo, tudo
desventurada senhorita anunciava-me ter ficado com- tinha um sentido e, trabalhando corno um bicho, não
pletamente curada dos seus males e estar noiva dum deixava nenhuma carta sem resposta, Farias designan-
viúvo ainda moço, beirando os quarenta e cinco, na- do-me um ajudante, dando importância à minha seção,
dando num mar de rosas. Insistia em me conhecer para esfregando as mãos de sa tisfeito, que a tiragem havia
manifestar seu agradecimento de viva voz, eu me aumentado.
excusava. Não era raro eu mesmo ter de atender a uma Quase sempre estávamos juntos à noite e nos me-
delas, na redação, para explicar-lhe que Madame Sarides tíamos nos botecos do bairro de São José, ele para estu-
trabalhava em seu tugúrio, nós do jornal éramos ape- dar os hábitos das classes pobres, pretendendo escre-
nas seus intermediários. ver uma Anatomia da Fome, tomando notas em tudo
Durante a m anhã preparava a seção, com o inevi- quanto era pedaço de papel, até higiênico, que andava
tável horóscopo e os respectivos conselhos, o pensa- com os bolsos cheios, atacado de uma disenteria crôni-
mento do dia, a resposta às cartas mais ingênuas. À ca, acocorando-se em qualquer desvão ou beco escu-
tarde atendia à correspondência mais importante e ro, mas nem por isto deixando de engolir fritadas de

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camarão ou caranguejo com batidas de limão. Falava a lua seguinte, numa reviravolta infinita de cambulhada
durante horas dos seus projetos, entrevistava negros su- com outros deuses que me faziam de seu mensageiro,
ados e prostitutas fedorentas, cachaceiros, garçons, ma- sempre em missões difíceis, compreendia suas intenções,
loqueiros, muambeiros, lixeiros, todo o submtmdo do quais sejam as de me afastar das deusas suas compa-
bairro onde os mais altamente colocados não passavam nheiras, e nada tinha a perder que me voltava para o
de pequenos funcionários da prefeitura ou do estado, mundo subterrâneo, frutificante, germinador, lá para as
suas casas de decoração muito especial. Umas havia pin- tantas pondo a cabeça de fora, na superfície da terra,
tadas em tons fortes de azul e amarelo, outras apenas confundido com uma espiga de milho, sempre debu-
caiadas, mas todas esbanjavam bibelôs baratos compra- lhado por mãos de mulheres fortes, carnudas, de ancas
dos em ambulantes, quadros de santos com velinhas parideiras, tudo devido à minha extraordinária flexibi-
coloridas, os indefectíveis retratos coloridos dos donos lidade, de corpo e espírito, aliada a uma certa indul-
da casa irreconheáveis de tão retocados, cortinas de con- gência pelo que me cabia, sem maiores exigências, mes-
tas, pesados abajures em papel crepom, consolos, apa- m o porque não me preocupava pela estrita observância
radores, cadeiras de vime guarida de percevejos, tape- das regras da moral, daí a minha vantagem sobre os
tes ordinários, quase sempre um quadro com paisagem demais, jungidos a cultos e esquemas, de pés atados e
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marinha ou campestre ou um pastor tangendo as ove- pensamentos dirigidos a um só fim. Todos podiam re-
lhas, um Cristo derramado e medjtativo às margens conhecer-me se tivessem bons olhos para ver nas tre-
dum lago, todo um mundo de mau gosto fabricado de vas: minha varinha terminava num disco coroado por
propósito para os pobres. uma meia-lua, compreendam, como se estivesse traça-
Farias fazia amizade com doceiras, rendeiras, fi- do um 8 aberto por cima, o 8 do mês antes do oitavo,
lhas-de-santo, cozinheiras e zeladoras de clubes carna- do ano de 917, nove nada, um e sete, oito. Todo eu era
valescos, mestres de barcaças, pescadores, operários da resplandecente e que culpa tinha se os homens eram
Great-Western, metendo-se nas suas vidas, perguntan- cegos, embora as mulheres fossem mais ladinas e sen-
do tudo, abelhudo, inconveniente, eu nas suas águas, tissem, apenas sentissem, que algo de estranho aconte-
bebendo cachaça e café forte, mas sobre tudo cachaça cia ao meu contato? Do mais profundo de seus úteros
com raízes de catuaba, jucá, quebra-pedra, aroeira, co- palpitava o desejo da procriação, a armadliha de mi-
mendo chambaris, mãos-de-vaca, mocotós, sarapatéis, nha posteridade, mas nessas ocasiões eu me transfor-
paneladas e cozidos, alimento de sustança que nos le- mava num hermafrodita e mergulhava em mim mes-
vava a longas caminhadas no areal da bacia do mo a minha semente, iludindo-as, embora elas não
Capibaribe, terminando por atravessar a quilométrica soubessem q ue haviam sido iludidas, apenas o espanto
ponte do Pina e, já nas areias do mar, derrubar uma dos ovários se manifestava no dia certo e tudo morria
mulher de ocasião que se passasse pelo gosto de pas- num rio de sangue. Adivinh.o eu já era, por herança
sar-se ou em troca de uma peixada madrugadora no natural, e quando voava, à noite, sobre a cidade, fazia
Maxirne de farristas. que o vento me masturbasse, o esperma se espalhando
Nessa vida eu chamava a mim as esferas celestes sobre todas as mulheres, inundando suas vaginas e dis-
de tanto vogar no firmamento noturno, alado, comboi- parando para a madre. Assim eu as enganava de ou-
ando a cauda do sol nascente, mas sempre voltado para tra maneira, todas fecundadas por mim, crentes de que

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geravam dos se us amantes, machos estúpidos um falso tom natural a troco de uns poucos m il-réis,
comeados. Quando isto acontecia eu explodia em mil vez por outra cantando sem saber cantar operetas de
pequenos sóis para espanto de velhos camponeses que, imitação e comédias-musicadas de um gosto me-
no campo, entre a zona-da-mata e o agreste, no sereno lodramático nauseante. Mas eram boas pessoas, com
da madrugada, estavam inclinados sobre a terra acom- seus pequenos dramas pessoais e o orgulho de artistas,
panhando o germinar de uma planta nova. Coçavam a sempre às voltas com os problemas da subsistência, ra-
cabeça e contavam no café da manhã: "Vi uma chuva ros falando da missão do teatro, a maioria ganhando a
de borboletas prateadas", mas nem eles mesmos acre- vida naquela profissão como poderia ganhá-la fabrican-
ditavam no que diziam, inteiramente estupefa tos para do sabão ou, de caixeiros, despachando fregueses im-
falar a verdade. pertinentes.
Muitos eram os caminhos na minha vida sobre- Liguei-me a Amália, que fa zia as ingênuas de
naturat mas no cotidiano tinha de obedecer às ordens Gastão Tojeiro, por todos reconhecido como um deles,
do Farias, que isto fazia parte do meu disfarce. Assim é comboiando-a depois do espetáculo a uma ceia no Café
que tive de acumular as funções de Madame Sarides Continental, discutindo os incidentes ocorridos na re-
com as de José de Unavale, cronista teatrat tendo de presentação ou nos bastidores, terminando a noite na
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comparecer engravatado ao Teatro Santa Isabel para as sua cama, o pijama dobrado para depois do ato, no seu.
representações do Conjunto Nossa Gente, companhia banheiro meus objetos de higiene, nosso dinheiro divi-
local especializada em operetas e comédias de costu- dido na compra de gêneros e pertences, na mais nor-
mes oferecidas a um público sempre diminuto. Nova- mal das amigações sem compromisso ou cenas de ciú-
mente estava eu às voltas com o teatro, aos poucos tor- mes, tudo muito na tural e, pouco a pouco, sem gosto.
nando-me conhecido de atores e diretores, muitas vezes, Aos domingos recebfamos os colegas para uma feijoa-
não tendo o que fazer, acompanhando-os a excursões da e lá estava o Carreira, cujas quedas numeradas fazi-
aos subúrbios, participando, inclusive, de esquetes nos am as delicias do público. Carreiro, que havia sido pa-
atos variados com que, invariavelmente, encerravam a lhaço de circo, maquilava-se de maneira exagerada, era
representação. Saíamos para bebericar cachaça com caju, um mestre em esgares e em cada representação nos brin-
se era tempo, com abacaxi, se era tempo, com laranja dava com uma das suas famosas quedas.
azeda em qualquer tempo, gozando dos favores das atri- - Querem a número quatro?
zes menos importantes, que as primas-donas pendura- Despencava-se da cadeira com muita graça, levan-
vam seu marido ou seu amante no hraço, fazendo pra- tando-se rápido com m ovimentos de contorsionista, os
ça de uma honestidade sexual naquele meio onde esse antebraços dando massagem na barriga e as nádegas
tipo d e honestidade nem importância tinha. No Arruda agitando-se.
em época de chuva, na Encruzilhada em tardes de do- Vinha também o Ermfrio, cara de sofredor, sem-
mingo, na Madalena sob frondosas mangueiras, no Lar- pre louvando as delícias do tempo passado, quando um
go da Paz com o ruído trepidante dos trens da zona sapato Walk-Over cu stava uma insignificância; sua mu-
sul aqueles atores semiletrados apresentavam um reper- lher, Laura, uma cômica meio amalucada; o Barros
tório onde galãs e ingênuas, vilões, pais de família, Júnior, de quem se contavam as histórias mais fantásti-
estróinas e aventureiros, cômicos e caricatas assumiam cas de sua vida de mambembeiro; o galã Otávio, de

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costeletas e polainas, mesmo fora do palco articulando olhos sejam luminosos para maior pavor das suas víti.-
muito bem, escandindo as palavras; e o Renato, cantador mas; assim caminhando os dois - ela cega, eu mascara-
de emboladas, improvisador de cantorias populares, de- do - atravessaríamos prisões, vitórias, heresias, ascos,
dilhando o violão e bebendo cachaça, aos golinhos, sem exercícios da carne, pecados variados, toda a ex periên-
parar e sem nunca ficar bêbado. cia revertendo em nosso benefício, ela no seu Paraíso e
Comia-se e bebia-se até à hora da vesperal e quan- eu no meu Inferno quando só houvesse alma.
do Amália saía para o espetáculo eu me espichava numa E quando conscientizei tudo isto, ta lvez de outra
rede no terraço de detrás, oscilante entre o sono e as maneira, deixei a casa de Amália com os meus perten-
imagens da memória, caminhando em minha ponte de ces debaixo do braço, voltei à pensão e ao trabalho ex-
inquietação, especulando com o futuro num ritmo com- clusivo do jornal, convencendo o Farias que me substi-
passado de previsões, ouvindo o rumor das coisas pas- tuísse nas funções de crítico teatral, cortando voltas na
sadas e delas extraindo símbolos que afinal de contas rua quando, de longe, avistava um dos atores, evitan-
para nada serviam. Tornava-se necessário um machado do seus pontos de reunião. Naquele mesmo domingo
de lâmina afiada para decepar as amarras e vogar no regressei aos meus territórios, às minhas andanças, ten-
país das águas ou montar no meu cavalo voador para do a sorte de entrar num bordel onde se festejava o
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investigar a noite ao lado do São Jorge lunar, possuin- aniversário da caftina. Todas as putas se vestiam de
do montanhas, nuvens e poços, disfarçando-me de cão azul-claro, sapatos e luvas brancos, os cavalheiros tam-
perdigueiro para farejar o álcool dos bordéis, que não bém de branco, um lenço azul no bolsinho do paletó.
nascera para uma vida doméstica, muito pelo contrá- Fui, cerimoniosamente, apresentar minhas felicitações à
rio, meus caminhos deveriam ser os da insônia, com madama e pedir-lhe permissão para destoar do ambi-
erros irreparáveis e contrafações permissíveis. Uma rede ente com a minha roupa escura. Obtida a permissão
de repouso não era uma janela, muito menos uma por- participei do seu espumante e falei-lhe da lindeza da
ta, e minha agonia tornava-se sem glória, perdida a in- festa, da feliz idéia do azul e branco. A madama sorriu
solência, a indignação íntima, castrado, quando na ver- largamente, inclinou-se um pouco na cadeira confortá-
dade o que desejava era o sangue quente, as feridas vel e levando o copo à boca, seus lábios mal tocando a
abertas, o canto de velhas prostitutas, o Inimigo, tudo bebida, disse, num agradável ruído de bolhas:
tão necessário aos meus órgãos vitais; desordem na vida, - Acham que eu sou a Nossa Senhora delas...
que a ordem vem com a Morte, pelo menos uma cica- Todos dançavam com muita cerimônia e quando
triz, afastado o decoro, varão impávido com a minha tive uma das putas na minha mesa e que a cantei para
vara reluzente de pedrarias, um peregrino de olhos sem- a cama ela me informou que naquela noite não haveria
pre abertos para a ardente sarça da experiência; vida coitos. Estavam em odor de santidade. Mas não cheira-
em púrpura e não em pálidos reflexos de areia, que an- vam a incenso ou rosas, cheiravam a carne suada com
tes do Céu a caminhada do homem deve ser ao lado perfume barato, embora de sexos fechados, na recorda-
duma onça pintada que rosne o tempo todo e dilacere ção dos himens intatos e na reverência à Senhora. Par-
carnes e delas se nutra, uma onça q ue tenha cegado ticipei da ceia servida às quatro da madrugada e ter-
para não se comover com as aparências e que não te- minei por fazer um discurso de bêbado, acho qu e
nha parcela mínima de poder profético, embora seus incompreensível para aquelas almas cândidas, mas

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bastante aplaudido, valendo-me como prêmio um beijo levantada no caminho dos integralistas que ainda con-
meloso da madama que me apertou contra os seios far- tinuavam com as suas pantomimas inspiradas nos dita-
tos, sua testa suada lambuzando-me o queixo. Senti um dores europeus. Eu recitava Lorca e compunha um re-
arrepio quando ela, no espaço de um arroto, confiden- talho com as suas palavras, desfiando-o na noite, à
ciou: minha maneira, nas rodadas de chope, nas pontes para
- Minha vida vai mudar. Consul tei Madame o rio, postado diante dos velhos casarões novecentistas
Sarides e ela respondeu que tudo vai mudar. fechados na m adrugada: A lua move seus braços quan-
Ria um riso gordo, de banhas, enquanto me afa- do chegarem os ciganos, que já sinto seus cavalos no
gava uma das faces, feliz na sua perspectiva, eu me en- silêncio sem estrelas, os carabineiros dormem na rosa
colhendo como um caramujo, menos da carícia que do az ul do teu ventre com a sua espada quente. Senhores
engano criminoso cometido contra aquela que ainda guardas civis, a igreja grunhe ao longe, na metade do
pensava torcer o destino. Saí para as ruas já claras, os- caminho, e já morreu de perfil, que no portal de Belém
cilando entre o choro e o riso, mas positivamente eno- os cavalos negros são, as ferraduras são negras, e a guar-
jado das ilusões que semeava, da esperança impossível da civil se afasta pelos buracos vermelhos. E um silên-
alimentada numa velha prostituta de carnes tão cio ondulado que entra no coração, tudo se rompeu no
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manuseadas, de posturas tão automáticas, da falência mundo com cem ginetes de luto, às cinco em ponto da
tão natural dos bens e dos males. tarde, que não quero ver o sangue, não me diga que o
Quebrado o círculo do teatro voltei-me para o Café veja, que já morreu para sempre.
Lafaiete, nas rodadas de chope discutindo a Espanha, Farias dava-me o braço e de boca fechada com-
que a Espanha ardia. Na parede havia um mapa assi- punha uma música de acompanhamento, enquanto atra-
nalando com alfinetes vermelhos a posição dos repu- vessávamos pontes, luares, chuvas, p é na frente, pé
blicanos e dos falangistas. Bebíamos pelas vitórias e pe- atrás, um braço que vem e outro que vai, de repente eu
las derrotas daqueles que defendiam a democracia na parando e recitando, de braço erguido e punho fecha-
península; alemães e italianos eram bestas-feras alimen- do, para uma das incomovíveis estátuas da ponte Mau-
tando o fogo da iniqilidade, as potências ocidentais eram rício de Nassau, todo o romance da guarda civil espa-
criminosas do crime da omissão; esbravejávamos, in- nhola: "Os cavalos negros são, as ferraduras são negras",
sultávamos e cuspíam os pornografias contra o que acon- gritando no fim, advertido por um guarda-noturno:
tecia na fogueira, a discussão terminando invariavel- "Oh, cidade dos ciganos! A guarda civil se afasta por
mente com a nossa frase preferida: um: túnel de silêncio, enquanto as chamas te cercam".
-Vamos enforcar o último padre na tripa da últi- Chorávamos no frio da madrugada pelos mortos da
ma freira! idéia, por cada pedaço da terra espanhola, pela falência
Eu alimentava um vago desejo de me inscrever da democracia, pelo egoísmo de ingleses e am ericanos,
n a Brigada Internacional e me m ordia de inveja quan- pela participação no Crime, por Lorca - puto e anjo-,
do tinha notícia de algum brasileiro, como o Caprista- pelas cinzas de Cervantes e pelas últimas garrafas de
no, nas hastes da liberdade. Era tudo uma arenga Pedro Domecq em Jerez de la Frontera. Quando eu es-
de intelectuais, embora sincera, pelo menos protestan- tava só olhava o céu sempre o mesmo, abrindo o p eito
do de público contra o crime maior do século, parede para as rajadas das metralhadoras aéreas dos nazistas e

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fascistas, tomando uma das incandescentes balas na mão -De volta, seu merda?
e oferecendo-a como uma hóstia de aço e fogo à ver- Não lhe dei resposta e ele ficou me olhando com
gonha do mundo. o sorriso aos poucos desaparecendo, substituído por
E logo chegou a vez da vergonha cobrir-nos to- uma expressão má.
talmente quando o Pequenino deu o golpe, instalando - Quando eu falo, quero que me responda.
o Estado Novo, macaqueando os assassinos, decretan- Inclinou-se um pouco na cadeira de mola e repe-
do a violação do país. Os integralistas, fiéis aos seus tiu a pergunta:
chefes estranhos, promoveram uma denúncia coletiva. - De volta, seu merda?
Fugi para camas de prostitutas durante o dia, que de Concordei com a cabeça, mas ele deu um murro
dia elas não existiam na ordem das coisas, eram apari- na mesa.
ções noturnas; refugiei-me em pequenos quartos -Fale!
cheirando a urina de meninos, no bairro de São José; -De volta- respondi
acoitei-me com muambeiros do cais do porto em Novamente o sorriso lhe voltou aos lábios. Vaga-
mocambos de Santo Amaro, comendo uma vez por dia, rosamente acendeu um charuto demasiado grande para
deixando a barba crescer e o sebo invadir minhas par- ele, tragou, soltou a fumaça na ponta incandescente e
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tes secretas, que precisava do fedor e das agulhas na logo ordenou, ríspido:
carne, mas eram muitos contra poucos e nos poucos - Pro cargueiro!
estava eu e lá fui eu. A cena de detenção foi muito na- Levaram-me aos empurrões, primeiro para uma
tural e cheguei a sentir alívio. Uma manhã clara: saí da sala escura, pequena, cheirando a mofo, onde havia,
minha toca para comer um pão dormido sem manteiga apenas, uma escrivaninha velha e uma cadeira capenga,
e café ralo no quiosque da esquina e tudo estava sendo nela se aboletando o tira, o revólver de um lado e o
engolido segundo as regras quando o tira me agarrou cassetete de borracha do outro. Levantou-se e gritou
pelo braço. para mim:
- Esteja preso. - Aproxime-se!
E sem me largar o braço, o outro em ponto de Caminhei até à mesa, postando-me diante do cara
bala na coronha do revólver, atravessou as ruas comi- que se preparava para me tirar as impressões ·digitais.
go, o sol escaldava, caras indiferentes diagnosticavam Lambuzou-me os dedos na almofada de tinta preta, es-
meu crime. Era um estuprador, um traficante, um premendo-os depois contra a ficha de papel branco, mas
maconheiro, um descuidista, diziam as caras, mas am- fazia tanta força que era como se quisesse esmagar-me
parado por meu disfarce eu podia pensar na importân- a mão. Quando terminou a operação, falou:
cia da solidariedade, menos mal estava que os mortos - Agora, limpe na cara.
insepul tos e os membros mutilados. O ambiente na po- Descuidadamente pus a mão direita em cima da
licia em nada mudara, até o pequenino do 45 lá estava, mesa para apoiar-me, quando senti aquilo que me pa-
o mesmo que me tratara da vez anterior, só que devia receu, a princípio, um choque elétrico. A dor veio re-
ter sido promovido porque se achava abancado, mais tardada, porque quando retirei o braço foi que notei o
arrogante. Quando lhe trouxeram minha ficha ergueu a cassetete que havia sido brandido pelo tira. E ouvi sua
cabeça e sorriu: voz mansa.

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- Doeu, seu sujo? a escada escorregadia, oscilante, a corda doendo nas
Eu mal podia abrir os dedos, mas forcei-os à pro- mãos e os pés, a medo, procurando melhores pontos
cura do maço de cigarros, sentindo milhões de formi- de apoio. Formamos na coberta e um dos marinheiros
gas a me picarem a pele. Não cheguei a terminar a ope- nos revistou dos pés à cabeça, tirando-nos todos os ob-
ração porque novamente ele me interrompeu. jetos, deixando-nos somente de calça e camisa. Depois,
- Aqui não se furna. esse mesmo marinheiro p ostou-se à frente do grupo,
Então a porta abriu-se e outro mal-encarado en- soou um apito, rompeu a marcha e o acompanhamos,
trou. O primeiro perguntou: descendo para as profundezas, com o cheiro forte da
- Tudo pronto? maresia e tinta fresca, a ferragem pintada de vermelho
O segundo confirmou com a cabeça. escuro, o que me dava a impressão de um inferno con-
- Vamos- disse o tira, empurrando-me pelo om- vencional de teatro bara to. Chegamos ao porão onde o
bro. - Toca pra frente. ar era quase irrespirável: um odor de urina velha e pei-
Atravessamos corredores e salas, saímos pelo pá- xe podre. Não éramos os primeiros, pois na semi-obs-
tio traseiro e fui empurrado para dentro do tintureiro, curidade distingui vultos deitados ou encostados nos
já cheio. Então varamos as ruas a toda disparada em lugares mais afastados, para mim eram como se fossem
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direção ao bairro do Recife, atingindo as docas. Não apenas peças daquele maquinismo. A porta de ferro fe-
falávamos, espremidos, sufocados, aos solavancos joga- chou-se e mergulhamos na escuridão. Eu estava no meio
dos uns contra os outros. O tintureiro parou depois do da peça e lá fiquei, com fome e sede, ansiando por um
último armazém, quase nas imediações de Olinda, e lá cigarro, era só no que pensava, e pensei também que
nos tiraram aos empurrões, dois guardas de fuzil em se fosse continuar a pensar naquilo terminaria enlou-
punho para evitar fugas levando-nos para a beira do quecendo. Poucos instantes depois a luz se fez, a boa
cais, fa zendo-nos embarcar numa lancha velha que logo luz do dia, que abriram o alçapão dando para o céu
se pôs a cortar as águas com um ruído de motor velho. azul, lá em cima. Então todos nos entreolhamos na es-
Eu olhava a cidade afastar-se e procurava não pensar perança de um conhecimento, mas eu nunca vira aque-
no que me aguardava. Os rostos daqueles que me acom- las pessoas, embora alguns já acenassem uns para os
panhavam eram angustiados, um deles chorava, preci- outros e se aproximassem para a troca de palavras. Sen-
samente um mulato franzino, descalço, a camisa rasga- tei-me a um canto encostando-me na parede de ferro,
da deixando ver marcas de pancadas nos braços e no estendendo as pernas e olhando os vergões violetas na
peito. Transpusemos os arrecifes e foi só então que bem mão. O mulato franzino, bem perto de mim, continua-
na frente avistei o cargueiro, imóvel, enferrujado, pare- va chorando tranqüilamente, somente as m ãos que se
cia um animal estranho, trazia nele a marca de vários esfregavam urna na outra davam idéia de sua angústia.
portos e terras distantes, dali ainda não se distinguia As mãos e o pé direito, descalço, que ele balançava num
ninguém na coberta. A lancha roncava abrindo a água ritmo leve e cadenciado, para a direita e para a esquer-
e pequenos peixes pulavam na esteira formada na popa da. Senti, então, como algo de concreto, seu desespero,
do barco, o sol queimando, o gosto do sal atiçando a tão forte que não me pude impedir de estender o braço
sede. E lá fomos e lá chegamos, com marinheiros gri- e colocar a mão em seu ombro. Ele v oi tou a cabeça para
tando ordens, a lancha atracando, um por um subindo mim e falou, como uma criança desamparada:

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- Por que estou aqui? pedaços de carne esverdeados de mistura com alguns
Não suportei a frase que me trazia lembrança forte faticos de macarrão, estrelinhas precisamente. Sem me
de outras por mim próprio pronunciadas nos longes da deter para examinar aquela porcaria encostei-me à pa-
infân cia à procura de pão ou reclamando contra o que rede de ferro e sem me valer da colher fui engolindo
eu supunha ser uma injustiça da gente maior. Ergui- tudo p ara dar algum trabalho ao estômago. Continua-
me e fui aboletar-me no outro lado do porão, onde dois va ansiando por um cigarro, ma s a sede era
pretos que eu supunha estivadores conversavam como avassaladora e já me dispunha a interrogar um dos
se estivessem no melhor dos mundos, entre risadas e g uardas quando dois outros desceram a escada com um
socos de brincadeira. Um deles dirigiu-se a mim: tonel, depositando-o a um canto, em cima uma caneca
- Quanto tempo acha? grande de ágata. Formamos nova fila e ao chegar a mi-
- Acha o quê? - perguntei, por minha vez. nha vez engoli várias canecas, sentindo o estômago
- Que vamos ficar aqui? crescer, inchar, tinha a impressão de que dentro de
- E eu sei! pouco tempo ouviria o estouro e então iríamos pelos
- Não pode ser a vida toda - afirmou o segundo. ares com fuzis, ferrugem, estrelinhas, carne esverdeada,
- Acho que não - voltou o primeiro. - A vida quepes, nossa miséria, mas o mais que consegui foi um
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toda, não. arroto sonoro. Desconsolados, todos voltavam a novas


- Só se a vida toda se passar em dois meses. posições, meus olhos anotando uma perna apoiada ao
-Ou num ano. muro de ferro, uma mão pendida, um homem que pro-
- Pode uma vida toda se passar num dia? curava um lugar mais seco onde sentar-se, barbas cres-
- Ou um dia ser uma vida toda? cendo, olhos d e ódio ou medo, dedos coçando os
O diálogo era esquisito e as risadas davam-lhe escro tos, caras suadas, nossa miséria, sem pre toda a
um tom de comicidade extravagante. Logo os dois pas- nossa miséria.
saram a conversar em voz baixa e eu, arrastando a bun- O dia passou e veio a noite. Não recebemos ou-
da, afastei-me um pouco, procurando examinar o po- tra refeição e para mim tanto fazia pois continuava sen-
rão. Vários homens colocavam-se, nus da cintura para tindo o estômago inchado, a acidez, na boca um gosto
cima, embaixo do sol, enquanto outros procuravam a de m orte. O fed or já subia e e u tinha a certeza de que
sombra, cada um ou cada grupo com a sua atitude que com mais algumas horas estaria transformado num
ia desde a indiferença forçada ao desprezo real. Can- duende gordo, nojento, abraçando-nos e repelindo-nos,
sei-me de examiná-los e dormi um pouco. Quando abri de verdade corporificado no meio, em cima, embaixo,
os olhos as posições se haviam modificado, todos volta- nos lados do porão, que não havia onde defecar ou uri-
dos para um alçapão que se abria, dois m arinheiros nar, os homens sacando o pênis ou arriando as calças
descendo a escada com um enorme caldeirão, outros nos cantos mais escuros, urina e fezes boiando sem mis-
com pratos e colheres de alunúnio, soldados com fuzis tura naquela água de alguns centímetros de altura, com
gritando ordens, mandando que nos colocássemos em certeza nasceriam arroz e feijão, talvez mesmo um boi,
fila, dos presos partiam piadas, chapinhávamos na água do fedor nascendo e para o fedor voltando, tudo ca-
que alagava o porão. Tomei posição e recebi meu ali- minhando pela abertura para uma estrela distante que
mento: uma sopa gordurosa e fria onde nadavam se alimentava dos malcheirosos, seus raios empestando

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todo o universo, jogando vermes amarelados na barba A mão largou-me o braço, mas o ombro do com-
dos santos que, por acaso, passeassem fora dos domí- panheiro encostou-se ao meu, como se procurasse pro-
nios permitidos. Mas até m esmo a estrela nojenta nos teção.
foi negada porque fecharam a abertUra e mergulhamos - Sabe o que é?
na escuridão, no calor, na porcaria, à procura de um - Vão torturá-lo - disse.
canto menos úmido para passar a noite, o rangido do - Vão enrabá-lo - informou.
cargueiro parecendo o de uma rede em movimento O tempo voltou a passar e eu de olhos grudados
onde estivesse sendo embalada uma assombração. Fui nas trevas, até que ouvi abrirem o alçapão, logo fechá-
assaltado por todas as lembranças, mas também por lo, alguém descia a escada, seus passos eram típicos de
uma raiva crua e assassina, a raiva da impotência, con- quem queria passar despercebido. Imaginei que os ma-
tra os fascistas que pareciam dominar o mundo, limi- rinheiros viessem buscar·outra presa, mas como nenhu-
tando-o àquele porão que cheirava aos piores odores ma lanterna fosse acesa e o silêncio se prolongasse, com-
do homem, os pensamentos chocando-se na escuridão, preendi que se tratava do regresso do rapaz violentado,
e o mais que eu podia fazer era arrancar, com a unha, oculto na sombra, pelo menos aquela caridade, que
uma pequena porção da tinta ainda fresca, enchendo a quando chegasse a luz do dia ninguém poderia saber
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unha do indicador direito para esgravatá-la com a do de quem se tratava. Ouvi cochichos, mas depois tudo
indicador esquerdo, isto durante horas, enquanto ou- serenou, e quando eu já oscilava, pelo cansaço, entre a
via os homens nos seus ruidos: respiração alta, tosse, realidade e o sono, um brado elevou-se, ribombando
pigarro, peido, mijada, ronco, até que adormeci não sei naquela armadilha de suor e fedor:
por quanto tempo, não tive noção, só sei que me acor- - Filhos de uma puta!
dei com um facho de luz na cara, logo desviada, três Então a manhã já se aproximava e de cima che-
pilhas elétricas examinavam a cara dos adormecidos, garam núdos, os criminosos na sua tarefa cotidiana,
impossível distinguir quem estava atrás da luz, um dos tudo muito normal, o cargueiro seria visto pelos da ci-
raios se deteve no rosto de um rapaz alourado, os ou- dade como uma prisão necessária à tranqilitidade dos
tros dois convergiam para a mesma cara, apagaram-se, que freqüentavam festas carnavalescas em preto e bran-
instantes depois ouvi um ruído como de luta, respira- co, dos que repousavam as nádegas gordas nas cadei-
ção opressa, pragas, um grito, passos que se afastavam ras estofadas dos estabelecimentos bancários, dos que
como se estivessem arrastando um fardo pesado, pas- acordavam tarde e eram servidos na cama, de todos os
sos na escada, depois somente o rangido do cargueiro que não se inquietavam com um sofrimento maior que
e o vôo rasante das baratas d'água, embora tivéssemos uma unha quebrada ou um corte de gilete no rosto
consciência da tensão, com certeza todos estariam de escanhoado. Abriram a abertura para o céu cinzento,
pé na escuridão tentando desesperadamente descobrir apareceram pela escada com o café da manhã, repeti-
o mistério. Senti uma mão no meu braço, apertando-o mos a cerimônia da fila para receber o pão sem man-
com força, bati na mão num gesto de cordialidade. A teiga e a bebida rala, eu evitava de propósito identifi-
voz soprou: car o louro. Mal terminamos a magra refeição, a chuva
- Você viu? caiu, todos se refugiando nos cantos, enquanto a
- Ouvi - foi a minha resposta. água subia mais alguns centímetros, os pingos grossos

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abriam buracos na superfície líquida, o frio nos atingia. predestinados, os pederastas de alma limpa e as prosti-
Um homem destacou-se do seu lugar, despiu-se e colo- tutas de corpo são, nenhuma criança era o que eu es-
cou-se embaixo daquele chuveiro imenso, esfregando- tranhava, mas velhos macerados por pensamentos que
se como se estivesse num banheiro, tirando a sujeira talvez se realizassem e mulheres que ofereciam os seios
do corpo, sua cara assemelhava-se à de um menino to- aos raios que partiam de sóis distantes, adolescentes
mando banho de biqueira, mostrava satisfação, gozava marcados para grandes empresas, eu não enxergava trai-
o instante, a vida para ele se resumia àquele ato, todo dores, políticos, guerreiros mercenários, comerciantes e
voltado para dentro, sério, só. banqueiros; por fim, numa maior abertura, a vulva pa-
Estáva mos na água quase até à cintura quando riu uma flor vermelha de grande haste e, depois dela,
puseram as bombas para funcionar, todo o navio estre- eu, maduro para o mundo, na coberta do cargueiro ace-
mecendo, o ruído da sucção assemelhava-se ao do ba- nando para o cortejo que se perdia para os lados do
que surdo de atabaques numa mesma cadência, apenas horizonte, enquanto a Coisa se fechava como uma sen-
ficou o piso escorregadio, na sombra as roupas não en- sitiva, encaramujava-se, dobrava-se toda em si mesma,
xugavam e o couro dos sapatos exalava um cheiro de transformava-se num canudo coroado pela flor verme-
curtum.e misturado ao de chulé, axilas suadas, partes lha, o talo penetrando em seu orifício, tudo se fundin-
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secretas sujas, o hálito da boca provocava engulhos, ha- do, despencando-se e caindo no mar de onde brotaram
via remelas nos olhos. E o dia se arrastou, os homens gotas evanescentes, luminosas, quentes. Vi, portanto,
moven~ o-se como se num aquário, de movimentos so- meu caminho e revesti-me de paz, já então sabendo o
nolentos, os bocejos indicavam fraqueza, caiu outro pé que queria, havia nascido naquele preciso instante, toda
d'água, nas pequenas ilhas colocávamos os pés, ao cair a vida anterior tendo sido um sonho que apenas deixa-
da noite tudo girava, vieram as sombras, depois a es- ra marcas, lembranças, imagens de gestos, nada porém
curidão, não tardaria a ronda dos pederastas, mas eu realizado, dali em diante é que começaria a caminhar,
me vali do meu ser alado e logo estava na coberta, lim- n ão importava por que caminhos, como não importa-
po, puro, cristalino, sob uma fatia de lua e milhões de vam também os golpes e as derrotas, que estaria imu-
estrelas. Da Constelação de Orion destacou-se uma con- ne, podendo estrebuchar como toda pessoa ferida, como
cha semelhante a urna ostra, ornada de pêlos pretos na ser humano, mas revestido do sangue, do suco e da
parte superior, os lábios levemente entreabertos, rosa- flor, podendo suportar o mundo e misturar-me com ele
dos, úmidos, desceu e pairou sobre o mar, o espigão se em todas as convivências de amigos e inimigos, pesso-
destacava na noite, olhei-a e reconheci a concha cósmi- as amadas e odiadas, traições, mentiras, bondade, Amor,
ca, m ais para baixo, anjos, tinha um buraco profundo e de corpo fechad o e alma aberta respirando para tudo o
então eu vi, vi, que para aqueles que iam nascendo era que nele estivesse contido, que tudo era ele e eu tinha
a porteira do mundo. O orifício dila tava-se, com espas- de aceitá-lo como tal, embora desconhecido na maior
m os, jorrava um pouco de sangue que por breves ins- parte das vezes, não importava, desde que me mante-
tantes tingia o verde de vermelho e no ar saíam an- ria eu mesmo, com o meu uni verso e as minhas influ-
dando, nus, os heróis e os santos, aqueles que iriam ências, no papel de um Mago, manejando luas ou ven-
ser queimados na fogueira ou ter o peito cravejado tres, mas cada gesto meu jamais se repetiria nos
com balas de fuzil, os puros de qualquer ideologia, os atos cotidianos do comer, do falar, do amar, do tomar

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banho ou do defecar, a cada um eu me dando e de barriga da perna da calça. Ouviam-se cochichos, risos
cada um tirando o alimento para a minha eternidade, abafados, surgiam até piadas na espera nervosa, nin-
não seria um cometa mas um sol em torno do qual gi- guém tirava os olhos da escada por onde surgiriam os
rariam planetas e satélites, a mim cabendo decidir qual soldados que nos tirariam do porão. Mas uma hora pas-
o mais importante e em qual deles eu lançaria, de ma- sou sem que nada acontecesse, pela claridade era de
neira definitiva, minha semente verde de grandes ra- supor-se que o sol já vinha nascendo, o céu perdendo o
mos futuros com frutos maduros e sem vermes, eterna- azul escuro, desaparecendo as últimas estrelas. Uma voz
mente balançando-me no enorme trapézio de mim destacou-se:
somente visível, embora a que me amasse tivesse, por - Pessoal, eu acho que a repartição só abre às oito.
momentos, a intuição fugidia de que eu era metade ho- A piada foi acolhida com um riso nervoso por to-
mem e metade deus, mesmo não me poupando em atos dos nós. E outra hora passou, o céu já inteiramente cla-
cotidianos mas respeitando minha condição adivinha- ro, nenhum ruido nos chegava da coberta. Mais um
da de ser transcendente, capaz de num olhar ou num pouco e ouvi um ruido de gu.i ndaste, foi o que pensei,
gesto exprimir segredos que deixariam aterrados aque- de q ualquer modo um ruído de ferragem deslocando-
les que não pertencessem ao meu órculo de ouro ar- se. Todos estávamos de cara para cima quando a coisa
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dente e garras de maracajá. surgiu: era como um bueiro ao contrário, um tubo em


Já estávamos ali há quinze dias, famintos, fedo- horizontal, terminando por uma abertura oitavada em
rentos, recebendo pela larga abertura a chuva e o sol, a vertical. Veio vagarosamente, assemelhando-se a uma
fria luz das estrelas e da lua, as noites insones embala- cobra, até atingir o centro da abertura, quando se imo-
das pelo sinistro rangido do cargueiro quando, numa bilizou. Eu olhava fascinado para a coisa imóvel e co-
madrugada, o barco pôs as máquinas para funcionar e mecei a ouvir um som longínquo como o silvo de uma
começou a deslocar-se, a princípio não sabíamos para cobra, crescendo cada vez mais, de repente a abertura
onde, mas logo conseguimos orientar-nos e descobri- daquela coisa dilatou-se um pouco como uma glande
mos que ia em direção ao cais. Todos, de cabeça erguida q uando vai ejacular e, realmente, um jato branco alcan-
para o céu, esperavam ansiosamente a confirmação e çou os que estavam mais próximos, derrubando-os,
logo que tiveram a certeza a gargalhada espoucou, mui- transformando-os em ridículos homens de neve, um
tos davam pulos de alegria, alguns se abraçavam, seria deles, soterrado, conseguiu varar o monte que já se for-
a liberdade dentro de pouco tempo. O cargueiro conti- mava,, saindo aos trambolhões, sufocado. Fugimos do
nuava avançando, pelos cálculos já deveria ter trans- centro do porão e nos refugiamos contra o muro de fer-
posto a linha dos arrecifes, vogando nas águas mansas ro, enquanto alguém gritava:
do porto. Demorou mais do que esperávamos, mas fi- - É do moinho!
nalmente ouvimos ordens gri tadas, o apito de um re- IEntão C,Ompreendi tudo: o porão ia ser cheio de
bocador, e atentamente seguimos as manobras de atra- farinha de tdgo enterrando-nos vivos e nada podería-
cação, o barco imobilizando-se. Muitos dentre nós mos fazer senão aguardar a hora da morte (Sufocado
procuravam dar uma aparência melhor ao seu estado nas lembranças eu atravessava as noites e já não sentia
penteando o cabelo com os dedos em forma de pen- o gosto amargo da solidão porque me ligava a mortos,
te, puxando a gola do paletó, limpando os sapatos na pessoas desaparecidas, um conhecido que se perdera

