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,

Eduardo Viveiros de Castro

JORGE ZAHAR EDITOR/ANPOCS


ARAWETÉ
OS DEUSES CANIBAIS

Este livro é a primeira anáJise em profundi-


dade da vida social e reliqiosa de um povo
Tupi-Guaraní oontemporcineo, os Araweté
do médio Xingu (Pará). O autor viveu onze
meses entre eles; aprendendo sua h'ngua e
participando de ·seu cotidiano, tentou apre-
ender as questOes que fundam a cosm:ologia,
a filosofia social e a ooncePQáo da pessoa
humana subjacentes a esta cultura, uma das
poucas que segue resistindo com inteireza a
predaqáo civilizat6ria da Amazonia. Indo
além da descriqlo e interpretaqio etnográfi-
cas, entretanto, o trabalho organiza um vasto
horizonte comparativo, situando os Araweté
na paisagem cultural Tupi-Guarani (que, por
sua vez, é oonsolidada de modo teoricamente
renovado) e no continente sul-americano.
Problemas centrais da antr.opologia sao reto-
mados e discutidos a luz da etnologia sul-
americana, área que vem conhecendo nos
últimos anos um radical salto qualitativo,
colocando-a na vanguarda da cena conceitual
e crítica da antropologia.

A partir de um aspecto sui generis do concei-


to Araweté da divindade - o canibalismo - ,
Eduardo Viveiros de Castro elabora uma no-
va interpretaqlo do complexo Tupi-Guarani
da antropofagia ritual, mostrando como ele
funda e exprime uma teoria da pessoa, uma
ontologia social e uma concePQlo de tempo-
ralidade radicalmente diversas das represen-
taQOes usuais sobre a 11 sociedade primitiva".
As fontes quinhentistas sobre os Tupinambá
do litoral brasileiro recebem uma significa-
qáo inesperada, ao serem oonfrontadas com
os fatos Araweté; resgatados do folclore
"tupinol6gico" e do imaginário ocidental, os
Tupi e sua antropofagia enoontram seu lugar
de direito na antropología oontemporanea,
como portadores de uma visao de mundo
complexa, trágica e d.inAmica, capaz de fun-
dar uma sociedade surpreendente, em sua
abertura radical para a meterioridade e o
devir.

Este trabalho foi premiado como a melhor


tese de doutorado no I Concurso de Teses
Univelsitárias e Obras Científicas promovido
pela Associafráo Nacional de Pós-Graduaqio
·e Pesquisa em Ciincias Sociais (Anpocs). O
júri foi integrado pelos professores Ruth
Cardoso, Mario Brockman Machado, Roque
de Barros Laraia e Francisco lglésias, que
decidiram por unanimidade premiar a obra
de Eduardo Viveiros de Castro.
100~-

,
ARAWETE
os delises canibais
cole~ao ANTROPOLOGIA SOCIAL

Diretor: Gilberto Velho

S I TUA<;Ao DOS AllAWi:Tt NA .Alt.l:RJCA DO S UL

( 9rupo a 1 nd l9e n•• aa i a c i tado • no t e xto )

g rupo• d a t &111lli • l in9Gi &tic•


Tupi -Cua uni

Jur"n• grupos do .t ronco ~upl. d e ou


t.ra s fa:nl l 1 a s
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org

Eduardo Viveiros de Castro

,
. .

os deuses canibais

JORGE.-ZAHAR EDITOR
ANPOCS
Associa~ao Nacional de Pós-Graduaqáo
e Pesquisa em Ciencias Sociais
Copyright @ 1986, Eduardo Viveiros de Castro

Todos os direitos reservados.


A reprodu9ao nao-autorizada desta publica9ao, no todo
ou em parte, constituí viola9ao do copyright. (Lei 5.988~

1986
Direitos para esta edi9ao contratados com
JORGE ZAHAR EDITOR LTDA.
rua México 31 sobreloja
20031 Rio de Janeiro, RJ

Produ~ao Revisao: Renato C'arvalho (tip.); Coordenacrao


editorial: Ana Cristina Zahar; Fotos: Eduardo .Viveiros
de Castro; Capa e Diagrama9ao do caderno de fotos:
Valéria Naslausky

CIP-Brasil. Cataloga9ao-na-fonte.
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

Castro, Eduardo Batalha Viveiros d~


C35a A.raweté: os deuses canibais / Eduardo Batalha
Viveiros de Castro. ~ Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 1986.

"Tese de doutorado apresentada ao Programa de


Pós-Gradua9ao em Antropologia Social do Museu Na-
cional da Universidade Federal de- Rio de Janeiron.
Apendices.
BiblioEJrafia.

l. Etnologia. 2. Indios da América do Sul - Bra-


sil - Organiza9ao social. I~ Título.

86-0066 CDD - 572 •


CDU - 572.9(81) ( 0 97)

ISBN: 85-85061-48-0

4
SUMARIO

PROLOGO

1. Sobre -este L·ivro .•.. .•.•. : . .... ........... 11

2. Conven~oes · • • e
• • • • • • . • • • • • • • • • • • • • • • • • •. t. • • • • • 14

3. Agradecimentos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. .. . . . .
. ' 17

CAPITULO 1

INTRODUtAO: O PROBLEMA E O TRABALHO 21

l. Os Deuses Canibais • . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22

2. O Percurso: Sinopse . . . .•.. . . . . . . .. . . . . . . 32

3~ Apro~ima~io aos Araweté 35

CAPITULO II
PONTOS E LlNHAS: · TEORIA E TUPl:NO·L'OGIA 81
. .
l. os· Tupi-Guarani : s·ibl iografia· . . . . . . . . . . . 82

(A) Os Tupinamba: Métraux e Flores tan .. . 83

(B) O·s Tupi-Guaran; · da AmaZ'onia . .. . . . . . . 89

(C)Recentemente . . . . ·•.•...... . : ......• ~. 95

( O) · Gu a·r a n i ·e Aeh é . . . . . '.-'. . . . . . ... . • . . . . . . . 99

2. Os· Tup·i-G'uarani: .Generalidades e Problemas .. 106

3 . No t a -S re v e s·o b re a Ca te g o r i a d e P e s s o a . . 11 7

r
e A~ TU Lo 1 1 I

s1 TUAtAü oos· ARAWf Tl> .... : ... - . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129


l. o Ter·rito..rio . A.rawete ·Atual •. .'.. ... ....... 130

2. Os Ar~~eti e os Tupi-Guarani do Para 136

3. l1ngua, Cultura Mater1al e SUb·sistencia 144

4. Historia, Geografia e D·e mografia 166

5
sumário

CAP1TULO IV
OS ABANDONADOS: O MUNDO E SEUS HABITANTES . . . . . . . . 183
1. Genese e Cosm.ografia do Mundo Atual ..... 184

2. Paralelos Tupi: Hipoteses ............... 197 _

3 •. A Po p u 1 a ~ ao d o Co s mo s : Ca t.e g·o.r i a s . . . . . . . 2 O4
4. Oeuses e Espiritos: .Espicies e ~odos de
a
Ma n i f e s t a ~ o . • . . • • . • . • • • . • • . . ·-. • . • . . . . • . 2 3O

5. Observacoes Gerais e Sugestoes Cornparati


vas . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 250

CAPITULO V
ENTRE SI: RITMOS E ESTRUTURAS DA ~IDA SOCIAL 26 3

l. Tempo, Espa~o: Morfologia, Economía, Po


·1 itica . . . . . .. . . .. . . ... . .. . . .. . . .. . . . . .. . 264 '

2. o DifTcil Comeco.:
. "
-os Tenetamo e Tii. Ñéi •.•. -300
~ ~

3. As Formas Ali.mentar.es .da Vida Religiosa


ou Vi c .e-V~rsa . ... . . . . . .. . ... . . . . . . . . •' ...... 320

( A) o Sistema do mi.lh.o • • • • • • • 1 • • • • • • • • • • • 321

( B) Xamanismo de carnes e me is: valores


. .. . . 351

(e) Conclu~oes . . . . . . . . . . . . . •... . . . . . .. . . .


~.. •. 362

4. Paren·tesco
. '
e Outras ., Coisas, Substanciais
e Af i n ~ •... ~ . .. . . . • r ••• · -. . . .. .. .... ... _, . • • • •. • 36 5

(A) Onomistica Arawete .................. 367


(B) Terminología de rela~ao ............. 390
(C) Casamento, Atitu~es, Resid~noia ..... 405
(O) A Relacio ~p{hi-p~~~= f iotando a af!
n i d a d e ._. • . . . ~- .. . . . . : . . . . . . . . . . .. . • . . . . 4 2 2
'

( E) Concep~io,
.
s~xua.
. . l ldade,
. .
. ciclo
.. . .
.de vi·-

da .• .., ••.
. ~ ········.
. . ··· ··~······
• i • .,. • .. ···
. ····· 437

6
sumário

CAPITULO VI ' .
ENTRE OUTROS: MORTOS, DEUSES, XAMAS, MATADORES ... 465

l. Perigos: Alguns ..... .. .. . . ..... ...... ... 466



(A) Doen~a e abstin~ncia ................ 466

(B} O leve e o pesado, o fara e o déntro . .474

2 . Marte: Varias, Nenhurna 4 82

(A} Morrer, funeral, disposi~oes ...... . . . 482

(B) S6 os ossos esquecem: desintegra~io

e sintese da pessoa . . . . . . . . . . . . . . . . . 494

3. A Palavra Alheia: o Outro como Música, e

'sel.is Cantores .. ..... ..... ...... ....... .. 526

(A} O xamanismo e a música dos deuses .. . 529

(B} Os matadores e a música dos inimigos .. 576

(C) Xamas e guerreiros: conclusao . ...... 601·

4. O Cogito Caníbal ou o Anti-Narciso ...... 605

CAPITULO VII

OS SERES DO DEVIR: A META FTSICA TUPI-GUARANI ..... 623

1. Polaridade Espiritual e Cosmología Tupi -

- Guara ni ............................... . 627

2. C~~ibalismo Tupi: a Identidade ao Contri


r .i-o ........................ : ........ ... . 646

3. Epílogo ..... ' . .. . ... . . . .. ... . .. . ...... . . 6 79

BIBLIOGRAFIA . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . 701

APtNDICES
l. Aldeias Arawete ....... . ................. 718

2. C~nso e Genea l og í as .... . ................ 720

3. Si tua~ao das Ro~a s ...................... 734

INDICE ANALlTICO f ONOMASTIC O . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . '\ 737

7
!NDICE DAS FIGURAS

~; tuáQio dos Ar.a weté na America do Sul .. . ..... 2

loca. liza~io Atual dos Araweti . . . . . . . •. . . . . . . . 131

Oeslocamentos . Araweti . ... . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .


•' . 169

Ciclo Anual Araweté . . . .. . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . 271

Aldeia 1981 . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. .... 281

Planta de urna Casa Tipica 282

Aldeia Arawet~ . do Posto . . . . . . ... . . .. . . . .....


. -· . . -- .

Set9res da Al~eia Atual . .............. ; ... ~ . 284

Termos de Parentesco ..............• . ........ 402

Te r mo s d e Af i n i d'a d e . . . . . . . . . . . . ·. . . . . . . .· . ·. . . .- 4 O3

Amost~a Geneal~gica ....... - ............. ....... .. . 408

Apindic~: Gen~alogias . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . .. 72lss

Cade~no de Fotografias - entre as piginas 128 e 12·9

Os desenhos nas aberturas de cap1tulo foram


fei tos por· diversos Araweté e re'J)resentam
seres ·di vi nos e huma.nos.

8
AP RESENT Ar;,AO

Araweti: Os Deuses Canibais, de Eduardo Batalha Viveiros de

Castro, antropólogo do Muse u Nacional, é o trabalho premiado como

a melhor tese de doutorado no I Concurso de Teses Uni versi tárias

e Obras Científicas promovido pela Associa9ao Nacional de Pós-Gra

duac;ao ,e Pesquisa e·m Ciencias Sociais (Anpocs) , com o apoio fi-

nanceiro do Banco do Estado de Sao Paulo (Banespa), da Financiado



ra de Estudos e Projetos (Finep) e da Fundac¡:ao Ford, cuja dotac¡:ao

para essa iniciativa se destino·u exatamente a subsidiar a edi9ao

comercial das teses laureadas.

O júri de premia9ao foi . integrado pelos Professores Ruth

Cardoso,, Mario Brockman Machado, Roque de Barros L.a raia e Francis

co Iglésias, sendo preciso salientar que todas as decisoes concer


nen tes . a premia<;ao foram tomadas por unanimidade.

Estamos certos que esta edic¡:ao conjunta de Jorge Zahar Edi-

tor e da Anpocs enriquece a bibliografía -etnológica brasileira,

principalmente aquela que. se refere as sociedades Tupi-Guaraní .

.Em .nome da Diretoria da Anpocs ·e da comunidade brasileira

de Cienci.as Sociais, aproveLtamos a oportuni.~ade para .e xpress.ar

os me.lhores agradecirnentos as instituic;oes que viabilizaram essa

iniciativa e, em parti-c ular, a Funda~ao Ford que tornou possível

a edi9ao deste liv.r o.

ROQUE DE BARROS LARAIA

Diretor da An,pocs

9

Imortais Mo rtai s , Mo rtais Imortaís ,
vivendo uns a morte dos outro a,
morrendo una a vida dos outros .

(Heráclito)

10
PRÓLOGO

l. SOBRE ESTE LIVRO

Este trabalho é urna etnografia dos Araweté, povo de lingua

Tupi-Guarani da Amazónia Oriental (rio Ipixuna, submédio Xingu,

Pará), que visa situá-los n6 corpus etnológico sul-americano, es

pecial1:,,ente na etnologia T·upi-Guarani. Seu foco principal é a des

cri9ao e interpreta9ao da cosmología Araweté, a partir dos concei

tos relativos a pessoa, a morte, a divindade, e dos cantos e ritu

ais xamanísticos onde as divindades e os mortos se manifestam aos

humanos. O tema do canibalismo divino, central para a compreensao

do conceito Araweté da divindade e da pessoa, será tratado como

parte do complexo da antropofagia ritual Tupi-G~arani. Através

desse fio condutor, propoe-se urna visao da metafísica Arawe~é que

descreve o lugar do humano no universo, sua inscri9ao fundamental

no elemento da temporalidade, e a lógica da identidade e da d.ife

ren9a que comanda urna ontología original. Sao esbo9adas ainda al

gumas tentativas de compara9ao etnológica no ambito da América do

Sul.

Parte considerável do livro é dedicada a urna descri9ao da

organiza~ao social, economica, ritual e de parentesco dos Araweté,

onde Se tra~am paralelos e contrastes com os dados disponíveis s~

.bre
. outros
. grupos da mesma familia lingÜistica. O horizonte últi

mo é o de um ex~rcício de análise comparati':'a das _cosrrologias sul-

-americanas, que t~m como etapa intermedi_ á ~ ia .<a qua!, essencial

mente, nos ater~mos) a constru9ao de um modelo. sócio-cosmológico

global para os Tupi-Guarani. Coexistem aq~i, portante, urna - etno

.graf_ia, urna sí~tes~ a nivel médio, e hipóteses de alcance mais arn

11
araweté: os deuses canibais

plo. A idéia um tanto culturalista de "urna cosmologfá Tupi-Guara

ni" d.e ve ser entendida corno instrumento heurístico


. . ..
provisorio, o

perador de consolida9ao etnológica de materiais até hoje

sos e superficialmente ternatizados. O progresso teórico da etno

logia sul-americana permitirá, em pouco tempo, recortes menos in

tuitivos que esse, d~ base lingüístico-cultural, qu~ se revelarao

entao como andaimes para modelos estruturais de maior abrangencia

empírica e potincia an~lítica.


·,

O exame da cósmdlogia Araweti procede em dois registros: a


. . . ·.
categoría de Pessoa, tal como elaborada no discurso sobre a esca
. ..
tologia e os deuses, e a concep9io Araweti de Sociedade~ tal como

revei~da na prática social e rituai. A considera9io de algumas

substáncias, modos e atributos do uni vers~ Araweté - deus I .. morto,

inimigo.I afim, am.igo., xama, matador' canibalis~o, palavra - con


.
duz ªºbosquejo de . urna filÓsofia ' sociaÍ ·ae urna antropología º!! e
de a alteridade eo devir ernergem <:orno a
-qualidade
. . '

e o processo
• .1 ' '

definidores do "ser." dos humanos. O estado incoativo da Pessoa, o

caráter ' parad6xal da Sociedade, o regime "minimalista" de funcio

narnento dos disposi ti.vos inst1 tucio'nais-classifi~at6rios ~erao e


• • : • '• ~ l - .. ·: • ..

xaminados e interrogados em suas 1mpl1.ca9oes f ace a representa9ao

usual de "sociedade primitiva" pres-ente no discurso antropológico.

; ,
;
• . ifr * ·. '

Este li·v.ro reprodu.z ·, -com poucas módifica"9oes e alguns acrés

cimos, minha ' tese ·de -doutorarrie'n to - Arawet.é : · u.roa · visao da cosmolQ
g_i-a e da pessoa Tupi~Guarani - ., escrita :ern· maio-julho e defendí

da em agosto de 198·4, no Pro-grama de Pós-Gradua~ao -em· Antropolo

9ia Social do Museu Nacional (UFRJ) • .tertos . .prol~lemas aqui desen


volvidos forarn objeto ae · um artigo breve e esquem.S.tico~ ·publicado

12
prólogo

na Revista de Antropol9gia vols. 27/28 (.1984/19~5). A pesquisa em.

que o livro se paseia foi realizada entre 1981. e 1983; des~de· en


taa-, nao ti ve oportunidade de retornar aos Araweté, ·o que espero

f azer em breve.

A publica~io.na Integra de uma tese acadimica destas dimen

soes. (e sobre este terna . .-.) só f 'oi, evidentemente, possível devi

do ao premio que a ANPOCS decidiu lhe conceder em outubro

de 198?. Nunca roe entusiasmou a idéi~ de resumir, cortar ou tor

nar mais "legível" (menos "academice") o que s -e s.egue. Em parte,


' .
por preguic;a; em pa.r te, por achar que, eser ita de ·um. jato e conce

bida como um b-loco, a tese nao- comporta va redu<;oes de monta, .sob

pena de desf igura~ao de aspectos essenciais (os excursos compara

tivos, por exemplo). Por fim, creio que tanto o genero "etnogr~
' - '
f ia" cerno o estilo .. tese acadernica" continuam desempenhando fun

9oes importantes no campe da Antropología. A etnología dos indios

sul-americanos, em particular, só recéntemente ating.iu um patamar

técnico e teórico de boa q~alidade; fotos coloridas em livros pa

ra turistas' séries de televisao e impressoes de viagem nao subs.

tituem pesquisas, teses e mono:grafias descritivas na tarefa que se·

impoe com cada vez maior urgencia:. a de atingirmos um tipo e um

a
' '

grau de compreensao dos pensamentos indígenas que estejam altu

ra de sua complexidade, su.t ile.za e sofistica~ao. O presente livro,


- '
dentro dos limites contextuais da pesquisa que o fundamenta, e das

limita95~s estruturais do autor, persegue isto. De resto, ele

urn pouco menos técnico e ri9oroso, e um tanto mais retórico e fi

losoficarnente pretensioso que o ensaio etnogrif ico padrio. Entre

as faltas e os excessos, só me resta esperar que algo resista: e .

que seri, sem dGvida, a parte que cabe aos Araweté.

Mais que publícá-lo na íntegra, a benevolencia de Jorge Zahar

13
araweté: os deuses canibais

permitiu que eu corrigisse, modificasse e ampliasse numeroso·.s tre

chas do trabalho original. Optamos pela impressio fac-similar do

original datilografado, por motivos estéticos (leveza e modernida

de da fei9io gráfica) e logísticos (dificuldade de composi9ao das

palavras em Araweté, prazos editoriais}. Isto, para nao falar da

extensao quase indecente do texto, irnpediu reformula95ei radicais.

Certos barbarismos estilísticos e exage~os verbais foram podado s ,

algumas referéncias comparativas e esclarecimentos introduzidos

onde havia espa~o. Nao pude, entretanto, proced~r a remanejame~

tos conceituais e a urna atua liza9ao bibliográfica completa. A1guns

trabalhos anteriores a 1984·, ademais, recebem aten9ao muito menor


que sua importancia e a pertinéncia de seu conteúdo para o tema

do livro; isto se deve a falhas na cobertura bibliográfica quando

da reda9ao do original , que nao foi possível remediar de todo a

qui. A moóifica9ao mais visível foi o acréscimo de um Epílogo on

de, procurando concluir um texto que se inter.rornpia de súbito, su

marizo as quest6es tratadas ~ as situo no panorama antropol6gico

atual. •Mai s urna yez, porém, a falta de _tempo, espa90.e foleg o me

oqrigou a transferir para outra ocasiao urna conclusao digna deste

nome. Duas ob ra s importantes nao puderam ser consultadas: o li

ero de J.C. Cracker (1985} sobre o xamanismo Bororo e a tese de

Bruce Albert (terminada, creio, em setembro de 1985} sobre a con

cep9ao de doen9 a e o sistema guerreiro-funerário dos Yanomami. A

crescentei um indice analítico e remanejei os apéndices .

2. CONVEN<;OES

Todas as palavras em Araweté e demais linguas Tupi-Guarani

14
prólogo

estao grafadas em itáli co ; no caso desta s últimas, util izo a trans

cri~ao que se encontra na bibliografia citada . Termos de outra s

líng ua s v ao sublinhados. Os nemes pesso a i s Araweté, quando des ig


'
nand o seres humanos, n ao estao ern it~l ico - já os neme s de divin

dade s , espiritas , etc. ssguem a norma geral .

Utilize urna conven9ao ortográfica que facilitasse a dati lo

grafia. · Os valores apr o ximados dos sons sao : as vogais a e i so

am como no portugues; o t é urna central a lt a nao-arredond ada (p ró

xima da . v oga l - Tupinambá g rafad~ y, soa como um u pronu nciado sem


.
arredondame nto da boca); o· "
t. soa próximo do ingles "bit", mas pro

duzido com a ponta da l íngua virada para baixo (este som é prova

vel al o f one de i) ; a· é urna c entral média n ao - ar redondada (como o

ingles '\bu t"); o til indica urna vogal nasal (todas as voga is Ara

weté podem ser nasaliz adas) . As consoantes p , m e n soam aproxi

madamente como em portugués (as duas últimas, em· posi9ao intervo

cálica: "cama", "ca.!!a"; o ñ como o nh do p ortugues; o k sempre co

mo o c de ''casa''; o t como o de- "tudo ", mesmo d iante de.i; o eco


- -
mo tch ('~ tio ", · no falar c ari oca) , oc como t~ ; o r como em " caE_o ",

mesmo em come90 de palavra; o el como o ~ sonoro do ingles "that";

o d é um flap semelhante ao do inglés-america no ''bo~y''; o y i ~ná

lago ao y_ do ingles "y_es", com palatali.za9ao mais pronunciada; o

w como o do ingles " lo~er". O sinal ' indica urna oclusao glotal

suave . E o b soa como no portugues, l i geiramen te mais a spi rado.

O t ra90 sob urna v ogal (como em Maf) indica a sílaba tón ica,

em formas nao-monossilábicas. Optei por segme ntar as pa l avras e

expressoes Araweté de modo a evidenciar as raí zes e morfemas ; se

parei, sob retudo, os sufixos temporais, circunstancia is e pa r tici

piai s; em geral separe i também , ligando - os por h ífen a raiz , os

prefixos ca usativo (m o~ ) , causativo-comitativo (h ero- ) e o a pas


-
15
araweté: os deuses canibais

sivador-nominalizador hemf-. A gr.afia adotada nao é fonológica,

urna vez que a língua Araweté ainda nao . fo.i es:crita .por especiali~

tas.. O asterisco l*). antes de urna· palavra indica que esta é urna

-constru~a.o hipotética ou simp.lificada . .

Utilizei a nota~ao inglesa abreviada . para as posi9P.es gene~

lógicas, por ser corren te na Antropologia e mais . ·simples que seu

equivalente em portu9ues. Assírn.: F = pai, M = rnae, S = filho, D=

filha, B. = irmao (eB = irmao mais velho( yB = irmao maís mo90·, hB


'
= meio irmao)., z = irma (eZ, yz, hZ) e e= filhos de ambos os se

xos. Os compost.o s se leem de trás para a . frente, conf erme · a or

dem do genitivo ingles: assim, MB (Mother's Brotner) é "irmao da

mae" I FZDS = filho da filha da irma do pai, etc . . Ego é termo uti

lizado para referir o sujeito em rela~ao ao qua! estas . posi~oes

sao consideradas. Sibling é um.a palavra inglesa que significa

"germa~o", isto é,. irmao de qualquer sexo.

A prudencia e a minha ignorancia em zoología e botanica me


levaram a omitir os nemes "científicos", taxonomicos,. d.as

cies ou variedade.s animais e vegetais ci·tadas no texto~ exceto nos

raros casos em que essa refex:encia. esclarece problemas pertinen

tes ao tema do liVTO •.

As notas ao texto sao numeradas de (1) a '(n) por capítulo.

E.las foram colocadas imediatamente após a linha de texto que as

sinaliza, · e nao no pé da página ou no final do capítulo. Esta for

ma pouco or.t odo.x a simplificou a datilografia e pretende destacar.

as notas, que tem urna fun~ao muito impqrtante rio trabalho, além

de - espero - fac~litar a leitura d~ste.

Traduzi a maioria das .c i ta~.oes em língua es·t rangeira, exce

to qt..ando minha incompetencia arriscava tirar o sabor ou a preci


- do original.
sao·

16
prólogo

3. AGRADECIMENTOS

Este trabalho resultou de urna pesquisa que come9ou a ser pl~


'
nejada há cinco anos, e foi levado a termo após ~uitos percal9os

e interrup9oes. Desde entao muita coisa aconteceu, e muita gente,

de muitos modos, ajudou a tornar possível o que nem sempre pare


cía se-lo.

Agrade90 aos Araweté, de quem nao consigo esquecer: a Toiyi,

a Iwamayo, Araiyikañt-no, Iwakañi, K~rereti, Mar~pa'i-no e a Ta

paya-hi, e através deles a todos.


~

A meu orientador e amigo Anthony Seeger, pela liberdade e


o exemplo que sempre me deu, e que me ensinou o essencial.

No caminho me ajudaram, com abrigo, conselho, amizade, inte

ligencia: Alonso e Da. Raimunda, na boca do Ipixuna; Arlene Lamas


e Zé Maria, em Altamira; Beth Lucena, em Belém; e· Bruna Franchet

to, Beto e Fany Ricardo, Eunice Durham, Gilberto Azanha e Ma. Eli
sa Ladeira, Gilberto Velho~ Joana Carelli, Júlio Bressane e Rosa

Dias, Maria Laura V.C. Cavalcanti, Márcio Goldman, Nádia Farage,

Olympio e Zélia Serra, Ovídio de Abreu Filho , Peter Fry, Roberto

Da Matta, Steve Schwartzman, Sylvia Novaes e Jorge, Tania Stolze


Lima, Vanessa Lea, Yonne Leite, Yvonne Maggie, no Rio e em Sao

Paulo . G. Azanhar Nidia, Steve e Tinia foram interlocutores pri

vilegiados para eu poder formular muito do que segue.

Aos colegas que participaram dos seminários sobre grupos T~

pi em Sao Paulo, 1982 e Brasília, 1984, especialmente: Dominique

Gallois, Lux Vidal, LÚcia Andrade, Roque Laraia, Waud Kracke, Bar

tolomé Meliá, Virginia Valadao, Lília Valle.

Aos membros da banca examinadora da tese: Manuela Carneiro

da Cunha, Roque Laraia, Peter Fry, Gilberto Velho e Tony Seeger,

17
araweté : os deuses canibais

pela gentileza em aceitar examinar um calhama90 apresentado· em ci

ma da h0ra e pelas críticas e sugést6es feitas. Aproveitei o que

pude, dentro .do-s limites editoriais já mencionados.

Com Manueia Carneir'o da Cunha, cujo. trabalho sobre a no9ao


- .
de pessoa entre os Krahó ·f oi um dos impulsos geradores deste li

vro, discuti extensiva e profundame~te vários pontos cruciai~ de

meu argumento. Durante 1984 e 1985 tive a oportunidade de ' rever

mui tas idéia.s, no confronto com as obje9oes, qualifica9oes e de

senvol vimentos pro.pos tos por Manuela• Come9·amos urna colaborac;:ao

intelectual e urna amizade que persiste. As rnodifica9oes que con

seguí introduzir no final do liv.ro (capítulo VI.I, § . 2) ref letem

pare.talmente nosso trabalho conjunto, evocando d_a dos e temas pre

sentes em um ensaio sobre a vingan9a, o canibalismo, a memória e

a questao da ternporalidade entre o~ Tupinambá, que estamos tenta~

do terminar (ver Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro, 1985; i

dem, em prepara9ao). ·

Eunice Durham, ao me convidar para participar como pesquisa

dor-visitante de seminários da USP em setembro-novernbro de 1984,

permitiu que eu pudesse expor e debater minha tese com interlocu

tores tao estimulantes quanto ela mesma, J. Arthur Giannotti e

Ruth Cardoso, a quern agrade90 a aten9ao e o interesse.

Carlos Alberto Ricardo e a equipe do CEDI/Projeto Levanta

mento das Popula9~es IndJgenas no prasil me ajudaram enormemente.

Ao Beto, por sua amizade.

A Yonne Leite devo um lnestimá'vel auxilio lingüístico, nas

aulas que rninistrou e no exame do ~aterial 'Arawet&. Quaisquer er

ros, entretanto, sao rneus. Na lingua. e no restante, como sempre.

Os srs. Salomao Santos, Eliezer Gomes da Si l va e Antonio

Lisboa Dutra, funcionário.s da FUNAI, deram-me apoio logístico e

18
prólogo

saíram de seus cuidados por minha causa, pelo que lhes agr~de90.

E a inda ao Luís, da Base Arara, operador caridoso do rádio.

Mari sa C. Coelho datilografou com p erici a e rapidez o ma

nuscrito, e Da . Yedda Ennes as - e acréscimos.


' corre9oes André To

ral preparou dois mapas e os croquis da s aldeias Araweté.

O CNPq concedeu-me bolsas de pós-gradua9ao e pesquisa duran

te os anos de 1981 e 1983, quando estive no campo, duran te parte

do período de prepara9ao da tese e em 1985.

O Departamento de Antropologia e o PPGAS do Museu Nacional

me deram todo o necessário: a forma9ao, os meios, o ambiente, o

estímulo, a responsabilidade. A meus col e gas, professor es , alu

nos; ao pessoal da . secretaria e biblioteca (Beatriz R. Lobianco ,

Tania F. Soares, Stella Conti , Rose F. de Barros, Eliane c. de Car

valho, Patricia Sayd, Izabel Pinto, Mari sa Coelho) . Ag rade90 a

Giralda Seyferth, a Gilberto Velho e a Lygia Sigaud - através de

les a todos , por este contexto excepcional, sine qua non. Gilbe r

to, que acompanhou todas as fases urbanas do trabalho, é um dos

responsáveis por sua publ ica9ao .

A meus pais e irmaos, que cuidararn de rnirn nas malárias , e

de mil outras maneiras.

A !ara Ferraz, que me levou aos Araweté, sern quem nao teria

come9ado - esse trabalho também é seu.

A Déborah, que me arrastou ao inverno de Manhattan e voltou


- terminaria a viagem.
comigo: sem quern nao Este livro é para ela .

19
·.

CAPÍTULO I
'

O PROBLEMA E O TRABALHO

- Posible, pero no interesante


respondió L8nrot -. Usted repLic~
rá .que la realidad no tiene Za m!
nor obligaci6n de ser interesant&
Yo le replicaré que Za realidad
puede prescindir de esa obliga-
ción, pero no Zas hipótesis.
(J .L.Borg-es)

21
araweté: os deuses canibais

l. OS DEUSES CANIBAIS .

Os Araweté dizem que as almas de seus mortos, urna vez cheg~

das ao céu, sao mortas e devoradas pelos Maf, os deuses, que em

seguida as ressuscitarn, a partir -dos 6ssos; elas entao se tornam

como os deuses, imortais. O presente trabalho é urna tentativa de

entender essa afirma~ao. Ela conjuga os temas centrais da cosmolo

gia desse povo Tupi-Guaraní. Veremos que ela condensa a concep9ao

Araweté da pessoa, que de nossa parte podernos resumir assim:o des

tino da Pessoa Arawété é um tornar-se outro, e isso é a Pessoa

um devir. Intervalo tenso, ela nao existe fora do movimento.

Mas, para que se possa avaliar em todas as .suas irnplica~oes


, -
essa figura, será necessário que visemos urn horizonte comparativo,

buscando discernir o que dizem outras sociedades Tupi-Guarani so-

bre as mesmas questoes, e vendo como elas de~enharn sua categoría

de Pessoa. Em contrapartida, o discurso Arawété sobre a Pessoa'

permitirá tyna integra9ao do percurso através dos outros povos de~

sa familia lingüística, levando-nos a formula<;ao de algumas hipó-

teses sobre a existéncia virtual de urna estrutura Tupi-Guaraní da

Pessoa. Trata-se, portante, de um procedimento recursivo: inserir

os fatos Araweté em um sistema, e fundar esse sistema a · partir

dos Araweté.

Minha pretensao - que é a de come9ar urna experiencia - po-

rém, nao pára ai. Desde que, para construir a concepGao Araweté

da Pessoa e a por em sistema, tereilan9ado inao de fatos de organi

za9ao social e ·de cosmologia, sentir-rne-ei, ao final, estimulado

a alinhar c6nsidera9oes, certamente esquemiticas, sobre a ''natur~

za" das cosmologias Tupi-Guaraní, indicando a opera9ao recorrente

de certas f igur:as me.t afisicas por trás de f enornenos tao dispares

22
introduqao

como o canibalismo , o profetismo, · a morfologia s o cial e as formas

de casarnen.t o. Ainda aqui, estarei sendo guiado p e lo viés dos Ara-

weté, e t omando a questao da Pessoa corno fio condutor da trama.

Como está s uposto, · parto da · hipótese de que existe algo co-

muro ou geral entre as diferentes sociedades Tupi-Guarani, para

alérn de urna identidade linglilstica e po r trás de urna aparente di-

versidade morfo-sociológica - mesmo que este algo seja um ponto

de dispersao de diferen~as. Veremo s, no deco rrer deste trabalho ,

se tal hipó..tese é aceitável, e qual a s ubsta.ncia desse "algo" e

dessa "generalidade". Desde já, entretanto, avancemos, cornos Ara

weté, algumas generalidades.

Os · Araweté·, um dos outrora numerosos povos Tupi do interf lú


-
vio Xingu-To cantins, nao apresentam nenhurna particularidade ou "a

nomalia" importante, ' que os destaque da fisionornia comum dos gru~

pos ~upi~Guarani do Leste Amazonico. Se se caracterizam de algum

~odo, seria ·antes por urna redu~ao acentuada das formas institucio

nais e cerimoniais pres~ntes riestas outras sociedades~ Isso, a

meu ver, nao pode ser creditado apenas aos efeitos ·desorganizado-

res do contato, e tampouco a pressao de tribos inimigas que, nas

Últimas décadas, deslo.c ou os Araweté do território que anterior -

mente ocupavam. Creio mesmo que eles estao entre o s grupo s Tupi

da regiao que meno s foram afetados pelo contato, até agora.

Ora, esta parcimonia Araweté quanto a categorías e institui

9oes sociais , sua eco nomia de símbolos e práticas rituais, tem .c~

mo contrapartida o desenvolvimento de um di s curso cosmo logico ple

tórico e· complexo - o q ue nao quer dizer arquite tonicamente elab~

r a do, o u d o gmaticamente invariável. O imaginário Araweté. pro life-

ra na palavra e no canto. Há muito pouco para ser visto; . quase

tuda, do e ssencial, s e passa e m " Outra Cena". Em c erto _sentido,

23
araweté : os deuses canibais

pode-se dizer dos Araweté o que se disse dos Guaraní: aquí também
"tuda é palavra" (Meliá, 1978-: 57). Apenas, a palavra dos Araweté,

menos que ecoando o recolhirnento ascético de seus parentes Guara


ni, cultores do Logos, parece antes evocar os gestos exc.e ssi vos
dos longinquos Tupinambá. Asees.e ou . excesso: vi as de acesso ao
Alérn, heterotopia funqadora da cosrnologia .Tupi-Guarani.
Por outro lado, talvez seja esse pr6prio caráter a um tempo
,f
"simples", "típico" e "arcaico" da sociedade Araweté - a ser ten-
tativamente determinado no que se segue - que permita uma entrevi
sao de estruturas fundamentais Tupi-Guarani, reveland~ principio s
que operariam igualmente, mas mediatamente, ern sociedades de org~

niza~ao social e ritual mais diferenciada 1 .

(1) Nao estal, i'sso, subscreverd:> a idéia durkheimiana da "fonna elaren-


<XII\

tar" c;::rro via privilegiada de acesso ao felOnen::>, o valor dos "casos sinples"
(n.Jrkheirn, 1968:6-9). Sugiro apenas que os Araweté apresentam a:in rnaior clare-
za oertas tensOes metafísicas 'l\lpi-G.larani, ocultas por vezes sob urna espécie
de burOcratisuo cosrológioo de seus vizi.ruX:>s de lingua e geografía. Tanpouc:o
estou suponcb quaisquer ircpli~ de orden histi5rico-evolutiv"a, can rreu . uso
da palavra "arcaica" - arcaica , de fato, é a palavra oos Araweté, a · palavra
que revela a diferen;a ariginária e fundaOOra.

Urna questao, assim, ressalta de inicio nos ·fatos Araweté, e


ela encentra alguma ressonancia no que se pode ler sobre os de-
rnais Tupi-Guaraní. Trata-se do que eu chamaría de excesso ou su-
plernentaridade do discurso cosrnol6gico em rela9ao a organizac;ao
social. Ou seja: como se pode dar conta da coexistencia, na pra-
xis
-- Arawe·té, de uma
. org'aniza~ao "frquxamente estruturada" ·- núme-
ro restrito de categorías sociais, auséncia de · segmentos ou divi-
soes glo bais, fraca institucionaliza9ao ou formaliza9ao das rela
~aes interpessoais, relativa indistinerao das esferas pública e do

24
.introdu~ao

mést:i:ea, · poucos mecanisrnos.integrativos a n.ível geral - com urna


extensa taxonornia do mundo espiritual, mas de difícil reduc;ao . . a
principios ·hqmogeneos, urna a t i va presenc;a des se mund:o na vida co-
'
~.idi.ana, o papel fund~ental dos mortos, .e toda. urna orientac;ao
"v.e rtical", ·celeste1 . do pensamento? o que fazer, em suma., .com es-
ta preponderancia do discurso sobre ·a institui~ao, da palavra so-
bre o emblema e o esquema ritual, da séri~ cosmológica sobre a
série sociológica?
O fato é que sociedades como a Araweté parecern condenar -
a

tri vialidade quaisquer ten ta ti vas · de se estabelecerern consis·t en-


cias funcionais :ou correspondencias formais entre morfología e
cosmologia, entre "instituic;:ao" .e "representa~ao" - e, como o rnos
tra a etnologia ·Túpi, parece difícil escapar da alternativa ·entre
os truismos teóricos e as .descric;oes anedóticas, quando nao sim-
plesmente ~e lamenta e acusa a desagregac;ao social do.s povos es tu
dados. Mas o fato também é que .nao basta dizerrnos que, entre. os
Araweté (e outros Tupi-Guaz;an.i) , a cosmología "predomina" sobre a
2
organizac;ao social ; tarnpouco basta reconhecer, e levar as devi-

.(2) " ••• a organiza<;áo social TUpi..narrbá se subordinava estreitamente ao siste-


ma religioso ·tribal (. ~ • ) A p~a cb ~istema religioso sobre o sistema
organiz'atório ••• ·" (Fernandes, 1963: 353, 354).

das conseqüéncias, que a cosrnologia é parte constitutiva dá es-


trutura social e, no caso · em pauta, vía inevitável de acesso a es
trutura. Pois há que encontrar o problema, o sentido problemático
dessa cosrnologia - e, a partir daí, tentar dar conta do caráter

singular, sociologicamente ••fluido .. , do sistema social.


Mas eis que há um "algo", urna forma e um movirnento, um sen-

tido .obscuro mas distinto, que se impoem a quern contemple asocie

25
araweté : os deuses canibais

dade Arawet~, e que parecem deterrniná-la. Na verdade, tudo se pas

sa como se ... ela estivesse subrnetida a urna dinarnica centrifuga,

a urn '.'vol tar-se para o exterior", um sair de si em dire<¡:ao as re-

gioes aquém e além do social - corno se algo fundamental se passa~

se ali. Mas ern troca, e para isso mesmo, preocupar-se-ia emdesnar

car suas divisoes e art±cula9oes internas . - reais ou virtuais - a

presentando-se "lisa", unida (mas nao em torno de um centro), ho-

rnoginea (mas dispersa), igual ero todas as partes, como se rnSnada

flutuante ern urn cosmos populoso e acidentado, definido pela multi

plicidade e abertura. Essa desmarca9ao ou indiferencia9ao interna,

contudo, .está sempre a servi90 de uma diferen9a radical, de urn irn

pulso para fora de s i mesma, uma paixao pela exterioridade que,

malgrado a aparente placidez repetitiva do cotidiano Araweté, ins

creve o Devir no cora9ao desta sociedade. Eis assim que seu " cen

tro" está fora, sua "identidade" alhures, e que seu Outro nao -
e
wn espelho para o hornero, mas um destino.

Haveria aqui, portante, urna inversao da representa9ao tradi

cional que a antropología faz da "sociedade primitiva " como um

sistema fechado. A vi sao da soc'iedade prirni ti va corno urn teatro ta

x6n6rnico, onde todo ente real ou conceitual encentra seu lugar ero

um sistema de classifica9ao; onde a ordem do universo reflete o

ordenamento social; onde a tempo~alidade só é reconhecida para me

lhor ser denegada, -


pelo mito e o rito; onde aquilo que e def.ini

do como Exterior ao social (Natureza, Sob r enatureza) é-o apenas

para contra-produzir a Sociedade, como um rneio .de interioridade e

auto-identidade - esta visao nao se.ajusta absolutamente aos Ara-

weté. Nao pela razao óbvia que .ela nao se ajusta a nenhuma socie-

dade "real" - sabemos que as sociedades rnudarn, e que o tempo -


e

sua própria substancia; sabemos· que as classif ica9oes sao instru-

26
introdu~áo

mentos políticos; e que entre as normas e a prática deve haver um

descolamento, ou a vida social ser~a entediante e/ou imposslvel -

mas porque os Araweté tendero para outra direc;ao. Para usarmos urna

alegoría moderna, diría que a cosmología Araweté e suas similares

sao mais parecidas com os nossos ''huracos brancos'' cosmológicos ~

que comos "huracos negros", no que estes Últimos me trazem amen

te a representac;ao corr'ente do "ser da sociedade primitiva". Devo

dizer que acredito, de fa~o, que muitas cosmologías primitivas se

aproximarn dessa representac;ao tradicional, e que muitas socieda-

des se esforc;arn para· permanecer, em sentido nao-trivial, identi -

cas a si mesmas e co-extensivas · ao cosmos. Para isso, é preciso

que sejarn capazes · de introjetar e dornesti·c ar a diferenc;a, median-

te artifí,cios que a colocam a servic;o da identidade - onde o opor

é a condi9ao do por; onde o dividir é preparar urna síntese; onde'


o excluir é criar uma interioridade. Isto pode ser ·c hamado de

dialética, e isto parece ser a ·· regra, no que concerne a forrnac;·a o

da consciencia social e ao funcionarnento da máquina da cultura.

A essas·sociedades sern exterior, que lutarn para conjurar e

congelar o devir, ehquanto podem, con.traponho a sociedade Araweté,

que é urna. sociedadé . sem inte rior - ou, para dize-lo menos brusco,

urna sociedade cuja dinamica dissolve aquel as metáforas espaciais

comuns no discurso sociológico : interior e exterior , centro, mar

gens e fronteiras, limen, etc . · Aqui, nos movemos numa espécie de

espa90 social nao-euclideano .

0
Tudo se passa, ern suma, como se ·a simplicidade" Araweté

mascarasse urna complexidade d~ outra ordern - ~ao em extensao ou

cornposi9ao, diríamos, mas em intensidade. E veremos que o método

Tup i -Guarani de (des-)constru9ao da Pessoa segue a mesma tenden-

cia "nao-euclideana"; nao se trata do jogo especular de reflexos

27
araweté : os deuses canibais

e inversoes entre Eu e Outro., com sua puls~o implici ta : de sime-


tria geométrica .e estabilidade. de fo~ma, mas de um processo de

deformacrao topológica co'ntínua, ond~ Eu e Outro, Ego e I.nimigo ,


o vivo e o morto, o hornero e o deus, o devorac;lo .e o devorador, es-

tao entrela9ados - aquém ou além da . Repre~enta9ao, da s.ubstitui -

9ao metafórica e da oposi9ao complementar. Movemo.- nos · em um uni-

verso onde o .Devir é· anter i ·o r ao Ser, e a ele insubrnisso. .

Tentarei mostrar, nas páginas . que segueril, que o complexo de

r .e la9oes entre os humanos e os deuses ~. a e·s1;:rada real para a com

preensao da sociedade Araweté. Em t .a .l cprnplexo, a ~orte é o acon-

tecimento produtivo·. Ela nao é apenas urn momento estratégico em

que se pode analisar a Pessoa em seus componentes: ela é o lugar

em que a Pessoa Araweté se realiz.a - - si.ntese disjunti~a .. Veremos

que aqui tarnbém 1 éomo para as sociedades Je 1 OS· "mortoS sao OU-

tros" (Carneiro da Cunha, 1978), e que a morte é espa90 -privile -


giado de · refl·exao ativa sobre a alteridad~. Apenas, a dif e~en9a
vivos/mortos nao. pode, para .o s Tupi-G.µ arani, ser concebida como

oposi9ao simples, formal ou real. Essa diferen9a é irredutivel ao

paradigma. da oposi9ao f .o nológica ou ao "trabalho do n~gativo". Há

urna positividade da morte, paradoxal porqµe nio implica urna visio


da vida como negatividade. E, se a dupla nega9ao parece ser o mé-

todo de posi9ao da Pessoa Je, os Tupi-Guaraní arriscam uma dupla


3
afirma9ao: isso e aquilo, o vivo e o morto, o eu e o outro •· A

( 3) cato já entrevira P. Clastres .( 1974: cap. 9) , para os Guara.ni~ Ver-se-.á que a


cx:>lho em parteas oonsidera9'>es de P.Clastres sobre o ·" ser da soci.edade primi-
tiva", especialmente .~las alinhadas .
ern seus Últinos trabalhos
.
(1980:cap.ll),
. ~

. .sobre a guerra. Afasto-ne delas, no entanto, no que elas inplicam urna .n etafísi
ca da: Sociedade cx::m:::> Sujeito Absoluto, interioridade auto-idéntica, e no que
desconhecem o problema essencial, a saber: a atitude diferencial face a dife -
r~, dentro desse universo vago da "sociedade prirnit iva" .

28
introdu~áo

sociedade Araweté nao é dialética.

A referen.cia aos Je nao é fortuita; ela será, ao longo des-

te trabalho, exemplar, mesmo quando implícita. · Aproveitando-nos

do fato - que tampouco é fortuito - de estarem estas sociedades

entre as mais bem descritas, etnográfica e teoricamente, da etno-

logia sul-americana, iremos utilizá-las como marco de contraste

constante para construir e delimitar o modelo da Pessoa e da so -

ciedade Araweté (Tupi-Guarani). Conforme se verá, as sociedades

Jé e Tupi-Guaraní parecem estar em oposi9ao polar, ao longo de um


continuum virtual das diversas forma~oes sócio-culturais dos po-

vos sul-americanos, para as variáveis - note-se bem - que decidí

privilegiar em meu trabalho .


4

(4) A posi<?o da oosnologia Bo:rom é mais carplexa, e crucial, neste contraste.


Se, para uñ especialista nesse grup:>, 09 Je aparecen iranicamente cx::rro una "a-
nanorfóse" ·sinpl.ificadora do · intrincack> sistema social Bororo (Cracker, 1979:
249), a mim me pareceria .que, em teIItPS de urna cp::>Sir.;ao i~l entre, digan:>s,
os Timbira e os Guaraní, os Bororo ocupam urna p:>si~ intentediária; nao en-
quanto materializan1o un. axrpranisso, nutuamente enfraquecedor, entre os node-
1.os Je e TG (tal seria ma.1s ben o ca.so dos Tap~, um .. híbrioo" .r eal de ori-
gen 'fupi-Guarani e influencias .centrcrbrasileiras .e videntes), mas cx::no que
sanando as carplexidades p~rias a cada nodelo. A idéia oos Bororo cx:m::> reali
zando urna transi900 entre os Je e os Tupi já foi, al.iás, aventada p:>r Lévi-
Strauss (1964:151; 1971:546, 551), em teneos de mito-lógica, eexplicada even-
tualnente por contigliidades, geográficas. Si.nplifico excessivanente urna questao
que se:.á retanada ao final do trabalho; e mesno l..á a:m cautela.

Seguindo urna inspira9ao estruturalista~ é justamente essa

distincia mixi~a - no interior de um conjunto vago, mas cuja con

sistenci~ histórico-cultural já foi demonstrada por Lévi-Strauss

(1964: 16-.7) . no dominio da mitologia .- que torna. as liqoes do caso

Je valiosas para a compreensao dos· Tupi-Guai9.ni.

"Sociedades dialeticas" se as há (Maybury-Lewis et ~.._::; 1979 ),

29
araweté: os deuses canibais

~ entie os Ji-Bororo que encontramos o desenvolvimento mix~mo dos

principios de oposi9io complementar de categorias sociais e de

valores cosmológicos, . de representa9ao de segmentos sociais glo-

bais mediante elementos que lhes sao exteriores, de multi.plica9ao

de oposi9qes que se entrecortam; onde, -,igualmente, a Pessoa é pen

sada e construida corno urna figura dual, ·sin tese delicada entre N~

tureza e Cultura, Devir e Ser, ~ndividuo e personagem, cuja exis-

tencia depende de sua articula9ao a máscaras simétricas, anti-eus

que lhe estao ligados pelas práticas de nomina9ao, amizade forma-

lizada e rituais de '~impersona9ao 11 mortuária. Sociedades onde tu-

da significa: da geografia ao oorpo, o socius inscreve seus

principios no universo. Os Je sao justament~ famosos por sua corn-

plexidade e conservadorismo sociológicos , e por serern os pavos

mais bem estudados do Brasil; foram o ponto de partida do traba -

lho de Lévi-Strauss sobre as mitologías. americanas, e parecem ser

um dos casos mais fortes em favor da antropolog'ia estrutural. Ne-

nhum dos atributos acim~,


. infelizme~te, aplica-se
. . aos. Tupi-Guara-

ni. Se comparados as propriedades cristalinas das sociedades Je,os

Tupi-Guaraní evocam certamente a natureza de corpos amorfos ·, nu-

vens, fuma9a, ern sua organiza9ao social frouxa e casual, sua au-

sencia de frontei.ras conceituais claras entre os dominios do cos -

mos, sua fragilidade ao contato com a soci.edade ocidental (rnais

ern aparencia que ern essencia), sua plasticidade, e seu estilo ex-

tra- mundano ou "místico" de pensamento .

Corno disse antes, nao creio ser acidental o fato dos Je te

rern despertado tanto interesse. Seu,dualismo onipresente, o a~to '

grau de redundancia que apresentam entre diferentes dominios . da

vida social, sua intrincada dialética de Natureza e Cultura, ser

e nao-ser - tudo isso os torna nao só ideais para a ope~a9ao es -

30
introou~o

tiuturalista, como os aproxima de figuras clássicas da epistemolo


. .
gia dcid~ntal. A complexidade dos Je seria, por assim dizer, fa

miliar; tal nio se di com a si~plicidade dos Tupi-Guaraní, a des

peito dos esfor9os - dos jesuitas para ler as cosmologias Guarani

como um misticismo cristao avant la lettre.

Nao sou o primeiro a constatar e a inquirir o contraste pa

tente entre as formas sócio-culturais Je e TG, tanto mais eviden

tequanto estes povos tem urna longa história de contatos, competí

~ao ecológica e guerra. Mas há que o qualificar, sob pena de sim

plifica~oes: seja ce9ueira as profundas diferen9as internas a ca

da conjunto, seja reducionismo ingenuo que faz coincidir língua

e cultura (e que ignora, no mínimo, a intensa dinamica cultural

da pré-história do continente), seja desconsidera9ao de muitas ou

t~as cosmologías sul-americanas já estudadas, e que deixam entre

ver o vasto sistema de transforrna9oes subjacente a este universo:

J~s, Tupis, Tu~anos, Yanomamis, Caribes, ·Xinguanos ... seja em que

nivel !or, as unidad~s sociológicas, lingUísticas ou culturais

do continente cada vez mais se mostram como incidencias locais e

variantes combinatórias de urna estrutura que, sobre operar com uro

mesmo repertório simbólico, articula diferencialmente as mesmas

questoes. Lévi-Strauss já nos mostrou isso nas Mythologigues.


'

Assim, ce rtamente este nao é o único contraste possível ou

pertinente. Mas também é importante notar que os Je apresentam

valor estratégico para urna tentativa de compara~ao sociológica a

nivel continental - que eles sao urn "elemento pivotal" na história

da América do Sul {L.-Strauss, 1958:cap.VI; 1964: 17) -, e isso

pode ser testemunhado pelo lugar de destaque que ocupam nas sínte

ses rnais recentes (Kaplan 198la,198lb,1984; Riviere 1984: cap.8).

Para todo estudioso de etnologia sul-americana será fácil constatar

31
araweté: os deuses canibais

as semelhan9as de fund9 e forma entre os Araweté e aquelas socie

dades minimalistas, ideologicamente endógamas (literal e metafori

camente), afirmadoras de urna indiferen9a interna ativa, que serví

ram de base para tais sínteses 5 • Igualmente fácil, entao, será pe~

(5) caro os Piaroa (Kaplan, 1975) e os Trio (Riviere, 1969) do norte amazónico.

ceber porque a fei9ao cristalina . e a tersa dialética institucional

aa forma Jé serve corno um anti-analogon heurístico e poe um pro

blema teórico.

Pois se a diferen9a Jé/TG é interessante, é que ela se dá no

interior de um espa90 comum , nao é pura heteroge·neidade. Aquilo

que Héritier chama de "simbólica elementar do idéntico e do dife

rente" (1979:217}, pela qual urna soc.iedade poe os parámetros de

sua auto-concep9ao, utiliza cá e lá os mesmos materiais: mas para

um outro jogo, com outras regras, e resultados que, filosoficame~

te, divergem ao. máximo. Por isso queslionamo~ 'a idéia de que ex is

te urna mesma filosofía social sob todas as cosrnologias sul-ameri

canas, para a qual identidade é seguran9a mas impóssibilidade, di

feren9a é perigo mas necessidade¡ e que entao, ou se introjeta e

domestica a diferen9a (Je), ou se abane e denega (norte amazoni

co) - como formula J.Overing (Kaplan 198lb). Veremos como o cani

balismo divido Araweti complica essa questio essencial: a das for

mas diferenciais de pensar o fato da diferen~a.

2. O PERCURSO: SINOPSE

Este ··tr abalho se divide e rn tr~s partes. A~6s urna exposi~ao

das condi~oes de trabalho de campo entre os Araweté, e das ques

32
introdu~~o

toes que ali me surgirarn (Cap. I, §3), o capitulo II ~az urna bre-

ve recensao do estado atual da etnologia Tupi-Guarani, e identifi

ca um conjunto de questoes a serern enfrentadas. Neste capítulo,

aínda, um comentário sobre algumas ·no9oes teóricas utilizadas.

A segunda parte (capítulos III, · IV, V) é urna etnografía dos

Arawet~. Decidi apresentar wria descri9ao dos Araweté que, mesmo

precária, excede bastante a necessidade de acumula9ao de fatos

para a fundamenta9ao das hipóteses princípais · deste trabalho. O

que nao quer dizer que ela seja suficiente para "provar" taís hi-

póteses. Nao só estas últimas se apóiam largamente ern etnografías

outras, como exigiriam ainda mais estudos sobre os Araweté, para

se consolidarem. Ernbora talvez nao seja próprio de se o dizer de

urna tese de doutorado, considero esta urna síntese provisóría, no

rneio de urn percurso a prosseguir. Pretendo ·voltar aos Araweté.

Mas, enquanto isso, apresento uma descri9ao de sua socieda-

de, que é a parte centra~ e mais extensa da tese. Fi-lo, ern pri-

rneiro lugar, porque os Araweté sao praticarnente inéditos na bi-

bliografía sul-arnericana; contribuo, portante, para o aumento do

corpus· etnográfico Tupi-Guaraní. Ern segundo lugar, para permitir

eventuais leituras divergentes das questoes que ternatizo, mesmo

sabendo do caráter ilusório da neutralidade dos "fatos", e das

lirnita9oes de rninha competencia c0rno etnógrafo, agravadas pelo

pouco tempo de campo, e o caráter recente do " contato" qos Arawe-

té. O capitulo . III é uma localiza9ao hi.stórico-geográfica e urna

apresenta9ao etnográfica dos Araweté~ o capítulo IV é urna descri-


9ao da cosmología do grupo, e uma tentativa de defini9ao-tradu9ao

de alguns conceitos básicos, corno 'Maf,


- bfJde,
- ..... "deus", "ser hu
dw-i:

mano", "inimigo". Invertí a ordern tradicional d as monografías, em

que a "re ligiao" é posta depois da "organiza~ social" ,exatarrente por

33
araweté: os deuses canibais

que essa é a ordem de entendimento da sociedade Araweté: o que es

ti fora dela é que a ordena e oriefita, e vem assim em primeiro lu


gar.

o capitulo V é urna descri9ao da morfologia e organiza~ao so

cial. Embora extensa, esta é urna parte que poderia ser mais deta-

lhada; quest6es cruciais, como o pareritesco, foram tratad~s algo

superficialmente, por problemas · de tempo e .de espa<ro - reservq-me

outra oportunidade para explorá-las rnelhor. O objetivo aqui foi

esbo9ar os ritmos e principios básicos da vida e da ideología Ara

weté: o ciclo do xarn.a nismo alimentar, as f_estas do cauim, a oposi

c;ao mata/aldeia, os valores simbólico s das substancias. "metafisi-

cas" (cauim, mel, simen, etc.), as categorias de relac;ao social.

A terceira parte corne9a com uro . capítulo em que se descrevem

e analisam as concep9oes Araweté sobre a morte e o destino da pe!

soa; em que se faz urna considera<rio sobre o xarnan'i smo e .a guerra,

que envolve urn contraste entre dois generas musicais, a "música

dos inimigos" e a ''músic~ dos deuses''. Retomando, por fim, a cos-

mologia esbo9ada no capitulo IV'· ali procuro inserir, a partir da

morte, a Pessoa Araweté, interpretando-a com~ elemento paradoxal,

ponto aleatório ou intercalar, articulador . das séries cósmica e

sociológica. Ern conclusao, proponh~ urna prirneira i~terpreta9ao do

significado do canibalismo divino · Araweté. Este é o capítulo VI.

O capitulo VII, por firn, procura dispar sisternaticamen

te o discurso Araweté sobre a morte, as almas , o xamanismó e a

guerra em urna série comparativa, buscando as constantes e as va-

ria9oes dentro do univer·s o Tupi-Guarani . · Ali se discutirá · o terna

do. canibalismo, ern torno do caso Tupinambá, examinando-se as in ~

terpreta9oes disponiveis , aproxirnapdo-o de outros fenomenos, corno

o profetismo, e conside-rando as vias de · ascese e do excesso den-

34
introdu~ao

tro das cosmologias Tupi-Guar~ni. Por fim, faremos wna caracteri-


za9ao abstrata da cosmologia TG face . aos modelos Je-Bororo, Guia
neses, e outros - além de um breve excurso pela Grécia - c om esp~

cial aten~ao para o contraste entre a dialética especular da iden


tidade Je e o "Cogito canibal" TG.
- . -
Os materiais etnograficos Tupi-Guaran! serao usados de di -
versas maneiras, ao longo do trabalho. Em primeiro lugar, minha
)

tentativa de identifica~ao e caracteriza9ao dos Araweté, dentro '


dos Tupi-Guarani, levou-me ao estabelecimento de aproxima~oes subs
tantivas de meus dados com os alheios, e a formula~ao de hipót~

ses e s1nteses esquemáticas esparsas. No capítulo VII se procur~

ri conaolidar um modelo cosmológico TG, a 'partir do sistema da al


ma, nome, morte, canibalismo, canto: e 9eneraliza9oes finais.

Por f im, wna palavra sobre o abuso do regis.tro de termos em


Araweté. Ele nao traduz wn falso cuidado pedante com a "tradu~ao••,

mas procura servir aos pesquisadores de outros grupos TG, sejam


linqülstas, sejam antropólogos, que possam usá-los comparativame~

te. O deslizamento de significados dentro do universo_ lexical Tu


pi-Guarani é wn tema. que me intriga e fascina, e sou grato aque -
les estudiosos como Cadogan e Nimuendaju, que permitiram o acesso
ao vocabulário Guaran!.

3. APROXIMA~O AOS ARAWETg

Estes sao 08 costumes de maiB notar desta gent e


do Brasil~ ·quB para se faaer reZ.a~ao miudament e
de todos era necessári o um Z.ivro mui grande.
(Anchieta)

Passei pouco tempo entre os Araweté - onze meses, distribuí


.
dos entre m~io-julho de 1981; fevereiro-abril, junho-setembro, de

35
araweté: os deuses canibais

zernbro de 1982; janeiro de 1983. Deixei, portante, de acompanhar

os meses de outubro e novembro do ciclo anual - que reconstruí a

partir de narrativas, quando de minha última fase de campo.

Após tres curtas experiencias de pesquisa entre ·grupos indí

genas - Yawalapíti, Kulina, Yanomami - que, por diversos motivos,


.
nao tlveram continuidade, cornecei a vol tar meu interesse para o·s

povos Tupi~Guarani. A irnpressao· geral que me causava a literatura

etnológica nessa área era ambigua (ver Capítulo II). Se o mate-

rial "clássico" - Tupinambá, Guaraní - parecia-me sugerir urna corn

plexidade ainda nao analisada, e irredutível a dos sistemas so-

ciais e simbólicos Je, Bororo, Tukano, xinguano e outros, que nas

Últimas décadas foram o terreno privilegiado de estudos in situ ,

as monografías sobre povos Tupi-Guaraní conternporaneos, em contra

partida, me desanirnavam. Marcadas, ern sua grande maioria, pela

pro~lernática da "acultura9ao", nelas o presente etnográfico -


nao

p·assava de wn momento instável entre urn passado remoto de pleni tu

de sócio-cultural, de reconstru9ao· averiturosa, e urn futuro próxi-

·rno e inevitável de perda, desagrega9ao ou desaparecirnento. Assirn,

o quadro que emergía era urn de sistemas sociais simples ou sirnpli '

ficados, onde as baixas demográficas geravam um nao-funcio narnen-

to generalizado, urna adapta9ao ernergencial ern que só subsistiam ,

fragmentariamente, os ternas cornuns a quase todas as sociedades

s~l-americanas - peda9os do a rande ciclo .dos gemeos míticos, a

couvade, a familia extensa, o xamanismo ... Parecía irnpossível sa

ber, em suma, se a impressao de superficialidade provocada pela

leitura desses trabalhos se devia a,um ponto de vista teórico dos

autores, a situa9ao atual dos povos estudados, ou se, afinal, os

Tupi-Guaraní nao eram mesmo rnuito "interessantes" ...

Acrescente-se que, a partir da década de 60 , os Tupi-Guara-

36
introduqao

ni praticamente saem da cena etnol6gica (ver Meiatti, 1983, e in-

fra) . o~ trabalhos r~álizados ~ publicados a partir de entio, a~

lim de estarem fara da corrente principál das discuss6es, nio che

gavam a delinear claramente urna problemática Tupi-Guarani, que

pudesse ·ser contrastada ~6m os modelos construidos para cutres

sistemas · sociais sul-americanos. Tudo levava a crer, enfim, ·que

os Tupi-Guarani eram mesmo pavos ·do passado, dominados pela som-

bra g,1.oriosa dos Tupinambá, e reduzidos ao papel de exempl'os nos

l'i vros-t'e xto de antropologia, oü ao de ·símbolos arcaicos . do Imagi

nário nacional.

Desde meados da décáda dos 70·, ·porém, come<;a-s'e a assistir'

a urna retomada do interesse nas sbciedades Tupi-Guarani, · dentro

de urna expansao geral das pesquisasantropol6gicas de campo. A re-

lativa maturidade da etnologia brasileira, sobretudo a partir do

estabelecimento de urn alto padraó des'c ritivo e interpreta.tivo pa-


ra as sociedades do Brasil Central , tornava legítimo e necessário

um re-exame ·de sistemas sociais "marginalizados 11 , como' os dos Tu-

pi-Gua:rani.
. . ..
. ~ ,
· ~ neste contexto que se situam minha· escolna· dos Araweté, e

esta tese. Havendo detectado urna lacuna na etnologia sul-america-

na, e tendo percebido, gra9as a -urna leitura dos livros de ' F.Fer -

nr=L i.des sobre a. guerra Tupina.mbá e do erisaio ·de ·H. Clástres · sobre

o profetismo 'l'upi -Guarani, que urna singular concep9ao da Pessoa


.,
e da Socieda.d e parecia . se ~mpor - e que ela podia ser entrevista

mesmo nas monografias 11


a dulturativas" sobre os Tupi do Leste Ama-

zonico - tratava- se de descobrir a onde ir. E de tentar urna experi

encía de sintese dos fato s Tupi-Guarani a partir de urna pesquisa

de campo, visto que as sinteses disponíveis ' se apoiavam quase que

exclusivamente em fon tes históricas ou em' etnograf ias alheias .

37
araweté: os deuses canibais

Os Araweté estavam entre os grupos Tupi-Guarani da regiao

Xingu-Tocantins que haviarn sido recentemente atingidos pela fron-

teira em expansao no sul do Pará, com a constru9ao da Transamazo-

nica. Desde seu "contato" em 1976 até 1980, apenas a antropóloga

Regina Müller, que trabalhava com os Asuriní - vizinhos dos Ara-

weté - empreendera urna rápida visita ao Ipixuna, o afluente do mé

dio Xingu em que eles haviam sido aldeados pela FUNAI. Eu nada sa

bia sobre eles.

Em maio de 1980, portante, solicitei a FUNAI autoriza9ao p~

ra pesquisa na área. Em janeiro de 1981 ela me foi concedida, vi-

gorando a partir de maio daquele ano, semente - pois a etnóloga •

Berta Ribeiro estaría nos Araweté em abril, para um levantamento

da cultura material do grupo. O longo intervalo entre meu pedido

e a permissao da FUNAI deveu-se ao fato de que as rela9oes entre'

o órgao governarnental e a co~unidade d~ antropólogos estavam, em

1980, em um nivel de deteriora9ao ainda mais baixo que o usual.

Por f irn, após superar urna extensa série de obstáculos buro-

crático-políticos, e depois de urna viagem fluvial de tres dias ,


saindo de Altamira, cheguei aos Araweté aos 2 de maio de 1981.Sai

da área no final de julho, por um período que acreditava de ape-

nas um mes. Mas a rápida baixa das águas do Xingu e do Ipixuna só


6
me permitiram voltar sete meses depois . A navega9ao p~lo Ipixuna

(6) Até neados de 1983 o acesso aos Araweté era feíto por via fluvial. Partin-
do-se de Altarni.ra, cidade rnais próxima, a viagem até a aldeia t:aiava de tres
a dez dias, cxmfonne o nivel das águas oo Xingu (que neste trecho ap~nta
nn.ú.tas oorredeiras perigosas) e oo Ipixuna. Em 1982 iniciou-se. a abertura de
••
·:rna pequena pista de p:J\l.50 j unto ao Pasto. Sarente após a minha saída da area
el.a se tornou operacional, tenaO sioo acarada as pressas pela FrnAI devido aos
ataques Para.Kan.a de 1983. Isto fez a aldeia Araweté distar apenas urna oora de
v6o de Al tamira (18 O km em linha reta) .

38
introdu~io

é pratica.mente imposslvel entre setembro e dezembro, pois o rio


seca até expor quilometros seguidos de pedra nua; além disso, ela
só é realizada pelos funcionários da FUNAI, de quem eu portan to
dependia. Desencontros sucessivos e esfor9os frenéticos para ati!!
gir os Araweté, durante todo o segundo semestre, se revelaram inú
teis. Cheguei enfim com as chuvas, em fins de janeiro de 1982. Em
,

mar90, abateu-se sobre a aldeia uma violenta epidemia de gripe


urna morte.
Deixei os Araweté no come90 de maio, atendendo · a urna solicita9ao
da FUNAI para que eu apresentasse urna proposta de delimita9ao do
território Araweté, em vista de sua iminente demarca9ao - que até
agora nao se efetivou (Viveiros de Castro, 1982). Voltei no come-
90 de junho, e deixei o Ipixuna no final de setembro, com malária.
Voltei por f im em dezembro, permanecendo até o dia 2 de fevereiro,
quando repetidos ataques de malária, resistentes a medica9ao, tor
naram perigosa a continua9ao de minha estadia.

Tres semanas depois de minha saída, ~ grupo de indios Para


kana atacou a aldeia Araweté, ferindo o encarregado do Posto,qua::!
- ,
do a maior parte 'dos indios estava fora, em expedi9ao de coleta '
de castanha. Um mes _depois, os Parakana, em novo ataque, f erem

duas mulheres e um menino Araweté.. Houve retalia9ao dos Araweté ,


q~e mataram deis homens Parakana, no firn de abril de 1983. Face a'

amea9a de rnais martes, e sobretudo face ao risco de urna interven-


- descontrolada por parte da FUNAI, dispus-me a voltar ao Ipixu
c;ao
na, para funcionar como inté.rprete entre os Araweté e os sertanis
tas que á FUNAI deslocava para a regiao - urna vez que o único ou-
tro nao-Araweté que entendia algo da língua havia sido flechado '

pel~s Parakana. Embora minha autoriza~ao de pesquisa houvesse ven


cido, a FUNAI houve por bem permitir minha entrada. A conselho rné

39
araweté : os deuses canibais

dice, porém, vi-me foryado a desistir da viagem - caso precisasse



receber novamente doses maciyas de quinino (devido a urna reinfes-
tac;ao por falciparurn de cepa resistente), era muito elevado o ri!
ca de surdez permanente. Assim, encerrou-se esta fase do trabalho
junto aos Araweté. De·s de en tao, nao ti ve noticias de novas . escara
muyas com os Parakana.
Meu trabalho entre os Araweté, assim, além de relativamente
pouco demorado, foi acidentado e intermitente. Isto pesou sobret_!!
do sobre meu aprendizado da lingue. Araweté. ·os Araweté sao prati-
camente monolingües 7 , e portante, nem meu razoável ouvido linguís

(7) As crian~, que nao o sao, nao o admiten, o que ne seu


9-rau de cnupeténcla em portugués.

tico, nem o recurso a bibliografia especializada Tupi-Guarani,co!!!


pensaram a falta de ·urna expoSiyaO continua e demorada ao falár A-
raweté, cuja prosódia é de ritmo muito rápido, com o predominio'
de um vocalismo nasal e articulac;ao leniente. Wagley (1977:20) di
zia que sempre sentiu haver uma "névoa· lingüística" Ca linguistic
haze) entre ele. e os Tapirapé; suspeito, ·infelizmente, que entre
eu e os Araweté houvesse algo mais denso. · ~ difícil urna avaliac;ao
objetiva dessas maté·r ias; tudo o que posso dizer é que,se cheguei
a compreender á fala cotidiana dos Araweté - sobretudo, obviamen-
te, quando eles falavam comigo - e se dispunha de recursos · meta -
.lingülsticos para .. aprender a aprender", nao era capaz de enten-
der os cantos xamanisticos sem o auxilio de glosas e repetic;oes
em ralenti. De um modo geral, nao p06SO fornecer traduc;oes deta-
!hadas de períodos ou frases mais extensas; há um vasto conjunto

de morfemas, aspectos verbais e marcadores retóricos cujo. signifi


cado desconhec;o. Por isso, minha interpretayao dos cantos dos deu

40
introdu~ao

ses e de guerra - aspectos centrais da vida e cultura Araweté - é

superficial, e sujeita a inúmeras cau9oes.

Igualmente, nio me foi ~ossivel obter mais que versees mui

to fragmentárias do corpus mitico. Os Araweté raramente "contam

mitos", enquanto eventos discursivos separados do fluxo da conver

sa informal; tampouco se dispunham a recitar para o gravador ver-

sees · artificialmente induzidas e pretensamente "completas". A mi-

tología Araweté parece operar como um conjunto virtual que subja~

na fun9ao de contexto, a prolifera9ao cotidiana dos cantos xama -

nisticos, "rito '' central da vida reli giosa Araweté. Note-se, sig -

nificativamente, que os Araweté, h omens e mulheres, nunca se fa-

ziam de rogados (ao contrário ) para cantar e gravar o repertório

musical do grupo · - os cantos individuais dos xamas, vivos ou mor-


- sucessos populares; e as can-
tos, longe de serem "sagrados'', sao

9oes tradicionais de guerra sao muitas vezes usadas como berceu-

ses. Já minha inten9ao de registrar no gravador a palavra falada

- fossern mitos, fossem estórias - sempre produzia rea9oes de timi

dez e confusao. Devo, por fim, fazer urna ressalva. Embora os Ara.-

weté, por palidez e ironia características - ou a fal.¡:a de pa-

droes comparativos - declarassem-me um falante razoável de sua

lingua, nao duvido que desanimassem de me narrar estórias compri-

das , que sabiam eu só cornpreenderia em parte , fosse por carencia

de código, fosse por ignorar o contexto a que elas rernetiam. Hou-

ve que me apegar, assim I a "mi to.logia implícita.. ( Lévi-Strauss I

1971: . 598 ; S.Hugh-Jones, 1979:14) Araweté, e me ater as at.itudes

cosmológicas mais gerais, expressa s no discurso e na prática

nao fa90 aqui nenhuma análise da mitologia Araweté.

viver entre os Araweté - selvagens amáveis corno os Kaapor

de Huxley (1963) - era fácil. ''Faze r'' antropologia i que era difí

41
araweté: os deuses canibais

cil. Poucos grupos humanos, imagino, sao de trato tao ameno, · e


convi vio tao di vertido - desde que se tenha urna boa capa.c idade de
8
rir de si mesmo (a minha é no máximo mediana) . Amigos da proximi

(8) _ "Ct>servei que os selvagens los Tl.lpinarrbáj arnarn as pessoas alegres, gallx:> -
feiras e 1 ; 1=-P..rais, alx>rrecerxb os taci turn::>s, os avaros e os neurastenicos .•• º
{I.éry, 1972: 122). E eu pude oh5ervar, de fato, que urna das coisas que rnais
surpreendia os Araweté, no mrµ:>rtarrento oos brancas, eram as flu~ de
anuro e .hurror, sern razao aparente. A tristeza e a •• seriedade" sao
valores abso
lut:anente negativos, em geral. "Nao tir" (p-éka -i') · é um eufanisrco para o rancoJ:i,
e a myao de alegria (tori) tem una ressonancia filosófica profunda. E)n outras
línguas 'ffi, os cognat.os de tori designarn a atividade ritual (cf. Kamayurá
to?"tp), a l:x:>a ordern do m.mdo. A q:x:>Sicráo ética central na sociedade Araweté co
loca, de um lado, a alegria-tori, de outro a raiva (ña.ra) e a tristeza-sa1xiade
. - -
(ho'ira). A prineira define as rel..ac;xJes entre os aplhi-pihéi, os amigos "in-for
- - - -
rnais" que partilharn a:njuges; a segurx]a a relacrao can os inimigos; a terceira'
can os rrortos. A rx:x;ao de "medo-vergc:nha" (Ciy~), a meio canú..ntX> entre esses
p:)los, é arrbigua; noJ::Il\a.lm:mte é objeto de avali~ negativa, mas é o sentimen
tcratit.We prescrito entre i..I:nBo e ~ (e ~ entre B e Z; nao marca ne-
nhuma outra relac;=ao
soc.ial).Tristeza e raí.va nos fazern ficar "forá de si"
Cmo-a 'o), o que é perigoso :."" correnos o risco de matar ou de norrer.

dade corporal, de urna in.f ormalidade por vezes avassaladora, abso-

lutos no dar e no pedir, exagerados nas demonstra9oes de afeto ,


amantes desenfreados da mesa e da Carne, de lingua solta e riso
constante, .sarcásticos e por· vezes delirantes, sempre me pare ceu
que no9oes como as de regra, nortna e medida eram algo i _napropr ia-
das para descreve-los ·- seJa seu ethos, seja seu eidos. Toda urna
longa história de guerras, martes e fugas, e a catástrofe demográ
fica na época do "contato", se nao se apagam da memória Araweté ,
nao diminuíram porém seu impeto vital e a l egria. ~ comum , aos bra
sileiros que puderam conviver suce·s si vamente com os Araweté e
seus vizinhos Asurini - muito próximos lingüística e culturalmen-

42
introdu9ao

te - es·tabelecer um contraste radical entre os deis povos: a "me-


lancolia e derrotismo" Asuriní se contrapoe o "otimismo" Araweté
(B. Ribeiro, 1981:15), o que ~e traduz em duas políticas demográ-
.
ficas opostas , recessiva para os primeiros, expansionista para os
Últimos. Em contrapartida, os AsurinI sao sempre louvados por sua
sofistica<c·ao comportamenta1, delicadeza e comedimento, e por seu
gesto artístico; já os Araweté aparecem como bárbaros alegres e
descuidados, tecnologicamente pobres, talvez mesmo récém-sedenta-
rizados (Ribeiro, op.cit.) 9 • .

(9) Assim, as "inpress0es de viagem" de várias pessoas sabre os Asuriní - que


nao a:::cllet;o - os aproximariam, no tan e caráter , ao quadro que tantas vezes
energe das descric¡x)es dO etOOs Guarani. Já os Araweté seriam a:rro os Tapirapé
de 1939, para Wagley (1977:~0): um povo "aberto, irreverente, gregário e amigá
vel". Mllller (1984), que conviveu cx:in os Asur:iní, discorda oo entanto dos juí-
zos de B. Ribeiro sobre .a .mi.séria psia:>lógica deste grupo.Tanto Kracke (1983:
23) para os Parintintin, quanto Grünberg (1970:148) para os Kayabi, de sua
parte, sublinham o "understatement" das em::x;Qes, negativas ou positivas, nes-
tes grupos. Este nao é o caso Araweté . ._ para as em:x;0es positivas - e . puje
constatar que nao se tratava apenas ao · sistema de re~ joa:>sas que
subjaz a inter~ Araweté-brana:>s, mas de urna atitude geral.

Há nisso urna mistura de verdade e de estereótipos superfi -


ciais. Mas nao pos.so deixar de di.zer que I mesmo ªº final de minha
estadía entre os Araweté, quando já conhecia wn pouco mais de suas
sutilezas lingüísticas, psicológicas e sociológicas , nunca me a-
bandonou a impressao de que, comos Araweté, . tudo era possível
ern todos os sentidos. Isso talvez de urna boa idéía de quao . pouco
os conhe90, afinal . Nao esque~o , porém, de minhas sucessivas sur-
presas, ao ver urna sogra catando piolhos na cabe~a do genro; ao
ver um menino mamar na irma; ao ouvir o modo humorístico c orno as

43 .
'
araweté: os deuses canibais

crian~as falavam dos mortos; ao ver um homem passear pela aldeia ·


trajando as roupas novas de sua mulher, "para
/ -
experimenta-las~ (e
nao parecia haver nisso nenhum "simbolismo") lo. Para um ant~opólo
-
(10) As nW.heres Araweté possuem un cxnplicacb traje tradicional.

go que conviveu com os povos do Brasil Central, tudo isso era iné
dito. Para mirn, aliás, um dos tra~os mais surpreendentes da vida
.
Araweté era a desenvoltura feminina no . trato comos hornens -. es-
trangeiros ou patricios e, de modo geral, a pouca diferenciac;ao
entre o ethos masculino e o feminino. Isso, longe de ser um deta-
lhe pitoresco Arawet~, ·parece-me agora fundado . ern deterrnina96es
da · estrutura social Tupi-Guaran!.
Nao é preciso m,uita reflexao para p~r~eber que essa indife-
ren<;á ollmpi·c a (ou antes, "dionisiaca") dos Araweté ao que se con
venciono\1 chamar de "conven<;oes ~ociais" é, ela mesina, . wna conven
..
c;ao; e que .
a exuberancia - - p.rescri tas proscrevem a
e extroversao ir

rupc;ao de sentimentos anti-sociais: raiva, antagonismos, mau hu-


mor, tudo isso tende a ser suprimido e desviado.
.'
'
Ac;escen:t~-se
que
a presen<;a atuante das .mul.heres na vida sociai, .e sua desinibi<;ao
psicológica, contrapoem-se a um rlgido sistema de pudor corporal.
Se os Araweté nao parecem cuidar muito da etiqueta e dos
formalismos sociais, possuem em troca um vocabulário psicológico'
extenso e capaz de nuan<;as delicadas¡ este vocabul:ário tende a su
plantar o sociológico, como modo de explica9ao de atitudes e com-
portamentos.
o fato, porém, é que. as ·conven9oes sociai·s - no duplo s~nti
do de etiqueta ou regras de intera9ao, e de formas de classifica-
9ao social, marca9ao simbólica de diferen9as sociais, elabora9ao
ritual de cate9orias - sao exatamente a matéria-prima privilegia-

44
introdu9áo

11
da da antropología social. E o que chamei de "indiferen9a Araweté

as conven9o es, se nao me era desagradável enquanto estilo d e vid~

desorientava-me ou me frustrava enquanto indiferen9a socio lóg i c a,

isto é, corno nao-diferencia9~0 visível de segmentos, categorías,

papéis e cornportamentos ·sociais. Sua sociedade se me afigurava co

rno pouco institucionalizada ou ritualizada - se entenderrnos

"ritualiza9ao" em sentido lato, corno o conjunto de procedimentos'

(gestuais, espaciais, gráficos, verbais) que objetificarn ou mate-

rializam as prernissas cognitivas e categorias fundamentais de um

grupo, e seus processos de imbrica9ao e transforma9ao.

Ora, isso que chamo de ritualiza9ao , mais que urn mero en-

velop~ de idéias e diferen9as sociais, que poderiam subsistir sern

ele,•é na verdade o próprio mecanismo de produ9ao dessas diferen-

9as - a maquinaria ritual, que inscreve na terra e nos hornens os

s~gnl~icados, é a pr6pria sociedade, e nada menos que ela. Pois

b em: para os Araweté, essa máquina parecía produzir indiferen9as,


- podiam assirn ser pensadas corno
deliberadamente, e que nao frut o

d e urna regressao ou simplifica9·ao de uina f o rma anterior rnais "di-

ferenciada 11
• E o ethos Araweté me surgía c omo articulado a urna

postura rnetafisica determinante.

Exagei:o, por certo e p o r ora. Boa parte das páginas q u e se-


-
g uern tent a :r::á justamente descrever. os processo s e categorías da or

ganiza9ao s o cial Araweté; mas falo aqui de' tendencias, e p o rtante

de enfases e g r a us. Alegorizerno s. Tudo se passa como se, diante '

do aparelho classificatório- i n s critor, as soc iedades pudess-ern dis

por-se, ou escolher, entre duas dire~oes o pos tas, ou limites, li-

nhas de fuga. De u.ro lado , a rnu l t iplica9ao sistemática das diferen

9as inte~nas, a segmentariz a 9 a o generalizada - mecanismo a l tarnen

te produt.ivo, onde o estaLelecirnento de urna o posi9ao diferencial'

4.5
araweté : os deuses canibais

significativa gera automaticamente uma contra-oposi9ao, transver


sal a primeira, por urna espécie de "vontade de paridade'* que bus-
ca deter o dinamismo assimétrico e a dif eren9a bruta inerentes ao
real (ver as observac;oes · de Lévi-Strauss, 1977a·: 181} - deste lado
ainda, urna tendencia' a representa9ao ou exteriorizac;ao emblemáti-
ca de toda diferenc;ra pensável ou possível, 'e a captura das desean
tinuidades do real para lhes irnpor . urn sobre-valor de significac;á~
Do outro lado, a dispersao das diferen9as até um limiar de assig-
nificac;ao, .a circula9ao de uma substi tuibilidade ou suplementari
dade gerais ao longo de todo o corpo social - em que suas partes,
em vez de complementares, sao equivalentes e redundantes - a pro-
je9ao das diferenc;as para fora da Sociedade . Desse lado também ,
urna vontade de desmarcac;ao, de minimiza9ao das oposi9oes, de invi
sibilizac;ao das significac;oes; uma enfase na continuidade interna
do sistema social. E mais: um esforc;o de superac;ao dos limites e~

ternos do sistema, a recuperac;ao das diferenc¡ras que foram extro -


-j etadas , através de mecanismos de metamorfose ou metonimia - i.
e., processos sem media9ao. Sociedades metafóricas .versus socieda
des metonímicas, poder-se-ia dizer; ou sociedades "toternicas"

vers us sociedades "sacrificiais" - aproveitando urna famosa oposi-


9io l~vi-stra u ssiana (L .-Strau ss , 1962a:25 -4 5 ; 1962b:294-302 ). Re
conhecem- se aqui as sociedades de tipo Je no prirneiro caso - soci
edade s "legíveis" (Da Matta, 1976:67) - ; os Araweté e outros esta
riam mais bem no segundo: soci edades ,, irnperceptiveis
. ... . ,, l l

(11) Essa distínciao de duas "fornas sociais - de valor bastante retórico - nao
deixaria de evocar, para mu.i.tos, as tipologías de Macy Couglas construidas a
partir dos conceitos de "grid" e "group" (Ibuglas, 1973,. 19~2). Mas nao creio
que se trate disso; mu.i.to merns que ela possa ser objeto de urna reau;:ao neo-
- durkhei.miana. E nao apro:<l.rro os Araweté dos pigrceus de 'I\rrnbu.11. Ccrro já dis-
se antes , é essa diferen<;a das formas de ¡:ensar a diferenra, e.xpressa acirna ,

46
introdu~ao

que escapa. ao rrodelo generaliz.ante de P. Clastres. Kapl.an (1984} m::>stra


a sociedérle Piaroa se inclti.i.ria na segunda fonna; náo obstante, ela considera'
os Cbis "tipos" ccm:::> realizarrlo ¡x:>r rreios op::>stos o rresrro objetivo: conjurar
o fato i.rrpensável e indispensável da di.f~a, da · existencia real dos outros
- anima.is, afins, inimigos, rro.rtos. Uns introjetam e dcrresticam; outros expul-
sam· e denegam. Penso que há urna terce.ira saida.

Urna yez que as sociedades do primeiro "tipo" s ·a o aquel as


que mais imediatarnente se prestara ao olhar antropológico, a ~ues

tio esti em equacionar, inicialmente, a especificidade das outras,


as que tornam a dire9ao aposta. Tratar-se-ia, por exemplo, de esca
lher entre duas formula9oes, ambas negativas: sociedades corno a
Araweté nao se caracterizam pela presen9a de segmentos, metades ,
classes de idade, rituais elaborados, sistemas de traca matrimo -
nial estável, classifica9oes re.f inadas, etc. - ou o que as carac-
teriza é a ausencia de tais tra9os? A segunda formula9ao, ernbora
ainda negativa, implica urna pos.i tividade que nos incita a olhar
alhures, e a buscar ra2oes.
Antes contudo que eu come9asse a esbo9ar as questoes acima,
nao me restava, no campo, senao a constata9ao desanima9ora de que
os Araweté "nao tinham" urna por9ao daquelas coisas que despertara'
o interesse profissional do antropólogo. Tal inventário das indi-
feren9as, ou lista de ausencias, incluiría: nenhuma regra ou for-
ma de evita9ao de afins; baixo rendimento estrutural do sistema '
de nomina9ao; ausencia de cerirnonias de inicia9ao, pouca énf ase
em mudan9as no ciclo de vida; simplicidade dos funerais, nao-ma~
ca9ao do luto e de seu término; divisao do trabalho fluida; sim -
plicidade dos sistemas de presta9ao e contra-presta9ao cerimo-
niais ou profanos; morfologia espacial aparentemente caótica; u~

padrao cerimonial simplificado; repertório mínimo de papéis so-


ciais; e, naturalmente, ausencia de qualquer segmenta9ao global

47
araweté: os deuses canibais

Se algurnas dessas ausencias recorrern ern outros povos TG, outros

aspectos vao, ern contrapartida, receber considerável elabora9ao •

Sorne-se a isso, por fim, urna cultura material bastante simples,

tecnológica e esteticamente, e urna agricultura "rudirnentar" para

os . padrees TG.

A violenta depopula9ao sofrida pelos Araweté nos anos de

1976-77, e, sobretudo, urna longa história de transumancia e deslo

camentos for9ados, devido a pressao de levas sucessivas de invaso


- podern ser superf icialrn'e nte
res, nao descartada~, no explicar essa

s.irnplicidade .do sistema social Araweté. Contudo, quero crer que

elas sao rnais importantes no que tange aos aspectos tecno-econorn!

cos. Nada nos autoriza a postular que, ern algum hipotético (e re-

moto) periodo de "paz" e isolarnento territorial, a sociedadde Ara

weté dispusesse de um sistema social 'e cerirnonial rnais diferencia

do que o atual. Note-se porém que a redu9ao demográfica, e a con-

centra9ao recente da tribo ern urna só aldeia, rnodificaram alguns

padroes básicos - visto que o modus vivendi na década de 1960 e

anteriores era o da ocupa9ao de um vasto território por pequenos'

grupos locais, ligados por casamento e alian9a guerreira, freqüen

tando-se mutuamente no tempo das festas do C?uirn (u,m9- morfología

tipica da floresta tropical).

Minha opiniao é que os mecanismos de produ9ao e reprodu9ao'

da sociedade Araweté nunca depenqeram de um grande efetivo popula

cional - e isto se estende . aos dernais Tupi-Guaraní, coro a óbvia

exce9ao da gigantesca máquina de guerra Tupinambá. Do ponto de

vista da inf.ra-estrutura, ·é a agricultura do rnilho que causa, . pro

duz o agregado aldeao; na super-estrutura, é o xamanisrno que, co-

mo institui9ao central dessa sociedade , garante sua integra9ao e

reprodu9ao simbólica . o milho e o xama sao os pilares do mundo

48
introduqao

Araweté; urna ro9a de rnilho ·e urn xarna bastarn para definir urna al-

deia, e um horizonte de vida. Os Araweté explicam sua busca de

contato com os brancas, ern 1916, quando fugiram ern dire9ao as mar

gens do Xingu, pelo fato de nao rnais poderem plantar milho em

terras infestadas de inirnigos. "Estávamos cansados. de comer sócar

ne" - diziam-me. Quando ªº xamanismo, ernbora eu nao saiba de ne-

nhum momento na história Araweté em que eles estivessem privados

dessa institui9ao, ficará claro adiante de que modo o xama encar-

na e garante a unidade do grupo loca1 12 •

(12) Os exenplos dessa fUnctáo


eminente e sabredeteDninada do xamanisno abundarn
na literatura 'l\Jpi-Guarani. Una~~ de Bal.dus (1976:456) sobre caro os
Tapirapé explicavarn, ern 1935, o abarx1ono de tres aJdeias e a
'
concentracrao
dos
rernanescentes em urna SÓ - nao pela redll<$=aO denográfica, mas por nao mais haver
xamas lá - .é especialnente interessante, L1'l\a vez que os Tapirapé desenvolveram
urna organiza~ cerinonlal. de fei~ centro-brasileira, a qual inpunha um efe-
t ivo populacianal mais elevado que o usual nas sociedades amazOnicas (Wagley ·,
1977:32, 39). No entanto, é a falta de xamas, na:, de gente, que eles rea:>rriam
cx::m:> explicac;OO. A "triparti~ funcional" Tupi-Guaraní - chefe, xami, guerrei·
ro - será examinada oo capítulo VII.

Assirn, havia que enfrentar a simplicidade Araweté ern toda a

sua cornplexidade, sern recorrer a hipóteses de simplifica9ao por '

depopula9ao ou regressao. Mesmo que algo nesse sentido se tenha e

fetivamente verificado, tal hipótese nao é, nern necessária, nem

interessante; havia que achar uma explica9ao Tupi-Guaraní para urna

sociedade TG, e nao recorrer aos percal9os irnaginários da histó

ria ou da ecología. E era preciso olhar na direc;ao certa., ver o

que interessava aos Araweté, seguindo o conselho sensato de Evans

-Pritchard (1978: apéndice IV): o que, para eles, correspondia ao

gado Nuer, a bruxaria Azande, aos nomes e ao dualismo Je?


Nao me refiro aqui, apenas, aos tópicos substantivos que

49
araweté·: os deuses canibais

dominavam o discurso cotidiano Araweté. Esses, · eram· mais oú menos


os que sempr.e interessaram· os homens, de toda época e lugar: a
comida, o sexo, a ·morte, os deuses 13 • Mas. sobretudo a tarefa de

(13) A etnografia Araweté seguirá, ~ . ou rrenc>I? nesta orden, .~ses mesnos ~


mas, DDSt.rardo. ainda caro os deuses (capitules rv e VI) sao o operador da ait!
cu]~ doS trés outros (cap: V § 1-3, § 4; CélJ?• VI) • Se esses temas sao uni - -
versais, é porque Se referen aos prooessos en que a Sociedade .se oonfrcnta cnn
seus limites reais de existéncia e reproductOO, e cnn a garantia imag:inária da
sua unidade.

des~obrir o "idioma" .em que os Araweté falavam de . sua· sociedade •


Se, como era o caso, o .códig.o . sociológico nao é o . prii/J..legiádo ,
qual a linguagem dominante? Qual o lugar pi:-ati~o e · disé:ursivo "~m:ds
' .
denso de $entido, em que se podem . apreender
.
as a:mcepirOes
' . dcsAraweté
\ ..'

sobre si' mesmos, a sociedade, a pessoa e o. cosmos? Qual, em suma,


o plano de consistencia destá sociedade, · o · ponto a. partir do qual
se po~eria operar, se nao uma inútil e impos~!ve.l totaliza<;a,o , ªº
menos uma descri~ao significativa?
. ~

Tal lugar, só os xamas sabem onde fica.


Desde que cheguei ·nos ·Áraweté, e · durante toda a minha esta-
dia entre ·e les, surpreendia-me o violento contraste -·entre a vida
diurna e noturna da ·aldela.• Durante o dia, "nada aconte·cia" - sim,
as ca~adas, as pantagruélicas refei<;oes coletivas, as inter.mina-
veis conversas nos pátios familiares ao cair da noite, a eterna
faina do ·miÍho; mas tudo daquele jeito descuidado, ao mesmo tempo
agitado e apático, errático, monótono, alegre e distra!do. Toda
noi~e,
' .
porém., madrugada adentro, eu ouvia emergir do silencio das
.

casas con'jugais um vozear alto e solitário, ora exaltado, ora me-


lancólico, mas sempre austero, soiene, e as vezes - para mim - al
go sinistro. Eram os homens, os xamas cantando: o Ma! marakQ., a

50


introdu~o

música dos deuses,. Semente durante a fase mais aguda da epidemia

de gripe, e por um periodo após a morte de Tatoawi-hi, esses can-

tos cessaram. Certas noites, tres ou quatro xamas cantavam ao mes


'
rno tempo, ou sucessivarnente, cada um sua própria visao pois

tais cantares sao a narrativa do Maf deca , a visao dos deuses. As

vezes era apenas um: sernpre. corne9ando por um trautear . suave e sus

surrado 1 ia · erguendo progressivamente · a voz, cuja articula9ao en-

trecortada se desenhava contra o fundo cromático, chiante, do cho

calho aray, até atingir um patainar de altura e intensidade que se

mantinha por mais de urna hora, para entao ir lentamente decaindo

as primeiras luzes da aurora - a "hora ero que a t~rra se desvela",

. -· - -
como se diz ern Araweté liwi p!"tiawa me l - até retornar ao silenci~

Mais rar~rne~te . - o . que significava urna ou duas vezes por . s~mana,

para caqa xama ativo ~ o clímax da can~ao-visao noturna trazia o

xama para fora de sua .casa, ¡:>ara o .seu pátio. Ali, danc¡:ava curva-

do, com o charuto e o ara!J 1 I:?atenclo fortemente o ,pé qire·i to no

chao , ofegante, sernpre cantando - era a descida a terra das divin

dades, trazidas por ~le, o xama, de sua v.iagem .aos outros mundos .

E com elas, vi~ a saber depois, vinham o~ mo~tos Araweté, esplen~

didos como . os próprios deuses, passear no solo .que urna vez pisa-

ram.

Custava- me crer que- aquelas . vozes solenes e terriveis, aque

les vultos ·.cl,lrvados e so~rios que eu entrevía da porta de niinha

casa ti vessern qualquer coi.sa que fosse corn os homens ~· qi urnos" ,

alegres, .debochados; pe,dinchoes, objeto · do es.cárnio agre~si vo dos

funcionários do Pasto · Indígena, e aparentemente indiferentes a

este escárnio - menos por sobranceria que por ignorancia inocente .

Mas eram os. mes;~os


- Pois .o contraste que eu
l)oroens. Ou antes, nao.

percebia - e que nao existe corno t a l ( i s to é, como algo a ser" peE

51
araweté: os deuses canibais

cebido") aos olhos Araweté - era a diferencra entre o mundo humano,


..
diurno, de um povo as vol tas com a miséria oÍerecida pelo "conta
-
to" com os brancos (e que parece, no plano das ·formas sociais vi-
síveis, demasiado Írágil a essa proximidade), e o mundo no turno
dos deuses e dos mortos - o verdadeiro, em mais de um sentido,m~

do dos Araweté. E nao devemos. esquecer que,· quando em nossa . terra


é noite, no mundo dos Mal brilha o sol; e lá, os homens sao ·imor
tais.

Foi a partir dos cantos xamariisticos que comecei a ser in-


troduzido na cosmologia dos Araweté Ce também a segu~~ seu ritmo
cotidiano, passando boa parte da noite acordado, dormindo algumás
horas a tarde). Comecei a aprender o · nome e alguns dos atributos
de urna legiao int~rmi.havel de espi.ritos, divindades, fatos e a-
~oes invisíveis a luz do dia e aos olhos nao-Araweté.Descobri que
a "música dos deuses" preenche múltiplas func;oes no cotidiano . do
grupo, e marca, consagra: ou determina · os ritmos economices do ano.
Percebi a presen~a dos deuses, como realidade ou fonte de exem
ples, para cada mínima a9ao rotineira. ~' o mais importante, foi
a partir deles que pude divisar a presenc;a e a participacrao dos
mortos no mundo dos . vivos, e com i .sso entrever a concep9ao Arawe-
té da Pessoa.

O contraste acima mencionado, entre o di·a e a noi.te, o mun-


do humano e o mundo divino, mesmo que exagerado por mim, deve ser
mantido, para que essa onipresen~a do Além nao leve a impressao
de que os Araweté sejam uro povo de místicos, ou que o tom afetivo
de sua vida apresente quaisquer dos tra9os que costumamoa as so-
ciar a no9ao de religiosi·dade - · reverénciá. e temor, interioriza. -
9ao ou recolhimento psicológicos, desvaloriza9ao do mundo "real".
Ao contrário, como re·feri páginas atrás, se alguém aprecia as

52
introdu~~o

boas coisas da v;i.da terrena, sao os Araweté. E a cotidianidade do

contato comos deuses gera a familiaridade - nada mais "natural",

para todos, homens, mulheres e 4 crian9as, que o "Sobrenatural" evo

cado pelas ladainh.as noturnas dos xamas. Ademais, o contraste en-

tre a terra e o céu - entre os vivos e · os deuses-mortos - se es-

tá, como veremqs, efetivamente fundado numa separa~ao original


'
nao é pensado como barreira ontológica, ou corno distancia infini~

ta, natural ou moral. A sociedade Araweté, coro . todos os seus deu

ses, é paga - corno dizia H.Clastres (.1978:32) dos Guarani antigos,

que forjaram uma "religiao a-teológica" - justamente porque, corno

para os Guarani, a diferenc¡:a entre os h.ornens e os deuses é posta

para ser superada: o hornem se iguala ao deus, superando-se; nunca

o deus se faria homem, para resgatar a culpa original_. Superac;ao


-
nao- d.ia 1-· .
etica, ime d.iata 14 . E a morte e- o 1 ugar d essa -
opera~ao, arn

(14) Ver a penetrante observa9ao de Humboldt, mmentada no Ubirajara de J. de


Alencar, sobre a diferen9a entre o antroparorfisno divino na Grécia e na Arréri
ca. Constatando a inexistencia de ídolos e culto na mem5ria das· religiees arre
ricanas, Humboldt considera que, aqui, "~ verdadeira representac;ao da divinda
de na terra é o rnesrro harem que a continua; cada um tem o seu nume ern si . A
qui se toca ponto essencial, antecipador das idéias de Métraux e H.Clastres so
brea religiao "individualista" 'I\lpi-Guarani.. Cf. Vernant,1974:117, sobreasa
bedoria grega d os limites harern/deus , e as heterodoxias que a questionavam. Ma
nuela Carneiro da Cunha chanou-me a aten~ao para esse trecho do Ubirajara.
...
bígua e complexa - o mesmo lugar cuja topologia eu dizia que so

os xamas conhecem :bem. ~ desse -l ugar que é preciso falar, para ou

vir.mos os Araweté: a morte.

Os Araweté, além do gesto que sentiam em me desfiarern os no

mes das inurneráveis ra9as celestes, subterraneas e 's il ves tres de

espíritos e divindades, apreciavam nao menos, nas longas conver-

sas que nos entretinham a noite, deitados a roda do fogo no pátio

de urna casa qualquer, enumerar e nornear seus rnortos. Essas recita

53
araweté: os deuses canibais

QOes aumentaram, é claro, tao logo eles perceberam - para seu es-
panto e diversao - que ambos os assuntos me interessavam, e que
eu escrevia avidamente o que me diziam (era impossível, sobretudo
no come90 de minha estadia, _memori.zar aquelas listas). E logo pa!_
saram a me "examinar" periodicamente, para ver se eu havia de fa-
to, através de meus papéis, registrado sua palavra. Iwamay2, urna

mulher aéria e sábia, um dia se pós a desenhar em meu caderno os


mortos, tantos, do seu povo. O que ela fez, era ao mesmo tempo
urna paródia e uma repeti9ao de minha atividade gráfica, e era ou-
tra coisa; era um fazer humor!stico, que se foi tornando melancó-
lico e reflexivo, a medida que o papel se cobria daqueles signos:

...
;Jl ffi~S': m~=t-a~4t-- ·:ijji_il\Nl'l!_____
- ·--

A cada figura destas tul que tra9ava, desajeitadarnente, ia


entoando em voz monótona os nomes dos mortos, recentes ou antigos;

54
introdu~~ó

e foi como se . de repente visse que eram tantos; e o papel dei.xou

de ser urn mero suporte de sig nos, transformando-se no pr0prio Maf

pi, o céu, lugar . dos mortos; e cada figura destas , de simulacro


~

de minhas · letras e palavras, tornava-se puro grafismo, tra90 ico-

nice de cada morto - o próprio morto. Assim, Iwamayo,que come9a-

ra por me ver "desenhar" a sua voz, · tomou da caneta, e , d~senhan-

do o me-u desenho da sua voz, tomou também . da pa1avra · (e la repetia

os nemes, a cada figura}, e terrninou por desenhar o invisível: os

mortos. E parou,dizendo: "muitos , muitos sao nossos rnortos •.. 1115 •

(.15) AS duas linhas verticais, paralelas, oo lacb e~cb cb desenho acima


representam
. .- foram ali. ~stas por out.i:a pessoa, depois, e sem rela
um Ma!;
9ao si~ficativa deliberada a:rn o desenho de rwama:yo.

Coro o · tempo, vim ~ perceber que os Araweté fa1avam muito de


- -
seus mortos, e nao so par.a .mim, ou por minha causa. Falavam do

que diziam, do que faziam, de sua aparencia . e gestos, de seus ti-

ques e seus tra~os. E os mortos' tambérn falavam bastante. Mesmo

anos depois do passam~nto de urna pessoa, ela pode surgir em urn

canto xamánico, e vir a terra para tomar parte em urn cau.im,um ban

quete de jaboti, peixe ou mel. As can9oes dos pajés e guerreiros

mortos eram sempre lembradas. Eu mesmo, por qualguer motivo, er.a


.. ·- - · graE,
. Os Arawete sao
frequentemente comparado a pes.seas Ja mortas. -
des observad.
.
o res . e apreciadores das particularidades
.
indi viduais:

seus mortos sao recordados no det.alhe, e a memória do.s vi vos é ex


. 16
tensa . Dos mortos., porém, dizem proverbialmente os Araweté: "os

.
(.16} Una IX)ite, ~sisti a 1.1n ~ alegre de mu.l.hereS, pilancb miJbo, dedicar-
-se a rep:roduzir o estilo de pilar - a fort;a, o angulo de ai1enesso da m3o-de-
-pilao, o novirrento circular que cx::ilpleta a seq\Elcia, a resp.ir~ - de · vá-
rias .mulheres ]á falecidas. As crian<;as, a nedida qtE vao crescencb, vao senéb
apelidadas jCXX>sanente por nones de no.rtos, a:nfonre apresenterr: parti r.;ulari.da-

55
araweté: os deuses canibais

des qiE os reoordem. Creio que eu estava nesse caso, quando ne ccrcparavarn aos
nrirtos, e oonfornerren~ i~ne oonferincb "apelidos" .

ossos esquecem", ''só os ossos esquecem", quando algurn vi vente a-

lega ter esquecido algo, algurn fato de su'a própria hist.Ó ria pes-

soal. A mernória dos mortos é "curta", portante. No Capítulo · VI

tentaremos entender essa frase; . ela encerra urna verdade e urna men

tira, e oculta um desejo dos vivos.

