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CONRAD EDITORA DO BRASIL LTDA.

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CONRAD LIVROS
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EDITOR DE ARTE
Marcelo Ramos Rodrigues
ASSISTENTES DE ARTE
Ana Solt, Jonathan Yamakami,
Marcos R. Sacchi, Nei Oliveira e Vitor Novais
O Mrro DAS NnçÕrs
A invençáo do nacionalismo

sQ=çQz

Patrick J. Geary

o
GOilttD
lIYlor
Copyright @ 2002 Fischer Taschenbuch Verlag
in der S. Fischer Verlag GmbH, Frankfurt am Main
Copyright desta ediçáo O 2005 by Conrad Editora do Brasil Ltda.

Tíruro oRIGINAL Europâische Viilker im frühen Mittelalter.


Zur Legende vom'Werden der Nationen

Cepa Ana Solt


TneouçÁo Fábio Pinto
PnrpenaçÁo Elaine Regina de Oliveira
EorçÁo Alexandre Boide
Drecneu,rçÁo Ana Solt
PnoouçÁo GnÁrtce Alexandre Monti (Gerente),
Alberto Gonçalves Veiga, André Braga e

Ricardo A. Nascimento
CTI Alexandre Cardoso da Silva e Ednilson Moraes
GnÁrrce Cromosete

Dados Internacionais de Catalogaçáo na Publicaçáo (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Geary, Patrick J., 1948-


O Mito das Naçóes: a invençáo do nacionalismo / PatrickJ.
Geary [traduçáo Fábio Pinco] -- São Paulo : Conrad Editora do
Brasil, 2005.

Título original: Europãische Vôlker im frühen Mittelalter.


Bibliografia.
rsBN 85-7616-120-6

1. Europa - Relaçóes étnicas - História 2. Europa - Relaçóes


raciais 3. Imigrantes - Europa 4. Nacionalismo - Europa -
História - Século 19 5. Roma - Fronteiras - História 6. Roma -
História - Invasáo dos bárbaros 7. Xenofobia - Europa I. Título

05-6726 cDD-305.80094

Índices para catálogo sistemático:


1. Europa : Relaçóes étnicas : História : Sociologia
305.80094
2. Nacionalismo étnico : Europa: História : Sociologia
305.80094

CONRAD LIVROS
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s^9==e9z

Para JeanAiriau e Jim Usdan, amigos e leitores dedicados


que entendem a importância do passado para o presenre,
assim como a diferença entre os dois.
TÍrulos DA CouçÃo ReDrcE
A crítica dos conceitos básicos da sociedade contemporânea.

. Arte, lnimiga do Povo


Roger L. Taylor

. O Mito das Nações


A lnvenção do Nacionalismo
Patrick J. Geary
SuuRRro
s.Ha

ACnnoECIMENToS ....09
lntrodução
A CRIsI DA IDENTIDADE EURoPÉIA .. 11

Capítulo 1

UUN PAISAGEM ENVENENADA: ETNICIDADE E


NACIONALISMONOSÉCULOXIX ......27
Capítulo 2
POVOS IMAGINADOS NA ANTIGÜIDADE . . 57

Capítulo 3

BÁnnnnos E oUTRoS RoMANoS . BI

Ca pítu lo 4
NOVoS BÁRBARoS, NoVoS RoMANoS ......113
Capítulo 5

Os urrrMos BÁRBARos?. . . .14i

Capítulo 6
A RrsprlTo DoS NoVoS PoVoS EURoPEUS 177

SUCrsrÕrs or LEITURAS CoMPLEMENTARES. 203

ÍNotcr REMISSTvo . 207


AGRADECIMENTOS
s'Hz

Minh"s reflexóes sobre a relaçáo entre os mitos dos povos euro-


peus e as realidades do nacionalismo contemporâneo foram desen-
volvidas em diálogos com muitas pessoas, especialmente com meus
alunos e colegas da Universidade da Flórid a, da UCLA, da Uni-
versidade de Notre Dame e da Universidade Centro-Européia de
Budapeste.
Entre 1994 e 1996, o Centro de Estudos Medievais e Renas-
centistâs da UCLA promoveu uma série de debates sobre o tema
"Criando a etnicidade: o abuso da história", patrocinada pelo Na-
tional Endowment for the Humanities (Fundo Nacional para as
Ciências Humanas). Durante essas conferências, pude aprimorar
minha compreensáo da relaçáo entre o passado remoto e o presente.
Nos encontros do projeto "tansformaçáo do Mundo Romano", da
European Science Foundation, tive o privilégio, como participante
convidado, de interagir com acadêmicos europeus que constituem
a vanguarda dos estudos das transformaçóes dos grupos étnicos do
final da Antigüidade.
Após decidir compartilhar o que havia aprendido a respeito das
etnicidades do passado com o público náo especïalizado, recorri a
muitos colegas e amigos. Ao longo desses anos, Otto Johnston, Ja-
mes Tirrner e Robert Sullivan muito me ajudaram a entender o con-
texto europeu no século XIX. Stephen Fireman me iniciou nas com-
plexidades da etnogênese africana, e János Bak me ensinou muito
10 --s O Mito das NaçÕes

sobre a vida na Europa Central do século XX. Sou especialmente


'Walter
grato a Herwig'S?'olfram, Pohl, Hans Hummer e James Us-
dan, que leram os primeiros rascunhos deste uabalho e deram suas
opinióes e sugestóes. Brigitta Van Rheinberg trabalhou com dedica-
çâo paratornar esta obra acessível ao público-alvo - náo-acadêmicos
interessados na relaçáo entre o passado e o presente. Holly J. Grieco
me ajudou na preparaçâo dos originais. O que há de bom neste livro
provém, em grande medida, desses generosos colegas e amigos. Os
erros remanescentes sáo meus.

Patrich J. Geary
Los Angeles
lntrod ução
sHz

A CRISE DA IDENTIDADE EUROPÉIA

Ha alguns anos, quando os europeus ocidentais pensavam a respei-


to do futuro da Comunidade Européia, seu foco se voltava quase in-
teiramente para a implementaçáo integral das reformas econômicas
e financeiras de 1992. Alguns aguardavam com satisfaçáo pela uni-
frcaçáo monetária, eliminaçáo das tarifas internas e livre circulação
dos cidadáos. Outros o faziam com hesitaçáo ou, até mesmo, com
medo. Contudo,, de modo geral, as naçóes da Comunidade viam
os problemas enfrentados pela Europa sob uma perspectiva parti-
cularmente limitada. Tinham uma visáo notadamente pro]inciana
dos elementos que constituíam a Europa. Além disso, seus desafios
eram mais relacionados aos problemas econômicos do futuro do que
às questóes explosivas e emocionais do passado. O próprio nome da
organïzaçáo traía a confortável miopia que a configuraçío política
do pós-guerra havia possibilitado. A "Comunidade Européia" náo
era o que seu nome sugeria. Era, na verdade, a Comunidade da
Europa Ocidental, para a qual a inclusáo da Grécia jâhavia gerado
problemas consideráveis. Para essas naçóes, a "Europa" terminava
na chamada Cortina de Ferro: por trás dela estavam as naçóes do
Pacto de Varsóvia, pobres, mas felizmente primas distantes, dema-
siado irrelevantes para os interesses econômicos e até mesmo milita-
res da Comunidade.
12 --e O Mito das NaçÕes

Nessa "pequena Europa", os velhos problemas de nacionalismo,


competiçáo econômica e tensóes sociais pareciam, se náo inteira-
mente resolvidos, ao menos controláveis. Movimentos separatistas
na Irlanda do Norte, na Córsega e no norte da Espanha continua-
vam derramando sangue, mas eram limitados e geograficamente
isolados. Em outros lugares, como no Tirol do Sul, na Bretanha e na
Catalunha, os movimentos micronacionalistas da década de L970
haviam se transformado em atraçóes turísticas folclóricas. Até mes-
mo os antagonismos entre valóes e flamengos na Bélgica haviam en-
fraquecido, enquanto Bruxelas se afirmava como capital da Comu-
nidade. As fronteiras nacionais, causne belli por séculos, haviam sido
estabelecidas por tratados e garantidas pelos Acordos de Helsinque.
Além disso, com a implementaçáo do programa de t992, pareciam
destinadas à irrelevância. A Inglaterra continuava indecisa em rela-
çáo à sua integraçâo ao continente, mas o resro do Reino Unido náo
demonstrava tal hesitaçáo, e o Eurotúnel promeria unir a França à
Inglaterra para acabar de vez com o isolamento geográfico e psico-
lógico da ilha. Após quatro décadas de uma irritante dependência
econômica e militar dos Estados Unidos, a Comunidade Européia
estava prestes a emergir como uma parceira em condiçóes de igual-
dade em assuntos internacionais, desafiando náo apenas os Estados
Unidos, mas também o todo-poderoso Japío como potência econô-
mica dominante. No Admirável Mundo Novo que seria a Europa
de L992, simplesmente náo havia espaço para os antigos problemas de
nacionalismo.
Como essa visáo nos parece inacreditavelmente ingênua agora...
Em poucos meses tumultuosos, a Cortina de Ferro, que náo só havia
isolado o Leste como também protegido o Ocidente, passou a reve-
lar uma Europa vasta e extremamente perigosa que se estendia até os
montes Urais. O entusiasmo exagerado das democracias ocidentais
logo se transformou em medo e desalento quando ondas e mais on-
das provocadas pelos abalos sísmicos de Moscou alteraram de modo
lntrodução: A crise da identidade europeia o^- 13

irreversível a paisagem política da Europa, que se mantinha estável


desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Enquanto isso, os efeitos
de 40 anos de políticas de governo que promoviam a máo-de-obra
barata na França e na Alemanha e estabeleciam os deveres do impé-
rio na Grá-Bretanha desencadearam crises de identidade e reaçóes
xenofobicas nessas democracias ocidentais.
Os fantasmas do nacionalismo, do etnocentrismo e do racismo,
que supostamente já haviam sido exorcizados da alma européia, re-
tornaram com força total após meio século de inatividade. O últi-
mo grande império europeu, o da Uniáo Soviética, esfarelou-se em
repúblicas autônomas, muitas das quais náo sáo mais estáveis do
que a própria Uniáo da qual buscaram se livrar. O entáo formidável
Pacto de Varsóvia náo existe mais, tendo sido substituído por uma
série de sistemas de governo cambaleantes e devedores, perturba-
dos por conflitos étnicos e à procura de um lugar na Nova Ordem
Mundial. Uma Alemanha unificada busca uma nova identidade, e
gritos de "a Alemanha para os alemáes" sáo ouvidos nas ruas. Os
Bálcás, barril de pólvora do século passado, mais uma vez foram
palco de guerra civil. Esses acontecimentos extraordinários e contí-
nuos abalaram tanto o Leste Europeu como a Europa Ocidental. O
resultado vem sendo uma profunda crise de identidade, que levanta
a questáo de como oS europeus vêem a si mesmos, suas sociedades
e seus vizinhos.
"Ironicamente, no fim do século XX, a Europa Central perma-
nece da mesma forma que estaya no fim do século XIX." A verdade
dessa afrrmaçâo, feita por um historiador austríaco em 1991, torna-
se ainda mais evidente nos dias de hoje. Nos Bálcás e no Báltico, na
Ucrânia, na Rússia e na Criméia, os antigos clamores pela sobera-
nia nacional sáo novamente escutados. As comunidades étnicas que
eram forçadas a co-existir sob a bandeira internacionalista do socia-
lismo encontram agora a liberdade para retomar antigas rixas. Os
complicados problemas dos direitos das minorias e das diferenças
l4 --e O Mito das Nações

religiosas e lingüísticas, que desencadearam duas guerras mundiais,


novamente ganham destaque na Europa. Além de o comunismo es-
tar desacreditado, tudo a que o socialismo se opunha está novamen-
te em voga. Assim não apenas o capitalismo e o individualismo se
tornaram populares, como também o anti-semitismo, o chauvinis-
mo religioso e o racismo atávico. Políticos poloneses competem para
ver quem é o mais polonês. Os húngaros recomeçam suas disputas
com os romenos a leste e com os eslovacos ao norte. Sérvios e croatas
matam uns aos outros, e ambos matam os bósnios, em nome dos
direitos nacionais. Os sérvios tentaram expulsar os albaneses de sua
sagrada Kosovo e, após o terror dos bombardeios aéreos da OTAN,
os kosovares retaliaram contra a minoria sérvia com a mesma bru-
talidade com a qual haviam sofrido nas mãos de seus antigos opres-
sores. Grupos étnicos espalhados pelo cadáver da Uniáo Soviética
exigem o direito à autodeterminaçáo política. Ninguém sabe se os
horrores da Chechênia sáo um prenúncio de mais violência.
Todos esses povos habitam regióes onde vivem outras minorias
étnicas, e muitos grupos desses povos vivem como minorias em re-
gióes dominadas por outros. Como conseqüência, as reivindicaçóes
pela autonomia política com base na identidade étnica proporciona-
ráo, inevitavelmente, disputas nas fronteiras, supressáo dos direitos
das minorias e conflitos civis, já que cada grupo promove a abomi-
nável açâo da "limp eza êtníca", a fim de garantir um estado territo-
rial etnicamente homogêneo.
As novas minorias étnicas, especialmente na Alemanha e na
França, sáo ainda mais problemáticas para a estabilidade política do
Ocidente do que o potencial para o renascimento dos tradicionais
movimentos separatistas regionais.
"A Bundesrepublik era uma boa pátria", disse-me um colega ale-
máo, com nostalgia e preocupaçâo, em 1990. Náo temos como saber
se â nova Alemanha será táo boa quanto a antr1a para seus filhos.
A unificaçáo, combinada com a presença de milhares de refugiados
lntroduçáo: A crise da identidade européia o.- '15

do Leste na Alemanha unifi cada, gerou uma crise sem precedentes


nos últimos 50 anos, afetando profundamente a maneira como as
maiorias compreendem os outros e a si mesmas. A geraçáo que criou
o milagre econômico alemáo está agora se aposentando, e seus filhos
e netos, criados no conforto do regime de Bonn, náo parecem muito
dispostos a abrir máo das regalias em prol de seus primos pobres do
Leste. O que os alemáes orientais estáo recebendo é uma parcela da
economia ocidental anteriormente destinada aos silenciosos parcei-
ros da Alemanha no rVirtschaftswunder:r os "trabalhadores-hóspe-
des" turcos e balcânicos que estão sendo enxotados da Alemanha
para a Bélgica e para a França por multidóes de impacientes oper*
rios da antiga República DemocrâticaAlemá. Esses, enfrentando o
desemprego em seu país e o subemprego na Lcinder ocidental, vêem
com suspeita os turcos e eslavos já estabelecidos no país, e com ódio
não disfarçado os poloneses, romenos e outros imigrantes que bus-
cam melhores condiçóes de vida na nova Alemanha. Enquanto isso,
o desvio de verbas públicas da Alemanha Ocidental para a Oriental
gera antagonismos e tensóes entre os que estáo acostumados a um
sistema estatal generoso e paternalista.
A reaçáo extrema a essa situaçáo é o renascimento da violência
racista nas cidades ocidentais. Uma reaçáo menos extrema, mas tal-
vez mais perigosa, é a retomada do debate sobre quem tem o direito
de desfrutar da prosperidade alemá. A constituiçáo alemá assegura
o "direito ao retorno", privilegiando os descendentes de falantes do
alemáo do Leste Europeu, mesmo que náo conheçam a Alemanha
nem dominem o idioma, em detrimento dos turcos nascidos e cres-
cidos na Alemanha. Quem é alemáo? Um imigrante pode se tornar
alemáo, ou seria a identidade alemá uma questáo de sangue, de raça?
Essas perguntas já foram feitas antes, com conseqüências terríveis.
A Alemanha é o país mais intimamente envolvido na transfor-
maçáo da Europa, mas o dilema alemáo, apesar de ser o mais óbvio,

'1.
Milagre econômico. (N. T.)
l6 --e O Mito das NaçÕes

nâo éde forma nenhuma único. Na Françâ, a presença de milhóes de


muçulmanos - tanto descendentes de norte-africanos como imigran-
tes recém-chegados, legalizados ou clandestinos - está propiciando
uma revisáo da identidade nacional francesa, com conseqüências
problemáticas. O medo da islamizaçáo do país tem colaborado para
o ressurgimento da direita xenofobica francesa, que agora afirma
contar com o apoio de mais de um terço do eleitorado, e paraquem
a qualidade de "francês" é mais uma questáo racial e cultural do
que política. Em setembro de 1991, por exemplo, o ex-presidente
Yaléry Giscard d'Estaing considerou a imigração paraa França uma
invasáo e pediu a substituiçáo do droit du sol (direito de solo) pelo
droit du sang (direito de sangue) como critério para a aquisiçáo da
cidadania francesa.2 Enquanto isso, França e Bélgica tentam lidar
com os outros refugiados, os que foram enxotados da Alemanha,
que agora competem com os milhóes de desempregados e subem-
pregados norte-africanos. A Itália e a Grécia tiveram que lidar com
uma "invasáo" de refugiados albaneses que migraram por causa de
uma economia deficitária e um sistema político falido. A Áustria,
que a princípio temia um envolvimento involuntário com a guerra
civil em sua fronteira, tenta agora lidar com milhares de refugiados
e imigrantes da Romênia, da Bulgârta e da antiga Iugoslávia. Nesse
país, que durante muito tempo usufruiu do mito de "primeira ví-
tima da ofensiva nazista" enquanto mantinha o status de território
neutro em relaçáo à Guerra Fria, um partido com idéias chauvinis-
tas e xenófobas acaba de emergir como o terceiro maior movimento
político. As naçóes da Comunidade Européia sáo "terras de imigra-
Çío", ou os benefícios de suas cidadanias devem ser reservados para
os "verdadeiros" franceses, italianos, dinamarqueses e britânicos? O
próprio fato de essas questóes estarem sendo levantadas indica como
o infame programa do nacionalismo e do racismo ainda está vivo.

2. Le Monde,24 de setembro de 1991.


lntrod ução: A crise da identidade eu ropéia o.- 17

Se os atuais incidentes na Europa chamam mais atençáo, náo


se pode esquecer de que o resto do mundo, especialmente os Esta-
dos Unidos, náo está imune a essas tendências ideológicas. Embora
muitos vejam os Estados Unidos como uma naçáo de imigraçâo
muldétnica, nem sempre as coisas se deram dessa forma, e parcelas
significativas da liderança política continuam alimentando o medo
da perda da identidade nacional, intimamente ligada à língua e à
tradiçáo nacional inglesas, como forma de conquistar o apoio da
populaçáo.3 Isso não ê nada surpreendente: Thomas Jefferson, o ter-
ceiro presidente do país, já quis estampar no símbolo nacional dos
Estados Unidos as imagens de Hengist e Horsa, os primeiros líde-
res saxóes que chegaram à Grá-Bretanha, iniciando sua conquista.
Jefferson afirmava ser uma honra descender de Hengist e Horsa,
"cujos princípios políticos e forma de governo adotamos".4 Durante
o período entre o final do século XIX e início do século XX, o an-
glo-saxonismo racial, como ideologia, excluía irlandeses, sul-euro-
peus e asiáticos dos Estados Unidos. Hoje políticos do ódio podem
infamar o entusiasmo instigando o espectro de um país em que o
inglês náo é a única língua oficial.
Um historiador dedicado a estudar a Alta Idade Média, ao exa-
minar esse problema em primeira máo, escutar a retórica dos líderes
nacionalistas e ler os trabalhos acadêmicos produzidos por historia-
dores oficiais ou semi-oficiais, ficaria surPreso ao perceber a impor-
tância da interpretaçáo do período entre os anos 400 e 1000 para
esse debate. De uma hora para outra, a história antiga da Europa é
tudo menos acadêmica: a interpretaçáo do período que compreende
o declínio do Império Romano e as invasóes bárbaras se tornou o
sustentáculo do discurso político na maior Parte da Europa.

3. Sobre a discutida tradição daidentidade cívica versus identidade étnica nos Estados Unidos, ver
Gary Gerstle, The American Crucible: Race and Nation in theTwentieth Century, Princeton, 2001.
4. Charles F. Adams (Ed.), Fomiliar Letters of John Adams and HisWife, Abigoil Adoms, during the
Revol ution, Nova York, 1876, p. 211.
'lB --e O Mito das Naçoes

Na França, Jean Marie Le Pen, líder da Frente Nacional, declara-


se defensor do "povo francês nascido com o batismo de Clovis no
ano de 496, que tem carregado essa chama inextinguível que é a
alma de um povo por quase 1.500 anos".5 Em 28 de junho de 1989,
o ditador sérvio Slobodan Milosevic organizou uma manifestaçâo
com, segundo o que foi noticiado, mais de I milháo de pessoas em
"Kosovo Polje", o "Campo dos Melros", onde, naquela mesma data
em 1389, o exército sérvio havia sido derrotado pelos otomanos. Seu
propósito declarado: reafirmar a determinaçáo dos sérvios de nunca
abandonar aquele território.6 No entanto, a reivindicaçío da maioria
albanesa pode ter precedência sobre a dos sérvios, afinal esses ha-
viam controlado Kosovo por menos de 300 anos, isto é, desde que
haviam conquistado a regiáo no século XI, quando os bizantinos a
ocupavam. Já os albaneses afirmam descender dos antigos ilírios,
habitantes nativos da regiáo e portanto, de acordo com esta mesma
lógica implacável, teriam "mais direito" a Kosovo. Essas reivindica-
çóes e contra-reivindicaçóes tiveram como conseqüência direta os
horrores da Guerra de Kosovo.
Náo sáo apenas os líderes políticos nacionalistas que tomam a
história como base para a política atual. Acadêmicos renomados
também se envolvem em usos polêmicos do passado. Na Transil-
vânia - regiáo fortificada pelos húngaros no século XI, habitada
pelos saxóes no século XII, governada pelos Habsburgo, rurcos
e húngaros e, desde 1920, parre da Romênia -, o debate sobre a
legitimidade políttca é articulado com base na história do século
IX e, em parte, levado adiante por historiadores e arqueólogos. Os
cavaleiros nômades magiares teriam chegado a uma regiáo habita-
da por uma próspera populaçáo "romana nativa", ou a uma regiáo
jâ arruinada por invaiores eslavos? Os romenos, interpretando as
escassas evidências arqueológicas, afirmam que seus ancestrais, os
5. Le Monde, 24 de setembro de 1991.

6.DerStandard 23 dejunho de 1992.


lntrodução: A crise da identidade européia o.- l9

valáquios, haviam habitado a Íegião desde a época dos romanos.


Assim os romenos, apesar de uma lacuna de mil anos, teriam direito
legítimo à Transilvânia. Já os principais arqueólogos e historiadores
húngaros afirmam que as evidências sugerem que, na época em que
os magiares chegaram à regiáo, os resquícios da sociedade romana
já tinham desaparecido havia muito tempo. Desse modo, a Transil-
vânia deveria por direito pertencer à Hungria. tlm outro exemplo
da facilidade com que os estudiosos da Idade Média se envolvem
na política contemporânea vem da província austríaca da Caríntia,
terra do político direitista Jorg Heider. As ruínas de fortes, desco-
bertas recentemente durante escavaçóes nas montanhas do sudeste
da Caríntia, seriam evidências de ocupaçío eslava no século VI ou
resquícios das obras de defesa d.os "romanos" nativos? Quando um
arqueólogo austríaco defendeu publicamente a primeira hipótese,
foi advertido por líderes políticos de direita da Caríntia, que acredi-
tayam que tal hipótese poderia alimentar a idéia de os eslavos pos-
suírem direitos sobre a região.
Exemplos como esses sáo incontáveis na Europa. Pouco habitua-
dos a estar no centro da disputa política, os historiadores dedicados
à Alta Idade Média se dáo conta de que o período histórico que
estudam é o pivô de uma disputa política pelo passado, e que suas
afirmaçóes estáo sendo usadas como base para reivindicaçóes para
opresenteeofuturo.
Infelizmente os políticos, e até mesmo os acadêmicos, tanto do
Leste Europeu como do Ocidente, geralmente sabem muito pouco
sobre esse período, e menos ainda sobre o verdadeiro processo de
formaçáo das sociedades européias. Provavelmente nenhum ourro
período da história foi táo obscurecido pela academia nacionalista e
chauvinista. Essa própria obscuridade propicia a propaganda do na-
cionalismo étnico: as reivindicaçóes podem se basear na apropriaçâo
do período das migraçóes sem que sejam contestadas, jâ que poucas
pessoas têm conhecimentos suficientes para isso. Uma vez que as
20 --s O Mito das Naçoes

premissas a respeito desse período sáo aceitas, os líderes políticos


podem adequar suas implicaçóes políticas a seus planos.
Essas reivindicaçóes, justificadas com base nas migraçóes étnicas
do fim da Idade Antiga e nos reinos medievais há muito desapare-
cidos, ameaçam náo apenas as entidades políticas do Leste Europeu
como também as do Ocidente. A Comunidade Européia poderia
reconhecer os "direitos" dos lituanos e náo os dos corsos? Poderia con-
denar os ataques dos sérvios aos bósnios e náo os dos ingleses aos
irlandeses ou os dos espanhóis aos bascos? Se os moldávios e eslove-
nos têm direito a seus próprios Estados soberanos, por que náo os
flamengos, catalães e sorábios? Se antigas regióes da Uniáo Sovié-
tica, como a Bielo-Rússia, podem repentinamente estabelecer uma
consciência nacional, por que isso náo seria possível na Baviera, na
Bretanha, na Frísia, na Sardenha ou na Escócia?
Muitos temem que as cenas televisionadas da revolta de milhares
de refugiados albaneses em Brindisi e as imagens de ciganos romenos
mendigando nas ruas de Berlim sejam a concrerízaçáo da invasão
de Giscard d'Estaing, uma invasáo de povos desesperados do Leste
Europeu, movidos pela fome, pela guerra civil e pela anarquia em
direçáo ao ocidenre, uma enorme migraçáo , ou Vrilherwanderung,
de uma intensidade que a Europa Ocidental náo tem notícias há mil
anos. No momento, pelo menos os kosovares puderam retornar dos
campos de refugiados da Albânia e da Macedônia para Kosovo. O
próximo "povo" deslocado de sua rerra natal pelo ódio étnico e pelo
armamento moderno terá a mesma sorte ou seus anfitrióes teráo que
lidar com visitantes permanentes e cadavez menos bem-vindos?
contudo, na história da Europa, esses deslocamentos em massa
têm sido Íegra, e náo exceçáo. As atuais populaçóes européias, com
suas variadas línguas, rradiçóes e identidades políticas e culturais,
são o resultado dessas ondas de migraçáo. Primeiro vieram alguns
grupos populacionais, provavelmente falando as línguas conheci-
das como indo-européias, que substituíram ou incorporaram os
lntrodução: A crise da identidade européia s-- 21

povos nativos da Grécia, dos Bálcás e da Itália. Os celtas, outro po-


vo indo-europeu, vieram a seguir, espalhando-se pelas regióes das
atuais Tchecoslováquia, Áustria e sul da Alemanha, e enrãò da Suíça
à Irlanda no século VI a.e.c.,7 rechaçando, incorporando ou erradi-
cando a populaçáo européia nativa até que restaram apenas os bas-
cos do sul da França e norte da Espanha. A partir do século I a.e.c.,
os povos germânicos começaram a rechaçar os celtas, que foram se
deslocando em direçáo ao Reno, mas tanto os povos germânicos
como os celtas tiveram que enfrentar um outro invasor: o Império
Romano em expansáo, que conquistaria e romanizaría a maior par-
te da Europa, a Ásia Menor e o norte da Afríca. Novas migraçóes
de povos germânicos e centro-asiáticos tiveram início no século III,
substituindo o sistema imperial romano por um mosaico de reinos
isolados. No Leste, grupos de eslavos se infiltraram nos Alpes, na
bacia dos Cárpatos, nos Bálcás e na Grécia. Os últimos grandes des-
locamentos populacionais do primeiro milênio foram a chegada dos
magiares à planície do rio Danúbio e a dos escandinavos à Norman-
dia e ao norte da Inglaterra. Apesar de muitos acadêmicos defende-
rem a idéia de que "as invasóes bárbaras" terminaram por volta do
fim do primeiro milênio, sua última fase na verdade começou com a
chegada dos povos turcomanos à Grécia e aos Bálcás, entre os sécu-
los XIII e XVI. Hoje, no início do terceiro milênio, a Europa ainda
tem que lidar com as conseqüências dessas migraçóes, temend"o uma
nova onda migratória. As analogias estáo sendo elaboradas de forma
explícita. Em um artigo no Le Monde, Claude Allègre, jornalista e
colunista francês, sugeriu que basta ler meu livro Before France and
Germanys - cujo subtítulo, Naissance de la France (O Nascimen-
to da França), foi perversamente inventado pelo departamento de

7. Antes da era comum. O autor opta pelo uso do termo não cristão B.C.E. - Before the common era,
em detrimento do tradicional 8C - before Christ (a.C. - antes de Cristo) e C.E. - common ero (e.c.
- era comum), em detrimento do tradicional AD - anno domini (d.C. - depois de Cristo). (N. T.)
8. Antes da França e da Alemanha. (N. T)
22 --s O Mito das NaçÕes

markedng da editora francesa - para evidenciar "como a imigraçáo


supostamente controlável [...] fez com que um mundo que parecia
indestrutível implodisse violentamente".e Provavelmente alguns ren-
tam compreender a história contemporânea como uma nova versáo
da queda do Império Romano, esperando assim descobrir com as
liçóes do passado uma forma de impedir que a cliLizaçáo européia
contemporânea seja destruída por novas hordas de bárbaros.
Qualquer historiador que tenha passado a maior parte de sua car-
reira estudando esse período antigo de formaçáo étnica e migraçáo
só pode observar o desenvolvimeàto do nacionalismo politicamente
consciente e do racismo com apreensáo e desdém, especialmente
quando pervertem e se apropriam da história como
essas ideologias
sua justificativa. Essa pseudo-história parte do princípio de que os
povos da Europa sáo distintos e estáveis, unidades socioculturais
objetivamente idendficáveis, e sáo diferenciados pela língua, pela
religiáo, pelos costumes e pelo carâter nacional, que náo sáo ambí-
guos nem mutáveis. Esses povos foram supostamente formados em
um momento remoto e improvável da pré-história, ou entáo em al-
gum momento da Idade Média, quando esse processo de formaçáo
terminou de uma vez por todas.
Além disso, reivindicam-se a autonomia política de um grupo
étnico específico e, ao mesmo tempo, o direito de tal povo gover-
nar seu território histórico, geralmente definido de acordo com as
ocupaçóes ou reinos medievais, independentemente de quem vive
nele atualmente. Esse duplo critério permite que lituanos reprimam
poloneses e russos, mesmo enquanto reivindicam sua própria auto-
nomia, e que sérvios reivindiquem tanto as regióes historicamen-
te "sérvias" da Bósnia habitadas por muçulmanos como as regióes
da Croácia habitadas por sérvios. Essa lógica também permite que
o Exército Republicano Irlandês (IRA) reivindique o governo da

9. Le Monde, 19 de julho de 1991.


lntrodução: A crise da identidade européia o-- 23

maioria na República da Irlanda e o governo da minoria na Irlanda


do Norte. Implícita nessas reivindicaçóes está a pressuposiçáo de
que houve um momento de "aquisiçáo primária" - o século I para
os alemáes, o século V para os francos, os séculos VI e VII para os
croatas, os séculos IX e X para os húngaros e assim por diante -, QU€
estabeleceu definitivamente os limites geográficos da posse legítima
das terras. Após esse momento da aquisiçáo primária, de acordo
com esse raciocínio circular, as migraçóes, invasóes ou incorpora-
çóes políticas subseqüentes, embora semelhantes às anteriores, fo-
ram todas ilegítimas. Em muitos casos, isso implica a obliteraçáo de
1.500 ânos de história.
Igualmente inquietante é a facilidade com que a comunidade
internacional, incluindo as sociedades pluralistas, como a dos Es-
tados Unidos, aceitam as premissas de que os povos existem como
fenômenos objetivos e que a própria existência de um povo lhe dá o
direito à autodeterminaçáo. Em outras palavras, partimos do prin-
cípio de que, de alguma forma, identidade política e identidade cul-
tural estáo, e têm o direito de estar, unidas. Certamente, se lituanos
e croatas têm suas próprias línguas, músicas e vestuários, entáo eles
têm o direito a parlamentos e exércitos próprios. De fato, a comuni-
dade internacional deve tentar limitar as conseqüências inevitáveis
dos antigos antagonismos étnicos, como a guerra entre etnias, mas
o princípio do antigo direito à autodeterminaçáo dos grupos étni-
cos é muito pouco questionado. Na verdade, pode-se ir além: as
reivindicaçóes por antigos direitos étnicos e vendetas sáo úteis para
os isolacionistas, tanto nos Estados Unidos como na Europa Oci-
dental. Se esses povos "sempre" se odiaram, se sua identidade e seus
antagonismos são fixos e imutáveis, intervençóes com o objetivo de
estabelecer a paz sáo futeis. Ao adotar a retórica do nacionalismo
étnico, mesmo afirmando abominá-lo, o resto do mundo pode jus-
tificar a criaçâo de naçóes etnicamente "puras" como a única alter-
nativa ao genocídio.
24 --s O Mito das Naçoes

De fato, náo há nada de particularmente antigo nos povos da


Europa ou em seu suposto direito à autonomia política. As atuais
reivindicaçóes por soberania na Europa Central e no Leste Euro-
peu sáo uma crïação do século XIX, um período que combinou as
filosofias políticas românticas de Rousseau e Hegel com a história
"científici' e a filologia indo-européia, produzindo o nacionalismo
étnico. Essa pseudociência destruiu a Europa duas vezes, e ainda
pode fazê-lo novamente. Os povos da Europa semPre foram muito
mais fuidos, complexos e dinâmicos do que imaginam os naciona-
listas modernos. Os nomes dos povos podem soar familiares após
mil anos, mas as realidades sociais, culturais e políticas encobertas
por esses nomes eramradicalmente diferentes do que sáo hoje. Por
isso, precisamos de uma nova compreensáo dos povos da Europa,
especialmente no que diz respeito ao período formador de sua iden-
tidade, que foi o primeiro milênio. Também precisamos entender
como a tradiçáo reconhecida, que fez com que milhóes de pessoas
fossem às ruas e mandou mais alguns milhóes paÍaseus túmulos no
séculoXX, foi formada há pouco mais de um século.
Nos capítulos seguintes, tentamos apresentar uma visáo geral
desse novo entendimento. Começaremos com uma breve investi-
gaçâo das origens do nacionalismo étnico e dos estudos históricos
modernos nos séculos XVIII e XIX. Depois investigaremos o de-
senvolvimento das categorias intelectuais e culturais com as quais
os europeus distinguiram e caracterizaram a si mesmos do século
V a.e.c. ao final da Idade Antiga. Somente depois disso estaremos
preparados para abordar as circunstâncias históricas sob as quais os
"povos da Europa" se desenvolveram, entre o fim da Idade Antiga
e a Alta Idade Média, o tal pseudo "momento da aquisiçáo primá-
ria" que mais uma vez assoma à mitologia européia, tornando-se
um dos princípios-guias quando se trata de questóes "étnicas" em
todo o mundo. Ninguém deve ser tão ingênuo a Ponto de esperar
que um entendimento mais claro da formaçáo dos povos da Europa
lntrodução: A crise da identidade européia o'- 25

limitar o ódio e o derra-


possa abrandar as tensóes nacionalistas ou
mamento de sangue que elas continuam causando. Na melhor das
hipóteses, aqueles que estáo sendo convocados para colaborar no
atendimento às exigências baseadas nessas apropriaçóes da história,
seja na Europa, noOriente Médio ou em qualquer outro lugar, seráo
mais céticos em relaçáo a elas. Mesmo que isso náo funcione, e atê,
mesmo com a ceÍteza de serem ignorados, os historiadores têm a
obrigaçáo de soltar o verbo.
Capítulo 1

UptN PAISAGEM ENVENENADA: ETNICIDADE


- E

NACIONALISMO NO SÉCULO XIX

AhirtOria moderna nasceu no século XIX, concebida e desenvolvi-


da como um instrumento do nacionalismo euroPeu. Sendo assim, a
história das naçóes européias foi'um grande sucesso' mas transfor-
mou nossa compreensáo do passado,em um depósito de lixo tóxico
impregnado do veneno do nacionalismo étnico, que Penetrou fundo
na consciência popular. A limpeza desse lixo é o mais intimidante
dos desafios enfrentados atualmente pelos historiadores.
A verdadeira história das naçóes que Povoaram a Europa na Alta
Idade Média náo começa no século VI, mas no XVIII. Náo quere-
mos negar que as pessoas que viveram nesse passado remoto tenham
nutrido um sentimento de nacionalidade ou identidade coletiva.
Mas os dois últimos séculos de atividade intelectual e confronto
político mudaram táo radicalmente nossa concepçáo dos gruPos so-
ciais e políticos que náo podemos ter a pretensáo de elaborar uma
visáo "objetiva" das categorias sociais da Alta Idade Média sem a
forte infuência desse passado recente. Em certo sentido, náo apenas
o nacionalismo étnico como o entendemos atualmente é uma inven-
çáo desse período recente, mas também, como veremos mais
adian-
te, as próprias ferramentas da análise com a qual temos a pretensáo
de praticar história científica foram inventadas e aperfeiçoadas em
28 -'o O Mito das Naçôes

um ambiente mais amplo de inquieraçóes nacionalisras. Os méto-


dos modernos de pesquisa e escrita da história náo sáo instrumentos
neutros da academia, mas ferramentas desenvolvidas especificamen-
te para favorecer os propósitos nacionalistas. Já que ranto o ob.ieto
como o método de investigaçáo sáo suspeitos, temos o dever de re-
conhecer a natureza subjetiva de nossa investigaçáo logo de início,
revendo resumidamente o processo que propiciou sua invençáo.

Nacionalismo étnico e o período da revolução

A história do surgimento do nacionalismo no século XVIII e iní-


cio do século XIX jâfoi contada diversas vezes. Os Estados-naçóes
de base étnica dos dias de hoje foram descritos como "comunida-
des imaginadas", geradas pelos esforços criativos dos intelectuais e
políticos do século XIX, que transformaram antigas tradiçóes ro-
mânticas e nacionalistas em programas políticos.r De fato, uma
grande quantidade de livros e artigos - alguns acadêmicos, ourros
direcionados ao público comum - defendem a idéia de que muitas
"tradiçóes antiqüíssimas", das identidades nacionais às plaids2 esco-
cesas, náo passam de uma invençáo cínica e recente de políticos e
empresários. Há muito de verdade nessa afirmaçáo, especialmente
se levarmos em conta que ela enfatiza o papel formador, em um
passado recente, de indivíduos e grupos na elaboraçáo de ideologias
supostamente antigas. Entretanto seria absurdo sugerir que, pelo
fato de essas comunidades serem em certo sentido "imaginadas",
elas devam ser descartadas ou uivializadas, ou deduzir que "de certa
forma imaginadas" seja sinônimo de "imaginárias" ou "insignifi-
cantes". Mesmo que as formas específicas de Estados-naçóes de base
étnica dos dias de hoje tenham de fato sido geradas pela imaginaçáo
de românticos e nacionalistas do século XIX, isso náo significa que

1. Benedict Anderson, lmogined Communities: Reflections on the Orìgin and Spread of Nationalism,
Londres,1983.
2. Tipo de manta quadriculada típica da Escócia. (N. T.)
Capítulo '1 : Uma paisagem envenenada e- 29

outras formas de naçóes imaginadas náo tenham existido no pas-


sado - formas táo poderosas como as do mundo moderno, mesmo
que muito diferentes. Acadêmicos, políticos e poetas do século XIX
náo inventaram o passado do nada. Eles se basearam em tradiçóes,
fontes escritas, lendas e crenças preexistentes, mesmo que as tenham
usado de novas maneiras païaforjar unidade ou autonomia política.
Além disso, mesmo que essas comunidades sejam em certo sentido
imaginadas, elas são bem reais e muito poderosas: todos os fenô-
menos históricos importantes sáo de certa forma psicológicos, e os
fenômenos mentais - do extremismo religioso à ideologia política
- provavelmente mataram mais gente do que qualquer outra coisa,
com exceçáo da peste negra.
O processo específico pelo qual o nacionalismo emergiu como
uma forte ideologia política variou de acordo com a regiáo, tanto
na Europa como em outras partes. Em regióes carentes de organiza-
çáo política, como na Alemanha, o nacionalismo estabeleceu uma
ideologia com o fim de criar e intensificar o poder do Estado. Em
Estados fortes, como França e Grá-Bretanha, governos e ideólogos
suprimiram impiedosamente línguas minoritárias, tradiçóes cultu-
rais e memórias variantes do passado em prol de uma história na-
cional unificada e língua e cultura homogêneas, que supostamente
se estendiam a um passado longínquo. Em impérios multiétnicos,
como o dos otomanos ou o dos Habsburgo, indivíduos que se iden-
tificavam como membros de minorias oprimidas lançavam máo do
nacionalismo para reivindicar o direito náo apenas à independência
cultural, mas também, como conseqüência, à autonomia política.
Umaversáo bem definida de como a ideologia nacionalista propi-
ciaaaçáo de movimentos de independência, especialmente na Euro-
pa Central e no Leste Europeu, pressupóe três estágios no processo
de criaçáo dessas comunidades imaginadas.3 Em primeiro lugar, ela

3. Miroslav Hroch, Die Vorktimpfer der nationalen Bewegung bei den kleinen Viilkern Europas:
Eine vergleichende Anolyse zur gesellschoftlichen Schichtung der patriotischen Gruppen. Acta
Universitatis Carolinae Philosophica et Historica Monographica XXIV Praga, 1968.
30 --s O Mito das Naçoes

inclui o esrudo da língua, da cultura e da história de um povo subju-


gado, empreendido por um pequeno grupo de intelectuais ..alerras,,.
Em segundo, a transmissáo das idéias dos acadêmicos por um
grupo
de "patriotas", que as disseminam por toda a sociedade. por fim,
o
estágio no qual o movimenro nacional atinge seu apogeu.a
com
pequenas variaçóes, esse processo pode ser observado na Alemanha
do século xvIII, na maior parre dos Impérios otomano, Russo e
Habsburgo do século xIX e depois na África, na Ásia e nas Améri-
cas coloniais e pós-coloniais do século XX.
A maioria dos estudiosos do nacionalismo não contestaria essa
descrição geral do processo do despertar e da polit izaçáo nacionais.
No entanto' se a refexáo original dos intelectuais "alertas" simples-
mente reconhece um povo reprimido e preexistente ou se esses
in-
telectuais inventam o próprio povo que esrudam é uma questáo
bastante discutível. Ivo Banac, historiador da croácia, por
exem-
plo, diverge de muitos outros quando afirma que "par" ,., aceita,
uma ideologia deve vir da realidade. o nacionalismo pode renrar
lidar com as condiçóes da subjugaçáo de seu povo, mas náo pode
fabricáJas".5 Até cerro ponro, ele está cerro: se os indivíduos
não
vivenciarem a subjugaçáo e a discriminaçáo, promessas de reparo
provavelmente náo seráo efetivas. porém, compreendida d.
u-"
outra forma, tal formulação é potencialmente perigosa: ela implica
que os povos - naçóes em potencial
- existem mesmo antes de os
intelectuais os reconhecerem, que as condiçóes de subjugaçáo
sáo
peculiares a um dado povo e que o nacionalismo é a curade
todas
essas doenças. Em outras palavras, mesmo que o nacionalismo náo
crie as condiçóes, ele pode cerramente fabricar a própria naçáo.
No
século xIX, sob a influência da Revoluçáo e do Romanrismo,
e corn
a falência da aristocracia no cenário político, intelectuais e políticos
4. Ver resumo em lvo Banac, Ihe National
euestion in yugoslovia: Origin, History, politics,lthaca, Nãf
York, 1984, p:28.
5.lbid,p.29.
Capítulo l: Uma paisagem envenenada o.- 31

criaram novas naçóes, que entáo foram projetadas no passado remo-


to da Alta Idade Média.
O contexto intelectual no qual o nacionalismo moderno nas-
ceu era inicialmente formado pela fascinaçáo das elites acadêmicas
européias pelo mundo antigo, especialmente na França e na A[e-
manha. O fascínio pela cultura e civilizaçáo clássicas - cultivado
especialmente nos Países Baixos e depois na França e nas univer-
sidades alemás, como a de Gôttingen - estabeleceu o cenário para
uma inversáo radical das autopercepçóes e da identidade, ignorando
séculos de identidades sociais muito diferentes.

As identidades coletivas antes do nacionalismo

Durante a Baixa Idade Média e o início da Renascença, a "naçâo"


- assim como a religião, a família, a propriedade e o estrato social
- proporcionava um dos meios em comum pelos quais as elites poli-
ticamente ativas se identificavam e organizavam açóes colaborativas.
Entretanto o sentimento de pertencer a uma naçáo náo constituía
o mais importante desses vínculos. Nem mesmo uma identidade
nacional comum unia o abastado e o necessitado, o senhor e o cam-
ponês, em uma forte comunháo de interesses. E os intelectuais e
as elites sociais naturalmente náo se identificavam pela projeçáo de
suas identidades nacionais no passado remoto do período das inva-
sóes bárbaras. Pe[o contrârïo, quando se voltavam para um passado
distante em busca de vínculos, identificavam-se conscientemente
com a sociedade e cultura romanas.
Progressivamente, porém, a partir da Renascença, intelectuais
da França, daAlemanha e do Leste Europeu começaram a se iden-
tificar com as vítimas da expansáo imperialista romana, os gaule-
ses, germanos ou eslavos. Essa transformaçáo de identidade se deu
€m contextos políticos que determinaram seus rumos. Na França
renascentista, onde a continuidade da monarquia era notável, a rca-
32 --s O Mito das NaçÕes

lidade do Estado era inquestionável, mas náo a existência de um


povo unicamente francês. Na Alemanha, desde o século IX, alguns
autores ocasionalmente aludiam a um povo alemáo, mas, náo ha-
vendo um Estado alemáo unificado, a identificaçâo de uma tradiçáo
cultural alemá não implicava necessariamente uma tradiçáo política
correspondente. Em outras regióes, como a Polônia, o sentimento
"nacional" era sustentado como domínio exclusivo da aristocracia,
que mantinha pouquíssimos vínculos com os camponeses que tra-
balhavam em suas terras.
As teses francesas sobre a identidade de seu povo foram desen-
volvidas no contexto do absolutismo monárquico e da oposiçáo aris-
tocrática ou popular. O direito de governaÍ eÍa disputado entre o
rei e a nobreza, ou segundo estado. Tanto o rei quanto a nobreza se
baseavam na afirmaçáo de que, desde os tempos de Júlio Césat a
plebe, ou terceiro estado, constituía uma raça de escravos - gauleses
dominados que haviam perdido sua liberdade - e, por ser um povo
vil, náo tinha direito à autodeterminaçáo. Essa caracterização se ba-
seava em uma antiga tradiçáo, desenvolvida durante a Idade Média,
que justificava a servidáo por meio de uma variedade de construc-
tos intelectuais que rebaixava os camponeses ao status de uma raça
quase subumana.G Aaristocracia, por outro lado, náo descendia dos
gauleses, e sim dos francos, ou seja, dos guerreiros "livres" que ha-
viam penetrado na Gália, derrotado e expulsado os senhores roma-
nos e estabelecido seu direito de governar. Essas afirmaçóes se basea-
vam no panorama apresentado pelo historiador romano do século I
Cornélio Tácito, que glorificava os germanos livres em detrimento
dos romanos de seu tempo. Tudo isso se baseava também em uma
leitura atenta das obras de Gregório de Tours e outros documentos
da Alta Idade Média para enfatizar a identidade germânica e livre da
nationfrançaise.

6. Paul Freedman, lmages of the Medieval Peasant, Stanford, 1999.


Capítulo 1: Uma paisagem envenenada o- 33

A questáo de quem realmente tinha o direito de governar, a aris-


tocracia como um todo ou o rei, era bastante controversa. Em 1588,
o propagandista real Gui de Coquille chegou a afirmar que Hugo
Capeto, fundador da linhagem real da qual todos os reis franceses
subseqüentes descendiam, era descendente de saxóes. Essa ascen-
dência germano-saxônica fazia do rei um verdadeiro francês, um
urai François.7 No século XVIII, aristocratas como Louis de Saint-
Simon, François de Salignac de Fénelon e Henri de Boulainvilliers
chegaram à conclusáo de que a populaçáo da Gália do fim da Anti-
güidade náo passava de uma raça de escravos. No século V guerrei-
ros francos livres haviam adquirido a Gália por direito de conquista.
Apenas eles e seus descendentes, a nobreza, eram franceses verdadei-
ros. Assim o rei deveria dividir o poder com os nobres, como nos
tempos de Carlos Magno.
Uma tradiçáo semelhante foi estabelecida na Polônia, onde as eli-
tes tentavam negar sua origem eslava. Já em meados do século XVI,
historiadores poloneses afirmavam que a identidade da elite polo-
nesa náo deveria ser relacionada à massa de camponeses eslavos que
trabalhavam no campo, e sim aos sármatas, antigo povo das estepes
mencionado por etnógrafos gregos e romanos.s Por volta do século
XVII, a tese das origens sármatas se rornou um meio pelo qual a
elite szlachta se diferenciava etnicamente de seus subalternos.e

Naciona I ismo revolucionário

A Revoluçáo Francesa mudou tudo e ao mesmo rempo nada nessa


perspectiva do passado. Especialmenre na França, a propaganda po-

7. Mireille Schmidt-Chazan, "Les origines germaniques d'Hughes Capet dans l'historiographie


française du Xe au XVle siècle", em Dominique logna-Prat e Jean-Charles Picard (Eds.), Retigion et
culture autour de l'an mil: Royaume capétien et Lothoringie,paris,1990, p. 231-344, esp. p. 240.
8. Por exemplo, Martin Cromer, De origine et rebus gestus polonorum. 1555.
9. Florin Curta, The Making of the Slavs: History and Archaeology of the Lower Danube Region, ca.
500-700 d.C, Cambridge, 2001.
34 -e O Mito das Naçoes

lítica popular do período revolucionário aceitava essa representaçáo


dicotômica dos francos e gauleses, mas invertia seus valores. Em seu
influente panfleto sobre o terceiro estado, o teórico revolucionário
francês Abbé Sieyès reconhecia a origem germânica da nobreza, mas
alegava que isso fazíadeles estrangeiros e conquistadores na França.
O verdadeiro povo francês, de ascendência gaulesa, havia muito to-
lerava a opressáo estrangeira, primeiro a dos romanos, depois, a dos
francos. Já. eruhora de mandar aquela raça forasteira de volta para as
florestas da Francônia e devolver a França ao terceiro estado, a única
naçáo verdadeira.
Entretanto, essa reivindicaçâo nacionalista ia de encontro à ideo-
logia revolucionârtaoficial, que, apesar de defender a independência
e a soberania dos poyos, negava que um "povo" pudesse ser definido
por língua, etnia ou origens. Muito pelo contrário, a disposiçáo em
apoiar o bem comum em detrimento de interesses particulares, para
aceitar as liberdades e leis da República, já seria o bastante.t0 Con-
tudo, sob uma perspectiva mais prâtica, implicitamente se insistia
na idéia de que uma tradiçáo cultural compartilhada, representada
especialmente pelo idioma francês, definia a naçáo francesa.
Johann Gottfried Herder e os historiadores de Gôttingen, pre-
cursores do nacionalismo alemáo, também se basearam no mito de
Tácito, mas a princípio apenas no contexto das unidades cultural e
lingüística, que náo pressupunham nem reclamavam unidade polí-
tica. Desde a redescoberta da Germania de Tácito, no final do sécu-
lo XV os humanistas estavam fascinados com aideia de um povo
germânico livre e puro. Germania illustrata (1491), de Conrad Cel-
tis, Epitome rerum Germanicnrum, de Jacob \T.impleling e Prouerbia
Germanica, de Heinrich Bebel eram algumas das obras nas quais
seus autores buscavam uma unidade e uma história alemás. No en-

10. E. J. Hobsbawm, Nations and Nationalism since 1.780, Cambridge, Reino Unido, 1990; ver p. 20-21 e
a nota 19 para outras referências.
CapÍtulo I:Uma paisagem envenenada s.- 35

tanto, unidade continuava sendo apenas cultural, e náo políti-


essa
ca. As regióes habitadas por falantes da língua alemá nunca haviam
sido unificadas em um único reino culturalmente homogêneo. Até
mesmo na Idade Média, o "Sacro Império Romano-Germânico"
sempre havia abrangido importanres regióes eslavas e românicas.
Além disso, as profundas discórdias causadas pela Reforma Protes-
tante e os desastres da Guerra dos Trinta Anos asseguraram que a
unificaçáo sociopolítica continuaria de fora dessa perspectiva cultu-
ral atê o século XIX.Il
Náo obstante, desse nacionalismo cultural emergiram elementos
que, quando politizados, passariam a ser instrumentos formidáveis
de mobilizaçâo política. Entre eles estava a crença de que a"naçâo"
alemá havia existido desde o século I, quando Armínio derrotou o
general romano Varo, destruindo seu exército na Floresta de Teuto-
burgo no ano 9 e.c. Esses nacionalistas culturais também exaltavam
a língua alemá, que viam como a representaçáo concreta da identi-
dade nacional, e enfatizavam a importância da educaçáo como um
meio de dar prosseguimento e intensifi car a estima por essa herança
cultural.
Náo que essa crença na existência de uma "naçáo" alemá impli-
casse uma missáo política, muito menos uma missão expansionista.
Náo há evidência mais forte da ausência de uma dimensáo política
no pensamento de Herder do que sua idéia de que toda nacionalida-
de, e náo apenas a alemã, tinha direito a seu próprio desenvolvimen-
to de acordo com sua própria índole. Seu entusiasmo pelos eslavos
eratalvez ainda maior, já que insistia para que o mundo eslavo subs-
tituísse a "decadente cultura romano-germânica". O "nacionalismo"
de Herder e do círculo de Gôttingen era de caráter cultural, e náo de
açáo política.