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para sempre, uma frase que ainda percutia no ar, o lodo mundo, arrastaram-no pelos pés, sua respiração quase
escorregadio do rio, a sombra das árvores projetada na não tornava. Pouco a pouco os gritos foram cessando e
água onde nadavam peixinhos escuros, rápidos, brin- nos entregamos ao inevitável, apenas os olhos fixos no
calhões, o guizo de um cabriolé com o cheiro agradável avanço da farinha, eu prestava atenção ao seu movi-
do cavalo suado, detalhes mil num segu ndo como o da mento caprichoso, avançando mais em certos lugares,
galinha garnisé que, apanhada na corrida, tinha espas- deixando outros ainda intatos, aqueles que ainda esta-
mos incríveis na cloaca provocando-nos o riso na ma- vam ao abrigo de alguns segundos empurravam com
nhã de goiabas da China, do pequeno barranco que eu os ombros os que procuravam a pequena ilha, mas a
atravessava pela mão de uma m ulher alta e bonita, o farinha logo se insinuava e igualava a linha de avanço,
medo de cair, a aragem agitando levemente as roseiras na maior parte do quadrado já nos chegava aos joe-
embaixo, a sombra do banheiro de bica era fria como a lhos. A onda branca e mole continuou a crescer, chega-
de um túmulo, o primo dizia que muüo bom para cu- va-nos à barriga, mal podíamos respirar com a poeira,
rar a ferida do pé era metê-lo em bosta de boi ou de implacavelmente crescia, eu já não tinha mais pensa-
cavalo e era o que eu fazia, o cheiro do couro do ca- mento, fascinado pelo túmulo alvo, jamais abriria a boca,
briolé provocava-me uma ereção mirim, as longas mi- quando soterrado, para engolir aquela alvura assassi-
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jadas no sono na cama de lona, o tio juntou o médio na, mas de qualquer modo ela me entraria pelas nari-
com o polegar e deu um leve piparote no copo de cris- nas, ergui os olhos depois de mui to tempo e vi, em v oi ta
tal, o som ficou percutindo no ar claro, luminoso, a pri- da abertura, caras que nos espiavam, os assistentes de
meira que eu vi, de uma menina, entreaberta asseme- nossa morte, atentos e sádicos, enquanto a farinha nos
lhava-se a uma papoula, só que mais úmida, uma atingia o peito e nela, fofa, descansávamos os braços
papoula do princípio da noite com o orvalho, já o ou- que seriam os últimos a desaparecer erguidos para o
tro orifício não tinha que ver a boca de uma tia corcun- céu, apenas os dedos convulsos querendo agarrar o
da, de tão pregueada, vinte mulheres na beira do rio nada. E quando tudo já estava perdido um deus ex-
lavando-se com muita seriedade, dezenove caçadores, machina suspendeu a tortura. Primeiro fez-se um silên-
dezoito queijos de coalho, dezesseis trabalhadores, quin- cio terrível, depois estourou uma gargalhada ainda mais
ze tenentes gaiteiros, quatorze batendo roupa, papagai- terrível dos que nos espiavam, enquanto permanecia-
os faladores, levei um peteleco nos ovos e vomitei amar- mos com os braços levantados, apenas o pescoço de fora
go), uma morte asfixiante, alva, empoeirada. Em poucos da massa branca.
instantes o monte já se derramava para os lados, alcan- A operação de salvamento durou muito tempo
çando-nos os pés. Formávamos uma grande roda ao lon- depois que o tubo foi retirado. Os marinheiros escolhi-
go do muro, enquanto a massa se espalhava em nossa am um de nós ao acaso, jogavam-lhe uma corda, o in-
direção, de vez em quando, do alto, caiam volumes feliz a ela se agarrava e era arrastado para o alto mer-
maiores que alcançavam um determinado grupo, alguns gulhando primeiro no mundo alvo, emergindo sufocado,
querendo subir na massa, mas o que faziam era enfia- balançando de um lado para o outro, batendo aqui e
rem-se até o meio da canela. Então os homens começa- ali até ser agarrado pelos homens que dobravam as gar-
ram a gritar em desespero, um deles avançou contra a . galhadas. Passei por aquela tortura e tive o horror de
montanha, querendo galgá-la, desapareceu naquele também mergulhar na montanha fofa, os pulmões se

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arrebentando no esforço de não respirar, emergi, fiquei - Sabe nadar?
suspenso, balançando como um enforcado, mais um -Sei.
pouco não suportaria continuar agarrado à corda e mer- - Que pena! - foi o que disse.
gulharia de vez. Mas resisti e quando me agarraram e Depois, recuou um pouco, apontou para o mar e
me jogaram na coberta minhas mãos sangravam, corta- fa lou:
das pela corda. - Pronto. Pode ir embora.
Alinharam-nos, os fantasmas brancos, na coberta, Olhei a extensão de mar que me separava da ci-
guardados por marinheiros que empunhavam fuzis ou dade, o sol baixo na linha do horizonte num crepúscu-
pistolas, fizeram a chamada a que respondiamos com lo sangrento recor tando as casas e acentuando a linha
um fiapo de voz, dois ou três não atenderam ao apelo das montanhas. Aquelas poucas milhas não teriam sido
do nome: estariam muito cansados para falar ou teriam um problema com os músculos em forma, mas todo o
ficado lá embaixo, pouco estávamos ligando, já que vol- corpo me doía de fome e m aus-tratos, interiormente eu
távamos a ver todo o céu e a respirar a brisa com chei- estava arrasado, poderia mergulhar nas águas para sem-
ro de maresia. Fomos distribuídos por vários comparti- pre o u ser arrastado por um peixe. O marinheiro conti-
mentos e o cargueiro, novamente, pôs-se a navegar, nuava junto de mim, sorrindo, os olhos levemente fe-
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pelas vigias olhávamos a marcha, vimos quando atra- chados por causa d a fumaça do cigarro que tinha
vessou a linha de arrebentação, navegou ainda e pa- pendurado nos lábios. Decidi-me num repente: se aquele
rou, com certeza no mesmo lugar de onde partira. Es- era o ca minho da liberdade valia a pena tentá-lo. De-
távamos imundos, m as pelo menos tínhamos um chão brucei-me na amurada procurando uma escada de cor-
seco onde deitar, embora a fome e a sede nos torturas- das ou qualquer coisa que me fizesse deslizar até à su-
sem. A farinha de trigo, com o cuspo, formara um bolo perfície do mar, mas ele m e alertou numa gargalhada
na minha garganta e por mais que eu engolisse saliva seca:
ele não se desfazia, trazendo-me a lembrança do grude, - Tem de pular.
quando menino, para colar, em velhos livros de escri- Subi à amurada e, equilibrando-me, tratei de tra-
turação, os retratos de artistas de cinema. Somente no çar minha rota, devendo evitar os arrecifes, procurar a
dia seguinte nos deram uma comida salgada e pastosa entrada da barra e dirigir-me ao istmo de Olinda, a Sé
que só fez aumentar a sede e ainda tivem os de esperar brilhando aos últimos raios do sol, seminaristas estari-
outro dia para matá-la com uma água salobra e suja am passeando nas colinas e padres leriam breviários à
que deveria ter tido alguma serventia. sombra das palmeiras, os velhos sobrados coloniais de
Outros quinze dias se arrastaram no sujo e no de- persianas fechadas, com os seus fantasmas e os seus
sespero, quando, num fim de tarde, um marinheiro móveis, suas velhas e suas mangueiras. O vento zunia
abriu a porta do cubículo e me chamou pelo nome. Tive nos meus ouvidos, meu corpo oscilava um pouco com o
um sobressaito e me prep arei para o pior. o de um equilibrista na corda bamba, não chegava a
- Siga-me - disse. sentir o perigo, parecia uma brincadeira, uma aposta
Subimos escadas e andamos por corredores até de colegiais numa tarde calma, já os pensamentos se
atingirmos a coberta. Ele me levou à amurada e bateu desviavam quando o marinheiro me empurrou e eu
no meu ombro. atravessei o espaço sem coordenar os movimentos, a

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água me recebe u com uma pancada violenta no fígado, carnes, que o descanso viesse sob qualquer forma, en-
bebi um pouco d 'água, voltei à superfície e procurei quanto a noite caía de vez e as estrelas me lembravam
respirar fundo, boiando. Na linha de flutuação a cida- lurninosos olhos d e polvos, irônicos, pérfidos, assistin-
de praticamente desapa recera, só havia a massa do car- do à minha morte, e fui vogando, da minha barriga po-
gueiro e o velho mar à minha frente. Com ecei a nadar deria nascer uma vela; do tórax, remos; um leme s urgi-
de cachorrinho, lentamente, respirando certo, a cada cin- ria das minhas pernas, no milagre estava a esperança,
qüenta braçadas parava e ficava boiando, calculando a fechei os olhos para não ver mais o céu indiferente, o
distância percorrid a pelo afasta mento do barco. O mar frio chegava, eu estava completamente vazio, entregue,
não estava muito ca lmo, a maré enchendo o volume até o Dia de Juízo, irmãos, orai por mim, de que serve
das ondas atrapalhava, eu ainda sem poder orientar- o consolo de uma oração?, voguei, voguei, vamos, meu
me direito em direção à entrad a d o porto, sentia agu- amor, que a noite é calma, ao mar, ao mar, ao mar,
lhas especando-me os pulmões a cada respiração mais ainda poderia surgir o batel da canção d o velho, que
profunda, o que me obrigava a boiar mais tempo, leva- nad a!, eu estava no centro de uma cirandinha de feras
do pelas vagas, olhando o céu que passava do azuJ para marítimas, tudo se fundia, Céu e Oceano se juntava m
o violeta, dentro em pouco sairia a primeira estrela e quebrando ,, Concha, esm agando-me, o Céu se espar-
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chegaria a noite. Continuei sem pressa, que esse seria ramava pelos horizontes, do fundo do Oceano s ubia um
o segredo, mas lutava contra a luz e logo mais contra o peixe-espada, sua velocidade era a da Luz, já estava,
medo dos peixes, falava -se que aquelas águas estavam quieto, bicho, aiiiiiiii, a ponta da lança emergia à flor
infestadas de tubarões. Uma alga que me roçava o pé do peito e três míseras gotas de sangue tingiam toda a
fa zia-me executar movimentos desordenados de pavor, superfície d e vermelho, até o Mar da Chirla onde me
procurava convencer a mim m esmo que o importante despedacei em cristal mais ardente que pimenta em fe-
era estar calmo, falava em voz alta, propositadamente ridas abertas.
boiava mais tempo que o necessário, a luz sumindo, Estava jogado nos arrecifes, cortad o pelos maris-
mas numa espuma branca via um lixa, mais além um cos, o sangue corria de vários talhos, procurava agar-
martelo, aquilo com certeza era um cação virando-se rar-me mas só fazia ferir ainda mais as mãos, as ondas
para o a taque, não pude resistir ao pânico e nadei com me jogando de um lado para o outro, não poderia con-
quantas forças tinha, apavorado, não sairia daquelas tinuar com meio corpo mergulhado na água, num es-
águas, nem se avistava a linha d os arrecifes, esgotei mi- forço maior consegui abole tar-me no alto das pedras,
nhas reservas, a respiração já era um suplicio, pensei o lha ndo as luzes da cidad e através do nevoeiro das lá-
em entregar-me ao mundo líquido e transformar-me grimas de sal. Entre os arrecifes e a cidade a inda havia
num ouriço, talvez fosse preferível uma caravela de mil um largo braço de mar e com o atravessá-lo ferido, sem
raios ardentes, humildemente em forma de conchava- forças, com medo? Mas como ficar no alto dos arreci-
zia repousaria na areia, no fundo, tomei uma última fes, maré enchendo, jogando-me contra as ostras incrus-
respiração enchendo os pulmões d e mil navalhas afia- tadas no coral? Poucos metros adiante havia, cavada
das, abri os braços em forma de cr uz, somente de cal- no m eio d as rochas, uma pequena mancha de areia
ças como estava, e boiei, e deixei que as águas me le- branca, para onde consegui arrastar-m e, ao abrigo d a
vassem, que os peixes chegassem me retalhando as arrebentação, lá ficando para recuperar as forças, mas

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não poderia demorar muito que a cada onda alta mais desejo de enfeitar os acontecimentos, atingindo o mo-
a areia fugia. Galguei a parede do lado do porto, to- mento culminante no momento em que mergulhava
mando fôlego para o mergulho, que não podia deslizar para enganar o cação, transformando os momentos de
contra as navalhas dos mariscos e cortar-me mais ain- covardia e medo numa fuga rocambolesca onde as ba-
da. Descrevi uma curva e mergulhei fundo nas águas las de metralhadora ricocheteavam na água; enquanto
escuras, na certeza de que o sangue poria no meu ras- eu nadava como um campeão olúnpico ultrapassando
tro um peixe feroz, mas perdido por perdido nadei va- a própria marca. Davam-me cigarros, alguns escorrega-
garosamente, o sal penetrando na carne aberta, só fal- vam dinheiro em minha mão, no quarto havia sempre
tava uivar de dor enquanto o porto se aproximava, a uma visita. Eu deixava a barba crescer e me comprazia
massa escura dos barcos recortando-se contra o céu, os naquele papel de aventureiro para um grupo de estu-
guindastes parados como animais antediluvianos, os ar- dantes e funcionários municipais, mas de qualquer
mazéns fechados como túmulos. Na faixa do porto pas- modo me sentia bem, comendo, fumando, dormindo,
sei a nadar entre restos de comida, a água oleosa era cagando goma. No mundo os homens se preparavam
visguenta e o cheiro de petróleo aumentava a náusea. para uma guerra; na Espanha a liberdade era, aos pou-
Num último arranco alcancei uma das escadas de pe- cos, sufocada, no país implantava-se uma ridícula cari-
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dra que, partindo do cais, mergulhava na água, mais catura de ditadura fascis ta; no Estado reinava o Malaio;
me arrastei que andei, quando cheguei ao alto cami- na cidade desfilavam os adolescentes de colégios can-
nhei alguns passos, o sangue gotejando, de repente fe- tando o hino à bandeira, enquanto LL e Farias continu-
chei os olhos pelo esplendor dos globos elétricos da pra- avam desaparecidos e o jornal era fechado, eu vivendo
ça Rio Branco, ainda ouvi uma voz de mulher, gritando: minha miserável glória num quarto de pensão, sem nem
- Esse moço tá ferid o! sequer imaginar o que m e traria o dia seguinte.
Nada vezes nada noves fora nada: a morte abso-
luta, uma planta seca, um mineral, um fóssil, um grão
de poeira, uma gota seca de esperma, um intervalo nulo
na vida, mas absolutamente nulo mesmo foi o que me
espantou muitos dias depois de haver tomado consci-
ência de que fora socorrido por uma ambulância, me-
dicado no Pronto-Socorro, atirado na enfermaria dos
indigentes, dizendo as primeiras palavras e transporta-
do para meu quarto de pensão onde O. Mercedes, a
megera de coração brando, me acolheu com caldos de
galinha, suco de laranja, bagos de lima, chá com torra-
das, comidinha que não fazia bosta no dizer do Capi-
tão, até que as forças fossem voltando e que eu pudes-
se, sem alvoroço, recordar a aventura para o grupo de
pensionistas que se reunia em torno de minha cama
adulando-me como a um herói sem que eu resistisse ao

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que me contava histórias: "A velha estava fiando com
fetos cor-de-rosa, formando enormes salsichas com os
pequenos membros, das agulhas saindo uma música que
rinchava e se desfazia em fumaça azulada para assar as
placentas opalinas... "; o comum era a ronda dos ven-
tos e das estrelas misturando-se num redemoinho para
formar uma tromba d'água onde rodopiavam eunucos
de testículos na testa e protuberâncias fál icas nascendo
7 das nádegas.
t me/flor fazer e arrepender-se do q11e 11ão Jazer e arrepender-se. Então veio a solução para o mundo comum: a
Provérbio italiano
Casa do Estudante Pobre. Mas para entrar na Casa era
preciso que eu me transformasse num estudante e ti-
/, vesse sessenta mil-réis para ter direito ao café da ma-
?r' nhã, almoço e jantar. Não seria m uito difícil dar faca-
/~<0 ~ A das de dois mil-réis por dia, em média, para alcançar a
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subsistência e mesmo que isto não acontecesse, que eu


(2/ ~~ não tivesse os sessenta mil-réis, pelo menos estariam
garantidos o café da manhã e a dormida; o transporte,
os cigarros, a roupa lavada e engomada precisariam de
outra solução, porque como estava não tinha nada. Ha-
Cheguei a tal ponto de penúria que via lesmas via muito não comia uma comida decente, o estômago
subindo pelas paredes das casas residenciais, caramujos sempre roncando como um gato angorá, às vezes eu
vestidos de fraq ue passeando na rua Nova, a noite os- sentia até pequenos ratos arranhando sua parede e che-
tentando um sol que era como o ânus ardente de um gava a ouvir gemidos quando engolia uma gelada com
dinossauro, uma criança mordendo o próprio cotovelo, um pão-doce, inchando de fazer dó, desfazendo-me em
as barcaças navegando num rio de lama com o casco arrotos e peidos. A última refeição decente fora em casa
para cima e os homens, mergu lhados, de pernas cruza- de um amigo sem nom e, a família em volta da mesa,
das, fumando cachimbos que serviam, ao mesmo tem- silenciosa, enquanto eu mergulhava a cabeça no prato
po, de bueiros para a saida de ninfo·maníacas com al- e devorava, todos os olhos fitos em mim, travessas de
gas azuis no púbis, uma fina lança de jade atravessando macarrão com queijo italiano, tenras coxas de
os bicos dos seios, enquanto anões verdes equilibravam- franguinhos de leite, purê de batata-doce, costeletas de
se de cabeça nos fios elétricos, os dedos dos pés porco, arroz ligado, era um aniversário não sei bem,
esgravatando bundas de anjos que tinham nos olhos um mas sei que depois da refeição ficamos a ouvir adoles-
gozo pré-histórico capaz de excitar os paralelepípedos; centes recitarem poesias patrióticas, enquanto a fi lha
e enquanto eu, insone, faminto, vazio de amores, vaga- da casa me deixava ver as coxas alvas de dezoito
va à noite, não era nada incomum encontrar um ho- anos. Havia muito não dava urna boa foda, a última
menzinho corcunda, muito falador e levemente irônico, fora numa m ulher que eu esperara dias seguidos numa

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esquina de silêncio até que ela veio e de mãos dadas os pensamentos por ele poderiam escapar, a cara da
procuramos um recanto, era ao escurecer, afinal vi um mulher era serena e num sorriso recitava orações da
pequeno caminho por entre uma cerca de aveloses, por Cabra Preta, enquanto com suas próprias mãos torcia
ele nos metemos, tinha de evitar as pessoas de uma casa os bicos dos peitos que conseguira descobrir, ora veloz-
branca, talvez a casa de minha futura mulher, mas nin- mente, ora com a maior delicadeza, os bicos cresciam,
guém nos viu, eu disse para ela: Você vai voltar a ca- pareciam de m amadeira, tomei um deles na boca e o
valo, mas eu sabia que não havia cavalo, paramos jun- leite desceu pela minha garganta, enquanto o leite mais
to a urna área limpa, e eu disse: Aqui foi construída a grosso, mais quente, mais amarelo dos meus bagos se
casa que não chegou a ser constrtúda, quando me vol- misturava em jatos ao seu suco e nos enterrávamos as
tei ela estava se deitando na grama amarelada e levan- unhas.
tando o vestido até à altura dos peitos, o vestido à al- A escolha da Faculdade não foi difícil. Pensei que
tura dos peitos formava um monte ainda maior, que se o corpo humano sempre me interessara eu deveria
ela tinha os peitos grandes, estava sem calças, seus estudar medicina e me inscrevi no vestibular, varando
pentelhos iam até ao umbigo de buraco profundo, es- noites com outros candidatos, de quem me aproximara,
palhavam-se pa ra os lados das coxas, eram um mata- no estudo da Química e da Física, da História Natural,
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gal onde se poderiam caçar coelhos e preás, talvez mes- comendo seus lanches e fumando seus cigarros, meten-
mo com um pouco de imaginação um elefante branco, do na cabeça toda aquela merda que me possibilitaria a
grande trambolho, mergulhei as mãos naquela vegeta- entrada nas duas casas, economizando como jamais eco-
ção, começando do alto, descendo vagarosamente e des- nomizara e como jamais economizaria os duzentos mil-
cobrindo veios d'água subterrâneos, covas de tatus, um réis frutos de uma facada epistolar no meu cunhado de
monte de onde se descortinava um panorama lumino- Palmares. Minha função era decorar: lia, lia, lia, fecha-
so, a té alcançar o grelo da flor noturna, teso, tinindo va os olhos e o filme se desenrolava em minha cabeça.
como urna campainha de cabriolé, buliçoso, destilando Eram sais, alcalóides, ácidos margáricos, força de má-
a mais pura água cristalina contra as paredes que se quinas, vasos comunicantes, característicos das moscas,
umedeciam e empapavam a entrada da gruta onde dois cotilédones, composição do sangue, mamíferos, mine-
arqueiros se encarregavam de fazer cócegas no meu rais, vácuo, fórmulas, símbolos, pólen, algas marinhas,
dedo médio, já besuntado de cera de abelha-mestra, corolas, pistilos, esôfago, corpos simples e compostos,
q u ando retirei o dedo saíram corren do trezentos misture este com aquele e obtenha aquele outro, use o
d uendes copuladores, mas outros trezentos lá dentro fi- papel de tornassol, cuidado com essa proveta, não pro-
caram, rindo, eu ouvia a gargalhada como se estives- ve que é veneno, feche os ouvidos que agora vem o
sem gargalhando num mar de gelatina, então penetrei- estouro, ô bicho fedorento danado; vinham as madru-
a e os dois arqueiros desapareceram na ponta da minha gadas, iam as madrugadas, os olhos eram duas postas
vara, puxando-a cada vez mais para o fundo, disparan- de sangue, decora, decora, decora, dizem que quem não
do suas lanças contra a glande, num movimento mais se inscreveu no cursinho do professor Beldroegas não
brusco do vaivém eles conseguiram correr ao longo do passa em Química Orgânica, tomara que aqueles sacanas
pau e se aboletaram nos meus bagos, espremendo-os, me reprovem, fui me meter num caracá geresserom
meu ânus se contraía com tamanha violência que nem serratalha ribimboca tirrá vagaratamboca talhimé talhum

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viparom civá pa ri marom gajó gagi gagimbomba quará soprando n a mão em concha entre a boca e o nariz para,
aqui quaraquiconga recocacimurimbeta teté teriolé trom- constantemente, verificar meu hálito que achava fétido.
beta patativa chorelamba; os culhões me doíam de tão Era uma câma ra de torturas medieval presidida pelo
ch eios, três meses pegado com aquelas babas, que nem Monstro, o pro fessor de Anatomia que sabia todo o
médico queria ser, o que e u queria era definir um esta- Testut decorado e que, impiedosamente, massacrava os
do, chegou o dia do vestibular com um trote hurn.ilhan- feras, surgindo na pequena porta em forma de arco,
te, eu já um bicho passad o da idade medindo o salão pontualmente, cinco minutos antes d as sete, os cento e
da frente com um palito de fósforo, sempre havia um trinta estudantes sentados n os degraus frios do anfitea-
filho da puta para m e atrapalhar perto do fim, recome- tro sem bater a pestana, respondendo à chamada e aos
çava tudo, eles riam de chorar, eu não sabia onde esta- ap elidos que ele lhes botava, depois tirando o paletó,
va a graça; rn.is turei sais, adivinhei sais, resolvi fórmu- calçando as luvas de borrach a e iniciando uma disser-
las d e física, enrasquei-me no ácid o margárico, d escrevi tação sobre músculos, cartilagens, aponeuroses, glându-
uma abelha com a segurança de um apicultor e che- las, ossos, tendões, nervos, artérias, intes tinos, órgãos
guei a me d esmandar na descrição da cópula aérea, pas- genitais que durava duas horas, o cansaço aos p oucos
sei aos p eixes, foram três dias de coração na boca, mãos se apoderando de rn.im, capaz de gritar, via tudo con-
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suadas, escrevendo, falando, passando de um para ou- fuso, n ão entendia m ais nada, não sabia o significado
tro, discutindo quesitos, no quarto afixaram o resulta- de coisa n enhuma, a Voz de vez em quando chamava
do e lá estava eu como um dos aprovados, num cansa- a atenção d e um d orminhoco e expulsava-o impiedosa-
ço tão grande que seria cap az de d ormir um mês inteiro. mente, contava fa tos arrogantes de sua vida, xingava
Às sete da manhã começava a aula d e ana torn.ia, as estudantes, perguntava-lhes pelo sangue do mês, fa-
no anfiteatro frio, os cadáveres boiando em grandes ti- zia trocadilhos, arrotava bravatas, tudo de mis tura com
nas de formal ou alinhados em prateleiras geladas, o a estrutura do corpo humano que deveríamos conhecer
primeiro que cortei me valeu passar uma semana co- como se conhece o próprio cu, pelo tato e p elo cheiro,
mendo bolacha de faca e garfo. Presa p or um gancho, pelos vários n omes, pela utilidade na saúde e na d oen-
na p arte pos terior do pescoço, urna virgem se balança- ça. E eu ali, tentando perceber a significação dos cor-
va levemente, os pequenos seios amarelecidos, toda ela pos mortos, a v irgem pendurada no gancho passou mais
da cor de pergaminho, os pêlos sem viço ornamentando de uma sem ana olhando-nos com os olhos vidrados,
sua p equena xoxota; numa tina um braço branco des- até o dia em que o Monstro interromp eu a meio uma
cansava sobre uma p erna preta, boiando; n a mesa de dissertação, olhou -a, sorriu, avanço u para ela e di-
cimento a barriga da velha gord a, cortada, deixava ver rigindo-se às moças falou:
a gordura que me lembrava enxúndia de galinha; nou- - Não quero v irgens aqui.
tra mesa as moscas pousavam no pênis d escomunal do Abriu com esforço as pernas da pendurad a, num
negro de boca aberta deixando ver os dentes claros; es- ruido semelhante ao de uma coxa de galinha assada
queletos pendurados agitavam-se levemente numa dan- d esprendida do corpo, e introduziu o dedo na vagina.
ça triste, irreversíveis; e por toda a parte o cheiro d e Eu poderia jurar que a moça m orta me piscou um olho
formal e da podridão, entranhando-se em rn.inha rou- e executou um pequeno movimento de bunda pela rea-
pa, obrigando-me a cortar as unhas até o sabugo, lização daquela tarefa p óstuma, e olhando o pequeno

168 169

!
grupo das cinco jovens que faziam parte da turma vi de trezentos e oitenta anos. Nunca cortava um cadáver,
que todas fechavam as pemas e baixavam a cabeça, en- mandando que os estudantes o fizessem, sem luvas, a
quanto o Monstro soltava uma gargalhada, divertindo- propósito de tudo descompondo os que erravam, en-
se com a piada m acabra. No fim de um mês ele passou tremeando seus esporros com piadas e citações imorais,
a fazer perguntas sobre a matéria dada e nossa igno- como quando apertei a barriga de um morto gordo e
rância era total, com exceção de uns três ou quatro cus- os gazes escaparam num ruido de máquina perdendo
de-ferro que se matavam em cima do tratado, distribu- pressão. O Monstro bateu palmas para chamar a aten-
indo as peças que deveriam ser cortadas e analisadas, ção da turma e recitou aos berros:
dando às moças pênis, testículos e vagina, não sem an-
tes perguntar a uma delas: Saiu tocando viola
- Quantos centímetros, em média, tem o mem- um preso mui valentão,
bro? ninguém o pôde ter mão
Berta, a judia, corou, gaguejou, murmurou qual- ao sair da portinhola.
quer coisa. Ele não foi para Angola
-Fale mais a lto. porque nos ares morreu,
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Num fiapo de voz ela conseguiu articular: assim que nasceu faleceu
-De dezoito a vinte, professor. sem Jazer gesto nem mono,
- Contente-se com doze! - bradou o Monstro. seja para o vosso dono
E nós o acompanhamos na gargalhada, enquanto o peido que aqui se deu.
ele repetia:
- Contente-se com doze, D. Aberta, contente-se E todos ríamos e o bajulávamos, com o passar do
com doze! tempo a té mesmo as moças.
E virando-se para o servente bradava: Matriculamo-nos em seu curso particular p ara ga-
- Severino, seu filho de uma puta, cadê aquele rantir a aprovação, procuramos cercá-lo de todo o
esfenóide que eu mandei você guardar? chaleirismo, obsequiosos, safados, mas os cinqüenta mil-
Com a mão pedia silêncio e, gravemente, muito réis que eu teria de lhe pagar todos os meses constituí-
sisudo, fazia uma preleção sobre a natureza ladrona de am uma tortura, obrigando-me a mil expedientes, rou-
Severino, os ossos que vendia aos feras, sua incompe- bando no jogo do vinte-e-um que organizávamos na
tência, ameaçando-o com a demissão~ tudo o servente área que ficava entre o anfiteatro e o necrotério, de onde
ouvindo de cabeça baixa, mas gozador, que estava ha- podíamos ver o médico legista ou outra bosta qualquer
bituado com ele há muitos anos, continuando no seu de médico, sei lá, abrindo cadáveres frescos para deter-
mercadinho do corpo humano. O Monstro não tinha minar a cau sa da morte, depois jogando as vísceras na
limites nas pornografias, nas anedotas, nas vantagens, abertura que ia do pé do pescoço ao púbis, o assisten-
nas histórias mentirosas. Somando, um dia, os anos que te costurando o infeliz e metendo-o, com a ajuda dos
ele passara nas selvas do Amazonas, no exército, na clí- serventes, dentro do rabecão. Era no vinte-e-um que
nica, nas caçadas, nas fornicações, nos misteres os mais eu me defendia, com uma bruta sorte e al gumas
variados, chegamos ao resultado de que contava m ais batotas, mancomunado com outros dois para os dados

170 171
pergunta complicada sobre cérebro. O Monstro forma-
chumbados, defendendo o dinheiro da Casa do Estu-
lizou-se, empino u o peito que tinha estufado como o
dante e do curso do Monstro, que os outros professores
de um pombo gigante e arrasou a menina:
não me batiam a passarinha: o de Histologia com a sua
reconhecida incompetência e o de Fisiologia já quase -Onde é que a senhora tem o cérebro? Na babaca?
gagá, somente o de Microbiologia assumindo ares de A classe toda, como sempre, riu, menos eu, dessa
sábio inglês, obrigando-nos a colorir lâminas e a carac- vez. Os olhos do Monstro caíram sobre mim, mas não
terizar bacilos de blenorragia, febre tifóide, escarlatina, desviei a vista.
sífilis, o mundo do infinitamente pequeno causando-me - Está sentindo alguma dor, doutor? - perguntou-
urna indiferença tão profunda q uanto a boceta da Rai- me.
nha Mary ou o cu do Dalai Lama. Quando proibiram o Não respondi. Ele continuou me fitando, eu sen-
joguinho entre as quatro paredes da Faculdade transfe- tia a tensão que se formava em volta, mas também não
rimos a banca para meu quarto na Casa do Estudante, tirei os olhos da sua cara. Tentou mais uma vez:
onde me aboletara com ]oca Lourinho e Fernandão Pé- - Quer levar um toque retal?
de-Chumbo, introduzindo o víspora, mais fácil de tra- Continuei mudo, esforçando-me para não bater as
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pacear, eu me encarregando da chamada das pedras, pálpebras. O Monstro, então, avançou a lg uns passos e,
empalmando-as e gritando o número que nos convi- sentado como eu estava, num dos primeiros batentes
nha. Mas nem sempre tínhamos patos a depenar e nes- de cimento, nossas caras ficavam quase à mesma altu-
sas fases eu passava mal, tomando café pela manhã, ra. Pôs as mãos na cintura e os músculos fortes pula-
mendigando um almoço, indo dormir com fome, des- ram como cobras em convulsão, enquanto um sorriso
cendo de madrugada para assaltar a cozinha onde o de canastrão lhe inundava a boca de lábios finos. E as-
mais que encontrava era um pão seco ou uma laranja sim ficamos, durante aquilo que me pareceu uma eter-
azeda, muitas vezes pulei o muro da Maternidade que nidade, o esforço que eu fazia para não bater as pálpe-
ficava entre a Facu ldade e a Casa para roubar um ca- bras transformava-se em agulhas cravadas em todo o
cho de bananas, até que descobri a casa de um primo corpo, medo não sentia, estava entregue ao que desse e
legítimo, lá passando a almoçar durante meses com a viesse, bastando uma bofetada daquele sujeito para me
maior sem-vergonhice, pontual à hora do meio-dia, ou- transformar num monte de carne sangrenta. Ouvi, dis-
vindo histórias da família e pajeando um pouco seu pri- tintamente, uma voz gri tar na distância: "Olha o rolete
meiro filho, vez por outra ainda por cima dando-lhe de cana!", e imaginei um menino correndo atrás do ven-
uma facada. À noite saía para pegàr amas no Parque dedor. Aos poucos, o Monstro foi relaxando sua atitu-
do Derby, trepando em pé contra uma mangueira, lim- de, os braços lhe caíram ao longo do corpo, abriu as
pando o pau na barra da saia da mulher, com minhas pernas e erguendo de repente o braço apontou o dedo
cantadas tornei-me amigo dum bodegueiro no pé da curto em minha direção, quase me tocando o nariz, ex-
ponte da Madalena que me fiava cigarros ordinários e plodindo afinal numa grande gargalhada e dizendo, aos
uma cachacinha de vez em quando. berros:
De um dia para outro minha vida tomou rum.o - Olha a cara dele! Olha a cara dele! Olha o boche-
diferente numa das aulas do Monstro quando, numa chudo! Fiau! Fiau! Fiau!
argüição, uma das col.e gas não soube responder uma

173
172
A tensão se desfez e o Monstro, num leve rodo- olhos verdes de gata encimadas por pestanas sonhado-
pio de bailarino, voltou à mesa, descalçou as luvas, rin- ras, espartilhada, o decote deixando adivinhar o vale
do das lágrimas lhe cairem pela cara abaixo, sem tran- dos seios, apoiada a uma sombrinha com uma mão, a
sição ficando sério, abrindo a caderneta e, depois de outra repousando no espaldar duma cad eira de
assinalar qualquer coisa, dizendo para mim: jacarandá bem torneada.
- Bochechudo! Para amanhã, os músculos da face. Ferramos um namoro, para mim novidade, já que
Escolha seu cadáver. nunca fora dado a práticas sentimentais com cabaçudas,
Quando ele sa iu do anfiteatro o pessoal me ro- geralmente com o estômago apitando de fome encostan-
deou, com palmadinhas nas costas, elogios ao a to de do-me ao seu portão, às oito da noite, sob a ramagem
bravura, piadas, que arretado, o Monstro chiou, deu o da rainha do prado, ela fugindo ao contato das minhas
cagaço no Monstro, topou uma parada dura. Na porta, mãos nas suas mãos, tipo da coisa mais familiar do
a colega me esperava, ainda pálida do susto, para um mundo, retirando-me às nove e meia com as pernas do-
agradecimento de mão estendida, eu me lembrava va- endo e sem a mínima ereção possível. Quase sempre,
gamente do seu nome, Julieta parecia-me, suas pe r- quando estávamos de conversa, uma conversa que gira-
nas já me haviam chamado a atenção: brancas, lisas, va sobre a sua vida passada, as baronesas e os viscon-
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bem torneadas; a bunda um pouco saliente e os seios des seus ancestrais, sua viagem à Europa ainda menina,
fartos, tudo encimado por uma cara que lembrava va- o parque de sua casa em Cosme Velho, as regalias dos
gamente a de uma japonesa. Fomos andando pela pra- Natais e o fraseado das casas d e chá, chegavam os ir-
ça, eu não tinha muita prática dessas conversas, mas mãos e irmãs, os primeiros num boa-noite seco, as se-
sentia que ela queria m e oferecer algo pelo gesto de gundas já em risinhos, na espera de desencalhar aquele
palatino. O que me podia oferecer que não fosse um barco, não sabendo que bisca era eu. Juntos nas aulas e
namo ro seco, de portão, de mãos dadas, de cineminha juntos à noite, quando chuviscava eu entrava para um
de bairro? Mas mesmo assim fui com ela, dentro da pequeno alpendre ao lado do muro, vendo os bondes
manhã, sem outras a ulas, debaixo das acácias amare- passar e subir a ponte da Madalena, pouco a p ouco fui
las, no sol quente, sabendo de sua vida, aos poucos toda sendo aceito como um provável futuro membro da fa-
ela se revelando como católica praticante de mangas de mília, cheguei a ser apresentado ao velho Melo Barbo-
três quartos, calçolas de pernas, órfã de mãe, educada sa, de bigodes brancos, sempre de roupa de brim par-
no Sion do Rio de Janeiro, tocando piano e falando fran- do, especialista em desenhos de padronagens p ara a
cês, sem desprender-se dos dias de fausto quando o pai fábrica onde trabalhava, os culhões enormes aparecen-
fora um dos majo res a tacadistas de tecidos em grosso, do nas entrepemas das calças, bonacheirão, sem muita
fraudado pelo cunhado, p erdida a grandeza, sustentan- voz ativa para a família legítima, já que seu rabo de pa-
do duas famílias, com filhos bastardos de quem ela fa- lha poderia inflamar-se a qualquer discussão mais aze-
lava com simpatia até, possuidora de um nome que a da. A casa tinha um quintal grande povoado de man-
colocava entre as primeiras famílias do Estado: Maria gueiras e comumente nos sentávamos à sua sombra nas
Juli e ta Me lo Barbosa O ' Rourke de Meneze s, o noites de lua, cantarolando modinhas imperiais, num
O'Rourke vindo da mãe de origem irlandesa, cuja foto- ridículo de jogos de prendas e de passagem de anel, com
grafia em cima do piano me mostraria dias depois uns pouco mais eu estava no terraço de detrás e logo depois

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na sala de jantar em jacarandá maciço estudando os tra- pouco os olhos e declarando com a voz mais suave e
tados médicos com Julieta, entrando naquele mundo um ingênua sobre a face da terra:
pouco bolorento de histórias próprias, tudo puxado por - Não, meu bem, isso só quando a gente se casar.
uma preta nem velha nem moça, muito seca de carnes, Ao passearmos de bonde obrigava-me a fazer o
que cuidara das meninas desde o seu nascimento, de pelo-sinal quando passávamos defronte de uma igreja,
grandes rapapés para os meus lados, servindo-nos um recriminando-me uma omissão, acusando-me de respei-
lanche sempre o mesmo, às nove da noite: chá Lipton to humano, não sei onde diabo eu tinha a cabeça para
em chávenas de porcelana, restos da grandeza passada, agüentar toda aquela xaropada, mas era que não desis-
e torradas amanteigadas que nunca conseguiam aplacar tia de, mesmo sem casar, manipular aquelas carnes to-
minha fome. De envolvimento em envolvimento me fui talmente virgens, daquela boca jamais saindo palavras
sentindo obrigado a dar um sentido àquela situação, que não fossem as mais convenientes, embora tudo já
pois que já estávamos de mãos dadas à vista dos outros, soubesse sobre o corpo humano nas aulas de anatomia,
olhos nos olhos num namoro dos mais suburbanos, con- mas fazendo finca-pé num sentimenta lismo de fim de
v idado para almoços aos domingos e jantares aos sába- século, a tal ponto que, entrevistada por um dos pri-
dos, cinema duas vezes na semana, visitas a farrúlias meiros cronistas sociais aparecidos na cidade, sobre o
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deles conhecidas. Tornei-me noivo de Julieta, as alian- que mais gostava, declarou, provocando-me engulhos:
ças obrigando-me a uma ginástica dos diabos num - De música e rosas.
joguinho de pôquer onde um dos parceiros levantou Tocava, realmente, ao piano, coisas alambicadas
dúvidas sobre a minha honradez e eu me vi obrigado a como a Serenata de Schubert, os noturnos de Chopin,
quebrar-lhe dois dentes da frente, ameaçado de proces- valsas de esquina, modinhas do tempo do ronca; e cul-
so, mas ostentando uma semana depois o aro de ouro tivava, num canteiro ao fundo do sítio, rosas chá, vio-
no anular da mão direita, depois de uma cena ridicula letas, miosótis, dálias. Era, na verdade, a sentimental
com o Melo Barbosa, ele sentado numa cadeira de espal- da família, que os outros tinham manias diferentes. A
dar alto e eu, muito teso, noutra de espaldar não menos irmã mais velha vivia em terras do sul, tendo casado
alto, dizendo-lhe das minhas intenções em relação à sua com um engenheiro a quem tive a chateação de conhe-
amada filha, da minha condição de estudante de medi- cer uma única vez falando sobre poços artesianos, bom-
cina e dos empregos em penca que estavam à minha dis- bas hidráulicas, concreto armado, explicando sem que
posição, mas que não tínhamos muita pressa, tudo farí- ninguém entendesse a tese que preparava para
amos com todos os erres e efes. abiscoitar uma cátedra, desenvolvendo no quadro-ne-
O noivado obrigou-me, pelo menos, a uma missa gro da saleta umas equações difíceis, falando por nú-
dominical, de missal em punho, lembrando-me um m eros, eu tinha a impressão de que as palavras eram,
maracá de pastora com todas aquelas fitas coloridas, apenas, as muletas dos algarismos, o doutorzinho mui-
nele eu me atrapalhava todo para procurar o evange- to vermelho e de barriga proeminente indicadora do
lho numa página, o ofertório noutra, o cânon num ou- seu estado de fartura. Sua mulher era bonita, a mais
tro lugar, sempre me distraía olhando os peitos bonita daquele clã, dizendo-se que mesmo casada não
intocados de Julieta, que ela continuava resistindo a toda esquecia um amor contrariado com um tampinha que
tentativa velada de minha parte, apenas revirando um vim a conhecer depois e que freqüentava a mansão na