A principio, eu : ach.ava que o interesse· Araweté pelos mor-

tos - que nao é venera9ao, temor, e nao constitui nada semelhante

a urn "culto" (.pois se .imitamos mortos, ri-se deles, fala-se . de-

les antes como ausentes que corno mortos) - seria urna "forma9ao ob

sessional" ligada ao trauma do contato, quando em deis anos wn .

terc;o da popula9ao morreu. Os anos de 76-77 sao lembrados coro

tris.teza e angústia - e freqüentemente evocados. Mas a experien -

cia de ver desaparecer familias inteiras, de se perderem todos


-
os parentes próximos, de ter de se dispersar, esconder-se na mata

- tudo isso parece ter feíto parte da vida Araweté desde rnuito an

tes dos anos do contato. Cerca de 35 por cento dos óbitos nas úl-
- <.inclusive a dos adultos atuais) se deve a assal
timas 4 gerac;oes

tos de inirnigos: Kayapó, Parakana, Kamara (brancos). A · história

Araweté é· um movimento incessante de fuga e dispersao, e o estado

de guerra parece ter sido a regra e o . costume, desde há muito.


-
Mas nao se trata apenas de urna f arnili.aridade com a morte

violenta. Os mortos povoam o discurso cotidiano, a história e a

geografía do grupo • . A morte é o acontec~men~o que poe em movirnen-

to, literalmente, a sociedade e a ~essoa Arawété.

Durante rninha estadia, Tatoawf-hi, urna rnulher de meia-idade,

mae de vários filhos, morreu de pneumonia. Quatro crian~as de co-

lo morreram, ao longo de 1982, da mesma causa. A primeira morte ,

56
no auge da epidemia de gripe, mergulhou a todos ern profunda cons-

terna9ao; apenas o estado geral de fraqueza, bern corno a chegada

do encarregado do Pasto trazendo as primeiras trinta espingardas'


'
recebidas pelos Araweté, irnpediram a di.s persao da aldeia na mata,

corno é o costwne após a marte de wn adulto. Esse evento nao só in

tensificou a presen9a da marte no discurso cotidiano , como pos ern

cena o t~ 'o we, o temido espectro terrestre dos r e c ·é rn-falecidos.


Adianto que a importancia da .marte e dos rnortos nao signifi

ca qu~ os Araweté é preciso dize-lo? - "desejern" a marte, inve-

jern realmente o destino dos mortos, ou qualquer coisa sernelhante;

eles nada tern de mórbidos, e ademais, como vimos, lamentamos mor


- . 17
tos, nao os vivos •

(17} Nao há cv:rui, ¡x>rtanto, nenhuma "tanatanania" ou "desejo profupdarrente re-


ligioso de ITOrrer" - - CDIO disse Schaden (1962 :133) Cbs Guarani , mas nao sern
antes sublinhar urna arrbivalencia essencial desse povo face a ITOrte. Voltarenos
a essa ,.arrbivalencla" TG. Outra coisa a fazer é distinguir entre as atituees
diante da norte e cbs nortos - a:mo já o fazia Ninn:endaju (1978:57), e a:mo
l.enbram em geral Clastres & T.j rot, 1978: 103.

Mas o fato é que tal importancia, evidente no ámbito da con

versa9ao cotidiana e na vida cerimoni.al, sugere o valor da rnorte


.
como lugar estruturante da cosmología Araweté. Enfim e em swna, é

através dos deuses e dos mortos~ essas duas legioes que povoam o

cosmos, que rnelhor saberemos dos viventes. Se a famosa observa9ao

final de Lévi-Strauss ao .c apitulo s.obre os Bororo nos Tristes Tro

piques:

" ••• a representaJrao que urna sociedade faz da re~ao entre os


vivos e os nortos reduz-se a un esforcro para ocultar, errbelezar
ou justificar, no plano cb pensanento religioso, as rel.aQ'.)es
reai.s que prevalecem entre os vivos" Q955:277),

termina sendo wn lugar-comum, é pel~ amplitude indefinida desse '

57
araweté: os deuses canibais

esforc;o apontado; entre ocultar e justificar vai uma bela diferen


c;a, e nem tudo na relac;ao entre os vivos e os mortos deixa-se do-
mesticar pela representac;ao: o real e sua imposs.ibilidade ali tam
bém penetram.
t certo que, a rigor, os Araweté falavam mais da vida do
sexo, da comida - que da morte e dos mo~tos. Foi no entanto a pr~

sen~a .mais que conspicua de seus ausentes, seus mortos, que me


despertou a atenc;ao. E afillal, todos estes temas estao, como a vi
da e a morte, entretecidos. Os deuses, e seu canibalismo enigmát!
co, sao os teceloes.

* * *
t difícil f alar de minha rotina de trabalho entre os Arawe-
té, dada a intermitencia ·de minha estada entre eles, e . dado que
a cada nova fase redefiniam-se métodos de trabalho, .relac;óes pes-
soais, e me$JDO minha situac;ao matrimonial e residencial. Nos dois
primeiros periodos de campo, eu estava com ~inha companheira (!a-
ra Ferraz); no~ últimos fui sozinho. várias vezea, fiquei na al-
deia com apenas mais um branco, o atendente de enfermagem do Pos-
to; ma~ além deste e do chefe do P.I., muita gente passou por lá
em 1981-3, por curtos períodos: camponeses contratados para servi
c;os no Posto, vis.i tantes, e·t nólogos (B.Ribeiro, Karl e Anton Lu-
kes.ch) •••. Mo.rei em diversas. casas no complexo Pos·t o-aldeia -- des
de urna cabana tradicional de: palha, que reformei, até a magnífica
casa de tábuas de lei erguida em· f ins de 19 82 como sede do P. I. Ip!
xuna (oujo rádio operei, na ausencia dos responsáveis). Cada nova
situac;ao residencial minha definia' uma rede de intera9oes mais i~ .

tensa, com as casas vizinhas; o que tinha seus aspectos positivos


e negativos.
Os Araweté moram em casas conjugais dispostas em - "setores

58
introdur;áo

residenciais" - isto é, grupos de casas de parentes próximos, vol

tadas para um pátio pr6prio. A aldeia, assim, é composta de urna

quantidade desses pátios, mas Pªº há uma descontinuiaaae espacial


rnuito clara entre eles. Tampouco há limites nítidos entre o con-

junto de edificac;oes do Postó Indígena e as se9oes da aldeia - mas


há limites conceituais: os arredores do Posto sao o "pátio dos

brancas" (.kamara n-tka), e portante nao sao identificados a nenhu-


rna se9ao da aldeia. Após algumas experiencias, percebi que tomar

domicilio ero urna sec;ao residencial qualquer (apossando-rne de algu

rna casa abandonada - pois os anos de 1982-3 assistiram a várias

mudan9as e reconstruc;oes de casas) significava ser tornado "pro-

priedade 11 dos rnembros daquela sec;ao, o que, se nao me impedia de

visitar as casas de outras sec;oes, inibia os mernbros destas ou-

tras de me virem visitar. Havia toda urna competi9ao pelo monopó -

lio de rneus bens e de mim mesmo (pelo menos no comec;o, éramos urna

novidade divertida), e as sec;oes residenciais tero urna identidade

e limites razoavelmente bem marcados, que podem ser acionados em

situa9oes tais como essa.

Decidi, portanto - e uma vez que as casas disponíveis -


nao

estavarn ero sec;oes residencíais onde eu preferiria morar - ocupar

urna pequena casa abandonada na área do Posta, junto ao cam:i.nho que

leva ao rio. Ali, podia ser visitado por quern quisesse, e muita

coisa podia-me ser contada sem receio que vizinhos indiscret9s ou


·
vissem lB . Mas h avia
. tamb-
ero desvan t agens. Essa casa f"icava algo

(18) A oordialidade e extroversao Araweté nao .i.nplicam que nao haja ba.r.rallas
veladas entre parentelas e indivídtx:>s, sit~ ~ oonstrangi.rrento e vonta~'
~ pri.vacida~. e.ato verenos no cap. V, urna das f\nrOes das periódicas excur -
SOes a mata 1, OU dos acanpanEI1ta> tenporários junto as ra:;as 1 que oongregam pe-
qu:mos grup:>s ~ parentes, é justarrEnte a J..iberac;:ao ~ t.ensOes provenientes
da oonvi~cia em urna aldeia.
araweté: os deuses canibais

distante do aglomerado principal de casas da aldei-a, e assim, so-


bretudo a noite, eu deixava de ouvir tou ver) a movimenta9ao dos
xamas que moravam no outro extremo do conjunto· aldeao {Ver -
a p. ·
~84 o croquis da aldeia Araweté).

Acrescente-se que, de modo geral, o padr~o Araweté de mora-


dia, tao diferente· das grandes casas comunais a que eu me acostu-
mara no Alto Xingu ou· nos Yanomami - e diferente do que Wagley
.
e Baldus viveram e descreveram nos Tapirapé - tornava mais üifí-
cil uma observa<;ao e participa<;ao integrais na vida quotidiana do
grupo. Em compensa~ao, permitia-.ine uma privacidade as vezes psic2
logicamente útil. E na verdade, a maior parte da vida Araweté se
passa fora ,das casas, noa pátios - é lá que se trabalha, se cozi.-
nha.; se come, se deita i noite para conversar, i lá que se dan<;am
e cantam as can9oes do cauim.

Nao posso di_ze-r que tenha tido •1nformantes", exceto nos


dois últimos meses de campo, quando Toiyi passou a ir toda noite

(i.e., de meia-noite em diante, após o tour dos pátios) a minha
casa, para to~a café e conversarmos horas a fio. A algumas
pessoas me llguei. mais. especialmente, ou por simples amizade, ou
porque algumas delas pa-reciam ter um .gosto e um talento especiais
. pa:ra me ensin·a:rem o que eu que:ria. saber. Eu disse há pouco que a
cul.tura. Arawaté: nao. parece cuidar m~ito de "formal.ismos" - nos
dois· sentidos do termo - e que privilegia um vocabulário mais
psioo.l ógico que sociológico. Isso nao quer dizer, contudo, que
algumas pess·o as nao tivessem uma notável capacidade de raciocinio
. abstrato o:u . extra-contextual, formulando enunciados genéricos, hi
poté·t icos e meta-cul.turais • Mas, é claro que eu fui capaz de
obter escl.a reci.mentos muito .mais ricos a propósito de coisas e
eventos que estavam em foco.cu em processo durante meu tempo en-

60
tre os Araweté. Morasse eu ainda na aldeia Araweté quando dos ata

ques Parakana de fevereiro e abril de 1983 - e tivesse escapado

das flechas - saberia



bem mais4 que o mínimo que sei sobre a guer-

ra, os ritos pós-homicídio, e ~s can9oes inspiradas ao matador pe

lo espirito do inimigo morto. Este é apenas um exemplo, embora o

mais importante. Assim, soube que os Araweté trouxeram para a al

deia a cabe9a do Parakana que mataram~ em retalia9ao ao . último a-

taque deste grupo (quando flecharam tres Araweté); e que a teriam


. 19 .
espetado em urn mastro, e . ali dan9ado • Ora, minhas cansativas

. .
(19) Assim me disse. o entao Delegado Regional da FUNAI em Belén, logo a¡;.ós o
evento, em oonve.rsa telefOni.ca.

perguntas sobre esse mesmo costurne, comum a vários grupos da re-

giao, e a diversos povos Tupi, sempre receberam, dos Araweté, vi-

gorosas negativas. Quem fazia isso, diziam eles, eram os Towaho

(urn povo que eles depois vieram a i.dentificar com os Arara, mas ·

creio que .por ind?<rªº do chefe do P.~. ) , comas cabe9as deles, A-·

raweté ..•. . E: verdade, di ss e-me al g uém certa ocas iao, que urna vez

um Araweté trouxe o cranio de um Asurini, mas f o i só urna vez ...

Meu aprendiz·a do da língua e cultura Araweté fez-se menos,

portante, ·mediante entrevistas tete-a-tete com individuos isola-

dos que em situa9oes de grupo - na balbúrdia das refeic;oes col eti

vas, ou nas conversas pregui9osas antes de dormir, no pátio de um


casal ou de urna familia extensa. Normalmente, qualquer pergunta

minha de caráter "antropológico" gerava urna chuva de risadas e de


réplicas: "para que vece quer saber isso?", e urna nao menos confu

sa poliforiia de respostas, de explica9oes humorísticas e mentiro-

sas, ou a recita~ao rápida de .urna lista de nemes, fatos e lugare~

No dia seguinte, porém - ou. mais tarde em minha casa - algurna al-

61
araweté: os deuses canibais

ma caridosa vinha-me discriminar o verdadeiro do falso, esclare

cer s·obre urna eventual impropriedade cometida, e desenvolver o as

sunto . . Outras vezes , os Araweté se tomavam de autentico· interesse

pelo que .eu andava investigando , e se punham sinceramente a cola-

borar, em grupo. Assim foi, por. exemplo, qua.na.o eu comecei a pu-

xar pela memória de um. dos homens mais ·- velhos da aldeia, querido

e respeitado por todos, e a lhe pedir que me falasse das pessoas

e dos sucessos de seu tempo de menino , e também que me contasse '

do principio do mundo. Ao me ' verem indo para a . se9ao de Meña-no,

acorría gente de vários pontos da aldeia, para ouvir as estórias

do velho, comentá-las, "traduzi-las" para mim . {sua dicc¡:ao era

pouco clara a meus ouvidos) - e pedir depois que eu tocasse o gra

vador, para se divertirem identificando as vozes dos outros .•.

As vésperas de minha partida final do Ipixuna, urna mo9a brin

cou comigo, dizendo que, quando os velhos da aldeia morressem, as

crianc¡:as teriam de recorrer a rnirn para aprender os nornes e as es-

tórias dos antigos; pois afinal eu era agora um pirowl'ha, um ve-

lho sábio, que ouvira, escrevera e sabia aquilo tudo. Mas, que

" saber" é esse que me atribuiarn?

· . Se o conceito de "estórias dos antigos" (pirow1 'ha mo-erape)


existe no discurso Araweté - e se refere a uma miscelánea de " ge-

neres ": mitos etiológicos e divinos , histórias de guerras passa-

das, feítos dos ancestrais, urna .longa saga d e s eres titanicos

nao se pode considerá-lo, pois os Araweté assim nao · o fazern, como

designando um saber tradicional e impessoal. Eles nao diriarn algo

c6rno: ''assim fa lavarn nossos ancestrais" (P.Grenand, 1982, sobre

os Wayapi ) , sem especificar-quem disse que " assim falavam" osan-

tigos . Os Araweté, sernpre que r eferern qualquer e v ento que nao te-

nharn presenciado, pospoem : "as sim disse fulano". Essa forma cita-

62
introdu~ao

cional, e a prevalencia exclusiva do discurso direto, pode levar

ao embutimento interminável de cita9oes dentro de cita9oes - { ( "x",

disse A} disse B) - até chegar


. aquele que f alou diretamente
~.
com
- .
o " primeiro" emissor da mensagem. Mais que um tra90 puramente lin
20
..• .
guistico , mas sem quer.er 1 evar 1 onge demais a 1 gum whorf ianismo

(20) Há várias fórmulas para este procediinento citacional. A mais a:rnum e o


discurso direto, "aspeado" pela posp::>si~ de
i ku+(rare práprio). O discurso
d.ireto ~tado é urna característica de todas as línguas TUpi-Glarani, e o verbo

"dizer" é o marcador citacionalmais usado - ver Lertos Barl:osa, s/d.: 181 ;
Dx>ley, 1982: 58; F.Grenand, 1980: 95. O que pareceria ser próprio cb Arawe té
é a entase em determinar o individuo, pelo rore própri'o, que "disse" o que se
transmite a outrem.

de minha parte, esse estilo dá urna curiosa • impressao ao ouvinte

nao-nativÓ. Quando o assunto · de · que se fala é algo cotidiano ou

corriqueiro - e ·sobretudo quando se trata de mexericos - a impres

sao · é a de u.rn cauteloso descomprometimento do falante coma vera-

cidade da mensagem. Mas quando se está falando de algo" invisíve·l"

(o mundo dos deuses, o come<;o do mundo, etc.), o efeito é a atri-

bui9ao de urna autoridade toda . própria - se me perrnitem o pleonas-

mo - aquele que "disse". Disso derivam dois tra<;OS da . política dis

cursiva Araweté: em primeiro lugar, a importancia dos que eles

chamarn de ptPOUJ!.'ha neca he 1'~ 1 "OS que viram OS ancestrais" - is

to é, os velhos do grupo, que vir.am, ou ouviram de quem viu, os

fatos passaaos. Em segundo lugar, isto dá a for9a da palavra do

xama. Toda informa9ao que me era transmitida sobre os· mundos nao-

-terrestres, sobre os deuses, as almas dos mortos, era sempre ga-

rantida pelo esclarecimento: "assim disse fulano (um xama, vivo

ou morto), em seu canto-viagem a estes lugares" . Em certo sentí -

do~ é o xama, mais que os "ances trais" - . e portanto o " indiv.l;:duo "

63
araweté : os deuses canibais

mais que uma tradi<;ao impessoal - o responsável pelo estado cor -

rente da cosmologia Araweté. Os cantos xamanísticos, por isso,sao


- e ern transforrna<;ao
propriamente os mitos em a<;ao - 21 .

(21) ~ cl.ássica e onipresente, na literatura TUpi-0.larani, a referencia a urna


. "dependencia" total do grupo quanto a palavra do xama, erx:¡uanto vidente-ouvin-
te do Alérn. No caso Araweté, ao merx:>s e contudo, há fatores ccrtplicadores: a
ooexistérx:ia de vários xamás e a ne1ória do discurso de xamas já falecid::>s p:>
de transfcmnar a fómula "assim disse tal xama"
rrenos numa garantia que numa
relativiza~ da autoridade da info~. Ademais, essa diversidade de xamis
- e portanto de versees - produz uma ·certa flut11acrao nesse oonjunto heterócli-
to virtual que se p:Xleria chamar de "COsnologia Arawete".

Ora, apesar dessa importancia da palavra dos velhos e dos

xamas, o saber Araweté é bastante democratizado. Nao há temas eso

téricos, segredos de especialistas, assuntos proibidos. Espantava

-me a quantidade e qualidade de informa9oes sobre o "Além" exibi-

das pelas crian9as; e as mulheres, por seu lado, eram em geral

mais loquazes e mais precisas que os homens , no que dizia respei-

to a estes mesmos temas. Quanto ao fato dessa "universalidade ~ do

saber cosmológico, nada rnais natural, uma vez que todos escutam ,

toda noite, a exposi9ao e desenvolvimento desse saber nos cantos

xamanisticos. J~ o valor das mulheres .como comentadoras des~e sa-

ber irnp0e urna observa9ao. importante. Esse valor deriva exatamen-

te do fato de elas nao serem xamas. Como logo vim a perceber, nin

guem menos indicado para discutir e comentar os cantos xamanísti-


- nao
cos que aquel es mesmos que os produziam. Um xama - so se compor
. .
- -
- gesta de f alar di reta
ta corno se ignoras se o que cantou, corno nao
- alheias.
mente do conteúdo dos canto s e vis<!>es o sen timen to de

vergonha ai• envolvido está associado, a .meu ver, exatamente es


ªº
tilo do discurso citado, cuja prevalencia obs~rvei: é ' rnais fácil,

ou rnais próprio, falar do que disse o outro, abolir-se corno fonte

64
primeira do discurso, impedir a coincidencia entre o sujeito do

enunciado e o sujeito da enuncia9ao . Tudo se passa corno se a pala

vra Araweté fosse sernpre a palevra de um outro . ~ por isso que as

rnulheres - e os rapazes que nao eram xamas - sempre se mostravam

mais dispostas a dis cutir a _teología e a escatología Araweté, na

medida em que isto dependía dos canto s dos xamas . Esta po si~a o fa

ce ao discurso, onde citar é urn modo ob liquo de afirmar, mas dis

tanciando a palavra de qualqu e r centro, f azendo-a emanar sempre

de .uro outro·, numa recursividade inftnita, coloca problemas cornple

xos de interpreta9ao (Sperber, 1984: 32) . Os xam -as , c o mo veremos,

tampouco sao o focq e o s ujeito de s e us cantos: ele s també m citam.

Nao posso entretanto , eu, me abolir do agenciamento que es -

tabeleci com os Araweté. Há que comentar minha posi9ao no sistema

Araweté-brancos, e canoisso infletiu meus métodos e resultados do

trabalho. Voltemos a isso.

Tendo morado, a maior parte do tempo, na área do Posto Indí

gena, nao podia deixar de ser identificado, pelos Araweté, a0 que

ali se passava, aos brancas que ali moravam, e aos processos de

intera9ao entre a aldeia e o Posto. Nao quero com isso dizer - na

turalmente - que, houvesse eu optado por morar dentro de alguma '

se9ao residencial, ou me es:for9ado por copiar a medida de rninhas

for9as o modo de ser do grupo , haveria de ser desidentificado co-·

rno kamara, branca (urna sub-espécie dos awi, inirnigos) ... Mas isso

tarnpouco quer dizer que os Araweté ponharn qualquer barreira entre

eles e os kamara, prote j am-se atrás de ·qualquer fachada sirnbóli -

ca, impe~am qualquer modalidade ~e intercambio ou alian~a entre

eles e "nós". Ao contrário: o rnais difícil, para rnirn, sempre foi

resi s tir ao poder de sedu9a 0 ou de suc9ao exercido pelo grupo no

sentido de me "transformar" ern um dos seus. Sociedade aberta e

65
araweté : os deuses canibais

''antropofigica" (no sentido metaf6rico que Lévi-Strauss(l955:448)

dá a essa palavra), seu desejo radical do outro a levava, seja a

querer a todo custo ser como ele (i.e. n6s), seja a puxá-lo (i.e.

a mim) para dentro de si. ! .certo que esta "abertura" dos Araweté

derivava, em parte, de seu pouco contato com.os brancas, de urna

percep9ao ainda nao muito clara da catástrofe que já os havia en-

volvido; mas creio que ela se enraíza mais fundo, em um movimento

essencial de seu modo de ser.

Se era dificil escapar de ser eng6lido pelos Araweté, era-~

inter alia, porque era muito mais penoso ser um kamara, e vi ver

cornos kamara no P.I.Ipixuna. A convivencia entre os brancas den-

tro de -urna área i~dígena isolada é necessariamente tensa e probl~

rnática. As · posi9oes diferenciais dos diversos agentes - antropól2

gos, funcionários da FUNAI - ern rela9ao a sociedade indígena, a

diferen9a no·s objetivos e nos investimen.tos, que coexistem em um

rneio-ambiente limitado e com todas as características de urna "ins

titui<rao total", tuda isso gera um sistema instável e potencial -

mente disruptivo. Acusa9oes velad.a s, pequen as sabotagens, con tro-

le recíproco dos comportamentos, tentativas de faccionalizac;ao ou

aliciamento dos indios contra a outra parte, eram o pao amargo

de cada di~, que eu tinha dificuldade em engolir, calado. E -


nao

s ·e tratava simplesmente de urna oposi9ao entre "o antropólogo" e

"os da FUNAI" - o que havia era mesmo urna pequena guerra de todos

contra todos, brancas que nao se entendiam.

Tais tensoes internas a micro-sociedade dos brancas no Ipi-

xuna, montadas como estavam sobre urna base material e . simbólica

de escassez (isolamento, auséncia de alternativas, alta redun -

dancia das mensagens) , se articulavam a uma tensao estrutural de-

terminante: entre os brancos, a equipe de funcionários da FUNAI ,

66
e os Araweté. Mesmo nas circunstancias excepcionalmente tranqüi-
las do sistema Posto/aldeia no caso ·Araweté - que se devern ao
ethos "cordial" do grupo - a intera9ao entre indios e brancas se
'
fundava em urna série de mal-entendidos culturais, ern expectati-
vas estereotipadas e em demandas contraditórias. Assim, era muito
cornurn, entre os funcionários do Pesto, a emissao professoral (em
meu beneficio, quando eu havia acabado de chegar) de juízos sobre
o "caráter" típico dos Araweté: que eram pregui9osos, que passa -
varn fome por descuido e imprevidencia (e no entanto a popul~9ao
22
Araweté era visivelmente saudável e bern-nutrida) , que nao erarn

(22) O que parecia irritar especialrrente os traba..lhad::>res da FlNAI era a p:>u-


ca in"p:)rtancia conferida pelos Araweté ao plantio da mandioca, mna vez que es:-
sa planta é urna espécie de "totem" da agricultura indigena aos olh:>s dos bran-
c:os, e o simtx:>lo da seguranc;a al.inentar para tc:xk>s os canponeses da regfu.

solidários entre si, que só falavam e pensavam em sexo (o que, se


- deixa de ter um grao de verdade, era sublinhado, contudo, por
nao
ser urn dos Únicos assuntos que tam.bém interessavam aos brancos,da
vida dos Araweté); que os Kayapó sirn, é que eram "indios mac..~s 1123 ;

(23) CUrioso encontrar essa masma. cx:nparacrao, serrpre depreciativa para os 'l\l-
pi, na boca de um tratelhador da FtNAI entre os Wayapi (canpbell , 1982: 138) .
caro se ve, nao é sé> aos antrop51ogos que o contraste Je/I'Upi salta aos olh:>s,
nesrro que as raÜ)es e valores envolvidos sejam outros.

e assirn por diante, ad nauseam.


A partir destes juízos, produzia-se toda urna rnodelagern do
contato. O fato dos Araweté nao entenderem o portugues parecía
autorizar urn curioso comportamento dos brancos: eles eram trata -
dos como nao-pessoas; podia-·se falar deles, de cada urn, na sua
presen~a, criticar seu comportarnento ou sua aparencia abertamente.

67
araweté: os deuses canibais

ora, mesmo sern entender a lingua em que er.arn desprezados, os Ara-

weté erarn perfeitarnente capazes de perceber, pelo tom e rnuitas ve

zes pela mimica grotesca, o sentido das observa9oes feitas. Eu no

tava tambérn urn procedimento de "infantiliza<;ao" dos Indios, ou a

prática de rituais de degrada<;ao - como os exames médicos em -


pu-
blico .(as mulheres, sobretudo, se ressentiarn disso), as censuras

sobre a ''inconveniencia" de certas atitudes tradicionais do ponto


de vista da "higiene", o costurne de lhes por apelidos pejorativos
24
ou grotescos . De urn modo geral, os indios erarn vistos corno um

(24) Essa .prática resulta, em parte, das dificuldades sentidas pelos brancos
em guardar e pronunciar os n::::mas pessoais Araweté.

estorvo e urn inconveniente. SÓ ouvi se lhes elogiar o caráter


cordato, alegre e (deveras!) paciente.
Essa atitude dos brancos do P.I. Ipixuna diante dos indios

apresentava varia9oes significativas, de acorde corn as disposi -


9oes pessoais de cada funcionário ou visitante; mas ela nao é fun
9ao apenas de urna "má vontade" ou da opiniao individual, e siro for
mava sistema, era a modalidade de · articuia9ao entre indios e bran

cos. Que, afinal . de GOntas, terminava ppr coloca~ os indios no


seu lugar - no lugar dos domi·nados. Mas es tes, por seu lado, tam-

bém aprovei tavarn a barreira ling'üísti·c. a para debochar dos brancos,


0

também lhes punham apelidos, imitavam as gargalhadas suas postu -


ras corporais 25 . Participavarn galhardarnente, portante, do sistema

(25) o entao cN;fe do Poste (que o dei.xou ap5s ter sioo ferioo no ataque Para-
Jcana) enterrlia e fhlava algo tj.e Araweté, ~ cx:ntrário oos demais funcionários-
- o atendente de enfennagem, algmis trabalhadores brayais, suas familias. A
linguagem dcrni.nante ro Poste era feita de algunas palavras Araweté, qua.se irre
caihecíveis na pronúncia dos brancos, inserida.s em frases ern portugues, mais
alguns gestos e clidles ern urn proto-pidgin. o dle~e do poste era tarnrern aquele

68
f tmcionário que derronstrava maior curiosidad.e e interesse oo m::xb de vida e
ooncepyües Araweté, o que nao o inpedia de ser um entusiasmado "professor" de
técnicas e idéias ocidentais.
cevo acrescentar que os Araweté me pareciam mais discretos( et p:mr cause )
em seu deboche dos brancos, reservan:kro para situac;:ües em que a vítima nao
es
tava presente. Eram também, obviarrente, mais tolerantes diante .d os oostunes es
tranhos da outra etnia.

de comunica9ao instaurado, em que os brancos criticavam os indios


em portugúes, gritavam com eles, degradavam-nos, e os indios fin -

giam que nao entendiam, encenavam propositadamente os comportame.!!


tos que geravam as críticas - e terminavam conseguindo o que que -

riarn: q~erosene, urna caixa de ~ósforos , pólvora. Tudo isso era co


26
tidiano, e sempre igua1 : a repeti9ao e a redundancia dos jogos

{26) · Dias, meses afio .eu -assisti a urna resrná cena: um grupo de. indios achega-
va- !?e. ao randlo que servia .de oozinha ·da Posto e, para o atendente de enfent:!él-
gem, perguntaVa: "o que voce está oozi.nhando?" - "Pedra", era a resposta inva-
riável . .E os indios riam, riam . .. Em seguida iniciava-se urna sessao delirante'
de invectivas dp atendente contra os Araweté ero particuiar, os indios em ger~
a humanidcrle em seu todo. r; os indios riam, riam. . • Havia toda urna série de
jogos desse ti!X).

f áticos entre indios e brancas bem indicavrun a distancia e o


..
ruido que era pr·e ciso superar, para que se "entendessem"; e a
moldura ritual dó desrespeito sem~-jocoso garantía, afinal, o pre
cário equilibrio entre estranhos., inimigos potenciais, obrigados
a manter rela9oes de· proximidade f isica e interdependencia econ6-
mica. Um sistema que tinha todas as características daquilo que
Bateson (1958) cha~ou de "cismóginese complementar'' .
Bem, a miro nao me convinha nem agradava entrar nesse jogo.
Esse laborioso sistema ritual de diferencia9ao étnica (construido
pelos brancas), apoiado na estereotipiar na repeti9ao e na agres-

69
araweté: os deuses canibais

sividade - e que talvez tivesse a fun~ao de estabilizar a identi-

dade dos brancos, individuos isolados de seu meio cultural en-

trava em perigo de colapso a medida que eu o rompia, em meu

esfor~o de aproxima9ao aos Arawe~é. Para os br.ancos, eu era urna '

espécie de traidor, estava querendo "virar indio" - e isso me

custou alguns conflitos. E aos Araweté custou algurna perplexidad~

até perceberem que eu nao era o kamara típico, isto é: urn prove-
.
dor de bens, professor de padrees de comportamento e higiene, a-
.
gressivo, paternal e repetitivo. Atípico eu era também, ademais,

porque, ao contrário dos sertanistas dá - FUNAI e dos "gateiros"(c~

9adores de pele) - que resurniam a experiéncia Araweté dos brancos

- eu era bastante incompetente como ca9ador, lenhador, agricultor

e mateiro.

Muitas vezes, porém,· fui for9ado a desernpenhar fun~oes pró-

prias aos trabalhadores da FUNAI, devido as suas ausencias tempo-

rárias ou incompetencia: operei o rá,d io, adrninistrei as reservas

de bens industrializados que ficavam -trancafiadas na sede do .. Pos-

to (essa fun9ao era-me absolutamente desagradável - mas os


..
in-

dios n~o me deixavpm escolha) , dei remédio's , ~te. Eu era, af inal,

um kamara, e nao podía deixar de por meu saber étnico a

dos Araweté, ernbora soubesse que, ao faze-·lo, . estava também levan


-
do agua para o moinho do siste~ de poder em vigor.

Esse sistema de poder é complexo. O que há no Ipixuna é me~

nos um Pesto Indígena junto a tima aldeia, que urna aldeia Araweté

junto a um Posto. Até novernbro de 1981, aliás, havia duas aldeias

Araweté, urna junto ao Posta, a out.ra ~ pouc·o distante, do outro

lado do Ipixuna. Seus rnora<;lores se mudaram para a "aldeia do Pas-

to" para ficarem mais perto da fonte de bens que ele representava.

Mas as coisas corne9aram antes. Em 1976, a popula9ao de várias al-

70
introdu~áo

deias Araweté, em fuga dos Parakana, veio a dar nas margens do

Xingu, procurando contato com os brancos. Foram entao, após urna

série de peripécias trágicas, reunidos todos pela FUNAI, ern torno


4

de um Posto de Atra9.a o, no alto Ipixuna. Em 1978, após novos ata-

ques Parakana, mudaram-se todos, indios e brancos, para o médio

curso do rio, e forrnaram as duas aldeias. Em 1982, por fim, esta-

vam os 135 Araweté reunidos a volta ~o P.I.A. Ipixuna. Pela pri-

meira vez, provavelmente, ern sua história, o povo Araweté habita-


va urna só aldeia.

Os Araweté dependem hoje de uma série de bens e servi9os o-

ferecidos e realizados no Posto: querosene, sal, fósforos, pane -

las, roupas(para os homens), sabao, pilhas, lanternas, pratos·, co

lherei, a9úcar, facas, machados, fac6es, tesouras, pentes, espe-

lhos, óleo de cozi.nha, fer~agens (trineos e dobradi9as para as

portas de suas casas), espingardas, muni9ao - e remédios. Durante

a fase aguda da epidemia de gripe de fevereiro-mar90 de 1982,quan

do o milho estava apenas come9ando a amadurecer, dependerarn tam-

bém de alimentos importados. As canoas que utilizam sao fabrica -

das por brancos,ou fndios Asuriní contratados pelos brancas. No

Posto ainda estao alguns equiparnentos


. .
coletivos, como o tacho . de

ferro para torrar milho e . farinha de mandioca, máquinas de moer

milho, de espremer mandioca (que sao usados como alternativa even


. ' .
tual a, respectivamente, os pequenos tachos de barro, os pil6es e

a raiz de paxiúba).

O grau de dependéncia de cada um desses itens é variável, e


os · Araweté, povo de tecnología simples e alta capacidade de impro

visa9ao, sabem passar sem qµase todos eles, se necessário - embo

ra a introdur;ao das armas de fogo tenha provocado modif ica9oes im


portantes na disponibilidade da ca9a e nas técnicas para obte-la.

71
araweté: os deuses can ibais

o que espanta, porém, foi a rapidez - entre 1981 e 1983 - com que
a maioria desses bens foram introduzidos e adotados. Até mar90 . de
1982, as contrapresta9oes Araweté limitavam-se a alguma carne de
ca9a e a algum milho, para a alimenta9ao dos brancas do Pasto. Na
quela data, iniciou-se a implanta9ao da chamada " cantina reembol-
sável", coma introdu9ao das armas de fago e um aumento considerá
vel de bens impo~tado s - e a obriga9ao dos Araweté produzirem ar-
tesanato para financiar essas importa9oes. A cultura material Ara
weté é sóbria e simples, e poucos de seus itens sao capazes de ob
ter boa coloca9ao no mercado (controlado pela FUNAI) . Até minha
SaÍda qa área, 0 Sistema de " c antina" ainda nao Se estabilizara t

embora algumas vendas já, houvessern sido r .e alizadas ' · coro ce.rto su-
. n ce i ro 2 7 .
ces so f ina·

(27) Os artefatos Araweté que entram mais fortenente rx:> sistema sao: o aroo e
as flechas, alguns adornos plunários, redes . de ·aigOO.ao, estojos de pal.ha, pe-
cras da indurentária feminina (as mulh~ receren algodao industrial para te-
ce-1os, neste oontexto). Erquanto estive na aldeia, .as transairOes se faziarn .de
m::rlo individual e infonna.l, entre cada indio interessado em um dado produto e
o cllefe' do Pasto, que recebia as pe:ras e as debitava numa lista; nao havia a
p~ao, por wrte do funcionário, de manter uma, ~valencia rronetária e
xata en~ as pec;:as entregues e os objetos reailiidos pelos indios em pagairento.
Mas cheguei a testanunhar ten::.renos cliriosos: cx::m:> o c:hefe do P.I. precisasse'
levar logo para Altamira urna partida de artesanato para pagar as trinta espin-
gardas que trow<era, induziu os h::::rrens a fabricarern arcos cx:xn as tábuas de rna-
deira de lei que estavam em estoque (para a cx::instru9ao da n::wa sede do Post.o).

A dependencia dos Araweté em rela9ao aos medicamentos e es-


tilos de cura ocidentais - do modo como estao presentes no Pos-
to28 - é bastante g rande, sem ter c.hegado a abolir os métodos de

(28) Ver F.Ribeiro 1981 para urna avalia~ do tip::> de assistencia nédioo-sani-
tária prestado pela FUNAI aos Araweté.

72
introduc;áo

cura tradicionais. Ao que parece, os Araweté nunca dispuserarn de

um saber fitofarmacológico muito elaborado. Mas eu podia observar

urna solicita9io e um consumo indiscrimi~ados e excessivos de medi

carnentos, e u.~a intensidade de demanda de aten9ao dos servi9os do

enfe rrneiro (e de todos os dernais brancos) . que extrapolava de rnui-

to as necessidades médicas - reai s ou irnaginárias - dos índios,re

vestindo-se assirn de urna dimensao político-ritual.

Se isso foi visto com nitidez no caso das aten9oes médicas,

deveu-se ern parte a crise provocada pela epidemia de 1982, que

mergulhou os Araweté numa dependencia objetiva e subj etiva muito

grande diante dos kamara; mas eu já a havia observado ern 1981 , du

ranté urna fase de boa saúde do grupo. E sobretudo, tal complexo

de dependencia-hípersolicita9ao-consumo ritúal de bens e se rvi9os

"brancos" se manifesta em várias outras áreas da vida Araweté,que

nao a dos achaques físicos. ·t a mesma ati tude ·que subjaz a voraci

dade e rapidez de ado9ao de toda urna paraf ernália tecnológica e

simbólica kamara, e a um certo mimetismo e ntusiasmado de tudo o

que vem deste rnurido. Tudo leva a impressao, portante, que os Ara-

weté e-stao de.finitivcrrnente "nas rnaos" dos brancas, condenados a

s eguir o rápido e patéti.co carninho da desfigura9ao étnica e de-

sapari~ao do mapa cul t u r al , quando nao do físico.

Esse complexo , essa dependencia, porem, sao amb i guos . Esse

"mimetismo" tem algo de sutil mente agressivo, e ssa hiper-solicita

9ao um caráter de teste ou prova cons tan tes a que' éramos subme ti

dos, os brancas . O que estava ern jogo nisso tudc , o que se elabo

rava , com a desmedida característica do s Araweté, era o conceito

da diferenxa entre eles e nós. E, se ora os Araweté pareciarn ~res

tes a se a tirar _ cegamente no mundo dos brancos 29 , _ ora pareciam

73
araweté: os deuses canibais

(29) Olvi de algum trabalhador da FrnAI, ro Po$to, est.a idé1a, una vez: "se
a gente deixaSse, oo se eles pldessem, esse pavo tock> se lil.Jdava para Altamira
e em una senana n1nguém mais sab1 a que negócio era esse de Araweté ••• "

exigir nao menos absolutamente que os brancos "virassem Araweté "


- e isso era rnais forternente sentido por mirn: pois queriam que eu
fizesse minha ro~a de milho lá, que lá me casasse, que de lá -
nao
mais salsse. Tudo ou tudo, numa dire9ao e na outra. Isto é, .. se
eles pudessem", trariam todo o povo de Altamira, talvez todos os
kamara, para a aldeia Araweté •••
Talvez nada disso seja · de se espantar; talvez nada disso se
ja muito diferente do que se passa com qualquer tribo indlgena re
cém-submetida aos "métodos" de "atra~ao e pacifica9ao" aplicados
pelo Estado brasileiro, via FUNAI. Mas há algumas especificidades
no caso, e o sistema de poder político-economico montado no Ipixu
. -
na assenta em alguns tra~os da estrutura social e cosmologia Ara-
weté.
Uma das características fundamentais da morfologia espacial
da(s) aldeia(s) Araweté, já mencionada indiretamente (supra, p.
59) e a ser mais adianté descrita, ~ a ausencia de \im pá-tio comu-

nal, de um centro geográf·ico, de uma área eqüidistante das casas.


A unidade da sociedade Araweté nao se exprime de modo claro e
constante no uso ritual do espa90. A natureza relativa e limitada
da "chefia", como veremos, tampouco chega a produzir esta unidade~

Nas condi9oes atuais, em que a aldeia Araweté é, na verdade, urn


agregado ·de remanescentes de diverscs grupos locais, este acen-
trismo sócio-morfológico fica ainda mais acentuado. E entao o Pos
to e sua equipe assumem, automaticamente, um lugar central na vi-
da polltica e cotidiana do grupo. A transferencia de decisoes que

74
introdu~ao

afetam toda a popula9ao Araweté para as mios "do Pesto'' parece

ter sido encorajada ou bem aceita pelas equipes da FUNAI que ali

atuaram desde o ''contato'', e as crises sucessivas por que passou


~

o grupo (epidemias, ataques inimigos) consolidaram esta tendencia.

Na medida em que nao existe um espa90 público-comunal Arawe

té - pois cada "pátio" pertence a urna se9ao residencial o u famí

lia extensa - a área do Pesto e sua·s instala9oes (algumas usadas

coletivarnente para a produ9ao: casa de farinha, canoas) se tor-

narn este espa90. Sucede, porém., que nao perdem sua identifica9ao

com os kamara, que sao os. titulares, dones e disciplinadores des-

tas áreas e recursos. oá-se entao que · o espa90 coletivo Ar.a weté

é ao mesmo tempo "comunal" (wna zona franca, sem restri9oes de

acesso a todas as se9oes residenciais) e dos brancas, que passa~

assim a exercer wn poder eminente sobre toda a sociedade Araweté.

O "pátio dos brancos" torna-se o "pátio central", que se superim-


poe a sociedade, ·a unifica, sobrecodifica e engloba. ~ assim que

se fab~ica o poder. Pois se aquilo que os brancas dizem e repetem

ser "de todos os Araweté" (as canoas, a enfermaria, o tacho de

torrar milho, etc.) é, antes, no tempo e na ordem das causas, "do

chef e do P."I. '', "do chef e da Ajudancia da FUNAI", "da FUNAI", en-

tao os Araweté, enquanto to.talidade, passam a ser determinados-

- criados, eu quas~ diria - de fora, a partir do mundo dos bran-

cos. A aldeia A:r:aweté torna-se, assim, fun9ao do Pesto. Tudo se


passa como se assistís semos , nesse processo, a urna micro-genese ,·
. .
do Estado - sabendo que o que realmente se dá "é a penetra9ao mi-

croscópica do .Estado brasileiro na sociedade Araweté.

Seria essa cori~radi9ao objetiva, d e alguma forma sentida pe


los Araweté, que explica certas atitudes curi osas, que levavarn

a loucura os funcionários do Posto - corno o "vandalismo", o "des-

75
araweté: os deuses can ibais

caso '' dos indios pela manuten9ao do eqtlipamento produtivo e das


instalac:;oes do Posta, que afinal seriam " se-qs " (dos Araweté)? Mais

ainda, nao será esse duplo movimento, de produc;ao-expropria.crao de


um "Ser" Araweté, de wna totalidade Araweté pelos kamara, que es-
tá por trás daquilo que chamei de mimétismo entusiasmado-agress·i -
vo, dessa "dupla captura" em ·que os· vorazes e canibais Araweté
acabam senda os devorados 30 ? Permito-me
. ' .
ir '
mais longe, divagando

(30) Assim, eu em neu diário, em setembro de 1982: "Essa exuberancia '


an::>tava
voraz Araweté, essa 'expansividade predatória' que os faz querer tudo oos bran
oos, o tenpo todo, e que tanto exaspera os funcionários do Poste~ que querem
naturalmente que os Araweté . se ci.vilizem"; mas nao tao dep~sa assim, nen as
~
11

custas deles ... - me fazem pensar que eles [os Araweté] tan nos dentes urna
presa ben maior 00 que ¡xx:Jan engolir, e nao desoobriram isso ainda".

apressadamente: mas, será que se trata apenas de urna "q.uestao"com


os brancas e o "Estado"? Ou ós Araweté e outros . Tupi-Guararii
ern contraste radical com sociedades como as Je, cuja dialética
auto-constitutiva é interna - nao carece'rao sempre dessa rela~ao

com o exterior para se constituirem e se rnoverem? O fato é que o


tao celebrado "conservadorisrno sociológico" dos Je passa c·ertamen
te por essa dialética interna e pela opera9ao de um centro (físi-
co , político, cerimonial) do qual "os brancas e os outros" estao,
em principio, exc·l uidos. Já talvez a relativa fragilidade das es-
truturas sociais Tupi-Guarani face ao impacto da "civilizac:;ao"
que pode bem mascarar outras formas de resisténcia - se
..
enraize
nessa busca de wn Outro, fora, alhures, num irnpeto aloplástico ou
alomórfico que nada tern a ver corn a ~ consciencia infeliz ou corn
um "ver-se comos olhos do outro (do Senhor)" . A antropofagia, e
sua "ambivalencia", foi mais que urna metáfora, para os Tupi-Guara

ni.

76
Foi dali, ern suma - do Pesto, e corno kamara - que falei de

e corn os Araweté. Foi desse "centro" que me pus ern rela9ao com

eles: enquanto totalidade objytivada por minha presen9a (e do Pos

to, e dos brancos). Minha própria circula9ao constante por to-

dos os pitios, todas as- se9oes r~sidenciais (que lev.ava algumas

pessoas a censurarem minha ''incon st~ncia'') , nao fazia sen~o refor

9ar minha exterioridade genérica e abstrata em rela9ao a eles.

Nao s ei se tinha outra escolha.

Os Araweté nos receberam a primeira vez, em maio de 1981


'
sem surpresa, mas corn curiosidclde: Eles nao conheciam muitos kama

ra. Além do rnais, traziamos alguns presentes para eles. Vi vemos

(depois eu, sozinho), na· medida do possivel, a rotina do grupo


~

ca9ar, ir a ro9a, trabalhar no rnilho, participar das dan9as, das

conversas noturnas nos pátios. Participei de urna ca9ada coletiva,

corn urna semana de dura9ao, parte do ciclo cerimonial do cauim al-

coólico; vivi alguns dias· em um acampamento de ro9a de urna -


se9ao

residencial; fui a excursoes de pesca e em busca de mel. Sai da

aldeia bem menos, e por menos tempo, que o normal para uro hornero

Araweté, contudo. Dispondo de urna reserva de alimentos, trazidos

de Altamira, pude estabelecer tracas alimentares com várias se-

9oes r es idenciais, alternadamente, bem como pude compensar minha

pregui9a e inépcia como ca9ador . Por nao ter estado na área em ou

tubro-no vembro , nao assisti ªº tempo das pescarias coletiva s com

timbó. Tampouco pude participar de um importante movimento sazo-

nal Araweté, o awacf! motiara ( "amadurecer o milho" ), quando toda a

popula9~0 abandona a aldeia e acampa na mata., vivendo da ca<;a e

da coleta, na época das chuvas, entre 9 plantío do milho e seu

amadurecimento (de zernbro-fevereiro) . Nem em 1982, nem em 1983, os

Araweté saíram, em conjunto, para o " amadurecer o milho" (haviam-

77
araweté: os deuses canibais

-no fe~to em 1981) - e suspeito que isso se deve aos efeitos cada

ve~ mais fortes de sedentariza9io e fixa9io exercidos pelo Pesto

sobre a vida Araweté.

Em 1981 os Araweté ainda estavam aprendendo a manejar armas

de fogo (havia urnas cinco, do Poste). Quando cheguei, portant~cx::m

urna espingarda nova e reluzente, isto provocou a excita9ao geral

dos hornens. Mesmo depoi"s de rnar90 de 1982, quando quase todos os

adultos passaram a ter sua própria arma, sernpre havia alguérn a

pedir emprestada a rninha. Posso dizer que deis objetos, e urna ati

vidade, concentravam o interesse e a curiosidade dos Araweté so-

bre rnim, e de certo modo eram os síx:nbolos concretos de rninha rela


-
<;ao corn eles: a espingarda, o gravador, e a escrita. Por ca~sa da

espingarda, fui inumeráveis vezes convidado a ca9ar; depois, con-

fiava a arma aos hornens rnais experientes, e a disputa pela posse

da "20" chegava a formar filas a rninha porta. o gravador, por sua

vez, sernpre foi_, e contin.l iou sendo, a di ver sao favorita dos Arawe

té. A "música dos inimigos", os solos . noturnos dos xamas, as gra-


va9oes das festas e da.s bebedeiras coletivas do cauim, eram soli-

citados por toda a aldeia, e os diversos pá.tios disputavarn _ciu-

rnentame-nte o gravador, a noite. Durante as horas mortas do dia ,

era comum chegar alguérn e pedir para cantar ao gravador. Eles sen
31
.
t iarn .
um prazer enorme .
em ouvir a voz - · can.t a d a - repro d uzi. d a ; e

(31) Entenda-se, a voz dos ou:tros, o que os out.ros cantavarn. Aqueles que pe-
diarn para cantar ao gravador nao faziam rm:litci questao de se ouvirem (exceto as
cri~s).

nunca demonstraram interesse pela música ocidenta.l . E, se gesta-

varn de ver as fotos deles e de outros indios, que .eu lhes trazia,

nada substituía a audi9ao do gravador, o ñe'e me· 1 e, "aquilo que

78
introduq~

fala", o oñiña me' !_ 1 "aquilo que canta"¡ o i ni·r~, "caixa das al-
mas"¡ o ha'o ~e riro, "caixa Ida vozl dos espirites dos mortos" .
Foi quando alguém se referiu, , jocosamente, a urna fita que trazia
·o canto de um xama como "Ma-Ccln~ rir~", que descobri que os mor-
tos cantavam, no canto dos xamas; pois Mafc!no era alguém morto
há tempos, eu sabia.

Eram assim esses dois objetos, a espingarda e o gravador ,


que interessavam sobremodo aes Araweté - wn instrumento que aurne~

tava a produtividade .da ca9a, e um "aparelho ideológico" que re -


produzia indefinidamente a singularidade da voz, do canto. Produ
~ao/produtividade, reprodu~ao/reprodutibilidade· - Natureza e So -
brenatureza, o comer e o cantar: os animais e os deuses.

Minha incessante atividade de escrita - cadernos, canetas ,


mapas - produzia curi.os.i dade nao menor, embora nao tanto interes-
se objetivo. Muitos me. pediam papel e lápis, e enfileiravam hiero
glifos, parodiando minhas letras; outros "desenhavam" (kucª, gra-
fismo, pintura, desenho, t~a90) seus mortos (~up~a,
p. 54); ou-
.
tros, tao logo associaram c.ertos tópicos de conversa9ao ao desen-
cadear de minha atividade gráfica, ordenavam ironicamente que eu
escrevesse o que me diziam. E por f im perceberam ' que era "para es
crever" que eu estava ali, entre eles¡ e que eu escrevia "para sa
ber-aprender" (to koa). Certa vez, ao discutir com Toiyi. sobre o
modo de "treinamento" dos xamas mediante a intoxica9ao por tabaco
(ver Capitulo VI), ele me disse que eles assim o faziam "para sa-
ber-aprender" dos deuses. Insisti no verbo "saber-aprender"(koa),
nesse contexto particular, e ele me esclareceu: "é assim como vo-
-
ce faz com sua escrita - e para saber-aprender, desse mesmo jei-
to". Eis entao que, se na espingarda e no gravador os Araweté se
defrontavam com a magia da técnica ocidental, na escrita eles en-

79
araweté: os deuses canibais

treviam qual era afinal a · ticnica da minha magia ... Mais tarde

vim a saber de todo o conjunto de associa~oes que os Araweti fa-

zem entre o grafismo e o Outro - o Jaguar, os deuses, os mor t os

e os inimigos. Eu passava, pela escrita, a integrar essa sirie,de

alguma forma.

80
CAPÍTULO II

PONTOS E LINHAS:

TEORIA E TUPINOLOGIA

l
I

- tes Tupi étaient des gens tris


c-ompLiqués.
(H. Clastres)

81
araweté : os deuses canibais

l. OS TUPI-GUARAN!: · BIBLIOGRAFIA

Os povos que falam linguas da familia Tupi-Guarani (hoje,

no Brasil, cerca de 20 mil individuos - Rodrigues, -1982) se encon

traro dispersos numa enorme área da América do Sul, do norte da Ar

gentina a Guiana Francesa, do litoral nordeste brasileiro ao alto

Solimoes. Na época da invasao européia eles controlavarn quase to-

do o litoral brasileiro e a · bacia do Paraguai, e sua popula9ao to

tal andaria na casa dos 4 rnilhoes.

Nao cabe aqui um exame do destino dos Tupi-Guaraní no imagi

riário ocidental, na literatura e na ideología brasileiras de

resto, sobejamente conhecido, dos canibais de Montaigne aos de

Oswald de Andrade. Farei apenas uro breve ·balan9o ·da pr.odu9ao pro-

priamente antropológica sobre eles¡ destacando as monografias e

os estudos clássicos. Nao tenho conhecimento de nenhuma bibliogra

fia etnológica específica para os Tupi-Guaran1. Para os Guaraní ,

contudo, há urna extensa bibliografia compilada por B.Meliá (1977).

Os artigos sobre grupos Tupi no volume III do Handbook of South

American I'ndians (Steward C.org.), 19.48), ero que pese sua desatua-

liza9ao, sao importantes, por trazerem fontes documentais "para c~

da tribo. O mapa de Curt Nirnuendaju (IBGE, 1981) é 6utra fonte

indispensável.

No que toca a produ9ao dos· chamados "cronistas" dos sé culos

XVI e XVII sobre os pavos Tupi-Guaraní, o balan90 crí ti.ce de F.

Fernandes Ll975) é referencia obrigatória. O "roteiro" recenteme!!

te publicado por Melatti ti983) permite· situar os estudos Tupi

de.n tro da história da antropología brasileira, ero termos de sua

vincula9ao a determinadas preocupa9oes· temático-teóricas, e de

seu relativo abandono nas duas Últimas décadas.

82
pontos e linhas

(A) Os Tupinambá: Métraux e Florestan

Urna introdu~ao a bibliog~afia Tupi-Guaraní deve come~ar pe-

los trabalhos de Alfred Métraux, o primeiro antropólogo a explo -

rar sistematicamente os dados dos "cronistas " quinhentistas e

seiscentistas sobre os Tupinambá e Guaraní, e a articulá-los com

materiais etnográficos contemporaheos ti.e. das primeiras décadas

do século XX). Em 19.27 este autor publicou uma. análise das migra-

~oes Tµpi-Guarani em que · defende a hipótese de que tal fenomeno é

anterior a conquista européia, estando enraizado em atitudes cos-

mológicas. próprias dos Tupi. Neste trabalho como em outros, Mé-

traux se apóia largamente na etnografía pioneira de Nimuendaju

C.1 19141 1978)sobre a escatología Apapocuva-Guarani. Em 1928 publi


ca La ·c i V'i'lization Matérielle des Tribus Tupi-Guaraní, obra marca

da pela problemática do di.fusionismo (P. Schmidt e Nordenskj~ld ,

especialmente) , e cuja objetivo era a determina~ao da área origi-

nal de di.spersao dos Tupi-Guarani - que Métraux situa, ao contrá-

río das hipóteses de Martius, Schmidt, Krause e outros , na regiao

entre a margem direita do Amazonas., o Paraguai, o Tocantins e o


1
Madeira . O método de Métraux é o da comparacrao de tra~os de cul -

Cl) lbdri~s Cl964, 1982.} , apoi acb em dacbs lingüístia:s e na glotocronologia,


parece confinnar esta hipótese, precisando, err00ra oorn cautela, a regiao do
Guaporé caro provável centro ce dispers~ dos f alantes do Prot:o-Tupi. Já Lath
rap U9.75) I seguindo urna análise &: Noble, situa os falantes ce um "Proto-Tupi
-.Aruaque" no rrédio curso do Amazonas, por volta d: 3.000 A.C. Os falantes cb
Proto-Tupi-Guarani teriam seu sitio ce dispersao na foz do Arnazcnas, circa
SOQ A.C.

tura material, em termos de sua di.fusao, e o estabelecimento de

inferencias lógicas sobre suas rotas de transmissao. Ele conside-

83
araweté: os deuses canibais

ra possível estabelecer quais elementos da "civiliza9ao material"

sao próprios dos Tupi-Guarani e, ademais, discernir por essa via

que pavos sao Tupi-Guarani "autenticas" ou aculturados. Métraux


define os Tupi-Guarani como um povo antes difusor que inventor de

cultura (material), ao contrário dos Aruaque.

Ainda em 1928 (.Métraux, 19791,· publica A Religiao dos Tupi-

nambás e s.uas rela9oes coro a das demais tribos Tupi-Guarani, sua

obra principal, que teve origem na descoberta, pelo autor, de um

manuscrito entao inédito de Thevet. Neste livro, Métraux, apoian-


do-se tanto no material dos cronistas quanto ero fontes mais rece~

tes - sobretudo nos trabalhos de Ni.muendaju sobre os Guarani, Te~

bé e Sh.ipaya - estabelece as grandes linhas da mitologia Tupi-Gua

rani, analisa a cosmologia, e isola os dois grandes complexos em-

blemáticos dos Tupi-Guarani: a antropofagia ritual, e o tema da


. .
Terra Sem Males como motor do profetismo. Suas interpreta<;oes des

ses dois temas Tupi-Guaraní, contudo, deixam a desejar; Métraux

nao oferece nenhuma teoria consistente quanto ao canibalismo, e,

quanto ao profetismo (~ue define como messianismol , termina por

tomá-lo como rea9ao a conquista européia, mesmo se fundado, como

admite, ero mitos e idéias autenticamente Tupi-Guaraní. Cabe a Mé-

trawc, de qualquer forma, o mérito de ter apontado a notável con-

tinuidade entre as culturas Tupi-Guarani estudadas in situ por et

nógra.fos contemporaneos e a imagem da sociedade Tupinambá deixada

pelos cronistas. Ele abre o caminho para a tentativa, mais rigor~

sa e ambiciosa, de Florestan Fernandes.

~ com Florestan que o vasto m~ter.ial deixado pelos cronis -


tas se.rá utilizado de maneíra exaustiva e sistemática. Consciente
dos problemas e i.mplíca9oes epistemológicas levantados pelo uso

deste tipo de dado (se bem que nao tenha podido superar "pontos

84
pontos e linhas

cegos'' que sua teo ria criava, e que nao erarn demasiado diferentes
dos e nvolvidos na tentativa de Métrawc) 2 , · Fernandes escreveu urna


{2) Ver, por e.xenplo, as "tábuas" de infonnacr0es sabre a guerra Tq:>inarnbá ern
Fernandes 19 75, onde o autor rea:>rta o discurso cbs cronistas ern unidades ar-
bitrárias, ern tuCb senelhantes a "tr~s" de cultura material. Conpare-se es-
sas tábuas a:m a5 presentes em Métraux 1928. Para urna aprecia.c;ao crítica do.s
nétoCbs de Fernandes, ver Oliveira Filho 1980.

obra pioneira, ernbora ~ouco citada e lernbrada.


Seus do is li vros principais sobre os Tupinambá ( l 19 4 9 J 196 3,
119521 1970 ) sao urna tentativa de reconstituic;ao de urna "Socieda-
de Tupinambá" ideal, enquanto sistema rnultidirnensional funcional-
mente articulado. O quadro teórico é o de u.ro funcionalismo genera
lizado, onde cada instituic;ao ou .. costurne" é analisado ern seus
·-
múltiplos aspectos funcionais: adaptativo ao rneio-arnbiente, inte-
grativo em termos de estrutura social e cornportamental, consisten
te quanto a valores. O prirneiro, Organizaxio Social dos Tupinarnbár
nao dei.xa de evocar em sua estrutura as rnonografias clássicas do
estrutural-funcionalismo britanico: ·ecologia, rnorfologia social,
sistema religioso. . . Ma-s o autor lanera mao de urna rnetodologia va-
riada, manifestando, por exemplo, urna preocupac;ao com os aspectos
de forrnac;ao e estabiliz·a c;ao da "personalidade ideal" Tupina.rnbá ,
de clara inspirac;ao culturalista.
Na conclusao, Fernandes demonstra que tanto a "organizac;ao'
ecológica" quando o "sistema· organizatório" Tupinarnbá (este Últi-
rno fundado no sistema de parentesco) estavam. subordinados ao "si~

terna religioso", fonte última dos valores Tupinambá, que irnprimia


sua marca na fisionomia e dinamica de todo o sistema social. As-

siro, a busca de urna consistencia funcional generalizada .(que o


roáis das vezes redunda em circulos tautológicos) na sociedade T t~ -

85
araweté: os deuses canibais

pinambá nao impede que se indique um subsistema dominante, a reli

giao, fundada no culto de antepassados e geradora da máquina de

guerra Tupinambi, que era um "instrumentum religionis"3.

(3) 1963:192-200; 1970:157. A 009ao de "culto de antepassados" é problenática;


Florestan iresm:> chama a at~ao pa.ra o fato de que as fontes "subestimaram es
te aspecto" e "deixam de oonsignar ••• . infonna~s sobre um culto organizado ••• "
(1963:l9J.,197). Mas mantérn a expressao, dentro de um esfor90 de car:acterizar
os TUpinanbá Caro tendo descendéncia patrilinear, que se prolongava em culto
dos a<Jratas defuhtos (p.192-3,353). Esse ·viés ilrpede que o autor perceba que
a rel.a9ao can os rrortos pode se dar de outro nodo que caro um "culto", sem se
nostrar cxxro disj\Jn9ªº absaluta vivos/nortos, ao nodo Jé (ver carneiro da
CUnha, 1978:134-41 para a hipótese: onde a qx>si~ao vivo/norto é fundante, ini
be-se o culto de ancestrais) • Florestan identifioou o papel central dos nor
tos (eu preferiría dizer da norte) na oosm::>logia Tupinambá, mas ·o interpretou
oonforme os nodelos durkheimiano e maussiano. Nao se tratava, nem de culto,
nern de "~tepá.ssados".. agnátioos, mas de una prese119a global dos irortos .na lógi
ca da guerra· de ving~. Note-se que Floréstan, em seu segundo ensaio, aban
a
dona referencias patrilinearidade, e já neste definía o sistema terminológi
oo TUpinanbá cxxro "bilateral" (1963:201), corquanto insista na agna<rao, via o
já clássioo caso da teoría patrilateral da concepcrao (pp.172-192). Out.ros auto
res sao ben rnais enfátioos quanto a urna patrilinearidade (~ patrilocalidade)
Tupi, de tipo .ranano-africarXl, caro La.raía (1964, .1971; 1972). O dogma da~
trilinearidade TUpinamb3. (mais generalizado que faz crer Laraia) é al:go que
todos - Lévi-Strauss é um exenplo - tentam deduzir da patrilateralidade cx:>nceE
cional e étnica. Nao há entretanto nen.hum testemunho que permita deduzir di
rei~, personalidades e ~ .. oorporadas .. , clfuucas ou linhageiras·. E o ca
samento cnn a ZO nao exige a pres~ de patri-grupos. Vol tarerros a isso.

Será justamente a guerra, enguanto institui9ao central da so

ciedade Tupinarnbi,· o objeto do segundo grande ensaio de Florestan,


.
a Fun9ao Sociál da Guerra na Sociedade Tupinambá <I 19521 1970),em
rela~ao ao qual o primeiro livro fo! concebido como urna introdu9ao
geral. Se a Organiza~ao Social dos Tupinambi lembra monografías

como os Nuer, este outro estudo evoca antes urna tradi<rao de tipo

rnalinowskiano: tratar-se-á aqui de esquadrinhar sistematicamente

86
pontos e linhas

em seus diversos efeitos ou implica9oes (economicos, políticos,re

ligiosos, .psicológicos, tecnblÓgicos ... ) urna insti tui9ao ou tema

cultural, consíderados, de algurna forma, como estratégicos na a

preensao do sentido último de urna forma9ao sócio-cultural. No ca-

so Tupinambá, o "kula" é a guerra; ela é o "fato social total",

dentro da inspira9ao maussiana de Florestan.

Impossível resumir aqui em toda sua complexidade este livro,

certamente urna das obras maiores da etnologia brasileira. A guer-

ra é interpretada como o mecanismo central de reprodu9ao social e

manuten9ao do equilibrio cosmológico dos Tupinambá. Esta conclu-

sao, tal vez algo trivial I apÓ.i a-Se naO Obstante em urna análiSe

profunda da metafís~ca Tupinam.bá. A guerra aparece como urna forma

de res~lu9ao de tensoes internas a cosmología, notadamente ao lu-

gar ambivalente da morte. A análise sobre a vingan9a e o sig-

nificado da execu9ao ritual - concebida sob o modelo maussiano do

sacrificio - permite que se perceba o lugar pivotal do espirito

do morto do grupo (ou talvez, do espirito da morte do grupo), que

deve ser vingado, no sistema bélico-sacrificial. Muitas das idéias

dispersas neste livro podem ser reencontradas no famoso ensaio de

P.C.lastres · (1982: cap. 11) sobre a "arqueología da violencia". O

ponto frágil da interpreta<rao de Fernandes reside, a meu ver, em

sua análise da vingan9a e do canibalismo como mecanismos re sta ura

'tivo-recuperativos, de cancelamento da "heteronomia mági ca" cria


da pela morte prévia de um membro do grupo. Essencialmente r eg re s

siva, a vingan9a olha para trás. por isso, Florestan t ern o valor
i nicia tório da execu9ao do cátivo por um e feito derivado de seu

significado central, que era - como está claro no livro (1970:31~

·332) - o de parte de urn sistema de "duplas exéquias", i.e. de lo-

87
araweté: os deuses canibais

caliza~io do morto do grupo no status de ''ancestral''. Assim, ape-

sar de seu insistente esfor90 de totaliza9ao funcional, o autor

termina p or quebrar ao meio o complexo execu~io-antropofagia, si-

tuando-o como dominantemente funerário, e relegando ao reino das

fun~oes derivadas seu papel positivo, a saber, que a morte dos

inimigos nao só "cance)..ava" a mor.t e do grupo, mas simul tanearnente

era a única fonte de acesso dos e·xecutores ao status de Pessoa


4
plena, adulto-matador (pps. 338, 339).

(4) Voltaren:>s, ao final da tese, a interpret~ de Fernandes do canibalis -


no; descartarxb as especula~ sinplistas sd:>re a "inoorp::>r~ao" da substan -
cia ou qualidades do inimi.go, o autor oonsegue expor idéias :fu:ndanentais sobre
- - ~
a rx:x;ao de vin<JéIDi2 e de recuperat;:ao "nu.stica" do ser ...
do grup::>, afast.arx:Jo - se
tarrbém da visao da guerra cx::no "reciprocidade negativa" simples, · antecipando
aspectos da problercática .m:xlerna da "exchange theory", e das idéias de A. Wei-
ner (1980, 19 76) sobre a "reprodrn;:ao e regeneracraa" sociais cerro logicamente
11 11

anteriores a "reciprocidade". __ Ernbora Florestan _ tenha tentado cor...st.ruir o "tri


angulo canibal" - matador, vítima, rrorto do grupo - que dissolve o dial<XJisrro
imaginário da antropofagia, sua teoria sacrif icial tentdna por des~ar na
nao menos sirrplista idéia de urna "canunhao coletiva" , via carne da vítima, en
tre a comunidade e o rrorto viI'tJad9 (1970: 326) . De toda fontla, Florestan derrons
tra de forma definitiva , a meu ver, o irrpulso simultaneamente p::>lítico, metafí
sico e escatológico da guerra 'tupinambá, escapando assim do pan-politicisrro de
P.Clastres , que faz urna redU<;ao da guerra, e da metafísica implicada, a urna in
tentao exclusivamente política - mesrro que o "pol í ti co" de Clastres seja; de
sua parte, urna metafísica , um híbrido exóti co de Durkheim e Nietzsche . Tanto
Florestan quanto Clastres , porém, perseveram na idéia bánal de urna func;.ao rea ~

tiva da guerra - para usarnos urna ~ao nietzscheana - e de uro ideal de autono
mia em que o out.ro é um instrt.Jirento de d:mstruc;ao especular do Eu, de modo si.ro
ples (Clastres) ou oorrplexo (Florestan). O perigo maio:r, na metafisica ''pr~.

mitiva seria a "heteronania (mágica ou poiltica)". O que pretemo sugerir ,


11
,

nas páginas que seguem, é que essa heteronania é exatanente o principio funda-
dor das sociedades Tupi-Guarani. •
Para urna análise da obra etnológica de Florestan Fernandes, de urna perSpec-
tiva de "antropología da prcdu~ intelectual", ver Peiraoo 1983, orrle se tra-
93- o canpo intelectual que subjaz as rronografias Tupinarnbá.

88
pontos e linhas

(B) Os Tupi~Guaráni da Amazonia


Nas dé cadas de 30 e 40 iniciarn-se algurnas pesquisas de cam-

po com grupos Tupi da Amazonia ocidental, por Herbert Baldus (Ta-

pirapé), Charles Wagley (Tapirapé e Tenetehara), Wagley e Galvao

(Tenetehara). Se Baldus representava urna espécie de "ponte" entre

a tradi~ao etnológica alema - com enfase na cultura material, no

problema da origem e difusao de tra9os culturais, e com o emprego

de urn método comparativo algo '"descontrolado" - e o estilo mono -

gráfico funcionalista anglo-saxao, Wagley e Galvao vao encarnar a

problemática da "mudan9a cultural" ou "acul tura<rao", presente tam

bém nas obras de Schaden sobre os Guaraní (ver adiante), problemá

tica essa que marcou profundamente os estudos Tupi deste período.

A monografía de Wagley & Galvao sobre os Tenetehara (publicada em

ingles em 1949; edi~ao em portugués em 1961) é urn estudo clássico

de mudan~a cultural, que procura abordar o fenomeno em todos os

aspectos da vida social deste pavo Tupi-Guaraní do Maranhao e Pa-

rá. Nesta medida, trata-se de urna etnografia bastante minuciosa e

completa, contendo ainda urna boa coletanea de mitos, apesar do

trabalho te·r. sido realizado exclusivamente em portugués. Apontan-

do para urn tra90 que reaparece em outras monografías Tupi, os au-

tores indicarn a vida religiosa (sobretudo no plano do discurso)co

rno o lu·g ar da resistencia Tenetehara a mudancra social imposta pe-

la subordina9ao a sociedade brasileira; nao obstante - e isto tarn

bém reaparece em inúmeros trabalhos sobre os Tupi - observam que

os Tenetehara, ao contrário por exemplo de seus vizinhos Tirnbira,

sao extremamente "plásticos" e receptivos quanto a ado9ao de no-

vos padr~es culturais . .o prognostico final dos autores , que a his

89
araweté : os deuses canibais

tória vern-se encarregando de desmentir, era que os Tenetehara i-

riarn rapidamente desaparecer do mapa sócio-cultural, face a inten

sifica9ao do rnovirnento de expansao capitalista na Amazonia. Este

pessirnisrno quanto ao futuro dos Tupi é urna constante ern obras da

época, e mesmo de antes (corn Nirnuendaju e os Apapocuva ern 1914) .


Huxley sobre os Urubu, Wagley sobre os Tapirapé, Schaden sobre os

Guaraní, todos terminam seus livros anunciando o firn irninente, fí


5
sico e/ou cultural, dos grupos que estudaram • Isto talvez se de-

(5) Dn Wagley 1977, enoontranos una autocrítica lúclda dessa tendencia da épo-
ca.

va a constat_a 9ao quase unanirne da "fragilidade" Tupi-Guaraní face

ao impacto do mundo dos brancas - urna fragilidade que hoje esta -

rnos ern condi9oes de perceber ser rnais aparente que real, e que

parece derivar das formas específicamente Tupi-Guaraní de concep-

9ao da sociedade e de reprodu9ao social, que recebem urna codifica

<rao· sociológica simples ou "frouxa", . ern favor de urna forte enfase

no plano místico-cosmológico (ao contrário do que ocorre corn ·os

"conservadores" Je) . A plasticidade ou fluidez da organiza9ao '

social Tupi-Guarani, que se rnanifesta nio só nesta ''fragilidade "

ao contato, corno tambérn na notável variedade apresentada pelasnoE

fologias Tupi-Guaraní concretas, encentra sua contrapartida na ho

mogeneidade igualmente surpreendente quanto ao discurso cosrnológi

co, os ternas míticos e a vida religiosa, que atravessa séculas de

história e rnilhares de quilómetros de distancia.

A monograf ia de Wagley & Galvao apresenta dados valiosos

quanto a organiza9ao social e a · vida religiqsa dos Tenetehaia, e

ela ainda é a fonte padrao de consulta para o estudo desse povo.

90

pon tos e linhas

No que diz respeito aos Tapirapé, tanto Baldus quanto Wagley vie-

raro a publicar os resultados de suas pesquisas em forma monográfi

ca apenas na década de 70; antes dísso, porém, publicaram numero-



sos artigos (ver bibliografia em Wagley 1977) sobre o grupo, esp~

cialmente sobre. organizacrao social, xamanisrno, rnudan9as culturais

e política demográfica. Em 1970, Baldus publica a monografía Tapi

rapé: tribo Tupi no Brasil Central, livro que utiliza os dados da

pesquisa de campo do autor, das de Wagley e Shapiro (os Tapirapé'

estao entre os grupos rupi-Guarani mais estudados da etnología)


'
bern como tenta urna extensa, embora assisternática, compara9ao da

cultura Tapirapé com outras tribos Tupi e de outras familias lin-

güisticas. Trata-se de . um estudo· que pretende cobrir, com igual

amplitude ·, desde a cultura material e a ergologia até a organiza -


-
9ao social e a cosmología.

Em 1977, Wagley publica .Welcome of Tears, livro que é ao nes

mo tempo urna etnograf ia razoavelmente detalhada da sociedade Tapi

rapé, atenta para as mudan9as sócio-culturais - pois o autor teve

o privilégio de conviver com os Tapirapé em diversas fases de sua

história pós-contato·, ao longo de 30 anos - e urna reflexao pes-

soal sobre o trabalho de campo e a situa9ao dos indios brasilei -

ros. Se bem que mode·sto em suas pre:tensoes e cauteloso ern suas in

te-rpretacroes, Welcome· o ·f Tears é tal vez a rnelhor descricrao dispo-

nivel de urna sociedade T.upi-Guarani, oferecendo amplo material p~

ra análises comparativas de maior nivel de abstra9ao. Há no livro

um excelente capitulo sobre o xamanismo (publicado ante riormente

sob forma de artigo); a análise da morfología social Tapirapé,co!!

tudo, ressente-se de alguma superficialidade - que talvez derive'

·menos da perspectiva do autor que da própria natureza do objeto,


6
no caso .

91
araweté: os deuses canibais

(6) Os Tapirapé, muito p:>ssivelnente devido a influencias Karajá e Kayapó, a-


presentam urna rrorfologia social de tip:> "centrcrbrasileiro", can segmentat;0es'
globais da sociedade: grupos de idade, neta.des cerirroniais, grupos de festa ,
etc. Nao obstante, tais sistenas nao pareceI!l p:>ssuir o mesrro rend:inento socicr
l.Ógiro e den.sidade cosrrológica que seus "rrodelos" Macro-Je. A baixa operaciona
lidade dos segrrentos Tapirapé talvez nao fosse, a ép:x:a das pesquisas de Wa-
gley e Baldus, fruto da desorganiza~ social pós-rontato, e sim urn tra90 in -
trinseco des.s a fonna organ.1:zacianal. Há que ressalvar, no entanto, que foram
esses grupos cerirroniais que persistiram até hoje, a9 passo que o importante
xam:misrro Tapirapé - ?ID- ligado a e.s sa organiza9ao norfolÓgica - des;apareceu .
O caso Tapirapé é um ban lenbrete para que evitenos urna .substancializa~o redu
tora de "urna cosrrologia" Tupi-Gu.arani, que irnplicasse urn perfil sociológico
oon.stante.
Sucede que o úniro outro grupo Tupi-GJ.arani que apresenta divisOes globais
- os Kagwahi~Parintintin, con rretades exogámicas - tanp:::>uro funda de rrocb cla
ro e sistemático 5ua cosno1ogia nesse dualisno (que allás mascara urn triad.is -
no); Kracke (1984a, 1984b) chama a ate~ exatarnente para esse caráter de
"forma sern fun<r~" do dualisno Parintintin, e destaca a "hete.rogeneidade in-
tra-~ltural" no nivel do parentesco-c;asarrento, e tanbém da religiao. caro os
Tapirapé, p:>rém, os Parintintin perderam o xarnani.srro, antigarrente fundarrental.
(Kracke, 1983).

As análises de Wagley e Baldus sobre o xamanisrno Tapirapé


tocarn ern urn ponto essencial da figura dó xarna Tupi-Guaraní - ou

antes, corno se verá, ern urna característica que parece ser consti-
tutiva da Pessoa TG: sua ambivalencia, sua rela9ao essencial corn'
a rnorte. O xarna Tapirapé encarna, ao mesmo tempo, a personalidade
ideal do hornero pleno e é urna po.tencia amea9adora e exterior a So-
ciedade: ele é indispensável e perigoso. " Sem nossos pancé, todos
nós Tapirapé morreriamos" (Wagley, 1977:195); e no entanto é por
obra deles que os Tapirapé morrem. ~odo bem e todo mal (p.193) re
caiam sobre as costas dos xarnas. Nao obstante, o xarna Tapirapé

nao é urna figura marginal, e sirn central (Wagley , 1977: 119) , na


estrutura política e ritual Tapirapé; ele nao se assemelha aos

92
pontos e linhas

"wayanga" do·s Je do Norte. O lugar paradoxal do xama Tapirapé, tal

como emerge das ' etnografias, encentra-se preenchido em outras so-

ciedades TG pela figura do guerreiro.


'
Um tanto fora da corrente principal dos estudos Tupi da épo

ca, está o livro de A.Holmberg sobre os· Siriono da Bolivia (1950;

ver Holmberg , 1969). Trata-se de uro estudo sobre os efeitos da fo

me , ou melhor, de urna situa9ao de priva9ao generalizada , sobre a

vida sócio-cultural deste grupo de Tupi nómades da Bolivia ociden

tal. A irnagem que o autor tra9a da sociedade Siriono, imagem dis-

torcida ou {certarnente) exagerada, é urna de redu9ao quase impossí

vel das formas organizacionais e ideológicas da vida social; con-

templamos uro quadro de inseguran9a, rniséria, tensao, monotonía

As célebres palavras de Hobbes sobre a vida humana no estado de

Natureza - vida "solitária, pobre, sórdida, bruta e curta", ecoarn

quase literalmente neste livro {pps. 224, 231, 261). Apesar dis-

so, Nomads of the Long Bow deixa entrever questoes relevantes, so

bretudo em suas observa9oes sobre a vida cotidiana, o ciclo de

vida, o sistema de parentesco e a nomina9ao. Muitas semelhan9as e

mergem entre os Siriono e os Aché-Guayaki, outro grupo TG (ou"gu~

ranizado") nomade. Por outro lado, os Siriono sao o Único caso do

cu.mentado de u:m grupo TG coro terminología Crow (os Maué, nao-TG ,

sao reportados como tendo tra9os Omaha, apud MacDonald, 1965) .Nes

te livro ainda, encontrarnos uma caracteriza9ao psico-sociológica'

dos Siriono que aparece em outros estudos sobre os Tupi - Guaraní :

trata-se do que vários autores chamam de "individualismo" dos TG ,

no plano polít~co (Tapirapé - Wagley, 1977:118-24 ) ou . religioso

(Guaraní - Schaden, 1962), juízo que a~da a merecer uma análise

rnais aprofundada, . ainda rna i s por _ ter si do desta cad o por Ri viere,

recenternente, p a r a os grupos da Guiana (1984: 4, 94-ss, pas sim) 7 .

93
araweté: os deuses can ibais

(7) Em H.Clastres (1978) enrontra:rros urna interpretatrao excelente dos fundarcen-


tos cosrrológicos do "individualisrro" Guarani, mas que está a espera de urna ge-
neraliz~o. Para os Tapirapé, que no entanto possuíamuma estrutura cerirro -
nial carplexa, Wagley chama a aten:¡:ao quanto as dificuldades em se iniciaren a
<¡:Ces 'coleti.vas, e quanto a ausencia de m=canisnos de unifi~o da sociedade ;
cada casa-grande era urna. fa~. ~ interessante notar que foi um estrangeiro ,
náo-Tapirapé, a for<ra capaz de unificá-los: o Pe. Jentel (Wagley, loc.cit.)
Isto tan paralelos a::m os Araweté, CCITO vererros no .,c apítulo V, § 2. O "indivi-
duali.sm:)" Siriono {Holrnberg, 1969:151) é ¡x:>sto na contada fare, da guerra de
todos contra todos e da selvageria desorganizada desses né'nades l:olivianos.

Seguindo no tempo, e voltando a Amazonia ocidental, encon -


tramos os Urubu-Kaapor do Maranhao, que durante a década de 50 fo

ram estudados por Darcy Ribeiro e Francis Huxley. O primeiro pu -


blicou dois artigos importantes: "Uirá vai ao encentro de Maíra",
urna tentativa de reconstitui~ao de um episódio trágico na histó -
ria do choque entre os Kaapor e os brancos, que o autor interpre-
ta em fun9ao do complexo mitico da Terra Sem Males; e um ensaio

pioneiro (1~54) sobre o ciclo de subsistencia dos Kaapor no


habitat tropical, de alto 'valor etnográfico {ambos em Ribeiro ,
1974). ~ o livro de Francis Huxley , porém (1957; ver Huxley,1963),

que traz urna descri9ao rnais geral desta sociedade. Selvagens Amá
veis é rnais um livro de viagens que urna etnografía, embora o au-
ter seja antropólogo. Seu estilo cornplacente, etnoc~ntrico e su-

pe.rf.icial é de mo lde a irritar niuitos leitores. Nao obstante, a-


pesar das rnui tas general.iza<toes abusivas ou erradas, ali se podem
achar intuiqoes e hipóteses produtivas, corno vários comentadores

reconh eceram. Este livro é, até hoje, a etnografía de que dispo-


mos para pensar os Kaapor no horizonte Tupi - Guaraní; pesquisas
mais recent es com este povo ·ainda - fora m publicadas (ma s
nao ver

Samain,1985, e a tese de Balée,1984). Numa mistura de "f ases" an

94
pontos e linhas

tropológica·s, Huxley faz urna bricolagem onde entram (nao há cita-

9oes no livro) desde a mitologia solar de Perry & Cia. até a psi-

canálise e o estruturalismo nas ~ente , bern corno rnuito do que havia

já sido escrito sobre os Tupi antigos - e suas páginas sobre a

guerra e o canibalismo (1963:276-298) nao deixam de trazer formu-

la9oes perspicazes.

(C) Recentemente

As décadas de 60 e 70, que assistiram a publica9ao da gi-

gantesca sintese da mitología americana por Lévi-Strauss (as My-

thologiques, onde a mitologia Tupi tern um lugar importante, mas

secundário em rela9ao a mitologia Je), bem corno ao progresso e

consolida9ao da etnología brasileira, a partir dos estudos de con

tato inter-étnicb - que vieram ocupar criticamente o espa90 dos

estudos de "acultura9ao" - e do grande movimento de estudo. dos

povos Macro-Je, assistiram tarnbém a um declínio acentuado do in -

teresse nos povos Tupi-Guaraní (o caso da etnologia Guarani, espe

cialmente no Paraguai, é diferente; ver adiante). A década de 60,

sobretudo, nao foi marcada por nenhuma monografía Tupi importante.

o declínio da inf luéncia das escalas alema e americana {difusio

nismo e culturali.s mo), e a ascensao dos estilos estrutural-funcio

nalista (ingles) e estruturalista (francés), estao claramente li-

gados a passagem de urna "etnología Tupi" para.urna "etnología Je".

A forma estrutural des tas últimas sociedades, como já mencionarn.o s,

parecía prestar-se muito melhor ao recorte teórico de urna antropo

logia renovada em seus métodos e objetivos. Os estudos de .fric9ao

interétnica, por seu lado, nao privilegiaram os TG, ao contrário

das análises de mudan~a cultural anteriores. (Ve r Mélatti 1983 pa

ra o levantamento deste período) . A etnología Tupi-Guaraní pare -

95
araweté: os deuses canibais

cia esgotada, e seu objeto votado ~ desapari9ao concreta.


Dos trabalhos realizados no comec;o dos anos ·70, poderrrse desta

car a etnograf ia geral dos Kayabi (TG centrais) por Georg GrÜnberg
(1970) 8 , no estilo "indiferenciado" da tradic;ao alema, com ent"ase na

(8) Este estudo será citado conforme a tradu9ao de E.Wenzel (rev. T.Hartrnann),
s/d., datil. , que rre foi cedida pelo Projeto I..evanta.Jrento Pops. Indígenas/CEDI.

cultura material; e a tese de doutoramento de Roque Laraia (1972),

baseada em pesquisa junto aos Suruí, Akuáwa-Asuriní e Kaapor, bem

como e~ material bibliográfico, que i a primeira tentativa de com

para9ao global da organizac;ao social dos grupos Tupi con tempor a '
neos, com destaque para o parentesco 9 .

(9) laraia publioou t'.ambém uin estudo da situac;ao de oontato dos Tupi do ·T ocan
tins, in laraia & Da r--iatta,1963. Os suruI sao de especial intere~se, por serem
um dos p:>Ucos grupos TG. can urna organiza<;:ao clamca, já que o caso dos Parinti_!!
tin é de metades exogfunicas (mas ver Kracke, 1984) . Há o caso dos Tupi-cawahib
de Lévi-Strauss (1948:303-4), e o dos Wayapi - urn grande núrrero de clas eXoga
micos patrilineares e localizados, cf. P.Grenand, 1982:64-8 -,que me parece su
jeito a call9ao; de tcxia forma este sistema desapareceu. laraia, que trabalha
a:m um horizonte pan-Tupi (maior que TG) , postula urna proto-estrutura Tupi pa
trilinear e patrilocal, tanando os numerosos exenplos de matrilocalidade cerro
fruto de muda.rieras históricas {1972:34-6;1971). Discorde: a "regra" residencial
mais cx:::mum entre os TG é a uxorilocalidade "temporária" seguida de ambi- ou
neo-localidade e concebida oorro "servixc da noiva" · (isto é roa.is importante que
a "-localidade") e freqÜenterrente contornada pelos casarnentos oblíquos (MB/ZD),
poliginia, endogamia aldea, parentesco entre os cünjuges,dependendo do jogo po
lítico das parentelas e do status ·aos envolvidos. Regra se houver, é esta: os
poderosos nao rroram uxorilocalnente, .nem seus filhos hanens. Ver: o servü;o da
ooiva Parintintin (Kracke, 1978:35-ss); a uxorilocalidade e suas e.xcec;Oes (po
der) nos Kayabi (GrÜnberg, 1970:113,120}; a ~trilocalidade Guaraní e as exce
90es para os filhos dos- chefes religiosos (Schaden,1962:80); sobre a política
dos chefes Wayapi de reter fil.has e atrair genros, P.Grenand,1982:136(mas a en
dogamia atual minimiza o fator iesidéncia); nos Wayapi do Brasil, onde há um i
<leal de endogamia, a tende..ncia é uxorilocal (Gallois,1980:40);para a uxoriloca

96
pontos e linhas

lidade/servi~ da noiva Tenetehara (até o primeiro filho), Wagley & Galvao,


1961:95- 9; o "ideal" uxorilocal Tapirapé, só r e alizado nas malocas lideradas
por hanens de prestigio (Wagley, 1977:93-6); o caso Siriono, onde o chefe ¡:olí
gino seria o único a nao rrorar uxor~loca.lJrente (Holmberg , 1969:128,148). Os ca
sos claros de. virilocalidade que restam sao os dos Suruí e Akuáwa, já que, pa
ra os Kaapor, Balée (1984:162-ss) estabeleceu um padrao daninantanente uxorilo
cal, nas mesmas condi~s qi.:.i..8 os casos acima - e o caso Ara.....eté. Para os Tupi
nambá, ver a recensao de F.Fernandes (1963:220,224,226) sobre a uxorilocalida
de obrigatória quando um hanem ca~ava can urna nao-parenta (ideal de endogamia
.• •• ?) ou con a filha de um principal ". A situac;:ao-limite da "uxorilocaliza
11

c;:ao" oo cativo de guerra é sugestiva· quanto aoque os .Tupinambá pensavam des ta


forma residencial.
Voltarerros a isto: caiple.xas , as r egras de residencia TG nao sao inco
muns no continente. AD contrário, os sistemas "mecaru.cos" e universais de re
sidéncia - a:no a uxorilocalidade Je e a virilocalidade Tukano - sao mais ex
ce;ao que norma. Assim, todos os Alto-Xinguanos diferenciam as soluc;:Oes resi
den:::iais conforme a difereJ19a entre "capitaes" e "canuns" (V.de castro, 1977;
Bastos,1978:34,61; Basso, 1973:49-ss,83-ss , sublinha a variabilidade dos arran
jos); o mesrro acontece can os ·Pareci, onde os filhos de chefe ficain em casa
(Costa, 1985:99) - isso seria "AruaqUe" em geral (Schrnidt, s/d. 11917 1:48-ss).
O rnesrro para os Mundurucu, exarplo farroso (ver o exarre dos trabalhos de Murphy
por A. RazrOs, 1976:11, . passim; rru..úto do que é ali dito valeria para os Tupinam
bá). Nas Guianas, por fim, a extensa revisao de Ri.viere (1984:12,34-9,97-9) ~
ponta a uxorilocalidade a::m:::> "idealmente terrp:::>rária", ccm::::> "tendencia estatís
tica" e "rrodelo consciente", JX)tando ainda que a ideología de endogamia local
minimiza os efeitos das esOJlhas residenciais . Para os Yanomami. , ver Ram:>s &
Albert, 1977: 7-8,21.
Se a uxorilocalidade parece ser o "atrator social" básiOJ no continente,
isto talve z se deva a situa9ao inicial de inferioridade -coeteris paribus - do
genro f ace a seus afins. F.m alguns casos isto é sobredetenninado por formas
de hierarquia, que levam as exce<;ües {os "filhos de chefe"). F.m outros, e es
se parece ser o caso Tupinarnbá, a proeza guerreira era o clinarren sociológiro
que pe.rmi tia escapar da gravi ta9ao uxori l ocal .

Os Kamayurá, TG do Al to Xingu, foram objeto de .vários estu

dos ne s ta década e nas anteriore s (Oberg , Galvao} . Sua inser9ao no.


sistema xiguano poem-nos em problemática a parte . l·1as ver Agosti

nho , 1974 e Bas t os , 1978 , para estudos específicos valiosos.

97
araweté: os deuses canibais

Em 1978, Waud Kracke publica urna análise do sistema de lide

ran9a dos Parintintin, de inspira9ao psicanalÍtica. Ali ressaltam

observa9oes importantes: a _fun9ao fundadora-constitutiva do grupo

local que cabe ao líder (headman), na medida em que nao existem

la9os estruturais fortes o suficiente para a manuten9ao da coesao

aldea (1978:33) - o que. se reencontra nos Kaapor, Araweté,Kayabi,

Wayapi -,a presen9a de urna dupla ideologia da chefia, conforme se


. .
apóie na figura do guerreiro ou ·n a do provedor pacífico (p .8 0-81 );

e o lugar de "sogro .generalizado" ocupado pelo líder, que se arti

cula com urna regra uxorilocal - e Kracke argumenta, nurna linha

semelhante a das idéias de T.Turner para os Kayapó (1979), que a

Única base de exercício de poder · político nas sociedades sul-ame-

ricanas é a autoridade do pai sobre a f ilha, ou o controle das m~

lheres, e assim dos genros. A diferen9a porém da regra de uxorilo

calidade mecanica e universal dos Je, nos Parintintin como alhu -


~

res há muita ambigÜidade sobre a natureza e a dura9aó do "servi90

da noiva" (p. 71), e o espa90 para a manobra -política se consti-

tui ai: a uxorilocalidade nao é urna regra estrutural que funda

urna dinámica . global, como no caso Je, mas urna tendencia que se a-

bre ao sabor do evento.

Este autor tem publicado vários artigos sobre .outros aspee

tos da sociedade Parintintin, como organiza9ao . social, tabus ali-

mentares, sonhos, que constituem contribui9ao relevante para a et

nologia TG.

No final dos anos 70 e come90 da atual década, Pierre e

Fran9oise Grenand deram a luz numerosas publica9oes (de difícil

acesso} sobre os Wayapi da Guiana Francesa, versando sobre lín-

gua, mitología, etno-história e ecología (P.Grenand, 1980 e

1 982·; F. Grenand, 1982-) . Os Wayapi em terri tório brasileiro forarn

98
pontos e linhas

estudados por Allan Carnpbell (1982) e Dominique Gallois (1980). ·

Se, af inal, · o número de trabalhos publicados sobre os TG

ao longo dos anos 70 nao foi tao pequeno assirn, o fato é que a et
. '
nologia Tupi-Guaraní deste ·periodo ressentiu-se de certa falta de

dinamismo e de intercornunica9ao entre os estudiosos, nao cense

guindo superar de modo significativo o estado teórico ern que o

campo Tupi foi deixado pelas décadas passadas (a publica9ao rnais

abrangente e impo rtante dos '70 refere-se a um trabalho de campo

realizado ern 1930-40, o de Wagley); nenhuma tentativa de projeto

coordenado, nenhum esfor90 de reinterpreta9ao global forarn efetua

dos, que se pudessem equiparar ao que se passava na área Je ou Tu

kano.

No final dos anos 70 um novo interesse ern rela9ao aos TG co

rne9a a se esbo9ar. O contato for9ado de alguns grupos do Leste

Amazónico, ern conseqüencia dos projetos . económicos que ali se irn-

plantam, redespertou a aten9ao dos antropólogos. Mas nao só ali

(nos Guajá, Asuriní, Araweté, Parakana), pois um amplo rnovirnento

de re-estudo se inicia - corno atesta o volume da Revista de An-


. lO que t raz as con t ri. b ui9oes
t ropo 1 ogia . - . recen t es na area.
rnais -

( 10) Erx:Juanto escrevia esta tese , a Revista de Antropologia vols. 27 /28, que
publica as canunica~ apresentadas em novernbro de 1982 no "19 Encontro Tupi"
permaneceu no prelo, de nodo que enoo.ntrei algt.nna dificuldade em usar e citar
alguns trabalhos . Mas ver i nfra: Gallois 1985, MÜl ler 1985, Arrlrade 1985.

{D) Guaraní e Aché

A etnología dos povos Guaraní do sul do Brasil e Paraguai '

constituí quase urna provincia separada, dentro do campo Tupi-Gua-

rani. Isto se deve as particularidades da situa~ao histórica e

99
araweté: os deuses canibais

geográfica destes povos, a certas características culturais suas,

e ao estilo dominante da etnologia ali praticada. O volume da pro

du9ao etnológica sobre os Guaraní é superior, provavelmente,ao de

que dispornos para todos os dernais povos da mesma f amília lingüís -

tica reunidos; o número e a qualidade dos textos em língua nativa

naó podem ser compa rados· corn a pobreza que se constata para os Tu

pi brasileiros; o material histórico existente é tambérn muitomais

rico e detalhado. Por outro lado, a etnología Guarani tero-se con

centrado na cornpila<;:ao e exegese de textos - mitos, cantos sagra-

dos - deixando até certo ponto de lado a descri9ao de aspectos da

morfologia e estrutura social (ver a bibliografía de Meliá, já

referida). ~ o material Guaraní, contudo, que coloca as questoes

mais instigantes para a etnología Tupi-Guaraní atual - desde o

problema do lugar e fun9ao da vida religiosa na reprodu9ao sociaL

até as razoes e formas da extraordinária resistencia apresentada

por esse povo face i 1


'civiliza9ao".

O estudo pioneiro de Curt Nirnuendaju (1914) sobre· a mito lo-

gía e a escatología Apapocuva-Guarani inaugura o período moderno

da etnología Guarani. t ele que vai influenciar Métraux, e vai co

locar na atualidade a famosa questao do profetisrn.o Guaraní. ~ coro

éste trabalho, igualmente, que o tema do pessimismo hi·stótico Gua

rani se introduz - pessirnismo que, muitas vezes, é difícil distin

guir do dos etnólogos. Esta monografía de Nirnuendaju está en t re

as maiores obras da etnologia brasileira (e é de se espantar que

nao tenha sido até hoje tornada acess ível em tradu9ao para o por-

tugues; a melhor edi9ao em espanhol . é Nimuendaju, 1978). Ali, a-

lém de uma minuciosa reconstru9ao histórica das rnigra9oes Ñan d e v a

ern busca da Terra Sem Males, achamos um exarne do xarnanismo e do

profetismo, uma descri9ao da cosmología e do ciclo da cria9ao, e

100
pon tos e linhas

dados valiosos sobre a complexa-teoría Guarani sobre a alma e a

p essoa (que envolve as polaridades palavra/comida, divindade/ani-

mal idade, osso/carne, etc.). ~ com Nimuendaju, ainda, que se ini


'
cia a longa discussao sobre a natureza e o grau da influencia Je-

suiti ca na cosmologia Guarani (ver Schaden 1982, para o tema )

Alfred Métraux, além das obras j á citadas, escreveu vários

artigas so~re os Guaraní (o principal é o ensaio. no Handbook of

South American Indians). ~ a partir de meados da década de 40,con

tudo, que pesquisas importantes ·sobre os Guaraní come9arn a ser rea

lizadas; seus resultados só vieram a ser publicados nas décadas

seguintes. Ego~ Schaden, que em 1959 publicava um ensaio sobre a

"mitología heróica" de vários grupos tribais brasileiros - onde

dedica dois capítulos aos fatos Tupinarnbá e Guarani - sumariza os

resulta.d os de seu trabalho de campo no livro _A_s_.p._e_c_t_o_s___F_u_n_d_a_rn_e_n_-

tais da Cultura Guár·áni ( 1962) , que também faz uso de dados cole-

tados por Nirnuendaju,- Cadogan e outros, de forma a poder abranger


11
as várias diferen9as culturais entre as parcialidades'' Guaraní .

Este trabalho inscreve-se na problemática dos estudos de "acultu-

ra9ao" (os Guarani, pela diversidade das situa9oes de contato que

viviam, sao vistos pelo autor corno "exernplares" para um estudo de

mudanc;.a cultural), e um de seus objetivos .é analisar o impacto di

ferencial que o contato exercé- sobre os dominios da cultura Guara

ni: economía, s ociedade, religiao ... Schaden rnostra o"predornínio

extraordinário 11
da religiao sobre todas as outras esf·eras da vida

social, e aponta a vida rel igiosa corno o locus da resistencia cul

tural Guarani - na verdade, corno urna área da vida Guarani que o

contato teria exacerbado (e ai ele chega a teoria das ·rnigra9oes e

do profetismo Guaran~ corno efeito reativo do contato, dentro de

urna lógica da priva9ao e crise aculturativa). O livro de Schaden

101
araweté: os deuses canibais

traz dados preciosos sobre a religiao e a cosmología Guarani, e

sua preocupa9ao com a "mudan9a cultural" nio irnpede que realize '

urna etnografía importante, com inforrna9oes sobre a estrutura so-

cial Guaraní rnais detalhadas que o usual entre os "guaraniólo


gos"ll.

(11) J. watscn (1952) p.lblicou urn ensaio sobre a "acu.l.~" dos GJ.arani-
-Kayová que tambérn traz i.nfonnafiX)es sobre a organizac;ao social tradicional.

Leon Cadogan é o principal especialista (ernbora nao urn an-

tropólogo de forma9ao) nos Guaraní. Sua copiosa produ9ao, disper-

sa ern vários periódicos (especialmente na América Indígena e na

Revista de Antropología), consiste sobretudo em compila9oes, co-

mentários e exegeses de textos Guaraní, formando uro . corpus etno -

gráfico riquissimo. A obra principal de Cadogan é _A.y_v_u~~~-R~a~p_y~t~a

(1959), urna coletánea de textos ,. míticos comentados. Cadogan é o

responsável pela descoberta de um longo ciclo de cantos esotéri -

cos Mbyá, que serviram de base a várias tentativas de interpreta-

9ao, especialmente as de . Hélene e Pierre Clastres. Cadogan publi-

cou ainda trabalhos sobre os Aohé-Guayaki, e outros . grupo.s indíge

nas ao Paraguai (ver Roa Bastos (org.), 1978; Meliá, 1973).

Outras publicac¡:oes importantes sobre os Guaraní sao as de

Bartolorné Meliá, G. & F. Grünberg (1976) sobre os PaI-Kayovi,e os

estudos do primeiro sobre a relac¡:ao entre os jesuitas e os Guara-

ni ( cf. bibliografía em Meliá, 1977 ) . Meliá . et al. ( 1973) publica


ram ainda urna importante coletánea de cantos Aché-Guayaki.

Os Aché-Gu ayaki sao um pavo d~ c a9adores nomades de o r i gem

incerta - provavelmente de uro . substra t o arcaico, "guaranizado"

e corn urna trágica história de contato genocida c o m a socie.dade pa

ragua ia. Eles foram estudado s por Cadog an, e por Pierre Clastres,

102
pontos e linhas

cuja Chronique des Indiens Guayaki (1972} é uma etnografía sensi-

vel e profunda, construida a rnaneira dos Tristes Tropiques. Esta

obra e os dernais estudos Aché perrnitern que se possa avaliar a per

tinencia desta cultura ao horizonte Tupi-Guarani - tarefa a inda

a ser ernpreendida. A prática do endocanibalisrno distingue os Aché

dos demais TG, que sao ou eram exo-canibais convictos {ver tam-

bém o artigo de P.Clastres in Lyon 1974; P.Clastres & L. Sebag


'
1963).

Pierre Clastres publicou outros ensaios sobre os Guarani e

os Aché em seu livro La Societi Centre L'!tat (1974, trad.bras. ,

197S}, e sua experiencia de americanista está por trás dos en-

saios sobre a guerra primitiva ~ublicados em P.Clastres, 1982. A

obra de Pierre Clastres, que tem urna forte divida etnográfica pa-

ra com Cadogan, é até agora a tentativa mais inovadora e sofisti-

cada de . se atingirem as implicacroe.s filosóficas e políticas do

pensamento Tupi-Guaraní·. Foi com P.· e Hélene Clastres, adema is ,


que os TG saíram de urn certo conf inarnento etnográfico a que esti-

veram ;relegados nos. Últimos anos.

Mas se deve a Hélene Clastres, a meu ver, o esforcro ínter -

pretati vo rnais importante sobre 0s Guaraní. S·e u li vro Terra Sern

Mal~ o Profetismo Tupi-Guara-ni ( 19.78} , que segue a tradic;ao de

Métraux no articular os dados dos .cronistas com dados etnog ráf i ~

cos contemporáneos (com a diferenc;a essencial que busca ·dar canta

das rnudanc;as históri<;:as do século XVI até hoje}, é urna . análise

curta e brilhante do complexo do pr~feti~~o Tupi-Guaraní, que vi-

sa mostrar ·ª natureza i .ntrinseca,. nao-reativa ªº contato, das eren


....:.

9as ·Guarani na Terra .sern Mal e da.ecl-0sao dos movimentos rnigrató-

rios ·em di:r:ec;ao ·ao paraíso. H.Cla:=;tres, , conforme aí ao esquema teó

rico ~e P .. Clastres, toma .a irrup9io do .profetismo co~o ~ ie$ultado

103
araweté : os deuses canibais

de urna tensao contraditória entre o po~Jtico e o religioso ~a so-


ciedade Tupi-Guaran!, anterior. a conquista européia. A produc;áo
tendencia!, nesta sociedade, de uma instancia politica exterior
ao corpo social (i.e. wn · "Estado"),. teria ·1evado os · Guaran! a
cpntra-produzirem uma negac;ao radical ·e simétrica da Sociedade, a
saber, um movimento religioso de desterritorializac;ao que se fun-
dava na abolic;ao das regras · constitutivas· da ~ vida social · - reci-
procidade, proibic;ao do incesto, trabalho: assim o profetismo, ·e
a migrac;ao em busca da Terra Sem Mal. O "fracasso" necessário de
tal movimento levou, por sua vez, a int~riorizac;ao ascética · do
tema do paralso nos Guarani atuais, e ao individualismo radical
da re.ligiao destes povos 12 •

(12) A autora, assim, transfoma em artiC'lll.~ilo causal, lógica, o que inega\le..!_


nente é \.11\él slV'Pssao :real: o profetisno rn;, ao explodir CD'ltra o nuro da
inpossibilldade-que trazia ern seu bojo, causa a cos:nologia G.iarant. a::ntenpora-
nea, <JlE guarda entao o eoo longirqoo da CD'ltradic;ao entze o .p olítico e o re-
ligioso que gerou o profetisrtD. Esta llnha de raciocinio nao parece 1na
tacável; tal "CX>ntradicrao", se a aceit.anos cat0 fator causal do profetisrro, te
ria que se apoiar em u:oa oosuol.ogia que já desenhava a sil.hueta da desmedida ,
e que já gestava esse projeto de abolic;ao do social: canibalisnr:> -> profetis-
. .
DD -> ascese.

