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No intuito de estender

CULTURA E CIÊNCIA suas atividades ao âm·


bito do espi1 i to e do pensamento contemporâneo, as Edições Melho-
ramentos apresentam, através dos livros desta nova série, um avan-
tajado escôrço intelectual onde são tratados,. com especial carinho,
os diferentes ramos do saber e do conhecimento humanos.
O ÁTOMO (4.3 edição). Fritz Kahn - Os segredos e as maravilhas da CUncia
Nuclear descritos de forma compreensível.
DEUSES, TúMULOS E SABIOS (6.3 edição). C. W. Ceram - O romance da
Arqueologia.
OS HERóiS. Thomas Carlyle - Um exemplo contido na vida dos grandes g~nios
da Humanidade.
ORIGEM DOS DIREITOS DOS POVOS. Jayme de Altavila - Normas e Jeis do
Homem no e:tabelecin,e11to de seus direitos.
AFORISMOS PARA A SABEDORIA NA VIDA (2.3 edição). Arthur Schopenhauer
- P&nderaçõcs sôbre os meios e os modos de uma perfeita existência
A AMÉRICA DO SUL OS CHAMAVA. Victor W. von Hagen - O trabalho de
grandes nattlralistas nas selvas sul-americanas.
O LIVRO DA NATUREZA (2 ~omos). Fritz Kahn - A concepção do Universo,
da Ciência Moderna numa acessível exposição.
l'EQUENA HISTóRIA DA ARTE. l'ietro Maria Bardi - Apanhado geral das.
manifestações a1·tisticas na Pi11tura, Escultura, Cerâmica, Desenho e Arqui·
tetura.
HISTóRIA UNIVERSAL DA MúSICA. Kurt Pahlen - A arte musical no cor·
rer dos tempos e a vida de grandes compositores.
HISTóRIA DA .fiLOSOFIA (2.3 edição). H. Padovani - L. Castagnola - O pen·
samento VIVO do Homem, através de várias escolas filosóficas.
COMPE.NDIO DE FILOSOFIA (2.3 edição). Luís Washington Vita - Iniciação ao
estudo do pensamento humano. Gra11des filósofos e escolas modernas.
BOTÂNICA (Morfologia Externa das Plantas). Mário G. Ferri - Detalhado com·
pêndio esclarecendo sóbre as formas vegetais ..
HISTóRIA DA LITERATURA (8.3 edição, revista). José Marques da Cru:~: -
Apanhado geral sóbre a literatura de todos os povos.
OS LUSíADAS (ll.a edição). Luís de Camões - O maior poema da llngua por-·
tuguêsa em edição comentada por Otoniel Mola.
A IMAGEM DO BRASIL. Konrad Guenther - Maravilhosas descrições versando
sóbre a natureza e o ambiente nacionais. ·
MISTÉRIOS SUBMARINOS. Philippe Diolé - O mar, seus mistérios, a fauna e
a flora, a caça submarina, em magnífica exposição. • .
A CONQUISTA DO MUNDO. Paul Herrmann - CativlMte narrativa das épocas
remotas em que o Homem empreendeu suas primeiras viagens, na conquista
do espaço vil41. ·
HISTóRIA DAS CULTURAS UNIVERSAIS. Dr. Kaj llirket-Smith - Panorama
do de•envolvimento das cuíturas desde os primórdios do mundo.
E A BíBLIA TINHA RAZÃO. Werner Keller- A maior prova da autenticidade
histórica dos textos bíblicos através das descobertas arqueológicas. modernas.
A ESTRADA DO SOL. W. yon Ilagen - Sensacional estudo arqueológico · sóbre
as descobertas referentes à civilização iucaica.

i
EDIÇõES MELHORAMENTOS

EDIÇõES MELHORAMENTOS-i'
Alex VieiraE"'X
A CONQUISTA DO MUNDO Libris
Paul Herrmann
A história da humanidade, desde
os seus primórdios, é assunto que
sempre apaixonou a sábios e leigos Paul Herrmann
indistintamente. As constantes lutas e
sucessivas conquistas do homem, seu A CONQUISTA DO MUNDO
desenvolvimento no tempo e no espa·
ço analisado sob os múltiplos aspectos
e relações de sua existência e posição
ocupada no universo, é um estudo
que abarca quantidade enorme de
considerações de ordem espiritual e
científica, e, quanto mais se aperfei·
çoam os métodos de pesquisa sôbre
outras eras, as investigações sôbre as
origens humanas, mais nos surpreen·
de o surgimento de novas teses, de
novos postulados que modificam os
rumos dos capítulos tradicionais da
história de nossos antepassados.
Autores contemporâneos, inteirados
das matérias que tratam da gênese do
mundo e dos primeiros povos, pro-
curam, de um modo acessível a to·
dos, transmitir tão importantes co·
nhecimentos a nós outros, a quem o
segrêdo do passado e a eterna incóg·
nita do futuro, por herança atávi-
ca, fascinam. últimamente, numerosos
trabalhos de transcendental importân·
cia de vulgarização científica, elabo·
rados com a finalidade de elucidar
o leitor comum quanto aos mistérios
de um pretérito remoto, para cuja
solução ou esclarecimento muito con-
tribuem as explorações arqueológicas,
que revolvem e desenterram, do abis·
mo dos séculos à luz dos dias corren·
tes, vestígios de gloriosas civilizações
de há muito desaparecidas, têm ai·
cançado significativa aceitação em to·
dos os países em que foram editados.
Recorrendo às numerosas fontes in·
formativas representadas pelas crôni-
cas e relatos de viagens dos sábios e
conquistadores de outrora, interpre·
tando-as e confrontando-as com as
descobertas da moderna Arqueologia
e com as mais recentes deduções dos
cientistas coevos, Paul Herrmann com-
pôs esta obra maravilhosa, em que
o tema, por demais interessante e ins-
PAUL HERRMANN

A CONQUISTA DO MUNDO
, História das primeiras descobertas e explorações

Tradução e prefácio de ERWIN THEODOR

EDIÇõES MELHORAMENTOS
Título do original alemão:
SIEBEN VORBEI UND ACHT VERWEHT

Todos os direitos reservados pela DEDICADO A


Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel
Caixa Postal 8120 - São Paulo JUAN ALEJANDRO APOLANT
Montevidéu, Uruguai
15x-llfV-7
COMO SINAL DE GRATIDÃO
E AMIZADE

Edição em português autorizada .


A edição original foi editada por
HOFFMANN UND CAMPE VERLAG, Hamburg, Alemanha.

Nos pedidos telegráficos basta citar o cód. 0-03 -062


PREFACIO

Em nossos dias, duas das obras que mereceram melhor aceitação do públi-
co leitor universal são êste livro de Paul Herrmann, cujo título origmal é
"Sieben vorbei und Acht verweht" (*) e que, significativamente, leva o sub-
título "História das primeiras descobertas e explorações", e "Deuses, Túmulos
e Sábios" (u), o magnífico romance da Arqueologia, de C. W. Ceram.
São dois livros que tratam das lutas, das conquistas e das esperanças hu-
manas de épocas muito remotas, dois livros dos quais advêm preciosos ensi-
namentos aos leigos mas que foram escritos sem ambições científicas. Focali-
zam e explicam determinados fatos históricos ou geográficos sem os decompor,
não submetem suas partes separadamente ao microscópio para que não se
perca a apreciação do todo. Tratam de assuntos diferentes que porém se
tocam em um ponto qualquer do horizonte, examinam de maneira diversa
os assuntos expostos e, no entanto, paira sôbre o todo um sabor de seme-
lhança, que nos revela imediatamente a afinidade existente. Como, então,
explicar o fato de justamente a êsses dois livros pertencerem lugares destaca-
dos na lista dos "best-sellers" mundiais de nossos dias? Será que, conforme
afirma Paul Herrmann no último capítulo, o lamento daquelas épocas foi
idêntico ao nosso? Que também nós esperamos poder exclamar algum dia,
como Ulrich von Hutten, que "os espíritos despertaram" novamente, devol-
vendo-nos a alegria de viver? Ou estaremos de fato no limiar de uma época,
cujos contornos começam a distinguir-se e que produzirá uma nova huma-
nidade, menos egoísta, de mentalidade mais arejada?
Tudo são dúvidas. Certo é apenas que a apreciação que êste livro mereceu
na Europa e nos Estados Unidos, baseada na clareza da exposição, no inte-
rêsse do relato, na maneira com que o autor soube cativar o leitor, justifica
amplamente a sua edição entre nós. Poderíamos acrescentar que existem
outros motivos, já que problemas arqueológicos e filológicos, diretamente
atinentes ao Brasil, são apresentados e discutidos ou que, se o livro conclui
com aquela profecia do Dr. Fausto, "para novas margens atrai o dia novo",
bem poderíamos aplicar essa profecia ao nosso continente; tais justificativas,
todavia, são -supérfluas. A motivação é dada pelo livro em si, e o leitor que
procurar progredir naquela terra-de-ninguém imersa no crepúsculo que se
estende entre História, Geografia, Arqueologia e Etnografia, aqui apresen-
tada, verá compensado o seu esfôrço. Trata-se de um terreno que é quase
sempre cuidadosamente evitado em livros que expõem as ciências acima ci-
tadas. Está sempre iluminado pelo fogo-fátuo de relatos imprecisos, de mitos
mal interpretados e sagas transmitidas oralmente. Mas aq.ui os temas são exa-
minados, as teses oferecidas, e mais de uma vez ficará mesmo o leitor erudito
admirado com a feição nova e diferente que assumem acontecimentos ou
personalidades que julgava conhecer. Examinando o relato dêste livro, pa-

C*) O significado do presente título da obra em alemão diz respeito à troca de guarda que era
efetuada nos navios, a qual era marcada pela ampulheta, relógio de areia que devia ser virado
depois de cada meia hora e quando sete quartos já haviam pass ado, pois que a guarda era trocada
de oito em oito quartos . O grumete entoava, então, esta canção: "Sete pa,ssados e a oitava escorrida"
CSieben vorbei und Acht verweht).
C**) Obra també m publicada por Ediç ões Me lhorame ntos.

7
rece estar completamente destacado do mundo ali revelado e no entanto
assm;ne~ os acontecimentos e as figuras do m<:smo, a nitidez ~ a clareza que
de_s:Ja: Já que sabe que para o mundo em s1 é desprezível a diferença de
mlle,mos .e que aquel_as h~ras são seus próprio~ antepassados.
~1 esta o ~ande mteresse . desta obra; ~ão se destina a especialistas ou
pentos, mas aqueles qu~ deseJam, de manetra agradável e atraente, ampliar íNDICE
o _seu c~mpo ~e conhect~ento~. ';'erão êsses que, por mais importante que
seF a hbertaçao da en~rgta ~tomtca em nossa era, não representa ela mais
do que representava a mvençao da roda ou da bússola em seus dias. Assim
prova o hvro que de fato nada de novo existe sob o Sol mas ressalta tam- Parte I
bém que "ca~a a_uror~ contin~a sendo milagre tão profu'ndo e tão glorioso
quanto no pnmetro dta da cnação". VIAGENS ANTIGAS .... . ..... . ... . ....... .. .......... . . . ...... . ...... . .. . . . . .. .. 15
ERWIN THEODOR
Pintor e mágico - Impressionismo da idade da pedra - O segrêdo de Altamira - Don
Marcellino, o encantado - Virchow diz não · Esboços da idade do gêlo - A mine-
ração há quatorze mil anos - A pederneira e a doutrina da predestinação - Indús-
tria de ferramentas da idade da pedra - A "importância mundial" da Turíngia -
O "capitalismo de monopólios" da idade da pedra - O tabu das estradas - Reali-
zações antigas nos campos de transporte e das viagens - Sal, o ouro branco das
montanhas - Os novos-ricos de Hallstatt - Âmbar, suor do Sol - A moda de mar-
fim na idade da pedra - O nascimento do comerciante.

Part e 11

O METAL DOS REIS . . . . . ... .... ... ............. . .. . ... . ... .. ......... . ....... . 33
Berzelius e a catálise - O metal das coroas reais - "O momento chegou" - A peca-
minosa Tartesso - A Atlântida, a América e a Lua - Os grandes comerciantes de
Creta - Os gregos comeram peixe? - A invenção do dinheiro - O advogado Lfsias
e o grande capital - Cabeças de boi, os dólares da idade de bronze - Estanho das
Cassitérides - A descoberta de Madeira - As "tinturarias" de Tiro - A profecia de
Isaías e o ocaso de Tartesso - Os concorrentes são iludidos - Contrabando de
ouro na Gália - Filiais, representantes comerciais e malas com amostras - Virchow
torna a dizer "não" - Estradas intereuropéias - Ascensores de navios nas proxi-
midades do Adriático e do Mar do Norte - Ulisses em Dantzig - Truso, a Elbing
da pré-história - O canal entre o Mar Negro e o Báltico - A indústria escandi-
nava de metais.

Part e 111

PUNTO, A TERRA DIVINA, E AS "ILHAS DOS BEM-AVENTURADOS" 57


O estôjo de pó de arroz da princesa - O epitáfio de Knemotep - Os hicsos, lideres
da jovem geração marcial - Hatxepsut toma conta do trono - O chanceler Senmut
e sua política externa - Incenso - E onde ficava Punto, "a terra divina"? -
Hatxepsut diz "incenso", porém se refere ao ouro - "Advertências de um profeta
egípcio" - Mercadorias hindus na Africa Oriental - A embarcação de alto mar dos
egípcios - No caminho de Biblos - Salomão conhece a posição de Ofir - O segrêdo
de Simbahue - Contornando a Africa em 600 a. C. - Ptolomeu não acredita que o
Sol fique no Norte - O Canal de Suez dos faraós - Modernas pesquisas marítimas
e o desaparecimento de Greta - Púrpura de Tiro que procedia das Canárias - O
Almirante Hano no Carnerurn - São pedras arremessadas por gorilas? - Púnicos nos
Açôres.

8 !I
Parte IV
Os "haellristningar" e os "koekkenmoedingar" - Tráfego marítimo da Europa
89 Setentrional durante a idade da pedra - A bússola entre os vikings - Romanos na
A LENDA GREGA E SEUS FUNDAMENTOS
Islândia? - Manual de navegação viking para os navegadores da Islândia - A saga
A catástrofe dos carros de combate - Schliemann e o ôvo de avestruz - Princesa do "povo sem espaço" e Haraldo dos cabelos loiros - Groenlândia,, o beco sem
Medéia, o modêlo de tragédias - Heráclito rouba maçãS- - Stonehenge e os cisnes saída - De como Egede se tornou o apóstolo dos esquimós - Onde ficava Estri-
cantantes - Príamo bloqueia os Dardanelos - Apenas bárbaros usam calças com- byggd? - Arqueólogos dinamarqueses nos cemitérios dos vik.ings da Groenlândia -
pridas - Os beberrões citas - Juros de 30% para o capital grego - Quem vai para Modas medievais européias na Groenlândia - Erico, o Ruivo - A "Terra Verde" -
Do cardápio dos vikings da Groenlândia - Mudanças climatéricas na Europa Seten-
Ogígia? - Heródoto ganha sessenta mil dracmas - A estrada para UrgafMongólia
trional? - Artigos de exportação groenlandeses - Capital e navegação comercial na
- O Prof. Píteas de Marselha - Onde ficava Tule? - Píteas solve o problema do Noruega medieval - A Liga Hanseática no tráfego da Groenlândia - O Vaticano
âmbar - O segrêdo do Mar da Eritréia - Como chegam jacarés ao Indo? - Alexan- e o Bispo da Groenlândia - Desaparecimento enigmático da Colônia Ocidental -
dre Magno veleja numa torrente - O descobrimento do oceano - Formigas que Os "skraelings" - Esquimós brancos - Morre de fome um povo inteiro - Em 1540
mineram - Breves instruções para a caça do elefante - Da ironia trágica da história. desaparece o último viking da Groenlândia.

Parte V Parte VIII

DE ROMA AO EXTREMO ORIENTE E A AMt.RICA 121 A VINLÃNDIA .......................... . ............ .. ..... .. ................. . 247

Os romanos, adversos à água - O "Hotel Septumanus" em Lião - Peritos de âmbar Bjarni Herjulfsson, o primeiro marinheiro transatlântico - Leif Ericson viaja para
romanos na Prússia Oriental - O Vaso François, os anões e os grous dos pantanais a Vinlândia - Ficava em Massachusetts a Vinlândia? - O Prof. E. F. Grey e "Leif-
do Nilo - Atravessando o Oceano Índico sem bússola - Pilotos e faróis - Antigos budir" - Os vikings e o revólver "Colt" - Mr. Dodd e o túmulo de Beardmore -
manuais de navegação - Qual a extensão da hora? Cargueiros de 2.000 toneladas O que significa "leitadi"? - Será a deserção permitida a um bispo? - O Vaticano
na Antiguidade - Indicações de ancoragem romanas para portos indianos - Os cei- soubera da Vinlândia - Paulo Knudson e a Pedra de Kensington - O "skeleton in
arrnour" de Longfellow - O "Native copper district" no Lago Superior - Mais uma
loneses ficam surpresos em Roma - Chineses de olhos azuis? - Comerciantes roma-
vez os índios mandãs - Será Magno um nome índio? - Os vik.ings e a expedição
nos em Pequim - A imperatriz Si-li-Shi e a "bombyx mori", o bicho-da-sêda -
Pining-Pothorst - Bonés burgúndios na Groenlândia - Giovanni Caboto descobre
A Sra. Marco Aurélio não tem dinheiro para um vestido de sêda - As mulheres a Marclândia - Brasil, a ilha das lendas - Estêve Colombo na Islândia? - Colombo
pecaminosas da Ilha de Cós - Rotas à China - Quem vai para Cingapura? - O que e a tradição da Vinlândia.
sabia a Antiguidade da América? - Peles-vermelhas desembarcando na Europa.
Parte IX
Parte VI 279
DE JOTUNHEIMAR E SVALBARD PARA BAGDÁ E CANTÃO
A AMt.RICA -A HVITRAMANNALÃNDIA - A TERRA DAS FACES PALIDAS 155 "Vendidas tôdas as passagens para Zaitun", diz o encarregado Suleiman - Juncos
chineses com apartamentos, banheiros e lavatórios - O estudante de Direito Ibn
Pressentimentos fatais em Temixtitan - Cortez e Dona Marina - A Lenda de "Votá" Batuta torna-se "globetrotter" - Ibn Batuta vê o "truque da corda" - Qual o preço
dos maias - Quem era Quetzacoatl? - Gudleif Gudlaugson na Hvitramannalândia de uma concubina? - As mulheres de Ibn Batuta, o côco e o haxixe - Cetim, sêda
- São Brandão e Rei Madoc cruzam o oceano - "índios brancos" na América - Os e perfume - Papel-moeda chinês - O que é a "Konnungsskuggsja" e quem a escre-
loiros mandãs - Era a roda conhecida pelos índios - Peles-vermelhas com nomes veu? - Como é que Dante Alighieri conhece o Cruzeiro do Sul? - O rnapa-múndi
de brancos - Pedro de Candia fica furioso em Tumbet - Quem é Viracocha? - Incas de Edrisi e o tratado de Rogério - Peles de urso polar no Egito - Relatos esporti-
de olhos azuis - A lenda do deus branco Bochica - O enigma da Ilha da Páscoa - vos árabes sôbre o esqui na oruega - Ibrahim Ibn Jacub fica surpreendido em
Polinésios loiros - Quem levou batatas para o Havaí? - A travessia de jangada de 1\Iogúncia - Possuía a Escandinávia um sistema monetário árabe? - Um guia de
Thor Heyerdahl - O Peru e a Polinésia - Pirogas de balanceiro e jangadas de pau viagem mouro para a rota de Magdeburgo a Praga - Mentiu realmente estor de
Kiev? - Miklagard e os varangianos - Vikings em Bagdá - O Capitão Othere em
de balsa - "Inscrições" fenícias na América - Era o grego falado pelos índios?
Arcângel - Até o Ural e para a Sibéria - A pedra rúnica de Hoenen - Tornam-se
grávidas as virgens que tomam água? - Jotunheimar é a terra dos duendes e "Sval-
Parte VII bard" significa "costa fria".

A PEDRA Rú ICA DE KENSI GTON E O MISTt.RIO DOS VIKINGS DA GROEN- Parte X


LÃNDIA •••••••••••••• o ••••••••••• • ~ • •••••••• • ••••••••••••••••••••••••••••••• 201
AS CRUZADAS, O PRESBíTERO JOÃO E O GRANDE CÃ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 313
A descoberta de Olaf Ohman - Curioso instrumento de tabelião - "Fraude gros-
A pedra inscrita de Singanfu - O Pe. Trigault não falsifica - t. Maria a Mãe de
seira", afirma o Prof. George O. Curme - Quem foi Hjalmar R:
Holand? - Vik.ings Deus? - O segrêdo e a história da rota da sêda - O Prof. Lactantius sôbre a amo-
em Minessota por volta de 1362 - Sabem os falsificadores fazer mágicas também? - ralidade da Geografia - Das informações deturpadas de antigas narrativas de via-

10 11
gem - Quem eram os "três sábios do Leste"? - Os cristãos de Sâo Tomé - Por que
Napoleão não construiu o Canal de Suez - O Imperador Justiniano envolve-se em
espionagem econômica, mas os persas são mais espertos - Guias medievais para via-
gens à Terra Santa - Quem é o Presbítero João? - A carta do Presbítero João:
mistificação ou utopia? - A história do "sidicus" - Uma embaixada do Grande Cã -
Legados papais em Caracorum - Especialistas da Transi!vânia (Siebenbuergen) nas íNDICE DAS ILUSTRAÇõES
Montanhas Altai - "Visum fuit mihi, quod evasissem de manibus daemonum" -
Desertam dois monges - "Se souberdes a mágica, tomar-me-ei cristão", diz o Impe-
rador da China - Marco Pólo sente frio no "tôpo do mundo" - Cipango, a Ilha das A luta pela vaca sagrada 1 Arte como conjuração mágica I Instrumentos de pederneira
Lendas - João de Montecorvino toma-se Arcebispo da China - André, Bispo de entre pdgs. 16 e 17
Zaitun, manda uma carta para Perúsia - Relato do país onde nasce a pimenta -
Cavalo de âmbar 1 Jóias de bronze I Mala de amostras de Koppenow I Cerâmica do
Schiltberger entre os pagãos - Franciscanos em Astracã.
período de Hallstatt . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre pdgs. 32 e 33
Barcos a vela no Nilo I Carro de combate hitita I A princesa Kawit sendo penteada I
Parte XI Quadro destruido da Rainha Hatxepsut . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre págs. 64 e 65

OS PORTUGUESES E A AFRICA 357 Barco de carga no Nilo Onda de maremoto ................... . entre págs. 80 e 81

Do primeiro cardápio alemão e de velhas receitas alemãs - Diàriamente carne sal- Damas da côrte cretense A ilha Tera, no Egeu I Dion1sio em seu barco I Uma triere
gada - Guerra fria contra a Europa - Existirá o paraíso na Abissínia? - Deficit com remadores . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre pdgs. 96 e 97
comercial europeu, comparado com o Oriente - Quem são e de onde vêm os guan- Alexandre, o Grande 1 A cadeia montanhosa de Pamir 1 Barra de cobre romana I Carro
chos? - Ouro de Sofala - Malaios descobrem Madagáscar - Infante D. Henrique, de bronze de Chipre .. .. . .. .. . .. .. .. .. . .. . . .. . .. .. . .. .. .. .. .. .. .. entre págs. 112 e 113
o Navegador, e a África - Mermoz voa através do "Pot-au-Noir" - Escravos negros,
uma sensação na Europa - Será o Senegal um afluente do Nilo? - Os portuguêses Legionários romanos 1 Imperador romano recebendo a homenagem dos bárbaros . ...... . .
e o Presbítero João - Diúgo Cão arrisca tudo - Martim Behaim e o astrolábio - entre págs. 128 e 129
Novas instruções para as viagens à Africa - Benedetto Dei em Timbuctu - A infla- Cabeça de mulher etrusca 1 Casal etrusco, de um sarcófago de Cervetri 1 Lápide tumular
ção européia, a casa bancária Centurione e o padrão-ouro - Antônio Malfante no de um casal romano . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre pdgs. 144 e 145
Saara - Portugal joga dois trunfos - O Cabo das Tormentas e a expedição de Pero
da Covilhã - Do "lavrador de Saaz" à época moderna. Ruas estreitas romanas 1 Jangada de pau de balsa "Kon-tiki" . . . . . . entre págs. 160 e 161
Navio viking 1 Vista dos montes Popocatépetle e Ixtacchuatl I Templo de Chichen-Itza
entre pdgs. 176 e 177
Ruínas do templo de Ollantaitambo 1 Tôrres de Sillustani I A igreja do mosteiro de São
Domingos 1 Estátua em Chichen-ltza 1 Cabeça da Ilha da Páscoa 1 Monumento mongol
1 Brinquedo índio com rodas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre págs. 192 e 193
Area rochosa de Drangalândia I Desprendem icebergs geleiras I Vestimenta masculina e
báculo de bispo, na Groenlândia 1 Ruínas da igreja de Hvalsey . . entre págs. 208 e 209
Foto aérea de Brattahild 1 ordrsetur, lugar de pesca dos vikings I Os "skraelings" apro-
ximam-se... 1 Svalbard, a "costa fria" dos vikings . . . . . . . . . . . . . . . . . entre pdgs. 240 e 2-11
Armas dos vikings da América do Norte I A pedra rúnica de Kensington I Jóias de ouro
do Lago Hidden e de Wiskiauten . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . entre págs. 256 e 257
O Infante Dom Henrique 1 Navegante português 1 Mapa-múndi catalão da Africa Oriental
entre págs. 272 e 273
Mongol montado em camelo 1 Desertos da bacia. do Tarim I Nuvens de areia sôbre o oásis
entre págs. 288 e 289

UI
12
PARTE I

VIAGENS ANTIGAS

Pintor e magzco - Impressionismo da Idade da


Pedra- O segrêdo de Altamira- Don Marcellino,
o encantado - Virchow diz "não" - Esboços da
Idade do Gêlo - A mineração há quatorze mil
anos - A pederneira e a doutrina da predestina-
ção- Indústria de ferramentas da Idade da Pedra
- A "importância mundial" da Turíngia - O "ca-
pitalismo de monopólios" da Idade da Pedra -
O tabu das estradas - Realizações antigas nos cam-
pos do transporte e das viagens - Sal, o ouro
branco das montanhas - Os novos-ricos de Hall-
statt- Âmbar, suor do sol- A moda de marfim na
Idade da Pedra - O nascimento do comerciante.
A luta pela vaca sagrada. Os de "uma pena" defendem sua propriedade sagmda contra os de
"três penas". As flechas sibilam, os arcos estão retesados, a batalha é sangrenta! Esta gravura,
encontrada num rochedo das regiões desérticas da Africa Setentrional, foi executada há muitos
milênios. Mas através de sua estilização tem um efeito tão "moderno", que parece pertencer
à arte de nossos dias.
1

Cuidadosamente, o homem ajoelhado juntou com os braços mais e mais


saibro sôbre a abertura do túnel, depois de a ter coberto com pedras de
tamanhos diversos e disfarçado com ramos de bétula e pinheiro. Nada mais
era visível agora, e nem mesmo os caçadores daquele grupo de homens pri-
mitivos, lá do vale travesso, com seus olhos aguçados, seriam capazes de des-
cobrir a caverna.
Também, nada pior. Pois romperiam o encanto e dêle apoderar-se-iam,
do encanto que havia preparado para sua própria tribo. Era absoluta-
mente imprescindível que a caça voltasse, que todos voltassem a ter alimen-
tação e peles, assim como gordura para sua iluminação. A tribo sofria fome.

À esqu erda: A1·te como conjuração mágica. No contôm o branco de sua mão, o artista da Id ade
da Pedm desen hou . e~sas figw·~s h u manas estitizadas. Pretende protegê- las, guardá-las? Ou
. . . tmpor-se magicamente as mesmas? Desen ho em u ma caverna norte-africana.
A d trelta: l nstrument?s de pederneira achados 110 A lemanha Se tentrional. Essas annas e ferra -
mentas (machado, foice, serra, dois punhais) são provenientes da Idade da Pedra Polida
(2000 a. C., aprox imadamente).

l. Bisão, gra vado na parede de uma caverna da Idade da Pedra, na Dordonha.

Reclinou-se sôbre os joelhos, satisfeito. Terminada estava a obra. Durante


dias e dias havia permanecido em pé, lá embaixo na caverna, para desenhar
sôbre a rocha a imagem do bisão, que teria de ser caçado amanhã. Escolhe-
ra o melhor ocre, a melhor gordura animal, tendo depois, com extremo
cuidado, soprado o pó corante sôbre a superfície gordurosa, através de um
osso fino e ôco. Terra preta, terra com manganês serviu para os contornos
e sombras; foi assim que o quadro adquiriu profundeza e vida. O ocre, tri-
turado no almofariz, clareado pelo giz ou escurecido pelo óxido de ferro,
emprestando-lhe um tom vermelho, preenchia as superfícies. Ali estava o
bisão, como se estivesse vivo, e sob a luz trêmula dos fachos seus olhos pa-
reciam cintilar, os músculos contrair-se debaixo da pele brilhante e a cauda
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2 bis Conquisto Mundo
asitar-se; exatamente do modo daqueles enormes animais freqüentemente
v1stos no prado, lá, junto às encostas.
Como artista, como professor e diretor de grande escola de pintura, com
tantos jovens a procurar as artes, fica-se - de certo modo - acima de tais
representações realistas. Os antigos haviam pintado dessa maneira, mesmo
em não se tratando de magia de caça ou de algum encanto. Via-se isso em
tôda parte, nas cavernas, em El Castillo e La Pasiega, em Pindal e Corva-
lanas. Eram documentos de dias passados, bons e simples, das épocas em
que das montanhas vinha o gêlo, em que eterna chuva caía do céu, em que
todos ficavam contentes quando uma vez brilhasse o sol. A pintura de então
era tão ingênua!
Agora o conhecimento se havia aprofundado. As neblinas há muito que
se espalharam, o gêlo apenas jazia lá no alto das montanhas, e a luz celeste
brilhava durante muitos dias do ano; agora era possível ver, só agora era
possível ver que a natureza se compunha da rápida seqüência de quadros
momentâneos. Era isto o que deveria ser pintado. A rápida manada de re-
nas: os dois animais da frente eram nitidamente reconhecíveis, portanto de- 3. "Esbôço" para um mural da Idade da Pedra. A gravura acima é de fato ape-
veriam ser desenhados com clareza, com seu esgalho e cascos, com suas longas nas o debuxo para o mural abaixo, que represen ta uma cerva. Foi encontrado na
pernas e corpo fino. Também os últimos componentes da manada eram caverna de Casúllo, na Espanha. Repetidamente foram feitos achados como êste.
visíveis com nitidez e deveriam ser representados com exatidão. Mas tudo Os esboços de muitas gravuras foram conservados cuidadosamente.
que corria, se precipitava, tropeçava entre os dois extremos, não era senão uma
ondulação de riscos paralelos, de sombras e traços. Por isso deveria êsse total Assim, desaparece para sempre o desconhecido de nossas vistas. Trinta m~l
ser apenas representado por traços rápidos e superficiais. anos escoam como um único dia e como um amontoado de fôlhas pelas qua1s
Isto era o desenho, era isto o que deveria ser pintado. O que havia feito passa o vento. Escreve-se o ano de 1868. Está sendo realizada uma caça de
lá embaixo, na caverna santa, durante tôda esta última semana, não poderia rapôsas no castelo Santillana sur Mar, nas proximidades de Santander, na
ser defendido como seu trabalho, e ainda ficava para ser decidido se, na Espanha. E quando um dos cães desaparece, tragado repentinamente pela
próxima vez, não enviaria o seu auxiliar. Seu pai ainda fizera parte da terra, quando sob o passo dos caçadores se abre uma fenda em prado plano,
geração que podia acreditar - e tinha razões para tanto - que a sorte da fenda que deixa sair ar frigidíssimo no quente dia novembrino espanhol,
caça, que a flechada certeira, dependia da exatidão do desenho, que a fi- então está aberta a entrada para justamente aquelas cavernas sagradas, que
gura da caverna era passível de provocar encanto, agindo sôbre o animal o pintor mágico do final da era glaciária havia fechado com tanto cuidado.
vivo, algures detrás das montanhas. Agora, entretanto, só os caçadores con- Com fachos e luzes protegidos contra o vento, penetram pouco depois os
servavam essa superstição. Pois o que existia para substituí-la neste século caçadores nas cavernas. Primeiramente encontram ferramentas, como já se
esclarecido? E, ademais, ninguém era prejudicado se o costume de épocas haviam tornado conhecidas através das cavernas de França: cravadores, so-
arquiantigas fôsse mantido, se o bisão continuasse a ser desenhado como o velas, arpões, raspadores, agulhas: completo inventário de um bem equipado
lar glaciário. Debaixo desta camada não há nada disso. Esta parte não fôra
habitada por sêres humanos, é a região das magias, é solo sagrado. E eis
aqui os desenhos.
Desenhos e quadros. Centenas, em tôdas as paredes e tetos, que durante
milênios conservaram frescor e brilho iguais ao do dia em que foram criados.
Quadros cuja côr ainda fica prêsa ao dedo sondante, que ôlho humano algum
viu desde sua origem até êsse fim do ano de Nosso Senhor, mil oitocentos e
sessenta e oito. Há ali uma corça, maravilhosamente delicada, o bisão, en-
cantado por nosso pintor mágico aí está, selvagem e cheio de ardor, e lá,
2. Manada de renas. Os primeiros e os últimos animais dêsse rebanho são não suportando os ferimentos, dobram-se-lhe os joelhos. Tudo tão cheio de
representados de maneira clara. Entre êles há uma ondulação de traços, um vida, tão poderoso, tão puro, que tôda a fôrça da magia ainda pode ser
apanhado pictórico do tipo seguido pelos impressionistas modernos. Desenho sentida.
a osso da caverna de Teyjat, Dordonha.
Também Don Marcellino de Sautuola, o senhor da caça, como da aldeia
e da região de Altamira, onde se encontra a caverna com todos êsses esplen-
haviam feito os seus antepassados. Assim o exigia o costume sagrado das ca- dores, um "grande" de Espanha, elegante e refinado, sucumbe à magia dos
vernas mágicas. Desde que os jovens caçadores acertassem bem!... quadros glaciários. Todo o futuro de sua vida estará a seu serviço. Durante
Trêmulo e um pou::o tonto, depois de ajoelhado por tanto tempo, o anos colhe apenas ironia, mofa e desprêzo. Nada o demove. Em 1880 o Con-
moço levantou-se, alto e esbt lto, com crânio bem formado e rosto fmo e gresso dos Pré-Históricos de Lisboa desacredita-o com sentença aniquiladora.
agudo. Com rápido olhar examinou o céu, avermelhado pelo crepúsculo, e O velho Virchow da Alemanha, fundador da patologia celular, igualmente
partiu a passos decididos. famoso como médico, arqueólogo, físico, antropólogo e político liberal, depois
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Talvez todos os quadros da era glaciária tenham conteúdo ou significação
mágicos. Aquêles que nada mais são que realistas, compreensíveis mesmo para
tôda a massa do povo, terão certamente êsse sentido. Na época, porém, em
que traços e simp1ificações impressionistas se tornam visíveis ,.... como no be-
líssimo bastão ósseo de Teyjat, cuja manada de renas se compõe dos dois
4. Quando ainda se nadava no atual Deserto do Saara ... A duzentos quilôme-
primeiros animais, mais claramente desenhados, e de um resto de acumulados
tros dos últimos restos de água corrente foram encontrados êstes desenhos, traços curvilíneos, como símbolo do rapidíssimo movimento, representação
executados há milênios em rochas fortes e resistentes. Aparentemente, os anti- momentânea de absorção do tempo, nessa época poderia ter tido o seu início
gos nadadores do Saara conheciam mesmo o estilo "crawl". t. o que a gravura uma arte que já não tivesse aquêle caráter miraculoso-religioso, arte que
parece provar. não fôsse finalista. Pois que essa representação simbólica já deixara de ser
compreensível a qualquer um, e por isso talvez não tenha podido encerrar o
de Leibniz e Goethe, um dos poucos espíritos de formação verdadeiramente sentido mágico. O desenho e a pintura haviam-se tornado questão pessoal,
universal que o mundo produziu, Undset (pai de Sigrid Undset), represen- de acôrdo com o indivíduo, consciente de seus propósitos, dependendo de
tante dos pré-históricos noruegueses, o grande Montelius da Suécia e com uma direção artística, da moda, da escola. E, assim, talvez já tivesse sido
êle os melhores peritos da Inglaterra, Itália, Portugal, etc., todos disseram: trilhado o caminho, cujo fim é representado pelos hieróglifos.
não! Todos opinam tratar-se de lôgro, falsificação, fraude. Tanto concordam Em 1903 encontraram os estudiosos da História Antiga, em Font-de-Gau-
com êste ponto de vista que nem se dão ao trabalho de ir a Altamira. Em me, na Dordonha, França, o mural de gigantesco bisão pré-histórico, animal
verdade conhecem, até êsse período, apenas as partes do esqueleto do homem imenso, desenhado com traços eminentemente individuais. Vinte e três anos
depois, no verão de 1926, encontrou-se a uma distância de 300 quilômetros,
primitivo que o professor de ginásio, Dr. Fuhlrott, de Elberfeld, escavara nas habitações pré-históricas de Geniere-Ain, na província de Ain, uma placa
em 1856 no Neandertal, nas proximidades de Düsseldorf; aquela poderosa de ardósia com o esbôço do mural de Font-de-Gaume; o que é muito curioso,
parte superior do crânio, que se assemelha ao de um gorila, e o fêmur grosso e e mesmo - de certa maneira - mais surpreendente que a própria descoberta
informe, que operários da pedreira puseram descuidadamente de lado, por dos quadros. Pois temos de concluir que o mero esbôço, apenas iniciado e
não o considerar humano. Não era possível atribuir a um ser tão bestial as
magníficas figuras e pinturas de Altamira.
Hoje sabemos melhor. Sabemos que ainda durante o período glaciário uma
raça estranha e nova penetrou na Europa, vindo provàvelmente do leste.
Trata-se do alto e esbelto homem de Aurignac, de crânio bem formado e
rosto fino e agudo, um ser humano que deve ter-se parecido conosco e que
é considerado o primeiro representante do "homo sapiens". A êle os pré- 5. Não é de Picasso, não. Um
históricos do Congresso de Lisboa teriam atribuído arte e saber. Mas foi desconhecido da Idade da Pe-
apenas em 1909 que o esqueleto do homem de Aurignac foi trazido à luz. dra desenhou êste flecheiro na
rochosa parede do desfiladeiro
E assim, estabeleceu-se definitivamente que Don Marcellino estava com a de Valltorta, perto de Aboca-
r~zão e que os quadros de sua caverna eram originalíssimos: pinturas glaciá- cer, na Espanha. Arte idêntica
nas, obras de um ser humano contemporâneo ao bisão europeu. Referente a à de nossos dias.
um dos quadros de Altamira, uma representação especialmente viva de
cerv:os, f~i descoberto também o esbôço primitivo, uma pedra lisa, na qual
se via dehneado aquêle mural. Há muito foi descoberto o esbôço de um bisão,
que orna a parede de outra caverna da mesma época. Como esta arte se
iniciou e como continuou posteriormente é fato de há muito conhecido: pri-
meiramente vest~gios de unhas humanas, que haviam arranhado as paredes,
como o urso fazia com suas patas, depois a impressão colorida de mãos hu-
manas, imperfeitos esboços de animais, penosamente gravados na caverna,
tentativas de várias côres e, ainda mais tarde, quadros coloridos, com demo-
radas luta~ para chegar à perfeita har:monia de sombra e luz, à profundeza n~o colori~o, ao qual ninguém poderia atribuir qualquer importância má-
e _perspectiva dentro do quadro. Seguiram-se épocas da contração impressio- gica, em vutude da falta de realismo, foi de tal forma considerado valioso
msta do quadro, de acôrdo com o movimento e o instante fugidio da visão, po~ algum amante das artes, que o levou para casa. E o conservou com tal
depois apareceram simplificações e apanhados expressionistas do objeto re- CUI~ado! que p?de manter-se por dez OU vinte milênios.
presentado na pintura, assim como a divisão em triângulos, quadrados, seg- Ja existia entao o comércio de objetos de arte? O estudioso da Pré-História,
mentos circulares, rombos e retângulos, como conhecemos em nossa arte con- Herbert Kuehn, ~e . ~ogúnc~a (Mainz), cujo recente livro "Nas Pegadas
temporânea, e como provàvelmente fazia parte do imenso plano da história, d?, ~ornem GlaCiáno segUimos até aqui, levantou essa questão. Bem,
d~ficrlmente po~erá ser respondida. Mas o que certamente segue dessa
que dessa estilização passou ao simbolismo dos hieróglifos.
VIagem extensíssima de uma placa, materialmente destituída de valor, é o
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fato de na Europa já ter sido possível empreender grandes viagens há deze- recentes. Por outro lado levantam tais pensamentos a questão seguinte: o
nas de milênios. que fazia o homem primitivo, que por alguma razão se visse nos imensos
Surpreende e comove que isso não se desse apenas por valores tão ime- territórios florestais ou desertos da terra, para obter ferramentas? Essas pa-
diatos como armas, ferramentas ou jóias, mas também por uma inexpressiva ragens, que encerram algo de horrível para o homem urbano de' nosso século
e muito rabiscada placa de pedra. XX, têm tão pouco de adverso à existência quanto solitárias ilhas de coral
Mesmo que honestamente nos esforcemos por ser justos, libertando-nos no Pacífico. Existir é possível em quase tôda parte. Mas territórios desprovi-
daquela crença de nossos avós de que alcançamos altas metas e que os lastimá- dos de _pedras não existem como pontos de irradiação de cultura ou civili-
veis séculos passados jaziam, infelizmente, na nebulosidade espêssa de sua zação. Quando não há pedras, nem possibilidade de roubar ou adquiri-las,
própria imperfeição, mesmo então será difícil admitir que nossos mais lon- permanece quase imóvel o grande relógio, por tempo muito prolongado.
gínquos antep~ssados tivessem tanto entusiasmo artístico e pudessem superar Entretanto, as áreas extensas em que vivia o homem primitivo eram ou
tão grandes distâncias. Se bem que a ciência pré-histórica não declare im- florestas muito espêssas, ou estepes ou ainda charcos. E mesmo onde as havia,
possíveis isoladas e extensas viagens, embora esporádicas, prefere sempre nem sempre se encontravam a obsidiana e a pederneira, o lápis-lazúli e a ága-
atribuir as indiscutíveis longas migrações de objetos a uma troca local, de ta, a malaquita, a nefrita, o quarcito e o diorito - espécies que fàcilmente se
lugar para lugar e de uma mão para outra. rachavam e, portanto, poderiam ser trabalhadas sem dificuldade, por menos
Impossível asseverar ou negar tal possibilidade. Durante as poucas dúzias duras, e das quais tinham necessidade aquêles que desejassem vencer na luta
de séculos que podemos abranger com nosso olhar retrospectivo, agiram pela existência. Quem, portanto, não obtivesse a pedra em suas proximidades,
aquisição, posse e defesa, como os mais fortes impulsos humanos. Na da teria de procurá-la longe, teria de viajar para, negociando, adquirir essa
mais a~missível, portanto, que a teoria de que os séculos anteriores estavam preciosidade. E assim começou a descoberta da Terra.
submetidos a exatamente as mesmas leis e que, para adquirir certas coisas, Na velha Europa era a pederneira a mais preciosa matéria-prima daqueles
eram empreendidas as mais extensas viagens. E já que a terra era muito longínquos tempos antigos. Logo surgiu o conhecimento de que pedras recém-
~enos densamente povoada, necessário se tornava percorrer grandes distân-
extraídas da terra, ainda "úmidas", poderiam ser trabalhadas com maior
~I~s '!-ntes de encontrar outros sêres humanos. Com isso, o perigo de ataques
facilidade e mais ràpidamente que o material ressequido e parcialmente alte-
r~do pelo vento e pelo sol, encontrado à superfície da terra. E assim prin-
Illl~Igos tornara-se menor e parece-nos muito possível que as rotas, das
quais falaremos daqui a pouco, tenham sido percorridas não apenas no Cipiou, já há muito tempo, uma verdadeira mineração da pederneira, cujos
trânsito local de lugar para lugar, de uma aldeia para outra e de uma pas- inícios remontam há doze ou quatorze mil anos e que se conservou por
sagem fluvial para a próxima, mas também em extemas viagens. muito milênios. A Inglaterra Meridional, onde centenas de minas antigas
foram descobertas, ocupando superfícies de dúzias de hectares, eram cen-
tros dessa mineração. Posteriormente, por volta de quatro mil anos antes
de nossa era, começou a participar também a Suécia. Naturalmente não eram
t~is "emprêsas de mineração" obra de indivíduos isolados. É óbvio que pode-
nam ser levadas avante apenas por verdadeiros grupos de operários, com
ampla divisão do trabalho. Nada sabemos a êsse respeito, mas provàvelmente
2 tu~o se passou como na primitiva mineração do carvão, em tempos his-
tóncos.
A ferramenta estava indubitàvelmente no inicio de tudo. Se primitivamen- Instalou-se, pois, significativamente, uma indústria em volta dêsses centros
te o tôsco porrete fôsse suficiente, então o desejo de poder cortar e serrar, de. mineração, exatamente c~~o e:n nossos dias. Uma. indústria da peder-
fender e fincar, criou a necessidade de descobrir conveniente material de neira, que trabalhava a matena-pnma no local das mmas. Essas indústrias
partida. :f'.ste foi a pedra, passível de ser usada para a manufatura de pontas ~roduziam para o c~m-:_ér~io, para círculos de compradores muitas vêzes loca-
de flecha e lança, facas, punhais e perfuradores, assim como jóias e artigos luad_os a s-randes distancias, e que certamente teriam de pagar muito pelos
domésticos. Além disso possuía ela a qualidade divina da fagulha, produzia precwsos. ml>trumentos. ~or ~mtro lad~, parece a _eederneira ter sido exporta-
o fogo - o que, por si só, era razão de sobejo para torná-la, durante muitos da tam~:m _co~o 1?-até~Ia-pnma e enviada às regiÕes da indústria pertinente.
milênios, a matéria-prima predileta. Tal regiao mdustnal Situava-se, por exemplo, na Turíngia, cujos machados,
Como é sabido, denomina-se êste período "a Idade da Pedra", sem que se marte~os,e enxad~s parec~m ter usufruído, por algum tempo, de "reputação
possa afirmar com exatidão quando viu o seu inicio ou seu fim. Pois que mundial . Na Pruss1a Onental, no Meno, em Brandemburgo e na Charneca
ainda em nossos dias apontam os indicadores do relógio universal - na pro- de Ll;Jeneburgo, foram encontradas ferramentas procedentes dessa região in-
cura dessas horas longínquas, em extensas regiões da terra e para numerosos dustr_Ial. Out~o grupo da antiga indústria européia de ferramentas parece
sêres humanos, - para antes do alvorecer. Afirma-se sempre que os primitivos ter s1do localizado às margens do Lago de Constança. Não sabemos se man-
habitantes da Austrália, os bosquímanos da Africa do Su1, os índios das teve _c~ntato com o_s "trustes" da Turíngia, e nosso conhecimento sôbre as
matas virgens sul-americanas, ainda vivem em condições da Idade da Pedra. condiçoes da orgamzação de tal indústria equivale a zero.
E nem podemos imaginar a nossa existência sem a pedra; pensando bem, é Mas, naturalmente, nem tudo se passou com a mesma naturalidade de
apena~ a grande valorização do aço ou do ferro como matérias-primas e a nossos dias. Algum viandante ou caçador deve ter armado a sua tenda de
subestimação do papel da pedra em nosso mundo de hoje, um índice de gue peles em algum ~êsses pontos, após cuidadoso exame da selva em tôrno, em
ê~ses novo~ materiais para a fabricação de ferramentas de importância VItal q~e nada se movia, e_xce~o talvez um pequeno córrego. Percebera nas proxi-
sao conhecidos há apenas alguns milhares de anos, isto é, há épocas bastante midade~ rastos de ammais. Altas rochas protegiam as costas. Bastava cercar-

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se de uma vala coberta de ramos a que, se necessano, poderia atear fogo e a épocas de paz, durante as quais o comércio e o tráfego floresciam, devem
segurança noturna seria perfeita. Eis o lugar da tenda! O chão deve ser es- ter-se seguido aos períodos iniciais, inquietos e sangrentos.
cavado um pouco e rodeado de uma moldura de pedras para tornar resis- Nossas reflexões parecem proceder do estudo de um balanço de modernas
tentes as paredes da tenda; e então poderá deitar-se. companhias petrolíieras. Mas isto não é tanto de surpreender-se, já que o
Ràpidamente cai a noite. Incansável trabalha nosso "bandeirante" da indivíduo aqui retratado é o ser humano, que pode ter mudado em pequenas
Idade da Pedra. Enterra violentamente o seu machado no solo- e de repente minúcias, mas que no fundo permanece igual desde épocas imemoriais.
sobe um feixe de centelhas! Mas, longe de afastar-se atemorizado, arremessa-se Sabemos que foi na Inglaterra Meridional, assim como na Bélgica, que
jubiloso à terra, escava febrilmente com as mãos sem importar-se com o es- se situaram as mais importantes minas de pederneira, com as grandes "indús-
correr do sangue. Depois eleva, examina à luz vacilante do dia que se des- trias de ferramentas" da época em suas proximidades. E não há dúvida que
pede, o seu achado, a pederneira, o que de mais precioso existe sôbre a tudo se processou de maneira quase igual ao que seria hoje, de acôrdo com
terra! nosso conhecimento das leis do desenvolvimento industrial. Podemos mesmo
Mal clareia o próximo dia e já o nosso personagem trabalha novamente. provar esta asserção. Numerosos documentos, de procedência muito antiga,
Extasiado revolve a terra, sua alegria é ilimitada, pois descobre que a pedra informam que as grandes rotas comerciais, naquelas épocas percorridas pela
existe também nas profundezas do solo. É êle, portanto, o detentor de um vez primeira, e que se estendiam em tôdas as direções da Europa e Ásia,
garimpo. Naturalmente êle, sozinho, pouco proveito pode tirar disso. Daí eram consideradas "sagradas", tendo existido nessas estradas a "paz geral"
por diante o escavador de pederneira não tem muito em comum com o e fazendo os moradores das regiões circunvizinhas tudo para encorajar o
garimpeiro, o prospetor de nossos dias. Mas sua descoberta possui valor in- negociante, que por ali viajasse. É óbvio que isso não tem seu fundamento
calculável para a tribo. Esta começa imediatamente a aprofundar a mina em razões de ética - já nessa época não valia nada a vida humana - mas
encontrada, sempre achando novos aglomerados de pedras, vindo nosso apenas porque ataques e assassinatos teriam levado à interrupção do tão
caçador, durante algum tempo, a ser o indivíduo mais conceituado de sua neces-sário fornecimento de mercadorias.
tribo. Não por muito tempo, porém. Os anciãos do grupo organizam a mi- Não é de admirar-se, portanto, que produtos industriais e matérias-primas
neração, colocam prisioneuos nas minas ràpidamente abertas, induzem os da Idade da Pedra tenham percorrido distâncias tão consideráveis. Pedernei-
especialistas da aldeia, que já de há muito adquiriram notoriedade pela ras de Ruegen, fàcilmente reconhecíveis em virtude de sua especial composi-
produção de ferramentas de pederneira, a estabelecer-se nas imediatas pro- ção química, foram encontradas no Lago de Neuemburgo, na Suíça; machados
ximidades da nova jazida e quando emissários lhes chegam de tribos e grupos de J?edra, indubitàvelmente finlandeses de origem e feitio, acharam seu
vizinhos, trazendo animais, gordura, peles e adornos raros, J?ercebem o al- cammho até a Rússia Central; liparitos, isto é, pedras encontradas somente nas
cance de sua riqueza e sabem que seu povo pertence aos primeiros do mundo. Ilhas Lipáricas, foram descobertos em túmulos egípcios do quarto milênio,
Fabricam-se, antes de mais nada, armas diversas: pontas de flecha e lança, e ferramentas de pederneira, de indubitável fabricação da Turíngia, penetra-
machados, punhais, arpões e muitas outras - sendo que as peças encontradas ram até a Prússia Oriental.
em tôdas as partes do mundo, hoje em dia, atestam um magnífico trabalho. Isso preocupou naturalmente nossos estudiosos da Pré-História, em es-
Certamente a tribo que encontrou essas minas decretou, a fim de conservar pecial no século passado. Desde que todos daquela época, e muitas vêzes sem
a sua superioridade militar, a proibição de exportar armas. Mas após os pri- p~rfeita consciência dêsse fato, estivessem sob a impressão da teoria darwi-
meiros ataques bem sucedidos de outros grupos menos ricos terão compreen- mana da evolução,l·ulgavam que fôsse suficiente ir aos povos primitivos ainda
dido que não se pode impedir a disseminação de inovações. Deve ter-se em existência na frica Central ou Austrália, para ter uma concepção do
seguido, portanto, uma época de infiltração econômica, com o empenho de mundo de há doze ou quatorze mil anos atrás. E uma vez que observavam
tornar outras tribos dependentes. Isso se dava através, por exemplo, do for- passar artigos europeus, adquiridos por nativos na costa da África Ocidental,
necimento de agulhas, cuja ponta fina e lisa poderia fàcilmente penetrar em tempo relativamente breve de aldeia para aldeia, através de todo o conti-
qualquer pele e cujo fundo cuidadosamente perfurado e polido não cortava nente, para tornar a aparecer na costa oriental, acreditavam ter ocorrido o
tão ràpidamente a linha, tal como acontecia com as agulhas de osso; agulhas mesm~ na. Europa da Idade da Pedra, tendo-se o comércio daquela época
que não se dobravam e raras vêzes quebravam. Também enfeites foram fa- estendido Igualmente sôbre distâncias relativamente curtas.
bricados, mas principalmente ferramentas, como machados, perfuradores e Isso, naturalmente, é possível. E quando ouvimos que não raro foram en-
martelos para trabalhar a madeira, e depois raspadores para o preparo de contrados. cauris (búzios que tinham um valor especial) em túmulos alemães,
peles. suecos e mglêses desde a época média da Idade da Pedra até por volta do
Já que é difícil o abandono de um nível de vida superior e a renúncia a século X a. C., conchas que existem apenas no Oceano fndico e no Mar Ver-
conqmstas técnicas, que torn am mais fácil a luta pela existência, viam os melho e que, ~té um passado recente, possuíam em muitas partes do mundo
proprietários das minas que tudo dependia de despertar a necessidade do valor monetáno, ninguém se atreverá a afirmar que algum negociante hindu
consumo de seus produtos entre as tribos vizinhas e, assim, criar uma condi- ou árabe empreendeu em épocas primitivas uma viagem de Bombaim a Es-
ção de dependência. Aquêles entre os vizinhos que não se comportavam tocolmo ou Londres a fim de vender os cauris. Temos, nesse caso, de supor
como era do desejo dêsses senhores, que portanto transtornavam a ordem do que ? trajeto foi vencido em etapas. Por outro lado devemos ter em mente
mundo, não recebiam fornecimentos futuros. Quem se rebelasse contra êsse que Já na Ida~e _?a ~edra Polida puderam poderosas cargas ser transportadas
estado de coisas provocaria a guerra, em que sua inferioridade técnica era por u:;tensas .dista~Cias. Os enormes monólitos de Stonehenge, na Grã-Breta-
sempre decisiva. Pois mesmo conquistando as minas e as indústrias de ferra- nh~, _,esse emgmático santuário celta, provieram de pedreiras situadas a 300
mentas, não disporia dos conhecimentos e nem dos especialistas, condição q~Il?II?e~ros de distân c_ia. As massas de pedra da pirâmide de Quéops são
necessária para a obtenção e o aproveitamento da pederneira. Assim longas ongmaiJa~ de rocha VIva do outro lado do Nilo. Portanto, já aos quatro

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mil anos antes de nossa era. havia povos capazes de transportar pesos de mi- vencer os indigentes ao redor que a guerra e o emprêgo de fôrça eram muito
lhares de toneladas sôbre nos caudalosos. Não se sabe de que maneira. De menos lucrativos que o comércio pacífico e a submissão ao inevitável. Nova-
qualquer forma, mesmo os engenheiros modernos teriam de dar tratos à bola mente parecem épocas pacíficas de esJ?lendor ter sucedido a períodos de guer-
para solucionar tais problemas. ras desenfreadas. As aldeias do terntório de Hallstatt, que forneceu o sal
Além_ do ma~s, é indiscutível qu_e. viagens extraordinàriamente longas te- à Europa primitiva, já não se encontram em gargantas rochosas e inacessíveis,
nham Sido ~eahzadas em eras pnmltivas. Na Mesopotâmia do século quarto mas em vales abertos - talvez já se tivesse desenvolvido semelhantemente
antes de Cnsto era bem conhecida a madeira "teak" da fndia e os ricos co- nessa época o conglomerado de tantas povoações na Alemanha Central, na-
me~ciantes d_o Iémen, aq~ela velha ~etrópole do comércio d~ incenso, pre- quela região da qual principalmente a Europa Setentrional importava o seu
fenam a !eSIStente ~adeira estrangeira para os pilares e soleiras das portas sal. E uma vez que a posse prolongada e inconteste costuma criar mentalidade
de suas vilas ou es~nt_órios. E a madeira '_'teak" apenas pode ter sido trans- conservadora, fazendo surgir colecionadores e não artistas, também Hall, com
portada à Mesopotamia e ao Iémen por VIa marítima e não através de cara- a regi_ão ~as salin_as, n_a Áus~ri~ ~uperior, mais pree?cheu as funções de museu
vanas pelos desertos insuperáveis do Beluchistão. O mesmo aconteceu nas pré-histónco e histónco pnmitivo do que cumpnu os deveres da produção
costas africanas do Oceano fndico. Por volta de 1500 a. C. existiam ali nume- artística, contraídos por sua riqueza. A êste respeito quase nada produziu
rosos artigos comerciais_ hindus, transp_?rtados J?Or sôbre dois mil quilômetros o rico comerciante da região de Hall. Mas parece que qualquer camponês
atra~é~ ?o mar, apr~veitando as monçoes. Duvidaram por muito tempo dessa sentia imenso orgulho em colecionar e reunir peças antigas de bronze, contas
poss:bihdade por _nao querer~m acreditar _que o homem antigo conhecia o de vidro do Egito, lindas figuras de marfim entalhado, da África, âmbar es-
segredo das monçoes. ~as aSSim deve ter sido, e não se pode deixar de reco- pecialmente precioso, caras peças de cerâmica, encantadoras jóias de ouro,
nhecer o fato de que Já os homens da Idade da Pedra Polida ousaram em- maravilhosos lavôres de prata, conchas raras, tudo enfim que tivesse algum
preender viagens enormes em mar aberto. valor. Alguns dêsses objetos eram escondidos no pé-de-meia ou sob o lugar
O mundo ?os tempos primitivos já era! portapto, quase tão e~tenso quanto de repouso, onde provàvelmente foram consumidos pelo fogo ou ainda re-
em nossos dias. E apare~tel?ente nada Impedm o homem antigo de partir pousam na terra. Certamente é muito significativo que a região das salinas
de seu ~ar europeu ou ~siático e!? de~anda ,de regiões tão afastadas quanto (Salzskammergut), entre o Watzmann e o Dachstein, seja especialmente rica
a Aménca ?u a. Austrália. _Como Isto foi poSSivel, quando se verificou e quais em antigas lendas de mineradores e tesouros escondidos. Por outro lado era
raças p_ré-histónc~s envolvidas em tais _migrações? Não temos disso o menor costume enterrar tais preciosidades junto aos mortos. E, no túmulo, estas se
conheCimento. Eis um ro~an_ce qu~. am~a está para ser escrito, quando fi- conservaram e falam uma linguagem altamente esclarecedora. São bracele-
nalmente as tundr~s da Sib_éna, os Jangais do sudeste da Ásia, os gélidos de- tes, ornamentos de vestuário, em ouro ou ferro, são armaduras e espadas,
sertos do Alasca tiverem sido desbravados e examinados pelos arqueólogos cravejadas de bronze e âmbar.
metro quadrado por metro quadrado. Até então será necessário manter-se a Foi à altura de 2500 a. C. que principiou a exploração das salinas de Hall
tradição lendária, a i_nvestigação comparada das lendas de povos e raças, com pelo homem. Embora essa região talvez tenha sido procurada no início atra-
seu_s temas quase umversais de _criação, de dragões e dilúvios. Mesmo a ten- vés das antiqüíssimas rotas comerciais, que se estendiam em direção de oeste
tatiVa dessa solução está ainda em sua primeira fase e quanto realmente existe a leste, entre a margem sul da coberta glacial européia e as geleiras dos
atrás dessas lendas antigas, é o que vamos ouvir adiante. Alpes, desenvolveu-se então densa rêde de estradas, cujos cruzamentos se si-
tl:'-avam quase exclusivamente nas proximidades das salinas. Assim existiu a
VIa Norte-Sul, que da Enseada Teutônica (Deutsche Bucht) levava à Ádria
atrav.essando o Elba, o Brenner e o Etsch. Houve também uma ligação co-
merCial que subia pelo Ródano, para depois levar, ao longo do Reno, para
o ,n?rte, ou _q_u~, paralelamente aos contrafortes dos Alpes próximos ao Da-
nubw, se dingia para o leste. Outro caminho, bastante percorrido, levava
3 também da Samlândia - com sua "terra azul" rica em âmbar - através das
regiões d_o Vístula e do Oder e das matas virgens da Germânia Oriental, até
Além de armas e instrumentos, foram também víveres e especiarias, jóias a Morávia e! cru~ando o Semmering, até a Itália e a Dalmácia. Tôdas eram
e ornamentos,. que levaram o home~ de épocas remotas ao empreendimento rotas às quais Ans~óteles, posteriormente, se referiu como "sagradas", estando
de _extensas viagens, forçando-o, assim, à exploração do mundo em redor. os que n~las transitassem sob proteção divina e invioláveis.
Assim _como. na Id~d~ Média constituíam as especiarias e principalmente o Essas VIas, que. mantiveram sua importância para o tráfego intereuropeu
sal o Incentivo pnnCipal, do mesmo modo que o plantio da pimenta, de até a I,da?e Média, eram - segundo tudo faz crer - verdadeiras rotas para
cardamomo, de gengibre e de noz-moscada na Europa teria talvez evi- 0 come~cw a lon~a distância. Na mesma época em que Homero e seus con-
tado as Cruzadas e procrastinado as grandes viagens de descobertas do início t~mporaneos consideravam países como o Egito a Itália e a Babilônia nações
da era mo~erna, também cul~uras pré-históricas teriam deixado de desenvol- Situ
... a d as nos 1·Imites
· '
extremos do mundo, obscuramente imersas na longin-
ver-se ou visto seu desenvolvimento retardado, se não tivesse existido o sal. qu~dade, na lenda e no mito, devem ter-se encontrado no Salzkammergut nas
Como. é s_abi~o, em vastas partes do mundo não há êsse mineral, e assim salmas .austríacas, homens de tôdas as partes do mundo: etruscos da Ítália
como _hoJe sao _disputados poços de petróleo, constituíam em épocas de antanho Se tentnonal com mascates braquicéfalos e atarracados da Europa Ociden-
a~ salmas mot~vo para c~entas guerras. Depois parece ter-se repetido o que ta1; estranhos orientais, altos e esbeltos de cabelos escuros e pele tostada
yimo_s .a ~espeito das mmas de pederneira e seus territórios industriais; a com 1. ouros escan d"mavos de olhos azuis;' gordos comerciantes cretenses com'
mtehgenCia dos grupos "capitalistas" proprietários de salinas conseguiu con- prussianos de rosto largo, da Samlândia. E, apesar disso, nem lendas nem
26 27
canções se referem a Hallstatt, a pequena Paris de épocas pré-históricas. Os bem antes de existir a língua latina, e é assim que a lenda, afirmando ser o
ossos, encontrados nos túmulos da região, também não permitem determinar âmbar uma espécie de coagulada espuma das ondas, ou mesmo suor solar,
a que raça, origem ou civilização pertenciam aquêles homens, aí enterrados não foi desfeita.
com ornamentação tumular verdadeiramente ofuscante. Sabemos de muitas viagens ao Báltico, desbaratadas pelo mau tempo, por
Também aqui é possível que o comércio das épocas primitivas se tenha não ser o sol grand~ coi.sa naquela~ ~~ragens. ~ ~esmo quando acid~ntal­
iniciado com a carne, provemente da caça, e as peles; com sal e armas. Mas mente fazia calor, nmguem tena a 1de1a de atnbmr ao sol uma espécie de
em seguida o Responsável pela história arremessa subitamente preciosidades, transpiração tendente a cair sôbre a terra. Tal idéia pode apenas ter encon-
do norte ao sul, nas montanhas da terra, e às vêzes quer parecer que assim trado sua origem em regiões sulinas, onde os raios cálidos do sol são entra-
agiu para apressar o curso demasiado vagaroso dos acontecimentos. Quase ao nhadamente odiados e em que o próprio suor levava à conclusão de que a
mesmo tempo surge nos vales pacíficos o âmbar setentrional e o bronze me- luz celeste não poderia sentir de forma diversa.
ridional, iniciando-se indubitàvelmente naquela ocasião todo êsse pesadêlo Com tais idéias talvez tenha entrado, há muitos e muitos séculos, o pequeno
de especulação e competição, de prosperidade e depressão, de falência social e gordo sarmático, agente de honrada firma de exportação e _importação do
e ascensão plebéia, aquêle pesadêlo tão bem conhecido por nós, sêres dêste Adriático, na casa coberta de sapé de um pescador e comeroante de Cranz
século. Demasiadamente bem conhecido! ou Kolberg. Cheio de respeito, tomava nas mãos os pedaços de âmbar que
Achados de âmbar da Época da Pedra Lascada registram-se em muitas ca- muitas vêzes pesavam meio quilo e que seus sócios da Pomerânia ou da
vernas da Morávia, França e Espanha e é provàvelmente com razão que se Prússia Oriental haviam tiraáo do esconderijo no canto da sala. E ràpida-
supõe tratar-se, nesses casos, de âmbar procedente da propriedade de grupos mente seu espírito ágil avaliava o equivalente das riquezas que êsses bárbaros
isolados que se dirigiam para o sul. Trata-se quase exclusivamente de âmbar nórdicos possuíam, de acôrdo com os últimos cursos cambiais da Aquiléia.
trabalhado, desta forma difundido pela Europa. A época em que esta resina Depois colocava seu vinho na mesa, para, satisfeito, verificar como êsses in-
amarela é exportada das costas do Atlântico e do Báltico, como matéria- divíduos barbudos, de poucas palavras, com os quais teria de negociar no
prima, é ainda distante. Nos anos que precederam o final da Idade da Pedra, dia seguinte, se desfaziam sem muitos modos nos prazeres do álcool. í.le
o âmbar parece, porém, ter-se tornado subitamente um produto de "moda". próprio terá bebido hidromel ou leite de égua fermentado, de rápido efeito
É verdade que já nos túmulos cretenses da época de 2500 a. C. fôra o âmbar alcoolizante. Haveria, talvez, em casos especiais uma bebida superalcooli-
encontrado, e alguns séculos depois apareceu mesmo no Egito; mas, na época zante de mel e fogo, conhecida desde tempos imemoráveis com o nome de
de que falamos, o produto vai da Samlândia e Jutlândia para o sul em con- "grega-ursos", capaz de derrubar os beberrões mais inveterados.
siderável quantidade. Os túmulos da cultura micênica, dos séculos XVII a Depois o nosso esperto negociante, cheio de incontrolável curiosidade para
XIII a. C., apresentam-no quase todos - o que fêz com que os arqueólogos saber de onde, afinal, provinha o âmbar, terá começado a falar do sol trans-
se decidissem pela origem nórdica dêsse povo - e a época de Hallstatt parece pirante e de sua suposição de que essa ped~ amarela e perfumada nada
ter sido o verdadeiro apogeu do ouro nórdico. Encontra-se o âmbar, essa poderia ser senão a gôta do suor celeste. Posteriormente a lenda nos foi assim
resina bem cheirosa, fácil de trabalhar, de dourado brilho, por vêzes trans- transmitida por Plínio, como ela foi certamente narrada na desembocadura
parente e outras opaca, em forma de pérolas, ou então constituindo correntes, do Persante em Kolberg, e também em Cranz, Rauschen e Palmnicken.
e também como cabeças de agulhas de bronze e ornamentos em punhais, "Níquias", informa Plínio sôbre um cientista grego, "supunha que o âmbar
como pingentes, broches, ou mesmo anéis. E em quantidades verdadeiramen- fôsse procedente de uma espécie de sumo dos raios solares. í.stes, de acôrdo
te espantosas foi o âmbar descoberto ao longo das velhas rotas comerciais, com essa opinião, tinham seu maior impacto sôbre a terra no oeste, onde
escondido cuidadosamente na terra, nas cavernas, nas rochas! Julga-se, e para depositavam gorduroso suor, arremessado mais tarde pela-s ondas do oceano
tal há razões, que êsses achados tenham constituído tesouros particulares de às costas da Germânia."
algum ricaço ou armazéns de ricos negociantes, que dêles retiravam a mer- Nossos pescadores pomerianos e prussianos orientais terão ficado muito
cadoria encomendada pelos fregueses para entregá-la em curto espaço de contentes com a narrativa de tais lendas. Finalmente haviam encontrado uma
tempo. explicação para a origem do âmbar, a qual, como naturalmente sabiam, não
Enigmas místicos envolvem o âmbar, o célebre "eléctron" helênico. A an- correspondia aos fatos reais, mas chegava a agradar a êsses meridionais ama-
tiguidade grega julgava que as pérolas de âmbar fôssem as lágrimas petrifi- lucados. Podemos imaginá-las bem, aquelas figuras altas e pesadas, de rostos
cadas, derramadas pelas irmãs de Faetonte, quando êste, após sua via?;em marcados pelas intempéries e pela luta contra o meio, acenando afirmativa-
solar, tombou à terra, esfacelado por Zeus. E, em virtude dessa compaixão mel_lte ou serenamente confirmando suposições inventadas pelos gregos, que
divina, atribuía-se às douradas pérolas de lágrima uma fôrça mágica, capaz se JUlgavam donos do saber. Então inventavam mentiras colossais. E tão
?e sanar e proteger. É uma explicação evidentemente poética, religiosa e certeiros agiam seus contos sôbre a mentalidade dos "peritos", que ainda
mgênua. Mas os mineradores da Idade da Pedra, na Samlândia, assim como ap~s decorridos dois mil anos, um estudioso alemão afirmou gue "o âmbar
o~ pescadores de âmbar da Pomerânia e Jutlândia, dificilmente terão conhe- sena uma espuma de água, misturada com muito sal nas pra1as marítimas,
Cido ou procurado conhecer a origem do ouro marítimo. Mas certamente não qu~ adqui~e extraordinária dureza, ressecada pelo ar e o ca1or solar". (Bern-
terá escapado à atenção aguçada dêsses filhos da natureza que os vários in- stem sey em am Meeresufer mit viellem Saltz vermischter und zusammen-
setos ou pequenos animais, as môscas, os mosquitos e as formigas, que tantas gestossener Wasserschaum der, durch die Luft und durch die Hitze der Sonne
v~zes encontravam encravados no âmbar, indicavam a resina como procedên- getrocknet, zu einer ausserordentlichen Haertte gelanget). E Friedrich
Cia_ do produto. Mas se tivessem tornado públicas tais explicações prosaicas, Samuel Bock, conselheiro em Koenigsberg na Prússia, teve de escrever em
tenam estragado o seu negócio com o Sul. "Mundus vult decipi"; afinal de 1767 volumoso livro, "Ensaio de uma breve história do Âmbar Prussiano",
contas o mundo deseja ser enganado. Esta máxima irônica era aplicada já para provar que o âmbar é uma petrificação da resina.
28 29
Com o âmbar sucedia o mesmo que aos outros produtos natur:1 is, sal e das pelos moradores das proximidades, a fim de que o comerciante não
pederneira. Nas I?roximidades imediatas das jazidas estabeleceu·se, ao lado da deixasse de visitá-los.
mineração propriamente dita, a indústria que empregava a matéria, produ- :ele fazia essas visitas, corajoso, paciente, imperturbável, na mão uireita a
zindo principalmente pérolas de âmbar. Também não temos provas escritas espada, na esquerda o escudo. Apenas os mais corajosos e destemidos, os me-
dêsse fato, não existem documentos históricos. Devemos limitar-nos à expli- ~ores comb~te_ntes e lutadores, é que se tornavam negociantes. E muitas
cação dos achados. São tão numerosos e imensos, que não é lícito supor que vez~s o comercio ~ra realmente. semelhante àquele que ainda hoje se faz na
o âmbar tenha sido cortado e trabalhado exclusivamente para emprêgo no ~frica Cent~:L ~ I~to que nos mformam x_nuitos mitos e lendas da pré-histó-
país de origem. Muito pelo contrário, indicam tôdas as probabilidades que, ria. Na regiao hm1tr~fe, com os estrangeiro~ desconhecidos que .êle não vê
por volta dos fins da Idade da Pedra se iniciou intenso comércio com o Sul. nem ~mve, embora saiba ~star ~endo por nnl olhos observado, o negociante
E já que primitivos produtos etruscos foram encontrados em alguns túmulos deposita as suas ~ercadorias. N mguém nelas toca, e ainda na manhã seguin-
da Alemanha Oriental, supõe-se que os etruscos tenham sido os compradores te aí se encontrarao. Mas ~o lad~ estarão produtos indígenas, oferecidos como
europeus do ouro nórdico. Tudo faz crer que já êles iniciaram o percurso troca. Em p~recendo satisfatórios ao comerciante, êste deposita tudo nas
na grande rota do âmbar, que começava em Aquiléia, província de Udine, costas dos ammais. Se não são suficientes, deixa tudo como está. Talvez os
terminando na Samlândia; aquela rota pela qual Roma viria a receber, em moradores do local se decidam a aumentar a oferta. Caso contrário carrega
épocas posteriores, o âmbar áe que necessitava. novame!lte os animais e _vai. de partida.
Disto tudo somos forçados a concluir gue as rotas européias de longas dis- _Depois vem-lhe U'rr_la _Idéia. ~er~ conveniente viajar continuamente com
tâncias não foram trilhadas num só sentido, apenas de norte a sul. Também t~o pesada carga? H~ nos à direita e à esquerda, e onde há rios existem
do sul, já nos últimos anos da Idade da Pedra, veio corrente compacta de seres humanos, e. assim o com~rci? P?~erá ser ampliado. Não será melhor
homens e mercadorias. É óbvio que os fornecimentos nórdicos, quer se tra- enterr~r, perto desse local de distnbmçao, a maior parte dos machados dos
tasse de âmbar ou sal, não eram pagos em dinheiro, que não existia na p~m~ais e das agulhas? Não será mais indicado viajar para a esquerda 'ou a
época, mas em mercadorias, isto é, mediante trocas. E como produto de troca, direita Y?~ pouca bagagem, com amostr:'ls das mercadorias, para examinar
interessava antes de mais nada o marfim do sul que, nessas épocas remotas, as poSSibilidades de c~nsum?, tomar p~didos e for~ecer em seguida? E não
era produto da "moda" no Norte europeu, e por isso tão cobiçado quanto pode.rá, .para uma mais rápida conclusao do negóciO enviar o seu auxiliar
o âmbar no Sul. Em alguns casos parece ter-se tratado de marfim fóssil pro- o pnmeiro escravo? '
veniente dos dentes de mamute ou elefante, encontrados nos seus "cemité- Há muito tempo vem-se discutindo sôbre a veracidade desta suposição. Mas
rios", locais enigmáticos que êsses animais procuravam ao sentirem aproxi- sempre f<;>ram feitos novos achad~s que não podem senão provar a existência
mar-se o seu fim. Por outro lado, é o elefante muito encontrado na região do de dei?ósitos e armazéns de negociantes em viagem. Se assim fôr se a enorme
Mediterrâneo, ainda em épocas históricas. Quinhentos anos antes de nossa era, ~antJdade de machados, punhais e cunhas idênticos, se o acú~ulo de con•
menciona-o Heródoto; na mesma época caçavam-se elefantes nas regiões cos- as estranhas, se os a0ados de pedras ~e~ipreciosas, forem considerados
teiras de Marrocos e ainda no sécufo IX a. C. há notícia da existência dêsses per~encentes a. esconderiJOS, precursores pnmitivos de "agências" e "filiais"
animais na Palestina e Síria. ântao necessáno se to~a acost~marmo-nos à idéia de que já o comerciant~
A maioria dos numerosos utensílios e jóias de marfim, empregados na i;v Ida~e da Pe~a sabia orgamzar a sua profissão. E daí não dista muito a
Europa há quatro mil anos, não deve ter sido, portanto, de procedência ~nçao da yahse de amostras e o aparecimento do viajante comercial. O
fóssil, mas produto de caça. E foi certamente um feito significativo o trans- capitulo segumte tratará dêsse assunto.
porte dêsse material até a Europa Setentrional e a Escandinávia!
De qualquer maneira, é necessário têrmos sempre em mente que o mar-
fim e o âmbar, e - em certo sentido - também o sal e os instrumentos de
pederneira, não eram produtos das massas, e sim de luxo. O lucro incalculá-
vel que sem dúvida proporcionavam, por certo motivou, já em épocas muito
remotas, numerosas e extensas viagens. Mas não devemos imagmar que os
Alpes tenham sido atravessados r.or caravanas intermináveis de animais de
carga em seqüência regular. Dificilmente parece crível que nas rotas que cor-
tavam a Europa Central e Setentrional, inúmeras "expedições" comerciais
procurassem seu destino. Isto ficou reservado aos séculos posteriores, os
séculos que, com o dinheiro, inventaram o traficante.
A moeda, êsse meio internacional de troca, é completamente desconhecida
às épocas primitivas. Nosso comerciante dessa era distante não sabe, por con-
seguinte, o que seja escritório ou contabilidade, cheque ou nota promissória,
e também não conhece agentes ou representantes comerciais; faz tudo sozi-
nho. No início nem sequer imagina o veículo de rodas. O que tem a oferecer
- sal, marfim, ferramentas e armas de pedra - é de enorme pêso. Precisa
ser carregado por escravos, burros ou cavalos. As referidas rotas não eram
estra~as C?mo as conhecemos hoje. Às vêzes, em regiões particularmente in-
transitáveis, encontravam-se passagens feitas de troncos de árvores, construí-
30 31
cavalo de âmbar. Será que essa encantadora obra de entalhação do âmbar, de quase cinco
mil anos atrds, constituía um adôrno de alguma bela senhora da Antiguidade7

Jóias de bronze encontradas na Alemanha Sele11trional: uma go la , um alfillêle e uma


fíbula (broche).
PARTE II

O METAL DOS REIS

Mala de amostras de Koppenow. Essa caixa de carvalho, de 64 em de comprirr:_ento, encon-


trada em K oppenow, na Po'n erânia, contendo espada, broche, d d d Bbotoes, (cet~.,
machados, rca era,
de
muito provàvelmente, a mala de amostras de um viaJ·ante da I a e o ronze e
1000 anos a. C.).

Berzelius e a catálise - O metal das comas reais -


"O momento chegou" - A pecaminosa Tartesso
- A Atlântida, a América e a Lua - Os grandes
comerciantes de Greta - Os gregos comeram pei-
xe? - A invenção do dinheiro - O advogado Lisias
e o grande capital - Cabeças de boi, os dólares da
Idade do Bronze - Estanho das Cassitérides - A
descoberta da Madeira -As "tinturarias" de Tiro
- A profecia de Isaías e o ocaso de Tartesso - Os
concorrentes são iludidos - Contrabando de ouro
na Gália - Filiais, representantes comerciais e ma-
las com amostras - Virchow torna a dizer "não"
- Estradas intereuropéias - Ascensores de navios
nas proximidades do Adriático e do Mar do
Norte - Ulisses em Dantzig - Truso, a Elbing da
Pré-História - O canal entre o Mar Negro e o
Báltico - A indústria escandinava de metais.

3 Conquista Mundo
Cerâmica decorativa do período de Hallstatt. Essas tigelas e vasos, pintados e'!" várias
do séettlo VI ao VII a. C., têm paredes tão delgadas que apenas podem ter servtdo como
menta e nunca para uso diário.
1

Faz cento e tantos anos que o químico sueco Berzelius teve, certa noite,
diante de suas retortas, uma idéia genial. Durante quase um decênio ocupou-
se com a Química das plantas e múltiplas vêzes percebeu que determinados
processos químicos experimentavam, repentinamente, uma aceleração que
parecia sobrenatural. Uma fôrça qualquer, um agente desconhecido, deveria
estar intervindo. E, raciocinando sôbre êste "milagre", chegou à seguinte con-
clusão: "Determinados corpos exercem, em contato com outros, influência
tal sôbre aquêles, que um efeito químico é criado, rompendo combinações
ou formando outras, sem que o corpo, cuja presença é a provocante, parti-
cipe dos acontecimentos".
Isto se assemelha a alquimia ou magia, e o próprio Berzelius, filho de um
século esclarecido e racionalista, não fêz as experiências que provassem as
suas idéias. Satisfez-se em cunhar o conceito para êsse processo misterioso e
essa matéria mágica. Chamou catálise ao processo e catalisador à matéria que
supunha existir.
Quase na mesma época estava também na Alemanha a Química enfrentan-
do tais enigmas alquimistas. E êsse povo de pensadores metafísicos é mui
propenso a tais experiências. Empenhou-se por isso, a Química alemã, na
obtenção dessa "pedra da sabedoria" e homens como Ostwald, Carl Bosch
e Alwin Mittasch fizeram progredir o pensamento catalítico em milhares de
experiências de tal maneira, que com o célebre catalisador de ferro, manga-
nês e bismuto das Fábricas de Anilinas e Sodas de Bade, a Alemanha se
tornou a partir de 1915 independente da importação de salitre. Desde então
não é possível imaginar-se a Química moderna sem a catálise.
Quando Ostwald, em 1'901, encontrou a sua definição para a catálise, ex-
pressa da maneira mais simples como sendo "aceleração de uma reação quí-
mica pela presença de um corpo aparentemente não participante", ninguém
se lembrou de perguntar se tal evento se verificava também em outros cam-
pos, como por exemplo no plano espiritual. Hoje, decorridos mais de cin-
qü~nta. anos, possuímos ouvidos aguçados para essas questões, não por sermos
mais VIvazes - espiritualmente falando - que as gerações anteriores, mas
ape~as p~)Tque a era atômica, principiada depois dessa data, nos impeliu
obnga~~mamente a tais pensamentos. Pois não pode haver dúvida que o
domímo completo das fôrças atômicas fará surgir um mundo novo, não
apenas. as conseqüências espirituais e sociais. O simples fato da presença e do
d_?mímo técnico de fôrças atômicas teTá, de qualquer maneira, de influenciar
toda a es.trutura cultural, no sentido de uma aceleração de processos, como
~m ~atahsador, sem q_ue os novos conhecimentos químico-físicos se tornem
I~nediatamente conheodos do homem contemporâneo, individualmente con-
Siderado.
!"fa~ !sto não era novidade. Já aconteceu em eras passadas. Quando do
pnncipiO de nossa época do carvão e do metal, com a descoberta - há cêrca
de q~atro mil anos - do bronze, e sua incomparável marcha triunfal através
de tod.a a El:'ropa daquele tempo, fenômenos semelhantes se registraram.
\ambem aqm foi obviamente o progresso técnico que se tornou mais visível.
Fmalmente havia a humanidade encontrado um metal aplicável, o bronze.

35
Era fácil de ser trabalhado e fundido, e, por outro lado, apresentava sufi- Happara, que John Marshall começou a escavar há vinte e cinco anos e
ciente resistência para corresponder a tôdas as necessidades Mas isto não onde - contemporâneamente à Europa - já se encontra o bronze. -
foi decisivo. Quando verificamos como se inicia ràpidamente um de- Não parece curioso que o Novo Mundo, excetuando-se o Peru, não tenha,
senvolvimento cultural, para o gual o campo já havia sido preparado; como apesar de suas ricas reservas de cobre, conhecido o bronze por .descoberta pró-
principiam Belas-Artes e Filosofia o seu desenvolvimento; como a vida social pria? Pois se bem que o estanho não seja freqüente nessas áreas, também o
e econômica descobre formas muito semelhantes às nossas; como o transporte chumbo poderia ter sido empregado para o endurecimento do cobre, ou prata
e o comércio procuram alcançar territórios dalém-mar e países desconhecidos, e antimônio, como aconteceu na Hungria, Babilônia e Suméria. Mas aparente-
selvagens; como o indivíduo, a personalidade, sobressai entre a massa anôni- mente deve, para tais descobertas, "chegar o momento oportuno". E o Novo
ma, segregando a lei e o direito do costume, enraizado na escuridão mágica Mundo não o havia alcançado.
- sem que o novo metal participasse do processo de forma concreta, então Assi~ sendo, a Eur.op~ é o território onde a noya liga de estanho e cobre
assistimos a uma catálise, tal como descrita e tomada quimicamente visível predomma d_e preferenCia e por longo tempo. E1s a razão para as regiões
por Berzelius e Ostwald. produtoras s1multâneamente de cobre e estanho constituírem as zonas de
Iniciou-se com o bronze, evidentemente, uma época régia. Isoladamente a maior interêsse para os contemporâneos dessa poderosa inovação técnica. A
princípio e depois em maior número, haviam chegado do sul e do oeste dis- Espanha e a Inglaterra correspondem a essas exi~ências e é por isso que
tantes, espadas e braceletes, broches e escudos, punhais e fivelas, fabricadas êsses países assumem papel de tão grande relevância nos primórdios da h is-
com o maravilhoso e novo metal, o bronze. Os produtos brilhavam como o tória do Velho Mundo.
cobre, já conhecido, ou como o ouro rubro, que os poderosos guardavam em
arcas, para exibir em dias de festa. Mas o que significava agora o cobre e
mesmo o ouro? O bronze era realmente o metal dos reis: semelhante ao ouro
em côr e fácil tratamento, mas incomparàvelmente mais resistente. Assim
perdeu a pedra o seu valor e mesmo os utensílios de cobre puderam ser pos-
tos de lado. Começou uma época nova.
É certo que o bronze não surgiu da noite para o dia, invadindo de um
lance os países de domínio cultural europeu. Mas após ter-se travado contato
com o novo metal, processou-se transformação rápida, que se projeta nitida-
mente, quer do ponto de vista técnico, espiritual ou artístico. Inicia-se flo-
rescimento tão brilhante, que não se pode deixar de ter a impressão que
tempo e desenvolvimento apenas esperaram poder desembaraçar-se do pêso

dos milênios. O ferro, de tão maior importância para a humanidade, já
conhecido nesses anos de início de segundo milênio, mas tão precioso que sua
utilização é restrita a jóias - êsse metal de importância prático-técnica muito
superior, insinuou-se, por assim dizer silenciosamente. Chega a parecer mes-
mo que a penetração do ferro na história cultural arrefece o progresso artís-
tico, provocado pelo bronze. O arado é feito de ferro, as coroas reais e as
espadas dos heróis, de bronze. O ferro é o metal da época agrária, enquanto
o bronze representa a era aristocrática. E assim adquirem tôdas as produções
dessa época um aspecto nobre e heróico. ~a~ domín~o. de Tartesso. Enquanto a cidade fenícia de Gades, aproximadamente no local
G é ~ual C?dts, era-lhe rival, Maenace, perto da atual Mdlaga, era uma estação colonial da
r Cla antiga. Estradas pavimentadas ligavam-na a Tartesso e, ao longo da costa oriental
da Espanha, com a Itdlia.

f.n~cialmente, as jazidas de bronze da Península Ibérica parecem ter sido


~!Cientes para cobrir as necessidades do mercado europeu. No Rio Tinto
2 :i c~b.re e. est~nh?, lado a lado por assim dizer, de maneira que o centro da
P armitiva mdustr~a de bronze na ~spanha deve ter-se localizado naquelas
É desconhecida a procedência da mistura clássica de 10% de estanho e
90% de cobre, constituidora do bronze. Também não se conhece a ocasião
t b agens. E .as mmas de ouro de Ihpa e de prata de Almeria e Catula, co-
a oraram amd~ par.a aprofundar o interêsse mundial na riqueza do metal
da descoberta e nem o nome do descobridor. Supõe-se ter sido em uma das espanhol. :este mteresse mundial encontrou sua expressão mais visível na
regiões mundiais ricas em cobre, onde por muitos e muitos séculos os sêres ~~~~~ dda f~ht~losam~nte rica cidade de Tartesso, a luxuriante e pecaminosa
humanos se empenharam no endurecimento daquele metal vermelho de pe- a B1bha. É amda questão aberta se Tartesso se situava na desembo-
quena resistência, tendo sido, durante a fundição do cobre, acidentalmente cad ura. d o G ua d a1qmv1r,
· · pró x1ma
· da Sevilha de nossos dias ou como outros
encontrada a nova liga. Se assim foi, os locais devem ter .s ido a Inglaterra e acre
ra d 1tam t d ·
• ~er . a postenor Xeres de la Frontera. Nada se sabe
0 ' quanto à
a Espanha, principais regiões da produção de cobre na Europa, e nos centros
da velha cultura indiana, as célebres cidades "industriais" Mohen jo-Daro e
W ou nacwnahdade de seus fundadores e habitantes não tendo sido pro-
va a a tese de ter-se tratado exclusivamente de etrus~os. E, finalmente, é
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Era fácil de ser trabalhado e fundido, e, por outro lado, apresentava sufi- Happara, que John Ma~~hall começou a escavar há vinte e cinco anos e
ciente resistência para corresponder a tôàas as necessidades Mas isto não ond:_ - contemp~râneamente à Europa - já se encontra o bronze.
foi decisivo. Quando verificamos como se inicia ràpidamente um de- Nao parece c~noso que o Novo Mundo, excetuando-se o Peru, não tenha,
senvolvimento cultural, para o gual o campo já havia sido preparado; como ap~sar d~ suas ncas reservas de cobr:, co~hecido. o bronze por !=lescoberta pró-
principiam Belas-Artes e Filosofia o seu desenvolvimento; como a vida social pna? POis se ~em q~e o estanho nao seF frequente nessas áreas, também 0
e econômica descobre formas muito semelhantes às nossas; como o transporte chuiD:boAp?dena ter sido empregado para o endurecimento do cobre, ou prata
e o comércio procuram alcançar territórios dalém-mar e países desconhecidos, e antimomo, como a~onteceu na Hungria, Babilônia e Suméria. Mas aparent"-
selvagens; como o individuo, a personalidade, sobressai entre a massa anôni- mente de~e, para t~Is descobertas, "chegar o momento oportuno". E 0 Nov~
ma, segregando a lei e o direito do costume, enraizado na escuridão mágica • Mun~o nao o havia alcançado.
- sem que o novo metal participasse do processo de forma concreta, então AssiiD: sendo, a EurAop~ é o território onde a nova liga de estanho e cobre
assistimos a uma catálise, tal como descrita e tornada quimicamente visível predomma d.e preAferenCia e por longo tempo. Eis a razão para as regiões
por Berzelius e Ostwald. pro.dut?ras Asimultaneamente de cobre e estanho constituírem as zonas de
Iniciou-se com o bronze, evidentemente, uma época régia. Isoladamente a mawr mteresse para os contemporâneos dessa poderosa inovação técnica. A
princípio e depois em maior número, haviam chegado do sul e do oeste dis- ~spanh~ e a Inglaterra corresp~ndem a essas exigências e é por isso ue
tantes, espadas e braceletes, broches e escudos, punhais e fivelas, fabricadas ess~s paises assumem papel de tao grande relevância nos primórdios da ~is­
tóna do Velho Mundo.
com o maravilhoso e novo metal, o bronze. Os produtos brilhavam como o
cobre, já conhecido, ou como o ouro rubro, que os poderosos guardavam em
arcas, para exibir em dias de festa. Mas o que significava agora o cobre e ZOOkm ll •
mesmo o ouro? O bronze era realmente o metal dos reis: semelhante ao ouro · · -- Fronteiro do domínio
em côr e fácil tratamento, mas incomparàvelmente mais resistente. Assim
perdeu a pedra o seu valor e mesmo os utensílios de cobre puderam ser pos-
tos de lado. Começou uma época nova.
É certo que o bronze não surgiu da noite para o dia, invadindo de um
lance os países de domínio cultural europeu. Mas após ter-se travado contato
com o novo metal, processou-se transformação rápida, que se projeta nitida-
mente, quer do ponto de vista técnico, espiritual ou artístico. Inicia-se flo-
rescimento tão brilhante, que não se pode deixar de ter a impressão que
tempo e desenvolvimento apenas esperaram poder desembaraçar-se do pêso

dos milênios. O ferro, de tão maior importância para a humanidade, já
conhecido nesses anos de início de segundo milênio, mas tão precioso que sua
utilização é restrita a jóias - êsse metal de importância prático-técnica muito
superior, insinuou-se, por assim dizer silenciosamente. Chega a parecer mes-
mo que a penetração do ferro na história cultural arrefece o progresso artís-
tico, provocado pelo bronze. O arado é feito de ferro, as coroas reais e as
espadas dos heróis, de bronze. O ferro é o metal da época agrária, enquanto
o bronze representa a era aristocrática. E assim adquirem tôdas as produções 1· O domínio de Tartesso E t ·d d •·
dessa época um aspecto nobre e heróico. da atual Cádis era lh .. I nzruan o a Cl a e fenzaa de Gades, aproximadam ente no local
Grécia antiga., Estr~d:s "p::; a:n:ce,lperto da atual Málaga, era uma estação colonial da
men a as zgavam-na a Tartesso e, ao longo da costa oriental
da Espanha, com a Itália.

Inicialmente as J"az"d d b d p , , .
suficiente , b . I as e r~mze a enmsula Ibenca parecem ter sido
2 ha, co b re se para co nr as necessidades do mercado europeu No Rio TI.nto
estanho lad 1d · · ·
primitiva ind' t . , d oba a o por assim diZer, de maneira que o centro da
paragens E us r~a ~ ronze na ~spanha deve ter-se localizado naquelas
É desconhecida a procedência da mistura clássica de 10% de estanho e laborara~ .asd mmas e ouro de Ihpa e de prata de Almeria e Catula co-
90% de cobre, constituidora do bronze. Também não se conhece a ocasião espanhol _:Itn ~ parAa aprofun~ar o interêsse mundial na riqueza do ~etal
da descoberta e nem o nome do descobridor. Supõe-se ter sido em uma das .
ongem d· .~:.s
f be 1mteresse mundial
. . encont rou sua expressao - mais
· VISivel
· · na
regiões mundiais ricas em cobre, onde por muitos e muitos séculos os sêres Tarsis daa B'bl" a u osamente
É · d _a d e d e T artesso, a I uxunante
nca Cid · e pecaminosa
humanos se empenharam no endurecimento daquele metal vermelho de pe- cadura do d I~. I ~I~ a questao aberta se Tartesso se situava na desembo-
quena resistência, tendo sido, durante a fundição do cobre, acidentalmente acreditam :r~o adqUivir, P!Óxima da Sevilha de nossos dias ou, como outros
encontrada a nova liga. Se assim foi, os locais devem ter sido a Inglaterra e raça ou n'a~on l"dalo~tenor Xeres de la Frontera. Nada se sabe quanto à
a Espanha, principais regiões da produção de cobre na Europa, e nos centros vada a tese d a: a e e seus funda?ores e habitantes, não tendo sido pro-
da velha cultura indiana, as célebres cidades "industriais" Mohenjo-Daro e e er-se tratado exclusivamente de etruscos. E, finalmente, é
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ignorada a data de f~ndaç~~ ?e T:rtesso, emb?ra para _tal se ad~ita geral- ascendida do oceano, pois as provas de sedimentação mostram indubitável
mente o fim do terceiro milemo, nao sendo mais conhecida a ocasia_o do seu alternação de plancto, de acôrdo com a temperatura das águas. Com outras
ocaso final. Mas, embora tudo sejam teorias e incertezas, sabe-se positivamente palavras: provas, que refletem a vinda e ida das épocas glaciárias, demonstram
que a cidade existiu. . que a estratificação dos sedimentos não foi perturbada, Q que não acontece-
A completa ignorância de. tôdas as ~i~úc~as, relacionadas a uma cidade ria se tivesse realmente havido tal imenso dilúvio, provocado pela Lua no
indubitàvelmente grande e nca, co!ll ex:s~en':;la comprovada por doc1;1me~tos passado histórico remoto, como o quer a teoria do gêlo universal. O dilúvio
judaicos, assírios e gregos, levou à Identlficaçao de Tartesso com a misteno:a teria provocado, no mínimo, uma definitiva perturbação dos estratos sedi·
Atlântida. Essa suposição fundamenta-se em estudos do arqueólogo alemao mentares.
Adolf Schulten, um dos mais insignes conhecedores do proble!lla d; ~artesso, Por outro lado, prete~deu-se verificar em 1898, durante os trabalhos em
sendo indubitável que, em seus livros sôbre êste. tema, aduzm multiplos ar- cabos submarinos para a América, passando-se pela cordilheira submarina
gumentos decisivos para sua tese. Como é sabido, funda~enta-se .. a .l~n~~ que se estende entre a Europa e a América, que a rocha trazida à luz do
da Atlântida em um relato de Platão, constante de seu diálogo Crltlas .. fundo do mar era de origem vulcânica, que não poderia - de acôrdo com
Nêle afirma que, de acôrdo com uma tradição egípcia, ex~stia há no~e ~ml sua estrutura - ter endurecido debaixo da água, mas apenas no ar. Se assim
anos, nas imediações do Estreito de Gi~raltar, _uma ~an~e Ilha n? Atlantlco, fôr, então em épocas passadas devem alguns vulcões da cadeia submarina de
"maior que Ásia e Líbia juntas.- Uma Ilha CUJOS rei~ tenam domm~do. gran- montanhas ter sobressaído da superfície do mar para submergir mais tarde.
des partes da Europa e da Áfnca. Quando os dommadores. da ~tlantida se Deve ter-se tratado, nesses casos, de manifestações locais, observadas na terra
preparavam para subjugar t~m?ém o r~sto da Europa, tenan: sido enfre_?-
A
durante o enrugamento da sua crosta, formando as montanhas na época ter-
tados vitoriosamente pelo exerCito helemco, sob comando atemense. E entao ciária, quando não existiam sêres humanos em nosso planêta.
grandes peripécias~~ teriam sucedido, levando à destruiç.~o e desapareci~ento Por tôdas essas razões duvidaram os geólogos, já há mais de cem anos, da
da Atlântida. Venficando-se terremotos e enchentes d agua, submergm em verdade do relato da Atlântida. Não se sabe nem mesmo se a narrativa de
um dia horrível e uma terrível noite todo o exército helênico, e tornou-se Platão possui fundamento real ou se se trata apenas de uma utopia. E esta
invisível a ilha da Atlântida, que desapareceu ~o mar. ~or isso. a~uela re- última opinião deve ser respeitada até certo ponto, já que a ela se liga a
gião marítima não pode ser cursada nem pesqmsada, p01s os baiX.lOS lama- autoridade insigne do filólogo clássico alemão von Willamowitz-Moellenford.
centos, deixados pela ilha, prova~am ~r inacessíveis ... " _ A
A atualidade, entretanto, não concorda com sua tese. Ela acredita na base
lá que, em tôda a literatura antiga, nao se cC?nhe~e outra. menç~o da Atlan- histórica do relato de Platão. Mas não trabalha nem com luas "explosivas",
tida, raciocinaram e discutiram geógrafo~ e histonadores I~te~màvelmepte nem interpretações que procuram encontrar a Atlântida no Spitzbergen, no
sôbre êsse problema. Inici~lmente ac_:editava-se. que essa Ilha. Imensa fo~se Ceilão ou no Mar do Norte. Restringe-se em considerar possível localizar-se
a América e que a observaçao de Platao se refena a um conheCimento mmto a região de ambos os lados do Estreito de Gibraltar, sendo indiferente que
remoto que posteriormente voltou a ser esqueci~o, do :t:Jovo Mundo. Mas Adolf Schulten opte por Tartesso e Albert Herrmann pela África Setentrional.
tal explicação faria rolar por te~ra a part~ mais s~nsao~nal da, lenda da Não nos interessa seguir mais de perto a divergência de opiniões acêrca
Atlântida, que trata do desapareom~~to d~ Ilha e!ll. um dia ~ornvel e ~ma da Atlântida. Quem se interessar, encontrará em Hoegbom, Gattefosse e
terrível noite", uma vez que a Amer.Ica ~md~ existi_a. E_ por Isso os ar_mgos Bessmertny a relação dos quase 25 mil trabalhos publicados sôbre o tema.
de catástrofes geográficas, donos de Imagmaç:'lo fértil, tmha,.m de contmuar Para nós é suficiente saber que Tartesso exerceu, durante séculos, influência
suas investigações, para topar com novas hipóteses. Há .c:r~a de s~ssenta enorme na produção do bronze e, principalmente, no comércio do bronze
anos afirmavam que a Lua se separara da Terra em milemos longmqua- da Europa, que acabava de despertar. Inicialmente deve ter exerci~o papel
mente afastados, sendo aquela amiga ct;_rta. de todos os apai~onados, poetas de relevância no imediato processo de produção, como local de mmeração
nada mais e nada menos que a Ilha Atlantlda, pertencendo nao ao ceu, mas e de fabricação.
tendo seu lar original no Oce_ano At!ântico: Por outro lado declaram t;m E por volta de 1500 a. C., quando as vizinhas minas espanholas de estanho
nossos dias os adeptos da teona do gelo umversal, que o pequeno planeta começavam a esgotar-se, atinge sua importância máxima: torna-se metrópole
Luna, a nossa Lua, exerceu na sua aproximação à Ter~a tal atração sôbre a_s do comércio mundial e o centro do tráfego no Atlântico.
massas d'água dos oceanos, que a Atlântida submergm em suas profundi-
dades.
Mas esta e outras catástrofes, que apenas poderiam ter-se verificado nos
passados mais recentes da Terra - pois, d~ outra forma, c<;>mo pod~riam ser
tão claras as informações de Platão? - senam compr?váveis ge?logicamente,
deixando algumas provas no globo terrestre. Investigou-se c~:dadosamente
tôda a extensão do Atlântico. Na parte leste, portanto na regiao em que a
Atlântida devia ter-se localizado, o fundo do mar é coberto por uma camada
de 3.500 metros do assim chamado "barro vermelho das profundezas marí- O tráfego no Atlântico! Pois com a invenção do bronze, a existência hu-
timas", uma sedimentação constituída principalmente da casca vermelha de mana adquiriu muito mais que um metal novo. Como vimos, é admissível
plancto morto. Sabendo-se que tal composição requer _mil anos para formar que já nos últimos anos da Idade da Pedra houvesse empreendimentos de
uma espessura de sete milímetros, segue que 500 milhões de anos foram mineração e fabricação à semelhança de indústrias. Assim se estabeleceu cer-
precisos para constituir a sedimentação de 3.500 metros. Portanto, também tamente uma espécie de ânsia capitalista, como se sabe, um dos mais fortes
aqui não encontramos lugar para a Atlântida e tampouco para uma lua impulsos da humanidade. Tudo se desenvolve com rapidez espantosa sob
38 39
o impacto do bronze: aparece o negociante, o dinheiro é inventado e - sua mastreação que os modelos fôssem egípcios. O mesmo não acontece no
conseqüência direta - surge o comércio com terras distantes e o tráfego ma- concernente à parte muito mais importante, o casco. Dotado de quilha, ta-
rítimo. lões e cadaste, é produto de uma ilha localizada em mar alto e não de um
Os inícios de tal desenvolvimento mais moderno são ainda pouco c_onhe- país que tem seus barcos predominantemente empregados na navegação
~idos. Mas, segundo . tudo indica, surgiram os primeiros comernantes fluvial.
Impo~ta~tes que negonavam sôbre grandes distâncias, no Egito, na Suméria Naturalmente passou a mãos cretenses todo o pequeno comércio entre as
e, pnncipalmente, em Creta. Da época por volta de 2000 até 1400 a. C. é ilhas gregas, principalmente porque, para os camponeses helênicos e os cria-
Cret,a! de qualquer for~a, ~ não a Espanh~, .Ro!lla ou a Hélade, a potência dores de gado, emigrados do Norte, o mar era meio completamente estranho.
ma~Itlma hder do Mediterraneo, e se a exrstenna de prata espanhola é his- Afirma-se que não possuíam sequer um têrmo para o conceito "mar", que
toncamente c?mprovável em Cret_a desde 2500 a. C., assim como pouco mais depois adotaram dos cárcios, pré-indo-europeus. Mas ainda quando os gregos
tarde em Tróia, se entre aquela Cidade e a Sicília existe vivo intercâmbio de já pescavam, remavam e mesmo navegavam a vela, não quiseram saber da
merc~dorias, se. o Egito de 2000 a. ~- emprega o bronze da Espanha, então água, a ponto de recusarem a inclusão, nos jogos olímpicos, do esporte náuti-
tudo Isto é exphcável apenas se admitirmos que a primeira potência marítima co. E provàvelmente é certo o que dêles se afirma: que consideravam o peixe
da época se tenha empenhado também como potência de comércio marítimo. alimento inferior, que poderia ser comido apenas em período de fome.
Nada sab~mos de definitivo sôbre a forma que êste tráfego marítimo cre- Quando, no ano 401, o líder militar e hrstoriador grego Xenofonte levava
tense assumm. Mas, em sua fase primitiva, parece a Creta minóica ter sido de volta o exército de mercenários gregos, muito bem remunerado, que ser-
tão adversa ao mar guanto muitos milênios depois outra ilha: a Grã-Breta- vira a Ciro, pretendente da coroa persa, contra seu irmão Artaxerxes, da
nha. O tráfego marítimo desta nação era inicialmente realizado pelas cidades Mesopotâmia ao Mar Negro, através do planalto da Armênia, e de lá ao
Helesponto - através de uma distância de quatro mil quilômetros - irrom-
peram êsses dez mil soldados esfomeados no brado entusiasta "Thalassal Tha-
lassal; "O Mar! O Mar!", como o historiador nos conta em sua comovedora
"Anábase". Mas êste clamor é fàcilmente mal-interpretado e tão inclinado a
provocar enganos, que seria compáravel à suposição que "Britannia rules the
Waves" fôsse o grito de guerra dos inglêses já na batalha de Hastings. E se
quisermos ser irônicos, poderemos dizer que, apesar de Lorde Nélson e da
batalha de Trafalgar, foi apenas Th. J. Korczeniowski, - famoso escritor
6. Pedras de sinêta com escrita figurativa arcaica, cretense. ucraniano, naturalizado como oficial da marinha comercial britânica e que
se tornou famoso sob o pseudônimo de Joseph Conrad (•) como autor de
hanseáticas e foi apenas depois que o pulso dominante da Rainha Elizabeth I numerosos romances marítimos, - quem chamou a atenção dos inglêses para
forçou o povo ing~ês aos oceanos, que a ajuda e a representação hanseáticas o fato de que viviam em uma ilha e em tôrno dêles não havia senão água
pouco a pouco deixaram de ser necessárias. Inverteu-se então a situação até salgada.
a completa domina\ão b~itânica dos mares, sendo que os descendentes dos Não se sabe quem tenha preparado espiritualmente os cretenses para a
navegadores hanseátrcos trveram de dar-se por felizes quando tinham permis- sua "tomada de poder" nos mares. Mas certamente existia também entre êles
são de mostrar sua bandeira nos mares mundiais. um tipo de marujo corajoso que, em alguma parte do mundo, fôsse experi-
A h~stória .P:i~itiva do tr~fego no Mediterrâneo parece ter sido semelhan- mentar o sabor da água marítima, para depois dizer com convicção: "É sal-
te. ~OIS no m~c10 o, co_mérci_o. com Creta foi ~parentemente dominado por gada e portanto pertence a Cretal" Pois é evidente que esta ilha, com sua
navi?S e marUJOS e~rpcws, viaJando sob bandeira cretense, e ainda durante população tradicionalmente aventureira, não se contentasse em transportar
o remo de Tutmósis III (1481 até 1447 a. C.) grande parte da frota egípcia o óleo, o vinho ou o trigo, que era o que existia em portos gregos, para
e~a empre9ada na naveg~ção c:ete~se. Se_ Ben Aquiba (~) tivesse tido conhe- depois trocar êsses produtos por mercadorias de bronze, jóias ou cerâmica.
cimento desses fatos, mmta satisfaçao tena em ver confirmado mais uma vez Seguramente já em épocas muito remotas aventuraram-se os cretenses pelos
o seu aforismo. Isto, quando o navio egípcio nem tinha sido desenhado e mares afora, atingindo costas distantes. Mas o intercâmbio internacional,
construído para a navegação marítima, intencionando satisfazer apenas o muito em breve, já não era satisfeito com simples trocas. A prata espanhola,
tráfego fluvial. o estanho inglês, o âmbar da Alemanha Setentrional e o marfim da Africa
Quando, mais tarde! o ~gito é in~adido pelos hicsos - povo nômade da necessitavam de algum indicador independente de seu valor, de algum meio
ÁSia que, quando mmt?, Julgava a agua de acôrdo com sua qualidade po- de pagamento de validez universal, de dinheiro, enfim; dinheiro cujo valor
tável - desfaz-se a partir e 1680 a. C. o poderio egípcio. No Mediterrâneo, nominal correspondesse a seu valor intrínseco.
o~ cr;tenses começam a preencher a _lacuna,. e finalmente - séculos após - Cêrca de mil anos após decorrida a época de que aqui tratamos, resumiu
sao eles os promotores do tráfego mternacwnal. Quando tal sucede já a Aristóteles êste raciocínio em palavras muito sábias: "Tudo que é trocado
economia e a técnica dos cretenses estavam suficientemente bem preparadas deve ser comparável. O dinheiro serve tal finalidade, tendo-se tomado ver-
para a no':.a taref~. O n~vio cretense, ?o
qual conhecemos apenas desenhos dadeiro mediador. O dinheiro avalia e compara, se e como um objeto é su-
esparsos, nao é mais movido a remo e srm a vela, mas supõe-se pela forma de
( • ) O autor refere-se ao escritor de origem polonesa, cuja famflia foi exilada na Rússia,
quando êle contava 5 anos de idade. A ironia está em considerar Conrad um "romancista do
(•) "Não há nada de novo sob o Sol", atribuído também a Salomão no seu "Eclesiastes". mar", fama que geralmente adquiriu, quando. Conrad usava do mar sOmente como cenário de
N. do T. seus romances profundamente humanos e trág>cos. N. do T.

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Mas êsses comerciantes, tão rudemente descritos por Lísias, podiam ser
tudo, menos mascates. Eram comerciantes de grande visão em uma época de
esplendor; pertenciam aos primeiros grandes descobridores do mundo imenso.
Vemos êsse negociante viajando, já não exclusivamente com animais de
carga e carregadores escravos, como o faziam seus antepassados da Idade da
Pedra. Utiliza agora o "carro coberto", grande e pesado, suportado por
enormes rodas maciças, que em tudo se assemelha àqueles veículos puxados
por quatro bois, com os quais os pulesatas, os filisteus, invadiram o Egito
por volta de 1200 a. C. e que foram eternizados pelos letrados e clérigos do
templo de "Medinet Habu" em seus altos-relevos. Pesados e muitíssimo vaga-
rosos, êsses carros mercantes seguem aos solavancos o seu caminho. Mas sob
suas cobertas de couro vão acumulados todos os tesouros do mundo da época:
espadas de bronze, punhais, navalhas, pontas de lança ou de flecha, agulhas,
broches e espelhos. E em enormes arcas especialmente guardadas como ri-
quezas invulgares: "cabeças-de-boi" de Creta, os "dólares" da Idade do
Bronze.
São ao mesmo tempo pesos e unidades monetárias, tanto as pequenas peças
de prata gravada, como as maiores, de ouro, representando uma cabeça de
boi, reproduzidas em muitas tabuinhas de esctever cretenses. E esta identi-
7. Pesando ouro. f.sse mural, executado por
dade entre o pêso e a moeda é uma das pressuposições do conceito "dinheiro".
volta de 1380 a. C., para o túmulo de um Em 1947, um falsificador de Berlim, que se "especializara" na imitação de
escultor de Tebas, no Egito, mostra uma moedas de vinte dólares-ouro, foi detido e prêso. Havia sido descoberto não
balança de precisão altamente desenvolvida. porque seus "produtos" contivessem pouco ouro, mas, pelo contrário, porque
No lado direito um pêso em forma de ca- eram fabricados com demasia dêsse material precioso. É que o valor mone-
beça de boi; à esquerda, barras de ouro. tário se separou da valia material da moeda. A moeda de vinte dólares-ouro
ct .:t a representação figurada do potencial econômico da América do Norte;
perior a outro em valor. Mostra qual, .ror exempl~, a r~lação de ~alor entre &eu valor era muito superior àquele do material empregado - desde que
um par de sandálias e uma casa, assim como evidencia a relaçao entre. o f?sse legítimo. E justamente esta discrepância entre valor monetário e mate-
trabalho do construtor e o serviço do sapateiro e quantos pares de sandálias na! n~s leva de volta à correspondência entre êsses valores na Idade do Bron-
devem ser entregues para corresponder ao preço de uma casa". ze. P01s todos os meios cretenses de pagamento, desde o dinheiro "miúdo"
Aristóteles externou essa opinião por volta de 400 a. C., quando de há de prata até as "cabeças-de-boi", de ouro, e a "moeda magna" (pesada barra
muito se conhecia o dinheiro; e o sábio grego formulou o seu pensamento de cobre e bronze, pesando 29 quilos, fundida em forma de cauda de ando-
de maneira indubitàvelmente clara. Mas muitas e muitas gerações anteriores
já haviam nutrido tais idéias, o que ~os f~z avaliar .melho~ a extensã_o dêsse
feito notável que foi o invento do dmheiro. Es~a myençao pressupoe uma
mentalidade econômica completamente nova, mUito diferente das eras prece-
dentes. Desde há muito essas gerações anteriores haviam dado, po_rém, o
segundo passo inevitável, logicaJ?ei?t~ necessário, superand? a?sim em
muito a Aristóteles. Embora a prmcipiO talvez tomassem o dmhei~o como
mero indicador de valores, um meio auxiliar no intercâmbio comercial, logo 8. Tábua de escrita cretense, com barra de
êsse expediente terá conqui.stado a s~a i~dependência, _e d~ uma forma q;te cobre e balança.
certamente teria surpreendido seus Ideah~adores. O dmheiro tor~ou-s~, ele
mesmo, pelo menos no concernente às umdades meno:es .que ser~Iam Igual- rir;ha e. pr~v~da do .cunho da "Casa l'la Moeda" de t:::reta) representavam seu
mente como pesos, uma mercadoria, um valor comercial mternacwna~me~te r~I, o nquiSSimo MI~os, já parte da mitologia, e que viveu no faustoso palá-
reconhecido e sujeito, como qualquer outra posse, às mudanças de cambJo, CIO de Cnossos. Por zsso eram recebidos como meio de troca em tôda a região
das leis de oferta e procura. E quando o fabncante de armas e _advogado de em que a :·eucumena" era soberana. Pois atrás da simples unidade de pêso
Atenas, Lísias, descreve por volta de 400 a. C. os grandes comerciantes de sua estava o mi~o _do poder, aquêle mito que obriga também a nós, membros de
época: "apenas pelo nascimento são habitantes de, nosso Estad?. Segundo sua ~stados endividados e impotentes, a aceitar como moeda real as promessas
concepção, todo país que lhes ofereça vantagens e a sua pátna, porque con- Impressas err; papel s~m valor e que, observadas à luz da experiência, não
sideram pátria não lugar onde nasceram, mas onde consegue11_1 aumentar. as possuem mUita garantia. Mas onde não se encontrasse o dinheiro "cunhado"
suas posses" teria sido necessário voltar atrás pelo menos mil anos,. a fim o~ onAde, em virtude do atraso econômico do participante da transação, êste
de novamen~e encontrar o bom tempo da existência simples e do sentimento nao fosse reconhecido, um pedaço de bronze bruto, um bracelete de bronze
da probidade. ou um broche, talvez, tenha servido de "meio de pagamento".

42 43
Tornou-se conhecido ràpidamente o baixo ponto de fusão do bronze, e
por isso êsse metal, fundido, ficou logo afamado como produto de valor. Daí
a freqüência de achados de objetos dêsse material e ferramentas de fundição.
O bronze bruto, que chegava do sul e do oeste, era, em geral, trabalhado no
próprio país. Tal atividade se revestia, obviamente, de grande importância,
e a consideração especial consagrada ao ferreiro na maioria das lendas indo-
européias talvez encontre aqui a sua explicação.
Quando as jazidas de estanho da Espanha se aproximaram de seu esgota-
mento, assumiram maior importância as da Bretanha e da Normandia, e
principalmente aquelas das Ilhas Scilly, localizadas diante das costas da Cor-
nualha. A derrota espanhola de estanho no Mediterrâneo dos tempos primi-
tivos passou dessa forma a ser um roteiro gálico e britânico, tornando-se assim 10. Cretenses transportando preciosidades.
verdadeira viagem de longo curso, digna do maior respeito. É provável, tam-
bém, que os habitantes de Tartesso não chegaram até a Inglaterra. Pode-se
supor que não passaram além de Uxisane, a Quessant de nossos dias, de onde d~ a palavra grega para. estan~o - "kassiteros" - ser de origem celta. Acre-
a viagem restante às Ilhas Britânicas era empreendida por navios celtas. Sa- dit~-~e _que a palavra SeJa denvada da designação dada pelos celtas às Ilhas
bemos de apenas poucas minucias a êsse respeito. É certo porém que entre Bntam~as. Eram chamadas "Cassitérides", as "ilhas muito distantes", e do
o sudoeste da Espanha e as Ilhas Britânicas existiam relações culturais tão empréstu:~o. e da n~va ~esignação para esta palavra celta podemos su or
estreitas que o intercâmbio deve ter sido intenso e freqüente. Poderão ter terem ~XIStido relaçoes diretas entre a esfera cultural de Creta e a EurEpa
sido efetuadas esparsas viagens espanholas à Inglaterra, como também via- Setentnonal.
gens marítimas dos tartéssios às costas do Mar do Norte. Já os cretenses que, , ~ma ~ez que as possibilidades náuticas e as facilidades de construção ma-
de qualquer maneira, atravessaram o Estreito de Gibraltar em seu caminho ntm~.a ,fossem, em époc~s, tão remotas, muito melhores do que se supõe, é
a~miSSivel também que p os tartéssios tenham descoberto as ilhas do Atlân-
tico, pelo menos as. Canár~as e a ~lha da Madeira. Não há provas, todavia.
~as ess: grupo d~ _Ilhas, tao p~óxtmas a'? continente, não pode ter escapado
a atençao .dos viaJa_dos_ maruJOS tartéss10s. Quem estivesse acostumado a
cruzar o G~lfo de Bis~aia, nada veria de especial em uma viagem ao lon 0
da. costa ocidental afncan~. Que os tartéssios tenham chegado até a Afri~a
OCidental podei?os deduzir com boa possibilidade de acêrto através de do-
cum~nto~ ~ostenores. No curso de tal viagem o contato com a Ilha da Madeira
e:a znevztavel. Para _a descoberta dessas ilhas do Atlântico, próximas ao con-
tmente, pelos tar~és~IO~, e para ~ a~irmação que tanto cretenses quanto helenos
sou_ber~m da existenCia de tais Ilhas - veremos adiante que Homero na
Odisséia,· fala das "Ilhas dos Bem-Aventurados"
nos • . . . - há um m · que ta'rvez
· d'ICIO
d exph9ue também a decadenCia emgmáttca e o repentino desaparecimento
da própna Tartesso. Quando se desfez a "talassocracia" minóica, o domínio
~s mares por Creta, sucedeu-lhe a marinha fenícia . No Oeste distante coube
!: lu .t~refa à ~o?erosa colônia fenícia de Cartago, e quando esta rica' cidade
gou .suf~cient~II_Iente preparada e armada, invadiu a Espanha Meridio-
9. Tábua de escrita cretense, com pêso em
forma de cabeça de boi. ~a · A pnmeira lei Imposta pelos invasores proibia a travessia dos estreitos
dos ~ares a t?dos os navios não-punicos, sob pena de morte. Isto por volta
para Tartesso, poderão ter chegado à Inglaterra. Sabemos que dêste país já el 5 f a. C., epoca em que o bronze havia sido substituído em grande parte
era exportado estanho, quando lá ainda existiam ferramentas de pedra. ~ste pe 0 • er:o. O estanho da Grã-Bretanha já não desfrutava de tão grande im-
estanho, portanto, deve ter sido muito barato, muito mais barato que em polrtanCia, que tivesse sido responsável pelo fechamento dos estreitos princi-
Tartesso, onde estanho e bronze ·s ofreram indubitàvelmente um acréscimo co- pa mente se const·derarmos o fato de os fenícios, com esta medida, terem
s· t"d d
' de-
mercial de várias centenas por cento. E não seria de estranhar-se que os nego- ;; I 0 1
dos . ucros enormes que lhes poderiam advir fàcilmente das antigas
ciantes cretenses tivessem suficiente sêde de lucros para ousar uma viagem ru- a5as e mtercâmbio comercial do sudoeste da Espanha. Eram outras as
mo ao perigoso e misterioso Norte. Perto de Falmouth, na Inglaterra, foram razoes ' portanto' resp onsaveis ' · pe1a prOibtçao
· · - da travessia
. de Gibraltar E
encontradas barras de metal em forma de cauda de andorinha que aí chega- essas outras - d · ·
, . drahzoes po enam apenas ter sido as ilhas do AtlântiCo de que
Os fe mCios
ram procedentes de Creta por volta de 1700 a. C., assim como jóias que . e á mu"t d · ·d . . '
I o eviam ter ti o conheCimento e de CUJOS produtos
correspondem integralmente àquelas escavadas em Tróia por Schliemann. n ecessitavam com pre meneia
• · para suas mdustnas
· ' · de ' corantes em Tiro e
SI.don p · .
Não fica excluída a possibilidade de a Espanha ter-se intercalado nesse poderia · OIS nas I
b "d 1has do Atl• ·
. antico encontrava-se um corante vegetal, de que
intercâmbio como um elo de ligação, mas não deixa de ser elucidativo o fato ser 0 ti o, em mistura com os do país, aquela coloração vermelha

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especial que deu fam;o à!. fazendas púrpuras da Feníc_ia. E para ter certeza
absoluta ·de que Tartesso não iria interferir no aprovei_tamento dos pr?dutos paraísoA a.D:glo-irlandês do ouro e do estanho. Até que ponto se desenvolvia
dessas ilhas, por certo valeram-se os fenícios. da oportum?ade da conqmsta da a tendencia. a?s seg:edos nos grupos econômicos rivalizantes, - 0 grupo
Espanha para extinguir do mapa aquela Importuna cidade. europeu-men_dwnal liderado pelos romanos, e o africano-setentrional apoiado
E como Cartago, em tôdas as suas emprêsas, pauta~a pela min~cia, aqui p:lo~ c~rtagme~es, -, e quanto deve ter florescido a .espionagem eco-
ela o foi com particular dedicação. Suas ~ordas, obvia~~nte, queimaram e nomi~a mternacwnal, e revelado por um relato do cronista romano Estrabão,
assassinaram até que não houvesse sobrevivente e da cidade nao sobrassem men_cwnan~~ o en~alhamento propositado de um navio cartaginês pelo res-
mais que cinzas. Nada f~i, por _isso, p~ssível esc.~var. J?uzentos anos antes _d~ pectivo capitao, a fim de que um barco romano, que o seguia, não descobrisse
destruição, o profeta !saias havia previsto que um dia do Senhor sobrevira a rota.
a todos os navios de Tarsis". O dia havia chegado. Tartesso desapareceu e Ouvimos. a9ui a mençã~ de _reflexões_ altamente capitalistas e, ao mesmo
com ela todo o conhecimento do grande mar ocidental. Apenas demônios, te~po, deodid_amente nacwnalis_tas. E Já que certamente não surgiram da
escuridão atemorizadora, massas lamacentas e enormes campos de sargaço, nmt~ para o dia, podemos acreditar que se encontraram em formação desde
que não permitiam a volta de navio algum; terríveis monstros e morte hor- os fms da Idade da Pedra. Tornaram-se, porém, realmente visíveis, apenas
rível aguardavam o marujo no outro _lado de ~ibraltar. Eis Aos. rumo:es ~ir­ na. Idade do Bronze, e parece que também aqui o novo metal serviu de ca-
culados pelos fenícios. tles foram aceitos, e assim a concorrenoa havia sido talisador, acel~rando, como por intervenção mágica, o processo vagaroso do
eliminada. Dois mil anos depois, quando os navegado~es de _Portugal. a':an- seu desenvolvimento.
çavam cuidadosamente para o sul, ao longo da c<?sta afncan~ amda persiS~Iam
essas lendas. Henrique, o Navegador, verdadeuo descobndor ~C: cammho
marítimo para as índias, teve de lutar perenemente com os capitaes da po-
tência marítima portuguêsa, por êle criada, para que se aventassem a per-
correr os mares que lhes pareciam demoníacos. 4
Tais acontecimentos são dignos de nota. Poderia supor-se que a entrecor-
tada costa da Península Ibérica, que em tantos lugares avança J?elo mar
adentro, seria ideal para a formação de marinheiros, quase automàt1camente, AJá em eras remotas nã? foi o comerciante capaz de desincumbir-se de
de acôrdo com as leis da natureza. E naturalmente existiam, também na todas as suas t_?-refas. E assim como. co~t.rat?u marinheiros e capitães para as
época da dominação por Cartago, pescadores na península. O "mare altum", suas emb~rcaçoes, - embora no pnnopw ele mesmo muitas vêzes terá feito
o alto mar navegado pelos tartéssws durante um milênio, através do Gôlfo as su~s VIagens - certal?ente teve também empregados encarregados de seus
de Biscaia e muitas vêzes também até as Ilhas Britânicas, parece ter sido negóciOs com l~gares distantes. A_té a profissão do vendedor-viajante parece
posteriormente olvidado por completo. Somente mais tarde é qu~ os romanos ter-se desenvolvido em épocas m~Ito remot_as, e com isso logicamente o siste-
redescobriram, a muito custo, as velhas rotas do tráfego marítimo, em?ora ~a Ade _amostras e a compra mediante pedidos. Nada mais natural, aliás. As
estas outrora atravessassem o Mediterrâneo como veias espêssas, centralizan- dist~noas entre ?S centros de .J;>rodução e a freguesia eram enormes, maus os
do-se no coração da Espanha e de lá conduzindo para o norte d~stante. Eram cammhos e ~onside~ável a fadiga ocasionada pelo transporte de cargas pesa-
abarrotadas de navios de carga com estanho e ouro em seus bOJOS, e percor- das. Além disso, o ~Isco do transporte contínuo das mercadorias preciosas era
ridas em viagens rotineiras por milhares de marujos. Durante muitos séculos enorme. Foram, pms, abe~tos depósitos e filiais e, partindo dêsses pontos, os
a_gentes procu~avam, mediante amostras e ofertas, obter os pedidos necessá-
constituíram tais viagens, o objeto de todos os anseios do cora5ão humano, nos. Uma valise de afl?-ostras da época do bronze foi, há alguns decênios,
mas também praguejadas em tôdas as línguas do mundo conheodo de então. e?cc;:mtrada numa turfeira de Koppenow, próximo de Lauenburg na Pome-
tsse "esquecimento" parece ser argumento forte contra o emprêg? cego de ~ama. Trata-se de. u~a caixa de madeira, de comprimento apro'ximado de
idéias geopolíticas e mais uma prova de que cabe sempre ao espínto produ- 5 em, ~a. qual exiStiam - em estojos apropriados - machados lâmi nas de
zir os fatôres formadores da história, na arena de todos os eventos. e~p_ada, JÓias, botões, alfinêtes, etc., destinando-se talvez a dar ao' freguês uma
Fôra realmente paralisada a viagem para a Inglaterra, via Tartesso, dos VIsa~ geral para poder fazer os seus pedidos.
antigos povos mediterrâneos. Contri?uiu para isso, todavia, o fato de o esta- d Na? _temos c~rteza se esta caixa foi realmente o mostruário de um vende-
nho já não exercer o papel predommante de 500 ou 1.000 anos antes. Mas dor-viaJante. VI~ch_ow, o mesmo que havia recusado as pinturas da-s cavernas
em lugar do estanho, do qual não se necessitava para a fundição do ferro e _o t~dper{odo glaoáno, con;tbateu_ decididamente a teoria em questão. Se, con-
preparo do aço, exercia atração o ~mro irlandês. E para contornar o bl?quew B • ev~rmos em consideraçao a mentalidade "capitalista" da Idade do
0
cartaginês, foi procurado um cammho terrestre através de tôda a Gália, que
apronze, nao n~s parecerá tão impossível essa hipótese, principalmente porque
ao longo do Ródano e do Loire, ou do Ródano e do Sena, levava para o arentes confirmaçõe d f d ·
norte. Certamente foi ligado também o antiqüíssimo Burdisala, o atu_al abastecer tAd 0
._ s a mesma, - ~m orma e armazéns, mstalados para
0 d a a regiao - foram repetidamente encontrados. Tendo em vista
Bordéus - na desembocadura do Garona - a êste trânsito terrestre. Todavia, ,grand e espaço de tempo requerido pelo percurso das rotas comerciais euro-
razões em igual nú~ero, para esc~nder as su~s _descoberta~, tinham os que P e~as e 1onga d' tA · ·
Os centros d e prod IS anoa, se o negociante voltasse, após obter os pedidos para
percorriam êste cammho, quantas tmham os pumcos para disfarçar suas rel~­ - d , . . - '
natural d . uçao, par_a e 1a enviar as mercadonas requeridas, era
ções comerciais. Por conseguinte, não foi possível, até os nossos dias~ locali- AI que dep_ósitos, escondidos pelo país afora fôssem estabelecidos Partin-
zar essas clandestinas rotas gálicas do estanho e do ouro, embora se saiba que do d e es po ena · · ·
depósitos da Id o negociante satisfazer as nece~sidades ~a freguesia. Tais
ambos os partidos conseguiam, sempre com renovado .êxito, acercar-se do de merc d . age _do B~onze foram escavados amda paroalmente providos
a onas. SSim foi descoberto um dêsses depósitos em 1880, nas pro-
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ximidades de Hamburg vor der Hoehe (•), repleto de pontas de lança, foices, Utilizada para o transporte de passageiros e mercadorias até as costas do
grampos para cabelo, anéis, broches, etc.; certamente o estoque duma ver- Báltico, em poucas horas, uma estrada pavimentada levava de Hollingstedt
dadeira filial de firma comercial da Idade do Bronze. E outros armazéns se- a Schleswig, a rica e antiga Sliesthorp sôbre o Schlei.
melhantes foram escavados no Lago de Constança, na Suíça, na Suécia e na Para embarcações menores, que tinham calado suficienter,nente diminuto
Inglaterra. Naturalmente pode haver quem afirme tratar-se exclusivamente para seguir no Rheiderau até a aldeia de Grão-Rhede, principiava aí um
de esconderijos e ser seu conteúdo mero tesouro esquecido. Mas, por sistema de superfícies de deslize e rolos, numa extensão de sete quilômetros,
outro lado, não conseguimos encontrar um argumento convincente que negue que permitia atravessar o divisor de águas até o Schlei.
a possibilidade aventada, tão plausível na Idade do Bronze, com sua organi- Correntes humanas, carregadas com tôdas as preciosidades dêste mundo,
atravessaram essa região de oeste a leste e do Báltico ao Mar do Norte du-
zação capitalista. Admitimos portanto que já bem antes de nossa era, tenha rante quase um milênio ou talvez mais. Negociantes suecos de Birca, metró-
existido o vendedor ambulante, assim como o seu mostruário. pole comercial escandinava, situada numa ilha do Lago de Melar, indivíduos
Assim como sucedeu na conquista da América do Norte, é provável que de elevada estatura, envolvidos por preciosas vestimentas de peles, magnâni-
as rotas da Europa Antiga tenham seguido os rios, que naturalmente ofe- mos e generosos. Eslavos de pernas curtas, de Truso - o Elbing alemão, que
reciam um percurso mais agradável que as pistas íngremes, através de florestas chegavam com pesados carregamentos de âmbar, bordados sarmáticos e pon-
e pântanos. Tais pistas eram por certo usadas somente quando se tratava tínicos; havia ainda árabes de pele tostada; emissários e comerciantes da
de atravessar pântanos - como por exemplo na estrada de pranchas no pân- longínqua Espanha enviados aos reis da Dinamarca, ostentando na cabeça
tano de Tedersee, em Wurtemberg,- ou contornar quedas d'água, ou, ainda, turbantes coloridos sôbre albornozes flutuantes, cintilantes com suas pedras
cruzar divisores de água, entre dois sistemas fluviais. Para êstes casos, porém, preciosas. Comerciantes de Flandres, com grandes fardos de fazendas, fabri-
já se dispunha de obras de consolidação de caminhos e expedientes técnicos cantes de jarra de cerâmica do Reno Inferior, produtores de velas e cordas
às vêzes verdadeiramente espantosos para vencer diferenças de altitude, como, de Colônia, levando consigo cordame de pele de foca e cheirando a óleo de
por exemplo, túneis, que Já no terceiro milênio antes de nossa era eram peixe. De Marselha provmham especianas. Os homens insignes, elegantes
calculados e construídos com extrema precisão. Havia também instalações que acompanhavam essas mercadorias eram circundados por perfume não
para levantar as embarcações, compostas por degraus com rolamentos, corta- menos atraente e doce que suas remessas. D a região de Worms e Espira pro-
_dos no respectivo separador de águas, e sôbre os quais os barcos eram levados cediam os barris de vinho - transportados sôbre pesados veículos de carga.
por meio de comphcados sistemas de roldanas. Encontrava-se tal ascensor de E não muito distante dêsse vaivém multicor deslizavam os navios morro
navios no Istmo de Corinto, quase exatamente onde hoje existe o canal do acima e morro abaixo; a última subida íngreme até o cume do lombo separa-
mesmo nome. Essa obra, a chamada "Diolcos", ou seja, "a travessia", é re- dor das águas era percorrida provàvelmente sôbre uma espécie de trenó, de
conhecível ainda nos dias que correm. Possivelmente serviu de exemplo para tal maneira que um barco, deslizando para baixo, puxasse aquêle que esti-
outra instalação, igualmente famosa, nos passos da floresta de Birnbaum, vesse subindo, pelo qual, ao mesmo tempo, era freado. Adiante e atrás havia
na Iugoslávia de hoje, sôbre a qual se estendia a velha rota da Samlândia ao rolos dispostos, apesar das enormes cargas, de modo a poderem girar. Seus
Adriático. Sabemos que adquiriu sua maior importância apenas durante o mancais tinham de ser constantemente lubrificados com água e piche, a fim
Império Romano. Mas certamente havia sido descoberta muito antes, como de se manterem macios. À esquerda e à direita das estradas de rolos, juntas
comprovam as oferendas tumulares, de procedência etrusca, encontradas em de bois atrelados, escravos puxando cordas e os longos chicotes dos capatazes
alguns cemitérios da Alemanha Oriental. Podemos supor, portanto, que já sibilavam sôbre as costas dobradas. Com estrondos, gemidos e chiados, os
bem antes de nossa era havia, nessa grande rota internacional, recursos téc- navios de altos mastros, costados trementes e cavernas rangentes avançavam
nicos visando prolongar o mais possível o percurso fluvial, de enorme ajuda vagarosamente para a água. Todos os que passavam por essa região já tinham
n@ transporte de mercadorias em regiões montanhosas, sôbre os rios alpestres ouvido falar nesse "milagre da técnica". Mas quando aí chegavam pela pri-
do Sudeste. meira vez, dificilmente acredit<rvam em seus olhos, que, arregalados, seguiam
o processo descrito.
Outro caminho terrestre de navios levava, há épocas bem remotas, através E que aspecto inesquecível oferecia a própria Sliesthorp, precursora da
do Istmo de Schleswig, ligando os dois mares como uma espécie de Canal igualmente famosa rica Haithabu, desde 800 de nossa era ponto de encontro
Mar do Norte-Mar Báltico sôbre rolos. Existe boa documentação sôbre esta de todos os comerciantes do Báltico, como Londres seria, mil anos depois, o
via artificial de ligação, pois ela continuou sendo usada até meados do século subúrbio do Mar do Norte e do comércio mundial! Já em épocas bem re-
XII de nossa era. E mesmo quando a Idade Média já encontrara o seu ponto motas encontravam-se aí as rotas de comércio de longa distância que alcança-
culminante, evitavam as embarcações comerciais a rota perigosa do Mar do vam a Jutlândia e, através das pontas de ilhas, a Escandinávia, com aquelas
Norte ao Báltico através do Skagerrak e Cattegat. Em vez dêsse percurso, era das costas meridionais do Báltico. E desde então, concentrou-se no local
escolhido o Eider, e através de seu afluente, o Treene, até a região onde incomensurável riqueza. Foi por volta de 800 também, que os reis da Dina-
hoje se localiza Hollingstedt. Ali se encontravam grandes armazéns, - é pro- marca mudaram sua sede para Sliesthorp, e à riqueza dos negociantes, ao
vado que nêles os inglêses tinham direitos de armazenagem, mas decerto luxo, ao esplendor de suas festas e banquetes, juntou-se o brilho aristocráti-
também os holandeses, as ligas comerciais do Reno Inferior e Superior, e co da côrte: quadro ofuscante, cujo resplandecer transmitia talvez o brilho
talvez os negociantes de Marselha, terão estabelecido aí suas filiais. à cidade lendâria de Vineta - que, de acôrdo com a tradição popular, sub-
mergiu há tempos imemoriáveis nas vagas do Báltico.
C•) Pequena estação de veraneio, perto de Frankforte, sôbre o Meno. t também a! que os As formações montanhescas da Europa, bem menos ásperas que suas seme-
rom~os tiveram a sua posição mais avançada na Alemanha, a "Saalburq", reconstruída nos
prlnciplos do século por ordem do Imperador Guilherme li. N. do T. lhantes asiáticas, parecem não ter exercido a influência paralisante que tantas
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4 Conquista Mundo
vêzes se lhes atribui. Já no terceiro milênio cruzava-se amiúde o Passo de e noroeste, de outro por ser utilizado como indicador de caminho para o
Brenner, assim como adquiriram significação como passos de montanha o tráfego com o Nordeste, com as ricas regiões de Reno e do Meno, e das lon-
Grande e o Pequeno São Bernardo, o Monte Branco, o Monte Cenis, etc. A gínquas terras do âmbar.
via durante muito tempo prevalecente em importância, na ligação de sul a Parece muito duvidoso que os negociantes de Massília tenham, êles mes·
norte, dos países do âmbar com a Itália, era constituída J?rincipalmente pelo mos, empreendido tal viagem. O Norte, com suas densas florestas e traiçoeiros
Elba, Moldávia e Inn, ligando-se, além do Brenner, ao sistema Eisack-Etsch, pântanos, era evitado pelos habitantes do Mediterrâneo. Mas os diligentes
que, em virtude de suas águas violentas, servia antes de indicador de rotas viajantes gregos chegaram certamente até Asciburgium, o Eschenburg germâ-
que de caminho propriamente dito. nico, situado na região em que hoje encontramos Duisburg e que era o
Transversalmente a essa ligação entre norte e sul, corria outra rota, pro- principal empório para o intercâmbio comercial com as nações do âmbar.
vàvelmente muito antiga e percorrida já durante a era glaciária, seguindo Isto podemos concluir de uma observação de Tácito na sua "Germânia".
o rumo do Danúbio até o Mar Negro . .tste caminho comercial de ocidente Afirma nesta obra que por vêzes se ouvia dizer ter Ulisses, em suas acidentadas
a oriente alcançou a sua maior importância nos inícios da Idade do Cobre,
já que ligava as jazidas de cobre e a posterior indústria do bronze da Hungria
aos mercados consumidores da Alemanha Meridional, Itália e Suíça, assim
como à Rússia. Volumosos achados, verificados ao longo dessa via, entre os
quais sobressaem jóias e utensílios de ouro de valor invulgar, fazem supor
que a região atingiu grande desenvolvimento econômico, para o qual deve-
riam ter sido a base as planícies extraordinàriamente férteis, na região da
desembocadura do Danúbio. Embora tal caminho leste-oeste, entre as tun-
dras do norte e as geleiras alpinas da era glaciária, tenha sido percorrido,
segundo tudo faz crer, há milhares de anos, permaneceu o curso do Danúbio
desconhecido por muito tempo. Provàvelmente as firmas comerciais interes-
sadas mantiveram em se&:êdo o que sabiam sôbre o rio e as informações de
seus agentes, com profiCLência igual à que anteriormente fôra demonstrada
pelos tartéssios e os fenício-cartagineses a respeito de suas rotas comerciais.
Esta é a única explicação plausível para as lendas absurdas que correram
durante a Antiguidade com respeito ao Danúbio. Imensos enxames de abe-
lhas serviriam, segundo tais lendas, de guardas ao rio; os Alpes e os Cárpatos,
dos quais apenas se ouvira falar - tidos por rios de montanha - eram con-
siderados os seus afluentes, com origem na Espanha, e, além da desembo-
cadura do Mar Negro, possuiria uma segunda, levando para o Adriático. Eis
como se apresentaram, sob formas diversas, as mesmas lendas e suposições
populares que tartéssios e fenícios fizeram circular acêrca do Atlântico. E
aqui como acolá, tratava-se de fábulas inventadas para enganar os competi-
dores comerciais.
Quando os romanos começam, quinhentos anos mais tarde, a interessar-se
li. Rotas comerciais pré e prato-históricas da Europa.
pela Grã-Bretanha, acontece exatamente o mesmo. Novamente circulam os
boatos mais incríveis. E já que os romanos não se deixam intimidar, os outros
fingem ignorância completa daquelas ilhas. Ainda quando César se apresta viagens, chegado também ao Mar do Norte e alcançado Asciburgium, que,
para o avanço às Ilhas Britânicas, não consegue obter de pescadores e co- "nas margens do Reno, é habitado até os nossos dias e teria sido fundado por
merciantes gálicos a menor informação. Não necessitamos de grande imagi- Uliss_es". Roma julga':'a que o rico p~r.to fluvial fôsse colônia grega. Poderia
nação para pensar em como os marujos celtas devem ter-se divertido intima- te,r sido um estabelecm~ento de ~assiha, tornando provável que já antes de
mente, quando o general todo-poderoso dos romanos, assim como os seus P_iteas - o grande p~nto c<?mere1al e geógra~o de Marselha, sôbre o qual
inteligentes oficiais de reconhecimento, lhes formulavam perguntas absolu- amda falaremos - Via&"ens isoladas te~ham Sido_ empreendidas em direção
tamente tôlas sôbre um país que ficava a distância fàcilmente vencível. norte. Uma vez que o ambar, por motivos geológicos, não pode ter sido en-
Se contemplarmos a rota do Danúbio como constituindo a abscissa do sis- contrado em quantidades apreciáveis nas ilhas da desembocadura do Reno,
tema coordenado dos caminhos comerciais pré-históricos, teremos de mencio- deve ter sido proveni~nte das costas do Báltico e da Jutlândia. Nada mais
nar a ligação entre o Adriático e a Samlândia como a ordenada oriental, e sedutor para um h abitante de Eschenburg, dotado de espírito aventureiro,
a rota do Ródano ao Reno como a ocidental. É verdade, porém, que o trá- do que êle próprio para lá se encaminhar. Não conhecemos o seu trajeto,
fego pelo Ródano acima se verificou apenas desde a fundação da colônia mas provàvelmente êste o levou via Soest e Paderborn até a porta da Vestfália,
grega de Massília, a Marselha de nossos dias, isto é, aproximadamente 600 transpondo o Weser na região de Nienburg, e alcançando, depois de passar
a. C. Mas desde então o Ródano representa um fator essencialmente impor- Verden, no Aller e Stade, próximo de Hamburgo, uma antiga rota da Idade
tante nas relações comerciais da Europa Ocidental; de um lado por fazer do Bronze, que levava à região da desembocad ura do Eider. Não possuímos,
parte do caminho do ouro e do estanho britânicos, que se dirigia para norte porém, quaisquer documentos relatando se um dêsses ricos h abitan tes de

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Asciburgium realmente alcançou o Mar do Norte, e já que Píteas foi poste-
riormente encarregado de pesquisar a região do âmbar, é de temer-se que o temporâneos acerbas críticas contra tal "corrução". Principalmente a cidade
nosso Sr. Andropoulos, ou qualquer que tenha sido o nome do negociante portuária de ólbia, na desembocadura do Dniéper, sobressaiu com sua os-
de Eschenburg, não tenha chegado ao destino pretendido. tentação e ilimitada riqueza. Sob sua influência liga-se à rota da Samlândia
Como o mundo se expande! Como se torna claro, colorido, multicor! As ao Adriático um ramal sudeste que leva diretamente ao Mar Negro, usando
montanhas distantes adquirem nitidez, assim também as florestas além dos o sistema do Vístula ao Dniéster. ólbia foi fundada por cidadãos de Mileto,
rios e lagos! Quase nada sabemos da sensação que devem ter experimentado cidade comercial ela Ásia Menor. Esta participou já, desde os primeiros tem-
os nossos antepassados com essa expansão, e inclinamo-nos demasiadamente pos, do tráfego bastante ramificado com a Ásia Meridional. Por outro lado,
a atribuir esta alegria romântica, causada por distâncias sempre maiores, a terminam em ólbia várias elas linhas de comunicação que se dirigem ao
séculos posteriores. Será justo êsse julgamento? Terão êles sentido diferente- centro da Rússia. Lugar tão importante, despertou, naturalmente, grande
mente de nós? Viajando entre Creta e a Espanha, entre a Grécia e o Egito, interêsse comercial, sendo possível que o maravilhoso tesouro de ouro de
entre Tartesso e a Grã-Bretanha, entre a embocadura elo Elba e as Ilhas Ca- Eberswalde, encontrado pouco antes da primeira guerra mundial, e cujos
nárias, teriam êles percorrido essas paragens tôdas embotados e apáticos, braceletes pesadamente dourados, diademas, colares e taças procedem do Su-
possuídos de pânico aterrorizante diante ele malévolos demônios? O mundo deste da Europa e da Grécia, tenha alguma relação com ólbia, a "Paris" elo
tem sempre a extensão do homem que o habita. Mar Negro. A maior parte elas mercadorias a penetrar a Europa através
Egípcios e hititas fizeram-se ao mar para vender em Creta suas contas de dessa via deve ter-se deteriorado: sêdas, tapêtes, pedras preciosas, peles etc.
vidro, seus instrumentos e suas figuras de bronze. Cargueiros cretenses leva- Outros produtos foram conservados pelo solo: moedas, cerâmicas, armas e
vam as mercadorias para Aquiléia, pôrto-chave para o comércio com o Nor- outros mais. E a partir do século VII, tais achados tornaram-se tão freqüen-
deste distante. Com carros de duas rodas e animais de tração, e, nas alturas tes na região do Vístula que indicam claramente a prosperidade que então
das montanha"s, com animais ele carga, seguiam as caravanas para o Semmering. deve ter reinado.
Talvez os comerciantes balcânicos, vindos através elos passos ele Birnbaum, Nossa descrição poderia dar a impressão ele a Europa central, assim como
tenham já aí encontrado o grande comboio. E então dirigiam-se todos, através a do Norte, ter apenas sido capaz de responder à riqueza em metais existente
da Porta da Morávia, utilizando o Ocler ou o Vístula, para Truso, ao norte no Sul, com âmbar e peles, tendo sido antes participante passiva que ativa
da atual cidade de Elbing, rico empório para o comércio com a Samlândia nesses intercâmbios. E isto provàvelmente é verdade, pelo menos no que se
e com as imensas extensões florestais do extremo nordeste. Os etruscos, que refere ao início da Idade do Bronze. Recentemente foram aventadas teorias,
da Toscana enviavam seu bronze para o Norte, certamente entregavam sua afirmando que também as Montanhas das Minas iniciaram em tempos muito
mercadoria em um ponto qualquer do caminho a dirigentes de caravanas, remotos a produção de bronze e mesmo que foi aí encontrada a dosagem
familiares com o Nordeste da Europa. Não é verossímil que êles próprios ideal para a liga do estanho e do cobre. O bronze toscano e espanhol parece,
tivessem ido para Truso, no lago de Drause, e que lá falassem, saboreando todavia, ter inicialmente dominado o mercado. E isso soa tanto mais convin-
um forte grogue, ele sua pátria ensolarada aos diretores das minas ele âmbar cente, se tivermos em mente que a produção do bronze, tanto na Itália como
na Samlânclia. Nem sabemos quando Truso, situada numa baía do Mar na Espanha, se concentrou nesse período da história em mãos dos etruscos,
Báltico, encravada no continente, foi fundada, nem quando desapareceu ou aquêle povo misterioso, já há muito familiar com tal produto. Sabe-se alguma
quando teve o seu maior florescimento. Para os historiadores existe documen- coisa a respeito clêsse povo, imigrado provàvelmente da Ásia Menor. Mas
tação satisfatória apenas para a época elo início ele nossa era. E é apenas êste conhecimento é muito confuso, comparável a um quebra-caue~a ue peças
por volta dêsse tempo, quando em Roma (como Plínio observou pesaroso) misturadas e incompletas - daquelas estampas recortadas para serem com-
o âmbar era tão caro que "pequena estatueta dessa matéria é vendida por postas - tão em voga no início dê'Ste século, e que sempre voltam a alegrar os
preço superior ao ele um ser humano" (êste custava de três mil e quinhento nossos filhos. Pois, embora existam numerosos conhecimentos avulsos, em-
a cinco mil cruzeiros em nossa moeda), que a rota, com a sua extensão de bora seguros, não conseguimos justapor os muitos pedacinhos clêsse quebra-
aproximadamente dois mil quilômetros, alcançou sua verdadeira significân- cabeça de História da Civilização de forma a produzir um quadro total
cia. Já mil anos antes, porém, haviam - os ricos, os príncipes e os senhores, convincente.
que viviam nas regiões próximas ao percurso - depositado nos túmulos de ~ste enigma principia com a questão ela origem elos etruscos. Heródoto
suas espôsas, de seus ministros e seus fiéis servidores, preciosidades egípcias afirmou que êles, procedendo da Líclia, imigraram para a Itália por via ma-
e pérolas de âmbar brilhante - um sinal da antiguidade dessa via de co- rítima. DIOnísio ele Halicarnasso, porém, que viveu em Roma por volta do
municação. início da era cristã, defendeu em sua "História Romana" a opinião de que
Evidentemente não eram negociados ou transportados nas rotas antigas os etruscos eram aborígines, isto é, naturais elo solo italiano. Lívio relacionou-
apenas o sal, o bronze ou o âmbar. Peles preciOsas, especialmente couros os aos retos, que hoje vivem no Tirol; outros historiadores da época antiga
finos e outras mercadorias ele luxo, já representavam, segundo tudo faz crer, vêem ligações entre os etruscos e os pelasgos do Egeu. A Filologia moderna
naquela época, papel semelhante ao gue lhes atribuíram os milênios posterio- pôde averiguar, embora não lhe tivesse sido possível decifrar a língua etrusca,
res. Eis um fato especialmente notóno em nossa rota de norte a leste, desde que êsse povo misterioso não é de origem indo-européia, mas que sua _língua
por volta elo século 7 a. C., depois de as colônias fundadas pelos gregos nas sofreu certas influências da Ásia Menor e do Cáucaso. E a Arqueologia con-
costas do Mar Negro terem superado as dificuldades iniciais. Assim c~mo firma tal assertiva. Assim sendo, é bem provável que a pátria primitiva dos
sói acontecer em colônias recentemente estabelecidas, fortunas foram ràpida- etruscos tenha sido alguma região montanhosa do nordeste do Oriente Pró-
mente feitas e apressadamente gastas, e é assim que sobre.veio a procura de ximo, onde se encontram resquícios culturais indo-europeus e não-indo-euro-
mercadorias ele luxo, exagerada a ponto de provocar mesmo entre os con- peus. A suposição de Heródoto de que a Ásia Menor seja o berço dos etruscos
poderá, portanto, prevalecer. Talvez sejam êles idênticos aos famosos tirseus
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,
da Gênese bíblica, aquêles mestres antigos da mineração e do forjamento forneceu-nos dados e datas exatas até para algumas peças do início dessa
de ferro. T .b · exportação; em três espadas de bronze, nórdicas, do tesouro de Sethos li,
Realmente houve, na Itália etrusca, entr~ o Amo e o ~ _:e, um sem nu- pelos fins do século XIII a. C., encontra-se o sinal de posse do faraó.
mero de belíssimos achados, parecendo confirmar essa SUJ?OSiçao: .urn as~ vasos, O arqueólogo alemão Friedrich Behn ressaltou ainda recentemente que
espadas jóia:s de ouro prata, marfim, âmbar e, além disso, mUltas pmturas não se pode tratar de acaso, e que as relações entre o Egito e o Norte distante
em an(igas câmaras ~ortuárias, assim como plásticas de sêres humanos e "dificilmente ter-se-ão restringido a coisas externas e concretas". E como
animais, inspiradas tôdas por elevada e ~~gestiva compreensão de for~as. prova de sua teoria, aduz o fato de que, naquela época, apenas em duas
Mas 0 que os romanos contam de seus VIzmhos ?ferece qu~d~o totalm~nte partes da ecúmena, do mundo ocidental, existia o culto puro do Sol, não
diferente dêsse povo, tão bem dotado em q~alidades ~rt1~t1cas. Segun_?o destorcido e descolorado por influências mitológicas: na Europa Setentrional
êles os etruscos eram muito ricos, muito hábeis em comerc~o .e navegaçao, e no Egito de Amenófis IV, do célebre J!araó Ecnaton, que oc.upou .o trono
e possuíam exuberante "modus vivendi". Mas e~am ma~enalist~s pronu~­ egípcio de 1375 a 1358 a. C. Como é sabido, procurou Amenófts IV mtrodu-
ciados, dados ao gôz~ da vida e~ ~uas fonn_as mais !Vosseiras, e tao amorais zir, no lugar do tradicional politeísmo egípcio, uma pura religião solar.
que não recuavam diante de publicas relaçoes sexuais. Promoveu representações cultuais do Sol, que não mostram o astro em repre-
sentação humana, como o fazem as contemporâneas religiões do Leste e do
Sul, mas como um verdadeiro disco. O mesmo acontece na Europa Setentrio-
~8<DHl:St\~L ,_,..,rv~apM~ l tY -\'t nal: o famoso carro solar de Trundholm também representa o Sol como um
FonatD•
disco circular, puxado por um cordel através do céu. E, assim como no Egito,
AI(Dt,t8 au~~ lBQP'1P\"ftt :rt encontram-se no Norte da Alemanha da Idade do Bronze representações que
c....... dão vida ao Sol mediante braços, estendidos ao homem como se quisera
~RCD tC..\ 801 K\... tw~ ffiO abençoá-lo. De Amenófis-Ecnaton sabemos que, talvez sob influência de sua
espôsa Nofretete (princesa indo-européia do povo dos mitanos), pretendia
11. Três alfabetos etruscos meridionais, dos introduzir conscientemente uma crença divina, concebida de forma mono-
séculos VIII e VII a. C. Embora os etruscos teísta. Behn supõe que os germanos da Idade do Bronze, por sua vez, tenham
empregassem muitas vêzes ca:acteres conh_e- sido monoteístas, e que apenas mais tarde tenham aceito o politeísmo conhe-
cidos de outras culturas mediterrâneas, nao cido da Edda (•).
foi ainda possível decifrar a sua escrita.
É forçoso confessar que esta concomitância de convicções religiosas nos tor-
na pensativos, e já que defendemos aqui a opinião segundo a qual também
As mulheres segundo os romanos, eram entre os etruscos apenas objet~s, o mundo antigo possuía tanta mobilidade e era tão movimentado quanto
'
pertencentes concomitantemente ·
a quem as quisesse. · 1 qu e haJa
É .possive
o nosso próprio, dificilmente poderemos acreditar em acaso, coincidência ou
exagêro em tais afirmativas, mas é fato que o falo era objeto de culto e.ntre convergência, êsses conhecidos "remédios" da Arqueologia, embora - e isto
os etruscos, sendo suas representações pictóricas idolatradas de perme]o a é preciso frisar - nada se saiba de viagens marítimas de egípcios à Germânia
excessos orgiásticos. E a arte e~r~sca, apesar do elevado da forma, apresenta ou de germânicos ao Nilo. . .
traços múlliplos de rude matenahsmo. . . . O tráfego marítimo, por outro lado, estava provàvelmente em mãos fení-
Nada parece combinar nesse mosaico apagado. Mas tu~o m~1ca que os cias, aquêle povo semita da costa oriental do Mediterrâneo que, depois do
etruscos tenham procedência asiático-menor, . e que foram ImJ?ehdo~, . t~lvez, desaparecimento de Creta como potência, tomou seu lugar no complexo mun-
pelas vagas populares do início do segu_ndo mi~êmo a~tes d<:_ Cnsto, di~Igmdo­ dial. Mas o comércio de cabotagem e no início também as viagens à Espanha
se da Ásia ao Mediterrâneo. Já conheCiam entao a mmer~çao de metais, a fa- permaneceram, durante algum tempo ainda, em mãos de etruscos. De Spina,
bricação do bronze, a fundição metá~ica e a arte <;Io fof]amento. Tentar.a~, seu pôrto, situado nas proximidades de Bolonha~ num braço meridional hoje
após sua expulsão da Ásia Menor, fixar-se no Egito, sendo que a tr~diçao completamente aterrado, na desembocadura do Pó, grandes quantidades de
do país do Nilo fala dêles como sendo os "turucha". Porém, os faraós sao de- mercadorias foram expedidas durante muito tempo. E ao lado de metais e
masiado poderosos: rechaçam os estrangeiros. Dirigem-~e •..portanto, para o preciosos produtos tropicais, tais como conchas cauri, corais e incenso, mais
oeste, transferindo-se à Itália, após passar por Malta e Sicilia. Alguns perma- tarde também cereais e outros víveres - mercadorias volumosas, portanto, -
necem na Itália, via Sardenha e Ba~e~es, até a _Espanha~ on<;Ie Tartess~, .a representaram papel importante nos começos do transporte marítimo. Em
antiga cidade comercial no GuadalqUlvir, ascende a sua mawr nqueza e glona rotas. terrestres, porém, o risco do transporte de mercadorias volumosas deve
graças a êsse enxêrto de sangue novo. ter sido demasiado grande. Provàvelmente, também as despesas eram incom-
A Europa foi atravessada por poderosa corrente de bronze, procedente de pat~veis com o lucro. f.ste, evidentemente, era muito menor, comparado ao
Tartesso e da Toscana, a antiga Túscia, isto é, o país dos tuscos _?U etrus~os. obt1<;Io com mercadorias de luxo. O que não excluiu o transporte de conside-
Quando, por volta de 700 a. C., após quinhentos anos de e~ploraçao descuida- r~veis cargas, e, se bem que quase não existissem caminhos transitáveis, nem
da, as reservas etruscas de cobre começavam a es~as~ear,, tn:eram os povos da f~ssem os carros de quatro rodas universalmr.nte conhecidos e não houvesse
vizinhança setentrional de expandir a s_ua rrópna mdustn~ do bron~e. Isso a;nda.passagens trilhadas através das montanhas, era o comerciante de épocas
verificou-se principalmente na Esca~dmávi~. Pouco dep?1~, ape'rfeiçoad_?S tao distantes bem capaz de movimentar mercadorias volumosas e pesadas.
objetos de bronze da Europa Setentnonal, mstrumentos, JÓias e arm~s sao
exportados à Europa Meridional e ao Egito. Fora~ êles escav~dos ~m MI.ce~as ( •) A mais antiqa coletânea conhecida de lendas germânicas; oriunda da Escandinávia.
e também no Nilo, e a tendência à ordem contábil dos funcwnános egipcws N. do T.