11. Este breve resumo se baseia amplamente em otto w. Johnston, The Myth of a Nation:
Literature and Politics in Prussia IJnder Napoleon, Columbia, 5C, 1989, e Johnston, Der deutsche
Notionalmythos. Ursprung eines politischen Programms, Stuttgart, 1990.
36 --s O Mito das NaçÕes

O nacionalismo político alemáo surgiu de modo vacilante duran-


te a era napoleônica, como reaçáo à derrota da Prússia para os fran'
ceses e à ocupaçáo da Renânia. A grande força por trás da criaçáo de
uma resistência popular aos franceses, o que terminaria por instigar
o espírito insurrecional da populaçáo, era Freiherr vom Stein, mi-
nistro de Estado da Prússia (1804-1808). Vom Stein incitava poe-
tas e escritores a contribuir na formaçáo da imagem de uma naçáo
alemá unificada quando os franceses fossem expulsos. Os limites
geográficos da naçáo alemá eram obviamente incertos: apenas apro-
ximadamente do território do antigo Sacro Império Romano-
25o/o
Germânico era habitado por falantes do alemáo. A Prússia era um
reino onde pelo menos seis línguas além do alemáo eram faladas,
incluindo o polonês, o letáo, o lusácio e o estoniano, enquanto boa
parte da intelligentsia falava francês. As regióes cujos habitantes fa-
lavam alemáo eram fragmentadas náo apenas por razíes políticas,
mas também por diferenças dialetais e religiosas, e Por uma história
de animosidade que datava da Guerra dos Trinta Anos. Além disso,
até mesmo o rei da Prússia estava atento a qualquer movimento das
massas que ligasse o povo a açóes políticas ou educacionais.
Dessa forma, afirmaçóes a respeito da unidade cultural feitas
por autores como Friedrich Gottlieb Klopstock, Herder e Gotthold
Ephraim Lessing náo tiveram, a princípio, repercussáo política: os
príncipes germânicos náo estavam interessados em um acordo, e
a classe média náo tinha interesse ou planos políticos. Varnhagen
von Ense, ulrÌ prussiano instruído da elite, náo evocou nenhuma
inquietaçáo patriótica ao rrer o rei partir de Berlim após a desastrosa
derrota paÍaNapoleáo na batalha de Jena, em 1806. Ele e os outros
de sua classe sentiam pena do rei, mas "simplesmente náo estavam
preocupados com a situaçáo e eram incapazes de passar o dia atentos
às notícias e comunicados políticos".l2 Pelo contrário, muitos inte-

12. Johnston, Myth of a Nation,p.25.


Capítulo 1:Uma paisagem envenenada e* 37

lectuais alemáes com interesses políticos eram liberais e saudavam as


vitórias de Napoleáo com otimismo.
Se havia apoio à politizaçáo dos ideais culturais de Herder, ele
náo provinha da nata do mundo intelectual germânico, nem do rei
da Prússia, mas dos britânicos, que tentavam formar uma oposiçáo
popular aos franceses no leste para pressionar Napoleáo. Os britâni-
cos esperavam instaurar uma "segunda Vendéia" - uma resistência
de guerrilha interna semelhante à organizada pelos monarquistas
nessa resistente regiáo francesa - apoiando os insurgentes na Prús-
sia. Esse objetivo britânico coincidia com o de Freiherr vom Stein,
que estava convencido de que a classe dos junkersr3 era incapaz de
salvar a Prússia e tentava fomentar um sentimento patriótico entre
as elites culturais do reino, visando a formaçáo de uma resistência
mais efetiva aos franceses. Esse objetivo seria alcançado com uma
mobilizaçáo dos antigos elementos do sentimento do nacionalismo
cultural: a ênfase em uma língua comum (em vez de uma tradiçáo
religiosa ou política comum, o que náo havia), uh programa nacio-
nal de educaçáo e a ênfase no território alemáo como uma conexáo
entre o passado e o futuro da nação.14 Assim os interesses de Stein
estavam em consonância com os dos britânicos, que financiavam os
intelectuais dispostos a combinar cultura e política.
Johann Gottlieb Fichte, um dos principais intelectuais alemáes,
estava ávido por polit\zar a cultura alemá, e o fez pela analogia en-
tre a resistência dos germanos à expansáo romana no século I e a
t
de seus contemporâneos aos franceses. Assim os parâmetros para o
estabelecimento de uma identidade alemá unificada passaram a ser
as descriçóes das virtudes germanas feitas por Tácito, em Germania,
e o relato da vitória de Armínio sobre a legiáo de Varo, em Anna-
les, também de Tácito. Esse era um meio de encontraÍ a unidade

13. Classe dos proprietários de terras germânicos. {N. T.)

14. Johnston, Myth of a Nation, p.10.


38 -e O Mito das NaçÕes

germânica que havia precedido a comPlexidade política do Sacro


Império Romano-Germânico e de mostrar como, no Passado, os
germanos haviam resistido a invasores que' assim como os france-
ses, falavam uma língua românica. Como foi elaborado por Fichte
em seus Discursos à Naç,ão Alema, uma identidade alemá unificada
contrastava, por um lado, com a dos eslavos, que "náo parecem ter
se desenvolvido de forma distintiva o suficiente em comparaçáo com
o resto da Europa, de modo que náo é possível ainda produzir uma
descriçáo precisa desse povo" e, Por outro' com a dos povos roma-
nizados de "ascendência teutônica',t5 ou seia, com a dos franceses.
Em contraste com esses povos, as principais virtudes da identidade
alemá eram sua continuidade geográfica e sua língua. Certamente
a relaçáo entre língua e identidade não era uma novidade no século
XIX.r6 Mais de meio século antes, o filósofo francês Étienne Bonnot
de Condillac havia afirmado que 'cada língua expressa o caráter
do povo que a fala".L7 No entanto, Fichte elaborou essa idéia de
um modo muito particular e provocativo. Como observou em seu
"Quarto Discurso", dentre oS "neo-europeus", apenas os alemáes
permaneciam na mesma regiáo de seus ancestrais e mantinham sua
Iíngua original.ls Havia sido especificamente a língua que unira o
povo alemáo e o colocara em contato direto com a criaçío de Deus,
coisa a que povos como o francês, que havia adotado uma língua
latina, náo poderiam aspirar. Isso se dava Porque, ao contrário das
línguas românicas - que formavam palavras a partir de raízes la-

15. Johann Gottlieb Fichte, Addresses to the German Nation, tradução de R. F. Jones e G. H. Turnbull,
Westport, CT,1g7g. Reimpressão da edição de 1922, publicada pela Open Court Pub Co., Londres
e Chicago, lV p.52-53.

16. Ver Maurice Olender, The Languages of Paradise: Race, Religion and Philology in the Nineteenth
Century, Cambridge, MA, 1992, esp. cap. l, "Archives of Paradise", p' 1-20.
17.8.8. de Condillac, Essai sur I'origine des connaissances humoines,1746,ll,l, G. Le Roy (Ed.), Paris,
1947, p.103; citado por Olender, The Longuages of Poradise, p. 5. Ver também H. Aarsleff, 'iThe
Tradition of Condillac: ïhe Problem of the Origin of Language in the Eighteenth Century and the
Debate in the Berlin Academy before Herder", em H. Aarsleff, From Locke to Soussure: Essays on the
Study of Languoge and lntellectuol History, Londres, 1982, p.146-209.
18. Fichte, Áddresses to the German Nation, Vll, 313-314.
Capítulo 'l : Uma paisagem envenenada s- 39

tinas e gregas, que por sua vez haviam sido formadas em regióes
distantes -, o alemâo era composto inteiramente por elementos ger-
mânicos, originalmente cunhados para descrever o mundo habitado
pelos alemáes. Essa língua portanto seria perfeitamente translúcida
e compreensível para todos os falantes do alemáo, colocando-os em
contato direto uns com os outros e com seu ambiente.
Os Discursos de Fichte devem cerramenre ser entendidos em seu
contexto imediato: eles podem ser considerados "texros de sobre-
vivência", escritos com o objetivo de dar esperanças e fornecer es-
tratégias de resistência no contexro da ocupaçáo francesa, que, de
acordo com as expectativas, perduraria por muitos anos. A rápida
destruiçáo do Império Francês pôs fim à necessidade específica de
tais sentimentos, mas sua sobrevida teve conseqüências efetivas.
O envolvimento de intelectuais como Fichte na causa política
pode náo ter tido grande infuência no resultado das guerras na-
poleônicas, mas os ligou ao mundo da açáo política de um modo
diferente. Além de introduzi-los na esfera do embate político, deu-
lhes nova proeminência e propiciou recompensas e financiamento
oficial. Essa poderosa combinaçáo náo acabou após o Congresso de
Viena, organizado em 1815 para restabelecer a Europa após Napo-
leáo. Stein, que havia assumido o papel principal no recrutamento
de intelectuais durante a guerra, fortaleceu os vínculos entre acadê-
micos e políticos em busca de uma Alemanha unificada. Em 1819,
fundou a Sociedade para o Conhecimento da HistóriaAlemáAntiga
(Geselkchú fu, cihere deutsche Geschichxkunde), cujo lema, Sanctus
amor patriae dat animum (O sagrado amor pátrio alimenta a alma),
resumia mais um progÍama do que um truísmo. A Gesellschafr era
uma organizaçáo privada, fundada em concordância com intelec-
tuais renomados como Goethe, \Tilhelm von Humboldt, os irmáos
Grimm, Friedrich Carl von Savigny e Karl Friedrich Eichhorn . Vâ-
rios estados germanos e a Confederaçío Germânica financiavam a
Gesellschaft, que se dedicava a editar e publicar a Monumenta Ger-
40 --e O Mito das NaçÕes

maniae Historica (Monumentos Históricos d.a Alemanha). A princí-


pio, havia empecilhos para o financiamento: os estados germanos
náo pareciam dispostos a contribuir, e Stein, por razíes patrióticas,
estava predisposto a rejeitar contribuiçóes de estrangeiros, como o
czar russo. Porém, à medida que os políticos foram percebendo que
uma historia patriótica poderia servir como contraPonto à ideologia
revolucionária, Stein começou a arrecadar o suficiente para dar con-
tinuidade ao projeto.
Mas a questáo do financiamento era aPenas um dos problemas. O
outro era determinar quais eram exatamente os monumentos históricos
da Alemanha. Estes eram descobertos de acordo com os princípios da
filologia científica indo-europêia, que estavam sendo desenvolvidos
pelos Êlólogos clássicos nos Países Baixos e depois em Gottingen.
A filologia comparada indo-européta (Ind"ogermanisch) nasceu
em 1786 quando o orientalista inglês sir \Tilliam Jones reconheceu
que o sânscrito, o grego e o latim tinham a mesma origem, e que o
gótico, o celta e o persa antigo provavelmente Pertenciam à mesma
família lingüística.le Vinte e dois anos depois, o filólogo alemáo
Friedrich von Schlegel desenvolveu a tese de Jones, apesar de ter
defendido a idéia, em seu Sobre a Língua e Sabedoria dos Indianos
(Über die Sprache und Weisheit der Inder), de que o sânscrito era
aparentado do grego, do latim, do persa e das línguas germânicas.
Na geraçáo seguinte, os acadêmicos alemáes Franz BopP e Jacob
Grimm e o dinamarquês Rasmus Rask examinaram essas sugestóes
intuitivas, corrigiram-nas, elaboraram um método de investïgaçâo
das afinidades e evoluçáo das línguas e criaram a nova ciência da
filologia indo-europêia.2o O rápido desenvolvimento dessa nova dis-
ciplina tornou possível náo apenas a organizaçâo e a classifrcaçío

19. Ver W. B. Lockwood, lndo-European Philology,Londres, 1969, p. 22.


20. De modo geral, sobre a relação entre filologia germânica e nacionalismo, ver os ensaios em
Benno von Wiese e Rudolf Henp (Eds.), Notion alismus in Germanistik und Dichtung. Dokumentation
des Germanistentages in München vom 17.-22. Oktober 1966, Berlim, 1967, esp. Eberhard Lãmmert,
"Germanistik-Eine deutsche Wissenschaft", p. 15-36.
Capítulo 1: Uma paisagem envenenada s. 41

da família lingüística da qual descendem as línguas eslavas, germâ-


nicas, helênicas e românicas, como também o estudo científico de
suas formas mais antigas. As semelhanças entre as línguas germâni-
cas contemporâneas haviam fascinado os humanistas alemáes desde
a época do Renascimento. Eles ficaram maravilhados com a relaçáo
entre línguas antigas, como a da Bíblia gótica, traduzida pelo bispo
Úlfil"r no século IV e a da comunidade dos "godos da Criméia",
que, segundo consta, ainda falavam uma língua reconhecida como
germânica no século XVI. Porém atualmente é possível organizar o
conhecimento das línguas européias em uma disciplina historica-
mente diversificada e inter-relacionada. A filologia - tanto a clássica,
com foco em textos gregos e latinos, como a mais recente filologia
germânica - estava no coraçáo do ímpeto metodológico do novo
empreendimento científico da Monumenta.
O programa da Gaellschaft de Stein ia além da simples ediçáo e
publicaçáo de documentos da história da Alemanh a na Monumen-
ta Germaniae Historica. Antes que os documentos fossem editados,
um critério para definir quais daqueles registros do passado de fato
constituíam documentos da história alemá deveria ser estabelecido,
ou seja, a Alemanha teria que ser definida no passado, e esse passado
ser declarado inerente à Alemanha. Os acadêmicos que levaram essa
tarefa a cabo náo eram nacionalistas políticos radicais. No entanto,
seu trabalho alimentou reivindicaçóes nacionalistas de amplitudes
extraordinárias. Os editores consideraram monumentos da história
alemã, todos os textos escritos nas (ou sobre) regióes que haviam
sido habitadas ou governadas por povos falantes de línguas germâ-
nicas. Primeiro os editores da Monumenta reïvindicaram todas as
regióes que haviam sido parte do "Sacro Império Romano da Naçáo
Germânica", do sul da Itália ao Báltico. Além disso, apropriaram-se
de toda a história dos francos, incluindo os relatos e feitos dos reis
merovíngios e carolíngios nas regióes da Gália que correspondem
às atuais França e Bélgica. Incorporaram as leis dos visigodos, bur-
42 --s O Mito das Naçoes

gúndios e lombardos, grupos étnicos falantes de línguas germânicas


que habitaram regióes correspondentes à atual Itália e ao Vale do
Ródano. Apropriaram-se também do condado de Flandres e de toda
a parte dos Países Baixos a leste do rio Schelde, já que os frísios,
também falantes de uma língua germânica, habitaram essas regióes.
Ao decidirem publicar as obras de uma série de autores antigos,
incorporaram africanos como Victor Vitensis, que escreveu sobre
os vândalos na Áftica, também falantes de uma língua germânica,
galo-romanos como Ausônio e senadores romanos como Cassiodo-
ro e Símaco. Por conta desse critério adotado pelos editores da Mo-
numenta, a Alemanha foi definida de um modo muito mais abran-
gente do que até mesmo nos infames versos do Lied der Deutschen:2t
"Do Meuse a Klaip eda I Do Ádige ao Belt"zz (Von der Maas bis an
die Memel / Von der Etsch bis an den Beb).
Assim, definindo o corpus da história alemá,
a Monumeruta esta-
beleceu os parâmetros com base nos quais aAlemanha iria em busca
de seu passado. Os godos, francos, burgúndios, vândalos e ourros
"povos" antigos foram incluídos em uma história ininterrupra que
precedia o estabelecimento do Sacro Império Romano-Germânico
e se estendia até o século XIX.

Filologia e nacionalismo
O critério adotado para a inclusáo desses "povos" no cnrpus da Mo-
numentos Históricos da Alemanha foi o da língua: as línguas que eles
falavam eram "germânicas", ou seja, da mesma subfamília lingüís-
tica que a dos alemáes do século XIX. Se os rexros publicados pela
Monumenta crïaram o objero, a filologia criou o método. E isso se

21. Hino da Alemanha. (N. T.)

22. Meuse: rio que nasce na França, corta a Bélgica e a Holanda e deságua no Mar do Norte.
Klaipeda: cidade portuária da Lituânia. Ádige: rio que nasce nos Alpes, corta o nordeste da ltália e
deságua no Adriático. Belt: parte do mar Báltico entre a Alemanha e a Suécia. (N. T.)
Capítulo 1: Uma paisagem envenenada q' 43

deu de duas formas: primeiro, a filologia indo-européia estabele-


ceu novos critérios "objetivos" para a identificaç^o dos povos nos
mesmos moldes da lingüística mística de Herder e Fichte. Depois
a filologi jâ estabelecida como ferramenta essencial dos estudos
^,
clássicos, tornou-se a principal ferramenta no estudo da história
medieval, utilizada paÍa desvendar a pré-história do nacionalismo
alemáo.
Essas ferramentas irmás utilizadas pelo nacionalismo alemáo
- nío criaram aPenas a história alemã',
textos e análise filológica -
mas também, indiretamente, toda a história. Elas constituíam um
produto altamente exportável, que poderia ser facilmente aplicado
a qualquer curPus textual em qualquer outra língua. Além disso, a
partir do momento em que o modelo alemáo de história "científica"
começou a dominar as universidades do século XIX na Europa e
até mesmo nos Estados Unidos, historiadores estrangeiros treinados
pelos métodos alemáes de seminário e crítica textual passaram aagir
como embaixadores da análise nacionalista quando voltavam a seu
país de origem. Movimentos no estilo de Herder, como o pan-esla-
vismo, eram rapidamente politizados, e todas as naçóes e pretensas
naçóes seguiam o modelo com seus próprios instrumentos de auto-
criaçáo nacional, incluindo vm corpus de "monumentos da história
nacional" e filólogos (muitos educados pelos métodos alemáes) para
elucidar as remotas origens de sua resPectiva pátria. O estudo da
história e o nacionalismo se fundiram em um único elemento.
A reaçáo francesa à politizaçáo da academia alemá, tardia e
defensiva, seguiu-se à catástrofe da Guerra Franco-Prussiana' em
1870. Alguns franceses, como o filólogo Léon Gautier, chegaram
a atribuir a vitória germânica à sua disciplina como filólogos: "Os
prussianos combatem da mesma forma que criticam um texto' com
precisáo e método".23 A soluçáo naturalmente foi imitar o modelo

23. Citado por R. Howard Bloch, "New Philology and Old French", Speculum 65, 1990:40. Ver
também o seu "'Mieux vaut jamais que tard': Romance, Philology, and Old French Letters", 36
Re p rese ntati o n s, 1991 : 64-86.
44 --s O Mito das Naçoes

alemáo, náo apenas criando cadeiras de filologia e história nas uni-


versidades (cerca de250 cadeiras foram criadas entre 1876 e 1879),2a
como também incorporando o método filológico da tradiçáo alemá.
Obviamente os franceses tentaram desimpregnáJo de seu carâter
nacionalista alemáo, mas procuraram eliminar apenas o segundo
adjetivo. A filologia continuou sendo uma ferramenta do naciona-
lismo. De um modo que lembrava Fichte, que insistia na idéia de
que apenas uma língua nativa poderia fazer com que um povo se
relacionasse propriamente com o mundo, os filólogos franceses afir-
mavam que as criaçóes literárias da França medieval eram "plantas
nativas, nascidas espontaneamente em terras pâtrias".25 Dessa for-
ma, ironicamente, embora a busca francesa pela filologia "científrca"
tenha sido uma tentativa de escapar do "romanticismo", que era en-
tendido essencialmente como "germanidade", os filólogos franceses
se apropriaram das ferramentas próprias ao nacionalismo alemáo
para atingir seu objetivo. A filologia resultante náo era apenas uma
glorificaçáo de uma visáo romanrizada da Idade Média, mas ram-
bém do mito francês da exatidáo científica. Duranre o processo, o
sentido republicano de "cidadáo", independente de qualquer língua
ou cultura nacional historiada, foi descartado em prol de um senri-
do étnico e nacionalista.
Em toda a Europa, os efeitos perniciosos do método filológico
de identificar um povo pela língua foram incontáveis.26 Primeiro as
ilimitadas variaçóes de amplos grupos lingüísticos no conrinente fo-
ram fragmentadas por regras científicas e rransformadas em línguas
distintas. Como as realidades lingüísticas (na fala e na escrita) náo
correspondiam exatamente a essas regras artificiais, formas "oficiais"

24. Bloch, "New Philology",p.40.


25. Bloch, "New Philolo gy", p.41-42: "La canso des troubadours sont des plants indigene, nées
spontanément sur Ie sol de lo patrie".
26. Sobre língua e nacionalismo, ver, dentre outros, Hobsbawm, Nations and Nationalism, p. 51-63, e
Anderson, lmagined Communities, cap. 5 e passim.
Capítulo 1: Uma paisagem envenenad a e- 45

- geralmente versóes sistematizadas de um dialeto específico, quase


sempre de um grupo politicamente poderoso ou de alguma cidade
importante - eram criadas e impostas por sistemas educacionais fi-
nanciados pelos Estados. Como resultado, as fronteiras lingüísticas
se tornaram muito mais rígidas, e as tradiçóes orais (e em alguns ca-
sos até mesmo as escritas) desapareceram virtualmente sob a pressáo
do uso "padrâo". Esse processo simplesmente resultou na "invençáo"
de línguas, incluindo náo apenas casos óbvios como o ucraniano, o
búlgaro, o sérvio, o croata, o esloveno, o letáo, o hebraico, o norue-
guês, o irlandês, o holandês e o romeno, mas também, de formas
mais sutis, o alemáo e o italiano. Náo é nada surpreendenre o fato de
os defensores dessas línguas "padróes" terem tendido inicialmente
a atribuí-las a demarcaçóes políticas reais ou desejadas. Eram raros
os casos em que toda a populaçáo de uma dada unidade política
realmente falava o dialeto prestigiado de sua língua. Até mesmo em
um país como a França, que tinha uma tradiçáo secular de manu-
tençáo de suas fronteiras políticas e onde as normas cultas da língua
eram desenvolvidas havia séculos, provavelmente menos de 50o/o da
populaçáo tinha o francês como língua materna no ano de 1900. O
restante da populaçáo falava uma variedade de línguas e dialetos la-
tinos, ao passo que na Bretanha, na Alsácia e na Lorena predomina-
vam línguas germânicas e celtas. Em outros casos, a língua nacional
era falada por uma distinta minoria, como na Noruega, ou entáo a
populaçáo falava uma variedade de línguas em combinaçóes diver-
sas de acordo com a situaçáo: no comércio, em contextos culturais e
políticos ou no coddiano familiar.
Assim, por toda a parte, indivíduos, famílias e comunidades se
encontraram afastados da "língua nacional" e pressionados a aban-
donar suas tradiçóes lingüísticas. Isso podia envolver ranro a adoçáo
de um novo vocabulário, uma pronúncia padráo ou novos sistemas de
flexáo - como no caso dos habitantes da Holanda - quanto o aban-
dono de tradiçóes lingüísticas antigas, como no caso do provençal
46 -çc O Mito das Naçoes

no sul da França. Por fim, esse processo podia implicar o aprendi-


zado em escolas públicas de uma língua de uma família lingüística
totalmente estranha aos alunos, como nos casos dos bretóes e dos
bascos na França, ou dos romenos e eslavos na Hungria.
Como conseqüência, programas educacionais nacionais ambicio-
sos, incluindo o tipo de abordagem lingüística esrimulada por Stein,
tornaram-se essenciais para que a populaçáo fosse capaz de usar a
língua nacional. Dessa forma, instituiçóes educacionais se tornaram
o lócus da criaçáo do Estado-naçáo, tanro com a imposiçáo da ideo-
logia nacionalista como, de forma mais suril, com a disseminaçâo
da língua nacional, na qual estava implícita essa ideologia. A entáo
língua se tornou o veículo do ensino da história nacional do "povo"
que a falava e expressava suas aspiraçóes políticas através dela. No
entanto, a nova filologia permitiu que educadores e ideólogos nacio-
nalistas fossem além: ela propiciou a criaçáo de uma história "cien-
tífica" nacional que projetava tanro a língua como a ideologia da
naçáo em um passado remoto.
Essa projeçáo era possível porque o triunfo da filologia reve um
segundo e igualmente pernicioso efeito no desenvolvimento do na-
cionalismo. Estabelecidas as línguas nacionais - se náo no falar da
populaçáo, pelo menos em teoria -, âs regras da filologia indo-eu-
ropéia permitiam que os lingüistas atribuíssem textos de vernáculos
antigos, alguns com mais de mil anos, a essas línguas. As regras
lingüísticas permitiam que os acadêmicos alegassem que as línguas
nacionais descendiam desses rexros anrigos. Assim os lingüisras po-
diam tomá-los como antigos monumentos de sua respectiva naçáo:
os textos mais antigos em "alemáo" datam do século VIII, em "fran-
cês", do séculoIX, em "esloveno", do XI, em armênio, do VI. Mas a
filologia comparada abriu caminho panque eles fossem ainda mais
longe no passado: o estudo comparado das diferenres tradiçóes lin-
güísticas indo-européias tornou possível a elaboraçáo de regras para
as mudanças sistemáticas das línguas, permitindo que os filólogos, a
CapÍtulo l:Uma paisagem envenenada a.- 47

partir das versóes existentes dos idiomas, elaborassem reconstruçóes


hipotéticas das línguas em épocas pré-históricas. Desse modo, os
filólogos estabeleceram um meio pelo qual os nacionalistas pude-
ram projetar sua naçáo em passados remotos. Seguindo a tradiçáo
de Fichte, eles afirmavam que as evidências textuais (na falta delas,
a filologia histórica) provayam a existência de "comunidades lingüís-
ticas" distintas, sendo que cada uma delas compartilhava a mesma
visáo de mundo, os mesmos valores sociais e religiosos, os mesmos
sistemas políticos. O nascimento dos povos datava da época em
que essas línguas identificáveis e distintas se desprenderam de suas
subfamílias (germânica, eslava, românica ou helênica) para formar
unidades culturais e lingüísticas.

Uma herança perigosa

As alegaçóes de base lingüística a respeito da etnicidade cultural


sobreviveram com folga à infâmia que acometeu formas mais pri-
mitivas de nacionalismo pseudo-histórico. Atualmente os neonacio-
nalistas reconhecem que a autoconsciência política do nacionalismo
moderno é um fenômeno dos séculos XIX e XX. Por outro lado,
afirmam que, embora a etnicidade política seja algo novo, a etni-
cidade cultural é bastante antiga. Em outras palavras, os povos já
eram povos antes de terem consciência disso, e suas línguas sáo, ao
mesmo rempo, os símbolos e as realidades essenciais de sua identi-
dade imutável. Sendo assim, jornalistas e agências internacionais de
notícias enfatizam as diferenças lingüísticas quando noticiam sobre
os chamados confitos étnicos. Quando, por exemplo, ouvimos ou
lemos que a Lituânia é habitada pelos "grupos étnicos lituano e rus-
so", isso na verdade significa que x por cento da populaçâo desse
novo Estado tem o lituano como língua materna, enquanto ! por
cento fala russo. Se, como nos casos da Bretanha ou da lrlanda, nío
é mais possível fazer tais afirmaçóes por causa do desaparecimento
48 -o O Mito das Naçoes

da língua nativa no século passado, isso significa que "x por cenro da
populaçáo deueria falar uma dada língua porque seus ancestrais a
falavam".
A história científica baseada na filologia, posta a serviço do na-
cionalismo, referia-se basicamenre ao período enrre os séculos III e

XI, entre o fim do Império Romano e a formaçáo de novas comu-


nidades a partir das quais os modernos Estados-naçóes e os mo-
vimentos nacionalistas tentaram estabelecer sua legitimidade. Foi
também a época na qual novos grupos lingüísticos se tornaram lo-
calizáveis na Europa. Nesse período, conhecido como o momento
da "aquisiçáo primá,ria", os ancestrais das naçóes modernas - falan-
do suas próprias línguas nacionais, eu€ sustentavam e expressavam
costumes culturais e intelectuais específicos - surgiram na Europa,
conquistando definitivamente seus territórios sagrados e imutáveis e
estabelecendo de uma vez por todas seus inimigos naturais. Mapas
e estudos do período das migraçóes (ou período das invasóes, como
nos países de língua latina) mosrravam, em meio a uma mixórdia de
riscos e setas, o surgimento dos povos dentro e fora do império, dife-
renciados pelas línguas ou dialetos, costumes, vestuário e religiáo.

Etnoarqueologia

Com as ferramenras lingüísticas a serviço do rastreamento dos po-


vos em uma época em que eles ainda náo tinham consciência de
que eram povos, náo demorou muito até que surgisse uma outra
disciplina "científica" usada para o mesmo fim: a etnoarqueologia.
Uma vez que a localização de um "povo" era determinada em ter-
mos lingüísticos, os arqueólogos entravam em açáo, buscando evi-
dências concretas das especificidades culturais do povo em ques-
táo. Certamente, se uma língua correspondia a um povo específico
que compartilhava costumes e valores comuns, esses traços cultu-
Capítulo l:Uma paisagem envenenada o"- 49

rais distintivos estariam manifestos nos artefatos descobertos pelos


arqueólogos. Essa busca era empreendida com grande entusiasmo
pelos arqueólogos alemáes, interessados nas origens dos povos ger-
mânicos, e mais tarde pelos arqueólogos eslavos interessados nas
origens dos eslávicos. O mais importante defensor da tese de que
as tradiçóes específicas da cultura material encontrada poderiam ser
relacionadas a comunidades lingüísticas era Gustaf Kossinna, que
se dedicou a estabelecer a correspondência direta entre povos anti-
gos e culturas materiais distintas. Ele acreditava ser capaz de iden-
tificar grupos étnicos - primeiramente conhecidos através de textos
clássicos e medievais e depois identificados pela filologia - por meio
de uma investigaçáo sistemâtica das evidências arqueológicas, uma
investigaçáo que poderia seguir os rastros dos povos até a Idade do
Ferro. Tais evidências étnicas distintivas deram uma dimensáo ftsica
aos parâmetros lingüísticos de etnicidade. Dessa maneira, Kossinna
estabeleceu uma relaçáo direta entre língua, cultura material e os
povos conhecidos a partir de fontes históricas.27 Ainda mais rele-
vante é o fato de que isso abriu caminho para que Kossinna e seus
seguidores traçassem as rotas migratórias dos povos da Alta Idade
Média, que partiram de suas terras nativas e penetraram no mundo
romano.28
As implicaçóes dessa nova tradiçáo da arqueologia étnica foram
particularmente importantes para as reivindicaçóes territoriais nos
séculos XIX e XX. Elas encorajaram Estados modernos como a A[e-
manha a reivindicar regióes de países vizinhos com base na suposi-
çáo de que esses territórios teriam sido as terras nativas originais dos
povos germânicos. Assim a expansáo germânica em direçáo ao leste,

27.Ver Bjornar Olsen e Zbigniew Kobylinski, "Ethnicity in Anthropological and Archeological


Research: A Norwegian-Polish Perspective", Á rchaeologia Polona 29,1991: 9-11.
28.Gustaf Kossinna, DieHerkunftderGermanen,Würzburg, 1911;UrsprungundVerbreitungder
Germanen in vor-und frühgeschichtlicher Zeit,Wúrzburg, 1928.
50 --'o O Mito das NaçÕes

no século XIII, e a do Têrceiro Reich, no século XX, poderiam ser


tomadas simplesmente como retornos, e náo conquistas. Mais recen-
temente, argumentos arqueológicos semelhantes têm sido usados,
como nos confitos entre húngaros e eslovenos, albaneses e sérvios,
estonianos e alemáes.

O lixo tóxico

A herança da filologia e da arqueologia nacionalista continua pesan-


do bastante na geografia política das naçóes européias. Elas estabe-
leceram "cientificamente" os elementos essenciais que constituem
uma naçáo: língua, território e cultura distinta em um passado re-
moto. Muitos acreditavam que, por meio da nova história e da filo-
logia, seria possível estabelecer unidades comuns, estimular antigas
injustiças e legitimar velhas reivindicaçóes.
Os casos sáo bastante familiares a qualquer estudante da história
da Europa Ocidental. Povos germânicos, como os burgúndios, go-
dos e lombardos, que viviam no sul da Escandinávia, começaram a
migrar em direçáo ao sul, impulsionados por mudanças climáticas,
escassez de alimentos, superpopulação ou algum outro motivo ain-
da desconhecido. Esses povos se deslocavam por toda a Europa, le-
vando consigo suas línguas, costumes e tradiçóes, transmitindo suas
identidades distintas aos seus filhos ao longo das geraçóes, sempre
migrando, até que se depararam com as fronteiras do Império Ro-
mano. Entáo, conduzidos por seus reis-guerreiros, descendentes de
antigas famílias reais ou nobres, desafiaram Roma e estabeleceram
seus reinos germânicos sobre as ruínas do império. Entre esses he-
róis estavam o ostrogodo Teodorico - descendente da antiga família
real dos Amali, Alarico, líder visigodo da dinastia dos Baltos, Al-
boino, comandante dos Lombardos e membro dos Gauti, e o fran-
co Clóvis, membro da dinastia merovíngia. Algum rempo depois,
comandantes dos povos eslavos, como Chrobatos, líder dos croatas,
Capítulo 1: Uma paisagem envenenada o-- 51

e Isperihk, comandante dos búlgaros, conduziram seus povos pelos


destroços imperiais. Esses acontecimentos ocorreram no dito mo-
mento da "aquisiçáo primâria", a partir do qual teve início a história
das naçóes européias.
Atualmente esses acontecimentos continuam servindo como
base para a distinçáo dos limites dos grupos étnicos europeus. Na
verdade, nem todos esses grupos continuam existindo e, mesmo en-
tre os que ainda existem, nem todos constituem Estados-naçóes.
Ainda assim, seus líderes podem aspirar a essa condiçáo e estimular
seus povos a participar da luta pela autodeterminaçáo política. A
comunidade internacional não tem argumentos contra essas aspira-
çóes, a náo ser sua impraticabilidade, sua inviabilidade econômica
ou a força bruta - algo insuficiente diante das fortes convicçóes de
que os povos têm direito à autodeterminaçáo.
Porém, apesar do apelo emocional dessas reivindicaçóes de base
histórico-lingüística, nada na história as justifica. A congruência
entre os "povos" da Alta Idade Média e os contemporâneos é um
mito. Os argumentos lingüísticos e históricos váo abaixo rapida-
mente quando aplicados às questóes contemporâneas de diferenças
étnicas, e sáo ainda menos apropriados para a distinçáo dos "povos"
europeus da Alta Idade Média. Na lrlanda do Norte, a religiáo, e

náo a língua, é a causa dos conflitos. Na antiga lugoslávia, o sérvio


e o croata eram dialetos da mesma língua, um deles falado pela
comunidade católica ortodoxa, o outro pela católica romana, apesar
do fato de que os líderes nacionalistas das duas comunidades eram
oportunistas políticos ateus ou agnósticos. Tanto em Estados fortes
e hegemônicos como em movimentos pela independência, afirma-
çóes como "nós sempre fomos um povo" sáo, no fundo, apelos para
que se tornem povos - apelos sem base histórica que na verdade sáo
tentativas de criar a história. O passado, como sempre foi dito, é um
país estrangeiro, e nunca nos encontraremos por lá.
52 -s O Mito das NaçÕes

A confusão do passado

Náo se sabe exatamente quais línguas os diferentes "povos" falavam


no final da Antigüidade e na Alta Idade Média. De fato, evidências
imprecisas sugerem que eles geralmente falavam uma variedade de
línguas. No entanto, os cronistas da Antigüidade e da Idade Média
geralmente sugeriam que os grupos populacionais que eles identifi-
cavam como povos distintos compartilhavam uma língua comum.
A língua náo corresponde necessariamente a outros elementos cul-
turais, como tipos de vestuário, ornamentos, cerâmicas ou armas.
Os mapas hipotéticos das principais subfamílias lingüísticas da pré-
história - germânica, eslava, celta, báltica, românica e outras - náo
correspondem às diferenças específicas entre os elementos da cultura
material que podem ser identificados arqueologicamente. Os mapas
simplistas das culturas materiais, elaborados por Kossinna e seus
seguidores, revelaram-se míticos: a disposiçáo geogúfrca das cultu-
ras materiais étnicas "distintas" tem se modificado gradualmente,
distanciando-se cadavez mais dos padróes sugeridos pelas línguas.
Como observou o historiador britânico Chris'$7ickham, "um ho-
mem ou uma mulher com um broche em estilo lombardo náo é ne-
cessariamente mais lombardo do que uma família de Bradford com
um Toyota é japonesa. Os artefatos náo sáo um parâmetro seguro
para a distinçáo das etnias".2e
Aparentemente a língua náo determinava a cultura nem corres-
pondia a ela. Ao longo da história, as elites políticas geralmente
falavam línguas bastante diferentes das de seus subordinados. Além
disso, o fato de os historiadores estarem inclinados a pensar geo-
graficamente, seguindo o modelo do nacionalismo étnico do século
XIX, constitui parte do problema conceitual da compreensáo dos
povos europeus da Alta Idade Média: eles buscam uma correspon-

29. Chris Wickham, Early Medieval ltaly: Centrol Power ond Local Society 400-11)2,Totowa, NJ, 1981,
p.68.
Capítulo 1: Uma paisagem envenenada s"- 53

dência entre territórios, regióes, reinos e grupos étnicos que os habi-


taram. Porém, exatamente como nos casos das complexas socieda-
des modernas, as fronteiras que separavam os "povos" da Alta Idade
Média eram geralmente políticas, econômicas ou sociais, e náo geo-
gráficas.,A.demais, euando realmente havia divisóes geográficas, elas
existiam nos territórios, e nâo entre eles.
As populaçóes das cidades da Gália, da Espanha, da Itália e dos
Bálcás eram distintas das populaçóes adjacentes do interior. As po-
pulaçóes citadinas eram formadas por oficiais militares e governan-
tes de todas as partes do império, mercadores da Síria e da Ásia
Menor e judeus que haviam vivido por geraçóes nesses povoados da
sociedade mediterrânea. No século VI, por exemplo, muitos bispos
cujos nomes sugeriam que provinham das regióes mediterrâneas do
leste moravam em Paris, uma indicaçáo de que o controle dessa
instituiçáo religiosa poderia estar nas máos das comunidades sírias e
gregas. Enquanto isso, aristocratas nativos mantinham seu poder no
interior. A chegada dos godos, burgúndios e francos pouco alterou
essa situaçáo. Evidências arqueológicas revelam que os bárbaros, as-
sim como os governantes e comandantes militares que substituíram,
estabeleceram-se primeiro nas cidades, onde poderiam manter o
controle político por meio da unidade, enquanto viviam dos impos-
tos arrecadados nas províncias conferidas a eles. Fora das cidades, a

ocupaçáo bárbara limitava-se a zonas militares estratégicas.


As ocupaçóes bárbaras posteriores reverteram esse padráo. Nos
Bálcás, as cidades- especialmente as do litoral, como Zadar, togir,
Split, Dubrovnik, Budva e Kotor - continuaram sendo localidades
de cultura romana, cujos habitantes falavam grego. A populaçáo da
zona rural adjacente passou a ser dominada por uma confederaçâo
das estepes, conhecida como confederaçáo dos ávaros, que termina-
ria se incorporando às sociedades eslavas. A expansáo germana em
direçáo ao nordeste da Europa também criou cidades que pouco
54 --e O Mito das Naçoes

tinham em comum - sob um ponro de visra cultural, político ou


lingüístico - com rurais adjacentes que controlavam.
as áreas
Esses modelos medievais
perduraram por muito rempo. Até mes-
mo no século XX, cidades imporranres (como as cidades citadas do
Báltico) permaneceram política, lingüística e culturalmente distin-
tas da zona rural adjacente, sem que com isso criassem tensóes "na-
cionais". Por outro lado, a língua, que geralmenre é tomada como
fator distintivo quando se rrara de etnicidade, quase sempre impli-
cou distinção política ou social. No século XIX, quando os campo-
neses estonianos se referiam aos saks (saxoes), a palavra a princípio
significava "senhor" ou "mestre", e náo "germano" em um sentido
étnico, lingüístico ou nacionalisra.3O
Simplesmente náo é possível mapear geograficamenre os povos
por um longo período. Somente os horrores do século XX criaram a
ilusão de que língua e etnicidade podem ou devem ser mapeadas. A
supressáo da diversidade cultural em Estados como Espanha, Fran-
ça e Turquia fez com que os bascos, cataláes, bretóes, armênios,
curdos e outras minorias "desaparecessem" dos Estados-naçóes. O
Holocausto e a "limpeza érnica" do Leste Europeu que se seguiu à
Segunda Guerra Mundial frzeram com que milhares de habitantes
da Europa do Leste que falavam alemáo migrassem em direçáo ao
oeste, de modo que as populaçóes de cidades como Danzig, Kônigs-
berg, Riga e Vilna passaram a se assemelhar às populaçóes da zona
rural adjacente pela primeiravez na história. Entretanto há indícios
de que o antigo modelo de diversidade lingüística e cultural estra-
tificada está ressurgindo. Isso se torna particularmenre evidente nas
grandes cidades da Europa, onde a diversidade lingüística e cultural
está voltando a diferenciar os exrremos sociais da populaçáo. No
topo, grandes corPoraçóes multinacionais e instituiçóes científicas
quase sempre (ou sempre) fazem uso do inglês, deixando de lado

30. Hobsbawm , Nations and Nationalism, p.48-a9.


Capítulo 1: Uma paisagem envenenada e-- 55

as tradiçóes lingüísticas locais. Já na base da pirâmide, há um au-


mento considerável do número de pessoas de origens árabe, turca,
norte-africana, indiana e de outras parres da Ásia. Esses imigrantes
continuam falando árabe, rurco e ourras línguas muito diferentes
das faladas pela classe média européia. Essa mudança, recebida com
hostilidade e medo, e visra como uma novidade, ê na verdade um
retorno a um modelo muito mais anrigo de diversidade étnica. De
fato, aEuropa está começando a se parecer com seu passado.
Assim, após quase dois séculos de renrativas de map eaÍ a etni-
cidade lingüística, histórica e arqueologicamenre, pode-se concluir
que todas elas foram malsucedidas. O principal motivo disso é que
a etnicidade está na mente das pessoas. Porém o fato de o lócus da
etnicidade estar na mente das pessoas náo a torna eftmera. Muito
pelo cont rârto, isso a torna ainda mais real e poderosa, uma criaçâo
do arbítrio humano, invulnerável a simples argumentos racionais.
No entanto, fazendo justiça aos nacionalistas científicos dos sé-
culos XIX e XX, os elementos formadores do conceito de naçáo
desenvolvidos por eles náo surgiram do nada: eles se basearam em
uma tradiçáo de identifrcaçâo dos povos muito mais anriga, uma
tradiçáo já consolidada nos próprios documentos históricos utiliza-
dos pelos historiadores e filólogos que tentaram delinear os povos do
passado. Sob vários aspectos, a etnognfrado século XIX náo passou
de uma continuaçáo, com ferramentas mais refinadas, da tradiçáo
etnográfica da Antigüidade Clássica.
Capítulo 2
s9=lÊ9z

PoVOS IMAGINADOS NA ANTIGÜIDADE

Corno salientamos no primeiro capítulo, o nacionalismo étnico é


algo recente. No entanto, seria mais correto afirmar que o tipo es-
pecífico de nacionalismo étnico que conhecemos hoje é algo recen-
te. Em épocas passadas, as pessoas tinham formas diferentes, mas
igualmente poderosas, de estabelecer sua identidade, distinguindo-
se dos outros e mobilizando essa identidade para fins políticos.,En-
tretanto geralmente temos dificuldade em reconhecer as diferenças
entre essas formas mais antigas de percepçáo da identidade coletivas
e as mais contemporâneas, já que, mais uma vez, somos ludibriados
pelo próprio processo histórico que tentamos estudar. IJsamos os
termos "povo", "etnicidade", "raça" e "etnogênese' como se tives-
sem um significado objetivo e imutável. Embora o modo específico
como usamos esses termos seia novo, eles e seus equivalentes têm
uma longa história, que começa Por volta do século V a.e.c., ou até
antes disso. Eles sáo o produto de milhares de discussóes, observa-
çóes e hipóteses, e assim chegam a nós, impregnados da cultura
do passado. Muito antes de Fichte e Herder, esses termos iâ eram
elementos importantes e impactantes na tradiçáo intelectual da Eu-
ropa Ocidental.
Náo adianta tentar inventar novos termos para os grupos sociais
do passado: estamos presos ao vocabulário que herdamos. No en-
58 -s O Mito das Naçoes

tanto, precisamos entender o processo histórico que lhes deu signi-


ficado através dos tempos. Os meios pelos quais os europeus tentam
compreender as diferenças entre os grupos sociais foram herdados
tanto da Antigüidade Clássica como da Bíblica. Em poucas pala-
vras, havia dois tipos de "povos": os constitucionais,baseados em leis
e na lealdade e criados por um processo histórico, e os biológicos,
baseados na ascendência, costumes e geografia, raramente incluídos
no processo da transformaçáo histórica. De forma abreviada, pode-
mos dizer que essa é uma distinçáo entre 'nós" e "eles", "civilizados"
e "bárbaros" (essa tradiçáo continua nos dias de hoje: em muitos
lugares da Europa e da América, os museus de história lidam ape-
nas com "nossa história', enquanto os museus de história natural
exibem, ao lado de animais, plantas e minerais, nativos americanos
e africanos, assim como outros "povos naturais"). Nos séculos III e
IV quando os autores começâram a descrever os novos "povos" que se

tornariam os europeus de hoje, basearam-se nessas tradiçóes forte-


mente enraizadas. Sendo assim, precisamos compreender a influên-
cia das hipóteses provenientes tanto da Antigüidade greco-romana
como da Bíblia sobre esses autores, cujos textos sáo as únicas fontes
que temos sobre as sociedades que surgiram na Europa no final da
Idade Antiga.
Desse modo, com o objetivo de enxergar por trás dessas camadas
de acréscimos culturais, devemos primeiramente investigar as ori-
gens de nossa língua, de nossa etnicidade e da consciência que temos
de pertencer a um povo. Temos que entender como as tradiçóes
literárias, a política da força, a fe religiosa e o imperialismo da Anti-
güidade transformaram e moldaram as formas como os etnógrafos
concebem e descrevem a sociedade humana.

Os povos naturais e o povo romano

As origens da reflexáo etnogrâfrca européia remontam às chama-


das Histórias de Heródoto de Halicarnasso, escritas em meados do
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade e'- 59

século a.e.c. Heródoto foi o primeiro etnógrafo, e o modo como


V
compreendia e descrevia o mundo continua vivo nos dias de hoje.
Heródoto inventou tanto a história como a etnografia ao escrever

sobre as origens das guerras entre os gregos e os persas. Náo satisfei-


to em ser apenas um historiador político ou "de batalhas", concebeu
o conflito entre gregos e persas como apenas uma fase de um longo
processo que provocava uma disputa mortal entre a Europa e a Ásia.
Assim, suas inyestigaçóes náo limitavam aos acontecimentos mi-
se

litares e políticos das Guerras Médicas.r Muito pelo contrário, ba-


seaya-se no que havia visto, ouvido e lido durante suas viagens pelo
Ieste do Mediterrâneo e pela Ásia Menor para apresentar a chamada
"história total" do mundo conhecido. As unidades desse mundo
eram os povos (ethne;singular: ethno), geralmente subdivididos em
tribos (gene;singular: genos), cujas tradiçóes religiosas' costumes so-
ciais, línguas, culturas materiais e sistemas econômicos ele descre-
veu minuciosamente.
De modo geral, de acordo com Heródoto' os povos se diferen-
ciam geográfica e culturalmente. Embora Heródoto reconheça que
os povos possam migrar de uma regiáo para outra' um povo espe-
cífico, de acordo com suas Histórias, genlmente habita uma área
geográfica à qual dá seu nome. O Egito é o território habitado pelos
egípcios, assim como a Cilícia é habitada pelos cilicianos, e a Assíria,
pelos assírios.2 Heródoto conta a história de Aristágoras, governante
de Mileto: eu€ tinha um maPa de bronze que mostrava os territórios
dos lídios, frígios, capadócios ou sírios, cilicianos, armênios' ma-
cianos e o da Císsia.3 A maioria dos povos tem sua própria língua,
sendo a dos frígios a mais antiga, mas nem todos falam uma segun-

1. Nome dado às guerras entre gregos e persas. O termo provém dos medos, um dos principais
povos do lmpério Persa. (N. T')
2. Heródoto, Histórios, ll, 17.

3.\bid.,v,48.
60 -o O M ito das NaçÕes

da língua. Enfim os povos têm suas próprias religióes e costumes,


sendo que os mais significativos, segundo Heródoto, são aqueles que
definem a esfera das atividades das mulheres, práticas de sepulta-
mento e atividades econômicas.
As distinçóes entre ethne (povos) e gene (tribos) sáo fuidas, mas
Heródoto náo vê problema nenhum em identificar grupos princi-
pais e secundários, diferenciados por seus refinamentos culturais. As
categorias lhe parecem objetivas e evidentes. Do mesmo modo, ele
raramente discute o porquê de uma tribo específica pertencer a um
dado etltnos, mesmo que os membros da tribo náo admitam perten-
cer ao povo em questáo. Ao escrever sobre os iônios, poÍ exemplo,
caracterizados como o mais fraco dos povos helênicos, Heródoto
afirma que, por vergonha, a maior parte dos descendentes de iônios
do continente se recusa a reconhecer suas origens.a
Apesar de aceitar a existência ob.jetiva dos povos, Heródoto está
ciente de que eles podem surgir e desaparecer. A respeito das origens
dos povos, ele escreve de modo condescendente tanto sobre os mitos
nativos das origens dos diferentes ethne como sobre as lendas gregas
que os relacionam a Hércules, Minos ou alguma outra figura da
mitologia grega. As lendas de etnogênese, ou formaçáo dos povos,
que ele conta sáo essencialmente de dois tipos. Um deles consiste no
relato das origens da família real ou governante, geralmente incluin-
do uma genealogia mítica que estabelece o caráter duradouro da
família em questáo e sua autoridade sobre o povo. Quando escreve
detalhadamente sobre os citas, o mais recente dos povos, Heródoto
apresenta dois relatos genealógicos alternativos. O primeiro, eue se-
gundo ele é o relato de como os próprios citas descrevem sua origem,
estabelece que eles descendiam dos três filhos de Targitaus: Lipo-
xais, Arpoxais e Colaxais. Os citas aucates descendiam do primeiro,
os catiares e tráspios, do segundo, e os paralates, do terceiro. Após a

4. tbid.,1,144.
CapÍtulo 2: Povos imaginados na AntigÜidade s- 6'l

descriçáo desse mito nativo, Heródoto escreve sobre um relato dos


gregos do litoral do Ponto Euxino5 que ligava as origens dos reis
citas ao herói grego Hércules.6 Ele náo dá preferência a nenhum dos
dois mitos. Na verdade, evita a questáo inteiramente, alegando que
os citas chegaram à regiáo pôntica por terem fugido de sua terra
pâtriana Ásia ao serem acossados pelos masságetas.
Além de descrever as origens dos povos como se todos descen-
dessem de um ancestral comum, Heródoto escreve ocasionalmente
sobre a etnogênese por meio de cisóes ou casamentos entre indi-
víduos de povos diferentes, fenômenos sem dúvida familiares aos
colonos gregos, mas também aos náo gregos. Dessa forma, os lícios
descendiam dos cretenses que haviam sido exPulsos com seu líder
Sarpédon por Minos, seu irmáo. Já os saurômatas teriam surgido
quando os citas jovens seduziram e se casaram com as amazonas.T
O desaparecimento dos povos é menos comum' apesar de Heródoto
reconhecer que os povos de seu tempo às vezes ocupavam regióes
anteriormente habitadas por outros, que podiam deixar traços de
sua língua por meio de topônimos. Os cimérios, forçados pelos citas
a abandonar sua terra pâtria, foram parar na Ásia' de onde Poste-
riormente foram expulsos pelos lídios, deixando aPenas alguns no-
mes de lugares como evidência de sua Passagem.
Assim Heródoto apresenta uma comPreensáo ampla e imparcial
de como os povos surgiram e desapareceram. Seja com os descen-
dentes de um povo ancestral comum ou novas ramificaçóes de um
povo mais antigo, seja incorPorando-se a outros povos ou abando-
nando suas terras pátrias, os povos podem surgir' f,orescer e entáo
desaparecer como conseqüência da passagem do tempo.
Além de reconhecer que o território e a língua sáo importantes
mas náo definidores absolutos de cada etltnos, ele também reconhece

5. Mar Negro. (N. T.)

6.tbid., tv 7-10.
7.tbid., tv 1r0{16.
62 --s O Mito das NaçÕes

formas de organízaçáo política. Cada etltnos oú genls possui um rei


ou governantes. No entanto, sistemas políticos náo sáo muito con-
siderados na abordagem dos povos feita por Heródoto. Além disso,
a perda da independência política náo signifrca a destruiçáo de um
povo: os medos, e depois os persas, puderam conquistar a Ásia sem
afetar com isso o status dos povos que lá habitavam. Em parte, isso
se deu por causa do sistema de governo dos persas, que geralmente
evitavam destruir as elites locais ou instituiçóes políticas, preferindo
cooptáJas. Desse modo, mesmo incorporados a entidades políticas
dominantes, os povos mantêm sua identidade e personalidade. Em-
bora a liberdade seja inerente a alguns povos, a servidáo abjeta pode
caracterizar outros.
Apesar de as características físicas fazerem parte da descriçáo dos
povos feita por Heródoto, elas geralmente sáo mais uma conseqüên-
cia do meio do que da hereditariedade: embora haja metáforas
biológicas implíciras nas línguas dos ethne e gene, Heródoto náo re-
conhece os elementos que posteriormente seriam considerados dife-
renças biológicas ou raciais entre os povos conhecidos. Se os etíopes
e indianos tinham sêmen negro, se os povos do norte eram altos e
magros, a causa disso era a proximidade do equador, e náo a here-
ditariedade.

Herdeiros de Heródoto

A descriçáo panorâmica dos povos feita por Heródoto se tornou a


base de toda a etnologia européia subseqüente. Suas categorias, suas
tentativas de classificaçáo, seus estereótipos continuam vivos. Porém
muitos geógrafos e historiadores náo ficaram nada sadsfeitos com mui-
tas de suas hipóteses mais básicas. Apesar de (ou, talvez, "por causa
de") sua enorme influência, Heródoto era comumente visto por mui-
tos no final da Antigüidade como o "Pai da Mentira".
Os gregos do período helenístico e os romanos se incomodâvam
com sua abordagem neutra dos costumes e povos que observara.
Capítulo 2: Povos imagìnados na Antigüidade q' 63

Nascido em uma cidade iônia da Ásia Menor, cuia populaçáo náo


era puramente grega em termos de costumes e língua, Heródoto se
recusava a emitir julgamentos sobre as tradiçóes e culturas aborda-
das. Essa franqueza, compartilhada com outros pré-socráticos iô-
nios, talvez fosse uma característica da historiografra persa (que de
outra forma estaria esquecida), à qual Heródoto, oriundo de uma
família cuja língua era o grego, mas que vivia entre as fronteiras
do Império Persa, muito devia.s Heródoto descreve os Persas como
"de todos os homens, aqueles que melhor acolhem os costumes es-
trangeiros".e Ele relata com aparente aprovaçáo como Dario, em
sua corte, perguntou aos gregos se eles estariam dispostos a comer
o cadáver de seus pais. Os gregos, horrorizados, responderam que
nunca fariam uma coisa daquelas. Entáo Dario mandou chamar
uns indianos que, de fato, tinham o costume de comer o cadáver
dos pais, e lhes perguntou se estariam dispostos a queimá-los. Os
indianos reagiram com igual horror à sugestáo.l0 Para Heródoto, as
tradiçóes dos citas, gregos, egípcios e Persas tinham todas a mesma
importância. Todo poyo; observou, sem dúvida considera seus pró-
prios costumes superiores, e ele náo questionava essa persPectiva.
A posiçáo política de Heródoto talvez tenha igual importância
para a compreensáo da imparcialidade com que ele considerava as
diferentes culturas. Ao contrário dos historiadores e etnógrafos pos-
teriores, ele náo mantinha relaçóes políticas diretas com as cidades
persas nem com as gregas que se opunham a elas. Embora tivesse
viajado bastante vivido um bom tempo em Atenas' continuava um
e

outsider, sem uma posiçáo definida a respeito das relaçóes de poder


que cada vez mais caracterizavam as Perspectivas gregas e persas.
Esse náo foi de forma nenhuma o caso dos autores subseqüentes,

8. Arnaldo Momigliano, The Classical Foundotions of Modern Historiography, Berkeley, 1990, esp. p.
5-10.
9. Heródoto, Histórias,l, 135.