A d:ificuldade cen-t raJ. da anális.e de H. Cla$tres, é a mesma


q;ue se podfe encontrar nos artigas de ·p. Clastres sobr.e os Gua-
i:ani no contexto da "·socied.ade e.e ntra o Estado" (1974·:.cap.IV) :tr~

ta-se do recurso a um único fator causal~ uma algo hipotética ex..;.


plosao demográfica que estaria levando os Guarani a forma~ao de
um Estado embri.o nário. (Seria preciso - mesmo que tal fenómeno se
tenha verificado - e·x plicar por que ele só afetou os Guaran!, e
nao os Incas, as "che·f fe·r ies" a·n tilhanas, etc.). Este ponto fraco
da tese dos Clastres, porém, nao basta para nos fazer esquecer a

104
pontos e linhas

contribui9ao de H. Clastres para nossa compreensao da cosmologi a

Guarani . Apoiando-se largamente nos dados de Schaden, Nimuendaj u'


e especialmente Cadogan, a autora desenvolve hipóteses propriamen

te etnológicas sobre a concep9ao Guaraní da Pessoa, da Sociedade
e da Natureza. ~ a ela que devemos o esbo90 da visao Guaran í do

Homem, que o pee como lugar de um cornpromisso instável e perigoso


entre a animalidade e a divindade , bem como a explora9ao da idéi ~

que faz a originalidade dos TG, de que é possível superar a candi


- humana de modo radical, e se tornar divino sem passar
9ao pela
prava da marte - um tipo de f ilosof ia que parece recusar os gran-

des recortes e oposi9o~s lógico-filosóficos subj acente s a maiori a


.
d as ou t ras cosrno 1 ogias . d4'1genas su 1 -americanas
in . 13 .

(13) H.Clastres, que ·entretanto escreveu um ensaio sobre o can.ibál.isrro Tupinam


bá (1972) ·' curiosarrente naoteroatiza um enigma da etnologia Guarani, a saber ,
de cx::m::> a prática (claranente atestada) do canibalisrro entre os Guarani anti -
g:>s deu lugar a urna espécie de denega~ ou "recalque" do ccmplexo caniba1. en-
tre os Guarani rrodernos, até se transformar em seu oposto, um "pitagorisrro" a-
1..inentar onde o. consUITO de carne inpede a transfigura~ divina do xama. Volta
renos aos Clastres no .
capítulo VII, ao discuti.nros a rela9ao entre . profetisrro
e cani.balisrro, caro fontaS de devir-ÚUtro. Nao caber~ no espa.90 dessa tese, po
rém, urna avaliacrao exaustiva das iaéias de P.Clastres - uma que nao se conten-
te em apontar seu caráter rarantico, apressado e vago. Cabe notar que., até sua
norte prematura, P. Clastres vinha m:::xlif.icando substancialrrente alguns pontos
(cx:npare-se a "Filosofia da Olefia In::lige.na" a:m a "Arqueología da Violencia"),
afastando-se de urn estruturalisrro sinplificado, e procurarm sofisticar urna
9=Stalt durkhei..miana que, na verdad.e, nunca conseguiu abanCbnar. Para urna crí-
tica etnológica pertjnente das oonclus0es de Clastres quanto a equaqao Pcx:ler -
-Natureza (exterioridade ao socius), ver Kaplan, 1982. Para urna crítica filoso
fica, que indica o evolucionis:rro que subjaz a própria rea9aoºanti-evolucionis-
ta de Clastres, e de sua tendencia a hipostasiar Sociedade Primitiva e Estado,
ver Deleuze & Guattari, 1980:441-44 6. Cf, ainda Giannotti, 1983 : 155- 160 .

105
araweté : os deuses canibais

2. OS TUPI-GUARAN!: GENERALIDADES E PROBLEMAS

A primeira coisa a chamar a aten9ao de quem quer que exami-

ne a bibliografía referehte aos povos de língua Tupi-Guaraní -


e
a associa9ao entre urna diferencia9ao mínima ao nivel lingüístico,

urna dispersao máxima em termos geográficos, e urna nao menos eleva

da heterogeneidade no que tange a morfología social. Se a liga9ao

entre os dois primeiros fenomenos deve ser atribuida a um jogo de

fatores histórico-culturais, a saber: o c o mplexo 11


migratório 11
TG,

sornado aos deslocamentos e remanejamentos populacionais produzi -

dos pela invasao européia (a proximidade lingüística indicando

ainda urna separa9ao relativamente recente), a rela9ao entre os

dois Últimos parece poder, numa primeira aproxima9ao, se articu

lar causalmente. Ou sej-a: a variabilidade das formas organizacio-

nais TG dever-se-ia a adapta~oes dif~renciais a meio-ambientes es

pecíficos, e a influéncias culturais diversas.

De fato, dentre todos estes pavos que falarn línguas tao

próximas, encontrarnos desde pequenos bandos de ca9adores nomades

- Guajá, Siriono, Xetá, Aché -até as gigantescas aldeias Tupinam-

bá históricas ·, com urna economía sof is tí cada e· tecnologícamente· a-

van9ada; desde sistemas sociais quase-amorfos, onde entre a . fami-

lia conjuga! e o grupo-bando nao se interpoe .n~nhurna estrutura in

termediária, até morfologías segmentares, de tipo dualista (Tapi-

rapé, Parintintin } ou clanico (Suruí, Wayapi da Guiana}. As for -

mas de residencia, as morfologias aldeas, as terminologías de pa-

rente seo,· as estruturas cerimoniais; a · a·ti tude f ace a guerra, a

importancia do xamanismo - tudo isso parece igualmente conhecer

urna grande varia9ao. Urna situa9ao em tudo semelhante a dos taro -

bim dispersos e '' met am6rf i cos'' Caribe (q.v. Basso, 1977:19, que

106
pontos e linhas

indica o caráter de "fuzzy set" de urna classifica9ao dos tra9os

definidores dos Caribe).

Via de regra, as tentativas de se dar conta de tal situa9ao


~

procuram partir . de urna origérn histórico-ideal: .a sociedade Tupi

nambá. Sabe-se corno é um tema obsessivo entre os tupinólogos a

especula9ao quanto ao destino da enorme popula9ao Tupinarnbá que se

"internou no sertao" desde os primeiros decenios do século XVI¡já

Baldus e Wagley buscavarn nos Tapirapé os Tupinambá perdidos. Do

lado dos Guarani, o problema é o · de saber . qua! a rela9ao entre as

"parcialidades" atu~is e os indios das rniss5es jesuiticas, e/ou

aqueles que nunca forarn reduzidos e aldeados. A situa9ao anomala

dos. grupos ·nornades par~ce ser f.acilmente explicada por um pro~es­

so regress·ivo, .de confinarnento ,geográfico, pressao de grupos rnais

poderosos, tran·sumancia forc;:ada. Já a _varia9ao entre os grupos

agricultores costurna ·ser enfrentada pela estratégia de se os con-

siderar como restos disper~os de urn mosaico que, recornposto - des

cartando-se as agrega9óes espúrias, de influencia histórica alóge

na, e as per9as .culturais -,restituiría a irnagem verdadeira da

sociedade Tupinambá, que funciona assim como modelo, ponto de PªE


tida e de chegada.

·rsto se explica, em parte) . pelo fato brrito da anterioridade

histórica dos Tupinarnbá., em -termos de registro¡ ern parte, · pelo u-

so desta lingua corno "q,uase-proto-lingua", urna especie de sanscri

to+latim para os tupinólogos; ero . parte, pela constata9io que os

Tupirtarnbá, a - época de sua descri9ao (no Rio, S.Paulo e Bahia

nao no Maranhao, quase um século depois), erarn urn conjunto de so-

ciedades "pura-s ", i.e., nada.. ali podia sér objeto de susp~ita quan

to a efeito direto ou irtdireto da presen9a européia (ernbora isto


'
se.ja altamente problemático, é urna asser9ao "subliminar" comurn).

107
araweté: os deuses canibais

Mas há que considerar a questao, até certo ponto, ao contrá

rio. As sociedades Tupinambá e Guarani históricas - em pleno pro

cesso de expansao e transf orrna9ao quando da chegada dos europeus-

- parecern ser, na verdade, nao a matriz civilizacional que "de-ge

nerou" as sociedades contemporaneas (o degeneracionismo seria, as

sim, persistente - cf. Stocking, 1968), mas um desenvolvimento al

tamente especializado e hiperbólico de urna matri z cultural mais

flexivel e gen~rica~ Tratar-se-ia ~enos, portante, de reconsti-

tuir vias de degrada9ao histórica que de inserir todos os dados ,

contemporaneos e antigos, em urna série neutra, ou sem centro, on-

de, se os fatos Tupinarnbá esclarecem fatos Tapirapé, ou Kaapor ,

etc., estes por sua vez ilurninam os primeiros - nao para preencher

as lacunas do afresco quinhentista, mas para que se atinja um ni-

vel de abstra9ao que de conta de todas as diferen9as sem p rivil e -

giar origens .

Isto ainda está para ser feíto. O que seria preciso, primei

ramente, observar,· é o próprio fato da variabilidade morfo-socio-

lógica TG. Mais que urn atestado da independencia mútua entre "lín

gua" e "cultura" (pois nao é este, ou simplesmente, o caso), tal

fato indica a capacidade eminentemente plástica da matriz Tupi-

-Guaraní , nes se plano. A estrutura social TG se rnostra capaz de

realiza9oes superficiais muito diversas , em termos de organiza~ao

social concreta; ela resiste a situa9oes demográficas e ecológi -

cas radicalmente diferentes, é capaz d~ 11


absorver" tra9os morfoló
g icos prevalecentes nas regioes em .que se efetua, e de transferir

fun9oes básicas de urna institui9ao ~ara outra . Isso significa ,

creio que se possa dize-lo, urna baixa especializa9ao da estrutura

social, capaz de reproduzir tanto na periferia da cidade de S.

Paulo (Guarani) quanto no Oiapoque.

108
pOntos e linhas

Significaria, por outro lado, que seu plano ou locus privi-

legiado de in.tegrac;:ao, prescindindo de condi9oes morfológicas de


e·f .e tuarao
T
estáveis ou limitadas,
~
· si tua-se alhures que na "morfolo
-

gia". E aqui há que considerarmos um nivel· de persistencia TG: a


língua. A homogeneidade lingüística TG carrega consigo urna memó -
ria cultural .comum - no plano da mitología, .da cosmologia e do
vocabulário institucional - capaz de ter resistido a cinco sicu -
los .de mudanc;:as. Dessa forma, aquilo que· parece comum a todos os
TG i, apenas, a lingua ~ e o que pode ser armazenado nesse rneio :
urna "cosmologia". Ao, contrário, por exernplo, de outros conjuntos
etnográficos sul-ame.r icanos, onde a urna unidade lingüísti.ca (ou
suas. diferen9as especificas) corresponde a urna mesma estrutura rror
fológica (idem) - caso dos Je -,ou daqueles ern que urna cornunidade
geográfica constitui urna cultura única sob linguas diversas - ca~

so do Alto Xingu, do Ria Negro ~,o que há de comurn entre os TG


seria um discurso, um eidos que se efetua no plano discursivo.
Mas esta e- urna maneira muito simplista de ver a questao
- 14 .

(14) Nao obstante, foi esse fato errpírico da proximidade lingüística que me
fez optar ¡::x:::>r reduzir, ccmparativarrerite, a situa9ao dos Araweté ao horizonte
Tupi-Guarani, deixarrlo de la&;> os allás escassos materiais sobre fOVOS do tron
oo Tupi de outras familias lingüísticas. Essa é U11E opc;ao um tanto ad hóc, ~
. .
rora ne parec;:a maisproveitosa que o ataque cx:::rnparativo tradicional, onde ao
lado dos. TG se alinham dados MUndurucu, Mallé, Jururia, etc. Vererros, no entantQ
que alguns rrateriais 'nacr'IG sao bastante iluminadores para a cosrrologia Arc:rwe-
té, notadarrente os Shipaya, descritos brevanente por Nirnuendaju (1981) . Se
isso deve ser ¡::x:::>sto na conta da proximidade geográfica do grupo Shipaya-Juruna
can os Araweté, nao sei. o fato é que as tentativas de generalizac;:ao que busca
vam incorp:::>rar urna problemática. pan-Tupi senpre tenninavam ccm urna li_s ta de
exce<;Oes assistemáticas rnaior que a de a:mstantes. o problema, aliás, nao é o
de cbnstantes, mas o de d:i.ferenc;:as sisternatizáveis.

Em primeiro lug·ar, porque o que é comunicado por esse vocabulário

109
araweté: os deuses canibais

cosmológico-institucional "comum" varia significativamente de gru

po a grupo, nao só nos deslizamentos semanticos de conceitos-cha-

ve, nao só nas inflexoes especificas que sua articula9io a condi-

9oes sociológicas diversas acarreta, mas porque · "a cosmologia"T~

pi-Guaraní nao é urn somatório de constantes ~ urna cultura no sen-

tido folclórico do termo - e sim um sistema abstrato de diferen9as

signific~tivas, que cabe construir, e nio deixar que se sedimente

em um lugar comurn. Em segundo lugar, porque a plasticidade da es-

trutura social TG supoe, evidentemente, que tal. estrutura possa

ser elaborada, i.e. que ela "exista" - .e que portanto nao é possí

vel descartarme-nos da questao da variabilidade empírica apelando

para urna unidade cosmológico-discursiva que, como já indiquei, -


e

urna unidade de diferen9as., relacional.

Por fim, e princ;i.palmente,· porque o caso Tupi-Guaraní é um

exemplo privilegiado da irnpossibilidade (ou precariedade) de se

distinguir a maneira empirista e sociologista entre "cosmologia"e


11
organiza9io social"; distin9io talvez inevitável e cSrnoda corno

ponto de partida, ela deve no entanto ser rapidamente abandonada,

para urn tipo de sociedade onde os principios de. organiza9ao so-

cial sao ªº mesmo tempo, ou antes, principios metafísicos, onde

toda tentativa de redu9·a o sociológica nos traz de volta a cosrnolo

gia; ou rnelhor: onde nao há como privilegiar a codifica9ao socio-

lógica em detrimento do discurso sobre as divindades e as almas ,

sob pena de nao encontrarmos nada, ou quase nada - ou outra coi -

sa: os deuses, os mortos, o discurso.

Nao se trata apenas de urna questao de método - urna de que

Lévi-Strauss foi o mes-tre mais claro: que urna estrutura social

nao é a resultante empírica, mas a causa formal, do agen ciamento

prático-simbólico de um determinado grupo humano; que, além disso ,

110
pontos e linhas

ela i abstrata¡ e que opera com e sobre materiais serninticos mfil-


tiplos - mas de wna questao etnológica. Nao é de hoje que os ame-

. .
ricanistas se veem a bra9os com a impropriedade de aplica9ao dos
modelos ditos "clássicos" de .análise antropológica, que poe wna
ordem determinante ou fundamental - parentesco, ecología - capaz

de reduzir o discurso ~imbólico a condi9ao de ref lexo direto ou


invertido desta (M~nget & Albert, s/d.; Kaplan, 1976, l98la, b ,
1984; Cracker, 1979; Seeger, 1981 - ver Seeger, Da Matta & Vivei
ros de Castro, 1979). A problemática juralista "africana" vem sen
do contraposta urna problemática da identidade social, da análise

cosmológica das conceitualiza9oes dos diversos dominios do univer


so e suas interrela9oes, e da descri9ao das unidades sociais como
agregados de categorías simbolicamente determinadas.
-
E nquanto ta 1 , contud o, essa rea9ao ant i -socio . t a 15
. 1 ogis nao

(15) Que ¡:or vezes parece desemOOcar ern um neo-culturalisro. temperado pela ana
lise estrutural, e do qual parece difícil escapar.:.se, guan00 - CXJtO é meu caso
aqui - se trata de discutir urna configur~o sócio-cultural particular, tal
os Tupi-Guarani. Mas nao creio que a soluqao adequada a etzx:>logia sul-arrerica-
na seja a ¡:ostul.a~ a priori de urna causa~o "oosrrológica" da orden social
que redunda em manter, invertendo-a, a distin~ ontológica entre discurso e
prática, ideología e "organiza~" - mas siro a dissolucrao definitiva dessa di-
cotania, e sua neutra.liza~ao em um conjunto de principios que infonnam os di-
versos p}.arx)s analitic.anente distinguíveis da realidade social. Cabe notar a.:l!!
dá que o estruturalisno lév.i-straussiano nao é um método de desc:.ri9ao de sacie
dad.es particulares, eIXil2Ilto totalidades irredutíveis - ou redutíveis a conjrm
tos enpíricos mais ~tos, mas enpírioos. A carparacraodiferencial de I..évi-
.- Strauss nostrou-se roa.is produtiva exatanente quando abandonou as totalidades'
sociais e passou a subsistemas (mitologia);e el.a termina ¡:or dissolver as so-
ciedades carpa.radas, tananao-as ¡:or ncuentos acidentais de efetuac;:ao 9e estru··
turas ao mesrco terrp::> roa.is gerais e nenes totais:
"Já é tenp::> da etnología se libertar da ilusao fabricada pelos
funcionalistas, que tanam os limites prátioos em que sao encerra
dos pelo genero de ·e studos que preconizam, ¡:or propriedades abso

111
araweté: os deuses canibais

lutas dos objetos aos ·q uais eles os aplieam. Só p:>rque um etnólo


go se acantona p:>r um ou dois anos em urna pequena unidade sociai
bando ou aldeia, e se esfor9a para apreerrle-la totalidade ,
cca10

isto nao é razao suficiente para se crer que, em outros niveis


que ¡:quele onde a necessidade e a oportunidade o· colocaram, esta
unidade nao se dissolva, em graus diversos, dentro de conj\.D'ltos
que pennanecem, a maior parte do temp:::>, sequer entrevistos" (I.é-
vi-Strauss, 1971: 545, numa traduyao algo desajeitada minha).
O que, se é verdad.e - e é p:>r isso que a articula9ao de questOOs Arawieté
corn suas transfonna<;Oes TG é rna.is que urn rrero recurso para preencher as la~ -
nas reais de rninha etnQgrafia, e que o a::mtraste can os rrodelos Je pressupé)e
urna relayao lógica entre 'IG-Jé - nao inped.e , ¡:::or suposto, que se procure carac
terizar urna problemática local, rresrro que provisória, seja a urn nivel particu-
lar (Arawieté), seja médio-geral (TG).

é suficiente para que singularizemos, na medida do possível, as


questoes postas pela etnología Tupi-Guaraní. Nao se trata apenas
de atestar ou proceder a subordina9ao lógica - por escolha teóri-
ca ou face ~ natureza ''ideali sta '' das sociedades sul-americanas -

da organiza9aó social ~s metafísicas nativas (procedendo ao que


Cracker chamaria de ·"dialética comparada'', ou Overing de ''e strutu
ras elernentares de· reciprocidade"), que parecem, de fato, coman -
dar as organiza9oes concretas a partir de urna simbólica do idénti

co e do diferente, do Mesmo e do Outro, do parente e do afim, . aa


humanidade e do extra- humano (mas voltaremos a isso ) . A questao
é a de se atentar para a baixa espe~~aliza9ao do plano sociológi-
co da estrutura TG, que se articula a urna superabundancia ou den-
sidade da cosmología enqua nto discurso; fluidez e variabilidade '
da organiza9ao social, insisté~cia conceitual .
Por su~
-
vez, as cosmo logías (em sentido estrito) TG nao so
nao replicam homo logicamente as armaduras sociológicas onde vice -
Jam - como é o caso Je - como nao possuem , na maioria dos casos ,

urna alta integra9ao simbólico-taxonomica, ao modo Tukano (ver See

112
pontos e linhas

ger, 1981: 21~22 para o problema da coerendia e integra9ao~ c.


Hugh-Jones, 1979, para a complexa arquitetura da cosrnologia Bara-

sana ) . Ao contrário; os TG da~Arnazonia sao freqüentemente descri-

tos como possuindo urna visao do mundo sobrenatural "nao rnuito bem

organizada" (Wagl·ey, 1977:174-ss'.), ou "nao tendo um alto grau de

elabora9ao" (Holrnberg, 1969:238); naquelas cosmologias mais desen

volvidas, corno as Araweté, Asurini , Wayapi, a irnpressao que fi ca,

da prolifera9ao heteróclita da popula9ao sobrenatural, nao deixa

de evocar a ''heterotopia'' botgiana que inspirou Foucault (1966)

em sua obstinada irredutibilidade a critérios homogeneos. Se nos

voltamos para os Guaraní, por outro lado, o que vemos é, seja urna

elaborada teología esotérica (Mbyá - Cadogan, 1959), seja, em to-

dos os casos, a elevada importancia das teologías individuais dos

xamas-chefes religiosos, que interpretam idiossincraticamente um

conjunto de dogmas básicos (Schaden, 1962). ~ dificil detectarmos

a primeira vista 'a lgum "princ i pio geral" das cosmologías e sacie-

dades Tupi- Guaraní, que correspondesse ao dualismo J e ou a hierar

qu~a clinico-funcional Tuk~no.

Se, no enta~to , procurarmos que tema insiste nas descri96es

sobre os Tupi-Guaraní, iremos esbarrar em urna palavra, que foi u-

sada para caracteri zar· diferentes aspectos das sociedades TG: "am

bi valencia". Já se dis-se que a a ti tude dos Guaraní f-ace a marte

era ambivalente {Schaden , 1962: 133); que o papel do xama era ob-

jeto de urna avalia9ao ambivalente (Wagley, 1976; Baldus, 1970 :


16
401) ; que o prisioneiro de guerra Tupinambá encarnava urna ambi-

(16 ) Baldus, ap::>iando-se em .M2traux, ge.11eraliza, afirmancb que a ambivalencia'


do xama Tapirapé exprilre o caráter do xamanism::> su.larcerica.I'X) (loc.cit. ) . Una.

generaliza~o problemática, nesm:> dentro dos TG. Assim, os Guarani distinguem'


clararrente o rezador (pai) do feiticeil:o. A capacidade de fazer mal, do xama ,

113
araweté: os deuses canibais

pode ser inteirarrente canalizada para fora do grupo, caro oos Yancrrarni, onde
ele é um duplo do guerreiro; 00 Alto Xin94 nao há oonexao necessária entre xa ·
roa e feiticeiro; oos Bororo, o "ambivalente" ba.ri tem una oontrapartida 00

Mo-ambivalénte aroe ettaware . O caso Tapirapé é úrúco, oo fato de que é "o


mesrco" xarna ·que é um life-giver e um life-_taker ,. fecundante e nortal, protetor
e inl.migo; ele é um ~l:::ope, para usanros a tenni.nologia filosófica Bororo.

valencia e urna 9ontradi9ao (Huxley, 1963:287); que o mundo natu-

ral e sobrenatural ofereciam um caráter ambivalente do ponto de


vista da Sociedade (Kracke, 1983: 34-5); que o lugar da chefia ou
da autoridade era essencialmente ambiguo (Kracke, 1978:71), por
fim, e sobretudo, que a ambivalencia é constitutiva do humano, ou

do estado cult.ural (H .Clastres, 1978:93-97).


Seria· tentador associar esse .emprego freqüente da no9ao de
ambivalencia para caracte~izar os TG com o papel central do cani
balismo em suas cosmologias. Um antropólogo de orienta9ao psican~

lítica certamente o faria, pois sabemos como ambivalencia, orali-


dade e as pulsoes sádico-canibais formam uro complexo conceitual '
na psicanálise (Green, 1972; Fédida, 1972) 17 ; talvez se o pudesse

(17) Verat0s ao final desta tese caro os psicanallstas que tratam do canibalis
rro real ("etnográfico"} procuram reduzi".""lo ao Irnaginário, edipianizancb-o oon-
fonre a problemática da ióentifica~~ narcísica - quariio o caso TG parece ao
' . ' '
oontrário exigir que se tare o lado da Esfinge (oo cani.bal) I nao o de r.dipo.

ainda ligar a ambivalencia constitutiva do sistema sacri'ficial


'
aquilo que Hubert & Mauss (1968:274) chamavam de "complexidade fun
damental do sacrificio, sobre a qual é preciso insistir", na medi
da em que o impulso TG nao é o da correspondencia totémica de se -
ries, mas o de transforma9ao imediata de uma série (humanos) em
outra (deuses), e em que o curto-circuito canibal/ sacrif°icial co-
loca problemas de devir, irredutíveis a urna problemática da repr~

114
pontos e linhas

senta9ao (como Hubert & Mauss j~- entreviam: p. 232).

Sei q u e aqui se anda ern s o l o escorregadio, e que ambi valén-

cia {no c o nte xto do sacrificio, ad~mais, isto no s leva a clássica


11
ambigüidade do Sagrado primitivo") ·.é urna palavra que cria roa.i s

· problemas que resolve. Nio. obstante, c~eio na possibilidade de· ex

trapolarmos, com as devidas transforma9oes, a intuic;ao . de H.Clas-

tres sobre a cosmolog-ia Guarani - que ecoam nas "ambi valéncias" e

vacadas acima - afirmando que a a.mbivaléncia é nada menos que a

qualid~de distintiva . da- Sociedaqe, na concep9ao TG·. A Cultura ou

Sociedade sao pensad~s co~o urn momento intercalar entre Natureza

e Sobrenatureza. A ''i~cusa ativa" da S6ciedade, que esta aut6ra

via no profetismo Gua~ani~ se encentra de f orma microscópic a em

outras cosmo l o gías TG; Éstamos ·aqui longe da dialética Na t ure za/

Cultura que subjaz as cosmologías Je: a ambigüidade e ambiva l en -

cia nao rnarcam a fron~eira entre .e$SeS dois · dominios, e OS preces

sos de intercomunica9ao necessária entre eles, · mas sao sirn una pro

priedade intr¡nseca da Sociedade. A Sociedade ela mesma é urna mar

gem ou fro nteira, um espa90 precário entre Natureza (animalidade )

e Sobrenatureza (divindade). ~ por esta mesma razao, sugiro, que

a morfología social e o ''código sociol5gico'' sao plásticos e

fluidos, entre o s Tupi-Guarani.

Considero assim que as séries cosmológica e sociológi ca TG

se desdobram em urna figura triádica: urna série ani ma·1 , urna série

humana, urna série divina~ t essa sobredeterminac;ao da série c o smo


lógica - que se realizará de modos diversos em cada sociedade TG

- que poderia s ugerir urna r e spo sta ao que e u chamava anteri or~en-

te de exc esso ou suplementariedade da cosmo l o gía (stricto sensu )

sobre a socio.l ogia. Esta n ao é, a l iás, urna q ues tao exclusiva mente

Tupi-Guaraní. Outros autor e s e outros povos c o l o cam o mesmo pro -

115
araweté : os deuses canibais

-
blerna, que e antes causado por uma leitura demasiado literal do

uso do par Natureza/ Cultura em Lévi-Strauss (e pelo estatuto i n-

certo do dominio da Sobrenatureza nas Mythologiques) - ver J.P.

Dumont, 1976; Viveiros de Castro, 1978; Seeger, 1981:35. Nao -,


e
tampo.u co, urna questao americana': alguns helenistas, inspirados em

Lévi~Strauss, v~m indicando rumos ~emelhantes (Detienne, 1972a,b;

1977; Detienne & Vernant, 1979). Esse fato do "triadismo" - e,


nao -
en si s ignificativo - o que.;singulariza as cosmologías TG é a mane ira
1
como ele é vi vi do: o foco ·nao é o termo central , a Sociedade,
mas os dois outros - o animal e o deus 18 . A Sociedade é ·urn espa90

(18) Una palavra sobre as ~ de ••Natureza" e "Cultura/SOCiedade". Kaplan


(1982) faz urna crítica do uso destas nocr0es, afiÍmando que elas obscurecan o
universo transfonnacional
. .
e a "ImJ.ltiplicidade ontológica" da cosrrologia Piaroa
- ·urna cosrologia que, a:xro as TG, estabelece tres dorní.nios, ani.nal-human::>-divi
oo -;a· autora (OVering, 1984) realiza ainda urna.' leitura do material Pía.roa
que critica r..évi-Strauss .em seu "toternicism::>" ou "rretaforisrro", .ª partir da
linha da filosofía analítica (o problema da crerxra, da perfonna9ao, do solip -
sisrro, etc.).~ minha parte, concordando cxm ela quanto as limi~s da a-
bordagem "totemica" (Natureza/Cultura, a:mexao netafórica das séries) na expli
cac;ao de certo tipo de . cosrcologia, nao penso que 'isto a invalide absolutanente;
e en lugar da critica "oxfordiana", prefiro colocar caro suplenento a problerná
tica de r..évi-Strauss isto que chamarei de devir, prcx::esso que está aquém da
dist.i.n9ao representa9ao/ realidade (G.lattari; 1981:170), e que nao deve nada
aos impasses imaginários da: "tr~o", problanática típica da antrq:ologia
. .
britanica desde Evans-Pritchard e sua leitura de I.évy-Brühl. Saio ainda da
quest:áo de OVering quanto a· dificuldade de se darconta da cosrrologia Piaroa
(TG) can o par Natureza/SOci,edade, ac:t;"escentando esse t~ceiro rótulo, "Sobre-
natureza", que designa um élominio do extra-Social diverso da Natureza, em rela
9ao variável e a:xrplexa Can ésta ·e · can a Sociedad.e, confonre cada a:)srrologia.
0 te.rno é desajeitado, mas se O. usa. No capa dos Araweté, e nao SÓ ·lá, ele fOS
sui uma ace~o legitima, a de um dc:minio cosrrográfim - os .rrundos celestes
que corresponde a rx::x;ao neo-platOnica de"hyper-ouranios"ou"hyper-cosmios", que
a teología rcedieval traduzia por "sobre-naturál" (supra naturarn) - cf. Perra -
ter 1-bra, 1982, art. "Sobrenatural". Estou consciente da flutuac;ao que os ·a:>n

116

pontos e linhas

ceitos de Natureza e cultura sofrem ao longo da obra de Lévi-Strauss - ora de-


signando danínios ontológic:x>s da~ c:x>srrologia, ora categoriq.s instrurrentais'
relativarrent.e vazias de sentioo (<Xlll um "valor sobretuOO rretodológic:x>"), ora
cripto-cat.egoriás nativas, do discw¡so das sociedades-objeto. t: neste últi.m::>
sentioo que os Jé-ólogos os utilizam (p.ex. Seeger, 1981:22-4), e é neste que
os inc.orporo a análise dos TG, sublinhando entretanto sua insufJciéncia, que
é justarrente o que os torna úteis.
Estando fora de questao um' exaire da origen dos c:x>nceitos de Natureza e 011
tura no Ocidente, lembro apenas que a tríade Tupi-Q.larani, que .evoca superfi ·-
cial.nente urna visao crista (suf:i,cient.e para oonfundir os Guaraniólogos) , . nern
senpre vigorou no pensarrento europeu. Assim, algurnas étx>CaS privilegiavam dis-
~ dualistas, a:no htnnanitas/ferit.as (ba.rbaritas) - no estoicisrro tardío,

rarano - ou htnnanitas/ divinitas - na esc:x>lástica nedieval. Outras, ~r fim,a:m


ce~am urna situac;ao triádica, a1de o Harem e a Sociedade estao entre divini-
tas e feritas, o deus e a besta - assim a Grécia c.lássica, assim o humanisrro '
renascentista (Panofsky, 1970:24; ~tienne, 1972a) ·. No Iluminisno volt.anos ao
dualisno, de Ibusseau a I.évi-Strauss: N/C .

de dispersao.
Veremos que a filosofía Araweté, como exemplo privilegiado
dentro do horizonte Tupi-Guaraní, opera de modo complexo com tal
matriz triádica, e que se . apóia em um número restrito de cate90 -

rias e problemas: animalidade, humanidade, divindade; deus, inimi


go, morto, afim; ciu e terra; comer/falar (a ''oralidade canibal'');
xama- e guerre·i ro. Com estes rnateriais, e seu agenciamento,pode-se

tentar entender a f:orma social e cosmológica TG.

3. NOTA BREVE SOBRE A CATEGORIA DE PESSOA

-
Schaden dizia que a concep9ao Guaran í qa ~lma humana era a
"chave do sistema religioso", e que este, por sua vez, comandava
a vida social - o que ecoa as conclusoes de Florestan Fernandes

117
araweté: os deuses canibais

sobre a predorninahcia da religiao (= rela9ao com a rnorte) no sis-

terna social-guerreiro Tupinarnbá. A alma e a marte, ou a teoria

da Pessoa que a elas subjaz, parecem de fato se constituir em pon

to de apoio privilegiado para a abordagern das sociedades TG - na

medida ern que ali se interceptarn os diferentes dominios cosmológi

cos, e que ali se acha encapsulado o jogo do Mesmo e do Outro fun

dador da filosofía social TG. ~ neste plano da etno~antropolo9ia'

e da escatología que a nebulosa cosmológica Tupi-Guaraní se con -

densa e se organiüa, mostrando linhas de tensao recorrentes.

Os Araweté, corno explícita ou implícitamente todos os de-

mais TG, postularn urna cornposi9ao dual da pessoa humana, que só se

manifesta plenamente após a morte. Tal dualismo oculta porém wn

triadisrno mais fundamental. Conforme se verá, rninha interpreta9ao

da Pessoa Araweté a torna corno ponto aleatório ou elemento parado-

xal ("ambivalente") que conecta-separa, circula corno casa vazia

entre dominios e formas do extra-Social.

Neste sentido é que me parecerá possivel dizer que a Pes-

soa Araweté (/TG) nao· propriarnente "existe": .. enguanto· devir, ela

nao é; "enquanto rela9ao móvel entre termos, ela é urn "entre" (urn

entre-dais}, nao urn ente. Masé apenas neste sentido particular,

e só a partir dele, que consigo entender as cautelas manifestadas

por M. Carneiro da Cunha ( 1979: 31) quanto a e·xistencia a priori de

urna categoría de Pessoa enquanto "etno-f.i losoferna" de qualquer so

ciedade:

- se ¡:x::x:1e pensar san seu acervo


"Se, por certo, urna sociedade nao
de papéis, de personae, se e}a disp0e tambérn de um ideário sobre
o que constitui a individualidade de um baten, nao é claro que
el.a tenha necessariarrente urna categoría ou sinplesm=nte urna rx:>-
crao de pessoa...
Identificando o que chama de "principio pessoal" a urn ''pr_in

118
pontos e linhas

cipio de autonomia" (lóc.cit.), diz a autora que tal prin~ipio de

ve ser procurado, e nao postulado - alerta-nos, assim, contra po-

si9oes que outros subscreveram (Seeger, Da Matta & Viveiros de


~

Castro, 1979). Há nisso alguma justi9a. Mas me parece haver tam- ·

bém algwn mal-entendido da li9ao maussiana, de que ela, aí, se re

clama. Se a empresa de realizar a "história social das categorias

do espirito humano" (Mauss, 1950:333} implica, obviamente·, urna v~

ria9ao histórica das formas e conteúdos tomados por estas catego-

rias - e ainda que, conforme a inspira9ao evolucionista qu~ -


nao

deixava _,d e acompanhar os "inventário s de categorias" · da Es cola

Sociológica Francesa, só lentamente a no9ao de P~ssoa veio a se

consolidar como fato metaf·ísico-moral e a se confundir com a inte

rioridade do "Eu" (Moi) - resta contudo que, da máscara clanica a


Razao Pura (op.cit. : 361-2), trata-se da história de urna mesma ar

qui-categoria,
.
a de Pessoa.
.
A questao
. de urn principio de "autono-

mia'' naQ se cóloca corno determinante de tal categoria, seria an-

tes urn momento ou movimento de sua história (talvez necessário ,


no entender de Mauss, e Meyerson) 19 •

(19) Ver o ensaio recente de cardoso de Oliveira (1981) sabre a fonna~ e o


desenvolvimento da problemática das ".c ategorias do ·e ntendimento" na Esa:>la So-
cíológica Francesa e na história da Ant.rq:x>logia.

Nao vejo assim como nao se possa deduzir, seja do "acervo

de papé·is" (QU rnelhor I de SeU agenciamentO) I Seja dO 11


ideáriO SO-

bre o que constitui a individualidade de um homem" (ou rnelhor, da

lógica subjacente a esse ideário), urna categoría da PessQa, para

qualquer sociedade. o que nao significa que ela se reduza a, ou

se localize em, os papéis sociais ou a ,.ideología nativa".

Modificando ·e precisando urna interpreta9ao anterior (Carnei

119
araweté : os deuses canibais

ro da Cunha, 1978; e~. - ainda Vivelros de Castro, 1980:255), a au-

tora irá aqui (1979) distinguir certeiramente a Pessoa Krah6 tan~

to da "identidade biológica" quanto da "identidade social" (o cé-

lebre dualismo Jé individuo/personagem - Melatti, 1976), pergun -

tando-se se ela nio estaria ''entre esses deis pólos'' (p.37). Más

termina que esse ºentre" nao é da mesma natureza "que a intercala-

ridade vazia e tensa da ressoa Tupi-Guaraní; pois parece que -


nao

há como pensar a Pessoa Jé senao · nos termos de urna problemática . '

da Identidade.

Assim, o instituto da amizade formal, construtor da Pessoa,

abriria ao individuo um


"carrpo pessoal, nao sen dúvida a:m::> agente
dotado de razao, von
tade e li.berdade ••. mas caro ser de certa maneira único ... a::r
m::> um sujeito" (1979·: 38) .

Ora., é precisamente a no<;ao de Identidade · que surge cono des


~

construida e corroida, na minha interpreta<;ao da Pessoa Tupi-Gua-

raní. Nao apenas porqué ela nao pode ser tomáda como suporte ou

resultante de identidades sociais, · ou porque ela ' nao está intacta

e inteira na individualidade (etno-)biológica. Mas porque a anti-

-dialética da Pessoa TG a poe, de modo nao-trivial, como ~~sencial

mente nao-idéntica a si mesma, como Outra. Esse é um processo que

batizo de "identidade ao contririo'' (incorporando a acep~ao


- qui -

nhen.tista de "contr:ário" = inirni90.) nao o jogo de imagens que

subjuga a dif.eren9a a identidade, ·mas urn devir-Outro. A . frase de

Rimbaud - "JE est un autre" - que para tanto já serviu, se pode

ser evocada pelos Je-ólogos como div~sa da Pessoa Jé-Bororo (Cro-

bker, 1977a:l79), nao funciona entretanto para o caso Tupi-Guara~

ni, onde a ques_tao nao é de Ser, mas de Devir. ~ is to, o caniba -

li.smo. A crítica da . no9ao de Identidade j á come9ou a .:ser empreen-

120
pontos e linhas

dida, e há tempos, em diferentes campos e registros. Minha · leitu


. 20
ra dos fatos TG sentiu a necessidade de seguir esta pista

(20) Ver L'Identité (Lévi-Strauss, org!, 1977), livro que traz os resultados
do coléx:Iuio ínter-disciplinar scbre a ~ao-título. Ve-se lá que tal crítica
nao deixa de in::¡uietar o pai do estruturalisrro, na medida ern que ela "identifi
ca" a qlera9ao deste mesno principio fundamental caro subjacente a lógica das
' . .
oposic;:()es discretas e ao jogo da dupla nega9ao, tanto na I.ógica dialética corro
na lógica estrutural(ista). Todo o problema. consiste em saber se os axianas
e leis da lÓgica "clássica" - aristotélica, booleana, ou outras - esgotam a in
.
teligibilidade de, e nodelizarn fielmente, as opera~s simbólicas dos "pensa
mr:mtos selvagens". Aos que duvidarn disto é sempre fácil arreac;ar can um retor
no as trevas do lévy-bruhlisrroe do "pré-lógico". Mas as ooisas certarrente
sao rnais a::mplicadas, e nao apenas ~ desenvolví.mento das lógicas
dard" o atesta, caro numerosos desenvolviroentos e reflexOe.s recentes nas
-
''nao-stan
cien
cias naturais e exatas. Para um debate específico dentro da antropologi a, sob
. .
a sanbra totémica de E.'vans-Pritchard, ver Cooper, 197? e Salrron, 1979, por ~
xercplo. Falta-me cntpetencia. para explorar estes problemas; limito-ne a ano
.
tá-los, e
. a esperar que o tratanento
.
indireto e intuitiv~ que. eles receberao
aqui, oo contexto da interpre~ao da lé:gica do canibalisrro TG, p::>ssa servir
de base a reflex0es mais rigorosas. O ·pensamento de l.évi-Strauss no que cxm
cerne as formas lé:gicas encontráveis 005 mi.tos e sistemas de classifica9ao é
cauteloso
. e lac0nico {para
. al~ do., contexto imediato de sua crítica ao afeti
visrro e ao "pré-logisrro"); além de intrcx:luzir, n~ cane90 de sua obra, indica
90es crípticas mas essenciais
. .
sobre a inpossibilidade de "sirnbolicidade" total
de urna cultura - a idéia de um quanturn fixo ou residuo inevitável de irraciona
' '

lidade em todo s~sterna lógico-si.rnbÓ~ico (1950: xix-xx: l l95Sj 1973:27), e de


e.'1Cerrar as MitolÓgicas can urna observa9ao sobre as dificuldades intríns.e cas a
tcrla formaliza9ao lé:gico-matemática dos mitos, cujas rela90es constitutivas e
transfo:rmacionais .extravasarn o "vocabulário limitado da c:ontrariedade, da c:on
tradi9ao e de seus inversos" {1971:568), certas intui<;Oes para- formais que in
sistem em sua obra parecem sugerir o~racr()es lóg1cas inusitadas: este é o caso
da farnigerada "fórmula canónica" de 1955(1958:252-3) ,objeto dé seticiSJ'TO ironi
co·(Sperber,1984:90.1),mas jarnais abandonada (ver Lév:i-Strauss, 1984:145; 1985:
passirn; cf. ainda Hage & Harary, 1983:131). Forado campo restrito dos siste
mas de classificacrao e (talvez) do discurso mítico, o problema. da rrodeliza9ao
.. -
{do ~nsanento selvagein) em ternos de urria lógica da identidade, da nao-cxmtra
di9ao e do terceiro excluído ganha dimensües sérias: nao é !JOr acaso que Lévi-

121
araweté: os deuses canibais

-Strauss op0e "totemi.sno" e "sacrif ício" para dedicar toda a sua obra a f enC.rre
nos que. rerretern a prirneira figura, descartando urna análise detalhada da segun
da (e do ritual - cf. o fanoso trecoo sobre o paradoxo, o fracasso e o desespe
ro da inten9ao ritual, L.-Strauss, 1971:596-603), limitando-se a diagnogticar
o "paralogisno" de toda religiao e a falta de "ban senso" do sacrificio (1962b:
302). Reportarrlo-se a figura do sacrificio, a pr~lemática do canibalisrro Tu
pi-Guarani aponta justarrente para urna C'Osrrologia canandada por principios, di
ganos assi.m, "pós-lógioos", irredutiveis aos JnéGW.nisrros identitários que sub
jugam as relac;Oes aos termos e que constroem o ser caro substancia, o devir C'O
no acidente, e o aoontecirnento caro extrínseco ao canpo transcerrlental da es
trutura.
·- substancialista e i
Para um estudo magistral dos limites de urna visao
dentitária do Individuo, feíto a partir da biología mas cujas inplica~s deve
riam ser rreditadas pelos teórioos e analistas da problemática da "pessoa" em
antropologia, ver Gilbert Sim:mdon, 1964.
Quero observar, por fi.m e de passagem, a heterogeneidade radical da te
mática da Pessoa, tal caro aquí desenvolvida, face as ncx;0es de identidade pre
sentes I'X)S estudos de "etnicidade" e "frio;ao interétnica" - todos eles mais
ou rrerx:>s tributários, mai.s ou ireoos C'Onscientes, de uma fenanenologia hegelia
na do Senhor e do Escravo, ou ·de urna espécie de "forx>logisrro cultural" que ter
mina por se revelar um eu1 turaliSITO reduzido a seu esqueletó. O que o valor
"diacrítico" dos t.r:ac;:os "étnicos" revela é a produyao de um conceito de identi
dade em estado puro, despido de qualquer conteÚdo; sua fonna é seu oonteúao, e
enquanto "simulacro",· é mais real que as substancias que faz significar~ Olti
no avatar ou perversao da razao totemica (e que estaría para ela, talvez, caro
o racisrro para a hierarquía, lanbrarrlo aqui wuis Durtont), a "etnic.i dade", ou
o discurso teé>rioo que a prcxluziu caro fe~, é o triunfo derrisório da i
dentidade sobre a difere~a, que pÜe esta a servi~ daquela, para produzi-la
cx:m::> fonna vazia e supérflua. Se ben a cc:npreendo, é este o parecer final de
M.Carneiro da CUnha (1985: 208-9). E é disto que nao se tratá éGUi; trata-se é
de ver cx:xro é possível \.11\ pensarrento i.mune aos poderes da negatividade.

Minha insistencia na categoría de Devir quer sublinhar um

esfor90 de dissocia9ao da Pessoa e do pensamento Tupi-Guaraní do


campo da Identidade e do Ser como identidade-a-si . Dizia assim
Hélene Clastres, da filosofía religiosa Guaraní:

"Urna lógica que recusa o principio da con

122
pon tos e linhas

tradi9ao parece operar nesse pensamento


que, ao mesmo tempo, opoe os extremos e al
meja torná-los compatíveis ou composs1
v.e l. s " ( 19 7 8 : 8 9 ) • · -

Meu argumento, no que se9ue, de certa forma apenas estende essa


intui9·a o. Nem contradi9ao, ne!Jl identidade; opor "extremos" mas a

penas para melho~ dissolvi-lo s comó extremos: urna s6 questao, a


recusa de escolher, de se curvar a finitude, e um desassossego on
. 21
tológico. Urna partida arriscada .

(21) Urna palavra sobre o Devir. Viro utilizando a ncx;ao de série (cosrrológica,
sociolÓgica) nas páginas anteriores. Este oonceito, e a análise hoje canenica
do totemism:::> por I.evi-Strauss , pc:)ero a metorú.mia cerro processo inperante no i~
terior de cada série , e a metáfora ccm::> o processo de artieula9ao das (pelo ~
nos duas) séries (ver Deleuze, 1974a). Acredito, porérn, que ambos estes pr~
cessos sao, em si, insuficientes para dar conta da articula9ao entre "cosrrolo
gia" e "sociedade", e da filosofia da Pessoa, entre os Tupi-<iuarani - mas nao
pelas razOe.s de OJering (cf. supra, nóta 18). Sem deixar de recónhecer -a uti
lidade deste par conceitual, introduzo n:> contexto urna ncx;ao heterogfulea, a de
"Devir", para qualificar os processos de transforma9ao de urna série ero outra e
a metarrorfose da norte Araweté, han ccm::> a transubstanciac;ao caníbal. Can is
to, igualmente, afasto-me de urna adesao literal a equa9ao netonímia=sacrifício,
já alud.ida ro cap. I. can urna liberdade que minha i<J1:10rancia filosófica tal
vez torne men:)S inpertinente, utilizo a zn;:ao de Devir em dois sentidos, que
se recobrem parcialmente. O prime.ira é ve~ráve l e milenar : rerrete a oposi
c;ao Ser/Devir, fundadora da rretafísica ocidental - e o acolho para sugerir que
a parte do Devir é bastante mais pesada na. filosofi·a Tupi-Guarani que o foi na
história do pensairento ocidental desde a batalha platónica contra Heráclito.
Pois, se há culturas que traern urna rostalgia do Ser único e imutável evocadora
de Parmfurides (ccm::> os Fataleka, se bem entendo Guidieri, 1980) , outras se
riam rnais ben heraclíticas - mesrro que também se sujem de sangue para produzir
o devir . ~. · O segundo sentido, fui buscá-lo em Gilles Deleuze (-+Guattari), on
de designa processos pré-representativos, éqlÉm da opera9ao metafórico-metoni
mica que gera identidades pela posi9ao ern estrutura de cposi90es. Nessa ace?E
9ao, o Devir fala de p~ssos que se passam ro Real, antes da distin9ao reali
dade/represen"ta.9ao; e errprego o conc-eito para indicar que o ser da pessoa Ara
v.ieté é um devir-outro: devir-deus, -inimi<JO, -jaguar, onde se o Outro, ~

123
araweté: os deuses canibais

to objeto do Devir, é .imaginário, o devir é real, e a alteridade urna qualidade


do verbo, . nao
um predicado seu (Del~ze & Guattari, 1980:cap.X). Se no pri.rrei
ro sentido "Devir" se pé5e (ou nao) caro anterior e englobante face ao Ser enea
rado OOllO substancia e terno, no segundo ele se op0e ao "ser" caro eópula iden
titária. Nao se trata portante de r:ecair no Imaginário, regredindo a partici
pa9ao mística,mas de dar canta de urn processo que, por "simbÓlico", nao é rre
nos real: o can.i.baliSITO, orrle a predac;:ao substituí a predica9ao, e o devir-ou
tro a identif ica9ao.
Q.iero, por. f im se- adianta alguna coisa -, lembrar que o recurso a fer
ramentas oonceituais da "filosofía da diferencra" nao -foi anteposto caro um a
priori ideológico explicável (exclusivarrente ... ) por preferencias pessoaís ou
confusao mental do autor , mas se inpOs no rreio do percurso caro linguagern que,
acharrlo-se a rnao no repe!:'tório datado e limitado can o qual, necessariarrente
briooleLir, tive de operar, parecía a mais apropriada para urna descri9ao intuí
tiva da fei9ao geral da cosrrologia Tupi-Guarani/Arawet.é . De toda forma., e co
iro já disse em algum lugar um outro antropólogo rústico em f ilosofia, estas
considera:;:0es f iloSÓficas nao sao senao cal90s ou andaiITes improvisados para
ressaltar, tornar visível, um mundo que nao é o rrieu, mas o dos Arawet.é.

Bem, resta saber por que, se nao se deve postulá-la, há no

entanto que procuri-la, a categoría da Pessoa ~raweti. Nao creio


- de pessoa possa ser tomada como chave-mestra ou
que a no9ao con

ce i to passe-partout para a de ser i9ao e interpreta9ao de todas as


sociedades sul-americanas; ou ainda que esta regiao etnográfi ca a

pres ent8 urn tipo de especificidade traduzivel e~ um lugar privil~

giado concedido a categoría de Pessoa, no sentido de Mauss". Have


ria que distinguir cuidadosamente urna série de problemas heterogé

n eos : a ''arqui-categoria'' de Pessoa (Mauss) enquan to questao e


22
instrumento do discurso antr opológi co ; a idéia de um "equivalen

(22) Falo de "a.rqui-categoria" por analogia can o "arqui-fonema" dos lingÜis


tas; por isso tarrbém que escrevo "Pessoa" can maiúscula, nesta ace¡;x;ao.

te" ou análogo da .categoria ocidental da Pessoa (o Individuo) em

outras sociedades (L . Dumont); as categorías nativas qu~ , de um

modo ou outro, podem ser tr aduzi da s e sintetizadas a partir do con

124
pontos e linhas

ceito antropo lógico (C. Geertz); por fim, a hipótes e propria me nte

etnológica de que os "idiomas " nativos referentes a dominios sen

sório-corporais e a o s conceitos d e alma, n ome, subs ta nci a, morte,

alteridade, sao capazes de guiar a de"scr i cr ao de cer t o s t ipos de

sociedade, o nde outros principios (caro a:>rpora~ao linhageira, re

gra de casamento, forma de pro priedade) tem fraco rendimento es

trutura l . -
Todas estas c o isas taivez tenham sido , senao confundí

das, acumu ladas a-críticame nte e m trabalho s a n teriores (Seeger,

Da Matta & Vive i ros de Castro,1979; ver Seeger 1980a , para urna po

si9ao mais ma tizada}.

Permane~ o , entretanto, aceitando as numerosas evidencias da

etnología su l-ame ricana,que indicam o al to rendi.mento s imbÓlia:> dos

idiomas " corporais",de urna lógica das qualid ades sens íveis que,par

tíndo de urna codifica9ao d os s entidos, dos processos de a:>muni ca9ao

entre o corpo e o mundo, arti c ulam proposi9oes a:>smológícas e even

tualmente chegam a constituir (como seria o caso Tupi-Guarani)uma

"etno-Antropologia " - tomando este termo na acep9ao de "Antrcpologia

Filosófi ca ". Sustento , -a inda , que os proce ssos simbólia:>s de prcx:1u9ao

dos corpos e das identidades sociais sao ,nestas sociedades, centrais

para a compree nsao das form as de constitui 9ao do todo soci a l. Nao

deixo de sub l i nhar,contudo , que a c ategoría Pessoa ,para qualquer

sociedade, nao s ó deve ser "procurada" ma s construída"pela análise

- mesmo, ou sob retudo, no caso das f orma9oes cul turais que desenvo_!

veram um disc urs o explícito e complexo sobre o tema (assi m, p . ex .,

os Guaraní). No te-se enfirn q ue a questao d o " si mbolismo corporal",

ou a dialética "hi l_ernórf ica" Je-durkheim iana do carpo e do n ome ,

do indivi duo e do personagem, etc . , nao esgotam o que as sociedades

do continente tero a dizer sobre o assunto: é preciso, sem perder

con tato com as si mbólicas que estudamos, .ir em busca de linguagens

125
araweté: os deuses canibais

rnais abstratas , capazes de revelar a originalidade dos fenomenos

em pauta.

O caso dos Tupi-Guaraní - que é o que inte ressa distinguir

aqui (mas ele é interessante porque semelhante a outros na Améri

ca do Sul) - é exempla r. A maioria das sociedades des ta ·f amília

lingüí stica dispoe, corno qualquer sociedade, de um "acervo de pa

péis" e de urn "ideário sobre a individualidade" - estando, ade

mais, imersa ern um simbolismo concreto recorrente na regiao -;mas

elas parecem estabelecer pontes muito frigeis e~tre a"''pessoa'' e

a ''sociedade". A flexibilidade ou labilidade o~ganizacional, a

indiferencia9ao interna e conseqüente inibi9ao de sistemas de pre~

ta9oes (materiais ou simbólicas) que dialetizassem por divi sao-i~

tegra9ao o corpo soci·a l, associadas a um complexo de re lacees i~

dividualizadas com o mundo espiritual, muitas vezes estratégico

para a constru9ao da pessoa, gera aquilo que foi chamado de ''indi

vidualismo": urna situa9ao onde a socie dade, aparentemente rebelde

a Radcliffe-Srown, seguiría en tao, digamos, Lea ch, sendo

''nada mais que o produto agregado de rela


.96es individualmente negociadas, e desta
forma rela9oes societais e Jrela9oesl indi
viduais permanecem da mesma ordem de coro
plexidade" {Riviere , 1984:98).

Urna idéia que poderiamos chamar de ''solidariedade estatística".

Veremos se esta é a única leitu ra possível; se se deve explicar

o minimalismo sociológico destas "estruturas performativas" (Sah

lins , 1982:26-33) pqr urna subtra9ao ou priva9ao - mesmo que posi

tiva s - que mantim , invertendo seus valores , a dicotomia Indivi

duo/Sociedade; ou se este ser unidimensional {a " me sma ordem de

complexidade") nao é o modo de aparecer de urna forma social sui

generis, fundada em urna cosmología e inscrita ero um registro sim

b5J.ico que caberi discernir, pois ali~ que esti a complexidade.A

126
pontos e linhas

"sociedade'' nio esti, nesses casos, onde se a tem procurado; li,

de fato, s6 aparecem ''individuos".

Assim é que, par,a en tendermos a forma Tupi-Guarani, de vemos



nos voltar para sua categoria da Pe ssoa, pois ali se divisari sua

concep~ao de Sociedade - e se contemplari um mundo "individualis

ta" sem Individuos, e urna vontade coletiva sern Sociedade.

Vamos aos Araweté.

127
r
CAP!TULO III

~ .. ... .._,,..,,... ... ..


~

129
araweté: os deuses canibais

~ ,
I, O TERRITORIO ARAWETE ATUAL
,

Os Arawete-1 sao
- uro povo de 135 pessoas (fevereiro d e 1983)

( 1) Os Araweté nao
se dernni.narn i;:or nenhum etnOnirro. o temo mais especifiro
que usarn é bfde, "ser humano", "a gente", "oos". A palavra "Araweté" é de inven
9ao cb sertan.ista J.E.ca.rval.h), que enterxieu ser este pseu00-etn:3nim:> um deri-
vado de awa ete, "humarns verdadeirosn {carval.b:>, 1977). Arnaud {1978) ronsoli
- - . -
da.i esta desi~. Mais tarde, Millle:r sugeriu que "Araweté" seria a f.orma u-
sada pelos indios cb Ipixuna para den:minar os Asurini oo P.I. Koatineno (Mill-
ler et al. 1979: 21) . Na verd.ade, urna das expressé5es utiliZñdas pelos Araweté
para se referirem a grupos ini.migos é az¡J'i hete; "inimigos verdadeiros". Talvez
tenha sido esta a origen do ma.1-enten::lido. A deri'Va9ao de awa ete nao tan fun-
dam:mto na língua Araweté, otXle o proto-Tupi *aba só g~ as fonria.s aiva, in""'
terrogativa (nquem?"). e caLJéi, "alguém". Já os Asuriní usam efetivarrente a auto
- ·...
~ AW'a ete; e d1amam os Arawete de Ararawa: "povo das araras". O et-

oon.í.no para os Arawiaté gerou algunas_confusOes,


I<ayapó a:m::> se verá adiante :
Kube-k.amrek-ti, "indios vennellx:>s" •

que habitam urna só aldeia junto ao Pesto Indígena de Atra~ao Ipi-


xuna (4945'40''/52930'15''), na margem esquer~a do méd~~ curso do
Ipixuna, afluente da margem direita do Xingu, municipio de Sena-
dor José Porfirio, Pará. O Ipixuna é um rio de águas negras, en-

cachoeirado, que corre na dire9ao SE/NW a partir do divisor de á-


guas Xingu-Bacajá. Seu leito é rochoso, e o território Araweté a-
tual apresen ta numerosas forma9oes g.raní ticas e pequenas eleva-
9oes de pedra, que em seu topo se cobrem de cactus, bromeliáceas
--
e agaváceas. A vegeta<;ao dominante em toda a á·r ea, contudo, é a
de flores ta tropical seini-úrnida, onde as árvores ·r aramente ultra-
passam os vinte e cinco metros de• altura; grandes quantidades
de arbustos e lianas tornarn penosa a caminhada nesta "mata de ci-
pó" da regiao do Ipixuna. As castanheiras sao relativamente pou-
cas, exceto no extremo NW do território, e seringueiras só as há

130
situac;áo dos araweté

',''
'' •
, _,
,
, - ""
,' .,,
"'
4°30'

,.. -.... _,
- ,. ..........
- , ..
·- '•

•• 52°
'
LOCALIZA~AO ATUAL DOS AAAWETt
•, PARÁ
r ,.J·--' limite da área de inunda~o das hidrelétricas da bacia do Xingu
e Posto Indígena da FUNAI e aldeia indígena
e municípios
<i capital estaduaf
divisa inter-estadual

131
araweté: os deuses canibais

,.r
1

2
nas proximidades do Xingu . A ca9a é abundante, em fun9ao da gra~ 1
i

(2) Ver COudreau 1977:48, que nao


c}Jegou a explorar o Ipixuna, mas .que afi:ana-
va ser ele navegável em qualquer época, bern cc::rro abundante em ·serin~iras.

de variedade de árvores frutíferas; e assim também grande . é a po-

pula9io de on9as e gatos-do-mato, o que levou a penetra9ao do Ipi

xuna pelos ca9adores de pele ("gateiros'') na década de 1960 e con

seqüente "descoberta" dos Araweté. O Ipixuna nao parece ser exceE

cionalmente piscoso.

O regime · de chuvas é bem marcado, com urna esta9io seca que

se estende de abril-maio · a novembro-dezembro, e urna chuvosa nos

meses restantes ~ Na esta9ao seca o ria Ipixuna se ~orna dificil -

mente navegável, expendo extensos lajeiros e formando po9os de á-

gua estagnada propicios a pesca com o timbó. Na época das chuvas,

que caem com maior intensidade no mes de fevereiro, o rio chega a

subir cinco metros ou mais, em rela9ao ao nivel mínimo atingido


1

em outubro-novembro. As chuvas sao o momento de um importante roo- "


vimento sazona! Araweté, o "amadurecer o milho" (awac-C motiara) ,
mudan9a da aldeia para ~ mata nos meses entre o plantío e a colhei

ta do milho verde . . A economía e a morfo logia Araweté sao ·

direta do ciclo do milho e desta oposi9io chuva/seca.

~s Araweté sao os remanescentes de urna popula9io de ca9ado-

res e agricultores- da floresta de terra firme que se deslocou, há /

qerca de vinte e cinco anos, da regiao das c~beceiras do rio Bac~

já em dire9ao ao Xingu. Desde entao, ocuparam urna área compreendi

da entre as bacias dos rios Bom Jarqim . (di to "S .·José" em alguns

mapas) ao sul, e Piranhaquara ao norte, que incluí os rios Cana -

fístula, Jatobá ~ Ipixuna. O rio Xingu é o limite oeste de seu ter

ritório, nunca franqueado. Há muito


., que o divisor Xingu - Bacajá

132


situ~áo dos araweté

nao· é cruzado, a leste; ali come9a urna regiao que os Araweté iden

¡ tifica.m aos temidos Kayapó-Xikrin do P.I. Bacajá. Tampouco


se tem aventurado além do Bom , Jardim, onde um grupo Parakana
eles
(o
mes~ que os atacou ~m . 1976-7 e 1983) foi recentemente "contacta-
do". A partir da margem direita do Piranhaquara come9a a regiao
dos Asurini, outro inimigo tradicional dos Araweté. A área mais
densamente explorada pelo grupo, nas condic;oes presentes de depe!l
í dencia do Posto da FUNAI, compreende uma faixa de cerca de 50-60
quilemet.ros para cada lado do Ipixuna, da foz as cabeceiras (ver
mapa a p.131).
Tal área nao apresentava, nos anos de 1981-83, nenhuma inva
sao ou ocupac;ao de monta. Após o decllnio das expedic;oes dos ga-
teiros (o comércio de peles foi proibido em 1967, e desde 1970 a
FUNAI comec;ou a enviar equip~s . de sertanistas para o Ipixuna), os
únicos nao-Araweté que ali se encontram sao uma dezena de "beira-
deiros", camponeses .marginais e serinqueiros, que vivem nas mar-
gens do X:inqu e na dependéncia de um "pa trao ". embarcado.
"1 · .

A situac;ao territorial dos Araweté, contudo, está 1onge de


ser segura. Nao só sua área de ocupac;ao atual nao se· encontra se-
quer delimitada pela FUNAI, apesar de repetidas
.
propostas de cria
-
c;ao de wna reserva Araweté e de demarcac;áo conjunta dos territó -
rios Araweté, Asurini e Xikrin (Mfiller et al, 1979; Viveiros de
_castro, 1982), como trés -grandes ameac;as se desenham em um futuro
- - ~
proximo: a inundac;ao de grande. parte de seu territorio com a cons
truc;ao ·do complexo hidrelétricQ do Xingu 3 ; a implantac;ao do Pro je ~

,.
(3) Aspelin & Santos (1981: 104-117) o Projeto Hidrelétrio:> da Bacia
Segurd::>
do Rio Xingu será provavelnente inplant.aOO em 1992, oonfcmne as di.retrizes da
"alternativa B" - rx:we barragens e cinco reservatórios no Xingu e Iriri. Nes
se caso, a represa de carajás seria oonst:r:uida no Xingu a vinte quilácetros da

133
araweté: os deuses canibais

-
foz do Ipixuna (4952'S). A "alternativa A", segundo a Eletrooorte, p:rqx:>e a
t
construi;:ao de urna. barragen_mais ao sul, na altura do Ban Jardirn; a área irnmda l

da, ¡:::crém, seria ben maior. Segundo os mapas da Ft.NAI . (ver mapa 2 ~ supra) , o
CX1Iple.xo de barragens inundará 124.150 ha. dentro da área Araweté, de urn total
de 198. 725 ha. nas terras As_uriní-Arawie?té; Milller et al. (1979: 49), ronttrl::> ,
rrencionam 300. 000 ha., confo:are dados do OIBC. Seja qual for a "solut;ao final'',
todo o né:ilo e babeo curso do Ipixuna será inunda~, inclusive a atual aldeia
Araweté.

to Carajás, que em seu limite oriental envolve o território Ara

weté (os mapas do P-r ograma Grande Carajás, que indicam os recur-

sos minerais, florestais, e propoem o zoneamento agrícola,simples

mente ignoram a existencia dos Araweté); e por fim, a aproximac;ao

de atividades mineradoras e ag~opecuárias dos limites sul e leste

de seu território.

Embora ela perten9a ao municipio de Sen. José Porfirio, os

deis grandes pólos de influencia sobre a área Araweté sao as se-

des municipais de Altamira, a noroeste, e de s . Félix do Xingu,ao


. .
sul. A primeira cidade, que cresceu vertiginosamente com a cons -

tru9ao da Transamazonica, é sede de Ajudáncía da FUNAI responsá

vel pelo Ipixuna. ~ para lá que os doentes Araweté mais graves sao
levados, e é de lá que partero os vísitantes, os servi9os e osbens

que atingem a aldeia . "~ltamira" é um símbolo fundamental no ima-

ginário Araweté: lugar de abundancia, e também foco das doenc;as ~-

que os matam. A segunda cidade é urna das de mais rápido crescimen

to no Pará (donde, no Brasil), e o municipio é urna área crítica '

de expansao de fronteira. Ele é sede de intensa ativid~d~ ~inera-


. '
dora (ouro e cassiterita), autonoma e empresarial, de alguns gran

des projetos de colonizac;ao e agropecuários. Com a conclusao da

estrada que o liga a Reden9ao, o risco de invasoes da área Arawe-

té aumentará significativamente. As fronteiras sul·e leste das

134

situa(f~O dos araweté

terras Araweté sio as rnais vulneráveis, estando constantemente a-

rnea9adas por prospectares de minério, que sobern o Bacajá e o Born

Jardirn; até agora, porérn, rnantiverarn-se longe dos Araweté.


'
Falar de ''fron teiras" Araweté, contudo, s6 faz sentido de

um ponto de vista exterior. A concep9ao Araweté de território -


e

aberta. Eles nao tem a no9ao de um dominio exclusivo sobre um es-

~ pa90 continuo e hornogeneo. Os Araweté chegararn ao Ipixuna desloca

dos da área que ocupavarn por outros grupos {Kayapó e Parakana), e

deslocando por sua vez os Asuriní. Sua história é a história de

continuos deslocamentos e migra9oes, e de choques corn outros po-

vos. A parte uma vaga noc:;ao de que agora estao "na beira da Ter-

ra" - e que se u sitio ancestral era o "centro da terra" - nao pa-

recem ter uma geografia mitológica ou sitios sagrados. O movirnen

to obj etivo e subjetivo dos Araweté, quanto ao território, é o de

uro constante "ir adiante", um deixar para trás os inimigos e os

mortos. A no9ao de reocupac:;ao de urna área antiga lhes é estranha-

o que se constata mesmo dentro dos limites da bacía do Ipixuna.

No entanto, as guerras ern que estiveram envolvidos nunca fo


J ram concebidas corno disputas territoriais, e as tribos que inva-

diarn "suas" terras erarn percebidas menos como amea9a a integrida-

de territorial que a sobrevivencia física dos Araweté. Do mesmo

modo, quando na década de 1960. os gateiros entrararn em quantidade

no Ipixuna, nao foram tidos por invasores do território tribal


'
que deveriarn ser expulsos; ao contrário, desde que nao se mostras

. sern hosti.s, erarn urna fon te benvinda de instrumentos de ferro .


l
~ justamente qua ndo do " contato " (1976} e fixa9ao ern urna -
a-

rea restrita que urna concep9ao "fechada " de terr itório pode eme r-

gir, e corne9a a emergir, para os Araweté. Assirn, por wn lado, o

estabelecimento de urna só aldeia junto ao Posta da FUNAI romp e

135
araweté : os deuses canibais

coro o modus vivendi tradicional, que consistía em várias aldeias

simultaneas, cobrindo wna ampla extensao territorial, mas coro po-

pula9ao média menor que a da aldeia atual; a dependencia do Pesto

diminui também o raio de movimenta9ao do grupo local. Por outro

lado, o convivio com as concep9oes ocidentais de territorialidade,

transmitidas direta ou indiretamente pelos brancos, e a situa9ao

objetiva de enclausuramento geográfico {pois eles já tem conscien

cia de que para além de seu mundo imediato há muitos brancos) le-

vam a emergencia paulatina de um conceito de territorialidade fe-

chada e exclusiva, consagrando assim . wna nova situa9ao histórica,

e criando o fato de um "território Araweté" (ver Seeger & Vivei-

ros de Castro, 1979), ainda a espera de reconhecirnento pelo Esta-

do nacional.

Cabe observar, por fim, que os Araweté, a exemplo de seus

vizinhos Asurini (Müller et al. 1979: 7-8) e de tantos outros gru

pos indígenas, procuraram o contato com os brancos - literalmente,

''pacificaram''(mokati) os brancos - menos por se sentirem territo-

rialmente encurralados, que para fugirem as hostilidades de tri-

bos inimigas. Os ataques Parakana da década de 1970 fizeram os

Araweté demandar as rnargens povoadas do Xin g u, ern busca de produ-

tos de r o9a e proteqao. A partir daí, entao, encerra-se para eles

a fase de deslocarnentos sucessivos ern busca de terras livres de

inirn~gos; e doravante terao de conviver coro seus mortos.

2. OS ARAWETÉ E OS TUPI-GUARAN! DO ~ARÁ

Nao existe nenhuma referenc ia bibliográfica aos Araw~té, ou

a qualquer grupo que se possa inequívocamente identificar como "A

136
situatráo dos araweté

raweti'', ati o inicio da dicada de 1970. A vasta regiio do inter-

flúvio Xingu-Tocantins, na altura do rnédio-baixo curso de ambos

os rios, era ocupada por diversos grupos Tupi-Guarani, desde pelo



menos o século XVII (Nimuendaju, 1948:199~243; Nímuend aju/IBGE ,

1981). Desde as matas do médio Xingu até as bacías dos río s Ca

pirn, Acará, Gurupi e Pindaré estende-se urna regiao ocupada quase

exclusivamente por pavos desta familia lingüística, limitada ao

norte pelo Amazonas, ao sul e a sudeste por grupos Jé (Kayapó e

Tirnbira ) , e com urna importante intrusao Caribe (Arara) . Na regiao


1
do Xingu e mais a oeste, já na bacía do Tapajós, grandes grupos

Tupi de outras familias lingüísticas (Juruna, Munduruku) interrom

pem a continuidade dos Tupi-Guarani, que irao reaparecer no Madei

ra, cornos Tupi Centrais (Kagwahiv}.

Esta verdadeira "provincia" Tupi-Guarani do Pará - que cor-


4
responde a "área cultural do Pará" de Murdock (1974:32) - foi

(4) Que a esterrle do Maranhao até o rio Madei.ra, conttrl:> - dos Tenetehara aos
Cawahib, ignorar.rlo as difere:ncras entre os Tupi-G.larani e os outros Tupi, e dis
solverxb, igualnelte, a unida.de hist.órica provável dos grupos Tupi-G.larani en
tre o Xingu e o Gurupi. Nao obstante, o recorte de MurOOck é, oo caso, mel.h:>r
que o de Galvao (1979), ~ fragnenta esta provincia Tupi-Glarani em duas á-
reas, a Tocantins-Xingu e a Pindaré-Grrupi, san fundanento claro.

habitada por vários grupos hoje desaparecidos, conhecidos apenas

de cronicas missionárias e relatórios provinciais.

Detendo-nos na área Xingu-Tocantins, que é a dos ' Araweté,p~

demos listar, dos grupos extintos: os antigo s P·acajá (século XVII

a 1763), os Tapiraua (fins do séc. XIX), os Kup~-rób (em guerra


.. .. - .. 5
comos Apinaye; de meados do sec. XIX ate 1920), os Anarnbe - to-

(5) Em 1948, Nimuendaju declarava os Anambé, grup::> identificado an meaoos oo


século XIX na margan esquerda do Tocantins e no alto Pacajá de Portel, corro

137
araweté: os deuses canibais

total.mmte extintos. sua lingua seria rnui to serrelhante ao Tenetehara. Arnaud


& Galvao (1969), :¡::orérn, identificam a:::m::> Anambé um grupo atualmente existente
oo rio Caiari, afluente do M::>ju. O rio Pacajá (dito de Portel) deságua oo Ama.-
roras, entre o Xingu e o Tocantins - seria ele ·o habitat dos antigos Pacajá .
Deve-se distinguí-lo do Bacajá, ou Pacajá de Souzel, afluente do Xingu e terri
tório tradicional Araweté.

dos nas matas da margem esquerda do Tocantins. Na regiao do Xin-

gu-Bacajá , os Takunyapé. Dos grupos que existem até hoje, os "Asu

riníº já eram conhecidos desde fins do século passado na regiao

entre o Xingu e o Bacajá (Coudreau, 1977); os Parakana surgem na

margem esquerda do Tocantins no corne90 do séc. XX (Nimuendaju

1948: 206- 07) . Na década de 1920, os Suruí e os Akuáwa-Asurini co

me9am a ser conhecidos pelos b rancos , .na regi ao do baixo Araguai~

Itacaiúnas e Tucurui; seu contato definitivo só se dará na década

de 1950 (Laraia & Da Matta, 1967);

A estes grupos Tupi-Guaraní somavam-se, na por9ao mais oci-

dental da área, os Juruna e os Arara (Pariri) . Os Juruna, prova -


velmente vindos do Rio Amazonas, dominar arn o baixo e o médio Xin

gu nos séculos XVIII e XIX, e seu movimento migratório, func;:ao de

choques com os brancos e os Kayapó, os levou para o alto Xingu no

comeqo do século XX. Os Shipaya, grupo lingüística e culturalmen-


te muito próximo dos Juruna, parecem nunca ter-se estabelecido na

margem direita do Xingu. Os Arara também sao conhecidos desde o

século XIX, tendo sido identificados em wna vasta regiao, em am-

bas as margens do Xingu, no Pacajá e na margem esquerda do Tocan-

tins . Em 1971 um. grupo Arara é locatizado na margem direita do


baixo Bacaj~; lá combatem c;ontra os "Asuriní" (Nimuendaju, 1948:

224). Ao contrário dos J.uruna e Shipaya, tribos canoeiras que sern

pre se estabeleceram junto aos grandes rios e ern suas ilhas, os

138 J
situara:o dos araweté

Arara, como a rnaioria dos Tupi-Guaraní da regíao, eram urn povo da


6.
terra firme .


(6) Ver Menget 1977:5~83, para a reconstituic;ao da hist.ória dos Arara , ou an-
· tes, dos grupos da "ilngua Arara" da familia carib, prop::>sta pelo autor, que
inclui os Arara, os Yarumá, os Apiaká e os Txicao. Os renanescentes Arara do
Iriri só foram oontactados em 1981.

Por f irn, deve-se mencionar outro grupo Tupi-Guaraní atual


de origern rnédio-xinguana, os Wayapi, localizados na confluencia '
do Iriri coro o Xingu (margem esquerda) ern meados do século XVII,e
que iniciaram urna longa migra9ao durante o século XVIII em dire-
9ao ao norte, cruzando o rio Amazonas e atingindo o alto Jari e o
Oiapoque , em fuga diante das tentativas de redu9ao missionária
(Galloís , 1980:55-59).
A orígern histórica de todo esse conjunto de tribos Tupi-Gua
rani do Pará-Maranhao - e que, alérn · aos pavos já mencionados, de-
ve verossirnilmente incluir os grupos de além-Tocantins: Amanayé ,
Turiwara, Urubu, Guajá, Tenetehara ~ é de difícil precisao. Tal-
vez fosse possivel referi-la aos deslocamentos Tupinambá ern dire
9ao a boca do Amazonas, a partir do Maranhao, no come~o do século
XVII. P.Grenand (1982:150-53), tratando da história dos Wayapi,i~

sere-os em urn rnovirnento Tupi-Guaraní que ocupou, desde o século


XVII, as florestas de terra firme entre o Maranhao e o Tapajós
'
tendo fracassado ern dominar a "várzea" do rio Amazonas, face a su
perioridade numérica e tecnológica das tribos ali situadas(grupos
de lingua Aruaque, e a tribo dos Tapajós). Nesta mesma época, as
sociedades da várzea fértil forarn destruidas pelos europeus que,
em seguida , for9aram a inda mais urna dispersao dos Tupi-Guaraní pa
ra as área s entrerrianas: os Wayapi, Asurini, Parakana, Teneteha-
ra, etc. seriam os produtos desta dispers ao .

139
araweté: os deuses canibais

Métraux (1928:308-12), e~etivamente, acreditava que es tes

povos (de que pouco se sabia a época em q,u e escreveu) estavam as-

sociados a vaga migratória dos Tupfnambá e Guarani, a Última gran

de migra<iªº Tupi a partir do centro original de dispersao, que ele


.- 7
locali·za no al to Tapa)OS . A descendencia direta dos Tupi-Guaraní

( 7)Ele sugere ainda que urna prirreira vaga migratória a partir do Tapajós te-
ria al~ado diretanente o Amazonas., e o baixo Xingu, resultando nosJuruna ,
Shipaya e Takunyapé, cuja língua teria entao seguido urna evolu;:ao independente.
o
Mas ~traIDC se equivoca ao aproximar Takunyapé do grupo Juruna; a língua dos
priroeiros é da familia 'l\Jpi-Glarani. Ver supra,cap. II.

atuais de urna tribo "Tupinambá" é, porém, problemática, visto que

alguns destes povos (e outros já extintos) foram identificados con


temporaneamente aos Tupinambá (por exemplo os Pacajá, e os Tenete
hara - cf. Wagley & Galvao, 1961:24).

A reconstru9ao histórica dos, moviinentos '!'upi-Guarani na re-


giao ainda está por fazer, e dependerá muito da história oral dos
grupos atuais. Laraia {198,4) aponta um importante terna recorrente
.na tradi9ao dos grupos atuais: o tema da cisao de ~ grande grupo
Tupi-Guarani ,, em geral após disputas violentas ( confli tos sobre
mulheres) . O autor nota ainda que os Urubu-Kaapor estiveram loca-
!izados bern rnais a oeste de seu atual território (e tem urna tradi

9ao de rnigra9ao de urna parte da tribo. para o além-Tocantins - Hux


ley 1963 apud Arnaud 1978:6); que os Suruí e os Akuáwa-Asurini · a-
firmarn ter vindo de wna regiao a noroeste de seu sitio atual; se
juntarmos a isso a tradi9ao Araweté de urna origem a leste do Ipi-
xuna (ver adiante), nao deixa de se~' tentador especular sobre urna
situa9ao "originária" qo grupo "proto-paraense" . no interflúvm Xin
gu-Tocantins, talvez na área do alto Pacaj'á de Porte!, ou do Ana-

pu.

140
situ~ao dos araweté

Dois grandes movimentos, separados por dois séculos, abate

ram-se sobre a regiao do Xingu-Tocantins, com profundo impacto p~

ra os Tupi-Guarani. O primeiro movimento processou-se no sentido

norte-sul, seguindo o · curso dos grandes rios: é a invasao euro

péia, que se inicia no come90 do século XVII, com urna intensa ati

vidade de catequese e redu9ao dos indios, imediatamente apos a

expulsao dos holandeses e ingleses em 1623 (ver Castelo Branco


'
1956). Aos missionários sucedem- se expedi9oes militares, já desde

1 650 (Gallois, 1980:5q). o efeito destas duas formas de conquista

foi o usual: redu9ao e " descimen to'' de diferentes povos, formando

aldeiarnentos mistos , com imposi9ao da língua geral; em seguida, fu

ga e dispersao dos indios aldeados ou ainda livres, para longe

dos rios.

Em meados do século passado, urn movimento sul-norte se ini-

cia. A expansao Kayapó em dire9ao as matas do Xingu-Tocantins,vin

dos dos campos do Araguaia, produzirá profundas transforma9oes na

situa9ao dos Tupi-Guarani, Juruna e Arara. A expansao para noroe~

te dos Kayapó, porém, parece ter sido bern posterior a seu movimen

to para oeste (i.e . para o rnédio Xingu, na altura do rio Fresco),

e a chegada destes indios na regiao do Xingu-Bacajá dataría do

primeiro ter90 do século XX. Os Kayapó provocararn extensos deslo-

camentos dos grupos ali situados, caus ando grandes baixas - sobre

tudo nos grupos de terra firme, mais vulneráveis que os canoeiros

e ilhéus Juruna-Shipaya. Em 1936, os Gorotire , "em sua expansao-


para o norte, atacararn e derrotaram os Asurini" (Nimuendaju,1948:

225). Data desta mesma época a separa,9ao dos Xikrin, e a chegada'

de um grupo Xikr.in ao Pacajá, onde se chocaram com os Asuriní, A-

raweté e Parakana. Os Xikrin do Cateté, igualmente, guerreavarn con

tra estes grupos (ver Vidal, 1977 ) .

141
araweté: os deuses canibais

A partir da década de 1970, por fim, a constru~ao da Transa


mazónica e a expansao da fronteira para a .regiao do Xingu termi -
nam por enclausurar os Tupi-Guaran! da área. Em 1971 os Asurin! ,
e m 1976 os Araweté, em 1984 os último s Parakana, todos os grupos
do Xingu-Tocantins parecem estar "co ntactados'', finalmente.

* * *
Para concluirmos esta tentativa de localiza~ao histórico-bi
bliográfica dos Araweté, deve-se acrescentar dois pontos. Em pri-
meiro lugar, as escassas descri~oes sobre os grupos Tupi-Guarani'
desaparecidos nao autorizam nenhuma hipótese sobre ser algum de-
les ancestral dos atuais Araweté. Refiro-me especialmente ao que
se sabe sobre os Takunyapé. No século XVII, a margem direita do
Xingu acima de Volta Grande (49S/539W) era conhecida como "lado
dos Takonhapés", e o "rio dos Takonhapés" era provavelmente o Ba-
cajá (Nimuendajú, 1948:222). Por várias vezes esta tribo foi al-
deada por missionários, e uma parte dela , resistindo, fugiu pa-
ra as bandas do médio Curuá. Em 1863, urna epidemia dizimou a en-
tao numerosa popula~ao Takunyapé; no final do século o grupo é da
do como extinto. Um vocabulário colhido por Nimuendaju em 1919~

mostra nenhurna semelhan~a especial com o Araweté contemporéneo(Ni-


muendaju, 1932). Quanto ao mais, nada se sabe sobre esta tribo.
Nimuendaju faz referencia apenas a urna "dan~a
das almas" que os
Takunyapé (do Curuá) teriam em comum comos Shipaya 8 •

(8) Vale ootar que, an 1863, os Takunyapé eram admirados por "sua oor quase
br~a, olhos azulados e carelos castanhos" (Castelo Branoo, 1956: 14), descri<;ao
similar as ircpress0es dos sertanistas soore os Ara'Neté (Arnaud,1978:7), que de
fato tém pele clara, e alguns deles olhos oor de mel, carelos avenrelhados.Cf.
ainda Adalberto da Prússia, 1977:190: e sobretudo Joao Daniel, 1976 (I ) : 273, so
bre os Pacajás, prováveis antepassados de todos os TUpi atuais da regiao.

142
situ~áo dos ara.weté

Ern segundo lugar , há que se esclarecer sobre o uso do termo

''Asurini'' na bibliogfafia antiga. A rnargem direita do Xingu e a


regiao do Bacajá erarn conhecidas, no final do século passado, co-
• ,
rno "terra dos Asurini" (Müller et a .L . ' 1979:1). Este etnonimo ,
...
de origem Juruna, significando "indios vermelhos", pode porern

ter- se aplicado a diferentes tribos Tupi-Guaraní, entre as quai.s

os Asurini atuais, do rio Ipia~ava. Nao é improvável que alguns

destes Asuriní que, em fins do século passado e inicio deste, ata


cavam seringueiros no Xingu e Bacajá, e os Asuriní guerreados pe-
los Arara e Takunyapé, fossem os Araweté . . Nimuendaju, em 1948, a-
firrnava que o etnonimo Kayapó Kube-karnreg-ti, que também signifi
ca ''indios vermelhos", se aplicava aos "Asuriní". Inforrna9oes re-
centes, contudo, indicam que os Xikrin do Bacajá chamam de Kube-

-kamrek-ti aos Araweté, nao aos Asuriní (chamados Kra-akaro, "ca


be9a corno corte de cabelo arredondado"; Müller et al., 1979:34).
E o apodo de "indios verinelhos" talvez se aplique com mais pro-
priedade aos indios do . Ipixuna que aos Asuriní, pois os primeiros
usarn do urucurn rnais abundante e freqüentemente que os segundos(ver
B. Ribe iro, 1982:22) 9 . Nesse caso, talvez tarnbérn os termos Shi -

(9) Un des n:::nes dados aos Asurini pelos Ar~té, Iriko ña,"Senho
oonb.ldo, é
res do urucum o que parece militar em favor da atribui~ao de urna maior "ver
11
,

irelhidade" aes Asurini. Note-se, entretanto, as razOe.s deste apelló:>: (a) os


Araweté desconheciarn o "sahao" de urucum até enoontrarem os Asurini oo Ipixu-
na; usavam as sementes soltas da planta, preparando a liga a:m leite de babcl-
c;u na rora de apli~ da tintura; (b) eles dizem que, ao chegarem ao Ipixu-
na, havi.am perdido suas serrentes de urucum para plantío, tendo que roubá-las
dos Asurini.

paya, Juruna e Curuaya corn este significado se referissern aos Ara


... 10 - • .
wete . Urna aparente contradi9ao que se l e e rn Coudreau (1977: 37,

143
araweté: os deuses canibais

(10) Vidal (1977: 28, 37), quéern seu liv:ro sobre os Xikrin afinna qµe o terno
Kube-kamrek-tl era aplicado aos Asuri.ní, confinrou-ne ern a::municac;ao pessoal
que

48) - que afirmava ao mesmo tempo ser o Bacajá o habitat do "gros

so da tribo" dos Asuriní·,. e ser o Ipixuna a sede da "maloca prin-


11
cipal do grupo - poderia ser interpretada ·em favor de urna aplica

~ao do et,nonimo a diferentes grupos. Nesse caso, os Asurini do Ba

cajá seriam os Araweté, que só vieram a atingir o Ipixuna por vol

ta de 1960, dali desalojando os Asuriní atuais. Isto talvez expli

que a surpreendente ausencia de qualquer registro dos Araweté na

extensa documenta~ao sobre a regiao Xingu-Tocant·ins (deve-se no-

tar que mesmo os grupos de contato recente, como os Parakana, ha-

viam sido. menc~onados há várj.as décadas) . As semelhan9as externas

(aparencia física e cultura material) entre qs Araweté e Asurini

atuais, contudo, sao mínimas; o que salta aos olhos é justamente'

a diferen9a entre estes deis grupos.

3. LÍNGUAJ CULTURA MATERIAL E SUBSISTENCIA

O Araweté é urna língua da familia Tupi-Guaraní, mas bastan-

te individualizada. A compreensao entre falantes Araweté e intér-

pretes Akuáwa, Surui e Asuriní. é mediocre {Arnaud, 1978:7), como

constataram os sertanistas das frentes de atra~ao. Embora clara -

mente pertencente ao grupo norte-oriental das línguas Tupi-Guara-

ni {aquele que Nimuendaju chamava de "grupo He", pela forma da


primeira pessoa do singular), sua posi~ao exata nesse conjunto -
e

incerta, mesmo porque ele é considerado, modernamente, como hete-

rogeneo (Rodrigues, 1984).

144
situaqao dos araweté

A língua Araweté ainda nao foi estudada· por especialista.


Os critérios usados para o estabelecimento de subgrupos dentro da
familia TG (Lernle,1971; Rodrigues,1985), corn urna inte~9ao mais ou

menos declaradamente genética, nao permitem classifica9ao inequí
voca do ~raweté 11 . T~do que posso dizer é que se trata de urna lín

(11) Rodrigues~ 1985; ~lia urna classifica9ao anterior de Lemle e l~a rnao -
de trai¡:os c:x:m:>: perda/nao das co~tes finai.s;rn.l~a/nao de*t.r para ts ou s;
~a/nao de *ts para h ou (¿j; muc}an(;a/nao de *pt.J para kLJ ou k; muaancra/nao
de *pj em t.r ou x; deslocamento/nao da t.Onica. Tais cri térios se referem ao
"Proto-TG", müito prÓXim:> ao Tupinambá. A locali~ do Araweté neste esquema
é curiosa: é aproximacki do Kayabi e do Asurini ( "subconj\.U'lto V") , mas "por fal
ta de dados" (p.46). Enviei ao Prof.Aryon \.llla anostragem do Araweté em 1983,que
pelo visto nao ch03ou a ele, pois nao há formas Araweté citadas. As rnu~as
próprias desta língua me pareoern .. erbaralhar" os subgrupos propostos.

gua TG do Leste Arnazonico, apresentando rnudan9as nao-cornpart ilh~

das com nenhuma outra, consonantais (*p~ em e via *k, antes de •


~ i) e vocálica~ (*a em l via *i e•;). Hi um processo de "vowel
shift" que a aproxima de outras llnguas TG da regiao; mas como
demonstra o estudo recente de Soares & Leite (1986), é imp'o ssível
a determina9ao de proximidades genéticas ou tipol6gicas a partir
das mudan9as vocálicas, capazes de ocorrencia independente e si
multánea em línguas já individualizadas. O que é claro, é que o
· Araweté nio i "dialeto" de nenhuma lingua TG 12 .

(1.2) Arnaud, 1978, cita Carvalho (1977) para sugerir urna estreita afinidade
lingÜíst,ioo-cultural entre Araweté e Kaapor, que me parece se dever mais a ex
perien::ia anterior do sertanista J.Carvalho, que o fez ver os Araweté can o
lhos Urubu, c,hegardo mesrro a "corrigir" a lingua dos primeiros pelas fonnas Ka
. -
apor. Wi lliam Balée (can.pess.), que estudou os Kaapor e visitou há pouco os
Araweté, confinna a nao-sarel..h.ant;ra específica entre as duas línguas.
No original, esta tese trazia um apendi.ce lingÜístico escrito pela
Profa. Yonne I.eite en colabor~ao canigo, cujos materiais s~ retanados e de
senvolvidos em Soares & Leite, op.cit.

145
araweté: os deuses canibais

Apesar das dlf eren9as que os separam dos demais falantes de


Tupi-Guaran! da regiao, os Araweté percebem o fato óbvio de seu
parentesco lingülstico com eles, ·e isso ·de certa forma diminui
sua distancia dos Asurini, Parakani, e outros (dos quais só toma..:.
~am conhecimento via os indios intérpretes da FUNAI'). A llngua
. ,

<ñe'e> Araweté i a "boca correta ou hábil" (y,;r~ kar~ kato), em


contraposi9ao .a "boca travada ou misturada" (y'fi.r-!_ ·paraw,!) dos Ka-
yapó e dos ·brancos. Assim~ os ~utros Tupi~Guarani estio mais pró-
ximos da "falar correto" dos Araweté 13 , e isso,embora nao modifi-
· que sua defini~ao (e tratamentol como · awi, inimigos, pode levar

(13) Nao sou capaz de. dar uma tradJ~ exata da expressao
..
y,;r-i
- kara katiJ,
- - que
parece ¡xx3er furic.ionar tanté:n caro verbo. y,;" significa "boca" • .A foDna kara
kat-i (onde kat!_ = ban) aparece na . def~ da a:arpetencia artesanal. I:E al-
guém que sabe fu.er bern m · objeto, diz-se i-kara-kat-i.

os Araweté a re-classificá-los, contextualmente, como bfde pe ,


-
"ex-Araweté", ou ,;r! ani nem! pa re; "descendentes de nossos fin!_
dos parentes", conforme a tradi<;ao de uma antiga cisio do grupo.

* * *
Os Araweté possuem uma cultura material. bastante simples
'
dentro do horizonte Tupi-Guarani. Seu acentuado despojamento téc-
nico e artesanal parece só ser superado pelo dos nomades Guajá ,
~iriono e Xetá, a quem chegaram a ser comparados. Berta Ribeiro ,
a quem devemos uma descri9io preliminar da cultura material e de
subsistencia Araweté, e especialmente das técnicas de tecelagem -
· além da mencionada compara9ao comos Guajá e Xetá - define-osco-
mo possuidores de um equipamento "rústico", de uma "baixa tecnol~

gia agrlcola", dotados de "pouco senso artístico" e com tra9os

.146
situ~~o dos araweté

"arcaicos". Tudo isto, espécialmente, no contexto de um confronto


com seus vizinhos Asurin'i (B. Ribeiro, 1982; 1981; s/d). Se dei-
xarmos de lado os julzos de valor da autora, ainda assim teremos
l

de reconhecer a parcimonia Araweté quanto a técnicas ergológicas


e artesanais, bem como o caráter casual e descuidado dos aspectos
visuais ou vislveis de sua cultura - seja na pintura corporal, na
arquitetura ou na plumária, seja na "proxemica" e nos micro - ri-
tuais de intera9ao social. Tal simplicidade pode-se explicar, em
parte, pelo constante estado de alarme e fuga diante de inimigos
em que os Araweté estiveram imersos nas últimas décadas1 em part~

pelo trauma do "contato" (re~ente de apenas 6-7 anos, em 1983),de


populac;ao e aldeamento pela FUNAI. Porém, como já mencionamos no
Capitulo I, ela é um dado da cultura Araweté que parece consisten
te com urna orienta9io mais geral.

Em sua simplicidade mesma, a cultura-material Araweté -


nao
permite sua aproxíma~i~ específica a qualquer outro grupo Tupi
-Guarani (ver B.Ribeiro, 1983:22, que procurou inutilmente uma co-
nexao Urubu-Araweté que comprovasse as hipóteses de Carvalho e
Arnaud). Além dissó, certos itens e usos inesperadamente comple -
xos - como o chocalho aray do xamanismo, tranc;ado de talas de
aruma e recoberto de algodao, e sobretudo a vestimenta f eminina

de quatro pe9as {ver fotos 7 e 11). - sao exclusivos dos Araweté. A


predominancia absoluta do cultivo do milho sobre o da mandioca
(que nao se deve, como ere B.Ribeiro, a um suposto desconhecimen-
to desta última planta em época pré-contato) também distingue os
Araweté dos demais Tupi amazonicos - e os aproxima dos Guarani,de
quem já se disse possuirem urna "religiao do milho" (Schaden,1962:
50). Acrescente-se que os Araweté sao o único povo 1upi - Guaran!
conhecido que utiliza o narcótico paricá (payika, Anadenanthera

147
araweté : os deuses canibais

Peregrina), largamente consumido· por tribos de outra af ilia<;ao


14
lingüística ao norte dorio Amazonas •

(14) os Maué da bacia cb Tapajós, tribo de Ungua Tupi. (nao Tupi-Guarani) tam
bém utilizam o pari cá, mas da mane~ra usual na Arnazenia, i s to é, aspirado (Ste
ward, 1948: 895). - "
Os Arawete o consanem de m::x1o infrequente, misturado ao taba
oo dos dlarutos, dentro do contexto xamanístioo de cx::munica9ao can os deuses e
os nortos.

Os Araweté sao uma gente de estatura baixa (1.60 m. os ho-


mens, 1.50 m. as mulheres, em média), de pele em geral clara, ca-

beles e olhos entre o negro e o castanho-claro. os homens tem bar

ba espessa, e costumam deixá-la crescer· em cavanhaque; andam nus,

e só depilam as sobrancelhas. Tradicionalmente (i.e., antes de


usarem cal~oes), amarravam o prepúcio com um cordao. As mulheres

trazem uma vestimenta de quatro pe~as (cinta, saia externa, ti-

pÓia-blusa e wn pano ~e cabe~a) - usada completa apenas após a pu

berdade - tecida com algodao nativo e tingida de urucum. Elas ja-

mais ret_iram a saia interna,, de lona grossa, na frente de um ho-


mem estranho, e manifestam um grande pudo+ corporal, ~esmo quando

entre si, como por exemplo no ban~o 15 • Todas costumam usar os

(15) Para a descri~ da veste feminina, ver os trabalhos de B.Ribeiro. CU-


- .
tros TUpi-Glarani ten ou t.inham vestes femi.ninas (saiaS GJarani, Glajá, - etc.);
mas só as Araweté usam o· pam.de cal:Je:;a e a saia interna. Esta cinta - peque.na
pe<;:a tubular que cinge estreitamente as_coxas, da altura oo ¡i"Jbis até uns 40
en. abaixo - é i.np:>sta quando da nenarca, e está associada ao sangue menstrual,
qUe absorve (iln de setis rx:mes refe.re-se a esta ~). Ela restringe bastante
os m:nr.imentos, daró:> as nll1heres \E andar peculiar. As trUlhexes jamais ficam e-
retas, mesnc quanCb entre elas, se estao san a cinta. A posi~- típica de en-
trar oo rio para o banho é a agachada, can as pernas fechadas. Isto pode estar
ligado a defcmna~ e ~to dos grames láhios pela rnan1pll~ masculi-
na,~ central da ars erotica Araweté. Os pelos 'plbianos fe:niniooS tanbén

148
sit1:1ac;áo dos araweté

sao ~ .pelos 1Dnens - vía .de rey.ca, pelos amantes (aplno), sendo guar-
dacbs ccrtD reilquias ou amarracbs na haste das flechas. Falarenos rrais dist.o
adiante.
As neninaspié púberes, .eml::>ot'a portem a sai a externa desde cedo, nao se
inp:>rtam en ard3r nuas. Entre a puberdade e o nascimmto do pr:imairo filho, 'a
Mesa.o as nomas estritas do pmr é algo flutuan~; depois; inp!rativa. os ~
nens, por seu lado, mmifestam ext:rmo pud:>r oo desatar o ooroao do prepúcio.

..
cc.iña) e pequenas penas ·de arara dispo~
brincos de tiririca-preta
-
tas em forma de flor ("ilor", poti, é ·tima· metáfora comum para~
co, nos ca~tos dos xamas), bem como colares da mesma semente (ver
foto 1). os homens usamos mesmos brincos, porém mais curtos, e
.
alguns tra.zem pulseiras de crochet dé algodao que, usadas desde a
infancia, deixam sulcos proftindos nos pulsos. o cabelo é ·cortado
.- ' ' .
em franja reta na testa até a altura das orelhas, de onde cresce
' . ..
até a nuca dos homens 'é os ombros das mulheres. Peninhas de arara
tarñbém sao enfiadas nas orelhas.
,, . .·
A tintura e a cor básica· dos Araweté ·é ·o verinelho vivo do
··.
urucum, com que cobremos cabelos e o · corpo, em .gera1 untando-os
totalmente. No rosto, p0réñi; ·podem tra~ar apenas e;· padrao
.
•,º lo!!
·;...

urna linha horizont~}. ~a al tu~a. das •o}?ranc.e lhas, uma_ linha


go do · !)ariz; : e duas lin·h as, ~ das orelhas . as comissuras labiais ~ . E;s
• .. !
-
te padrio tcimbéin e·usado: na decbra~ao festi~a ·- s.ó há Uní·' tipa de
ornamentagao
., .
corpora.l par:a-- a,s
' ~ -
_cer~onias,
. - .
.P.a.·-r a ~ qualqu~r
.
cat1!,.9o~ta
.... -
de pessoa - quando é tragado em resina perfumada ·e recoberto ·_·com
as penas m'i 'núsculas do moneme, um cotingldeo de plumagem azul iri
descente. J\. plumagem do gaviao~rea'l, é colada na cq.becra e, -.em um

paqrao retangular, -nas _co~tas e peito¡ nas festas ou por motivos


má:g icos (pf'?te~ao . da-s crian~as ,contra ~ · on~a .celeste sonhada - pe~
los xamas) ..
A tintura de jenipapo está asse~iada a mata, a guerra :,e .aos

149
araweté: os deuses canibais

mortos, e é rarissimamente vista na aldeia. Nas expedi~oes de ca-


~a, é comum os homens e mulheres se enegrecerem com jenipapo. Mas
eles nao fazem desenhos finos, tracejados, sobre o carpo; tampou-
co se tatuam. Em geral, um aspecto "borrado" e incompieto é a ap~
réncia usual Araweté, mesmo nas festas - visto que tendem a dei-
xar sempre para a última hora a ornamenta~ao corporal. Em contra-
partida, os deuses e as almas dos mortos apresentam urna aparencia
esplendida, decorados, perfumados e pintados - de jenipapo, pois
-
nao usam o urucum.
Nas dan~as noturnas (op,rahe) e na cerimónia do cauim al-
-
coólico, ambas ocasioes em que o género musical dominante sao as

"can~oes dos inimigo·s ", os homens portam um diadema de penas de


arara, importante símbolo da condi~io masculina e guerreira. Um
dos epltetos· para a comunidade masc~lina, no contexto do cauim, é
"senhores do diadema" (y,aka ña), o que evoca a sinédoque Guarani
jeguak~-va, que designa a humanidade masculina nos cantos sagra-
. 16
dos Mbyá (Cadogan, 1959:28-ss) •

(16) a::m a significativa dif~ que, no caso G.larMrl:, o jeguaka está asso -
ciacb a dan;a religiosa, e marca a· ~ do paf,_ ou rezaó::>r, nao 00 guerreiro
(Schaden, 1962:28). O que é a:nsistente, inter alia, a:m a dife:renra entre o
op-trahi Ara\i.1et.é a:m:> significancX> dan;a/canto profaoo ou guerreiro, e o
a
porahei Guaran! CCllD reza ou canto sagrado. Quanto minha ~ da ~ -
de ña CC11D "senhor", tratarenos disso oo capitulo rJ; el.a é o cognato das for-
mas TUpi-Glarani jara, yar, etc.

Isto sobre a aparencia dos Araweté. Vejamos de que vivem.


'
A agricultura é a base da subsistencia Araweté. Osdois pri~

cipais produtos de suas ro~as sao o milho (4 variedades), consumi


do de mar~o a novembro, e a mandioca. (3 variedades), no período '
complementar. Outros cultigenos importantes sao: a batata-doce (8

.150
situa9ao dos araweté

variedades), o cara (7 variedades), a macaxeira (3 variedades) ~

Planta-se ai~da o algodao (2 variedades) nas ro9as, o tabaco (ro-


9as e aldeia)' curauá para cordoaria (aldeia)' mamao (idem), bana
~

na (6 variedades; ro9as e aldeia), abacaxi (aldeia), cuieira$ (i-


dem), tiririca-preta (idem) e o urucum (aldeia) 17 •

(17) .M.litas das varierlades destas plantas foram introduzidas pelos funcioná -
rios da FtNAI ou obtidas dos "beiradeiros,.; outras foram tanadas dos AsurinÍ.
Desa:mhe<r'O se as variedades de cul tígen::>s reconhecidas pelos Araweté tero cor-
respol'Xlente em nossa l::otani.ca. E, se cert:anente é um exagero falar em "núrrero
diminuto de prcdutos cultivados" entre os Araweté (B.Ribeiro, 1982:32), nao há
dúvida que a a~icu.ltura dest:e p:1V'O é nerns diversificada que, por exarplo, a
dos AsurinÍ, a dos Tapirapé (Wagley, 1977: 57) ou a dos G.larani, can sua gran-
de variedade de tipos de rni.lh:> (Schaden, 19.6 2: 48-49).

O milho predomina claramente, na concep9ao e · na prática Ara


weté, sobre a mandioca (madfda). Esta só é consumida quando os es
toques de milho se esgotararn e 6 milho verde ainda nao foi colhi-
do - is to é, na esta9ao das. chuvas, e sobretudo durante a expedi
9ao do "amadurecer o milho", na mata. A "ro9a" (ka) Araweté _ - is-
to é, a ro9a aberta anualmente, por derrubada e queima - e
de milho (awac~ d~pa, "solo-suporte do milho"), entremeada com
maior ou menor densidade por mandioca, cará, batata, etc. o milho
é consumido, copforrne a época, na forma de espigas assadas, min-
gau de milho verde, farinha de rnilho. ming~u doce, pa9oca de ~1-

lho e mingau alcoólico (fermentado por mas~iga9ao). o milho pila-


do é base do iyi, caldo grosso de carne cozida que acompanha cer
tos tipos de ca9a; coma pa9oca se faz o _namo pi re, pirao. Esta
pa9oca, feíta de rnilho maduro, torrado e pilado, é a farinha bási·
ca da dieta Araweté, sendo consumida durante nove meses por ano.
O cauim de milho azedo ou alcoólico (ka';'da), por sua vez,é o fo

151
araweté: os deuses canibais

co da maior cerimonia Araweté, que se realiza várias vezes ao an~

entre julho e outubro, i.e. durante a esta9ao seca .


A mandioca, ralada ern raízes de paxiúba e espremid a manual-

mente , seca ao sol ou no moquém, é consumid~ como farinha -seca de


massa ou como beijus de tapioca (a farinha-puba foi introduzida

pelos brancas). Os Araweté , embora apreciemos produtos feitoso::rn


esta planta, dizern que o s consornern, nas chuv.as, "porque nao há

rnais milho", ou "porque ainda nao há rnilho verde" - o que indica


claramente seu papel súbordinado. A batata-doce, o cará e a ma ca -
xeira sao consumidos cozidos ou assados . E, se o milho é obrigato
riamente plantado por todas as unidades domésticas, em quantida -

de sernpre suficiente para durar por toda a esta9ao seca e ser usa
do cerirnonialmente, os dernais produtos conhecem urna varia9ao mui-
to grande, de ano para ano e de casa para casa, na quantidade plan
;
tada. Boa parte da batata, cará, mandioca e macaxeira e colhi -

da ern r o9as plantadas até dois ano s antes (ka pe).