176 177
ausência do casal, por meias palavras dando a enten- seguidas com os termos náuticos mais incríveis de se
der que ainda a am ava e falando sobre seios e nádegas decorar, provando por a mais b por que Wellington ha-
da mulher impossível com frases onde entrava de tudo via ganho sua batalha naval, ardente apaixonado da fra-
- corolas macias de terciopelo, globos níveos do deser- se verde-ama rela "O Brasil espera que cada um cum-
to assírio, colunas côncavas de um firmam ento de car- pra o seu dever", atravessando oceanos com barquinhos
ne perfumada, espelho perfumado das róseas dunas de papel por ele mesmo fabricados, inventando mares
babilônicas - menos o nome exato das partes por ele e ilhas, assinante de revistas especializadas, organizador
ansiadas, somente ansiadas; havia uma irmã noiva, ale- de planos, para ele autênticos, de batalhas célebres,
gre, sadia, longa, sempre agarrada aos bigodes bastos apontando os erros dos almirantes derrotados e desen-
de um comerciário cuja única paixão na vida consistia volvendo toda uma teoria de abordagem dos piratas dos
nas partidas domingueiras de futebol e nos canários can- mares das Cara1bas, leitor entusiasmado do Capitão
tores; havia uma outra, arredondada, cara de lua cheia, Blood, de Rafael Sabatini.
de oveiro caído, impenitentemente sem homem e amar- Dentro do clã, à procura de carícias que já consi-
ga, sempre às turras com as outras já agarradas a ma- derava impossíveis, eu, pelo menos tendo onde jantar
chos; havia um irmão mais velho, mirrado, de bigode com a minha bocarra sempre aberta, murmurando pa-
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ralo, sempre à procura de um emprego que estivesse à lav ras em consonância com a mania de cada um, sem -
altura dos seus altos conhecimentos que versavam, so- pre cuidadoso para em nenhum deles deixar minha
bretudo, sobre os verbetes do Tesouro da Juventude, dis- marca, quem deveria marcar não queria ser marcada
cutindo todos os porquês, os paraquês e os cornos dos que a Santa Madre Igreja Católica Apostólica Romana,
reinos animal, vegetal e mineral, desde a pré-história à por seus doutores e seus padres, não permitia à noiva
Revolução Francesa, desde os submarinos ao nascimento repousar os bicos dos peitos entre meus polegar e indi-
das plantas, desde os contos de Grimm à evolução so- cador, não permitia que a mão, em forma de golpe de
cial da mulher; havia um irmão do meio, obeso, bas- judô, se aninhasse entre as suas coxas, muito menos que
tante enxundioso, consumindo todo o tempo em fute- o médio siriricasse o botão maduro, ela se revestia de
bol de botão, criando conflitos tremendos no seio da uma estranha armadura. Às vezes, numa investida mais
família pela disputa de uma manga-espada, grande co- ousada, e u via que seus olhos brilhavam, mas logo lhe
milão, sempre esfomeado, engolindo o alimento com os acudiam os salmos e os hinos, o pavor da confissão, a
olhos espe tados nos pratos ainda cheios, bebendo vergonha melhor dito, a penitência recordadora dos
copázios d'água e enxugando os lábios gordos com as desmandos da carne, eu já estava de tal maneira que
costas das mãos, muitas vezes jogando a sopa, com pra- m al olhava suas pernas arredondadas, alvas e lisas, a
to e tudo, pela janela, porque o tempero não estava do ereção era imediata, mão no bolso da calça estran-
seu agrado; havia o irmão mais moço, quase menino, gulando o membro, vez por outra soltava-o e ela fingia
via-se logo que seria um tampinha, que conhecia tudo, não vê-lo, ap enas suas narinas fremiam como asas de
mas tudo mesmo quanto se relacionasse aos assuntos borbole ta. Quando me deitava, insone, na cama dura
navais: caravelas, corvetas, embarcações egípcias, bar- da Casa do Estudante Pobre, os culhões me doíam como
cos de vik.ings, can oas de índios, cruzadores, destróie- se todo eu estivesse neles contido, terminava m astur-
res, porta-aviões, barcos a vela, podendo falar horas bando-me em contrações lentas, medidas, rendendo o

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mais possível as nádegas de Julieta em minha imagina- bem juntos, minha coxa colava-se à sua, num movimento
ção, isto ela não me podia proibir: que eu me ajoelhas- lento, mas muito lento mesmo para não assustá-la, fo-
se defronte da sua boceta, à distância, saboreando o gos- mos progredindo. Uma noite, sozinhos na imensa sala
to de fruta verde, travosa, babosa, apetitosa, que deveria de jantar com todos aqueles móveis assistidos por fan -
ser vermelha com laivos róseos e grumos da cor de lei- tasmas aris tocratas ela me olhou mais demoradamente,
te condensado, meus braços envolvendo suas nádegas nossas mãos se entrelaçaram, aproximei o rosto, beijei-a
e o dedo deslizando no rego. Era o mais que eu podia pela primeira vez, docemente para n ão assustá-la, em-
fazer, aos gemidos, manchando a parede branca, dese- bora a líng ua avançasse um mísero centímetro, ela esta-
nhando nela, com os meus jatos noturnos, figurinhas va de olhos fechados, minha mão descansou em s ua
chinesas, para a esquerda e para a direita, mais para coxa, por cima do vestido, sua mão pousou sobre a mi-
baixo e mais para cima, um mar de figurinhas onde nha numa leve compressão, foi a partir de então que
descobria até, com a minha eterna mania eidética, Julieta tudo começou, não no outro dia, nem na outra semana,
acocorada faz endo pipi, banhando-se numa bacia mas no decorrer dos meses, num plano de batalha em
esma1tada, aca.riciando seu próprio vale, limpando a que ora eu recuava, ora avançava com mais ímpeto, ela
bunda, empoando as virilhas, chamando-me de pernas negaceava uma vez, outra não, mas ficávamos nos bei-
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abertas. Era um livro. E eu folheava o livro ilustrado, jos, cada vez mais chupados, seu corpo se colava ao
com iluminuras, a té, de santos macilentos com auréo- meu e ela sentia o meu pau, não havia dúvida nenhu-
las esmaecidas, castigos da polé, açoites, corpos puxa- ma que Um Inimigo do Povo era uma peça erótica.
dos por cavalos raivosos, e no meio dessas auréolas eu De repente, tudo explodiu, e como toda a explo-
ejaculava fortemente, mandando tudo, auréolas e são arrancou-nos pedaços e nos espalhamos por todos
espermatozóides para o distante útero de Julieta, rai- os lados, agonizantes, espantados com a nossa violên-
vosamente querendo engravidá-la, como castigo e, cia, ela havia, finalmente, d escoberto outro Paraíso, por-
ingloriamente, por pensamento. Eu a culpava por todo tava-se até corno uma puta escolada, pouca coisa foi
aquele genocídio, armava p lanos para violentá-la ou ide- necessária para entrar no campo da técnica amorosa,
ava artimanhas à boa maneira do anônimo inglês autor seu instinto era poderoso, manejava minhas partes com
de Minha Vida Secreta, contava emprestar-lhe Fanny Hill perícia dentro de poucos dias, eu manejava as suas le-
ou uma dose maciça do Marquês de Sade, de alguma vando-a a gritinhos abafados com os dentes contra seu s
maneira d everia despertar aquelas carnes, arrombar lábios. Foi numa noite no terraço de detrás, a famíJia
aquelas portas cerradas, transformá~la numa livraria toda fora, a preta velha catando seus piolhos na cozi-
onde quer que se pusesse a mão só aparecendo livros nha. Estávamos sentados em cadeiras de balanço, con-
com gravuras coloridas das dezenas de posições de fortáveis, de palhinha, uma ao contrário da outra para
Are tino. que n os o lhássemos. Ela me perguntou:
Pacientemente, comecei as lições, quando ela me -Você ach a que as mangas estão verdes?
propôs, para fugir da chatice dos livros de medicina, Eu ergui a mão e abocanhei seu peito direito:
traduzir Um Inimigo do Povo. Ficávamos os dois, duran- -Esta manga está madura.
te horas, de dicionário em punho, ela formando a frase Ela apenas me olhou mais intensamente e sorriu.
literalmente para que eu a transformasse literariamente, Então, d elicadamente, esfreguei o bico do seu seio que

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logo cresceu entre m eus dedos, sua respiração tornan- mortificações, nem pejo, somente a alegria animal de
do-se mais apressada, enquanto numa manobra em que se estar realizando depois dos vinte e cinco, até então
me torcia todo com a outra mão alcancei o outro bico e com os seus miseráveis problemas proibidos. Era de-
fiquei esfregando os dois ora dedilhando-os como cor- baixo das mangueiras, na sala da frente, na escada, atrás
das de um violão, ora puxando-os como tiras de borra- das portas, criamos uma senha para quando queríamos
cha, ora afundando-os, sempre enchendo as mãos com o ato, eu ou ela: "Balangandãs". Quando um de nós,
os melões rijos, até q ue fui à alça de sua combinação, no m eio duma conversa coletiva, inocente, pronuncia-
fazendo cada uma deslizar para o braço, desabotoei seu va, procurando encaixar, na frase ingênua, a palavra
vestido e fiz que os seios pulassem para o luar, alvos, balangandãs, já nos preparávamos para a função da noi-
com um brilho de coisa sobrenatural, eram, ao mesmo te, da tarde, da manhã. Mas tudo era feito à vista dum
tempo, uma corrente luminosa, um mamilo cor-de-rosa, próximo casamento, respeitado o hímen, somente, tudo
um disco, arfantes, um espelho, duas pequenas náde- o mais devassado e gozado. O diabo, porém, era que
gas que me falavam de democracia, laudemus, sexo, apa- não podíamos continuar naquela vidinha de sacanagens
relho de rádio, foguete para o Sol, tinham um sabor de e a ulas de medicina, eu quase sempre com o estôm ago
jambo-jasmim, poderiam derramar leite na minha gar- roncando de fome, sem ver nada no horizonte. Che-
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ganta. E enquanto eu os chupava, ora um, ora outro, guei a organizar um calendário de refeições: casa do
minha mão se insinuou pela perna da sua calça, mais primo, casa da noiva, roubo na despensa da Casa do
parecia minha cueca, forçou a entrada justa e caiu nos Estudante Pobre, arm azenagem de bananas inchadas da
pêlos abundantes, macios, a campina de minha infân- Maternidade, provocações junto à noiva para que visi-
cia, capim-gordura, a fenda ligeiramente aberta, úmida, tássemos amigos dela, parentes dela, conhecidos dela,
mais do que úmida: gotejante; ela arfava, suas mãos contanto que as visitas coincidissem com as horas de
procuravam algo no ar brilhante, orientei uma delas refeições. E foi assim que, todos os domingos, passei a
para a minha braguilha, no seu frenesi os botões voa- visitar a casa do Afonso Lima, intelectual de renome,
ram, que importava, libertou meu cavalo, ensinei-lhe morador em Olinda, aonde íamos a pretexto do banho
apenas uma vez o vaivém e nos entregamos completa- de mar, ficando para o almoço e o ajantarado. Nonso
m ente, o orgasmo chegando ao mesmo tempo com uma escrevia seu primeiro livro de ensaios sobre um roman-
violência de balas de fuzil no pequeno alvo do umbi- cista português e publicava rodapés no suplemento li-
go, descarregamos, às mordidas, aos soluços, ela aos terário de um dos jornais de maior circulação da cida-
gritos para a lua, eu aos gritos para a sua garganta, de. Sua casa vivia cheia de intelectuais e a conversa
fina lmente homem e mulher, ba rreiras a fastadas, girava em torno de Proust, Gide, Valér y, Huxley,
profundamente identificados. Rimbaud, Thomas Mann e os brasileiros Lúcio Cardo-
A partir dessa noite nossas carícias se requin- so, Graciliano Ramos, Zé Lins do Rêgo, o pau baixando
taram e foram sendo esgotadas nos mil pequenos de- nas costas dos medalhões, tudo entre goles de cachaça
talhes que podem fazer as m ãos duma pessoa, de com caju e grandes travessas de cavala-perna-de-moça,
duas pessoas, as coxas de um ente, de dois entes, os digerindo-se literatura e cozido ao embalo de redes ou
sexos ávidos de m acho e fêmea, não mais pudor de Fi- esticados em espreguiçadeiras. Foi sob a inspiração des-
lha de Maria, nem tormentos de confessionário, nem se ambiente que, com o Ramos, um sujeito inteligente

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que, a princípio, me antipatizara ostensivamente, cha- q ue h aviam pensado n o futuro da família. Esses
mando-me de O Apêndice, porque a intelectual do gru- felizardos eram operários das usinas de Pernambuco,
po era Julieta, tentei a primeira peça de teatro dentro comerciários de grandes empresas, funcionários públi-
duma linha rigidamente surrealista, batizada de Peça cos que, convencidos da utilidade do seguro, empresa
Número Um, que contávamos escrever dezenas, onde a e empregados dividindo os prêmios mensais para ga-
linguagem, praticamente, nada tinha de surrealista, m as rantia da apólice, passavam a sonhar com a família vi-
de um hermetismo rebuscado, incompreensível, nem vendo mais fartamente com dois ou cinco contos de réis,
mesmo nós sabíamos o que queríamos, por isto a com- dependendo das suas aptidões e da benevolência dos
posição não passara da página dez. Em contrapartida patrões, quando vivos.
escrevi para a Revista d a Casa uma adaptação teatral Minha ar apuca ficava, precisamente, no oitavo
de Parentes de Ocasião, de Monteiro Lobato, considera- andar do edifício mais alto e mais novo da cidade, com
da por todos os intelectuais da roda do Afonso como um solene birô, estantes com apólices em branco, for-
urna verdadeira merda. Mas o que me importava eram mulários em penca, cartões, máquina de escrever, farta
os livros da sua biblioteca e as peixadas dominicais, literatura dirigida, postando-me diante da mesa desti-
numa vidinha irresponsável, azul-clara. nada ao inspetor dos tais seguros em grupo, um sujeito
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Finalmente fui chamado às falas pelo Melo Bar- afável, de nome Aderaldo Valadares, que usava a piroca
bosa, o casamento não adiantava um passo, a té repro- do lado direito e tomava nota, religiosamente, num
vado em Anatomia eu havia sido, aqu iJo não podia du- caderninho, de todas as despesas diárias, nem que fos-
rar eternamente. Resolvemos, então, eu e a garanhona, se um mísero tostão do bonde que, porventura, o con-
procurar empregos e deixar a porcaria do curso. Ela foi duzisse da rua Nova ao bairro do Recife. O Aderaldo
mais rápida e logo estava empregada numa casa ex- manobrava a massa dos agentes, enquanto eu me en-
portadora de óleo de mamona, encontrava-a às seis da carregava de todo o serviço burocrático, inclusive da
tarde e, de bonde, tocávamos para o jantar. Graças à correspondência e da cobrança dos prêmios m ensais, os
interferência de um primo da mulher do meu primo dias variando para cada firma, tendo eu, por conseguin-
aceitei um teste para emprego numa companhia de pro- te, de organizar o escritório pela manhã e, à tarde, de
jeção internacional: a América La tina Seguros de Vida. pasta na mão, munido da indispensável procuração, pro-
Resolvidos os problemas de juros simples e compostos, curar os caixas das empresas devedoras. No serviço in-
regra de três, redação e cálculos mais ou menos bestas, terno, um contínuo magro, amarelo, impecavelmente
vi-me investido nas funções de Chefe da Seção de Se- vestido de cáqui, gravata, meias e sapatos pretos nos
guros em Grupo, ao mesmo tempo chefe e únko em- servia ca fezinhos ou refrescos das frutas da época. O
pregado subalterno, que a América Latina iniciava no ordenado compensava e eu me desempenhava a con-
Nordeste essa nova modalidade de venda da morte con- tento da tarefa, sem entusiasmo, porém preparando um
fortável para os que ficavam. Tive de meter na cabeça futuro de pijama e rádio Philco com Julieta numa mo-
urna literatura de encomenda, recheada de bonequinhos desta casa de subúrbio, onde passaríamos a fabricar cri-
coloridos, sorridentes, mãe e filho, mãe e filhos, pai e anças na mais normal das posições coitais, a de papai-
filha, pai e filhas, nunca um caixão de defunto, ora por- e-mamãe, como mandaria a Santa Madre Igreja. Uma
ra, m as nuvens coloridas sobre a cabeça d os felizardos merda era o que eu era, m as ainda não tinha consciência

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disto e dava-me por muito feliz com a barriga cheia guarda-freios, guarda-linhas, vigias, toda a arraia-miú-
nas horas costumeiras de refeições, refazendo o escasso da, convencendo-os de que a fome que passavam com
guarda-roupa e podendo permitir-me algumas diver- o ordenado minguado valia a pena ser mais aguda
sões. contanto q ue após sua morte a família pudesse com-
Vez por outra visitava-nos um inglês enviado pela p rar urna casa de taipa onde pelo menos estivesse ao
Matriz, um tal de Ashton, parecidíssimo com um per- abrigo d a chuva e do sol. Raros recusavam pensando
sonagem de Maugham, todo de branco, fumando ca- que os beneficiários poderiam ter o que não tiveram,
chimbo, esforçando-se por fa lar um português correto, em sua imaginação desenhando-se um mundo cor-de-
senhorialmente convidando-nos para um escocês no bar rosa. Quando um deles morria eu me encarregava de
do Grande Hotel, onde se hospedava, mas só sabendo instruir a família no manuseio dos papéis necessários
falar mesmo de seguros em grupo, cheio de teorias psi- ao recebimento do dinheiro e o nome do falecido apa-
cológicas a respeito de empregadores e técnicas de con- recia no boletim mensal impresso na Matriz e espalha-
vencimento sobre os empregados. Jamais pus em práti- do no Brasil inteiro.
ca qualquer uma delas, limitando-me, quando era o O seguro com a Great-Westem, logo que regula-
caso, a explicar ao futuro candidato quais seriam seus rizado, valeu-me boas punhetas da secretária da Caixa
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direitos e quanto lhe seria descontado em folha de pa- de Aposentadorias, Luzia, mulher de quarenta anos, um
gamento. Quando o Mr. Ashton chegava, precedido por pouco cheia de carnes e virgem por covardia, traço de
um telegrama da Western, de mês em mês, no máximo ligação entre o nosso escritório e o dela. Os encontros
de dois em dois meses, havia uma reunião com o ins- se realizavam na própria sala da América Latina, de-
petor-chefe, o Aderaldo, e todos os agentes da América pois do m eio-dia, a porta aberta para não provocar sus-
Latina destacados naquele departamento. Eu dava meus peitas, os papéis espalhados em cima da mesa para dar
palpites por dever de ofício, mas jamais, antes ou de- idéia de trabalho, enquanto nossas mãos trabalhavam
pois, na minha vida, ouvi serem discutidas tantas bes- embaixo, eu descarregando abundantemente na cesta de
teiras e com tanta gravidade. Os agentes eram dividi- papéis, ela, depois, enxugando os dedos num lencinho
dos em classes: os simplesmente amadores, os que se de cambraia de linho q ue rescendia a lavanda. Nunca
esforçavam para atingir, sem jamais o conseguir, a classe tiro u as calças, nem sempre gozava, jamais consentiu
dos milhares de contos e os verdadeiramente cobras, em outra posição que não aquela de dois sisudos
aqueles de influência nas a ltas esferas plutocra tas, amanuenses tratando de assuntos que giravam sempre
abiscoitando gordas comissões, perfi.unados, vestidos no em torno duma morte, d uma renovação, duma caduci-
trinque, almoçando em restaurantes caros, ostentando dade, duma mudança de beneficiários. Quando goza-
amantes ou esposas bem vestidas. Eu servia a todos e va, sua face não se alterava, de olhos fitos na porta,
só era servido pelo contínuo, ainda bem. Um desses co- apenas contraía um pouco os lábios e uma bolinha de
bras, o Medeiros, conseguiu realizar o seguro em gru- saliva crescia ou diminuía ao ritmo da resp iração mais
po da Great Western of Brazil Realway Company acelerada.
Limited e com ele tive de viajar milhares de quilôme- Nos andares inferiores ficavam as outras se-
tros em trem, trole, carro de linha, máquina; cantando ções da América Latina Seguros de Vida, cujo che fão
limpadores, foguistas, maquinistas, chefes de estação, m áximo, inatingível, invisível, onisciente e onipresente,

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vagamente sabendo-se que morava num palácio no Rio folhetos de suma perfeição gráfica, de dados estatísti-
de Janeiro, com escalas pela Côte d' Azur em certa par- cos, da exploração dos sentimentos das viúvas e dos
te do verão europeu ou nas montanhas suíças em boa órfãos, raramente um seguro deixando de ser p ago p or
metade do inverno também europeu, era de origem es- irregularidade escapada na apólice. Era melhor não li-
panhola, amigo de Franco, casado com uma romancista gar mwto aos detalhes legais por causa da repercussão
que aparecera na Coleção Feux Croisés, da Plon, graças negativa que poderia influir no volume dos negócios
a todas essas qualidades. Ele com um nome pomposo: onde a m orte se disfarçava de tal m aneira que mais pa-
Dom Rafael de Urbanez Largioti Sepúlveda Martinez; recia uma bênção. Havia uma literatura especial com
o romance, com um título tropica l: Pays du Coeur opiniões de prelados ilustres, acadêmicos famosos,
Sauvage. Mas ali, na quente Recife, o representante da conhecidos banqueiros e comerciantes, personalidades
organização, composta de nomes ilustres, lista encimada no mundo da medicina, da engenharia, da advocacia,
por Dom Rafael, era o paulista com fala de veado, Dr. adornadas com os seus prósperos retratos. E havia os
Urbano Figueira de Paula Prado, o Dr. Prado para to- brindes de Natal: fig urinhas, folhinhas, agendas, car-
dos os funcionários que tremiam em sua presença de tões, prêmios, um anúncio de página inteira em todos
homem dinâmico, casado com uma mulher danada de os jornais e revistas, com lay-outs absolutamente técni-
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boa que vinha buscá-lo todos os dias às seis horas da cos e encantadores. Eu ficava imaginando toda aquela
tarde, numa baratinha Ford, último modelo, mexendo maquinaria m ontada no Brasil inteiro e na despropor-
as nádegas generosas. As diversas seções se espalha- ção entre a receita e a despesa, isto é, entre o dinheiro
vam pelas várias salas: renovações, cobrança, caixa, con- que entrava em contraste com o pouco que saía, na-
tadoria, extração de apólices, gabinete médico, sei mais quela roleta onde se vendia a morte numa atmosfera à
lá o quê. Em toda aquela papelada mexiam pessoas qua- M . DelJy.
se sempre medíocres, umas boas, outras ruins, outras E havia as convenções. Todos os an os, em deter-
apenas gente, todas, porém, com um salário miserável minada época, reuniam-se numa cidade brasileira os
aumentado a conta-gotas em todos os dezembros, com agentes de todos os Estados que mais se haviam distin-
uma quinzena de gratificação. Mas havia uma mística guido na venda de apólices, aqueles que eram chama-
da América Latina Seguros de Vida, criada através de dos de milionários, aclamados com sal vas de palmas
anúncios espalhafatosos em jornais e revistas (um ho- quando seus nomes eram anunciados pelo presidente
mem feliz saia de casa de braços dados com a esposa, da convenção, um dos chefões da Matriz, postado à ca-
os dois filhos, um menino e uma menina, correndo na beceira da mesa de reuniões, de um lado o pavilhão
frente, porque havia feito um seguro de educação; uma nacional em miniatura m ontado numa base de madei-
feliz velhinha fa zia tricô numa cadeira de balanço por- ra, do outro o símbolo da América Latina, uma mu-
que o marido, ao morrer, lhe deixara um bom seguro; lherzinha vagamente semelhante à está tua da liberda-
uma viúva bonita, jovem, sorria para a vida porque o de, segurando na mão esquerda uma apólice e da direita
marido também fora previdente enquanto vivo, conser- deixando escorrer moedas de ouro que se sustentavam
vando sua vulva para o primeiro pretendente que de- à maneira dum rosário. Os discursos se sucediam, da-
sejasse continuar sua felicidade), de uma literatura vam-se contas do movimento nacional no ramo dos
que recebíamos mensalmente, transmitida através de seguros de vida, coletivos e de acidentes, escreviam-se

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relatórios, aumentavam a mística da companhia, os extremo. Pois um dia o Cebolinha chegou me contando
bajuladores andavam pajeando os chefões, tudo em sor- uma história de arrepiar sobre um seu filho pequenino
risos, salamaleques, curvaturas, beija-mãos, para termi- que estava com escarlatina, ele sem um tostão, tendo
nar num banquete com autoridades civis, militares e batido em todas as portas e apelado para todos os cole-
eclesiásticas, no fim da festa t.r ocando-se endereços e gas sem resultado, os olhos vermelhos de chorar.
votos de um feliz reencontro no ano próximo. -O menino vai morrer, meu querido Borba, vai
Depois de cada convenção os números subiam na morrer!
coluna da receita, como se os agentes houvessem toma- Dizia e repetia, enxugando os olhos com um len-
do uma injeção de hormônio securitário, loucos para ço completamente molhado, assoando o catarro do na-
esvaziar os sacos, catando candidatos com as eternas riz e repetindo, repetindo:
aporrinhações, às vezes escorraçados, cozinhados du- - ... vai morrer... vai morrer...
rante semanas e até meses, mas triunfando na maioria Diante daquela tragédia não hesitei em lhe dar
das vezes graças à catilinária sabiamente decorada e cento e cinqüenta mil-réis da companhia, pensando que
despejada com uma naturalidade de ator. Eu mantinha poderia prestar contas quando ele me devolvesse o di-
relações com alguns desses agentes, prestando-lhes pe- nheiro, já que o dia da conferência ainda estava longe,
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quenos favores, bebendo chopes com eles depois do o caixa não podendo saber se eu havia ou não recebido
expediente, até mesmo aceitando propinas a pretexto tantos e quantos naquela tarde. Cebolinha beijou-me a
de ajuda na expedição mais rápida das suas apólices. mão, de joelhos, totalmente patético, e abalou no oco
Havia, até, uns tipos simpáticos, como o Cebolinha, de do mundo. Naquela mesma noite eu o encontrei acom-
cabelo completamente branco cortado à escovinha, que panhado duma mulata, no Munich Bar, já no décimo
me dava facadas contando histórias engraçadas, desgra- quinto chope e no terceiro prato de empadas de gali-
ças familiares, necessidade de presentes para uma aman- nha. Quando me avistou, deu um urro:
te imaginária. O bom humor de Cebolinha não caía mes- - Ei, companheiro, aqui!
mo nas horas de maior lisura, passando às vezes um Aproximei-me, apertei a mão mole da mulata um
mês sem realizar um seguro, mas com a caderneta cheia pouco entrada em anos, aceitei um chope e indaguei
de nomes de candidatos importantes, muitos deles in- da saúde do menino. A principio ele não pareceu ter
ventados. Andava bem vestido, todo engomado, sapa- consciência da pergunta, mas logo se abriu num sorri-
tos luzidios, o nó de gravata bem dado, a caneta auto- so largo, levantou os braços, ergueu os olhos para o
mática sobressaindo no bolso desti11ado ao lenço que céu.
era dobrado com um cuidado meticuloso, somente apa- - Está salvo! Salvinho da silva!
recendo as pontinhas, quatro ao todo, em pequenos tri- E deu outro grito chamando o garçom, apertando
ângulos imaculados. um dos seios da mulata como se apertasse a buzina de
Foi Cebolinha quem me pôs no caminho da per- um Ford de bigode, emborcando o resto do copo.
dição quanto ao sagrado dinheiro da América Latina. Cebolinha jamais me pagou os cento e cinqüenta,
Todas as tardes, feita a cobrança, eu preenchia a ne- um quarto do meu salário, mas nunca deixou de dar
cessária fórmula, com cópia, e depositava o recebi- uma boa desculpa. Desfalquei meu ordenado, lancei
mento que Olivério, o caixa, conferia com um cuidado m ão do mesmo truque para cobrir a diferença e, passo

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a passo, fui me encaJacrando. Tive de recorrer a um carreira e que, por isto, dedicava-se, com toda sua inte-
empréstimo bancário, quando se aproximou o dia da ligência, à América Latina Seguros de Vida, abandonan-
conferência, pedindo a um dos agentes mais abastados do a clínica, os mais antigos contando que seu caso fora
para me avalizar a promissória. As vezes chegava a fi- semelhante ao assunto de um filme que fizera sucesso
car a descoberto em cinco contos de réis, mas dava um na época: Glória Anwrga. Mas ele, quando o conheci,
jeito, sempre havia um banco, era descobrir um santo ria, tinha a cara sempre aberta, passava muito tempo
para cobrir outro, andava na corda bamba. discutindo comigo problemas de teatro e levava-me, às
Nora os agentes liguei-me a mais duas pessoas vezes, para jantar em sua casa, onde consultávamos li-
da América Latina: o Pacífico e o Dr. Leão de Alencar. vros e ouvíamos música, bebericando um conhaque
O primeiro era um emérito charadista, mantendo cor- francês.
respondência com meio mundo, colecionando dicioná- Minha vida, assim, dividia-se entre o mundo dos
rios, um danado em logogrifos e palavras cruzadas, pos- seguros e as coxas de Julie ta, o primo engenheiro pro-
suindo uma biblioteca muito grande sobre o assunto. jetando uma casa para nós num terreno que era dela, a
Escanhoava a barba demasiado cerrada com muita me- ·única coisa comprada mesmo era uma máquina de moer
ticulosidade, dando-m e a impressão de faces e pescoço carne, afora o enxoval que ela costurava com as irmãs
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azuis numa cara quadrada, sujeito fechadão, implican- antes ou depois dos nossos orgasmos noturnos. Um
do com quem o chamasse de "amigo", resmungando mund o de coisas, camisolas, combinações, soutiens, fro-
que o termo era sagrado e a poucos pertencia. Já havia nhas, lençóis, toalhas de mesa, guardanapos, paninhos,
passado da idade de casar, quarentão, tinha uma vida rendinhas, eu olhando para tudo aqujlo com a maior
sexual regrada, hábitos absolutamente metódicos, cum- descrença do mundo, atolado de dinheiro, simplesmente
pria suas obrigações de subgerente com o maior zelo comendo e defecando sem mais nada, nem parecia tra-
possível, mas no fundo, vim a saber quando nos co- tar-se do meu casamento de datas sempre adiadas. Uma
nhecemos melhor, sentia um profundo desprezo por moça pra casar, duas canadas de vinho, três parelhas
toda aquela engrenagem. O que o interessava mesmo de padrinho, quatro padres no altar, cinco mesas de jan-
era seu mundo de charadas novíssimas, catando aspa- tar, seis valentões de guerrilha, sete salas de quadrilha,
l avras difíceis com a paciência de um detetive na oito dançando chote, nove negras no chicote, dez dou-
elucidação de um crime complicado, tendo os seus dias tores de engenharia, onze cavalos baixeiros, doze bois
de bom ou mau humor conforme os enigmas fossem de carretão, treze varas de ferrão, quatorze carabinei-
ou não elucidados com a rapidez desejada. ros, quinze tenentes lanceiros, dezesseis traba lhadores,
O Dr. Leão de Alencar, também homem de qua- dezessete caçadores, dezoito queijos de coalho, dezenove
renta anos, era o médico-chefe da companhia, aquele papagaios, vinte homens dançadores.
que dava a sentença favorável ou condenatória no seu Hitler e Mussolini já estavam engolindo o mundo
laudo para a aceitação de um candidato. Vivia às vol- naquele primeiro ano de guerra e, certas tardes, cu me
tas com o estetoscópio e os tubos de ensaio para análi- postava a uma das janelas do oitavo andar, olhando a
se de urina, sempre bem-humorado, de riso franco, cidade esparran1ada pela imensa planície limitada ao
con tador de anedotas, amador teatral nas noites folga- longe pelos montes Guararapes, descobrindo alagados,
das. Contava-se que tivera um fracasso no começo da mocambos, ruelas, um casa] de noivos voando ao lado

192 193
de uma nuvem azulada, ela de buquê branco, ele de
palhinha; as árvores verdes e as águas, uma viúva que
se abria toda deitada na crista de uma onda, salgada,
mijando como uma baleia; os coqueiros e as areias, uma
freira de hábito cinzento levantado pelo vento, deixan-
do à mostra, no lugar do sexo, uma cruz sangrenta con-
tra um panorama de vitrais. E voltavam os noivos e
vamos casar os noivos com palavras em la tim:
burrorum, japarandape, feijão brancorum, biringote, 8
cocote, tacoca, loquim. Assim falava eu, o Zé de Bocório, Por favor, não invente nada; copie.
no número dois, capítulo zero, de casa velha, de capilai, SYLVIO RABELLO

de bombai, lá vai o noivo, a noiva vai.


A porteira do mundo - 100.jpg

Caminhava a guerra e eu com o meu mundo di-


vidido entre as atividades securitárias e a presença cada
vez mais chata de Julieta já não mais preocupada com
as missas dominicais, as confissões, as penitências, os
problemas de consciência, mergulhando, atolando-se no
mundo do sexo que eu lhe oferecia. Gania de raiva,
quando ficava regrada, porque não se contentava, nes-
sas ocasiões, em me fazer gozar, mas queria estar comi-
go, no gozo, tentando levar-me para seu mundo san-
grento, de odor acre. Nessas ocasiões vinha à superfície
toda a carga da constelação familiar, dos
desajustamentos, ela explodindo em impropérios, depois
de meia dúzia de palavrões trancando-se no quarto e
eu desaparecendo durante os cinco ou seis dias que d u-
ravam sua menstruação.
Mas o mundo inteiro estava menstruado. O san-
gue corria de todos os corpos, por todos os orifícios,

194
abertos peJas baias, as baionetas, as granadas, armas de as tiragens, os preços subiam, começou-se a falar em
tipos até então inimaginávcis. O Pequenino que nos go- quinta-coluna com mais insistência, o câmbio-negro im-
vernava, depois de namorar o fascismo e quase ser ví- perava, jovens se entusiasmavam com a possibilidade
tima dele no ridículo ataque integralista ao Palácio do da travessia do Atlântico para enfrentar os boches de
Catete, finalmente declarara guerra à Alemanha. Havia peixeira na mão.
mobilização, todos se assanhavam, as famosas senho- E vieram os americanos. Vieram transformando
ras cristãs entravam em mais uma cruzada democrática comple tam ente a vida d a cidade os salvad ores até en-
e arrebanhavam cobertores, travesseiros, a limentos en- tão omissos, com s uas faces corad as, seus enlatados,
latados, promoviam chás, espetáculos teatrais, bailes, seus chicletes, o dólar, esparramando dinheiro, explo-
tudo em benefício, eu não sabia como, daqueles que rados pela sabedoria popular, mas com uma usina que
iriam morrer nos campos da Itália, sendo eu, apenas, nada conseguiria abalar. Desembarcavam no Recife em
um espectador, com a min ha carteira de reservista de navios e aviões, ocupavam as melhores residências, es-
terceira categoria cagando para todo aquele patriotis- palhavam-se pelos bares, os bons e os da zona, numa
mo de opereta. O que me doía eram os massacres aos algaravia incompreensível, como seres de outros pla-
judeus, as crianças abandonadas, as populações civis netas, fazendo-se entender por gestos quando queriam
A porteira do mundo - 101.jpg

dizimadas pelas bombas, os soldados enganados, de um uma cerveja, um gim, um par de sapatos, uma boceta,
lado pelos ideais nazistas e, do outro, pela caricatura distribuindo cigarros Luck Strike, apalpando os seios de
de uma democracia que perrnitira o massacre do povo senhoritas em plena via pública, levando e dando bo-
espanhol. Quanto às senhoras cr istãs, em vez de esta- fetadas, tudo muito esportivamente, sim senhores, da
rem em casa trepando tranqüilamente com os seus só- maneira mais sad ia e infantil, sim senhoras, em bebe-
brios maridos, amamentando os filhos ou preparando a deiras dionisíacas, dando notas de dólares a engraxates
comida, entregavam-se com uma espécie de furor e garçons, desfilando em grupos, nunca isolados, as pa-
uterino a comitês de não sei quantas designações, tudo tentes superiores cortando as r uas, em disparada, em
à maneira de um longo e permanente Natal das Crian- jipes e jipões onde eram lidos, claramente: Navy, Army,
ças Pobres. Air Force e as célebres iniciais U.S.A. Os conflitos eram
Na América Latina Seguros de Vida as opiniões diários na zona das prostitutas, os gringos querendo lu-
eram, na maioria, favoráveis aos aliados, mas dois o u tar de soco e os malandros brasileiros valendo-se da
três torciam pela Alemanha, muito menos por concor- efetividade maior duma boa peixeira vazada dos dois
darem com as idéias nazistas do qúe peJa admiração lados para ver a cor dos seus intestinos, se a sua merda
ao poderio germânico, numa guerra relâmpago onde fedia mais ou menos que a nossa. No refúgio d e uma
eles pareciam engolir o m undo em dois tempos. das principais avenidas da cidade construíram um
Cebolinha era um deles, gerrnanófilo exaltado, apos- sólido barracão onde, no alto d a porta, lia-se a palavra
tando em batalhas, em números de m ortes e baixas, na USO, cuja tradução significava um cabaré segregacio-
terra, no mar e no ar, sempre com um mapa que retira- nista, freqüentado pelos bravos so.ldados americanos e
va do bolso interno do paletó e, desdobrando-o numa moças brasileir as. Em bom português, um açougue de
das mesas, desenvolvia toda uma estratégia sábia. As carne humana feminina para a necessidade copulativa
muralhas democráticas caíam, os jornais aumentavam dos heróis louros. Servia-se coca-cola, oficialmente, mas

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o álcool corria solto, enquanto os pares dançavam, ao durante o orgasmo, juntava-me a um grupo onde en-
som duma daquelas vitrolas coloridas, músicas exclu- travam estudantes e funcionários públicos, destinado a
sivamente americanas. Multiplicaram-se as casas de en- provocar brigas com os americanos. Reuníamo-nos num
contros, pequenos apartamentos, vivendas aparentemen- bar da zona do Recife, o Texas, pedíamos cerveja e es-
te modestas mas providas de tudo, onde arrancavam perávamos que os gringos aparecessem. Então os pro-
os tampos das brasileiras, indiferentes ao preconceito vocávamos, eles treinados na arte da guerra, porém de-
latino da virgindade. Nunca se viu tanto defloramento sarmados, valendo-se, apenas, dos punhos, enquanto
na face da terra, o sangue dos himens rasgados dando usávamos, com alegria desleal, pés de cadeiras e socos-
para regar canteiros, jardins públicos e privados, hor- ingleses, para espatifá-los mesmo. Tudo muito rápido,
tas de aliaces e toma tes. Nunca nasceram tantas crian- à luz das lâmpadas a álcool, a trás das cortinas pretas
ças louras na região, de paternidade ignorada, que os que não permitiam vazar a claridade, fugíamos pelos
louros se revezavam e quem podia distinguir um .fundos quando nossa sentinela bradava: "Ai vem uma
dolicocéfalo vestido de branco ou cáqui para saber se patrulha!", o exército am ericano, por depoimento do
se chamava John, Srnith, William, Jack? Nus, então, no Gordo, dono do bar, pagando as despesas das bebidas
escuro, era todo o exército de ocupação pela vara de e do quebra-quebra. Mas essa técnica logo ficou manjada
A porteira do mundo - 102.jpg

um só deles. Mas as mulheres prenhes recebiam dóla- e recorremos, então, a outros meios. Procurávamos uma
res, geladeiras, eletrolas, bugigangas, bugigangas, bu- puta com blenorragia e nos braços dela jogávamos o
gigangas, abafando a consciência dos pais e os escrú- primeiro americano bêbado que encontrávamos: ou uma
pulos das mães. Dentro de poucos meses todo o mundo que julgávamos sifilitica; ou outra que o depenasse, dei-
falava inglês: putas e engraxates, caixeiros de lojas e xando-o de cuecas, ridículo, encurralado, de lá saindo
normalistas, varredores de rua e barmans da zona por- para a prisão no lbura. Mas nada havia que os conti-
tuária, um inglês meio arrevesado mas compreensível, vesse, continuavam mandando na cidade, em todas as
possibilitando uma maior comunhão no pedaço de ter- ruas, em todos os recantos, enquanto os oficiais fediam
ra que servia de trampolim para a morte nas areias da as senhoras cristãs da alta-roda, homenageados por clu-
África, para sempre perdidas as vulvas e esquecidos os bes, presentes a qualquer festividade pública. Era justo:
seios brasileiros, tostados e apodrecidos os bagos ame- o mundo estava em perigo e eles representavam os an-
ricanos. A cidade entrou em black-out e os assaltos se jos salvadores. Tínhamos de nos contentar com a alta
multiplicaram, as ruas varridas por patrulhas nacionais do custo de vida e com os desmandos de qualquer na-
e americanas, a partir das sete da noite todos se reco- tureza.
lhiam para jantar e cochilar à luz das velas, só havia Numa noite inexplicavelmente fraca, de lua nova,
vida mesmo na sede do USO, na zona do cais do por- na zona do Recife, eu andava sozinho, à procura do
to e na do Pina. As noites do Recife destinavam-se a grupo, quando ouvi, para os lados do Texas, um som
cóp ulas em prostitutas pagas em dólares, a de homem discursando, a calçada já apinhada de gen-
defloramentos pagos em bugigangas, a m ortes por rai- te, desrespeitadas as regras do black-out. Aproximei-me,
va ou falta de pagamento. varei a pequena multidão para avistar, trepado numa
Quando eu deixava Julieta, já enjoado do seu das mesas, LL, um copo de cerveja na mão, a outra
cheiro vaginal e das mesmas palavras que ela repetia gesticulando para um grupo de americanos. Falava em

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inglês' e eles, apenas, sorriam. Contive o desejo de ir ao - Sabe do que me acusam? - Fez uma pausa e
seu encontro para ver no q ue dava aquilo. Vozes parti- quase gritou - De nazista!
am dos espectadores: Riu de maneira seca, foi acometido de outro aces-
- Fala português! so de tosse, levou ambas as m ãos ao tórax e, com raiva,
- Eu quero saber o que é! jogou o cigarro fora.
- Fala que a gente entenda! - Porra! Tudo me dói. Costas e peito.
LL fez uma pausa, bebeu o resto da cerveja, jo- O suor porejava em sua testa, a camisa estava co-
gou o copo vazio contra a parede e voltou-se para os lada ao corpo, as mãos trêmulas, os olhos um pouco
espectadores.
desvairados atrás das lentes grossas. Peguei no seu pul-
-Estou dizendo que esses americanos são uns fi- so: queimava de febre.
lhos da puta! Não se enganem. Estamos mais próximos
-Você está doente! - exclamei.
de quem? Dos russos? Não! De quem, então? Dos ale-
LL recostou-se na grade, num grande cansaço.
mães! Prefiro um alemão a dez sacanas desses! Vamos
lutar, meus amigos, vamos sabotar esses merdas, va- - É. Acho que estou.
mos deixar que os alemães tomem conta do nosso con- - Então precisa dum médico.
A porteira do mundo - 103.jpg

tinente. Tudo é preferível a nos entregarmos a esses de- Ele me deu uma banana sonora, de estalo:
generados. Que faremos depois? Depois virão os russos - Tá!, seu sacana. Preciso é dum trago.
e nos livrarão dos alemães. Mas antes temos de nos li- Dei-lhe as costas sem ligar aos seus desaforos, aos
vrar desses aqui! seus gritos que culminaram, ouvi de longe, em mais
Uma patrulha já vinha chegando, dispersando tosse, sempre seca, angustiante. O delegado, a quem
todo o mundo a porradas, nem sequer pude chegar jun- procurei, não me deu a mínima. Fui correndo à casa do
to de LL que foi arrastado e jogado no tintureiro. Pro- Dr. Leão de Alencar, estávamos num domingo, o médi-
curei vê-lo naquela noite, mas o delegado não me deu co não se fez de rogado, foi só o tempo de agarrar a
satisfações e mandou que voltasse no dia seguinte. Vol- maletinha e tomarmos seu velho carro, a banheira, como
tei, para esperar mais de três horas, até que consegui o chamávamos. A custo, o delegado permitiu que LL
conversar com ele através das grades da cela imunda fosse transferido para um gabinete onde, num sofá, po-
onde o haviam jogado. deria ser auscul tado com mais facüidade. Pelo exame
- Que besteira é essa, seu coisa? - perguntei-lhe. minucioso e pela cara do Dr. Leão compreendi logo que
Ele não respondeu logo, impedido por um acesso ele não andava muito bem das pernas, virado e revira-
de tosse que o tornou ainda mais vermelho, os óculos do em todos os sentidos, apalpado, respire forte, dói
escorregando para a ponta do nariz. Quando serenou, aqui, dói acolá, tussa, sente-se, deite-se de bruços, de
conseguiu dizer, ainda de voz fraca: costas, levante-se, ande, junte os pés, feche os olhos,
-Essa raça vai nos foder. vá, repouse.
- E você é palmatória do mundo? - indaguei. Dr. Leão guardou os instrumentos com muito cui-
LL enxugou o suor da testa com as costas da mão, dado, depois pegou-me pelo braço e levou-me para um
pediu-me um cigarro, ainda tossiu um pouco, esperei canto da janela.
que serenasse. Falou mais tranqüilo. - Pneumonia dupla - d isse.