10. tbid.,lll,38.
64 '-s O Mito das NaçÕes

especialmente após as conquistas de Alexandre o Grande. A partir


de entáo, os autores gregos passariam a fazer parte de uma tradiçáo
cultural imperialista, e seu interesse pelo "outro" estaria intimamen-
te vinculado a uma preocupaçáo com o domínio, uma perspectiva
naturalmente herdada pelos autores imperialistas romanos.
Portanto Heródoto representa uma perspectiva cultural que pode
ser tomada como "pré-orientalista" na acepçáo desenvolvida pelo
crítico literário americano Edward \f. Said, sendo o orientalismo
"uma distinçáo ontológica e epistemológica entre 'o Oriente' e (na
maioria das vezes) 'o Ocidente"'.11 O fato de ter se recusado a de-
negrir os costumes dos outros lhe rendeu o epíteto de "barbarófilo",
criado por escritores posteriores que consideravam inferiores todos
aqueles que náo falavam o grego (o significado original de "bárba-
ro" era "aquele que fala mal"). Apesar disso, esses mesmos críticos
usaram os textos de Heródoto na tentativa de provar a excelência
da cultura greco-romana em relaçáo às outras, especialmente às do
"Oriente". É b"rt"nte irônico o fato de que, apesar desse constante
fluxo denigritório, como observou uma acadêmica, "Heródoto des-
creveu, resumidamente ou em detalhes, cerca de 50 povos. Entre
cinco e oito séculos depois, Plínio, Solino e Mela frzeram referências
a 34 desses povos em termos idênticos ou muito semelhantes aos
usados pelo historiador grego".r2
Esses autores náo repudiavam apenas a postura "pró-bárbara"
de Heródoto, mas também sua forma de distinguir os povos. Cada
povo tinha um conjunto de características distintivas, incluindo
costumes, origens, território e sistema político, mas, embora essas
características servissem para identificá-los e diferenciálos de seus
vizinhos, elas náo faziam deles povos propriamente ditos. Esses au-
tores, como o polímata romano Plínio o Velho, viraram esse sistema

11. Ëdward W.Said, Orientalism, Nova York, 1978,p.2.


12. Margaret T. Hodgen, Early Anthropology in the Sixteenth and Seventeenth Centuries, Filadé|fia,
1964,p.44.
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade s. 65

de cabeça paÍabaixo. Essas características, assim como as fronteiras


geográficas, tornaram-se os fatores determinanres da identidade ét-
nica, e náo simplesmenre características daqueles que perrenciam a
um grupo específico. Heródoto, por exemplo, havia tido o cuidado
de distinguir entre os vários citas e seus vizinhos náo citas. Os nêuri-
das compartilhavam dos mesmos costumes e crenças dos citas, mas
Heródoto náo os considerava citas, porque supostamente os nêuri-
das náo se reconheciam como tais. Os melanclenes se distinguiam
dos citas apenas porque usavam mantos negros, o que faziadeles, de
certa forma, náo citas.
Para Plínio e ourros romanos, que preferiam a ordem à ambigüi-
dade (e talvez à correçáo), tais categorizaçóes confusas náo funcio-
navam. Plínio queria que os povos fossem claramente delimitados
e estava especialmente interessado em classificáJos de acordo com
o território. Assim, todas as gentes (termo latino equivalenrc a gene)
que habitavam qlém do Danúbio eram ciras, independenremenre
de como eles próprios se consideravam. Essa definiçáo incluía os
getas, chamados de dácios pelos romanos, os saurômatas, os aorsi,
citas degenerados (scythae degeneres), os alanos, roxolanos e iáziges
sármatas.r3 Amiano Marcelino, historiador romano do século IV
generalíza ainda mais ao afirmar que as gentes dos citas eram inume-
ráveis e se espalhavam por uma área indeterminável.la Ele classifica
os citas asiáticos e europeus como um único povo que se espalha até
a China a leste e até o rio Ganges a sudeste.r5 Essas definiçóes terri-
toriais e classificaçóes, típicas dos romanos, obcecados pela precisáo
e pela ordem, objetivava e concretizava a identidade das gentes de
um modo inteiramenre estranho a Heródoto.
Além disso, esses etnógrafos também repudiavam a idéia que
Heródoto tinha da transformaçáo histórica, da etnogênese. Espe-
13. Plínio, História Naturol,lY.

14. Amiano Marcelino, Histórios, XX|1,8,42.

15.lbid., xxilt, 6, 64.


66 --s O Mito das Naçoes

cialmente os geógrafos e enciclopedistas descreviam os povos como


se estivessemem um presente eterno, simplificando ou eliminando
até mesmo os elementos míticos da abordagem de Heródoto. Plínio,
por exemplo, deleitava-se ao agregar o maior número possível de fon-
tes, incluindo povos havia muito desaparecidos, a grupos étnicos de
seu tempo em sua História Natural. O resultado era uma espécie
de lei da conservaçáo dos povos- nenhum povo jamais desaparecia,
nenhuma característica mudava. Na melhor das hipóteses, povos
antigos adquiriam novos nomes, costumes e características, mes-
mo que contraditórias, mas o perspicaz romano ainda os reconhecia
pelo que supostamente eram. Esses povos eram, em certo sentido,
mais uma parte do mundo natural do que do histórico. Além disso,
a\ocahzaçáo geogrâfr,ca desses grupos populacionais ganhava cada
vez mais importância à medida que os contatos entre os romanos
e os bárbaros se intensificavam. Os compiladores identificavam o
maior número possível de povos, e os mapas do mundo romano
ficavam cada vez mais abarrotados.

Gentes e o populus

A caracterizaçío dos costumes, localizaçãto geográfica e continuida-


de propiciou modificaçóes sutis mas significativas no modo como os
historiadores e etnógrafos romanos subseqüentes descreviam os gru-
pos sociais. Em primeiro lugaç eles descreviam os outros e a si mes-
mos de acordo com critérios fundamentalmente diferentes. Apenas
aos romanos era atribuída uma noçáo de desenvolvimento histórico,
fluidez e complexidade. A etnogênese do povo romano, sacralizada
nas obras de Virgílio e Tito Lívio, criou o populus a partir de gentes
díspares. Para Lívio, a identidade romana era o resultado de um
processo contínuo de fusáo política. Primeiro Enéas uniu troianos e
nativos "sob uma só lei e um só nome".16 Da mesma forma, Rômulo
16. Tito Lívio, Ab urbe condito, "...nec sub eodem iure solum sed etiam nomine omnes essent, Latinos
utramque gentem appellovit",l, 2.
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade e- 67

reuniu a "multidâo" e lhes deu leis com as quais eles pudessem se


unir em um único grupo.rT Dessa maneira, apenas o populus ro-
manus tinha uma história, ao contrário dos "povos" estrangeiros.
Essa história consistia no relato de como surgira o povo romano,
um grupo de indivíduos que viviam de acordo com uma única lei.
Nesse caso, náo se questionou a suposta unidade da ancestralidade,
geografia, cultura, língua ou tradição. Em toda a sua longa história,
pertencer ao populus romnnus era uma questáo de lei constitucional,
e náo de lei natural, portanto teoricamente qualquer um poderia ser
romano.
A natureza constitucional do povo romano é reminiscente da
compreensáo que Heródoto tinha do processo pelo qual alguns po-
vos bárbaros eram formados e se transformavam, mas náo para os
estudiosos romanos, como Plínio e Amiano Marcelino. Para eles,
os romanos eram completamente diferentes dos outros polros, cujas
identidades imutáveis se baseavam náo em uma associaçáo e uma
aceitaçáo de um sistema legal ou político, mas em critérios geográfi-
cos, culturais e lingüísticos. Populus, gens, natio ou tribus, indepen-
dentemente dos termos empregados, os romanos classificavam seus
vizinhos, inimigos vítimas de acordo com um sistema baseado em
e
critérios objetivos e imutáveis. Assim os outros "povos" náo tinham
história, já que suas origens estavam perdidas em meio aos mitos, e
a condiçáo de pertencer a esses povos era determinada pelo nasci-
mento, e náo pela escolha. Eles só passava m a fazer parte da história
quando entravam na esfera da existência romana.
O único autor romano que adotou a visáo neutra do "outro" de
Heródoto, pelo menos em parte, foi Cornélio Tácito. Tanto em seu
Agricola, no qual descreve os habitantes da Britânia, como, e espe-
cialmente, em Germania, ulrÌ relato dos europeus que viviam a leste
do Reno, ele demonstra simpatia por esses povos que, náo fosse por

17. lbid., "in populi unius corpus", l, 8.


68 '-s O Mito das Naçoes

ele, estariam fora da etnografia clássica. Ainda assim, Tácito náo


escapa totalmente à tradiçáo etnogrâfr,ca que elabora os náo roma-
nos como os "outros" - até mesmo em sua abordagem dos bretóes,
a quem atribui a mais nobre condenaçáo do imperialismo romano,
e na dos germanos, a abordagem etnográfica mais detalhada desde a
descriçáo dos citas por Heródoto.
Tácito caracteriza os bretóes como mais virtuosos que os gaule-
ses, já que, mesmo perdendo sua liberdade, mantinham a coragem.
Exaltava seu nobre desejo de vingança contra aqueles que os tinham
escravízado. Atribui a Calgacus, líder dos bretóes, esta frase sobre a
*eles
política imperialista romana: criam um deserto e o chamam de
paz".re Ainda assim, numerosos detalhes de suas tocantes descriçóes
dos bretóes revelam que Tácito, na verdade, náo sabia muito sobre
eles, e terminava recaindo em muitos dos velhos estereótipos de ou-
tros autores romanos menos bem-intencionados. Além disso, atribui
equivocadamente origem germânica aos caledônios, por serem rui-
vos e corpulentos. Supóe que os silures do sul, por causa de sua pele
escura e seus cabelos encaracolados, sáo oriundos da Espanha.Tâci-
to sabia um pouco mais sobre os habitantes do sudeste da Britânia,
semelhantes aos gauleses em termos de língua, religiáo e costumes.
Porém, além dessas distinçóes superficiais e gerais, pouco tem a di-
zer sobre os costumes, organizaçóes e tradiçóes específicas das várias
gentes. Caracteriza sua religiáo como superstitio. Sua descriçáo das ca-
racterísticas dos bretóes, como a ferocidade, e de suas táticas militares
é mais um lugar-comum da concepção das culturas bárbaras
distintas
do que uma descriçáo realmente distintiva.le A nobreza, a coragem
e o amor à liberdade que atribui aos bretóes sáo mais um pretexto
para condenar os imperadores Nero e Domiciano, os quais odiava,
do que o refexo de uma compreensáo genuína desse "povo".

18. Cornélio Tácito, Agricola,XXX,"...atque ubi solitudinem faciunt, pacem appellant"

19. rbid.,33.
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade e.- 69

Apesar de mais detalhada e bem informada, sua descriçáo dos


germanos também se enquadra na ampla rradiçáo da etnognfra
clássica pós-Heródoto. Náo há uma distinçáo enrre as grandes po-
pulaçóes e seus subgrupos em seu vocabulário, já que o rermo gentes
é aplicado nos dois casos. Entretanto Tácito revela sensibilidade e
correçáo em suas descriçóes da ascensáo e queda dos diferenres "po-
vos" e nas distinçóes entre os grandes grupos populacionais, como
os suevos, e suas inúmeras gentes, e entre as diferentes tradiçóes polí-
ticas e culturais desses grupos. Ainda assim, a tradiçáo da etnografia
clássica se faz presente. Tácito relata a origem mítica dos germanos,
descendentes dos três filhos de Mannus, e as viagens de Hércules.
Seu ceticismo declarado em relaçáo às duas lendas, seguido por sua
opiniáo a respeito das origens dos germanos, ecoa fortemenre o re,
lato de Heródotq a respeito da origem dos citas , e talvez as idéias
de Possidônio, historiador helenísrico do século I a.e.c. Em outros
momentos de sua descriçáo, ouvem-se ecos de Júlio César, Lívio e
Plínio. Assim como com os bretóes em Agricok, exalta bastante os
germanos, especialmente os que ainda náo tinham sido corrompi-
dos pelos vícios romanos. Porém, mais uma vez, hâ o forte peso
da tradiçáo etnogrâfrca pós-Heródoto de fazer julgamentos de va-
lor dos costumes dos bárbaros. Ao exaltar os germanos, Tácito se
distancia da crença de Heródoto na equivalência essencial entre os
costumes dos povos.
Embora tenha feito descriçóes mais elaboradas dos náo romanos,
sua obra teve pouca influência sobre os aurores subseqüenres. Até o
final do período romano, ou até mesmo muito depois de seu fim,
os historiadores conrinuaram a ver o mundo nitidamente dividido
entre romanos e bárbaros, "rÌós" e "eles".2o

20. Para uma abordagem geral da postura dos romanos em relação aos não romanos, ver J. P. V. D.
Balsdon, Romans and A/iens, Chapel Hill, NC, 1979.
70 --s O Mito das Naçoes

Os gentios e o povo de Deus

O mundo dicotômico dos romanos náo era o único. Os judeus


tinham uma noçáo de categorizaçío social anâloga, que dividia a
humanidade em duas: o polro de Deus, am, e os outros povos, os
goyim, ou, como são comumente referidos a partir do termo latino
para "povos", os gentios. A Bíblia apresenta dois modelos de povo.
O primeiro, subentendido em termos como goyim (traduzido na
Septuaginta como ethne e, por sáo Jerônimo, como gentes), é bioló-
gico. O Gênesis e o Êxodo enfatizam bastante essas raízes biológicas.
As genealogias e a história de Babel apresentam explicaçóes para
a diversidade em detrimento da unidade original da humanidade.
Apesar da semelhança em vários aspecros enrre o sentido bíblico e o
greco-romano de ethnos, os textos judaicos apresentam genealogias
de "povos' inteiros, e náo apenas de alguns indivíduos das fami
lias dominantes, fazendo com que os povos das Escriruras Sagradas
pareçam ainda mais homogêneos do que os da etnografra gréco-ro-
mana. Como no caso condição de perrencer
das gentes bárbaras, a
aos goyim é supostamente objetiva e imutável. Os goyim da Bíblia e

os ethne ov gentes dos etnógrafos clássicos sáo virtualmente idênti-


cos. Eles pertencem ao mundo natural eterno, e náo ao mundo da
história.
O segundo modelo é o do am (traduzido como laos, populus), o
povo de Israel, um corpo constitucional como o de Roma. Exata-
mente como Rômulo, que reuniu uma mubitudo de albanos e latinos
e, pela lei, os transformou em um povo, os descendentes de Israel se
tornaram o povo de Israel ou de Deus pela aliança no Monte Sinai.
No entanto, nem todos os descendentes de Israel seriam herdeiros
dessa aliança. Ambos os grupos sáo determinados constirucional-
mente, e náo biologicamenre.
A natureza constitucional do povo de Israel nem sempre é refle-
tida nos livros heterogêneos que constituem as Escrituras Sagradas
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade o"- 71

dos hebreus. Nos livros Esdras e Neemia.ç, os filhos dos israelitas que
i
se haviam casado com estrangeiras foram excluídos do grupo que re-
tornava do cativeiro. Nesse caso, pode-se verificar a origem de uma
definiçáo excludente e biológica do povo escolhido. Ainda assim,
pelo menos para os profetas posteriores, a condiçáo de pertencer
ao am náo se limita aos que descendem biologicamente de Abraáo,
Isaac e Jac6. Todos os que aceitam a aliança podem ser filhos de
Abraáo, assim como o populus romanus pode ser acessível a todos.

ldentidade social na Antigüidade Cristã

Os autores cristáos do fim da Idade Antiga herdaram tanto as tra-


diçóes da etnografra clássica como da bíblica. Eles as sintetizaÍam
para formar uma nova concepçáo da sociedade humana. A Bíblia
cristá enfatizava ainda mais a irrelevância das heranças étnica, social
elegal,. Os indivíduos do novo povo de Deus náo estavam ligados
por categorias tradicionais étnicas, legais ou de sexo. A última orien-
tação de Cristo foi: "Portanto ide, fazeidiscípulos de todas as naçóes
(ethne)" (5. Mateu.i. 28:19). E Paulo escreveu: "Nisto náo há judeu
nem grego; náo há servo nem livre; náo há macho nem Íêmea; por-
que todos vós sois um em Cristo Jesus" (Gálatas. 3:28). O povo de
Deus, portanto, une-se sem distinçóes.
Claro que nem todos absorviam a mensagem do Evangelho e,
por volta século IV os pensadores cristáos, eles próprios inteiramen-
te "romanos" em termos de educaçáo e ideologia, tinham que lidar
com um mundo que conservava as distinçóes excludentes que, havia
muito, eram familiares aos judeus e romanos. Sáo Jerônimo, impli-
citamente em sua traduçío da Bíblia, e santo Agostinho, explicita-
mente em seu A Cidade de Deus, fundiram as etnografias romana e
judaica em uma única.
Os conceitos de ethne e goyim continuam presentes em ambos,
com suas origens biológicas, status objetivo e continuidade anistó-
72 -s O Mito das Naçoes

rica. Por outro lado, o povo de Deus, os israelitas do Antigo Testa-


mento e os cristáos do Novo, possui as características de um povo
sob as perspectivas romana e judaica. Embora a distinçáo no uso
da terminologia náo seja sempre táo clara como alguns sugeriram,
os padres latinos viam os cidadáos da "Cidade de Deus" como uma
comunidade de base constitucional, que, como as de Roma e Israel,
baseava-se na lei e no conttato.zr
Paru Agostinho, o terceiro período do mundo, entre Abraáo e

Davi, foi o período da etnogênese dos israelitas. É o tempo da esco-


lha, o tempo em que o povo de Deus se separa das gentes, o tempo
do pacto com Abraáo, do exílio e do êxodo.22 Com essas experiên-
cias - particularmente com a renovaçáo da aliança no Monte Sinai,
com os anos de peregrinaçáo, com a organizaçáo política em tribos
e com a conquista de Canaí-, nasceu o povo de Israel.
Apesar de o povo de Deus ser o populus perfeíto, jâque apenas ele
se baseia na verdadeira justiça e no amor absoluto, Agostinho esrá
inclinado a reconhecer que as sociedades profanas também compar-
tilham das características desses povos. Entretanto, embora a tradi-
çáo romana tenha dividido a humanidade em romanos e os ourros,
a perspectiva cristá os colocaya, pelo menos em teoria, na mesma
categoria dos "outros". O populus dos romanos, assim como "o dos
atenienses, o dos outros gregos, o dos egípcios, o da antiga Babilônia
dos assírios ou o de qualquer outra gens que seja", é um populus ge-
nuíno, já que, como os outros, é "unido por uma comunháo baseada
em um acordo comum sobre os objetos de seu amoÍ".23
Assim, por volta do início do século V os habitantes do mundo
romano, fossem cristãos, judeus ou pagáos, conheciam dois modelos

21. Jeremy DuQuesnay Adams, Ihe Populus of Augustine and Jerome: A study in the Patristic Sense of
Community, New Heaven, 1971, p. 110.
22. Agostinho, De Genesi contra Manichii,l, 23. Ver também Adams, Ihe Populus of Augustine and
Jerome,p.48-49.
23. Agostinho, A Cidade de Deus, XlX, 24. "Populus est coetus multitudinis rationalis rerum quas diligit
concordi communione sociafus". Ver também Adams, Ihe Populus of Augustine and Jerome, p.19.
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade o. 73

de povo: o povo que podemos chamar de étnico, baseado na ances-


tralidade, costumes e território, e o povo constitucional, baseado na
lei e na adesáo. Náo havia uma terminologia consisrente que os di-
ferenciasse, nem mesmo características claras que os distinguissem.
A diferença era apenas uma questáo de perspecriva. Um observador
interno - fosse romano, judeu ou cristáo - percebia a complexidade
e a natureza heterogênea de sua própria comunidade. A adesáo a ela
era determinada tanto pela aceitaçao do indivíduo pela comunidade
como pela disposiçáo do indivíduo para aceitar as leis e valores da
comunidade. Desse modo, a adesão era, pelo menos em parte, sub-
jetiva e condicional.
Por outro lado, o mesmo indivíduo, ao observar outros povos,
enxergava homogeneidade, simplicidade e ausência do aspecto his-
tórico. Na melhor das hipóteses, Roma, as cidades gregas do período
clássico e talvez os grandes impérios da Pérsia e do Egito poderiam
ser vistos como corpos constitucionais baseados na lei e no comum
propósito. Mas o outro modelo - o da ascendência mítica, da care-
gorizaçâo biológica e imutável baseada na geografia, língua e cosru-
mes - prevalecia, especialmente quando se observavam as gentesbâr-
baras, que cercavam e ameaçavam cada vez mais a romanitas.24 Essa
distinçáo náo era feita com base nas realidades das organizaçóes
sociais ou culturais reconhecidas, mas nos preconceitos herdados ao
longo de séculos, desde a rejeiçáo da investigaçáo imparcial, levada
a cabo por Heródoto, dos povos do mundo conhecido.

Etnografia clássica e as migrações bárbaras

Os historiadores do final da Antigüidade, especialmente Amiano


Marcelino, Procópio e Prisco, percebiam as contradiçóes entre atra-
diçáo herdada e suas experiências pessoais com os povos bárbaros,
que transformaram o império entre os séculos III e VI. Ao con-
24. Romanidade. (N. T.)
74 -e O Mito das Naçoes

trário dos etnógrafos de poltrona, como Plínio, cuja ignorância e


distanciamento dos fatos permitiam que classificassem os povos do
mundo de acordo com um sistema demasiado abrangente e arbitrá-
rio, esses historiadores mantinham contato direto e prolongado com
essas gentes. A desordem da realidade se chocava inevitavelmente
com a nitidez da teoria
Quando, por exemplo, Amiano descreve as campanhas do impe-
rador romano Juliano contra os alamanos no século IV está ciente
de que os alamanos constituem uma confederaçáo complexa. Sáo
liderados por sete reis, sendo Chnodomarius e Serapio, segundo ele,
os mais poderosos. Mas esse exército náo é formado por uma única
gens alamannorum, mas "por várias naçóes (nationibus), em parte
devido à ganância, em parte a um tratado de assistência múttJa".2s
Procópio começa sua descriçáo dos godos explicando que "havia
muitas naçóes góticas no passado, e ainda há no presente", entáo ele
lista os mais importantes desses et/tne, como os godos, vândalos, visi-
godos e gépidas.26 Quando Prisco visitou a corte de Átila, descreveu
os hunos como uma combinaçáo de vários povos que falavam a lín-
gua huna, o gótico e o latim.27
Ainda assim, o peso da tradiçâo era táo forte que nem mesmo
esses observadores próximos puderam se desvencilhar das conjectu-
ras da etnografia clássica. Amiano, por exemplo, tinha um conheci-
mento pessoal dos alamanos e outros povos da fronteira ocidental,
mas freqüentemente se referia a eles simplesmente como germani

25. Amiano Marcelino, XVl, 12, 26. Sobre os alamanos, ver Dieter Geuenich, Geschichte der
Alemannen, Stuttgart,'1997,e Hans Hummer,"The Fluidityof Barbarian ldentity:The Ethnogenesis
of Alemanni and Suebi, AD 200-500", Early Medieval Europe 7,1998:1-27.
26. Procópio de Cesaréia, HistóriadasGuerraslll, ii, 1-6. Sobre os godos, ver Herwig Wolfram, History
of theGoths, Berkeley, 1987,e, para uma história mais tradicional, que não aceita o senso de
fluidez relativo aos godos proposto por Wolfram, ver Peter Heather, The Goths, Oxford, 1996.
27. Em Constantine Prophyrogenitus, Excerpta de Legationibus Romonorum ad Gentes, Carolus de
Boor (Ed.), Berlim, 1093, l, p. '135. Sobre os hunos, ver Otto Maenchen-Helfen, Ihe World of the
Huns, Berkeley,1973; E. A. Thompson,The Huns,2 ed. rev., Oxford, '1996; e Herwig Wolfram,
"The Huns and the Germanic Peoples", em Franz H. Baüml e Marianna D. Birnbaum (Eds.),
Attila:The Man and his lmage, Budapeste,1993, p.16-25.
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade e,- 75

ou barbari.Ele náo incluía povos do Leste, como os godos, entre os


Germani - o termo tinha um significado geográfico, e náo lingüís-
tico. Procópio, após distinguir uma variedade de godos, recorreu à
tradiçáo para declarar que seus antigos nomes eram "saurômatas" e
"melanclenes", dois povos de Heródoto, e entáo afirmou que tam-
bém eram conhecidos como os ethne getas. Segundo ele, apenas os
nomes eram diferentes - em termos de aparência, leis e religiáo,
eram exatamente os mesmos.28 Claramente, apesar dos detalhes de
suas informaçóes, ele ainda era um prisioneiro da literatura etnográ-
fica clássica que o precedera.
Por que ele náo foi capaz de dar prioridade à experiência em
detrimento da tradiçáo, reconhecendo nos outros povos as mesmas
complexidades que havia entre os romanos? A arrogância e o chau-
vinismo cultural pesaram, sem dúvida. A ignorâncïa, ê claro, tam-
bém teve seu peso, assim como o forte preconceito em relaçáo aos
náo romanos. Mas sua perspectiva também era em parte uma pers-
pectiva prática: os imperialistas romanos achavam mais fiícil lidar
com os outros povos quando vistos como povos étnicos homogêne-
os, e náo como táo complexos e fuidos quanto a populaçáo romana.
As comunidades que efetivamente desafiavam essas categortzaçóes
objetivas - especialmente os judeus e cristáos, eu€ compartilhavam
da visáo dicotômica do mundo dos romanos, mas que se colocavam
no centro - eram particularmente frustrantes. O imperador Marco
Aurélio, a respeito de suas negociaçóes com os judeus, supostamente
teria dito: "Oh, seus marcomanos, seus quados, seus sármatas! Pelo
menos encontrei um outro povo ainda mais perturbado do que vo-
cês". Juliano, ao reclamar com os cristáos, lembrando Marco Auré-
lio, diria: "Escutem, vocês, a quem os alamanos e francos andaram
ouvindo".2e Se pelo menos os judeus e cristáos pudessem agir como
as gentes bárbaras, tudo estaria bem no império. O problema era

28. Procópio, lll, ii,4-5.


29. Amiano Marcelino, XXll,5.
76 -e O Mitc :3) Nações

que, como se podia esperar, nem as gentes bárbaras agiam de acordo


com os padróes atribuídos a eles.
Apesar das categorizaçóes romanas, os povos bárbaros - cuja en-
trada no mundo romano o havia transformado táo profundamente
-, como os próprios romanos, eram unidades políticas de caráter
mais constitucional do que étnico que uniam grupos de origens cul-
turais, lingüísticas e geográficas diversas, sob a liderança dos clás
de guerreiros nobres. Os alamanos, godos, alanos, hunos, francos
e outros eram formados por grupos que falavam diferentes línguas,
tinham diferentes costumes e se identificavam por meio de diferen-
tes tradiçóes.
Ao que parece, eles também apareceram e desapareceram de
modo consideravelmente rápido, apesar da tendência que tinharn
de adotar nomes de "povos" antigos e da tendência dos romanos de
identificar os novos "povos" por meio de nomes citados por Heródo-
to, Plínio ou qualquer ourra autoridade da Antigüidade, o que dava
a impressáo de serem bem mais antigos do que realmente eram. En-
fim, quando surgiram na órbita do império, suas estruturas econô-
micas, sociais e políticas foram moldadas pela civilizaçao romana,
assim como a percepçáo que tinham de si mesmos foi fortemente
influenciada pelos sistemas de classifi cação de seus vizinhos impe-
rialistas, cujos costumes procuraram assimilar.

Os povos da Europa no final da Antigüidade


Dependendo do sistema de classifi caçao social escolhido, é possível
categorizar os habitantes da Europa dos primeiros séculos do impé-
rio de várias maneiras semelhanres e aré mesmo contraditórias.
Até o século II, uma distinçáo tradicional entre as populaçóes
livres do império havia sido a do cidadáo ou náo cidadáo. No século
I, linha divisória que náo se baseava necessariamente
essa era uma
na língua, no ethn .ç ou na geografia, como bem ilustra a história
da cidadania romana de sáo Paulo e suas conseqüências. Entretanto
i

t
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade o- 77

os limites da cidadania, e portanto da lei romana, dependiam da


província e da ciuitas, de modo que a cidadania restrita reforçava as
distinçóes culturais, políticas e regionais pré-romanas. Porém, após
o ano de 212, quando a cidadania se estendeu a praticamente todos
os indivíduos livres do império, incluindo pagáos e judeus - o que,
na verdade, foi uma medida paÍaaumentar a receita pública -, essas

distinçóes náo significavam mais nada. A partir de entáo, o que im-


portava era a distinçáo social, baseada principalmente na condiçáo
financeira e na influência política, entre os ltonestiores, membros da
elite que tinham acesso fácil ao imperador e que gozavamdo direito
de apelar em caso de acusaçóes severas, e os humiliores, ou plebeus,
sujeitos à autoridade dos governadores das províncias sem direito à
apelaçáo.
A universalrzaçáo da cidadania também teve como conseqüência
a aboliçáo virtual das tradiçóes legais náo romanas em prol de uma
lei romana universal. Apesar de isso nunca ter eliminado comple-
tamente as variaçóes regionais da lei, especialmente no leste heleni-
zado, enfraqueceu a identidade das províncias. Embora, por toda a
história do império e além dela, os indivíduos das elites continuas-
sem a se identificar fortemente com suas ciuita.t, esse tipo de apego
emocional e bairrista era suplementar à identidade romana, e náo
seu substituto. Esse sentimento náo era forte a ponto de colocar as
comunidades umas contra as outrâs. Pelo contrário, ele se manifes-
tâva como uma espécie de orgulho local, expresso pela exaltaçâo
de seus campos ferteis, seus atributos naturais, suas safras de alta
qualidade e suas tradiçóes.
À medida que o governo central se enfraquecia, essas identida-
des locais, expressas com termos provenientes das subdivisóes ci-
vis romanas e do vocabulário "étnico" pré-romano, começaram a
dominar a retórica dos discursos provincianos. Na Gália, onde as
unidades administrativas romanas se baseavam, até certo ponto, nos
territórios das tribos locais, os nomes tribais ressurgiam como desig-
naçóes prestigiadas das identidades regionais.
78 -p O Mito das NaçÕes

Da mesma forma, à medida que o poder imperial perdia força na


Europa Ocidental, as elites bárbaro-romanas começavam a tentar
posicionar as novas realidades sociais e políticas sob a perspectiva
das tradiçóes políticas e etnográficas herdadas. Longe de rejeitar as
imagens simplistas de etnicidade, elaboradas durante séculos de es-
crita clássica, eles as internalizavam, aceitando as características que
os romanos, havia muito, atribuíam a eles. O resultado foi que, tanto
nos reinos bárbaros como em Constantinopla, essas novas unidades
políticas, com seus líderes bárbaros, passaram a ser compreendidas
como as "outras", de acordo com a terminologia herdada da etno-
grafra greco-romana. Em todo o antigo império, as elites governan'
tes se viam e eram vistas como gentes, unidas, sob o comando de um
rei étnico, pela ascendência comum, pela língua e pelos costumes.
Ainda assim, essas novas elites buscavam a equivalência entre suas
gentes e o populus romnnus. O resultado foi uma transformaçáo do
modo como as duas categorias sociais eram compreendidas.
Essa equivalência pressupunha virtude, erudiçáo e tradiçóes aná-
logas. Desse modo, os "novos" povos que surgiram nas fronteiras do
império teriam que adquirir uma história táo antiga e gloriosa como
a dos romanos. As origens troianas de Roma haviam colocado a his-
tória romana à altura da grega. Os defensores daféjudaica, e depois
os da cristá, haviam enfrentado o mesmo problema e o resolveram
estabelecendo a história do povo hebreu em um contexto histórico
greco-romano, pressupondo náo apenas uma equivalência entre eles
como também um antigo contato e uma apropriaçáo dos patriarcas
e profetas hebreus pelos filósofos e legisladores gregos. Na primei-
ra tentativa conhecida de reavaliaçáo do povo bárbaro, Cassiodoro
aparentemente lançou máo da mesma abordageÍn, baseando-se em
autores antigos para elaborar descriçóes dos povos que supostamen-
te eram godos e assim combinar as tradiçóes orais góticas em uma
única tradiçáo universal, ou seja, effi uma história greco-romana,
em favor de seus governantes ostrogodos. Em sua história dos godos,
hoje perdida, ele afirmava que havia "transformado a origem góti-
!

i
Capítulo 2: Povos imaginados na Antigüidade s" 79

ca em história romana".3o O verdadeiro significado dessa afirmação


tem sido há muito tempo objeto de muitos debates. Isso certamente
significa muito mais do que, como supôs um historiador, um relato
da história gótica como uma "biografia em série", à maneira dos
historiadores romanos.3r Ao estabelecer 17 geraçóes de reis góticos
(o mesmo número que havia entre Enéas e Rômulo), ao descobrir
seus feitos em livros (gregos e latinos), e náo em sua tradiçáo oral,
Cassiodoro mostrava que os godos, apesar de bárbaros, pertenciam
ao mesmo mundo dos romanos. Nas primeiras seçóes da Getica de
Jornandes - em parte baseada na obra perdida de Cassiodoro -, os
godos, relacionados aos getas da historiografia clássica, conhecem
guerreiros valorosos e reis virtuosos da família dos Amali e cultivam
a filosofia e a teologia mesmo antes de entrarem na órbita do mundo
romano.
A versáo de Jornandes da inclusáo dos godos na historiografia
clássica estabeleceu o modelo que seria seguido por todos os historia-
dores das "histórias bárbaras" subseqüentes. Independentemente dos
programas políticos, religiosos ou literários que seguissem, do século
VI ao XII, os autores do que é conhecido pelo vago termo Origines
gentiumlevavam seus povos ao palco da história greco-romana o mais
rápido possível, baseando-se para isso na etnografia da Antigüidade
e na história romana, isso quando náo davam um jeito de fazer com
que seus povos descendessem diretamente de heróis troianos.
Porém, ao mesmo tempo em que as elites dos reinos bárbaros
internalizayam a tradicional perspectiva romana dos bárbaros, elas
apagavam a antiga e estimada distinçáo entre bárbaros e romanos.
Essa foi a intençáo explícita de Jornandes, que conclui sua Getica
com a uniáo entre os Amali e os Anicii, concretïzada com o nasci-
mento de Germanus Posthumus, filho do último dos Amali e sobri-
nho do imperadorJustiniano. A reduçáo de romanos e godos a duas

30.'Originem Gothicam fecit esse historiom Romanam". Cassiodoro, Variae, 9.25.4-6.


31. Walter Goflart,The Narrators of Earbarian History (A.D. 550-800): Jordones, Gregory of Tours, Bede,
and Paul de Deacon,Princeton, '1988, p. 35-38.
80 --e O Mito das Naçoes

famílias, que puderam se unir devido a uma aliança matrimonial


fortuita, modificou náo apenas a compreensáo dos ethne bárbaros,
mas também a do povo romano. Por volta do século VI, o populus
romanus era visto, pelo menos por autores como Jornandes, da mes-
ma forma que uma gens bârbara em termos qualitativos. As distin-
çóes entre "eles" e "nós" estavam desaparecendo. Certamente a idéia
de uma gens de Roma náo era estranha ao pensamento romano:
poetas como Virgílio cantaram as proezas realizadas para a funda-
çáo da gens Íomana. Ainda assim, a velha idéia de que tais grupos
sociais podiam de fato ser fundados e desse modo ficar de fora da
ordem natural de nascimento e ancestralidade (como na noçáo mais
orgânica de natio) estava enfraquecendo. Os romanos estavam se
tornando uma gens como seus vizinhos e sucessores bárbaros.
Ao mesmo tempo que os romanos se tornavam uma gens, os bár-
baros se tornavam, cada vez mais, um populus. A mudança na clas-
sificaçáo étnica de "eles" para "nós" no contexto dos reinos bárbaros
deu uma nova ênfase à natureza política dos povos, algo que havia
sido um elemento secundário na etnografia clássica, mas decisivo na
identidade constitucional romana. A condição de perrencer a um
povo bárbaro dependia mais de uma disposiçáo para se identificar
com as tradiçóes do povo em quesrâo - represenradas por sua li-
derança política, ou seja, suas famílias reais ou nobres - e de sua
competência para contribuir com essas tradiçóes, especialmenre por
meio do serviço militat do que da ascendência biológica, da cultu-
ra, dalíngua ou da origem geográfic^.E p^t^esse processo comple-
xo, contraditório e fascinante da criaçáo dos povos europeus, tanto
na mente dos intelectuais como nas terras do Império Romano, que
nos voltamos agora.
i

Capítulo 3
sHz

BÁRBAROS E OUTROS ROMANOS

O, ,o-anos adoravam comparar seu mundo ao dos bárbaros. Po-


rém, como sugerimos no capítulo anterior, esses dois mundos cor-
respondiam a duas categorias distintas: a identidade romana, como
o populus romanus, era constitucional, criada internamente e basea-
da em uma cultura e uma tradiçáo intelectual comuns, em um sis-
tema legal e em uma predisposiçáo para a integração a uma tradição
político-econômica comum. Resumindo, a qualidade de romano
era uma categoria constitucional, e náo étnica. Jâ a qualidade de
btirbaro era uma categoria inventada, projetada em uma variedade
de povos com todos os preconceitos e pressuposiçóes de séculos de
etnografia clássica e imperialismo. Além disso, apesar da ênfase que
os romanos davam à diferença entre as duas categorias, uma neces-
sariamente náo excluía a outra. Um indivíduo podia ser ao mesmo
tempo romano e,bárbaro. A distinçáo, sempre mais teórica do que
rea[, tornou-se ainda mais incerta nos séculos IV e V.

ldentidades regionais, religiosas e de classe no lmpério

A qualidade de romano também náo era o principal meio de identi-


ficaçáo panos milhóes de habitantes (permanentes ou temporários)
do Império Romano. Os habitantes do Império se identificavam
mais pela classe social, pela profissão ou pela cidade em que viviam
82 --e O Mito das Naçoes

do que pela nacionalidade ou etnia. Certamenre, a parrir do início do


século III, a cidadania náo era mais tão imporranre. Em2l2e.C., qua-
se todos os habitantes do Império eram cidadáos romanos, um sra-
tus que jâhaviasido bastante cobiçado (lembremos da satisfaçáo de
sáo Paulo quando teve a oportunidade de dizer a um oficial romano

- que havia adquirido sua cidadania a muito custo - que era um


romano de nascença), mas que a partir de entáo passava a ser apenas
uma simples questáo de conveniência militar e fiscal. O imperador
Caracala havia estendido a cidadania romana a todos, de modo que
qualquer um pudesse ser convocado para servir nas legióes. Além
disso, como cidadáos romanos, todos teriam que pagar impostos.
Dessa forma, como praricamente todos os habitanres do Império
passavam a ser romanos, a identificação por essa característica per-
dia sua importância. os estudos etnográficos modernos da identida-
de revelam que, na maioria das vezes, sáo os grupos fronteiriços que
formam as identidades "étnicas" mais importantes, geralmente em
oposiçáo ao "outro" com quem interagem, o que náo ocorre com os
habitantes do centro. Assim, como a maioria dos cidadãos romanos
vivia cercada por outros cidadáos, já que muito raramenre se de-
parava com os "germânicos livres" do outro lado do Danúbio ou
se arriscava nas areias do Saara para interagir com os berberes, sua
"romanidade" era menos importante do que outros fatores na deter-
minaçáo de sua identidade essencial. O verdadeiro senrimento de
unidade (ou de oposiçáo) provinha das diferenças regionais, profis-
sionais, de classe e, em algumas circunstâncias limitadas, religiosas.
Os bárbaros existiam (se é que existiam) apenas como uma carego-
ria teórica.
A distinçáo mais importante do mundo romano era enrre os ci-
dadáos livres e os escravos. o Império sempre havia sido uma so-
ciedade escravocrata, na qual os escravos - fossem eles escravizados
além das fronteiras do Império durante as guerras ou dentro de seus
limites pelo status hereditário ou pela condenaçáo judicial - forma-
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos s. 83

vam a maior parte da máo-de-obra agrá,ria, artesanal e industrial.


Os escravos eram submetidos aos caprichos de seus senhores e prote-
gidos apenas por seu yalor econômico. Ainda assim, náo havia uma
nítida distinçáo racial, étnica ou religiosa entre escravos e senho-
res. De fato, muitos escravos eram "importaçóes" recentes da África
subsaariana ou das florestas da Germânia e, nos dois casos, eram
valorados e diferenciados de acordo com a cor da pele, o tamanho e
a aparência. Porém a maioria náo podia ser diferenciada do resto da
populaçáo, exceto talvez pelas mârcas ou tatuagens que determina-
vam o status de escravo, ou pelas cicatrizes das surras que levavam
de seus senhores.
Na teoria, a linha divisória entre o escravo e o cidadáo livre era
absoluta, mas na verdade também era permeável. Assim como ho-
mens e mulheres livres podiam ser condenados à escravidáo por
questóes civis ou criminais, os escravos às vezes conseguiam entrar
para o mundo dos cidadáos livres. Os senhores romanos podiam
permitir que seus escravos tivessem suas propriedades (peculium),
que adquiriam em seu tempo livre. Embora essas propriedades náo
fossem de grande valor, elas podiam, em alguns casos raros, abrir ca-
minho para,que os escravos comprassem sua liberdade e a de sua fa-
mília. Além disso, os romanos cultivavam, havia muito, o generoso
hábito de emancipáJos, geralmente quando estavam à beira da mor-
te, garantindo assim um funeral cheio de enlutados agradecidos.
Os emancipados viviam em um mundo intermediário, livres pe-
rante a lei e independentes para interagir socialmente, mas presos a
deveres específicos de deferência, pagamentos e assistência para com
seus antigos senhores. Pelo menos teoricamente, os filhos dos eman-
cipados não herdavam o status de escravo. Assim, seus netos podiam
ascender socialmente, de acordo com sua sorte e talentos. Ascensóes
sociais espetaculares eram raras, mas aconteciam e alimentavam o
sonho da mudança, perante a lei, do status de objeto parao de indi-
víduo livre, ou até mesmo o sonho de enriquecimento.
84 -e O Mito das NaçÕes

Entre os cidadáos livres do Império, o abismo que sepaÍava a


elite das massas era enorme. Camponeses comuns, que trabalha-
vam em terras alheias como meeiros ou arrendatários, mal se dis-
tinguiam dos escravos. As elites, ou honestizres, gozavam de direitos
garantidos pela lei em virtude da riqueza que possuíam e de seu
valor para o Estado romano. Ao contrário dos humiliores, ou cida-
dáos comuns, os honestiores nâo eram punidos fisicamente, o mais
penoso e humilhante dos castigos paraaplebe. Quanto aos cidadáos
comuns, dependendo de sua condiçáo econômica, podiam se en-
contrar em piores situaçóes do que os escravos privilegiados, e nada
tinham em comum com os ricos proprietários de terras que con-
trolavam boa parte da vida deles. No século III, sob a pressáo dos
impostos, do recrutamento militar e da diminuiçáo da populaçâo,
o status dos arrendatários agrícolas se assemelhava bastante ao dos
escravos. Como eram os proprietários de terras que arrecadavam os
impostos referentes a suas posses, e terras desocupadas náo rendiam
tributos, eles tinham autoridade para controlar seus contingentes de
trabalhadores. A proÊssáo de agricultor, como as outras, tornara-se
hereditária. Dessa maneira, os proprietários tinham o poder de per-
seguir os arrendatários fugitivos e forçáJos a retornar à propriedade.
Ao longo dos séculos III e IV, os proprietários exerciam cada vez
mais poder sobre seus arrendatários, o que incluía náo só os direitos
do tradicional patronato romano como também um grande poder
político.
As elites rurais do Império monopolizavam poder econômico e
prestígio político em suas localidades e regióes. Os membros dos
conselhos municipais, com suas posiçóes asseguradas por suas ri-
quezas fundiárias, controlavam a vida pública. Eram eles que lu-
cravam de forma mais direta com o sistema de governo e a "âÍea
de livre comércio" qr. consdtuíam o mundo romano. Ao mesmo
tempo, tinham deveres, sendo o mais importante deles a arrecada-
çáo dos impostos anuais, feita por agentes. Parte desses impostos
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos s-- 85

era destinada ao tesouro imperial, e o que sobrava permanecia na


própria comunidade para a manutençáo dos serviços públicos. Os
membros dos conselhos municipais determinavam quem e quanto
cada um deveriapagag além de como o dinheiro seria usado, o que
permitia que estabelecessem e aumentassem suas próprias redes de
patronato. Desde que os impostos pudessem ser arrecadados sem
grandes problemas, esse serviço era uma meta paÍa boa parte da
nobreza local.
As elites não diferenciavam d.as massas apenas por sua riqueza.
se
Com aríqueza, vinha a cultura (paideia), que, mais do que qualquer
outra característica, distinguia os civilizados dos meramente roma-
nos. Por meio da educaçáo, cultivada como um dos elementos do
estilo de vida da elite provinciana, os ltonestiores desenvolviam sua
identidade como parte do mundo mais amplo da cultura romana.
Porém, por mais vastos que fossem os mundos culturais propor-
cionados pela paideia, a maior parte das elites locais continuava obs-
tinadamente presa à regiáo de suas propriedades. Da Síria à Gália,
do norte da África à fronteira danubiana, os proprietários rurais
provincianos continuavam fortemente vinculados às particularida-
des de sua regiáo ou patria. As razóes para isso eram numerosas.
O Império havia sido, desde seu princípio, uma rede de cidades (e
seus territórios adjacentes) ligadas a Roma por acordos específicos.
Muitas personalidades locais eram descendentes das elites regionais,
cujas famílias controlavam a sociedade de suas regióes desde antes
da chegada do Império Romano. Na medida do possível, o expan-
sionismo imperial incorporava os poderes regionais preexistentes à
sua órbita. O poder central de Roma, ond.e havia uma variada tra-
diçáo cultural e religiosa, nunca havia exigido uma adesáo exclusiva
aos valores romanos: sempre que possível, a tradiçáo regional era
assimilada ou equiparada à de Roma. Além disso, as famílias náo
precisavam abandonar o status que tinham nas antigas tradiçóes
tribais ou regionais. Essas tradiçóes podiam se tornar - e de fato se
86 -'o O Mito das Naçoes

tornavam - motivo de orgulho para as personalidades provincianas.


Dessa forma, tornar-se romano náo significava a troca do velho pelo
novo, mas a redescoberta do velho no noyo.
Esse mesmo processo de incorporaçáo também ocorria na esfe-
ra religiosa. Da Mesopotâmia à Britânia, novos deuses podiam ser
idolatrados como manifestaçóes do antigo e do familiar. O deus
celta Teutatis era associado a Mercúrio. Hércules geralmente era re-
presentado na Ásia Menor como um deus fenício ou púnico. Talvez
o exemplo mais notável desse sincretismo seja o de Ísis, que, como
peÍsonagem da obra Metamorfoses, deApuleio, explica que os frígios
a chamavam de Pessinuntia, a mãe de Deus; os atenienses, de Atena;
os cipriotas, de Vênus Paphia; os cretenses, de Diana; os sicilianos,
de Prosérpina; os eleusinos, de Ceres; outros a chamavam de Juno,
Bellona, Hécate e outros nomes.I Povos diversos se uniam por meio
da idolatria, mesmo que náo estivessem cientes disso.
As únicas religióes que os romanos náo foram capazes de incor-
porar foram o judaísmo e, em parte, sua ramificação, o cristianismo.
O monoteísmo radical geÍava um problema insolúvel para a política
religiosa romana. Alguns judeus podiam e se tornavarn romanos,
como foi o caso de sáo Paulo. No entanto, eles náo podiam se ligar
completamente ao mundo romano pelos elos tradicionais da reli-
gião. Ainda assim, após a destruiçáo derradeira do templo sagrado
em70 e.c. e a expulsáo dos judeus da Palestina e daJudéia, os judeus
que permaneceram espalhados pelo território do Império, ao que
parece, fizenm as pazes com o sistema imperial. Náo havia mais
notícias de comportamento separatista ou sedicioso por parte de
suas comunidades pequenas e dispersas. Entretanto eram os cristãos
quem começavam a agir de forma subversiva.
Os cristãos também erâm monoteístas radicais, e sua re;'eiçáo aos
cultos tradicionais de Roma e aos cultos romanizados do Império

'1.
Apuleio, 11,5.
i

Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos o.- 87

lhes rendeu a reputaç^o de ateus perigosos. Ao contrário dos judeus,


eles náo se identificavam com uma regiáo ou classe social específi-
cas. As comunidades cristás eram notórias por ignorar os padróes
comuns do status social. Cada comunidade se desenvolvia como uma
assembléia local, ou ecclesia, centrada em sua cidade (como todas
do mundo romano) e administrada por um bispo eleito pela comu-
nidade. As "igrejas" de Antioquia, Alexandria e Roma náo eram
nada uniformes entre si. Ainda assim, os cristáos formavam uma
facçâo que transcendia as pardcularidades do Baixo Império, um
dos poucos movimentos que abarcavam uma cultura universal que
paradoxalmente transcendia as tradiçóes específicas das igrejas lo-
cais. Desse modo, os cristáos apresentavam a anormalidade de uma
fraternidade ao mesmo tempo local e universal, sendo seus membros
cidadãos comuns e, ao mesmo tempo, bastante isolados de seus vizi-
nhos. Essa ausência de características distintivas claras, pelas quais
pudessem ser identificados quando fora da esfera religiosa, pode ter
alimentado o medo irracional que provocavam nos cidadáos comuns
e nos defensores da ordem imperial.
Os cristáos insistiam que eram exatamente iguais aos outros ci-
dadáos: respeitosos, dignos e defensores leais de seu imperador, de
sua cidade e de sua classe e profissáo. Ainda assim, suas crenças os
distanciavam radicalmente dos laços sagrados que uniam o mundo
romano.
A integraçâo religiosa era apenas uma Parte do processo pelo
qual os magnatas locais haviam se incorporado a esse mundo, sem
com isso se desligar de suas antigas alianças. O casamento e os laços
de parentesco também ligavam as elites romanas a suas cidade e
província. Veteranos e burocratas romanos se recolhiam a colônias
recém-fundadas, onde se casavam e estabeleciam famílias, levando
consigo tradiçóes culturais romanâs, mas, ao mesmo tempo, sendo
incorporados às economias agrárias das cidades provincianas. Os
provincianos que conseguiam se dar bem no mundo imperial ge-
88 --s O Mito das Naçoes

ralmente retornavam à sua cidade de origem paÍaassumir as honras


e deveres de um benfeitor local. Forasteiros e famílias antigas se
misturavam, dando continuidade às elites proprietárias de terras.
Durante geraçóes, os casamentos entre as famílias locais fortalece-
ram a identificaçáo com a paisagem e a tradiçáo regionais. Essas
identidades provincianas náo substituíam nem competiâm com a
romanitas. De fato, a romanitas erao contexto necessário no qual as
particularidades da identidade provinciana podiam florescer.
A identidade aristocrática romana era, porranro, multifacetada.
Por causa da rigorosa tradiçáo da educaçáo aristocrática, as elites
romanas se identificavam bastante com a cultura romana central,
reconhecendo em Virgílio, Cícero e Horácio seu próprio passado.
Ao mesmo tempo, continuavam bastante ligadas às sua província,
especialmente à sua cidade. Exaltavam sua beleza, fertilidade, seus
rios e florestas em sua poesia. Buscavam o futuro em seus merca-
dos e suas ocupaçóes públicas no conselho, ou cúria, da localidade.
Praticavam seus cultos em seus templos, que eram ao mesmo tempo
tão universais quanto Roma e táo provincianos quanto a paisagem
que amavam.
Alguns historiadores, enfatízando o abismo que separava o es-
cravo do cidadáo livre e o arrendatário do proprietário de rerras,
defendem a idéia de que as identidades de classe eram muito mais
importantes para os grupos do que as identidades regionais, étnicas
ou sociais. Em cerro sentido, eles estáo cerros: a realidade legal e
a econômica do Baixo Império impediam maiores vínculos enrre
as classes e terminavam propiciando atos de violência, geralmenre
contra a opressáo dos proprietários de rerras. Entretanto o abismo
que separava as classes náo era táo grande a ponro de náo permitir
a ascensáo social.
Ao longo de toda sua história, o Império Romano permitia, pelo
menos teoricamente, que um escravo ascendesse ao cargo de sena-
dor. Por mais inferior que fosse a classe social de um indivíduo, sua
I

Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos e'- 89

ascensáo era sempre uma possibilidade teórica, ou até mesmo real.


Durante a prolongada crise do século III, a ascensáo, geralmente Por

meio do serviço militar, era mais do que uma possibilidade remota:


o próprio imperador Diocleciano era filho de um escravo dalma-
ciano emancipado. O sucessor de Diocleciano, Galério (305-3Ll),
também era de origem humilde: fora guardador de rebanhos nos
montes Cárpatos.
Mesmo náo ascendendo da obscuridade ao Poder, a maioria dos
camponeses continuava ligada a seus suPeriores Por meio do pa-
tronato e do clientelismo, um dos tipos de vínculo mais antigos
da sociedade romana. Nas províncias, onde viviam as sociedades
conquistadas, vínculos semelhantes revestiam as relaçóes entre os
proprietários de terras e seus camPoneses e subordinados. Nos tem-
pos rurbulentos do final da Idade Antiga, a importância desses vín-
culos aumentou para ambas as partes. Os proprietários protegiam
os camponeses dos cobradores de impostos e dos encarregados do
recrutamento militar e, em troca, fortaleciam suas próprias milícias
com os habitantes de suas terras. No século V as revoltas contra o
governo imperial eram armadas náo apenas pelos escravos e coloni,
mas também por seus senhorios. No entanto, náo há indícios de que
tais relaçóes se baseavam emuma identificaçáo étnica ou nacional:
eram relaçóes de lealdade entre indivíduos e famílias.