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1 !
i
Comprova-o o fato de terem sido encontrados em tôda a Europa, até a Suécia
e a Noruega, grandes vasilhames de bronze e mesmo carros-caldeira, destina-
dos ao fornecimento, em ocasiões festivas, de bebidas em uma espécie de
terrina sobredimensional. O pêso dêsses carros é geralmente tão elevado que
a possibilidade de tal transporte tem sido um dos muitos enigmas da época.
Novamente enfrentamos enorme feito técnico e ainda uma vez procuramos PARTE III
saber em vão como o ser humano de tempos passados foi capaz de desincum-
bir-se desta e de outras tarefas. Como interpretar isso? Será que nossos ante-
passados possuíam inclinações unilaterais? Que viviam, por assim dizer, em
época de desenvolvimento técnico prematuro, sem terem desenvolvido suas PUNTO, A TERRA DIVINA,
aptidões espirituais? Não há razões para tal suposição, já que as criações
artístico-formais da época são absolutamente dignas dos sucessos técnicos. Do E AS "ILHAS DOS BEM-AVENTURADOS"
que podemos concluir que também os fatôres da vida pré-histórica, invisíveis
em nossa era presente, baviam sido perfeitamente desenvolvidos. Devem ter
correspondido, em grande parte, às formas e conteúdos a que estamos acos-
tumados, de modo que as passageiras focalizações do passado, encontradas em
nossos relatos, não devem ser entendidas como recursos cinematográficos, mas
como tentativas de chegar a linhas paralelas orientadoras. E assim como na
geometria linhas paralelas se encontram no infinito, cruzam-se as nossas na
imutabilidade do ser humano, designado de há muito pelos deuses para
constituir a medida de tudo, seu comêço e seu fim.

O estôjo de pó-de-arroz da princesa - O epitáfio


de Knemotep - Os hicsos, líderes da jovem gera-
ção marcial - Hatxepsut toma conta do trono - O
chanceler Senmut e sua política externa - Incen-
so - E onde ficava "Punto, a "Terra Divina"? -
Hatxepsut diz "incenso", porém se refere ao
ouro - "Advertências de um profeta egípcio" -
Mercadorias hindus na África Oriental - A em-
barcação de alto mar dos egípcios - No caminho
de Biblos - Salomão conhece a posição de Ofir -
O segrêdo de Simbabue - Contornando a África
em 600 a. C. - Ptolomeu não acredita que o Sol
fique no Norte- O Canal de Suez dos faraós- Mo-
dernas pesquisas marítimas e o desaparecimento
de Greta - Púrpura de Tiro que procedia das
Canárias- Almirante Hano no Camerum- Pedras
arremessadas por gorilas? - Púnicos nos Açôres.
r
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~
Como um verdadeiro romance, inicia-se nosso capítulo com uma bela mu-
lher, ou melhor, com seu estôjo, cheio de pó-de-arroz. Mas não sabemos quem
tenha sido essa mulher, nem qual era o seu aspecto exato. E já que, desde o
seu desaparecimento, se passaram cêrca de 4.500 anos, dificilmente se poderão
obter os seus dados pessoais com a precisão desejável, em se tratando de
testemunha altamente importante. Era, provàvelmente, uma princesa, mem-
bro da sexta dinastia faraônica, considerada tradicionalmente como "a últi-
ma" da época antiga do Egito. Mas isto não nos concerne muito, nem ao
desenvolvimento de nossa história. A nós interessa unicamente o fato de a
caixinha de "make-up", que a acompanhou ao Além, ter contido ainda restos
de "rouge", produzido com uma mistura de antimônio.
O próximo elo da cadeia de provas, que aqui estamos a apresentar, é a
inscrição no túmulo do pilôto-navegador Knemotep, de Elefantina, cidadezi-
nha próxima à primeira catarata do Nilo. Knemotep morreu por volta de
2300 a. C., talvez alguns decênios depois da mencionada princesa, e recebeu
entêrro altamente dignificante. Era por certo homem de grande influência.
Mas também desconhecemos sua vida, que não teria a mínima importância
histórica, se em sua _pedra tumular não encontrássemos referências respeitosas
ao fato de êle ter viajado onze v.êzes, com seu Capitão Huj, a Punto, a dis-
tante "Terra Divina".
Eis o segundo elo. E o terceiro é uma rainha, a Princesa Hatxepsut do
Egito, que no ano de 1501 a. C. galgou o poder, sendo assassinada provàvel-
mente pelo próprio marido uns vinte anos derois. James H. Breasted, célebre
pesquisador da história egípcia, falou da pnncesa como sendo a "primeira
grande mulher na história mundial". E tal conceito parece confirmar-se. Para
nós, porém, é de importância somente ser ela como que o ponto de interseção
das lmhas, partindo da senhora com o estôjo de beleza e o pilôto Knemotep.
M~s, de qualquer maneira, teremos de tratar, durante algum tempo, com a
prmcesa.
Hatxepsut era filha única e herdeira legítima de Tutmósis I, aquêle grande
rei qu_e devolveu ao Egito a sua antiga posição de supremacia, após devasta-
dora mvasão dos hicsos asiáticos. Durante cento e cinqüenta anos, de 1700
a ~555 a. C., o povo estrangeiro havia dominado o Egito e, nesse século e
mew, o caos havia sido total. Os reis hicsos intitulavam-se "líderes da jovem
g-er~ção militar". Sabemos qual o significado de tendências dêsse tipo é tudo
m~hc~ que a época foi de extrema perturbação. Assim, o desejo do povo
egipcw de voltar, após a expulsão dos hicsos, à ordem e à paz, é fàcilmente
compreensível. Tutmósis I foi certamente o homem apropriado para o mo-
mento, se bem que, embora faraó, fôsse apenas príncipe-consorte. Pois o
san9ue do fundador dinástico circulava nas veias da Rainha Ahmas, sua
esposa. Ela ~ra portadora da tradição, daquela fôrça em tempos tumultuosos
sempr_e constderada _divina, intangível pela inteligência humana, "única capaz
de evttar que o Egito fôsse novamente atirado à desordem".
O ~ato de o ~asamento da rainha não ter provido o trono egípcio com
herdeiro masc~ln~o terá dado extremos cuidados aos egípcios. Com a morte
de Ahmas, o dtrelto de Tutmósis I estaria extinto, passando à sua filha Hat-
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Assim, terá Senmut, seu chanceler e amigo, aconselhado a reviver a tradi-
ção dos faraós mediante uma grande expedição a Punto, a "Terra Divina",
nos distantes mares do Sul. Segundo êle, seria êste um feito expressivo do
verdadeiro espírito faraônico, que causaria profunda admiração. Além disso,
traria o apoio do clero e, finalmente seria fácil conquistar Punto, indefesa
contra as modernas armas egípcias, e assim colhêr os necessários e convincentes
triunfos militares. Razões plausíveis. Porém não sabemos se as propostas de
Senmut foram decisivas para Hatxepsut. As mulheres, em geral, não apre-
ciam muito as deduções teóricas, e já que Deus costuma dotá-las de mente
prática e racionalizante, preferem procurar argumentos reais. E êsses existiam
em bom número. De acôrdo com os documentos antigos, Punto era rica em
incenso, que foi trazido em grandes quantidade-s ao Egito nas expedições an-
teriores (embora fôsse verdade que a anterior houvesse sido realizada há 500
anos). Por que não seria possível conseguir idêntico resultado agora? Se tal
possibilidade existisse, o projeto de Senmut poderia ser executado sem gran-
des custos para o tesouro nacional. Pois o incenso era caro, mais caro que
ouro, e a necessidade que dêle tinha o clero e os templos era enorme. Talvez
12. Barco expedicionário da Rainha Hatxepsut. Por volta de 1493 a. C. os
houvesse até mesmo possibilidade de obter lucros com essa viagem.
egípcios empreenderam uma viagem de exploração a Punto, a terra divina. Iniciamos nosso exame com as segundas intenções possivelmente decisivas
Refere-se a ela uma inscrição no templo de Deir el-Bahari, do qual procede de Hatxepsut. Desde tempos imemoriáveis, comprava o Egito as quantidades
também a gravura que aqui apresentamos. enormes de incenso, de que necessitava para o serviço religioso, para o pre-
paro das múmias e remédios, dos seus vizinhos orientais do outro lado do
xepsut. E qual seria o resultado? Outro príncipe-consorte? E quem seria capaz Mar Vermelho, por preços exorbitantes. Mencionando dados: por volta de
de garantir que o novo portador do poder, vindo de não se sabe onde, não 1200 a. C., só o templo de Amon, na cidade de Tebas, recebia anualmente
provocaria novas perturbações, compensando os seus complexos de inferiori- 2 189 jarros e 304 093 alqueires des-sa deliciosa especiaria; quantidade tão
dade? grande que hesitamos em convertê-la em valores atuais. O mesmo sucedia com
A própria Hatxepsut partiu êsse nó górdio após falecida a sua mãe. De os outros povos da Antiguidade. Queimavam anualmente, por exemplo, os
acôrdo com a tradição, mulheres não poderiam reinar no Egito, e assim clérigos caldaicos, incenso no valor de dez mil talentos no altar de Baal.
apenas lhe caberia a posição de "espôsa-real". Quando casou com Tutmó- Incenso no valor de mil talentos era o tributo corrente dos árabes a Dario,
sis III, muito mais jovem que ela própria e de ascendência desconhecida, o rei persa, e enormes armazéns sagrados destinavam-se em Jerusalém à con-
satisfez-se aparentemente com tal estado de coisas. Entretanto, tôdas as in- servação apropriada dessa dádiva aos deuses. Em honra a Zeus do Olimpo,
cumbências reais e tôda a máquina política do Estado estavam, desde o na Grécia, o vapor de incenso subia aos céus em tôda parte. Posteriormente
início, em suas mãos. Após alguns anos, apoiada por seu protegido, o chan- foram enviados infindáveis carregamentos para Roma.
celer Senmut, ela própria -se conferiu o título de faraó, passando a ser ~ste incenso, desde épocas remotas, vinha de Hadramaut, na Arábia Me-
"Rainha de Norte e Sul, Filha de Hórus - o Sol doador dos anos, Deusa ridional, mencionada na Bíblia como Hazarmavet, lugar árido e pobre, que
do Sol-Nado e Senhora do Mundo, Dama dos Dois Países, Vivificadora dos se tornou rico e mundialmente famoso graças à resina aromática. Graças a
Corações, Todo-Poderosa", enfim, ela era o faraó, e, para satisfazer a tradi- seu direito hereditário, três mil famílias colhiam a riqueza das árvores que
ção, fêz-se representar com tanga curta e cavanhaque. produziam o incenso. No curso dêsse aproveitamento, deveriam ser observados
certos ritos religiosos, e a quem coubesse o direito de participar da colheita,
Seu marido, que, após a morte provàvelmente não natural de Hatxepsut, que de março se estendia até agôsto, era considerado santo. Depois da colhei-
guindou o Egito à mais poderosa posição mundial odiava aquela mulher ta, o produto era levado aos países consumidores em caravanas vigiadas e
inteligente com violência indisfarçada. Quando, finalmente, conseguiu des- poderosamente armadas, de oásis para oásis e de uma côrte real para a
vencilhar-se dela, fêz com que todos os quadros e tôdas as suas representações próxima. Seu caminho levava inicialmente ao longo da costa da Arábia Me-
fôssem destruídas. Não sabemos, por conseguinte, qual o seu aspecto. Apenas ridonal para o oeste - era uma rota de incenso, do mesmo tipo das rotas de
alguns contornos indistintos se conservaram dos relevos raspados das paredes sêda na Ásia ou das de sal e âmbar na Europa. No Iémen Oriental, a pe-
dos templos. O que parece simbólico, uma vez que também a histonografia quena distância de onde hoje se localiza Aden, dobrava essa rota para o
dela não conservou muito mais que simples contornos. Cumpre-nos, poi~, norte, estendendo-se ao longo da costa do Mar Vermelho. Ali se dividia em
caracterizar melhor os traços abstratos dessa mulher que, além de tudo, prati- um ramo ocidental, para o Egito, e em uma via oriental, que se dirigia à
cou uma mudança de sexo em si mesma. E nada mais lógico que a pergun~a: Babilônia ou à Síria argêntea. Plínio descreveu-a um tan to minuciosamente,
o que fará uma mulher enérgica e inteligente que, na qualidade de herdeira informando também quais as despesas decorrentes de cada carga de camelo
legítima do trono, toma conta do poder, embora contrariando a legislação de Hadramaut até o Mediterrâneo: eram 688 denaros, uma soma que deveria
política vigente? Fará o que sempre se faz em tais circunstâncias. Aliar-se-á ter correspondido a quinze mil cruzeiros.
a?s legitimistas, que consideram a tradição mais importante que a razão polí- E, assim como o incenso, durante milênios percorriam essas rotas as pre-
tica. Eis uma das medidas. A outra será a tentativa de tornar-se popular, ciosidades e as mercadorias de luxo da fndia e do Extremo Oriente. É que
através de alguns êxitos de grande repercussão.
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também essas partes do mundo supriam suas necessidades de incenso com o E assim retornamos a Hatxepsut, aos conselhos de seu chanceler e suas
produto de Hadramaut. Com as monções, vinham os negociantes hindus do próprias idéias. É óbvio que ela soubesse muito mais de Punto que nós, hoje
pôrto de Barigaza, hoje Broac, na índia anterior, realizando aí negócios de em dia. Se bem que desde a cessação das viagens regulares tivessem passado
compensação com seus produtos: madeira Teak, da índia Posterior, que os mais de sete séculos, não deve ter havido dúvidas quanto à localização de
ricos comerciantes do Iémen utilizavam em seus palácios, nardos bem cheiro- Punto. O que faz com que Hatxepsut e seu chanceler tenham desfrutado de
sos do Ganges, o aromático Malabathrum (fôlha de caneleira) do Himalaia, nítida vantagem sôbre nós. Pois nós não o sabemos ao certo, e assim as ciên-
musselinas de Taprobana (Ceilão), sêdas de Cin (China), conchas de tarta- cias encetaram uma controvérsia, tentando, com variados e brilhantes argu-
ruga de Málaga, índigo, pimenta, diamantes, esmeraldas, safiras e lápis- mentos, defender uma ou outra hipótese a respeito da situação de Punto.
lazúlis da índia. E de Hadramaut ou de Áden, o incenso acompanhava êsses Durante muito tempo acreditaram que a "Terra Divina" ficava na índia.
produtos estranhos e valiosos, em seu caminho para o norte, para a Europa. Mas essa hipótese foi rejeitada, porque as datas indicadas pela expedição de
Quando finalmente lá chegavam, rendiam cêrca de quinhentos por cento, Hatxepsut não concordavam. Pensaram então na Eritréia, a estreita região
tornando assim a Arábia imensamente rica, de modo que se transformou de de terra no Mar Vermelho. Mas também essa hipótese não pôde ser ajustada
terra estéril e pobre na "Arabia felix" dos romanos, o país de sonhos das ao quadro completo.
"Mil e uma Noites". Após essas hipóteses, um catedrático alemão, sedento de saber, examinou o
Também o Egito pertenceu tradicionalmente à "clientela de incenso" ~os "rouge" daquela linda senhora egípcia já por nós mencionada, e ofereceu as
árabes de Hadramaut, e certamente pesava aos orgulhosos senhores do Nilo chaves para a provável solução do mistério de Punto. Já sabemos que nossa
ter de pagar anualmente incontável número de libras de ouro por aquela encantadora desconhecida viveu em meados da sexta dmastia, isto é, ao mes-
massa resinosa, tão cara aos sacerdotes. Os funcionários dos faraós adquiriam mo tempo, ou pouco antes, do pilôto Knemotep, o viajor a Punto. E também
apenas produtos da melhor qualidade e não se davam por satisfeitos, ~orno sabemos que as côres do "make-up" de nossa testemunha foram produzidas
os estrangeiros da Síria e do outro lado do mar, se recebessem mercadona de com antimônio. Sabe-se, outrossim, que as grandes jazidas de antimônio
qualidade inferior. Já nas listas de mercadorias de Ramsés IIJ, redigidas por da Pérsia e da Ásia Menor foram encontradas só muito mais tarde. E tam-
volta de 1200 a.C., estabeleceu-se como medida de qualidade a côr do incen- bém aquelas da África Setentrional e Ocidental foram descobertas quando
so, que apenas podia variar entre um amarelo flocoso ambarino e um verde nossa beleza egípcia já se havia transformado em pó. Mas, além dessas jazidas,
apagado, como de jade. Tudo que não correspondia a esta especificação era há antimônio apenas no Transvaal e na Rodésia do Sul, em se tratando do
considerado sem valor. Mas justamente essas qualidades eram particularmente continente africano; principalmente no curso inferior do Zambeze. Portanto,
caras e por isso é bem possível que o govêrno egípcio de há muito preten- se há 4.500 anos o antimônio foi empregado no Egito, concomitantemente às
desse desincumbir-se do abastecimento. Para tal, porém, apenas a costa orien- viagens de Knemotep a Punto, então só pode provir do Zambeze.
tal da África poderia servir, já que aí sempre se encontrava êsse produto. Confesso que isto soa pouco crível e mais parece um "conto de marujo".
Por volta de três mil antes de nossa era, quando o segundo faraó da quinta A distância do Egito Setentrional ao Zambeze soma quase oito mil quilôme-
dinastia, Sahurê, reinava sôbre o Egito, empreendeu êste país a primeira ex- tros só de viagem costeira. E esta distância é tão grande que com tôda a
pedição para a busca do incenso, à distante terra de Punto. Infelizmente, razão levantamos a questão da possibilidade de ter sido vencida em tempos
porém, existe somente escassa documentação. Mas é possível que se tenha tão remotos. Acresce que o antimônio não se encontra na região costeira,
iniciado em Kosseir, ao norte do Mar Vermelho. Ignoramos quanto tempo mas a uma distância de quinhentos quilômetros da costa, na selvagem hinter-
levou e se essa tentativa foi a única. As velhas tradições não falam nem mesmo lândia, na terra de Mascona, ao redor de Guelo, pequena localidade de mine-
da localização de Punto. Mas informam orgulhosamente do êxito da expe- ração. Será possível que os egípcios, sem outra razão que a obtenção de an-
dição: 80.000 quartos de mirra, 6.200 pesos de eléctron (uma liga de ouro e timônio, tenham empreendido viagem de tais proporções?
prata) e 2.600 pedaços de madeiras preciosas foram levados de Punto ao Egi- É verdade que êsse mineral é utilizado para o endurecimento do cobre e
to. Punto forneceu até mesmo anões, que durante as danças religiosas dos a produção do bronze. Mas o Egito utilizou-o apenas limitadamente, com essa
egípcios exerciam papel de relevância. Isto é revelado por uma inscrição da finalidade. Decisivo, todavia, para as viagens ao Zambeze, foi o ouro - e
época do govêrno do Faraó Isesi, penúltimo soberano da quinta dinastia, por não o antimônio. A mineração de ouro é tradicional no país de Mascona.
volta de 2400 a. C. Aparentemente o antigo Egito adquiriu o gôsto pelas Depois de descobrir e decifrar-se o célebre papiro de Harris - documento que,
expedições a Punto, empreendendo-as em séculos posteriores, vindo a tornar- tratando de Ramsés UI, informa que por volta de 1180 o faraó havia esta-
se talvez uma prática regular. De qualquer maneira chegamos a esta conclu- belecido em distante país, produtor de ouro, grande colônia de mineradores
são, se lermos a inscrição tumular do bom pilôto Knemotep, de Elefantina. egípcios, - chegou-se à conclusão de que se referia às jazidas auríferas do
Zambeze. Provàvelmente, já na época da quinta dinastia, foram exploradas
Mas tudo caiu em esquecimento, depois. O tráfego regular com Punto as costas da África Oriental. Por acaso, ou avisados pelos indígenas, chegaram
cessou, e apenas sob Menotep IV, por volta de 2000 a. C., foi mais uma vez tais exploradores às r eferidas regiões, extra íram o ouro aluvial ali existente
mencionada uma viagem à "Terra Divina". Aparentemente os egípcios aban- e mais tarde ocasionaram as viagens das quinta e sexta dinastias e de Hat-
donaram o mar nessa época, voltando para a terra - seguindo um fatalismo
misterioso, segundo o qual a períodos d~ exp~ns~o no m~r .e n.? campo d0 xepsut.
Tal exp l.Icaçao
- parece convmcente.
. V eremos mais
. a l em
, que as possi·b·l·
I I-
espírito p arecem seguir-se períodos de Isolacwmsmo e hmitaçao. Somente dades técnicas dos egípcios na construção naval eram suficientemente amplas
depois de terem sido superadas as conseqüências da invasão dos . hicsos, sob o para permitir viagens extensas já em épocas remotas. Mas não desejamos
governo progressista de Tutmósis I (1555 a 1501 a. C.) voltou o mterêsse pelo exigir demais do leitor já no comêço do livro e apenas ressaltar, par a que
dom ínio das ondas. seja mantida a seqüência lógica, que o enigma geográfico-histórico sôbre a
62 63
misteriosa posição da terra de Punto foi enfrentado com uma proposta media-
dora, que também tem certo valor_ Tal proposta supõe ter sido Punto um
conceito geográfico que mudava com o correr dos milênios, de forma a tor-
nar impossível a localização exata da rica "Terra Divina", podendo ser -
e com Igual índice de possibilidade - a Eritréia ou a Arábia ou outra nação
qualquer.
Essa opinão pode ser aceitável nos dias que correm, mas não teria, certa-
mente, satisfeito a Hatxepsut. Ela conhecia, sem dúvida, a localização exata

13. Carregadores de plantas de mirra, da expedição a Punto efetuada pela


Rainha Hatxepsut. Gravura existente no templo de Deir el-Bahari.

de Punto, assim como dos produtos daquela terra. E quando falava em in-
censo, mirra e outras coisas sagradas, então ela, pensando em chita, referia-se
indubitàvelmente a ouro - como os que milênios mais tarde "falavam de
Cristo pensando na venda de tecidos". Segundo suas própras declarações, o
lucro da expedição a Punto deveria destinar-se à edificação e ornamentação
de seu templo, em Deir el-Bahari, onde pretendia conservar os despojos de
seu pai, Tutmósis I, e que seria também sua própria sepultura.
Certamente representaram papel importante nessas reflexões os seus sen-
timentos de amor e admiração pelo grande homem que foi seu pai. E se é
possível ler em Deir el-Bahari: "Construí uma verdadeira Punto em seu
jardim, de acôrdo com suas ordens, suficientemente grande para que aí possa
passear", então nessas referências às trinta e uma árvores de mirra, trazidas
da África pelas naves de Hatxepsut, vibram sem dúvida acordes sentimentais.
Mas a princesa era mulher inteligente, e sabia decerto que as pirâmides gran-
diosas do Antigo Império não poderiam jamais ter sido erigidas sem a enor-
me riqueza aurífera do deserto oriental do Egito Superior. E ela, principal-
mente porque tanto se preocupava com a tradição, precisava criar grandes e
impressionantes monumentos tumulares. Mas desde a duodécima dinastia,
cêrca de 2000 a. C., haviam sido esgotadas as reservas de ouro do Egito. A
última "onça" foi trazida à luz com as quarenta toneladas produzidas na
época de Tutmósis I, seu pai. Portanto, para que as obras pudessem conti-
nuar, ou mesmo ser superadas em esplendor, a obtenção de ouro em longín-
quas e estranhas terras era necessária.
Devemos, a respeito disso, considerar a situação extremamente difícil em
que Hatxepsut se encontrava. Era óbvio que tinha contra si o direito do Carro de com bate. 1Htzta
· · em luta co11tra os egípcios, lidemdos por Ramsés li, em Kadesch.
Est~do. Não era ignorado que seu marido, o posterior Tutmósis III, ao qual
Relevo num muro do "Ramesseum" em Abidos. Século XIII a. C.
a história atribuiria o epíteto de "O Grande", aguardava a sua hora. Visto
64
que 0 seu exercício do.po~er contrariava t_ôda tradição:_~ rainha, certamente,
estava perfeitamente consoa de que necessitava de um exito retumbante, para
poder levar avante sua _política. Por isso sua expe~ição teve de alcançar a
meta almejada. Ela te~za de v?ltar c~rregada de Imensos tesouros,. C? _que
aconteceria se seus almirantes fossem mcapazes de encontrar a terra divma?
Ou se voltassem com mãos vazias?
Se, portanto, Hatxepsut se decidiu a tal empreendime~to, fê-lo na _certe:a
absoluta de seguir um plano corre,to, com pl;no. conheCimento da situaçao
geográfica de Punto, sabendo tam~e!fi da existencra de ouro no local e tend?
bons motivos para supor que as dificuldades que se antepunham à sua reah·
zação não eram insuperáveis. Naturalmente nem ela nem seu chanceler fa-
lavam abertamente de ouro. Mas, desde que sêres humanos vivem na terra
foi sempre o ouro o mais poderoso dos argumentos. Ouro, muito ouro, foi
também para Hatxepsut a 'mais eficiente argumentação para manter o seu
poderio. Sua expedição, realizada em 1493 a. C., visava, portanto, à obtenção
do ouro.
Existe documentação provando que nesse ano se fizeram ao mar cinco gran-
des barcos, movidos cada um por trinta remadores, dirigindo-se de Kosseir a
Punto. As peculiaridades náuticas do Mar Vermelho, onde os ventos seten-
trionais sopram desde o mês de junho, fazem com gue o verão de 1493 deva
ser tomado como data provável de partida. Até fms de outono os navios
deveriam ter chegado ao Cabo Guardafui - uma distância de cêrca de três
mil quilômetros - e depois principiavam as monções nordestinas, impelindo
a frota em viagem regular para o sul. Não há documentação provando fôsse
conhecido em épocas tão distantes o segrêdo das monções, mas o tráfego
regular a Punto, realizado durante a sexta dinastia, deve ter levado forçosa-
mente ao aproveitamento das monções. E também os marinheiros de Hat-
xepsut não teriam sido capazes de alcançar o Zambeze sem o aproveitamento
racional dêsse vento.
A Princesa Kawit sen do penteada . R elévo que apm·ece em seu túm u lo.

14. O soberano e a soberana de Punto recebem o embaixador egípcio.

Ignoramos a_ data de retôrno da grande expedição da rainha, mas provà-


velme_nte tal nao ~e deu antes de 1491. A maneira pela qual ela retornou a
Kosseir! porém, ficou documentada para gerações posteriores: coroada de
pleno exlto e decerto orgulhosamente cônscia de se ter mostrado digna dos
grandes antep~ssados, co~ suas viagens pelo mundo em fora. Nos muros do
templo de Deir el-~ah~n- a P,~ópria Hatxepsut informa a posteridade dêsse
sucess<_>, em longas mscnçoes: Os barcos estavam totalmente carregados com
os vah<_>sos p~odutos de Punto ~ com suas múltiplas madeiras preciosas, além
de ~Uita resma perfumada e mcenso novo, grande quantidade de ébano e
~arfim, emoldurados com ouro puro de Aamu e além disso resina sagrada
dpmtada para a ~ 1egrta· d os o Ih os com macacos' de
' cabeças caninas,
' macacos'
eÓauda~ compnda~, galgos, peles de leopardo e indígenas com seus filhos ... "
B h s !irtlstas da ramha gravaram o acontecimento no templo de Deir el-
a an, representando os navios da frota, as árvores de mirra, os sacos e as

5 bis Conquista Mundo 65

O qua d1·o dest?·uído da Rainha Hat xepsut 110 templo de Dei·r el-Bahari.
de Tehuti, preparadas pela rainha para seu pai, o Amon de Tebas, com
caixas os macacos e os cães, e o retrato do soberano de Punto com sua es- a ordem de pesar prata, ouro, pedras azuis, verdes, e tôdas as outras pedras
pôsa, presos pelos exércitos de Hatxepsut. E como é de praxe entre os indí- preciosas ... "
genas sul-africanos, representou-se. também a gordura ext~ell?-a de Sua. Alteza: É evidente que essas pedras preciosas são as esmeraldas e as turquesas,
a princesa de Punto, com propositada clareza. Isso constitUI, como amda ha lápis-lazúlis e safiras, de procedência original quase sempre do , Ceilão, e
pouco esclareceu o geógrafo e zoólogo ~l~mão, E~erhard Stechow, um argu- que já haviam alcançado o Egito através de rotas terrestres, chegando de
mento a mais para a tese de que a expediçao egipCia penetrou profundamente Hadramaut e Áden. Sendo esta a primeira informação sôbre a existência de
no Sul da África. A princesa era, apa:.;:entemente~ um~ hote~t?te e cer~~n:ente produtos indianos na costa da Áfnca Oriental, é preferível que não tiremos
mulher muito bonita. Para o nosso gosto, todavi~, nao servina co~o . pm-up dêsse fato conclusões demasiado amplas. De qualquer maneira, porém, parece
girl" modelar, e teremos, por conseguinte, de ~eixar de lado essa Miss Pun- possível que o conhecimento das monções, daqueles ventos regulares que
to", de 1493 a. C., em nosso presente comentáno. . _ enchem as extensões marítimas entre a índia e a África em mudança inter-
Ignoramos se Hatxepsut foi capaz de alcançar con: sua _expedi~ao , ~s de- minável, seja bem mais antigo do que parece a nós, modernos, pelo estudo
sígnios políticos almejados. Mas, de qualquer n:aneira, . na? há m~IClO de da História. Tal teoria é apoiada, além do mais, J?elo fato de o nome da
que tal aventura tenh~ si~o repeti~a,: O .que, a~mal, tena sido ~o~etamente Ilha de Socotra, a leste Península da Somália, prov1r do sânscrito - é deri-
justificado, se já a pnmeira expediçao tivesse sido coroada do exlto. que a vado do antigo hindu "dvipasukhatara", isto é, "ilha feliz" - e o do pôrto
propaganda govername~t~l procuraya fazer crer. Por. O?tr~ lado, fm talvez de Sofala, ao sul da desembocadura do Zambeze, da palavra sânscrita "supa-
a sua tentativa de adqmnr populandade, através da I.m~taçao d?s seus ante- ra", "terra das belas-artes". Mas a história do comêço do tráfego marítimo no
passados, uma expe~iência inú~il! des~e que já não exiStiam mmtos daqueles Oceano fndico é de tal forma nebulosa, que temos de deixar a investigação
egípcios de mentalidade tradiciOnalista, à qual proc~;ava apel~r. Poucos e a explicação dêsses problemas aos especialistas.
séculos antes do reino de .Hatxepsut apareceram as advertenCias de um
profeta egípcio", nas quais lemos: "Aquêles que até agora er~m pobr~s, tor-
nam-se ricos, e o rico ficou J?Obre a ponto de t~~o perder. Aqueles que tm~am
o costume de vestimentas ncas, pas~aram a utihzar-se de t;apos .para cobnr-se
e quem não sabia tecer nem para SI mesmo as. roupas I?~Is rudimentares, usa
apenas linho do melhor. Quem nada entendia de musica de harpa, passou 2
a possuir êsse instrumento, e quem nunca .em cant.os fôra ce~ebrado, enaltece
a deusa da música. Mulheres, que nem caixas haviam possmdo para guardar
os seus parcos haveres, apontam orgulhosamente para as suas arcas. Outras, Outro tema vai requerer a nossa atenção durante alguns momentos: pos-
suía o Egito Antigo de fato barcos capazes de cruzar os mares e percorrer
que somente viam o seu rosto quando refletido pelas águas, pos~uem. agora grandes distân~ias? Tanto mais se justifica tal questão quando sabemos que,
espe~~ws na parede ... mas o riso desapareceu do mundo, a alegria foi sufo-
de um lad.o, VIagens a~é o Zambez~ pressupunham uma considerável capaci-
cada . . . . _ . . .
É evidente que em épocas de t.~us mod~ficaçoes. sociais, pouco sen~ possi-
, d~de náutica .e conheCimentos técmcos e, de outro, para a construção de na-
v~os, a necessidade de compridos toros de madeira, os quais o Egito, despro-
vel conseguir com uma reencenaçao de feitos antigos e 'l!m restabeleCimento VIdo de flores.t<l;s, não possuía. O que faria tal povo para construir barcos
de valores tradicionais. E isto, apesar de os contemporaneos de_ Hatxepsut q~e lhe perffiltissem explorar os mares? Pois que os egípcios realizaram tal
se esquivarem às revoluções e às guerras, tudo fazen~o P<l;r~ nao retornar feito!
à época dos hicsos, existindo portanto uma certa predisposisa?•. fav~rável a Indubitàvelmente já percorriam os mares longos milênios antes de nossa
idéias legitimistas. Mas a paulatina volta dos tempos, que se miciara Já a~tes ~ra. Numerosas figuras, em vasos ou relevos murais da época pré-dinástica,
da invasão dos hicsos e que decerto não coincide com aquela grande agita-
ção de que a humanidade primitiva foi tomada com a invenção do bronze
~t? é, .antes .de 3500 a. C., e principalmente as tão vivas representações de
. Ieracompohs, com reproduções das mais diversas embarcações, provam quão
- essa volta dos tempos tornou-se, sob o domínio estrangei;o do~ hicsos cer- ~mportante e;a o papel do navio no Nilo. A primeira navegação egípcia foi,
tamente uma reviravolta turbulenta, resultando em uma mversao de todos ecerto, fluvial. Mas o Nilo não é sempre um rio calmo de águas mansas·
os valor~s. Pouco terão conseguido realizar nessa época as idéias conservado- torJ?-a-se, principalmente em seu curso inferior, revôlto e violento, produzind~
ras principalmente em virtude de o representante do poder absoluto ter pengosa correnteza.
dado o exemplo, através_de sua usurp<l;ção, para .a il~galidade. e a desor~em. ve;.rde supor que já na segunda metade do quarto milênio a. C. se tenha
Mas aqui tratamos nao de aconteCimentos históncos, e sim geogrfhcos, d ~ ~cado no país a transição da navegação fluvial para a marítima. Impulso
por mais que êsses conce~tos ~o~m to~ar-se nas épo~as do passado lo~gmquo. ~c~si':~ para tal mudança era a falta de madeira na região próxima às
Por isso, não teremos de mqmnr aqm por que as viagens a Punto. nao foram pir mi es, e é crível que a região montanhosa do Sinai rica em cobre e
repetidas, e quais as razões que fizeram com que aquela ~ulher Importante, florestas tenha sido
da qual tanto falamos, tivesse de enfrentar o cadafalso, a cicuta <?U o punhal anti 0 É . . u~ d os pnmeiros
. . b' . d , .
o Jet1vos os barcos marítimos do
afiado. Talvez tenha sido enfraquecida pelo amor por seu ~migo Senmut. cer g gi~o. Depois foi descoberta a Fenícia, e seus cedros-do-líbano forne-
da~m 1exce ~nte m_adeira p~ra construção. Principia então o desenvolvimento
Esperamos que essa seja. a razão, pois desta forl'!la o rosto dommador e severo
da rainha-deusa adqumrá ta!llbém traços trágico-hu:nanos. par:~~ em arcaçao mantima capaz e resistente, da qual o Egito se utiliza
E 0 as as suas extensas viagens.
O desenvolvimento categónco de nossa representaçao fors:a-~os a abandon<l;r
a figura de Hatxepsut. Temos a citar apenas as palavras fmais, com as qua1s tam~~~anto0
o.sd cargueiros .do Nilo apresentam, já em tempos muito remotos,
se referiu ela, em seu templo, à expedição: "Exatas e justas eram as dádivas consi erável - figuras em vasos do quinto milênio mostram barcos

66 67
de sua desembocadura, recorressem a idêntica medida. Também os seus
capitães estendiam, de pôpa a proa de seus longos e esbeltos vapores, cabos
tensores, aos quais imprimiam a necessária tensão, apertando·os por meio de
barras ou do guincho a vapor. Hoje já não existem tais problemas. E o ca-
pitão poderá mesmo ignorar as dificuldades de seus antepassados. Contudo,
alguns feitos dos engenheiros navais antigos são incompreensíveis mesmo para
nós. Sabemos, por exemplo, que por volta de 1500 a. C. dois obeliscos de
cêrca de 30 metros de altura e com um pêso de 700 toneladas cada um foram
transportados Nilo abai.·o, num navio cargueiro gigantesco. Procediam do

15. Embarcação egípcia, 1700 a 1400 a. C.

gigantescos, com mais de 50 remadores em cada lado, devendo tratar-se por-


tanto, de navios de 60 a 80 metros de comprimento - conserva a posterior
embarcação marítima tamanho regular. De comprimento médio de 30 metros
e 6 metros e meio de largura, sua profundidade atingia cêrca de 1 metro e
25 centímetros, devendo ter deslocado entre 80 e 85 toneladas.
Era construído como navio simultâneamente a remo e a vela, e especial-
mente indicado para mover-se em águas tranqüilas. Com remos, ou vento
favorável, atingia indubitàvelmente velocidades consideráveis, mas mesmo
içando tôdas as velas, dificilmente terá sido capaz de viajar contra o vento;
pelo menos não dentro do que nós, modernamente, entendemos como tal.
Não devemos, porém, apreciar a navegação arrtiga à luz de conceitos atuais.
Faltava aos capitães dêsses navios todo o espírito aventureiro. Navegavam
com vento favorável e, se êste não vinha, permaneciam ancorados no pôrto.
O primitivo barco egípcio, que, diante da carência de toros compridos,
fôra construído com pranchas curtas, deve ter sofrido múltiplas avarias em
alto mar. Quando embarcações dêsse tipo se aventuram a mares revoltos, ob-
serva-se sempre de novo que suas junções não resistem às exigências. Mesmo
os "barcos de dragão" dos vikings, não raro corriam perigo em tais emergên-
cias - embora sua estrutura fôsse à base de madeiras compridas. O último
exemplo de tal fato foi-nos fornecido por um barco sueco, construído, se-
111 ·. O litoral fenício. Arado constitui
gundo se afirmava, exatamente de acôrdo com os antigos modelos dos vi- 0r · ·
kings. Essa embarcação, no verão de 1950, durante um temporal no Mar da Influência fenícia. Biblo G - l1mte setentrwnal; Gaza, a fronteira meridional
e C>idon os do comércio con~ ~err:za/ao os postos.avanç~d~s. do comércio com o Egito; Tiro
do Norte fêz-se aos pedaços, vindo a perecer tôda a tripulação. Se aquêles == rochedo) deve seu n s .zstante~. - Tzro, pnm1tzvamente Tsor (do fenício zor-
pobres rapazes, que tiveram de pagar com a vida sua aventura esportiva, . foram' mais tarde1101incorp
quazs e aos rectfes
d ba1xos, SI·t ua d. os cerca
• d e 500 m d1ante
· da costa, -os
tivessem lido as crônicas do comêço da Idade Média, poderiam ter emprega- c1o, Tiro deve 0 seu ro ress o;a os ?0 p6rto atraves de grandes molhes. Além do comér-
0
do métodos aos quais os vikings recorriam em situações de emergência, idên- o sul encontramos 1/pe g a.;u: Indústria de metais e tinturarias de púrpura. - Para
ticos aos empregados pelos egípcios em épocas muito anteriores. Em tais == b.ranco, luminoso). P~s~:::: ~:n: e ~onstruí~a s~bre esplendentes rochas de cal (Jope =
situações, tanto vikings quanto egípcios envolviam a embarcação, na pôpa e Bentos (hoje Beirute de b • th uranas e vzdranas, estando sob o domínio de Tiro. -
ção. florescente e p6;to pa~~r~a::: poços, fontes) pertencendo a Sidon, é citada como povoa-
na proa, com cabos, ligados ao convés por um outro, o cabo tensor, fixo. Fellx Berytus" _ Bibl à asco apenas na era de Augusto: "Colonia ]ulia Augusta
Torcido êste com algumas barras, adquiria o casco tal tensão que, geralmente, d . · os, prov velmente tão t· ·
a Cidade, Gebdl n 1·ebêl d b an 1ga quanto Szdon, recebeu seu nome do deus
era capaz de atravessar mesmo as mais irrequietas águas próximas das costas. · · para a 'importaçãoem elos
P~mczpal ra e· . Por p 1· 1·d
. sua rox .m ade com o Líbano era o mercado
É muito si~nificativo que no início da navegação a va·por no Mississípi, (ctdade tripla) centro novo pp . eg1pclos de madezra para construções navais. Por Tripoli
mesmo aqueles navios, encontrando águas muito agitadas nas proximidades gada a segundo plano _ A e d ro(s!ero, ~o:mada por Sidon, Tiro e Arado, foi depois rele-
. ra 0 . 0 fe~zc~o arvâd =refúgio) era, naquela extensa costa de
areza, o U!tiCO p6rto prestdvel.
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69
templo de Hatxepsut, em Carnac, e o navio capaz de executar tal proeza embarcações faraônicas, não oferecem, em alto mar, os perigos de flexão que
deveria deslocar pelo menos 1.500 toneladas. É absolutamente incompreensí- davam tanta dor de cabeça aos engen~eiros navais do Egito. Amplos e largos,
vel como, em éJ?ocas tão remotas, foi possível construir uma embarcação de adaptam-se às ondas, mantendo-se aoma da água como se fôssem pedaços
madeira tão resistente, que não se desmoronasse sob o J?róprio pêso. de rôlha. Altas amuradas e~ forma de grades protegiam a trip,ulação das
Tivemos, obviamente, razões especiais para aqui mencwnarmos êsses dados on.da.s q~e se ~p~e?rasse~ sobre o barco, n~ proa e na pôpa parece terem
técnico-navais. As viagens para Punto, quer aceitemos êsse lugar como si- existido Já no miclO rudim~ntos de const_:uçao de convés. Assim, mesmo que
tuado no Zambeze, o que parece a solução mais provável, quer nos incline- os altos cadastes e a maneira de colocaçao ~o leme, a mastreação e os bar-
mos pela opinião antiga, de que se encontrava ao sul do Cabo Guardafui, na rotes do convés atravessando os costados, deixassem reconhecer a influência
atual Somália, constituíram feito tão notável que pressupõem uma arte de egípcia, evitaram os construtores fenícios as mais desastrosas desvantagens
construção naval altamente desenvolvida. Mas não são as únicas no gê- dos barcos daquela origem.
nero. Sabemos de há muito que os egípcios navegavam tanto sob bandeira ~rovàv~lm~n~e. passou apenas R_Ouco tempo antes que os engenheiros na-
própria quanto sob a de Creta, para a Espanha, em meados do terceiro mi- vais fenícws 1moassem a construçao de navws totalmente cobertos. Tais bar-
lêmo antes de nossa era, para participar do comércio do bronze e do estanho. cos, naturalmente, eram somente em parte apropriados à navegação a remo;
Da mesma maneira, os navios egípcios sempre voltavam a tocar as costas da
Grécia e da Fenícia. Principalmente a viagem à costa da Ásia Menor apre-
sentou-se, por assim dizer espontâneamente, de maneira a estarmos perfeita-
mente a par de suas condições. Como é sabido, predominam na costa egípcia,
no verão, ventos de sudoeste e sul, que levam os navios quase automàticamen-
te à Fenícia ou à Síria. Além disso, existe forte corrente em direção setentrio-
nal, ao lado da costa da Síria, de modo que não era difícil percorrer a
distância de cêrca de 300 milhas marítimas, da desembocadura do Nilo até
o pôrto de Biblos, na Fenícia Central, em quatro vêzes vinte e quatro horas.
A duração desta viagem corresponde a uma velocidade média de três a quatro
milhas horárias. A história das descobertas egípcias e fenícias, em virtude das
ligações que existiam também por terra, se bem que causadas quase sempre
por expedições bélicas, não demorou a confundir-se tão completamente, que
ambos os povos aparecem muitas vêzes juntos nos mares, sendo então impos-
sível distinguir quem iniciou e quem executou a expedição em aprêço. As
duas viagens, que teremos de aduzir aqui, antes de nos dedicarmos à época
verdadeiramente clássica da dominação dos mares pelos fenícios, foram sem
dúvida empreendidas por êste povo, com permissão e conhecimento dos
egípcios, ou mesmo a pedido dêstes.
No início de suas relações, os altamente civilizados egípcios tratavam seus
vizinhos fenícios - oriundos de tribo nômade do deserto, e que por iniciativa
própria não teriam alcançado nenhum êxito marítimo - com pronunciado
desprêzo. "Vis asiáticos", é como os denominam em documentos oficiais. "Ne- 16. Belonave fenícia. Séculos XI a VIII a. C.
fandos os lugares que habitam, impenetráveis em virtude das muitas árvores e
de água não potável. Também os caminhos são maus, em virtude das muitas
montanhas. Quase nunca permanecem no mesmo lu~r por muito tempo, E~~=is~~~agi~~r a luta que se. de~e ter travado nas emprêsas de construção
percorrendo ... " Mas a boa madeira de cedro, adquinda em Biblos para a das e b en~cia entre os partidános do barco misto, a vela e a remo e os
construção de barcos e caixões funéreos, destinados aos nobres do país do demamt ~rc~çoes a vela. De q~alquer maneira, sabemos que a tendênci~ mo-
Nilo e, finalmente, a adaptação às condições de vida na Fenícia, levaram ao narrar nun ou, e que os navws que realizaram as viagens que agora vamos
decréscimo das objeções críticas por parte dos marujos e comerciantes do ri·m ' eran: quase todos veleiros. Mediam trinta a quarenta metros de com-
P Oito a dez de 1argura, com um calado de cerca • · metros e
Egito. Por outro lado processou-se com extrema rapidez a aclimatização da- meio ento
T'~ de d01s
queles povos semíticos e nômades, - em tempos remotos impelidos por des- com ~m~ ve~r::· ~or~anto, um deslocamento de até quatrocentas toneladas,
conhecidos movimentos centro-asiáticos à costa oriental do Mediterrâneo. É aproxim d prmo.pal de t~ezentos metros quadrados e uma tripulação de
possível que inicialmente não ultrapassassem, culturalmente falando, os ha- grande a 1a~ente tr~nta marmheiros. Resistia-se à construção de barcos de
bitantes de Punto. Assim sendo, os J?rimeiros navios fenícios, de que temos naves d~a a ? nos Circulos culturais fenício-babilônicos e de fato não há
conhecimento graças a gravuras egípcias, evidenciam a sua dependência estru- vem ind·essed tipo' se d eixarmos
· .
de considerar a Arca de' Noé
' cujo 'tamanho
tural dos admirados modelos da terra do Nilo. Pouco a pouco, porém, obtêm do oue Ica 0 e~ textos babilônicos como sendo de 145 metr~s. Ao contrário
:> acontecia com 0 e , · · .
completa originalidade, e em breve os "barcos de Biblos", idealizados por fluviais extre s gipcws, CUJOS. reis gostavam de construir barcos
ros, pra as d mamente _espaçoso~, c?m mais. de. um convés, cozinhas, banhei-
construtores fenícios para os egípcios, se distinguem claramente das naves do
país ~as pirâmides. Vê-se que tais barcos são construídos para a navegação deirosJil e râcreaçao, dormitónos, refeitónos e salões de estar - verda-
agres a construção naval luxuosa, mesmo para nossas concepções
marítima e não para a fluvial. Mais curtos e "robustos" que as compridas
70 71
- li~itara m-se os fenícios a barcos de aplicação utilitária. É graças a tal mente por justificar-se e~tão a duração da viage~ de três anos, indicada
sobnedade s~gaz que devem ~e_r mencionados, mesmo hoje, com milhares de pela Bíblia. Massauá tena, de qualquer forma, sido alcançada em tempo
anos d~corndos, como participando do grupo dos grandes descobridores muito menor, nem tendo uma expedição para tal cidade causado a sensa-
e pesquisadores de nosso mundo. ção relatada pelo Velho Testamento por ocasião da visita da Rainha de
_Yer?ade é, porém, q~e a ocupação que lhes foi destinada pelo deus da Sabá. ·
históna é, antes de mais nada, comercial. Os fenícios exibiam as suas velas Até aí vai muito bem! Mas um fato dêsse velho relato aventureiro parece-
de preferência em_ m~res já con_hecidos. Não se aventuravam por águas es- nos muito estranho; referimo-nos às afirmações consoante as quais fenícios e
tranhas; e a admiraçao d~smedida que no tempo de nossos avós lhes era judeus agiram de comum acôrdo na expedição de Ofir, comandada por Sa-
devotada, traz qualquer coisa de exagerado. Mas o que conseguiram realizar lomão. Seria uma atitude contrária aos costumes das grandes casas comerciais
como homens do mar, para estender seu comércio, estabelecer monopólio e de Tiro e Sidon, empenhadas no sentido de manter secretas as descobertas
obter lucros, foi todavia grandioso. importantes para conservar o seu monopólio. O que poderia levar os fenícios
a divergir neste caso de tal princípio, consagrado pelo uso?
A explicação parece fácil. Como é sabido, casou-se o Rei Salomão (992 a
939 a. C.) com uma filha do faraó egípcio Psusennes Il, procurando assim
aliar-se ao Egito, que estava em pleno florescimento. Optou assim contra a
potência assíria, que Tiglatpileser (1116 até 1090) acabava de fundar. Salo-
3 mão era cônscio de que sua posição entre as potências mundiais, a Assíria no
leste e o Egito no oeste, oferecia grandes riscos. Não lhe basta o Egito, neces-
. Qui_nhentos anos depoi~ ?~ Hatxepsut, os fenícios começam a participar da sita de outros amigos; e, mantendo-se fiel às concepções políticas de seu pre-
h_Istóna das descobertas: Inicialmente nos caminhos já percorridos pelos egíp- decessor, o Rei Davi, procura aliar-se à Fenícia. Também as ricas firmas
W;>s, e certamente devido a conhecimentos obtidos dos senhores da terra do mundiais da pequena nação vizinha sentem que sua situação é crítica, entre
Nilo._ Desta _vez temos a Bíblia como testemunho. Trata-se da célebre viagem as duas grandes potências do hemisfério ocidental e oriental. Já cultivavam
a Ohr, realizada por Salomão, da qual ela assim fala no III Livro dos Reis, rel~ções de amizade com o Rei Davi, assim como com gregos e tartéssios. Mas
Cap. 9, 26-28; Cap. 10, 22: objetivamente considerando, Davi - que acabara de unificar o seu país, li-
gando a Judéia a Israel, - não era aliado muito forte.
"~quipou também o Rei Salomão uma frota em Asiongaber, que é perto de Aliat, na Era diferente a situação com Salomão? Bem, de qualquer maneira, como
prata do Mar Vermelho, na terra de Iduméia. genro d? faraó, era "persona grata" no Egito. Além disso, Psusennes conquis-
E Hir_ã o (~) mandou nesta frota alguns dos seus servos, homens marinheiros, entendidos tara a _cidade de Gezer, em Canaã, oferecendo-lha como uma espécie de dote.
em náutica, JUntamente com os servos de Salomão.
E êles, tendo chegado a Ofir, tomaram lá quatrocentos e vinte talentos de ouro e leva-
Mas amda deve haver mais. Salomão é um homem inteligente, e se agora
ram-nos ao Rei Salomão." ' pensa em uma "terceira fôrça" entre leste e oeste, tem em mãos sem dúvida
"~ois a frota do Rei. Salomão ia por mar com a frota de Hirão, uma vez cada três anos, a algum outro trunfo importante.
Tams, para trazer dali ouro e prata, e dentes de elefante, e bugios, e pavões."(••). Os fenícios acompanham apenas vagarosamente êsse jôgo diplomático.
Ag~ardam os acontecimentos. Rirão, seu rei, expede cartas muito amáveis,
Se êsse relato bíblico, que se encontra também em II Paralipômenos, Cap. en~Ia por vêzes embaixadas com ouro e púrpura, manda construtores e ar-
8, 17-18, 9uase ao pé da_ letra, corresponder à verdade, então se fizeram ao qu~tetos para a ereção do templo de Jerusalém - e acertadamente! Salomão
mar, , na ~poca . de Salomao, por volta ~e 945 a. C., judeus e fenícios, saindo baix~ ? seu tr~nfo; faz saber que conhece a localização de Punto, a fonte
do_porto Israeht_a do Mar Vermelho, ~swngab~r, a atual Aqaba, para atingir das x_numeras nquezas faraônicas, base de sua importância universal há tem-
Ohr, a terra sulma do ouro. De lá tenam trazido macacos e escravos marfim pos xmemoráveis. Afirma dispor também de um pôrto, Asiongaber, nó Mar
e pra!a e, além disso, 420 talentos de ouro. A duração da viagem t~ria sido V~rmelho, de o~de seria possível partir sem levantar suspeitas; mas não
de tres anos. dis(>unha de navws, nem tripulação. Portanto, propõe aos senhores de Tiro
Infelizmente não nos com,unica a _Bí?lia mais nada, trata?do-se, portanto, e Sidon qu~ participem da exploração. Garantia o negócio, no qual investia
de. teste:nunho ?~stante e~Iguo. Pr~nCipalme?te nada é dito com respeito se~ conhe~Imento de ca~sa, sabendo que em Punto existiam verdadeiras
à situaçao geografica ?e Ohr e, por _Isso - assim como ~ôbre a localização de ID_I~as au~Iferas, estabeleCidas por Ramsés III há cêrca de 200 anos: e os fe-
Punto - ave?tou-se toda sorte de hipóteses, supondo situar-se nos Mares do mnos ~enam de empenhar-se com barcos e marujos.
S~l e na índia! no P~ru e na_ República de São Domingos. Antigamente uma É__ evidente que não existem documentos a respeito dessas sugestões e sub-
hipótese pareci.a atrair espeCial atenção, a que transferia Ofir às proximida- sequentes conferências, mas devem ter-se processado desta forma ou de ma-
des de Massaua, _no Mar Vermelh<?, -~~_cuja hinterlândia, perto de Querém, nexra s~melhante. Os fenícios compreendiam naturalmente que só a primeira
se enco_ntram mmas de ?ur<? antiqmssu~as. E somente quando a situação ~ez _tenam de partilhar os seus lucros com os primos palestinenses. Depois po-
geográfica de Pu?to havia sido estabelecida com bom índice de probabili- er~m emprestar outra feição ao assunto, já que os habitantes de Canaã,
dade, c?mo pró?'Ima _a o Zambeze, também se esclareceu de alguma maneira con .~cedores apenas de terra firme, jamais conseguiriam ir a Punto sem
a questao de Ohr. P_ms a ~erra de ouro de Salomão, como já Kant suspeitava, auxi Io _de_ UJ?a potência marítima.
deve ser procurada mclusxve nas costas sulinas da Africa Oriental, principal- f S~ tais xdéias efetivamente moveram os espíritos - e já que o homem é,
un amentalmente pelo menos, o mesmo, dos primórdios dos tempos, julga-
C:? Re~ de Tiro, na Fenícia . - N. do T.
mos que foram êsses os argumentos levantados em Sidon e Tiro - elas se
C ) B1b!ia Sagrada, tradução do Pe. Matos Soares. Edições Melhoramentos. - N. do T.

72 73
realizaram plenamente. Pois quando os israelitas tentaram, cem anos depois
de Salomão, alcançar Ofir sem ajuda dos fenícios, romperam-se as embarca-
ções, construídas sob as ordens do Rei Josafá, logo ao saírem de seu pôrto.
Se os acontecimentos se deram realmente como opinamos, então encontramos
aqui também a explicação para o fato de os judeus não terem realizado ne-
nhuma outra viagem a Oflr. Quando os fenícios se viram inteirados do se-
grêdo tão almejado, não permitiram mais que os seus primos canaanenses par-
ticipassem de suas transações comerciais com a África Oriental. ~Ies mesmos,
provàvelmente, realizaram essas viagens a Ofir, durante séculos a fio, cons-
tituindo por isso opinião generalizada serem êles os construtores daquelas
tôrres poderosas, cujas ruínas foram encontradas na terra de Mascona, e
principalmente nos distritos de mineração de Guelo, Queque e Seluque, com
centro na imensa fortaleza de Simbabue.
Simbabue fica a 26 quilômetros ao sudeste de Vitória, na Rodésia do Sul,
a 450 quilômetros do mar, no vale do Mitequeque superior, um afluente do
Sabi, que leva até as proximidades da região aurífera. Forma aparentemente
o centro de uma região de um milhão de quilômetros quadrados, na qual
estão localizadas cêrca de quinhentas enigmáticas edificações antigas, geral-
mente tôrres de defesa, construídas em forma cônica, as quais têm paralelo
apenas nas Baleares e no Peru. Pois tanto aqui como lá foram essas curiosas 17. Modêlo reconstruído das fortificações de Simbabue. No fun.d~, à direita,
construções edificadas com pedra rochosa, separada em blocos por técnica uma das características tôrres de defesa em forma comca.
desconhecida e talhada tão maravilhosamente que os blocos ciclópicos se
órcades nas Hébridas e na Escócia, levantam-se tôrres paralelas, o que é,
como v~remos adiante, um fenômeno deveras singular.
Depois de os portuguêses terem desembarcado em Simbabue, em meados
do século XVIII, examinou em 1871 o explorador alemão Carl Mauch aquela
região, fazendo pouco após também Carl Peters os seus es~udos _na me~~a
zona. Ambos estão concordes em declarar que aquelas rumas sao femcw-
arcaicas, havendo a possibilidade de tratar-se da Ofir bíblica. Mas n.ão apre-
ROCÉSIA DO SUL sentaram provas concludentes. Depois dêles realizaram est':dos em Simbabu.e
inglêses, italianos, norte-americanos e mais uma vez alemaes, .entre o~ quais
ressalta Leo Frobenius. Todos êsses arqueólogos e geógrafos deixaram Impres-
sionar-se profundamente pelos muros ciclópicos lá encontrados, e me~mo no
"South and East African Year Book and Guide", obra oficial da Umão Sul-
Africana para consultas e informações, notamos nas entrelinhas algo dessa
emoção:
"Não há dúvida que Simbabue era conhecida pelos portuguêses desde meados do século
~ezoito, ou mesmo desde épocas anteriores. Mas nenhum dos túmulos e~co~trados, nenhuma
mscrição, permite superar a dificuldade do reconhecimento da verdadeua 1dade das ruínas.
O muro principal media dez metros de altura em alguns lug~res. Na base, sua espessura
era de cêrca de três metros e trinta centímetros e no cume de dms metros e dez centímetros.
O edifício central estava cercado de muros, servindo certamente como cerne ou refúgio na
fortaleza.
De acôrdo com seu estado atual, parecem as ruínas. divididas .em três grupos, mas for-
zs· ~avam, provàvelmente, todos juntos, um só estabelecimento, CUJO centro era a. chamada
adadela. A sua circunferência total chega a três quilômetros, e a largura a mll e nove-
centos metros. Restos dos muros, entretanto, alguns dos quais profundamente enterrados,
foram encontrados em vales e elevações a dois ou três quilômetros da região.
IV. A posição de Simbabue. Como sói acontecer com outros edifícios encontrados no Oriente, parece que êstes esta:
vam. relacionados por alguma grandeza matemática. Recorrendo a métodos de cálculo, f~1
adaptaram uns aos outros perfeitamente e sem necessidade de cimento algum. poss1vel esboçar a construção, como deve ter sido, e fechar muitas das lacu~as do conhea-
mento de então. Argamassa não fôra usada na construção, tendo as pedras s1do desbastadas
Essas construções, chamadas "suragas" na Sardenha, originaram-se provàvel- ~ ~a.rtel~ e adaptadas umas às outras. Entre as ruínas foram descobertas al~umas peças
mente entre os etruscos. Seria po~ível admitir a influência etrusca em Sim- lD~vtdua1s, entre as quais estatuetas de Astarté ou Vênus, em forma de falcao, símbolos
?abue, através dos egípcios. Mas relacioná-Ia desta forma com o Peru parece fáticos de vários tamanhos, taças, jóias, etc. As melhores coleções de tais peças encontram-se
Impossível pelo menos à primeira vista. E também nas ilhas de Shetland e em Bulawayo e na Cidade do Cabo."

74 75
Até aí o "S. & E. A. Year Book" de 1938. É evidente que seus autores pen-
saram em uma origem egípcio-fenícia das ruínas de Simbabue e dos grandes
edifícios sem argamassa. Também o achado de estátuas divinas em forma de
falcão torna possível tal teoria. Mas os achados individuais não parecem
comprovar suficientemente essa possibilidade, e foram principalmente arqueó-
logos alemães que verificaram a burla de tôdas as chamadas "antiguidades
egípcias ou fenícias" nesse terreno. Ainda falta um trabalho sistemático de
escavação, ~ despeito de o distrito de Simbabue ser fàcilmente alcançável em
boas rodovias e de se poderem contemplar as ruínas dos estabelecimentos e
das tôrres do "Great Zimbabwe Hotel".
Para quem, como nós, está livre de tôdas as influências e por isso capaci-
tado a seguir as divergências de opinião a respeito de Simbabue sem precon-
ceitos, parece bastante cabível a suposição de que os donos das minas mile-
nares da ~erra de Mascona, tenham erigido um sistema de fortalezas, agrupa-
das em torno de um enorme castelo central. O ouro era metal demasiado
a~r_aente e u~ grupo de ladrões que conhecesse os misteres da navegação ma-
ntim~, podena certamente lançar ataques bem sucedidos e lucrativos, através
dos no~, que levavam até o ~oc~l - ~ Sabi. e o Mitequequ~. Tal possibilidade
talvez p preocupasse os egipcws e mdubitàvelmente mais tarde os fenícios,
que certamente não _s~ contentar3;m com aquela e!pedição da qual já ouvimos
f~!.lar e de_ que particip~~am os JUdeus. A. questao de como impedir que es-
tranhos VIes_se~ a partiCipar do monopól~o aurífero africano, deveria preo- V. R otas comerciais de civilizações prato-históricas.
cupá-los _pr~n~Ipalmente por terem colhido, êles mesmos, o proveito da
exploraçao Imoa?a por ou~ros. É verdade que também essa conclusão lógica certeza disso, devendo restringir-nos a suposições, apoiadas porém p ela tes~
nada prova, contmuando Simbabue por enquanto um dos enigmas cuja solu- de que, para embarcações de tais tempos, a passagem do Canal de Moçambi-
ção ainda nos é devida pela Arqueologia. que, aquela rota entre Madagáscar e a África Oriental, teria sido quase
impossível, em virtude das fortes correntezas setentrionais. Quem uma vez
passasse êsse canal, sito imediatamente ao sul de Zambeze, não voltaria pelo
mesmo caminho. Tentaria, sem dúvida, percorrer as costas que se estendem
por cêrca de quinze mil quilômetros, até a desembocadura do Nilo. Muito
se duvidou do comentário de Heródoto a respeito da explicação do Faraó
4 Neco. Eis um trecho dêsse comentário:
"Já a forma da Líbia (África) comprova que, excetuando-se a parte limítrofe com a Ásia,
Resumindo as conclusões a que chegamos com a leitura do presente capí- ela é circundada pelo mar. Isto foi, ao que eu saiba, provado pela primeira vez pelo Faraó
tulo, poderemos voltar a afirmar que extensas viagens não estão sendo levadas Neco, do Egito. Pois quando suspendeu as obras do canal, que deveria ligar o Nil<? ao Mar
a cabo apenas em nossa época. Assim como se viajava de Creta a Tartesso Vermelho, aprestou uma expedição, dando-lhe ordens para, após contornar a Líb1a, _voltar
e de lá às Ilhas Britânicas, ou do Mar Negro à Samlândia, da mesma maneira por entre as Colunas de Hércules (Estreito de Gibraltar), até ao Mediterrâneo e ass1m al-
pela qual entre as desembocaduras do Ródano e do Elba e entre a Jutlândia cançar o Egito. Os egipcios fizeram-se ao mar e, deixando o Oceano indico, velejaram pelo
e o Adriát~c? .se estendia verdadeira rêde de comunicações, assini também Mar do Sul. Quando o outono os alcan çou, desembarcaram em terra firme, cultivaram os
campos ~ aguardaram a colheita, onde quer que se encontrassem na Líbia. Depois de colhidos
houve poSSibilidades de tráfego em outras partes da Terra e sôbre distâncias os cerea1s, prosseguiram viagem até que, dois anos mais tarde, atravessaram as Colunas de
ainda maiores. O indivíduo da Antiguidade Primitiva era, aparentemente, Hércules e regressaram assim, no terceiro ano, ao Egito. Contaram êsses marujos - o que
bem mais temerário que aquêle da Antiguidade Clássica e não se deixava e!ltretanto não me merece crédito, se bem que outros tenham acreditado - que durante a
atemorizar pela extensão das viagens, porque nada sabia da extensão do Circunavegação da Llbia, viram o Sol do lado direito."
mundo. Não conhec~a aquêle mêdo que provém da razão e que, aparente-
~ente, é companheiro da cultura e punição divina à curiosidade inves- As_ duas partes mais impressionantes dêsse trecho encontram-se no início e
tigadora do ser humano. no hm, referindo-se à posição geográfica da África, a qual, como Heródoto
Tudo iss_o faz com que possamos compreender como um dos maiores feitos bem sabe, é circundada pelo mar. Depois dêle se desvaneceu êste conhecimen-
d~ _?escob,n_men~o ?a História Antiga, a circunavegação da Africa por expe-
to, ~ de maneira tão completa que Cláudio Ptolomeu, o maior geógrafo e
diçao ~emcw-egipoa, na época de Neco 11 do Egito (609 a 594 a. C.), tenha astronomo da Antiguidade Clássica, chegou a ensinar, por volta de 150 de
0 ?Ssa era, que o Oceano fndico era um mar interior, pois que a África se
postenormente caído em completo olvido. E isso apesar dessa viagem, a que
v~rava para o leste, existindo entre ela e o Extremo Onente uma comunica-
se re_fere He;ód?to cento e cinqüenta anos depois de efetuada, nem parecer çao terrestre. E isso embora Ptolomeu vivesse em Alexandria, no país cujo
ter Sido a pnmeira no gênero. É possível que já os navegadores de Hatxepsut,
em demanda de Punto, tenham realizado tão extraordinário feito. Não temos 77
76
soberano, não muitos séculos antes, verificara a possibilidade de contornar a êste desaparecimento, sem gue fôss_e possível reconhecer u_ma subjugação
êste continente por via marítima. Mas disso não ouvira boatos nem recebera pelo inimigo - o qual podena ter sido, por exemplo, o Egito - sao fatos
notícias; e foi apenas em 1478, quando os portuguêses foram bem sucedidos enigmáticos, se bem que recentemente a Oceanografia tenha feito progressos
em alcançar o Cabo da Boa Es~;>erança, que se evidenciou o êrro de Ptolomeu. nesse terreno. Pois quando, em 1947, uma expedição sueca retirou provas do
Mas o responsável por tudo ISSO não é tanto Ptolomeu quanto o próprio solo do Mediterrâneo oriental, verificou que entre sedimento& submarinos, se
Heró~o~o, por culpa. da parte final de seu. comentário! no qual afirma que a
encontravam extensas camadas de cinza vulcânica, procedentes - como re-
expediçao de Neco tivera, durante o contorno da Afnca, o Sol à sua direita. velou a análise química - do vulcão Santorim, da Ilha de Tera, no Mar
Para sêres que viviam ao norte do equador, isto necessàriamente soaria como Egeu, ali depositadas entre 1400 e 1500 a. C.
mentira pura e premeditada, e o próprio Heródoto - vê-se isto pelo modo
com que descreve êsses fatos - envergonhava-se da transcrição de tal boato.
Mas, tomando muito a sério a sua função de historiógrafo, comunica também
o que ~onsidera _invenção pura. Justa~ente essa observação,. que tornou o
re~ato tao fantástico para o mundo antigo, provou que o contmente africano Cabo Mowropetro
foi realmente circundado por alguns capitães corajosos em épocas distantes.
Certamente aconteceu com essa viagem o q_ue temos de lamentar também
com muitas outras: foi realizada cedo demais, e seu significado não pôde
ser compreendido. Por isso não temos idéia nenhuma a respeito dos propósi-
tos de Neco ao ordenar essa expedição. Era um homem de iniciativa, o que
se prova também por sua tentativa de construção de um canal, de Budastis,
no delta superior do Nilo, ao Mar Vermelho. É verdade que teve de desistir
da idéia, não por causa das cento e vinte mil vidas humanas que, segundo
consta, custou o empreendimento gigantesco, mas por ter sido informado pelo
oráculo que assim estava auxiliando os persas, que realmente concluíram a
construção cem anos mais tarde, sob as ordens de Dario I. Devemos observar,
a esta altura, que a história sangrenta do Canal de Suez principiara já antes
de ~eco. No Oriente Médio havia sido construída uma ligação de águas entre
o Nilo e o Mar Vermelho- teremos de escrever mais tarde a história dos pre-
decessores do Canal de Suez- de forma que aqui Neco prosseguia apenas em
uma velha tradição. Abre isso a possibilidade psicológica de que também sua
expedição africana era nada mais que repetição de empreendimentos antigos, Aspronisi
seguindo a tradição com a finalidade de aumentar a fama do faraó. E o
modo com que Heródoto formulou o pensamento, dizendo que Neco "deu
ordens para, contornando a Líbia, cruzar as Colunas de Hércules", soa como
se no Egito se tivesse conhecimento da ligação entre os Oceanos fndico e
Atlântico, e como se a viagem egípcio-fenícia tivesse meramente tido a finali-
dade de confirmar tais notícias. De qualquer modo, faz o relato de Heródoto
crer que Neco sr;bia que o retôrno de seus navios podia ser aguardado apenas
do oeste. Por mcrível que tudo isso pareça, nada há que invalide essas
teorias. --r
Cabo Exomyto
o 5
km

VI. A Ilha de Tera, com o Santorim.


5

Com o at_e stado bíblico da ;iagem a Ofir, e~preendida por Salomão, e t São t~o volumosas as quantidades de cinza ali depositadas, que se julga
o comentá~10 de Heródoto sobre o empreendimento africano de Neco, erem Sido resultantes de horrível catástrofe E se bem que Tera ficasse a
temos as pnmeiras documentações escritas da importância que o povo semita uns cem quilômetros de Creta, é evidente q. ue essa erupção deve ter sido
dos fenícws havia conquistado entrementes, principalmente no que concerne ed e f cons eq~encias
.. • · funestas para a rica e florescente ilha. De tal modo ficou
à_ naveg~~ão e tráfego mun~ial. De sua ascensão yagarosa para grande potên- !1 raquecida, que teve de ceder o lugar de sua primazia marítima aos fení-
Cios, povo em plena ascensão.
cia mantima quase nada exrste documentado. F01 por volta do século quinze
antes de nossa era que passou a ocupar o lugar dos creterises, que repentina- res~r~çJs aos resultado~ dessas pesquisas suecas, assumiram feição diferente os
mente desaparecem do cenário mundial. Por quê, quais a:s razões que levaram a os das escavaçoes de uma expedição geológica alemã. Os membros

78 79
dessa expedição, já em fins do século passado, estiveram em Tera, onde en-
contraram sob o entulho vulcânico uma espécie de Pompéia grega, uma
cidade bem conservada, com templos e quartéis, escolas e campos esportivos,
ruas e casas particulares. Já então se supunha que a erupção do vulcão sub-
marino Santorim tivesse tido conseqüências semelhantes àquelas provocadas
pelo vulcão indonês Cracatoa que na manhã do dia 27 de agôsto de 1883
pulverizou cinqüenta quilômetros cúbicos de rocha e terra. Mas a suposição
foi confirmada apenas quando se tornaram públicos os resultados das pes-
quisas oceanográficas daquela expedição sueca de 1947. Hoje sabemos que
a catástrofe de Tera por volta de 1500 a. C. deve ter sido a maior que atingiu
a humanidade desde a última época glaciária.
Se assim fôsse, deduzia-se então, deveriam existir algumas indicações de tal
fato nas fontes prato-históricas do Oriente Próximo. A pesquisa de tais fontes
foi feita cuidadosamente, e alguns comprovantes para tai teoria foram en-
contrados. O primeiro a apoiar essa teoria foi, há cêrca de quinze anos, o
sábio holandês J. Schoo, que evidenciou em um estudo que a lenda helena-
arcaica do gigante Talos se referia provàvelmente ao Santorim. Seguiu-se-lhe
o geógrafo alemão Richard Hennig que, partindo das interessantes investiga-
ções de Everhard Stechow, expressou a opinião de a lenda grega de Deuca-
lião, com suas menções de um terrível diluvio não ser mais que uma recorda-
ção velada, em forma de mito, das tremendas inundações que atingiram as
costas da Grécia depois da catástrofe de Tera. Como terceiro, apareceu recen-
temente o jornalista norte-americano Velikovsky, o qual após o exame de
fontes egípcias, babilônicas e judaicas, asseverou que o terrível acontecimento,
transmitido por documentos antigos, provinha do choque com enorme cometa.
Já não é questão, mas um fato estabelecido, que a Terra recebe dia por dia
visitas mais ou menos perceptíveis do espaço. Verdadeira chuva de meteori-
tos desaba continuamente sôbre o nosso planêta, e algumas dessas bombas
cósmicas abriram enormes buracos na crosta da mãe-terra; assim, por exem-
plo, o meteoro da Sibéria, pesando mais de meio milhão de toneladas, caído
no dia 30 de junho de 1908 ao norte de Kansk, estação da ferrovia sibérica,
devastando uma região de oito mil quilômetros quadrados, ou o meteoro de
"Coon Butla" no "Diablo Cafion", Arizona, que abriu uma cratera de 185
metros de profundidade e quatro quilômetros de circunfêrencia.
Mas essas superbombas constituíram para a Terra apenas arranhão muito
leve de sua epiderme. Se o choque com o cometa gigantesco, a que se refere
Velikovsky, se tivesse realmente registrado, incomensuráveis conseqüências
teriam surgido para todo o nosso t>lanêta. Não apenas os mares, mas também
as massas de magma em brasa, do mterior da Terra, teriam sido movidas pela
fôrça de atração do corpo estranho. Elas teriam encontrado enormes cadeias
de montanhas irrompendo da mais profunda garganta do inferno, correntes
teriam inundado a superfície terrestre como maré incandescente. Velikovsky
sabe disso muito bem, assim como sabe que tôda a humanidade se recordaria
de catástrofe de tal envergadura, principalmente em se tratando de uma época
(1500 a. C.) a respeito da qual possuímos boa documentação. Tal lembrança
não existe, contudo, embora Velikovsky se esforce por fazer-nos crer em sua
existência. Recorre, diante dessa dificudade, a um artifício especial: fala de
uma "perda coletiva" de memória, comportando-se a humanidade, como um
todo, de maneira exatamente igual ao indivíduo isolado, que "expele as recor-
dações penosas". Segundo êle, o mundo teria desejado e conseguido esquecer
os horríveis eventos de 1500 a. C.
Ouvir tais afirmações pode ser divertido. Mas, afinal, reconhecemos ser a
"perda coletiva de memória" uma explicação bem pouco satisfatória e, antes
de mais nada, não há necessidade de cometas gigantescos para decifrar descri-
80 ~ifgantescas
0
velas triangulares levam os barcos silenciosament e através das águas, de Cairo a
ala e de lan zibar a Bombaim . São "dhaus" árabes, singrando os oceanos impelidas pelas
monções. Na fotografia , 11111 modenw bm·co de carga, no Nilo .
ões de catástrofes semíticas. Chegamos ao mesmo resultado se levarmos em
~nta um terremoto de natureza vulcânica, principalmente um terremoto tão
violento quanto o causado pelo Santorim.
o que é que informam os antigos a .êsse respeito? Consultando a Bíl;>lia, onde
fala das pragas no Egito, -yeren:os que a um. núme:o de acontecir;nen!os le~­
dários aí descritos, como mvasoes de mosqmtos, ras e outros amma1s dam-
nhos, segue um relato (~xodo, Cap. IX, 18-19) que prende nossa atenção.
Deus diz a Moisés:
"Eis que amanhã, a esta mesma hora, farei chover granizo abundantíssimo,
qual não se viu nunca no Egito ... ".
" ... porque os homens e os animais e todo o que se achar fora, e não estiver
recolhido dos campos e cair sôbre êles o granizo, morrerão."("').
E realmente registra-se, vinte e quatro horas depois, um acontecimento que
Lutero interpreta e como sendo granizo: "O Senhor fêz com que trovejasse
e o granizo se precipitasse e o fogo desabasse sôbre a terra".
Consideremos o Santorim. O que é que realmente aconteceu? Por volta de
1500 a. C. registra-se uma erupção, evento freqüente em Tera, sendo o mais re-
cente o de 1926. Naquela ocasião, porém, abriram-se largas brechas junto ao
nível do mar, e, através das mesmas, milhões de toneladas de água se preci-
pitam sôbre as massas de lava, procedentes das profundezas. Em contato com
o imenso calor, transforma-se êste dilúvio, dentro de fração de segundo, em
vapor, registrando-se verdadeira explosão. O Santorim voa pelos ares, levan-
do consigo, até uma profundeza de quatrocentos metros e um diâmetro de
trinta e cinco quilômetros, tudo que se lhe depara: sêres humanos, casas,
terras, areia e rochedos. E, pouco mais tarde, cento e trinta quilômetros
cúbicos de fragmentos de rochedos em brasa descem sôbre a terra, como se
fôssem imensa chuva de granizo.
A distância da Ilha de Tera até as costas do Egito é de cêrca de setecentos
quilômetros. Será possível provar-se que produtos de erupções vulcânicas
possam cobrir essa distância? Sim, pois que nas explosões muito menos in-
te_nsas do Cracatoa eram êles impelidos até dois mil quilômetros! Portanto,
nao é apenas provável, mas é certo que o Egito recebeu boa parte da saraiva
de pedras que desabou sôbre os países do Mediterrâneo Oriental após a
ca~ástrofe do Santorim: chuva de brasas, de tal maneira que Moisés pudesse
~firmar com razão que "o fogo havia sido despejado sôbre a terra". Todos
esses. acontecimentos foram acompanhados por pesados trovões. Quase con-
comaa_ntemente à caída das dejeções vulcânicas, o tremendo estrondo da
explos.ao fêz-se ouvir. A tal distância? Certamente, pois a explosão do Craca-
toa pode. ser ouvida em Madagáscar, a cinco mil quilômetros do local, e
Auan~o, 1rrompeu, em princípios de abril de 1815, o vulcão Temboro, no
1
d erq~ P_;la~o de Sonda, o estrépito repercutiu-se a mil e setecentos quilômetros
distanCia.
d Outra praga de interêsse nestas condições é a célebre "escuridão egípcia",
\:qual também fala Moisés. "Durante três dias uma escuridão envolveu
~ gito, de tal modo que ninguém podia ver o seu semelhante n em se levao-
ar do lugar em que se encontrava." Existe relação entre êste acontecimento
~a catástrofe de Tera? Indubitàvelmente. Quando, aos 17 de junho de 1912,
~rrompeu o vulcão Catmai, no Alasca, alcançou uma distância de várias cen-
t~na~
0
de quilômetros o pó das matérias vulcânicas expelidas, e apresentava-se
a enso que mesmo durante o dia não era possível enxergar uma lâmpada

On da de mm·emoto . A pm·ede de água de doze m etros de altura que se aproxima da costa


--
ucesa manti~a à distância de um braço. Em Djod jacarta, na Indonésia, sob

6
m sol tropical, a quase novecentos quilômetros de Temboro, "a mais pro-
(') Bíblia Sag ra da, tradução do Pe. Matos Soares. Edições Melhoramentos. -

Conquisto Mundo
N. do T.

81
furi osamente, desenvo lve uma ve locidade de 60 quilômetros por hora. Por v olta de 1500 a. C.
C1·eta foi destruída, p,-ovàve lm ente, por ondas dessa natureza, provocadas pelo vulcão Sant 01·im,
em Tera.
funda noite desceu sôbre a cidade", algum tempo depois de ter iniciado sua
erupção aquêle vulcão desconhecido e longínquo. Quando o Cracatoa explo- de horríveis monstros, eternas calmarias marítimas, ~randes massas de sarga-
diu, o Sol desapareceu numa área de cêrca de quatrocentos mil quilômetros ço, etc., ao que não podemos dar ~ualquer crédrto. Mas dêle podemos
quadrados. E, como é sabido, Plínio, falando do Vesúvio, comparativamente concluir quais as notícias que os femcios faziam circular, no propósito de
inofensivo, e sua erupção de 24 de agôsto de 79, relatou que em Miseno, no atemorizar quaisquer outros navegantes para as Ilhas Britânicas. De qualquer
outro lado do Gôlfo de Nápoles, havia reinado tal escuridão, como numa casa maneira, parece a expedição ter sido coroada de êxito, já que os fenícios con-
de venezianas fechadas e luzes extintas. tinuavam tais viagens até o segundo século antes de nossa era.
Parece evidente que acontecimento de tal porte tenha chamado a atenção O verdadeiro motivo para a ocupação da Espanha Meridional, assim como
dos contemporâneos da catástrofe do Santorim. Não apenas temos n'otícias para o fechamento do estreito marítimo deve ter sido porém, conforme já
disso nos livros da Antiguidade, mas parece também que o êxodo dos judeus esclarecemos no capítulo anterior, a conquista do sul e o fato de existirem
do Egito está em relação direta com a punição divma, que a erupção do nas Ilhas Canárias e na Madeira valiosas matérias corantes, inexistentes na
Santorim fêz descer sôbre a terra. De qualquer maneira é tão lógica a se- reg~ão do Mediterrâneo. Pois a indústria fenícia, e mais tarde a púnico-car-
qüência dos acontecimentos - o granizo de brasa, o trovejar de Deus, a tagmesa, fundamentava-se, ao lado da fabricação de vidro e uma altamente
escuridão dos infernos que envolveu o mundo - e tão imperativo o preen- de~nvolvida arte ?e ourives~ria, na produção da célebre púrpura tírica, pos-
chimento das lacunas através de documentação contemporânea de outros smdora de um bnlho espeCialmente soberbo e cálido. É significativo que a
povos, falando de terrível ventania e grande enchente, que quase não resta palavra grega "phoinix" signifique não apenas "fenício" mas também "côr
outra alternativa do que relacionar tais acontecimentos à explosão do San- purpúrea". Inicialmente os químicos de Tiro utilizavam ~om certeza o sumo
torim. do caracol purpúreo, com o qual também os helenos tingiam as suas fa-
Repetimos: tudo são hipóteses, com que tentamos explicar o desapareci- zendas.
mento repentino e misterioso de Creta como potência marítima. Não sabe- Mas ês~e método, além de muito complicado, era muito dispendioso para
mos se outros eventos contribuíram de forma decisiva. Mas, de qualquer a produçao, ~m grande escala. ~ada concha rendia apenas poucas gotas de
maneira, mesmo aqui, no reino das hipóteses, não cabem as afirmações de sumo colonfrco. í.sse produto tmha de ser engrossado, mediante a aplicação
Velikovsky. d~, val?ore~, em 1 f 16 de seu volume. Além disso fazia-se necessária a exata vi-
Com o desaparecimento de Creta há lugar para o advento de outros povos gtl~ncra so?re o pr~:>cesso de tingidura, para que sempre fôsse mantido o
marítimos. E Já que os hititas, dominadores da Síria até êsse período, perdem ef~tto deseJa?o. :or~ o sumo do caracol purpúreo é, na origem, de côr
pela mesma época seu lugar de preeminência, enquanto que, por outro lado, le~tosa.: Sob mfluenoa da luz, converte-se em amarelo-limão, para, com ilu-
o Egito se encontra extremamente atribulado com a guerra dos hicsos, ~maçao prolongada, tornar-se sucessivamente amarelo-esverdeado, verde,
revela-se essa lacuna primeiramente na costa oriental do Mediterrâneo. A v~oleta e verm~lho. Conforme o tempo de exposição à luz, surgiram os mais
Fenícia sente sua hora chegada, e não titubeia em cumprir o seu destino. drferentes matrzes de coloração, até atingir uma côr purpúrea quase negra.
Vagarosamente penetram os fenícios pelo oeste afora. Passam as ilhas gre- Ã- d~ entender-se, portanto, que a púrpura fenícia fôsse imensamente cara.
gas, onde instalam bases comerciais, passam Malta, a Sicília e a Sardenha que
colonizam, e dirigem-se para o centro do comércio do bronze. Já no século
t· a por volta de 300 de nossa era (tratava-se porém de uma era inflacio-
n, na), pagava-se por uma libra de sêda purpúrea a famosa "metaxa blatta"
XII, pouco depois de fundada Tartesso, estabeleceram a cidade de Gades cerca b de 1 mr'lh-ao e mero · de cruzerros.
· E desde ' que em Roma, como aliás'
(hoje Cádis), criando assim conscientemente uma concorrência em lugar tão ~~m ém n<? resto do mundo, todos os emblemas distintivos de cargos elevados
favorável, que tem podido subsistir a tôdas as mudanças - uma das mais f~s~II?- teodos com fazenda purpúrea - as listas vermelhas nas calças dos
antigas cidades européias. Na margem oposta, na África, foram estabelecidas, 0
tcrats do estado-maior recordam, ainda hoje essa tradição - somas tão
pouco mais tarde, como bases para os marujos fenícios que navegassem para tremendas
a . d eram
. rea 1mente pagas. M as é evtdente
· ' que o método de produção
a África do Norte ou cursassem o Atlântico, a cidade de Tinjis, atual Tânger, c~~~a . escrito poderia s~r. seguido apenas na indústria familiar, na qual os
e Lixus, na costa atlântica marroquina. Por volta de 1000 a.C. foi fundada a u fciii?-entos se transmrttam de geração para geração. Para fábricas como
útica, a Hanchir-Bou-Chateur dos nossos dias, perto de Túnis e duzentos anos i~; as_ mstaladas pelos fenícios, êsse processo não tinha valor algum' Cada
depois, ao sudeste de útica, a mais progressista das colônias fenícias, Cartago gid ustna necessitaria de milhões de caracóis para um único processo de tio-
(Cidade Nova), cuja data de fundação convencionou-se ser considerada 814
a. C. Com tais colonizações fortes e numerosas, haviam os fenícios criado ser ~~iiJo~ur:ca era certo se, na. ve~ próxi~a,_ o 11?-esmo tom_ de côr poderia
matéri Ltgava-se, porém, mmta Importanoa a ISSO, em Trro, e uma nova
postos para seu ataque contra a parte oriental do Oceano Atlântico. - a co~a?~e era, portanto, de significação nacional.
Por volta de 530 a. C. segue-se o golpe principal dos fenícios, desferido com N ao é drftcll imagin - f'OI· provocad a na Femcta
' · quando se
a rapidíssima ocupação da Espanha Meridional por Cartago, que já men- soube d0 d . ar qu~ emoçao
cionamos. Naturalmente, um dos incentivos para a conquista foi a idéia de dament escobnmento das Ilhas do Atlântico. Lá existia a matéria tão àvi-
vir a controlar o comércio com as Ilhas Britânicas. Os diplomatas cartagineses rial e e1 fro~~rada por Tiro, a "roccella tinctoria", a urzela ou líquen tinto-
ressaltaram êsse propósito de sua política externa, ao enviar para os seten· exc~len~e ~ Isso 0 , dragoeir<?, cuja resina muito vermelha também fornecia
trionais países do estanho, poucos anos depois (por volta de 525 a. C.), um famosa á r purpure~, e CUJO representante máximo, extinto em 1868 - a
de seus homens mais capazes, o Almirante Himilco, comandando respeitável anos de -~~e-do-dragao, de Oratava, em Tenerife - teria atingido seis mil
frota. Não chegaram até nós as informações a respeito dos sucessos da missão maior · I a e: ~at~ralmente eram essas duas matérias-primas de corantes da
do Almirante, apenas existe um poema romano de viagem, composto nove· isso 0 Importa~cta mdustrial e comercial para a Fenícia, e provàvelmente foí
centos anos mais tarde, baseado provàvelmente no relato original e que fala seu imqéue. mats tarde levou Cartago a incluir a Madeira e as Canárias em
p no.
82
83
Simples derivados da anilina bastam à química moderna para a produção zo·w 60 '
de brilhantes côres purpúreas, e sob os céus cinzentos da Europa Central não 40.
somos capazes de compreender a atração irresistível que sôbre o homem an-
tigo exerciam essas côres violentas. Mas, quando os fenícios lançaram pela
primeira vez aos mercados a sua púrpura das Canárias, a indústria grega deve
ter sofrido rude golpe. Certamente não cessou ela de formar conjeturas sôbre
o fato, mas mesmo assim só muito posteriormente foi o mundo antigo capaz
de resolver o mistério da púrpura de Tiro. Apesar de tudo, porém, boatos
sôbre algumas ricas ilhas do Atlântico chegaram até a Hélade. Teremos de
voltar a êsse assunto, limitando-nos por ora a uma tese, apresentada há
decênios pela Geografia, e de acôrdo com a qual as famosas "Ilhas dos Bem-
Aventurados", as "Nêsoi Macáron" da mitologia grega, nada mais são que
as ilhas da Fenícia Antiga, as ilhas de Macar, do deus local Melcart, preferido
em Tiro. Descobertas geográficas, tão importantes . como essas, são impos-
síveis de se manterem em segrêdo.
Quase concomitantemente ao envio de Himilco às Ilhas Britânicas, por
volta de 530 a. C., foi empreendida uma segunda e ainda maior expedição o
naval cartaginesa, sob o comando do Almirante Hano, parente próximo de
Himilco, e cuja realização prova a importância que os púnicos atribuíam
às ilhas do Atlântico. Segundo os dizeres de comunicado sôbre essa expedição,
cuja tradução defeituosa e, ademais, incompleta para o grego pode ser en-
contrada, tinha a viagem o propósito de estabelecer colônias ao longo da '
costa ocidental africana, até a altura das Ilhas Canárias. Isto sem dúvida com ''
I

o fito de assegurar o caminho marítimo às ilhas do Atlântico, tanto em di- 20'S I


I

~~
reção ao continente quanto em consideração da ajuda e do apoio que os I
I
estabelecimentos costeiros poderiam prestar às embarcações. A expedição de I
I

Hano compunha-se de sessenta barcos, impelidos cada um por cinqüenta '


I
I
remadores, sendo que ela compreendia três mil homens e mulheres, a ali- •
I

mentação necessária para tão numerosas pessoas e, principalmente, tudo aqui- \ ' . __ _
lo indispensável para o estabelecimento de colônias.
tste propósito de viagem de Hano parece ter sido integralmente cumprido. 40" t- 1500km --·-Neco (cêrco de 600). .... . Hono (cêrco de 50u o . C 1
Foram criados seis estabelecimentos cujos nomes são mencionados, situando-
se o mais meridional presumivelmente no Cabo Juby, bem à altura das
Canárias. É curioso notar, porém, que isto não bastou a Hano, e que êle, VII. As viagens africanas de Neco e Hano .
em vez de retornar, prosseguiu viagem para o sul. Houve quem aventasse
a suposição de que êle, inspirado pela circunavegação da África pelo Faraó D.e preendemos da observação referente ao fogo que "parecia chegar ate' as
Neco, realizada sessenta anos antes, tivesse tencionado contornar também estre 1as" ' ~am
· d o d e um alto monte, que se tratava de um vulcão. E uma vez
o continente negro. Mas não há provas para tal ponto de vista, pois não se qt~e em toda a extensão da costa ocidental africana não existe outro vulcão
conhece ao certo sua rota, se bem que se saiba ter êle alcançado o Monte a Ivo ou que tive sse SI'd o ativo
m · em epoca
, ·
geologicamente recente, nem outra
Camerum. Aí chegado, foi a viagem interrompida, por falta de alimentação. ontanha realmente elevada, deve o "carro divino" dos fenícios ter sido o
O próprio Hano assim se manifesta a êsse respeito: cume
che ouvulcânico d 0 M. on t e C amerum, que se eleva a quatro mil metros. Hano
"Viajáramos durante quatro dias, e durante tôdas as noites víamos a terra coberta de
quJ• ' por consegumte, até quase o equador, perfazendo cêrca de dez mil
chamas; no centro destas havia um fogo muito alto, sobressaindo entre as demais chamas, cujaometr~s:. contando todos os rodeios, um feito deveras extraordinário, para
e que parecia chegar até as estrêlas. De dia vimos tratar-se de um monte muito elevado, • ~epetiçao os portuguêses necessitariam, dois mil anos depois quase sete
de cenws.
que chamamos de "carro divino" (O Monte Camerum). Quando velejamos durante três dias '
ao longo de correntes de fogo, chegamos a uma enseada chamada "Ponta do Sul". Em seu
interior havia uma ilha; nela, um lago e neste, outra ilha, habitada por numerosos selva- "g~~Waf.~e ser con~iderado definitivo nos dias de hoje. Mas a passagem dos
gens. A maioria eram mulheres, de corpo áspero e peludo. Nossos intérpretes chamaram-nos de Rano pare~e mais obscura. Durante muito tempo foi essa parte do relato
de gorilas. Perseguimo-los. Não conseguimos alcançar os machos porque se salvaram pela considerada uma lenda. Apenas quando em 1847 foi descoberto
O gon.1a-gab . ' '
fuga, pulando sôbre as rochas e defendendo-se com pedras. Três das fêmeas que não quise- cebe _ un, . q::e corresponde à descnção do "selvagem" de Hano, per-
ram seguir com êles de tal modo lutaram com os nossos que procuraram aprisioná-las, mor-
dendo-os e arranhando-os, que tivemos de matá-las. Tiramos-lhes as peles e as levamos para
animu ~e a exatidao das notícias púnicas. A observação segundo a qual os
Cartago. Não prosseguimos a nossa viagem por causa da falta de mantimentos." ais possuíam corpos ásperos e peludos prova, sem sombra de dúvida,

84 85
tratar-se realmente de macacos, já que os negros possuem pouco cabelo. Mas,
se de fato eram gorilas, inclinamo-nos à conclusão de que Hano e seus homens ambos os animais, no jardim zoológico particular, que pertencia ao Príncipe
possuíam uma consciência individual muito menor, e inferior capacidade de da Orânial Vê-se que essa consciência da dignidade humana nunca foi gran-
discernimento entre homem e animal, assim como um conceito bem mais demente desenvolvida!
superficial da posição excepcional do ser humano que os modernos. Pois seu Antes de agora deixarmos para trás a história de púnicos e fenícios, temos
relato torna evidente que não perceberam os fenícios tratar-se, aquêles sêres de recordar ainda outra viagem, por êles realizada, viagem heróica e feito
que pulavam em grandes saltos sôbre rochas para pôr-se a salvo, de verdadei- notável: o descobrimento dos Açôres.
ros animais. De onde proviria a incerteza de Hano? E, formulando diferente- t.ste feito não é comemorado em nenhum poema épico nem noticiado por
mente a pergunta: será que homens como Pitágoras ou Ésquilo, ambos con- qualquer documento semidecomposto; nada existe por escrito que possa
prová-lo, embora nossos historiadores exijam sempre provas dêsse naipe,
mesmo quando os acontecimentos se referem a épocas muito remotas. Uma
velha panela enfulijada, com algumas moedas cartaginesas dos inícios do
século quarto antes de nossa era é a única documentação. Foi encontrada em
meados do século dezoito, após pesada tempestade, na Ilha Corvo, do Arqui-
pélago dos Açôres, no alicerce duma ruína próxima à praia, e desde que
aquelas moedas, procedentes de Cartago e da Cirenaica, desapareceram após
passarem por múltiplas mãos, não faltou quem manifestasse seu ceticismo
ou sua dúvida. Mas a tradição, no que se refere às circunstâncias dêsse acha-
do, é tão precisa e indubitável, que nela precisamos acreditar, apesar de
os Açôres se situarem em local isolado e distante, na imensidão do oceano.
O já mencionado geógrafo alemão Richard Hennig, que há um decênio e
meiO .estudou êsse c~so e~tranho, forneceu um argum_e nto, confirmado por
auto~Idades. em n_umismática, assegurando a correção das pesquisas do século
dezoito. POis, assim declararam aquelas autoridades, não era possível obter
em 1750 uma série quase completa de moedas cartaginesas do decênio de
330 a 320 a. C. A hipótese de uma mistificação ou falsificação não poderia
portanto nem sequer ser aventada.
Assim, o~ peritos da matéria já não duvidam mais da descoberta dos Açôres
pelos fenícios em tempos remotos. E, uma vez que tôdas as correntes maríti-
ma~ ao redor dessas ilhas se afastam d êles, a suposição, de as moedas não serem
m~I~ que restos de um naufrágio, arremessados sôbre terra firme, deve ser
reJ:Itada. Devem, isto sim, ter chegado a bordo de navios que atracaram nos
Aç?r.es; com outras palavras, êsse grupo de ilhas, situado a cêrca de 1.500
qullometros das costas européias, foi realmente descoberto pelos fenícios. É
~erdade que tal possa ter acontecido porque tempestades teriam desviado os
arcos,_ e é poss~vel que nenhum de seus tripulantes, que por volta de 320
a. C. VIram surgir terra de permeio às violentas águas do Oceano Atlântico,
18. Moedas de Cartago e da Cirenaica, do tenha ~oltado à pátria. Nada existe nos Açôres que possa atrair o comerciante
século IV a. C., encontradas nos Açôrcs. â p~r Isso, ~esmo que tenham retornado, não terá sido êsse arquipélago o
estmo almejado pelos fenícios nas viagens marítimas. Talvez seja também
temporâneos de Hano, não teriam sido mais seguros de sua dignidade humana essa ~azão de não existir, na literatura antiga, indicação quanto às ilhas,
que os púnicos? Não teriam reconhecido, talvez, que nos gorilas encontravam :enfwna~as pela primeira vez quando os portuguêses as descobrem, no
uma criatura de aparência semelhante à do homem, mas que nem por isso c cu .0d qumze. Até então estavam fora da ecúmena, da região conhecida e
deixava de ser animal? onsi erada habitada.
Não! Provàvelmente teriam também êles imaginado, como ainda dois mil
anos depois quase todos os estudiosos europeus, que se tratava do "homem
da floresta", de um verdadeiro "selvagem". Como tal foi qualificado, em mea-
d:
u T;lyez que sua descoberta não tivesse, afinal, sido uma viagem heróica ou
eito no_tável, como acima afirmamos; talvez não tivesse sido conseqüência
até uma aç~o . voluntária e consciente. Mas, como já na viagem de Hano
dos do século dezessete, o orangotango, descoberto pelo médico holandês not as proximidades do equador, passando de longe seus objetivos imediatos,
Guilherme Bontius nas matas virgens de Bornéo. E Lineu, o grande sistema- das amos um certo prazer na aguisição de conhecimentos novos, na atração
tizador sueco, não possuía maior certeza cem anos após tal afirmativa. Clas- ar aventuras, na vontade de mvestigação e descobrimento, assim tambént
sificou o orangotango como "homem da floresta, isto é, uma espécie humana ke~~dt:r-se t~rr~ado manifesto o espírito dos tempos nessa viagem púnica à
secu~dária, também chamada de homem noturno", enquanto que considerava heró. Éao oceamca, para. atestar a aurora de uma época nova, a era do
o c~1mpanzé um parente próximo dos pigmeus. E isto apesar de Lineu ter I. ela que agora vai ocupar a nossa atenção.
podido observar meticulosamente, durante sua permanência na Holanda,
86 87
PARTE IV

A LENDA GREGA E SEUS FUNDAMENTOS

A catástrofe dos carros de combate - Schliemann


e o ôvo de avestruz - Princesa MedéiaJ o modêlo
de tragédias - Hércules rouba maçãs - Stonehen-
ge e os cisnes cantantes - Príamo bloqueia os Dar-
danelos - Apenas bárbaros usam calças compri-
das - Os beberrões citas - Juros de 30% para o
capital grego- Quem vai para Ogígia?- Heródoto
ganha sessenta mil dracmas - A estrada para Ur-
ga/Mongólia - O Professor Píteas de Marselha -
Onde ficava Tule? - Píteas solve o problema do
âmbar - O segrêdo do Mar da Eritréia - Como
chegam jacarés ao Indo- Alexandre Magno veleja
numa torrente - O descobrimento do oceano -
Formigas que mineram - Breves instruções para
a caça do elefante - Da ironia trágica da história.
1

A batalha terminara com uma catástrofe. O rei estava morto, todos os


oficiais morreram ou caíram prisioneiros, os carros de batalha ficaram em
mãos dos inimigos, com seus ocupantes mortos ou feridos pelas flechadas
certeiras. Mesmo os cavalos, aos quais competia puxar os carros, haviam de-
saparecido: mortos, feridos ou perdidos na estepe. Mas, conseqüências muito
mais graves que esta perda em homens, armas e material, viria a causar o
reconhecimento de que, dêsse momento por diante, o carro de batalha havia
deixado de existir como arma técnica. Havia sido justamente essa a inven~ão
genial dos antigos, essa espécie de castelo sôbre rodas, para assegurar as vitó-
rias. Ataques de surprêsa, movimentos rápidos, imediata concentração de
fôrças, tuao isso permitia sempre vantagens apreciáveis de tal arma sôbre a
infantaria, com seus flancos muito vulneráveis.
Esta situação deixava de existir. O sistema bélico dêsses diminutos indiví-
duos, com olhos rasgados e pele amarelada, que aqui haviam sido enfrenta-
dos pela primeira vez; essa brilhante idéia tática de fazer os soldados cavalgar
para lutarem do alto dos cavalos, era muito mais eficiente que o emprêgo
dos carros de batalha. tstes nada poderiam conseguir, lutando contra a ca-
valaria. A única alternativa era adaptar-se a êsse novo método de guerra.
Não sabemos quando se realizou a batalha aqui mencionada, à qual Os-
vald Spengler consagrou, há dois decênios, interessante ensaio. Também não
sabemos onde foi realizada. Apenas temos certeza que se verificou em qual-
quer ponto das extensas estepes da Eurásia Meridional, por volta, ao que se
acredita, dos meados do segundo milênio a. C. Também temos conhecimen-
to que povos mongólicos, criadores de gado, acostumados a cavalgar e a caçar
cavalga~do, foram capazes de paralisar a marcha vitoriosa dos exércitos indo-
germâmcos de carros de batalha, ainda antes que pudessem invadir a Ásia
Central. Talvez seja a lenda dos centauros dos gregos uma reminiscência obs-
cura dêsse primeiro encontro com a cavalaria inimiga.
Pois o indo-germânico da época não era ainda cavaleiro. Conhece o cavalo
a_penas c<?mo animal de tração. Nada tem para opor à veloz cavalaria mongó-
h~a. Mmto mais tarde resolve montar um cavalo e é ainda muito depois
fis~o que aperfeiçoa métodos capazes de superar enormes exércitos de cava-
ananos, mesmo que empenhados em ataque maciço.
Desencorajados e decepcionados, interrompem os exércitos indo-germâni-
cos seu avanço sôbre a Ásia Central. Retornam ao oeste e sudoeste e defron-
~m-se no. século XIII a. C. com as regiões densamente populosas do Mediter-
~ane~ Or~ental. Em 1227 a. C. o Rei Mereptah do Egito repele os "povos se-
~tnonais" na parte oeste do delta do Nilo. Mas êles retornam quando Raro-
~ li~ (ll98-ll67 a. C.) passa a ocupar o trono. Em ll90, no oitavo ano de
d u remo, fêz o faraó com que as seguintes palavras fôssem inscritas nos muros
e seu santuário, em Medinet, perto de Tebas:

rn~Os povos do Norte estavam-se revoltando em suas ilhas, levados pelo furacão, todos ao
exis~~ t~rnp~. Nen~um país lhes resistia - destruíam a população como se não tivesse
0
diret Jamais, - vmham como se um fogo lhes iluminasse o caminho e precipitaram-se
arnente sôbre o Egito ... "

91
O país do Nilo escapa à destruição, mas o reino dos hititas sucumbe e é
mais ou menos na mesma época que também os castelos reais de Micenas e teremos de tratar de uma matéria que não seria jamais aprovada por essas
Tirins no Peloponeso caem em mãos dóricas, povo que se dirigia para o sul, duas honradas ciências: estamos falando de sagas e lendas.
seguindo as grandes ondas migratórias. A principal e mais importante autori?ade nesse ~erre~o é um_ home!fi
Os antigos senhores do país, os gregos de Micenas, certamente não se sub- muito sério e capaz. Trata-se do conselheuo-mor consistonal e da .mstruçao
pública, Gustav Schwab, nascido em Stuttgart aos 19 de junho de 1792, onde
meteram calados. A morte e o incêndio reinaram ali, seus castelos foram faleceu a 4 de novembro de 1850. Durante vinte anos procurou tornar fa-
completamente destruídos. Espêssas camadas de brasa, pó e cálcio cobrem miliar aos seus estudantes ginasianos o rico repositório lendário da Antigui-
as ruínas de suas casas magníficas, amontoando-se nos luxuosos banheiros,
dade clássica. E, quase desesperado pelo fato de seus alunos encontrarem tanta
escondendo os enormes saguões, as câmaras de tesouro repletas de preciosi- dificuldade, perdendo-se com freqüência nos jângais da mitologia e suas rela-
dades do mundo inteiro e os mausoléus literalmente cobertos de ouro. Ca- ções legítimas e ilegítimas de parentesco, pôs-se a escrever um livro alentado
bras e vacas pastam agora sôbre as colinas de entulho cobertas de tufos de e memorável: "As Mais Belas Lendas da Antiguidade Clássica".
vegetação. Antigamente era sua obra considerada uma espécie de livro para crianças,
O tempo estaca ali· durante três mil anos. Depois, os indicadores do re- seurlo muitas vêzes colocada, ao lado de brinquedos úteis e inúteis, debaixo
lógio mundial saltam à data de 7 de agôsto de 1876. Heinrich Schliemann, da árvore de Natal. Isso na época em que a geração do autor destas linhas co-
que acaba de descobrir e desenterrar Tróia, começa suas pesquisas ao pé da meçava a estudar fatos sôbre as guerras troianas ou ler Homero. E se hoje
colina das ruínas micênicas. Trabalhando com tenacidade, atravessam seus tiramos o velho livro da estante, limpando-o do pó que nêle se depositou
empregados massas enormes de entulho, até alcançar os muros ciclópicos do para lhe passar os olhos, fazemo-lo sob um ponto de vista bem diferente.
castelo de Agamenon. Entre o número incomensurável de objetos encon- Pois em suas lendas antigas existe, escondida e disfarçadamente, muito conhe-
trados não se deu devida atenção a um objeto oval, de cêrca de 20 em de cimento de navegação, muita experiência político-econômica; trata-se apenas
comprimento, considerado por Schliemann um vaso de alabastro. É regis- de lê-lo como deve ser lido.
trado e pôsto de lado. Existem tantas outras coisas mais valiosas, mais bri- A verdadeira idade dos temas tratados por Gustav Schwab, a época a que
lhantes ... se referem, não pode ser estabelecida com exatidão. Mas, em sua maior parte,
Casualmente cai de novo às mãos de Schliemann o suposto vaso de alabas- devem pertencer ao ciclo cultural micênico, ao mundo daquelas gerações
tro. E verifica-se que o material branco e liso, que aparece entre as incrusta- de_ príncipes indo-germânicos da Idade do Bronze, cujos castelos fortificados
ções, não é vaso nem alabastro, mas sim - um ôvo de avestruz. e I_n~encíveis_ foram desenvolvidos por volta de 1400 a. C., até atingirem, nas
Já Schliemann pressente a importância do achado. Nunca existira avestruz edificações oclópicas de Micenas e Tirins, sua brilhante culminância. í.sses
na região de Argólida, no Peloponeso. O ôvo deve, portanto, ser um artigo senhores e semideuses eram, aparentemente, não apenas construtores inteli-
de importação da Ásia ou do Egito, guardado como curiosidade nos tesouros gentes mas também excelentes navegadores, competindo com Creta em todos
subterrâneos do castelo. Foram encontrados outros objetos ainda do mesmo os _mares, obtendo muita experiência e passando por múltiplas aventuras. Na
gênero: um pequeno macaco de vidro azul, que num dos ombros traz o sêlo Ásia Menor, assim como no Egito ou no Mediterrâneo Ocidental, descobri-
de propriedade de Amenófis Il, aquêle faraó da décima oitava dinastia que, raro-s~ - como já vimos - achados micênicos, e é provável que marinheiros
nos anos de 1448 a 1420 a. C., foi sucessor do grande Tutmósis; um escarabeu de Mic~nas t~nham também chegado ao Mar Negro para assaltos de pirataria
magnífico que pertenceu à Rainha Teja, espôsa de Amenósis II (1411 até ou ráp1das VIagens de reconhecimento.
1375 a. C.). Desde que, porém, Micenas fique a quatro lioras de distância do d Essa. teoria é apoiada pela célebre lenda dos argonautas, aquela viagem
mar, nem sequer ocorreu a Schliemann que .êsses artigos importados pudes- es~emida d<;> capitão-pirata Jasão, que em sua veloz embarcação "Argo", im-
sem ter sido transportados em barcos micênicos. Por isso imagina uma filia- pehda por cmqüenta remadores, fêz-se ao mar com todos os heróis da época,
ção cultural entre o Egito e a Ásia Menor, que teria partido dessas duas para al~ançar a Cólquida (do grego Kolchis) na extremidade sul do Mar Ne-
regiões culturais, abrangendo também Micenas. Nada sabe ainda da coleção gro, a h~ de lá tentar apoderar-se do tosão de ouro. Tratava-se da pele de
de cerâmica micênica, encontrada posteriormente nas câmaras de tesouro de um carneiro alado, inteiramente de ouro, a qual - significativamente - per-
Tutmósis III, marido e sucessor da Rainha Hatxepsut. Também desconhece tence~a~ em tempos passados, ao deus grego Hermes, protetor dos comercian-
a existência de trabalhos em terracota, artigos de exportação da Grécia An- tes, VIaJantes e ladrões e da qual, posteriormente, o rei da Cólquida consegue
tiga, os mais belos exemplares dos quais foram encontrados em Chipre, na apoderar-se. "O tosão de ouro era considerado tesouro valiosíssimo em todo
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Síriã, na Palestina, na Sicília, em Malta, na Sardenha assim como na Espanha. mundo da época, e durante muito tempo foi o mais constante assunto de
Da mesma forma ignora a existência da prata espanhola, do âmbar nórdico, ~?n.versa na Grécia", conta-nos Schwab com sua linguagem de narrador pro-
do marfim núbio, de que os túmulos de Micenas estão repletos. Nem pode ISSlOnal de lendas.
supor, como hoje fazemos, que os gregos de Micenas se aventuraram, assim pa~pgs avent~ras várias,_ chegam Jasão e -seus tripulantes ao Fásis, rio do
como os cretenses, ao alto mar em épocas tão remotas. s a_ Cólqmda em CUJa embocadura o "Argo" lança a sua âncora. Tudo
Por meio de estudos arqueológicos não obtemos informações melhores a ~~fce Ir bem e paci~icamente, até que, de repente, sobrevêm acontecimentos
respeito dêsse tema, sendo que a Filologia clássica é ainda mais reservada. con~~os. Aetes, o_ re_I da Cólquida, possui um arado de ferro maciço e Jasão
Ela supõe que os antigos helenos não passaram além da Sicília no oeste e de da pla a preoosidade com a atenção que tal evento requer de um ser
Tróia no leste, o que é certamente um engano. E já que desejamos prosseguir ma .era do bronze. Mas os touros com que Aetes trabalhava a terra, são ani-
em nossa história, não nos satisfazem tais informações. Temos de procurar lan Is um tanto indomáveis, que do curral subterrâneo, onde se encontram,
campos mais explícitos que a Arqueologia ou a Filologia, e nessa investigação Jass:am ,pez e enxôfre e que se envolvem em fogo e fumaça quando o herói
ao tem de empreender, por seu lado, uma volta honorária atrás dêsse arado.
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O tosão de ouro, objeto principal dessa viagem, é guardado por outro mons-
tro, um ?ragão que expele fogo e ao qual Jasão, isto se percebe nitidamente, antigos, que a costa meridional do Mar Negro foi, há muito tempo, o obje-
não deseja exasperar, apesar de êle mesmo ter ancestrais divinos. Mas Medéia, tivo de negociantes fenícios e assírios; que os habitantes primitivos da Cól-
a loura filha do Rei Aetes, poupa-lhe tal dissabor. Ela rouba o tesouro na- quida tinham aparência egípcia e que lhes eram peculiares .traços culturais
cional da Cólquida, isto é, o tosão de ouro e leva-o a J asão a bordo da e civilizatórios, os quais, sob muitos aspectos, lembravam o país do Nilo.
"Argo", ao qua1 não resta senão partir vitoriosamente, rumo à pátria de posse Em isto correspondendo à verdade, entendemos por que Medéia deveria ter
da dupla prêsa. a reputação de "perigosa" e "bruxa" entre os campônios de Micenas. Quem
É. o que ~le faz, ~as. dest~ vez nã_? pelo curso perigoso, que havia tomado fôsse tão culto como os assírios ou egípcios, quem conhecesse tão bem a
na 1da, e sim J?anubw aCima. POis algum participante da viagem possui morte, os tempos passados e certos poderes subterrâneos como aguêles anti-
documentos antigos, dos quais deduzem que o Danúbio, bem distante de qüíssimos povos das pirâmides e da tôrre de Babel, forçosamente teria de
su~ desembocadura, possui um afluente que vai ao Mar da Sicília. f.ste é, conhecer magias, mesmo residindo na bárbara Cólquida e mesmo que tivesse
felizmente, ~ncontrad_? pela expedição, que assim alcança o Adriático, apor- ancestrais de famílias respeitáveis.
tando, depo1s de mmtas outras aventuras, novamente na Grécia. Características semelhantes encontram-se no mundo muito posterior de
Até aqui essa história, narrada em forma de lenda. Poderíamos aceitá-la lendas e h~róis germ.ânicos. Em vez de Egito ou Cólquida lemos ali, via de
pelo que. é: t_Im docum_ento da tendência dos antigos marujos gregos de in- regra, Gália ou Itália, quando um dos soberanos escolhe linda estrangeira
ventar h1stónas fantástiCas. Mas nossos sábios professôres de geografia sutil- para mulher. Mas, a essa bruxa estrangeira, à qual sucedem geralmente as
mente examinaram as minúcias do relato, trabalho durante o qual depara- maiores desgraças, sempre se concede a honra de ser representada como bele-
ram com umas tantas peculiaridades dignas de nota. za morena. E quando não sabem como acusá-la, quando não sobrevém ne-
(\ palavra cha~e, aquela que lhes serviu para desembaraçarem êsse nó com- nhuma doença de animais, nenhuma epidemia humana, então é apelidada
plicado, era FáSIS, ~iáade e rio na Cólquida. Pois relatos posteriores, princi- de malvada "Senhora Vênus". A história sempre se repete.
palme_nte as narrativas de viagem de Heródoto, evidenciaram o fato de que Nossa c_iência mod~rna, porém, não se satisfez em apenas desfazer a crença
essa c1da~e e aquêle rio ~aviam re~lmente existido, e que os gregos encon- das capaCidades mág1cas de Medéia, mas também examinou cuidadosamente
traram ali um pássaro cunoso, de cores claras e carne saborosa a ave "fasia- o !etôrno fabulos? pelo Danúbio e o Adriático supondo que o pretenso ca-
n?s", o nosso faisão. Pesquisas modernas identificaram Fásis c~m Riôni, um mmho _do Danúbio ao Mar da Sicília não fôsse outra coisa que a velha rota
no do Cáucaso, e a metrópole de Cólquida com Poti, cidade petrolífera ao comercial, que levava em épocas passadas do Danúbio ao Semmering, atra-
norte de Batum (•). vessando .o Save. ~ a floresta de B1rnbaum, alcançando o Mediterrâneo, cuja
O petról~o,, e?sa segunda chave, resolve por sua vez ao ver de nossos geó- parte _mais ~end1~nal, des~e as antigas oclusas, poderia ter sido percorrida
gra!os, o m1steno Adaqueles touros, env?ltos p~r fogo e fumaça, com os quais P?r Avia. fluvial. A~Irma, P<?IS, que o antigo caminho dos argonautas é remi-
Jas~o, como se fosse moderno bombeiro, trapndo uniforme protegido por
mscenCia. obscurec1da de dias muito mais distantes, não sendo possível consi-
amianto, teve de lavrar o campo. Julgam então êsses geógrafos que a chama derá-lo. simplesmente como parte de uma lenda.
que tanto assustou nosso louro herói de olhos azuis, provinha do petróleo. Infelizmente. não temos aqui o espaço necessário para examinar todo êsse
~eródoto, ao qual novamente temos ~e reportar, naturalmente nada sabe
"!undo lendáno grego, a fim de verificar se aí existem outras informações
sobr_e descobrimentos. Temos de satisfazer-nos com alguns exemplos. Também
amda de óleo, Já que os Srs. Benz e D1esel apareceram apenas três milênios
após sua morte. Mas sabe o que seja pez, e comunica que Fásis, cidade edifi- aqm é ~usta': Schwab o patrocinador, se bem que tal nunca tivesse sido
cada sôb~e estacas e localizada sôbre terreno alagado, era a principal expor- se'b deseJo. POis que lhe eram desconhecidas reflexões dessa natureza.
eve~os-lhe, além da lenda dos argonautas, também a reunião dos múlti-
tadora desse produto.
~xiste também uma explicação não de todo inverossímil, para o curioso
P1os ~Itos de Hércules, culminando na execução de um bom número de
co~plicados f~i~os heróicos. Uma dessas aventuras, trata-se da décima pri-
tosao ~e ouro, _q';le. se fundamenta {atualmente no geógrafo grego Estrabão, Re~r~ -.consistia ~a obrigação, que Hércules assumira de arranjar para o
9ue, v1veu 1?-os. I~IciOs de nos~a era, relatando dessa época que os moradores gu~I unsteu de Micenas as maçãs das hespérides. Essa história trata do se-
md1genas nbe1rmhos do Fás1s costumavam, desde tempos 1memoriáveis, co-
Ge~te: .~0 _casarem, Zeus e Hera receberam como oferenda de bodas, da deusa
locar pele~ de carneiro naquele rio aurífero, para assim apanhar os grãos de
a d~u~a mae ~a terra", al~umas maçãs douradas que, como então lhes contou
ouro, tran?os _pelas ~g;'as_. Hoje utilizamos peneiras especialmente construí-
vore ' cresCiam na mmto afastada ponta ocidental do oceano, em uma ár-
das para fmali_dade 1denuca. Mas, havendo ouro em quantidade suficiente,
deuse~ea 1eta _de ramos. _Pode ser que Gea conhecesse a atração que sôbre os
peles de carne1ro c~rt~mente obtêm result~d? semelhante, e é possível que
sidade fh~h~fao exerciam guloseimas, pode ser também que temesse a curio-
nem se tratasse de 1dé1a que devesse ser reJeitada sem cuidadoso exame.
A, ~rópria figura de Me?éia, prot?típica personagem de tragédia desde
lindasJ eia, ato é que _mandou, para a vigilância de sua macieira, quatro
não in °~1Zelas, as ~espéndes. E, considerando a possibilidade de as donzelas
Eunp1des. até o cont~mp~raneo Robmson Jeffers, dramaturgo norte-ameri- certa a~r;r~rem II_ledo a eventuais ladrões, mas pelo contrário, exercerem
c~mo, é d1~ersamente llummad<l: I?e~as le~das antigas. El~ é, como "de praxe"
de auxTá~l o, envwu um dragão de cem cabeças para o mesmo local, a fim
sao as pnncesas do mundo m1cemco, tao loura, possumdo olhos tão azuis
quanto o próprio Ja~ã~. Isso não a impede porém, de ser uma bruxa maldosa,
cifica e~~a:; na árdua tar:_efa. Não ~oi transmitido se sua incumbência espe-
A tarefa d ender as maças ?u. as VIrtudes das quatro donzelas.
envenenado:_a, espeCializada_ em magia negra que, desde o momento em que rível vi T ~ Hércules ~ons1st1a em roubar as maçãs, a despeito dessa ter-
conhece Jasao, apenas pratica atos suspeitos. Sabemos, de documentos bem
êsse her~· ~-CI~. Mas, ass1m como aconteceu com Jasão, também não sentia
(*) Atual cidade russa, pôrto do Mar Negro.
també 1 IVmo vontade alguma de provocar um dragão sendo sabido que
m as senhon· t as nao
- Ih e despertaram o interêsse. Conseguiu,
' conven-
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cer o gigante Atlas, que casualmente se encontrava nas proximidades da ma-
cieira sustentando a abóbada celeste nos ombros, a solucionar o assunto.
Depois de isto conseguido, Hércules não procedeu muito corretamente com
Atlas, apoderando-se das maçãs e indo ràp1damente ter com o rei.
Ainda uma vez temos a impressão de que se trata de uma lenda infantil.
Mas o professor alemão de Geografia, Richard Hennig, não se deu tão fàcil-
mente por satisfeito e descobriu baseado nessa lenda muitos fatos significati-
vos. Desta vez a palavra chave é Atlas. Já a Odisséia de Homero, assim como
outros documentos antigos, revelam que "Atlas" não se refere à montanha
do mesmo nome no Marrocos. Embora pareça que Heródoto tenha vaga
notícia da existência dessa poderosa elevação, decerto foi a montanha conhe-
cida na Antiguidade apenas na época dos romanos, sendo que aquilo que
Homero define como a "elevada coluna, separando o céu da terra" só pode
ser o pico coberto de neve de Tenerife, nas Canárias que se eleva a 3.700
metros. Alexander von Humboldt já soubera disso e, depois dêle, numerosos
entendidos das ciências interessadas nessas manifestações, defenderam igual
ponto de vista. E se o prestimoso gigante Atlas da lenda heracleana fôr idên-
tico ao pico de Tenerife, então o pomar de Gea não podia ter ficado a
grande distância. O país das hespérides poderá somente, nesse caso, ser
procurado nas Canárias. É lá portanto que nasceram as "maçãs douradas":
talvez se trate realmente, conforme afirma Hennig, das "arbutus canariensis",
frutas áureo-amareladas do medronheiro das Canárias.
Poderemos aventar, portanto, a hipótese de que na décima primeira aven-
tura de Hércules esteja contido um conhecimento antigo das ilhas do Atlânti-
co, situadas no oceano, no outro lado de Gibraltar, aquelas "Ilhas dos Bem-
Aventurados", das quais já tivemos oportunidade de falar. De que maneira
os gregos de Micenas adquiriram tal conhecimento, se através dos cretenses, Damas da cô1·te cretense. M ural do Palácio de Cn ossos.
a cujas famílias dominant~ os ligavam múltiplos laços de sangue, se através
dos fenícios, aos quais os ligavam intensas relações comerciais ou se porven-
tura êles mesmos sulcaram o oceano a oeste das coluna~ de Hércules, não
sabemos e teremos de nos contentar com isso.
Existe ainda maior número de tais enigmas. Por exemplo a velha lenda
helênica sôbre o país dos hiperbóreos, região situada lá no longínquo norte,
provàvelmente as atuais Ilhas Britânicas. Aí teria existido, como afirma a
lenda, um grande santuário circular às v.êzes procurado por cisnes que, can-
tando, manifestavam seu respeito à divindade. Também isto soa como conto
imaginário e poético. Mas estudiosos da Pré-História, assim como geógrafos,
opinam tratar-se da velha praça de culto dos celtas, Stonehenge, na campina
de Salisbury onde, por ocasião do solstício estiva!, eram celebradas grandes
festas religiosas. E, ainda de acôrdo com êsses mesmos senhores, confirmam
justamente êsses cisnes, que segundo a tradição grega cultuam seu deus, tal
qual coristas alados, a veracidade da lenda em questão. Pois o cisne cantante,
o "cygnus musicus", existe na realidade, de preierência na Europa Setentrio-
nal e especialmente na Inglaterra, enquanto não habita a Europa Central
ou Sul. Essa ave tão rara foi minuciosamente descrita por Brehm. "Sua voz
possui um som comparável àquele de sinos de prata", afirma a certa altura.
E mais adiante: "Quando cruzam os céus em pequenos bandos, ressoam suas
vozes melancolicamente, como se se tratasse de longínquos trombones ... In-
clinamo-nos por vêzes a compará-las ao soar de sinos, outras vêzes a instru-
mentos de sopro, mas de qualquer maneira excedem em muito a êstes ou
àqueles em múltiplos respeitos, principalmente por serem provenientes de
sêres ~ivos, assemelhando-se mais que quaisquer sons de inHrumentos a nossas
próp~1as vozes. Essa melodia peculiar torna real a suposta lenda elo "canto
dos CJ·snes ... "

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T era, Egeu. A coberta de cinza que o Santorim espalhou sôbre sua superfície n o
século XV a. C. chega a 30m de espessura.
Possivelmente era o cisne cantante um animal sagrado, de que existia uma
criação em Stonehenge, por ser essa ave dedicada ao deus celta Borvon, a
divindade desse lugar de culto. Assim poderia ser explicada a sua presença
nas festas comemorativas dos solstícios. Fica provado, com a menção dêsse
cisne em nossa lenda, embora desconhecido na Europa Meridional, que tam-
bém aqui a fantasia popular se baseou em alguns conhecimentos bem fun-
damentados. De quem teriam os gregos de Micenas aprendido essas histórias?
Dos cretenses da expedição grega para Tartesso? Dos fenícios, ou de expe-
riência própria?

19. O santuário celta de Stonehenge, nas proximidades de Salisbury, na Ingla-


terra, erigido entre os anos de 2000 e 1500 a. C., nos começos da Idade do
Bronze. Aqui vemos uma reconstituição da posição original das pedras.

Ta~bém aqui teremos de resignar-nos à dúvida. Não temos conhecimento


de ta~s fatos, aesconhecimento que, aliás, é geral se nos referirmos às épocas
Dionísio em seu barco. Este barco, do prato de Exéquias (cêrca de 540 a. C.), com a pôpa antenores à migração dos povos. Mas, o _pouco que sabemos, faz-nos sentir
gràcilmente curvada, o comprido esporão, mostra de que modo os gregos - que do con-
tinente buscaram o mar - foram observadores cuidadosos. qu.e ~a Hélade os impulsos existentes seJam bem diferentes daqueles dos
eg1pcws, fenícios ou cartagineses. Estamos numa atmosfera de vikings, a
~ayegação e os descobrimentos são tarefas masculinas, senhoris, heróicas.
e~c~les, o semideus, era o insuperável exemplo do navegador antigo da
GreCia. f.le percorre a ecúmena em tôdas as direções, não para comerciar ou
al~ançar outros quaisquer proveitos, mas para ter a sensação de aventura.
É JUstamente para viver aventuras que também Ulisses, o herói nacional dos
gregos, se empenha em superar as milhas de contrariedades que são a sina
~os marujos. Se o círculo de admiradores e ouvintes das lendas homéricas não
tivesse compreendido que o rei de ftaca tinha de percorrer terras estranhas,
e~ lugar de governar o seu Estado ao lado de Penélope, então - bem, então
~ao ~ teriam levantado na Odisséia aquêles muitos ventos desfavoráveis, que
•mpel~ram o pobre "sofredor divino" sôbre todos os mares. Mas experimen-
tar ta•s. aventuras, era exatamente o sonho dourado do público com que Ho-
mero tmha de contar.
h As~im como em todos os tempos o poeta e não o comerciante proclama o
eró1, surge daí por diante número cada vez maior de poetas, jornalistas e

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bis Conquista Mundo

Uma triere com 1·emadores. R elêvo do an o 450 a. C. A triere é u m barco com três ordens
de remadores, superpostas; até o século ll a. C. foi o tipo p referido de embarcação.
sábios como nossas testemunhas. Homero é o primeiro dessa grande seqüência
de homens de palavra fácil e impressionante, ou melhor, dessa seqüência de Grécia e o fediterrâneo até a Sicília. Tanto mais surpreende essa área res-
cantores desconhecidos, classificados sob o conceito generalizador "Homero", trita, porque nos parecia depreender das antigas lendas helênicas um conhe-
e cuja obra é nossa conhecida na forma da Ilíada e da Odisséia. Essa campo· cimento tão mais extenso. Mas aparentemente se perderam, durante o estado
sição multíplice dos dois poemas épicos, torna difícil sua apresentação sob de confusão reinante após a invasão dórica da Grécia, muitos conhec.:imentos,
denominador comum que abranja a geografia e a história das descobertas, de modo que submergiram na semi-escuridão da lenda.
- _pois constantemente mudam os quadros e o mundo estende-se cada vez Em meados de século VIII a. C. atingiram também os novos senhores da
Hélade um ponto que lhes permitia tentar a navegação marítima. Sabemos
mais.
mesmo qual o nome de um dos mais bem sucedidos capitães da época: o
Homero primitivo, se assim denominarmos a mais antiga camada dêsse proprietário de navios Colaios, de Sarnas que, pretendidamente, depois de
sedimento literário, descreve o mundo da época de 1200 a. C. Nada mais ter sido desviado da rota por fortes tempestades, chegou até Tartesso. Se
contrário às intenções dêsse poeta, pretensamente cego, que oferecer uma foi ou não foi realmente o primeiro grego - como afirma a tradição - a
geografia versificada; seu interêsse prende-se aos sêres humanos em si: heróis penetrar no país feliz dos "feaces" não pôde ser determinado até os nossos
aventureiros, como o seu Ulisses, ou lutadores destemidos, como os heróis da dias. Mas certamente foi o capitão que mais êxito alcançou com as viagens
Ilíada. Mas para realizar a descrição de viagens do rei de ftaca ou os comen- para a Espanha, sendo por isso que seu nome foi tão bem guardado.
tários bélicos sôbre a guerra de Tróia, um bom conhecimento do mundo Também do leste, do Mar Negro, Homero possui visão muito superficial.
de então era absolutamente indispensável. Homero decerto o possuía. Quan- Naturalmente sabe de sua existência, e as costas próximas ao Bósforo devem
tos dos fatos geográficos, atraentemente narrados, conhecia por experiência lhe ter sido conhecidas de alguma maneira. Mas Tróia situa-se nos Darda-
própria, não sabemos. Mas, devemos supor que transmitiu corretamente o nelos. Príncipes poderosos governam a grande e rica cidade, cujas relações se
quadro do mundo, tal qual imaginado por seus contemporâneos. Partindo estendiam ao Egito e à Babilônia, assim como à Hélade, mas. cujo domínio
dêsse pensamento, temos de refutar energicamente a opinião de Egon Friedell especial deve ter sido o comércio com as ricas terras em redor do Mar Negro;
que, em sua bela "História Cultural da Grécia" frisou, como um dos mais uma cidade de florescimento comparável ao da contemporânea Tartesso,
recentes escritores a tratar dêste problema, que apenas poderia ter existido atrae~te e poderosa como as posteriores metrópoles de Flandres e da Itália.
um Homero. Friedell considera o seu e nosso herói sob a luz de um bardo E, assim .como procederiam os cartagineses um milênio mais tarde no Estrei-
germânico primitivo: um cantor e artista do recitativo, que celebra os feitos to de Gibraltar, fecham os troianos aos navios estrangeiros a passagem ao
épicos dos "louváveis heróis" de tempos passados, arcaizando êsses tempos l\far Negro. Há quem suponha que a lenda das Simplégades, aquêles terríveis
passados em artística e artificial interpretação. Mas tal opinião não é aceitá- rochedos .dos Dardanelos que se aproximavam um do outro e se separavam
vel, já que Homero, se vivesse por volta do século oito, não teria deixado de a curtos mtervalos, esmagando nesse processo todos os navios que entre êles
narrar nem as aventuras emocionantes, conseqüência das viagens gregas ao se encontrassem, seja o disfarce lendário do fato político nu e cru que ne-
Mar Negro, .nem as lendas obscuras acêrca das maravilhas do Oriente imen- nhuma embarcação helênica podia passar os estreitos marítimos sem ser mo-
so e longínquo, que então iam chegando ao ciclo cultural europeu. lestada .. Também há guem julgue que tôda a guerra de Tróia não passasse,
tsses fatos, porém, nem foram mencionados! Homero conhece os nomes de ~a reahda~e, da elimmação pela fôrça do bloqueio dos estreitos que havia
Jasão e Aetes, tendo também ouvido falar do navio "Argo", assim como das ~Ido exerodo por Tróia. Tais asserções são, naturalmente, duvidosas. O que
horríveis Simplégades, mas êle ignora os outros. Não menciona o tosão de e ~ert?, porém, é que já os gregos de épocas muito remotas se empenharam
ouro, nem Medéia e transfere as Simplégades ao oeste do Mediterrâneo. Com energica~ente em assegurar a passagem pelos Dardanelos. Desde a época do
outras palavras: aquêle Homero, que deixou de mencionar essa história gran- estabelecimento dos gregos na costa do Mar Negro, e talvez mesmo antes,
diosa, deve ter vivido em época que desconhecia tais eventos, que realmente foram construídos fortes e fortalezas ao longo dos estreitos, no reconhecimen-
era antiga, arcaica. E com isso voltamos ao ponto de partida: as obras de to do .fato de que o bloqueio dos Dardanelos importaria na suspensão dos
Homero são, em verdade, um sedimento literário, constituem a transcrição forne~Imentos de trigo da Rússia Meridional. Existem também informações
de aventuras marítimas muito remotas, de façanhas cavalheirescas, narradas ~m- numero suficiente a respeito de especulações ousadas na antiga Bôlsa de
aos camponeses dóricos, sedentos de aventuras e que, após sua invasão vito- ngo em Atenas, na qual, a fim de elevar os preços, os interessados propa-
1~vam o ~oato de que os estreitos marítimos haviam sido impedidos à navega-
riosa, visitavam cheios de admiração e respeito as ruínas de Micenas, Tirins,
Argos, Asine, Micléia e outros parcial ou totalmente destruídos castelos dos fao: Assim sendo, poderemos realmente acreditar que o empreendimento
gregos de Micenas. l~Oiano dos helenos não teve relação alguma com o rapto de uma linda mu-
...~r, ~ratando-se, muito pelo contrário, de pura guerra econômica, bastante
O centro do mundo revelado _por Homero, um mundo que encontrava
seus esteios no Monte Atlas, no Oodente e no Cáucaso, no Oriente, é o Olirn·
1 1
e a Iza~a". pela propaganda. ·
po de três mil metros de altura, situado na Tessália. É a morada dos deuses. l\Ias seJa Isso como fôr: é provável que o Mar Negro se tornasse acessível
O Mediterrâneo torna-se, assim, o mar central da ecúmena, cortando-a ern e~ra ~s gregos apenas em fins do século VIII. Lançaram-se então com incrível
duas partes iguais, a do lado da noite, com a lendária e gigantesca cadeia de ~gM a exploraç_ão da nova região, o que, naturalmente, não é fruto do acaso.
montanhas das Ripéias, no extremo norte e a do lado do dia, no sul. Não fen' ~r Negro n~o é, por essa época, território a ser descoberto. Já os assírios e
sabiam muito a respeito do lado da noite, frio, chuvoso e triste, mas no su l A .Icios conheciam bem a região em aprêço, e os gregos estabelecidos na
existem a Etiópia, a Líbia e o Egito, de que já se ouvira falar através de via- p~~a ~Ien.<~_r,. pri~cipal'rnente os armadores e comerciantes de Mileto, metró-
gens diversas. Mas realmente conhecidos eram apenas os territórios próximos a e <;>s _Jomos situada na costa, no Meandro, sabiam sem dúvida com tôda
a Tróia, as Cíclades, Creta e Peloponeso, as partes central e meridional da co exatidao o que havia nas costas do "Axenos Póntos", do mar inóspito,
mo 0 chamavam. Mas só quando a Fenícia cai sob o domínio de Senaquerib,
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Passou menos de um século antes que os gregos do Mar Negro descobrissem
rei da Assíria, abrem-se as rotas de entrada para o Mar Negro também aos existir ainda uma segunda rota de caravanas, proveniente da Ásia Central.
gregos. E, dentro de muito pouco tempo, transformaram os gregos as linhas Esta termina no Don, e também aqui os comerciantes enriqueceram bastante,
costeiras do Mar Negro em sua região colonial. O "Axenos Póntos" rassou em virtud_e do _aflux<;> _de enorme. q~~ntidade de pedras preciosas, ouro, sêda
a ser o Ponto Euxino, ou "Eúxeinos Póntos", o mar hospitaleiro, amigo. e peles. Eis razao suficiente para IniCiar também a colomzação grega da costa
Tal colonização grega se processa dentro de admirável sistema, de forma a setentrional do Mar Negro. Assim se origina, a meio caminho entre Rostov
quase podermos acreditar ter sido efetuada com base em moderno critério e Taganrog, a cidade de Tânais, gigantesco caravançará onde o elegante idio-
estatístico. Em primeiro lugar é ocupada Sinope (hoje Sinub), no centro da ma grego passa a misturar-se com todos os linguajares da Ásia. Quase con-
costa meridional do Helesponto. É um antiqüíssimo centro comercial fenício comitantemente surge, na desembocadura do Dméper, a mais rica cidade
com rendosa pescaria de atum e enormes fumeiros - hoje diríamos, com bem grega da costa setentrional do Mar Negro: a grande ólbia, tornada poderosa
gr~ças a seu comércio. Tanto a própria Hélade, quanto as costas gre~as da
desenvolvida indústria de conservas.
ÁSia Menor foram pouco a pouco superpovoadas de tal forma, que Já não
~odem _mais. prover_ sua aliment~ç~o do solo próprio. No sécul~ IV a produ-
zo• uva Átlca ve-se obng~da a adqumr anualmente 35.000 hl de tngo, da região
do _Mar Negr~ - ~ais de 5_0% de seu consumo. Em outras partes é ainda
mais grave a situaçao. A agric~ltura concentra-se na produção de óleos ou le-
gumes, de tal forma que na cidade de Atenas do quinto século, podem ser
40"N
adquiridos, mesmo no inverno mais frio, figos, uvas, flores, etc., tudo pro-
cedente de estufas - faltam porém os cereais! Em breve pôde a costa seten-
trional de Ponto Euxino suprir essa falha, desenvolvendo ao mesmo tempo
todos os tr_aços que, c~racteristicamente, provêm de tal posição monopolizan-
t~. Produzmdo exclusivamente para exportar - "epi-prêsi" é o têrmo profis-
siOnal - passa o camponês cita a plantar trigo e nada mais. E assim como
f~z o "fa:r:ner" norte-americano de nossos dias, cultiva apenas em pequenís-
Sima porçao de sua t_erra, para supr~r suas ne~essidades individuais, produtos
lO" baratos e despretensiosos_. O seu tngo é destmado aos estrangeiros, é trans-
portado para os comere1antes em ólbia, sendo o lucro, auferido com tal
venda, empatado em mercadorias de luxo.
• Grego
~ntre essas ~cupa o v~nho gr~go o pr~meiro lugar. Os citas têm, êles pró-
• Nõo g_rego ~nos, uma bebi~a alcoóhca, obtida de leite de égua, mas o vinho doce e forte
E61iosl os greg?s é mmto melhor. O ato de diluir o vinho com água para "cortá-lo",
lõnios Sécs. 12 · 1O
06rios costumetro entre os ocidentais, é por êles considerado um crime, sendo que
~CS . 8-6
0 ~ego, aportando na costa pontínica, procedendo da Ática, sente um ar-

20" 500 '""


repio ao constatar que ali não diluem o vinho. Desde então expressa o grego
0 se~ des~ém por essa prática bárbara com o dito "bebedeira cítica".
Nao existe outra prevenção contra os bárbaros na Hélade, e tanto Platão
VIII. Colonização grega. 9~anto Sócrates e Eratóstenes declararam repetidamente que consideravam
I~Just<: a .~ivisão dos sêres humanos em "helenos" e "bárbaros" e que a de-
Do grande pôrto duplo dessa cidade, que oferecia proteção tanto contra as Shignaçao heleno" não deveria referir-se à descendência mas sim à formação
uma na.
intempéries provenientes da Ásia, como contra as ventanias ocidentais, partem
os ataques posteriores dos gregos. Fundam a cidade de Trapezunta, que de- N Mas também êles consideravam repugnante o fato de os gregos do Mar
verá servir como pôrto para o embarque de minerais anatólicos e para ponto peegrod usarem calças ~ompridas, tal como os bárbaros citas ou persas. Essa
de ligação com as antigas rotas comerciais aos países do Eufrates e do Tigre. A ~ e nosso vestuáno era, como é sabido, considerada imoral na Europa
Quase ao mesmo tempo é ocupada a velha cidade de Fásis, no Riôni, da mntiga, e repetidamente encontramos, na literatura grega, condenação da
qual já tanto ouvimos falar, não tanto por causa do ouro, que ainda vem das co~:a._ É verdade que os gregos da metrópole viviam em clima muito mais
montanhas trazido pelas chuvas, mas porque aí termina uma rota de cara- de e e~Iente que, s~us primos da Ásia Menor e do Mar Negro, que tinham
vanas para a fndia. A porcentagem para capitais de empréstimo, para os que n re~tar multiplas e gélidas tempestades hibernais. Deve-se acrescentar
chamados "empréstimos marítimos", oferecidos por ricas firmas comerciais a mos as ca ças co~pridas foram inventadas por povos cavaleiros, aquêles mes-
expe~-~m _os quais os antepassados dos refinados helenos tiveram tão infeliz
capitães capazes, chega a 30% na Hélade dessa época; as tarifas alfandegárias
das c~~ncia no te~po dos carros de combate. Assim sendo, a não-aceitação
que a metrópole exige para mercadorias pontínicas variam entre 15 % e 17 %·
hereditcfrt compn?as pelos gregos talvez fôsse motivada por um instinto
Mas tanto em Sinope quanto em Trapezunta e nas cidades coloniais gregas flecha E 0 · E, assim com.? as calças, são desprezados também o arco e a
do Cáucaso, o lucro obtido fàcilmente compensa bons ônus. Por isso são enor- atirad· r:J uma das tragédias de Eurípedes assim diz o herói: "Ainda nenhum
memente ricas, fruindo, por onde quer que penetre a língua grega, de má or e flecha provou coragem viril; covardes arcos são sua arma e fuga
reputação, em virtude do exagêro de seu hi.xo e de sua pompa bárbara.
101
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é a sua arte!" Era Alexandre, o Grande, o primeiro a empregar arqueiros; 2
arcos e flechas são também as armas de seus cavalarianos que, naturalmente,
usam calças compridas. H~v~am passado cêrca de quatr<?centos anos desde que os poemas épicos
Muito cedo estabelecem-se os gregos no Mediterrâneo ocidental. Por volta homencos receberam seu toque fmal. Há muito se tornara Homero um
de 725 a. C. funda-se Kyme, uma das primeiras localidades (a posterior clássico da literatura gre~a, recitado publicamente de quatro em quatro anos
Cumas) ao pé do Vesúvio. Em 600 surge Massília, a Marselha de nossos dias, nas panatenéias por iniciativa do Estado, sendo suas obras apresentadas aos
na desembocadura do Ródano e, com ela, emolduram florescentes colônias estudantes como "textos didáticos" de história e religião. Citações homéricas
gregas as costas do Mediterrâneo até o Estreito de Gibraltar. Nice, a antiga correm de bôca em bôca e nem é possível imaginar a vida pública ou pri-
Niquéia, e Antibes, então chamada Antípolis, são de procedência helênica, vada da Hélade sem a sua presença.
assim como também Ampúrias e Rosas na Espanha, Messina, Régio, Siracusa, Eis que em Aten~s aparece;_ no ano de ~45 a. C., na época de Péricles por-
Trento, Síbaris e Crotona na Itália Meridional. Os helenos chegam mesmo tant_o, quando o. po~to do Pireu se havia tornado, graças a seus cem mil
a passar para a África. Procedentes de Tera, fixam-se em Barea, a cidade habi~antes, a J?ai<?r c_~_dade grega, um estranho muito elegante na Metrópole.
principal da Cirenaica e ponto terminal de velhas rotas comerciais africa- Sua Idade sena. cmquenta anos_, sendo êle um grego das colônias (de Hali-
nas. Durante quase meio milênio é o Mediterrâneo um "mare graecum", c~r~~ss~~ na. Ásia M~n<?r), considerado pelos altaneiros atenienses um "mes-
um mar grego, e nunca foram, em todo êsse período, interrompidas as rela- tiç_o e semibárbaro , Já que sangue cárico, de parte paterna, lhe corria nas
ções entre a metrópole e suas colônias. v;1as. í.ste homem, 1;1m tal_ de Heródoto, que afinal de contas não era uma
Naturalmente existia o comércio com essas regiões muito antes de formal- folha e~ branco, p_01s prov~n~a d~ boa família, era muito viajado, conhecen-
mente estabelecidas as colônias. Por isso não há dúvida que a parte ocidental do ~ ~g1to, a Pérs1a, a Arabia, Cirene, as nações do Mar Negro, a Sicília e
do Mediterrâneo era tão bem conhecida ao marinheiro grego quanto suas a Itaha, ~equer ousadamente permissão, para ler na Agora, a praça das reu-
partes orientais, sendo inimaginável que Corfu (•), para onde se transfere moes fest1vas de Atenas, alguns capítulos de sua obra histórica recém-con-
muitas vêzes a terra homérica dos feaces, constituísse o limite ocidental do cluída. Tais leitu!as públicas haviam-se tornado freqüentes dos decênios
horizonte geográfico grego. E não é menos desatinado afirmar que Cila e passados. Mas entao se tratara sempre de obras poéticas ou dramáticas, não
Caribde, aquêles dois monstros marítimos, constituídos provàvelmente por s~ndo raro acontecer que um caimento desajeitado do manto, muito mais
sorvedouros perigosos, dos quais Ulisses pôde escapar apenas graças a esforços amda d? que uma palavra descomunal ou um discurso defeituoso, provocas-
ingentes, se tivessem encontrado no Estreito de Messina. Deverão, isto sim, sem o nso das massas.
ser procurados nas Colunas de Hércules, isto é, no Estreito de Gibraltar, sen- Heródot?, porém, sab~ ~ que está fazendo. Sua obra histórica, que abrange
do significativa a seguinte opinião de Estrabãó a êsse respeito: "Homero des- ?S aconteCimentos dos ult1mos trezentos anos, está escrita totalmente sob a
creve de tal maneira as viagens de Ulisses, que sua maior parte parece ocorrer Impressão das guerras persas, daquela tentativa tirânica, como era considerada
no Oceano Atlântico". na H~lade, de incluir a p~tria gr_ega na esfera de interêsse dos persas. Tal
Muitos volumosos l~vros foram escritos sôbre tal questão. Enquanto a te~tativa fra~~ssou. !udo 1s~o, assim como as batalhas das Termópilas, Sala-
Geografia moderna professa a opinião - isto desde Afexander von Humboldt, mu~a e ~lateia havia suced1do quarenta anos atrás. Mas todos os corações
que tomava a Ilha da 'ladeira pela Ilha Ogígia - que grande parte das bat1<l:m amda com admiração quando ouviam falar dêsses acontecimentos
aventuras marítimas de Ulisses tenha sucedido no Oceano Atlântico, mani- heróicos.
festa-se a Filologia clássica muito mais reservadamente a tal respeito. Porém o . É disto que Heródoto fala: elegante e espirituosamente, entremeando seu
próprio Willamowitz-Moellendorff ressaltou que Ogígia, a Ilha de Calipso, d1scurso com leves ironias. Não maldiz simplesmente o adversário, nem
estava indubitàvelmente situada em oceano aberto, desde que seu nome - que seu~ traços característicos e estranhas condições de vida. Se o fizesse não po-
não é grego - era derivado do semítico "ogeg", significando "Ilha no Ocea- dena ter tido êxito em Atenas. Principia com a seguinte explanação: "Minha
no". Em concordando com essa explicação, teremos também de procurar a ~arefa é relatar lendas", e de acôrdo com a mesma fala tendo em vista o
terra dos feaces, além das colunas de Hércules, provàvelmente no paraíso de mterêsse do ouvinte, de aventuras exóticas, esboça caracte~es, conta anedotas,
bronze da Espanha e da Grã-Bretanha, a cidade de Tartesso, da qual já t~ansformando imperceptivelmente a representação de acontecimentos histó-
falamos. Também não teremos de procurar muito pela terra dos quiméricos, r~cos em romance geográfico, narrado de maneira tão fascinante que o entu-
sem sol e imersa em neblina eterna. Apenas pode ficar situada no norte, Siasmo dos atenienses não conhece limites. í.les estabelecem, como honorário
onde era encontrado o valioso estanho; em algum ponto da Bretanha, na para suas palestras, a enorme soma de sessenta mil dracmas - em uma época
rota das Cassitérides, as minas de estanho da Cornualha. ~~ que uma família inteira poderia viver confortàvelmente com uma dracma
1
~Ia, custando uma casa de tamanho regular cêrca de cinco mil dracmas!
C* ) Ilha da Europa.
t' as, e mesmo nós, homens modernos, podemos afirmar isto depois de
~~os esquecido as tristes experiências dos tempos ginasiais e tornarmos a
~ nr ~s obras de Heródoto: tais somas mereceu-as o autor! Pois êste excelente
Jornalista de viagens e escritor continua sendo, até os nossos dias modêlo
nem ~empre igualado. Já Homero e seus contemporâneos haviam d~do valor
~spec~a! às o_bseryações geográficas e etnológicas, com as quais ilustravam suas
r 0escnçoes h1stóncas. Para Heródoto, porém, torna-se a Geografia o verdadei-
v cerne da História mundial e especialmente da historiografia. É a primeira
ez que na Europa é descrita minuciosamente a Terra, assim como sua des-
102
103
cc;>berta. É _também a prime~ra ::ez que um europeu empreende, tendo em von Humboldt corresponde à verdade e que Heródoto deve realmente ter
vista exclusivamente a mvestigaçao e seu estudo particular, viagens marítimas tido um vago conhecimento da Sibéria.
e terrestres que espantam ainda os modernos. Pois a maior parte das obser-
vações de Heródoto procede de experiência vivida, e onde tal não era pos- Escavações vieram provar que essa cadeia de deduções tiradas essencial-
s~vel ei?.{>regou, com discernimento crítico, informações de reconhecido mé-
mente de indícios possui base muito real. Verificou-se que as regiões aurífe-
nto. VIaJOU por extensas regiões da Ásia e da Africa Setentrional. No leste, ras da Sibéria Ocidental foram, há tempos, o centro de uma cultura altamente
seu olhar abrange todos os territórios até o Mar Cáspio; no oeste, passa para desenvolvida. E, principalmente, averiguaram a realidade dos multíplices
além das colunas de Hércules. Sarmata e Cítica, pouco antes ainda mistenosos liames comerciais entre a região de Ponto Euxino e parte da Sibéria, mil
nomes lendários, tornam-se-lhe conceitos concretos. Sabe falar com a mesma anos antes de Cristo. As notícias confusas de Heródoto a respeito de anti-
convicção das ilhas do estanho lá no inóspito norte como na África, assim qüíssima rota comercial nordestina, fundamentavam-se, pois, em fatos. Nu-
como da viqgem que em redor dêsse continente empreendeu Neco. Comove- merosos achados existem para prová-lo. Em 1922 foram escavadas perto de
se ao encontrar as ruínas imensas que, durante sua existência, ainda se con- Jekaterinburgo - Sverdlovsk, cêrca de quarenta peças de preciosa prataria de
servaram da Tôrre de Babel. É com pasmo que fala à posteridade das enor- procedência pontínica, que provàvelmente haviam alcançado a Sibéria em
mes pirâmi?es dos faraós egípcios, da extensão inconcebível do mundo, cuja troca de peles. Coroadas foram tais pesquisas alguns anos depois, com um
forma esfénca é uma teoria que decididamente defende, aliando-se assim aos achado prato-histórico, nas cercanias de Urga, capital da Mongólia. Durante
ensinamentos de Pitágoras. Foram seus descobrimentos e suas viagens de a abertura de túmulos antigos foram descobertos, além de preciosas vesti-
investigação que deram forma definitiva à concepção universal dos antigos, mentas de sêda da dinastia chinesa da Han (200 a. C.) alguns tecidos citas
transmitindo-a assim aos nossos dias. Todos os estudos posteriores partem, bem conservados, que apenas poderiam ter sido manufaturados no Mar Negro
de alguma maneira, das verdades reconhecidas por Heródoto. Mesmo o der- e que provaram a enorme extensão das rotas comerciais que - tantos anos
radeiro período da Idade Média via nêle, no qual se apoiava o próprio Aris- antes de nossa era - uniram os diversos pontos da Terra.
tótel~s, uma au~oridade quase in?iscutivel; e nossa época não pode senão
confirmar a mawr parte de suas mformações.
Quão exatamente Heródoto conhecia as próprias minúcias, mesmo que
po: vêzes as descrev~sse de uiD:a forma aparentemente lendária, prova o se-
gumte exemplo, cuJO esclarecimento devemos à cultura e perspicácia do
geógrafo alemão Richard Hennig. Heródoto fala extensamente de uma rota 3
comercial, que levaria do Mar Negro ao norte. Diz que a rota se dirigia de
"Póntos" em direção nordeste, ao Vol~, atravessando o Don, e acompanhava Inf~lizmente. teremos de abandonar agora o estudo de Heródoto, se bem
êsse rio até Selonos, cidade de comerCiantes de pele e armadores de laços, na que ~1~da mmto pudesse ser dito a respeito do mesmo e de sua fascinante
desembocadura do Rio Cama. des~nçao do J?Undo. Pois surge a figura impressionante do pesquisador e
Através de um extenso êrmo, teria levado depois em direção nordeste, pento comercial Píteas, de Marselha, o primeiro habitante meridional do
além dos. ~ontes Ur~is, ~ Sibéria e através da porta dsungálica ao planalto dual sabemos. com certeza que percorreu os distantes e ameaçadores mares
centro-as1át1co. Até a1, afirma, tanto terras quanto povos são, de certa ma- o Norte, aSSim como também as desoladas terras setentrionais da escuridão
neira, c~nhecidos.: "Pois que até aí chegam os. citas, dos quais podemos obter nef~ulosa e os jângais lamacentos de florestas virgens, por iniciativa própria,
amplas mformaçoes, e também gregos de ólb1a, bem como dos diversos cen- a Im de explorá-los.
tros comerciais em "Póntos" (•). Mas, continuando a penetração em direção
este, chegar-se-ia ao Oceano do Norte, onde o inverno se estende por oito
meses, "seis dos quais os habitantes da região passam dormindo". Em com-
pensação, aí existü"ia muito ouro, guardado por grifos, os quais, segundo a
Pr Já vimos que a passagem do Estreito de Gibraltar havia sido impedida
_volta ~e 530, por grupos econômicos norte-africanos e sua representação
0 Icial, a_ força naval de Cartago. Também sabemos que tal medida foi to-

tradição, desenterravam o ouro da terra e "o guardavam com a mesma ga- mada, nao tanto em virtude dos interêsses político-econômicos de Cartago
nância com que os humanos o roubam". ~as Ilhas _Britânic~s, mas para a proteção das rotas para as ilhas do Atlântico.
No co~~ço ninguém _soube ~xplicar essa _história que: certamente, se baseia à pes~ d1~so contmuavam as ·setentrionais ilhas do estanho a exercer, devido
A

em trad1çoes ora1~ 0?-mto ~nt1_gas, tendo s1do por mmto tempo considerada f~X1stenc1a de ouro, certa atração sôbre potências estrangeiras. Além disso,
produto da própna mvencwmce de Heródoto. Pouco a pouco evidenciou-se, J am em mente as organizações comerciais da Europa Meridional o fato
p_?rém, que aquela g:ande rota comercial ~xistira de fa_to, sendo percorrida a! 0 ~rte ser ta~bém a terra do âmbar. Massília já havia instalado postos
amda na Idade Média. Em geral o comerCiante pontímco não terá atraves- ança os até Ase1burgium, no curso inferior do Reno, não sendo pouco
sado, porém, os Montes Urais. Apenas poucos estendiam suas viagens de ~~~áv~l qu~ assim vi~sse a colhêr muitas informações sôbre as regiões adja-
faz es Ba1a ~eutômca. Mas certamente não era isso suficiente para satis-
negócios, ouvindo assim das reservas de ouro no Oceano do Norte e mistu-
rando a ~erd~de co_m a fábula. lá von Humboldt admitiu a possibilidade de dis? os com~re1antes de Massília. Quem se dirige às colônias geralmente se
las m~e ma1s por suas aptidões práticas do que pelo saber científico. Aque-
que a h1stóna cunosa de Heródoto pudesse conter a indicação de campos
auríferos ~o Jenissei superior e nas montanhas Altai, mas em sua época tudo sita~rviam para estabelecer núcleos e sua lucrativa administração, êste neces-
eram conJeturas, sem prova real. Apenas agora sabemos ·que a hipótese de gam a-se para t~mar iniciativas de vulto. Por isso não só hoje, mas já anti-
agr ednt~, sobrevieram repetidas vêzes épocas em que os capitães da indústria
(•) Ponto Euxino; do qreqo "Eúxeinos P6ntos". Antiga denominação do Mar Negro. a ee1am aos cé us a existenC1a
·A • d e cientistas
· · ' · estavam
que, se necessano,
104 105
prontos a sacrificar-se pelos seus estudos e ir onde pudessem obter informa-
ções e colhêr dados. zo·w 10 . o·
Foi certamente a falta de informações sôbre as regiões nórdicas, do âmbar
e do ouro, que induziu Massília, no comêço do terceiro século antes da nossa
era, a intensificar sua exploração. A competição violenta entre a cidade por- f:..·· ···
tuária do Ródano e a poderosa Cartago, tornou necessário colhêr informações
mais precisas sôbre os países do ouro e do âmbar do Norte. Foi por isso ss·N r/ii···········:~::···>·:..
que, por volta de 325 a. C., recebeu o geógrafo Píteas, já conhecido por suas
viagens ao Oceano Atlântico e seus numerosos trabalhos astronômicos, a
chefia dessa expedição, cuja principal incumbência deve ter sido a pesquisa ~ .
da Grã-Bretanha e das regiões de âmbar no Gôlfo Metuônio (Baía Teutô-
nica) .
O bloqueio cartaginês do Estreito de Gibraltar tornou impossível envere-
dar logo pelo caminho marítimo que, com alguma boa sorte na Biscaia,
constituía modo de viagem muito mais cômodo e muito mais acostumado
aos massilienses, marinheiros por índole e formação. Mas também o caminho so·
terrestre, através da Gália, era bastante cômodo : há muito utilizavam-se dêle
os transportes de bronze de firmas comerciais de Marselha, já que daquele
outro haviam sido barrados. Inicialmente levava Ródano acima, enveredan-
do depois, na região onde hoje fica St. Etienne, para o Loire e dirigia-se em
seguida, numa extensão de cêrca de 30 dias de marcha, até Corbilo, pôrto do
Atlântico já desaparecido na época de César, provàvelmente nas proximidades
de St. N azaire. E ali começava a tarefa propriamente dita.
Tarefa magna, que requeria magna solução! Para Píteas, tratava-se de ve-
rificar antes de mais nada, se a Grã-Bretanha (ou Albion, como as terras eram 45•
chamadas em Massília) era uma ilha ou parte de um continente a projetar-se
para o norte. Cabia-lhe, também, explorar o quanto possível o país de origem
do ouro nórdico e visitar o ainda completamente desconhecido país do
âmbar, que ficaria um pouco mais a leste. Além disso, também teve Píteas,
aparenteme,nte pelo menos, o propósito de continuar com seus estudos do
problema das marés, iniciados há muitos anos na costa espanhola do Atlân-
tico. A desincumbência de tôdas essas tarefas, já se vê, exigiria muito tempo.
Levou, por exemplo, quarenta dias só para contornar as Ilhas Britânicas.
Trezentos anos depois, afirma Estrabão que Píteas atravessara a Inglaterra a 4Q•
pé. Tá gue suas próprias notas e observações não nos foram transmitidas, sendo
conheodos apenas uns doze trabalhos que se referem diretamente à obra de
Píteas "Sôbre o Oceano", é impossível verificar se êle pisou solo britânico
ou não. Probabilidades, entretanto, existem, sendo possível que tudo aquilo
que a Europa ficou sabendo da Inglaterra antes das invasões de César, se
tenha originado com as informações colhidas por nosso pesquisador grego.
Também o fenômeno das marés, desconhecido e estranho aos filhos do Me-
diterrâneo, foi certamente estudado outra vez por Píteas nas desembocaduras 400km
profundas dos rios inglêses. O movimento das marés é, como se sabe, bas-
tante forte em tôda a extensão das costas britânicas. No Canal de Bristol
atinge, com bastante regularidade, a diferença de 16m de altura, um fenô- IX . A rota de Pít eas para Tu·le.
meno que indubitàvelmente chamou a atenção do pesquisador. É digno de
menção que aparentemente o próprio Píteas tenha tido a idéia de relacionar
as marés com a Lua. Em todo caso Aécio nos comunica de Antioquia, por ci.almente brilhante, dentro do complexo de seus empreendimentos J.á gran-
d Iosos· u · . .
volta do ano 100 de nossa era: "Píteas sustenta que a maré alta é causada con .d· ma VIagem d.e seis d1as, através do mar aberto, ao país de Tu1e,
pela Lua no quarto crescente, sobrevindo a baixa quando a Lua se encontra mu s~ erado pel<;>s antigos a "última Tule", a extremidade setentrional do
no minguante". pos~ ?· Dessa VIagem, sobremaneira ousada, existem numerosos comentários
Não é lícito duvidar que Píteas incluísse também as Ilhas de Shetland no Pít enores,. que sem dúvida se fundamentam em declarações do próprio
círculo de suas pesquisas. Foi provàvelmente aí que realizou um feito espe- eas. Ass1m diz Plínio, no primeiro século da era cristã;