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LL não tirava os olhos de nós dois, quis levan- noite, começou o delírio. Sentado à s ua cabeceira,
tar-se, mas o médico foi ao seu encontro, impedindo- olhando o rosto vermelho e con gestionado, o suor cor-
o, justamente no instante em que entrava no gabinete rendo pela car a, os ralos cabelos e o fino bigode bran-
um m ajor amulatado, as bochechas parecidas a quar- co, eu o sabia perdido. Não entendia a maior parte do
tos de porco descarnados. O médico foi incisivo: que dizia, sério, chorando, num monólogo de espasmos,
- Esse senhor precisa ser removido para um hos- cuspido, de lembranças:
pital. - ... a família .. . é . . . a família ... em volta da
Para meu espanto o major mostrou-se de uma mesa. . . os campos são verdes. . . jogam uma merda
gentileza extrema, alegando, porém, que só poderia ser dum jogo sem sentido... abre as coxas... os cabelos
internado no Hospital da Polícia Militar, cuidado por verdes. . . sai ... sai ... sai ... só o que vale é o Parti-
médicos militares que ratificariam ou não o diagnósti- do . . . nãoooooo!. .. cavo com as unhas... e u sei. .. eu
co do Dr. Leão. E decorreu a manhã, LL tossindo de sei porque estou chorando... é que ela tem o mesmo
fazer dó, arrebentando os pulmões, de vez em quando nome .. . que merda de vida . . . merda ... merda. . .
soltando um palavrão ou me mandando à merda quan- merda... merda ... vôo e caio ... caio e saio voando.. .
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do eu lhe recusava um cigarro. Ao ser removido, de- não! Não me mandem fazer isto... agora está frio.. .
pois do meio-dia, senti-me na obrigação de avisar à fa- frio e quente. . . toda essa água sai do meu corpo. . .
mília. Recebeu- me sua mulher, de quem es tava você não dá um jeito nisso, seu fresco? ... mande tudo
separado há anos, dando-me a impressão de ter a cara à puta que os pariu... que Deus salve a América.. .
caiada, lábios pintados da cor de sangue, sobrancelhas mas que vá tudo tomar no cu... é o mesmo nome... o
raspadas e traçadas a lápis preto. Foi tão indiferente mesmo... eu não suporto... trepei com o nome.. .
como se se tratasse de um desconhecido, prometendo aiiiiii!. .. uma garra . . . me tirem desse poço.. . juro
aparecer no fim da tarde. Consegui licença dos pode- que lhe mato se não me tirar... lá-rá-lá ... lá-rá-lá-
res militares e fiquei com LL, enquanto a noite chega- rá ... quando eu cantava ... ela parava ... ficava segu-
va e ele piorava, picado de injeções, as costas queima- rando os seios... tudo perdido ... lá-rá-lá . . .
das de cataplasmas de linhaça, a tosse abalando as Calou-se, aspirou o ar profundamente, gem eu e
paredes do quarto. Os filhos chegaram, demoraram voltou a balbuciar palavras sem sentido, uma ou outra
meia hora e pretextaram ocupações inadiáveis, infor- apenas compreensível, às vezes nem isto, metade da
mando que a mãe, repentinamente, fora acometida de palavra. Dava-me a impressão, aqui e ali, de estar re-
uma gripe violenta. Então a noite desceu de todo, o zando, movendo os lábios, mas logo uma "puta" ou
quarto quase em escuridão, apenas uma fraca lâmpa- uma "merda" me diziam o contrário. Deixei-o por um
da de cabeceira, as jan elas de grade cerradas por corti- instante para ir à privada e, no longo corredor, avistei,
nas pretas, não fosse algum avião nazista avistar aquela no fim, um rato enorme, parecia um timbu, indo e vin-
pequena luz na planície entre o mar e as montanhas, do ao longo da parede, no {arejamento, em pequenas
grandes sacanas. A tosse aumentava, a febre subia, a corridas, equilibrando-se nas patas traseiras como se
respiração de LL era curta e angustiada, enquanto eu quisesse subir. Logo desinteressei-me do jogo, entrea-
tirava dos bolsos bolachas de água-e-sal para enganar bri uma das cortinas para receber um pouco de ar e
a fome, bebendo a água morna da torneira. Dentro da avistei, para os lados do m ar, o horizonte que se tingia

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levemente de róseo. O rato passou, em disparada, ren- em frente ao hospital, p assarinhos procuravam alimen-
te aos meus pés. Acompanhei, com os olhos, sua corri- to na grama e borboletas se agitavam anunciando o sol.
da e vi que entrava no qua rto de LL. Apressei-me, en- Ande i a té a pensão p elas ruas que se povoavam aos
tão, para a fugentá-lo, m as antes de chegar à po rta ele poucos, na continuidade, na luta, nos pensamentos, na
voltava, assustando-se com as minhas pernas, dando sujeira, na po uca alegria do mundo. Antes que o sono
urna volta sobre o próprio corpo, batendo na parede, me vencesse consegui uma ligação telefônica com o ir-
entontecendo-se, correndo ao longo do corredor, desa- mão de LL e fiz o anúncio, desligando no "Obrigado"
parecendo, afinal, em alg um buraco para mim invisí- que ficou suspenso no ar. Deitei-m e e dormi, sem so-
vel. nhos, par a despertar horas depois, perdido o horário
Passei a mão nos olhos pesados de sono e em - de trabalho, zanzando o resto do dia, somente saí ao
purrei a porta de vaivém, evitando que uma folha ba- cair da noi te quando a terra já deveria ter guardad o o
tesse na o utra. Com o um choque, a primeira coisa que velho e perdido LL. Ao pó, bich ão! Tudo confiscado
me chamou a a tenção foi o silêncio, lâmina de nava- virtualmente, com taxas e emolumentos, tributos, ou-
lha afiada, frio, mas a princípio nada associei a ele, di- tras vidas se m ovimentariam em torno da sua extinta,
rigindo-me, antes, à janela e abrindo, de vez, a pesada talvez eu o reencontrasse, um dia, numa folha de alfa-
A porteira do mundo - 105.jpg

cortina preta, que já era mais dia que noite. Então com- ce ou num pequeno grão de p ólen esmagado entre os
preendi o silêncio. Voltei-me, caminhei para a cama de dedos, numa gota d 'água, num fru to, não m e admira-
LL e olhei-o: estava morto, o braço direito para fora ria se, alguma vez, abrindo um m amão, m e dep arasse
da cama, o esquerdo apoiado à pa rede branca, a cabe- com os seus óculos de aros de tartaruga e, nas lentes, a
ça p ara trás e o q ueixo apontado para o alto, os olhos imagem do seu nariz carnudo, vermelh o, brilhante, até
meio entreabertos, opacos, grávidas da morte. Toquei mesmo seria natural que, através da voz esganiçada de
a pêra da campainha e ainda esbocei um gesto p ara Greta Garbo, num cinema de subú rbio, para espanto e
endireitá-lo, m as recuei a tempo. Que importava sua gargal hadas d os espec ta dores, e u o ouvisse gri tar:
postura, se se fora? Que importava o braço se não mais "Borba velho, vai tomar no cu"!
sentia a posição incômoda ou a mão espalmada na p a- Sempre havia essas in termitências: um aconteci-
rede se o sang ue não fluía? Que impo rtância haveria mento desumano pegava-me de sopetão e, em seg ui-
na p erna meio curvada se a cãibra não chegaria? Nem da, eu voltava às coisas corriqueiras, no caso América
sequer valeria a pena tocá-lo para sentir o gelo q ue des- Latina Seguros de Vida e Julieta, no cotidiano, dias e
ceria do seu pólo, a linha do equador já desaparecida dias esq uecido da minha cond ição d e ser al ad o,
n a di visão d o seu hemisfério, todas as coordenadas inv ulgar, disfarçadamente p asseando en tre os homens,
subvertidas, nada de signos, trópicos, atmosfera, líqui- tentando uma fuga que sabia impossível, não tinha li-
d os, carnosid ades, tuta no, sem en te gom osa, luas e vre-arbítrio, tudo m e era comandado, bastava descer a
asteróides. favor da Maré, nada de espanto com as coisas de es-
O enfermeiro entrou com ca ra de sono e eu m e panto.
afastei, caminhando pelo corredor, ganhando o pátio Tanto me fazia voar nos céus noturnos do Recife
depois de passar p ela sentinela friorenta, uma leve ara- e ouvir as vozes transcendentais como aceitar o convi-
gem agitava as árvores e as roseiras do pequeno jardim te do Dr. Leão para comparecer a uma reunião, por

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exemplo, do grupo Anuzntes do Teatro, especialmente fun- mobilizando para as estréias, sempre de gala, o que ha-
dado para impor de maneira duvidosa, a uma platéia via de mais alto nos meios rotarianos, bancários e
viciada em chanchadas, as obras-primas da dramaturgia comerciais da cidade: os patrões. Embora o trabalho ar-
universal. O grupo era dirigido por uma figura de pro- tístico me interessasse eu sentia que não estávamos no
jeção na vida social, musical e teatral da cidade: caminho certo para um espetácul.o nordestino e vez por
Valderedo d' Almeida, homem maneiroso, desempe- outra tinha discussões com Valderedo, publicando arti-
nhando várias funções ao mesmo tempo. Era autor, ator, gos em suplementos literários e revistas de estudantes.
compositor, ex-médico, ex-advogado, jornalista, confe- Julieta, a princípio, atraída pelo brilho e posição
rencista, membro da Academia Pernambucana de Le- dos componentes do Amantes do Teatro, acompanhava-
tras. Havia lançado o grupo numa festa da Sodedade me aos ensaios e às noitadas, mas depois passou a dar
de Medicina, e a partir de então não parou mais, com desculpas, preferindo ficar em casa, e eu só a via em
um repertório de sabor bolorento, mas com intérpretes fins de semana, mesmo assim encontrando-a fria, dis-
de inegáveis qualidades, misturando Robert de Flers, tante, sem vibrar como devia com as carícias. Certos
Sutton Vane, Oscar Wilde e Kistemaekers. E era preci- detalhes não me escapavam: alguma coisa no seu olhar,
samente para outro Kistemaekers que me convidavam, uma certa rispidez, o preparo do enxoval abandonado,
A porteira do mundo - 106.jpg

para viver um príncipe viciado em drogas, um melo- cochichos misteriosos com a irmã rechonchuda. Mas eu
drama muito ao gosto do fin du siecle. estava por tudo e não a interrogava, que o fastio por
E lá entrei eu, com minhas qualidades histriônicas, ela também me assaltava. As preocupações durante o
logo me aliando aos vários elementos do grupo, pas- dia com o dinheiro devido à América Latina e à noite
sando a uma vida até então desconhecida, onde se cor- com os ensaios levavam meus pensamentos para ou-
tejavam muito as figuras destacadas da velha socieda- tras zonas. Uma noite, porém, Valderedo resolveu não
de pernambucana e praticava-se arte teatral com fazer ensaio em homenagem à morte da avó de um dos
finalidades filantrópicas, os atores muito mais instinti- elementos do grupo e eu rumei para a casa de Julieta,
vos e necessitados de exibição do que mesmo conven- recebido pela cara desconcertada da irmã gordinha que,
cidos da importância do teatro. Embora eu apreciasse a depois de gaguejar, afirmou num triunfo:
versatilidade de Valderedo e, pessoalmente, me tomasse - Foi visitar uma colega.
de simpatia por ele, indo até à amizade, não me . era Não me soube dizer onde nem de que colega se
difícil reconhecer sua cultura horizontal, embora brilhan- tratava. Farejei alguma coisa de anormal e, despedin-
te, às vezes. Com ele transformei-me num ator e entrei do-me, fingi ir embora para postar-me, escondido, em-
pelo caminho das traduções com uma peça de Somerset baixo do oitizeiro da esquina, vendo os minutos passar
Maugham, Oriente e Ocidente, onde representamos in- e formar uma, duas, três horas, as pernas me doíam, a
gleses à maneira nordestina, metidos em nossos ternos boca amarga dos cigarros, imaginando mil e uma coi-
de brim branco. De cada peça, o grupo dava seis, oito sas, misturando-se em mim o desejo de perdê-la e a
representações, e já se assanhava todo para a escolha nostalgia das suas alvas coxas muito lisas, das suas ná-
de um novo original, discutindo-se a distribuição, os degas redondas, não tirava os olhos da casa com as ja-
cenários geralmente de mau gosto, os trajes, tudo nelas da frente fechadas e sem luz, quando um carro
dentro de um sentido econômico dos mais severos e descia a ponte e ralentava a marcha Jogo eu pensava

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que poderia ser ela, corneando-me. E realmente Ai, ai, ai,
corneava-me, foi o que constatei quando o jipão da Ma- ai, Ju1ieta,
rinha de Guerra dos Estados Unidos parou defronte do Tua mãe toca trombone
portão, um gringo alto, fardado, abandonando a dire- e teu pai toca punheta.
ção para, rodeando o carro, abrir-lhe, galantemente, a
porta. De onde eu estava podia vê-los no portão, muito Ela compreendeu que tudo andava mal. Fitou-me
juntos, com certeza as mãos ainda trabalhavam, tive com medo, tentando desprender-se, mas segurei-a com
ímpetos de ir ao encontro deles, mas uma apatia, uma força, já então dando ao meu tom de voz uma nota de
lassidão, uma covardia impediam-me de dar os passos. ameaça:
Vi quando o galego despediu-se de vez, beijando-a na -Quem era aquele gringo de ontem à noite?
boca com a pose de uma cena de cinema, tomando o Julieta sentou-se no parapeito que separava o ter-
jipão e passando por mim em disparada. Ainda fiquei raço do jardim, entrelaçou as mãos, descansando-as no
parado algum tempo, depois pus-me a caminhar, livra- regaço, baixou a cabeça. Assim ficamos, eu de pé, à es-
va-me dela mas sentia um amargor de macho derrota- pera de que rompesse o silêncio. Da sala de jantar gri-
do, principalmente porque fora eu quem a iniciara nos taram:
A porteira do mundo - 107.jpg

campos do amor, quebrado sua resistência, ensinado- - A ceia está na mesa!


lhe prazeres. Ela se levantou e desceu a pequena escada em di-
Quem faltou ao ensaio no dia seguinte fui eu, para reção ao jardim. Novamente eu a acompanhei, já sau-
desespero de Valderedo, a quem comuniquei a impos- doso das suas carnes que me enfastiavam em certas noi-
sibilidade de comparecimento por telefone. Cheguei tes, entrando na sombra das mangueiras, nossos rostos
cedo à casa de Julieta, informaram-me que ainda esta- apenas manchas. Julieta recostou-se contra um tronco
va no banho, a mesa já posta, todos me olhando um e, meio de lado, falou:
pouco de banda. Finalmente, ela apareceu, emperiqui- - É um O'Rourke.
tada, rescendendo a perfume bom e sua cara tinha mais -Quem diabo é um O'Rourke?- bradei.
de aborrecimento que de surpresa. Ela não me respondeu logo, mas quando falou
-Por aqui?- foi o que achou de dizer. havia uma nota de tristeza em sua voz:
-Não posso? - perguntei-lhe. - Enquanto você estava n os ensaios eu estava no
Ela me deu as costas e marchou para o terraço, USO. Foi lá que o conheci.
eu atrás, olhando seu traseiro bainboleante. Lá, re- Novamente calou-se, mas eu também me plantei
costou-se nas ripas que amparavam uma trepadeira, e fiquei à espera da sua história. Já me parecia a de
acintosamente desfolhando uma das flores, olhando o uma desconhecida ou a de uma conhecida de ocasião
vazio. Peguei-a pelo braço, fazendo-a voltar-se para desfiando contos.
mim. Finalmente, ela retomou a palavra:
- Ai!- gemeu - Você está me machucando. - A princípio fui lá por curiosidade. Não era o
-E puta "se machuca?- perguntei, dando à voz o que se dizia, ao contrário. Tudo muito bem comporta-
tom mais ingênuo deste mundo. E trauteei debochada- do, só que quem queria fazer programa, fazia. Eu so-
mente: mente dançava e bebia coca-cola, mastigava chiclete,

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repelia uma tentativa mais íntima. Até que Donald apa- - Esto u grávida.
receu. Capitão Donald O'Rourke. O'Rourke como eu, Esperou uma reação que não houve. Continuou,
descendente de irlandeses. Você não sabe o que é isso portanto, a caminhada, subiu os degraus de cimento e
de família, não sabe o que é ter sido rico e ficar como desapareceu dentro da casa. Nada me ocorria a fazer,
ficamos, cada um trabalhando para seu sustento, viven- embora m eu desejo fosse realizar alg uma coisa insólita.
do de lembranças. Juro por Deus que não queria enga- Mas nada fiz, senão caminhar em sentido oposto ao
nar você, mas Donald é rico, e eu posso voltar a ter dela, abrindo o portão de ferro e ganhando a rua. Chu-
toalhas de linho, sedas, perfumes franceses, louça de viscava um pouco, notei, olhando para os lados da ponte
porcelana, reviver a riqueza da família com um homem da Mada lena, ouvindo o ruido do bonde na descida.
do mesm o tronco. Você entende, não entende? Fiz um sinal para o motorneiro que diminuiu a marcha
Pus, somente, a mão em seu ombro, pressionan- e, num salto, agarrando-me ao balaústre, tomei o veí-
do-o levemente. culo. A chuva engrossava, desci a cortina de pano, co-
- Ele sabia da sua existência e todo o dia insistia loquei-me no centro do banco, sem desti no. Doíam-me
para que lhe contasse. Veja: ainda esto u com a nossa duas coisas: não haver tomado a iniciativa do rompi-
aliança. mento e não haver rasgado seu hímen, que ela sempre
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Retirou do dedo o aro de ouro que me foi esten- me recusara, para entregá-lo a um filho de uma puta
dido num gesto teatral. Tomei-o na palma da mão, fe- de um irlandês somente por ter um dos seus sobreno-
chei-a, retirei o meu, juntei os dois e coloquei-os no bol- mes, aureolado pela possibilidade quase fatal da morte.
so. Falei para ela: Divagava no atrito das rodas com os trilhos, não seria
- Fica em paz, vaca. aquela uma noite de vôo, o mundo dirninuia e se li-
Ela não tomou conhecimento do insulto, mas eu mitava aos bigodes esfiapados do passageiro do banco
sentia que ainda tinha alguma coisa a dizer. Por isso, da frente, à farda azul do cobrador q ue recolhia o ní-
esperei, a té que se decidiu: quel, à tristeza sem fim de uma velha gorda, vestida de
- Ele vai partir para a África a qualquer momen- cinzento, dois bancos mais adiante. Dentro do bonde,
to. Pode não voltar, não pode? Está tentando conseguir nossa respiração, o compartimento estanque de cada um
licença para nos casarmos, mas também não sabe se vai de nós, a minha era uma dor de merda, nem sequer
conseguir, não é? De qualquer modo, já estamos liga- era dor, o que haveria no estômago do homem ou na
dos. cabeça da velha? Mas o bonde se comprimia, eu via
- Muito ligados? - indaguei. que ele se transformava, visivelmente, num brinquedo
Julieta ia responder quando um dos seus irmãos, de criança, pouco faltava para que fosse esmagado, de
o gordo e grande, com cara de cretino, chegou à beira ossos triturados, o fígado saindo pelo ânus e o coração
do terraço, gritando com toda a força dos seus pulmões, pelos olhos, um dos olhos, enquanto da minha boca
como se estivéssemos a léguas de distância: jorrariam todos os humores. Levantei a cortina d o
-A ceia está pronta! pano que me lembrava tantas espreguiçadeiras em tan-
Disse e deu-nos as costas. Julieta levantou-se, an- tas casas da família, agarrei-me ao balaústre com a mão
dou dois passos, parou e, sem se voltar para mim, anun- esquerda, a chuva fustigando-me a cara, inclinei o cor-
ciou: po para trás para compensar a inércia e saltei, com o

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gostava de fazer tantas vezes, o bonde em movimento. camelô, não somente para comprar suas drogas, mas
Mas o calçamento estava escorregadio com aquelas pri- para assistir à sua encenação. Já não estávamos mais
meiras chuvas, o salto do sapato do pé direito derra- na época da torre de marfim, quando prevalecia a con-
pou, caí de costas, rolei para o meio fio, bati com a cepção da arte pela arte, o artista não podendo ficar
boca no cimento e a tontura tomou-me. Lutei contra indiferente às aspirações d a humanidade, às lutas, ao
ela, sentindo o gosto do sangue e a água que me en- sofrimento. Não podia ficar fechado em sua arte, buri-
chia o ouvido, ao mesmo tempo experimentando uma lando palavras e publicando coisas eruditas, sem finali-
paz esquisita, de forma verde, assim como uma névoa dade. Sua função era despertar nacionalidades, lutar pe-
da boca da noite, pequenos sinos tocando suavemente, los oprimidos, amenizar o sofrimento, expondo-o sem
envolvendo-me, fazendo que me comprazesse naquela subterfúgios para que mais facilmente fossem encon-
postura, o bonde se perdendo ao longe, tilintando fu- trados os remédios. Marchávamos, com a inevitável der-
riosamente na cortina líquida. rota do nazi-fascismo, eu supunha, para um mundo
Eu era um sujeito bem comportado, trabalhando melhor. Processava-se, de qualquer modo, no Brasil,
durante o dia para amparar órfãos e viúvas e, à noite, uma modificação, sentia-se que o teatro estava desper-
para melhorar o teatro, mas não me sentia contente, tando, mas o que eu desejava era a descoberta do tea-
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achando que o espetáculo nordestino poderia ter seus tro ge nuin amente brasileiro, com assuntos ex-
próprios caminhos em vez de mostrar a uma platéia clusivamente nacionais que, bem tratados, tornar-se-iam
engravatada as cretinices de um Eugene Brieux e mes- universais. O campo era vasto e inexplorado. Os temas
mo o gosto duvidoso de uma peça de Mareei Pagnol, do teatro deveriam ser tirados daquilo que o povo com-
que ensaiávamos a todo o pano: fazz. Em fins de tarde, preendia e era capaz de discutir, devendo atuar com a
no gabinete de Valderedo, discutíamos esses pontos de exaltação do carnaval e do futebol. Eu pensava na his-
vista e eu me sentia cada vez mais afastado dele, preso tória de Maria Bonita, degolada às margens do São Fran-
como ele estava a uma educação artística que viera do cisco, dando sua vida pelo amor de uma das figuras
mundo das operetas e dos melodramas, repudiando um mais curiosas que já aparecera no nordeste. Os Antônios
Lorca e torcendo o nariz a tudo o que fosse tentativa Conselheiros esperavam seu dramaturgo, todo o nor-
jovem de procurar novos meios para o teatro do nor- deste era um drama de primeira grandeza, com a tra-
deste. Mas tudo isto não impedia que gostássemos um gédia das secas, a escravidão do açúcar e o canga-
do outro e que, certo dia, me convidasse para uma pa- ceirismo. Era o povo sofrendo, sendo explorado, era o
lestra no Rotary Clube, a que pertencia. Meditei muito povo lutando. Era poesia viva explodindo pela boca dos
sobre o q ue haveria de dizer aos componentes das clas- cantadores de ABC das figuras heróicas do sertão, das
ses dirigentes, mas certas palavras de Lorca estavam figuras lendárias de Manuel Iz idoro, de Zumbi dos
gravadas em mim e Lorca estava com a razão. O teatro Palmares, de Lampião. Eu me acostumara a ver, nas
era uma arte popular, com o seu caráter de coletividade, feiras de domingos, no interior, os cegos cantando os
arte de um homem para a massa, devendo ser dirigido feitos d os homens que lutavam, amavam, sofriam,
ao povo, devendo existir em função do povo, cujo ins- morriam tragicamente, construindo poemas com o
tinto do espetáculo é muito desenvolvido. Sempre me sangue e com a vida e via como o povo rodeava os
admirava a aglomeração que se fa zia em volta dum cegos cantadores, vibrando e decorando os versos. O

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romance já se preocupara com esses problemas, mas os tinha de despertar consciências, produzir novos anseios
dramaturgos procuravam seus assuntos em fontes dife- e novos impulsos.
rentes e os Amantes do Teatro se babavam de gozo dian- O tema de minha palestra foi: Teatro, Arte do Povo,
te de um Musset. Não se interessavam em sacudir o lida para magnatas, plutocratas, alta classe-média, mé-
povo, e as histórias heróicas, passionais, líricas, de pro- dicos e advogados bem acomodados, engenheiros, co-
testo dormiam esperando o poeta que fosse despertá- merciantes pançudos: lida enquanto eles devoravam o
las e apresentá-las sobretudo em espetáculos ao ar li- almoço, com ruído de pratos e talheres, conversas de
vre. dois a dois, risadas, arrotos disfarçados. Quando termi-
Os cavalos corriam em disparada pelas caatingas nei minha arenga e me sentei diante do prato frio de
do nordeste, as noites de lua cheia iluminavam uma filé com purê de batatas, surgiram, como era de praxe,
cruz de estrada, os cangaceiros eram bandidos e heróis, os comentários. E quem primeiro tomou a palavra foi
a seca queimava a terra e devorava tudo, os homens Valderedo d' Almeida, para elogiar minha nobre inteli-
desciam para a zona do açúcar, um caboclo se levanta- gência, a palestra bem interessante e fazer o elogio dos
va, matava um ricaço, roubava uma moça, morria lu- Amantes do Teatro. Mas depois do intróito discordou com
tando, os cantadores improvisavam cantigas, os cegos veemência: o teatro não era arte do povo, o teatro era,
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de feira cantavam as estórias, o povo ouvia tudo com a quando muito, educativo, as grandes obras teatrais eram
alma nos olhos e no coração. No nordeste aquilo podia feitas para a elite e por aí foi, apoiado em seguida por
acontecer a qualquer um e o povo vibrava, sentia a tra- um comendador rotundo e corado: "Em assunto de arte
gédia que podia ser a de Manuel seu primo, a de José o povo é que tem de vir a ela, sendo para isto necessá-
seu irmão, a de Sebastião seu filho, sabia que era a sua ria a educação, diversamente do que julga o orador, para
própria tragédia, compreendia o que via e o que ouvia, quem a arte deve ser feita para a gente inculta". Lem-
se interessava pelo assunto porque era a sua própria bra que, no seu tempo de menino, existiam representa-
história. E os Amantes do Teatro se extasiavam com ções teatrais nos colégios, que aos poucos educavam as
Alejandro Casona, andando à procura de argumentos crianças para essa forma de arte. Enquanto os dois fa-
estrangeiros e tendo dentro de casa os maiores assun- lavam eu quase vomitava sobre a alva toalha de linho
tos, as grandes estórias, os dramas enormes, os espetá- o filé engolido às pressas, mas nessa impossibilidade
culos populares como o bumba-meu-boi e o mamulengo. p elo menos larguei um traque discreto, abafado, fedo-
Mais do que nunca eu tinha consciência de que o meu rento, impossível de ser localizado.
dever, se queria marchar no caminho do teatro, era des- A palestra marcou meu afastamento dos Amantes
pertar o povo, fazê-l.o sentir que era a origem e o fim, do Teatro e então minha vida tornou-se ainda mais bes-
que a arte dramática brasileira encontraria nele seu filão ta, no trabalho dos seguros e na ronda dos bares, en-
criador e que poderia dar ao nosso espetáculo um ca- fastiado de leitura, empanzinando-me de cinema, pe-
minho largo, real, universalizando esses motivos. Sen- gando prostitutas mais para conversar que para torneios
tia que nosso teatro vivia fechado nas casas de espetá- de cama. Uma vidinha rasteira de sobressaltos bancá-
culos, caro, inacessível ao bolso da maioria, precisando rios para tapar o buraco de minhas cavações nos cofres
de umas férias no campo, no pátio das fábricas, nas da América Latina, sempre com a esperança de liber-
feiras: precisava tomar ar, respirar a plenos pulmões: tar-me do pesadelo, os dias correndo. Para acordar,

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numa certa manhã, com uma dor de cabeça que não caguei-me". Começaram as escaras, as mijadas nos pa-
cedeu a comprimidos de aspirina, logo mais os intesti- pagaios, as defecações nas aparadeiras, os banhos quen-
nos liquefazendo-se em diarréias fedorentas, levando- tes onde um enfermeiro me arregaçava o prepúcio e
me a tonturas e náuseas, teimando em ficar de pé quan- me esfregava o cu. E o cão ladrando até o romper do
do todo o corpo reclamav a cama. Dr. Leão dia, a morte vindo, tudo se compücando com uma pneu-
examinou-me, intrigado, sem querer emitir um diagnós- monia que me lembrava a de LL, com o mesmo queimar
tico, terminando por exigir um exame de sangue quan- de pimenta das cataplasmas de linhaça, cheiro de
do cai de vez na cama da pensão, vendo o mundo gi- cânfora, éter, álcool, uma enfermeira cochichando para
rar e perder minha condição humana. outra além da porta de vaivém: "Ele não passa desta
- Tifo! - foi a exclamação do médico, invadindo noite" para, ao entrar, receber urna banana em câmara
o quarto onde eu queimava de febre, o papel da análi- lenta dos meus braços magros, curvando-se sobre mim
se na mão. - Tifo. E vai ser removido, agora mesmo, para ajeitar o lençol e eu tendo ainda forças para sentir
para o isolamento do Hospital do Centenário. seus seios duros. Antes de entrar no delírio recebi, por
Eu me sentia incapaz de avaliar as conseqüências intermédio do enfermeiro meu banhista, às gargalha-
daquela mazela, depois de sete dias de desamparo, en- das e indiferente à minha morte, um comunicado escri-
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tregue ao que desse e viesse. Recolheram-me numa tar- to a tinta roxa: "Aviso último - Missão e campanha es-
de de sol quente a uma cama que cheirava violenta- piritual - Atenção. Todos leiam por bondade esta
mente a desinfetante, num quarto branco, a única janela verdade do Apóstolo Católico, homem revelado e ins-
fechada por uma tela de arame, as enfermeiras e as ir- pirado por meio de Maria, esposo e pai. Quero levar ao
mãs de caridade picando-me com as primeiras injeções conhecimento de todos que vão aumentar a agonia e as
que deveriam amparar o coração, os rins, o baço, os dores mundiais e vão aumentar sem direito a um chá.
intestinos, o fígado, o pâncreas, o estômago, umas nas Os medicamentos vão envenenar e as injeções, aplica-
nádegas, o utras nos braços, ainda outras nas veias, a das, matar. Os únicos causadores são todos os padres,
dieta resumindo-se, exclusivamente, a suco de laranja e havendo três encarregados de tudo. O primeiro é o Pe.
água mineral. Assim seria melhor: a morte viria mais José Mendonça, da cidade de Gurinhém; o segundo é o
depressa, a carne desaparecendo do corpo, os ossos Pe. Jerônimo Pereira, da cidade de Fé Grande; o tercei-
apontando, nas noites de black-out ouvindo, de olhos ro é o Pe. Carmelo da Fonseca, da cidade de Mari, anti-
grudados no teto também branco, os uivos e os latidos ga Araca. Este é o pior. Há três anos e dez meses que
do cão de guarda. Que guardava aquela fera? - per- venho avisando em todos os hospitais, juntamente com
guntava a mim mesmo. A virgindade impenitente das um sobrinho meu, que diz ser católico, ele não duvida
irmãs de caridade e os ânus das enfermeiras; a morte e confirma que é doidice de quem diz saber ensinar o
dos outros doentes e a minha própria; os soros e os que se há de fazer para conhecer a verdade. O que há é
ungüentos, as injeções de morfina. Dentro da noite, mi- o grande mistério, mas o padre diz que sem ele não há
nha barba crescia, castanha, enquanto as faces afunda- luz por falta de azeite. Este é o final. Vai haver uma
vam e a febre era cada vez maior, a freira pincelando- guerra fria e mundial, sendo de merda. Quem tem cu
me a garganta e mandando que eu emitisse "Ah, se apronte para suportar tudo sem queixa prestar. Quem
ah, ah", para q ue eu lhe dissesse, em resposta: "Irmã, acreditar na verdade e mostrar esta a quem ou alguém

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se alivia por meio de Maria. Apóstolo e discípulo de andarei". Vi que era um profeta, de cajado, vaga sem e-
Maria e se u Filho, o Profeta Maior do Mundo, lhança com Tirésias. Desci a mão ao longo do ventre e
Mefibosete da Pedra". não encontrei meu pênis, a mão, em fo rma de cutelo,
Vi a vara vigilante e era toda de fogo, suspensa entrando no vale de urna greta, a mão esquerda procu-
sobre minha cabeça, enquanto me torcia para evitar que ro u um seio onde deveria estar um seio, mas seio não
sua ponta penetrasse no centro dos meus olhos, embo- havia, para mim não era estranha essa minha qualidade
ra não pudesse fugir da chuva de pedrarias que me fus- de hermafrodita, que alado era, metade dos deuses e
tigava os m embros inferiores, um rubi encastelando-se metade dos homens, tudo em mim dividido, talvez um
na linha divisória dos meus escrotos que cresciam, sem dia fosse santo e demônio. A mão esquerda continuava
dores, terminando por pipocar contra o muro dos ini- a explorar a bastarda, a cova das aves que ainda não
migos, extinguindo toda a malícia dos estranhos. Meus haviam aprendido a voar e cujo bico apenas desponta-
rins fortificaram-se corno urna cidade de pedra, enchen- va, levando-me a extravios, prostituições, fornicações,
do seus tanques de água cristalina própria para curar acasalamentos comigo mesmo, e u me bastava, mas os
todas as m azelas, menos as minhas, m azelas de alma e olhos da Fera seguiam todos os meus movimentos, por
corpo, enquanto trombetas silvestres anunciavam o de- mínimos que fossem, desfazendo pela milésima vez urna
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serto que se espalhava para os lados e para o alto, en- virgindade já gozada em outras ocasiões pelos amantes
golindo o céu, eu no topo das areias mornas colhendo das minhas idéias. Eu estava em confusão, mas não sen-
os frutos do Sol. Andava por urna terra de cogumelos, tia propriamente urna culpa, que assim fora feito e para
sempre com a imagem da Morte, abominado por cla- grandes pastoreias destinado, apenas tinha um vago
mores que partiam dos prevaricadores, mas não me la- pressentimento de que deveria continuar a manipular-
mentava, mesmo quando os leões queimaram as cida- m e para afastar a Cega, o Furor. Saiu um animal
des com os seus bafos de fogo, p orque uma pomba azul rastejante do meu covil, deslizou entre meus dedos, sua
pousava em meu ombro direito e eu sabia que, no fi- boca emitiu um sopro abrasador, formando urna nu-
nal, Ele não me deixaria tostado, porque de qualquer vem onde p equenas mulheres nuas voavam mais velo-
modo eu plantara urna vinha, embora de uvas azedas, zes que os gaviões de presa, cada uma em sua roda, a
mas isto não me transformaria num bastardo, qu e ain- roda mostrando em cada uma das faces olhos enormes
da restava a sombra de uma árvore frondosa para aco- que espiavam e viam até m esmo aquilo que eu, dentro
lher a minha mancha. E urna voz gritou: "Vê os vestí- de mim, não enxergava, somente sabendo que os m ales
gios de teus pés no vale, considera o ·q ue ali fizeste. És se transformavam em carvões ardentes e os bens em
como dromedária desatinada, que percorre os seus ca- tênues fogos-fátuos alimentados pelo fósforo de todos
minhos; como asna silvestre acostumada ao deserto que, os meus mortos, a começar por aqueles que tinham sido
abrasada no seu a petite, vai buscando com o faro aqui- torturados como cristãos-novos nos porões da inquisição
lo que deseja; ninguém a poderá deter; todos os que a pernambucana lá pelos anos da graça de mil e setecen-
buscam não se fatigarão; achá-la-ão nos seus mênstruos. tos. Para fugir a tudo encerrei-me dentro de mim m es-
Guarda o teu pé da nudez e a tua garganta da sede. mo, mas nã.o podia evitar os sons, somente as imagens,
Mas tu disseste: Perdi a esperança, de nenhuma m a- o que ouvia, ouvia: o chiado de uma frigideira, o arras-
neira o farei, porque amei os estranhos e atrás deles tar de cadeias, a mastigação das alimárias, o ruído da

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carne se abrindo com uma faca bem amolada, o assado vigilância para n ão cometer excessos, principalmente os
do pão, grãos de milho pipocando no fogo. E tudo era de alimentação, que sentia uma fome canina, jamais sa-
vermelho: sons e imagens; tudo era vermelho: obras, ciada. Veio o barbeiro, que me cortou as melenas e der-
águas, sol e lua, chuvas e orvalhos, frios e calores, gea- rubou minha barba. Ao olhar-me no espelho não pude
das, gelos e neves, noites e dias, luz e trevas, relâmpa- conter a gargalhada: assemelhava-me a um pelanco de
gos e nuvens, montes e outeiros, plantas e fontes, mons- pombo.
tros e aves, os filhos dos homens e os santos; uma Durante o dia Mãe Néa postava-se, vigilante, à
grande mão descendo sobre mim e pousando em mi- minha cabeceira, enquanto eu dormia, lia o Grand
nha fronte afastou todas as visões e eu me senti Meaulnes ou a Correspondência de Dostoiévski, conver-
distender quilômetros, refrescado, puro de corpo, de sava sobre coisas banais. À noite, sempre a mesma en-
volta. fermeira me tocava: Elda. Buliçosa, trêfega, meio sacana,
Quando abri os olhos reconheci as pessoas: Mãe provocando-me ereções quando me lavava o corpo a
Néa, a irmã mais velha, a enfermeira, todas me fitavam álcool, rindo da ereção mas limpando-me o membro
como a um milagre. Aos pés da cama, sorridente, o Dr. com carícias que me levavam à beira de um orgasmo.
Leão, sempre com o es tetoscópio. Deslocou-se em mi- Isto nas duas primeiras noites da convalescença, por-
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nha direção, do lado contrário às outras pessoas, bateu que na terceira, quando estávamos nos jogos do banho
levemente em meu ombro e falou: e da bolinagem ela, resolutamente, marchou para a por-
- Pulou uma fogueira, dessa você não morre. ta, fechou-a e veio para mim. Ergueu o vestido, desceu
Quase sem transição, voltando-se para a enfermei- as calças, eu deitado de costas, cavalgou-me no torno,
ra, prescreveu o regime alimentar, novos remédios, eu via todo o ato e admirava, sobretudo, sua bunda
reco.nstituintes, instruções. Mãe Néa continuava com a branca e bem feita subindo e descendo na minha vara.
mão pousada em minha testa, chorando, enquanto a Quando terminamos ela me enxugou cuidadosamente
irmã mais velha, um pouco afastada, sorria beatifica- e apressou-se a abrir a porta, enquanto eu arfava, o co-
mente pela minha volta ao mundo. Logo começaram as ração na boca, longe de empanar o prazer com o pen-
providências de ordem prática. Chamaram o enfermei- samento de um colapso, suava frio, a cópula dera na
ro que, em seus braços, me levou à banheira, eu fedia, fraqueza. Mas repetíamos o ato todas as noites, sempre
ele me lavou todo com um cuidado de pederasta e me na mesma posição, na mesma pressa, no mesmo gozo.
trouxe de volta a panos limpos e cheirosos. Perdera uns Aderaldo me visitou, oficialmente, em nome da
quinze quilos e a barba castanha, cerrada, me chegava América Latina, que pagava todas as despesas de hos-
aos peitos, os cabelos nazarenos dando-me uma cara pital e mais o salário correspondente aos quarenta dias
de beato, foi o que o espelho me mostrou. Depois, co- e quarenta noites que eu ali passara, além de férias para
mecei a comer com apetite, a beber caldos de galinha e recompor-me no interior.
gemas de ovo, franguinhos desfiados e purê de batatas, Numa tarde, despedi-me das paredes brancas e
peixe cozido e bifes grelhados. Vieram as visitas: fun- dos odores asséticos, distribuindo gratificações, abraços
cion ários da América La tina, camaradas das farras no- e sorrisos, Elda teve uma gratificação maior e fez uma
turnas, companheiros de pensão. Ainda teria de pas- cara triste, profissional. Amparado por Mãe Néa tomei
sar uma semana no hospital , retemperando-me, sob o carro que me levou à Estação Central, com destino a

220 221
Palmares, vendo ruas e árvores, acácias amarelas e paus
d'arco vermelhos, gente, gritos, buzinadas, outros odo-
res, renascido.