O centro romano

Naturalmente os membros de algumas famílias eram mais do que


magnatas e manipuladores regionais. As famílias importantes do
Império possuíam terras em muitas províncias: latifúndios n^ Afti-
ca, na Gália e até mesmo na própria Itália, caso fizessem parte do
Senado romano. Essas famílias, pertencentes à mais alta classe do Im-
pério, sustentavam a plenitude da tradiçáo romana, o que poderia
significar a rejeïçâo ou suPressáo de suas raízes provincianas. No
90 '-.e O Mito das Naçoes

século II, elas geralmente eram italianas. Mesmo que não fossem de
origem italiana, identificavam-se com sua cultura e estabeleciam re-
sidência na península. Embora muitas vezes a renda dessas famílias
fosse proveniente de regióes longínquas do Império, ela era, como
em épocas passadas, enviada a Roma.
A única forma de adquirir tal srarus, ou a forma mais segura de
mantê-lo por geraçóes, era o serviço imperial. Até o final do século
III, a carreira pública dos jovens aristocraras que esperavam ascender
às mais altas posiçóes de riqueza e poder incluía a prestaçáo de servi-
ços militares e civis. TrabalhaÍ paÍao sistema imperial, assim como
trabalhar paÍ^ uma corporaçáo multinacional moderna, implicava
um deslocamento constante. Um jovem que desejava ascender aos
mais honrosos cargos imperiais tinha que se deslocar por todo o
Império em sua escalada rumo ao ropo. A Itália e a cidade de Roma
continuavam atraindo os ricos e ambiciosos. O berço da civilizaçáo
romana continuava sendo o epicentro da criaçáo e distribuiçáo dos
recursos aparentemente inexauríveis oferecidos a todos que desejas-
sem e fossem capazes de se tornar inteiramente romanos.
Mas os jovens provincianos que se davam bem na península
náo eram esquecidos em suas cidades de origem. As centenas de
inscriçóes na base das estátuas erguidas em homenagem a eles, em
sua cidade de origem e/ou na comunidade em que se aposenravam,
comprovam a continuidade dos vínculos entre eles, incluindo os que
ascendiam às mais altas posiçóes, e sua província. Até mesmo um
imperador-deus como Diocleciano podia se recolher à sua llíria,z
após se aposentar, ê claro, em seu esplendor imperial.
Se as grandes famílias senatoriais formavam um dos centros da
romanidade, os militares formavam o outro. Em certo sentido, os
militares represenravam um tipo de identidade menos ligada às par-
ticularidades das regióes. As legióes romanas eram formadas por

2. Antiga região da parte ocidental da península Balcânica. (N. T.)


Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos e'- 9l

habitantes de todas as partes do Império e posicionadas estrategi-


camente em regióes fronteiriças. Embora muitas troPas auxiliares,
a partir do século I, fossem formadas por indivíduos de povos vlzi'
nhos, o mais comum era dividi-las e distribuí-las por todo o terri-
tório imperial, de preferência bem longe de seus povos de origem.
Dessa forma, as tropas germânicas eram deslocadas para o Egito,
enquanto as citas guarneciam Britânia. Tanto Para as popu-
a Gália ea

laçóes que viviam nas regióes fronteiriças como para as tropas auxi-
liares deslocadas para longe de suas famílias, o exército era o veículo
fundamental da romanizaçâo, a única instituiçáo verdadeiramente
romana no Império.
Essa identidade específica começou a se transformar no século
III. A ampliaçáo da cidadania fez com que praticamente toda a po-
pulaçáo tivesse acesso às legióes, e estas começaram a recrutar indi-
víduos nos distritos onde se estabeleciam, uma prática que perdurou
por décadas, ou até mesmo séculos. Além disso, iâno final do século
II, passou a ser permitido que os soldados em atividade se casas-
sem (embora eles já fizessem isso antes, informalmente). As esposas,
oriundas das populaçóes locais, aceleraram o processo de formaçáo de
vínculos entre as legióes e as comunidades regionais, de modo que os
deslocamentos das tropas Para regióes ameaçadas de invasáo come-
çaram a gerar revoltas. As tropas auxiliares também começaram a

resistir às tentativas de deslocamento. No ano de 360, ao se deparar


com um forte ataque persa na fronteira oriental, o imperador Cons-
tantino ordenou o deslocamento das tropas, inclusive as auxiliares,
da fronteira germânica para o leste: o resultado foi uma revolta exa-
cerbada das legióes, que proclamaram Juliano' o César do Ociden-
te, imperador.3

3. Até então, Juliano o Apóstata ostentava o título de césar, ou imperador subordinado, que
lhe havia sido concedido para que representasse o lmpério no Ocidente, já que o imperador
constantino, com seu título de Augusto, guerreava na fronteira oriental. (N. T.)
92 --v^ O Mito das Naçóes

ldentidades sociais no mundo bárbaro

Ao longo de toda a fronteira do vasto Império, as legióes ro-


manas vigiavam o mundo que qualificavam impetuosamente como
btirbaro.
Os romanos chamayam as unidades sociais de seus vizinhos bár-
baros de gentes (em grego, ethne), "povos", e lhes atribuíam todas as
características imutáveis que haviam sido, como já vimos, parte da
etnografia clássica desde Heródoto. O que esses grupos realmen-
te eram, quais eram suas próprias auto-identidades ou "consciência
êtnica", se é que havia uma, é algo que náo podemos saber com
precisáo. Entretanto, observando esses grupos pelo olhar de seus vi-
zinhos romanos, podemos chegar a conclusóes contrárias às de seus
contemporâneos "civilizados".
Os grupos bárbaros eram composros por pequenas comunida-
des de fazendeiros e pastores que viviam em aldeias às margens de
rios, no litoral e em clareiras, dos mares do Norte e Báltico ao mar
Negro. A maior parte dessas sociedades era formada por homens
e mulheres livres, organizados em núcleos familiares comandados
pelos maridos ou pais. O status na aldeia dependia da riqueza, me-
dida pelo tamanho do rebanho de cada família, e da destreza mili-
tar. Alguns homens mais ricos comandavam núcleos familiares que
náo incluíam apenas suas mulheres (alguns tinham mais de uma
mulher) e seus filhos, mas também indivíduos livres dependenres e
escravos abrigados ao redor da casa principal.
Os núcleos familiares eram, por sua vez, integrados a um gru-
po mais amplo, chamado pelos historiadores de sipe ou cla. O cla
incluía tanto grupos familiares mâternos como paternos, que com-
partilhavam a noçáo da ascendência comum reforçada por uma
"p^"" particular, de modo que conflitos violentos entre seus mem-
bros eram considerados crimes incompensáveis e irreparáveis. Os
clás também tinham o tabu do incesto e possivelmente direito à
herança. Esses grupos mais amplos também podiam formar uma
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos o- 93

base de defesa mútua, entrando em açáo em caso de rixas com ou-


tros clás. Porém os pré-requisitos p^Ía a adesáo aos clás variavam, iâ
que os indivíduos, dependendo das circunstâncias, Podiam se filiar
a uma variedade de grupos mais amplos. O núcleo familiar, e náo o
cIã., eraaunidade primária da sociedade bárbara.
A aldeia era administrada por uma assembléia de homens livres
sob a liderança de um chefe, e uma série de fatores determinavam
sua escolha: riqueza, infuência familiar e contatos com a liderança
do povo do qual a aldeia fazia parte. As gentes, ou povos, eram for-
madas por uma combinaçáo de tradiçóes religiosas, legais e políticas
que proporcionavam um forte mas instável sentimento de unidade.
Os membros de um "povo" compartilhavam mitos de ancestrali-
dade, tradiçóes culturais, ufl sistema legal e líderes comuns. Porém
todos esses elementos eram fexíveis, múltiplos, e estavam sujeitos a
negociaçóes e aré mesmo a controvérsias. Os mitos de ancestralidade
consistiam em genealogias de heróis lendários e seus feitos. Os fun-
dadores dessas genealogias eram seres divinos, e as linhagens inicia-
das por eles náo formavam uma história no sentido greco-romano,
ou seja, uma narrativa estruturada tradicional. Pelo contrário, esses
mitos conservavam um relato apolítico e atemporal dos indivíduos,
interligados por elos familiares e contos de vingança e vendeta' aos
quais muitos indivíduos e famílias reivindicavam vínculos.
Os acadêmicos têm chamado esses complexos de crenças tradi-
cionais de "núcleos de tradiçáo" e, desde a publicaçáo da obra do
alemáo Reinhard'lí'enskus, historiador e etnólogo da Idade Média,
têm sustentado que as famílias reais eram o suPorte desse tadi-
tionskern e que reuniam nele a essência de uma identidade étnica
fictícia mas dinâmica.a Em muitos casos, eles estáo certos. Porém é
possível que famílias diferentes, com o objetivo de estabelecer uma

4. Reinhard Wenskus, Stammesbildung und Verfassung: dasWerden der frühmittelolterlichen Gentes,


Colônia, 1961. Walter Pohl, em "Ethnicity in Early Medieval Studies", Árchaeologia Polona29, 1991:
p.41, afirma que o termo já havia sido usado em 1912 por H. M. Chadwick'
94 --s O Mito das NaçÕes

autoridade sobre a comunidade em detrimento das ourras famílias,


tivessem sustenrado versóes distintas das tradiçóes e tentado impô-
las. Também é possível que essas tradiçóes fossem amplamente di-
fundidas na sociedade, e não propriedades exclusivas de famílias
específicas. Certamente, ao longo dos séculos IV e V quando os in-
divíduos tentavam se estabelecer em posiçóes de domínio, alegavam
vínculos a essas tradiçóes ou se associavam a famílias lendárias e glo-
riosas ou a heróis mitológicos. Dessa forma, tenrayam fazer com que
sua história fosse tida como a história de seu povo. Algumas vezes
isso funcionava, mas também podia rer conseqüências desastrosas.
outras tradiçóes culturais, como a língua, armas, táticas milita-
res, vestuário e estilos de penteado, podiam unir os grupos sociais,
mas também eram meios fluidos e adaptáveis de criar unidades ou
reivindicar diferenças.5 Até mesmo os romanos reconheciam que,
embora um esquema ideal separasse os povos pela língua, havia
mais porros do que línguas. Além disso, anres do século IX, nin-
guém parecia reconhecer a unidade lingüística das línguas germâ-
nicas faladas por muitos dos povos bárbaros.
As armas e táticas militares variavam entre os bárbaros, mas
também não sabemos até que ponro elas eram significativas como
representaçóes de unidade para povos específicos. Armas ou táticas
distintivas, como os arcos dos hunos, as azagaias dos dácios, as lan-
ças dos godos ou os machados dos francos, sáo referidas nas fontes
romanas, mas sem nenhuma consistência. Provavelmente essas refe-
rências eram mais um reflexo da mania romana de classificações do
que das práticas reais dos bárbaros. Até mesmo no caso do machado
franco, que de fato parece rer sido uma arma característica no final
do século V os próprios francos pareciam menos cientes dessa arma
como parte da tradiçáo "franca" do que seus inimigos, os visigodôs
e bizantinos.

5. Walter Pohl, "Telling the Difference: Signs of Ethnic ldentity", em Walter pohl, Helmut Reimetz,
Strategiesof Distinction:TheConstructionof EthnicCommunities,3OO-80O,Leiden, 199g,p.17-69.
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos e'- 95

Da mesma forma, a distinçáo entre os povos citas (godos, hunos


e ávaros), que lutavam a cavalo, e os germanos e celtas, que lutavam
no cháo, era exagerada pelos romanos: certamente os nômades das
estepes eram guerreiros que lutavam montados, mas os guerreiros
germânicos do Leste também o eram, pelo menos quando sua ri-
queza e status permitiam. Além disso, quando as unidades bárbaras
eram incorporadas ao exército romano, eram enquadradas em fun-
çóes específicas que correspondiam mais às necessidades militares
romanas do que às habilidades étnicas tradicionais. Por volta do
ano de 400, a notitia dignitatum, uma lista oficial dos oficiais civis
e militares de alto escaláo, listava unidades de cavalaria compostas
por alamanos e francos. Esses guerreiros haviam sido recrutados por
suas habilidades como cavaleiros ou treinados Para guerrear na ca-
valaria por conta de uma necessidade do exército romano?
Roupas e ornamentos certamente variavam bastante e podiam ser
símbolos de identidades coletivas. O modo como os membros de
uma sociedade se vestiam, os tiPos de broches e cintos que usavam
ou como arrumavam os cabelos podiam conter significados simbóli-
cos importantes. No entanto, náo podemos precisar quais eram esses
significados. Os romanos deleitavam ao discutir os diferentes dpos
se

de roupa e penteado, mas também nesse caso seus relatos provavel-


menre se baseavam mais em seu próprio interesse pelas classificaçóes
do que na precisáo da observaçáo. Talvezseja melhor reconhecer que
essas características podiam ser manipuladas e ajustadas de acordo
com os interesses mutáveis dos grupos do que comPreendêlas como
indícios de uma unidade cultural imutável.
As tradiçóes legais - ou seja, as formas de lidar com os confli-
ros - eram uma conseqüência das identidades culturais e religiosas.
Como a autoridade central era muito fraca, as disputas eram ad-
ministradas pelos chefes de família, pelas assembléias das aldeias
e pelos comandantes militares. Regras eram estabelecidas para a
manutençáo da paz ov, pelo menos, para que as rixas fossem con-
96 -s O Mito das Naçoes

duzidas de uma forma pouco destrutivaparaâ comunidade. Enfim,


esses grupos culturais e religiosos eram organizados sob lideranças
políticas que, nos primeiros séculos de contato com Roma, sofreram
transformaçóes profundas.
Quando os romanos entraram em contato pela primeïravezcom
os povos celtas e germânicos, essas populaçóes eram governadas em
sua maioria por reis sacros que assumiam o poder por meio da he-
reditariedade. Cada rei era a personificaçáo da identidade de seu
povo. Ao longo dos séculos I e II, os grupos que viviam perto dos
romanos começaram a abrir máo de seus reis sacros tradicionais em
favor de líderes guerreiros que pertenciam a antigas famílias reais ou
a classes de combatentes bem-sucedidos. Essa mudança favoreceu o
Império, já que Roma podia influenciar mais facilmente os novos
líderes, provenientes de facçóes oligárquicas, do que os herdeiros da
antiga autoridade religiosa.
Esses líderes eram promovidos por seus exércitos heterogêneos e
formavam os centros ao redor dos quais novas identidades políticas
e religiosas podiam ser desenvolvidas e nos quais, em alguns casos,
antigas noçóes da identidade sacro-social podiam ser inseridas. A
legitimidade dos líderes provinha principalmente de sua capacidade
de conduzir seu exército à vitória. Uma campanha vitoriosa con-
firmava seu direito à liderança e aumentava o número de pessoas
que aceitavam e compartilhavam de sua identidade. Com um pouco
de sorte, os romanos também o reconheciam e o apoiavam. Dessa
maneira, um líder carismático podia significar o início de um novo
povo. Com o tempo, o líder e seus descendentes estabeleciam uma
identificaçáo com uma tradiçáo mais anriga, alegando a autorizaçáo
divina, com base nas guerras bem-sucedidas, para que pudessem
personificar e perpetuar algum "povo" antigo. Portanto a integri-
dade constitucional desses povos dependia da guerra e da conquista
para que tivesse continuidade e para que sua identidade fosse esra-
belecida: eram exércitos, embora sua economia continuasse depen-
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos v_ 97

dendo de pilhagens, da criaçáo de animais e da agricultura de corre


e queima.A derrota, fosse para os romanos ou paÍaoutros bárbaros,
podia significar o fim de um goyernanre ou até mesmo de um povo,
que entáo poderia ser incorporado a uma outra confederaçáo, mais
vitoriosa.
Por volta do século III, o Império
havia transformado até mesmo
populaçóes que viviam além de suas fronteiras. A política romana
prescrevia a criaçáo de estados-tampóes, que deveriam proteger o
Império de bárbaros hostis, proporcionar parceiros comerciais para
a aquisiçáo de gado, matéria-prima e escravos, além de fornecer in-
divíduos para a formaçáo de rropas auxiliares. Isso náo era novida-
de. Durante séculos, o Império havia apoiado líderes "amigáveis",
fornecendo armas, ouro e trigo com o objetivo de fortalecer as fac-
çóes pró-romanas do mundo bárbaro. Alguns eram recompensados
com a cidadania romana. Armínio, que se rornara célebre com sua
vitória sobre Varo na floresta de Têutoburgo, náo só havia se tornado
um cidadáo romano como também havia sido admitido na ordem
dos cavaleiros.6
os efeitos da proximidade romana, náo apenas enrre os bárbaros
que viviam ao longo do lirnes7 como também enrre os que viviam
bem além, foram consideráveis. o poder político-econômico dos
romanos desestabilizou o rempesruoso equilíbrio de poder do mun-
do bárbaro ao permitir que os líderes pró-romanos acumulassem
riqueza e poder excessivos em relaçáo ao que era possível anterior-
mente. Esses líderes, a quem os romanos haviam concedido a cida-
dania e ensinado os "caminhos" dos impostos imperiais, também
adquiriam experiência militar e política ao servir o exército romano
com suas tropas como federados. Ao mesmo tempo, o medo dos
romanos e de seus aliados fazia com que as facçóes anti-romanas

6. Velleius Paterculus, Historiae Romanae,ll, ii9,2.


7. Complexo de fortificaçóes ao longo da fronteira imperial. (N. T.)
98 '-s O Mito das Naçoes

formassem confederaçóes amplas, instáveis e por vezes poderosas,


que podiam infligir danos consideráveis aos interesses de Roma dos
dois lados da fronteira. Isso havia aconrecido, nos rempos de César,
com os gauleses e, no final do século I, com os bretóes. Por volta
do fim do século II, uma grande confederaçáo, a dos fiìârcorÌìâoos;
pôs à prova a fronteira danubiana e irrompeu remporariamente em
território imperial.
Portanto, enÌ qualquer momento nessas grandes confederaçóes,
alguns indivíduos podiam reivindicar o direito a algum ripo de au-
toridade sobre alguma parcela do "povo", sugerindo que suas pró-
prias tradiçóes deveriam formar o "núcleo da tradição" ao qual um
grupo deveria aderir, ou então podiam se proclamar representanres
legítimos de uma antiga tradiçáo compartilhada. Sob essa perspecti-
va, a identidade "étnica" entre os bárbaros era extremamente fluida,
já que novos grupos surgiam, e grupos anrigos desapareciam. Geral-
mente o que permanecia era a crença, por mais imaginária que fosse,
de que esses grupos tinham um passado antigo e sancionado pelos
deuses.

Crise e restauração

Ao longo do século III, pressóes internas e externas iniciaram uma


reestruturação da sociedade e das instituiçóes, tanto dentro como
fora do Império. As conseqüências foram efetivas e mudaram náo
apenas as estruturas sociais da populaçáo do final da Idade Antiga,
mas também a maneira como os povos compreendiam a si mesmos.
Antigas unidades se dissolveram, e novas identidades, algumas vin-
culadas a antigas identidades pré-romanas, emergiram.
A crise do século III foi um fenômeno complexo, iniciado pelas
pressóes cada vez mais fortes nas fronteiras do Danúbio, do norte
da África e da Pérsia Sassânida, assim como pela diminuiçáo da
populaçáo e pela crise de liderança no tradicional centro italiano
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos e,"- 99

do poder romano. Quaisquer que fossem suas causas principais, o


resultado foi um deslocamento de poder da Itália para as fronteiras,
onde o exército tentava a todo custo conter os bárbaros. Os impe-
radores náo eram mais formados nos grandes centros do Império,
mas em meio às tropas das fronteiras. Quando esses "imperadores
de quartel" náo tinham condiçóes de atender às reivindicaçóes dos
legionários por melhores salários ou de conduzi-los à vitória contra
os exércitos rivais ou contra os inimigos bárbaros, eram assassinados
por suas próprias tropas. Entre os anos de 235 e 284, L7 dos 20
imperadores morreram de forma violenta, geralmente após poucos
meses sendo contestados no comando.
O custo dessa máquina militar cada vez mais cara, e ainda assim
malsucedida, se tornava um peso insustentâvelparaos que mais ha-
viam se beneficiado com o sistema imperial no passado: os proprie-
tários de terras provincianos, que por sua vez repassavam os custos
para seus arrendatários e escravos. Por causa disso, os camponeses,
cada vez mais insatisfeitos, organizavam rebelióes esporádicas. O
banditismo, de açóes de gangues a rebelióes sérias, sempre havia
sido de certa forma um problema para o Império. Em muitas revol-
tas, os coloni, ao que parece, uniam-se aos escravos em oposiçáo às
cobranças urgentes dos proprietários (de terras e de escravos).
Os proprietários de terras, especialmçnte os membros dos conse-
lhos locais, estavam táo desesperados quanto seus camponeses. Pres-
sionados pelos cobradores a pâgar os impostos imperiais, sendo ou
náo capazes de arrecadar os valores com os camponeses, muitos se
arruinavam. Cada vez mais, os agentes do distante e ineficiente cen-
tro romano eram vistos pelos magnatas locais como inimigos mais
perigosos do que qualquer bando de bárbaros invasores. Nas regióes
européias do Império, assoladas pela violência e pela desordem, ro-
vas unidades políticas separatistas começaram a surgir. Em 259, se-
guindo-se à inabilidade do sistema imperial de impedir os araques
destrutivos dos francos e outros bárbaros na Gália e atê mesmo na
100 -.'e O Mito das NaçÕes

Espanha, as tropas da Gália elevaram seu comandante, Cassiano


Latínio Póstumo, à púrpura imperial. No comando da Gália, da
Britânia e de algumas partes da Espanha, Póstumo e seus sucessores
governaram o chamado "Império Gaulês" até 273.
Seria um erro conceber essas unidades separatistas como mani-
festaçóes de identidades "nacionais" em desenvolvimento na Gália
ou em outras partes da Europa Ocidental. Os aristocratas ocidentais
apoiavam o Império Gaulês, já que este havia estabelecido medidas
de segurança e proteçáo para as províncias ocidentais. Esse império
também lhes proporcionava um acesso mais imediato aos centros
de poder, assim como um envolvimento político mais direto do que
havia no sistema imperial mais centralizado de Roma. Portanto o
Império Gaulês era uma reaçâo sensata a pressóes insensatas. Além
disso, o apoio a Póstumo e seus sucessores náo implicava uma me-
nor dedicaçío às tradiçóes da romanitas. Contudo, se esse império
náo era uma evidência do "nacionalismo gaulês", era um indício
de que as províncias romanas estavam mais preocupadas com as
questóes práticas da preservaçío das riquezas, segurança e status nas
localidades do que com os anacrônicos ideais da unidade romana.
Em certo sentido, esse império foi um ensaio da desintegraçáo do
Império do Ocidente no século V.
A crise do século III também atingiu o mundo bárbaro. Na res-
saca das guerras marcomanas, novos povos surgiram nas regióes do
Reno e do Danúbio durante o século III. Os autores romanos se
referiam a todos eles como germani, a forma como designavam to-
dos os povos dessa regiáo, independentemente de suas diferenças
lingüísticas ou "étnicas". Posteriormente passariam a chamar os que
viviam no baixo Reno de francos, ou "livres", ou "ferozes", e os do
alto Reno de alamanos, ou "povo".
Como ambos os termos - franci e alamanni - são germânicos,
os romanos provavelmente tinham aprendido essas palavras com os
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos o-_ 10,l

membros desses próprios povos ou com seus vizinhos falantes de


línguas germânicas. Nenhum dos dois termos havia sido utili zado
paÍa designar "antigos" povos a leste do Reno. Eram termos novos.
Como os historiadores modernos presumiram que os "novos povos"
tinham que rer vindo de algum lugar, muitos buscaram as origens
dos alamanos na regiáo do Elba, enrre os suevos mencionados por
Tácito. Eles supuseram que uma parre dos suevos havia migrado
paÍa a fronteira romana durante as primeiras décadas do século III.
Mas provavelmente os alamanos náo haviam migrado de lugar ne-
nhum: eles eram simplesmenre uma coalizáo de grupos nativos que
se tinham estabelecido havia muito no alto Reno e assumido uma
nova identidade coletiva. De forma semelhante, osfranci formavam
uma confederaçáo de povos do baixo Reno.
Ao longo do baixo Danúbio, após as guerras marcomanas, um
outro conjunto de povos germânicos, sarmáticos e até mesmo româ-
nicos formaram uma coalizão sob o comando do godo Cniva. por
trás dessas aglomeraçóes nas fronteiras romanas havia ainda outros
grupos, como os saxóes (atrás dos francos), os burgúndios (atrás dos
alamanos) e os vândalos (atrás dos godos).
Embora os bárbaros náo tivessem causado a crise do século III,
eles certamente a intensificaram. Na décad a de 250, por exemplo, o
rei gótico Cniva conduziu sua confederação multiétnica até a pro-
víncia da Dácia,8 enquanto piratas góticos aracavam a cosra do mar
Negro a partir da foz do Danúbio, Quando as legióes do Reno fo-
ram deslocadas em direçáo ao leste para lidar com problemas inter-
nos e externos, os bárbaros aproveitaram a oportunidade para atacar
a fronteira mal guarnecida. Após as rropas romanas rerem sido des-
locadas das regióes dos cursos superiores do Ródano e do Danú-
bio, bandos alamanos (possivelmente autorizados por comandantes

8. Região correspondente à atual Romênia. (N. T.)


102 -e O Mito das NaçÕes

romanos provincianos) penetraram na chamada Agri Decumates.e


E as tropas francas avançaram bastante na Gália, e até mesmo na
Espanha.

Restauração e transformação

A série de imperadores enérgicos que pôs fim à crise o fez por me-
didas que transformaram tanto o mundo romano como o bárbaro.
A primeira meta era conter a ameaça bárbara. O imperador Ga-
lieno (253-268) e seus sucessores derrotaram os francos e alamanos
de forma decisiva, e Aureliano (270-275) aniquilou os godos em
uma série de campanhas que subdividiram a confederaçáo gótica.
Os ataques bárbaros continuaram de forma esporádica, mas as fron-
teiras ficaram suficientemente seguras durante um século. Embora
o Império náo tivesse recuperado totalmente a Dâcia e a Agri Decu-
mates, as medidas imperiais estabeleceram uma segurança relativa
durante a maior parte do século IV.
Para alguns exércitos bárbaros, a derrota significava o fim de sua
identidade como unidades sociais coesas. A destruiçáo causada pe-
los ataques bárbaros no Império náo se comparava à devastaçáo e à
carnificina levadas a cabo pelas tropas romanas em expediçóes pelo
Reno ou pelo Danúbio. Um panegírico do ano de 310 descreve o
tratamento dado aos brúcteros após uma expediçáo punitiva con-
duzida por Constantino: os bárbaros foram encurralados em uma
área pantanosa em meio a uma foresta impenetrável. Muitos foram
mortos, seu gado foi confiscado e suas aldeias, incendiadas. Todos
os adultos foram lançados às feras na arena. As crianças provavel-
mente foram vendidas como escravas.
Portanto, nos casos mais extremos, a derrota significava a ani-
quilação de um povo, a dissolução total de seus vínculos sociais e
políticos, e sua incorporaçáo ao mundo romano. Em outros casos'

9. Região correspondente ao sudoeste da atual Alemanha. (N. T.)


Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos o.- 103

os guerreiros sobreviventes podiam ser forçados a servir ao exército


romano. Esses dediticii ou laeti, após um rirual de rendiçáo no qual
abandonavam suas armas e se colocavam à mercê dos conquistado-
res, eram distribuídos por todo o Império em pequenas unidades, ou
estabelecidos em áreas despovoadas para prestar serviços militares e
reconstruir regióes destruídas pelos ataques bárbaros e pela fuga de
contribuintes. Na costa do mar Negro, uma dessas unidades, for-
mada por francos, elaborou uma fuga heróica: roubaram um navio,
cruzaram o Mediterrâneo, atravessaram o estreito de Gibraltar e,
por fim, chegaram a suas terras. Porém a maioria terminou seus dias
no heterogêneo exército romano.
Contudo, embora a rendiçáo formal (deditio) desde os rempos
da República consistisse em um ritual religioso de rendiçáo incon-
dicional e na aniquilaçáo de uma sociedade, a realidade sempre ha-
via estado em desacordo com a retórica da ideologia triunfal dos
romanos. Em tempos igualmente remotos, os povos conquistados
e destruídos tendiam a ser reconstruídos e a reconquistar, até certo
ponto, identidade e autonomia, geralmente com as mesmas elites
sociais e políticas de antes. A piedade romana (e as imposiçóes polí-
ticas) significava, na verdade, a sobrevivência dos povos derrotados
e "aniquilados", reconstituídos por meio de um tratado, ot foedus,
que estabelecia suas obrigaçóes païa com o imperador.lo
Porém a derrota também significava mudanças importantes para
os povos bárbaros das fronteiras que náo eram incorporados ao exér-
cito imperial nem vendidos como escravos. Percebendo a impossi-
bilidade de sustentar seu sistema político e econômico por meio das
pilhagens, os reis militares bárbaros derrotados optavam por colabo-
rar com o exército romano. Após derrotar uma milícia vândala em
270, o imperador Aureliano firmou um tratado com eles, transfor-
mando-os em federados. Tratados semelhantes foram estabelecidos
10. Gerhard Wirth, "Rome and lts Germanic Partners in the Fourth Century', em Walter Pohl (Ed.),
Kingdoms of the Empire: The lntegration of Barborians in Late Antiquity, Leiden, 1997, p. 13-55.
104 --s O Mito das Naçoes

com francos e godos antes da virada daquele século. Os foederati


obrigavam-se a respeitar as fronteiras do Império, fornecer tropas
parao exército imperial e, em alguns casos, gado e outros bens para
os romanos. Os líderes bárbaros aliados a Roma percebiam que,
lutando pelo Império, e não contra ele, podiam alcançar níveis de
poder e infuência anteriormente inimagináveis. Dessa forma, fac-
çóes favoráveis e contrárias a Roma se desenvolviam no interior das
confederaçóes bárbaras ao longo do limes, mantendo um estado de
tensáo e desuniáo entre elas que era ativamente alimentado por seus
vizinhos do Império.
Novas formas de unidade política relativamente estáveis se de-
senvolviam ao longo do Reno e do Danúbio, enquanto esses "no-
vos" povos estabeleciam acordos com a vitoriosa Roma. Que tipo
de identidade os membros desses grupos atribuíam a si mesmos?
Embora náo saibamos exatamente o que os bárbaros pensavam de
si, temos indícios de que os indivíduos podiam manter simultanea
mente identidades diversas, considerando-se membros de confede-
raçóes mais amplas ou de grupos menores. Assim antigos nomes
"étnicos" continuavam sendo escutados por informantes romanos.
Os alamanos se estabeleceram na Agri Decumates, mas mantiveram
uma noçáo de identidade flexível e bastante dividida que apenas
ocasionalmente era unificada, geralmente quando eram dominados
por um medo incontrolável de seus vizinhos romanos.rl A confe-
deraçáo dos alamanos que combateu o imperador Juliano em 357,
por exemplo, foi liderada, ao que parece, por um tio e um sobrinho,
considerados "mais poderosos do que todos os outros reis", cinco reis
de segundo escaláo, dez regales e uma série de magnatas. Embora as
fontes romanas considerem todos esses líderes alarnanni, também
atentam para o fato de que a confederaçáo era formada por grupos
como os bucinobantes, os lentienses e os jutúngidas, sob a lideran-

1l. Sobre os alamanos em geral, ver Geuenich , Geschichte der Alemannen.


ïl
I
:

Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos q.- 105

ça de seus próprios reis. Esses subgrupos podiam ser considerados


gentes, indicando uma constituiçáo sociopolítica, ou pagi, sugerindo
uma organizaçáo de base territorial (pelo menos em parte), ou até
mesmo os dois ao mesmo tempo, como no caso dos lentienses.
Da mesma forma, os francos mais antigos eram compostos por
grupos como os camavos, os catuários, os brúcteros e os ansibários,
e conheceram inúmeros regales e duces que comandavam partes da
coletividade e disputavam a prímazia. Além disso, os francos náo se
identificavam apenas com essas unidades menores e com sua con-
federaçáo, mas também com o mundo romano. Na lápide de um
túmulo panônio do século III, há a seguinte inscriçáo: Francus ego
ciues, miles rzmanus in armis ("Minha nacionalidade é franca, mas,
como soldado, sou romano").rz Essa nâo ê uma simples afirmaçáo da
i
identidade bárbara. Sua língua e terminologia revelam o quanto as
L
idéias romanas de cidadania influenciaram essa sociedade guerreira.
O fato de um indivíduo ser tido como um cidadáo franco, aparen-
temente uma contradiçáo, sugere um reconhecimento da natureza
constitucional da unidade franca. Além d.isso, a declaraçáo de que
o guerreiro, como soldado, era romano enfatizava a nova realidade 'ü
,li
,ji
fundamental que emergia no curso do século III: o próprio exército ,i.
r{

romano estava se tornando bárbaro. I

Arbogasto foi apenas um dos líderes francos que conseguiram


manipular suas duplas identidades. A ascensáo desses militares era
constantemente incentivada pelos imperadores, que precisavam en-
conrrar formas mais econômicas de lidar com as exigências do exército
romano provocadas por conflitos internos e pela pressáo na fronteira
persa. O recrutamento de bárbaros era mais econômico e efetivo do
que o estabelecimento de tropas tradicionais. Constantino I abriu o

12. Citado em Joachim Werner, "Zur Entstehung der Reihengrãberzivilization: Ein Beitrag zur
Methode der frühgeschichtlichen Archãologie", Archaeologio Geographica 1,1950:23-32,
reimpresso em Franz Petri, Siedlung, Sprache und Bevõlkerungs-struktur im Frankenreich,
Darmstadt, 1973, p. 294.
106 --s O Mito das Naçoes

caminho, náo apenas incorporando unidades militares francas ao


exército imperial, mas também promovendo bárbaros, como o fran-
co Bonitus, a postos militares importantes. Bonitus foi o primeiro
de uma longa série de francos "imperiais". Em 355, seu filho, o intei-
ramente romanizado Silvano, comandante das legióes romanas de
Colônia, foi proclamado imperador por suas rropas. Silvano queria
voltar para perto de seu povo, mas lhe asseguraram que se o fizesse
seria morto. Sendo assim, foi rapidamente assassinado por enviados
do imperador Constantino. Comandantes bárbaros subseqüentes,
como Malarich, Teutomeres, Mallobaudes, Laniogaisus e Arbogas-
to, aprenderam a liçáo de que o posro de imperador era perigoso.
Eles evitavam a usurpaçáo, mas exerciam vasro podei no Império
do Ocidente.
Em sua maioria, esses generais romanos continuavam mantendo
relaçóes íntimas com alguns membros de seus povos. Pouco após o
assassinato de Silvano, os francos saquearam Colônia, possivelmen-
te para vingar suâ morre. Mallobaudes, que participou da vitória de
Graciano sobre os alamanos em 378, foi chamado simultaneamente
de comes domesticorum e rexfrancorum por Amiano Marcelino. Ou-
tros, como Arbogasto, usavam o poder que tinham no Império para
atacaÍ seus inimigos do ourro lado do Reno. Ainda assim, a situaçáo
desses bárbaros a serviço do Império era instável, ranro dentro como
fora dele. Embora geralmente náo fossem menos confiáveis do que
os romanos no alto comando, seus rivais romanos freqüentemente
suspeitavam deles. Ao mesmo rempo, assim como oficiais imperiais
e adeptos ,da religiáo romana - fosse a cristá ou a pagãL -, sempre
eram alvos das facçóes anti-romanas quando estavam entre os seus.
A aceitaçáo de um alto posro de comando entre os romanos geral-
mente significava'a renúncia de uma posiçáo de liderança enrre os
bárbaros.
No teste,Europeu, a confederaçáo gótica, com sua monarquia
militar, fragmentou-se sob a pressáo imperial. Os godos que viviam
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos s-- 107

nas regióes mais a leste, na atual Ucrânia, reconheceram a autori-


dade de uma nova família real, que reivindicava uma legitimida-
de antiga e divina. Já entre os grupos góticos que viviam a oeste,
inúmeros reiks (Líderes de guerra) compartilhavam e disputavam o
poder oligárquico.
Por volta do século IV os povos góticos que viviam nas regióes
mais orientais, os greutungos (termo que pode ser traduzido, grosso
modo, como "habitantes das estepes"), haviam incorporado carac-
terísticas dos citas. Nas regióes mais ocidentais, os tervíngios ("porro
I
I
da floresta") estavam sob a influência direta de Roma. Ambas eram
i
I
sociedades agrárias e sedentárias, mas na primeira cavaleiros da
antiga tradiçáo dos citas formavam a espinha dorsal do exército,
I

enquanto na segunda a elite militar era composta essencialmente


por unidades de infantaria. No século IV os godos tervíngios co-
meçaram a exercer hegemonia sobre inúmeros povos com diferentes
tradiçóes lingüísticas, culturais e de culto.
Composta por comunidades agrárias e governada por assem-
bléias locais formadas por homens livres, a populaçâo desta confe-
deraçáo gótica estava, entretanto, sujeita à autoridade oligárquica de
líderes militares que, por sua vez, submetiam-se à autoridade de um
juiz real supremo, ou kindinç. Em 332, Constantino e o juiz tervín-
gio Ariarico estabeleceram um tratado, ou foedus. Aorico, filho de
Ariarico, havia sido criado em Constantinopla, onde o imperador
havia inclusive erguido uma estátua em homenagem ao juiz. Sob
o comando de Ariarico, Aorico e Atanarico (filho de Aorico), esses
godos do oeste se tornaram cada vez mais integrados ao sistema im-
perial romano, fornecendo tropas auxiliares para as regióes do leste
do Império. A relaçáo com esses bárbaros trouxe implicaçóes para
a política imperial e suas disputas internas. Em 365, o usurpador
Procópio convenceu os tervíngios a apoiá-lo como representante da
casa de Constantino, em detrimento"do imperador Valente. Após
a execuçáo de Procópio, Valente organizou uma ofensiva punitiva
108 --e O Mito das NaçÕes

e brutal do outro lado do Danúbio, que rerminou apenas em 369,


com um tratado entre Atanarico e o imperador.
A religiáo era uma força unificadora na confederaçâo gótica,
cuja constituiçáo heterogênea, no entanto, criava dificuldades para
a manutençáo da unidade religiosa. Os cristáos - muitos cristáos da
Criméia haviam sido incorporados ao mundo gótico nos rempos de
Cniva, e muitos outros durante os ataques na regiáo do Danúbio
- provaram ser a minoria religiosa mais difïcil de ser assimilada,
tanto por causa de sua fe monoteísta radical como pela importância
do cristianismo paraas esrrarégias políticas do Império Romano. Os
cristãos góticos representavam uma variedade de crenças, incluindo
a dos godos ortodoxos (ou seja, "crentes verdadeiros" ou católicos)
da Criméia, a da seita audiana de alguns dos tervíngios, que reco-
nhecia a corporalidade de Deus, e as de várias comunidades arianas
ou semi-arianas dos Bálcás góticos. O mais influente dos cristáos
góticos foi Ulfilas (cujo nome gótico significa "Pequeno Lobo"), um
godo de status social relativamente elevado, da terceira geraçáo de
uma linhagem gótica. Seus ancestrais cristáos haviam sido captura-
dos durante um ataque na Capadócia, por volta do ano de 260. Por
volta de 330, Úffihr foi a Constantinopla como membro de uma
delegaçáo, viveu em território imperial por algum rempo e, em 34L,
foi consagrado "bispo dos cristãos em terras géticas" pelo Concílio
de Antioquia, e enráo enviado aos Bálcãs góticos. A consagraçáo de
Úmhr e sua missáo enrre os godos e outros povos da confederaçáo
faziamparte de um programa imperial que possivelmente propiciou
a primeira perseguiçáo aos cristáos góticos, promovida por Aorico
em 348, e ainda uma segunda, que reve início em 36g, organizada
por Atanarico. Durante a primeir", Úlfil"r foi exilado, juntamente
com seus seguidores, na Moésia romana,l3 onde pregou em gótico,
latim e grego à multidáo heterogênea, escreveu tratados teológicos e

13. Região situada a oeste do mar Negro, correspondente à atual Bulgária. (N. T.)
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos e' l09

traduziu a Bíblia parao gótico em colaboraçáo com outros. Úlfilas


e seus seguidores tentaram tomar um rumo intermediário entre as
abordagens católica e ariana da natureza dos entes divinos, posi-
cionamento que inevitavelmente fez com que fossem considerados
arianos pelas geraçóes subseqüentes de cristáos ortodoxos. A curto
pÍazo, porém, a perseguiçáo de Atanarico foi táo efetiva como ha-
via sido a antiga perseguiçáo aos cristáos promovida pelo Império,
resultando na cisáo dos povos góticos. Entáo o aristocrata gótico
Fritigerno aproveitou a oportunidade parafirmar um acordo com o
imperador romano Valente: em troca de sua conversáo ao cristianis-
mo ariano, o imPerador o apoiaria contra Atanarico.

Transformação interna

As medidas estabelecidas com o objetivo de encerrar a crise produ-


ziram efeitos consideráveis dentro e fora do Império. Em uma ten-
tativa de manter a produtividade e o controle sobre uma corrosiva
base de cálculo dos impostos, o Império decidiu que as profissóes
passariam a ser hereditárias. Os trabalhadores rurais ficaram presos
às terras em que trabalhavam e ainda mais dependentes dos proprie-
tários. Como a situaçáo havia ficado mais opressiva, o "banditismo",
um eufemismo para rebeliáo armada, tornava-se cada vez mais co-
mum. Uma atitude mais efetiva, mas menos violenta, era a fuga:
os camponeses simplesmente fugiam das terras em que o valor do
arrendamento e os impostos os arruinariam financeiramente. Co-
meçaram entáo a surgir áreas desocupadas (agri deserti) no Império.
Náo se sabe exatamente se essas áreas eram realmente desocupadas,
despovoadas por conta dos conflitos e impostos, ou simplesmente
regióes onde os cobradores imperiais eram incapazes de forçar o
pagamento dos impostos.
A cobrança dos tributos se tornava cadavez mais penosa para os

conselheiros locais, ou curiales. ,êrlguns curiales eram suficientemen-


110 --s O Mito das Naçoes

te poderosos Para prosperar como executivos do sistema tributário


imperial, ou fisco, forçando o pagamenro dos imposros por meio
de contatos políticos ou contratando criminosos. Para outros, fazer
parte da cúria significava a ruína financeira, já que eles próprios ti-
nham que pagar os impostos que náo conseguiam arrecadar. Alguns
curiales se juntavam aos camponeses na fuga, indo da cidade para
o campo, onde, protegidos por milícias particulares, podiam inti-
midar e resistir aos agentes do fisco. Dessa maneira, as demandas
fiscais enfraqueciam os vínculos de lealdade enrre as comunidades
locais e Roma em ambos os extremos sociais.
os principais agenres do poder central com quem os curiales lo-
cais mantinham contato eram cobradores e militares. Esses torna-
vam-se cada vez mais hostis e ameaçadores aos olhos da populaçâo
romana do século IV. A máquina burocrática também havia sido
totalmente reesrruturada e ampliada. Com Diocleciano, âs admi-
nistraçóes civil e militar, que havia muito eram unificadas, foram
radicalmente separadas. O número de províncias foi aumenrado,
com o objetivo de diminuir a possibilidade de açóes separatistas por
parte dos governadores locais, e entáo foram agrupadas em provín-
cias maiores (dioceses), governadas por oficiais civis.
O exército também foi reesrrururado, já que precisava reagir
com mais agilidade às situaçóes emergenciais em todo o Império.
Para substituir o antigo sistema de legióes, foram criadas duas novas
unidades. A primeira linha de defesa era formada pelas unidades
limitanei, tropas de guarniçáo agrupadas nas fronteiras que deve-
riam manter o status quo em circunstâncias normais. Geralmente
os soldados dessas rropas eram recrutados nas próprias populações
fronteiriças. Mal treinadas e mal equipadas, as limitaneidependiam
das pequenas fortificaçóes construídas ao longo da fronteira para
repelir ataques bárbaros nas regióes do Reno e do Danúbio. Caso
essas unidades fronteiriças fossem subjugadas, tropas de campanha
Capítulo 3: Bárbaros e outros romanos s-- 1'l 1

velozes e especializadas (comitatenses), posicionadas muito além das


linhas de defesa, entrariam em açâo.
Essas reestruturaçóes administrativas e militares proporciona-
ram um sistema imperial mais efetivo, mas também infuíram bas-
tante na transformaçáo social do Império. A reestruturaçâo militar
transformou a mais romana dasinstituiçóes em um poderoso meca-
nismo de regionalizaçâo e barbarizaçáo. As unidades militares fron-
teiriças se converteram em üopas regionais, compostas por recrutas
locais, geralmente filhos de soldados. Como essas unidades eram
formadas pela parcela menos romanizadada população do Império,
elas se tornavam cada vez menos distintas dos bárbaros contra os
i

i
quais lutavam para defender as fronteiras.
I

i As tropas comitatençes também eram formadas cada vez mais por


soldados bárbaros recrutados fora do Império. Os excelentes cavalei-
ros góticos do baixo Danúbio eram amplamente utilizados nas re-
gióes do leste do Império como tropas coligadas. Em algumas regióes,
os termos "godo" e "soldado" eram utilizados indistintamente. No
leste, os bárbaros do baixo Reno (francos) ascenderam a postos im-
portantes na hierarquia militar. Assim o veículo fundamental da
romanizaçáo se tornava essencialmente bárbaro.
A profunda transformaçáo da identidade cultural, iniciada pela
conversáo de Constantino, foi concomitante a essas mudanças nas
estruturas militar e administrativa. Para preservar os vínculos reli-
giosos que uniam a sociedade romana diante das múltiplas forças
descentralizadoras do século III, Diocleciano instituiu um progra-
ma sistemático e violento de perseguiçáo aos cristáos. A devoçáo
monoteísta dos cristáos e sua rejeiçáo aos antiqüíssimos rituais que
haviam incorporado praticamente todas as outras tradiçóes religio-
sas estavam entre os principais alvos dessa perseguiçáo. Nos sécu-
los anteriores, quando os cristáos ainda formavam, err sua maio-
ria, grupos marginais, essa rejeiçáo havia provocado perseguiçóes
112 --e O Mito das NaçÕes

esporádicas. Entretanro, em meados do século III, o cristianismo


jâhavia penetrado nas camadas mais altas da cultura romana: no
Senado, na aristocracia e atê, mesmo na mansáo imperial. O fato de
esses indivíduos se recusarem a se sacrificar ao genius, ou espírito, do
imperador era simplesmente intolerável.
De certa forma, Constantino e seus sucessores náo rejeitaram
essa linha de raciocínio. Eles simplesmente a inverreram: legalizan-
do e favorecendo o cristianismo, Constantino pode ria fazer uso de
seu dinamismo em seu próprio programa imperial. Seus sucessores
foram ainda mais longe, substituindo, por volta do fim do século, os
cultos romanos tradicionais pelo cristianismo e proscrevendo os cul-
tos alternativos com a mesma veemência com que seus antecessores
haviam proscrito os seguidores do cristianismo.
Mas essa medida rrouxe consigo problemas táo complexos como
os que buscava resolver. Sendo o cristianismo uma religiáo oficial,
a relação entre christianitas e romanitas precisava ser questionada.
Nem todos os habitantes do Império eram cristáos: isso os tornaria
menos romanos? Além disso, os cristãos náo eram unidos entre si.
Isso náo teria tanta importância para as religióes politeísras tradi-
cionais, mas o monoteísmo do cristianismo exigia total conformi-
dade. Enquanto isso, tentativas de acordo entre as diferentes igrejas
e seitas eram boicotadas, cada uma delas convencida de que seguia
o verdadeiro caminho da ortodoxia. Dessa forma, as identidades da
romanitas e da christianitas acabaram gerando um dilema, já. que,
por volta do final do século III, havia bárbaros cristáos e romanos
pagáos. A conversáo do Império poderia implicar uma ampla regio-
nalizaçáo e fragmentaçáo de sua populaçáo.
Porém, enquanto essas questóes eram debatidas, os romanos e
seusvizinhos bárbaros tiveram que enfrentar uma crise muito maior,
provocada pela chegada dos hunos.
'w
NoVOS BARBAROS, NOVOS ROMANOS

A, ,.rrróes políticas e religiosas nos (e entre os) mundos romano e


bárbaro, delineadas no capítulo anterior, tornaram-se subitamente
irrelevantes com a chegada dos hunos. No ano de 375 e.c., eles for-
mavam, nas adjacências do mar Negro, uma confederaçáo nômade
das estepes, sob liderança centro-asiâtica. Eram inteiramente exóti-
cos aos olhos dos romanos e seus vizinhos: todas as suas caracterís-
ticas - a aparência fïsica, o estilo de vida nômade, a cultura bélica
- pareciam estranhas e terríveis aos habitantes do Velho Mundo.
Embora existissem como um povo distinto havia Pouco mais de um
século, sua chegada provocou mudanças significativas, que culmi-
naram no estabelecimento de reinos bárbaros na parte ocidental do
Império Romano. O resultado foi uma mudança drástica na forma
como esses bárbaros reinantes e suas vítimas romanas comPreen-
diam a si mesmos.
A confederaçáo dos hunos foi o primeiro de uma longa série de
movimentos das estepes que aterrorizaram a China e a Europa entre
os séculos IV e XV. Sob lideranças carismáticas, conseguiram se de-
senvolver e se expandir com uma força avassaladora a Partir de um
pequeno núcleo de guerreiros, incorporando combatentes nômades
derrotados. I-Ima inscriçáo turcomana posterior descreve como esse
processo pôde ser levado a cabo:
ll4 '-e O Mito das NaçÕes

Meu pai, o hhagan,r saiu com 17 homens. Os que esravam nas


cidades, ouvindo a notícia de que havia parrido, subiram para as
montanhas, e os que estavam nas montanhas desceram. Assim se
reuniram formando um grupo de70 homens. Devido à força con-
ferida pelos poderes divinos, os soldados de meu pai, o khagan,
eram como lobos, e seus inimigos, como ovelhas. Durante muitas
campanhas em várias regióes, ele reuniu e selecionou homens; que
juntos somaram 700. Após reunir 700 homens, [meu pai, o kha-
ganl organizou ordenou os que haviam perdido seu Estado e seu
e
khagan, os que haviam virado escravos e servos, os que haviam sido
privados das instituiçóes turcas, de acordo com as leis de meus
ancestrais.2

Essa descriçáo capta a essência do processo pelo qual as con-


federaçóes nômades, como a dos hunos e depois a dos mongóis,
surgiram táo subitamenre e adquiriram tamanha importância. Um
líder guerreiro conseguia, arravés de uma série de vitórias, arrair ou-
tros guerreiros. Assim um bando se tornava um exército, e um exér-
cito só conseguia sobreviver caso conquistasse outros grupos e os
incorporasse às suas tropas, aumentand.o seu poder. Entáo, em um
momento crucial, esse exército se transformava em um povo pela
imposiçáo de uma estrurura legal e institucional, e às vezes pela ale-
gaçâo de uma sançáo divina exclusiva. Embora esses grupos fossem
novos, baseavam sua legitimidade na suposição de que constituíam
a restauraçáo de uma anriga tradiçáo.
Como essas confederaçóes se estabeleciam em vastos territórios,
uma centralízaçáo efetiva era sempre eftmera. Os líderes dos clás e
seus partidários mais próximos dividiam o comando das porçóes de
um império altamente móvel e mutável. Exceto pelo curto período
do reinado de Átila (444-453), os hunos nunca foram um povo cen-
tralizado e unificado. Muito pelo contrário, eram formados por gru-

1. Khagan, ou khan, era o título conferido aos líderes de alguns povos turcomanos e mongóis. (N. T.)
2. ïariat Tekin , AGrammor of OrkhonTurkic,Bloomington, .l968, p. 265.
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos e*- 'l l5

pos díspares de bandos guerreiros que comparrilhavam uma cultura


nômade comum, uma tradiçáo militar de cavalaria e uma extraordi-
nâriahabilidade para incorporar os povos conquistados às suas con-
federaçóes. O espantoso desempenho militar dos hunos devia-se a
suas esplêndidas táticas de cavala ria, asua destreza no uso de curros
arcos recurvos, que lhes permitiam atirar uma saraivada de flechas
com uma precisáo fatal enquanro cavalgavam, e a sua habilidade no
uso das estepes e planícies da Europa Central e do oesre da Ásia,
o que lhes permitia atacar sem serem percebidos, causando sérios
danos aos seus inimigos, e entáo desaparecer por entre a vegetaçáo
táo rapidamente como haviam aparecido.
No período de uma geraçâo, esses bandos de guerreiros nômades
destruíram todas as confederaçóes bárbaras que encontraram pela
frente nos arredores do Império Romano, incluindo o reino góti-
co dos gfeutungos do leste e a confederaçâo gótica dos tervíngios,
situada a oeste dos greurungos. Com a destruiçáo da autoridade
gótica, os grupos que constituíam as antigas confederações tiveram
que decidir entre se unir aos bandos hunos ou requisitar ao impera-
dor romano sua entrada e estabelecimento em território imperial. A
maioria escolheu (ou foi forçada a escolher) a primeira opção.