106 107
"O mais extremo de todos os países conhecidos é Tule. Na época do solstício, quando
0 Sol atravessa a constelação do Câncer, não existe noite naquele território; no inverno a pelos séculos afora. E Piteas foi certamente bem sucedido nos seus .esforços de
duração do dia é mínima, enquanto as noites são muito compridas. Há quem afirme que
tal fenômeno se registre aí ininterruptamente, durante seis meses". penetrar nas regiões do âmbar. Não é provável, porém, que tenha passado
para além do Cabo de Skagen. . . . _
Mas suas pesquisas foram absolutamente suficientes para a exphcaçao da
E duzentos anos mais tarde acrescentou o geógrafo Solino, que evidente-
mente obteve melhor conhecimento de causa: origem do âmbar, sendo de s"l!por que :s
descriç_ões ~e Píteas, it;teressavam
vivamente aos seus contemporaneos. A este respeito diZ-nos Phmo:
"Cinco dias e cinco noites demora a travessia a vela, das órcades para Tule. Apesar de
sua posição setentrional, o solo de Tule é fértil, produzind~ muitas frutas de t~rdi? am~­ "Píteas relata que os guiônicos (teutos?), um povo da Germânia, habitavam uma região
durecimento. Desde princípios da primavera vivem os habitantes com seus ammalS. Ali- costeira chamada Metuônis, que teria a dimensão de seis mil estádios. De lá, a Ilha de
mentam-se de leite e ervas, guardando as frutas para o inverno". Abalus (Heligolândia?) ficaria à distância de uma jornada, sendo que aí se encontraria o
Ambar, impelido às costas na primavera pelas ondas marítimas. Tratar-se-ia de dejeções do
mar coagulado, usadas pelos habitantes da ilha em lugar de lenha, para fazer fogo ou
Tendo em vista êsses escassos depoimentos, não nos é possível verificar para a venda aos teutos vizinhos... É certo que tem origem nas ilhas do Oceano Nórdico,
exatamente qual dos nossos países conhecidos era a Tule do antigos. Fritjef sendo chamado "glaesum" pelos germanos ... Mas originar-se-ia na forma de gotas de medula
Nansen provou contudo, com uma probabilidade que quase chega a ser ~er­ caindo dos pinheiros, tal como a goma das cerejeiras, a resina dos pinheiros. Surge nas
teza, que as indicações de Píteas são corretas apenas para a Noruega,.: Isto :irvores, em virtude da supersaturação destas em seiva, engrossada com o frio ou com o
para a parte central daquele país, a ~ais ou menos 6~ 0 norte, na regiao da tempo, ou ainda pela influência da água do mar, quando as vagas que crescem na prima-
vera levam o âmbar das ilhas. Seja como fôr, porém, é atirado às costas, manifestando nisso
Baía de Trondjem. Que a Noruega seja part~ do contmente, enquanto Tule tal mobilidade que parece flutuar na água sem ir ao fundo. Que se trata de uma seiva
era considerada ilha, nada pode provar, se tivermos em mente que a Escan- das árvores, era também opinião de nossos maiores. Que realmente procede de uma árvore
dinávia foi tida como ilha ainda muito depoi-s do início de nossa era. da família dos pinheiros, é provado pelo cheiro resinoso que exala ao ser friccionado e o
As citações que acabamos de aduzir não possibilitam, infelizmente, .dar uma fato de, uma vez acendido, queimar tal qual uma tocha. Corpos contidos em sua substância
idéia do vulto das informações transmitidas por Pitea~. Mas qu~o mf~uente e que aparecem graças à transparência parcial do âmbar confirmam proceder êle de gotas,
provou ser sua obra s.ôbre o oceano, pod~~os deduZir da con~,Ideraç~o. ~~ primitivamente em estado líquido. :Esses corpos são formigas, mosquitos e lagartixas, e não
h:i dúvida que êsses animais ficaram presos à resina ainda fresca e cobertos por ela, conser-
outras referências. Assim, por exemplo, Taclto, narra em sua Germama , vando-se com o seu endurecimento".
onde afirma:
"Para lá dos guiênicos (teutos?) existe outro mar, uma massa coesa, quase imóvel. O fato Vê-se que Plínio já obteve bom conhecimento a respeito do âmbar, e bem
de êsse mar envolver o círculo terrestre, é confirmado pelo último clarão do Sol, no seu podemos perdoar-lhe não ter ouvido falar no Mar de Euldia (12000 a. C.)
poente, se conservar tão intenso até o outro dia, que faz empalidecer as próprias estrêlas ... e nem do Lago de Ancilo (8000 a. C.) ou da era litorina (até 5000 a. C.), que
É apenas até ali, - e essa notícia foi comprovada - que se estende o mundo".
participaram do desenvolvimento do âmbar, já que todos êsses mares, que
em suas profundezas continham o valioso produto, foram redescobertos e
Eis um primeiro relato do Mar Glacial Ártico, relato um tanto obscur~ e cartogràficamente reconstruídos por geólogos contemporâneos.
misturado com informes náuticos sôbre o reflexo do gêlo, aquêle brilho cuno- Ignora-se qual o caminho tomado por Píteas para voltar a Massília, pro-
so acima de extensos campos de gêlo, a que sempre e sempr~ se referem os cedendo das terras do âmbar. Provàvelmente, em virtude do bloqueio
navegantes árticos. Tôdas essas referências procedem indubitàvelme~te da cartaginês, novamente por via terrestre, utilizando a grande rota norte-orien-
leitura de Píteas. É lícito supor que foi só através dêle q_u~ o conhecimento tal do âmbar, que levava de Hamburgo sôbre os vales do Reno e do Mosela
dum mar nórdico, coberto de gêlo, chegou à Europa Mendional. até o R_ód_ano, uma rota que desde 600 a. C. começou a substituir a que levava
Não se sabe durante quanto tempo Píteas permaneceu em Tule. Pro~àv~l­
mente retornou de lá à Grã-Bretanha, que continuou contornando em direçao
M A~tático_ Setentrional, pelo menos para a região ocidental mediterrânea.
as nao existem quaisquer documentos. Uma vez que Píteas, empregando
sul. Através do Canal da Mancha dirigiu-se para o leste, alcançando as tef!as nosso vocabulário moderno, foi um "espião econômico" que teria passado
do âmbar: e assim começa seu empreendimento a ter significação especial. po~ maus bocad?s se tivesse caído em mãos cartaginesas, cuidou certamente
Píteas é o primeiro meridional, de quem temos notícia segura, que realmente 0
onselho da ~Idade de Massília que apenas pouco de sua vida e obra fôsse
chegou à Germânia por via marítima. É também o primeiro que descreveu tornado conhecido para o público. Esta é provàvelmente a razão de ignorar-
essas viagens em tôdas as suas minúcias. . mos quase completamente sua vida, pela qual, em virtude do vago lusco-fusco
lá dissemos atrás que, por muitos séculos, ~onstituía o âmbar u~ dos ma;,s ~e ~bre a sua_ personalidade por causa do retraimento oficial, êle era co-
coóiçados produtos importados da terra dos hiperbóreos. c.hamad~ eléctron ' u e~~ 0 na Antiguidade grega como o "mentiroso-mor", como um boateiro,
pelos gregos, adquiriu aquela pedra, de fácil _trabalh?, bnlho c~hdo_ e perfu- f~ í anér ps~~dés~atos", tal qual foi qualificado por Estrabão. O que cons-
me agradável, um ~alor ae . moda como a mais, aprecxa~a matén~-pnma para ~ roave llljUStlça. Pois não existe dúvida que pertence aos mais notáveis
a confecção de precwsos objetos de arte. Ma~ sobre a onge.m do a~b~r, cOJn? aid~ a os de todos os tempos. É por isso sobremaneira lastimável ter-se per-
também já tivemos oportunidade de ver, tmha~. os all:tigos .as xdéias mal~ I odsua obra "Sô~re o Oceano", que decerto durante anos a fio permaneceu
estapafúrdias. Examinar e, conforme o caso, retxhcar tais xdéxas era aparen
temente uma das princip~is idéias mercant~s de Pít.eas, em .cuja época a~
rear ada no _arqUivo secreto de Massília. Passaram muitos séculos até que
cida~ovo surgisse_m pesquisadores à altura de seus conhecimentos, sua capa-
Ilhas Frígias e a costa ocidental de Schlesw1g-Holstem pareciam ser con~e te me e sua cu~wsi~ade científica. Piteas parece ter sido não um comercian-
cidas como as fontes mais ricas dessa matéria-prima. O Báltico, como re.gxao SOubeas um sáb1<;>, VIvendo em paupérrimas condições. Certamente, porém,
produtora, aparentemente continuou ignorado pela Europa Ocidental amda bém resolver, filho que era de uma cidade absolutamente comercial, tam-
problemas econômicos. Não se perdeu, entretanto, na consideração de
108
109
questões matenais. Sua viagem para Tule, de cujo valor comercial imediato Qual o aspecto des~a in:ensa região,_ foi a pergunta a que ninguém sabia
para o mundo dos antigos nada consta, parece, contudo, ter sido ditada responder antes da ~n~:=tsao ale~andrma. Não era possível, na época em
essencialmente por reflexões científicas. O que é apoiado também pelo questão, formar uma _1de1a da índ1a que, pelo menos em parte, correspondesse
grande número de determinações geográficas locais que Píteas estabeleceu à verdade. É necessáno que se ~en~a 1sso em mente, porque _inconscientemente
em muitos pontos, mediante observação da posição solar no ponto culminante nos submetemos ao mapa, atnbumdo a Alexandre conheomentos aproxima-
(meio-dia). Seja a interpretação qual fôr: certo é que a concepção do Mundo dos aos nossos. Isso nem de longe corresponde à verdade.
Antigo _foi por êl~ bastante ampliada. Com seus serviços à humanidade, Qua1_1d_o. o grande rei in~~iou, em 334, a. sua marcha contra os persas, mo-
merecena reconheCimento bem melhor que aquêle que recebeu. veu-se Imoalmente em regwes bem conheodas dos gregos. Seu conhecimento
geográfico estendia-se até Arbela e Gaugamela, onde foram travadas as bata-
lhas decisivas. Tratava-s~ de regiões conhecidas, e os "bematistas", aquêles
grupos de seu estado-mawr, em que Alexandre reunia os cientistas, que to-
mavam l?arte nas. Sl;las ca~l?anhas, ~s h~storiadore~, agrimensores, cartógrafos,
engenheuos e med1cos m1htares, nao tmham mmto trabalho na fase inicial
4 da guerra.
<?s problemas surgira~ q_uar:d_o da invasão do planalto iraniano. Ninguém
Mais ou menos na mesma época em que, a partir do lado oeste do Medi- sab!~ seql!er qual a d1stnbmçao de mar e terra naquelas desconhecidas
terrâneo, o horizonte geográfico se estendia tão largamente para norte, reali- regwes onenta1~, ou se não se chegasse talvez inopinadamente à extremidade
zou-se, partindo da bacia oriental, profundo avanço pela misteriosa escuridão do m~.m~o. Sab1a-se na Grécia da época que existia, em alguma parte ao sul
do Oriente; a índia aumenta o conhecimento geográfico da Europa. A pri- da_ Pe:s~.a, um m~r que - sem muito propósito - era chamado "Mar da
meira menção da longínqua terra das maravilhas, na literatura· da Antigui- En~ré1a . Conheciam-se o Euf;ates e. o_ Tigre ~ sabia-se que êsses dois rios
dade, foi feita por Hecateu, por volta do ano 500 a. C. Já que, como antigos desembocavam no Golfo Pers1co. Sab1a•se das baías setentrionais
habitante jônico da Ásia Menor, não sabe pronunciar o "h", chama de dêss~ g?lfo, e con~ecia-se o Mar Vermelho, chamado de "Gôlfo Árabe" pela
"indoi" aos "hindus" (*) e tal expressão jônica perpetua-se depois, em tôdas Ant1~1dade Clássica. Supunha-se que havia contato entre êsses dois, no sul
as outras línguas européias. A essa peculiaridade de um dialeto arcaico grego lo~gmquo. Mas desconhecia-se se êsse Mar da Eritréia era somente um mar in-
e o êrro geográfico de Colombo devem, em época posterior, os índios o nome ~enor, Já que a África e a Ásia l?areciam en~on~rar-se em regiões muito além
0 equador, para formar um Imenso terntóno, ou se aquêle mar era o
que lhes é conferido pelo Velho Mundo.
Homero, aparentemente, não ouviu falar da índia, se bem que no início ?Ceano que, segundo a opinião da Antiguidade encerrava a ecúmena tal qual
da Odisséia conte a seus ouvintes dos etíopes do nascente e do poente: ~m~nso anel.. O. pr?I?rio Alexandre acreditava' tratar-se de uma dep~essão re-
os drávidas da índia, como se supõe - embora com b ase bastante tênue - ativamente ms1gmhc_a~te co~o, por exemplo, o Mar Cáspio. E parte im-
e Estrabão opina irônicamente que, se Homero tivesse conhecido a índia, portante _de suas deosoes vew fundamentar-se n essa convicção.
nunca teria deixado de para lá enviar os heróis de sua Odisséia. O mundo, Atara diZer a verdade, não constituía o Mar Cáspio problema menor para
que Homero conhecera quando muito através dos relatos orais, não passava, d exandre e. sua él?oca. Todos os antigos geógrafos da Grécia estavam certos
no sudeste, o Mar Vermelho e o princípio do Oceano índico. T ambém d~ que aquele cunoso aglomerado de águas constituía a extremidade meri-
apenas menciona de passagem os árabes, junto com libaneses e fenícios. diOnal de ~norme baía, estendida pelo Oceano Nórdico para a Ásia. Heró-
. 0 to e Anstóteles, porém, rejeitaram decididamente essa hipótese. Ambos
Muitos séculos depois, mesmo Heródoto não conhece senão a parte extrema 1
do Noroeste da índia, e apenas de segunda mão. Coube a Alexandre, o Gran- ~~:ra~ q~e o_ Mar Cáspio n_ão poderia ser senão um mar interior. Também
de, iniciar a conquista da índia pelos homens brancos, com sua marcha des- ad~ re mchnava-se a aceitar tal suposição, opinando porém que êle se
esten . Ia até a reg1ao
re ·- d o M ar d e A sov. A penas consegum
. obter certeza
. a êsse
temida sôbre o Hindu-Cuxe e o Indo.
Os desígnios fundamentais de Alexandre são evidentes. Se com seu ataque à speito quando, no ano de 330, chegou a Hircânia, a atual Masanderan,
contra a Pérsia - depois das prolongadas lutas defensivas dos gregos, o pri- malrgdem sul do Mar Cáspio. Aí chegado, verificou existirem focas prova
Con
~eiro golpe forte da Europa contra a Ásia que ameaçava no Leste - preten-
ção c u ente de que .e•sse 1ago Imenso
· h avia,
· alguma vez, estado em comunica-
'
dia, antes de mais nada, aniquilar a base naval persa da Fenícia, então com pro c?m mares. abert?s- Verificou também não existirem peixes marítimos
o progresso de suas vitórias se via formalmente forçado a vitimar mortal- moanamente ditos, tirando a conclusão, aliás não contestada pela ciência
mente o reino persa de Aquêmenes. Verificou-se isso quando, após a vitória Oceaern\ze _que em tempos pré-históricos existira alguma ligação com o
de Gaugamela, ocupa, no outono de 331 a. C., as cidades residenciais persas muitonot rdico, que porém já deveria, então, ter estado interrompida por
empo.
da Babilônia e Susa. Talvez Alexandre esperasse que essa vitória fôsse su-
ficiente para subjugar tôda a Ásia. Mas quem luta contra o Leste luta contra quAecdresce a isso outra hipótese. Segundo opinião geral constituía o Don
esemboca na antt&a · co 1'oma · grega de T â nais, no Mar
'
a_ imensidão. De nada vale apoderar-se de algumas posições-chave do cornér- teira ent de Asov, a fron-'
c~o, tráfego ou produção industrial. Terá de fazer com que a própria imen- marge rde_ E~.uopa e Ásia. As grandes planícies, as várias tribos nômades na
Sidão venha servir a seus desígnios. à esqum d tretta d_esse
' · pertenoam
no, · à Europa, mas tudo que se encontrava
curso Jr ~ constituía a_ Ásia. Ninguém sabia dizer qual em verdade, era o
C* _) Escolhemos esta grafia para tornar claro o pen sa mento do autor, que opôs o conceito se ori -0 on. Talvez VIesse do norte, mas existia também a possibilidade de
de H1ndus a lndier, têrmos a nálogos em alemão, que correspondem a os nossos hindu e in diano.
- N. do T.
gmar do leste ou de chegar, mediante enorme curva, do sul. Quando,

li O lll
no ano de 329, Alexandre passou as serras setentrionais do Irã, quando, dei-
xando atrás de si o Amu-Daria (o Oxus da Antiguidade) chegou, perto do
Chodachent de hoje, ao Sir-Daria (•) (o Djacartes, como era denominado pelos
nativos de côr), julgou ter atingido o curso superior do Don, até aí desco-
nhecido e que, aparentemente, corria em grandes curvas ao longo do Mar
Cáspio e, desta forma, provava serem essas águas não uma bacia oceânica
mas um mar interior.

X. A idéia de domínio mundial de Alexandre.

Até aí conseguimos seguir o pensamento do grande rei da Macedônia. Mas


não o entendemos quando aparentemente de forma lógica, de acôrdo com
seu raciocínio, conclui que no Sir-Daria atingiu os limites da Ásia. Se quise;·
mos tentar entendê-lo, devemos esquecer-nos do mapa-múndi, tal qual é hoje
nosso conhecido. Temos de ter diante dos olhos aquela concepção de q~e
tudo situado à margem esquerda do Don se chame Ásia e que o territóno
do outro lado do rio pertença à Europa. Assim, chegando ao Sir-Daria e vendo
as enormes montanhas de onde se lançava êsse rio, concluiu Alexandre tra·
tar-se do Don, e convenceu-se, conseqüentemente, que o território à esquerda
fôsse asiático, estendendo-se a Europa no lado oposto daquela forte corren·
teza. Que essa era a sua argumentação foi, ainda recentemente, provado pelo
historiador alemão H. Berve.
Essas decorrências soam fantásticas para nós, modernos, mas foi assim q~e
se verificaram! Quando Alexandre da Macedônia alcançou o Sir-Dana,
acreditou e tinha razões para acreditar, que alcançara os limites extremos da
Ásia. Faltava apenas derrotar a índia, e depois teria vencido sua luta contra
as extensões imensas.
C•) Amu-Daría; =•o d'água cujo nome slgnUica "rio de Amu", sendo Amu uma localidade
do curso médio. Sir-Daria: "rio amarelo" é o seu significado.

112
Apenas a índia! Com a certeza inabalável de um jogador de xadrez, faz
Alexandre, no ano de 327, com que suas tropas marchem de Bucara para a
fndia. Segue velhas rotas de caravanas, em cujas encruzilhadas os gregos
constroem cidades. Dessas, existem até hoje Herata e Candaar. Desce em
seguida pelo vale de Cábul até o Indo. Suas divisões se jogam, estusiásticas,
em suas águas claras e frias. Todos os macedônios sabem nadar! Gostam de
nadar indiferentes, principalmente na Ásia longínqua, à opinião dos intelec-
tuais 'atenienses. Mas repentinamente ressoam no vale os lancinantes gritos
de dor dos -soldados. Demônios horríveis arrastam muitos e o sangue tinge a
correnteza, sendo a paz noturna desvirtuada pelo barulho repugnante de quei-
xos que estalam e ossos que são partidos.
Crocodilos? Mas não é possível! Apenas no Nilo existem crocodilos, no
rio sagrado do Egito. Em nenhuma outra parte. Crocodilos?
São crocodilos, sim. Aquêle tronco imóvel, lá no outro lado, de colorido
verde e amarelo, começa repentinamente a mexer-se! Crocodilos na fndia?
Será que êsse rio desconhecido possui alguma ligação com o Nilo? Será, talvez,
uma das fontes do velho e enorme rio? ão oferece a existência de crocodilos
prova concludente que, de fato, existe ligação entre Ásia e África, em alguma
parte do sul? Assim opinam Alexandre e seus exércitos. Poucas semanas
depois alcançam o Hidaspes, o Djelam de hoje. Também aí abundam croco-
dilo . Ainda pode haver dúvidas? Existem também aqui tais monstros? Então
tudo é evidente: o Indo, assim como o Hidaspes, constituem as misteriosas
fontes do Nilo. É do derretimento da neve das gigantescas montanhas, das
quai descem êsses dois rios, que provém as enormes quantidades de água que
Barra de cobre romana, representando um boi. É o mais antigo dinheiro romano, . datando fazem transbordar o velho Nilo ano por ano!
do século TV a. C. O gado mantém íntima relação com a moeda, pelo fato ?e an t:;a:::::J: Isso parecia tão lógico a Alexandre, que êle considerou resolvido de vez
as transações serem feitas através de pagamentos efetuados com gado . 1 pecuana. e o _probl~ma do Mar da Eritréia. Apenas parecia tratar-se de um mar interior,
relacionam -se na primitiva v ida romana: pecus =gado; pecuma= dmhe1ro. nao .~mto maior que o Cáspio. Seria circundado pelo Nilo em alguma parte
mendwnal e, descendo o Hidaspes e o Indo, era forçoso entrar no Nilo. Se tal
acontecess~, não seria difícil voltar por êsse caminho, com todo o exército,
para o Egito e o Mediterrâneo.
Isso no início é apena-s um pensamento fugaz. Mas quando depois Ale-
x~n~re vem a saber que, já uma geração antes dêle, o último grande rei da
PeTSia, Artaxerxes III (358-337), tivera a intenção de mudar o curso do Indo,
que também considerava a nascente verdadeira do Nilo, a fim de assim matar
pela. sêde o revôlto Egito, forçando-o a render-se incondicionalmente, expede
0
rei greg<?_ ordens a seu almirante Nearco para imediatamente começar com
a construça<: de uma frota apropriada para tal expedição. E escreve à pátria,
para ~ua mae, relatando ter encontrado as fontes do ilo.
~Uis um acaso que êsse orgulhoso boletim, prova de vitória e glória, ficasse
~~tl 0 durante alguns dias na sede de seu estado-maior. E é justamente nesses
f;a~l quâ tropas avançadas, prisioneiros e indígenas, dão informações das quais
H~à e epreender-se que nenhum dos rios do Pendjab -nem o Indo nem o
~atspes, r;em_o Acesmes (atual Djinab) nem o Hifásis (atual Rávi) possuem
i {;uer hgaçao com o Nilo, desembocando todos no "Mar Imenso", como
d~ue as água.s des_conhecidas do sul eram chamadas pelos indígenas. Alexan-
pae percebe :mediatamente o seu êrro. A carta que deveria ter sido expedida
rel:~a s~a mae retor~a à chancelaria real e a observação orgulhosa do rei,
M n ° o descobn~ento das fontes do Nilo, é apagada.
fôss as a orde,m ex~edida ao Almirante Nearco, no sentido de que uma frota
mai~ ~o~tr~Ida, na~ é revogada. Felizmente não o é! Pois poucas semanas
quand ar e esses nav.w~ .serão mais necessários que o pão de cada dia. Isto,
do-se ~ suas. tropas llliCI~m um _motim, logo após atingido o ~ifásis, nega_?-
contmuar a seguir ao rei que antes endeu&ªr(lm. Amotmaram-se naa
8 113
Conquista Mundo
apenas em virtude dos esforços a que foram submetidos nas últimas semanas. sôbre a mesa de trabalho do general romano Flávio Arriano de Nicomédia, na
A chuva dos trópicos havia começado, as matas emaranhadas, antes sêcas Bitênia que nas horas de lazer estuda a história militar, sendo especializado
transformaram-se em jângais lamacentos: já não podiam mais acender no est~do de Alexandre. Naturalmente, interessou-se muito pelo fato de
o fogo, secar a roupa ou comer comida digna de sêres hu.manos. Tudo isso, seu grande colega ter conseguido embarcar todo o seu exérci_to nos navios.
porém, não constituía a razão verdadeira, tudo isso podenam ter suportado, Seu comentário, que nos foi conservado sôbre tal empreendimeq.to e que,
já que, pouco depois, agüentam o sofrimento horrível da sêde na. ma;cha indúbitàvelmente, se baseia em fontes da época alexandrina, evidencia tal
através do deserto gedrósico (•). Mas então iam para oeste, em direçao à interêsse:
pátria, enquanto aqui, no Hifásis, a ordem é marchar para sul ou leste, em
.. Quando Alexandre havia ~prestado nas margens grande nú~ero de b~rcos para trinta
direção aos limites extremos do mundo! Isso p~rece-lhes horroroso e .o exér- remos, navios de convés e melO e de carga, com todo o matenal _necessáno para !! trans-
cito sabe qual a atração que tanto fascina o re1. No outro lado do no, pelo porte do exército, decidiu descer pelo Hidaspes até o Oceano. O H1daspes, na porçao nave-
que dizem os indígenas, existe um povo que possui inúmeros elefantes. gada por Alexandre, apresenta uma la:gura de_ vinte estádios (cêr~a de 3,5 km); Mas onde
Os macedônios travaram conhecimento com os elefantes quando se choca- se reúne ao Acesines o rio torna-se mUlto estre1to. É aí de curso v1olento e che10 de sorve-
ram em Arbela e Gaugamela com êsses predecesso~es ':i vos de nos~os. tanques. douros perigosos, e as águas bramam com tal intensidade que podem ser ouvidas de con-
siderável distância ...
Finalmente conseguiram derrotar os gigant~scos. ammai~. Mas o exerCito amda "Atingido o Indo, prossegue Alexandre em velocidade ainda maior, na viagem em-
não se refizera do susto, e enquanto seu rei e hder ansiava por obter, na pró· preendida. Decide navegar até a desembocadura _dêsse rio no mar, e pa:a isso ~scolhe~ os
pria origem, conhecimentos mais aprofundados sôbre essa nova . arma, de mais rápidos de seus barcos. Já que todos os habitantes das margens hav1am fugtdo, faZiam
tanta importância tática, são suas tropas agitadas por horror coletivo. Lt~tar falta aguda alguns pilotos que conhecessem aquelas paragens. Por isso fêz Alexandre com
outra vez contra aquêles monstros? Para ver outra vez com? os comp~nheuos que patrulhas ligeiras de sua infantaria explorassem o interior e aprisionassem ~indus, que
morrem sob gritos lancinantes, espetados nos dentes do ammal, ou amda ar- lhe serviriam no prosseguimento da expedição. Quando chegaram a uma regtão onde o
remessados contra os rochedos mais próximos pelas trombas poderosas? Ne- Indo atinge uma largura de 200 estádios, sobreveio forte ventania. A água havia-se tornarlo
tão violenta que mal era possível levantar os remos inferiores das ondas. Por isso atracaram
garam-se a prosseguir na marcha e o rei teve de curvar-se. os gregos em afluente mais calmo. Enquanto aí aguardavam que o tempo voltasse a s~r·
Profundamente map;oado pelo que considerou traição, expede Alexandre lhes favorável, fêz a maré baixa com que as águas descessem a tal ponto que todos os navws
as ordens de regresso. Um punhado de desesperados ca~pôni<?s da Mace~ônia deram em sêco. Não havia jamais ocorrido isto aos companheiros de Alexandre, enchendo-os
havia feito história universal. Pois depois da enorme distânCia que o rei dos de horror, que aumentou ainda quando a maré alta fêz voltar as águas ao rio. No dia
pan-helênicos havia vencido, apenas reduzido território o separava do co~­ seguinte, atravessou Alexandre a desembocadura do Indo, aventurando-se ao oceano, supos-
tamente para averiguar se existia terra à vista; na realidade, porém, conforme creio: para
tato com o país do Rei Dja~dra~pta, nas regiõ.es ~o Ganges, que lo~o. depms poder dizer que velejou no Oceano fndico."
ascende aos níveis culturais mais elevados, atmgmdo um grau maximo de
cultura entre os hindus. Como teria sido diferente a história, se já então as É ó?vio que a observação final de Arriano, segundo a qual a ambição _foi
culturas helênica e hindu tivessem tido influência benéfica uma sôbre a outra, o motivo mais forte para levar Alexandre ao alto mar, encontra apenas JUS-
como aconteceu pouco depois da mort.e de Alexandre no báctrico (• •). país tificação parcial. Pois o líder macedônico tentou indubitàvelmente verificar
dos diádocos de Seleuco, um dos generais de Alexandre que se tornaram mde- se êsse mar imenso, com aquelas marés fortes e vagas elevadas, era realmente
pendentes após a morte do líder. o. oceano ou se, em alguma parte, ainda apare<;ia terr~. E é possível que tenha
Mas assim não deveria acontecer. Em marchas forçadas voltam os gregos Sido nessa viagem em alto mar que lhe surgm aquele novo pensamento de
ao Hidaspes. O rei está abatido e triste, acompanhan~o quase continuamente ~ominação, de que fala Plutarco mais tarde. Talvez tenha Alexandre plane-
a retaguarda. Mas subitamente, uma bela manhã, é visto novamente à ponta Jado aqui submeter todo o mundo cercado pelo oceano. De qualquer ma:
dos destacamentos rápidos, encarregados da investigação do terreno antes ~a neira, opinou Plutarco que essa teria sido a razão da ordem, dada pelo rei
chegada do exército propriamente dito. Havia-se lembrado da frota. de cuJa a Nearco, para averiguar o caminho marítimo entre a índia e o Gôlfo Pérsico.
construção incumbira Nearco. Já que não era possível descer o ~Ilo, nem Enquanto Alexandre envia assim o comandante de sua frota de volta por
era o mar da Eritréia aquêle no qual desem~ocam o Ind_o ~ ? Hidaspes, se via marítima para a Pérsia, marcha êle ao longo da costa em direção à p~tria
aquêle "mar imenso" dos nativos era o própno oceano, atmgina, pelo menos numa .caminhada que mata de sêde muitos de seus comandad~s. _Já Arn~no,
por via marítima, os limites do mundo. . . . . que pmta essa horrível marcha através dos desertos do Beluchistao nas cores
Com a cabeça cheia de novos planos, febnlmente Impaciente, força o rei mais berrantes, negou-lhe qualquer significado militar, declarando ter-se tra-
seus soldados a apressarem o pas~o. ~az oito anos que. êles atravessam o mun- tado de um empreendimento originado pela sêde de saber.
do com Alexandre, e esta é a pnmeira vez que o <;ammho os leva para oeste, _Assim como essa marcha através do Beluchistão, possui também. a expedi-
para a pátria. Assim, empenham-se com suas úlum:'ls reservas e, dentro de ç:'lo de Nearco do Indo ao Tigre um verdadeiro caráter de pesquisa, com o
tempo incrivelmente reduzido, chegam todos ao. Hid.aspes. . fito único de obter melhor conhecimento do Oceano indico. É possível que
E realmente! Nearco, cumpriu sua palavra! Ah esta a frota, navws de ~O a idéia de encontrar, além do caminho terrestre aberto pelo próprio. Alexan-
remos, barcos com convés e meio e cargueiros. Embarcam, descem pelo no ~re, ~ via marítima para a índia possuísse algum significado político. Mas
com as velas enfunadas e os remos trabalhando. e m~Is provável que o motivo principal tenha sido realmente a ânsia de des-
Os "bematistas" de Alexandre anotaram cuidadosamente essa parte da c?bnr terras novas. Pois Plutarco expressamente afir_ma que Alexan~re con-
expedição asiática. Cêrca de quinhentos anos depois encontram-se tais notas Sid~rou essa viagem de Nearco apenas um preludiO de empreendimentos
n;aiores, tendo pretendido, após o retôr~o do seu ab:nirante, efet~ar o co_n-
C•) Relativo a Gedr6sia, região da Pérsia antiga.
C• •) Referente a Bactriana, antiga região da Asia. torno da Africa. Mas como quer que sep: empreendimento político ou via-

114 115
gem de exploração - a _exp_edição de N~arco constituía um feito digno de
figurar ao lado das reahzaçoes do própno Alexandre. · contos e relatos horripilantes que, não sem adição própria, foram copiados
Duzentos anos antes de Nearco, havia sido perc~rrido_ o mesmo, c~minho dos antigos.
pelo capitão grego Ésquilas, que sob ordens do R ei Dano I da Persia (5,21- Pertence a essa categoria a história atemorizadora das formigas hindus, es-
486), tinha em mente a mesma idéia: as costas ao longo do E_ufrat~s ate o cavadoras de ouro, uma fábula transmitida pelo grego iônico Megástenes,
Indo e a parte setentrional do Mar Ver~e~ho. :t?s~s. mares haviam SI~o per- embaixador de Seleuco de Bactriana junto ao Rei Djandragupta, em Pata-
corridos há três mil anos, mas as expediçoes ofiCiais, como de ÉsqUl~~s ou liputra, durante os anos de 302 até 291, fábula que, desde essa data até o
Nearco, para fins de exploração _e com ordem ex_pressa de, por ocasiao de século dezesseis é repetida por todos os relatos clássicos e medievais de via-
ocasionais aportag-ens, ?ar um~ vista de olhos mais de perto nas terras cos- gem. Essas "formigas", que pelo tamanho se assemelham a rapôsas e pela pele
teiras nunca haviam sido realizadas. Talvez Nearco, que apa~entemente era a panteras, viveriam em caverna, como relata Megástenes. Como as toupeiras,
dono' de caráter extraordinàriamente firme, pudesse ter obtido durante a amontoariam a terra, antes por elas revôlta, em suas tocas subterrâneas, nas
viagem resultados mais satisfatórios, se tive~se a~andonad_? o leme a seu saídas, sendo que aos indígenas bastaria peneirar tôda essa terra para en-
corajoso pilôto, Onesícritos. Por ou~ro lado, sao as mformaçoes prestadas por contrar o ouro nela contido. E Megástenes conclui: "Levam o ouro secreta-
Nearco de exatidão absoluta. Constituem a fonte para todos os estudos poste- mente consigo, pois se os animais o percebessem, matariam os indígenas e os
riores e .êle deve ser considerado um dos mais capazes geógrafos. da é~oca. seus animais de carga".
:tle ~esmo descreveu a viagem, descrição perdida mas que Fláv1~ A_rnano Não parece essa história uma lenda tôla para criança? Mas, apesar disso, é
ainda deve ter conhecido. Pela exposição de Arriano a~ expenenoas de inventada apenas em parte. Pois realmente existiam e existem formigas es-
Nearco não parecem ter sido tão grandios~s quanto podenamos supor. Apa- cavadoras de ouro. Temos notícias do Texas e Colorado de que a "formiga-
rentemente usou o marinheiro grego seu hvro de bordo, para ?ocu~e_ntar o colheteira", (pogonomyrmex occidentalis) tenha o costume de blindar o seu
relato a ser dado a Alexandre, restringindo-se a anotar os estádws dianamen- formigueiro, constituído por um monte de terra, com um mosaico de peque-
te percorridos, os lugares em que atracaram! as formações. da cos,ta, o: portos, níssimas pedras, preferivelmente grãos de ouro, de tal forma que a procura
etc. Merece menção um encontro com baleias, desconhe~Id~s ate ent~o pelos de ouro em tais lugares seja, por vêzes, altamente rendosa. As "formigas" de
gregos, principalmente_porque , ~o terror ca~sado por tais m~nstros , e que Megástenes eram, provàvelmente, marmotas, freqüentes nas região de Brama-
ainda vibra na narraçao de Arnano, deduznnos que grande nsco ~eve_m ter putra e no Satledj, no Penjab, e que constroem numerosas covas, corredores
constituído para os gregos, que, enfim, eram acostumad<?s a_o. mar, as viagens e ninhos na camada superior da terra. Se tais animais, inofensivos herbívo-
marítimas extensas. Essa preocupação, porém, nada sigmhca ~e compara- ros, vivem em uma região onde haja areia ou saibro aurífero, é possível que
da ao mal-estar com que os romanos, terrícolas consuma~os, se faZiam ao mar. a terra amontoada por êles tenha contido ouro. Eis tudo. O que Megástenes
Mas disso falaremos adiante. Arriano informa a respeito: conta a respeito dos instintos sanguinários dêsses animais, seu tamanho e sua
" esse mar estranho há grandes baleias e outros peixes_ de tamanho respeitável,__m~it~ velocidade é meramente uma lenda, arquitetada por comerciantes para
maiores que em nosso Mediterrâneo. Nearco relata da segumte forma as suas expenencias. a~edrontar quaisquer competidores que poderiam ter a idéia de peneirar
"Quando partimos, percebemos que no mar, a leste de nossas nave~, era soprada água para tais preciosas quantidades de areia à procura do ouro.
cima da superfície marítima, como sói acontecer com forte redemomho durante uma venta· Fo~migas minerando ouro: eis um tema sôbre o qual cumpria escrever. E
nia. Assustados, perguntamos a nossos pilotos qual a causa. Responderam ~ratar-se de ba· sem mtenções malévolas! Pois quando se dizia que na índia existia o ouro,
leias que viviam nesse mar. Nossos marujos atemorizara~·se a po~Jto de dei~ar escapar de
suas mãos os remos. Dirigi-me a êles a fim de os ~ncora1ar. Depois, na~egt~ei e~ redor da
o, cobre, o ferro, o estanho e pedras preciosas em quantidades enormes, e que
frota dando ordens para que todos os pilotos mantivessem o curso em direçao a _esses mons· la crescia uma espécie de junco capaz de produzir o "mel sem necessitar de
tros 'como durante uma batalha. Todos deveriam partir juntos, fazendo o mator barulho abelhas" - nossa cana-de-açúcar, e que lá o Sol estava tão alto no céu que
pos;ível. Os marujos, acalmados pelas minhas Ralavras, remaram c?m tôda a fôrça e, uma ~uas sombras indicavam para o sul, tôdas essas informações tinham sabor
vez próximos àqueles animais, gritaram o mais que puclera~n. Fizer~m ta~bém soa: as Igual de fantástico ou maravilhoso. Num país dêsses, concluíam, seriam bem
trombetas e produziram grande ruído com os remos. As baleias, que Já podiam ser. v~stas possíveis formigas interessadas em ouro e do tamanho de rapôsas.
a pouquíssima distância do barco, fugiram amedrontadas para as profundezas oceamcas.
Não muito depois voltaram a surgir atrás da frota, soprando a água aos ar~s como dantes. Mas o interêsse principal dos descobridores antigos ligava-se a um animal
Os marujos, entusiasmados, bateram palmas, alegrando-se com sua salvaçao e lou~ar~m c~mpletamente diverso, o elefante hindu. Já vimos como Alexandre lastimou
Nearco pela coragem e inteligência demonstradas. Dessas baleias, às vêzes algumas sa~ ]0 • n_ao ter sido capaz de penetrar no país dos elefantes. E o General Flávio Ar-
gaclas à terra, pelas tempestades; outras ficam prêsas na areia, durante as marés J:>atxas. nano, sentado, em 150 de nossa era, à sua mesa de trabalho em Nicomédia,
Morrem e apodrecem. Uma vez desaparecida a carne, restam_ os ossos que os ~abitantes expressou sentimentos semelhantes. É verdade que as guerras púnicas, du-
daquelas regiões usam para a construção de suas casas. Os maiOres servem para vig~s, e os
outros para a coberta. Ossos do queixo são freqüentemente usados para as portas, pois essas ~~nte as quais também os romanos aprenderam a temer os elefantes, haviam
baleias chegam a atingir um tamanho ele 25 braças." J~ passado há muitos decênios. Não é crível que os enormes animais côr de
cmza e ~e. areia ainda representassem, no tempo de Flávio Arriano, qualquer
:tsse acontecimento, como é fácil imaginar, impressionou profu~da~ente papel mi~ltar de importância. Talvez eram ainda empregados aqui e acolá
todos os contemporâneos, dando origem às mais desencontradas histónas. e ~elos nativos nas fronteiras sudestinas do Império Romano, contra pequenos
interpretações. O "esclarecido" Plínio, . transfo~mou, trezentos ano? depOis, estacamentos imperiais. Mas, apesar disso, estava muito vivo o interêsse
as baleias inofensivas em enormes reptis marítimos e os comentanstas P?s- pelos ele~antes que o povo romano conhecia dos espetáculos circenses. E os
teriores seguiram essa versão. Por isso não é de a~mi_rar que a ~dade Média, comentános de Arriano sôbre os elefantes foram entusiàsticamente recebidos
já por si mais alheia à natureza do que a AntigUidade, esteJa repleta de nosl salões de Roma e Alexandria, sem dúvida com inter.êsse não apenas
zoa ógico.
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O general, aliás, redigiu seu comentário com muita perícia, desprovendo-o quartel-general de Alexandre meditaram com muita insistência sôbre o even-
de notícias lendárias. É verdade que, se não tivesse agido dessa forma, os tual valor de combate dêsses sêres gigantescos, os problemas do municiamento
romanos, que conheciam_ bem os ~lefantes, não teriam aceito suas _infor~a­ dos arqueiros que nêles cavalgavam e como providenciar alimentação e água
ções. Mas sua reserva nao é exphcada apenas por prudentes cons1deraçoes para os animais. E essas r~f~exões não dif_e rem mu~to das ponderações dos
literárias, já que se baseiam provàvelmente nos relatórios dos "bematistas" modernos regulamentos m1htares das umdades bhndadas. Também aqui
do quartel-general de Alexandre. Mostram, portanto, que espécie de infor- parece novamente comprovar-se que o homem, dentro de suas diferentes ma-
mações recebia o próprio Alexandre, e podemos ter a certeza que êste teve nifestações de existência, conservou-se sempre o mesmo, e que nós, modernos
o máximo empenho em instruir as suas equipes de ciência militar no sentido representantes dêsse mais curioso de todos os sêres terrestres, não temos mo-
de fornecer-lhe notícias exatas e completas. Quando, por exemplo, Arriano tivo algum para ficarmos orgulhosos por nosso progresso técnico ou o pre-
descreve uma caça de elefantes selvagens na fnclia, refere-se a métodos de caça tendido excesso de apreensões com que temos de arcar.
ainda hoje empregados: Qual verdadeiro meteoro apareceu Alexandre, iluminando o céu da Anti-
guidade Grega que, pouco a pouco, caía na escuridão. Nenhum contempo-
"Os hindus caçam outros animais selvagens de maneira idêntica à dos gregos. Mas a sua râneo reconheceu quáo enganoso era êsse brilho faiscante e que o apareci-
maneira de caçar elefantes não se assemelhava a nenhuma outra. Pois o elefante n ~o se
assemelha a nenhum outro animal. Depois de escolher um lugar quente, cavam os hmdus
mento dessa genial personalidade de dominador não passava de uma pilhéria
em tôrno do mesmo uma vala, tão profunda que poderia abrigar um exército inteiro. Esta trágica da História Universal. Pois, por mais que o herói macedônico fôsse
vala mede cêrca de 5 braças de largura e 4 de profundidade. A terra escavada é depositada filho de sua época, por mais que tivesse absorvido todo o conhecimento téc-
em ambos os lados da mesma, servindo como uma espécie de muro protetor. A seguir nico e a formação espiritual de seu tempo, era êle um verdadeiro anacronis-
colocam dentro dêsse curral três ou quatro fêmeas especialmente mansas, mantendo apenas mo vivo. Foi considerado uma espécie ae grego romântico. Mas nada de so-
uma passagem de chegada sôbre a vala. Cobrem a passagem com relva e pedras, de tal nhador havia em seu ser: tudo era inteligência, resolução rápida, vontade
modo que essa ponte não seja descoberta como obra humana, pelos animais. Durante o
dia os elefantes selvagens não se aproximam de regiões habitadas, mas à noite vagueiam por
absoluta de poder que se deixava levar aos assassinatos friamente planejados.
tôda parte, pastando em verdadeiras manadas, de tal modo que os fracos seg_ue~ sempre U mesmo destemor infantil ao enfrentar a imensidão do universo, a mesma
os mais vigorosos, assim como as vacas seguem o touro. Chegando às proxtmtdades do indiferença, proveniente de pura ingenuidade, perante limites nacionais ou
curral, de onde vem o grito das fêmeas, dirigem-se a êle correndo. Se, rodeando a vala, geográficos, a mesma falta de compreensão para com o significado de desen-
chegam à ponte mencionada, atravessam-na e penetram no curral. Logo que os caçadores volVI~entos culturais seculares, como apareceram mil anos antes entre a clas-
vêem que os elefantes selvagens entraram, alguns dêles retiram a ponte enquanto outros se remante de Tiro e Micenas. Alexandre pertencia com muito maior razão
correm às aldeias vizinhas a fim de espalhar a notícia alegre de que os elefantes selvagens
estão presos."
àqu~la _que à sua própria época: um homem do passado, transportado pelo
d~seJo mcontroláve! ao espírito universal a uma epoca que não possuía am-
biente para êle. :
Essa minuciosa descrição provém com certeza daquelas fontes militares da
época alexandrina, ainda acessíveis a Arriano e que, primitivamente, deveriam Que Ironia interessante: êsse descendente daquelas gerações cujos carros
ter pertencido aos arquivos militares da Macedônia. Mas Flávio Arriano sabe de combate foram vencidos por arqueiros asiáticos montados em cavalos, ven-
ce~ I_la batalha decisiva de Gaugamela, com arqueiros montados, os perso-
tratar seu público, e acrescenta a essa notícia outros dados derivados de co-
nhecimento próprio: asiáticos! E que ironia ter êste nomem reunido em suas mãos a soberania
exclusn:a de grande parte da Asia, exatamente quando o pólo magnético dos
"Aconteceu até que elefantes levassem ao túmulo os soldados que montados n êles morreram a~onteCimentos mundiais, após sua oscilação entre as costas oriental e meri-
durante a batalha. Outros prosseguiram a luta pelos seus senhores, embora êstes já houves· dwnal do Mediterrâno, apontava para Komal Que concepção grandiosa e
sem tombado ao chão. Outros ainda expuseram-se a tremendos riscos por seus senhores comovedora em sua falta total de significação, que na hora da morte de
caídos, e um elefante que, atacado de fúria, matara seu senhor, ficou tão melancólico e
triste que veio a morrer êle próprio. Mas existem também elefantes artísticos. Eu mesmo
~lexandre tivessem chegado embaixadores de romanos, cartagineses, gálios e
pude ver um elefante tocar címbalos enquanto outros dançavam ao som dessa melodia. O Iberos, pondo aos pés do grande rei grego também a parte ocidental do mun-
executante tinha dois címbalos presos às pernas dianteiras e outro, à tromba. Em com· do: um gesto que nos faz crer que, durante um momento, o deus da história,
passo regular, batia com a tromba o címbalo, ora duma, ora doutra perna. Os elefantes por amor a seu filho predileto, estava na incerteza se não deveria fazer voltar
dançarinos pulavam em círculo, sempre de acôrdo com o compasso indicado pelos cím· atrás o desenvolvimento dos destinos mundiais.
halos, levantando suas pernas dianteiras." . E foi nesse momento que a morte reclamou para si, após doze dias de febre
Intensa, o soberano com 33 anos de idade. Em junho de 323 hcou decidido
É evidente que Flávio Arriano viu elefantes dançantes apenas no circo, ~ue ~ pl~no para o desenvolvimento mundial, que agora levaria os itálicos
onde ainda hoJe podemos apreciá-los, assim como suas "artísticas apresenta- ao pnmeiro p1ano seria enfim mantido. Teremos de segui-lo em nosso relato,
ções". í.sse o seu conhecimento de causa pessoal. As primeiras linhas do pa- para o que examinaremos a história de Roma.
rágrafo, contudo, tiveram origem também em trabalho do estado-maior grego, .:~s ~ea!izações de Alexandre, embora não tivessem tido imediatas conse-
e podemos imaginar vivamente os diligentes autores do "manual do exérCit? quenCias pohticas, foram, apesar disso, de importância incomensurável. E não
macedônico" preocupados em estabelecer regras simples e fàcilmente inteli- ape~a~- no que concerne à Geografia, se bem que baste rápida comparação
gíveis para o emprêgo da nova arma, intitulando o capítulo: "Elefantes, seu aa Ide~a que Heródoto possuía do mundo, com os descobrimentos de Ale-
emprêgo tático e estratégico". ~anctr;, para evidenciar imediatamente o seu sucesso, a ampliação enorme
Mas deixemos de brincadeiras. Naturalmente não sabemos se existiu tal ba_fucumen~ grega. Ainda mais significativo foi o efeito psicológico de sua
regulamento militar para o emprêgo dos elefantes no exército da Macedônia, n ante f_Igura. Os mitos que surgiram no Extremo Oriente acerca do bri-
mas os livros de Arriano deixam claramente entrever que os oficiais do lhante e sm1stro herói europeu originaram uma literatura completa. Não
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menor foi a impressão causada por sua vida e suas realizações no Ocidente.
Talvez, em última análise, nem se fundamente a significação maior de sua
vida em seus feitos reais. A conseqüência imponderável de sua existência foi
mais importante ainda, o aumento da confiança em si do homem branco,
que surge desde sua época e que talvez fôsse a condição espiritual prévia para
que o Império Romano pu~esse ex~stir 5omo existiu .. A? contrário da pura PARTE V
execuçao do poder, constitUI a dommaçao uma supenondade moral. Os mi-
lhares de cantores ambulantes que, ainda séculos após a morte de Alexandre,
ganhavam a vida cantando seus feitos, os poetas, cujos versos eram repetidos
pela alta sociedade, tôdas essas influências imponderáveis, mas enormes, que DE ROMA AO EXTREMO ORIENTE
a vida heróica de Alexandre transmitiu, agiram numa só direção; fazer com-
preender que foi a um europeu, à Europa, que o mundo se submeteu. Ao
·E À AMÉRICA
poder que Alexandre reunia em suas mãos ligava-se o brilho de uma cultura
florescente e altamente desenvolvida, uma das mais maravilhosas produzidas
pelo Ocidente. Assim deu a Alexandre a consciência orgulhosa de ser grego,
o mais forte ímpeto para suas realizações, e essa consciência emprestou à sua
invasão da índia aquêles efeitos culturais, dos quais acima fafamos, e que,
de maneira tão evidente, superam o significado político de seu empreendi-
mento.

Os romanos) adversos à água - O "Hotel Septu-


manus" em Lião - Peritos romanos de âmbar na
Prússia Oriental - O Vaso François) os anões e os
grous dos pantanais do Nilo - Atravessando o
Oceano indico sem bússola -Pilotos e faróis- An-
tigos manuais de navegação - Qual a extensão da
hora? - Cargueiros de 2.000 toneladas na Antigui-
dade - Indicações de ancoragem romanas para
portos indianos- Os ceiloneses ficam surpresos em
Roma - Chineses de olhos azuis? - Comerciantes
mmanos em Pequim - A Imperatriz Si-Li-Shi e a
"bombyx mori") o bicho-da-sêda - A Sra. Marco
Aurélio não tem dinheiro para um vestido de sê-
da - As mulheres pecaminosas da Ilha de Cós -
Rotas à China - Quem vai para Singapura? - O
que sabia a Antiguidade da América? - Peles-ver-
melhas desembarcando na Europa.

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Vamos examinar agora o mais emocionante e aventuresco tema da Geogra-


fia antiga: o relato da extensão realmente mundial de Roma, assim como se
apresenta em princípios de nossa era. Por mais que, em nosso período esco-
lar, ouvíssemos falar da Antiguidade, quase nada ficamos conhecendo a res-
peito da vida colorida e movimentada da época, das relações comerciais ou
das atividades marítimas. Nunca ouvíamos falar do negociante de Alexandria
ou Mileto, cujos sócios europeu-ocidentais comerciavam, de Gades ou Massí-
lia, com a Gália e as Ilhas Britânicas, e mesmo com os países germânicos do
âmbar, enquanto êle próprio mantinha suas relações comerciais com Bariga-
za, na índia Anterior, a Broac de nossos dias, ou mesmo com Catigara, o gran-
de pôrto da China distante. Em seus armazéns havia sêda da China, condi-
mentos e pedras preciosas da fabulosamente rica Ilha de Taprobana (Ceilão),
que, impelidos pelas monções e trazidos por seus cargueiros de brilhantes velas
brancas, haviam cruzado milhares de milhas marítimas, vindos do Extremo
Oriente. O incenso de Hadramaut vinha de Adana, nossa atual Aden, o mar-
fim e o ouro da Núbia, o vidro da Fenícia, prata e trigo do Mar Negro.
Trocava tudo isso por sacos recheados de moedas de ouro de Roma, odres
com forte vinho grego, preciosos ornamentos de âmbar germânico. E enquanto
os representantes de nosso amigo aguardavam na índia a chegada das cara-
vanas da Ásia Central que vinham cruzando o Himalaia, e os enormes juncos
da China, estivadores celtas descarregavam corais e conchas de cauri, fazen-
das purpúreas da Síria, armas romanas e talvez também preciosos e finíssimos
véus de sêda, em que as escravas da Ilha de Cós, no Mar Egeu, sabiam trans-
formar os brocados do Extremo Oriente, dos gigantescos cargueiros que seus
agentes da Europa Ocidental enviaram a um pôrto britânico.
Também nós não encontraremos pessoalmente êsse comerciante internacio-
nal. Por certo possuía já um "escritório" em que trabalhavam numerosos em-
pregados mais ou menos bem pagos - escravos, como eram chamados na
época. Não sabia o que eram "letras de câmbio" e por isso estava livre de
títulos protestados e demais preocu_pações do gênero. Mas já existiam as com-
pras a crédito, e portanto um serviço bancário regular, com giros, cartas de
crédito e cheques. Sim, os cheques eram meio tão comum de pagamento em
Roma que Ovídio, em sua "Arte de Amar", se queixa, de forma comovedora,
da '_'ganância" monetária das mulheres. Se alguém lhes dissesse que a soma
pedida nem existia na casa, responderiam que lhes bastaria um simples che-
due. _Naturalmente não há provas exatas para tais afirmações. A areia, que
epms de dois mil anos de destruição, cobre o túmulo . de nosso comerciante
alexandrino, os incêndios que destruíram suas contas, seus recibos de alfân-
dega e de impostos e sua correspondência comercial, os saques sofridos por
~eus armazéns, tornaram impossível essa "prova exata". Certo é, porém, que
e~e. realmente viveu. A "auri sacra fames", a "santa fome do ouro" como
diziam, produziu e desenvolveu êsse tipo de homem, estimulou sua atividade
e engrandeceu-o, para depois tragá-lo, cobrindo-o com as inúmeras camadas
~e pó das gerações posteriores. Mas encontraremos suas pegadas, desde o Iã-
sé-Quiã no Extremo Oriente até a ponta territorial extrema do Oeste da
Espanha. Talvez êle já tivesse o pressentimento nutrido por um vago rumor,

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u'?adnotíci!l fugidia dum. grande país atrás do oceano ocidental - a América tivos e os propósitos dessa expedição de reconhecimento, e por isso houve
A m a ouviremos a respeito. · quem afi_rmasse que~ após a conquista de Ca~tago, os romanos encontraram
Vagarosa. e difi~i~mente havia-se chegado a êsses tempos de verdadeiro trá- nos arqmvos dessa Cid_ade os relatos da expedição do Camerum, dirigida por
fego mundial. IniCialmente os romanos não haviam sido navegadores explo- Hano, resolvendo entao explorar, por sua vez, as costas ocidentais da Afnca.
rador~s. e, se comflara~os. aos gregos, seu. trabalho consciente de descoberta
Não há ~r~vas para tais afirmativas, qu~ parecem porém bastante plausíveis,
geogra~Ica era ~l!Ito dtmmuto. O conheCimento teórico não convinha à sua
já que Phmo, falando duzentos anos ma1s tarde a respeito dessa viagem curio-
mentalidade pratica, mas alcançava sua verdadeira razão de existência quan- sa, refere-se a uma montanha, chamada de "Carro Divino".
do e~a possível concreti~á-lo, torná-lo útil para o sistema de poder de Roma. De onde tirou Plínio êsse nome, que realmente é citado no relato de Hano?
Por Isso os romanos realizaram pouca coisa, no sentido das viagens gregas, que tsse. co.?hecimento só pode provir dc;>s p~nicos, e conside~ando a "política
expl?ravam o mundo de~c?nhecido. Isso é tanto mais surpreendente quando reahsta dos romanos, podemos bem Imagmar que os arqmvos e os registros
co~stderarmos que seus VIzmhos e precursores, os etruscos, devem ter sido ma- de patentes de Cartag~ mereceram seu especial interêsse quando, finalmente,
rUJOS excelente~. InventDres do gancho de abordagem, foram durante muito penetraram naquela nca: e poderosa cidade. Possivelmente, assim podemos
te~po, como piratas, o t~rr~r. dos mares: sendo que a palavra "etrusco" pos- deduzir, aproveitou-se o inteligente Políbio da disposição favorável dos ro-
smu, durante séculos,_ o ~tgmhcado de pirata. Apesar de tudo isso, fizeram-se manos, provocad~ pela v_itória final, p~ra fazê-los empreender esta viagem
os ~omanos ao ma~ mdtspost?s e contraria_dos, sendo que apenas muitos e pelo mar. Mas, amcla asstm, parece cunoso que os romanos se tenham dei-
mmtos séculos mats tarde vieram a constderar o Mediterrâneo o "mare xado vencer J?O! um apêlo .à. s~a vaida?e nacional._ Empregaram sete navios
nostrum". par~ a ~xp_e?iça_o que se. clmgm à Afnca e pesqmsou o Atlântico, número
Não. existe nenhuma razão evidente para tal atitude. Temos simplesmente mmto stgmhcattvo, constderando-se o número diminuto de naves que cons-
de _aceit_á-la. Mas t~os aquêles que não consideram o desenvolvimento his- tituíam a fro~a romana. Ou ser_á que Cipião teve outra meta em mente? Será
tónco Simples casualidade, po_derã_o pensar. que o povo romano foi proposi- que, como afirmam fontes _a~ttgas, parte. da esquadra cartaginesa conseguiu
tadamente resguardado pela lustóna do pengo do desperdício que a extensão escap_ar pelos ~ares mundiais? Tenam eles procurado auxílio nas estações
tentadora do mar sempre de novo acarretava. Neste caso considerar-se-ia a costeiras cartagmesas, fundadas por Hano? Não se conhece exatamente o
c<?nsol_idação: ? propósito de manter e unir as posições co~quistadas a tarefa ponto alca_nçado por Cipião. Mas p_arece ter estado no Senegal e em Cabo
V~rde, m~1s ou menos a 14° de latttude norte, o que deve ser considerado
histón~o-politica de Roma. Em isto correspondendo à verdade, torna-se com-
pr~ensivel por que _é que os romanos aparecem tão tardiamente como desco-
feito notavel, se nos lembrarmos que demorou outros dezesseis séculos até
~ndores; porque, vta de regra, se limitam a coligir, separar, manter informa-
que frotas européias fôssem capazes de novamente penetrar assim profunda-
~ente pelo sul. Mas aí já não existiam os estabelecimentos costeiros dos pú-
tivamente e catalogar o saber adquirido.
mcos, como se sabe de Hano. Uma vez que êsses tinham o propósito de
_Não lh~s falt_ava sa~er. O sa~er era, por assim dizer, trazido à cidade do prote~er o caminho marítimo às Ilhas Canárias, não teria cabimento o esta-
Ttbre. P01s o ststema mformativo bem organizado do Império Romano tor-
nou possível o emprêgo do vasto ~oticiário que chegava de tôdas as partes do ?eleCimento de colônias costeiras a dez graus de latitude mais para o sul e
tgualmente desprovida de razão teria então sido a viagem de Cipião. Por
mundo. O progr~s.so da matemáttca e da astronomia, devido principalmente que, então, foi o empreendimento estendido a tal ponto?
aos greg<?s, rermitlU que se chegasse a grande quantidade de conclusões exa-
tas. E~cntónos de cadastros e arquivos do Estado cuidavam de guardar êsse .~es.sas latitudes mais ou menos começa a soprar o alísio boreal, que um
matenal, cons~rvando-o para a posteridade. Significação especial cabia ao mllemo e meio mais tarde impeliria em 21 dias da Ilha de Cabo Verde o
nave_g~do_r ge~ovês Cristóvão <?ol_ombo até a América. Quem fôsse perseguido
grupo dos agnmensores, encarregados de esboçar e desenvolver o sistema de
estradas _d~ Roma. (Um de seus instrumentos de medição foi conservado, por mimi~os mclementes conhana, desde que fôsse bom marujo, sua vida aos
ve':lt~s e. as ondas, e não à graça do inimigo. Teriam os púnicos sabido da
sendo exibido no Museu Romano-Germânico em Mogúncia. Surpreende pelo
fato de corresp_onder exa.tamente a um dos instrumentos especializados de extstencia do alísio? Teriam pressentido que havia terra firme além do
:e~no? Será que Cipião prosseguiu nessa sua viagem, aparentemente sem
nossos engenheiros e agrimensores modernos). Itinerários minuciosos eram
e_sboçados para cada uma dessas vias, descrições de caminho, que não con- Otivos, apenas para convencer-se do desaparecimento dos cartagineses no
oc~ano? Quando Colombo realizou seu extraordinário feito com três navios
tmham apenas os nomes, J:?as também a extensão das diferentes etapas. É
verdade, contudo, que aquilo que estava além da imediata necessidade im- ~tseráveis, que certamente não eram muito maiores que as' embarcações pú-
perialista de Roma, não os interessava. Assim sendo, criou Roma um centro ~~cas, nada .s~bia da América: Isso é certo. É duvidoso que tenha tido notícia
mundial de ampla cultura ao mesmo tempo que se mostrava indiferente ao h ~ento a~lSlo, mas apesar dtsso ousou atravessar o mar. Será que os púnicos
fato de ainda existirem inúmeros pontos ignorados na órbita terrestre. avtam agtdo de maneira idêntica? - Tudo isso discutiremos mais adiante.
"Oficialmente" interessou-se Roma apenas 150 anos antes de nossa era Ci Po.! mats · ImpressiOnante
· · que seja essa viagem africana dos sete navios de
pelo fato de que vida humana existia também além das montanhas e dos EsPiao, que <;li~erença com Cartago! Quando esta tomou de assalto tôda a
mares pátrios. ':erificou-se. isso mediante uma exre?ição marítima, aparen- panh~ Mendwnal, por volta de 530 a. C., não hesitou um momento sequer
temente desprovtda de motivos no complexo das atividades de descobrimento ~m enviar navios de reconhecimento ao norte e ao sul do Oceano Atlântico.
dos romanos. Essa expedição dirigiu-se às costas do Noroeste da África e est v~rdade que os marujos não tiveram de suportar um fechamento dos
foi, provàvelmente, realizada logo após a conquista de Cartago, por volta de rettos por 300 anos, como sucedeu com os romanos, que no melhor dos
145. ~·C. Est~va sob o coman_do,do geógrafo grego Políbio, amigo de Cipião casos chegavam até a Espanha Oriental, e isso somente nas raras épocas em
Emthano, o General da Afnca dos romanos. Desconhecem-se quais os mo- que a paz reinas~ ~!Hre Roma e Çartago. Também com a outra grande po·

124 125
tência marítima do Mediterrâneo Ocidental, com Siracusa na Sicília, man- contato com batavos, frisões e chaucos, desenvolveu-se com a troca de suas
tinha a cidade do Tibre quase sempre relações tensas e onde quer que as jarras de vinho, suas mercadorias de vidro, cerâmica e metal por produtos
enormes "dreadnoughts" dos sicilianos encontrassem as primitivas embarca- germâ_nic<?s, tais wmo o âm~ar! penas de ganso, cabelos de mulher e peles
ções romanas, metiam-nas a pique com suas catapultas. Essa infeliz constelação de amma1s, um extenso comerciO.
político-marítima no Mediterrâneo, que em muito entravou o desenvolvi- Apesar disso, continuava sendo o Mar do Norte uma região sinistra e te-
mento marítimo de Roma, deve ser levada em devido têrmo de conta. Mas mida, e se devemos atribuir aos romanos ainda outro feito importante, tal
não obstante, tudo isso não explica a aversão dos romanos ao mar. A razã~ como a descoberta do Mar Báltico - e isto através de uma expedição de
para tal comportamento tem raízes profundas em seu ser. âmbar à Samlândia, realizada por volta do ano 65, isto é, na época de Nero
Os empreendimentos seguintes, dos quais há notícia, que tinham alguma _ então temos de conceder-lhes as glórias máximas. Pois aquela observação
semelhança com expedições de pesquisa, dirigiam-se principalmente para 0 de Tácito, referindo-se a tôda a Gêrmânia: "Se bem que o país, em sua apa-
rência externa, apresente algumas diferenciações, oferece de um modo geral
norte. Tentavam levantar o véu que mantinha oculto o curso superior do uma impressão horrível por suas florestas e repugnante pelos seus pântanos",
fster, nosso atual Danúbio. Avançavam para a Germânia que, à esquerda do
Elba, era finalmente bem conhecida; empreenderam por volta do ano 80 caracteriza mui especialmente a Europa Oriental e a res-ião do Vístula. In-
felizmente não conhecemos as razões específicas dessa v1agem à Samlândia,
uma expedição naval à Inglaterra, cujo conhecimento se havia perdido nos razões que não devem, porém, ter sido militares. Provàvelmente foram mo-
300 anos deco_rridos desde a visita de Píteas - principalmente por causa da tivos econômicos que tornaram necessários os gastos e os perigos dessa expe-
r~serva _consciente das firmas exportadoras europeu-ocidentais, que não
dição, e poderemos ousar a afirmativa de que a moda do âmbar, que flo-
unham mterêsse algum em que estranhos se imiscuíssem no comércio lucra- resceu principalmente em meados do primeiro século de nossa era, pode
tivo com as ilhas britânicas. E finalmente colonizaram a Gália, ligada ao ter causado a viagem em questão.
complexo geográfico sob influência romana, também financeira e politica- Como quer que seja, porém, Plínio transmitiU que o oficial romano, en-
mente. carregado dessa expedição, voltou a Roma com tanto âmbar que as rêdes e
A Germânia nunca chegou -e isto está fora de dúvida - a receber tantos as balaustradas de proteção (no circo) foram cravejadas de âmbar, que tam-
negociantes romanos, espanhóis, gregos e sírios como a Gália, e era impos- bém a areia espalhada no chão continha âmbar, tendo mesmo os caixões
sível dizer do país nebuloso do Elba e do Mar do Norte o que era comum fúnebres sido ornados com âmbar. O maior pedaço de âmbar trazido por
ouvir da Gália: "Superabunda em comerciantes, é cheia de súditos romanos; êsse oficial pesava treze libras. Quão importante era para Roma essa região
é impossível para gaulês algum firmar uma transação comercial sem que dela afastada, evidencia-se também pelo fato de que ao mesmo tempo principiava
participe pelo menos um romano; e qualquer moeda que circula na Gália a fluir forte corrente de moedas romanas para as regiões costeiras do Báltico.
aparece na contabilidade dos romanos!" Essa citação de "Pro M. Fonteio", Enquanto achados de decênios anteriores são relativamente raros, as escava-
discurso de Cícero, parece exagerada à primeira vista, mas os numerosos ç~es referentes a esta época trouxeram à luz algo de considerável no que
achados em solo francês confirmam-na plenamente. Chegou-se dessa maneira d1z respeito à quantidade como também à qualidade das peças. Coaduna-se
ao conhecimento que espanhóis eram membros da Associação dos Negocian- com isso o incremento notável das notícias que do Báltico Meridional chegam
tes de Vinho em Lião, que sírios encontraram aí a sua última morada, enquan- a_Roma, verificável na literatura romana desde o govêrno de Nero. Enquanto
to casas comerciais romanas estabelecidas em Colônia exportavam cerâmicas amda Pompônio Meia, por volta de 50 de nossa era, não possuía o menor
para a Inglaterra. Ingressos permanentes para o teatro em Nimes (•) são emi- conhecimento da existência do Mar Báltico, tem Tácito, cinqüenta anos
tidos aos capitães de firmas de transporte marítimo e fluvial, e o encarrega- depo~s, informações relativamente boas, mesmo sôbre as diversas tribos, e
do da publicidade do "Hotel Septumanus" em Lião, preferido pelos comer- depois de outros cinco decênios ofereceu Ptolomeu um quadro completo e
ciantes viajantes romanos, faz escrever na placa de seu Hotel: "Aqui Mercúrio correto, muitas vêzes mesmo minucioso, da costa meridional do Báltico.
promete lucros comerciais, Apolo, saúde, e Septumanus, repouso e pasto. Quem Isso só pode significar que, a partir da segunda metade do primeiro século
aqui se hospeda, prosseguirá em melhor viagem. Estrangeiro, veja onde a de nossa era, densa corrente de comerciantes se movia entre a Samlândia e
permanência lhe é sempre favorável!" ~ Adriático. Tal fato é testemunhado não apenas pelas muitas moedas da
Tudo isso era dificilmente encontrado na Germânia, excetuando-se Colô- epoca g~vern~mental de Nero, até os Antomnos e Heliogábalo, ~os iníc~os
nia, Treves, Asciburgium (• •) e algumas outras cidades. Apenas no caminho d? terceiro seculo, mas também pelos extensos achados de depósitos, pnn-
marítimo da desembocadura do Reno ao Weser e ao Elba, portanto próximo np~lmente na aldeia de Hartlieb, nas proximidades de Breslau, com reservas
às regiões do âmbar, existia para indivíduos corajosos uma possibilidade de de ambar superiores a meia tonelada. Estudando tanto os achados de moeda
entreter comércio lucrativo. A êsse respeito é significativo que Copenhague 9uanto os de âmbar, conclui-se que a rota Adria-Samlândia, começando junto
recebesse justamente êsse nome. Pois "Copenhague" significa o "pôrto dos a Aqu~lé~a, se dirigia a Petronelf, o antigo Carmentum, via Laibach (Ljublj~­
comerciantes", e os filólogos provam que a palavra alemã para comerciante, na), Cllh e Pettau. Daí levava ao longo do Rio March, à Porta da Moráv1a
Kaufmann, procede do latim "caupo", o negociante em vinhos. Copenhagu~ ~ atr~v~s da Silésia Superior e a parte meridional da antiga província de
foi certamente o pôrto preferido dos negociantes de vinho da Europa Men- . osn~ma para Calísia (a atual Kalisch). Em seguida acompanhava o curso
dional. De onde se deduz que os romanos se acostumaram, com o tempo, ~!1-f~nor do Vístula, alcançando o Báltico e as "commercia", as feitorias e fi-
também aos traiçoeiros mares setentrionais e, uma vez que entraram em lais dos comerciantes do âmbar romanos e levantinos, que aí existiam em
grande número.
C•) Nimes, pequena localidade provençal, de há multo se distingue . pela proteção às artes. Mas as expedições dos romanos não se dirigiam exclusivamente para o
Hoje é famosa pelas touradas e suas representações de verão; teatro ao ar livre. - N. do T. norte. Suas atividades de conquista e descobrimento foram mesmo muito
C.. ) A atual Augsburgo. - N. do T.

126 127
mais extensas em regwes meridionais. Porém, aqui muitas vêzes voltaram
a descobrir regiões que, pelas velhas civilizações anteriores, haviam de há
muito sido consideradas parte da ecúmena, mas o conhecimento das quais
desaparecera no correr dos tempos. Assim, por exemplo, Élio Gallus, que no
ano 25 a. C., como enviado de Augusto, procurava em vão subjugar a Ará-
bia, para tomar posse das minas de ouro em nome de Roma, embora chegasse
até perto de Hadramaut, foi seguir apenas o caminho percorrido por em-
preendimentos anteriores, o mais das vêzes fracassados, executados em séculos
precedentes por egípcios, assírios e persas. Mais ou menos ao mesmo tempo,
outro general romano, Petrônio, partia do Egito para a região meridional do
Nilo Superior. Pela primeira vez encontravam-se romanos tão profundamente
penetrados na África Central; mas também êles não avançaram além do ponto
atingido quinhentos anos antes por Cambises e seus soldados persas. Elefan-
tina, a Assuã de hoje, continuava sendo o extremo estabelecimento limítrofe
egípcio do sul, defrontando a Etiópia.
Também a incursão que Cornélio Bulbo, prefeito romano do país dos
Sirtes (•), empreendeu para o sul no ano 19 a. C., partindo da Tripolitânia
e que o levou até a região de Phazania (Fezã) e até Garama, capital do país
dos garamantes - ao nordeste de Murzuc, onde Heinrich Barth, dezoito
séculos mais tarde, voltou a encontrar as ruínas de Garama, perto de Djerma
- não teve o caráter de uma expedição dirigida a regiões totalmente desco-
nhecidas ou selvagens. Já Heródoto fala dos garamantes como sendo um
dos povos maiores e mais ativos da planície africana, bem provida de águas
ao sul do Saara. Desde tempos remotos existia aí, nas proximidades da lon-
gitude média do continente, uma rota comercial bastante percorrida,
superando o Saara, indo de oásis em oásis, e levando até bem para o sul do
continente negro. Por isso, sabia-se de há muito que ao sul do país dos ga-
ramantes viviam etíopes, se bem que se subestimassem as distâncias. Assim,
julgava Estrabão que a costa meridional dessa Etiópia ficasse a uma distância
de apenas dez dias de viagem da região dos garamantes. Foi só depois de
comerciantes romanos participarem, em anos posteriores, das expedições de
pilhagem dos garamantes, chegando até a região do Lago de Tsad, que
aquela concepção foi reconhecida como sendo errada: o que por sua vez
caíra em completo olvido quando, mil e quatrocentos anos depois, os portu-
guêses principiaram com suas expedições africanas.
Nessa época, Roma voltou sua atenção à exploração da Montanha do Atl~s .
Pompônio Meia e Plínio transmitiram-nos em seus escritos que Suetômo
Paulino, governador das colônias norte-africanas, realizou em 42 de nossa
era uma expedição ao Wadi Ghir e que, durante tal empreendimento, e:'e-
cutado no tempo em que Cláudio era imperador, atravessou, como primeirO
europeu, essa região montanhosa. Mas não obteve grandes resultados. De
qualquer maneira, observa Plínio em seu relatório que a maior elevação ?o
Atlas era coberta de neve eterna - o que confirma satisfatoriamente o mito
dos antigos, relacionado ao Atlas coberto de neve.
( •) Nome dado pelos antigos a dois golfos formados pelo Mediterrâneo na costa setentrional
da Africa. Havia a Grande Sirte, hoje Sidra, e a Pequena Sirte, hoje Gabes.

LegionáTios TOmanos . Alto-1·elévo, 1\fusett do LouvTe, Pm·is.

128
2

Guinchos lancinantes, rangidos, chiados e gemidos, superados flinda por


imprecações em altas vozes, penetravam, vindos da rua, no dormitório. Mal
se havia levantado o sol, mas o ar já estava abafado no pequeno quarto. O
rosto daquele homem baixo e gordo, estendido no "lectus genialis", na mo-
derna cama de casal, estava banhado em suor.
Não era das mais elegantes a parte de Roma em que noite após noite res-
soava nas ruas êsse pandemônio. É verdade que a Rua das Pereiras, junto
ao Quirinal, não era considerada como das piores, embora aí não existisse
nem o aquecimento central nem banheiros com renovação constante de água,
inovações técnicas da época de César. àbviamente não se cogitava aí dum
ascensor, como aquêle que o imperador instalava agora mesmo na "domus
transitaria", sua casa no Paládio, para não ter de subir as escadas; nem era o
vestíbulo revestido de mármore, mas apenas "marmoreado" por algum pintor
ambulante, com algumas gotas de tinta. Mas, em compensação, havia o dono
da casa providenciado encanamento de água e, mais importante de tudo,
mandara cimentar os fundamentos da casa de maneira que ela não pudesse
desabar repentinamente, como acontecia freqüentemente com as modernas
casas de Roma, construídas por especuladores apressados. E essa era também
a razão de os aluguéis, aqui no terceiro andar, serem tão absurdamente ele-
vados. Com o mesmo preço poderia ser adquirida uma modesta casa de cam-
po em Frosinone. De qualquer maneira, quem tivesse dinheiro, evitaria as
ruas próximas aos grandes mercados, indo residir nos parques situados no
Janículo ou nos pinheirais do Pincio. Não, porém, em virtude da gentalha
de todos os cantos do mundo que aí se encontrava. Essa era vigiada pela
polícia e nem de longe importunava tanto como sempre se contara nas pro-
víncias. O que, entretanto, não se podia impedir - desde que uma lei de
César determinara poderem as carroças de carga trafegar pelas ruas da cidade
apenas durante o período noturno, a fim de evitar o congestionamento, -
era essa barulheira medonha. Aos carroceiros parecia não fazer diferença o
fato de os eixos dos seus carros fazerem barulho mais ensurdecedor que tôdas
as almas perseguidas no Hades quando atacadas por Cérbero, o cão do in-
ferno. Também os habitantes da Rua das Pereiras, nas casas de seis andares,
já .não se incomodavam. Estavam tão acostumados, diziam, que acordavam
assim que as ruas ficavam silenciosas .
. Quem, porém, não vivesse sempre naquela rua, como P. Quintí-
ho Rufus, o gordo e suarento coronel dos pretorianos de Nero, não seria
capaz, por bêbedo que fôsse, de gozar durante a noite inteira mais do que
um estado de semitorpor. E o coronel estava realmente muito embriagado.
Na noite anterior um jantar havia sido realizado no cassino dos oficiais, no
quartel pretoriano, com a presença do Imperador e fôra necessário esforçar-
se muito. Após abusar da bebida, o coronel rolara de sua poltrona. Penosa-
mente esforçaram-se alguns sargentos para levantá-lo de debaixo da mesa;
amarraram-no a sua cadeirinha, que o esperava diante da casa e mandaram
o~ carregadores escravos levá-lo para onde êle desejava ser levado em tais
Circunstâncias: à moradia da pequena e loura Sabina, antiga garçonete da
taverna de Da. Taphesies em óstia, e presentemente sua amante naquela
Um impemdor ro mano 1·ecebendo a homenage m dos bárbaros. casa da Rua das Pereiras, em que também morava Marcial. Assim aconteceu
R elêvo, l\1useu do Vaticano, R oma. estar ali o Coronel P. Quintílio Rufus, naquela manhã primaveril do ano 59
de nossa era, sem ter conhecimento de coisa alguma.
E!llbaixo mugia um boi, provàvelmente porque seu pastor abusara do
aguilhão. Assemelhava-se quase ao som de uma corneta. Rufus teve um so-
129
9 bis Conquista Mundo
bressalto, não havia sido o corneteiro de seu quartel? Logo acorreriam os descobridor das nascentes do Nilo. Pois era um enigma que já preocupara os
centuriões aos exercícios matutinos. Não havia remédio, era preciso levantar- reis persas, e que, desde a conquista do Egito por Roma, constituía o tema
se. Bocejou, expondo os dentes de ouro, recentemente aí colocados pelo preferido das conversas em todos os salões interessados em problemas geográ-
médico do Imperador. Acordou completamente. Verificou não estar no quar- ficos da capital romana. Isto serviria de incentivo para o ditador, e talvez
tel, e percebeu que não tinha pressa alguma. Levou ambas as mãos à testa. fôsse sua vaidade pessoal o motivo da viagem.
Que dor de cabeça! Mas, com~_quer que te~ha ~ido, é _certo que os dois centuriões avançaram
Água, é isso mesmo! Água e ràpidamente! Eis o grande jarro de prata até uma regtao que, depots deles, fo1 penetrada por brancos apenas dezoito
adquirido por Sabina quando Rufus lhe alugou a morada. Esta água morna séculos após. Segundo tôdas as probabilidades chegaram até Bar-el-Gazel,
e perfumada fêz-lhe passar a dor. Culpado era o hidromel, essa bebida ger- o rio das gazelas, e até sua desembocadura nos pântanos do Nilo, impenetrá-
mânica que não suportava, mas que Nero tomava com grande agrado. Inva- vel região de jângais.
diu-o um sentimento incerto, como se ontem à noite algo houvesse sucedido, Não alcançaram entretanto os dois romanos as verdadeiras nascentes do
de que logo se lembraria e que lhe viria estragar o dia. Nilo. Mas aparentemente se moveram em um território que, pelo menos
De repente se recordou da aposta. Havia apostado com o imperador! Por ~t~av~s d~ boatos,. era há muito conhecido da Antiguidade. Esta observação
que não sabia quais os seus limites? É verdade que sua sexta coorte era a .:01 fetta Já por Ltvmgstone, que, segundo tudo faz crer, teve razão em suas
melhor das dez da guarda imperial. Mas que demônio tê-lo-ia impelido a suposições. Pois os pântanos no Mocren-el-Bohur constituem, há épocas muito
afirmar que, se o Nilo se originasse mesmo nesta terra, tendo nascentes como antiga~, morada de um povo negróide, os acas, encontrados por Georg
qualquer outro rio, haveria apenas uma única possibilidade de encontrá-las: Schwemfurth durante sua célebre expedição às nascentes do Nilo, realizada
uma ordem à sexta coorte! em 1870. E ê~ses negros, de muito baixa estatura, eram conhecidos de Plínio,
A resposta do imperador foi uma risada, depois da qual fitou irônicamente que os mencwna em sua "Naturalis Historia" e, aparentemente, mesmo, de
o coronel através do seu monóculo. Assim sobreveio o inevitável: P. Quintí- Ho_mero, que na Ilía_d a apresenta os versos seguintes, que permaneceram mis-
lio Rufus apostou com o imperador. Como escaparia agora dessa maçada? tenosos durante mmto tempo:
Não sabemos o que P. Quintílio Rufus fêz para salvar sua situação. Nada " ... E assim como se elevam sob os céus os gritos de grous,
poderemos vir a saber porque nem êle nem sua pequena amiga são mencio- expulsos pelo inverno e as chuvas intermináveis,
nados em quaisquer documentos. Também Marcial que, na mesma rua pró- partem em vôo barulhento para a corrente do oceano,
xima ao Quirinal, vivia no terceiro andar da casa de seis andares em que levando morte e destruição à tribo dos pigmeus.
encontramos o coronel e sua loura amante, não o conhecia. Certa é apenas Ao despontar do crepúsculo aproximam-se para a luta cruel."
uma coisa: que por volta de 60 de nossa era dois coronéis da guarda imperial
partiram de fato para uma viagem de reconhecimento, com a intenção de Enquanto Plínio talvez se refira aos relatórios dos dois oficiais romanos
encontrar as nascentes do Nilo. Tal viagem os levou do Egito até aos enormes que indubitàvelmente encontraram os acas, deve Homero ter tido êsse cC:..
pântanos do Nilo, a cinco graus de latitude norte, e fêz com que um dos nhecimento através de fontes muito mais antigas, informando-o que existia
grandes enigmas da Antiguidade, a localização das nascentes do Nilo, fôsse tal pov_o de l?equena estatura lá no sul, e que essa região era a meta das
quase solucionado. Possuímos vários comentários sôbre êsse empreendimento aves ~tgr~tónas. Obviamente, as palavras de Homero já foram consideradas
destemido, entre os quais ressalta aquêle do filósofo Lúcio Aneo Sêneca em sensanonats pelos contemporaneos, tendo talvez mais tarde sido complemen-
suas "N aturales Questiones". tadas por informações mais minuciosas, chegadas diretamente do Egito. De
"Tive oportunidade de ouvir o relatório dos dois centuriões, enviados pelo Imperador
qualquer maneira encontramos no pedestal do célebre vaso François em Flo-
Nero às nascentes do Nilo:
rença, originário da Ática, do séc. VI a. C., uma representação pictórica
Chegamos, assim relataram, a enormes pântanos, cuja verdadeira extensão não era conhe· dessas lutas entre anões e graus. A história deve, portanto, ter sido bem po-
cida nem mesmo dos nativos e que é também impossível de ser verificada. Pois que Já as pular, porque de outro modo o artista não a teria representado.
plantas aquáticas são de tal maneira densas, que as águas não podem ser cruzadas, seja a Que suposição grotesca e terrível! Pigmeus em luta com aves gigantescas.
pé ou de barco. E mesmo que êste fôsse tão diminuto que apenas levasse um homem, não Lendas antiqüíssimas, como aquela que Sindbad, o Marujo, relatava acêrca
poderia avançar nesses viscosos pantanais. Vimos aí dois rochedos, entre os quais o Nilo do. enorme pássaro Rock, parecem reviver: o pteranodon ingens, o maior
jorrava com grande fôrça. Seria um afluente do Nilo ou sua nascente? Ou então, será que
aqui surge novamente das profundezas, após percorrer grande distância debaixo da terra? ammal voador do mundo, abre as suas asas de morcêgo, de oito metros de
Não será forçoso admitir que nasce em um grande lago? Uma vez que surge com tal inten· envergadura sôbre os mares do cretáceo e, com grito horrível, rompe os ossos
sidade entre os rochedos, apenas pode ser proveniente de uma bacia de águas, contendo de suas pr.êsas. Isto são relatos de tempos antiqüíssimos. Mas, já viviam sêres
as águas aglomeradas em muitos lugares e concentradas nessa região ... ". humanos na terra há tantos milhões de anos? A ciência nega tal assertiva.

A viagem, aqui descrita por Sêneca, foi portanto empreendida em obediên·


? terror estranho da Antiguidade, porém, quando seus artistas representam
orma~ões de enormes grous, com pontudos bicos em forma de lança e asas
cia às ordens do Imperador Nero. Já mencionamos atrás, falando da explo- estendidas no momento em que atacam pigmeus, consegue mover mesmo os
ração da costa do âmbar da Samlândia, o imperador como iniciador de uJ?a modernos. É como se, com tal representação, fôssem realmente despertados
expedição! Naquela ocasião houve, indubitàvelmente, razões materiais mutto temores muito antigos, e como se essa fôsse a razão para a popularidade das
ponderáveis. Nero deu certamente a ordem de procurar obter grandes quan· representações de lutas sanguinolentas entre pigmeus e grous.
tidades de âmbar. Mas aqui não aventaremos tais mo.tivações mercantis. _É E tanto mais que essas lutas não podem ser provadas por quaisquer do-
possível que se tratasse de uma viagem de interêsse militar dos dois generats, cu~entos. Contudo, não parecem impossíveis. Durante a Antiguidade consti-
como é possível que Nero pretendesse ter a glória de entrar na história como tuia essa ave uma caça muito cobiçada. Aos acas, que mediam 1,30 m de ai-
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tura, a ave que nidificava nos pântanos do Nilo devia parecer um animal mais antigo, e está fora de dúvida que velejadores hindus e árabes percorriam
enorme, pois se abrisse as asas, estas mediriam 2,50 m. E desde que na época 0 Oceano índico muitos séculos antes de Hippalus.
da nidiflcação ela enfrenta destemidamente os ' seus perseguiàores, é bem Os participantes do comércio hindu-africano empenharam-se indubitàvel-
possível que um ou outro daqueles diminutos sêres desnudos tenha sido mente em esconder êsse conhecimento. E aparentemente conseguiram man-
morto por ela. tê-lo em segrêdo durante séculos a fio perante os persas da época de Dario
Mas mesmo que essa hipótese seja considerada duvidosa, certamente teve e os gregos do tempo de Alexandre, o Grande. tstes dois concorrentes recém-
Homero notícia de uma região perto do "Oceano", portanto em paragens aparecidos e muito incômodos no comércio da índia, por isso, só chegaram
muito distantes, onde viviam grous e pigmeus. O poeta cego poderia ter ou- a ver embarcações marítimas pequenas que penosamente seguiam caminho,
vido tal boato apenas se procedesse do Egito Antigo cujos soberanos e cujas de pôrto em pôrto, ao longo da perigosa costa do sul da Arábia, para final-
classes aristocráticas apreciavam muito os anões negros como escravos. mente, se a sorte lhes sorria, lançar ferros num pôrto da índia após um ano
Breasted fala disso circunstanciadamente em sua "História do Egito", pro- de viagem. Essa experiência não lhes pareci~ em nada mel~or que ~~ in.termi-
vando que já em meados do terceiro milênio a. C. expedições subiam o Nilo, náveis viagens das caravanas, para as quais era necessána a paoenoa dos
no propósito de prender os escravos tão cobiçados. Provàvelmente chegou à orientais, e uma sobriedade que não era especialidade nem de gregos nem
Grécia algum relatório sôbre êsses empreendimentos, e levando-se em têrmo de persas. , . . . . ..
de conta a conhecida exatidão de tôdas as informações de Homero, devemos Assim sendo, a Europa tera sabido apenas mmto mais tarde da possibili-
admitir a possibilidade da luta entre os pássaros e os anões. dade de abreviar a longa viagem para a índia de doze para dois meses, desde
Tudo são, evidentemente, suposições e opiniões, e assim continuarão sendo. que se tivesse a coragem de percorrer o mar aberto em uma distância de dois
Parece, porém, que nossos dois centuriões não foram os primeiros brancos a mil quilômetros sem avistar terra, confiando as naves às monções. Conforme
vadear os pântanos do Nilo, mas que, milênios antes, os egípcios realizaram soubemos atrás, isto foi tentado por navios europeus pela primeira vez por
feito idêntico. No entanto, é a êles que a geografia deve as notícias iniciais volta de 100 a. C., e temos notícia, através de Estrabão, que por aquela época
sôbre a origem do Nilo. Pois ainda então existiam as mais curiosas opiniões cêrca de 20 embarcações de carga partiam anualmente para a índia. Quando,
acêrca das nascentes e do próprio Rio Sagrado. Enquanto alguns afirmavam em 30 a. C., os romanos invadiram e ocuparam o Egito, êsse número cresceu
que o Nilo provinha do oceano, achavam outros q_ue o mesmo se originava vertiginosamente. Passa a tratar-se de cem navios anuais, e não apenas de
na índia, ou procuravam-no na desconhecida Áfnca ocidental, na qual - cargueiros ocasionais, já que se inicia um verdadeiro serviço regular, com
como foi exposto por Stechow - consideravam o Congo como sendo o "outro passageiros a bordo e datas de partida preestabelecidas.
Nilo". E havia ainda aquêles que sustentavam situarem-se as nascentes do Eis um feito notável, se tivermos em mente que a distância em oceano
Nilo entre picos elevados, correndo uma das metades - o Nilo conhecido - aberto, vencida por Colombo mil e quinhentos anos mais tarde não era muito
para o norte e a outra para o leste. Foi apenas dezoito séculos mais tarde maior. Cumpre, portanto, têrmos o maior respeito pelos feitos dos antigos
que europeus chegaram pela se~nda vez vez à região então alcançada pelos capitães da índia, cujos descendentes viajam ainda hoje de maneira parecida.
centuriões, ficando assim defimtivamente esclarecido o mistério das nascen- Anualmente, no verão, partem de Port Sudan "dhaus" árabes que, com sua
tes do Nilo. proa alta e pôpa larga e ricamente ornamentados, se assemelham a caravelas
medievais, com destino à índia. No fim do outono apressam-se por retornar
à África, com suas enormes velas triangulares, ante a monção do nordeste.
Seus "nacoudas", os capitães, jamais ouviram falar em sextantes. Conhecem
a bússola, mas não a empregam. Há gerações e gerações têm no sangue o
conhecimento da posição da índia e sua própria. "Ana baref", "acontece que
3 sei", dizem quando interrogados sôbre seus meios de orientação. "Ana baref",
"acontect; que sei". . . .
Tudo Isso não aconteceu rel?entmamente, mas constitum o encerramento
tsse óbvio interêsse de Roma pelo Egito e seus vizinhos tinha evidente- de longo e vagaroso desenvolviment?. Pois as épocas ~ais afastadas decerto
mente uma razão. E esta razão era a Ásia Oriental. Já dissemos, no capítulo conheoam apenas a navegação costeua, um navegar cmdadoso, bem rente às
anterior, que antiqüíssimas rotas de caravanas levavam do Extremo Oriente, costas, e sempre à vista de terra firme. É verdade que já bem cedo devem
da índia e da Ásia Central para o oeste, com suas partes extremas desembo- ter verificado que a navegação em mar alto, longe de recifes e escolhos, em
cando no Mar Negro. Ao lado dessas comunicações transcontinentais existiam água sempre profunda, era sob certo ponto de vista menos perigosa que o
também rotas marítimas, dirigindo-se da índia para Hadramaut e Adana, e curso junto à costa. Mas faltavam inicialmente os conhecimentos náuticos,
que, por outro lado, ligavam a África Oriental com o país das maravilhas enquanto que, por outro lado, já muito se fizera, bem antes de nossa era,
do Ganges. para garantir a navegação costeira. Canais providos de eclusas foram construí-
Já os faraós sabiam disso e se aproveitaram dessas possibilidades de comu- dos, como por exemplo o canal Atos, mandado cavar por Xerxes em 480 a. C.,
nicação. É verdade que o conhecimento das monções, aquêles ventos que no através da península a fim de poupar a viagem d~morada em tôrno _de ca?o
verão sopram da África para a índia e que, nos últimos meses do outono, rochoso, na ocasião de seu ataque contra a Grécia. Em lugares críticos .fn~­
invertem sua direção, soprando da índia para a África, é documentado apenas caram-se estacas para indicar qual fôsse a passagem navegável. Nas proximi-
desde épocas muito posteriores. Fontes antigas informam que o pilôto grego dades de portos, pequenos barcos saíam em direção de veleiros de outros por-
Hippalus, q_ue deve ter vivido por volta de 100 a. C., foi o primeiro a apro- tos,, para $lliá-los seguramente aos ancoradouros. E~ costas planas era~ cons-
veitar consCientemente as monções. Seu conhecimento, porém, deve ser muito truidas torres, servindo como pontos de demarcaçao, de onde o bnlho de
1!12 133
lZ' 14'
chamas, acesas durante a noite inteira, indicava a direção. Por vêzes foram
construídos verdadeiros faróis, como em Ravena, óstia, no Pireu, em Bou- 38'N
logne-sur-Mer e em Las Corunhas. O mâis famoso dos faróis, uma das sete
maravilhas do mundo, era a tôrre Faros, construída por volta de 280 a. C. nas
proximidades de Alexandria, numa altura de cento e sessenta metros, e cuja
luz era, assim diziam, visível a uma distância de 50 quilômetros. Ainda Edri-
si, o cartógrafo árabe de Rogério II da Sicília, que mencionaremos mais além,
visitou e descreveu essa enorme construção no ano de 1153. Foi apenas no
século quatorze que êsse farol, modêlo para a maioria das tôrres posteriores,
foi destruído durante um terremoto.
Também já existiam numerosas instruções para a navegação. Uma dessas,
a chamada "periplous Pontou euxeinou" (Circunavegação do Mar Negro),
escrita em 90 a. C. pelo capitão grego Artemidor, representou papel de im-
portância na guerra da Criméia e até fins do século dezenove. Já que os
mapas marítimos do Mar Negro - quando existiam - provaram merecer
muito pouca confiança, pilotavam os comandantes das frotas ocidentais no
Mar Negro, durante a guerra da Criméia, de acôrdo com as recomendações
do "periplous", escrito quase dois mil anos antes dessa ocasião. Também foi
conservado um manual de navegação para o Mediterrâneo, o chamado "Sta-
diasmós", o "Indicador de Estádios". Nêle há indicada, de parágrafo em pa-
rágrafo, qual a distância, em estádios, no "paráplous" (o trajeto ao longo da
costa) de um ponto a outro. Apenas quando baías extensas ou golfos permi-
tem considerável abreviação da viagem ou nas ilhas mais afastadas da costa,
vem também indicada a "diáplous" (a travessia). Há apenas poucas indica-

XI. A costa de Leptis a Cartago, de ac6rdo com


o "Stadiasmos".

ções de direção, e geralmente delas não há mesmo necessidade, já que o


marinheiro não pode senão seguir as costas. Mas informa com regularidade
se, em determinado lugar, há um pôrto ou apenas um ancoradouro, se existe
proteção de ventos, qual a profundeza das águas, se ~ ~osta é pl~na o~ _aciden-
tada, se o fundo do mar é areoso ou rochoso, se baixiOs ou recifes dificultam
a navegação, se existem marcas na costa, se uma cidade possui fortaleza ou
tôrres ou ainda se existe água potável e onde pode ser encontrada. O seguinte
excerto do "Stadiasmós", referente à costa africana de Leptis em direção a
Cartago, oferece bom exemplo da exatidão minuciosa dos antigos manuais
de navegação:
93) Vindo do mar, verás terra baixa, diante da qual se situam pequenas ilhas. Aproxi-
mando-te mais, reconhecerás a cidade, uma branca duna e a praia. A cidade inteira dá uma
impressão de brancor. Não possui pôrto, mas o barco pode ser seguramente atracado no
Hermaion. O nome da cidade é Leptis.
94) De Leptis até Hermaion há uma distância de 15 estádios. É um ancoradouro para
navios pequenos.
95) De Hermaion dista Gaphara 200 estádios. O cabo oferece um ancoradouro em
ambos os lados, existindo também água potável.
20. O Farol de Alexandria. A tôrre situava-se na Ilha de Faros, à entrada do 96) De Gaphara para Amarain há uma distância de 40 estádios. Há um baluarte ali
pôrto de Alexandria. Construída pelo arquiteto Sóstrato, por volta de 280 a. C.,
que oferece proteção. Existe água potável. Ao lado do rio vêem-se campos cultivados. O
conservou-se até o século XIV de nossa era.
rei chama-se Oinoladon.

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100) l>e ~abratha para Lokroi há uma distância de 300 estádios. É uma aldeia, acima velocidades recordes, devem ser encaradas com algum espírito crítico. Disso
da qual se situa elevado castelo.
já os historiadores antigos tinham noção perfeita, indicando por isso as ve-
101) De Lokroi para Zeucharis outros 300 estádios. O castelo possui tôrre e muros altos.
É excelente pôrto. locidades de viagem de maneira muito aproximada.
108) De Nápoles para Thena há 200 estádios de distância. Assim, por exemplo, afirma Heródoto que, no verão cêrca de 700 estádios
109) De Thena para Acholla distam 500 estádios. podem ser l?ercorridos durante o dia e 600 à noite. Sky~ax, perito náutico
!lO) De Acholla para Salipota a distância é de 120 estádios. de Dario I, mdica, por volta de 500 a. C. apenas 500 estádws para o percurso
1ll) Thapsos dista 120 estádios de Salipota . diurno, enquanto M~rinus, que vi:'e? n.a mes~a época, fala ~e 500 a 1.000
. ll2) Essas cidades possuem portos, mas já que baixios existem à sua entrada, trafegam estádios. Como média de uma distancia veleJada durante vmte e quatro
ali somente barcos de calado relativamente pequeno. A uma distância de 120 estádios do
continente existe a ilha Kerkyna, defrontando Acholla, Salipota e Kidiphta. A distância da horas, poderemos indicar 1.2~0 estádios, .corresl?ondendo a cêrca de 120 ~i­
Ilha Meninx p~r.a a Ilha Kerky!'la ~ de 750 estádios. Na direção de Thena para Kerkyna, lhas marítimas e a uma veloodade horána de cmco nós. Naturalmente regts-
estendem·se baiXIOs até a própna crdade. De Kerkyna para Thapsos há 700 estádios. A 80 traram-se também percursos mais rápidos. De Gades para óstia seis a sete
estádios para o norte, contando de Thapsos, existe uma linda ilha no mar, possuindo pôrto dias eram precisos com veleiros rápidos e vento favorável; da costa da Africa
e água potável. Essas ilhas limitam o Gôlfo de Kerkyna. até lá cêrca de dois dias o que corresponde a velocidades horárias de 6 ~té
7,5 milhas marítimas. Deduz-se daí que a velocidade de percu.rso dos navws
No percurso fora de visibilidade de terra, limitava-se a arte náutica dos antigos não era tão inferior àque}a ~os nossos pequenos cargueiros, enqu_anto,
an~ig:os à de~erminação. d.a. direção e à s?ma das .distâncias percorridas. Não evidentemente, nossos transatlanticos modernos desenvolvem velocidade
existiam quaisquer poSSibilidades de medir a velocidade do P.ercurso marítimo. muito superior.
Não havia ainda a barquilha, o marinheiro tinha de aqmlatar a velocidade A determinação do curso que, como tal, se tornava apenas raramente ne-
de seu barco, contando apenas com o auxílio de sua capacidade visual. Os cessária, fazia-se durante o dia de acôrdo com o Sol, durante a noite orientan-
marujos de hoje têm nisso uma perícia espantosa e seria lógico supor que o na- do-se pelas estrêlas. Já que no Mediterrâneo o bom tempo é absolutamente
vegante da Antiguidade tenha tido no mínimo capacidade idêntica. Mas pro- dominante durante o verão, não era grande a necessidade de um instrumento
vàvelmente isso não acontecia, pois aos marinheiros da Antiguidade faltava determinador de curso, de onde temos a razão de a descoberta da fôrça mag-
uma condição muito importante, que hoje nos parece natural: a possibilidade
de medir o tempo de maneira exata. O conceito da hora como vigésima quarta
parte do dia, era desconhecido dos antigos. O dia começava com a aurora e
terminava com o crepúsculo. ~sse dia, se bem que pudesse ser mais comprido
ou mais curto de acôrdo com a diferença das estações, era sempre dividido em
12 partes, as horas. Assim, a duração das horas no verão era muito superior
à àas nossas horas de sessenta minutos, enquanto que no inverno era bem
inferior. Em fins de junho, a hora tinha em Roma setenta e cinco minutos,
em fins de dezembro apenas quarenta e cinco. E, em diferentes latitudes, a
duração das horas diferia até num mesmo dia. No dia mais comprido do
ano, a hora estendia-se por setenta e seis dos nossos minutos em Massília, mas
tinha apenas setenta e dois em Rodes. Somente quando dia e noite possuíam
duração igual, isto é, nos equinócios da primavera e do outono, existia igual-
dade nas horas. Mas já os antigos sabiam que essa espécie de contagem do
tempo, que em Roma era comum ainda em 1850, não servia para medir uma
quantidade de tempo determinada, sempre idêntica. Por isso construíram
medidores especiais, relógios de areia ou água, dos quais escorriam, em in-
tervalos determinad<?s, quantidades exatas d~ areia <?u água. Tais medidores 21. De um manual de navegação do século XVI. Essas instruções dos antigos
de tempo er~m mmto usados mesmo na vida particular, assim como tam- incluem por vêzes, nas descrições da costa, pequenos desenhos, em forma
bém os relógws de sol para bôlso, que tinham aproximadamente o me~mo de silhueta.
tamanho de nossos relógios de algibeira. O médico utilizava-se dêsses medtdo-
res para determinar a pulsação dos seus pacientes, as aulas escolares eram nética e da sua significação como indicadora dos rumos ter sido feita no
assim medidas, e os tribunais assim estabeleciam o tempo concedido aos pro- No~te da Europa. No inverno, tal indicador de rumos, obviamente, teria sido
motores e acusados para discursos e explanações. muito necessário também no Mediterrâneo. Não o havendo, porém, a única
Não sa~emos se tai.s medidores obtiveram efeito positivo também e~ uma saída que restava era suspender totalmente a navegação naquela área, de
e~barcaçao em. movtmento. De. qualquer forma provou-se que era Impos- outubro a março. Não eram as tempestades de outono ou inverno que assus-
stvel usar relógws de sol. Relógws de água ou areia, embora independentes tavam o marinheiro da Antiguidade. A falta de orientação, em dias de pouca
da posição do navio perante o sol eram contudo, sujeitos aos b alanços da em· ou nenhuma visibilidade, era para êle o problema insuperável.
barcação, sendo por conseguinte muito pouco exatos. Por isso, tinha o ma· Com tempo brumoso era possível socorrer-se até certo ponto graças às
r1;1jo da Antiguidade apenas a probabilidade aproximada de calcular a velo- so~dagens. Já na Antiguidade havia p esos de sonda escavados embaixo e en-
Cidade do navio, e portanto tôdas as indicações de velocidade no tráfego ma- chidos de sebo, de modo a possibilitar a obtenção de provas do fundo do
rítimo feitas em obras dêsse período e, principalmente, aquelas referentes a mar. Da qualidade dêsse fundo tiravam-se conclusões, baseadas na experiên-
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c~a, sôbre a p~>Siçao do navio. Assim, por exemplo, ficava-se sabendo, numa
viage~ ao Egito, que se esta':a a apenas um dia de viagem da embocadura Os barcos daquela era, muito menores em tamanho, eram apenas cobertos
do NIlo se - de uma profundidade de onze braças - se trazia lama do fund na proa e na pôpa. É verdade que também mais tarde, quando se tratava de
do mar CO!f! a sonda. Outro me~o de orientação foi transmitido, como resu~ andes barcos comerciais, o convés não era de um só plano. O ~entro da
tado das ~Iag~ns no Oceano Índico: quando o navio chegasse a um ponto tal, fmbarcação, para c_onveniência d?s re~adores, cujo~ remos devenam toc~r
em sua ~Ireçao ao .sul, ~ue a Estrêla de;> .Norte desaparecesse abaixo do hori- a água o mais ràpidam~nte poSSive~, situava-se abaix? do resto do conves.
zonte, passaras senam li~ertados. Segmnam então a direção dêles, na espe- Pois mesmo os veleiros tmham, ocaswna~mente,. 1?-ece~sidade de remadores. A
rança de dar c?m terra firme. Também mudanças na côr do mar serviriam cabina do capitão e aquelas dos passageiros pnvllegmdos encontravam-se no
p~ra a determmação ?a posi5ão. Assim, encontra-se em antigo manual de tombadilho. Debaixo dêsse espaço existia o armazém para a bagagem e os
pllot.a gem para a índia o_ aviso. de que, próximo ao Indo, ao aparecer re- mantimentos, enquanto no centro se encontrava o lastro, geral~ente cons-
pentmam~nte uma coloraçao mais clara das águas, deverá esta ser seguida pela tituído por pesadas pedras de cantaria, assim como a carga do naviO. Na proa
emb~rcaçao para encont~ar a desembocadura daquele rio. E para a aproxi- estava alojada a tripulação, e debaixo dêsse espaço a câmara, o velame, <;>nde
maçao ao por.to de B~ng~za, na índia, indica curso certo "a presença de ficava também a amarra, e os barris de água potável. Ao redor do navw se
serpen,~es mannhas pnmeiramente grandes e negras, e depois pequenas e estendia a amurada, que em navios de guerr~ era substituíd~ po~ _um para-
verdes .. Conforme está provado em documentos do século dezoito, dava-se peito. Embarcações marítimas menores só dispunham de dispositivos para
valo;, amda naquela ocasião! a esta i~dicatão da Antig-uidad.e. pendurar uma falca.
Ve-se P.o~ aqui que os, mews de onentaçao do marUJO antigo eram bem Se bem gue, de acôrdo com sua construção, também os grandes ba~cos
pouco efiCientes . .t:les so pudera.m d~el?-volver-se quando o conhecimento mercantis tiveram sua origem na embarcação a remo e levassem em conside-
geral d~ Geogra!Ia e Cosmografia atmgm certo grau de aperfeiçoamento. ração, como já vimos, a eventual necessidade de empregar remadores, pos-
De~-se Isso depois que um método útil de medição solar foi descoberto ca- suíam um velame muito forte, um mastro poderoso sustentando a vela qua-
paCitando os capi~ães a determinar, com pequena margem de engano, ~ al- drada que, para garantir maior duração, era guarnecida, enxadrezadamente,
tura em que velepvam. de tiras de couro. Na proa havia o mastro de traquete com um pequeno ve-
.. ~r~tóste~es empr~gara para . mediç~o da posição solar um processo anti- lacho; sob a ponta do mastro, que nos navios de guerra naturalmente consti-
qmssimo, Já conhecido no Egito mmtos séculos antes dêle. Fincava-se, em tuía uma gávea, os veleiros do tempo imperial freqüentemente içava!ll um
terra plana, uma haste perpendicular, pontiaguda no tôpo, o "gnomon" - sobrejoanete, evidenciando já o modo da mas_treação o ,quanto dependiam. os
o~ faraós usavam .para o mesmo processo os seus obeli-scos - traçando em volta barcos de vento traseiro. Naturalmente podenam tambem cruzar, mas navws
Circl!los concêntncos e ?bser~ando por n:_eio dêles inicialmente os pontos nos com velas quadradas sempre são algo desajeit~dos nisso, e tamb~m a form:'l
q~~Is. a sombr~ solar tmha Igual extensao pela manhã e à tarde. Depois se dessas embarcações prova que foram constrmdas para navegaçao em qm-
diVIdi~ n~ mew o arco .entre êsses dois pontos, estabelecendo assim a linha lha reta. E, via de regra, o marujo da Antiguidade aguardava vento favorável,
do mew-dia. Se o compnmento da sombra fôsse medido ao meio-dia a altura isto é, vento traseiro antes de partir do pôrto protetor.
do Sol poderia ser calculada, pela relação entre a altura do indicador da Nada sabemos ao certo sôbre o conjunto dos remos em antigas embarc:'l-
sombra e a extens~o desta. ~ambéJ? os vik.ings seguiram processo muito ções. Sabemos q_ue os construtores navais greco-romanos tentaram, há Já
semelhante alguns seculos depOis, aplicando-o mesmo a bordo de seus navios. muito tempo, evitar o aumento ào comprimento dos navios, por cau-sa de o
~rovàvelmente foi realizado feito igual pelos antigos capitães de barcos que número maior de remadores causar uma posição desfavorável na água. Para
SI.?gr~va~ os mares, se bem que ~ada ~enha sido transmitido a respeito. Mas tal fim construíram navios de bordos muito altos e dispuseram os remadores
nao e cnvel que te~ham percorndo milhares de quilômetros "às cegas", sem em. várias fileiras sobrepostas. A triere,. barco de três cobertas, de 9uaren!a
fazer tudo para apli~ar o método "gnomon", e por isso nos parece provàvel e cmqüenta metros de comprimento,_ seis metros de alt~ra e ~ma tnpula5ao
que tenham consegmdo obter uma aproximada determinação dos paralelos. de aproximadamente duzentos maruJOS era a embarcaçao mais comum desse
. Se bem que tenhamos apenas conhecimento superficial dos navios e dos tipo. Os cento e setenta remadores do barco ficavam sentados em três cober-
tipos. de embarcação_ dos egípcios, cretenses ,e .fenícios, sabemos algo mais a tas sobrepostas, desconhecendo-se porém a ordem dos assentos. Apen~s sabe-
res~e~to da nayeg~çao greco-romana. Contranamente aos barcos egípcios c mos que os remadores da coberta superior tiveram de usar remos mmto lon-
f~mCios dos, pnmeiros ~empos, eram os barcos romanos e gregos desde o iní- gos e que a dificuldade de mover êsses instrumentos, que chegavam a dez e
CIO constrmdos para smgrar os mares. Construídas em estaleiros muito se-
mais metros de comprimento, se tornara, finalmente, insuperável.
melhantes aos nossos,. eram essas embarcações barcos de quilha com cadastes, Assim mesmo, é sabido que a Antiguidade realizou feitos notáveis na cons-
cavernas e prancha~ firmes. Ref<;>r~os externos e internos garantiam à quilha tr';Ição naval. As naves verdadeiramente gigantescas, como a Tessaracontera
e_aos cadastes a solidez para resiStir aos abalroamentos a esporão, a arma tá- hhndada do Rei Ptolomeu Filipator, por volta de 200 a. C., com um pretenso
tica da guerra naval. Todos os barcos pesados eram construídos de tal forma comprimento de 129 metros e deslocamento de 6.500 toneladas, ou a "Ale-
que as pranc?as se juntassem com .seus cantos mais estreitos, de modo que xandria" de Hiero II de Siracusa, que teria sido construída por Arquimedes,
os costados fossem ~bsolutamente lisos e a perda por atrito com a água, a deslocando 4.200 toneladas, não serão objeto de nosso estudo. ~as mesmo a
menor.possível. As JUnta.s eram cala~e.tadas, todo o bôjo alcatroado e depois embarcação normal, o veleiro comercial, apresentava tamanho digno de nota.
protegido por um revestimento metalico contra animais marinhos ou outros Assim diz Luciano, falando do cargueiro de trigo "ísis" de Alexan~ria, que
agentes destrutivos. Os navios de maior calado, pelo menos nos séculos que seu comprimento era de 180 pés, a largura de 45 pés e sua profundidade de
antecederam a nossa era, eram totalmente cobertos. O mes·m o não acontecia 43,5 pés. Se calcularmos a tonelagem baseada nesses J?-Úmeros, chegarem?s a
ainda na época de Homero.
um deslocamento de 2.672 toneladas. É possível que o mformante de Luc1ano
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tenha exagerado de alguma maneira, e que a "fsis" realmente não ultrapas-
sasse .o deslocall?-ento de 2.000 toneladas .. Mas então seu tamanho não seria
espeoalmente digno de nota. Como é sabido, conta São Lucas na história dos
apóstolos que no navio em que viajava para Roma com o apóstolo Paulo
se e~contravam 2?6 ye~soas, enq~anto o historia~or judeu FláviO Josefo fala,
em e~oca quase Identica, de seiscentos passageuos, e também informa que
o navw transportava carga além de passageiros. Deveria, por isso, tratar-se
de navios bem grandes em ambas as ocasiões. ·
~ambém temos informações .exatas ~ôb~e os barcos que transportavam para
os Imperadores romanos obeliscos egipcws através do Mediterrâneo. Assim
transmitiu Plínio que o imenso obelisco, que hoje se encontra diante da Ca-
tedral _de São ~auf~, pesando cêrca de 500 toneladas, fôra transportado em
cargueuo de tngo, JUntamente com uma carga de 1.300 t de trigo. O navio
deve, portanto, ter atingido um deslocamento de cêrca de 2.500 t. Também
os barcos que levaram a Roma o obelisco do Latrão e o obelisco flamínico
devem ter sido embarcações poderosas. '
A grande maior~a das e~barcações ~eco-romanas, empenhadas principal-
mente em navegaçao costeira, eram evidentemente de tamanho bem menor.
Sua tonelagem deve ter-se aproximado da tonelagem média dos fenícios, isto
é, entre 200 e 400 toneladas, deslocamento absolutamente suficiente no Me-
diterrâneo. Pois o motivo principal para o aumento das dimensões dos na-
vios, o desejo de transpo_rtar cargas maiores, não existia na navegação costei-
r~, e_m que a mercadona a ser transportada poderia, sem dificuldade, ser
d.Istnbuída entre numerosos navios. A isso ligava-se uma distribuição do
nsc?, que e~a então muito maior que hoje. Em viagem distante, como da
Itália ao Egito, dava-se, porém, preferência a embarcações de grande calado.
Para a navegação internacional valia, certamente, também na Antiguidade,
a exigência de, no interêsse econômico, empregar somente navios capazes de
transportar quando possível, de uma só vez tôdas as mercadorias reunidas em XII. As rotas de tráfego marítimo entre Roma e a China,
um pôrto. Pois se apenas a metade das mercadorias destinadas ao embarque por volta do ano 100 de nossa era.
coubesse em uma embarcação, deveria esta fazer duas viagens, ou duas seriam
necessárias p~ra o t~anspo3te, exigindo o dôbro do tempo ou dupla quanti· Ao lado de Sigerus, ao norte de Bombaim e da cidade de Muziris, a moderna
dade de navws e tnpulaçao. Acrescem as perdas, oriundas de longa armaze- Tananore, onde pimenta, drogas, anilinas e pedras preciosas eram carregadas
nagem,_contribuições, taxas, aluguéis etc.: obrigações que pesavam sôbre o a bordo, era Barigaza (provàvelmente do hindu Bharukhatsha), a atual Broac,
comeroante da Antiguidade com intensidade igual àquela sentida pelo um dos portos principais para a linha entre o Egito e a fndia. tsse pôrto,
armador da atualidade. completamente obstruído pela areia, na época contemporânea, situado no Rio
Provàvelmente era~ êsses gravames maiores ainda na Antiguidade, pelo Narbada, era na Antiguidade o local pnncipal para o comércio de algodão,
menos lá onde, em VIrtude das condições atmosféricas, era necessária perda ?e lá exportado, e de vinhos gregos, artigos artísticos e produtos industriais,
de tempo e longa permanência no pôrto. Isto não se dava tanto no Mediter· Imi_>ortados. Em virtude do areamento do Narbada, que principia já no pri-
râneo quanto no comércio com o Extremo Oriente. Pois o tráfego nessa linha meu~ século de nossa era, oferece o manual acima mencionado indicações
que, conforme vimos atrás, já existia regularmente pelo ano 100 de nossa espeCialmente exatas para a atracagem. Ei-las:
era, c~m horários fixos de partida de Aden para a fndia - dois mil quilôn:e·
tros sobre mar aberto - e que, quando necessário, se estendia para Cantao ~A B.aía d.e Barigaza é estreita e difícil de ser alcançada do mar, pois os navios são
e ao Iã-Tsé-Quiã, dependia das monções marítimas. fà 0 .fre Impehdo.s para o lado esquerdo ou direito, onde a água ainda pode ser singrada mais
mente .. À direita da entrada da baía, próximo à aldeia de Cammoni, estende-se uma
O~ navegadores das índias faziam-se ao mar geralmente em fins de junho, 1
tn~sula mgreme, chamada "Herone". À esquerda está o cabo chamado Papike, da região
partmdo de Myoshormos ou Berenice, no norte do Mar Vermelho, rumo a fort tacampra, onde não é possível atracar em virtude do fundo rochoso do mar e de
sude.ste. Depois de um mês atingiam Ocelis, perto de Bab-el-Mandeb, de lá cad e co~ren~ez~. Se um navio penetra na baía, ainda assim é difícil encontrar a desembo-
partiam com as monções, atravessavam o mar aberto até a fndia em cêrca de des:r~ 0 no JUnto a Barigaza, porque as margens são baixas, sendo difícil vislumbrar a
quar~~ta dias. Ficavam, portanto, mais tempo no mar que Colombo, quan· difi ml ocadura a. despeito de sua proximidade. Uma vez encontrada, porém, a entrada é
indtu tada em vutude dos muitos lugares rasos do rio. Por isso na entrada do rio, pilotos
do VIaJou.para a Amér:_ical Em dezembro iniciavam, impelidos por vento nor· llegu~~nas, em ~andes barcos vão de encontro aos navios até Syrastrene, levando-os em
de~te, a VIagem de retorno, que em geral era um pouco mais demorada que as e~~a até _Bangaza. :tles sabem evitar, na entrada da baía, os lugares r asos e rebocam
a I~a. O tempo bastante longo, demandado por essas viagens, torna provável ao co rcaçoes a~é aos ancoradouros, o que conseguem, partindo com maré alta e ancorando
a hipótese de que barcos de grande calado nelas tenham sido empregados. meçar a ba1xa. Barigaza dista cêrca de 330 estádios da desembocadura do rio."
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:Esse mesmo manual fornece indicações exatas também para outros portos tando-se à esquerda, mas exatamente dos lados opostos ... Da índia relataram que, além das
hindu_s. Cha~a especialmente a atenção do leitor para a maré alta e baixa, Serras Eroódicas (Himalaia) viviam os seros, com os quais mantinham relações comerciais ...
que amda hoje é bastante forte em partes da costa indiana: Aquêles seriam de considerável tamanho, com cabelo claro, olhos azuis e uma voz muito
rude, pouco agradável durante a conversa."
"Tôda a índia tem muitos rios e marés, baixa e alta, muito fortes. Com lua nova e 1
che!a esta_ aumenta até durante trê~ dias. ' os intervalos ela é menor. :tste fenômeno u: É óbvio que êsses homens de tez clara e olhos azuis, com quem comerciavam
multo mats acentuado em outras pratas, do que em Barigaza, de modo que repentinament os habitantes de Taprobana, não eram chineses, mas pertenciam a algum
se vê ora_ o fu_ndo do mar ora água onde há pouco ainda se via terra. No comêço da mar: grupo indo-europeu, talvez à tribo dos Yuetschi, que tradicionalmente leva-
alta os nos, vtsto que a água do mar é apertada contra êles, são empurrados contra a sua
cor~enteza muit<;>s estád_ios rio acima. Devido a isso, as partidas e as chegadas não são sem
vam sêda através do Himalaia para a índia. Nesse contexto pode "seros" re-
pengo para os ~nexpe~·ten_tes. É que, se a pressão da água, que se origina com o cornêço ferir-se tão apenas a uma profissão, como por exemplo o comerciante em
da maré a~ta, nao dtmmut, as âncoras se desprendem do fundo e os navios, arrastados para sêda. Pois apesar de alguma, e insofismável, influência indo-européia nas ci-
dentro e vuados de lado pela violência da correnteza, encalham nos lugares rasos." vilizações chinesa e nipônica, não existiram jamais chineses louros, de olhos
azuis! Assim, portanto, fica provado que a sêda não foi transportada apenas
Ta~ CO_?-hecimento exato das costas indianas demonstra, por si só, que por via marítima, mas também terrestre, por mais incrível que isso pareça
at~nç~o fora da?a ao estudo daquela longínqua terra. E as muitas moedas do se nos lembrarmos do isolamento setentrional da índia pela imensa cadeia de
Pnmetro Impéno, encontradas na índia, provam, por seu lado, a intensidade montanhas. Aparentemente, porém, tal caminho terrestre era bastante anti-
do tráfego entre a Europa e a terra oriental do Sol. Menos conhecido era go. Já Nearco afirma que na índia existia "serica dermata", isto é, sêda
o Ceilão, país que segundo a sua capital Tambapanni, era chamado de Ta- chinesa. Ainda haveremos de voltar a êsse assunto. ·
probana, considerado em épocas antigas a extremidade setentrional de um De Barigaza e Muziris prosseguia a ligação com o Extremo Oriente em
continente, que se estendia pelo sul afora. Tinha-se conhecimento do Ceilão viagens de conexão em tôrno da ponta meridional da índia Anterior para
apenas através das informações escassas dos geógrafos de Alexandre, o Gran- Poduka (Pondicherry) e Sopatuma (Madrasta). Daí o caminho levava através
de, ~as as referências feitas ao país em Roma, eram sempre, provavelmente do Ma~ de Bengala para a índia Posterior, e depois ao longo das costas da
em v~rtude ~e sua pretensa fa~ulosa riqueza, impregnadas do mais profundo Indochma e da China, ou pela rota de Sonda e Bornéo até Cantão e Catigara,
respeito. A~s1m, quando um dta (entre os anos 50 e 55 de nossa era) aportou provàvelmente o Hang-Tsu de nossos dias. É curioso que essas primeiras re-
uma embaixada do rei dessa ilha de sonhos, foi ela recebida com o maior lações entre as culturas européia e chinesa não tivessem efeitos visíveis para
interêsse e curiosidade. a Europa. Mas é certo que, já em inícios do segundo século de nossa era,
Iniciou-se essa história curiosa com um navio que viajava com mercadorias europeus aportavam em "Sin", pátria dos "seros", segundo a denominação
d_o milionário Annio Plocamus pela rota árabe, procedendo de Roma e que então dada à China e seus habitantes. Quando o Sudeste da China foi unifi-
fora apartado de seu rumo. Annio Plocamus era o arrendatário das taxas cado_ por volta de 250 a. C., sob o regime da dinastia de Ts'in, foi chamada
alfandegá~ias do Oceano indico, graças a uma combinação com o govêrno Tchma por marujos hindus, Sin pelos árabes e Sinai pelos gregos. Através de
do Impéno Romano. Seu capitão, um liberto, que provàvelmente era inte- contato com povos centro-asiáticos já os gregos conheciam a China como sen-
ressado em certa porcentagem nas suas atividacfes, tinha obviamente o en- do a terra em que a sêda se originou. A palavra "ser", têrmo chinês para sêda,
cargo de "caçar". no Oceano indico todos aquêles cargueiros que haviam es- transformou-se no grego "serikon", de onde a formação do substantivo "sero",
capado às aut~n?ades alfandegárias nos diversos portos. Indubitàvelmente para_ o_chinês. Por processo parecido, distinguem os árabes entre Sin, a China
era essa uma atividade compensadora. Quando um ciclone o arremessou para Mendt~nal, e Catai, a China Setentrional - êste último um empréstimo
os lados, d? Ceilão, tinha a bordo moeda~ das mais diversas épocas de cu~ha­ mongóh~o, que provàvelmente procede da palavra tungúsica "Kitai", tribo
ge~. Phmo, que_ relata essa aventura, dtz que o sultão de Taproba~a. ft~ou que em mício do século dez invadiu a China. Os romanos seguiram essa no-
mmto surpreendido com o fato de todos os "denares" terem "pêso tdenttco, m~nclatura. No segundo século de nossa era afirma Ptolomeu a respeito da
embora as representações várias de cunho indicassem que foram emitidos por ~s1a: "A parte habitada de nossa terra limita-se ao leste com terra desconhe-
diversos soberanos". cstd~, ocupada pelas nações orientais da Asia Menor, os Sinae e as nações de
. Essa continuidade de situação sob diversos governos teria naturalmente de enca". _
mteressar a um soberano oriental. Além disso terá tido o Ceilão, velho centro d É si~nificativo que as primeiras informações transmitidas do contato direto
0 Oodente com o Extremo Oriente provenham de fontes chinesas. Encon-
mu~d!al de sêda, país de origem de pedras preciosas e muitas especiarias,
cur~os_tdade por conhecer a grande nação do Oeste distante, do qual_ há ~am-se nos "hou-han-shu" os anais da mais recente dinastia de Han, redigi-
decemos e seculos lhe chegava tanto ouro cunhado. Considerando tudo tsso, os no quinto século:
enviou o Sultão quatro nobres rajás de sua côrte a Roma na qualidade de ~·o soberano da terra de Shan enviou no primeiro ano Yungnin (120 d . C.) outro embai-
embaixadores, no navio romano há pouco aportado. '· . ~a or, q~e t~azia como presente músicos e pelotiqueiros, e que foi recebido pelo Imperador.
E realmente chegaram à capital do mundo de então. Pelo menos evidencia d s pelottq~euo~ engoliam fogo e realizavam invocações de espíritos, atavam seus membros
o relatório de_ Plínio, ~em, s<;>mbra de dúvida, ~ue os quatro homen~, de tez ebemodo msoluvel e não obstante os soltavam sem auxílio alheio, trocavam entre si as
~ ças de ca_valos ~ vacas e conseguiam dançar, com mil bolas. Contavam êles que eram
escura e vestimenta nqutsstma, devem ter vmdo de regiões próximas a? 0
a ~. ~ares <;>ctdentats. O que é idêntico coro Ta-Tsin (o Império Romano, principalmente
equador. Contemplaram com admiração o céu, como se as plêiades e as estre· tna). Vat-se pelo sudoeste de Shan para ir a Ta-Tsin ."
las polares fôssem novidade para êles. E Plínio conclui:
"'Mas o que mais lhes causou admiração foi o fato de tôdas as sombras caírem para .0 d !ste relatório tem al?enas valor de curiosidade, mas o próximo, que trata
0
norte e não para o sul, e que o Sol não se levantava, como em sua pátria, à direita, det· mesmo caso, possm, injustificadamente, conforme veremos, a forma de
142 143
uma ata de Estado, uma mensagem do Imperador Marco Aurélio ao Impe-
rador da China. Também ela vem do "hou-han-shu" e diz:
"A terra de Ta-Tsin é muito grande. Tem muitas cidades e compreende grande número
de países submetidos. As casas são de pedra e numerosas estalagens existem ao longo das
ruas. Os habitantes de Ta-Tsin cortam seu cabelo e possuem belas roupas. Na guerra levam
consigo tamborileiros, bandeiras e tendas. Sua capital tem uma circunferência de 100 li e
dez palácios, cada qual distante 10 li do seguinte. Os naturais de Ta-Tsin possuem muitas
pedras preciosas, além de ouro e prata, tendo-se tornado ricos especialmente em virtude de
seu comércio com partas e hindus. Por isso tôdas as preciosidades e o que há de mais raro
em outros países provém dessa nação. Os habitantes de Ta-Tsin são de natureza franca e
trabalhadora, seus comerciantes são corretos e nunca pedem preços diferentes pela mesma
mercadoria. Cereais são sempre baratos. O Estado possui um tesouro bem apreciável. As
embaixadas de países vizinhos são levadas pelos correios das fronteiras até a capital, e rece-
bem moedas de ouro à guisa de presentes. Seus reis tiveram sempre o desejo de mandar
embaixadas para a China. Mas os partas quiseram reter em suas mãos o comércio da sêda,
e por isso Ta-Tsin foi incapaz de estabelecer contato conosco. Assim foi até o nono ano do
período de Yenshi, quando o rei Antun de Ta-Tsin enviou uma embaixada, que levava
consigo em forma de presentes marfim, chifres de rinocerontes e cascas de tartaruga. Desde
então existe comunicação direta com Ta-Tsin. Entre os presentes trazidos pela embaixada
não figurava, apesar da riqueza de Ta-Tsin, qualquer pedra preciosa, o que permite opinar
que os embaixadores retiveram, êles próprios, os presentes."