Os instrumentos usados na a bertura das ro9as sao o fogo, o
machado de ferro 18 -
. , os facoes; e o pau~de-cavar e- usado no plan -

(18) No território Araweté se encnntrarn freqüent.arente pedras de machado, mas


os indios afirmam descnnhecer a técnica de fabricá-los; ou nelhor, sustentam
que eles nao sao mao
feitos p::>r humana, mas pelos espí.ritos celestes , os Maf .
E ºafinnam igualrcente que "senpre ", isto é, na rremSria dos hanens mais ve1hos ,
usararn machados de fer.ro encontrados nas ca¡::oeiras abandonadas de outros gru-
¡;os e de sitios de ocupac;ao brasileira. Nao obstante, .todos os tnrens adultos
saban encabar as pe;as de pedra, a madci.ra apropriada para fazé-lo , e saben
usar esta ferram=nta. A declarada antiguidade do uso de machados de ferro indi
ca que os Araweté sabein dos brancns há muito terrpo, deverx:lo ter vivido na. peri
feria de estabelecimentos civilizados, em bJ..sca de implerrentos de ferro.

tio. As ro9as possuern ern rnédia 1,5 hectares, mas o tamanho real
de cada urna variará conforme a unidade de produ9a\) envolvida - se

152
situaqao dos araweté

urna Única casa/grupo doméstico, se ~a se9ao residencial. As ro-


9as Araweté sao bastante atravancadas de troncos e galho s mal-quei
mados¡ aparentemente, eles nap cuidam muito da coivara. A mandio-
ca, a macaxeira, o algodao, o tabaco e as bananas sao plantados '
em se9oes próprias, na periferia das tarefas de milho. A batata
e o cará sao dispersos pelo milharal, em moitas a intervalos regu
lares.
• * *
A ca9a é objeto de. intenso investimento cultural para os
Araweté, que -nao a definem como "trabalho". Isto . é, o conceito de
"pregui9a" (ciranahi), freqüentemente acionado durante separa9oes
conjugais, refere-se sempre ªº trabalho doméstico femin i no e a
faina agrícola masculina (neste Último caso, a pregui~a consiste
em abrir ro9as pequenas ou "encostar-se" em ro9a alheia). No céu,
mundo bem-aventurado dos mortos e dos deuses, nao há agricultura,
pois as plantas crescem sozinhas; mas todos ca9am. Os deuses -
sao
~acradores, nao agricultores 19 •
.

(19) ver wagley • Galvao (1961:48, 59) para a as~ entre a defini~ de
pregui<fa ligada ao trabalb:> agrícola, e a visio de um nmó:> pré-cultural ideal
em que os nachados trabal.havam .sozinhos e a mandioca se auto-plantava (este · ,
... .
um tema classiro TUpi-Guarani), na sociedade Tenetehara.

A ca9a define um espa90 masculino, e a ro9a, enquanto ro9a


de milho, um espa90 feminino - póis o milho é plantado pelas mu -
lheres, e a rocra é derrubada pelos homens "para suas mulheres,que
em troca lhes fazem as redes de algodao" (urna equivalencia entre
tarefas demoradas e penosas). Os Araweté. ca9am urna variedade de
animais maior que a usual entre outros Tupi-Guaran!, e parecem
ter menos proibi9oes alimentares, gerais ou especificas, que es-
tes. Em ordem aproximada de importancia (alimentar), ternos: jaba-

153
araweté: os deuses canibais

tis (branco e vermelho); tatus; mutuns, jacus; cotia; caititu;quei

xada; guaribas; macacos-prego; paca; veados; inhambus; araras; tu

canos; jacamim; jaós; macuco; anta. Os tucanes, araras, a harpia

e gavioes menores, o mutum, o japu e dois tipos de cotingídeos(a-

nambés) sao procurados também pelas penas, para flechas e adornos.

As araras vermelha e canindé, e os papagaios, sao capturados vi-

vos, e criados como xerimbabos (temima) na aldeia. (Ero 1982, a al

deia Araweté tinha 54 araras criadas saltas). A harpía (kanoho) '


se capturada viva, é mantida ero gaiola. Nao se cornero os felinos ,

os urubus, cobras e sqpos.

Os jabotis e tatus sao menos ca9ados que "coletados'', visto

que nao exigem armas (o verbo genérico para " ca9ar " é simplesmen-

te -éata , "andar", ou yoka,"matar"; para os jabotis e tatus diz-se

kati, "buscar"). O jaboti é disponível ero qualquer época do ano,

embora esteja associado a vida na mata e a esta9ao chuvosa - quan

do amadurece o frutao (araho , uma sapotácea), que os engorda e au

menta seus fígados, a carne predileta dos Ara~eté. Os jabotis po-

dem ser guardados corno reserva alimentar para os dias difíceis, e


-
sao o objeto de ca9adas coletivas, cerirnoniais. Os tatus sao ali- -
mento importante no come90 da esta9ao seca, quando estao mais

gordos .

A carne de ca9a, na aldeia, é comida preferencialmente cozi

da, usando-se do caldo para fazer pirao ou sopa com milho (certas

partes de alguns animais, corno o rabo e a gordura da casca dos ta


. -
tus, e algumas aves, como o jacarnim, sao comidas sempre assadas).

O assado é tido pelos Araweté como•urna forma egoística de preparo

alimentar, urna vez que restring~ o número potencial de bocas a

encher. A generosidade alimentar é um valor essencial da socieda-

de Araweté, cujas cerirnonias nada rnais sao que grandes refei~oes

154
situa9ao dos araweté

~ k ..., 20
coletivas; e comer sozinho e a marca do avarento (ha ata~) . Na

(20) Eles parecen assim concordar can Lévi-Strauss, quando este atribuí ao co-
.
zicb um caráter mais "derrocrátioo"; nas nao creen que o assacb corx:>te a prodi-
galidade, e sim a avareza - o que pennite urna arrpl.a mrensalidade é justarrente
o cozido. Há que se observar, conttm, an favor da hi.pótese lévi-s traussiana ,
que as partes anima.is que senpre se érnem assada.s - ralx> e carapa9a do tatu ,
casoo do jaboti (i.e., as carnes aderentes) - sao oonsumidas }?Or um gnlp.) mais
arrplo que os o:rrensais das refeic;Oes ooletivas de :tatu e jaboti oozidos. Antes
de proceder ao oonsmro das carnes oozi.das, o dom do ba.rxluete recebe em seu
pátio mais gente que os .q ue fiC:arao para o oozido, e entao distribuí as par-
tes assadas. Neste sentido relativo_, o assado é urna "exo-oozinha" (Lévi~Straus&
1967a:22) .

mata, durante as expedi9oes masculinas que vi·sarn trazer grande


quantidade de carne para a aldeia, o moqueado é a forma de prepa-

ro - ou antes, de tratarnento, pois as carnes moqueadas sao ern ge-


ral cozidas na aldeia, antes de serern consumidas. No acarnparnento'
-
de ca9a, c ome-se assado. Nas excursoes em que vao rnulheres e crian
9as, sernpre se procura levar panelas para cozer a carne.

A lirnpeza e preparo da carne é tarefa essencialmente mascu-


lina. Os hornens cozinham a carne, embora as mulheres possam ajudá
-los, na característica fluidez da divisao do trabalho Araweté •

De qualquer modo, o "rnonopólio" masculino no trato da carne pro -


longa-se desde sua obten9ao e preparo até o consumo. Nas refei-
9oes coletivas, sao sempre os homens que se a g lomeram em torno da
panela ou cocho que traz a carne; sao eles que dividem as pe9as ,
que cornero prirneiro, e que em seguida entregam os demais pedac;os
~

as suas esposas (que devern dividi-los com os filhos) . Talvez por

isso, é a e sposa do ca9ador que calcula ciumentarnente a quantida-


de de carne trazida, procurando conter os impulsos de 9enerosi
- a convocar outras casas
dade do marido, quando este se poe para

155
araweté: os deuses canibais

partilhar da refei9ao.
As armas de ca9a Araweté sao o arco de _pa'Q d'arco - admira- ·
velmente bem trabalhado, motivo de orgulho dos Araweté quando o
comparam com as armas Asuriní e Parakana - e tres tipos de f le-
cha (ponta lanceolada de bambu, que pode. atingir até 70 cm., _pon-
21
ta de os so de guariba, _ponta de pa-u endure-e ido ao fogo - a primei

(21) Entora admirem, sem t:ril<jX>S de inveja oo inferior:idade, a cer&nica e ó ar.:...


tesanato Asuriní, os Araweté privilegiam, em sua o:::rrparac;a_o can esta ttil:::o, os
arcos e flechas, em cuja iranufatura sao clari:!m:mte nlais cuidadosos e sofistica
dos que os outros. E isto reforc;:a., ai.nda, a identidade guerréira do grupo,con-
tra os "noles" (i time) Asuriní. A flecha lanceolada Araweté é muito serrel,ha.nte
a flecha ParaJ<:ana; ma.s SÓ os prineiros usarn o ·pau d'aro:::> para seus arros.

ra, que é para ca9a grossa e guerra, é emplUil}ada com penas de har
pia, as outras com penas de mutum) . ~ comum os homens saírem para
o mato sem suas armas, em busca de jabotis ou tatus (em geral, um
ca9ador sai com urna determinada presa em vista); a capacidade de
irnprovisa9ao de armas, na mata, é notável - o que nao irnpede que
muitos ca9adores vejarn sua imprevidéncia castigada pelo surgimen-
to de urna vara de queixadas, quando saíram apenas corn uro facao, a
trás de tatu.

A introdu9ao, ero 1982, .de armas de - f.ogo, embora tenna repre


sentado (segundo os ~aweté) . urn aumento na capacidade de obten9ao
de ca9a, já os obri_gava,. ero 1983, a cobrirem urn raio maior .. de ter
ritório em suas cac;adas, devido a fuga ou exaustao da pop"Qla9ao a
nimal pr6xima i aldeia. Igualmente, a~ espingardas . os -obrigaram a
fracionar os grandes ba.n dos de cac;~dores ern unidades menores, nc;tS
cac;adas cerimoniais do cauim . - tanto pelo -· báru.l,ho das armas, quan
to pelo risco de acidentesj A pop~lariza~io das lanternas de pi-
lha (que a venda de artesanato permitiu), associada a das cartu -

156
situaqio dos araweté

cheiras "20", tornou a paca, animal tocaiado a noite, uma fon te


importante de alimento.
A pesca Araweté se divide em dois periodos bem marcados; a
' esta~ao do "bater . (matar) o peixe" (pfdá nopl me) , em que se usa
o timbó (outubro-novembro), e os meses de pesca cotidiana, feita
~orn arco e flecha e linha. A pesca com timbó fragmenta a aldeia
em grupos menores, que acarnparn junto aos po~oes do Ipixuna e a i-
garapés quase secos. Dela participam homens e mulheres; o peixe é
moqueado. o peixe-tipo desta pescaria é o trairao (pld~ oh~, "pei
xe grande"). As pescarías cotidianas, que aumentarn em freqüencia
conforme· váo baixando as águas dos rio..s, sao feitas preferencial-
mente corn l~nha e anzol. Os meninos e meninas, entre os 5 e os 15
anos, sao os pescadores mais as-siduos, e o produto de seus esfor-
~os contribuí substancialmente para a alirnehta~ao da aldeia. As
mulheres também pescam ; e, até certo ponto, mais que os homens •

Muitos adultos, especialmente os líderes de se~oes residenciais ,


pescarn muito. pouco. Embora o peixe seja alimento muito valorizad~

o é menos que a ca~a, e a pesca é urna atividade ' derivativa para'


os homens adultos. Alérn da pesca coletiva com timbó, porém, todos
os hornens. participam da pesca .com o har~, armadilha fusiforme ma-
nual, de talas de Quriti, usada em lagos durante a esta~ao seca ,
e que exige equipes n~erQsas.

Os Araweté consomem . quase todas as espécies principais do


IpixUna: trairao, . tucunaré, · pescada, surubirn, curirnatá, rnatrinxa,
piau, piranha, pacu, ·curupité, peixe-cachorra. Nao cornero a pirar~

ra, as ~rraias e o cui6-cui6. Jejus, tarnoatás e caranguejos dós


pequenos lagos sao muito apreciados. carero o poraque e os jacarés.

A maioria dos Araweté mais velhos nao sabe nadar; tampouco


constroem canoas. A água de beber e cozinhar· é retirada, pelas

157
araweté : os deuses canibais

mulheres, de cacimbas abertas na margem arenosa dos rios e igara- ·

pis, ou nos a~aizais alagado~. A água do rio é dita ser "quente''

(haki); a colora~ao leitosa da água de cacimba é muito apreciada

por el.es, que a cornparam coro o colOstro, dentro de um c9mplexo de

associa~oes simbólicas entre a ág.ua, o leite, o cauim, o sémern e


. b- d o t.imb-) 22
o tiro o (.i.e. a agua
- turva d a pe 1 a seiva
. o .

(22) o trabalho de abrir as cacimbas, escavando can a mao o solo úmiao, é de -


signado p:Jr un verbo (maya) . que se aplica
~ .
também ao deflorarrento sexual e as
neniµila~s masculinas aa genitália feminina, verlx> distinto do. "cavar" (kar@.

A coleta é urna atividade importante na economía Araweté.Seus

produtos principais sao: (1) o rne.l (e), de que os Araweté possuem

urna refinada . classifica9ao, compelo menos 45 tipos de rnel,de abe


23
lha e vespas, comestíveis ou nao ; ele está associ'ado a uma dis-

(23) Para que ,nao se oonsidere exagerada essa prolif~ taxon&nica sobre o
mel - talvez o dcminio natural mais finamente analisado na cultura Araweté
· vejam-se os 31 tip:Js de mel reoonhecidos pelos Parintint;in (Kracke 19.81 : 108) •
Os Kayabi SÓ distinguiriarn, entretanto, 4. tipos, segtmdo G.Grü:nberg_ (1970: 81-
2) •. Oestudo "et:IX>-ea:>lógioo" de P.Grenand sobre os Wayapi nao ~ca, sur -
p:reendentemente, neilhuma taJ<Onania cb mel (1980 :91).

persao cerimonial. da aldeia na mata, e é objeto de expedi~oes em

que as mulheres tem um papel importante. Embora obtido pelo traba

lho masculino, o mel, ao contrário da carne, é consumido em pri -

meiro lugar, e em maior quantidade, pelas mulheres; (2) o a9aí ,


consumido com o mel .durante urna cerimonia, objeto também . de expe-

di9oes coletivas; (3) a bacaba; (4} a castanha-do-Pará, alimento

importante na época das chuvas - qs Araweté nao sao, -. porém, gran-

des coletores de castanha, e é freqüente derrubarem .as castanhei-

ras para retirar mel; (5) o coco baba9u, . comido ou usado corno li-

ga do urucum, e para amolecer a rnadeira dos arcos; (6) o cupua9u;

158
situa9ao dos ar_aweté

(7) vários frutos de importancia menor na dieta, como a golosa, o

frutio , ·o cajá, o ingá, o bacuri, a sapucaia; (8) os ovos de tra-

cajá, objeto de excursoes familiares em setembro; o pequeno núme-



ro de praias no Ipixuna nao é favorável a essa atividade; (9) ver

mes de· palmeira, comidos torrados. A coleta é urna atividade reali

zada por ambos os sexos, sendo em geral levada a éabo pelo casal

(exceto o mel ) . Coletam-se também vários tipos de cipós, f olhas e

raizes medicinais.

Dentre os demais recursos necessários ao.modo de vida Arawe

té, pode-se destacar: as folhas e talas de baba~u para as casas ,

esteiras, cestos e outros objetos; a bainha das folhas de baba~u~

inajá e a~ai para os cochos (ipe) que servern de recipiente; dois

tipos de cana para flecha; a taquara para a ponta lanceolada da

flecha grande; a taquarinha e outras talas para as peneiras e o

chocalho de xamanisrno; a cuia silvestre para o rnaracá de dan~a;rn~

deiras especiais para piloes, cabos de machado, arco, pontas de

flecha, esteio e vigas das casas, afiador do formao, pau de ca-

var; enviras e cipós; e o barro para a cerámica simples Araweté •

A divisao sexual do trabalho Araweté pode ser sumarizada no

quadro seguinte:

'
HOMENS MULHERE.S

Atividades

Selecionarn o sitio das ro;:as Ajudam na queirnada.


novas; derrubam a ~ta;quei ~
marn.·

Plantara: mandioca, rnacaxeirq. p lantam: milh:>' batata, alg00ao,


furo, cará, curauá, banana. UJ:Ucum, rnamao f abacaxi I ciña•
Ajudarn na rolheita,exceto do Colhem todas as plantas, exceto
algooao e w:ucum. tabaoo e curauá. Carregarn o mi-
lh:> e batata para a alde.ia.

159
araweté: os deuses canibais

Constroem os jiraus ces-e Separam e debu1harn o mi.1110 para


tos para annazenagem das espi plantio.' Preparam rmx'las e clones
gas para plantio¡ transportam para plantio.
.
as serentes para a ro;:a oova.
~arn todos os an1mais; p~ Ajudarri a localizar jabotis. Pes
nm o tiil'OO; pescarn cx:m t.iml::Q cam con timbó e linha.
flecha, linha e 'hara.

carregam, esf<?lan, depenam e Ajudam a depenar as aves; l.inpam


linpam os anima.is. . peixe; abren os jabotis.

Derrubarn ~ e hacaha. IEn:u Fabrican os recjpientes para o


bam árvores ou erguen os ji- nel, no mato. Trazan o mel para'
raus para pegar o mel. a aldeja.

colet.am castanha e ootra; f:ru !den.


tos.
Cbrtam palha e nedei ra para Pegain o barro para ceramca.
as casas.
Cozinharn a cat;a· Ajudan a pi- Ajudam no a:>zimento da carne. De
4tr o millD e a ralar a man - bulllaln, pilan e torram o millD •
di.oca. Cozinham os demais vegetais ~ Ra-
lan e espreoern a mandioca, e se-
cam a farinha.

AjUdam na pil.agem e ooz:illento Prepararn o cauiln, oozem-no e mas


do cauim. Hcm:>genei7am a fer- ti9am o mi.lh:> para fenrent~.
nentayio oo cai1i m.

cortam e carregam a lenha COrt.am e carregam lenha mais le-


maiar. Faz.en fogo. ve. Fa7.em fogo. Aprmrisionam a
alde1a de lenha, durante as ~
das ooletivas masculinas. carre-
9am água das cacimbas.

<blstroern e mantero as casas.

secam e p:reparam o · tabaco , Desca.rbr;am, baten e fiam o algo-


e o curauá. aao. Préparam o urucurn.

Enterram os nortos. , Pintam e deooram os nortos.

160
situa~ao dos araweté

Artefatos* .

Arros masculino)
(ú.sO Veste ferninina
Flechas (uso mascUlloo)
' Fai.xas de al~, testeiras
Fonnao e afi.aó:>r (uso ma!:!c:u.lirX)) Fios· 0e algodao
ACbroo.s plUIT'ários Rede de donnir
·Perfur~ao oo étña para· os· rola ·.Aba:OO de fogo
res e brincx:>s. Ce.:5to ~

Pentes Cesto pequerx:> para farinha de milbo


Maracá ~steiras, para assento ou para as pa
Acabanento oo dmllo aray redes de frente e fundos da casa '
Estojo para ~ tradicional.
Peneiras Ori.as
C.Orte da raiz de paxiúba para Ceranuca (4 tipos c;lé pe<ras)
ra J ador de mandioca. Tran<;ado do- chocallo de x.amani.sno.
Pim e .mao-ae-piw
C.Olher de pau
Fu.so (uSo fe.minino)
Sovela
Tear ,<uso f~)
Pau de cavar
Cochos
C.Ordas .de curauá
.Ha.ra

.* Exceto ,.....,~..--A'"'
":t _
....... ........, .indi·cado, os artefa tos sao - - -"- .
USO<XJS · ambos os sexos.
por

A primeira coisa que . se. deve o.bservar, neste quadro, é a

relativamente. al ta fluidez' da. di v.isao sexual


' ' .
de trabalno )
/l~raw.et.é.

As tarefas que estao exclusivamente ass.oci~das a urn só sexo sao a

quelas que envolvem o uso das · armas. ou de muita for~a física (deE

rubada), que cabero aos homens, . e a tecelagem e a ceramica, as mu-

lheres. Nao exist~, porém, nenhurn interdito quanto a manipula9ao '

do arco e fle cha pelas mulheres, ou, q.uanto a participa9ao ocasio-

nal dos homens em tarefas femininas. Nao é incomurn verem-se - ho-

mens carregando .água, fiando , coz.:j..nhando batatas, de.bulhando e

161
araweté: os deuses canibais

torrando milho, etc., junto com suas muiheres, ou se elas estao o


24
cupadas com o.u tra coisa • Nada de ridículo nisso (ao contrário ,

(2-4) Oleguei a ver hcmens mastigando .o milho para· o camm;' oo usard> a blusa-
-tipóia para can:egar c:rian;as .(o que t.anmn fazem os Kayabi - GrCnberg, 1970:
109) • No prilleiro caso, era· pcm:¡ue suas mul.he:res estavam menstruadas.

por exemplo, do que pensam os Tenetehara - Wagley & Galvao, 19·6 1:


58). Por ·s eu lado, as mulheres nao se furtam a derrubar wna árvo-
re para lenha, a ajud.a i; ,na construc;ao da casa, a capturar um jab~

ti, etc. o tabaco é wna planta masculina, importante no xamanismo;


mas as mulheres preparam o cigarro de .s eus maridos, seguram o cha
-
ruto dos xamas em transe, e também fumam ••• No ambito das tarefas
de plantio, a divisa<;> por sexos tampouco é rígida. Homens ou mu -
lheres podem abrir as covas para semeadura, e homens .podem semear
o milho. Apenas a mandioca é de trato ·e xclusivamente masculino •

No resta.n te, os sexos oy~ pitiwa, "cooperam", substituindo-se nas


mesmas atividades.
Semelhante situac;ao parece refl•e ti.r o fato de que -a unidade
conjuga! Araweté, que é a unidade de produc;ao cotidiana e uma uni
dade doméstica espacialmente distinta, apresenta um comportamento
. economice ·( e psicológico) muito próximo dos "joint conjuga! roles"
das sóciedades modernas. Acrescente...-se que, exoeto no contexto das
cac;adas masculinas coletivas e na danc;a do cauim (onde os homens
formam o núcleo dos cantores e danc;arinos, ·para urna platéia domi-
nantemente feminina), nao existe nenhuma situac;ao que oponha con-
ceitual ou praticamente os dois sexos (mesmo os contextos cita -
dos nao envolvem urna elaborac;ao sistemática dessa oposic;ao). A
unidade doméstico-conjuga! prevalece integralmente sobre qualquer
segmentac;ao global entre as comunidades masculina e feminina da
aldeia. Do mesmo modo, o conjunto de espac;os domésticos que com-

162
situairáo dos araweté

poem a aldeia nao e totalizado OU orientado por um espa<rO público

comum, que pudesse ser identificado a um dos sexos - como os "cen

tros" masculinos do Brasil . Central e do Noroeste Amazonico.

Igualmente, a carga média de trabalho é eqüitativamente · dis

tribuida entre os sexos (ver B.Ribeiro, 1982); se pendesse, aba-

lan~a o faria em favor das mulheres, ao contrário do que se costu

ma dizer do ªfardo da mulher indígen~" (cf. observac;oes semelhan-

tes sobre os Kayabi, Grünberq, 1970:109). As mulheres Araweté, e~

f im, rnostram urna grande assertividade, independencia e extrover -

sao; e a relativa indiferencia~ao no plano da divisao sexual do

trabalho irá repercutir também na es·fera da poli ti ca, do paren tes

co e em outros contextos. A diferen<ra essencial entre os sexos

se dá no plano religioso: só os homens sao xarnas.

Mas o continuurn fl.uido de atividades economica·s , quanto aos

sexos,. nao deixa de sugerir algumas oposic;oes simbóli·cas signifi-

cativas. O homern é concebido inequívocamente corno ca<rador, a mu-

lher corno tecela e ceramista (esta Última atividade ·está ern deca-

dencia, corn a introduc;ao das panelas de metal pela FUNAI). Embora

ambos os sexos se dediquem ao ·trabalho agrícola, o milho e seu

processamento estao associados as mulheres, na prática e no dis -

curso; elas passam a maior parte de seu tempo entre o algodao e o

milho, fiando e pilando. Assirn a roc;a, concebida sernpre como roc;a

de rnilho, é dominio feminino. Dentro da ro<ra·, a mandioca está afe

ta ao homem, que a planta - a mandioca "é dos homens" (kume '~ apa).

Ela se opoe neste contexto ao milho, e se subordina a ele como o

homem a mulher, na ro<rª·

A refei<rao típica e ideal Araweté consiste de carne e milh~

Nunca se c-0me carne sem algum tipo de dep~, farinha; seja de mi-

lho, de mandioca, ou mesmo do endocarpo do coco baba<ru, Último re

163
araweté: os deuses canibais

curso usado nos meses f inais da excursao das _chuvas, quando a f 'a -
rinha de mandioca, acabou (o endocar-po. fibroso de babac;u é pilado
e torrado pelas mu'lheres) • Mas o mi1ho é o modelo do vegetal, que
complementa· a alimentac;ao carnívora;- ou ant~s, ao contrário. A pa
c;oca de milho (at&1a-cf mep~} acompanha outros alimentos· além da car
ne: mamao, banana·, castanhas. Ela ·pode ser comida pura, quando
nao há mais nada. Em troca, o esgotamento da -provisao da pac;oca '
de milho levada pelos homens quando vao cac;ar é· o sinal de- sua
vol ta a aldeia., nas exped1c;oes. ·c oletivas que antecedem o cauim •

Nao se · come carne sem milho; ele é -a marca da· civiliz·a 9ao. · Como
refe·r-i anteriormente.· (pág. 49), o-s Arawe~té dizem que p·r ocuraram
as roc;as dos .brancos nas margens do Xingu ,porque os ataques Para-
kana os deixaram sem milbo e eles já estavam cansados "de comer '
~ó carne", que ~bt·inpam em -quant;idade na~ ~at~s do Ipixuna·; isto
25
era viver como selvage~

(25)- os Araweté fal.am de una tribo inimiga,- os O'i wko~ "Flechas O::rrpridas" ,
que ~iam né.maQes, ~ X"O?r e qye vi~ ~ de. carne· e .da zarinlyl . do
enchcarpo do ba,ba«;u.
. ,..
sao chamaOOs taJri::)Ém de f)epe- a, "ocue00res de
.,.. . . .
farinha
.
de
~", una práticá que, pá.ra os Araweté, é un :reCurso que beira a áelvageria.
l-Écio G::ltes (inf~ pe8soal) diz qUe o8 néJnaaes· GJa)á usam desta farinha-
e tán _flechas mrpridas ••.•

Há que observar, nao obstante, que a carneé o alimentomais


.. ·' .. . -
valorizado, ·d o ponto de vista ·do paladar e da nutri9ao. urna refei
. - ~
.. -
-
9ao sem carne é motivo de constrangimento e depressao psicológica
• 6 ' ~

- e se uma refeic;ao sem milho é imprópria, urna sem carne é insubs


tancial. Assim, é possivel ter "fome" (ho'imá) em meio a urna abun
26
. -
- . d e mi'lho, b atatas, etc. . Por outro lado, se os Araweté •
d ancia t

podem ser considerados' agri'c ul tores algo descuidados . e talvez

(26) caro os Tapirapé (wagley, 1977:6()) e os wayapi (.:P.Grenand, 1980:42) •.

164
situa9§0 dos araweté

irnprevidentes, sao excelentes ca~adores, além de estarem em urna


área de ca9a abundante. Exceto nos meses em que uma violenta gri-
pe se abateu sobre a aldeia, nenhurn Araweté deixou de comer carne
'
ao menos urna vez por dia, todo dia - ·durante rneu tempo lá. A reci
procidade alimentar e as reservas de jaboti garantiarn essa situa-
9ao, nos dias difíceis.

Da alimenta9ao animal, é a gordura (éew~) a parte mais esti


mada. A primeira coisa que faz um ca9ador .após matar sua presa, é
dar urn talho na pele e observar a quantidade de gordura; quando
alguém traz um pare.o ou urn veado para a aldeia, a massa de home ns
se junta ruidosamente em torno do animal, exclamando admirados ..
éane, éew~ hetl!, "vejarn, como é gordo!''. A gordura da garganta '
do guariba macho e especialmente apreciada, por tornar quem a co-
me urn bom cantor; a gordura do pesco90 do queixad~ tarnbém é urna
delicadeza; · o tutano dos ossos é cobi9ado pelas · mulheres. Mas a
preferencia maior dos Araweté recai sobre o fígado e os ovos dos
jabotis. Pode-se dizer que, se o milho é o paradigma da alimenta-
~io vegetat, o gor~o figado do jaboti é a quintessencia da carne.
. . -27
Este par, milho/jaboti, é central na vida Arawete .

(27) Para os Urubu-Kaap=>r, o paré mandic:x::a/jab:>ti (Huxley, 1963:206-7). Sobre


a paixiio alimentar pela gordura, 'V'er os Aché-Guayaki e seu cpsto pela gordura,
sobretu:lo .da carne humana, em P. Clastres, 1972:320-ss. O terno Araweté pró-
prio para 11g0rdura 11 é éira. A nocrao de aewe refere-se mais ben a urna idéia de
"substancialidade" ou foI):a nutritiva, que rx> caso da carne animal depende da
éainada de gordura. ()ltro aI.:i.mento é dito éewe: ·o rrel. (A bacaba tambén). A vagi
~ é éewe, e o ato sexual é :referido a:JtO um "a:rrer" (o) a mulher ou a vagina.
Os al..inentos ·éewe aao sorx>, annlecem a pessoa e sao oontra-indicados pelos xa-
mas iniciantes. A esta categoria de al.i.naltos se oontrap)em os alimentOs he' e,
doces" , a:JtO a banana, o mamao, a batata; o abacaxi e o cauiro doce i os .a1.im:m
11

tos 'da, "azedos", c:aro o cauim alo:::x'Slicb, o as;aí e o cará; os ·a.J.imentos hati,
"duros", caro as farinhas de ·mil.ho, e as castanhas cb pará e do babai;u.Apesar

165
araweté: os deuses canibais

da aparente heterogeneidade e "~c:onsistenc.i.a" lógica dessas categorias, elas


sao discretas; nao p:.:>SSO porém afiaJ"l9ar que sejam exaustivas. Vale ·rotar, a~
nas, que o mel e o sexo nao estao na categcria 00 ''&:>ce", mas do "gorduroso
ou substarx:ial", ao contrário da rnaioria das culturas hunanas; mas, cx::rro em
tantos grupos sul-americanos, cantinuam na. nesma categoría.

Nos próximos capítulos, analisaremos o sistema simbólico

que articula a mata e a aldeia, os homens e as mulheres, o milho

e a · carne, os jabotis e o mel, as chuvas e a seca. E, nisso, o p~

pel do xamanismo e dos espirites.

4. HISTÓRIA., GEOGRAFIA E DEMOGRAFIA

Antes de se deslocarem para a regiao do Ipixuna, os Araweté

viviam nas cabeceiras do rio Bacajá. Em fins da década de 1950, ~

taques repetidos dos Kayapó f izeram-nos demandar os rios Bom Jar-

dim, Jatobá, e por fim, mais ao no·rte, o Ipixuna, onde ·se choca-

rarn com, e donde expulsaram, os Asurini. Eles sempre apontam o

leste e o sudeste como a dire~ao de suas aldeias ancestrais. ~ p~

ra l i que fica o "centro da terra" (iwi pit~), que hojeé dominio

dos inimigos. Urna tradi<;ao algo obscura diz que os Araweté, antes

de atingirem as cabeceiras do Bacajá, atravessaram dois grandes

rios, largos como o Xingu, a leste. Nao tenho elementos que me


. . .. ou o Tocan t 1ns
. 28
permitam a f 1rmar
. serem e 1 es o rio
. P acaJa, •

(28) o rx:rne Araw'eté para o Xingu é uma ~ fonética, Ciki:, ou sinples -


mente "rio grarxle" (parani oho). Eles menc:iOnam tarrbém, a leste, o Takaa~, i.
- . -
e. , o Tocantins. Há indicios de que este t:qx3nino foi int:r:bduzioo pelo serta-
nista J. Carvalh:>, que eles satt>re mencionav-am quando falavam do Takac!. Na
falta de carpetencia lingüística, resta-me apenas a suspeita de que o
Ar~té nao é urna adapt~ do p:>rtugues "Tocantins 11 , que an Araw'eté deveria
ser pronunciado *Tokaci. A difererr;a o - a,na prineira silaba, e o sufixo -e~

166
situ~áo dos araweté

que (se for rresrID um sufixo) sigrúfica "branco", [X)'ieriam sugerir um teDro na-
tivo. A ~ao de . "centro da terra" se e.ncx:>ntra tarnbém entre os G.larani: cf.
~liá, F&G.Grllilberg, 1976: 217. OS Araweté dizem que J.á nao havia doeJ1cras, ao
contrário da "be.ira da terra" (Wi
-·?"eme
-
'i) que hoje ocupam- F.cos, talvez,
concepcrao 'I\lpi-Glarani da terra san males, que os Araweté elalx>ram can clareza
da

em sua teoria sobre o céu. A beira da terra, CDnceito relativo, _¡00 deve ser
CDnfundida cxrn o "fim ou limite da te.rra" (iwi pa ha), oon~ito absoluto - ver
adiante.

Mas o mo vimento Araweté em dire~ao ao Ipixuna nao f oi uni -

forme. Apenas urna parte da tribo chegou as suas cabeceiras, vinte

e cinco anos atrás, e continuou mantendo várias aldeias na situa-

9io mais meridional do Bbm Jardim (rio Ipe o h~: "cocho grande") ,

no Canafistula (Ka~lnadl-no ~i: ''rio de Kiiiinad!-no") e no Jatobá

(Iriwawa n~ p a: "rio da ponte" ) . . F-0i esta parte da tribo qu~ se a-

bateu sobre as aldeias dos Asuriní, estab~le c idos no Ipixuna de

longa data (ver Müller et al. 1979 para a história dos movimentos

Asuriní). Um outro grande bloco Araweté, também composto de diver

sas aldeias, estabeleeeu- s e na regiao do Piranhaquara, a o no rte ,

e manteve contatos muito tenues com o outro grupo, durante dez

anos. Em fins da década de 1960, este grupo se dividiu, face a no

vos ataques Kayapó; urna parte foi~se juntar ao grupo do Ipixuna ,

que havia abandonado as aldeias meridionais e se concentrado no

antigo território Asuriní; outra parte, a maior, cruzou o Ipixuna

em seu baixo curso, e ganhou a regiao do Boro Jardirn, ao sul. For-

maram- s e assirn dois noves blocos Araweté, separados por outra de-

zena de anos. Urna investida Parakana fez o bloco meridional fu-

gir em dire~ao ao grupo do Ipixuna, cujas aldeias forarn t a mbé m a-

tacadas pelo mesmo inirnigo; mas ambas as partes da tribo só vie -

rarn se reenco ntrar nas marg ens do Xin g~ , a o s ul d a f o z d o Ipixun~

quando elas resolveram ali se refugiar d os Parakana. Urna síntese

167
araweté: os deuses canibais

destes movimentos está no mapa da pá_gina seguinte. A popula<;ao

Araweté atúal é composta dos sohreviVentes dos ataques Kayapó, Pa

rakana e das epidemias pós-contato; a história dos últimos vinte

anos é marcada por um declínio demográfico significativo.

Há muitos indicios, entretanto, de que os Araweté nao reali


zaram um deslocamento simples das cabeceiras do Bacajá para a re-

giao do Ipixuna. O médio e baixo curso do Bacajá, e seus - afluen -

tes, sao reconhecidos e nomeados, como sitio de aldeias mais anti

gas (datando das décadas de 20. e 40, a se estimar pela idade das

pessoas que nasceram lá): os rios Pi:reicei ("poraque"), Mar'upai


(também um toponimo Asuriní, cf. Müller et al, 1 ~79:2), e o Pa-
kaña e o Pakay~ '1!, que _correspondem aos toponimos brasileiros "Ba

cajá" e "Bacajaí", mas cuja forma me parece autenticamente Arawe-

té. O mais antigo movimento i~entificável da tribo teria sido, en

tao, do médio para o alto Bacajá, e ero seguida para a regiao do

Xingu. Meus dados históricos sao, infelizmente, bastante vagos

o que traduz tanto dificuldades de obten9ao deste -tipo·de materia~

quanto urna certa falta de interesse dos Araweté em (me) precisa -


. - . no tempo e no espa90 29 .
rern sua traJetoria

(29} E: serrpre dificil tentar a oorrespondencia entre os top6ninos Araweté e os


brasile.iros , que, ou lhes sao ~soonhecidos, ou lhes foram "sugeriCbs" pelos
sertanistas . Por out.ro lado, jama.is oonsegui que os Araweté t.rac;assem map::lS e
croquis m chao ou m papel. Eles parecern nao ter esse oosturre, e se obstina -
varo em ''.nao enterrler" o que eu quería faze-1os fazer - anbora tivessem urna
boa idéia Cb que eram neus mapas: parani i ou iwi hG.ña. wo, "imagern dos rios"ou
"m:.xielo da terra".

O número de aldeias erguidas ~elos Araweté, de 1945 (aproxi

madamente) até 1976 é surp~eend entemente elevado: cerca de 60 al

deias, para o conjunto da tribo, nestes 30 anos. Houve ocasioes '

em que 6 ou 7 aldeias coexistiram; a rnédia é de 4. Minha estimati

168
situac;ao dos araweté

DESLOCAMENTOS ARAWETt
Os números correspondern a ordem cronológica provável dos
deslocamentos.

169
araweté: os deuses canibais

va é que a popula9ao total Araweté nao deve ter superado as 300


almas, neste periodo. A popula9ao média das aldeias seri"a entao
de 60 individuos, nos períodos de relativa paz. Os ataques Kayapó
sao responsáveis pelas sucessivas divisoes da tribo em blocas geo
graficamente semi-isolados; em traca, teriam provocado algumas f~

soes de aldeias. Em segundo lugar, esses ataques diminuíram o tem


30
po rnédio de ocupa9ao de urna aldeia . Por firn, o fator principal

(30) Que, em condicr()es de alguna segura.nra, parece ter sido de 4 arx>s, a jul-
gar pela difereru;:a de idade entre pessoas ~ nasceram numa rresrna aldeia. Os
Arél\>Jeté senpre se mudavam, quando as roc;a.s a:t1e9avam a ficar a urna distancia
perigosa, do ponto de vista do risoo de enroscadas inimigas (mesna decisao en
treos Parintlntin - Kracke,1978:12, e oos carib guianeses - Riviere 1984:28).

na decisao de rnudan9a de aldeia era a marte. Os Araweté abandona-


varn urna aldeia assim que urna marte ali sobreviesse. Outra aldeia'
era erguida em local próximo, para que se usasse das ro~as enquan
to outras eram plantadas. A portabilidade e simplicidade do equi-
pamento material Araweté estao certarnente ligadas a essa acentua-
da mobilidade.

o modo de nomea9ao das aldeias Araweté ref lete a importan-


cia da marte. Há quatro formas básicas de nomea9ao das aldeias
(ta, va pe) Araweté: (1) Nome de urna espécie vegetal ou de urna
árvore notável, seguidos do coletivo - ti cu da forma -ripa, "so-
lo" ou "suporte". Por exemplo: Orokoyi'i ti, "lugar onde abundam
as irvores orokoyi 'i"; ou Ia'i ripa , "sitio (aldeia) da castanhei
ra". (2) Ora~ao verbal que descreve urna a9ao, seguida do locatiyo
-he; ou forma nominal seguida do lQcativo -pi. Se a prirneira era
urna forma geográfica, esta é urna forma histórica de nornea9ao. Por
exernplo: Til.JE!_l.J ~-no iwa-ir.va he , "lugar onde Tiwaw!-no foi flecha -
do''; ou Pfdª ihi pi , "lugar da linha de pesca'' {onde se achou urna

170
r
situa;ao dos araweté

linhada deixada p0r gateiros). (3) Nomes descritivos de particul~

ridades topográficas ou associac;oes históricas: Ita puk~ "pedra

- .
comprida"; Awl ka pe, "capoeira dos inimigos•. (4) Nome de urna
pessoa, seguido da forma ri-pa. Nesse caso, trata-se da aldeia em
que morreu o eponimo: Todtna-hi rjpa, "solo de Todfna-hi".
- - -
As aldeias podem ser referidas por mais de um nome, mas um
deles tende a . ser mais · usado. Das 62 aldeias de que pude obter in
formac;ao, 37 sao usualmente nomeadas pelos mortos; 16 pela forma
(1) ¡ e apenas 9 pelas formas (2) ou (3). (Ver Apéndice 1I, lista
das aldeias) • .Aparentemente, apenas as aldeias que foram abandona
das por outros motivos que urna morte recebem nomes dos trés pri -
meiros tipos. Por outro lado, nao sei os critérios que levavam -
a

escolha de um nome de morto para batizar uma aldeia. Pois a decla


rac;ao dos Arawete,
-
de que bastava wna só morte para o abandono da
"

aldeia, é pouco crivel - isto levaria a haverem tantas aldeias


quantos mortos. Possivelmente, o morto eponimo seria aquele a ha-
ver morrido por último, antes da mudanc;a. Outros critérios, como
sexo, idade ou situac;ao política nao parecem pertinentes. De toda
forma, é bastante evidente a importancia da morte para esta geo - -
grafia "necronímica", onde wna .aldeia é menos o lugar em que álg~

mas pessoas nasceram que o lugar em que morreram. As aldeias ant.i


- o solo dos mortos, e devem ser... deixad as para tras
gas sao - 31 • Aos
,.

(31) Os Parintintin, os Tapirapé e os Wa,yapi também naidavam suas aJdeias quan-


oo muitas nortes ali já haviam ocx)rrido (Kracke, 1978:9, Wagley, 1977:88, P.
Grenand, 1982 ; 237). Os Urubu abanda1am definitivamente uma aldeia quaró:> o
seu chefe 1.á norre (Huxley, 1963:143), o que é consistente cnn a concepc;ao pa:!}
-TUpi d:> chefe (ou xama) am:> fundaci:>r e fundarrento do 9X'UPO local. Mas os Ara
""1eté parecen ser os únicos a ronearem suas aldeias oo nodo mencionado. Devo
observar ainda que as aldeias nao sao referidas op:;iooalmente por mais de . un
nort:o-epOn:lno.
-

171
araweté: os deuses canibais

Araweté se aplica perfeitamente a observacrao feita para os Wayapi:


"A rela9ao que os Wayapi mantem com seus mortos determina profun-
damente a mobilidade territorial ••• " (Grenand, loc.cit.).
Os outros topónimos Araweté seguem as. regras de -
nomeacrao
das aldeias, de tal sorte que nem sernpre se pode distinguir a
priori um topónimo qualquer (cachoeira, rio; regiao) do que desi~

na urna aldeia. Aqui, no entanto, os nemes de mortos sao menos fre


qüentes. Eles podem ser usados para. designar os rios em que esta-
vam as aldeias de mesmo neme (Kañ?n·a dl-no ñi, "rio de Kaiiinad!
- -
-no"). Mas a forma mais comum parece ser a (2). Assim, por exem -
plo, quatro grandes cachoeiras do Ipixuna, e seus arredores:IwikÜ
kara he, "onde se cavou" (referencia a uma cacrada ern que os mas -
quitos obrigaram os homens a dormirem em huracos); Arak~r? o he ,
"onde se comeu galinha" · (aurante urna viagern da tribo comos serta
nistas); Yicir!Pª reña he, "onde Yicirepa foi abandonada" (pela
mae, por estar muito doente para seguir viagem, ern 1976); Namo'i
r~pa, "sitio da árvore ñamo'i" Conde há wn grande tronco caído).

Deve-se notar que os rios mais antigos, ·na bacia do Bacajá,


nunca saó referidos por nornes de mortos, e sim ' por nemes "pró-
priosi' (Poraque, Bananeira, Agua Reta) , ou associados · aos inimi -
gos (Ria dos Kayapó, Ria dos Tow~hof.E que o Ipixuna nao tem ne-
me - é simplesmente Pic~na, ou paranl, ria.

Outros marcos µsados na forma9ao d_e topónimos sao os acarnp!_


mentas erguidos na mata durante as ca9adas do cauirn ou as expedi
~oes familiares¡ e as concentra9oes de espécies frutíferas (p.ex.
Kop i ti, cupua9uzal, nome de wn rio1. Nos arredores irnediatos das
aldeias, os locais de nascimento de crian~as sao muito usados (é

comum as rnaes buscarem a mata próxima na hora do parto) • As ca


poeiras que cercam a al~eia sao designadas pelo neme de seus anti

172
situaq~o dos araweté

gos titulares (marido ou mulher), e assim .também os caminhos de


caya que as atravessam.

ve-se,. ·assim, que o espayo geográfico é integralmente inves .


- '
tido pela memoria coletiva, e n·o tadamente pela memoria da
' . . .. morte
de membros da . tribó. t, porém, ·urna memória puramente linear, que
se conforma a trajetória dos vivos no espayo.· Nao existem, seja
no território atual, seja na lembra·n ya dos mais velhos, sitios ou
acidentes geográficos individualizados e dotados de ·valor mítico.
Nao há pontos fixos ou de retorno. O que nao quer dizer que o es-
payo s~ja uniforme, nern que a história mais arcaica ~ao esteja im
pressa no mundo •. Assim, as grandes moitas de banana-brava sao as
antigas "plantayoes"· dos deuses,· que comiam dela~ antes que um hu
mano lhes dissesse do mil.ho~.....assim, os morros de .pedra ~ua que se
erguem ·na mata sao . iguais aqueles que os Maf suspenderam para fer
--
mar a abóbada celeste · .:. 'Óu sao fragmentos daqueles, pois mostram'
as marcas do cataclisma; assim, as cachoeiras do Ipixuna, que tr~
" .
zem inúmeros pontos de lascamento e afia9ao de instrumentos líti-
cos, estao coalhadas de sinais dos pés e do corpo dos .Maf, vesti-
gios do "tempo em que as pedras eram moles" (ita ttme me) - i.e .
..
a catástrofe decorrente da elevayao dos céus. Nao há, porém, um
.
morro ou urna cachoeira em particular que se destaquem. Os sinais
. .
dos deuses es~ao em .toda parte •

. · Profundamente gravados na . memória A·r aweté, ··es tao os choques


com grupos inimig~s. t ~ isto que se devem a~ migra~o~s da tribo.
E sobre os. Kayapó:, especialmente, recai . a. responsabilidade de te-·
rem "·extinguido" (moma) os outrora numerosos Aráweté-. De fato,suas
. ....- - . . . ' .
baixas nas maos de inimigos - gente marta ou raptada - sao bastan
te elevadas, ao -contrário do que parece ser o usual no contexto
da "guerra primitiva" na. Ama·z onia (Menget, 1977: 85). A expansao -
173
araweté: os deuses canibais

Kayapó foi mortlfera para ·os Araweté, que, como os demai,s povo·s . •
do Xingu, sempre levaram desvantagem no confronto com essa tribo
Jé. Assim, das 477 pessoas mortas nas Últimas 6 9era9oes (tomand~
-se como 9era9ao O as criancras .atuais) cujo nome pude obter, 114
-
foram mortas ou levadas por . Kayapo, contra 18 em choques com os
Parakana, 18 com os brancos., 14 por inimigos nao-:especificados, e
3 meninas raptadas pelos Asurinl. Ou seja, 35% dos mortos lembra-

dos foram vi tima de inimigos (.e deste total, 71% cabe aos Kaya-
po.. ) 32 •

(32) Esta poroentagem oertamente cairia, se "todas" as IrDrtes nas Últimas <JE:ª
<;Ces fossen lembradas; pois é ramável supor-se que as haiXM de .guerra sejam
mai.s fielmente l.eniJradas que as m::rtes por ~, sobretud;;> na infincia. As
outras categorias de causas de nr:>rte que estaheleci sao: aci.dentes - 23¡ "ó:>en
\2" (que i.nclui algmas epidemias pxé 1976) - 67; ataques de espirita; - 2 ;
nortes após o ·o cntato en 1976 (excluindo acidentes) - 59:
- 16l(ern sua maioria, ll'Drt.es nas~ nais ~lhas).

Os Kayapó atacaram os Ar-a weté repe~idas vezes, nas cabecei-


ras do Bacajá, nas águas do Bom Jardim e mesmo no Ipixuna. Algu-
mas mulheres raptadas por eles -conseguiram voltar, e trouxeram<X!!
K~rere,
sigo vár.ios nomes boje usados na aldeia: Merereti,
33
- - Kirere
-
ti... Os Asuriní, por seu lado, sofreram .m uito mais .baixas -das

(33) Os Arawet:é distinguen os Kayapo, r.ane adaptado oo portuguis, oos Awi'


aCik.Q ou AmiÑhi ña, "inimigcs que batan" ou "senb:>:r:es da borduna". Os Kayapo
- -
usavam armas de fog:J, se situavam a E/SE oo Ipixuna - sao qua.se a:m certeza'
~
-
os X1krin oo Bacajá. Os ALñ .aCik.Q usavam bordunas, estariam na ~ Sul ó:>
t.e:rritório Araweté, e os atacavam há mais t.e1p:>. Devém ser os Goroti:r:e. J\lTibas
as trilx:>S teriam a mesma ltngua, aparéncla e adornos.

maos dos Araweté que vi-ce-versa. Os Araweté· demonstram possuir una


razoável familiaridade com ·a .cultura AsurinI - em parte, porque

174
situaqáo dos araweté

eles ocuparam aldeias Asurin! abandonadas as pressas. Mas a tradi


~ao identifica os Asurinl a um grupo antigo, os Todff, de quem os
Araweté obtiveram a .batata-doce. Eles falam em várias pessoas raE
'
tad'as de parte a parte, em urna lonqa série de vinditas e de antr~

pofagia reciproca. Este era o tempo dos ancestrais (p~rowl'hg) ,


quando os Araweté usavam, além ~o arco, a borduna irapi, feita do
cerne do pau-preto e de aparencia identica a borduna Tupinambá •

Há vários nomes pessoais, boje, proveniente dos Todl.


Os Parakana sao o inimigo mals recente ~os Araweté, e tém
levado vantaqem em seus ataques. Eles sao designados simplesmente
como awl, inimigos; alguns velhos afirmam serem eles os antiqos
Iriw, .a ou Iriw' pep~ ña, •comedores de urubu• ou "senhores das
penas de urubu".
Um importante grupo inimigo, que teria combatido contra os
Araweté na regiao do Bacajá, há cerca de 80 anos atrás, sao os
Towaho. Esta palavra pode ser um ·c oqnato do Tupinambá -tovaja, ini
migo, acrescido da termina~ao -ho, "grande". ·Eles me foratn descr.!,
tos como usando o cabelo comprido na nuca e repartido ao meio ,•
seus arcos eram de pau d'arco, muito compridos. Costumavam decap!
tar os inimigos mortos, levando a cabe~a como troféu; diz-se ain-
da que eles cortavatn os grandes lábios vaginais das mulheres mor-
tas, para devorá-los (uma fantasia tipicamente Araweté). Os T<Naho
sao conspicuos na cosmologia Araweté: os cantos de guerra usam i-
magens retiradas désta antiga tradi~ao de guerra contra eles, e
há um esplri to . celeste chamado To1JJ~ho pe ye, "pajé dos Towaho •• 3 4 •

( 34) o CXlStme de decapitar os inimigos nm tos era ™ aos Arara, Juruna ,


Shipaya e Olruaya (Ninuendaju, 1948:236). 'l'?das estas trihos usavam os cabelos
ccnpridos - inclusive os Arara, que se distingu:lriam assim dos Arara cx:ntenpo-
raneos. Os Araweté, por sua vez, decapitaram reoesitemente un Parakana rrox to •

175
araweté : os deuses canibais

Por fim, há ·urna consider.á vel legiao de inimigos dos tempos


antigos, mais ou menos fantásticos: os Iapt't wl, os x.,;p! iwawi
(que levavam uma colméia de xupé as · costas) ., os Ay~?'.,; awl, "inimi
gos papagaios", os· 1ñira awl, "morcegos" (dormiam pendurados de
ponta-cabe9a), os Tato awl, "tatus", os O'i rJOk!!._, "flechas compr,!.
das", e muitos outros, numa prolifera9ao "quase-totemica" em ·que
espécies naturais ou outros critérios distinguem. os tipos de gen-
te que povoa a terra, de um modo que nao deixa de evocar a antro-·
pologia imaginá-r ia medieval .• . (E cabe · observar aqui que o"operador
totemico" Arawe.té é utilizado nao pa·ra classif.icar grupos no inte
rior da sociedade, mas ·espécies de .inimigos no cosmos). Esta
..
· e

urna concep9ao essencial Araweté: · os Araweté ou seres humanos


..
pro
prios (btde) sao urna espécie de seres, no interior de uma multi -
plicidade de outras espécies ·de seres· humanos, que formam outras
tantas sociedades,. mais ou" menos diferentes da ·sociedadé. Araweté.
Esta serialidade aberta das espécies de · gehte se reflete na comp2
sicrao das popula9oes ·ceiestes 35 •

(35) Os nares dé tribos inimiga5 ou de individuos delas sao nuito usados "cx:::m:>
~ ~s~s Araweté,o .que, ~ verE!'l'C?s, traduz .urna atitu:l~ filosófica bem
ma.is geral: a captura de identidades El!' ~ regi0es fora da esfera do Mesroo, oos
terren:>s do CXltro - rrortoS, deuses, inirnigos-.

Os Araweté tem urna persistente, embora vaga, tradi9ao ~e ci


. . .
sao originária de um grande grupo .Tupi-Guarani - ou melhor, Ara-
wet~, posto q~e se pens~ com~ o ~en~ro da d~spersa~ como o grupo
que _s e manteve ident.~co a si mesmo (i~equivocaµiente "nao-·inimigo",
numa -tautologia interessante). Tal c±sao gerou diversos povos: os
Toti:r!, os Ireiere wl, os . Irañi
- . -
-oho
. .
e outros. Alguns sao ditos irio-
-

fensivos (mart' l me ~e)¡ outros odt moawi, viraram inimi9os. A ép2.

176
situaqao dos araweté

ca desta separacrao nao é clara; ela as vezes se confunde com seu


modelo mítico mais· remoto, . o evento originário de separa9ao dos
hornens e dos deuses. Corno nes~ ocasiao, o motivo da cisao Tupi
foi. um conflito. entreinarido e rnulher, que levou os parentes do
primeiro a se afastarem para seínpre. Por outro lado, a memória hi!
tórica Araweté registra várias dtsputas sobre rnulheres, ·com o raE
to de esposas entre aldeias e o surgimento de urna inimizade dura-
doura entre as partes. Os '- Ama' l w?, ••a gente de Ama'!", seria um
- -
desses grupos separados, há meio século. De toda forma, a auto
-concep9ao Araweté é a de que eles sao o fruto de urna "especia -
9ao 11· a partir de uma si tua9ao original em que se confundiam · com
os "futuros outros" (am;te r?) ou · "ex-Araweté" (b-fd!!_ pe). Nest·e
sentido, a diferencra entre "nos" e "inimigos" é diacronicamente '
pouco clara. As frontei.ras conceituais do grupo se revelam flui -
das - mesmo que, na sincroni.a, a posi9ao de inimigo seja óbvia,ha
ja vi·s to o conflito armado. Semelhante indefini9ao nos contornos
da .identidade coletiva tem inúmeras implica9oes: o ser Araweté,de
certo mod,o, é wna questao em aberto ..- para eles.

A situa9ao da aldeia atual sugere mais algurnas observ~9oes'

nesse sentido. Historicarnente·, os Araweté distinguern entre os


dois grandes blocos que, separados pelo Kayapó e unidos pelos Pa-
rakana, foram contactados e aldeados pelos brancas. Esses blocas,
apesar de tei:'ern estado sern contato mútuo por dez anos, estavam li
gados por parentesco, e em 1977-78 reatararn suas liga9oes, volta~

do a inter-casar. Atualrn~r:ite, eles nao conforrnarn nenhurn tipo . . de


divisao política, espacial ou matrimonial; mas a identifica~ao de
urna pessoa a uin ou outro bloco de origem pode ser acionada ern si-
tua<;oes de . confli to interpessoal, e está sempre present~.. na rn_emó-
ria. Cada bloco se define como urn "nós" ·(exclusivo: f,re, e especi

177
araweté : os deuses canibais

fica o pronome pela expressao: X 1.t1i, "os com X" - onde X é o nome
de urna ou mais pessoas importantes, vivas ou mortas, normalmente
o "dono" ou "dona" das aldeias antigas de cada bloco (ver adian -
te). o nome das aldeias antigas .nunca é usado como identifica~ao;

corno vimos, as al~eias antigas, em vez de servirem de identidade'


para os vivos que lá nasceram, sao elas mesmas nomeadas pelos que
lá morreram.
Cada bloco, ademais, define o outro como iwi amüte pa re .•
"filhos (ex-habitantes) de outra terra". Distingue-se assim entre
as ta d;, "outras aldeias" ou "aldeias próximas~ - aquelas que
formavam um bloco com a aldeia do falante - e as aldeias "do ou -
tro lado da terra" (iwi rowana ti ha) ou "da outra terra" (iwi
amit~> 36 • Mas apenas isto. As diferentes origens dos habitantes

( 36) ~ intX>rtante, em Araweté, a dis~ entre a; e ~te, oois teD'los que


¡xx3em ser t:raduzitbs caro "outro". ~ significa "out.ro igual" (CXXJllatos Tupi -
-Glarani.: y~ irü, etc., para "amigo", "carpanheiro"). ~te é "outro dif~
te", de outra espécie . .Ambos os teDros seo c::entrais na t:enni.oologia de paren -
tesa>; o prineiro a:uota a cxmsangüinidade, o segunck> a afinidade.

da aldeia nao conotam diferen~as políticas ou culturais, e nao ñm


damentam· nenhuma forma de a~ao coletiva. Em suma, a afilia~ao a
aldeias de origem nao r~percute significativamente na morfologia'
e na prática social. O sentimento de perten~a a urna aldeia é nota
velmente vago do ponto de vista sociológico~ 7 , o que traduz a v.a-

. .
(37} Esta é situacrao CXJtUn a vários outros Tupi-0.larani.. Assim, os Tenete-
\mla

hara apresentam ma grande varta;ao na cx:arpos~ das aldeias, em teinos tat~


rais, e o sentimento de~ a una aldeia "nao é rruito acentuado" (wagley
_& Galvao, 1961: 32); os Parintintin nao superp0em a afilja~ao aes grupos lo-
ca.is e os conflltos que surgen durante as oerim3nias, apesar da "rivalidcwie ~
dérnica entre grupos locais vizinhos" (Kracke, 1978:63). Os Tapirapé, enfim ,
que em 1939 reun1am em una só aldeia os remanescentes de quatro outras, e ~

178


situar;lo dos araweté

davam una forte menória das afiliacrees aldeas Calém de una foxma de identifi~
c;ao pesSoal feita pelo race da aldeia), nao usavam estas afi~ cxm> super
t.e de sua estrutura faccional (Wagley, 1977:83-5). E vale ootar que est.as duas
Últjmas tribos possuiarn eSt.ruturas sociais inteDnediárias entre a familia e a
tribo, alán de trans-alaeas (metades exogámicas e metades oerim:miais, respec-
tivamente) .o que nao
é o caso dos Araweté,que nao
dispOem de grupos cu estrut'!_
ras de identidade entre a ser¡:ao dOnéstiex>-residencial (familia extensa) e a
(vaga) unidade tribal. A aldtrla nao é una unidade ocn::eitual fundarrental, seja
OCJlDestr:utura capaz de integrar os grupos cbnéstioos, seja cxm::> fonte de iden
tidade territ.orial. ver as observat;Oes de Menget sobre os Txi.cao, grupo caribe
oo Xingu CMEn3et, 1977:122), e as de Riviere (1984:11) para as Guianas.

riabilidade histórica na cornposi9ao das aldeias, e seu rápido a-


bandono. t possivel que, no passado, a situa~ao fosse wn pouco
mais marcada. Mas os la~os de parentesco inter-aldeao relativiza-
vam a identidade coletiva de uma alqeia. A parentela predomina so
bre a aldeia.
O contato Araweté com os brancos· é muito anterior a década
de 70. Nas águas do Bacajá, há pelo menos 50 anos, um grupo de
brancos massacrou 13 Araweté; e somos conhecidos até hoje como
Karama-ri r!?J'fna,"os matadores de Karam~-r~" (urna das v!timas)
Epidemias de provável origem civilizada também grassaram entre os
Araweté quando a~nda estavam no Bacajá. E o costume de se
obterem os machados de ferro nas capoeiras abandonadas sugere urna
relativa "simbiose" ecológica antiga, mesmo que marginal.

Mas os homens adultos afirmam que só viera.ro a ver, realmen-


te, os brancos, quando chegaram ao Ipixuna. Isto é, foi apenas lá
que eles tiverarn intera~ao nao-guerreira com eles. Presentes no
Ipixuna, em grande número, n·as décadas de 60 e 70, os gateiros fo
ram estimulados pelos "patroes", desde 1967 (quando a ca9a tornou
-se proibida), a darem presentes aos indios. Chegaram a visitar'
algumas aldeias, tomando cauim e mesmo, segundo os indios, dormin

179
araweté : os deuses canibais

do lá. Isto nao impediu alguns choques armados, com mortes de am-
bos os lados.
A partir de 1970, a FUNAI, alertada por um "passeio" que al
guns Araweté fizeram até as margens do Xingu (levados por um ga-
teiro amigo), e diante das noticias repetidas de indios na regiao,
come9a os trabalhos de "atra~ao" .dos indios da régiao entre o I-
pia~ava e o Bom Jardim. Em 1971 os Asurini foram localizados. Os
Araweté tem breves encontros com os sertanistas, mas nao permitem
visita as suas aldeias. Em 1974 a FUNAI constrói um Pasto, e abre
ro~as, no alto curso do Ipixuna, a 100 quilómetros da foz, junto
a urna aldeia Araweté abandonada. Mas é somente em 1976 que se con
segue o contato. No inicio desse ano, os Parakana atacam no alto'
Ipixuna e no Bom Jardim, levando as aldeias Araweté de ambos os
rios a fugirem em dire9ao ao Jatobá. Urna parte do grupo busca a
margem do Xingu, onde acampa na ro9a de um "beiradeiro". A frente
de · atra9ao vai encontrá-los lá em maio de 1976, em péssimas cond!
yoes de saúde. Os sertanistas convencem entao os indios a se muda
rem para o Posto de Atra9ao. Eles fazem wna viagem por terra, que
durou 22 dias; a maioria estava fraca óemais para andar, e muitos
(cerca de 30) morreram no caminho, ou forarn abandonados. ·No final
do ano, um ataque Parakana a uma aldeia que ainda existía no Jato
bá levou esta a se reunir ao grupo que estava no Pesto. Ali, to-
do s os Araweté que sobre-viveram aos Parakana, as epidemias e -
a

caminhada, ficaram até 1978, quando os indios e qs sertanistas de


cidem mudar-se para o médio curso 40 Ipixuna, devido a uma nova
tentativa de ataque Parakana em fins de 1977. Instalam entao duas
aldeias, que em 1981 se fundem numa ·s ó, junto ao novo Posto - e
38
lá estao até hoje •

(38) A falte principal de -


info~
- 'Sd:>re o ccntato . --·
Arawetesao os diários
manuscritos do se.rtanista J.E.carvalb::> (1977), que Berta Ribeiro gentilmente

180

situac;ao dos araweté

me pennitiu ccnsultar. Para maiores detalhes oo a:m.tato e da sitl~ médica e


denográfica dos an::>S . 1976-79, ver Viveiros.de castro, 1982:16-27.

A . popula~ao Araweté imediatamente anterior aos ataques Para


kani ea busca do rio Xingu era de cerca de 200 individuos. A
mortalidade causada por epidemias e desnutri~ao f oi maior que as
báixas de guerra. Entre maio de 1976 e o assentamento definitivo•
na' aldeia do Pesto, em dezembro daquele ano, cerca de 60 pessoas
morreram. O primeiro censo dos Araweté, de mar90 de · 1977, conta
120 pessoas. ·Em 1979 a po~ula~io havia subido para 133 pessoas, o
que indica a rápida recupera~ao demográfica do grupo. urna epide -
mia em 1980 quebrou o lmpeto ascensional da popula~ao, e em feve-
reiro de 1983 os Araweté contavam 135 individuos, assim distribuí
dos:

IDADE HOMENS MULHERES TOTAL

70 - 02 01 03
65 - 69 00 00 00
60 64 00 01 01
55 - ~9 00 00 OO.
so - 54 03 00 03
45 - 49 05 03 08
40 - 44 05 06 11
35 - 39 08 05 13
30 - 34 07 05 12
25 - 29 07 03 10
20 24 04 04 08
15 - 19 03 08 11
10 - 14 06 06 12
05 - 09 09 14 23
00 - 04 06 15 21 .
TOTAL 64 71 136

181
araweté: os deuses canibais

Ou seja, 55% da populacrao está abaixo de 25 anos, com urna


grande concentra~ao (32,7%) nas faixas de O a 9 anos - urna boa t~

xa de natalidade nos Últimos anos. A proporc·i onalidade en.t re os


sexos é razoável, com a diferen~a em favor das mulheres devendo-
-se a urna muito maior natalidade (e sobrevida pós-parto) feminina,
\.
recentemente.
O registro de nascimentos come~ou a ser feito a partir de
outubro de 1977. Desta época até fevereiro de 1983, houve 38 nas-
cimentos, o que deve ser considerado urna elevada capacidade de
recupera~ao demográfica, capaz de compensar as mortes por epide -
mia e a relativamente alta incidencia de abortos espontaneos, bem
como os f atores que podem levar a decisao de infanticidio (ver a-
dian te). A taxa de mortalidade é }Duito alta: estimo que caqa mu-
lher adulta tem, boje, menos de 50% de seus filhos vivos.

Esta é a situa~ao geral dos Arawe~é. O presente capítulo ,


embora introduzindo aspectos da vida do grupo, estabeleceu sobre-
tudo determina~oes negativas, várias: impossibilidade de identifi
ca~ao histórica precisa dos Araweté: impossibilidade de caracter!
zac;ao lingüística especl.fica; simplicidade da cultura material ,•
fluidez da divisao sexual · do trabalho: geografia "móvel" e sem
pontos fixos mitológicos; fluidez das fronteiras conceituais do
grupo; pouca importancia da af.i .liac;ao a aldeia de origem. Eviden-
temente, muitas destas determinac;oes sao apenas formalmente nega-
tivas, indicando um perfil de positividade que ainda resta por
delinear com mais clareza. 2 isto qµe tentam os capítulos segui~

tes.

182
CAPITULO IV

OS ABANDONAOOS:

O MUNDO E SEUS HABITANTES

... • rp/¡11'

Anos, •
pa~ses, povos
Fogem no tempo
Como água corrente.
A natureza é espelho móvel,
Estrelas - redes; nós - os peix~s;
Visoes da treva - os deuses •
)
.
~ ~ (V. Khliébnikov /A. de Campos)

183
araweté : os deuses canibais

,.
l. GENESE E COSMOGRAFIA DO MUNDO ATUAL

"Estamos no meio" - dizem, dos seres humanos, os Araweté •


Sua cosmogonia tem como evento originário a dif erencia~ao · entre
as camadas ou "suportes" (htipa) 1 que· ·hoj.e compoem o universo.Além

(1) hi:pa significa: leito, 5uporte, superl!cie ae· inscriyao de algo¡ é o me~
no oonceito que grafanos -r-ipG. na descricrao da t:qx>nímia Araweté. (F)n 'l\lpi-
Guarani, as oonsoantes iniciais t e h , em muitas palavras, marcarn as fo:r:mas
indetel:lninada (absoluta) e determinada (relativa) do cxmceito eJq?resso na
raiz, respectivamente. .Elas
.
se JllL1dam em re n (após nasal), em certas a:>nstru ~

c;Oes mrp.>stas - possessivas, geni'tivas, adjetivas, e_tc. Ero Araweté, após urna
final f, os r iniciais rru:larn para d ou d; mas há irregularidades) •

de nossa terr~, suporte . dos humanos, há wn mundo subterraneo e


dois patamares celestes. A afirma~ao "estamos no meio" (b-Cde ipi-
te re) resume urna concep~ao do mundo terrestre como estando envol
vido pelo Mal ~ipa, os suportes das divindades, que sao definidos ·
como "outras terras" ou "céus" (iwi am;t!!_, . iwa amit~), separados
do nosso em wn cataclisma inaugural.
Os humanos se definem, no contexto desta separa9ao, como a-
queles que foram deixados para trás, . "os abandonados" (hiña mi re).
Antes disso, os homens e os futuros deuses (Mal dl) viviam em co-
mum na terra - um mundo sem trabalho e sem morte, mas também sem
fogo e plantas cultivadas. Entao, em conseqüencia de um insulto
que ouviu de sua esposa Tad!d~, a divindade Aranami resolveu afas
tar-se, a9astado comos homens 2 • Junto coro seu sobrinho(yi'i, . ZS)

'
insulto <~k~ra) que a mulher de Aranam:l lhe fez é-ne esPe .:. .
· (2) A nature7.a do
cialmente enigmática. Ela "jogou fo,;a as pegadas dele" (ipipa mara heti) - ou
seja, desfez os sinais dos pés da divindade nas pedras. Nao
consegui entender
por que isto foi \ITla oferisa.

184
os abandonados

o rrotivo do oonflito H,M na .separ~ dos human:>s e Cbs deuseus ou heróis


culturais é :reccrrente rx>s'I\lpi-Guarani: Kaap=>r (Huxley, 1963:245); Teneteha-
ra (Wagley & Galvao, 1961.: 48) r G.Jarani (NirnueIXiaju, 1978: 68-9) • o "pecaó:> ori
..Jgi.nal" fenini.ño foi a des~ ms .poderes mágicos ck> marick> divino; ou o a-
dultério incestuoso (Guarani). O que nunca foi observado, é ·que essa "annadu-
ra sociológica" oo mito da dispersao iirplica, ae· alguna fonna, que os huma-
nbs poderiam ser concebid::>s a:no afins des que vieram a -ser os deuses. Tal
inpllcac;io, . que nao faz sentick> para ex>enologias a:J10 as dos Guarani, wayapi
e outtas, que at:ri.buem una natureza paterna ao deus, ressaltará a:m clareza •
no caso dos Arawe~: A e~ de ~ foi "abandonada" - isto é, tormu-se
lunana • .

Hehede'a,
.- tomou do chocalho de xamanismo e pós-se a cantar e a
fumar. Cantando, eles ergueram o solo de pedra em que estavarn,até
formar a abébada celeste. Com e·l-es for-am -wtta mul tidao de outros
Ma!, e seres de outras categorias. Outros subiram ainda mais alto,
constituindo o segundo céu - sao os I'llJa p!d-l pa, .. habitantes do
céu vermelho''. A matéria dos suportes celestes foram grandes ita-
pe, forma~oes graníticas semelhantes as que se acham nas matas do
Ipixuna. Os céus, assim, sao de pedra - como de pedra sao as ca-
sas, as panelas , os arcos e os machados dos deuses. A pedra é, pa
ra eles, maleável como para nós o barro.
·-
A subida dos céus ocasionou wna catástrofe. Privada de seu
fundamento pétreo, a terra se dissolveu (ik~e) sob as ág~as, que
. .
tomaram o mundo - urna inunda~ao causada por um rio, ou, segundo •
outras versees, por· wna chuva. Pako aáo e Yiáir~ ac~, a piranha
e o jacaré monstruosos, devoravam os humanos. Salvaram-se apenas
dois homens e wna mulher, que subiram num pé de bacaba(pidow~'i).
"
Ninguém soube me dizer seus nomes. Eles sao os tema ipi, a "ori-
gem da rama" - os ancestrais da humanidade atua1 3 • A inunda~ao

(3) he~ é una categoria de plantas txepadoras ou de rama. Te~ ipf,_ sao . os
'
185
araweté: os deuses canibais

"olh:>s" ou pontos de~ oos tubérculos• .Assim, os Araweté cxnoebem a


progressao das gerai;X)es nao sob a nossa fonna ·de árvore, mas· de urna "ramada"
genealógica que se espalha sobre a terra e a . robre~ mto os saxnentos de bata
ta-doce ou cará (~. cx:rn imagen J<rahó análoga; in Ladeira, 1982:56).
-
-
seguiu-se urna época de re-endurecimento da crosta terrestre, fei
ta por heróis rnlticos. o relevo atual, com seus rios, planicies e
os morros que restaram, é assim o "molde" ou o negativo do deseo-
lamento da superficie celeste e posterior dilúvio.
Outros seres (tambérn Ma!) fugiram dos monstros do dilúvib
afundando nas aguas, e consolidando o mundo inferior. Sao os Ta-
rayo e Motfna aco wl, que lá habitam em ilhas de um grande rio. O
mundo subterraneo possui uma conota~~o aquática. Mas ele nao de-
sernpenha wn papel rnuito significativo na cosrnologia Araweté. De
todas as camadas nao-terrestres, a mais importante é a primeira ~

cima de nós, cuja avesso é o céu visivel. Seu nome é Mat pi, o lu
gar das divindades. Ali vivem dezenas de ra~as de Mat, entre eles
os Mal hete ou Mal oho, os Mal "verdadeiros" ou "grandes", asso -
ciados ªº trovao e aos raios. e para este céu que vao os mor tos,
ou melhor, urna parte de sua persona.
Nossa terra é concebida como um disco, que se eleva progres
-
sivamente em suas bordas até ser interceptado pelo céu, que por
sua vez é urna abóbada que mergulha, a modo de redoma, até a terra.
Nos confins do mundo (iwi yec~ pa we, "onde a terra entra"; iwa
neyi pa we,"onde o céu desee") todos os diferentes patamares cós-
micos se comunicam, ern urna geograf ia de difícil representa9ao ge2
métrica. Cada urna das camadas do universo tern suas próprias estre
-
las e lua, que brilham no reverso (i'k~P! ti) das camadas imediat~

mente superiores. As estrelas que nós vernos sao iwitah~'l, urna


espécie de lagarta ou verme luminescente que se acha nas ro-

186
os abandonados

~as 4 • A lua - a lua que vernos (nao sei das outras) - é urn ser mas

(4) DiziarrHne tantán que as estrelas' (yáhi._ tata, "fogo da lua") sao as foguie!_
ras acesas nos J1llllOOs ~ores. A ~soc1 ~ das estrelas cx:m lagartas tam-
bém é feita pelos Kayabi (Granberg, 1970:166) e pelos Shipaya (Nin'alendaju,
1981:16). Para m1nha surpresa, os Araweté setpre pared.aro nao entender, quan-
do eu tentava obter os ranes de suas constela¡i5es. Dn nossas longas conversas
sabre o céu, sequer o JXJne de estrelas ou planetas eu c::ai.se;ui saber (exceto
venus, "cx:rrpanheira de Lua") • As nu:iarv;as das estac?5es seopre me faram rela -
ciooadas can a flor~ ou frutific:arao de espécies vegetais, cantos de aves
ou insetos, etc.: nunca can a posi~ das estrelas. Dnbora estarm quase cer-
to de que se tratou de incapac.idade minha., nio" posso de1xar de registrar que
os Araweté senpre se roostraram mais inte:ressados oo que ·se passava oo "lado
de dentro" (haiPi_ ti) oo céu, daninio cbs deuses, que nos .oorpos celestes vi-
síveis, que esta:> "enila.iJco 00 oéu" (~ na~ iro). Talvez eles nao tenham ,
afinal, caistel~es ••• Nen v
- - -
11• a Vi.a-Láctea cau;egui que identificassen:ou
pelo nex:>s que me dissessem dela mais que: "1canoho Ntiin:z 'i", perna de gaviio
- - -
-real (~Ja pl\IDagel\ branca) •

culino, ligado a rnenstrua~ao. Seu ocasional halo verrnelho é o san


gue das mulheres com quem copulou, e assim as fez menstruar. O

sol (karahi), por sua vez, é único: é o mesmo sol que brilha em
todas as camadas do universo. Ele nao é "antropomorfo" (bld~ he-
ri): é wn peda~o da grande cobra Arco-tris, cortado pelos deuses.
Quando na terra é noite, o sol percorre o mundo inferior (i~i

kati), no sentido oeste-leste - lá entao faz dia. Nao obstante,os


Araweté afirmam que, durante nossa noite, é este mesmo sol que
ilumina os mundos superiores. Tal inconsisténcia tópica nao preo-
cupa os Araweté, que insistem na unicidade do sol - que contrasta
corn a multiplicidade das luas: pois, nao só elas sao tantas quan-
tos os patamares, como cada lua nova é urna nova lua; cada luna9ao
traz urna outra (a mite) lua, diversa da antiga, que se vai consu
mindo até "acabar" (iipa), retalhada a machado pelo espirito femi-

187
araweté: os deuses canibais

nino Maraiam~ 5 . o tempo é contado em termos de luna9oes, e perío-

. -. . - . ..
(5) Há maneirisnos proverbiais Araweté que subl.inham, i.ndiretanente, esta
. I

oonCep¡:ao aa' unicida& do sol e.·aa nW.tiplicldadé dá lUá. P~a si~ficar que
nao esquecem:>S ofensas antigas, diz-se: é 'e te -~hi, "é este nésin.::> sol" (que
brilha ooje, e briihava ~ D:>S flzeram-maÍ). E~ urna· rro.tlher qlier re-
. . .
\

cu5ar os . oonvites arrorosos de \:11\ lOten, remete


' .. .
sua aceit~. para as céil.enda5
. -·
gregas, dizerx:lo: a;m;te yahi, "em oUtra iunac;ao (farei o que vece me. pede)".
- - .

dos menor~s quE7 urna del.as .$ao indi.c ados pela


entardecer.
~· :' . '
o que a concep9ao de um mesmo sol que brilha a noite nos
mundos inferior e superiores parece traduzir é urna oposic;ao glo-
bal entre o mundo humanó e os m'Undos dos Mal: quando aqui é dia ,
la é noite, e· vice-versa·~. t semelhante inversao que explica, se-

( 6) O numdo inferior é dito Mal tiakape u


mó, "j~, barreira ·dos Mal". Ha-
kape ti é fechar, unir, iJrp:dir que algo pássa ou entre. E hakape timo diz-
- . -
-se de casas geni.nadas. ou seja, o mundo inferi~ pode ser en~do caro "fe
·chand:>" a esfera do ooSltos, envolverd:> o ñtuncb terrestre,' ou caro "gerninacX> "
aos nrundos celestes - neste ca.so, o patamar ·dos liJrens seria ·a parede ou mem-
brana que separa os munó::>s diyinos.

gundo os iu-aweté, por que os cantos xamanisticos sempre sao notur


nos, encerrando-se as primeiras luzes da aurora.
Na verdade, é a . representa9ao do universo como· sendo compo~

to de camadas superpostas - mesmo -que encontre · apoio em modos de


falar ~raweté - que se mostra .inadequada- para urna descric;ao da
cosmología. Assim, por exemplo, as .diferentes rac;ras de. deuses · do
Ma! pi estao a distancias diferentes do mundo humano - tanto no
eixo horizontal quanto vertical - apesar de habitarem ·o ·"mesmo"p-a
tamar. Os valores vertica.is e ho.r izontais do cosmos .se misturam '
ou interinfluenciam, .e as qual_idades simbólicas· do espac;ro .distor-

188
os abandonados

e,,ern qualquer neutra- ,geometria.


Os Araweté nao demonstram muito interessé em dar ·conta da
origem do sol e . da
. .
lua. Alguns me disseram que foram os Mal que
os puseram .lá; outros, que e~es forarn criados (mara) pelos gemeos
. ÑS-Maf e Miko ra'i. Mas ·a teoria mais difundida atribui a coruja
caburé (orokoro, a) ·a instalac:;ao da noi te e a "abertura do sol" (ka
rahi ~~p~dawa), isto é, o estabelecimento. da periodicidade dia/
noite. Antigamente só havia dia, o mundo era terrivelmente quen-
te 7. Ao caburé se dev~ também a doa~ao do fogo celeste aos Ma~.

(7) Una ver~ fraca oo tena . ~ ' lrD.Jnó.:> queimado", carun a várias cultur?S ame
ricanas (I.évi-Strauss, 1966:299), que ~tá em correJ~ao. ao tema Araweté oo
dilÜvio universal, fo.nna. fraca oo "mlndo podre". Nao pude saber se a cri~
da ooite é anterior ou posterior ao dilúvio. CCllO se sabe, os mitos de .CDlfla
grac;ao e dil\iv1-o universais sao
cxmms a todas as culturas Tllpi, estanck> ligél.
dos ao cx:rner;o e/ou fim des ta1pos. (Para esses mitos entre os Tukan:>,v. S.Hugh-
Jones, 1979: 235-8) • A coruja 6aburé é . tida por mae da ooi te peios Mbyá (cado
gan, 1979:18), e por senhara avara do dia pelos Tapirapé (Wagley, 1977:177).

O fogo de cozinha foi revelado aos deuses por um humano,


(que é também o nome de wn passarin~o vermelho, nao-identificado).
A chuva é causada pela águ_a que_ poreja do corpo de um gran-
de gaviao-carrapatei_ro celeste, o Tami how_l .'ha, q_ue . viv~ .. do ou-
tro lado da terra dos deuses" (i.e •., longe . das_ aldeias dos Mal

het!)· Outro animal, mas desta vez terrestre, associado a chuva é


o pequeno lagarto tarayo, cuja morte por maos hwnanas provocaria'
. . . -
dilúvio . semelhante ao primordia1 8 • o ·fim das chuvas e come~o
~
da

serelhante, para o lagarto menem·';,, GrOnberg, 1970 .•


(8) Ver a · CJ."'eI198 Kayabi
163. Deve-se rotar que o naie do lagarto tara.yo, que vive junto aos rios e
. - -
lembra um pequeno iguana, é o nesno do Ma.f do nundo inferior Tanzy~, que,cx:rro
a
vinos, parece associack> água. Nao obstante~ os Araweté serrpre negavam qual-
quer tipo de associ.~ao entre o ani-rnal e o ·e..c;pírito'' "hcm3.nino" • Este é um
problat.a .que x:eapar.ererá inÚlreras vezes.

189
araweté: os deuses canibais

o gaviao-carrapateiro, tarnbém chamado "gaviao-de-anta" por estar setpre


perto deste animal (é 5eU "mnao" dizem 0S é ti.do pelos Shipaya CX)-
Araweté) I

rt0 mestre cb fogo, associaOO ~s urubus (Ninuendaju, 1981:19). O tema TUpi cb


roulx:> do fogo do urubu pelos lnnens, crucial para ent.endernDS a 0061l'Ol.ogia
destes povos, nao se ac:ha entre os Araweté. E)n tra:a, a substitui~· Shipaya
do urubu pelo gav~_anta esclarece a associ~ Araweté entre eSta ave e
a chuva - é una prava 1.ndireta 00 "mundo podre" en versao fraca que erm1tra-
nos na mitologia Araweté, o dilúvio universal (ver mta anterior).

esta~ao seca sao atribuidos ao inhambu-gua9u, que seca os rios, e


a cigarrinha yaéiri (ta.mbém chamada de "inhambuzinho~ - _ nam~'e) ,

cujo canto anuncia a época da derrubada das ro9as novas, em setem


bro-outubro; ela guarda a água dos rios em urna grande panela de
pedra.
O trovio (o'i pep~) é o ruido do arco do Mal oh~ disparando
suas flechas que sao os raios (tata ipé). Outras versees dizem
que os relampagos sao o próprio corpo dos deuses, que brilham; ou
q~e sao causados pelo chocalho de xamanismo deles. ou ainda que
os raios f icam pendurados dentro da grande casa de pedra dos deu
ses, e que os filhos dos deuses, ao brincarem, batem com a cabe9a
nos raios e isso faz relampejar aqui na terra.
Tais varia9oes indica.m menos urna falta de interesse dos Ara
weté nestes fenomenos meteorológicos, que a prolifera~ao de ver -
-
soes sobre o mundo superior no discurso dos diversos xamas. Pois
os meteoros em geral estao profundamente ligados aes homens: eles
sempre sao interpretados como indices de processos a que as almas
dos mortos estao senda submetidas no céu. o trovao está ligado ao
ruido da "panela das almas", em que ' os mortos sao postos para re-
viver; os raios sao a manifesta~ao visível de um fago celeste in-
visivel que responde pela maioria das mortes "natura-i s" dos Arawe
9
té • Mesmo ventanias fortes traduzem alguma vontade divina em pr~

190
os abandonados

(9) Trata-se do fogo ha'iwa ha, de que trat.areros oo capítulo sobre a norte .
o raio é una netáfora para o· sénen, ou para a ejacula9ao;· a bolsa escrotal é
dita tata ipe riro, "saoo de raios", e os raios sao "o espeµna de Mat oho" •
. - - ·- . 4 • -

Isto talvez esteja associado


,
a hipei.-sexualidade dos deuses celestes, que ex>-
bi<;am as humanas.

ces so de execuc;ao, e · que é interpretada conforme as circ.unstan ·


cias.
Assim ~ embora os Araweté certamente nao "adorem" os fenome-

.
nos meteorológicos - como pensavam dos ·Tupi os primeiros cronis -
tas - (nao professando, ainda, nenhwn tipo de "mitologia solar" ,
como Huxley queria f azer crer dos Ka·apot) , nao há dúvida que a p~

pula<rao celeste (e, sobretudo, o deus que .causa o trovao e os


raios) é central em sua cosmologia. A .separac;ao original entre os
Mal e os homens-é a ·condi9ao ~a :ra~ao do xamanismo. ~o xama que
religa as esferas separadas. Para isso, há caminhos .
. ·O universo é cortado por inúmeros caminhos, que levam aos
outros mundos e, em cada .wn, as aldeias das diversas rac;as de di-
vindades. Mas há · uma via -principal no cosmo.s - o· ki1re.pe ( cf. hep~

~rilha), que seque o eixo do sol,· E-W. t por ele que o xama sobe
aos céus; é por ele que os deus.e s· e as almas já divinizadas · des
cem a terra para ".passear" (-ipohQ) e participar dos banquetes ce-
rimoniais. O k~rep~ é concebido como wn caminho largo, penumbroso
e perfumado, que se es..t ende
.
do zenite até o leste; ou alternativa -
mente, da a1deia Araweté aqui na terr~ até wn ponto indefinido do
céu, a leste; pois ele é inclinado, urna ladeira. Chegando ao mun-
do dos ME!_f, ele passa .como que por urna "porta" ou umbral, que -
e

a perigosa cobra Arco-tris. Este carninho foi aberto por Irayo-r~,

urn herói rnitico. Ele pode-se fechar em certas ocasioes, como du -


rante urna epidemia, ou logo após urna morte, na aldeia.

191
araweté: os deuses canibais

A parte oeste deste eixo, que se estend~ da aldeia até ou-

tro ponto indefinido no céu ocidental, é a rota seguida pelas al-

mas dos recém-falecidos (.que · sao enterrados como rosto voltado

para W); é um caminho estreito e escuro - um dos motivos porque '


se acendem fogueiras sobre os túmulos. Este caminho ~ que pode
ser concebido, igualmente, como tendo inicio. na altura da copa das
árvores (onde pousam as almas antes de seguir viagem} - nao rece-
be o neme de kirep~. Normalmente,. é chamado de Mo 'iroco kati, .. ba~.
da de Mo 'iroco.", conforme a situa9ao ocidental de um dos do is
senhores dos queixadas, que habitam os confins do mundo terrestre.
Lá existe outra cobra Arco-.! ris.

O Leste é referi.d o por uma variedade de expressoes·: karahi


rod!ha ti, "lado de onde o sol sai"; Pameri ~i re ti, "lado da
antiga casa de Pameri . (.um ancestral)"; e IUJi pite kati¡ -"lado do

meio da terra... o Oeste é chamado: karahi yeo~- ti, "onde o sol en


tra"; karahi o iwira pfdi, "onde o sol avermelha a mata" (poente).

O Sul e o Norte sao des·i gnados conjuntamente como karahi rowana


ti, "lado aposto do sol"; ou karahi ipopi ti, .. lado de través (em
rela<;ao) ao sol". o z-énite é ii.Ja pite, "centro do céu", ou Mal pi,
lugar dos deuses. O nadir, e o mundo inferior, sao Taray!!_ pi, lu-
gar dos Taray~, ou principalmente, _ iwi kati, "lado de baixo", "di.:.
- da terra".
re9ao

Ora, assim que as almas dos mortos chegam aos céus ~· ·e las

sao recebidas pelo Iri~g_ morq_ti-t ta, o ·s enhor dos Urubus. Esta di
vindade é dita estar muito próxima da terra (." lo·g o ali", apontam
comos lábios os Araweté~ indicando' o ceu ocidental). Já os Maf
het~, os deuses"propriamente ditos", em quem os martas serao trans
formados, habitam no zénite, no centro do m\mdo superior; mas tam
bém habitam o "meio" dos céus, isto é, estao a urna distancia me-

192
os abandonados

diana dos homens, no eixo vertical - entre divindades mais long!~

quas e mais próximas. Assim, ternos wn sistema de equivalencias ou


um feixe de oposic;roes,que resume ·todos os valores até aqui anali-
sadós:
(Céu) (Terra)
Leste Oeste
Alto Baixo
Centro-meio Margem
zenite Nadir
Deuses Mortos
Pedra 'Agua

Tal sistema, que apresenta uma feic;rao de "classificac;rao P2


lit~tica" (Needham, 1979:62-69), deve ser entendido como incompl~

to. - pois eixos semánticos adicionais a ele se agregarao - , prov!,


sório - pois veremos . que seu dualismo mascara urna tensao triádi-
ca-, e sobretudo como "ético", isto é, ele foi reconstruido por
mim, e nao parece servir de ~rcabouc;ro conceitual exaustivo da
cosmología Araweté, tao pouco preocupada quanto possível com opo-
sic;roes polares e/ou complementares - e certamente e.le nao informa
a morfologi.a social·.

cia,
-
De toda .forma, este sistema, para adquirir alguma consisten
deve se articular a outros materiais· cosmológicos Tupi-'Guar_!
ni - notadamente, a evidencias de associac;rao entre o mWldo infe-
rior e a porc;rao terrestre· da alma dos mortos, que nao encontramos
nos Araweté senao na forma enfraquecida de urna situac;rao mais "bai
xa" do caminho ocidental terra-céu, tomado pela alma celeste dos
mortos (a alma terrestre desloca-se no eixo horizontal, sem refe-
réncia aos pontos cardeais}. E desde já, algwnas observa~oes -
sao
necessárias. Em primeiro lugar, a associacrao entre Oeste e "Mar
gem" se fWldamenta na idéia Araweté de que eles agora habitaiu a

193
araweté': os deuses canibais

"beira" ou "margern" (hem! 'i) da terra, ern rela'q ao ao centro do


mundo, a Leste, seu sitio ancestral; ern segundo lugar, há wn

problema especial de 'tradu<;ao do concei to de 11


centro" em Araweté.
Aoque parece, a no<;ao de -pite, "centro", possui urna conota<;ao
tanto rad1·a1 quanto serial. Ou seja, -pit! se opoe tanto ·a hem! 'i,
borda ou periferia, quanto entra na tríade: teneta, ipit!,taaip~

"na frente ou primeiro", "no meio", "atrás ou Último" (sistema u-


sado, por exemplo, para designar a ordem de nascimento de um gru-
pode irmaos). t tal ambivalencia sernantica que produz a transla
c¡:ao conceitual dos eixos vertical e horizontal na "topo-lógica" A
raweté; é is to tambéiu que me pa+ece responder pela nao - eminencia
de um conceito de centro radial na morfol09ia espacial da aldeia
Araweté.

A separac¡:ao das camadas cósmicas é r ·e ferida, em Araweté, c2


mo "o tempo da dispersao" ou "tempo da di·,,-isao." (oh:t-ohl me, t:?Ja?Ja
me). Isto se refere tanto a separa<;ao dos homens e dos Maf, quan-
to a dispersao das diferentes tribos humanas que ocupam a terra .
Pois, em aparente contradic¡:ao coma versao mítica ·do dilúvio que
só poupou os ancestrais dos Araweté tver supra), afirma-se também
que a ·s.u bida dos céus ge·r ou a especiac;ao socio Lógica na terra. Há
uma passagem obscura do mi.to da divisao que narra como os awl,ora
pensados como Kayapó, ora como brancas, tentaram flechar Aranaml
e seus pares, quando estes subiam com o céu; e esta agressao é co
locada corno causa do evento anterior, a saber, a subida dos deu-
ses. Antes de pór tudo isso na conta do "pensamento pré-lógico" ,
...
o que devo ressaltar é minha ignorancia dos sucessos desta epoca
da dispersao, que se deve, em parte, a dificuldades lingüísticas.
Por outro lado, os Araweté sempre me diziam que nao sabiam direi
to como as coisas se passaram neste tempo. "Nós somos crianc¡:as",

194
os abandonados

. diziam-rne; "existimos há pouquissimo tempo" (ir! dem! ika) - isto


é, nao podemos saber o que houve naquela época ••• 10 •

(10) A repetida af~ao de~ "n0s saoos crianr;as" (i:r! ta'l doho), o::lfID

resposta dada por harens já bem madura; as minhas 1nda<Jac;é5es sobre os tenpos
antig:>s, talvez signifiqlE ma1s qtE s:ilrples iralia ou resulte da preguir;a.Ela
~evocar una oerta cxn~ . - de qtE nao tentx> evidencias discursivas •
di.retas - de que os viventes sao, enquanto tais' "cri~as lt, isto é' seres
inCX?I!J?letos. Ela nao .renete,
portanto, apenas ao passaCb - estanos há pouoo
no 10Uhd::>, nada sabertos das origens -, mas também ao futm:o. Assim, os deuses,
~ar de sua vitalidade e capacidade de rejuvenescinento indefinido, sao ~
pre descritos caro partanCb grandes batj'>as brancas; e sao bem mais altos que
os humaJ'X)S. Igualnente, a dent~ adulta é una "prlneira dentic;ao" em rela-
~ a sequnda, que e a das almas celestes ressuscitadas (os ~té senpre su
-
blJ..riu:rn o fato de que oossos dentes re-brotarao no oéu) • E \.ID d:>s prooessos a
que as almas sao sul:m!Udas ~ - -céu é o ~-<:mnento" (ipiha) - elas crescem.
Os nortos (e deuses), partan.to, sao adultos perante os vi.ventes, s.inples
crianr;as. Ver adiante, pp. 347, 515,521.

Paradoxalmente, esta época nao parece tao distante assim •

Acima da segunda gerac;ao a partir dos homens rnais velhos de grupo,


comec;a wn tempo que "encosta" nesta fase mítica da dispersao. Os
avós e bisavós de . Aya-r2 1 anciao de 80 anos, sao referidos, semi-
-jocosamente, corno gente iwi i-k.i!_ me he re, "do tempo em que a
terra se dissolveu" - gente que viu a subida dos céus, portante •
E o periodo entre isso e os ancestrais genealogicamente identifi-
cados é urna era difusamente preenchida por numerosas gestas heró!
cas, cheias de personagens - humanas, mas todas "subiram aos oéus"
(i.e. ern corpo e alma) sem.morrer - · que percorrern os confins da
terra e interagem com as tribos que lá habitam: os
gente do lábio furado e senhora da resina perfumada iairi ihi, os
Arar?ña, etc. Estas rapsódias contam sobre a obten9ao de numero -
sos itens culturais, corno o chocalho, as rni~angas, o urucmn.

195
araweté: os deuses canibais

A este mesmo período heróico se remete a já comentada dis-


persao do um "proto-grupo" Tupi-Guarani. E dele nada mais sei,que
possa esclarecer sobre o mundo Araweté.
-
O que parece essencial, para entender o cosmos atual, é en-
tao um duplo processo originário: a separa~ao do céu e da terra
e "abandono" dos hwnanos: a dispersao dos homens, que cria ao
mesmo tempo a diferen9a homens/deuses e Araweté/inimigos. Estes
processos e estas diferen~as sao problemas cruciais da filosofia'
Araweté.
Como para outros povos Tupi-Guarani (Wayapi, Guarani), para
os Araweté chegará o dia em que o mundo vai acabar. O céu, pesado
de tantos mortos, se romperá ti~~) e desabará sobre a terra, ani-
quilando os viventes e restaurando a indiferencia9ao cósmica ori-
ginal. Os deuses e as almas dos mortos voltarao a viver em nosso
patamar. Este é um evento muit!ssimo temido pelos Araweté (ver o
temor Guarani - que Schaden interpreta como influencia da -
no~ao

jesuitica do Apocalipse, 1962:134 - com o mesmo fundamento: a ani


quila~ao, isto é, morte definitiva dos que estiverem vivos quando
o céu desmoronar) • A expressao iwa ihan~, "o céu rachar", é o
interdito oral mais estrito da cultura Araweté - nao se deve nem
pensar, quanto mais falar nisso 11 •

(11) O notivo do peso 005 nortos fazendo o oéu desabar encentra-se identioo
entre os Wayapi (Gallois,1985:192), que aliás pareOe!n ter ainda o conceito de
um processo de apod.recimento crescente da terra (solo) a arreCt9ar a humanidade
- · Gallois, in.f. pessoal -, evocador da ncx;ao do cansa~ e velhice da terra,cen
tral na escatologia Apapokuva (N~ju, 1978:91,149). Tais mito-oonceitos,
ao articularan um tenpo irreversível, fUl'lClar\l urna historicidade essencial 'ffi.

196
os abandonados

2, PARALELOS TUPI: HIPÓTESES

Na se~ao seguinte deste ~apltulo, veremos em detalhe a natu

reza dos seres que habitam os diferentes pata.mares do cosmos, bem

como exploraremos a composi~ao da popula9ao terrestre: homens,an!

ma~s, espíritos. Até agora, quisemos apenas indicar o valor cen-


tral da oposi~ao céu/terra no pensamento Araweté, ou mais precis~

mente a importáncia do eixo vertical, que é um eixo revestido de

temporalidade: é ao longo dele que corre a oposi9ao vivos/mortos,

come~o/fim do mundo. Situemos agora estes fatos no contexto Tupi-


Guaraní, ainda com urna ·inten9ao rnais ilustrativa que comparativa.

A concep9ao ªfolheada" do cosmos é comum entre os Tupi-Gua-

ran!, mas seu valor 91-otral ou os valores específicos de cada cama

da sao variávei~. As.sjm* os Kaapor distinguem trés camadas: o mlJ!!.

do celeste habitado pela alma dos mortos e associado ao criador

Mair; o mundo terrestre humano; o mundo inferior, ligado aos es-


pectros dos corpos decompostos, aos jaguares e a feminilidade(Hux

ley, 1963: 191, 242-3, 262-3; este autor, como sempre, apresenta

poucas prevas de suas dedu~oes, as quais primam pela natureza ao

mesmo tempo categórica e vaga). O mundo subterráneo seria especia!

mente importante nesta cosmologia, dele tando-se originado os or-

namentos corporais que distinguem os Kaapor. O mundo celeste, em

troca, parece pouco elaborado, e por vezes se confunde com os

"confins da terra" liw·i pita), que é um "mundo queimado", ou está

associado ao Leste e a urna situa~ao insular (op.cit.: 240, 226) .

Dos Kayabi, sabemos que distinguem os mesmos tres ,mundos; e que

no celeste liwak) vive a parte imortal da alma dos mortos, na di-

re~ao Leste (Grünberg, 1~7Q:l66l. Os Wayapi difarenciam também

tres camadas (talvez quatro, se distinguirmos um céu inferior, do

197
arawet~: os deuses canibais

minio do Urubu bicéfalo, e wn céu superior - Gallois, 1984a), mas


é o mundo terrestre que recebe muior elabora~ao, em termos de um
contraste entre aldeia e mata, terra e água. O mundo celeste, pa-
ra onde vao as almas dos mortos, é dom!nio de Ianejar, o senhor
da racra humana - urna entidade relativamente distante Ce que deve
ser mantida assim - cf. o medo do céu desabar). O submundo é habi
tado por pregui~as-gigantes e tem como senhor o jupará12 ; ele nao

U2) O jq?ará ("kinkajou" - Potus fl.avus, un procionídeo) é tarrbém un inpor -


tante personagem d:> IIU'ld:> inferior I<aapar, associ.ado a::> ncnstro Ae de ossos
azuis que ali reina (Hux:l.ey, 1963: 256, 262-3}. Ele tem un equivalente estru-
tural, na CUiltDlogia Araweté, que tani:lém está associaOO a
alma t.en:estre cDs
nnrtcs - é o apoiyiéi, o macaa::>-da-naite (}otus trivi.rgatus). g canum, em al-
gunas regi0es da Amaz8ni.a, chamar-se o jq?ará (.en Araweté: y~) de "macaoo
-da-noite", o que parece indicar al<Jlln tipo de seme.lhanf;a er1tre estes dois
animais de hábitos notumos, mas de ~ diferentes.

tem grande importancia na cosmologia Wayapi (P.Grenand, 1982:42;

Gallois, 1985a). (Mas, quando sobrevier a queda do firmamento, os


humanos atuais irao para o mundo subterraneo, e se transforrnarao
em ana - espectro terrestre dos mortos atuais, ínter alia -; ver

Gallois, 1984: as almas . celest~s serio entio os futuros humanos}.


Os Parintintin distinguem dais céus, como os Araweté; mas é
o segundo céu o mais importante, sendo o dominio do "Povo Celes -
te", ra~a poderosa que ergueu sua .morada abandonando os homens na
terra (.Kracke, 1983:18}. Há uro céu intermedi.ário, dominio dos
urubus e de outros espiritas animais - que se aproxima da -
no~ao

Araweté (e Wayapi} de uma situa~ao n\ais próxima do "Senhor dos


Urubus" quanto a terra. Por outro lado., o dominio subterraneo

é identificado aes añang, espirites dos rnortos, mas de modo ambí-
guo: os añang ora sao ditos mprarern debaixo da terra, -ora em al-

198
os abandonados

deias na mata. Em troca, o dominio terrestre Parintintin recebe


uro valor importante, estando associado ao herói Mbahira, que está
em oposi~ao relativa ao Povo Celeste 13 .
~

Q3) Apesar da situac;ao terrest--re ('})$ Mbahira, estes seres, cxno os . Maf Ara-
weté, sao associaCbs a pedra. Mas o povo de Mbahira é nenos inportante q\E o
Povo Celeste na cosrcologia Parintintin, e estarla identificacb a feminilidade,
em contrapa;19ao ao Últino O<racke, 1984:9) .ESte autor(ge.cit. :passirn)procura
nostrar a di.ficuldaó? de se estabeleoerem blooos de cpo6ic¡:0es sist:.enáticas ~
tre os diferentes d:minios Cb CUSJtos e seus habitantes, que viessern a oorxes-
pcnder a divi.sao da sociedade Parintintin em rretades e>a::><fernicas. Nao há dúvi-
da, porén, ~ o ei.xo alto/bai><O - fO?Jna enfra:ruecida da opo.si<feo céu/l'er.ra -
se expr:Lrce na cp:>si.crao entre as netades Hazpia e Mutum.

Quanto aos Tapirapé, as informa9oes sao ambiguas. Baldus


ll970:357 e ss.} indica uma representa9ao quadripartite do cosmos,

com deis céus e um mundo inferior. Mas acentua que o eixo horizon
tal predomina sobre o vertical, na cosmologia do grupo. Wagley
tl977:169) acredita que os mundos inferior e superior Capenas um)

sejam devidos a influencia missionária - embora registre que os


xamas viajam aes céus, encontrem os jaguares celestes, etc. (op.
cit.: 185).

Ao que parece, entre os Tapirapé o eixo Leste-Oeste toma


parte das fun9oes do ei.xo Céu/Terra de outros Tupi-Guarani, e de
modo comple.xo. Assim, a oposi9ao Tapirapé entre os destinos dife-
rentes das almas dos xamas e dos comuns se exprime no espa90: as
almas dos "leigos" vivero errantes na floresta (sem localiza~ao pre

cisa), enquanto a dos xamas vao para a aldeia Maratawa, a Oeste


da aldeia dos vi ventes (op. cit • .: 16 9) • Mas Baldus (19. 70: 35 8) cita
um outro trabalho de Wagley (19401 em que a aldeia Maratawa é pos
ta a Leste, contrapondo-se a urna aldeia a Oeste, para onde vao as -
almas dos xamas executados por serem feiticeiros Clá ficam até se

199
araweté: os deuses canibais

recuperarem

dos ferimentos, indo entac para Maratawa} • ·aá assirn '
-
urna progressao: floresta • aldeia ocidental • aldeia oriental ,
que reflete ern verdade uro sistema de oposi~oes recursivas do tipo

[(Floresta:Aldeia):: (Comuns:Xamas)::(Mortos:Vivos):: (Hornens:Deu -

ses):: (Oeste:Leste>]

Onde a oposic;ao "Homens: Deuses" se justifi'ca face ao fato


de que Maratawa é o lugar dos heróis míticos, da vid.a eterna, e
é por vezes confundida com uro lugar.celeste (Wagley, 1977:178

ss. } 14 • o sistema Tapirape- introduz assim, claramente, uma oposi-

(14) o sistema Tapirapé é bastante semelhante, no jogo recuISivo entre Vida/


~ e Leste/Oeste, ao descrito por cameiro da Ca1ha (1981:165) para os Kr_!
hó:
[(Floresta : Al.dela):: (M:>rtos : Vivos)':: (M:lrtos Civilizados :
(Oeste : Leste} J
Can a di..fe.renra essencia] que, para os Jé, nao há, seja <Estino diferen -
cial das a..1nas cbs nort.os d:> 9r\4X' ú::atD ros Tapirapé), seja di'\1'isac da alma
de tochs os nortai.s entre una pcm;ao celeste e outra terrestre (caro na maio-
ria <Ds ~1-G\Brani}. Por out:m 1.aó:>, a equar;ao I.este=Alto e Oeste=Baix> é
CXJnUn aos Je
tcf. p.ex. Iave, 1979:26) e possivehnente a vá..-ias outras cultu-
ras. Há que acresoentar <ilE para os Je CXJtD un tcxX>, apesar de teorias sobre
os m.ncbs celestes e sd:>terraneos (Melatti, 1978:94-99), o eim harl7.altal
pred::mina nitidanente sct>re o eix:> vertical na ~ da oosnologia(Seeger,
1981:70-ss.). Para o caso TUkano, mais oatplexo, ver C.Hugh-Jones,1979:266-ss.