A confederação huna

Para a maioria dos godos derrotados pelos hunos, o ingresso na con-


federaçáo huna era uma conseqüência óbvia. Embora um núcleo de
guerreiros da regiáo central da Ásia comandasse as rropas hunas, os
povos que eles haviam conquistado durante o período da primeira
geraçáo haviam sido assimilados sem que perdessem necessariamen-
te suas identidades mais distintivas. Esse aparenre paradoxo é im-
portante paraa compreensáo da fragilidade e da resiliência das iden-
tidades étnicas durante o período das invasóes bárbaras. Os bons
guerreiros, fossem de origem gótica, vândala, franca ou até mesmo

d
1.l6 --e O Mito das Naçoes

romana, ascendiam rapidamente na hierarquia huna. Mesmo entre


os membros do comando central, essa heterogeneidade étnica era
evidente. Edika, um líder huno, era ao mesmo rempo dos hunos
e dos ciros. Após o colapso do Império Huno, Edika governou o
eftmero reino dos ciros ao norte do mar Negro. Átila, o maior dos
comandantes hunos, apropriou-se de um nome (ou título) gótico:
em gótico, a palavra"átiIa" significa "papai". Além da língua huna,
falavam-se gótico, grego e latim em sua corte, e entre seus conselhei-
ros havia náo só líderes de vários povos bárbaros como também "ex-
romanos". Durante um período, no século V
o aristocrata panônio
Orestes - pai de Rômulo Augústulo, último imperador romano do
Ocidente - serviu ao rei huno. Em um famoso relato de uma missáo
diplomática à corte de Átila, Prisco, emissário do Império do Orien-
te, conta ter conhecido um ex-mercador grego que havia sido captu-
rado pelos hunos, mas posteriormente se destacou em uma batalha
- conseguindo assim sua liberdade - casou-se com uma huna e, por
fim, ascendeu a um posto de honra na corte de Átila.3
Mas a assimilaçáo completa náo era o destino de todas as víti-
mas das conquistas hunas. Ela só se aplicava a guerreiros valiosos. A
elite militar huna também precisava de uma populaçáo subserviente
que lhes fornecesse comida e preenchesse as bases de seu exército.
Povos como o gótico eram usados com esse propósito. Caso os go-
dos fossem inteiramente assimilados aos hunos, seriam menos úteis.
Assim aparentemente, embora os hunos destruíssem as instituiçóes
políticas centrais dos povos que conquistavam e permitissem que
alguns dos indivíduos capturados "se tornassem hunos", eles dei-
xavam alguns líderes nativos encarregados de suas vítimas. Esses
líderes juravam lealdade em troca da sobrevivência deles próprios
e dos grupos. Desse modo, os hunos incorporavam esses elementos
subservientes como unidades integrantes de sua confederaçáo, tanto

3. Prisco, Carolus Muller (Ed.), Fragmenta historicorum Graecorum lV Paris, 1851, fr. 8.
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos e- 117

para que servissem em seu exército como para que fizessem traba-
lhos que eles náo se queriam fazer.
Porém essa prática nem sempre funcionava como os hunos que-
riam. Prisco relata um motim no contingente huno do exército ro-
mano durante um ataque promovido por Dengizich, filho de Átila,
na década de 460, eue teria ocorrido por causa dessa prática. Um
comandante huno lembrou aos líderes góticos do exército que os
hunos "náo se preocupam com a agricultura, mas, como lobos, ata-
cam e roubam o estoque de comida dos godos, de modo que estes
continuam na posiçáo de servos enquanto eles sofrem com a escas-
sez de comida".a Feridos pela lembrança desse tipo de tratamento,
os godos partiram para cima dos hunos que estavam entre eles e os
mataram.
Assim, embora com o tempo alguns grupos conquistados perdes-
sem completamente sua identidade, os romanos notaram que mui-
tos indivíduos, bandos e grupos mais amplos tentavam se libertar e

fugir para a segurança do território do Império. Mas esses grupos


não eram necessariamente "povos" inteiros ou vítimas das conquis-
tas hunas. Entre eles havia pequenos bandos, indivíduos e até mes-
mo hunos que haviam se desentendido com os próprios líderes. Essas
perdas representavam uma ameaça ao poder huno, como indicam
as exigências de Átila, constantes em qualquer tratado, para que os
refugiados fossem extraditados. Os líderes dos grupos extraditados
eram crucificados ou empalados.
Para manter a unidade da heterogênea confederaçâo huna, seus
líderes precisavam de um fuxo constante de riquezas, que geral-
mente eram adquiridas por meio de pilhagens em território imperial
ou de serviços que prestavam ao imperador romano, combatendo
outros inimigos do Império em troca de subsídios anuais. Inicial-
menre as pilhagens nas regióes das fronteiras trâcia e ilírica geravam

4. Prisco, Muller (Ed.), fr. 39. Para uma análise das implicaçÕes étnicas desse texto, ver Peter Heather,
"Disappearing and Reappearing Tribes", em Pohl (Ed.), Strategies of Distinction, p. 100.
'l
1B --e O Mito das Naçôes

a maior parte das riquezas dos hunos. Mas os espólios dessas pilha-
gens eram apenas o começo, já que os imperadores começaram a
pagaÍ cotas anuais aos comandantes hunos a fim de evitar futuras
incursóes. Sendo assim, o sucesso das operaçóes militares era funda-
mental para a continuidade de seus líderes.
Durante as primeiras décadas da confederaçáo, a liderança era
dividida entre os membros de uma família real, mas, no ano de
444,Átila eliminou seu irmáo Bleda quando as operaçóes militares
começaram a falhar e unificou os hunos sob seu comando. Com
Átila, os subsídios anuais do imperador Teodósio II aumenraram
de 350 para 700 libras de ouro e, posteriormente, para 2.100 li-
bras, uma quantia enorme para os bárbaros, mas que não era uma
despesa astronômica para a economia imperial. Aparenremenre Teo-
dósio achava mais barato pagaï Átila do que monrar um exército
para defender o Império dos ataques hunos. Além disso, os hunos
provaram sua utilidade como aliados, ranro dentro como fora do
território imperial.
Após a morte de Teodósio II, em 450, Marciano, seu sucessor,
recusou-se a dar continuidade ao rraramento especial dispensado
aos hunos. Sem sua principal fonte de renda, Átila, considerando
seu exército fraco demais para prosseguir com as pilhagens no Im-
pério Romano do Orienre, volrou-se para o Império do Ocidente,
de Valentiniano III. Ele conduziu suas rropas em direçáo ao oesre
e promoveu dois grandes araques. No primeiro deles, em 451, os
hunos penetraram bastanre na Gália, até serem parados na batalha
de Châlons, entre Troyes e Châlons-sur-Marne. O exército de Átila
- provavelmente formado, em sua maioria, por indivíduos dos po-
vos germânicos conquistados da Europa Ocidental, como suevos,
francos e burgúndios, e também por gépidas, godos e descenden-
tes dos hunos centro-asiáticos - foi parado por um exército igual-
mente heterogêneo, formado por godos, francos, bretóes, sármatas,
burgúndios, saxóes, alanos e romanos, sob o comando do patrício
I

I
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos o- l'l 9

Aécio, um velho amigo e anrigo aliado dos hunos. Provavelmenre,


para um observador desinformado, seria impossível diferenciar os
dois exércitos.
O foi levado a cabo no ano seguinte, quando
segundo ataque
Atil" conduziu um outro exército atê a ltália. Mais uma vez, em
harmonia com as prioridades dos hunos, a mera da expediçáo era
a pilhageÍrì, € náo conquistas políticas. Enfraquecidos por doenças
e longe das terras às quais estavam acosrumados, decidiram voltar
quando estavam próximos de Verona. Mais tarde essa retirada seria
atribuída aos esforços do papa Leáo I. Provavelmente os hunos esra-
vam ansiosos demais para voltar à estepe.
A fragilidade do império de Átila foi revelada por sua rápida de-
sintegração após sua morte. Os impérios das estepes, baseados em
vitórias militares, náo podiam suporrar a derrota. Uma coalizáo se-
paratista, sob a liderança do gépida Ardarico, revohou-se conrra os
filhos de Atila. os rebeldes saíram vitoriosos, e a derrota dos filhos
de Átila resultou na cisáo da antiga confeder açáo e na formaçáo de
novos grupos. Além da aliança gépida, surgiram os rúgios, os ciros,
os sármatas na regiáo do Danúbio e os ostrogodos, que reuniram o
restante dos greutungos e se aliaram aos romanos como foederati.
Alguns dos filhos de Átila continuaram liderando grupos menores
que tinham se separado da antiga confederaçío. Alguns deles apa-
rentemente retornaram ao sul da Rússia, e outros ingressaram no
exército romano. Em um período de poucas geraçóes, eles e seus
seguidores se tornaram ostrogodos, gépidas ou búlgaros.

Etnogênese bárbara no lmpério

Os bárbaros que escaparam do violenro araque huno em 375 roma-


ram um outro rumo. Enquanto a maioria dos greutungos e dos ala-
nos foi incorporada à nova confederação huna, uma minoria, à qual
se somaram hunos desertores, fugiu em direçá o ao limes, assim como
120 --p O Mito das Naçoes

a maioria dos tervíngios, que abandonou o grupo de Atanarico e fu-


giu com Fritigerno, cruzando o Danúbio. A fuga dos tervíngios para
o território imperial transformou de modo decisivo a identidade dos
seguidores de Fritigerno. Para os romanos, eles náo passavam de
dediticii, inimigos derrotados, recebidos no Império sob a custódia
de oficiais romanos. Os romanos permitiram que se estabelecessem
naTrácia, onde se dedicariam à agricultura e forneceriam rropas ao
Império. Na realidade, a situaçáo dos refugiados tervíngios era bem
diferente da dos antigos dediticii. Em primeiro lugar, esses godos
eram muito mais numerosos do que os antigos bandos bárbaros que
haviam se estabelecido no Império e, assim, criaram dificuldades
para a administraçáo romana. Segundo, os romanos não os haviam
forçado a se render, como era de praxe. Quando os maus-tratos e a
fome provocaram uma resistência armada por parte dos godos, o
resultado foi uma série de vitórias destes. A cavalaria dos refugia-
dos greutungos, alanos e hunos logo se uniu aos tervíngios, assim
como o fizeram as unidades góticas que jâ faziam parre do exército
romano, mineiros trácios, escravos bárbaros e os pobres. Em 378, as
vitórias góticas culminaram na aniquilaçáo do exército imperial e
na morte do imperador Valente, em Adrianópolis.
Após o episódio de Adrianópolis, os romanos não puderam mais
tratar esses godos como derrotados e subjugados. Em um uatado
firmado em 382, foram reconhecidos como um povo federado, mas
os romanos permitiram que se estabelecessem entre o Danúbio e as
montanhas balcânicas com seus próprios governantes, criando, com
efeito, um Estado dentro de um Estado. Parte da renda tributária
tradicionalmente destinada à manutençáo do exérciro romano foi
redirecionada para os bárbaros. Em rroca, eles deveriam apoiar o
exército imperial, mas o fariam sob a liderança de seus próprios co-
mand.antes, que eram subordinados aos generais romanos.
Ao mesmo tempo, o sucesso sem precedentes dos tervíngios e
seus aliados resultou na transform açâo desse bando heterogêneo de
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos o.- 121

refugiados em visigodos, uÍrr novo povo com uma nova identidade


político-cultural. Os visigodos se adaptaram rapidamenre às táticas
de cavalaria utilizadas pelos greutungos, alanos e hunos em suas
campanhas contra Valente, transformando-se em cavaleiros extre-
mamente hábeis, na radiçáo dos guerreiros das esrepes.
Fritigerno e a maioria de seus seguidores eram cristáos arianos,
uma escolha que provavelmente estava vinculada a suas tentâtivas
iniciais de agradar o imperador Valente. Após Adrianópolis, essa fe
ariana se tornou parte integrante da identidade visigótica, uma ca-
racterística que distinguia esse novo povo da maioria da populaçáo
em território imperial, formada por cristáos ortodoxos.
A geraçáo seguinte de visigodos lutou bastante para se manrer
simultaneamente como uma confederaçío gótica e um exército ro-
mano. O rei Alarico, que afirmava pertencer ao clá real dos Baltos,
buscava reconhecimento e remuneraçâo por ser, ao mesmo tempo,
líder de um povo federado e general do alto comando, ou magister
militum, tendo sob sua autoridade, nas regióes que lhe cabiam, as
burocracias militar e civil. Ele tentava alcançar ambos os objetivos
por meio de serviços prestados (e expediçóes contra) aos impera-
dores do Ocidente e do Oriente e aos comandantes bárbaros do
Império.
Em sua insistência nesse duplo papel, Alarico contrastava com
um modelo mais antigo de bárbaro imperial, representado por Stili-
cho, comandante militar supremo no Ocidente e intermitentemente
seu superior, aliado e mordaz inimigo. Stilicho era de origem vân-
dala, porém, como os comandantes pagáos francos e alamanos que
o haviam precedido, tinha abandonado seus vínculos com seu povo
de origem. Cidadáo romano e católico ortodoxo, agia em total con-
cordância com a tradiçáo romana. Serviu e manipulou, como guar-
diáo, a família imperial e depois o sogro do imperador Honório e
bárbaros federados como Alarico. O método de Stilicho provou-se
fatal quando náo conseguiu manter a integridade do limes renano
122 '-e O Mito das Naçoes

e danubiano. No último dia do ano de 406, bandos de vândalos,


suevos e alanos cruzaram o alto Reno para assolar a Gália e penetrar
na Espanha tanto quanto as circunstâncias permitissem. Por volta
da mesm a época, bandos góticos que fugiam dos hunos invadiram
a Itália pela Panônia.5 Embora Stilicho tivesse conseguido derrotar
os invasores góticos, esses infortúnios quase simultâneos foram ha-
bilmente utilizados por seus inimigos. Em 408, Stilicho foi deposto
e executado por vontade de seu genro. Após sua morte, milhares
de outros bárbaros assimilados que viviam na Itália também foram
assassinados. Por volta do início do século V as identidades roma-
nas cívica e política náo eram mais suficientes para a sobrevivência
política no Ocidente.
os bárbaros sobreviventes da Itália se alinharam com Alarico,
cuja dupla posiçáo de rei bárbaro e comandante romano oferecia
um modelo de identidade mais fecundo e, no final das contas, mais
durável. Seu desejo de ser reconhecido e conseguir uma remunera-
ção para manter seus seguidores o instigou a invadir altâliaem 408.
Após inúmeras dissimulaçóes e negociaçóes malsucedidas, Alarico
invadiu e pilhou Roma enrre os dias 24 e26 de agosto de 410, um
acontecimento que chocou o Império. Embora sua tentativa posre-
rior de conduzir seu povo às terras ferteis da África tenha falhado
(Alarico morreu a caminho, no sul da Itália), ele conseguiu estabele-
cer um modelo duradouro de unidade política bárbaro-romana.
Ataulfo, sucessor e cunhado de Alarico, conduziu os godos da
ItâIïa à Gália. Como ourros comandantes bárbaros, desejava ser
aceito e assimilado à elite imperial romana. Em Narbonne, no ano
de 4r4, casou-se com uma irmá do imperador Honório, Galla Pla-
cidia, que tinha se confinado em Roma na esperança de enrrâr para
a família imperial de Teodósio. A quimera do casamento político
(mesmo nos casos em que náo passava de um "estupro" mal disfar-
çado) continuaria acontecendo ao longo do século seguinte: Átila
5. Antiga província romana a nordeste da ltália, correspondente à atual Hungria e regiões
adjacentes. (N. T.)
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos cr- 123

reivindicou o trono após casar-se com Honória, irmá de Valentinia-


no III, e o vândalo Hunerico se casou com sua prisioneira Eudocia,
filha de Valentiniano, com propósitos semelhantes. Nenhuma des-
sas tentativas deu certo. O império, afinal de contas, ao contrário
dos exércitos dos reis bárbaros, náo era hereditário.
Ataulfo acabou sendo assassinado, e, após fúteis tenrarivas de
invadir ahtâIia novamenre para chegar ao norte da África, seus su-
cessores aceitaram um novo tratado, estipulando que eles deveriam
limpar a Espanha dos rebeldes provincianos, vândalos e alanos.
Após retornarem a Toulouse em 418, os visigodos inauguraram
uma forma de organizaçáo política que caracterizariaseu reino e os
de outros bárbaros federados, especialmente o dos burgúndios e o
dos ostrogodos.
Os bárbaros, independentemente de suas origens étnicas, forma-
vam uma minoria militarmente poderosa entre a populaçáo roma-
na. Como cavaleiros guerreiros, tendiam a se estabelecer em regióes
fronteiriças estratégicas ou nas capitais políticas. Esses exércitos bár-
baros eram sustentados por parte da renda tributária destinada ao
fisco, minimizando assim o problema que era a ocupaçáo bárbara
para a aristocracia proprietária de terras e mantendo esses guerrei-
ros profissionais disponíveis para o serviço militar. A arrecadaçáo
e a distribuiçáo dos impostos continuavam nas máos dos oficiais
municipais, ou curiales, o que também favorecia a aristocracia, que
monopoltzava essas atividades. Pelo menos isso era o que havia sido
acordado com o exército visigodo em 418, com os burgúndios em
443 e com os ostrogodos, na ltália, durante adêcada de 490. Em
outros casos, como no dos alanos que tinham se estabelecido nos
arredores de Valência em 440, os subsídios conferidos aos bárbaros
náo eram mais arrecadados pelos oficiais imperiais. Nesse caso, os
reis bárbaros podiam pagar seus seguidores sem que precisassem
enviálos ao campo para que supervisionassem a arrecadaçáo.
Ao modo de Alarico, os reis bárbaros náo eram apenas coman-
dantes de seus povos, mas também oficiais romanos do alto escaláo
124 --o O Mito das Naçoes

(magister rnilitum, patricius etc.). Eles exerciam autoridade suprema


sobre os sistemas administrativos civis em seus territórios, governan-
do efetivamente os dois segmentos do Estado romano, que esravam
separados desde Diocleciano.
Para os inquieros proprietários de terras provincianos, a presença
dos bárbaros era uma bênçáo. A manutençáo dos exércitos bárbaros
era muito menos dispendiosa do que a dos exércitos provincianos
tradicionais, e aparentemenre os bárbaros causavam menos proble-
mas para os agricultores. Além disso, os comandantes bárbaros ge-
ralmente respondiam melhor aos interesses locais e estavam mais
dispostos a negociar com as aristocracias provincianas.

Os provincianos romanos nos séculos V e Vl

Já vimos que, no século III, os membros da aristocnciaprovinciana


ocidental tendiam a colocar os interesses locais acima de um ideal
eftmero de unidade imperial. Nos séculos IV e V essa tendência foi
intensificada. Entre os abastados aristocratas provincianos, houve
uma redescobertâ, ou talvez uma invençáo, do sentimento de afei-
ção a um passado remoto, pré-romano, que emergia como uma po-
derosa fonte de consciência étnica regional. Enquanto isso, muitos
camponeses desesperados mostravam-se dispostos a se rebelar e a se
tornar bárbaros païa sobreviver.
O cultivo da identidade provinciana se torna evidente na litera-
tura produzidana Gália enrre o século IV e o começo do século VI.
Em cartas e poesias, provincianos como Ausônio (c. 310-395) - fr-
lho de médico nascido em Bordeaux que se rornou rutor do futuro
imperador Graciano e posreriormente assumiu o posto de cônsul e
-
Sidônio (c.430-484) - aristocrata de Lyon - expressavam seus sen-
timentos mais profundos por sua cidade natal.6 Enquanto Ausônio

6. David Frye, Gallia, Patrio, Francia: Ethnic Tradition and Transformation in Gaul, tese de doutorado
não publicada, Duke university, 1991, p.89-passim. Embora a interpretação,,étnica,'desse
material seja controversa, sou grato ao professor Frye por ter permitido que eu lesse trechos de
sua tese.
CapÍtulo 4: Novos bárbaros, novos romanos e''- 125

exalta sua amada Bordeaux, Sidônio se atém à regiáo da Auvérnia.


Por toda a Gália, elaboravam-se manifestaçóes de amor pela patria,
náo por Roma ou por uma "Gália" quimérica, amada pelos historia-
dores nacionalistas franceses, mas Por Marselha, Narbonne, Trier,
Lyon e outras ciuitates. Não que esses aristocratas estabelecessem sua
identidade em oposiçáo a Roma. Nas palavras de Ausônio:
Este lugar [Bordeaux] é o meu país; mas Roma está acima dos
países. Eu amo Bordeaux; Roma, eu venero; aqui, sou um cidadáo;
em ambas, um cônsul; nesta cidade tenho meu berço, lá, minha
cadeira curial [consular].7

Da mesma forma que um guerreiro podia ser franco e romano'


um cônsul podia ser bordelês e romano. Essas identidades náo eram
incompatíveis. As circunstâncias determinavam qual delas deveria
prevalecer.
Ao mesmo tempo em que cantavam as glórias de sua patriae, es'

ses cavalheiros-poetas ressuscitavam nomes pré-romanos d,as tribos


gaulesas que haviam ocuPado a regiáo na época da conquista de Cé-
sar. Há quem diga que essa é uma forte evidência da sobrevivência
do sentimento pré-romano ao longo de três séculos. Isso é imprová-
vel. Seria muito mais plausível supor que essas manifestaçóes con-
sistiam em uma arcatzaçáo literária intencional, uma abordagem ro-
mântica da tradiçáo antiga. Se Ausônio afirma que seu avô materno
era oriun do da gens Haedua,8 e que sua avó materna era uma tarbela,
ou mesmo, de fato, que ele próprio era da gens vivisca, isso é menos
uma evidência de uma sobrevivência vigorosa do tribalismo gaulês
do que de um regionalismo arcaizante.
Esse regionalismo continuou ganhando força ao longo do século
seguinte. Isso se torna evidente com o surgimento de inúmeros cag-

7. Ausônio, Ordourbium nobilium 20, traduzido por Hugh G. Wvelyn White, Cambridge' MA, 1985,
39-41. Ver também Frye, Gollia, Potria, Francia, p' 1Q4.
8. Ausônio, Praefatiunculae 1.5. Ver Frye, Gallia' Patria, Francia, p. 90-91.
126 --<t O Mito das Naçóes

nominae derivados d,e nomes tribais do fim da ldade Antiga:lo 'Allo-


brogicinus", dos alóbrogos; 'Arvernicus", dos arvernos; "Morinus",
dos mórinos; "Remus", dos remos; e "Trever", dos tréveros. Esses
nomes tribais também emergiram como os nomes vernáculos das ci-
dades romanas fundadas em suas regióes. Assim Lutectia Parisiorum
náo se estabeleceu no vernáculo como Lutèce, mas como Paris.rr
Essa nostalgia literária, por mais artificial que fosse em sua
exaltaçáo das identidades tribais pré-romanas, era uma evidência
concreta de um sentimento regionalista em ascensão. Nesse regio-
nalismo, aristocratas sofisticados eram prontamente vinculados a
características "tribais" (ou "gentias"), tradicionalmente atribuídas
aos bárbaros pelos etnógrafos greco-romanos. Ausônio descreve sua
máe como uma mulher de "sangue mestiço" (sanguine misto),já que
seus avôs maternos eram oriundos de gentes disdntas. Já Sidônio
analisa a ascendência de um indivíduo chamado Lupus, descenden-
te de nitiobriges pelo lado paterno e de vesúnicos pelo materno.l2 A
relaçáo entre essas identidades e as diferentes localidades se basea-
va mais na tradiçáo tribal ou gentia pré-romana do que na divisáo
administrativa do Império. Se a aristocracia provinciana podia ser
categorizada e analisada de tal modo, entáo ela não podia ser com-
preendida como essencialmente diferente dos bárbaros, que cada vez
mais dominavam as cenas política e militar.
Na base da pirâmide social, escravos, ex-escravos, coloni e pequenos
proprietários de terra também experimentavam novas identidades.
Há poucos indícios de que eles tenham descoberto nízes tribais pré-
romanas e assim forjado um sentimento de solidariedade para com
os proprietários de terras aristocráticos encantados com suas supos-

9. Sobrenomes ou alcunhas. (N. T.)


'10. p.95-96.
liro Kajanto,TheLatinCognomino, Helsinque, 1965;trye,Gallia,Potria,Francio,
1 1. A região de Paris era ocupada pelos parísios. (N. T.)
12. Frye, Gal lia, Patri a, Francia, p. 92-93; Sidônio, 8.1 1.1.
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos Íomanos o-- 127

tas origens tribais. Antes buscavam refúgio entre os bandidos tradi-


cionais do mundo romano, ou entáo entre os militares bárbaros.
No século V os bandos dos chamados bagaudae ameaçavam a
administraçâo romana e as operaçóes fiscais no sul da Gália e na
Espanha. Esse termo, que provavelmente tem sua origem na palavra
celta para "guerra", era usado para designar os camponeses rebeldes
desde o século III. Esses bagaudae do século V ao contrário dos gru-
pos de bandidos anteriores, incluíam uma camada representativa da
populaçáo provinciana que se sentia perseguida e abandonada pelo
Império e que direcionava seu ódio tanto para os agentes do fisco
como para os grandes proprietários de terras. Como os exércitos
bárbaros, os bagaudae vagavam pela zona rural, às vezes se agru-
pando para proteger sua regiáo dos ataques bárbaros na ausência de
tropas romanas, às vezes se unindo aos exércitos bárbaros para sitiar
cidades, aterrorizando as elites. De acordo com um relato, no início
do século V os bagaudae da Armóricar3 expulsaram os invasores
bárbaros e depois os magistrados romanos. A regiáo só foi pacificada
em 4l7.ra
Os bagaudae, por todo o medo que infundiam aos seus supe-
riores, náo foram capazes de estabelecer identidades corporativas e
políticas independentes e duradouras. Eles eram, sem exceçáo, es-
magados pela autoridade imperial, geralmente com a colaboraçáo
dos federados bárbaros. Dessa forma, os federados se tornaram úteis
náo apenas para defender as fronteiras do Império de possíveis inva-
sores, mas também para protegêJo de seus próprios habitantes. Náo
muito depois de Roma ter sido saqueada pelos visigodos, estes foram
enviados ao sul da Gália para suprimir os bagaudar- Na década de

13. Região da Gálía correspondente ao oeste da atual França. (N. T.)

14. Zosimus, Hrstorio nova,Yl,5, creditado por A. H. M. Jones, The Loter Roman Empire284-6O2,vol.l,
Baltimore, '1986, p. 187. Vertambém Herwig Wolfram, TheRoman Empireond ltsGermanicPeoples,
Berkeley, 1997, p.240, que contesta o relato, pelo menos no que diz respeito aos bretões.
128 --s O Mito das Naçóes

430, foi avez dos hunos, encarregados de massacrálos ao sul do rio


Loire.
Os bárbaros náo estavam mais inclinados a tolerar as rebelióes dos
bagaudae do que os oficiais imperiais. Afinal de contas, os federados
também dependiam da arrecadaçáo dos impostos. Freqüenremenre
eles se uniam aos oficiais do império e à aristocracia senatorial das
províncias ameaçadas. Entretanto os exércitos bárbaros continuavam
sendo bandos volúveis de guerreiros, atraindo provincianos insatis-
feitos e violentos tanro quanro os grupos de rebeldes. Aparentemenre
alguns indivíduos rrocavam de grupo, buscando diferentes alterna-
tivas para suas más situaçóes. Segundo uma crônica do século
V um
médico chamado Eudoxius teria se juntado aos bagaudae e depois
aos hunos.l5 De acordo com Salviano, moralista cristáo do século
V
os camponeses da Espanha e da Gália se sentiam mais seguros entre
os bárbaros do que entre os romanos:

Eles [os romanos mais pobres] buscam humanitarismo enrre


os bárbaros porque náo podem suporrar a barbaridade inumana
dos romanos. [...] Assim eles se unem aos góticos ou aos bagaudae,
ou entáo a qualquer outro grupo bárbaro que esteja no poder...
Desse modo, a condiçáo de cidadáo romano, que anres era, além
de bastante estimada, adquirida a muito cusro, é hoje recusada e
repudiada.r6

Dessa forma, ao mesmo tempo em que as elites provincianas cul-


tivavam uma identidade que os vincul ava a tribos gaulesas havia
muito desaparecidas, a massa provinciana, sentindo-se abandonada
pelo império e explorada pela arist ocracia, buscava novas identida-
des entre os invasores e federados bárbaros. Nenhum dos grupos
considerava a condiçáo de romano realmente proveitosa.

1 5. Chronica Gallica anno 452, I 33.


16. Salviano, De gubernatione deiv 5,2j-23.
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos o-- i29

Novo território, nova identidade

o estabelecimento dos exércitos bárbaros na parre ocidenral do


Império provocou novas transformaçóes nas identidades sociais e
étnicas. Um povo bárbaro armado constituía um exército volúvel,
pronto pata recrutar soldados oriundos de diversos meios. Já um
reino bárbaro, por outro lado, tendia a criar fronteiras, separando-
se da maior parte da populaçáo local. Uma vez estabelecidos nas
antigas províncias romanas, os reis bárbaros começaram a tentar
transformar seus exércitos heterogêneos em povos unificados, com
leis e identidades comuns. Assim, em vez de recrutarem novos mem-
bros, começaram a tentar manter uma certa distância da maioria da
populaçáo romana.
As identidades que ofereciam aos membros de seus "povos" eram
baseadas em vagas tradiçóes familiares, reinrerpretadas e transfor-
madas de acordo com o contexto em que se encontravam. os go-
vernantes mais aclamados afirmavam descender de antigas famílias
nobres ou reais, embora muitas vezes essas afirmaçóes náo fossem
legítimas e em alguns casos essas famílias náo tivessem realmente
comandado grandes exércitos bárbaros no passado. Para os visigo-
dos, a família dos Balros constituía o centro de sua tradiçáo. Para os
vândalos, os Hasdingi; para os osrrogodos, os Amali. Em cada um
desses povos, reis bem-sucedidos projetavam o passado imaginado
da família em questáo no povo como um todo, produzindo uma
percepçáo comum de sua origem que deveria ser compartilhada por
toda a elite militar, suprimindo reivindicaçóes alternativas pelo di-
reito à autoridade.
os reis bárbaros também usavam a religiáo paraforjar uma iden-
tidade comum, embora em menor escala. As famílias reais dos go-
dos, assim como as dos vândalos, as dos burgúndios e as de ourros
povos, geralmente eram adeptas do arianismo, e essa versáo hete-
rodoxa da fé cristá passou a ser vinculada à figura do rei e de seu
povo. Os arianos náo eram radicais nem perseguidores. No máxi-
130 --s O Mito das NaçÕes

mo, exigiam uma ou duas igrejas para.o culto. Náo perseguiam nem
proscreviam o cristianismo ortodoxo, com exceçáo talvez do reino
vândalo do norte da África. Porém, mesmo nesse caso, as persegui-
çóes e o confisco de terras, ao que parece, eram mais uma questáo
de rixa política do que de diferenças doutrinárias.
A tradiçáo legal também era usada nessa elaboraçáo de novas
identidades. Nada se sabe a respeito dos primórdios das leis bárba-
ras: o conjunto de leis mais antigo de que se tem notícia, o Códi-
go Visigótico de Eurico, data da segunda metade do século V (..
470-480). Embora geralmente os códigos bárbaros contrastassem
bastante com a lei romana - com seu sistema de compensaçóes por
ofensas (wergeld), práticas de juramento e procedimentos formais
orais -, essas tradiçóes não deviam ser muito diferentes das práticas
legais comuns em muitas regióes da Europa Ocidental por volta do
século V. Essas leis buscavam delinear os direitos e responsabilida-
des de bárbaros e romanos. Eram leis territoriais, e deveriam ser
aplicadas tanto aos bárbaros como aos romanos, embora as outras
tradiçóes legais romanas - vivas nos territórios concedidos aos exér-
citos bárbaros - náo fossem excluídas.
As tentativas bárbaras de forjar novas identidades étnicas e po-
líticas para os povos tiveram diferentes resultados. As divergências
entre a minoria política e o exército bárbaro, assim como entre esse
e a popu\açâo romana, continuavam dividindo a Aftica vândala.
Os vândalos, ao contrário da maioria dos outros povos bárbaros
do Império, tinham conseguido estabelecer um reino em território
imperial sem os benefícios de um tratado e confiscado propriedades
a torto e a direito. A prática do confisco lhes rendeu o ódio da aristo-
cracia proprietária de terras, assim como o da Igreja ortodoxaafrïca-
na, que tinha uma longa tradiçáo de ativismo político, desenvolvida
durante as décadas de oposiçáo aos donatistas.lT Muitos aristocratas
17. Seguidores do donatismo, doutrina religiosa fundada por Donato, bispo de Cartago, tida como
herética pela lgreja. (N. T.)
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos e- 131

proprietários de terras fugiram ou foram exilados, assim como os


bispos católicos, que só rerornaram na década de 520. Os reis vân-
dalos acabaram sendo reconhecidos pelo império, mas mesmo assim
seus reinados conrinuaram fúgeis. Odiados e isolados do resto da
populaçáo, os vândalos foram derrotados com uma facilidade ines-
perada pelas rropas enviadas por Justiniano em 533. Após a derro-
cada do reino, os que restaram foram deportados e incorporados
aos exércitos bárbaros federados da cosra leste do Mediterrâneo. Em
menos de uma década, os vândalos desapareceram completamenre.
Na ltália, o reino ostrogodo - esrabelecido por Teodorico, o
Grande, na década de 490 - começou com grandes perspectivas,
mas também foi desintegrado pelo Império Bizantino,
eue recon-
quistou seu território. Os ostrogod.os emergiram das ruínas do Im-
pério Huno como uma das facçóes germânicas, aliando-se e lutando
contra o Império do Oriente alternadamenre. Em 484, Teodorico
- que alegava descender dos Amali, família real de antes da chegada
dos hunos - uniu alguns
desses grupos sob seu comando. euatro
anos depois, como representante do imperador Zenáo, conduziu um
exército multiétnico à Itália paÍa combater Odoacro, comandanre
bárbaro que havia conquistado a península. odoacro era um co-
mandante bárbaro-romano à moda antiga - um rei sem um povo.
Como Stilicho, seu predecessor, odoacro governou artâliae coman-
dou um exército formado pelos remanescentes das tropas romanas
regulares e auxiliares. Mas ele náo era páreo para Teodorico e seus
godos. Em 493, Teodorico conquisrou a península, execurou Odoa-
cro e tomou conta dos sistemas administrativo e fiscal romanos.
Teodorico rentou transformar seu exército bárbaro, nômade e
heterogêneo em um povo gótico, fixo e estável, formado por indiví-
duos capazes de conviver paciÊcamenre na Itália romana. Sua meta
era prover seu séquito gótico de "civilidade" (ciuilitas), ou seja, con-
vencer seus seguidores a adotar o princípio romano da submissáo à
lei e aos costumes da tolerância e do consenso próprios de uma so-
132 -e O Mito das NaçÕes

ciedade civilizada, a qual deveriam defender com seu poderio mili-


tar. No entanto, ele planejava manter os góticos e os romanos como
comunidades separadas uma militar, a outra civil -, dependentes
-
uma da outra sob sua autoridade suprema. Dessa forma, ao separar
soldados (godos) de civis (romanos) - o,t soldados de contribuintes
que os sustentavârrì -, Teodorico adotava o que tem sido chamado de
"ideologia etnográfica".r8 As duas nAtiones, de acordo com essa ideo-
logia, formavam um único populus - governado pela lei, e náo pelas
armas - e eram unidos em uma relaçáo de solidariedade mútua.
Na verdade, o governo de Teodorico se baseava no poderio mi-
litar gótico. Embora contasse com o leal apoio dos administradores
romanos - eatêmesmo dos conselheiros mais próximos de Odoacro,
como o senador Cassiodoro Teodorico, como outros reis bárba-
-,
ros, buscou fortalecer o elemento gótico de seu goyerno por meio da
nomeaçáo de agentes de confiança, ou comites, cujas funçóes eram
supervisionar e intervir em todos os setores da burocncia romana.
Além disso, privilegiava algreja ariana - a"Igreja da lei dos god.os"
-, mas fez comque ela continuasse sendo minoritária, proibindo seu
proselitismo entre a maioria ortodoxa.
Para enfatizar o elemento gótico de seu governo, tanto na Itália
como fora dela, Teodorico se baseava cadavez mais em sua alegaçáo
de que descendia da lendária família real dos Amali, embora sua
legitimidade, assim como a primazia dessa família no passado, náo
pudesse ser comprovada. Especialmente quando lidava com gentes
de fora da ltália, como os burgúndios, visigodos; francos e turín-
gios, ele náo apelava para a ciuilitas ou para a romanitas, mas para
os vínculos entre as famílias reais - fossem eles estabelecidos pela
ascendência comum, por alianças matrimoniais ou pelo reconheci-
mento mútuo -, os quais enfaúzavaparacultivar um sentimento de

18. Sobre essa questão, de modo geral, ver Patrick Amory, People and ldentity in Ostrogothic ltaly 489-
554, Cambridge, 1997, esp. cap. 2, "The Ravenna Government and Ethnographic ldeology: From
Civilitas to Bellicositas", p. 43-85.
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos o- 133

unidade. Além disso, afirmava que a glória do sangue dos Amali o


colocava acima dos outros reis, soberanos inferiores.le Tais apelaçóes
para a tradiçáo dos Amali, que se rornavam cada vez mais freqüentes
em sua autopromoçáo interna, retornariam com vigor no reinado de
Atalarico, seu neto.
Mas.a tentativa de Teodorico de levar a cabo uma nova etno-
#n€se gótica, baseada na fé ariana e no sangue dos Amali, falhou.
Muitos bárbaros se tornavam proprietários de terras, apresentando
cada vez mais os mesmos interesses regionais e econômicos de seus
vizinhos romanos, e os limites entre os guerreiros ostrogodos e os
civis do Império se tornavam incertos. A geraçâo seguinte de godos,
educada na tradição da elite romana, distanciou-se ainda mais da
cultura guerreira que lhes cabia. Enquanto isso, muitos romanos
ascendiam a postos militares importantes e assimilavam a cultura
:

;
dos godos. Alguns chegavam até a se casar com mulheres góticas
I

i e a aprender sua língua. O patrício Cipriano, por exemplo, educou


seus filhos na tradiçáo dos godos, fazendo com que participassem
de treinamentos militares e aprendessem a língua gótica.zo Duranre
o reinado de Atalarico, os romanos chegaram a adquirir o direito de
julgamento perante o tribunal dos godos, caso ambos os litigantes
romanos consentissem, uma subversáo intolerável do princípio da
separaçáo desenvolvido por Teodorico.2r
Como reaçâo a essa confusáo de identidades étnicas, estabele-
ceu-se um movimento anti-romano entre os militares, preocupados
com a rápida romanizaçáo de muitos soldados góticos. As tensóes
se intensificaram após a morte de Teodorico, culminando no assas-
sinato de Amalasunta, sua filha, errÌ 535. O imperador Justiniano
usou o assassinato como uma desculpa paÍa náo reconhecer a legi-
timidade do rei gótico Teodato, sobrinho de Teodorico, e invadir a

19. Amory, People and ldentity, p.63-64, citando, por exemplo, Cassiodoro, Voriae 4.1 e 4.2.
20. Amory, Peo p le an d I d e ntity, p. 7 3; V ar. 8.21 .6 -7.
21. Amory, People and ldentity, p. 72.
134 --e O Mito das Naçoes

Itália. Entretanto, ao conrrário da reconquisra da Afúca, levada a


cabo em apenas duas batalhas, essa guerra, mais devastadora do que
todas as invasóes bárbaras dos dois séculos anteriores, durou quase
duas décadas. No entanto, o destino dos ostrogodos na Itália seria
semelhante ao dos vândalos do norre da África. A unidade política
dos ostrogodos foi esfacelada, e eles desapareceram.
Mas náo foram apenas os ostrogodos que desapareceram no ba-
nho de sangue da reconquista. Os "romanos" - ou seja, as grandes
famílias senatoriais que haviam cooperado com Teodorico em sua
tentativa de criar um reino baseado na ciuilita.r romana e nas armas
bárbaras - também deixaram de existir. As identidades de bárbaros
e romanos haviam se tornado ráo complexas e ficado táo entrelaça-
das que a reconquista empreendida por Justiniano foi fatal, ranro
para uns como para outros. Nem os "romanos" - neste caso, as
tropas imperiais de Constantinopla - nem os godoi acreditavam
mais nelas. Em 537, por exemplo, durante o cerco de Roma, o co-
mandante romano Belisário depôs o papa Silvério por acreditar que
ele confabulava com os godos. Belisário exilou o papa e vários se-
nadores distintos, inclusive Flavius Maximus, descendente de um
imperador, por ter se casado com uma princesa gótica. Durante o
cerco, o rei godo Vitiges ficou táo exasperado que executou todos os
senadores romanos que haviam sido feitos reféns em Ravena.22 Em
552, ap6s a grande derrota gótica na batalha de Busta Gallorum, os
godos, em retirada, massacraram todos os romanos que encontraÍary.-
pela frente, e o rei Teja ordenou a execuçáo de todos os senadores
na Campânia, inclusive Flavius Maximus, exilado pelo desconfiado
Belisário. Após esse episódio, Teja massacrou 300 crianças romanas
que haviam sido feitas reftns por Totila.23 Suspeira tanto aos olhos
do império quanto aos dos bárbaros, a antiga arisrocracia romana
nunca mais teria um papel significativo na Itália.

22.Procópio,V XXV-VI.
23. Procópio, Vlll, xxxiv.
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos s.. 135

Na Gália, o reino dos godos de Toulouse e o dos burgúndios


tiveram destinos semelhantes. Ambos continuaram servindo como
federados, participando por exemplo da vitória sobre os hunos na
batalha de Châlons, na qual Atila foi derrotado. Também se apro-
veitaram da fraquezaimperial para expandir seus territórios. Os go-
dos se expandiram até o rio Loire, ao norte, e até, a Espanha, ao sul,
enquanto os burgúndios o fizeram em direçáo ao leste, até serem
parados pelos gépidas. Mas os visigodos continuaram sendo uma
minoria ariana e desapareceram na Gália, após uma única derrota
paÍa os ,francos, em 507. Já os burgúndios perderam rapidamente
sua suposta identidade cultural, religiosa e genealógica e, por vo[-
ta do século VI, o termo "burgúndio", ao que parece, significava
pouco mais do que "donos de terras que um dia haviam sido lotes
militares divididos enrre os bárbaros".

Etnogênese bárbara no norte

O tipo de unidade política bârbara inaugurada pelos visigodos e


amplamente adotada pelos vândalos e ostrogodos - ou seja, a cria-
çáo e a manutençáo de duas comunidades, uma delas ortodoxa, ro-
mana e civil, e a outra ariana, bárbara e militar, sob o comando
unificado de um rei bárbaro e sua comissáo imperial - terminou
em fracasso. Já os reinos criados pelos francos no norte da Gália e
pelos reis menores da Britânia, nos quais as distinçóes entre bárba-
ros e romanos desapareceram rapidamente, foram mais duradouros.
Existem várias razóes para o sucesso desses reinos. Uma delas é a
distância que havia entre eles e o núcleo do mundo bizantino, que
fez com que fossem considerados insignificantes pelo Império no
início do século V e no século VI jâestavam fora do alcance das gar-
ras de Justiniano. Por outro lado, a transformaçáo da administraçáo
civil romana já, estava bastante avançada, de modo que jâ nâo havia
muito o que ser assimilado pelos reis bárbaros. No caso dos francos,
136 -s O Mito das Naçôes

ao que parece, a administraçáo civil romana sobrevivera apenas no


plano das ciuitates, em núcleos isolados. Já no caso da Britânia, nem
mesmo no plano das localidades o sistema burocrático havia sobre-
vivido para ser incorporado pelos novos governantes. Além disso,
os bárbaros do norte eram de fato diferentes. Embora os francos
e saxóes já tivessem servido ao império como federados, pouco ou
nada conheciam do mundo mediterrâneo, de Constantinopla ou até
mesmo da ltália. Esses bárbaros, assim como os romanos provin'
cianos que incorporaram, estavam muito distantes das tradiçóes
administrativas e culturais de um Teodorico ou de um Cassiodoro.
O resultado foi a transformaçáo sociocultural - mais simples, mas a
longo pÍazo mais efetiva - desses povos.
No início do século V a Britânia e o norte da Gália, distantes
dos interesses de Ravena e Constantinopla, foram obrigados a con-
siderar suas formas de proteçáo e organizaçâo. Nos dois territórios,
as afinidades regionais começaram a prevalecer sobre a abrangen-
te organização romana, e novos conjuntos políticos de elementos
romanos, celtas e germânicos emergiram. Na Britânia, o governo
centralizado romano se desintegrou, sendo substituído por vários
reinos pequenos e hostis uns aos outros. Durante o final do século V
e início do VI, as tropas federadas germânicas, formadas por sãxóes,
frísios, francos e outros grupos das regióes costeiras do continente,
passaram a dominar muitos desses reinos, especialmente no sudeste
da ilha. Embora a migraçáo desses grupos das regióes costeiras fos-
se significativa, especialmente no século VI, a grande quantidade
de nomes celtas nas genealogias dos antigos reinos "anglo-saxóes",
assim como a sobrevivência de comunidades cristás em seus terri-
tórios, indica que a etnogênese anglo-saxônica teve sua origem na
fusáo gradual de populaçóes nativas com os novos grupos que che-
gavam. Essas comunidades eram lideradas por famílias que com o
tempo passaram a se considerar descendentes de heróis germânicos
mitológicos. De fato, a maioria das genealogias das famílias reais
Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos er- 137

anglo-saxônicas era elaborada a partir de'$7oden, deus da guerra,


ou até mesmo do próprio "deus" (Géat/Gaut).
A sociedade franca resultou de uma fusáo semelhante em regióes
do norte da Gália, as mais afastadas da cultura mediterrânea. Ao
longo do século V uma série de reinos rivais emergiu das ruínas da
administruçío provinciana romana, cada um deles liderado por um
comandante militar ou por um rei. Alguns desses líderes eram reis
francos que comandavam unidades bárbaras com vínculos nos dois
lados do Reno. Outros eram membros da aristocracia galo-romana,
apoiados por exércitos formados por bárbaros e provincianos roma-
nog. Entre os primeiros estavam os membros da família merovíngia,
ÍFre comandavam tropas bárbaras cujos soldados descendiam dos
francos sálicos, provavelmente estabelecidos no Império por volta
do final do século IV. Nesses grupos, a etnicidade era bem menos
relevante do que a conyeniência política: os seguidores do rei franco
Childerico, por exemplo, que haviam se tornado ricos e poderosos a
serviço do império, pareciam dispostos a estabelecer alianças, quan-
do isso lhes convinha, com os comandantes militares da aristocracia
romana.
Em 486, Clóvis, filho de Childerico, a partir do reino de seu pai,
estabelecido ao redor de Tournai, começou a expandir seu poder em
direçáo ao sul e ao leste. Entre 496 e 506, Clóvis conquistou Sois-
sons, centro administrativo da Bélgica Secunda, dominou tempo-
rariamente os turíngios e derrotou os alamanos. Em 507, derrotou
e matou o rei visigodo Alarico II e iniciou o Processo de conquista
do reino visigótico ao norte dos Pirineus. Ao que parece, nenhuma de
suas conquistas estava associada a qualquer incumbência ou tratado
com Constantinopla, mas, após sua vitória sobre Alarico II, emis-
sários do imperador Anastácio lhe conferiram algum tipo de re-
conhecimento imperial, provavelmente designando-o como cônsul
honorário. Clóvis passou seus últimos anos, até sua morte, por volta
de 5ll, eliminando outros reis francos e rivais de sua família que
l3B --ç O Mito das NaçÕes

governavam reinos semelhantes ao de seu pai, em Colônia, Cambrai


e outras localidades.
A etnogênese no reino franco de Clóvis se deu de forma dife-
rente das que ocorreram na Itália dos ostrogodos e na Aquitània2a
visigótica. Suas conquistas náo partiram de um mandato direto do
Império, e ele náo tentou criar o tipo de sociedade dualista elabo-
rada por reis bárbaros anteriores. Os francos sálicos habitavam a
Gália havia muito tempo, e sempre estiveram envolvidos em lutas
políticas regionais e imperiais. A autoridade de Clóvis havia sido
reconhecida por representantes da aristocracia galo-romana, como
o bispo Remígio de Reims, desde a morte de seu pai, em 486, muito
antes de sua conversáo ao cristianismo. Desse modo, a incorporaçío
dos centros de poder rivais promovida por Clóvis provocou uma
transformaçáo muito menos drástica do que as geradas pelas açóes
de reis bárbaros anteriores. Ele certamente se apoderou das sobras da
administração civil romana, mâs esta, como já vimos, náo ia além
do plano das ciuitates.
Além disso, há poucos indícios de que os francos tenham estabe-
lecido ou tentado estabelecer um sentimento identitário forte e
distinto em relaçáo ao da populaçâo romana, como frzeram Teo-
dorico e outros comandantes góticos. Aparentemente a família de
Clóvis alegava uma ascendência semidivina, incluindo uma cria-
tura minotáurica entre seus ancestrais, mas a tradiçáo genealógica
franca náo podia de forma nenhuma rívalízar com as geraçóes de
heróis e deuses da tradiçáo gótica. Em vez de rentarem estabelecer
uma antiga tradiçáo distinta da romana, os francos enfatizavam
suas características comuns: no século VI, ao que parece, diziam
descender dos troianos, vinculando-se genealogicamente aos seus
vizinhos romanos.

24. Província situada no sudoeste da França atual. (N. T.)


Capítulo 4: Novos bárbaros, novos romanos o.- 139

Os francos estavam preparados para compartilhar náo só uma


ascendência comum com os romanos como também uma religião
comum. Antes do século VI, alguns francos eram cristáos, fossem
arianos ou ortodoxos, enquanto outros, incluindo a famí\ïa de Cló-
vis, haviam conservado uma tradiçáo religiosa pagãI. Clóvis prova-
velmente flertou com o arianismo de seu poderoso vizinho Teo-
dorico, mas acabou se rendendo ao batismo ortodoxo, embora o
momento exato desse acontecimento ainda seja discutível.
Unidos por uma religiáo e um mito de origem comuns, nada
impedia que os francos de Clóvis e os provincianos romanos de seu
reino forjassem uma identidade comum. E de fato o fizeram, com
uma lgilidade considerável. Em um período de poucas geraçóes, a
popúlaçáo ao norte do Loire já havia se tornado inteiramente franca.
Além disso, embora as tradiçóes legais romanas ainda estivessem em
vigor no sul e o status legal dos burgúndios e romanos continuas-
se vigorando no antigo reino burgúndio, conquistado pelos filhos
de Clóvis na década de 530, essas divergências náo constituíam a
base de uma identidade social ou política distinta. A força da síntese
franca estava na criaçáo de uma sociedade unificada, baseada nos
legados das tradiçóes romana e bárbara.

Conclusão: nomes antigos, povos novos

Nos séculos IV e V a estrutura sociopolítica européia se transfor-


mou de forma decisiva. Durante o processo, grandes confederaçóes,
como a dos godos, desapareceram, ressurgindo como reinos na Itá-
lia e na Gália. Outras unidades políticas, como o Império Huno e
o reino vândalo, que pareciam surgir do nada, sumiram do mapa
em um período de poucas geraçóes. Alguns povos obscuros mais
antigos, como os anglos e os francos, emergiram e criaram unidades
políticas duradouras. Porém, duradouras ou eftmeras, as realida-
I des sociais por trás desses nomes étnicos sofreram transformaçóes
i
140 --e O Mito das Naçoes

rápidas e radicais em todos os casos. Fosse qual fosse a identidade


dos godos no reino de Cniva do século III, a realidade gótica na
Espanha do século VI era muito diferente em rermos lingüísticos,
religiosos, políticos, sociais e atê mesmo em termos de ancestrali-
dade. os francos que foram derrotados pelo imperador Juliano no
século IV assim como os que seguiram Clóvis em suas conquistas
no século VI, também eram radicalmente distintos sob todos os
aspectos. Podemos dizer o mesmo dos romanos, cuja transformaçáo
nesse mesmo período náo foi menos dramática. Com as constanres
mudanças nas alianças, os casamentos multiétnicos, as transforma-
çóes e as apropriaçóes, parece que as únicas coisas que permanece-
ram imutáveis foram os nomes, eue aliás podiam conter elementos
diferentes em épocas distintas.
Os nomes eram recursos renováveis. Tinham o potencial de con-
vencer as pessoas da continuidade, mesmo que a descontinuidade
radical estivesse evidente. Velhos nomes, fossem de povos antigos,
como os godos ou os suevos, ou de famílias ilustres, como a dos
Amali, podiam ser reclamados, aplicados a noyas circunstânçias
e usados em apelos para a formaçáo de novos poderes. Nomes de
pequenos grupos sem importância podiam se expandir poderosa-
mente. Os francos constituíam o mais significativo desses grupos.
No século III, esravam enrre os menos significativos dos inimigos
de Roma. Por volta do século VI, o nome "franco" havia ofuscado
náo só os nomes "godo", "vândalo" e "suevo" como também o nome
"romano" na maior parte do Ocidente.
Capítulo 5
sHz

OS ULTIMOS BARBAROS?

Ao torrgo do século criaçío de novos reinos no território do


VI, a
antigo Império Romano transformou náo só a natureza dos povos
que deram seus nomes a essas unidades políticas regionais, como
também a dos "novos" bárbaros que migraram para as regióes fron-
teiriças abandonadas por esses grupos. Neste capítulo, discutiremos
como o estabelecimento desses bárbaros na Gália, na ltália, na Es-
panha, nos Bálcás e até mesmo na Britânia tornaram incertos os
limites entre os romanos e os bárbaros, quando náo os suprimiram
totalmente.