O evidente espanto e a suposição que o relator atribui ao caráter dos


presentes imperiais de Roma, oferecem provàvelmente a chave a êsse mis-
terioso acontecimento. Aparentemente não se tratava de embaixadores do
Imperador Marco Aurélio - o qual era, de fato, também chamado Antônio
- mas de comerciantes de Roma que, para serem recebidos ou terem oportu-
nidade de estabelecer relações, fizeram passar-se por embaixadores. Um ardil
quase impossível de ser descoberto e que, provàvelmente, teve repetida apli-
cação. Apenas assim podemos explicar a pobreza dos presentes. Considerando
o gasto enorme que então se aplicava para a boa a1;resentação das embaixadas
oficiais, quando se tratasse de representação ofiCial, não podemos acreditar
que uma embaixada imperial romana tenha sido enviada com tais presentes.
Além disso não existe a menor menção, em qualquer fonte européia, a
respeito da embaixada em questão, e não é crível que Marco Aurélio tivesse
enviado ao Imperador da China uma mensagem confidencial não ~n­
contrada entre os documentos oficiais. Contudo, essa embaixada não preCts_a
forçosamente, ser fictícia. O relato chinês foi escrito alguns séculos depois
dêsse evento e por isso poderíamos aceitar certas obscuridades. Mas, co~o
quer que seja, sabe-se ao certo que comerciantes romanos chegaram à Chma
já em inícios do primeiro século de nossa era. Igualmente certo é, porém,
que essas viagens não contribuíram muito para enriquecer a geografia .. ~e
bem que possamos supor que até os fins do século três, relações comerciais
mais ou menos intensas tenham existido entre o Império Romano e o Ex-
tremo Oriente - o que é provado pelo achado freqüente de moedas romanas
na China - essas relações se romperam mais tarde, antes que qualquer con-
tato espiritual pudesse surgir entre os dois impérios mundiais, do Ocidente
e do Oriente.
A verdadeira razão dessas relações, dêsses esforços empreendidos já muito
antes de nossa era, para entrar em contato com o misterioso povo do Extremo
Oriente, residia em fugaz idéia que há quarenta e sete séculos agitou a IIl!:
peratriz Si-Li-Shi, primeira dama de Huang-Ti, espôsa do "senhor amarelo
e primeiro imperador, com o qual a lenda chinesa faz começar a cultura n?
Império do Centro. Quando ela, assim informam os autores dos velhos at.;_Iais aCabeça
1
-r . de 1nu 11ler elrusca, d e wn mural da Tomba dell' Orco, na •Tarqwma. ·· · · Co b erta d e JOias
· ·· ,
dos "filhos do céu", passeava em dia afortunado com suas damas de co~te tsllcam ente pe11teada e com sobrancelhas artificialmente arranjadas, foi assim que um pintor
desconhecido retratou essa jove m mulhe1· etrusca no século IV a. C.
pelos jardins imperiais, caiu seu olhar casualmente sôbre uma amoreira, CUJOS

144
frutos estavam em lento movimento. Repentinamente bela e colorida borbo-
leta saiu de dentro daquelas bolinhas, que Si-Li-Shi havia tomado por frutos
de amoreira. A imperatriz examinou com curiosidade êsse estranho fenôme-
no, verificando serem êsses "frutos" constituídos por finíssimos fios animais.
Com seus dedos delicados não lhe foi difícil encontrar o princípio do novêlo,
que passou a enrolar em sua mão até ficar tôda envolvida e sentir agradável
sensação de frescor, causada pelo contato com os quatro mil metros de fio de
sêda, que formam o casulo do bicho-da-sêda.
Isso aconteceu em uma época em que os chineses não possuíam vestimen-
tas. Em vez dessas, fôlhas ou plumagens de ave eram empregadas e no velho
templo das "Tr.ês Majestades", em Xantum, onde existiam as estátuas de
Huang-Ti e de dois dos seus predecessores, era possível ver-se quão precária
a situação da indumentária antes de Si-Li-Shi. Enquanto Huang-Ti lá estava,
usando lindas vestes de sêda, como competia à sua condição, cobriam-se seus
dois predecessores com saias curtinhas de relva e algumas fôlhas miseráveis.
Que frio devem ter sentido aquêles pobres potentados! Que bom que Si-
Li-Shi tivesse a idéia de dobrar aquêle fio e pô-lo num tear! E que bom que
Huang-Ti, longe de opor-se à espôsa, ordenasse por edital imperial que ao
povo fôsse ensinada a arte de tecer a sêda, "a fim de que todos J?OSsam vestir-
se e não tenham de sofrer frieiras e outros inconvementes do mverno".
E, se bem que se saiba de há muito, que a invenção da fiação da sêda na
China é muito mais antiga, reportando talvez ao quarto milênio, manteve-
se o povo chinês fiel à sua lenda, elevando Si-Li-Sni, como "avó do fio" à
divindade e venerando-a como uma das estr.êlas do "Escorpião".
Trata a propaganda imperial, em seguida, de popularizar por todos os
Casal etrusco, de um sarcófago de Cervetri, sécul? VI a. C. Os olh?s em forma. de amê~doa, meios o novo tecido e ainda hoje significa a cultura do bicho-da-sêda e a
as faces agudamente cortadas, assim como os nanzes 1·etos e fmos mdtcam a ongem aswttco-
menor dos etruscos.
produção dessa matéria não apenas pão e lucro para vinte ou trinta milhões
de indivíduos, mas continua sendo, por assim dizer, uma espécie de culto
místico. A sêda? E não foi ela uma dádiva dos deuses? Não era, por isso, a
obtenção do produto físico daquele animal, de côr branco-suja com riscos
amarelados ou castanhos, da "bombyx mori", realmente uma tarefa sagrada?
Tão sagrada que apenas competia ao povo eleito do Império do Centro e
n~o ~os vizinhos _bárbaros, que deveriam, a todo custo, ser mantidos na igno-
ranoa de sua ongem?
Mas êste segrêdo por qualquer preço - a punição para traição ou espio-
n.agem era a morte - atraiu o interêsse alheio ainda mais que a própria
seda._ E foi por isso que caravanas após caravanas vinham do oeste, homens
e amr;nais em corrente ininterrupta. Vinham com marfim e púrpura de Tiro,
com. mcenso e especiarias, com ouro e âmbar, com produtos raros e peles
preciosas. Abriram o seu caminho em seis meses pela bacia de Tarim, enfren-
taram a morte pela sêde, enquanto atravessavam desertos areosos e pântanos
salobro_s venciam os elevados desfiladeiros do Pamir, com os pulsos batendo
e agomzante falta de ar; vinham em nàvios através de milhares de quilôme-
tros de. ~ar aberto, pagavam qualquer preço - pela sêda. E sôbre a rota
~ran~asiática, mencionada por Heródoto, que Alexandre, o Grande, procurou
.ommar e que foi percorrida por Marco Pólo, sussurra, crepita, cintila a
seda, arrastando-se até a Europa. Isso começou por volta de 300 a. C., ou
pel_? menos são dessa época os primeiros documentos escritos sôbre a impor-
taçao de sêda chinesa. Mas apenas continuou enquanto os par.tos n ão se
opu?ham, os partos, um povo eqüestre do Irã. que mantinha contrôle sôbre
as. hnhas de comunicação entre o Mar Cáspio e o Gôlfo Persa. Quando o
~~mo ~iádoco dos seleucos sofre colapso em 150 a. C. sob ataques romanos,
h ogue~am os partos a comunicação terrestre. entre a Europa e a Asia, que
avia Sido estabelecida_pelos . p.ersas e mantida aberta sob.Alexandre, o Gran-

' lo l a. C. À esqu-erda a "d omma


L ápide twnular de um casal romano. Secu · " , a dona da
à direita seu marido, com lábios cheios, cujos cantos pendem um pouco para bmxo.
. casa; °
1
Conquisto Mundo
145
de sendo que a Selêucia, no Tigre e a Antioquia, na Síria, se tornam ricas, mente a política tradicional de isolamento do resto do mundo, antes seguida
graças à sêda. Os partos, vizinhos imediatos do país sagrado da sêda, consi- pelo Império do Centro. É verdade que os comerciantes do Sul e Oeste não
deram-se os senhores do mundo pelo simples motivo de serem os interme- pisavam solo chinês com muita freqüência, pelo menos não em épocas tão
diários do comércio da sêda, para seu proveito imenso, já que Roma era remotas, mas a troca de mercadorias pressupunha de lado a lado um conhe-
mercado para sêda desde o século anterior a Augusto. Um único quilograma cimento exato dos produtos. Se os encarregados alfandegários e negociantes
dessa mercadoria custava quase oitenta mil cruzeiros, do que ainda mais da China de então, re~istraram treze tipos diferentes de incenso, desde o
tarde se queixa Calígula, ao passo que Marco Antônio recusa à espôsa um incenso inferior da Afnca Oriental, através das qualidades castanho-areosas
cobiçado vestido de sêda - dizendo não poder pagar tão elevado preço! da Arábia, até os produtos selecionados das árvores de incenso de Hadra-
O requinte europeu contribui para ainda "refinar" a sêda. A Ilha Cós, no maut, devem êles ter tido pelo menos uma idéia superficial daqueles países
Mar Egeu, produz mulheres fabulosamente lindas, mulheres que gostam de de origem.
usar sêda, sêda porém que não cubra espessamente as suas portadoras, tal Nada existiu naquele mundo distante que não fôsse exportado para a Chi-
como faz a sêda chinêsa, espêssamente tecida, mas que sirva apenas como na. Da índia chegavam pedras preciosas, diamantes, pérolas, essência de
um véu. É desta forma que o material importado da China é decomposto em rosas, cânhamo e sândalo, da Pérsia e dos partos as caravanas traziam mer-
seus fios individuais, produzindo-se com estas um tule finíssimo, tênue e cúrio, mel de abelha, cristal rochoso, corais e estoraque, as Ilhas dos Condi-
transparente como uma teia de aranha. ~ste era usado em Cós, em Roma e mentos (Molucas) enviavam a pimenta, tão cara que era equivalente em pêso
- muito em breve - seria exportado para o Oriente. Os homens ocidentais, a rubis. Cânfora, noz-moscada, canela e benzoína juntavam-se a papagaios e
por seu lado, usavam brocado, entremeado com ouro tingido em Tiro, de côcos, sendo que os árabes transportavam para a China o marfim, o chifre
púrpura, sempre que pudessem dar-se a tal luxo. "Assim sendo, é necessário de rinoceronte e - sobretudo - escravos ne~os. Entre os chineses ricos eram
que peregrinemos até o fim do mundo", escreve Plínio, "a fim de que nossas êsses "escravos diabólicos" especialmente estimados, tendo os árabes feito tão
damas possam envolver sua beleza com transparentes véus, e os homens gas- bom negócio com essa "mercadoria", que já em 300 conseguem abrir estabe-
tar as suas posses na aquisição do brocado". E, como fervoroso propagan- lecimento próprio em Cantão. Certamente mantém a China uma atitude de
dista dos "produtos nacionais", acrescenta em outra passagem: "Uma estima- extrema reserva frente a êsses estrangeiros. Mas inevitàvelmente difundiu-se
tiva objetiva de nossas importações da índia, China e Arábia mostra que também entre os "filhos do céu" um certo conhecimento dos países dos
nelas gastamos cêrca de cem milhões de sestércios anuais. É isso o que pa- bárbaros.
gamos para nosso luxo e de nossas mulheres". Não percebe porém, que essa Apesar dessas longas e muito intensas relações com a rica terra de sêda
soma representa apenas a perda monetária sofrida pelo Império Romano. O do Extremo Oriente, estava ela como que escondida atrás de uma cortina,
âmbar, os metais, o vidro, a lã, o linho, etc., grande quantidade, enfim, das pelo menos no que diz respeito ao conhecimento geográfico da Antiguidade.
exportações romanas, eram fornecidas em troca de sêda chinesa, aumentando Por isso, apesar de tôda a sua inexatidão, a descrição que damos a seguir valia
o débito e tornando completamente passivo o balanço europeu de comércio. até os anos de Marco Pólo e a Idade Média. Ela consta do "Periplus maris
Finalmente sucedeu o inevitável: o Estado faliu, como tinha de falir, desde Erithraei", um manual de navegação compilado em 80 de nossa era por um
que despendesse muito mais do que possuía. Sucedeu isso no ano 300 de comerciante grego residente em Berenice, no Mar Vermelho, e que se refere
nossa era, sob Diocleciano. Mas enquanto o indivíduo, em tais casos, se vê à índia e à China:
forçado a convocar uma reunião de seus credores, pode o Estado empregar
meios diferentes. Cancela suas obrigações, dando livre curso à inflação. É o "Além da índia, o mar termina algures, de encontro a um país. E no interior dêsse país
existe uma grande cidade, de nome Thinae. De lá vêm lã (algodão), sêda e tecidos de sêda
que fêz Diocleciano. Temos as notícias mais penosas de pais desesperados, para Barigaza, atravessando a Báctria. Não é, porém, fácil chegar a Thinae, e apenas poucos
cujo capital, laboriosamente acumulado para a segurança de espôsa e filhos, são aquêles que vêm de lá. Aquêle país fica diretamente debaixo do Pequeno Urso, o que
desaparece como se fôsse um sôpro de fumaça. Existem relatórios de pessoas significa que aquelas regiões estão situadas próximas às terras mais afastadas do Ponto e
que se lastimam porque, por exemplo, uma galinha que um ou dois dias do Mar Cáspio ...".
antes custara poucas dracmas, era vendida por trinta mll, ou que uma hipo-
teca de 3.800.000 dracmas poderia no ano 307 ser conseguida para uma casa Es-sa incerteza, aqui revelada, torna difícil traçar com precisão a rota para
que em 267 não valia mais de dois mil. E assim como a Alemanha, durante a China, tal como seguida na Antiguidade. Por vêzes, pelo menos durante o
a inflação de 1920 a 1923 chegou a imprimir notas de trilhões, fazia a era período por volta do ano 100, quando o Imperador Ho-Ti, da China, reabriu
de Diocleciano as suas contas em números infinitos de dracmas. Como era o velho caminho da sêda, terão os via jantes usado a antiga rota terrestre que,
de esperar-se, procurava o Estado melhorar a situação com tabelas de preço- conforme sabemos, foi aberta muitos anos antes. É verdade que a hostilidade
teto. O famoso "edictum de rerum venatium pretiis" (edital concernente às dos partos tornou essa rota extremamente difícil e custosa para os greco-roma-
mercadorias compráveis), que serviu de modêlo a tôdas as posteriores regu- nos, e quando o acesso ao Oriente veio a ser mais fácil, em inícios do segundo
lamentações de preço máxxmo, contendo ameaças de severas punições e que século, graças à conclusão vitoriosa das guerras contra os partos, a bacia de
provou ser tão mfrutífero como todos os regulamentos modernos da mesma Tarim deixara de permitir a passagem, devido aos ataques de selvagens ca-
espécie - êsse "edictum" fixava os preços com exatidão extrema: víveres e valarianos mongóis. Daí por diante preferia-se provàvelmente a rota marítima.
escravos, salários e honorários médicos, aluguéis para veículos - até os "dor- Havia duas alternativas: o caminho mais rápido, mas sem dúvida que maio-
mitaria", os carros-dormitório da antiguidade, contas de sapateiro e alfaiate, res trabalhos e dificuldades oferecia, atravessava o mar até a desembocadura
nada escapava ao olhar de Argo do Estado. . do Iráuadi, em Burma. Ali, o viajante baldearia para barcos fluviais e se-
O fato de o comércio com a Ásia Oriental ser realizado não apenas em guiria árdua rota pelo Iráuadi aCima, através de regiões montanhosas, até
moedas sonantes, mas também com a troca de mercadorias, minou natural- Bhamo. Daí levava, de uma maneira geral, pelo traçado da moderna estrada

146 147
da Birmân~a, uma antiga rota de ca_ravanas, à região de Jumna e mais para
o norte. R1chard Henmg chamou amda recentemente nossa atenção ao fato viajar através das ilhas orientais, particularmente o Estreito de Sonda. Por
de que essa rota oferecia múltiplas vantagens. isso, . podem~s supor, com algum grau de certez~, que os antigos veleiros do
A comunicação puramente marítima com o Extremo Oriente não corria Extremo Onente - como também os que veleJam em épocas modernas -
pois, como alguém poderia supor, através do Estreito de Malaca, via Zaba~ não passaram através do Estreito de Malaca, mas sim daqu~le de Sonda.
(Singapura), ao longo da costa, até o Gôlfo de Tonquim, onde o principal Depois, passando a oeste de Bornéo, podem ter atravessado o alto mar e che-
pôrto chinês pode ter-se situado à desembocadura do Rio Serus, o moderno gado ao Gôlfo de Tonquim, de onde boas rotas de caravanas levavam para
Song-Koi. Como se sabe, ventos que possam ser usados para velejar de oeste o interior. Neste, ainda que Catigara se achasse mais para leste, se encontrava
para leste sopram no Estreito de Malaca apenas durante o fim do outono e em todo cas? um impo~tante empó~io pa_ra o comércio marítimo Europa-
os meses de inverno, sendo então as condições de tempo mais favoráveis para Extremo Onente. Repetidamente fo1 mamfestado o ponto de vista de que
Catiga~a não poderia ter ficado senão na Baía de Hang-Chou, na qual, até
o terce1ro século, desembocava um braço do Iã-Tsé-Quiã. Se isso fôr correto,
nossos marujos da Antiguidade poderão ter atravessado o Estreito de Sonda,
contornado o leste de :Bornéo e viajado ao longo das Filipinas - uma reali-
I zação notável, que inspira profundo respeito.
I Aqui, entret;mto, vamos deter-nos um pouco. O leitor, para quem tôdas

I
w
I

/Formosa.
.
essas coisas são novas, sentirá tonturas, principalmente ao lembrar-se dos
distantes dias de escola quando ninguém lhe ensinou até onde realmente al-
cançavam o poder e a v1são geogrática de Roma. Verdade é que isso não se
deu por ignorância; nossos conhecimentos dêsses fatos só se originaram, real-
I mente, no decorrer dos últimos vinte e cinco anos. Ainda hoje, porém, via
I de regra, não se fala muito disso nas escolas. Acresce a isso, não há dúvida,
I
I que os resultados materiais dêsse poderio universal de Roma só eram senti-
aos por uma camada extremamente tênue de gente muito rica. Nenhum
dos escritores ou historiadores cujas obras vieram até nós terá usado vestimen-
tas de sêda. Nenhum dêles terá travado conhecimento pessoal com um dos
-- grandes comerciantes alexandrinos. Nenhum dêles viaJOU o mundo como
outrora Heródoto. Todos êles ficavam sentados à sua escrivaninha, e o que
sabem relatar são as sensações muito grosseiras que conseguiram, por um mo-
mento de pasmo, superar o barulho da metrópole às margens ào Tibre. E
\
antes que os nossos autores fôssem capazes de compreender o alcance dos re-
I sultados espirituais dessa enonne ampliação da "ecúmena", o seu mundo des-
I
\ ~
moronou no êxtase sanguinário da mania cesariana, na alienação do cris-
o· \ o
tianismo das coisas do mundo temporário e na inundação pelos bárbaros
\~ ainda mal civilizados.
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\~
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\ o

\
\
\ .
---- 5
10'S
Precipitamo-nos um pouco em nossa narrativa, saltando diversos séculos.
Mas isto não foi acidental. Pois, se agora voltarmos ao Oeste com a questão
se viagens, da mesma imensa extensão que as realizadas nos mares orientais
1000km
em afastados tempos históricos, eram executadas também no Atlântico, precisa-
mos, antes de mais nada, discutir a questão preliminar da existência dos
necessários pré-requisitos técnicos para tais empreendimentos de longa dis-
XIII. O tráfego marítimo entre a lndia e a China. Em virtude das condições do vento, tância nesse oceano teml?estuoso e imprevisível. Isso equivale a perguntar se
realizava-se o tráfego pelo Estreito de Malaca apenas em fins de outono e no inverno. Em os antigos possuíam navws capazes de enfrentar os mares ocidentais. Tendo
ger~l percorri~ a rota de So':'da. Se Catigara se encontrava onde hoje se localiza Hang-Chou_,
em vista as realizações no Oceano indico, temos de responder afirmativamen-
tenam os navzos para a Chma navegado em geral a leste de Boméo. O Rio Iráuadi permi-
tia uma rota mais curta ao interior chinês, para Bhamo, de onde partia uma estrada de te a essa questão, mesmo no que se refere a épocas muito distantes. Tudo
caravanas, mais ou menos no curso da moderna Estrada de Burma, levando à região de sugere que a Antiguidade Clássica possuía possibilidades técnicas de singrar
]umna. É uma possibilidade razoável admitir que o Iã-Tsé-Quiã tenha também sido utili- o Atlântico, que talvez chegasse mesmo a cruzar. Tais viagens distantes podem
zado em época~ muito _n:~tigtfS para__ C!_ con~érc!o _co_m a Chin~. mesmo, e mais de uma vez, ter sido realizadas involuntàriamente, como con-
seqüência de os navios terem sido desviados por ventos violentos para fora
149
do seu curso. O cruzamento do Atlântico, em 1930, num barquinho desmon-
tável, o cruzamento do mesmo oceano em barco a remo, aberto, há cêrca
de 50 anos, assim como a recente travessia do Pacífico em uma jangada,
constituem provas cabais do que um marujo experimentado e intré-
pido pode realizar, e que distâncias enormes podem ser percorridas com
barcos minúsculos. Durante as últimas décadas, o Atlântico foi também, e
em diferentes ocasiões, cruzado em veleiros manobrados por um único maru-
jo; e muito recentemente foi até empreendida uma viagem em jipe anfíbio.
E desde q_ue tais realizações sejam possíveis hoje, é certo que não eram impos-
síveis antigamente, tendo certamente sido efetuadas numerosas travessias do
Atlântico muito antes da era cristã. Não há, contudo, nenhuma tradição digna
de algum crédito, que relate tal fato; e até hoje não temos notícia de qual-
quer descoberta documentada da América antes de Colombo, excetuando
aquela dos normandos.
Se lançarmos um olhar ao mapa das condições de ventos e correntes do
Oceano Atlântico, espantar-nos-emas porém com essa realidade. Os ventos
alísios provêm das massas de água dêsse oceano com uma corrente, que se
move em uma direção através de milhares de milhas com velocidade que
muitas vêzes excede a dois q_uilômetros horários, constituindo uma espécie de
ponte móvel entre os contmentes. Aparentemente basta confiar-nos a ela,
para atravessar os desertos aquáticos do Atlântico. Mas, para isto, é necessário
em primeiro lugar que tenhamos conhecimento dessa possibilidade náutica
e a certeza de que afém do oceano exista terra firme.
Essa convics:ão era, indubitàvelmente, generalizada na Antiguidade. Para
começar, provmha de razões quase físicas. Pois enquanto imaginavam a Terra
em forma de um disco, contornada tôda ela por um oceano, era logicamente
necessário que além dêsse mar universal existisse uma margem cuja escarpa
constituiria como que uma moldura para essas massas aquáticas. Forçoso,
portanto, existir terra além dessas águas!
Por outro lado estava tal convicção perfeitamente de acôrdo com as idéias
do Além, tal como alimentadas pelos povos mediterrâneos desde tempos ime-
moriais. Em alguma parte do Oeste, atrás do mar, lá onde noite após noite
desaparecia o Sol, deveria existir o reino dos mortos, a pátria das almas de-
saparecidas. Já o Egito Antigo transportava seus mortos em uma barca divina
através do silencioso rio das Causas Finais para o Além. Gilgamesh, lendário
rei de Uruk, cruzou as águas da morte, e Circe informou Ulisses que além
do Oceano existia o reino de Perséfone, a deusa da morte.
Na época em que os gregos avançam de sua pátria continental primitiva
para o Mediterrâneo, desconheciam a noção de um Além, situado atrás dos
mares ocidentais. Imaginavam o reino dos mortos em alguma região subter-
rânea. Durante algum tempo os dois conceitos pareciam caminhar de mãos
dadas: o escuro remo da morte debaixo da terra e o outro mundo, além do
oceano. Depois, chegam à Hélade rumores vagos, aparentemente provando
que ilhas descobertas por marujos audaciosos além da região das colunas de XIV. Correntes do Oceano Atldntico.
Hércules não eram terras espectrais, escuras e brumosas, mas pacíficas, verdes
e férteis. A noção oriental antiga foi assim substituída pelas aprazíveis nar-
rativas do Elísio, a região dos Bem-Aventurados. Assim promete Proteu a Doravante não deixam de aparecer as "Ilhas Bem-Aventuradas" na poesia
Menelau: da Antiguidade clássica e é bem provável que as muitas referências mais ou
menos veladas, da literatura grega a países distantes do Ocidente além do
" ão defrontarás teu destino, morrendo em Argos, onde pastam os cavalos. oceano se prendam, em última análise, à crença antiga dessas regiões elisíacas.
Mas os Imortais vão enviar-te a planícies elisíacas, onde termina o mundo.
Para te unires ao herói louro Radamanto. Ali, viver é fácil para a humanidade. Aparentemente é assim ainda com Platão que, em seu "Timeu", faz com
Não cai a neve, não sopram fortes ventos, nem existe a chuva; · que os sacerdotes de Sais digam, após longo relato sôbre a Atlântida, que
Diàriamente, porém, existe brisa suave, vinda do oceano para brandamente refrescar além daquela ilha, "na extremidade do oceano existe vasto continente". :tsse
[os sêresl"] "vasto continente" não é, obviamente, a América, mas sim a conseqüência da
150 151
opinião a que acima nos referimos, e de acôrdo com a qual deve existir terra Pausânias cala a fonte de seu conhecimento, mas seu colega um pouco
em volta do oceano. Por certo, a noção de um "Elísio" estava também en- anterior, o cronista romano Pompônio Meia, que vivia na época de César,
volvida, tendo.-se ampliado posteriormente a perspectiva com a hipótese dos fornece-nos a informação desejada:
pitagóricos, naturalmente conhecida de Platão, de que o mundo não é um
disco mas uma esfera. "Além dos naturalistas e Homero, afirma também Cornélio Nepote, um historiador mais
recente e melhor informado, que a Terra é circundada pelo mar. Cita Q. Metelus Celer,
Seu discípulo Aristóteles (384-322 a. C.) expressou a opinião inequívoca de como autoridade, sendo que êsse assim se externa: quando procônsul na Gália (62 a . C.),
que o mundo era uma esfera e que um único oceano se estendia das colunas recebeu diversos índios, como presente do rei dos suevos. Perguntando qual a proveniência
de Hércules à índia. Vê-se que dessa nova noção de que a Terra era uma de tais homens, contaram-lhe que vinham dos mares índicos, tendo sido levados pelos fortes
esfera, deduziram imediatamente que as terras opostas, que limitariam o ocea- ventos através dos mares próximos, até serem atirados contra as costas da Germânia."
no, as antigas regiões elisíacas, fôssem a costa da Ásia Oriental.
Algumas décadas depois de Aristóteles, Eratóstenes (275-195 a. C.) deu uma É evidente que êsses índios não provinham mais da índia que os nativos
feição moderna àquela concepção já atualizada do mundo. Afirma êle: de côr de cobre que Colombo encontrou ao descobrir a América e aos quais
"Apenas aquela área em que vivemos nós, e que nos é conhecida, é chamada também êle deu o nome de "índios". Tudo aquilo que ficava além do
de ecúmena, o mundo habitado. Mas bem pode existir outro continente, ou oceano recebia o nome de índia. Navios hindus, naturalmente, não poderiam
mesmo alguns outros, na zona temperada." E, apoiado em sua medição dos ter sido impelidos à Germânia. Os marujos da índia parecem ter contribuí-
números de graus entre Alexandria e Siene, (hoje Assuã), calcula Eratóstenes do muito pouco para a descoberta do mundo e não existe documento que
que o continente do Mundo Antigo devia perfazer cêrca de um têrço da cir- prove a presença de quaisquer navios hindus fora do Oceano Índico. De
cunferência da Terra, de tal modo que a distância entre a costa asiática acôrdo com as circunstâncias, podem os "índios" de Pompônio Meia ter
oriental e a Espanha seja aproximadamente de 240° de longitude, o que não vindo apenas da América.
fica muito longe da verdade. Além de barcos com ou sem tripulação, muitas outras coisas foram natu-
Não é espantoso? Como poderá Eratóstenes ter chegado a essa conclusão? ralmente atiradas às costas europétas ocidentais: partes de naufrágios, peda-
Como lhe terá sido possível libertar-se da "autoridade de Aristóteles, incondi- ços de bambu, "feijões do mar", que são, como sabemos, as sementes da "en-
cionalmente aceita ainda na Idade Média? Para o grande discípulo de Platão tada gigas", uma trepadeira encontrada nas Caraíbas - madeiras estranhas
a Europa era e permaneceu sendo o mundo, assim como o ser ocidental era e de grande capacid~de de flutuação, provàvelmente troncos de árvore de Cuipo
permaneceu sendo o centro e a medida de tôdas as coisas. Conseqüentemente da América Central, e outras coisas mais. Certamente levaram êsses achados a
declarou Aristóteles expressamente que a existência de outros continentes reforçar a hipótese existente de um continente no oeste distante. Recentemen-
era impossível. O que induzia Eratóstenes a empreender esta secularização t~, levando em consideração as afirmações de Pompônio Meia e outros clás-
geográfica da ecúmena? Sicos, foi aventado o ponto de vista de que todos .êsses desembarques foram
É quase impossível admitir que isto tenha acontecido como resultado de r~alizados em latitudes setentrionais, feitos por esquimós. Não podemos ana-
mera hipótese. Sentimo-nos incfinados a acreditar que o grande sábio grego hsar aqui tal proposição, mas vale mencionar que um dos relatórios de Plu-
tenha tido algum conhecimento daquele Novo Mundo, que já naquela época tarco (46 a 120) se refere realmente ao norte distante. Em seu diálogo "Sôbre
estava ligado à Europa pela ponte oceânica do Atlântico, enviando continua- o. rosto na Lua" fala Plutarco em alguns grupos de ilhas situados bem em
·mente ao Velho Mundo novos sinais de sua existência. dueção ocidental no oceano, na latitude da Bretanha, atrás das quais, na
Será isto realidade? Oskar Peschel, um dos arautos da Geografia mo- margem do mar, se estenderia um grande continente. Essas ilhas - seguindo-se
derna, disse uma vez que desde épocas imemoriais, "anunciavam as duas mar- agora a observação gue torna digno de nota êsse relatório aparentemente
gens do vale atlântico, reciprocamente, a sua presença." Um estudo de uma f~ntástico - distinguir-se-iam pelo fato de que durante o período de trinta
das muitas biografias de Colombo, poderá mostrar-nos de que quantida~e dtas recebessem quase que ininterruptamente os raios do Sol. Durante a noite
de provas válidas da existência de um continente não demasiadamente dts- o Sol deixaria de ser visível por mais ou menos uma hora, mas não cairia
tante, dispunha o descobridor genovês, convencendo-nos que Oskar Peschel co~pleta escuridão, já que um crepúsculo luminoso reverberasse no céu
tinha razão. Não pode haver dúvidas que a América fêz todo o possível para octdental.
manifestar sua existência aos orientais longínquos. T~do isso não pode, simplesmente, ser interpretado como sendo uma in-
Isso acontecia também na Antiguidade. Daí depararmos com passagens da vençao, mas aponta inequivocamente para uma ilha ao oeste da Grã-Breta-
literatura clássica que nos permitem opinar que enviados do Novo M~ndo n!_J.a, ~a proximidade do círculo polar ártico. Tais informações sóbrias e exatas
chegaram à Europa em tempos muito antigos. Em seu interessante hvro, ~ao sao rrodutos da imaginação poética, é justamente o poeta que necessita
se bem que nem sempre convincente, sôbre a Atlântida, A. Braghine chama e matenal mais interessante para trabalhar. Não há muita razão para ten-
nossa atenção . para um relatório importante do historiador Pausânias (p?r tar-se descobrir a que ilha se referia Plutarco, mas certamente não poderemos
volta de 150). Pausânias afirma que, em direção oeste do oceano, bem dts· negar que suas informações dão o que pensar. De acôrdo com a posição das
tante, existe um grupo de ilhas, habitadas por indivíduos de pele vermelha
e cujo cabelo se assemelha à crina de cavalos. A menos que julguemos ambas Aterr~s~
menca.
poderia o grande continente, do qual fala, ser nada mais que a

as indicações, a "pele vermelha" e a "crina" como produto de imaginação ~e Teremos de admitir que as informações aqui citadas, que podem ser su-
Pausânias, não poderemos interpretar essa informação senão como referênCia plementadas por citações correspondentes das obras de Estrabão, Sêneca, Elia-
inequívoca aos índios americanos. no e outros geógrafos antigos, são realmente assombrosas. Se mais uma vez
Seria possível que Pausânias tivesse tido um conhecimento dos habitantes nos lembrarmos que muito antes de nossa era numerosas embarcações anti-
da América? Há alguma forma de provar tal assertiva? gas se aventuraram pelo Oceano índico afora, em rota que levava através de
I 52 153
dois mil quilômetros de mar aberto, isto é, quase 25 dias sem que terra
pudesse ser vista, temos de interrogar-nos quais seriam as dificuldades bastan-
te sérias para impedir que marinheiros competentes partissem da bem conhe-
cida costa do Noroeste da Africa a fim de velejar com o alísio em direção
oeste em demanda da índia, por essa rota.
As Canárias e os Açôres já eram bem conhecidos na época do nascimento PARTE VI
de Cristo - mesmo que depois a noção dêsse conhecimento se tivesse perdi-
do - e se levarmos em têrmo de conta o fato de que o alísio boreal principia
imediatamente ao oeste de Cabo Verde, sendo suficientemente forte e cons-
tante para levar um navio a longa distância, ao alto mar, concluiremos ser
A AMÉRICA - A HVITRAMANNALÂNDIA
possível que a América tivesse sido atingida em épocas muito distantes.
Contudo não existe, até o presente, qualquer prova que ateste inequivo-
A TERRA DAS FACES PÁLIDAS
camente tais viagens. É verdade que esforços repetidos foram feitos, especial-
mente por geógrafos portuguêses, no sentido de apresentar evidências incon-
testáveis de que o Atlântico fôra cruzado bem antes de Colombo. Mas por
mais provável que isto seja - ouviremos ainda mais a respeito no capítulo
seguinte - os argumentos até agora existentes não são defmitivos nem con-
clusivos. No que diz respeito à técnica de navegação e construção náutica,
existia a possibilidade de atravessar o Oceano Atlântico já na Antiguidade
Clássica; a tal respeito não pode haver dúvida! Enquanto, porém, tiver va-
lidade a expressão: "quod non est in actis, non est m mundo" - isto é, "o
que não existe documentado, não aconteceu" - as viagens à América, ante-
nores a Colombo, pelo menos aquelas de povos do Mediterrâneo, terão de
ser consideradas hipotéticas.

Pressentimentos fatais em Temixtitan - Cortez e


Dona Marina - A Lenda de "Votã", dos maias -
Quem era Quetzalcoatl? - Gudleif Gudlaugson na
Hvitramannalândia - São Brandão e Rei Madoc
cruzam o oceano - "lndios brancos'' na América -
Os louros mandãs - Era a roda conhecida pelos
índios - Peles-vermelhas com nomes de brancos -
Pedro de Candia fica furioso em Tumbet - Quem
é Viracocha? - Incas de olhos azuis - A lenda do
deus branco Bochica - O enigma da Ilha da Pás-
coa - Polinésios louros - Quem levou batatas para
o Havaí? - A travessia de jangada de Thor Hey-
erdahl - O Peru e a Polinésia - Pirogas de ba-
lanceiro e jangadas de pau de balsa- "Inscrições"
fenícias na América - Era o grego falado pelos
índios?

154
1

Velha lenda corria em Temixtitan, a brilhante sede do Imperador Monte-


zuma no Vale do México, velha lenda que não morreu nem sob os toltecas,
os antigos senhores do país e agora pobres pescadores ou lavradores, nem sob
o domínio dos poderosos barões de Aztlan, os dominadores da nação na épo-
ca dos acontecimentos aqui narrados. Uma lenda, que o clero não foi capaz
de exterminar, por maior o número de corações humanos, ainda em convul-
são, imolados nos altares do deus Uitzilopochtli, nos séculos em que os aste-
cas, emigrados de Aztlan, haviam-se tornado dominadores dessa sua nova,
esplendorosa e frutífera pátria. Agora sucedeu o que os sábios videntes ha-
viam previsto e o que se encontrava escrito nos livros sagrados: no Oriente
distante rebelava-se Quetzalcoatl, o deus d a luz, há tempos nascido das en-
tranhas de mãe virgem, e estava prestes a reconquistar a terra que lhe havia
sido arrancada pelos deuses dos astecas. E com êle, branco deus da luz e
do ar claro e transparente, aproximava-se uma hoste de sêres celestiais e
resplandecentes, cavalgando sôbre deuses-dragões de quatro membros, que sol-
tavam aos jactos a respiração pelas narinas, com a velocidade do furacão, e
cujas caudas flutuavam ao vento tal como os penachos de fumaça procedentes
da bôca do monte de fogo Popocatépetle. Diziam que raios e trovões eram
trazidos pelos deuses brancos nas próprias mãos; e os informantes acrescen-
tavam que haviam visto com seus olhos homens corajosos perderem a vida em
virtude do raio trovejante que partia de longos canos brilhantes, da mão dos
enfurecidos deuses brancos. Nada seria possível fazer a não ser que lhes
conseguissem conquistar as boas graças.
E o país foi perpassado por um pressentimento de próximo desaparecimen-
to. Os poetas cantavam:
"Quão triste! Quão melancólico!
Sei que nossa nação vai desaparecer,
Fumegam os astros,
Breve deixará de ser
A cidade dos livros e das flores! "

Todos falavam de indícios ameaçadores. Cometas de mau agouro apareciam


no céu, templos se incendiavam, o lago santo de Tezcuco p assou repentina-
mente das margens, do próprio ar vinham vozes baixas e dolorosos quei-
xumes .
.. O homem que provocou todos êsses indícios, Fernando Cortez, líder dos
deuses brancos", nada sabia, por essa ocasião, do desassossêgo provocado por
sua presença no México. Era um pequeno nobre espanhol, de boa e tradicio-
n~l família, e dela paupérrimo herdeiro. Acabava de r eceber - estamos no
dia 18 de novembro de 1518 - do governador de Cuba a ordem de levar
a~ante marchas de reconhecimento em Iucatã e as regiões costeiras da Amé-
nca Central. Ordem é ordem, e é forçado a obedecer, por mais que gostasse
de Cuba com suas muitas "sefíoritas" de sangue fervente. Mal-humorado parte
e ma~-humorado chega três meses depois à desembocadura do Tabasco no
Iucata com seus navios, e é ainda mal-humorado que d á as ordens necessárias
para empreender o desembarque na manhã seguinte.

l57
a outras cobras, acreditava-se que êsses estranhos eram filhos da cobra sa-
grada, e portanto deuses.
Tudo isso a asteca narrou com voz estranha, meio cantada. Ainda de joe-
lhos, ela balanceia seu corpo em movimentos rítmicos para diante e para trás,
como se escutasse o som distante de tambores. Os espanhóis não tardarão a
travar conhecimento fatídico com êsses tambores, em noites terríveis. Ainda
nada pressentem, ainda não ouviram nem o som dos tambores, nem os gri-
tos estridentes das trombetas astecas, ainda não respiram o vapor dos altares
escorrendo sangue humano.
Pequenas gotas de suor umedecem a fronte da princesa. Tôdas as angústias
da cnatura, tôda a devoção a Deus, tôda a esperança na graça conciliadora
dos celestiais irados ela expressa nesse balançar lastimoso do seu corpo. Co-
movido, Cortez desprende a fivela de ouro do seu manto e delicadamente
envolve no calor veludoso do agasalho a mulher estranha; calado, condu-la
22. Embarcação viking no tapête de Bayeux. a sua cabina. A a-steca se tornou a famosa Dofia Marina, por muitos anos o
Guilherme, o Conquistador, parte em 1066 mais fiel companheiro de Cortez e único digno de confiança que o acompa-
para invadir a Grã-Bretanha. O clichê mos- nhou na sua vida triunfal.
tra seu barco, tipo dragão, de vela enfuna- Nenhum dos biógrafos de Cortez relata como se desenrolou exatamente o
da. Para tornar mais altos os bordos, a tri- primeiro encontro entre êle e a única mulher que realmente amou em sua
pulação guarneceu as pranchas com seus
escudos. vida turbulenta. Pode, em minúcias, ter sido diferente do quadro que acima
esboçamos. Mas parece fora de dúvida que o grande espanhol soube pela
Dofia Marina em primeiro lugar do temor com que os astecas o aguardavam.
À noite passam, sibilantes,· algumas flechas índias sôbre a frota, melhoran- Parece fora de dúvida também que Dofia Marma lhe tenha relatado a tra-
do um pouco a disposição de Cortez. "Haverá luta", pensa êle. Mas o pri- dição maia descrita acima, que se tornou famosa como a lenda de "Votã" dos
meiro encontro não passa de breve chacina. Quando entram em ação os dez nativos de Iucatã. Pois durante a existência da princesa asteca tudo isso estava
canhões de bronze e as quatro colubrinas dos espanhóis, assustam-se terrivel- em um passado não mais afastado que algumas centenas de anos. Os maias dei-
mente os índios. E à noite o cacique de Cintia expede sua mensagem de s~b­ xaram, por volta do ano 1000, seus lares primitivos nas florestas da Guate-
missão. Como sinal da capitulação incondicional, envia vinte lindas pnn- mala, passando a ocupar território na Penmsula de Iucatã; daí a história de
cesas índias, com pesados ornamentos de ouro e acompanhadas por belas navios que apareceram perto do litoral do novo país ser criação bem recente.
escravas, que também usam jóias de ouro. Obviamente surgiu quando os vikings, que se haviam estabelecido na Groen-
Entre essas vinte jovens encontra-se, de pele mais clara, uma princesa ast~­ lândia, fizeram suas primeiras tentativas de colonização na América.
ca, exilada por Montezuma, e membro da casa imperial. Muito segura de s~, Esta tradição · de Votã é há muito conhecida. Seus mais recentes relatos
na consciência plena de sua nobre ascendência, dirige-se a Cortez. Dee01s ~rocedem da autora americana Anne Terry White, em seu muito interessante
cobre o rosto com as mãos, e, alguns passos diante de Cortez, dobra os JO~­ hvro "Mundos Perdidos". Lendo sua descrição, lembramo-nos imediatamen-
lhos. Como se estivesse sentindo verdadeira emoção religiosa, como se esti- te das muitas velhas representações de navios dos nórdicos, cujo beque tinha
vesse enfrentando um verdadeiro deus, curva-se diante do espanhol. a forma de uma cabeça de dragão e cujos bordos se guarneciam com os es-
Cortez a observa surprêso, comovido, impressionado. Intérpretes! cudos luzentes dos tripulantes: navios, portanto, de cuja proa sobressaíam
Nos joelhos arrastam-se dois índios, que aprenderam, não se sabe o~de, cabeças de serpentes fitando o mar e cujos costados devem ter reluzido como
algumas palavras de espanhol, em direçao de Cortez através do tombadilho escamas de cobras. E dêsses navios-serpentes, compridos e esbeltos, desceram
do navio. Já caiu a noite, luzes tremulam na amurada do navio e no céu homens em cuja fronte cintilavam diademas em forma de serpente, fivelas
claríssimo cintilam as estrêlas. Atrás do comandante estão os oficiais e no de adôrno de forma espiralada talvez, como gostavam os germanos, enrola-
fundo vê-se tôda a tripulação, alinhada ombro a ombro. Em silêncio e pro- dos como cobras - um emblema que naturalmente devia chamar a especial
funda surprêsa ouvem a história estranha que a princesa narra e que é atenção dos maias. Anne Terry White comunica que os estrangeiros louros,
traduzida aos trancos e barrancos pelos intérpretes improvisados. de olhos azuis, da lenda de "Votã" se estabeleceram em Iucatã, que viveram
Há muitos e muitos anos, afirma a asteca, teriam aparecido nas costas de ~ntre. os maias, tornando-se seus professôres e guias. Além disso informa que
Iucatã, exatamente nas terras onde os filhos dos deuses brancos tornaram a trrad~ações estranhas passaram dessa região para o México.
ancorar agora suas naves, numerosos barcos estranhos, dos quais desce~arn Pms certo dia, alguma vez no século doze ou treze da era vulgar,
indivíduos altos, louros e de olhos azuis. Os costados dêsses barcos tenarn apareceu no México um ancião, desconhecido por todos. Dizia vir de longín-
brilhado como pele de cobras, e quando se aproximaram parecia que enor~es Juas _terras orientais e começou a ensinar uma nova religião e novo código
reptis brilhantes se aproximavam das costas. ~sses sêres desconhecidos. tenarn e ética. Era inteligente e sábio, gentil e bondoso. Fervorosamente se opunha
usado vestimentas estranhas, com a testa adornada por uma jóia espeoal, que a atos de sangue e violência, e tapava seus ouvidos quando ouvia falar em
representava uma cobra enrolada. A cobra sagrada era uma das divindades guerra. Sua pele era branca, e tinha barba longa - os índios são quase im-
mais antigas, adoradas pelos maias de Iucatã. E quando aquêles sêres de pele berbes -; chamaram-no Quetzalcoatl, nome que vem de "quetzal", pássaro
branca coroados com uma cobra, chegaram nos navios, que se assemelhavam resplandescente. Inicialmente, assim reza a lenda, obedeceram-lhe por longo
159
158
tempo os ancestrais. Mas depois o atacaram e perseguiram, de tal modo que
teve de fugir e voltar para seu lar, lá longe no Oriente, nas outras margens
do oceano. Mas, antes de desaparecer, profetizou que um dia seus irmãos
brancos voltariam ao México, para conquistar e submeter o país.
É lógico que esta lenda pareceu muito oportuna a Cortez, que nada fêz
para invalidá-la. Quando um dos enviados de Montezuma lhe contou, após
sua chegada ao México, que os ancestrais nos dias de Quetzalcoatl haviam
usado capacetes parecidos com seu elmo espanhol, um dos quais ainda estava
pendurado na parede do templo do deus da guerra, talvez tenha êle próprio
principiado a acreditar que era apenas o sucessor de descobridores anteriores,
de côr branca. Os astecas, pelo menos, estavam firmemente convencidos que
os espanhóis eram filhos e irmãos do deus da Luz, procedentes do leste.
Com referência a êsses relatos, não devemos entretanto, omitir o fato de
que nas lendas índias mais antigas, surgidas muito antes do advento dos
astecas, Quetzalcoatl aparentemente não é retratado como um deus branco.
O americanista alemão, Walter Krickeberg, chamou a atenção para esta rea-
lidade em seu livro "Lendas dos Astecas, Incas, Maias e Muíscas", no qual
afirma:
"Freqüentemente acontecia que o ardor religioso ou a má interpretação viam traços de
doutrina cristã em antigas histórias índias, acrescentando-lhes tôda sorte de colorações arbi-
trárias cristãs. (...) Mas não devemos rejeitar incredulamente lendas inteiras sob a suposição
de serem invenções espanholas apenas porque se verificaram algumas adições cristãs. Assim,
se heróis culturais, como Quetzalcoatl, Bochica ou Viracocha se apresentam com as carac-
terísticas externas de um apóstolo, (...) podemos ter certeza de que o cronista se aproveitou
de feições que já estavam presentes na tradição original e que provinham da base natural
do mito, acrescentando apenas certos traços cristãos de sua própria invenção. Todos os outros
elemen~os nas lendas americanas, que oferecem paralelos surpreendentes com histórias dos
inícios da era cristã, não devem ser considerados senão como participando do grande número
de correspondências entre os povos civilizados do Mundo Antigo e do Novo, que também
existe em outras esferas e cuja explicação deve ser reservada a pesquisas futuras."

Até aqui Walter Krickeberg, do qual transcrevemos tal citação extensa por
ser bastante objetiva. Mas apesar de tôda a sua precaução, também êle fnsa
enfàticamente gue os paralelos "surpreendentes" entre as primitivas histórias
cristãs e as antigas lendas americanas pertencem ao "grande número de cor-
respondências" entre os povos civilizados do Mundo Antigo e do Novo. Com
a mesma ênfase adverte contudo contra uma interpretação demasiado cré-
dula das lendas índias, providas pelos cronistas de muitos embelezamentos
cristãos. Ter-se-ia verificado o mesmo com a figura de Quetzalcoatl? Tê-lo-
iam representado os espanhóis - que logo após a conquista do Méxic<;> co-
meçaram a anotar os mitos e as lendas dêsse país estranho - de maneua a
assemelhar-se à imagem que êles, de acôrdo com sua época e nacionalidade:
deveriam ter ideado do Redentor? Representaram êles o "Salvador Branco'
do México como tendo pele côr de oliva, cabelo prêto e olhos escuros, tal
como. os espanhóis, há qui~hentos. a~ os, repre:entaram. Crist? e os Apóstolos,
de acordo com a sua própna aparencia de entao, que amda e a atual? Descre-
veram êsses cronistas de Espanha a vestimenta de Quetzalcoatl de acôrdo co~
aquela que tradicionalmente se supunha ser a costumeira na época de Cns-
to- isto é, uma espécie de "chlamys" grego, um longo manto lindamente dra-
pejado, de material pesado, semi-sôlto na cintura e caindo em dobras volu-
mosas até os pés? .
Nada disso! Quetzalcoatl é representado de maneira completamente dife-
rente. Não é nem de pele côr de oliva nem são escuros seus olhos; êle é louro
e seus olhos são azuis. Não é estranho? Nem veste êle um "chlamys" greg~­ Eram '!'enladeimmente est1·eitas as ruas romanas! Gmças a seu grande balcão, dá essa casa de
Usa uma vestimenta comum na ,E1,1ropa inteira nos princípios da Idade Me- prampez? uma imfJTessão modema. A pedra do pedes tre, todavia, que aparece no jJrimeiro
P no, a dzrezta, colocada de maneim a permitir ao transeunte atravessa?' a r ua, faz recon hecer
os pro blemas de PomfJéia, em dias chuvosos.
16Q
dia, mas que havia desaparecido há muito tempo quando os espanhóis efe-
tuaram a conquista e só permaneceu em voga ainda entre os vikings da
Groenlândia, os descendentes daquele Leif, o Feliz, que descobriu a América
por volta do ano 1000. E, por mais curioso que seja, o tecido de sua vesti-
menta é descrito como áspero, semelhante a serapilheira, exatamente de
acôrdo com os tecidos desenterrados quinhentos anos mais tarde por arqueó-
logos dinamarqueses, do solo eternamente congelado, escavando vivendas
rurais normandas na Groenlândia.

"Kon-tiki", a jangada de pau de balsa do con hecido etnólogo norueguês Th or H eye1·dahl.

23. Quetzalcoatl, com tiara, manto adornado


de cruzes e báculo, numa pirâmide de de-
graus. Reprodução de acôrdo com antigo
manuscrito índio.

Mas ouçamos o que diz a principal fonte sôbre Quetzalcoatl, a crônica do


espanholJuan de Torquemada:
"Alguns anos depois do povoamento da província de Tollan vieram certas tribos de
regiões setentrionais, desembarcando na área de Panuco. Eram pessoas bem vestidas, usando
longas veslimentas, semelhantes àquelas dos turcos ou as de serapilheira preta, assemelhan-
do-se às sotainas dos padres; essas roupas eram abertas na frente, sem capuz, com decote
redondo no pescoço e com curtas e largas mangas que não iam nem mesmo até os cotovelos.
Os nativos ainda as usam hoje em dia, durante suas danças e representações dessas tribos.
Avançaram de Panuco sem encontrar qualquer hostilidade, e quando assim chegaram a
Tollan, foram al recebidos de maneira muito· amistosa, principalmente porque eram muito
experimentados e jeitosos e porque sabiam e gostavam de trabalhar. Entendiam do trabalho
em ouro e prata e eram mestres em tôda arte. Assim, por exemplo, lapidavam pedras com
excelência, mas não mostravam sua destreza apenas em coisas tão finas, mas também em
coisas de natureza mais utilitária, como a agricultura. Resumindo: seu comportamento
admirável, sua capacidade de trabalho fizeram com que fôssem altamente apreciados e que
se lhes mostrasse grande deferência.
Quando os novos imigrantes viram que não poderiam encontrar um meio de vida em
Tollan, desde que o país já fôsse densamente povoado, mudaram novamente, estabelecendo-se

161
11 bis Conquista Mundo
"Kon-tiki" em mar alto. Ta m bém bm·cos prim itivos são capazes de cruzar o alto m ar.
em Cholula, onde tiveram também recepção extremamente amiga: os nativos dessa região, fraldada ainda, e longe, atrás, dança nas ondas o grande cêsto de pesca, lan-
como é bem sabido, admitiram-nos em suas famílias. Ficaram aí radicados durante longo çado ao mar.
tempo. A seguinte história é relatada nessa localidade: Quando aquelas tribos chegaram a
Tollan, acompanhava-os uma pessoa de alta distinção, que era seu líder. Seu nome era Quet- Estão em plena viagem de volta, da Irlanda para a Islândia. Fizeram bons
zalcoatl; o povo de Cholula posteriormente reverenciava-o como se fôsse um deus. Os relatos negócios na ilha verde da Irlanda. Alegres, iniciaram a viagem. O capitão
estão todos de acôrdo em que êle era de aparência agradável: branco, louro, barbudo e de estava contente e seus marujos ainda mais. Sabiam que os dias de volta se-
corpo esbelto. riam divertidos. E agora? tsse vento maldito que os impele para o oeste,
(... ) Assevera-se que Quetzalcoatl viveu durante vinte anos em Cholula, e que, passado dia após dia, já há uma semana, atirando-os completamente para fora do seu
êsse período, voltou pela mesma rota que havia tomado na vinda. Quando partiu levou curso acostumado. Onde estariam?
consigo quatro distintos e virtuosos jovens daquela cidade, mas mandou-os de volta de
Coatzacoalco (uma província a 150 léguas, junto ao mar), insistindo em que êles observassem Repentinamente, durante a noite, rumores vê~ da coberta. "Terra _à
os bons preceitos que lhes havia ensinado e instruindo-os para anunciar o seguinte aos vista, terra!" E realmente, olhando bem, aquela faixa escura nada podena
habitantes da cidade de Cholula: Que ficassem certos de que em alguma época futura ser senão terra.
brancos com longas barbas, como êle próprio, atravessariam os mares, vindo de leste. í.sses Mas não é a Islândia. Onde está a costa rochosa, as margens elevadas? Onde
homens, seus irmãos, tornar-se-iam senhores das terras do México. Por isso aguardavam os as montanhas com couraça de gêlo que aparecem sôbre o horizonte muito
índios o cumprimento dessa profecia, e quando viram a chegada dos cristãos, intitularam-nos
deuses, filhos e irmãos de Quetzalcoatl; se bem que, quando viram e experimentaram seus antes de se tornar visível a costa? É outra terra qualquer!
feitos, não pudessem continuar a considerá-los divinos." Ràpidamente se aproximam, impelidos pelo vento. Florestas escuras e
quietas, enquanto que à direita um longo cabo entra pelo mar adentro. Uma
Até aqui Torquemada. Um relatório curioso! Pois se todo o mito de Quet- rápida manobra do leme e êles tomam rumo para dentro da baía natural.
zalcoatl, como por vêzes se afirma, fôsse uma invenção espanhola, arranjado Aconteceu isso no ano de 1029. Quando Gudleif Gudlaugson, proprietário
para facilitar a conquista do México e a vitória do cristianismo como era e capitão do navio, um comerciante islandês, pisa na terra, êle já pressente
desajeitado e como era mínimo o valor propagandístico dessa história para algum perigo, puxa da espada e ordena que seus marinheiros fiquem reuni-
a vitória de Espanha! Pois se um vencedor militar e culturalmente superior, dos em pequenos grupos. Mas de nada aaianta essa ordem. À esquerda e à
quer impor seus deuses a um povo subjugado, naturalmente retratará êsses direita levantam-se uivos nas moitas, como advertência passa-lhes uma cente-
deuses como a quinta-ess.ência dêle próprio. Mas foi isso exatamente o que na de flechas sôbre as cabeças, e no momento em que os atiradores invisíveis
não aconteceu. Pelo contrário, foi Quetzalcoatl representado de tal maneira têm outra flexa na corda, caem os arbustos, que serviam apenas para o dis-
que os astecas não poderiam deixar de verificar em quão pouco o deus louro farce. Os islandeses defrontam-se com centenas de arcos prontos para atirar.
se assemelhava a êsses espanhóis. Os astecas tinham de concluir, mais cedo Num instante são envolvidos por laços, e impelidos, um atrás do outro,
ou mais tarde, que êles não poderiam ser absolutamente os filhos do deus através da floresta. Pequena aldeia existe numa clareira. Amarram-nos a
da Luz. postes separados, e diante dêles os vencedores se sentam no chão, para deli-
Por outro lado, se os conquistadores espanhóis não representaram o Sal- berar sôbre seu destino. Mas, repentinamente, abrem-se os arbustos e sôbre
vador Branco dos índios de acôrdo com sua própria imagem, não era êle de um cavalo de ossos fortes, aparece um gigantesco ancião. Lança um agudo
invenção espanhola, e o mito deve ter tido origens aborígines. Nesse caso de- olhar aos prisioneiros, e depois desce do cavalo e pede informações sôbre o
frontamos a interrogação: como souberam os astecas da existência de gente que acontecera. As vozes tornam-se mais altas, e o que Gudleif Gudlaugson
de cabelos claros e olhos azuis? Como é que sabiam de roupas que na Europa desconfiara, momentos antes, torna-se-lhe certeza. A língua de seus vencedo-
não eram usadas em princípios do século dezesseis, mas que inàubitàvelmente res é uma espécie de irlandês. Gudleif estêve por diversas vêzes em Dublim,
eram de origem européia? e sabe que não pode tratar-se de outra língua.
Se considerarmos cuidadosamente tal ~estão, veremos que não há outra Agora o velho se aproxima, tira seu punhal - belo trabalho meridional,
conclusão que a de que o deus da Luz, uetzalcoatl, era uma pessoa verda- pensa Gudleif, enquanto se prepara para receber o golpe final - abaixa-se e
deira, nem produto aa propaganda espan ola nem uma ficção lendária dos corta os laços, e depois se dirige aos prisioneiros no mais puro islandês.
índios, mas que, em alguma época da Idade Média, um homem branco do Nesse momento sabe Gudleif Gudlaugson onde estão e quem é o velho
mundo cristão chegou ao México, provàvelmente através de Iucatã. cacique. Estão em Hvitramannalândia, e o velho é Bjoern Asbrandson, aquêle
famoso herói, exilado por Snorri Gode, o rei não-coroado do Fiorde de
Borga, na Islândia Ocidental, no ano 999. Então é verdadeira a história que
corre, pensa Gudleif. Existiu portanto êsse Bjoern Asbrandson, que tomou
seu barco em Snaefellsnes desaparecendo sem vestígios no mar: não se trata
~e um figura de sagas. Então Kjartan, camponês em Frodo, na Islândia, o
2 filho da bela Thurid, tem como pai realmente Bjoern, de acôrdo com o que
sempre ouvia narrado a meia-voz.
Há uma semana o vento vem continuamente do nordeste. Com crista espu- Os islandeses estão ainda juntos dos postes. O velho cacique lhes dirige a
mante, as ondas vêm cavalgando como os ginetes de Odin de crina arg~ntea: palavra:
montanhas vítreas, cujos cumes se desafazem em borrifos. O céu está c~nzet?-­ - De onde vêm? Da Islândia, pois sim! De que parte da Islândia? - Fiorde
to. Nuvens baixas são impelidas pelo vento para sudoeste, chuvas ocasiOnais de Borga, muito bem. Sim, bem se lembrava. Ainda vivia o Snorri Gode? -
caem com violência. Há muito os navegadores puseram-se à capa, as velas ~ã?, êste estava morto há muito. Mas sua irmã mais moça, Thurid, ainda
foram arriadas; só a bujarrona, a pequena vela triangular na proa, está des- VIVIa. E era uma mulher robusta e bela. Bem, bem, a Thurid; sim a Thu-
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rid _não tinha ela um filho?- Sim isso mesmo, de nome Kjartan, que agora "( ...) no outro lado de seu país existia uma nação . onde o~ habitantes usava~ indumentá-
era lavrador em Frodo, homem forte e rico. ria branca, gritavam e carregavam hastes, das quats pendtam trapos. Essa, JUlgavam, de-
Pensativamente olha o velho para os prisioneiros. Com um movimento veria ser a Hvitramannalândia, a Terra dos Homens Brancos, também chamada de Irlanda
furtivo que comoveu Gudleif Gudlaugson, chama-o de lado o cacique, tira Maior."
um an~l de ouro do antebraço: "Para Thurid", e entregando-lhe a sua es- Não há negar que tais informes são surpreendentes. Surpreendem princi-
pada, acrescenta: "Para Kjartan!" Depois pede que não o procure_m mai~: palmente porque, sem dúvida, originaram-se independentemente um do
"A terra aqui é imensa mas tem apenas poucos portos, e todos sao fatais outro. Concordam totalmente quanto ao país que, situado nas terras ociden-
para os estrangeiros!" tais se chamava Irlanda Maior ou Hvitramannalândia. Era conhecida dos
Os islandeses provêem-se de água e recebem carne de caça e _lenha, mas nativos pelo mesmo nome e é evidente que essa,s it;~formações se ~aseiam e~
forçam-nos a partir tão logo começa a soprar vento favorável. No hm do verão algum fato. Acresce ainda que os testemunhos, mdws de Karlsefm, caracten-
Gudleif chega com seu barco à Islândia. zam os brancos da Hvitramannalândia como usando roupas brancas, levando
Assim contam as crônicas antigas, assim afirmou Rudolf Cronau em sua diante dêles hastes compridas com trapos pendurados, gritando ou cantando
grande "História do Descobrimento da América". Reproduzimos aqui ~sse em altas vozes. O que descreve t~l relato se~ão. uma procissão .cristã com
relato assim como é transmitido pelas fontes, se bem que nem tudo co~bme cantos corais, roupas brancas e flamulas ecles1ást1cas? O que sena, natural-
muito bem. Mas indubitàvelmente é Gudleif Gudlaugson uma personalidade mente, mh espetáculo estranho para os índios, impressionando-os como sendo
histórica. As sagas islandesas celebram-no talvez em de~asia, mas aquela uma atividade característica dos habitantes naquele país. Não é crível que
enigmática Hvitramannalândia não é produto da fantasia exuberante de um europeu pudesse fornecer descrição tão ingenua de uma prática religio-
monges-cronistas, pois _-si~if_icativamente já as _mai~ antigas testemunhas es- sa. Deve vir de bôcas nativas.
candinavas de sua ex1stene1a eram homens h1stoncamente bem documen- Admitimos que essa inferência seja apenas circunstancial, m3:s não há es-
tados. capar da probabilidade de que, durante algum tempo, uma colôma de homens
E êsses informam-nos que Bjoern Asbrandson não foi o primeiro a _chegar brancos tenha existido de permeio à população de côr do Novo Mundo,
àquela nação. Essa glória caberia a Ari Marsson, navegador da Islâ~d1a,_ que talvez ao sul da posterior Vinlândia dos Vikings. Há uns cem anos atrás
vinha de Reykjanes e que, por volt3: de 9.82: antes q_ue !la ~scand_máv1a se asseverou categoricamente Alexander von Humboldt que essa "Terra das
falasse de quaisquer países _?ci~ental~ oceamcos, hav1a _s1do 1mpehdo pelos Faces Pálidas" se situara na atual Flórida. Também isso não pôde ser prova-
ventos para a Hvitramannaland1a. Nao se conhecem ma1s detalhes. De qual- do, mas a teoria é reforçada por contínua descobert~ de pr<?vas que sugerem
quer maneira não deve essa história ser tomada como uma lenda qualquer. uma colonização muito antiga, não índia, da Flónda. Ass1m declarou, por
Pelo menos é o homem ao qual devemos uma personalidade de grande cele- exemplo, em 1819 o geógrafo norte-ameri~a!lo J. John_ston, que em ~eados
bridade. Trata-se de Hrafn, comerciante dos inícios do século onze, que em- do século dezoito fôra corrente uma trad1çao na Flónda e na Carolma do
preendia muitas viagens para a Irlanda, e que por isso mereceu a, a~cunh_a Sul, de acôrdo com a qual colonizadores.brancos, possuin~o armas e ferramen-
de "navegador de Gimerick". E êsse Hrafn assim falou de seu patncw An: tas de ferro, haviam, em tempos mmto remotos, habitado naquela área.
"Ari foi levado pelo mar à Terra dos Homens Brancos, chamada por outros a "Irlan~a E O. S. Reuter, na sua "Astronomia Germânica" apresentou argumentos plau-
Maior". Esta situa-se no ocidente, próximo à Vinlândia a Boa. Afirma-se que. está . a se1~ síveis para sustentar que as viagens de reconhecimento dos Vikings, ao
dias de viagem para o oeste da Islândia. Ari não pôde deixar essa terra e aí fo1 bauzado. longo das costas do Novo Mundo, haviam-nos leva~o at.é a Fló!ida.
Se isso fôr realidade - e a lenda de "Votã" dos ma1as c1tada aCima torna-o
É isso o que afirma o "Landnamabok", uma das mais antigas crônicas is- bem possível - então aquêles missionários ~ristãos ~ue ~encionamo~ em ~oss?
landesas. Se é que apresenta 0'5 fatos corretamente, temos de supor q~e _a relatório sôbre vestígios de tradição européia na m1tolog1a da Aménca, nao tl·
Hvitramannalândia essa notável "Terra das Faces Pálidas", era uma coloma veram de viajar tanto. A Flórida fica a um pulo de Cuba. Nem é gra!lde .a
irlandesa que havi~ muito tempo existia em solo norte-americano, e que e_ra dis~ância de Cuba para Iucat~ e o México. Será que europ:us setentnona1s
apropriadamente conhecida como a "Irlanda Maior". Hvitra~annalând1a. estiveram realmente na Amér:ca Ce,ntral? Até o _r.r~s.ente n~o temos prov3:s
Terra das Faces Pálidas, Terra dos Homens Brancos. Nunca tena um branco concretas, mas essa hipótese nao esta fora de poSSibilidade. E se, l_;ndo a~tl­
a idéia de dar êsse nome a seu próprio país. De qualquer maneira, quando gas fontes espanholas, ficamos sabendo que precisamente e~ Iucata os ma1as
os normandos descobriram, um pouco mais tarde, a América, .êles deram-lhe possuíam uma espécie de dogma da Tnndade e, ainda ma1s, que os a-stec~s
outro nome chamaram-na de Vinlândia, a terra da vinha, de acôrdo com os a<:reditavam que Quetzalcoat~ havia vindo a~ ~~xico, procedente de Iucata,
vinhedos q~e em profusão existiam em s1_1as ,J?artes _meri~ionais. Logicamen- nao podemos deixar de considerar essas poss1b1hdades. . .
te, pode a expressão "Terra das Faces Páh~as ter s1do cnada ~ usada exclu- O relato da via~em de Ari o Viking, para a Hvitramannalând1a, t1rado do
sivamente pelos habitantes de côr da Aménca, da mesma mane1ra pela qual, "Landnamabok" 1slandês, f~z crer que essa colônia européia te!lha existido
séculos depois, os índios das pradarias norte-americanas chamavam seus opres- muito. antes de 982, e que irlandeses estive~am certamente ~nvo.lv1dos naquela
sores brancos do outro lado do mar, de "faces pálidas". colon~zação. O que nos. leva às inumeráv~1s lendas f<?lcl~ncas 1rl~?.desas, que
Existe, realmente, documento muito antigo, indi~a_ndo clarame~te que o tambem falam de férteis países de maravilhas, em d1reça? oeste pa_:a lá do
têrmo "Terra das Faces Pálidas" procede dos abongmes, dos hab1t~ntes ?e Oceano". No centro dessa tradição tôda está a lenda da v1agem de Sao Bran-
pele castanha da América. Quando por volta de. 1010, o mercador 1sland~s, dão, que um dia teria recebido, por voz divina, a ordem de abandonar_ as
Thorfin Karlesefni tentou estabelecer uma colôma em Ma,ssachusetts, a ~m­ suas propriedades e pregar a palavra de Deus em um grande e desconh.e~1do
lândia dos Vikings, encontrou com seus companheiros dois meninos índws, país, situado para além do mar. São Brandão obedeceu a essa o~d~~ ~~~ma,
que lhes disseram que: e após viagem longa e atribulada alcançou uma terra, onde hav1a dehcwsas
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parreiras, tão '!bundantemente abençoadas que todos os seus ramos se incli- e os índios boroanos, no Rio Imperial do Chile, eram conhecidos aos conquis-
navam ao chão em virtude do pêso das uvas." Sabemos dos primeiros relató- tadores como os "índios brancos". •
rios dos vikings, os primeiros brancos a a portar em solo americano depois Na América do Norte existem também numerosas tribos de índios brancos.
dêsses sucessos, que existiam vinhedos realmente em grande abundância no Mencionemos aqui em particular os tuscaroras, do nordeste, que apresentam
novo continente. De onde se explica o nome de "Vinlândia". Uma vez que evidências de uma mistura antiqüíssima com povos europeus. · J á Alexander
não medram vinhedos em qualquer parte setentrional da Irlanda, devem as von. Humboldt chamou a atençao sôbre a "nação esbranquiçada, de olhos
"gloriosas terras das parreiras" ter sido aquelas do Novo Mundo, e as infor- mmtas vêzes azuis, dos tuscaroras". Depois dêle, atenção especial foi dedicada
mações a respeito das mesmas devem ter tido origem ocular. à tribo dos índios Mandãs, que viviam na bacia do Mississípi, tendo sido ob-
São Brandão viveu realmente; há evidência indubitável de que existiu du- servados alguns fatos peculiares. Os mandãs existiam espalhados sôbre tôda
rante o sexto século de nossa era. É, contudo, mais que duvidoso, que tenha a área de Dakota, Wrsconsin e Minnesota. Os seus territórios só foram al-
empreendido viagens marítimas extensas. Aparentemente foi apenas, através cançados pelos colonizadores brancos, que se dirigiam cada vez mais para o
de algumas circunstâncias que nos são desconhecidas, o ponto de cristalização, oe~te, pelos meados d? séc~lo passa~o, logo após os mandãs terem sido exter-
em volta do qual giravam as inúmeras sagas marítimas dos irlandeses. Assim mmados po~ ur~a eprdemra de vanola. Mas uns. duzentos e cinquenta anos
é que o relato de suas pretensas viagens, o "Navigatio Sancti Brandani", é antes, os pnmeuos rumores obscuros de uma tnbo de brancos, vivendo na
uma coleção das fábulas mais coloridas, que devem conter, porém, algum vasta selva mil milhas para oeste, havia chegado aos ouvidos dos "courreurs
cerne de verdade histórica. Por isso é possível que a lenda de São Brandão dubois" os intrépidos mateiros franceses que partindo de Montreal e Que-
represente uma reminiscência apagada da invasão da Hvitramannalândia por bec começavam a penetrar nas florestas virgens. Champlain, o primeiro gran-
tais brancos, cuja identidade não pode ser exatamente estabelecida, mas cuja de explorador francês, menciona·os em 1615. Em 1630 outro conhecido ma-
existência real parece estar provada. As sagas marítimas da Ilha Verde re- teiro francês, de nome Jean Nicolet, coloca uma vestimenta de gala chinesa
ferem-se repetidamente a espessos bancos de neblina, a ilhas de pássaros no na sua canoa índia: quer usá-la quando, no oeste, defrontar os "brancos",
oceano ocidental; sendo inferência óbvia que elas sejam de alguma maneira que não podem ser senão chineses, e que devem conhecer a passagem para o
relacionadas com as regiões entre a Corrente do Labrador e a Corrente do país do Grande Cã, certamente não muito longe daí. Dois anos depois, um
Gôlfo, que pode bem ter sido atingida por marujos irlandeses. padre jesuíta Lejeune, anota em seu diário em Quebec, que um índio Al-
Não deve ser esquecido, tampouco, que lendas numerosas eram correntes gonqmm lhe havia contado que longe, bem longe no oeste, vivia uma grande
também entre outras tribos celtas, tais como os bretões e os gaélicos, afir- nação índia cujas cidades, a deduzir de sua descrição, se assemelhavam aos
mando que um grande país estrangeiro existia para além do oceano. Essa tra- centros europeus.
dição popular era tão forte que ainda em 1480 uma expedição se fêz ao mar Baseado em tais relatórios, se bem que com o propósito principal de al-
em Brístol a fim de procurar êsse continente remoto. Inspirou-se em infor- cançar o Pacífico, encarregou o governador francês do Canadá um negociante
mações contidas em dois antigos manuscritos, das abadias de Stratflur e Con- de peles e explorador, de la Verandrye, um canadense nato, para empreender
vay, relacionadas com uma grande expedição, empreendida pelo Rei Madoc, uma expedição e descobrir êsse povo notável. Isto foi em 1738. Verandrye
do País de Gales do Norte no ano de 1170. Navegando em redor do Sul da foi o primeiro branco a conhecer intimamente os mandãs, e suas observações
Irlanda, descobriu êle e seus companheiros terras vastas, para lá dos mares causaram o maior inter.êsse. Verificou-se que os mandãs eram tão diferentes
ocidentais. De acôrdo com essas cronicas antigas, retornou Madoc para Gales de todos os outros índios, não apenas em seus costumes e suas práticas mas
a fim de atrair novos colonizadores, tendo deixado atrás cento e vinte colo- também em sua constituição física, que deveriam provir de um povo não ín-
nos, depois do que, voltou a embarcar com dez naves e centenas de passagei- dio. Contràriamente à maioria dos outros "peles-vermelhas", que se retira-
ros. Nunca mais se ouviu falar do Rei Madoc ou dos que o acompanharam. ram ante a chegada do branco, para novamente tornar-se nômades, manti-
Até aqui o que relatam os manuscritos. A conclusão negativa de seu relato veram êles sua vida de agricultura em domicílios fixos. Não apenas possuíam,
não implica naturalmente em que Madoc tenha deixado de atingir o seu ob- conforme se afirmava, numerosas aldeias, solidamente construídas, mas tam-
jetivo. Como foi provado pelas viagens dos normandos à América cêrca de bém algumas cidades bem fortificadas. Cêrca de um quinto dêsse povo estra-
150 anos antes, não parece impossível que o oceano, já naquele período, ti- nho era de pele branca e olhos azuis. Não era pouco freqüente encontrarem-se
vesse sido cruzado drversas vêzes. entre êles pessoas louras, e a fisionomia de quase todos os mandãs era comple-
Vale a pena notar que essas conexões entre o Novo e o Velho Mundo na tamente diferente da dos outros índios.
América do Norte parecem ter deixado a sua marca no sangue dos habitantes Todos os documentos que falam dos mandãs foram publicados em lugares
indígenas. Em mmtas partes do Novo Mundo havia índios brancos, tendo muito distantes. Por isso vão aqui reproduzidos alguns. Em ordem de impor-
os descobridores europeus de época posterior declarado repetidamente que tánc~a devem<;>s mencionar priJ?eiro. as informações do americano George
aquêles "não eram índios!" Mas, deve ter-se em conta que os nativos da Cathn, que vrveu entre os índws, pmtando-os e observando seus costumes,
América se distinguem por grande variação na côr da pele. Ao lado de povos e que fêz um estudo aprofundado dos mandãs no início do século dezenove.
evidentemente "peles-vermelhas", existem outros com pele de um amarelo- As partes principais de seu relato são como segue:
pálido ou de côr bronzeada, e os Dakota, Menomini e Zufii parecem quase "Os mandãs constituem um povo muito interessante e atraente que, em sua aparência
brancos, se bem que sua fisionomia seja inteiramente índia. Além dessas e . e~ seus costumes, diferem de tôdas as outras tribos que conheci. Sendo uma tribo apenas
tribos "quase brancas", mas não obstante índias, há ainda povos de aparên- durunuta, incapaz de disputar as extensas pradarias com os sioux e as outras tribos nômades,
cia totalmente européia, com pele branca, cabelo louro, olhos azuis e feições que os superam dez vêzes em número, construíram uma aldeia fortemente defendida, o que
absolutamente diferentes dos índios. Os índios brancos da Venezuela, que lhes assegurou proteção. Desta maneira, fizeram mais progressos nas artes e habilidades ma-
ainda existem, são mencionados nas crônicas dos conquistadores espanhóis, nurus que qualquer outra nação índia que eu tenha conhecido. Em conseqüência, os mandãs

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100'W so· 80' Em 1850, poucos anos depois de Catlin, o diretor do Departamento dos
Estados Unidos para Assuntos índios expressou-se de maneira semelhante.
SO'N Declarou êle:
"No que me foi possível verificar, diferencia~-se os mandãs de. quaisque~ outro~ índios
norte-americanos; sendo que tenho bom conheomento de quase tôdas as tnbos existentes.
Além de possuírem sua própria língua e seus costumes especiais, são os mandãs fisicamente
diferentes. Muitos dêles têm cabelos claros e olhos azuis ou cinzas."

E o explorador, de la Verandrye, acima mencionado, declara no diário de


sua viagem aos mandãs:
"Essa tribo apresenta indivíduos de pele branca e outros de pele vermelha. A~ mulheres
são de boa aparência, especialmente aquelas que são brancas, algumas das quais possuem
cabelo louro e muito belo. Tanto homens quanto mulheres são muito trabalhadores e
trabalham com boa vontade. Suas casas são grandes e espaçosas, divididas em diversos quar-
tos por pranchas grossas. Nada está espalhado a êsmo, mas todos os objetos estão ~uardad~s
em grandes sacolas e pendurados nos postes. Os homens são altos, fortes e corajosos. Sao
bastante ativos, de boa aparência e com feições agradáveis. As mulheres não dão a impres-
são de serem índias ... "

Tôdas essas informações são muito significativas. Mas além disso te!llo~ o
fato de que a mitologia dos mandãs narra explicitamente que o pnme1ro
ancestral dêsse povo foi um branco que, na remota Antiguidade, chegou ao
país em uma canoa. Muito antes de o primeiro missionário chegar à terra
dos mandãs, teriam êles tido conhecimento de um Deus bom e caridoso, nas-
cido de uma virgem e que morrera uma morte de expiação, de um D?ilagre
que tem afinidade espantosa com a distribuição dos pães aos cinco mil. Te-
riam conhecido a história da mãe da humanidade e sua queda, assim como
do Dilúvio, da Arca e do pombo com o ramo verde no bico, e acreditavam,
conforme consta, em um diabo personalizado, que procurava subjugar a seu
bel-prazer o mundo dos homens. Tais informações não podiam deixar de
chamar a atenção e de convencer justamente aos entendidos em assuntos de
inâios, que os mandãs eram prod1_1to de uma ~istura de índio~ com eu_ropeus.
Catlin defendeu êsse ponto de vista,_ e su~enu que os mandas ~odenam ser
considerados descendentes daquele re1 gaéhco, Madoc, do qual aCima falamos.
Diz êle a respeito:
"Os usos e costumes singulares dos mandãs, assim como a sua aparência, fornecem, segun-
do a minha convicção, a prova irrefutável que êles provêm da. m_istura ?e um povo civiliz~do
com índios. Encontraríamos ali talvez os descendentes da coloma gaéhca, dos companheiros
XV. As regiões de colonização dos mandãs e o pretendido caminho de penetração dos colo- de Madoc? A história nos transmitiu que êle se fêz ao largo com dez navios a fim de colo-
nizadores irlandeses, liderados por Madoc (segundo Catlin). nizar uma terra que descobriu no oceano ocidental. Sua viagem pode ser se~uida até. a
desemboçadura do Mississípi ou até a costa de Flórida, enquanto o seu destmo ultenor
se adiantaram muito às outras tribos índias em maneiras e comportamento, sendo por isso parece envolvido em obscuridade impenetrável. Não vejo motivo para que não seja lícito
com razão chamados pelos negociantes de peles e outros viajantes que os conheceram de supor que êsses colonizadores com os seus dez navios ou quantos dêles restavam tenham
"mandãs corteses e amáveis". Tão notável é a elegância e o porte leve dêsses índios, assim velejado Mississípi acima e entrado no Ohio, que é um rio muito largo e manso, seguindo
como a diversidade da côr de suas faces, dos cabelos e olhos, a singularidade de sua Iingua êste até uma região fértil, onde se estabeleceram e praticaram a agricultura,_ pelo que_ não
e seus costumes peculiares e inexplicáveis, que estou inteiramente certo serem êles proce- tardaram a estar em esplêndidas condições, até se verem atacados e por último assediados
dentes de alguma outra origem que a norte-americana, ou que, então, são produto de pelas numerosas tribos selvagens que os invejavam por sua abastança. Para proteção contra
alguma mistura de nativos com civilizados. Sua aparência pessoal por si só, independente· êsses assaltos construíram as numerosas fortificações, providas com gente civilizada, cujas
~ent_e de quaisquer considerações de modos ou costumes, prova serem êles superior ou ruínas ainda se vêem no Ohio e no Muskingum e dentro das quais finalmente todos foram
mfenor a outros selvagens. mortos. Somente aos descendentes de poucas famílias que se casaram com índios foi poupa-
Um estra~ho que penetra na aldeia dos mandãs é, desde logo, tomado de surprêsa pelas da a vida por serem semi-índios. ~sses formaram uma pequena tribo própria que se e~ta­
col~raçõ~s diferentes de pele e de cabelo que percebe na multidão que o rodeia, inclinando- beleceu nas margens do Missouri. Mas, desde que não tinham domicílio fixo e além disso
se imediatamente a exclamar "que êsses não são índios". se achavam na terra dos seus poderosos inimigos, êles se viam obrigados várias vêzes ~
Há muitos dêsses indivíduos cuja pele é tão clara quanto a de mestiços, há outros que mudar de lugar e, navegando rio acima, chegaram finalmente ao sítio onde os encontrei
são quase brancos, principalmente mulheres, que apresentam feições muito regulares, com com tôdas as suas particularidades quase inexplicáveis, tão incompatíveis com o caráter
olhos castanhos, cinzas e azuis, de expressões suaves e aprazíveis." geral dos índios norte-americanos ... "
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A ligação, que Catlin julga existir entre os mandãs e o Rei Madoc e seus comprovado, poderíamos deduzir do aparente desconhecimento do vidro por
emigrantes, é, naturalmente, mera surosição - se bem que possamos admitir parte dêsses últimos, que não existira nenhum contato entre êles. C? .mesmo
serem suas afirmações a respeito da migração dos mandãs até o Missouri abso- acontece com os romanos. Como já vimos eram os etruscos, seus viZmhos e
lutamente corretas. No ínterim, contudo, tornou-se o problema mais compli- antecessores, marinheiros brilhantes. Mas apesar disso, se bem gue os roma-
cado porque está quase certo que a área ocupada pelos mandãs, a 1.500 km nos tivessem tantas relações familiares com os etruscos que c~egaram a a?otar
a oeste da costa do Atlântico, era habitada por europeus já cento e trinta seus deus~ e muitas facêtas da vida diária, evitavam os habitantes da Cidade
anos antes de Colombo. fosses habitantes não eram irlandeses nem gaélicos, do Tibre o mar durante longo tempo, e foram incapazes de utilizar o co-
mas sim vikings da Escandinávia, e tratava-se ademais de um punhado redu- nhecimento náutico dos etruscos. Eis outra "expectativa frustrada", que
zido de homens, cuja fôrça biológica não pode ter sido suficiente para euro- não poderá ser explicada.
peizar uma tribo inteira de índios. Se, porém, os mandãs ainda por volta
de 1750 manifestam traços de sangue europeu, e no mínimo não pode haver
dúvida de que essa tribo se diferenciou de maneira muito evidente de outras
tribos, não poderiam ser produto de um contato relativamente fugaz com
brancos europeus; devem ter vindo de uma mistura mais profunda. Qual é
a grande aventura, qual é a tragédia que se desenrolou ali no coração da
América do Norte? Não o sabemos.
Muitos estudiosos consideram a evidência para tais relações culturais an-
tigas entre o Velho Mundo e o Novo excessivamente tênue. Seu principal
argumento contra a existência de tais contatos sempre se prendeu a um pro-
blema: como é que êsses pretendidos imigrantes brancos traziam consigo
o conhecimento de Deus, mas não da roda? Pois que a roda era desconhecida
na América antes de Colombo. É verdade que grande parte do território
americano eram florestas, montanhas ou pântanos, que teriam, de qualquer
forma, tornado inúteis a roda e a carroça. Mas havia também vastas planí-
cies onde poderiam ter sido usadas com tôda a eficiência, e quaisquer imi-
grantes brancos não teriam deixado de aplicar seu conhecimento em vez de
guardá-lo em rigoroso segrêdo, como parece ter acontecido.
Tal objeção soa convincente, mas não é conclusiva. Os povos do Islã tam-
bém não utilizaram a roda ou a carroça, apesar de seu longo e íntimo contato
com o Oeste. Mesmo hoje preferem o animal de carga e as montarias a
qualquer veículo com rodas. Além disso, a suposição de que os aborígines
do Novo Mundo desconheciam a roda é comprovadamente errada. A verdade
é que os índios conheciam tão bem êsse princípio que construíam mesmo
alguns brinquedos sôbre rodas. Escavações recentes, realizadas no México e
relatadas no "National History Magazine", (Nova York, outubro de 1950)
servem de comprovação. Mas assim mesmo nem os toltecas, nem os astecas,
nem os chimus ou incas parecem ter empregado veículos sôbre rodas. Antes
de mais nada, faltavam-lhes apropriados animais de tração. Não havia ca-
valos na América anterior a Colombo, e em falta dêsses animais era a liteira,
há muito em uso, uma alternativa absolutamente natural, mais ainda por 24. O inca e a rainha em uma liteira de via-
gem, ornamentada de cruzes. Desenho de crô-
o uso de veículos sôbre rodas pressupor a existência ou construções de nica ilustrada de Huaman Poma, de Ayala.
estradas.
Já por isso não se pode mais afirmar que os índios ignoravam a existência
da roda, e que tal fato torne improvável a imigração branca ao Novo Mun- São coisas que temos de aceitar, sem compreendê-las. Justamente por isso
do antes de Colombo. Os índios por certo conheciam a roda, se bem que não é concludente a objeção que, se realmente tivessem vivido hom~ns bran-
não a usassem como nós o fazemos. Isso pode parecer incompreensível para cos no Novo Mundo, então os índios deviam ter usado a roda. PoiS mesmo
nós, mas existem muitas dessas "expectativas frustradas" na história. Assim, onde existe evidência indubitável de um estabelecimento europeu anterior
por exemplo, conheciam os egípcios e fenícios a arte de fazer o vidro, e esta- a Colombo em solo americano, com casas solidamente construídas e um gran-
vam produzindo objetos de arte de vidro, milhares de anos antes de Cristo. de templo em outras palavras, onde não pode haver dúvida de que carroças
Ainda assim não utilizaram os gregos, que eram ligados a ambos os povos por foram usadas para carregar madeira, pedras e outros materiais de construção,
intensas relações comerciais, vidro de espécie alguma. Simplesmente não lhes não existe nada que prove que os índios, venc~o-os e talvez ajud_!lndo n<;> car-
interessava! Parece-nos o vidro um material tão útil, que não podemos co~­ regamento e descarregamento dêsses carros, tivessem adotado esse mew de
preender por que os gregos não o adotaram. Se o intercâmbio entre egípcws transporte para êles próprios. E .êsses índios, durante trezentos anos, davam
e fenícios por um lado e gregos por outro não estivesse insofismàvelmente a seus filhos nomes europeus, sendo que mais tarde os descobridores brancos

170 171
-

ficaram muito surpreendidos ao ouyir que algu_m pequeno m~ni~o índio, na Existe um mito, concernente a um deus antigo, muito antigo, encontra
solidão do litoral do leste do contmente amencano, em terntóno aparente- pelos incas quando i~igraram ao ,Peru. Virac<;>cha poderá significar algUJ
mente virgem, jamais penetrado por brancos, fôsse chamado de "Magno". coisa como "o santo vmdo do mar . Mas nem Isto sabemos ao certo. O qUI
Mas ouviremos mais a êsse respeito. certo é que, quando os incas descobriram a cidade gigantesca de Tiahuana,
no Lago Titicaca, pretensamente construída por VIrac_ocha ~ seus a~eptos
principalmente defois, quando deram com a grandwsa odade divma
Pachacamac ao su de Lima, invocaram êsse deus estranho pelo nome
Kon-Tiki, o Eterno, denominando-o Pachayachachi, o criador e soberano
3 mundo.
Relatam que Viracocha era um homem desconhecido, idoso e barbudo, q
carregava uma cru~ e a pla~tou numa colina. Pregava, ch<?ran~o J;>elos pecac
De estatura gigantesca, com ombros largos, o capacete e a_ couraça re~ém­ do mundo, e dep01s, de acordo com as palavras do cromsta md10 Pachact
polidos e brilhantes, o arcabuz ao ombro e um enorme espadao em seu cmto, fêz algo de muito estranho: derramou água sôbre a cabeça de um dos pr
assim descia Pedro de Candia do navio! A pouca distância atrás dêle, anco- cipes que o seguiam, para batizá-lo.
raram as caravelas de Pizarro, com os flancos para a terra e portinholas aber- Cusco, a antiga capital dos Incas, também teria sido fundada por Vira•
tas, os canhões carregados e os art~lheiros com tochas e~ bra~a e. na mão. Se cha, tal como os celebrados templos da Ilha do Sol, no Lago Titicaca. Segt
as coisas não corressem como deseJadas, Pedro de Candia tena toda a prote- do o mito situava-se aqui a sede principal do santo branco. ~sse o lugar <
ção de artilharia que um "conquistador" espanhol poderia esperar em 1527. que êle foi atacado e derrotado pelo Rei Cari do vale de Coquimbo. Aí
Mas nada aconteceu! Muito pelo contrário, Pedro de Candia, um cretense adeptos brancos de Viracocha foram assassinados e sacrificados aos deus
de nascimento mas um cavaleiro de sua Majestade Católica, o Rei de Espa- enquanto a vida de mulheres e ~rianças foi poupad~. E daí o _deus bran•
nha, pôde apenas confirmar as informações de seu irmão de armas, Alonso com poucos de se~s adeptos, fugm para o oceano. ocidental. Ah, pregou ~
de Molina, que ~avi~ chegado no dia anterior, ten~o. sido o primeiro espan~ol sermão de despedida para seu m_undo ~ suas cnaturas, falando . d_as co I:
a pisar em terntóno pertencente ao Santo Impeno Inca. Tumbez, o nco que aconteceriam em futuro próximo. Disse que profetas falsos vinam, rr
pôrto marítimo do país das maravilhas, Biru, estava aberto. para os espa- que o povo não lhes deveria dar crédito. Pois, quando a ocasião chegasse, é
nhóis, e seus habitantes se revolviam no pó, como se deuses tivessem descido mesmo lhes enviaria mensageiros, "homens brancos e barbudos". Depois Kc
à terra. O que era, na opinião de Pedro, um tanto aborrecedor e também, Tiki "estendeu seu manto sôbre o mar", n êle pisou com seus adeptos e part1
digamos a verdade, um tanto inconveniente, já que êle não era mais que um Eis outra história estranha. Poderia ser encarada como mera lenda, s~
tenente na armada corsária do moralmente duvidoso Sefíor Pizarro. qualquer base histórica, se não fôsse sabido que os primeiros espanhóis
Candia caminhava entre duas alas de pessoas prostradas com a fronte no penetrar no Peru, em 1527, eram realmente recebidos pelos índios com ~
pó. "Viracocha", "Viracocha", era o sussurro que ouvia de tôda p~rte. clamações temerosas de "Viracocha". O que seria, como Siegfried Huber te
Não tinha a mínima idéia sôbre o significado dessa palavra. Sentm-se aca- ocasião de frisar em seu livro "No Reino dos Incas", "absolutamente in~
nhado, irritado e não à vontade, e já que era ainda muito jovem, levantou plicável na ausência de alguma tradição preexistente, isto é, se homens bra
repentinamente seu arcabuz e deu um tiro no ar. . cos e barbudos não tivessem sido conhecidos em tempos de antanho, e s1
A multidão, mortalmente terrificada, prostou-se mais profundamente amda. volta aguardada para outras ocasiões". É certo, por isso, que o mito de '
"Illa Tiki, Illa Tiki", "o deus do raio!" era o murmúrio geral. racocha não é uma invenção de clérigos índios ou espanhóis, pelo que
Pedro de Candia ficou cada vez mais embaraçado. Não sabia que êsses na- notável testamento político do último inca que reinou ante~ da i~vas.ão •
tivos de pele castanha o tomavam realmente pela encarnação de um deus. panhola, Huayna Capac, o Grande, adqmre ,a. mesma Importanoa. t
Não sabia tampouco que durante. semanas e me~es. cometas, verm~lhos como celebrado ato da abdicação de Montezuma do Mexico, relatado por cromst
sangue, haviam cruzado os céus mcas, que terriveis terremotos tm_ham fen- espanhóis. Exatamente como o asteca neste, assim o inca naquele documen
dido a terra, exibindo suas entranhas em brasa. Também não sabia que os deposita seu poder nas mãos dêsses homens brancos, desconhecidos, que I
áugures predisseram desgraças, observando o vôo das aves, ou que a Lua pentinamente apareceram nas costas da vasta teocracia sul-americana. Jaze
estivera envolvida por um anel tríplice, sinal infalível da aproximação do do em seu leito de morte, convoca os chefes dos "ayllus", das estirpes ma
final de tôdas as coisas. importantes de seu reino, e declara:
"Viracocha, Illa Tiki!" era o sussurro, e todos os componentes dessa mul-
tidão atemorizada se lembravam de como, no ano passado, quatro mil ho- "Há muitos anos foi -me revelado por nosso pai, o Sol, que após o govêrno de doze •
mens e mulheres, os servos mais chegados do inca Huayna Capac, que aca- seus filhos reais, um povo estrangeiro viria, um povo nunca visto nessas regiões, para co
bava de entregar sua vida e de voltar à morada dos deuses, se _Imolaram ~as quistar e submeter ês te e muitos outros reinos. Estou inclinado a acreditar que essas palavr
se referiam ao povo recentemente visto em proximidades de nosso litoral. Diz-se sere
chamas de sua fogueira funerária porque Viracocha estava, vwlento e vm- componentes de uma raça poderosa, em tudo superior, à nossa. Sabemos que, comigo,
ga~fv?, nas fronteiras do país. . . . .. número de doze incas foi alcançado. Por isso mesmo quero aqui predizer que, poucos an
VIracocha!" Hoje, passados mais de quatrocentos anos, significa essa for- após ter-me reunido a meus ancestrais, aquêle povo forte vai aparecer para levar à realizaçl
ma de tratamento apenas "senhor" no Peru, na Bolívia e no Equador. Na a profecia de meu pai, o Sol; êles hão de conquistar o nosso reino e governar-nos. Orden
prática é idêntica a "homem branco". Até hoje continuam os brancos a ser lhes que obedeçam e sirvam aos estrangeiros, porque em tudo nos são superiores e porq1
filhos de Viracocha, o Todo-Poderoso. . suas leis são melhores que as nossas, assim como suas armas mais poderosas e invencíveis.
Quem e o que é Viracocha? Que a paz acompanhe todos aqui - vou reunir-me agora a meu pai, o Sol, que n
chamou ..."
172

--
Quando os espanhóis deram, na América do Sul, com as mesmas profecias
do advento de homens brancos e barbudos que já haviam encontrado na
América Central, ficaram naturalmente ainda mais admirados. Depois sou- cula.r de etnólogos contemporâneos esca d. . .
quais o. nor!leguês Thor He erdahl do n m~vos e amencam.stas, entre o
beram também que os incas não tinham apenas confissões orais, recebidas o amencamsta finlandês, R!afael Karste~ua~ am~a ~eremos muito de dizer, t
por clérigos sob observância estrita do segrêdo confessional, mas que, exata-
9ue os incas, como todos os outros índi~ st~ ultu:~o ace~~ua gu~ se bem
mente como na Europa, penas eram impostas e absolvições ministradas. Tam- Idolatravam uma multiplicidade de d s, .foss~m per se pohteistas qu~
bém ficaram espantados os espanhóis com os símbolos da Trindade, que locaram sôbre êsse Olimpo um "super-J~s~~ mteir~f!àente antropomorfos, co-
encontraram em altares peruanos: imagens de "Sol do Senhor", "Sol do pou~o índia, como um ser es iritual. us ~ conce ~ o, de uma maneira bem
Filho" e "Sol do Irmão", às quais eram levadas oferendas, e que convidavam e a Idolatria do qual os incalhavia~ ~ cnador VIracocha, o conhecimento
a uma comparação com a Trindade Cristã. Havia também ordens monásticas, cultura tiahuanacu. Viracocha fi ol'!lado ~e um povo desconhecido da
praticando mortificações sangrentas e jejuns regulares e rigorosos. Além pitemo, símbolo do mundo e su~~va mUito aCim~ de;> Sol: "O Senhor sem-
disso possuía o Peru eremitas sagrados que, exatamente como no Velho Mun- dos Sóis. O Criador do Mundo ,eten:a cadl;lsa pnmeira, rei e deus. É o Sol
do, viviam em horríveis ermos, devotando as suas vidas à meditação. Com ·
mcas. D ai, d epreendermos que v·... , assim
h - 1z uma das mais· antigas
. orações
tudo isso êles ficaram profundamente admirados, mas o que mais os impres- lida a conjetura de certos ameri~~~~~t~sa dnao era u~ deus solar, o que inva-
sionou foi o grande número de pessoas de pele branca, encontradas entre era a ex~Iicação de sua longa barba um e qu~ a ongem solar de Viracocha
os "ayllus" incas, a aristocracia peruana. Particularmente as "coyas", as se-
nhoras das aristocráticas famílias incas, parecem em muitos casos ter-se
tamente Imberbe, é muito significativa
do Sol eram colocados como auréol
1 ~oçao ,que, entre_ um povo absolu-
. c am esses estudwsos que os raios
assemelhado bastante às mulheres européias. Pedro Pizarro, um primo do dessa forma origem à noção da ba~:~volta da ~a!;>eça do deus solar, dando
conquistador do Peru, fala dessas senhoras com consternação em sua "História vel com a concepção do Sol como . ssa suposiçao, contudo, é incompatí-
da Descoberta e Conquista do Peru." Essas princesas eram limpas, belas, es- Viracocha, como ser subli'me ?Iero ~orpo celeste e o criador do mundo
beltas. Tinham orgulho da forma de seu corpo, e com' boas razões. "Louro ' H eyerd ahl estao _ , muito acima do s 1 T K '
convencidos de . o . anto arsten quanto
como o trigo é êsse povo", continua Pizarro. "Diversas dessas senhoras e ca- mesmo ponto de vista é defendido que S~ra f a_ssám considerado pelos incas. O
valheiros eram realmente mais brancos que os espanhóis. Vi uma mulher de mencionar. por Ieg ne Huber, que já tivemos ocasião
com seu filho, ambos de uma pele alva como é raramente vista. Os índios Essas lendas do aparecimento de
acreditam que tais pessoas sejam filhos dos "ídolos", os deuses." pele branca e longa barba flutuante ~m estra:;~o. f~ndador de religiões, de
Os americanistas de tempos passados, que viam importância especial nas do leste, não se limitam ao Mé . , q e ce~o Ia Imigrou no país procedente
feições mongólicas dos índios, não acreditavam muito na exatidão das infor- partes da América Central e do ~~f e a?d eru. São ,e~contradas em muitas
mações de Pizarro, no referente a êsse ponto. Sentimo-nos inclinados a con-
cordar com os mesmos. As mulheres índias, de acôrdo com tôdas as outras
informações, não eram sêres muito atraentes. Mas, ou a nobreza da côrte
gura central à sua pátria no a:t
após um período de ensinament ' e t? . as elas u_na_mmes em afirmar que.

seis dêsses fundadores de ,religião ~ a


e t~vidades miSSIOnárias, retornou a fi-
f to mar. Conhecidos parecem ser
espanhola na época de Carlos V e Filipe II possuía ideais de beleza muito Zamna no Iucatã, Viracocha no Per~ ~e e é ranca: Quetzalcoatl no México,
diferentes dos nossos, o que, tendo-se em vista as pinturas espanholas da entre o~ tupis e Bochica na Colômbi~. um no Brasil e no Paraguai, Tupã
época, não parece muito provável, ou a representação de Pedro Pizarro das Depois de Quetzalcoatl e v· h B ·
"coyas" é substancialmente correta. De qualquer maneira, os "grandes" de teressantes dêsses missionários ~~:~oc a, F ~chica parece-nos um dos mais in-
Castilha, tão orgulhosos da natureza de seu nascimento, casavam em grande Colômbia, e o nível cultural es a ncos. OI o mestre dos índios chibchas da
número com as princesas incas, considerando-as iguais em nascimento e no- vêzes se referem cheios d .P n~osamente el~vado dessa tribo, a que muitas
breza e apresentando-as às Majestades Espanholas na côrte de Madrid. Duas ser atribuído a êle e seusee:.m~r~çao os co_nqUistadores espanhóis, deva talvez
gerações depois, em 1603, apresentaram um pedido de supressão de taxas, a mitologia dos chibchas osis~anos poJter~ores. Há muitos e muitos anos, diz
assinado por 567 representantes de antigas famílias incas, à coroa de Espa- Senhor fêz com ue o Vai omens esviaram-se. de Deus. Para puni-los, o
nha. O que, por si só, é muito significativo e fala em favor da teoria de correntes da montanha de ~ ld~ Bogotá submergisse sob as águas de duas
Pedro Pizarro. tantes. Os sobreviventes' volta:am~rma q~ pereces~e a maioria de seus habi-
Os clérigos espanhóis sabedores de latim, que acompanharam Pizarro ao das, montanhas. Foi então que Bse h~ra eus, pedmdo-Lhe perdão nos cimos
Peru, fizeram numerosas observações de interêsse lingüístico. A palavra índia e f;z com <JUe o dilúvio parasse. oc Ica apareceu, montado em um arco-íris
"capac", assemelhava-se em entonação e significado ao latim "caput", chefe,
~ssa lenda poderia ter vindo dir t d , .
cabeça. Semelhantemente, a _palavra inca "suma", "melhor", era idêntica ao meiros cronistas a preo e am~nte . o Genesis. Uma vez que os pri-
latim "summus". A palavra Inca para "onda" era "uno", em latim "unda". geralmente mon es es cupar-~e co~ a históna e a mitologia dos índios eram
E se algum dêsses clérigos tivesse alguns conhecimentos de gótico, falado pelos antigas lendas ín§ias cg~n:S~~~ sena. p}ausível uma tendência de disfarçar
antigos dominadores da Espanha, deveria ficado surprêso pelo fato de que a ment~; por vêzes em virtude IJ~s ,cnst~s .. o que, ali~s aconteceu freqüente-
"marca" inca (comarca fronteiriça) correspondia ao gótico "mark", e que a c.?~~cientemente, com o r . erro e m~erpretaçao, mas em geral bem
entusiástica exclamação "hailla", com a qual os soldados incas recebiam seus t~o ' para os índios com~ ~ó.sito de cons~rUir uma espécie de "passado cris-
superiores, correspondia ao germânico "lieil". nvel?Iente brutais 'dos aven~~~efre protege-lo~ dos e~cessos muitas v.êzes hor-
~sses característicos externos contudo, por mais notáveis que sejam, exci- ;redi,das! ilustra o fato de, já em t;37espa~hóis. Quao necessá_rias eram tais
taram o interêsse dos capelães e bispos ocidentais menos que a suposta co~­ os mdws por meio da excomun - '. o apa Pal;llo III pumr a escravidão
respondência espiritual e religiosa. Esta recebeu ultimamente atenção parti- grar:demente auxiliou os missioná _hao, u;:;a medida sem precedentes, que
174
versao. Assim sendo, o enxêrto dnosl no ovo }\1u_ndo em sua obra de con-
e e ementas cnstaos em lendas índias era

175
freqüente. Mas não pode ter-se verificado, por exemplo, no que concerne
à lenda do arco-íris, a que acima nos referimos. Pois que o arco-íris era tam-
bém um símbolo mitológico antigo no Peru, relacionado à clemência divina,
e também - como veremos mais tarde - na Polinésia, uma concordância no-
tável com idéias ocidentais.
Quando Bochica considerou cumprida a sua missão, retirou-se para uma
região inacessível, onde viveu como eremita, jejuando e rezando para o bem
de seu povo. Desapareceu em seguida. Mais tarde um clérigo juntou-se aos
chibchas, procedente de partes orientais longínquas, afirmando ter sido en-
viado por Bochica, para levar seu povo de volta aos caminhos do bem e da
honra. Os chibchas foram instruídos por êsse branco missionário, de longa
barba e idade avançada, nos mistérios da Agricultura, Astronomia, Meteo-
rologia e tecelagem. :este também organizou o seu estado, construiu cidades
e deu-lhes seus dirigentes, um líder espiritual e um temporal, êste ultimo
subordinado ao primeiro. Eis o texto da lenda de Bochica:
"Desceu para a planície de Bacata um homem que vinha do leste. Longo era o cabelo de
sua cabeça, e sua barba caía-lhe até o cinto. Era velho e seus pés estavam descalços. Sôbre
seus ombros pendia um manto, e sua mão segurava um bordão.
E os chibchas caíram de joelhos diante dêle e seguiram atentamente suas palavras. E
chamaram-no de Bochica, isto é, o Manto Real da Luz.
Bochica era bom. Ensinou-os a acreditar na imortalidade de suas almas e ensinou-os a
acreditar na recompensa do bem e na punição do mal. Também lhes falou da ressurreição
do corpo. E pediu-lhes que dessem esmola aos necessitados ... ".
Mas no Principado de Iraca dizem assim de Bochica:
"Veio um homem branco do leste. Seu cabelo era longo e sua barba caía até a clava,
que carregava em sua mão à guisa de bordão.
Em sua cabeça e seus braços levava o sinal da cruz. Era idoso e o Rei Nompanem
adorou-o e ouviu seus ensinamentos que lhe pareciam bons.
Depois o príncipe ordenou que os ensinamentos do Mestre fôssem seguidos em todo
o país. Como serpentes, atravessavam os
E Nompanem perguntou ao Mestre: "Qual é a punição daquele que não obedece a maias de lucatã, sôbre a invasão
seus ensinamentos?"
Replicou o Mestre: "Não deves impor a obediência aos meus ensinamentos com as puni-
ções dêste mundo. No Além, no Outro Mundo, há punições para o Mal e recompensas para
aquêles que obedecem aos ensinamentos de Deus."

Eis a lenda de Bochica, que se encontra documentada em têrmos semelhan-


tes em um grupo de crônicas espanholas do período da conquista. O espanto
dos espanhóis não deve admirar; ela se desvia tão categoricamente das noções
normais de deus nutridas pelos índios que surgiram duvidas se era realmente
de origem pré-colombiana. Mas os chibchas possuíam um alto nível de cultu-
ra também em outras esferas. Não apenas no tocante à arte, que ali atingira
ponto elevado, mas possuíam também um sistema monetário baseado em
ouro e um calendário absolutamente moderno, de acôrdo com o qual se di-
vidia o ano em 365 dias, com doze meses que se iniciavam no solstício de
inverno, dia 22 de dezembro. Esta ultima informação é particularmente in-
teressante porque, como mostraram investigações recentes, parece ter tam,bém
o calendário dos toltecas, antigo povo índio, que vivia no México dos séculos
dez a doze, e que foi seguido pelos astecas no século treze, sofrido certas in-
fluências do Velho Mundo. É evidente que problemas relacionados ao ca-
lendário, com sua subestrutura astronômica e matemática tão complicada,
não poderiam ser resolvidos em contatos rápidos e superficiais. Se, por isso,
influênciais européias operavam nessa esfera, podemos concluir que as rela-
ções entre o Velho e o Novo Mundo devem ter sido muito próximas.
Infelizmente é nosso conhecimento da antiga civilização americana um
pouco incompleto. Sabemos que os conquistadores espanhóis encontraram
176

Nas montm;has viv_em os deuses. A di~eita o Popocatépetle e à esquerda o Ixtacchuat/. Entre


esses do1s montes deu ·se a mvasão do Vale de Tenochtitlán pm· Cortez.
numerosas culturas altamente desenvolvidas na América, e sabemos também
que essas eram evidentemente nada mais que ecos abafados de períodos
muito mais antigos e muito mais brilhantes. Sempre novamente são encon-
tradas ruí~as _antiqüíssimas, de dimensões enormes e, ape~a! d_a destru~ç~o,
ainda esplend1das em sua forma, nas vastas florestas pnm1t1vas da Amenca
Central e do Sul. Podemos aceitar, com algum grau de certeza, que culturas

25. Anatomia mágica: o México, tal como a


Europa medieval, criou uma espécie de "ho-
menzinho flebotômico", em que os vários
órgãos do corpo humano eram màgicamente
relacionados com os vinte sinais celestes do
calendário.

altamente desenvolvidas floresceram no solo do Novo Mundo, entre os anos


2000 e 1000 antes de nossa era; mas o nosso conhecimento se limita a isto.
Infelizmente não possuímos quaisquer documentos literários originais da-
quela época. Alguns dêsses povos antigos, cujos destroçados edifícios ciclópi-
'k' bido
cos nos enchem de admirasão, haviam mesmo dominado a arte de escrever.
Ruína da pirâmide do templo de Chichen-ltza no Iu~~tã. Terão também os .v! mgs su ram Mas seus documentos escntos, quase sem exceção, tomaram-se vítimas do
os degraus dêsse famoso sacrário maia7 T ornaram-se vt tlmas de sacerdotes fanatlcos, ou e tempo, seja porque desapareceram ainda antes da chegada dos espanhóis nas
êles os "deuses brancos" dos mesmos1
guerras cruentas de aniquilação que um povo movia contra o outro, seja
porque sucumbiram aos efeitos destruidores da natureza e do clima. O pre-
JUÍzo principal, contudo, foi indubitàvelmente perpetrado pela destruição
fanática dos conquistadores brancos, cujos padres Julgavam estar fazendo algo
de bom, queimando não apenas os índios, mas também a sua obra cultural.
~ bispo de Merida, num único e tremendo auto-de-fé, destruiu duzentos e
vmte e quatro manuscritos, cinqüenta e três altares e cinco mil estátuas dos
ma~as. Daí a razão para sobreviverem da indubitàvelmente grande literatura
ma1a apenas três obras, e essas, até o presente, foram decifradas apenas em
pequena parte. Não está ainda decidido se a humanidade vai, alguma vez,
poder ler essas obras de uma cultura desaparecida em sua totalidade.
Abre-se, pois, vasto campo à fantasia e freqüentes vêzes foram inventadas e
propaladas as mais descabidas fábulas sôbre a América primitiva. A crenç<\
m~enua, largamente influenciada por concepções bíblicas, numa terra de
ongem comum de todos os homens, fêz com qu~ li~ -vissem nos aborígines
17'1·
12 Conquisto Mundo
americanos apenas descendentes dos habitantes do Velho Mundo. De fato, A cruz como um dos mais simples ornamentos, é sem dúvida um motivo
há entre as culturas primitivas da Europa e da América, e não só no México primitivo da humanidade artisticamente criadora, do mesmo modo como a
e Peru, principalmente no campo religioso, uma identidade tão acentuada, pirâmide provàvelmente é um motivo primitivo da arquitetura. Com o em-
que sempre de novo foram procuradas possibilidades de influenciação per- prêgo religioso de símbolos representando aves e peixes, Já não se dá o mesmo.
didas e esquecidas. Já os espanhóis verificaram com pasmo, na primeira ex- O uso dêsses símbolos restringe-se, em tôda parte do mundo, geralmente a
ploração dos imensos territórios por êles conquistados, que diversos dos cos- esferas nas quais existe influência cristã. O fato de êstes dois símbolos terem
tumes, construções, lendas, adon10s, etc., dos tempos remotos da América,
muito se assemelhavam aos do Velho Mundo. Isso se refere no início, por
considerarem os espanhóis a sua tarefa freqüentemente uma missão divina
com o propósito da divulgação do cristianismo entre os "pagãos", a símbolos
e ornamentos cristãos. Assim descobriram, surpresos, que o uso religioso do
símbolo da cruz era vastamente difundido entre os astecas e maias. Tratava-
se nisso de representações de árvores estilizadas em forma de cruz, sob as
quais antigamente eram oferecidos em sacrifício parte da colheita e animais.
Dessas épocas primitivas data também o emprêgo, igualmente em altares e
templos, de símbolos representando aves e peixes, que naturalmente deixaram
os espanhóis não menos espantados, assim como a prática duma espécie de
batismo, na qual, após a bênção da criança pelo sacerdote, se segue uma
aspersão com água. Também a idéia da comunhão não era desconhecida aos
astecas, conforme verificou há pouco a ciência americana. Pequenas imagens
de deuses feitas de massa e benzidas pelos sacerdotes, que eram oferecidas
aos crentes, mas principalmente aos doentes, recebiam pela benção uma fôrça
expiatória. Quem comia êsse pão de Deus, obtinha a sua reconciliação com
os poderes celestiais encolerizados. Verificações semelhantes foram feitas, de-
certo, também no Peru e uma pesquisa minuciosa provou pretensamente, con- 27. Batismo em Iucatã. Gra-
vura de manuscrito maia,
forme comunicou C. M. Kaufmann no seu livro "América e Cristianismo de Iucatã.
Primitivo", certa identidade dos achados dali com motivos conhecidos somen-
te na Igreja copta.
sido usados para fins de culto também na América, naturalmente tinha de
causar estranheza e fazer presumir que desconhecidos missionários cristãos
acharam o caminho para o Novo Mundo muito antes de Colombo.
O que aconteceu ~o~ f~ndadores dessas religiões que tão estranhamente se
assemelhavam ao cnstramsmo? Mataram-nos ou foram feitos santos e trans-
feridos para o céu, ou abjuraram a sua fé e emigraram? Foram êles e seus
adeptos absorvidos pela fôrça biológica superior do povo hospedeiro? Não
o sabemos. Apenas em um único caso parece haver vestígios meio apagados
que merecem ser seguidos: os polinésios, a 4.000 quilômetros ao oeste do
Peru, adoravam como seu ancestral primitivo e seu deus supremo Kon-Tiki,
o Eterno - e Kon-Tiki era o nome que os incas haviam dado a Viracocha,
que adotaram dos seus antecessores no Peru.
Será acaso?
. Há muito ~ sa:bid?. que. trib<?s inteiras, e não apenas as tripulações intré-
prdas de navros mdrvrduars, mrgraram através de enormes extensões oceâni-
cas. O exemplo clássico é constituído pela curiosa Ilha de Madagáscar: embora
separad_a .da costa oriental da Africa apenas pelo Canal de Moçambique, com
400 gmlometros de largura, não era povoada por negros da África, mas por
malaro-polinésios de Java.
~ . distância de Java para Madagáscar é de cêrca de seis mil e quinhentos
qu~lometros e o O~e~no_ fndico é, por v.êzes, bastante violento. tsses dois
fatores, a enorme drstanoa através de mar aberto e as tempestades muito co-
mu~s naquelas latitudes, fizeram com que os estudiosos duvidassem durante
26. "Homenzinho flebotômico" da medicina muito temp? das _fon~es árabes, das quais temos conhecimento do estabeleci-
medieval européia, mento malaro-pohnésrco em Madagáscar. Mas investigaçpes francesas, levadas
avan~e pelo sá.bio parisü:ns.e .Gabri~l_ Ferra~d 1 ~ p~squisas alemãs quase con-

178. 1?9_
temporâneas, devidas ao etnólogo Karl Weule de Leipzig provaram no co-
mêço dêste século que os antigos geógrafos árabes tiveram razão e que os
h abitantes de Madagáscar provinham originàriamente de J ava. Como isso
100' 120" . 120'W

aconteceu é um mistério para todos. Quando aconteceu é quase igualmente


misterioso, se bem que as investigações do geógrafo alemão Eberhard Stechow
fizeram com que se acredite que as primeiras ondas dêsses imigrantes transo-
ceânicos chegaram a Madagáscar antes do início da era cristã. De qualquer 40"N
maneira, sabe-se ao certo que os hovas madagascarenses, que hoje superam a
cifra de mais de 750 000, são de origem malaio-polinésia. E é certo também
que êsses imigrantes foram capazes de atravessar essas distâncias enormes
apenas porque suas embarcações primitivíssirpas eram levadas por correntes
e monçoes.
~sses fatos foram considerados suficientes para inspirar o estudo de outras O'
migrações, teoricamente possíveis com o auxílio de ventos e correntes. Tais
estudos foram realizados, mas nunca chegaram a resultados e sim, apenas a
sugestões cautelosas até que o jovem etnólogo norueguês, Thor Heyerdahl,
20'S ... ·:·. Ptt., ,:.;.'í? '?J ~.. ·.
cortou o nó górdio dos "se" e "mas" científicos, mediante audaciosa expe- , ....,.";:-:• . · Ilha.\ Cook
6
•· Ilhas da Au>tr ..J • :::::1 • Ilha da o ·~·;:
dição. Em 1947, levado pelos ventos e as correntes, cruzou o Pacífico numa Soc iedade :-.:::;~~~~~.. Páscoa ~.~n
balsa, construída de acôrdo com antigos protótipos dos índios americanos.
Naturalmente não conseguiu, dessa forma, resolver todos os problemas; mas
vale a pena analisar as conseqüências de sua viagem, relatadas em seu livro
interessante "A Expedição Kon-Tiki - Atravessando os Mares do Sul em
40'
'-o tJ);;_o~o ''""";o 'l(fl})Jllf1~~;~:~~'
Balsa".
Há muitas décadas é sabido que os menires peruanos, ajuntamentos de ~-..~\\

monólitos que se assemelham com aquêles da Época da Pedra Lascada na


Europa, mas muitas vêzes entalhados por escultores desconhecidos em forma XVI. Correntes do Oceano Pacífico.
de faces humanas, encontravam paralelos peculiares a milhares de quilôme-
tros de distância, na Ilha da Páscoa. Lá existiam também essas enormes ca- De fato, foram já mencionadas pelo capitão holandês Jacob Roggeveen, que
descobriu essa ilha solitária no domingo de Páscoa do ano de 1722. J ames
Cook_ e seus dois companheiros alemães, o sábio Johann Reinhold Forster e
seu f!lho Georg, escreveram detalhadamente a respeito uns cinqüenta anos
depms. Desde então continua ininterruptamente a literatura especializada a
preocupar-se com suposições a respeito da Ilha da Páscoa. Qual o significado
das cabeças gigantescas? Quem erigiu essas obras? Quando e como chegaram
sêres humanos a essa ilha?
Quatro mil quilômetros de mar se estendem entre a ilha e o continente. Mais
de _mil e quinhentos quilômetros separam-na do mais próximo atol poli-
nésico. A pequena ilha jazia em solidão completa, de permeio a vasto oceano.
S~ria possível que membros de alguma cultura ocidental se houvessem des-
VIado para aquela parte do mundo? Hipótese que parecia estar fora de qual-
qll:er cogitação, já que ventos e correntes vinham, dia após dia, de direção
onental. Seria possível que os primitivos habitantes da Ilha da Páscoa tives-
sem ~ruzado conscientemente os mares, no propósito de atingir essa minús-
cula Ilha vulcânica? Não seria essa idéia ainda mais extravagante?
M~s, apesar de tudo, essa suposição era a única capaz de oferecer uma
28. Círculos de menires na Península de Sillustani, nas proximidades explicação para a maneira pela qual teria sido possível separar essas enormes
de Umayo, no Peru. A disposição das pedras nos faz imaginar tivesse reproduções de faces humanas do rochedo de uma das crateras vulcânicas da
sido obra dos mesmos arquitetos desconhecidos de Stonehenge. Ilha da Páscoa e transportá-las através de uma distância de muitos quilôme-
tros sôbre chão ondulante até às suas posições definitivas. Uma vez que as
beças de gigante, trabalhadas em um único bloco, da altura de uma casa de menores dessas estátuas pesavam consideràvelmente mais que cinco toneladas,
quatro andares, olhando sôbre a ilha desprovida de árvores para as vastas enquanto o pêso médio variava entre dez e doze toneladas, e as mais pesadas
distâncias de eterno mar. Naturalmente, chamaram essas estátuas colossais, alcançavam mesmo cinqüenta toneladas, o número de pessoas necessárias
pesando diversas toneladas, a atenção dos primeiros brancos a chegar à ilha. para seu transporte era tal como só poderia ter atingido a Ilha da Páscoa
graças a viagens repetidas e planejadas.
180
181
depois de minuciosa investigação na Ilha da Páscoa, que as conjeturas de
Marshall haviam sido errôneas. Felizmente, temos de acrescentar, já que isto
nos poupa verdadeiras acrobacias cerebrais, que teriam sido necessárias para
encontrar uma explicação plausível para contato tão prematuro de civiliza-
ções tão afastadas. Para grande surprêsa dêle próprio, descobriu Métraux que
as famosas "tabuinhas" da Ilha da Páscoa não tinham mais idade que 200
anos, eram cortadas de madeira de arribação que datava do século dezoito.
Daí, não poderia haver dúvida sôbre a não-existência de conexões entre as fi-
guras inscritas nas tábuas dos antigos hindus e da Ilha do Pacífico.
Apesar disso permanece inalterado o fato de as tábuas da Ilha da Páscoa,
se comparadas com a escrita de Mohenjo-Daro, demonstrarem um bom nú-
29. "Tábua de escrita" da Ilha da Páscoa. mero de semelhanças. Eis fato inegável. E, por outro lado, parecem investi-
gações, realizadas por estudiosos da pré-história na Ásia do Sul e na Oceania,
provar que como afirma o historiador vienense Robert Heine-Geldern, "a
Ou era a Ilha da Páscoa somente o pequeno remanescente de um continente gênese da cultura polinésica, ou pelo menos um de seus componentes mais
inteiro, que desaparecera nas profundidades oceânicas? Existiam aí alguma importantes na área Formosa-Filipinas-Célebes do Norte, pode apenas ser
vez cidades populosas e prósperas, estendiam-se terras férteis e florestas fron- explicada pela mistura da cultura celto-austronésia com a cultura austro-asiá-
dosas através dêsse território? Havia ali u'ma "Atlântida", que afundou nas tica·:. Falando claramente parece que, em algum período longínquo da An-
profundezas misteriosas do Oceano? Alguns teósofos, apoiados em revelações tigm~ade, receberam certas ilhas polinésicas suas primeiras ondas de
ocultas, fizeram enfàticamente tal asserção. Acreditavam que os ídolos colos- colomzadores do Oeste. ~sse ponto de vista é defendido também por zoólogos.
sais da Ilha da Páscoa não foram criados por sêres de nossa espécie, mas Se bem que nem a galinha nem o porco existissem na América anterior a
pelos habitantes gigantescos do co~tinente antiqüíssimo _"Lemúri~·:, que, ~á Colo~bo, pelo menos não como animais domésticos, êsses dois antigos com-
tempos muito remotos, ocupava a area dos Oceanos fnd1co e Pacifico e CU]~ panheuos do homem encontravam-se na Polinésia. O que é inequivocamente
parte restante seria a Ilha da Páscoa. Mas foram encontradas estradas pavi- atestado pelos primeiros descobridores brancos.
mentadas, que levavam dos cumes da ilha até os portos e a praia, portos que ~sses informam também que os polinésios possuíam cães, e a ciência esta-
ainda hoje podem ser utilizados, indicando que o nível de águas não mudou beleceu logo que os cães domesticados dos habitantes das ilhas dos mares
- fato que nega a teoria do cataclismo. Para obter evidência ainda !?ais ~o Sul ~ram aproximadamente das mesmas raças que os cães australianos e
clara, geólogos foram enviados à Ilha da Páscoa. Trabalharam com afmco mdonésws .. O mesmo acontecia com a galinha e o porco. As formas primiti-
e cuidado e tornou-se claro que não poderia ter-se verificado nenhum grande vas das vanedades polinésias vinham também de zona austronésica.
desastre sísmico. Portanto não era a Ilha da Páscoa um resquício de um con-
tinente submerso, nem era sua cultura autóctone, devendo a ilha ter recebido
seus habitantes de algum outro lugar.
Os estudiosos de todo o mundo continuavam a ter as mesmas dúvidas
que antes. Mas em 1864 apareceram diversas tabuinhas de madeira, as cha-
madas "kohau rongo-rongo" ou "madeiras noticiosas", espêssamente decoradas
com figuras e "hieróglifos". Foram elas encontradas ~o pé dos ~normes bloc~s
esculpidos da Ilha da Páscoa. Supunha-se que os smais, contidos nas ~abm­
nhas, representavam uma espécie de escrita figurada. Nenhum dos atuais n~­
tivos da ilha foi capaz de dar a mínima informação concernente a essas ta-
buas de madeira, mas as observações dos primeiros descobridores branc~s
sugerem que essas tabuinhas tenham sido empregadas em algum culto _reli-
gioso. Posteriormente foram as "kohau rongo-rongo" destruídas pelos habitan-
tes cristianizados da Ilha da Páscoa, como sendo "obras do diabo"; apenas 30. Tábua comparativa de escritas da cultura mohenjo-daro e da Ilha da Páscoa.
A esquerda, mohenjo-daro; à direita, escritas da Ilha da Páscoa.
dezenove sobreviveram a êsse holocausto, o que não forneceu muito material
para a curiosidade dos estudiosos. l!ma vez que agora ficou demonstrado que a índia e a China conheciam
No comêço da terceira década do nosso século parecia ter sido encontrada ~ahnhas ~o?l_esticadas há tr.ês mil e quinhentos anos, a hipótese de que certas
uma pista para a solução do mistério das tabuinh~s _d~ Ilha da Pás5oa. Qua~­ Ilhas pohnes1cas foram povoadas pelo Oeste em um período muito antigo
do o arqueólogo inglês, John Marshall, em 1922 Imc~ou a e~cavaçao d~s rUI- pode bem ~er c<?rreta. As condições climatéricas e meteorológicas, provàvel-
nas de dois antigos centros industriais no Indo, de cmco ~11 anos de ~daAde, !fiente_ ~mto diferentes das atuais, que reinavam no Pacífico durante e,
as cidades de Mohenjo-Daro e Har~ppa no _sud~e~te do ~unpb, descobnu ~le~ mdubltavelmen~e muito tempo depois da Época do Gêlo, com o estreitamen-
nas partes subterrâneas daquela oda~es, ~nscnçoes,_ CUJOS caracteres es;nto to decerto considerável da zona dos ventos alísios entre as cobertas de gêlo
pareciam corresponder àqueles das mistenosas tabumhas da ~lha da Pascoa. eno_rme~ente aumentadas dos pólos sul e norte, podem ter levado a condições
Em 1938, o etnólogo americano Alfred Métraux, •consegum demonstrar, multo diferentes de ventos e correntes, tornando a travessia possível, mesmo

182 183
com embarcações muito primitivas. Mas isto, de modo algum, se aplica a em 1773: "Encontramos entre êles centenas de rostos verdadeiramente euro-
tempos prato-históricos e históricos, e um olhar ao mapa do Pacífico poderá peus e muitos narizes genuina~ent~ rom~nos". E q.eorg Forster diz dos ha-
convencer qualquer um da solidão imensa que reina nessas águas. Como bitantes das Ilhas Marquesas: Mu1tos deles podenam ser comparados com
poaeriam povos pré-históricos, em seus barcos primitivos, ter atravessado essas as obras-primas da arte clássica, sem nada perder em tal comparação". De .
vastas extensões oceânicas, contra ventos e correntes? E se a teoria fôr pro- O. Aheatua, rei de Tahiti-iti, chega mesmo a escrever: "Era mais claro· na
posta que êsses homens desconhecidos alcançaram não apenas a Ilha da Páscoa côr da pele que qualquer de seus súditos, tendo cabelo castanho, longo e
mas também a América do Sul, devemos interrogar-nos por que europeus sedoso, que se avermelhava nas pontas".
da Idade da Pedra não viajaram também aos bandos para a América, através Leitores céticos poderão opinar que Cook e seus companheiros cientistas
do muito mais estreito caminho que separa o Velho. Mundo do Novo. exageraram, por causa do entusiasmo que sentiram a respeito de sua desco-
Mas o enigma não pára aí. Quando os primeiros europeus visitaram a berta. Mas os próprios polinésios pareciam supreendidos com sua semelhança
Ilha da Páscoa, no início do século dezoito, encontraram pessoas de pele com os miraculosos estrangeiros. De qualquer ma~eira, relata Ge~rg For.ster,
quase branca. Alguns homens possuíam longa barba - uma f<;>rma de distri- bastante divertido pelo fato, que Porea, um ~at1vo, que . em Talt! ~ubm a
buição capilar geralmente desconhecida nos mares do Sul, ass1m como entre bordo, pediu depois de algum tempo qu:_ lh.e fosse conced1.da perm1ssa<? pa.ra
os índios americanos - e contaram que muitos de seus ancestrais haviam sido vestir-se como europeu, durante permanenCias em outras Ilhas da Polmés1a.
completamente brancos, enquanto outros eram morenos. Repetiram uma
história tradicional, cuidadosamente conservada por transmissão oral - como "Dirigiu-se conosco a uma das ilhas, vestindo calças de marinheiro e paletó de linho.
informa oficialmente William E. Thompson, tesoureiro do cruzador ameri- Carregava a muni ção e a pólvora do Capitão Cook, e desejava passar por um dos nossos.
cano "Mohican", que durante o ano de 1886 passou algum tempo naquela Para que não fôsse reconhecido não falava uma palavra sequer de sua língua materna, mas
murmurava tôda sorte de sons ininteligíveis, que realmente conseguiram ludibriar a popu·
ilha - segundo a qual os seus ancestrais brancos chegaram à ilha em grandes !ação local. Para ainda aumentar essa impressão pediu para mudar seu nome Porea para
embarcações "de um país montanhoso no leste, ressecado pelo sol, viajando um nome inglês ..."
em direção ao poente'', História semelhante foi contada aos primeiros eur<?-
peus que chegaram à Polinésia. Também ali, particularmente entre os caCI- Isso é extraordinàriamente significativo. Pois revela que Porea sabia ser
ques e os nobres, encontraram muitos nativos de pele branca com cabelo parecido de tal forma com seus amigos europeus, que em roupas européias
avermelhado, olhos azul-cinzento e nariz fino e aquilino; também ali se somente seu nome e sua incapacidade de falar inglês poderiam revelar sua
ouviu a história que o lar original dos primeiros emigrantes na Polinésia se verdadeira identidade. E seus compatriotas, como é confirmado por Georg
situava no leste, e que o deus do Sol, Tiki havia levado o seu povo de lá à Forster, tomavam-no realmente por um branco.
Polinésia, em grandes jangadas, em épocas há muito passadas. Além dêsses Aqui temos indubitàvelmente uma prova válida. E portanto há pouca ra-
nativos brancos, de aspecto quase europeu, havia outros com pele tostada, zão para duvidar que em algum tempo grande número de brancos chegou à
cabelo prêto e narizes achatados, , comuns nos mares do Sul. E ta~J:ém na zona dessas ilhas do Pacífico. De onde poderiam ter vindo êsses brancos?
Polinésia, os nomes de todos os lideres foram preservados por trad1çao oral Não existe, naturalmente, dúvida de que em eras priscas a !ndia foi ~on­
desde o tempo em que as ilhas foram habitadas pela vez primeira. quistada por indo-europeus brancos. E certamente avançaram Isoladas tnbos
Essas informações ou eram recebidas com completa incredulidade, ou - o indo-européias pela Ásia adentro. Mas é igualmente certo que o Oceano Pa-
que era talvez pior - eram falsificadas para confirmar as teorias de Roussea~ cífico impediu o seu avanço, pelo menos durante épocas históricas, quando
a respeito dos "selvagens nobres". Quando Cook e os Forsters retornaraiD: a as condições náuticas, nesse maior oceano do mundo, eram exatamente as
Europa, a filosofia da natureza de Rousseau havia influenciado a todos. Ass1m mesmas que nos dias de hoje. Por outro lado, porém, não pode haver dúvida
sendo, as informações acêrca dos semibrancos e semiescuros nativos, ~e í~do~e de que esta imigração branca aos mares do Sul é relativamente recente. Tanto
amiga, chegaram em momento oportuno; e quando o belo sonho da mo~enc~a na Ilha da Páscoa quanto na Polinésia afirmam os nativos que a chegada de
humana foi deturpado, para tornar-se o ridículo idílio da côrte, a Ciên~Ia seus antepassados às ilhas do Pacífico se deu há cinqüenta ou sessenta gera-
desprezou os fatos juntamente com a caricatura. Assim. durou ce.nto e cm- ç~es passadas; em outras palavras, se tomarmos essa afirmação a? ~é da_ letra:
qüenta anos até começar-se de novo qualquer estudo séno a respe1to. . ha doze séculos. Isso pode ser errado ou exagerado, mas que a 1m1graçao po-
Tal caminho foi aberto por Peter H. Buck, diretor do Museu Bermce linésica não pode ter sido anterior à Idade Média, é atestado pelo fato de
H. Bishop, de Havaí, conhecido etnólogo e antropólogo que, nos começ?s .do que todos os polinésios, de latitude de 20 graus norte a 40 graus sul falam
terceiro decênio d êste século, levou avante extenso estudo antropometnco uma língua idêntica. Tanto Cook quanto os Forsters já contaram sua sur-
entre os polinésios. Buck que é, êle próprio, polinésio por parte de mãe, prêsa ao verificar que seu companheiro de Taiti, Porea, quando falava, era
provou, graças a milhares de exames individuais, que os habitantes das Igualmente bem entendido em tôdas as ilhas. E Peter H. Buck, que fala um
ilhas polinésicas são, indubitàvelmente, de descendência européia. Os resul- dialeto polinésico sulino, confirma que em nossos dias a m.e~ma língua é
tados de seus estudos podem ser resumidos em uma frase: empregada através de milhares de milhas de Havaí até Ta1t1. Ao m~smo
"Com base nas pesquisas realizadas em habitantes de tôdas as partes da Polinésia, pod~· tempo falam os cronistas nativos de uma ascendência comum. Buck ahrma
mos afirmar que os polinésios devem ser de descendência êuropéia, pois não se caracten- a êsse respeito:
zam pelo cabelo lanoso, a pele escura, as magras pernas dos negróides, nem pela face acha·
tada, a estatura baixa e a diferente conformação da vista dos mongolóides." "Os nomes dos ancestrais (que colonizaram a Polinésia) são em tôdas as ilhas os mesmos,
mesmo em ilhas tão distantes umas das outras quanto a Nova Zelândia, as Ilhas Cook,. as
Ilhas Sociedade, o grupo de ilhas Tuamotu, as Ilhas Austral e Marquesas, as ~lhas Gamb1er
Essas informações estão inteiramente de acôrdo com a impressão que ? Ca- e o Havaí. O que prova que todos os povos polinésicos possuíam ancestrais comuns em
pitão Cook obteve durante a sua segunda viagem aos mares do Sul, realizada eras histl>ricas."
184 185
Tais afirmações provam irrefutàvelmente que a imigração polinésica deve acima; a arte difícil de soprar o chifre de concha; o costume estranho de tre-
ter ocorrido em épocas históricas, e ainda apóiam fortemente a suposição de panação do crânio, igual~ente conhec.ido no oest: da Amé~ica do Sul e na
que os imigrantes não vieram do oeste, da Indo-Malaia, onde naquele período Polinésia; o uso de cadeiras de madeira; o emprego de mascaras de dança
já não eram mais povos de cultura da pedra, mas do leste, da América, cujas durante ritos religiosos e especialmente a invenção da célebre escrita em
culturas eram essencialmente de um caráter comparável à da era da pedra "nó", empregada por índios e poli!lé.sjos. . . ,
até o período da invasão espanhola. O leitor que não tenha uma opmiao preconcebida, sentira provàvelmente
Não se trata aqui de mera sugestão, pois, se a evidência citada acima fôr que êsses poucos_ exe~p~os da longa .li~ta de identidades, est.~beleci?a P?,r
aceita em sua plenitude, não h á negar a conclusão tirada. Além disso, tanto Nordenskjoeld, sao suhnentes para dissip~r o ~rg-~mento da casualidade .
Particularmente o fato de que uma tentativa foi feita tanto no Peru quanto
na Polinésia - mas em nenhuma outra parte do mundo - de desenvolver
uma espécie de escrita, arranjando nós de tamanhos vários e vários tipos,
em ordem especial, para ajudar a, I?emória, não P?d~ se.r explicado como
casualidade. Pode haver pouca duvida de que a Simllandade do processo
pressupõe contatos intensivos entre as duas culturas.
tste ponto de vista recebe apoio decisivo da seguinte argumentação: quan-
do os primeiros europeus chegaram à Polinésia, notaram para sua surprêsa
que uma das plantas cultivadas, qu~ haviam t.razido co~ ê,le.s para plantar
nas ilhas, havia, há longo tempo, sido conhecida na Polmesia - a batata!
Ela crescia aí, na variedade doce, sendo desconhecida no oeste das ilhas, li-
mitada à zona ocupada pelos polinésios. Por outro lado, existia também
mais para o leste, tanto na Ilha da Páscoa quanto na América do Sul, onde
esta "Ipomoea batatas" havia sido cultivada em certas regiões desde tempos
longínquos. Uma vez que a. batata. é ~uito ~uscetível à ~gua, qu: ~mediata­
mente a estraga, não podena ter sido Impelida para as Ilhas <?ceamcas, mas
deve ter sido trazida por sêres humanos. O etnólogo R. B. Dixon, que ela-
borou estudo especial sôbre essa questão _no com.êço da qua.rt.a década. dês~e
século, afirmou: "A planta podena ter sido levada da Amenca à Pohnésia
••• o• apenas pela mão humana", e Peter H. Buck confirma expressamente que .a

.•• .•• •
.,. • batata-doce foi plantada no Havaí por volta de 1250, e na Nova Zelândia
•• • • • não mais de cem anos após. Ressalta ainda que no dialeto quíchua, do norte
do Peru, a batata-doce é chamada "kumar", enquanto na Polinésia leva o
o
.... .. ..•
o
nome de "kumara". Essa observação é especialmente importante, porque lo-
caliza o ponto de partida das relações entre a América do Sul e. a Polinésia.
. .•
o
A designação "kumar" é desconhecida no Peru Meridional. Assim sendo, as
conexões entre o Peru e a Polinésia, pelo menos no que concerne à batata-
doce, devem ter-se originado no Peru Setentrional.
31. Escrivão inca com "qui pu". Ao lado, Uma variedade de correspondências lingüísticas indica êste norte do Peru
tábua de cálculo. Desenho da crônica ilus-
trada de Huarnan Poma, de Ayala. como sendo o ponto de partida para os liames misteriosos, que existem entre
a América do Sul e a Oceania. Eis alguns:
a cultura material quanto a espiritual dos polinésios exibe correspondência Ilha da Pdscoa Peru Setentrional
extensa com a cultura sul-americana. Repetidamente foi a atenção de estu- unu unu água
diosos chamada para êsse fato; recentemente pelo etnólogo escandinavo hapay apay carregar
Erland Nordenskjoeld que, em 1931, estabeleceu os pontos de identidade que kiri kiri pele
toki toki machado
surgem numa comparação da cultura material do Peru e da Polinésia. Não ariki awki cacique
apenas que as armas sejam iguais - zarabatana e estranhas clavas de madeira tuu tunu estaca
em forma de espada - não apenas existe semelhança entre objetos de adôrno karu koroa distante
e de uso pessoal, por exemplo braceletes largos de metal, cascas de tartaruga poko-poko ponko poço, abertura, buraco
ou. conchas ou um instrumento que é ao mesmo tempo pente e escôva e que rarako raku côr clara, neve
existe apenas no Peru e na Polinésia; não apenas encontramos a canoa dup!a kimi kimi cabaça
nos ~ois lugares, a característica vela triangular e o anzol - tudo isso poden~ . Tal identidade entre palavras de certa importância não é, obviamente,. de-
ter Sido adquirido por contato fugaz; mas conhecimento mais complexo fOI ~I~a ~? acaso - especialmente no que diz respeito à última palavra da hsta,
tam~ém transmitido do Peru para a Polinésia. Nessa categoria mais comple- klmi para a cabaça, a "Lagenaria vulgaris". Tal como a batata-doce, a ca-
xa, mcluímos a irrigação artificial de campos que se estendiam montanha baça - e tôdas as outras variedades da abóbora - procede, originàriamente,
186 187
Dentro de nossa narrativa não podemos d~i~ar de nos surpreender ~om
da América. Mas principalmente a cabaça é conhecida como planta das flo- tais informações. O fato de deuses cc;>mo Ttkt ~ T_~me s~rem co!lheCtdos
restas virgens da América. Tanto na Polinésia quanto no Peru eram usados igualmente em ambos os lados do Pacíftco sugere hgaçao mmto estreita entre
desde tempos antigos, não apenas o fruto mas também as cascas dessa planta. êsses povos. Pois a migração de deuses é tão difícil qua?to é fácil a transfe-
Secadas acima do fogo, as cascas podem ser transformadas em excelentes va- rência de armas e ornamentos. Requer prolongadas e nao- perturbadas rela-
silhames para água. Tanto os marujos e pescadores polinésios quanto os ín- ções entre os povos, e, via de regra, algum parentesco de raça e sangue. Para
dios do Peru conheciam êsse uso antes da chegada dos conguistadores do Velho estas relações muito estreitas entre o Peru e a
Mundo. Mas não há tipo de abóbora que possa resistir à agua salgada, mesmo Polinésia há indícios figurativos bem evidentes:
durante tempo reduzido. Assim sendo, a cabaça ou qualquer outra fruta do as estátuas da Ilha da Páscoa, que ocorrem em
tipo, que existe em tôda a Polinésia, pode ter chegado aos mares do Sul, a forma idêntica na Colômbia, no Peru e na Poli-
não ser através de barcos, comandados por sêres humanos. O fato de que a nésia. Na própria Ilha da Páscoa essas_ estátuas
"Lagenaria vulgaris" seja chamada "kimi" em ambos os lados do Pacífico, têm aparência verdadeiramente européta: ros~os
aponta também para a origem americana da planta. Para concluir essa lista estreitos com nariz proeminent~ e adunco, lá_l)l<?S
de correspondências, temos a "Sapindus saponaria", uma planta medicinal finos, contraídos como se qmssessem expnm1r
originária da América, que tem um efeito adstringente e que pode também desdém, e queixos adornados com barbas pon-
ser usada como sabão. Também essa planta existe na Polinésia e, por notá- tiagudas. Quem quer que as conheça ou tenha
vel que seja, tem entre os habitantes da Ilha da Páscoa o mesmo nome que visto suas ilustrações, concordará que não podem
entre os índios americanos: "para-para". ter sido modeladas de acôrdo com figuras mon-
A situação é idêntica nas esferas espiritual e religiosa. Enquanto o mito golóides ou negróides. A não ser que suponhamos
peruano de Viracocha afirma que o branco fundador da religião estendeu, que as estátuas da Ilha da Páscoa tenham surgido
certo dia, seu manto sôbre o mar ocidental, pisando no mesmo e desaparecen- da imaginação de seus escultores, que deram às
do no oceano, fala lenda antiga das Ilhas de Tonga, no sudoeste da Poli- suas obras casualmente a aparência dos homens
nésia, da partida mágica de polinésios antigos para uma terra muito brancos, poderemos concluir apenas que essas es-
distante no leste. Quando as águas do dilúvio, com que Tangaloa, o deus tátuas apresentam retratos ao vivo, ou pelo me-
supremo, castigou a terra, haviam desaparecido, designou dois de seus filhos nos as fisionomias tradicionais dos ancestrais, tal 32. Taça de metal. A figura os-
tenta na cabeça um diadema,
com suas famílias para ocupá-la. Mas um dêles, preguiçoso e invejoso, assas- como reverentemente transmitidas através das ge- idêntico àquele encontrado nas
sinou seu irmão trabalhador e inventivo, causando a fúria de Tangaloa. rações. Esta é a dedução também de Heyerdahl. representações de Santo Agosti-
Mandou a família do assassinado para o leste, dizem os tonganianos, a uma Relata êste ainda que, de acôrdo com a tradi- nho na Colônia ou na Ilha da
ção genealógica na Ilha da Páscoa, chegaram os Páscoa.
terra distante, através do mar, conferindo-lhe pele branca, habilidade extra-
ordinária, riqueza imensa e capacidade de construir grandes navios. Depois homens brancos a essa ilha solitária no Pacífico,
Tangaloa anunciou: "O vento soprará de seu país para Tonga. Mas os outros em grandes naves~ de procedênci_a orient~l, e!ltre os anqs 400 e 500, enquanto
permanecerão em Tonga, com pele escura e sem riquezas. Estas serão levadas a população de cor procede das tlhas polméstcas. Peter H. Buck, que deve ser
a Tonga pelos irmãos brancos, que devem comerciar com os tonganianos". considerado uma autoridade indiscutível em tôdas as questões relacionadas
com a Polinésia, nada sabe a êsse respeito. Transmite os resultados de sua
Isso foi escrito em 1818 pelo inglês F. Merian, um dos primeiros investigação antropológica, que o convenceu de que os p~linésios eram euro-
exploradores sistemáticos da Polinésia, tomando notas igualmente sistemá- peus; afirma que o deus dos trabalhadc;>r~s, Tan~, é _constderado o ancestral
ticas de tudo que se lhe deparava. Tinha certeza de tratar-se aqui de lenda dos brancos; afirma que no passado ex1st1am d01s rets nas Ilhas Mangareva,
muito antiga. E quando o explorador alemão, Georg Gerland, que fêz u~ o Akarikitea, o rei branco, e o Akarikipangu, o
estudo acêrca das lendas do dilúvio, examinou êsse mito um século dep01s, rei negro. Mas, manifestamente, empresta pouca
expressou também a opinião: "Aqui ligava-se o subseqüente advento dos importância a essas tradições, indubitàvelmente
brancos pragmàticamente a um mito muito antigo, relacionado com o País porque, na época em que escrevia seu livro, não
Divino de Pu-Lotu e seus habitantes brancos, dtvinos, que freqüentemente conseguia encontrar explicações adequadas para
visitavam Tonga". a origem dêsses polinésios brancos. Assim, asse-
Temos portanto Viracocha, que desaparece em mares ocidentais, os netos vera Buck que os escultores, que produziram as
de Tangaloa transportados para o leste, através de vasto oceano, para outra cabeças gigantescas na Ilha da Páscoa, poderiam
terra, sendo todos brancos, diferentes de seus irmãos de pele mais escura tam- apenas ter vindo das Ilhas Marquesas ou Raiva-
bém pela maior riqueza e superior capacidade criadora - assim as duas vae, onde ocorrem estátuas semelhantemente
costas do Pacífico, através de seus filhos, estendiam-se as mãos em tempos an- enormes, enquanto nas Ilhas Sociedade, no Havaí
tigos! Por isso é Kon-Tiki, o deus peruano, também idolatrado na Polinésia e na Nova Zelândia apenas existem menores figu-
- e significativamente mais no leste e no centro da Polinésia que em outras ras de pedra. Não menciona o Peru ou qualquer 33 _ "Ariki" da Ilha da Páscoa
partes. Assim aparece Tane, que, conforme afirma Thor Heyerdahl, é um conexão entre a Ilha da Páscoa e a América numa canoa, exibindo na ca-
dos discípulos de Viracocha, também no nordeste da Polinésia, como ~I? do sul. beça um ornamento de penas.
deus inferior a Kon-Tiki, como deus dos trabalhadores manuais e da habth- A maior parte das figuras na Ilha da Páscoa Caráter de escrita de uma tá-
dade - como o deus e ancestral das tribos brancas, de acôrdo com o que disse traz, em volta qo corpo, e culpido em rel~YQ ng bua da Ilha da Páscoa.
Peter H. Buck muito antes de Thor Heyerdahl.
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sembarques devem ter-se dado não no Peru, e sim muito mais para o sul, onde
a corrente fria ocidental do Pacífico toca as praias orientais. Dá-se isso na re-
gião de 40o S de latitude, entre Valdívia e Valparaíso, muito ao sul do Peru.
Mas aqui não existia nenhuma batata-doce de nome "kumar", nenhuma
abóbora, não existia "Sapindus saponaria", nem escrita em nós, nem deuses
com o nome de Tiki ou Tane, nem estátuas gigantescas ou lendas de funda-
dores brancos de religiões, falando de longínquo país oriental! Tudo isso
se confina ao Peru, e particularmente ao norte do Peru, sugerindo que as
comunicações entre a América e a Oceania procediam da primeira e não
da Polinésia. Os ventos e as correntes tinham de carregar as embarcações,
que se punham ao mar no Peru, através da "corrente de Humboldt" até a
Oceania.
Acresce a isso que as pirogas polinésicas, a despeito da capacidade náutica
de seus capitães, eram bastante primitivas. A construção de balanceiro obri-
gava a velejar de uma maneira que o balanceiro ficasse sempre no sobrevento,
isto é, que pela posição inclinada da embarcação, causada pela pressão da
vela, fôsse levantado para fora d'água e não, por acaso, mergulhado nela.
Qualquer marujo velho sabe disso. Contudo, não foi fácil obter uma con-
firmação dêsse fato de homens que na sua juventude viajaram nos mares do
Sul - provàvelmente porque pe1a influência dos europeus, o velejar nas pi-
rogas também na Oceania já se tornou coisa quase desconhecida. Tudo que
pôde ser aprendido era que nenhum dos marujos mais antigos, que ainda
viajavam há poucas gerações, e que haviam conhecido os sete mares, se lem-
brava de ter visto um barco polinésico com tôdas as velas sendo levado pelos
ventos. Adalbert von Chamisso teve ainda uma oportunidade, durante sua
viagem mundial entre 1815 e 1818, quarenta anos depois de Cook e os dois
Forsters, de ver, velejando, pirogas na Polinésia, que agora podem ser vistas Ruína do templo fortificad o de Ol/antaitambo, perto de Cusco. Os gigantescos blocos de pór-
apenas em museus. Eis como descreve tal nave: firo granitóide, que pesavam até quarenta toneladas, eram tirados das montanhas v isíveis ao
fundo, de onde eram descidos 1.500 metros à baixada, e t ransjJortados, at-ravés do Urubamba,
"Uma plataforma elástica é afixada através do centro da embarcação, sobressaindo nos ao cume do morro-templo de Ollantaitambo.
dois lados e estendendo-se sôbre a água a uma pequena distância para sotavento e uma
maior para barlavento, onde essa leve estrutura de madeira se curva para baixo, na ponta,
e se adapta a uma trave natatória paralela ao casco do barco. Na plataforma, fora do
corpo da embarcação, para barlavento, está o mastro. f.ste, amarrado com vários cabos, é
penso para a frente, com uma única vela triangular, atada em um lado na proa. A direção
é govern ada na pôpa, mediante um leme manual. A tripulação fica de pé ou deitada na
plataforma, junto à parte principal da embarcação, com vento fraco, e mais perto da trave
natatória com vento mais forte."

Isto mostra que os polinésios usaram o balanceiro para manter o equilí-


brio do barco. Tais barcos puderam, sem dúvida, velejar com qualquer vento,
por mais forte que fôsse, e alcançar velocidades fantásticas. E, inquestionà-
velmente, os marinheiros dêsses barcos eram capazes de seguir seu curso de
Taiti até o Havaí ou vice-versa, de través à direção do vento predominante.
Mas, era-lhes impossível bordejar com suas embarcações sôbre longas distân-
cias no sentido em que as entendemos. E seria exatamente isso o que teria
de ser feito, durante períodos infinitos e distâncias igualmente sem fim, para
viajar da Polinésia à América do Sul. Embarcações avulsas, sem dúvida, de
vez em quando conseguiram efetuar tais viagens. Mas que verdadeiras frotas,
tendo a bordo mulheres, crianças, alimentos e gado ousassem realizar a tra-
vessia dessas vastas distâncias que separam a América da Polinésia, é comple-
tamente imJ?ossível, sob condições de vento e correntes tais como existentes
em época histórica.
Como será que êsses esquecidos emigrantes sul-americanos alcançaram a
Polinésia? Chamisso assegurou: "Nenhum povo americano foi, em tempo al-
gum, um povo marítimo", e essa asserção repetida múltiplas v.êzes, foi rara-
192
À esquerda: Os campos d e 1·uínas, de Sillustani, na Península de Uma)'O, são dominados por
essas tórres de oito metros de altura, compostas de blocos enormes, cuidadosamente cortados.
À direita: A igreja do mosteiro de São Domingos, em Cusco eleva-se no fundam ento do
Templo do Sol. Não se sabe como os blocos de andesito fmderam 'ser cortados com tal perfeição.
mente posta em dúvida. Verdade é que os índios, pelo que sabemos, possuíam
apenas canoas primitivas ou balsas fluviais, que poderiam, no melhor dos ca-
sos, ser usadas também em navegação litorânea. Mas, além disso, tinham pelo
menos na Améril:a do Sul, grandes jangadas providas de velas, próprias para
navegação marítima. O capitão espanhol, Bartolomeu Ruiz, que estava li-
gado a uma das expedições prepara_tórias de Pizarro, transmitiu com mui~a
vida a lembrança do susto que sentlu quando, em 1525, observou um navio
a vela, de porte grande, na altura das costas do Equador. Viu-se forçado a
pensar, assim relata, que essas velas imensas pertencessem a um navio espa-
nhol e que algum outro "caballero" tivesse chegado aí antes dêle, à procura
do encantado Eldorado. Foi com alívio que depois percebeu não tratar-se
de caravela espanhola, mas "meramente" de uma· jangada índia de mar
aberto, uma embarcação de cêrca de 30 toneladas de deslocamento e uma
tripulação de uns 20 marujos.
Tal incidente, longamente narrado por Prescott em sua famosa história
sôbre a conquista do Peru por Pizarro, foi lido e relido centenas de milhares
de vêzes, sendo outras tantas vêzes passado por cima. Os milênios em que
nossos ancestrais europeus deram o tremendo passo da balsa para o barco
estão tão distantes, que nossos navegadores experimentados não podem sequer
imaginar como foi possível fazer navegar tal balsa em mar aberto. Além do
mais, julgavam que a tripulação de tal "coisa" seria lançada ao mar pela
primeira onda forte, e lhes parecia, por isso, completamente impossível que
tais jangadas pudessem ter sido levadas através de milhares de milhas do
A esquerda: Nas construções templares de Chichen-ltza, em lucatã, encontra-se esta estátua. Pacífico.
Será u ma : ·epresentação dos "deuses brancos"? o m eio: Centenas dessas cabeças, de respeitável A prova de que tal empreendimento podia ser realizado, mesmo por ter-
altura, exzstem na Ilha da Páscoa. A direita : Na Rússia e na China existem esses monumen- rícolas consumados, foi fornecida por um reduzido grupo de noruegueses que,
tos, exibindo rostos mongóis. R epresentam os seus autores. partindo de Callao, pôrto peruano próximo de Lima, numa jangada a vela
construída segundo protótipos índios, deixaram-se impelir pela Corrente de
Humboldt e os ventos alísios até a Polinésia. Tratava-se da célebre "Expedi-
ção Kon-Tiki", à qual tivemos oportunidade de nos referir acima . .tsses seis
noruegueses, autênticos descendentes daqueles vikings, dos quais tanto fala-
mos, mas sem nenhuma experiência marítima, apresentaram com sua expedi-
ção prova absolutamente irrefutável que distâncias tremendas podem ser
atravessadas com a mais primitiva das embarcações. Depois dessa experiência
ter _sido levada a um fim vitorioso, já não existe mais dúvida de que a Poli-
nés_Ia pode realmente ter sido povoada por gente vinda do oriente. É neces-
sáno ~dmitir, pelo menos, que as teorias de Heyerdahl adquiriram pêso bem
apreciável pelo fato de .êle e seus cinco colegas as terem reforçado com o risco
da pró{>ria vida. Para sermos justos, deveríamos agora pedir aos proponentes
da ~eona de q~e a América foi alcançada por habitantes da Oceama em algum
pe~wdo antenor a Colombo, que se pusessem por sua vez, ao mar em canoas,
a ÍlJ? de provar seu ponto de vista. Mas, pelo que sabemos, nunca se discutiu
projeto de tal natureza .
.~or o~tro lado, não prova a magnífica viagem de Heyerdahl que a Poli-
ne~Ia f01, realmente, povoada por gente vinda do leste, através do Pacífico.
P01s Heyerdahl e seus com{>anheiros sabiam, pelo menos, que deparariam
com_ terra no fim de sua viagem, conhecedores da verdadeira posição geo-
gráfica dos dois continentes. Além disso mantinham-se em contato constante
através do rádio com o mundo civilizado. Mas os supostos imigrantes bran-
cos_ dos :neados do primeiro milênio de nossa era não dispunham dêsses
mews. Nao possuíam rádio nem mapas oceânicos. Aparentemente aventaram-
se por regiões desconhecidas, homens, mulheres e crianças.
{' Será que podemos acreditar em tais teorias? Que os primeiros VIaJantes se
Izeram ao mar sem a menor noção de seu destino? Que se confiaram ao
195
13 bis Conquista Mundo
Esse brillquedo, de ban-o queimado, 1·ecentemente achado em escavações realizadas no .1\.féxico,
parece pmvar que os índios conheciam o pl'incijJio da roda.
- · tência de nenhum vestígio de desenvolvimen.to gradual das altas civilizações q~e
imenso mar do sul em suas jangadas simples, sem saber que, com alguma sorte, a nao eXIS deram do México ao Peru. Quanto maiS fundo cavam os arquéologos, :rruus
0
e vento favorável, seriam carregados para outro país? Eis coisas que não acon- ~~~r~ ~ui~~::. até ser atingido um ponto definido a que ~s .'l?tigas civilizações nltidamen·
tecem. Quando observarmos, em capítulo futuro, quão cautelosamente os a 1 uer base no meio de culturas pnm1t1vas.
islandeses prepararam seu caminho à Groenlândia, com que cuidado investi- te ~e :Sle;i~~~: ~: s~u:riueram no ponto em que entra a ~~rrente do Atlântico,. no mei.o
garam o novo país e as condições de vida, veremos as condições em que tais ·- des~rtas e selváticas da América Central e Mend10nal, e não nas ~egtões mau
das regtdoes
as on d e as c1v1
· .11z
• aço"es tanto nos tempos antigos como nos modernos, tlvcram con-
colonizações são realizadas. É difícil de acreditar que aquêles polinésios te- tempera , . ,
nham cruzado cegamente os mares, jogando com o destino. dições mais fáceis para o seu desenvolvimento.
Heyerdahl não supõe que os exilados brancos do Peru tenham utilizado
navios do tipo usado na Europa durante aquêle mesmo período, se bem que Pode isso soar muito a jornalismo. Mas o que Thor Heyerdahl aqui ~no~ou
essa teoria não seja, de maneira alguma, absurda, desde que aceitemos a idéia com mão leve em seu relato de viagem, destinado para o ~a~de pubhco,
· · } omem ta- 0 genial como o afamado amencamsta alemão
da existência de uma população peruana branca, anterior ao período de expnmm um 1 · há 1 d A

Colombo. Sua conjetura é que êles empregaram as jangadas de pau de balsa Walter Lehmann, na sua preleção inaugural em Mumque, a guns ece-
de antiga tradição entre os índios. E reforça essa hipótese com o fato nios, com as seguintes palavras:
de jangadas semelhantes serem usadas ainda nas ilhas orientais da Poli- "É interessante que a mesma figura, que concordantemente é descrita e representada como
nésia do grupo Mangareva, após sua descoberta pelos europeus. Buck dis- endo barbuda e vestida de hábito comprido, encontramos sob_ outro nome também na
cutiu êste problema também, expressando seu ponto de vista de que ~lômbia no Equador e no Peru. Nos últimos dois países. ela ve10 em tempos r~motos ~o
jangadas eram usadas em Mangareva exclusivamente para o transporte de Mar Pacífico para a costa. Essas tradições não são meros m1tos, mas remontam a mfluênClas
mercadorias entre as ilhas próximas, enquanto as viagens maiores eram feitas culturais determinadas, estranhas na América do Sul, que podem ser provadas pela Arqueo-
logia justamente na costa do Equador e do P_eru e que, ~e realmente apontam para alguma
em canoas duplas ou pirogas. Jangadas eram empregadas ainda, afirma êle, ex- outra parte, só podem indicar para a Aménca Central.
clusivamente por serem de confecção mais rápida, requerendo menos madeira
e um número menor de marujos especializados. fosse argumento poderia ter Como isso soa fantástico! Mas já soubemos aqui de ~apta coisa cu!iosa e
validez também para os nossos refugiados brancos, nas costas do Peru, desde não obstante bem testemunhada, que não podemos reJeitar sem mais nem
que provàvelmente dispunham de pouco tempo depois do ataque do cacique menos as hipóteses de Lehmann e Heyerdahl. N~turalmente, conforme_ a
Cari, e desde que tinham laboriosamente de transportar a madeira para as praxe da nossa ciência histórica, ~ada pode ser aceito como seguro que na.o
suas embarcações marítimas das florestas montanhosas dos Andes. esteja documentado, e esta seven~ade. decerto tem <_1 va~tagem de Impe~Ir A

Heyerdahl faz apenas rápida alusão a essa importante questão preliminar divagações ilimitadas. Para a Pré-Históna e a Proto-I;II~tóna, porém, esse pr.n~­
que sua expedição tinha de considerar. Achava êle que Kon-Tiki embarcou cípio de pesquisa da verdade nem sempre par~ce sufiCiente; ele deve ser reJei-
nas jangadas depois do ataque de Cari para escapar a seus inimigos, tendo tado sempre que leve a qualquer forma de ;stima exag~r~da do nos~o progr~s­
sido" impelido em direção ocidental pela Corrente de Humboldt, muito con- so técnico. Não resta dúvida que a técmca nos aux~lwu a reahzar mUita
tra a sua vontade. Mas parece que rumores, no tocante à presença de terra coisa que parecia impossível para os noss?S a~cestrais, por o.utro lado. es-
no oceano ocidental, eram correntes no Novo Mundo já em tempos muito quecemos com ela muito do que era cornqueiro par!l os an~Igos. Por Isso
antigos. A tradição quer que o inca Tupac Yupanqui, monarca do Peru e julgamos incrível que já em tempos remotos tenha s1do possivel .atravessar
do Equador, se fêz ao mar à procura dessas ilhas pouco antes da chegada dos largos mares. Contudo, é indiscutível que isto se deu e por consegumte talvez
espanhóis. E parece que encontrou as Ilhas Galápagos. De qualquer maneira, seja concebível que já na Antiguidade homens brancos tenham ~t~avessado
conseguiu voltar para sua pátria cêrca de nove meses após. Por isso que nos o Atlântico. Com certeza, as numerosas testemunhas par~ a atividade de
sentimos dispostos a acreditar que Viracocha sabia, ou pelo menos esperava, homens desconhecidos de alta cultura e provàvelmente ?-e C_?r bra~ca, e':con-
chegar a alguma terra situada ao oeste. trados no solo do Novo Mundo, encontrariam exphcaçao sat1sfatóna se
Heyerdahl afirma em seu livro que sua jangada percorreu entre sessenta se atribuísse a essa hipótese algum;:t verossimilidade. E~ todo caso, conv~m
e oitenta milhas marítimas em 24 horas - uma velocidade de três nós. Não não esquecer que os numerosos rumores correntes na antiga .Europa, a respe~to
é crível que navios primitivos tivessem podido velejar para o leste contra a de uma grande terra a oeste do oceano e semp!e_ novas viagens de pesqUisa
fôrça de tais correntes. E por isso rejeita Heyerdahl a idéia de a América do para lá, tiveram notável aditamento pela expediçao de Thor Heyerdahl.
Sul ter sido povoada do oeste por via marítima, como impossível:
"Quando de novo saltávamos para bordo da jangada, muitas vêzes nos sentávamos em
circulo, rodeando a lâmpada de parafina sob a coberta de bambu e conversávamos sôbre
os navegadores do Peru que tinham tido as mesmas experiências 1.500 anos antes de nós.( ...)
Pudemos segui-los na mitologia e na arquitetura, desde o México até a América Central e,
penetrando na área nordeste da América do Sul, até o Peru (...) Seriam os mestres errantes
homens de uma primitiva raça civilizada de além do Atlântico, que em tempos passados, 4
da mesma maneira simples, tinham vindo com a corrente oceânica ocidental e os ventos
alísios das Ilhas Canárias até o Gôlfo do México? Nós já não acreditávamos no mar como A única coisa que parece certa porém, é que bascos e celtas, em perío~os
fator completamente isolante. Muitos investigadores sustentaram com razões de pêso que muito distantes de nós, se fizeram ao mar, atravessando C? noroeste do Atlan-
as grandes civilizações indígenas, dos astecas do México aos incas do Peru, foram inspiradas
por súbitos impulsos vindos de além-mar a leste, enquanto os indígenas da América são
tico, e alcançando assim a vizinhança imediata da Aménca. Entre os bascos,
em geral povos asiáticos, caçadôres e pescadores, que, vindos da Sibéria, no decurso de 20.000 muitas tradições orais atestam ainda hoje a descobe~ta, há sécul~s passado~,
anos ou mais, foram infiltrar-se :·na América. É, por certo, circunstância digna de nota do "País do Bacalhau", isto é, a Terra Nova, excepciOnalmente nca em pei-
194 195
xes; não existindo, porém, documentos escritos, já que os arqu~vos das ci-
dades bascas foram destruídos total e completamente. Eugen Geloch provou,
com certeza quase absoluta, que pescadores gascões conhecia~ bem as águas
da América muito antes de Colombo. Portanto, não é especialmente espan-
toso 9ue muitas palavras galo-celtas fôssem encontradas nas línguas dos índios
amencanos, e existe mesmo quem afiance ser possível manter uma conversa-
ção com certas tribos índias, usando o ga~lico, ~ind~ hoje_falado na Irlanda e
certas regiões de Gales: Paul Gaffarel cita ~.ais afirmaçoes er_n s_eu panfleto
"Os irlandeses na Aménca antes de Colombo . Referem-se a distntos de Ken-
tucky, Virgínia e Carolina, isto é, a tais distritos que já foram citados com~
as regiões principais dos "tuscarora" e outros índios "brancos". De fato, foi
expressamente ressaltado que os habitantes celtas, aborígines da C~rolina,
preservaram viva memória do herói de sua tribo Madoc. Referência par- 39. Inscrição fenícia autêntica, do século IX
ticular é feita aos "tuscarora" nesse particular. Um geógrafo inglês de nome antes de nossa era.
Owen conta em sua "Collection of Breton Antiquities", editada em Londres
em 1877, a; aventuras de um certo Jonas Morgan, feito prisio?eiro _pelos Sagrados entre os Maias e os Quíchuas há 11.500 anos" (1886): "A língua dos
"tuscarora" na Virgínia, no ano de 1685. Como soubesse falar gaéhco, nao l_he maias é, cêrca de um têrço, grego puríssimo") é desejável que tenhamos ~em­
tiraram o escalpo, mas sim lhe devolveram a liberda~e, _tratando-o m~Ito pre em mente as palavras com as quais Alexa~der von Humboldt ca.stigc;m
amigàvelmente. Durante quatro meses aceitou a hospitalidade dos índiOs, êsses disparates: "A estrutl!ra de línguas ~m.encanas parece extraordmàna-
sendo capaz de conversar com êles sem muita dificuldade. mente incomum para aquele_s que falam I~ho~as e_ur~peus modernos. Por
isso é que semelhanças casuais podem ser tao Il~sóna~ : , ,
Apesar disso, porém, despertou a chamada Ins~nça~ do Paraib~ , no
u'~I ,.. o 1~
17Á1 o~"" I (I~ ~ ~ bt Brasil (1874) interêsse imenso em to~o o mund~ oentíhco, 9~e havia, há
muito tempo, sobrestimado as capaCidades n~utlcas dos femoos. Durante
vinte anos foi considerada genuína, e considerada uma pro~a de que
AI A l" ~ 17)/ t/7) A&-1: Mb /~(7) 1 jÁ/ t,; x~~v O(TJ alguns navegantes fenícios haviam realmente chegado à Aménca do Sul,
desviados _pelo vento. . . _ , . .
Á-to~ fo7) ~.-14 Ex/ M~b 1 ,yl4 ~;yE ~M "'~A O~J.~ Existência ainda mais prolongada fruiu uma suposta I~Sc~Içao femoa _anti-
ga esculpida num rochedo descoberto em 1899, _nas proximidades do_ Rw de
Janeiro, pelo Prof. Ladislaus Netto, conh~cido diretor ~o M~seu. ~aciOnai do
J7 E-t.. ~h h"' ijb 6t'l/P, m7A ~ bb ~~b,j~ ~)+, 4~ (b t Brasil, e a respeito da qual saiu um artigo numa revista oentihca de Geo-
grafia da Africa do Norte. Dizia a inscrição:

jtj)~ o...\J ]~~\,~~Á ~L)1 1~o oh» 4~/o"'b/ "Estamos aqui, filhos do país de Canaã, na Síria. Persegue-nos o ~nfortúnio. É terrível
ficar-se detido como nós. Certamente não teremos muito tempo para v1ver. O desespêro nos
abate - e que desespêrol Em breve veremos o fim do nono, não, do décimo ano de nossa
') o7t ~~ /b l'l ~ //n,o/J on,t/ 7 ~bM Á]Á (y /fb'7 f permanência aqui. (... ) O calor é insuportável. A pouca água pot~vel não é b?a. (... ) Que
país maldito! Febres nos consomem e julgamos estar num verdadeiro forno. Nao nos resta
consôlo além de Baal..."
7~ >Ji)f ~1-\1 ~ ~/yb _j tbM 1 ~m I(~\, ~ o'r<· f7 k Essa inscrição, publicada em revista pouco conhecida, parece ter sido igno-
rada por orientalistas europeus durante muito tempo, de tal mod? que o
( M~X (~!.(o/ Á ~b~Á \.~~/(h~ l~ ):Ü ~ ~'~1 ,( geógrafo alemão, Richard Hennig, pôde ventilar com interêsse, amda· em
1940, .êsse mesmo assunto. :r.le punha a inscrição em muita dúv~da, mas reco-
38. Inscrição pretensamente fenícia, descoberta nas proximidades do nhece-se que nada é mais difícil que investigar tais línguas antigas e, de um
Rio de Janeiro. modo geral, pouco conhecidas. O conflito em tôrno dos primeiros achados da
e~crita cuneiforme dos persas, travado n? século passado~ é um _exe~~lo ti-
PI~o. Estudos feitos, supostamente por filólogos, a respeito da mscnçao _do
É conveniente que mantenh~mos u~~ atitud~ c~ítica ao ouvirmos ~.ais re- Rw de Janeiro, fizeram com que se acreditasse seus autores terem sido
latos, especialmente porque raizes ~emoas e egipoas foram tambér_n desco- cartagineses, que haviam fugido depois da destruição de sua cidade em 146
bertas" em línguas índias. Condamme assegurou em 1746 que havia notado '!-· C._ e sido levados pelas tempestades a essas paragens. O que não pode ser
algumas palavras hebraicas na língua dos inca_s. O inglês ponelly "encontrou" mteiramente rejeitado em vista do fato de que cartagineses chegaram aos
antigos radicais armênios em nomes de localidades mexicanas, enquanto seu Açôres uns trezentos anos antes daquela data.
conterrâneo Hyde Clark . "revelou" concordâ.nci~s _Iing~ís~i~as entre línguas Recentemente o eni~a parece ter sido solucionado. Um estudo do fac-
africanas e mexicanas. Dmnte de tal exuberanoa Imagmativa (o norte-ame- símile da suposta inscnção fenícia, feito por um orientalista _alem~o, provou
ricano Augustus Le Plongeon chegou a declarar em seu livro "Mistérios tratar-se de falsificação. O Ministério da Educação do Brasil, CUJO parecer
1.96 ' 197
en~rgia. até ~eu último suspiro .. Deix~)U-nos uma obra em dois volumes res
• autor dêsle livro pôde obter, confirma a supos1çao do orientalista alemão. pe1~áv~1s, aprese~tando duas m1~ ~ Oitocentas inscrições históricas antigas, ,
Isto faz com que, presumivelmente, o mistério tenha sido solucionado, redu- mawna _das qua1s - em sua op1mão - de <?rigem grega e fenícia.
zindo-o, como tantos outros "enigmas" sul-americanos, a um êrro ou uma Sua c~dade natal,. Manaus,- eleg<:;u-o Pres1dente do· Instituto Histórico c
falsificação - se bem que seja extremamente difícil, no estado atual de nosso ~eog;~fico _local .e amda h?me.~ageia a sua memória. Uma parte do mund<
conhecimento do fenício, falsificar um texto de tal modo que possa ser-lhe c1ent1fi~o n-se dele, como Já nu de Don Marcellino de Sautuola, diante de
atribuído algum sentido. suas. pmturas em cayernas espanholas, como riu do negociante Heinrid
A despeito das dúvidas de estudiosos, no que concerne às pretensas inscri- S~hhemann, guando este pe_ nsou te~, esca~ado Tróia. No Rio de Janeiro nã<
ções fenícias na América do Sul, foi descoberta outra inscrição suposta- nem. Mas a~umam, horronzados: Infelizmente se trata aqui de um aut 01
mente cuneiforme, de origem fenícia, não muito longe da bela capital brasi- que desperd1~ou o seu talento, representando errôneamente as coisas maü
leira, o Rio de Janeiro. A quase novecentos metros de altura, numa rocha Simples, e aSSim p;etendeu ates,tar t~orias absurda~ e ilógicas ... "
que se levanta verticalmente, na pequena localidade de "Pedra da Gávea", . N~t~ralmente fez o au.tor deste l_1vro também mdagações, concernentes ~
existem traços que se assemelham a uma inscrição e são visíveis a grande dis- ~nsc!1çao da Gávea ~o Rw d~ Janeiro: ~?mo era de esperar-se, adotaram o!
tância. Essa "inscrição' foi, durante muito tempo, atribuída a algum desco- ms~1tutos arqueológ1cos braslle1ros ofioa1s uma atitude completamente ne
nhecido povo americano pré-histórico, até que um exame mais detalhado re- gauv~ para com essa "inscrição" .. o Ministério de Educação e Saúde declarou
velou aparentemente que não era índio, mas sim fenício. Afirmam que con- e~fàucame~te que o ~xame reahzado por geólogos provou não se tratar se-
tém as seguintes palavras : "Tiro, Fenícia, Badezir, Primogênito de Jethbaal..." n:o do efe1to de ~r?sao de águas, que apenas se assemelhava a uma inseri
Essa interpretação sendo correta, a inscrição de Pedra da Gávea deve ter çao.. o parecer ofioal da autoridade competente brasileira conclui com a!
uma idade de dois mil e oitocentos anos, aproximadamente. Badezir governou segumtes palavras: '
a Fenícia de 855 até 850 a. C., e seu pai, Ittobaal ou Jethbaal, de 887 até "A Arqueologi~ ~rasileira nega a e'5istência de inscrições fenícias em qual
856 a. C. quer parte de;> pa1s . ~sse parecer é tao absolutamente final, que nada maü
O estudioso que fêz essa descoberta era um homem muito fora do comum. poderemos d1zer, a nao ser que com o tempo se tornem conhecidos novo•
Seu nome era Bernardo da Silva Ramos, sua cidade natal Manaus, e primiti- fuWL •
vamente era seringueir.o nas matas virgens do Brasil. Mais trabalhador e h Ninguém po~e prever os acontecimentos. Mas o feito corajoso de um
inteligente que seus companheiros, e provàvelmente também com mais sorte ornem, o J?é~1co e ocea~ógrafo Dr. Louis Alain Bombard, que cruzou 0
q_ue aquêles, cedo conseguiu obter independência e adquirir fortuna. De se- Oceano Atlant1co em frágil balsa de borracha, mostra o problema sob lm
nnguelro tornou-se industrial da borracha - e escolheu para seu divertimen- nova. ~aturalme~te o D~. Bombard, que partiu de Casablanca na Africa
to um passatempo, certamente raro nas selvas amazônicas: tornou-se um lete?tnonal em fms de agosto de 1952, alcançando Bridgetown, em Barbados,
numismata. A fim de poder dedicar-se inteiramente à Numismática, vendeu nt1lhas, na véspera de Natal do mesmo ano, não pretendia de maneira al·
sua emprêsa, retirando-se inteiramente da indústria da borracha. guma rrov~r te~ a armad~. púnica, da qual acima falamos, alcançado
Isso foi antes da queda da borracha, no início dêste século. Bernardo da ~ Aménca 1m~ehda pelo allSlo no~deste. em_ sua. f~ga diante dos romanos.
Silva Ramos conservou sua fortuna, dirigiu-se à Europa e publicou, em Roma, reocupava-se. ele em completar as mvest1gaçoes, m1c1adas pelo famoso etnó-
uma obra em três volumes sôbre a sua coleção de moedas. Depois empreendeu 1
bo,go nor~egues Thor Heyerdahl, durante sua expedição Kon-Tiki que tam-
uma viagem de estudos através do Egito, da Síria e da Grécia, que se esten- em hav1am merecido a atenção de outros cientistas. Preocupava-s~ em saber
deu por alguns anos até que, já cinqüentenário, voltou novamente à Ama- se u~ ~áufrago de constituição normal seria capaz de viver durante sema·
zônia. ~~s dnteàras ,apc:nas de plancto e peixes, e se era possível satisfazer as neces·
Apenas agora iniciou a verdadeira obra de sua vida. H á muito era sabido SI .a es e 11qmdos do corpo humano, com o sumo obtido ao espremer um
que de tempos em tempos blocos de J?edra eram encontrados nas matas vir- pe1xe cru.
gens no ~mazonas, que pareciam prov1dos de alguma inscrição. Mas ninguém e A c~~c~~são favorável de sua emprêsa constituiu a resposta definitiva para
lhes hav1a prestado, até então, a mínima atenção. Silva Ramos foi à procura ~~s d UVl as. J?ent!o do~ propósitos de nossa narrativa, ela provou também
do~ mesmos, e parecia a .êle, que já havia visto as inscrições do Egito e da qas eve ter s1do. 1~dub1tàvelmente possível, mesmo em épocas muito anti-
Ásia Menor, que os ·blocos estavam cobertos com caracteres fenícios. Não ~e' tcruza~ ~ Atlant1co. O que dá pêso mais estável às hipóteses do cruza·
conhecia o fenício, porém. Assim sendo, copiou cuidadosamente os sinais da~ ? ?c:amc~, anterior a Colombo, a começar das novas que Ulisses recebeu
notáveis, que pensou ter descoberto, e voltou para Manaus, através de e t elt~celr~ C1rce do País dos Mortos de Perséfone, situado além do oceano
jângal e pantanal, apresentando seus desenhos ao sábio rabino da antiga . ert~f.man o com as obras de Bernardo da Silva Ramos alvo das risota~
comunidade judaica de Manaus. E, de fato, o estudioso israelita foi capaz de Cl en 1 1cas. '
Por e~qu anto teremos de contentar-nos com essa informações. Não queria-
1
decifrar os complicados riscos. Tais inscrições, concluiu, provinham de uma
antiga língua semítica, que não poderia ser senão o fenício. m
al os om1t1- as '. porque
. d evemos ter em mente que nao- estamos tratando de
A idade média que alguém, que tivesse trabalhado como seringueiro no co~n~ ~ 1atónos Isolados, dos quais ~eria possível inferir contatos antigos
inferno do jângal amazônico, pudesse esperar atingir, era muito limitada. ma õe ovo Mundo,. m~s de um ~OnJunto volumoso, constituído de infor-
Quem quer que passasse os cinqüenta anos de idade deveria considerar-se co ç s das font:s ma1s diversas. É JUStamente a multiplicidade dêsses relatos
especialmente feliz. Mas alguém que, naquela idade, ainda tivesse a energia 1
da~J~amen~e. mdependentes entre si e ligados às esferas mais contrárias
de caçar pedras em plena selva, deveria realmente ser anormal. :esse homem que b e ~tlvldades humanas, que fazem com que consideremos provável
notável pesquisou, fotografou e desenhou inscrições amazônicas, até o fim de se ase1em em alguns fatos e acontecimentos reais.
sua vida, causado por uma febre ma-ligna em 1931 , aos 73 anos - cheio de
199
191
tste é, de maneira geral, o ponto de vista adotado também pelos estudiosos
que, com algumas exceções, estão convencidos da extrema probabilidade
dêsses liames antigos entre a Europa e a América.
Além do mais, não são apenas geógrafos que defendem essa opinião. Muitos
historiadores também concordam, principalmente no que diz respeito aos ir-
landeses. Assim, por exemplo, o alemão Julius Pokorny, um dos melhores
conhecedores da história antiga da Irlanda, afirmou expressamente que PARTE VII
a descoberta da América por marujos irlandeses lhe parece inteiramen-
te possível. Outro conhecido pesqmsador, o escocês W. F. Skeene, ex-
r,ressou-se no mesmo sentido. DIZ êie das narrativas da lenda de Brandans:
'Elas baseiam-se em fatos fundamentais históricos." Também o historiador
A PEDRA RúNICA DE KENSINGTON E O
irlandês E. O'Curry, mantém ·opinião semelhante, avaliando as lendas marí-
timas de seu povô nos têrmos seguintes: "Essas histórias muito antigas são,
MISTÉRIO DOS VIKINGS DA GROENLÂNDIA
naturalmente, inexatas e entremeadas de elementos poéticos e românticos.
Mas assim mesmo não pode haver dúvida que se baseiam em fatos verídicos.
É extremamente provável que seriam de valor imenso se as conhecêssemos
em sua forma original".
Citações semelhantes poderiam ser feitas das obras de inúmeros outros es-
tudiosos do mesmo problema. Por isso é evidente que não devemos desprezar
tôdas essas tradições, aparentemente fantásticas, como se fôssem meramente
lendas. Essas considerações dão certo significado também à saga da Hvitra- A descoberta de Olaf Ohman - Curioso instru-
mannalândia. foste problema, naturalmente não está ainda resolvido, e a
solução não parece iminente. Pois, embora a descoberta da América por mento de tabelião - "Fraude grosseira", afirma o
brancos, antes dos escandinavos, pareça bastante provável, não pode ainda Prof. George O. Curme - Quem foi Hjalmar R.
ser provada definitivamente. A Hvitramannalândia é, por isso mesmo, mais Holand? - Vikings em Minnesota por volta de
um dêsses enigmas geográficos e históricos, que tornam a Geografia antiga
tema tão fascinante. 1362 - Sabem os falsificadores fazer mágicas tam-
bém? - Os "haellristningar" e os "koekkenmoe-
dingar" - Tráfego marítimo da Europa Setentrio-
nal durante a Idade da Pedra - A bússola e os
vikings- Romanos na Islândia- Manual de nave-
gação viking para navegadores da Islândia - A
saga do "povo sem espaço" e Haraldo dos cabe-
los louros - Groenlândia, o beco sem saída - De
como Egede se tornou o apóstolo dos esquimós -
Onde ficava Estribyggd? - Arqueólogos dinamar-
queses nos cemitérios dos vikings da Groenlândia
- Modas medievais européias na Groenlândia -
Erico, o Ruivo- A "Terra Verde"- Do cardápio
dos vikings da Groenlândia -Mudanças climaté-
ricas na Europa Setentrional? - Artigos de expor-
tação groenlandeses - Capital e navegação comer-
cial na Noruega medieval- A Liga Hanseática no
t1·á{ego da Groenlândia - O Vaticano e o Bispo da
Groenlândia - Desaparecimento enigmático da
Colônia Ocidental - Os "skrcelings" - Esquimós
brancos - Morre de fome um povo inteiro - Em
1540 desaparece o último viking da Groenlândia.
200
1

Lançando faíscas em redor, ressaltou a picareta do solo. Enfurecido, o ho-


mem enxugou o suor de sua fronte. Quentíssimo êsse mês de agôsto de 1898!
Era alguma pedra que impedia seu trabalho; isso viria a ser um trabalho dos
diabos! Mas êle tinha de derrubar essa árvore e destocá-la completamente.
Uma pena era uma árvore muito bonita. Forte e reta, contando entre sessenta
e setenta anos de idade. Mas nada poderia fazer, se bem que choupos não
dessem tanta sombra quanto outras árvores. Era aqui que desejava estabele-
cer sua horta, e ela necessitaria de sol.
Tornou à picareta! E novamente as faíscas! Deveria ser um verdadeiro
bloco de pedra. Tomou então da enxada e principiou a remover a terra, a
fim de verificar o verdadeiro tamanho da pedra. Depois trabalhou e traba-
lhou, apesar do sol inclemente, até conseguir tirá-la por completo. Diante
dêle estava uma pedra retangular, de cêrca de 80 centímetros de comprimen-
to, 40 de largura e 15 em de espessura. Por quanto tempo não teria estado
lá embaixo! À sua esquerda e direita, era envolvida pelas raízes do choupo,
completamente deformadas pelo pêso da pedra. Essa já devia ter estado aí
quando a semente da árvore penetrou na terra.
No calor abrasador dessa tarde de agôsto não demorou muito até que a
areia, que envolvia o bloco, secasse, caindo e expondo a pedra, revelando o
que se assemelhava a uma escrita, escrita entalhada na pedra ... meu Deus,
eram verdadeiras runas!
Nosso homem ficou realmente admirado. Pois tinha visto runas em criança,
há muitos e muitos anos, antes que cruzasse o oceano, comprando esta fazenda
em Minnesota. Isto foi na terra dos seus antepassados, Helsingeland, na Sué-
cia, onde nasceu e onde foi à escola. Seu professor lhe havia mostrado certa
vez uma pedra rúnica em um museu, contando histórias sôbre os antigos que
cortavam runas em troncos de faia, e que haviam colocado pedras com ins-
crições rúnicas na Escandinávia, no grande país russo, na Dinamarca e mais
para o sul, na Alemanha, como sinal de sua presença.
Profundo sentimento de nostalgia invadiu o homem. Runas! Teria de
mostrá-las ao seu filho, que nada sabia da velha pátria, no outro lado do
oceano. E ainda mais aos vizinhos. Havia muitos suecos em sua localidade.
tles todos teriam visto runas quando crianças, na bela Escandinávia. Como
êles ficariam admirados! Também era muita coisa, que estava escrita n essa
ped~a. Vejamos: uma, duas, três, quatro ... nove linhas; e outras tr.ês linhas,
escntas em sentido vertical, ao longo de uma das faces laterais.
Olaf Ohman chamou seu filho. Mandou o empregado aos vizinhos. Como
é que essas runas tinham parado aqui, no centro dos Estados Unidos, a 1.500
qullô~etros do Oceano Atlântico, aqui em Salem, próximo de Kensington,
em Mmnesota, a oeste dos Grandes Lagos?