9ao que está presente em todas as outras cosmologías Tupi-Guaraní:


aldeia/rnata, e que pode-se -agregar ao conjunto de oposiyoes que
estabeleci para os Araweté (p.193).
Quanto aos Tenetehara, a situa~ao se assernelha a dos Tapir~

pé, e mais ainda a dos Wayapi, no fato de que os donúnios nao-ter


restres do cosmos recebem elabora~ao fraca e confusa, em favor
de oposi~Oes cosmológicas no eixo horizontal: aldeia/mata, flores

200
os abandonados

· ta/rios. o mundo subterraneo só é mencionado como sendo o dominio


dos jaguares que ensinaram aes humanos a Festa do Mel (Wagley &

Galvao, 1961:148-9).. A "aldeia dos sobrenaturais" em que vivem


• '
distantes dos homens, os heróis criadores (Jdaira) e as almas da-
que 1 es que morreram uma "boa mort e "15 , nao
- possui. localizacrao

(15) Isto é, que nao forarn execut:ad:.ls por feitic;aria. Os autores o:nsideram '
que o destino .. inortal" das almas Tenetehara, e sua residencia junto ooe ~

róis criaa>res, sao infltEncias cristas. C:r:eem que,


originalmente; as almas
senpre se transfonnavam ncs ~ malignos e t.er.r:estres. cato vinos, Wagley
~a a nesma suspeita para o nn.nd:> celeste Tapirapé. Isto roo parece sem fun-
damento, se a:msidera:crros que rnW.tos oub:os 'I'q;>i-Guarani creem
em um destino
celeste & parte da persona cb; nortos; e os ~t.é nao
saben o que é \111 pa-
dre, sequer. A intel:pre~ao <%> tema da "Ten:a sem Mal." cono resultado da
catequese jesuítica já. se .DX>St:xou insustentável. De tudo isto trat.arencs a-
diante.

precisa, e nao há nénhuma in~ormac;ao sobre sua situa~ao celeste


ou oriental.
t entre os Guaran!, por fim, que encontraremos a elaboracrao
mais sofisticada do dom!nio celeste e da oposi9ao céu/terra. Nao
fui capaz de achar, porém, nenhuma referencia na vasta bibliogra-
fia Guarani a ~ mundo subterraneo. Em contrapartida, as cosmolo-
gias Guaran! abrigam sete ou máis paraísos (Caaogan, 1959:28-ss ;
Meliá, em comunicac;ao pessoal, diz que os Kayová distinguem 13 e-
tapas na caminhada até o céu supremo, que a dan9a sagrada repre -
senta): céus intermediários em que algumas almas ficam retidas
(.Nimuendaju, 1978:60-ss.); diversas regioes divinas dispostas se-
gundo o.s pontos cardeais (.Cadogan, 1959); espirites celestes que
encarnam nos nascituros tschaden, 1962:121; 1982:8), etc.
Nao cabe aqui nos estendermos sobre o panteao e a cosmolo -
gia das diferentes parcialidades Guarani. Observe-se apenas que,

201
araweté = os deuses canibais

nestas .culturas, a oposi~ao pertinente parece ser entre os domi-


nios celestes - ou o céu, apenas, morada dos deuses - e a mata ,
com a esfera humana Caldeia} ocupando uma posi9ao intermediária .
Por outro lado, o eixo Leste-Oeste mantém seu valor simbólico. A
~
destrui9ao -
do mundo come~ara
- pelo Oeste. - e e- por isso que as mi-
gra~oes Apapocuva seguiam em dire9ao ao oriente (Nimuendaju,1978:
87-8). E sabemos como a "Terra sem Mal" era localizada, ora no
Leste, ora no céu, no zenite (.Schaden, 1962:162}: .para atingí-la
é preciso tornar-se leve pela dan~a,
e ascender. Ir para o Leste
ou subir: centro da terra, ou paraiso 16 .

{16) o material Tupinanbá nao ~ especia.lnente informativo sobre a estrutura


<b oosrtOS. Há indicios, pozétn, ~ · un mund:> celeste, d:mínio das almas
dos rrortos va.loroso:; (o ºGuajq>iá" - Métraux, 1979.:110-12; Femandes, 1963 :
195-6). sua localizacrao a Oeste t"alé.m a.as altas nontanhas", i.e., os Andes,
apu:i Métraux} , _JX>rém, é pouro clara, e Su;Jiro qlE esta ~ referia-se, a:>
no no caso Araweté, ao caminho de s\Dida das almas ao céu.
Fina.lnente, cabe lenbrar a CX>SrrDlogia Adlé-Guayaki p0e un rnun<b subter
qlE

raneo, prinevo e primitivo, cknde ~u a hunanida<E, e una cantllnª ou flcr --


resta celestes, ligadas ao T.tovao CJ:hono l e destim da pon;ao reléste da alma
005 rrort.os. Mix>s os d:minios tem pouca pi:eserv;a na vida ootidiana Aché (P.
Clastres, 1972:16-17; 303}.
A a::>SitDl.ogia Shipaya, ~ seu la.Cb, nostra a IreSina oonc:ep:;ao de un uni"Ver-
so em cama~, e o oéu já ruiu una vez, e ruiiá novanente. O povo celeste é
extremanEl.te iup:lrt.ante na mitología, mas as aJJnas ete:r:nas ó:Js nortos (versus
seu espectro) nao residem IX> céu, e sim em roche<bs ql:e se elevam no neio
d:>s· rios CNimuendaju, 1981:14-15, 29., 311.

A concep~ao de wu universo folheado nao é exclusiva dos


Tupi-Guarani. Outras culturas sul-americanas apresentarn mesmo
maior complexidade na segmenta9ao vértical do edificio cósmico •

Mas os dados que resumirnos nesta se9ao e na anterior permitem que

se fa9arn algumas proposi9oes gerais, que ·nos cabera explorar em


seguida:

202
os abandonados

(1) O eixo vertical é a dimensao dominante da "proto-cosmo-


logia" Tupi-Guaran!. A separa9ao- deuses/homens, cosmologicarnente'
fundante, implica, em sua forma forte, a diferencia<;ao do univer-
l

so em camadas.
C.2) A elabora9ao mais completa desse eixo consiste na idéia
de um mundo inferior, a camada terrestre dos humanos, e deis mun-
dos celestes (ou vários, mas sem precisao sobre sua natureza de
camadas superpostas).
(3) A oposi9ao Céu/Terra é a forma canonica de vigencia de_!

sa polaridade vertical. O mundo inferior é pouco claramente marca


do; ele é com freqüencia projetado em um sistema horizontal de
oposic;oes cosmológicas. E o segundo patamar celeste parece redun-
dante; nis so, seria uma espécie de simé·t rico do mundo inferior I

urna "moldura" lógico-estética para o par central, Céu/Terra.


(4) A posic;ao celeste ou alta está associada as divindades,
"heróis culturais" e a parte iroortal da alma humana.
tSl ~ o peso efetivo da oposic;ao Céu/Terra é variável nas
culturas Tupi-Guaran!. Ele será tanto maior quanto maior for a
presen9a atual dos deuses e almas divinizadas dos rnortos na vid?
social e ritual.
(_6) A oposic;ao Cé\.V'Terra pode, conseqüenternente, se trans -
formar em, ou compor com, sistemas horizontais de oposi9ao, nota-
damente: aldeia/mata, floresta}águas; ou sistemas rnais complexos
{.aldeia/roc;a/mata) .
t7l Nos casos de transla~ao horizontal do eixo Céu/Terra I

ele corresponde a oposi~ao Leste/Oeste. Ainda aquí, a vigéncia de


u.."tla cosmologia "horizontal" torna a relac;ao do mundo humano com a
animalidade - Mestres ou_espiritas de animais - mais importante
que a rela~ao dos homens com os deuses "humanos" ou celestes.

203
araweté: oS deuses canibais

(8) o mundo subterraneo está, em geral, associado a parcela


terrestre da alma humana, ~' quando transportado para o eixo hori
zontal, corresponderá a valores pré- ou anti-sociais: animalidade,
floresta, em oposi~ao a humanidade e a vida aldea.
(9) As cosmografias Tupi-Guarani sao fun~ao da cosmologia I

e esta depende essencialmente do lugar da morte e dos mortos.


(10) A estrutura da cosmologia Tupi-Guaran! opera. com tres
termos e dominios: (a) Deuses, almas divinizadas, céu; (b) Huma -
nos (.viventes), Terra/aldeia; lcl Espectro dos mortos, Animais ,
Mata/ mundo subterráneo. Este sistema corxesponde a dominios meta-
físicos que poderiamos definir, provisoriamente, como "Sobrenatu-
reza", "Sociedade" e "Natureza", ou ainda, respectivamente, como
-
pos- ou meta-cultural, culturai e infra- ou retro-cultural.
(lll Essa estrutura é instável, temporal e logicamente.

3, A POPULA~AO DO COSMOS: CATEGORIAS

Os dominios cósmicos Araweté sao o habitat de diferentes


categorias de seres. Se a camada terrestre é antes de tudo o "lei
to da humanidade" (b!de r~pa}, e as demais, moradas dos deuses ,
esp!ri tos os há em todas e.las, ass·i.m como também animais, e plan-·
tas. Chegamos aqui, entao, ao momento de tentar traduzir alguns
conceitos básicos ~.raweté, bem como de justificar o emprego de
termos como "divindades" e "espirites".
A primeira observa~ao a fazer ' é que a cosmologia Araweté
nao oferece equivalentes lingüísticos e conceituais claros a cate
gorias metafisico-naturais tais como: humanidade, espiritualidade,
animalidade 17 • Seus conceitos de fei~ao substantiva ou categorial

204
os abandonados

U 7) Ela difere, assim, de a:>Sl'!Ol.ogias <Xl1X) as Je, CXlde é radical e ftrldante


a diferenc;a ·~ (U3allCb te:r:nos Suyá; 5eeger, 1981:22), huna.no (Soci.edade}/
animal (Natm:eza) ; ou de sistemas o Piaxoa, ai<E a dif~ <Euses/ho -
<XJOO

n-ens/ animais, enoo.ra diacraú.camente tonp~ e anfúgua, opera pela pezmuta -


~ de duas categorias filosóficas básicas, a "vida cbs sentickls" (kakwa) e a
"Vida cb espirito" (takwa.rul- cf. I<aplan, 1982:9-10, 23.

(que se apresentam como lexemas simples} tem significado altamen-


te dependente de niveis e contextos de contraste, e podem ser di~

solvidos em wna proliferac;ao de nomes espec!ficos insubswníveis '


por categorias mais gerais. Por outro lado, há um certo número de
oposic;oes descritivas que pude reconstruir (ou seja, elas nao for
mam uma taxonomia "nativa"}, e que cortam transversalmente as ca-
. ~ .
tegorias de "humanos", "e.spiritos", ~animais", como sejam: as op~

sic;oes entre seres "criados" e "simplesmente existentes"; entre '


os "abandonados" e os "idos"; entre os "que apenas existem" e os
que "habitam ambiente artificial"; entre os "jogados fora" e os
"de propriedade dos deuses"; entre os "de comer" e os "que nos co
mem"; os "para matar" e os "q:ue nos matam" •.• Tais oposic;oes se
recobrem parcialmente; e será preciso que as analisemos para yer
que principios mais simples as organizam.
Mas antes, tentemos explorar o espectro de sentido das cate
gorias substantivas oú mono-lexemicas, e vejamos como se pode pe!!
sar urna ciassif.i cac;·ao de formas de Ser no universo.
Bfde é a primeira destas categorias. Seu significado princi
pal - e o mais elusivo - é "ser humano", "gente" 18 . Em sua acep -

U8) Este é un ckls raros ternos básicos Araweté para o qual ~pude estabel!:_
oer oognatai em out...-as linguas ~i-Guarani.
Ele pode ser enprega&::> em ñn;~
prorx:minal, . de un m:xb alcp senelhante ~ portugues Cbrasileirol "a gente"
mas cx:no prime.ira pessoa oo plural inclusiva; e parea! estar ten<Encb a su-
plantar a fcmna clássica ~, usaC'a nos canta; e em eJ<PressOes cristalizadas.

205
araweté: os deuses canibais

9ao mais extensiva ela pode designar todo ser antropomorfo - o


que inclui as diversas ra9as de "seres espirituais" do universo .
Este nivel de contraste é pouco acionado; e nele, bid! riao se o-
poe a nenhum termo geral simples, que viesse a corresponder a no-
9ao de "animal" ou "ser animado nao-antropomorfo". De resto, há
urna importante espécie de espíritos da .mata, os Añl, que só foram
qc.alificados como "bfd!" no contexto das perguntas do antropóloga.
estúpido o bastante para pensar que Añi signif icasse "morcego"
C.añira}, antes de aprender um pouco mais da língua. Os Añl -
sao
"bfde", mas sao sobretudo awl, inimigos - este valor predomina so
bre o vago critério do antropomorfismo.
Nao há como distinguir inequi vocamente entre os ''humanos" e
o que charnariamos de "espirites" - no~ao que cobre seres muito he
terogeneos na cosmologia Araweté. A forma ambigua btd!!_ heri, "se-
melhante aes humanos" pode ser usada para esclarecer de que os s~

res de que se está falando nao sao 11


exatamente" bfde - desde que
se saiba ero que nivel de contraste está sendo usado este último
termo ••.
Por outro lado, o que caracterizaría todos os seres que cha
maríamos de "esp!ritos" é que eles sao sempre pensados, pelos Ara
weté, como dotados de uma potencia ou essencia "xamanica": -épeye
ha. Neste sentido, talvez devessemos inverter a defini9ao, dizen-
do que os xamas (peye} Araweté é que sao dotados de urna potencia
"espiritual" visto que a i;pey! ha seria imanente a tais seres.Tra
tar-se-ia, portan to, menos de definir os "espíri tos" como sendo ,
todos, xamas, que os humanos como sepdo, alguns, espirites - i.e.,
- 19 . O pro b lema e- SCUJer
xamas -1'...
precisamente
..
em que consiste essa po-

(.19) um problema que já foi colocad::> por Canpbell, 1982:236-259.. Mas isto ~

ria forc;ar um tanto a nocrao de peye, c:ognato Cb clássico "pajé", e q\E se re-

206
os abandonados

fere focalnente aos hunanos que posst:em tal qualidade espiritual. Acrescente-
se que os Araweté nunca definiram t'ltla ·cl.asse de seres pelo critério f:peye ha;
eles apenas apantaVé:In esse poder em tal espécie de ser, em tal outra, etc.
Em Araweté, a raiz -peye pode ser ~to substantivada. quanto entrar ern
constru;Oes verbais - ao a:Jntrário de seu;cognatos Wayapi e Parintintin (Cal'TE
bell, 1982:236; Kracke, 1983:3}, ende a ñn¡:ao verbal ou adj etivo-atributiva'
parece exclusiva. A fo:cra i:peye ha é \Jlla eJq).ressa:, verbal nominalizada: ~ é o
prefim da 3a. pessoa singular verbal; ha é un sufixo instrurrental. Volta.rerros
a tuó:> isto.

téncia xamanica ou espiritual - algo que nao podemos fazer, por 2


ra. Basta lembrar que ela reside em, ou se exerce mediante,urn ins
trumento: o aray, chocalho de xamanismo.
Em sua extensao mínima, ..a no~ao de b~d~ significa "Araweté"
- é a auto-denomina9ao dos indios que vivem hoje no Ipixuna .Neste
nivel, ela contrasta com awi, ini.migo ou "estrangeiro": Kayapó,
kamara, Asurin!, e toda a extensa série de seres humanos ou espé-
cies de gente que povoa a terra, que já referimos no capítulo an-
terior. Ali também, vimos os problemas de definir precisamente
quem seja b fd~ ern oposi~ao a aw; (p.177).

A oposi9ao b!de X awi parece ser a forma forte ou marcada


de urna oposi9ao lógica central no pensamento Araweté: bfd~, "nós ",
"a gente", versus am;t!!._, "outro", "os outros". Am;te nao é uma
categoria de gente, mas uma posi9ao relacional, a de alteridade '
o u diferen9a em rela9ao a uro ~esmo como pólo marcado. Assim,é po~

sivel opor bf d! e am;te em todos os contextos de contraste em


que entra o primeiro termo: ser antropomorfo X outra coisa qual -
quer; humano X esplritos: Araweté X outras tribos. E é igualmente
possível construir a forma b~de am;t!, para designar o status am-
biguo dos antigos "Araweté" que se afastaram quando da cisao an -
20
cestra1 •

207
araweté: os deuses canibais

(20) Nao é fácil dar ccnta dos a:mcei:tos Araweté de identidade e diferencra •
Ernparte, po~ oosso conoeito de "identj.dade" é ambÍ<JlX>, significaneb tanto
"o próprio", o identiex> a si,. i.e. a identificaQio de algo caro algo (is den,
em latiml, quanto o "igual", o "mesno que", i.e • .a identifi~ de algo ~
outra cois3 (o idem
.
latino} - ver lbs.set, 1979.:18-19. Assim
.
tailtétn, nosso con
ailt.o de diferenc;a ou alteridade oscila. (ver a cx:riplexa discussao em Deleuze,
-
1969:20-25).
Dn Araweté, a identidade a si pode ser expressa pela foJ:ma e 'e te, "o pi:ó-
pric", "ele mesno", ou pela foz:ma anafórica e 'e y~, "o
nesno (de ·que se fala-
va) ". A identificac;ao a una classe ~ a outro objeto (igualdade ou equivalen-
cia} pode ser expressa pelo nesno e 'e ys, ou pela noi;ao de a;, "outro igual",
. - -
que cx::t'lOta substituibilldade ou J."ePeti~~. A idéia de dif~a pode ser ~
tada pela folltla catafórica "~katete k-t", "é outra coisa (o qt.e será menclooa-
Cb a seguir} ", ou pela fo.Il'na •te, "outro diferente". Ver Cap!tulo III, · n.
36. Isto é tudo que posso dizer sobre a dif~eY;ª Sinn/Bedeutung ero Araweté •••
A noc;ao de "verdadei.ro" ou "pxóprio", isto é, de e>cenplar típioo ou perfe_!
to de tna cJasse é denotada par hste. A ~ de "semelhante." ou "d:> tipo de"
.é denotada por hsrl. Nao fui capaz de ena:ntr~, na l.!ngua ou OOS11ologia Ara-
weté ,. una~ Ci:Js cxmoeitx:>s e categorias de tipo "pl.aténioo", a:no no
caso OOs Yawalai>iti CYiveiros de castro, 1978a) i pelo rne:rX>S nao
de faXJna tao
sistemática e relevante.

O limite ou polaridade máxima tomada pelos seres definidos·


como "am;te" face aos bfde é a posi9ao de inimigo, atJ-l. Pois atJl

tampouco é uma substancia ontológica, mas uma posic;ao ou qualid~


.... . 11 •
de: há humanos, animais, espirites e deuses a~~, face aes bide co
mo humanos, Araweté ou deuses.
os Araweté sao, eles mesrnos,awi,
E

do ponto. de vista dos Asurinl, dos queixadas · e dos guaribas ••• 21

(21) Os queixadas e guaribas, cert:arrente devidJ a seu CXJStune de viverem em


ban<Ds, saouna fonte rica de netáforas da sociedade para os Araweté, e ~
tu:b da relar;ao de guarra entre sociedades\ Assim, eles senpre .a:nparavam a
téatlca de oerro Kayapó cxm a que eles. utilizavam a:ntra as varas de porcos ;
e g:>stavam de arremedar o paru.co d:>s guar:bas e parcns quantb atacad::>s pelos
cai¡:aCbres; as bichos gritariam: Os jabotis, por sua vez, sao com-
"aiui, aiui.'"
paracbs a cativos de guerra,
- -
por ficarern presos nas casas até sexern nortos · e

208
os abandonados

cani.d::>s. A assoclat;ao entre ~ e guerra é clara para os Araweté (a:m:> para


os Wayapi - cf. P.Grenand, 1982:208: 1980:42).

Creio que se pode percebe~, enfim, que o conceito de bfde,



para além de seu significado "substantivo" de ser humano ou Arawe
té, recebe uma espécie de sobredetermina9ao lógica, devido a seu
contraste com no9oes puramente posicionais e "nao-marcadas" (no
sentido que a lingüistica dá a essa idéia). Assim, blde termina
por conotar urna posigao: a posi9ao de Sujeito, no sentido amplo -
lingüistico {cf. supra, n. 18}, lógico, ·metafísico. E, enquanto
posi9ao metafísica de Sujeito, contrastará essencialmente com Aw~
determina9ao máxima do "outro" {am;t!), isto é, do Outro como Ini
migo. E~Outro, btd~/a~l, é assim o par conceitual básico Araweté;
mas nao se trata de uma oposi9ao clara e estável. O dualismo no
plano do conceito, lingüisticamente e.xpresso, nao implica· ou esg2
ta um.:i filosofia da Pessoa Araweté. Pois ainda resta determinar '
po~itivamente o que é btde, ou seja, o que é a Pessoa Araweté.
Para determinarmos esta categoria, será preciso que examine
mos um conceito nao menos complexo: o de Mal, que traduzo por
"deuses", "divindades" ou "Divindade" - inspirando-me em Lie-
nhardt {1961:28-32), já que suas considera~oes sobre o nhialic
-
Din k a se aplicariam com razoavel propriedade ao 1'
Ma~ Arawete-22 • O

(22) Q[Cora o Mal Araweté nao seja una divindade criaCbra d::>s harens, oertos
atributos 1.Ógioos e sinb5lioos desta ca't.e9:>rla de seres, ou ch Ser, evocarn o
uso D1nka de "nhialic" e o Nuer ~th ~-Pritchard, 1956:1-27) - assim, o
tema da sepa.rar;ao ó::>s hmianos e das di.vindMes; a situac;ao celeste destas Úl-
timas; a osclJ~ entre unidade e multiplicidade, abstr~ao e cx::ncretude . ,
princlpio e sub.stand.a ••• No que se segue, pol:érn, ficareo claras as diferen -
'eras entre a~ Araweté e as nllóticas.
o tezno M~ é um muito provável "<Dgnato das fonnas Mair, Maim, Mbahira ,
etc. de outras cosnologias 'l'q;:>i-{;uarani; mas vexenos que ele funciooa algo d!.
ferentenente.

209
araweté: os deuses canibais

significado mais inclusivo ou indeterminado do conceito Ma! é o


que poderíamos chamar de "sujeito-causa transcendental 11
- uma no-
QaO que é abst·rata, mas nao impessoal. O "efei to-Mal" se distin -
gue tanto dos efeitos "naturaisu ou produzidos pelo acaso, e que
sao, nessa medida, a-significantes do ponto de vista cosmológico,
quanto da agencia humana. Assi.m, urna ventania pode ser interpret~
da como "itJito te", "apenas o vento" 23 , ou ser recebida pelo co-

(23) te é una partlcula qtE parece signif1car algo cx:llD: "apenas", "sinples -
rrente", "nada além", "o pré:prio". Outro m:Xb de ccnotar o acaso ou a-signi.fi-
~ é o aspecto verbal -tehe, "sem objeti•JO ou razao".

mentário: "M~f"(sem que com isso se esteja implicando claramente


mais que uma manifestax·ao indeterminada da causa-Maf) • Igualmente,
há objetos e plantas que sao "feitos" ou "plantados" por b!de; ou
tros sao feitos e plantados "por Mal".
Enquanto sujeito-causa transcendental, a no9ao de Maf pode
incluir, embora com uma extensao de sentido algo imprópria, os
efeitos cu manifesta~oes dos espirites terrestres. Mal, nessa a-
cep~ao lata ou indeterminada, é a contrapartida da potencia xama-
nica ou espiritual, ipey~ ha, que é concreta (sediada no chocalho
aray) mas 'i.mpessoal.
O emprego mais usual da noc;ao de Mal, porém, fá-la. designar
os seres espirituais nao-terrestres, isto é, "os que se foram 11

(.~h!! me'! pe) da terra na separac;ao original. Eles se dintinguem


assim dos humanos e dos espirites terrestres, que somos todos re-
feridos como iwi pa, "habitan tes da' terra 11
• ~ nesta acepc;ao do
conceito que os Araweté falam em "ver Mal" (.Ma-! tieca) e "música
dos deuses" tMaf maraka), para o transe e o canto xamanisticos.
Mais especificamente, Mat designa as divindades dos patama-

210
os abandonados

res celestes, e sobretudo os habitantes do primeiro patamar acima


do nosso, o Ma! pi .• Quando se fala de modo geral ou indeterminado
de, ou dos, Ma!, olha-se para cima, para o céu.
11
Em sua determinaQaO máxima, Mal sao os Mal het!, os deuses
propriamente ditos" ou "verdadeiros", e suas manifesta9oes ou es-
pecificaQoes: Ma! oh9._, associado ao trovao e aos raios; e os "fi
lhos", "filhas", "esposas", "avós"
. e "aves" Mat 24 • Esta
. - estirpe

designar os MaC hete adultos, harens, e já maduros - ist.o


- oho- parece
(24) Ma!
- -
é, tratar-se-ia de trra sub-categoria dos Maf liste. Por out.ro laó:>, Na! oho
par vezes se ne afigurava CXJ'X)tar urna entidade única, individual, e/ou abstra
ta: o "grande Maf''. A · divinda.de cujo natE é o cognato cb ~ clássicx:>, Topi,
~ lUJar nerx>r ro panteao Araweté.

de divindades vive no mesmo patamar cósmico e no mesmo "plano on


tológico" que as inúmeras outras ra~as de seres-M~! celestes, mas
nao no mesmo plano lógico. Ela nao tem um nome "próprio", corno as
outras, pois é "o próprio Ma!"; possui, contudo, urna existencia '
-
concreta e distinta, como as demais estirpes divinas. Há várias
aldeias (ta) no céu, ocupadas por ra~as diversas de divindades. A
aldeia dos Ma! het! ocupa, como já mencionamos, urna posiQaO cen-
tral e mediana - e eminente.
Os Na! hst~, de fato, ocupam um lugar central na cosmología.
Sao eles que devoram as almas dos mortos Araweté, e é neles que
estas serao transformadas. Além disso, eles encarnam os atributos
genéri·cos de todas as espécies de ME_!: seres semelhantes aos Ara-
weté, mas mais altos, mais fortes, de grandes barbas brancas, as-
pecto brilhante e espléndido, decora9ao corporal profusa e elabo-
rada, gosto pelos perfwnes (.o céu é perfumado}, pos:;e de muitas
aves de es.timac;ao; sexualidade e vitalidade abundantes; mes tria·

no canto; potencia xa.manística no mais alto gra u (capaz de ele -

211
araweté: os deuses canibais

var o firmamento, ressuscitar os mortos e dispensar a labuta agrí


col:a); e, acima de tudo, capacidade ou ciencia do rejuvenescimento
-
perpetuo: os Mav• sao
- imortais 25 •

Assim, os ·Maf em geral e os hete em particular i:ecebem epítetos cor.res -


(25-)

paidentes a
-
tais atributos:
-
itJero me '!.1 brllhantes ou fulgurantes; kuea 7TtÍ re,
"desenhaoos"; hetJo me 'e, perfunaa>s; temi.ma ñá, senhores de aves de est:iJrB;ao:
nr:m:zka- me -B
I 1
- - -
llÍlsiCXlS i peye hstl I "Jmú.to xarMS ni ~tia
ka MI senhores 00 ba-
nho da troca de pele Ueferir.cia ao prooesso de :rejuvenescinp.nto cbs ncrtos ;
ver ad1 ante) • A pele cX>s Mal é brzmca e ~cia, Visto que senp:re reoovada.
- .
e.en-
tra esse :funCb branoo, o negro da pinttD:"a de jenipapo d:>s deuses é dito "ful-
gurar" ou "re~jar" ~~l. A ncx;ao geral des Md CXJ1D seres celestes e
brilhanteS é um argumento adicional para meu uso <X> terno . interpretativo
"deus" - letbrar que a raiz indo-eurq:>éia *dei~ ten exatarrente essa dupla
ex>rm~ (ao passo que "hanen" (han:>) remete a terra; Benveniste, 1969, II:
180, apud Lévi-Strauss, 1971:556). A idéia de brilho-resplendor para caracteri
zar os seres diviros é oarun entre os Guarani (Sdladen, 1962:121; 1982:10; ca
dogan, 1959:26) e. os Aché (C1do9i1~7 l.~'8:'6,76¡ P.Clast.res, 1972:302-3; Godoy,
1982) • Para a ooyio de "ternx:> interpretativo", ver Sperber, 1984: 32-5, onde um
dos exarplas é justamente "deus".

A n~ao de Ha! hete corresponde, portanto, a nOQaO de blde


em sua determinaQaO .máxima: Araweté. Eles sao o equivalente celes
te, e o destino, dos "bld!!._ het!!._" 1 os Araweté 26 • As outras divinda

(26) Esta expressio é minba; nmca ouvi os Araweté se referllem a si nes1CS


cmo *btiis hets em· cp¡is.~ aos btiis amK~ ou. ~•. Ern parte, isto se deve ao
curioeo pmblema llngui.Stico cri.aOO pelo CDntexto d:> d:i ál ocp entre o antrcp5-
k9:> - é un all1l - e os btds, Araweté; pois deVE!los l.errbrar que blcie tan-
q\E

bém significa o "nós" inclusivo. Assim, "bfde luJte" é una idéia que só pode -
- -
ria ser e.xpressa para mim na fcmna -tl"!., "li'>s" exclusivo .•• Aci:esce que bfcie
hete pode significar una i;x>~~ de idéias, calfome o contexto: alma celeste,
em oposi~ ao especq:o terrestre: os Mf!f ·hs't! em opas~ aes outros deuses;
os seres h1JDaoos reais' em oposi~i:> as suas j magens •••

des - os Maf am~te - se espalham pelo céu em suas aldeias pro- -

212
os abandonados

prias, umasmais distantes ·, outras mais próximas da aldeia dos


Maf hete (e t .ambém mais ou menos próximas do patamar terrestre) •
A mesma distin~ao
feita pelos Araweté, entre as aldeias

a;, t~ ta
to é, aquelas próximas a aldeia de referencia, que formam um "blo
co aldeao", e as aldeias ta -
am;te ou i?Ji am;te, i?Ji itowana -
- - ou-
tras aldeias, de "outra terra" ou "do outro lado da terra" (cf.
supra, · pps.178-9} - se aplica ao céu~ Há divindades que vivem"jun-
to" comos l!laf· hete, seja na· mesma aldeia, seja em ta a;: out ras
moram longe1 no "fim do céu" (it.Ja pa ha>, em "outro céu" ( .-
i.wa
am;te pip!), etc ••• E há, por fim, habitantes do cé~ cuja classi-
fica~ao como M~l é ·problemática - como os temidos canibais Iarac~
que atacam e devoramos Mal heteos outros deuses • . ou toda wna
sub-classe de esp!r·itos, os Awi' pey!, "pajés (dos) inimigos", que
r .e presentam atributos ou posigoes dos inimigos dos Araweté no céu
(Tow~ho pey!~ Kamara pey!>·

Tudo se passa, entao, como se ao conceito geral de ·01vinda-


de (J!~!} correspondesse o conceito geral de Humano C.B!d!}¡ e a e~

tegoria dos Ma~ het! correspondesse, a de btde qua Araweté. o. ceu -


entao espelharia a terra - ou antes, a terra é que seria o espe -
lho partido, a 1.magem residual e imperfeita da perfei~ao celeste.
Mas as coisas estao longe de ser·assim tao simples, por vários mo
ti vos.
Em pri.meiro lugar I 'há que. observar que nao existe correspo!!
dencia entre as ra9as de humanos e as espécies de deuses celestes
(e há as do m\J.ndo inferior, e do segundo céul. t apenas a forma '
de rela9ao ou classificacrao das di:fere.n tes di vindades que evoca a
visao Araweté da terra. Além disso, semente os Arawet~ tem lugar

-
no céu após a morte¡ os inimigos mortos nao se transformam nos
AQl pey!· Por outro lado, as diversas ra9as divinas nao correspo!!

213
araweté: os deuses canibais

dem, clara ou necessariamente, a sublimac;oes, personificac;oes ou


hipóstases de espécies animais, veg·e tais, etc., ao modo dos "se -
nhores" de animais que encontramos em outras cosmologías · sul-am~

ricanas. Elas formam um conjunto essencialmente heterogéneo.


Em segundo lugar, embora junto aos Ma~ hste residam, nao só
- -
as almas dos mortos, como urna quantidade de heróis ancestrais que
subiram aos céus sem .morrer lsao ditos ~~f moiwa me'~ pe, "os que
ascenderam") , os Araweté distinguem claramente entre ~re ztema ipi,
"nossos ancestrais", e os seres que chamam de bfde ki:re - literal
mente, "peda9os da humanidade", · isto é, fra9oes da espécie humana
que subiram aos céus na separa9ao original, mas que nao sao anee!
trais dos Araweté. Entre estes estao os Mal hete, que nao sao ,
portanto, concebidos como "pais", "c..ri.ador~s" ou "donos" dos huma
nos. ~ justamente a natureza precisa da rela9ao entre os Mal hete
e os bfde o problema central desta tese.
Em terceiro lugar, Mal é uma categoria marcada de temporal!
dade. Pois, para além do significado de "divindade" ou "ser celes
te", ela possui um aspecto dinamic~. Assim, de todos os seres hu-
manos (.i.e. b!de) ~ue habitamos mundos nao-terrestres,diz-se que
odl rr.oMal, "fizeram-se deuses", ou o~f tiowa Maf mo, "transforma -
ram-se em deuses" 27 • A n~ao de Mal ganha aqui uma feic;ao abstra-

(271 Ot!f é prencne reflexivo, na 3a. pessoa (sing. ou pl.); mo é prefim cau-
sativo, qua ve"d">.31 -f za substantives, adjetivos, etc.; -owa é un verl:>o qua sig-
nifica "transfonnar", "virar"; -mo é um dativcrinstrunental.

ta e processual: a de diviniz·ac;ao, ciu~ incide até sobre os -


pro-
prios Mal enquanto tipo de ser. Uma das formas de se designar o
tempo do cataclisma original é a singular tautologia: "e'e me Maf
od! moMa!", "quando os deuses se divinizaram" ••• Divinizar-se, as

214
os abandonados

sim, é separar-se dos hwnanos, sair da terra. Os deuses,portanto,


foram hwnanos - a·s sim como os humanos ·(Araweté) serao de uses, a-
pós a morte: eles também se transformarao em Ma!.
Na próxima se9ao deste capitulo, tentaremos urna enumera9ao'
e classifica9ao mais detalhada das dezenas de divindades celeste~

Agora, cabe introduzir wna terceira popula9ao de seres, que com -


plica a oposi9ao simples cét.Vterra, M~!/humanos. Tratam-se dos es
pÍritos terrestres, que também sao legiao. Eles nao sao subsumi -
dos baixo nenhwna categoria geral; sao apenas iwi pip~ ha, "mora-
dores da terra", como nós. Há Iarad! e Mo'iroco, Senhores dos
Queixadas, que moram nos confins da terra, um a Leste, outro a
Oeste. Sao pai e filho; guardam os porcos dentro de grandes casas
de pedra: quando relampeja no horizonte, é sinal de que os senho-
res dos porcos estao sóltando seus temimá, xerimbabos. Há Ayaraetá
(e seu duplo To?Jañietá), dono do mel, ser careca e perigoso·, que
vaga pela mata no tempo do mel, capturando a alma dos viventes P!
ra guardá-las dentro de seu grande chocalho aray. Há o temido
ILJikatiha ou I pa l"O-do-lado-de-baixo" ou "Habitante da Agua") ,
- -
senhor dos peixes e dos rios, que rouba mulheres e leva a almada.s
.
crian9as. Há uma série de esplritos "Senhores" <ña) de determina-
das espécies vegetais ou singularidades naturais: pedras, clar.ei-
ras., cupinzeiros., etc. Ha
I?Ji yari, "Avó Terra", esp!ri to subter-
-- __ .,,
raneo .necrófago. E há, por fim, a grande ra<;a ou familia dos An't.
e seus paren tes: Korop-e, Ka·r9_a, Yi;ri:pad!. (Ver §4 des te capítulo,
para a enumera9ao dos atributos destes seres}.

Os Añl sao espirites da mata, ferozes, canibais, raptores '


de mulheres e assassinos de homens. Moram no oco das árvores ka-
po'i; andam sem adornos, tém uma cantiga feia e uma catinga ine -
quívoca lhaLJiñá, ~eiro de suor e sujeira corporal). Eles sao as-

215
arawet': os deuses canibais

siro o oposto dos Ma{, deuses perfumados, decorados e senhores de


belos cantos. Os Jñ; vagam pela mata, mas podem também penetrar
nas aldeias a noite, quando sao identificados pelos xamas e mor-
tos. Os Mal het! sao convocados pelo xarna e auxiliam esta opera -
9ao de "pagar" ou "mat.a r" os .Añl . lAñl pihi_ ou t!apf ci_J.
Os lñl nao sao "donos de ani.mais" ou "donos da mata". Mas
mantero uma rela~ao privilegiada com a animalidade. Várias -
espe -
cies animais os chamam por termos de afinidade; e eles sao defini
dos como ~ka het! me'!, expressao que se traduz por "real ou sim
plesmente existente", mas cuja conota9ao é a de selvageria, exis
tencia de-culturada; ela significa que os Añi nao sao h u ~a y pa,
- . -
"habitantes de ~iente cercado" - i.e., nao habitam aldeias, co
u
mo os humanos e os Ma'Z. (e mesmo alguns ani¡nais; ver adiante.> . Os

homens chamam o Cs> Añi de ir_! ramoy ohq_ , "nosso avo grande" e
sao recip.r ocamente chamados de "netos" ( l'amono) , o que pa~ece co
notar a distancia entre os hornens e estes espiritas, bern corno urna
-
especie de ...
"ant~quidade"
-- .... 28 •
ou primevalidade dos An'Z.

.
{28) Ap passo qlE
afinidade,
os haDens dlamam os Maf e o· SenOOr das liguas por teJ:nos
cx:m::> verem:JS. A relNi'ao
- .
de
entre os .Añl e os anima.is seria, entao, e-
quival.ente a cm Mal can os baiens.

Os Añl sao definidos, sobretudo, como inimigos (awf), bárb~

ros e selvagens. Para eles, dizem os Araweté, os humanos sao per-


cebidOS CQIDO queixadas - eles nao distinguem OS bfd~ dos animais
29
de ca~a • Os Añl, finalmente, tero uma rela9ao essencial com os

{29) Ou seja, para os Añi S)llOS queixadas, Cato para os queixadas saros CllJl -
d. ~ 21, Sl.J??. a:mparar can o que diz P.Grenand, 1980:42, sobre a v1sao
qlE tero os hcmens cbs animais, os anima.is Cbs hc:.m:ms, e o Sol e a Lua de am-

bos.

216
os abandonados

mortos. O aspecto terrestre do morto - um espectro - é dito "se-


guir com os Añ-i" ·(Añl newe ha), ser "coisa dos Añ-i" (Añl ap~) •

(Assim como o aspecto celeste da alma humana é dito ser "coisa



dos deuses": Mat tiapa). Os Añ-i, além disso, sao necrófagos, ban-
queteando-se com a ca.m e dos cadáveres e .fazendo flautas com a tí
bia dos mortos.

Todos os esp!ritos terrestres, com exce~ao dos Senhores dos


Queixadas, distantes e benignos, sao perigosos e malignos: alguns
para todos os humanos, e sobretudo para as humanas, outros princi
palmente para pais de recém-nascidos ou para crian~as pequenas. o ·
.Perigo principal é · de matarem ou capturarem as pessoas, flechand~

-as, raptando-as lsao entao definidos como pir~ rer~-kañi, "sumi-


dores de gente"}, ou levando sua alma-principio vital «i>, fazen-
do a vitima definhar e morrer - sao ditos entao p~r-t ; y~ ha, .. ex
tratores de almas humanas". As pessoas mortas ~u raptad~s por es
tes esp!ritos - ocorrencia relativamente infreqüente - nao tem
acesso ao céu, e assim "morrem de verdade" limant nete). E todos
estes espir·itos lnovamente com exce9ao dos Senhores dos Queixa
das} sao classificados como yoka mi, "matáveis" - i.e., podem e
devem ser mortos pelos xamas. -
Nao obstante, esta mal.ignidade dos Añi e congeneres nao se
traduz em respeito oupavor .por· paxte· dos Araweté (com exce~ao do
Senhor da Agua, cujo no.me nunca deve ser pronunciado perto de seu
dominio}. Os humanos temem mas desprezam estes seres. Dá-se o o-
posto quanto aos Mat: estes tem aparencia impressionante, impoem
·-
medo-respeito téi·y e) ao xama, que -treme e cambaleia ao ve-los. Os
Ma.,," - 1-p~t
sao . ''h '?.:
. extraordinários, esplendidos, mas também amedron

tadores, contrafeitos, estranhos (cf. pojy, Kracke, 1978:26).

Embora o termo 1ñl designe propriamente wna espécie partic~

217
araweté: os deuses canibais

lar de seres, ele ~ usado sinedoquicamente como rótulo para o

"efeito-esplrito terrestre", e a variedade de espiritos da mata é

sempre simplificada pelo termo Jñ; herl, "semelhante aos lñl" •

Dessa forma, a no9ao de lñi está ero correlaQao funcional com a no

Qªº de Maf, e os
- Añi como espécie estariam, para os espiritos ter
-
restres, como os Maf hete para os deuses em geral. E tudo ~e pas-

sa, de fato, como se houvesse uma série de oposiQoes sistemáticas,

em vários eixos, entre os Mal e os esp!ritos terrestres, epitomi-

zados pelos lñl. Semelhante classificayeo dual corresponderia ain

da, no plano da pessoa humana, as duas "almas" liberadas após a

morte, a alma celeste e benigna, o espectro terrestre e maligno .

E teria uro claro valor moral: se os Ma-! sao o equivalente celeste

e o destino dos bfde, Araweté, os


- Añl
- seriam o correspondente
. ou

hipóstase do Inim~go (awl). Ter!amos, assim:

Mal
Céu Terra
Aldeia Mata
Perfume, beleza Fedor, feiúra
Imortalidade Mortais e "matáveis"(yoka mi)
Alma celeste Espectro .terrestre
(Super-) Cultura Natureza (Pré-cultura)
Humano Animal
Arawe:té Inimigo

Este sistema, embora seja, grosso modo, pertinente, deixa

de fora algumas posi9oes irredutiveis e algumas ambivalencias es-

senciais. Ero primeiro lugar, a oposi9ao Céu-Terra nao esgota a

cosmologia Araweté. O Senhor das Aguas - cujo nome, Iwikatiha, co

nota sua pertinencia a um mundo inferior - nao se confunde jamais

com os seres de tipo-lñl; ele nao é uro selvagem, pois possui ca -

sas e roQaS no fundo dos rios, além de se apresentar elaboradame~

te ornamentado. E sua presenya no cotidiano Araweté é tao grande

218
os abandonados

quanto a dos lñl. Terlamos entao o sistema:


I""ikatiha Añl Ma!
Rios Mata Aldeia
Mundo inferior Terra céu

Ure sistema que, embora mais discriminante, perde em riqueza


de eixos semanticos que incorpora. Além disso, há os Senhores dos
Queixadas, e Ayaraeta, o dono do mel - ele tampouco pode ser iden
- -
tificado aos Añi_ (se eu perguntava se era um 1ñi_, diziam-rn~:"nao,

é b!de" ••• ) - que nao se enquadra.m em nenhurna classifica~ao sim-


ples.

Mas este nao é o problema maior - este fato de que a máqui-


na binária recorta precariamente a cosmologia múltipla e serial A

raweté, de natureza essencialmente heteróclita, onde toda tentati


va de "fazer sistema• deixa um residuo tao importante quanto aqu!
lo que pode ser reduzido a oposi~oes duais ou outras. O problema
maior está no estatuto fundamentalmente ambiguo das divindades c~

lestes, e sobretudo dos Ma! hete, estado final e ideal da pessoa'


humana.

- mais perfeitos que os humanos, indubitavel-


Os Ma! hete sao
mente¡ apresentam urna superabundá.ncia de ser e um esplendor de v!
da dos quais os humanos terrestres sao cópias pálidas. O Ma! pi é
chamado teka kati we, o "lugar da boa existencia" - a terra sem
males Araweté. Lá tudo está sob o signo da permanencia - casas ,
panelas, arcos de pedra; rejuvenescimento interrninável -, da ablJ!!. ·
dáncia - nunca falta comida, bebe-se cauim o dia inteiro, dan~a­

-se -, da beleza - os homens e mulheres Ma! sao padrees de beleza,


as araras e os passarinhos monem! abundám, para os brincos e dia-
dernas -, da grandeza - ern Ma! pi tudo é muito maior, do milho -
as
castanheiras -, e da facilidade - lá a mata nao tem cipó, anda-se

219
araweté: os deuses canibais

sob as árvores como aquí nós na aldeia; lá os machados e f acoes

trabalham sozinhos, o milho se planta por si .••


Mas, os Maf hete nao sao .. heróis culturais" ou civilizado -
- -
res, que tiraram a hwnanidade de um estado bestial., a semelhan~a

dos "Maira" de alguns outros povos Tupi-Guarani. Ao contrário, os


Mal het!_ evocam uma primitividade essencial. Eles nao conheciam
o fogo nem as plantas cultivadas, que lhes foram revelados por
humanos (tema ipi, ancestrais Araweté depois "virados deuses") ou
por outros seres mlticos. Desconhecendo o milho, comiam o fruto
da bananeira-brava, que cresce esporitaneamente na mata e é dita,
ainda hoje, ser "coisa plantada por Mal" (Mal reml.- tl t.i>e) ou "o
antigo milho dos deuses" (Maf awacl pe). E um estranho epi teto
lembra essa natureza selvagem dos Mal-: me'e ll)i a re, "os co-
medores de c.rne crua" - uma no9io que se aplica, no presente1 ao
. 30
Jaguar •

(30) O jaguar é def.inick> ccm:> um canibal (pt~ o) e CXllD um "cnrffior de cru"


(wi significa "~" e "c:ru"), en cp:>Si~ aos human:>s, que sao taq me '!b
"(seres) provick>s de fogo". A caracteriz~ de an.imais e hunaoos por seu re-
g.i.rre alinentar é a::mJm, entre os Araweté. o urubu, assim, é definió:> cx:rro um
'dS we a, "caneó:>r do que cheira mal". E algim.s inimic;ps esped al mente despr~
zaó:>s, <X11D os Parakana, sao
chamados de "mretbres de urubu" ou "cnreb:es
de excrenento" (tepocf' a). "Deus sern fogo", en Araweté Mal' data i, é um epíte
- - -
t.o jomso dado aos brancos, devido ao hábit.o que ten de secaren mantas de ~
-
ne ae> sol - oatD fazian os deuses. (E esta expressao é, também, a "traduc;ao "
do rx:rre de Ul\ missionário-etn5logo que esteve c:xm os Araweté logo após o con-
tato, o "Pa:ire Ant:Onio" - Anton Lukesch).
"careó::>r de carne crua" é, ccm:> vereros, um dos ncines sagrados do deus Dio
-
nisio Canestes) - e esta cx:>inciaencta nir:> é absolutamente fortllita.

Assim, o inimitável e desejado poder xamánico dos deuses ,


que os dispensa da labuta agrícola e da morte, é paradoxalmente
"compensado " por uma ignorancia ou primitividade culturais.Menos

220
os abandonados

e mais que· os humanos, os deuses sao portante "sobre-naturais" e


"extra-culturais"; evocam o fundo arcaico da humanidade bestial ,
mas apontam para o futuro jubiloso após a morte - a vida eterna

na terra sem males.
Estranhos deuses, de fato. O aspecto fisico e a ornamenta -
~ao corporal dos Mal sao hipérboles esplendidas do padrao ideal
Ai-aweté. Sucede, porém, que eles aborrecern o urucum, emblema dos
viventes. Pintam-se somente com a tintura negra do jenipapo, em
desenhos finos e complexos. Ora, o grafismo corporal com o suco
do jenipapo é o emblema da onc;a (a oncta-pintada é a "dona do jeni
papo"), a pintura dos inimigos (Kayapó, Asuriní), e dos mortos,
que tao logo chegam ao céu sao decorados desta forma. Os Araweté
só usam o jenipapo nas expedi~oes de ca<ta e guerra (cf. supra p.

150 ) - e sempre aplicando-o em áreas continuas do corpo (moh; ,


"enegrecer"), jamais em tra<tos ou padroes (kuca, desenhar). A ap~

rencia dos deuses, assim, é urna mescla da figura dos Araweté (dia
dema de arara, pl!magem de gaviao-real, brincos de monemg) e
- da
figura dos ihimigos.

Finalmente, quando eu perguntava aos Ar.aweté se os Mal hete


eram blde, ou "como bfde", a primeira resposta era sempre afirma-
tiva. Póis eles sao antropomorfos, e viv.ern corno os Araweté ou
corno os Araweté gostariam de viver, e viverao. Mas logo em segui-
da, meus interlocutores ponderavam que nao, que a rigor os Mal·
hete eram "como os awi" (awi heri): pois se pintarn de jenipapo
...._ - - '# '
. sao "ferozes" ,_
<ñara) e, sobretudo, canibais: matam e devoram as
almas recém.;..chegadas no céu.

~ verdade que, ao contrário de numerosas outras ra~as de ca


nibais, celestes e terrestres - o universo está cheio de cani-
31
bais -, os Ma~ hete, após devoraremos mortos, os recompoem e

221
araweté : os deuses,canibais

(31) ver se;ao segtrlnte deste capitulo, para os espi.ritos canibais do cosnos.
Pode-se dizer dos Araweté o que se disse dos Arapesh: que o espacro da CUltura,
d::> Mesrco, é urna ilha cercada de canibalisrco p:>r toOOs 0s l.acbs (Tuzin, 1983 :
67-8).

ressuscitam, transformando-os, entao~


em si mesmos, i.e. em . Mal· • -
Trata-se de um canibalismo "iniciatório" e "transformador", ao
contrário do canibalismo selvagem e destruidor dos demais esp!ri
tos 32 • Nem por isso, os Maf hete deixam de ser pi~~ o, canibais,

(32) Esta é una dist.in;OO que encontrarenos en vários pavos que praticam al-
guma fonna de canibalisno, real ou imaginário: a dist.:LrMriK> entre un cani.balis
no "selvagem" e um "civilizaQ:)": os critérios de dis~ variam: ora o nodo
de consuno, ora a parte oons\:11\ida, ora quem o::AnSaCe, ora quem se consane •••
(ver, por exerplo, Pooill.on, 1972:17¡ Qiidieri, 1972:104; Poole, 1983:7: H.
Clastres & J.I.1zot, 1978:125 ss.). No caso Araweté, a di~ é entre o ca-·
nibalisno "liminar" e o canibalisno "texminal".

e ~matadores da gente" (blde yokª ha). Nem por terem agora o fa-
go (e comeremos mortos cozidos), deixam de ser "comedores de car
ne crua". Nem por serem belos, deixarn de ser impressionantes-ame-
drontadores, e parecidos com os inimigos. Estranhos deuses: primi
tivos, inimigos, canibais, mas desejados.• Na verdade, deuses es-
tranhos: pois o que os M~f encarnam é a ambigüidade essencial do
conceito de Outro, para os Araweté. Os Maf· sao o Inimigo - mas os
Mal sao os Araweté. Este é o problema. E o canibalismo divino é o
operador central da soluc;ao, conforme se verá. O que pode ser pe.E
cebido desde já é que o Além da Sociedade ou Cultura nao é um
"espelho imóvel", onde o Homem se mfra tranqüilo, constituindo '
sua identidade (a si) como interioridade eminente e clara. O céu
nao é nem o reflexo nem .o avesso da terra - é outra coisa que
urna "imagem".

222
os abandonados

Por sua vez, clara tampouco é a diferen9a entre os home ns

e os animais; nao consigo caracterizar de modo simples o espa90

da "Natureza" na cosmologia Araweté.


'
Como já observei, nao há uro taxon para "animal"; há alguns

termos -.genéricos, como "peixe" (p!da) , "ave" (irá, usado apenas '

na composi9ao de nomes de espécies; o termo mais comum é -éwewe


me 'e, "voador"), e urna quantidade de metonimias para as dernais es

pécies, conforme o habitat (arborícola, subterráneo), o regime a-

limentar, a fun9ao para os Araweté (do pi, ''de comer'', temima ni,

"para animal de estima9ao"}, sua rela9ao como xamanismo e os ta-

bus alimentares.

As distin9oes - cruciais no interior - do dominio animal sao es

sencialmente as mesmas que vigem para outras categorías de seres .


11
Os M~i, os humanos, os espíritos da mata e da água sao entes que

sempre existiram, nao foram criados; assim também certos anima~s ,

como o jaboti - dito ser "muito antigo" (im-i) -, algumas espécies

de peixes, insetos. Todos estes seres " simplesmente existem" (ika

te). A maioria dos animais, porém, foi "cri ada" - mal'a mi l'e. O

verbo mara se traduz literalmente como "col oca r", "por", "presentí

ficar'' - isto no sentido tanto locativo (p5r algo em algum lugar~

como no metafísico. A cria9ao é urna ''posi9ao de ser''; ela se dis

tingue da "fabrica9ao" (m o ñ{ ou apa), ato concebido como ela bora

9ao demorada de uma matéria prima. Os objetos culturais sao fa

bricados; mas os cantos , p.ex., sao "postes", Mara -


e, pr opriame ~

- . t" en t e, a t ua l'izar 33
te, por como exis .

(33) A idéia Araweté de "cria<;ao" é , assim, diferente da Yawalaplti, onde urna


- fabricar - indica tanto o artesanato humano quanto a cria9ao demiúrgica dos
seres primevos (V. de castro 1978b). Cf . a ro;:ao Apapokuva de "encontrar" caro
equivalente a "criar" (oioú; Nim.lendaju 1978: 71).

223
araweté: os deuses canibais

Os anirnais "criados" eram humanos, antigarnente. Durante urna


grande festa de cauirn, a divindade Na-Maf ("deus-on9a", o irmao
-
de Mikora'i, o "filho do gambá"), vingando-se da rnorte de sua rnae
nas garras da Ña now~'ha, a on9a monstruosa, transforrnou-os todos
nos animais de hoje: o gaviao~real, urubu, on9as, ariranhas, gua-
ribas, rnacacos-prego, cuxiú, cutia, caititu, anta, mutuns, tuca -
nos, .veados, jacus, pacas, tarnanduás •.• Ña-Maf!
- transformou-os ou
"criou-os" por intermédio do objeto criador por excelencia: . o cho
calho a~ay (e o tabaco). Os peixes forarn criados diferentemente:
eles foram transformados a partir de objetos culturais de origem
vegetal: o cocho do inajá (virou o trairao), a esteira tup~ (vi -
rou o rnatrinxa , o peixe-cachorro, o piau, etc.); o abano de fogo,
a mao-de-pilao .•• Os mosquitos e outros bichos nocivos - aranhas,
escorpioes - foram criados por Mikora'i, da furna9a de urna foguei-
ra.
Nao pude saber mais que isso, sobre a origem dos animais
O ciclo mítico dos gemeos "On9a/Gambá", quase un'iversal entre os
Tupi-Guarani, parece · estar, aqui nos Araweté, exclusivamente asso
ciado i cria9io dos animais, e é concebido corno se des~nrolando '
em época posterior i separac;ao do céu e da terra por Aranami;após
a transforma9io dos .animais, o Ña-Mai! subi.u aos céus, levando corn
ele a maior parte da popula9ap animal criada; os anirnais que res-
tam na terra sao, como os humanos, urn resto, abandonado (heña mi.
.
re) 34 . O que parece essencial, ou antes, tudo que posso dizer; -
e

(34) Os queixadas n00 forarn criados neste cauim; eles sao de Iaradf!, que os
faz nascer de brotes de .baba.cru, e sarpre forarn dele. o tema da transfonna.crao'
de objetos culturais de rnadeira ern peixes e jacarés se eno:::>ntra nos Parintin-
tin (Kracke,1978:4) e oo ciclo Apapokuva das aventuras dos geneos (Nimuendaju,
1978: 79-80). O tema da transfoµna9ao de ex-humams em animais nurna festa de
cauim se encontra, fora dos Tupi-Guarani, entre os Piaroa (Kaplan, 1981:14) ,

224
os abandonados

cuja oosnolog.i a apresenta nunerosas sernel.hanras temáticas e estruturais CXll'I a


Tupi-GJarani. Nos Piaroa, esta origen humana oos anima.is é que subjaz a nece2_
sidade de transfonna~ xamanistica de toda carne ern vegetal, antes de seu '
caisuno: caner carne é t:rna forma de canibalisno (o que ecna oertas crencras
G.larani, caro verenos) - cf. Kaplan, 1981:7-9; 1982:10-ss; s / d. Mas o par mi-
tioo "~a/Gambá" Tupi-G.larani parece rnen::>s i.np)rtante, na f~ oo oosm:>s
atuaL que a dupla Wahari (Anta) /Kuaroi (Sucuri) oos Piaroa (havemo aiOOa urna
transfonna~ oo eixo au/podre Tupi-Guarani em eixo terra/água Piaroa). O es
sencial da dif~ entre a CX>Sr!Ologia PiaJ:oa e Araweté (maior que, por exe!_!!
plo, a distancia entre a oosrcologia Piaroa e a Wayapi) é que a rel~ de ca
nihalisrco e de afinidade se dá entre os hunanos e os anirnais, e os deuses ~
recen caro aliados 005 haTens face a ving~ dos animais <ó:>en9as) oontra o
"canibalisno" lninaIX> - para os Piaroa; ros Araweté, o tema oo canibalisrro e
da afinidaie se joga entre l'x:Jnens e deuses, e a animalidade é um pólo relati-
varrente nao-marcaao. Os Araweté ntnlca mencionaram o canibalisno ern -
cx:naxao
can o status ex-humaoo (b-fde pe) dos animais; talvez porque eles nao tenham
J,X>r problemática a prática Cb cani.bal.iSOC> - pois, eli:x>J:a cercados de canibais
(cf. oota 31, supra), t:.érrbé!n nM se. definen _a::rco náo-canibais; talvez, ainda,
po:rque as doerY;as provocadas ¡:xx' animais nao
sejam tao importantes na etiolo-
.
gia Araweté, ou nao sejam ooncebidas caro vingan<;a do animal norto. Ver infra,
pp. 510-ss., para a ~ de ha 'o ive de animais, e suas "fledlas".

que os anirnais foram humanos, em sua maioria; que os peixes reme-


tem a outra origem; e que os jabotis, queixadas e outros animais
sao irredut!veis a origens comuns. Estas diferen~as nao se refle-
tem no plano do s.i mbolismo alimentar, do xamanismo e dos interdi-
tos alimentares 35 •

(35) Que o natento da transfo~ dos animais tenha siCb una· festa do cauim
ala::X)lioo, porén, isto talvez seja significativo. O k(i 1; 'da é o nanento prin
- -
cipal da sociabilidade profana Araweté, e .está associado a guerra e a licenra
sexual; durante o cauim, ainda, a embriaguez (ka'o) prOOu.z acessos de violén-
cia cega - tratar-se-ia, assirn, de urna festa "animal"?

A divindade Na-Ma~ tem · um filho (ou irmao, conforme as ver


soes ) , Tiwawl, que é o xama responsável pela r~ssurrei~ao das vi-

225
araweté : os deuses canibais

timas do canibalismo dos Maf het!· Esta fun9ao é por vezes compaE
tilhada corn seu pai/irmao. Estes deuses, assim, estao associados'
a transforrna9oes retro- ou pro-gressivas da matéria humana, que·
parece ser concebida corno a substancia primordial dos viventes:do
humano para o animal, e do humano para o divino (transforrna9ao ern
Ma! após a ressurrei9ao); ou seja, em .dire9ao a ca9a ou ao ca9a-
dor.
A no9ao rnais próxima do que chamar!amos de "animalidade" ou
"natureza" é, em Araweté, a forma participial ~k~ het! me'!, "os
que sao realmente existentes", "aqueles que existern" (~k~ é ser ,

estar ou existir). Esta exp·r essao tem diversas conota9oes, e en-


tra em vários contextos de contraste. Em primeiro lugar, ela de -
signa os seres que nao sao hukay pa, "habitantes de ambiente fe -
chado ou cercado" (-ukay é urna raiz que conota um espa90 artifi -
cial, delimitado: casa, aldeia, cercado, tocaia). Isto é, designa
os "habitantes do mato", "dos huracos", "dorio" (ka'a pa, iwik;
. ....
pa, pa~an~ pa), etc. Isto inclui algumas tribos inimigas, nomade~

Outra caracterlstica fundamental dos seres "realmente existentes"


é serem eles desprovidos de roxas e de fogo: e por isso, os Ma!

hete eram freqüentemente lembrados como exenplos de gente ~ka hete


. , 36
me e •

(36) Evidentanente, os Arcrweté saben que eles t..anDén, i.e. seus ancestrais ,
nao tinham ror;as nen fogo antes que o caburé e ?t-ep-e os "dessem" (me 'e) aos
hunanos e deuses. Mas a insistencia cnn que lembram esse estado de Natureza '
cx:m:> associach aos Ma!
.... é significativa - parece marcar um desejo, um desejo
de marcar os deuses cx:rn o selo da arrbigüidade face a CUltura.
t

- sao
Por outro lado, alguns animais nao - ~ka hete me'e: os u-

rubus, os peixes, os queixadas sao seres hukay pa, pois sao ani -
mais de estima~ao de espiritas "Donos" (respectivamente de Iriwo

226
os abandonados

morodf ta, Iaradf e Iwikatiha), e vivero assim em cercados ou al-


deias, sao domesticados e nao sao comestiveis para seus donos.
No céu, igualmente, existem animais ~ka he t e me'e, aqueles

ca~ados e comidos pelos deuses 37
, e aqueles que nao o sao, os bi-

(37) No reu nao existen queixadas, nem quatis, nen tat:us. Os pr.imeiros ~
oem aos Senl'xn'es 005 Pora:>s, 005 ccnfins da ter.ra: os segundos estao associa-
dos aos ífñl,' de que sao
a cnnida predileta. ~ sei porque nao
há tatus {por
seren animais de toca, subterrineos? ) - visto que existe un "deus-tatu" (Aiyi
rime ou Tato-Maf) celeste.
- - -

ches de estima~ao dos deuse~, que aparecem muito nos cantos· xama-
nlsticos, servindo freqüentemente para caracterizar urna manifest~

~ao ou "modula~ao" do conceito g~ral-abstrato de Mal (ver §4,a s~

gu±rt. Estes animais sao em gerei identificados pelos sufixos -aCEJ


"grande", ou -yo, "amarelo" {no sentido de eterno ou perfeito
cf. a mesma acep~ao em Mbyá, na interpreta~ao de Cadogan, 1959:33
-4). Devem ser distinguidos das entidades com nome de animal se-
guido da expressao -~d! mo Maf, que indica deuses antropomorfos; e
dos animais h~wl'ha, "grandes" ou "monstruosos", que sao, ou s~

res dos tempos míticos, de forma animal e comportamento humano,ou


manifesta~oes animais dos Mal - corno a Na n~wl'ha, q ue é um "Deus
-virado-on9a " ( e nao
- urna " on.9a-virada-Deus")
. 38 •

(38) Howl'ha significa "grande" ou "velho", e é sufUco fo:rmador do cx:moeito


de "antepassado" - ptl"'b owl 'ha, "gente antiga", que se aplica a tcxbs os nor
- -
tos do grupo, e ~ aos viventes mais velb:>s. O teDIO é un cx::>gnato do Mbyá
tuvixa {Dooley, 1982:180), do wayapi tuwiya (P.Grenand, 1982:222), etc., e
cooota a func;ao de lideranc¡:a ou chefia, cxm:> para a maioria dos Tupi-Glarani .
.t)n seu uso para qual i ficar os anima.is mItico-rralSt.rlx>soS, é similar a seu <x:s

nato Kanayurá tuwiyap (Agost.inOO, 1974:168) e a rx:xrao YawalapÍti de -kuma (Vi


veiros de castro, 1978a).

227
araweté : os deuses canibais

A no9ao de ~ka het;e me'!!_, ao se opor a dos animais temima,


de estima9ao, designa entao o indomado versus o domado, o que se
come versus aquilo que -s e "guarda em cercado" ou se "cuida"(ipa 't).
Mas ela se opoe .ainda a uma no9ao 'mais geral, a de seres "das di-
vindades (Mat ap~) 39 - o que inclui, grosso modo, aquelas espé-

(39) Apa significa "coisa" em geral. QuaOOo usado en cxm.st.ruc;óes &:> ti¡x:> ••
(substantivo) + apa, pode c:x:n:>tar.' tanto urna idéia de propriedade, quanto a
de ~cia de algo a alguma out:ra ooisa (o subStantivo-sujeito). Assim ,
p::>r exerplo, quard:> se dizque a mandioca é kwne'e apa, "dos hanens" - cf.
supra, p. 163 -, isto quer dizer que ela é "masculina;', e nao "de prq>rieda -
de" ó:>s h::rtens. Maf apa pode significar, igual.mente, "divin:>", atributo da
divindade.
- -

cies animais de "propriedade" do Senhor da Agua e de Iaradt. o


que se conota, ai, é menos wn modo de existencia "nao-possuído ..
que um modo indeterminado ou a-sign.if icante de existir. ••Realrnen-
te exis.tente" significa urna ausencia de trans~endencia: urna exis
tencia, por assim dizer, bruta, pura e simples. fka hete me'e con

juga entao dois


-
sentidos, que nao se recobrern integralmente: au
sencia de cultura e ausencia de transcendencia. Designa os "entes",
os seres-do-mundo. O que caracteriza os "
b~d! como' hurnanos-Araweté
é sua ~upla . condi~ao: nao só sua posse· da cul~ura, mas o fato de
. serern "coisa dos deuses", ''assuhto da divindade 1' . Eles tarnbém sao
"
Mg_~ apa - -
nao porque os Ma~" het .e sejam seus "donos", mas porque
no hornern se rnanifesta urn destino celeste, urna outra essenc.i á que
o puro ser-do-mundo. Os hornens riao sao brutos·, porque sao outros
que si mesmos - nao sao simples e "replrnente existentes"..

Das plantas, o que posso dizer é que as cultivadas remetem


integralmente ao dominio do humano. Elas s ·a o "de Pf!tpf!", urn ex-
-hurnano-verdadeiro (btde pe het!!_), que as deu aos hornens e aos

228
os abandonados

deuses (nao sei como nem porque):. P!!p! é o "Senhor das Coisas
Boas" - Me'e kat' ~a-, o fogo, o milho, as plantas cultivadas •

Outras a·r vores e espécies vegetais da mata estao associadas a


'
oertos espirites seus "denos", que as plantarn como fazemos com o

milho: o a<;aÍ, o tucum, a cuieira, etc. Há o já citado "ex-milho'


dos de uses" , a bananeira-brava. E · há, por f im, algumas espécies de
árvores que sao di tas Mal déml-néña we ,\ deixadas ou abandonadas' <na
1

terra) pelos deuses, quando subiram com o firmamento: a castanhei


ra, a kapo'iwa (utna árvore onde pousarn os cotingideos moneme e
iriri. me'!:._, passarinhos "das divindades"), o payika, a árvore do
. ...
parica.
Ve-se, enfim e em suma,a presen~a insistente de um terna na
cosmologia Araweté: o tema ·do abandono, da . d1visao do cosmos en-
tre ªquilo que "foi·" (·t.-
~ rMJ. t .e-1
·' e .aqlll.'lo que "fi
. COU-" (opita> ou "a

penas existe" C~k~ te) - aquilo que foi abandonado. A rac;a huma
na é a rnais notável espécie des tes seres abandonados. Mais, notá -
vel porque, apesar de ter ficado, seu destino é ir: dos humanos ,
ao contrário do resto de seres .que 'k~, existern ~u estio (na ter-
ra), se dizque sic 'ha me'! ri, "os que irio". Esta i, afina!, a
marca
. da diferen9a
.
do humano dentro
. .
do mundo:
~.·
o tempo o constitui
em sua essencia. os animais tem "espirito" (hE!_'o we) e tem um
"principio vital" Ci.); mas nio "irio". Os da terra sic da terra:
os do céu, do céu. Só os humanos estio entre a terra e o c~u, o
passado e o f~turo: s6 ~les nio "morrem de verdade" ('man; nete).
O abandono da humanidade é menos. urna queda desta que. uma su
-
bida dos deuses. Deixados ~ar~ tris, os homens sio, propriamente,
essa aus~ncia da divindade. Ao contririo de tantas cosmol~gias do
continente, que concebem a Cultura ~ a cond~9ao humana corno con
quista sobre o ter.r i tório de urna Natureza ou animalidade

229
araweté: os deuses canibais

nais, como um estado estável que se define c omo p o sitividade nega

dora da Natureza (e esta como anti - e ante-Cultura ) , os Araweté

produzem o humano como separacrao de urna Sobrenatureza, como "aban

dono" de urna condi9ao sobre-humana, extra-cultural, originária.Ao

contrário assim de cosmologias como as Je, que poem a Cultura co

mo o que os animais nao (mais) tem, para os Araweté os homens se

definem poi nio (mais) serem o que os deuses sao. Seu problema,e~

tio , nio i distinguir-se do animil, mas transformar-se no divino .

O outro do ho mem nio é o animal, mas o deus; a Cultura nao é pr~

sen9a, mas espera. Na verdade, o s h o mens é que sao os outro s d o s

deuses, seu resto abandonado. Fei tos en.t retanto de tempo, ex is tin

do no intervalo entre o já-nao-mais e o ainda-nao, é para este úl


timo que se vol.t.am: a cosmoqonia prepar.a urna escatología.

4·, DEUSES E ESPÍRITOS: ESPÉCIES E MODOS DE MANIFESTA<;AO

Dentre todos os grupos Tupi-Guarani conhecidos, creio serem

os Araweté aquele que povoa mais densamente o cosmos, em termos

qual.itativos. Obtive os nemes de dezenas de tipos diversos de se-

res celestes, terrestres e cutres.. O grau e modo de presen~a de

cada wn destes tipos na vida Araweté, porém, é muito variável,bem

como seu estatuto exis·te·nc·i al. Dentro, por exemplo, da categoria'

dos seres-Maf, há desde espécies de divindades bem definidas, que

habitam aldeias próprias e tem fun~oes determinadas na vida reli-


\
gio sa do grupo, até modifica~oes (no sentido spinozista) particu-

lares de urna substancia-M~!, que surgem em visees onlricas de um

xama. Há alguns Maf que sao personagens centrais de mitos cosrnogo

nicos e etiológicos - quando entao, no tempo interno do mito e

230
os abandonados

· nas glosas, sao concebidos como individuos, ligados por rela~óes

de parentesco; mas se podem concebe-los, em outras ocasioes, como


- 40 ..
urna multidao • Ha. divindades masculinas e femininas. Ha.. uma ex -

(40) Ass:im, por exeiplo, a divindade que ergueu o céu, Araniíml, é concebida
o::no um individuo, oo mito. Atualmente, ele t.en duas mulheres, oo Maf pi:
Kadrne kañt, ,.IIlllheJ:--cani" e Otte:H K.añi, tlmul.her-ocll'c!i!" (um passarinOO)
-
Mas
-
se perguntax:nos se A.ranam.f é
- -
\l1l
- •
indivíd\X> (se ele é c1:pe me'~, "únioo"),se
é um só AraniimL que desee a terra para cx:uer mel, trazido pelos xamas -, res-
¡x>nderao que nao, que sao "nuit.os" {pawe). o mesto se diga das divindades fe-
mininas casadas con este ser uno-míltiplo. o que ne parece, é que o nodelo
que subjaz a este uso c:onceitual é o do "dax:> de aldeia" Araweté, ou o chefe
de parentela. Ass:im, os "Itllitos" ~ que deseen a terra sao, na verdade ,
AraniimL uñ, "os de Aranáml", isto é, seu "pessoal ", os de sua aldeia ou paren
tela, substancialmente identifica:los a/cx:m ele.

tensa série de deuses com nomes de animais (em sua maioria pássa-
ros), acrescidos de sufixos que os caracterizam como divinos e a~

tropomorfos. Há divindades que vivem junto com os Mal hete, estan


do ou nao envolvidas no processo de transforma~ao das almas dos
mortos; outras vivem apartadas e sao canibais, perigosas. Há as
que sao conspicuas no discurso e prática religiosa; e há as que
nunca descero a terra, e das quais sabe-se pouco mais que o nome.
Os Maf, ao contrário dos espirites da mata e da água, -
sao
antes de tudo música: mara ka. Nao só s·a o cantores, como cantados.
Ao discorrerem sobre as caracteristicas de uma divindade, os Ara-
weté invariavelmente citam trechos famosos de can~oes dos -
xamas
(ou melhor, dos deuses - as can<;oes sao "postas", marE!_, pelos de~

ses), que sao a fonte imediata de informa<rao cosmológica. Todos'


os espirites celestes e subterráneos parecem poder ser identific!
dos por seus cantos - -mesmo quando nao sao norneados nestes. Isto
é, certos refroes e temas estao associados a determinados deuses,

231
araweté: os deuses canibais

e•Se repetem de Xama para Xama, COID pequenas (mas importantes) V~

ria9oes. A forma de comunica9ao dos deuses com o


. ..
vi.vente e essen

cialmente o canto: é cantando (ou cantados) que eles descem a ter

ra, é cantando que os xamas os encontram no céu. A música ou can-

to dos deuses só tem como contrapartida, dentro do genero maraka,

as can9oes inspiradas ·ao matador pelo inimigo morto - a "música '


41
dos inimigos", cantada nos cauins alcoólicos • A presen9a dos

(41) F)rb:)ra se ¡x>ssa distinguir entre "núsica" (maraka) e "cant.o" <oñ-lña) ,nao
existe núsica nao-vocai entre os Ara'weté. Tudo isso será analisado ro capítu-
lo VI).

Mal no discurso cotidiano Araweté é avassaladora; as can9oes xama


nísticas se transformam facilmente em sucessos populares, e a to-

do e qualquer propósito se citam os M~! como modelos de a9ao, de

ornamenta9ao corpóral, como padrao de interpreta9ao de eventos, e

fonte de navidades. - "


Esta " obsessao " pelos M9_t., ..
corno ja indiquei

no capítulo I, está associada i importancia dos rnortos,


.
que vem a
~

terra com os deuses.

Tanto entre os Mal quanto entre os espiritas terrestres, e~

centramos seres que sao "Senhores" (Ña) de espécies animais, vege

tais e dominios naturais. Mas, corn a possível exce9ao de Me ' e Na,


a "Coisa-Jaguar", Ma-i." que t em como animais de estima9ao e intimi
da9io os jaguares, os espirites celestes nio sio ''Senhores" de

coisas importantes, ou pelo menos nao é essa sua forma de prese~

9a na vi·a a A rawete-42 •

( 42) A ~ de ñii - que nao deve ser oonfmdida a:m seu lx:lrOnino ; ñii = jaguar
- é o a)gnato do jara, Qlarani, o zara, tenetehara, o iar ou ijar Wayapi, etc •
Esta é me~ cxnplexa, que t.e.m oorre~tes em iniíneras l!nguas nao-
'-Tllpi (cf. ¡x>r exerplo o Suyá ·JcaOOe, que Seeger, 1981:181 traduz ¡x>r "OOrr::> -
-control.aó:>r"; ou o Yawalapiti wokoti, que traduzi por "don>-representante" e

232
os abandonados

aproximei da raiz 1.rID-européia *potis, na análise de Benveniste - cf. Vivei


ros de castro, 1978a:38-9). El.a evoca ainda tenas clássicos da cultura amaz.0.-
nica, cx::no a~ de "~stre dos Animais" (Reichel-nJlrnatoff, 1973:104-ss.)e
os "cboos" da mata e -da água (Kap~, 1981:7-9). o t.enoo ñíi corota idéias co-
ro a de lideranc;a, controle, represent~, resp:msabilidade, pi:opriedade de
algun rerurso ou Cbnínio. o ña é senpre um ser hunam ou antxopa11orfo. Mas há
ainda outras idéias envolvidas. o ña de algo é alguém que tan esse algo em
ahmdancia. E, sobretu:3o, o ña é alguém que é definido pelo algo de que é o
sentnr. Nessa Última com~, ele é ao rnesno terrp::> o "representante de" (me-
.
táfora) e o "representado. por" Cmeton1.mia) esse algo. ~ o caso, por exerplo ,
da sinéd:>que yiakéí ña, .. senh:>res do diadema" , para designar a ccrra.m:i dad e mas-
culina (ver supra, p. 150). A~ jurídica de "propriedade", oo caso dos
Araweté, é o aspecto menos inp:>rtante, e nen senpre presente, oo u.so do tenro.
Os Araweté nao parecen cx:l'l~ de nrxk> geral o cosrros cx::rro consist:i.nCb em
un <D'ljunto de daninios (e seus seres) justapostos, possu!dos por diferentes
ña CXJn quem o tx:mem ~sa .se entender ou lutar - ao m:Xb dos Tenetehara(Wa-
gley & Galvao, 1961:107-9) ou dos wayapi (Gallois, 1984a). Pelo meros, esta
nao é a Wase de sua cosnx:>~ia - e remeto aqui a minha anál.ise da ~ de
'6ka he~ me'e, os seres "realmente existentes", o que significa, inter alia ,
seres que nao tero ña, isto é, nao sao animais de es~ de (oo árvores
plantadas por) esp!ritos. o:no se verá, porém, há nunerosos espirites ter1:es-
tres que sao ña. Mas toda a rninha interpret~ da cosm::>logia Ara-weté o::11Sis-
te exatamente em nostra:r a roa i or inportancia cbs deuses celestes - que, ao
contrário oo Ci\E se ve oos Wayapi, ou oos Kayová (Sd1aden, 1962:121) nao sao
sentx>res da r~ hunana.

Em troca, apenas entre os deuses celesees encontramos urna


categor.ia especia.! de seres que contrasta nitidamente com os se-
res-ña. Tratam-se dos deuses que sao 'a,"comedores" de determina-
dos tipos de alimento, que devem ser trazidos a terra pelos xamas,
em ocasioes . de consumo cerimonial destes produtos. Cada alimento'
da el as se definida como ''comida dos deuses" (Ma! deml-tio) que
coincide com os alimentos di tos "xamanizáveis 11 • ( ipey~ pi) - tem
divindades especificas associadas. A exce~ao mais· notável sao os
Ma! hete, e os mortos, que cornero de tudo. Tanto estes espirites '

233
araweté : os deuses canibais

"comedores" quanto aqueles que vªm i terra apenas "passear"('poho


te) podem surgir nos cantos xamanisticos noturnos, em qualquer o-
casiao; mas os da primeira categoria costumam aparecer mais na é-
poca em que abundam cu se preparam os alimentos de sua pref eren -
cia.
Todas as cerimonias coletivas Araweté sao organizadas sob
essa forma: um banquete mistico dos deuses e mortos, ao qual se

segue a ref ei~ao humana (pois os deuses tomam do alimento 't::pey!:_

ha iwe,"mediante o poder xamánico", deixando intacta sua substan-


cía). Nao se trata portante de comensalidade,mas de preliba~ao di
vina do esfor~o produtivo da comunidade - isto é, de uma estrutu-
ra sacrificial. As "comidas dos deuses" sao sempre aquelas que re
sultarn da produc;ao e consumo do grupo local corno urn todo; a noc;ao-
se refere assim menos a certas espécies de alimento que a' forma

coletiva de produzi-los e conswni-los: os cauins doce e alcoólico;


os festins de peixe, mel e a9ai; os jabotis e os guaribas; o min-
gau de batata-doce. Os deúses devem vir também ·comer da anta e do
veado - animais que,pela quantidade de carne que fornecem, sao re
partidos e consumidos por mais de uma se~ao residencial. A única
espécie de ca9a que, mesmo quando abatida ern quantidade, nunca -
e
objeto desta preliba9ao celeste, sao os queixadas - alimento pró-
prio dos humanos (nao há porcos no céu), e carne sobre a qual nao
- 43 .
pesa nenhum tipo de restri~ao

(43) Iarari.f e Mo'irooco, os Senh::>res·dos QUeixadas, nao ven naturalmente co-


mer de seus animais de es~. o que caracteriza un "doro" de espécie ani-
mal é que ele nao cx:rne esta espécie - ele "cuida" (i~'f) dela, e
' - paree;
con-
trolar sua reprodu¡:ao. Os ña destes alimentos CXll'lSlniCbs coletivamente e pe -
los deuses, quando os há, sao setpre espíritos de rosso nivel OOsmico. E nao
há nenh\.11\ animal ou planta cuja Sentx:>r é um espirito celeste que seja objeto
destes festins.

234
os abandonados

Na medida mesma em que esses deuses-comedores nao sao - - os Se


nhores das espécies alimentares consumidas, eles nao dispoem delX)

deres diretos de sanyao contra, a hurnanidade, no sentido, por exem


. plo, de bloquear a obtenyao desses produtos, ou de produzir doen-
9as, caso nao sejam trazidos a terra pelos xamas para comerem.Ta~

to quanto eu saiba, apenas a "Coisa-Onya" celeste e seu parceiro


.
Morop!c!, o Senhor das cobras, ambos "comedores-de-jaboti", podem
se enfurecer e soltar seus animais contra os humanos, se estes se
mostram demasiado negligentes em os convidarem para banquetes de~

te alimento. Mas ainda aqui isto nao ..


- e urna razao
- para que sejam
chamados. Nao me parece haver, neste sistema de oferta alimentar
aos Ma!, um motivo de apaziguamento, propicia9ao ou coisa seme~

te. Os deuses vem porque vem, porque os Araweté gostam que eles
venham - gostam de ouvir seus cantos quando descem a terra, e ou-
"
vir o que eles e os mortos falam para os viventes. ~ verdade, po-
rém, que por vezes alguns cantos noturnos dos xamas eram interpre
tados como transmitindo uma "raiva" dos Mal por nao estarem haven
do festins de tal ou tal produto, na época apropriada; eles amea-
yavam o xama, no céu, de o devorarem. Tal ameaya é muito cornum, e
nao se confina a este contexto de vontade divina de vir festejar
na terra corn os alimentos produz-idos pelos humanos. Nao obstante,
parece claro que esta sua condi~io de "comedores" e estes banque
tes divinos sao signos da posi9ao canibal dos deuses.

Os perigos rnlsticos associados a determinadas espécies de


alimento remetem a outro sistema, que é o das "flechas" contidas
na carne dos jabotis e no mel, o da "dor" contida nos peixes e
no cauim, e o do "esplri,to" da anta e do veado. Note - se
que t odas essas coisas sao também "comida dos deuses .. e que
o xamanismo sobre elas, que traz as divindades para o festim,

235
araweté: os deuses canibais

é duplicado por um xamanismo de neutralizaQao destes perigos, por


meios "mágicos" (i.e. sem intervencrao dos deuses}. Nao há dúvida
que . a superposicrao entre o ·xamanismo de neutralizac;ao dos perigos·
alimentares e a vinda dos deuses sugere alguma implicac;ao entre
essas práticas. Pois os ·xamas só "dispersam as flechas" do jaboti
e do mel, etc., nas ocasioes em que tais produtos sao consumidos
coletivamente, nao quando um particular os come. A impressao que
tive, contudo, é que se tratava, antes, de tornar o produto acei-
tável para o consumo divino que apenas par.a o humano
Nos capítulos seguintes examinaremos a forma processual des
tas cerimonias, bem como a questao dos perigos alimentares e do
xamanismo. O que queremos destacar aqui é que tais ocasioes de
produc;ao -e ·consumo eoletivo de alimentos sao um dos deis únicos
tipos de - s.:Lt.uaQao em que a aldeia ou grupo lo.c al Araweté emerge
como un1dade. A parte talvez o caso da pescaria com o timbó, que
implica equipes de trabalho mais amplas que uma sec;ao residenciai
nenhum dos alimentos dos deuses exige, para sua produc;ao, a coor-
denaQaO economica do grupo locai. Sao os deuses, sua presenQa OU
sua volta, que fundam e sancionam ·a sociedade como unidade.Nestas
cerimonias, o que está em jogo sao as relac;oes entre os viventes,
como totalidade indiferenciada, e .os "estrangeiros":deuses e mor-
tos. Tais banquetes místicos coletivos marcam o ciclo anual Araw~

té, de wn modo e num espirito semelhantes aqueles de que f alava

Schaden quanto aos Guarani, para quern


"as atividades eoonán:i.cas aparecen, nao raro, cx:m::> sinples ~
texto para a reali~ de oerim3nias de oontato cx:l'il o sobrena-

tural. . . ( ••• ) • . • o ciclo eron&nico anual. • • é antes de mais
nada um ciclo da vida religiosa" (1962:46)

A outra ocasiao em que . o grupo local se constituí como- uni-


dade é · na comemora~ao da morte de um inimigo ou de um jaguar,qua~

236
os abandonados

do a comunidade masculina se reúne em torno do matador-cantador e


do espirito do inimigo morto. Em poucas palavras: só os deuses,os
mortos e os inimigos sao capazes de contrabalan9ar o pluricentri~
'
mo disperso, sociológico e económico, dos Araweté. Eles criam,por
assim dizer, a categoria dos b~de.

Vejamos agora as espécies e tipos de espirites distinguidos


pelos Araweté. A .parte unia grande divisao entre os seres celeste~

terrestres e da água, nao é fácil estabelecer critérios taxonomi-


cos, sobretudo para a popula9ao celeste. Há vários possíveis, e
que nao se recobrern: seres "mitológicos" (que remetem a ciclos mí
tices) X "cutres"; "Nemes de humanos" X "Nemes de animais"; "espé
cies" X "individuos"; "os que vivem comos Ma! hete" X "outros" ;
"comedores" X "nao comedores" .•• Acrescente·-se que a qualidade
de informa9oes que tenho sobre cada tipo de MaC varia muito; para
alguns, nada sei senao seus nomes, e nemes que nao posso traduzir
(se sao traduziveis).

Esta lista, ademais, é aberta. Nao só porque certamente nao


obtive "todos" os nemes de ?'a! existentes, como porque isso é im-
possível, urna vez que o discurso xamanistico parece capaz de
criar constantemente novas modifica9oes da Divindade. Desta form~

enumero os esplritos de uma forma aleatória, detendo-me sobre a-


queles de que sei mais - o que reflete, sem dúvida o estado hist§
rico da importancia destes seres no tempo em que vivi com os Ara-
weté, os interesses das pessoas com quem conversei, e minha pró -
pria curiosidade. A quantidade e complexidade de associa9oes que
subjaz ao discurso sobre os Ma! escapa-me em larguíssima medida ;
mesmo assim, a enumera9ao abaixo poderá dar urna idéia da importa~

cia dos espirites na cosmologia Araweté.


I. Os "seres celestes" (Iwa ha)

237
araweté: os deuses canibais

I.l. Seres de "tipo-Ma-f! ..


l. Ma~ hete e suas manifestayoes,. designadas por termos de
parentesco (''filhos", "filhas", efe.). Associados ao trovio e aos
raios. Moram no zenite e no centro do cosmos. Seus animais de
estimayaO prediletos sao as andorinhas (tapera) e OS japus(yap~).

2. Aranaml, o que ergueu o firmamento. Dito h~UJa oho, "tes-


ta grande", porque o uso do diadema de arara expoe sua testa;- e

k1'p!_ oh2_, "costas grandes", porque anda curvado. Nao é caníbal •

Vem a terra comer o mel de xupé (iUJaho) e o jaboti. Seguiu por úl


timo na subida dos céus, sustentando o disco celeste ("como o mo-
tor de popa de urna canoa", comparamos Araweté). Mora comos Mal
het~, tem duas mulheres (cf. nota 40, supra).
3. Hehetie'a, sobi:inho (ZS) do anterior, que também ergueu
os céus. e associado ªºtape, gaviao-tesoura 44 •

(44) Animal que nao deve ser norto, 00 caÍitos das árvores e no:creros. o tape,
entre os Kaap')r, é animal familiar do x.anB, e para os Tembé estaría ligado a
feitis:aria (Huxley, 1963:217-8). Para os Apapokuva, é a ave de~, e está
.ligada a chuva (Nimuerx3aju, 1978:75).

4. Maraira, sua esposa Mo'ireüJ2_ ("miyanga perfumada") e fi-


lha Mañato. ~ comedor de rnel, jaboti e do cauim fermentado.
5.: A1;u1.zt~ká - Senhor dos pés de bacaba.; foi um dos Últimos a
subir no tempo do dilúvio, ficou numa tocaia no alto de um pé de
bacaba. Ele é evocado em urna encanta9ao para chamar o vento e fa-
zer as ros:as queimarem bem.
6. O grupo de Na-Mal, "On<;a-Divindade" ("é apenas seu ne-
me", dizem os Araweté, nao tem nada a ver comos jaguares); Miko
ra 'i, "Filho do Gambá" (idem ••• ), e TiUJaUJl·. Este Último é chamado
de b-Cde ci moñi ha, "fabricador de nossos ossos", porque os recorn
poe e nos ressuscita, após sermos devorados pelos Ma~ hete. Es-

238
os abandonados

tas tres divindades estao estreitarnente associadas aes Ma f he te ,


junto a quem moram. A primeira., ' corno já mencionamos, é criadora '
dos animais.

7. Yicire aao, que significa .. jacaré grande 11
- mas nao tern
nenhuma rela9ao especial com o animal. Principal tomador do cauim
alcoólico, é dita hemiyika me'~, "prevido de esposas ... Espirito '
licencioso, marca o tom da festa do cauirn.
8. Iapidaal, o principal comedor do rnel de xupé.
9. Mor op!af, o Senhor das cobras, que traz enroladas ern seus

cabelos. Tomador do cauim alcoólico, quando fica embriagado s o lta


as cobras do cabelo, e elas rondam a aldeia na festa do cauim.Vem
também comer jaboti, quando entao recolhe seus animais de e s tima-
- -
9ao e os leva de volta para o ceu. Esta Medusa mora apartada dos
Ma! hete, junto com seu "parceiro" (aplhi piha) Me'~ Na, "Coisa -
-Jaguar", a principal divindade comedora do jaboti • . 'Outro nome pa
ra este último ser é Ma! ciy~ ha, "o que faz medo aos deuses 11

Ela está associada a outras formas celestes de jaguares, como a


"Avó On9a" e a "On9a monstruosa". o sonho de um xama com quaisq..ier
destes jaguares indica o desejo da "Coisa-Jaguar 11
comer jaboti, e
deve levar a realiza9ao de ca9adas cerimoniais.

10. Ma! paracfpe, o principal comedor dos guaribas. t o Se-


nhor dos morros altos de pedra, no céu. Os pedrais mais pequenos'
sao de outros deuses, como Ma! p~k~, o "deus cornprido" e suas es-
- -
posas Moira'; e Iwa payo'!, que vivern a cantar e dan9ar nesses
morros.

11. Haka ~t!t mo-Ma-C, 11


Socó-tornado-Divindade 11
• to deus que
vem comer os peixes mortos a timbó.
12. Iriwo morod! ta, Senhor dos Urubus, faz seus brincos e
diademas com as penas do urubu-branco. Ele é quern recebe as almas

239
araweté: os deuses canibais

dos rnortos antes de entrarern no céu, soprando ern suas faces para
"revivi-las''. Esta divindade come do veado e da anta. Seus dom! -
nios "fecham" o Maf pi, isto é, estao no nivel mais baixo do céu,
juntamente comas aldeias de outros deuses-"pássaros", corno Kanoho

-o~t mo-Ma-f!, "Harpia-tornada-Divindade", IUJadt ti peha, "habitan -


- - -
tes-junto-as-araras-pretas" e os Ara't ti peha, "habitantes-junto
-as-maitacas". Estes últimos moram em morros no céu, e vem comer
do jaboti. Ainda bern próximo ao patamar terrestre está Da't na, o
"Senhor dos Passarinhos", que habita o nivel da copa das árvores
rnais altas. Próximos também sao os dominios de Orokoro'a mo-Ma! ,
"Caburé-tornado-Divindade", cujo canto esti associado i chegada
de inirnigos.
13. Dentre os deuses canibais mais perigosos, estao os
Ayiri ti peha, "habitantes~junto-aos-papagaios", os Tere~eta e os

Iwa ptdl pa, "moradores-do-céu-vermelho", que moram apartados, ern

"outros céus".
14. Há outros deuses-"pássaros" que vem i terra mas nao pa-
recern comer de nenhum alimento especial, corno os Karara ti peha ,
"habitantes-junto-aos-mergulhoes" e os Cita'i, senhores dos peri-
qui tos.
15. Há os Ita oho peha, "habitantes-junto-as-pedras-gran

des", deuses associados aos inirnigos Tow~ho; sao seus "cornpanhei-


- tem
ros de dancra" (anawe). Tomam do cauim alcoólico. Nao - nadegas
- 45 .

(45) Un tana que evoca dois grupos de seres nútiros que viven na terra, os
Yicir~ pa e os Pa '!, os primeiros identificados aos Araweté, os segunCbs aos
branco.s. Estas duas tri.bes se entredevoraram as nádegas •.. Os Pa'!
- sao
conc:ebi-
dos caro grandes tecnóloc:ps, senh:>res do ferro, de ~ e outros arti.f! -
cios. Ambas as tri.l::x:>s estao extintas, c:reio.

16. Ayirim! ou Tato-Maf, "Deus-Tatu". Diz-se que, quando

240
os abandonados

se come o focinho dos tatus, isto nos inspira sonhos em que esta
divindade nos faz cantar (cantá-la) .
17. Há quatro espécies de divindades femininas que sao
' .
- di-
tas "as que trazem as sementes do milho 11
ou "fazedoras do milho".
Sao elas que, xamanisticamente, fazem o milho se plantar e colher
por si, no céu. Nao costumam vir passear a terra. Sao Tap~doka

kañi, "mulher-marimbondo", Mamaya-yo kañi, "mulher-mamangaba" ,


Kawaw~-yo kañl (''mulher-kawawa", urna vespa) e Moiyiaw~d!do (=?).

18. Há urna série de divindades associadas. a fenomenos natu-

rais ou a espécies vivas, que nao costumam vir muito a terra. As-
sim IUJito yari, a "Avó Vento"; Matiide toti, "tio (MB) de Mati.itie",
46
senhor do raio ; os Topi e suas filhas Topi naiyidl, que sao se-

(46) Este Maf pertenoe a um grupo familiar que inclui MatHti.e e o BS desta ,
- -
Iwayiko. Eles
- sao
pe.rsonagens de un mito en que Ma~tis fica presa dentro
- de
un tronco de pau-preto, e seu tio o feIX3e can un raio.

nhores da .inflorescencia do coco-baba~u (iwoi) e estao associados


ao raio de um modo que nao compreendi; há o Payika, "Paricá", há
o Nata'i ciri oho piha, "o-que-mora-junto-ao-broto-grande-do-baba
- - ' -
~u", senhor dos. macacos-prego.
19. Hi ainda Teper! e seu filho Moia'iwoti (''o que floresce
as castanheiras"?). Seu. animal de estima~ao é o gaviao acaua. Ele

é personagem de wn mito em que morre, é enterrado e se ergue do


túmulo. Seu canto fala nos vermes que o devoravam. Ele é o respo~

sável pela existencia de pedras saltas nas cachoeiras e pelas


laminas de pedra que se despregam nos lajeiros - ele explodiu ou
queimou (hapi) as pedras. Seu canto nao deve ser repetido por me-
.
ninos - -beres, ou seus pelos
pre-pu ... -
nao nascem 4 7 . Estes deuses -
nao

( 4 7) Veraros adiante o tena da "queima" - hapi ~ dos cabelos pelo espírlto de

241
araweté: os deuses canibais

oertos animais. Teper! parece ser um personagem associad:> ao mesrro tenp:> cxm
o podre (venres) e o queimado (pedras que explode), fusao que encontranos tam
bém no Gambá mi.tico, de cujo pélo queimado, durante urna queimada de ~a de -
sastrada, se origina o nel. Mas nao
há nenhuna associac;OO clara entre este a-
nimal e o deus Tepere.

comem nenhurn alimento, apenas passeiam na terra.


20. E há ainda vários deuses cujo nome é formado pelo nome
de um animal seguido de -rerek;, "portador", "o-que-traz-consigo",
como Tukahayi rereki, o "portador-da-tocandira", que é um dos oc~

pantes da "canoa" dos Maf quando esta desee a terra para pegar os
agonizantes; ou Uruwa rerek;, "portador-do-pássaro-uruwa:,"; etc.
Outro modo comurn de forma~ao de nemes de Maf é f azer um neme de
animal ser seguido de peys..y . .. xama" - is to é, "o-xama-do- (animal)··.
Muitos destes tipos de deuses parecem cria~oes individuais de xa-
mis, que efetivamente nomeiam pela primeira vez, em suas visees
on!ricas, estas manifesta~oes singulares da Divindade. Por exem -
plo, o Mamaña-y o pey!, "Pajé-da-mamangaba-eterna", que aparece u
num festim de jaboti em 1983, foi-me identificado como tendo sur-
gido pela primeira vez no canto de um xama falecido, tempos a-
... 48 - - ...
tras . "i'papa-pap!!_ te k"1, pey!···", disse-me alguem: "como dao

(48) A mamangaba é una espécie de abelha solitária ou vespa, nuito feroz, que
faz seu ninl'x> en troncos podres, e está, de no.X> ge.ral, associada a podriMo
e a zrorte. A "marnangaba-eterna" pousa sOOre a pele velha das almas cbs nr::>rtos,
que fica esti.cada ao sol ~to os M:r:l hete se banqueteiam cxm a carne.

-
nomes, os xarnas " ••.
E há ainda muitos outros deuses, de que só sei o neme, como
Bew~'f kañl, "mulher-minhoca", Maro~ Mo inai'~, Irawadf. Os nomes
dos deuses, ou "nomes de deuses" (herai ha Mal tie, "nomeado segu!!
do um deus") sao urna categoria importante de nemes pessoais Arawe

242
os abandonados

té. Juntamente com os nemes de inimigos, os nemes de deuses sao a


principal fonte de nemes próprios.

Há, por fim, alguns esplfitos que, celestes, nao sao Ma~

propriamente:

I.2. Os "que rnoram no Mal! pi" (Mal pi ha)

l. A primeira classe é a dos Awi pey~, "Pajés dos inimigos";


os mais importantes sao os Tow~ho pey~, que vem comer o mingau
de batata-doce, e o Kamara pey!, "xama dos brancos", cujo canto
menciona fac5es, espelhos e machados: ele é dito ser o "que trou
xe o machado de ferro para os deuses".

2. E há o mais perigoso canibal do cosmos: Iaracl, ou


Kap!wa, ou Ipi 'a OhfZ. (•?igado qra-nde") . Es tes espíri tos moram
..
a

rnargem de um enorme rio ~le.ste 1 que corre exatamente sobre o Xin


gu. Eles comem o fígado e os miolos das vitimas, humanas ou divi-
nas. Eles sao Ma! yoka ha, "matadores dé deuses". Seu neme nao
deve ser pronunciado em voz alta, exceto por aqueles que já mata-
ram algum inimigo. Eles sao comedores de acrai ("comedor-de-a9aI"é
a maneira usual de nomeá-los). No tempo do a~al e do mel de xupé ,
os xamas podem "cantá-lo", isto é, ele desee aterra. Tao lago a
aldeia ouve o canto sinistro de Iarac~ que fala em devora9ao de
figados humanos, em grandes panelas onde vai-nos cozinhar, todos
fogem incontinenti para a mata, ·onde passam dias colhendo
e mel. De volta, faz-se wn grande banquete de a9aí ado9ado com o
mel, que é comido pelo espirito. Esta pajelan~a de a9al nao pode
ser assistida por ninguém; só após a subida do espirito é que se
sai de casa e se come. Os festins de a~ai ado~ados com outros ti-
pos de rnel sao comidos por outros seres, como os Mat hete e os
Awi pey~. Os Iaracl, bern como todos os demais canibais celestes ,

243
araweté: os deuses canibais

nao podern ser mortos pelos xarnas, ªº contrário dos esplritos ter-
restres malignos.

II. Os deuses do mundo inferior (Iwi kati)


Já mencionarnos os Taray~, que rnorarn em ilhas no rio subter-
ráneo. Eles sao freqüenternente invocados no combate aos Añi. A
outra ra9a subterránea, os Motfnaco, é-rne pouco conhecida.

III. Os espíritos terrestres (Iwi pa)


III.l. A ra9a dos lñii

Já falarnos dos lñi. Junto com esse tipo de espirito os


Araweté classificam vários outros, e especialmente tres, chamados
de toti, "tio materno" (posicrao que conota farniliaridade e parce-
ria sexual), pelos lñi:
l. Koropf, o "Curupira". cac;ado·r , canibal, mora no oco das
castanheiras.
2 • Karoa, o "Ca ruara" • Senhor dos Morros ( i wi ti ña), tern gran
- -
des plantacroes de taboca de flecha. Também é feroz e canibal.
3. Yiirt-padl, o "Jurupari ''. Senhor das cuieiras, cu jos fru-
tos carrega em fieiras as costas. Senhor dos a9aizeiros, castiga'
quem ·os cortar (os Araweté nao comem o palmito do acraí).
Estes tres tipos de· espirites costumam atacar os acarnpamen-
tos de c·ac¡:-a, e devem· se·r mortos pelos xamas. Alérn. deles, há urna
extensa série de "donas·.. de á·rvores e acidentes naturais:
4. I11Jira ña, "Senhor das árvores", parece ser quem planta '

as árvores sem dono próprio da floresta.


ña, "Senhor do tucurn". Este espirito treme,
-
5 . .Yuara'i e
cheira mal. Ele causa convulsoes e tremares em recérn-nascidos. As
mulheres grávidas nao devem ter relac;oes sexuais perto de um ·-
pe
de tucum, ou seus filhos sofrerao de convulsoes (hadi).
6. Iwiaho na ou Kopl'l ña, Senhor dos cupinzeiros.

244
os abandonados

7. Ito'o ña, Senhor de um tipo de solo, o lodo seco que se


cresta nas áreas inundáveis da mata, quando as águas baixam.
8. !ha na, Senhor das formigas iha (grandes, vermelhas e fe
'
rozes) •
9. Ita n.a , Senhor das Pedras. Todos os esplritos acima(4-9)
(com exce~ao de Yuara'i na, perigoso para as grávidas), sao peri-
gosos, para os pais (homens) de recém-nascidos; eles furam seus¡;:és
49
com flechas, se estes se aventuram a andar fora da aldeia .

(49) Una crerr:;a identica, para a mesma categoria de espirites, mas aneac¡:ando
as maes, se ena::m.tra entre os Mbyá - Schaden, 1962:93.

Junto com estes acilna (i.e. do (4) em diante), mais dois ou


tros tipos de .espirites, o Huka~oh~ ña, "Senhor das Clareiras" e
o Orokoyi 'i ña, "senhor da árvore o.rokoyi 'i" formam um grupo esP!
cial. Eles sao as entidades definidas vagamente como me'e ña, "do
nos de coisas", que sao vistas pelos aprendizes de xamas. t comum
os hornens A.raweté se reunirem a noite, para sessoes coletivas de
intoxica~ao por tabaco. Os que nao sao xamas (pey! [), ao desmai!
rem ou "serem mortos pelo fumo", nao veem os Mal, mas estes "do-
nos de coisas" terrestres. Este tipo de experiencia é claramente'
concebida como preparatória para a visao dos Mal, e como inferior
a esta. Os "donos de coisas" sao, em geral, vistos como perigoso~

mas nao tanto quanto os 1ñl e seus "tios", que costumam tocaiar '
os homens e raptar as mulheres Araweté, e que só podem ser enfre~

tados por xamas. Nenhum dos espirites terrestres canta, nenhum se


pinta; portam sempre grandes flechas de ponta de taboca. Sao defi
nidos como ~ka het~ me'!, "selvagens". Nao obstante, diz-se que
os 1ñl e seu grupo tem grandes planta~oes de mandioca - nao de mi
lho, note-se. Isto me parece marcar os espiritas terrestres (lñl

245
araweté: os deu~s canibais

e cia.) com urna natureza masculina,. que refor~a sua defini~ao de


raptores de mulheres.
Os mesmos esplritos que . amea~am os pais de recém-nascidos '
desernpenham porém urn papel positivo importante. Os Iwira ña, !ha
na e Ito'o ña sao aqueles que soprarn sobre ·o rosto do homicida p~

ra revive-lo, quando este entra em estado de rnorte ternporária, a-


pós seu feito. Eles se associam, assim, ao espirito do inimigo t

50
rnorto, que tambérn conclama o matador a que se erga e dance •

(50) o sopro ressuscitador é a técnica dos pajés sobre os desfalecidos, e a


do Senhor dos ururu.s
sobre as almas recém-dlegadas ao céu. Sei ¡:x:ruoo sobre o
resguardo e "norte" do tx:micida, e nao sei ainda a que atribuir este papel dos
espirites do tipo Iwiro ña oo caso. una hipótese possível é que sua partici-
~ na oouvade, cx::m:> ~, e no b::micídio, a:m:::> auxilio, ¡;x>deria estar ~
racterizancX> o matador a:m:::> o inverso de un pai. E)n segundo lugar, sua Pre5e!!
c;:a parece excluir exatanente qualquer in~ oos Ma:C oo cx:rrplexo do res-
guardo do rnataCk>r - pois os Mal temen um matador.