9
O amor começa na cabeça e acaba entre a.s pernas.
A cozinheira de Dirceu Nery
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Voltava eu aos velhos lugares, sem poder andar


direito por causa de uma maldita nevrite deixada pela
febre tifóide, durante os primeiros dias contentando-me
em contemplar o velho Una, deitado numa espreguiça-
deira, alimentando-me de instante em instante. Uma
coisa estranhei de imediato: o rio tornara-se mais es-
treito, não era mais aquela massa líquida que eu atra-
vessava nas madrugadas de neblina ou nas noites de
lua pelo prazer de estar separado do mundo. Ficava in-
trigado com a constatação, esquecido de que meus olhos
haviam crescido; olhos, mãos, pernas, cabeça, a visão
alargada, a imagem, apenas, gravada no fundo da me-
mória infantil. A visão do rio me trazia, vivo, Miguel
Pescador com suas risadas e suas intermináveis conver-
sas sobre peixes, assombrações, sua cara torcida nos
mergulhos, quando nos olhávamos no fundo, os pés
bailando na areia.

222
Mas era a casa, sobretudo, a casa da irmã mais passada. Mas as pessoas já não eram as mesmas em
velha, que me envolvia com as suas recordações: o ve- cara e corpo, em palavras, em interesse, como se cópias
lho sótão já desaparecido onde, outrora, cascavilháva- fossem daquelas que eu conhecera antes, cada uma en-
mos, eu e os sobrinhos, tantos objetos para nós miste- volvida na sua própria atmosfera, eu tentando deses-
riosos: hastes de guarda-chuvas, chapéus de senhoras peradamente captar o sentido antigo, em vão. E não
adornados de estranhas frutas artificiais vermelhas, somente as pessoas haviam mudado: também as casas,
marrafas, livros infantis com gravuras coloridas, com- com as su as cores e seus telhados, o jardim antigamen-
binações rendadas, porta-seios abandonados, um par de te meio agreste agora bem comportado em canteiros
botinas de mulher, um misterioso objeto arredondado, cada um de uma cor, ficus benjamin em forma de aves
curvo, terminando numa ponta, que ninguém sabia ex- ou animais domésticos, árvores tão podadas que mais
plicar o que era. Perambulava pelos quartos, recordan- pareciam de maqueta, pedras brancas formando de-
do acontecimentos ínfimos, travessuras da infância e senhos de mau gosto, o velho coreto derrubado, em seu
maldades da adolescência, vedada a sala da frente que lugar um tanque onde nadavam uma tartaruga e dois
se destinava ao consultório dentário do meu cunhado, pequenos jacarés. Tudo ~quilo modificado no mundo
o motor de pé, as brocas, o cheiro de novocaína e de do meu horizonte, que ainda não podia arriscar-me a
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iodo, a variedade de clientes da cidade e dos lugare- longas caminhadas, m as quando outros dias passaram
jos, mulheres com gritinhos histéricos, homens rosnan- e eu pude, enfim, com algum esforço, subir a ladeira
do de dor na extração de um molar renitente. O guar- do Alto do Lenhador, reencontrei a região perene, pelo
da-comidas era o mesmo, com a tela de arame, azulada, menos na aparência das pequenas casas e nas ruas
a chave sempre escondida em lugar inacessível às nos- esburacadas, no falatório das mulheres, no trabalho dos
sas mãos ladras de crianças, de nariz achatado contra homens. E afundando mais nos becos avistei algumas
a tela a contemplar os salames italianos, os queijos do putas penteando os cabelos, sentadas na calçada alta,
Reino, os brilhantes doces de goiaba, as compotas de putas desconhecidas, que as que por mim passaram já
caju. Olhava e reconhecia os móveis que restavam do deveriam estar em rumos outros, nenhuma heroína su-
fausto borbense, principalmente as encantadoras cadei- portaria por tanto tempo a mesma tarefa dura, repeti-
ras vienenses, de palhinha, cujo espaldar, em arco gra- da, insone. Eram e não eram as mesmas mulheres, E>
cioso, me prendia minutos em toda uma viagem de destino de uma tinha de ser o roteiro para o destino de
mãos e costas que p or ele passaram nos saraus da pri- todas: eram as mesmas prostitutas amigas, sim, pouco
meira década do século, corpos sepultados, lembranças ou muito usadas, risonhas ou tristes; as vulvas eram as
p erdidas, quando muito opacas naquela camada de mesmas, para o mesmo uso mecânico, ininterrupto; te-
anos. riam as mesmas conversas, os mesmos meneios, a mes-
Reconhecida a casa, varejadas suas dependências, ma técnica ingênua, acreditando-se sabidas, mulheres
aliando-me novamente ao rio, os dias me trouxeram da vida.
uma recuperação inesperada, ganhando cores e carnes Ainda de longe pude ver que o boteco de Guará
e, apoiado a uma bengala, já passeava no jardim públi- não sofrera alteração: a mesma casa de três portas pin:-
co, parando aqui e ali, sentando num banco, conver- tadas de azul forte contra as paredes brancas; e quando
sando com um conhecido, falando da minha doença me coloquei na do centro avistei-o no balcão, de cabeça

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baixa, grisalha, fazendo contas com um cotoco de lápis -Sempre o mesmo - respondeu. -56 que mais
num papel de embrulho. Estava parado no tempo, não velho. E mudou de cadência.
mudara, e eu me alegrei com aquilo, e em Guará vi - Mudou, como?
que a vida era boa. Entrei no bar e postei-me diante - Agora, é cantador de ciência.
dele que ainda continuou nas suas contas, depois er- Fingi saber o que era aquilo, enquanto el e me pro-
guendo a cabeça com indiferença, mas quando me viu metia a noitada com o cantador, já ia providenciar um
ficou um momento parado, como quem não quer acredi- camurim de água doce, convocar os amigos, as putas é
tar, para logo em seguida erguer os braços em forma que eram outras. Aleguei que ainda estava em conva-
de cruz e a cara abrir-se num sorriso largo, gritando, lescença, mas não houve como fugir da sedução. Dei-
finalmente: xou-me só para chamar um moleque, espalhar a notícia
- Eita, que hoje a merda faz boné! da minha volta, depois ficamos bebericando, a noite en-
Rodeou o balcão e caiu nos meus braços, apertan- trando e avançando, às oito minhas costas já doíam de
do-me com força, era mais baixo do que eu e o cheiro tantos abraços, os ouvidos latejando de tantos sons, um
da brilhantina do seu cabelo pixaim me sufocava. Afas- pouco bêbado, uma Maria qualquer monopolizava mi-
tou-me com as mãos em meus ombros, contemplando- nhas carícias, quando Relampinho apareceu, sem espa-
A porteira do mundo - 116.jpg

me, rindo, os olhos molhados, os meus também esta- lhafato, abraçou-me discretamente com um braço só, o
vam: aquela era uma cena de amizade. outro agarrado ao violão. Com a chegada do cantador
- Espalharam que você tinha morrido - disse. a conversa esmoreceu e sem nenhuma combinação ele
Sentei-me com algum esforço e procurei abrir mais começou a dedilhar o instrumento, de olhos fitos em
o sorriso, passando as costas da mão no nariz. mim.
- Estou aqui, Guará, vivo. - Está estranhando o toque?- indagou.
- É o que estou vendo, cabra de peia - falou, Concordei, com a cabeça.
sentando-se ao me u lado. Pôs a mão em minha perna e - Me dê um mote - disse.
indagou:- Vai uma pinga? Pensei um instante e larguei:
H esitei, que fazia tempo não bebia, o fígado tal- - Qu e os anos não trazem mais.
vez não estivesse retemperado, mas não consegui fugir A conversa cessou de vez. Relampinho fez uma
à tentação. pausa, engoliu um gole de cachaça, de novo tangeu as
-Vai uma pinga - respondi. cordas e cantou:
- Com uma cerveja bem gelada para lavar.
Quando voltou com as bebidas, que compartilhou Foi quando Tomé de Souza
comigo, passou a falar, dando notícia de todos os co- desembarcou na Bahú:l.
nhecidos, quem estava na cidade e quem não, quem Logo no primeiro dia
casara, quem morrera, quem desaparecera sem deixar passou o pau na esposa.
rastro, quem se aposentara: putas, mestres de baque, Fez que nem uma raposa:
jogadores, carregadores, operários das usinas, pescado- comeu na frente e atrás.
res, malandros. Depois, na beira do cais,
- E Relampinho? - indaguei. bem defronte da bodega,

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comeu o padre Nobréga um pouco mal. Mas notava, apoiado a uma das portas
que os anos não trazem mais. da rua, uma figura estranha: um homem quase escuro,
de roupa suja, calçado em botinas de couro cru, o cha-
Os brados subiram, os copos se encheram e se péu desabado sobre os olhos e furado no alto. Do om-
esvaziaram. Relampinho perguntou-me: bro direito pendia um cobertor de tons esverdeados e do
- Gostou? esquerdo uma corda enrolada. Olhava avidamente para
- Muito - gritei. - Mand a mais! nós, os bebedores, que nos juntávamos em volta da
Afinou o violão e cantou: mesa redonda. Por várias vezes surpreendi seu olhar
cravado em mim, desviando-o quando o fitava, tentan-
Vi Felipe Camarão do acender um toco de cigarro com um isqueiro velho
com velho fole nas costas. que falhava sempre. Quando um dos companheiros,
Quanto mais ele corria cambaleando, dirigia-se à latrina para esvaziar a bexiga,
mais o velho fole fodia. o homem fazia leves movimentos com o corpo e da
Corre, velho Camarão, latrina não tirava os olhos. Chamei Guará e perguntei-
fode, fode, fole velho, lhe:
A porteira do mundo - 117.jpg

nas costas do Camarão - Quem é aquele cara?


o velho fole bem fode, Guará olhou o homem estranho e deu uma gar-
fode, fode, o velho fole, galhada estridente.
fodia como um zangão. - É SuJa!
Diante da minha cara inquisidora puxou a cadei-
Todo o mundo berrava e a Maria m e apalpava. ra mais para junto de mim e enquanto os outros conti-
Relampinho gritou: nuavam a beber, Relampinho a cantar, as mulheres a
- Uma de anatomia! gritar, informou:
- Está vendo o cobertor num ombro e a corda no
Mulher da bochecha gorda, outro?
moça da bochecha inchada, Confirmei com a cabeça.
olhe aqui, repare bem, - Toda noite SuJa fica aqui à espera dum bêbado
não diga a palavra errada. e quando o cara sai, caindo por aí afora, numa calçada
Mulher da bochecha gorda, qualquer, sem forças para chegar em casa, ele age.
moça da bochecha inchada, - Rouba?- perguntei.
tire o sebo da bochecha Guará deu outra gargalhada.
para engordar a safada, - Nada, velho. Enraba o bêbado.
mulher da bochecha gorda, Continuei com a minha cara de interrogação.
moça da bochecha inchada. - SuJa chega, encontra o homem, estende o co-
bertor, bota-o em cima, amarra-lhe as mãos com os pés
A balbúrdia era infernal naquela altura e eu já via para ficar na posição em que Lopez perdeu a guerra e
o mundo rodar, o estômago cheio de pitus, sentindo-me mete a vara no homem. Leva sempre uma giletezinha

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para cortar a calça da vítima na regada. Num instante Sula apagou o sorriso, ficou somente a cara dum
ele faz o serviço. Tem noite que pega três, quatro bêba- fauno, e asseverou:
dos, não cansa nunca. - Em serviço eu não abro exceção.
-E depois?- indaguei. A roda, que vinha prestando atenção à nossa con-
- Depois, nada. Desamarra o bêbado, puxa o co- versa, explorou numa gargalhada, inclusive o cantador,
bertor e deixa o homem estendido no mesmo canto. O improvisando logo:
mais que o sujeito sente no dia segumte é o cu arden-
do. Lá vem seu Sula voando
Deu outra gaitada e gritou: com asas que nem jacu.
- Sula, vem cá! Cuidado, Borba querido,
O homem olhou desconfiado para os lados, riu esconde o olho do cu.
amarelo e veio devagar, enquanto Guará me cochicha-
va ao ouvido: Sula levantou-se sem achar graça e foi postar-se
- Quer ver? O maior amigo dele é Relampinho. no seu lugar, à porta. Eu continuava me sentindo mal,
Adora Relampinho. o estômago embrulhado, embora lúcido de bebida, in-
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Sula chegou-se, torcendo o chapéu nas mãos. diferente às carícias da mulher, agoniado no ambiente
Guará mandou que ele sentasse e serviu-lhe, indo e vol- pesado. Num rompante, levantei-me, louco para livrar-
tando depressa do balcão, uma gasosa. O rosto de Sula me daquela farrambamba. Guará agarrou-me por um
iluminou-se. braço e a mulher pelo outro.
- Não bebe álcool - segredou-me Guará. - É lou- - Você não vai agora.
co por gasosa. Desprendi-me dos dois e falei para a roda, cru-
O homem bebeu na garrafa mesmo e depois lim- zando e descruzando as mãos, à maneira de despem-
pou os beiços com uma ponta do cobertor encardido. da:
- Tá bom?- perguntou Guará. - Até outra vez, pessoal.
Ele confirmou com a cabeça, repetidas vezes, ti- Partiram protestos de todos os lados, mas não li-
nha uma cara ao mesmo tempo de débil mental e de guei e caminhei para a saída, Guará insistindo, eu me
bode sabido. Guará me cutucou levemente nas coste- desculpando, alegando a minha convalescença. Final-
las. mente, desvencilhei-me com a promessa de aparecer o
- Sula, me ruga uma coisa. Se· você encontrasse mais depressa possível e ganhei a rua. Sula olhou-me
Relampinho bêbado, esticado na calçada, fazia o servi- de viés e eu me esforcei para manter as pernas equili-
ço nele? bradas, andando ao longo da rua para, mais adiante,
O homem empurrou o chapéu para o alto da ca- voltar-me e ver que ele olhava em minha direção, des-
beça, pensou um pouco e abriu-se num sorriso mais lar- viando a cabeça quando se viu observado.
go, dilatando as narinas como um jumento zurrando. Ali, naquela zona, tudo era como antes: o mes-
- Relampinho? mo silêncio, as mesmas pedras do calçamento, as ca-
- Relampinho - insistiu Guará -seu melhor am.i- sas não haviam mudado e a luz de candeeiros que se
go. filtrava pelas frestas das portas indicava um casal no

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coito, uma mulher n as lembranças, um bêbado A velha largou tudo em cima da mesinha e mar-
ressonando alto. Na madrugada, somente o som dos chou para mim, azucrinada:
meus passos e o mundo de lembranças, o Capitão mor- - Igualzinho ao pai! Só que ele não bebia. Mas
to à minha direita, o resto da vida à frente, a sensação mulherengo que só o pai! Teve bem a quem puxar. Eu
de enjôo cada vez mais forte, o corpo me formigava e que me importa! Morra, morra que é o prêmio para
a nevrite nas pernas se fazia sentir mais dolorosa. A uma besteira dessas! Ainda bem não saiu do hospital
sineta do mercado bateu três pancadas e dentro de mim e já está andando com mulheres perdidas e bebendo
crescia a sensação de morte, no estômago agitavam-se até de madrugada. Vá, vá, se acabe, não se importe co-
animais de caudas ásperas açoitando suas paredes, eu migo! Já agüentei coisas piores. Ah, meu Deus, que sina
já pisava fofo, encostei-me a um muro e vomitei aos a minha! Vem pra casa dos outros e em vez de se com-
borbotões, pela boca e pelo nariz, os olhos empanados portar cai logo na farra! Me mata de vergonha!
de lágrimas, não sentia melhora, os vômitos se sucedi- Eu não ouvia mais seus gritos, derreado numa es-
am cada vez mais violentos, bem que me havia o Dr. preguiçadeira, mas via, como em névoa, a cara do cu-
Leão recomendado: "Cuidado com as indigestões. Nada nhado e da irmã mais velha. Foi Alfeu quem se chegou
de comer demais". Morrer na convalescença era o ·cú- para mim, até solícito.
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mulo, tendo escapado da morte pelo bacilo e pela fome. - Que foi isso, rapaz?
Uns morrem de estômago vazio, outros de estômago - Acho que comi demais.
cheio. "Você é como peixe, morre pela boca" -dizia a - Indigestão - foi o seu diagnóstico.
tia bigoduda quando, nas minhas doenças infantis, me Um diagnóstico de Alfeu valia mais que a pala-
excedia no bacalhau cozido com massa de mandioca vra de cinco médicos juntos. Contavam-se suas proe-
ou no pirão de ovo onde o coentro dava a nota verde. zas no círculo familiar. Farmacêutico e dentista, sem-
E verde, verde escuro era como eu estava vendo o pre às voltas com o Chernoviz, tinha um fa ro
mundo naquela agonia de vômitos, suores frios e in- extraordinário para diagnosticar qualquer esp écie de
testinos já em revolução. Não sei como atravessei as d oença, acertando onde os esculápios falhavam. Sua
ruas que me levavam à casa da irmã mais velha, mas "indigestão", portanto, teve a virtude de afastar a sus-
ao entrar na praça vi que lá havia luz filtrando-se atra- peita de Mãe Néa quanto à minha bebedeira. Levaram-
vés da persiana que encimava a porta da frente, ape- m e para a cama, deram-me chá de canela, Alfeu picou-
nas encostada quando a empurrei, para deparar-me me a veia com uma injeção qualquer, o músculo com
com Mãe Néa sentada numa das cadeiras de balanço, um entorpecente, agasalharam-me e eu m ergulhei no
óculos na ponta do nariz, cigarro de fumo desfiado sono. Durante três dias alimentaram-me a chá com tor-
numa das mãos, a outra sustentando um folhetim vo- radas, canja de galinha, bife grelhado com purê de ba-
lumoso. Quando apareci e ela ergueu os olhos, gritou: tatas, somente saía da cama para uma cadeira de ba-
- Virgem Maria, está bêbado! lanço, olhando o rio e os longínquos montes divisores
Eu cambaleava e, não tendo mais nada no estô- do nosso território. As forças voltaram, jurei a mim
mago para botar, dava engulhos que me sacudiam todo mesmo ser comedido, fui assaltado pelo medo da mor-
o corpo, sentindo um frio de morte, batendo os quei- te, passei a viver uma vidinha familiar de jogo de sue-
xos. ca, leituras, charadas, no máximo indo ao Cine Apolo

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ver filmes de guerra. Plantava-me diante do rádio e pé, daí eu ter precisado alugar um carro de praça que
acompanhava todo o noticiário da Juta na Europa, Ásia me levasse lá, marcando hora de regresso.
e África, meu sobrinho de oito anos afirmando que ou- A casa, toda branca com portas e janelas pintadas
vira o locutor asseverar que naquelas bandas já se co- de cor-de-rosa, ficava no alto dum pequeno outeiro,
mia carniça, reafirmando diante da minha estranheza: rodeada de terraços, quase oculta por tanta folhagem:
"Pois ele não disse lutas encarniçadas?" O menino era árvores frutíferas, roseiras, trepadeiras, avencas, samam-
uma alegria e com ele eu voltava aos jogos da infân- baias. Subi a pequena escada de pedra e fui recebido
cia, adorando suas traquinagens e irreverências. "Tio, por uma senhora que tinha gravada no rosto sua con-
se eu falar aqui no rádio, ouvem lá no Recife?" "Não" dição de governanta-enfermeira, atraída pela buzina do
- foi a minha resposta. E ele, aproximando-se do apa- carro. Fizemos a volta pela varanda e, nos fundos, re-
relho: "Ora, não!" E gritou com todas as forças: clinada numa ampla cadeira estofada, amparada por tra-
"Merda!" - para sair correndo aos pulos, às gargalha- vesseiros, D. Micaela, quase irreconhecível. Mais escura
das. e mais gorda, foi o que notei logo, e quando lhe esten-
Jogava gamão com um amigo qualquer e aventu- di a mão, num gesto irrefletido, ela apenas balançou a
rava-me a um passeio no detestável Jardim Público, pro- cabeça, tentando um sorriso de boca troncha, um fio de
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curando uma sombra, dia de feira, para ouvir os cegos baba lhe escapando de queixo abaixo, a mão esquerda
cantadores de cordel. Saia sempre à tarde, o sol frio, repousando na cadeira e o braço direito pendente, iner-
para uns dedos de prosa com velhos amigos do comér- te.
cio, o pátio do mercado descaracterizado com a cons- Sentei-me, à procura de palavras que não vinham,
trução de pequenos quiosques destinados a mercearias, envergonhava-me de pronunciar uma banalidade
casas de lanche, sorveteria. Dormia cedo e acordava tar- qualquer, ela me olhava com os mesmos olhos de an-
de, engordando, solicitei da América Latina mais um tigamente e aquilo me causava mal, tinha de romper o
mês de licença remunerada e os altos poderes da com- silêncio, dizer o que quer que fosse, ainda mais inibi-
panhia tiveram a magnanimidade de aceder ao meu do pela presença da governanta. Afinal, os sons me
pedido, podendo ~u, então, continuar na preguiça doendo na garganta, deixei escapar uma frase con-
palmarense. vencional:
O bilhete pegou-me de surpresa: "Não fui visitá- -Espero que a senhora já esteja passando melhor.
lo porque continuo doente. Venha ver-me. Micaela". Recebi, em troca, o mesmo sorriso troncho.
Mas a letra não era a dela. Só entãó me informaram - Somente por seu bilhete é que soube. Ninguém
que havia tido um derrame, meio paralítica, da cama me havia dito nada. Desculpe.
para uma cadeira, pelas mãos dos outros, tendo arren- Diante daquela senhora tão mudada, eu sentia
dado o colégio a um moço que viera do Recife com necessidade de explicar-me, como nos velhos tempos
novos métodos, maníaco por teatro infantil, dando sem- em que ela me dominava, o amante na mão de ferro, a
pre representações num pequeno palco que construíra sensação esquisita de que dentro em pouco iríamos para
nos fundos do colégio, com certeza baboseiras. D. o ato grotesco, na cama. Reagi com esforço, pedindo-
Micaela estava morando numa vivenda para os lados lhe licença para acender um cigarro, vendo os olhos da
do engenho São Manuel, uma boa meia hora puxada a governanta fitos em mim. D. Micaela, acho, adivinhou

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meus pensamentos, porque se voltou para a guardiã, eles, conforme minha história lhe agradasse ou não. Mas
fazendo-lhe um sinal com a cabeça para que nos dei- que diabo queria eu com toda aquela lengalenga onde
xasse a sós. Cara a cara, o constrangimento voltou, ain- a imaginação funcionava até sentir os miolos fervendo?
da mais quando ela, num esforço a que assisti impassí- Estava metendo o punhal numa carne que não tinha
vel, curvou-se um pouco, levando a mão esquerda à mais onde ser furada, matando um cadáver ou dando,
boca como se quisesse controlar a tronchidão, tentando embora cruelmente, uma talhada de vida àquela que se
falar, saindo apenas palavras engroladas, incompreen- fora em corpo e fala?
síveis, sons horríveis que partiam de Sua garganta, ca- Quando parei de falar ela reclinou-se para trás,
vos, assemelhavam-se a pequenos trovões, a baba lhe procurando uma posição mais cômoda nos travessei-
escorria abundante. Fiquei estatelado, sem saber o que ros, fechou os olhos, suas pálpebras batiam, os dedos
fazer, quando a governanta voltou, limpando-a, endi- da mão esquerda se contorciam, não demorou muito
reitando-a, interpretando para mim o que ela pretendia. deu um grito de fera acuada, outro, m ais outro, levan-
- Está pedindo que o senhor fale. tei-me, a governanta já vinha correndo, O. Micaela re-
- Mas falar o quê? - perguntei, abobalhado. petia, com sons mortos, intraduzíveis, uma só frase. A
A governanta deixou-a, veio até mim, curvou-se governanta acalmou-a e voltou a cabeça para mim, di-
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e, num cochicho, segredou: zendo:


- Fale do que quiser, rapaz. Recite poesias, pro- -Vá embora.
nuncie discursos, conte anedotas, invente histórias de Não esperei segunda ordem. Dei as costas às duas
trancoso, mas, pelo amor de Deus, fale! e caminhei pelo terraço lateral, desci os degraus de pe-
Voltou à D. Micaela, ajeitando-a nos travesseiros, dra, abri o portão, atravessei a campina e ganhei a es-
aprumou-se, fez-me um sinal com a cabeça e saiu do trada. E o carro? E minhas pernas com nevrite? Andei
terraço. Tudo estava confuso dentro de mim para aquele uns cem metros, sentei-me à sombra duma árvore,
monólogo, a mulher me implorava as palavras com os olhando a tarde cair e dispus-me à espera, sem com-
olhos, o tempo corria. Vali-me, então, de todas as mi- preender a fundo o que acontecera, tanto da minha par-
nhas forças e comecei, fracamente: te quanto da dela. Para nenhuma pergunta tinha res-
- Quando fugi daqui para o Recife... posta, apenas fechava definitivamente m ais um
Todo o período de minha vida depois dela foi sen- compartimento da minha vida, arquivando-o no mo-
do descrito, a princípio somente os fatos mais impor- mento, com a certeza, porém, de que um dia ele renas-
tantes, em seguida os mais escabrosos; continuava a vin- ceria sob uma forma inesperada, com significados obs-
gança antiga, esmiuçando odores, suores, gestos, curos e maléficos, nada haveria de perder-se dentro d e
posturas, intenções, fui mais além da verdade e mistu- mim, qualquer que fosse a repercussão. Uma marca é
rei coisas de fato acontecidas com outras inventadas, uma marca e dela não há como fugir, podendo surgir
talvez as reais fossem mais terríveis, mas era ainda o num sonho, influindo em decisões que nem de longe
gosto da mentira. Durante minha narrativa D. Micaela se pensa ter ligação com ela, quem, com todos os de-
enxugava a baba com a mão esquerda, mas seus olhos mônios, pode fixar os limites da sua extensão e suas
voltavam a ter o mesmo fascínio de antes quando me relações com os acontecimentos? A mulher me marcara
fitavam no gozo ou na raiva. E gozo e raiva refletiam e eu marcara a mulher: entre nós dois uma terra de

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ninguém caroável a todos os males, fugas, mentiras, ne- Fitamo-nos demoradamente e antes que ela desviasse a
gaças, bastava colocar um pé nessa faixa para ser assal- vista cumprimentei-a com a cabeça, vendo, com o rabo
tado por urna dessas coisas, tendo ou não capacidade dos olhos, como as outras três se curvavam em tomo
de reagir e fingir, nunca de desconhecê-la, cavando mais da mesinha redonda e cochichavam. Para olhá-la mais
profundamente poderia ser encontrado um átomo da à vontade dei uma ligeira volta na cadeira, ficando qua-
causa, o importante era não deixar que o átomo se jun- se de frente para o grupo. Ela não se voltou enquanto
tasse a outros e formassem uma molécula, não deixar engolia o sorvete, mas eu sentia que seus pensamentos
que crescessem em cadeia, não permitir que explodis- estavam voltados para mim. Suas longas tranças caíam,
sem num cogumelo. de cada lado, sobre os seios, sobre a blusa que se tor-
O carro finalmente chegou e eu voltei à cidade, nava mais branca em contraste com a saia escocesa. Ti-
limpando a cabeça com a aragem da noite que chega- véramos, quando meninos de treze anos, um namoro
va, logo mais estava conversando com os familiares, inocente, ela me presenteando com uma maçã, um par
ouvindo notícias da guerra, caminhando para uma ses- de meias e um lápis. No decorrer de todos aqueles anos
são de cinema, recorrendo a uma luminale ta para ter jamais pensara nela, notícias a seu respeito surgiam na
sono imediato e tranqüilo, mas sem poder fugir do ve- roda familiar, em comentários comuns, esparsos: era
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lho pesadelo que quase sempre me assaltava: o da rua uma dos dezesseis filhos do Dr. Bernardo, dentista e
deserta, com casas assassinas e postes como lanças, da protestante, apontado como um dos homens justos e
rua em luz difusa sem presença humana visível, sen- sábios da cidade. Seus irmãos tinham sido amigos dos
tindo, apenas, que a perseguição poderia ter início a meus irmãos e um deles, da minha idade, morto cedo,
qualquer momento, consciente do sonho, mas nem por fora meu colega de estudos e brincadeiras de mocinho
isto deixando de apavorar-me, tentando o esforço so- de fita em série. Casara muito nova com um homem
bre-humano de acordar para escapar daquelas janelas e bem mais velho que ela, tivera um filho, o marido mor-
portas que não eram iguais às portas e janelas da vigí- rera numa noite de chuva, num desastre de automóvel,
lia, dos telhados de onde escorria o mal, de um lençol numa estrada deserta por onde trafegava à cata de um
que esvoaçava no fundo da rua, assumindo formas abs- candidato a seguro de vida. Sozinha, com o menino de
tratas, horripilantes; acordando no silêncio da casa es- dois anos, voltara à casa dos pais, passeando seu corpo
cura, os fiapos do sonho ainda dançando nas trevas, magro em vestidos próprios de viúva pelas ruas da ci-
ouvindo o ressonar dos outros, um grilo, um sapo, um dade, sua cara bonita, mais de adolescente, aberta para
bacurau. a vida, seus horizontes fechados, no máximo aspirando
Na tarde do dia seguinte saí para tomar sorvete a outro casamento medíocre com algum caixeiro-viajante
num dos quiosques da praça do mercado: jenipapo do ou um remediado comerciante de secos e molhados que
......./ puro, amarelado, que me trazia lembranças de um a acolhesse sem hímen e um filho de contrapeso.
jenipapeiro que eu, em vão, com perguntas a parentes, Chamava-se Ruth, seus irmãos e irmãs também
tentava localizar no passado. Aboletei-me a uma das tinham nomes bíblicos, eu a achava semelhante a uma
mesinhas e fiz o pedido, minha atenção logo desperta- guerreira, com sua estatura e seus cabelos pretos, seus
da por risadas de mulheres numa mesinha próxima. olhos grandes, sua voz, descendente de espanhóis, via-
Voltei a cabeça e meus olhos se cruzaram com os dela. se pelo sobrenome, uma pinta de sangue mouro nas

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veias, tudo nela condicionando uma batalha, uma von- dócil, mas a mim não enganava: seria capaz de cravar
tade, uma vitória, na gargalhada estuante que partia da seus dentes fortes em todos os meus órgãos e suas unhas
sua garganta, nos modos, nos gestos. longas alcançariam as minhas mais recônditas intenções
Quando o grupo levantou-se para sair eu a olhei se estivessem contrárias ao seu domínio.
mais uma vez e outra vez nos fitamos, reconhecidos, Foi estranho como desde o primeiro encontro senti
atentos para acontecimentos que, inevitavelmente, se toda a sua força e como, sempre com ares de
produziriam, disto eu tinha certeza, tanto que se des- dominador, por nossa vida, respeitei e temi sua vonta-
pediu não mais tão esquiva, pisando firme e lançando de, embora ela se doasse sem fronteiras e em torno de
sua primeira linha de combate de encontro ao meu mim, para mim e por mim construísse o seu mundo,
paredão. O grupo perdeu-se para os lados do Cine fechasse suas muralhas, não permitindo a aproximação,
Apolo e eu ainda fiquei matutando na mesa de sorvete, a um tiro de rifle, de uma dúvida, uma omissão, uma
alerta para os sinais que partiam dela, aceso, sobretu- fraqueza. Eu estava lúcido quando me levantei, afinal,
do, em minha abstinência para o fato de que não se marchando ao encontro inevitável no jardim público da
tratava de uma virgem, sem levar em conta seu pre- Praça do Mauriti, onde, sob o pretexto do velho conhe-
conceito moral ou religioso, que ela era, ao mesmo tem- cimento, então renovado, mantive uma conversa que
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po, uma dadivosa e uma sugadora, exclusivista nas rrú- mascarava nossas intenções. Restavam-me uns vinte
nimas ações que pudessem ferir sua posse e seu ato de dias de permanência na cidade, antes de retornar às
possuir. Canções de gesta corriam em seu sangue, fe- minhas ocupações, já com um título protestado pelo
rindo uma castela encarcerada com penas de amor, banco que me ajudara a afastar-me limpo da América
menestréis acorrentados em calabouços, duques com Latina, e nesse período tudo déveria estar decidido en-
alto sentido de honra, coringas, bobos, fâmulos, cava- tre nós, não podíamos perder tempo, pelo menos os pri-
los árabes cruzando com éguas castelhanas, toda uma meiros movimentos da nossa luta teriam de ser executa-
cavalaria em disparada, choques de lanças e espadas, dos. E assim foi, com a primeira mulher que, realmente,
alfanjes, albornozes, fandangos, castanholas, numa mis- contava para mim, antes como sexo, depois como tudo:
tura onde a linha divisória entre o amor e o ódio seria amante, esposa, mãe, cozinheira, lavadeira, arrumadei-
tão tênue quanto um fio de teia de aranha, tudo da ra, puta e santa, megera, sacrificada, violenta, terna, fiel;
Espanha incendiária e da Arábia quente, em palavras várias mulheres numa só verdadeira.
criadas com sons de luta, na comida ardente, na mo- Andava eu, à noite, pelas ruas da cidade quando
leza de coxins para corpos esquecidos, entrando pela fui atraído pelos sons de uma orquestra de dança nas
Inquisição adentro e tudo se transformando numa enor- proximidades da estação e me juntei ao sereno para
me fogueira de âmbar. Daí sua pele morena, já atenua- olhar os pares no ritmo de um samba, mais pareciam
da pelo cruzamento das gerações, seus cabelos notur- bonecos movidos a fio. De repente, como num sobres-
nos, seus olhos de espanto, a testa larga indicando o salto, virei o rosto para a esquerda e vi Ruth fitando-
tamanho do sexo segundo a tradição popular, suas an- me, com o mesmo grupo de moças da tarde passada.
cas largas e sua boca grande de onde partiriam ternu- Caminhei ao seu encontro e juntei-me à ridicularia que
ras e obscenidades. Interessava-me, de imediato, aque- faziam das pessoas: duma senhora gorda de laço azul
la égua andaluza em terras palmarenses, aparentemente na bunda, duma vitalina muito magra que requebrava

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os ossos, dum obeso comerciante cuja barriga afastava- em você, pensando que poderia atraí-lo à distância, con-
o quilômetros da dama que mal conseguia enlaçar. De tavam-me casos rusto ter acontecido. Mas nada aconte-
tudo mangavam, de tudo riam, por tudo cochichavam, cia. Até que veio a notícia do seu noivado. Então cedi à
mas nós dois, eu e Ruth, nos intervalos da zombaria, pressão da família que me arra njava um casamento com
nos aproximávamos cada vez mais, braço contra braço, um homem mui to mais velho do que eu. Você compre-
disfarçadamente, na penumbra da rua, toquei com a ende? Eu o traí. Mas que podia fazer? Tive de ceder às
minha a sua mão e achei-a gelada. Entrancei meus de- injunções dos meus irmãos, à vida medíocre que leva-
dos com os dela, apertando-os, numa troca de calores, va, às dificuldades do meu pai para manter a família
olhávamos sempre para os dançarinos, dávamos as mes- numerosa. Ele era um bom homem, só que eu não gos-
mas gargalhadas, soltávamos os mesmos ditos, mas cada tava dele. Tudo se embaralhou em minha cabeça, sabia
vez entrávamos mais um no outro, o grupo inocente que você estava perrudo para mim, concordei. Depois
do nosso encontro, até que uma das moças gritou: eu lhe falo de minha vida com ele, mas agora só quero
-Virgem Maria! Onze horas! saber, agora que você não é mais noivo de ninguém, se
Foi uma debandada de pássaros assustados, umas eu lhe interesso. Pense na minha condição: sou viúva e
chamando as outras, caminhando apressadas, eu e Ruth com um filho de quatro anos. Durante toda a minha
A porteira do mundo - 124.jpg

as seguimos, já de mãos soltas, não fossem a irmã e as vida só amei a você, mas você nem sabia mais que eu
amigas nos verem entrançados. Caminhamos nas ruas existia. Estou disposta a qualquer coisa p ara viver com
desertas e frias, a principio sem uma palavra, apenas você, casada ou não, mas por favor não me engane. Não
conscientes de que éramos, o grupo se distanciava e nos me diga nada hoje à noite, não teríamos mais tempo,
deixava atrás, embora de vez em quando a irmã gritas- olhe, já estão me chamando de novo. Até amanhã.
se: Paramos por um instante, tomei sua mão e beijei-
- Ruth! Anda, Ruth, anda! a. Os chamados eram mais constantes, enquanto ela já
E sem nenhuma preparação, sem nada que me ser- corria e eu, parado, olhava-a afastar-se dentro da noite,
visse de aviso, de sopetão, ouvi seu monólogo, via-a num aceno. Dei meia-volta e dirigi-me à casa, onde fui
esvaziando-se, as palavras samdo na pressa da vergo- encontrar Mãe Néa com o folhetim e o cigarro Lafaiete,
nha e do tempo, compreenru que não poderia, ela, atra- uma xícara de café pela metade. Também tomei café e
vessar a noite com aquela carga. preparei-me para dormir, mas os pensamentos me as-
- Desde o tempo de menina que não o esqueci. saltavam, girando em torno de Ruth, do inesperado do
Lembra-se da maçã, do par de meias e do lápis? acontecimento, eu entrava num caminho novo e não sa-
Quantas vezes eu passava por você depois, você indi- bia se deveria continuá-lo, ao mesmo tempo consciente
ferente, eu sabendo a vida que você levava, e dizia para das forças que me conduziam por ele, áspero ou suave,
mim mesma: ainda vou ter um filho dele. Sei de toda a achando tudo sem pé nem cabeça, o melhor seria me
su a vida, sofri com tudo o que você sofreu, fui uma deixar levar pelas águas para ver no que dava. Tínha-
adúltera em pensamento, e agora o encontro. O que vai mos encontro marcado para o rua seguinte, à tarde, em
ser de mim? Não me diga nada, não me prometa nada, casa duma amiga dela, mulher de reputação um p ouco
fique calado, eu é que quero falar. Às vezes eu ficava duvidosa, o que me dava uma vaga certeza de que co-
sozinha e marcava meu pensamento em sua direção, só meçaríamos, realmente, pelo lado do sexo, o que talvez