203
f "'~ftR 4~:ff : HRR'VH=C~:
2 I aotL\...olt 1.1 ......... .._ .... c. .... ,:....
:H~X"'tr~t r'X R~: f'f\4:
O advogado e tabelião R. J. Rasmusson morava, desde há alguns anos, no ol'l>"':!dH~'-"'1' ~..._u
distrito de Douglas, Estado de Minnesota. Cuidava das guestões legais dos
't'IHXH : H':'t'~ 11 t:'fl
muitos imigrantes escandinavos que moravam nas proxtmidades. Era um ..,·...... tA."-t 0~ WL at .._,,
homem correto e próspero. .
Certo dia em 1909, apareceram três homens em seu escritório, e R. J. Ras- *>O t t~ 'i t R:'fH;f: i HXI\:H•
musson registrou o mais estranho caso de sua vida de advogado e tabelião. e...c..~.t t~d ...... "''r l. ~.ftJ""'" ......
Tratava-se de Olaf Ohman, fazendeiro, habitante da seção l4 de Salem (Min- ~X 'i ~ : 1\1 ~ t : i- ~ R 1\: Y' ~ 4:HH :~f H:
nesota), 54 anos de idade, casado, e desde 1881 nos Estados Unidos. Seu com- tt~-í& '\.~).t_ .,.,_o'\,\. ~'\,D ~(.kV &tL"'-
panheiro era, segundo tudo indicava, também fazendeiro. Seu nome, Nils 'fl : 'f)(l\:~~: 1'-'liH=H = ~~l- : X& i1f\
Flaten, vizinho de Olaf Ohman e, como êste, imigrante sueco. Ambos dese- w·, w o..\. o9t \i. dl~ '"' ~ ... ~k . "-I-~'"
javam registrar uma declaração juramentada. O terceiro do grupo era muito
mais novo. Chama-se Hjalmar R. Holand, dando uma impressão de homem 't'l ~4't' : +f'f'.f'X"f. : Cf' : 't'Xi R(j) H
W~ \o"'" t..c.~ ~C..''- 10 '""A.""' I\. o t' L
da cidade, e com certeza não era fazendeiro. Também pouco tinha a ver
com tôda a história, tendo aparecido no escritório de Rasmusson apenas X., Lt4H\j : ~H AVM :
como companheiro dos outros dois. u.& t.e.~ u'á ~c.l> AVM
Pedindo aos outros dois que esperassem na sala contígua, R. J. Rasmusson 1'-'RXft'-tt:Xf: lfN:
ouviu a história de Ohman, e depois de êste ter concluído, resumiu tudo que ,..._c;.c.t) .. "'~ i.U'a
lhe foi narrado, sendo que em seguida redigiu o texto que foi juramentado lXI\-9:'t'Xi-~·'ft : >fX't't j:)t;j . 1,t :
por Ohman. Eis a declaração que Rasmusson redigiu: f,_,_'- lO .,.,.,. " ' WL t_.._.., ..-t 4. 't 6 ~
"Eu, Olaf Ohman, da cidade de Salem, Douglas County, Minnesota, faço a seguinte de-
claração juramentada:
Y. C11
Q.. \- t
fl.!'f'~ lU:~~
·, ,_ ft i. )- I ~ ~ "'1 ~. .;_ ~
w 1 -\. .c. b
I C· n: ~X'H : /\1.~ I >L
Tenho 54 anos de idade, nasci em Helsingeland, na Suécia, de onde emigrei em 1881
para a América. Desde 1891 estou em minha fazenda, seção 14 da região de Salem. No jll/U't':HH:~*··X*I\: rHf:
mês de agôsto de 1898, acompanhado de meu filho Eduardo, estava empenhado em revolver ~-\.Z..-... ~c. ... o iif.. A.'-.'- J31.Z.
a terra de uma elevação cercada de pântanos na extremidade sudeste de minha propriedade,
a cêrca de quinhentos pés ao oeste da residência de meu vizinho, Nils Flaten, e em plena 41. A inscrição da pedra rúnica de Kens-
vista da mesma. Ao derrubar um choupo, que no pé possuía um diâmetro de dez polegadas, ington (segundo Holand).
descobri uma pedra plana, coberta de sinais de escrita para mim incompreensível. A pedra
ficava logo abaixo da terra, numa posição um pouco inclinada, com um dos lados quase
aparecendo na superfície. As duas raízes mais fortes da árvore circundavam a pedra de da pedra, demonstrou a inscrição um estado de decomposição, que me parecia igual àquele
tal maneira a podermos deduzir que lá estava pelo menos há tanto tempo quanto a árvore. das partes não tocadas da pedra. Chamei a atenção de meu vizinho Nils Flaten sôbre essa
Uma delas penetrava diretamente na terra, sendo achatada no lado em que estava em descoberta, e êle visitou-me ainda na mesma tarde para ver a pedra e o tôco de árvore sob
contato com a pedra. A outra estendia-se, em forma mais ou menos horizontal sôbre a pedra, o qual a pedra fôra descoberta.
fazendo na sua extremidade uma volta para baixo em ârigulo reto. Dessa mudança de dire- Conservei a pedra durante alguns dias, e depois a entreguei ao Banco de Kensington,
ção em diante estava a raiz achatada, ria parte que dava para a pedra. Essa raiz possuía onde permaneceu durante alguns meses para que pudesse ser vista por quantos tivesse~
um diâmetro de cêrca de 3 polegadas. Após tirada a terra, que estivera prêsa à superfície interêsse. Foi enviada para estudos a Chicago, e voltou no mesmo estado pouco depOis.
Desde então a conservei na minha fazenda, até agôsto de 1907, quando a mostrei a H. R.
Holand. A pedra tinha um comprimento de cêrca de 30 polegadas, largura de 16 polegadas
e ~pêssura de 7 polegadas, e reconheço a reprodução na página 16 da História dos ~tabe­
!ea~~~:e~tos Noruegueses na América por H. R. Holand, como sendo uma fotografia da
mscnçao.
Assinado: Olaf Ohman."

Essa declaração é confirmada por escrito por duas testemunhas, e depois


re~onhece Rasmusson a assinatura. Ohman é mandado à sala de espera, e
Nlls Flaten é chamado. Sua declaração corresponde àquela de Ohman. Ras-
musson faz com que também êle preste juramento, assine a declaração e re-
conhece também a sua firma.
Um ponto duvidoso torna-se imediatamente evidente nessa história tão
curiosa, e naturalmente faz Rasmusson perguntas a êsse respeito:
O bloco com a inscrição foi encontrado em 1898. Por que é que Olaf
40. A pos1çao da pedra rumca de Kens- Ohman apenas agora, onze anos depois, manifesta o desejo de documentar o
ington, entre as raízes da árvore (segundo achado e suas circunstâncias de maneira oficial? E outra coisa: Como é que
Hjalmar R. Holand).
205
20-1
Ohman se lembra ainda tão bem da posição da velha pedra entre as raízes
do choupo? Pois que, se a pedra de fato ocupara a posição descrita por a temer a perda total de sua reputação e seu crédito moral, se recomeçasse
Ohman, ela deveria ser velha, muito velha mesmo. Quando, por volta de tudo novamente? Ou não era nenhum falsificador? Teria razão, apesar de
1830, a árvore de Ohman começou a crescer, não existia no Douglas County, tudo?
em tôrno de Salem, de Kensington, senão terra virgem, desprovida de sêres :t aqui que aparece Hjalmar R. Holand, o jovem companheiro de Ohman.
humanos, nunca penetrada por brancos. Não havia brancos de espécie al- Expôs gue o choupo do fazendeiro sueco, de acôrdo com dados' do Ministério
guma, e muito menos brancos que gravassem runas em pedaços de pedra. da Agricultura dos EE. UU., teria sem dúvida uma idade de 60 a 70 anos. A
Era correta a declaração de Ohman? Seu filho, Edward Ohman havia feito pedra de Kensington estivera por isso no solo pelo menos desde o segundo
declaração idêntica, assim como Nils Flaten. Mas quem era êsse terceiro do decênio do século dezenove, uma época em que a oeste dos Grandes Lagos
grupo, que parecia ser um habitante da cidade? O que tinha a ver com a não existia estabelecimento branco algum. Foi em 1858 que o primeiro branco
história tôda? chegou à região, e o primeiro escandinavo em 1867.
R. J. Rasmusson pediu que os três fôssem juntos a seu escritório. E agora Em 1907, nove anos depois da descoberta, Holand, americano mas filho
sucedeu o que segue: de suecos, chegou casualmente à região mencionada. Ouvira falar do achado
Tanto Obman quanto seus vizinhos tinham imediatamente externado a de Ohman, e a possibilidade de êste ser autêntico atormentava-o incessante-
opinião, desde o momento em que a pedra foi encontrada, de que a inscrição mente. Examinou a pedra que apresenta a inscrição rúnica mais extensa co-
não poderia ser senão rúnica, assim como haviam visto na Suécia há muitos nhecid~,. e a decif~ou, ~o!icitando a qhman, já que se estava convencendo da
anos passados. Porém nenhum dêles sabia ler o rúnico. De tal modo que autenticidade da mscnçao, que confirmasse sua descoberta por juramento e
fizeram uma cópia dos sinais cortados na pedra - um fragmento dessa cópia declaração oficial. E, disse, o texto da inscrição seria:
foi conservado pela Associação Histórica de Minnesota -, enviando-a para "(Nós estamos) 8 gôdos (suecos) e 22 noruegueses em
O. J. Breda, professor de línguas escandinavas, na Universidade de Minneso- viagem de descobrimento da
ta, em Mineápolis. f.ste traduziu aquelas palavras que conseguiu decifrar, Vinlândia para o oeste. Nós
e cujo teor era como segue: acampamos junto a dois escolhos, a algumas
jornadas ao norte desta pedra.
" ...Suécia e ... noruegueses numa viagem de descobrimento de Vinlãndia Ocidental... acam- Estivemos (distante) e pescamos durante um dia. Após
pamos ... a algumas jornadas a norte desta pedra. Nós ... pescamos um dia. Quando retorna- retornar, achamos dez (dos nossos) companheiros vermelhos
mos encontramos... homens rubros de sangue e mortos. A. V. M. salve-nos de... temos .. de sangue e mortos. A(ve) V(irgo) M(aria),
home~s no mar, para vigiar sôbre nossas naves ... jornadas desta ilha. Ano .. ." Resguarda (-nos) dos males

Acrescentou Breda a essa tradução parcial, numa entrevista concedida . Ao Jado dessas nove linhas numa das faces largas da pedra encontra-se,
pouco depois, que não acreditava na autenticidade da inscrição. Primeiramen- d!sse ~le? numa das faces laterais de 6 polegadas de largura, a seguinte inscri-
çao rumca de três linhas.
te porque quase nunca suecos e noruegueses tinham partido juntos em uma
viagem de exploração ou pilhagem, e em segundo lugar por na inscrição não "(Nós) temos 10 de nossos companheiros no mar,
se tratar de idioma nórdico antigo, mas de uma mistura de sueco, norueguês para cuidar de nossas naves,
e · inglês, coisa impossível em inícios da Idade Média. a 14 jornadas dessa ilha. Ano 1362."
Breda era, por volta de 1900, uma autoridade em Minnesota. Uma vez que
a sua avaliação negativa da pedra de Kensington parecesse convincente, pas- Com _es~a. transcrição que êle, Hjalmar Holand, publicara em janeiro de
sou esta a ser considerada uma falsificação, feita por um dos imigrantes es- 1908, remiciara-se :=t discussão científica sôbre a pedra de Kensington. Por isso
candinavos, muito numerosos em Minnesota. Também o professor de As- se tornou necessáno documentar, segundo êle, as circunstâncias do encontro.
suntos Escandinavos da "Northwestern University", em Evanston, Prof.
George O . Curme, classificou a pedra rúnica de Kensington de "clumsy
fraud", de fraude grosseira. Assim havia sido encerrada a discussão do achado
de Ohman, que d e início, naturalmente, fôra alvo de animadas controvér-
sias. Seu descobridor era representado como "mentiroso de má fé", e, muito
irado, tomou Ohman da pedra, colocando-a, à guisa de limiar, na porta de 3
seu celeiro.
Foi isto o que Rasmusson soube pela conversa que teve com seus dois d Comêço de ve_rão de 1948. Choveu bastante êsse ano na parte centro-oeste
clientes. Antes de mais nada, ficou óbvio que Ohman e Flaten sofreram tanto os_ Est~d<;>s Umdos. E depois, o calor. Ràpidamente se desenvolvem os ce-
desgosto com tôda essa história, que ainda se lembravam perfeitamente de ~eais. Subaamen_te floresce o trigo, e logo depois temos a colheita, e o tra-
tôdas as minúcias, mesmo onze anos decorridos desde a descoberta. Tornou-se alho, J~e habi~ualmente leva semanas, tem de ser realizado em alguns
patente também que nenhum dos dois teve qualquer vantagem material com ~oucos_ Ias. Por Isso é que, excetuados alguns especialistas do ramo, ninguém
essa descoberta. Muito pelo contrário,· foram expostos à ofensa e ao ridículo. Kr: ~mnesota ou ~isconsin s~ pre?cupa com o transporte .d a Pedra de
Por isso era psicologicamente bem compreensível que Ohman usasse da pedra nsmgton, um objeto por assim dizer sagrado dos Estados mencionados
como soleira para, como símbolo, pisar diàriamente sôbr:e a mesma. Mas o ~~ra Wa~hingt_on. ~ verdade que permanecera durante bastante tempo em
que foi que o moveu a novamente desenterrar essa história tôda? Tanto b exandna (VIrgíma). O Govêrno norçe-americano decidiu guardar a céle:-
tempo havia passado, que já não precisava de uma "reabilitação". Não teria re pedra, como o documento. histórico mais notável até agora encontrado
206 207
em solo norte-americano, no "Smithsonian Institute", do Museu Nacional de
Washington.
Antes de assim proceder, foram convidados, além de cientistas americanos,
também, arqueólogos e peritos em runas européias, a fim de dar seu parecer
sôbre a autenticidade da pedra. Suas opiniões divergem. Enquanto os runó-
logos, com poucas exceções, não acreditam que a inscrição possa ser autênti-
ca, decide-se a maioria dos arqueólogos, como já haviam fetto anteriormente
os geógrafos e os historiadores, contra a hipótese da falsificação.
Por seu turno havia o Museu Nacional de Washington decidido considerar
autêntica a Pedra de Kensington. Grande parte da responsabilidade por essa
decisão cabe ao exame do estado de decomposição da pedra rúnica, que na-
turalmente tem de corresponder à idade da inscrição, nela explícita através da
inscrição do ano 1362. Os estudos químicos e microscópicos estiveram a cargo

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Esta é a Drangalândia, na Islândia, a área rochosa
onde Erico, o Ruivo, começou sua colonização.
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42. Quatro alfabetos rúnicos medievais (se-
gundo Holand). Primeira e segunda fileiras:
alfabetos de Dalecárlia; terceira fileira: alfa-
beto de Skonen, por volta de 1250. À direita:
alfabeto da pedra de Kensington.

da "Northwestern University", de Chicago, cujos peritos declararam, já em


1899: "A apar.ência externa da pedra é de tal sorte que a idade de seiscentos
anos é mmto bem possível". Dez anos depois, o geólogo Prof. Hotchkiss, de
Wisconsin, examinou a pedra e afirmou em seu relatório: "Examinei as di-
versas fases de decompostção por influência atmosférica com o máximo cuida-
do e, apesar de todo respeito que me merecem os lingüistas, não acredito
que a inscrição tenha sido "fabricada" recentemente". E o Prof. Winchell,
geólogo de Minnesota, cujo exame da Pedra Kensington se estendeu sôbre
mais de um ano, declarou oficialmente que a inscrição deve ter uma idade
aproximada de quinhentos anos. lá que é muito difícil, ou mesmo impossível,
produzir em mmérios "artificialmente", estados de decomposição superfi-
208
As geleiras desp1·endem i · - · · . .
"sses peri os . ce?e>gs. Ternvel massa vat preetpttar-se dentm de poucos momentos.
g morta1s esprettavam os vikin gs em suas viagens da Co l6nia 01·iental à Ocidental
na Gmenlândia. '
cial que a pesquisa científica não consiga descobrir, julgou-se o Museu Na-
cional de Washington no direito de considerar autêntica a pedra em questão.
Declarou o Museu:
"( ... ) Uma por uma foram trazidas à luz do dia as provas de sua autenticidade (...). Se
bem que não seja possível provar sem sombra de dúvida que a pedra represente um do-
cumento real, é, assim mesmo, a probabilidade tão grande, que aquêle monumento histórico
foi considerado pelos arqueólogos "smithsonianos" um dos mais notáveis documentos que
a história do Novo Mundo conseguiu até o momento, revelar (...).
Desde o início estavam os lingüistas escandinavos em dúvida quanto à sua autenticidade.
As runas apresentadas não correspondiam, conforme afirmavam, àquelas empregadas pelos
peritos noruegueses. E a inscrição falava de um acampamento junto a um lago, tendo a
pedra, porém, sido encontrada no cume de uma colina, e não havia nenhuma confirmação
de que uma expedição dos vikings houvesse chegado em 1362 às proximidades da América
do Norte. (... ) Apesar de tudo isso, porém, tiveram tais críticas de ser deixadas de lado.
f: verdade que as runas não correspondem àquelas dos escritores profissionais de runas,
mas elas são idênticas àquelas escritas pelo povo simples na Noruega, no século XIV. Os
geólogos puderam, além disso, verificar que a colina, na qual a pedra foi encontrada, era
em 1362 ainda parte da margem de um lago.
Mas a prova mais impressionante é o fato de que naquela época deve realmente uma
expedição escandinava ter visitado a América do Norte. Compunha-se de numerosos jovens,
escolhidos da Cõrte do Rei da Noruega, que empreenderam essa viagem para reconduzir ao
cristianismo os desaparecidos colonizadores da Groenlândia.
É provável que essa expedição tenha encontrado a colônia ocidental da Groenlândia abso-
lutamente abandonada, vindo a saber, através dos esquimós, que seus habitantes se haviam
retirado, muito antes, para o sul. Por isso seguiu caminho nessa mesma direção ... "

Até aqui a explicação do Museu Nacional, indiscutível do popto de vista


da lógica, que expõe razões também quanto à inexatidão das runas.
Acresce o seguinte: quatro habitantes respeitáveis de Salem, todos vizinhos
de Olaf Ohman, confirmaram sob juramento que viram a pedra logo depois
d_e escavada, verificando, além do mais, o achatamento produzido pela pres-
sao do bloco nas raízes do choupo, que a envolveram.
Mantiveram-se firmes em suas declarações da mesma maneira que Ohman,
s~ bem que durante anos e anos fôssem interrogados por cientistas e jorna-
h.stas. Se tivessem feito isso por combinação comum, teria certamente apare-
A esquerda: Vestimenta masculina de frisa muito grosseim, encontrada nos cemitérios dos cido ~os ~inqüenta anos, que desde então decorreram, um ponto fraco de
uihings da Gmenlândia. A direita: O báculo do Bispo ]011 Smyrill, da Groen lândia, feito de ~ua históna. E, além disso: todos êsses agricultores e simples fazendeiros, que
dentes de morsa pela mulher do sacerdote, Mm·gm·et. I"?telectualmente não se poderiam medir com os jornalistas e professôres, não
tivera~ quaisquer vantagens com seu relat0, muito pelo contráno, apenas
complicações e aborrecimentos. A questão mais importante que surge quando
se procede ao julgamento de possíveis fraudes, a questão "cui bono?", a fa-
vor d.e quem houve mentira, fraude ou falsificação, não encontrou por
tudo Isso qualquer resposta .
. Impõe-se, portanto, aceitar a teoria de que a pedra de Olaf Ohman tenha
hcado durante cêrca de 70 anos debaixo das raízes de uma árvore. E desde
que .e~tejamos de acôrdo no concernente a êsse ponto, temos de aceitar a au-
tenticidade do relato inteiro. Pois então a adulteração poderia ter-se verifi-
cado apenas no segundo decênio do século passado. Deveria ter sido perpe-
tra~a por alguém que dominasse não só o idioma inglês, mas também as
antigas lí~guas escandinavas, sendo perfeito runólogo, além de saber, há já
c~~to e tnnta anos passados, que todo o território a oeste dos Grandes Lagos
~Ina. a. ser, em data futura, material interessante para pesquisas de estudiosos
dos IdiOmas escandinavos. Esta é, naturalmente, uma verdadeira impossibili-
~de. Podemos dizer ainda mais: a presença por volta de 1820, nas terras
vugens ao oeste dos Grandes Lagos, de um falsário genial, igualmente versado

14 209
Conquista Mundo

Ruínas da igreja de H valsey (hoje Qaqortog) nas pmximidades de ]ulianehaab. Essa irnpo·
nente construção de dois anda,-es, edificada jJor volta de 1100, era a mais célebre de tôdas as
igrejas dos vihings. Tinha mesmo janelas de vidro.
em Runologia, Química, Lingüística e História, constituiria um milagre
muito maior que a · existência daquela pedra rúnica do século quatorze.
í.sses problemas foram aqui tão detalhadamente por nós discutidos, porque
a pedra rúnica de Kensington alcançou, graças aos numerosos artigos de
jornal dos últimos anos, uma espécie de celebridade mundial, e porque o
leitor interessado gostará de saber qual, afinal, a importância dêsse estranho
achado, do qual ainda teremos de falar adiante. Em círculos de pesquisas, a
Pedra de Kensington era, evidentemente, bastante conhecida. Jornais e re-
vistas norte-americanas não se cansaram de escrever a êsse respeito, e final-
mente apresentou também Hjalmar R. Holand, cujo nome já foi aqui
mencionado, os resultados de seu trabalho, desenvolvido durante 25 anos se-
g-uidos, em um livro bastante interessante (The Kensington Stone, A study
m pre-columbian History), publicado em 1932. A êsse livro seguiram-se dois
outros (Westward from Vinland, 1942 e America 1355-1364, A new chapter
in pre-columbian History, 1946) em que Holand levou adiante e expôs
minuciosamente sua tese de uma colonização medieval e temporária da
América pelos vikings da Groenlândia.
Se, sem conhecermos o contexto e o trabalho preparatório, realizado du-
rante decênios e séculos pelos vikings, antes de ousarem o salto através do
Atlântico, ouvimos falar pela primeira vez dêsse feito, inclinamo-nos a con-
siderá-lo um tanto fantástico. Mas o que existe transmitido nada tem a ver
com imaginação ou fantasias, sendo muito mais que mera hipótese. É reali-
dade. E realidade é também que essas viagens grandiosas das descobertas dos ''wlr ,.,)
vikings não eram desconhecidas na Europa da época. Não apenas os marujos
e capitães do Norte da Eúropa souberam de sua realização - mais tarde pro-
vàvelmente também Colombo - mas também o Vaticano teve notícia dêsses
eventos, assim como provàvelmente tiveram as grandes firmas comerciais e
os poderosos financistas europeus do fim da Idade Média.

Antes de mais nada precisamos falar dos trabalhos preparatórios, das expe-
dições preliminares, da aproximação paulatina dos vikings de sua meta, situa-
da além do oceano ocidental, trabalho que certamente não foi realizado sis-
temàticamente, dependendo, de um modo geral, das variações do acaso.
Também na Europa Setentrional era a arte de navegação marítima, usada
4~. Dese!lho_s encontrados em rochedo próximo a Tanum, Suécia. Embarca·
já em tempos distantes para melhor promoção comercial, de tradição bastan- çoes, amma1s e homens empenhados em combate, eis os temas tratados pre·
te antiga. Mas assim como ainda subsiste a impressão de que as grandes via- ferencialmente nos desenhos encontrados nas rochas da Escandinávia.
gens de descobrimentos não começaram antes de meados do século quinze,
também persistt:m muitos em julgar que, antes dessa época, não teriam exis- Conforme já vimos no primeiro capítulo dêste livro, deve a própria Idade
tido .navios capazes de cruzar os mares. E, imediatamente, surge em nossa d~_Pedra_, que dista mais de cinco mil anos de nós, ter conhecido tráfego ma-
imaginação a figura de uma daquelas altas .caravelas, em que grandes desco- n~tmo VIvo e. movimentado. É natural que não tenhamos documentação es-
bridores, como Colombo, Vasco da Gama· e Magalhães empreenderam suas cnta nem navws que possam provar nossa suposição. Mas no pantanal do Du-
viagens. Se quisermos retroceder com nossa imaginação, veremos com nossos vensee! em Schleswig-Holstein, foi encontrado há poucos anos atrás um remo
olhos íntimos os barcos a muitos remos da civilização greco-romana; mas do .s~timo milênio, o mais antigo instrumento de madeira de que se tem
pouco saberemos dos marujos do Norte· europeu e de suas belas embarcações, noticia. E, além disso, existem alguns desenhos toscos gravados em rochas,
que muito antes dos portuguêses e espanhóis cruzavam todos os mares, desde os chamados "haellristnningar", entre os quais ressaltam aquêles de Bohus-
o Cabo do Norte até o Gôlfo Pérsico: laen, no Cattegat. Provam, irrefutàvelmente, que já aquelas épocas antigas

210 211
conheceram embarcações marítimas e, antes de mais nada, foram realizados
milhares de achados, atestando a navegação dos homens da Idade da Pedra.
Nos célebres "koekkenmoeddingar" da Dinamarca, que são montes de d~spojos
alimentares do fim da Idade da Pedra, foram descobertos restos de peixes de
alto-mar. O que significa que já a época neolítica conhecera na_ves marítimas.
Parece porém evidente que, naquelas eras, apenas merc~donas de lm~o e
valiosas matérias-primas pude~sem, ao lado de e~preendime~tos guerr~I~os,
compensar o risco de UII_J.a VIagem pe_lo ,mar. Tais, merca~onas e matenas-
primas eram, antes de mais nada, constitmdas pele;> s~lex, assim como as ~rli_las
e as ferramentas feitas dêle. De algulll:as partes limitadas d~ França,. Belgica
e do Sul da Grã-Bretanha onde, como Já sabemos, a pederneira era mmerada,
as frotas comerciais principiaram o seu caminho, cruzando o Mar do. Norte
em demanda da Suécia Meridional, navegando ao longo das costas e ligando
a região de Calais com a desembocadura do Escalda e do Elb~, Warnemuende
com Gjedser, Swinemuende, via Bornhol~, com a extremidade do sudeste
da Suécia, indo de Truso para a Gotlândia e qu.e, aparentemei_J.te, transf~r­
maram já em épocas muito antigas os países bálticos em empóno do com.er-
cio sueco. Assim, por exemplo, foram encontrados em Bornholm .e na Gotlap-
dia onde não existe a pederneira, armazéns repletos dessa precwsa maténa-
pri~a e na Suécia Setentrional foram escavados numerosíssim~s ~ach~dos de
sílex além de outras ferramentas, provàvelmente de procedenCia dmamar-
ques~ ou de Skonen, que certamente haviam sido transportadas para lá por
via marítima.
Em fins da Idade da Pedra, por volta do terceiro milênio antes _de Cr~sto:
parece a navegação ter atingido desenvolvimento bastante grande.. POis e
nesse período que, pela primeira vez, emi~a gran~e número de ~gricultor~s XVI!. Rotas marítimas na Idade da Pedra.
suecos, dirigindo-se à Finlândia e aos, p~Ises bálticos. ~sse movimento mi-
gratório estendeu-se através do Mar Baftico e teve de dispor, para o cru~a­ m~res norte-europeus deve ter subido muito, provàvelmente cinco metros de
mento dos 250 quilômetros de mar aberto, de grandes embarcaçoes. T~m):>em mil e~ mil anos. Se isso corresponder à verdade - e segundo as últimas
a ligação com a pátria dos imigrantes _havia de ser . assegurada, existmdo pesquisas não parece existir muita dúvida - então ainda por volta de 2000
portanto um tráfego normal e regular, ate certo ponto mdependente das con- a .. C. teri~ a região da "Doggerbank", agora a cêrca de 16 metros de profun-
dições atmosféricas. Quem conhece as "surprêsas" que o Mar Báltico é capaz didade, Sido uma verdadeira ilha. O que teria contribuído para facilitar
de oferecer, pode avaliar as exigências, imp?stas por tal tráfe~o re_gular, às bastan_te a travessia do Mar do Norte, principalmente também porque, com
naves de tão afastado período. Com a veloCidade de d:-ras a t~es J?Ilhas ~a­ os mais baixos níveis de água, as costas teriam adentrado consideràvelmente
rítimas (3,7 a 5,5 km), certamente não superada por esses pnmeiros. naviOs ~o mar. Considerados todos êsses fatos em seu conjunto, reconhecemos ter
na maior parte ainda costurados à maneira dos barcos de peles, ficavam, s~do possível o tráfego marítimo, por volta de 2000 a. C., tanto no Mar Bál-
mesmo que a travessia do Mar Báltico fôsse realizad~ via Go.tlând~a, co~o é tico quanto no Mar do Norte.
lícito supor, durante horas a fio sem vista de terra firme. E Isso. n~o foi rea- Infelizmente não foram conservadas nenhumas embarcações de épocas tão
lizado sob o céu benévolo de regiões mediterrâneas ~u subtropicais, ~as de remotas. Até hoje encontrou-se apenas uma série de rabiscos em rochas, da-
permeio às tempestades, às brumas constantes e ao fno de águas nór~Icas. tando dos inícios da Idade do Bronze, que permitiram deduzir o desconheci-
Pela mesma época deve também o Mar do Norte ter apresentado II_J.t~nso mento da vela e o fato de os barcos terem sido movidos exclusivamente a
movimento, que presumivelmente chegava mesmo a cobnr os 750 qmlome-
tros que separam a Suécia da costa inglêsa. Isso parece comprovado por remos. É verdade que podemos admitir a possibilidade de os desenhos
achados tumulares na Suécia Ocidental e na Inglaterra, os quais apresentam casualmente encontrados representarem exclusivamente barcos empregados
para a navegação costeira.
feições comuns, desconhecidas na Alemanha, Dinama~ca ou Noruega. É ver-
dade que, apesar disso,, podem os _lia.mes ter-se este?dido ao longo das costas, Mas, já que na mesma época o Mar do Norte foi certamente atravessado,
mas é curioso que os tumulos se limitassem à Sué~Ia e ao leste da_ Ingla.terra. temos de admitir que velas tenham sido usadas por êsses navegantes de alto
Se, além disso, tivermos em me_nt~ que em Hehgoland, , OI_J.de ?ao exist~ a mar, porqu~ acreditamos que as distâncias percorridas sejam demasiadas para
pederneira, foram encontradas mumeras ferramentas pre-históncas .de silex serem vencidas por simples remadores. O que pode principalmente ser apli-
e se, além do mais, considerarmos que o elevado lucro, que a pr~cwsa II_la- cado ao transporte de cargas pesadas. Os maiores navios, representados naque-
téria-prima permitia auferir, pudesse to~nar aconsel~ável a tr~vessia em dias les de.senhos toscos, gravados nas rochas, possuem 20 remos. Seu comprimento
de tempo favorável -preferível aos cammhos compndos e. pengosos ao l<?~go ~evena, portanto, ser de cêrca de vinte e cinco metros, se fizermos o cálculo
da costa, sempre expostos a assaltos - podemos aceitar a hipótese de capitaes aseado no espaço necessário para cada remador. É bem possível, porém, que
0
corajosos terem escolhido o caminho marítimo, Acresce ainda que o nível dos desenho não seja senão uma glorificação exagerada; .afinal de contas é

212 2I!J
sias oceânicas em jangadas ou barcos minúsculos, mas há mais de 60 anos era
realização altamente esportiva o uso de um modêlo de embarcação que tinha
quase um milênio e mei? de idade, p~ra atravess~r ~ Atlâ~tico em demanda
do Novo Mundo. É por Isso que tal viagem contnbmu· mmto para aumentar
a celebridade dos navios dos vikings. Mas assim mesmo foi díficil fazer com
que reconhecessem a verdade g,ue homens intrépidos e corajosos tinham
stdo bem capazes de realizar, mais de meio milênio antes de Colombo, a des-
coberta que o tornaria ao mesmo tempo célebre e infeliz.
É verdade que embarcações como aquela de Gokstad poderão dificilmen-
te ser consideradas os verdadeiros navios "transatlânticos" dos escandinavos.
Eram extraordinàriamente rápidos e bem equilibrados na água, podendo
desenvolver velocidades que atingiam por certo, 10 nós horários. Mas veloci-
dades elevadas são importantes apenas para navios de guerra, e como tais
foram principalmente usados êsses compridos barcos, de curvas elegantes que
por causa da roda da proa e do cadaste geralmente artisticamente entalhado,
eram chamados "Dragões". Entre os escolhos e fiordes dos mares nórdicos
foram tão úteis quanto no Mediterrâneo, no Mar Negro e nas margens dos
grandes rios europeus. Mas nas águas violentas do oceano, seus capitães te-
riam sem dúvida preferido possuir navio mais largo, de bordo mais elevado
e menor comprimento. Os vikings, entretanto, sabiam manter-se em mar re-
vôlto, de forma idêntica aos egípcios: colocaram, como já explicamos em ca-
44. Navio viking, construído entre os séculos VI e VIII. Tais .navios eram pítulo anterior, em redor da proa e da pôpa fortes rodilhas de corda, que
muito rápidos e eficientes. Graças a seu pequeno calado, percornam também eram ligadas por cabos tensores estendidos através da coberta e firmemente
rios estreitos e rasos. Constituíram durante muito tempo a embarcação pre- torcidos. Mas, assim mesmo, é de crer que muitos "dragões" elegantes tenham
ferida dos vikings. Eram construídos em estaleiros, com carreira de lança-
mento e berço adequados, sob ordens de armadores muito bem remune!ados
quebrado e afundado sob a violência de ondas enormes, com a mesma facili-
e que di spunham de bastante tirocínio. O mastro era i~variàvelr?ente fix~do dade com que ficou avariada, no verão de 1950, aquela reconstituição sueca,
de maneira que, como em nossos barcos de esporte, podia ser deitado abaixo na Baía de Heligoland, vindo a afundar em seguida, com tôda a tripulação.
em poucos manejos. As cordas de amarração e brandais eram cabos de pele Conseqüentemente, era tendência dos vikings
de morsa; a vela consistia em faixas de frisa firmemente costuradas. Com empregar em viagens mais distantes, isto é, nas
cadernais que assemelhavam às nossas talhas, a vela podia ser içada ou arriada. rotas para a Grã-Bretanha, a Islândia e a Groen-
lândia, um tipo de embarcação conhecido como
muito duvidoso que a construção de embarcações de tal tamanho tenha sido "knorr", larg-o veleiro com coberta alta que en-
possível na época. ·- . . . frentava mais galhardamente os mares violentos
Apareceram muitos achados de ocaswes postenores, pnnctpalmente da qut; os "dragões", e também podia meter muito
época movimentada, abrangida pelos terceiro e quarto séculos de nossa era. mais velas. Enquanto êstes "dragões" deslocavam
Enquanto na Baixa-Saxônia er~m escavados_ botes de um só _tronco - entre cêrca de 50 toneladas, alcançavam os "knorr"
os quais alguns que, com compnmento de qumze metros podenam transportar entre. sessenta e cem toneladas, e desde que sua
entre 25 a 30 pessoas - foram encontra_dos na Escandinávia ba:cos. que .dão v~locidade fôsse apenas pouco inferior à dos na-
uma impressão forte da construção náutica dos europeus setentnonats. Desses VIos de guerra, devido ao seu velame maior, che-
garam_ pouco a pouco a substituí-los. Em época
barcos, tornou-se especialmente conhecido ? "Gokstad", con_struído n? século poster~or, os "dragões" parecem ter sido usados
seis e escavado em 1880. Do ponto de vista da construçao, aproxtmam-se
suas medidas bastante do modêlo ideal, sendo superado por apenas poucas e~clustvamente para rápidas viagens de reconhe- 45. Esta é a "knorr", embarca-
naves modernas. Medindo 23,50 m de comprimento, atirige essa embarcaçã~, Cimento em águas rasas, e bem podemos imaginar ção transatlântica dos vikings,
que os escandinavos que alcançaram as Américas espécie de precursora da "kog-
que se destina tanto à navegação a vela quanto a remos, uma largura máxi- em pesados "knorr", deixaram essas naves anco- ge" da Liga Hanseática. Gra-
ma de 5 metros. O calado é de cêrca de 90 em, e a menor altura de bordo r~das, enquanto, em rápidos cruzeiros, reconhe- vura existente em Danzig, do
livre 1,20 em, tratando-se de um barco de alto mar que pode ser perfeit~men­ Ciam as costas e os rios em "dragões" apressada- ano de 1299.
te empregado, quaisquer que sejam as condições atmosféricas. Aproxima-se mente construídos.
em suas características de nossos barcos de salvamento e era certamente capaz Infelizmente ainda não temos conhecimento definitivo sôbre os instrumen-
de viajar durante semanas sem precisar tocar pôrto algum. t03 de que os vikings dispunham para auxiliar sua navegação. É certo, con-
A hipótese, formulada depois de conhecidas as formas do na~io de ~okstad, tudo, que êsses eram em número muito superior ao que durante muito tempo
recebeu confirmação interessantíssima em 1893. Naquela ocasião veleJOU um se su~unha. Por volta do ano mil de nossa era, já eram capazes de determinar
barco construído exatamente de acôrdo com o modêlo encontrado treze anos as lat~t~des, e t_ambém deve ter-lhes sido familiar naquela época a indicação
antes,' a "Viking", da Noruega para a América do Norte, _onde se realizava a magnetica da dtreção norte. De outra maneira não podem ser explicadas suas
Exposição Mundial de Chicago. Agora já conhecemos mmtos casos de traves-
215
2H
extensas viagens de descobertas. De suas expedições às Américas quer a tra-
dição que êles alcançaram exatamente o ponto almejado. O problema mais sim lesmente a pedra de navegação, e quem se fazia ao mar levava-a a bordo.
importante foi, naturalmente, o cálculo da latitude. Pois o navegador no- PoTe-se supor que tais pedras-bússolas no princípio constituíram uma pre-
rueguês deve ter-se apercebido ràpidamente que a sombra de seu mas- ciosidade que se guardava cuidadosame';lte e que talvez se herdava _de geração
tro era muito menor nas proximidades de França e Espanha do que em geração. Mais tarde, por certo, podia ser. comp~ada do comerciante e P?r
junto às costas escandinavas, e que naquelas latitudes meridwnais a Estrêla muito tempo era Sluys em Flandres o empóno e posto avançado do comérciO
Polar lhe estava mais afastada que sôbre os fiordes de sua pátria. Também com pedras-ímãs.
deve ter notado que o dia, que no norte chegava a alcançar uma duração de Tanto no norte quanto no sul, continuou a medição longitudinal a ofere-
24 horas, chegava no sul a um término muito mais rápido. Por isso é evi- cer problema intricado ao ~av;ga?or. Dura_nte muito temp? e~a calcul~da
dente que tenha devotado atenção muito maior à determinação da latitude pela direção do curso e a distanCia percornda. A parte mais simples desse
em que estava navegando, que à longitude. problema era o cálculo _de s~a velocidade, o qua_l, ~ntes ~a invenção da bar-
Isso torna claro um manual de navegação dos noruegueses, transmitido da quilha, tinha de ser feito visualmente. Por ma~s ImpoSSivel q~e pareça ao
não-marinheiro avaliar a velocidade de um navw sem pontos fixos de refe-
expedição para a Groenlândia. Consta nêle:
rência, pode o marujo alcançar pe~feiç_ão ~m cálculos dês~ gênero, e aquêles
"( ... ) De Hernum (Bergen) deve-se velejar sempre para oeste até Hvarf, na Groenlân- escandinavos, que passaram sua vida mtena no mar, deviam ter-se tornado
dia (... ) e depois veleja-se ao norte de Shetland até quando êste deixa de ser bem visivel verdadeiros peritos nessa arte. . . . . ,
sôbre o horizonte. E ao sul das Ilhas Tarves de maneira que o horizonte passe pela encosta A medição do tem.P.o deve ter sido assunto mmto mais complicado, e e
do monte e para o sul ao redor da Islândia, de modo que se possam ver as aves marinhas e
as baleias. Depois chega-se à terra alta na Groenlândia, que se chama Hvarf. Um dia antes interessante que os vikings, como os povos navegadores do Sul, adotassem
avista-se outro monte alto, que se chama Hvidserk e junto a êstes dois montes está situado relógios de água para proporcionar-lhes a medida invariável do tempo. :tsses
Herjulfsnes. Próximo dali acha-se um pôrto, chamado Sand. É êste o pôrto geral para relógios de água, que provàvelmente já eram prov_idos de suspensão "Cardan",
noruegueses e comerciantes ... " de maneira a não serem perturbados pelos movimentos da nave, esgotavam
seu conteúdo em três, doze ou vinte e quatro horas. Se fôsse dêsse ~ltimo
Bergen e Hvarf (o Cabo Farvel de hoje) estão ambos situados a 60 graus tipo, seria chamado "aettmal". :tste representava não apenas uma medida de
de latitude norte. Quando o manual de navegação diz que se deve velejar tempo, mas também de distância. Corresponde à distância velejada neste tem-
rumo a oeste de tal modo que Shetland esteja mal e mal visível e as Faeroer po sob circunstâncias normais. :tsses métodos estavam certamente longe de
um pouco melhor, torna-se claro que só um cálculo exato da latitude podia ser exatos, mas devem ter sido suficientes para os vikings, como evidenciam
fazer possível manter a rota de aproximadamente 1.000 milhas marítimas. as suas longas viagens com rumos certos.
6bviamente foi, pois, medida a latitude de Hvarf e obviamente já estavam Já tivemos ocasião de falar do conhecimP.nto náutico do antigo Sul. Tam-
os conhecimentos náuticos dos vikings tão desenvolvidos que êles sabiam tirar bém aqui foram muito grandes os resultados obtidos. Porém não nos sur-
dela a conclusão que de Bergen a Hvarf se devia tomar rumo oeste. preendem tanto, já que as condições climatéricas são muito superiores às do
Enquanto brilhasse o Sol, era fàcilmente resolvido o problema de calcular Norte. Tempo mau com céu coberto constitui exceção e o Sol é visível du-
a latitude. Naturalmente se tornava difícil, quando o céu estivesse coberto rante quase todos os dias. As noites são claras, permitindo assim, mesmo que
durante semanas, impossibilitando a medição da altitude do Sol ou ? a observação diurna tivesse sido impossível, a orientação pelas estrêlas. O q~e
comprimento das sombras. Mesmo hoje é difícil a navegação em tais condi- raramente acontecia em águas escandinavas. Em geral, o Sol desaparecia,
ções na ausência de equipamento de rádio. Nesses casos tiveram os vikings apenas durante algumas horas, sendo tarefa dificil a orientação segura pela
de recorrer à "leidarsteinn", isto é, a à pedra de direção, precursora muito observação das estrêlas, com a luz difusa da noite setentrional.
útil da bússola. Apesar de tudo isso, já não surpreenderá que marujos arrojados, com o
A "leidarsteinn" - descrita minuciosamente em meados do século treze conhecimento náutico e as naves vikings, tivessem sido capazes de atravessar
pelo picardo Pedro de Marincourt, que viu a pedra sendo usada por nave- os mares de meio mundo, apoderando-se dos mesmos. Naturalmente eram os
gadores italianos em Nápoles - é na história da bússola um antecessor im- mares setentrionais aquêles que os atraíam no início, e existe evidência his-
portante dêsse indicador magnético de direção. É freqüentemente mencionada tórica incontestável de que os escandinavos aportaram pela primeira vez à
em sagas nórdicas muito antes que dela encontremos qualquer menção no Islândia em 863.
sul. Não ali, mas no norte, onde era muito mais urgentemente necessita?a,
em virtude da maior freqüência de tempo desfavorável, parece, pois, ter sido
inventada a bússola, pelo menos na Europa.
A respeito disso discorre o historiador dinamarquês Nils Winter na sua
História das Faeroer, aparecida em 1857. Lê-se nesta: "Finalmente, segundo 5
as sagas, os vikings teriam tido uma sejesten i ker, isto é, uma pedra-ímã que,
encerrada num estôjo de madeira, boiava livremente num recipiente com Realmente foi a viagem para a Islândia extremamente perigosa no início
água e que indicava o norte e o sul". Uma sejersten é, traduzindo literalme_?- das travessias efetuadas pelos vikings. Se bem que o percursQ não fôsse muito
te, uma "pedra de navegação". Da construção da palavra pedra de navegaç~o gr~nd~, era executada aP.enas uma viagem no verão entre a Noruega e a
segue que para os noruegueses deve ter sido uma coisa familiar. Seu uso n~o Islandia. Os viajantes hibernavam na ilha, voltando geralmente para seus
era, por acaso, limitado à navegação em alto mar ou à transatlântica" -. senao l~res no verão seguinte. Os vikings sem dúvida navegavam em rotas conhe-
tê-la-iam chamado Pedra da Islândia ou da Groenlândia ou da Vinlândia. Era Cidas de há muito; via Ilhas Britânicas, Ilhas órcades, Shetland e Faeroer -
216
217
seguindo depois seu caminho pelo braço nordeste da Corrente do Gôlfo, até as
costas sudestinas da Islândia. Os habitantes das Ilhas Britânicas e dos terri- 40"W 30' zo· 10' /
/
/
o· 1o·o
tórios que lhes são próximos já as haviam explorado antes dos vikings. /

Numismatas americanos asseveraram mesmo recentemente que a Islândia


deve ter sido descoberta quinhentos anos antes de chegados ali os vikings.
Esta asserção se baseia no achado de algumas moedas romanas do período
do Imperador Diocleciano. Desde que, contudo, não exista meio algum para
saber há quanto tempo jaziam no solo essas moedas, podemos mesmo cons-
truir a hipótese de os próprios vikings as terem levado para lá, e assim não nganes
damos muito crédito a tal afirmativa. Mas parece que os irlandeses que como
os habitantes das Ilhas Shetland, estiveram sob dominação escandinava desde
o século seis, se dirigiram para a Islândia, por volta de 795, muito antes, \
\
...__
portanto, da descoberta oficial pelos vikings. Não se trata aqui, contudo de \
expedições de colonização; pode-se, entretanto, supor que se tratava de pe- 60'N.-- Poro o G\
- - - - -'~enlànd i o
quenos grupos de monges que fugiam do mundo, procurando, como São '""-- -
\
Brandão, a solidão de uma ilha abandonada. \
Suplementando antigas fontes irlandesas, atestam os próprios escandinavos \
\
que Irlandeses viviam na Islândia antes de sua chegada. É isto o que documen-
\
ta o "Landnamabok", o grande documento escrito a respeito de seu estabe- \
lecimento na Islândia. Se bem que êsse livro não fôsse redigido antes do ano \
\
1200, provou sua fidelidade em tantos pontos de importância, que devemos
considerar suas informações sôbre a descoberta da Islândia pelos irlandeses ·ss· \
\
\
como fidedignas. Afirma o "Landnamabok":
"Naquela época estava a Islândia coberta de árvores desde as praias até os montes. Viviam
ai certos cristãos, chamados "papar" pelos vikings. t.sses homens deixaram mais tarde o
país porque não desejavam viver com pagãos, mas deixaram na ilha sinos, báculos de
clérigos cristãos e livros irlandeses, de onde era fácil deduzir-se que procediam da Irlanda."

Eis convincente confirmação da teoria de que os irlandeses visitaram a so·


Islândia antes dos vikingsl Não foram ali encontrados quaisquer traços de
colonização' anterior, de maneira que o ponto de vista de que os habitantes
aborígines daquela ilha remota tenham sido celtas, dificilmente corresponde
aos fatos. Para isso a ilha estava demasiado afastada de qualquer outro país
habitável. Antes de vencer tão grande extensão de mar a navegação marítima
necessitava de amplo desenvolvimento. Os próprios vikin~s não viajavam
logo de início da Noruega para a Islândia pela rota marítima. Assim teste- SOOkm
munha uma instrução náutica do "Landnamabok", que primeiro descreve a
rota antiga, através das Ilhas Britânicas, que só em tempos mais recentes se
atravessou, mas: XVIII. As rotas dos vikings para a Islândia.
"Tyli (Tule) está situado a seis dias de viagem marítima ao norte da Inglaterra (...).
Relatam antigos livros inglêses que havia navegação entre a Inglaterra e a Islândia antes com veleiros nos mares nórdicos, três e meia milhas marítimas durante um
que os homens nórdicos se estabelecessem ali (... ). Homens experimentados nascidos na quarto de quatro horas: é aproximadamente a velocidade dos antigos bar~os
Groendândia e há pouco vindos para cá, dizem que de Stadt (Cabo Stadt) na Noruega até mercantis dos vikings. Os seus navios compridos eram, naturalmente, mmto
Horn, na Islândia Oriental, a viagem levava sete dias e de Snaefellsnes (Islândia Ocidental),
que está mais perto da Groenlândia, mais dois dias e duas noites até os escolhos de mais rápidos. Mas tamb~m os "Knorr", em casos excepcionais, podiam reali-
Gunnbjoern, entre a Groenlândia e a Islândia. Diz-se assim que a viagem, quando se naveça zar viagens bem rápidas. Assim consta que um navio, que no ano 1~24 viajou
do Hernum (Bergen) para Hvarf (Cabo Farvel) na Groenlândia, contornando a Islâi_~dla de T~ondjem para Eyrarbakki no Sul da Islândia, só tenha necessitado qu~­
pelo sul, leva doze dias (...). De Reykjanes (Islândia) até Joedulaup, na Islândia, leva anco tro dias para a viagem. Sendo a distância entre os dois lugares duzentas mi-
dias. De Langanes (Islândia setentrional) até Svalbardi (Spitzberg) quatro dias (...)." lhas marítimas, percorreu êsse navio cinqüenta milhas marítimas em vinte e
qua~ro horas ou cêrca de oito milhas marítimas durante um quarto. Para
Comparando-se as durações das viagens dos vikings, dadas aqui, com os veleuos, . uma duração de viagem tão curta nessa rota, é rara também em
tempos que em nossos dias são necessários para percorrer em veleiros _as nossos dias.
mesmas distâncias, verifica-se que os escandinavos, há quase milênio e meiO, Naturalmente exigia homens de têmpera, para superar os rigores dos ma-
não viajavam com menos velocidade. Também nós raramente ultrapassamos, res setentrionais. Tmham de ser especialmente decididos e resolutos para
218 219
transplantar tôda a sua família para a Islândia, terra de gêlo e fogo. Sabemos emi~aram apenas os segundos filhos, mas famílias inteiras, com tudo que
por documentos, que a decisão de realizar tal migração foi apenas tomada podiam levar, de tal modo que terras que durante alg~m tempo hav~am
após investigação cuidadosa das novas terras. A despeito da pobreza do solo sido cultivadas, voltaram a tornar-se abandonadas e descmdadas. Para evitar
e da rudeza do clima, não devem ter sido as condições de vida na Islândia 0 despovoamento da Noruega, foi i_!'lsti~uí~a uma "taxa de emi~aç~o" e,.todo,~
inferiores às da Noruega e Suécia, particularmente no século nove, quando que quisessem estabelecer-se na Islandia tmham de pagar ao rei cmco oere
a piora do clima que provàvelmente se verificou mais tarde, ainda não ha- e mais tarde meia coroa de ouro. Naturalmente deixaram muitos o país ile-
via começado. Se bem que essa ilha solitária ficasse, climatericamente, galmente. Em apenas quatro ocasiões afirma o "Landnamabok" que emigra-
nos limites entre as zonas temperada e polar, não pertencia ela cer- ções foram rea!izadas com o_ conheci~ento P.révio do Rei ,!faraldo. Al~_uns
tamente a esta última. Isto era devido à influência da Corrente do Gôlfo que partiram em virtude de razoes pessoais. O Landnamabok relata frequen-
mantinha quantidade suficiente de água quente circulando em redor da ilha,
para elevar a sua temperatura acima daquela característica na zona polar.
Essa condição excepcional se limitava e se limita ao litoral, enquanto que
as regiões altas do interior eram e são frias e inférteis. Pode, de qualquer
maneira, supor-se que a primeira impressão causada pela Islândia sôbre os
Vikings, não era de todo desfavorável.
Nas áreas costeiras, particularmente no sul e sudoeste, encontravam por
tôda parte prados magníficos, muitos dos quais mais abundantes que os de
sua pátria, enquanto que, em volta dos fiordes abrigados, poderiam plantar
jardins que se desenvolveriam tal como na Escandinávia. Os rios e as águas
costeiras abundavam de peixes. Apenas os cereais não cresciam em quanti-
dade suficiente para corresponder às necessidades da colônia. O verão era
demasiado breve, se bem que as noites claras assegurassem menor interrupção
do crescimento das plantas, que na pátria. Havia também falta completa de
minérios, de que os vikings tinham premência, tanto na guerra quanto na
paz. Mas a falta dêsses produtos era sanada com importações da Noruega.
Em conseqüência, não significava a fixação na Islândia qualquer redução
do nível habitual de existência. O que se exigia dos colonizadores da Islân-
dia era a adaptação a condições naturais um pouco diversas e não a adoção
de novo tipo de vida. O pastoreio, principalmente, havia de ter predominân-
cia sôbre a agricultura, mas desde que o fazendeiro norueguês já se havia em-
penhado extensamente na criação do gado, não era êste um problema novo
e estranho para o colonizador.
:tsses fatôres econômicos, por maior que fôsse a sua influência sôbre a
escolha de uma nova terra, não constituíam a fôrça principal a impelir a
onda migratória norueguesa. Esta era revestida de caráter totalmente dife-
rente, e suficientemente forte para depois que as áreas habitáveis da Islândia
tivessem tôdas sido colonizadas, mandar vikings à Groenlândia, onde as con-
dições de vida contrastavam crassamente com as da Noruega. Se bem que a
falta de terras na Noruega -devida ao tipo de economia empregado por seus
habitantes, que demandava espaço bastante extenso - fôsse indubitàvelmen-
te uma das razões para as expedições colonizadoras, não era decerto a su~
razão principal. O motivo para a colonização da Islândia deu o poderoso rei
distrital Haraldo que, em fins do século nove, tentou estender seu temido
domínio sôbre tôda a Noruega. Visto que oprimia com impostos extorsivos e
confiscações implacáveis os seus adversários, resolveram êstes deixar o país,
nobres e camponeses do mesmo modo e na mesma medida. .
Essa fuga compreendia habitantes, de tôdas as partes do país, de Hehgo-
land, no norte, até Vik e Upploend no sul. Ainda de acôrdo com o "Land-
namabok", os distritos próximos ao Hardangerfjord e ao Sognefjord contri-
buíram de forma especialmente intensa para a emigração.
Dentro de pouco tempo uma verdadeira corrente de vikings chegava à
Islândia, onde já por volta do ano I 000 existiam entre 20 a 30 mil pessoas,
tendo escavações, realizadas na Noruega, revelado que nos distritos de ~gci:r
e Rogaland comunidades inteiras foram abandonadas à sua sorte. Ah nao XIX. A Islândia com as possessões de Erico, o Ruivo, em Drangalândia, Haucadal e Oexney.

220 221
temente .que os viaJores para a Islândia tiveram de abandonar a sua pátria também a Escócia, a Dinamarca, as Hébridas, a Suécia e a Gotlândia eram
por motivos de assassinato ou de velhas disputas familiares, que tornaram fortemente representadas. Havia também lapões e finlandeses, êstes princi-
Impossível, aos descendentes em segunda ou terceira geração, a permanência palment~ como escr~vos ou !!mpregados domésticc;>s, ~ntre os imigrantes. ~les,
nas terras ancestrais. ~ste breve resumo evidencia a multiplicidade das causas e os mmtos celtas, mtroduZiram um elemento ahemgeno na estrutura racial
emigratórias, e se bem que a razão política preponderasse, havia um sem- homogênea dos colonizadores, que talvez tenha contribuído para tornar os
número de outros motivos, não devendo por isso ter sido exagerada a coesão islandes~s, com. o tempo, in~ependentes da sua Il?-ã~-pátria, a Noruega. Mas
interna dos colonizadores da Islândia. Estamos muito bem informados, por apesar diss<_> os Islandeses, as.sim co~o também os VIkmg~ da Groenlândia, con-
numerosas fontes antigas, sôbre a colonização da Islândia, tão significativa tmuaram hgados ao seu pais de ongem através de hábitos e costumes. Ainda
para a história dos germanos do Norte, de modo que quase cada fase dêsse voltaremos a êsse assunto. Mas vale a pena lembrarmos, desde já, que todos
acontecimento pode ser reconhecida. O primeiro lugar entre êstes antigos re- êsses povos, espalhados sôbre as grandes extensões setentrionais na Islândia
latos ocupa o "Landnamabok". É desconhecido seu autor, que deve ter per- na Groenlândia ou na Vinlândia-América, eram e continuavam sendo euro:
tencido à Escola de Ari Frode, o mestre da historiografia da Islândia, que peus. ~sse ponto revestir-se-á de importância especial ao discutirmos a ruína
viveu de 1067 até 1148. Essa obra não foi escrita para fins histórico-científicos, dos nórdicos habitantes da Groenlândia.
mas essencialmente genealógicos. Devido a isso ela contém muitos traços len- A. Islâ?d~a foi o prim.eiro passo dado J?elos escandinavos em direção a seu
dários e anedóticos. Mas também êstes são para nós de grande valor, pois destmo ultimo, a Aménca. ~sse passo foi dado inconscientemente é claro e
trazem numerosos esclarecimentos para a história cultural da Islândia. O in- não par~cia para os contempor~neos ser mais que o encontro de' outro p~ís
terêsse principal dêsse livro único na história mundial, ocupa, porém, a co- na cadeia contínua de descobnmentos de terntórios novos. Mas ao obser-
lonização da Islândia e os destinos das famílias nela empenhadas. Podemos va.dor dos nossos dias. a ida dos noruegueses à Islândia pode parecer deter-
assim seguir a colonização até em seus detalhes. A repartição da terra, o avan- ~mada por alg<? mais que mero acaso fortuito. Pois que a Groenlândia
ço em prados e vales, a ereção e posição das diversas vivendas são nela indi- ficava daí para diante ao seu alcance imediato; mais cedo ou mais tarde teria
cadas minuciosamente. Conhecemos os nomes dos colonizadores, a sua proce- d~ ser ~escob<;rta pelos ~ikings. Mas a .rort.a q'l!e s~ abria sôbre a Groenlân-
dência e a sua descendência; evidentemente o autor dessa obra grandiosa teve di~, al;ma-s:_ sobre m;na cilada: a Groenlandia nao unha nem madeiras e nem
diante de si as tábuas genealógicas de tôdas as famílias destacadas da Islân- mménos,. nao podena sustentar os seus invasores. Achariam êstes uma saída.
dia: três mil nomes de pessoas e mil e quatrocentos nomes de povoações ~ cammho ~e saída da prisão de gêlo da Groenlândia através do Oceano
contidos no "Landnamabok". Ártico à Aménca, com suas reservas mexauríveis de madeiras e de minérios.
A segunda fonte principal para nós é o Livro da Islândia, de Ari Frode. Verdade. é gue os vikings da Groenlândia acharam o caminho ao descobrir
Esta obra, surgida antes do "Landnamabok", constitui um afastamento cons- a Marclandia, a vasta área florestal da Nova Escócia, Nova Brunsvick e Mai-
ciente do conto lendário popular. Enquanto as sagas se ocupam sempre ne. Parece q'l!e, com a Vinlândia como ponto de partida, penetraram tam-
apenas com heróis isolados, famílias e regiões, aquêle livro faz ressaltar as bém nas regioes metalíferas nas proximidades dos Grandes Lagos. Mas quan-
coisas e os acontecimentos importantes para a história geral da Islândi~. Ç do per~eberam que com a colonização da Groenlândia entraram num beco
livro da Islândia, portanto, é propositadamente científico. ~le peneira e .Joei- ~m saida .m~a vez que os liames com a Europa se tornaram cada vez mais
ra a antiga tradição popular, ordena-a cronologicamente e empenha-se numa tenues •ate. VIrem . a romper-se, já era demasiadamente tarde. O gêlo da
determinação exata das datas. Ari Frode era sacerdote e sem dúvida um ho- G!oenland.Ia mant~nha-os presos. Sem poder partir - porque, sem madeira,
mem altamente letrado. Não obstante, como chefe de clã e um dos líderes n~o possmam navws - pereceram irremediàvelmente, homens, mulheres e
do seu povo nunca perdeu o vivo contato com êste, como aliás a cristianiz~­ cnanças.
ção dos islandeses, por volta do ano I 000 d . C., não significou um rompi-
mento com a tradição.
Comumente supõe-se, de acôrdo com as informações da Islândia e do "Land-
namabok", que a viagem do primeiro colonizador, do chefe de clã Ingolf,
tenha sido empreendida no ano 870. O livro da Islândia diz a respeito o 6
seguinte:
0
"A Islândia foi colonizada pela primeira vez por gente vinda da Noruega, nos dias de se /erão de 1721 era quente e sêco. Dia após dia o sol abrasava o solo res-
Haraldo, e isso na época em que Ivar mandou matar o rei dos anglos, Edmundo, o Santo. d c~ o; os prados e os campos crestavam, as fontes nos parques dos senhores
Ocorreu isso, porém, 870 invernos após o nascimento de Cristo, conforme está escrito na aPa~X:\;stavam sêcas, os agricultores rezavam e imploravam J?Or chuva.
sua história." en ans Egede, de Trondenaes, nas Ilhas Lofotas, que JUStamente se
u~o~trava em caminho para a Groenlândia naquele verão, a sêca parecia
~sse ano, 870, pode ser considerado a data do comêço da colonização da Groesif!l ~os cé~s. As foc~s, principal recurso alimentar dos esquimós da
Islândia. Além dos noruegueses, que formavam a parte maior do contingente esf . n ~ndia, haviam-se retirado para o norte, os habitantes da ilha estavam
colonizador, participaram também membros de muitas outras nacionalidades ma~~~~c~s, e o homem que sei?-te o estômago vazio dispõe-se, em geral, muito
dessa colonização. Um dos primeiros exploradores da Islândia, Gardar, era De men~e para dar ouvidos às palavras de Deus. Levar a palavra de
sueco. Além disso existe documentação segundo a qual o irmão de Ing<;>lf T~~b~ esquiii}Ós era a missãc;> à qu~1 Hans Egede se julgava predestinado.
tivera a bordo diversos escravos irlandeses. O "Landnamabok" também lO- costu m 0 gelo recuara mmto mais para o norte neste verão do que de
forma a êsse respeito. Cuidadosamente transmite os nomes dos estrangeiros se "i mb. É ~e~dad.e que os trovões se sucediam lá no alto de costa, soltando-
mais importantes que participaram na colonização islandesa. Além da Irlanda, ce ergs mte1ros das margens escarpadas, precipitando-se com inimagi-
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Que os ancestrais escandinavos haviam, em tempos passados, descoberto
e colonizado a Groenlândia, era amplamente conhecido na Noruega e na
Dinamarca, mas o povo havia sido levado a conclusões erradas pelos sábios
estudiosos. Aquêles afirmavam que as sagas provam ter a prine1pal colônia
nórdica sido cbamada "Eystribyggd", "estabelecimento oriental" e a segunda
e menor, "Vestribyggd", "estabelecimento ocidental". Conseqüentemente, de-
duziram que a poderosa Eystribyggd estava situada na costa oriental da
Groenlândia, e a mais pobre, que Já em 1342 deixou de existir, na costa
oeste. Isto estava errado; de fato, ambas as colonias estavam situadas na
parte ocidental da ilha, mas o Estabelecimento Oriental na extremidade
mterna do fiorde, de modo que durante alguns dias se tinha de tomar rumo
oeste para de lá se dirigir ao Mar Nórdico.
Também Hans Egede acreditara nos "sábios". E intimamente havia espe-
rado que, a despeito dos séculos transcorridos, pudesse encontrar alguns tra-
ços de seus .c~mpatrio~as noruegueses no local onde _lhe haviam feito crer que
uma vez extstua Eystnbyggd. Nem pensou em Vestnbyggd, onde realmente foi
ancorar. Essa havia deixado de existir há tempos demasido remotos. Por isso
não deu pelas ruínas que ainda lá estavam, monumentos de tragédia con-
frangedora de fome e abandono. Não percebeu que aqui e acolá estava pi-
sando em túmulos antigos.
Na?a encontrou. "No que diz respeito à velha Eystribyggd da Groenlândia,
acredtto sem sombra de dúvida que ela ainda exista, habitada pelos descen-
dentes de um puro povo norueguês, os quais serão descobertos com a ajuda
d_e Deus"- es~rev~u para casa. No verão de 1723 reembarcou, viajando, "com
nsco da própna vida, ao longo das geleiras que afastam icebergs ao mar. Ve-
lej_ou por quase tôda a costa de Eystribyggd, e tudo estava ao alcance de sua
mao: ruín~s d_e velhos mosteiros, os ~ur?s imensos da antiga sede do Bispo
da Groenl~nd~a em Ga~dar, ,nas proximidades da moderna Julianehaab, os
vastos cemitén?s, em CUJOS tumulos regelados os mortos aguardavam pacien-
t~mente _que viesse alguém da Escandinávia, os jardins esplendorosos dos vi-
kmgs, ~m~a em flor com muitas_ plantas européias, estranhas ao solo da
Groenla!ldia. Ao alcance de sua maol Mas Hans Egede passou sem ver. Não
era destmo seu tornar-se um arqueólogo a escavar o solo, deveria tornar-se
o apóstolo dos esquimós. E quando, muitos e muitos anos mais tarde, veio
a fal~cer na ilha dinamarquesa de Falster, as preces de inúmeros esquimós
da dtstante Groenlândia, que êle havia libertado do mêdo dos demônios,
46. "Eystribyggd" e "Vestribyggd", as duas colônias escandinavas da Groenlândia, no acompanhavam a sua alma.
mapa do islandês Jon Gudmundsson, por volta de 1600. A parte setentrional da
Exa~amente duzentos anos depois da viagem de Hans Egede à Groenlândia,
Ásia Oriental, com a Finmarca e a Biarmalândia, é separada da Groenlândia por
estreito canal. Uma das colônias encontra-se na costa oriental da Groenlândia e a no _cáhdo verão de 1921, outra expedição chegou àquelas terras com o pro-
outra no lado atlântico. Também entre a Groenlândia e a América encontramos pósito especifico de pesquisar o destino dos seus antigos habitantes escandi-
apenas estreito canal. navos. Novamente estava a Europa sendo martirizada por estio invulgar e
novamente ~avia o gêlo da Groenlândia recuado para o norte. O solo con-
nável estrondo para dentro do mar espumoso e projetando a água para os gelado do litoral havia amolecido, entregando fàcilmente o que continha
escondido.
ares. Mas os campos de gêlo, que uma centena de anos antes foram descritos
pelos marujos britânicos Davis e Baffin como sendo "intermináveis", haviam Já em 1586, havia o navegante e explorador britânico, John Davis, en-
desaparecido. Foi assim que Hans Egede ancorou bem para o norte, na contrado um túmulo marcado com uma cruz na Groenlândia. E desde que
bôca de um fiorde que penetrava fundo na terra, em Godthaab, o pôrto da ~~scadores de baleia começaram a ancorar na costa ocidental da Groenlân-
"Boa Esperança", quase a 65° N. Ia acumulam-se em Copenhague informações sôbre o achado de túmulos e
Não sabia que brancos haviam habitado essas regiões quatrocentos anos esq~eletos. f.sses achados, todos êles feitos na costa ocidental da Groenlândia,
antes dêle. Talvez algum antepassado de sua própria família tivesse aqui apo~aram a nova teoria dos estudiosos de que Eystribyggd e Vestribyggd
arremessado ao mar alguma parte do altar sagrado, para estabelecer-se onde ~avi_am amb~s sido localizadas no litoral ocidental daquela ilha de gêlo. Tal
eo~ta conquistou terreno cada vez maior, e, imediatamente depois da Pri-
esta fôsse ter à terra, guiada pelos deuses. Aqui haviam existido grandes fa-
zendas, e mesmo uma igreja e um armazém, Mas o missionário nada disto ~eira ?u~rra Mundial, enviou a Dinamarca uma comissão científica à
encontrou! roenlandta, que foi chefiada pelo arqueólogo Paul Noerlund. Esta expedi-

224 225
IS Conquista Mundo
ção encontrou o que estava velado para Hans Egede: os traços de seus pró-
prios ancestrais. aquêles anões aleijados da Groenlândia ainda conservaram a coragem e a
Estão mortos há quatrocentos anos. Suas fazendas destruídas, de suas igrejas vontade de viver ao ponto de se vestirem de acôrdo com a moda.
e mosteiros restam apenas ruínas, . e seus campos permanecem cobertos por Mas por que desapareceram? De acôrdo com a lei de seu aparecimento já
ervas daninhas. Mas lá 'embaixo, nos túmulos, nas profundezas do solo sem- estavam desde o início condenados ao ocaso final. Novamente . enfrentamos
pre congelado, o tempo estacou. Lá se encontram os vikings tal como haviam um símbolo de predestinação inclemente, que de antemão sabe e estabelece
sido enterrados: o Bispo Jon Smyrill, o "gavião", com anel e báculo, um quais as sementes desti?adas a d~r. frutos e. qua~s devem ~esaparecer.
pedaço de prêsa de morsa belamente entalhado; a jovem Ingibjorg, fa- A lei do seu apareCimento: Etnk Raud1: Enco, o Rutvo, era o nome do
lecida há oitocentos anos, muito querida dos seus pais enlutados, que des- indivíduo a levar a maldição dessa lei à "Terra Verde" de sua descoberta.
cansa em túmulo emoldurado por arenito e coberto de inscrições rú- Os vikings eram criadores de gado, agricultores e caçadores, sendo-lhes im-
nicas. Ali dorme também Ozurr Asbjarnarson, que faleceu em um dia possível, pela própria constituição física, sustentar-se exclusivamente de pei-
de inverno em uma pequena ilha no fiorde, tendo sido enterrado em xes e animais. Assim extinguiram-se no mesmo espaço e em época idêntica
terra não consagrada. Uas ao encher a cova havia-se-lhe colocado uma em que os esquimós se desenvolviam em pleno progresso.
estaca sôbre o peito, que foi tirada na primavera, ao derreter o gêlo, Quando nasceu Erico, o Ruivo, filho de Thorvald Asvaldsson, de Jaede-
tendo o padre jogado a água benta através do buraco assim aberto. ren, perto de Stavanger na Noruega, ninguém poderia prever que um dia
Assim também êle jazia em terra consagrada. No túmulo da Senhora Gudveig acharia o último descanso num túmulo a muitos milhares de quilômetros para
não havia nada senão uma vara rúnica, na qual as seguintes palavras pude- o oeste, no solo permanentemente gelado da Groenlândia, em vez de repousar
ram ser decifradas: "Esta mulher, chamada Gudveig, foi lançada ao mar". nos prados da Noruega. Mas desde a sua juventude parecia certo que êle
não encontraria paz antes da morte. Pois que tanto seu avô quanto seu pai
haviam-se visto envolvidos em muitas contendas violentas. Ainda quando
êste havia atingido uma idade madura, continuou sua vida a ser tempestuo-
sa e em 960 excedeu-se em sua violência: matou alguém e foi forçado a fugir
de seu lar ancestral e emigrar com a família para a Islândia.
47. A tábua rúnica de Guveig, no cemitério de Herjulfsnes. Nessa época tinha seu filho cêrca de dez anos, sendo por isso já capaz de
perceber que a fazenda em Drangalândia, um dos distritos menos agradáveis
e mais rudes da Islândia Setentrional, não poderia ser comparada ao lar de
Gudveig morreu em alto mar e foi lá que encontrou sua última moradia, na Jaederen. Mas não havia escolher. Tôdas as terras da Islândia haviam sido
maneira de marujos, costurada em um pano e com uma pedra aos seus pés. distribuídas em parcelas há setenta anos passados. Quem chegasse tão tarde
Mas o mar não é consagrado, sendo o reino do diabo. Por isso enterraram como Thorvald, e ainda por cima fugitivo da justiça, tinha de contentar-se
a vara em terra benta. Havia túmulos de crianças: as pequenas jaziam paci- com O que lhe davam. Thorvald resignou-se. Mas seu filho não aceitou essa
ficamente com mãos entrelaçadas, uma cruz entre seus dedos rijos e seus situação. Sabia que a família de seu pai havia sido uma das mais respeitadas
brinquedos nos cantos do túmulo. . e poderosas de Jaederen. Aqui, na Islândia, ninguém lhes dava atenção.
Tudo isso pode ser lido no livro consciencioso e comovente de Paul Noer- Assim como tantos outros acontecimentos dos primeiros tempos de histó-
lund, "Colônias dos Vikings na Groenlândia", publicado em 1937. Como- ria da Islândia, é a chegada de Thorvald Asvaldsson longamente relatada no
vente não tanto porque trata de mortos que deixaram seus parentes e ami- "Landnamabok". tle e seu filho Erico estabeleceram-se em Hornstrand, em
gos enlutados, mas porque quase todos êsses mortos eram aleijados, de Dranger. Com a morte do pai, Erico, o Ruivo, ficou encarregado da fazenda,
estatura baixíssima, terrivelmente subalimentados, raquíticos e provàvelmente casando e ligando-se, através de sua espôsa, a uma família muito respeitada
atacados por tuberculose irremediável. Comovente, porque provàvelmente da Islân.dia. tste fato possibilitou-lhe a aquisição de outra fazenda em Hau-
essas criaturas, estigmatizadas por gerações subnutridas, não ultrapassaram ka~al, Situada mais para o sul. Mas então meteu-se em contendas, tal qual
em muito os vinte anos. Comovente, porque todos, incluindo as crianças, avo e pai antes dêle, e quando aconteceu duas vêzes em seguida que seus
estavam vestidos de acôrdo com a moda européia corrente - não feita de adver~ários ficaram mortos no campo da luta com o impetuoso norueguês,
sêda ou veludo, como a de seus parentes distantes na Escandinávia, mas de o Thmg de Thornes o condena em inícios de 982, exilando-o, assim como a
lã grosseira manufaturada na própria Groenlândia. Dessa lã eram feitos seus seus familiares, por três anos. Finaliza o "Landnamabok" êsse relato com as
ainda assim elegantes sobretudos e bonés, tais como eram usados durante o palavras:
fim da Idade Média na Europa, os "cothards", que descem até os joelhos,
:·Erico aprontou um navio na Baía de Erico (... ). Declarou que partiria em demanda do
como era moda no século quatorze em França, o boné de trança, familiar a pais q~e Gunnbjoern, filho de Ulf Krake, havia visto ao ser impelido pelo mar a oeste da
nós através das representações de Dante e Petrarca, os altos chapéus da Islândia,. e que desde então era chamado de Gunnbjoernschaere. Assegurou que voltaria aos
Burgúndia, pintados por Memling, tais como usados pelos cavalheiros mais seus amiços após encontrada essa terra. Separaram-se amigàvelmente. Erico prometeu-lhes
destacados áe seu tempo, como Carlos, o Corajoso, da Burgúndia (1433 até seu auxího, sempre que lhe fôsse possível auxiliar e quando êles o necessitassem."
1477) e Luís XI da França (1423 até 1483).
Isso pode significar apenas que êsses infelizes indivíduos, perdidos e es- • Até aqui o "Landnamabok", cujo relato preciso e minucioso é digno de
quecidos na solidão de um gêfo infindável, mantiveram o contato com a toda fé. ~os primeiros meses de 982, provàvelmente em maio ou junho, Eri-
Europa até fins do século quinze, que navios estrangeiros tocavam suas cos- âo 0 Rm':o, embarcou na Islândia e procurou, em curso ocidental, um país
tas, que comerciantes e marinheiros ali visitavam a terra e que, finalmente, escon~eCido no oceano, que havia sido visto de passagem em 900, isto é,
há ma1s de oitenta anos passados. A verdade acêrca dêsse país a oeste da
226
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Farvel a parte meridional extrema da Groenlândia. Mas isto não é certo,
so· 30° e 0 cu~so de Gunnbjoern continua suscitando dúvidas. Não deve ser esqueci-
do que reflexos atmosféricos são fenômenos comuns no verão, nessas latitu-
des e também que o reflexo do Sol, que reverbera sôbre a superfície extensa
da 'Groenlândia, é visível a distância muito mais apreciável que as próprias
geleiras. Além disso devemos ter em mente que na área em redor da Islân-
dia que é caracterizada por ação vulcânica e sísmica violenta, o aparecimento
e C: desaparecimento repentino de ilhas e rochedos parece inteiramente pos-
sível.
Mas como quer que seja, constituíram os escolhos de Gunnbjoern a causa
não muito concreta para a descoberta da Groenlândia. Pois, em virtude de
Erico, o Ruivo, navegar muito em direção ocidental, êle alcançou a área da
Corrente do Gôlfo que nesse ponto muda de norte para oeste e que, dado
vento favorável, levá-lo-ia à Groenlândia. A sorte qms que êle não chegasse
à costa oriental da Groenlândia, bastante inóspita e geralmente bloqueada
por bancos de gêlo, mas à costa sudoeste, além do Cabo Farvel, isto é, na
área climatericamente mais favorável do país. Pois mesmo nesta latitude, pro-

44"
Bla.ser
ISLAN
Angmagssalik
Godth

SOOkm

XX. A Groenlândia com Eystribyggd e Vestribyggd. Bastante afastado para o norte da Colô·
nia Oriental encontrava-se o estabelecimento ocidental, a Vestribyggd. A distância entre
ambas ascendia a cêrca de 180 milhas, portanto mais de 330 quilômetros, ou, como afirma
crônica antiga: "Seis dias remando com seis homens em um barco de seis remos". ]á que
a rota marítima seguia ao longo de perigosas geleiras, às vêzes obstruindo a passagem, é
de julgar-se que o contato dos dois estabelecimentos não tenha sido muito freqüente.

Islândia é incerta. Quando avistada pela primeira vez por Gunnbjoern, um


dos primeiros colomzadores, provocou muito interêsse na Islândia, de tal
maneira que os habitantes mais velhos ainda se lembravam das histórias de
sua descoberta. Gunnbjoern Ulfson havia evidentemente, assim como outros
navegadores, empreendido uma circunavegação da Islândia, mas deve ter
tomado um curso que o levou mais para o oeste. Declarou que fôra capaz de
ver a geleira Snaefells na Islândia, quando outra geleira emergia do mar, XXI. A Colônia Oriental dos vikings, na G1·oenlândia.
situada porém ao oeste. Inicialmente supunha-se que os "escolhos", desco-
bertos por Gunnbjoern fôssem talvez as pequenas Ilhas, próximas do Cabo
229
228


duz o efeito aquecedor da Corrente do Gôlfo temperatura bastante elevada. quando Bjarni estava na Noruega, Herjulf foi com Erico, o Ruivo, para a Groenlândia e
Na média anual, excede aí o nível da temperatura que deveria ser esperada deixou sua propriedade na Islândia (... ). Herjulf estabeleceu-se em Herjulfsnes. Era êle
em tal latitude (em comparação com o continente norte-americano) em cêrca um homem muito respeitado. Erico, o Ruivo, apossou-se de terra em Brattahlid. Gozava ali
de muito respeito e todos se curvavam diante dêle. Os filhos de Erico eram Leif, Thorwald
de cinco graus centígrados. Enquanto lá, por exemplo, ao sul da Baía de e Thorstein, sua filha tinha o nome de Freydis. Esta casou com um homem de nome Thor-
Hudson, na mesma latitude que a do Cabo Farvel, na Groenlândia, registra- ward. Os dois possuíam uma propriedade em Gardar, onde agora se encontra a sede do
se em janeiro uma temperatura média de -30°, neste a temperatura desce bispo. Ela era muito orgulhosa e valente. Thorward, entretanto, era um homem fraco. tle
somente a uma média de -5°. Por outro lado, a linha isotérmica de -5° passa só a conseguiu por ser rico. Naquele tempo os groenlandeses ainda eram pagãos ... ".
pelo Cabo Farvel e também por Halifax, no Canadá, embora esta se encontre
a 45 graus de latitude norte, isto é, na mesma latitude de Veneza ou Belgrado. ~sses dois documentos forneceram um retrato bem aproximado da ma-
Como é natural, cai ràpidamente a temperatura na Groenlândia se nos em- neira pela qual se processou a colonização da Groenlândia. A expedição ori-
brenharmos pelo país adentro. Ali a influência da Corrente do Gôlfo é con- ginal de Erico, o Ruivo, da qual participaram sua família com al~mas
sideràvelmente reduzida, e o efeito refrigerador da imensa cobertura de crianças pequenas e seis ou sete servos, estêve sem dúvida bem equipada,
gêlo, que abrange tôda a Groenlândia e penetra profundamente nas massas provida de mantimentos e outras coisas essenciais para a existência por um
de magma do interior da terra, faz-se notar de modo destruidor, impossibili- período bem longo. Mas tal viagem nada era, se comparada com a real
tando qualquer colonização. tomada de posse da Groenlândia. Vinte e cinco navios puseram-se ao mar,
É verdade que Erico, o Ruivo, nada sabia de linhas isotérmicas ou do e desde que certamente eram do tipo "knorr", devem ter carregado em seu
efeito aquecedor da Corrente do Gôlfo. Mas, sendo o chefe prudente de sua bôjo uns setecentos islandeses, além de uma vasta carga de mantimentos e
família e o líder responsável de seus adeptos, empregou os três verões de utensílios necessários ao lar. Podemos supor, por isso, com boas probabilida-
seu banimento para fazer cuidadosa inspeção na Groenlândia; e quando des de certeza, que o plano de Erico, o Ruivo, para a colonização da Groen-
voltou à Islândia ao findar seu exílio, sabia que o sudoeste da Groenlândia lândia, deve ter despertado grande interêsse na Islândia. Sem dúvida eram
poderia ser habitado, e onde êle próprio se estabeleceria. O local escolhido desfavoráveis as condições de existência nessa ilha, mas tais dificuldades devem
era o profundo fiorde de Erico, agora chamado Tunugdliarfik, abrigado dos ter sido menos decisivas que o grande respeito, usufruído por Erico e suas
ventos frios por altas montanhas, a região mais favorável da Groenlândia do descrições fulgurantes das condições econômicas e climatéricas do novo país.
ponto de vista climatérico. Ao sul situava-se o Fiorde Einar, hoje Igalikofjord, Erico, o Ruivo, deve ter exagerado bastante; não é sem razão que o "Landna-
e entre êsses dois fiordes, numa língua de terra, a localidade principal, Gar- mabok" afirma que chamou seu país a "Terra Verde", "porque julgava que
dar. O Amitsuarsuk, o antigo fiorde de Herjulf, era a rota de água - devido mais pessoas o acompanhariam se o país tivesse um nome bonito". De qual-
à sua maior largura - na qual os barcos da Islândia e da Europa velejavam q~er maneira, a diferença entre a colônia oriental da Groenlândia e a Islân-
para Gardar, a rota que ficava, por mais tempo que as outras, livre de gêlo. dia não era tão grande que um islandês tivesse de temer tal emigração.
Percebe-se assim que o viking havia escolhido bem o seu novo estabeleci- Apenas faltava uma coisa: madeira. Enquanto a Islândia na época da to-
mento. mada do país era em parte, densamente florestada, não havia senão algumas
Erico, o Ruivo, não permaneceu por muito tempo na Islândia depois de bétulas mirradas na Groenlândia. Madeira flutuante, procedente da Sibéria,
sua volta do exílio. Partiu para a Groenlândia no verão seguinte, e dessa era jogada à terra pela corrente polar setentrional, mas de nada valia para
vez para lá permanecer. Também essa emprêsa é fielmente contada no a construção de barcos. Erico, o Ruivo, indubitàvelmente reconheceu essa
"Landnamabok". Além disso, é minuciosamente descrita pela "Saga dos falta, mas êle era antes de mais nada criador de gado e fazendeiro, não ma-
Groenlandeses" contida no "Heimskringla", ou "Vida dos Reis Noruegue- rujo. Talvez pensasse em receber a madeira necessária da Islândia ou da
ses", obra histórica, escrita na Islândia entre os séculos doze e treze. Essa Noruega sem maiores dificuldades. De qualquer maneira não fazia idéia de
descrição baseia-se essencialmente na tradição familiar dos mais notáveis na- qu~ a falta de madeira se tornaria um dia fatal e que, a despeito de seus
vegantes que haviam viajado para a Groenlândia e é considerada um do- cuidadosos exames, sua decisão de colonizar a Groenlândia havia levado a
cumento sóbrio e objetivo. Seguem os dois relatos. Diz o "Landnamabok": um beco sem saída.
"Assim dizem homens informados que nes te verão partiram vinte e cinco navios do Como revelam os relatos do "Landnamabok", localizavam-se tôdas as po-
Fiorde de Breida para a Groenlândia. Mas apenas quinze chegaram lá. Alguns voltaram, voações, sem nenhuma exceção, nos fiordes. Isto constitui diferença funda-
outros afundaram nas ondas. Isso deu-se quatorze ou quinze invernos antes que o cristia- me~tal entre a colonização da Groenlândia pelos vikings, e sua ocupação pos-
nismo fôsse aceito na Islândia ... ". tenor _pelos esquimós. O esquimó conservou-se fiel ao mar e ao litoral. Era
e:cclusiVamente caçador e pescador, e viveu, por isso, na faixa externa cons-
A "Saga dos Groenlandeses" relata quase o mesmo que o "Landnamabok", ttt~ída de ilhas e de escolhos, em volta da costa da Groenlândia. Apenas no
mas introduz com os filhos de Erico, o Ruivo, e de Herjulf novos nomes e vera? ~ntraria ocasionalmente país adentro, para empreender a caça às renas.
pessoas na descrição dos acontecimentos, pessoas com as quais ainda nos O VIkn~g. por outro lado, era, antes de mais nada, um criador de gado e
ocuparemos em capítulos posteriores dêste livro. O livro dos groenlandeses ~;u~ndeiro. Dependia dos campos e das pastagens, e por isso, procurava o
relata: hmterland" próximo aos fiordes, de chma particularmente favorável. As
"Herjulf era filho de Bard, que era filho de Herjulf (... ). Sua mulher chamava-se Thorgard
terras ao interior dêsses fiordes viam-se protegidas dos ventos gélidos pelas
e Bjarni o filho de ambos. t ste era um homem audaz e empreendedor. Ainda jovem e~carpadas paredes de rochas, sendo por isso mesmo sua temperatura mais
aventurou-se em longas viagens marítimas. Nisso granjeou fortuna e fama de valoroso. e ~vada em diversos graus que a das terras em redor. Houve mesmo quem
Alternadamente permanecia durante um inverno fora do pais e outro com seu pai. Não afumasse q_ue ocasionalmente maçãs amadureciam naquela região e, de qual-
demorou e Bjarni teve um navio próprio para suas viagens marítimas. No último inverno, quer maneua, informou um dos padres da Groenlândia, Ivar Bardsen, que
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viveu em n:eados do século quatorze, que ali existiam "frutas com a forma astos dos normandos definharam e transformaram-se em estepes de líquens.
de verdadeiras I?açãs e o mais excelente aroma", e Hans Egede afirma que ~uitos dos fiordes se tornaram inacessíveis pelos blocos de gêlo desprendidos
n? século _dezoito era possível, e~ partes especialmente favorecidas pelo das geleiras. O ~ue nos leva à dedução d~ q':le nos pri~cípios d_a Idade Média
chma, cultivar nabos e couve. HoJe em dia conseguem os habitantes da 0
clima era mais moderado e a flora mais nca que hoJe em dia.
Groenlândia, com métodos apropriados, cultivar rabanetes, batatas e cenou- Em regiões climatericamente tão precárias quanto as áreas subpolares de
ras. Tam~ém_ não há ?úvida de que os vikings eram capazes, no início de sudoeste da Groenlândia, porém, as menores alterações de clima traziam con-
sua colomzaçao, de cnar cavalos e porcos - se bem que isso já não seria sigo conseqüêl!cias funestas. Já antes dessa alteraçã~, que se ?e~e ter verificado
po~sível hoje. Mas logo g_ue nos aprofundamos um pouco pela terra adentro, em época ma1~ ou menos recen_te, tornav~-se poSSiv~l a cnaçao do gado_ e _a
deixando a área dos bordes, principia a região do solo perpetuamente indústria leiteua apenas nos bordes abngados, cujas temperaturas estiVais
gelado. mais elevadas faziam viável o cultivo de pastos extensos. Mas mesmo aqui
Esta re&ião de fiordes, situada no litoral, era o verdadeiro campo de ação era bastante diminuta a estação quent~. A água principiava a. congelar em
fins de agôsto e durante outubro cobnam-se os bordes com gelo. Os meses
d?s. colomzador_es groenlandeses; sua situação peculiar explica por que os que se seguiam eram difíceis para todos aquêles que não haviam cuidado de
vikmgs e_r<l:m ali ao mesmo tempo pescadores e criadores de gado. É verdade armazenar tôdas as necessidades para o inverno, principalmente porque os
que os YI~mgs groen~an?eses yoss~lÍam hereditàriamente a inclinação para as componentes leguminosos de sua alimentação - consistindo de pequenos
duas ativida?es _econom1cas !:o dife~entes. També_m na Noruega, como mais frutos silvestres e algumas gramíneas e algas comestíveis - eram mmto pouco
tarde na_ Islandia, era a regiao de fwrdes seu mais comum terreno de ativi-
adequados. As dificuldades de colhêr a quantidade suficiente durante as
dades, VIsto _o pl_analto situado n~ interior permitir a pastagem apenas em poucas semanas em que reinavam condições atmosféricas convenientes eram
~asos excepcwn~Is. E dessa necessitava o nórdico com bastante premência,
tremendas, devendo-se ter em mente não se tratar apenas da alimentação para
Já porque a mawr parte de sua alimentação consistia em queijo leite e car-
ne. César relata isso dos germanos; sabemo-lo também da Noru~ga e da Is- os sêres humanos, mas também para os animais.
A maior porção do feno obtido era consumida pelas vacas. Durante a maior
lâ~di~. O "Espelho dos Reis", uma espécie de livro didático para jovens
parte do inverno, as ovelhas, as cabras e os cavalos tinham de contentar-se
pnnCipes, escnto por volta de 1225 na Noruega, diz o seguinte sôbre a ali- com muito menos do que recebiam elas. De acôrdo com dados islandeses an-
mentação na Groenlândia: tigos, cêrca de 12 quilogramas eram atribuídos a cada vaca diàriamente. Desde
" ...Quanto_ à s_ua pergunta, se por lá existe cultivo de cereais ou não, creio que o país que o inverno, durante o qual as vacas ficavam estabuladas, se estendia na
pouco proveito tua do_ mesmo. M~s há homens, e são justamente os tidos por mais distintos Groenlândia por cêrca de 220 dias, podemos afirmar que cada cabeça consu-
, e poderosos, que cultiva~ ce~ea1.s a título de experiência. A grande maioria neste país mia uma média de 2.640 quilogramas de feno. Uma fazenda média da Colô-
porém, não sabe o que SeJa pao Já q_ue nunca o VIU ( •. •). Consta que na Groenlândia haja nia Oriental possuía cêrca de vinte cabeças, e necessitaria portanto de 450
bons _prados e grandes e boas propnedades, pois os habitantes têm muito gado bovino e
carneuos, abundante produção de manteiga e queijo de que na maior parte se alimenta a
toneladas de feno para alimentação dos animais. Do próprio ponto de vista
população, além de carne e caça de tôda espécie, tal como a carne de renas, de baleias e da mão-de-obra envolvida, tratava-se aqui quase de uma impossibilidade,
focas, e da carne de urso. É assim que se alimentam os habitantes naquela terra ... " especialmente porque a maior parte dêsse feno teria de ser transportado atra-
vés dos fiordes em barcos.
Em ~no~ de temperatur~ elevada, contudo, conseguiram os vikings da A dificuldade de alimentar os animais durante o inverno fazia com que sua
Groenlandia levar os cereais ao amadurecimento. Tratava-se nesse caso de coJ?ida fôsse suplementada com peixes ou .despojos_ de peixes como ainda
espécies muit_o resistentes, como cevada e amofila. O "Espelho dos Reis", que hoJe acontece na Noruega, ou então que fossem alimentados escassamente,
relata o cult1vo ocasional de cereais na Groenlândia, acrescentou conforme como era costume, aliás, no inverno, nos países meridionais, durante boa
yimos acima: "A grande maioria neste país porém, não sabe o 9~e seja pão parte da Idade Média. Quando, em inícios da primavera, eram novamente le-
Já que nun~a o vm." É verdade que em escavações na Groenlandia foram vados ao pasto, estavam os animais geralmente tão magros e fracos que tinham
a~ados ~omhos de cereais perto das grandes propriedades dos vikings e ?e ser carregados. A produção leiteira caía, assim, a um nível baixíssimo no
amd';l hoJe cresce ali a amofila. Mas êsses moinhos de cereais podem também myerno, e conseqüentemente guardavam, isto é, tornavam az.êdo e salgado o
ter sido empregados para a moagem de cereais importados da Europa o que leite ?btido no verão, transformando-o em "skyr", espécie de coalhada, que
faz supor que o "Espelho dos Reis", em outros assuntos tão bem informado, poder~a ser guardada durante muito tempo em grandes tinas. Consideráveis
tenha também acertado neste particular: pão e cereais eram sem dúvida, qu_antidades de manteiga e queijo eram também preparadas e guardadas para
raros manjares na Groenlândia. ' o mverno. Desde que não havia falta de carne, principalmente de carne de
Os vikings da G!oenlândia viviam, pois, principalmente de lactidnios e foca,_ restringia-se a escassez propriamente dita a cereais e legumes. Enquanto
carn~. ~ mesmo hOJ~ rreocupam-se OS esquimós ainda, depois da pesca, com contmuava a comunicação com a Islândia e a Noruega não era êsse qual-
a ~naçao de gado, limitando-se porém quase exclusivamente a cabras e car- quer _motivo para preocupações, desde que a suplementação necessária de
neiros, enquanto os vikings criavam de preferência gado bovino. Na fazenda carboidratos poderia ser fàcilmente importada. Mais tarde porém, como ve-
de Erico, o Rui_vo, por exemplo, foram encontradas as ruínas de quatro es- rem~s . mudou essa situação.
tábulos, com baias para quarenta vacas. Perto de Gardar existia uma criação N Imcialmente era bastante densa a colonização escandinava na Groenlândia.
de gado ainda maior. Os dois estábulos, os maiores de tôda a Groenlândia, as extremidades internas dos fiordes, todos os vales, por menores que fôs-
acomodavam cêrca de cem animais. Mas mesmo a fazenda média na Colônia sem, estavam literalmente cobertos de fazendas; onde quer que se encon-
Oriental ~ev:ria ter entre quinze e vinte cabeças, um número bem conside- gassem alguns acres de prado e pastagem, estabelecia-se um agricultor viking.
rável. HoJe .esses vastos estábulos se acham numa paisagem escalvada. Os alcula-se que na Groenlândia inteira havia cêrca de 280 fazendas, das quais

232 233
dos povos. nórdicos de s~ adaptare~ às c<;mdições da zona ártica e. ~ubpolar -
adaptabil!dade que t;n~t.s tarde evtdenetaram também para regwes subtro-
picais, tats como a Stetha.
Os vikings encontrara~ outra di~ic~~dade na escassez de fe;r_o .. É verda~e
que existem vastos depósitos de mmeno de ferro na Groenlandta, na Bata
Disko, ao norte de Vestribyggd, onde os vikings possuíam suas principais re-
giões de caça. Mas êsses depósitos foram descobertos pela primeira vez pelo
explorador sueco NordenskJoeld, e não foram explorados antes de 1870. Por
isso dependiam os vikings da Groenlândia do limonito. Também dêste exis-
tiam depósitos consideráveis, mas a produção de ferro era grandemente difi-
cultada pela falta de combustível.
Tal como na Islândia, era a reserva florestal, já muito magra a princípio,
destruída por derrubadas contínuas e estragada pelo gado, que tinha pre-
dileção especial pelos brotos novos, de modo que se dependia da madeira de
arribação ou de importação da Europa e da América. Esta falta de madeira
impediu também, como já vimos a construção de navios, e quando a comu-
nicação com a Europa cessou completamente não encontravam os vikings
maneira de se retirar da Groenlândia. Inicialmente haviam tido contato tam-
bém com as reservas florestais da América, especialmente da "Marclândia"
("Terra Florestal"), que os vikings da Groenlândia descobriram por volta
do ano mil. Até meados do século quatorze foram empreendidas viagens entre
a Groenlândia e a Marclândia. O que é provado pela seguinte menção nos
"Anais Islandeses" do Bispo de Skalholt, na Islândta, para o ano de 1347.
"Chegou um barco da Groenlândia, ainda menor que as pequenas naves islandesas. Entrou
no fiorde Straum sem possuir qualquer âncora. A seu bordo estavam 17 marujos que se
haviam dirigido para a Marclândia, tendo porém sido impelidos para cá pela tempestade."

Mais tarde parece que tais viagens a longa distância se tornaram cada vez
m~nos freqüentes até que cessaram de vez, talvez porque os vikings, subnu-
t~t~os devido ao colapso de sua criação de gado, Já não possuíam fôrça su-

••• ftctente e talvez porque, devido à falta acentuada de ferro, não possuíam
pregos com que pregar as l?ranchas de navios maiores. Tal explicação lança
•• uma luz terrível sôbre a situação das gerações posteriores da Groenlândia.
Sem ferro, sem madeira, sem nutrição adequada, tornara-se impossível a ma-
nutensão de seu modo de viver ou de seus hábitos culturais. Em país que
• o~ereeta aos esquimós bastante espaço vital, era o viking condenado a sucum-
btr, desde que suas linhas de suprimento fôssem cortadas.

20km
7

XXII. Brattahlid, ~o Fiorde Eirik, . e Ga:dar, no Fio;~e Einar, os centros principais de Eys· Inicialmente, porém, não se cogitava dêsse perigo. Muito pelo contrário,
tn byggd, a Colôma Onental dos vzkm gs, na Groenlândia. ~ra bastante intenso o tráfego entre a Groenlândia e a Noruega durante um
om .esp~ço de tempo. O marujo cuidadoso, é verdade, tocava primeiramente
cêrca de. 1_80 perten~iam à C~lôni~ Oriental, Eystribyggd. A população deve a Is_l~ndta se quisesse dirigir-se à Groenlândia, mas depois a maior parte dos
ter-se avmnhado pms, dos tres mil. Se recordarmos agora que a população capttaes .P.arece ter preferido a rota direta. Esse trajeto os levava de Bergen,
atual das mesmas .extensões de te.r ra asce_?de a quatro ou cinco mil, que de- ou do vtzmho Heroe, via Ilhas Shetlands e Faeroer, passando pela Islândia
pende em sua mawr parte de ahmentaçao da Europa e da América, vemos ao ~ui, pa_ra o Cabo Farvel, o "Hvarf" dos vikin~s. Leif, filho de Erico, o
que prodigioso feito de colonização foi aqui realizado, em povoar tão den- ~utvo, fm, segundo as informações antigas, o pnmeiro a seguir êsse curso
samente êsse solo pouco produtivo. Demonstra também a grande habilidade treto. Sabemos de duas viagens que, é verdade, não decorreram sem múl-
234 235
tiplas dificuldades, mas Leif chegou ambas as vêzes ao destino que pretendera
atingir.
Nem todos os capitães tiveram sorte igual. Muitas naves afundavam sem
deixar qualquer rasto. Outras se perderam nos campos de gêlo que a Cor-
rente Polar traz ali do nordeste e que a Corrente do Gôlfo Impele contra a
costa oriental da Groenlândia, e seus marujos, êsses infelizes salvavam-se sôbre
o próprio gêlo para a praia rochosa e desabitada. Infelizes, porque então era
certa a morte vagarosa, e atroz, de fome e frio. Apenas uma única vez parecia
vingar a tentativa de escapar dêsse inferno de vendavais violentos, frio insu-
portável e solidão absoluta. O islandês Einar Thorgeisson, que se dirigiu para
o oeste, atravessou o gêlo continental em direção dos estabelecimentos dos vi-
kings e chegou com dois companheiros a uma distância de uma jornada das
primeiras casas. Ali as fôrças os abandonaram, e morreram a tão pouca dis-
tância, tendo sido encontrados e enterrados no cemitério de Herjulfsnes.
Mas apesar dos diversos naufrágios durante as viagens à Groenlândia, en-
contravam-se sempre homens destemidos, prontos a tentar a sorte. É verdade
que os lucros que podiam obter nessas expedições eram especialmente ele-
vados. Madeiras, ferro, cereais e sal, tudo 1sto eram mercaáorias de que os
habitantes da Groenlândia tinham necessidade urgente, e para as quais pa-
gavam preços elevados. É lógico que o pagamento se verificava na maneira
da troca. Ao lado de manteiga, queijo e lã serviam para isso as frisas groen-
landesas, por longo tempo muito cobiçadas na Europa Setentrional, além de
peles, tais como peles brancas e azuis de rapôsas, de ursos polares, dentes e
peles de morsas e dentes de narval. f.stes três últimos artigos eram particular-
mente desejados pelos capitães-mercadores europeus. Enquanto os piratas
sarracenos tornavam difícil, no Mediterrâneo, o acesso ao marfim genuíno
dos elefantes, os dentes de morsa eram considerados um substituto perfeito.
Tratava-se de mercadoria tão estimada quanto em épocas anteriores o âmbar
havia sido para as tribos teutas no Mar Báltico, compensando mesmo a via-
gem longa à Groenlândia que, como se sabe, era considerada o "fim do mun-
do". Também os dentes de narval gozavam de alta estima, principalmente 48. Colônia (Reno) , em 1490. À frente um "knorr':: p~r~ o COJI?-ércio .~om a Islândia.
porque eram depois apregoados como procedendo do mistenoso unicórnio, Xilogravura de Guilherme Pleydenwurff para a Croruca Uruversal de Haru;nann
atribuindo-se-lhes milagrosas propriedades medicinais. Schedel, escrita em 1492. O desenho para essa xilogravura é de provável autona de
f.sses dentes de narval eram, por assim dizer, um monopólio dos escandi- Albert Duerer.
navos da Groenlândia, tendo durante muitos anos contribuído para manter
vivo o comércio com a Europa. É que a caça às morsas era empreendida verão após verão para a Baía Disko, sen~o indubitável que a .caça de anim.ais
também pelo noruegueses, nas águas a leste de Novaya Zemlya, e era natu- que sabiam defender-se tão be!ll proporcw_n~va aventuras excitantes, espeClal-
ralmente mais barata para os comerciantes da Europa Central a compra do ment~ caras aos corações dos mtrépi~os ~Ikmgs. Quan~o os barcos voltavam
produto na Noruega que velejar todo o caminho para a Groenlândia. A êste em fms do verão para as suas aldems, eles eram ansiosamente a~arda~os.
fato cumpre acrescentar que o sistema de comumcações através do Mediter- Uma boa caça assegurava para o outro ano a troca por cereais, metais e arugos
râneo se tornava cada vez mais seguro, de tal modo que a obtenção de mar- preciosos com os europeus.
fim de elefante passava a ser relativamente fácil. Mas o mais importante fator Desta maneira, foram verdadeiras cargas de dentes de morsa e n~rval en-
foi o cair da moda do marfim. Os groenlandeses continuaram, então, a gozar viadas da Groenlândia para o sul. Inicialmente eram essas mercadon~s trans-
do intercâmbio com outras nações graças ao dente de narval, que durante portadas quase exclusivamente em navios de carga noruegueses. Mais. tarde
muito tempo continuou sendo objeto da superstição. Da mesma maneira con-
tinuaram cabos de peles de morsa a ser produtos disputados, para o que, de os "koggen" hanseáticos, um tipo que se prestava melhor par~ longas VIagens
tempos antigos, constituía a cidade de Colônia, no Reno, o mercado princi- t~ansoceânicas, participaram do comércio c?m. a Groenlandia. ~ fato de a
pal. Era daí que cabos para âncoras e cordas para velas, todos feitos dessas Cidade hanseática de Colônia ser o centro pnne1pal para o comé~c10 .das peles
peles, eram exportados para tôda a Europa. de morsa sugere que grande parte do comércio com a Groenlandi~ passou
Mas não era muito fácil caçar morsas. Algumas eram encontradas na costa para as mãos de navegadores hanseáticos. As numerosas p~ças de ~a1ança de
oriental da Groenlândia, por isso visitada por pescadores escandinavos, que origem renana, encontradas na Groenlândia, dão pêso amda maiOr a essa
porém nunca devem ter passado além de Angmagssalik. Eram principalmen- teoria.
te caçadas em "Nordrsetur", a região de caça na área da Baía Disko a 70° De qualquer maneira é certo que já por volta .de 1~0~ o. C_?mércio ~a
Norte. Há documentos que falam de numerosos barcos de caça, velejando Groenlândia com a Noruega entrou em face de rápida dimmUiçao. A razao
2~7
236
era que amari~ha comercial norueguesa se tornara demasiado obsoleta. Ainda uma ofensa capital, e quando alguns marujos foram impelidos para lá por
~mprega.~a mmto~ barcos a remo, de bordos baixo.s, enquanto que todos os uma tempestade em 1389, viram sua vida depender de um fio de cabelo. A
koggen . hanseátiC?S era~ de bordos altos e providos de velame. Necessita- união entre a Suécia, a Noruega e a Dinamarca, assinada em Kalmar em
vam por Isso, de tnpulaça<? menor,. levavam m.ais .carga e ofereciam mais se- 1397, que conferiu as três coroas à Rainha Margarida da Dinamarca, levou
gl!rança em .alto mar. Capital considerável tena sido necessário para moder- a navegação oficial à Groenlândia a uma paralisação completa. · Ao govêrno
mzar a m.ann~a merc~nt~ norueguesa, mas ll:qu.êles poderes que poderiam de Copenhague, a colônia da Groenlândia parecia ainda mais remota que
ter f?rn~odo es~es capitais, os grandes propnetários de terras, temporais e parecera aos noruegueses. É compreensível que à Rainha Margarida não
eclesiástiAco~, havia~ começado a retirar-se do campo do comércio com terras mteressava fazer reviver o comérCio com a Groenlândia.
transoceamcas, devido aos seus enormes riscos e agitações. A prosperidade Com<? já indica~os, foi a. lacuna da navegação mu.itas vêzes preenchida
geral durante êsse período da Idade Média, garantia-lhes lucros adequados pela Liga Hanseática. Velepndo para a Groenlândia, transgrediam não
na ve~da de seus cereais e .outros produtos agrícolas. apenas a lei norueguesa, mas também seus próprios regulamentos, tais como
. Havia outros obstáculos Importantes. A Escandinávia foi duas vezes afli- estabelecidos repetidamente pela Dieta Hanseática. Em 1416 foi pronuncia-
gida pela peste. Entre 1349 e 1351, durante o primeiro ataque da terrível da a proibição sôbre viagens às Ilhas Shetland, órcades e Faeroer e a Dieta
doença na Noruega, milhares e milhares de pessoas encontraram a morte· em Hanseática estendeu essa proibição expressamente à Islândia, durante sua
1392 nova~ente grassou a m~sma doença terrível, ameaçando todo o paÍs de reunião de 143~. Mas as cid~des hanseáticas, especialmente Hamburgo e
despopu]açao. Um a~10 .depoi~, em 1393, Bergen, o pôrto principal para a Bremen, comerciavam apesar disso extensamente nos mares setentrionais, par-
navegaça? à Groenl.andia, foi atacado pelos piratas, que o devastaram de ticu_larmente com a Islândia. Pode ser presumido que boa parte das merca-
tal maneira que mmtos. ano: fora!?. necessários. par~ sua reconstrução. obvia- donas, transportadas pelos navios da Liga Hanseática, ia de lá à Groenlândia.
mente, comparando a situaçao aflitiva com os mteresses comerciais na Groen- Até que ponto esta última foi incluída diretamente no campo de ação de
lândia, devem os marujos norue~ueses ter dado atenção muito menor a seu navegantes e comerciantes da Liga continua sendo questão aberta.
contato com aquela ilha dos vikmgs. Em todo caso há provas de que ainda no século dezesseis dois navios de
Mas o golpe ~inal e decisi.v? contra a na~~gação à Groenlândia foi provà- f!amburgo foram ·:desviados" para 3_1 c<?sta da Groenlândia em rápida suces-
vel.mente desfendo pelas. di.flculdades pohtlcas. Por determinação do Rei sao, durante sua viagem para a Island1a. Parece que não desceram à terra,
Enco VI ~a Noruega, o direito de comerciar com a Groenlândia era reserva- na Groenlândia, as tripulações dêsses dois navios, que voltaram para Ham-
do exclusivamente aos mercador~s . norueguese.s, especi~lmente àqueles de b_urgo. em 1. 0 de julho de 1537 e 9 de agôsto de 1539, respectivamente. Mas
Ber~en ..Todos os ~utros eram p~Olbidos de ~eahzar tal viagem. Essa determi-
eis afirmação mmto duvidosa. Pois alguns anos depois, em 1541 uma "kraf-
naçao. visa':a. especialmente a Liga Ha~seáuca, mas na prática restrin~iu as fel", o maior tipo de embarcação hanseática da época, foi enviada pela ci-
própnas !tividad~s .dos. norueguese~ ..P01s que o Estado Norueguês utihzou a d.ade de . Hamburgo para explorar a Groenlândia. Certamente não teria
outorgaçao. de pnvilégws e exclusividades de 1294, para criar o monopólio Sido reahzada essa expedição sem alguma esperança razoável de êxito, e
do comérciO com. a Groenlândia para êle próprio. Desde 1261, quando os podemos estar certos de que o propósito da expedição era fazer com que
groenl~ndeses,se hgaram à Noruega, um navio mercante do govêrno, o cha-
o. tráfego entre a Islândia e a Groenlândia passasse para mãos hanseáticas. A
mado Knorr , parece ter navegado entre Bergen e a Groenlândia e é de supor v!agem .ce~tamente não foi empreendida somente para uma exploração teó-
que uma Aofe~ta norueguesa .de garantir um serviço de tráfego regular com nca, p01s Isso não seria incumbência de navio do maior tipo. Essa expedição,
a Groenlandia tenha constituído poderoso atrativo para que os vikings P.orém, fracassou, tendo sido abandonada porque não chegou a "topar com
groenlandeses a~>andona.ssel? a sua independência. De fato, também em do· seres humanos". A parte do relato que aqui nos interessa, assim reza:
cl!mentos post~nores, pnnopalmente da primeira metade do século 14, é men· " ~ ano passado, uma "kraffel" foi enviada pela primeira vez à Groenlândia, a fim de
cwnado repetidamente êsse "Knorr da Groenlândia". e':ammar aquela terra. O capitão chamava-se Geraldo Mestemaker. Encontrou a terra, mas
nao conseguiu topar com sêres humanos. Por isso voltou imediatamente para a sua pátria."
APa:a então. garantir a existência dessa linha governamental, para a Groen-
landia, m.antida pela coroa, naturalmente assaz dispendiosa em virtude do Desconhecemos o que realmente aconteceu nessa expedição de 1541, e se
elevado nsco, parece que o privilégio de 1294 foi interpretado de tal modo Mestemaker aportou na costa leste, desabitada, da Groenlândia. Mas parece
que todo o transporte de pessoas e mercadorias na rota da Groenlândia era quas.e certo que sua viagem ao Oceano Ártico foi uma das últimas realizadas
e~e~uado exclusivame?te .Pela linha ofi~ial. Seja como fôr porém era proibido
parAtmdo .da Europa Central. Com seu fracasso rompeu-se também o último
VIaJar parll: a Groenland1a s~m consentii?ento real.' como também era proibi- e tenue fw que ligava a Groenlândia dos vikings ao Velho Mundo.
do com~roar . com el~ sem h~ença especial. É óbvio que o monopólio da co-
roa, assim cnado, nao contnbuía para favorecer o comércio com a Groen-
lândia .
. Em 1369 um dos Anayios reais noruegueses, encarregados do serviço marí·
timo ~om a Groenlandia, bateu em um escolho não longe da costa durante
sua viage~ de volta a Bergen. Tôda a tripulação foi salva, mas perdeu-se a 8
embarcaçao com sua. carga, indubitàvelmente muito preciosa. Parece que
essa desgraça d~termmou o fim do tráfego oficial entre a Groenlândia e a Certos liames com a Europa foram firmemente mantidos durante tempo
~rpre~ndente~ente prolongado. Um dêsses liames foi com a Igreja de Roma.
~oruega. Mas Isso não fêz c?m que a proibição do tráfego e do comércio
fosse levantada. Pelo .contráno, essa proibição foi ainda intensificada, pois t Igrep Catóhca representava papel de importância, tanto no extremo nor-
e como em todo o resto da Europa medieval. A rígida organização da Igreja
que a Coroa fêz considerar qualquer viagem não autorizada à Groenlândia
239
238
ofereceu aos poderes existentes na Groenlândia, assim como em outra parte,
um meio eficiente para operar. Acima das rivalidades mútuas dos fa-
zendeiros dos fiordes, estabelecera-se assim um poder central, cuja pre-
sença se fazia notar através dos padres, mesmo para o mais humilde dos
campônios. É verdade que a tradição reza que Erico, o Ruivo, rejeitou 0
cristianismo, mas não parece que êle aceitou novamente a crença anterior.
Quando o seu pilar sagrado fo1 arremessado ao litoral, numa região que lhe
pareceu desfavorável, não hesitou em corrigir êsse êrro da parte do Destino,
construindo sua casa em Brattahlid, lugar de sua própria escolha. Quando o
cristianismo foi levado à Groenlândia no ano 1000 por seu filho Leif, não
abraçou a religião católica, é verdade, mas também não tomou medida alguma
para combatê-la. Como líder absoluto dos colonizadores da Groenlândia po-
deria fàcilmente ter evitado que o cristianismo ali se estendesse, mas assim
não fêz.
Não deve ser encarado de ponto de vista errôneo o problema, assim pro-
posto: não era tanto questão de fé mas sim de utilidade concreta e imediata.
Antes de mais nada dava a ligação com a religião ocidental aos colonizadores
dispersos pelos extremos do mundo uma comunicação com a Europa. É fora
de dúvida que os primeiros emissários cristãos não foram capazes de "conver-
ter" realmente os desabridos lavradores dos fiordes groenlandeses. Mas trou-
xeram consigo e mostraram a utilidade de pregos, cereais, armas, sal, vidro,
facas, machados, pontas de flechas e de lanças, e nos seus navios ainda havia
muitas outras utilidades ou especialidades às vêzes há muito carecidas, como
por exemplo o vinho; motivo muito importante para tratá-los com amabi-
lidade.
Obviamente conseguiu o cristianismo impor-se com relativa rapidez. Com
isso entrou também êste "fim de mundo" em uma esfera de maior atenção.
Brevemente após a fundação do arcebispado de Lund foi consagrado um bispo
groenlandês. Tratava-se de Erico Gnupson, da antiga estirpe islandesa dos Foto aérea de Brattahild. No primeiro plano, estábulos e celeiros; à direita, a ruína da igreja
Valthoefling. Em 1112 êle partiu da Islândia para assumir o seu bispado. e o cemitério; ao fundo, com a frente para o mar, a casa de Erico, o R uivo.
Provàvelmente estabeleceu-se em Vestribyggd onde consta ter sido estabele-
cida a primeira sede episcopal assim como a catedral. Nove anos depois
Gnupson partiu para a Vinlândia nunca voltando dessa viagem. Em 1126
veio Arnaldo, o segundo bispo. Estabeleceu-se em Gardar, na colônia orien-
tal e doravante foi ali a sede episcopal da Groenlândia e, portanto, o centro
espiritual-político das colônias. No grande saguão da sede episcopal encon-
travam-se os anciãos e os chefes dos fiordes nas suas assembléias, ali eram
recebidos os viajores da Islândia e da Europa, para ali também se dirigiam
os comerciantes com suas mercadorias. Próximo da côrte do bispo erigiu-se
nos decênios seguintes uma catedral, edifício muito imponente para con-
dições groenlandesas, que ostentava mesmo janelas de vidro: fato surpreen-
dente, visto a fabricação de vidro haver caído no olvido na Europa na época
mencionada. Os mosteiros não tardaram a surgir. No auge do desenvolvi-
mento, possuía a Groenlândia um mosteiro e um convento de freiras, além
de dezesseis igrejas e capelas, das quais quatro na pobre Vestribyggd enquan-
to as outras doze se situavam em Eystribyggd - sem dúvida uma prova da
abastança que deve ter reinado nesse longínquo pôsto avançado do homem
branco!
Mas o trajeto para a Groenlândia era longo e as condições de vida difíceis,
mesmo para os dignitários eclesiásticos. Daí o fato de os bispos não se apres-
sarem geralmente a ir para Gardar, e se uma reunião eclesiástica os chamasse
a outra parte do mundo, passavam muitas vêzes anos e ·anos antes que re-
tornassem à sede de seu bispado. Durante o século quatorze, essa diocese
Nordrsetur - lugares de pesca dos vikings, ao norte da Groenlândia. Os esquimós chamam
tal região de "Umanak", isto é, a região "que paralisa o coração".
240
mais setentrional da Igreja de Roma ficou deserta quase vinte anos: a Groen-
lândia não teve bispo de 1349 até 1368.
Durante tal período o n:uito pie.d~so .Rei Magno Eri.kson da .Noruega,
que considerava a propagaçao do cnstiamsmo sua obra VItal, supnu a falta
do bispo. É talvez graças a êle que os vikings da Groenlândia !>obreviveram,
pelo menos em Eystribyggd, nos anos difíceis dos meados do século quatorze.
Mas sua ajuda chegou demasiado tarde para Vestribyg9d, que aparentemente
foi destruída em 1342 por um ataque dos "skrcelings', os esquimós. As pri-
meiras notícias a êsse respeito, chegaram à côrte da Noruega pelo Padre
Ivar Bardsen de Gardar, recebidas ali em 1348. Bardsen dirigiu-se em 1341
à Groenlândia. Um ano mais tarde recebeu ordens para dirigir-se a Vestri-
byggd, e verificar o estado dessa colônia. Eis o que relata acêrca dessa sua
expedição:
une Eystribyggd para Vestribyggd navega-se durante doze dias. Nada existe além de
desolação. Em Vestribyggd existe uma grande igreja, que fica em Stesnes. Durante certo
tempo era a igreja principal e a sede do bispado. Os "skrrelings" saquearam agora todo
o estabelecimento, de tal maneira que ali existem só cabras, carneiros, cavalos, todos êles
selvagens, mas sem que existam sêres humanos, sejam cristãos ou pagãos. Tudo isto foi
dito pelo groenlandês Ivar Bardsen, durante muitos anos sacristão em Gardar. .ele próprio
viu a extensão da destruição, tendo sido entre os que foram enviados a Vestribyggd para
combater os "skrrelings". Quando chegaram, porém, não encontraram ninguém, cristão ou
pagão. Encontraram algumas cabeças de gado, que pastavam. Comeram do gado e levaram
consigo tantas quantas cabiam no navio. Depois retornaram para Eystribyggd."

í'.sse relato sóbrio, e outros do mesmo gênero, manifestamente impeliram


o Rei Magno Erikson a enviar sua grande expedição de socorro alguns anos
após. í'.sse empreendimento, que veremos mais de perto, estava sob o comando
de Paulo Knudson, membro da Guarda Real, homem poderoso e respeitado.
Fêz-se ao mar em 1355. Sabemos qual a ordem real para essa expedição.
Os "shraelings" ajJTaximam-se em canoas com re1nos de duas pás. Os vihings da América não Desde que é importante para nossa narração, vamos aqui transcreve-la:
conheciam essa espécie de bm·co e estranhamm o movimento do remo.
. "Magno, pela Graça de Deus Rei na Noruega, Suécia e Skonen, deseja a todos que
VIrem êste ou ouvirem dêste escrito, muita saúde e fortuna, - Queremos fazer saber a
Vós, Paulo Knudson, que deveis ser o líder daqueles que viajarem no "knorr", sejam seus
nomes mencionados ou não, de minha Guarda Pessoal ou outros que quiserem ir convosco
~ que tereis, como comandante do ''knorr", autoridade completa para nomear aquêles que
JU!gard~ melhores para a expedição, oficiais e soldados. Pedimos que esta nossa ordem
seJa aceita com a boa vontade que a causa demanda, pois a enfrentamos pela honra de
Deus e pe.lo bem-estar de nossa alma e de nossos maiores, que levaram o cristianismo à
Groenlândia e o mantiveram até os nossos dias. Estamos decididos a não deixá-lo extinguir-
se. Quem a nossas ordens assim dadas desobedecer, sentirá nosso desagrado, pagando cara
~ ofensa. Redigida em Bergen, na segunda-feira após São Simão e São Judas, no 36.0 ano
e nosso govêrno. Selada e firmada por Nosso Chanceler Orm Oesteinson".

Não são sabidos quais os sucessos dessa expedição à Groenlândia. Mas


tratava-se, sem dúvida de um grandioso e determinado ato de Estado, que vi-
sava dar ~ssistência aos groenlandeses da colônia oriental que se encontravam
~m má _situação - pelo menos destinado a remover de amigos e inimigos a
•mpressao de que a colônia norueguesa fôra esquecida na mãe-pátria.

16 bis Conquista Mundo


Svalbard. Encoberto fJor nuvens espessas, cercado de gêlo, com montanhas am eaçadoras - assim
aparece Svalbard, a "costa [1·ia" dos vihings. É a atual Spitzbergen.
9 As escavações realizadas na Groenlândia não puderam, até os nossos dias,
6ervir de confirmação para nenhum dêsses relatos, se bem que investigação rea-
MestnD durante ai últimas dé.mdas de existência da colônia da Groenlân- lizadas em Vestribyggd revelassem traços de devastação em uma das maiores
dia, não foram exclusivamente os piedosos reis católicos que se preocupavam fazendas da região, os quais tornam verossímil a fuga apressada de seus
com a sorte de seus protegidos, a própria Roma procurou enviar-lhes auxílio. proprietários. Lutas entre os dois povos, provocadas provàvelmente por ata-
É isso mais louvável ainda por ter sido o interêsse da época dirigido mais para ques a fazendas solitárias, podem ter-se realizado aqui ou acolá. De um modo
o oeste, - onde deslumbravam as costas da índia e de Catai (China), que, geral, contudo, confirmam as escavações dinamarquesas o quadro surpreen-
como se sabe, se imaginava situadas além do Atlântico, - do que para o dente com que se viu Ivar Bardsen frente a frente em Vestribyggd, no ano
norte, onde o gêlo e as tempestades eram um perigo constante. Juntavam-se
a isso as epidemias na Noruega e a decadência geral da Igreja, que se viu
atribulada pelos movimentos protestantes dos hussitas e de seus sucessores.
Não obstante, uma bula papal, escrita em 1492 pelo Papa Alexandre VI, em
que o declínio da vida religiosa na Groenlândia é duramente castigado, e no
curso da qual o monge beneditino Matias, que aparentemente viajou da Es-
candinávia para Roma com o expresso propósito de esclarecer o Papa, é no-
meado Bispo da Groenlândia.
Alexandre não teria, certamente, escrito tal bula, se não tivesse sido in-
formado da existência de uma comunidade cristã na Groenlândia e se não
acreditasse existirem meios para auxiliar a sua subsistência. Desconhece-se o
destino dêsse bispo, nomeado em 1492. Não é crível que tenha ido à Groen-
lândia, e de qualquer maneira não existem quaisquer documentos a êsse
respeito. Provàvelmente, como tantos de seus antecessores e seu último suces- 49. A pedra rúnica de Upernivik prova que os normanos, em viagem em-
sor, não conseguiu encontrar qualquer navio que o transportasse para o seu preendida nos fins do século XIII, atingiram a zona do 730 de latitude. A
bispado. Pois realmente existiU um sucessor, de nome Vincetius Pedersen inscrição diz: "Erlinger Sigratson, Bjorno Thordsson und Eindridi Oddsson
Kampe, confessor de Cristiano II da Dinamarca. tste foi nomeado Bispo da levantaram êste monumento no 7.o dia antes do dia da vitória"; porém não
Groenlândia em 1520 pelo Papa Leão X, seguindo sugestão do Rei Cristiano, foi possível interpretá-la integralmente até hoje.
tendo o rei prometido colocar um navio à disposição do novo bispo, a fim
de levá-lo à sua diocesse. Mas nem êste derradeiro projeto de estabelecer con- de _1342; tudo saqueado e abandonado, enquanto que nos campos pastavam
tato com os groenlandeses foi pôsto em prática. Acidentes vários, acontecidos ammais. Nada, existe, porém, a confirmar que se tenha travado alguma luta
a pessoas de importância para a sua execução, assim como dificuldades polí- encarniçada. Em parte alguma afirma Bardsen que igrejas ou propriedades
ticas, impediram Cristiano II de executar o seu projeto. O último Bispo de foram queimadas, podendo agora ser contempladas apenas suas ruinas. Diz
Gardar nunca chegou à ilha. êle _que os esquimós haviam saqueado a colônia, e que tudo era êrmo e de-
Por isso romperam-se, mais ou menos na mesma época em que cessaram sabitado. Tal afirmação, apoiada por escavações, é bastante estranha. O que
os liames políticos que ligavam a Groenlândia à Europa, também as relações real~~n.te aconteceu a Vestribyggd? Por que foi abandonada? E para onde
espirituais, que haviam perdurado durante cêrca de quinhentos anos. se dmg1ram os seus habitantes?
O aspecto religioso que tais liames ofereceram havia representado parte im- Mesmo hoje não existe resposta inequívoca ou convincente para tais per-
portante na determinação da atitude dos vikings para com os "slmelings", guntas. Mas há hipóteses, algumas das quais bastante viáveis. Conforme vi-
os esquimós. Aparentemente os esquimós já viviam na Groenlândia quando mo~ atrás, a piora do clima naquela parte do mundo durante a Idade Média
Erico, o Ruivo, ali se estabeleceu. De qualquer maneira faz Ari Frode tal fazia acompanhar-se, como mostraram investiga~ões em Vestribyggd, de mu-
afirmação em seu "Livro Islandês", que escreveu no primeiro quartel do danças n~ vegetação, provocadas por sêca repentma. Essa catástrofe, que deve
século doze. Mas naquela ocasião os vxkings não viram, aparentemente pelo ~er e:c~rndo efeito devastador, coincidiu aparentemente com o fim do perío-
0 v1kmg na Groenlândia. Já afirmamos d1versas vêzes que a criação de gado
menos, os esquimós. Parece que seu primeiro encontro não se verificou antes
do fim do século doze. Naquele período, assim relatam crônicas antigas, ex- ~ra a ?ase econômica de seu sustento. Desde que essa criação se tomara
~~p~~sivel, _enfrentavam a alternativa de adotar o "modus vivendi" dos "skr<e-
pedições de caça dos nórdicos da Groenlândia encontraram bem ao norte de mgs e alimentar-se exclusivamente de peixe e óleo de peixes, ou emigrar
suas colônias gente de tamanho reduzido, aos quais chamaram "skr;elings" · para outras terras.
"tles não possuem o ferro", afirmam tais crônicas, "e usam dentes de morsa
como armas de arremêsso e pedras pontiagudas como facas". N Os ..viki~gs de Vestribyggd parecem ter escolhido essa segunda alternativa.
os . Anais Islandeses" do Bispo de Skalholt, Gisle Oddson, encontramos a
No século quatorze sucederam-se as notícias alarmantes sôbre o avanço dos segumte menção no ano de 1342:
"skr;elings" no norte da Groenlândia. Já falamos da viagem inútil de Iva_r
Bardsen a Vestribyggd em 1342 e seu pedido de auxílio ao Rei Magno En- . ··~s habitantes da Groenlândia abandonaram propositadamente a verdadeira fé e religião
kson da Noruega. Mas há inúmeros outros documentos que falam de embates ~ 15~' e _tendo abandonado tôdas as boas maneiras e virtudes, voltaram-se para os povo:.
entre vikings e esquimós, tendo êstes devastado repetidas vêzes propriedades ~d mé~Jca. Há quem defenda a opinião de que a Groenlândia é bastante rente às regiões
lând~~-~~ ~s do mundo. Essa a razão para os cristãos abandonarem a navegação da Groen-
daqueles primeiros.
Z42 2'4!1
Deve esclarecer-se que, na torma aqui apresentada, essa documentação re- encontrado êsse povo misterioso em carne e osso pelo explorador islandês
veladora data apenas do século dezessete. Quando foram consumidos pelo Stefansson, na isolada Ilha Vitória, a alguma distância da costa setentrional
fogo os arquivos da igreja principal de Skalholt na Islândia, no ano de 1630, do Canadá. Stefansson partira no ano de 1908 para aquela região mal co-
o Bispo Oddson reescreveu de memória os documentos que considerava mais nhecida e considerada não habitada e mesmo não habitável _para ali procurar
importantes. A citação mencionada era um dêsses documentos, o que natural- os esquimós brancos. Em meados de maio de 1910, consegum Stefansson en-
mente reduz o seu valor como evidência. Mas, a despeito de tudo, não parece contrà-los no Cabo Bexley, na parte nordeste da ilha em questão. Eram
totalmente impossível. A América - a frutífera Vinlândia e a "Marclândia", temidos pelos outros esquimós como brutais e malévolos, mas provaram ser
bem aquinhoada de madeiras - não distava mais de poucos dias de viagem um povo agradável e pacífico, que deu as melhores vindas ao "kablunat", o
da Groenlândia e, como já vimos, existem testemunhos explícitos atestando homem branco, provàvelmente porque lhes parecia ser idêntico a .êles. A se-
uma viagem para a "Marclândia" efetuada pelos groenlandeses ainda em 1347. melhança chamou a atenção dos companheiros de Stefansson, que eram esqui-
Se bem que essa viagem dissesse respeito a marujos procedentes da Colônia mós êles próprios. Exclamaram: "f.sses não são esquimós apenas se vestem e
Oriental, não há razão pela qual devamos rejeitar a teoria de que habitantes se comportam como tais". O encontro com êsse povo estranho é vivamente
de Vestribyggd tenham sido igualmente capazes de percorrer o caminho cinco descrito pelo próprio Stefansson:
anos antes - principalmente porque, como frisa o relato, o navio da viagem "Quando vi aquelas pessoas à minha frente, senti-me nas vésperas de uma descoberta
à "Marclândia" era menor que os mais reduzidos barcos da Islândia. científica. Familiarizado, desde minha infância, com a literatura nórdica, lembrei-me dos
Pode inferir-se também do relato de Ivar Bardsen que os emigrantes não avenLUreiros escandinavos que, em grupos de uma centena, e por vêzes de um mil, desapa-
se haviam afastado tanto da Groenlândia que não pudessem voltar para bus- reciam de tempos em tempos pelas plenitudes do Oceano Ártico. Ou havia encontrado
car os seus animais. Afirma expressamente que havia gado, cavalos, cabras e prova insofismável para êsses acontecimentos históricos, ou então deparara com uma nova
carneiros em Vestribyggd. Nenhum dêsses animais teria sido capaz de sobre- interrogação. "Por que é que êsses "esquimós" se pareciam tanto com europeus se não o
eram, pelo menos por descendência? (...) Alguns têm bigodes louros, número menor apresen-
viver a um inverno ártico sem algum abrigo. Por isso deve Bardsen ter chega- ta barba dessa côr. Outros têm bigode castanho-escuro. Nunca havia visto essa côr no Oeste
do à Colônia Ocidental quase imediatamente depois da partida de seus habi- (~ackenzie, Al~sca). A~ui (na Ilha ~e Vitória) há indivíduos de barba espêssa, de um com-
tantes, que ainda não haviam encontrado tempo suficiente para retornar e pnl?ento de oito cent1metros, que JUnto às pontas se torna clara, embora seja escura no
levar o seu gado. De qualquer maneira não pode haver dúvida de que entre quelXo. Seus rostos, assim como as proporções de seu corpo, relembram escandinavos tos-
o lançamento nos anais de Gisle Oddson _para o ano de 1342 e o relato de tados pelo sol..."
viagem de Ivar Bardsen no mesmo ano existe íntima conexão.
Uma vez tomada essa decisão não tinham outra alterna tiva senão cruzar . f.sses não eram esquimós - tal também o pensamento de Stefansson. Passou
os estreitos de Davis e procurar terra no outro lado do m ar. A hipótese de diversos anc:s entre os "tunnits", escrevendo longo livro a seu respeito. Enquan-
que assim agiram - e não se trata senão de mera hipótese - é notàvelmente to . os esqmmós, sendo descendentes de tribos mongólicas, são de estatura
apoiada pelas numerosas informações acêrca da existência de "esquimós" ~a1xa,. d~ pele _am.arela, de cabelos pretos e olhos escuros, era a maiori_a dos
brancos, ai tos, louros e de olhos azuis. tunmts constltmda por gente alta, de pele clara, olhos muitas v.êzes cinzen-
A primeira dessas notícias nos vem de um capitão de barco de pesca inglês tos e cabelo ca~tanho-claro ou arruivascado. "Existem aqui três pessoas com
que, por volta do século dezessete, encontrou abaixo do 72° N, ao lado de barbas. quase tao claras quanto a minha própria", afirmou Stefansson a 16
baixos esquimós de pele escura, grande número de altos e brancos nativos, dbe maw de 1910, dia em que encontrou pela primeira vez os habitantes
b em proporcionados, cuja aparência lhe sugeriu imediatamente a mistura de rancos do Oceano Ártico.
algum sangue esquimó com grande parte de sangue escandinavo. . Nt;sse mesmo dia chegou ao cerne do problema. Os filhos de europeus e
John Franklin foi o segundo a chegar a essa área, habitada por esqun~ós e~q~.tmós têm freqüentemente o aspecto esquimó. Mas o aspecto dos "tun-
de aspecto europeu. Encontrou um dêsses "esquimós" louros em 1824, e ass1m nits - ~~~· sem dúvida, constituíam uma raça mista - era europeu. Duran-
os descreveu: te a me IÇ~o dos crânios de seus novos amigos chegou a idêntica conclusão:
"A face oval possuía um nariz proeminente, e era em pouco diferente de ros tos europeus, ~!tgro_po~'Ç?es não correspondiam àquelas de esquimós, mas sim de europeus.
excetuando talvez os olhos pequenos e a testa reduzida. Sua pele era fresca e vermelha e _stgmhc~ 9ue um grande grupo de europeus misturou-se com uma pro-
sua barba a mais comprida que já vi entre os nativos da América." po_~o .nume!ICamente muito inferior de esguimós. Por isso não pode essa
~VI enoa rac~al de contato ser derivada de visitas esporádicas, realizadas por
Treze anos depois, em 1837, dois exploradores americanos da região ártica, arcos, baleeiros; sabe-se, ademais, que rescadores de baleias e caçadores de
os Srs. Dease e Simpson, encontraram esquimós nas mesmas paragens. "Um pe es penetraram apenas em duas ocasiões até aquêle ponto antes de Ste-
dêles' ', assim informaram, "parecia um indivíduo fino, e poderia quase ter fansson.
passado por escandinavo". .. Daí_ continuar não resolvido, afirma Stefansson, o mistério •dêsses estranhos
A literatura referente às regiões árticas está cheia de informações seme_lhan- esqutmó
. s"·• e acre d 1tamos
' que o observador neutro aceitaria como a solução
tes. Foram coligidas e publicadas no comêço do século pelo sábio am~ncano :~~s.
1 1
provável os vikings da Groenlândia. Não apenas porque êstes eram
A. W. Greely, que com isso forneceu as bases para investigações dihgentes m ~ enteme~te numerosos para transmitir caracteres hereditários através de
do problema dos brancos naquela parte do mundo. E estas investigaçõ_es re~e­ tó~_Itas e mmtas g~rações, mas também porque a distância entre a Ilha Vi-
laram a existência de muitas lendas esquimós que se referiam à imigraçao,
levada a efeito há muitos séculos, de uma raça de estatura elevada, qu~ se
J
cidia os estabele~tmentos dos vikings era tão pequena que poderia ser ven-
eroa entr~ de mats ou menos um ano. "Se os esquimós de Vitória possuem
estabelecera em seu país. f.sses estrangeiros eram chamados pelos abor~gufe~ suas vetas realmente sangue europeu", conclui Stefansson, "então os colo-
"tunnits", tanto no Labrador quanto na Ilha de Baffin. Pouco depois 01
245
244
nizadores escandinavos da Groenlândia oferecem a única explicação histó-
rica possível de sua origem."
A suposição de que os vikings de Vestribyggd são os antepassados dos
"esquimós brancos" de nossos d1as, continua porém, e a despeito de tudo,
mera conjetura.
A data em que os últimos vikings deixaram a Groenlândia - fato que não
se liga necessàriamente a algum ataque efetuado pelos skrrelings - ainda PARTE VIII
está por ser determinada. De acôrdo com o testemunho do Bispo Oegmund
de Skalholt (Islândia), cujo navio foi arremessado para águas da Groenlândia,
enquanto viajava da Noruega para a Islândia, tanto êle quanto outros pas-
sageiros viram pessoas em HerJulfsnes quando por lá passaram em 1534. A A VINLÃNDIA
noite havia caído, mas tão próximos estavam êles do litoral, que nitidamente
conseguiram distinguir pessoas, estábulos, carneiros e cordeiros.
O último europeu a ver um viking da Groenlândia, se bem que êste já esti-
vesse morto, foi provàvelmente o capitão mercante islandês jon, que nave-
gava no trecho Hamburgo - Islândia, e a quem se deu a alcunha de "Groen-
landês". ~sse Jon Groenlandês fêz uma viagem em 1540, da qual afirma:
"Fui levado pelo vento à Groenlândia em um barco mercantil alemão, no ano de 1540.
:Esse navio penetrou por um fiorde, crivado de ilhas pequenas, algumas das quais ocupadas
por esquimós. Ficamos com mêdo de aí ir à terra, e, por isso prosseguimos viagem até
encontrar uma ilha pequena, desabitada, e isolada. Ali encontramos barracas para barcos e
muros de pedra, tais como existem na Islândia. Também vimos um morto, tombado com
o rosto para o chão. Na sua cabeça encontrava-se um barrete, bem tecido, e de resto roupas
feitas de pele de foca e frisa. A seu lado estava um punhal curvo com bainha correspon-
dente, entortado e muito desgastado, em virtude de ter sido frequentemente afiado. Leva-
mo-lo conosco como recordação."