Por fim, habi tam ainda a terra as Iwi yari, as "Avós Terra ",
ra~a de velhas gordas que ~ozinham e comem os cadáveres humanos ,
associando-se assim a necrof agia dos Añi (que, no entanto, mo-
queiarn os mortos) , e replicando o canibalismo celeste dos Mal

he te, onde cabe as "avós Maf·11 (Ma! d.a'I'i) nosso duplo cozimento

o p~oprio, pré-consumo, e o segundo, o banho efervescente em que


somos ressuscitados.

III.2. Ayaraeta e o mel


- -
Estes seres nao sao propriamente "donas" do mel, mas corno
que manifesta9oes ou hipóstases do próprio mel, e particularmente
51
do rnel de xupé (iwaho), o rnais abllndante na regiao • Eles - ou

(51) o mel de xupé, iwaho, é produzido por abelhas negras, san ferrao mas a:m
UIT\3. nordida .relativamente oolorosa, que se grudarn nos ca.beles e nos oorpos
suacbs. As CX>l.nÉias de xupé sao muito grandes, CXJl\ aparfulc:ia de um ninho de

246
os abandonados

cupins, urna entrada em forma de tuOO protuberante (é o "pénis" do iwa.ho), e


estao senp;-e localizadas em árvores altas, cxr.o jatooas e castanheiras. Una '
oolnéia destas pc:xJe fornecer vários litros - cerca de dez -de um mel escuro.

ele, pois a falta de marca de número em Araweté, mais o caráter


sempre uno-múltiplo dos seres espirituais, torna dificil distin -
guirmos - sao chamados de "pais do mel xupé" (iwaho r'ti), que é co
mo se chamam também as abelh~s em geral ("pais do mel" - e ri) •

Eles "chegam como mel" ou "trazem o mel" (iwaho rero - wahi, forma
causativo-comitativa) . Sao carecas, sem nenhum pelo no corpo
certamente porque a.s abelhas o cortaram todo - , e comecram a va-
guear pela mata, seguindo o curso dos rios, a partir do meio da
esta~ao seca, sempre a noite.
Ayarastª é um "comedor de mel", mas de natureza diferente
dos Mal que descem a terra para isso. Ele é perigoso; quando apa-
rece deve ser morto pelos xamas; e sua manifesta~ao causa urna di~

persao ou fuga ('tiyª .,;h~) da aldeia para a mata, para colher mel .
Se ficarmos na aldeia, os Ayaraeta capturam nossas almas, guarda~

do-as para sempre dentro de seu grande chocalho ar~y, onde se fi-
- parece agradar aos
ca eternamente comendo mel: um destino que nao
Araweté, que preferein ser devorados pelos Maí! hete e morarem no
céu.
Os Ayaraeta, seres masculinos, costumam também aparecer em
sonho as mulheres, falando com urna voz fina (eles nao cantam) :"to
me, eis o meu sernern; torne, eis meu cocho cheio de rnel, que trago
aqui cornigo". O iwaho, assim, é o sernern deste espirito, que tern
urna preferencia especial, como todos os espirites da mata, por
capturar mulheres. Os Ayaraeta sao sempre definidos corno senhores
de inumeráveis aves de ·estima~ao; e nossas almas, capturadas, tam
bem sao seus hemima.

247
araweté: os deuses canibais

Estes esplritos parecem ter wn duplo ou equivalente, os


Towañieta (a raiz toway significa "do lado oposto"), que residi -
riam ou viriam do Oeste, ao passo que os primeiros partero do Les-
te. Suas moradas sao nos confins da terra, como as dos Senhores
dos Queixadas. Estes últimos, porém, jamais as deixam, enquanto '
os Ayaraeta só se recolhem no fim da esta9ao chuvosa, quando o
mel termina. A outra semelhan9a entre os Ayaraetª e os denos dos
porcos é que, quando relampeja no horizonte, é sinal de que Aya-

raeta comec;a sua caminhada, em meados de setembro.


Os Ayaraeta sao "extratores de almas", deles se dizque nos
"esvaziam" (hen~e), nos "emagrecem" (mokoiyf:_) e nos "envelhecem "
(motap!na), extraindo ·nossas almas do envelope corporal. A is to
os Araweté ~omparam a habilidade deste espirito em extrair os fi-
lhotes de arara e periquito dos ocas mais altos das árvores (cf .a
situa9ao elevada da colm~ia de xupé). Ele ainda nos mo-a'o we ,
"transforma em espectro". E, caso encontremos um desses seres na
floresta, durante urna expedic;ao de coleta de mel, devemos dar o
produto a ele, ou nos mata.
- atribuidos a urna extrac;ao da
Vários casos de marte sao al-
rna por Ayaraeta; tais roubos de alma., caracteristicos deste ser
melifluo e dos Senhor das A.gua-s, devem ser enfrentados pelos xa-
-
mas, que recap.t uram· e reconduzem as l para seus danos, na opera -
- dita imon~, de que trataremos mais tarde 52 •
c;ao

( 52) Há qtSn deferda urna teoría segurrlo a qual, após a norte, urna parte da
oossa persona serrpre segue can os Ayaraeta, erquanto outra vai para os Ma-t, e
-
outra vira espectro. Nao há ¡xn:én1 unanimidade quanto a isso.
-

O sistema de apari9ao dos Ayaraeta e posterior dispersao da


aldeia no mato é bastante sernelhante ao caso das manif estac;oes do

248

(
os abandonados

· Iaracl, o canibal celeste. Mas Ayaraeta nao recebe o mesmo respei


to e temor que este último; além do mais, pode e deve ser morto ,
a pauladas, quando se acerca da aldeia ou de um acampamento, e o
xama o identifica. Nisso é como os ·A ñl e o resto dos espirites ter
restres.

IV. O Senhor da Agua

Este é figura conhecida nas cosmologias sul-amer¡canas, on

de quase sempre desempenha um papel importante. Em Araweté recebe

vários nomes: Iwikatiha, "O-do-lado-de-baixo"; I pa, "Habitante '


da águaº; Maf d.amira pe, "Ex-mao-de-pilao dos deuses" (possível
referencia ao mito de cria9ao dos peixes - cf. supra, p. 224 ) ,•
Ptda oh~ ña, "Senhor dos Trairoes". Estes espirites moram no fun-
do dos rios, e, embora canibais e muito perigosos, nao sao selva-
gens, como os Añi--i! conqéneres. A ra9a dos Iwikatiha mora em al-
deias, e possui rnuitas plantas cultivadas (especialmente tubércu-
los, que sao "deles mesmos", i.e. nao foram doados por pffpf) •

Seus animais de estima9ao sao as ciganas (opisthocomus sp.), que


voam barulhentamente sobre o teto de suas casas, na beira do Ipi-
xuna, como fazem as araras e galinhas na aldeia Araweté. Nao se
podem matar estas aves. I~ikatiha controla também os trairoes e
peixes em geral, e durante as pescarias de timbó canta-se wn can-
to que procura convencer o Senhor da Agua a liberar sua "cria<;:ao".
Seu nome nunca deve ser pronunciado quando se está pescando ou
nadando.
Iwikatiha tem uma rela~ao especial, de vingan~a e de desejo,
com o sexo f eminino. As mulheres mens·truadas nao devem se banhar
em água corrente, ou o Senhor da Agua provoca inunda9oes, além
de introduzir magicamente no corpo da culpada fusos e pentes (ob-
jetos tipicamen_te femininos), matando-a. Ele costuma também . copu

249
araweté: os deuses canibais

lar corn as grávidas, durante o sono-sonho, e esta mistura de se-


..
men humano e do Senhor da Agua produz monstros ou abortos, quando
nao mata a mulher. Outra forma de ataque de Iwikatiha é o rapto ,
em corpo e alma, de mulheres que se vao banhar sozinhas. Em todos
estes casos, as infelizes nao tém acesso ao céu; elas ficam "tran
cadas" na casa do Habitante da Agua, que é por isso chamado de
kañl ner~-howapi ha, "o que encerra as mulheres".
Este espirito pode também capturar a alma-principio vital
(l) de crian~as pequenas, quando estas, no banho, escapam das
maos da mae e mergulham a cabec;a n·' água, assustando-se. Urna das
atividades mais comuns dos xamas é a recondu~ao das almas infan-
tis a sua sede.
Os Araweté chamam, semi-jocosamente, Iwikatiha de "nos.s o
cunhado" (tr~ rado'i), por essa predile~ao que demonstram porsuas
mulheres. Ao contrário dos Jñ? e similares, Iwikatiha parece ser
objeto de u.m maior respeito pelos Araweté. Nao obstante, pode ser
morto, nao canta, e nao vem a terra tomar de alimento humano: nao
é um Maf. Seu papel na cosmologia Araweté é menor que seus corres
pondentes Tenetehara (ywan - Wagley & Galvao, 1961:107-9), Kayabi
(karuat,GrÜnberg, 1970:156), Wayapi (moyo, a sucuri, Campbell,
1982: 276-7) e de outras culturas (Roe, 1982), embora mantenha o
mesmo complexo •• aquático" de associa9oes: hiper-sexualidade, poder
de enviar doen9as, horror ao cheiro de sangue (cf. ainda: S.Hugh-
Jones, 1979:L27, Menget, 1977:173).

5, OBSERVA~OES GERAIS E SUGESTOES tOMPARATIVAS

Esta é a populacrao do cosmos Araweté. Os capítulos que se


seguem procurarao mostrar sua participacrao efetiva na organizacrao

250
os abandonados

da vida e da morte. Apenas quando tivermos analisado o complexo '


do xarnanismo, os canto~ dos deuses, e sobretudo a no~ao de alma
que é, também para os Araweté, "a chave do sistema religioso .. (S~
den, 1962:111, dos Guarani) -, é que poderemos estabelecer _ urna
cosrnologia rnais que puramente descritiva.
Mas algumas obser'Va9oes podem ser feitas: .

(1) Em prirneiro lugar, há muita coisa que nao posso expli -

car. Nem sempre (ou quase nunca) é clara a rela9ao entre as divin
dades "comedoras" e seus alimentos. Se, por exemplo, a "divindade
-secó" come peixe, como seu pássaro eponimo (Tigrisoma gen.), nao
sei porque Aranaml come mel e jaboti, mas nao guaribas, etc. Mais
ainda, afora algumas associa~oes relativamente estáveis, todo o
sistema parece depender essencialmente ao· que eu ousaria chamar
de caprichos oníricos dos xamas, bem como das circunstancias eco-
nornicas. Assim, por exernplo, nurna noite do mes de janeiro· de
1983 um xama importante trouxe a terra um Uruwa-yo rerek;, um

Ma-C cuj·o animal de estimac;ao ou (mais propriamente) emblema é o


pássaro uruwa (provavelmente um caprimulgídeo). Como se estava em
urna época de grandes cac;adas de jaboti, o canto henoe, "nomeou 1' '
os jabotis, isto é, referiu-se a expedi9ao de cata de jabotis que
seria efetuada no dia seguinte - manifestou seu desejo de comer .
Res.s alvada minha falta de conhecimento etnográfico, só posso di-
zer que nao há nenhuma associa9io óbvia entre o uruwa e os jabo-
tis. Há varios exemplos des se tipo.
-
No caso dos deuses, portan to, toda classifica9ao nao parece
ref letir mais que um estado transitório de um sistema em constan-
te fluxo e renovac;ao. Por isso, nao sei também explicar porque ,
em geral, alguns deuses descero a terra mais que outros ·, porque uns
s·ao "·c omedores" e outros nao. Este é o mesmo tipo de problema que

251
araweté: os deuses canibais

- para a escolha
eu encontrava em tentar estabelecer as razoes de
um morto-eponimo para cada aldeia abandonada; e o mesmo que encon
traremos ªºdiscutir por que ·certos mortos retornam aterra nos t

cantos xamanisticos, e outros nao.


A cosmologia prática - isto é, os conteúdos ideológicos con
cretos que informam os rituais e discursos Araweté - aparece en
tao, para mim, como o somatório contingente das versees criadas '
pelos xamas e lembradas pela comunidade. A parte, evidentemente ,
alguns principios gerais estáveis - e entre os quais se encentra
exatamente esse poder fabulador dos xamas, enquanto tal -, que
posso identificar, nao tenho como ir mais longe, que construisse'
urna taxonomia cosmológica arquitetonicamente equilibrada e plena
de significa~oes
53
- estou aqui diante do que já charnei de "deseo

(53) una dificW.dade sernelhante aquel.a CXllStat:ada e pensada por Carneiro da


a.mha (1981) para a escatologia Krahó: as "zonas livres" ou "áreas abertas a
fabu.J.ac;io", cn:le ~a fantasía individual, ern tonio de urn núcleo estrutu-
ral pobre 00 restrito. No caso Araweté, nao é apenas a escatología que padece
(ou se beneficia) dessa fluidez: é o discurso cosrológico cx:mJ urn toó:>. E
rnais: a generalizat;ao proposta pela autora, de que o Além se transfonna em á-
rea de fabu.J.ac;io livre nas sociedades que diferenciarn radicalmente os vivos
dos nortos - onde os nortos ~ outros, náo-humarx:>s, e a sociedade das almas
una inagem especular inviável da sociedade dos vivos (op.cit.:172) -, esta 9'ª
neraliza~ nao
se aplica aos Araweté. Ernl:ora nao se possa dizer, a ri<J:)r,que
a escatologia Araweté seja usada cr::m:::> "prBnio ou sanc;ao" para os vivos (p.
162 - a autora parece ter cx::m:> h::>rizcnte de CXllltraste o tema "afrlcaro" do
culto de anoestrais), o estatuto ontológico¡inetafísico dos nortos e cbs deu-
ses Araweté nao se esgota 00 jogo espemtlar Eu/Outro e numa f iloSofia da qlO
si~ao privativa Sociedade/Natureza, de tipo "binário-digital", booleana. Em
outras palavras, os Araweté nao sao nern Tallensi, nen Timbira. Creio que a
difer~ essencial reside na posi~ao emmciativa do discurso cosnológico,dos
Je para os Tupi-G.larani; 1'X)S primeiros, o lugar do xarna é merx>r ou marginal -
erquanto lugar estruturante da sociedade ; nos segunOOs, é absolutamente oen
tral. Assim, a cri~ cosnolÓgica Araweté nao se ' realiza nas "lx>rdas"' nas
áreas deixadas a f~, mas ocupa posi~ eminente na vida social e reli-

. 252
os abandonados

giosa do grupo. os paralelos Tupi-Guarani sao


nu.ú.tos, e vém desde as clássi -
cas citac;Oes dos craú.stas sobre o "assirn falam os nossos pajés", 0 11
que vean
os nossos caraítas" ('Ihevet, apu:i Métraux, 1979: 106-7, 110), até as variadas
teologias eJaroradas pelos dlefes r~ligiosos Guaran!, de que Sc::haden e Cado -
gan ~ test.em.mb:>. Teratos ocas!ao de retornar a isto.

lamento" das séries cosmológica e sociológica.


(2) E há ainda outra questao. Como explicar a prolifera<;ao'

heteróclita da popula9ao divina Araweté? Por que, sob a categoria


Maf, encontram-se entidades tao dispares, em sua conceitua9ao e
em seu modo de existencia? E afinal, para que tantos deuses? ••• A
parte algumas considera9oes já feitas, e que nao vao muito longe-
~ como a de que a multiplicidade aberta da série celeste parece
replicar a variedade de ra9as na série terrestre, com os Mal hete
e os Araweté nas posi~oes centrais -, resta muito a dar conta54 •
( 54) os Araweté nao sao absolutamente os únicos Tupi - nui to mems os - .
uru.cos
indios ou .c ulturas oo mmdo - a povoa.rau o universo terrestre can una varieda
de de r~s inimigas (ver cap.III). Ver em I.araia, 1972:149-50 as "tritos"dis
tinguidas pelos Akuawa e Kaa¡x>r. Mas só eles parecen "transportar" essa situa
c;:ao para o nivel celeste, na mesma intensidade., dentre os Tupi-Glarani.

Nao é possível, em prime·i ro lugar, tomar os seres-Mal como "du-


plos" celestes-invislveis~ de tudo o que existe no mundo visivel ,
seja como "donos", se:ja como "'hipóstases espirituais"; a noc;ao d'e
Ma-t nao chega a este grau de liberdade ou abstra9ao que encontra-
mos, por exemplo, nos conceitos Kamayurá e Kayabi de mama'e(Lins,
1985), ou no ijar Wayapi. Em segundo lugar, embora pare9a caber
aos x~as a cria~ao de grande parte desse panteon, os seres - Ma!
na.o sao seus espíritos "familiares"' "protetores" ou coisa seme-
lhante - ao modo do que se costuma encontrar em outros Tupi-Guar~

ni -, nem estao associados a xamas específicos.

253
araweté: os deuses canibais

Por outro lado, a quantidade de deuses com nomes de, ou de-


rivados de, animais (metafórica ou metonimicamente), parece-me d~

ver ser interpretada nao como urna "antropomorfiza9ao" ou "espiri-


tualiza9ao" de espécies animais, mas antes como urna modificac;:ao-
-animal, urna "animaliza9ao" do conceito-substáncia de Divindade .
Sugeriria entao, talvez contrariamente as etimologias ou a mitolo
gia Araweté, que o caso nao é o de "Harpia(s) tornada(s) divinda-
de", mas de urna afec~ao-Harpia da Divindade. Posso estar for9ando
urna hipótese; nao obstante, arriscar-me-ia a afirmar que a -
no9ao
de Maf hete como o correspondente celeste dos bfd~ permitiria tal
interpreta9ao. Ela é a modifica9ao ou modula~ao-humana da substá~

cia-Divindade: a diviniza9ao do homem é a humaniza9ao do deus. A


diferen~a entre os homens e os deuses · nao é o espa90 de um culto,
mas o .momento de um devir, cujo eixo é a morte. E, se mesmo os
deuses com nome de animal sao "humanos" (btde, antropomorfos), -
e

porque a diviniza9ao (~df mo-Maf) é, em geral, urna hurnaniza9ao.

Há muitos nomes de deuses que nao posso traduzir, embora es


teja convencido de que tenham wn significado. Mas há outros que
quase certamente sao nomes pessoais, intraduz!veis (ao menos para
os Araweté atuais), como o sao vários nomes pessoais de viventes.
Creio que o que se dá é um verdadeiro processo de cria9ao nomina~

nomea9ao ou batismo, de visees divinas pelos xamas.

(3) De uro ponto de vista comparativo, pode-se observar mui-


ta coisa. Nao cabe aqui a análise sistemática de todo o complexo
de deslizamentos semanticos que ocorrem em ·alguns conceitos bási-
cos, referentes aos seres ou for9as espirituais, entre as cosrnol2
gias Tupi-Guaran!. Mesmo assim, vale notar que certas no9oes, que
em geral possuem urna natureza mais abstrata ou classif icatória ,
nos Araweté recebem urna definic;ao particular e "específica". Por

254
os abandonados

exemplo, a no~ao de Añi, que designa um tipo de espirito bem defi


nido; enquanto nos Tapirapé, Parintintin e Kayabi, seus cognatos'
designam os esp!ritos da mata em geral; para os Wayapi, o concei
to é mais abstrato ainda, parecendo conotar a for9a espiritualCDs
pajés, dos Senhores da natureza, etc. (Wagley, 1977:168-173; Kra-
cke, 1983:10-ss.; Grünberg, 1970:156; Carnpbell, 1982:259;Gallois,
1984a, b). Em todos estes grupos, porém, e nos dernais - onde o

conceito tem umá abrangencia menor (Urubu, Akuawa, Asurini, Guara
ni) -, a referencia focal e constante é sua associa9ao ou identi-
55
f ica9ao a duas no9oes: espectro dos mor tos, e posi9ao de inimigo • .

(55) Trata-se CD famigeraCb "Anhanga" ou "Aignan" dos '.I'Upi.naml:é e dos missio-


nários, aproximado ao Diabo. Métraux (1979:47-50), senpre en busca de signifi
cados ao mesno terp:> originais e puros, ~voex>s, discordava da identifiC!!
~ao entre os "Anhanga" e as almas errantes ó:>s rrortos na terra, prq:osta pe-
los cronistas. Apoiando-se em mitos TUpinanbá, Apapokuva e Tenetehara, afi.nna
que os seres tipo-Anhanga saoapenas personagens da mitologia, espíritos mal
fazejos terrestres; e que a identifi~ao cx:rn os IOOrtos deveu-se a urna lllron!
mia entre añanga e os telJ1Ds para alma viva ou rrorta (ang, anguera). Sern po-
-
de?:nos decidir sobre o parent:esoo semantico destas pal.avras, o fato é que os
materiais <x::11tenporaneos identifican\ ou associam os "Anhanga" aos espect?:os '
<k>s rrortos - nesno nas l1nguas an que ?W há re~ao de s) mi J aridade entre os
respectivos tenros, a:rro en Araweté (Añi' e -a 'o we), Wayapi e outras. Em Tene
- -
tehara, ademais - un des exenplos de Métraux -, azang sao.nesno
os espíritos'
-
dos na: tos (Wagley & Ga.lvao, 1961: 107). Nilruendaju (1978: 73-4; 62), que dis -
tingue claramente os Añáy, seres mito.lógicos, CD an.guézy, espectro terrestre'
de rrorto, sugere que os prime.iroS seriClll noldados na figura dos I<aingang, i.
e., CD inimip maior dos Apapokuva. O que tu&:> isto parece indicar é qÚe a re
. -
l~ dos "Anhanga" oc:m· os nortos nao tem base ''etim::>lógica", mas "netafísica"
- os nortos (ou melh:>r, seu espectro terrestre) sao pensados caro inimigos ,
caro "outros". oa1 este "espirito da norte" (CXITO Huxley, l.963: 203 chama o
aniang Kaa¡x>r) ser una mescla de imagens de selvageria, belicosidade, pcxiri-
aao, aparinci.a C3Javérica - oonfOITre cada oosrologia. Que o conailto de ana
ou anyang tenha dlegaó:> a ooootar, além de espírito associado aos nortos, no
~ Cx:JtD de fcm;a mágica, para os wayapi (e mesrco fo~ mágica positiva) , is

255
araweté: os deuses canibais

to i.OOica apenas a ambivaléncia radical da posi~ de Outro na cosnologia TU-


pi-Glarani.
Seria fastidioso seguinros a trajetória de outro~ ternos Araweté, CXJtO
Korop!, Yiripad:f!, etc. Eles também terxlem a ser mais "particularizados" que '
en outras cosrrologias. Bast.a observar o percurso da noc;ao de Karoa, os espíri
tos rrontanheses canibais AraWeté: ª· p:rotofonna *Ka:ru.guci.ra va1 transfonnar - se
00 Trovao Tapirapé (}(anawana) I 00 Sen}x)r das Aguas Kayabi (K.aruat) / 00 ArCO-

-trlS G.larani (KaPUgUa), em terno geral para "Sobrenaturais" em Tenetehara


(Ka.rowara), e em fon;:a-"mana" Akuawa (karaüW"a) e .Kaa¡x>r (karuwa) •••

(.4) Em contrapartida, a noc;ao Araweté de Maf parece ter re-


cebido um desenvolvimento semantico que veio preencher parcialmen
te esse lugar de operador lógico, classificatório ou causal, que
em outras cosmologias recai sobre noc;oes como karowara, mama'e, e
outros. Os cognatos Tupi-Guarani da forma *Mahira tendero a signi-
ficar algo como ''herói's cultura is" ou criadores, embora haj a va -
ria9oes importantes e transformac;oes significativas. Assim, por
exemplo, os Ma'it Kayabi sao as almas dos xamas falecidos, resi -
dentes no céu, que descem para auxiliar os xamas vivos. Nisso, os
Ma'it se aproximam do Trovao (Kanawana) Tapirapé, junto a quem

vao residir as almas dos xamas {Grünberg, 1970:157-8; Wagley,1976:


257). Entre os Araweté, os Ma! hete estao associados tanto ao tro
vao quanto as almas dos mortos (xamas ou nao). Os "Maíra" Tenete-
hara·, Akuawa, Urubu e Asurini sao seres distantes dos humanos, re
metendo ao tempo mi tico, fora do alcance dos xam·a s.
O certo é que, se os Maf Araweté mantiveram algumas das as-
sociac;oes presentes nos demais "Maira" 56 , receberam determinac;oes

ademais, trat;OS dos •'Maira" can os 005 "TUpa" de outras '


(56) E CX:l1densanó::>,
oosnologias - nao só por sua associar;ao can o trovao, mas por essa reJ.arao
cxm as almas celestes dos nortos: é o deus do trovao Byapu-guas!:! que recebe
as almas dos Kayová (SChaden, 1962: Ul) . h¡ui, cx:m::> ro caso dos "Anhanga" , a
cosrrologia Araweté - e outras - nuanra as fém)SélS críticas de Nimlendaju, ~

256
os .abandonados

· trawc e cadogan, contra as intexpretac;Oes quinhentistas de •ttrupa" 0010 "Deus".

suplementares fundamentais.
\
( 5) Em primeiro lugar, somente en.t re os Araweté se encontra
.
o sistema de "descida" dos M~l para comerem, como estrutura ri-
tual central da vida religiosa. Isto transforma radicalmente o pa
pel do xamanismo entre os Araweté: ao contrário da imensa maioria
dos xamas Tupi-Guarani da Amazonia, a cura nao é a atividade pri~

cipal do xama. Sem deixar de ser importante, ela é superada, con


ceitual e praticamente, pelo trabalho de condu~ao dos deuses at.er
ra, para comerem ou apenas "passearem". Os Maf nao interferem de
modo decisivo na terapeutica - como já disse, nao sao "auxilia
res" ou "famil~ares" --dos xamas, embora ajudem na captura dos 1ñi.
Ao contrario, _em mui tos casos os xamas precisam "curar" os viven-
tes dos Maf, que apreen.dem as almas que vagueiam em sonho pelo
-
ceu.
o xama Araweté, assim, é menos um "curador" que um "reza -
dor-canta~or"; ou seja, apresenta maiores afinidades com o compl~

xo Guarani que com seus congéneres amazonicos (Nimuendaju, 1978 :


92-ss.; Schaden, 1962:99-ss.), embora nao tenha os atributos espe
ciais de "diviniza~a·o" que encontramos diretamente nos Guarani e
indiretamente em outras sociedades.
(6) Os Mal se fazem muito mais presentes na vida Arawetéque
seus correspondentes Tupi-Guarani. Urn motivo comum em outras cos
mologias, que consiste em situar os "Ma!" como apartados dos huma
nos, fora do contato xamanistico ·e acessiveis apenas aos ~ortos ,
nao se acha entre os Araweté. Os M~f sao, de fato, os que ••nos
. n57 •• -
a b and onaram , mas retornam frequentemente. Isto, como ja foi

(57) SC:haden menciona a et.ilrologia ma.is fanosa, ~ fantasiosa, da fonna.

257
araweté :·os deuses canibais

Tupi.nanbá Mair, por TeocX>ro Sanpaio: mbae iro, "o apartado, o solitário,o que
vive distante" ..• o que ros remeteria a toda a cl.ássica discussao sobre o sa-
grado-santo cx:m:> "apartado",definió.:>r daJeligiao es~, 1967, Ibuglas ,
1971:69). Schaden sugere ai.nda que o temo Kayová Pai, que desigi:ia o chefe'
- - .
religioso, nao se liga a fonna "pajé", mas sima TÑ>a.ir - i.e., "Malra" (1962:
105). O que, pelo menos, é CXXlSistente can a defini~ Araweté dos Mal cn10
seOOo poderosos xamas.

observado, é fun9ao direta (ou vice-versa) da presen9a da alma


celeste dos rnortos na vida cotidiana e ritual Araweté·, rnaior que
a usual entre outros Tupi~Guarani (e aqui rnais urna vez estamos
rnais próximos dos Tupinambá e Guaran! atuais que dos Tupi-Guarani
amazonicos - e mais pró~imos dos Shipaya). Tal enfase rnantém a
cosmologia Araweté -orient-Ha-·9e1Jundo um eixo vertical, diminuindo
a importancia dos espirites terrestres e aquáticos, "Senhores" da
natureza. A relayio dos humanos "consigo mesmos" - isto é, corn os
Mal e as almas celestes, seu destino - prevalece diante da rela-
~ao da Sociedade com a Natureza. Sem perder os "tra9os" caracte -
rlsticos da cultura amazónica: espirites da mata, senhores de ani
-.
mais, dono das águas, etc., a cosmologia Araweté os subordina a
- celestial, diversificada e rica 58 •
popµla9ao

(58) Assim, a ~ celeste dos Parintintin nao


oonhece grande diferencia
9ao, apesar de sua inp:>rtáncia no x.amanisno - sao apenas o "Pavo 00 céu" (Kra-
cke, 1984b); o que mais se .aproxima da sin~ Araweté é a oosnologia Asuri-
ni (Mlller, 1984), cn:ie, porém, a possibilidade de ~dos nuitos espl--
ritos a categorías mais gerais é maiar que no caso Araweté - e onde há um
cxmjunto de "seres mitológicos" (entre eles os Mahira) fora ó.:> alcance dos
xarnas e oo cx:>tidiaoo. No caso Asurini, igualnente, apesar da classifi~ de
M)ller no que toca as formas de p~ ó.:>s espiritos na vida ó.:> grupo, ~
maneoe enigmáticx:> o sistena. senanticx:> fonnado pelos espiritos.

(7) t possivel, como vimos para os Araweté, e para outros

258
os abandonados

Tupi-Guarani, estabelecer um sistema de oposic;oes entre os deuses


.
ou heróis celestes ("Maira", "Tupa", etc.) e os esplritos da mata
("Anhanga"), que estaria associado a dualidade da alma. hurnana,uma
'
celeste e incorruptlvel, a outra terrestre, corruptível e "corruE
tora" (má). Mas tal estrutura, embora pertinente (cf. supra, p.
218 . ), e que será desenvolvida nos capltulos seguintes, esconde
algo essencial, no caso especifico dos Araweté, a saber: a ambiva
lencia ' ou ambigüidade constitutiva dos Ma~ hete, face · a Sociedade
ou ao "Eu", sua posic;ao extra-cultural.
A avaliac;ao ambivalente do estado "pré-cultural" da humani-
dade é comum entre os Tupi-Guarani. Antes da separac;ao dos "deu-
ses" e dos homens, nao havia fogo nem plantas cultivadas; mas ta~
5 .
pouco morte, e trabal.ho 9 • Os Araweté pro.jetam, de certa forma ,

(59) Assim, para os Terw!tabara Cwagley 1 Galvao, 1961:136); para os wayapi ,


ver Gallois, 1980:278-ss, que canenta um mito especialmente interessante, on-
de fica claro que a CUltura é una "o u~" pela perda da im:>rtalidade e
da ~ da Natm:eza can o tnoem; o ~ deceptor que furta a Idade de
~ aes tauens é quen lhes dá ensinamentcs técnicx:>S-cu.lturais. E H.Clastres,
'
inte:rpretanOO a anpla bibl.iografia sd:lre a "Terra sen Mal" Glarani, JtDStra a

"desorden ideal .. que prevaleci.a antes da disj~ tx:rnens-deuses (1978:90,~
~). O tena "pmreteico'' da q:ios~ 1.mrtalidade/cqltura, a disj~ na
diacrc:nia entre deuses ou est:aOO im:>rtal e hunanidade ou posse do fogo p::rle
ser visto tambérn na. CX)SllOlogia Yarx.mami (Liz.ot, 1976:38).
Há que d:lservar, porem, que algunas mitologias Tupi nao parecen oonoeber o
"est.aOO de Natureza" cc:m:> caltendo qualquer positividade; assim os Tapil:apé e
os Kayabi (Wagley, 1977: 176-ss. ; Grllnberg, 1970: 179-ss. ) • Mas praticauente to
das as oosrologias em questao tematizam a "Vida Bn!ve" (Iévi-Strauss, 1964 :
155-171) e o notivo da troca de pele ligado a inDrtal.idME> perdida e desejada

tal estado para o futuro, igualmente. Ou seja, eles determinam os


Ma! het~, simbolo desse passado-futuro (dessa nao-presen9a cons-
titutiva da condi~ao humana), como máximo d'e ambigüidade: cani-

259
araweté: os deuses can ibais

bais espl~ndidos, inimigos-Araweté, deuses-selvagens, cantores-

-comedores.

Tal estatuto ambiguo dos Mal, problema central de~te livro,

pode ser visto com nitidez em sua dupla condi9ao de ''cantores" e

"comedores". Os Maf associam ou condensam os deis pólos da orali

dade, fundamentais na cosmologia Tupi-Guarani: falar e comer, ·que

no caso dos Mal het~ em particular tomam seus valores miximos: o

canto e o canibalismo (ou o ''comer cru", mane~ra obliqua de chami


.
- 1 os d e Jaguares )60 ; po
-¡ os esses que ou t ras cosmo 1 ogias
. da mesma

(60.) Assim, se os Ma!/, hete se opOem aos Añi, e se estes últirros coootam o EQ
dre, os deuses oonotam, nao o oozido, mas o ~' metáfora perfeita da "ambiva
l~cia" divi-na: se, oonform:! as obse.rva?5es de Lévi-Strauss, o ?Xtre é urna
11
transforma9ao natural" e o cózido urna "transforma9ao cultural", o estado bru
to oo alinento, que pcx:ierá · se transformar em qualquer direc;ao, é o cru, pura
potencialidade.

'
familia opoem radicalmente·.

(8) Esses deuses "comedores-cantores" se distinguem bem dos


espirites do nivel terrestre, que sao ''dones'' da natureza e -
nao

cantam. Todos es tes últimos .(sempre com exce9ao do Senhor dos Quei

xadas, que os Araweté dizer ser "quase um Maf"- Ma1t afpé 1


;) sao

perigosos, definidos como canibais e/ou raptores de rnulheres. Is

toé, eles sao, nao-ambiguamente, inirn~gos. Corn eles a única rela

~ao - e- de guerra e morte; estamos, literal e metaforicamente, a~ sw

altura. Já os deuses celestes sao imortais, ou antes, nao se co

gita rnatá-los, mas trazé-los aterra ou irmos para o céu. Mas, sao

canibais, além de causadores de mor1te por doen~a - visto dese ja

rem para si os hur:,anos (mais especialmente as humanas, como sern

pre). Ao contrário do que se dá corn os espirito.s terrestres, en

tre os homens e os deuses o desejo e reciproco. - .

260
os abandonados

O que significa isso, essa multiplicidade de determina9oes

contraditórias sobre a figura dos deuses? Se observarmos que, de

todos os Tupi-Guarani, os Araweté sao os únicos a claramente -


nao
'
situarem os Mal em·posi9io "paterna'' - danos, criadores ou her6is

culturais da ra9a humana -, urna hip6tese se impoe: os deuses sao

os afins. A afinidad~ é a partida que s~ joga no tabuleiro entre

o c~u e a terra. Os mortos sic as pe9as, o canibalismo o movirnen

to.

o canibalismo divino dos Maf hete se constituí, a meu ver,

como a afirma9io nuclear da cosmologia Araweté. Tudo se passa ce

· me se o complexo da antropofagia Tupinambá tivesse sofrido urna

transla9ao, urna proj .e 9io sobre um eixo ao mesmo tempo vertical e

diacronico, entre os Araweté. Urna opera9io em tudo semelhante a


quela que H.Clastres observou para o tema da Terra sem Mal, das

migra9oes Tupinarnbá a ascese dos Guarani atuais (1978:109-ss). E

é isto que ternos a cornpreender - talvez com isto compreendamos a

antropofagia Tupinambá. ·
-
Voltemos entrementes a terra.

261
CAPÍTULO V

ENTRE SI:

RITMOS E ESTRUTURAS DA VIDA SOCIAL

r"'
1

r '•:
'
'

V' ~.,/

~
1 •.• c'est a dire rejetant, dans un
\
'
/
..
I

! 1
. .
. futur o u dans un passé égaZeme nt hors
d'att~inte, Za douceur, éterneZZement
\ !
\
\ ' .. déniéea Z'homme social, d'un monde
\ ' ou l'on pourrai t vivre entre soi.
\ !
\j (Lévi-Strauss)

-
-ire par_! we somos todo s misturados.

263
araweté: os deuses canibais

~-

1. TEMPOJ ESPA~Oi MORFOLOGIAJ ECONOMIAJ POLITICA

O movimento entre o céu e a ·terra, os deuses e os homens, co

nhece tempo e lugar. Ele se compoe com os ritmos econornico-so-

ciais, a~ oscila9oes entre chu~a e seca , mata e aldeia, noite e


-
dia, casas e pátios. Vejarnos como os Araweté concebem e ocupam es

sas dimensoes do tempo e do espa90, carr.egahdo-as de significa9ao.

Se eu pe~guntava a qualquer ·pessoa por que era justamente

na esta9ao das chuvas, quando a mata fica tao desagradável de se

percorrer (opiniao de que eles partilhavarn) , que os Araweté deixa

varo suas aldeias e acarnpavam, em pequenos grupos, por dois ou

ma is meses no meio da floresta, a resposta invariável era: "ora,

no tempo das chuvas nao há milho, e os jabotis .morarn no mato ..• ".

Apesar do tom de enfado irónico com que me davam


. . a explica-

9ao, ela nao é tao Óbvia assim: afina!, os .jabot~s · rnoram no · mato

o ano todo, · os Arawe.té ·nao. O que ela indica sao os .v alores as so

ciados aos ritmos da vida. Os Araweté morarn em aldeias por causa

do milho. Sua morfologia social conhece duas fases ou· movimentos

pendulares, de concentra9ao e dispersao, que pulsam em ciclos cur

tos e longos, do dia ao ano. A economia do milho é que estabelece

o ciclo lento ou longo; é ela que orienta e nomeia os movimentos

mais globais da sociedade. O rnilho concentra; é quase a única for

9a que o (az. Inúmeras outras trabalharn pela dispersao.

Nas prirneiras chuvas de novembro-dezembro, planta-se· a ro9a

("o milh6'', dizem). A medida que cada familia termina de plantar,

e de estocar farinha de mandioca, v~o abandonando a aldeia e indo

para a mata, onde passarao o tempo necessário para que o milho e~

teja em ponto de colheita. Os hornens ca9arn , estocarn jabotis, ti-

ram mel; as rnulheres coletam castanha, baba9u, larvas, frutas,toE

264
entre si

ram o pouco milho velho que conseguirarn trazer. Esta época de


''dispersio" (ohi) é chamada de awacf mo-tiara, ''fazer amadurecer
o milho'' - diz-se que, caso . nao se vá para a mata, o rnilho -
· nao
'
fevereiro-mar~o, inspe~ao
~

cresce. Em após várias viagens de as

ro~as, alguém finalmente traz os cabelos do milho verde para o a-


camparnento, mostrando a maturidade da planta. Faz-se, aí, o Últi-
mo e grande peyo (xamanisrno) do jaboti, e a pri~eira dan~a op~rahe

do ano - e se retor11a a aldeia. t: o "tempo d,o rnilho verde" (awaci


ci me), o come90 do ano Araweté.
-
As poucas semanas do milho verde sao marcadas pela fabrica-
9ao de rningau nao-fermentado de milho (kayi), e logo em seguida
pela de cauim doce (ka'i he'e), mingau menos espesso e de baixa
fermenta~ao. Realiza-se entao o primeiro .x amanismo do rnilho, ou
descida dos deuses para comer o cauim - é o ka'; peyo , dito ser a
"contrapartida" (pepi ka) do xarnanisrno do jaboti realizado na ma-
ta, antes do regresso.
Esta volta i aldeia é progressiva e "desordenada'' como to-
dos os rnovimentos Araweté; mas apenas quando. todos os grupos já
chegaram
.. ;
é que se faz o prirneiro peyo de cauim doce, a que outros
se seguem. O milho de cada festa é colhido coletivamente na ro~a
de urna f amí l ia, mas processado por cada unidade residencial da al
,, ,,
deia. Ele ~arca, _assim, a unidade do grupo local, e "abre" ( -ip?--

dawa) o tempo do cauim 1 . Esta é tambérn urna época em que as rnulhe

(1) Ele ajui.vale, portante, ao ñemongarai ou avati-mongarai dos Guarani, "ba-


tisrro oo rnilh::>" (Schaden, 1962:47), a ooncentr~ anual de um grupo Guarani.
caro diz Ni.nruerxiaju (1978:107-8), esta é a única ocasiao em que se pode ver
um grupo Guaraní reunido até o Últirro lnnem. Corresporrle também a -
. .
cer1.rr0ma
do Trovao Tapirapé e a Festa do Milho Tenetehara (Wagley, 1977:195; Wagley &
Galvao,1961:129-ss.). Mas ao oontrário destas "festas do rnil.h::>", o xarnanisrro do
cauim Araweté nao tan fUI'19aO propiéiatória OU protetiva, pelo qUe pude saber.

265
araweté: os deuses canibais

res coletam e processam grandes quantidades de urucum - o verrne-


lho da vida e da aldeia, enquanto o preto do jenipapo é a cor ' da

:maté'l e da morte. A partir de abril-maio, · as chuvas diminu-em, e se


estabiliza a longa fase de vida aldea, que em seus primeiros me
ses é marcada por ca~adas coletivas, masculinas, de tatu, em dias
alternados 2 , e pela faina incessante de processamento (pilagem e

..(2) Cl:lro já disse antes (p.l.56), os Ara.ieté definan as ~s - -e especial -

-
mente.as ooletivas - cx:rro tendo em vist.a lila espécie de animal¡ o que nao im-
pede, obviamente, que matem o que ?Jderem.

torr.efa~ao) do milho maduro, que ·· fornece a pa9oca mepi, oniprese!_!


te na dieta da esta9ao seca.

De junho ·até s·etembro-o·utubro estende-se a esta9ao do cauitn


alcoólico, que recebe seu nóme-: · k:Q'-; .,_.d'a me. - ! o auge da · seca. · As
Incites sao marcadas pelas dan~as op~rahe, em que se ·caritam as can
.
croes dos inimigos. Estas dan<;as noturnas 'se intensificam durante
as fases em que se prepara o cauim - elas sao chamadas ka'; mo-ak!.,
"fazer esquentar o cauim". o cauim ~lcoólico é prodÚzido por urna
.
familia ou se9ao residencial, a cada - vez, com o milho de ··sua pró-
pria ro9a. Podem haver vários ' festins de ~aulm durante a esta9ao
. -
seca, oferec'idos por diferentes se9oes residenciais.·o cauim fer-
. ...
mentado é urna festa noturna., consistindo · em um grande opi;rahe em
que os homens., servidos pel_a familia anfitria, .danc;am e cantam . ,
bebendo- até de manha. ·
. .
- ' do cauim - o processo todo le-
Na fase final de fermenta9ao
va uns vf.nte dias - todos os homéns e · rapa.Zes da aldeia saem para
. - . . .
urna ca9ada coletiva. Reto~nam urna semana depoi_s , _no dia d~ festa,
trazendo muí.ta carne moqueada,. -o que dispens·a rá todos de ca9ar por

" 266
entre si

vários dias, permitindo que curem a ressaca. Na véspera da chega-


da dos ca~adores há urna sessao xamanlstica de descida dos deuses
e mortos, para tomar o cauim. ~mbora essa preliba9ao esp~ritual '
do cauim seja igual a dos demais p9y~ alimentares, ela recebe ou-
tro nome: ·nao é ·um peyo t verbo que significa "soprar" ou "fazer
ventar" {referencia ao movimento do chocalho do xama), mas um
ka'i 4oka, um •servir o cauim• aos deuses - uma vez que esta bebi
- -
da, ao contrário dos outros produtos consumidos cerimonialmente ,
é servida por alguém, que dela nao toma, aos demais.
As festas do -cauim fermentado costumavam reunir mais de uma
aldeia, e ainda sao o momento culminante da sociabilidade Arawet~

onde se junta a maior quantidade de gente, por ·mais tempo. E las


marcam a concentra~ao máxima dos Araweté, a situa9io de maior de~

sidade flsica do gr~po. · Pois a grande dan9a coletiva é realizada'


por um bloco compacto de homens, de bra~os entrela~ados, enquanto
as mulheres e criant;as, que em sua maioria nao dan~am, ficam senta
das a volta do grupo de dan~arinos: toda uma aldeia, ou mais de
urna, concentrada no pátio do dono do cauim.
A partir de julho-agosto come~a paulatinamente a aumentar a
freqüencia e / ou dura9ao dos movimentos de dispersao. Nesta época,
muitas familias se mudam para as ro~as, mesmo que elas nao distem
muito da aldeia, e ali acampam por wna quinzena ou mais: é a esta
9ao de "quebrar-arrancar o milho" (awacl mol}, quando se .colhe to
do o milho r-estante e .se o armazena em grandes cestos, deposita -
dos sobre jiraus na _periferia da ro9a. E dali yaQ-se abastecendo
de milho até o final da esta9ao seca, quando os poucos ces~os re~
tantes sao levados para o novo sitio de plantio, onde as espigas
sao debulhadas para se~ente (a debulha pode ser feita na aldeia)~

(3) Aproximadamente 1/7 el:> miTho assim estocaó::> servirá para a semeadura. A

267
araweté: os deuses canibais

quantidade de cestos (cada ·un con cerca de 60-70 kgs. ) por ~ ~ do ta


manm desta. Em 1982-3, as neoores meras davam 10
.
cestos,
.
as maiores, abertas
por cinco familias, davam 35 cestos. Note-se que b:)a parte do millx:> plantado'
ro ano anterior já tinha sioo consumido, a época ' do a.nnazenanelto.

Essa tempo+ada na roc;a reúne em um acampamento mais de urna fami-


lia conjuga! - seja porque a roc;a pertence a wna se~ao · residen-
cia.l pluri-familiar , seja porque os titulares de . ro~~s próximas
decidem acampar juntos. Durante a faina da quebra do milho, os h2
mens em geral saem todo .dia.. p.a ra cac;ar, enquanto as mulheres co-
lhem as ~spigas, faiem farinha, tecem¡ esta é também a época da .
colheita .do algodao •. A fabricac;ao dos cestos, dos jiraus e a arma
zenagem do milho, porém, sao tarefas masculinas.
Tais temporadas na ro~a sao vistas como. =muito agradáveis ,•
depois de cinco .ou seis me$es de convivéncta. aldea, os Araweté pa
-
recem ficar inquietos e entediados. ~os .acampamentos de ro~a as
pessoas ficam m~is i vontade, conversam
. livremente,
. os .velhos con
tam mitos, estor.ias e fofocas, sem temor do escárnio dos vizi~hos

de aldeia 4 •

(4) Q:m:> já disse (p. 77 .>, nunca participei da dispersOO de "amadurecer o


mil.ÍX::>" , · nas chllvas. Mas peias descri?s que me ·eram feitas dessa época, iJna-
gino que. o tan geral dá Vida na mata-.deva ser -senelhante a -essas tenporadas
na ~¡ a:m a dif~ que os grup:>e de acarpanento na época das chuvas pa-
recen~ maiores que os grupos das roc;as, e que nao há nenhuna ativtdade li-
gada a agricultura.

· Dura-n te o auge da estac;ao seca, dificilmente se passa mais


'
de uma semana sem que um grupo de homens decida realizar urna exp~

dic;ao de cac;a, quando dormem fora de uma a cinco noites. Sao co-
muns, igualmente, a partir de agosto, excursoes de grupos de fami
lias, para pegar ovos de tracajá,, pescar, cac;ar, capturar arara·s.

268
entre si

Exceto nos meses de rnar90 a julho, é rnuito raro haver dias ern que
todos os grupos familiares estao dormindo na aldeia.
Um dos lfmites mais claros
~
a dura9ao destas . excursoes, mas-
.
'
culinas ou familiares, . é a quantidade de pa9oca de rnilho ,levada
para a mata. A farinha mepi fica imprópria para consumo após mais
de uma semana de fabricada: e como os Araweté nao concebem passar
sem· ela (ver p. 164), é raro essas d.ispersoes irem além de urna se
mana.
A partir de sete.Inbro a esta9ao do cauim fermentado comeQa a
dar lugar ao tempo do a9a! e do rnel, produtos cuja coleta é rnarc~

da pela dispersao e abandono da aldeia, devido a "chegada" dos e_!


plritos Iaracl e Ayaraeta (ver capitulo anterior). Mesmo antesque
estas visoes xamanisticas se manifestem, as familias come9am a
passar o dia na mata, individualmente (caso do aQaÍ) ou em grupos
Cmel}. Em outubro-novembro, comas áquas em seu nivel mais baixo,
fazem-se as pescarias com timbó, que tal'l)bém levam a dispersao da
aldeia em grupos menores. Todos estes produtos, como vimos, dao
ensejo ao pey~, sao "comida dos Ma!".

O xamanismo do a9al e do mel, nesta época, é feito na al-


deia; o do peixe poder. ser realizado na mata, cas·o o sitio de pe_!
ca diste muito da aldeia.

o vetor de dispersao criado por essas atividades de coleta


e pesca, porém, é mais wna vez contrabalan9ado pelas exigencias '
do milho. Em setembro come~a a derrubada das ro~as novas; no fi-
nal de outubro a queimada; e logo as prirneiras chuvas de novembro
-dezembro, o plantio. No caso de r~as mais distantes, o periodo
de plantio pode levar as f amllias a acamparem por uns poucos dias
na ro9a. Na derrubada, porém, os homens vao e voltam no mesmo dia.
A queirna das ro9as se faz em um dia ou .dois, e é comurn deixá-la a

269
araweté: os deuses canibais

mulheres e crian9as, . ou mesmo pedir a outras pessoas que o fa9am,


caso a familia titular -deseje sair em excursao na época. Para evi
tar que as chuvas caiam antes do tempo, impedindo a boa queimadas
ro~as, os Araweté dizem que se deve ca~ar
e fazer o xamanismo dos
guaribas, que temo poder de atrasar as chuvas 5 •
.
(5) Nao sei ¡::orque; nunca assisti ao peyo do guariba, nen ao oo :mel e do a¡;aí:
o pr:imtlro nao se realizou oos aoos de 1981-3; os segundos se deran em ootu-
bro de 1982, quanCk> eu estava fara da área.
Os Araweté dizem que a ~a das roc;as queilnaróJ é que traz as dluvas '
?=>is irrita os Mal, toldando seus dcminios celestes.

Em dezembro-janeiro come~a a esta~ao de xamanismo do jaboti.


Como oa -Araweté nao se. disper.saram para o amadurecer do milho,nos
anos em que estive com eles, este pey~ foi diversas vezes realiza
do na aldeia. Mas ele é característico da situayao de vida na ma-
ta. Na mata, os xamas trazem os deuses para comer o mel e o jabo-
ti, nos meses de dezembro a fevereiro. Um dado importante e- que
os jabotis "xamanizados" na aldeia sao cozidos; mas o peyo "verda
deiro" do jaboti, dizem os Araweté, é feito na.mata, e os animais
-
sao moqueados.
No final do ano, por sua vez, o esgotamento dos estoques de
milho leva a colheita e processamento da mandioca, para a farinha
usada na mata.
Este é o ciclo anual Araweté, que swnarizo, com detalhes a-
dicionais, a página seguinte: wn constante oscilar entre a al-
deia e a mata, a agricultura e a ca~a e coleta, a esta~ao seca e
t
a chuvosa; ou, como poriam eles, entre o milho e o jaboti. A vida
na aldeia está sob o signo do milho, e de sua forma mais elabora-
da, o cauim fermentado; a vida na mata sob o signo do jaboti e do
mel. Mas há mais valores envolvidos nessa oposi~ao central entre

270
I

CICLO ANUAL ARAWETE


JAN FEV MAR ABR MAI JUN JUL AGO SET OlIT NOV DEZ

Regime de chuvas fortes, -a- chuvas espar


- se~a, temp~
,
r10 no ni- primeiras
-
a guas guas altas
.
sas, baixam .rais ocas10 vel ma1s ch uvas
-
as aguas na is baixo

Modo de vida,
1--- MATA~ ALDEIA t- MATA -.

movimentos disper sao --+ concentrac;ao -. ciclos curtos de dispersao, aumentando-+dispersao


roe; a.-+ aldeia aldeia - mata
mata_., aldeia ro a-. aldeia mata-. aldeia aldeia·- ro a aldeia-+ mélta
DERRUBADA QUEIMA P.LANTIO
cac;a , co leta colheita ..---- processamento milho maduro ~-----1 processa- cac;a,
do mi lho mento man· cole-
verde dioca ta

armaze nag em do co leta do .


milho em jitjaus

Atividades economicas, colheita do pes caria


alimentac;ao algodao com timbó

jaboti, mel , mingau de farinha mepi f arinha de


castanha, b~ mi lho mandioca
caba, c upuac;u

farinha de cau1m doce -


batata doce, cara - - - - - - - - . .
mandioca
jabotis ta tus tatus, mutuns, par cos , jabotis jabotis, guaribas
t------ cauim alcoólico - - - - -

PEYO----~ BOKA PEYQ---t


Atividades
. . .
ce r irnon1 a1 s cac;adas do cau1m alcoÓlico dispersao do me
OPfRAHE -----------t e do ac;aí ,pesca
araweté: os deuses canibais

mata e · ald~ia, chuva e seca.


Na aldeia, ernbora todos estejam '"reunidos" (oyo c-Cpe oho
. - - ,
literalmente: "fazer-se um, grande"), a intera9ao efetiva entre
os diferentes grupos domésticos é episódica e frouxa - exceto nos
cerimoniais. Na mata, e sobretudo na época do "amadurecer o mi-
lho", as familias que acampam juntas interagem de modo muito mais
intenso - quando menos porque os abrigos de acampamento nao tem
paredes. Na aldeia, a unidade mais conspicua é o casa¡, a familia
... .
conjuga!, que ocupa casas individuais. A mata, ao contrario, e o -
espa90 e o momento em que se atualiza uma insti~ui9ao central dos
Araweté: a rela9ao de aplhi-pihá, troca de cónjuges. Na aldeia ,
entao, ternos urna maior extensao de contatos, mas menor intensida-
de, e o relativo fechamento da unidade conjuga!; na mata, uma me-
nor extensao, mas· tt1aio1 intensi:dade de rela9oes interfamiliares ;
e a abertura do casal.
Pode-se dizer que, no contexto de vida aldea, a mulher pr~

domina sobre o homem, na medida em que a aldeia é fun9ao do milho,


e o rnilho é "coisa das mulheres". Se, como mostrei anteriormente'
(p. 162), a mandioca é plantada pelos homens, e consumida durante
as chuvas, na mata, dominio masculino da ca9a e coleta, ternos a
-
equa9ao:

VIDA NA ALOEIA
(Mulher:Homem):: (Agricultura:Ca9a)::(Milho:Mandioca)

No contexto de vida na mata, a oposi9ao pertinente seria e~

' entre os dais produtos mais


tre ca9a e coleta, ou mais exatamente
importantes dessas atividades: a carne e o mel. A divisao de tra-
balho na mata leva os homens a ca9arern, as mulheres a coletarem .
Ora, embora o mel seja obtido pelos homens, ele o é "para as mu -

272
entre si

lheres" (kañl ne}, que~ consomem em primeiro lugar - ao contrá-


rio da carne, consumida primeiro pelos homens (supra, p. 155'). O
mel está associado, por urna série de métáforas, a sexualidade fe-
.

minina. Assim, teriamos:


, .

VIDA NA MATA
(Homem:Mulher):: (Ca<;a:Coleta): : .(carne:.M el)

. Onde o el~m~nto englobante agora e- o homem~


-
nao a mulher 6 .

( 6) A atribuicrao doplantio da mandioca ao hcrren se erxx>ntra também entre os


Tenetehara, on:le a mulher planta .o s demais cultígerx:>s (Wagley & Galvao, 1961:
.
58) • Os auto.res nao dest:acarn o nri.llx>, nesta dpos~. Mas poderos observar
que a Festa oo Milho é-1.1Da das duas .oeriiri>nias principais dos Tenetehara, rea
lizada para proteger o raj.100 dos azang ¡ ela se op0e a Festa do ~' que tem
~ de p:ropiciar a ~· Poderos estabelecer entio que:
Festa oo Mel:CCMra: (Halen) : :Festa ó:> Milbo:Milbo (Agricultura) .
(M.llher·)
caberrloobservar, oontudo, que as festas do Mel e do Milh::> dos Tenetehara
nao se superp3an as dos Araweté. Entre os prlmeiros, a Festa do Mil.00 se faz
no auge das .ch.UVas, durante a roa~ do milbo; tero una CX)(lO~ao de inicia
~ dos adol~tes, e ~ fort.e associac;ao cxn o xamanism:>. A Festa do Mel ·
se faz no -fim (auge) da -.
estac;ao seca,
.
envolve cnivi:te a out.tas aldeias, e.
'
nao
está ligada a xamanisnos. Nos Araweté, a "Festa do MillX>" se desdobra em duas
. . .

- - oo cauim ck>Ce e o ·dokii- Cb alcx:ólioo;


o · peyo . -
a pritreira marca o fim das chuvas,
a -segunda se dá du+ante toda a es~ao seca. E os xamanisnos de mel, eni:x:>ra .•
cx:JteCen_no auge/fim da seca, se prolongam . dtµ:"ante toda a ~tac;ao
.
chuvosa.
.
Por
. f inl, o ·xamam.sno é ilrPort.ante D:>S deis · casos; mas é o cauim que envolve oonvi
te a outras aldei:as,nao ·o rnel. Mantém-se, entretanto, urra qx:>Si~ao entre o mi
100 e o rnel, que pare:qe central oo pensarnento Tupi-G.larani. Quando chega o ~

100 verde, dizan os Ar~té, o mel "se es:vazia" . (i.e., as oolméias); e quando
~a o mel, cessam as cauinagens.

Se articularmos todos os elementos apresen.tados até agora, .temes


um feixe de oposi9oes:

273
araweté: os deuses canibais

MATA ALDEIA

chuva seca
cac¡:a-coleta agricultura
jaboti milho verde
mandioca milho
mel cauim
cru, moqueado cozido, fermentado
home ns mulheres
ap?hi-piha casal
dispersao concentra9ao
intimidade distancia
pe yo tioka, op~rahe

Sistema esse que, como todos os anteriormente esboc¡:ados (e


aos quais deve ser comparado - ver pps. 193,218), tem um valor
muito relativo, indicando tendencias associativas que reconstrul;
ademais, ele mascara figuras recursivas, como as oposic¡:oes Homem/
Mulher que indiquei na página anterior. Sobretudo, há
que transcendem esse modelo simples. Assim, principalmente, a fe~

ta do cauim fermentado, momento culminante da vida aldea, parece


fazer uma sintese entre os valores "alimentares" e "psico~sociais"

da mata e da aldeia: seu foco sao os homens, nao as mulheres; seu


objetivo é o cauim fermentado, mas ele é precedido por ~ uma ca9ad~

e seguido pelo consumo de carnes em que o moqueado é a forma de


preparo; uma das principais regras de forma9ao das linhas de dan-
<;arinos é a rela<;ao de ap!hi-piha, e as poucas mulheres que dan-
c;arn o fazem, em geral, com seus aplno , seus "namorados" da mata ;
a concentra<;ao física se transforma em urna intimidade efetiva; e
a danc;a/canto guerreiro (opirahe) ~ precedida ou acompanhada pelo
tioka, isto é, pelo xarnanismo de descida dos deuses. As oposic¡:oes
enfeixadas acima valem mais para o ritmo cotidiano, nao cerimo
nial.

274
entre si

Adiante., farernos urna análise rnais detalhada d,a s "estruturas


alimentares da vida religiosa" Araweté, onde se verá o funciona -
mento concreto do cauirn e outras refei9oes coletivas. Agora, vej~

rnos a rnorfologia e o uso do espa90 aldeao, e os ritmos qo cotidi~

no.
A dependencia do modo-aldeia em rela9ao ao cultivo .do milho
se mostra já no sistema de forma~ao de urna aldeia nova. Se toda
ro9a foi antes mata, toda aldeia foi, antes, ro9a, leito do milh~

Quando urn grupo decide mudar-se para outro lugar, abre prirneiro
as ro~as de rnilho, e se instala no meio delas. Aos poucos, as
planta~oes vao recuando, e resta urna aldeia. A forma espacial re-
sultante reflete :uma variedade de fatores, desde contingéncias mi
ero-topográficas até a ordem de chegada e instala~ao das familias.
Nao há, portante, um plano aldeao, uma expressao simbólica espa-
cial de uma pré-conce~ao ideológica. Mas há, é claro, um efeito
espacial de uma certa concep~ao do viver em sociedade.

A primeira impressao que dá uma aldeia Araweté - conheci


duas - é a de um caos, ambiental e lógico. As casas sao muito pró
ximas urnas das outras, nao obédecendo a nenhum principio de ali -
nhamento; os fundos de urnas sao os pátios fronteiros de outras;c~

minhos tortuosos atravessam a aglomera~ao urbana, entre moitas de


árvores frutiferas, pés de cuEauá, troncos caldos,buracos enormes
(de onde se tira o barro para as paredes das casas ) , montes de de
tritos. Cascos de jaboti e residuos de milho estao em t oda parte;
o mato cresce livremente onde pode, as fronteiras entre o espa90
aldeao e a capoeira circundante sao pouco nltidas. Do ponto de
vista de uma aldeia do Brasil Central, vé-se urna favela.

Toda a popula9ao Araweté ocupava, em 1982-3, urna aldeia de


45 casas, das quais 13 habitadas pelos moradores da aldeia da mar

275
araweté: os deuses canibais

gem direita do Ipixuna, que se transferiram em fins de 1981. A al


deia se ergue em urna "terra alta" da margem esquerda do rio, en-
tre urna curva deste e um igarapé que passa a noroeste, desaguando
a jusante. o terreno é relativamente plano, com as instalayoes do
Postq em nivel mais baixo,· na direyao do rio. As chuvas do inver-
no formam grandes poyas, tornando a circulayao entre as casas di-
flcil.

Apenas 3 das casas eram aind~ construidas no estilo tradi-


7
cional ¡ elas estavam sendo progressivamente substituidas por ca-

(7) "Un arcalx>ucjx> de madeira, preso a tres esteios e um travessao. o teto e


as paredes laterais, alxh3da00s, sao cobertos cx:m folhas de palmeira babayu •
As paredes frontal e costal, ben Caro a ~ da porta sao feítas de estei-
ras tranctadas, superpostas. Essa casa de plarx:> retangular, sen separac¡:ao de
teto e paredes laterais, é caracterizada pelo tananOO diminuto da porta • • . "
(B. Ri.beiro, s/d. : 17-18) ~ Esta fm::ma de casa é chamada a het!, casa verdadeira.
Ela CCl'ltrasta can oois ·outros tipos · de cais~, tradicialalmente: a a~
oho, "casa de face grande", -que é un tipo· mais usp> nos acarrpamentos de rocra.
estrutura sani-fedlada can folhas inteiras, maduras, de ba~; e o tapi h8te,_
-
o "tapiri" de acanpamento de ~' que ecnsiste silrplesmente em algumas fo -
~as de ba~ dispostas sobre urna vara ~da entre duas árvores. 'As ca-
sas .00 estilo nxx1e.nx>, a noda regional, ~ chamadas tapi oho, "tapir! gran-
- - .
de", oo i7J1i r-t~, "cercado de ~a". Ver exenplos destaS" fonnas .oo Cademo
de Fotogratias, entre as páginas 128 e 129.

sas de ~aipa, de planta retangular e cobertas com fólhas de baba-


~u. Alguns dos principios das -casas tradiclonais foram mantidos,
nao obstante: a ausencia de janelas e o pequeno tamanh~ da porta.
Muitas dessas· novas casas · possuem divisórias e cómoqos ínternos ,
-
usados como quarto de dormir ou· chiquéiro
, ·de jabotis; as portas
trazem fechaduras, moda ·difundida a partir do exemplo das casas
do Poste. (Ver urna. planta da ~asa Arawe~é atual, _.os croquis das

duas aldeias, e um mapa dos setores residenciais, as pp.281-84).

276
entre si

o fogo de cozinha costuma também ser instalado fora, nafren


te da porta. Os moradores de uma casa formam urna familia conjuga!
m9nogamica: um casal e os filhos pequenos (de ambos, ou da mulher
'
com homens já mortos - ver adiante), isto é, até 10-l::a anos. Nes
sa idade, os meninos constroem pequenas casinhas iguais as dos
pais, próximo a estas, e ali dormem sozinhos, embora continuem a
usar o fogo familiar, pois só os casados tém fogo de cozinha. As
mulheres dormem na casa paterna até pouco antes da puberdade,quan
do devem deixá- la e se casar - os pai s morrem·, se urna f i lha mens-
trua na casa de origem.
t dificil definir a que membro do casal pertence a casa. O
homem a constrói, a mulher a limpa e maritém. E se alguns costurne~

como esse dos rapazotes fazerem suas casas, ou o das trocas temp2
rarias de COnj.uqes, quando sao as mulheres que se muda.in para a C!
sa do novo parceiro, parecem indicar urna identifica~ao masculina'

da casa, a residencia pós-marital imediata é, idealmente, "uxori-


8
local"; o marido faz sua casa na se~ao da esposa . O divórcio,mu!

se referirem aos outros l'x:llens é,


( 8) O t:ea10nino mais u..c;ado pelos b:rnens para
independente da fcn:ma de residencia, a expressao •• (nare da nulher)-piha", que
. . -
significa "cnrpanheiro" ou "o que reside a:m" á ~rareada. Isto parece
sugerir que os J:x:mens se oonrebem, efetivamente, o:m:> rorando junto as mulhe-
res1 eles se definen e se ligam através delas.

to freqüente entre casais sem filhos, leva nesses casos ao aban-


dono da casa pelo marido.
Cada residencia possui, como parte de seu território, um
pátio ou terreiro - h~k~ -, uma área ~ais ou menos limpa de mato
em frente ou ao lado da porta. t ali que ficam alguns instrumen -
tos - piloes, tachos, panelas -, é ali que se trabalha de dia,to!
rando milho, fazendo flechas, tecendo esteiras e roupas. Ali se

277
araweté: o~ deuses canibais

cozinha, na esta9ao seca. o patio é o lugar de reuniao das fami-


lias para conversar e comer, a noite, e lá se recebern as visitas.
t muito raro se verem pessoas entrando em casa alheia - exceto as
irmas da mulher, durante o dia. A noite trancam-se as portas, ve-
darn-se pequenas aberturas, para que espiritas, sobretudo o espec-
tro de mortos, nao entrem.

Embora cada casa conjuga! tenha seu próprio pátio - uma


..
a-

rea rnais ou menos indefinida em torno ao fogo doméstico e peque -


nos trechos nos arredores plantados de marnoeiros, tabaco, etc. -,
...
existe urna clara tendencia ao agruparnento de blocas de casas a

volta de um patio comum, ou melhor, a fusao de diferentes pátios


conjugais em uma área continua. A aldeia Araweté se constitui co-
mo uma constela~ao desses pátios, ou grupos de pátios, maiores ,
que sao a unidade padrao da sociabilidade cotidiana. Estas se9oes
ou blocos residenciais parecem ter corno modelo, ou forma tenden-
cia!, em termos do ciclo de desenvolvimento do grupo doméstico, a
familia extensa uxorilocal. Mas os arranjos efetivos sao muito va
riados; as fronteiras de cada •se9ao• sao fluidas, e o grau de
inclusao de diferentes casas em um mesmo h~ka ou conjunto de -
pa-
tios contiguos depende do contexto e do ponto de vista de quern
classifica. Há algwnas casas que nao dividem (ou somarn) seu pátio
com outras; e há familias extensas, que agem unitariamente em ou-
tras situa9oes, dispersas pela aldeia.

- residenciais podem ser divididas em dois tipos


As se9oes ,
conforme sua composi~ao dominante: as ocupadas por familias de
-
duas gera9oes de membros casados; e' os conjuntos formados por gru
pos de irmaos, reais ou classificatórios, de ambos os sexos.O pri
meiro tipo forma unidades espacial e socialmente mais integradas-
- as casas de fato voltarn-se para um pátio comum. o segundo é com

278
entre si

posto, ant~s, de pátios próximos o~ contiguos. Estes blocos ou


se9oes residenciais se entrela9am, havendo casas "ambivalentes" ,
que fazem a transi~ao entre se9oes ·contiguas, por abrigarem um C!
sal que remete a dois grupos de siblings espacialmente localiza -
dos. Como é bastante comum o casamento de grupos fraternos, uma
-
se9ao residencial pode-se apresentar compactamente interligada.
Nos pátios pluri-residenciais, ou nas regioes de contigüid!
de de pátios de irmaos, há uma casa "focal", seja pela posi9ao es
pacial, seja por pertencer ao casal-chefe da familia extensa;seus
ocupantes norneiam o pátio ou regiao - havendo uma tendencia a se
usarem mais os nomes das rnulheres. Urn pátio ou se9ao residencial'
é uma unidade de concentra9ao de vários atributos: proxirnidade e~

pacial, rnaior freqüéncia de cornensalidade entre as casas, cooper!


9ao economica. Masé ·uma unidade relativa ou "estatlstica", isto
é, ela resulta da superposi~ao mais ou menos intensa de diferen-
tes planos de rela~ao e intera~ao entre seus membros. Um pátio co
mum ou se9ao é# assim, uma espécie de campo gravitacional, urna á-
rea de densifica9ao de matéria social, sem limites cristalinos.Is
to se coaduna corn a estrutura social Araweté, que se funda e se
esgota na parentela bilateral; a residencia pós-marital depende '
do peso político dos parentes envolvidos, e nao chega a consti
tuir se9oes residenciais fixas, matrilaterais 9 ; inexistem quais-

(9) CO'ltrário; se a tendencia pós-marital imediata é a residéncia uxorilo-


lY:J
cal, a longo praz.o o que se observa é um novinento de rea:qx>si~ e reuniao'
espacial de grupos de i.nrOOs, de anixJs os seJCOS1 que atraen seus ci>njuges
isto quando a ~ de Umas ou o casamento de grupos de siblings nao f cmna
desde o inicio, oo paulatinamente, essa si~. A l.ógica residencial ArtNe-
té é extremamente cx::nplexa, e a "regra" uxoril.ocal está claramente ~rdina­
da as conjunturas concretas, CCl10 vererros.

279
araweté: os deuses canibais

quer grupos definidos a priori, por regras de filia9ao ou alian9a;


o casulsmo terminológico, a teoria da múltipla paternidade, os i-
números re-casamentos, tudo isso cria um campo de manobra sutil ,
móvel e inesgotável. Toda unidade social Araweté - com exce9ao da
familia conjuga! com filhos pequenos ~ é contextual, e toda regu-
laridade depende da P<>ssibilidade de se f azer ·coincidir cu res-
soar o rnaior número de rela9oes entre um grupo de pessoas.
No que .diz respeito a situa9ao das ro9as, há urna razoável
correspondencia entre situa9ao residencial e agrícola. As
formadas por familias extensas de duas gera9oes adultas (casadas)
abrem urna só ro9a, identificada pelo nome do casal mais velho.Nas
se9oes compostas por irmaos casados, sem filhos adultos, cada ca-
sa abre sua própria ro9a, com urna tendéncia a que estas se mante-
nham próximas. Essa diferen9a replica a diferente forma espacial
dos dais tipos de se9ao residencial, o primeiro c onsistindo de c~

sas voltadas para um pátio comum, o segundo de pátios justaposto~

contiguos. E há casas que, isoladas ou nao, quanto a situa9ao de


seu pátio, abrem pequenas ro9as apart~das - sao familias extensas
em embriao. (Ver Apendice III).

Nas páginas seguintes, estao os croquis da aldeia do Pesto


em 1983, da aldeia abandonada em 1981 (que parece mais próxima da
situa9ao tradicional), e por fim um esbo90 de recorte da aldeia
atual em oito "setores" de casas que, embora englobando mais de
um "pátio", sao áreas densamente conectadas. Estes setores corres
pondem is genealogias apresentadas no Apindice . II; como se vi ,
eles se superp0em em vários pontos,, e nao sao unidades c onceitua-
das como tais pelos Araweté.

O que cabe sublinhar aqui é o pluri centri s mo da aldeia Ara


weté, a ausencia co nspicua de um e spa~o público, comum ou centra~

280
entre si

ALDEIA 1981 (MARGEM DIREITA DO IPIXUNA)

1 - caminho de ca~a
2 - saída para ro'ias
3 - saÍda para ro~as e cacimbas
4 - saída para o rio, cacimbas, aldeia do Posto

a
Os números das casas remetem folha 9 das genealogías (Apendice II). Notar a
concentra~ao das casas 7-10 em torno de um mesmo patio, e assim também para o
grupo 14, 16-20. As casas de 1 a 6 apresentavam-se "desorientadas" ou autono -
mas, como a 15, 11-12, e 13. O espai;o central entre as casas. 1, 2, 4, 11 e 15
era o patio do xamanismo do cauim doce. Ao longo de 1981, as familias se foram
mudando para a aldeia do Posto, e a correspondencia dos números aqui e os das
casas da aldeia do Posto (página seguinte) e:

Aquí: Aldeia do Pos to: Aquí: Aldeia do Pos to:


1 20 10 10
2 37 11-12 28
3 1 13 29
4 43 14 30
5 42(casamento) 15 44
6 19 16 24(casamento)
7 34 17 33
8 36/23(recasamento) 18 34 ( cas amen to)
9 26 19-20 9

281


A/deis do Posto
Arawete' dezembro 82

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ALDEIA DO POSTO ARAWETt dezembro 82
araweté : os deuses canibais

SETORES DA ALDEIA ATUAL

284
entre si

a que já me referi na Introdu9ao (pps.74-ss).A aldeia Araweté pa-


rece um composto de pequenas aldeias (mesmo a aldeia menor, de
1981, dá essa impressao), núcleos de casas voltados para si mes-
. '
mos. os "campos gravitacionais" dos pátios ou se<;oes trabalham e-
xatamente no sentido de impedir a forma9ao de um centro único, e-
qUidistante ·espacial ou socialmente de todas as casas.

Existe contudo, é verdade, wn. lugar "central" na aldeia.Tra


ta-se da área que engloba os pátios das ca·s as 13 e 14, e um ter-
reno a frente destes. Ali o intervalo entre as casas da aldeia -
e

maior, e por ali passa uma . via de circula9ao entre o rio e as ca-
sas mais afastadas, bem como entre os blocos mais compactos a les
te e oeste. (Ver página 2 83) • Neste "meio da aldeia" (ta pi te) rea
- -
lizam-se as pajelan~a~ · do cauim doce, do mel, do jaboti e outras
- e isto independentemente de quem seja o "dono do milho", o xama -
encarregado, ou o ''líder" (ver adiante) da expedi<;ao de ca<;a ou
coleta. As razoes 'aduzidas pelos Araweté, quanto a escolha · dessa
área, sao duas: ali é wn lugar amplo, onde se podern enfileirar as
panelas como. alimento (que é o modo de as di spar); ele corre no
sentido Leste-oeste, e nenhuma casa bloqueia o horizonte do nas-
cente. Está é a trajetória de descida dos deuses e dos mortos; o s
raios de sol, de manhazinha, indicam o k~repe, o caminho do xama-
e dos espiritas vindos para a cerimonia.

Em contrapartida, a cerirnonia do cauim fermentado (e as dan


<;as que ·a precedem) ., aquela concebida como a mais importan~e pe-
los Araweté, é sempre realizada .no pátio da familia que preparou
a bebida," nunca neste n centro... .e naque le pátio 1 igualmente' que
se realiza a cauiriagem mística, dos deuses. O pátio do cauim é o
"centro'! da aldeia,~ na festa.
O valor do espa~o central-comunal, portante, parece mui to

285
araweté : os deuses canibais

restrito. A estrutura cerimonial A~aweté, se une efetivamente a


comunidade aldea, nao chega porém a constituir um centro afetado
de valores sócio-religiosos. A "diametralidade" envolvida na des-
cida dos deuses - eixo Leste-Oeste - nio divide a aldeia de ne-
nhwn modo significativo, subordinada como está a urna dimensaomais
fundamental: Céu/Terra, deuses/homens. E a "concentricidade", por
sua vez, nao vai além desta situa~ao mediana da área de xamaniza-
- alimentar.
c;ao

O xamanismo cotidiano tampouco constitui um espac;o público.


O templo de um xama é sua casa. ! ali que ele sonha, ali que ele
come~a e termina o transe, ali que ele canta a noite, saindo para
seu pátio quando os deuses descem a terra. Se ele precisa devol-
ver a alma de alguém que foi retida pelos Maf ou levada pelo Se-
nhor da Agua, vai ao pátio do ••paciente", ou ao rio, partindo sem
pre de sua casa. Assim, entre os Araweté nao só nao encontramos
as "casas-grandes" cerimoniais ·dos Guarani, Asurinl, Tapirapé, Tu
pinambá do Maranhao, como tampouco o difundido sistema das "to -
caias••, pequenas constru~oes de palha, na mata ou na aldeia, onde
os xamas entram em reclusao, recebem os espirites e os mortos, cu
ram os doentes - sistema que se acha nos Wayipi, Kayabi, Asurin!,
Suruí, Akuáwa, Parintintin, Shipaya, Tupinambá. A "tocaia" Arawe
té é a casa conjuga!.

Tudo isto parece sugerir wn tra~o essencial da morfologia


Araweté: a aldeia é urna forma derivada ou subordinada - wn resul-
tado, jamais wna causa. A aldeia é fun~ao do milho; e ela é tam -
bém a justaposi~ao de unidades menÓres, nao seu centro organiza -
dor. Ela é, por assim dizer, o produto do equilibrio temporário '
entre as for~as centrlpetas dos diversos pátios ou se~oes, o mo -
mento de sua neutraliza~ao relativa - wna vez que a for~a centrl-

286
entre si

peta dos pátios implica um movimento centrifugo da comunidade al-


dea: concentra~ao-dispersao. Cada pátio, por sua vez, tem como
forma atómica a casa conjugal. Os blocos multi-farniliares sao, ou
4

o desdobramento de urna casa conjugal no tempo (familia extensa) ,


ou a contigüidade temporária de futuros pátios autónomos(grupo de
irrnaos sem filhos adultos). Urna rnorfologia metonímica, ousar!amos
dizer, se comparada com a ordena9ao metafórica das aldeias cen-
tro-brasileiras ou das malocas do Noroeste amazónico, onde o lu-
gar do grupo doméstico depende de sua posi9ao relativa a um cen-
tro eminente e englobante. Nos Araweté, cada casa é um caso - o
grupo doméstico é o elemento subordinante, a aldeia o produto su-
bordinado10.

(10) Essa ~lógica do tcdo a parte, paradoxal CXJtD ~' é una


estrutura que ¡x:rlemcs enca1trar en outras sociedades TUpi-GJarani. Ela está
artio1Jada a alguns tenas cruciais, a saber: a chefia da al.deia está EJn con-
tinuidade lógica ou real can a dlefia 00 grupo cbuéstioo; inexistem ou sao
pou::X> inp:ntantes o5 rib>ais "soci.Ológioos" pan-aldeOes, em que fossem tenati

za?as relé'QOes sociais gleba.is: e há todo un prooesso de mascaramento da afini


dade, que se desó:i>ra na proj~ oo lugar de afi1n para o exterior oo Social
("en3ogamia" real ou ideológica).
Tal sitnayao de englcbamento hierázquico da a]deia pelo grupo danéstico '
CXDtrasta dramaticauente oan a ccn~ Bororo (que poderos caisiderar, nes-
se aspecto, trna hipérlx>le da visOO Je) da aldeia CXJtD urna entidade CXXloeitual
que pré-existe e subsiste a seus grup::>s CXJt\Xll'lSltes, e meStO as suas cx:ni1 -
~ ~ efetuar;ao física - o exenplo da aldeia de Pobojari, mtp>sta de ~
só hcmem, que recxnstroiu o circulo alde~ e situou sua casa na posic;ao ~
niente, nostra ben isso (Crocker,1979:253). A ccn~ Ar21i11eté tem paralelos
claros can fonnas carlb (Basso, 1977:15-16) e c:x:m outros grup:>s do OOrte ama-
z.Onico.

A f or~a concentradora das se~oes residenciais Araweté -


nao
leva, naturalmente, a um processo tipo "buraco negro", posto que
o ciclo doméstico implica a dif erencia9ao continua das se9oes re-

287
araweté: os deuses canibais

sidenciais: da forma atomica das casas conjugais, passando pelo


momento "étimo" da familia extensa de duas gera9óes · adultas, até
a fase pré-dispersao do grupo de irmaos maduros, com filhos quase
em idade de casar (fase esta que parece ser precedida de um peri~

do de reconcentra9ao do grupo de siblings, que se segue a disper-


sio uxorilocal - cf. nota 9, supra). Por outro lado, a e~trut~ra'

de casamento dos Araweté parece favorecer o fecha.mento relativo


das parentelas: casamentos obliquos, ciclo curto de reciprocidade
matrimonial, repeti9ao cu redundancia de alian9as, todo um leque
de fatores que, nao só minimiza.ro o impacto estrutural da "regra"
uxorilocal, como trabalham pela indef ini9ao ativa da
consangülneos/afins, e pela manuten9ao de uma grande capacidade
de reprodu9ao social -em corrd~9óe~ de baixo efetivo populacional e
de isolame·n to terr.i-torial.
Antes de abordarmos o parentesco, porém, prossigamos anali-
sando a morfología concreta Araweté, vendo como se pee a questao
da rela9ao cotidia,na entre as casas ou se9oes, as formas de coope
ra9ao produtiva e consumo, e o problema do lugar da "chefia" do
grupo local. Pois é claro que o multicentrismo sociológico nao ex
clui intera9oes a nivel aldeao; a vida cotidiana nao é a simples
coexistencia de unidades familiares que se ignoram11 •

(11) Nao t:entx:J candi~ de descrever a norfologia e mcp:>si~ 005 grupos


que excursianam na época~ dluvas. SeguinOO infcmnactóes c:Ds Ar~té, µ:>rem,
- ben caro analisancb as eqW.pes familiares que salam para .a .mata durante o
fim da esta<?o seca - pode-se recx:>nstruir o quadro seguinte: (1) a se;aa
'

~i
'

dencial, e especialmente éqUelas formadas por familias extensas uxorilocais ,


teme a excursionar em ~junto, e a se di1por cnn as 5eQ3es rontíguas¡ (2)
os casais jovens, ~ entanto, fXXHu decidir juntar-se ao grupo de outra 5€9aiq
~ esteja um casal cnn quera entrarao em reJasao de troca ~ o5njuges; (3)
os casais jovens, ainda, tendero a fo.rmar sub-múdades de acanpam:mto, na base
de associ~ masculina para a cacra, e segun.00 lac;os de· troca de o5njuges ;

288
entre si

(4) há circula~o de familias entre diferentes acarrpamentos; (5) a aldeia,no_E


ma:J.mente, se fragnenta em tres ou quatro gTUEX>S, sendo um deles cxmsideravel-
mmte maior que os outros.

Desde o interior da casa conjuga! até o nivel da aldeia, po


de-se conceber um conjunto de circulas de . inclusao progressiva, e
que marcam contextos de interac;ao social:

O ritmo do cotidiano Araweté varia, evidentemente, conforme


a época do ano. Más podemos descrever um dia típico-ideal da esta
- seca.
c;ao
Os Araweté acordam tarde: ainda há muitas casas fechadas por
vol ta d.as seis e meia da martha. Afora alguns homens que saír'a.m an
tes do sol, para cac;ar mutum, é só lá pelas oito horas que a al-
deia come9a a se movimentar. As familias cornero algo em seus ter-
reiros; alguns vao visitar o Pasto; outros passeia.m por sec;oes vi
zinhas, informando-se dos planos dos demais; outros se queda.ro tr~

balhando: nessa época·, desde cedo as· mulheres descaro'iam e batem


os f locos de algodao, fiam e tecem. A familia entao decide o seu
dia. O homem sai para cac;ar, em geral com dois ou tres companhei-

289
araweté: os deuses canibais

ros: se nao, vai ajudar a mulher a torrar milho no tacho do Poste,


ou vai com ela a ro9a, buscar miiho e batata, aproveitando para
ca9ar nos arredores. Ao meio-dia a aldeia está 'vazia. Quem foi
..
a
ro9a e já voltou recolhe-se a casa, e dorme.
O forte calor da tarde corne9a a amainar as quatro: a aldeia
se reanima. As mulheres pilam milho, recolhem lenha, buscam água,
a espera da volta dos ca9adores. Os homens que ficararn na aldeia
ajudam no servi90 do milho, ou trabalham na feitura e manuten9ao
de suas armas.

Entre as cinco e sete horas, já escurecendo, vao chegando


os ca9adores. Sozinhos ou em grupo, entram apressados, silencio -
sos, de cabe9a baixa, ignorando ostensivamente os comentários que
sua carga desperta nas se9oes por onde passam. só param no ter-
reiro de suas casas. Vao-se entao banhar, enquanto as mulheres ar
mam as fogueiras para a refei9ao noturna. Quando a ca9ada do dia
foi abundante, a anima9ao toma conta de todos. Quem nao está ocu-
pado em cozinhar passeia pelos pátios, observando o que lá se
prepara. Meninos e meninas correm, dan9am e brincam pela aldeia ,
juntando-se aquí, dispersando-se acolá; as araras gritam terrivel
mente, e seus denos comec;:am a recolhe-las aos "poleiros" no teto
das casas.

Nas primeiras horas da noite come9a o periodo da máxima so-


ciabilidade: a "ronda gastronomica" de pátio em pátio, para o con
sumo da produc¡:ao do dia. Quando a carne é muita, essa circulac;:ao'
se estende até as dez horas ou mais da noite, cada familia convi-
dando, sucessivarnente, as outras para partilharem de sua refe1 -
9ao. Gritos agudos e prolongados, com urna modulac;:ao peculiar da
-
voz, convocam moradores de outras se9oes para comer o tatu, o Pº!
co, o mutum que se prepara. Sao sempre os homens que gritam, cha-

290
entre si

mando homens e mulheres, por se~s nemes pessoais ou por apelati-


vos de parentesco. As familias vao-se reunindo · ~o pátio do anfi -
-
triao, trazendo ou nao seus filhos, conforme as estimativas que
faz~m . da comida disponive1 12 ~ ~ada casal que chega traz seu cesto

(12) Os menioos ainda solteiros, que noran en casa própria e que tenharn
rnest0

cacraaoalgo, nunca sao oawocados ou cx:JrMX:am outros a a:rreren, dessa foi:ma


rit~zada. ~ de seus pais, en ambos os casos. As cr~as participam

ben nenes dessa rorda alimentar ooturna, ccrnerm principalmente da oozinha ~


terna. Chamar . (ou ser chamado) a urna refeicrao ooletiva é sinal. de maturidade!
e de visibiljdade social, e é algo que os rapazes recém-casados tero vergonha
em fazer.

com pac;roca dé milho. Caso se trate de um tipo de cac;a que e - pre-


ce.d ida do consumo do pirao nam<' pi re, os recém-chegados despejam

parte da farinha trazida em um cocho, onde ela vai-se juntar a fa


rinha dos anfitrioes e ao caldo do cozimento. Pronto o pirao, a-
rnassado por um dos homens convidados (mais raramente pelo anf i -
triao), os homens se aglomeram em torno do cocho, e cada qual pe-
ga o que pode, voltando para junto da ' esposa, com quem partilha
o bocado. Todos se sentam em esteiras, no chao, perto da carne ,•
tagarela-se, ri-se, a balbúrdia é geral. Em seguida se parte · a pe
c;a de cac;ra, poe-se os pedac;os no cocho; novamente os homens cor-
rem até ele, indo repartir o que "capturaram"· com sua familia. O

estilo de pegar a parte que cabe a cada convidado é, para dizer -


mes ó mínimo, bastante informar: avanc;ra-se, literalmente, sobre
a comida; nao há precedencias, etiquetas, refinamentos: ªº contrá
. lJ . A f ami• 1 ia
rio · an f.itria
. - come Junto
. com tod os, tend o reservado

(13) Perto do c:x:rcedirnento e solenidade das refeic¡X3es canunais Asuriní(segtll'XID


ilrpress0es de quan esteve can os deis grupos) , ou daql.rilo que diziarn os crcr
nistas dos 'l\Jpinaml:á - que rnantinham ttadJ:nirável siléncio" e a:Jtr¡x:>stura as re-

291
araweté : os deuses canibais

feii;OeS, en contraste can seu desregramento nas bebedeiras de cauim (I.éry ,


1972: 91) - , o m:xX> Araweté ressalta caro francamente "selva<JEm" • Mas este
cxx1~rtanento tunultuário e predatório, individi1al i sta, di.ante da cx:mida ofe-
. .
recida por outros pátios, nao ne' parece destituido de signifi~, pura "in
fonnalidade": é demasiado regular para ser sinyles desordem. Seria antes urna
nodalidáde .dé "rel~ao · jocosa", urna estrUtura oeriDDnial de hospitalidade.Una
espécle de rapto ritual da ooiva, digairos, onde a violéncia revela/oculta o
que e5tá em jogo: a reciprocjdade. ora, os Maf, descenCb a tena para mrer ,
se caip:>rtam da mesma maneira: eles errpurram o Xami, e devoram desoi:denadame!!
te a cernida. Tenhó poucas dúvidas de que a "selV89&ia" Araweté nas refeU;é)es
' .
corunais ("parecen bidx>s", dizi:am serrpre óS branoos do Posto) seja ·u na figu-
ra do cani.baliSllD; mais urna ·vez, os deuses sao o rrodelo. Vale ootar, ainda ,
que esse cxxtp:>rtamento só caracteriza as refei<;Qes que envolvem mais de um p§_
tio bu ~, nao a etiqueta <X>tidiana.

antecipadamente um peda~o do animal trazido (para ser comido mais


tarde). Mas ela é em geral servida pelo hornero que parte as pe9as
de carne; nao compete jarnais na disputa por seu bocado.
Outras ca~as, menores - jabotis e mutuns - , sao consumidas.'
ern ordem inversa. Nesses ca~os, em vez do cqnsum.o inicial do pi-
rao de rnilho pré-torrado e pilado, come-se o iyi, mingau gros so
feitO corn milho pilado e cozido na hora, na. água de cozimento da
carne. O milho do iyi é dos anfitrioes. Após .a partilha da carne,
-
o rningau e posto em duas panelas, urna para os homens ,, outra pa~a

as mulheres, que se sentam em círculos, separados~ e o comem pau-


sadamente. As carnes e refei~oes de iyi envolvem sempre menos ge.!!
te que os festins de tatu, porco, paca ou peixe, que se acompa -
nham do pirao.
A quantidade .e a identidade dos convidados sao - estabeleci-
das de modos sutis, que envolvem uln cálculo da comida de que se
dispoe, da comida disponivel na aldeia como um todo, da memória
dos .convites anteriores, do prestigio real ou desejado .de quenCC!:!
vida, etc. O fato é que as formas de comensalidade sao sempré, ca

292
entre si

mo em toda sociedade, indicadores exatos mas complexos do


• !' . •
estado

soc.i al de urna comunidade. ~ preciso notar que os Araweté, contudo,


a • ,. '

nao elaboram estruturas f.ixas de traca alime_ntar (do -tipo "paga. -


mento em alimentos", etc.), que marcassem simbolicamente papéis

e posi9oes na estrutura social. Aqui como em outros dominios, a


' .

ideologia da mutualidade (~uja outra. fa,c_e .~ a competi9ao) pre~al_!


ce sobre_ o fato_ da re_cip.rocid~qe (~ a exigencia de coopera<;ao) ,
, ~ . .,,

impedindo sua regula~ao ce~~monial ~xplícita e fixa. A repeti9ao

metonímica - comer o ~~s~~, de_ casa ~m casa - prevalece sobre qua.!


quer complementaridade metafórica. (A parte o sistema do cauim

alcoólico, onde o dono da bebi.da se _contrapee aos ca9adores - mas


essa fun9ao circula por toda a aldeia, no correr da _esta9ao se-
ca).

Os clrculos· -ae- sociabilidade que tracei a página 289 corres


~

pondero ·a di verso·s momentos e co·n textos de comensalidade. A casa e


·- o lugar da · partilha do casal, e este ali permanece quando a comi-
da é escassa na -aldeia, a ca9a tra'zida foi pouca, ou quando se

quer comer em paz alquma -delicadez-a - bacaba fora de época, por


exemplo. A' prepara9ao de alimento ·n o terreiro I por s -u a vez, impli
ca Wi\a "sinaliza~ao~·- aos demais :residentes da se9ao residencial ,
e quase sempre envolv·e -wn convite a um ou mais mernbros desse gru-
po para partllhar da refeí9ao. ·E ste é o · nivel mais usual de comen

salidade, ao qual se ·co.stwnam ater as pessoas: cada familia de


urna mesma se9ao come sucessivamente no fogo de todas as demais
farnlli-as. No caso de várias casas da aldeia matarem ca9a - o que
costuma acontecer nos dias de expedic;ao coletiva masculina -, dá-
-se entae essa ampla comensalidade,, a ronda alimentar ·q ue envolver
as vezes, todos os aldeoes, m~s de - m~do desigual: isto é, urna fa-
mília pode ser convidada . a vários outros pátios ,. enquanto outra

293
ar~weté: os deuses canibais

-
apenas a poucos, ou mesmo comer apenas dentro de sua sec;:ao. A
quantidade de convites que se recebe, o número de pátios que se
freqtienta sao indices seguros da posic;:ao social que se desfruta
na aldeia.
Por fim, o consumo alimentar que envolve o xamanismo prévi~

apoiado como está em wn esfor90 coletivo, idealmente pan-aldeao ,


de obtenc;:ao do alimento (no caso do cauim fermentado, a ca9ada co
letiva é a contrapartida do milho e do trabalho do "dono do
cauim" - ver adiante), marca as situa9oes de máxima comensalidade
e · sociabilid~de. Nesses banquetes~ praticamente todos comem em
todos os pátios, e é isto que os define corno cerimonias: a inte -
grac;:ao máxima da aldeia, que se dá, caracteristicamente, corno wna
visitac;:ao ern série dos diferentes pátios.
Atualmente, o espa<;o do Posto é usado para .um outro tipo de
¡
partilha alimentar: a divisao da carne .crua de ca9a grossa rnorta
por um ca9ador - veado, anta, parco. (Possiv~lmente, -em outras
~

alde'i as, isso seria fe·i to no espac;:o .mais. "público" que houvesse :
beira do rio, etc. o Posto, corno indiquei na Introduc;:ao, torna/
cria estas fun9óes de espa90 coletivo). O ca9ador, nesses casos,
jarnais preside a divisao da ca.r ne (assim tarnbém para os Kaapo;r
Huxley, 1963:89). O prirn~iro homern de prestigio que aparece faz
isso; uma atividade exclusivamente masculina, e que rnantém o esti
lo tumultuário e individualista das refeic;:oes coletivas. o ca9a-
dor permanece deliberadamente alheio a partilha, e nao é incornurn
que nao receba nenhurn pedac;:o. Em troca, porérn, será convidado a
14
comer ern todos os pátio_s que leva~arn carne • Outra forma de divi

(14) ~ scb esta fonna enfraquecida - e específica para o caso de ca9a grossa-
que eixontrarros o terna Aché-Guayaki do interdito que pesa sobre o ~r ,
quanto a c:crrer da carne que matal (P.Clastres, 1974:99-ss.); interd.ito este,

294
entre si

por sua vez, una ''forma generalizada" da oposicrao central do ritual antropofá
gicn Tupinarnbá: o matador é .o únicn que nao ccrre do inirnigo norte (H. Clas -
tres, 1972:80). Por outro laOO, a tendenciq que se en<X>ntra entre os Araweté,
ae· que o anfitriao cate depois - ~ se sei:ve dep::>is - cbs convidados, parece
sugerir esta rresma idéia de ali~ao entre o cat;ador e sua ca;a.

sao da ca9a é realizada na mata: se um homem, de um grupo de ca9~


dores, nao teve serte, os demais, · ou o mais afortunado, dividem '
sua presa com ele; é multo comum ver-se gente entrando na aldeia
com bandas (iweyer!) de paca, porco, etc. Também nesses casos, se
•., ...
a quantidade permite, o doador sera convidado a comer na casa do
recipiendário.
Quando urna familia sai ern excursao para a mata, pode pedir
a outra que prepare alguma quantidade de farinha de milho, de _que
possa usar imediatamente ao voltar. Ern troca desse servi90 - fei-
to pelas mulheres -, os excursionistas lhes dao alguns jabotis ou
outra · carne que troUxeram da mata. A familia que viajou assume,as
sim, a posi9ao masculina, de provedora de carne; a que ficou, a
posi9ao feminina, de processadora do milho.
Nio existem outras "regras" de divisao· da carne ou de reci-
procidade alimentar - ·afora o contexto cerimonial dos cauins. As
rnulheres cabe o tutano dos ossos; os velhos tendero a receber, pre
ferencialmente, a cabe9a dos queixadas. E, como já . indiquei ante-
riormente (Capitulo III, n. 20 ), há certas partes de alguns ani-
mais que sao comidas assadas, nio cozidas, corno é o normal: gord~

ra do casco do tatu, seu rabo; e as carnes a9erentes a carapar;a


dos jabotis. Essas partes sao sempre comidas antes, e envolvem a
presen9a de mais gente que a que 'será chamada para· o consumo do
cozido. Por f im, há que observar que certas categorias de paren-
tes (ou melhor, posi9oes genealógicas) sao sempre chamados a co-
mer, se u.~ hornero decide convidar nao-rnernbros da casa conjuga! pa-

295
araweté: os deuses canibais

ra urna refei~ao em seu pátio: seus pais, os pais da esposa, seus


filhos casados (e, por extensao, os conju ges des tes ) . No caso dos
homens jovens em posi9io uxorilocal, o sogro é a prirneira pessoa
a ser chamada. Oeste núcleo em diante, urna quantidade de circuns-
tancias especificas determina quem será chamado. Mas vale notar
que a contigüidade espacial entre diferentes "se9oes'' ou pitios é
extremamente importante na forma9ao de regularidades quanto a · gru
pos de comer: entre um irmao real que mora do outro lado da al -
deia e um "tio" classificatório, ou irmao idem, que moram próxi-
mos, estes Últimos tenderao a ser mais freqüentemente chamados que
o primeiro. Grosso modo, o eixo Leste-Oeste que separa as duas
aglomera90es rnais compactas de casas da aldeia constituí também
um divisor estatistico de freqüencia de cornensalidade - as exce -
9oes, porém, sao tao importantes quanto a norma. E as casas próxi
mas ao meridiano aldeao se beneficiam de sua posi9ao central, co-
mendo de ambos os lados.

Continuemos a seguir o percurso do cotidiano Araweté. Após


as refei9oes noturnas, a aldeia come9a a silenciar. As familias
voltam para seus pátios, onde se deitam a conversar,entre si ou
com algum visitante que aparece. Por volta de meia-noite, quase
todos já estao dentro de suas casas; a menos que uma dan9a op~­

rahe esteja sendo realizada em algum pátio.

O o p,rahe é a única forma de dan9a conhecida dos Araweté .


'
urna massa compacta de hornens, dispostos em linhas, que se desloca
lentamente em círculos anti-horários, cantando. Na linha do meio,
e no meio desta, vai o cantador (m~raka y) , que porta um chocalho
de _dan~a (marak~'i) para a marca9ao do ritmo. Exata.mente as suas
costas, vai um homem com urna fun~ao específica: é o mara kay memo 'o
ha, o "ensinador do canto", em geral um velho, que propoe os te-

296
entre si

mas cantados, corrige as letras, nao deixa o ritmo cair. As posi-


9oes medianas e internas da massa de dan9arinos sao consideradas'
mais "nobres" - o cantor é o ponto eminente. A posi9ao relativa
dos dan9arinos é rigorosamente respeitada. Após um grupo de can-
9oes, os dan9arinos se dispersam, sentando nas esteiras a volta
do pátio, junto com suas mulheres. · Passados alguns minutos, o can
tor é o primeiro que se levanta, junto com (ou instigado por) o
11
ensinador 11 ; o grupo entao se refaz na mesma ordem. Cada linha -
e

composta por homens com os bra9os entrela9ados, e ela segue prat!


camente "colada" a linha seguinte. Nas linhas da frente, em gera~

seguem homens mais jovens. As mulheres podem vir-se juntar ao blo


co de dan9arinos, mas em sua periferia; passam o bra90 por baixo
do de seu parceiro, segurando em seu ombro e ali repousando a ca-
be9a; elas formam sempre RO exterior do bloco, nao ficando entre
dois homens. Urna mulher
.
dan9a com seu marido,
.
ou com o seu ap!no,
parceiro sexual da mata; nesse caso, seu marido estará dan9ando
com a mulher desse hornero, no outro extremo da mesma fila, ideal -
mente.

As ocasioes para um op~rahe sao variadas, como vário tam-


bém é o grau de entusiasmo e participa9ao nessas dan9as. Semelhan
te, em seu tom e forma processual, a todos os movimentos coleti -
vos Araweté, elas sao frouxamente organizadas, dispersivas e
"progressivas". Apesar de ter um come90 formal, que é o erguer-se
do cantador, urna dan9a custa a "pegar"; as pessoas vao chegando '
aos poucos, o número de dan9arinos varia muito ao longo da sessao
(o núcleo se mantém constante, em geral; quern sai, voltando ocupa
o mesmo lugar), e bem antes ~e o ·cantador encerrar a dan9a várias
pessoas já se retiraram. Cada op~rah e tem só um cantado r por
15
noite .

297
araweté: os deuses canibais

(15) E, a parte o grupo mais central, en volta do cantador, .t odos oonversam '
durante o canto, saen da toada, desafin.3rn, mmnuram ou trauteiam mais que can
tarn, etc. etc. A inpressao é a de urna relativa ba~a, onde o cantador é um
pólo de atr~ e organiza<;OO, .em relacrao ao qual variam as distanqias, físi-
cas e/ou de envolvirnento, dos dernais participantes. Tal sistema, ben c:x:m:> sua
falta de "climaticidade", nao dei.xa de evocar a anállse do "indian time" de
Wann Springs feíta p::>r Philips (1974).

Um optrahe pode ser organizado por simples diversao, por wn


grupo de jovens; ou pode estar dentro do ciclo das dan9as para''f~

zer esquentar" urn cauim que se prepara, · e qUe tem seu clímax no
op~rahe da noite da cauinagem; ele é a forma de comemora9ao,igual
mente, da rnorte de wn inimigo ou de urna on9a; e parece ter ti do
Seu modelo, porérn, é wn só, e claro: o op~rahe
16
outras fun9oes •

(16) e.aro seja, a de cx:rtetDrar um ca.sameI)to, ou nellx>r, marcar a in~ '


de um hanem en ootra aldeia oo ~ residencial, o:nforme o paradigma wcori-
local. Fln neadOs de 1982, un rapa% que norava na se;ao de seus país (casas 7
e 9),. casou-se can una menina filha oo "dlefe" da aldeia, e nl.lC.bu-se para a
~da esposa, CX11St::ruinó:> a casa 24. Durante várias noites, ~to o .ra-
paz fazia sua casa, os jovens residentes de ariEas as se93es envolvidas ~
varo um ~rahe, bast.ante desanimado é verdade, 00 pátio da ~ da esposa •
_O recénrcasado era o cantador. Os Araweté diziam que era assim que se fazia ,
antiganente, qual1Ó:) um oocen ia para a aldeia da esposa.

é urna dan9a de guerra. Todos os participantes _.( homens) devem por-


tar suas armas, ou ao menos urna flecha, que trazem junto ao peito,
corn as penas de harpía para cima; e os cantos sao, quase todos I

"música dos inimigos", can9oes que falam de guerra, morte, mortos,


combates ancestrais ou recentes. O paradigma do cantador é o guer
reiro, o homicida. A própria defiz\i9ao do cantador como "aquele
que levanta (ergue) consigo os demais" (wl nero-poi ·ha) indica is
so; este é o mésmo epíteto do chefe de guerra Wayapi: "o que nos
faz levantar" (oto pua ma: P. Grenand, 1982:222). Erguer-se para

,298
entre si

dan9ar é se erguer para a guerrra.


Nos momentos de maior participa9ao e entusiasmo nurn op irahe
- tipicarnente na noite do cauim e, imagino, quando um inimigo ha-
'
via sido morto - percebe-se a emergencia de urn sentimento coleti-
vo muito forte, quando o ritmo hipnótico das can9oes, a estreita
proximidade flsica, que faz com que sejamos dan9ados mais que dan
cernos, os cheiros, a escuridao, tudo isso gera urna massa rítmica
unitária, que é ao mesmo tempo wna malta de guerra (para usarmos
os conceitos de Canetti, 1981). A experiencia "fenomenológica" do
opirahe, onde se pode ver urna fabrica9ao do social a partir do
físico, de urn modo que agradaria a Mauss, sugere que a dan9a Ara-
weté, mais que urna representa~ao estilizada da sociedade, é sua
transformacrao em· inassa unificada ·em torno do --mata-do'l:-cantador ,que.,
ele, encarna a parte do simbólico, me.táfora v..iY.a .4lo homem-deu; Ara
weté • Assim, se a morte de urn rnembro do grupo .4.ispersa os viven -
tes, como veremos, a morte de urn inimigo os une, os transforma em
urn.

No próximo capí~ulo veremos corno os cantos de opirahi for-


rnam wn sistema com os cantos xarnanísticos. Nas dan9as cotidianas
da esta9ao seca, o cantador de cada noite é escolhido ad hoc, de~

tre os que gostarn e sabem f azer esse papel - normalmente um mata-


dor. Já o cantador da dan9a do cauim alcoólico é determinado corn
antecedencia: ele é o tenetamo, líder, da expedi9ao coletiva de
ca9a que antecede a cerirnonia. Ja é tempo entao de passarrnos ao
exarne da questao da "lideran9a" Araweté, seu papel na produ9ao so
cial. Mas antes, encerremos o dia na aldeia.