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fosse melhor, aliviando-nos, deixando-nos, apenas, como Ruth estava sentada no sofá de palhinha, ereta,
dois animais saciados. Mas isto não estava em suas pa- as mãos descansando nas coxas, batendo os queixos,
lavras: o que ela desejava era uma ligação permanente. toda trêmula, seus olhos ainda eram maiores. Sentei-
Mas até que ponto eu estava realmente disp osto a con- me ao seu lado, sem palavras, tomei-lhe a mão, fria,
cordar com o seu apelo? Esse era o nó da questão, não suada, vibrátil.
me podendo imaginar amigado ou casado, de horário - Me dê um cigarro - disse.
certo, de mulher única, de convivência doméstica, de Coloquei-lhe o cigarro entre os lábios, acendi-o,
compras e providências familiares. Ainda pensei em to- e la tragou-o com avidez, soltando a fumaça com um
mar o trem da madrugada para o Recife, sem explica- certo ruído. Descansei a mão em sua coxa e senti que a
ções, deixando-a ao Deus-dará, mas no fundo sabia que carne tremia. Falei-lhe, mansamente:
não agiria desse modo, que seu odor já m e chamava e - Calma.
prendia, que seus pêlos seriam por mim acariciados, que
Olhou-me e tentou um sorriso, deixou cair o ci-
de seus ângulos sairiam labaredas e que o fogo nos con- garro, esmagou-o com o salto do sapato, cham ei-a para
sumiria no bem e no mal.
mim, sua cabeça descansou em meu ombro, assim fica-
Acordei tarde, com a sensação do passo decisivo
mos, aos poucos e la se foi acalmando, afastei-a um pou-
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que seria dado nas próximas horas, incomodando-me


co e beijei-a, levemente, nos lábios, deslizando a mão
a espera e, ao mesmo tempo, receoso do encontro. Não
para um dos seus seios. Ela reagiu imediatamente ao
me fixei em nada, fumei mais do que devia, atravessei
toque, recuando, dizendo infantilmente:
a rua para tomar uma talagada, depois do almoço o
- Oxente!
sono não veio, de propósito não me arrumei para a
hora, nem por dentro nem por fora. Às quatro bati pal- Não insisti e vi seu riso encabulado, nela toda se
mas na casa de Ermelinda, a tal amiga, ex-prostituta refizera a virgindade, talvez nem mais se lembrasse do
casada com um parente do meu cunhado, desbocada, marido morto ou talvez mesmo nem acreditasse que
mulher de m ãos nos quartos, língua afiada e modos havia vivido uma outra fase, somente o hímen rasgad o
canalhas. Foi ela mesma quem me abriu a porta que poderia chamá-la à realidade e atestar sua condição; e
dava para o corredor, num exagero de gestos e pala- o filho, quando junto, porque comigo tudo nela se abs-
vras altas: traía e criava um mundo onde se recusava a aceitar
- Ora, ora, quem é vivo sempre aparece! injunções estranhas.
Desajeitadamente recebi seu abraço e, ao afastar- - Que foi que você pensou? - perguntou-m e, de
me, recolhi sua piscadela debochada e as palavras ci- repente.
ciadas: - Em quê? - indaguei.
- Está a.í, na sala. Com um gesto ela me pediu outro cigarro, nova-
Disse e afastou-se par a o fundo da casa, reme- mente aceso por mim. Esperei, pacientemente, que fu-
xendo os quadris, os chinelos dando-lhe palmadas nos masse, com os olhos para a frente, à procura de pala-
pés. No fundo do corredor parou, voltou-se para mim vras, não era fácil continuar uma confissão. No fundo,
e, com a mão, fez um gesto, como quem diz: "Vai, ho- lutavam sua valentia moura e seu puritanismo protes-
mem, entra". tante, os preconceitos de uma moça típica de cidade do

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interior e o que ela pensava ser o amor, o medo da Eu acompanhara com atenção seu discurso e não
incerteza e o gosto da aventura. sabia como responder à indagação. Ela me declarava
- Quero lhe dizer tudo - falou, afinal. - Já sabe um amor de toda uma vida, apesar de tudo, e eu, pra-
por que me casei e juro por Deus como é verdade. Mi- ticamente, a encontrava naquele momento, embora já
nha primeira noite foi horrível, precisei embebedar-me sentisse todas as ligações que me chegavam por meios
para suportar a posse, porque embora você estivesse misteriosos. Tomei-lhe a mão e disse:
dentro de mim era outro homem que me possuía, me -Vamos deixar que corram mais uns dias.
rasgava, me fecundava. Lutei muitos dias contra a sen- Ela pressionou minha mão, olhou-me dentro dos
sação de vergonha, até que me conformei. Dentro dos olhos e entreabriu os lábios. Beijei-a com força, puxan-
seus limites ele era um bom homem, lutando desespe- do-a para mim, tive de conter um grito quando ela me
radamente em pequenos empregos para a nossa manu- mordeu, senti gosto de sangue, não sei por que
tenção. Quando dei à luz, ele estava desempregado e levantamo-nos, enlaçados, prendi-a contra a parede e
alguns parentes nos ajudavam, muitas vezes nossa re- continuamos o beijo interminável, num duelo de lín-
feição era somente fritada de mamão. Tem gosto de ca- guas e num bater de dentes, até que um ruído vindo
marão. Já experimentou? Às vezes ele perdia a paciên- do interior da casa chamou-nos à realidade. Era Erme-
A porteira do mundo - 126.jpg

cia, entregava-se ao desespero. Uma vez quis bater no linda, aos berros, discutindo com alguém. Afastamo-nos
menino, ainda novo, não tinha nem um ano, atraves- imediatamente e nos esgueiramos, ela saindo primeiro,
sei-me e quem levou a bofetada fui eu. Minha vida se eu lhe dando tempo para a distância, ganhei a rua, en-
limitava às quatro paredes da casa, usávamos preventi- fim, constatando uma coisa insólita: não tivera ereção.
vos para que eu não engravidasse de novo, não sentia A partir desse dia passamos a encontrar-nos
prazer no ato. Para que contar todos os detalhes dos regularmente, não mais na casa de Ermelinda, mas em
dias e das noites, a vida estreita que levava em Jaboatão, lugares os mais diversos, às escondidas para não dar
a conversa de vizinhas, o conhecimento de todos como pasto à maledicência: no coqueiral do engenho Trom-
se fossem uma família capaz apenas de fatos peque- betas do outro lado do rio, à noite num caramanchão
nos? Até que me trouxeram seu cadáver e eu tive de do Jardim Público, nas cadeiras de trás do Apolo du-
voltar para a casa do meu pai, tratada como uma moça rante uma sessão de cinema, sempre assustados, pro-
solteira, mais até, vigiada, policiada em todos os meus gredindo nas carícias mas atentos a olhares, não querí-
atos, usando somente estes vestidos de cores sombrias. amos cair na boca do povo, ela principalmente, quem
Nem sei o que daria para botar um ·Vestido vermelho! diabo iria acreditar que uma viúva estava namorando
Não posso dar gargalhadas, fumo às escondidas, o ir- como qualquer donzela? Mas com todas as precauções
mão mais moço me vigia como um cão de guarda, quan- a coisa se espalhou. Mãe Néa disse: "Acabe com esse
do muito vou ao cinema às segundas-feiras. Tenho de chamego com a filha do Dr. Bernardo"; a irmã mais
comparecer ao culto, cantar no coro da igreja, quase não velha asseverou: "Estão falando de você com Ruth"; um
uso pintura e me proíbem a leitura de certos livros. Para dos irmãos bateu-me no ombro: "Aproveita, velho, que
quem quer viver não é, tudo isso, uma receita muito o caminho é livre". Nos conhecidos eu já notava
boa. Agora, você ressurge. Por isto, lhe perguntei o que um certo arzinho gozador e nas comadres, que se
pensa a nosso respeito. acostumaram a considerar-me um canalha, olhares que

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pretendiam desintegrar-me. O falatório crescia cada vez noite, mas em medidas práticas que nos conduzissem à
mais e a cidade se deliciava com aquele romance de ligação permanente. Eu já aceitava o casamento como
exceção, enfileirando-se ao lado de outros que haviam coisa natural, restando apenas acertar os detalhes ma-
ficado célebres: o da mulher de um antigo prefeito cujo teriais, o ridículo dos papéis, as coisas que teríamos de
amante descia numa escada de cordas pelos fundos do levar para a vida em comum, o problema do menino já
sobrado; o da gorda dona de um hotel que tinha fani- resolvido: passaríamos um mês sem ele, mas depois iria
quitos para ser atendida pelo médico, os dois trancan- morar conosco. Lacramos nossas providências com al-
do-se no quarto para a necessária receita; o do triângu- gumas lágrimas de Ruth e algumas palavras de conso-
lo amoroso, consentido, formado peJo agente da estação, lo minhas, subimos a ribanceira, cada um para o seu
sua mulher e o telegrafista do Nacional. Naquela oca- lado. No trem da madrugada voltei à Capital, reassum.i
·sião éramos o prato preferido, o irmão mais moço de meu emprego, passei a escrever cartas onde misturava
Ruth farejando nossos encontros como um cão perdi- tudo: coisas práticas com literatura, desejo com notícias,
gueiro, metido a valente, espalhando que faria e acon- pedidos de informações, versos, citações; para receber
teceria. De uma certa .maneira ficávamos indiferentes a respostas com: saudades, situação doméstica, mexericos,
todo o mexerico, cada vez maJs ligados, acertando en- fatos cotidianos.
A porteira do mundo - 127.jpg

contros em lugares ermos, geralmente à noite, e nos per- Quando Ruth ia ao Recife, de raro em raro, repe-
díamos em nosso mundo, erguendo uma enorme pare- tíamos, sob as árvores do Derby ou nos bancos da pra-
de de delícias em nossa volta, estávamos no centro do ça, nossas carícias e reafirmávamos os planos que se
círculo, longe de nós pensar que sequer olhares pene- consolidavam cada vez mais. Dávamos longos passei-
trariam aquela fortaleza, as falas batendo contra as pe- os, íamos a cinemas e restaurantes, sorveterias, retretas.
dras e voltando sem que nos atingissem, quando muito Ela voltava a Palmares e retomávamos a correspondên-
tínhamos uma vaga idéia de que os outros continua- cia, numa carta me anunciando que o Dr. Bernardo iria
vam como antes, porque nosso ambiente, apesar de lu- ao Recife, para a casa do filho mais velho, onde ficaria
minoso, era recheado de camadas superpostas de ver- alguns dias e que eu aproveitasse a ocasião para regu-
des e róseos, como de algodão-doce, o mel escorrendo larizar o noivado.
entre nossas coxas e na cabeça o canto de pássaros, abri- Aprontei-me para o encontro, metido num terno
gados sob os coqueiros de música sempr e igual, de caroá azul e, com as pancadas das oito da noite, en-
embaladora, ondulante, coando-se por entre as palmas trei na saleta, onde fui encontrá-lo. Já nos conhecíamos
a luz e a água ou luz e água, com -tonalidades e de- de conversas esparsas, era realmente um bom homem,
senhos que formavam um imenso quadro na paisagem cristão, temente a Deus, de vida doméstica exemplar,
deserta, quebrada apenas por nossos corpos, poucas ve- citado como modelo a qualquer jovem que se casava,
zes em repouso, quase sempre em movimentos de on- tendo gerado dezesseis filhos, entre machos e fêmeas,
das de mar, numa repetição incansável. segundo a boa tradição do Antigo Testamento. Vi-o pre-
Despedimo-nos numa noite escura, na beira do rio, gando uma vez na Igreja Evangélica e a sua sincerida-
que o cerco se apertava em volta de nós, eu de volta ao de tinha qualquer coisa de toque, de Graça, se era que
Recife. Sentados numa pedra, os pés mergulhados na essas coisas existiam independentes do homem. Pois lá
água, de mãos dadas, não pensamos em sexo naquela fui encontrar o Dr. Bernardo, com chinelos cara-de-gato

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e paletó de pijama. Durante duas horas falamos de tudo, mesmo uma sacrificada, já que não suportava Ruth e
menos daquilo que me levara a ele, num constrangi- tinha ciúmes de mim, mas a honra de duquesas e con-
mento inexplicável, talvez o receio do compromisso que dessas, de pobres camponesas e costureirinhas, da prin-
eu, como sempre, adio até às últimas conseqüências. Ju- cesa Magali, de todas as pobres mulheres que atraves-
rei a mim mesmo voltar no dia seguinte, convencendo- savam sua literatura de Delly, Ardel, Escrich, Sue e
me de que aquela fora, apenas, uma conversa prepara- Montepin estava impressa no drama de Ruth, e ela agia
tória, mas não voltei e, por carta, não soube explicar a como a grande baronesa que sufocava seus sentimentos
Ruth o que acontecera, o que me valeu, da parte dela, em benefício da pobre moça sacrificada. Meu cunhado
cartas amargas e desesperançadas. Lançava-me gritos e minha irmã mais velha não fizeram comentários, mas
de socorro e eu, em resposta, fazia literatura sobre o um dos irmãos, já nessa época de fígado estragado por
seu desespero; dizia-me que não suportava mais a es- canadas de aguardente, teve um dos seus rompantes:
pera e eu transcrevia versos de poetas franceses; ameaça- "Você é um louco. Vai tapar o buraco que outro fez".
va-me de atos extremos e eu, calmamente, aconselha- À tarde, entrei na casa de Ruth, de janelas e por-
va-a a ler os romancistas ingleses. Tudo isto até o dia, tas fechadas para guardar o luto recente, a mãe ainda
alguns meses depois, em que recebi um telegrama: "Pa- em prantos, tendo eu de me dirigir a um dos seus ir-
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pai morreu, Ruth". mãos mais velhos para oficializar nosso noivado, tudo
Tornei o trem para Palmares no dia seguinte, mar- como se se tratasse de uma adolescente, que assim era
chando direto para a casa da irmã mais velha e, para a lei da região. Daí em diante minha vida teve uma
minha surpresa, Ruth lá estava, sentada à mesa larga reviravolta completa, portando-me como um sujeito sé-
de jantar, Mãe Néa ao lado, ela com um talho no rosto, rio e ajuizado, com responsabilidades, principiando por
resultado de uma queda que dera na afobação da notí- onde os outros terminavam: com um filho. De volta ao
cia da morte do pai, repentina, ocorrida às primeiras Recife nossas cartas só tratavam de problemas práticos,
.. horas da manhã. Já fora enterrado e o tempo se encar- uma vez por semana, aos sábados, eu estava em
regava de apagar as dores, distanciar o impacto, po- Palmares, para voltar no primeiro trem da segunda-fei-
dendo-se, a frio, conversar em tomo do acontecimento. ra, noivando de braço dado no Jardim Público, escolta-
Consolei Ruth, passamos algum tempo juntos, prometi- do por uma irmã de Ruth, presenteando o menino com
lhe que, à tarde, estaria em sua casa. Quando ela saiu, caramelos e brinquedos, as carícias escassearam, não
voltei-me para Mãe Néa: havia mais pressa. Mãe Néa, porém, passado o instante
-E agora? de sentimentalismo e vendo o rumo real que as coisas
- Agora? - disse-me ela. - Você tem de pedi-la tomavam, passou a uma oposição ferrenha, monopoli-
em casamento. zando vizinhas e parentas para os disse-que-disse, os
Deu uma tragada no seu cigarro de fumo desfia- mexericos, as lamentações pelo filho que se sacrificava,
do, encarou-me: deixando escapar, à hora das refeições, perfídias que
- Agora, ela é uma viúva sem pai e filho meu somente eu entendia, palavras subentendidas, boatos,
não faz papel safado. como "Viram uma calçola dela, estendida no arame,
Estava tocada pelo lado folhetinesco da minha manchada de esperma. E no meio da semana". Agüen-
aventura, com os olhos cheios de lágrimas, sentindo-se tei enquanto pude para, finalmente, romper com a

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família, Mãe Néa gritando de um lado, eu do outro, fechadura e vi-a nua, ensaboando-se, a água correndo
filho desnaturado, não sei corno o meu ventre gerou como cascatas por seu corpo longo, moreno-claro, todo
esse monstro, a senhora tem ciúmes de mim, meu Deus eu concentrando-me no pênis, afastando-me às pressas
do céu, que infâmia! Quando ia a Palmares, nos fins de quando ela já se empoava e perfumava. Depois, foi a
semana, hospedava-me no Hotel de Doroteu e passava minha vez do banho, com cuidados exagerados de sa-
ao largo da casa familiar, instintivamente fugindo de bonete, tive o pressentimento de que ela também me
encontros, não me mostrando muito com Ruth. espiava e a certeza quando, repentinamente, abri a por-
Com talheres, copos e lençóis emprestados p ela ta, ela fugindo com um grito e uma risada nervosa, eu
Mãe de Ruth, com alguns móveis comprados a presta- a perseguindo, molhado, para derrubá-la na cama, des-
ção, aluguei uma casinha nos Aflitos, colocando minha pindo-a, com todas as luzes acesas, penetrando-a e go-
pequena estante em lugar privilegiado para olhar os ra- zando-a, uma, duas, três, quatro, cinco vezes, a luz não
ros títulos: três volumes de Dostoievski, Guerra e Paz, nos dava a impressão da noite, mas esgotados, pelos
alguns Balzac, o Picwick Paper's, poucos brasileiros, al- vidros da janela, vimos que o dia nascia. Então, da sua
gumas traduções em castelhano, Bodas de Sangre e vulva explodiram cinco cristais d e fogo que me quei-
Cancionero Gitano, de Lorca. Ruth, urna semana antes maram pelos anos afora.
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do casamento, veio para a casa de urna prima, torna-


mos juntos as últimas providências e numa manhã
ensolarada, qua tro amigos como testemunhas, casamo-
nos, no meio de urna dezena de outros casais, no Palá-
cio d a Justiça. Agradecemos aos amigos e desaparece-
mos para o almoço, indo depois à Estação Central olhar
o menino que chegava com uma tia, no trem da tarde,
vendo-o de longe, não iríamos vê-lo durante um mês.
Para encher o tempo fomos a uma vesperal de cinema,
lembro-me vagamente do filme: um vendaval, um esca-
fandrista, um polvo gigante, ocupado com o corpo de
Ruth a té onde era possível ocupá-lo. Jantamos na cida-
de, andamos p elas ruas, de mãos dadas, fazendo hora.
Às nove, tornamos um bonde que nos deixou na es-
quina da rua, abrimos o portãozinho, o jasmim-cachor-
ro estava desabrochado e seu perfume vogava na noi-
te. Entramos na casa meio acanhados, canhestros, ainda
me passou pela cabeça carregá-la nos braços como vira
os casais fazerem em tantos filmes am ericanos, mas a
idéia era ridícula demais. Desfizemo-nos das roupas em
quartos separados, para guardar o mistério, Ruth foi
tornar banho, pé ante pé fui espiá-la pelo buraco da

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mulher o seu passado não me interessaria. Mas qual!
Eu remoía idéias, envenenava-me aos poucos, sua pre-
sença seria o atestado de que ela pertencera a outro,
com as m esmas intimidades, a mesma maneira de go-
zar com o rosto retorcido, os mesmos atos de após a
cópula. Uma manhã, finalmente, quando cheguei para
o almoço, encontrei-o, falador, correndo por dentro de
casa, chamando-me de pai, sentando-se conosco à mesa,
10 comendo de maneira que me desagradava. Eu notava a
O homem deve ser artista nem que seja pra fazer cachimbo de barro. ansiedade no olhar de Ruth e procurava, esforçando-
PORFÍRIO FAUSTlNO, ceramista me, tratá-lo com carinho, mas sabia que não a engana-
va. Meus nervos só agüentaram mesmo três dias, por-
que, a propósito do modo como ele, Roberto, se servia,
lambuzando-se, deixando a comida cair na toalha, ar-
mei uma cena dos diabos, uma tempestade de raiva,
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cai no irracional, expulsei-o da mesa, proibi que Ruth


se levantasse para consolá-lo, emburrei o resto do tem-
po, a amargura perseguiu-me durante todo o dia. À noi-
te, quando regressei, ela estava como sempre, no portão,
à minha espera, o sorriso não se modificara, o menino
Nossos primeiros tempos de casados decorreram já h avia esquecido a bronca e corria para mim, desar-
numa tranqüilidade idílica: Ruth me acordava com bei- mando-me, jogando-se nos meus braços, eu o atirando
jos, pela manhã, servia-me o café, preparava-me o ba- para o ar e amparando-o, às gargalhadas. Desse dia em
nho e ficava no portãozinho me acenando até que eu diante exerci sobre mim uma disciplina m edieval, in-
tomava o bonde. Nossas refeições eram entremeadas de corporando-o definitivamente ao meu mundo, aceitan-
brincadeiras e, à noite, dávamos longos passeios a pé, do-o como coisa minha, tratando-o com amor, embora
íamos ao cinema do bairro ou então nos deixávamos tivesse de sufocar, com um ferro em brasa, as coisas
estar em paz, deitados na cama larga, eu lendo em voz que gritavam dentro de mim.
alta para ela, até que, aos poucos, o· desejo subia e nos Ainda bem dois meses não se haviam passado
entregávamos um ao outro. quando recebi urna carta da irmã mais velha manifes-
Somente duas coisas me preocupavam seria- tando o desejo que Mãe Néa tinha de ir passar uma
mente: minha situação na América Latina e a vinda do temporada conosco. Alegrei-me com a idéia, embora
menino. Eu já não tinha mais bancos a que recorrer, Ruth se arrepiasse, suas antenas mais poderosas que
lançava-me à avidez dos agiotas, encalacrava-me; esfor- as minhas, prevendo cenas desagradáveis. Mas eu não
çava-me por aceitar o filho de Rutl1 como coisa inde- pensava assim, somente na paz universal, e quando
pendente de minha vida com ela, fiel ao que sempre ela chegou cerquei-a de cuidados e confortos, tudo
pensara: que quando me apaixonasse mesmo por uma correndo bem nos primeiros dias. Pouco a pouco, no

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entanto, Mãe Néa foi pondo as mangulnhas de fora, e meia, oi to da noite, bebendo e mijando, quando eu
em p equenos fatos coticüanos, em falas e atitudes, mas- chegava em casa Ruth estava, pacientemente, costuran-
sacrando os nervos de Ruth que chorava às esconcü- do um timão ou tricotando um sapatinho de lã, à mi-
das. Coisas como: "Ele não gosta de galinha desse jei- nha espera para o jantar. Nunca nos recollúamos antes
to"; ou: "Pra que esse pegadio danado a toda hora?"; da meia-noite, ela na costura, eu tentando rabiscar uma
ou: "Você precisa cuidar melhor do meu filho, ele está novela que não sabia muito bem como continuar, pa-
magro". Inexplicavelmente ela se dava bem com o me- rando cüas numa página, escrevendo contos mais ou
nino, mas seu ciúme em relação a mim e Ruth crescia menos ruins que publicava n' A Manhã, sabendo que ti-
a tal ponto que quando eu queria dar um presente à nha alguma coisa a dar, mas não encontrando o meio
minha mulher tinha de fazê-lo às esconcüdas ou então de transpor as idéias para o desgraçado do papel em
inventar que fora mandado pela mãe dela. Olhava-nos branco. Iniciei uma série de artigos sobre teatro,
pelo buraco da fechadura e ia para a cozinha resmun- Valderedo d' Almeida não perdeu a oportunidade para
gar com a cozinheira: "Já estão aq ueles dois n a rebater minhas idéias, mas a turma do Savoy me apla u-
safadeza". A tensão era terrível. Se ficávamos em casa dia e gritava que a salvação de toda a merda que se
quase não nos falávam os, se saíamos ela se lamentava, fazia no Recife estava em mim, fui sendo procurado
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se recebíamos visitas trancava-se no quarto. Tínhamos por estudantes que me pediam conselhos, incücação de
de colocar um pan o pendurado na chave quando nos peças, o que deveriam fazer.
amávamos, tapando o buraco da fechadura, assustados E foram os estudantes que promoveram uma Se-
como d ois prevaricadores imorais, sentindo a presença mana de Cultura, onde falariam um sociólogo, um psi-
dela, sua ronda por dentro de casa, seu pigarro, seu q uiatra e um homem de teatro. O homem de teatro fui
murmúrio indignado. Um cüa Ruth me comunicou que eu, escrevendo uma longa conferência sobre as moti-
estava grávida e nossa alegria foi empanada por uma vações políticas e sociais da arte dramática. Chovia sem
descompostura de Mãe Néa, de narinas acesas, gritan- parar na noite em que tive de ler a conferência e, por
do que não continuaria naquela casa como cúmplice da isto, apenas uns doze gatos pingados compareceram ao
nossa pouca vergonha. Arrumou seus teréns e obrigou- Gabinete Português de Leitura. Reunimo-nos, então, em
me a levá-la para Palmares, num trem de domingo pela volta duma mesa comprida e despejei minhas idéias,
manhã, não trocando uma palavra comigo durante as debatidas, discutidas, provocando entusiasmo, dali mes-
quatro horas da viagem. mo se partindo para a fundação de um grupo que lu-
Acostumei-me a freqüentar uma roda de intelec- tasse por tudo aquilo, não somente na forma mas no
tuais que se reunia, às seis da tarde, no Bar Savoy, be- conteúdo, sacudindo de vez a burguesia teatral repre-
bendo chopes, discutindo a guerra e a política brasilei- sentada pelos Amantes do Teatro. Escolheram-me como
ra, uns escrevendo versos no mármore das mesinhas, diretor do grupo, logo batizado como Teatro do Estu-
outros desenhando mulheres nuas, o arquiteto Feijó pro- dante de Pernambuco, mas havia uma inconveniência: eu
jetando ecüfícios mirabolantes onde as ajurupocas pre- não era estudante. Isto, porém, não foi obstáculo sério
dominavam, todos falavam, sem peias, das suas pre- porque, p or sugestão da própria Ruth, poderia matri-
tensões, a rrasando os da geração passada, os cular-me na Faculdade de Direito para os vestibulares
acadêmicos, os fósseis. Ficávamos no bate-papo até sete que se realizariam dentro de dois meses.

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Minhas noites passaram a ser consumidas no es- ventre não podia ficar inerte, teria de originar vidas e
tudo do latim e na preparação de um repertório para o delas cuidar.
grupo que se iniciaria logo que eu fosse aprovado, como Finalmente chegou o dia dos vestibulares, eu de
se esperava. A barriga de Ruth crescia, sua saúde não férias da América Latina, a zoada dos estudantes en-
andava lá muito boa, de um médico para outro, eu já chia os corredores da Faculdade de Direito, lembran-
não sabia de onde tirar mais dinheiro e, numa tarde, a do-me os cursos fracassados de Química e Medicina, só
notícia desnorteante: a criança, com oito m eses, teria de que daquela vez eu tinha um programa extracurricular
passar por um parto artificial porque, a continuar como a cumprir, o curso sendo apenas um pretexto. Eu e
estava, a morte de minha mulher seria inevitável: per- Holanda, um romancista ainda não revelado, éramos
da m aciça de albumina, cilindrúrias, nefrite. Entreguei- os mais velhos da turma, no trato com adolescentes a
a aos médicos de uma maternidade, assisti ao seu suplí- quem ainda não conhecíamos, os veteranos poupando-
cio: enfiaram-lhe uma agulha no ventre, injetando um nos, já que tínhamos conhecimentos anteriores, mas os
líquido no útero para enchê-lo e fazer que ele expulsas- feras, como sempre, sofriam nas suas unhas. Os dias se
se a criança. Ruth, sem um gemido, agarrada à minha foram nos exames de escrita e oral, passavam-nos colas
mão, suava em bicas: escandalosas, toda uma tradução do texto em latim no
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- Estou vendo o mundo todo azul. . . Como é verso de um calendário que ostentava uma rosada mu-
bonitinho... tudo azulzinho ... As bolinhas .. . 6 que lher nua, nas orais nossa embromação de literatos sa-
sensação gostosa ... Eu estou voando. .. toda de azul .. . tisfazia aos professores. Fomos aprovados e comemora-
no azul .. . mos o fato com uma bebedeira extra no Bar Savoy, além
Durante horas foi aquele tormento, terminado às de um jantar em minha casa onde Holanda me expôs o
onze da noite, com o nascimento. Era um menino, roxo, plano de um romance cujo personagem principal seria
encarquilhado, entregue aos cuidados de enfermeiras, a própria cidade do Recife.
dei-lhe, outra vez, meu sangue, uma, duas, três vezes, Durante os vestibulares eu conhecera uns tipos
morreu ao fim do terceiro dia, minha cunhada colocou- que me pareciam diferentes dos demais pelo talento que
o numa caixa de papelão e providenciou o enterro. Não já demonstravam: Adriano, irreverente, contador de his-
quis vê-lo, bastava a lembrança dos seus olhos quando tórias, principiante de poeta, metendo-se numa discus-
minha vida corria para a dele, tentando fixá-lo ao mun- são com o professor de literatura a propósito de Camões,
do, em vão. Ruth ficou inconsolável e só fazia repetir: a quem ele esculhambava só por pirraça; Aliocha, com
"Era a coisa que eu mais desejava. ·. . a coisa que eu a sombra de um bigode, desenhando mulheres bem
mais desejava..." Sua natureza moura, porém, reagiu comportadas e paisagens impressionistas; Lourenço,
e ao fim de duas semanas já se movimentava com o caladão, dele dizia-se que tinha versos em penca na ga-
mesmo desembaraço de antes, à frente das coisas, pre- veta da pensão, onde compartilhava o quarto com um
parando-se para nova fecundação, espicaçando-me, ti- poeta já conhecido dos suplementos literários, o Pacífi-
rando-me o livro das mãos às duas da madrugada, ar- co de Holanda, tipo dos mais extraordinários e que,
ranjando as guloseimas de que mais eu gostava. A mais uma vez, repetia o primeiro ano; o Pontes eu já
mesma mulher de antes se movimentava no trato das conhecia desde a noite de minha conferência, mas
providências domésticas e toda se recompunha, que seu outros eu conheceria depois como o Braga Cabana, de

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gargalhada escandalosa, mulherengo, o único de nós as frentes de batalha. Era uma agitação contínua e, om-
que tinha um carro e que nos saudava todas as manhãs bro a ombro, formávamos; católicos, comunistas, pro-
com a frase: "Abril chegou: sê minha" ; o Ivan testantes, indiferentes, oportunistas, agnósticos, tudo
lvanovitch, ateu empedernido, louco por um bate-papo, numa mesma onda contra a escravidão política; e corrí-
dado a socos e brigas de mentira pelos corredores da amos listas de adesão que eram impressas em tipogra-
escola; o Perseu Branco, pequenino, sempre sungando fias, clandestinamente, já que os jornais continuavam
as calças com os cotovelos, marxista feroz, de uma arrolhados. Quando Prestes foi solto, depois de dez anos
dialética maciça, discutindo aos gritos com a sua voz de cativeiro, esperávamos que a arrancada para o po-
esganiçada; Frei Angélico, assim chamado pela sua do- der fosse uma avalanche, mas sua atitude nos desnor-
çura católica, queimando as pestanas com a Suma Teo- teou, embora não esmorecêssemos na luta e continuás-
lógica de Santo Tomás de Aquino, unha e carne com a semos a gritar com o mesmo entusiasmo. Até que veio
irmã também nossa colega, deles copiaríamos, no futu- o comício da Pracinha, a polícia atirando nos manifes-
ro, todas as provas parciais, já que passávamos a maior tantes, Demócrito, o estudante, e Elias, o operário, tom-
parte do tempo no bar da escola, jogando impugno, dis- baram em nome da liberdade, a onda cresceu, nada mais
cutindo arte e literatura, p reparando a estréia do Tea- poderia detê-la, cada vez estávamos mais afoitos. E de
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tro do Estudante; afora os agregados, como o Rocha, repente, a notícia maior: a capitulação dos alemães,
milionário, que possuía um pequeno projetor e todos imprensados entre russos e aliados, logo depois os ja-
os filmes de curta metragem de Carlitos, passando-os poneses se rendiam, era o fim da guerra, e quando os
de trás para a frente, indo depois para os Estados Uni- norte-americanos começaram a abandonar nossa cida-
dos estudar física nuclear, lá ficando dois anos e vol- de fiz um discurso em memória de LL. Vencíamos em
tando sem falar uma palavra de inglês, mas com qua- terras estrangeiras e em terras brasileiras, o Pequenino
trocentos discos de jazz; e o Epifânio, que queimava as afastando-se do poder.
aulas de medicina para se incorporar à nossa turma, Dentro dessa efervescência estreou o Teatro do
um rnínúco de mão cheia, contando-nos as mais deli- Estudante, com uma peça que era uma das nossas ma-
ciosas histórias somente com gestos. neiras de protestar contra os fascistas: O Segredo, de
Inverti o expediente na América Latina, passando Sender. Não queríamos os teatros oficiais e achávamos
a parte burocrática para a tarde, reservando as manhãs que a Faculdade de Direito deveria ser o nosso centro.
para a cobrança, o que me facilitava permanecer a mai- Improvisamos um palco com as enormes mesas de mog-
or parte do tempo no bar da escola, ·uma vez ou outra no da biblioteca, amarradas umas às outras, cercadas
assistindo a uma aula, só para constar e garantir a fre- com uma rotunda preta, pregávamos o despojamento
qüência. O país se agitava com a redemocratização e a por fidelidade ao texto e também por pobreza. Durante
velha escola entrava na luta. Fazíamos comícios nos cor- dois meses, todas as noites, ensaiamos no quintal de
redores e nos aliávamos aos políticos que lutavam con- minha casa, esmiuçando as intenções de Sender,
tra o Pequenino, agitando os bairros operários, distri- transportando a ação de sua peça da Espanha para a
buindo panfletos, não perdíamos a ocasião de, em Alemanha, por causa da censura policial, vestimos os
qualquer esquina, lançar o verbo contra a ditadura, atores com uniformes nazistas, valemo-nos de Cardoso
tudo coincidindo com o avanço dos aliados em todas Ayres, o pintor, para as sugestões de cena. Depois dos

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ensaios varávamos as noites em discussões que provo- outro elemento do grupo: o Pinho Moraes. Começou,
cavam protestos de vizinhos, já que Holanda, com o então, nossa peregrinação por sanatórios, fábricas, pre-
seu boqueirão, só sabia discutir aos berros, as mentiras sídios, orfanatos, até o dia em que um louco dum con-
propositadas de Adriano levando-nos a gargalhadas tra-almirante, da Base Naval do Recife, atendeu ao nos-
homéricas. Ruth preparava alguns quitutes, bebia-se so apelo e construiu, segundo projeto do arquiteto Feijó,
muito, derrubávamos os ídolos, mas exaltávamos uma barraca, para o nosso teatro ambulante. Pronta a
Piscator, no teatro, Picasso, na pintura, Prokofiev na barraca, plantamo-la no Parque 13 de Maio, num espe-
música, Hemingway no romance, Langston Hughes na táculo que arrastou rrúlhares de pessoas, mas quando
poesia. E como se tudo aquilo não bastasse fundamos quisemos transportá-la para outro lugar vimos que a
uma editora, em combinação com A Folha, jornaleco armação havia sido construída de maneira tão sólida
onde eu era o crítico de teatro, lançando um livro de que mais parecia um armazém das docas. Não dispú-
contos de Holanda, poemas de Lourenço e peças mi- nhamos de meios para armá-la e desarmá-la, para
nhas, os mitos gregos entrosando-se com as alegrias e tran sportá-la aos centros pobres. Fica m os numa
as tristezas do Nordeste. Ficamos nesses três lançamen- entaladela. Adriano propôs:
tos porque a vendagem foi diminuta, jamais consegui- - Só tem um jeito.
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mos pagar o débito, eu assinava promissórias para as - Qual?- indaguei, desanimado.


despesas imediatas do Teatro, complicava ainda mais a - Vamos nos valer da tática de Hitler - disse ele.
minha situação financeira, algum dinheiro da América E diante da minha cara de espanto: - Tocam os fogo na
Latina serviu para ajudar a arte nordestina. barraca.
A estréia foi um acontecimento pela peça-protes- -Você está doido!- exclamei.
to, pela nova maneira de interpretar, pelo desprezo aos - Assim nos livramos desse trambolho e botamos
elementos externos do espetáculo, pela palestra que pro- a culpa para os nossos inimigos.
nunciei antes de começar a representação. Estudantes Disse e caiu numa gargalhada estride nte. Lá
de direita iniciaram uma vaia, mas estávamos preveni- permaneceu a barraca com que havíamos sonhado, sem
dos para o que desse e viesse, éramos em maior núme- meios para utilizá-la, agüentando chuva e sol, a té que
ro, abafamos suas vozes raquíticas, houve troca de bo- a doamos a um orfanato e a varremos da lembrança.
fetadas nos corredores e os jornais, já então libertos, Voltamos a funcionar em pequenos palcos, sobre tudo
abriram colunas sobre o fato. Nosso propósito era re- nos centros operários, onde representávamos Lorca para
presentar para o povo, levando-lhe o teatro em vez de lavadeiras, cozinheiras, estivadores, metalúrgicos, tece-
esperar que ele viesse até nós, sacudindo-o com os te- lões, as mulheres levando os meninos que berravam, a
mas da sua compreensão. O que nos interessava eram representação tendo de parar de instante em instante,
os clássicos e os autores da região, que teríamos de for- pedíamos silêncio que se fazia por um breve tempo, o
mar dentro das novas idéias, certos de que sem drama- vozerio, os gritos, os choros voltando com maior
turgos próprios jamais teríamos um teatro nacion al. intensidade. Mas nos consolávamos pensando que
Montamos Lorca e Ibsen, Sófocles e Shakesp eare, assim deveriam ter sido representados Pl a uto e
Tchekov, revelamos Adriano com As Harpas de Sião e Shakespeare e não parávamos em nossas andanças.
nos valemos do mamulengo com peças escritas por Fracassada a editora valemo-nos de outros meios,

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lançando as primeiras mesas-redondas sobre re- amigo, que passou a viver na vida diária aquilo que
presentações populares no Brasil, a série começando representava no palco. Várias vezes tive de tirá-lo, por
com o mamulengueiro Cheiroso, o poeta de literatura arruaça, da cadeia. De uma delas quase batia com os
de cordel João Martins de Ataíde e um palhaço de cir- ossos no manicômio: depois de haver agredido uma
co. A discussão entre os nossos e os acadêmicos pe- puta entrou em luta com a polícia, foi levado à presen-
gou fogo, demolíamos tudo o que fosse arte bem com- ça do delegado, interpelado brutalmente. Vasconcelos
portada, promovemos a exibição de um bumba-meu-boi revoltou-se ainda mais:
e bradávamos aos quatro ventos que os dramaturgos -Cão! Sabe com quem está falando? Está falando
estrangeiros eram uns bundas-sujas, que podíamos ter com Otelo!
nossa própria dramaturgia. Dávamos o exemplo com Não sei que alma caridosa telefonou-me às três
peças nossas, promovendo concursos, incentivando os da madrugada e lá fui eu tirá-lo das garras dos enfer-
jovens através de minha coluna da Folha, em debates, meiros que queriam metê-lo numa camisa-de-força.
conferências, palestras, artigos, numa enxurrada de pa- Adriano e mais outros dois tomaram banho, nus, no
lavras e letras. Recebíamos artistas e escritores de fora, Capibaribe, ao romper do dia, defronte da Secretaria
os que nos pareciam estar de acordo com as nossas de Segurança; Epifânio, o mimo, apaixonou-se por Ruth,
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idéias, impúnhamos nossos atores a diretores de cine- curtiu porres tremendos e acabou se convencendo da
ma, como o português Leitão de Barros, e à noite, em impossibilidade do seu amor; Perseu gritava discursos
minha casa, quando não estávamos ensaiando uma comunistas e vivia se escondendo da polícia. Tudo isto,
nova peça, caíamos em discussões tremendas sobre os ao lado de nossa atitude revolucionária quanto ao tea-
nossos pontos de vista, que pessoalmente sempre dis- tro, não nos colocava bem perante a cidade e vivíamos
cordávamos uns dos outros, apenas unidos em torno nos comentários das pessoas mais sisudas.
do ideal comum, divergindo nos detalhes, mas unâni- Um dia, por intermédio de Terezinha, que já se
mes em reconhecer que pretendíamos uma arte teatral fizera amiga de Ruth, recebi urna visita inesperada. Tra-
nova para o Nordeste. E não somente uma nova arte tava-se de um colombiano alucinado, que vivera mais
teatral, mas um novo romance, uma nova poesia, uma de um ano com uma tribo do Alto Amazonas para
nova música, uma nova pintura. aprender a língua, desembarcando no Recife com a rou-
Terezinha viera do Rio, filha de um líder católico, pa do corpo e uma maleta de papelão onde guardava
para ensinar literatura hispano-americana num colégio três cachimbos, uma muda de camisa e cuecas, alguns
de freiras. Incorporou-se ao grupo, mas Ruth morria de livros e manuscritos de peças de teatro e poesias. De-
ciúmes dela e armou algumas cenas comigo, a sós, em- sembarcara pela manhã, viajando na terceira classe de
bora eu protestasse a mais sincera inocência. Em nos- navio nacional, metido numa roupa tão grossa que mais
sos espetáculos ela recitava poemas de Lorca musicados parecia destinada ao Pólo Norte, suando em bicas de-
por Capiba, manejava os bonecos de marnulengo e ter- baixo do sol ardente, mastigando um cachimbo cujo
minou por interpretar Desdêmona, uma Desdêmona fumo empestava tudo num círculo de trinta metros em
pequenina, de voz fraca, mas sem ser grande atriz volta. Era baixo, atarracado, musculoso, vivo, ágil, ro-
tinha sinceridade, contrastando com a violência de sado, a cabeça muito grande para o resto do corpo, seus
Vasconcelos, o nosso Otelo, sujeito insubordinado, mas sapatos de sola dupla mais pareciam coturnos. Falava