Desde que, conforme vimos, o capitão hamburguês Gert Mestemaker não


encontrou ninguém na Groenlândia em 1541, isto é, um ano depois, foi pro-
vàvelmente o morto avistado por Jon Groenlandês, o último viking ali, sem
que ninguém J?Udesse enterrá-lo.
Em sua arroJada emigração para novas terras - as quais, de acôrdo com a
concepção geográfica dos antigos deveriam situar-se nas vizinhanças imedia-
tas de "Ginnungagap" (abismo aberto), o terrível redemoinho cósmico -
Erico, o Ruivo, não somente obedeceu a seu próprio destino. Foi incontrolà- Bjarni Herjulfsson, o primeiro marinheiro tran-
velmente impelido pelo novo princípio regedor do mundo, o qual, depois da
queda do Império greco-romano, mudou o centro de gravidade do futuro satlântico - Leif Ericson viaja para a Vinlândia -
desenvolvimento para o oeste e o norte. Devido à sua migração para a Groen- Ficava em Massachusetts a Vinlândia1 - O Prof.
lândia, Erico tornou-se o precursor daqueles que pouco depois chegavam E. F. Grey e "Leifbudir'' - Os vikings e o revól-
ao afastado país ocidental, no outro lado do oceano, que durante tanto tempo
constituíra o objeto das esperanças secretas da Europa. ver "Colt" - Mr. Dodd e o túmulo de Beardmore
- O que significa "leitadi"1 - Será a deserção per-
mitida a um bispo?- O Vaticano soubera da Vin-
lândia - Paulo Knudson e a Pedra de Kensing-
ton - O "skeleton in armour'' de Longfellow - O
"Native copper district" no Lago Superior- Mais
uma vez os índios mandãs - Será Magno um no-
me índio? - Os vikings e a expedição Pining - Pot-
horst - Bonés burgúndios na Groenlândia - Gio-
vanni Caboto descobre a Marclândia - Brasil, a
ilha das lendas - Estêve Colombo na Islândia!
Colombo e a tradição da Vinldndia.
246
1

Ao voltar da Noruega para o lar paterno em Eyrar, na Islândia, no verão


de 985, Bjarni, filho de Herjulf e Thorgard, não encontrou senão uma mora-
dia deserta. Soube, através dos vizinhos, que seus pais se haviam unido a
Erico, o Ruivo, e cruzado os mares em demanda da Groenlândia. Se bem
que Bjarni ainda não tivesse alcançado os trinta anos, já era navegante de
experiência e tirocínio. Não se deteve muito, antes de decidir juntar-se aos
seus na Groenlândia e ali passar o inverno, como anteriormente fizera na
Islândia. E foi no curso dessa viagem que Bjarni se tornou o primeiro euro-
peu de cuja presença na América temos evidência.
Voltemos, pois, ao relato do Capitão Bjarni a respeito de sua viagem para
o Novo Mundo. Partiu de Eyrar, na parte ocidental da Islândia, seguindo
durante três dias um curso oeste, até que a terra desaparecesse no horizonte.
Durante a época de favoráveis condições atmosféricas - e é evidente que
Bjarni esperou por tal época antes de fazer-se ao mar - permaneceram as
elevadas montanhas da Islândia visíveis a uma distância de cêrca de cem mi-
lhas. Por isso, no quarto dia de viagem, quando a neblina começou a reinar,
havia Bjarni alcançado um ponto a cem milhas para oeste da Islândia, no
Estreito da Dinamarca, e a apenas 60 milhas da Groenlândia. Mas agora, sob
céu cinzento, levantou-se um vento setentrional, impelindo o navio a curso
meridional, ou melhor, desde que o efeito da corrente da Groenlândia Orien-
tal deva ser levado em devida conta, a uma rota sul-ocidental. Isso proces-
sou-se de maneira idêntica durante muitos dias, conforme reza o relatório.
quando o Sol voltou finalmente a brilhar, Bjarni já não sabia de sua posi-
çao. Não conhecia a corrente da Groenlândia, uma vez que nunca estivera
naquelas regiões. E por isso não suspeitou do fato de ter sido levado para o
sudoeste, decidindo continuar em rota ocidental. A Groenlândia ficava a
oeste da Islândia, e por isso nada mais lógico que essa sua decisão. "tle e
seus .marujos haviam seguido tal curso durante um dia inteiro, quando re-
pentmamente se aperceberam de terra, de colinas e matas.
De que país poderia tratar-se? Inegàvelmente da América. Mas de que
parte de sua costa oriental? Dificilmente da Terra Nova, pois o litoral
d~ Terra Nova alcança a altitude de quase 800 metros. Não poderia ser des-
cnto como tendo "colinas", pois se trata de consideráveis elevações, princi-
palmente quando vistas do mar. Tampouco seria o Norte do Labrador, já
que em Port Manvers e Nain as montanhas alcançam bem mais de dois mil
jetros de altura, além de que o limite setentrional das matas se estende ao
ongo do par~lelo 57, de modo a apresentar ali apenas árvores esparsas. Mas
na parte._mendional de Labrador, na região da Angra de Hamilton, existe
uma reg1ao de baixada, por vêzes interrompida por algumas colinas, perfei-
tamen~e de acôrdo com a descrição de Bjarni. Aqui existem também grandes
extensoe~ ~ensamente cobertas de árvores magníficas, e uma vez que a terra
t~e os vxkmgs avistaram deve ter sido uma parte da América, existe possibi-
d ade acentuada a sugerir que se tenha tratado, na sua primeira viagem,
essa terra do sul de Labrador.
Após avistar o litoral desconhecido, assim ainda afirma o relato, deixaram-
no a bombordo, "isto é, à esquerda, e continuaram a velejar e depois de dois

249
Também em anos posteriores, e mesmo até a época atual, tem êle sido cen-
surado por isso. Há quem afirme ter êle desprezado a oportunidade de real-
mente descobrir a América, o que provaria justamente a pouca fidelidade
dêsse relato. O verdadeiro viking teria desembarcado para conhecer a costa
que defrontava. .
Segundo a opinião de Brõgger, porém, é exatamente essa recusa que prova
a genuinidade histórica da saga de Bjarni. A costa inteira de Labrador é
muito rasgada. Até a uma distância de 5 milhas marítimas diante da praia,
geralmente muito baixa, situam-se no mar ilhas, escolhos e recifes, que em
muito dificultam a navegação. Naturalmente havia Bjarni verificado essa
verdade, que o induziu à prudência. Acresce a antiga prevenção dos mari-
nheiros, que ainda hoje pode ser notada em tôdas as partes do mundo e
em tôdas as costas: "Acautele-se da terra do lado do vento; ainda antes que
chegue a noite, ela pode estar do lado de sotavento!" O quanto esta sabedoria
se aplica justamente para o Labrador, mostra um olhar para os boletins me-
teorológicos. No verão e em começos de outono prevalecem os ventos de
oeste e naturalmente o mar, protegido do lado da terra, é geralmente calmo.
Mas, de repente, o vento pode virar para nordeste. A terra, há pouco ainda
do lado do vento, estará a sotavento e grande é o perigo de os barcos serem
arremessados sôbre os escolhos pela brisa cada vez mais forte e as altas vagas.
Qualquer prudente capitão de veleiro mantém-se afastado da costa dentro do
possível - justamente o que Bjarni fêz e pelo que afirmaram que seu relato
carecia de confiança.
A vontade de Bjarni prevaleceu, e êle voltou para alto mar, levado por
vento sudoeste, velejando em direção geralmente do norte, mas mantendo-se
também alguns pontos para oeste. Depois de pouco tempo avistaram monta-
nhas elevadas e geleiras - um país que obviamente se assemelhava com a
Groenlândia! mas que não pareceu a Bjarni suficientemente convidativo.
Segundo as mformações que recebera acêrca da Groenlândia, falando certa-
ment_e de fiordes agradáveis e ricas pastagens, convenceu-se que também essa
ter~eira porção de terra avistada não poderia pertencer à Groenlândia. Supõe
Brogger que houvesse avistado a parte meridional da Ilha de Baffin onde,
além de montanhas elevadas, existiam também geleiras, o que não se verifica
no Labrador.
Que essa. terceira terra não pode ter sido em nenhum caso a Groenlândia
tom~-s.e evidente se atentarmos na última parte da narrativa. Ali diz que
--- --- os VIkmgs partiram para o mar aberto, com firme vento de sudoeste e que,
-- --------
LIMITE NORTE DA BATATA
atravessa!ld? tempestades com suas velas colhidas, alcançaram a Groenlândia,
nas proximidades de Herjulfsnes em quatro dias de viagem. Tal rota, de um
mod? _geral.em sentido leste-sul-leste, teria evidentemente sido impossível se
--- --- --------- ---- --- --- 05
VIkmgs tivessem realmente estado na Groenlândia. O terceiro pedaço de
terra pode apenas ter sido a parte meridional da Ilha de Baffin.
LIMITE NORTE DA CEVADA Assim sendo, é BJ'arni HerJ'ulfsson o primeiro homem de que possuímos
certa evi'dAenCia· de ter descoberto a América, com sua viagem realizada em
SOOkm 985
t · Consta que não voltou jamais a realizar essa expedição - surpreenden-
emente, cumrre acrescentar. Pois desde que tornou Herjulfsnes sua moradia
terma~ent~, cidade que é hoje chamada Ikigeit e fica na parte sudoeste da
XXIII. As costas do Labrador, da Terra de Baffin e do sudoeste da Groenlândia. cl~o~~landia, era de esperar que fôsse realizar viagens ocasionais para a Mar-
rea~ Ja -.conforme _chamaram em época posterior a região densamente flo-
dias voltaram a ver terra. Também essa estava coberta de floresta e os ma- : a à a, VIsta por BJarni - para suprir o reduzido estoque de madeiras. E
rujos de Bjarni pretenderam aproveitar a calmaria para ancorar ~ reabaste- r ov velmente realizou tais viagens, sendo que talvez delas não temos notí-
cer-se na. co~ta de água fresca e madeiras. Mas seu capitão. opôs-se violenta- ~~a apenas. horque a tradição de Bjarni foi menos forte que a história das
mente à Idéia, não levando em têrmo de conta a insatisfação que tal negativa 0
~er;ts bnl antes d~ seu sucessor, Leif Ericson, filho primogênito de Erico,
causou entre ·a tripulação. UIVO, e de Thorfm Karlsefni, um comerciante da Islândia. É indubitável

250 251
também que suas viagens adquiriram importância histórica apenas graças às . d ó disseram de Bjarni que não penetramos pela terra adentro. Mas antes
qmuee à ilha e chamá-la~ei "Helluland" (País dos Rochedos Calvos)".
0
expedições de Leif e Thorfin. dagam dae n s
Conta a saga que, depois da morte de seu pai, Bjami voltou a visitar a q uero
. r um no ente ao mar encontraram outro país, aproxamaram-se· d a cos t a e maas
·
Fazeram-se novam , . d - d
Noruega, sendo severamente repreendido na côrte de Erico, o Nobre, por Es ta terra era plana e coberta de árvores, e varam gran es extensoes e
uma vez ancoraram. . . .. á d • d
não ter explorado o país que avistara. Aborrecido com tais repreensões, vol· · b ca não sendo a costa escarpada. Dasse Leaf: Esta terra ter um. nome e acor o
tou à Groenlândia, onde manifestou livremente o seu descontentamento e sua :~:a su~:parência, chamá-la-emos de "Terr~ da flor~sta" (Markland)". Em seguida apres-
m-se mais uma vez para alcançar o navw e partir.
decepção, falando do novo J?aís, situado no ocidente. Seus relatos, assim in- sa~ vento vinha de nordeste, e êles velejaram durante dois dias antes de avistar terra
forma a saga mencionada, Impeliram os groenlandeses à procura da terra firme. Quando se aproximaram, chegaram a uma ilha_ ao norte dessa terra. Desembarcaram
nova. Aparentemente, portanto, foi apenas o desacôrdo de seus contemporâ- em boas condições atmosféricas, e perceberam que havaa algum orval_ho u_medec~ndo .a relv_a.
neos, que fêz ver a Bjami o fato de que aquelas terras novas, além do oceano Levaram casualmente êsse orvalho à bôca, e parecia-lhes não terem Jamaas sentado gosto tao
poderiam ser de alguma importância, de tal modo que começou a relatar a doce. . · d "Ih
sua viagem e o itinerário involuntàriamente seguido, que o levou à desco- Depois voltaram para bordo, e velejaram através de um estre~to satua o e?'tre_ essa. 1 a
e um promontório, que avançava para o norte, mas êles s~ mantiveram em dareçao OCiden-
berta. Por outro lado contribuiu também a questão de os groenlandeses se tal. Com maré baixa, a água era rasa, e seu navio repentmamente parou, tendo encalhado
aperceberem da enorme importância que tinha para êles a existência de um na areia de tal maneira que a distância entre o ':~avio e o m~r era b~stante gran~e. Mas
país com densas florestas, aparentemente ao alcance da mão. De qualquer êles estavam ansiosos por estar de novo em terra firme, e por asso desceram do naviO antes
maneira é surpreendente que êles não tenham tentado, acostumados como que a maré voltasse a ficar alta. .
estavam a longas viagens marítimas, procurar essas novas regiões descobertas Assim prosseguiram terra adentro at~ chegar a um ~~queno nacho, procedente de um
por Bjarni, antes do ano 1000, quinze anos depois de as tempestades terem- lago. Quando seu navio voltou à condação de navegabahdade, remaram _em seu peqt!eno
no levado para os litorais do que hoje é a América. barco até lá, levando-o até o lago onde ancoraram e começaram a constru~r alguns abngos.
Decidiram invernar naquela região e por isso principiaram a construçao de uma casa
espaçosa.
ão lhes faltava salmão, que existia no riacho e no lago, e um salmã~ de tamanho Sl;l-
perior a tudo que haviam visto até então. Julgavam ~s terras tão ~érteas, que não ser!a
necessário armazenar alimentação para o gado. Não havaa geadas no a_nverno e a !elva nao
ficou muito prejudicada com a temperatura daquela estação. O~ daas e as noates eram
divididos com mais igualdade que na Groenlândia ou na Isl~ndaa. .
2 Quando haviam terminado a construção daquela casa, Leaf declarou a seus marUJOS:
"Dividirei agora as nossas fôrças em duas partes, a fim de explorar esta terra; um _grupo
É apenas natural que a família de Erico, o Ruivo, rei não-coroado da Groen- ficará aqui e outro empenhar-se-á em expedições, mas não devem estas af~star-se m_aas que
lândia, tenha figurado entre aquêles que mais ardorosamente defendiam o uma distância de que possam retornar no mesmo dia, e todos devem facar reumdos a_o
embrenhar-se pela terra e não dispersar-se." Assim agiram durante um certo tempo. Le~f
plano de emigrar, uma vez o plano consolidado; e o primogênito de Erico, ? mudava de grupo, ficando às vêzes no acampa~ento e outr":5 acom_ranhando seus s~tborda­
próprio Leif, comandou a primeira expedição em grande escala às terras oCI- nados. Leif era um homem alto, forte e sóbno, e além dasso cmdadoso e metódaco em
dentais. É o seguinte o relatório do "Heimskringla" a respeito dessa expe- todos os seus empreendimentos. _ . .
dição: Certa noite aconteceu que um dos homens estava faltando. Tratava-se do suh?o Tyrkar.
!--eif ficou muito preocupado, já que Tyrkir havia yivido na casa. d~ seus paas desde a
"Deve ser dito agora que Bjarni Herjulfsson realisou uma visita da Groenlândia a Erico, mfânda, tendo mimado Leif durante os anos de sua JUVentude. Incnmmou os seus compa-
o Nobre, tendo sido recebido com tôda a fidalguia. Bjarni relatou-lhe sua viagem, durante nheiros, culpando-os do desaparecimento de Tyrkir. Quando se pôs a caminh~, com doze
a qual avistou as terras acima mencionadas; e opinou-se então que sua curiosidade acêrca auxiliares, para procurá-lo, encontrou-o a poucos passo~ do acampame~to. Leaf logo per-
dessas terras era estranhamente diminuta, desde que nada sabia relatar a seu respeito, e por cebeu que seu tutor estava fora de si. Era um homem baaxo e despretenc~oso, de _rost_o chato
essa razão o incriminaram. Bjarni tornou-se membro da guarda pessoal de Erico, o Nobre, e ardente, mas de olhos penetrantes, muito capaz de tôda sorte de servaços. Leaf dasse-lhe:
partindo no verão seguinte para a Groenlândia, onde muito se falava em procurar essas "Por que chega tão tarde? E por que é que resolveu separar-se dos outros". Tyrkir resp~m­
terras novas. Leif, filho de Erico, o Ruivo, de Brattahlid, dirigiu-se a Bjarni Herjulfson, ?eu em alemão, (1) falando muito e excitadamente, rolava os olhos faz~ndo caret~s. Por _asso
adquiriu seu navio e formou uma tripulação de tal forma que juntos seriam trinta e ci~co. ele não pôde ser entendido. Depois de algum tempo voltou a falar a lmgua nórdaca e dasse:
Leif solicitou a seu pai Erico que se incumbisse da direção da viagem. t.ste, porém, eva~ou "Não fui muito além dos outros, mas descobri algo de novo: parreiras e uvas."
tal incumbência, declarando ser demasiado velho e incapaz de agüentar tempo frio e úmado "t verdade, tutor?" perguntou Leif.
como em épocas passadas. Mas Leif insistiu, afirmando que certamente a fortuna o favore- "t si~", respondeu Tyrkir, "pois nasci em uma região rica em vinhedos~" .
ceria mais fàcilmente que a qualquer outro em tal empreendimento. Dormaram durante a noite como o faziam geralmente, mas pela manha Leaf declarou:
Assim, Erico finalmente consentiu, e partiu com Leif para o pôrto, a fim de tomar o "Temos agora duas incumbências alternadas, diàriamente. Queremos colhêr as uvas, ou
navio; mas quando se haviam aproximado do mesmo, o cavalo, que estava sendo mont~do abater parreiras e árvores, como carga de nosso navio."
por Erico, tropeçou e tombou, ferindo o pé de seu cavaleiro. Disse Erico: - "O destmo E assim fizeram. Logo haviam enchido a nave de vinhas, e assim começaram a derru-
não quer que eu descubra terras além da Groenlândia, na qual vivemos, e por isso não bada das madeiras para seu frete.
devemos empreender juntos essa viagem". Voltou para Brattahlid, mas Leif, com a sua Na_ p~imavera aprontaram-se e partiram. Leif deu ao país um nome de acôrdo com sua
tripulação de trinta e cinco homens, aprontou sua embarcação para a partida. Acompanh~­ pecuhandade, "Vinlândia", Terra do Vinho ..."
va-os nessa viagem um indivíduo de algum país sulino, sendo seu nome Tyrkir. O na~JO
foi aprestado para a partida, e fizeram-se então ao mar, topando primeiramente com aquele
país que Bjarni e os seus haviam visto por último. Ali atracaram, desceram um pequeno
Até aqui a história da viagem de Leif Ericson à Vinlândia, tal como nar-
bote e remaram em direção à terra firme. Não viram qualquer vegetação. Havia grandes rada na "Heimskringla". O modo de relatar evidencia, por si só, que o pro-
geleiras no interior, mas entre a praia e essas geleiras parecia haver apenas rocha lisa e pen-
saram por isso que aquela terra era de nenhuma valia. Mas Leif disse: "Não quero que O) Outras Vf!fSÕ9ll pÇI mesma história fÇI!Qm 11!1 TyrJ>lF çomo sendo da nacionalidade turca.
- N. do T.

252 253
pósito almejado é bem diferente daquele de Bjarni. O aspecto técnico-náuti- trata-se neste caso de muito mais que um simples relato marítimo, incluindo
muita informação sens~cional_sôbre a terra .descoberta, grande parte da qual
co passa para segundo plano. O interêsse incide não tanto sôbre acidentes deveria ter exercido a Impressao de verdadeiro conto de fadas sobre os groen-
geográficos, direções de vento, curso de navegação etc. quanto sôbre as ocor- landeses. De fato, porém, sabemos não se tratar de invencionices, pem mesmo
rências maravilhosas do paraíso utópico, situado em terras novas. É verdade no que respeita a minúcias, como o orvalho doce. Em muitas regiões da
que também assuntos náuticos são aqui mencionados, como por exemplo América do Norte pode ainda ser encontrado o chamado orvalho melado, tra-
quando é discutida a natureza inóspita da Helulândia ou a Marclândia, den- tando-se de uma excreção de certos insetos que habitam determinadas plan-
samente coberta de árvores e de largas praias de areia, e quando se tenta tas. Na parte nordestina da América existem não menos de .tr!nt~ variedades
indicar a latitude, dando-se a altitude do Sol no dia mais curto do ano. Mas de uvas selvagens, que são encontradas até uma pequena distancia do Gôlfo
de St. Lawrence. Nansen contestou tais afirmações, e por isso não deu o de-
vido valor à narrativa inteira. Pensou tratar-se de produtos da imaginação dos
vikings; tal opinião parece, entretanto, decididamente errônea. Mesmo em
nossos dias é uma das baías subsidiárias do Gôlfo de St. Lawrence chamada
de "Baie du Vin", "Baía do Vinho", nome que lhe foi da?o na época ?a
colonização pelos franceses. Da mesma maneira traz uma Ilha do Estreito
de Nantucket o nome de Vinhedo de Marta (Martha's Vineyard). Quando
o italiano Verrazano chegou àquelas redondezas em 1524, assim se expressou:
"As videiras sobem pelas árvores acima exatamente como acontece no Sul da França. Se
fôssem cultivadas e cuidadas, seria possível produzir com as uvas vinho do melhor. Pois
são muito doces e dificilmente provarão ser inferiores às nossas."

Informações semelhantes chegam até quase os nossos próprios dias. De


acôrdo com as mesmas, não padece dúvidas que as afirmações dos vikings
acêrca da Vinlândia são corretas nesse ponto, e diante do significado verda-
deiramente sensacional que a ocorr.ê ncia de parreiras tinha para êles, não
nos parece surpreendente terem êles dado ao novo país um nome que lhes
recordasse êsse fato.
Naturalmente desconheciam os vikings o fato de terem descoberto um novo
continente. Cêrca de 500 anos depois, o islandês Sigurd Stefansson desenhou
um mapa da Helulândia, da Marclândia e do promontório da Vinlândia,
em que tôdas essas áreas são representadas como ligadas por via terrestre com
a Groenlândia, e esta, por sua vez, com a Biarmalândia ou a Sibéria. Mas
s~biam ter realizado algo de importante, desde Bjarni, Leif Ericson até Thor-
fm Karlsefni, algo que merecesse ser tão festejado quanto os feitos da saga
~eróica do tempo da tomada de posse da Islândia, algo talvez ainda mais
Importante que esta última - e êles tinham tôda a razão em orgulhar-se
dêsse feito.

Desconhece-se em que ponto exato da costa Leif tenha ancorado. Massa-


cl_lusett~ é o Estado mais freqüentemente mencionado no curso das extens~s
discussoes científicas acêrca dêsse problema. Continua um ponto de di-
v~rgência,. existindo sempre aquêles que gostariam de transplantar a Vinlân-
dia de Lelf Ericson para a Virgínia, a Flórida, a Nova Inglaterra ou a Terra
Nova. Mas cumpre dizer que nenhuma das objeções contra a escolha de
Massachusetts nos parece muito convincente. De grande importância para a
determinação do local exato da Vinlândia é a observação contida nas sagas
de que, no inverno, o frio tenha sido tão fraco que a grama fôsse apenas
255
254
levemente atingida e que o gado fôsse capaz de pastar nos campos durante
o ano inteiro. Isto, conforme ressaltaram cientistas americanos, é possível nas
costas de Massachusetts, mas já não o é imediatamente para o norte. Quebec
tem já uma temperatura média em janeiro de 13 graus centígrados abaixo
de zero, sendo Montreal, situada no interior do país, ainda mais fria.
As condições climatéricas ao sul de Massachusetts teriam sido, sem dúvida,
ainda mais favoráveis, de tal forma que a observação sôbre o inverno suave
seria aplicável de uma maneira ainda mais generalizada. Isto levou alguns
a indicarem a Virgínia, a Carolina do Norte ou mesmo a Flórida como a
"Vinlândia" de Leif. O êrro de tal opinião, contudo, é provado, pela men-
cionada existência de elevado número de grandes salmões, um peixe que era
bem conhecido dos escandinavos da Groenlândia e da Noruega. O salmão é
um peixe de águas frias, sendo encontrado no litoral oriental da América
apenas até o 41° N. Se l?resumirmos que as condições climatéricas na época
das viagens da Vinlând1a tenham sido aproximadamente idênticas às exis-
tentes hoje em dia, estabelece a menção do salmão uma definida linha li-
mítrofe meridional à situação geográfica da Vinlândia. Ela deve, portanto,
ter-se situado em Massachusetts - Connecticut. Corroboram isso também
os limites determinados pelos americanos em suas pesquisas sôbre a ocor-
rência de videiras silvestres. Estas não crescem ao norte do 48° N, sendo o
limite médio em 42°. Tais fatos também indicam uma região situada hoje
entre Boston e Nova York.
Contrárias a tal indicação, foram mencionadas as indicações contidas no Armas dos vikings da Amél"ica do No1·te. O machado é do túmulo de Beardmore; o aço de
fogo 110 centro e a machadinha de combate à direita foram encontrados no "Lake Norway",
"Heimskringla" de que, na época do solstício do inverno o Sol alcançava pe1·to de Kensington.
"eytarstad" e "dagmalastad". Essa observação despertou há muito a atenção
dos estudiosos, tendo sido sujeita a diversas interpretações, nenhuma das
quais chegou até o momento a conquistar a aceitação universal. A tendência
atual parece ser situar a Vinlândia mais para o sul que anteriormente, ba-
seada exatamente em tais indicações. O estudioso alemão, Otto Sigfrid Reuter,
deduz que a Vinlândia se situava entre os 27° N e 31° N, isto é, na Flórida,
enquanto o norueguês Mjelde a vê na área da Baía de Chesapeake, a aproxi-
madamente 37° N. A incerteza é causada pelo fato de que os conceitos "eykt"
e "dagmal", que descrevem determinadas posições do levantar e pôr do sol, EsJJada viking, do túmulo de Bem·dmore. A espada tem a feição tíjJica das armas vikings do
podenam apenas aproximadamente ser estabelecidos pelos marinheiros vi- p,·imeim quartel do século XI.
kings. Uma inexatidão de apenas 14 minutos na observação da altitude solar,
resulta em um êrro de 3° na latitude, isto é, mais de 300 ç-..~.ilômetros. Por
isso ~eria êrro atribuir pêso decisivo à observação dos vikings, que sem dú-
vida apenas queriam dizer: "Estivemos a tal ponto meridional, que mesmo
no dia mais curto do ano ainda tivemos muitas horas de luz", - observação
que deve ter suscitado o maior interêsse dos habitantes de então da Groen·
lândia, que passavam o inverno inteiro em bruma e escuridão. .
Nosso conhecimento atual não nos capacita, aparentemente, a fazer maiS
que simplesmente indicar os limites entre os quais a Vinlândia deve ter-se
situado. E isto apesar de muita pesquisa paciente ter sido devotada à det~r­
minação da posição de Leifbudir, a verdadeira colônia dos vikings na Vm·
lândia. Como indicação da pesquisa exaustiva feita a êsse respeito, daremos
aqui em breves palavras a hipótese levantada por um dos mais categorizados
peritos, o geógrafo americano, E. F. Gray, de acôrdo com o qual o estabele·
cimento dos vikings deveria ser procurado nas vizinhanças da Península de
Barnstable, ao sul de Boston.
Essa hipótese baseia-se nos relatos de saga sôbre a viagem de Leif e a :x-
pedição Karlsefni. Além disso foram realizadas pesquisas no local em questao.
De acôrdo com Gray, foi a seguinte a rota de Karlsefni, uma vez alcançada
a Península de Barnstable: depoi~ de atracar pela primeira vez na área do
256

A jJedm rúnica de Kensington.


XXIV. A posição da Vinldndia (de acórdo com E. Gray). As ilhas de Nantucket e "Vinhedo
d.e Marta" formavam anteriormente com Leifsbudir (No Man's Land) um todo, ligado entre
SI de tal modo que o Estreito de NantU'cket (Straumfjord) parecia realmente um fiorde.
O Cabo Cod é identificado com Kjalames, a longa praia arenosa de Bamstable com Fur-
durstrandr, o Estreito de Nantucket com o Fiorde de Straum, Martha's Vineyard com
Straumsey e um ponto no litoral setentrional da Península de Bamstable com Krossanes.
Gray ressalta que tódas as expedições antigas para a América chegaram a essa parte: Verra-
zano, 1524; Allefonsce, 1542; Gosnold, 1602; Champlain, 1604; Smith, 1614; Hunt, 1614;
Be'"!ler, 1619; a "Mayflower", 1620. Ainda hoje existem ai vinhedos silvestres, a praia de
are~~ ?ranca na costa oriental de Bamstable ainda chama a atenção e a forte corrente que
se dmg~ para o norte reduz de tal modo a velocidade de percurso, que o tempo necessário
para ali passar causa ainda hoje admiração. Gray ressalta além disso que as poderosas
correntes do Fiorde Straum impediram em 1602 o explorador Gosnold de fazer-lhe a
travessia.

pôrto d~ Chatham, onde os vikings encontraram o orvalho doce, adentraram


0
Estre1~o de Nantucket, cruzando-o em direção do canal estreito, situado
entre a dha chamada "Vinhedo de Marta" e o extremo promontório meridio-
nal d~ Península de Barnstable. O cabo avançando mar adentro para o norte,
mencionado nas sagas, supõe-se como sendo a ponta do Vinhedo de Marta,
~ue ~e~lmente se projeta muito para o norte. tsse "Vinhedo de Marta" foi
1
~entihcado como sendo igual à Ilha da Correnteza (Straumsey) de Karlsef-
M' e o Estreito de Nantucket, juntamente com o canal entre o "Vinhedo de
arta" e o continente, corresponderia ao "Fiorde da Correnteza" (Straum-

17 257
Conquista Mundo

Jóias de ouro de Wiskiauten, na Prússia Oriental. Dêsse colar viking, feito provàvelmente
volta do ano 1000, pendem seis moedas de ouro persas.
fiord). Essas designações referem-se a verdadeiros acidentes, uma vez que f a t o de a costa oriental das Américas ter sido alcançada pelos nórdicos,
forte corrente existe ao longo da costa, dirigindo-se para leste. eto ao
articularmente .
por Leif Encson e T h or f'm K ar1se f m.. . .
Em Straumsey, de acôrdo com as sagas, patos selvagens existiam em tal ~ também indiscutível o que diz respeito à data de. ~ai~ acontecimento~.
número, que era difícil abrir caminho entre seus ovos. Isto, afirma Gray, ainda F01- certamente durante os primeiros anos de nosso milemo. Para ser ma1s
é hoje verídico na região que julga ser o "Vinhedo de Marta" - se bem exa t o.. Lei'f I·niciou a sua expedição provàvelmente. no. verão do anof .1000,
H . lf
que em período anterior do ano. Uma vez que Leif e Karlsefni iniciaram as voltando à Groenlândia na primavera de 1001.. Bp~rm erJU sson _?I cer-
suas emprêsas no início do verão, teriam atingido Barnstable em meados dessa tamente 0 primeiro viking do qual se sabe hist~~mc~men~e que esteve . na
estação, após os patos terminarem de chocar. Mas Gray explica essa discre- América. Mas o descobridor do Novo Mundo foi L~If En_cs.on. É por Isso
pância pelo fato de o Vinhedo de Marta ser ocasionalmente castigado por muito justo que um monumento magnífico tenha sido engido em Boston
vendavais e inundações, que destroem os ninhos e os ovos; e quando Isto
acontece, as aves - os patos selvagens e as gaivotas - começam a chocar
novamente de tal forma que grande número de ovos pode ser encontrado
desde meados de julho até princípios de agôsto. Essas datas concordam com
as do primeiro amadurecimento de uvas silvestres. Se, por isso, aceitarmos a
suposição de Gray, e também as informações que as sagas fornecem sôbre
o achado de ovos de aves e das uvas, teremos encontrado uma data aproxi-
mada para a chegada de Karlsefni à Vinlândia - fins de julho ou princípio
de agôsto.
Após vencerem a correnteza do Estreito de Nantucket, os vikings, assim
afirmam as sagas, velejaram para o oeste, passando ao largo da ponta seten-
trional do Vinhedo de Marta. Em ocasião de maré baixa era muito raso o
canal, de tal modo que finalmente vieram a encalhar. Também isto se aplica
às condições existentes no litoral setentrional da ilha. A navegação é tornada
excessivamente difícil, por causa de um número de bancos de areia muito
rasos.
Depois de o navio assim imobilizado, Leif e seus homens não esperaram
que a maré alta o fizesse voltar a flutuar, mas atravessaram a água baixa
para atingir a costa. Encontraram um pequeno ribeiro, que alcançava o mar
vindo de algum lago interno, e puxaram seu barco rio acima. Gray julga
que essa menção se refira ao Lago Menemsha, no Vinhedo de Marta, CUF
posição corresponde às indicações fornecidas pela saga, e que realmente é
habitado por salmões. Leifbudir, onde Leif hibernara e onde, depois dêle,
Thorwald e Karlsefni ancoraram, não teria sido contudo o "Vinhedo", mas
a pequena ilha da "Terra de Ninguém", ao sul do mesmo. Gray baseia esta XXV. O Lago de Menemsha e o No Man's Land,
suposição na afirmação contida na Saga de Karlsefni, de que o inverno em junto a Barnstable (segundo E. Gray).
Straumsey era muito frio, e que por isso êles "foram viver na ilha". tle
acredita ser essa ilha a "Terra de Ninguém", cuja posição dentro de trajeto par.a êle. e não para Herjulfsson .. S~a expe_dição realizou uma_ das expl.or~çõ~s
da Corrente do Gôlfo, que é quente, lhe dá uma temperatura de inver~o mais bnlhantes a celebrizar os vtkmgs. Nao apenas .por cobnr uma dtstanc;a
que corresponde às referências feitas na saga, o que, porém, não ocorrer~a de mais de 7.500 quilômetros - só da Ilha de Baffm para Massachus.et~s s~o
na área ao redor do Lago Menemsha. Ali na "Terra de Ninguém" ten~ cêrca de 3.500 qmlômetros a navegar - mas taJ?bém porque as exi~encms
sido o verdadeiro acampamento de inverno de Leif e Karlsefni, ter-se-ia SI- que ~ssa viagem impôs à intelig.ê ncia do seu capttão e ao s~u conheCimento
tuado a povoação "Casa de Leif", onde os vikings construíram suas casas. náutico eram excepcionalmente grandes. O fato de ter. sabtdo corresp~nde.r
Há muito que se possa dizer em favor da teoria de Gray. É, por exemplo, a essas exigências e de se bem que a viagem levasse mais que um ano mtei-
reforçada por notícias de jornais, que informaram no verão do ano de 1952, ro, ter sido capaz de 'explorar sistemàticamente a Vinlândia voltando, ape-
que escavações na Península de Barnstable haviam trazido à luz madeira apo- sar de todos os contratempos, a salvo para a Groenlândia, faz com que
drecida, que parecia constituir os restos de navios vikings. Mas há ou~ros deva ser considerado um dos maiores descobridores. Merece ser colocado lado
cientistas que defendem opiniões diametralmente opostas e, por mais cmda- a lado com homens como Colombo ou Magalhães. . . , .
dosas que tenham sido as investigações de Gray, baseiam-se elas em funda- Desde a época dos contemporâneos de Leif e Thorfm Kar~s~fm ate hoje,
mento bem precário. Não julgamos ser tarefa nossa aprofundar mais êsse tem despertado interêsse especial a informação de que os ~1kings topar~m
assunto e considerar minuciosamente o conflito de considerações, conjeturas com os "skrrelings" e que por isso decidiram desistir do proJeto de colomza-
e interpretações. Devemos contentar-nos em verificar que Massachusetts cor- ç~o. da América. Inicialmente julgava-se que as "canoas de_ peles", a que ~s
responde bastante aproximadamente às indicações sôbre a posição da Vinlân- Vtkmgs americanos se referiam, poderiam ser apenas os cataques dos esqm-
dia, tal como dada pelas sagas, e que não pode existir dúvida nenhuma quan- mós. Recentemente, contudo, levantaram os cientistas a hipótese de os "skr<e-
258 259
vikings. Tôda coragem se:ia inútil, desde que poderes sôbre-humanos inter-
lings" terem sido antes índios que esquimós. Pois que, além das conhecidas viessem. Nada restava senao a fuga.
canoas leves de casca de árvore, possuíam os índios também barcos de couro, e Além dessas lendas índias, também os relatos das sagas sôbre a ocorrência
enquanto os esquimós usavam ou o caiaque para uma só pessoa, ou o chama- de "trigo silvestre" têm sido repetidas _vêzes inv_estigados pela ciê.nc!a. Sempr~
do "barco de mulheres", que tinha uma capacidade de nove pessoas - o de novo foi afirmado que tanto essa mformaçao quanto aquela sobre as VI-
"umiak" - empregavam os índi~s no Nor~e _da América geralmente U!fla ~m­ deiras silvestres provam irrefutàvelmente não ser a tradição viking da Vin-
barcação média, que correspondi~- à desc_nçao ~as sagas. Além do mais, VIve- lândia apenas m1~0 e l;nd~. To_dos _os povos d~ mundo so~haram alguma vez
ram os esquimós sempre em regwes mmto mais af~st?J-das para o norte que com ricos e férteis paises Imagmános, a respeito dos quais seus bardos can-
aquelas em que a Vin~ândia deve ser procurada: Limitavam-se seus estabele- tavam baladas heróicas. Mas assim como existem videiras silvestres no leste
cimentos quase exclusivamente a costas desprovidas de florestas. Onde estas da América do Norte também crescem ali gramíneas que poderiam ser to-
madas por uma espécie de trigo silvestre. Justamente aquela informação con-
siderada lendária fornece mais um indício para responder à pergunta sôbre
a localização presumível da Vinlândia. Mas também aqui cumpre frisar mais
uma vez que tudo não passa de deduções, insuficientes para determinar com
certeza a situação da colônia dos vikings na América.

4
É curioso que as antigas fontes groenlandesas e islandesas sôbre a Vin-
làndia e as viagens para aquela região sejam tão lacônicas. Após as cinco
viagens à América no comêço do século XI, das quais acabamos de
falar, é nos relatos posteriores a Vinlândia mencionada apenas mais duas
vêzes, e a Marclândia uma única vez. :tste silêncio completo contribuiu para
q~e Nansen rejeitasse tôda a tradição viking da Vinlândia. Era êle de opi-
mão que países tão afortunados deveriam ter sido visitados sempre de novo
e mencionados vêzes sem fim nas sagas, se realmente tivessem existido.
Embora êsses argumentos pareçam convincentes não têm a procedência
almejada. É que temos uma fonte totalmente independente dos relatos das
sagas islandesas e norueguesas, que por sua vez fala da Vinlândia. Trata-se
da "História Eclesiástica Hamburguesa" de Adam de Bremen, escrita em 1070.
XXVI. Onde se localizava a Vinlândia? ]á qu:e o lim ite sul do salmão se situa à al_tur.a ~o No quarto livro, sob o título "Descrição das Ilhas do Norte", atesta inequi-
41o e o limite norte da área em que fl oresce o trigo silvestre à altura de 44°, a Vmlandla vocamente:
deve localizar-se entre êsses limites.
"Além d~sso contou o rei dinamarquês que nesse oceano havia descoberta uma ilha,
existiam, havia geralmente índios. Outra evidência de que ~e trata realmente de nome Vmlândia, por ali crescerem videiras silvestres, p rodutoras do melhor vinho. Que
de índios, no que diz respeito a êsses "sknelings", é fornecida por uma refe- também ali existem frutas em abundância sem que fôsse necessário semeá-las; sabemos não
rência, na saga, à "bola escura" que os índios teriam. arremessado contra seut por rumores fabulosos, mas pelo relato preciso dos dinamarqueses".
inimigos nórdicos com ~ auxílio de uma vara compnda. Es~~ arma, provàveô~
mente considerada mágica, talvez corresponda à chamada cabeça ~o dem . ~dam de Bremen adquiriu êste conhecimento da Vinlândia durante uma
nio" dos índios algonquins, habitantes do sudoeste do Gôlfo de Samt Law- VISita a Roeskilde na Dmamarca, onde estêve na côrte de Sven Estrilhson, e
provàvelmente de primeira mão; do chefe islandês Gellir Thorkelson, que
rence .. Isto é inform~do pelos col~?izadores euro~~us da época dos s:~l~
primeiros contatos behcosos com os peles-vermelhas . Uma pedra era ~n d por volta de 1070, no regresso de uma peregrinação a Roma, ficou algum
vida por pele pintada, e lançada por meio de um bastão longo ao meiO ?~ tempo ~m Roeskilde e que estava a par das descobertas dos vikings além do
mar Ocidental. Não pode, pois, haver dúvida de que a Vinlândia foi real-
inimigos, durante a batalha. Pretendia-se provo~~r ~ terro~ do adversár~s mel_lte encontrada e que de modo nenhum pertence ao grupo das ilhas len-
mediante essa "mágica perigosa". Naquela ocasiao Já havi~~ os b_:anc d ánas.
perdido o mêdo de "armas diabólicas", mas na época dos vikmgs nao era
Com isso, naturalmente, não está ainda esclarecido por que islandeses e
assim. Desde o início julgavam que aquêles. duendes de_ côr bron~eada, a~ noruegueses não mencionam com mais freqüência Vinlândia e Marclândia e
"sknelings" com que se defrontavam, entendiam de magia, o que ]Ulgav por d~e em suas sagas é relatada tanta coisa, mas tão pouco acêrca dessas
também a respeito dos finlandeses e lapões. Daí fácil é compreender por que ran Iosas descobertas. Para explicar tal silêncio ressaltou-se, do lado escan-
as "bolas escuras" os atemorizavam. Temer a magia, e possivelmente pro- Inavo, que tanto a saga da Groenlândia, que se refere essencialmente a
curar escapar da mesma, não constituía procedimento vergonhoso para os
261
260
Erico o Ruivo, quanto a saga de Eirik Raudi, a respeito do islandês Karlsef- Entretanto, dificilmente terá sido feita ali qualquer tentativa de colonização.
ni, não passam de meras tradições familiares, e~crit~s apenas com o fito de Embora a grande Terra das Florestas se situasse 8 a 10 graus de latitude ao
glorificar dua.s ~stirpes poderosas .. Est~s sagas ~ao s':o, segundo es~as fon.tes, sul da Groenlândia, o clima não era ali mais ameno que no sudoeste groen-
anais, nem cromcas ou hvros de h1stóna, e por 1sso nao tratavam desses fe1tos Iandês, devido à pouca influência da Corrente do Gôifo e do eff;!ito refrige-
de outras famílias. · rante da gélida Corrente do Labrador. Além da madeira e da caça,
Exceção feita das primeiras expedições de descobrimento e das primeiras certamente rica, nada se achava ali passível de atrair os vikings, e não terá
tentativas de colonização na Vinlandia, não eram as viagens para estas para- havido na Marclândia mais que algumas cabanas de derrubadores de árvores
gens de nenhum modo sensacionais para os contemporâneos. Para os groen- e de ca~adores, habitadas provàvelmente durante o verão.
landeses, aparentemente, não valia a pena falar de coisas tão corri~u~iras. Na Vmlândia a situação era naturalmente diversa e é bem compreensível
Prova fornece aquêle relato do ano de 1347, 9.ue se encontra nos ana1s Islan- que os vikings empreendessem a tentativa de ali fixar-se em caráter perma-
deses de Skalholt e que foi citado acima. D1z êle que, naquele ano havia nente. Segundo os relatos das sagas acima citadas, não foram bem sucedido~
aportado na Islândia um navio groenlandês "menor do que os menores na- nessa tentativa nem Leif Ericson nem Thorfin Karlsefni. A causa é a inferio-
VIOS islandeses". tste navio já não tinha âncoras e fôra levado pela tempes- ridade inegável, sob determinadas condições, da cultura do metal em relação
tade através do mar, da Marclândia para a Islândia, com 17 pessoas a bordo. à cultura da pedra - um paradoxo já mencionado no capítulo sôbre a Groen-
Conforme se percebe da redação dessa notícia, ela não foi transmitida lândia. Essa inferioridade patenteou-se na Groenlândia decerto em grande
porque o navio groenlandês vinha da Marclândia, mas por ser êle tão pe- pa~te pela falta de c;ombustíveis, que não permitiu aproveitar as jazidas de
queno, por ter perdido em viagem as suas âncoras e porque havia sido ~e­ limomto numa med1da que correspondesse às necessidades. Finalmente co-
vado pela temp~st~de através de tôda. a extensão do oce.ano até à !slând1a. meçou o ferro também a escassear perigosamente. Na Vinlândia essa circuns-
Tudo iss0 pan_:o~ Importante ao cromsta e portanto reg_Istrou esta mfor~a­ tância se tornou mais ameaçadora ainda, porque os conflitos com os "skra:-
ção em sua cromca. Lembremo-nos que de~_?e o descobnmento .da M~rclan­ lings" tornavam necessária a contínua produção de armas. Por certo ali não
dia haviam passado quase 350 anos na ocas1ao em que o monge 1slandes ano- faltava lenha. Mas não encontramos mencionado, com uma só palavra, que
tou essa notícia, e concluiremos que a viagem à ~mérica ainda ~or yolta ~e existisse limonito. Os colonizadores vikings não devem por isso ter encontrado
meados do século XIV era coisa corrente e mmto comum, senao ele tena uma situação que lhes permitisse fabricar as suas próprias armas, mas tinham
aproveitado o ensejo para relatar mais sôbre a Vinlândia e a Marclândia. de es~;>erar até que chegassem navios de sua terra. Isso, porém, na melhor
Também as grandes escavaçõ~s di~amarquesas na Gr<?enlândia levavam à das h1póteses, levava um ano, enquanto os skra:lings poderiam, sem dificul-
mesma conclusão. É que elas ev1denc1aram em que med1da era empregad~ a dade, confeccionar suas armas de pedra no pró~;>rio país.
madeira na Groenlândia. Não só se necessitava de madeira para os naviOs, ~embram~-nos de que o Oeste Bravio da Aménca do Norte só se tornou co-
madeira comprida e sólida de árvores altas ~ for~es; .també~ as cas~s ~e mo- lomzável ma1s tarde pela invenção do revólver "Colt", que proporcionou aos
radia, os grandes estábulos, as altas catedra1s e 1greJas e nao por ult1mo os ho~ens brancos a necessária superioridade armada sôbre os índios. Com a
esquifes exigiam made~ra e ~uita m~deira. Enqu~nto que quase todos .os es~;>mgarda de ~m só tiro não era possível enfrentar as flechas dos índios,
outros objetos de made1ra estao destrmdos, os esqmfes se conservaram mmto atuadas em ráp1da seqüência. Análoga era a situação dos vikings na Vinlândia.
melhor no solo congelado da Groenlândia. Examinando-os verificaram que Suas ~r~as de ferro não eram de molde a garantir-lhes desde o início a
para êles no mais das v.êzes foi empregada madeira que não provinha da ~o­ supenondade sôbre os skra:lings e suas linhas de abastecimento com sua terra
ruega. Em menor parte ter-se-á tratado de madeira de arribação, em mawr era!ll extraordinàriamente tênues e raras. Thorfin Karlsefni percebeu isso
parte de depó~itos busc~dos na Marclâ~di~. . . . , . nihda.mente: Se no fim de sua saga se encontra a observação de que a vida
A Marclând1a estava s1tuada nas prox1m1dades 1med1atas. No pnnop10 ter- na ~mlând.Ia .s~ria. sempre perigosa e agitada por causa dos ataques dos
se-á escolhido a, ~ota de um modo <_IUe .fôssem aproveitadas as duas grandes skra:hngs, s1gmhca 1sso que reconheceu ser o estabelecimento nas terras do
correntezas mant1mas entre a Groenland1a e o Labrador: a Corrente da Groen- oeste tossível apenas por meios bélicos, o que ficou mais que comprovado
lândia, que se dirige ao longo da costa dêsse país para o norte, e a Corrente pelos atos sangrentos da ulterior história da colonização da América.
do Labrador, que corre paralelamente à costa da América do Norte para ,o
sul. Na região da Vestribyggd ou pouco mais para o norte, perto da Ba1a
Disko, dava-se provàvelmente o desvio para oeste. E do mesmo modo como
na Groenlândia os navios partindo da Colônia Oriental foram levados pela
Corrente da Groenlândia, assim além do Estreito de Davis os levou a Cor-
rente de Labrador para o sul. Provàvelmente navegavam depois do sudoes~e 5
da Groenlândia diretamente para o sul do Labrador. A distância da Colôma
Oriental para a Baía de Hamilton no Labrador não era muito m.aior d<? que É Existiu uma. colônia dos vikings nos Estados Unidos durante o século onze.
entre Stavanger na Noruega e as Ilhas Fa:roe:. Ela não era ~u~t<~ ma1s e~­ d "àesmo admissível a possibilidade de essa colônia ter existido durante cêrca
tensa que a têrça parte da rota da Groenland1a para a Escandmav1a, o ma1s Ve t ~tentos anos, e que uma parte daqueles colonizadores que emigraram de

~
acessível e mais próximo país com madeira para navios e construções. Con- est n Y&"gd por vo~ta de 1342, se dirigiu para a~uêles lados, procurando o
tanto que se atentasse no tempo e que êste ficasse mais ou menos constante,
não oferecia a viagem à América d1ficuldades de monta. . .. 1stsóo.
na.Ocidental ma1s avançado da expansão nórd1ca. Mas isso é uma longa
Viagens à Marclândia, portanto, foram certamente empreendidas frequen-
temente pelos vikings da Groenlândia, ainda que nenhuma tradição as relate.
h
Esta h' tó · · · ·
nas .. 1 na 1moa-se em sua fase derradeira, no dia 24 de maio de 1930,
Vlzm anças de Beardmore, pequena cidade próxima ao Lago Nipigon,
262 263
em O!lt~rio. Seus heróis são: em r,rimeiro lugar, o Sr. James Edward Dodd confirmada pelos d}retores de mus.eus europeu~. E o J?r. Curel.ly estava tam-
maqmmsta de trem de carga da 'Canadian National Railway" (Estradas d' bém certo de que esses quatro obJetos homogeneos nao podenam por acaso
Ferro Canadenses), ~· nas hor~s vagas, .prospetor e garimpeiro; em segund~ ter chegado a mãos de índios e subseqüentemente perdidos. Poi.s que os ín-
lugar, um desconheCido guerreiro nórdico, morto há quase mil anos e enter- dios sempre dividem os produtos de seus saques, e me~mo há mll a~os atrás
rado com ~rmas e armad~ra, .cujo ~úmulo Mr. Dodd casualmente descobriu. teriam indubitàvelmente procurado faze~ com que diversos enu::e eles . usu-
U~a te.rceira. P.arte da histón.a s~ra representada por Eirik Gnut>son, 0 pri- fruíssem de coisas tão preciosas como senam p_ara êles, ess~s ar~as r.ontla~­
mew bispo VIk~n~ da ~.roenla~dia, que desapareceu na Vinlând~a, em 1124 das. Assim sendo, se elas tivessem estado em maos dos md10s nao tenam sido
durante ,uma VISita OÍlClal. realizada alguns anos após chegar à sua diocese. encontradas juntas em épocas m?d.ernas.
~sse tu~ulo estran.ho foi encontrado de maneira muito prosaica. Na ma- Além disso, tratava-se de um VIkmg enterrado. Mas, enterrado por quem?
nha ~o dia 24 de maw de 1930: Dodd de.scobriu mp filão de quartzo que lhe Certamente não pelos índios. Se êsse tivesse sido um prisioneiro de guerra,
pareCla prometedor e que deseJaVa exammar em toda a sua extensão. Depois suas armas lhe teriam sido apreendidas após ter sido morto. E os índios não
de alg~ns golpes de ~n~ada, _?.eu, contudo, com um obstáculo. Profundamente se teriam dado ao trabalho de enterrar o prisioneiro branco morto, quando
escondido na terra, pZia o t<;>co de uma bétula, tão duro que nem o machado despojado de suas posses, tão profundaJ?ente no se~o da terra. E-ste home;n
nem uma alavanca consegmram atacá-lo. Era um caso de dinamitei Como deve ter sido enterrado por seus própnos compatnotas, e por tantos e tao
verdadeiro conhecedor que era, colocou o Sr. Dodd a carga, acendeu a mecha bem armados, que não consideraram necessário tirar as armas do camarada
e se atirou de bruços ~o solo; o tôco voou para os ares com um barulho ensur- morto: não, por conseguinte, um bando perdido e semi-esfaimado de deses-
dec~dor: O rocJ:edo ficou exposto; a uma profundeza de mais de um metro perados, mas um destacamento organizado, talvez uma expedição, que sepul-
hav.Ia xisto, e nele enterrado um objeto enferrujado de ferro - uma espada tara cuidadosamente um dêles. Essas as conclusões a que chegou o Dr.
an~Ig~, conforme constatou o Sr. Dodd, submetendo-a a cuidadosa inspeção. Curell~ .
~xistla também um ~e~ho.machado enfern~jado, além de uma espécie de cabo Por si mesmos não constituem os achados de armas e ferramentas escandi-
Igualmente velho e Identicamente enferrupdo, e finalmente um objeto que- navas antigas grande raridade na América do Norte - se bem que cada um
b~ado, em forma côncava, absolutamente dizimado pela ferrugem, que ime- fôsse conseqüência de acaso e boa sorte. Os oitenta mil gôdos, uma vez esta-
diatamente se de5ompôs, e teye ~e ser l~vado para a superfície com uma pá. belecidos na Itália, não deixaram em seus túmulos, para o estudo dos ar-
. O Sr. Dodd nao ficou mmto ImpressiOnado com seu achado. Não estava queólogos, mais de cinqüenta "fibulas", aquêles precursores compridos
a p~ocur.a de pe~aços de ferro enferrujado; e de que se trataria afinal? Algum e artísticos dos modernos alfinêtes de segurança, usados em eras antigas para
ganmpeiro, mmto antes dele, deveria ter jogado fora êsses instrumentos, prender as muitas dobras da vestimenta. Da mesma maneira, os achados da
?u - quem sabe - talvez se tratasse de coisas usadas pelos índios. Pouco se era escandinava nas vastidões americanas podem ser comparados ao encon-
Importava. E-le estava à procura de um veio de minério. De qualquer ma- tro de uma agulha pequenina em enorme palheiro.
neir~, porém, .ao voltar para sua casa em Port Arthur, naquela tarde, levou Apesar disso tudo, houve uma série grande de tais achados. Muito antes
consigo os obJetos encontrados, tomando mesmo o cuidado de levantar os de a possibilidade do estabelecimento de uma colônia dos vikings em solo
fragmentos desfeitos, e juntá-los ao resto. americano ter sido seriamente considerada, antigas armas e utensílios nórdi-
E agora as coisas se sucederam de uma forma parecida com o que aconteceu cos, tais como colheres, pontas de flecha, pratarias, etc., eram encontrados
ao sr. Olaf Ohman de Salem, nas proximidades de Kensington mais de trinta em túmulos de épocas anteriores a Colombo na região de Middlesborough e
anos antes. O .sr. Dodd falou a alguém de seu achado, que pretendia vender. ~our Corners em Massachusetts; e já em 1892, quando publicou seu grande
Essa pessoa foi à sua casa para ver os objetos, e ficou impressionada pela sua hvro sôbre a América, o americanista alemão Rudolf Cronau opinou que
semelhança com antigas armas dos vikings. Os jornais souberam do assunto pe;manentes influências culturais devem ter sido exercidas sôbre · a parte
e antes que Dodd desconfiasse, viu-se sob suspeita de ter encenado uma farsa. onental. da América pelos vikings da Groenlândia. . .
~eardmore fica a mil e seiscentos quilômetros da costa. Nin~uém, antes dêle, Depois apareceu em cena o Sr. Hjalmar R. Holand, do qual Já ouvimos
tivera conhecimento da existência de tais achados no distnto embora hou· falar quando tratamos da pedra de Kensington. Com persistência admirável
ves·~e m~ito~ escandina~os morando nas vizinhanças. Era compreensível que P.rocurou investigar tôdas as informações sôbre achados escandinavos. Ini-
os JOrnais fossem suspeitar que o Sr. Dodd houvesse encetado essa manobra Ciando suas pesquisas em Nova Escócia, onde em 1880 se encontrou um velho
para se tornar notório. machado de guerra, provàvelmente produzido no século onze, seguiu a trilha
. As informaç~es, contidas nos jo~nais, chamaram a atenção do Dr. Curelly, dos nove achados de armas escandinavas antigas, feitos até então, através dos
d;retor. do ~nstituto de Arqueologia em Toronto. Era um perito nessas ques· estados de Michigan e Minnesota. Através de muito cuidadosa investigação
t~es e. Imediatamente lem~rou-se. ~e que Samuel Champlain, um dos gran~es ~e todos os objetos e as circunstâncias sob as quais foram encontrados, fêz
pwneiros canadenses, havia notiCiado em 1610 a existência de uma anttga ele com que alguns raios de luz penetrassem a obscuridade que circunda a
tradição índia, segundo a qual existiram, em dias de antanho, homens brancos era dos VIkings na América.
com barcos de madeira, na Baía de Hudson. Da Baía de Hudson ao Lago ~as o achado de Beardmore, que permitiu deduções tão interessantes e
Nipigon a distância não era muito grande. Tratar-se-ia de achado autêntico? làgica.mente convincentes dos sucessos coloniais obtidos pelos vikings na
De armas dos vikings e de um túmulo viking? Aménca, foi um caso isolado e único.
O Dr. Curelly dirigiu-se para Beardmore. Verificou que se tratava
realme~te de armas nórdicas, de quase mil anos de .idade, da primeira
parte do século onze. Havia um espada, um machado de luta, o cabo de um
escudo e os restos dêste. A autenticidade de tais objetos foi posteriormente
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6 Jloma tudo acêrca da Abissínia cristã, os cristãos de São Tomé, na Ásia, o
Grande Cã em Caracorum, e o país estranho da China, situada no leste dis-
Novamente começou a ciência a examinar as antigas fontes escandin tante estava naquela época o Vaticano excelentemente informado a respeito
Defaararam com uma comunicação brevíssima, que abrangia apenas qua;tas. das ~ovas terras ocid~ntais. Mas os velhos livros silenci~J?· e por isso talvez
r,a. ~vras, dos "J\nai~ d~ Islân~,ia':, do !lno de _1121, e. tem o seguinte teo~~ as pedras antigas contmuam a levantar suas vozes, como p o fazem . em nossos
:m~~. bykop le1t~~~ Vm~and~ : .o b1spo Enco partm para visitar a Vin- próprios dias. Até o momento foram todos os achados norte-amencanos rea-
lan.dia . Essa not1oa, ma1s mmucwsamente repetida em uma entrada os- lizados pelo aca~o, mas há motivos que nos perr~item ~sperar que a pesquisa
tenor, era, de_ um modo geral, conhecida desde a segunda parte do séful sistemática, reahzada por arqueólogos, faça surg1r mmtas descobertas com o
passad~. ~as Já que naguela época as .:xp~dições à Vínlândia dos vikings d~ correr dos anos.
Groen~and1a eram consideradas expenenoas mal sucedidas e logo cortad O início do capítulo anterior de nosso livro já mencionou a casual desco-
trad~Zlrai? a palayra. "!,eitadi" como '_'procur!ir", ~nterpretando a informaç~~ berta arqueológica em terras norte-americanas: aquela curiosa pedra rúnica,
d?s •An:us da Island1a como se o B1spo Enco tivesse partido à procura da que o fazendeiro sueco Olaf Ohman, de Salem, nas proximidades de Ken-
Vmland1a. smgton, tirou no ano de 1898 de baixo das raízes de uma velha árvore. Depois
Entre~entes s~,bemos . ql!e ~aquela época não seria possível tratar-se de filemos, em verdade, com que nossa história voltasse atrás, tratando da Is-
alguma pro~ura _da ,Ymlan~1a. Todos sabiam na Groenlândia onde ficava lândia, da Groenlândia e da Vinlândia. Deixamos nosso amigo sueco, duran-
essa terra, ~ mvest1gaço~s ma1s recentes do geógrafo alemão Richard Hennig te sua conferência, realizada por êle, Nils Flaten e Hjalmar R. Holand com
t?rna~ aceltáv~~ a teo~1a .~e. gue,o antigo escandinavo "leitadir" não signi- Mr. R. J. Rasmusson, o "notary public", o tabelião do Douglas County
flqu_e .pro.curar mas s1m v1s1tar , o que provaria que o Bispo Erico visitou de Minnesota. Mas empreendemos essa volta ao passado para fornecer ao lei-
a Vmland1a no ano de 1121. tor parte do conhecimento, das reflexões e suposições que passavam pela
A~sim n?s confrontamos c?m. a questão da finalidade da visita dêsse bispo cabeça de Hjalmar R. Holand, enquanto estava sentado na sala de espera do
à. Vm_lând1a. _Em 1ll2. hav1a ele, conforme ficou provado por estudos do tabelião. Formado de conhecimento e capacidade de imaginação, refletia-se
h1s~ona~or dma~arques q.ustav Storm, chegado à Groenlândia como pri- na sua mente um quadro bastante fiel, se bem que nem sempre nítido, da-
meiro J:nspo da ~1?cese ma1s setentrional da terra. Era descendente de velha queles acontecimentos há muito passados: da Groenlândia para a Vinlândia
e respeitada fam1~1a. de líderes isl~ndeses an_tigos, os Gnupson, e êle próprio e o "westward hol" para o desbravamento das regiões inexploradas do gran-
era decerto um v1kmg duro e resistente, ta1s como se faziam necessários no de continente americano.
extremo norte. Mas .t.am?é~ a s~a alta linha~em não lhe permitia desviar-se Pois Hjalmar R. Holand não tinha feito falar apenas as pedras, mas tam-
dos _deveres de. obed~enoa ~ IgreJa, ~ por ma1s que sangue viking lhe tivesse bém hav1a consultado a enorme quantidade de documentos europeus, êsse
c?rndo ~as ve1as, ,nao é cnvel que ele tenha partido de sua diocese com o aglomerado incrível de pó, sangue, lágrimas e santidade. E os arquivos abri-
~.H?. de ,procurar. u~a terra nova. Foi para a Vinlândia, isto sim, para ram-se, obedientes, ao mágico americano, que trouxe à luz muitos fatos e
v~s1tá-la , em pnme1ro lugar porque pertencia à sua diocese onde devia eventos dignos de nota. Não se tratava de assunto propriamente novo, pois
cmda! das almas~ e porque a coiôni_a americana dos vikings pos;uía o direito o que Holand reencontrou já havia sido publicado cmqüenta anos antes.
especial de s~r firmada, em cercamas selvagens e pagãs, pelo sangue e pelo Mas apenas agora se juntavam corretamente os traços, então esparsos. Estava
c<?rpo de Cnsto. ~ste, e apenas êste, deve ter sido o motivo da viagem do ai o comunicado de Ivar Bardsen, do ano de 1342 sôbre a fuga misteriosa dos
b1spo .e do fat? de. o pasto! ter abandonado o seu rebanho. Lá, no Oeste, habitantes de Vestribyggd. O relatório de Gisle Oddson, ano de 1342, com
necessitavam dele_ a1~da ma1s que na Groenlândia, e .êle seguiu ao chamado, a notícia de que êsses habitantes haviam emigrado para a América. Também
c?mo um dos pr~me1ros dos pastôres de Cristo, que davam seu corpo e sua existia aí a carta-designação do rei sueco Magno Erikson para Paulo Knud-
VIda para cumpnr as ordens do Senhor: Ide por todo o universo e ensinai son, comandante da guarda, do ano de 1354. E agora também a pedra rúnica
a todos os povos! de Kensington, em Minnesota, datada em 1362. Tudo isto estava intimamente
DeveJ?-OS, cont~do, frisar aqui que até o momento não se conseguiram ligado.
prova~ urefutáve1s. para tal h~pótese. É verdade que Lukas Jeliv, conhecido A chave proveio da crítica, que runólogos e lingüistas faziam do texto da
pesqmsador catóhco, comumcou ao Congresso Católico Internacional de pedra rúnica de Kensington. Pois os entendidos dessas duas matérias opina-
Bruxelas, em 1895, que segundo suas verificações, Erico Gnupson foi sagrado vam que as runas empregadas naquela pedra não correspondiam nem à nor-
em 1ll2, ~e~o. Papa Pascal II (1098 até ll18), Bispo da Groenlândia "regio- ma que vigorava na Escandinávia, nem seriam de origem nórdica as seguin-
~um~ue m1t1marum" (e das regi?es lim~tr?fes), portanto também da Vin- tes cmco palavras: of (terceira linha), theth (oitava linha), illy (nona linha),
landia - e que, .a~nas q~a.ndo este deodm permanecer na Vinlândia, os ~ans (décima linha) e fram (décima-segunda linha). Afirmavam que elas
~oenlan?eses deod1r!im sohc!tar, em um "thing~ real_izado em 1121, que lhes vmham do inglês, uma hipótese cujo êrro parece ser evidente, pois esquece-
osse env1ado novo b1spo. ~te agora, co.ntudo, nao existe prova documentária ram _que a inscrição foi redigida em dialeto de antigo gotalandês, não sendo
para reforçar essa tese, seja nos arqmvos do Vaticano ou em outra parte por Isso nórdica, no sentido de norueguês. Mas êste engano levou Holand a
qualquer. Se tal d~cume~lt? realmente existe, se~á _encontrado com 0 tempo, apresentar numerosos documentos dêsse dialeto do século quatorze, e assim
porque, se a tese fo~ ':end1ca, os document<?s ex1st1rão por certo. P~~v~r que essas palavras eram absolutamente .corr~ntes. E ta~s pesquis!ls li~­
~abemos q~e a Cuna em R<?ma possuía mformações exatas e de primeira gu1st1cas correspondiam exatamente ao que se 1magmava ter s1do a nacwnal~­
~ao .a respeito d!l Groe~l~nd1a e da Vinl~ndia, pois existem documentos dad~ dos componentes da expedição de salvamento de Paulo Knudson. P_01s
f~ded1gnos a respeito da v_lSlta efetuada por 1slandeses e grOenlandeses ao Va- obviamente participaram dela noruegueses e suecos. Caso bastante raro, ahás.
ticano. Da mesma mane1ra pela qual alguns séculos depois se soube em Na Groenlândia existiam apenas vikmgs noruegueses. Mas aqui a exceção era
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explicável, já que o próprio regente norueguês, Magnus Erikson, era sueco
de nascimento. perito americano de primeira categoria, participasse especialmente das inves-
. Holand :essaltou em s~us livros que a observação: "Somos oito suecos e tigações então em curso. tle e seus colaboradores conseguiram, após longos
v!nt~ e d~1s noruegueses , corresponde surpreendentemente a essa circuns- trabalhos, provar que o "Newport-Tower" é de origem sueco-norueguesa, imi-
tanCI~. P01s, ~mbora o número dos suecos participantes dessa expedição te- tado da Igreja de Santo Olavo em Tunsberg (Noruega). Certas características
nh~ stdo provavel~ente menor do que o dos noruegueses, aquêles obviamente provam que se trata de uma construção do século quatorze.
fazta~ parte dos hd~res .da emprêsa, o que tornava conveniente serem êles É fácil tirarmos dessa descoberta algumas deduções. Newport deve ter
mencw_nad~s em _(>nmetro lugar ;'la inscrição rú~ica. Essa conclusão é, servido de pôrto para a expedição de Knudson. É um dos melhores portos da
por asstm dtzer, o aJ~~tamento pe:f:no da ponte de htpóteses estabelecida por costa oriental da América, e não é crível que Knudson não o tivesse encon-
Holand entre a not1c1a da expedtçao de gotalandeses e noruegueses chefiada trado, se por acaso já não tivessem ancorado ali, desde tempos antigos, os
por ~aulo Knudson e a pe~ra rúnica de Kensington. Fatos indiscutíveis que navegantes que viajavam da Groenlândia à América. Parece-nos aceitável esta
relaciOnassem essas duas coisas não nos foram transmitidos. Tudo se baseia última hipótese em vista do fato de que a construção de uma igreja de pedra
em indícios, mas indícios muito aparentes e singulares. constituía tarefa de vulto.
As notícias menos claras, poréJ?, são aquelas a respeito da expedição de Aceitemos essa suposição como fato - e tanto falamos a êsse respeito para
salvament.o de Paulo Knudson. Afirma-se que não voltou à Escandinávia antes que o leitor pudesse acompanhar nosso raciocínio com boa vontade, - e
~e decorndos nove anos, mas não se afirma onde permaneceu durante todo então teremos de defrontar a questão de como poderia a expedição mencio-
e~se ~empo. Cert.amente n~o na Groenlândia. O espaço habitável da Groen- nada ter chegado à região dos Grandes Lagos no ano de 1362. E o que pre-
landt~ era mmto. reduzido para que a procura dos habitantes desa- tendiam fazer naquelas partes? É verdade que sabemos que os vikings fre-
pare;tdos dt: Vestnbyggd pudesse ter sido realizada em muito pouco tempo. qüentemente se aventuravam através de áreas de acesso muito mais difícil
O ~elo contu;~ntal opunha um l.imit~ intra nsponí~el à ~igração para o in- que Minnesota ou outra parte qualquer da América do Norte - principal-
ten?r..No; SitiO~ de c.aça se~e~~nonats Já qu.ase nao havia vegetação gramí- mente as extensões gélidas do Ártico - sem outra razão aparente que seu
n.ea. ah nao hav1a mats poss1b1hdade para cnação de gado, por modesta que gôsto pela aventura. Mais tarde teremos oportunidade de ver quantos mi-
fosse. Knudson e seus homens, por certo, atravessaram o Estreito de Davis lhares de quilômetros êles avançaram para o sul e leremos que penetraram
rumo .à América . .Já o La~r.a?or, princip~l~en.te em suas partes meridionais, talvez mais para o leste que Novaya Zemlya. Mas a maior parte dêsses em-
P?dena ter oferec1do yosstbthdades de extstenCia aos vikings, e é possível que preendimentos teve duração muito fugidia, enquanto que as expedições para
a1 tenham permanec1do, d.u_:ante algum tempo. Não é muito provável que a América, muito pelo contrário, parecem ter sido executadas durante um
o~ chefes suecos da expedtçao de Knudson, acostumados ao clima mais be- período que cobre diversos séculos. As armas, encontradas em Beardmore,
mgno da Escandinávia Meridional, se tenham sentido com vontade de da~am do século onze, a pedra de Kensington e os outros achados em Mi-
procurar seus ~:mterrâ.neos d~s~par~cidos no Labrador. Provável é que tenham chtgan, Wisconsin e Minnesota do século quatorze. E o fato de terem sido
proc~rado regwes ma1s men?wnals, que melhor satisfizessem suas exigências enc~mtrados numa mesma área não pode ser atribuído a mera coincidência. É
de v1da. Devemos crer, por 1sso mesmo, que tenham aportado à Marclândia mmto mais provável que os vikings tenham tido alguma razão específica
ou à Vinlândia. para efetuar êsse avanço pelo país adentro.
E.ssa suposiç~o parece ter encontrado confirmação em época recente. Há Não possuímos informação definitiva sôbre êsse ponto; a pré-história, con-
mmto era. s~btdo que na pequena estação balneária de Newport (Rhode tud?, pode proporcionar-nos uma indicação. Foi estabelecido que os índios
Island) ex1~t1a velha ruína de uma tôrre. Muitos haviam opinado que tal sab1am muito antes do advento do homem branco da existênc1a dos exten-
obra podena apenas ter sido construída pelos vikings. Mas uma vez que fal- sos dep.ósitos de cobre no "Native Copper District," junto do Lago Superior
tavam as provas, correu como versão oficial que se trataria dos restos de um os quats exploravam, e p ara os quais vinham mesmo de muito longe. Era
~o!~ho velhí~siJ?O, construído no s é~ulo dezessete. É significativo que a se~­ a fonte da mdispensável matéria-prima para armas e utensílios, que era le-
stblhdade arttstlca de homens especialmente dotados não aceitasse a teona vada até o Atlântico, no leste, o Mississípi, no oeste e o Gôlfo do México,
do moinho. Eis como na "Saga of the Skeleton in Armour" Longfellow no sul. Placas ornamentais, anéis e outros adornos pessoais, da mesma
apresentou a. tôrre d: ~ewport co~o velha construção dos vikings, dando- forma que machados, pontas de lança, facas, etc., escavados em pontos dife-
lhe um senttdo romant1co, ao cons1derá-la um velho ninho de amor para rentes, atestam a importância das minas de cobre do Lago Superior. E os
uma princesa viking, raptada da Noruega: pe!es-vermelhas trabalhavam em verdadeiras minas. Há ainda vestígios visí-
"Three weeks we westward bore
V~ts dessas minas, como entradas que levavam a mais de 5 metros de profun-
And, when the storm was over, ~ldade, estruturas de madeira, prêsas na própria terra, pesadas e velhas esca-
Cloudlike we saw the shore asd ~normes pedaços de cobre, martelos de pedra e também vasilhames de
Streching to leeward. ma e1ra para tirar a água das minas.
There for my lady's bower Temos de concluir que a região dos Grandes Lagos foi, em tempos idos,
Built I the lofty tower ~~ do~ centros da cultura do índio norte-americano. É possível que os vi-
Which to this very hour
Stands looking seaward." 17gs ~1ve~sem ouvido a respeito, julgando ouro o metal vermelho descrito
pe os mdws. Por outro lado é provável também que êles fôssem simples-
Durante a última guerra começou um interêsse maior a ser manifestado mente atraí.dos pela existência de ricos depósitos de minério. Pois que, para
pela origem da tôrre de Newport. É claro que Hjalmar R. Holand, como uma colôma branca, inteiramente dependente de seus próprios recursos,
mesmo o cobre era do maior valor. Mediante hábil martelagem a frio, êsse
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da aristocracia secular que, por uma razão especial, se preocupavam com a
metal, naturalmente macio, podia ser temperado suficientemente para dêle Groenlândia. A falconaria constituía um dos esportes favoritos dos reis e
se obterem pontas de flecha ou lança, punhais e espadas curtas. Os coloniza- príncipes medievais. Os falcões brancos .da Groenlândia e:am, por tôda parte,
dores nórdicos, sofrendo extrema falta de metais, que não podia ser suprida considerados os melhores caçadores, e Já que eram relativamente raros e de
pelos groenlandeses, ficavam certamente satisfeitos com qualquer metal que muito difícil obtenção, pagavam preços elevados para adquiri-los. tste fato
lhes fôsse possível obter. fêz com que a lembrança da Groenlândia fôsse permanente, sendo significa-
tivo que o Imperador Frederico li tivesse podido pressupor em seu livro ("De
arte venandi cum avibus"), escrito em 1250, (•) que seus leitores soubessem
da existência da Groenlândia e de sua posição geográfica, não muito afastada
da Islândia. Uma vez que Frederico li vivesse principalmente na Sicília, co-
7 nhecia bem a tradição dos vikings. Mas ainda no século quinze outro livro
a respeito da falconaria afirmava expressamente que os falcões groenlandeses
No início dêste capítulo sugerimos que o Destino havia aberto uma cilada eram os mais indicados para êste esporte dos reis. Observação da qual pode
para os vikings, ao atraí-los para a Groenlândia. Pereceram, deixando apenas inferir-se que o conhecimento do país distante era muito mais comum do
alguns traços esparsos de sua existência terrena, de suas orgulhosas viagens de que podena ser julgado.
conquistas e descobertas. Esta foi a opinião universal, que predominou du- Durante o século quatorze alcançou seu ponto mais alto a coleção e a trans-
rante longos anos. Mas da mesma maneira pela qual, de acôrdo com as leis missão das sagas da Vinlândia na Islândia. Daí as notícias a respeito de países
da Física teórica, tanto a matéria quanto a energia são indestrutíveis - trans- desconhecidos, de há muito descobertos no Oceano Ocidental, chegarem à
formando-se uma na outra e vice-versa, mudando a sua forma manifesta, mas Europa em número maior do que até aquela ocasião. Não apenas eram dis-
nunca deixando de existir - assim também parece que os caminhos da hu- seminadas em muito maior extensão, mas também eram diferentemente re-
manidade, considerados como um todo, nunca seguem rumos a êsmo. De cebidas, já que as muitas expedições portuguêsas haviam criado um interêsse
qualquer maneira, o ponto de vista freqüentemente expresso, de que as via- muito maior pelas viagens de exploração geográfica.
gens dos vikings à América não possuíam nenhum fundamento prático, é to- Foi em Portugal que se originou tal mudança de interêsses. Sua Casa Real
talmente errôneo. Pois que uma linha direta nos conduz dêsses pioneiros combinava, de uma maneira impressionante, interêsses em assuntos comer-
vikings da Vinlândia a certas viagens, realizadas meio milênio depois. As ciais! ~e~igiosos, geográficos e políticos. O Rei Alfonso IV (1325-1357) parece
viagens de descoberta de Colombo, digamo-lo de início, não se situam ime- te~ m!c1ado longas viagens para o oeste, provàvelmente às Canárias, já no
diatamente dentro dessa linha, se bem que seja provável que o genovês ou- P.nme1ro quar~el do século quatorze. Essa tradição foi continuada pelo Prín-
visse falar, nas suas viagens para o Oeste, dos vikmgs da Groenlândia. É que cipe ~· Hennque, o Navegador, (1394 até 1460), que se propôs encontrar
já a antiguidade acreditava na existência de várias terras no hemisfério do o cam1!1ho marítimo para as índias, contornando a extremidade meridional
oeste. Mas Colombo não estava à procura de terras no oceano ocidental; pro- da Áfnca. Uma expeaição após outra deixava Lisboa e cada qual chegava
curava, isto sim, a índia e a China, e uma rota ocidental para alcançá-las. a um ponto mais distante da anterior. O Continente Negro, porém, estendia-
De qualquer maneira, as informações de que terras desconhecidas haviam ~ muito mais para o sul do que Henrique havia inicialmente julgado pos-
sido encontradas a oeste do oceano, devem ter reforçado suas esperanças de Sivel, e guando o fim de sua vida se aproximava já percebera que ainda
êxito. demorana algum tempo antes que o cammho marítimo das índias fôsse des-
A linha reta de conexão imediata dos vikings com seus sucessores toma cober~o - se é que existia.
inicialmente o rumo das antigas regiões de navegadores de Flandres, dos Ma1s ou menos na mesma época em que Henrique se apercebeu dessa
Países Baixos e da Frieslândia. Os dentes e as peles de morsa eram ali mer- verdade, recebeu êle de seu tio, o Rei Erico da Dinamarca, um presente que
cadorias muito estimadas e procuradas, e já tivemos ocasião de falar do mo- mereceu todo o seu interêsse. Tratava-se de uma cópia de um grande mapa
nopólio da Groenlândia em dentes de morsa, que perdurou até os meados da .Europa Setentrional, executado em 1427 por Claudius Clavus, um dos
da Idade Média. mHs ce~ebrados geógrafos escandinavos da época. tste mapa parece ter dado
A Groenlândia possuía também muitas conexões com a Europa Meridio- a ennque, o Navegador, a idéia de tentar o caminho marítimo para a índia
nal, e especialmente com Roma, através da organização da Igreja. Ainda e~ pelo ~oroeste. Talvez fôsse essa rota muito menor e menos sacrificada que
1327 pagava a Groenlândia o seu tributo à Igreja, assim como sua contri- I ~!!unho sudestino, que já lhe custara tanto sangue e ouro. Graças aos re-
óat ~Ios de Marco Pólo, sabia-se muito a respeito da índia e da China, sendo
buição às cruzadas. Naquele ano, o Núncio Papal, Bernardo de Ortolis•. ~s­
sinou um recibo sôbre uma tonelada de dentes de morsa, contriblllçao b~ 10 para ?S perspicazes que .êsses países poderiam ser também alcançados
considerável, se confrontada com a pequena área habitável da colônia da ~ a Rota .ocidental e não apenas pelo caminho do leste. Aparentemente pro-
Groenlândia! Outras referências diretas à diocese ártica, feitas _{>Or elevados pos .e~nque, o Navegador, ao Rei Erico da Dinamarca, que enviasse uma
dignitários eclesiásticos não são absolutamente raras. Os própnos papas se expediçao ao noroeste. Mas o rei dinamarquês faleceu logo depois, deixando
lembravam da mesma, enquanto oficialmente a Groenlândia havia sido quase ~e~ proposta fôsse aceita por seu sucessor, Cristiano I. Em 1473 partiu uma
olvidada. r0~n ~ em~r~sa luso-norueguesa da Islândia, dirigindo-se ao norte, na antiga
Mas mesmo no sul da Europa não se restringia o conhecimento da Groen- a os v1kmgs. Não é impossível que essa expedição tenha chegado à
lândia à Igreja. Provàvelmente não existiam quaisquer relações diret~s entre
a Groenlândia e o sul - se bem que a presença de janelas de vidro .na em (~~~O '\. data ~a composição foi, provà velmen te, anterior, u ma v ez que Frederico I! faleceu
Igreja de Hvalsey indique alguma espécie de contato com Veneza, úmco a6bra 0 • ° 1 por Isso, ta lvez, essa a data em que se ouviu fa lar pela primeira vez dê sse tratado
e 1agante esporte. - N. d o T.
lugar na Europa a produzir o vidro em escala maior. No sul eram os membros
271
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América dezoito anos antes de Colombo, seguindo o curso de Bjarni Her-
julfsson. ·
Os relatos um tanto incompreensíveis dessa viagem eram conhecidos por
muitos e muitos anos. Mas a chave para os mesmos foi fornecida apenas em
1~q9,_ quando s~ en_co?trou uma ca~ta do burgomestre de Kiel, Karsten Grip,
duigida ao Rei Cnstiano III da Dmamarca. Essa carta, datada de 1551, isto
é, Oitenta anos depois da expedição, afirma o seguinte:
"Possa Vossa Alteza Real ser informada pela presente que a Groenlândia, terra de Vossa
Majestade, se estende em ambos os lados em direção ao Mundo Novo e em direção a ilhas
encontradas pelos espanhóis e portuguêses, de tal maneira que seja possível alcançá-las por
terra, vindo da Groenlândia. No ano corrente vi um mapa, mostrando a Islândia, terra de
Vossa Majestade, e descrevendo tôdas as coisas milagrosas que ali podem ser vistas. Tal
mapa foi feito em Paris, na França. Declara que a Islândia é duas vêzes maior que a Sicília,
situada além da Itália. Ainda afirma êsse mapa que dois almirantes de Vosso Pai, Sua
Majestade Real Cristiano I, Pining e Pothorst, obedecendo a instruções de Sua Majestade
Real o Rei de Portugal, etc., foram enviados com diversos navios às novas ilhas e conti-
nentes no Norte. Registra-se que êles construíram e erigiram um grande marco marítimo
no rochedo de Wydthszerck (Hvitserk) perto da Groenlândia, defronte ao Sniefeldsickel
(Snaefellsjoekull) na Islândia, em virtude dos piratas da Groenlândia, que atacam em grande
número com navios desprovidos de quilha ... "

Evidencia êsse documento quais os desígnios da expedição de 1473. De-


veria ela procurar as "Novas Ilhas" e os continentes no norte, e podemos
aceitar a hipótese de que seu destino era a parte nordeste da Aménca. Pelo
menos o prefeito Karsten Grip não tem dúvida de que a Groenlândia não
fica distante das ilhas e das terras ocidentais, e que elas pertencem ao Novo
Mundo, encontrado pelos espanhóis no outro lado do oceano.
Provàvelmente participou da expedição além de Pining e Pothorst, outra
personalidade de projeção, o português João Côrte ReaL Não há documen-
tos sôbre sua participação em qualquer outra expedição mas, ainda assim, lhe
foi conferido pelo Rei de Portugal o pôsto de Governador da Ilha da Ter-
ceira, nos Açôres, por ter descoberto a "Terra do Bacalhau", uma referência,
indubitàvelmente, às costas de Terra Nova e Labrador, riquíssimas em pei-
xes dessa natureza. Por isso deve ter tomado parte no empreendimento che-
fiado por Pining e Pothorst. Cientistas escandinavos emprestam muita impor-
tância à suposição de Côrte Real ter participado da expedição como ofici~l
de ligação com a Casa Real portuguêsa. Isto l?arece uma teoria plausível, pr~­
meiramente porque foi Portugal o país a estimular o empreendimento intei- A esquerda: O Infante Dom H enrique, de Portugal, o Navegador.
Miniatura dos fins do século XV.
ro e depois porque em 1500 os filhos de Côrte Real, como se estivessem A direita: Navegante português dos fins do século XV.
seguindo uma tradição familiar, fizeram um esfôrço próprio para explorar Escultura de um negro de Benin, na África Ocidental.
aquelas regiões nórdicas da América.
De uma maneira muito especial constituiu êsse João Vaz Côrte Real e seus
filhos Gaspar e Miguel, que desapareceram em Terra Nova no ano de 1502,
uma ligação entre os antigos vikmgs, pioneiros da colonização americana, e
Colombo, o real descobridor daquele continente. Las Casas, biógrafo de
Colombo, documenta que o grande descobridor conhecia Gaspar e Miguel
Côrte Real, o que apenas pode significar que êle sabia da viagem do pai dê~es
à Terra do Bacalhau, e de Pining e Pothorst, os heróis de tal aventura. Assim
ficou sabendo que existia terra para o oeste e que já se haviam realizado
repetidas viagens para aquêle país. Teria sido muito estranho se Côrte Real
e Colombo não tivessem ouvido falar da tradição vinlandesa dos vikings. ~
mesmo que tal tivesse acontecido, eram tão estreitas as relações entre a _DI·
namarca e Portugal em seu tempo, que pelo menos as novas que cornam
por tôda a Dinamarca, a respeito de terras desconhecidas, descobertas no
Oeste, lhes devem ter chegado aos ouvidos. Já sabemos quão bem co·

272
nhecida era a Groenlândia também nessa época, na Europa Meridional. E
certamente tudo isso contribuiu para reforçar Colombo em seus propósitos
de viagem.
Assim sendo, alemães, dinamarqueses e portuguêses podem ter penetrado
0 continente americano uns vinte e cinco anos antes de Colombo, que atin-
giu 0 próprio continente, e não apenas as ilhas que lhe ficavam próximas, no
dia 1 de agôsto de 1498. Os inglêses, sob comando do veneziano Giovanni
Caboto, alcançaram também a América antes de Colombo. Também essa
emprêsa, inspirada principalmente nas românticas viagens medievais de
exploração à ilha legendána do Brasil, foi grandemente estimulada pela tra-
dição dos vikings.
A mais antiga notícia dessa notável viagem é contida em uma crônica, atri-
buída ao padre inglês Guilherme de Worcester, que viveu no século quinze.
Afirma ela:
"15/7/1480. "John Jay Junior", de 80 toneladas, iniciou a viagem do pôrto de Bristo1
para a Ilha Brazylle, a oeste da Irlanda (... ). No dia 18 de setembro chegou a Bristol a
notícia de que o navio permaneceu durante nove semanas velejando sôbre as águas. Não
foi encontrada a ilha, e a nave teve de voltar devido a pesadas tempestades ... ".

A Ilha Brasil, aqui mencionada como sendo o objetivo da viagem do ".John


Jay Junior", era uma daquelas ilhas lendárias, com que sêres humanos so-
nharam desde tempos imemoriais. Homero falava de Ogígia, residência de
Calipso, os gregos posteriores. sonhavam românticamente com as "Ilhas dos
Benditos" e do Elísio, e através de Roma e Gália passou .em inícios da era
medieval, a linda fábJ.Il.a da ilha maravilhosa, situada lá longe no mar oci-
dental, para a Irlanda. Ali confundiu-se essa lenda antiga com o fenômeno
nat_ural da Fata-Morgana, o qu~l, se bem que principalmente conhecido das
regtões desertas dos hemisfénos sul e leste, ocorre também freqüentemente
nas costas ocidentais da· Irlanda. Enquanto naquelas paragens oásis sorriden-
te~ e lagos convidativos se apresentem ao peregrino sedento, · n·estas, ilhas fér-
teis e verdes se levantam como fantasmas sôbre o horizonte, aperias para fur-
tar-se màgicamente ao pescadór que a elas se dirige, de formá igual aos oásis
que desaparecem diante dos olhos ávidos dos participantes de caravanás pelo
deserto. Essas ilhas, assim afirmam os contos populares irlandeses, podem
apenas tornar-se "concretas" quando se lhes lança um pedaço de ferro ou
uma flecha. Mas ainda sob o disfarce irlandês per manece bem visível o cerne
da ~ntiga lenda. Brasil seria um país mais fértil que qualquer outro. Ali cres-
c~nam maçãs de ouro e haveria uma matéria para tintura, mediante a qual a
la branca das ovelhas poderia ser tornada vermelha. Tais afirmações, conforme
ve~o~, vêm diretamente da Antiguidade fenícia e grega. Naquele período a
fer~Il.Idade, as maçãs de ouro e a tintura vermelha devem ter sido consideradas
~ufiCientes para fazer a felicidade. Mas isto não satisfez aos irlandeses, e por
Isso res.olveram apinhar as suas ilhas com multidões de raparigas, que tinham
a. qual~ da de de fàcilmente se apaixonar por marujos. Depois do que se sen-
tiram JUstificados em denominar a ilha solitária do oceano como "Brasil, a
Feliz" .
. É compreensível que tanto essa multidão de raparigas, quanto as dispen-
dlOsas e purpúreas fazendas dessa lenda deveriam ter impressionado os con-
~emporâneos, despertando nêles o desejo de descobrir essa feliz ilha do oci-
ente. Os cartógrafos dos inícios da Idade Média fizeram o possível para
corr~sponder a êsse desejo. Do oeste da Irlanda ao sul das Ilhas Canárias,
â_obn~<l:m a superfície do oceano com Ilhas de Brandão e do Brasil. O mapa
e PlZlgano, de 1367, talvez com a finalidade de aumentar o número das
vendas, mostrou até três Ilhas do Brasil: uma a oeste da Irlanda, outra a

A ~f~i ca Oriental, de acôrdo com o mapa-múndi catalão, do século XV . Apesar de, naquele 18 bis Conquisto Mundo
p en~do, a costa leste da África jd te1· sido navegada até Sofala duran te uns 4.500 an os, coniam,
no fun_ da Idade Média, as mais curiosas lendas à respeit o do continente negro . Isso evidencia
quao grandes as rea lt zações dos portuguêses ao 1·evelar ao mundo a África ve1·dadeim.
sudoeste e uma terceira na área das Ilhas Canárias. Era tão forte o poder va ou Nova Escócia, o lugar em que Cabot desembarcou. Isto seria, portanto,
de ilusão dessas lendas antigas que o nome Brasil era usado ainda em 1851 na extensão de terra chamada Marclândia pelos vikings. Uma vez que se sabe
por Findlay, em seu mapa de correntes oceânicas, para designação de um com certeza que Cabot realizou sua viagem no navio "Matthew", de Brístol,
rochedo imaginário no Atlântico. que normalmente percorria a rota entre êsse pôrto e a Islândia, é bem pro-
Dificilmente deve supor-se que os negociantes do poderoso pôrto de Bristol vável que êle tenha recebido o estímulo para essa viagem dos muitos is1an-
se tenham disposto em 1480 a gastar seu dinheiro para eventualmente desco- deses que chegavam a Brístol, pôrto principal para o comércio anglo-islan-
brir terras em que abundassem belezas, enamoradas de marinheiros. Nem se dês. É mesmo possível que sua tripulação, composta de dezoito marujos,
deixariam atrair por carneiros, maçãs ou corantes. O segrêdo da púrpura incluísse alguns islandeses como pilotos. De qualquer maneira chegou à Amé-
fenícia havia, de há muito, perdido o seu fascínio, uma vez que outras ma- rica passando pela Islândia, acompanhando as antigas rotas de navegação dos
neiras de conseguir uma côr vermelha e luminosa foram encontradas desde vikings.
então. Os proprietários do "John Jay Junior" e outros navios quaisquer, que Não será necessária nenhuma prova para atestar que a importância das
se fizeram ao mar, partindo de Bristol naquela época, interessavam-se pro- viagens dos vikings à Vinlândia e à Marclândia foi sublinhada pelas viagens
vàvelmente, como também os seus colegas portuguêses e espanhóis, em che- de Pining e Pothorst, de Côrte Real e de Cabot. Estudada dêsse ponto de
gar à índia e a Catai (China). Ali, conforme se depreendera dos relatos de vista, a descoberta da América no século quinze passa a ser a redescoberta de
Marco Pólo e outros viaiores, riquezas inimagináveis lhes acenavam. Parece rotas antigas, há muito percorridas e experimentadas; não se tratou aí de
antes que o fascinante, "Brasil", foi usado simplesmente para atrair as tri- um fenômeno do acaso, mas um liame mais ou menos direto com a tradição
pulações. Não se poderia esperar que al~m marujo fôsse arriscar sua vida antiga. Daí concluirmos que o ponto de vista de que as viagens dos vikings
para o remoto e um tanto nebuloso "País do Grande Cã". A feliz ilha do à América eram destituídas de valor prático é errôneo, e, nessa forma cate-
górica, mesmo insustentável.
Brasil exercia uma atração bem maior. Foi essa a razão. a nosso ver, para a
meta ser indicada como sendo o Brasil e não as terras do Grande Cã. Essa tradição, e seu renascimento pelas grandes viagens ao sudoeste na
segunda metade do século quinze, exerceu também sua importância sôbre
Sete de tais viagens foram iniciadas em Bristol, a partir de 1480 tôdas sem Colombo. Já vimos que êle conhecia os filhos de Côrte Real, e bem podemos
resultado. Depois, em fins de 1495 ou em inícios de 1496, Giovanni Cabo to, imaginar que êle se informasse o mais possível sôbre os sucessos das viagens
marinheiro veneziano aue vivera durante aljruns anos em Brístol, encarre- de descoberta de seu pai. É possível, contudo, que seu conhecimento d êsses
g-ou-se com seus três filhos de tais emprêsas. Sua iniciativa introdu7iu nova fatos fôsse muito mais direto. Em sua biografia de Colombo, Las Casas re-
fase na história dessas expedições. Naturalmente não lhe coube tamhém des- produz uma breve nota, provàvelmente tirada de uma das cartas de Colom-
cobrir a Ilha Brasil, e as costas norte-americanas, alcançadas por êle antes bo para seu filho, que afirma o que segue:
de Colombo, em 1497, provaram ser desertas, inférteis e rurles. De aualauer
maneira não tinha o novo país nada em comum com a índia ou Catai. Essa "Em fevereim de 1477 velejei por cêrca de cem milhas para além de Tule, cuja parte
setentrional se situa no 73.0 e não no 63.0 , como muitos afirmam. E Tule não está no meri -
época das viagens Brasil-Americanas, é relatada em numerosas fontes, mutua- diano que constitui o comêço do oeste, mas muito mais para oeste. Para essa ilha, que é
mente independentes, dentre as quais merece citação uma carta particular do tão ~ande quanto a Bretanha, os inglêses levam as suas mercadorias, vindo especialmente
Embaixador de Veneza em Londres, Pasqualigo, ao qual Caboto tenha talvez de ~nstol. Quando eu ali estive, o mar não es tava coberto de gêlo. Em al guns pontos chega
transmitido os seus planos. Pasqualigo assim escreveu para sua família em a diferença entre as marés alta e baixa a ser de 26 b raças."
1497:
Essa informação muito categórica não soa improvável, particularmente se
"Nosso veneziano, que partiu há algum tempo em pequeno barco, de Bristol para desco· nos lembrarmos que Colombo realizou uma série de viagens antes de se fazer
brir novas ilhas, está de volta agora, informando qu e chegou ao continente, submetido à ao mar e.m 1492 para a descoberta da América. Por isso mesmo foi essa pas-
soberania do Grande C~ . a uma distância de 700 milhas italianas. Velejou trezentas
milhas pelas costas daquele país, sem ver qualquer sinal de vida humana. Apesar disso, sagem do livro de Las Casas considerada genuína durante muito tempo. A
presenteou o rei do lugar com diversas armadilhas para prender animais selvagens e uma escola norueguesa de geógrafos manteve até os nossos dias a veraci-
agulha para o preparo de rMes. Além disso encontrou árvores, marcadas por mão humana, dade dessa afirmação. Ainda recentemente opinou Samuel Eliot Mori-
do que concluiu que o território não era desabitado. Reembarcou em seu navio por motivos son em seus livro sôbre Colombo, que o genovês se dirigiu, na reali-
de segurança. Sua viagem se prolongou por três meses. Essa informação é digna de fé. ~ade, para a Islândia. No entanto, não há fugir à realidade de que a citação
Mora êle, com sua espôsa e três filhos , em Bristol (...). Tem o título de Grande-Almirante
e é tratado com tôdas as honras. Veste-se com roupa de sêda, e os inglêses correm atrás e Las Casas contém uma quantidade de pormenores inconsistentes. Em
dêle, feito tolos. ~le, contudo, nada quer ter a ver com êles (...). O descobridor dêsse ter- ~enhum ponto da Islândia chega a diferença entre as marés a 26 braças (uma
ritório hasteou ali a bandeira inglêsa, mas também a bandeira de São Marco, uma vez ra~a media 58 em), nem se situa a Islândia numa latitude de 73 graus norte;
que ~ veneziano. Assim, nossa bandeira tremula. em terras distantes ... ". mu~t~ pelo contrário, fica perto dos 65°, e essa diferença de oito graus na
po~Içao de uma ilha há muito conhecida e visitada é bastante estranha, a des-
Grande valor deve ser atribuído a êsse relato, pois êle revela claramente pei~o da falta de exatidão com que se determinavam as latitudes na época.
que Cabot (Caboto anglizou seu nome), assim como a expedição luso-dina- ~· fmalmente chama atenção o fato de o genovês afirmar ter estado na Islân-
marquesa, chefiada por Pining e Pothorst, procurou chegar às terras do Ia_ em fevereiro. Isto seria um feito fora do comum, uma vez que a nave-
Grande Cã, isto é, à Asia Oriental, e mais, que realmente chegou às costas gaçao cessava geralmente no inverno naquelas regiões. Todos êsses pontos,
da América. Infelizmente não informa qual a parte do Novo Mundo que se bem .que não provem que Colombo nunca estêve na Islândia, lançam cer-
atingiu. Geralmente convencionou-se atribuir ao sul do Labrador, Terra No- tas dúvidas sôbre a autenticidade do documento citado por Las Casas.

274 275
A questão de saber se Colombo VISitou ou não a Islândia é, contudo, de
importância restrita, uma vez que seus propósitos eram bem diferentes da-
queles dos vikings da Groenlândia, cuja tradição vinlandesa, por conseguin-
te, pouco lhe significava. As coisas que tanto os impressionaram - as largas
florestas, as uvas, os campos de cereais silvestres, verdadeiros milagres para
quem, como êles, estivesse acostumado a viver entre os desertos gélidos da
Groenlândia - não constituíram atração para um habitante da ensolarada
Itália. Quando Colombo se fêz ao mar à procura das terras do Grande Cã,
intimamente conjurava visões, proporcionadas pelas descrições de Marco
Pólo, do que a êsse fôra dado ver em Catai e ouvir acêrca da índia e de
Cipango (Japão): terras férteis, repletas de habitantes sob céu eternamente
azul, com grandes cidades, incalculáveis quantidades de ouro, prata e as ge-
mas preciosas mais magnificentes, com enormes fardos de sêda preciosa e
montanhas daquelas especiarias, tão apreciadas e tão caras na Europa. Aquê-
les países eram a meta que Colombo procurava atingir. Mesmo que tenha
ido à Islândia e, como seria bem possível, lá ouvisse falar da Vinlândia, não
faria uso direto dessa informação; pois que o território descoberto pelos vi-
kings ficava muito mais ao norte que as regiões do leste da Ásia, à procura
das quais se dedicava e principalmente porque as descrições dessas terras
em nada correspondiam aos relatos de Marco Pólo sôbre Catai.
Informações de tradição viking devem, no entanto, ter-lhe aumentado a 52. As ilhas do Atlântico. Corte do globo de Martim Behaim, 1493.
confiança. Elas provavam a existência de terra firme no Oceano Ocidental
e assim removiam o temor de viajar por um mar imenso, desprovido de
terras, sem oportunidade de obter água fresca e mantimentos. Por outro
lado, acreditava-se que Catai se estendia muito para o norte. Martin Behaim
observou em 1492 a respeito dessas regiões o que segue, em seu globo:

"!- quando os russos viajam para aquêle mesmo país, para obter peles preciosas, são
obngados a viajar sôbre trenós, puxados por grandes cães, devido à água e à neve pro-
funda."

Se, por isso Colombo depreendeu da tradição viking que exiStiam geleiras
na Helulândia, e na Marclândia muitos animais de caça, é bem possível que
t~n_ha acreditado, assim como Cabot, que essas regiões faziam parte da Tar-
tana ou do norte de Catai, e que a índia devia situar-se ao sul das mesmas.
~ssa possibilidade confere novo e impressionante significado à tradição an-
ti_~- Para tornar-se familiar com essa tradição, Colombo não necessitava de
VIaJar para a Islândia ou travar conhecimento com os Côrtes Reais. Bastava-
lhe_ ter permanecido na Grã-Bretanha durante o sétimo decênio do século
qumze, o que sabemos de uma observação em seu livro de bordo de 21 de
dezembro de 1492. Vimos o quanto era estreito o tráfego marítimo entre a
Inglaterra e a Islândia naquele período. Por isso nada mais provável que
0
fato de Colombo, sempre ansioso por ouvir a respeito de terras ocidentais,
tc;r t?mado conhecimento dos vikings da Groenlândia e suas viagens à Vin-
l~n~~~ enquanto êle visitava as Ilhas Britânicas. Sem dúvida, essas notícias
sxg~llhcaram para êle uma confirmação de suas próprias opiniões e um forte
51. Mapa-múndi da "Crônica Universal" de Hartmann Schedel, de 1493. l.ste estimulo no sentido acima ventilado.
mapa retrata os conhecimentos geográficos dos fins do século XV. A África Isto em nada diminui o feito de Colombo: uma realização ímpar no
e a Ásia são ligadas ao sul, o Oceano indico é um mar interior. A oeste da campo. da navegação e da geografia. Mas não constitui um evento isolado,
África Setentrional, em pleno oceano, existiam as "Ilhas dos . Bem-Aventura- produZido por mera iluminação genial, completamente independente de
dos"; a Escandinávia é uma ilha e o Oceano Glacial Ártico vai até a Prússia
e a Saxônia. A grande ilha no Oceano indico não é a Austrália, mas o Ceilão. ~u~ros. acontecimentos. É, muito pelo contrário, o elo orgânico de uma ca-
exa VIva de progressos, que vai desde os vikings da Groenlândia, além de
276
277
Colombo, até os nossos próprios dias. Nesse sentido são aguêles navegadores
germânicos, que há quase um milênio viajaram pela pnmeira vez para a
América, reais antepassados de seus sucessores e aperfeiçoadores. Já tivemos
ocasião de dizer que não necessitam dessa justificação de sua ânsia de via-
gens, nem precisa Colombo dêles para testemunhas de seus próprios feitos PARTE IX
grandiosos. Mas de há tempos distantes vêm sendo suas viagens criticadas
como desprovidas de razão e finalidade. E isto não corresponde à verdade.
Pois uma vez mais confirmou-se com êles aquêle provérbio antigo, que diz:
Mais longe vai aquêle que não sabe para onde vai. DE JOTUNHEIMAR E SVALBARD
PARA BAGDÁ E CANTÃO

" Vendidas tôdas as passagens para Zaitun", diz


o encarregado Suleiman - Juncos chineses com
apartamentos, banheiros e lavatórios - O estu-
dante de Direito Ibn Batuta torna-se "globetrot-
ter" - Ibn Batuta vê o "truque da corda" - Qual
o preço de uma concubina'! - As mulheres de Ibn
Batuta, o côco e o haxixe - Cetim, sêda e perfu-
me - Papel-moeda chinês - O que é a "Konnungs-
skuggsja" e quem a escreveu? - Como é que Dan-
te Alighieri conhece o Cruzeiro do Sul'! - O ma-
pa-múndi de Edrisi e o tratado de Rogério -Peles
de urso polar no Egito - Relatos esportivos ára-
bes sôbre o esqui na Noruega - Ibrahim Ibn ]a-
cub fica surpreendido em Mogúncia - Possuía a
Escandinávia um sistema monetário árabe'! - Um
guia de viagem mouro para a rota de Magdebur-
go a Praga -Mentiu realmente Nestor de Kiev? -
Miklagard e os varangianos- Vikings em Bagdá-
O Capitão Othere em Arcângel - Até o Ural e
para a Sibéria - A pedra rúnica de Hoenen -
Tornam-se grávidas as virgens que tomam água'!
- ]otunheimar é a terra dos duendes e "Svalbard"
significa "costa fria".

278
1

O distinto diplomata suspendeu indignado o passo na prancha de passa-


gem do navio que se dirigia para a China. Seus criados e carregadores esta-
caram atrás dêle, como se a brusca parada de seu chefe os tivesse
transformado em pedra. Súbito silêncio parecia ter-se espraiado sôbre o navio,
ainda ancorado no pôrto. Nitidamente podiam ser ouvidas as pequenas ondas
que batiam contra o cais, nas gigantescas velas de fibra de bambu sussur-
rava o vento e no pé da prancha ouviam-se os risos e as conversas das
mulheres, pois que, naturalmente, um dignitário da importância de Sua
Excelência Abu Abdullah Mohammed, embaixador do Sultão Mohammed,
de Delhi, na índia, em missão importante na Côrte do Imperador da China,
viajava com seu harém - espôsas legais, concubinas e escravas.
Sua Excelência estacou tão subitamente o passo porque o comissário de
bordo do navio da China se havia aproximado dêle em grande agitação,
com o rosto banhado em suor. Após curvar-se reverentemente, deixou ouvir
verdadeira torrente de palavras, da qual o embaixador do Sultão pôde de-
preender apenas, para sua profunda consternação, que tôdas as cabinas de
primeira classe haviam sido ocupadas.
Abu Abdallah Mohammed, Ibn Abdallah, Ibn Ibrahim, conhecido há
cêrca de setecentos anos, sob o nome de Ibn Batuta, como um dos mais
inveterados "globetrotters" de todos os tempos, relatou muitos anos após, em
suas memórias, que escreveu a pedido do Sultão de Marrocos, o que aconte-
ceu por volta de 1330 no barco que se dirigia para a China, no pôrto de
Calecute.
"Os mercadores chineses ocuparam as cabinas para a viagem de ida e volta,
declarou o comissário, Suleiman de Safad, próximo de Acre na Palestina.
Mas f!l~U cunhado tem uma cabina que poderei ceder-lhe. Infelizmente não
possui mstalações sanitárias próprias. Talvez possa Vossa Excelência permu-
tar as cabinas com os unidos negociantes chineses durante o própno per-
curso."
Ass_im sendo, Ibn Batuta iniciou sua viagem em pequena cabina sem la-
v.at~r~o ou _banheiro, mas indubitàvelmente foi capaz, recorrendo à típica ins-
tltUiçao onental da gorjeta, de obter as acomodações desejadas. Pois, como
escreveu mais tarde:
"~reciso de uma cabina própria em virtude das escravas, que é meu costume sempre levar
?Jrnlgo ... Uma cabina divide-se em diversos aposentos, contendo seu próprio lavatório e
IOstalaç<>;s higiênicas. A porta da cabina pode ser fechada pelo ocupante, acompanhado de
:uas esposas e escravas, de modo a não poder ser aberta do lado de fora. Muitas vêzes acon-
~ que o ocupante assim permanece em sua cabina, desconhecido de outros passageiros,
a que se encontrem ao atracarem em algum pôrto."

p C::abinas de primeira classe, banheiros, lavatórios, passagens de ida e volta?


Ois é v.erdade - os gigantescos juncos, que cobriam a rota entre a China
~ a tn~Ia, J?Ossuíam tôdas essas coisas já em inícios do século guatorze. O
om aftrmatrvo e categórico com que Ibn Batuta profere as suas mformações
sugere mesmo que não se tratava de inovações, mas sim de um confôrto que
com o correr do tempo já era considerado óbvio e imprescindível.
281
Temos muitas informações sôbre as condições em que se efetuava tal tra- Bis 0 de Columbum (forma latinizada de Kaulam, agora Quilon, na costa
vessia naquele período, através de muitos relatos compridos e minuciosos. de ~ravancore, no sudoeste da índia). Em 1330 publicou, para ilustração dos
Um dos mesmos foi escrito pelo budista chinês Fa-Hien, o qual, vindo de
Java, cruzou o Mar da China até Cantão, em um navio misto, que além de membros de sua Ordem _n~ Europ~ dist~?te, um folheto ~ntitulado "Mira-
sua carga levava duzentos passageiros, no ano de 414 de nossa era, isto é, bilia descripta", a "Descnç~o de Milagre~ , no qual tr~nsmlte - com a arro-
cêrca de mil anos antes de lbn Batuta. Existem muitas descrições das pri- gância típica do branco _ocidental, por smal, e, em latim execrável - as ca-
meiras grandes operações marítimas de proprietários de navios hindus, que racterísticas de barcos chmeses:
enviavam os seus barcos através da Baía de Bengala, até a Malaia e Indoné- ''Navigia quae navigant in Cathay ~unt pe~axima" . Os ~avios com os quais navegam
sia, levando em seu bôjo grande número de cavalos, que de lá eram manda- para Cathay são muito grandes, possu~do ma1s d~ cem ~bma~, e podem, com vento fa-
dos para a China. E finalmente existem os velhos manuais romanos de nave- vorável, ser impelidos por dez velas. Sao embarcaçoes mmto bojudas e pesadas, por tere_m
gação, provenientes do primeiro século de nossa era. 0 costado triplamente revestido de pranchas. Sua construção é, realmente, bastante resis -
~sses antigos barcos transatlânticos orientais a vela ainda não terão tido tente. Ainda assim não se arriscam a navegar muito distante da costa; o Oceano fndico
~ raramente violento, e quando o mar apresenta feição por êles considerada perigosa, é,
banheiros em cabinas especiais ou lavatórios particulares. Mas já os tinham a nosso ver, ainda calmo e tranqüilo. Sem exagêro algum, um dos nossos marinheiros va-
as embarcações do tempo de lbn Batuta. As exigências da necessidade hi- leria uma centena ou mais dêsses homens, quando no mar ... ".
giênica, não considerando agora o confôrto de alguns poucos comerciantes
enriquecidos, devem ter levado à sua instalação em um período bem prema- Aqui confundem-se a verdade e o exagêro. Não há dúvida que os marujos
turo. Pois que, a bordo de um dêsses navios enormes, havia cêrca de 1.200 europeus eram sob muitos pontos de vista superiores a seus colegas de côr.
pessoas, tantas quantas em uma cidade medieval de tamanho regular, e a Haviam certamente progredido mais no campo da navegação marítima. Mas
embarcação permanecia no mar muitas vêzes durante diversos meses. A tri-
pulação, inciuindo marujos e remadores, chegava a seiscentos, numero pro-
digioso, mas o velame, constituído por enormes velas, esteiras, tecidas de
bambu, era muito pesado e exigia o auxílio de muitas mãos. Remos eram Inverno Boreal: Monção NE
ainda ocasionalmente necessários, e cada remo, que media muitas vêzes mais Verão Boreal: Monção SW
de dez metros de comprimento, era manejado por uma dúzia de escravos. Monção SE
Além dêles havia uns quatrocentos "soldados de marinha", quase sempre
abissínios, porque êsses eram os combatentes mais ferozes, armados com bes-
tas, das quais atiravam flechas acesas, embebidas em nafta. Também êles
constituíam "absoluta necessidade". Piratas existiam por tôda parte, e todos
aquêles que não conseguissem defender-se ou pagar um resgate exorbitante
por sua vida, eram atirados ao mar. Além dêsse milhar de tripulação e sol-
dados, duzentos a trezentos passageiros participavam da viagem. Um grupo
tão numeroso tornava lavatórios e banheiros necessidade absolutamente pre-
mente. Uma vez que êsses barcos eram principalmente destinados ao trans-
porte de carga, e por isso cheios de mercadorias de tôda espécie, deveriam
suas proporções ter sido enormes, chegando a deslocar entre duas e três
mil toneladas, os quais, comparados aos navios de Colombo, dão a êstes o
aspecto de barquinhos de brinquedo.
Tal história pode parecer fantástica. Mas felizmente temos as descrições em
primeira mão de lbn Batuta. Eis como apresenta aquêles barcos gigantescos;
"Os grande navios chineses chamam-se "Junk" Uunco). Nêles há até doze velas. As velas
consistem em bambus tecidos como esteiras. Elas nunca são arriadas, viram-se as mesmas
de acôrdo com a direção donde sopra o vento. Quando o navio está ancorado em algum
pôrto, ainda assim as velas estão nos mastros, embora pandas. A tripulação completa do
navio consiste de mil homens, seiscentos dos quais são marujos e quatrocentos soldados,
incluindo arqueiros, escudeiros e besteiros, todos êles arremessam projetis com nafta. tsses XXVII . A monção nordestina e a m onção do sudoeste no Oceano lndico.
barcos são construídos exclusivamente nas cidades de Zaitun e Sin-Kalan (Cantão) (...). ~os
lados dos navios existem os remos, tão grandes como os mastros, e cada um dos quaiS é
movido por dez ou quinze homens. A ação de remar é efetuada por dois grupos, que em quan_do Jordanus escreve que os barcos de Catai eram meras embarcações
pé se defrontam. Duas cordas têsas e pesadas são prêsas aos remos. Os dois grupos puxam costenas, profere uma in verdade e comete uma in justiça. O Bispo de Quilon
alternadamente essas cordas, primeiramente em uma e depois em outra direção. O navio tem é bem mais justo quando escreve sôbre os navegadores hindus, se bem que
quatro cobertas e contém salas, cabinas e salões para os negociantes que nêle viajam ... ". 0
_que realmente estivesse descrevendo fôssem navios de construção árabe e
Vinte anos antes de lbn Batuta assim redigir as suas memórias, outr? tnpulados pelos árabes, mas de propriedade hindu. Pois levou muito tempo
havia escrito relatos semelhantes - o dominicano Jordanus de Catalalll. a:~ que os próprios hindus se aventurassem ao mar - como se deu,
a lás, com todos os indo-europeus, povos obviamente de índole terrestre. De
282
28!1
· - nem lhe passava pela cabeça que não voltaria durante vin~e
qualquer maneira, o Bispo Jordanus julga os navios "dêsses hindus" mara- sua peregnnaçaoT,a'nger quando 1·á teria atingido a idade de quarenta e seis
vilhosos: "sunt mirabilia", dizia, e quatro anos a •

"pois embora sejam muito grandes, não são suas pranchas juntadas com ferro. Em vez
anos- · I·nha mãe ainda estavam vivos quando parti. Doía-me bastan-
"Meud paid ·e á-los
m Mal havia completado vmte· e d OIS
· anos d e I'd a d.e. "
disso são unidas com algum fio, manufaturado dos produtos de uma determinada planta.
t.sses navios não possuem coberta, sendo sempre abertos e levam tanta água que os marujos te ter e e~~es d~pois chegou Ibn Batuta a Meca. Visitou o túmulo do pro-
muitas vêzes têm de ficar numa poça para tirar a água." AlgunsMmd hi'd el Haram a "Mesquita Sagrada", realizou as sete voltas
feta na e se , d" . l
nrescritas pela Caabá, beijou o "hadschar el aswbaá , ~ medteon~o ne gro, emo -
Também isto pode parecer-nos uma história das "Mil e Uma Noites", tal 1
~urado de prata, que está cime~tado na Caad - e e . ev~naQvo1tadr agora
como contadas por Sindbad, o Marujo. Mas o Bispo Jordanus era um homem de seus pais. Mas o JOVem gostou a peregnnaçao. uan o uma
respeitável, que não gueria saber de contos de fadas. O que relata é a mais para a caspaarti·u oara 0 Sudeste da África, êle se juntou a ela, e durante me-
caravana \ d l E . S' . Pé .
absoluta verdade. P01s que tais navios "costurados" ainda existem. São os tade de sua existencia errou através de todo mun o: l?e o. gao, Ina.. rsia,
chamados "Mausim", os barcos das monções que hoje, como há três mil através da Ásia Menor e do. Mar Negro para, a ~nméia, V~lga ac~ma até
anos passados, atravessam a distância de 4.500 quilômetros entre a costa de Bulgar, grande centro comerCial no Kama, e dai, deixando atras de SI os ~a­
Malabar, na índia, e Zanzibar, na África Oriental, cruzam dois mil e cem res Cáspio e Aral, ao longo de antigas estradas de caravanas para .a í~~Ia,
quilômetros entre Calecute e Socotra ou perfazem o caminho de 1.700 qui- através do Afganistão. Depois d~ perma?ecer al~ns. anos em. Delhi, VIaJO~
lômetros entre Ceilão e Sumatra numa velocidade de quatro a cinco nós. para a China e cinco anos depOis de ~eixar Delhi, ~m.te e d01s. anos depoiS
Não há pregos ou pinos nos cascos de tais barcos "costurados". Tôdas as ae sua partida de Tânger, voltou à índia, cruzou a P~rsia e o Egxto para che-
cavernas, pranchas, borda, ou quilha - tôdas são costuradas, atadas, pichadas gar a Meca. Em janeiro de 1354 chegou a Fêz, capital de Marrocos e :e~~
e ligadas com um fio extra-resistente, à prova d'água, obtido da fibra do co- do Sultão onde se estabeleceu "sob a asa protetora da bondade do sultao ,
queuo. Hoje êsses barcos são chamados "ntepe", são abertos ou semi-abertos, a fim de 'ditar as suas memórias, que foram concluídas em 9 de dezembro
deslocando cêrca de quarenta toneladas, com proa baixa, pôpa abruptamente de 1355.
subindo a grande altura, mastros inclinados para a frente e grandes velas Sua narrativa de viagem perfaz grosso volume, por vêzes :_ansativ<?, mas co~­
triangulares, graciosamente arqueadas . tendo muita informação interessante. O fato de Batuta nao ter sido um n-
Em inícios de outubro atravessam os mares do Sudoeste asiático desde caço, que viajava com o ~ni.co propósito de proc_urar pra~e~es, ma~ um home~
tempos imemoriais, sem bússola, manuais de navegação ou rádio, sendo im- que ganhava a sua subsistenCia no curso da viagem, cadi (magistrado) e di-
pelidos pelas monções nordestinas dos meses de inverno, que sopram até fins plomata, empresta a seus relatos uma vitalidade palpável e um sabor espe-
de fevereiro, levando-os em trinta dias até a África. Em março as monções cial. O jovem que, naquelas páginas, marcha através de estepes e desertos.
mudam de direção. Agora vêm do sudoeste, durante meio ano a fio. E em atravessa pantanais e florestas intermináveis, assit? como su.pera passagens
todos os portos da África Oriental levantam-se as velas que, se as naves não congeladas de altíssimas montanhas para chegar a cidades movi.men.tadas, con-
forem apanhadas por nenhum ciclone, as levam em três semanas de volta à serva os olhos abertos e sua mente é receptiva. :tle narra hist?nas e o~ve
índia. enquanto outras lhe são narradas, e sempre demonstra o prazer mcontrolavel
da narração dos árabes, principalmente quando se referem a. lendas ou aven-
turas. Durante tôda a vida mostrou-se excelente observador este ex-estudante
de Direito, e pesava tudo que lhe era contado de maneir': crítica! céptica, in-
2 crédula. Por isso mesmo é que êle, uma vez retornado, nao se pos ~ escrever
uma coletânea de contos fantásticos de acôrdo com o modêlo de Smdbad, o
Até aqui o que temos a dizer a respeito da "ntepe" e do Bispo Jord~~us Marujo, mas um livro de memórias' de viagem, o qual, exami~ado de perto,
de Columbum; voltemos agora a Ibn Batuta. A despeito de suas descnçoes é uma verdadeira mina de informação a respeito da Geografia da Cultura
de navios chineses, não era êle marinheiro, mas apenas um viajante entu- do mundo oriental de seus dias.
siasta que tinha o dom de narrar as suas experiências, semelhante ao grego Quando chegou à índia havia aquela vasta região sido submetida ao do·
Heródoto, que viveu muitos anos antes dêle. Começou sua carreira como es- mínio maometano há um ;éculo inteiro. Ibn Batuta sentia-se "em casa". Para
tudante de jurisprudência. Nunca prestou seu exame final, mas - apesar onde q~er que se dirigisse, encontrava seus patrícios. O comissári~ de bordo
disso - estudou com muita diligência. Como estudante, principalmente es- do nav10 que o levava para a China como embaixador do Sultao era um
tudante de influente família, sentiu o dever de todo estudante maometano, ~be da Palestina. Na China encontrou o célebre jurista árabe, Kiwam ed-
de empreender uma peregrinação para Meca. Essa viagem leva muito tempo, 10 es-Sebti, que era natural de Ceuta, nas proximidades de T~nger. Quand.o
e uma vez se estando estabelecido com emprêgo e horas determinadas ~e tra- Ibn Batuta cruzou o Saara em direção a Timbuctu, vinte e cmco anos maiS
balho, é muito difícil a desincumbência dessa obrigação moral. Por. Isso, ~ :;rd.e, ~ncontrou ali o irmão daquele ~ue havia conhecid~ n31 China. "Que
peregrinação para Meca é um empreendimento da juventude entusiast~. d Istancia enorme separa os dois irmãos! ', anotou em seu d1áno.
Ioi isso que determinou Abdallah Ibn Mohammed Ibn Ibrahim, o Pai . e E De fato, que distância! O mundo inteiro parecia ter-se tornado árabe, da
Batuta e um dos mais influentes mercadores da cidade de Tânger no Estreito b spanha até a China e os Mares do Sul, de Timbuctu no Saara e d.a de~em­
de Gibraltar. Seu filho deveria realizar essa viagem ainda em tempo de es- d~~dura do Zembeze até a Rússia. Mas era apenas uma cama~a mUito ten~1e
tudante. · rncos. poderosos, capitães empreendedores e mercadores arropdos que ass~m
Quando Ibn Batuta deixou a sua cidade natal no segundo dia do .~ajab pe cornam o mundo, levados pelos ventos, as correntes do oceano e os nos
725, 14 de junho de 1325 de acôrdo com nosso calendário, para imciar a
285
284
em meandro. A maior parte dos árabes nunca deixou as planícies ou os de. fóss d opinião que o Conde Luckner era um amável sucessor
sertos de sua terra natal. E quando Ibn Batuta principou mais tarde a narrar en: ~e Muenchhausen, atribuindo ao seu testemunho para o
d o Baraod .
m caráter encantadoramente Iromco, A
a Ib n B a t u t a es sa

as suas experiências, deparou com a mesma incredulidade que Marco Pólo


cujas histórias da China valeram-lhe a alcunha "Messer Milione", Mestr~ auqu,e da co~f astauda com um piscar de olhos, não pode referir-se, porque em
Milhão, uma zombaria de seus supostos exageros.
N"''ta mame
,-- '
.
tru ue da corda não era amda .
objeto de d'Isputas. R e1atou sim- .
As memórias de Batuta excederam, além disso, o poder de compreensão de ~ 0 qu~ acreditava ver. Não se poderá portanto, negar 9-ue o truque
0

sua própria era; demorou meio milênio até que pudesse ser propriamente P rd lmente existiu e aparentemente até aos nossos dias, como se-
entendido, sendo estabelecido o seu verdadeiro valor. Narra tantas aventuras da co a rea ' . . 1
pfdo ainda não desvendado da mag~a onenta . . . .
notáveis e tantas observações que apresentavam aspecto de fábula para 0 Ibn Batuta devotou sua atenção também a ~ssuntos mais ~orr~queiro~. Um
mundo ocidental, que seu valor não foi reconhecido até serem confirmadas cUles foi 0 "Berid", o Correio Estadual Indiano, que mmt~ ImpressiOnou
por escritores subseqüentes. · · nte árabe Na :fndia assim conta, há um correiO expresso, o
Aí lemos, por exemplo, uma descrição - provàvelmente a primeira - do nosso via1a · • d'
"Ulak", tão rápido quanto o falcão é capaz de atrav.essar a Istanoa I~ensa
A • •

famoso truque de cordas dos faquires indianos, e cujo segrêdo não foi ainda das montanhas nórdicas ao mar sulino em poucos dias, graças a um sist~ma
revelado. A .êsse respeito diz Ibn Batuta: altamente desenvolvido de estafêtas e postos de ~e~ezamento; e al~m disso
"Naquela mesma noite apresentou -se um pelotiqueiro, o amir ordenou-lhe que nos exi- existe 0 "Berid" comum e também um serviço oficial usad~ exclusivamente
bisse uma de suas artes. Assim tomou êle de uma bola de madeira, com diversos furos, dos pelo sultão e operado por corredores de revezamento. O sistema como ~al
quais saíam longas tiras de couro. Arremessou-a ao ar, e ela perdeu-se de vista. Estávamos nada apresentava de novo. Mas a Idade Média .havia esquecido de há m1;nto
sentados no centro do jardim do palácio, já que a estação era a mais quente. Quando
apenas um pequeno pedaço de tira ou corda lhe ficou na mão, chamou um dos seus 0 fato de Ciro e Dario, Artaxerxes e os Sassâmdas terem empregad? o siste-
aprendizes, ao qual ordenou subir pela corda, o que êste fêz até desaparecer de nossu ma de revezamento para mensageiros. Também nã? se lembrava mais que os
vistas. O mágico chamou-o três vêzes sem receber qualquer resposta, e por isso tomou de egfpcios possuíam um serviço postal que estabe~eoa horas e~atas pa:a a e~­
uma faca, como se estivesse furioso, e começou a subir pela corda até que êle próprio desa- trega, mantinha edifícios próprios para os. serviÇO~ d~ corr~IO, carte;ros. ofi-
parecesse também . Em seguida vimos a mão do menino ser atirada ao chão, seguida do ciais e um sistema telegráfico, mediante código de smais lummosos. Nao tmha
pé, pela outra mão, pelo outro pé, pelo tronco e, finalmente, pela cabeça. Depois do que
êle voltou, com suas roupas cobertas de sangue, beijando o chão diante do amir, o qual
a menor idéia da rapidez com a qual as "carruca dormitor~a", carruage~s-dor­
disse algo em chinês. O amir deu-lhe alguma ordem, e o pelotiqueiro pegou as partes do mitório - tão macias e tão bem estofadas que os secretános dos estadist.as e
corpo do menino, fê-las tocar uma à outra, finalizando êsse trabalho com um ponta-pé. os ajudantes dos generais não tinham dificuldade em toma~ notas taqmgrá-
Mal êsse recebido, o menino se levantou, tão perfeito como antes. Eu havia ficado muito ficas- se precipitavam pelas estradas romanas durante o último sécul? .an~es
nervoso, o meu coração palpitava fortemente, como me acontecera também quando vi algo de Cristo, assim como não sabia que êste sistema fôra he~dado por Bizancw,
semelhante na côrte do Rei da índia. Deram-me umas gotas de um remédio especial que de tal modo que os hindus e os mongóis, com seu CorreiO do Estado, eram
removeu minhas dores. O cádi Afkhar ad-Din estava sentado a meu lado e disse-me: "Por
Deus, não houve ninguém subindo ou descendo corda nenhuma, nem houve nenhum der· apenas herdeiros e sucessores de tempos há muito passados. De qualquer ma-
ramamento de sangue, tudo não passa de truques". neira, lbn Batuta não tinha idéia alguma a êsse :espeit?. Apa~entemente,
~~bém, com a ingenuidade típica de viajantes ood~ntais, per~Ido~. no .1~;
A possibilidade de tal truque, mesmo como simples ilusão, foi repetida· htnnto do despotismo oriental, não tinha a menor noçao de que esse Ben~
mente posta em dúvida. O orientalista inglês E. Denison Ross declarou que o Correio do Estado, era ao mesmo tempo um serviço ~e _segurança e esJ?IO·
se tratava de mera lenda. "Nunca se encontrou quem tivesse visto tal arte nagem. O Sahib-ed-Berid, 0 diretor dos correios, que existia _em cada cap~tal
com seus próprios olhos. Essa história é apenas um relato tradicional. _Dma de. província hindu, era oficial político, diretamente subordmado ao Cahfa,
vez originado, provocou tal receptividade entre o povo, que nunca mais de· CUJa tarefa única era a supervisão da máquina do Estad~;. Mesi?o os .'7over-
sapareceu de todo. Tornou-se um boato que passou de bôca em bôca nas nad?res, os r~presentantes oficiais do poder central, er~m mvesti~ados p:lo
aldeias indianas. Não se pode pensar em hipnotismo como possível base para Sahib-ed-Bend, e viviam em mêdo permanente do efeito que as mfo;maço~s
explicações." Sabe-se que a Rainha Vitória ofereceu duas mil libras para co- a seu respeito,. enviadas a Delhi, poderiam susci!ar. Aearentement~ n~o sabia
nhecer o segr.êdo dêsse truque. Essa soma foi posteriormente elevada pa~ Iht;t Batuta coisa alguma a respeito dessas mamfestaçoes de política I.nterna.
10 mil libras; mas o dinheiro ainda está no cofre do Banco da lnglaterr~. Já Ahás, assuntos políticos não parecem ter-lhe interessado, ou talvez JUlgasse
que ninguém se apresentou fazendo jus a tal remuneração. Mas apesar disso, de boa política silenciar êsse aspecto ao seu benfeitor, o Sultão de Marrocos.
foi o truque hindu da corda visto e confirmado por homens contemporâneos. De qualquer maneira não toca nesse assunto em seu livro. Por outro lado,
Um dos últimos dêles foi o capitão corsário alemão Conde Luckner, 0 sendo filho de um c~merciante e membro de antigo povo de mercadores,
célebre "Diabo do Mar", que no seu livro "A Viagem do Diabo do Mar ao fornece minúcias precisas acêrca dos preços correntes na :fndia.
Redor do Mundo", ainda em 1951 declarou expressamente: "Vi com II?eus
próprios olhos que os faquires jogavam ao ar uma. simples corda, que fi~ou "No mu.ndo inteiro não existe país que tenha . preços mais ~aixos. Vi, durante minha
em pé como uma vara, de modo que um após outro podia subir nela acnna ~anê!'oa em Bengala, uma vaca leiteira oferecida por 3 . dmares de prata (cêr~ de
Vi ClUzeJros) ... Pombas eram vendidas à razão de 15 para 1 dirhem (cêrca de 7 cru~e1ros).
e sumir-se algures ... " Qualquer que seja a verdade em que se baseiam os fa·
tos descritos por Batuta, êle certamente os presenciou, desde que nada no
gênero tivesse sido transmitido em época anterior à dêle. . . .
::a~bém a venda de um carneiro gordo por 2 dirhem; uma libra de aç~car por 4 duhem,
hbra de manteiga por preço idêntico e algodão do melhor por 2 dm~~es, numa peça
b~rca de 20 metros. Uma jovem e encantadora escrava pode ser adqmnda como con-
É uma extensa cadeia de testemunhas que se estende entre os dOis via]or~ cu IDa ~r um único dinar de ouro, que equivale a 2,5 dinares magrevinianos (cêrca de
600 cruzenos)."
do mundo, Batuta e Luckner, através de seis séculos. Ainda que natureza
286 287
Também considerava a pimenta uma substância muito importante. Esta
era um dos condimentos adquiridos durante séculos pelos árabes de cara.
vanas vindas do Extremo Oriente, obtendo êles lucros tremendos com a re-
venda aos negociantes da Europa, onde era objeto de enorme interêsse, se
bem que pouco ou nada soubessem acêrca da pimenta. Outro produto impor-
tante para êles era a madeira de canela, o célebre "pau-brasil", cuja medula
vermelho-amarelada era usada por tintureiros e que, na Europa, valia o seu
pêso em ouro. Também lhes interessava o coqueiro, cujos primeiros frutos
haviam .naquela época alcançado a Europa pela primeira vez e aos quais
eram , atribuídas tôdas as propriedades medicinais possíveis e impo~síveis, in-
cluindo uma, que os tornaram especialmente valiosos aos olhos árabes: su-
punha~se que serviam como afrodisíaco.

"A maior parte das árvores das Ilhas Maldivas", assim escreve lbn Batuta, "são coqueiros.
:Estes, juntamente com os peixes do mar, são a base alimentar dos habitantes. O coqueiro
é uma árvore maravilhosa. Cada árvore fornece dez cachos de côco por ano, um por mês.
Alguns dêsses cachos são pequenos, outros grandes; alguns secos e outros ainda verdes.
:Esses frutos dão leite, óleo e mel. Do mel fazem alimentos doces que são comidos com os
côcos secos. Dêsses alimentos e dos peixes que comem, obtêm os ilhéus incomparável po-
tência erótica. Suas atividades nesse campo são verdadeiramente extraordinárias. Eu mesmo
tinha quatro espôsas legais naquele país, além das concubinas. Durante o dia inteiro estava
a postos para tôdas elas e também passava a noite com aquela cuja vez teria chegado; d~
maneira vivi durante ano e meio."

Esta passagem fará o leitor europeu suspeitar que se trate de uma daquelas
histórias exageradas, com as quais todos os viajantes tornam mais apimenta-
dos os relatos de suas aventuras. Para o mundo árabe, porém, essa história
possuía significação especial. Ali o rito da circuncisão é tradicionalmente
praticado tanto no homem quanto na mulher, resultando a ambos os sexos
sofrerem a diminuição de seus desejos sexuais, que nas mulheres, chega a
poder ser classificado como frigidez. Medicamentos tendentes a aumentar a
potência, são conseqüentemente muito procurados e muito caros e, num certo
sentido, mesmo necessários do ponto de vista sociológico. Entre grande J?~ssa
do mundo oriental árabe, o costume da circuncisão masculina e femmma
conserva-se até os nossos dias. É por isso que estimulantes sexuais são tão
importantes naquelas regiões hoje em dia quanto eram na época de Ibn Ba-
tuta; o que produz o hábito generalizado do fumo de haxixe, uma droga que,
em certas doses, possui efeito estimulante. Enquanto continuar o costume
bárbaro da circuncisão, seu consumo será indispensável. O uso moderado de
haxixe de boa qualidade é, assim dizem, não mais prejudicial que o. álcool.
Mas quando acompanhado por nutrição insuficiente, possui o tÓXICO um
efeito devastador, e em estado avançado de intoxicação crônica são gera~·
mente usados outros tóxicos, ainda mais prejudiciais. Eis as razões pelas 9u~IS
é impossível suprimir o contrabando de drogas tóxicas no Oriente MediO.
Depois de permanecer cinco anos na índia, lbn Batuta mudou para a
China. Isto aconteceu da seguinte maneira: O Imperador da China man~ou
ao Sultão de Delhi uma embaixada com presentes- cem escravos mascuhn~s
e femininos, quinhentas vestimentas de sêda de "zaitunih", da cidade de Zal·
tun (esta palavra, que em italiano medieval deu "zettani" e em espanhol !fde·
dieval "aceytuni", é a origem de nosso "cetim"), além de cem trajes de se a
de Hansa (Han~chou). Naturalmente teve uma embaixada indiana d~ re·
tribuir a visita, JUnto à côrte do Imperador da China, e Ibn Batuta foi no-
meado um de seus líderes.
A viagem prolongou-se bastante. Mas naquela época o tempo era assunto
de importância ainda menor no Extremo Oriente que hoje, e assim teve Ibn Mist ério do deserto. Um mongol, montado em camelo,
Batuta muito tempo para tôda a sorte de observações durante o trajeto. Uma na solidão terríve l do Deserto de Gobi.

288
que0 seu caminho passasse .pele;> Arquipé~ago de Sonda, naquele ten;tpo
de produção '!_o cr~vo-da-mdia, aprovelt~u. lbn ,Batut.a ~ ?portumda-
de pedir informaçoes sobre essa cultura. Os giaour , ou mfiéis europeus,
trituravam flores ressecadas de cr~vo, i~ergindo-as. no vin~o e na cerveja a
mancheias; os ára~es que as traZia.m nao c.onsegUiam satisfaze: a. procura.
Poderá ser útil mais algum esclareCimento sobre esta cultura. EI-lo:
•As árvores do cravo-da-índia vivem durante muito tempo e são de tamanho bastante
considerável. São mais numerosas no território dos infiéis que na região dos maometanos,
e uma vez que sejam tão numerosas, não existem como propriedade particular. O que cha-
mamos "cravo" faz parte da flor, que cai da árvore e tem a aparência de uma flor de la-
ranja. o fruto daquela planta é a noz-moscada, chamada em nossa terra de "jauz-el-tib", a
noz-perfume. A flor dessa árvore é a flor de moscado. Vi tudo isso com meus próprios olhos."

Muitos meses depois e após várias aventuras perigosas, desembarcou lbn


Batuta na China. Para grande admiração sua encontrou também ali numero-
sos compatriotas seus. O Sul da China parece-lhe uma província árabe. Vem
isso de longa data. No início, os árabes não eram marinheiros ou explora-
dores. Eram um povo nômade que vivia do comércio e tinha uma aversão
igualmente pronunciada pelo mar como os primeiros fenícios, alguns
milhares de anos antes. Assim como para os fenícios, também levou bastante
tempo antes que os árabes se tivessem acostumado o suficiente aos mares, a
ponto de ousar percorrer ~andes distâncias. A primeira frota árabe foi cons-
truída pelo califa Muraviya, por volta de 650 de nossa era, e usada por
êle em uma tentativa de conquistar Bizâncio. O "fogo grego", um projetil
que já havia sido inventado em 330, durante o govêrno de Constantino, o
Grande, e que era construído de naftalina, giz queimado e salitre, anulou
todos os ataques de Muraviya, mas a idéia de uma frota árabe havia sido
estabelecida, e pouco tempo mais tarde, áreas consideráveis do Mediterrâneo
estavam sob o contrôle das naves de guerra dos árabes.
Q~ase simultâneamente, por volta de 650, o antigo Canal de Suez, entre
o NI!o e o Mar Vermelho, no Egito, foi submetido a uma dragagem e logo
depois !laves árabes apareceram no Gôlfo Persa, na costa oriental da África e
na fndi~. Ao aproximar-se o fim do século sete, as colônias árabes cobriam a
costa ocidental da índia até a ponta meridional, e dentro em pouco torna-
ram-s.e ~s pontos de partida para o comércio árabe com o Extremo Oriente.
O pn'?o.pal centro dêsse comércio na China parece ter sido Khanfu (Cantão).
Lá exiStua desde 750 uma grande colônia persa-árabe, e mais tarde se havia
tornado tão forte que ousou atacar e saquear a cidade chinesa. Uma cente-
na de anos depois receberam os estrangeiros a retribuição por êsse insulto
ao. <;>r~lho naciOnal da China. Na ocasião da revolução, provocada por um
o(~cia da .g_uarda, Uang-Chou, e dirigida particularmente contra os estran-
rnos, ven~Icou-se terrível massacre em Cantão, custando a vida de milhares
e estrangeiros de todos os credos e nacionalidades .
. Depois dêsse acontecimento perdeu Cantão a sua preeminência no comér-
~~ c.?m ?s m~ndos árabe e persa. Seu lugar foi tomado por colônias árabes
set 1a-~se-QUia; t~mbém Hang-Chou, a Quinsay de Marco Pólo, e a cidade
v· en.tnona! de .Mmg-Chou (Ming-Po), já representavam então papel de rele-
á:~Ia. Existe mformação precisa a êsse respeito, proveniente do geógrafo
( a e lbn Kordadbeh (J?or volta de 880) e do mercador árabe lbn Wahab
Jor vo_Ita de 870), que VIsitou a China, chegando mesmo à Côrte Imperial em
naa~h!m. tsses dOis nos informam que a mercadoria principal, importada
era ma, . gr.aças aos esforços árabes, além de pedras preciosas e pérolas,
im m e~pe~Ianas das Molucas, tendo também o algodão hindu sido de alguma
portanoa. ão há evidência para provar que os árabes importaram o ópio.
· sôbre
Quando Alá se enfw·ece, envia o simum. Aqui se lança com imensas nuvens de areta 505 . 19 289
Conqu isto Mundo
o pequeno oásis. L ogo será noite, logo penetrará, com um calor infernal, nas pequenas ca
Logo estrangu(ará os habitantes com suas garras inclementes.
Depois de 870 um novo produto, muito valorizado na China, era transpor. I sse seu livro, a obra de um gênio, _foi perdido ~ seu nome. Não
tado nas "dhaus" indianas, os escravos negros da África Oriental. Mesmo na- bem~ uem nem o que tenh~ sid~. É evid~nte que _foi alguém de_ alt~
DOI
quela data remota o valor do marfim negro era de sorte a justificar sa · - q rém já que o livro fm escritO a pedido do rei, como obra didáu-
e perigosas viagens. ~~~~· Jfilho' menor daquele soberano. Pediu-se-lhe que es~revesse uma cos-
A rota entre a fndia e a China era extremamente arriscada. Deduzindo de P fa uma descrição do mundo, contendo todo o conheomento da época.
relatos chineses, a bússola foi usada por navegadores estrangeiros em meados ~~a :r~ mais importante para um soberano que a capacidade de encarar
do século onze: O~ chin_es~s, que também_ conheci~m o imã, apenas o empre- co~tamente a terra com seus contin~ntes _e oceanos, suas correntes e vent~s,
gavam para ntuais rehgwsos. Apesar disso contmuou o Oceano fndico a suas zonas quentes e geladas. Um rei, mais que qualq~er outra pessoa, nao
apresentar feição impredizível e muitos navios devem ter ido a pique, com pode esquecer que há outros homens, outros povos, vivendo além das ~ltas
tripulação e carga. ontanhas. Esclarecer êsse ponto de vista ao filho temperamental do rei da
Ibn Batuta, depois de sobreviver a muitos perigos, chegou são e salvo ao moruega, era a tarefa primeira do educador. .. . , "
Reino do Centro. Não possuía o calibre intelectual de Marco Pólo e nem Foi assim que se originou po: volta de 1250 a , ~onnungsskuggs1a , o Es-
a sua posição de Ministro do Imperador da China. Mas viu o suficiente dêsse pelho do Rei", o livro já men_cwna?o para o pnncipe e_ que resume, n~ for-
país remoto e diferente para passar de uma surprêsa para outra. Uma cen- ma de um diálogo entre pai e filho, to~o o conh~omento geográfico e
tena de altas embarcações, tôdas elas de tamanho idêntico ao daquela em que científico de uma era. Encontramos nesse hvro a segumte passagem:
viajou, estavam fundeadas no pôrto de Zaitun. O número de barcos pequenos
• ... E Você deve compreender que a Terra tem a forma de uma_ esfera, não sendo i&ual-
era imenso. Tratava-se do maior pôrto do mundo. Membros de tôdas as raças mente próxima do Sol em tôdas as suas partes. E lá, on_d e a órbita curva do S?l m~1s se
e todos os povos formigavam ali. Todos se vestem de sêda. "Por isso deve a aproxima da Terra, ela é mais quente, e os países que exiStem ~efronte a seus ra1~s dnetos
sêda ser muito barata", deduz o árabe. E por que é tão barata? 11o paràalmente inabitáveis. Mas aquêl_es, situados de tal manena que o Sol os atmge com
"Porque os vermes que a produzem aderem a certos frutos de árvore, dos raios obllquos, aquêles podem ser habitados (...).
quais comem e não necessitam de muito cuidado." Ibn Batuta não enxerga Menàonei que uma zona quente estabelece ':m ch:~culo e~ redor. da Terra, de leste para
oeste como um anel. Se tenho razão em tal afirmaçao, entao considero certo que a Terra
o trabalho prodigioso, envolvido na obtenção da sêda. Não percebe tampouco ~ igualmente fria em suas extremidades sul e norte. Além disso acredito que todos ?s país~s
que a população, em enorme crescimento, torna a mão-de-obra uma "merca· próximos daquela zona quente, seja ao sul ou ao norte, são quentes, mas que aqu ~ les ma1s
doria" barata na China, e que esta é a razão única pela qual o produto afastados em cada lado, devem ser frios. Se Você observa, meu filho, que todos dizem que
dêsse trabalho, a sêda, custa tão pouco que serve para "vestir" mesmo os 01 países ficam mais e mais quentes quanto mais se viaja para o sul, vem isso, acredito eu,
"pobres e doentes dêsse país." Tal julgamento poderia apenas ser exarado por do fato de que Você jamais encontrou quem tenha viajado tanto para o sul a po~lto de_ ter
um capitalista, que assim conclui: "Se não houvesse negociantes, a sêda não atingido países tão ao sul da zona quente como estão ao norte aquêles dos qua1s fale1 . E
teria valor algum. Na China uma única vestimenta de al~odão custa tanto R Você falou de ventos mais quentes que outros, por virem _ d e regiões do s~l, t_:ata·se de
um aconteàmento natural, pois o vento se torna mais quente vmdo em nossa dueçao, mesmo
9-uanto muitos vestidos de sêda". Igualmente não consegue ele compreender a se parte das regiões frígidas da extremidade sul da terra, porque sopra atr~vés do anel
'maravilha" do papel-moeda, uma maravilha que pode ser explicada ape_nas curvado do caminho cálido e assim atinge quente o norte, mesm~ ~e sopra fno do_ sul. Se
se tivermos em mente que o imperador exercia um poder absoluto. Por ISSO s&es humanos vivem tão próximos às zonas frias na parte ~endwnal . quanto v1vem os
nem se cogitou de garantir aquelas notas, não maiores que a palma da mão, groenlandeses na setentrional, tenho certeza que o vento setentnonal os atmge com a mesma
levando tôdas a assinatura do imperador. Umas décadas depois, quan~o os lempc;ratura com que nos atinge o meridional, pois que êles têm de olhar para o norte,
governos da fndia e da Pérsia se prontificaram a sanar as finanças, mediante em direção ao meridiano e a todo o movimento solar, tal como nós temos de fixar o sul,
j~ que vivemos ao norte do Sol. E quando o Sol se move na extremidade sul de ~eu_ caminho
o papel-moeda, nada conseguem senão o caos completo e irremediável. O dtagonal, têm aquêles que vivem na extremidade sul da terra verão e abundanoa de luz
poder é cobertura suficiente para o mercado interno, contanto que não falte IO!ar, enquanto nós experimentamos o inverno e a falta de sol. Quando se move na extre-
moeda internacional válida para o fomento do comércio com o exteri<;>r: Ern mtda~e norte, o contrário sucede, e assim vai sempre, levantando-se para o norte . qua~do
outras palavras, tal dinheiro para uso interno não passa de um certificado se detta para o sul, e quando se deita no norte, começa a levantar-se na parte sulina ...
de trabalho realizado. Nunca, porém, penetraram tais pensamentos na ca·
beça de Ibn Batuta que apenas vê, admira e narra. Considerando que a doutrina da forma esférica da terra ensinada por P~­
tágoras (580 a. C.) e depois dêle por Aristóteles (384 a 324 a. C) -mas depois
com~letamente esquecida - ainda estava longe de ser universalmente reco-
nheCida no século quinze, vemos que essa breve exposição é verdadeiramente
notável. Não apenas assegura que a forma da terra é de uma esfera, mas
também estuda as várias teorias, provenientes de tal concepção; por exemplo
3 que a Terra possui uma zona quente que a envolve como um cintur~o, que
08 P~Ios Norte e Sul devem ser igualmente frios, e finalmente que mverno

Temos de abandonar agora Ibn Batuta, o ex-estudante de Direito, o explo- e verao devem alternar-se entre os hemisférios norte e sul. E tão certo está o
rador e jornalista-via jante, o cá di temporário, diplomata e negociante. O au~o~ desconhecido do "Espelho do Rei", um dos maiores geó~afos da Ida?e
fluxo de nossa narrativa leva-nos inesperadamente mais uma vez para o nordte, Media, gue efetivamente rejeita a objeção de todos os maruJOS, que veleja-
para a Escandinávia. Lá se encontra um homem desconhecido na côrte 0 ram muito :m direção sul, e que informaram que a temp_era_t~ra se torna
rei da Noruega, algumas décadas antes do aparecimento de Ibn Bat~ta, _e ~da vez mais elevada e nunca mais fria. Isto tem grande sigmhcado, e sen-
pensa no mundo e seus enigmas. Desconhecido porque, embora a históna timo-nos inclinados, a esta altura, a atribuir sua clarividência a .êsse respeito
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a uma intuição brilhante. Mas são muito raras tais "intuições" em uma
ciência como é a Geografia, que se firma inteiramente em pesquisa e expe- Em outra parte do "Purgatório", Dante relata que se dirigiu ao hemisfério
riência. E isto se aplica também ao "Espelho do Rei". O que êle ensina não é meridional, vendo o, S?l no nor~e. _Eis_ o que era, para o h?mem comum de
produto de deduções lógicas, mas conhecimento obtido graças a reais viagens sua época e sua patna, uma Idéia mteiramente estranhavel; e temos de
empreendidas para aquêles lugares distantes. ' inferir que o grande flor~ntino n~o adquiriu u;n raciocínio que ~ ~evasse
Não existe, é verdade, nenhuma documentação que afirme terem os vikings a tais conclusões de maneira exclusivamente teónca. Para tal a exatidao pa-
encontrado rota tão ao sul quanto o são as frias zonas do Antártico. Não rece demasiada. De alguma maneira deve Dante ter-se inteirado do fato de
chegaram provàvelmente nem mesmo ao equador. Como poderiam então a constelação da Grande Ursa, no hemisfério norte, possuir paralelo no he-
saber que as regiões temperada e fria do norte possuíam seus equivalentes misfério sul, o Cruzeiro do Sul. Mas a convicção de que a Terra era uma
no hemisfério sul? esfera não conseguiu aceitação universal na Europa senão uma centena de
Isto é enigmático, mas existem muitos enigmas dessa espécie. Para citar anos depois. Como, então, adquiriu Dante o seu conhecimento?
um, vamos dar aqui algumas linhas escritas no primeiro "Canto" do "Pur- Temos de supor que lhe fôra transmitido da côrte do rei normando, Ro-
gatório", por Dante (1265 a 1321): gério da Sicília (1130 a 1154), em cujo palácio todo o conhecimento geográ-
fico dos vikings setentrionais e dos marujos e exploradores árabes encontrava
"lo mi volsi a man destra , e puosi mente
All'altro polo, e vidi quattro stelle seu centro.
Non viste mai fuor ch'alla prima gente. Palermo, a sede de gov.ê rno de Rogério, era um dos poucos pontos de in-
Goder pareva i! ciel di lor fiammelle: terseção entre as esferas de poder dos nômades marítimos e do sul. Os dois
Oh settentrional vedovo sito, povos se conheciam há mmto tempo. Haviam-se defrontado em inúmeras
Poi che privato sei di mirar quellel" batalhas marítimas e embates fugidios. Mulheres e moças árabes haviam
"Volvendo-me à direita, pus a mente tomado o rumo do norte como prêsa de guerra; escravos de galera, de origem
No pólo oposto e vi as quatro estrêlas, viking, moviam os remos dos navios de guerra dos mouros e constituíam a
Somente vistas da primeira gente. guarda pessoal nas sedes da nobreza moura. Os dois povos tinham muitos
Triste Setentrião, viúvo delas traços em comum; eram unidos por estranho parentesco de amor e ódio.
- Que faziam sorrir o firmamento -
Tu que não podes ver as luzes belas!"
No início do século nove, penetraram os nórdicos pelo Mediterrâneo, atra-
vés do Estreito de Norfa (hoJe, Estreito de Gibraltar), e por volta de 1059 já
(Tradução do Prof. João Ziller} se haviam firmemente estabelecido na Sicília e em tôda parte inferior da Itá-
lia. Tratava-se de áreas que, em tempos passados, haviam sido colonizadas
Esta passagem (linhas 22 a 27) foi já interpretada por Alexander von pelos gregos. Nos inícios da Idade Média um pequeno grupo de soldados e
Humboldt como sendo uma descrição do Cruzeiro do Sul, e como tal foi proprietários árabes conseguiu impor-se aos habitantes rurais greco-itálicos, e
cuidadosamente examinada. Uma vez que, porém, essa constelação, caracte· aquêles seguiram, durante cento e cinqüenta anos, os vikings.
rística de latitudes meridionais, não é absolutamente visível ao norte dos tsses eram cristãos, mas em geral estavam em profundas divergências
30 graus de latitude norte, a evidência de que Dante tem certa familiaridade com Roma. De qualquer maneira, o braço da Igreja, por longo que fôsse,
com a mesma parece um tanto misteriosa. Não se tornou o Cruzeiro do Sul não alcançava as salas de conferência e nem os estudos da Sicília - podendo,
conhecido na Europa até meados do século quinze, quando começaram as conseqüentemente, os cientistas, mesmo sendo árabes, externar livremente a
grandes viagens de descobrimento. O conhecimento dêsse grupo interessante sua opinião. De fato nutriam os louros bárbaros do Norte o maior respeito
de quatro estrêlas - o qual, conforme Dante indica, havia, em eras passadas, pela sabedoria árabe, e foi assim possível que, por exemplo, um filósofo, mé-
sido visível também no hemisfério setentrional, até que desaparecesse d? d_ico e geógrafo árabe, da estatura de um Ibn Edrisi, colaborasse com Rogé-
horizonte antes do início de nossa era, em virtude da influência dos eqUI- n~ li. Os esforços conjuntos dêsses dois homens de tipo tão diferente deram
nócios, - revela que Dante foi capaz de se basear em fontes realmente antigas ongem a três obras que transmitem o conhecimento acumulado de seus dois
para obter suas informações astronômicas. Sabia também que a Grande Ursa, povos: uma esfera celeste, um disco, representando o mundo conhecido da-
a constelação do norte, desce mais e mais de acôrdo com o nosso trajeto em qu~les. dias - ambos em prata - e um tratado geográfico, o famoso "AI
direção sul, e é concomitantemente que surge o Cruzeiro do Sul. Pois que RoJan" ou "Tratado de Rogério!"
a passagem do primeiro canto do "Purgatório", acima citado, assim continua: Tanto Rogério quanto Edrisi seguiam método estritamente científico. Es-
tavam à procura de conhecimento, de verdade - um traço moderno, que
"Com'io da !oro sguardo fui partito, pr_enunciava o aparecimento de um novo tipo humano - e êles próprios eli-
Un poco me volgendo all'altro polo, mmaram tudo aquilo na grande quantidade de informações, contos e lendas
Là onde il Carro già era sparito
Vidi presso di me un veglio solo ..."
com que depararam, que não lhes parecesse digno de crédito. Indubitàvel-
m~n~e c~mheciam as tradições da saga escandinava sôbre a Groenlândia e a
"Deixando de admirar êsse portento, Vmlandia. Mas êsses países não são representados no globo e nem mencio-
Para o norte virei-me circunspecto, na~~s no tratado. Pois que nada de definitivo era sabido acêrca de tais
Onde não mais havia da Ursa o alento, reg10es e a enorme quantidade de informações que corria a seu respeito no
Perto de mim um velho vi de aspecto ... " mu~do nórdico era apenas transmitida oralmente e de tal maneira vaga que
(Tradução do Prof. João Ziller) aquel~s . dois cientistas exatos e com penetrados, que estudavam os .mapas
mundiais na Côrte de Palermo desprezaram-nas completamen~e, considerao-
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293
do-as nada mais que invencionice de marujos. Por isso mesmo representavam nos inícios do século dez. Mas o que escreveu acêrca da Polinésia em seu
para êles a Irlanda e as Canárias as extremidades ocidentais do mundo co- "Marudsch al dhabab" (Campos de Ouro), presumivelmente não satisfazia
nhecido. pela precisão a Rogério e Edri~i: Aparentava ser ~emasiado fabulo~o e vago e
Idêntica a situação no Extremo Oriente. O Japão é mencionado, sob 0 por isso ignoraram essa descnçao, fazendo termmar o mundo onental com
nome de "Ilhas Sila", mas nada encontramos ali acêrca da Polinésia e do Java, Sumatra e as Filipinas.
mundo das ilhas do Pacífico. Mas ainda assim era a existência dessas muitas Ao norte, abrangia sua visão territórios até Arcângel e as regiões da caça
ilhas tão bem conhecida dos árabes orientais, como a Groenlândia ou a Vin- de peles na Pechora. São indicados os ~istritos e~ redor dos L~gos Ládog~ e
lândia dos vikings. Elas tinham sido até mesmo descritas em livros - por Onega, assim como também as cercamas dos Rws Neva e Dvma e os Rws
Ali Masudi, geógrafo arábe e autor de livros de viagens, que nasceu em Bagdá Volga, Don, Dniéster e Dniéper. Na Ásia conheciam, entre outras coisas, o
Lago Baikal e os Rios Onon, Amur, Ili e Jenissei. Tinham também conheci-
. mento mais ou menos exato do Tibet, assim como das gigantescas monta-
nhas da Ásia Central. Naturalmente é bastante clara a descrição da Eurol?a,
com o Danúbio, o Reno, o Elba, seus mares e suas costas. Mas na Áfnca
Ocidental não tinham certeza senão da existência do Marrocos meridional,
e por isso omitiram em sua representação tudo aquilo de que lhes falavam
sem provas concretas. E enquanto na costa da África Oriental, "dhaus"
árabes há muito haviam velejado para Zambeze e Sofala, mantinham-se Ro-
gério e Edrisi estritamente ligados à antiga noção ptolomaica de que a África
do Sul se projetava para leste em vasto arco, unindo-se com a Ásia, redu-
zindo o Oceano indico à condição de um mar continental.
Muita luz e alguma sombra encontram-se aqui. Mas ambas andam sempre
juntas, sendo as sombras indispensáveis se qmsermos obter uma visão tndi-
mensional das coisas. Não pode haver dúvida que existiu um conhecimento
bastante vasto fora da área iluminada por Rogério e Edrisi. Tanto Dante
quanto o mago desconhecido do Norte que escreveu o "Espelho do Rei" sa-
1 biam de muitas terras desprezadas ou desconhecidas em Palermo. Pois que

l os liames entre árabes e vikings, se bem que se tivessem limitado, até a


época das cruzadas, à classe superior de mercadores corajosos e combatentes
audaciosos, eram certamente mais e.c;treitos do que durante muito tempo se
supunha.
O contato que existia entre ambos os povos parece ter sido causado parti-
cularmente pe1a moda de peles, que reinou durante quase tôda a Idade Média.
Por curioso que r.areça, embora seu clima fôsse tão diverso, mostravam os
árabes igual predileção J?elo uso de peles. De qualquer modo desenvolveu-se
um intercâmbio comercial bastante vivo entre o distante Norte, região de
valiosas peles, e países subtropicais e mesmo tropicais como a Pérsia, o Egito,
a Arábia e a índia. ~sse comércio era centralizado principalmente nas mãos
de mercadores árabes, e os produtos alcançavam tais preços que elevados
lucros eram fàcilmente obtidos. Como conseqüência dêsse comércio, peles de
ursos polares e capas de arminho existiam no Egito e na índia. A fim de
alcan~ar tais lucros, negociantes orientais arrostavam grandes dificuldades
e pengos. Inicialmente viajavam apenas até Bulgar, capital de uma nação
turca, que existiu por volta de 700, perto da confluência do Volga e do
53. Mapa-múndi de Edrisi. Tal como o original, orienta-se também esta K~ma. Mais tarde seu caminho estendeu-se consideràvelmente para o norte,
cópia, proveniente do século XV, para o norte. No extremo norte fica a e _eles chegaram tanto à Sibéria quanto ao Mar Branco, onde Cholmogory,
Escandinávia, desenhada como se fôsse uma ilha, de tal modo que o Mar nao longe de Archangelsk, a Holmgard dos vikings, constituía um dos cen-
Báltico apresenta uma passagem ao Oceano Glacial Artico. As Ilhas Britâ- tros do comércio de peles da Europa.
nicas aparecem modificadas, quase irreconhecíveis. Na Alemanha do Norte
há uma série de lagos; a Espanha é um enorme estuário, a forma da
. ~sses distritos, que não podem ser todos exatamente localizados, são men-
bota italiana é indicada, o Mar Cáspio e o Negro são superficialmente Cionado_s por Ibn Fadhlan, um grego que morava em Bagdá, onde se havia
reconhecidos, o Ural é esboçado. Aparecem também o Mar Vermelho e o converti~o ao islamismo, ocupando posição de confia_nça. na ~ôrte do califa
Gô~fo Pérsico, _enquanto o Ceilão recebe a forma quadrada típica de mapas Mukt~dir (908 a 932). ~sse Ibn Fadhlan, homem mmto mtehgente· e, como
anugos; a Afnca se estende acentuadamente para leste e o Nilo envia um é. óbvio, muito interessado em Geografia, foi enviado como embaixador à
afluente para oeste, através do continente, até o Oceano Atlântico. corte do Rei Almo de Bulgar em 920, e escreveu extenso relato, no qual suas
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das condições, para êles muito estranhas, em que aquêles viviam. Esta peque-
na parte de seu livro, para nós do maior interêsse, afirma:
"A uma distância de vinte dias de viagem do país dos Bulgars, existe um distrito cha-
mado Isu, e além de lsu um povo, chamado os Iura. (... ) Os habitantes de Bulgar dirigem-se
para lá e voltam com roupas, sal e outras mercadorias com que negociam. Para transportar
bses produtos, construíram uma espécie de pequena carroça, puxada por cães, já que aí
existe muito gêlo e muita neve, não sendo nenhum outro animal capaz de movimentar-se. Os
homens atam ossos de animais a seus pés, cada qual leva duas varas pontiagudas nas mãos,
que imergem na neve atrás dêles a golpes regulares, e assim deslizam sôbre a neve (...).
O Rei dos Bulgars contou-me que à distância de uma viagem de três meses existe um
povo, chamado os Vishu, entre os quais a noite se estende por menos de uma hora. No
mar dessa região vive um peixe, de cujos dentes facas e cabos de espada são confeccionados.
Se um navio navega nesse mar em direção à Estrêla Polar, chegará a uma região onde, no
vuão, não existe noite alguma e onde, no inverno, o sol não se torna visível no zênite,
revolvendo-se no firmamento feito um moinho. E depois vem uma parte em que o ano
inteiro se resume num dia e numa noite."
Dos próprios vikings, lbn Fadhlan dá a seguinte explicação:
"Nunca vi um povo de estatura tão elevada. São altos como palmeiras, de faces averme-
lhadas e cabelos ruivos. Não usam casaco nem caftã, porém os homens possuem apenas um
sobretudo tôsco, que colocam sôbre seus ombros, de tal modo a deixar livre uma das mãos.
Todo homem traz consigo um machado, uma faca ou uma espada; nunca são vistos sem
tais armas. Suas espadas são largas, decoradas com uma ornamentação ondulante, traba-
lhadas à moda dos francos. Em um lado da espada, da ponta até o cabo, são representadas
árvores, figuras, etc. As mulheres trazem sôbre o peito uma cápsula de ferro, prata, cobre
ou ouro, de acôrdo com a riqueza de seus maridos. Na cápsula está prêso um anel e neste
existe, também sôbre o peito, uma faca. Em tôrno do pescoço usam correntes de ouro e de
prata. Pois se um homem possui 10 mil dirhens êle faz com que sua espôsa receba uma
dessas correntes. Se tiver 20 mil ela recebe duas e cada vez aumenta o número de correntes
~~ acôr~o com o aumento do capital do marido, contado de dez em dez mil dirhens. As
JÓias mats preciosas dêsse povo são pérolas de vidro, das espécies que podem ser encontradas
nos seus navios. Consideram-nas extremamente preciosas, pagando um dirhem para cada
uma, que colocam sôbre uma corda, para servir de corrente às espôsas ... "

tsse relatório que não é, como já dissemos acima, mais que parte diminuta
do volumoso livro de viagem de Ibn Fadhlan, é indubitàvelmente autêntico
em _seus traços mais importantes, e comprova excelente capacidade de obser-
vaçao! combinada à habilidade de distinguir entre verdade e ficção. Como
deve~1a ter sido estranho ouvir falar nos países tropicais de povos que em
pé sobre ossos de animais deslizam sôbre a neve - os precursores de nossos

XXVIII. Rotas comerc~ars pré e prato-históricas na Rússia. Além do caminho do J!ístula


e d? Dniéster. para ólbia e ao longo da estrada bdltica pelos Rios Duna e Dniéper, era
mwto perco_r nda _também a rota Duína-Jiolga e Petchora-Kama-Jiolga. o âmbar da costa
da ~amlând~a, .asszm c~o as pele~ da Sibéria Ocidental, que eram transportadas para a
tr:dra, constltuzam .":ot1vos predomznantes para tais viagens. Não hd informes mais minu-
CIOSos sôbre a_ poszçao de Gelonos. Provàvelmente ficava na posição da posterior Bulgar.
Cholmg_ard foi . apenas fundada na Idade Média. Provàvelmente foi essa localidade, forte-
mente mfluenczada pelos noruegueses, estabelecida no local de antiga aldeia de pescadores
e caçadores.

tróprias experiências são hàbilmente entremeadas com informações de outras 54. Esqui do século XVI. Xilogravura de
on,te~. Dos países dos "Gog e Magog", os vikings, fornece tantos dados carac- acôrdo com a "História dos Povos Setentrio-
tensticos, que os árabes devem ter sido capazes de tormar um quadro exato nais", de Olaus Magnus.
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esquiadores - e que são J;>Uxados por parelhas de cães! Para os próprios vi-
kings parece o esqui ter sido uma coisa fora do comum. Isto pode ser dedu-
zido da maneira pela qual é descrito no "Espelho do Rei". O autor sente
grande dificuldade em esclarecer o que afirma, e parece prever incredulidade
ou, pelo menos, ignorância por parte de seus leitores:
."Mas parecerá um milagre ain~a maior vir a saber que existem povos que de tal ma·
neua sabem usar pedaços de madeua ou tábuas, que alguém, embora não seja mais rápido
que outros. quando usa apenas sapatos .ou anda descalço, tão logo prenda sob seus pés
tábuas de Oito ou nove côvados de compnme~lto, exceda a velocidade dos pássaros em pleno
vôo ou o galgo, que . é o corredor .mais rápido, ou a rena, duas vêzes mais rápida que a
corça. (...) Isto é diflcil de ser acreditado, e parecerá fantástico em todos os países, nos quais
os povos desc~nhec~m po~ qual arte e engenho seja possível dar tal impulso a algumas
tábuas, que nao exista cnatura que nas montanhas possa esperar escapar pela velocidade
de algué~ que us~ as mesmas. M~ basta que êle tire essas tábuas dos pés, para não dispor
de velocidade maiOr que a médta de seus concidadãos. Mas onde pessoas não conhecem
o uso dessas tábuas, s~rá quase impossível encontrar algum indivíduo célere, que não pareça
perder tôda a sua raptdez t~o logo essas táb~as sejam fixadas sob seus sapatos. Nós, contudo,
conhecet;nos bem essa pr_áuca. e . todos os mvernos, tão logo a neve cubra o solo, temos
oportumdade de ver muitos mdtvlduos peritos nessa arte."