Fusão nos reinos ocidentais

A ltália lombarda

A Itália lombarda nasceu em meio a confusáo e violência. A guerra


sangrenta entre bizantinos e ostrogodos exauriu a península, dei-
xando-a vulnerável. Em 568, o rei Alboino' que dízra (baseado em
quê, nunca saberemos) descender da família real dos Gauti, con-
duziu à Itália um exército heterogêneo formado por romanos pro-
vincianos da Panônia, suevos, sármatas, hérulos, búlgaros, gépidas,
saxóes e turíngios. Entre eles havia arianos, cristáos ortodoxos e pro-
vavelmente alguns ainda pagáos. Esses grupos tinham seus próprios
142 --s O Mito das Naçoes

líderes, membros de clás ilustres ou reais, invejosos uns dos ourros e


do rei lombardo. Náo se tratava de um exército federado se esrabe-
' lecendo em uma província romana sob o comando do imperador,
mas de uma conquista sangrenta e brutal. A violência foi exacerba-
da por sua narureza descentralizada, especialmente após a morte de
Alboino (provocada por sua mulher), quando os duques começaram
a estabelecer ducados autônomos pela Itália. Esses foram barrados
nas entradas de Roma e de Nápoles pelo comanda nte romano (ou
bizantino) de Ravena, enquanro os exércitos burgúndio e franco
- após as desastrosas incursóes lombardas na Borgonha - conquis-
taram os vales piemonteses de Aosta e de Susa e os separaram da
Il.âlia lombarda.
Em seus novos ducados, os lombardos (que provavelmenre repre-
sentavam enrre 5o/o e 8o/o da populaçáo dos territórios que haviam
ocupado) náo deixaram cargos políticos para os remanescentes da
elite romana que haviam sobrevivido à reconquista bizantina. Um
habitante da parte oesre dos Alpes, conremporâneo da ocupaçáy
lombarda, relata que Clefi, sucessor de Alboino, "matou muitos da
aristocracia e das classes intermediárias".l De modo semelhanre,
Paulo Diácono, historiador do século VIII, baseando-se em um rex-
to do final do século VI, escreve que "fClefi] marou muitos romanos
poderosos, e ourros ele expulsou".2 Após a morre de Clefi, paulo
continua:
Naqueles dias, muitos nobres romanos foram morros por ga-
nância. os que sobraram foram divididos entre os "hóspedes" e
feitos tributários, de modo que teriam que pagar um rerço de suas
safras aos lombardos.3

1. Marius Aventicus, a. 573 MGH (Monumenta Germaniae Historica, N. T.) AA 11, 23g.
2. Historia Langobardorum 2.,31.

3. Historia Langobardorum 2,32.


Capítulo 5:Os últimos bárbaros? s-- 143

Essas passagens parecem indicar que, durante a conquista, mui-


tos proprietários de terras romanos foram mortos ou exilados, pos-
sivelmente em regióes que ainda eram controladas pelo Império.
Suas terras provavelmente foram confiscadas e retidas como terras
reais ou ducais, ou entáo redistribuídas entre os lombardos. Os ou-
tros proprietários foram forçados a pagar o tributo exorbitante de
um terço de seus rendimentos aos seus conquistadores, ou seja, aos
duques e ao rei.
Medidas como essa claramente subordinavam os remanescen-
tes da elite romana aos seus conquistadores lombardos. Entretanto,
apesar dos tributos exorbitantes, eles náo foram rebaixados à escra-
vidáo ou à servidão. A pequena elite militar lombarda dificilmente
desiÍia extinguir toda a classe romana abastada, mesmo que isso
fosse possível. Era muito mais vantajoso conservar a maioria dela
como contribuinte.
A vida da elite italiana remanescente sob a autoridade dos lom-
bardos devia ser diftcil, mas náo muito pior do que a dos que con-
i
t
tinuavam sob a proteçáo do governador bizantino, eue conservara
i

partes importantes da costa italiana e da regiáo central, entre Roma


e Ravena. Na verdade, a vida na Itália lombarda devia ser melhor
do que na Itália "romana". O papa Gregório o Grande reclama, no
final do século VI, que os proprietários de terras da Córsega tenta-
vam fugir para ahâIía lombarda em vez de fugir dela, e que indiví-
duos de todas as classes pareciam às vezes mais inclinados a viver
sob o domínio dos lombardos do que sob a implacável pressáo dos
agentes do fisco.a Enfim a populaçáo romana que havia sobrevivi-
do aos cercos e ataques das primeiras décadas aparentemente havia
encontrado seu lugar na nova ordem lombarda. Com o tempo (náo
sabemos exatamente quanto), as sociedades lombarda e romana se
fundiram.
4.Para informaçoes sobre as várias fontes que sugerem a atração exercida pelos lombardos sobre,
pelo menos, alguns elementos da sociedade italiana, ver Wickham , Early Medieval ltaly, p.67.
144 --s O Mito das Naçoes

O conjunto de documenros sobre a populaçáo romana do reino


lombardo do século vII é bastante limitado. No entanto, fonres
arqueológicas e rexros raros sugerem que de fato houve uma fusáo.
Primeiro os diferenres grupos que tinham participado das invasóes
formaram uma nova identidade lombarda. Entáo esses "novos" lom-
bardos e seus vizinhos romanos (a maioria) se amalgamaram.
Inicialmente a lei era um dos meios mais importanres para a
formaçáo do povo lombardo. A partir da metade do século vII, os
guerreiros bárbaros de diferenres origens tiveram que se submeter à
lei lombarda, a menos que fossem autorizados pelo rei a seguir um
sistema legal alternativo.5 Certamenre a identidade legal lombarda
náo era determinada pelo sangue, mas pelo decreto real. Sob a pres-
sáo da corte, que buscava estabelecer uma unidade, os documentos
que faztam referência à variedade de grupos que formavam o exérci-
to lombardo desapareceram em favor de uma identidade lombarda
simplificada, lado a lado com a dos romanos. Mas essa dicotomia
também começou a se desinregrar. Aos poucos os lombardos foram
adotando o vestuário, a cerâmica e outros elementos da cultura ro-
mana. Além disso, embora as evidências sejam indiretas, casamen-
tos entre membros dos dois grupos (de todas as classes) começaram
a serrealizados. O indício mais evidente da adoçáo da cultura roma-
na pelos lombardos é o uso que faziam das cidades. Todos os duques
estabelecidos no reino (35 de acordo com Paulo Diácono) haviam
adotado cidades romanas como base.6
Por volta da década de700, quando os documenros escritos co-
meçaram a reaparecer na ltâlia, a fusáo já estava bastante avançada.
As famílias davam nomes lombardos e romanos a seus filhos. Algu-
mas inclusive, como na tradiçáo germânica, criavam nomes híbri

5. Rothari 362 MGH LL 4. Ver Brigitte Pohl-Resl, "Legal Practice and Ethnic
ldentity in Lombard ltaly",
em Pohl, Strategiesof Distinction:TheConstructionof EthnicCommunities,300-800,Leiden, ,l998,
p.209.
6. Historia Langobardorum 2,32.
Capítulo 5: Os últimos bárbaros? o- 145

dos por aglutinaçáo, como nos casos de "Daviprand" e "PaulipeÍt".7


Os sistemas legais romano e lombardo também se entrelaçavam.
As leis lombardas, escritas sob o comando de vários reis entre as
décadas de 650 e 750, vigoravam paralelamente às leis romanas e
revelavam uma certa influência dessas, especialmente pelo fato de
terem sido escritas. As leis relativas à posse de terras continuavam
sendo as românas, enquanto um dos dois códigos, dependendo das
circunstâncias, poderia ser aplicado à questáo da herança.
Por volta do início do século VIII, a lei lombarda jâ era válida
para todos. Um dos artigos do código do rei Liutprando deixa isso
claro:
No caso dos escribas, decretamos que aqueles que preparam
as escrituras devem escrevêlas de acordo com a lei dos lombardos
- que é bem conhecida e acessível a todos - ou com a dos romanos;
elegráo devem agir de outra forma que náo seja a que está prevista
nessas leis, nem mesmo elaborar documentos contrários à lei dos
lombardos ou à dos romanos.s

O édito segue afirmando que, caso houvesse consenso entre as


partes, estas poderiam abrir máo de ambos os códigos e resolver a
questáo pessoalmente, da forma que lhes conviesse. Entretanto, em
casos relacionados à herança, os documentos deveriam ser prepa-
rados de acordo com a lei. Alguns interpretaram essa última frase
como "os envolvidos deveriam seguir sua própria lei com rigor ape-
nas quando os casos envolviam a questáo da herança".e Podemos
dizer que se trata de uma interpretaçâo forçada. O texto denota
apenas que, em casos de herança, os escribas tinham que preparar
os documentos "de acordo com a lei", fosse a dos romanos ou a dos
lombardos. Naturalmente um acordo particular entre duas partes

7. Wickham, Eorly Medieval ltoly, p. 68-69.


8. Liutprando, 91, Bluhme (Ed.), MGH LL 4. Traduzido por Katherine Fischer Drew,The Lombard Laws,
Filadélfia, 1973, p.183-184. Ver também Pohl-Resl, "Legal Practice and Ethnic ldentity", p.209-210.
9. Pohl-Resl, "Legal Practice and Ethnic ldentity", p. 209.
146 -s O Mito das Naçoes

seria inadequado, jâque em tais circunstâncias poderia haver outros


envolvidos, ou seja, herdeiros em potencial, que poderiam náo con-
cordar com o acordo. O artigo náo estabelecia que os testadores náo
poderiam escolher entre os dois códigos. A lei havia se tornado um
recurso; náo era mais uma questáo de sangue, de nascimento.
As escrituras relativas à transferência de propriedades fundiárias
revelam que a escolha da lei variava até mesmo entre indivíduos
de uma mesma família. Dois casos analisados por Brigitte Pohl-
Resl demonstram essa prática. De acordo com uma escritura de767,
um grupo havia feito uma doaçáo à abadessa de San Salvatore, €IïÌ
Brescia. A escritura náo faz distinçáo legal entre os doadores, e o
fato de todos serem donos da propriedade doada sugere que eram
parentes. Entretanto um deles, e apenas um, que por acaso tinha o
nome latino de Benenatus ("bem-nascido"), deixava a observaçáo
ao lado de sua assinatura de que deveria receber uma "retribuiçáo",
ou launegild, "de acordo com a lei Iombarda".l0 Aparentemente Be:
nenatus havia sido o único da família a optar pela lei lombarda,
oferecida a todos pelo rei Liutprando. Em 758, uma mulher que
tinha o bom nome lombardo de Gunderada, mas que era explici-
tamente designada como "mulher romana" (Romana mulier), doou
ou vendeu parte de uma propriedade com o consentimento de seu
marido. Para uma açáo regida pela lei lombarda, o consentimento
do marido era normal e apropriado, mas, paÍa a lei romana, seria
supérfuo. Independentemente do significado exato da designaçâo
"mulher romarÌa", ela e seu marido estavam agindo de acordo com
o sistema legal lombardo. Aparentemente, ou Gunderada náo estava
mais seguindo a lei romana, ou sua romanidade pouco importava
no contexto legal.rl Esses exemplos seguramente sugerem que, por
volta do século VIII, o uso de uma ou outra lei revelava muito pou-

1O.Pohl-Resl,'Legal Practice and Ethnic ldentity", p. 210.


11. tbid.
Capítulo 5: Os últimos bárbaros? o-- 147

co a respeito do que poderíamos chamar de identidade "étnica" dos


proprietários de terras na ltália.
A fusáo relativamente tranqüila dos romanos com os lombardos
talvez tenha sido facilitada pela natureza heterogênea dos invasores,
por seu governo descentralizado e por suas identidades religiosas
analogamente combinadas. Em meados do século VI, uma comis-
sáo descreveu pâra o imperador Justiniano os lombardos como or-
todoxos. Na época em que invadiu altâl\a, o exército lombardo era
formado por cristáos ortodoxos, pagáos e arianos.r2 Aparentemente
Alboino era ariano, ou pelo menos um pagáo que simpatizava com o
arianismo, embora sua primeira mulher - Chlotsuinda, filha do rei
franco Clotário - fosse uma cristá ortodoxa. Seus sucessores eram
arianos ou ortodoxos, e uma parcela considerável da populaçáo lom-
barda manteve sua fe p^g^até o final do século VI. Com exceçáo do
rei Autari (584-590), que tentou impedir que os lombardos se con-
vertessem ao cristianismo ortodoxo, nenhum dos outros reis tentou
efetivamente estabelecer uma religiáo única para o seu povo. Já os
duques podiam apenas apoiar ou se opor a práticas religiosas especí-
ficas, ou entáo simplesmente ignorá-las. Por volta do final do século
VII, os reis lombardos e supostamente a maior parte da populaçío
já haviam aderido à fe ortodoxa da maioria da populaçâo da ltália,
sem grande drama ou confitos.
Np en-tanto, a fusáo dos romanos com os lombardos náo impli-
caya a perda da identidade lombarda. Ao contrário: independen-
temente das origens biológicas dos habitantes da península, ou de
se seus ancestrais terem ou náo chegado à Itália com Alboino, por
volta do século VIII a elite social se reconhecia como lombarda.
Apenas os lombardos tinham acesso ao poder e às riquezas, mas isso
náo significa que os romanos haviam se subordinado aos lombardos,
mas sim que haviam se tornado lombardos. Os significados dos dois I

termos variavam de forma complexa.

12. Stephen C. Fanning, "Lombard Arianism Reconsidered",Speculum 56, 1981:241-258.


'148 -e O Mito das NaçÕes

A identidade lombarda se baseava na rradiçáo daelite milirar - o


grupo original que havia penetrado no reino -, independentemente
da realidade da época. Ser um lombardo era, pelo menos em reoria,
ser um guerreiro livre e um proprietário. Essa era a imagem apre-
sentada nas Leis Lombardas do século VIII. No código do rei Liut-
prando (712-744), o soldado (em latim, exercitalis; em lombardo
latinizado, Arimannus) era o homem livre arquetípico.l3 Na época
do rei Astolfo (749-756), seu sucessor, essa identidade foi sutilmerue
invertida. Ser um homem de posses era ser um guerreiro:
Que o homem dono de sete mansóes tenha sua cota de malha e
outros equipamentos militares, e que tenha cavalos e outros arma-
mentos. Da mesma forma, aqueles que náo têm mansóes, mas que
têm 40 iugera de terra, devem ter um cavalo, um escudo e uma
lança...

A respeito dos mercadores e dos que possuem riquezas em di-


nheiro: que os maiores e mais poderosos tenham suas cotas de ma-
lha e cavalos, escudos e lanças; seus seguidores devem ter cavalos,
escudos e lanças; quanto àqueles que sáo seus inferiores, que re-
nham suas aljavas com arco e flechas.la

Em outras palavras, se uma pessoa era suficientemente rica, devia


se equipar como um lombardo, náo importando sua ascendência.
E os "romanos"? Eles ainda aparecem no código de Astolfo,
náo como descendentes da população nariva da ltália, nem mesmo
como os seguidores da lei romana, mas como os habitantes do terri-

13. Wickham, Early Medieval ltoly, p.72-73.Wickham se baseia nos dados e na análise de Giovanni
Tabacco, "Dai possessori dell'età carolingia agli esceritali dell'età longobarda" Studi medievali
x.1,1969:221-268. Porém Tabacco não acredita que a assimilação já estivesse tão avançada. Mais
recentemente, em seu Struggle for Power in Medieval ltaly: Structures of PoliticalRulq Cambridge,
1989, ele admite que "talvez seja possível que, pelo fim do século Vll, quando a conversão
dos lombardos ao catolicismo já estava praticamente concluída, a convivência entre eles e os
romanos remanescentes da classe dos proprietários de terras em um mesmo meio social tenha
levado alguns romanos a aceitar a tradição jurídica do povo dominante...". Entretanto Tabacco
continua duvidando de que tenha ocorrido uma "assimilação substancial legal e militar da
população romana livre pelos lombardos". (96-97)
14. Edictus Langobardorum, Aistulfr Leges,2,3.Para uma tradução, ver Katherine Fischer Drew, trad.
The Lombord Laws, p. 228.
Capítulo 5:Os últimos bárbaros? s- 149

tório italiano controlado pela autoridade imperial, fosse diretamente


através de Ravena ou pelo papa. A lei proibia que os comerciantes
negociassem com "um romaÍro" sem a permissáo real. Entre as ri-
gorosas puniçóes paÍa essa infraçáo, havia a de raspar a cabeça do
infrator e obrigá-lo a sair pelas ruas gritando: "desta forma sofreráo
aqueles que negociam com os romanos sem a permissáo real quando
estamos em guerra contra eles".l5 Claramente os que sáo designados
como "romanos" nesse caso náo sáo os habitantes do reino lombar-
do cujos ricos comerciantes e mercadores eram entáo considerados
-
lombardoS -, € sim os "estrangeiros" da parte do território italiano
que ainda era controlada por Constantinopla. De modo semelhan-
te, os textos dos procedimentos jurídicos do século VIII se referem
ao "tempo dos romanos" como um passado remoto, anterior à con-
quista da Itália pelos lombardos.r6 tfma nova etnogênese lombarda,
da qual toda a elite proprietária de terras pôde participar, havia sido
levada a cabo, enquanto o termo romnnus se tornava uma designa-
çáo territorial e política, intimamente ligada ao poder do Estado
bizantino.

A Espanha visigótica

O reino gótico criado na Gália entre 418 e 419 seguiu o modelo


de aliança federativa que vimos no capítulo anterior. Durante os
primeiros 50 anos, os soberanos góticos agiram de acordo com a
trâdiçáo dos federados romanos. Os godos, cuja populaçáo tem sido
imprecisamente estimada enüe 80 mil e 200 mil pessoas, nunca
passaram de uma minúscula minoria em seu reino. Inicialmente
estabeleceram-se na Gália, nos arredores de Toulouse, capital do
reino, e sua ocupaçáo ao sul dos Pirineus se limitava a algumas uni-
dades militares. Os romanos, muito mais numerosos, continuavam

15. Edictus Langobardorum, Aistulfr Leges,4. Ver Drew,The Lombard Lows, p.228-229.
'16. Codice Diplomatico Longobardo, Luigi Schiaparelli (Ed.), l, Roma, 1929, 17, p. 48 e 20, p. 81.
150 --p O Mito das NaçÕes

a viver tranqüilamente de acordo com suas leis, instituiçóes e tra-


diçóes. Esse modelo foi desintegrado apenas em 466, quando o rei
Eurico desfez o tratado com o Império e conquistou efetivamente
regióes do sul da Gália, a leste, e da Espanha, ao sul. Essa mudança
de conduta foi uma conseqüência tanto da decadente situaçáo po-
lítica na Gália e na Itália como de um novo programa ideológico
dos godos. Por volta de 460, as autoridades militar e política prati-
camente náo existiam no Ocidente, e Eurico nada mais fez do que
ocupar o vácuo de poder deixado pelos romanos.
O programa expansionista gótico gerou uma reação feroz por
parte da populaçío nativa, especialmente na Auvérnia e ao sul dos
Pirineus, na Tarragona e em todo o vale do Ebro. O conflito náo
era apenas entre romanos e godos: em algumas regióes, os godos
haviam substituído comandantes romanos. Porém os grandes pro-
prietários de terras locais lideravam a resistência com o apoio de
seus próprios contingentes e de seus aliados bárbaros. O combate foi
brutal, principalmente no Ebro, já que os interesses locais estavam
sendo ameaçados náo só pelo fim do pacto entre godos e romanos
como também pela crescente imigração gótica que havia começado
na décad a de 490.
Contudo, apesar do forte atrito entre os godos e a populaçáo sub-
jugada, uma cooperaçáo efetiva começou a se formar entre as duas
partes. O rei Alarico Il (484-507) liderou a tentativa de acordo.
Alarico abordou duas questóes cruciais para os galo-romanos de
seu reino. A primeira delas eÍa a necessidade de uma estrutura legal
para seus súditos. As relaçóes entre godos e romanos provavelmente
eram regidas pelo código estabelecido por Eurico, pai de Alarico,
válido para todos os habitantes do reino gótico.l7 Mas em que leis
seriam baseadas as transaçóes entre os romanos? Alarico resolveu o
problema ao publicar uma versáo atualizada e abreviada do Código

17. Wolf Liebeschuetz, "Citzen Status and Law", em Pohl (Ed.), Strategiesof Distinction, p. 141-143.
Capítulo 5: Os últimos bárbaros? o.- 151

Teodosiana, o código legal básico dos romanos desde sua promulga-

çáo, em 438. O sumário, conhecido como Breuiririo de Alarico, era


um código sancionado pela corte para seus súdiros, apropriado para
as situaçóes mais básicas da vida no reino visigodo.
A segunda questão eÍa a dificuldade criada pelas fronteiras das
dioceses da lgreja, eu€, estabelecidas antes do fim do domínio im-
perial, náo mais correspondiam às divisóes geopolíticas do sul da
Gália entre francos, burgúndios e godos. Em 506, Alarico, apesar
de ser ariano, organizou o Concílio de Agde para reassegurar a hie-
rarquia ortodoxa e resolver os problemas causados pelas novas reali-
dades políticas do início do século VI.
Com essas medidas, Alarico conquistou a confiança dos proprie-
tários de terras galo-romanos de seu reino. Até mesmo os bispos
ortod.oxos se revelaram leais a ele. Por volta de 507, um imporrante
contingente de romanos, sob o comando do filho de um dos mais
veementes líderes antigóticos da geraçáo anterior, combateu o fran-
co Clóvis em Vouillé ao lado do rei gótico.
No entanto, Alarico perdeu a batalha e sua vida em Vouillé, e
com ele se extinguiram o reino gótico de Toulouse e a possibili-
dade de uma rápida reaproximaçâo entre godos e romanor. À -.-
dida que os sobreviventes do desastre, com suas famílias e servos,
atravessavam os Pirineus em direçáo à regiáo central da Espanha,
o reformulado reino gótico assumia um ar ainda mais desolado e
hostil. A EspanhapaÍaa qual o exército derrotado transferia seu rei-
no era uma unidade administrativa romana culturalmente variada.
Além da maioria de hispano-romanos, havia grupos significativos
de gregos, sírios, africanos e judeus que viviam, em sua maioria,
em cidades portuárias como trragona, Torrosa, Elche, Cartagena
e Narbonne, capital da estreita faixa litorânea enrre os Pirineus e
o Ródano, ainda sob o domínio dos godos. Além disso, os suevos
continuavam governando aGaltza, e havia comunidades nativas in-
tactas após séculos de uma ocupaçáo romana simbólica, incluindo
'152 --o O Mito das Naçoes

a dos bascos no norte e ainda outras na Orospeda e na Cantábria.


Nessas regióes rústicas e economicamente isoladas, a romanitas ha-
via significado pouco mais do que uma presença militar intermiten-
te, e o paganismo conrinuava bastante popular no século VII. Nas
localidades em que as tradiçóes romanas tinham mais força, como
no vale do Ebro, os visigodos já haviam enfrentado fortes oposiçóes
durante o período da geração anterior. O derrotado exército gótico,
que havia batido em retirada pelos Pirineus em 507, teria pela frente
um trabalho rnonumental se quisesse dar alguma unidade à penín-
sula lbérica.
O estabelecimento do reino visigodo na regiáo central da Espa-
nha pode ser compreendido como o fim da migração gótica. No
século VI, os godos se preocuparam em consolidar sua posição na
Espanha, apesar de terem que manrer o modus uiuendi com a elite
romana proprietária de terras, estabelecida anteriormente por Eu-
rico e Alarico. Ao mesmo rempo, renravam isolar sua identidade,
proibindo casamentos entre bárbaros e romanos e preservando sua
fé ariana.
Um dos elemento s do Código Tbodosian que haviam sido adap-
tados e incluídos no Breuirírio dz Alarico era justamenre a proibi-
çáo desses casamentos. No Código Teodosiano, a principal meta da
proibição era evitar conspiraçóes entre provincianos romanos e seus
parentes bárbaros.rs A proibiçáo no Breviário, formulada de modo
ainda mais veemenre, talvez náo tivesse a intençáo de incluir os go-
dos entre os barbari: provavelmente o verdadeiro objetivo era impe-
dir que francos e romanos se casassem, o que poderia ser prejudicial
para os visigodos.le Outros possíveis objetivos: a proreçío da amea-
çada identidade gótica (lembremos que os godos viviam em meio a

18. Liebeschuetz, "Citizen Status and Law", p. 139-140; para detalhes, ver Hagith Sivan, "The
Appropriation of Roman Law in Barbarian Hands: Roman-Barbarian Marriage in Visigothic Gaul
and Spain", em Pohl (Ed.), Strategies of Distinction, p. 189-203.
19. Sivan, "The Appropriation of Roman Law", p. .l95-199.
lapítulo 5:Os últimos bárbaros? q._ 153

uma populaçáo mais numerosa havia duas geraçóes) e a proteçáo dos


direitos dos romanos, já que o casamento, até certo Ponto forçado,
entre um godo poderoso e uma herdeira romana era um meio óbvio
de os godos se apropriarem das terras dos romanos. Qualquer que
fosse o motivo original, após a fuga dos visigodos para a Espanha
a proibiçáo adquiriu um novo significado em um novo contexto,
sendo entendida como uma forma de evitar casamentos entre godos
e romanos, uma tentativa de manter a elite militar gótica separada
da massa romana. A proibiçáo vigorou durante 50 anos. A liderança
religiosa hispano-romana, que tinha proibido casamentos entre ca-
tólicos ortodoxos e arianos, também tinha em mente a preservaçío
de sua identidade.
O arianismo constituía o segundo elemento da identidade gó-
tica. Ao longo do século VI, a forte identidade ariana dos godos
isolava-os da populaçío ortodoxa romana e propiciava intrigas Por
parte dos bizantinos, ou romanos do Oriente. Entretanto a lideran-
ça gótica considerava essas barreiras culturais essenciais e optou por
fixar novos limites. Há evidências arqueológicas do início do século
VI, por exemplo, que sugerem que os godos começaram a se vestir
(ou pelo menos a vestir seus defuntos) de uma forma que os distin-
guia de seus vizinhos romanos.2o
Náo podemos determin ar atêque ponto essas tentativas de pre-
servaçáo da identidade gótica foram efetivas. Certamente houve
casamentos entre romanos e godos, assim como algumas conver-
sóes. Além disso, embora os romanos gozassem de seus direitos à
propriedade, continuavam de fora da esfera do poder político, o que
deve ter estimulado tentativas ambiciosas de mudança de identida-
de. Como observou um historiador, essas medidas tinham como
meta a conservaçâo da distinçáo entre godos e romanos, "mas as
leis góticas náo definiam o que constituía um indivíduo godo".2l

20. Liebeschuetz, "Citizen Status and Law",p.149.


21. Liebeschuetz, "Citizen Status and Law", p. 141.
154 -o O Mito das NaçÕes

Provavelmente os reis góticos podiam decidir quem era e quem náo


era um godo, e uma fexibilidade na definiçáo devia ser necessária
para manter o controle do exército gótico sobre o vasto reino. Sem
dúvida, enquanto os godos continuassem sendo uma elite militar
isolada e pequena, seu controle sobre a Espanha seria bastante limi-
tado. Por volta da metade do século, a monarquia Penou com assas-
sinatos, intrigas e movimentos separatistas. Os rebeldes chegaram a
pedir a intervençáo do imperador Justiniano, e assim os bizantinos
ocuparam as regióes litorâneas do sudeste da península, ameaçando
iniciar uma reconquista, que seria táo sangrenta como a que havia
destruído a Itália dos ostrogodos.
Entretanto, por volta das décadas de 570 e 580, todos os me-
canismos que separavam os godos dos romanos começaram a ruir.
O enérgico rei Leovigildo (569-586) fortaleceu e expandiu a auto-
ridade real por toda a Espanha. Liquidou as revoltas em Córdoba
e em Orense, dominou províncias distantes, como a Cantábria e as
Astúrias, e até certo ponto pacificou os bascos. Leovigildo fez de
Toledo capital permanente, numaépocaem que os outros soberanos
bárbaros ainda governavam de modo itinerante, sem uma base fixa
para a corte. Entre 584 e 585, derrotou o reino suevo da Galiza e o
incorporou. Levando adiante seu projeto de centralizaçâo, começou
a derrubar as tradicionais barreiras que separavam seus súditos. Re-
vogou a proibiçáo da aliança matrimonial entre indivíduos de grupos
diferentes, considerada entáo um obstáculo para a uniáo entre go-
dos e romanos. Seu verdadeiro objetivo provavelmente era encorajar
os casamentos entre católicos e arianos. Como a legislaçáo da lgreia
Católica proibia essa prática, essas unióes só seriam possíveis caso os
católicos ignorassem as leis de sua igreja. Posteriormente Leovigildo
renrou estimular a conversáo dos católicos ao cristianismo gótico.
Para isso, organizou um sínodo em Toledo que modificou a doutri-
na ariana , fazendo com que essa passasse a aceitar a paridade entre
o Pai e o Filho (mas náo entre Eles e o Espírito) e deixasse de exigir
!apítulo 5: Os últimos bárbaros? s- 155

um segundo batismo para a conversáo. Claramente o rei tentava


diminuir os obstáculos para que os romanos se tornassem godos.22
A tentativa de Leovigildo fracassou por causa da forte resistência
por parte dos bispos ortodoxos. Seu filho Hermenegildo descobriu
um meio mais efetivo de consolidaçáo. Durante uma revolta con-
tra seu pai, converteu-se ao catolicismo, esperando ao que parece
conquistar o apoio da maioria católica. Embora a revolta de Herme-
negildo tenha resultado em seu exílio, e mais tarde em sua morte,
Recaredo, seu irmáo, seguiu o mesmo caminho após a morte de seu
pai. Converteu-se ao catolicismo em 587 e liderou a râpïda conver-
sáo dos bispos arianos remanescentes e de toda algrejano Concílio
de Toledo, em 589. Segundo o próprio Recaredo, sua meta era nada
menos que a criaçâo de uma nova sociedade unitária - a "sociedade
dos seguidores de Cristo, eue transcendia a tradicional dicotomia
godo-romana".23
A conversáo dos godos destruiu as barreiras que impediam a as-
similaçáo sociocultural. Se a língua gótica ainda estava sendo usada
fora da liturgia ariana (bastante improvável no século VII), desa-
pareceu rapidamente. O vestuário e a cultura material dos godos e
dos romanos, que havia muito eram praticamente indistinguíveis,
unificara.r,-se.ta Os últimos vestígios da coexistência de sistemas
legais distintos desapareceram entre 643 e 644, quando o rei Chin-
dasvinto promulgou um código único para todos os habitantes do
reino.25
Embora as distinçóes entre godos e romanos tivessem se desin-
tegrado, a identidade gótica permaneceu. Entretanto, assim como o
termo lombardo na Itália havia se tornado uma designaçáo de classe

22. Roger Collins, Early Medieval Europe, Nova York, 1991, p. 145.
23. P. D. King, Law and Society in the Visigothic Kingdom, Cambridge, 1972, p.132.
24. Dietrich Claude, "Remarks about Visigoths and Hispano-Romans in the Seventh Century", citando a
obra de Volker Bierbrauer e outras, em Pohl (Ed.),Strategiesof Distinction, p.119, nota 23.
25. King, Law and Society, p.'18.
156 --s O Mito das Naçoes

social e nível econômico, ser identificado como um indivíduo de


ascendência gótica na Espanha significava pouco mais do que ser
tido como uma pessoa ilustre, de sangue nobre. O que realmen-
te importava era a riqueza, o poder, a identificaçáo com o reino, e
náo a ancestralidade. Os reis, de acordo com um cânone do Sexto
Concílio de Toledo, realizado em 638, deveriam ser "da gens góti-
ca e possuir caráter meritório". Mas isso signifrcava apenas que os
francos ou aquitanenses náo poderiam reínar.26 O rei Ervígio, que
assumiu o trono em 680, era filho de um romano que havia sido exi-
lado pelo Império Bizantino. Embora náo fosse "etnicamente" um
godo, era reconhecido como tal por ter nascido no reino visigótico.
Além disso, podia alegar ascendência nobre, já que seu pai havia se
casado com uma parente do rei Chindasvinto, satisfazendo assim às
exigências do concílio. Ser um "godo" significava ser um membro
da elite do reino visigótico.
A hierarquia católica apoiou veementemente essa perspectiva e os
reis góticos que a sustentavam. O programa da unificaçáo da socie-
dade sob o catolicismo era conduzido pelos concílios de Toledo, sen-
do que 16 deles foram realizados entre 589 e 702. Contudo, embora
a conversáo facilitasse a unificaçáo dos godos e românos, o fato de
os "romanos" da península nunca terem constituído uma populaçáo
cultural e religiosamente unificada náo havia sido levado em conta.
Durante as décadas de governo ariano, houve uma simplificaçáo
da composiçáo heterogênea da populaçáo. Primeiro os suevos, vân-
dalos, alanos e outros grupos arianos se fundiram em um único
populus gotborum, enquanto gregos, sírios, norte-africanos e outros
grupos ortodoxos da Espanha foram compelidos para o populus ro-
manorum. Quando o rei gótico abandonou o arianismo, esses dois
"povos" puderam se unir. Porém esse processo deixou de fora uma
parcela importante da populaçáo romana da Espanha: os judeus.

26. Concilium toletanum 6, 17, p.244-245. Ver Claude, "Remarks about Visigoths and Hispano-
Romans in the Seventh Century", p.127-129.
Capítulo 5:Os últimos bárbaros? s- i57

Ao longo do século VI, os judeus foram perdendo sua idenridade


romana, enquanto o cristianismo ortodoxo se vinculava cada vez
mais à romanifas. Desse modo, os judeus foram forçados a formar
sua própria identidade isoladamenre, o que os transformou em um
povo desprezado e perseguido por seus vizinhos católicos. A cres-
cente marginalização dos judeus em uma sociedade definida por
uma identidade cristá unificada também ocorreu em território im-
perial. No Império Bizanrino, de modo semelhante, à medida que o
cristianismo se vinculava ao Estado, os judeus passavam a ser cada
vez mais marginalizados e perseguidos. No reino visigodo, a mar-
ginalizaçáo e aperseguiçáo aos judeus foram ainda mais severas do
que em Constantinopla.
Após a conversáo dos godos, as distinçóes entre esses bárbaros
e os romanos desapareceram, e a alteridade dos judeus se tornou
ainda mais evidente e perturbadora paraos reis cristáos. A Espanha
visigótica entáo elaborou as mais precoces e tenebrosas leis conrra
eles, compelindo-os a enrrar paÍa a societas
fdetium.
Houve uma pressáo avassaladora sobre os judeus, incluindo ba-
tïmos forçados e castigos brutais. O deslocamenro dos judeus em
viagens passou a ser limitado e supervisionado pelo clero. A adesáo
às leis judaicas relativas à alimentaçáo, à circuncisáo e ao proselitis-
mo judaico passaram a ser punidos com açoitamentos, escalpamen-
tos, mutilaçóes e o confisco de propriedades. Porém, apesar dessa
pressão paraque eles se convertessem, até mesmo os judeus converti-
dos, de acordo com a legislaçáo real, eram considerados inimigos do
cristianismo. Por fim, o rei Ervígio ordenou a escrayizaçáo de todos
os judeus, convertidos ou nâo.27
A veemência com que os reis, apoiados pelo clero - incluindo
Juliáo de Toledo, que era de origem judaica -, buscavam eliminâr os
judeus contrastava categoricamente com a capacidade que tinham

27.King, Law ond Society, pp.130-144.


158 '-e O Mito das Naçoes

de levar a cabo as medidas cruéis que decretavam. Apopulaçáo como


um todo náo parecia compartilhar desse ódio cáustico, e freqüen-
temente a própria estridência da legislação revelava a falta de apoio
a essas medidas. Mas a determinaçâo dos governantes de erradicar
esse "novo" povo, que suas diretrizes políticas haviam criado, deixou
um legado terrível na Espanha, onde essa preocupaçáo fanática com
a púreza do sangue ressurgiria na Idade Moderna.

A identidade franca até o século Vlll

Ao norte do rio Loire, nos séculos VI e VII, houve um processo


semelhante, com a maioria da populaçáo adotando a identidade de
uma minoria reinante. Nesse mundo, longe dos centros culturais e
políticos do império, o processo foi mais rápido e efetivo do que em
outros lugares. A conversáo de Clóvis - fosse uma medida calcula-
da para conquistar o apoio dos galo-romanos contra os visigodos,
uma afronta igualmente calculada à hegemonia dos ostrogodos, ou
até mesmo uma decisão pessoal de um rei guerreiro em busca da
mais efetiva das divindades - certamente facilitou a rápida fusáo
dos francos com os romanos. Do mesmo modo, os filhos e netos de
Clóvis expandiram sua hegemonia em direçáo ao leste, sem grandes
problemas nem tensóes religiosas ou étnicas.
Essa assimilaçáo náo implicou o desaparecimento das noçóes de
identidade correlativas do reino. As identidades regionais, eviden-
tes no século V que se baseavam no orgulho das populaçóes por
suas respectivas ciuitates, tiveram continuidade no mundo franco. O
golpe de Estado dos francos em nada diminuiu esse regionalismo,
embora o estabelecimento do regnum francorum ampliasse a possi-
bitidade da formaçáo de novas identidades e vínculos de lealdade.
Clóvis e seus sucessores incorporaram as divisóes administrativas
das ciuitates Íomanas e estabeleceram suas capitais nos velhos centros
administrativos do império. Assim as mesmas ciuitates continuaram
lapítulo 5: Os últimos bárbaros? e"- 159

sendo o foco do orgulho e das identidades regionais, exatamente


como no Ênal da Idade Antiga, com as elites locais - formadas Pe-
los descendentes dos antigos aristocratas provincianos e pelos novos
agentes do rei franco intimamente vinculadas às suas cidades. A
-
oïganizaçáo militar merovíngia reforçava esse regionalismo, já que
as tropas eram reunidas de acordo com as localidades. Além dis-
so, ela também prolongava outras formas de identidade do final do
Império Romano, especialmente as das unidades militares bárbaras
estabelecidas pela Gália. No século VII, esses Pequenos assentamen-
tos militares ainda conservavam sua identidade específica. Dessa
forma, havia os saxóes de Bayeux, os taifalos de Poitou, os chamauA-
ri de Langres, os scoti de Besançon e os suevos de Courtrat.zs
O reino de Clóvis náo era o reino dos francos, mas aPenas um
dos muitos que existiam. Enquanto Clóvis e seus descendentes in-
corporavam os reinos francos rivais e outros reinos vizinhos a leste
e ao sul, aprendiam a lidar com as identidades regionais, mesmo
com seus seguidores em posiçóes de poder. Ao longo do século VI,
três reinos francos emergiram: o reino da Nêusttia, regïâo central
que abrangia Soissons, Paris, Tours e Rouen, e na qual os francos
havianq emergido paÍa defender e entáo substituir a autoridade im-
perial; ò d" Austrásia, eue incluía regióes a leste do Reno, assim
como Champagne, Reims e posteriormente Metz; e o da Borgonha,
que abrangia o antigo reino dos burgúndios ao longo do Ródano e
boa parte da Gália até Orléans, sua capital.
O território entre o Loiree o Reno continuou constituindo o
centro do poder franco. Nessa regiáo, as elites rapidamente se re-
conheceram como francas, independentemente de suas ascendên-
cias ou vínculos militares. Em meados do século VI, até mesmo os
descendentes da família de Remígio de Reims, o bispo romano que
havia batizado Clóvis, tinham nomes francos e se reconheciam e
28. Eugen Ewig, "Volkstum und VolksbewuBtsein im Frankenreich des 7. Jahrhunderts", em Eugen
Ewig, Sptitantikes und friinkisches Gallien, Hartmut Atsma (Ed.), vol. l, Munique ' 1976, p.234.
160 --e O Mito das Naçoes

eram reconhecidos como tais. As elites da Nêustria e da Austrásia


se consideravam um único povo, e até os conflitos mais violentos
entre elas eram vistos como guerras civis, e náo como guerras entre
povos. A populaçáo era governada por uma lei territorial, a chamada
Lei Sálica. Partes dessa lei foram escritas pela primeiravezno início
do século Vl.2e As versóes escritas da lei, originalmente destinadas
aos seguidores de Clóvis, foram reformuladas e ampliadas por uma
série de soberanos francos ao longo do século seguinte. Na segun-
da metade do século vII, a Lei Stílica geralmenre era
tida como a
lei dos que viviam na parte ocidental do reino franco, ou seja, na
Nêustria.
NaAustrásia, os éditos reais e o direito consuetudinário terrrüna-
ram resultando no Código Riputirio. A versáo final da Lex Ribuaria
é um texto carolíngio revisado por Carlos Magno, e alguns susren-
tam que o código completo data apenas do final do século VIII.30
Entretanto o texro revela infuências do Código Burgindio e da Lei
Sálica, e dá, a entender que havia uma lei ripuária não escrita além
do Código propriamente dito. Tudo isso sugere que algum tipo de
código legal havia sido criado para o reino austrásio, provavelmente
no início do século VII, como parre da crescente regionalizaçáo do
mundo franco.
Além das fronteiras do Loire e do Reno, a organização político-
militar dos francos criou novas identidades regionais, baseadas, em
parte, nas tradiçóes bárbaras e romanas das aristocracias locais, ge-
rando também novas entidades políticas e sociais. Em regióes como
a Borgonha e a Aquitânia, antigas tradiçóes legais e esrrururas so-
ciais foram adaptadas ao novo sistema franco. Em outros lugares, os
francos impuseram seus códigos legais e governanres.

29. la n Wood, The Merovi ngia n Kì ngdoms 450-Z 51, Harlow, 1994, p. I 0g-1 1 4.

30. Patrick Wormald, "Lex Scripta and Verbum Regis: Legislation and Germanic Kingship from Euroic
to Cnut", em P. H. Sawyer e l. N. Wood (eds.), Early Medieval Kingshrp, Leeds, 1977, p.10g.
CapÍtulo 5:Os últimos bárbaros? s-- 161

A conquista do reino burgúndio transformou a regiáo em um


sub-reino franco, sem com isso eliminar sua aristocracia ou suas
tradiçóes legais preexistenres. Essa regiáo do alto Ródano havia sido
governada por um exército bárbaro heterogêneo - estabelecido na
regiáo do Jura por volta de 443, sob o comando do romano Aécio
- que havia penetrado nas regióes de Viena e de Lyon nas últimas
décadas do século V. Em 517, o rei burgúndio Sigismundo promul-
gou um código legal, o Liber Constitutionum, elaborado a partir de
uma combinaçáo de éditos reais anteriores, dos cosrumes burgún-
dios e da lei comum romana.3l I-Jma das principais meras do código
era regular as relaçóes entre os bárbaros e os romanos do reino, mas
também havia leis romanas adaptadas para quesróes concernenres
apenas aos romanos. Dessa forma, o código considerava todos os
náo romanos como um único "povo", e foi ao mesmo tempo uma
evidência e um agente da etnogênese dos burgúndios.32 Na época de
sua compilaçáo, o populus noster ("nosso povo") referido por Sigis-
mundo eram os habitantes do reino, fossem romanos ou bárbaros.
Os conquistadores francos incorporaram o reino burgúndio a
um r,eino mais amplo, que abrangíaamaior parte da regiáo ao redor
úç,Or\ê,ans. Contudo respeitaram as tradiçóes sociais e legais dos
burgúndios, deixando-as intactas ao longo dos séculos VI, VII e
VIII. Uma rixa entre um tesoureiro merovíngio e um couteiro, por
exemplo, quando levada à Justiça em Chalon-sur-Saône, antiga ca-
pital burgúndia, foi resolvida de acordo com a lei burgúndia relativa
aos duelos.33 Ao longo dos séculos VII e VIII, a aristocracia local
manteve com zelo um sentimento identitário burgúndio, preserva-
do em sua singular tradiçáo legal.

31. Patrick Amory, "Meaning and Purpose of Ethnic Terminology in Burgundian Laws', Early Medieval
Europe,2, 1993:1-28.
32. lan Wood, "Ethnicity and the Ethnogenesis of the Burgundians", em Herwig Wolfram e Walter
Pohl (Eds.), Typen der Ethnogenese unter besonderer Berücksichtigung der Bayern, vol. l, Viena, 1990,
p.55-69.
33. Gregório de Tours, Libri HistoriarumX, 10; Wood, "Ethnicity", p. 55.
162 --o O Mito das Naçoes

Essa regionalização foi ainda mais marcanre nas regióes conquis-


tadas a leste do Reno, como na Alamannia, na Turíngia e na Bavie-
ra. Os merovíngios governavam essas regióes por meio de duques
- comandantes regionais de origem franca - instalados pela força
de suas tropas, mas mantidos por vínculos de parenresco e de patro-
nato com as aristocracias locais. Esses ducados náo eram formados
apenâs por povos preexistentes do período das migraçóes: eles eram
criaçóes dos francos, que moldavam, dividiam e reconsrituíam os
elementos regionais, estabelecendo novos principados.
Ao sul do Loire, na Aquitânia e na Provença, os governadores
francos tendiam a "se tornar nativos", vinculando-se às identidades
das famílias aristocratas regionais. Assim os chefres locais estabele-
ciam alianças poderosas e, enquanto juravam lealdade a longínquos
reis francos, tratavam de tirar proveito da situação. A lei romana,
fosse pelo Código Teodosiana ou por suas formas abreviadas, como
o Breuiririo de Alarica, estabelecia uma lei territorial uniforme para
todos, e os condes e duques (na Provença, os patrícios) desenvolviam
poderosas identidades regionais. Processos semelhantes ocorreram
em regióes a leste do Reno, como naAlamannia, na Turíngia e prin-
cipalmente na Baviera, onde os agentes francos eram rapidamente
incorporados às aristocracias locais. Certamente havia atritos e, en-
quanto as autoridades centrais estavam ocupadas resolvendo os pro-
blemas do reino, poderosos movimentos separatistas estabeleciam
principados virtualmente autônomos. Entretanto esses movimentos
eram aristocráticos, estabelecidos por alianças entre oficiais francos
rebelados e autoridades locais, e dificilmente envolviam algum tipo
de sentimento nacionalista ou étnico.
A criaçáo de poderosas identidades regionais - cada uma delas
com sua própria lei e sua própria aristocracia, mas todas ortodoxas
e ligadas ao poder central franco - acarretou uma transformaçío
fundamental na forma como a terminologia étnica havia sido usada
durante séculos. Nos séculos IV e V a sociedade era basicamenre
Capítulo 5: Os últimos bárbaros? q.- ,l63

dividida em romanos e bárbaros, uma perspecriva dicotômica do


mundo aceita por ambos os grupos, assim como por indivíduos cuja
própria vida revelava a falta de correspondência enrre essa classi-
ficaçáo simplista e a realidade. Embora na Antigüidade clássica o
termo bárbaro fosse depreciativo, oi exércitos federados do final da
Antigüidade aceitavam o rermo e o consideravam uma designaçáo
neutra, ou até mesmo positiva, de sua identidade não romana, uma
identidade coletiva muito mais estável do que a miríade de nomes
"tribais" que geralmente eram vinculados a suas famílias e seus exér-
citos. Por volta do início do século VII, essa distinçáo náo significa-
va mais nada. A cidadania romana era insignificanre. As populaçóes
regionais eram divididas de acordo com a classe social e náo de
-
acordo com a língua, com os costumes ou com a lei. Toda a socieda-
de, com exceçáo da minoria judaica, esrava unida por uma única fe.
Assim o rermo barbarus começou a adquirir um novo significado,
passando a ser usado pal:a designar os estrangeiros e, cada vez mais,
os estrangeiros pagáos.
Na biografia de columbano, escrira no primeiro quarro do sé-
culo VII, o rermo barbari podia designar os alamanos pagáos ou
os lombardos arianos, mas nunca os francos ou os burgúndios.3a
Quando o termo barbari era usado paradesignar crisráos, como no
livro dos milagres de sanro Austregésilo, do século VIII, no qual o
termo é aplicado ao exército franco de Pepino I, essa designaçáo é
claramenre um comentário depreciativo a respeito de inimigos vio-
lentos que, apesar de cristáos, agiam como pagáos.
com o desaparecimento dos bárbaros no Império, os romanos
também deixaram de existir. Pode-se dizer que esse fato ocorreu
ainda mais rapidamente. Gregório de Tours, historiador do século
VI, comumente visto como um representante da aristocracia galo-
romana, nunca usava o termo paradesignar a si mesmo, sua família

34. Ewig, "Volkstum und VolksbewuBtsein", p.251.


164 --p O Mito das NaçÕes

ou os que considerava como seus iguais. Em vez disso, recorria à eti-


queta regional que vigorava desde o século III, ou se referia à classe
senatorial. Náo há romanos na história de Gregório.35 Em outras
fontes francas, a designaçáo ê usada com mais liberdade, especial-
mente nas descriçóes convencionais das origens das famílias, que
serviam de introduçóes à biografia dos santos.36 Por volta do século
VIII, o termo se tornou uma designaçáo regional, geralmente restri-
ta aos aquitanenses, no oeste, e aos habitantes da Récia, nos Alpes.
Por fim, em meados do século IX, o termo rzmanus passou a ser
usado no reino franco da mesma forma que no reino lombardo: paÍa
designar os indivíduos da cidade de Roma. Na parte ocidental do
Império Romano, náo mais havia romanos ou bárbaros.

O novo mundo bárbaro

O vácuo de poder deixado pela integraçâo dos lombardos e ourros


povos ao Império durante os séculos V e VI foi rapidamente preen-
chido por novas sociedades: a leste e ao norte do Reno, pelos saxóes,
na regiáo do baixo Danúbio, pelos ávaros e eslavos. Esses "rÌovos"
bárbaros restabeleceram a bipolaridade que havia se desintegrado
no território imperial, mas o frzenm de um modo muito diferente
e mais duradouro.
Desses novos povos, os saxóes eram os que mais se assemelha-
vam aos seus predecessores, os francos e alamanos. Piratas saxóes
da costa do mar do Norte pilhavam o Império desde o século III,
e unidades saxônicas haviam servido ao exército romano durante
muito tempo. No século V um bando de saxóes apareceu na Gália,
comandado por Odoacro, supostamente o mesmo rei bárbaro que

35. Walter Goffart, "Foreigners inthe History of Gregory of Tours", em Walter GofÍart, Rome's Fall
and After, Londres, 1989, p. 275-291; e Patrick J. Geary, "Ethnic ldentity As a Situational Construct
intheEarlyMiddle Ages",MitteilungenderonthropologischenGesellschaftinWien,vol.ll3, lg83:
't5-26.

36. Ewig, "VoIkstum und VoIksbewuBtsein", p.247-248.


Capítulo 5: Os últimos bárbaros? q._ 165

mais tarde governaria a Itália.37 Como os francos e os alamanos,


náo constituíam um povo "antigo", mas bandos descentralizados
que operavam de modo independente. O nome "saxáo", que muitos
acreditam ser derivado de sax, vma espada curta de um gume, náo
sugere uma identidade consistente. Eles náo eram, de forma nenhu-
ma, os únicos guerreiros que usavam essa arma, eue provavelmente
era de origem huna, e náo saxônica.38
Na Britânia, alguns dos federados saxóes, recrutados pelos gru-
pos l.ocais para defender a ilha após a retirada das tropas romanas
no início do século V passaram a dominar o lado leste da província.
Gradualmente - associados a ourros saxóes oportunistas, anglos,
jutos, francos e frísios do continente - esses bandos guerreiros cons-
tituíram pequenos principados, enfrentando (e ocasionalmente se
aliando a) principados britano-romanos igualmente instáveis. Esses
saxóes, que eram pagáos, tornaram-se cristáos ao longo do século VII.
Eles foram converddos pelos missionários romanos, pelos monges ir-
landeses e pelo trabalho pacífico dos cristáos nativos, eu€' como os ro-
manos da Itália lombarda, da Espanha e da Gália, fundiram-se com
seus conquistadores para formar uma nova sociedade.3e
Os saxóes do continente mantiveram sua organizaçáo descen-
tralizada e sua identidade pagí. Ao longo dos séculos VI e VII, eles
aparentemente tiveram uma relaçáo com o mundo franco notavel-
mente anâloga à relaçáo que os francos haviam tido com o Impé-
rio Romano dois séculos antes. Os francos consideravam os saxóes
um povo dependente, jâ que eram obrigados a fornecer gado como
tributo e defender o território franco dos vênedos, que habitavam
regióes ainda mais distantes. Por vezes, os reis merovíngios organi-

37. Gregório de Tours, ll, 18.

38. Pohl, "Telling the Difference: Signs of Ethnic ldentity", p. 37.


39. Henry Mayr-Harting ,The Coming of Christianity to Anglo-Saxon England,3. ed., Avon, 1991. Para
uma abordagem do papel da.população nativa na conversão, ver Patrick Sims-William s, Religion
ond Literature in Westeqn Engtànd,600-800, Cambridge, 1990, cap. 3, "Paganism and ChristiaÀity",
p.54-86.
166 -e O Mito das NaçÕes

zavam expediçóes punirivas conrra os saxóes, semelhanres às orga-


nizadas pelo imperador Juliano contra os francos e alamanos. Em
outras ocasióes, os saxóes se uniam aos francos em campanhas mili-
tares, como quando formaram uma coalÏzáo contra o duque franco
Carlos Martel, no início do século VIII.4o Os saxóes provavelmente
viam a si mesmos e sua relaçáo com os francos de uma forma bem
diferente. Durante o reinado do rei franco Carlos Magno, no final
do século VIII, eles mantiveram uma independência bravia, suas
próprias tradiçóes e sua religiáo.
Se os saxóes tomaram o lugar dos francos e dos alamanos na
Europa Ocidental, os ávaros assumiram o papel dos godos e dos
hunos no leste. Essa confederaçáo das estepes, fugindo da expansáo
turcomana na regiáo central da Ásia, apareceu na bacia dos Cárpa-
tos em 567 e, entre 558 e 559, enviou um emissário ao imperador
Justiniano, propondo lutar conrra os inimigos do Império em troca
de subsídios anuais.al Eles se assemelhavam em muitos aspectos sig-
nificativos a outros povos das estepes que surgiram na Europa no
primeiro milênio.a2 Esses nômades, eue viviam em comunidades
pastoris, desenvolveram técnicas de sobrevivência altamente espe-
cializadas, que lhes permitiam viver em regióes praricamenre inabi-
táveis. Como se deslocavam cenrenas de quilômerros em migraçóes
sazonais, tiveram que desenvolver formas complexas de organizaçáo
e comunicaçáo. Assim os imperativos do meio geraram formas ca-
racterísticas de organizaçáo sociopolítica. Mobilidade, flexibilidade
e eficiência da cavalaria eram essenciais para a sobrevivência, as-
sim como a formaçáo de alianças com grupos semelhanres, estabe-
lecendo rapidamente imensos impérios. Já rraramos dessa questáo
quando abordamos o eftmero império dos hunos de Atila. Porém os

40. Wood, The Merovingian Kingdoms, p. 163-164.


41. Pohl, Die Awaren. Ein Steppenvolk in Mitteleuropo 567-822 n. ch., Munique, 1988, p. l8-19.

42.Pohl, "The Role of the Steppe Peoples in Eastern and Central Europe in the First Millennium A.D.",
em Origins of Central Europe, Przemyslaw Urbanczyk (Ed.) (Warsaw, 1997), p.65-78.
Capítulo 5: Os últimos bárbaros? e-- 167

ávaros, ao contrário de seus predecessores, foram capazes de formar


um reino - que durou dois séculos e meio - relativamente centrali-
zado, institucionalizado e multiétnico, na vitória e na derrota, entre
Bizâncio e os reinos ocidentais remanescentes.
Os ávaros realizaram essa façanha porque conseguiram estabele-
cer uma hegemonia sobre os diferentes povos da fronteira balcânica
do império, monopolizando o nom e " âvaÍo" de modo extraordi-
nário. Durante cerca de 20 anos, Bajan, rei ou khagan dos ávaros,
combateu os utiguri, os antae, os gépidas e os eslavos, até estabelecer
uma grande confederaçío multiétnica. Após a retirada dos lombar-
dos, Bajan firmou sua autoridade na Panônia. Em 582, conquistou
Sirmium,a3 antïga capital ilíria. Seus filhos se sentiram fortes o su-
ficiente para desafiar a própria Constantinopla: em 626, um grande
exército, formado por cavaleiros ávaros e navios eslavos, promoveu
um ataque à cidade em sincronia com aliados persas. O cerco durou
pouco mais do que uma semana, e os ávaros foram derrotados. Ta-
manha catástrofe poderia sem dúvida significar o fim da hegemonia
âvara. De fato, alguns dos grupos subjugados tentaram se desgarrar
após o desastre, mas o núcleo, apesar de reduzido, permaneceu fir-
me. Um século mais tarde, cavaleiros ávaros invadiram a Baviera e a
Itália, até que finalmente se depararam com uma força superior, re-
presentada pela figura de Carlos Magno. Ele penetrou no centro do
reino âvaro, atual Hungria, destruindo a confederaçáo multiétnica.
Em um período de apenas uma geraçâo, sem a necessidade de uma
grande batalha, os ávaros desapareceram da história.
A confederaçáo âvara foi desintegrada sem deixar mais do que
ricos túmulos no leste da Áustria e na Hungria, mas teve um papel
fundamental na criaçâo do fenômeno mais importante e duradouro
do Leste Europeu: a úpïda e completa eslavizaçâo dessa parte do
continente e da Europa Central.