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espanhol com uma pressa desgraçada, dava risadas e lavado, não perdia o mau cheiro. Asseado, com horá-
foi logo confessando que sua única fortuna guardada rio para comida e dormida, levando uma vida folgada,
no bolso da calça consistia em cem mil-réis provenien- Buenaventura foi, aos poucos, perdendo a espontanei-
tes de uma conferência que fizera em Manaus. Tere- dade e já não nos contava suas histórias entre os ín-
zinha era mulher de bom coração e hospedou-o, às suas dios e outras que inventava como a do planeta onde o
custas, numa pensão barata da rua do Hospício, arran- ato imoral era o do comer, os habitantes tendo a boca
jando-lhe umas aulas de literatura espanhola num vago oculta por um pano e alimentando-se às escondidas, às
Instituto que ela mesma dirigia, mas o Buenaventura, claras copulando, defecando, urinando. Buenaventura
como se chamava, logo ficou enfeitiçado pela cidade e foise tomando chato e por mais que eu tentasse con-
não dava bola para os compromissos, preferindo vencer Ruth de que deveríamos soltá-lo ela teimava em
perambular pelo cais do porto, descer o rio em barco, trazê-lo domesticado, eu vendo .nos seus olhos o deses-
andar horas sem fim pelas praias de coqueiros, subir e pero do cão selvagem atado a uma corrente. Um dia,
descer as ladeiras de Olinda, à noite fazendo parte do não sei como, imaginei-o como a Morte chegando a
nosso círculo, bebendo e fumando, comendo pouco, fa- uma casa disfarçado de andarilho e em duas semanas
lando horas sem fim de uma peça que tinha projetada escrevi uma peça, que lhe dediquei, com o título de Um
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sobre Cristóvão Colombo, achando a de Claudel uma Paroquiano Inevitável. Neste mundo de sonho, ele renas-
bosta, tentando convencer-nos que o genovês era o ver- ceu, imaginou uma montagem surrealista, desgrudou-
dadeiro Cristo americano, o primeiro homem uno e mis- se de vez da casa e voltou à sua vida de vagabundo,
tico a florescer em nosso território. A turma entrosou tendo deixado um poema escrito a carvão no muro do
logo com Buenaventura, apesar da oposição inicial de jardim. Desapareceu durante dias e quando voltou ti-
Adriano, como sempre desconfiado, considerando arri- nha a barba crescida, os olhos injetados, seu hálito fe-
vistas todos aqueles que não eram da primeira hora, dia a aguardente e a fome, recusou o banho que Ruth,
intransigentemente batendo-se pela honestidade do gru- finalmente conformada com a sua maneira de ser, pre-
po em todos os sentidos, a tal ponto que um dos nos- parara; em pedaços de papel, grandes e pequenos, tra-
sos atores, o Píndaro, so&era um verdadeiro inquérito zia todo o esquema da montagem do Paroquiano, exi-
inquisitorial, terminando por ser expulso do clã sob sus- gindo dirigir a peça, pedindo que se convocasse o
peita de pederastia. elenco, atirou-se ao trabalho, gritando numa mistura de
Buenaventura escrevia poesias em papel de em- castelhano e português, exigia horas sem fim de repeti-
brulho, em sobrecapas de livros, andava quilômetros a ção, os atores se irritavam, as brigas surgiam mas ele
pé, comendo aqui ou acolá, sujo de meter dó, a inter- desconhecia melindres e caras fechadas, quando todos
valos sendo obrigado a trancar-se dois dias enquanto a iam embora ficava passeando dum lado para o outro,
lavanderia punha em condições seu único temo. Che- o cachimbo com fumo de feira espalhando seu fedor,
gou a um ponto que não tinha onde cair vivo e por dormia, finalmente, debaixo da mangueira.
isto Ruth permitiu hospedá-lo, obrigando-o, porém, a A peça foi um fracasso tremendo, atingiu apenas
um banho diário, dando-lhe camisas e cuecas minhas, cinco representações, Buenaventura queria dar urna sur-
levando-o ao alfaiate para a confecção de um temo ra no decano dos críticos e amaldiçoava o público en-
de brim, que o dele, de casimira, por mais que fosse chendo a boca de tantas porras quantas podia gritar,

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não houve argumentos que o convencessem a manter- mais ignorante da cidade, a dos burgueses, tentando
se calmo, rondando a redação do jornal em que traba- meter-lhes na cabeça a arbitrariedade poética daqueles
lhava o tal crítico, armado de porrete, dando-nos um espetáculos sobre os quais baseávamos os nossos, leva-
trabalho enorme, obrigando-nos a telefonar ao colunis- dos ao ridículo pelos colunistas anquilosados, lutando
ta que se escafedia pela porta dos fundos quando o com desaforos e palavras das m ais ásperas, esbravejando
colombiano estava na da frente ou peJa da frente quan- e tentando demolir tudo o que se opusesse à nossa ca-
do ele estava na dos fundos. Finalmente desistiu, tran- minhada. Foi assim que me meti, durante noites se-
cou-se dias no quarto sem querer falar com ning uém, guidas, em tudo quanto foi terreiro de arraba!de, con-
fez a g reve da fome, mas Ruth tanto bateu em sua por- versando com mestres de bumba-meu-boi, pastoril e
ta que ele a abriu para receber uma descompostura, de mamulengo, vendo e ouvindo suas representações,
cabeça baixa. Barbeou-se, tomou banho, comeu e me te- abestalhado diante de tamanha carga poética, compa-
lefonou dizendo ter um negócio importante a tratar, mas rando-as com o mundo da commedia dell'arte e dos es-
particularmente. Encontrei-o no Savoy, tendo recusado petáculos elisabetianos ou os do Século de Ouro espa-
o chope, baforando o cachimbo, eu esperando que ele nhol, as sugestões levando o público a criar juntamente
quebrasse o silêncio. Finalmente falou: com os atores, num desprezo total às teorias aristotélicas.
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- Yo me voy. Aprendi em poucos meses com esses histriões popula-


A princípio não entendi o que queria dizer, mas res mais do que poderia aprender em qualquer escola
em seguida me confessou que estava farto de todos nós, de arte dramática, principalmente meios de expressão
que detestava a cidade, que precisava de dinheiro para autênticos, motivos regionais com repercussão univer-
tomar o primeiro navio. Não procurei demovê-lo da sal, num encadeamento que vinha dos cômicos popula-
idéia. De lá saímos para uma agência de navegação, ha- res latinos.
via um barco para o sul no dia seguinte, comprei sua Vivia insone, emagrecia, o trabalho na América
passagem, recusou-se a voltar à minha casa, não queria Latina me desgostava cada vez mais, eu estava real-
mais ver ninguém, pediu-me que lhe levasse a maleta mente num atoleiro, cada data de conferência de con-
a bordo. No dia seguinte, encontrei-o no cais. Tomou a tas era um tormento antecipado de dias para cobrir a
mala, meteu a mão no bolso do paletó e deu-me um diferença. Mas não era só isso que me deixava inquie-
livro. Era uma coleção de histórias de Thomas Wolfe e, to. Tudo lá m e a borrecia, a começar pelo pau de
abrindo-o, vi o desenho de uma das pontes que corta- Aderaldo colocado no lado direito, os agentes na ga-
vam o Capibaribe, apenas umà palavra escrita: nância das comissões, chorando suas misérias aos pés
" Recuerdo", sem assinatura. Apertou-me a mão e su- de deuses inacessíveis que não arredavam um milíme-
biu a escada do navio, desaparecendo. Ainda esperei tro no cumprimento da conta corrente, os funcionários
para ver se surgia na amurada, mas, por minha ve..., subalternos explorados, sugados, brutalizados pelos su-
enervei-me com a demora e caminhei para a cidade. periores que compareciam a almoços do Rotary Clube
Durante dias sofri piadas do grupo e diatribes de e a reuniões dançantes no Internacional, ostentando,
Ruth. Terezinha mostrava-se triste com a partida do co- com orgulho, um botão de ouro que os identificava
lombiano, mas outras coisas nos preocupavam, como a como membros daquela sociedade de plutocratas. Quan-
necessidade de oferecer folguedos populares à classe do morria um dos segurados, imediatamente o agente

l,
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que fizera o seguro procurava o filho mais veJho, o pa- que eu transportava para a córnea, a fim de que o mun-
rente mais próximo, explorando a morte, tocando-o nas do mudasse de cor, mas logo o jogo me cansava e eu
cordas sensíveis, convencendo-o da excelência da me- me abstinha sequer de pensar, bastando-me com o de-
dida, agindo em cadeia, as mãos ávidas de agentes ri- leite da distensão total, ouvindo, apen as, o sangue cor-
cos e pobres extraindo um pouco de dinheiro daquela rer nas veias e a queda das gotículas espermáticas no
mina que jamais se esgotava, era de vomitar. Era de grande saco depositante. A outra parte da minha vida
chorar ver os olhos acovardados das viúvas p obres e subterrânea eu a compartilhava com Ruth, misturando
os olhos brilhantes d as viúvas ricas, assistir a certas bri- meu sangue ao dela, tramando na sombra do quarto
gas de herdeiros, na dúvida de beneficiários, na ganân- nossos entendimentos, com o calor do seu corpo, de to-
cia do dinheiro, urubus na carniça. Era de rir assistir a das as partes do seu corpo, numa perfuração contínua
uma cantada de agente num usineiro corado, barriga sempre renovada, numa exploração de planícies e va-
crescida, indiferente, por natureza, a proventos post- les. Eu a tomara de tranças e a via de cabelos curtos,
mortem, deliciado na sua vida de amante em Boa Via- encaracolados; magra, com os ossos da bacia à mostra,
gem e excursões p eriódicas ao Rio e à Europa. Que lhe e a contemplava cheia de carnes, arredondada, brilhan-
adiantariam mais alguns milhares de cruzeiros dentro te; leitora de novelas para solteironas e a assistia às vol-
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da engrenagem do Deve e Haver, dos financiamentos tas com os meus romancistas e os meus poetas, lendo
periódicos do Banco do Brasil? Nem tomavam conheci- ingleses, franceses e alemães em traduções castelhanas;
mento do que possuíam em terras, maquinaria, casas, discutia, com propriedade, problemas de teatro e seu
palacetes, sequer do que deviam, no esbanjamento, na instinto era infalível no prognóstico de aceitação does-
exploração dos cassacos, dos caldeireiros, dos torneiros, petáculo. Tinha suas implicâncias e nem sempre con-
dos trabalhadores do eito, tudo vindo de séculos, cris- cordava comigo: "Aquele sujeito n ão presta" - dizia
talizando-se, formando uma camada impermeável de de um, e quando, realmente, o tal sujeito praticava uma
indiferença, como se nada os abalasse, como se aquilo safadeza grossa, ela triunfava: "Eu não lhe disse"? Con-
continuasse por toda a eternidade. denava minha ingenuidade no trato das pessoas e ca-
Dividindo-me entre a América Latina e o Teatro racterizava-se pela franqueza rude com que atacava os
do Estudante, entre a angústia do ganha-pão e a amigos, sem poupar ninguém, mas não fugindo do pre-
obrigatoriedade da luta para me afirmar como artista, paro dos quitutes e das bebidas para as nossas noita-
eu, sem asas, tinha, à parte, minha vida subterrânea, das. Seu traço mais característico no convívio de grupo
ainda fiel às minhas origens. Uma parte dessa vida eu era a ilimitada capacidade de descobrir o lado ridículo
a vivia para mim somente, no traçado dos planos e dos das pessoas e botar-lhes apelidos, qua se todos
sonhos, construindo túneis que me levavam a paragens surrealistas, de uma propriedade cômica irresistível. A
ignoradas pelos mortais, vez por outra descansando con- um chamava de Cabeça da Medusa, a outro de Reduzi-
tra a terra úmida e roxa das profundezas, num silêncio do, a outro de Cara Dentro d'Água, a outro de Pomada
tão total que tinha a sensação de estourar os tímpanos, Minâncora. Eu sentia que o grupo a aceitava, ela fizera
mexendo em formigas, vermes, cogumelos, mergulhan- mesmo alguns amigos, mas todos possuíam um certo
do as mãos em riachos frios ou quentes, escavando os medo dos seus modos e da sua dureza, que consistiam,
dedos dos pés de onde nasciam fungos avermelhados sobretudo, na defesa daquilo que ela julgava ser os meus

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interesses, não admitindo, nem de leve, que se le- lado de tudo isto, sua honestidade carnal: Epifânio apai-
vantasse a menor objeção aos meus atos. Não fugia, tam- xonou-se por ela e ela o tratou como a um colegial, dan-
bém, de um certo prazer em esmiuçar a vida alheia, do-lhe conselhos maternais, aniquilando-o; Alvaro, o
preocupando-se com a idade das pessoas, sobretudo a pintor, tentou um cerco, caindo na besteira de atrever-
das mulheres com quem convivia, comprazendo-se com se a um beijo furtivo e foi corrido a vassouradas, embora
um pequeno escândalo, comentando-o até as últimas continuassem amigos; Caldas cutucou-a por debaixo da
conseqüências, leitora voraz de jornal, a par, portanto, mesa e ela, com a maior sem-cerimônia do mundo, dis-
de tudo o quanto se passava no mundo. Eu costumava se, alto e a bom som: "Cuidado que você me rasga as
dizer-lhe, em tom de brincadeira, que, pegando um jor- meias". Era mulher de um homem só e desse homem,
nal, lia desde a expressão "Ano tal" à palavra "hoje", eu, extraía tudo o que desejava para seu deleite de car-
isto é, "enterrou-se hoje", não escapando nem mesmo ne e espírito, sem nenhum pejo declarando-me o maior
os anúncios. Seria uma contista do cotidiano se quises- sujeito do mundo, o mais generoso, o mais honesto.
se disciplinar sua escrita e canalizar suas observações, Veio, de tudo isto, o respeito que lhe guardei e o reco-
mas a vida era mais importante para ela, principalmen- nhecimento da sua doação total, absoluta, inequívoca.
te na formação da muralha que seu amor formava em Somente uma vez atreveu-se nos caminhos ·da arte,
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volta de mim, tudo em função do que eu era e do que quando Albuquerque, o cineasta, chegou ao Recife para
eu fazia. Vez por outra tinha acessos furiosos de ciú- rodar um filme cuja história pretendia ser nordestina.
mes, todos injustificados, pois eu me tomara monógamo. Albuquerque, para mim, era um mito, ausente há cerca
De um para outro, porém, no silêncio das noites ou no de trinta anos do Brasil, responsável, entre outros, pelo
alvorecer dos dias, no território da cama, Ruth era, to- movimento de vanguarda do cinema francês na década
das as vezes, uma mulher sempre nova, nunca uma re- de vinte, dos anos trinta em diante produzindo e diri-
cusa lhe passara pela cabeça, entregando-se e exigindo gindo filmes na Inglaterra, citado em todas as antologi-
com o mesmo entusiasmo dos primeiros dias, doando- as especializadas. Chegou com a sua educação européia,
se da ponta do dedo grande do pé aos cabelos da cabe- dando-se a todas as bebidas, pelando-se por uma ca-
ça, havendo de atravessar partos complicados e abortos chaça de cabeça, refinado, amigo de Cocteau, Picasso,
obrigatórios sem uma queixa, seu sangue correria abun- Michael Redgrave, David Lean, sua vida era fascinan-
dantemente no sacrifício que renovava com a mesma te, possuía uma casa em Capri, dividia o tempo entre
alegria selvagem, humana, pura. Transformava-se, com Paris e Londres, convivera com personalidades impor-
o passar do tempo, numa mulher mais rica, absorven- tantes, agradável no trato, num instante se identifican-
do experiências, germinando seu exclusivismo, lutando do com os frutos e as cores da região, saudosamente
contra a sedução do teatro e a absorção a que a arte me subindo e descendo as ladeiras de Olinda, de onde saí-
obrigava, no fundo desejando que eu fosse um homem ra sua mãe, varando as noites a bebericar pinga com
de proporções limitadas para me ter mais. Por isto, tal- limão ou gim com água e contando-nos histórias fan-
vez, nunca quis ser uma atriz, sua ajuda consistindo tásticas de pessoas, filmes, cidades. Nem todo o grupo
nas providências externas ou nos conselhos que, na o aceitou, mas seu trabalho merecia respeito e era, na
maior parte acertadamente, me dava em nosso territó- verdade, o primeiro cineasta de projeção internacional
rio particular, em nossas conversas de cama e mesa. Ao a preocupar-se com as coisas do Nordeste: a caatinga e

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o mar, as danças e os tipos, as estórias. Nã.o sei quem, todos se hospedando num velho casarão colonial de
no Sul, lhe indicara meu nome para escrever os diálo- Olinda, embasbacados com o mar e o verde da folha-
gos do filme, trabaJho que aceitei com entusiasmo, o gem. Liguei-me, mais estreitamente, ao argentino, ao
pouco dinheiro que haveria de me pagar não me inte- armênio e ao espanhol, uma estranha mistura, que o
ressando lá grande coisa, atraindo-me o campo novo argentino era descendente de alemães, vez por outra
que se abria e a perspectiva de ligar meu nome ao dele, deixando escapar sua tendência nazista, enquanto o es-
à sua obra. O roteiro, adaptado de um filme mudo que panhol brigara ao lado dos republicanos e me contava
ele rodara, há anos, na França, não me parecia grande sua estranha história quando, derrotados, tivera de atra-
coisa, mas com um pouco de inteligência tudo se trans- vessar a fronteira, encerrado num campo de refugiados
formaria em função do Nordeste. da França. Acompanhei a fiJmagem tanto quanto pude,
Trabalhávamos à noite, assistidos por Ruth que mas aquela arte mecânica não me fascinava muito, meu
não deixava nossos copos vazios, Albuquerque andan- trabalho maior sendo o de ensaiar os atores nos diálo-
do quilômetros em volta da sala, baforando cigarros, gos, mas me cansando com a repetição das tomadas,
eu na máquina, desenvolvíamos o diálogo tomada por cinco, dez, quinze, trinta vezes, Albuquerque aos gri-
tomada, discutíamos termos, eu o orientava no linguajar, tos, as atrizes chorando, os atores neófitos baixando a
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às vezes ele custàva a compreender o significado de cabeça, toda aquela complicação de filtros, rebatedores,
uma palavra, fazia uma ginástica mental para adaptá- noites filmadas de dia, cenários construídos falsamen-
la ao inglês ou ao francês, quando sua cara rosada se te, posição do sol, espera interminável que as nuvens
iluminava eu via que tinha acertado no alvo. Inter- se afastassem. Albuquerque triunfara na Europa por-
rompíamos a tarefa apenas para engolir uns ovos me- que era uma das peças da máquina. Chegando ao estú-
xidos com presunto e cerveja gelada, mantínhamos gran- dio, pela manhã, já encontrava todas as coisas provi-
des silêncios, mas Jogo a máquina voltava a matraquear denciadas: produção, cenários, pertences, o diabo a
a madrugada e o trabalho avançava. quatro. Mas no Nordeste ele tinha de ser a própria má-
O grupo andava chateado com a núnha reclusão guina, tinha de improvisar, trabalhando no campo; foi
e ainda mais chateado ficou quando Albuquerque, na metendo os pés pelas mãos, bebendo cada vez mais,
escolha do elenco, não incluiu ninguém do Teatro do indispondo-se com o fotógrafo, com o assistente, brigas
Estudante, preferindo atores que não tivessem experiên- surgiam a cada instante, ele afogava toda a amargura
cia e que ele pudesse plasmar à sua vontade. "Quem nas bebedeiras noturnas; no dia seguinte, pela manhã,
faz o ator é o diretor" - dizia, dogmaficamente, provo- estava mais ou menos imprestável, punha-se em dúvi-
cando discussões terríveis em que ele só fazia sorrir de da sua machidão, os boatos corriam depressa. De qual-
maneira superior, o que irritava ainda mais o pessoal, quer modo, o filme se arrastava, entrando e saindo mês,
muitos deles só aparecendo depois de telefonar e inda- os magnatas de São Paulo atrasando a remessa do di-
gar se o gênio estava ausente. nheiro, o trabalho parando, Albuquerque, nessas oca-
A filmagem começou quando a equipe técnica che- siões, entregando-se a bebedeiras com efebos nos bares
gou de São Paulo. Havia um polonês, iluminador; um de beira de pra ia. Havia o utras longas esperas
argentino, arquiteto; um armênio, assistente de pro- enervantes provocadas pelas chuvas, todos estavam com
dução; um francês, fotógrafo; um cortador, espanhol; os nervos a descoberto, era um pandemônio. Foi nessa

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altura q ue ao chegar em casa, numa hora de almoço, maneiras européias, seus paletós de tweed e os sapatões
soube que Ruth fora arrastada para fazer uma ponta, à avermelhados.
falta de uma atriz apropriada para o papel de mãe. Fui - Já viu homem usar calça daquela cor? - pergun-
vê-la em Rio Doce, maquilada, vestida como mulher de tava um.
pescador, piscando no reflexo dos rebatedores, repetin- - Ai, ai, meu Deus! - contorcia-se outro.
do, repetindo, gesticulando e chorando numa cena de - C uidado com ele, Ruth - ameaçava o terceiro.
desgraça, eu a sentia deslocada naquele mundo que não Eu caía na besteira de dizer que cor de roupa e
era o seu, a custo conseguia vencer o acànhamento, num vida privada nada tinham a ver com o talento e eles
intervalo da filmagem segredou-me: me desancavarn. Tudo terminava na maior das galhofas,
- Isso é uma merda. esvaziava-se a garrafa de uísque e no fim da noite os
Varou a tarde e a noite, regressando extenuada, pratos sujos estavam ali para provar que mais um rega-
jurando por todos os santos que jamais voltaria a fazer bofe se realizara.
um papel ridículo daqueles, amaldiçoando Albuquerque Um dia a casa caiu. Fui surpreendido com a
que ria de ter lágrimas nos olhos. designação de três funcionários para a minha seção na
Finalmente, um dia, a filmagem terminou, nada América Latina, dado o vulto que tomava o negócio de
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mais havia a fazer no Recife, todos regressariam ao Sul seguros em grupo e, entre eles, um cobrador. Isto que-
para o trabalho de laboratório, o copião tinha sido exi- ria dizer que o controle do dinheiro escapava das mi-
bido privadamente e aprovado, mas para mim aquilo nhas m ãos e que eu teria de repor a diferença antes d o
em nada se parecia com o Nordeste, sem contar com a dia da conferência. Andei cecas e mecas atrás de di-
canastrice dos atores e o amontoado de coisas típicas nheiro emprestado, os bancos estavam numa fase de
que o diretor, na sua embriaguez pelo exótico, encaixa- arrolhamento, os agiotas se mostravam esquivos, eu não
ra no filme, tomando-o muito mais um documentário tinha a migos a quem recorrer e os dias corriam com
que uma obra de ficção. uma rapidez incrível. Perdi o sono, tratava mal os ato-
O grupo voltou a reunir-se para projetar uma nova res durante os ensaios, estava até mesmo ríspido com
peça, uma obra minha, O Vento do Mundo, tenta tiva de Ruth q ue, com as suas antenas, me crivava de pergun-
colocar em versos livres a tragédia de um chefe de es- tas. As perguntas ainda m ais me irritavam., principal-
tado moderno. Mas durante os primeiros dias só fize- mente porque eu já notava nela uma certa desconfian-
ram me espinafrar pela colaboração dada a Albuquer- ça em relação a mulher, adotando a tática da ironia e
que. Adriano gritava: · das indir etas, reclamando em tom galhofeiro p orque eu
- Aquilo é um vigarista! não a procurava para os atos de cama. Finalmente, des-
- Um burguês anquilosado! - acrescentava Perseu. cobri um sírio do Pátio do Mercado, por indicação de
-Um superado!- berrava Ivanovitch. Cebolinha, que poderia me emprestar o dinheiro a ju-
Somente Aliocha alisava o bigode e ria com Lou- ros de dez por cento ao mês, com uma garantia sólida,
renço, bebericando uísque, rabiscando mulheres, homens de comerciante. Outro trabalhão m e deu encontrar o
e paisagens no seu caderno de estudos. Eu e Ruth de- comerciante, mas me vali dum joalheiro portug uês, ator
fendíamos o cineasta, mas aí os três m ais violentos do Amantes do Teatro, especializado em p apéis de cri-
a tacavam sua vida pessoal e levavam ao ridículo suas ado, sem saber como, de que m aneira iria ressarcir a

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dívida, mas o que interessava, no momento, era sair do pílula. Durante quinze dias fiquei à espera de uma de-
atoleiro, limpar-me. Arranjado o dinheiro preparei o for- cisão, que finalmente chegou: a América Latina me
mulário de depósito e, em vez de pedir ao cobrador, demitia, indenizando-me, o que já era uma grande coi-
dando-lhe urna desculpa qualquer, que o recolhesse, eu sa, o reconhecimento de que não houvera falcatrua.
mesmo desci as escadas para o primeiro andar, apresen- Tudo me foi comunicado pelo Mendonça, que nada quis
tando-me ao caixa. Dei um suspiro de alívio e nem li- receber por sua prestação de serviços, indicando-me que
guei ao olhar meio estranho de Olivério. Dele partiu, deveria comparecer, no dia seguinte, ao Caixa, para en-
às escondidas, toda uma investigação. Deve ter partido trar na posse do que me era devido. Lá compareci, o
da pergunta: "Por que ele e não o cobrador?" Isto o Olivério, de cabeça baixa, não querendo olhar para um
levou, eu soube depois, a comunicar o fato ao gerente, ladrão, passando-me as notas depois da necessária as-
o gerente a mandar emissários às três fumas constantes sinatura no recibo de quitação. Chamei-o, com toda a
do depósito para saber a data dos pagamentos. O resto delicadeza:
foi fácil: confrontando a data do recibo com a do reco- - Olivério, meu velho, queria um favor seu.
lhimento, verificava-se que eu passara um mês com o Só então ele ergueu a cabeça, intrigado, mas re-
dinheiro retido. Fui chamado ao gabinete do gerente, velando um desprezo total:
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onde entrei despreocupadamente, para ouvi-lo desmas- - Que é?


carar-me, bradar aos céus pelo fato de eu haver feito Calmamente embolsei o dinheiro e falei, com a
jogo com o sagrado dinheiro da América Latina e sus- voz mais de cordeiro deste mundo:
pender-me de minhas funções. - Aqui no corredor, por favor.
- Vou comunicar o fato à matriz - asseverou. Ele ainda hesitou um instante, mas diante do meu
Como um criminoso, sem argumentos, saí de lá sorriso desceu a portinhola do Caixa com o mesmo gesto
de crista baixa, mas com meia hora de reflexão verifi- automático e preciso que executava há anos, fechou a
quei que meu crime não era tão grande quanto acha- porta central a chave para contornar a sala, eu me afas-
vam, já que eu nada roubara, já que, espontaneamente, tei um pouco na direção dos elevadores e o esperei.
recolhera o maldito dinheiro, já que eles o haviam re- Sua figura pequenina, enfezada, os cabelos muito bem
cebido. No décimo andar trabalhava um advogado, o penteados com brilhantina, os suspensórios azuis sobre
Mendonça, pessoa de minhas relações, a quem recorri, a camisa alva, a calça frouxa na cintura, que sofria de
explicando-lhe o fato. Mendonça era homem de ação. colite, era repugnante. Veio para mim já mais confian-
- Deixe comigo. te, sem dúvidas, no passo miúdo.
Disse e, no mesmo instante, desceu, para um - Diga - falou.
entendimento profissional com o gerente, ameaçando-o Mas eu lhe parti a palavra curta pelo meio com
de uma ação, coisa que os graúdos da companhia temi- um soco violento no estômago. Ele emitiu um som cavo
am mais que ao Fute. De qualquer modo, porém, eu e curvou-se em dois, parecia uma haste quebrada, dei-
estava suspenso, o zunzum corria pelas salas, cometera lhe um golpe no pescoço com a lâmina da mão, caiu
o sacrilégio maior de mexer no dinheiro da organiza- corno uma tulha de bosta, apliquei-lhe um pontapé na
ção. Cheguei em casa com uma desculpa, declarando- bunda e, calmamente, desci as escadas do primeiro an-
me de férias, mas Ruth, senti, não engoliu muito bem a dar, sem me voltar, limpo, de alma pura, completamente

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lavado, só me faltava um uísque. Atravessei a rua, en- espaços, invasões subterrâneas, fugazes, rápidas, que o
trei no Munich Bar, e tomei dois, puros. rebanho estava por apascentar, com tantos úberes pre-
Ao chegar em casa desfiei toda a história para nhes de leite escuro, alimento mágico, mas somente
Ruth. Ao contrário do que eu esperava ela não teve ne- urna Vulva contava para mim e nela eu mergulharia
nhuma surpresa. para todos os atos: da fecundação, da morada, dos ban-
- Eu já sabia - disse. quetes, do descanso, do sonho, das batalhas. Que me
Não lhe perguntei como. Respeitava seus dons importava perder as qualidades divinas, até mesmo a
adivinhatórios, suas qualidades de piton:isa, gostava de memória de minha origem, se as tarefas de Homem me
profetizar e raramente errava nos prognósticos. Almo- chamavam? Eu deslizava pelas ruas e via, reais, os pos-
çamos em paz, dormi a tarde toda e, como sempre, saí tes de luz elétrica, os bondes, as pessoas, o asfalto, um
para o meu ponto no Bar Savoy, o dinheiro daria para mendigo, a grande cúpula noturna, não mais visitaria
alguns meses, o agiota estava varrido da minha cabeça, estrelas mas percorreria os campos, não seria mais en-
em último caso o avalista joalheiro, contrabandista co- cantado pela lua mas pelas dores, o maná me parecia
nhecido, poderia desfalcar-se duma migalha dos seus um alimento insosso quando o sangue fazia seu cha-
haveres, nenhum escrúpulo me incomodava nesse sen- mado, gritando em jatos, borrifado na cara dos ímpios,
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tido. A roda estava formada, barulhenta, os ditos se entrando pelas fendas da terra e, germinando em gi-
cruzavam, como sempre se falava mal dos inimigos li- rassóis vermelhos, provocando espanto, eu calmo, em
teratos, os da geração de botina e colarinho duro. Fui paz, não me caberia a culpa se os outros se inquieta-
engolindo chopes, contando histórias, minha verve es- vam com as minhas batalhas nem sempre gloriosas,
tava particularmente aguçada naquela noite, ninguém nem sempre limpas, nem sempre honestas, mas fe-
podia competir comigo, eu me sentia dono do mundo, cundantes em amarguras e alegrias, de qualquer modo
capaz de atos extraordinários, voltava à minha condi- espalhando cristais que feriam ou curavam, entrando
ção de ser alado e flutuava dentro dos vapores. Quan- na carne, deixando marcas na substância íntima. Para
do o garçom veio dizer-me que o telefone me chamava, uns, santo; para outros, demônio; cretino ou gênio; me-
tive dificuldades em caminhar até o aparelho, para ou- díocre ou espantoso; cada um me vendo do seu ângu-
vir a voz de Ruth advertir-me: lo, e eu, às gargalhadas ou aos choros, na corrida para
-Vai passar a noite na rua? a santidade.
Entoei, para ela, uma velha canção de amor, com
voz pastosa, mas ela não achou graçà e voltou a falar:
-São nove horas, seu cara.
Que me importavam as horas? Meu ciclo se fe-
chava: fora mensageiro, roubara vacas, voara nos céus
do Recife, traficara, praticara o roubo, protetor de la-
drões e comerciantes, fecundara deusas e mortais, en-
tregara-me à embriaguez. Já podia despojar-me de mi-
nhas vestes olímpicas e estabelecer residência definitiva
na terra, somente sobre a terra, permitindo-me, a

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-
descansando os tentáculos nodosos e escuros em nos-
sos sexos, reanimando-os.
De tudo nos dávamos, perdida a lembrança do
morto, esquecido o sapato, já então nos tempos difíceis,
minha situação se agravando a cada dia que passava, o
dinheiro da indenização minguando nas contas domés-
ticas, nos chopes e na compra de livros que Ruth com-
11 batia mas que eu insistia em adquirir porque entrara
Preparai broquéis e escudos: avante! Ao combate! num caminho para o qual precisaria de munição, de
]EREM1AS
idéias, de comparações, de aprendizado. Mas Ruth,
quando metia uma idéia na cabeça, custava a desviar,
importando-se exclusivamente com as necessidades ime-
diatas, sem nenhuma crença no Acaso, no desespero da
sobrevivência, sonhando com uma casa própria e
proventos gue Lhe dessem a certeza da comida diária e
A porteira do mundo - 144.jpg

da veste, sem luxo, para o corpo. Ela mesma deu o


exemplo de sua determinação, despedindo as emprega-
das, passando a cozinhar, lavar, arrumar com a mesma
cara alegre. Somente uma coisa a fazia chorar como uma
desesperada, sentada no chão, criança desvalida: a lim-
Eu fui um remidor e como tal dei-lhe o meu sa- peza da geladeira a querosene. Com as mãos sujas de
pato, o sapato em memória do morto, além de outras tisna, suada, as lágrimas lhe correndo pelo rosto sentia-
prendas, outros valores: desde o óleo para o cabelo e se como uma alma perdida e custava a readguirir o
a seda para o corpo ao alimento para a alma. Assim equihbrio, somente o dia seguinte lhe trazendo sosse-
tive de agir, de acordo com os costumes e o amor, a go, mas vez por outra falando da próxima limpeza. Não
princípio ela deitada aos meus pés, e quando eu des- parava nos mil cuidados da casa: do tanque para a fa-
pertava, de madrugada, apenas roçava-a, mas quando xina, correndo à cozinha, a noite pegando-a de tal ma-
a cobri e revelei as miragens do seu corpo, a memória neira cansada que nos bate-papos com o pessoal do te-
do morto deixou de ter importância e menos impor- atro, já sem bebida ou comida, cochilava de meter dó.
tância ainda que eu andasse calçado, que me desnu- Caia na cama como uma massa de chumbo, nem mes-
dasse às claras, que todos os nossos acidentes geográ- mo desperta para o ato do amor, transferindo-o para o
ficos fossem batizados: cabos, ilhas, m ontes, vales, alvorecer, quando eu era que não me sentia muito bem
fendas, tronco de carvalho, poços, florestas, rios; até disposto, envernizando, a custo conseguindo um orgas-
mesmo criamos um pequeno oceano p ara nosso uso mo que era muito mais a vontade de terminar para con-
particular, nele pescando anêmonas, caravelas, maris- seguir a micção matutina do que um prazer completo.
cos azulados, polvos minúsculos de mil braços que Nunca perdi o sono e nunca deixei de comer para
nos entrelaçavam nas tempestades, nas calmarias ficar ruminando o impasse. Não me sentia irresponsável

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nem responsável, apenas deixava q ue os dias corressem batizava, sem perder totalmente o humor, como o do
e que o inesperado acontecesse, sob uma forma ou ou- Uísque para a Cachaça.
tra ele teria de chegar. Também não sofria recriminações E como se tudo aquilo não bas tasse, Ruth
de Ruth quando varava as horas agarrado a um livro ou engravidou. Ficamos noites seguidas de olhos duros dis-
as noites preparando um novo espetáculo; ela nada me cutindo, em todos os pormenores, o que deveríamos fa-
dizia quando eu chegava ligeira mente embriagado ou zer: do aborto ao nascimento. Os antojos chegaram vio-
quando trazia, de surpresa, um amigo para almoçar ou lentos e ela, entre vômitos, geria seu território como uma
jantar; mas me fazia advertências quando me via com fera, jamais uma queixa, urna acusação ao m eu modo de
um novo livro debaixo do braço, lembrando-me as con- ser largado, à algazarra dos atores, a barriga crescendo e
tas do padeiro, do verdureiro, do leiteiro, do bodegueiro. as complkações surgindo, conseguíamos médicos de gra-
Nessas ocasiões e u lançava mão dos meus encantos, ça através de conhecimentos, ela não teve acanhamento
agarrava-a, dançava uma valsa, caíamos no sofá, eu a de solicitar o enxoval à Legião Brasileira de Assistência,
bolinava, ela ria, o livro ia para a estante. Vi-a tristonha eu me valia de amostras grátis para sua medicação.
no dia em que um oficial de Justiça invadiu nossa casa, Uma noite, no Savoy, bebendo às custas de ami-
com um mandato de penhora, levando a eletrola, deixan- gos, p assei um pouco da conta e dei para tagarela,
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do mudos Beethoven, Mozart, Str avinski, Vivaldi, confidenciando minhas desgraças ao vizinho da direi-
Palestrina, Bartok, Louis Armstrong, Noel Rosa e as can- ta, precisamente o Neves, intelectual de quase dois
ções de Lorca por ele mesmo tocadas ao piano. A saída metros de altura, cuja maior finalidade na vida era fa-
da eletrola coincidiu, realmente, com o fim do meu di- zer um curso de biblioteconomia, bom sujeito, retraído,
nheiro, não havia nem trocados para os cigarros, a bebi- preparando sua cultura com muita meticulosidade, tido
da me fa zia falta, os fornecedores nos assediavam, ven- e havido como sujeito de muito bom gosto. Durante a
ciam-se as promissórias que eu assinara para o Teatro do minha cantilena Neves não abriu a boca para lamentar
Estudante, o agiota, que me salvara da América Latina ou aconselhar. Apenas, no meio do monólogo, meteu a
e que eu apaziguava com o pagam ento de juros, amea- mão no bolso interno do paletó, dele extraiu urna ca-
çava levar a letra ao contrabandista de jóias. Começamos, derneta e tomou nota de alg uma coisa, mas só liguei
então, a vender tudo o que fosse supérfl uo, tudo o que importância ao fato depois que tudo aconteceu. Nessa
não fossem panelas, pratos, toalhas, lençóis, talheres, rou- noite tive a primeira discussão séria com Ruth, ambos
pa d o corpo. Um clube de música comprou nossos dis- com os nervos à flor da pele. Recebeu-me de maneira
cos, os sebistas deram uma ninharia pelos meus livros, estranha, acostumado que estava à sua docilidade:
os quadros foram sendo vendidos, um a um, a amigos - Boa hora de chegar !
que ficavam com eles mais para nos ajuda r. Não havia - Eu estava no Savoy - expliquei, como se aquilo
dinheiro que chegasse p ara o amontoado de nossas dí- fosse a solução para tudo.
vidas, dívidas que eu aumentava com facadas em alguns -E quem é que não sabe? - redargüiu ela.- Bas-
conhecidos de posses, criando mil histórias para agar- ta sentir o seu hálito.
rar o pato, pagando um pouco aqui, o utro pouco ali, re- Deu-me as costas, sem o beijo costumeiro, andan-
vigorando o crédito dos que nos forneciam víveres, do em direção à cozinha, resmungando qualquer coisa.
as compras restritas ao máximo. Era um período q ue eu Segui-a, já com o sangue m eio quente.