E que asp:cto in_crível devem tais relatos. ter assumido quando ouvidos por
pov?s ~ue nao sabiam o que era neve e CUJa concepção de transporte rápido
se limitava ao cavalo ou ao dromedário. O fato de Ibn Fadhlan ter pôsto a
56. Moedas bizantinas e cúficas, encon-
sua rep~tação à_ prova na côrte de Ba~dá, apresentando histórias aparente- tradas na Rússia.
~ente tao mentirosas, sugere q~e elas Já deviam ter sido transmitidas pelos
d!plom<~;tas de se_? senhor, o califa Mukted~r: J?e um modo geral, a transmis-
sao de mformaçoes durante o primeiro milemo de nossa era, deve ter sido bem mais intensa do que nos inclin~mos a. supor. Tam~ém a.s rela~ões co-
merciais eram provàvelmente quase tao estreitas quanto sao hoJe. Assim, um
relato árabe sôbre a cidade imperial alemã de Mainz (Mogúncia), provenien-
te de um médico e mercador mouro de nome Ibrahim Ibn Jacub, reflete a
surprêsa do autor ao verificar os liames que existem entre aquela cidade e
o Extremo Oriente. Diz Ibrahim Ibn J acub:
"Magandscha (Mogúncia) é uma cidade muito grande, __?.a qual part~. é hab.it~d.~ e a out~
constituída por terra cultivável. Faz parte de uma regtao c~amada _ Fra~coma , num no
cha~nado "Reno". O Reno é rico em trigo, cevada, espelta (tngo alemao), vmhedos e hortas.
Lá existem "dirhens" da casa da moeda de Samarcândia, dos anos 301 e 302, de acôrdo com
a héjira (913 a 914), com o nome do moedeiro e a data. Julgo ~ejam elas. moedas de
Samanide Nasr Ibn Ahmed (912 a 942). É estranho t~mbém que lá exiS~am co~dtmentos que
em geral são encontrados apenas no Extremo Onente, embora a adade ftque bem no
Ocidente. Entre êsses quero citar apenas a pimenta, o gengibre, o espicanardo e o cravo,
que existiam além de outras espécies ..."

Informações dêsse gênero, indicando a grande importância de moedas


ár~bes para as partes leste e central da Europa, por volta dos princípios do
pnmeiro milêmo na Europa, podem ser encontradas também em outr,os do-
cumentos - tão freqüentemente mesmo, que a descoberta de moedas arabes,
até na própria Islândia (e não se tratava de parte de alguma coleção, mas de
moedas trazidas pela primeira geração dos "landnama"), não oferece grande
surprê~a. Pois que muitas centenas de milhares de tais moedas, originá~~as
do Onente Próximo e obviamente moedas correntes nessas remotas regwes
setentrionais foram escavadas na Escandinávia, Rússia e Alemanha, levando
datas dos três séculos entre os anos 700 e 1000. Treze mil moedas árabes
5~. Mapa da Europa Central, da "Crônica Mundial" de Hartmann Schedel 1492.
dêsse período foram encontradas só na Gotlândia e centenas d~ outro? acha-
Vt~to o conhecimento extraordinário que os árabes evidenciam já no século Xa
res- dos de tamanhos vários ocorreram em outras partes. Na própna Sué~1a, que
peito da Europa Central, parece estranho que em fins do século XV os conheci- nunca .foi visitada por negociante. ár~be algum,. tornaram-se conhecidas até
mentos geográficos tenham sido tão restritos, como o evidencia esta gravura. 1857 cerca de 170 diferentes locahzaçoes para taiS achados.
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298
Isso sucedeu por volta dos ~ead?s do. século n~ve: N aquel~ época vikings
Grande quantidade de moedas procedentes da Ásia Menor era produto de suecos, os varangianos ou va:rmgs, mvad1ram a Russia. De ac~rdo com _a tra-
saque, ef~tu~do pelos ~ikings durante as suas campanhas, que os levaram até dição das sagas, certos povos eslavos apelaram para os varangianos. a fn~- de
o M:u Ca~p10 e. ~agda. Mas mes~o. que lev~mos êsse fato na devida conta, que restaurassem a ordem e fundassem um Estado no seu própno pais. É
co~tmua I~ex.phcave~ a transferenCia de tais enormes somas de dinheiro. isto que nos transmite o monge_ N.es~or de ~iev, pai da h~sto.riografia russa,
P01~ o comerciO dos arabes naturalll_lente se baseava mais na troca de merca- na crônica que escreveu nos pnnCipiOs do seculo doze. Ah diZ:
donas que. em .pagamento monetáno. Temos de aceitar, portanto, a teoria "No ano 6357 (859 de nossa era), cruzaram os varangianos o mar, exigindo tributos dos
de que o dmhe1ro da Ásia Menor era aceito como moeda corrente na Rússia chudans, eslavos, meranos, vessos e krivichos. No ano 6360 (862) êsses últimos conseguiram
na Esc:'lndinávia e na Alemanha. Ta~ ~ipótese é apoiada também pelo fat~ derrotar os varangianos e expulsá-los do país, não lhes pagando mais tributo e iniciando
de o sistema de pesos, usado pelos vikmgs suecos, ter-se baseado no sistema seu próprio govêrno. Mas como não houvesse lei a governá-los, as famílias se com~atiam
persa. A unidade de pêso era a dracma, igual a 4,25 gramas. Contendo a libra estando dissensão e desunião na ordem do dia. E as guerras se sucederam até que fizeram
sueca 96 dracmas, ela pesava 408 gramas. uma concordata para escolher um príncipe que os governasse e estabelecesse suas leis. Atra-
. Essa questão, situada na vasta região limítrofe entre a História e a Geogra- vessaram o mar, à procura dos varangianos, os rus, pois que assim são chamados, como
ou tros são chamados svianos, normanos, anglanos e ainda outros gôdos. E os chudans, os
ÍI:'l, c.omo tantos ~utros pr?b~ell_las q~e ~urgem ~reqüen.temente na linha di- krivichos e os vessos disseram aos rus: "Nosso país é grande e fértil, mas não prevalece
VIsóna entre as diversas disciplu~~s e,, a~nda hoje, considerada enigma abso- qualquer ordem, por isso ~inde para no~ governar". E três rus foram escolhidos com su~s
luto ..P,o~ ur_n .lado sabemos dos Iti.neranos de soberanos medievais o quanto famílias, que levaram cons1go outros mmtos rus, atravessando novamente o mar. E o ma1s
era dificii viaJar na época e quão mseguro seu sistema de comunicações. Por idoso, Rurik, governou em ovgorod. E o segundo, Sineus, no Lago Byelo Ozero; e o terceiro,
outro lado parece o comércio ter sido naquele período mais fluido que em Truvor, em Izborsk. E a terra, especialmente a terra em redor de Novgorod recebeu seu
qualquer período, excetuando-se talvez o que precedeu imediatamente a guer- nome de acôrdo com êsses rus. São êsses os habitantes de Novgorod de descendência dos
ra de 1914. Excelentemente estavam os árabes informados a respeito da Ale- varangianos, pois que antes dêles os habitantes de Novgorod eram eslavos. Mas após passados
dois anos, falecerem Sineus e seu irmão Truvor. Rurik tornou-se assim o único soberano,
ma~ha Central no décimo século, o que nos é provado pelo seguinte itine- distribuindo as cidades entre seus adeptos, a um Polotosk, a outro Rostov e a um terceiro
ráno, gye descreve o trecho de Magdeburgo a Praga, e que também foi Byelo Ozero. E os varangianos penetraram naquelas cidades; antes dêles havia eslavos em
transmitido . por Ibn Jacub: Novgorod, krivichos em Polotosk, meranos em Rostov, vessos em Byelo Ozero e muromanos
em Murom. Mas todos êles aclamaram Rurik como seu soberano."
"A estrada de M~gdifung (Magdeburgo) ao país de Buislav (Boleslav 11 da Boêmia, 964
até 998), e de lá ate a fortaleza de Kalbe (no Saale) estende-se por 16 quilômetros, e de
lá para Nub Grad (Naumburgo) por 3,5 quilômetros. Esta é uma cidade fortificada, cons- A crônica de Nestor de Kiev foi recentemente, e sem dúvida por boas ra-
truída com"})ed:Eas e argamassa; fica junto ao Rio Salava (Saale), no qual desemboca o Rio zões, fortemente contestada. Não é de nossa alçada medir aqui os prós e os
Bode. De ~ub <:rad às ~inas de sal ??s judeus (Duerrenberg), que também ficam no Salava, contras dessa questão. Provàvelmente, porém, temos de aceitar a teoria que
há um.a dtstân~ta de · mats de 45 qmlometros. De lá para Burdshin (Wurzen) - essa praça afirma ter sido a "Gardarrike" (Reino de Fortalezas), cujo propósito principal
f?rte ftca no Rto Muldava (Mulde) - e de lá para os princípios da floresta, quase 40 qui-
lo~~tros. Essa flore~ta estende-se sôbre cêrca de 65 quilômetros, sendo situada em uma
e~a sem dúvida a salvaguarda dos centros comerciais varangianos e o estabele-
reguo montanh.osa tmpenetrável (Erzgebi~ge). Alí encontramos após 3,5 quilômetros, uma Cimento de uma base para conquistas futuras, o núcleo do Estado russo. Para
pont~ de madetra (provàvelmente na regtão de Bruex), que atravessa os pântanos. É do estabelecer tal Estado foi necessário dominar as áreas em tôrno das nascentes
térmmo da floresta que se alcança a cidade de Braga (Praga)." do Dniéper e do Volga, as quais proporcionavam uma via marítima através
das densas regiões florestais da Rússia. E foi daí que os varangianos começa-
Podemos inferir do fato de Ibn Jacub ter sentido necessário dar informa- ram a exercer a sua influência sôbre a Rússia. A primeira base de Rurik,
ções tão ,mii;mciosas acêrca de suas viagens pela Europa Central, que o levaram Aldaigyuborg, no Lago Ládoga, abriu caminho para o Volga através do
de MogunCia e Magdeburgo para Praga e Cracóvia, para a Polônia e o Meck- Lago ônega e do Lago Byelo Ozero. Sua segunda sede de govêrno, Novgorod,
lenburgo, para Schleswig e Itraht (Utrecht), Vaterburuna (Paderborn) e fundada por volta de 860, no ponto em que o Volkov penetra no Lago Ilmen,
Ebulda (Fulda) - tôdas na época do grande rei alemão Huto (Otton, o Gran- permitiu acesso tanto ao Volga quanto ao Dniéper.
de) - 9-ue êle não era o único a percorrer tais regiões. Talvez não fôssem A explicação filológica do nome "rus" - que antigamente era dada como
comerciantes árabes pouco freqüentes nas estradas européias há mil anos sendo procedente de "rusyi", que em eslavo significa louro, mas que agora é
passados. g~ralmente considerada como originária do nome finlandês "Ruotsi", signi-
Íl~a~do pessoas que vêm do país de "Roslagen", nas costas setentrionais do
Baltico - proporciona pêso à teoria de que a colonização varangiana da
Rússia tenha iniciado na área que compreende o Gôlfo da Finlândia. Os
4 r:om~s que Nestor de Kiev aduz como pertencendo aos líderes varangianos
sao I~dubitàvelmente de origem nórdica. Rurik é a forma escandinava de
Ass~m com<;> ?S árabes rarecem, por vêzes, ter percorrido a Europa inteira,
Hronk, Sineus corresponde a Signjut e Truvor ao nórdico Thorvard. Apesar
tar_nbem os vikmgs podenam ser encontrados em tôdas as partes do mundo de a chefia das expedições dos vikings ter aparentemente sido controlada pelos
ocidental: Porém sempre ficavam próximos a mares e rios, da parte oriental varangianos suecos, não pode haver o menor traço de dúvida de que norue-
~a Amér~ca até os Mo~tes Urais, de Spitzbergen até Bagdá, limitavam-se ao
gueses, dinamarqueses e finlandeses tenham tomado parte no mesmo em-
h~oral. e as terras rróximas dos grandes rios. Para o sudeste, a migração nór-
preendimento. O têrmo "varangianos" era indiscriminadamente aplicado pelos
diCa tmha de seguir naturalmente os cursos dos rios. O Dniéper, o Don e o eslavos a todos os componentes dêsse grupo.
Volga levaram a penetração viking profundamente ao coração da Europa. 301

300
Roma havia sido a meta no sul ensolarado a atrair os vikings; agora era Bi-
zâncio, chamada "Miklagard" (Grande Garth) ou "Tzargrad" pelos varan-
gianos. Mas ~~sk'!ld e Dyri não foram m~~or sucedidos em sua emJ?rêsa de
conquistar Buancw que qualquer outro VIkmg que a tentou em seguida. Em
viagem, Dniéper abaixo, rota que havia sido explorada pelos nórdicos até o
Mar Negro muito antes de Rurik, chegaram apenas a Kiev. Esta cidade, ca-
pital dos polonianos, agradou-lhes de tal maneira que decidiram estabelecer-
se ali. A imposição de seu govêrno aos polonianos, que depressa derrotaram,
estendeu-se por vinte anos. Depois foram atacados por Helgi, filho e sucessor
de Rurik, que os derrotou e trucidou em 882. Daí por diante, Kiev tornou-
se a capital do reino russo-varangiano. Há documentação provando que ainda
no século onze a maioria dos habitantes da sede do govêrno viking era cons-
tituída por escandinavos.
Apesar dessa colonização, continuou exercendo atração o milagroso nome
de Bizâncio. Em 907, Helgi alcançou o Chifre de Ouro, acompanhado, pre-
tendidamente, por dois mil navios. Um enorme resgate livrou a cidade do
perigo de cair nas mãos dos varangianos. Em 941 outro viking, Ingvar, filho
de Helgi, bateu às portas de Miklagard. Dessa vez coube ao "fogo grego", que
exigiu número terrivelmente alto de vidas nórdicas, salvar a metrópole amea-
çada. Mas alguns anos depois Ingvar, chamado Igor pelos eslavos, voltou,
empunhando as suas armas. E mais uma vez resolveu Bizâncio pagar o resgate
exigido, o que lhe garantiu a existência durante mais uma geração. A partir
dessa ocasião empreendeu a Rússia tentativas várias para apossar-se de Cons-
tantinopla.
Não agiram bem os vikings quando, a fim de ficar mais próximos a Bi-
zâncio, transferiram sua capital de Novgorod para Kiev. Dessa maneira, afas-
taram-se de tal modo de sua antiga pátria, que os liames com a mesma se
•Murom tornaram bem mais frouxos. A influência do meio eslavo tornou-se tão pre-
ponderante que os varangianos submergiram em pouco tempo e completa-
mente na população que haviam submetido. Os islandeses continuaram
chamando a Rússia de "Suécia Maior", e os enviados do imperador bizantino
Teófilo junto ao imperador alemão Luís, o Piedoso, que chegaram a Inge-
lheim no Palatinado em 839, declararam que os rus eram de descendência
sueca. Ainda em princípios do século quatorze era Novgorod uma cidade
es~andinava. Mas pouco mais tarde também êste último bastião varangiano
fOI superado pelas ondas eslavas. Apenas nas "bylini", as baladas heróicas da
poesia popular russa, que permaneceram vivas entre os habitantes da Rússia
Setentrional até os nossos dias, foram preservados traços de influência viking.
Essas ~aladas são o que resta para nos lembrar daqueles primeiros tempos
escandmavos na Rússia. Todo o resto submergiu de há muito tempo em
completo esquecimento.
Confor_me ouvimos, não foram os varangianos jamais capazes de conquistar
Constantmopla. Conseguiram, porém, infiltrar-se na cidade em numerosos
gr~pos de negociantes ou soldados. Foi principalmente do ponto de vista
~Illhtar que logo conseguiram alcançar considerável influência. Pois que os
~m
~mperadores bizantinos, que nem sempre confiavam inteiramente na lealdade
, 300 40"
e seus compatriotas, passaram a compor a sua guarda pessoal inteiramente
ge ~arangianos. Dêsses a maior parte vinha da Rússia, mas indubitàvelmente
XXIX. As linhas de penetração dos vikings da Rússia. avia também alguns da Escandinávia. O primeiro viking mencionado como
es_tando no serviço do imperador era até um islandês, que havia chegado à
Na mesma época em que Rurik se dirigiu para Novgorod, que havia si?o Ctd~de Dourad:t antes de 950, através de uma concatenação muito estranha
importante centro comercial desde o raiar da história, dois outros varangia- de Circunstâncias várias. Depois, a Guarda Pessoal dos autocratas de Bizâncio
nos que nãp pertenciam à família de Rurik, Haskuld ·e Dyri, também se Pa;,so~ a formar um Estado dentro do Estado, com suas leis e sua jurisdição
puseram a caminho para penetrar no país dos eslavos. Alguns séculos atrás, pr pnas. Seu chefe era sempre um varangiano; um dêles, Haraldo, o Duro

!102 303
(Harald Haardraade), mais tarde rei da Noruega, será ainda assunto de nosso Viagens de exploração e comércio para tais regiões nordestinas remotas,
livro. Ao raiar do século treze o número de vikings que chegava a Bizâncio foram provàvelmente iniciadas antes daquelas empreendidas em outras dire-
havia diminuído consideràvelmente. Os postos da Guarda Pessoal foram então ções uma vez que aqui os vikings tinham apenas de velejar ao longo da costa
supridos principalmente por inglêses. Mas a guarda dos varangianos conti- esca~dinava para encont~ar-se em territónos estrangeiros. E êsses países ~s­
nuou existindo até 1453, quando Constantinopla foi conquistada pelos trangeiros provaram ser ncos em peles, dentes de morsa e outras mercadonas
turcos. de elevado valor comerciaL É certo que os primeiros nórdicos a chegar às
Além do Dr:iéper e do Don, co~stituía o Volga o canal principal para 0 regiões litorâneas do Oceano Ártico, alcançaram-nas o mais tardar no século
ava~ço varang1ano_ ao suL P~r cunoso que pareça, não há qualquer menção oito. A primeira evidência documentada de tais viagens procede, contudo,
n~ _literatura nórdica, a respe~to das grandes emprêsas, no curso das quais os do século nove. A viagem a ser discutida aqui foi realizada por volta da 870.
VIkmgs chegavam ate a _Pér~Ia e Bagdá. o_ que é surpreendente, principal- Na época não constituía nada d~ excepcionaL ~elo m~no~ indicam sagas es-
me~te porque _Bagdá havia sido durante mmto tempo a estação terminal para candinavas que no s~culo nove yiagens p~ra a BiarmalandJa e~am co~un_s. A
mmtos comboiOs que chegavam do Extremo Oriente, da costa Malabar, atra- importância dessa viagem particular reside no fato de ter Sido mmuciOsa-
vés_ de Horm'!z e do Gôlfo Persa para ir a Basra. Depois que o califa trans- mente descrita.
fenu sua capital para Bagdá, no ano de 760, tornou-se essa cidade mais im- Foi realizada pelo viking Othere, um fazendeiro importante de Heligoland,
port~nte que a antiga metrópole eg!pcia, Cairo. Era de esperar-se, justamente na parte setentrional da Noruega, o qual, apesar de sua riqueza - há notícias
por Isso, que algumas fontes escandmavas tratassem de Bagdá, a conexão com de que possuía seiscentas renas - tinha o h ábito de suplementar a sua renda
as vias marítimas do Oriente. Mas não é mencionada nenhuma vez. Há muitas pela caça à morsa e expedições comerciais através dos mares. ~ste Othere, do
alusões a Bizâncio e aos feitos de armas, realizados nas lutas com os gregos; qual não sabemos muito além de ter sido o autor da viagem em questão,
mas p~ra conhecermos algo das expedições bélicas muito mais extensas, que parece ter sido célebre marinheiro na sua época. De qualquer maneira, o Rei
os víkmgs empreenderam no domínio dos califas, dependemos inteiramente Alfredo, o Grande, da Inglaterra o chamou para sua côrte a fim de que o
de fontes árabes. auxiliasse no estabelecimento de uma frota mglêsa, na função de instrutor
Me~cadores vikings pare~em ter chegado bem cedo a Bagdá. De qualquer de navegantes e marujos britânicos. O relato da viagem de Othere ao Mar
maneira fala o geógraf~ arabe, lbn Kordadbeh, em seu grande livro que Branco, na forma em que chegou até nós, foi escrito pelo próprio Alfredo, o
trata das estradas do remo do Califa (845), dos negociantes vikings que se Grande, um dos homens mais geniais da época, e afirma o seguinte:
e~c~mtravam ~m B~gdá. ~sses eram, contudo, apenas a guarda avançada dos
"E depois Othere contou ao Rei Alfredo que, entre todos os nórdicos, era êle quem
vikmgs, que mvadiram o Norte da Pérsia com fôrça aterradora durante a morava mais ao norte. Velejou ao longo da costa para o norte. AI a terra se estende bastante
década de 870 a 880. Mas os ataques mais pesados tiveram lugar apenas no para o norte, sendo porém absolutamente inóspita, com exceção de alguns poucos lugares,
século dez, de 909 a 912 e em 943 e 944. Das campanhas de 909 a 912 temos habitados por finlandeses, que caçam no inverno e pescam no verão. Conforme afirmou,
documentação completa, na crônica de Abul Hazan Masudi, o "Murudsh ai desejava vir a saber o quanto se estendia aquela terra e o que é que existia a norte daquela
Dhabab". São os seguintes os pontos principais da crônica: zona desoladora. Por isso continuou em sua rota setentrional. Durante três dias conservou,
assim, à sua esquerda o mar e à direita a terra inóspita. Depois chegou ao ponto extremo,
"'Logo depois de os navios vikings terem alcançado a fortaleza à entrada do estuário alcançado pelos pescadores de baleia. Continuou a viagem na mesma direção durante mais
(Mar de Asov), enviaram emissários ao rei dos Khazars, solicitando-lhe que os deixasse atra- três dias. Depois viu a terra retrair-se para o leste - ou o mar penetrar pela terra adentro
vessar o pais, percorrer o rio (Don) e penetrar no Mar dos Khazars (Mar Cáspio) (... ). - não sabia definir exatamente. Ali, contudo, teve de aguardar vento de oeste ou oeste-
Prometeram-lhe metade do saque que esperavam conseguir. tle deu a permissão desejada. noroeste. Em seguida viajou rente à costa, em direção leste-sul, e isto durante quatro dias.
Em seguida êles penetraram com seus navios no estuário e no Rio Don e depois no Rio Teve de e>perar até que sobreviesse um vento setentrional, uma vez que a terra se estendia
Khazar (Volga), passando a cidade de Itil (antiga e histórica cidade perto de Astrakhan), e p_ara o ~ul. Velejou durante cinco dias em direção ao sul, junto à costa. Ali um grande
através da desembocadura do rio ao Mar dos Khazars. no J;>rov_mha do interior daquele país. Dirigiu-se ao estuário do rio, não desejoso de pros-
Os rus permaneceram durante diversos meses nesse mar. Os habitantes costeiros não segUir VIagem por temer ataques inimigos. Pois que além do rio percebia que o país estava
c?':seguira_m afugentá-los ... Quando os vikings estavam carregados de saque suficiente e ~u­ ~ensamente habitado e cultivado. Isto ocorria pela primeira vez em tôda a extensão percor-
fiaente numero de escravos, voltaram ao rio dos Kbazars, enviando emissários com dinheno nda por êle até então, pois que durante o resto da viagem as terras haviam sido habitadas
e parte do saque, de acôrdo com as condições estipuladas. O rei dos Khazars não tinha apenas ~or pescadores, caçadores e caçadores de aves, todos êles finlandeses. Mas à esquerda
navios no mar, pois que os khazars não são marujos. Se fôssem, constituiriam sério perigo nunca VIra outra coisa senão mar aberto.
para os maometanos." Situava-se ali o país dos biarmas, terra bem cultivada, mas êle não recebeu licença de
nela pôr .o pé. Por outro lado era o país habitado pelos terfinos, desolado e inculto; habi-
Não pod_e _haver m~ita dúvida ~c!rca do fato de as longas viagens que _le- tavam ali apenas caçadores, pescadores e caçadores de aves. Os biarmas contaram muito
a Oth~~e acêrca de seu próprio pais e sôbre nações vizinhas. Mas êle não sabia quanto do
varam os v1kmgs a milhares de qmlometros de seus lares nórdicos terem s1do que di~I~m era verdade. Parecia-lhe que os finlandeses e os biarmas falavam, de um modo
empreen_di~as por motivos militares e mercantis, antes que ge~gráficos. A geral, Idioma idêntico. Havia êle viajado até essa parte da terra porque desejava explorar
0
razao pnnopal era saque ou lucro, mas a sua curiosidade deve ter aumentado pais e também por causa das baleias e das morsas. Pois estas últimas têm ótimo marfim
o incer:tivo. ,o .d~sejo de descobrir ter~as que se encontram além dos ~~~ites em seus dentes."
conh~odos e ~1p1~o ~o ~aráter escan~mavo. ~sse desejo impeliu os v1kl!lgs
em _todas as d1~eçoes md!cadas pela b~sso!a: dos 75 faus Norte, as inós_p1tas ~ relatório de Othere é muito preciso, e provàvelmente digno de tôda fé,
praias do Estreito de Smlth da Groenland1a, até os 3 graus Norte, a Iautude se em _que a informação sôbre o número de dias em que a viagem foi reali-
de Bag~á e dos 75 gr~us Oeste, a longitude aproximada do Cabo Cod, na ~da SeJa um tanto duvidosa. Pelo documento redigido pelo Rei Alfredo, o
costa onental da Aménca até 70 graus Leste, a longitude de Novaya Zemlya r· rasde, não revela exatamente para onde se dirigiu, e particularmente, que
10
e dos Urais Setentrionais. a costa do Mar Branco alcançou. O rio era provàvelmente o Dvina, cujo
304
°
2
Conqu ista Mundo
305
estuário havia sido centro comercial de grande importância de há muito
tempo. Ali haviam surgido as cidades de Colmogório-Holmgard e, mais tarde
Arcângel, não por acaso ou sob as ordens de algum monarca absolutista, m~
resultantes de verdadeira necessidade comercial. É o único lugar onde pode-
riam ter existido campos lavrados naquela época, já que a costa muromana
deve então ter sido tão desolada quanto hoje.
Além disso parece ter existido ainda outra Biarmalândia. Pois que, entre
os escritos de Saxo Grammaticus (I 150 a 1216), o secretário do Bispo Absalão
de Roeskilde, na Dinamarca e célebre cronista da Dinamarca medieval, se
encontra (em sua "Historia Danica'') a afirmação de que, além da Biarma-
lândia na desembocadura do Dvina, existia ainda uma "Biarma ulterior",
enterrada sob a neve, em que não existia verão propriamente dito e que era
coberta de florestas, cheia de animais desconhecidos e rios. Não se tratava
certamente de terras próximas à desembocadura do Dvina, mas provàvelmen-
te de territórios ao longo do Pechora e Kolva, até os montes Urais. Conforme
comprovam fontes árabes era essa região especialmente rica em animais de
valiosas peles, existindo também aí as grandes matas e os muitos rios que
Saxo Grammaticus menciona.
Nessa época começaram a ser abrangidas pelos olhares dos marujos tam-
bém as partes setentrionais e orientais do Mar Báltico. Ainda não era sabido
muito a respeito dessas áreas e mesmo Othere pouco soube contar ao Rei
Alfredo. O rei inglês deve, por isso, ter ficado contente em conhecer o Ca-
pitão Wulfstan, que havia percorrido o Báltico até o "Frische Haff". Não 57. o sorvedouro "Malstrõm". Velha xilogravura de Olaus Magnus.
se sabe se Wulfstan era saxão ou viking, e nem é conhecida a data de sua
viagem ao Mar Báltico. Provàvelmente foi na época em que Othere visitava apesar disso 0 Rei Alfredo parece ter recebido informaçõ_es de que o Báltico
o Mar Branco, isto é, entre 870 e 880. Também não é possível verificar sem ainda se estendia bastante em direção leste. Essas notícias devem ter da?o
sombra de dúvida qual o ponto extremo alcançado por Wulfstan. Seu relato ao rei a impressão errada, mas mmto · d I"fun d"d I·ni'ci·o da Idade Média •
I a no, .
possibilita diversas teorias: de que o Mar Báltico não era senão um braço mantimo do Mar do N?rte,
"Wulfstan contou que, partindo de At Hethum (Haithabu, sôbre o Schlei), chegaram a percorrido por Othere, e a Escandinávi_a, por isso _mesmo, apenas. uma Ilha.
Truso após velejar durante sete dias e sete noites. Afirmou que a terra dos vendas se f.sse conhecimento diminuto a respeito do Báltic~ é tanto_ m':is surpren-
situava à direita, e à esquerda a Langelândia, Laalândia, Faloter e Seelândia e que tôdas dente quanto é sabido que 0 mesmo era cruz~do em todas as direçoes naquele
essas terras pertenciam à Dinamarca. E em seguida passaram, na margem esquerda a Bur·
gúndia (Bornholm), regida por rei próprio. À Burgúndia seguiram Bleckingen, Meoras,
tempo. Desde a época da emigração saxômca para a lng~aterr:, durante o
Oelándia e a Gotlândia, que pertenciam à Suécia. E a terra dos vendas situava-se, durante século cinco os frisões que não foram arrastados pela migraçao dos povos
túdo êsse tempo, à direita, até a desembocadura do Vístula. O Vístula é um rio imenso, porque mo;avam em ~egiões protegidas por braços ma_rítimos e pân~anos,
entre a Vitlândia e a Wendealândia. E a Vitlândia pertence à terra dos estônios. O Vístula haviam alcançado posição de preeminência cada vez mawr. Já sob os l~pe­
vem da Wendealândia, precipitando-se no mar dos estônios, o "Frische Haff". ~ste tem radores romanos desde 200 de nossa era, parecem ter-se entrosado no ~ra~ego
uma largura de 25 quilômetros.
A terra dos estônios é bastante grande. Possui muitas vilas e aldeias, cada uma com seu
comercial entre' 0 Reno e a Escandinávia. No século oito são a pnnCI~al
rei. Existe muito mel e rica pesca. O rei e os nobres tomam leite de égua, os escravos e potência econômica da Europa Setentrional. Têm representan~es em Mo~n­
pobres hidromel. Cerveja não produzem, mas hidromel." cia e Vorrns, em Xanten e Duisburgo; fornecem teCidos, fabncados por eles
próprios, vendem tôdas as mercadorias escandinavas, c?uro de morsa, dentes
Por mais interessante que seja .êsse relato, não deixa, apesar disso, de s~r de morsa como sucedâneo do marfim, âmbar e peles; importam e revendem
bastante escasso. Pois o conhecimento de Wulfstan não abran~e terreno mais para o Norte condimentos e especiarias, compram o_bje~os de ferro do Reno,
extenso ~ue de Haithabu, a grande cidade comercial no Schlei, até a Gotlân- recebem vinho da Alsácia e do Danúbio, possuem fthais em ~ondres e Y~rk
dia e o ' Frische Haff". Wulfstan não penetrou na terra dos estônios - não e finalmente se estabelecem na península dos jutos, em Holhngstedt e Shes-
se trata, aliás, do povo hoje conhecido como estônios, mas dos "aesti" de thorp. .
Tácito, que correspondem antes aos prussianos- mas conheceu provàvelmen- O verdadeiro campo de ação dos ~ik~ngs, contu?o, Si~uava-s~ ao ~oroeste.
te Truso, a velha metrópole do âmbar. Truso ficava no Lago Drausa, ao norte Essa a direção para a qual eram pnncipalme~te. i~pehdos. Ai se Situava a
da Elbing de nossos dias, muito próximo de Ilfing. í.sse rio levava suas águ":s Groenlândia de Erico 0 Ruivo, aí também Vmlandia, a Boa. Harald Haar-
para o Vistula, que por sua vez desembocava no "Frische Haff". Essas indi-
cações bastante claras de Wulfstan foram, aliás, confirmadas por exames geo- draade, 0 famoso comandante da guarda varangiana do Imyerador da Roma
lógicos modernos. Aqui existia, nas proximidades de Dantzig, há mil anos, uma d_o _Oriente (Bizâncio), principal ~espo~sável pela exploraçao da Europa ~e­
ligação fluvial entre o Mar Báltico e o interior, que se estendia ainda além ndiOnal, também foi finalmente impelido para n~r~e. Em sua. época, a Vi~­
de Truso. Não é de crer que Wulfstan tenha passado além dessa região, mas lândia era um conceito geográfico claramente dehmdo para toda a Escandi-
!107
306
návia; teria sido estranho se Harald não levasse na devida consideração 0 seu
apêlo. A viagem para lá não poderia ter sido considerada como p articular-
mente difícil. Levou uma semana até chegar à Islândia, e quatro dias de lá
até a costa groenlandesa. A Vinlândia ficava a um pulo e o percurso inteiro
rtão deveria exigir muitas semanas de viagem. Por isso embarcou Harald
para a Vinlândia, provàvelmente no ano de 1065, o único ano razoàvelmente
calmo na vida dêsse intempestivo soldado da fortuna.
Existe um forte elemento de hipóteses nas informações relativas à expedi-
ção de Harald Haardraade, já que os únicos documentos existentes são uma
breve nota de Adam von Bremen e uma inscrição, contida numa pedra
rúnica em Hoenen (Ringerike), na Noruega. Apesar disso considera Gustav
Neckel, que estudou o assunto de perto, ser razoável admitir que "a viagem
corajosa e prolongada do Rei Harald, teve o propósito de incorporar a Vin-
lândia, que justamente então era vivamente discutida, em seu próprio reino.
tsse prOJeto teria sido digno de seu autor!" Quer essa conclusão seja correta
ou não, veremos certamente que J;;Iarald Haardraade será incluído na relação
de exploradores intrépidos do Ártico que, através da História, obedeceram
à atração do Norte. Nunca poderá ser conhecido o número exato dos que
constituem esta relação, pois que aquêles, cujo nome nos é transmitido, cons-
tituem apenas minúscula parte do total.
Um exemplo típico das lacunas que nosso conhecimento apresenta no que
diz respeito às viagens dos vikings ao Norte, seu domínio mais específico, e
da obscuridade das fontes, é a seguinte nota estranha de uma expedição que
da Groenlândia se dirigia ao Oceano Ártico, e que vem transmitida na "Mo-
numenta Historica Norwegire", coleção de fontes medievais sôbre a história
da Noruega, que afirma:
"Alguns capitães desejavam retornar da Islândia para a Noruega. Mas foram levados em
direção norte por ventos contrários e, finalmente, aportaram em uma região situada entre
os territórios dos biarmas e dos groenlandeses. Asseguraram que ali viram homens de
estatura extraordinàriamente elevada, encontrando também o país em que virgens se tornam
grávidas quando tomam água. Os groenlandeses vivem separados dêsses povos por fiordes
congelados."

Basta considerarmos um momento essa história para verificarmos que algum


marujo, influenciado sem dúvida por alguma bebida alcoólica, divertiu-~e
contando invencionices grosseiras. Por outro lado é verdade que a históna
das virgens, que se tornam grávidas através da água que tomam, faz parte do
repertório permanente de todos os exploradores do Ártico durante a Idade
Média. Assim sendo, o capitão que tem a honra de ser mencionado nas -
famosas "Monumenta" estava apenas repetindo o que seus colegas de outros
barcos lhe haviam narrado e o que os "terrícolas" sem dúvida estavam se-
quiosos por ouvir.
Essa história das notáveis virgens chegou também aos ouvidos de Adam von
Bremen. tle transporta o domínio delas para o Gôlfo de Bótnia e acrescenta
em seu próprio relato:
"E quando davam à luz, tinham as crianças do sexo masculino cabeças de cão, enquanto
que as do sexo feminino desenvolviam-se, para virem a ser mulheres das mais belas. Essa•
vivem apenas com membros de seu próprio sexo, desdenhando quaisquer relaçõe:> com
homens, os quais, se encontram algum, decididamente repelem. Cabeças de cão são cnaturas
que levam sua cabeça sôbre o peito ..."

Mitos a respeito de amazonas ocorriam freqüentemente entre os povos mais


diversos da terra. Foram interpretados como sendo recordações de uma ordem
social mais antiga, predominantemente matriarcal. Também as lendas dos
58· Os povos das terras do Grande Cã. Xilogravura da "Crônica Mundial" de Schedel, 1493.
308
309
homens de "cabeças de cão" não são muito raras. Foram explicadas como eomum depois do século quinze, quando aventada por Claudio Clavus. Foi
se referindo ao grande "subconsciente coletivo" da moderna Psicologia e suas reconhecida como errada apenas em fins do século dezessete. É que nessa
apagadas memórias de uma época, a centenas de milhares de anos passados q,oca se começaram investigar as antigas rotas dos vikings também no mais
qu:'lndo os ancestrai: do "homo sapiens" realmente possuíam algumas feiç~ extremo sudeste do mundo, da mesma for~a. corno no extrem~ n?roest~ já
ammalescas, ou entao como o resultado de encontros com povos indígenas havia sido feito por volta de 1500 pelos Pmmg-Pothorst, os Cortes Reais e
de fisionomia fortemente prognata. Cabot. Quando se tornou evidente que ali não existia passagem para a Ásia
A explicação da lenda do país das mulheres, a que se referem os "Monu- ou pelo menos, que tal passagem, se existisse, estaria obstruída por camadas
menta" e Adam von Bremen, é relativamente simples, porém. Filólogos de- de' gêlo muito espêsso, foi começada a procura de urna passagem no leste. Já
monstraram que o nome fino-úgrico para a Finlândia, "Kainulaiset", foi vimos que o "Landnamabok" informou que Spitzbergen poderia ser alcan-
corrompido pelos suecos até dar "Quaenlândia", e urna vez que "quaen", çada em guatro dias, mediante viagem aberta. E o que acontecia se a água
"cwino" ou "queen" significavam "mulher" da Islândia até as províncias estivesse hvre de gêlo nas regiões marítimas além de Spitzbergen? E se fôsse
alemãs, era natural que "Quaenlândia" fôsse traduzido "País das Mulheres", possível encontrar por êste caminho uma ligação com o Extremo Oriente,
e que todo explorador do Ártico, que quisessem impressionar no seu retôrno, poupando os caminhos demasiado longos em tôrno das pontas meridionais
teria de inventar alguma história a respeito dêsse país. ôa América e da África?
Os compiladores eruditos das "Monurnenta Historica Norwegüe" não in- São os holandeses que se apossam dêsse pensamento e o põem em prática.
cluíram, naturalmente, essa nota com o propósito de discutir as virgens que Nêles ainda vive urna lembrança obscura das longínquas viagens marítimas
concebiam pela influência da água, mas em virtude de um relato que aparece de seus antepassados e dos lucros imensos, alcançados em eras passadas nas
um pouco mais tarde na "Saga de Sansão, o Belo" (1350). Ali se afirma que terras nórdicas, ricas em peles. Também êles não descobrem o caminho às
a nordeste da Rússia se situa o país de Jotunheirnar, a pátria dos duendes e 1ndias e a célebre ligação norte-oriental é estabelecida apenas em época bem
anões. "E de lá, em direção aos desertos da Groenlândia, estende-se o país, posterior. Mas quando se aproxima o fim do século dezesseis, alcançam Spitz-
chamado Svalbard." Além disso existe uma nota nos "Anais da Islândia", ano bergen.
de 1194, que afirma: "Svalbard descoberta". E agora vêm navios de todos os países: principalmente holandeses, depois
À primeira vista, essa série de informações surpreende. "Svalbard" signi- inglêses, alemães, dinamarqueses, franceses. Todos êles pretendem caçar a
fica "Praia Fria" e certamente representa a área setentrional mais afastada, baleia e obter peles. Grandes cozinhas para fervedura de gordura de baleia
alcançada pelos vikings. Não existe, contudo, indicação clara do país que são construídas em Svalbard. E já ao abrir a terra é descobreto o carvão de
recebeu êsse nome dos vikings, para os quais o frio realmente não constituía pedra, logo debaixo da terra! Mas apenas em 1913, quando o Congresso
novidade. Conseqüentemente, foram as afirmações acima relatadas aceitas Internacional de Geólogos, que se reune em Toronto, conclui que os depósi-
corno se referindo ao nordeste da Groenlândia, à Ilha Jan Mayen, a Spitz- tos _de carvão de Svalbard alcançam mais de oito bilhões de toneladas, torna-
bergen, à Sibéria setentrional e à Terra de Francisco José. Dessas, a Ilha de se Interessante a longínqua ilha de gêlo.
Jan Mayen, à qual não pode ser aplicada a palavra "Praia" ou "Costa", a . Svalbard parece ter sido a última descoberta dos vikings no Ártico. Seu
Terra de Franosco José e a Sibéria Setentrional podem ser eliminadas, pois mter_êsse principal era indubitàvelmente dirigido para o sudoeste da Groen-
que é evidente, desde a expedição de Nansen ao Ártico e as suas informações lândia por um lado, e as ricas terras em redor do Mar Branco e Pechora por
a respeito das condições das correntes e gêlo, que as duas últimas não pode- outro, em vez de concentrar-se nos desertos gélidos do norte e do nordeste.
riam de maneira alguma ter sido alcançadas casualmente por navios impeli- Isto é bem compreensível. O homem cuja vida diária é muito árdua, rara-
dos por tempestades. mente tem tempo ou inclinação para viajar pelo mundo afora pelo mero pra-
Fica apenas Spitzbergen - uma suposição que é enfàticarnente apoiada por zer das descobertas.
Nansen. Afirmou êle que um navio, procedente da Islândia e velejando P:'lra Necessita de alguma meta que lhe torne a viagem atraente. Essa meta se
o Norte ao longo da costa leste da Groenlândia teria de chegar autornàuca- ofereceu no caminho que levava para além da Groenlândia. Ficava bem
mente a Spitzbergen. Essa interpretação aumenta em possibilidade, devido ao ~lém d~quele país coberto de gêlo, mas não estava fora do alcance de homens
fato de que mesmo hoje Spitzbergen é rica em animais de peles preciosas. estemidos. Corno sabemos, chamavam-no de Vinlândia, e acenava com vi-
Desde que não era mais ~ifícil velejar para Spitzbergen que para qualque,~ ~fedos que cresciam sem cuidado humano algum, com campos de cereais
51
outra parte do Oceano Ártico durante os meses de verão- o "Landnarnabok vestres e com madeiras várias.
apresenta a distância da viagem como sendo de quatro dias - era natural Quantos caminhos já foram percorridos, que mares navegados! Como se
que os vikings a visitassem. Daí concluirmos que existem boas razões para apresentava o mundo, aberto para todos, quantas costas novas surgiam ~or
supor que o nome "Svalbard" se refere à Spitzbergen de nossos dias. entre as ondas salgadas dos oceanos! Existia ainda país que não tivesse sido
Se essa hipótese fôr correta, então o país de Jotunheimar deve ser Novaya ~r~z~do pelos brancos em fins da Idade Média? Sentimo-nos inclinados à
Zernlya. Já vimos que os escandinavos chegaram à região do Pechora. Uma d UVI a. Na parte seguinte mostraremos que mesmo a Ásia, jazendo nas areias
vez alcançada, impunha-se explorar as ilhas de Novaya Zemlya que obstruíam P~ s~us vastos desertos, era atravessada por uma infinidade de caminhos e
como urna barreira o caminho para leste. A natureza geográfica de Novaya ~sa a pelos p~s de muitos homens, bem antes que os por tuguêses se decidis-
Zernlya não foi provàvelrnente reconhecida pelos vikings que, aliás, também m a descobnr o caminho para as índias.
não verificaram que Spitzbergen era uma ilha. Por isso mesmo era lícito supc;>r
que da Groenlândia à parte mais extrema do nordeste europeu se este~dta
uma "ponte" terrestre da qual Spitzbergen participaria. Essa suposição, amda
reforçada pelo conhecimento de Novaya Zemlya, tornou-se especialmente
310 311
PARTE X

AS CRUZADAS, O PRESBíTERO JOÃO


E O GRANDE CÃ

A pedra inscrita de Singanfu - O Pe. Trigault não


falsifica - É Maria a Mãe de Deus? - O segrêdo
e a história da rota da sêda - O Prof. Lactantius
sôbre a amoralidade da Geografia - Das informa-
ções deturpadas de antigas narrativas de viagem
- Quem eram os "três sábios do Leste"'! - Os cris-
tãos de São Tomé - Por que Napoleão não cons-
truiu o Canal de Suez - O Imperador Justiniano
envolve-se em espionagem econômica, mas os per-
sas são mais espertos - Guias medievais para via-
gens à Terra Santa - Quem é o Presbítero João?
-A carta do Presbítero João: mistificação ou uto-
pia? - A história do "sidicus'' - Uma embaixada
do Grande Cã - Legados papais em Caracorum -
Especialistas da Transilvânia (Siebenbuergen) nas
Montanhas Altai - "Visum fuit mihi, quod eva-
sissem de manibus daemonum" - Desertam dois
monges - "Se souberdes a mágica, tornar-me-ei
cristão", diz o Imperador da China - Marco Pólo
sente frio no "tôpo do mundo" - Cipango, a Ilha
das Lendas - João de l\1ontecorvino torna-se Ar-
cebispo da China -André, Bispo de Zaitun, man-
da uma carta para Perúsia - Relato do país onde
nasce a pimenta - Schiltberger entre os pagãos -
Franciscanos em Astracã.
1

Também êste capítulo tem de ser iniciado com velha inscrição numa pedra.
O cenário, porém, não é a América e sim a Ásia, e na pedra não são risca-
das runas, mas antigos caracteres chineses. E não foi a pedra encontrada em
região virgem, mas na honrada cidade de Singanfu, capital da província de
Shensi, durante muito tempo ponto de encontro das grandes rotas comerciais
para leste e sul do Reino do Centro, e há tempos imemoriais ponto final
aa rota de sêda, levando aos países bárbaros do oeste.
Imediatamente junto ao lado externo do elevado muro de 12 metros de
altura, protetor da cidade, empenhavam-se em um dia primaveril de 1625
alguns cules em abrir o solo, para permitir que nova casa fôsse provida de
adega. Não eram muitas as casas da província de Shensi que contavam com
adegas, e demorou muito antes que os cules compreendessem por que uma
construção, que deve ficar acima do solo, teria de ser começada debaixo do
mesmo. Mas era assim que aquêles diabos estrangeiros, procedentes do oeste,
e que eram protegidos pela· benevolência do Imperador, o desejavam. Pro-
vàvelmente pretendiam viver debaixo da terra, feito ratos.
Diligentemente trabalhavam os cules. Era dia de pagamento; receberiam
à noite moedas brilhantes e valiosas. Essas moedas seriam polidas até brilha-
rem ainda mais, e depois uma corda seria passada pelo furo quadrado que
se encontrava no centro, a fim de que tôdas :pudessem ser penduradas ao
pescoço. Depois comprariam o chá que tinha vmdo da distante Setchuan, e
finalmente voltariam a beber na Casa dos Sonhos o fumo do esquecimento.
Repentinamente aparece debaixo das pás, que desentulhavam o solo, uma
gra!lde pedra de dois metros e meio de altura, um metro de largura e vinte
e cmco centímetros de espessura. E, apesar de os cules serem incapazes de
ler ou escrever, sentiram que essa pedra tinha uma importância acima do
comum, pois perceberam não tratar de traços naturais aquilo que cobria
~ ped~a. Um dêles imediatamente se dirigiu para a casa em que o governador
m~p~nal havia acomodado os diabos estrangeiros. Felizmente achava-se na
m1ssao o Padre Trigault, que já passara meia existência na Ásia. Atravessan-
do a r_ua, verifica para sua mais profunda admiração que a pedra, coberta
de :nt1gos sinais de escrita chinesa e síria, fala de um bispo cnstão, de nome
~daC!, .9ue havia vivido ali, em Singanfu e na época em que foi composta a
~~scnçao ~ra "Padre e Mestre da Lei em Sinistan". A pedra menciona tam-
em um Imperador de nome Tai-Tsung. E, milagre dos milagres, ela diz
~\~bém que há muitos e muitos séculos o cristianismo havia penetrado na
I ma,. ~endo seus ensinamentos sido examinados nas "Câmaras Privadas
!fipenais" e como Tai-Tsung houvesse reconhecido a sua verdade, havia
Sido ~ada ordem para sua pregação e propagação no país inteiro.
S Fácil era verificar que êsse Imperador Tai-Tsung havia realmente existido .
. ua era de govêrno estendeu-se do ano 625 até 649, tendo êle sido o segundo
11
hPe.rador da dinastia dos Tang, homem de inteligê~cia considerá~el e co-
N ~Cimentos vastos. Mas isto era tudo que o Padre Tngault conseguia saber.
C a a. se conhecia a respeito da presença de mensageiros cristãos em épocas
T 0
. distantes. A Igreja Católica Romana havia recebido, pouco antes que
ngault fôsse à China, permissão para enviar alguns missionários. E êsses
315
missionários, quase todos jesuítas, encontravam em tôda parte o mais crasso
paganismo. Não existia o menor traço de anterior influência cristã. E assim
me~mo assegurav~ ~ss~ pedra que cristãos haviam existid? já na época de
Tai-Tsung. O Cnstiamsmo era pregado e propagado? Havia um bispo? Igre-
jas cristãs haviam existido nas cidades e ali, em Singanfu, teria, em 638 obe-
decendo a ordem imperial, sido mesmo construída uma catedral? '
Também o Padre Trigault era jesuíta. Infelizmente, poderíamos acrescen-
tar. Pois na Europa, que naquela época era perturbada pela febre da Refor-
ma, da Contra-Reforma e do cepticismo dos livre-pensadores, a "Societas
Jesu" não desfrutava de grande prestígio. Por isso mesmo não acreditaram
nas afirmativas do Padre Trigault. Julgaram-no um falsificador, que justifi-
cava os meios pelos fins, e levou cêrca de duzentos e cinqüenta anos até que

XXX. Esb6ço de um mapa, mostrando a expansão dos _n~storianos na A~ia du;a~ted~ z;:~s~
Média (de ac6rdo com P. Y. Saeki e ]. Thauren). Existiram ~ongregaçoes_ cnstas f",.
'd" N b1spos (6.) onentavam os 1e1S,
tantinopla até Pequim durante a Idade Me la. umerosos d t.1 · (O) cristãos
e mesmo em Meca, Caracorum, Lhasa e Délhi foram encontra os ves gws ·

·
risucas: ·
Cnsto · sido
tena · " homowuswus
· · " , semelhan t e a Deus, mas não "ho-
mousios" idêntico a Deus. Teria sido um ser humano, conservando e~sas
'
características em todos os pontos essenCiaiS · · d e sua ex1s· tAenCia,
· e por 1sso
_
sua mãe Maria não poderia ser chamada de Mãe de Deus, mas apenas Mae
de Cristo. ·
O homem moderno que não se preocupa com sutilezas teológicas, pouca
· A · empresta ' a ta1s
lrnportanCia · re fl exoes.
- M as ent-ao' há. 1·500 anos.. passados,
eram problemas da mais elevada significação. Se Cnsto, cruCIÍlcado ~orno
Portador dos pecados do mundo, que morreu sob o pêso dêsses peca os e
depois retornou ao céu havia realmente s1'do o F'lh 1 o d e Deus ' entao a pers-
pectiva de salvação se apresentava com n o mm't0 mais atraente à huma-
' b 'lh d0
59. Tábua de inscrições de Singanfu com
nidade sofredora. Nem Thor, Zeus, Júpiter, A~on, ~em _Jeová, D~~~do
judeus ou Borvon, deus supremo dos celtas, haviam Ja~a1s desenv<_> .
!
a cruz dos nestorianos, feita em 781, como
monumento comemoraúvo à expansão da idéia da salvação em sua religião. Existia apenas pumçao, apenas Vl~gança .
"i1uminadora religião Ta-ch'in" (o cris- ôlho por ôlho, dente por dente - e isto até a t~rceira ou quart~ geraçao. Ma~
tianismo) no Império do Centro. em tôda a Europa com seus múltiplos povos JOvens e verdadeiramente crei_I
tes, clamava a vida' espiritual por graça e re d ençao.- A'1 cr·IS to apenas
• •
podena
tal veredicto fôsse modificado. Foi apenas em meados do século passado que ser aceito como Deus, aí não poderia ser senão Deus e ai Mana fo1 natural-
se provou, sem sombra de dúvidas, que o cristianismo havia obtido grande mente aceita como Mãe de Deus. _
aceitação na China já entre os séculos sete e oito. Na Ásia a situação era completamente diversa. _Lá, a idéia d~ .r:dençao
Não se tratava, evidentemente, do cristianismo católico-romano e sim do humana através da graça divina não era nova. Mmto pel<;>, c_ontrano, tat?-tos
nestoriano, e assim somos mais uma vez transportados de volta aos inícios do ensinamentos de salvação haviam surg_ido,_que os povos as1at1cos os _r~sebla~
quinto século de nossa era. Foi então que viveu Nestório, o Patriarca de C?ns- com cepticismo indiferente, sendo ma1s d1spostos a receber uma r~hgla? qu _
tantinopla, homem extraordinàriamente inteligente e religioso, que med1toU pronunciasse o lado humano do deus redentor. Quando Nestóno fot con
profundamente sôbre a natureza de Cristo. Acreditou êle que na pesssoa do
317
Salvador tivessem o divino e o humano preservado as suas próprias caracte-
316
de~ad? e anatematiza~o pelo C~ncílio de ~feso, em 431, espalhou-se 0 nes. •t 1 do govêrno chinês um aventureiro enérgico. Compeliu o impera-
tonamsmo com a rapidez do raiO pela Ásia, e em poucos séculos cobriu 0 C:P~;dicar, subiu ao trono e fundou a d~nastia de Tang. AJ?ó~ sua P?sse,
enorme co~tinente d~ lado a lado com. inúme~os adeptos. Tôda a Asia Me- dor..nrl da China começou a estender-se ate alcançar seu dommw máximo:
0d ~ler Amarelo até quase o Volga existia a~enas uma vontade, a do Im-
nor, a Pérsia e a índia estavam submetidas à mfluência do nestorianismo e o ••dor
ar da China, uma potenCia,
• · o lmpéno · _o C entr~. A b aCia
· .d e T anm
·
pouco faltou para que já naquela época distante também a Ásia se tive~se
tornado cristã-nestoriana. epera
o r e·no
I
dos persas estavam firmemente -em. maos dos filhos do céu. ,
Temos de referir-nos ràpidamente à história que leva a .êsse instante me- F · nessa época que missionários nestonanos, aparentemente em numero
morável. Não se sabe _ao certo q~al a idade das rot!ls de caravanas que liga- con~derável, se puseram a caminho da China. A tábua nestoriana. de ~in-
vam a Eur?pa ~ Chma. É poSSivel, porém, que Já fôssem conhecidas em nfu, inscrita por volta de 78~, foi . escrita pelo Pa~re_ Mar-lts-Busid, filho
tempos mmto distantes. Mas para a consciência européia surgiram apenas fe um clérigo ~ri~tão: _que havia emigrado do Afg~n.Istao. Por volta de 640
a areceu um misswnano, Olopoen, procedente da Sina, que a tal ponto con-
em com~ç~s do segundo século ~ntes _de Cristo, quando o Império do Centro
consegmu 1r;ompe: at:avés do cmturao ava!lçado de belicosos povos nômades. vfnceu a imperatriz com seus ensin~men.tos~ qu,e quase pod~mos ~hamá-la de
Parece que esse pnmeiro contato com o ocidente partiu realmente da China. cristã. tle exerceu também grande mfluenCia sobre o pr~pno Ta~-Tsu_ng. Do
Durante o govêrno do imperador da dinastia Han, Wu-ti (140 até 86 a. C.) ano 711 em diante aparecem de dez em dez anos embaixadas biza~tinas na
v!vel! o Império do Centro um per~odo do maior progresso. A superprodu: côrte imperial chinesa; _em 7_50_ doc~mentou-se a chegada de cléngo persa
çao mdustn_al, que lhe_ parece ter sido peculiar naquela época, assim como de alta posição da Igreja Cr~st_a e amda el? ~40, d~zentos anos depOis, da
o forte sentimento nacwnal que aparentemente animou as classes dirigentes morte de Tai-Tsung, é a posiçao do nestonamsmo tao f~vc;>rável, que ~erca
daquela enorme nação, explicam a razão do repentino incremento das rela- de 250 mil chineses, e entre êles a clalise governante de mmistros e funciOná-
ções comerciais com o oeste. Conforme a explicação do pesquisador das rotas rios, são cristãos. . . . _
de sêda, Albert Herrmann, de nacionalidade alemã, partiam anualmente até Cinco anos depois, entrou em colapso a estrutura m~ei.ra ?-o pode~ cr~s~ao
doze caravanas com cem homens cada e um número correspondente de ani- como se tivesse sido um castelo de cartas. Em 845 o cnsuamsmo, e sigmhca-
mais de ~arga da China para a Europa. tivamente também o budismo, foram pr~ibi_dos por ~ditai _imperial_, tôdas as
Na região para lá dos Passos Pamir, eram {lrincipalmente habitantes do i~ejas cristãs foram destruídas, os pnnCipais envolv~dos sao _as~assmados, os
Irã qu~ tomavam conta das mercadorias dos dirigentes das caravanas chine- fiéis se escondem e o outros fazem como se nunca tivesse existido nenhuma
sas, c_uidando do transporte ulterior para oeste. O centro principal dêste co- dessas religiões. E tão completos foram a destru_ição e o esquecii?J~nto..! que
mérciO era evidentemente a Bactriana, há muito famosa, na parte oriental oitocentos anos mais tarde o Padre Trigault foi acusado de falsif~caçao no
do Ir~. Daí por d~ante, !i ponte v~va, que Ievav~ sôbre a imensa distância entre caso da pedra de Singanfu. Mais uma vez parece como se um cammho cego
os dOis ~andes Impénos, o Onental, na Chma, e o Ocidental, em Roma, houvesse levado os homens inutilmente por distâncias enor~es e mu~d~s es-
era constituída pelos partos. A Síria, finalmente, constituía o último pilar tranhos. E, ainda assim, alguma lembrança tênue das comum~ades ~nstas do
a SUlitentar essa ponte comercial, que se estendia sôbre 10 mil quilômetros. Oriente conservou-se naqueles níveis inconscientes ou_ semiC?nsc~entes da
Su_a enorm~ ~II?'portâ~cia e~onôJ?ica _para ~orna, em fins do período repu- mente humana que dão origem a mitos e lendas_. O bnlh.~ misteno:a~ente
~hcano e IniCIO do rmpenal, Já foi menciOnada em parte anterior deste ameaçador, que mais tarde passou a envolver a figura. do Padre Joao. e as
hvro. aparições sangrentas dos "Grandes Cãs" da Mongóha, eram provementes
Por volta da época em que Roma consegue conquistar o poderoso Egito, dessas profundezas submersas. .
rece_ben_do assim ligação marítima com a índia e a China, isto é, pouco antes Assim mesmo embora centenas ou milhares de pessoas possam ter reali-
do mícw de nossa era, sofre o intercâmbio de caravanas na rota da sêda re- zado a longa viagem da Ásia Anterior par~ .a China dur~nte aqu~les ano~,
pentina interrupção, que se estende por duas gerações. Os hiung-nu, pre- seu número foi sempre limitado: eram fugiuyos, mensa~:Iros de fe, embai-
cursores dos hunos, submetem a região de Tarim e interrompem violenta- xadores de imperadores e reis, alguns comerCiantes, capitaes e chefes de ca-
m~nte _o tráf~go comercial intercon.tinental. Para partos e bactrianos tal I?e.rda ravana.
f01 mais sensivel que para Roma, Já de posse de nova comunicação mantima
com ~ China. Como era de esperar-se~ foram esta vez os povos do oeste, os
bactnanos e os persas que entre o pnmeiro e o segundo século, avançaram
para leste, encontrando levantada a barreira de Tarim. A China havia nova-
ID:ente experimentado uma evolução favorável, que redundou na derrota dos
hmng-nu. Em 130 de nossa era, sofreu a supremacia chinesa novo colapso. 2
Os oásis do deserto de Tarim são reconquistados pelos hunos, e uma vez que
o tr~fego marítimo entre a Europa e o Extremo Oriente já se tivesse des~n­ . A consciência da ecúmena, que caracterizou o mundo antigo, o fato ime-
vo!vido, é a rota terrestre esqu~cida por séculos e séculos. Também na~ws diatamente vivido de pertencer a uma esfera universal de. cultura, perde'!-~e
chmeses começam aparecendo sobre os mares. Já a partir de 400 conquista nas tormentas da migração dos povos (1) e com o desap_areCimento do Impe_no
o comércio chinês regiões situadas ao sul. Passando por Malaca vão para o Ro'!lano. O conhecimento universal do período clássico tmh_a também sido
Ceilão, e desde o sexto século enormes juncos vão e voltam do Gôlfo Pérsico. olvidado, e foi necessário trabalho intenso para sua reconqms.ta. Ao m~smo
No comêço da Idade Média reviveu o comércio terrestre entre a Europa e tempo não nutria a Idade Média a sêde do saber ou a alegna provemente
a Ásia Central. Sabemos que, no século sete, comércio intenso cruzou o Passo
de Pamir e o Deserto de Tarim. A razão é muito simples. Em 618 revoltou-se (1) Entr e nós conhecid a como a " Invasão dos Bárbaros" . - N. do T.

319
318
de novos conhecimentos, e não há qualquer dúvida de que o cristianismo
que inicialmente se limitava às classes mais baixas da sociedade, evidencio~ tidades, sempre acompa~hados ded~eus respectivos nomes em áratbe: D e_n-
durante muito tempo uma posição realmente hostil à cultura e às preocupa- em pouco essas es.peCianas e con 1mentos se tornaram e1emen o ma1Ie-
ções culturais. Via de regra, a bênção da fé era sentida por aquêles que eram aj.el na dieta européia.
pobres e fracos tanto em corpo quanto em espírito. Que necessidade tinham rodutos mais exportados para a Eurora eram, !1a.tur~lmente, os rro-
êles de conhecimentos ou fatos novos? A vida espiritual já não derivava suas ~d P na própria Síria e Palestina. De espeCial preemmenCia podemos Citar
leis do próprio espírito, mas sim do dogma. Principalmente a ignorância em d UZ1· os •
frutas como a uva-passa, a tamara, o r·1go, o I.1mao,
- a 1aran]a,
. o d amas-
assuntos geográficos era considerada louvável e de agrado especial para Deus, aqui êndoa a alfarrôba e, especialmente, a cana-de-açúcar. Entre _os me-
como disse Lactantius, o tutor do filho de Constantino, o Grande, por volta dl~~:os e 0~ aromáticos, nativos da Ásia Menor! o .bálsamo e. as resmas da
do ano 300. Por isso foram durante muito tempo exclusivamente os povos more de goma, da mirra e da ár~ore de t~rebmtma mereCI~ffi destaq~e
bárbaros limítrofes os que investigavam e descobriam, que montavam os seus es cial. Da Ásia interior e da Arábia pro~ed1am - em sua mawr. parte via
cavalos para percorrer distâncias desconhecidas ou aprestavam seus navios ~á e Damasco, a copalina, o aloé ~ o mcenso. O .arroz e o milho eram
para cruzar oceanos estranhos. Do norte partiam barcos dos vikings da Is- também trazidos pelas caravanas e particularmente a pimenta, o cravo, o car-
lândia para a Groenlândia, atravessando o Estreito de Davis e chegando à damomo e a noz-mascada. . . .
América. No sul as caravanas árabes penetravam profundamente na Africa, Os principais produtos indust.riais era~ tecidos: tais ~orno chita,. fe1ta de
superando no leste em marchas intermináveis os desertos da Ásia Central. alaodão cultivado no país de ongem, ~eCid?s de. seda, tais como cetm~, mus-
Enquanto isso, na Europa Central voltaram·se as fôrças individuais liber- selina OU damaSCO, feitOS COID matena-pnma Importada OU J?rO?Uz!da no
tadas pela derrota do antigo mundo universalista, para o íntimo, para o pró rio Oriente, vidro - e especialmente espelh.os - q~e subsutmram o su-
reino de Deus. Por volta de 925, iniciou-se em Cluny e na Lorena um movi- ~neo europeu, constituído por chapas m.etálic<;ts p~hdas, e parei. O~ ta-
mento de renovação, que teve conseqüências prodigiosas. E os impulsos dêsse pêtes conseguiram, por aquela época, atrair o mteresse dos ocidental~, e
movimento em breve vieram a exteriorizar-se. Também os pobres povos aentro em pouco eram usados na Em;_opa t.ai~ como os cruzad?s os hav1a;n
pagãos do resto do mundo deveriam participar nessa campanha da salvação visto empregados pelos árabes. Entre estes ulumos eram estendidos n? chao
geral: a exploração e o descobrimento estavam-se tornando uma tarefa reli- ou pendurados nas paredes das tendas. Procedia-se da mesma mane1ra .em
giosa. castelos europeus. Também ali existiam tapêtes em tôda parte, . e, em VI~ta
Não foi coincidência que a idéia das cruzadas fôsse proposta por um adepto do chão frio de pedra e das paredes nuas, ~ nobreza deve ter ficado mmto
das idéias de Cluny e em solo da França Meridional - em um mundo que, agradecida ao Oriente por essa nova conqmsta.
apesar de todo o seu zêlo religioso conservara os melhores elementos d? cava- Em todo êsse incremento do luxo da vida, coube a parte do leão ao ne-
leirismo. Mas foi precisamente em virtude do círculo um tanto estreito, n? gociante - especialmente aos negocia~tes da ltál~a Setentrional, de Gênova,
qual se organizou, que o Papa Urbano li, que publicou o seu famoso roam- Pisa e Veneza, se bem que os negoCiantes alemaes em Au~burgo ou Nu-
festa em favor das cruzadas após concluído o Concílio de Clermont-Fez:al'l:d remberg também soubessem aproveitar-se bastante be~. E Isto em~ora os
em 1095, deve ter ficado muito surprêso pelo aplauso geral dado à sua. 1dé1a r.roprietários de navios italianos, que inicialme?te haviam monopoliz~do ?
e a maneira pela qual se desenvolveu essa aventura espiritual e caval.eiresca, 'passagium", a travessia, para a Terra Santa, ficassem com parte con~Idera­
até tornar-se um movimento de massas, repleto de fantasias apocalíptica~. vel da "bênção" sonante e metálica, que as c:uzadas de.rramavam sobre a
As expedições militares para o Oriente, que muitas vêzes custaram milha- Europa. O peregrino comum pagava para. a v1agem de tda e volta para a
res de vidas, ampliaram bastante os conhecimentos geográficos. É verdade que Síria cêrca de seiscentos cruzeiros, quantia consider~vel p~ra a época. O
elas nunca se moveram fora de áreas há muito conhecidas para gregos e ro- escudeiro pagava, para ter um lugar na coberta do naviO, m<;tiS ou menos 70~
manos; mesmo os rumores vagos que alcançavam os cruzados através d~s cruzeiros, e seu senhor, 0 cavaleiro, para um lugar na cabma, 1.200. cruzei-
comerciantes árabes ou hindus tratavam de um mundo com o qual a Anu-
~uidade, no início do milênio recentemente concluído, havia tido bastante
ros. Via de regra encontravam-se entre mil e mil e quinhentos. passagem~s e:n
um barc? de cruzados, proporcionando uma renda de 600 mil a um m1l?a?
mtimidade. Mas o fato era que milhares e milhares de pessoas, e não. apenas de cruzenos. O risco era, evidentemente, bastante gr~nde. Procu.rava-se ln~u­
alguns indivíduos isolados, entraram em contato pessoal com o Onente, e tá-lo ~ediante a navegação em comboio e nas p;oxim1da~es do litoral. ~ss1m
que êste contato com as maravilhas do Leste foi sempre renovado, duran~e estendia-se o "passagium", que começa~a ao ra1ar da pn~avera - a fim .de
décadas e séculos, dando aos cruzados sua influência inestimável sôbre a his- que. os cruzados estivessem em Jerusalem na época da Pa~coa - o~ .ef!l fms
tória da Geografia. • de Junho; alcançava-se a Palestina então em fins ~e. ~gosto ou miciOs de
Até que ponto foi profunda a impressão que sôbre a Europa exerceu este seter;nbro -, por cêrca de dois meses, mas as possibilidades de c~eg":r ao
contato íntimo com uma cultura estrangeira, foi evidenciado pelo número destmo e voltar são e salvo eram bem melhores que numa travessia d1reta,
de palavras árabes que penetraram nas línguas ocidentais durante a época arris~ando o comboio a ser disperso e atacado individualme~te por pir~tas.
das cruzadas. As primeiras expressões a serem adotadas na Europa eram, em
sua maioria, têrmos náuticos. As palavras almirante, arsenal, cabo e corveta Todas as cidades portuárias italianas, sem qualquer exceça?, constrm~am
são tôdas de origem árabe. O processo foi repetido no campo das arm~d ~ naqueles decênios a base para sua posterior riqueza. De há mmto eram at~vos
armaduras - muitas armas, como por exemplo a besta, não eram conheci a no co.mércio com o Levante e o Oriente. Mas os lucros que agora consegmam
antes das cruzadas - e não demorou a invadir a esfera da vida diária: alcova, aufenr excediam a tudo. Pois em suas mãos não estava apenas o transport~
sofá, garrafa e âmbar, todos êsses têrmos vêm do árabe. Finalmente começa- de passageiros, mas também o abastecimento de armas, munição e manti-
ram especiarias e alimentos orientais a entrar na Europa, e isto em grandes mentos. Acrescia a especulação para tempos futuros. Quan~o o tr~nsP.~rte de
cruzados fôsse menor, teriam êles, ainda assim, o monopóliO da ligaçao com
320 321
21 Conquista Mundo
o Oriente. E muito em breve aumentava de tal forma o nível da vida euro- Assim ficamos sabendo, se folhearmos a "Topographia Christiana", escrita
péia, que p~reci~ impo~sív_el voltar atrás ~as exigências muito mais amplas por volta de 530 por Cosmas lndicopleustes (viajante _para a índia), u_m ne-
que eram feitas a ex1stenc1a de todos os d1as. iante egípcio que mais tarde se tornou monge, habitando um mosteiro no
Tratamos aqui tão m_inuciosamente de todos êsses problemas a fim de es- ~ai, de muitas teorias ridículas acêrca da for!fi~ da Terra, a qual, de acôrdo
clarecer de vez qua_l ~ ~mportância da linha divisória que as cruzadas esta- com essas informações, é retangular, sendo limitada por quatro mur.os que
beleceram para a ~IStona da Europa., Indubitàvelmente temos aqui o início no tôpo formam um arco, o ~i:mamento :- ,m.as muito_pouco ac~~ca d e suas
daquele desenvolvimento, que atraves do Renascimento e do Humanismo viagens e o fato de êle ter ~ISitado a _Ab1ssmm~ ': índia ~ o Cedao. Ap~n_as
leva à época moderna. _Não só que principia a surgir um estilo de vida com- entra em minúcias quando discute a vida dos cnstaos de Sao Tomé do Ceilao
pletamente novo, al~e10 aos ~ntigos costumes patriarcais, mas também por- e da índia, de cuja existência já havia transpirado algo na Europa.
qu7 novos aspectos sao oferecidos do ponto de vista espiritual e intelectual.
POis pelo_ c_h_oque com outras condições culturais, sociais e civilizatórias sur- HMesmo em Taprobana (Ceilão), uma ilha no Oceano fndic~ d~s te lado ~a fndia _A'2terior,
ge a possibilidade de, em comparação com o multiforme e o estranho alcan- existe uma igreja cristã, com clérigos e adeptos, mas n~o se1 d1zer se existem cnst:'-os em
partes mais além de Taprobana. No país chamado Male (M~Iabar), onde nasce a ptmenta,
ça~ o rróprio "ego". Em p~imeiro lugar, refere-se isso naturalmente' à ma- também existe uma igreja, e em outro lugar, chamado Calhana (Kalyana, perto de Bom-
nena diversa pela qual o onental encara sua existência, mas por outro lado baim) há, além disso, um bispo, enviado da Pérsia. Na chamada Ilha de Dioscórides (Socotra),
sente também o francês, o alemão, o italiano e o inglês a sua individualidade situada no mesmo Oceano 1ndico, e onde os habitantes falam o grego, sendo êles descen -
nacional. O conceit? d~ "eu", tra_zido à tona. em terreno teológico pela re- dentes dos colonizadores ptolomeus que seguiram a Alexandre da Macedônia, exi~tem cléri_gos
forma de Cluny, f01 assim concebido em sentido universal. que receberam as ordens na Pérsia, tendo sido enviados para a ilha, em q~e VIvem mmtos
cristãos. Passei ao largo dessa ilha, mas não cheguei a aportar. Mas enc~ntre1 alguns d~ seus
Isto é importante também para as nossas considerações. Se até então haviam habitantes, que usam o idioma grego, na Etiópia. E, da mesma maneira, entre bactnanos,
os .P<?Vos procurado descobnr regi?~s novas. s_ob impulsos por assim dizer hunos e persas, e o resto de hindus, perso-armênios, medas e elamit~s , assim co~.o e~. todo
anonn~os, porque uma mensagem diVma o exigia, como por exemplo a de São o país da Pérsia, há inúmeras igrejas com bispos e grandes comumdades de fiéis. EXIstem
Brandao, que talvez tenha "pré-descoberto" a América no cumprimento dessa também muitos mártires e monges, vivendo como verdadeiros erem ita~ . "
ordem, ou porgue a opressão _religiosa tornava impossível a vida na pátria,
COJ?O ~ntre os J~deus ou os cnstãos nestorianos, ou porque assim o desejava Em outra parte, aduz alguns fatos sôbre a ilha de Ceilão, que clar~mente
o mstmto ,c<?letiv?, como entre os vikings que, a fim de obter madeira e evidenciam que o interêsse comercial do ex-negociante contmuava VIVO no
out~as .ma~enas-pn~as para as suas colônias na Groenlândia se dirigiam para piedoso monge.
a Vmlandia, pareCiam tornar-se agora soberanos os motivos mais pessoais. É HSituada como está a ilha em uma posição central, é ela freqüentada por barcos de
certo que os impulsos anônimos, como nós os chamamos, ainda existiam tôdas as partes da fndia e da Pérsia e Etiópia, enquanto qu e, da mesma maneira, tem
também em uma individualidade como a de Marco Pólo. Mas sentem-se so- uma frota própria. E dos países mais distantes, refiro-me à Tzinista (China) e outros pontos
bressair n~la os. c?mponentes pe~soais com muito mais clareza que em pre- comerciais, recebe sêda, aloé, cravo, sândalo e outros produtos, que são enviados para
C!Jrsores desse v1apnte e descobndor, que já pertence aos homens renascen- outros mercados, como Malê, onde nasce a pimema, Calliana, que exporta óleo de gerge-
tistas, que procuram a aventura pela aventura, porque ela tem a transmitir- lim, cobre, madeiras e tecidos para vestimenta, Sindhu (na embocadura do Indo), Pérsia,
lhes a confirmação e a valorização do próprio "ego". lémen e para Adulis (wula, perto de Massaua) no Mar Vermelho".

Alguma coisa conta também acêrca da África Oriental mais uma vez
em conexão com mercadorias de elevado preço, tais como o ouro ou o in-
censo. Mas tudo isto em forma de observações secundárias, pois no fundo in-
teressam tais coisas apenas ao próprio Cosmas, já que seus contemporâneos
consi~erav_am suas viagens, por mais fascinantes que fô~sem, como ~end~ de
3 reduzida Importância. Aparentemente despertou seu hvro algum mteresse,
porque continha as primeiras informações ~inuciosas s?bre os cristã?s india-
Sabemos que ~~r~o Pólo estava longe de ser o primeiro a viajar para o nos, os quais, embora considerados heréticos, eram tidos como dignos de
Leste, uma vez InJCia_das ~s ~r.uza~as. Suas viagens eram certamente muito atenção.
ex tensas.. Mas, d e. mawr signihcaçao que sua extensão, era o fato de serem Durante muito tempo acreditava a Idade Média que o cristianismo hindu
elas consideradas Importantes e interessantes por sua própria época. Eis algo remontava aos Três Reis Magos do Leste, que vieram ter a Belém quando
que_ era t?talmente novo. É verdade que diversas viagens ousadas e distantes do nascimento de Jesus, tendo mais tarde retornado para as suas pátrias. Isto
hav!am Sido comemoradas pelos cronistas medievais muito antes das do ve- é, naturalmente, apenas uma superstição. Pois que, provàvelmente, êsses pre-
neZiano .. Ma~ os relatos e_ram geralmente constituídos por notas breves e sê- tendidos reis orientais, como já Kepler havia suposto em princípios do sécu!o
cas. O !nteresse d? cromsta conce~trava-se em alguma outra coisa. O fato d_ezessete, não eram senão astrônomos judeus da Babilônia. Sabe-se que exis-
de algu~m ter rea~~za~o uma expedição, de ter passado, no curso da mesma, tiu uma antiga escola de astronomia em Sippar, perto de Babilônia, e um
por muitas exl?encnCias estranhas que mais tarde narrou, não era impor- texto cuneiforme, que a sorte preservou, informa que a célebre reuni~o de
tante de per SI. O valor e a importância de uma expedição residiam na S~turno e Júpiter, no ano sete antes de nossa era, foi observada em S1ppar.
ordem dada por a l~um imperador ou no chamado por parte do Vaticano Na astronomia babilônica, Saturno era considerado desde tempos sem ~onta,
pa:a qu~ fôsse t1~az1da algul?a relíquia religiosa ou coisa do gênero, isto é, como de significação particular p ara as terras ocidentais, Síria e Palestma, o
o m cent1vo era tido em mais alto valor que os eventos reais. que pode estar ligado à antiga tradição judaica, de acôrdo com a qual Sa-
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turno :ra a estrê,la_ de Israel. A r_eunião ~e uma estrêla t~o importante com ia para abreviar enormemente a viagem para a índia. Realmen-
o plane_ta real Jup1ter d~ve ter .sid? considera?a pelos_ pnmeiros astrônomos ote mesmo Serv · 1o _passa d o .P?: N
baseava-se 0 plano, esboçado em meados do secu . egre 11·I
aconteCime?to de ~uma_ ImportanCia. É, por Isso, mmto compreensível que s construtores do Canal de Suez, em protótipos anuqmssimos. A
e Le S O
alguns as.tronomos JUdaicos! tendo observado ~ convergência dêsses dois gran- · ssep,
eira ligação artificialmente construída entre os d OIS
· mares - pnmitiva-
· · ·
d~s. planeta~ em 12 de __abnl do ano 7 a: C., tives~em resolvido viajar para a ~=te seguindo o curso mais comprido do Nil? - foi feit~ pelo Faraó Ram-
S_ma. pep~:ns da reumao d~s, ~uas estrelas no dia 12 de abril, elas teriam sés 11, 0 Grande, no século treze antes de Cnsto. A~ areias do deserto gr~­
Sido VISIVeis novamente em micws de out';lbro e ~e dezembro, e tão próximas d !mente destruíram essa enorme obra de engenhana. Setecentos anos mais
uma. da o'!tra a ponto de. dar quase a Impressao de uma estrêla única. E :r-de, por volta de 600 a. C., renovou _o Faraó Neco ~sse .~anal. He;ódo~o
po~ Isso Sao Mateus_ faz_ dizer os Reis Magos: "Onde está êle, que nasceu descreve-o como sendo uma ob;a gra~dwsa de construçao: :tsse cana., afir-
~ei dos Judeus? Pois vimos a sua estrêla no Oriente, e para cá viemos a ma é tão comprido que para nele veleJar de um extremo a outro leva quatro
fim de adorá-lo". . di;s. E tão largo que pode abrigar duas trirremes, lado a lado. A água vem do
. E~tá é a -~i~tória_ do~ Três Reis Magos, do Oriente, e na realidade o cris- ilo; cento e vinte mil egípcios morreram no curso d êsse trab~lho". .
tiamsmo as~ati~o nao tmha relação 3:lg~ma com_ ê~es. _Talvez fôssem os judeus Cem anos depois foi o can~l re~t~urado ~ alargado Relo rei_ persa Dano.
que, e~ pnmeiro lugar, levaram a I~eia do c~IStiamsmo para o Oriente, ou Isto ficou atestado por uma mscnçao cuneiforme do seculo. cmco antes. de
talvez fosse levado por alguns dos mmtos refugiados, que fugiram do Império nossa era. De acôrdo com os vestígios chegados até nós, media o canal cerca
R~mano,_ d~rante as primeiras perseguições da Cristandade. De qualquer ma-
neira, exiSti~ uma ·:comunidade_ cristã. bem organizada" no Tigre já em 170,
?
de cinqüenta metros de largura e metros _d e p~of~?di?ade. Seus b<?rdos. e:a~
firmados com pedras de alvenaria. J?epms cai silenciO ~otal. Mew mllemo
c~mforme afirma Rich":rd Henmg, e sobre esta subestrutura erigiu-se na Pér-
mais tarde Plutarco afirma que, depois da Batalha de ÁCio, Cleópatra tentou
Sia, du~a~te _o sécul_o cmco, uma verdadeira Igreja Nacional Nestoriana. transportar sua frota pelo istmo e reuni-la no Mar yermelho. O p~ano, _con-
. O, c~Istia?-I:mo hmdu, por outro lado, remonta provàvelmente a um mis- tudo, falhou, obviamente porque apenas parte re~uZld~ do ~anal p_ode am~a
swnano cnstao, ~e n_ome Panteno de Alexandria, que visitou a índia por ser aproveitada. Mas os geógrafos romanos do penado Impenal sabiam mmt?
volta de 20~. A h1stóna. de que o apóstolo !om~ houvesse conseguido escapar bem que em tempos passados existira uma ligação navegável entre os. dms
para a ín~Ia _e~ 52, ah encontrando os tres Reis Magos do Leste, e batizan- mares. Chamavam o Canal de Suez de "Amnis Trajanus", o rio de TraJ3nO,
do-o: na fe c~Ista, apareceu n~ Europa apena~ no século oito. Depois da morte e dêsse nome deduziu-se que Trajano tentou torná-lo novamente navegável.
de Sao To~e, seu comranheiro Ja~ó de Antwquia supostamente lhe sucedeu Desde que, contudo, nada mais se ouviu a respeito, é lícito supor que o~
como Patnarca da índia. Por motivo de grata piedade, êle teria adotado o esforços de Trajano não foram bem sucedido~. Por volta_ do sécul~ sete, foi
nome. Tomé, passanc~o ~es~e então todos os patriarcas hindus a ser chamados o canal restabelecido pelo Califa Ornar, depms da conquista do Egito, ~ du-
com esse nome. O cns~Iamsmo malab~r, contudo, é muito mais velho do que
faz _supor essa lenda piedosa. Na realidade, deriva provàvelmente o nome de rante cem anos m ais, continuou sendo usado por naves árabes como hame
"cnstãos de São Tomé" de um rico negociante hindu, chamado Mar Tomás, entre o ilo e o Mar Vermelho. Provàvelmente era em geral usado por
supo~to d~ ter cedido à COf!I-Un~dade cristã-malabar vultosas posses. Sabemos
barcos de guerra, pois sem dúvida motivos militares levar~m o Cali~a Ornar
que eles tiverall_l seu própno bispo metropolitano em fins do século oito, e a criar um sistema de comunicações rápidas entre a Arábia e o Egito. Mas
que logo depois essa organização hierárquica se transformou em outra, também deve ter servido a navios comerciais e de passageiros, pois foi então
se~u~ar: um_ Estado Cristão, liderado por reis, o chamado Tamutiri. Os que Fidélis nêle navegou. Por volta de 770, o califa Abu Jafar, cuja. capital
cnstaos de Sao Tomás são nestorianos pela doutrina, e sua língua litúrgica era Bagdá, fêz com que grande parte do canal fôsse obstruída com areia, para
é o siríaco. Nos primeiros dias do século atual existia ainda um número in- privar os rebeldes do Sul da Arábia dos caminhos de água que levavam
ferior a meio milhão de adeptos dessa seita em Cochin e Travancore. para o Egito.
Assim co~o Cosm~s. foi d~ i~portância para seus contemporâneos em vir- Outra vez silêncio profundo envolve aquelas regiões. Mas e'm fins do século
tude de razoes ~speCiais e. nao simplesmente por causa de suas viagens, tam- quinze os traços do velho canal eram ainda nitidamente visíveis. Quando
b~~ _temos notiCias l?areCidas de outro monge - o irlandês Fidélis, que se monges e leigos viajaram para a Abissínia, a pedido do Papa, entre a~os de
d~r~gm para o, sul do~s ~éculos ~ep_ois. Devemos as descrições detalhadas dêsse 1484 e 1485, encontraram para sua admiração os restos, cobertos de areia.
v_Ia]3nte ~o geografo Irlandes Dicmlo, autor de uma geografia bem compreen- u~o segundo dia depois de nossa partida do Cairo", escreve um dos mesmos, um tal
siva, escnta em 825, enquanto êle vivia na Côrte de Carlos Magno. Fala de Battlsta d'Imola, "chegamos ao Mar Vermelho, e no dia seguinte marchamos atrav~s de
um ,monge que, por ocasião de uma peregrinação para Jerusalém, por volta larg~ fôsso, que havia sido aberto pelo Rei Sesóstris do Egito, depois dêle por Dano da
de ;50, prossegmu para a Terra do Nilo e depois passou ao longo de um Pérsia e Ptolomeu. Sua largura é de mais de 30 metros, isto é, 35 passos,_ mede 10 m etr~s
canal do Nilo ao Mar Vermelho: de profundidade, ligando em tempos doutrora o Mar Vermelho ao Mediter~âneo. Mas Já
qu~ o Oceano indico possui um nível de águas mais elevado que o Me~Iterrâneo, n~o
"Se bem que eu nunca tenha visto afirmado por cronista algum, que um ramo do Nilo q~Iseram êsses reis completar 0 canal. Pois que uma conexão entre os doi_s oceanos tena
leve para o Mar Vermelho, o Frade Fidélis fêz tal asseveração, que confirmou em minha ~eito co~ que o Egito inteiro tivesse submergido nessas águas. Os restos amda despert~m
~resença. De acô~do com êle, ~anto c~érigos quanto leigos, que foram a Jerusalém na qua· m sentimento de admiração, mesmo que a areia tivesse, com o correr do tempo, enchido
lidade de peregnnos, prossegmram viagem até o Nilo, atingindo, através de sua desembo· pela metade muitas partes do canal."
cadura, o Mar Vermelho ... "
Duzentos anos mais tarde em 1671 encontrava-se sôbre a mesa de Luís XIV
Dicuilo não poderia saber, como sabemos hoje em dia, que em verdade de _França um certo docu~ento. E~ sua decorativa escrita palaciana, era
essa desembocadura desconhecida do Nilo era um canal, nem imaginar que ennmado pelo título "Consilium Aegyptiacum", "Conselho Egípcio". Seu
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autor era Leibniz, o célebre matemático e filósofo alemão. E J'á que a •t ~ambém 0
engenheiro Negrelli, cujos c~lculos e propostas técnicas formaraT?
a base do grande trabalh~ d~ constr~1saod, e est avamb mortods centenads dEe ~tI·
res1'de n te d a I ongmqua - e
1
' H anover
• - conhecido
era tao · que
que mesmo os cort.,
d e V ersa Ih es J'á _Ih e tlve~sem
· ·
ouvido '
o nome, não ousaram subtrair êsse~saos
do- )bares de trabalhadores egipCIOS, S~Cfl !Ca OS re 1a_ O rad n~'SC esertOS. O ~~ O.
c~mento à ater~.çao ?o rei,_ se bem que contivesse um projeto tão maluco como Mas ali estava o Canal, e ano aJ?os anb<? os ad~I<?dmstads a ompagme ~mver-
todas as demais cOisas feitas por aquêles alemães: lle du canal maritime de Suez rece 1am !VI en os ~normes - co.n _mnan-
~0 de alguma maneira aquêle estranho oráculo anunciado pel<2s clen~~s ao
"Sire, Faraó Neco: "Suspenda, ó Senhor, êste plano. Se o executares nao servuas ao
A reputação de sabedoria. de Vossa Majestade, dá-me coragem para apresentar-lhe 0 Egito mas a gananciosos bárbaros!" .
res~tltado de estudos met.as sobre um projeto que, no julgamento de homens muitíssimo Na mesma época em que Cosmas e Fidélis estav~m vi~jando no Onente
em~nentes, pod~ se~ constdera?o um dos maiores que podem ser concebidos e dos mais
Médio, eram realizadas viagens em uma escala muito alem daquela a qu;
fàc~lmente reahzávets~ (... ) ~eftro · me à co~quista. do_ Egito. A yosse do Egito abriria para
a F~ança uma conexa~ _ráptda c~m os paases mais ncos do Onente. Ligaria o comércio da estavam acostumados na Europ~. Sabe-se qu_e _!la época do Imp~r~do: .Jusu-
1ndta à França e abnna o cammho a grandes líderes, para conquistas futuras dignas de niano de Bizâncio (527-565) dois monges cnstaos chegaram a BIZanci?, pro-
um Alexandre ... ". venientes do país Serinda, muito distante no leste, traz~ndo segredos I~por­
tantes. E os livros velhos relatam-nos um caso de espwnagem comercial e
É isto o que lemos no "Consilium Aegyptiacum". Nenhuma palavra sôbre disputas econômicas entre as grandes pot~n~ias da época, gue correspondem
u_m canal ent;e o Mediterrâneo e o Mar Vermelho, naturalmente, e o grande em tudo às disputas sôbre petróleo ou uranw dos nossos d.Ias.. . .
filho de Hanover não deve certamente ser citado ao lado de Ramsés II e Dario Naturalmente não se referiam a nenhuma dessas substanoas mflamáve~s,
co~o. U!f!. dos pais do c_anal de Suez. Mas é certo também que a França para as quais naquela época a humanidade não tinha uso, mas ~ sêda. ~c1s,
t~na IniCiado C! estabelec~mento de uma conexão navegável da espécie men- auques, bispos, negociantes ricos e sábios célebres, to~os se v:_suam. d_e seda,
ciOnada - se tivesse seguido o conselho de Leibnizl suas espôsas usavam materi~~ espec~a~mente fino. de sed!l e nao e'.mtla m'l!a
Mas a França não v~ltou a. sua atenção par_a o Egito. Realizou um ataque casa, com quaisquer pretensoes soCiais, em que esse tec~do _mar~vilhoso nao
fru_strado contra os Paises Baixos, e o relatóno de Leibniz foi parar nos ar- representasse importantíssimo papel. Na Roma. do pnme1ro Imperador o
qUivos de Luís XIV. pedido constante de sêda já havia ameaçad? pengosamente a b~lança comer-
Ali foi encontrado por Napoleão. As propostas do grande filósofo alemão cial européia com o Oriente. Nesse íntenm, o problema havia-se tornado
mereceram a _aprovação_ do grande estadista da Córsega. Em 1799 embarcou apenas mais agudo, porque a Igrej~ en_trou _no ~ercado como grande com-
para a co~qUista do Egito e, algum tempo mais tarde, encontrava-se perante prador de sêda. Principalmente as IgreJaS bizantmas eram abundantemente
os res_tos am~a claramente reconhecíveis do antigo canal artificial, que havia decoradas com sêda.
rot?p1do o muro entre o Mar Vermelho e o Mediterrâneo". "Messieurs, Tudo isso não teria sido tão ruim se as rotas da sêda através da Ásia,_ ini-
v01la le canal des Pharaonsl" cialmente estabelecidas por imperadores chineses, tivessem sido manudas.
Mas, s~us engenhe_iros, _encabe~ados pelo desenhista-chefe Lepere, expressa- Mas a bacia de Tarim havia sido conquistada por volta de 130 por sel~agens
ram d~v1da_s das ~a1s sénas. Assim como os arquitetos de Ramsés, JI o Gr:m- tribos huno-mongólicas, que interromperam a rota naquel: ponto. A VIa m~­
de, d?IS mil e qumhentos anos antes, como os estudiosos da Idade Média, ritima, que em seguida foi usada para o transporte da seda ao mu_nd_o oct-
acreditavam também êles que o nível de águas do Mar Vermelho fôsse mais dental, terminava no país dos partos e seus sucessores em poder e direito, os
ele~ado que o do, Mediterrâne<?. E uma vez que calculavam tal diferença em sassânidas persas. Partos e persas imediatamente se aperceberam d? valor
ma~s de dez. c_entlmetr_os, ac~ed1tavam que um complicado sistema de eclusas dêsse monopólio e ambos empregaram todos os seus. esforço~ para ur~r até
ser_Ia_ necessano para ~mped1r que o Oceano índico inundasse todo o Egito. mesmo o último centavo de lucro. Enquanto um quilo de sed_a porlena ter
FOI Isso o que comumcaram a Bonaparte. sido adquirido por cêrca de setenta mil cruzeir.os na ~p.oc~ do Imperador r~­
Com,unicaram :_oisa idê~tica à imprensa. E o público deixou-se convencer. mano Marco Aurélio, por volta de 275, quanud!lde tdentic~ ~ustava aproxi-
Tambem. ~apoleao acr~~1tou. Apenas um homem rejeitou essa hipótese, o madamente duzentos e trinta mil quando do remo de Jusumano (por volta
grande. f~~IC<? e _mate~at~co fran~ês Laplace, que provou em têrmos claros de 550).
q~e a 1de1a mt:1ra nao unha ca_b1mento, e que não poderia existir qualquer Era um golpe pesado. E além do ~ais havia muitas divergências políticas
d1fere_nça de mvel entre ~s d~1s oce~nos. Mas ninguém lhe deu a menor e~tre os bizantinos e os persas. Se o. u~pera_dor pegasse em ar~as para reso!-
aten_çao. Durante quase do1s mil e qumhentos anos havia sido "sabido" que v~-las, o suprimento de sêda parana tmediatamente e .os ou':1dos de .Jusu-
o nivel d? Mar Vern;elho era mais elevado. Lógica ou prova matématica nt.ano ressoavam com as queixas não ape~as de sua e~posa e filha, mas tam-
nada pod1am contra esse estado de coisas! bem - o que era muito pior - de seus bispos e patnarcas. , .
. Assim sendo, não foi co~.struí~o o Canal ~e Suez. Go~the! que contou ~ Era uma situação difícil. Justiniano pensou :esolvê-_la. por mano~r~ pohu-
Eckermann em 1827 gue valena a pena v1ver por mais cmqüenta anos ca e comercial grandiosamente concebida. Havia~? existido, ~e.sde_ IniCIOS d?
para ver co~ os própnos olhos a construção definitiva do istmo entre a Eu- século_ quatro, estreitas relações político-diplomática~ ~n~re BIZanc_w e o Rei-
ropa e a Ásia, ~st.a~a morto há muito tempo quando a primeira pá se le- no Çnstão de Axum que corresponde à atual AbiSSima Setent~wnal. Com
vantou, dando Ini~IO a~ g:ande empreendimento. Mesmo 0 todo-poderoso persistência e energia haviam os reis cristãos de Axum estendido gradual-
chan~eler da Áustna, Pnnope Metternich, cuja energia era diretamente res-
mente o seu poder até 0 Mar Vermelho, e durante muito tempo o .seu ,rôrto
ponsavel pela fundação de uma sociedade para estudos do problema do Canal Adulis, a moderna Zula, ao sul de Massuá, conseguiu fazer sombra a bnlhan-
de Suez em 1846, havia morrido no ano da abertura do Canal, 1869. Falecera te e antiga Alexandria. Os soberanos de Axum haviam mesmo cruzado o
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mar e se dirigido à Arábia, e desde 520 o reino dos himiaritas, a Arábia Me- 4
ridional moderna juntamente com o Iémen, pertencia incontestàvelmente à
esfera de poder axumítica. De há muito tempo havia o Sul da Arábia apre- êsses documentos provam que, mesmo sem o estímul~ das cruzadas,
sentado os melhores navegadores e marujos na região do Oceano fndico. Todos t essoas tomavam 0 caminho do leste. Particularmente as
Que tal, pensou Justiniano, tomar conta do comércio da sêda com a ajuda peregr~nos _e s0 ~ 0ra;a~to Se ulcro em Jerusalém eram realizadas em todos os
dos mesmos? Enviar naves bizantinas para o Ceilão, na época o mercado peregnnaç?\erdade que fsporàdicamente, mas apesar, d!sso com constantes
mundial de sêda, e deixar partos e persas "na mão"? Naturalmente teria perí~~s, e Durante muitos séculos, mesmo sob o dommw dos árabes e tur-
Justiniano de pagar comissões consideráveis aos axumitas e himiaritas. Mas repe~~~e~~a tal viagem mais perigosa que muita~ outras, e~cet:'ando ataques
ainda assim seria excelente negócio, se êle conseguisse eliminar as firmas cos, . · de bandos de salteadores e as costumeuas comphcaçoes com os. en-
mercantis persas, com sua ânsia desenfreada por lucros, do comércio da sêdal ocaslon~Is lfandegários Por volta da passagem do século oito para o segumte
Em 535 enviou Justiniano um de seus melhores diplomatas, o Almirante carrega os alar ,·ntercâmÍlio de embaixadores entre Carlos Magno e Harum
houve regu . · · 1 - · ' · Natural-
Nonnosus, para Axum e Iémen. Em ambos os lados foi amplamente aprovada l-R id estabelecendo-se assim as pnme1ras re a~oes amigavels. A .
a proposta e após longas discussões sôbre as comissões e as condições de paga- a en~: e~erceram tais cortesias diplomáticas seu efeito sobre os acon~eomei?-­
mento, finalmente pôde ser encontrado um acôrdo, tendo sido iniciados todos :S diários. A viagem para a Terra Santa parece ter-se torna?o mmt~ ma1s
os preparativos necessários para, com a próxima monção, partir para o Cei- fácil em virtude dessas relações, a ponto de mesmo terem s1d? publicados
lão. Foi então que se constatou que não eram os persas, mas Justiniano e seus ias ara os viajantes. Os "peregrinatores", um grupo ~e .escntores q':'e se
aliados comerciais, que haviam ficado "na mão". De uma ou outra maneira, rocumbia da preparação de tais guia?, inici~lmente s~ limitavam a ahrm~­
os pe~sas devem ter contado com agentes entre as firmas de navegação, os ções categóricas sôbre estradas, distânoas, aloJamentos, ~mpo~tos e taxa~. Mais
negociantes de sêda e os financistas que estavam negociando em Bizâncio, tarde, essas breves notas eram ampliadas com obserya~oes sobre os ~ais.es em
Adulis e Iémen. Pois quando os navios dos himiaristas chegaram ao Ceilão, questão, os seus habitantes, lugares de interê?se, cun~s1~ades e pecuhar~dades
não havia mais nenhum metro de sêda. Os persas e seus agentes haviam geográficas, e assim já então adquiriram mmto da fe1çao de nossas mo ernas
simplesmente comprado tôda a produção e todo o estoque. Nada mais resta- obras do gênero. ·d d -
va aos marinheiros de Iêmen que observar, entre exclamações de raiva, como Tal afirmação é passível de causar .surprês~. Mas n~ reah a ~ .nao er_:
peça após peça e fardo após fardo era embarcado em navios estrangeiros. senão uma volta a costumes muito antigos. P01s que gma_s para v~a1antes.d
Exatamente nessa época, conforme diz Procópio, o mais célebre historiador ·
mclus1ve · um para a v1agem · ate' a Ch'ma, se bem que. , nao
. .nos t1vesse ·s1 uio
dos começos da era bizantina, chegaram a Bizâncio dois monges cristãos, que conservado, e o conheçamos apenas de ouvir falar - F existiam. ~a Antig -
viveram durante muito tempo em Serinda e conheciam o segrêdo da sêda. dade. Aparentemente o Mundo Antigo gostava imensamente de v~aFr. Mmta.s
"Depois de repetidamente interrogados sôbre os verdadeiros fatos a respeito vêzes por exemplo nomes de antigos turistas, que pasmavam d1ante das P1-
da sêda, contaram os monges ao Imperador que o produtor da mercadoria '
râmides, '
encontram-se riscados em blocos d e pe d ~~ d aque 1es túmulos
. dos
ara
mencionada era um tipo especial de verme, cuja natureza era devotar-se in- faraós eo-ipcios Sabemos que existiam guias para VISitantes est.rangeuos p d
· d• · d e " souvemrs" · O gran e
cessantemente à produção da matéria". Os dois monges acrescentaram que Tróia eo·Atenas, ·
assim como floresoa ·
a m ustna
não viam razão por que êsses vermes não poderiam exercer a sua atividade
no Império Bizantino. :eles apenas tinham de ser importados de Serinda.
Não poderiam ser trazidos vivos. Mas os bichos-da-sêda logo poderiam ser
produzidos, já que os ovos de cada geração eram inúmeros."
Justiniano ficou, naturalmente, muito impressionado com tais relatórios.
Imediatamente mandou que os dois monges voltassem a Serinda - não sa-
bemos da exata posição daquele país, mas era provàvelmente o oásis de
Khotan, na parte sudoeste de Sinkiang, onde o cultivo da sêda havia sido
introduzido duzentos anos antes. Alguns anos mais tarde os dois contraban-
distas clericais estavam de volta a Bizâncio. Escondida em seus cajados ocos 60. Mercenários gregos do Faraó Psametico li riscam, por v~lta de 590Na; b<?··
estava enorme quantidade de ovos dos bichos-da-sêda. "Transformaram-se", essa inscrição rude na perna de um dos colossos de Abu S1mbel, na u la.
conforme relata Procópio, "por uma renascença em vermes, que viviam nas
fôl~as de amoreiras. E a partir de então a sêda pôde ser fabricada no ~~­ industrial Flávio Zeuxis da cidade frígia de Hierápolis, que viveu na ~pá~~a
péno Romano." O lugar de produção era principalmente a Grécia, na reg1ao do primeiro imperado; romano, anunciou exp~essamente em seu ep1t 10
do Peloponeso. Em virtude de suas muitas fazendas produtoras de sêda, com que havia realizado setenta e duas viagens à I.tá~~a. Era b~stante n~t_ural q~~
suas amoreiras, era conhecida em tôda a Idade Média como sendo "Morea", alguém, de espírito inventiva, concebesse a 1de1a de g~Ias de. Vla.}antcgu{:
de acôrdo com "Morus alba", a amoreira. há dois mil anos passados. O mais famoso dessa produça? antiga e 0 d
da Grécia, em dez volumes, escrito por Pausânias e publicado por. v o1ta 0
ano 200 de nossa era. Dessa obra uma cadeia prolongada e nunca mterrom-
pida de tais trabalhos leva ao guia moderno. . . . . ue
Com as cruzadas tornou-se gradualmente ma1s ~am~l~ar aqu~la esfm&e q d
era a Asia, ao mesmo tempo que veio a ser mais VISivel. ~tras _dos veu~nsf
areia de seus vastos desertos. Aquêle continente enorme F entao era c -
329
l!28
tler~do a terra _da_ magia _e do sobrenat~ral, ?e maravilhas inexplicáveis à ue favorecem essa teoria. As novas de tremenda derrota que um rei cristão
~azao: A_ tra~sm1ssao de_ mlt~s e lendas onenta1s, especialmente hindus, e sua ieria infligido a fôrças moslemitas chegaram à Europa numa época em que
mfluenCia s~bre a p<;>esia oCiden_tal, o aparecimento na mesma de leõ~s. ser- 05 árabes, em seguida à primeira cruzada, lançavam uma série de contra-ata-
pentes, mágicos, _sabws e marUJOS. que passaram por fantásticas aventuras ques devastadores contra as tropas invasoras européias. No dia de N~~al de
(mo~leladas em Smdbad), que teve mício com as cruzadas, mostra claramente 1144, foi Edessa recapturada pelos maometanos. Era uma perda afhuva, e
a at1t~1de ?<:> europeu, de um tímido e_ maravilhado espanto diante tlêsse mun- em vista da situação desanimadora na Terra Santa, parecia o prelúdio de
d? en1gm_atico ~ estr~nho. Quando fOI observada a pres~nça de fortes influên- reveses futuros. Quando os primeiros rumores vagos e depois as notícias mais
Cias cnstas no Islamismo, quando peregrinos cristãos vi~ram à Terra Santa categóricas da batalhá de Samarkand alcançaram a Europa algum tempo
pro_cedentes da índia, Pérsia, Abissínia e outras regiões distantes, era uã~
m~Is que um passo para_ a gênese dêsse mito semicristão e semipagão de um
m1stenoso Re1-Padre Joao, que vivia entre as enormes montanhas e os ex-
tensos desertos da Ásia Central. Após crucificado Cristo assim afirmava a
len~a: aquêle "que nã~ havi~ visto _a morte" e que, na m'entalidade popular
se ligava ~an~o com_ Sao Joao Batista quanto com o discípulo favorito de
Jesus, havia mcogmtamente penetrado na Ásia, onde fundou, não tocado
pelos anos ou J?ela morte, um imenso reino cristão, do qual era senhor real
e sacerdote mais elevado.
Para o ap_arecimento dessa fábula contribuiu, em primeiro lugar, a visita
ao_ Papa Calo~ to li em. Roma, no a~o li 22, de um pretendido bispo, de nome
Joao, que sena _o Patnarca da :fnd1a e que sabia muita história maravilhosa.
Mas a _!~nela fOI levada _à sua preeminênc_ia ma_is c~mpleta pelo Bispo Otto 61. O estandarte que se supõe do
de FrelSlng, um dos mais célebres e eruditos h1stonadores da Idade 1\Iédia. Presbítero João, de acôrdo com o
Em outono ?e. 1145, Otto ?e Freising foi_ convocado para conferenciar com "Libro dei Conoscimiento", roman-
ce de viagem, escrito por volta de
o .Papa Eugemo III em V~terbo, na I~áha,_ e durante sua permanência na 1350 por um monge espanhol.
Cort_e Pa~al conh~ceu o_ ~1spo de AntiOquia, na Síria. Aquêle príncipe da
Igreja, assim Otto de F~elSlng tr~n~miti,u à poster!dade, contou-lhe que al~uns
anos a_ntes um ~ert? Joao, que VIVIa alem das regiões da Pérsia e da Armenia, depois, a supos1çao de que um soberano cristão havia derrotado os fiéis do
no Onente mais distante, ~ _que e~a _ao m_esmo tempo rei e sacerdote, perten- Profeta Maomé exerceu naturalmente profunda impressão. Aquêle poten-
cendo com seu povo à rehg1ao cnsta, tena lançado uma guerra contra o rei tado estranho e distante, que emergiu vitorioso do combate mencionado, pa-
dos me?os e pers~s, ocup~ndo Ecbátana, a sua capital. Isso soa extremamente recia um enviado de Deus, e assim a lenda pode ter-se originado da mistura
f~ntásttco, mas amda assim uma__ grande batalha travada no Oriente, e pre- de desespêro e esperança.
Cisamente no ano 53~ pela HéJITa (1141), é registrada também em fontes Nessa situação, tornada ainda mais desesperada pelo fracasso da segunda
árabes. Podemos, por Isso, ter como provado que o acontecimento principal cruzada de 1147 até 1148, sobreveio uma sensação de primeira grandeza:
a que se referiu Otto ?e Freising, a grande batalha no leste, · repousa em o Imperador Manuel de Bizâncio, o Imperador Romano Frederico Barba-
fatos d?c':lment_ado~. É JUSto s_upor que a afirmação secundária, que o líder Ruiva, o Papa e outros soberanos cristãos receberam mensagem do Rei-Sacer-
dos exerCit?s vttonosos era cnstão, fôsse igualmente bem fundamentada. dote João! Cartas imperiosas, arrogantes! Pois que os representantes
Ql;lem_fol o ~adre _(ou Presbítero) João? Ainda não foi encontrada qualquer supremos das três grandes potências do momento eram informados de que
exphcaçao sat1sfatóna. É possível que os reis-sacerdotes dos cristãos de São seu poder e sua riqueza nada eram, se comparados com a perfeição absoluta
T?O:é fôssem <;>s ,r~otótipos para o mito, é possível que se referisse aos reis do Padre João!
cnstaos _da AbtsSII?Ia, é pc;>ssível também, e eis a explicação mais plausível, "Se Tu, Manuel, quiseres realmente reconhecer Minha grandeza e Minha excelência, e
que se ligue a yeJm Tach1, c;> l_í~er dos Kara Khitai, um povo turco, vivendo se. 9uiseres saber onde na terra reina a Nossa Onipotência, admitirás e acreditarás sem
ao norte. d_e T1en-C~an em IniCIO do século doze. Parte dêsse povo seguia o du_vtda que eu, o Presbítero João, seja o Rei dos Reis e que supero em riqueza, graça e
cre~o cnsta_o nestonano enquanto a outra parte aderira ao budismo. O Rei ompotência todos os soberanos da terra. Setenta e dois reis pagam-Nos tributo."
Yelm Tach1, que estabeleceu um grande império entre os anos de 1125 e 1144,
era provàvelmente n~storiano. Essa carta procede nesse estilo por páginas e páginas. O Presbítero João
. E~ 1141 derrotou definitivamente os "seld júcidas" maometanos nas pro- descreve minuciosamente os milagres de seu país, as imensas quantidades de
XImidade~ ~e Samar~and. O Turquestão inteiro ficou assim submetido aos ouro, as pedras preciosas que abundam nos nos, o brilho de seu palácio real,
Kara Khttai e acredita-se que Y~liu T~chi tenha estado a ponto de avançar a fertilidade de suas terras e seus jardins - mas também menciona que em
par_a o oeste, COf!JO os hunos hav1am feito antes dêle e Gengis Cã depois. Por seu _país não existia a guerra, nem a propriedade particular e por isso não
ra1ao desconhecida, nunca pôs seu plano em ação. Yeliu Tachi faleceu em havta_ lugar para pobreza, frisando no final da carta que, apesar de sua
1144, e com ê~e desapareceu o vasto império que havia criado. perfeição infinita, seria apenas um padre simples e humilde diante de Deus:
C?nfon:ne ttvem~s ocasião d~ dizer, não está absolutam~nte provado que "Razão pela qual Nossa venerabilidade não permite que seja chamada com nenhum
aq_u~le rei, pretendJdamente cnstão e possivelmente budista, tenha realmente título mais digniricante que Presbítero, o que não surpreenderá a Tua sabedoria. Temos
ongmado a lenda do Presbítero João. Mas existem algumas circunstâncias em Nossa côrte muitos ministros que possuem cargos e dignidades espirituais mais elevadas.
830 331
Nosso_ mordo~o-mor é "'!m primaz e rei, no~so copeiro um rei e arcebispo, nosso camareiro, tratamento amigável da parte de Roma, se reconhecesse tal fato. Eis uma lin-
um btspo e ret, nosso tnnchante-mor um ret e abade. E por isso não convém a ossa alteza gu agem um ta1_1to violenta pa~a quem se jactara de ~eceb:r tributo de se-
ser. cha~ado po_r nomes idênticos q~e êsses com que nosso palácio está saturado. Nossa tenta e dois reis, enquanto reis, duques e condes serviam a sua mesa. Mas
emmên?a, por tsso prefere por mottvos de humildade ser designado com nomes e cargos assim mesmo foi o médico pessoal do Papa, Magister Philippus, que acabava
menos Importantes." de retornar de uma viagem ao Oriente Próximo, encarregado de entregar a
Não ficou esclarecido qual o verdadeiro significado dêsse estranho do- carta de Alexandre III ao Presbítero João. Sabemos que Magister Philippus
cumento. Era geral a suposisão de q~e se tratava da mistificaç~o de um louco. realmente iniciou essa missão diplomática. Mas nunca mais se ouviu falar
Há alguns anos, porém, foi defendida, com arrazoado bem JUSto, a opinião dêle, e tampouco fêz o Padre João falar de si em época posterior.
de tratar-se de uma utopia política, cuja razão teria sido mostrar aos sobe- A profunda impressão que a carta aberta aos soberanos da Europa havia
ranos_as_injustiç_as da_época. ~assim a_f~~tasia da representação e o tom de causado nas populações do Ocidente, reflete-se nas muitas traduções que dela
supenondade nao senam mais que artiÍICIOS para assegurar o melhor efeito foram feitas. A mais importante das versões para o alemão, é aquela do cô-
propagandístico à carta. nego de Metz, Otto von Diemeringen, que procede dos inícios do século qua-
, Realmente ~?i a s~posta_ ~arta do Presbítero João traduzida para tôdas as torze, e que transforma o texto original em uma espécie de livro popular.
lmguas europeias, e mdubitavelmente encontrou assim o autor desconhecido Citamos aqui algumas partes porque, além do mais, fornecem um retrato
a possibilid~d_e d~ indicar, perante o forum de tôda a Europa, quais os de- muito claro das concepções geográficas de um homem culto do século qua-
feitos e a_s m JUStiças de sua época, de forma parecida à concepção de uma torze.
democracia natural, tal como exposta duzentos anos mais tarde por Nicolau Em primeiro lugar existe aquêle distante país de maravilhas da índia, do
Chrrffts, que conhecemos como Nicolau de Cusa. Enquanto o imperador qual haviam ouvido falar os cruzados que voltavam de Jerusalém:
medie~~l! ?e .~côr~o com o c:ostum~ da antiguidade, se deixava reverenciar "A índia é um grande e extenso país, em que existem mais terras que em todo o mundo
com? divmo , afirma o mmto mais poderoso Sacerdote-Rei João que é e restante. Os reis da Babilônia, assim como Xerxes da Pérsia e Alexandre e os romanos para
contmua sendo ente humano, encontrando satisfação, a despeito de seu poder lá dirigiram seus passos."
quase total, em ser designado como simples sacerdote. E enquanto a nascente
economia monetária na Europa estava começando a estabelecer a antí- E depois existe a história do pássaro miraculoso "sidicus", a respeito do
tese, "inspirada por Deus", entre a classe nobre e burguesa, por um qual os cruzados diziam que falava como um s-er humano. Era o periquito,
la~o, e o camponês ~primido e o operá~io d~sprovido de quaisquer di- desconhecido até então no Oeste, do qual escreve Otto von Diemeringen:
reitos pelo outro, sublmha o autor comumsta-cnstão da carta do Presbítero "Ali são encontradas tôda as espécies de produtos, e também o pássaro "sidicus", uma
J ~ão o. fa_to de que~ no imens~ e rico país das maravilhas, situado no Leste, espécie maravilhosa de pássaro. E entende o falar humano: êsses pássaros conversam e res-
nao existia a propn~dade particular porque tudo pertencia a Deus e seu su- pondem corretamente como sêres humanos, tão inteligentes são êles. (... ) O pássaro é verde
premo sacerdote. E fmalmente, enquanto a guerra, a dissensão, a inveja, o as- em todo o corpo, com exceção de pés e bico, que são vermelhos, e tem longa cauda e uma
fita vermelha em tôrno do pescoço. Possui uma língua parecida com a humana, sendo
sassinato e a violência dominavam na Europa do século doze, estavam às terras comprido e magro, não muito maior que o pica-pau ... ".
do Presbítero João em um estado de perpétua paz e tranqüilidade salvaguar-
dadas pela lei e livres de qualquer temor excetuando o do Deu~ Todo-Po- Depois dessa e outras divertidas historietas nos capítulos introdutórios, co-
deroso. meça Diemeringen a tratar do tema em si:
Assim, foi o autor desconhecido dessa epístola misteriosa capaz de proje- "O Padre João governa sôbre uns setenta e dois reinos, que também são governados por
~ar na arena sangrenta _e turbulenta de sua época a imagem de um soberano senhores de importância; (...) Padre João tem sua morada no país de Pentexoria, assim como
Ideal, tal como era ansiosamente desejado pela Idade Média. Se a tese, aqui o ~rande Cã em Catai, e sempre tem como espôsa a filha do Grande Cã. Mora durante o
brevemente ad~zida, fôr ~orreta, podemos entender porque a carta era en- maw~ espaço de tempo numa cidade chamada Susa, e sempre tem a seu redor uns doze
dereçada aos tres antagomstas do século doze: Fredenco Barba-Ruiva o Im- ar~e~tspos e vinte outros bispos, todos homens poderosos, reis e príncipes. E há muitos bons
pera_dor Bizant~n? e o Papa, e porque apenas o último dêsses três s~ sentiu cnstaos entre seus palacianos e em seu país, que acreditam na Sagrada Trindade, se bem
q~e não acreditem em muitos dos nossos artigos de fé. Também não sabem muito sôbre a
mchn_ado a redigir uma resposta. Pois que os dois maiores potentados secula- cristandade, nem sôbre nosso credo ou nosso Papa. (...) Têm um patriarca, como nós temos
res. nao der~m qualquer_ resp~sta_ ao chamado Presbítero João. O Papa po- um _papa, e a êle obedecem e também o Padre João. (... ) E quando êste vai guerrear, nada
deira ter agido de maneua Identica; o fato de, muito pelo contrário, redigir senac;> uma cruz, feita de madeira, é levada diante dêle, o que êle faz em virtude de sua
e?'tensa r~sposta, parece sugerir que reconheceu seu caráter de programa polí- hum1ldade reverente e também levam diante dêle uma bacia de ouro, cheia de terra. (... )
tico utópico. em reconhecimento de que seu domínio é terreno e que seu corpo terá de apodrecer na
Em 1177 o Papa Alexandre III escreveu longa carta ao "Magnificus Rex terra, por mais poderoso seja êle como soberano. O que evidencia grande sabedoria."
Indorum, Sacerdotum sanctissimus", ao Presbítero João, embora não conhe-
D~pois dessa descrição do próprio Presbítero João e um relato das coisas
cesse o seu enderêço e ninguém fôsse capaz de lho revelar. O Papa teve de
escrever essa carta, porque a circulação tremenda do manifesto do rei e padre precw~as que possuía em seu palácio, Otto von Diemeringen fala acêrca das
mar~vllhas da Asia. Refrescante ingenuidade paira sôbre tudo que escreve
o ~o1_31peliu a firmar os_ princípios básicos que haviam regido o Ocidente
Cnstao durante quase mil e duzentos anos. Mas mesmo o Vaticano não parece ° Conego de Metz:
ter emprestado muit_a importância diplomática a essa carta. É redigida de d "No país do Presbítero João há muitas terras estranhas com muitos estranhos costumes
forma um tanto. ma~Iça, ~ !?ostra bem_ c~aramente ao longínquo e misterioso . e parte de pessoas e animais, e em uma extremidade de seu país existe um mar de areia,
I. _é, um mar coberto inteiramente pela areia flutuante, e existe tanta areia tão profunda, que
remetente da pnmeira missiva que existia apenas um sucessor de São Pedro, nao se sabe ao certo se existe água por baixo ou não. Em alguns lugares há animais na
o Papa de Roma e que êle, o Padre João, somente poderia contar com um
333
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em todos os lados, por onde quer que se ouça a_ voz de Avignon, tir~m
areia, que se parecem com peixes sem sere~Il: iguais a peixes. E são agradáveis no sabor. os seus bonés, enquanto mulheres e cnanças cruzam as maos
!.sse mar estende-se até os desertos da ind1a, de modo que ninguém pocle at a • (-)
. â · d • 1· I · r · vess1.. -1o• A
dt 1sth nCia e tres
d cd1as <e v1agem, na floresta virgem e no deserto ' fica uma cad ela <e mon. rezar. · ·d ·
an as, corren o as montanhas a água em que existem pedras preciosa~ , como ·:1 des- Aconteceu um milagre! Um milagre i!lcrív.el. E,, rap1 <? como u~ ra:o,
creve?'los. E r~:a. além das águas estende-se vasta planície, tôda ela de areia. Esta /de tal correu a notícia das ruas tortu?sas da _anttga cidade as aldeias . e aos vilareJOS
espéCie que d1anamente, logo que o Sol desperte, pequenas árvores surgem da terra e • "nhos: 0 Grande Cã da Chma enviOu ao Papa uma embaixada, da qual
crescem enquanto o sol as banha com sua luz, desaparecendo até a manhã segu1'nte
se r·oe. o as t_ro-re1.. E. ass1?'1
. por d'1ante. (...) Ex1stem
.
d ;:~icipam 0 Frade A_ndré e quinze príncipes tár~~ros. E no instante .em ,9ue
muitas de tais maravilhas no. deseno<luan o
sinos repicam, o smo profundo e sonoro de Notre Dame du Dome.' o
~ambem ex1stem ah _mmtos povos selva~ens, usando chifres na cabeça e não conhecend~ 01
lmgua alguma,·- grunhmdo e rosnando fe1to porcos. Há muitos "sidicus" • isto é , penqmtos,
· · ino alegre de Santa Maria e o sino um .rouco ruidoso do Hôtel de Vllle,
na .
me:-ma regmo, que voam para JUnto dos lavradores no campo falando com os mes estão os embaixadores penetrando pela cidade.
Cl_'mpnm~ntando-?s com o linguajar apropriado, como se falasse~ lfngua humana. o ;::.:: Em primeiro lugar a guarda muni~ipal, depois os gua~das do_ Pap~ •. Bene-
b1ter? J<;>ao P?SSUI também montanhas de ouro e de outros metais; ali os ratos, as formi dito XII e depois, sob um baldaqmm de seda, os mawres digmt~nos do
e a~nmats vános escavam o ouro, de tal modo que é encontrado belo e puro sem que ~ clero - assim dirige-se a longa procissão lentamente pelas ruas e~treitas, cru-
cesslle de trabalho tão árduo quanto em nosso país ... "
zando a estreita ponte de Saint Bénézet para alcançar o PaláciO Papal. E
ei-los: O Frade André, de cabeça humildemente curvada, levando uma vela
Col'I! essas palavras concluímo~ o que Otto ~on Diemeringen tinha a rela- na mão, e atrás dêle, em longa fila, os tártaros - todos êles usando estranha
tar. Ve-se pelas J?esmas que mmtas lendas anugas, como por exemplo a dos roupa de sêda pesada, coberta de gemas e pedras preciosas. ~oh altos bar~etes
ratos e das formigas Q:Ue "e:_cavavam ouro", se misturam com elementos mo- pontiagudos mostram maçãs de rosto ressaltadas e olhos obhquos, os quais de
d_ernos, tal como a afumaçao que o Presbítero João tinha por espôsa uma vez em quando repousam sôbre a multidão que espera ali, sôbre os muros
filha d? Grande Cã. Encontram-se também certas observações de História Na-
tura~, u~formaçõ:_s geomorfológicas, c<?mo aquela do mar de areia hindu -
que protegem a cidade, junto ao. ri~ espumante.. . . . _
a pn~eira me_nçao dos desertos da Ásia Central com suas dunas de areia em No paço, diante da entrada pnnCipal do paláciO, dtvide-se a proCI_ssao. O
P.erpetuo movimento.- e tudo isso encimado pelo ponto de vista de Dieme- clero passa para ? centro, os guardas. com seus uniformes novos e b~Ilh~n tes
nngen, de .9ue os r~Is e potentados dêste mundo não são mais que mortais: (ormam um semicírculo, os smos deixam de dobrar. Monge Andre d_a um
uma acepçao essenCialmente democrática, que claramente faz vislumbrar o passo para frente e, no silêncio profundo e solene que agora envolve a c1dade,
futur? com seus conceitos sôbre os Direitos do Homem. ressoa sua voz, solicitando admissão ao palácio:
A enf_ase dessa narra~iva repousa sôbre algo muito diferente daquilo que "Com o poder do Deus Todo-Poderoso! Eis a ordem do Imperador dos Imperadores:
cara~tenza Cosma~ Indicopleustes ou o Monge Fidélis. Para Otto von Die- •Mandamos Nosso emissário, o franco André, e quinze companheiros por sôbre os sete
menngen a própna Terra, com suas maravilhas e suas imensas extensões e mares ao Papa. o Senhor da Cristandade, no pais dos francos, Terra do ~oi ~oente, c<;>m
as aventuras que sucedem ao viajante que nela se encontre, são por si mes~as o propósito de podermos enviar ao Papa, e o Papa a Nós, frequentes em1ssános e a fim
de que Nós próprios solicitemos ao Papa que Nos envie sua bênção e de Nós se recorde
s~rpreende~t~s e merecem ser relatadas. :tsse modo de ver é inseparável do ~ suas santas preces. E que os alanos, Nossos servidores e filhos cristãos do Papa, lhe
fiO democrauco q:ue se est~~de através de sua narrativa, pois que novo tipo RJam recomendados."
hu~ano e nova au_tude ~spmtual se esta_vam evidenciando na Europa. E ainda
a~sim Otto von J?Ie"?-enngen pertence mteiramente à Jdade 1\fédia. Ao lado Frade André fez uma pausa. A passagem seguinte da carta do Grande Cã
de~ses poucos episódiOs de I;>rilho estranho, que ressaltam em sua narração, Shun-ti (em mongólico Togan Tiinur, 1332 a 13i0) n_ã? se de~tinava à de-
existem longas pas~agens, tais c?mo poderiam ter sido encontradas em qual- clamação pública, mas sim ao olhar pessoal do Papa. Dma respeito, como era
quer romance medteval de magia e, por isso, aqui não nos dizem respeito. do conhecimento do frade, ao ardente desejo pessoal do potentado. "Possa-
Apesar de todo desapontamento que o legendário Presbítero João infligiu à mos nós receber também da Terra do Sol Poente cavalos e outras coisas ma-
Eu~opa qu_e o aguardava, a esperança de que poderoso potentado cristão ravilhosas", havia Shun-ti acrescentado ràpidamente à carta já concluída. A
esttv~sse rema~do ~m alguma ~arte da ;Ãsia viveu por longo tempo. Mesmo frase era uma interpolação um tanto brutal entre o texto solene da carta
dep<?IS ?a pubhcaçao _das nar~auvas de ~1agem de Marco Pólo, afirmando que e a subscrição sêca e oficial do documento inteiro: "Redigido em Cambalec,
o rei d~s~e nome havia mor~Id_o há J?Uit<? tempo, não esmoreceu a esperança no ano de Rati, no sexto mês, terceiro dia da Lua Nova.
de auxiliO por _par~e dos cnstaos onentais. O Ocidente continuou aguardao· Foi escrita em julho de 1336, dois anos haviam passado, portanto. O Frade
d~ o grande rei onental até o século quinze, quando, finalmente, também o André estava bem lembrado. Por isso estava êle agora em Avignon, d evendo
rei-sacerdote encontrou eterno repouso. ver - poucos instantes depois - Sua Santidade, o Papa. E depois! atrás dêsses
m.uros altos e ameaçadores, lerá também a segunda carta que amda leva no
bol~o, a carta dos quatro alanos, nome dado aos príncipes cristãos da Mon-
gólia:
5 NCom o poder do Deus Todo-Poderoso e em honra do Imperador, nosso amo!
'ós, Futim luens Caticen Tunuii Gemboga Evenzi e João Yukoy, de fronte abaixada
ê 1erra e beijando os' seus pés, apresentamos
o·' .
saudares ao Santo Padre, nosso Papal Suph-
Todos os sinos tocam. ~~os por sua bênção e sua graça e pedimos que nunca nos esqueça e~ suas santas pre~P.s.
Suas. vozes pla_ngente~ ressoam na cálida tarde, e são ouvidas em regiões ~:Ilha Vossa Santidade que, durante muito tempo, recebemos mstruçao do clero catóhc_o,
~~!? dtstant~s. Sa<? os smos de Avignon. Avignon, a cidade papal chama os que fomos guiados muito bem e grandemente consolados por Vosso legado, Frade Joao
fieis nesse dia de JUlho de 1338.
335
334
Goão de Monte Corvino, Arcebispo de Cambalec), homem forte, santo e paciente. Mas êle
faleceu há oito anos passados, época desde a qual estamos sem pastor, sem confôrto espiritual.
Teríamos ficado contentes em saber que Vós enviastes outro legado. Mas êsse, até agora,
não foi designado. Solicitamos-vos, pois, que assim façais enviando um legado bom, paciente
e sábio, capaz de cuidar da salvação de nossa alma. E que êle vá ràpidamente, porque nos
encontramos em lamentável situação, sem líder espiritual e sem consôlo. Ao mesmo tempo
imploramos à Vossa Sabedoria envie uma resposta amiga ao Senhor nosso Imperador porque
então, como é do próprio desejo dêle, o caminho estará aberto, livre e conveniente para
embaixadas que freqüentemente poderão ser enviadas de Vós a êle e dêle a Vós, a fim de
que a amizade possa reinar entre Vós e êle. Para tanto cuide Vossa Santidade em que êle
receba uma resposta definitiva e uma embaixada, de acôrdo com Vossa Santidade, porque
os cristãos são muito honrados naquelas partes do mundo, mesmo que mentiras e traição
possam às vêzes ser encontradas.
Escrito em Cambalec no ano de Rati, no sexto mês e terceiro dia de Lua Nova Gulho
de 1336)."