43. Atual Sremska Mitrovica, na Sérvia e Montenegro. (N. T.)


'l6B --e O Mito das NaçÕes

Entre os séculos V e VII, as regióes a leste da vasta área que havia


muito era chamada de Germânia, assim como as províncias impe-
riais dos Bálcás e do mar Negro, do Báltico ao Mediterrâneo, pâssa-
ram a ser controladas pelos eslavos. Essa transformaçáo ocorreu sem
grande alarde, sem histórias de reis poderosos como Átila, Teodorico
ou Clóvis, sem migraçóes heróicas nem batalhas desesperadas. Foi
um processo que náo deixou evidências escritas dos próprios eslavos,
e sua dinâmica interna foi ainda menos notada e compreendida pe-
los cronistas bizantinos e latinos do que a etnogênese germânica no
Leste Europeu. Apesar disso, os efeitos da eslavizaçáo foram muito
mais profundos.
Na Europa Ocidenral, as rropas bárbaras federadas incorpora-
ram os sistemas de governo, a religiáo e os assentamentos dos roma-
nos, e terminaram se tornando inteiramente romanas, mesmo tendo
modificado completamente o significado desse rermo. Os migrantes
eslavos náo adotaram o sistema de tributaçâo, a agricultura, a or-
ganizaçâo social ou o sistema político dos romanos. A organizaçâo
eslava náo se baseava nos modelos imperiais, e seus líderes raramen-
te dependiam do ouro rorhano para obter sucesso. Sendo assim, a
eslavização foi muito mais efetiva do que as ocupaçóes dos godos,
dos francos ou dos saxóes. Quase tudo a respeito dos antigos eslavos
- suas origens, suas estruturas políticas e sociais, seu tremendo su-
cesso - tem sido um grande enigma.
Há muito que os acadêmicos debatem a respeito da "regiáo origi-
nal" dos eslavos. Esse debate sobre a origem dos eslavos é provavel-
mente táo insignificante quanto o debate sobre a origem dos outros
povos bárbaros, já que eles foram formados pela fúsáo dos povos
que as fontes romanas chamam de citas ou sármatas com as popu-
laçóes germânicas das regióes a leste do Elba, deixadas paÍatrás pe-
las elites militares germânicas que haviam se deslocado em direçáo
ao Império. Ultimamenre os acadêmicos têm sustentado de modo
convincente que o -"nascimento" dos eslavos ocorreu ao longo da
lapítulo 5: Os últimos bárbaros? q.- 169

fronteira bizantina, sob as pressóes militar e econômica do Império,


assim como, séculos antes, havia ocorrido com os francos e alama-
nos ao longo do Reno.aa Entretanto a cultura eslava era muito mais
ligada à terra e à agricultura do que a dos movediços exércitos fran-
co e alamano, que acabaram se tornando federados romanos e, por
fim, conquistadores. Com seus arados leves, agricultura de pequena
escala e pequenas unidades sociais com organizaçóes distintas, os
eslavos náo chegavam apenas como exércitos cobradores de tributos,
mas também como fazendeiros que cultivavam as rerras que con-
quistavam.
Mas com ceÍtezaeles também eram conquistadores. Suas ocupa-
çóes eram lentas, porém violentas. Após suas conquistas, incorpora-
vam as populaçóes nativas às suas estruturas sociais e lingüísticas.
Contudo a expansáo eslava era descoordenada e radicalmente des-
centralizada. Até a Baixa Idade Média, a língua e a cultura material
eslavas apresentavam uma notável unidade em todo o Leste Euro-
peu, que se contrapunha radicalmente à total falta de centraliza-
çáo política. Procópio, historiador bizantino do século VI, descreve
como eles "náo sáo governados por um único homem, mas vivem há
muito sob uma democracia, e conseqüentemente todas as questóes
relacionadas ao bem-estar do povo, sejam boas ou ruins, sáo discuti-
das com a populaçâo".45 Essa descentralizaçáo talvez fosse o segredo
do sucesso dos eslavos: como náo tinham reis ou grandes líderes, os
bizantinos náo tinham a cuem subornar. derrotar ou obrisar a servir
ao império, náo encontrando meios de destruíJos ou incorporá-los ao
sistema imperial.
No século VII, guerreiros-colonizadores eslavos cÍuzaïam o Da-
núbio e gradualmente foram ocupando os Bálcás. A cronologia dos

44. Sobre as origens dos eslavos, ver especialmente Pohl, Die Awaren, p.94-128, e Florin Curta,
The Making of the Slavs: History and Archeology of the Lower Danube Region, ca.500-700 AD,
Cambridge,2001.
45. Procópio, História das GuerrasYll, xiv,22.
170 --'o O Mito das NaçÕes

fatos é incerta, e não poderia ser diferente: o processo foi táo des-
centralízado e fuido que dificilmente poderia ser cronologicamente
determinado ou documentado. As contra-ofensivas bizantinas náo
puderam interromper o processo, que já estava em um estágio bas-
tante avançado. As conquistas eslavas, ao contrário das germânicas
de dois séculos antes, náo significavam apenas a transferência da
renda tributária: alguns soldados capturados conseguiam fugir, ou
entáo eram incorporados à classe camponesa, mas os eslavos geral-
mente os matavam ou cobravam resgate. Nessa sociedade de solda-
dos-fazendeiros, náo havia opçóes.
A organizaçâo hierárquica em largaescala dos grupos eslavos foi
estabelecida por estruturas de comando externas. Os líderes podiam
ser germânicos ou centro-asiáticos, e seu modelo de etnogênese pos-
sibilitava uma maior concentraçío de poder e uma subordinaçâo
mais efetiva de indivíduos e grupos. Os ávaros foram fundamentais
nesse processo.
A eslavização de um amplo grupo que habitava entre o Elba e

o baixo Danúbio já estava bem avançada quando os ávaros chega-


ram. A ocupaçâo âvarapode ter aumentado a pressáo eslava na fron-
teira bizantina, já que bandos eslavos fugiram desse novo império
das estepes. Isso talvez explique as primeiras invasóes da península
Balcânica pelos eslavos na segunda metade do século VI, que logo
seriam seguidas por exércitos eslavos sob o comando dos ávaros.
Outros grupos foram definitivamente incorporados ao reino ávaro.
Os ávaros se apropriaram dos quartéis de inverno dos eslavos domi-
nados, exigindo cavalos, suprimentos e mulheres, de acordo com as
necessidades. Em tempos de guerra, utilizavam os eslavos em sua
infantaria e, durante o cerco de Constantinopla, utilizaram-nos em
sua esquadra. Contudo eles tratavam algumas comunidades eslavas
com certa reserva, presenteando seus líderes em troca de tropas e
apoio. Os cronistas bizantinos descreveram os eslavos como vítimas
da opressáo dos ávaros. Já os cronistas ocidentais consideraram os
Capítulo 5: Os últimos bárbaros? s'- 171

dois "povos" como aliados. Provavelmente as duas perspectivas es-


tavam corretas.
As estruturas militar e política dos ávaros estabeleceram o con-
texto da etnogênese de alguns grupos eslavos específicos. Na primei-
ra metade do século VII, provavelmente sob infuência do malsuce-
dido ataque a Constantinopla em 626, muitos grupos da periferia
do reino âvaro se rebelaram, estabelecendo unidades políticas autô-
nomas entre os francos, a oeste, e Bizâncio, a leste.
Na regiáo que provavelmente correspondia à atual República
Checa, Samo, um franco, organizou com muito sucesso um grupo
de eslavos de origens distintas que havia se rebelado conrra os áva-
ros. De acordo com uma fonte ocidental, os eslavos o elegeram rei,
e entáo ele governou um reino eslavo durante mais de 30 anos.46 A
separaçáo dos eslavos de Samo da confederaçáo âvara, que se seguiu
à tentativa malsucedida dos ávaros de conquistar Constantinopla,
foi provavelmente apenas uma de várias revoltas contra o khagan
derrotado.
Os vários grupos que no século X eram conhecidos como croa-
tas e sérvios provavelmente foram formados nesse mesmo período,
durante a crise do reino âvaro. É i-porrível destrinchar completa- I

J
mente a história antiga dos croatas, que é quase inteiramente basea-
da na crônica do imperador bizantino Constantino Porfirogêneto
(905-959).47 Constantino escreveu um tratado destinado aos seus
sucessores sobre como administrar o Império, dando especial aten-
çáo aos seus vizinhos eslavos. Para isso, baseou-se no conhecimento
de sua época e em documentos seculares (atualmente desaparecidos)
dos arquivos imperiais, mas não podemos saber até que ponto sua
crônica corresponde aos fatos. Constantino se refere a dois grupos
de croatas, o dos croatas "brancos", estabelecido próximo aos fran-
cos, e o dos croatas da Dalmácia. Ele elabora uma genealogia mí-

46. Fredegari us, 4, 48; P ohl, Di e Awa re n, pp. 256-261 .

47. Constantino Porfirogêneto, De Administrando lmperio, caps. 29 e 30.


172 -,c O Mito das Naçoes

tica: os croatas habitavam "além da Baviera", mas uma família de


cinco irmáos e duas irmás se separou deles e conduziu seu povo aré
a Dalmácia, onde derrotaram os ávaros e enráo se subdividiram em
diferentes grupos. Na verdade, o termo "croata" era usado em várias
partes da periferia do antigo reino âvaro, incluindo as regióes das
atuais Alemanha, República Che.", Á,,rrtria, Morávia, Eslovênia,
Grécia e da própria Croácia. As tentarivas de atribuir algum tipo de
unidade étnica a esses grupos, às vezes antedatando a chegada dos
ávaros, falharam.
Certamenteo termo "croat4" náo aparece em nenhum docu-
mento de antes da segunda metade do século IX como designaçáo
de povo ou tribo. O termo provavelmente designava, a princípio,
uma camada social ou um posro regional no reino do khagaz.as Isso
explica como esse rermo, que náo é eslavo, pôde designar um "povo"
eslavo sem a preexistência de um povo croata náo eslavo, e também
como os "croatas" surgiram em regióes distintas do reino ávaro sem
que precisemos supor grandes migraçóes ou uma família de irmáos.
Provavelmente, ao longo dos séculos VIII e IX, esses grupos sepa-
ratistas do reino âvaro, identificados como "croatas" por suas lide-
ranças ou organizaçóes, formaram unidades políticas distintas com
identidades étnicas inventadas e genealogias fantasiosas.
Assim como pressupóe a existência de um povo conhecido como
croatas "brancos", o qual relaciona aos croatas da Dalmácia, Cons-
tantino também escreve sobre os sérvios "brancos", que segundo ele
habitavam um território além dos hunos, que faziafronteira com o
reino franco e com aCroâciaBranca. e Mais uma vez ele relata uma
lenda genealógica: dois irmáos, liderando metade do povo, solici-
tam proteçáo ao imperador Heráclio, que entáo assenra os sérvios

48. Pohl, Die Awaren, p.266.


49.Para um resumodo relatotradicional,verJohn Fine,TheEarlyBalkans:ACritical Surveyfromthe
Sixth tothe LoteTwelfth Century, Ann Arbor, 1983, p. 52-53.
CapÍtulo 5: Os últimos bárbaros? s._ 173

na província de Salonica.5o Posteriormente eles decidem rerornar à


terra pátria e, quando pedem permissáo ao comandante Heráclio
em Belgrado, ganham um território, eue corresponde à atual Sérvia.
De acordo com essa lenda, os sérvios também surgem no período da
derrota âvara em Constantinopla. Além disso, ela também explica
a presença dos sérvios em regióes distintas do reino ávaro e justifica
o surgimento de um novo "povo" nos Bálcás que possui um nome
náo eslavo. Embora essa lenda possa ser questionada por falta de
evidências históricas, podemos compreendê-la como parte do rápi-
do processo descentralizador que desintegrou o reino ávaro após sua
derrota.
Os búlgaros tiveram origem semelhante. Os romanos haviam
encontrado povos com esse nome nos arredores do mar Negro desde
o século V. Os búlgaros, assim como os grupos cujos nomes termi-
navam em -guri, como os kutriguri, onoguri e oguri, pertenciam,
na perspectiva dos romanos, aos hunos, ou seja, aos guerreiros das
estepes centro-asiáticas. No entanto, após a derrota de 626, os que
se rebelavam contra o khagan eÍam geralmente chamados de búlga-
ros. Novamente, assim como no caso dos croatas, a diversidade dos
búlgaros é explicada por uma lenda: cinco irmãos, filhos de Kuvrat,
dos onoguri, rebelaram-se contra os ávaros em 630 e unificaram os
búlgaros nos arred.ores do mar Negro. Ao mesmo tempo, refugia-
dos búlgaros, após uma revolta malsucedida na parte ocidental do
reino, fugiram para a Baviera, onde foram bem recebidos pelo rei
franco Dagoberto, mas, depois de terem se dispersado para o in-
verno, foram atacados e assassinados a mando do rei.51 No período
da geraçâo seguinte, Kuver, um líder búlgaro, revoltou-se contra os
ávaros e liderou um grupo heterogêneo de descendentes de prisio-
neiros romanos que haviam sido assentados no reino âvaro, ao sul de

50. Província situada no território da Grécia atual. (N. T.)


51. Fredegarius,4,72.
174 '-e O Mito das Naçoes

Salonica, 50 anos antes.52 Possivelmente os nomes "kuvrat", "kuver"


e "croata", no século VII, designavam apenas títulos e, somente com
o tempo, passaram a ser usados para designar indivíduos ou povos.
De qualquer modo, nenhum desses grupos - o reino de Samo, os
croatas ou os búlgaros de Kuver - existia antes das revoltas contra o
rei ávaro. Eles foram formados durante essas revoltas, e organizados
de acordo com as instituiçóes e princípios de seus dominadores.
Ao longo dos séculos seguinres, esses grupos, cujos nomes náo
eslavos provinham de títulos ávaros, desenvolveram-se a partir de
unidades políticas criadas em oposiçáo ao domínio âvaro, transfor-
mando-se em "povos", embora seus mitos genealógicos explicassem
suas origens mais em termos étnicos do que em termos de organi-
zaçáo política.
Assim, por volta do início do século VIII, as populaçóes das
regióes do antigo Império Romano eram caractertzadas mais por
identidades políticas do que por identidades étnicas. Para os povos
mais significativos, descritos nas raras fontes históricas do período,
sua identificaçáo com um reino geograficamente definido determi-
nava como seriam designados e, em maior escala, como definiriam
a si mesmos. Naturalmente essa rerminologia provinha de séculos
anteriores, embora as realidades sociais que a designavam já esti-
vessem bastante alteradas. Os francos formavam as elites no reino
franco; os lombardos, no norre da ltália; e os godos, até a conquista
da península Ibérica pelos exércitos berberes e árabes em Tl1, na
Espanha. os habitantes livres dos reinos britânicos eram saxóes.
Já os habitantes das regióes da Itália controladas pelo papa ou pelo
Império Bizantino, assim como os da Gália ao sul do Loire, eram
romanos. As identidades regionais, como sempre, continuavam pe-
sando bastante. Os soberanos francos comandavam turíngios, báva-
ros, frísios e alamanos, embora essas fossem designaçóes relativas às
províncias, e náo tribais.

52. Miracles of St. Demetrius, ll, 5.


CapÍtulo 5: Os últimos bárbaros? q- 175

Por trás dessas unidades políticas estáveis, o mundo ainda se as-


semelhava ao do século V. Os saxóes -
termo usado para designar
vários povos germânicos pagáos que náo apresentavam uma unidade
política - habitavam as regióes fronteiriças do norte do reino franco,
enquanto o vasto império multiétnico dos ávaros, a leste dos fran,
cos, estendia-se de Bizâncio ao Ocidente, gerando "rÌovos" povos,
como os croatas, os sérvios e os búlgaros. Esses grupos - os saxóes,
os ávaros e suas crias - eram os novos bárbaros, os únicos bárbaros
que ainda restavam na Europa, assim como os únicos romanos eram
os habitantes de Roma.
I
I
I

Capítulo 6
sHz

A RESPEITO DOS NOVOS POVOS EUROPEUS

Rr rrol," do início do século VIII, embora alguns dos antigos no-


mes de povos do final da Antigüidade continuassem sendo usad.os,
seu significado havia mudado radicalmente. Reinos relativamente
estáveis haviam surgido pela Europa, rotulados com antigos nomes
"gentios", mas formados por habitantes cristáos. Nem mesmo seus
contemporâneos distinguiam claramente entre os termos étnicos,
políticos e territoriais: o regnum francorurn nâo correspondia exa-
tamente à regiáo da Francia. Um monge, por exemplo, podia tra-
duzir Germania por Franchonoland.t Além disso, os termos Francia
e Gallia podiam ser usados indistintamente. Nessa regiáo, ainda
havia os pequenos assentamentos militares dos saxóes, dos alanos e
de outros grupos que mantinham algum tipo de identidade militar
desde os séculos V e VI. Os povos haviam se tornado, mais uma vez,
o que haviam sido para Plínio: unidades territoriais, organizaçóes
geopolíticas, e não grupos sociais ou culturais.
Entre 7ll e 712, a rápida conquista da Espanha pelos berberes
e árabes transformou o cenário ao sul dos Pirineus. Por um lado, a
religiáo voltava a ser um elemento distintivo na península lbérica,
como náo havia sido desde a conversáo dos visigodos ao cristianis-
mo ortodoxo. Por outro, embora os conquistadores muçulmanos
1. Para informaçÕes sobre essa terminologia, ver Walter Pohl, "Zur Bedeutung ethnischer
Unterscheidungen in der frühen Karolingerzeil", Studien zur Sochsenforschung 12,1999: 193-208,
esp. p. 199.
178 --'o O Mito das Naçoes

náo tentassem efetivamente converter os cristáos e judeus, as elites


começaram a se converter ao islá logo após a conquista, e por volta
do século X a populaçáo da península já constiruía uma sociedade
de maioria muçulmana.
Na parte ocidental do antigo mundo romano, por volta da déca-
da de 720, estabeleceram-se reinos autônomos menores, governados
por príncipes igualmente menores ou por déspotas que geralmenre
ostentavam o dtulo de duque, que enfatizava um comando militar
independente. Na Nêustria, antigo centro do reino franco, as famí-
lias ducais continuavam manipulando os reis da dinastia merovín-
gia. Jâ na Austrásia, a leste do reino, uma família ducal emergenre
dominava a cena política da regiáo e reivindicava controle sobre as
regióes ocidentais. As outres províncias do reino romavam seus pró-
prios rumos: na Aquitânia e na Baviera, duques autônomos cogita-
vam reivindicar autoridade real; na Britânia, na Frísia, na Saxônia,
na Tirríngia, na Alamannia, na Borgonha e na Provença, os duques
ou os patrícios governavam, em alguns casos em nome dos mero-
víngios, em outros, desdenhando deles. Essas unidades políticas não
eram muito diferentes dos ducados lombardos das regióes centrais e
do sul da ltália, ou dos reinos menores que constituíam a esrrutura
política da Britânia anglo-saxônica. Em todas as parres, as elites
locais dominavam as unidades políticas regionais. Havia disputas
enérgicas pelo poder regional, mas eram todas caracterizadas por
uma rivalidade aristocrâtica, e náo por diferenças culturais ou étni-
cas. O regionalismo aparenremente triunfava.
Posteriormente, ainda no século VIII, o Império Franco expan-
diu-se em direçáo ao leste, ao norte e ao sul, incorporando a maior
parte dos Países Baixos, as regióes ocidentais e centrais da Germâ-
nia, o reino Lombardo e a Catalunha. Essa expansáo franca poderia
dar continuidade à convergência das identidades étnica, política e
geográfica. Porém as guerras expansionistas promovidas pelos reis
carolíngios transformaram as diferenciaçóes étnica e legal em uma
das principais peças da construçáo do império.
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus e-- 179

Levou mais de uma geraçãLo para que a família ducal emergente


da Austrásia, de Pepino II e seu filho Carlos Martel, conseguisse
derrotar seus oponentes da Nêustria e consolidar o controle sobre
o antigo centro do reino franco. Entáo ela começou a subjugar e a
incorporar os ducados próximos com campanhas militares avassa-
ladoras, mas também cooptando importantes facçóes regionais, às
quais prometiam acesso ao poder e a conservaçáo de suas posiçóes
dominantes, garantidas pelas leis locais. Assim, a leste do Reno, os
ducados passavam a ser controlados pelos francos, porém, ao mes-
mo tempo, suas identidades subalternas mas distintas eram protegi-
das por suas próprias leis. Esses códigos eram parcialmente baseados
nas tradiçóes locais e nas práticas regionais reconhecidas, mas eram
fundamentalmente subordinados à autoridade franca.
A maior parte dessas codificaçóes foi elaborada durante o século
VIII, sob o comando dos reis carolíngios. Entretanto reivindica-
vam-se origens mais antigas, que datavam do início do século VII,
época de Clotário II (584-623) e Dagobertol (623-639), apogeu da
dinastia merovíngia. Assim, enquanto as identidades jurídicas des-
sas comunidades locais eram preservadas, essas mesmas identidades
eram forjadas, projetadas em um passado mítico e longínquo para
que lhes fosse conferida uma legitimidade impregnada da aura do
antigo. No prefácio ao código bávaro, por exemplo, há a afirmaçáo
de que o código havia sido elaborado no início do século VII, época
do rei Dagoberto o Grande. É possível que houvesse um sistema
legal bávaro nessa época, mas o código em questáo era uma criaçâo
do século VIII. Prefácios igualmente arcaizantes de outros códigos,
mesmo que ecoassem elementos de alguma legislaçáo anterior, ge-
ralmente ocultavam as verdadeiras datas de criaçáo dessas compila-
çóes legais.2

2. Sobre a lei bávara, ver Wilfried Hartmann, "Das Recht", em Die Bajuwaren von Severin bisTassilo,
488-788, H. Dannheimer e H. Dopsch (Eds.), Munique, 1988, esp. p.266; e Joachim Jahn, Ducatus
Baiuvariorum.DasbairischeHerzogtumderAgilolfrnger,Stuttgart, 1991,p.344.

*
'lB0 --p O Mito das NaçÕes

A oeste do Reno, na Borgonha, na Provença, na Septimânia3 e


na Aquitânia, os carolíngios agiram de modo semelhante. As elites
locais que cooperavam com o ngvo poder podiam preservar sua au-
tonomia, conservando suas leis romanas, burgúndias ou góticas sob
o comando dos francos. Essa colaboraçáo era essencial para a estabi-
lidade do reino, especialmenre nas regióes que faziam fronteira com
a Espanha islâmica ou com a Lombardia.
Embora permitissem que as regióes recém-incorporadas conser-
vassem seus sistemas legais, os francos conferiam autonomia legal
aos seus agentes, independentemente de onde estivessem. Dessa
maneira, os oficiais reais e os soldados estabelecidos em regióes lon-
gínquas náo viviam de acordo com as leis locais. Como os agenres
imperiais europeus do século XIX, eles gozavam de um srarus legal
extraterritorial. Esse "princípio da extraterritorialidade" foi bastante
disseminado quando os francos conquistaram o reino Lombardo,
entre 773 e774. Os "colonos" francos, burgúndios e alamanos logo
se estabeleceram no reino conquistado, conservando orgulhosamen-
te seu srarus legal, que era hereditário. Essa mixórdia de sistemas
legais, que exigia que cada indivíduo declarasse seu código específi-
co ao ser julgado, conrinuou vigorando durante muito rempo após
o fim do sistema político carolíngio. No século XI, muitas famílias
reivindicavam orgulhosamenre direitos legais distintos, mesmo náo
tendo mais vínculos com as regióes de onde seus ancestrais haviam
migrado.
Essa política carolíngia de cooprar as elites regionais - conferin-
do-lhes posiçóes de poder, permitindo que conservassem seus pró-
prios códigos legais e fixando agenres imperiais em todas as parres
do vasto império - criou um novo tipo de etnicidade européia. As
identidades se baseavam mais em privilégios legais do que na ascen-
dência ou na cultura. Elas náo eram definidas em sua totalidade,
mas apenas de acordo com certos direitos.

3. Região correspondente ao sul da França atual. (N. T.)


Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus o-- 181

Essa forma restrita de identidade, desenvolvidano contexto da


expansáo imperial carolíngia, sobreviveu durante muito tempo ao
próprio Império Carolíngio. Esse foi o modelo empregado na coloni-
zaçáo do mundo eslavo durante os séculos XII e XIII: náo só terras
como também o direito de viver de acordo com suas próprias leis
eram conferidos aos camponeses saxóes estabelecidos nas regióes
"recém-pacificadas" do Leste Europeu. Com o temPo, o direito às
leis saxônicas ou germânicas se tornou um direito a privilégios es-
pecíficos, eue podia ser reclamado por qualquer um, independente-
mente da ascendê,ncia.a
Entretanto, ao mesmo tempo que política imperial criava novos
a

significados para velhos rótulos, a ideologia carolíngia forjava anti-


gas genealogias paraeles. Assim como as novas codificaçóes das leis
regionais enfatïzavam sua antigüidade, a historiografra carolíngia
demonstrava um notável interesse pela história antiga dessas no-
vas entidades sociais e legais - especialmente pela dos francos, mas
também pelas dos lombardos e de outros grupos -, projetando-as
em um passado remoto. Assim o sistema imperial carolíngio criava
sua própria legitimidade por meio das genealogias dos povos, suas
próprias "comunidades imaginadas", enquanto reivindicava Para o
povo franco uma universalidade e uma missáo divina que suplan-
tavam as de Roma. Essa invençáo foi muito bem-sucedida, sobrevi-
vendo ao próprio Império Franco por mais de um milênio: da época
das cruzadas ao século XX, o termo "franco" foi usado por gregos e
muçulmanos para designar os europeus ocidentais.

Reflexões finais

O que vemos, de forma resumida, é o uso descontínuo durante um


longo período de certos rótulos que passaram a ser compreendidos

4. Ver, por exemplo, as concessÕes da "lei germânica" na Polônia referidas por Robert Bartlett, fhe
MakingofEurope:Conquest,Colonization andCulturolChange950-1j50, Princeton, 1993, p. 118 e
130-131.
182 --p O Mito das NaçÕes

como "étnicos". Os etnógrafos clássicos, mesmo estando perfeita-


mente a paÍ da natureza heterogênea de suas próprias sociedades,
pronramente projeraram essas imagens biológicas quase orgânicas
no "outro", ÍÌo "bárbaro". Podemos nos perguntar se as comunida-
des e unidades políticas das regióes fronteiriças do mundo romano
teriam reconhecido a si mesmas de acordo com os estereótipos ela-
borados pelos cronistas da época. Contudo, a parrir do século IV
bandos militares se apropriaram desses rótulos e os usaram como
slogans políticos para organizar suas açóes. Os nomes dos povos
eram, portanto, mais apelativos do que descritivos, usados para
reivindicar uma unidade sob o comando de líderes que esperavam
monopolizar e incorporar as tradiçóes associadas a esses nomes. Ao
mesmo tempo, esses comandanres se apropriavam de tradiçóes di-
versas e forjavam genealogias sagradas e reais, batalhas lendárias e
acontecimentos heróicos para esses povos.
O sucesso da institucionalização de alguns desses grupos milita-
res nas províncias do Império Romano acarrerou profundas trans-
formaçóes no modo como esses termos eram usados e nas realidades
sociais que proclamavam. Com a vitória bélica e o estabelecimento
de territórios, criavam-se novas realidades e, em um período de al-
gumas geraçóes, grupos políticos e sociais com passado, cultura e
valores distintos reconheciam o direito do grupo vitorioso de arti-
cular um passado comum a todos. Mitos de ascendência e história
comuns, moldados menos por tradiçóes orais nativas do que pelos
conceitos clássicos de etnicidade, ocultavam a descontinuidade e a
heterogeneidade radicais que caracrerizavam a Idade Antiga.
Nos séculos VIII e IX, o Império Franco cooprava as elites re-
gionais e beneficiava os agenres imperiais, cujos privilégios e srarus
eram protegidos por novas formas de leis pessoais e mascarados por
um interesse em possíveis passados remotos que pudessem fornecer
uma ideologia de distinçáo.
Q""l a relaçáo disso tudo com o ressurgimento do nacionalismo
étnico abordado no início deste livro? Eis uma resposta possível:
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus o- 183

nenhuma. O fuxo e as complexidades da Antigüidade Pertencem


a um mundo diferente do das visóes simplistas dos ideólogos. Mas
essa resposta é simples demais. A noçáo de história dos nacionalistas
contemporâneos é estática: eles se atêm ao momento da aquisiçáo
primária, quando "seus povos" estabeleceram seus territórios sagra-
dos e suas identidades nacionais sobre as ruínas do Império Roma-
no. Eis a grande antítese da história. A história dos povos europeus
da Antigüidade e da Alta Idade Média nâo é a história de um mo-
mento primordial, e sim de um processo contínuo. É história da
^
apropriaçáo política e da manipulaçáo de nomes herdados e repre-
sentaçóes de passados com o objetivo de criar um presente e um fu-
turo. É a história da mudança constante, da descontinuidade radical
e dos ziguezagues culturais e políticos, mascarados pela insistente
reapropriaçáo de antigos termos paÍa definir novas realidades. Os
francos que "nasceram com o batismo de Clóvis" náo eram os fran-
cos de Carlos Magno nem o povo francês que Jean Le Pen esPerava
conquistar com seu movimento político. Os sérvios que surgiram
com a decadência do Império Árr"to náo eram o povo derrotado
na batalha de Kosovo, em 1389 nem mesmo os sérvios insuflados
pelo nacionalismo enaltecedor de Slobodan Milosevic. As vítimas
albanesas dos sérvios de Milosevic náo eram os ilíricos dos Bálcás
do século VI. E esse processo náo está próximo do fim: os povos da
Europa estáo e sempre estaráo em formaçáo.
Ao mesmo tempo, a história dos povos da Europa é parte do
problema da etnicidade européia. Nós historiadores somos sem dú-
vida culpados pela criaçáo desses mitos duradouros, persistentes e
perigosos. Construindo uma história linear e contínua dos Povos
europeus, validamos as tentatiyas de legitimaçáo da ìncorporaçáo
das antigas tradiçóes dos povos pelos comandantes militares e lide-
res políticos. Reconhecendo como históricos os mitos criados pelos
autores da Antigüidade e da Idade Média, propagamos e perpetua-
mos essa legitimaçáo. Na parte final desta nossa investigaçáo das
184 '-e O Mito das Naçoes

origens dos povos europeus, deixemos o ocidente de lado por um


momento e consideremos a história de um povo de um ourro conri-
nente. Comparemos os povos europeus com um dos grandes povos
africanos: os zulus.

Os europeus como zulus

o fato de essas percepçóes rerem penetrado


tão profundamenre na
consciência européia a ponto de náo serem mais compreendidas
como reconstruçóes históricas, e sim como componentes essenciais
e evidentes da identidade nacional, constituium grande obstáculo
para quaisquer tentativas de questionar as compreensóes popular-
mente aceitas dos povos europeus. Elas se encontram fora do do-
mínio da história, no reino mitológico da memória coletiva, o que
as torna ainda mais poderosas. Talvez o melhor meio de escapar de
séculos de confusóes e conjecturas a respeito das identidades dos
povos europeus seja, pelo menos por um momento, escapar da Eu-
ropa. Para isso, analisaremos o nascimento de um povo de uma
regiáo distante, os zulus, do sul do continente africano. Entretanro,
como veremos, é mais fãcil deslocar a perspectiva geogrâfrcado que
as categorias analíticas.
Ao tentarmos compreender a história antiga dos zulus, encon-
tramos os mesmos problemas apresentados pela história dos euro-
peus, gerados por muitas das mesmas raz6es. As semelhanças entre
os zulus e os francos, godos ou sérvios ocorrem em dois níveis: em
primeiro lugar, os rexros mais antigos sobre a história das migraçóes
dos zulus e os das tradiçóes judaico-cristá e clássica foram escritos
sob influências semelhantes. Assim a história "clássica" da etnogê-
nese zulu apresenta os mesmos temas míticos e literários que en-
contramos na história européia. Isso se dá porque os missionários
euroPeus, infuenciados pelos conceitos bíblicos e clássicos de etno-
gênese, foram os responsáveis pelos primeiros rextos históricos sobre
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus s.- 185

os zulus. Nesse aspecto, esses missionários se assemelhavam bastan-


te aos "narradores da história bárbara" dos séculosVI, VII e VIII.5
Além disso, mesmo quando as conjecturas e projeçóes dos auro-
res da "história nacional" dos zulus sáo removidas, a imagem resul-
tante da etnogênese zulu continua se assemelhando, embora de um
modo distinto do anterior, às análises mais modernas e científicas
da etnogênese européia. Essas semelhanças sugerem que, além dos
mitos genealógicos europeus e náo europeus, certas forças políticas
e sociais semelhantes teriam definido a criaçáo dessas sociedades
distintas, e também que analogias e consrructos, por mais que dis-
torçam a história, sáo necessários para a compreensáo histórica.
É possível que alguns europeus se apavorem ao perceber que as
origens de seus próprios grupos políticos e étnicos sáo equiparadas
às de um povo do sul do continente africano. Em muitos casos, a
razáo para isso é menos o racismo do que a crença profundamente
arraigada de que, enquanto a "história" de um povo africano não
passa de um constructo cultural, o passado europeu é, de algum
modo, "real". Gostaria de convidar o leitor a abrir máo por um mo-
mento de seu chauvinismo cultural e a considerar a possibilidade de
que náo seja diferente dos milhóes de sul-africanos que rasrreiam
suas genealogias até Shaka KaSenzangakhona, fundador da naçáo
zulu, que possui a mesma importância na história de seú povo que
a de Clóvis para os franceses, a de Chrobatos para os croaras e a de
Isperikh paÍaos búlgaros.
O povo zulu, além de ser um dos maiores do sul da Africa, é ram-
bém um dos mais conscientes. Com o Partido da Liberdade Inkatha,
ao mesmo tempo um movimento cultural e um partido político, a
influência dos aproximadamente 5 milhóes de zulus se esrende para
além do apartheid de KwaZulu, sua pâtria, estabelecida em 1971, e
que hoje corresponde à província de KwaZulu-Natal. A identidade
5. Walter Goffa ft, em Narrators of Barbarian History, mostra que os chamados historiadores
"nacionais" pouco ou nada contribuíram para a formação das histórias das naçoes.
186 --s O Mito das Naçoes

zulu está intimamente ligada à sua memória,


eue inclui a década de
1830, quando o reino zulu era o Estado independenre mais podero-
so do sul do continenre, e se estende até os séculos XVII e XVIII, o
que deve parecer estranhamente familiar aos europeus.
o pai da história zulu, enrreranro, náo era um zulu. A. T. Bryant
(1865-1953), um missionário cristáo, foi o primeiro a elaborar um
relato contínuo da história zulu, décadas após a morre de Shaka
KaSenzangakhona. Segundo Bryant, essa história começa no século
xvl, quando os povos ngúnis, dos quais os ancestrais dos zulus
faziam parre, migraram das regióes do norte e noroesre de acordo
-
com alguns zulus, esse "norte" se estendia até o atual Sudáo para
-
o sudeste da África. Enquanro se deslocavam em direçáo ao sul, os
ì

ngúnis se dividiram em numerosos "clás", as unidades sociopolíticas l

básicas de sua sociedade. Todos esses clás descendiam de um ances-


tral comum e eram governados por um descendente direto desse
ancestral. Por volta do início do século XVI, os ngúnis se enconrra-
ram na regiáo do alto rio Vaal, onde se dividiram em dois grupos. O
primeiro deles se deslocou em direçáo ao noroesre e rerminou sendo
incorporado aos soros, que vinham do norre. o segundo, formado
pelos clás ngúnis mais puros, os ntungwa, os mbo e os lala que
-
compartilhavam origem e cultura comuns migraram para a Íe-
-
giáo de Phongolo-Mzimkhulu, onde se estabeleceram mais ou me-
nos ao mesmo tempo. os ntungwa se estabeleceram na regiáo que
hoje corresponde ao centro da naçáo zulu, onde formaram inúmeros
clás sob lideranças independentes. Por volta de 1,670, o líder de um
desses clás, Malandela, ou talvez sua família, cruzou os córregos
Mpembeni e Mkumbane, superou os monres de Mtonjanei e entáo
penetrou no vale do Mfule. Nesse vale, após um período de poucas
geraçóes, nasceu Zulu, descendente de Malandela e fundador epô_
nimo do clá zulu.
Em algum momento do século xvIII, vários grupos dominan-
tes começaram repentinamente a centralizar seu poder político e a
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeuS :- ': -

incorporar clás vizinhos, expandindo seu controle territorial. Essa


rápida mudança tem sido entendida como o resultado das pressóes
exercidas pelas mudanças no ecossistema ou pelo crescimento de-
mográfico, que teria sobrepujado a produçáo de alimentos. Isso foi
possível devido ao surgimento de líderes talentosos e ambiciosos,
sendo que o mais proeminente deles era Shaka KaSenzangakhona,
líder dos zulus, eü€, ao lado de Dingiswayo, líder dos mthethwa,
subjugou quase todos os clás vizinhos e incorporou seus guerreiros
jovens ao exército zulu. A única exceçáo foram os ndwandwe, que
formavam uma sociedade expansionista altamente centralizada e
militarizada, semelhante à dos zulus. Por volta de 1817, os ndutan-
dwe derrotaram os mthethua e mataram Dingiswayo.
Logo após a morte de Dingiswayo, Shaka derrotou os nduandwe
e, em uma rápida série de conquistas, passou a controlar uma vasta
área do sudeste da África. Nem mesmo o assassinato de Shaka, em
1828 - levado a cabo por dois de seus meios-irmáos, que aparen-
temente estavam descontentes com o despotismo dele -, destruiu
o Estado zulu. O reino z_ulu, embora perdesse forças em razáo dos
confitos nos quais se envolvia, especialmente com os bôeres e com
os britânicos, manteve sua coesáo e sua vigorosa identidade étnica,
mesmo após a derrota final paÍa os britânicos, no fim do século
XIX. Ainda hoje, a identidade étnica zulu - alimentada pela memó-
ria de sua independência e de sua unidade, e simbolizada pelo inka-
tlta, cesto de palha típico dos zulus - continua sendo uma poderosa
força motivadora no sul da Áfti.".
Essa memória é de fato poderosa, mas também é imaginâria. A
"história" da etnogênese zulu é uma criaçáo moderna, construída
a partir de opinióes internas de como'o mundo deveria ser e de
representaçóes externas de como a história de um povo deve ser
interpretada.
A. T. Bryant, o compilador da "história" dos zulus, elaborou
conjecturas essenciais a respeito da natureza de suas fontes, de seu
'188 --e O Mito das Naçoes

objeto e da estrurura mais ampla da inteligibilidade,


eüe basicamen-
te transformaram os zulus em um "povo". O modo como abordou
as tradiçóes orais que reuniu se manifesta em duas hipóteses interli-
gadas.6 A primeira delas é uma abordagem ingênua das próprias tra-
diçóes orais, as quais ele tomava como fatos históricos, fragmenta-
dos e confusos talvez, mas qualitativamente equivalentes à narrativa
abrangente que elaborava. Bryant parriu do princípio de que havia
uma única versáo "correra" do p"siado dos zulus, e de que indiví-
duos diferentes poderiam relatar versóes mais ou menos distorcidas
da verdade histórlca. Assim a tarefa do historiador seria preencher
as lacunas, ligar fragmentos e harmô nizar discrepâncias. Segundo ó
próprio Bryant, a'funçáo "simples de reunir, em uma ordem sisre-
mática, todas as informaçóes a respeito da antiga história tribal dos
nativos de Zululândia e Naral".7
Sua segunda hipórese era a de que essas tradiçóes orais consti-
tuíam as histórias da uniáo étnica dos clás "ngúnis", eue haviam
perdurado com poucas mudanças por séculos a fio e que tinham
suas próprias fronteiras políticas, sociais e habitacionais. Sua histó-
ria da ascensáo do reino zulu consistia, portanto, enì um relato da
fusáo dessas entidades distintas, que resuhou na formaçáo do clá
zulu. Ele partia do princípio de que o passado havia sido essencial-
mente o mesmo durante séculos, e portanto as estruturas dos clás
do século XIX poderiam ser projetadas no período mais antigo da
história dos ngúnis.
Bryant não apenas aceitava sem questionar a veracidade histórica
das lendas que compilava como também as organi zava de acordo
com suas próprias pressuposiçóes intelectuais e culturais, as quais

6. J. B. Wright e C. A. Hamilton, "Traditions and Transformations: The Phongolo-Mzimkhulu Region


in the Late Eighteenth and Early Nineteenth Centuries', em A. Dummy e B. Guest (Eds.), Nant and
Zululand: From EarliestTimes to 1910: A New History, Pietermaritzburg, 1989, p.49-57.Ver também
Carolyn Anne Hamilto n, Terrifrc Majesty:The Power of Shaka Zutu and the Limits of Historica!
I nvention, Cambridge, MA, 1 998.

7. A. T. Bryant, OldenTimes in Zululand and Notal, Londres, 1929, p. viii.


CapÍtulo 6: A respeito dos novos povos europeus o-- 189

considerava parte da ordem natural. Bryant, um missionário cris-


táo, considerava o seu trabalho, segundo suas próprias palavras, um
dever altruísta "paracom nossos iletrados irmáos negros, um resga-
te, na medida do possível, de suas simples tradiçóes, antes que sejam
esquecidas, independentemente de sua insignificância paÍa nós".8
Ele chegou ao sul da Áfri.a em 1883, aproximadamente 50 anos
após a morte de Shaka, portanto náo tinha um conhecimento direto
da história que relatava, e as informaçóes que reunia provinham dos
sobrinhos do rei e de outros informantes dessa geraçáo. Ele organi-
zou esses relatos, que descreveu como "fragmentários;tïèsconexos e
muitas vezes sem significado para os leigos",e de modo a formar um
único panorama, técnica que compaÍavaà da montagem artística de
mosaicos,lo familiar ao público europeu. Bryant náo nutria grande
estima pelo público europeu, "para o qual toda a história é notoria-
mente insípida", e ao qual teria que apresentar seu material de uma
forma que fosse palatável, paÍa que o leitor náo perdesse o interesse
durante a leitura.ll
No mosaico montado por Bryant a partir dos fragmentos, suas
origens e formaçáo se fazem evidentes. Primeiro, como um cristáo
de formaçáo clássica, organizou seu material de modo a explicitar as
analogias entre as migraçóes dos zulus e as peregrinaçóes do povo
hebreu narradas no Êxodo e as dos lombardos, godos e eslavos du-
rante a Alta Idade Média. Ele compara as relaçóes entre os subgru-
pos dos bantos, dos quais os ngúnis faziam parte, às relaçóes "exis-
tentes na Europa entre os ingleses, alemáes e escandinavos da raça
nórdica".l2 Malandela é explicitamente comparado a Moisés, e os
melóes que sua família encontra durante a jornada sáo tidos como o

8. Bryant, Olden Times in Zululand, p. ix.


9. Bryant, Olden Times in Zululond, p. viii.
10. Bryant, Olden Times in Zululand, p. x.

11. Bryant, OldenTimes in Zululand, p. vii-ix.


12. Bryant, Olden Times in Zululand, p. 4.
190 --s O Mito das NaçÕes

"maná de sua selva".l3 Como Moisés, Malandela "estava destinado a


vislumbrat ateffaprometida e entáo morrer".la Dessa forma, Bryant
conscientemente apresenra a história dos zulus em consonância com
os modelos bíblicos e, sob uma perspectiva mais geral, com a histó-
ria européia. Se a história da migraçáo dos zulus se assemelha a uma
história familiar aos europeus, isso ocorre, em parre, porque houve
um planejamenro para isso.
Além disso, Bryant náo apenas estrururou a história zulu em
harmonia com a etnogênese européia, ou com a hebraica, da forma
como as compreendia, como também determinou conscientemente
as motivaçóes e o significado em sua história de modo a refetir as
tradiçóes européias. Novamenre, por supor que o público europeu
consideraria sua obra "pouco atraente" e "demasiado exótica", decla-
rou que seu objetivo era:
elaborar uma versáo histórica inteligível e agradável fazendo uso,
-
no geral, de um estilo coloquial e leve; criando, aqui e ali, uma
"atmosfera" apropriada; elaborando um "pano de fundo" indispen-
sável; induzindo um estado de ânimo adequado por meio do apelo
ao páthos; cobrindo os "ossos secos" da história com um sorriso
cômico; unindo detalhes desconexos por meio de nosso próprio
jargío, baseado em nosso próprio conhecimento da vida e do ca-
ráter nativos.ls

Essa tentativa de
familiarizar o exótico consistia basicamenre na
elaboraçáo de inúmeras analogias entre as tradiçóes culturais afri-
canas e as européias. Dingiswayo, por exemplo, torna-se um "nobre
fidalgo", e Bryant compara favoravelmenre o estabelecimento de seu
império aos feitos dos líderes dos antigos egípcios, persas, gregos e
romanos:

13. Bryant, Olden Times in Zululand, p. 17.

14. Bryant, Olden Times in Zululond, p. 19.

15. Bryant, Olden Times in Zululond, p.ix.


Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus e"_ 19,l

Apenas a Inglaterra moderna foi capaz de atingir tal aPuro na


arte imperial de governar e, Por isso, foi universalmente conside-
rada brilhante. Os negros, entretanto, eu€ frzeram exatamente a
mesma coisa, e muito antes dos ingleses, nunca Passarem de "me-
ros selvagens sem cultura".l6

Shaka, por outro lado, é visto como o Júlio César dos zulus. O tí-
rulo do capítulo do assassinato de Shaka é "César cai, e a tirania está
morta". Portanto Bryant não registra nem Preserva a Perspectiva in-
terna dos zulus em sua narrativa das migraçóes e da centtalïzaçáo do
poder, nem no sentido cultural que elabora a partir de suas evidências.
Em vez disso, ele a cria por meio da adaptaçáo de fragmentos das
tradiçóes zulus, transformando-os em uma "história real", ou seia'
em uma narrativa baseada na história por excelência- a do mundo
judaico-cristáo-romano.
Bryant náo foi o primeiro etnógrafo a descrever as origens de um
"povo" com base nos protótipos bíblicos e clássicos, nem o primeiro
a estruturar um relato histórico em consonância com as suposiçóes
e preconceitosculturais de seus leitores. Os autores do final da Anti-
güidade e os do início da Idade Média frzenm exatamente a mesma
coisa quando escreveram sobre as origens dos godos, dos lombar-
dos, dos francos, dos anglo-saxóes e posteriormente dos sérvios, dos
croatas e dos húngaros. Como vimos nos caPítulos anteriores, auto-
res como Jornandes, historiador dos godos, Gregório de Tours, dos
francos, e Constantino Porfirogêneto, dos eslavos' enquanto afirma-
vam, explícita ou implicitamente, que estavam difundindo antigas
tradiçóes orais, descreviam esses povos de acordo com as categorias
romanas e cristás. Os nomes dos líderes, as divisóes dos PoYos em
unidades tribais ou familiares, as batalhas célebres' as peregrina-
çóes lendárias, todos esses fatos e elementos possuíam importantes
valores simbólicos e eram freqüentemente vinculados à história dos

16. Bryant, Olden Times in Zululand, p. 101.


192 --s O Mito das Naçoes

hebreus e às tradiçóes da etnografra greco-romana. Essas histórias


nunca eram efetivamente "nacionais", elaboradas com o objetivo de
difundir a perspectiva nativa do passado de um povo. Pelo contrá-
rio, eram reestruturadas de acordo com os interesses culturais e polí-
ticos de seus autores. Além disso, esses autores, assim como Bryant,
não eram ingênuas restemunhas nativas registrando as tradiçóes de
seus povos. Embora alguns deles, como Jornandes e Paulo Diáco-
no, historiador dos lombardos, afirmassem descender dos povos que
descreviam, eles haviam assimilado inteiramente a tradiçáo cultural
romana e cristã, com ba.se na qual interpretavam seus objetos.lT
Levando em consideração a abordagem ingênua de Bryant e sua
tentativa de adaptar o passado dos zulus aos parâmetros europeus,
poderíamos concluir que seu trabalho, longe de tornar a história zulu
acessível, a torna incognoscível. Seu relato se assemelha mais a uma
sala de espelhos do que a um mosaico, cada um deles refetindo um
aspecto de sua própria perspectiva político-cultural, impedindo
uma compreensáo efetiva da etnogênese zulu. Posicionando-nos no
centro dessa sala de espelhos, podemos concluir que Olden Times
in Zululand and Natal nos diz muito a respeito dos missionários
cristáos tr" Áfric" colonial, mas nada sobre a história zulu. De fato,
foi exatamente isso que foi dito a respeito dos historiadores da Alta
Idade Média. Porém esse ceticismo radical é injustificado.
O mosaico de Bryant pode, de fato, ser considerado ficçáo, mas
náo os fragmentos isolados.ls Modos alternativos de compreendê-
los e usá-los para construir uma imagem dos primórdios da história
dos zulus, especialmente quando combinados com a arqueologia,

17. Sobre os contextos culturais e políticos de quatro desses historiadores da Alta ldade Média, ver
Walter GoffarÌ, Norrators of Earbarian History, que sustenta que os interesses políticos e religiosos
desses autores determinaram o conteúdo e a forma de suas obras.
18. Sobre as fontes do século XlX, africanas e européias, a respeito do líder zulu Shaka, ver William
Worger, "Clothing Dry Bones: The Myth of Shaka", Jou rnal of African Studies, vol. 6, número 3,
'1979:144-158; e Carolyn Anne Hamilton,Terrifrc Majesty, especialmente o cap. 2, "The
Origins of
the lmage of Shaka", p.36-71.
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus s.- 193

permitem que os historiadores compreendam um passado zulu mui-


to diferente, apesar da criaçáo fantasiosa de Bryant.
Recentemente os historiadores da Ãftic^ começaram a esboçar
uma "história reconceituada" da regiáo de Phongolo-Mzimkhulu,
reinterpretando as tradiçóes orais compiladas por Bryant com base
em dois critérios fundamentalmente diferentes. Primeiro eles reco-
nhecem que as tradiçóes orais náo sáo meramente relatos factuais,
mas declaraçóes políticas que impóem padróes de significado ao
passado com o objetivo de legitimar projetos para o presenre e o
futuro. Além disso, essas tradiçóes náo refletem apenas os valores
de um único governante. Elas geralmente sáo o produto de confitos
entre diferentes facçóes, e assim incorporam padróes internamenre
contraditórios e disjuntivos em uma tentativa de neutralizar o anra-
gonismo entre facçóes rivais. Os historiadores podem "desrrinchar"
essas inconsistências paÍa redescobrir algo a respeito dos conflitos
políticos que as geraram, praticando uma espécie de arqueologia
textual, desvendado as camadas de alegaçóes e contra-alegaçóes ex-
pressas na linguagem da tradiçáo, que as versões oficiais renraram
obscurecer.l9
Além disso, eles reconhecem que as unidades de análise - "rri-
bos", "clás" e outras unidades políticas e sociais -
náo constituem
realidades estáveis, objetivas e duradouras. Pelo contrârio, a compo-
siçáo, a organizaçâo interna, a cultura, as tradiçóes, as associaçóes
étnicas e as fronteiras das unidades políticas do passado e do presen-
te se transformam constantemente.2o Nem os zulus nem os ngúnis
podem ser compreendidos como agenres objetivamente existentes e
estáveis na história. Pelo contrário, eles sáo construcros, cuja natu-
reza deve ser constântemente questionada, assim como sua própria
existência.

19. Wright e Hamilton, "Traditions and Transformations", p.52.


20.lbid., p.53.
194 --p O Mito das Naçoes

A história que emerge apartir de uma reinvestigação das evidên-


cias com base nessas consideraçóes preliminares é radicalmente di-
ferente da história criada por Bryant e adaptada pelos zulus contem-
porâneos, eu€ dela se apropriaram. O grupo étnico homogêneo que
Bryant chamou de ngúni nunca existiu. O termo "ngúni", assim
como "germano", tem valor apenas como uma designaçáo lingüís-
tica, e nunca como uma designaçáo política, cultural ou social. Do
mesmo modo, os ntungwa, os mbo e os kk, os quais compreendia
como antigos subgrupos dos ngúnis, provavelmente eram gruPos
desconexos que começaram a existir durante o processo de consoli-
daçáo do reino zulu, na década de 1820. Além disso, a migraçáo que
Bryant descreve em termos bíblicos nunca aconteceu. Os registros
arqueológicos e uma leitura atenta das lendas zulus nos levam a crer
que náo houve grandes deslocamentos populacionais durante os sé-
culos XVII e XVIII, assim como náo há evidências concretas das
migraçóes góticas da Escandinávia nem das peregrinaçóes francas
do Danúbio ao Reno. Pelo contrário, os grupos que se tornariam
zulus emergiram da populaçáo nativa da regiáo. Histórias de migra-
çáo sáo meios de mitificar a "fundaçáe" das unidades políticas do
século XIX.
Antes das transformaçóes políticas do século XIX, a populaçáo
da regiáo era subdividida em inúmeras unidades de vários tama-
nhos e com estruturas políticas diversas. Alguns desses grupos eram
pequenos, liderados por chefes que exerciam uma autoridade ritual
mas pouco coerciva. Outros eram maiores, governados por chefes
subordinados e um chefe supremo que exercia um poder conside'
rável sobre os primeiros. Enquanto a coesáo política era sustentada
pela redistribuiçáo dos tributos pagos ao chefe por seus seguido-
res, outros tipos de vínculo, como os de parentesco, clientelismo,
alianças matrimoniais e relaçóes de vizinhança, transcendiam essas
fronteiras políticas. Portanto as comunidades e estruturas de lide-
rança eram volúveis: elas cresciam, subdividiam-se e reestrutura-
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus s.- 195

vam-se constantemente por meios violentos ou pacíficos, enquanto


os elementos dessas combinaçóes se reorganizavam de acordo com
as mudanças.
O poder de um chefe era limitado pela fuidez desses agrupa-
mentos, pela ausência de instituiçóes pelas quais poderia consolidar
seu poder sobre o grupo e impedir possíveis cisóes e pela inabilidade
do grupo reinante de adquirir um controle exclusivo sobre os re-
cursos econômicos básicos, principalmente sobre a rerra. Essas li-
mitaçóes também impediam o estabelecimento de limites nítidos
entre as classesr eu€ seriam determinados pelo acesso aos recursos
econômicos. Até mesmo a autoridade dos chefes supremos, ou che-
fes que comandavam ourros chefes, era limitada pela inabilidade de
legislar ou de coagir os chefes subordinados a exercer funçóes que
iam além da arrecadação de tributos ou da mobilização ocasional de
contingentes. Assim sendo, o posro de chefe supremo, devido à falta
de órgáos centrais para a manutençáo de um controle permanente,
também era instável e passível de mudanças.
' As transformaçóes do final do século xvIII, que propiciaram o
surgimento de unidades políticas centralizadas e poderosas, como a
dos mabhudu, a dos mthethut e a dos zulus, náo podem ser expli-
cadas pelo simples aparecimento de grandes líderes militares, como
Dingiswayo e Shaka, por mudanças climáticas ou por um cresci-
mento populacional espontâneo. Aparentemenre a incorporaçáo da
regiáo de Phongolo-Mzimkhulu ao sisrema comercial europeu foi
um importanre fator externo na determinaçáo dessas mudanças.
Essa incorporação teve
início com a exploraçáo da região pelos co-
merciantes de marfim europeus. Os chefes africanos que podiam
controlar as rotas do comércio e o suprimento de marfim, e poste-
riormente de gado, conseguiram ampliar seu poder com a distribui-
çáo de bens europeus, especialmenre tecidos e metais. Essa mudança
nas relaçóes de poder destruiu o equilíbrio tradicional dos sistemas
196 --s O Mito das Naçoes

de crescimento, competiçáo, desintegraçâo e rransformaçáo que ca-


racteÍizavam as volúveis estruturas sociopolíticas da regiáo.
A disputa entre os chefes pelo controle dos benefícios gerados
pelo comércio internacional teve como conseqüência a rápida rrans-
formaçáo da organizaçâo sociopolítica das chefaturas. Os chefes
passaram a usar os amabutlto, ou escolas de circuncisáo - grupos
de jovens que eram periodicamente organizados sob o comando dos
chefes e submetidos a rituais de iniciaçâo -, como meios de ampliar
seu poder. Esses grupos, com suas próprias identidades e códigos de
lealdade, eram primeiramente engajados na caça de elefantes, com
o objetivo de adquirir marfim, aumentando assim as riquezas do
chefe, ampliando sua clientela e fortalecendo seu poder de coerçáo
para a arrccadação de impostos. Como parte dessas riquezas podia
ser investida nos próprios amabutha, os chefes fortaleciam o conrro-
le sobre esses grupos, que se tornavam cada vez mais militarizados, e
passayam a ser utilizados nos conflitos entre chefes rivais, no contro-
le dos subalternos e na cobrança de impostos dos súditos recalcitran-
tes. Desse modo, os chefes se tornavam cada vez mais dependentes
dos amabutlto, e conseqüentemente dos rebanhos, com os quais os
recompensavam por seu trabalho. Com a crescente necessidade de
adquirir gado, os chefes começaram a saquear outros grupos e a
conquistar territórios para a criação de animais.
Os meios específicos pelos quais os grupos vizinhos eram ab-
sorvidos variavam. Os chefes derrotados podiam ser incorporados
aos mitos de origem dos conquistadores, e os grupos conquistados,
isolados e permanentemente subordinados à facçáo dominanre, ge-
rando uma forma de estratificaçâo social binária.
Por volta do início do século XIX, esse processo de expansáo mi-
litar e consolidaçáo política jâhavia criado inúmeras unidades polí-
ticas importantes, além do confito entre os ndwandwe, que forma-
vam um Estado bastante cenualizado e militartzado, e os mthetltwa,
que constituíam uma unidade política menos cenualizada liderada
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus e- 197

por Dingiswayo, na qual chefes subalternos, incluindo Shaka, dos


zulus, continuavam gozando de uma autonomia considerável. Por
volta de 1812 os ndutandwe derrotaram os mthethua e mataram
Dingiswayo, em parte porque Shaka havia se recusado a apoiar seu
chefe supremo com seu exército zulu. Shaka e seus guerreiros, que
naturalmente estavam intactos, derrotaram os ndwandwe e rapida-
mente conquistaram toda a regiáo.
O sistema de controle estabelecido por Shaka foi uma adaptaçáo
do sistema de seus predecessores. Os jovens dos grupos derrotados
foram forçados a servir aos amabutho zu\us, a viver em alojamen-
tos reais isolados e proibidos de se casar sem o consentimento real.
Esse sistema enfraquecia os vínculos tradicionais entre os jovens e os
mais velhos e os vinculava ritual e politicamente ao rei zulu. As mu-
lheres jovens também eram incorporadas aos arnabutha. Assim o rei
podia controlar aforçade trabalho feminina e os casamentos, que só
eram realizados sob sua autorizaçáo. Além disso, as jovens de status
privilegiado fornecidas como tributo eram isoladas em alojamentos
reais como "filhas" ou "irmás" do rei, de modo que ele pudesse ofe-
recê-las paÍaque se casassem com homens poderosos, estabelecendo
relaçóes de patronato.
Dessa forma, estabeleceu-se uma sociedade zulu dividida em três
camadas. Da camada superior faziam parte o rei e a aristo cracia,
membros do grupo reinante, os que haviam sido incorporados ao
grupo durante o início da expansáo e os chefes dos grupos subju-
gados. A segunda camada eÍa formada pelos amabutho, principal
sustentáculo do poder zulu. Para que se unissem, eram encorajados
a se reconhecer como descendentes dos ntungwa, compartilhando
assim origem e passado comuns.
Enquanto os membros da segunda camada eram inconsciente-
mente unidos pela solidariedade étnica, os membros da classe mais
baixa formada pelos grupos conquistados da periferia do reino,
-
cujos membros cumpriam funçóes servis e eram excluídos dos ama-
'198 --e O Mito das Nações

butho -
eram compreendidos como etnicamente distinros e inferio-
res aos ntangwa.
As conquistas e a consolidaçáo do reino de Shaka foram levadas
a cabo de modo extremamente violento. Os grupos que conseguiam
fugir migravam para longe da regiáo de Phongolo-Mzimkhulu,
criando um efeito de instabilidade na região. A consolidaçáo promo-
vida por Shaka também enconrrou forte resistência, que culminou
em seu assassinato, em 1828. Porém as instituições que havia criado
permaneceram fortes e sobreviveram à sua morte. O trono passou a
ser ocupado, sem grandes incidentes, por Dingane, seu meio-irmão,
que havia participado de seu assassinato. A criaçáo de um mito de
origem para a sociedade zulu foi táo efetivo que, em meados do sé-
culo, os europeus reclamavam que até mesmo os descendentes dos
grupos reinantes subjugados por Shaka se reconheciam como des-
cendentes diretos dos zulus, que haviam subjugado seus avôs.