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- Que é que você está dizendo aí? em torno do seu próprio corpo e subiu, correndo, a es-
- Nada. Não é da sua conta. cada. Fiquei plantado no meio da sala, completamente
- Tenha a coragem de dizer, ande - ataquei. - zonzo, abri o barzinho na esperança ridícula de encon-
Pode acusar-me de relaxado, de irresponsável, de mole. trar algo para beber, mas lá só havia copos e o balde
Ela parou e me encarou, surpresa. Apenas balbu- de gelo, objetos que me irritaram ainda mais. Sentei-
ciou: me no terraço, balançando-me, a boca amarga, pouco a
- Não quero brigas. pouco caindo no arrependimento. Fui à cozinha, engoli
Mas eu não desisti. pedaços de carne com arroz, depois bebi um copo
- Lamente-se do marido que tem. Diga que está d'água gelada e acendi um cigarro, as mãos trêmulas,
grávida, doente, precisando de coisas e eu trocando per- tentando vencer a vontade de subir a escada para pe-
nas pelos bares. Vamos, tenha coragem pelo menos uma dir perdão a Ruth. Ainda cheguei a tocar no corrimão,
vez na vida. mas ouvi palmas no portão da frente. Eram Lourenço e
Ruth estava pálida, amparada no portal e eu sen- Aliocha, com uma garrafa de uisque, presente inespe-
tia um gosto esquisito de machucá-la, descarregando rado e oportuno. Preparamos a bebida e logo estáva-
nela minha incapacidade, atacando-a com receio de um mos mergulhados numa discussão acirrada sobre arte e
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ataque. Ficamos em a titude de ga to e cachorro. Final- literatura, eu me sentia leve, rejuvenescido, vez por ou-
mente, as lágrimas começaram a lhe correr pela cara tra Ruth passava por minha cabeça, mas já deveria es-
abaixo, voltou-se, encostou o braço na porta, nele es- tar dormindo àquela hora. Quando os dois saíram era
condendo o rosto, a custo ouvi-a balbuciar: mais de meia-noite. Subi, tirei a roupa no escuro, silen-
- Sou uma infeliz... ciosamente para não acordar a mulher, deitei-me com
Minha raiva cresceu, tirei o paletó, joguei-o em o mínimo de barulho, dando-lhe as costas. De repente,
cima dum móvel e gritei, no meio da sala: porém, ela me abraçou, ainda chorando, dizendo:
- Não reconhece nada que eu faço! Só porque es- -Por que fez isso comigo?
tou atolado nessa merda já começa a dar parte de fra- Senti-me menor que um mucuim, insignificante,
ca. Onde é que você podia ter, assim mesmo, uma vida mesquinho, voltei-me e apertei-a em meus braços, suas
melhor? Tirei-a do interior, dei-lhe um outro meio, fiz lágrimas lambuzando-me o rosto, já nos confundíamos
de você uma pessoa! Isto vai passar, está ouvindo? Vai entre a tristeza e o prazer, as penas se afastavam cada
passar! E então eu quero ver a sua cara! vez mais e o que nos impulsionava era o desejo, vio-
Tive vontade de lançar-lhe o filho nas ventas, mas lento, áspero, total; e mergulhamos um no outro, fenda
aquilo doeria também em mim, e o que eu queria era e tronco na mesma torrente espumosa.
machucá-.la na sua vaidade, absolutamente injusto, ir- A notinha tomada pelo Neves em sua caderneta
racional: revelou sua eficácia sob a forma de um m otorista
-Pensa que me comove com o seu choro? Eu es- fardado, em carro oficial, descendo em meu portão três
tou com a consciência em paz porque tirei você da dias depois, de quepe na mão, convidando-me a
merda e o que você devia fazer era lamber o meu cu! acompanhá-lo à Diretoria de Cultura. Lá fui, intrigado,
Tudo de um mau gosto, de uma cretinice enor- no elevador vagaroso que me levou à cúpula do Pa-
me, eu tinha a consciência disto. Ruth deu uma volta lácio da Justiça, onde funcionava a repartição. Neves

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recebeu-me com um sorriso e um abraço apertado, man- Naquele período que se sucedia à queda do
dando que me sentasse, dizendo apenas "Como van" e Pequenino estávamos, era nossa crença, em p lena
estendendo-me um papel. Foi o primeiro documento ofi- redernocratização, com os galinhas-verdes completamen-
cial que me chegou às mãos, em forma de portaria do te depenados e o Partido Comunista tomando um im-
prefeito, nomeando-me assistente da Diretoria de Cul- pulso cada vez maior, dando ao País uma consciência
tura. Não soube o que dizer, abobalhado. Neves mos- de esquerda, a esperança de que, finalmente, as reivin-
trava-se de uma gentileza extrema: dicações proletárias seriam uma realidade. O interventor
- Não está contente? Falei ao Thales Silveira so- do Estado era um bond oso professor aposentado, por
bre você e o resultado aí está. Parabéns. formação um peito-aberto, bonacheirão, conduzindo o
Estendeu-me a manopla que apertei, agradecido, governo corno se desse aulas, todos respirando e falan-
um bolo na garganta, eu era mesmo uma besta redon- do livremente. Fizera três nomeações importantes que
da. Neves continuava falando, explicando minhas fun- estavam dando resultados para o povo: um engenheiro
ções, a Diretoria só tinha a ganhar com um intelectual arrojado na Secretaria de Viação e Obras Públicas, um
do meu tipo para as várias tarefas de publicações, ex- médico de visão humana na de Saúde e Thales Silveira
posições, documentação da vida cul tural e artística da na Prefeitura.
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cidade. Havia um mundo de coisas a realizar e ele, o Thales Silveira era, na verdade, o primeiro prefei-
Neves, na ausência do diretor, o José Costa, sujeito dado to de tendências socialistas que a cidade tinha. Baixo,
às coisas do mar, em missão no sul do país, achara um gordo, rápido, movimentava-se com a convicção de que
jeito de favorecer-me. estava construindo um governo sadio, atento para to-
- Não tome isto como favor - disse. - Creia que dos os problemas, conquistando o povo com suas ati-
muito nos interessa sua colaboração. tudes desassombradas, as lendas já correndo a seu res-
Apresentou-me ao pessoal que se desincumbia das peito. Contava-se que, disfarçado de operário, metido
várias tarefas num ambiente que me pareceu atraente, num macacão, aparecia nos vários lugares - mercados,
todo cercado por grandes murais de Di Cavalcanti, li- obras, logradouros públicos - pegando pela gola os fun-
vros, objetos de cerâmica, enormes fotografias de cionários inescrupulosos e fazendo justiça ao povo. Sua
caboclinhos, rainhas de maracatu, passistas, cavalos- campanha contra os açambarcadores do peixe durante
marinhos, o porto, os telhados do bairro de São José. a Semana Santa fico u como um sinal de batalha; sua
Almoçamos juntos naquele dia, para comemorar. De luta contra os p roprietários gananciosos que impediam,
propósito, pelo telefone, nada disse ·a Ruth, mas depois por todos os meios, a derrubada dos pardieiros para a
do almoço tive a coragem de pedir duzentas pratas ao abertura de ruas, como um alerta de que havia homem
Neves e com o dinheiro comprei uns brincos de fanta- ao leme; sua intransigência contra os tubarões e seus
sia para a minha mulher e uma garrafa de Macieira cin- despachos nos processos, como garantia de honestida-
co estrelas. Cheguei cedo, dei-lhe o presente, vendo o de. Valia, então, a pena trabalhar com um homem des-
espanto em seus olhos, bebi uns cálices de conhaque, se tipo naquilo que eu podia dar, ajudando-o no ampa-
larguei a notícia. Ruth dançou no meio da sala com a ro à cultura.
barriga já empinada, os olhos brilhantes, uma bailarina Lancei-me, por isto, com todas as forças, nas tare-
sem jeito. fas da Diretoria de Cultura, entrosando-me com o José

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Costa, poucos dias depois de minha nomeação tendo -O Borba comunista? Ótimo! Já tenho um oficial
ele voltado e o Neves seguido para a sua bolsa de de gabinete que foi integralista, assim a balança per-
biblioteconomia. Foi com ele que aprendi a amar ainda manece equilibrada - bradou, com ironia.
mais as manifestações folclóricas, foi com ele que sabo- Mergulhei, então, no mundo administrativo, para
reei as frutas dos mercados populares, dele ouvi histó- acompanhar o ritmo do seu trabalho, tendo de mourejar
rias do mar, da sua vida de piloto de navio costeiro, ao das sete da manhã às oito da noite, almoçando às pres-
seu lado assisti a folguedos populares, selecionei folhe- sas, a cabeça fervendo de tantos problemas. Era o uni-
tos de literatura de cordel, senti a oculta poesia do por- verso das petições, requerimentos, despachos interlocu-
to, aprendi a amar a cidade, a sua cidade, que a minha tórios, a tendimento às partes, processos, inquéritos,
estava plantada na zona-da-mata e só tinha lobisomens, tentando consertar urna máquina obsoleta, os funcioná-
caiporas, iaras, bêbados de feira, mestres de samba-de- rios cheios de vícios e malandragens, raramente uma
matuto. Pude ver, com ele, pela primeira e última vez pessoa pedindo audiência para propor um negócio ho-
na minha vida, como urna repartição poderia estar tão nesto. O prefeito não deixava escapar nada, os despa-
perto das manifestações do povo e como poderia reali- chos que ele teria de assinar deveriam ser muito bem
zar tanta coisa movida apenas por um ato de fé e de redigidos, claros, sem margem a dúvidas, as outras se-
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amor do seu chefe. Realizei, sob sua inspiração, repre- cretari.a s acumulavam-me de pedidos, providências, re-
sentações teatrais, concursos, festivais de cinema, parti- clamações; o telefone não parava de tocar, não havia
cipei da instalação de bibliotecas populares nos diver- escala de recebimento que servisse, o gabinete invadi-
sos bairros, de discoteca, de folguedos carnavalescos, do por dezenas de pessoas, mal derrubava urna pilha
de publicações as mais diversas, vivíamos num mundo de processos já outra se formava ao lado. Universo es-
próprio, eu estava como um peixe n'água, pela primei- tranho de funcionários injustiçados ou desonestos, uns
ra vez tinha uma profissão que se casava com o meu morrendo de fome e outros passando de barriga forra,
modo de ser, em casa voltavam as bebidas e as contas o mecanismo tinha mil braços e alguns desses braços,
pagas em dia, a barriga de Ruth crescia, tudo numa quase sempre, precisavam ser cortados com violência,
tranqüilidade, num trabalho, numa tarefa. Tudo isto em mas renasciam, era um nunca acabar, demitia-se um fis-
muito pouco tempo, porque logo Thales Silveira exigiu cal que recebera urna bola de dez cruzeiros, mas n ada
minha colaboração mais direta, nomeando-me Secretá- se podia fazer, por falta de provas, contra um diretor
rio-Geral da Prefeitura, ligado diretamente a ele. As ca- que, ganhando o salário normal, possuía automóvel e
madas mais conservadoras, os políticos de direita e os casa própria em Boa Viagem, urna granja em Carpina,
retrógrados enxergaram perigo na minha nomeação para uma vida de rico; lutava-se contra a demora de infor-
cargo tão importante e procuraram bombardear, junto mações, a resistência passiva, suspendia-se um fun-
ao interventor, a decisão de Thales Silveira. Acusavam- cionário e a mulher nos aparecia com uma ninhada de
me de comunista, de perigoso para aquela missão; fi- filhos, comovendo-nos, obrigando-nos a relaxar a me-
casse com as coisas da arte que, segundo o ponto de dida; batíamo-nos contra os loteamentos fraudulentos
vista deles, nenhum mal faria, ingênuos, burros, des- de companhias estrangeiras, os jornais nos atacavam,
crentes do pensamento. Nada, porém, demoveu Thales mergulhávamos num pântano de interesses, de isenções
Silveira. prediais, de multas escamoteadas, o orçamento mal dava

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afundando na escuridão dum cinema para fugir ao in-
para as necessidades mais imediatas, quase todo absor- ferno da Prefeitura, vendo a barriga de Ruth crescer
vido pelo funcionalismo; a alta do custo de vida e a como um balão, ela já andando como uma pata-choca,
ganância dos comerciantes nos sufocavam, tínhamos de felizmente com dinheiro para cuidar-se em médicos,
manter um esforço tremendo para que a torrente não exames, alimentação racional. Recusara todas as
nos levasse, cada papel devia ser examinado com o má- investidas que as damas da sociedade fizeram a fim de
ximo cuidado, poderia conter uma armadilha, um erro aliciá-la para chás, reuniões, natais de crianças pobres,
transformava tudo no irremediável. Daí só falarmos aos campanhas beneficentes, torcendo a cara no seu gesto
gritos uns com os outros, as horas de despacho com
característico e afirmando:
Thales Silveira eram verdadeiras batalhas, não podía-
mos vencer o tempo mas insistíamos; se conseguíamos - Quando eu estava atolada ninguém se lembra-
limpar a lama dos pés no outro dia ela nos subia aos va de mim.
joelhos; se matávamos um lacrau ele renascia, depois, Quase não nos amávamos fisicamente, mas viví-
parindo outros lacraus que nos picavam de todos os amos em paz, sem sobressaltos, o menino na escola e
lados; as aranhas caranguejeiras tornavam-se ainda mais o outro crescendo dentro da barriga, as atividades tea-
peludas e nelas ateávamos fogo, mas voltavam. Está- trais provisoriamente suspensas, sempre à espera de um
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vamos sempre de tocaia contra os trustes, a escamotea- pouco de tempo que não aparecia. O importante, po-
ção dos terrenos de marinha, o desvio de material de rém, era a certeza da comida e a paz de dinheiro, a
construção destinado aos pobres; lutávamos contra a roupa para vestir e as miudezas para comprar. Ruth
proliferação dos mocambos mas não chegávamos a re- confessava que era feliz, principalmente porque me via
solver o problema da casa popular, os casebres se mul- afastado de tarefas nada rendosas, não se importando
tiplicando em terrenos baldios, debaixo de pontes, so- com o meu tempo todo tomado desde que se tratava
bre estacas em alagados; todas as nossas forças só daquilo que, para ela, era um trabalho objetivo: um ho-
conseguiam retirar um caneco d'água daquele lago de mem que saía pela manhã e regressava noite fechada
roubos, intrigas, malquerenças, os monstros tinham vá- com a finalidade de ganhar o pão da família, ausente
rias cabeças, vários braços, várias pernas, jamais conse- dos bate-papos inconseqüentes, das rodadas de chope,
guiríamos atingi-los no coração, mas a luta nos dava do desgaste de forças no teatro não remunerado. Mas
uma alegria selvagem, embora nos destruísse no que estávamos numa roda, e o giro já atingia seu ponto má-
tínhamos de nervos, bom humor, alegria de viver. Muito ximo para cair na curva da queda, no barquinho mo-
pouco se poderia fazer naquele caótico saco de gatos, vidos por acontecimentos estranhos à nossa vontade,
mas o pouco que fazíamos nos deixava de alma lavada manobrados como marionetes, já desáamos, sem que
e quando obtínhamos uma vitória, por mais insignifi- tivéssemos conhecimento disto.
cante que fosse, sentíamos que em frente era que de- Uma manhã fui chamado, bem cedo, ao telefone.
víamos caminhar. Era Thales Silveira que me pedia fosse à sua casa
Minha vida privada se resumia às tardes de sába- coro a maior urgência, tratava-se de coisa gr ave. Arru-
dos e domingos, mas estava tão cansado que passava o mei-me às pressas e fui encontrá-lo no sótão onde
tempo dormindo, bebendo, comendo, tomando banhos dormia, de cuecas, discutindo com o irmão advogado,
de mar, conversando mole, enfastiado até de leituras,
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...
processos da Prefeitura espalhados por todos os cantos, interessavam. Com vistas às próximas eleições passá-
ele muito agitado, mas me recebendo sorridente. vamos horas examinando o problema por todos os la-
- Pronto, acabou o nosso reinado. dos, ele já se declarando candidato a governador do
Não entendi o que queria dizer, então me trocou Estado, enquanto os partidos majoritários brigavam em
tudo em miúdos. Fora nomeado um novo interventor torno de nomes. Embora a Esquerda Democrática apoi-
em substituição ao bondoso professor, os altos poderes asse o nome de Thales Silveira ele achava necessário
federais preocupados com o avanço das esquerdas, e lançar-se por um partido próprio e depois de discus-
tínhamos de pedir demissão. Por um instante, em mi- sões sem fim finalmente foi escolhido o nome da nova
nha cabeça, passaram os dias de apertura, das vacas facção: Partido Popular Progressista - PPP; cada um de
magras, mas ali estava para pôr em dia todos os pro- nós se encarregando de uma lista para conseguir ade-
cessos pendentes de solução ou encaminhamento e nos sões que deveriam alcançar a casa dos mi lhares, segun-
lançamos ao trabalho. O novo interventor era um ge- do exigências do Tribunal Eleitoral. Foi uma caça de
neral do exército, um tal de nome Hermes Peixoto, com assinaturas das mais árduas, eu relaxando um pouco o
fama de desabusado, devendo chegar dentro de vinte e serviço da Pre fei tura para andar por fábricas, docas,
quatro horas. Ao cair da tarde tudo estava pronto e, no bairros pobres, de caneta em punho, recolhendo o nome
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gabinete, depois, limpamos as gavetas, demos as últi- de Josés, Antônios, Manuéis, Joãos, Franciscos, Marias,
mas ordens, Thales Silveira redigiu seu pedido de de- Josefas, Margaridas.
missão, não assinou a minha, aconselhando-me a Reconhecido o novo partido partimos para a lite-
apresentá-la ao novo prefeito, quem quer que fosse. ratura eleitoral, com folhetos, volantes, cartazes, pare-
Tranqüilos, aguardamos os acontecimentos e, em casa, des pintadas a piche e calçadas a cal, entrevistas, pales-
Ruth só fez uma observação: tras, reuniões com comitês de bairros, estávamos
- O que é bom dura pouco. apoiados pelo Partido Comunista e aprendiamos novas
O general Hermes Peixoto chegou com grande es- técnicas com os seus dirigentes no Estado. Lutávamos
tardalhaço, comboiado numa manifestação preparada contra dois poderosos candidatos: um intelectual hones-
pelas direitas do aeroporto à cidade, nas ruas princi- to, embora com um certo ranço acadêmico e político, e
pais coberto por uma chuva de papel picado, tudo mui- um usineiro com todos os vícios e mazelas da sua clas-
to ao gosto das operetas, abancando-se imediatamente se, ambos alicerçados em muito dinheiro para a campa-
no Palácio das Princesas, aceitando a demissão em mas- nha; cada um deles com a máquina já montada pelos
sa do secretariado e logo fazendo as nomeações que, partidos, mesmo durante o período da ditadura. Éra-
com certeza, teriam vindo no bolso da sua farda. Mas m os uns ingênuos diante daquela engrenagem
na Prefeitura as coisas não correram tão ruins quanto impiedosa, Thales Silveira fazendo questão fechada que
pensávamos, tendo nomeado para prefeito o diretor de a campanha fosse conduzida com o máximo de respei-
obras, o Castro Costa, engenheiro da velha geração mas to à vida pessoal dos seus adversários, lutando contra
de humor alegre, um bom contador de anedotas, que idéias e não contra indivíduos, era o mesmo que boxear
não aceitou meu pedido de demissão. Minha vida, en- com luvas de pelica contra manoplas de aço. Quem nos
tão, retomou o mesmo ritmo, mas diariamente estava dava algum sopro de sabedoria era mesmo o PC, por-
com Thales Silveira discutindo os assuntos que tanto o que os da Esquerda Democrática, intelectuais como nós,

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1 estavam tão distantes dos métodos necessános como
uma formiga da lua. Constantemente éramos assistidos
por homens formados na luta, finalmente de peitos aber-
desanimar, de garganta seca e olhos avermelhados, de
corpo exausto e cabeça doendo, dormindo e comendo
pouco, nus contra as armaduras.
tos, falando livremente, um pouco melancólicos, talvez, Nosso primeiro comício foi em Jaboatão, chama-
da atmosfera de conspiração e das reuniões às escondi- da de Moscouzinho, reduto inequívoco do PC, num en-
das. Não dispúnhamos de um jornal e as estações de tusiasmo tremendo, num espoucar de foguetes, num
rádio cobravam o tempo a peso de ouro, nosso min- brado, os oradores mal podendo abrir a boca; depois
guado dinheiro arrecadado dos amigos, das nossas pró- foi a ronda pelas casas pobres dos chefes locais, engo-
prias economias, dos partidos que nos apoiavam, de lis- lindo cachaças e cafés, <!ervejas quentes, comendo cuscuz
tas que corriam os bairros: enquanto o acadêmico e o e inhames, todos queriam abraçar Thales Silveira, as ca-
usineiro abriam páginas inteiras em todos os jornais e ras eram alegres, cheias de esperança, otimistas. Esse
falavam horas nas estações de rádio, seus comícios es- foi o primeiro, os outros se seguiram pelas dezenas de
palhando-se, através dos candidatos a deputados, em cidades de Pernambuco, varando a zona-da-mata, o
tudo quanto era bairro do Recife. A nossa era muito agreste, o sertão, querendo abarcar tudo, era uma luta
mais uma campanha de protesto do que mesmo uma de morte contra o tempo, nossas gargantas roucas, co-
batalha a ser ganha, disto não tínhamos muitas dúvi- mício de manhã, de tarde, de noite, em muitos lugares
A porteira do mundo - 151.jpg

das, mas p lantávamos a semente e talvez um dia o po- apenas éramos ouvidos por meia dúzia de pessoas, às
der escapasse das oligarquias e dos candidatos que con- vezes nem isto, nem gente havia, que não se aventura-
tinuavam inertes diante dos problemas mais sérios, va a desgostar o chefe político local; noutros, principal-
bastando-se com o cargo, instrumentos de trustes e mente nos centros açucareiros, o entusiasmo era
açambarcadores, deixando que o mundo rolasse. dionisíaco, saiamos do desânimo para a euforia e nos
O primeiro combate sério que sofremos foi o da encharcávamos de bebida e comida, Thales Silveira vol-
Liga Eleitoral Católica, declarando-se abertamente con- tava falador, trocávamos idéias com os companheiros
tra o candidato dos comunistas. A LEC era formada por de carro, um Fm:d velho cujo motorista pertencia ao par-
intelectuais fossilizados, professores de colégio, de pa- tido, geralmente estávamos acompanhados por dois ou-
dres, comerciantes e industriais do tipo tubarão. Doía, tros membros, com eles dormíamos em hotéis pobres
porém, ver o ataque a Thales Silveira, de uma injustiça do interior, traçávamos a rota e acenávamos com a es-
cruel, mas ao mesmo tempo recebemos adesões de gru- perança para homens e mulheres de pés descalços, me-
pos oscilantes e já nos perguntávamos se a vitória esta- ninos nus e barrigudos, uma pobre gente sem eira nem
ria mesmo tão longe quanto pensávamos a princípio. beira que bebia nossas palavras, sem palmas, apenas
Redobramos os esforços, cada um com sua tarefa, do com os, olhos fuzilando, a fome obrigando-os a apren-
nosso lado estavam as forças mais corretas, éramos mais der a assinar o nome. Falamos com o sol nos queiman-
inteligentes, tínhamos de lutar contra o dinheiro, a do, debaixo de chuva, à luz da lua; contra a ameaça de
corrupção, os processos sujos, a absoluta falta de escrú- espancamento e morte nqs redutos coronelistas; manti-
pulos, mas já as flechas nos atravessavam o corpo e nos vemos diálogos com operários e comerciários, abrimos
deixavam incólumes, toca para a frente, brada aos qua- polêmicas com os abastados, furávamos as veias intu-
tro ventos, fala, fala, fala sem parar, sem cansar, sem mescidas de sangue podre e com isto dormíamos, as

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r

poucas horas que dormíamos, em paz; nosso grande


problema era o interior, pois somente em raras cidades
conseguíamos futuros fiscais para as eleições, na maio- dois ca ndidatos: primeiro as nossas verdades, depois
ria ninguém se arriscava a perder o modesto emprego as mentiras deles. Trabalhávamos, com sugestões, na
ou a levar urna surra. Barbados, sujos de poeira, pica- plataforma de Thales Silveira, bem assessorado por um
dos de p ercevejos, geralmente com disenteria, cagando engenheiro, um advogado, um médico, um sociólogo,
no mato, varávamos o Estado espatifando a cara numa escrevendo e riscando, emendando, discutindo minu-
parede de aço. Certas noites, a sós, num quarto de tabi- ciosamente cada problema a ser levantado, era realmente
que de hotel bara to, Thales Silveira analisava tudo aqui- um mani.festo sério e honesto, o primeiro desse tipo a
lo com desân imo, sentindo as forças minguadas, mas a ser lido em praça pública na velha cidade do Recife,
consciência de sua luta levava-o sempre para a frente, em contraste com o tom demagógico que seria usado
por picadas e vales, a toleiros e carrascais, campinas e principalmente pelo usineiro.
montes, batendo à porta de casas de taipa cobertas de O comício contaria com a presença de Prestes. Fo-
sapé, falando, falando, .falando, sempre a mesma coisa, mos recebê-lo no aeroporto e sua primeira visita foi a
monocórdia, embora com convicção, mas o repe tido nos Thales Silveira, os dois embrenhados numa conversa de
automa tizava e nos esvaziávam os corno bexigas de boi horas. Aquele homem pequeno, magro, de face pá üda,
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furadas. era um mito para mim, até então: e eu o via em carne e


Entre uma viagem e outra ao interior cobríamos osso, a ele que enchera de lenda a minha infância e
o Reci.fe em comícios-relâmpagos, por mangues e ala- cujos sofrimentos, na minha adolescência, me haviam
gados, córregos e morros, atingidos pela miséria de urna tocado profundamente. Sua Marcha, sua Prisão, sua
população duas vezes maior do que a que podia fazer Crença sempre me pareceram uma hlstória de aço que
as três refeições diárias, mas nos homens víamos o mes- eu ouvia com emoção, embora tão distante como a do
mo lampejo no olhar, que lhes dávamos um sentido de Cid Campeador ou a de Roldão. E ali estava ele, mor-
luta, um motivo de vida. Sob as vistas complacentes de tal, numa roupa de casimira escura, um pouco curvado
Castro Costa, o prefeito, eu me ausentava vários dias para a frente, olhos tristes e coerência com os seus ide-
da Prefeitura, terminando por entrar de férias para me- ais, contrastando com a figura que me entrara, pela pri-
lhor coonestar minhas faltas. Em casa, p ouco parava, meira vez, em toda a sua grandeza, no livro de Amado
Ruth já então se lam entando da vida infernal que leva- que líamos às escondidas durante a ditadura. Quando
va, ad vertindo-me dos perigos que corria, era uma lou- saiu da sala onde se trancara com ThaJes Silveira, ao
cura jogar fora toda a situação d e que vinha desfrutan- passar por mim, no corredor, tive um gesto de criança:
do a té há bem pouco tempo, capaz de dar à luz durante toquei na manga do seu paletó, ele se voltou para mim,
uma das minhas ausências, que se aproximava, já, o sorriu, eu me retraí como se houvesse tocado numa
tempo da criança surgir. Mas _e u estava completamente tocha ardente, os amigos já o cercavam e o levavam
empolgado pela campanha e só pensava em termos elei- para debates, mesas-redondas e discussões com estu-
torais, atento para o comício de encerramento, marcado dantes e operários.
para o Parque 13 de Maio, o maior logradouro público O comício de encerramento realizou-se com uma
da cidade, numa antecipação aos comícios dos outros multidão compacta, uivante, enlouquecid a, transfor-
mando as palavras de Prestes em balas fosforescentes
que explodiam nos céus da cidade, e na verdade suas
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palavras ilwninavam a Estrada, caindo na cabeça do mim saíra e que nela vivera tanto tempo; saíra da mi-
povo, entrando em seu sangue, circulantes, emissárias nha escuridão, eleito entre milhões, para a escuridão
de tempos novos. de Ruth, nunca uma luz por mais fugaz que fosse. Pu-
Quando cheguei em casa Ruth havia seguido para xei a cama de acompanhante e arriei como uma pedra
a maternidade. Lá fui encontrá-la, exangue, contorcen- no rio, tudo, num rodopio, girando em minha cabeça:
do-se de dores, logo agarrada à minha mão, d e dentes Prestes e Thales Silveira, Ruth e a criança, a cara do
cerrados falando com convicções: povo, as bocas abertas em gritos, os braços erguidos
- Este eu vou ter... este menino eu vou ter... para o céu.
Mas as horas se passavam e a criança não nascia. Acordei com o barulho da enfermeira para ver
Eu, aos seus pés, mastigava u m sanduíche d e queijo, Ruth recostada na cama, sorrindo para mim. Ergui-me
fumava, andava no pequeno terraço que dava para a como de uma ressaca, fui até junto dela, curvei-me e
sala de parto, ouvia seus gemidos, corria para acudi-la, beijei-a na testa. Ela, com um gesto, me indicou o berço
o médico dava-lhe um toque, balançava a cabeça desa- que puxei para perto da cama, ergui o véu, olhei o me-
nimado com a dilatação vagarosa, enfermeiras aplica- nino, olhei-a, o mesmo pensa mento nos ocorreu -
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vam-lhe injeções, as contrações vinham, as contrações "Como era feio!" - e caímos numa risada incontrolável,
desapareciam, o sangue corria entre suas coxas, sua ca- animal, de sacudir o corpo, de doer a barriga, quería-
beça balançava deses peradamente de um lado para o mos parar e não podíamos, Ruth ansiava apertando o
outro, de repente era um grito que varava a madru- ventre, eu caí de joelhos e amparei a cabeça na cama,
gada. Vinte e três horas depois ela pariu, eu sempre as lágrimas empapando o lençol. A enfermeira nos
aos seus pés, vendo como espoucava aquela flor san- repreendia, a crise foi passando, aos poucos, enxugáva-
grenta e molhada, como as carnes se abriam, o sangue mos os olhos, nos recompúnhamos.
de mistura com líquidos, a cabeça da criança, saindo, - Mas vai ficar bonito - asseverou Ruth, ainda
dava-me a impressão de uma bola em vôo, do subter- com um resto de r.iso.
râneo para a luz, o corpo deslizando nas mãos do mé- O menino continuava dormindo, alheio ao mun-
dico, agarrado pelos pés, pegajoso, misterioso, informe, do, fechado, alguma coisa já deveria povoar os seus so-
soltando o primeiro grito diante da muralha do m u n- nhos, pelo menos a primeira visão do mundo.
do. Ruth relaxou-se como um saco vazio, a criança de- A saída de Ruth da maternidade coincidiu com
saparecera de minha vista, o médico empurrava sua bar- as eleições. Foi urna batalha manter a fiscalização em
riga, a placenta caiu como fígado de boi, eu d evo ter todas as zonas, nossos fiscais entrando, constantemen-
dormido, porque quando abri os olhos tudo estava no- te, em atritos com os dos outros partidos e os mesários,
vamente alvo, sem manchas vermelhas, a mesa va- alertas para qualquer fraude, éramos poucos para en-
zia d e corpo. Fui andando pelos corredores silenciosos, frentar uma m áquina bem lubrificada. Finalmente, às
apenas aqui e ali a luz de urna lâmpada de cabeceira seis horas da tarde, tudo estava terminado, restando-
invadia, leitosa, o piso de cimento, empurrei a porta nos, apenas, aguardar os resultados que começaram a
que me cabia e vi Ruth, dormindo, ausente. Ergui um aparecer três d ias depois. Ganhávamos na capital mas
pouco o filó do berço e con templei aquela coisa p erdíamos no interior, e com o passar d os dias che-
enrugada, vermelha, mais parecida a uma rã, que de gamos à conclusão de que tudo estava liquidado, a

300 301
] disputa se travando entre o intelectual e o usineiro, tre- - Borba!
zentos votos a mais num dia a favor de um deles, o - Não está vendo que não vou pedir demissão?
outro, em seguida, passando à frente com cem, num Quero é que vejam mesmo até que ponto vai a
jogo de empurra que durou até o fim, o intelectual ga- sacanagem desse general. Se não quer assinar minha
nhando as eleições por uma diferença de quinhentos demissão, demita-se comigo.
votos impugnados, sua posse arrastando-se durante um
Castro Costa olhou-me, perdido.
ano numa batalha judicial onde tudo valeu. Termináva-
-Sou um velho - disse.
mos, com o resultado, uma Juta de meses, e cada qual
se recolheu à sua toca para tratar da vida: Thales Silveira - Então cumpra as ordens- gritei.
à sua cátedra e eu à Prefeitura, onde continuei, sem en- Dei-lhe as costas e abandonei o gabinete, n o fun-
tusiasmo, a trabalhar com Castro Costa, mesmo porque do com uma pena desgraçada do pobre Castro Costa,
seu ritmo não era o de Thales Silveira. Depois de ter bem estabelecido na vida, sem grandes problemas, sem
mourejado àquela velocidade tinha a impressão de an- maiores aspirações, contentando-se com as filhas e os
dar em câmara lenta, desinteressado de um serviço pú- netos, a criação de galinhas e as temporadas de praia.
blico para o qual não haveria salvação possível. Fiz meu Arrumei as gavetas, os funcionários mais imediatos já
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expediente como o de qualquer funcionário, entrando e vinham com o seu zunzum, não quis conversa, não me
saindo à hora certa, aproveitando meu tempo para pôr despedi de ninguém, nem mesmo quis mais saber do
as leituras em dia e tentar rearticular o grupo de teatro. carro oficial, tomei um táxi e rumei para casa ..
Mas isto foi somente durante um mês, tempo necessá- - Estou livre daquela merda! - gritei para Ruth.
rio para que o interventor verificasse que poderia apli- Mas ela, com mais um filho, já era outra mulher.
car-me uma sanção, afastado o perigo da eleição de Apoiava-me, dava-me razão, mas no fundo voltavam
Thales Silveira, a opinião pública já resfriada. Quem iria seus temores dos dias de penúria, a fanu1ia crescendo,
preocupar-se com o meu destino? suas forças teriam de ser, novamente, postas à prova.
Castro Costa chamou-me, cheio de dedos: No dia seguinte saiu minha demissão no Diário
- Tive uma conversa desagradável com o gene- Oficial. Não houve uma nota de imprensa, nenhum co-
ral. Ele exige que você se demita. mentário, apenas os mais íntimos telefonaram para la-
Não sei por que eu já esperava qualquer coisa des- mentar o acontecido. O cargo efetivo que eu tinha na
se tipo. A notícia não me comoveu,. mas redargüi: Diretoria de Cultura não daria para continuar com aque-
- Demitam-me. le trem de vida. Tudo voltaria a ser reduzido, mas era
melhor que nada, de fome não se haveria de morrer.
Castro Costa olhou-me, com os seus pobres olhos
azuis de boi manso. Ruth estudou o orçamento doméstico e chegou à con-
clusão dos cortes: somente a cozinheira ficaria, nada de
- Mas assim você me coloca numa situação terri- compras extraordinárias, racionamento do necessário. Eu
velmente desagradável.
estava por tudo.
Fui impiedoso:
- E não me encha a casa de amigos - disse. -
-Não, meu caro prefeito. Cumpra ordens de seu Quem quiser beber e comer que vá beber e comer nas
chefe.
suas casas.

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Dois dias depois voltei à Diretoria de Cultura - Não tenho satisfações a dar ao senhor. Se não
onde, para consolo, continuava o José Costa, que me obedecer vai se arrepender para o resto da vida. Temos
recebeu com uma a legria incômoda: conversado.
- Há males que vêm para bem! - foi a sua sauda- Juntou os calcanhares, cobriu-se e passou por
ção. mim, teso, batendo a porta com força. Costa reapare-
Voltei às tarefas, mas no fim de uma semana, ceu poucos instantes depois, inquieto. Contei-lhe o acon-
calmamente redigindo uma nota para o nosso Boletim, tecido e ficamos os dois sem palavras, incômodos, que
fui abordado pelo contínuo: diabo ele podia fazer? E que diabo iria eu fazer, em
- O diretor está chamando. que canto da terra me meter? A cabeça girava. Sem mais
palavras deixei o gabine te de Costa e fui andar pela
Caminhei para o gabinete de José Costa sem ne-
cidade, nenhuma solução me ocorria, o choque iria ser
nhum pressentimento, constantemente ele me chamava
tremendo para Ruth, uma resolução daquelas partira,
para assuntos de serviço, mas quando entrei, deparei-
com certeza, do general e dele tudo se poderia esperar.
me com um oficial do exército, alto, espadaúdo, olhan-
Eu não tinha vocação para mártir, quem sabe até mes-
do a paisagem. Costa levantou-se, bateu no meu ombro
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mo para defunto. E as ruas me pareciam, àquela hora


e disse:
da tarde, túneis povoados por seres estranhos que me
-Esse senhor quer lhe falar. conduziam a paragens desconhecidas, onde o bote de
Saiu e ficamos os dois. O capitão mediu-me de uma fera estaria preparado, onde um punhal me rasga-
alto a baixo, recostou-se na janela, o quepe debaixo do ria as carnes ou uma bala se aprofundaria no meu cor-
braço, de propósito prolongou o silêncio, fitando-me. po. Eu andava sem ver, em névoa, indiferente ao colo-
Sua presença era incômoda. Finalmente perguntou se rido que sempre me encantava na cidade tropical que
eu era eu mesmo e quando lhe afirmei que sim empi- eu aprendera a amar a custo de tanto vagar por suas
nou ainda mais o peito de pombo, barriga para dentro, ruas noturnas, becos, praças, cais, areais, pontes, so-
em plena posição militar, destampando: brados e casas pobres, conversando com centenas de
- O senhor tem uma semana para deixar o Esta- homens e mulheres, anônimos, cada um com a sua his-
do. tória formando a história secreta do Recife, marcada
A princípio não percebi bem o que ele dissera, pelo humano e o pó das coisas simples e trágicas. Já
tanto que indaguei, afoito: sentia a saudade dos seus frutos e dos seus mariscos,
celestes guaiamuns azulados, antediluvianas lagostas,
-Como é?
arenosas unhas-de-velho, cajus seios de deusas adoles-
- É o que estou lhe dizendo - retrucou. - Tem
centes, mangas verdes ou vermelhas de sumo indígena,
uma semana para abandonar Pernambuco. mangabas destiladas com a lama dos mangues onde
Era uma coisa ridicula, mais parecia um filme de também se encontravam os peludos e ingênuos caran-
mocinho, o delegado intimando um pistoleiro. Meti a guejos irreais. Expulsavam-me da cidade que eu apren-
mão no bolso da calça, tirei um cigarro, acendi-o e per- dera a amar dentro de sangue e pus, safadezas, vagi-
guntei: nas, crimes a faca, afogamentos, fome, bebedeiras,
- Quem me obriga? surubas, igrejas, peixes, tipos, quitutes, água e fogo;

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onde o paradeiro? Cada fase de minha vida terminava
com uma expulsão, cada vez para m ais longe, termina-
ria com os antípodas, d e cabeça para baixo no infinito,
no m eu mundo de até então eu estava tão ere to quanto
uma palmeira imperial e meus cabelos pretendiam aca-
riciar nádegas de anjos. Era expu lso sem remissão pe-
los deuses da hora, paramentados de dragonas e espa-
das, na repetição de um ritual ridículo em batidas de
calcanhares, continências, esporros. A raiva me subia
como uma quente e am arga onda, mas nada havia a
fazer, tinha de tragá-la e deixar que envenenasse ór-
gãos e sentidos, voltava-m e para a tranqüilidade da fa-
mília e adquiria uma responsabilidade.
Depois de analisar todo o problema com Ru th,
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naquela madrugada, feitas as contas e verificado o sal-


do bancário, vimos que nossas posses dariam para a
manutenção de cerca de dois meses, ela no Recife com
os meninos, eu voando p ara São Paulo, aereamente ba-
seado num vago e longínquo convite de Albuquerque
p ara com ele fazer cinema. Era a única saída e já q ue
tinha de ir, que fosse logo. Em dois ou três dias toma-
mos todas as providências, não m e despedi de ninguém,
numa manhã de muito sol, com alguns cruzeiros no
bolso, compareci ao aeroporto. Ruth sozinha, desvali-
da, em lágrimas, seu choro a umentando com a chama-
da dos passageiros. Pus-me em fila, recusei-me a olhar
para trás, subi a escada da aeronave e, sentando, amar-
rei-me. O avião roncou, tomou posição, acelerou os mo-
tores, disp arou e eu me vi cortando as nuvens, não mais
com as minhas próprias asas, mas no bojo dum apare-
lho em aço e alumínio, reduzido à mísera condição de
fugitivo, tudo para trás, à frente eu só enxergava o céu
azul; a cidade, embaixo, desaparecia rapidamente, en-
trávam os no mar, eu m e desfazia em frio, metal, ruído:
um zero.

Recife (Bon Vista), abril, 1966/ abril, 1967

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StRIE NOVO ROMANCE

Me morial de San ta Cruz


(Sinval Medina)
Ocogl~rio
(Napoleão Sabóia)
As virtudes d a casa
(Luiz Antonio de Assis. Brasil)
Meu tio Atabualpa
(Paulo de Carvalho Neto)
O quatrilho
(José Clemente Pozenato)
Valsa para Bru.n o Stein
(Charles Kiefer)
Noites no sobrado
(Laury Maciel)
Os caminhos da solidão
(Hermilo Borba Filho)
Cies da província
(Luiz Antonio de Assis Brasil)
Os Guaianib- (tomo i)
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(Benito Barreto)
Os Guaianãs- (tomo U )
(Benito Barreto)
Nunca houve guerrilha em Palmares
(Luiz Beno)
Emissá.i ios do dia bo
(Gilvan Lemos;
A race do abismo
(Charles Kiefer)
A crô.n ica do medo
(Ricardo Hoffmann)
A verdade de cada dia
(Carlos Heitor Cony)
Videiras de cristal
(Luiz Antonio de Assis Brasil)
Quem faz gemer a terra
(Charles Kíefer)
Memórias de morto
(J. M. Leitão)
Bacia das almas
(Luiz Antonio de Assi.s Brasil)
Para morrer de amor
(Carlos de Oliveira Gomes)
Rosas de papel c.r epom
(Laury Maciel)
Pe rversas famOias
(Luiz Antonio de Assis Brasil)
Margem das lembranças
(Hermilo Borba Filho)
As torrentes de Santadara
(Liberato Vie.i ra da Cunha)
Pedra d a memória
(Luiz Antonio de Assis Brasil)
A cela d o diabo
(Arnaldo Campos)
A região submersa
(Tabajara Ruas)
A porteira do mundo
(Hermilo Borba Filho)
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