Exceto na grande dan9a do cauirn, os opirahe noturnos nunca


vao alérn de urna ou duas . horas da manha - pi heye, o "longe da noi
te" Araweté. Oeste período até as prirneiras luzes da aurora, se

299
araweté: os deuses canibais

estende o dominio dos xamas, e de seus cantos solitários. Enquanto


os outros dormem, os xamas cantam, horas a fio. A noite é a hora
e a vez dos deuses e dos mortos; outra popula9ao toma o lugar dos
viventes, nos pátios desertas. De manhazinha ela se vai - a menos
que seja um dia de pey9, de festa alimentar para os deuses,quando
eles sao trazidos de madrugada (que é o entardecer no mundo celes
te), e ficam na terra· até o sol já alto (que é a noite lá).
Vamos aos chefes.

2, O DIFlCIL COMECO: OS TENETAM~ E TA NA

Já mencione! algumas vezes o caráter "desordenado" e "paul!


tino" dos movimentos coletivos Araweté,. que é um equivalente dina
.
mico e etológico de seu multicentrismo espacial. Há que ver o que
tal desordem traduz, e como é contornada.
Seja iniciar urna a9ao, desencadeando um movirnento coordena-
do; seja juntar-se a um processo come9ado, reconhecendo-o enquan-
to tal - criar ou sancionar, em · suma, urna descontinuidade no flu-
xo morno do cotidiano: eis aí um problema paralisante, para os
Araweté. Dir-se-ia que tem um pudor das inaugura9oes, urna extrema
relutancia em comec;ar junto; por outro lado, minúsculas atitudes
manifestam urna espécie de vergónha ero fazer como outrern, de um
jeito que pare~a urn fazer porque outrem o fez. Urna espécie de de-
.,_

saten9ao deliberada, ainda, diante dos sinais de que algo se pas-


s.a, e de que is so impoe urna escoltta, seguir ou recusar seguir. Urna
espécie de inércia ostensiva, digamos, urna hesita9ao perpétua ero
come9ar, fruto de um individualismo obstinado, sensível a qual
quer "imposi9ao" - mesmo que através do exernplo - da vontade ge-

300
entre si

ral, e nao menos cuidado so em impor a sua própria, tudo isso mar-
ca de wna forma indefinivel o tom da vida grupal Araweté, que in-
terpretam assim, a seu modo, a máxima nietzscheana sobre a v1leza
dos comec¡:os.
Na verdade, o que se passa é urna vontade de ocultar, de ne-
gar o fato de que há, afinal, concerto coletivo. Trata•se de algo
mais profundo que um "horror a ~utoridade", ou urna recusa de qual
quer dif erenciac¡:ao de urn lugar de poder dentro do corpo social
Trata-se de resistir, por assim dizer, a legitimar esse corpo, or
ganizá-lo, movimentá-lo harmoniosamente. Trata-se de estabelecer,
nao um máximo de semelhanc¡:a entre todos, urna iso nomia fundada num
mesen, lugar comurn (Vernant, 1965:185-229), ágora ateniense ou
prac¡:a centro-brasileira; mas sim de criar_o máximo de diferenc¡:a :
de diferir, adiar-desviar, a resposta individual face aos estímu-
los sociais que a impoern. A "indiferenc¡:a" Araweté que eu menciona
/
va na Introduc¡:ao - indiferenc¡:a as marcac¡:oes rituais intra-societá
rias, indiferenc¡:a as "convenc¡:oes" - é o efeito de urna multiplica-
c¡:ao interminável de difere nc¡:as nao-totalizáveis.

Por isso era muito difícil determinar o momento inicial de


qualquer ac¡:ao coletiva; tudo era deixado para a última hora, nin-
guém comec;ava nada •.• Eu tinha a impressao geral de que o "pro -
blema", para os Araweté, nao era aquele clássico das "sociedades
primitivas", a saber, o de encontrar wn espac¡:o para a irrupc¡:ao da
indivi dual~dade, sufocada por um mundo teatralizado de obrigac¡:oes
e p a péis; o problema era fazer, dessas monadas orgulhosamente i-
nertes, que nao conhecem medida cornum, algo como urna sociedade.

Pois é exatamente por isso que o lugar conceitual e políti-


coda no9ao de tenetamo, "líder", é ao mesmo tempo onipresente e
discreto, difícil e indispensável. Sem um líder nao há a~ao cole-

301
araweté: os deuses canibais

tiva¡ sem ele nao há "aldeia.


Tenetamo significa "em primeiro lugar" I ."o que S?egue a fre.n
te", "o que come9aº. Essa palavra designa o termo inicial de urna
série qualquer, possuindo conota9ao espacial e temporal: o primo-
genito de um gr.upo d.e irrnaos, o pai em rela9ao ao filho, o hornero
que encabe9a urna fila indiana na mata, a familia que primeiro sai
da aldeia para excursionar nas chuvas. A situa9ao de tenetamo se
seguem as que estao ipit.!!_ re, no meio qu entre-dois, e as taaip!!_,
que estao atrás ou por último (ver supra, p. 194). o lider Arawe-
té, assim, é o que come9a, nao o que ordena; o que segue a frent~

- o que fica no meio.


nao

Toda e qualquer empresa coletiva Araweté supoe um tenetámo;


-
nao existe come90 inocente, acorde "comwn", em que todos estejam•
na mesma relac;ao com a taref a. Urna coisa nao comec;a se nao houver
alguém em particular que a comece. Mas; entre o come9ar do
· tenstamo, já de si relutante, e o prosseguir dos demais, sempre é
pesto um intervalo, vago mas essencial: a a~ao inauguradora é res
pendida como se fosse wn pólo de contágio, nao urna abertura legi-
timadora QU eXOrtativa; e I nao Obstante I espera-se por ela •.

O puro contágio - isto é, a propaga9ao de wria atividade sem


concerto, em que cada wn faz por sua conta a mesma coisa - é afer
ma cbrriqueira e nao-problemática de a~ao economica Araweté. Um
-
belo dia, por exemplo, duas vizinhas poem-se a preparar urucum
nao por haver cerimonia em vista, ou por razoes sazonais; apenas
porque o decidiram. Em algumas horas, ve-se todas as mulheres da
aldeia a fazer o mesmo. Um homem passa distraído nun\ pátio alheio,
vé um outro fabricando flechas; resolve faz·e -lo também, e daí a
pouco lá estao os homens sentados em seus pátios, fazendo fle-
chas •.. Essa forma de propaga~ao deve ser distinguida, na medida

302
entre si

do possivel, daquelas atividades . que dependem do ciclo anual,onde


o sinal para a a~ao é dado pela natureza. E mesmo aí, a emula~ ao

é importante (afinal, a natureza é lenta): após um longo período


'
de vida na aldeia, um grupo de familias decide excursionar; no es
pa90 de alguns dias, paulatinamente, vários outros grupos saem ,
cada qual nwna dire9ao. Corno se de repente todos descobrissem que
nao agüentavam mais o tédio aldeao. Outras vezes, o "contágio"nao
é mais que vontade de sociabilidade: vendo wn grupinho de rnulhe-
res a torrar milho no tacho do Poste, várias outras para lá se di
rigem; se alguém passa a caminho da cacimba, corn certeza atrairá
gente pelos pátios que cruzar.
Essa forma de a9ao "coletiva" aparece como urna so lu~ao inte
ressante para o problema do corne9ar, wna vez qu e cada um faz a
mesma coisa, ao mesmo tempo, mas para si: curiosa mistura de sub-
. -
missao ao ces t ume e manuten9ao
- . l? . El a man1' f es t a
d a autonomia a

(17) Tal nocX> de ptopagac;ao das ativi~ nao se restringe a esfera emnC.mi-
ca. A aldeia Ara1.<ot1eté parecía passar por ciclos, desde oo que tocava a noias
superficiais Cuma ~, uma brincadejra invadiam os dias) , até esferas so-
ciológicas. Assim, ¡x:>r exarplo, se um joven se casava, logo em seguida toda
a aldeia se pmha a ensaiar ligac;i)es (o mais das vezes terrq;orárias) entre os
nenin::>s e neninas na faixa dos 10-12 anos. Una troca ~rária de cx3njuges ,
criarrl::> a rela;roo decrprhi-pihii entre duas casas, prodnzja 1.D'!la "ha!Drragia" pa.
ra-matrinonial em que parceiros circulavam aceleradarrente de casa a casa. Eln
arrb:>S OS ca.sos, nao se tratava de reequilibrar uma estrutura de aliary;as {X)S
ta em novinento pelo evento inicial (cu nao era assim necessariamente ) ; sim-
plesmente as pessoas punham-se a repetir o amntecido.

tendencia Araweté a repeti9ao simples, independente, das ativida-


des, o que se coáduna com a auto nomia do s pátios aldeoes. Já as
atividades que exigem um t e n e tamo envolvern urna rnanipula9ao sutil
da diferen9a, e, mesmo que a forma de trabalho seja a coopera9ao'

303
araweté: os deuses canibais

simples, pressupoem urn inicio formal · - cabendo notar que entre wn


caso e outro, há numerosas grada9oes, e que aquilo que, do ponto
de vista da aldeia como um todo, é "contágio", ' dentro de urria se-
~ao residencial pode depender de urn tenetamó.
Várias atividades nao sao pensáveis sern um tenetamó: as ca-
9adas coletivas, cerimoniais ou nao; a colheita e ' processarnento t

do milho, a~aI, etc . , para as festas do peyo; a escolha do sitio


de ro9as pluri-familiares e o lugar de aldéias novas; urna dan9a
opirahe, urna expedi9ao guerreira.
Um tenetamó é alguém que decide (od~ca) quando e onde se
vai fazer algo; e que saina frente para faze-lo. · Quem propoe a
outrem urna empresa é o tenetamó dela; quern pergunta: "vamos?",vai
na frente, ou nada acontece 18 •

(18) A posi~ relativa dentro de urn grupo é sert>re respeitada. Se urna parti.-
da de quinze l'x:nels sai para una ca~, na volta entrarn na aldeia na mesma
disposi~ can que a deixaram, cada qual tetm os nesnos hanens a sua frente
e as costas. Já vi:oos essa ~a, posicional oo caso ·ao ~rahi; ela se
manifesta até mesrrc numa rápida ida a caciltba, por um trio de ·ineninas. '

Ocasioes diversas tem tenetámó diversos, o que faz circular


a fun9ao de lideran9a (que em geral nao é mais que esse fardo do
come9ar) entre todos os adultos. o tenetamo de iima empresa pode
ser aquele que teve a idéia dela, ou que sabe como levá-la a ca -
bo: ca9ada, pescaria, coleta de mel. Tal posi9ao podé caber amais
de wn individuo, para a mesma tarefa: par de irmaos, pai e filho,
trio de amigos. Ou a aldeia pode-se fracionar em diversos grupos,
'
cada qual com seu tenetamó. Ao líder de urna empresa cabe a convo-
ca9ao dos demais, e o movirnento inicial; aos poucos, os outros o
seguem.
Esta é urna posi9ao que os Araweté concebem corno algo cons -

304
entre si

trangedora. Diz-se que um t e n e tamo é alguém que nao tem "medo-ver


gonha" (ciy!) de se destacar, de convocar os outros, de propor
empresas. E ele precisa saber interpretar o clima prevalecen te

da aldeia, antes de come9ar de fato, ou ninguém o segue. O proce!
so efetivo de tomada de decisoes é discreto e imperceptivel - con
versas aparentemente sem objetivo nos pátios noturnos,declara9oes
sem endere90 de que se vai fazer algo amanha, combina9oes confi -
denciais de pequenos grupos de amigos, tudo isso termina por ge-
rar um ten e tamo específico para urna tarefa. o que parece haver e-
um "core-group" . de lideres de familias extensas que interpreta os

fluxos de desejo economico, e desse contexto sai o tenetamo.

Mas, para além dessa forma contextual de surgimento de posi


9oes temporárias e limitadas de tenetamo, toda a aldeia Araweté
do Posto reconhece um homem, ou melhor, um casal, Yiriñat2-ro e
Arad2-hi, como ~re renet~mo, "nossos líderes", urna posi9ao fixa
e geral. O que isso significa?

Yiriñato-ro é um homem de seus quarenta anos, casado com


urna viúva dez anos mais velha. Eles tem duas filhas casadas, jo-
- juntamente com urna outra "filha",
vens, que moram na mesma sec;ao,
um "genro", e um "irmao" casado (cas~s 21-22-24-25-36, no mapa a
p. 2 84) - as conexoes de par.entesco sendo mui to intrincadas (ver
f olha 3 das genealogias no Apendice II) • Esta se9ao abre urna só
rocra, e, por contar com o maior número de homens para a derruba -
da (5), ela é a maior da aldeia. Tres outras casas dividem o mes-
mo pátio (20, 23 e 26), mas nao trabalham na mesma rocra. Este pá-
tio é o mais animado da aldeia; nao só ali sempre há muita ca9a -
Yirlñato-ro e seus genros sao excelentes ca9adores, e foram os
primeiros a dominarem. o uso das arma·s de fogo ~, como o casal pri_!}

cipal é aquele que mais. freqüenternente costuma convidar outras

305
araweté: os deuses canibais

se9oes para banquetes coletivos. Yiriñato-ro é um pajé multo res-


peitado pela beleza e originalidade de seus cantos, sendo quem ,
normalmente, realiza o peyo do mel e do a9al, que envolve a peri-
gosa presen9a do canibal Iaracl; mas ele "nao sabe" trazer os deu
ses para a tomada do cauim alcoólico19 . t também um bom cantador

(19) No próxiJro capitulo verenos os critérios de avalla~das qualldades dos


diversos xamas, han ceno suas "especialidades". Y!trinato-ro é um dos quatro
xamas mais respeitados' de un total de onze xamas atuantes' havencb ainda
tres jovens en f~ e un xama "aposentado".

de opirahe, embora nao seja um moropl'ha, um matador. t um exce -


lente artesao. Por fim, é um político hábil no tratar com os bran
cos.
Yiriñat~-ro, apesar do importante grupo de 'parentes de sua
mulher, nao é urna pessoa genealogicamente "bem dotada" - nao pos-
sui um grupo de siblings forte atrás de si. Nao obstante, é tal -
vez a única pessoa da aldeia a tratar sistematicamente todas as
demais por termos de parentesco, em vez da forma mais usual, pelo
neme. Por outro lado, apesar de sua idaae, sua situa9ao geracio -
nal ·o coloca em termos de "irmao" ou "cunhaao" face aes home ns
mais velhos do grupo,· e por.tanto de" "pai" ou "sogro" perante -
va-
rios adultos.
Ele nio faz discursos, nio exorta a · alde~a a trabalhar, e
nao dispoe de nenhuma autoridáde visível sobre seus pares. Os jo-
vens, porém, o respeitam bastante. Ele pertence a urna class·e obj~

tiva de "homens imp·o rtantes" - lideres de familias extensas, xa-


mas, anfitrioes generosos, gente de quem os brancas escarnecem um
pouco . menos. Desde que a chefia do poste "descobriu" que ele era
".o chefe" dos Araweté, contudo, sua pos1·crao de lideran9a veio pro

·306
entre si

gredindo no sentidp de urna situa9io de pod~r real, especialmente'

poder redistriputivo de bens como pólvora; chumbo, e cutres impl~

mentes .• Ele também passou a ser usado como "capataz" para traba-

lhos coletivos, como a abertura da pista de pauso - nisso te ve

menos sucesso. E foi nesses cortextos .que ouvi as únicas acusa


9oes veladas .contra ele - um hornera até entao Sernpre poupado.. da
20
língua ferina da aldeia •

(20} certo dia o chefe do Posto 1 decldioo a "transferir" para o interior da


a~ia Araweté ~· f~ púFilicas tanadas pelo espa~ do Posto, entregou um
grarrle tach:> de torrar rnil.lx:> para Yiriñato-ro,_ para que este ~ instalasse em
seu pátio; já que ele era o "dlefe", nada mais natural que este ilrP1arento
fosse usado pé:>r tcx3a a aldeia. Naturalmente, isso. jamafs ocorreu.- Os nenhros
de outr~ ~ - e _~tudo os ~as rnais próximas., fisicanente, ·da ca-
sa de farinha do Posto - cx:ntinuaram ~ usar as inst.a.l.ac;ñes dos brancos_, di2e!l
00 que o tacli:> novo era "do pessoal a:» YU-Iñatcrro" Ie ' que eles nao tinharn ~
da a fa2er lá •• ~ Isto é, o pátio &:> -te~téimo nao tema meoor possibilidarle de
se tornar ~ . neutro, cxmunal- A entz:ega-de Illllll;i.~ a Y~Iñato-ro, por sua
vez, produziu ~ contlnuas de desagrado~ Acusava-se-<:> de favorecer '
seus genros e a.anaiS ex>-residentes - o que p:>Ssivelmente era verdade, a:tr0

vérdade ' t.arnbén é que o '"dlefe"-·dlegou a estocar urna eno.nie quantidade de pól-
vora e churrto, e que a~tou ~to suas saidas para ~ - aurrentanOO assim
o núrrero de festins que oferecia a aldeia.
Por outro Jáao, as aCusac;Oes de a.Va.reza de Yiriñato-ro quanto aos bens
reóebi<X>s para redistribuicrao tendiam,' em nuitos casos, a poupá-lo, acusando
sua rnulher _d e ser aquela ~ mo '.e o marido - que o convencia a ser avaro. F\m
dada ou nao, esta a~oo é consistente a:m o papel tradicional da esposa do
' , ¡ • • • • • • - •

cattador, que é o ae 'tentar restringir os' inpul.sos de generosidade do anfi-


trw orgU.l.ho5o. E' rnais . inp:>rtante I . el.a' ·s ugere . algo·: que as ll11J.lheres sao o
vetor principal ~ . fechamento dqs pátios sobr.e si ne~s, suas principais ti-
tulares- e controladoras. Dizer que .o taclx::> de f~ era "do pessoal do Yiriña
.- - . ..
to-ro" q\leria dizer que ele era da Arado-hi •••

Enquanto tenetamo~ cabe a Y~riñato-ro abrir as temporadas


de cpleta._ de rnel, de pese~ corn timbó, e a dispersao do "amadure -
cer o milho". As p~ssoas ~e~pre me respondiam,. toda .vez que eu

.307
araweté: o.s deuses canibais

perguntava se, e quando, iriarn fazer essas coisas: "o tenetamo -


e

quem sabe", "esperemos Y~riñato-ro decidir". Isso significava,nao

a espera de urna ordern, mas de urn "estimulo", de um movirnento que

colocasse a atividade em causa dentro do horizonte coletivo de es

colha. Nao se tratava de esperar que ele come9asse, mas de deixar

tuda ficar como estava, até que ele come9asse; a!, todos, 1.e. ca

da um, decidiriam o que fazer •••

E de fato, a primeira grande excursao/dispersao cole~iva p~

ra a coleta de mel deu-se no dia em que Y*r!ñat2-ro, seguido

por um ter90 da aldeia - sua se9ao e casais ligados a ele ou a

seus genros por la9os de aplhi-piha -, foi para a mata. Quatro

outros grupos, menores, tomaram dire9oes diversas, cada qual lide

rada por um tenet amo que havia "marcado" urna determinada colméia.

Antes desse dia, várias familias já haviam saído para tirar mel ;

mas apenas no dia em que l~riñato-r~ saiu, é que quase todas as

familias foram (quatro ficaram). Os grupos de ca9a em que ele er~

ocasionalmente, o tenetamo, tendiam a congregar mais homens que


quando outros estava.m nessa posi9ao. E ele, por sua vez, era lí-

der de ca9adas mais freqüentemente que os demais. Tudo indica,ai~

da, que caberia a este ho~em o movimento inicial para a dispersao

das chuvas. Nao obstante, no inverno de 1983, quando nem ele nem

a maioria da aldeia excursionou, urn razoável grupo de f amílias foi

para o mato , ali se demorando um més. Mas, se ele tivesse ido, di


ziam-me, entao "todos" teriam ido ... Como se os moviment os de

Yiriñat2-ro foss e m mais significantes que os de outras se9oes, ti

vessem urna relevancia simbólica ca.nsciente, para além do "contá-


gio" bruto e ostensivamente a-significante.

Mas na verdade, o ambito das atividades em que Y~riñato - ro

agia formalmente como tenetamo da aldeia era mínimo. Só fui deseo

308
entre si

brir que ele era 11


isso 11 quando aprendi a palavra e a fun9ao; an-
tes, jarnais suspe~tei _ de qualquer eminencia especial de sua parte.
Sempre tive muita dificuldade em transmitir aos Araweté a idéia
de chefia; nao consegui descobrir o verbo equivalente a "mandar".
A no9ao mais próxima era a de mo-ka'~k.;, literalmente "fazer pen-
sar", i.e. convencer, lembrar, sugerir, conscientizar. E, quando
eu por exemplo queria explicar qual a natureza da rela9ao entre o
chefe do Posto e o mítico Chefe da Ajudáncia da FUNAI em Altamira,
o homem "senhor das espingardas",
. ~
que as "dava" ao chefe do P.I.,
tinha que recorrer a pa;t.avra "tenetamo" - e aí os Araweté "enten-

diam": "ah, sim, ele entao anda na frente, quando ele e o Eliezer
(chefe do P.I.) vao ca9ar ••• " A forma morowl'ha, o cognato Arawe-
té do morubixaba Tupinambá, significa apenas "velho, adulto,gran-
de". Possui uma conota9ao de autoridade, mas abstrata - nao se e-
morowl'ha de alguém, grupo ou pessoa. Os velhos sabem, sao
-- gente
de saber (me'~ .k~a ha), e nao térn medo-vergonha. Mas nern por isso
sao tenetamo (embora o nao ter rnedo-vergonha seja urn dos atribu -
-
tos dessa posi9ao) de qualquer empresa coletiva, qua morow~~, ha-21 .

(21) Na maioria das linguas e sociedades 'l\Jpi~ani (ver oota 38 Cb capitu-


lo anterior) os cognatos de mol"CNl 'ha - um OOltp:>Sto formado do prefi.xo moro-,
que indica que a rai.z se refere a seres lmmanos, e de -owl 'hO., "grar.de" - de-
signarn a posi~oo de chefe. Kracke (1983:34, 245), que rea.lizou um estudo deta
1hado da lideranra Parintintin,. procura decñizir o tenco Kagwahi.v ruviháv de
um conceito de "pai" (ruv), o que nao me parece fundaCb eti.IrologicanElte. De
toda fonna, morowl'hii para os Araweté designa urna classe vaga de adultos,que,
allás, tán o mesno atril:uto de sabedoria que os chefes Parintintin - os quais
okokwa.háv, "sabe.ro viver" (op. cit. : 281) •

O grau de autonomía política e económica das sec;oes residen


ciai~ Araweté é muito alto: a tal ponto que se torna difícil, se-
nao irnp9ssivel, descobri-rc "facc;oes" na aldeia, a menos que se as

309
araweté: os deuses canibais

fa<;a coincidir com as -próprias se9oes ou "setores" mais densos de


\
rela<;ao que indíquei ·no mapa a página 2 84. ·Mas estas unidades flui
das nao dispútam nada, isto é, nao sao grupos 'políticos . voltados
"para dentro" da sociedade - e sim unidades de dispersao, temporá
rias ou definitivas: áldeias em 'potencial.

As palavras e a<;oes de Yiriñat~-ro, em que pesem sua· defin!


c;ao como ºt e ne tamo e seu prestigio como xama, nao tém um valor se-
nao relativo. Suas iniciativas, é fato, agregam mais gente, e pa-
recem capazes de tirar da i'nércia e do "autismo" maiór número de
casas - mas isso se deve antes a grande aplica<;ao do casal em es-
tabelecer la<;os de troca de cónjuges com diferentes sec;oes resi -
denciais, que a posic;ao formal de "chefia 1' . Por outro lado, o pró
prio contexto que definirla o am.bito de ª<rªº de um tenetamo de
aldeia, em vez de ser um d'e "unifica~ao" do grupo local, é um de
produxao de dispersao: a iniciativa de abertura das temperadas de
coleta de mel, pesca, excursoes. Tais saidas da aldeia implicam '
sempre a fragmentac;ao do grupo local - mesmo que, via de regra ,
o grupo que acampa junto com a familia extensa de Yiriñato-ro se-
ja. maior que aqueles 9ue tomam outros rumos.

Yiriñato-ro e sua mulher pertencem ao grupo meridional dos


Araweté, aquele "recém-chegado" ao Ipixuna (ver supra,pps. 177-ss),
e que nao consti tui urna unidade d.e qualquer espécie, atualmente •
Yiriñat~-ro, há cerca de 20 anos, saiu do grupo setentrional, que
se instalava no Ipixuna, e foi-se casar com sua atual mulher, em
situa9ao uxorilocal, no grupo do sul. Ele possui, portante, liga-
c;oes comos dois "grupos". Ao mes~o tempo, sua se<;ao residencial'
é fortemente centrípeta, nao estando inserida nos "setores'' de pá
tics contiguos formados por siblings - ao contrário de outras se-
9oes de tipo familia extensa, que sao parte desses setores maio -

310
entre si

res (p.ex. a importante familia de Marupa-no, formada pelas casas


11-12-13-17, que é parte do setor maior V, folha 5 da genealogia-
Apendice II). Nesse sentido, essa própria situac;ao "iso lada" da
se9ao de Yiriñato-ro, suas relac;oes intensas mas "discretas" com
outras sec;oes, coloca-o talvez em urna posic;ao estrat~gicamente m~

diana ou equilibrada. Sua se9ao, sozinha, nao é capaz de se cons


tituir em forc;a de fissao relevante - por isso funciona,mesmo que
frouxamente, como ponto de aglutinac;ao.
Y~riñat2-ro, ~xceto enquanto membro da classe dos homensres
peitáveis, nada tem a dizer sobre as decisoes familiares quanto a
fazer um cauim alcoólico - que envolv~m urna longa negocia9ao en-
tre todas as se9oes da aldeia, sem media9oes -; tampouco a ele ca
be "abrir" a temporada do cauim doce (aquela que marca a re-uniao
da aldeia após as chuvas), seja como "dono do milho", seja como
xama; o que nao implica, evidentemente, que nao possa fazé-lo
Qual, entao, os fundamentos de sua "escolha" como tenetamo ?
~ porque Y~riñato-ro e sua mulher sao os t a na, os "donas
da aldeia" - desta aldeia do Posto. Isto lhe transforma em tene-
22
t amo , e a sua rnulher igualrnente . Taña ou ta nupa na, "senhor

(22) Sua esposa, Aradcrhi, seria cx:nsiderada a t enetamO das mul.heres, erquan-
to o marido o seria de tcxbs os residentes. AraOO-hi ten, de fato, alguna as-
cerx:Jencia sobre a aldeia, mas nunca a vi "liderar" nenhuma atividade feminina
global - o que pcxie-se dever ao fato de que, ao oontrário das ~das masculi
nas, nao existe conteXto en que as mulheres ajarn coletivarcente. Ela nao era '
\.lt\ pólo de contágio especialrrente forte, tarrpouoo. Nao obstante, e apesar de
seu tertperarrento algo volátil e sua llngua afiada, era respeitada, alé.m de
ser capaz de p0r urna quantidade ·de "filhas" para lhe ajudar en tarefas c:x:rco
tecelagem, deb.llho de mi]J'X), etc.

do leito-solo da aldeia'', i aquele casal ou casais que primeiro


abriram urna ro~a no sitio de urna aldeia nova, a volta da qual fo-

311
araweté: os deuses canibais

ram-se agregando outras ro9as, e se sornando outras casas. O ta ñQ,


assim, é o fundador de urna aldeia. Esta posi9ao pode, no entanto,
desdobrar-se em urna outra, a de ta nupa na ha, termo que nao sei
traduzir, mas que designa aqueles homens que, sob a dire9ao do se
nhor da aldeia, derrubaram efetivamente a floresta, abr.indo a ro-
9a: genros ou filhos, via de regra.

Eis entao que o modelo sobre que assenta a no9ao de ta ña é


o da ro9a aberta por urna familia extensa, e onde há hierarquia de
fun9oes. As ro9as de familias extensas sao identificadas a um ti-
tular, o hornero mais velho (ou casal). Este hornero é quem seleciona
a área a ser derrubada, e determina a sua extensao, pois ele é o
o'ipa ha, aquele que faz a broca do mato baixo, indicando assim
quais as árvores que serao tombadas. Apenas após essa broca e mar
ca9ao entram em cena os i~ira mo-pe ha, os "derrubadores da mata",
que cortam as árvores. Esse servi90 pesado é feito pelos homens
mais jovens da familia, filhos ou genros - ajudados, é verdade,p~

lo titular da r~a. Tal participa9ao, seguida pelo plantío fami-


liar, garante a todas as familias conjugais a propriedade conjun-
ta da ro9a, ou antes, o direito conjunto a apropria9ao do milho '
que é plantado sem divisoes. A batata-doce, o cará, o tabaco, a
mandioca sao plantados em setores descontinuos, cada qual afeto
a urna familia conjuga!. o casal titular da ro9a nao dispoe de ne-
nhuma forma de controle ou limita9ao sobre o abastecimento de mi-
lho por cada familia conjuga!, em que o hornero derrubou a mata e a
mulher plantou.

o ta ña é o "dono da aldeia" na medida em que esta se ergue


em um espa90 que ele abriu ou marcou, e que foi derrubado por sua
familia extensa. Toda aldeia é, assim, urna ex-ro9a (ka pe) de urna
familia. Ou de mais de urna; pois os Araweté mencionam algumas al-

312
entre si

deias em que havia mais de um ta na, ou seja, em ·que a forma de

abertura do sitio nio foi aquela ''vertical'' (familia extensa)rnais


cornum, mas urna horizontal, ern que duas familias autonomas (encabe
'
9adas por irmaos, ou cunhados) abriram royas contiguas.
Assim, vemos que nao só a aldeia, mas sua chefia, sao fun-
yao do milho: e que a noyaO de tenetamo de aldeia nao é mais que
a conseqüéncia ou desenrolar temporal do movimento de comeyar urna
aldeia nova. Por outro lado, o ta ña, tanto quanto eu saiba, -
nao
dispoe de nenhuma "propriedade" sobre o solo aldeao: nao determi-

na onde as familias erguerao suas casas, onde farao suas ro9as ,


nao é responsável por espa9os "comunais" (que nao existem), -
nao
coordena trabalhos públicos. O nome pomposo de "senhor da aldeia"
parece corresponder a quase nada. Houve aldeias, por fim, e rn que
a posi9ao de ta ña nao correspondia a de tenetamo para as expedi-
yOes coletivas, dispersao das chuvas, etc. Os exernplos que tenho'
indicam que foram casos em que o ta ña era homern já bern velho, e
que o tenetamo era um dos ta nupa na ha, um de seus filhos ou ge~

ros que derrubaram a ·m ata 23 •

(23) As poucas atribuic¡i>es do "dooo de aldeja" Araweté cx:11trastam a::rn as fun-


c¡:Oes redistributivas e diretoras do z-uviháv Parintintin, que divide as terras
aráveis entre os nerbros do grupo, e parte a caer.a trazida (I<racke, 1978: 42 -
44) • A prime.ira ~, oontuck>, é ao treSaO tatp:> urna forma enfrcquecida e ge
neralizada da situacrao da roc;:a cx:mmal da familia extensa Araweté, onde o lí-
der detennina um local onde todos os nenhros de sua familia trabalharao - mas
só eles.
A dist.inc;OO ta ña / tenetamo, que poderia oorresponder a distin<¡2o Karnayu-
rá entre "representante (den:>) da terra" e "representante das pessoas" (Bas -
tes, 1978:61, n.¡9), !W chega a constituir um sistema de co-lideran<i2 do
ti¡x> Parintintin (I<racke, cp. cit.: 40) •

Nao sou capaz de determinar precisamente que conjunto de fa


tores subjaz a transforma~ao de um hornero ou familia em ta ña. Das

313
araweté: os deuses canibais

26 aldeias sobre as quais pude obter informa~oes, todas foram a-


bertas por líderes de familias extensas (pai/sogro e filhos /gen-
ros) ou por um dos irmaos de um grupo de siblihgs, que o acompa-
nhou - i.e. os deis tipos de se~ao residencial que ternos hoje na
aldeia do Posto. · Estas 26 aldeias correspondem a 17 taña - e to-
dos eram, ou xamas de prestigio (doze), ou matadores (sete> 24 ..

(24) 'I\Jdo sugere que, assirn caro para ootros- grupos amazOnioos, a posi9ao de
"chefia", entre ·os Ara\oleté, resulta da superposi9ao de certos papéis, cat0 os
de xama, guerreiro, Uder de familia extensa, e de urna disposi9ao particular
de personalidade; nenhum fatór, por si só, é suficiente para determinar a dle
fia, que aparece assim caro urna espécie de fOCX> de oo~o de atributos, e
nao caro urna posicrao fonnal preenchida por critérios mecánioos. Ver o est:_udo
de Kracke, 1978, se.Ore a dlefia Kagwahi v-Parintintin; wagley, 1977: 118-124, ~
bre a ~ ooletiva Tapirapé, que registra o ·~pr00lena de se tonaran decis0es"
devido ao "extreno igualitarisrro" do ethos tribal. cada gnipo· oorestioo era~
ma faa;:ao, diz ele. Virginia Valadao (can.pessoal) ooserva a mesma canbina.yao
"politética" de atributos para a dlefia 'I'aTt>é. Ver tarrbém: Basso, 1973: 107 ,
114, 124, sol;:>re a lider~ J<alapalo; Riviere, 1984: 27-8, passim, sobre os po
vos da Gui.ana¡ Jackson, 1983: 65-8; sd:>re os Tukano (para o esquema ideológioo
'I\lk.ano tradicional-ideal, onde há urna "funrao" de chefe,v. C.Hugh-Jones,1979).

A situa9ao atual dos Araweté, notadamente o fato da aldeia


do Pesto ser urna fusao de remanescentes de diversos grupos, tendo
urna popula~ao maior que a das aldeias tradicionais,certamente re~

ponde por um tao alto grau de autonomia das se~oes residenciais,


e concomitante minimiza~ao do lugar de ta ña e de tenetamo. o p~

der ou autoridade efetivos de um líder de aldeia tradicional terá


sido maior - exatamente porque a grupo local era menor. Nesse ca-
so, a posi9ao de chefe derivaria, nao tanto da situa9ao "neutra"
do grupo do líder - como é o caso de Y~riñat~-ro, cuja se9ao é ao
'
mesmo tempo autónoma mas ampla, integrada mas extensamente rela-
cionada - mas de sua posi9ao eminente, como líder de familia ex -
tensa. O que hoje é esta grande autonomia da se9ao residencial,no
passado terá sido a autonomia do grupo local/aldeia. Nao há dúvi-

314


entre si

vida, ainda, que a base do agrupamento local Araweté, e de sua


chef ia, é a familia extensa que consegue ao mesmo tempo prender
os filhos e atrair os genros, .beneficiando-se do fato de que a r~

sidencia uxorilocal é, - como em todos os Tupi-Guarani, urna regra


temporária ou de aplica9ao "política".

A importancia dos ta na parece, de fato, ter sido maior no


passado. Após declinarem os nemes das aldeias antigas, os Araweté
em geral especificavam seus"donos": a aldeia era qualificada de ,
por exemplo, "Moko-ro apa", "de Moko-ro", e seus residentes eram
- - -
designados genericamente como "Moko-ro wi", "o pessoal de Mok~ro".

Corno já indiquei antes, porém, elas nao sao norneadas por seus che
fes, mas pelos mortos que lá ficaram (e antes disso, por aciden-
tes naturais). De qualquer forma, se é um "primeiro" que funda urna
aldeia, é um morto que a termina: e ambos a identificam.

A autonomia dos grupos locais do passado, que hoje se expri


me na f ore; a centrípeta das sec;oes residenciais, nao implicava urna
composi9ao fixa e estável de seus habitant~. Como já dissemos
antes, a popula9ao das aldeias variava muito, e o sentimento de
perten9a a elas nao parece ter sido forte (supra, pps.177-ss); o
sistema de uxorilocalidade temporária levava a um constante moví-
mento inter-aldeao, e assim também as martes de parentes, e os a-
taques inimigos. Desta forma, exatamente porque a capacidade coe-
siva da estrutura social Araweté é muito baixa, é que o lugar de
lideran~a emerge como pólo aglutinador ou campo gravitacional, cu
ja for9a de atra9ao variará conforme urna série de fatores, desde
a fase do ciclo de desenvolvimento do grupo local (i.e. dos dife-
rentes grupos domésticos), até a personalidade do(s) líder(es) .De
toda forma, a tendencia que emerge é urna ero que, assim como o gru
po doméstico subordina logicamente a aldeia (p. 287), assim tam-

315 .
araweté : os deuses canibais

bérn a lideran9a da familia extensa subordina o lugar da lide -


ran~a aldea; e, se a ·aldeia Araweté raras vezes é algo mais que
urna justaposic;ao de grupos residenciais auto~centrados, raras ve-
zes o "senhor da aldeia" é mais que um chefe do ~ grupo domést!
co, que tem a capacidade de, tomando a posi9ao serial de "primei-
ro .. - - - -, ordenar por contagio
tenet~mo
... as demais -
se~oes
25 •

(25) Igualmmte, as aldeias Arar.i.ieté pazeoem ter variaOO (do p:nto de vista e!_
trutural), entre una situacrao de máxima ooesividade e m1nima ~ - fart!
lia extensa uxorilocal sinples cu arrpliada (filh:>s casados, iimi:>s ·solteiros'
do casal ilder) - e esta situa~áo atual, de máxima ~ e ooesividade
mínima: justaposi~ de familias extensas eciüi.-potentes. Se fosse ¡:ossível ~
tellllinanros un tipo ideal de aJdeia, ele c:alSistiria na sin~ seguinte:~
.
po de sibl.ings casados, cx:m alguns dos casai s já c:alStituinOO familias exten-
sas de duas gerar;Qes, e urna dessas familias extensas ocupando o lugar de "se-
nhora da aldeiaM. A aldeia da margen direita do Ipixuna, abarxX>nada em 1981 ,
estava bastante próxima deste nDdelo.
Ver Basso, 1973: 132-ss. para o valor "legitimador" e caltagiante das ~
creesó:>s anetaw, "dalos da aldeia", entre os Kalapalo, análogo ao caso Araweté
- oorquanto mais fonnalizado.

A lideran9a de expedi~oes guerreiras nao parece ter sido,em


nenhum momento, a razao ou o modelo da lideranc;a aldea .• Pois, se
o ta ña Araweté está associado a algurn outro papel específico, es
te é o de xama. Os sinais para dispersao da aldeia: mel, pesca -
rias, .. amadurecer o milho", cac;adas com vistas a um pey~, estao
íntimamente associados as visees xamanicas.
Quando vai-se aproximando a época de urna dada atividade eco
nomico -cerimonial, os cantos noturnos dos diversos xamas come~am

a mencioná-la, manifestando o desejo dos deuses, de comerern daqu~

le alimento; ou pelo menos assim se interpretam as palavras fre-


qüentemente ambiguas dos cantos. Muitas vezes,após essa "prepara-
9ao" do espirito da aldeia, urna noite Y~riñato-ro cantava urna vi-
- e isto era tomado como sinal de que se realizaria a
sao, empresa

316
entre si

no dia seguinte, ou logo depois. Isto sancionava indiretamente


afinal quem canta sao os aeuses, nao os xamas ••• - os· cantos dos
xarnas que o haviam precedido, e ao mesmo tempo parecia conferir '
'
um caráter conclusive a visao-can~ao de Y~riñat~-ro. Mas nem sem~
pre se dependia dele. o fato é que, em suma, tudo se passa como
se os clássicos "discurso da prac;a" e "fala formal" dos chefes
'
que nao fazem senao dizer o que já se sabe, mas que ªº mesmo tem-
po sancionam e poem em movimento a comunidade (do modo resumido e
teorizado por P.Clastres, 1974: cap.2), fossem, nos Araweté,trans
feridos para o canto xamanistlco. Sao os desejos dos deuses, ex-
pres sos a través dos xama·s , que criam as condi~oes para o movimen-
to coletivo dos Aré;iweté. Assim, o "lugar comum" aldeao, o foco de
onde emana a · fala -qu.e concerne a todos, nao é um centro para onde
convergem as unidades domésticas, ou wn pólo de organizac;ao isono
mica, eqüidistante de ·-todos. Distante, certamente: a pra~a Arawe-
té nao é deste mundo. E a voz que a anima é a palavra de um outr~

a palavra do Outro: a voz dos deuses. Cada xa~a, assim - e toda


se~ao
- residencial possui ao menos um xama-26 -, pode estar expri -

-
(26) Can a notável ex~o do grupo de casas 26-32, que abriga um rore 9Loup
de i.DIBos, nenhum deles xama atuante. Este sétor (I, fo~. 1 das genealogías)
é o integrado da aldeia, dividindo suas alianc;as e freqüen~ entre'
Irel'X)S

os setores I I e III, ambos formados por familias extensas bi-geracionais (o


III é o de Ylliñato-ro), cada uÍna can um xama atuante.

mindo, através da voz· dos deuses, a voz de seu grupo residencial.


Eis entao que muitas élas decisoes das se9oes residenciais Araweté,
e/ou da aldeia como um todo, recebem um impu~so e~terior: o fardo
de comec;ar é transferido para os deuses. Ninguém decide, a rigor:
..
e sempre urn outro que come~a;, e quem d_esperta os homens de sua le
targia, _quem é capaz de concertá-l~s, sao essas vozes celestes ,

317
araweté: os deuses canibais

que enchem o espa90 da noite.


-
Se a lideran9a guerreira nao parece servir de modelo ao lu-
gar de chefia do grupo local, e de. coordena9io da a~io coletiva ,
isto tem suas razoes. O mor opl'ha, matador, é um símbolo focal da
~comunidade aldea - as can~oes e dan9as op~rahe, do cauim, mostram
isso. E os tenetamo das expedi9oes de guerra sao sempre moropl'ha.
O cantador-matador das danc;as, maraka y , é o caso exemplar da figu
ra do líder, daquele que "ergue consigo os outros", erguendo-se '
primeiro • .
Ele está em contraste forte com o xama. Cada noi~e pode ·co~

portar vários sólos xamanlsticos, simultanees ou consecutivos, in


dependentes: cada xama na sua casa. E cada peyo ou doka de alimen
to ou cauim pode ser realizado por mais de um xama- ao mesmo tempo.
Mas o cantador do o p~rahe, canto de guerra, do pátio,é um só, que
conduz o uníssono de todos os homens.· Os xamas, assim, parecemj~

tapar-se, e remetem as se9oes residenciais - no limite, ao casal,


visto que a "unidade xamánica" é o pajé e sua esposa, dentro de
casa-, enquanto o matador unifica e indiferencia; .s eu canto · some
na voz coletiva.

- - - que
Mas um matador nao e capaz da proeza do xama, capacita
este último a fun9ao propriamente polltica de interpretar a vont~

de de seu grupo e .de compó-la coro a vontade .. geral, eludindo-se e~


.. .
mo posi9ao enunciativa. Através .de um xama falam outros: deuses ,
rnortos. O matador, ele ~ um outro: o inimigo morto, e um Mal. Is
so o torna perigoso. Se o xama é um . "mediador"., o matador será um
"mediado ". Mas tudo isto nos leva ao próxirne capitulo, antes da
hora.

O fato é que a base politico:..econornica da lideranc;a Araweté


é a situac;ao de lideran9a de urna familia extensa, e a capacidade

318
entre si

de exercer simultaneamente, dentro do grupo, a fun9ao de pai e s~

gro _de homens mais jovens. Face ao _padrao ideal de uxorilo calida-

.
de temporária, a . "fun9ao-so gro" é anterior, logicamente, a "fun-
-
9ao-pai". Por sua vez~ a auséncia de quaisquer mecanismos estrutu

rais entre a f arnília extensa e a aldeia f azern corn que o líder de

urna constitua a outl'.-a, ou antes, que a aldeia se forme ern torno

de urna familia e de seu líder, qué é concebido corno -fundador e

fundamento do grupo local (este é tarnbérn o caso do s Parintinti n ,


dos Kaapor, do s wayapi; e dos grupos guianeses , do s Tukano ... Ver

Kracke~l978:33; Huxley,1963~77; Gallois,1980:38; Riviere,1974:72-


ss.; C.Hugh-Jones,1979:46). · Mas situa9oes corno a dos Araweté ho
je, concentrando diversas familias extensas 11
eqüipotentes", produ

zem um enfraquecimento da chefia, tendendo a transformá-la em lu


gar virtual e residual, ocupado por um "funcionário" a cargo da

dificil - mas indispensivel~ .se se precis~ ou quer ficar juntos -


tarefa de come9ar, movimentar os disjecta rnembra do corpo social.
27
Se a base material da lideran9a é a posi 9ao-sogro , sua ba

(27) Yhiñato-ro é o taren que tan maior número de "filhas casadas uxorilocal
11

- -
mente (tres, e mais sua "filha" Maria-hi, que II"Ora oo nesrro pátio - casa 26 -
mas que fo:rma outra 'lmidade de rcx;a), e o m:Uor número de "genros", ern geral,
dispersos pela aldeia.·

se sim.bólico-metafisica é uma figura complexa em que se mesclam


e se opoem os atributos do xama e do guerreiro. Se, quanto ao pri
·-
meiro aspecto, ~emos a . fundamenta~ao de . urna estrutura de autorida
de onde o controle das mulheres é .o elem~nto essencial, quanto ao

segundo aspecto ~ao é mais a vida (reprodu9ao) o campo de jogo, e


sim a morte; e ali, a ''autoridade" se funda na alteridade, na re-
la9ao com o Outro: deuses, mortos, inimigos. o problema todo - que

para os Tupi-Guarani, a meu ver, significa urn esfor90 de trapa

319
araweté: os deuses canibais

cear as regras do primeiro jogo, pondo suas cartas no segundo ta-


buleiro - é o de encontrar a relaQaO entre esses dais pólos, a au
toridade e a alteridade. o Mesmo e o Outro; a questao da "lideran
28
era" é wn efeito dessa rela9ao .

(28) .cada 'SOCiedade 'l'upi-Glarani parece perrler, na dete~ cb lugar da


autoridade, ora para o pólo-xama, ara para o p.)lo-guerreiro (matador); e isto
traduz diferent.es arienta9'>es escatológicas.

Cabe notar, por fim, que as trés posi9oes: líder de familia


extensa, xama, guerreiro, correspondem as trés esferas de ativida
de para as quais os Araweté precisam de um tenetamo (supra,p.304):
escolha de sitio de ro9as e aldeias; xamanismo alimentar; guerra
e dan9a. Passemos agora a analisar a estrutura cerimonial Arawet~

o cauim e os pey~, de forma a ver em a9ao o jogo. entre os valores


sensíveis dos alimentos e os valores sociais das posi9oes rituais
Em seguida, o parentesco.

3. AS FORMAS ALIMENTARES DA VIDA RELIGIOSA OU VICE-VERSA

Essas categorías de "dono", "líder", "xama" e "cantador" ar


ticulam a organiza9ao cerimonial Araweté, que é simples: o "benz.!_
mento" (peyo) · de alimentos e o "servi90" (doka) de bebida alcoóli
ca, comidos-tomados pelos deuses e mortos e em seguida pelos ho-
t
mens. No caso do cauim alcoólico, a cerimonia prepara uma dan9a
guerreira (op~rahe) . Vejamos agora o sistema formado pelos valo -
res sociológicos, temporais, espaciais e alimentares dessa organi
zacrao cerimonial.

320
entre si

(A) O ·Sistema do Mil'ho

Como ja podia ser obser'Vado nas primeiras páginas deste ca


pitulo, os alimentos a base de milho cozido obedecem a urna ordena
-
~ao temporal, ao longo do ciclo anual: a partir da colheita do mi
lho verde, há urna progressao (onde os termos vao ocupando perio -
dos cada vez mais largos) , que vai do menos fermentado e mais subs
tancial até o mais fermentado e menos substancial, do rápido ao
lento, do sólido ao liquido, do quente ao frio, do pouco ao muito,
do informal ao cerimonial, do auto-consumo ao "hetero-consumo".Ou
se ja:
(1) kayi ("caldo de milho") - mingau grosso de rnilho verde,
pilado e cozido na hora, nao-fermentado; comido privadamente ou
com vizinhos de se~ao residencial. Sua consistencia é a de urna pa-
-
- sao apenas levemente esmagados. Considerado muito'
pa, e os graos
nutritivo, comido quente.
(2) ka'; hi'e ("cauim doce") - mingau ralo de milho (verde
ou semi-seco), preparado de véspera; a pilagem é rnais forte que
no kayi, mas se deixam alguns _graos inteiros ., que serao mastiga -
dos pelas rnulheres para fermentarem. Usarn-se pelo menos duas pane
las, passando-se o caldo de . urna para a outra, durante a mastiga -
~ao (feita depois de arrefecer o caldo). Leva maior quantidade de
água que o kayi, e portante rende mais panelas. Este cauim de ve
ser mexido antes de tornar, para que a rnassa (hati) entre ern sus -
pensio; urna parte dela é comida antes. O cauim doce, de baixa fer
rnenta~ao, pode ser preparado informalmente, para consumo de urna
se~ao - residencial ou urn festim maior; nunca se o consome sem con-
vidar alguém. Ou pode ser fabricado por toda a aldeia, como parte
de urna cerimonia de pey~. Comido frie.

321
araweté: os deuses canibais

(3) ka'; 'da ("cauirn azedo") - bebida de rnédia-alta ferrnen-


ta~ao, feita de rnilho (seco).~ pilado, cozido e rnastigado duran-
te vários dias (15-20), face as enormes quantidades de milho pr~

cessadas. Ao final, exige urna mistura cuidadosa das paneladas de


''safras''diferentes,para homogeneizar a bebida. A rnassa dos -
graos
é separada do caldo, e comida coletivamente durante o periodo de
prepara9ao do cauirn. O cauim alcoólico, portante, é só líquido(t~ •

Ele nao é considerado comida, pois tomá-lo dá


..
forne - e e nor-
malrnente vomitado. Esta bebida só é processada em ocasioes cerirno
niais, sempre por urna só familia a cada vez, a qual nao toma del~

mas o "serve" (doka). Na festa, as mulheres tomam muito pouco des


sa bebida - ela é "coisa dos homens", apes.ar de mastigado por
elas (enquanto o cauim doce é tornado por ambos os sexos) . Tomado
frio, ernbora a fermenta9ao que o transforma seja urn processo"que~

te".

O primeiro tipo de mingau nao é objeto de peyo. Os dois ou-


tros entram ern urn sistema ritual que passamos a descrever.

Após todos retornarern a aldeia, vindos da dispersao das chu


vas, urna familia anuncia que fará um dawoci, urna colheita coleti-
va de milho de sua r~a, para urn cauim doce. Ela se torna, assirn,
a t e netamo, líder, e awac-C ña·, "dona do milho" dessa festa. Urna
manha, o dono do milho grita para os aldeoes, convidando-os a lhe
seguirern, colher milho. Lá chegando - vao homens, rnulheres e crian
9as, cada qual carregando um cesto pehi, ern meio a muita alegria
e anima9ao -, a familia do dono é a prirneira a quebrar urna espiga
Todo s entao come9am, divididos por unidades conjugais. Escolhem
urn ponto da ro~a, e vao descrevendo um circulo, quebrando as tou-
ceiras e colhendo o milho, até retornarem ao lugar de partida.Por
fim - isso dura cerca de duas horas -, o tenetamo considera o ser

322
entre si

vi~9 encerrado, e parte de yolta, seguido pelos demais.

Urna vez na aldeia,. cada familia inic;i.a a debulha e prepara-

~ªº do milho. Urna parte dos graos ·é torrada e pilada, produzindo


cerca de . dois litros de pa~oc~ mepi 29 ; o restante, que é o princi

(29) Se o miTho ainda está nuito verde, faz-se, em vez da mepf._, a farinha pro-
prianente dita, awac! ko'f, de milho pilado. cru e depois _torrado. Esta farinha
é ben rnais \mí.da q\ie a mepf._, podenó:> ser oonsumida pura (erxpanto a i;>rimeira
..
e sarpre acx:.rpanharrieto de algo) •

pal, servirá para fazer o mingau. Passa-se o dia todo na faina de

pilar, cozinhar e mastigar o milho, e isso segue noite adentro.No

final desta tarde, cada mulher vai aq pátio dos qonos do milho e

entrega a mulher de la metade da pa9oca ou farinha que produziu '

guardando para seu consumo a metade restante. A familia dona do

milho também faz f arinha e cauim - este Último em quantidade ma.ior


que a das demais casas. No fim do dia, os denos do milho recebe -

ram cerca de 20 litros de farinha. (No caso de ro~as de mais de

uma se~ao residencial, todas as familias que ali plantaram rece -


bem farinha) .

Entrementes, o dono do milho (novamente, este pode ser qual

quer um dos homens que abriram uma ro~a pluri-familiar, mesmo um

genro do titular) deve providenciar um xama para o "benzimento"do

cauim, no dia seguinte - a escolha é contingente, dQ ponto de vis

ta do parentesco, além de depender da disposi~ao psicológica e


preferencias dos convidados (alguns xamas gostam mais ou menos de
benzer os diferent~s alimentos). Independente do convite, ainda,

um ou mais xamas podem-se apresentar na hora do pey~ - visto que

sao os deuses que comandam a descida. o e~sencial é que o dono do


milho nao pode ser o xama.

323
araweté: os deuses canibais

Na manha seguinte, pouco antes da aurora, o ten~tamo traz


suas panelas para o pátio "central" que ji tef•ri (p.285). Faz
tempo que ji se ouve o canto do xama, dentro de sua casa - ele o
come<rara dentro da noite. Aos poucos, atendendo a coñvoca~ao gri-
tada do líder, vao chegando homens estremunhados e sonolentos, e
depositam suas panelas em fila, adiante e atrás das do dono de mi
lho, que ficam assim em posi~ao mediana. Esta fila deve estar ex~

tamente ajustada aos primeiros raios do sol; nenhuma casa deve fa


zer-lhe sombra. As familias vao-se entao reunindo a volta da fi-
leira de panelas, estimando seu número 30 ; mas ficam a urna distan-

(30) Eles gostavam de ccriparar a extensa fila de panel.as - as vezes mais de


50 - a urna vara de queixadas: "tayaho pik,j!" •••

cia razoável (hata we, semi-longe) delas, encostadas nas paredes


das casas · que circundam este pátio. Ninguém está decorado, e mui-
tos nem aparecem.
O xama sai entio de sua casa, ereto, cabe<;a baixa, cantando
de olhos fechados, com seu charuto e seu ~ chocalho aray. Segue len

tamente pelo caminho que leva ao pitio, sempre acompanhado de peE


to por sua mulher, que reacende seu charuto a cada momento. Em
certos lugares do caminho ele pira e se agacha, cantando. Chegan-
do no pátio, executa uma ·volta (anti•horária) em passos rápidos ,
em torno da fileira de panelas, semi-agachado, batendo forte com
o pé direito no chao - é o movimento opiwani, que -indica que os
deuses estao chegando a terra. Todo o seu trajeto, da casa ao pá-
tio, é descrito no canto, como coJ:11respondendo a caminhada do céu
a terra, em que ele vem trazendo os convidados celestes; ele, que
vinha a frente (tenetamo) dos esplritos, ªº entrar na aldeia (pá-
tio) passa para trás, e os convidados tomam a dianteira.

324
entre si

Nesta volta ritmada ao redor das panelas, o xama pode ser


acompanhado por sua esposa ou alguma aprhi, parceira sexual, que
segura em seu ombro (como as mulheres

segue seus movimentos. Essa posi9ao honorifica é também uma prote
~ao contra o principio maligno do alimento benzido, que está sen-
do "dispersado" (-wa) pelo xama: no caso do cauim, é uma
abstrata chamada i pey~ we, "coisa xamanica".
Após a volta, o xama inicia uma lenta série de movimentos '
em torno das panelas, batendo o chocalho de alto para baixo, apa-
randa-o com a rnao esquerda, voltado para o cauim - esse gesto é o
pey!!_ propriamente qito. Ele representa visualmente um "por em con
tato" os deuses, vindos do alto, e o alimento . pausado no chao; o
chocalho traz os deuses. Em certos momentos, o xama inverte a di-
re9ao dos passes, sacudindo o a~~Y para longe do cauim - é a dis-
persao da malignidade da comida. A seqüencia nao é necessária, os
passes podem entremear-se.

A certa altura do peyo - cantando continuamente, afora rápi


das pausas para fumar e tomar folego - o xama vira-se de costas •
para as panelas, e se agacha. Esta é a hora em que os deuses e os
mortos estao comendo. Já se passou bastante tempo desde o come90
do peyo; quase ninguém resta no pátio, a única presen9a constante
é a mulher do xama, sua auxiliar ou zeladora. A maioria dos · al-
deoes foi-se pintar e decorar. Este momento da festa nao é dos ho
mens, mas dos deuses. Além disso, nao convém ficar muito pertodas
panelas - os deuses estao lá, atropelando-se a volta do cauim, em
purram o xama, bebern, cantam e se divertem.
- corn filhos de
Mas algumas pessoas ficam, em geral rnaes co-
lo. Sobre estas, o xarna pode vir fazer o pey!!_, que tem
protetivas ou restauradoras: repor uma alma mal-ligada ao carpo ,

325
araweté: os deuses canibais

. 31
fechar o corpo da crian~a • As mulheres, objeto da "ben<;ao" ou

(31) Essas operat;Oes t.erapeuticas, ben caro os cantos x.am:mlsticos, serao des-
critos no c.apitulo VI.

apenas carregando os filhos que o sao, rnantém um ar alheado e va-


go; mas repetem de tempos em tempos·, falando, as frases cantadas
pelo xama: é o Mal moyita, expressao que significa "acalmar os
deuses" (acalmá-los por palavras, como se faz aom alguém enraive-
cido ~ . Essa repeti<;ao falada, que evoca urna litania, é freqüente
nos contextos em que urn xama atua sobre algo, e só as mulheres a
enunciam¡ ela parece caber a esposa do pajé durante. os solos coti
dianas, dentro de casa. E por vezes se desenvolve em ligeiros co-
mentários ao que está sendo cantado, especialmente se urn morto e~

tra em cena: fala-se dele como estando ali, ou melhor~ comenta-se


o canto do xama como ••• a impressao que ·eu tinha era a de urna des
cansada troca de impressoes, entre as mulheres, sobre UJna noticia
trazida pelo xama. Os ho~ens, se os há presentes, pouco falam.

A aldeia como urn todo, presente ou ausente do pátio, a sten-


ta urna irnpassibilidade só quebrada por essas repeti9oes faladas ,
feitas aliás em urn tom estranhamente neutro. De resto, conversa -
-se, ~i-se, e se chega ªº ponto de pedir a rnulher do xama urna ba-
forada do seu charuto, antes que ela o entregue reaceso ao mari-
do ••. Mas todos estao perfeitamente alertas para o conteúdo do
canto, e para sua forma: julga-se esteticarnente esta, pondera -se
"teológico-socialmente" aquele. E se ·o guarda na rnernória por mui-
to tempo, as vezes anos. .' ·-

o xama inicia entao sua volta p~ra casa, no mesmo estilo com
que saiu; apenas, os movimentos opiwani ·se intensificam, e seu
canto se torna mais alto, entrecortado pelas batidas com o · pé e

326
entre si

os-, gemidos produzidos pela expulsao brusca de ar dos pulrnoes. Den


tro da casa, o canto vai diminuindo, até rnorrer.
A essa hora, oito-nove da rnanha, já estao todos com seus me

lhores brincos, untados de urucurn, emplumados corn a penugern dahar
-
pia, as rnulheres com os colares de ciña. o dono do milho volta ªº
pátio central, abre sua panela, e grita para que todos venharn. Rá
pida e tumultuariamente se esgota o cauirn do dono: como sernpre,os
homens se acotovelam e tirarn cuias cheias de rningau, indo en tao
t omá-las junto as esposas, que ficam afastadas. Panela por panel~

vai-se tomando o cauim, ali no pátio. O "dono do milho" é obriga-


toriarnente convidado a tornar de todas as panelas; pois a cada urna
se repete o convite, feito pelo dono de cada panela, aos demais -
afora o patrono do mingau, porém, cada homem convida apenas urna
parte dos circunstantes a tomar do cauim feito por sua mulher;man
tem-se, em geral, os circules da cqmensalidade cotidiana: cada um
sabe da panelada que fez, e das que come.

Em contraste como longo peyo, a tomada do cauim pelos huma


nos nao dura mais que uma hora. Acabou-se a festa. O dono do mi-
l ho, entao, convoca t odos os hornens para urna ca9ada coletiva; ele
é o t e ne tamo da expedi9ao do "f azer digerir o cauini" · (ka'.; mo-yClJ¡Je,.
- -
Idealmente, quando a noitinha voltarem os ca9adores, o te ne t amo
deverá ter matado muita ca9a, para que possa oferecer um festim
. .
pantagruélico, onde a farinha que recebeu é usada para o pirao
namo pi re. Na verdade, sua familia poderá passar vários dias sem

ter que fazer farinha, comendo da que recebeu corno "pagarnento" (p e


pi ka) do cauim.

A festa do cauim doce contrasta sistematicarnente com a caui


nagern alcoólica, e isso na própria avalia~ao dos Araweté. A pri-
meirC' "nao é tao boa" quanto a segunda, po.is nela "nao se dan9a"..

327
araweté: os deuses canibais

Quando uma familia decide fazer um cauim alcoólico, avisa a


toda .a aldeia, e pede quanta panela houver, de todas as casas. I-
nicia entao a tediosa labuta de preparar o mingau. Marido e mu-
lher pilam milho, cozinham-no, a . mulher mastiga e coa ·o mingau.Oe
vem manter absten~ao sexual durante todo esse periodo, senao o
32
cauim nao fermenta . o homem sai menos para ca~ar, e vai tododia

(32) o mesno se dá na fabri~oo ó:>cauirn doce, mas que dura só urna ooite. As
nulheres menstruadas nao podan mastigar o cauiln, e se a dala ó:> millx> tem suas
reg:cas durante a fabrica~ ó:> ka'; 'da ela pede a una iDná para substituí- la
t:enp:>rarianente. Em julh::> de 1981 um gra.rxle cauirn, já pronto, foi todo jogaQ)
fora, poi:que sua dcna al::ortou. "M.lito 5an3lE 00 c.auim", disseram; ele nao pr~
tava mais.

a sua ro~a buscar milho. As panelas cheias vao sendo enfileiradas


dentro da casa, ao longo das paredes: a abundáncia de panelas re-
cebidas pelos Araweté após a instala9ao da "cantina reembolsável"
da FUNAI {supra, pps. 72-ss.) levou a um aumento considerável da
quantidade de cauim produzido. Numa das festas calcule! que se to
mou cerca de 300 litros da beberagem.

Ninguém de fora deve olhar o cauim fermentando, ou interfe-


re no processo. As noites, como já referí, danya-se no pátio do
futuro anfitriao, para "fazer esquentar o cauim" - uma referéncia
nao só ªº cozimento cotidiano 'd o mingau, mas ªº processo de fer -
menta~ao, que libera considerável quantidade de calor e que se
descreve como urna •1 fervura" (ipip9_), por espumar. As manhas -
sao
marcadas pelo consumo coletivo do hati pe, o bagayo azedo do cauirn,
que é separado do liquido. o "dono do cauim" (ka'; ña, titule;> que
contrasta com o do dono do cauim doce, que é um "dono do milho" )
grita todo dia, ao nascer do sol, para essa refei9ao.

328
entre si

Entrementes, o dono do cauim convida um hornero para ser o


cantador da festa. Este marak~y será tambérn o tenatamo da ca9ada
coletiva que precede o cauim. Alguns dias antes da festa, quando

todo o mingau j á foi processado e está fermentando·, o dono avisa
ao marak~y que é tempo de sair para a expedi~ao kª'; mo-ra, "fa-
zer azedar o cauim". Ele estipula o número de dias de dura9ao da
ca9ada, conforme o estado do mingau. Certa manha, o casal dono da
festa vai a casa do cantador, levando duas cuia.s com a bebida se-
mi-fermentada. O marido serve o cantador, a mulher, sua esposa
Enquanto os homens estiverem fora, a esposa do cantador e a tene- -
tamo da aldeia, que fica reduzida a comunidade feminina e ªº dono
do cauim. Este é o único qu~ nao pode excursionar, pois deve rea-
lizar a opera9ao ka'; moyo pepi, "trocar-misturar o cauim", i.e.
homogeneizar o grau de fermenta~ao de cada panela, misturando as
mais e menos azedas, retirando ainda a espuma formada e velando '
para que algumas paneladas nao "apodrec;am" (itoy~) por excesso de
acidez. Essa opera9ao nao deve ser vista por ninguém. (Ela con-
trasta com a mastiga9ao e mistura simultaneas do cauim doce, fei-
tas ambas pela mulher, sem restri9oes visuais).

Após servidos o cantador e sua esposa, aquele se apresta a


partir. Vai de pátio em pátio, convocando os hornens da aldeia. A
cena é singularmente discreta e "tímida", f ei ta de anti - climaxes
continuos. os interpelados mal respondem, nao olharn para o tene-

tamo - como esse nao olhava para o dono do cauim, quando este o
inf ormou do tempo que deveria ficar na mata - e o seguem aos pou-
cos, subrepticiamente, depois que ele já deixou a aldeia corn seus
parentes próximos, conforme a "leí da inércia" Araweté. A inten -
9ao parece ser a de imperceptibilizar a saida dos ca9adores.

Liderados pelo tenetamo, os homens acarnpam juntos, ou se di

329
araweté: os deuses canibais

videm em dois aca.mpamentos 33 . Coro o correr dos dias, vao


- deslocan

(33) QuaOOo os ca<;acbres se dividen em grupos, na mata, definen a re~oo en-


tre esses acarrparrentos cerro WiÑ a; ne ha, 11os que estao em outra árvore", ne
táfora que evoca o oosturre dos guaribas, em que banOOs chefiaCbs por mach::>s
distintos ocupam árvores pi:óprias. Tal figura, usada tarrbém para especificar a
difere.nc¡:a F/F'B em reJ.aryao a Ego, reveste-se de signifi~o adicional oo ron -
texto das ca9adas oo cauim, pois o guariba madx:> é o protótipo do rrr:zra~, ó:>
cantar. O ideal, diz-se, é que se o baOOo de ~es se divide, deva fazé-lo
segundo a lideranr;a oo rrr:r.ra~, de \ml lado, e oo mt:U'ak.ii memo'o ha, o "ensina -
dor do canto", por outro (ver supra, p. 296).

do esses acampa.mentes para cada vez mais perto da aldeia. Urna tar
de, entao, o dono do cauim vai "levar a noticia" (herape hedeha)
aos ca9adores de que estes podem voltar, pois p cauim já está mis
turado e pronto. Exatamente caro o xama do cauim doce faz coro o·s deu
ses, ele, na volta da mata, segue na frente dos ca~adores, mas ao
se aproximar da aldeia toma um atalho e entra discretamente emsua
casa, deixando os excursionistas tomarem a frente.
Enquanto os homens estao na mata, a aldeia é das mulheres •
Lideradas pela esposa do marak~y, elas se dedicam a torrar milho
e a recolher lenha para a carne que virá. Toda noite, realizamuma
"inversao ritual": fazem uma dan~a op~rahe no pátio do cauim, pa-
ra "esquentá-lo", lideradas pela esposa do líder da ca~ada, que é
a cantadora. Esta dan~a, porém, é um simulacro-substítuto das dan
~as masculinas: desorganizadas, dominadas · por um clima pueril e
jocoso, elas sofrem de urna carencia básica: nao existem cantos"fe
mininos" Araweté. Toda música Araweté vem dos deuses ou dos inimi
gos mortos, e só quem pode ser o 'tautor" dessa voz · do Outro sao '
os homens - xamas e guerreiros. As mulheres podem e gostam de can
tar os cantos "masculinos", de guerra ou de xamas, mas nao podem
dize-los pela primeira vez. Assim, em suas dan9as na ausencia dos

330
entre si

homens, simplesmente arremedarna dan9a e repetem cantos de guer-


-
ra alheios. Se por acaso restou algum homem na aldeia - velho,
aleijad9, QU O xama do doka -, .. este é sempre chamado para ser O

cantador ou o "ensinador do canto" para as dan9arinas. Mas nunca,


entretanto, o homem que por defini9ao fica na aldeia, isto é,o do
no do cauim: nem ele nem sua mulher dan9am, cantam ou tomarao do
cauim.
Além do dono do mingau, um outro homem pode resolver ficar
na aldeia, para "servir o cauim" (ka'; doka) aos deuses; ou al-
34
gun& ca9adores voltam antes, expressamente para isto • Esta ceri

(34) E tanlbén para aproveitar a ausencia dos maridos e "cercar" alguma mulher
qué deseje. nirante o ka'i ~ra as m.üheres at:ingem mt alto estack> de estinu-
1~ (verbal) erótica nútua1 e, a:m> o .den:> do ~uim e~tá sob interdito se-
xual,, "caem" scb:e os poneos hanens restantes. O tema da! cxnversas e brl.ncaaü
ras femininas, nesse periodo, gira se11poce em torno de metáforas e anal.ogias ~
soc.:i.aJñ::> o cauim e o semem: nuna ocasiao en que eu e mais dois lnnens ficarros
na al.del.a, as ~s batiam as nossas partas t:razeim alias, e pedindo para en-
ché-las cx:m IX>SSO s8nem (Ver adiante).

rnonia se realiza, idealmente, na véspera da chegada d,o s ' ca~adores,


no pátio do dono da festa; é a primeira vez que as panelas sao re
tiradas de sua casa.
o servi90 do caui~ azedo se realiza a noite, entre 2 ~ 4 da
madrugada, a hora típica da atividade xamanística. A aproxirna~ao

dq xama é identica ao pey~ do cauirn doce. Mas as panelas nao -


sao
benzidas em conjunto, enfileiradas; elas sao trazidas urna a .urna
de dentro da
. . . casa, pela dona do cauim, e postas sobre as
,
pernas
do marido;. que está sentado sobre um pilao a guisa de banqueta. A
pós ter sido "esvaziada" pelos deuses e mortos, a panela volta p~

ra a e.asa, e é substit.u ida •. . o dono do cauirn azedo1. cpmp o do doce,

331
araweté: os deuses canibais

nao pode ser o xama-35 que traz os deuses;


. seu pape l aqu i e.. o de

(35) Ou xanas: toda ~ xarnanística pode ser realizada por mais de um


pey~ • A difere~ é que nos benzimentos de cauim doce, jaboti, mel, etc. , os
xamas benzen ao mesoo tetp:> o alinento, erquanto IX) ·f1ck,Q eles se suca:1em, de
urna ooite a outra ou até ~ mesma ooite.

segurar as panelas, enquanto os visitantes celestes sao servidos


pelo xama. o dono do mingau e o xama sao referidos pelo mesmo no-
me de funcrao: ka'; ti o ka ha, "servidores de cauim" - o primeiro aos
cacradores, o segundo aos deuses/mortos. o xama é urn duplo do dono
do cauim, que vai "levar a noticia" aos visitantes do Maf pi - am
bos anfitrioes/mediadores.
o desempenho do xama nesta cerimonia é algo diverso daquele
dos peyo alimentares, pois se trata aqui de urna bebida alcoólica.
Seu canto é mais violento, seus movimentos mimetizam o cambalear
tropego e os sobressaltos bruscos dos deu.ses ébrio.s . A fronteira
entre a narracrao citacional da palavra alheia (estilo enunciativo
dominante nos pey~) e uma "incorporacrao" da divindade se torna
mais difícil de tra~ar, visto que.a voz do xarna se modula corn os
gemidos de saciedade e a rouquidao tonitroante de seus convidados.
Há urna superposi~ao complexa, que explica em parte essa si-
tuacrao. Os pey~ alimentares encenam urna refeicrao coletiva divino-
-mortuária, a qual, como as refeicroes humanas 'q ue a ·seguem, nao
envolve cantos - exceto no sentido de que os deuses só "falam"ou
sao falados cantando. Já o tioka é urna cauinagem mística, e porta~
r
to envolve um invisível op~rah!, isto é, urna dancra e canto guer ~

..
reiros, que acontece a 1 1, no patio " do mingau. No entanto, a estr:!:!

tura formal dos cantos xamanlsticos do cauirn azedo é identica


...
a

dos demais Mal maraka, e nao a dos cantos de guerra/cauim. A dife


rencra quanto aos outros peyo é temática e de elenco: fala-se de

332
entre si

cauim e nao de jabotis, etc., descem outros deuses. Apesar do .


torn mais violento, vocal e gestual, o s passes corn o chocalho -
sao.
iguais aos dos outros pey o (o que se dispersa aqui é o daci nahi
we, "coisa-dor de cabec;a", que há no cauirn). Ern suma, o xama ence
na um cauirn divino, e funde parcialmente em sua pessoa o lugar de
"servidor" e de "servido .. , dono e convidado, homem e deus/morto •
Mas ele nao reproduz wn opirahe, ele o descreve: nao canta os su-
postos cantos deste cauim invisivel. Preserva-se assim, mediante
um embutimento metalingüístico, a diferenc;a entre a "música dos
deuses" e a "música dos inimigos", fundamental na cosmologia Ara-
weté.
Esse do ka é assistido e comentado pelas mulheres, que de-
pois narram a seus maridos quern veio tornar o mingau. O cauim aze-
do será entao, quando for tomado pelos homens, definido corno Mal

deml-t!o pe,"ex-cornida dos deuses" - a mesma expressao que se usa


para os mortos celestes, ex-comida dos Ma! e futuros-comedores do
alimento humano.
Caso nenhum homem tenha ficado para o xamanisrno, este pode
ser levado a efeito durante a própria no ite da cauinagem, o que é
considerado irregular e perigoso, pois os deuses se enfurecern com
a luz das fogueiras e derrubam os xamas, fulminando-os corn seu re
lampago invisível. De tOda forma, os deuses devern vir tornar o
cauim , e especialmente Iiéire aco~ divindade lasciva que
36
o

(36) t possivel, embora i.n'prÓprio, haver um festirn ooletivo de cauim doce sen
que se reali7.e um peyo; e o mesno para can os jal:otis e outros alimentos. o
oon5\llD OOletiVO de rnel e ayai I porén, exige \.11\ peyo; nao obstante, estes pro-

duta; poden ser CCl'lSlmidos privadam:mte, o que nao sua:rle can o c:auim alooóli-
oo, obrigatoriamente ooletivo - e portante obrigatoriamente prelitado pelos
deuses.

333
araweté : os deuses canibais

tenetamo · na des-cida ·dos convidados celestes, e que sempre vem a-


companhado, ·a dan9ar com urna· alma mortá feminina. Já -os marakay
dos cauins místicos a que assi·s ti foram, todos, nao deuses pro
priamente ditos, mas almas de guerrei:ros Araweté, rnortos na guer-
ra e/ou matadores - nao sei se isso é regra, mas -sucedeu . quatro
vezes. Isto, naturalmente·, se coaduna com a ·e qua9ao marakay-=guer-
reiro.

No dia do cauim, no fim da tarde, os homens chegam da caQa-


da. Se sua saida foi discreta e progressiva, a volta é retumbante
e compacta. Perto da aldeia, os primeiros esperam os retardatá
rios chegarem, e aguardam o cair da tarde. Todos entao se banham,
e poem-se a fabricar seus terew~, cornetas espiraladas de folíolo
de baba~u, de som grave e cavo. Prontos, seguem caminho,soando os
terewo, que se ouvern de muito longe. AS mulheres se apressam a
\

banhar e se embelezar, e acendem as fogueiras. Os homens chegam


entao, na mesma ordem em que partiram, o marak~y a frente. Tao
logo adentram a aldeia, porém, cessa o terewo e se dispers.am, si-
lenciosos e compenetrados como de co·stume, indo direto para seus
pátios. As carnes moqueadas que trazem sao postas sobre
.
moque ns
ou jiraus adr~de preparados. Come-se um pouco. Logo se ouve o do-
no do cauirn a convocar todos - e em primeiro lugar o marak~y - p~

ra uma preva prévia (hai) da bebida. Cai a noite. As famllias vao


para seus pátios decorar-se; esta é a ocasiao ern que os Araweté
se apresentam rnais enfeitados, e sobretudo o cantador; · corn odia-
dema yiaka, a cabe~a emplumada, o rosto corn o pa9rao yiria feito
com as peninhas de cotinga e resina' perfumada, o corpo coberto de
urucum. Ma-C her;: "corno um deus", dizem. O clono do cauim, entre -
tanto, funcionário da cornunidade rnais que anfitriao honrado, nao -
se pinta ou decora.

334
entre si

Por volta das nove horas o ma ra k ay se levanta, ern seu -


pa-
tio, e corne~a a convocar os dernais para irem ao cauirn - chama pri
rneiro, ou apenas, .seus ma rak~y reha, aqueles que dan9arao a seu

lado, posi9ao previamente combinada, na mata, e que cabe a alguns
de seus aplhi-piha, parceiros de troca de esposa. Ern seguida cha-
ma o memo'o ha , o ''ensinador do canto", matador-cantador experie~

te que ficará as suas costas.

Aos poucos, após a chegada do cantador, que ocupará com sua


familia o lugar mais próximo a porta da casa ªº anfitriao, as fa-
milias vao-se instalando em esteiras a volta do pátio. E aos pou-
cos corne9a a dan9a da forma já descrita na pág ina296-7.0 movimen- •

to dos danyarinos é constantemente interrompido pelo dono do


cauim, sua esposa e filhos, que empurram cuias cheias de cauirn p~

la boca .dos homens; cada linha é servida por vez. e ponto de hon-
ra para cada um tomar de um só gole todo o conteúdo da cuia (méio
litro ). Os rapazes sem filhos, que se alinham na frente do bloco,
sao os maiores bebedores. Aqui, ao contrário das demais situayoes
de "hospitalidade alimentar" Araweté, os hornens sao quase-agressi
vamente servidos pelos anfitrioes, permanecendo "estáticos" en-
quanto os dones do mingau giram a sua volta, dando-lhes a bebida-
exatamente o inverso daquelas situa9oes em que os homens se proj~

tarn sobre um recipiente de comida (ou cauirn doce), tiram o que p~

dem e se dispersam para dividir o bocado com a familia, sob o o-


lha r alheio do anfitriao.
-
As panelas se esvaziam rapidamente, e vao sendo amontoadas'
nwn canto. Aqui, ao contrário do cauim doce, todos tomam de todas
as panelas, s em saber de que ca~a vieram, pois o cauim éd:> dono e
sua esposa~ Como já foi mencionado, nem este, esta e seus filhos
t omam a bebida; eles sao os "servidores". Diz-se que parentes pró

335
araweté: os deuses canibais

ximos do casal devem tomar "rnuito pouco" dela, igualmente; sobre-


tudo se dividem o mesmo pátio e se plantam a mesma roc;a. Esta re-
gra indica dois principios: na medida em que é formulada em ter-
mos de conexoes genealógicas de substancia, ela coincide com o
circulo de ikoako , de restri9ao alimentar por doen9a de parente ;
e sugere ainda que tomar do cauim bochechado por uma irrna, filha
ou mae é uma espécie de incesto por via oral. Por outro lado, na
medida em que a regra se observa com mais rigor no caso dos paren
tes que ocupam a mesma sec;ao residencial, · ela indica que o cauim
é urna "exo-bebida" por def inic;ao: ao contrário dos alimentos (e
cauim doce), em que os primeiros a serem chamados sao os mais pró
ximos, e onde a comensalidade obedece a círculos de densidade des
crescente, da casa conjuga! a aldeia, o cauim inverte a figura
-
o cantador, encarna9ao pontual dos dan~arino.s, nunca pode ser da
mesma se9ao que o dono do cauim; e só quem nao bebe sao aquel es
que sernpre cornero juntos.

E a situa9ao atual, de reuniao de todos os Araweté em uma


só aldeia, atenua um principio que, dizem eles, era essencial -
a

cauinagem: o marak~y sempre deveria vir de urna aldeia outra que a


do dono do cauim. As festas do cauim reuniam mais de urna aldeia
(idealmente, todas aquelas que compunham um bloco territorial, as
ta d;), e os homens das aldeias convidadas formariam o núcleoprin
cipal dos dan9arinos do op;rahe. O dono do cauim, portanto, encaE
nava pontualrnente a aldeia anfitria, o cantador as aldeias convi-
dadas; os co-residentes do dono do cauim estariam, assim, numa
posic;ao intermédia, tornando "menos" ' mingau que os convidados, se-
melhantes nisso a situa9ao dos parentes do casal anfitriao. o sis
tema tradicional amplificava o que se ve hoje, mas nao de modo
rigoroso. Pois os co-residentes da aldeia do cauim também salam

336
entre si

para ca9ar - antes como agora, apenas o dono do mingau deve ficar

para a fermenta~ao - e eram liderados pelo ta na, dono da al-

deia. Na aldeia de onde viria o cantador, este era o llder da ca-


'
9ada. A oposi9ao principal, hoje como antes, é entre a casa do

cauim, que ocupa urna "situa9ao feminina", e o resto da sociedade

ou tribo: o pólo marcado invariável é o grupo doméstico, o pólo

"nao-marcado" (embora focal na festa) é o nao-grupo doméstico, de

extensao contextual ou historicamente variável: aldeia, bloco ter

ritorial, tribo.

De fato, em 1981, quando os Araweté ainda moravam em duas

aldeias, houve um cauim em cada uma, nos quais alternaram-se os

cantadores conforme a regra.

Voltemos a festa. Com o passar do tempo os dan9arinos vao -


37
-se embriagando, e algumas mulheres se animam a dan9ar com seus

(37) As menstruadas nao dan';am, pois estao "dlei.rarxk> mal".

••namorados". Os homens, sem mais lugar em seus estómagos, vomitam

o cauim que lhes é implacavelmente servido. Enquanto isso, em pal

cos paralelos a cena da dan9a, um xama pode estar "fechando o cor


po" de urna crian~a de poucos meses, para que seu pai possa tomar

cauim sem prejudicá-la; outros xamas podem estar servindo o min-


-
gau aos deuses; o chocalho do cantador, os chocalhos dos xamas,os

cantos de uns e de outros se misturam; os homens gemem e esterto-


ram, de tanto cauim. Alguns, bébados, come9am a chorar (ode'a) d~

sesperadamente, os mais velhos porque se lembram dos filhos mor-

tos, outros apenas balbuciam frases sem nexo. Quando se está beba

do (ka'o), dizem, espigas de milho ficam a girar diante dos olhos.

- Para alguns, enfim, a cuinagem termina como heti, urna

de transe furioso em que o dan~arino come~a


espécie

a uivar e se debater,

337
araweté: os deuses canibais

agitando suas armas e se arriscando a ferir os demais; ele é agaE


rado a custo e, rígido como um morto, se o carrega para junto da
mulher e de um fago, para que "reviva" (~peray}. Esse tipo de ma-
nifesta~ao costuma atacar sobretudo os jovens. As rn~lheres estao
sernpre atentas, durante a cauinagem, para o estado de seus mari -
dos, devendo velar por eles.
A cauinagem termina as primeiras luzes da aurora; poucosres
tam de pé. O cantador deve resistir, ele precisa cuidar para -
nao
entrar em heti, e é o último a se retirar do terreiro. Se a inda
sobraram panelas de cauim, no dia seguinte a festa continua. No

cair da tarde (4-5 horas}, os homens se reúnem dentr.o da casa do


dono do cauim, em outra forma9ao que a do op ~rahe: ao lo~go das
paredes, com o marakay no meio da linha principal. A forma~ao da
dan~a noturna era assim:

csfe1r.a~
ch j'-'pc>S
~ ...." l••l"C S

~ - tan~~dor
A • "º""~ l\S
0 - ~"\"~t'CI

338
entre si

A do canto dentro da casa, a tarde, assim:

·o o
o \l\/ Vo' l \]'\lV
o t> <]
o I> '1\l'lT\lV\l <J ·0
o 't> <1
o t> ~.6 ~¿\ ~~Ll L1 o
g t> i1.6~4~A46Li
<l
o
~ o 0 ·o o o
- • • 1
l. dot1

Á - r_ant.i dor O - no,ulhc.rt)

A - ho""'c."'' O - P~"c. f.is el e


e.a vi"'

Ali ficam cantando e bebendo até que o sol se ponha. SÓ en-

tao se transferem para o pátio, onde mantero a mesma f o rma9ao, imó

veis, sem dan~ar, cantando até que o c auim se acabe. Exausto s

nem todos agüentaram e sta segunda rodada -, dispersam-se; é o fim

da festa.

Durante o cauim, ninguém come nada - a clássica disjun~ao


._ 38
cauim/ comida que já era notada para os Tupinamba .

(38) Lé.ry 1972:91; Cardim 1978:104; Abbeville 1975:239, todoS 'c x:ntrastam a rro-
derac;OO e o silencio Tupi.nambá durante o a::mer can os excessos e a cantoria oo
beber (cauim) , e se surpreendem can a niitua exclus00 entre o cauim e a cx:rnida
(para eurq:eus da civilizac;ao do vinh::> a mesa, de fato isso devia saltar aos
olix:>s) • Beber_, funiar, cantar entram em um contexto: caner, em out.ro. O que va-
le destacar équi é a q:osic;ao latente: bebida + palavra (canto) X cx:rnida + si
lencio , que reenvia a0 que cxmsidero urna polaridade oral básica 'l\Jpi-Guaran.i :
cantar X ccmar ( cf. supra, R.:>s • 260-1) •

No dia seguinte, porém, as mulheres dos ca9adores vao até

-
339
araweté: os deuses canibais

a casa da dona do cauim (e em primeiro lugar a esposa do canta-


dor), e lhe entregam parte da carne moqueada trazida por seus ma-
ridos, levando de volta as panelas emprestadas. Na casa do cauim,
um grande jirau-moquém substitui as panelas do mingau: essa carne
é o ka'; pepi ka, "pagamento do cauim". Nos próximos dias toda a
aldeia se alimentará com essas carnes, que sao aferventadas, vis-
to que estao duras e secas, antes de se as consumir. Dentro do
mesmo espirito observado no caso da farinha dada no cauim doce,os
donos do cauim convidam os membros da aldeia para comer da carne
que receberam - o "pagamento", assim, é parcialmente neutralizado,
pois quem deu ca~a termina por comer dela no pátio do ex-dono do
m.i ngau.
Este é o sistema social do milho. Como deverá ter ficadocla
ro, nao existem denos fixos destas festas, e tampouco cantadores.
Elas nao parecem .trazer prestigio especial a seus patrocinadores,
e muito menos vantagens materiais ou alimentares. A circuia9ao de
patrocinios nao segue ordem pré-estabelecida, nem cálculos óbvios
de reciprocidade. As oposi~oes centrais que estruturam o cauim
alcoólico se condensam nas figuras do cantador e do dono do caui~

e envolvem os termos seguintes:

MARAKA:t K1'1 Nl
ca~ador, líder dos homens, leva- cozinheiro do mingau, fica com
-os para a mata as mulheres, .. leva · a noticia ..
dan9arino: "o que se ergue•;prin nao dan~a; servidor do cauim,re
cipal receptor do cauim,princi
pal doador de carne
= ceptor da carne

emblema: enfeites, chocalho e ar - se enfeita; seu instrumento


nao
mas é a cuia de ·servir o cauim
comida, moqueado bebida, fermentado
Homens, estrangeiros, aldeia Mulheres, aldeia, grupo domésti
co

340
entre si

Ap~hi-piha como unidade básica Casal (familia) como unidade de


de -forrna9ao das linhas de danc;a servidores do mingau
rinos -
Mal como seu modelo Xama corno seu "duplo"
"maraka me ha":"doador do can- "ka'; me ha": "doador do cauirn"
to"
Matador: encarna ambiguamente a Nutridor: encarna ambiguamente'
func;ao-Inimigo a func;ao-Mulher

A Última oposic;ao exige urn desenvolvimento importante, esp~

cialmente no que diz respeito a posi9ao ambigua do dono do cauim,


que permite entrever urna série de valores simbólicos desta bebida.
o dono do cauirn ocupa urna posi9ao feminina: dedicado ao mi-
lho, nao cac;a, nao canta, nao bebe. Por outro lado, seu papel po-
de ser concebido como urna sintese de dois estados masculinos peri
gosos e parcialmente contraditórios: o do pai em couvade, e o do
homem em trabalho de fabrica9ao de filho. Corno o primeiro, ele
nao pode ter rela9oes sexuais, e nao sai da aldeia; mas como o se
gundo, ele "esquenta" o cauim, cozinhando-o e zelando por sua boa
fermentac;ao, como um homem deve esquentar o feto com injec;oes fre
qüentes de semen (hadl mo-ak~, "fazer-quente a crianc;a"), um pro-
cesso demorado e indispensável a.. boa gesta9ao
- 39 • E os d onos do

(39) Seguindo esse paralelisno metafóri<X>, p:xler-~ia dizer que as danf;as oo-
tumas que "faz.em-quente o cauim", durante sua fabricai;io e fernen~ao, cor -
res¡;x:njem ao papel de a; m0, "ajOOar' a carpletar" o feto, realizad:> por outros
lnrens além do "genitor social", principal fabricador do fil.h:>.

cauim (casal) sao como os"donos da crianc;a" (termo que descreve '
os pais de recém-nascidos), que devem estar atentos aoque acorre
com suas "fabricac;oes" (heml-moñl).
Os Araweté jamais trac;aram paralelos explícitos entre a
ferrnenta9ao do cauim e a gesta9ao - deixemos isso claro. Mas há '

341
araweté: os deuses canibais

urna série de associa9oes indiretas e complexas entre estes proce~

sos e seus elementos. Em primeiro lugar, tanto a fermenta9ao qua~

to a concepyao-gesta9ao se fazem através da mulher, e sao proces-


sos de "transforma9ao" (her,;rJa) de urna matéria-prima: o semen mas
culino, substancia da crian9a, é "transformado" no útero materno;
o milho cozido coro água se transforma em cauim na boca da mulher
(e nas panelas). Do mesmo modo, urna menstruada nao pode mastigar
o cauim, e wn aborto ."aborta" o mingau (cf. nota 32).

Mas há inversoes e deslocamentos entre os processos. No ca-


so da concep9ao, o homem é a figura dominante, seu sémen é a subs
táncia exclusiva da crian9a - a mulher é wn hiro, um saco: urna pa
nela ••. No caso do cauim, o homem é claramente um auxiliar da mu-
lher, seja porque o milho é um produto feminino, seja porque a sa
liva "fecundante" (sabem os Araweté) é da mulher - e o homem zela
pela fermenta9ao nas pan.elas. Por outro lado, se na concep9ao o
sémem forma a crian9a, na fermenta9ao o que se trans-forma é um
equivalente do semen·. o cauim é como o semen: os pais de crianc¡:a
pequena nao podem ter rela9oes sexuais nem tomar cauim alcoólico:
a crian9a se encheria com o esperma paterno (mesmo que tenha ido
para a barriga de outra rnulher que sua mae), e coro o cauim tomado
pelos pais (mas as mulheres quase nao bebem), se engasgaría e mor
reria "afogada" coro estes líquidos.

Já se ve urna outra associac¡:ao inversa semen/cauim: o -


semen
vai dos homens para as mulheres, mas o cauim vai das mulheres
que o mastigam, que dele quase nao bebern - para os homens. A caui
'
n~gem é a única ocasiao em que as mulheres - ou o casal em posi -

9ao feminina - servem os homens. Cheios de cauim, os dan9arinos '


"incham" (~wo), e dizem ficar barrigudos como as grávidas. Um
processo curioso de "insemina9ao artificial", onde o cauim surge

342
entre si

corno urna espécie de semen feminino, contrapartida e equivalente '


do semen masculino (seria por isso que as mulheres nos pediam
cuias cheias de semen? - cf. n. 34). Talvez por isso, para marcar
'
a natureza "espermática" do cauim, é que se exija a presen~a de
urn hornero no processo de sua fabrica~ao, mas colocando-o em situa
- feminina: o dono do cauim, inseminador "feminino" dos homens,
crao
que dá o milho e recebe ca~a, como as mulheres comos homens .•• O
esperma, disse-me urna mulher, é "azedo como o cauim".
t preciso lembrar, ainda, que a boa fermenta~ao da bebida

exclui o gasto de semen por seu dono: ferm~nta~ao excluí fecunda-


crio, para que nao se somero processos igualmente "quentes", e so -
bretudo para que o esperma masculino natural nao contagie (mo-wa,
"passar para") o semen ferninino artificial que é o cauirn, caso
contrario os hornens estariam se "auto-inseminando" realmente - si
tuac;ao desastrosa: o cauim poluido pelo semen do dono "apodrece"
(o acúmulo de processos "quentes" se inverte em podridao, a fer -
mentacrao degenera), e a barriga dos danc;arinos pode romper-se(~

40
isto é, os homens teriam urn "parto" mortal .

(40) o c:auim tem oovic:bs. rurante a fase de sua prepar~a:,,ninguém na aldeia


eleve pronunciar o verl:x:> iwa, "rarper, explodir, radlar", ou a bebida ouve e po
- -
de ter a idéia de fazer isso a::m os hcmens. O cauim é urna entidade "feroz" (ña
ra- hetl),
- e nisso se aparenta a outros alimentos/seres de ouvioos fioos e vin~

gativos: ~ se ?'.X3e falar em xamani.sno da anta e oo veacb perto da car~


do animal a ser "benzioo", ou seu espirito (ha'o we) se vinga queimaOOo (hapi,
sapecar, queimar os pilos, explodir algo pelo fogo) o culpad::>. A qx:>si~a:, aqui
é: o fennenta.:Jo degenera em pC?dre (cauirn) e "ap::xirece" quan o tana, pois a bar
riga estufa e explode ccno a de um cadáver putrefato; e o rrcgueado degenera em
emissor de fogo, carl:x:inizaoor, pois a anta e o veado só receben peyo
Jn:XIUPados - ver adiante. Há urna série de 0
audi~ peri<_;psas" na cultura Ar~
té.
O aborto da dona oo cauim de 1981, que estragou mingau e festa, foi por sua
vez atribuído a prq,ria fabri~ da bebida: urna coisa "abortou" a ~tra. As

343
araweté: os deuses canibais

grávidas ~ devan preparar o cauirn ácido, pelo meoos oos primeiros neses de
gestat;ao, quaOOo é necessário muito semen para oonsolidar o feto, que é urna
ooisa ..verde" (n00-madura) - daci - e friorenta. A suspensOO das rel~s ~
xuais na fase da fementac¡3:> mataria o feto de frio; inversamente, a gesta~'
dentro da nulher retiraria a fo~ fententativa cX> cauirn nas panelas. A II'lllhe1*
IlO cauim, é \lm ser "fecurrlante" t nao \lm 1t fec\ll'ldaX)" - salivante I nao insemina-
00.
As menstruadas nao
poden mastigar o cauim porque seu sangue tanbém oontagia
ria a bebida, e isto teria o mesno efeito sobre os b:rnens que se eles houves-
san oopulado cxm el.a (a:m una menstruada): a norte por ha 'iwa, cX>enc;a causada'
p:>r ccntágia; sexuais perigosos.

Esse processo de insemina9ao oral dos homens pelas mulheres


nao deixa de evocar o famoso complexo da "menstrua~ao masculina",
em geral associado ao culto das flautas sagradas, que se encontra
na Oceania, na "área do Jurupari" (NW Amazonico - ver s. Hugh-Jo-
nes, 1979: passim), talvez no Alto Xingu (Bastos, 1978: 176), e
que deu tanto o que f alar (Bettelheim, 1971) • Complexo este que
possui associa~oes como canibalismo (Gillison, 1983), e que cos-
tuma ser interpretado, classicamente, como urna espécie de presti-
digita~ao polltico-metafisica em que os homens capturam o poder
reprodutivo natural das mulheres e o transformam em criativida-
de-geratividade mística masculina (p.ex., C. Hugh-Jones, 1979:153
-ss) . Nao é este o caso, alias menos espetacular e discursivamen-
te elaborado, da cauinagem Araweté. Em primeiro lugar, os siste -
mas de "menstrua9ao masculina" enfatizam urna oposi9ao real ho-
mens/mulheres, e um ideal de auto-suficiencia masculina, de part~

nogenese !maculada. A "insemina9ao" dos homens pelas mulheres Ar~

weté envolve, exatamente, uma ·atribui9ao de poderes "fecundantes"


as mulheres - visto que sao os homens os detentares da substancia
genésica única, o esperma - e parece opera~ antes por um esfor90
de neutraliza9ao-compensa9ao das diferen9as de genero que por sua

344
entre si

exacerba~ao. Pois este semen feminino possui seu simétrico e in -


verso, o mel, espécie de "fluido vaginal masculino", como veremos.
A cauinagem possui urna forte tinta erótica, aos olhos Arawe

té - eu, só enxergav~ a embriaguez. Mas se diz que os dias subse-
qüentes a festa sao marcados por intensa atividade sexual, pois o
cauim dá fome alimentar e desejo sexual. Ele prepara, assim, uma
insemina~ao real das mulheres pelos homens.
Mas o cauim é mais coisas que este semen-anti-séme~. Por
seus efeitos estupefacientes, ele é comparado ao timbó (c!ma),ve-
neno de pesca: . "na cauinagem f icamos como os trairoes, bebados crm
o timbó". Diz-se que o cauim é "matador" (yoka ha) de gente como
o timbó é "matador de peixe". A compara~ao é exata, pois o timbó
nao é propriamente um veneno, mas um narcótico; os peixes, se nao
forem capturados enquanto tontos, "revivem" (~peray) e escapam •

Esse caráter de veneno atenuado do cauim recebe expressao prover-


bial: "o suco da mandioca nos mata de verdade; o milho nao". Exis
te contudo um cauim venenoso, o tiewa, que seria feíto com -
graos
de espigas cujo sabugo é vermelho (que nunca sao usados no cauim
comum) • Esta po~ao é administrada aos assassinos de gente do pró-
prio grupo, pelos parentes do morto; eles o tomam inadvertidamen-
te, e morrem aos poucos, por emagrecimento 41 .

( 41) Os TapiratJé, que nao usam o cani m alcx:>Ólioo, mas apenas o "doce" ( leveme::!
te fernent:aOO), possuan no entanto um EqU.ivalente desta bebida nortal: é o
kawió, o "cauim ruim", que provoca v&ni.tos violentos, e que é administrado cx:>-
no purgativo-?Jrificador para os matadores de feiticei:ros. Ele é o fc.xx>, igua!
inente, de urna cerim:3nia de reclistribui~ ~ca, ame as pessoas que o be-
ben - situa~ "humilhante" - tém o direito de receberem bens Cbs que se abs-
t.Em. Há dúvida sobre se o 7<.aLJió seria feito de mil.00 ou de mandioca brava. Cf.
Wagley, 1977: 7'!r-77. Os Araweté só remrdam um caso de adninistr~ de tiewa,
há muitos aIX>S atrás.

345
araweté : os deuses canibais

Outra associacrio db cauim é com o leite materno: diz-se qué


o leite é "o cauim das criánc;as". Por isso, os pais de crianc;as '
ainda sendo amamentadas precisam submete-las a opera9ao de "fe-
chár· o corpo", pelos xamas, para que eles possam tomar cauim, ou
este "leite dos adultos" passaria para ·o corpo da crianc;a, como
já mencionamos. Essa equa9ao cauim=leite se compatibiliza com a
posic;ao nutriz das mulheres em relacrio aos homens, na cerimonia •
da cauinagem. Outra pr¡tic~ refor9a essa situac;ao "infantil" dos
homens no ritual: é comum as maes alimentarem seus bebés (e aves
de estimacrao) com comida previamente mastigadas por elas - como o
cauim é mastigado pelas mulheres.
Semen estéril, veneno suave,, leite azedo: . o cauim é umá -be-
bida ambigua e sobredeterminada- :El-.e é um "anti-alimento", cono pQ
42
ria Lév1-Strauss : em vez de nutrir, dá fome; ingerido, deve ser

(42) o sistema Araweté cb cauim, do nel, tabaoo, veneno, e as qualidades de


fenoent.aOO, cru, que.imaOO, etc. rE'!lete, obviamente, ao vasto ~lexo simbÓli-
ro descobert.o e analisaó:> por I..évi-Strauss (especialmente L.-s. ·, 1967b), que ~
vito citar sistematicanente apenas porque rneu material etrx::>gráfico é pobre, so
bret:uOO no que se refere a mitología.

vomitado. Ele forma sistema com o tabaco, também um anti-alimentQ.


usado multas vezes em sessoes coletivas de intoxicac;ao, onde to-
dos vomitam. (E usado também durante a cauinagem, para "ajudar a
vomitar" a bebida). Mas ao contrário do cauim, o tabaco tira a fo
me; e em vez de nos "inchar 1' , ele nos "alisa" (mo-kawg) por den-
tro, nos "afina" (mo-kuiyaho) e nos "torna leves" (mo-wew~), efei
tos essenciais para o contato com As divindades. o tabaco, porém,
também é "matador de gente": xamas novatos e mulheres costumam des
maiar e ter convulsoes por excesso de tabaco: "morrem" (~man;) ,
mas "nao de verdade". Esse é um tema recorrente: o cauim nos mata,

346
entre si

-
mas nao de verdade; o tabaco idem; e quando morremos "mesmo", tam
pouco é "de verdade", pois os deuses nos ressuscitam - como uso
de tabaco. O tabaco é u.In tran~formador ativo, o cauim uro transfor
mador passivo, e estes anti-alimentos tem seus equivalentes em co
difica9ao sonora e social: o tabaco e o chocalho ar~y sao o em.ble
ma do xama, ambos· instrumentos de contato com o mundo dos deuses
e criadores; o cauim e o chocalho maraka'i o sao do cantador. O
chocalho de dancra é um instrumento "passivo", apenas acompanha o
canto, nao cria ou transforma nada. E talvez agora possamos enten
der porque foi durante urna cauinagem que os homens foram transfor
mados em animais, mediante o xamanismo (tabaco mais ar~y) de
·Ña-Maf:

Cauim: Homens ~> Animais :: Tabaco: Homens ~> Deuses

Modos respectivamente passivo e ativo de transformac;ao, o primei-


ro regressivo (Cultura~> Natureza), o segundo progressivo (Cul
tura~> Sobrenatureza). (Ver supra, pps.224-5,para o mito de
criacrao dos animais: ali, o tabaco de um deus transforma os ho-
mens, bebados de cauim, em animais) 43 •

(43) A "forc;a regressiva" do cauim p:x3e ser indiretarrEnte ronstatada rx:> trata-
mento "infantil" a que esta::> sul:netidos os danfrarinos - al.inentados pelas nu -
lheres cx:m urna "a:mida" mastigada. E a fo~ progessiva do tabaro se m:::>Straria
exatarrente rx:> devir-divirx:> daqueles que o etpregam: os deuses, cx::m::> sugeri an-
terio:rnente (p. 195, nota 10), sao adultos diante cbs viventes, sinples crian-
cras.

Os Araweté diziam-me que nao se dan~ava, por ocasiao do


pey~ do cauim doce, ''porque nao se ia cac;ar". De fato, vai~se ca-
c;ar, depois do consumo do cauim doce, para "digeri-lo" - enquanto
se vai cacrar antes· do cauim alcoólico, diferindo ao máximo seucon
-
sumo, para f ermenta-lo 44 .

347
araweté: os deuses canibais

(44) Nao há um tenro Araweté específico para "fermentar". A raiz 'da significa
"azedo", ''amargo", "fenrentado" e "alcoóllco". "Fennentar" o cauim se diz mo-
-ra, "fazer-azedo". En:)uanto prooesso, a fe.nnentac;ao é um "ferver" ou "borou-
lhar": i-pipo, forma que oonstrói taubém o verlx> "cozinhar" (can água) :mo-pipo.
Por sua particularidade de ferver sen fogo, ' a fernen~ao do cauim se apro-
xima de una outra água nágica Araweté: aquel.a da "hacia das almas" no ntlll'lOO
celeste, depress0es circulares de pedra (sernelhantes iquelas em que os peixes
ficam presos na est~ seca e ~ nortos a t.inti>) o00e borbu.l.ha una água ef~
vescente na qua! os 11'Crtos sao post.os a reviver, trocanOO de pele.
"Digerir" é tantán \lm ver00 geral 1 mo-yatJeI n faz.er passar" I CX'llD passa urna
nuve.m no céu, urna dor de ~, etc. F.ste verbo pode ser usad:> no sentido de
"voltar a si" , revíver, cx::m:> si.nOnino de -tpe~; o Senhor dos Urubus sopra oo
rosto das almas recán-chegadas ao céu, "to mo-yaLJi", para despertá-las.
Já se deve ter ootado que urna série de atividades oerim:>niais ligadas ao ~
100 atriblem a ~ hunana un ¡rx3er causativo sobre os processos a que este ~
getal está sujeito, natural ou artificialmente: a dispersáo das chuvas "faz a-
madurecer" o mi.lho; as dant¡:as "fazern esquentar o cauim"; a cac;ada "faz az.edar"
o cauirn. Essa idéia, expressa oo uso sistemático do prefixo causativo mo-, su-
gere que o mi.lho tem algo de ser animado ou caisc:i.ente: nao só o cauim tem ou-
vidos, <X1tD já nenciooei, mas os graos de mi.100, pl.antaó:>s, gritam (yapok§¡ >~
la druva.