Zulus e europeus

As duas versóes da história dos zulus devem ser familiares aos eu-
ropeus. Lendas de uma grande migraçáo, cisóes graduais de clás
etnicamente homogêneos, transformaçóes políticas súbitas sob as
pressóes do crescimenro demográfico e o surgimento de um Estado
militar poderoso devem ser bastante familiares a qualquer um que
tenha um mínimo de conhecimento sobre o grande período das mi-
graçóes da história européia. Essa nâo é apenas a história dos zulus,
mas também dos povos germânicos e eslavos. Náo é necessária uma
grande imaginaç áo para que se reconheça, em Malandela ou em
Shaka, o rei Teodorico, dos ostrogodos, Alboino, dos lombardos,
Clóvis, dos francos, Chrobatos, dos croatas, ou o búlgaro Isperikh.
Isso se dá, em parte, porque os autores antigos e medievais, em cujos
textos os historiadores contemporâneos têm se fiado, mantinham
exatamente a mesma postura em relaçáo aos seus objetos de estudo
CapÍtulo 6: A respeito dos novos povos europeus o.- 199

que Bryant em relaçáo a Shaka. Gregório de Tours, Jornandes, Bede


e Paulo Diácono, por exemplo, eram todos autores cristáos e todos
estabeleciam comparaçóes, implícitas ou explícitas, entre os "povos"
sobre os quais escreviam e os "povos" por excelência, os hebreus e
os romanos. Do mesmo modo, o próprio processo de escrever uma
história que inclui esses povos significa uma tentativa de incorporá-
los à "história", ou seja, à história universal, eue paraeles nada mais
era do que a história de Roma.
Naturalmente Bryant náo estava meramente imitando os autores
antigos. Como um indivíduo do final do século XIX, ele se baseou
na obra dos historiadores europeus que também eram influenciados
pelos modelos bíblicos e medievais de análise sociocultural. Sua obra
foi muito bem aceita, e isso se deu, em parte, porque sua perspecti-
va da história dos zulus estava em consonância com o modo como
os europeus e africanos europeizados compreendiam o Processo de
formaçáo das sociedades.
Essas interpretaçóes revisionistas da história zulu, elaboradas por
historiadores como'\Tright e Hamilton, reverteram essa tendência.
Eles começaram a ir além dos constructos da mitologia étnica euro-
pêiaparacompreender as forças mais complexas e dinâmicas que de-
terminaram o surgimento dos zulus. As obras desses autores, que
sáo menos dependentes dos padróes euroPeus, oferecem um modelo
alternativo para a compreensáo das origens dos zulus e conseqüen-
temente da formaçáo dos povos europeus. Podemos perceber uma
convergência entre o modo como os historiadores do século XXI
estáo revendo a compreensáo da formação dos povos medievais e a
forma como os africanistas estáo abordando seu objeto de estudo.
Os efeitos do Império Romano, com seu exército e principalmente
com suas rotas comerciais em terras bárbaras, sáo cada vez.mais
compreendidos como uma força que desestabilizava o mundo bár-
baro. Novas formas de organização militar e o exercício do poder
pelos comandantes regionais, que contavam com o apoio militar e
200 --s O Mito das Naçoes

financeiro dos romanos, propiciaram o surgimento de novas uni-


dades políticas extremamente poderosas. Muitas delas tiveram vida
curta, enquanto outras conseguiram sobreviver aos seus fundadores,
incorporando grupos rivais e criando mitos unificadores que proje-
tavam seus respectivos povos em um passado longínquo e glorioso,
e que justificavam planos ambiciosos para o futuro.
Se há semelhanças entre as histórias míticas dos povos europeus
e a dos zulus, os usos políticos dessas histórias também se equiva-
lem. O passado dos zulus, utilizado por todas as facçóes políticas de
KwaZulu-Natal, é uma ferramenta poderosa na Áftica do Sul con-
temporânea. Em 1994, Mangosuthu Buthelezi, primeiro-ministro
nacionalista dos zulus e líder do Inkatha, em um conflito dramático
que foi parcialmente televisionado, tentou impedir uma reaproxi-
maçáo entre o presidente recém-eleito Nelson Mandela e o rei zulu
Goodwill Zwelithini, barrando a participaçáo do primeiro em uma
comemoração tradicional do dia de Shaka. Buthelezi apelou paÍa a
história do reino zulu dos tempos de Shaka paratentar defender sua
postura nacionalista. Esse fato se assernelha bastante à manipulaçáo
do aniversário da batalha de Kosovo por Slobodan Milosevic, ou à
tentativa de Jean Marie Le Pen de usar o aniversário do batismo de
Clóvis paÍa fins políticos.
Há alguns anos, um jornalista americano que viajava pela pro-
víncia da Macedônia, na Grécia, após ser levado a inúmeros sítios
arqueológicos por seu guia, que queria "provar" que a Macedônia
sempre havia sido grega e que assim deveria permanecer, fez um co-
mentário a respeito da importância que seu anfitriáo dava à história.
O grego retrucou: "Vocês americanos náo entendem. Para nós, a
história é tudo". Mas uma história que náo muda, que reduz a com-
plexidade de séculos de transformaçóes sociais, políticas e culturais
a um momento único e eterno, nío ê história.
Aqueles que afirmam que suas açóes se justificam ou sáo com-
pelidas pela história náo sabem o que é a mudança, a essência da
Capítulo 6: A respeito dos novos povos europeus e"- 201

história da humanidade. A história dos povos europeus da Alta lda-


de Média náo pode ser usada como argumento a favor ou contra
nenhum movimento político, territorial ou ideológico dos dias de
hoje, assim como o futuro deKwaZulu-Natal náo pode ser determi-
nado pela interpretaçáo "correta" da vida do rei Shaka.
Naturalmente as questóes do passado, assim como o processo
complexo, geralmente violento e definitivamente obscuro pelo qual
os povos e as naçóes européias passaram, náo podem ser descar-
tadas por slogans como "comunidades imaginadas" ou "tradiçóes
inventadas". Porém, como já vimos, o uso da história a serviço do
nacionalismo, prâtíca herdada do século XIX, nâo é mais apropria-
do. Dentro e fora do mundo romano, os gruPos sociais e políticos
sempre consdtuíram comunidades complexas e mutáveis, nas quais
a cidadania, suas metas e suas identidades estavam constantemente
abertas a negociaçóes, disputas e transformaçóes. Os povos bárbaros
que habitavam além do Reno e do Danúbio nunca constituíram
grupos homogêneos em termos lingüísticos ou culturais, unificados
por ancestralidades ou por tradiçóes comuns. Muito pelo contrário,
eles eram táo complexos quanto os próprios romanot. À medida que
as fronteiras entre bárbaros e romanos se desintegravam, o que atual-
mente é chamado de "política de identidade" passava a ser usado
como um meio de organizar e motivar seguidores: novos grupos
reivindicavam nomes de povos "antigos". Antigas unidades políticas
desapareceram sob o domínio multicultural de godos, hunos e fran-
cos. Algumas nunca reapaÍeceram. Grupos heterogêneos de solda-
dos mercenários e inimigos derrotados concordavam em aceitar um
líder comum e, com o tempo, uma identidade comum. Em outras
circunstâncias, líderes opositores, alegando representar a antiga tra-
diçáo de um povo, podiam conduzir seus seguidores à conquista,
alterando a ordem estabelecida, ou à aniquilaçâo.
O estabelecimento de reinos territoriais - nos quais parcelas po-
liticamente significativas da populaçáo acabavam aceitando a iden-
202 --s O Mito das Naçoes

tidade de seu líder - por grupos bem-sucedidos


era uma tendência
constante. Nunca saberemos como os camponeses e escravos se re-
conheciam, mas os que se uniam paÍalutar e que gozavamda condi-
çáo de homens livres se vinculavam à identidade do rei. Entreranro,
com a expansáo do Império Franco nos séculos VIII e IX, as iden-
tidades regionais foram transformadas em instrumentos imperiais.
As múltiplas identidades estavam entre os recursos da elite européia
e eram usadas com objetivos distintos em diferentes circunstâncias.
O processo de transformaçáo náo terminou com o surgimento
de reinos identificáveis na Idade Média. A história do povo euro-
peu náo terminou, e nunca terminará. A etnogênese é um processo
do presente e do futuro ranro quanro do passado. o empenho dos
românticos, políticos e cientistas sociais náo pode conservar para
sempre a alma de um povo ou de uma naçáo, nem garantir que as
naçóes, grupos étnicos e comunidades atuais continuaráo existindo
no futuro. O passado pode ter estabelecido os parâmerros a partir
dos quais podemos construir o fururo, mas ele náo pode determinar
o que o futuro deve ser. Os povos da Europa, assim como os daÁni-
ca, daAmérica e da Ásia, sáo elemenros formados e consranremenre
reformulados pelo processo histórico, e náo estrururas atômicas da
própria história. Heráclito esrava cerro: náo podemos nos banhar
duas vezes no mesmo rio. Os rios que sáo os povos continuam vivos,
mas as águas do presente náo sáo as do passado nem seráo as do fu-
turo. Os europeus têm que reconhecer a diferença entre o passado e
o presente se quiserem construir um futuro.
SUCISTÕTS DE LEITURAS COMPLEMENTARES
s'Ha

Co-o livro é direcionado ao público náo especializado, na


este
maioria das notas eu especifiquei apenas o título do livro e o do
capítulo, deixando de lado as referências a ediçóes e traduçóes espe-
cíficas. Se o leitor náo domina o grego ou o latim, mas mesmo assim
deseja examinar essas fontes de modo mais aprofundado, pode mui-
to bem consultar as traduçóes disponíveis. Entretanto deve se lem-
brar que, nas palavras de um tradutor profissional, "toda traduçáo é
uma mentira refinada".
Duas séries de excelentes traduçóes de muitos desses textos já
estáo disponíveis. Uma delas é da Loeb Classical Library, que publi-
ca ediçóes bilíngües de textos clássicos. Algumas de suas traduçóes
datam do início do século XX, enquanto outras sáo bem recentes,
incluindo autores da Antigüidade como Ausônio e Procópio.
A outra série é da editora Penguin, que publicou autores como
Heródoto, Plínio, Tito Lívio, Amiano Marcelino, Tácito e alguns
textos medievais, como Histories, de Gregório de Tours. A editora
da Universidade da Pensilvânia lançou History of the Lombards, de
Paulo Diácono, assim como as traduçóes das leis burgúndia, lom-
barda e sálica.
Recentemente a editora da Universidade de Liverpool lançou
uma ótima coleçáo chamada Translated Tbxts for Historians,t pu-
blicando uma grande variedade de traduçóes inéditas de autores do
final da Antigüidade e da Alta Idade Média. Entre elas estáo as dos
l. Textos Traduzidos para Historiadores (N. T.)
204 -p O Mito das Naçoes

textos de Gregório de Tours e Cassiodoro, além da obra de Victor


Vitensis sobre os vândalos. A série de Liverpool é distribuída nos
Estados Unidos pela editora da Uhiversidade da Pensilvân ia e jâ estâ
disponível em brochura.
A literatura sobre o nacionalismo étnico contemporâneo e suas
raízes no século XIX é muito vasra e continua sendo ampliada.
Além dos clássicos Imagined Communities, de Benedict Anderson
(Londres: verso, 1991), e Nations and Nationalism, de Ernest Gell-
ner (Ithaca, NÍ Cornell University Press, 1983),2 recomendamos
ZheEthnic origins of Nations, de Anthony D. Smith (oxford: Bla-
ckwell, 1986), e Nations and Nationalism since 1780, de EricJ. Hobs-
bawm (Londres: Canro, l99l).3
Há inúmeras obras sobre o final da Antigüidade e a Alta Idade
Média, mas muitas delas - geralmenre sem a intençáo dos autores
- sáo profundamenre vinculadas ao tipo de narrariva histórica na-
cionalista que este livro critica. Outras tendem a compreender os
povos como elementos objetivos, agenres duradouros da história,
perperuando de modo involuntário o modelo de compreensáo dos
povos inaugurado no século XIX. A maior parre dos textos históri-
cos sobre esse período foi publicada somenre em línguas da Europa
continental, de modo que os leitores que dominam apenas o inglês
náo têm acesso a eles. Entretanto pode-se aprender muito com a lei-
tura desses livros, mesmo discordando de suas idéias. As obras que
menciono a seguir sáo estudos recentes que podem levar os leitores
interessad.os a esse mundo fascinante e mal compreendido.
Early Medieual Europa de Roger Collins (Nova York: St. Martin's
Press, 1991), é uma densa e detalhada narrativa política do período,
enquanto The Formation of Christendom, de Judith Herrin (Prince-
ton: Princeton University Press, 1987), enfatizaseus aspectos cultu-
rais. Em The Rise ofWestern Christendom: Tiiumph and Diuersity AD

2. Em português, Naçoes e Nacionalismo(Gradiva, 1997). (N. T.)

3. Nações e Nacionalismo desde l7B0 (Paz e Terra, 1999). (N. T.)


Sugestão de leituras complementares o-_ 205

200-1000 (oxford: Blackwell Publishers Inc., L9g6),4 Peter Brown


descreve resumidamenre o período de transiçáo da Antigüidade à
Idade Média, também enfatizando seus aspecros culturais. Ftfth-
Century Gaul: A Crisis of ldentityi, editado por John Drinkwater e
Hugh Elton (cambridge: cambridge university Press, 1992), abor-
da muitas questóes controversas a respeito das sociedades e unidades
políticas da Europa ocidental no final da Idade Antiga. 7be Roman
Empire and lts Germanic Peoples, de Herwig \Tolfram (Berkeley e
Los Angeles: university of California Press, 1997), é a melhor in-
troduçáo, dentre obras em todas as línguas, à etnogênese do final da
Antigüidade.
"Povos" específicos encontraram seus próprios historiadores. o
melhor exemplo da nova abordagem da naüfiezaconstirucional dos
povos do período em questáo é History of the Goths, de Herwig \7ol-
fram (Berkeley: tlniversity of California Press, 1988). 7he Merouin-
'S?'ood
gian Kingdom.r, de lan (Londres: Longma n, 1994), é uma boa
introduçáo à história franca. Uma série britânica chamada Peoples of
Europe,s publicada pela Blackwell Publishers Ltd., apresenra rexros
curtos e acessíveis sobre os povos europeus, "de suas origens pré-
históricas aos tempos atuais". Alguns volumes dessa série, mas náo
todos, ainda estáo vinculados às antigas compreensóes de etnicida-
de, tendendo a considerar os "povos" como entidades objetivas e a
enfatizar sua continuidade.
Um projeto colaborativo internacional cham ado Transformation
of the Roman world,6 da European science Foundation, temproduzi-
do um trabalho fundamental e muito interessante sobre etnicidade.
Algumas obras elaboradas a partir desse projeto já, foram publica-
das. Entre elas esráo Kingdoms of the Empire: Tbe Integration of Bar-
barians in Late Antiquity, editada por Valter Pohl (Leiden: Brill,

4. A Ascensao do Cristianismo no Ocidente (Presença, 1999). (N. T.)

5. Povos da Europa. (N. T.)

6. Transformação do Mundo Romano. (N. T.)


206 --s O Mito das Naçoes

1997), e Strategies of Distinction: The Consnuction of Ethnic ldentity


Communities 300-800, editada por 'Walter Pohl e Helmut Reimitz
(Leiden: Brill, 1998).
Por fim, alguns jovens acadêmicos começaram a reavaliar alguns
aspectos da tradiçáo herdada das histórias nacionais da Europa Cen-
tral e do Leste Europeu. Entre as obras desses aurores estáo people
and ldentity in osnogothic ltaly 489-554, de Patrick Amory (Cam-
bridge: Cambridge University Press, rg97), uma das tentativas mais
ambiciosas de demonstrar as complexas realidades identirárias da
Alta Idade Média, e The Mahing ofthe Slaus: History andArchaeologlr
of the Lower Danube Region, ca. 500-700, de Florin curta (Cam-
bridge: Cambridge University Press, 2001). Esperamos apenas que,
nos próximos anos, esra curra bibliografia seja efetivamente amplia-
da e que os historiadores da Europa, da América do Norte e da Ásia
continuem desvendando o mito das naçóes.
INoIcT REMISSIVO

Alemanha
armas e táticas das tribos na regiáo
correspondente à atual, 95-96
A Cidade de Deus,7lJ4 etnocentris mo, 13-14
Acordos de Helsinque, 12 filologia e desenvolvimento do
Aécio (comandante romano), 161 nacionalismo na,40-49
Áfti.", reino vândalo na. Ver também identidade coletiva na, 3l-32
"zulus", l2l-122, 130-131 minorias étnicas na, 14-16
Agostinho (santo) nacionalismo político na era
pós-napoleônica, 35-43
teorias etnográfica s de, 7 l-7 3
precursores do nacionalismo na,
Agricola,6T-69
34-35
Alamanos
raízes históricas do nacionalismo
armas e táticas dos, 95-96
na,28-30
classificaçáo romana dos, 100- violência racista na, 15-16
r02 Alianças matrimoniais
descriçáo de Amiano dos,74- com fins políticos, 122-123
75 na Espanha, proibiçáo dos
na Lombardia, 180 casamentos entre godos e
no norte da Gália, 138, 161-166 romanos, 152-155
vitória dos romanos sobre e trans- no Império Romano, 87-90
formaSo dos, l0l-1 10, 168-169 no reino zulu,197
Allègre, Claude,21
Alanos, 106-107, ll9 -124
Amabatho
Alarico, 50, l2l-124, 137-138
tradiçáo zulu dos, 196-198
Alarico ll, L37, 150-152
Amalasunta,l33
Alboino, 50-51, L4l-142, 146-148, Amali, família dos, 129, l3l-133,
198 r40
Aldeias Amiano Marcelino, 65-67, 7316, 106,
estruturas sociais bárbaras nas, 203
92-99 Amory, Patrick, 206
208 --e O M ito das NaçÕes

Anastácio (imperador), 137 relaçáo enrre a identidade étnica


Ancestralidade dos bárbaros dos bárbaros e suas, 93-94
mitos de,93-94 Armínio, 35, 37,97
Anderson, Benedict, 204 Arrecadaçáo de impostos
Anglo-saxonismo no Império Romano, 109-111
etnogênese na Britânia pós- poder dos bárbaros sobre a,
romana, 136-140 123-124,127-t2g
identidade érnica americana e o, Arrendatários (colonos) no Império
16_r7 Romano,84
Annales,3T Astolfo (rei), 148
Antae,167 Atalarico, 133
Antigüidade, período final da Atanarico, 107-109, 120
classificaçáo dos povos europeus Araulfo,l22
durante a,76-80 Átila, ll4-119, 123, 168
conjecturas culturais e Audiana (seita), 108
preconceiros na, 191-193 Aureliano (imperador), 102, 103
esrrutura social e identidade de Ausônio, 124-127
classe na, 88-90, 9B-lO2 Austrásia
nomes tribais e a identidade reino franco da, 159-161,
provinciana na, 125-129 178_179
política étnica da Europa Austregésilo (santo), 163
contemporânea e a, 182-184 Áustria
teorias etnográfica s na,73J6 política étnica na, l8-19
Antigüidade cristá problema dos refugiados na,
teorias etnográficas na, 70J6, L6_r7
78-f9 Autari (rei),147
Aorico, 107-108 Árraros, confederação dos, 53, 164-
Apuleio,86 175,183-184
Arbogasto, 105-106
Ardarico, 119 À-qo-i*p.s.*Énnn
Áre"s s (agri deserti) no
desocupada
ffi
Império Romano, 109
Arianismo, 108-109, 120-121, 129- Bagaudae
t30,132-134, 138_r3g identidade provinciana dos,
na Espanha gótica, l5Z-I57 r27-t28
na Lombardia,146-147 Bajan,167
Ariarico, 107 Bálcás, regiáo dos
Armas guerra civil nos, 13
confederaçáo huna, 115 migraçáo eslava para os,
identidade saxônica e suas, 169-172
r64_r66 "trabalhadores-hóspedes" dos, 15
Índice remissivo e- 209

Baltos, família dos, 129 Bósnia


Banac, Ivo, 30 conflito étnico na,14
Banditismo no Império Romano, Boulainvilliers, Henri de, 33
99-100, 109-lll Bretóes
Bantos, 189 classificaçáo de Tácito dos,
Bárbaros 68-70
a crise do século III e os, o Império Romano e os,97-98
100-102 Breuiário de Ahrico, l5l-152, 162
aristocracia provinciana, séculos Brown, Peter,205
VeVI, 124-129 Brúcteros
a teoria etnográfica e os,73J6, tratamento dado pelos romanos
78-80 aos, 102-103
etnogênese no Império Romano, Bryant, A. T., 186-202
Ll9-124,128-140 Búlgaros, 173-175
fusáo dos hunos com os, a queda do.Império Huno e os,
rt4-t16 119
fusáo dos romanos com os, Burgúndios
80-81, 101-ll0 etnogênese dos, 122-124,
fusáo na Itália dos, 14I-150 t29-t30, r3t-133
identidade social dos, 9l-99, fim dos, 134-135, 138-140
162-164 invasáo da Itália pelos,
no exército romano, 102-110, t4t-t43,180-181
111-112 reino gaulês dos, l5l-152
tradiçóes legais dos, 76-78, Busta Gallorum, batalha de,l34
r29-r30
Bascos, l5l-153
Baviera, 16l, 178-180
Bebel, Heinrich, 34-35
Bede, Venerável, 199 "Campo dos Melros
Before France and Germany,2l mani festaç ão or ganizada por
Bélgica, refugiados na, 16 Milosevic no, l8
Bélgica Secunda, 137 Capeto, Hugo, 33
Belisário, I34-I35 Caracala (imperador), 82
Bíblia Carlos Magno, 160, 166, 167
classificaçáo etnográfica na, Cassiodoro, 79J9, 132, 204
69-71, Celtas
Bleda, l18 armas e táticas dos, 95-96
Bonitus, 106 os reinos menores da Britânia
Bopp, Franz,40 pós-romana e os, 136-137,
Borgonha 165-166, t77-t78
reino franco d;a, 159-162 Celtis, Conrad,34
210 '-e O Mito das NaçÕes

Chamauari,I59 formaçáo da,72-74


Chechênia Concílio de Toledo, 155-156
violência na,14 Comunidades imaginadas
Childerico, 137 nacionalismo baseado em,28,
Chindasvinto (rei), 155,156 204
Chlotsuind a, 147 Condillac, Étienne Bonnot de, 38
Chrobatos, 185 Congresso de Viena, 39
Cidadania Conhecimento "científico"
conceito romano de,76-80 o nacionalismo e os modelos
fusáo bárbara e a, 81-90, alemáes do,40-41,42-51
105-111 Constantino (imperador), 91, 102,
relaçáo entre o serviço militar e 105-107,lll-ll2
a,90-93 Constantino Porfirogêneto, l7l-172,
Ciros, 116,199 191

Citas, povos Constitucional, modelo de povo,


armas e táticas dos, 95-96 72-74
classificaçáo de Heródoto dos, Coquille, Gui de, 33
59-63 Cristianismo
classificaçáo greco-romana dos, aceitaçáo franca do, 138-139
62-66 concepçáo tendenciosa da histó-
CleÊ,142 ria zulu e o, 187-190
Clotário II (rei), 179 conversáo dos saxóes ao, na
Clóvis (rei), 50, 137-140, 151, 158- Britânia, 165-166,165 n.39
160, 168, 185, 198-200 identidade étnica bárbara e o,
Cniva (rei), 101, 108, 140 129-136
Código Burgindio,16O identidade religiosa no Império
Código Ripuário,160 Romano, 86-90
Código Teodosiano, 150-153, 162 na confederaçáo gótica, 108-109
Código Visigótico de Eurico, 130 na Espanha gótica, os arianos e

Collins, Roger,204 o, 152-158


Columbano, 163 na Lombardia,I46-147
Comitatenses no exército romano transformaçáo da sociedade
estabelecimento das unidades, romena pelo, 111-112
110-111 Croácia,
Comunidade Européia confitos sérvios na,14-15
domínio da Europa Ocidental Croatas
sobre a, 11-13 origens étnicas dos, 170-175
política étnica e a,I9-2I Curiales
problemas de imigraçáo e a, arrecadaçáo de impostos no Im-
15-17 pério Romano e os, 109-110
Concepçáo de povo étnico Curta, Florin, 206
índice remissivo e.- 211

gótica como elemento essencial


das, 155-158
no Império Romano, 83-92,
Dagoberto (rei), 173, 179 105-110
Dediticii, I03, 120 no nacionalismo, papel das,
Dengizich (líder huno), ll7 28-32
Diácono, Paulo, 192, I99,203 nos reinos do norte da Gália,
D iferenciaç ío geogr âfrce r35-r39
classiÊcaçáo dos povos com base nos reinos francos, 159-165
na,59-63 nos séculos V e VI, a aristocracia
na história medieval, ausência provinciana e as, 124-129
de,52-55 os bárbaros no Império Romano
Dingane, 198 e es,96-99,122-124
Dingiswayo, I87, 190-192, 195-197 Elton, Hugh,205
Diocleciano (imperador), 89, 90, ll0 Ense, Varnhagen von, 36
Discursos à naç,ão alemá,38-39 Epitome Rerum Germanicarurn, 34
Donatistas, 130-131 Ervígio (rei),156-157
Drinkwater, John, 205 Escravidáo
identidade no Império Romano
e a, 81-90
identidade regional e a,126-129
Escravos emancipados
Edika (líder huno), 116 identidade provinciana na
Eichhorn, Karl Friedrich, 39 Antigüidade dos, 126-127
Elites sociais no Império Romano, status
a conquista da Itália pelos lom- social dos, 82-90
bardos e a sobrevivência das, Eslavos
r4t-r49 confederaçáo âva.ra e os,53-54,
a crise do século III no Império t66-t67, r6g-t72
Romano e as, 98-102 conquistas e migraçáo dos,
a dinastia carolíngia e as, 167-r72
180-181 etnoerqueologia e o estudo dos,
comparaçóes entre zulus e 48-50
europeus, 194-202 nacionalismo alemáo e os,
dos ostrogo dos, 132-135 34-36
identidades étnicas / sociais ocupaçáo do Danúbio pelos,
bárbaras e as, 129-136 164-165
infâmia dos vândalos entre as, os zulus comparados aos,
r29-r3r 189-190
na confederaçáo huna, 11,5-117 Eslováquia, Hungria e, 14
na Espanha, a ascendência Espanha
212 --s O Mito das Naçoes

conquista da Espanha pelos na Antigüidade cristá, 73J6


berberes / árabes, 177-178 surgimento do conceito de
fusáo gótico-romana na, cidadania e a,75-80
r49-r58 teorias de Heródoto relacionadas
Estados Unidos à,57-63
Comunidade Européia como teorias greco-roma nas, 62-70,
parceira dos, 12 17r-r93
etnocentrismo nos, 17, 23 teorias judaicas, 69-7 |
Estrutura de classes no Império Eudôcia,l23
Romano,81-90 Eudoxius, 128
Estruturas políticas Eurico (rei), 150
comparaçóes ente zulus e Exército
europeus no que se refere às,
administraçáo e burocracia do,
195-202 rtO-tr2
dos hunos, 1,13-ll4 comparaçóes entre zulus e euro-
identidade étnica bárbara e as, peus no que se refere aos usos
t29-136 do,195-202
na cultura eslava, falta de,
derrota para os romanos e incor-
169-17r
poraçáo ao, I02-lO9
teorias de Heródoto sobre as,
estratégias etnográficas do,
6t-63
181-184
Etnoarqueologia
na confederaçáo huna, ll5-119
desenvolvimento da, 48-50
na Lombardia, status legal do,
falta de correspondência entre
1,47-148
língua e cultura na,5l-55
no Império Romano, identidades
Etnogênese
sociais no, 82-92, 95 -99
analogia europeu/zulu,
Êxodo
t84-202
bárbaros no Império Romano, narrativa do, 189-192
rr9-r24
teorias de Heródoto sobre,
60-63,66
Etnografia
a aristocracia romana nos Fichte, Johann Gottlieb, 36-40, 42-
séculos V e VI e a, 125-127 43,57
a identidade no Império Filologia
Romano e a, 81-90 como ferramenta do nacionalis-
as migraçóes bárbaras e a, 'mo,43-49
73-76 ideologia nacionalista e a,
estrutura política e ideologia dos 42-49
ostrogodos em relaçáo à, impacto no nacionalismo
r3r_r33 alemáo da,40-42
Índice remissivo e.- 213

nacionalismo francês e a, na hierarquia militar romana,


43-44 TTT_IT2
Filologia indo-européia reinos gauleses dos, 135-140,
como ferramenta do nacionalis- 1,5r-r52
mo,42-49 relaçóes entre os sâxóes e os,
nacionalismo alemáo e a,40-49 165-167
Flamengos visigodos derrotados pelos,
antagonismos entre valóes e, 12 r34-r36
Flavius Maximus, 134-135 zulus comparados aos, 184-202
Foederati Francos sálicos
criaçío romana dos, 104, 119 nos reinos do norte da Gália,
Foedus (tratado romano), 107 r37-r39
França Fritigerno, 109, 120-I2l
filologia e nacionalismo na, Frye, David, 125 n. 6
43-46 Fusáo
identidades coletivas na, 3l-33
assimilaçáo bárbara na confede-
minorias étnicas na, 15-17
raçáo huna, II4-120
raízes históricas do nacionalis-
eslavizaçáo dos romanos,
mo na, 28-30
167-r7r
revoluçáo e nacionalismo na,
reinos francos, fusáo romana
33-35
nos, 158-165
Francia
romana na Espanha gótica,
interpretaçóes lingüísticas da,
151-158
r74-r75
romana na Lombardia, 141-150
Francos
transformaçáo dos bárbaros pelos
ermas e táticas dos,94
romanos, 80-81, 101-1 10
cidadania entre os, 101
classificaçáo dos germani como,
10r-102 'ffiffi#frffiã
derrota para os romenos e trans- ffiffi
formaçáo dos, 102-1 10, 145
durante a crise do século IlI, Galério (imperador), 89
ataques dos, 99-102 Gália
expansáo no século VIII dos, classificaçáo de Tácito da,
t57 -t65, t74-t7 5, 17 7 -r80, 68-70
20r-202 elites bárbaras ÍÌa, 134-136
identidade étnica dos, 131-133, formaçáo do Império Gaulês,
1.38-r40 99-102
identidade francesa e os,32-34 identidade francesa e a,31,-34
invasáo da Itália pelos, l4I-143 identidade provinciana na,
nacionalismo alemáo e a 124-r29
incorporaçáo dos, 4l-43 Júlio César e a,97-98
214 --s O Mito das Naçoes

lei e identidade romanas na, na hierarquia militar romana,


76-79 111-112
questáo das fronteiras na, no Império Romano, etnogênese
r5r-r52 dos, 119-124, 133-135
reino gótico na, I2l-I22, identidade religiosa dos,
r48-r5r r29-r30
Galieno (imperador), 102 impacto da confederaçáo huna
Galize sobre os, 114-118
reino suevo na, 151-153, migraçáo dos godos da Gália
154-155 para a, Espanha, 150-153
Galla Placidia,122 obra de Cassiodoro sobre os,
Gauti
78-80
família dos, L4l-143
queda dos, 139-140
Gautier, Léon,43
reinos gauleses dos, 134-135,
Gellner, Ernest, 204
t48-r53
Gentes
zulus comparados aos, 184-185,
classificaçáo romana das, 66-f0
189-190
os bárbaros no Império Romano
"Godos da Criméia"
como, 9i-92, toj
Êlologia indo-européia e o
Gentios
estudo dos,4O-4I
classi6caçáo etnográfica dos,
Goethe, 39
69-7r
Goffart, Walter, 192 n.17
Gépidas, ll8-l19
G<ittingen
Germani
caracterizaçáo romana dos, nacionalismo alemáo e os

100-102 intelectuais de, 30-32, 34-36,


Germania, 34,37, 67 40-4r
Germania illustata,34 Grá-Bretanha
Germanus Posthumus, 80 federaçóes saxônicas na, 142
Getica,79 no nacionalismo político alemáo,
Giscard d'Estaing, Valéry, L6,20 papel da, 36-37
Godos raízes históricas do nacionalismo
classificaçáo de Procópio dos,75 na,28-30
coalizío dos godos sob o coman- reinos menores na, 35-140,
do de Cniva, 100-102 177-r78
derrota para os romanos e trans- Graciano (imperador), 106, I24
formaçáo dos, 101-102, Grécia
106-110 participaçáo na Comunidade
nacionalismo alemáo e apropria- Européia da, l1
çáo dos, 4l-43 teorias etnográficas relativas à,
na Espanha, fusáo dos, 151-153, 62-66,78-80
r74_r75 Gregório o Grande (papa),143
Índice remissivo v- 215

Gregório de Tours, 32, 163-164, 191, no Império Romano, 84-85


199,203-204 Honória
Greutungos, l0Z 135, Ll9-l2l casamento com Átila, 123
Grimm, Jakob e'S7'ilhelm, 39-40 Honório (imperador), l2l-122
Guerra dos Trinta Anos Humboldt, \Tilhelm von, 26
nacionalismo alemáo e a,34-36 Humiliores
Guerra Franco-Prussiana no Império Romano, 66
impacto no nacionalismo da, Hunerico, 123
43-49 Hungria
Guerras Napoleônicas contendas em relaçáo às frontei-
nacionalismo alemáo e as,36-39 ras na, 14
disputa pela Transilvânia, 18-19
Hunos
ascensáo e queda dos, 139-140
búlgaros e, L73-I75
Hasdingi, família dos, 129 confederaçáo e estrutura políti-
Hegel, G.F.\X/.,24 ca dos, Il3-lL4
Heider, Jorg, 19 identidade cultural dos, 113,
Heráclio (imperador), 172-173 166-167
Herder, Johann Gottfried, 34-37, 43, supressáo dos bagaudae pelos,
57 t27-128
Hereditariedade das profissóes
estabelecida pelos romanos, 109
Hermenegildo, 155
Heródoto de Halicarnasso, 203
críticas a,62-65
Identidade cultural
teorias etnográfica s de, 57-63,
classificação dos povos com base
67-68,92
na,59-63
Herrin, Judith,204
no Império Romano, 84-90
História medieval
os bárbaros no Império Romano
ausência de distinçóes geográficas
na,52-55 e a,92-99
conjecturas e preconceitos na, ressurgimento da, 52-55
l9I-193,192 n.17 Identidade étnica
etnoarqueologia e, 48-50 dos bárbaros, transformada
nacionalismo alemáo e o estudo pelos romanos, 103-110
da,40-43 dos zulus, 187-202
política étnica da Europa contem- etnoerqueologia e o estudo da,
porânea e a, 17-25, 182-184 48-50
Histríria natural,66 identidade legal e, 180-182
Hobsbawm,EricJ.,204 no século XVIII, surgimento
Honestiores da,27-43
216 --o O Mito das Naçoes

no século XIX, o desenvolvimen- Espanha gótica ameaçada pelo,


rcda,27-55 153-155
nos reinos do norte da Gália, guerra contra os ostrogodos,
137-t40 t4t
os "núcleos de tradiçáo" e a, ocupaçáo da Itália pelo,
92-94,97-99,91, n.3 l4l-143
raízes históricas d,a, 17, 19-24 os eslavos e o, 168-172
retorno da, 13-14 Império Carolíngio, 177-l8l
Identidade provinciana Império Romano
surgimento da,124-128 bárbaros subjugados pelo,
Identidade regional. Wr tarnbémiden- l0l-110
tidade provinciana conquista e pilhagem de Roma e
conquistas, estabelecimento de do,122-123
territórios e a,182-184 crise do século III no, 98-102
na Europa pós-romana, 174-175 dissoluçáo do, 17-18, 122-123
nas províncias dos séculos V e elites sociais no, 89-99
VI,124-129 escravidáo e escravos emancipa-
no Império Romano, 8l-90 dos no, 82-90
nos reinos francos, 16l-165 etnogênese bárbara no, ll9-I24
Identidade religiosa etnogênese dos bárbaros do
conquista da Espanha pelos norte e o colapso do, L35-140
berberes / árabes e a, 177-178 identidade nacional francesa e
dos francos, 138-140 ocupaçóes na Gália durante o,
identidade étnica bárbara e, 33-34
129-130 identidades regionais, religiosas
na confederaçâo gótica, e de classe no, 81-90
108-109 influência nas comunidades bár-
na Lombardia, fusáo com os baras do sistema legal do,
romanos, 146-149 95-97
no Império Romano, 81-90 migraçóes no, 50-51, 53-55
Identidades coletivas nacionalismo político alemáo e
raízes do nacionalismo nas, o,36-39
19-34 nos séculos V e VI, a aristocracia
Ideologia revolucionária provinciana no,124-129
a Revoluçáo Francesa e o nacio- os hunos e a dissoluçáo do,
nalismo, 33-35 ll9-I40
nacionalismo e a,27-32 teorias etnográficas no,62J0,
Igreja Católica, na Espanha 72-f4
incorporaçáo do arianismo transformaçáo política interna
gótico pela,152-157 do, 101-110
Império Bizantino Impérios multiétnicos
Índice remissivo e''- 217

confederaçáo huna como um' Shaka KaSenzangakhona com-


rr6-n7 parado a, l9l
nacionalismo alemáo e os,34-35 Justiniano (imperador), 80, 131-135,
raízes históricas do nacionalismo t47, t54
nos,29-30
Inglaterra
debate sobre a participaçáo na
Comunidade Européia da, 12
Inhatha, Partido da Liberdade, 185 Khagan (líder ávaro), 17 l-173
Intelectuais Kindins
nacionalismo político alemáo e na confeder açío gótica, 107
os,35-43 Klopstock, Friedrich Gottlieb, 36
no nacionalismo, papel dos, Kosovo
2842 populaçáo albanesa em, 14, 18,
Isperikh, 50-51, 185, 198 20-22
Itália sérvios em, 14-183
refugiados albaneses na, 16 Kossinna, Gustaf,, 49, 52
reino lombardo na, l4l-I49 Kutriguri, L73
Kuver (líder búlga ro), 173-174

ffi
Japâo
Kuvrat (líder dos onoguri),173
KwaZulu-Natal, província de, 185,
200-20r

Comunidade Européia como


parceira do, L2
Jefferson, Thomas, 17
Jerônimo, teorias etnográficas de, 71- Lala, povos, L86, L94
73 Laniogaisus, 106
Jones, Sir'slilliam, 40 Leáo I (papa), 119
Jornandes, 79-80, l9l-192, 199 Lei Sálica,160
Judaísmo Leis Lombardas, I47 -I48
na Espanha gótico-romana, Le Monde,2l
156-r58 Lentienses
migraçóes dos zulus relacionadas classificaçáo romana dos, 105
à cultura judaica, 188-190 Leovigildo (rei), L5 4-155
teorias etnográÊcas do, 69J l, Le Pen, Jean Marie, 18, 183, 200
7415,78-79 Lessing, Gotthold Ephraim, 36
Juliano (imperador), 74J5, 91, l4O, Lex Ribuaria, 160-161
166 Li ber Constitutionurn, L6l
Juliáo de Toledo, 157 Lied der Deutschen,42
Júlio César, 69 Lirnitanei
218 --s O Mito das Naçoes

estabelecimento das unidades, Malandela, 186-198


i 10-n l Malarico, 106
Língua Mallobaudes, 106
classiÊcaçáo dos povôs baseada Mandela, Nelson,200
na,59-63 Mangosuthu Buthelezi, 200
conceito da "aquisiçáo primária", Marciano (imperador), 118
48-5r Marco Aurélio (imperador), 75
confusáo histórica relacionada
Marcomana, confeder açío, 97 -9 8,
à, 5l_55
t2r-t22
cultura e a (ausência de vínculos
Martel, Carlos, 166, 179
entre a cultura e a), 5l-55
Mbo, povo s, 186-t87, 194
cultura eslava e a, 168-172
Merovíngios
estratificaçáo social (e seu ressur-
conquistas pelos, 162, 165 -166,
gimento) com base na,52-55
etnoarqueologia e a, 48-50 180

filologia indo-européia e a, organizaçâo militar dos, 158-159


40-4r nos reinos do norte da Gália,
identidades étnicas dos bárbaros t37-138,178
e a,93-94 Metamorfoses, 36
invençáo da língua como ferra- Micronacionalistas
menra nacionalisr a, 45 -49 enfraquecimento dos movimen-
nacionalismo alemáo e a,35-39 tos,12
nacionalismo francês e e,34-35, Migraçóes
38-39,43-46 analogia entre migraçóes euro-
"Língua nacional" como conceito ideo-
péias e zulus, 187-202
lógico, 44-49
confederaçáo huna e as,
Liutprando (rei), 145, 146-148
tr4-r20
Lombardia
na história européia, papel das,
ávaros m,166-167
lg-21,48-5r
conquista da Lombardia pelos
serviço militar romano como
francos, 180-181
ducados italianos da, 178
causa de, 90-92
fusáo dos romanos na,14!-149,
Milosevic, Slobodan, 18, 183,200
164-165, 174-175, 148 n. 13 Minorias étnicas
zulus comparados aos lombardos, ressurgimento das, l3-t6
190 Minorias norte-africanas, na França,
L5-r7
Mobilidade social
através do serviço imperial,
89-92
Mabhudu, 195-196 no Império Romano, 88-90
Macedônia,2O0-2Ol Mongóis
índi,ce remissivo v- 2i9

políti-
confederaçáo e estrurura Nêustria, reino franco da, 159-160,
114
ca dos, 177-180
Monoteísmo radical Ngúnis, povos, 185-187, 188-190,
no Império Romano,86-87 193-194
Monumentos Históricos da Notitia dignitatum, g5
Alemanha (Monumenta Germaniae Nrungwa,povos, 186-187,194
Historica),39-43 "Núcleos de tradiçáo"
Movimentos pela independência identidade étnica bárbara e os,
nacionalismo e os, 28-31 92-94,97-99
Movimentos separâtistas
Comunidade Européia e os, 12
W
Mthethwa, povos, 187,195-197
Muçulmanos
ffiffi
na Bósnia, 14 Odoacro, L31-132,164
ga Espanha,177-178 Oguri,173
na França, 15-I7 Olden Times in Zulu and Natal,188
Onoguri,lT3
Orestes, 116
Origines gentium
teorias das, 79-80
Nacionalismo Ornamentaçáo
Comunidade Européia e, LI-12 identidade étnica bárbara e a,
identidade coletiva como prelú- 95-97
dio do, 3I-34 Ostrogodos
movimentos pela independência elite social dos,128-129
e,29-31 etnogênese dos, I 19-120,
no século XIX,27-55 r22-r24
ressurgimento do, 13-I4 guerra contra os bizantinos, 141
Nacionalismo cultural identidade étnica formada
a língua como instrumento do, pelos, 130-135
46_49
I . 1. ,. t
história lingüística e o, 57-55
nacionalismo alemáo como,
34-37
Nacionalismo político Pacto de Varsóvia, naçóes do
alemáo
nacionalismo cultural excluídas da Comunidade
t)ersus,34-37, 40-43 Européia, 1l-13
na Europa pós-romana, nacionalismo e etnocentrismo
174-175 nas,l3-14
Ndwandwe, sociedade, 187-188, Pagi
196-197 classificaçáo romana dos, 105
220 --r". O Mito das NaçÕes

Paideia(cultura romana), 85 "Princípio da extrarerrirorialidade",


Pan-eslavismo 180
nacionalismo político e o, Prisco, 67-76,116-117
42- 44 Procópio, 73-76,107,169
Parentesco, laços de Programas educacionais nacionais
confederaçáo huna, 113-116 criaçáo da língua "nacional" por
estruturas familiares dos meio de, 46-49
9l-99
bárbaros, Proprietários de terras
social
identidade étnica / no final da Idade Antiga, identi-
bárbara e os,129-136 dade provinciana dos, 126-127
no Império Romano, 87-90 no Império Romano, insatisfa-
Peculium (propriedades dos escravos), çáo dos, 98-IO2
83 no Império Romano, poder eco-
Peoples of Europe,2}5 nômico dos, 84-86
Pepino I,163 Prouerbia Germanica,34
Pepino ll,I79
Plínio o Velho, 64-67, 69,74,
:t-(J/, o-), /.rr L/lt
177,
203 ffi
Pohl-Resl, Brigitte, 145 -147
Polônia Racismo
identidade coletiva na,3I-32, rerorno do, na Europa, 13-14
33-34 Rask, Ramus,40
na Alemanha, "trabalhadores- Recaredo, 155
hóspedes"da,l5 Reforma
nacionalismo na,14-15 nacionalismo alemáo e a,34-35
Populus gothorurn, Regnumfrancorurn,158,177
componentes do, 156-157 Reino Unido
Populus romanus como membro da comunidade
formaçáo do,67-70 Européia,l2
os bárbaros e o, 78-81 Remígio (bispo de Reims), 138,159
Póstumo, Cassiano Latínio, 100 Revoluçáo Francesa
Povos europeus nacionalismo e a,33-35
classificaçáo na Antiguidade Romanos
dos, 75-80 assimilados pelos eslavos,
os zulus comparados aos, 167-172
183-202 assimilados pelos francos,
Povos naturais 158-165
classificaçáo e características classificaçáo e características dos,
dos,57-63 57-63
Pré-orientalistas classificaçóes das gentes I popu-
teorias etnogrâfrcas,64 lus,66-70
Índice remissivo e- 221

conceitos de lei e cidadania, no norte da Europa, 164-167,


75-80 174-175, l8l
fusáo na Espanha gótica, 151-158 no norte da Europa, etnogênese
fusáo na Lombardia, l4L-149, dos,135-137
148 n. 13 Schlegel, Friedrich Von, 40
na Gália, 148-158 Scoti,159
no final da Antigüidade, teorias Sérvios
etnográficas dos, 74-7 6, em Kosovo, reivindicaçóes dos,
r33-136 14, 18, 183
Romanticismo naCroácia,14
nacionalismo francês, naciona- origens étnicas dos, 170-175
lismo alemáo e o,43-44 Shaka KaSenzangakhona, 185-193,
Romênia r97-202
Hungria e, 14
Sidônio, 124-126
na Alemanha, "trabalhadores- Sieyès, Abbé,34
hóspedes" da, 15
Sigismundo, 161
Rômulo Augústulo (imperador), 116
Silvano, 106
Rousseau, Jean- Jacques, 24
Silvério (papa), 136
Rúgios, 119
Sincretismo religioso
no Império Romano, 85-87
Smith, Anthony D.,204
Soberania
como um mito do século XIX,
Sacro Império Romano-Germânico
23-24
nacionalismo alemáo e o,35-36,
Soberania nacional
38,41-42
ressurgimento da, 13-15
Said, EdwardV.,64
Sobre a língua e a sabedoria dos india-
Saint-Simon, Louis de, 33
nos (Über die Sprache und \Veisheit
Salignac de Fénelon, François d,e,33
der Inder),40
Salviano, 128
Sociedade para o conhecimento da his-
Samo (re|),171,I74
Sânscrito
tória alemá antiga (Gesellschartfilr ril-
línguas indo-européias e o, 40 tere deuts ch e G es ch ic h ts kunde), 39 - 4l
Sármatas Sotos, povos, 186
colapso da confederaçáo huna e Stein, Freiherr vom, 36-37, 39-40,
os, 119 4r,46
identidade coletiva polonesa e Srilicho, 131
oS' 33 Struggle for Pouer in Medieual haly:
Savigny, Friedrich Carl Von, 39 Structures of Political Rule,148 n. 13

Saxóes Suevos, 100-101, l2l-122, I39 -140,


em Bayeux, 159 r5r, r54,158-159
222 --s O Mito das Naçoes

na Baviera, 179
na Espanha gótica, 152-158
na Lombardia, fusáo das,
Tabacco, Giovanni, 148 n.1,3 r44- r49
Tácito, Cornélio nos reinos francos, 178-181
descriçáo dos suevos por, 101 surgimento da identidade legal,
o mito do nacionalismo e, 32 180-181
o nacionalismo alemáo e,24,37 Tradiçóes orais
teorias etnográfica s de, 67 -7 0, usos pela história das,192-202
203 Transformaçáo do mundo romano,
Taifalos, 158-159 205
Táticas militares. Ver também arme- Transilvânia
mento: disputa étnica pela, 19
confederaçáo huna, 1 15-1 l6 Tribalismo
identidade étnica bárbara com identidade regional e, 125 -127
base nas, 94 Turcos
Teja (rei), 134 "trabalhadores-hóspedes", suspei-
Teodato, 133 ta alemá em relaçáo aos, 15
Teodorico o Grande, 50, 131-136, Turíngios, 132, 137-138, 161-162
138-t39,168,198
Teodósio II (imperador), 118, 122
Tervíngios, 107-109, Il5, ll9-Lzl
Teutatis, 84-87
Teutomeres, 106 Úlfil"s (bispo), 41, 108-109
Tito Lívio Uniáo Soviética
teorias etnográfica s de, 66 -67, fim da, 13
69,203 Uiguri,167
Trácia
bárbaros estabelecidos na, 120
Tradiçóes legais
Breuiárío de Alarico, l5t-152,
162 Valente (imperador), 107-109,
Código Ripuário,160 120-tzt
Código Teodosiano, 150- 151, Valentiniano III, ll8, 123
r62 Valóes
dos galo-romanos, 150-I53 antagonismos entre flamengos e,
dos ostrogodos, 130-133 t2
identidade étnica bárbara e as, Vândalos, I04, I2l-123, 129 -131,
95,130-136 133-t34, t35 -t36, t39 -140
Lei Sálica,16O Varo (general romano), 35, 37, 97
Líber Constitutionum, 16l Vênedos, 165
índice remíssivo e-- 223

Vestuário
identidade étnica bárbara e o,95
Virgílio
teorias relativas à etnogênese de,
66-68,79-80
Visigodos
a Espanha ocupada pelos,
r49-r58
comunidades dualistas mantidas
pelos, 129,135-L36
conquista do reino visigótico
pelos francos, 137-138
desaparecimento dos, 134-136
etnogênese dos, 120-1 24, 132,
r33
supressáo dos bagaudae pelos,
r27-t28
Vitensis, Yictor,42
Vitiges, 134

\lenskus, Reinhard, g3
\Vergeld,I30
\7'ickham, Chris, 52,I48 n.13
\üimpleling,Jacob,34
lVirtschaftswunder (milagre econômi-
co), 15
\ìí'olfram, Herwig, 20 5
\ì7'ood, Ian,205
\lright, 199

Zenío (imperador), 131


Zulus
povos europeus comparados aos,
r83-202
Zwelithini, Goodwill, 200
,ilil!ulLilil[

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