Eram duas cartas altamente ingênuas aquelas que o Frade André ficara
encarregado de entregar. Não era êle certamente nmguém que pretendia ilu-
dir a boa-fé alheia, e seus companheiros chineses, de pele amarela, não eram
certamente negociantes chineses procurando obter acesso ao Papa Benedi-
to XII sob falsos pretextos. A nota, ràpidamente interpolada por Shun-ti, no
sentido que êle gostaria de ter alguns cavalos e outras coisas maravilhosas da
Terra do Sol Poente - puros-sangues árabes, naturalmente, já que Cambalec
abundava em pequenos cavalos mongóis - é obviamente a expressão genuína
de um desejo intenso da parte de um homem que tem uma paixão por cava-
los; ela deve ter sido acrescentada pela mão do próprio Grande Cã.
E o tom submisso da carta dos príncipes alanos, inegàvelmente influencia-
do por sua própria experiência da onipotência do Estado, indica claramente
que o potentado mongol foi o autor desta missão.
Esta embaixada dos tártaros não veio de maneira completamente inespera-
da. Desde o aparecimento do mito do Padre João, isto é, desde 1150, papa
após papa tentou descobrir o pretenso soberano do Extremo Oriente. Em
meados do século doze a Ásia era, por assim dizer, a "moda" na Europa, da XXXI. o tráfego terrestre e marítimo com a Ásia Oriental na época mongol.
mesma maneira que a China em fins do século dezoito ou o Japão em fins
do século dezenove e inícios do século vinte. Não obstante, a decisão do Vati- Era essa a posição quando a decisão foi tomada pel.a Cúria, :m iní:ios. de
cano de entrar em relações com as potências orientais, não era devida nem 1245 de estabelecer contato com os dirigentes mongóis. Tal açao havia sido
a alguma "mania" passageira e nem ao acaso puro e simples, mas a cálculos
políticos de grande significado. Foram essas as razões que determinaram o manifestamente considerada como muito importante. Quatro ~u~os se~ara­
Vaticano a empregar um dos seus melhores homens para essa tarefa, o fran- dos foram enviados, para trabalhar em l~nh~s paralelas. ?.
pnmeiro f~I ~n­
ciscano João de Plano Carpini. Na primavera de 1245, recebeu Plano Car- viado por Plano Carpini. Sua tarefa era ~nteirame.nt.e rohuca e se'! objetiVO
pini instruções para chefiar uma embaixada papal à Côrte do Grande Cã Caracorum, a capital de verão dos mongóis e a residencia do própno <:rar;de
dos tártaros e estabelecer relações de amizade com os mongóis. Cã. O segundo grupo foi chefiado por Lourenço de Portugal. ~a~bem. este
Não. se sabe se ou até que ponto Carpini conhecia os propósitos funda- deveria dirigir-se a Caracorum, mas sua tarefa er~ puramente mtsswn.á:_Ia. A
mentais de sua missão. Mas sendo diplomata de longo tirocínio, não acre- sorte dêsse grupo não foi documentada. O terceiro grupo, da e?'-pe~hçao da
ditamos que não os tivesse conhecido. No verão do ano anterior, em meados Asia Oriental, dirigido pelo Frade Anselm?, _era dele&ado ao pnme.tro gene-
de agôsto de 1244, Jerusalém havia mais uma vez caído em mãos dos infiéis. ral tártaro que pudesse encontrar nas v~sudao do Or~ente. Por mew . de n:-
As coisas estavam indo de mal a pior para a causa da cristandade na Terra gociações deveria obter dêle o compromiSSo de que nao se empenhana II_lais
Santa, e também na Europa Central estava o Papa em sérias dificuldades. Por em futuras campanhas contra a E_urop~. Fina~mente,. o quarto grupo, h~e­
isso mesmo tinha boas razões para procurar entrar em contato com potência_s rado por André de Longjumeau, unha mstruçoes, asstm como o .grup~ dOis,
extra-européias. Um fator nessa decisão foi, sem dúvida, a esperança de inci- de executar trabalho missionário entre os pagãos. ~as seu desuno nao. era
tar os mongóis, inimigos declarados do islamismo, a combater os seguidores Caracorum e sim, semelhantemente ao que acontecia com o grupo tres, o
de Maomé, aliviando assim a situação no Oriente Médio. Não havia passado primeiro acampamento do exército m~ngol ~~e. fôsse capaz de en.contrar.
muito tempo desde que um exército de Cavaleiros Teutônicos houvesse sido João de Plano Carpini foi o primeuo a ~n~ctar a sua ~o~ga vtagem, par-
aniquilado pela cavalaria e artilharia dos mongóis, muito ao norte dos Alpe~, tindo no domingo de Páscoa de 124.5. ~ari:mi, um dos disCipulos e adeptos
nas terras do leste que acabavam de ser colonizadas. Que tal se os mongÓIS mais ligados a São Francisco de Assis, 1a nao era moço. Quando recebeu as
pudessem agora ser enviados contra Bagdá?
337
336 22 Conqu ista Mundo
:Essas palavras podem ter constituído um eco do tipo de reflexão filosófica,
instruções papais, no sentido de empreender essa d" - ·á · tio característico da Ásia. Mas a carta tem também um caráter quase nacio-
sessenta
· d anos. Mas .era . indivíduo muito vi·a·ad
J o, expe Içao, J tmh_a
e acostumado mais •de
às mco
Clas a sorte em tais viagens. Serviu à Orde F . . nstan- nalista, ou pelo menos uma oposição claramente manifesta ao arrogante Oci-
S~xônia, Bo~mia, Hungria, Lorena, Norue ~ e r~~c~~ana sucessivai?ente na dente, tal como desde então se fêz ouvir no Oriente muitas e muitas vêzes.
nente. PareCia, por isso, predestinado ara s~a nov p ha. e era _muito expe- Diante de tal atitude, a missão de Carpini estava fadada ao fracasso, e no
de responsabilidades. Cruzou a Boêm~a e a Pot• ~ emresa pengosa e cheia que diz respeito a se~s. propósitos político-teológicos iniciais, de fato f~lho_u.
lá passou, atravessando os rios Don e Volg om~ a cançando Kiev, e de :Mas foi coroada de exito por ter revelado que, com sorte razoável, tais via-
Grande Cã Kuyuk, o neto de Gen is Cã e~~a~ara aratov. Lá so~be que o gens longas poderiam perfeitamente ser empreendidas; em outras palavras,
que ficava a sudoeste da moderna Ôr a , a em Caracorum, cidade essa que o bloqueio árabe da rota para a índia poderia ser rompido mesmo por
O mais rápido que pôde, seguindo o !a~fna~o~on~nha~ d~ O~khon superior. viaDepois
terrestre.
através do qual seria possível ossuind o orrew sta ual ~ongol - de dificílima viagem hibernai, Carpini voltou à Europa. Deve ter
diretamente de Kiev para Ca~&o C o o_s _do~u!llentos necessános, viajar chegado à côrte papal de Lião, em novembro de 1247. Sob a luz de suas im-
mente trocados através da Ásia em ~ed arp~m viaJO~ em cavalos continua- p,ressões e as informações que trouxe consigo e descreveu vivamente em sua
?a Porta Dzungariana à _capita'l de ver~~ d~ ~~r;~de o C~ ar Aral, e através 'Historia Mongolorum", deve ter parecido muito duvidosa ao Vaticano a
JUStos. Lá chegado, em fms de agôsto de 1246 t h em quatro meses questão de saber se as tentativas de estabelecer uma ligação com a nova
Kuyuk com · d • estemun ou a coroação de Grande Potência asiática poderiam ser coroadas de êxito. Outros príncipes
a m~nsagemo d~o~~~~pera or mongol, sendo finalmente capaz de transmitir europeus preencheram, porém, a lacuna que essa hesitação do Papa havia
causado. Seis anos mais tarde, no inverno de 1253, o Rei Luís IX da França
me!lte, desfavoráveis. O c~laborador m~is ~i s~J miSSao nao eram, absoluta-
VIstas por certo ângulo as condiçõe d . - - enviou uma embaixada ao Grande Cã em Caracorum, talvez inconsciente-
aSSim como alguns de seus médicos g o a K_uyuk, de ~o~e Cadac, mente, tentando prosseguir na velha política francesa de ampliar sua esfera
os mongóis indiferentes ou mesmo te 1um dos generais, era~? cnstaos, sendo de influência, através da conquista de amizade com povos orientais longín-

~~~;~~ ~~~Wa~: i~~r!~~~~~es~as c~~1~~:;:s %~ aJ~~:~: á~~~~~~ ~ ~~i~!~~


quos e mantendo boas relações com os mesmos, por mais estranhos fôssem
seus costumes e crenças à França. Nos dias de Carlos Magno era Harum-al-
cristãos, tendo levado milhares Jeseus. _Imit_es, vm?o_ a mclmr m~itos povos Raxid, agora o Grande Cã!
Ásia. Assim por exemplo enc t pnswneiros cnstaos para o mterior da Esta missão foi comandada pelo franciscano flamengo Guilherme van
montanhas Altai de Dzun, . on raram os e?viados papais em Talas, nas Ruysbroek, um indivíduo de disposição fria e calculista, que não deve ter
na mineração do ouro e n~a[;~· _um_grande numero de alemães trabalhando ficado muito contente com essa tarefa, especialmente por ter sido conhecido
aparentemente de uma aldeia ~f~ç~ro de armas pax_:a _os mongóis - tratava-se pessoal de André de Longjumeau, missionário do Papa aos pagãos, acima
mente E a própria C ei a da Transiivama, transportada inteira- mencionado, que lhe deve ter relatado qual a verdadeira situação em Cara-
ses e a.lemães que aí h~~-~orum estava repleta de franceses, flamengos, inglê- corum. Por outro lado, estavam sempre chegando informações mais ou me-
que também' ali o tráfe~oa:: ~~\ s~~s seto;es próprios. Devemos pois supor nos autênticas, afirmando que êste ou aquêle príncipe mongol era cristão.
freqüente do que nos faz saben Iat Jd. e!ll epocas remotas era mais denso e . Parece que vários membros da classe governante mongol haviam sido ba-
. r a ra Içao. tizados. Mas êsses "cristãos" obviamente consideravam o batismo como uma
A ssim sendo, o cristianismo
ordenado que "na Lei Divina era nã behm co,nh ~ci"d o d os tártaros .. Kuyuk havia espécie de profilaxia contra os espíritos maus, sem terem entendido coisa
mê_nio, nestoriano, jacobino e tod~ o:"J;~a~Iferença entre lati~~·- grego, ar- alguma do significado íntimo dessa elevada filosofia religiosa. Em outros
POis que entre nós todos são · ... A . IS que seguem a rehgiao da cruz. c~s.o~ eram tais "cristãos" simplesmente budistas, tendo observadores super-
. Iguais. ssim mesmo porém o d . ÍICiéHS do Ocidente sido iludidos pelos muitos pontos de contato que existiam
e aracorum, unha aspecto be d"f .• , mun o, VISto
diversos milhares de altos di · m. I erente ~o visto de Roma, e entre os
d C
entre essa doutrina e o cristianismo.
do Grande Cã - . I . d &_rutános que haviam convergido para a capital Seja como fôr, Guilherme van Ruysbroek partiu para o Oriente em 1253.
turco~, _persas, co~~~nu;~ c~fn:~~~u~~~[~~soJigne~ti~s~riod
1 0
do C~lifa de ~~gdá, Ta':flbém êle viajou através da região do Mar Aral e através da Porta Dzun-
gariana, isto é, ao longo da rota setentrional das caravanas. Sua meta original
Carpmi não era senão um entre' . anos o nente Medw -
e entendida como sendo uma da~~I~s, e . a ;ersage!ll do Papa foi recebida era a terra fértil do Volga inferior, onde o príncipe mongol Sartak, pretendi-
por que respondeu Kuyuk: a Ituais ec araçoes de homenagem. Daí d~mente cristão, deveria residir. Ruysbroek encontrou Sartak, mas êsse o en-
VIou para seu pai, Príncipe Batu, em Saratov, que por sua vez o recomendou
ao Grande Cã em Caracorum, declarando tanto Sartak quanto Batu que
"Por issoE terás de vir, na d~v·d
tu mesmo à testa d e tod os os teus re1s,
. e provar-nos tua fidelidade
e aliança. se não tomares
o a~sunto a tratar estava além de sua autoridade. Aquêle não impressionou
instruções, considerar-te-emas como ~ a co~t~ ~ ordem de Deus e desobedeceres às nossas
ao Filho de Deus e Senhor do M ~sso m~~ugo. Qu~m quer que reconheça e se submeta mUito bem Ruysbroek, que anota em seu relatório:
submissão será eliminado." un °' 0
rande Cã, será salvo, mas quem recusar sua . "~ão sei se Sartak acredita em Cristo ou não. Sei, porém, que êle não deseja ser chamado
cnstao. A mim parece que se esforça por ridicularizar os cristãos ..."
E Kuyuk continuou: N Ruysbroek confirma, contudo, que havia muitos cristãos na Ásia Central.
o dia de Santo André, a 30 de novembro de 1253, assim informa, alcançou
prezando os outros. Como sabeis uem' :~s con~t era~s como sendo os únicos cristãos. des·
"Vós, habitantes de terras ocidentais .d .
u_ma aldeia nas proximidades de Cailac (Kopal em Semirechinsk), onde exis-
graça? Quando dizeis para vós pró~rios' "S con~td~raçao de J?eus, merece participar de Sua tia uma igreja nestoriana. "Entramos e com alegria entoamos o "Salve Re-
como sabeis a quem Deus considera m' oudcnsdtao,Srezo e strvo a Deus e odeio os outros",
erece or e ua graça?"
339
!138
gina", pois há muito tempo não havíamos visto uma igreja." Mas êle tem 0
bom senso de não tirar qualquer conclusão dêsse fato, e não defende o ponto 6
de vista de a Ásia ser, fundamentalmente, uma região cristã. Em fins de
dezembro de 1253 chega à côrte de Mangu Cã, neto de Temujin, o Grande Um êxito importante foi, no entanto, obtido por tôdas essas emprêsas que,
Cã reinante, que recebeu a delegação cristã de maneira amistosa. Em maio de outro lado, se mostraram tão improdutivas: a Ásia Ocidental e Central
de 1254 realizam-se longas discussões entre os representantes dos diversos cre- tornaram-se mais conhecidas na Europa, e gradualmente se colocaram ao
dos representados em Caracorum, no curso das quais Mangu Cã condescende alcance das operações de grandes negociantes. À frente de todo êsse comércio
em receber o monge flamengo, e com êle conversar durante algum tempo com a Ásia estava a cidade de Veneza.
sôbre assuntos relacionados à religião. Mas tudo sem qualquer resultado pal- A bela cidade da laguna estava na época, por volta de meados do século
pável, e o relatório de Ruysbroek faz com que o leitor tenha a impressão de treze, no cume do poder. Iniciara sua existência como aldeia de pescadores,
que o autor bem entendia que um soberano, da onipotência de Mangu Cã e nem mesmo sobressaía por uma posição natural muito favorável. Durante
considerava as diferenças religiosas entre católicos e nestorianos, entre judeus, as invasões de hunos e lombardos, realizadas nos séculos cinco e seis de
maometanos e budistas assunto de somenos importância. Pelo menos reco- no sa era, passou a ser local de refúsio para a população urbana de Venetia,
nhecia que nas distâncias enormes da Ásia as coisas deveriam ser medidas de de tal maneira que uma camada social mais elevada se impôs ao substrato de
maneira diferente da Europa, q_ue mesmo naqueles dias era já oprimida por pescadores primitivos. As guerras entre lombardos e bizantinos beneficiaram
uma infinidade de memórias históricas. Ruysbroek conclui suas informações Veneza, permitindo-lhe grandes proveitos materiais. Já no século sete cons-
com a frase fria e objetiva: truiu a cidade uma frota, que logo se desenvolveu em considerável fator de
poder. Era inevitável que o comércio do Mediterrâneo lhe fôsse cair nas mãos.
"Parece-me inútil que algum irmão novamente viaje até a terra dos mongóis, da forma Negociações inteligentes com Carlos Magno fizeram com que Veneza obtivesse
como eu e os dominicanos realizamos essa viagem."
também, dentro de muito pouco tempo, influência predominante no co-
mércio da Europa Central e Ocidental.
O dom de observação calma, que caracteriza Guilherme van Ruysbroek As cruzadas contribuíram para ainda aumentar a influência de Veneza e
na discussão de assuntos religiosos, não o abandona em outros domínios que, torná-la a indisputada "Senhora do Adriático". O conflito constante entre
indubitàvelmente, lhe eram menos familiares. Era natural que êle reprovasse imperador e papa forneceu à cidade da laguna, com sua diplomacia superior,
os costumes algo levianos dos cristãos nestorianos, por estranhar o costume uma oportunidade para reforçar sua posição soberana, como já acontecera
central-asiático da poligamia, que havia sido estabelecido no Reino do Cen- quinhentos anos antes, durante as disputas entre bizantinos e lombardos. Sua
tro em épocas mmto remotas. Em virtude do espírito de sua época é com- influência estendeu-se logo ao Egito e ao Mar Negro, assim como à parte me-
preensível também que não tivesse uma boa palavra para os maometanos. ridional da Rússia, os dois pontos mais importantes para o comércio com
Mas, apesar disso tudo, não deixou de notar que se encontrava em um rei- a Ásia. Negociantes de Veneza encontravam-se na Criméia e em Tana, no
no ordeiro e disciplinado. Ficou espantado com a pontualidade e a rapidez
do tráfego nas grandes estradas imperiais dos soberanos mongóis. Mas, dife-
estuário do Don - a primeira, posição-~have para o trigo_ ?o _Sul da R~~si~,
e a outra, a saída da antiga rota comercial que, conforme Ja vimos, se dingia
rentemente de outros viajantes ocidentais, não se sentia à vontade no país ao interior da Rússia e à Sibéria. Mas os venezianos estabeleceram-se também
do Grande Cã. Quanto ao seu primeiro encontro com os tártaros, por exem- em Sinope e Trebizonda, na costa da Ásia Menor do Mar Negro. Aí_ termi-
plo, escreve êle: "lnvenimus Tartaros, inter quos, cum intravi, visum fuit nava um bom número das mais importantes rotas de cara_vanas da Ás~a. C:en-
mihi recte quod ingrederer quoddam aliud sceeculum." (Encontramos os tár- tral ao Oeste, enquanto parte considerável das mercadonas que se dingiam
taros. Parecia-me, logo que me encontrei entre êles, que havia penetrado em do Gôlfo da Pérsia ao noroeste chegava a essa parte. Veneza era, enfim, o
século diferente). E quando havia passado são e salvo pelo primeiro grupo de grande mercado do comércio mundial. Pois o que ali chegava do Leste era
tártaros que o inspecionara, suspirou aliviado: "Visum fuzt mihi, quod eva- distribuído e ehviado para o Norte e o Oeste pelos armazéns e firmas co-
sissem de manibus daemonum". (Sentia-me como se tivesse escapado das mãos merciais da cidade no Lido. Se a dona de casa de Augsburgo ou Nuremberg
de demônios). Podemos julgar dessas afirmativas que foi necessário empregar ou Estocolmo era capaz, naquela ép?ca, de comprar d_e seu merceeir? pimen-
bastante coragem para, voluntàriamente, se entregar nas mãos dos tártaros, ta, malabar, condimentos árabes, mirra da mesma ongem, arroz chmes, aça-
mesmo como enviado especial e sob proteção diplomática. Grande número frão italiano ou espanhol, canela do Ceilão e outros produtos da Ásia e da
de viaj antes, muitos dos quais missionários cristãos, pagaram essa ousadia Áfric~, devia parte considerável dessas mercadorias às atividades comerciais
com a vida. Assim mesmo, Guilherme van Ruysbroek trouxe muita informa- venezianas.
ção valiosa provando, por exemplo a existência de papel-moeda na China, . Era de esperar que representantes desta primeira cidade _do comércio :_nu~­
que o Mar Cáspio não era uma baía do Oceano do Sul mas um enorme dial aumentariam agora a corrente de viajantes para a Ásia. A concorre~oa
mar interior, que o alfabeto chinês não consistia de letras, mas de símbolos, co~ o~tras cidades italianas obrigou-a a continuar ativa. !vfas. apesar _d1s~o,
e outras coisas mais. o~ 1:maos Nicolau e Maffeo Pólo, que eram donos de .UI?a fei~ona n<l: Cnmé;a,
Os propósitos missionários de Ruysbroek não foram, porém, levados a VIapram para a Ásia, por razões puramente comerCiais e nao sob mstruç~es
têrmo feliz. Pelo contrário, Mangu Cã fêz com que o "diabo ocidental" en- de seu govêrno. Iniciando sua viagem em 1255, não tinham qualquer m-
tendesse em têrmos absolutamente claros que qu anto antes retornasse para t~nção de dirigir-se à China. Estavam à procura de uma reunião com o prín-
sua pátria tanto melhor. Assim sendo, a delegação do rei francês não obteve Cipe mongólico Barca, que mantinha sua sede de govêrno ora e_m Bulgar e
êxito melhor que a delegação papal. Por isso foi abandonada, durante algum ora em Sarai, duas grandes cidades no Volga. De fato consegmram chegar
tempo, a idéia de trabalho missionário extenso na Ásia distante. até a côrte de Barca, mas, quando pretendiam voltar, o destino !fiUdou seus
planos. Havia irrompido uma guerra entre Barca e outro príncipe mongol,
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e uma vez que o percurso em estradas para o sudoeste se havia tomado algum asiático. Mas é necessário não esquecer que a Ásia, em todos os tem-
perigoso para os dois venezianos, iniciaram êles uma viagem para o sudeste ~· seguiu linhas de pensamento categoricamente diferentes das adotadas
chegando a Bucara. Ali se reuniram a uma embaixada que se dirigia para pela Europa. Já sabemos que muitas pessoas do séqüito imediato do impe-
a côrte do novo Grande Cã, Kublai. rador mongol eram cristãos batizados. Mas êste fato não exerceu influên-
Nicolau e Maffeo Pólo chegaram a Bucara por volta de 1260, um ou dois cia perceptível sôbre a linha política da grande potência asiática.
anos mais tarde chegando a Cambalec, a moderna Pequim, para onde Kublai De qualquer forma, depois da deserção dos dois clérigos, tiveram nossos
Cã havia transferido sua capital. Principiaram o retômo em 1265, chegando três venezianos de prosseguir sozinhos na viagem. Sua rota exata não é certa,
a Accon na primavera de 1269. Com êles trouxeram uma mensagem de não se sabe se os levou via Mossul e Bagdá ou mais para o norte, em direção
Kublai Cã ao Papa, solicitando o envio de uma centena de monges ocidentais de Erzerum. Definitivamente passaram através de Ormuz e também Kashgar.
para aquela longínqua região asiática. Daí tomaram caminho meridwnal via Iarcand, Khotan e Charcham até Sa-
A chapa de ouro que Kublai havia entregue a seus dois hóspedes venezia- chiu, esta última já situada dentro do reino verdadeiro do Grande Cã. Em
nos assegurava-lhes tratamento preferencial em tôda a Ásia. Não há dúvida Kan-Chu, capital da província ocidental de Tagut, foram recebidos por uma
que também lhes serviu na Europa como prova de suas boas relações com guarda de honra do Kublai, que os levou primeiramente ao longo do Huang-
o Grande Cã. Mas assim mesmo não resolveu a Cúria enviar os cem mon- Hu, através da parte setentrional da província de Catai, para Chandu, a ca-
ges solicitados. E para tanto existiam boas razões. Pois que, antes da partida pital de verão do imperador, que alcançaram por volta de maio de 1275.
dos irmãos Pólo, foram êles chamados pelo Grande Cã que lhes disse: Os três italianos foram recebidos com grande cordialidade pelo Grande
Cã. O jovem Marco Pólo, que nasceu logo depois que seu pai se dirigiu pela
"Como quereríeis que eu me tornasse cristão? Vêde que os cristãos dessas partes da terra primeira vez à Ásia, em breve conquistou a confiança e amizade do Impera-
nada sabem ou fazem de milagroso, enquanto os panteístas sabem fazer o que lhes apraz,
a tal ponto que, quando estou assentado à mesa, os copos vêm a mim cheios de vinho ou
dor. Tornou-se o secretário !?articular dêste e, finalmente, governador do
outras bebidas, sem serem tocados por viva alma, e dêles sorvo o conteúdo. tles controlam Grande Cã em Iang-Chu, capital da província sulina de Manzi, que Kublai
as tempestades, fazendo com que elas se dirijam por onde êles entenderem, e êles conse- Cã havia conquistado da dinastia dos Sung. Assim foi Marco Pólo capaz de
guem fazer muitos outros milagres, enquanto, como sabeis, seus ídolos lhes falam, dando-lhes empregar bem os dezessete anos que passou na côrte de Kublai Cã, observando
conselhos sôbre qualquer assunto que apresentam. Mas se me voltasse eu à fé de Cristo, com olhos abertos o que se passava em seu redor. Enquanto nem Carpini nem
tornando-me cristão, meus barões e outros, que não são convertidos, diriam: "O que te Ruysbroek penetraram na China propriamente dita, teve Marco Pólo a me-
moveu ao batismo e à aceitação da fé cristã? Que poder e que milagres viste praticados por
:Ele?" (Sabeis que os politeístas declaram que seus milagres são praticados pela santidade
lhor das possibilidades para conhecê-la profundamente. Não sabia chinês, mas
e o poder de seus ídolos). Pois bem, eu não saberia o que lhes responder, de tal modo que falava o mongólico tão bem quanto o persa e o árabe, e a exatidão e vivaci-
êles se veriam apenas confirmados em seus erros, e os politeístas, adeptos de artes tão dade dos relatórios que mais tarde escreveu, evidenciam que sua ignorância
surpreendentes, fàcilmente arranjariam a minha morte. Mas deveis ir ter com vosso Papa, da língua não inibiu suàs observações na China.
e pedir-lhe que para cá envie cem homens que entendem de vossas leis, capazes de reprovar ~arco Pólo inicia a narrativa com suas impressões e experiências durante
as práticas dos ídolos, e contar aos politeístas que também êles sabem como fazer tais coisas, a VIagem. Fala dos tártaros e seus "yourtas", tendas que podiam ser dobradas
mas que não as fazem porque são praticadas com a ajuda do diabo e outros espíritos malé·
volos, assim controlando-os a ponto de não mais terem o poder de praticar os milagres
d: modo a quase não ocupar espaço; d?s seus modos de vida, sua alimenta-
na presença dêsses homens. Quando virmos que tal existe, denunciaremos o politeísmo, e çao, suas mulheres, cavalos e cães. Depois fala da marcha através do Planalto
eu receberei o batismo, e farei com que todos os meus barões e chefes sejam também de Pamir:
batizados, e assim haverá, no fim, mais cristãos aqui que em vossa parte do mundo!" (O
~A região é tão elevada e fria que não vemos nem mesmo aves voando. E devo dizer
Livro de Marco Pólo, vol. 1).
também que, em virtude dêsse frio intenso, o fogo não queima com tanto ardor, não dando
o mesmo calor de costume, nem preparando a comida com igual rapidez."
obviamente não pôde a Cúria aceder a tais condições, e quando os dois
venezianos novamente partiram para a China, em 1274 - dessa vez com o . Sabemos que ambas as observações são inteiramente corretas. Com pouquís-
filho de Nicolau, Marco Pólo, de dezessete anos de idade, receberam do Papa Simas. exceções não existem aves a altitudes muito elevadas, e quando o ar
Gregório IX a escolta espiritual de dois monges, Nicolau de Vicenza e G~i­ ~ossu1 graduação baixa de oxigênio, o fogo não queima com a mesma inten-
lherme de Tripolis. Mas êsses dois missionários temiam a rota que devena SJ~ade de regiões comuns. O conhecimento de Física, de que Marco Pólo
levá-los a seu rebanho de rosto amarelo, olhos apertados e diferentes tipos dispunha, naturalmente não era suficiente para explicar-lhe tais fenômenos,
de trança. Mal chegaram ao Gôlfo de Alexandretta, na Armênia, tomar~m sendo que, por isso, êle se contenta em anotá-los para em seguida descrever
o caminho de volta - naturalmente sem disso informar o Papa. AcredJt~ 0 país da China, altamente civilizada e densamente J?Ovoada. í.sse país in-
Marco Pólo que essa deserção provocada pelo temor impediu que Kub~<u teressa-lhe muito mais que as vastidões desertas de Pam1r. Escreve muito sôbre
Cã fôsse convertido, fato que teria mudado tôda a história mundial. Nao a g;ande cidade de Canpchu (Can-Chu em Kansu), com suas três igrejas nes-
sabemos naturalmente se sua opinião é correta. É verdade que o Grande t~nanas; fala da velha rota imperial da sêda, ao longo da qual marchavam;
Cã, um neto de Gengis Cã, nascido em 1214, era homem de verdadeira gran· sob~e H~ang-Hu, o enorme rio, que seguiram em direção norte-oriental. Não
deza e indubitàvelmente um dos mais importantes de todos os soberanos ~~Jto distante do Huang-Hu, entraram na província de Tenduc, a moderna
mongóis. Enquanto os sucessores imediatos de Gengis Cã eram guerreiro~ d •en-Te, uma região que, segundo opinião de Marco Pólo, já foi a pátria
de pequenas ambições e pouco interêsse por questões espirituais, era Ku_bla• 0 Presbítero João.
~ã, Imperador desde 1256, homem culto e inteligente, - com pronunCla~o
mterêsse pelas coisas do espírito. E indubitàvelmente Marco Pólo conhecia ;Te_nduc é uma província que se situa em direção leste, contendo numerosas cidad~s
seu amigo o imperador tão bem quanto é possível que um europeu conheça e a delas, entre as quais a principal é também chamada de Tenduc. O rei da provfncm

342 343
~
pertence à · linhagem do Padre-Rei João, tem o nome Jorge e reina sôbre a pro · ·
. d é G d - .
su bord Ina o po~ m ao ran e Ca, e sem possmr a extensão daquela cujo soberano foi
vmc1a, .,:r:r
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esentado pelos doze barões ao imperador, que decide conforme julga melhor. Mas o
dêsses doze barões é tão grande, que êles esc?lhem governad<?res para tôdas aqu~las
des províncias mencionadas, e apenas depms da escolha feita, apresentam a hsta
o Presbítero Joao. É costume, posso contar-lhes, que êsses reis da linhagem do R · J «

t ~m~m por esposas a f'lh
1 a d o G rande Ca- ou outras princesas de sua família. Nestael OaO
ro-
dos ~os governadores ao imperador. Essa lista é confirmada por êle, entregando à pessoa
1

vmoa encontra-se a pedra que produz a côr azul. Existe também uma grande fábP. meada uma plaqueta de ouro, tal como é apropriada para a posição do seu govêrno.
de camelão (') de diferentes côres, um tecido feito de pêlo de camêlo. Os habitantes gan:~: no Também possuem aquêles doze ba~ões tal autorida~e, que podem dispor do moviment?
seu sustento graças ao gado, ou através do comércio e da manufatura. dos exércitos, enviando-os para onde JUlgarem necessáno. O que fazem com pleno conheo-
O govêrno da província está em mãos dos cristãos, como já tive ocasião de dizer· mento do imperador mas, ainda assim, .~ão_ as .?rdens em_iti~a.s s~? .a autoridade ,dêles. O
existem também muitos politeístas e adoradores de Maomé. Há também uma classe de' p~as conjunto dêsses barões leva o título de Sh1eng , o que s1gnJflca Corte Suprema e o pa-
lácio em que habitam é c~amado também d_: "Shieng". :Esse agr~pamento constitui a au-
que é chamada de "argons", que corresponde ao francês "guasmul" ou, em outras palavr::
toridade mais elevada na corte do Grande Ca e, de fato, podem eles favorecer e promover
pessoas descende_nte~ d~s. duas r~ças, da dos politeístas de Tenduc e dos adoradores d;
Maomé. :Esses sao n~div1du~s. fls1camente melhor formados que outros nativos do país, a quem bem entendem.
A Casa da Moeda do Imperador fica situada na cidade de Cambalec e, pela maneira
e co~o _PO~suem ~a10r hab1hdade conseguem também mais autoridade. São êles também
os pnnopa1s negoc1antes." pela qual o dinheiro é cunhado, seria lícito dizer que êle possui o segrêdo da alquimia com
perfeição!
o imperador faz com que seja tirada a casca de uma certa árvore, da amoreira_ para ser
Qu_a~do Marco Pólo começa a falar sôbre o Imperador Kublai Cã, sua exato, cujas fôlhas servem de alimentação aos bichos-de-sêda - árvores q~e ex1stem em
descnçao se parece com pa~te da carta d<;> Presbítero João aos potentados eu- quantidade numerosa. É utilizada fina substância encontrada entre a madeua e a grossa
ropeus. Mas logo faz-se ouvir uma nota diferente, revelando a grande amizade casca externa da árvore, e por um processo especial é transformada em coisa parecida com
pessoal de Marco pelo Grande Cã: fólbas de papel, de côr preta, porém. Depois de preparar essas fôlhas, são elas cortadas em
pedaços de tamanhos vários. As de tamanho menor têm o valor de um centavo; do tamanho
"E'!. a~or~ inicio aquela part~ do noss~ Livro na qual falarei da grande e maravilhosa um pouco maior, dez centavos; aquelas cujo tamanho fôr ainda maior, terão o valor de
~a8'!'~f1ce~c1a do Grande Ca remante, CUJO nome é Kublai Cã, sendo Cã um título quP. meio veneziano de prata, e outros mais, dois, cinco e dez bizantinos. Todos êsses pedaços
s1gmhca o grande Senhor dos Senhores". E falarei da certeza com que êle faz ampla- de papel são distribuídos com tanta solenidade e . auto;idade como se fô~em de puro ~uro
n;tente jus ao tlt_ulo, po~s todos. os sêres humanos têm por certo ser êle homem poderosfs- ou legitima prata, e em cada um numerosos funoonános encarregados d1sso têm de assmar
su:~o! no que diZ respe1to a forças e terras e tesouros existentes no mundo, ou que já seus nomes e colocar seu sêlo. E quando tudo estiver devidamente preparado, o . principal
ext.~tuam ~es~e a época de nosso primeiro pai Adão até os dias que correm." encarregado, designado pelo Cá, coloca o seu sêlo sôbre o papel, de tal maneua que a
A aparenCia p~soal do ~rande Cã, Senhor dos Senhores, cujo nome é Kublai, pode ser c:ór vermelha de seu sêlo seja fàcilmente reconhecível, garantindo assim a autenticidade do
retr~tada da segumte maneua: é de boa estatura, nem alto nem baixo, mas de altura dinheiro. Qualquer falsificador dêsse sêlo seria condenado à morte. E o Cá faz anualmente
méd1a. Também seu pêso é muito regular. Sua pele é branca e, em partes, avermelhada. com que tanto dinheiro seja impresso, (e isto pràticamente nada lhe custa) que seu valor
Os olhos são pretos e penetrantes, sendo o nariz muito bem formado." deve corresponder a todo o tesouro existente no mundo.
":Este Kublai Cã é de linhagem imperial, descende de Gengis Cá, o primeiro soberano de Com êsses pedaços de papel, feitos como já descrevi, faz com que sejam realizados t~dos
to?os os tártar~s. E é o sexto soberano nesta linha sucessória, como já tivemos ocasião de os seus pagamentos, e assim os transforma em dinheiro corrente em todos os seus remos
afum~r neste hvro. Asce~deu ao trono no ano de Cristo de 1256, cabendo-lhe o Império e províncias e territórios, e por onde quer que se estenda o seu poder e sua soberania. E
em vutude de sua capaodade, valor e dignidade, como era correto e justo." ninguém, por mais importante que se julgue, ousa recusar êsses papéis, sob pena de morte.
Chegam mesmo a aceitá-los àvidamente, pois que com êles podem, por onde quer que se
O venezian~ descreve 3 meio em q_ue o Grande Cã reside com igual clari- estenda o domínio do Grande Cá, comprar mercadorias e fazer tôda a sorte de transações,
dade: o PaláciO de Vera? de _Kublai em Chandu (Shan-tu, ao nordeste de como se estivessem tratando com moedas de puro ouro."
Kalp-an), que ,deve ter sido tao so~erbo quanto o mais bonito castelo do "O Cã faz tudo também para assegurar a eficiência do tráfego. De Cambalec grande
número de estradas oficiais se dirige para tôdas as províncias, sendo que em cada qual
penodo roc<;>co europeu,_ e seu PaláciO de Inverno na grande cidade de Cam- dessas grandes estradas se encontram, à distância de cêrca de 30 milhas, ou seja, de uma
bal~c (Peqmm). Como cidadão de Veneza, uma das unidades administrativas jo~ada, albergues espaçosos, com diversos quartos nos quais os próprios reis poderi_am
~ais bem gove~n-~da~ da Euro~a,_ fico~ Marco Pólo particularmente imp1e~ aloJar-se com tôda a comodidade. :esses albergues são em geral mantidos pelos núcleos habJta-
swn_ado pela eflClenc~a da ad~m1straçao do Grande Cã, a qual descreve I~I­ dos das vizinhanças, sendo que por vêzes disso se incumbe a própria côrte imperial. ~m
nu~wsamente._ O capitulo do hvro referente a essa parte suscitou imenso In- cad~ estação dêsse gênero, são mantidos quatrocentos cavalos, a fim de que os mensageuos
teresse no OCidente, que naquela época se estava esforçando por livrar-se de do _Imperador possam viajar não apenas com tôdo o confôrto, mas também_ co~ a neces-
formas de govêrno obsoletas e imprestáveis. Foi particularmente êsse aspecto sáT_Ia pr~ssa. Utilizando inteligentemente êsse sistema, podem vencer em do1s. d1as e duas
noites distâncias para as quais o viajante comum precisa entre dez e doze dias. Ao tod?
do relato de Marco_ Pólo que inspirou o desejo manifesto, por parte dos nave- não ~á menos que duzentos mil cavalos para a posta imperial, enquanto que dez mil
gadores e descobndores europeus, daqueles séculos de visitar a terra do es~ç~ de muda estão constantemente providas de tudo que seja necessário .. Mensa~me~te
Grande Cã. é ~calizada sem aviso prévio, cada uma das estações, de tal maneira que o sistema tnteno
esteJa ~eD_Ipre em mais completa prontidão.
"?eve _ser_ sabido que o Grande Cá daqueles séculos escolheu doze grandes barões, aos Raaoonando sôbre a possibilidade de estabelecer um aparelhamento tão enorme, e man-
quais. atnbum as _funções nec~ssárias para administrar trinta e quatro grandes províncias, tê-lo_ em correto funcionamento, terão de ser levadas em consideração duas vantagens na-
e aba1xo oferec~re1 dados particulares a respeito dêles e de seus governos. . tura:s dêste país. Em primeiro lugar não existem aqui famílias sem prole, já porque os
. Deve se_r sab1do _tam?ém que êsses bar?es residem, todos juntos, em um palácio mu1to pa~os têm mais de uma mulher cada um, de tal maneira que existe sempre um número
nco e bonito, que fica situado dentro da c1dade de Cambaluc consistindo de uma variedade mUlto grande de sêres humanos e além disso vive o povo muito modestamente. Tanto os
de edifícios! co~ muitos gr~pos de apartamentos. Para cada 'província existe um juiz e di- tártaros quanto os indígenas de' Catai e Manzi vivem quase exclusivamente de arroz, trigo
verso~ !uncwná~w.s, que res1_dem _todos nes~e palácio, onde cada um possui seus aposent~s
~rraceno e milho miúdo, isto é, de produtos que oferecem um rendimento de quase cem
e~pe~ats. :Esses JUIZes_ e ~unaonános adm1mstram todos os negócios das províncias às quaJS
vezes ~ quantidade plantada. Apenas o trigo não permite renda tão grande, sendo empre-
sao hgados, sob a dueçao dos doze barões. Mas quando um assunto é muito importante,
gado, J~ que não se come pão nessa parte do mundo, exclusivamente para o preparo de
macarrao e pastéis. Isso tudo explica a numerosidade da população. (... ) aturalmente
(I) Camelão é um tecido de lã impenetrável. - N. do T.
345
344
Além disso realizou Marco Pólo extensas viagens na China, obedecendo a
provoca também aqui 0 mau tem 0 Ih . .
desiste Kublai de cobrar as taxpas co etta~ dredufztdas. Mas nessas ocasiões não apenas ordens de Kublai ~ã. Uma de suas primeiras_ viagens levou-o ao Tibet,
· • mas am a ornece aos · 1
necess á nos para assegurar sua existência e as agncu tores os produtos nação recentemente mcorporada à esfera subordmada ao Grande Cã. De lá
Por isso compra o Estado uando os an sementes para a produção do ano próximo veneziano se dirigiu para Burma, cujas maravilhas descreve minuciosamente
estoque de trigo que, em 'é;!ocas de enúo~ afícoá~ oferecem colheita favorável, um bo~ 0e depois, com uma volta em direção leste, se dirigiu ao norte pata retornar
De maneira _parecida ajuda Kublai C~ qu~t:do eC::. ~~o ;:la quarta parte do preço comum. ~ sede de govêrno do Grande Cã. Em outra e prolongada viagem, também
o gado. Entao fornece animais do govêrno para c b _gu ~ parte uma doença grassar entre
de Kublai Cã dirigem-se exclusivamente à a . t~ r~r a acuna. (... ) Todos os pensamentos dirigida para o sul, chegou Marco Pólo a Kinsay, a cidade do Sul da China,
de. tal modo que possa viver de seu trabal~sts encta que é possível prestar a seu povo Hang-Chu, na província de Che-Kian. A antiga capital da dinastia dos Sung,
a~st~ou_ projetos tão bons quanto úteis. Em a~b~~panf~do a sua posse. Assi~ propôs ~ a casa reinante hereditária dos chineses meridionais, havia sido um centro de
dtstancta, manda plantar árvores de fort á .dos a ~s das estradas, a doiS passos de cultura de há tempos muito passados, sendo muito mais culta e rica em tra-
fruem. de sombra no verão, e no inverno e q e r dt o crescu~ento . .Assim os viajantes usu- dições que Cambalec que, fundamentalmente, era um tanto bárbara. É bem
o _cammho. E além disso acredita o Gra~ ua~ o a. neve tiver_ catdo, as árvores indicarão compreensível que Marco Pólo, cujas bases de julgamento eram derivadas
aftrmaram ser o plantio de árvores co de ~a na mterpret_açao de seus astrônomos, que
levam através de desertos e montanh mpensa o por uma VIda longa. E onde as estradas das condições de Veneza, se sentisse mais à vontade aqui que na capital se-
com que funcionários de certa importâ':ci~o~os~, manda colocar pedras ou colunas, e faz tentrional do Grande Cã. Não sabia mesmo como viver em Milão, pois estava
sca zero constantemente o estado das estradas." acostumado a visões amplas e ao movimento incessante de uma cidade cos-
mopolita, e a maneira de considerar as coisas do ponto de vista de um só
Já dissemos que o posterior livro d M Pó -
sacional na Europa. E decerto influ: ~rco lo havia ca~sado efeito seu- continente, que naturalmente prevalecia em Cambalec, foi-lhe durante tôda
histórica e culturalmente De qu l nao ~penas geográfica mas também vida estranha e desagradável.
de que na Europa os rÍmeir ~quer_ maneira, podemos aceitar a hipótese Aqui em Kinsay, a "Cidade Divina", como êle a intitula, era possível sentir
tradas e o emprêgo de ~mbolo~~~ncentlvos para_ o ~lantio de árvores nas es- o cheiro da água salgada do vasto oceano. Marujos de tôdas as nacionalidades
na obra de Marco Pólo L d l dapel como ~mheiro encontrem sua origem flanavam pelas ruas; tôdas as raças, peles negras e amarelas, e também
tado também bastante. in:e ? a a o com essas mformações devem ter desper- mistas eram amplamente representadas. Milhares e milhares de mastros le-
vantavam-se ao céu na região portuária. Ao longo das grandes embarcações
umas "pedras negras", esca~:~:s a~ notas qu~ damos a se~ir, a respejto de de carga, que navegavam entre a China e a índia, e Pérsia e as ilhas que
~:p~u~~';;:O c;;;;';;d~~::;;,ão veget:I.e ;~:::;o j~ ';,.~ ":o~~;:;;o •.E~~:'~:d~~: enchiam o mar em volta de Java, juncos poderiam ser vistos em wande nú-
mero, vindos de viagens costeiras, e também pequenos botes que atraves-
ond; foi minerado desde ~ ~arvlao de pCedra no sécul<_> nove na Inglaterra, savam os canais internos. Um quadro deveras colondo! E além disso o núme-
s cu o treze. onta o veneziano:
ro enorme dos habitantes desta cidade. Nos dias de Marco Pólo, os fiscais
"Porém em tôda a extensão do país enco t . do impôsto calculavam os habitantes em um milhão e seiscentas mil famí-
conservando o calor de maneira superior
a brasa pela manhã. Essas edr .
to
existem veias nas montanhas. Ateando-se fo n ra-se uma espécte ?e pedra negra, de que
a ;~a pedra, ela quetma co~o carvão vegetal,
ma etra, de tal forma que amda encontramos
lias, isto é, bem mais de cinco milhões de pessoas. Naturalmente era Kinsay
também enormemente rica. Pois que produzia o sal, e só desta indústria,
sobe fogo verdadeiro quandopsão ~c queu~am-se sem dar u~a chama muito clara, apenas
de calor." esas. urante a .combustao, porém, emitem fortes ondas
co~Eorme afirma Marco Pólo, recebia o imperador uma renda anual de seis
milhões de ducados venezianos. Além disso também as outras organizações in-
dustriais e comerciais tinham de contribuir com vultosas somas, em Eorma
sesMarco
Foi· Pólo
· interessou-se
· d particu 1armente pe1as noçoes
- rehgwsas
. . _
dos chme- de taxas, e assim somas imensas revertiam de Kinsay aos cofres imperiais.
- 0 pnmeiro a ar a conhecer aos e d · - - Durante sua estada no Sul da China, ouviu Marco Pólo pela primeira vez
das almas e b uropeus a outrma da transmigraçao que, bem para leste dessa costa mais oriental do mundo, se situava uma ilha
fúcio se ba a es oçar duma !eligião que, tal como os ensinamentos de Con-
, seava na a oraçao dos ancestrais. ~ande e mcomensuràvelmente rica - a terra de Cipango, o moderno Ja-
pao. Na imaginação dos chineses, Cipango parece ter sido algo parecido
de "Sua
uma concepção
pessoa suadealma
imortalidade
entre emda at1ma é a segumte:
. acreditam que logo após a morte com uma ilha de conto de fadas. Embora ficasse a apenas 2.500 quilômetros
a um pior de acôrdo com ti d 0 u ~o corpo, de um bom a um melhor, de um mau d~ costa chinesa, poucos viajantes haviam até então conseguido chegar a
atravessou 'a estrada da vida0
l 0
e v~da que ela levou. Isto significa que um pobre, se Ctpan~o. E tampouco foi o Grande Cã bem sucedido em seus esforços de
nobre, sendo nobre êle pró rio e :U':etra correta e _s_óbria, nascerá em seguida de uma conqmstá-la. Mas era certo que a ilha possuía tesouros imensos. O palácio
príncipe e assim sem re mdho;and a segund~ _ocastao nascerá de princesa, devendo ser real, assim afirmava, "é coberto inteiramente de ouro finíssimo, da maneira
se sua vida tiv~r sid~ desregrada ~ a ~~a postça~, até ser absorvido pela divindade. Mas como nossas igrejas são cobertas de chumbo" enquanto "todo o revestimento
depois um cão, caindo mais e mai~. que e que fot um nobre, passará a ser camponês e
das paredes do palácio é inteiramente de ouro, colocado em placas tão gros-
deixar de profundamente
ou Respeitam ' l ' e ~e ext~te
seus d pais · all?u~ filho capaz de ofender os p;üs sas com? se fôssem de pedra, sendo também os batentes das janelas de ouro.
~lém dtsso têm êles preciosas pérolas em abundância incrível e quantidades
socorrê-los uando
por obrigação única pun~ filh e e dpreCtsam, mt~rvuao encarregados públicos, que tem
Ir os os esnaturados, mgratos para com seus próprios pais."
e outras pedras preciosas".
Ess~s bredves citações da narrativa de viagem de Marco Pólo revelam o calor
~orno é Eácil imaginar, despertaram tais relatos a atenção mais intensa _do
Octdente. E o Ocidente foi grandemente responsável pelos esforços, realiza-
emuito
0 VIgor
além ed suasf descrições
d · Com
. 0 po d emos d epreender, vão
' as suas notas dos pelos ':lavegadores de tôdas as nações civilizadas, no objetivo de en~o!ltrar
quase t d a ~ er~ . a Geografia, contendo muita informação valiosa sôbre a ro~a mais breve para essa terra de riquezas abundantes. O relato lucido e
relato tg o~ os ommws da existência. Não existia, na Idade Média, outro precioso de Marco Pólo sobressaía entre muitos rumores vagos e obscuros.
ua mente completo e revelador sôbre a China. 347
346
Oriente). Durante algum tempo parecia que a cristandade estava a
uemo nto de exercer grande m . fl uenoa so b re a C h.ma.
A • A
.
Mas foi absoluto acaso que impeliu Marco Pólo ao empreendimento de sua
descrição. Empreendeu-a como prisioneiro de guerra. Em 1298, três anos poCêrca de meio milênio antes, conforme sabe~os, h~:mve Já um, período no
após sua volta da China, participou de uma batalha naval entre Veneza e ual a fé cristã se havia tornado ex~ensamente difundida no Impeno ~o ~en­
G~nova, durante a qual caiu prisioneiro dos genoveses. Empregou seu cati- q Favorecido pelo Imperador Tai-Tsung e seus sucessores, o nestonamsmo
tro.nseguiu um número gran d e de sectanos,
, . e pod ena. mes~o ter SI"d o e_Ievad o
veiro, gue se estendeu por cêrca de dez meses, na redação de seu livro. Além
de mmto respeito e admiração, devido em grande parte ao fato de êle ter ~oposição de religião oficial, se um dos imperadores ~e tivesse submetido ao
retornado para Veneza carregado com tesouros, colheu Marco também bom batismo. Mas tudo o que havia si~o feito nesse sentido ~ntro~ em co}apso
número de chacotas e escárnio. Em virtude de êle nos seus relatos fazer uso e 0 cristianismo desaparec~u repentmamente. p~rante mmtos sec:ulos toda_ e
prolixo de. números de uma magnitude a que a Europa não estava acostu- qualquer religião estrangeira que procurasse. mhltrar-s,e . pela Chma ~ra. VIO-
mada, recebeu .êle, durante sua existência, a alcunha de Messer Marco Mil- lentamente suprimida. Mas ainda assim _podiam resqm_ci?S do nestonamsmo
lione, Senhor Marco Milhão. Não há dúvida que muitas vêzes se enganou ser notados, e sabemos de diversas ocasiões em que _viaJ_antes_ e~ropeus, e~
c?m seus números e talvez, ocasionalmente, chegasse mesmo a exagerar a seu trajeto para Caracorum ou Pequim, encontravam IgreFs cnstas e comum-
fim de impressionar os venezianos, que, isto sim, estavam acostumados a nú- d:tdes nestorianas.
meros bem elevados. Mas o livro de viagens de Marco Pólo contém um Tendo em mente essa passada época cristã, e princip~lmente devido_ à ati-
cerne de verdade, e aquela afirmação de uma velha crônica italiana, de acôr- tude de simpatia que o Kublai Cã teve ocasião de mu~tas vêzes mamfestar,
do com a qual recusou no seu leito de morte, em 1324, tirar uma palavra foi 0 fato de Monte Corvino não ter alcançado Pe_qm;n antes que ~ar~~
sequer daquilo que escreveu, é inteiramente admissível. Atribui-se a êle a Pólo e os seus de lá se retirassem e antes de Kublai Ca, que na ocasiao p
afirmação de que não teria relatado nem a metade de suas experiências sur- havia quase atingido a idade de oitenta anos, ter sido demasiado velho para
preendentes! oferecer apoio ativo à nova doutri~a, dep_lorado ~orno ~esastroso golpe ~o
Destino. Foram já esboçadas as teonas mais audaoo~as sob~e ? que podena
ter sucedido se Monte Corvino tivesse ido antes à Chma. FOI dito que se um
Kublai Cã mais môço se tivesse convertido, levando consigo ? po_vo pela
fôrça de sua personalidade, a história t~ri~. sido escrita de maneira diferente.
Mas de nada adianta contemplar poSSibilidades desbarat~das, e _neste c~so
7 particular as possibilidades de que qualquer mudança radical tena ocor~Ido
não são realmente tão grandes como pode parecer. Estudos. modernos sobre
Enquanto os três membros da família Pólo estavam voltando à índia por as relações culturais entre Leste e Oeste revelam a comple~ndade d: proble-
via marítima, passando pela Indochina, Sumatra e Ceilão, em seu trajeto de mas existentes. É muito duvidoso que uma adoção, por mais espon~anea qu~
volta para a Europa, velejou um ocidental para leste e, alcançando a ·China, tivesse sido, de formas européias de pensamento e de ~Iore~ I?orais do <?ci-
aí deveria permanecer durante quase quarenta anos. Trata-se do monge fran- dente poderia ter mudado ou pode mudar a concepçao asiátlc~ das coisas.
ciscano João de Monte Corvino, um dos maiores sacerdotes e missionários De qualquer forma, exatamente como Alexandre, o Gr~nde,_ nao se encon-
revelados pela Igreja. Lembramo-nos que os dois irmãos Pólo, mais idosos, trou com Chandraguptam, o brilhante soberano da índia, nao se en~ontra­
haviam voltado de sua primeira visita à China em 1270 com o pedido do ram o Papa e o Grande Cã naquela ocasião. Mesmo e~ sécu~os posten<;>res, _a
Grande Cã no sentido de que o Papa lhe enviasse uma centena de missioná- despeito de repetidas e incipientes tentat~vas de_ re,u~:u-los, nao h~uve Jamais
rio_s cristã~s. Também soubemos que dois monges foram mandados com ~s uma aproximação verdadeira entre os dOis hemisfenos. Talvez nao houvesse
dOis veneZianos quando novamente partiram para a China, mas êsses doiS ainda chegado o momento de uma compreensão mútua. .
voltaram, mal haviam alcançado a Ásia Menor. O sucessor de Gregório X, É exatamente por esta razão que no? s~~timos p:ofu?damente emocwna_dos
o enérgico Papa Nicolau IV, voltou ao velho plano. João de Monte Con·ino com uma carta escrita por um dos emissanos espintuais da ~uro~a ao One~­
partiu para a Ásia em 1288 com cartas do Papa, dirigidas ao Kublai Cã. te. A carta foi endereçada pelo franciscano André de_ Perúsia, BISI_>O de Zai-
Interrompeu sua viagem pela primeira vez na Pérsia, cujo rei mongol Aboga, tun, no inverno de 1326, ao "Reverendo Padre e Pnor do Mosteiro de Pe-
um sobrinho de Kublai Cã, estava na época ameaçado pelo avanço árabe rúsia". Diz a sua carta:
para o leste, e que por isso de bom grado se dispôs a estabelecer contato com "Frade André de Perúsia, da Ordem dos Minoritas, nomeado Bispo por permissão divina,
os europeus - inimigos que também eram dos árabes. ao Reverendo Padre e Prior do Mosteiro de Perúsia envia saudações e votos de perene
Foi, provàvelmente, em 1290 que Monte Corvino partiu para a índia, onde paz.
passou quase um ano entre os cristãos de São Tomé, da costa Coromandel: Em .virtude da distância enorme por terra e mar entre mim e Vós, as esperanças de que
Depois viajou por via marítima até a côrte do Kublai Cã em Pequim. E foi recebaiS esta carta são diminutas. .
Vós soubestes que eu, e comigo o Frade Peregrinus, meu companheiro e . b1spo. de
em. Pequim que pela última vez fechou os olhos, trinta e seis anos ap~s, abençoada memória, colega único de minhas jornadas, depois de passar por mUlto es~orço
mmto Idoso e após uma vida de êxitos indiscutíveis. Em 1310 consegUiu e penúria, por fome e os mais variados tormentos em terra e mar, onde _fomos despojados
m~smo persuadir o Grande Cã reinante, Haichan (Wu-Tsung), sucessor de de tu~o, mesmo de nossa roupa de baixo e nossas batin~, chegamos fmalmente, co~ a
Tim_ur e neto de Kublai Cã, a submeter-se ao batismo. O que preparou o proteça_o de Deus, a Cambalec (Pequim), onde o Grande Ca e Imperador t~m a sua co~te.
can;unho para êsse surpreendente ato de conversão - que não suscitou o Isto f01, segundo creio, em 1308, depois da encarnação de Nosso Senhor. AI!, após ter s_do
efeito espera_d o devido à m':>rte precoce de Wu-Tsung - foi a nomeação .de ordenado Arcebispo de acôrdo com instruções que nos foram dadas pela Sé Apostóhca,
Monte Co~vmo p ara Arcebispo de Catai, em 1307, e o envio para a Cluna permanecemos dura~te cêrca de cinco anos. Nesse espaço de tempo, recebemos do magnâ-
de nove b1spos (dos quais apen as três ou quatro jamais alcançaram o Ex- 349
348
0 cristianismo teve uma existência apenas esotérica, marginal, sem
nimo imperador um "alafa" para alimentar e vestir oito pessoas. :este "alafa" é uma contri· dos acontecimentos. Essa aparente insignificância faz com que
buição feita pelo imperador aos emissários de grandes senhores, assim como a oradores,
generais, artistas nas várias artes, atiradores de lança, pobres e a várias pessoas por motiv01 ainda ressalte mais a figura ~loriosa de Jo~o _?e Monte Çorvin~, que mante~e
variados, contribuições que excedem os gastos da maior parte dos reis romanos. constante a sua fé e não deixou de s~a mtssao, a despetto de ~ncompr~en~ao
Nada direi da riqueza, generosidade e fama dêste grande imperador, nem da extenslo mesmo hostilidade, em um ambtente que, se bem que uvesse atmgtdo
prodigiosa de seu reino, a multidão de seus povos, o número e o tamanho das cidades e 00
alto grau de civilização, fôsse absolutamente estranho para êle.
os regulamentos estabelecidos pelo imperador, em conseqüência dos quais ninguém ousa
levantar sua espada contra o vizinho, porque não tenho espaço para escrever a respeito e •Eu próprio tenho cabelos grisalhos e pareço um velho", escreveu resignadamente, para
porque o leitor dessas linhas as julgaria incríveis. Pois mesmo eu, que me encontro no país ll01Da no ano de 1305, "apesar de não ter mais de 59 anos. Falo e escrevo o tártaro _com
ouço falar de muitas coisas que mal posso acreditar. ' perfeita fluência. Traduzi para êsse idioma tanto o Novo Testamento quanto o Salténo, e
Existe uma grande cidade nas margens do oceano, que é chamada, na lfngua persa, de cuidei que fôssem copiados da melhor. forma possív;I. Escre~end~: lendo e rezando, teste-
Zaitun (Cuan-Chu), e nessa cidade vive uma rica senhora armênia, que construiu uma munho publicamente o valor da doutnna de salvaçao de Cnsto ...
igreja bastante ampla, transformada em catedral pelo arcebispo e dada durante sua exis·
tência ao Frade Bispo Gerard e aos padres que o acompanhavam. Quando faleceu êste A atividade do arcebispo na China não ficou inteiramente desprovida de
bispo, tendo sido enterrado em sua igreja, pretendia o arcebispo tornar-me seu sucessor, efeito, porém. Além do próprio Cã! f?i ~apaz, ~onforme _atestou. em suas car-
mas desde que não me agradavam nem o lugar nem a sucessão, transferiu -os ao acima men·
cionado Frade Peregrinus, que para lá se dirigiu na primeira oportunidade e que, após
tas, de batizar e salvar para o cnsttamsmo cer.ca ~e cmco m1l almas. Em
desincumbir·se ali dêsses encargos durante alguns anos, ali faleceu em 1322, nove dias comparação com a imensa população que a Chma Já apresentava na Idade
depois do dia de São Pedro. Uns quatro anos antes dêsse passamento, e sem receber o apoio Média, era isto bastante pouco. Quando faleceu J?r~e _de Tenduc, teve
esperado em Cambalec, consegui arranjar que o já mencionado "alafa", ou seja, "esmolas Monte Corvino de assistir ao abandono gradual do cnstlamsmo por parte de
imperiais" me fôsse pago também na cidade de Zaitun, que fica a uma distância de cêrca seus súditos. Apesar disso, por ocasião de seu própr~o falecimento, . por
de três meses de viagem de Cambalec. volta de 1330, havia três mosteiros franciscanos em Peqmm e um em Zattun,
Desde então vivi aqui permanentemente, cobrindo as minhas despesas com o mencionado Kinsay e em Iang-Cho-Fu, no Rio Iã-Tsé-Quiã. É possível que, por essa. época,
auxílio imperial o qual, de acôrdo com o sistema monetário dos mercadores de Gênova,
ascende a cêrca de cem florins-ouro anuais. Grande parte dessa quantia foi empregada por o número de convertidos já tivesse ascendido a alguma~ centenas de mtlhares.
mim para erigir um mosteiro e uma igreja. Não sei de nenhum outro mosteiro em tôda A despeito de tudo, porém, deve Monte Corvino ter ficado preocupado com
nossa província que possa comparar-se com êste no que diz respeito à beleza e à atmosfera o destino de sua obra missionária depois de sua morte.
agradável. Finalmente, não muito depois do falecimento do Irmão Peregrinus, recebi uma Depois de Monte Corvino, outro sacerdote católico de alta posisão se di-
ordem do Arcebispo, nomeando-me para esta Sé. Por boas razões acedi, e agora passo meu rigiu para a China: o legado papal João de Marignola, que partiU para o
tempo inteiramente de acôrdo com meus desejos, ou na igreja da cidade mencionada ou Oriente em 1338, voltando à Europa apenas em 1353. Dep01~, no a~o de
no mosteiro. E desde que goze de boa saúde, poderei bem trabalhar mais alguns anos
neste campos, enquanto o permitir o lapso de tempo concedido para minha existência. a- 1!168, a Dinastia Ming, nacionalista, xenófoba e anti-eclesiástica, subm ao
turalmente, como resultado de enfraquecimento físico e de minha idade, fiquei de cabelos poder na China. Assim terminou, por um período de trezentos anos, tôda
grisalhos. e qualquer possibilidade de influência ocidental no Império do Cen~ro.
Neste vasto império, existem pessoas pertemendo a tôdas as raças sob o Sol e homens João de Marignola partiu para a China em dezembro de 1338, se1s meses
de tôdas as seitas. E permite-se a todos êles, tanto à comunidade como ao indivíduo viver após a chegada a Av 1gnon da embaixada Chun-Ti, acima descrita. Levou
de acôrdo com sua fé . Pois que aqui defendem a opinião, ou melhor, a opinião errada, de consigo presentes para o Grande Cã e uma carta escrita pess<;>al~ente f?Or
que todo ser humano pode encontrar a salvação de acôrdo com seu próprio credo. Mas
por isso podemos viver livremente e pregar sem mêdo; mas nenhum dos judeus ou mao- Benedito XII. O Papa foi suficientemente previden:_e para retr~bmr cordi~l­
metanos se deixa converter. Muitos dos politeístas são batizados, se bem que alguns daqueles mente a epístola ingênua mas honesta do Grande Ca, embora fiZesse questao
que receberam o batismo não sigam a própria doutrina cristã. de frisar sua dignidade e alta posição. É lícito supor que, escrevend~ sua res-
Quatro de nossos Irmãos foram martirizados pelos maometanos na fndia. Um dêles saiu posta, deixou o Papa que 0 gutasse a súplica expressa p:_lo alano Fut1m Yuens
incólume de uma imensa fogueira em que havia sido lançado duas vêzes. E a despeito e seus co-príncipes, nas entrelinhas de sua carta, de nao enfurecer de modo
dêsse surpreendente milagre, nenhum dos moslemitas pôde ser convertido para nossa fé. nenhum o Grande Cã.
Escrevo tudo isto a Vossa Reverência, a fim de que possais levá-lo ao conhecimento de
o~tros .. Não escrevo .par~ meus irmãos em Cristo, nem a qualquer amigo particular, po~que
. Assim partiu João Marignola para a China. Deixou-nos um relato m~nu­
nao sei qual entre eles Já descansa no sono eterno, e quais ainda se contam entre os VIVOS· Cl?SO e não desmteressante de sua viagem, em que, além de outras cotsas,
Pelo que peço o perdão dêles. Envio a todos as minhas mais sinceras saudades. afirma:
Escrito em Zaitun, no ano de Nosso Senhor de 1326, no mês de janeiro."
"Nós, Frade João de Florença da Ordem dos Minoritas, indigno Bispo de Bisínia, fomos
Za~tun foi um dos bispados fundados por Monte Corvino por volta de 1~13, enviados no ano de Nosso Senhor de 1338 pelo Santo Padre Benedito XII com cartas e
pr~ntes da Sé Apostólica, como legado ao Cã, Grande Imperador de Todos os Tártaros,
rl:epois d<;t chegada dos. s_obreviventes ~aq,ueles nove monges que lhe. h~v1aiD CUJOS do!Tiínios e poder se estendem sôbre a metade do Oriente e um número incrível de
sido enviados pela Cuna, e aos quais Já nos referimos. Da referenoa ~e paf.ses, adades, povos, línguas e riquezas. Deixamos Avignon no mês de dezembro (1338),
André de Perúsia ao belo e agradável mosteiro em Zaitun, podemos conclui~ alcançando no inicio do período de jejum a cidade de Nápoles e ali aguardamos ~té a
que sua o?ra nesse pôrto marítimo, liberal e intelectualmente desperto, foa Páscoa, que foi em fins de março. a chegada de uma embarcação ge_novesa com os envta~os
bem sucedida. Mas, apesar disso, não há qualquer menção do cristianismo nos ~ tá~~ros, que ~ Cã de Cambalec, a maior cidade dêsse p~vo, envia~ ao Papa no s~nt!do
d~cumen~os chineses da época. Mesmo g,uando um dos vassalos do Gran_de . soliatar o envio de legados, abrir uma estrada e conclUir uma aliança com os cr1staos,
pois ama e honra nossa fé.
C~ o Rea Jorge de Tenáuc, que se dizia descendente do Presbítero .Joao, C Três anos a_Pós nossa partida da Côrte Papal, alcançamos as fronteiras de Annalec e a?s
foi c~nv~rtido ao cris_tianismo com a maior parte de seus súditos - ~"?-a }'Olloskagon, Isto é, as montanhas de areia, que são formadas pelo vento e além das quais,
ocorrencia realmente Importante, que o próprio Monte Corvino transiDI_uu antes dos tártaros, não se acreditava que existisse terra alguma. Mas os tártaros cruzaram
para Roma em 1305- calam os documentos chineses. Está visto que na China
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350
essas montanhas pela vontade de Deus e em seguida encontraram-se em vasta planície, cha-
mada pelos filósofos de "cálido cinturão da terra", considerado insuperáveL Mas apesar
indiscutíveis, faltaram a João de Marignola as qualidades humanas, que ca-
disso, a região foi cruzada pelos tártaros, e também eu já a cruzei duas vêzes. pacitaram João de Monte Corvino a alcançar êxitos muito mais pronuncia-
Quando o Grande Cã viu nossos palafréns e outros presentes além das bulas papais e a nós dos. Também devemos notar que o Imperador Shun-Ti, descendente fraco
mesmos, manifestou grande alegria, achando tudo bom, ou melhor, excelente, e nos tratou e indeciso de Kublai Cã, não foi capaz de dar ao emissário da Cúria qualquer
com as maiores honras. Apresentei-me em vestimentas sacerdotais com uma cruz muito 00• ajuda de importância. As coisas não corriam bem na China durante o seu
nita, que fiz levar diante mim com velas e incenso até o Cã, que estava à nossa espera reinado. Registraram-se sucessões de sêcas e colheitas reduzidas, e quando
em seu palácio esplêndido. Entoei o "Creio em um Deus", e quando o hino chegou ao fim, cêrca de dez milhões de chineses morreram em virtude da terrível fome que
dei-lhe a bênção, que êle humildemente recebeu. Em seguida fomos levados a um aparta-
mento extremamente bem mobiliado na Côrte Imperial, e dois príncipes foram designados grassou na China em 1334, ~hun-Ti não soube fazer senão emitir mais e cada
para acompanhar-nos que, através dos criados do imperador, nos supriram amplamente com vez mais papel-moeda.
comida e bebida e tôdas as necessidades, mesmo incluindo papiro para as lanternas. Durante Mesmo em seus dias era isto um método inapropriado de pacificar um
aproximadamente quatro anos deram-nos êsses príncipes tôdas as possíveis demonstrações povo desesperado e convencê-lo da capacidade administrativa de seu sobera-
de honra, forneciam a nós e nossos criados roupas custosas de tal maneira que nós, que no. Logo depois que Marignola deixou o Império do Centro, irrompeu uma
todos juntos somávamos 32 pessoas, deveríamos ter custado cêrca de setenta mil cruzeiros.
Muitas disputas religiosas foram travadas com judeus e outros, mas também muitas almas revolta contra Shun-Ti e os mongóis. No propósito de varrer aquêles estran-
puderam ser colhidas. Os minoritas têm também uma catedral em Cambalec, imediatamente geiros perigosos do país, tudo aquilo que não fôsse chinês era indiscrimina-
próxima ao palácio, uma esplêndida sede de arcebispado e diversas igrejas com sinos na damente destruído. Durante essa revolta foram exterminadas também as co-
cidade, e todos vivem em altas honras das graças do imperador. munidades cristãs na China, e vários legados, enviados para a China pelo
O imperador concordou muito contrafeito com minha partida, e apenas quando viu que Papa Urbano V em 1370 e 1371 desapareceram sem deixar traço. Alg~~as
eu estava absolutamente determinado a assim proceder. Depois, contudo, presenteou-me relíquias da tradição religiosa ocidental parecem, contudo, ter sobrevivido
com dinheiro para três anos, entregando-me dádivas muito importantes para o Papa mas
sob a condição de que eu ou algum outro- cardeal, com autoridade apropriada, voltasse ao holocausto. Por exemplo relata Richard Hennig, o geógrafo alemão, q~e
a Cambalec para ser bispo nessa terra, uma dignidade para a qual todos os habitantes do um padre jesuíta, trabalhando na China durante o século dezessete, hav1a
Oriente, sejam cristãos ou não, têm o maior respeito; também deveria o bispo ser da ali encontrado uma bíblia, com caracteres góticos gravados em pergaminho,
Ordem dos Minoritas. Pois que êsses são os únicos sacerdotes que êles conhecem ... " que um mandarim chinês possuía.
Marignola descreve em seguida as dificuldades e os perigos de sua volta
(iniciada em 1345), principalmente para focalizar sua própria pessoa e suas
realizações. O que faz com que seu relato se torne um tanto antipático. Mas
assim mesmo, às suas descrições - por exemplo do Iã-Tsé-Quiã, das cidades
de Hang-Chu ou Zitun, onde ainda existiam tr.ês igrejas cristãs, ou Colombo 8
(Quilon), um dos centros da produção de pimenta da índia, e da flora de
Ceilão com a árvore-do-pão índia, coqueiros e bananeiras - não falta en· Temos aqui de acrescentar um apêndice, referente a uma das mais ator-
canto. Assim diz, por exemplo, do Iã-Tsé-Quiã: mentadas personalidades dos fins da Idade Média: o bávaro Hans Schiltber-
"Cruzei o rio, e nas suas margens existem grandes e esplêndidas cidades, especialmente
ger, de Freising, próxima a Munique, que combateu os infiéis como escudei-
ricas em ouro; no próprio rio, contudo, moram em casas de madeira permanentemente os ro do cavaleiro Lienhard Reichartinger, sob comando do Rei Segism1;1ndo
artistas mais capazes principalmente tecelães de fazendas de sêda ou brocado - em tal ei?- 1394, feito prisioneiro pelo inimigo e que regressou em 1427 depois de
número como não podem ser encontrados na Itália inteira; viajam pelo rio em suas casas, tnnta e dois anos de cativeiro. Logo depois de sua volta, escreveu breve re-
sem modificá-las de modo algum, e levando consigo suas famílias, para fabricar tecidos de lato sôbre suas experiências no Oriente distante.
sêda, que é encontrada nas margens dêste rio em quantidade superior do resto do mundo.
Isto eu pude ver. .. " Suas aventuras começaram com a batalha de Nicópolis, 28 de setembro de
1396, travada entre o Rei Segismundo e o Sultão Bajazet I, no curso da
De Colombo afirma Marignola: gual, de acôrdo com as informações de Schiltberger, o Duque da Burgúndia
miciou um inoportuno ataque de cavalaria, que o levou até a terceira linha
"No Domingo de Ramos de 1357 cheguei a Colombo, a mais famosa cidade de tôda a dos turcos, da qual não mais pôde desvencilhar-se. Os cristãos sofreram tr~­
índia, onde se produz tôda a pimenta do mundo. Nasce em plantas, plantadas exatamente Il_lend_a derrota, e no dia seguinte o sultão mandou d~capitar tod<;>s os pn-
como parreiras e inicialmente produzem uma espécie de uva de côr verde. Depois ess~
uvas contêm vinho vermelho, que eu próprio já gotejei em meu prato para servir de condi-
Sioneuos. Schiltberger foi um dos poucos que consegmram sobreviver, _ror-
mento. Essas uvas amadurecem e secam nas árvores. E depois de o calor imoderado do sol que o filho do sultão solicitou que fôsse poupada a vida do rapaz, que unha
tê-las secado, elas são colhidas em grandes toalhas, estendidas sob as plantas. Isto vi com naquela época dezesseis anos. Schiltberger foi levado à côrte do sultão, "onde
meus próprios olhos e senti com minha mãos durante cêrca de quatorze meses. A pimenta me tornei primeiramente arauto e depois batedor".
não é queimada, como já ouvi alguém errôneamente afirmar, nem nasce no deserto, m~
s1m em jardins. E os proprietários dessas colheitas não são sarracenos, mas cristãos de Sao "E assim levaram-me à côrte do rei turco". Seis anos tive de correr diante dêle. E depois
Tomé, os quais cobram de cada quilo exportado um tributo do qual eu, de acôrdo com me permitiram cavalgar, o que fiz mais seis anos, de tal maneira que fiquei doze anos
minha posição como legado papal, pude mensalmente receber cem, e no fim mil, "fan" de com êle ... "
ouro. E:ciste em Colombo uma igreja latina de São Jorge, onde fiquei e que decorei com
belas pmturas e onde ministrei ensinamentos cristãos ... " Depois de relatar uma abortada tentativa de fuga e outros eventos, que
_Mas a despeito dessas narrativas, que fazem deduzir bom dom de observ~­ se passaram na côrte do soberano turco, descreve Schiltberger a grande ba-
çao e excelente capacidade de apresentação e outros muitos méritos pessoaiS talfta de Angora, travada em 20 de julho de 1402 entre o mongol Tamer-
. 352
23
353
Conquista Mundo
nto de vista, então, poderia Schiltberger talvez ser chamado o "Marco
lão (1 ) e Bajazet I, na qual êste último perde o país e a vida, enquanto po
Pólo a1emao- ". . , d . d' .
Schiltberger passa da pnsão turca para a mongol. Q mudança se verificou na humamdade durante o peno o aqm . Iscuti·
Schiltberger teve, certamente, de acostumar-se a muita coisa nesses anos d 1 ~o início nada lhes significava a amplidão do mundo. As narr~tiva~ de
que assim passou. Mas a crueldade indescritível de Tamerlão consegue ainda ~mas Indicopleustes e de Fidélis jaziam, sem merecer qualquer m~ere~se,
ho~rorizá-lo. Ainda anos depois 3arrou uma cena,_ significativa para quem 1 ma biblioteca de um mosteiro. O relato de Ibn Batuta havia sido
qmsesse conhecer o caráter do Ca mongol. Tamerlao ocupa a capital de Is- er-~ fo e 0 de Marco Pólo era motivo de escárnio. No fim, as pessoas de
o~I0 a s 'países estavam sentadas sob as árvores de sua aldeia o~ nas tavernas
paha~ e para ~á envia uma guarnição. ~as no m.omento em que êle próprio
se retira da cidade, revoltam-se os habitantes contra os mercenários estran- :m ~d~de ouvindo o que os viajantes tinham a lhes contar. Amda há pouca
geiros, que conseguem aniquilar. Tamerlão interrompe a sua marcha e apa· issocinem 'lhes interessava. Qual o novo espírito que d;êles se apoderou?
rece qual tempestade diante das portas da cidade. E então se inicia terrível o espírito de nossa época estava começando a mamfest<~:r-se, transforman-
matança: do êsses homens, vinte gerações antes de ?-ós, em nossos reais antepassados. A
Idade Média estava-se aproximando do fim, era o de~pertar da e:a. I?-oderna.
"E todos que tinham mais de quatorze anos de idade foram decapitados. Os meninos Com a história do camin~o marítimo à índia Or~ental, qu_e ImCiaJ:nente
com menos de quatorze foram poupados. E das cabeças erigiu uma tôrre no meio da cidade.
Depois mandou que mulheres e crianças fôssem levadas a uma planície fora da cidade, e
era procurado para proporciOnar um acesso ao paraiso 9-u~ amda entao d_e-
mandou que as crianças com menos de sete anos fôssem levadas à parte, e deu ordens para veria realmente existir em alguma parte dos ~esertos asiáticos, com ~ssa his·
que seus soldados cavalgassem sôbre essas crianças. Quando seus próprios conselheiros e as tória que ainda temos de contar, penetramos Já agora na terra de mngué~,
mulheres vir~m isso lançaram-se aos seus pés, pedindo para que os matasse juntos. Isso imersa em luminosidade matinal, que se. estende entre dua~ épocas e cu ]OS
êle_ não quena e mandou que sua ordem fôsse executada, mas ninguém queria ser o pri- limites extremos, constituem também o fim de nossa narrativa.
meuo. Enfureceu-se e êle próprio cavalgou e gritou: "Gostaria de ver quem não vai cavalgar
atrás de mim". Assim todos foram obrigados a cavalgar sôbre as crianças, que foram
mortas pelas patas dos cavalos. Eram sete mil. Depois incendiou a cidade inteira. E depois
partiu para sua própria capital, chamada Samarcande, onde não havia estado durante
doze anos."

Tal ato terrível foi confirmado por diversos cronistas orientais. A notícia
de que os generais de Tamerlão se tivessem inicialmente oposto ao coman·
dante, procede de Schiltberger. Sua verdade é muito duvidosa.
Depois da morte de Tamerlão é Schiltberger passado para seu filho, o
Xá Roch, que reside em Herat, no reino de Chorasan. Quando um jovem
príncipe tártaro, que também vivia na residência do Xá Roch, recebeu
ordens para voltar ao seu país, a fim de assumir o trono, ordenam que
Schiltberger o acompanhe. Depois de uma longa viagem até a Sibéria, voltou
êle para Caffa (Feodósia, na Criméia). De lá, êle e quatro outros prisioneiros
cristãos, conseguiram fugir para o mar, onde tomaram uma embarcação eu-
ro_péia, e depois de ainda mais aventuras conseguiu voltar, em 1427, com
a Idade de quase cinqüenta anos, para Munique.
Depois dessa rápida visão das viagens de Schiltberger já reconhecemos que
não estêve em nenhum país que tivesse sido completamente desconhecido em
sua época. Portanto não é um dos grandes descobridores de nosso mundo.
Mas assim mesmo tivemos de mencionar Hans Schiltberger aqui. Pois seu
livro de viagens aventureiras, como o de Marco Pólo, encontrou o caminho
, para um público vasto nos fins da Idade Média, contribuindo para preparar
o Ocidente para a época das grandes descobertas que logo deveria iniciar-se.
Schiltberger não era uma personalidade do calibre de Marco Pólo. ~a.s
talv~z ten~amos de ~he dar, valor não de acôn;lo com suas qualidades indiyi·
duais, e sim como smal e simbolo daqueles milhares que não foram mencto·
nados e que foram lançados para cá e para lá, no Oriente, durante tôda a
extensão das cruzadas, conseguindo, de alguma maneira, voltar à Europa n?
fim de sua vida e ali - a maioria dêles incapazes de escrever - ter oportuni·
dade de contar o que com êles se havia passado. É difícil distinguir o qu~
seja mais importante para o aparecimento de novas épocas: o preparo espi·
ritual de alguns ou o pressentimento abstrato de grandes camadas. Dêsse
(I) J::ste Tamerlão é a legendária figura de Tamburlaine, que 190 anos depois mereceu uma
tragédia de Mar!owe. - N. do T.
355
354
PARTE XI

OS PORTUGUÊSES E A ÁFRICA

Do primeiro cardápio alemão e de velhas recei-


tas alemãs - Diàriamente carne salgada - Guerra
fria contra a Europa- Existirá o paraiso na Abis-
sinia? - Deficit comercial europeu, comparado
com o Oriente - Quem são e de onde vêm os
guanchos? - Ouro de Sofala - Malaios descobrem
Madagáscar- Infante D. Henrique, o Navegador,
e a África- Mermoz voa através do "Pot-au-Noir"
- Escravos negros, uma sensação na Europa - Será
o Senegal um afluente do Nilo? - Os portuguê-
ses e o Presbitero João - Diogo Cão arásca tudo
- Martim Behaim e o astrolábio - Novas instru-
ções para as viagens à África - Benedetto Dei em
Timbuctu - A inflação européia, a casa bancária
Centurione e o padrão-ouro - Antônio Malfante
no Saara - Portugal joga dois trunfos - O Cabo
das Tormentas e a expedição de Pedro de Covi-
lhão - Do "lavrador de Saaz" à época moderna.
Quase todos os capítulos anteriores começaram com uma inscnçao em
pedras, seja de runas ou de outras escritas quaisquer; desta vez, porém, inicia-
remos com um cardápio. Trata-se do primeiro cardápio de que se tem no-
tícia em qualquer nação européia, e os pratos ali mencionados são alguns
séculos mais antigos que a lista em si.
:Esse primeiro cardápio alemão encontrava-se diante do Duque Henrique de
Brunsv1ga, homem muito gordo e "gourmet" conhecido, durante um dos
muitos banquetes da Dieta Imperial, realizada em 1555. Tratava-se obvia-
mente de invenção do próprio Duque Henrique, resultado de algum acôr-
do prudente entre êle e o chefe dos cozinheiros, encarregado do banquete
em questão.
Isto foi narrado pelo companheiro de mesa do Duque, o Conde Haug von
Zimmern. Viu êle que o Duque Henrique tinha ao lado de seu prato uma
longa lista que não se cansava de consultar. Assim sendo, perguntou a Henri-
que de que se tratava, e como o caso lhe parecesse importante, relatou-o em
seus anais familiares, a "Crônica Zimmeriana":
"O Duque Henrique tinha a seu lado na mesa, uma longa lista, que consultava com
freqüência. O Conde Haug estava sentado diante dêle e, admirado com os freqüentes olhares
do duque, tomou-se de coragem, e lhe dirigiu a pergunta. Então o duque lhe mostrou a
dita lista. O chefe dos cozinheiros havia marcado na mesma tôdas as espécies de comida
e bebida e, assim, o duque era capaz de estabelecer os seus pratos e poupar-se para os
melhores bocados."

Que espertalhão! pensou Haug von Zimmern. Mas também êle passou a
usar diligentemente a lista do cozinheiro-chefe, guardando seu apetite para
os pratos mais deliciosos.
O que havia escrito nesse cardápio? Infelizmente não no-lo revela a crôni-
ca. Mas sabemos quais os pratos do gôsto da época. Pois êles são mencionados
em antigo livro de receitas da Alemanha, datando de meados do século qua-
torze, cujas cem ou mais receitas mostram a atenção que se dava às espécies
de comida na Alemanha da época. :Este livro, publicado pela Sociedade Li-
terária de Stuttgart em 1844, sob o título "Um Livro de Boa Comida", cons-
titui verdadeira mina de prazeres terrestres aos epicureus. E, ainda assim, deve
ser usado apenas com a máxima precaução, pois suas receitas são tão condi-
mentadas, tão cheias de pimenta, gengibre, hortelã, cardamomo, galanga,
noz-moscada, salva, salsa, açafrão, alho, amêndoas, cravos, cebolas, etc., que
nos derrubariam, além de fazer lágrimas subir aos olhos.
Pratos como os seguintes, tirados dêsse livro de receitas, estavam certamen-
te no cardápio do Duque Henrique:
Pastel de Peixe: Para fazer um pastel de peixe, primeiramente limpe o peixe, quando
êle estiver quase fervido . Corte-o em pequenos pedaços, misture com salsa picada e acres-
cente bastante pimenta e sal, hortelã e açafrão. Umedeça essa mistura tôda com vinho.
Faça uma massa rija, e nela coloque o peixe, derrame o vinho sôbre o mesmo e cubra o
todo por outra camada de massa. Abra um buraco na parte superior da massa e coloque
uma fôlha fina de massa por cima. Depois asse tudo isto, o que poderá fazer também com
galinha, carne, enguia ou ave."

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a Europa permanentemente SUJeit~ a bloqueios eco~ômicos. É ve~dade que
Certamente se trata aqui de um dos "melhores pratos", para os quais o
não podena existir uma ameaça dueta ~on_tra sl!as lm~a~ de S~J;mmento da
duque e o conde pouparam seu apetite. Outro era certamente aquêle de
alimentação básica. Mas os turc<;>s ~ egipcws na~ senunam dificuldade em
enguia recheada, indispensável como base sólida duma prolongada libação:
suspender ~ sl;lprimen~o de espe~Ianas, e bastava Isso pa~a provocar casos d~
Enguias recheadas: Tome algumas enguias frescas e limpe-as com cinza. Solte a pele na conseqüência mcalculavel. Depois da qued~ de Constant~nop~a, em 145~, foi
cabeça, e levante-a até a cauda. Corte salsa e salva e acrescente muito gengibre, pimenta fechado o Mar Negro, uma das grandes vias de acesso a Ásia. E depois de
e sal. Distribua isto sôbre as enguias e cubra-as novamente com sua pele. Em seguida jogue os turcos terem conquistado também o E~ito :m 1517, nayes de guerra oto-
sal sôbre as enguias, assando-as em um espêto de madeira, e estão prontas para serem manas começaram a patrulhar todo o Mediterraneo. ~lgo tmha de acontecer;
servidas.
algumas medidas deveriam ser tomadas pelo própno Estado: E_ o pequeno
Portugal foi o primeiro país europeu a reconhecer tal premenoa e a arcar
Sem dúvida era êsse um prato favorito. Nós, contudo, não conseguiríamos com seu pêso. . . ,
engolir uma garfada, porque tal quantidade de pimenta, gengibre, sal e outros Não era tarefa fácil para aqu~l~ Estado pobre, pn~opalme~te agri~ola, na
condimentos nos seria absolutamente adversa. Também comemos môlhos costa ocidental da Península lbenca. Enquanto Aragao e Castilha haviam, de
apimentados, comidas salgadas e condimentos vários. Mas usamos de alguma há muito dirigido seus passos ao mar, envi~ndo seus navios p~ra percorrer ~
moderação. Nas receitas de quinhentos anos passados, porém, as palavras rota do Mediterrâneo e de Flandres, contmuou Portugal preso a terra a~e
"em grande quantidade", ocorrem com absoluta regularidade. Os cozinheiros fins do século quatorze quando, com apoio inglês, obteve indepe_ndênwi.
da época eram certamente mais que liberais com condimentos de tôda espécie. completa de Castilha. E então começou uma evolução totalmente dife~ente.
A razão não era uma inerente tendência ao excesso, mas a explicação é de Em 1415 os portuguêses capturaram a ci~ade árabe de Ceut_a, um dos pilares
fundo simplesmente agrário. Antes da introdução do cultivo de raízes e, de Hércules, apoderando-se desta maneira de um trampolim para as expe-
por outro lado, da rotação das plantações, não era a agricultura européia ca- dições à África que, a partir de então, e!llrree~deram. .
paz de prover alimentação de inverno suficiente para nutrir qualquer quan- O desejo de reduzir o preço de especianas Importadas era, e':'Identemente,
tidade de gado. Conseqüentemente, em inícios da estação fria, e particular- apenas uma das causas que repentina!flente tornaram .o. Cont~n~nte Negro
mente na Europa Setentrional, todo gado que estivesse pelo menos próximo da centro do interêsse universal no térmmo da Idade Media. Imcialmente os
época do abate, seria morto e salmourado. A fim de dar um gôsto mais atra- motivos religiosos exerciam, realmente! atração ~Imito, superi~r. Pois que,
tiVO a essa dieta monótona, procurava-se torná-la mais viva através da adição quando o advento da din3:sti~ dos Mmg. na Chma pos . hm ~s esperanças
de grandes quantidades de condimentos. Deve-se lembrar que a Idade Média cristãs de contar com os asiátiCos como aliados contra o Islamismo, quando
desconhecia tanto batatas quanto legumes da forma que os conhecemos hoje; o "Presbítero João" não pôde ser. encontrado na ~sia, mudou de. centro o
tudo que conhecia eram algumas espécies de couve. A mesma coisa acontecia interesse geográfico eu~o~el;l, loc~liza~do-se na Áfnca, ten~o _o Vaticano vol-
no que diz respeito às bebidas. O café e o chá eram tão desconhecidos como tado sua atenção à Abissmia, CUJO rei. era, de fato, um _cr?s.tao. ,
o chocolate. O vinho era a bebida dos ricos. As classes médias tomavam A Abissínia, o famoso e poderoso remo de Axum dos ~mcws da Idade M~­
cerveja aguada e algumas bebidas de frutas, tornadas mais ou menos alcoóli- dia, cuja influência se estendeu durante longo tempo ate a parte su} da Ara-
cas e transformadas em um ponche de duvidoso valor pelo acréscimo de es- bia, havia-se tornado cristã já no quarto século de no~sa era. E nao se tra-
peciarias orientais. tava de coincidência. Durante séculos o interêsse mundial estava concentrado
Assim sendo, usava-se em qualquer casa, desde que dispusesse pelo menos na Abissínia, produtora famosa de "elefantes de guerra", e quando os roma-
de alguns meios, quantidades enormes de especiarias, as quais devido ao nos conquistaram o Egito, também êles co~eçaram a dar valor ao planalt?
seu preço elevado, constituíam enorme pêso financeiro. Além disso, usava sulino. Para lá enviaram agrimensores que fizeram um leva_ntamento topogra-
a medicina da época especiarias em quantidade copiosa. Cada uma das epi- fico e traçaram mapas do estranho país. Negociantes seguuam-~os_ de per~o.
demias, um tanto freqüentes, era, imcialmente, combatida pela queima de ~sses começaram gradualmente a rel;lnir-se em _comunidades cns~as e assim
incenso. Isto falhando, pílulas e eletuários eram prescritos, cu FS propriedades iniciaram a cristianização d_a Abissíma ,no t~rc~I~o século..: De acordo com ~
curativas eram consideradas sempre em proporção inversa ao gôsto que ti- lenda, foi a palavra de Cnsto levada a Abissmia P<;>r Sa<;> ~a~eus, que ali
nham, ao seu preço e à distância de onde procedia o remédio. Em virtude expirou uma morte de mártir. Mas apenas em 350 foi o cnstiamsmo ele.vado
do número de intermediários envolvidos no transporte dessas mercadorias a religião oficial - aproximadamente na mesma época em , que t_a~be!fl a
do país de origem ao r.aís de consumo, os preços eram enormes. Enquanto, Arábia foi convertida ao cristianismo. Mas enquanto neste pai~ o cnstlamsmo
por exemplo, cem qmlos de pimenta custavam Cr 9.000,00 em Marselha, conseguiu estabelecer-se apenas temporàriamente, não sobrevivendo ao apa-
no século treze, a mesma quantidade custava entre Cr 12.500,00 e Cr$ ..... . recimento de Maomé conservou-se a Abissínia leal à religião cristã, se bem
14.000,00 na Inglaterra. ~ste estado de coisas era, naturalmente, muito pe- que na forma da IgreJa Capta. É uma das _poucas regiões _da ~fr:_ic~ e da Ásia
noso, e desde que não houvesse meios de reduzir a predileção européia por que aderiu à doutrina cristã durante mais de um e meiO müemo. .
mercadorias onentais e africanas, a necessidade de estabelecer conexão direta Os liames entre a Europa e a Abissínia não foram rompidos até o apareci-
com os países produtores ao sul e a leste, tornava-se de tal maneira premente mento de Maomé e a conquista do Egito pelos árabes, em !lleado~ do sécu_lo
que, em fins do século quinze, a descoberta de rotas diretas para êsses países sete. Depois, porém, tornou-se aquela terra estranha quase m~cess~vel e obJe-
era uma contingência imprescindível, imposta às nações européias. to de um número exuberante de lendas. É verdade que conexoes duetas. entre
A essa exigência econômica juntava-se outra, de caráter político imediato. o Vaticano e a Abissínia parecem ter exist~d? mesmo então, e a. d_espeito de
Nem mesmo a publicação de editais da mais elevada autoridade espiritual, todos os perigos. De fato, em 1267, os domimcanos receberam ofic_mlmente. a
o Pap~, f?i suficiente para interromper o domínio egípcio e otomano sôbre solicitação papal de enviar missionários à Abissínia. Mas, apesar di~ -v, o mis-
o comeroo de além-mar. Enquanto tal domínio não fôsse esmagado estava
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tério que envolvia êste país tornou-o lugar indicado para o reino enigmático · t s a alguma investigação geográfica, e assim sendo era muito pequena
do Presbítero João, já que agora a Ásia estava "fora de discussão". Quando cfeDtlS
· at•ncia geográfica dessas viagens.
· U m f eito
· f oi,. porem,
' rea1'I~a d o pe l os
se aproximou o fim do século quatorze, mesmo a Cúria parecia ter adotado a UDP.~~ a ue empreenderam êsse tráfego en~re a. Eur<?pa e .a Áfnca: redes-
êste ponto de vista. Era agora tido como certo que o Presbítero João e 0 JD~J ~s Ilhas Canárias. Em parte antenor d.êste hvro VImos que ~s Ca-
antigo Paraíso da Bíblia, colocados sob sua admmistração por Deus e jul- ~Irameram conhecidas 1·á na Anti~idade. mais remota.
ocoánas "
Eram particular-
- ,
gados, pelo homem medieval, como tendo existência real e física, apenas po- te visitadas pelos fenícios, que de as obtmham o sangue de dragao , e as
deriam existir na Abissínia e em nenhum outro lugar. ~~~uras usadas na produçã? da púrpura de T~ro. Não há dúv_ida que també~
Uma vez que logo se tornasse impossível alcançar a Abissínia através do 05
os conheciam essas llhas, mas em segmda total esqueCimento as e~vol
Egito, em virtude da hostilidade dos árabes, era. lógico levantar a questão grDeg nte a Idade Média elas parecem ter sido inteiramente desconheCidas,
da possibilidade de chegar ao reino do Presbítero, procedente do Norte ou veu.ue ura . de Tenenfe
dificilmente se concebe. O Pico · , 1 d. e gran d e d'IS t•an_-
· é visive
0
Oeste da África Ocidental. Era esta uma razão adicional para o interêsse que .q cone de fumaça que se eleva de sua cratera pode ser visto da costa afn-
se tinha pelo Continente Negro na época, e a terceira razão era, mais uma ~~a~ ~ ela se refere o geógrafo árabe E~risi, e seri~ _de esperar-se que u~
vez, de caráter econômico - o ouro! outro marinheiro aproximasse seu navio para venflcar de onde procedia
Depois de a África Setentrional se ter passado ao islamismo, persistiu ~:a fumaça. Uma vez, porém, que não há notícia ~e tal viagem de r~conhe­
inicialmente um estado de guerra perpétua entre os litorais opostos do cimento, devemos presumir, pelo repentino apareCimen_to das . Canánas nos
Mediterrâneo, guerra que levou a incursões e ataques de lado a lado. Os mapas dos inícios do século quatorze, que êsse grupo de llhas foi redescoberto
dois continentes eram econômicamente tão complementares um ao outro, e apenas nesse período. . .
o interêsse da África no mercado enormemente lucrativo da Europa, densa- Quando se verificou tal redescoberta, eram as Canánas _habitadas por um
mente povoada, tão direto e óbvio, que depois do século onze um sistema povo manifestamente nórdico, semicivilizado, de olhos azms e cabel.os claros,
complicado de acordos entrou em vigor entre os sultanados tunisianos e mar- os guanchos, que desapareceram durante o sé~ulo dezesset~. Contmua sem
roquinos por um lado e os vikings sicilianos e cidades mercantis italianas por explicação quando e como êsse povo chegou às Ilhas .. É possivel que os guan-
outro, eliminando quase completamente qualquer distúrbio militar. E então chos tenham constituído um ramo daqueles povos mdo-eu~opeu~ .q~e pare-
o comércio estava em franco progresso. É verdade que as exportações da cem ter penetrado em grandes massas na Europa no terc~uo mlleJ?-10 antes
África não eram tão múltiplas nem tão coloridas como as da Ásia; limitavam- de nossa era. É possível tratar-se de gôdos ou vândalos, atirado~ às Il~as por
se principalmente a ouro, marfim, escravos negros, pimenta e ébano. Em acaso, decaindo depois na tribo de selvagens nus, tal como f01 descnto em
quantidade, porém, certamente passaram aquelas da Ásia, enquanto as relatos de meados do século quatorze. . .
igualavam em valor. O outro procedia principalmente do Senegal e da Foi provàvelmente também por volta dessa época. qu~ se ve;Iflcou a re_des-
região do Níger. Era levado inicialmente para Timbuctu, nos extremos me- coberta da Ilha da Madeira. Os estudiosos da maténa amda n~~ sabe~ dizer,
ridionais do Saara, e depois em duas rotas de caravanas até o Marraquesh. com certeza irrefutável, quem fêz a descoberta e em que ocasiao. A~sim, po-
Uma terceira rota, que se bifurcava em Tuat, com vias para Orã e Constao- demos inferir apenas da mclusão da Ilha da Madeira em mapas antigos, que
tina, estabelecia ligação direta entre Timbuctu e o litoral mediterrâneo. deve ter sido por volta de 1350. Nada se sabe além dessa data.
O mercado para os produtos orientais e africanos na Europa era conside- A descoberta da Madeira e das Canárias em inícios do século quator~e
ràvelmente maior que a capacidade da África e do Leste de absorver expor- precedeu numerosas viagens para êsse grupo. de ilhas, n.o cor~e: das . quais
tações européias, de maneira que em breve ficou excluída a J:>Ossibilidade de o conhecimento geográfico das costas nordestmas da Áfnca foi mdubitàvel;
efetuar um comércio baseado no intercâmbio de mercadonas. Assim, não mente aprofundado. Não é provàvel, porém, que elas se estendesseii?- para la
havia alternativa senão pagar pelas importações orientais com metal precioso. do Cabo Bojador, em latitude de 26 &:.aus nor~e. De qualquer maneua, nada
Isso levou, exatamente como nos dias de Diocleciano, a uma diminuição se- há nos mapas da época acêrca das :_egwes _costeiras ao sul d~sse ponto. . _
vera das reservas de ouro da Europa, e durante os séculos quatorze e quin~e Possuía a Idade Média informaçoes maiS corretas a respeitO àa costa onen
chegou-se ao ponto em que as mmas de ouro e prata do Velho Mundo Já tal que da ocidental e, por outro lado, a _área, pelo menos aquela gue. se
não eram capazes de substituir suas perdas monetárias anuais. Naquele pe- estendia até o Cabo das Correntes, uma latitude de 24 graus sul, havia sido
ríodo trezentos mil ducados de ouro, uma soma enorme, eram enviados anual- percorrida já em épocas bem passadas. É verdade que a corrente d~ Maçam-
mente para Alexandria apenas nas galés de Veneza. O que resultou na ?u- bique, entre Madagáscar e a costa afric~na constit~íra, de há mUito, ?bs0-
plicação do valor do ouro, se comparado ao dos cereais na Europa. O que 1st~ cufo aparentemente insuperável. Os naviOs que qmsessem voltar em direçao
significava para as grandes massas de campônios artesãos e trabalhado_r~s e norte tinham de descrever um vasto arco até o sul, passando. a !este de
evidenciado pelo fato, revelado pelo mineralogista alemão Heinrich Qumng, Madagáscar. Parece que muito mais tarde os árabes ~oram os pnmeiros q~e
que naquela época um mineiro nas minas de ouro de Reichenstein, no pla- conseguiram enfrentar a rápida Corrente de Moçambiq~e. Mas me~mo entao
nalto de Glatz tinha de trabalhar durante 50 turnos para ganhar uma moeda não podem ter ido para muito além de Sofala, em latitude d~ vmte grau~
de ouro. O que, naturalmente, constituiu um incentivo a mais ao interêsse sul, e certamente não além do Cabo das Correntes. A própna S?fala foi
europeu na África. . de grande importância para os árabes, pois era ali que os "Zand(, no_me
Como sabemos de documentos existentes no comêço do século XIV, mmt~s dado pelos árabes aos negros, costumavam reunir o ouro trazido do mtenor.
viagens foram realizadas ao longo das costas africanas ocidentais e ori~ntais. Os á~abes transportavam-no para o Nort:_. Isto. er~, naturalmen_te - com co-
Mas nenhuma ocasionou qualquer conhecimento profundo do Con_unen_te nheCimento amplo do Ocidente - a razao pnnCipal e as pep;tas de _Sofala
Negr0. Sem a sêde do ouro essas viagens não teriam sido empreendidas )~­ eram universalmente afamadas em virtude de sua pureza. Nao preCisav~m
mais. A LOsta da África Setentrional era demasiadamente inóspita para atrair ser tratadas com mercúrio, como era necessáno · fazer com o ouro d a Áfnca

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e navegaram através de distâncias enormes para fundar se~s novos
Ocidental, bem menos puro que êsse. Não parece impossível que algum fa~:~s 'fdemos aduzir a história da colonização de M~dagáscar. Infel~zme~t~,
europeu tenha feito alguma visita pessoal a Sofala, em particular judeus, f ' p na maior parte dos casos de tal modo perdidos os passes sistemati-
povo de grandes viajantes na época. Não há, porém, nenhum documento c~:~~~l migração, que, embora d~la suspeitemos, não a podemos provar sem
sôbre qualquer expedição européia nessas águas antes de passados duzentos sombra de dúvida.
anos, quando os primeiros europeus conseguiram contornar a África, como
já os fenícios haviam feito, por volta de 600 a. C., a mandado do Faraó
Neco.
Aqui temos ràpidamente a considerar um feito geográfico e navegatório,
que partiu não da Europa e sua esfera de cultura, mas do grupo malaio-poli-
nésico: a descoberta de Madagáscar, a que já aludimos antes. Essa ilha, a des- 2
peito de seu tamanho considerável, continuou desconhecida à Europa até os
inícios do século dezesseis, quando os capitães portuguêses, Coutinho e Lopes, As várias viagens para a África teriam produzido ape~as pouco resultado,
casualmente a alcançaram. Havia, contudo, sido descoberta e povoada mais tan ível ou permanente, não tivesse o govêrno port_ugu~s na pesso~ do In-
ou menos mil quinhentos anos antes, por volta do início de nossa era, por- fanfe Dom Henrique de Portugal, honrado pela históna com o tttulo de
tanto, e isto após o cruzamento das vastidões do Oceano fndico. Por volta "Henrique, o Navegador", soltado as velas ao vento. . .
dêsse tempo chegou a Madagáscar um navegante e aventureiro grego que Em 1415 com a idade de vinte e um anos, representou papel declSlvo _na
ali encontrou uma população de origem manifestamente malaia, e elevado conquista de Ceuta. :f'.ste feito constituiu a chave para o resto de su~ carret~~-
nível de civilização. É verdade que não conhecemos outra evidência documen- 0 desenvolvimento de Portugal, a ponto de tornar-se poderosa naçao mantl-
tada, pelo menos não até que, no século doze, Edrisi descrevesse as relações ma foi inteiramente devido à sua iniciativa. ,
comerciais e as viagens entre Java e Madagáscar da seguinte maneira: No início, como bom filho da Idade Média, concentrou ~ôda ~ ~ua f~ na
lenda do Presbítero João e na lenda piedosa de que o ParaiSO biJ:>l~co amda
"O povo de Madagáscar não possui navios para navegação de alto mar; os navios chegam
a Madagáscar, procedentes de Oman ou outras localidades. Depois continuam em direção
existia em alguma parte desconhecid~ da terra. Os ~eso'!ros prodigiOsos qu~
das ilhas de Djavaga Oava), que fazem parte das ilhas da :tndia. Os marinheiros estran· lhe vieram ter às mãos com a conqmsta de C_euta, mspnaram-lhe, .aparente
geiros trocam suas mercadorias com as dos madagascarenses. Os habitantes das ilhas de mente, o desejo de alcançar o país de sua ongem. Era bel? de acordo COt;J
Djavaga vão para lá tanto em barcaças como em navios grandes, e assim exportam as suas sua época que tal intenção conjurasse automàtica~ente ~ h~ura ~o legenda-
mercadorias, já que entendem a língua ali falada." rio rei e sacerdote. Condições políticas t~rnaram ImpoSSIVeis quaisquer te~­
tativas de chegar a seu reino através do Nilo e d<? Mar ~ermelho. O bloquei~
:f'.sse relato de Edrisi data de ll44. Seu significado é bem claro: ainda na maometano da rota oriental havia-se tornado msuperavel. Um avan~o .o -
época de Edrisi existia comércio direto entre Java e Madagáscar, falando ganizado ao longo dos caminhos das caravanas no Saara par~ceu ao Pnnohe
ambos os povos a mesma língua. Ambos os povos estavam em contato com Henriqu~ oferecer perspectivas de êxito demasiado tênues, Já que ~upun ~a
Sofala e a África Oriental, mas os madagascarenses não realizavam viagens que perdas de homens e amma1s · · ch ~gana~· a ce·rca de 90 01
; o; Por Isso • nao
longas porque não possuíam navios suficientemente grandes. A roupa pró- havia alternativa - um terceiro cammho tm~a de ser escolhtdo, aquele do
pria dos madagascarenses consistia de "sarong" e "lamba"; sua arma era o mar - em direção sul ao longo das costas afnc~nas. ~
canudo de soprar; a piroga de balanceiro, sua embarcação, da mesma manei- As primeiras viagens de exploração de Hennque, o _Navegador, nao co-
ra que nas ilhas malaio-polinésicas; arroz e cana-de-açúcar eram ali planta- lheram qualquer êxito excepcional e apenas consegmram obter al~~:s
dos, de maneira idêntica à Indonésia, a vida social era limitada por tabus, poucas informações adicionais. Mas em 1432 enviou o Infan~e uma expe Içao
por proibições religiosas fixas e invioláveis. E Ibn Said, geógrafo árabe que de diversas caravelas com instruções no sentido de ~escobnr terras no oc~a­
viveu antes de Edrisi, afirma explicitamente que os madagascarenses tinham no ocidental. É possível que essa expedição fôsse ammada p~los. boat?s 0 s-
uma vez emigrado da Indonésia. curos de marujos desconhecidos no sentid? de que. terra ?avia. st~o vista no
Podemos, por isso, presumir que proporção considerável da população de oceano é possível também que o PrínCipe Hennque fosse. 11l:Cltado p~l~s
Madagáscar veio inicialmente a essa ilha após atravessar todo o trecho ma- cartóg;afos de fértil imaginação, que cobnam o Oceano ~ti:mtico com m~~
rítimo que a separa da Indonésia. Se evidências etnográficas e lingüísticas meras ilhas ou, ainda, que tivesse tanta certeza d~ forma esfenca da terra, _q
não apoiassem unânimemente tal hipótese, ela sena certamente consi- também êle se estava sentindo atraído pelo Oodente. Qualquer <_JUe seja 0
derada errônea. Mas ainda vive cêrca de um milhão de habitantes mo- motivo porém os Açôres foram descobertos - ou redescobertos Já que na-
renos em Madagáscar, cujo parentesco com os malaios é indiscutível. De vios d; Cartag~ chegaram provàvelmente até os Açôres no ano 320 a. C. -
que maneira seus ancestrais, que aportaram àquela ilha em sucessivas ondas em 1432 pela marinha portuguêsa.
imigrátórias entre o primeiro e o décimo ou décimo primeiro século de nossa Fácil é imaginar o entusiasmo que tal descoberta provocou em P~rtuga1·
era, conseguiram atravessar a enorme distância entre Java e Madagáscar em Seu efeito psicológico encorajador deve ter con~ribuído para que _d01s anos
embarcações totalmente primitivas, constitui enigma completo. Mas assim depois (1434) fôsse dobrado o notório Cabo Bopdor. A lenda antiga, trans-
foi. Não uma vez e casualmente, mas em muitos e muitos grupos. E não se mitida pelos 'mouros de que o "Mar da Escuridão", o fim do mundo, come-
tratava de aventuras ousadas, executadas por alguma tripulação à procura çava imediatamente ,a sul dêste ponto claramente d ef'Im'do, f OI· prov àvelmente
de heroísmo e emoção, mas expedições que envolviam numerosos barcos, car- obstáculo maior a antepor-se à sua passagem q~e a forte corrent~ ~r~i:,U~~
regados de mulheres, crianças e instrumentos caseiros. Se quisermos, de algu- pesado, que se lança espumante por sôbre os reofes e os bancos d
ma forma, demonstrar que várias partes do mundo foram colonizadas por
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q~ais nessa áre~~ _avança~ profundamepte pelo ~ar adentro. Quem quer ue dos como exceções especialmente e~c1;1ras de grupos étni~os morenos. Apenas
le1a essas descnçoes antigas daquela lugubre reg1ão na tranqüilidade de ~u ra verificou a Europa que ex1st1a uma raça genuinamente negra na
ago~aa Era uma descoberta extremamente sensacwna · 1, e d urante mu1to· tem-
quarto, ou que ~s r~corde enquanto ~almamente. viaja para o sul em um dos Afri
~andes transatlant1cos modernos, nao terá ma1s que um sorriso para essa ~~nifestavam-se vozes, declarando que êsses. bípedes de lábjos grossos. e
"'ingenuidade dos antigos". Mas aquêle homem que, à semelhança dos primei- ~belos lanosos eram animai_s. Ta~ P?~to de VIsta, ~ontud~: nao. consegui.?
ros navegantes _europeus que pa~saram por êsse local, voou por cima do mes- ser eralmente aceito, e ass1m pnnopwu o comércio de marhm negro .
mo e_m seu t~ajeto para a Aménca do Sul num dos aeroplanos fragílimos de Ape~as se fôsse~ humanas,_ ~od~riam ess~s cri_aturas ser salva~. de danaçã?
há vmte e cmco anos passados, deve ter-se lembrado com horror do "Mar rene e convertidas ao cnst1amsmo. Ass1m, fw~u ~end? um at<;> de can-
da Escuridão" .. Devemo_s ao !;>iógrafo do a':iador francês Jean Mermoz, que rade" trazer escravos negros da África. o que nao. lmphca em afumar .q~e
em 1935, depOis de mmtos voos bem sucedidos, desapareceu no baixo banco não se conhecia o comércio de escravos antes que fosse descoberta. essa dub1a
de nuvens do "Pot-au-Noir" em seu trajeto de volta da América do Sul explanação moral. E nem foram todos os ~scrav<?s negros subm_et1dos a mau
uma descrição fascinante dessa região infernal: ' trato. Já que escravos representavam ~m mvesumento de capital e, talvez,
lucros consideráveis, tanto os negociantes de escravos quant~ os escra-
"No derradeiro brilho da luz diurna, viu Mermoz levantar-se à sua frente enorme parede vocratas tinham todo inter.êsse em tratar da melhor forma poss~vel de sua
escura, que emergia dos reflexos avermelhados e esverdeados do mar. A escuridão funérea propriedade. Assim mesmo, o comércio de escravos, durante mmtos séculos
do banco de nuve~ do "Pot-au-Noir" parecia confundir-se com a superfície do oceano. Mas adjunto inseparável da descoberta de terras novas pelo homem branco! é um
conforme se aprmumava, pensou Mermoz distinguir um estreito intervalo entre a superfície capítulo altamente condenável da nossa história. Quem quer que deseJe uma
escura do oceano e o comêço das nuvens. Levou seu avião para aquêle intervalo. Imediata- data exata para o seu início, não estará errado em anotar para tanto o ano
mente percebeu que atravessar ali seria a coisa mais difícil que poderia fazer nesse "Sabbat
de Bruxas", d~ escuridão envolvente, corta?o. po: suas asas como se fôssem espadas. Nas de 1441.
profundezas desse mund~ se~ l~z, pôde distmgmr colunas de água, massas sombrias que
tomavam a forma de ammais gigantescos, castelos monstruosos e abismos infernais. Tôdas
ess~s formas pretas e intangíveis moviam-se em evoluções permanentes, como se fôssem im-
pelidas por _uma pressa pe~pétua e ~n~ompreensível. Era uma espécie de tufão sem vento.
Crateras, C~JO fundo parecia não existir, escancaravam, enchiam-se de nuvens e alguns se-
gundos ma1s tarde provocavam novas avalanches dentro do mais terrível e absoluto silêncio.
O aviã~ estav~ voando durante horas_ através dessa escuridão, de vez em quando ilumina·
da_ por raws subitâneos quando, repentmamente, um jacto de água fervente se lançou pelo
aviao. ~meaçado de todos os lados, Mermoz fôra incapaz de evitar uma descarga de água
torrenaal, que caía qual lava liquefeita. A cabina estava inundada. Vapor sufocante aper·
tou a g_arganta dos t~ês _homens. A; sêde os atormentava. Mermoz, o primeiro a sofrer
êsses e!eitos ~ que h~via Sido submetido a enorme esfôrço físico, sofreu mais que seus com·
panheiros. _Ainda assim! a segurança de todos dependia de cada uma de suas manobras. O
aparelho VIbrava,_ tremia, . caía e escorregava em armadilhas invisíveis. Pelo prêço de três
VIdas humanas nao podena perder o seu contrôle por um segundo que fôsse Derramou-se
sôbre êles uma segunda corrente de água, penetrou no motor, estrangulando-o, afogando-o."

Ma~ e nuvens devem ter oferecido apar.ê ncia semelhante aos marujos que,
h~ qumhentos _anos passad~s, tentaram contornar o Cabo Bojador. Depois de
d1vers.as tentatlv_a~ conseguuam os portuguêses realizar seu intento, e para
surpresa sua _venhcaram que ao sul dêsse ponto perigoso não existia nem um
oceano ~elatmoso, congela~'?· no qual ficariam presos com suas embarcações,
nei? odwsos monstros mant1mos que puxassem seus barcos ao fundo do mar,
~ss1~ como nenhl!m dentre êles havia mudado de côr de pele, sob o influxo
1mp1edoso dos raws solares. Mas tão arraigados estavam êsses contos de hor-
ro~es,. em gran_de parte transmitidos oralmente desde a Antiguidade, que o
XXXII . R otas dos desco brimentos portuguêses na África.
Prmope Hennque teve de exercer pressão pessoal direta antes que seus ca-
pítães lhe obedecessem e contornassem o cabo tormentoso.
:tste grand: feito, embora se~s resultados palpáveis fôssem bem modestos, Quatro anos mais tarde, em 1445, seguiu-se outra sensação. Um n~vjo po~­
quebrou o gelo. Sete. a_nos ma1s tarde, alcançaram os portuguêses o Cabo tuguês descobriu o Senegal, após o q~e come\ou a ~orna:-s~ s~pos1ç~o ~m­
Br~nco. E essa exped1çao voltou com negros que causaram verdadeira sen-
versa~ que a parte ocidental do estuáno d? N1l?, CUJa. ex1stenoa ~av1a s1do
saçao porque, embora a Europa estivesse familiarizada com árabes e hindus, repetidamente afirmada pelo mundo anugo, tinha fmalmente . s1do alcan-
~e pele morena, nunca havia ouvido falar de indivíduos totalmente pretos.
çada. Para os navegadores, que iniciaram a viagem para descobnr uma ~ota
E verdade que negro_s haviam ocasionalmente aparecido no comércio escra':o- ~ar~t~ma às terras do Presbítero João, parecia essa descoberta ~er a máx1ma
cr~ta da Eu_ropa; ex1ste mesmo documentada a ação de um respeitável p10·
SI_gmhcação, particularmente pel<;> fato de ? _InfaJ?te D. Henr~que ter pre-
n~1ro colo~1al francês que voltou da Africa, trazendo uma espôsa negra e
VIsto que seus capitães encontranam o estuano ocidental do Nilo a? ~ui da
diversos cnados pretos. Mas aparentemente haviam os negros sido conside- região dos desertos. O Senegal, ou pelo menos o fato de que ex1st1a um
367
366
ech venenosas. Desta forma teve de retornar. Parece que o próprio Uso-
grande rio no Noroeste da África, ficou conhecido na Europa, nos círculos fid. as hegou a crer que estava a pouca distância da Abissínia, e deu mesmo
unare
nomec do rei-padre remante.
· Era chamad o J oao- V, _ d ec1arou U s.o d"Im~re,
d?s. cartógrafos cultos. atrav~s de informações, colhidas em conversação com 0
v~aFntes árabes. Por Isso nao nos. parece surpreend~nte a previsão de Hen-
que afirmava ter falado com soldados de Joao V, suas afirmativas
nqu:, o Naveg~dor: ~.as, por mais estranho que seF, não parecem os por-
edevem
uma vezter soado bastante convincentemente. M as u· sod.Imar~ nao - po d e te_r
~ugu~ses te_r feito IniCialmente qualquer tent;_ativa séria de penetrar pelo b"d muito pelo Rio Gâmbia. De qualquer forma, nada diz da célebre c.I·
:fad~ de Cantor, nas proximidades das cachoeiras de Barracunda, a partir
0
mtenor afncano, ao long? do Seneg~l ou do Gambia, descoberto logo depois.
É. apenas dez anos dep.01~ que o~vimos falar de um capitão genovês a ser- de onde 0 rio se torna inavegável para barcos de qualquer calado. . _
VIÇO de Portugal, Antomo Usodimare, que sobe pelo Gâmbia. Dois anos mais tarde, em 1457, foi Cantor alca~çada por o~tra expediçao
Em 1446 chegaram os portuguêses ao Cabo Verde. Também essa expedi- rtu uêsa. Lá os portuguêses ouviram falar de Timbuctu, ~UJO nome estava
ção causou sensação. Enquanto as costas desoladas e arenosas, encontradas po t' g amente nas bôcas de caravaneiros árabes do Saara, vmdo a saber que
con u~untes numerosos de Fêz da Tunísia, do Cairo e outras cidades lito-
até agora,. como que ,co!lfirl?ava.m as. afirmações de geógrafos antigos, segun- negocia ' ' . d
do os quais zonas estereis e mabitáveis, ressecadas pelo sol, se situavam ao sul râneas européias, ali estavam para reahzar .compras .e ouro.
das latitudes temper~da~, apareceram .agora ~r~ç?s de uma vegetação que au- Assim ficaram os portuguêses ainda mais convenCidos que estavam pró-
mentava em exuberanCia quanto mais se dingiam para o sul. Assim pôde ximos da terra do Rei João. _ . d·
um observador contemporâneo das .emprêsas do Infante, o português Diego o Infante D. Henrique, o Navegador, nao VIVeU rara ver ~mtras expe I·
Gomes, governador do Castelo de Smtra, escrever, ao ouvir a narração dessa ções à África. Inicialmente nada pôde fazer nesse senudo. em virtude de falta
descoberta: de dinheiro, depois voltando a sua "ocupação" costumei~a, tomou parte na
nova uerra com os mouros e não encontrou nova oportumdade para e~ecutar
Ptolomeu dividiu o mundo em três partes, designando uma parte habitada ao centro os seu~ planos. Em 1460, morreu subitamente na idade d~ sessenta e s;~s anos.
do mundo, uma parte setentrional, não habitada devido ao frio excessivo, e uma parte Seguiu-se agora uma longa interrupção no desenvolvimen.to manumo de
no equador, que era inabitável por causa do excessivo calor. Descobrimos agora que a si· Portugal. Embora 0 Infante D. Henrique tivesse estabeleCid<? uma Escola
tuação é bem diferente. Pois verificamos que a zona norte é habitada até o Pólo, enquanto
n~gros moram no Equad.o~, em número tão elevado de tribos que difícil é acreditar em seu
de Navegação em Sagres, equipada com todos os recursos .náuticos da ép?ca,
numero. E a parte mendwnal está repleta de árvores e frutas, naturalmente de espécies onde era produzida uma raça de navegador~s _fortes,. coraJOSOS e bem trei~a­
estranhas, sendo as árvores de altura incrível..." dos, faltava 0 cérebro que impelira as expe~Içoes afnc~nas e ~ortugal vaCila-
va irresolutamente, incapaz de decidir o ca~mho a seg.mr. Ta~ m~e~teza par~ce
E a.cim~ de .tu~<? havia a consider~r. ~ fato de que a costa se desviava de ter levado os portuguêses a pedi~ da máxr~na autondad~ ~Ientihca _dos .fms
sua direç~o pnmltiva, de sudoeste, dmgmdo-se para o sudeste. Quando per- do século quinze, o geógrafo e físi~O florentmo Toscanelh, mfo~maçoes sobre
ceberam Isso, esperavam que a ponta meridional do Continente Negro seria a possibilidade de alcançar a fndta, navegando ao oeste, atrave.s .do _Oceano
em breve atingida. Atlântico. Infelizmente não foi conservado o texto de tal sohcitaça<?, mas
Até 1446 o Infante D. Henrique havia enviado e financiado mais de cin- a resposta de Toscanelli é clara. Afirma categoricamente que um naviO que
qüenta navios em suas viagens para o sul. Mas, deixando de lado algumas cruzasse através do Oceano Ocidental, chegaria dentro de muito pouco tempo
sensações científicas, nada se ganhou com essas expedições, sendo bem com· a costas, sendo essas as costas orientais da Ásia. E uma v~z que a Terra era
preensível que naquele período o Infante gozasse antes de notoriedade que uma esfera, era indubitàvelmente possível alcançar a Ásia cruzando o mar
de consag~ação entre seus patrícios. É verdade que conseguiu lisonjear o or- enorme. h , Á · 1
gulho naciOnal de Portugal e certamente lhe agradou o fato de dinamarque- Foi êste o período em que Portugal se esforsou por c egar a Sia re as
ses, alemães e italianos terem solicitado permissão para servir em suas frotas antigas rotas dos vikings, através do. r:orte. d_tstante. Já falamos aq~I de
expedicionárias. O que não mudou a realidade das coisas, que demonstrava Côrte Real que acompanhou a expediçao Pm;ng-Pothorst. J1.:1as suas mfor-
ter-se o Infante lançado em dívidas pronunciadas, ao mesmo tempo que suas mações sôbre terras novas ao oeste d~_oceano nao podem ter .sido prometedo-
expedições provocavam certa tensão com Castilha, que também tinha exi· ras e ademais, exatamente nessa ocasiao, em 1473,. foram designados t?dos os
gênci.as sôbre a costa ocidental africana - ~ma tensão que, algum temp.o lucros do comércio com a África Ocidental, e particularmente os .de pimenta,
dep01s, levou à guerra entre Portugal e Castllha, que se estendeu sôbre tres escravos, marfim e ouro, como sua propri~da~e pessoal,. ao ~erdei~O ~o tr~no
anos. Essa disputa foi concluída em 1455, mediante uma decisão da parte português, que mais tarde se tornou o Rei Joao I~ ..~ssim, unha ele_ mteress.e
do Papa Nicolau V, a quem ambas as partes haviam recorrido como árbitro. direto em cuidar do comércio. Foi assim que se Imcwu a exploraç~o econo-
Concedeu as descobertas africanas aos portuguêses, abrindo assim a porta mica das expedições para a África, iniciadas pelo Infante D. Hennque.. ,
para novas aventuras. Em meados de dezembro de 1481 partiu p~r_a a ~frica ~ma frota constitlll·
Por isso, no mesmo ano, dirigiu-se uma caravela à África, sob o comando da por diversos navios comandada pelo Capitao Dwgo Cao. Quatro seman~s
do genovês Antônio Usodimare. O Infante D. Henrique parece ter tido neces- depois, chegou essa expedição à C~sta do Ouro, .a leste do. atual C~bo das .t~es
sidade urgente de um êxito incontestável e diretamente prático. Por isso Pontas, fundando ali o forte e a cidade de Elmma. DepOis .de desmc~mbir se
deu instruções ao genovês, no sentido de que navegasse o Gâmbia acima, até dessa tarefa, partiu Diogo Cão para o Cabo de Santa Mana, em _latltu?e d~
chegar à Abissínia e ao Presbítero João. E Usodimare, aparentemente, resolveu quase 14 graus ao sul. Podemos seguir exatamente a rota d~ Cao, p01s. foi
seguir essa rota, naturalmente em vão. Chegou, conforme se jactou mais tarde marcada por êle próprio. Desde 1467 tinham todos. os ma_:uJOS portu~ueses,
e ~e maneira completamente inexata, a uma distância de apenas quinhentos prestes a entrar por áreas ainda não exploradas, mstruçoes no sentido. de
qullômetros do reino do Presbítero João. Infelizmente não pôde continuar levantar cruzes de madeira em posições elevadas ao longo da costa, com ms-
seu trajeto diante da hostilidade dos nativos, que cobriam seu navio com 369
368 24 Conquista Mundo
· a causa para essa mudança de objetivo? Por que. cessa _repenti-
crições que documentas~em a sua presença. ~as. as cruzes d~ madeira logo Qua1 ser;a ual uer men ão do rei e padre? Já não era ele mais nec:s-
mostraram ser bastante madequadas no calor umido dos trópicos. E por isso ~ente tod~~aqesp2:ie de au~iliar na propaganda? Ta~vez possa a soluçao
Diogo Cão carregava no bôjo de seu navio cruzes de mármore. Três de tais sárido, c~Fe;a ser encontrada simplesmente no fato. de Cao ter alcansado . ;a-
cruzes puderam ser encontradas durante o século dezenove. Uma imediata- !' pro - afastadas ara o sul. Os J?Ortuguêses ah se achavam --e -~~so e es
mente ao sul do estuário do Congo, outra no Cabo de Santa Maria, em Ben- utu?es tf~ 'I te v~ificar a despeito de suas possibilidades pnmltlvas de
guela, na África Ocidental Portuguêsa e a última, colocada durante uma podd~m a~i~â_~ do sol _ em latitudes sulinas mais afastadas. do que, co;-
segunda viagem de Diogo Cão, entre 1485 e 1486 no Cabo Cruz, em 22 graus, me Ir a b ual uer outro europeu chegara antes deles. De mo o
pouco ao norte do estuário do Suacop. forme êled so_u ~s~~~ blteroq João ser encontrado ali; na África, tal_ ~orno na
As inscrições dessas cruzes, adornadas com o brasão do Rei de Portugal, al~m po ena o uma réstia de fumaça. Já não era de utlh~ad~, e
estavam bastante apagadas; mas aquela do Cabo Cruz pôde ser decifrada. ÁSia, desapareceu ~~nri ue o Navegador, havia envolvido su:'ls pnmem':s
Diz o seguinte: êste véu, em. que {} ' hão Diogo Cão bem reconheoa esta reah-
"6.685 anos haviam passado desde a criação do mundo, 1.485 anos desde o nascimento
r~~tu:~ f~[~c~~a:~:os~;:d:~~pedição ter penetrado oitodgraus m~is para
de Cristo, quando Sua Ilustríssima e Sereníssima Alteza, Dom João de Portugal, mandou a ' ue a rimeira permite-nos supor que, em sua segun a tentat~va, pre-
que fôsse levantada essa cruz aqui pelo seu defensor, o cavaleiro Diogo Cão." 0 s~l q . pd tôd~ a África Uma vez que sua frota estivesse supnda para
~;ae~i~~~~n~:r três anos de duração,d!r~:ae~s P~:!~e~ ~~fa aa f~~e~~e:e~
~~o 0 t~:~~~ :e ~~~~o~~~r q~eCs~bao expedição fEi rep~ntinamente interrom-
Outra prova de que esta viagem para o sul foi realmente levada a efeito,
devemo-la ao patríciO nuremberguense Martin Behaim von Schwarzbach que,
na qualidade de jovem negociante, passou por Lisboa em viagem comercial pi~~odepois de dezenove me~es. SupNõe-se hoje_ edê
1~is~ Ífzemê~~ç~~~~~~· p~~
no verão de 1484. Behaim era realmente especializado no comércio de Flan- mesmo faleceu, no curso da v1agem. unca mais
dres. f.le próprio havia realizado diversas viagens marítimas, de modo que parte do próprio Behaim.
mostrou extremo interêsse quando o matemático Regiomontanus, de Nurem-
berg como .êle próprio e que talvez fôsse mesmo um amigo da família, lhe
demonstrou o uso do astrolábio. f.ste importantíssimo precursor do sextante
não era ainda muito conhecido em fins do século quinze, e era "totalmente
desconhecido aos portuguêses. f.les sabiam avaliar bem, porém, qual o valor
de um instrumento que tornava possível calcular a posição de um navio, e 3
quando o jovem Rei João de Portugal soube que o jovem negociante alemão
sabia utilizar um astrolábio, imediatamente o convidou para pertencer à ·
Temos aqui de iniciar uma breve digressao. - At'e e_
•ste ponto pode nossa nar--
sua "Junta dos Matemáticos", uma sociedade náutico-astronômica. E quando - - d Áfnca pelos brancos ter-se 1I-
rativa ter dado a impressao de a. exp1oraça~ . a I to corresponde perfeita-
Cão voltou de sua primeira expedição, que havia sido tão bem sucedi~a, mitado exclusivamente aos cammhos mantimo.s. s Como êsses procedessem
ofereceu-lhe Behaim seus serviços como conselheiro técnico em qualquer v1a· mente à verdade no que concerne ~os portugueses. b. desde o início que
gem futura. sistemàticamente e por ca~sa de razoes -~e Est~do, sad~a~tas terrestres e que
A segunda viagem dêsse navegador célebre começou em 1485, terminando a África não poderia jamais ser submetSI a ao on~~ 'a barreira inteir~mente
dezenove meses após, em 1486; levou-o pelo menos até o Cabo Cruz, onde o cinturão formado pelo Deserto do aara C~)l;s I U1
mais tarde se encontrou o marco já menciOnado. Desta expedição afirma uma intransponível para emprêsas de qua~quer feiçao. f ' área totalmente
breve inscrição, feita mais tarde pelo próprio Martin Behaim no seu globo
terrestre: Isto não significa, porém, que a Áfnca t~ ro~eéd<;>sseaUM~ica Setentrional,
desconhecida e impenetrada. ~m plena a e Ia, ente cruzada or cara-
"Quando se contavam 1.484 anos desde o nascimento de Cristo Nosso Senhor, Sua Alteza assim como a Sibéria ou a Ásia Central, .era normalm . ntes branc~s Nada
Sereníssima, Rei João 11 mandou aprestar duas naves, chamadas caravelas, que foram pro- vanas tendo sido acessível também a viaJantes e comeroa ·.
' - · ervado uma carta partiCU1ar
vidas em Portugal com tripulação, alimentos e armas que seriam suficientes para uma saberíamos a respeito, se o acaso nao uv~sse cons d 147 0 ou oucos anos
viagem de três anos. Os navios e os tripulantes receberam, em nome d'El-Rei, a ordem do negociante florentino Benede_tt? Del, da~_nd~ t~ "cidade go reino dos
de passar além dos pilares que Hércules estabeleceu na África, sempre em direção ao sul após, e afirmando que em 1470 VIaJara p~ra 1m uc 'r notícia a res eito de
e do sol nascente, se lhes fôsse possível. O rei também supriu os navios com mercadorias das
mais variadas para que pudessem negociar em terras estranhas." bérberes" O mais surpreendente é que nao há qualque .. . h dopSaara"
· · . Timbuctu a ram a '
VIagens, empreendidas por europeus, p~ra d h b~rguês Heinrich Barth
O ponto mais interessante dêsse relato é a informação de que a segunda até quatro séculos após, quando _0 exp_or~dor aro de cidade do deserto,
expedição de Diogo Cão tinha recebido ordens para velejar sempre para o chegou à cidade em 1853. Até entao havia SI 0 e~~a. gran, os cristãos uanto
sul e, se possível, em direção ao sol nascente, o leste. Até então as instruções centro das caravanas, tão inacessível a todos ~s giao~r ~er existido ês;e tipo
dadas aos capitãos das expedições eram sem dúvida encontrar a rota para a própria Meca Mas nos dias de Benedetto nao par~oa · m como
o Presbítero João, isto é, alcançar a Abissínia ao longo do pretendido con- de dificuldades. àbviamente o florentino não considerou sua VIaf~e ·mpe-
. · - preendeu porque osse 1
flueqte ocidental do Nilo. Não há mais menção alguma disso. A expedição de- a~go de extraordináno, e certamente na~ a em z de relatar como e por
ve dirigir-se para sul e leste se possível, afirma, e a única interpretação pos- hdo por especulações de caráter geográfico. Em ve f ue havia um
sível do texto de Martin Behaim é que o único e inequívoco propósito da qual rota atravessou o mar de areia do dS~ara, a_pn~ at~mJ~ ~ue Benedetto
expedição portuguêsa era agora a circunavegação da África. comércio com pesados tecidos da Lombar Ia em Im uc ·
371
370
Dei não mostra reserva especial no resto da carta, mas alegremente se jacta
a respeito de suas outras realizações, o modo casual com que fala do que se sibilidade de sua firma negociar ou mesmo produzir diretamente o cobi-
julgaria ser seu feito realment~ gra1_1dioso em matéria de viagem, faz com çado mental.
que se suponha que em seus dtas Ttmbuctu era um centro bem conhecido, Malfante era, por isso, uma espécie d~ _pr?spetor, se b_em que. não_ fôsse
freqüentemente visitado por car_a':anas e não merecendo long~s descrições. 0 aventureiro do tipo com que nos famthanzamos atraves das ,hts!ónas da
Podemos supor, sem grande posstbthdade de engano, que tambem na África conquista do ouro em Sacramento ou Klon~yke. Naturalmente ~ao estava
do Norte e a despeito das dificuldades e dos perigos, o tráfego era muito desprovido êss~ genovês do_ ~aráter aventureiro, mas era, um ,a:tstocrata e
mais denso e as viagens extensas muito mais numerosas do que em geral nos por isso assumm su~ exp;~tçao ao Saara, que o levo_u ate o oasts de Tuat,
inclinamos a julgar. uma feição antes anstocrattca que puramente comerCial. Malfante nos tra_ns-
Enquanto Benedetto Dei era puramente negociante, sem inter.êsse pelo mitiu uma descrição muito viva de sua viagem em uma carta a seu amtgo
país ou seu povo, preocupado apenas com a venda de suas mercadorias, en- Giovanni Marioni, de Gênova. Escreve êle:
contrava-se no Saara, em 1450, um homem de tipo completamente diverso.
Isto acontecia portanto vinte anos antes, e tratava-se do perito em questões "Logo que deixamos atrás o mar em Honein (provàvelmente o yôrto de Tlemccn, _na A_r-
gélia), rumamos em direção sul, cavalgando durante. '!ns _doze ~1as. ~urante sete ~1as nao
bancárias e prospetor Antônio Malfante, de Gênova. Não se dirigiu êle até vimos qualquer habitação. Tu?o _era deserto, pl~mCles mt~rmmáve•s: como se fosse _um
Timbuctu, mas apenas até o oásis de Tuat. Não teve de ir mais longe para mar· durante o dia o Sol nos md1cava qual o trajeto, à nolte as estrelas. Quando hav1am
ficar sabendo o que desejava - isto é, que não existia ouro no Saara e que tran~corrido êsses sete dias, encontramos um estabelecimento fortificado (o oásis de Ta-
as caravanas árabes que levavam o ouro até o litoral norte-africano provinham balbert). Seus habitantes são paupérrimos; se~ únic? alimento sendo a água e os pouc~s
de territórios muito afastados no sul. produtos de seu solo pobre. Não plantam mu•tas co1sas, mas possuem tâmaras em quanti-
Malfante não viajou por conta própria, mas a serviço da firma bancária dade suficiente para não morrer de fome.
e mercantil de Gênova, Centurione, a qual, com suas filiais em Gênova, Atravessando êsse lugarejo, chegamos a Tuat. Tuat consiste de dezoito povoações, oli-
Cafa, na Criméia, Maiorca, Lisboa, Ruão, Antuérpia, Bruges e Bristol, era gàrquicamente governadas e circundadas po: altos m'!ros. E_ o chef<:_ de cada uma dessas
povoações defende os interêsses de sua comumdade estep ou nao a razao a seu lad?. Embora
de grande importância em meados do século quinze. Os negócios da firma tôdas elas estejam aglomeradas em peq~~na área, cada .uma procura, de p~r SI, obter o
sofreram rude golpe pelo escoamento rápido de metais preciosos para o maior crédito possível. E se qualquer viaJante chega a esse local, um dos hd~res do~ po-
Médio e o Extremo Oriente, assim como pelas perturbações políticas que se voadores torna-se imediatamente seu protetor, defendendo-o, mesmo que com 1sso arnsq_ue
originaram no século quinze - a Guerra dos Cem Anos, entre a França e a a própria existência. Por isso, os negociantes vivem aqui em segurança absoluta, mmto
Inglaterra, os conflitos internos da Alemanha e o colapso do Império Roma- ,naior que nos reinos de Tlemcen ou da Tunísia.
no do Oriente, o Império Bizantino, que possibilitou a captura de Cons- Sou cristão, mas mesmo assim ninguém me ofendeu, declarando apenas que nunca
haviam visto um cristão antes. É verdade que, inicialmente, quando era recém-chegado,
tantinopla pelos turcos. ficava eu irritado com o fato de todos, olhando-me, exclamarem com surprêsa: ":Esse cristão
Pois que a falta de valores monetários, que se tornava cada vez mais evi- tem rosto igual ao nosso"! Pois acreditavam que os cristãos possuíam rostos deformados.
dente, resultou em que cada novo rei ou potentado emitisse novas moedas, Mas sua curiosidade foi em breve dominada, e ando por onde bem entendo, sem que me
tão logo chegasse ao poder, e essas moedas novas eram invariàvelmente de demonstrem má vontade.
menor valor intrínseco que as precedentes, embora tivessem o mesmo valor Existem muitos judeus aqui. Sua vida é boa, pois ê~es usufruem_ ~a proteção, ~os lí-
nominal. As relações entre as moedas européias haviam-se tornado completa- deres de povoações, apoiando cada qual os seus proteg1dos. S'!a ex1stenna é paoflca. O
mente confusas e, com um decréscimo progressivo do valor do dinheiro, con- comércio está em suas mãos e bom número dêles goza da confiança de todos.
centrava-se o interêsse em objetos de "valor real". Assim, as relações comerciais :Este lugar é uma estação no caminho da terra dos negros, para onde comerciantes se
dirigem com suas mercadorias para vender-lhas. Para cá trazem o ouro, que v~nde~
intereuropéias puderam ser mantidas apenas dificilmente, com acordos sempre àqueles que procedem da costa. :Este local aqui é chamado De Amamento (Tamenut), Vl·
renovados e adaptados à situação do momento; resumindo, podemos dizer vendo aqui muita gente rica. Assim mesmo, porém, é a massa popula~ bastante yobre,
que tendências inflacionárias se faziam sentir com fôrça imperiosa. porque nada pode ser cultivado aqui, com exceção de tâmaras, que constituem o ahmento
Essas perturbações monetárias podem ter sido vantajosas para o desenvol- básico. A única carne é a de camelos castrados. É muito rara, mas de sabor excelente.
vimento da arte européia; há muito em favor da tese, por vêzes defendida, Os árabes, com os quais viajei desde a costa, levam milho e ceva_da para Tamentit,
de que êsses fenômenos inflacionários levam o capital a ser invertido ~m vendendo êsses produtos durante o ano inteiro pelo preço de 5 flonns em moeda sar-
racena.
"valores reais", isto é, à construção de edifícios bonitos e à compra de pm-
Nunca chove aqui. Se chovesse, as casas seriam destruídas, já que são construída~ de
turas, esculturas e jóias custosas, consideradas como "investimentos". Esta treliça de sal e junco. Nem cai neve. Durante o verão o calor é tan~o gue ~s pessoas fl~am
condição de uma inflação mal velada porém tornou-se, com o tempo, tão de côr quase preta. As crianças de ambos os sexos andam nuas até atmgu a 1dade d_e q'!mze
vexatória para as grandes casas bancárias da época, como era perigosa para anos. Os nativos professam a fé moslemita. Nas vizinhanças existem entre cento e cmquenta
reis e imperadores, ameaçados pela queda da renda real de seus súditos e ? e duzentos oásis.
aumento contínuo de sua própria dívida. O desagrado com a situação uni- 1o sul, atravessa o país um grande rio, que em certos períodos do ano transbord_a, inun-

versal parece ter-se manifestado mais claramente nos círculos altamente ca- dando aquelas regiões. :Esse rio passa por Tambet (Timbuctu), procedendo do Egtto. É _o
pitalistas da Itália Setentrional. Seja como fôr, sabemos que foi decidida em no que desemboca no mar perto do Cairo. Existem muitos b~r~os no mesm?, com os _qua1s
fazem negócios. Afirma-se qu e existiria a possibilidade de v•apr até o Egtto pelo no, se
1447 em Gênova, por um comissão de peritos que se reuniu sob a égide dos não fôsse um ponto em que a água se precipita de um_ recife a cêrca ~e duz~ntos ~etros.
Centuriones, a introdução do padrão ouro. Como conseqüência lógica dessa Ess_a queda de água não pode ser enfrentada por navw algum. Daqu• ao no, a v1agem
medida, os Centuriones enviaram ainda no mesmo ano, ao Saara, seu dele- sena de 20 dias a cavalo.
gado Antônio Malfante, para que averiguasse de que · parte do interior Os habitantes daqui, se entendi certo, s~o vizinhos dos ~in~us. N:goci~n~es indi~nos
africano procedia o ouro exportado para a Europa e saber se existia a pos- chegam aqui, sendo entendidos por meio de mtérpretes. tsses md1anos sao cnstaos, adOian-
do a cruz.
372
373
.. Mu~tas vêzes inquiri onde o ouro era encontrado e reunido. E meu protetor respondia: especialmente por aquêles que haviam, êles próprios, visitado a África Orien-
Passe1 .quatorze an~s entre os negros e sempre de ouvidos atentos. Mas nunca encontrei tal árabe. Apresentavam boas razões para essa opinião. Não apenas se proje-
quem uvesse conheame~to exato a êsse respeito. Por isso é lícito supor-se que procede de tava a costa oriental da Africa Meridional em leve curva para o oeste - o
longe e, conforme acredito, de alguma região espedfica". Ao mesmo tempo contou-me êle que contrariava a antiga convicção de que a África estava unida à índia -
ter visitado regiões onde a prata valia tanto quanto o ouro ... " mas também não há dúvida que, de vez em quando, algum capitão árabe
passasse pelo Cabo das Correntes, limite meridional da esfera de interêsses
Vê-se por esta carta que o autor ~ia com olhos abertos a situação na terra árabes na África, avançando muito para o sul. Provàvelmente mesmo, existe
em que se encontrava. ~m breve ficou, sabendo que não se produzia ouro verdade na antiga tradição árabe, de acôrdo com a qual uma embarcação
no Deserto do Saara, e fi~ou-lJ;Ie bem. claro, também, a proporção tão elevada árabe dobrou o Cabo da Boa Esperança já em 1420. E não é de maneira al-
do_ ou~o _procedente do _mtenor afncano acumulada nesse lugar particular. guma impossível que também Cão soubesse dêsse fato.
Ah exiStia o sal, um mmeral escasso em vasta áreas africanas, e pelo qual Quando, contudo, seus navios voltaram a Lisboa, sem ter tido o êxito es-
de bom grado davam seu ouro. ~ste ouro provinha do sul; não poderia por- perado, dúvidas parecem ter novamente surgido quanto à exeqüibilidade 'do
tanto ser encontrado nem no Saara e nem no litoral encontrando-se em alcance do Oceano indico por via marítima. Essas dúvidas eram ainda mais
distâncias longínquas, de dificílimo acesso. ' convincentes por se terem levantado, em fins do século quinze, muitas vozes
Por ~sso não ~oi o ;elatório, enviado por Malfante aos Centuriones muito na Europa exigindo o retôrno à antiga rota asiática pelo Indo acima e des-
encoraJador. Pms sabia também que o comércio do ouro estava em mãos fir- cendo depois pelo Amu-Daria. Entre outros argumentos favoráveis a essa
mes. É verdade que, embora fôsse cristão e europeu, não teve de enfrentar rota difíCil cumpre mencionar um, de extrema importância: mesmo que exis-
hostis sentimentos. no oásis de Tuat - fato surpreendente, temos de acrescen- tisse uma rota marítima para a índia, dobrando a extremidade meridional
t~r. Mas, a dedl!Zlr de sua carta a Giovanni Marioni, pode haver pouca dú- da África, demandaria ela tempo demasiado prolongado, fazendo com que
vida de que os arabes, empenhados no comércio do ouro cuidavam de man- as dispendiosas especiarias indianas fôssem expostas durante semanas e meses
ter sua exclusivid_a?e sôbre êss~s interêsses e haveria pouco motivo para a um calor tremendo. O que teria um efeito prejudicial sôbre seu aroma,
estabelecer. uma f,Ihal da empr.esa ~os Centu~iones em Tuat. A afirmação diminuindo seu valor e seu preço, não permitindo assim os altos lucros, ne-
de que se~Ia possivel aicanç~r o Egito pelo no que passava por Timbuctu, cessários para equilibrar o grande risco que os comerciantes corriam com o
q_ue ta_mbe~ deve ter mclmdo em seu relatório enviado aos seus diretores, transporte dessas mercadorias.
tm~a mdublt~ve_lmente o efeito ~e .:onfirmar na Europa a opinião que pro- Aparentemente, decidiu-se naquela época em Lisboa esclarecer de vez a
cedia. da Antigmdad_: - uma opmiao que o próprio Malfante defendia in- situação. Por isso, no ano de 1487, a coroa portuguêsa jogou dois trunfos
transigenteme.nte. Nao sa~emos ao certo se sua afirmação, concernente aos ao mesmo tempo: por um lado enviou alguns nobres de confiança para a
mercadores hmdus no oásis de Tuat, se referia realmente a indianos ou se índia e a Abissínia pelo caminho terrestre e por outro mandou que Barto-
falava de ~bissínios. É perfeitamente possível que se tratasse de hindus, uma lomeu Dias, com duas caravelas de cinqüenta toneladas de deslocamento
vez que Timbuctu e~a um grande merca~o comercial p~ra o Egito. e a Ásia cada e uma menor concluísse a circunavegação da África, abrindo o caminho
~enor durante os seculos quatorze e qumze e que, assim, comerciantes in-
marítimo para a índia.
dianos bem podem ter encontrado o caminho para essa região. A expedição terrestre deixou Portugal em maio de 1487 e Bartolomeu Dias
levantou âncoras para sua grande viagem em agôsto. Desde o início viajou
sob constelação favorável. Ventos setentrionais impeliam ràpidamente as naus
para o sul. O temido Cabo Bojador foi dobrado na primeira tentativa. Os
fortes e as posições-chave estabelecidas pelos portuguêses em anos anteriores
apareciam ao longo das costas um após outro: o florescente Arguyn, no Cabo
4 Branco, a noroeste da África, terminal de velhas rotas de caravanas através
do Saara, que mais tarde foi ocupado primeiro por Brandenburgo e depois
E~_?ora a. viag~m de . Malfante fôsse certamente apenas uma das muitas ex- pela França; depois, a igualmente florescente Elmina, próxima de Three
pediçoes~o mtenor afnc_a~o, lançadas pela Europa - da mesma maneira pela Points, na Costa d'Ouro. Em seguida, as cruzes de mármore de Diogo Cão: no
q~al a~ VIagens de Carpmi e Ruysbroek ao interior asiático não constituíam estuário do Congo, em Santa Maria (Benguela), e, finalmente, no Cabo Cruz
felt?s Isolados ,- a significaç_ão geográfica das viagens marítimas excedeu e~ em Swakop.
mmt? ~s possiVelmente mais numerosas explorações terrestres. Geralmente Daí por diante território inexplorado jazia diante dos portuguêses, uma
é mais _Importante descobrir a extens_ão e. o trajeto da cos5a de um país des- costa difícil, rasgada por recifes e bancos de areia, abrasada pelo sol, com
conhecido do que a ~atureza de seu mtenor, e a exploraçao do "hinterland" escarpadas e inóspitas cordilheiras. No Natal de 1487 chegam ao que é hoje
geralmente nada mais é que uma seqüência do conhecimento de suas costas. Angra Pequena a 26 graus sul, e lá celebram o dia do Nascimento do Senhor,
Por essa razão ~enovar~am o_s P?rtuguêses muitas vêzes os seus avanços para descansando um pouco dos rigores até então passados na viagem. Essa baía
o su~. Quando Dw~o Cao atmgm os 2~ 0 sul em sua segunda viagem, tmha constituía o único pôrto abrigado naquelas partes e o coração de Bartolo-
p~ovavelmente _ouvid~ rumores dos nativo~, conso~~te os. quais era possível meu Dias como que pára de bater quando pensa em como era vulnerável
Circ~ndar a Áf~Ica. Pms eng~anto a geografia europeia no fim da Idade Média pela~ tempestades a sua pequena frota. Quando, depois das festas, tornou a
duvidava .da Circunavegabihdade da África, afirmando ser o Oceano fndico partir, fêz com que ficasse bem dentro do mar. Que Deus o livrasse de aqui
um mar mternC?, defendia a maioria_ dos geógrafos árabes o ponto de vista s~frer naufrágio ou correr contra um banco de areia! Não havia água, nem
de que era possiVel contornar o Contmente Negro. Essa opinião era mantida seres vivos, nem um traço de vegetação por onde quer que olhasse. E êsse

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sotavento, e a costa desaparece do horizonte ameaçador. Perdurou a borrasca,
e êles continuam buscando o sul.
Em meados de janeiro de 1488 apaziguou-se o tempo. A borrasca voltou a
ser vento forte e êste, mudando um pouco de curso, chegou a um ponto ideal.
Soprava do ocidente e Dias velejou para leste. Onde haveria terra? Passou um
dia outro. Não havia sinal de terra. A tripulação começa a sublevar-se. Ate-
mo~izados, é o que estão. Não havia negar que a distribuição de suprimentos,
por fôrça das cucunstâncias, se tornara pior e pior. A carne salgada não se
conservou. Entre cinza e verde estava sôbre os pratos de latão, e o armazém
de mantimentos exalava um cheiro de esfoladouro. "Direção norte", ordenou
Dias, e pesadamente voltaram-se as naus para o curso indicado.
O terceiro dia estava acabando quando dos mastros veio um grito de ale-
gria: "Terra! Terra!" Ainda nada se via do castelo de proa senão o mar,
ondas em longos e compassados movimentos. Mas 1~ estava. Um _traç? ~cin­
zentado que gradualmente crescia, tornando-se mais escuro, mais distmto.
Não havia dúvida, era terra mesmo!
Era no início de fevereiro de 1488. Dias não tinha a mínima idéia sôbre
onde se encontrava. E nem no-lo sabemos hoje em dia. É provável que se
achasse a duzentas milhas a leste do Cabo da Boa Esperança, na área da
Baía Mossel. Talvez tivesse o pressentimento de ter con~ornado a Áfri~a
nesses dias de temporais. Mas desejava ter a certeza. Assim sendo, segum
curso setentrional, durante alguns dias. Depois percebeu gue realmente rea-
lizara a tarefa almejada. Completou o capítulo que Henr~qu~ o Navegador,
iniciara nos inícios do século. Contornando a África, havia sido encontrado
62. !"fa~~ dà Africa. Publicado em 15?8, em Mi_lão, chamado "Itinerarium Portugal- o caminho marítimo para a índia!
lens~u~. , mostra-nos o que se conhecia a respeito da forma do continente africano, No Grande Rio dos Peixes, a meio caminho entre Pôrto Isabel e Londres
no IniCIO do século XVI: C. de Buga, corresponde ao Cabo Bojador; C. Biancho, Oriental, a tripulação sublevada força-o ao retôrno. Com dificuldades viaja
ao _Cab? Branco; C. _Yerdo _corresponde ao Cabo Verde; Monte Negro é uma elc-
va_çao sobre_ a qual Dwgo Cao, em 1496, plantou o marco de posse. O Gôlfo Pérsico para oeste, contra ventos perpétuos. E quando passou pelo Cabo da Boa Es-
fo1 transfendo ao Mar Vermelho; Meca está completamente mal situada. "Zenobic perança havia-se levantado tal tormenta, que o chamou de "Cabo das Tor-
Insu1" é ponto duvidoso; Compam, na índia, corresponde a Cambaia; dois outros mentas". Mas o nome não agradou a D. João II de Portugal. Mud~u-o para
lugares assinalados na índia são Cananora e Calcutá. "Cabo da Boa Esperança" porque a existência de uma rota marítima para
a índia havia, finalmente, sido provada.
so~ inclemente~ dia após dia .. Conseguiu ~orém fazer uma observação enco- Bartolomeu Dias não foi capaz de pôr em prática a espe~ança que ce_rta-
raJadora: os nos que procediam do contmentt! eram meros ribeirinhos se mente também .êle nutria de alcançar a índia por êsse cammho: O eqmpa-
comparados a_o <;:o~go, que havi~ passado há algumas semanas atrás. O que mento de seus navios dificilmente teria sido suficiente para tal VIagem. Ade-
apenas pode~Ia mdica~ que os n~s não possuíam "hinterland", que os abas- mais, havia ainda uma lacuna no quadro geográfico do caminho marítimo
tecesse com agua. Por Isso, conclmu, deve essa terra ser estreita deve estar-se às índias, que estava gradualmente emergindo desde que o Infante D. Hen-
estreitando cada vez mais desde que o Congo fôra deixado at;ás até formar rique fundara sua escola de navegação. Essa lacuna foi preenchida J?ela ex-
uma ponta no s~l. Repetidam~nte recapitulou o que lhe fôra dito por Martin pedição terrestre que se havia dirigido à índia no mesmo ano que Dias com
Beha_Im e confirmado por Dwgo Cão: a costa da África Oriental parecia ~eus navios. Seu líder, o cavaleiro Pedro de Covilhão, dirigiu-se pr~meiraf!lente
retrair-se para oeste. a costa Malabar da índia via Áden e, na volta, explorou a Afnca Onental
E esta costa aqui, na qual celebrava o Natal - não se voltava ela para até Zambeze e o pôrto de Sofala. Suas observações, lig~da~ àquelas _de Barto-
leste? ã? tinha êle de virar um ponto para bombordo sempre que passados lomeu Dias, provaram finalmente que os Oceanos Atlantico e ín~Ico se e~­
alguns dias? contravam e que indubitàvelmente seria possível alcançar a índia por via
Celebraram missa, receberam porções especiais de rum, houve distribuição marítima.
de água fresca, trabalharam um pouco nas caravelas e nas velas. Passou o };sse ano de 1488 também preenche a última lacuna de nosso capítulo sôbre
Natal e certo dia soou o apito dos pilotos. As velas subiram aos mastros e, a África e os portuguêses. No seu início temos a figura impre~sionante ~e
no sôpro de uma fresca brisa norte-ocidental, partiram as caravelas para mar Henrique, o Navegador, no final a abertura do caminho marítimo à índia
aberto. };sse vento se manteve, ~umentou de fôrça e Dias teve de preocupar- pelos portuguêses. Essa realização foi devida inteiramente ao Infante, único
se novamente com a costa pengosa. O noroeste, que foi brisa e se tornara responsável pelo desenvolvimento marítimo de Portugal, pois a~é sua ép~ca
yen~?· passou ~. te~poral. Va!fi_DS para longe da terr_a, e que Deus nos prote- ~ a despeito da situação geográfica do país no oceano, com sua lmha ~os~eua
p_! Curso sul , gritou ao piloto para fazer-se ouvir através da tempestade Irregular e seus portos excelentes, com sua população empenhada pnnCipa~­
mvante. "Curso sul", respondeu-lhe êste, os navios se inclinam mais para mente na pesca e por isso acostumada a viagens costeiras, Portugal não evi-
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Isto foi escrito em inícios do ano de 1488 pelo s~bio ~ astrólogo alsac~ano
denciara indícios de que se tornaria uma potência marítima de tal enverga- h n Lichtenberger, em um tratado bastante difundido. W. E. Peu ert,
dura, da mesma maneira pela qual a Inglaterra não fazia prever o seu papel Je~ a~u livro culto e interessante, "A Grande Mudanç~", delbateu ~::'t~nsa­
marítimo. Em ambos os países predominava durante muito tempo uma ver- te 0 assunto não deixando dúvida de que, com tais pa avras, 1c ten-
dadeira aversão e repúdio ao mar. Em Portugal foi o Infante D. Henrique ~e~ er a enas e~primia a opinião de todos: aquela ~os campo_neses que
que, com sua mania pela nave~ação, impeliu os portuguêses para seu destmo & p"penni"nc" 0 capitalismo do fim da Idade Méd1a, dos habitantes das
em alto mar. Não cabe discutir aqui se é o indivíduo que faz a história ou temiam o • · - d · 1 c· a dos
cidades, ameaçados de contínuo saque e perpetuas a1oes e ~10 en I •
A

se um homem como Henrique é meramente o meio através do qual fôrças reis e grandes senhores, empenhados_ em guerras contmuas e os monges e
históricas impessoais encontram a sua expressão, mas uma coisa é certa:· não
as cheios de pecados e transgressoes. . .
foram os cavaleiros, camponeses ou trabalhadores de Portugal que abriram pa~a~ todos procuravam incriminar os outros por "êsse eclipse e essa .e~un­
o caminho marítimo para as índias, a despeito de todos aquêles que deram dão" Camponeses que haviam contraído pesadas dívidas c~m JU eu.~,
seu sangue e sua vida para tal objetivo, mas esta glória cabe apenas ao In-
fante D. Henrique, a Henrique, o Navegador - apesar de êle nunca ter mass~cravam êstes 'últimos em todos o~ país~s. São os famos.~ P;~!~~~~s~
Huss e w clif e Johannes von Wesel mvectivam c~ntra a VI a P . _
lcap ist~s imperadores e príncipes acusam-se reoprocamente , f~ental~.da
realizado grandes viagens e se bem que o Cabo da Boa Esperança fôsse do-
brado apenas quando já havia repousado debaixo da terra durante uma ge- dos 1
ração inteira. des oentias ' dão origem ao " martelo d; b ;u::'as " ' o " m alleus ma le Icarum -
é oca J o-
e na mais profunda e emocionante dor mtima, excla~a naque a P, .
Chegamos ao fim de nossa narrativa. E, ao mesmo tempo, estamos no sephus Gruenpeck, historiógrafo do Imperador Fredenco III, aos ceus Im-
limiar de uma época nova. Essa era não é nova simplesmente porque o ca-
minho marítimo para a legendária terra das índias se havia aberto em direção passíveis: .
"É verdade ue quando percebeis a corrupção miserável de tôda a cnstandade,. de
para leste, enquanto para o oeste se abrira para o Novo Mundo e porque,
todos os apreciá~eis costumes, regulamentos e leis, a miséria de tôdas a~ ~!asses, as fJ?Ul~as
em conseqüência disso, tôdas as maravilhas da terra jorravam sôbre a Europa. t as mudanças nesta era e todos os acontecimentos estranho~, sa e1s ~ue o 1m o
É nova porque ela dá origem a sêres novos. ~~~~ está próximo. E as águas da aflição vão inundar tôda a cnstandade.
Isto aconteceu repentinamente, um processo que realmente se verificou em
menos de cinqüenta anos. Seus expoentes no mundo exterior são homens Não parece .êsse clamor ressoar. ainda em no~sos ouvidos? Não é também
como Colombo, Cortez e Pizarro. No mundo do espírito, personalidades como êste o nosso lamento, o nosso gnto de socorro. _
aquelas de Copérnico, Erasmo de Rotterdam, Duerer e Hutten - para apenas Mas enquanto os céus permanecem mudos, abr~m-se ~s c<?vas. As flores nao
dar o nome de quatro dêsses irmãos do espírito novo. murcham mais apodrecem. A morte não é mais o termmo calmo de um
Antes dêles, predominara o chôro e a violência. Nunca pareceu aos contem- dia estival em declínio, é 0 esqueleto com funéreo sorriso e dentes. expofto~
porâneos tão grande a confusão, tão predominantes a descrença, a infidelida- que impassivelmente opera a foice. Todos tombam sob seus golpes. as P an
de, a dúvida; nunca, assim julgavam, haviam sido tão cruentas as guerras, as- tas 'as flores os cereais em flor, as fôlhas murchas. Alegra-se a morte com sua
sassinatos tão freqüentes; jamais, criam, haviam sido tão comuns o veneno, coÍheita: e~ 1424 é pela primeira vez rerresentada en:_ dansa alegre, n3s
o punhal e tôdas as espécies de crimes e nunca se julgava estar tão próximo muros do Cemitério dos Inocentes de Pans. Desde entao foi representa ~
do fim do mundo como nas últimas décadas do século quinze. milhares de vêzes, em xilogravuras, escultura~. e trabalhos de .~ele;ro! cu:~­
Era um temor antigo que assaltara os povos. Já as videntes sagradas dos nando na ironia terrível da "Dança Macabra de Duerer, na Cromca m-
velhos germanos haviam profetizado a terrível batalha final há muitos milê- versal'' de Hartmann Schedel, de 1493.
nios passados. A essas imagens semi-obscurecidas sobrepunham-se agora cren- É êste também 0 fundo para 0 diálogo desesperado entre a Mo~te e ~
ças cristão-orientais. O poema místico do Fim do Mundo, escrito por Metódio "lavrador de Saaz", Peter Kettenfeier, cuja jovem espôsa, D .. Marganda, fm
de Patara em 800 de nossa era foi reimpresso em 1475 em Colônia. Vinte anos levada pela Grande Ceifadora para o Remo Negro em 1400.
antes haviam os turcos conquistado Bizâncio, a cidade santa, com morticínio
terrível e a advertência de Metódio fêz estremecer o mundo atemorizado: "Perguntas-nos de onde viemos: do Paraíso Terrestre. Ali Deus nos cri?u. E deu-nos
dia em que comeres do fruto, decerto morreras a tua morte.
nosso nome certo ao dizer: 0
E por isso nos assinamos:
ós, Morte, Senhora e Poderosa na Terra, no Ar e nas Aguas
"Sobrevirá o tempo em que os agarenos voltarão a reunir-se em terras alemãs, saindo
dos desertos. Apoderar-se-ão do mundo por oito anos. Vão perverter cidades e reinos, estran- do Mar."
gulando sacerdotes em seus lugares santos. Vão deitar-se com as mulheres e beber dos
cálices sagrados. E vão amarrar os seus animais nos túmulos sagrados." Pertence t~mbém a essas considerações
·
a desesperada tentativa de esqu~c~r
tudo em intemperança patológ1ca, em VI"nho, musica,
' · JOgo, no meretncw
_ ·A

Já na carta mística do Presbítero João aos três protagonistas principais da dos banhos e nas danças nuas. A "Crônica Zimmeriana" relata nao poucas
alta Idade Média, o Papa e os dois imperadores, ressoava um som apocalíptico. vêzes ue essa ou aquela mulher "dançou completamente. nua com pess~a~
Agora o temor do cataclismo se transforma em horripilante certeza. E quando, levian;s, em impudicícia indescritível". Pegar depr~ssa maiS a/gum b?m °
em 1485, a um eclipse total do Sol, visível em tôda a Europa, seguiu-se o cado e ingeri-lo ràpidamente, pois. q_ue tudo podena ter um Im ternve 1 no
encontro de dois planêtas tão poderosos e malignos como Júpiter e Saturno, dia de amanhã - isto também foi smal dos tempos.
todos os esclarecidos sabiam: Como tudo isso nos parece familiar! Vivemos nós. mesmos ~ssa fase! E como
jazem enterrados profundamente os nossos própn?s de'!ses. h,
"Os sinais, conjurados por êsse eclipse e essa escuridão, são terríveis e quase aterradores. E assim mesmo não vai a humanidade perecer hoje ~ais _do que perece~ ;
E mais terríveis quando alguém os viu ou experimentou. A tal ponto que o horror me quinhentos anos passados! Pois enquanto o mundo mteuo estava con e
impede de declarar a sua importância."
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piando, fasc~nado, o abismo das Coisas últimas, esmagado pelo horror e pelo
prazer, abnam-se vagarosamente os portões que levariam a uma nova
era: Inicia~mente de J?Odo quase ~mperceptívef, tornando-se gradualmente
mais e ma1s claro, e fmalmente bnlhante e luzente, inunda a luz a escuri-
dão cavemos!!. Velas esvoaçam através do dia cerúleo e, como se fôsse por
pas~e de mágtca, novas margens se levantam do Nada. Algumas décadas depois
Ulnch von Hutten, atormentado por doença repelente e martirizado por
dores horríveis exclama com entusiasmo vivo: "Os espíritos acordaram, viver
é alegria!"
Será que essa mensagem se destina também a nós? Não nos reconhecemos
s~mpre na representação dos sêres e dos acontecimentos que se desenrolaram
dtante de nossos olhos? Estaremos também nós, que já fomos convocados
pe~as trombetas do Juízo Final, numa soleira, cuja porta principia a entrea-
bnr-se vagarosamente?
Não o sabemos. Mas queremos crê-lo, devemos crê-lo, e temos boas razões
para assim proceder. Pois sempre e sempre, desde que sêres humanos ha-
bitam esta terra, confirmou-se a velha profecia do Dr. Fausto: "Para margens
novas atrai o novo dia."

FONTES BIBLIOGRAFICAS
As reproduções e os desenhos, no texto dêsse livro, foram postos gentilmente à dispo -
sição por:
Editôra Eberhard Brockhaus, Wiesbaden, de HERBERT KUEHN, "Nas Pegadas do
Homem da Idade do Gêlo", N. 0 2 e 3 - Editôra Hoffmann und Campe, Hamburgo, de
A. W. BROEGGER, "Viagens à Vinlândia", N. 0 46, 47 e 50; PASSAT 1, Hamburgo 1950
N. 0 17; Museu Pré-Histórico de Saint Germain-en-Laye, Paris: N.0 1; Ullstein Bilderdienst,
Berlim: .o 4, 5, 7, 13, 14, 19, 20, 43, 45, 59; todos os demais: Arquivo.
Os mapas foram desenhados pelo Dr. W. Eggers e G. Lohr. Os mapas V, VIII, X, XXXI,
e XXXII foram esboçados de acôrdo com as pesquisas de EGMONT ZECHLIN (História
Marítima Mundial, Hamburgo, 1947) o mapa XXVII de acôrdo com PASSAT 3, Hamburgo
1949, o mapa I de acôrdo com A. SCHULTE , Tartessos, Hamburgo 1951, os mapas XII
e XIII de acôrdo com ALBERT HERMA , "As Velhas Rotas de Sêda entre a China e
a Síria", Berlim, 1910, os mapas XX e XXII de acôrdo com PAUL NOERLUND, "Colônias
dos Vikings na Groenlândia", Leipzig 1937, o m apa XXV de acôrdo com E. F. Gary "Leif
Eriksson, Descobridor da América", Nova York, 1930 os mapas VI e XXI: Ullstein Bilder-
dienst, Berlim, as outras são esboços do autor.
As reproduções fotográficas foram cedidas por: "American Museum of National History",
Nova York, N.o 32; Deutscher Kunstverlag, Berlim N. 0 3 a 7; Thor Heyerdahl, "Kon-Tiki",
Ulistein-Verlag, Wien 1949, N. 0 26 e 27; Biblioteca Latino-Americana, Berlim: N .0 31, 33,
34; LECHLER-GRAY segundo "Os Descobridores da América antes de Colombo", editôra
Curt Kabitzsch, Leipzig 1939, N.0 46 a 48; Bishop Museum, Honolulu, segundo PETER
H. BUCK, "Vikings da Aurora", Editôra I. B. Lippincott Comp., Filadélfia, 1938, .0 36;
National Museum, Copenhague: N .o 40 a 43; Ehem. Staatl. Museum fuer Vor-und Fruehg_e-
schichte, Berlim, .0 50, 51; Arquivo: 57 Todos os demais: Ullstein Bilderdienst, Berlim.

381
380
A experiência humana no que ela tem de heróico e pitoresco
nas páginas da série

CAMINHOS DA VIDA
Pdginas de sentido profundamente humano, dl!s quais constam narra-
tivas de fatos reais, experimentados e sentidos, em que a realidade
surge sem qualqu·er artifício aos olhos do leitor, colocando-o frente a
frente com a própria vida.
I - O GRANDE MILAGRE - Betty Martin
2 -ENTRE A AGUA E A SELVA - Albert Schweitzer
5 - AVENTURAS NA GUIA A - Raymond Maufrais
7 -TERRA PROMETIDA - ]oan Lowell
8 - O APóSTOLO SÃO PEDRO - William Thomas Walsh
9 - LU1S BRAILLE - ]. A. Kugelmass
10 - NOSSA SENHORA DE FATIMA - William Thomas Walsh
12 - O CAPITÃO DOS ANDES - Raimundo Magalhães Júnior
13- A HISTóRIA AMOROSA DE MANUELA E BOLiVAR- Victor
W. von Hagen
15 -O CAMINHO DE UM CIRURGIÃO - Georg~ Sava
16 - MINHA INFÃ CIA E MOCIDADE - HISTóRIAS AFRICA-
NAS - Albert Schweitzer
18- A VIDA EXTRAORDINÁRIA DO P.• DAMIÃO- P.• Wilhelm
Huenermann
19- O MAIOR LIVRO DO MUNDO - Fulton Oursler
20 - A MAIOR HISTóRIA DE TODOS OS TEMPOS - Fulton Oursler
21 -A MAIOR FÉ QUE JA HOUVE NO MUNDO- Fulton Oursler
e April Oursler Armstrong
22 - GÃNDI - Louis Fischer
23 - AO SUL DO SAARA - Attilio Gatti
24 -VOLTA AO PARAíSO- ]ames A . Michener
25 - VALE APRAZíVEL - Louis Bromfield
26 -E t.LES VERÃO A DEUS ... - Kurt Pahlen
27 - CHAMADO DA SELVA- Attilio Gatti
28 - RAPSóDIA HúNGARA - Zsolt Harsdnyi
29 - MARAJAS, BEDUíNOS E FARAóS - Carmen Annes Dias Pru -
dente
30 -AS PONTES DE TOKO-RI -]ames A. Michener
31 - MI HA FAMíLIA É FORMIDAVEL - Kathryn Forbes

EDIÇõES MELHORAMENTOS
trutivo sob o ponto de vista d
ção histórico-geográfica de mil
completa-se com a forma roman
vigorosa e emocionante, que lhe
pressa. Aqui, a história da Anti
de, a começar pelos albores das I
da Pedra e do Bronze, seguind
florescimento dos primeiros n
povoados e das fulgurantes civili
subseqüentes, história já por si
de atrativos, é relatada de m
muito mais viva e vibrante, rev
do-se nestas páginas movimenta
uma roupagem completamente c
sa, bem mais colorida do que
conhecemos através dos comp
clássicos de História universal.
teorias do conhecimento do Atl
pelos egípcios, fenícios, gregos
manos, da chegada ao Novo ~
de navegantes anteriores a Colo
os enigmas da comunicação Sul-
rica - Polinésia, a coincidência ,
firmação pela realidade dos fat\
gistrados nos textos bíblicos, são 1
pios das teses colocadas em di~
pela objetiva e percuciente análi
autor, a que nem o Brasil es~
eis que alguns problemas arql
gicos e filológicos de nosso paísl
aqui abordados e discutidos.
De tudo o que é dito, explan
provado neste livro, com base er
ta e irrefutável documentação
achados e pronunciamentos da
cia, algo bastante concludente
tor extrairá das entrelinhas: os
históricos e as sociedades civili
suas glórias e depressões no carr
dos séculos, repetem-se de quaH•
quando, como se a história da I
nidade se fechasse num ciclo, p
homem é, pelo menos fundarr
mente, o mesmo dos primórdi•
tempos".
Obra incluída na lista dos
sellers" de maiores tiragens da
pa e América do Norte, A CON
TA DO MUNDO sem dúvida e
dada a repetir, tal como vem ~
cendo há alguns anos ·com .
Túmulos e Sábios, éste notá\
cesso entre nós.

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