Os dois cauins parecem se organizar sistematicamente em urna


série de contrastes:

KA'~ , DA

Consumo maximamente diferido Consumo minimamente diferido


Ca~ada antes da festa, demorada, Ca~ada depois da festa, rápida,
para fermentar a bebida para digerir o mingau
Pepi ka: Cauim X Carne (dada de- Cauim X Farinha (dada antes do
pois do consumo do cauim) consumo do mingau)
Dono nao bebe, serve -
Dono e o principal convidado
Dono ~ tenetamo da ca~ada J?Ono - tenetamo da ca~ada

Panelas dentro de casa, festa no Panelas no pátio comunal, refei


pátio do dono ~ao idem

Benzimento do'k..i serial das pane- Benzimento conjunto da fila de


las, em situa~ao "alta" (colo do panelas, postas no chao
dono)

348
entre si

Noite (tarde, nao-sol) Madrugada-Manha (sol nascente)


Mulheres servem e cuidam dos ho Homens pegam o cauim e bebem cx:rn
-
rnens, quase nao bebem suas mulheres
Casa anfitriao x Aldeia Uniao-justaposi9ao das casas CX11
jugais
Foco no cantador: op~rahe, Foco no xama: Maf maraka, pey9_
mara ka -

Um sistema que deverá ser incluido em outro rnais amplo,onde


se·· verá que o cauim doce se aproxima das demais refei9oes cerimo-
niais, e que portanto o cauim alcoólico ocupa posi9ao única.
Quando eles diziam que no peyg_ do cauim doce "nao se dan9a
ou canta porque nao se vai ca9ar", em contraste como ka'; 'da, o
que parece estar impllcito é urna associa9ao entre essa ca9ada ce-
rimonial do cauim e uma expedi9ao de guerra. O cantador do cauim
é o llder da ca9ada, e sua posi9ao, em ambos os momentos, é a do
guerreiro-matador. Ora, wn dos epítetos dados aos a~l, inimigos,é
ka '-t 'da rahi, "tempero .. , ou, .corno se poderia dizer, -
e o "mo
lho" do cauim - aquilo que dá sabor ao cauim, que o "anima". Se
leni:>rarmos que a . primeira coisa dita pelos Tupinambá quando capt~

raram Hans Staden é· que o matar.iam "cauim pepica" - em Araweté se

ria ka'.; pepi ka, "em troca de." , "como equivalente do" cauim - , i!.
to é, que ele seria devorado após wna cauinagem (Staden, 1974:82),
bem, isto me parece suficiente para sugerir wn "horizonte caníbal
-guerreiro" para o cauim alcoólico Araweté. O pepi ka da festa sao
os animais moqueados trazidos pelos ca9adores; o op~rahi Araweté
é wna dan9a em torno do cantador-matador, como o poracé Tupinambá
.

era urna dan9a em torno do prisioneiro de guerra (Staden, 1974: 89),


que devia, aliás, cantar nas celebra~oes antes de sua morte.
De fato; o clima excessivo, a reuniao pan-aldea (idealmen -
te), a associa9ao bebida-canto de guerra, tudo isso aproxima a

349
araweté: os deuses canibais

cauinagem Araweté das famosas bebedeiras pré-canibais Tupinambá ,


e possui numerosas equivalencias com cerimonias guerreiras Tupi-
-Guarani 45. A ca9a e a guerra, como já observe! (p.208), estao

(45) caro sejam: a ••aant;a das cabec;as" Parintintin (Kracke, 1978: 45), o yawo!
si Kayabi (Grlmberg, 1970: 169-ss.). A cauinagan Kaa¡x>r (HUxley, 1963: U4-6)
parece ter sido antes um rreio de celebrar a paz que de cauenorar a guerra. A
cauinagem Shipaya é especialnente interessante, por estar dissociada do caniba
lisno, praticado pelo grupo, estando em CDltrapartida ligada a vinda das almas
dos nortos para beber (NinuerXiaju, 1981: 22-3, 32-37). A vinda 005 nortos para
o cauiJn é central oo caso Shipaya, erquanto para os Araweté é um ItOtento ante-
rior a festa, cujo contexto é guerreiro e "caniba.1". De toda fonna,registre-se
que apenas os .Araweté, dos 'l\Jpi-Glarani atuais, apre5entam essa vinda dos nor-
tos .para cauinarem,
.
e nisso se apraximam dos antigos Shipaya, Juruna e Takunya -
pé, mais que dos TUpi-Glarani próprios. A cauinagem Guarani atual está disso -
ciada de qualquer inplicac;aio guerrei.ra e, na nelida em que se pode distingui -
-la cb "bati.sno oo milh:>", parece depeOOer de ~festagSes mistim-oní.ri~ . '
individuais, cxmandadas em seguida pelo xama, nas quais cantos ~ da&:>s a ~
dividuos, e ent.ao ·cantada> pelo grupo (Ni.muerrlaju, 1978: 95-ss. ¡>ara os KayO-
vá, Ver Mel.iá, F.& G. Grtmberg, .1976: 241-ss.).

claramente associadas no pensamento Araweté: . hj.mlna é presa de ca


<;a ou de guerra; para os anirnais, os Araweté sao a·W i, .inirnigos
exceto para a on~a, que, ela, é que é aw-i, e nós seus henrlna. Por
isso é que se danc;a sobre a morte de urna on9a como sobre a de wn
. i go 46
i nim

(46) Un tema clássiex> dos TUpinambá (cardim, 1978: 27; 'lbevet¡ 1953: 156) , a
que ret:ornarenos (e tanbém dos Bororo) • Os Araweté, ao contrário dos TUpinambá
(Staden, 1974: 84) e, EXJI' exerplo, dos Txicao
(Menget, 1977: 156), nao
¡:iensa. -

vam oo inimigo caro um "animal de es~", e sim o:m::> cac;a m:::>rta; certam:m-
te porque, ao contrário dos dois outros grup:>s, eles nao tinham o costume de
guardar prisioneiros. '
o cauim alcoólico, em suma, é urna cerimonia de guerra; e
~
o
caráter ambivalente desta bebida me parece refletir o es.tatuto am

350
entre si

blguo de seu recipiendário principal: o matador-cantador. Mas fi


quemos por aqui, passando aos outros sistemas de xamanismo e con-
sumo alimentar ritual.

(B) Xamanismo de carnes e méis: valores

O sistema de xamanismo e consumo dos produtos a base de mi-


lho caracteriza inequivocamente a fase de vida em aldeia; todos '
os demais produtos "benzidos" podem se-lo na aldeia ou na mata. o
cauim alcoólico, termo culminante da série do milho, entra em sis
tema com outros alimentos e formas de consumo. Enquanto bebida
(ti, llquido), masculina mas preparada pelas mulheres, insubstan-

cial e fermentada-azeda, opóe-se ao mel, também um "liquido", ob-


tido pelos homens mas oferecido primeiro as mulheres, muito subs-
47
tancial (~e~e, cf. p. 165, nota 27) e comido cru • Ademais, o

(47) A idéia de que o mel é um al.Urente cru (un, que significa também sangue )
só pCrle ser de&izida .i..ndi.retarrent.e, quarm eu ootava os Araweté observarxb os
braocos a ferver o mel para estabilizá-lo. Eles diz.i.am: "mas o nel nao carece
de ser rozido ••• " ?fu seise o melé classificaCb caro vegetal (caro generali-
za .I.évi-Strauss, l967b: 27-8); ele parece ser urna categoria única, para os Ara
weté.

mel pode servir de "t~mpe~o" (ahi) para bebidas como o a9aí, en-
quanto o cauim alcoólico é que precisa de "temperos" - os inimi-
gos mortos. E por fim, se o cauim é "azedo como o semen", o mel
é doce como a vagina. Comer mel nos "amolece" (mo-t-tme) como urna
rela9ao sexual; dá seno. E o mel de xupé, especialmente, faz nos-
sa barriga roncar - o mesmo síntoma provocado por urna cópula in-
cestuosa. O simbolismo sexual do mel é múltiplo e ambivalente. Do
ponto de vista das mulheres, ele é o sémen do espirito Ayaraeta ,

351
araweté: e>s deuses canibais

que se provado ern sonho acarreta • expropr{a9io da alma e seu a-


prisioname nto no chocalho do espirito - onde as almas f emininas

ficarn eternamente comendo mel e sendo "comidas" pelo espirito . Do


ponto de vista masculino, o rnel age corno urna vagina, é "gordo" co
mo ela. Embora as mulheres sejam sempre as prirneiras a provar o
mel (e se um hornero topa urna colrnéia na mata, ao ca<;ar sozinho,traz
. mel para sua esposa) , os hornens também abusam dele - enquanto o
cauirn nao, as mulheres raramente o provam.

O caráter melifluo do sexo feminino se evidencia de maneira

"crua" na tradi<;ao jocosa Araweté, onde nemes de espécies de mel


sao usados corno metáforas do "gesto" de cada vagina da aldeia, e
como sinédoques para cada mulher 48 ; e estes, como direi ••• "vulva

(48) Ca'lfonne a forma tradicional de designar o ginero femiru.lx> por seu sexo :
hana, vagina. Assim, se eu perguntava por que fulano e sic::rarx:> brigaram, a res
- -
posta era: "hana ne", por causa de nul.her. o penchant rabelaisiano dos Ara.1eté
recorre a ootras metáforas para as vaginas da aldeia, confonne sua "aparincia'~
mas os nares de roéis sao os rnais usados, e definen o gesto ou efeito del.as so-
bre o lx:ruern.
A talvez un1versal associac¡3:> oo nel can a sexualidade, explorada par Lévi-
-Strauss (1967a), fica especialmente patente no caso dos tabus al.ineltares Pa-
rintintin, axie o mel é o úniex> al.inento cujos efeitos malignos passam entre
oonjuges, CAl através de rel.afiao sexual (Kracke, 1981: 117) - aquanto que ou
tros alimentos, por assim dizer, seguern a llnha oo sémen, visto que os tabus '
definen o circulo cbs parentes de substáncia, nao afins - e a substancia de P-ª
rentescx:> 'l\lpi-Glarani é o sémen. A assa:j ~ sin'ples mel-semen, apontada par
Kracke (op.cit.: 121-2), parece-me mascarar a natureza "feminina" do mel - na
nedida ern que a nulher é (nos TUpi e quase senpre alhures) o ginero sexualmen-
te marcado. Para o valor do mel no ~to Suyá, onde ele tan a curiosa PrQ
priedade de ser símbolo de si mesno, ver 5eeger, 1981: 222-3; a "ó::x;ura" oo se
t

xo ali t..arriJém ressalta {op.cit.: 105).

nirnos" entram na constru9ao de tecnonirnos masculinos jocosos - por


exernplo, "Aci.c i e piha", "marido do mel-do-guariba", que designa

352
entre si

um homem da aldeia (usado em sua ausencia ••• ).


Mas se o. cauim é um só, os méis sao muitos. A maioria é no-
meada segundo animais ~mel do guariba, do. jacu, do veado, do tuc!!_

no, da on~a, . da cutia, do papagaio ••• ); há muitos sinonimos e me-
táforas; .e, assim como eles "nomeiam" mulheres, há roéis ·que . sao '
chamados por nomes femininos: "mel de fulana", "de .sicrana", etc.
Nesse caso, o critério parece ser a preferencia que essas mulhe-
res demonstravam (a maioria sao mortas) pela espécie de mel. Há
-
méis ·v enenosos e eméticos, como "mel dos lñi"; outros fazem cair
nossos cabelos, como o "mel da saúva"; outros os eri9am, como o
"mel do quati"; outros fazem os fetos se agitarem na barriga da
- e despertam a fecundidade masculina, como o "mel de fogo".As
mae,
. .
expedi9oes coletivas para tirar mel sempre envolvem ambos os se-
xos, e as colméias de xupé sao as que reúnem maior número de pes-

soas. Os homens derrubam a árvore onde se prende a colméia, ou,
mais comumente, erguem um andaime e a desprendern do tronco. Nesse
caso, antes se incendeia (hapi) . a entrada "fálica" (hakáy, penis)
da colméia, para entorpecer as abelhas. Durante as expedi9oes· ao
mel, ninguém po4e fumar: exclusao absoluta entre o mel e o tabaco.
\ . . - 49
O mel tem "flechas", e se fumarmos ele ferirá nossa boca •
'
l

(49) Im koCo, ande koco e un verl:x> que descreve o nDvinento Qe enterrar, en-
fiar, u..c:ado tanbém para a penetr~ao sexual. A oposi~o mel/tabaoo, nesse cai-
texto de~ do xupé, pareoe assimilar (e cx:mseqüentenente separar) a ool
rréia dleia de abelhas, crm una ponta fumegante a nodo de um charuto, e os OC>-
nens ao pé da árvore, que se. funassem se encheriam de ~lilas ferozes?

Tombada a árvore ou a colméia, os homens se precipitam para


o mel, em rneio a urna nuvem de abelhas furiosas. Retiram as pre_!
sas os favos '· e os levam para suas mulheres, que guardam distancia
prudente. o mel, entao, é comido in situ, puro e cru - ·diferimento

353
arawet4: os deuses canibais

mlnimo do consumo, em oposi9ao ao demorado processo fermentativo'


do cauim. Mas ele pode também ser parcialmente guardado para urn
pey~, um benzimento coletivo - seja puro, seja misturado ao a9aI:
os cocos sao macerados em igua quente, e a papa espessa é engros-
sada e ado9ada com mel.
Nao pude assistir, por estar fora da aldeia, ao xamanismo '
de mel com a9al realizado em 1982. ~s as descri9oes que recolhi
permitem urna reconstitui9io esquemática. o xama que trouxe o "co-
medor de a9al" (o canibal celeste Iaracl, que só come a9al com
- so di o sinal para a dispersio ("fuga" - 'Y! 'hi)
me l d e xupe) da

(50) Nao se faz xamanisno ou refei~ ooletiva de ~ sen ten¡:>ero CX1n mel;mas
a reciproca nao é verdadeira.

aldeia. Na volta, tres a cinco di-as depois, prepara-se a mistura


a9al-mel, em cada casa. As panelas sao entao levadas, no fim da
tarde, para o pitio do xami (no caso, o "chefe" da aldeia, Yiriñ.!
to-ro). De madrugada, com todos trancados em casa, pois este é um
momento perigoso, o xama e sua mulher (que dan9a com ele, prote -
gendo-se assim) vao ao pátio. Ele dispersa as flechas do mel,traz
em primeiro lugar o "comedor de a9al", e depois os deuses que co-
mem mel. Na man ha seguinte, convoca a todos para comerem a mistu-
-
ra, o que e feito de forma semelhante a do cauim doce: o dono de
- -
cada panela chama outros para beber; a panela do xama e a prime!-
-
ra, e ele comeria de todas - e, assim, o tenetamo desta cerimonia.
Outras versees dizem que as panelas sao postas no mesmo "p§_
tio" do cauim doce, nao no do xama, que continua a ser, porém, o
tenetamo. Os benzimentos de mel, em geral, envolvem duas opera
9oes: a dispersao das flechas, e a descida dos deuses. Os cantos
xamanisticos que recolhi, destas cerimonias, sao semelhantes as

354
entre si

-
demais visita9oes de deuses e_ mortos 51 •

(51) Exoeto pelo perigo envolvió:> no xananisnD do nel (puro ou can at¡ai), que
nao é ali as
-- maiar que o dos benz:lmentos des jal:x:rt:is, da anta e do veado,
. .. . ..
Arawete nao pamoem destacar. de 1ro:X>. especial essa oe.rillCnia. Nos diarios
- os
de
Joao carval.ho (carvalix>, 197'?) , no entanto, este sertanista registra que foi
durante a "Festa do~" que se p:roa!Ssou, em outubro de 1977, uma txoca geral
de 00njuges da alde1a, e que isso ·nao era fortuito. Parq mim, os Araweté nega-
ram qualquer cxmexao neoessária entre urna CDisa e outra; O lt1JVimento registra-
ch por carval.ho teria sido devido a urna recurp:si~ de r~ cx:>njugais, a-
pÓs as nm: tes da época do o:ntato.

Assisti a vários benzimentos de jaboti, em dezembro-janeiro


de 1982-3. Após cantarem por várias noites o desejo dos deuses V!
rem comer deste alimento, e especialmente Me'!_ Na, a "Coisa-Qn9a"
que é a · divindade-tenetamo neste pey~, os xamas ou lideres de
se9oes residenciais decidem que chegou a época das ca9adas coleti
vas de jaboti i-pey~ pi, "para benzimento". Cada expedi9ao, que
pode durar de. dais a sete dias, é liderada por um tenet~o (mesmo
que grupos distintos de ca9adores tomem dire9oes diversas), que
deve ser o xama da cerimonia posterior, ou providenciá-lo - e nes
ses casos (quando o tenetamo nao é xama) deverá ser algum homem '
de sua se~ao residencial.
A volta da ca9ada nao é marcada pela pompa (para padrees
Araweté) da volta dos ca9adores do cauim; eles chegam tao discre-
tamente como salram. Na mesma noite da chegada, abrem-se os jabo-
tis, assam-se os cascos e cozinha-se a carne. As carnes assadas ,
aderentes ao casco, sao comidas entao, no sistema de "ronda ali -
mentar" que já descrevi; as panelas com a carne, o f!gado e qs
ovos sao guardadas. Na madrugada seguinte,
.
o tenetamo ou (se - ele
for o xama) um parente seu coloca suas panelas no pátio do cauim
doce, e convoca as demais casas a faze-lo. O peyo que se segue -
e

355
araweté : os deuses canibais

identico, em sua forma processual, ao do benzimento do cauim doca


Apenas, as pessoas ficam ainda mais longe das panelas que naquere
caso¡ a "coisa xamanica" dos jabotis é mais perigosa que a do
cauim, e Me'~ Na - que come os fígado~ e ovos, deixando a - carne
para os outros deuses q~e a seguem - é wn ser v1·0 1ento e feroz ,
que deve ser "apaziguado" (mo-apapi) . pelo xama em seu trajeto- de
descida. o xami desee abracrado a ·ela, convencendo-a a comer dos .'
jabotis. Em seu canto, esta Coisa-Oncra e os demais deuses refere~

-se a nós humanos com o epiteto depreciativo de yaaci dadl a re ,


"os comedores de pequenos jabotis".
Após o benzimento, as panelas sao retiradas do pátio, e le-
vadas para serem requentadas nos fogos domésticos, em cada terrei
ro. A essa hora todos já estao pintados e decorados como no cauim
doce. Dá-se especial importancia a emplumacrao da cabecra com a pe-
nugem da harpia, que protege contra· a "oncizacrao" do cosmos desen
cad eada pela presencra de Me'~ Na-52 • Comecra-se entao
-
a chamada pa-

( 52) Toda vez que \E xma sonha can esta divindade, ou can as ootras ~ ce-
les~, Ra iari ou Na ~ ' hii, aeve avisar a toda al ae1 a de mama, e . espec1al
-
mente os pais de cri~as pequenas
- (se estes nao OU'7iram o -
canto not:urrX>) , para
que eles as enplurnem. A plumagem da harpia afasta as oor;as que estarao certa -
mente rondanó:> a aldeia - pois é isto que o sonho pressagia ou indica. Se ben
enten:li, esta ~ está associada a um ba.ter de asas do kanoho ra 'o we, o
"espirito da harpia", que amedralta as cnras- Se as cn;as parecen ter pref~
cia pelas crian;as, a harpia é um animal diferentemente relacionaó:> ~ a fe -
currlidade: nulheres que CXluem de sua carne nao mais menstruam, e ficain esté-
reis.

ra comer. Cada casa convoca ~s ou~ras, numa ronda alimentar onde


o tenetamo deve ser, ao mesmo tempo, o ·que convida mais gente e é
mais convidado - mas seus jabotis nao sao necessariamente os pri-
meiros a serem comidos. Como sempre, os homens é que partilham e

356
entre si

"capturam" a carne, levando-a para junto das esposas.


Mas estes pey!:: de jabotis cozidos na aldeia nao soo o "verda-
deiro", dizem os Araweté. O autentico é feito na mata, e os jab2
tis sao moqueados, benzidos sobre wn moquém e nao dentro de pane-
las . Os jabotis, como o mel, tem "flechas" farpeadas invisíveis ,
que preci sam ser dispersadas pelo xamá; mas apenas os moqueados '
tem isso, pois elas residem nos cascos. Os "jabotis consumidos co-
zidos tem somente a "coisa xamanica" (i-pey~ ~e), menos perigosa.
O xamanismo do jaboti na mata exige wn posicionamento distante e
seguro das pessoas, longe das flechas. o esquema que desenhei
sob orienta~ao de Iwakañ! é:
- .
TEY+PA
-
fl 1\\ 11\1-
11
fii'llll}

,.. .,,.. -- ..... - - ..........


'
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di,.~ ~Jo ci\Jpc. ...~¡º
el~
d•s "tic.e.has" do.s y~,,

357
araweté: os deuses canibais

As flechas dos jabotis saem, assim, pela frente dos ani-


mais postos no moquém. Os nao-xamas ficam "do lado da traseira"
(he~! ti) dos jabotis. t
..
interessante compararmos esse esquema e~

pacial com aquele vigente no caso do xamanismo do mel. Quando es-


te é feito na aldeia, as pessoas ficariam trancadas em casa; mas
na mata, nos xamanismos das chuvas, a oposi9ao pertinente nao é,
como no caso dos jabotis, cabe~a/traseiro, e sim alto/baixo("pois
o mel nao tem traseiro••, disse-me alguém .•• ):

fice.has do ... el
< <
<
co'~
abri,o• do
COlh me,J ac.antpantehfo

Um esquema que parece replicar a situa9ao "alta" do mel em


rela9ao aos homens: as pessoas procuram um declive (haimi) ou si-
tio mais baixo que o nivel do acampamento, e ali aguardam a dis -
persao das flechas do mel, por cima de suas cabe9as.
As expedi9oes de ca9a de guaribas ou de pescaria com timbó
também parecem obedecer a
sistemática dos jabotis. o tenetamo é o
'
xama ou um seu parente P,r óximo; os animais devem ser moqueados, e
postos em um jirau no espa90 "comunal" (caso de pey~ aldeoes) ou
em um lugar qualquer do acampamento na mata que esteja a uma boa
distancia dos abrigos familiares e possa orientar-se pelo eixo

358
entre si

E-W, de descida dos deuses. Após o benzimento, as pe9as sao reco-


lhidas e fervidas nos fogos domésticos, e nao, como no caso do
cauim doce e do mel, consumidas no próprio sitio do pey~. Come-se
entao de pátio em pátio (na mata, de fogo em fogo).

O perigo alimentar dos guaribas, peixes·, bem como dos dois


outros tipos de animais que precisam ser xamanizados - anta e vea
do - é outro que os precedentes. Todos estes, além do i-peye we ,
liberam "espiritos" (h~'o we) que precisam ser mortos a pauladas
pelo xama, antes do consumo da carne pelos humanos e deuses-mor -
tos. Essa técnica é a mesma que se usa para matar os lñi, Ayarae-
ta e outros esplritos da ma~a, e também como parte do tratamento'
contra mordidas de cobra, aranha e ferroadas de arraia: o xama,ou -
melhor, um auxiliar seu (em geral sua esposa) golpeia repetidas
vezes o chao, no ponto para onde o xama dirige seu chocalho: ali
está o ha'o we que precisa ser morto.

Há muito tempo os Araweté nao realizam peyo da anta e do


veado. Nao o fazem, explicam, porque esses animais sao divididos
com os funcionários do Posto - que aliás presidiam sempre a sua
distribui~ao - e sobretudo porque nio sio mais moqueados, como
antigamente. Esta parece ter sido a forma ao mesmo tempo"própria"
e perigosa de consumo de tais animais. Eles deviam ser moqueados
em grandes peda9os, com a cabe9a e a pele. Atualmente, come-se do
veado, cozido, sem problemas; mas a anta é objeto de temor. Os A-
raweté matam antas "para os brancos" (kamara ne). Semente depois
que estes limpam e dividem a carne, é que alguns homens cedem
..
a
/

insistencia dos funcionários do Pósto e levam peda9os para cozi-


nhar; a maioria prefere ignorar o que se passa, ou fica olhando
receosa.
Os peyo do veado e da anta - únicos casos, como já referi,

359
araweté: os deuses canibais

em que essa ope~ac¡rao nao depende de um esfor90 coletivo de produ-


- 53 - eram considerados ·muito perigosos.
,9ao - O esp I rito desses ani-

(53) ~is, jahotis, guaribas, peixes, cauim dooe - tu:b isso pode ser consmd-
do privadarnente, sern que o tratal?ento de neutralluiyao das fan;as nelignas ó:>s
alimentos seja necessário_. Estas só pareoem ser ativas quaOOe> se trata de urna
pro&.ic;ao e/ou CD'lSum:> cx:>letivos, que, por sua vez, envolvem descidas de deuses
e nnrtos a tena. (E por 1sso o cauim alCX>Óli<X>, que oo ponto de vista dama -
lignidade substantiva, imanente, é merx>s perigoso que as carnes e os néis, é
senpre benzioo). As raz.Oes de orden sócicrteológica prevalecen claranente so-
bre as teorias branatolÓgicas Araweté; e por isso o "~srro al.inentar", a-
qui, é ·nuito roa.is urn catplexo sacrificial de a:uensalidade que urna operac¡rao má
giex>-médica de enfrentanento dos perigos da Natureza, ao m::x:b clássioo na JVré-
rica oo Sul. Ver supra, p. 25 7.

mais, durante a opera~ao xamanistica, fulgurav~ (~we~a), encandea


Va a terra (iwi mBni-meni) e podia queimar aqueles nao-xamas que'
a presenciassem. Dois homens da aldeia, que mostram falhas na ca-
beleira, teriam sofrido esse acidente por descuido: o hapi, incen
- -
dio de seus cabelos pela luz do espirito da anta e do veado, um
. 54
f ogo terrestre destruidor •

( 54) Esse efeito é senelhante ao produz.ido pelo espirito do inimigo noi: to so -


bre seu matador: ele faz cair (moye, soltar, desprender)' os cabelos da franja
do assassi.rx>. Mas nao pude saber se isso se deveria a qua.lquer fago místicx:>; o
verl:o usad:> sugere que w. o tema da qneda dos cabelos assoclaó:> a carne ó:>
ve.ad:> se encentra entre os t.Jrual-Kaaror (Huxl.ey, '1963: 96): nao se deve cantar
OQ fa.lar durante seu coosuno.

Nao sei onde e como se processavam os benzimentos da anta


-
e do veado, nem sobre que rela9ao 'haveria entre o ca9ador e o xa-
ma. Apenas estes animais produzem o hapi; o espirito dos guaribas
e dos peixes, se nao forero mortos, acarretam fortes dores abdomi-
nais.

360
entre si

Na medida ern que o pey~ ideal das carnes é aquele em que


elas sao moqueadas, terno s que o "triángulo culinário cerirnonial "
Araweté opera corn os pólos: •

Moqueado (Carne)----- Fermentado (Milho)

Enquanto o cozimento em água marca o consumo cotidiano ou


a comensalidade "profana". Vale notar, porém, que os tres termos
envolvem wna conjun~ao água-fogo: o cauim exige enormes quantida-
des de água para seu cozimento prévio a fermenta~ao:
a mistura de
SS ,•
rnel con\ a~ai é feita com agua morna (wn "cozimento" atenuado)

(55) ~se as refeic;X5es ooletivas (cx:m peyo ) de mel puro, sen~, e-


_xigem sua mistura cx:m água, o:rco se CX>Stuna fazer em outras sociedades (Tenet.e
hara, p. ex. - Wagley & Galvao, 1961: 129).

o moqueado é aferventado antes de ser consumido. De toda forma, o


triangulo Araweté é "obtusángulo", visto q\le os valores Fermenta-
do e Moqueado afastarn-se rnaxirnarnente do Cru, enquanto termo rnedi~

no e ambivalente: wn tende ao podre, outro ao queirnado, corno vi-


.mos (n. 39).
Observe-se por firn que . as carnes moqueadas · sao duras e se-
cas: contém o mlnimo de suco (enquanto o cauim é puro ti), e sua
substancialidade (ce~e} é pequena, se comparada ao cozido. o rnel
é o qu~ mantérn o máximo de substancialidade. O moqueado e o fer -
mentado, ademais, supoern wn diferirnento do consumo; o mel pode
ser comido !mediatamente.

361
araweté: os deuses canibais

o milho e o fermentado estao associados a posi9ao feminina;


a carne e o moqueado a masculina. E o mel é ambiguo, intrinseca -
mente, fluido sexual "epiceno".

(C) Conclusoes

A organiza9ao cerimonial Araweté só faz intervir o papel de


"dono" Cña} nas cauinagens, ou seja, onde o milho está envolvido.
Só nestes casos, igualmente, existe uma troca alimentar (farinha,
carne), mas que tende a ser "cancelada" pelo oferecimento de han-
quetes onde o ex-dono do cauim devolve os produtos recebidos aos
que os entregaram a ele. Nas demais refei9oes coletivas que envol
vem a vinda dos deuses, a te.ndéncia é a de uma indiferencia9ao ou
unifica9ao da comunidade, em que todos produzem e consomem a mes-
ma coisa. Nestes casos, o papel relevante, o de tenetamo,
- . tende a
se confundir com o de xami - enquanto no caso dos cauins o -
xama·
aparece mais bem como um "duplo" ou equivalente do dono, mas que
-
nao pode se·r ele.
A cerimenia do cauim alcoólico é a mais complexa, por envol
ver tres fun9oes: dono do cauim, cantador, xama; a primeira asso-
ciada a posi9ao feminina e a agricultura, a segunda a CaQa e -
a
guerra, a terceira aos deuses. Neste sistema, a oposi9ao princi -
pal é entre o dono do cauim e o cantador-guerreiro; o xami é um
desdobramento da posi9ao do dono, e o foco é o cantador. Nas ou-
tras cerimonias, o foco é a posi9ao de xama, e a oposi9ao princi-
pal é entre os humanos e os convidados celestes: os primeiros apa
-
recem como urna espécie de "dono" gC!neralizado do alimento preli.-
bado pelos deuses e mortos, e representados pelo xama. o ponto de
unifica9ao da comunidade, no caso do cauim, é o cantador; nos de-
-
mais, o xama.
O que ressalta dessa estrutura simples é que as cerimonia~

362
entre si

Araweté sao orientadas para fora. Nao refletem ou elaboram dife -


rencia9oes internas a sociedade dos vivos: nao tém fun9oes inicia
tórias , nao op0em segmentos globais da sociedade, nao consaqram
posi9oes. Nao há donos de festas, nem xamas fixos, nem cantadores:
essas posi90es circulam aleatoriamente dentro do grupo. o · result~
do é que a difere~a essencial organizadora é entre os bfde, co-
'
mo totalidade indiferenciada, e a posi9ao de outro, exterior: o
que unifica e indiferencia os viventes, a sociedade humana, é sua
diferen9a para com o Outro - in-i migos e deuses-mortos. O protóti-
po do cantador do cauim é um guerreiro matador; e a sua volta uni
fica-se a sociedade. Apenas, um matador é outra coisa que um Su-
jeito, uma encarna9ao do Nos coletivo: ele possui uma cumplicida-
de secreta com seu inimigo morto. Quem canta, no op..;,ztah~, é este
inimiqo: ele é o "ensinador do canto". Nesta cerimónia , portanto,
o dono do cauim encarna a posi9io do Mesmo, do Eu Araweté; os ho-
mens e seu cantador unificam-se num devir-Inimigo. Mas, ao mesmo
tempo, este querreiro-inimigo é "como um deus".

Nas demais cerimonias, onde a guerra nao é tematizada, o. xa -


-
ma representa a eomunidade humana face aos deuses e mortos; ele e -
o tenetamo de uma uniaade indiferenciada. Mas um xama tamp~uco -
e

um Sujeito, urna imagem da interioridade. Em sua capacidade de se


dividir, de separar seu corpo de sua alma, o xama tem uma - afinid~

de secreta com os rnortos. E seu lugar nas cerimónias do pey~ é e!


sencialrnente ambiguo: ele •·representa" ao mesmo tempo a cornunida-
de· dos viventes e os visitantes do Além: por sua boca de humano
(i-toyo me'! ztl iw! - "por aquilo que apodrecerá", dizem ·os Araw~
té) quem fala sao Outros: deus~s, mortos.

Xamas .e guerreiros, imagens do Outro: e ao mesmo tempo luq~

res de unifica~ao e encarna~ao da sociedade. Este é o paradoxo A-

363
araweté: os deuses canibais

- sao
raweté: que seus "ideais de Pessoa" reflitam o que eles nao - -
inimigos, mortos, deuses.

Que esses lugares sejam masculinos, isto sugere uma caracte

ristica importante da cosmologia Araweté: o espa~o do Mesmo, da

Sociedade, é feminino, em rela~ao ao mundo masculino do Outro. No

te-se al a posi~ao feminina do dono do cauim, e o devir-Inimigo '

dos dan~arinos do op~rahe, homens que vém de fora (~a mata, de ou


tra aldeia). Na qualidade de "comida dos deuses", por sua vez, os

humanos estao para estes assim como as mulheres para os homens •

Aqui vemos que, ao contrário de outras visees sul-americanas, em

que as mulheres remetem ao exterior do social, seres ~Iguos en-

tre a Natureza e a Cultura, o NÓs e o Inimigo, sao os homens que

encarnam a media~ao entre o Eu e o Outro, e as mulheres remetein '

para o interior da sociedade. A predile~ao especial de todos os

espirites do cosmos pelas mulheres Araweté indica que o dominio

do humano é essencialmente feminino. (Ver Lévi-Strauss 1984: 104,

sobre a comutabilidade da rela~ Natureza/Cultura e mulher/homem,


contra interpreta~oes substancialistas e unive~salistas).

O sistema cerimonal Araweté exprime, enfim, urna indiferen -

cia~ao interna do corpo social - que vai da justaposi~ao metonimi

ca de suas partes, no cotidiano, a urna unifica~ao metafórica bai-


xo urna figura ambigua, no cerimonial -, e poe em cena urna só opo-

si~ao constitutiva: entre o interior da Sociedade e seu exterior,

onde este último prevalece e orienta a ªQªº - os hµmanos alimen -


tamos "outros". Mas para que haja sociedade, afinal, é preciso
, -
haver diferen9as internas; se elas nao se exprimem cerimonialmen-
te, nem por isso deixa.m de existir. Aqui se coloca éntao o tema '

do parentesco, do casa.mento, da nomina~ao, do ciclo de vida. Como

os Araweté vivem essas diferen~as, entre si?

364
entre si

4, PARENTESCO E OUTRAS COISAS, SUBSTANCIAIS E AFINS

O universo social Arawe~é se organiza, .nwna primeira aprox!

mayao, conforme urna diferenc;a simples entre o campo dos parentes,


gente que comunga de urna identidade de substancia, e o dos -
nao-
-parentes, categoria de exclusao, que congrega os "outros": afins
reais, potenciais e, no limite, gente com a qual nao se tem "ne
nhQina" relayao - quase inimigos. Assim dois pares conceituais bá-
sicos estruturam esse universo: d;/amit!, l;i.t."outro igual"/" ou-
tro diferente", e sua especificac;io típica:· anl/tiwa, "parente"
(i.e.irmao)/"nao-parente" (i.e. primo cruzado). Fundada como está
na parentela bilateral ego-orientada, a sociedade Araweté nao con.!
titui, sobre essas oposic;oes, nenhum tipo de segmentac;ao global
fixa, como unidades de troca matrimonial. Nisso ela se aparenta i
maioria das sociedades sul-americarias, onde os sistemas terminolcS
gicos de duas seyoes e as equaQoes de fusao bifurcada convivem
perfeitamente com o kindred bilateral e a inexistencia de metades
.,
exogamicas. Como muitos Tupi-Guarani e alguns outros povos (Cari-
be), por outro lado, os Araweté permitem o casamento obliquo den-
tro ·do campo dos "parent:es"·, em gerac;oes adj.a centes (FZ/BS, MB/
ZO) ou alternadas. A singularidade da estrútura de parentesco Ara
weté reside em out~o lugar: no elevado ·desenvolvimento de uma ins
~itui9ao que se pode encontrar alhures, mas nao com as caracteris
ticas e os efeitos Araweté - refiro-me ao sistema da "amizade",is . -
to é, do estabelecimento de lac;os interpessoais ritualizados en-
tre nao-parentes, distintos da afinidade. No caso Araweté, esta
amizade "in-formal" tem como trac;o defi_n idor a mutualidade sexual,
ou partilha de conjuges: é a relayao de ap?hi-piha. A vigéncia
de.sta insti tui~ao, em seu aspecto de relac;ao sexual! zada, mina de

365
araweté: os deuse1 canibais

modo (a-)sistemático a diferen9a simples entre parentes e afins •


o sentido ou efei to do sistema aplhi-pi·ha pode ser resumido em urna
frase: os Araweté subordinam a afinidade a "fraternidade", a re7
ciprocidade a mutualidade (emprego estas dois termos na ace~ao -

que lhes di Lévi-Strauss no clássico artigo sobre o •átomo do pa-
rentesco" - 1958: 60).
.
Nao podendo, desnecessário dizer, furtar-se a necessidade
incontornável da troca matrimonial, diluem-na sob uma variedade
de artificios, dos quais o principal ou mais engenhoso (se compa-
rado p.ex. a alian9a obliqua) é esse: mais que algo que se troca,
um conjuge é pensado como algo que se ·p artilha. o resultado geral
é o expresso em um dogma da etno-genealogia Araweté: "somos todos
misturados". o que nao deixa de ser surpreendente, face ¡existe~

cia, no plano do conceito, das oposi9oes tao nltidas entre "nós"


e "outros", "irmao" e "primo cruzado/afim potencial".

A noyao de mistura exprime um fenomeno importante: é difi-


cil encontrar na aldeia alguém que tenha ··Wn só g~ni tor reconheci-
do. A colabora9ao seminal, e suas conseqüencias terminológicas, é
a regra. Ora, como a substancia da pessoa provém exclusivamente '
do sémen, e como os diferentes genitores de um individuo podem
-
ser ou nao "parentes-irmaos" (os aplhi-piha, por defini~ao, -
nao
sao anl), o resultado é uma mistura. A "patrilinéaridade" latente
na teoria da conce~ao se dissolve, as vias de classifica9ao se
multiplicam, e até mesmo a regra canónica mínima do kindred se es
boroa: sequer dais irmaos "reais" possuem um campo terminológico
identico, devido a colabora~ao diferencial de genitores.
'
Estabelecer uma genealogia Araweté, e representá-la, é tare
fa insana. Prospectivo ou retrospectivo, um tipo de "casuismo"
impera soberano, diante das versees conflitantes sobre quantos e

366
entre si

quais sao os genitore.s de alguém Cuma vez que os tecnonimos dos


homens nao dizem muito sobre a situaQao real), da extensa seqüén-
cia de casamentos sucessivos de todos (o que deixa marcas variá-
veis na terminologia), das trocas definitivas ou temporárias de
conjuges, das regras ad hoc de conversao de "irmaos" em "ex-ir-
maos", 1090 em conjuges ••• A depopula~io pós-contato, ademais,pr2
duziu urn remanejamento amplo da situaQao conjuga!; mas o ..
numero
de casarnentos tecnicamente incestuosos sempre foi relativamente
alto - · e isso apesar da estrutura de parentesco se distinguir pe-
lo pequeno número de categorias interditas. Acrescente-se a isso
a torcrao geracional global de urn sistema onde sao freqüentes os
casamentos obllquos.
O vocabulário de parentesco Araweté é muito extenso. Mas,
normalmente, os nomes pessoais sao mais usados na comunica~ao co-
tidiana,· como vocativos ou referencia. Assim, comecemos por exami
na·r o sistema de nomes pessoais Araweté.

(A) Onomástica Araweté

Há poucas restri~oes quanto ao uso ou men~ao dos nomes pes-


soais na fala Araweté, e elas nao remetem a posi~oes de parentes-
co: chamam-sepais, sogros, cunhados, conjuges pelo neme. Na verda
de, há apenas duas restriQoes: nao se evoca o nome da infancia de
urn adulto em sua presen~a - isso produziria "medo-vergonha"(ciu~..>

e "raiva" (mo-ira) no nomeado - e nao se diz o próprio nome, em


contextos verbais onde o sujeito da enuncia9ao é o sujeito do e-
nunciado: ninguém se auto-nomeia. Por outro lado, os nomes de in-
fancia (hadl me he re, "do tempo de crianQa"} de vários adultos
estao embutidos nos tecnonimos de seus pais, e ali nao sofrem res

367
araweté: os deuses canibais

tricroeS de men~aO, exce_tO pelo "eponim0 11


I que evita nomeá-lOS ,mas
esta evita~ao .h ao é tao imperiosa quanto a de auto-nomeac;ao;e uma
pessoa pode dizer o próprio norne se estiver citando o discurso de
outrem - o caso tlpico é o canto xamanlstico, onde deuses e mor~

- por seu nome, que assim se


tos podem interpelar o xama "auto-no-
meia" (od! n~iJ 56

- -
{56) "O que é que é ·seu, mas que quem usa sic os outros? - seu mue". Assim
propunha urna velha charada infantil de que ne lenbro. E que se aplica can mui-
t.o mais rigor caso Araweté, onde quem usa o "seu" neme sao os outros, e em
IX)

duplo sentido: seja .porque quan o pronuncia (~, ~ati1al iza) sao ~re os
oot.ros, se ja porque seu mne de infancia roceia seus pais. Esta iJltX>ssibilida-
de (pois é dist.o que se trata) de se autcrrx::mear evoca o sistema YaJ'DIBtli, on-
de, w furdo de tcx1o o gigant.esoo aparelho de proibiQé)es oronásticas, jaz a re
cusa de dizer o p:cóprio nane (Lizot, 1973:67). AtJ contrário dos Yarxmami, po-
rim, nerüun tabu pesa sct>re o roce dos -DDrtos. E a recusa de auto-~ 00!!
trasta, nos deis casas, can o que enccnuaroos JlO Alto Xiogu, onde o que se
proibe é o uso do rana &le "out:ros": dos' afins, erquanto . o ,próprio é livxeceu·-:
te usado. Quanck> digo que una pessoa_só se nareia no discurso citado, . quero
dizer que ninguén responde, se lhe for perguntado seu rnne, e que tanpouoo ~
pode substituir o "erbraiaOOZ'" da prineira pessoa do ~ingul.ar .he por seu neme'
próprio, ou colocá-lo en aposto. De resto, fora do canto xaman!stico, é raro
alguém _c itar o p:cóprlo nane.

Cada pessoa recebe apenas um nome (er.~i) na infancia, e o


portará (hereka, trazer, portar) até que lhe nas~a o primeiro fi-
lho. Esta regra é obrigatória para as mulheres. Os hornens, entr.e~

tanto, podem passar a ser denominados tecnonirnicamente através da


esposa, desde o casamento. A forma usada é "X-pihg", ''companheiro
de X"(nome da mulher) 57 • Quando nasce o primeiro filho, o casal

(57) cnie tyiha se analisa . en pi-na, "que reside junto a", fcmna que oonhece o
pretérito pi hez-e, "ex-carpanheiro" (de fulana), base de alguns nanes pes-
soais vigentes.

368
entre si

"joga fara" (heti) seus nemes de infancia e muda (her,;1.Ja: virar,


transformar) para os tecnonimos: "Y-ro" e "Y-hi", "pai" e "mae"de
Y(nome da crian~a). A cada filho que nasce, em principio, os pais
podem ser re-nomeados conforme seu nome; acumulain assim tantos~

nonimos quantos sao, vivos ou mortos, seu~ filhos. Na prática, p~

rém, apenas um ou dois tecnonimos (mas há casos de tres) tendero


a ser ernpregados pelo resto da vida e - da morte, e em geral o nome
do primogenito é o que se mantém. O primeiro filho é considerado

- he re). dos pais. Ele é. nomeado muito


um "nominador" (herai mais
rapidarnente que os filhos subseqüeptes, a escolha de seu nome -
e
objeto de maiores cuidados, e sernpre se pensa no nome que os pais
terao, ao se nomear seu filho. De certa forma, o que se está real
mente nomeando sao os pais, permitindo que deixem seus nemes de
infancia e atinjarn o status de adulto: os tecnonimos sao nomes
mais "própr.ios"; urna vez que se os obtém, os nemes de infancia vi
rarn automaticamente fonte de vergonha para seus ex-portadores .•
"nao sao bons de se ouvir", dizem. Nao existem, entre os Araweté,
nenhum outro método ou ocasiao de mudan~a de nomes que o nascimen
to de filhos, e nenhuma outra fonte de nomes: nem puberdade, nem
sonho, nem homicidio, como é tao com.um entre outros Tupi-Guaraní.

t para as maes mais que para os pais, contudo, que o nasci-


mento de um f ilho é essencial para a troca de nome: enquanto es-
tes podem deixar seus nemes de infancia via casamento, aquelas só
o fazern quando tem um filho. E assim, o casamento é para o hornero
o que o filho é para a rnulher. Poder-se-ia explicar essa di fe
ren~a pelos diferentes momentos e movimentos de cada sexo no rom-
per sua situa9ao "infantil": num sistema uxorilocal, o casamento
tira o hornero de sua origem e o transforma num "residente junto a"
mulher; para a mulher, é o nascimento do prime;i.ro filho que efeti

369
araweté: os deuses canibais

va.mente corta o "cordao· umbilical" que a liga a mae; é a partir


da! que ela deixa dé ser um apendice da economia doméstica mater-
-
na, e se volta para a propr i a casa·58 •

(58) Elttlora a expressao "he piha" µ>SSaser usada para designar o a3njuge, in
depementerrente de sexo, os lnnens raramente a usam. E as mulheres n~ sao -
referidas tecnonimicamente CX11D pihG de seus mariCbs. As fonnas "esposa" (he
migika) e "es¡:oso" (hereki) de X ou Y SÓ sao usadas o::m:> descritivos de pa-
rentesoo, mmca ccriD t.ealCnim::>s, i. e. , CXl10 nemes pessoais.

Um homem, nao obstante seu~ tecnónimo obtido pela paternida-


de (social - ver infra), continua a ser chamado, alternativamente
a forma "pai de Y", pelo tecnonimo "companheiro de X" - pu melhor,
"companheiro da mae de Y", pois este é agora o nome de sua mulher.
Assim, por exemplo, Payik~ passou, após seu casamento com Moreha,
a ser · chamado de Moreha-piha (ou ainda por Payika). Nascida Hewe-
y~, Moreh! virou Heweye-hi; Payik~ virou Heweye-ro, ou ainda Hewe
ye-hi-piha.
o· tecnónimo via esposa tende a ser mais usado entre os ho-
mens, enquanto a· forma "pai de· Y" tende a ser usada por · mulheres
e crian9as. No contexto da aldeia, porém, estas formas variam li-
vremente, ou idiossincraticamerite. Alguns homens sao mais referi-
dos como "pai de Y", outros como "companheiro de X". Entretanto ,
pude observar que no .a mbiente exclusivamente masculino dos acamp~

mentes de ca9a, como no caso da expedi9ao do cauim de 1981, a fo~

ma piha era exclusiva .e sistematicamente usada, inclusive para a-


queles rapazes que, por ainda nao terem filhos, na aldeia podiam
ser chamados pelo nome de infancia, Igualmente, quando um homem
poe-se a convocar os demais para urna expedi9ao cole ti.v a, usa a
forma piha - enquanto que para chamá-los a urna refei9ao, alterna'
livremente as formas. A forma pi.ha, assim, é tanto um nome pessoal

370
entre si

quanto urna forma "formal" de tratamento el)tre homens. Ela subli-


nha, sublinhando o vinculo matrimonial, ·que a rela9ao entre os ho
mens se faz através das mulheres - e isso nao conota apenas, se-
'
quer sobretudo, afinidade: irmaos se tratam assim, e mesmo um pai
59
chama desse modo seu filho • ~antes como se o que definisse

(59) un fillx>, porém, ~amais' chama seu genitor de


, .
"cnrpanheiro da (mae) "; usa
senpre o vocativo pap§p e o temo de referéncia he ro, ou o rare do pai da
forma "pai de X". Já () .marido da mae, nao genitor I pode ser none3do da fonna
an:terior, mesm::> que seja urn FB de~, oonforne o costurre do. levirato. M3s ain
da aqui a tendencia é se usarem, caro vocativos, teJ::nos de parentesco, nao 00-
nes pessoais. o pai (social) e a mae sao as pessoas rreoos freqüentertente desi~
nadas por rx:rnes pessoa.is, sern que haja aI qualquer inten:li.to.

homem, para um outro, f .osse


. sua condic;ao
.
de conexo a urna mulher •
Note-se, por fim, que .a· forma piha nao reflete .a situa9ao residen
cial real ou atual dos assim nomeados: o rapaz que leva a ~sposa

para residir no seu s~tor residencial é igualmente nomeado atra


vés dela. A· "residéncia" junto a mulher é uma situac¡:ao abstr·ata ,
que me parece exprimir, contudo, o valor axial da posi9ao femini-
na na organizac¡:ao da vida social Araweté. Após a morte de u.m ho -
mem, a forma piha desaparece; o nome pessoal que persiste é aque-
le que exprime ·a condic¡:ao de "pal de Y". Por outro lado, alguns
homens vivos sao designados - meio jocosamente, por suas esposas
atuais - como "Y-piher!", "ex-marido de Y (urna morta)".
Tudo isto nao quer dizer que a paternidade, e a possibilida
de de ser nomeado corno ''pai de Y",' nao sejam fundamentais para a
ascensao a condi9ao adulta. Tanto assim é, que há vários casos em
que homens tomaram nemes (definitivos) a partir de filhos que te-
riam sido gerados por outros homens, ou nos quais sua colabora9ao
seminal ·foi pequena. Nesses casos, tratavam-se de homens que ain-

371
araweté: os deuses canibais

da nao haviarn tido f ilhos próprios e que, casando-se por exem -


plo corn viúvas em estado de gravidez avan~ada ou com f ilhos de
peito, "ergueram-seguraram" (h o pf) a crian~a ou a "fizeram eres
cer" (mo-hi). Por outro lado, também é comum se formarem tecnoni-
mos masculinos por deriva9ao de tecnonimos femininos construidos'
a partir de filhos há muito mortos e que o marido atual sequer
chegou a conhecer. Finalmente, os casamentos sucessivos, por viu
vez ou divórcio, podem levar a acumula9ao diferencial, nao-transi
tiva, de tecnonimos gerados pelo nascimento de filhos. Assim, por
exemplo~ o homem Tayopi-ro é o mesmo Tarani-no,mas as mulheres
Tayopi-hi e Taran!-hi sao distintas, esposas sucessivas que teve,
e nas quais gerou Tayopi e TaranI 60 •

(60) E assim as situa;('>es rxrninais sao DW.to cx:nplexas, nao pennitindo que se
deduzam conexOes genealógicas reais Cou alegadas) da tecnonímia. Por exetplo :
o chefe da aldeia, Yuiñato-ro, "pa.i de Yiriñato", casou-se can a viúva Arado-
- -
hi, '"mae de Arado". Arado, crianc¡:a nDrta nuito antes desse casamento, foi "fei
-
ta" pelo finad:> Aracb-ro. Yirlñatc:rro pode porém ser designado oc:rro Aradcrro ,
já que é marido de Arado-hi. Pode ainda ser chamado de Yll"iñato-hi-p~, Ara-
do-hi-pwa. sucede que sua filha can AraOO-hi, Yirlñato - que o chama de "pai",
- - - -
a:msideraOOo-o cerro tal para todos os efeitos -,é tida pela q;>iniao geral, e
tacitamente ?Jr Yfilñato-ro, oc:rro fruto da sene.nte de cbis outros h::rnens, um
vivo e outro já falecicb, a quen ela tanibém chama de "pai". sao estas conexOes
agnáticas genéticas que sao levadas en cx:nta, no cálculo matrinarl.al, apesar
da nenina d1amar de "~" a hc:rnens que ¡xxler~ ser seus futuros maricbs,pos-
to que ela o faz a partir ·CX> reca'lheci.mento ch Yirlñato-ro cerro ·"pai". ·Este lx>
- -
nen e Arado-hi tero outra filha, Arar!ña-Jcañi, sobre cuja paternidade nao há dú
vidas; nao obitante, essa nenina (i.e. seu rx::rte) nao é usacb catD tecn5nirro '
dos país, correntanente. o que a tecrmímia consagra, a rigor, é a posicrao de
pater, nao a de genitor. Se Un lanero pode receber um tecrx'.nino segundo um fi-
100 que nao ''fez", em troCa nao será refel\ido pelo nate de um que fez, mas cu-
l

ja mae residia cx:m outro lrnen. E)nlx)ra de maneira tren:)l5 clara, a tecnonímia
feminina ccnsaqra a "mae-nutriz" , cr::> lado da "me-matriz" • Assirn é que, quando
Awara-hi JtDrreu em 1982, deixou urna filhinha de um an::>, Awara. Esta passou a
- -
ser praticamente criada na casa vizinha, onde norava sua il::nB Ña-Mal-hi, já

372
entre si

velha. Esta, embora nao pudesse amanentar a menina (o que foi feito por va - -
rias nulheres da aldeia), tatou-a a seu encargo. Ern alguns rreses 9a-~-hi oo-
mec;.-a.i a ser chamada de Awara-hi, em parte o:xro cr!tica velada ( ••• ) ao pa1 de
.Awara (Awara-:ro) e a nova esposa deste, que se "encostaram" na velha senl'x>ra
para cnidar da cr~. Mas esta ·"lnraúmia" (pois a finada a:mtinl.DU a ser -~
nhecida, entre outros tecn5ninos, cxm::>_Awara-hi) provave.lnente se CXX1S01idará •
oo futuro, c.:aro em outros casos senelhantes que tive de deserbrulhar nas ~
logias.

A nominac;ao das crianc;as (e de seus pais) nao é objeto de


nenhuma cerimonia pública, e nao - há nominadores pré-determinados,
por posic;ao de parentesco ou outros cr.itérios. Contudo, a maioria
61
dos nominadores (herai he re: o que nomeou) que me foram apont~

(61) ·o:xto se diz do pr1m:>genitc do casal (cf. ;ruera>. Maseste filho, ou seu
nane, . poñen ser alternativamente referidos por \na cláusula t.enporal. Assim ,
por exerplo, a mulher Iaf>!i ...hi, ·cuja mae é chamada de Mar!a-hi, é designada ~
no "Maria-hi me he re", que se poderia glosar por: "éqUela do t.enp:> em que Ma-
ria-hi passou a ser chamada assim" - pois seu rone de infáncia é Maria.

dos eram homens de meia-idade, ou velhos - e que tinham parentes-


co próximo com um dos conjuges (irmao, MB, avo, pai). Haveria, s~

gundo alguns, um ritual de nomeac;ao. o nominador, fumando, pega


a crian9a, poe-na sobre seu joelho, e após alguns minutos diz a
fórmula: "a11e ~e (nome da crianc;a)" - lit. "chega, está pronto (e
diz o nome)". Das várias crianc;as que nasceram e foram nomeadas
entre 1981-3, no entanto, apenas urna foi submetida a este ritual
(a .que nao assisti). As outras receberam seus nomes informalmente,
fora de qualquer ocasiao preci$a: foram passando a ser chamadas •
por
. . seu nome •

~ rnuito cornum, porém, que mulheres importantes sejam consul


tadas, e sejam responsáveis · por nornes dados. Os avós da crianc;a ,
de sua parte, tem sua palavra a dar na escolha do neme. Mas os

373
araweté: os deuses canibais

pais - que também podem escolher por canta própria o nome - sem-
pre opinarn, e podern recusar as sugestoes. só há uma regra sernpre
seguida, e portante fundamental: nao pode haver duas pessoas vi-
vas com o mesmo norne, na tribo (durante ·o último período de sepa-
ra9ao dos Araweté, um caso de homonimia teve de ser corrigido,tao
logo se teve noticia do fato). Isto se aplica aos nemes de infán-
ciados adultos vivos, "jogados fora"; eles nao podern ser dados
a cr.ian~as, enquanto seus antigos portadores estiverern vivos. Em
outras palavras: um nome, para ser conferido, tem ·de ser, ou "iné
dito", ou de wn morto.

O repertório de nemes pessoais Araweté é extenso e aberto a


inovayoes. Ele remete a trés classes que se recobrem parcialrne~

te, ou melhor, a trés critérios. Orna crianya pode ser nomeada"co~

forme wn ancestral" (p'!irowf'ha ne), "conforme um inimigo"(awi" ne)


ou "conforme urna divindade" (Maf ~e). E h:á uma classe residual p~

quena, de nemes inventados por outros critérios que nao os do is


últimos (os "nornes de ancestrais" formam, por principio, wn reper
tório fechado) •

o prirneiro critério, ou explica9ao do norne, significa que a


crian9a é batizada para repor ern circula9ao o norne de alguém mor-
to há tempos, e que a escolha de seu norne foi feíta com esta in-
ten9ao explicita - mesmo que, ern sua forma, o norne remeta aos "no
mes de inimigos" ou os "de divindades". A crian9a é pensada corno
substituindo (hekowfna) ou trazendo de novo (hereka y~pe) um anti
go portador (d)e seu norne, que é definido corno "prirneiro"(ipi ha,
tenetamo). Pode · haver mais de um•ancestrhl~que usou o norne, mas a
escolha é feita tendo-se ern vista urna pessoa em particular. O que
se repoe, a rigor, é urna tríade real ou virtual: a crian9a e seus
pais, pois o nominador da crian~a é igualmente concebido como no-

374
entre si

minado r dos país (urn primogénito -nunca é nomeado pelos pais, que,
jovens, recorrem a um parente mais velho).
A nocrao de "ancestral", aqui, nao tem conota9ao .genealógica
direta;. p-tro?pl 'ha, neste contexto,
- . ..
significa
. apenas "gente anti -
ga", ou mais propriamente, .m orta. A posi9ao ,.exata de parentesoo ~
tre os homónimos nao é levada em considerac;ao; e o "ancestral" e-
pónimo pode bem ser urna crian9a que morreu sem deixar descenden -
tes.
Nao consegui entender plenamente esse processo de reposi9ao
de nomes. Ele nao parece _ter urna inten9ao mais que afetivo-comem~

rativa. Nao há nenhwna idéia de re-encarna9ao de almas via nome ,


62
ou de repeti9ao cíclica de papéis ou posi9oes terminológicas ; o

(62) se a cri.an<;a, crescencb, lenilrar de alg\E noX> alguén norto, nao há por-
que ser neoessarianente seu ~· As senel.haD;:as can os nortos, especi~
te mtp:>rtém:mtaiS / sao nui.to . chseJ:vadas 1 e serven de base a apelidos .joa::>SOS
. /
a crian;a ·sencb chamada pelo~ (de infancia ou de adulto) do norto-rrodelo.
Por outro lado,· se a crianc¡a recebeu o neme de infáncia de um adulto, · pode-se,
tanrén jooosamente, dlartá-_la peJ.o tec::nóni.Iro de .seu ipiha ( ..pai de ful.arx:>") • o
que isto inplicaria - que seu f iJ..h::)receberá o neme do filho do epOn.ino - -
nao
se verifica nas gerealogi.as, e nao se fonnam ciclos níti<k>s de rx:nes.

que se repoe é o nome, que entre os Araweté tem urna f.un9ao de in~

dividualiza9ao, nao de classifica9ao. Um individuo escolhe, para


as crian9as que é chamado a nomear, os nomes que evoquem pessoas
que lhe sejam caras. E: cornum que urn casal decida re-utilizar o no
me de urn f ilho morto jovem, ou que os avós sugiram que o/a neto/a
receba o nome de um FB .ou urna MZ. Nao tenho exemp~os de crian9as
que receberam nomes de infancia de seus .MB ou FZ, o que parece s~

gerir wna tentativa de evitar transmissao cruzada - coisa que nao


chega, no entanto, a fundar "linhagens" ou metades onomásticas •

Nao há critérios geracionais. A explicacrao geral para a razao de

375
araweté: os deuses canibais

se escolher um determinado nome era sémpre: "herai pitamo" - "Pº!:


que (fulano) assim quis nomear".

Um nome pode ser re-atualizado, tanto em memória daqueleque


o portou~ quanto para repor o nome (tecnonimo) de seus pais. Mui-

-
tas vezes o que se tem em mente e que voltem a haver os X-ro e

X-hi, nem tanto a crian9a em si; isto é especialmente claro quan-


do o nome escolhido remete a um morto jovem e sem filhos.

Embora a determina~ao singular do nome "conforme um anees -

tral" dependa das inclina~oes (momentáneas ou duradouras) do nomi

nador, par·e ce haver alguma espécie de ordem. Em primeiro lugar, um

nome pode puxar outro, e filhos subseqüentes de um casal podem

ser nomeados conforme os siblings do casal-ep0nimo. Em segundo lu

gar, os nomes tendem a circular dentro de grupos de irmaos de mes

mo sexo. t preciso ainda que transcorra um periodo razoável - mas

indeterminado - de tempo até que um nome seja re-utilizado, exce-

to nos casos de filhos de um mesmo casal, quando a crian~a morta

mal chegou a usar o nome. Por fim, nao é incomum que um nominador

procure reproduzir, na medida. do possivel, as rela~oes terminoló-

gicas reais ou poten~iais que mantinha com o eponimo, no nomina -

do; ele evita dar, em suma, nemes de seus parentes paralelos a

parentes cruzados. t costwne se dar o nome de um "filho" .ao filho


de 1.Ulla· mulher que está na categoria de "esposa", ou de urna antiga

esposa para urna "neta" (categoria casável). Isso nao significa trna.

reprodu~ao sistemática das rela~oes terminológicas, e a nomina~ao

nao afeta ou guia a terminologia de parentesco, ao m~do Txicao ou

Je. E nao há nenhuma rela~ao especi~l, no futuro, entre o nomina-


dor e o nominado - a única "rela~ao" (afora o parentesco próximo'

que costumam ter) é negativa, no sentido de que o nominador ja-

mais pode dar~ nome ao nomeado, posto que ~os sao vivos.

376
entre si

Por f im, o que se pode dizer é que os nomes circulam dentro


das parentelas, constituindo um estoque utilizável dentro deste'
agrupamento fluido que é o kindred. O "direito" que tem urna pes-
soa de dar determinado nome de morto a urna· crian9a - ou melhor
ainda, o direi to que tem um casal a usar este nome como .t ecnonimo
- é urna questao mais ou menos controversa, e depende da defini9ao
contextual dos limites da parentela. Aquí, os paralelos mais cla-
ros sao como · sistema Txicao (Menget, 1977: 253).

Nada mais conseguí determinar: o exame das genealogías nao



me . permitiu encontrar nenhmma figura significativa e, ressalvando
urna mui to possível ino:::m 1petimcti-a técnica, permane90 atribuindo -
a
fantasia individual a eSCQ!lha dos nomes pessoais "conforme um an-
cestral", dentro dos vaqos limi:tes acima indicados. Acrescente-se
que ha nomes "confoi:nae ancestrais" que r :e aparecem qua.tro ou mais
vezes nas genealogi-as, enguanto outros só Uilla vez, e isto indeperx1en
temente da posi9ao ou conecti vidade genealógica dos portadores dos'

nemes "populares" e "impopulares". •

A classe dos nomes conforme · um morto é heteróclita. Ela


abriga nomeS que OS Arawe·té nao Sabem traduzir I i •e• que SaO ti ap~

nas nomes" pessoais; muitos destes devem ter sido inventados, ou


remetem a etimologías arc-aicas. A maioria dos nomes de ancestrais,
porém, tem significado·: nemes de ancestrais miticos (que por sua
vez podem ter ou nao signi.ficado), nemes de animais (sobretucb pás
saros), de plantas, de objetos, de verbos ("apagou", "escanchar"),
de qualidades ("vermelho", "único"), e até termos de parentesco
ou classe de idade ( "minha avó", "moc;a", "meninota", "finado pai")
- além dos nomes de inimigos e de divindades. Estas duas últimas
classes, juntas, formam cerca de 70 P<?r cento do repertório ano -
mástico Arawet~; o que nao deve ser confundido, entretanto, com o

377
araweté: os deuses canibais

triplo critério de esco·lha de nome. Ass'im, de urna amostra de 219


nom·es pessoais sobre cujos motfvos de atribui~ao
-
eu pude me asse-

gurar, 94 foram conferidos "conforme um ancéstral", 82 "conforme


um inimigo" e 43 "conforme urna divindade" - i.e. respectivamente
43%, 37% e 20%. Sucede, porém, que dos 94 nemes dados por causa
de . um morto, 34 eram definidos como nemes· de inimigos ou de divin
' a·os 63 • Nos 109
d a d es, e o restante remet i a a outros s i gn if ica no-

(63) CUriosanente, os Araweté senpre negavam a deri~


óbvia de certos rx.:mes
pessoais a partir de animais, plantas ou objetos. Ou melh:>r: . seripre que. eu ten
. . -
tava me assegurar de que um nane pessoal era o mesno de, diganos, urna árvore ,
me diziarn:n00, Me tem nada a ver, é dif_erente" (ikatete ki - ver
11
Supra I
p. 208, n.20~, isto é; era um nane pessoaJ, e ql:lEl teria sido conferido en rre-
nória de um ancestral. Nao obstante, sao. freqüentes as brincadeiras em que se
designa um animal oo objeto pelo tecnOnino oo adulto que portava o rx:rne de in-
f"'ancia "taOOnino". Assim, ~r exerrplo, dlainava-se o dloca.1.ho ~ de "IriüJi,p~i­
ro", pois Ar!Y é o rx:rne de infancia deste tnnem. Ou se chama o vento de "neto
da Mad!pai-hi", pois o nane de i.ntancia 9esta Imllher é Iwitcr.yari: "Avó Vento"
- . . - -
(allás, um nane "confoxne urna divindade") • A re J ~_ dos rones ~soais a:m o
de deuses e inim:i.gos, por seu lado, é sarpre reconhecida. ~ toda fonna, nenh~
ma restri~~ pesa sobre o uso do pl:Óprio "nane" na .medida em que este designe'
um objeto ou entidade. O ha1ern que se dlarnava Ar~ pode usar tal pa1avra para
mencionar o clocal.00. Nada te.rros aqui de senelhante ao banimento das raízes o-
rx:rnásticas que se encontra entre os Yarxrnami. (Lizot, 1973), cu aos circunló -
quios que um alto-xin~ precisa f~ para mencionar objetos cuja nare de -
signa também um afim (Viveiros de Castro, 1977: 191). A restri~ reside no
fato da enuncia'(ao do próprio nare (de infancta ou tecOOn;im:)), nao na palavra
em geral. Que se possa dizer o próprio ncine no discurso citado, isto sugere e-
xatanente que o "problema" Ar~té é evitar a coincidencia do sujeito do enun-
ciado a:m o da enunci~ - ver supra, p. 64~5.
A:PelidoS temporáriOS sao muito canuns I Ine1X>S CCll1lll1S 05 pennanenteS • una
brincadeira que fez furor em setenbro de 1'982 CCl'lSistia em chamar as pessoas '
de "fil:hote de (um animal)", confonne suas r~ evocassem o m1ifX)rtanento
da espécie. Os apelió::>s pennanentes aludem a trac;os físioos cu eventos que l1la!:
cam urna pessoa: "queixudo", "narigudo", "a::nprida", "pelada" (urna mulher, que,
raptada pelos Kayapó, fugiu nua para a aldeia), e sao especial.nente usados~

378
entre si

no "tecn5ninos" jocosos ou insult\Jbsos para terceitos: o "marido da pelada" , o


"filho da nariguda" .•• Já vinos o caso dos "nanes das vaginas" (p. ' 352), que,
alérn do nel, descrevem características in'putadas a getµtália da apelidada: "~
raia" (¡::>ela senelhanl;a entre esse peixe e· os lábios vaginais) ' · .. ouri<rO de cas-
t.anha" {pela anplidao da vagina), "dente de macaoo" (¡x>rque cortaria o pénis),
etc;:.
O uso dos nares de anoestrais m!tioos. (M~ri~, M::>ikato) é o úrúoo caso em
que a expressao . oonfonne um ancestral,; tem valor literal e pode nao signifi -
fl
. . .
car que se esteja re-¡x>nd:::> o rane de um noi:-to genealogicamente detenninável ,
lnTOn.ino. Tais. oones sao.. ~' .
mas sao pouoos. ce resto, nen sempre ~ tem
clara a diferel'l9a entre
. .
urn ancestral mitioo, . um inimigo, e um ser-toznado-di -
vllldade.
A onanástica .Araweté distingue nanes masculinos~ f~s, seja pela afi-
~ao do rrorlema kañt .... · (nrulher,
.
fernea) a urna . raiz, seja pelo. oostume de se atri--
bu!rem certos rX:mes (intraquziveis ou "s_ignificativos .. ) a cada sexo, regular '7'
nente. Assim, o nare "Castanha-do-Pará" (Ñi) é masculioo, . - é fe-
"Qua.ti" (Kac!)
minino, etc. As famas em kQiñ - em. ¡x>si<;ao inicial ou final - sao extremanen-
- .
te produtivas, foz:mando rx:mes en tOOas as classes: nares de nortos, de inimi -
c;ps, de divindades.

mes, eu raizes onomásticas _que fermam tecno-nimos, atualmente em


uso na aldeia, a _proper~ae se mantém: 33 nemes de inimiges, 52 de
ancestrais, 22 de divindad.es~ e dos nemes de ancestrais, 16 reme
tiam as duas outras classes semanticas.
Os I)emes pessoais que rernetem a noc;ae de "inimige" fer:mam
igualmente um conjunto heteregenee. Ali se incluem nemes de inimi
gos míticos, .nemes de tribos inimigas, nemes pessoais de inimigos
- ouvidos pelas mulheres raptadas pelos Kayapó, _que voltaram ~ p_a
• •
lavras de linguas estrangeiras que os Araweté sabem, ou nao, nada
terem a ver com "nemes pessoais", e algumas constru~oes c;omplexas,
metáforas que evocam. os inimigos e a guerra, que me parecem ter
sido extraídas dos canto.s comemorativos da marte de um inimigo •

Neste conjunto se incluem . os vários nemes ou expressoes em p.ortu-


gues, muitas vezes tornadas irreconhecíveis na pronúncia Arawe-

379
araweté: os deuses canibais

.. 64
t e • Os nemes pessoais, portante, nao precisam ser derivados de

(64} Assim os mees Ayi~, H~, ~' ~' Miwei, reretem, respectivanente,
a "Osvaldo", "José", "Funai", "Caroa" e "Mano Velho" (apeli~ do enfenreiro oo
Poste} . Oltros, di tos serem extraídos ó:>s kamarQ, sao-me irreoonhecíveis: ~,
Pateka, ~ti • • • E há o casé> do nane Maria, considerado de origen Kayapó ,
- - -
visto ter sido ouvi&> por \11\a velha raptada pc:>r esses indios, cx:no nane pessoal
de uma menina Kayapó. E há até -mesn0 o caso do riane, de ·san e salx>r tao tipi~
mente Araweté, ae Kara~, que traduz a interjeic;ao "caral.00! 11 ' abundant.enente'
enpregada pelos funcialários do Posto - e cujo significado os Indios saben
qual é . . . Alguns doS apelidos aados ~ indios pelos brancx:>s vieram substi -
tuir os ranes pessoais: ceará, capanga. o nane "F\mai." foi dad:> a uma crianc;:a
por um funciaiário do PO$t0, ·a pedido da mae ~ pois nao
é inconum que as maes
perguntem aos branoos qlie rX:lle devem dar aos fil.hos, o que evoca um costume Y!
nanami (Lizot, 1973:61). t,ntre· os ~e.s "de branci:>s" existe ainda o de Toro~,
. . .
que evoca '*Gorotire", ·~~ veze5 OUVido no . rádio do Pesto - e que é o nane
de uma aldeia I<ayapó.

nemes indiviiduais ou pessoais de inimigos; eles evocain de um modo


geral o universo dos inimigos·,. dos outros, e é o que importa. No-
te-se qué o cons'Qmo de nomes de inimigos nao traduz o desgaste do
repertório dos nemes ancestrais, seja pela impossibilidade de se
usarem nomes que remetam a ancestrais alheios, seja ·pelo abandono
do nome dos mortos. Trata-se antes de uma forma onomástica que
traduz a experiencia Araweté, e possui portante urna historicidade
essencial. Esta é, ainda, a classe mais aberta a inova~ao.

Os nemes Ma·! tle ,. "·segundo uma di vindade" , nao podem deixar


de traduzir a heterogeneidade do panteon Araweté, já comentada
anteriormente. E .praticaménte todos os nomes de di vindades celes
tes e subterraneas, genéricos (Mal): espe.c íficos (Ay~r!i: ti peha )
ou "individuais" {Aranami, Moinai' o), podem ser encontrados· como .
- -
nemes pessoais. Nao se usam, porém, a maiori.a dos nemes dos espi-
ritas terrestres·, com exce~ao do Senhor dos Queixadas(Yarayi-kañI

380
entre si

= "mulher-Iaradi'") e do Dono da Agua, mas ness·e caso apenas metá-

foras ou circunlóquios (Mal damira pe kañ!>· Alguns deuses cani-


bais do céu podem nomear crianc;as (como Teredeta) - só nao se usa
o nome impronunciável do canibal Iaracl. Nesses "nomes de divinda
des" incluem-se igualmente criac:;oes individuais surgidas em can ·-
tos xamanisticos, e formas descritivas que -evocam serem divinos
(p.ex. KañI k1:ca yo, "mulher desenhada eterna"), além de nemes
intraduziveis que sao sumariamente eJ<plicados como "Mai'", e que
nao sei se se referem a divindades antropomorfas, a palavras sur-
gidas em cantos xamanlsticos, metáforas, etc~ (Iwamay~, Ap!dima).

Todos os trés conjuntos de nomes e/ou critérios de atribui-


c:;ao podem ser acionados a partir de visoes xamanlsticas, dire:ta
ou indiretamente. Assim, q-u ando é um xama o nominador I ele poderá
se apoiar em s-eus cantos noturnos para encontrar o nome de urna
crianc:;a; outras pessoas, porém, podem-se aproveitar das palavras
alheias. E os nomes "conforme as divindades" sao mais freqüente-
mente - quando nao remetem explicitamente a um hornonimo morto
conferidos por inspirac;ao xarnanistica.

Por firn, há nomes ·considerados inventados, i.e. que nao re- -


metem a nenhuma das classes anteriores. Atualmente há apenas deis:
N!' !, que nao tern traduc;ao, e Kañ_!-bld!, "mulher-mentira''. Por
''inventados" (imara te, "(o
- .
nominador) simplesmente o criou") en-
tenda-se isso, visto que a criac;ao nominal é constante, mas sem-
pre referida aos co~juntos mencionados.

Após sua morte, o nome pessoal de um individuo é usualmente


seguido pelo sufixo -rem!_ (menos comumente, -ami), "finado", que
segue .aliás também os designativos de parentesco. Nos · cantos xama
nisticos em que os rnortos se fazem presentes, e sao nomeados ., es-
te sufixo é obrigatoriamente nao-usado. Ele conota ausencia ou

381 ~
araweté: os deuses caruDais

distancia, e pode ser aposto ao nome de pessoas há muito afasta -


das da aldeia
65 -
. Os nomes de infancia dos mortos adultos sao li-

(65) Estes sufixos se aparentam, assim, aos -broa e ~ Krahó (carneiro da cu-
nha, 1978: 75).

-
vremente mencionados, desde que nao na presen9a de algum parente
próximo; mas a persistencia do tecnónimo é a regra, inclusive nos
cantos xamanisticos. Já no único exemplo disponivel de um canto
de guerra onde um morto Araweté é nomeado, é-o por seu neme de
infancia, e seguido do sufixo-ami - mas ali, como veremos, quem
está falando é um inimigo.
As tres classes de nemes estáo em distribui<;_a o aleatória
embora, em termos de critérios de escolha, haja urna tendencia a
se nomearern os primogenitos ( lego, os pais ). "conforme um anees-
tral", sern que isso indique qual o conjunto semantico a que o no-
me remete. Podemos assim resumir o sistema onomástico Araweté em
da is principios básicos:

(1 ) A tecnonímia marca o status de adulto, casado (homens )

ou com filhos (ambos os sexos) . O nome pessoal de um individuo


plenamente desenvolvido, assim, é o nome de outra pessoa, que per
mite o abandono do neme de infancia. Os nemes de infancia, i.e.
os nao-tecnónimos, sao portante nemes com urna voca9ao instável ,
deslizante: sao nemes que se deixará de ter, ou que serao conferi
dos a outrem após a morte do portador, ou nemes de outros que foE
mam o próprio nome-tecnonimo. ?ndices máximos de individualiza~áo,

sao no entanto nemes transitÓrios e transitivos. Isto é cornpati -


vel com as duas regras mínimas e básicas da nomea9ao: nao se"usa"
(se fala ou se dá) o próprio nome; dois vivos nao podem portar o
mesmo nome.

382
entre si

(2) o repertório onomástico_·e os critérios de nomina~ao re-


metem a urna tríade.: mortos, inimigos, d·i vindades. A no9ao de "re-
posi9ao 11
dos nemes de "ancestrais" nao traz consigo nenhuma inten
9ao de re-posi9ao da pessoa epónima, e · seu valor evocativo é, nes
te sentido, o mesmo que se acha nos dois outros conjuntos ou cri-
térios. Desnecessário dizer que o portador de um nome "de iniml-
go" ou "de divindade" tampouco é considerado urna encarna9ao de
seus ••eponimos" . - mesmo porque muitos desses nomes nao sao retira
do-s de nemes pessoais na origem. Nao há nenhuma rela9ao pri vi le -
giada do portador de · um ·nome como AranamI coma divindade Aranam{,
aqui ou no Além. A aparente contradi9ao entre o primeiro critério
de nomea9ao, onde, ern geral, se procura re-por os nemes de pe~
-
soas queridas (mas isto nao -
- e "regra ... ), e os outros dois, onde se
evocam inimigos e divindades perigosas, se dissolve se considerar
mos que o sentido subjacente a todos os critérios e conjuntos é
um só: os nomes evocamos outros - deuses, inimigos, mortos -,sao
urna memória da exterioridade que cerca o mundo dos vivos. Ao "se
chamarem" entre si, os Araweté estao, mais urna vez - e aqui radi-
calmente - usando o nome dos outros. A marca máxima da individua-
lidade - o próprio nome pessoal - a fonte das "identidades", as-
sim, vem de fora , da triade que forma a figura do Outro: deus-
-morto-inimigo. · Mesmo na rela9ao a si, em suma, continua-se entre
outros - é isso que os nemes Araweté significam.

Apesar de sua simplicidade, a onomástica Araweté tem parale


los e contrastes evidentes com outros sistemas sul.-americanos.Ela
sugere com clareza que a cosmología deste povo se inclui entre a-
quelas em que os nomes e as identidades vem de for~, remetem ao
exterior da Soc.iedade, onde a morte e a alteridade sao diretamen-
te constitutivas da Pessoa - e nestas cosmologias, os nemes pes-

383
araweté: os deuses canibais

soais parece m tender a urna fun9 ao individualizadora. Tais siste -

mas onomástico-metaf Ísicos contrastam coro aqueles em que os nomes

e identidades vero de dentro, remetem para a essencia distintiva '

do social, e c onstr oem personagens - e aqui, os nemes tenderiam

a fun9ao classificatÓria. Sistemas "canibais", digamos assim, on-

de os nomes vero dos deuses, dos inimigos mortos, dos animais con-

sumidos; onde se obtém os nemes do Outro - versus sistemas centrí

petos o u "dialético s", onde os nome·s designam rela9oes sociais ,


podem definir grupos corporados com urna identidade coletiva,e sao

contrapostos a "ant6nimos" especulares que tim a fun9io de cons-

truir, mediatamente, o sujeito-nome; e onde a transmissao inter -


66
-vivos é essencial para a continuidade socia1 .

(66) Urna d.istinc;ao que, nen por necessitar maiores qualifica90es , deixa de s er
reencontrada alhures , e talvez constitua urna. escolha metafísica geral. Assim,
cxrrentando a análise da pessoa Sama (J\frica) por F. Héritier, Lévi-Strauss ob
servava justamente essa qx:>sic;:ao, entre o sistema Sarro, em que nanes e identi
dades van de dentro, e os sistemas dos "cac;adores de ~as tradicionais" ,
cujo rróvel fund.arrental é a captura de almas e nares fora da sociedade(L.-Str. ,
org. , 1977: 73) ; suponho que ele esteja se referindo a Indonésia, Melanésia e
aos J ívaro e Murrlurucu.
Haveria que construir o sistana de transforrna~s entre as onanásticas (e
teorías cx:mexas sobre alma) sul-emericanas , de m:d.o a se perceberer:n suas impli
ca~s rretafisicas e seu valor estratégico para a apreensao das diferentes " to
pologias sociais" envolvidas, o m:Xlo caro articulam as rela90es entre . Interior
e Exterior do socius , caro se inscrevem na terrp:Jralidade, o que intentam. O
contraste evocado acima sugere extrerros de urn continuum que se estende entre
os sistemas Tupinarrbá, Txicao, Yananami (e Jívarq, se considera.rrros a aquisi
9ao de al.m:ls caro análoga a de nanes) de um l{ido, e os s istemas Tirnbira-Kayapó
e Tukano do outro . Os casos Bororo e Xavante parecem inte.rmediários.
Já foi exaustivamente descrita a inp:>rtancia f undarrental da execu9ao de
um inimi.go na onanástica Tupinambá - que beneficiava nao só o matador, mas urna
quantidade de paren tes seus , e que tornava o cativo de guerra um "bem simbÓli
co" a circular entre rrembros do grupo cx:no prestac;ao .matri.rronial ou marca
dor de outras obrigél90es ._ (Ver Métraux,1979:142-ss; 1967 ; _Fernandes, 1963:279;

384
entre si

1970:201- ss; as melhores fontes sao 'lhevet,1953; _Cardim ,1978; J.M::>nteiro . in


HCJB, VIII~393-ss) ·. -O inimigo rrorto era, ¡:x::>r assiro .d izer , o "naninador" dos a
dul tos Tupinambá, que lhes permi tia deixar seus rones d_e infancia - sua oorte
equivalería assiro ao nasci.rrento de um .filh9 para os Ara'll-Jeté (e Kaapor, Sirio
rx:> , que tarnbém usam tecroni.Jros filiais). só após o~ter um nare por esta via
é que um rapaz ¡;xxlia _c asar (e ter filhos legítirros). e . ~r caui.rn - Cardim,
1978: 103-4 ; HCJB , VIII:409 ; 'Ihevet, 1953:1~4. (OUtra inversao nos AraV>.Jeté, on
de só após casar é que um harem troca de nane) • A obteru;ao e aC1,lllllllac;ao de no
mes "sobre a ca.be<ra dos contrários", caro diz Cardim, era um m:Svel essencial
da guerra Tupinambá - havia ,harens con mais 'de cem destés "apelidos" (HCJB,
VIII:409; cf. tb . Staden,1974:172) -, a qual entao nao pode ser explicada ern
tenros de urna teória recuperativa da vingaJ'l9ª · (E é ·por isso que Fernandes pr~

cisa temar a "re-nc:mac;ao" - reocmi.né\9ªº e rencme - caro úma fun<;ao derivada da


guerra, cujo rróvel seria a ving~a restauradora) • Seria íhteressante contras
tar essas cadeias de "nemes de guerra" Tupinambá Can os "name-sets" Je e Txi
cao, e aproxilrá-las dos necroni.Jros Bororo. Mas- há poucas informacr()es sobre o
significado e os critérios de escolha do nane tonado pelo matador - o certo
é que nao era um tecnOni.Jro, nern um título. (Nao creio , caro faz Fernandes
1970 :.212 apud urna passagem ambigua de Cardim, que as fonnas honoríficas Abae
té; Mo:rubixaba, etc. can que eram tratados os matadores renanados fossem os
naoos pessoais adJuiridos pela exeeu<rao ·de cativo . O repertório variado de no
rres pessoais Tupinambá é mencionado ern .Métraux (1979: 97 , via· AbbeVi.lle), e cer
tamente inclui nemes de adultos, logo de matadores . Urna passagem de . Staden
(1974:170) indica que rones de avós eram usados para batizar ·criMic;as).
Sobre o rito de re-nanina9ao do matador, Soares de Souza (1971 :323) a
ponta un aspecto crucial - era o próprio matador quem ·se nareava :

''Costuma- se, entre os Tupinambá, que todo aquele que mata oon
trário, tona logo rore entre si , mas nao o diz senao a seu tem
¡:x::> , que manda fazer grarrles vinhos; e cerro estao para ·se pcd~
rem beber, tingem-se· a véspera a tarde de jení.papo, e ccne9am a
tarde a cantar , e toda a roite , e depois que tem cantado um
grarrle peda90, anda toda a gente da aldeia rogando ao matador,
que diga o nane que tomou, ·ao que se faz de rogar, e , tanto que
o diz, se ordenam mvas cantigas , fúndadas sobre a norte daqu~
le que norreu, e em l~wores do que rn;itou .•• " -(éu grifo) .

o que sugere a tun;:ao de singularizac;ao radical do nare 'Pupinambá: é o sujeito


que escolhe e profere o p~rio rx:xne. Este proferirrento parece associado ao
canplt?XO da "oralidade" caníbal: nao SÓ O beber caui.m, ato pernútidO apenas a

385
araweté: os deuses canibais

quem já matara inilnicp, era o contexto em que estes nemes eram proferidos e os
f'eitos de bravura contados e cantados (Jácane.Monteiro afirma que sarente nes
tas vinhac¡25 cnue.norativas os rores eram proferidos), can cquela arrogancia
verbal que tanto e.xasperava· os ellrq)eus ('Ihevet, 1953:92; Anchieta, 1933:129;
CPJB,III:l33), cerro c>s batcques labiais eram insignias de honra que autoriza
vam a discursar ero público, serna tanto mais numerosos. quanto mais-ini.migos se
havia matado (HCJB, VIII:409). Conhece-se o simboliSJro verbal do batoque en
treos Jé, igualmente (Seeger, 1980b:cap.2).

Sd:>re a escolha ·destes rores: Florestan talvez tenha razao em dizer que.
o rx:rne tema&:> pelo sacrificador" nao proviflha diretanente da vítirna, e era de
11

livre escolha do matador (1970:311-2); mas vale registrar duas passagens de An


dú.eta que ele nao cita (CP~,II.:115; CPJB,III:259), onde se diz clararrente
que o rx:rne tanack> era o rx:rne da vítirna. Ainda em favor de outra hipótese . le
vantada e descartada por Florestan (1970:311,n.553), una ap~ao destes f~

tos can os cantos de matador Araweté - onde nao há re-:roninayao envolvida - .pq
deria indicar que era o espirito do norto que re-rx:neava seu matador.Pois ccm:>
vereros, o sujeito do enunciado do canto de guerra Araweté é o inimigo,
.
e é -e
le quem ensina o canto a seu matador. A clássica explica9ao (~traux, Flores
tan) da troca de nemes pós-execuc¡:ao - ela teria o objetivo de .proteger o mata
dor da vinganc¡:a do norto - parece-me parcial e contraditória. A questao era me
nos a de trocar de rare que a de ~irir nane novo; e os nares eram tanados
para causar medo (Staden,1974:170), nao por causa do medo. As indica<JÜes de
que o oc.me da vitima era conferido a una cri~a envolvida no rito, entre os
Guarani antigos (Métraux,1979:97, questionadas depois ero Métraux,1967:74), bem
ccrro ~las de Andúeta já referidas, podan fundar· hipóteses mais carplexas
que a de una intencrao de "burlar a alma" do norto, irrlubitavelmente presente
em outras ~ (cardim,1978:119-20). Vale a pena, ainda, referir o cost:tune de
se dar o prÓprio nanea pessoa que se estimava (~eux,1929:244), manifesta9ao
de urna amizade que envplvia taITbán os vocativos "minha esposa" , "neus dentes"
(e outras partes de Ego), e a partilha do ITeSITO prato (CPJB ,III:478-9) -urna i_!2
versao sistemática da inimizade, orrle o cx:xner junto se mudava no o:rrer o outro,
a doac;ao do próprio nane em abten<;ao violenta de um none próprio sobre uma pru:-
. "
te ·ao outro: sobre "sua cabe9a", diziam ·os cronistas . ~tonímias elcquentes.

A on::mástica Guaraní m:x:lerna depende'1o xamanisno e está vinculada a ~


rna origem divina do nare-alma, seja em term::>s de reencarna_crao de rrortos ou se
res celestes (Apapocúva,Kayová) ou nao (Mbyá) .Os nares Guaraní , eml:x>ra entrem
em "classes " (renetem a diferentes divindades e posi90es celestes),possuem uma
forte conota~o de invidualizac;ao: cf. a ligacrao entre o nane pessoal e as

386
entre si

"rezas'' para os tlandeva, onde "nao há duas pessoas can a mesma reza" (Schaden,
1962:123). (Ero geral, ver: cadogan,1959:39-ss; 1965; Nimuendaju,1978:53-S;Scha
den,1962:112-3). A cosnologia Gua.rani opera can urna polaridade radical entre
.
rnne-alrna-canto, de um ladó~ e oorpo-espectro:-canida, de outro. Nos Tu:pinarrt>á
já se podía ver urna exclusao entre re-rnne e canibalisrro - o matador nao cx:rnia
oo inimigo (Gandavo,1980:139; Fernandes,1970:211; mas ver Métraux,1967:74). E
caro se viu, havia estreita conexao entre proferi.rnento do rone, canto (nao "re
za", mas canto de guerra), e bebida, trx3as essas coisas "espirituais".
Se os nanes "próprios" 'l\Jpinartbá se originavam nos inimigos, e os nemes
Qlarani vém dos deuses ou nortos reencarnados (cp. can o uso estrutural.nente
"atenuado" de arrbas as fontes/critérios pelos Araweté), os nanes de outros n;
se report.am' ao danínio da ammalidade. Nao cx:m:> sinpi.es repertório onanástico,
o que se encontra em tantos povos, mas caro critério de nanina9ao. Assim, in
verterno a disj~ao nane/canida, os Aché rnneiam os filhos a -partir do animal
que a mae consumiu preferencialmente durante a gravidez(ou que determi.oou <XJf()
epónino, dos cx:xnioos). Tal came dá a "natureza" (bikw> e o nane da criaJ19a.
Essa transnissao ex>njunta de nene e substancia se transforma, quando a carne
consumida pela mae é a de um norto do grup::> (os Aché ~a.o "endo"-canibais), em
\.l'l\a "r~oo" da alma-ove 00 finado; nao há aí trqnsmissao de rore, caro

no ca.so do bikwa animal. De toda forma, o que Tu:pinambá e Guarani . separavam,


os Aché juntam: substáncia e nare/alrna (P .Clastres,1972:338-'9; mas notar que o
bre, canto do ca9ador, reintroduz a disj~o em outro nivel: quem canta é a
quele que, poi: ter matado, nao pode ·a:rrer a ~a, só falar de sua proeza) • En
tre os Siriooo, tao lago úma mulher entrava em trabalho de parto, o pai devia
ir, literalmente, catrar um nane para o filho - saía a mata, e o animal que ~
tasse dava nare a crian¡:a (Holrnberg;l969:195-6). Esta "ca9a a9 nare" evoca de
perto figuras Sanuná e Bororo (Ram::>s & Peiraoo, 1973, um excelente exercício
cnriparativo). Os Wayapi, por sua vez, trazan em sua maioria nares de anima.is,
conferidos conforma semelharu;as psico-fisiológicas entre bicho e criaJ19a (P.
Grenarrl, 1980:41). Para os Ñarrleva-Guarani, tais seme~as remeten exatairen
te ªº aposto do n:me-alrna: ªº atsyguá, por9ao terrestre da pessoa, ligada a CX)
mida e geradora do espectro (Nimuendaju,1978:55) .

De todos os recursos da exterioridad.e, a animalidad.e é o único que os


Araweté nao usarn para a rx:xninac;:ao - os poucos nares que tarrbérn designam ani
m:iiS Sao rigorosamente "des-referencializados", CXllD vinos.

Os Parintintin, que creem na encarna9ao de divindades em crianc:ras,ronei


am estas conforme .:quelas (quando isso O<X>rre) .o xama que sonha a a:>nc::ep<rao é
tido caro um "genitor-associado" da criaJ19a. Ele currpre assim fun9ao análoga a

387
araweté : os deuses canibais

do ca9ador Aché, que matou a ca9a-ep6nima para a mae ccmer · (Kracke, 1983:25;
P.Clastres,1972:252). Há pouoos dados, por fim, .sobre out.ras onanásticas 'le;
na maioria delas .há nares de infancia¡ quase-apelidos, e ·há trocas de nane por
inicia9ao pubértária, casanento, sonho, hanicídio (Wagley, 1977:142-ss; Grün
berg, 1970:127,136-7; Kracke, 1978.:45, I..araia, 1972:81-ss).

oe geral, pode-se dizer que a onanastica TG típica rero;-re, co


um rroCb
rro fonte ou critério, ·ao eXtra-sOc:ial: natureza, inllnigos, deuses. E que .os no
rres tero urna f~ao essericiaL'lellte indlviduaiizadOra. 'A enfase dos sistemas de
n::mi.na9aq "canibais." parece ser nenes na classif icas:ao que na indi.vidualizas:ao;
rrenos na conservas;ao de ':J111 repertório de nanes, ao. rrodo Je . (Tirnbira: Ladeira,
1982:42.,...3,passirn), que na aquisi<;ao de nanes novas;· rrenos na transmissao visa
da por esta conserva9ao que na re-ncrneac;ao pessoal e intransferível; irenos no~
ronjuntos sincronioos .que nas séries -diacroniCO-$; , rrenos. na .referencic::i mitológi
ca que na história social e pessoal, nenas na continuidade ~ o passado que
na a.bert~a para o futuro; rreoos., enfim, na articula~~º onaná$tic;:a de i,dentida
des c:arplernentares internas ao .grupo que na captura de distintividades supl~

nentares no exterior.
Vejam-se as semelhan:;:as do sistema Tupinarnbá can o dos Txicao, ·onde a
captura de inimigos que funcionarci caro naninadores privilegiados das · cr'ian9as,
por trazerem urPa mem5ria alheia, era uril m5vel irrportante da guerra (Menget,
' 1977: 84 ,'254-ss): nao se tratava· apenas de sUbstituir um rrorto do gru¡;o, ma:s de
obter tambán "identidades" suplementares. O sistema Yananarni apresent.a outras
caracterí-sticas; além· da sirnbÓlica da .ca9a ao nane (na verdade, cac;a\ ao espl
rito de um anima.l que deve entrar no corpo da crian<;a - ·Raños & Peiraho, 1973:
9:..10), destaca-se o gigantesco constlm::> de nanes pessoais, senpre reinventados,
urna vez que os nemes de rrortos (e as raizes le.xicais que os formam) saem da
lingua, face a proibi9ao estrita ·de se pronunciarem nanes de finados: o narre
pessoal Yai1crnami é marca absoluta de individualizac;ao, e desaparece can seu
portador. A recusa em se autó-ncrnear está ligada a is.t o: dizer o próprio nane
é evocar a própria rrorte, pois urn individuo só o é plenanente quandomorto (Li
zot,1973; Clastres & Lizot,1978:114-16.). Ora, toda rrórte Yananami ·é ronéebida
cerro um ato caníbal: a alma da pessoa foi devorada por ·um espirito ou inirnigo
huma.ro (L~zot,1976:9). Assirn, aqui o sistema onarB.st.i co-canibal 1'upinarnbá so
fre mia invers~o múltipla: a criac;ao naninal se faz. para n~o se usarern os no
mes dos rrortos devorados por inimigqs (nos 'tupinarnbá, obtinh~se nares por se
matarein inimigos depois devorados por companheiros, e o nane de 1..ll'n íl'Orto do
grupo, devorado por inirnige>s, era evocado pelos seus) . Jiqui, os inirnigos cri
am nanes porque· abolan nanes. ".4bol-;: b1'.be Zot d !inanité soncre ", o norre indivi
dual Yan::xnami. só significa finalmente na sua· nao-enunaia9ao . . ·

388
Tal inver~ da f~acrcanibal é consistente ccrn outra: entre os Yal'XX'!a
ni, o exo-caniba.lism::l espiritual e agressivo se desdobr_ a en um errlo-canibalis
rro ósseo e canenorativo. Pqueles que canern as cinzas do rrorto afirmara seu di
reito, por e.s te gesto, a exercerem.a vinga.nc;a guerreira,sao os sujeitos da vin
ganc;a.Entre os Tupinambá, o ritual canibal e os diálogos. entre matador e cati
vo indicarn, ao . contrário., que aqueles que canem, por vingancra, o inimi.go. pr1sio
neiro,fazan-n:J para se afinnarem caro objetos ppssíveis ·da vingélJ"l9a do gnipo i
ni.migo {ver
' .
Carneiro
.
da Cunha & Viveiros de. castro,1985.).Háaí toda urna dialé -
tica da honra e da ofens~ qa narória e da vingancra, do nane e do sangue, do su
jeito·e do objeto, que permitirá articular .o sistema Yananami. ao 'l\lpinambá(ver
a tese de Albert, 1985,_que só. pude folhear, mas de que estou certo ser a pri
meira ~lise a faz~ _justi9a ~·ccnplexida.de da si.Irb5lica guerreira Yandnarrú).
. . .
Una verdadelra ccnpar~ao entre os sistemas acirna e as onanásticas Je-
-Bororo está fora de questao, por ora.A cnne9ar porque elas apresentam cx>nside
- .
ráveis difere~as entré si (ver Da Matta,1976:123-30,e o exame detalhado do ~
so xavante,orrle fica clara a difererl9a ccrn os Tirnbira,por Lepes da Silva,1980),
. - .
e apresentam urna graOO.e carplexidade estrutural. Mas creio que se pode, para
os Suyá, Tirrbira é Kayapó, e san violentar demasiadanente os fatos, dizer que
. rciitua dos la~s de substancia e dos la905 de . ocrni.
elas se baseiam na . exclusao
.
na9ao; que os prirreiros rei:retan para o exterior e a i.npermanencia (periferia,
. . . .
natureza, rrorte), os segundos para a interioridade e a continuidade (centro,
cerirro~al); que a5 relac;Oes de ~~9ao po~enci~l ~·a tenninologia de
parentesco, e que o sistana. "semi-ccnplexo" de casarrento (terminologías tipo
Crow-Onaha) é acxnpanhadÓ
. pbr
-
um sis~ "elerrentar" de troca onanástica, on
de a separa9ao i~o/inr0 e . a uxorilocalidade ~eriam negadas por urna espécie
de ."incesto o~tico"- (tróca de rones entre i~os cruzados)e urna "endogamia .
oocrnástica" (a polí~ca de "nao perder JXJTieS", a::mservá-los no segrrento resi
. . .
dencial de origen);
.
que a transmissao ínter-vivos dos nemes é essencial,fonnan-
do conjuntos de "harOninos" e/ou furrlando urna rede de rela<f:>es, direitos e de
veres ao redor dos nanes, que marcam lac;:os internos ao gnipo;que a orxxnástica,
con:¡uanto p::>ssuirrlo inÚR'leros as~tos individualizadores, é antes de tudo um
sistema de classifica9ao, de posi9~ ou rela<f:>es; .e .que o lugar do OUtro, do
. '

"rrorto", é o oposto do de \.Un han:3ni..rro - é um "antOni..rro", o amigo fonnal, sujei


to a evi~Oe.s oncmásticas e/ou sexuais (Lave,1979; Seeger,1981:136-146; M:lat
. -
ti,1973:40~ · 1979:48; Cameiro a.a Cunha,1978:77-ss., 1979; Verswijver, 1983/
1984; e as reinte.rpreta<;Qes e discussOe.s in Ladeira,1~82, Lepes da Silva,1980,
Lea, em prepara9ao). 'I\ld:> se passa caro se aquilo que os Tupin_ambá, Arav..ieté ,
e as sociedades en:bgámicas das Guianas (Caribe, Piaroa) fazan ao nivel das
trocas matrirroniais - (casamento oblíqu:>, repeti9ao de alian:;as, endogamia lo

389
araweté: os deuses canibais

cal), os Jé fazem em ternos de nemes, e assi.m tani:>ém os ·Tukano, exogámioos e ·


oc:rn una ideologia de perpetua9ao masculina da sociedade via. ciclos eurtos de
reposicrao n:minal e ritos de renascimento pubertário que excluern o elerrento e
xógeoo, ferninioo (sao patrilocais; ver C.Hugh-Hones~ 1979:133-4, 161-5) - mas
este é un ponto que exigiria maior reflexáo. Se os 'ffi, caro outros pavos da
Amazonia, Sao endÓgaIToS e dispOem de neutralizadores da uxorilocalidade inexi~
tentes entre os Je, sao, ªº contrário destes, "exonímioos", carecendo de obter
nanes fora, nao nulheres. E, ao jogo dialétioo do par hcmOnirco/antOnino, rnni
nador/amigo font\al, · produtor da síntese pessoal típica dos Jé, eu oontraporia
a s!ntese disjuntiva individual da heteronímia 'I\lpi-Guarani: a oomea9ao pelo
OJtro, o inimigo, o animal o deus, o norte. O ant:Oni.m::> é o ep0nim::>. Essa hete
ronímia é tunc;ao de urna roa.is generalizada heteronania da metafísica Tupi-Guara
ni: o "centro", o fundamento da sociedade lhe é exterior, . no tenpó e ro espa
90 - exilio do sentido para um Alero.
Existan, é claro, os Bororo para carplicar, can seu sistema de necroni
nos, orxie a si.mbÓlica do canibalisn::> é clara: os nemes do aroe maiwu, substi
tuto-duplo.do m:>rto, sao tonados do alirrento do animal predador que ele deve
matar em virxJ~ do norte. O ~ador huna.no é a ca~ da c~a, a ~a un~
dor; o norte a ser vingado é o jaguar, erquanto borJe (devir) ; e é o que o j~
guar cateu, ~to rx:me-aroe (ser) - Viertler,1976:60-8;1979; Crocker,1977a,
tl; Ranos & Peirarx>,1973. E os Xavante, onde, embora encoritrern-se inequivocame!!
te os temas Jé, a ilrp::>rtancia da ob~ de ocmes "de fora" é oonsiderável
(!Dpes da Silva, 1980: 39-ss, 57-9, 120-ss).
Os Jívaro, can seu notivo de acunulac;ao de al.mas mediante hanicídios su
·cessivos, garantia da inortalidade pessoal do guerreiro (Harner,1962;1973), a
presentarn analogías profundas OJm a metafísica Tupinambá, onde a i.rrortalidade
substantiva tanbérn dependia da norte alheia. E as calJexas-troféus Jívaro pare
cem ocupar o lugar de errblana conferido aos rores TUpin'ambá. Voltararos a isso.

(B) Terminología de rela~io

A terminología de rela~ao Araweté é lexicalrnente abundante ,

e ao lado de termos classif icatórios prolif eram termos descriti


vos, que exprimem, sobretudo, urna distin9io entre cons angüineos

"reai s" versus "classificatórios". Tipologicamente, trata-se aqui

390
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org

araweté: os deuses canibais

cal), os Jé fazem em ternos de nemes, e assi.m tani:>ém os ·Tukano, exogámioos e ·


oc:rn una ideologia de perpetua9ao masculina da sociedade via. ciclos eurtos de
reposicrao n:minal e ritos de renascimento pubertário que excluern o elerrento e
xógeoo, ferninioo (sao patrilocais; ver C.Hugh-Hones~ 1979:133-4, 161-5) - mas
este é un ponto que exigiria maior reflexáo. Se os 'ffi, caro outros pavos da
Amazonia, Sao endÓgaIToS e dispOem de neutralizadores da uxorilocalidade inexi~
tentes entre os Je, sao, ªº contrário destes, "exonímioos", carecendo de obter
nanes fora, nao nulheres. E, ao jogo dialétioo do par hcmOnirco/antOnino, rnni
nador/amigo font\al, · produtor da síntese pessoal típica dos Jé, eu oontraporia
a s!ntese disjuntiva individual da heteronímia 'I\lpi-Guarani: a oomea9ao pelo
OJtro, o inimigo, o animal o deus, o norte. O ant:Oni.m::> é o ep0nim::>. Essa hete
ronímia é tunc;ao de urna roa.is generalizada heteronania da metafísica Tupi-Guara
ni: o "centro", o fundamento da sociedade lhe é exterior, . no tenpó e ro espa
90 - exilio do sentido para um Alero.
Existan, é claro, os Bororo para carplicar, can seu sistema de necroni
nos, orxie a si.mbÓlica do canibalisn::> é clara: os nemes do aroe maiwu, substi
tuto-duplo.do m:>rto, sao tonados do alirrento do animal predador que ele deve
matar em virxJ~ do norte. O ~ador huna.no é a ca~ da c~a, a ~a un~
dor; o norte a ser vingado é o jaguar, erquanto borJe (devir) ; e é o que o j~
guar cateu, ~to rx:me-aroe (ser) - Viertler,1976:60-8;1979; Crocker,1977a,
tl; Ranos & Peirarx>,1973. E os Xavante, onde, embora encoritrern-se inequivocame!!
te os temas Jé, a ilrp::>rtancia da ob~ de ocmes "de fora" é oonsiderável
(!Dpes da Silva, 1980: 39-ss, 57-9, 120-ss).
Os Jívaro, can seu notivo de acunulac;ao de al.mas mediante hanicídios su
·cessivos, garantia da inortalidade pessoal do guerreiro (Harner,1962;1973), a
presentarn analogías profundas OJm a metafísica Tupinambá, onde a i.rrortalidade
substantiva tanbérn dependia da norte alheia. E as calJexas-troféus Jívaro pare
cem ocupar o lugar de errblana conferido aos rores TUpin'ambá. Voltararos a isso.

(B) Terminología de rela~io

A terminología de rela~ao Araweté é lexicalrnente abundante ,

e ao lado de termos classif icatórios prolif eram termos descriti


vos, que exprimem, sobretudo, urna distin9io entre cons angüineos

"reai s" versus "classificatórios". Tipologicamente, trata-se aqui

390
entre si

de urna terminologia "iroquesa", com fusao bifurcada nas tres gera


-
~ces centrais. Nao é um sistema de duas se~oes , como o dos Pa-
rintintin (Kracke, 1978:14-15) ou o dos Wayipi (P.Grenand, 1982:
~

101-ss.), visto que se distinguem os termos de parentesco dos de


afinidade - nao há equa~oes do tipo MB=WF, FZH=MB, etc.• - havendo ·
ainda a -
marca~ao de afinidade real versus potencial, em alguns ca
sos.

o universo do parentesco, como já mencionamos, opera com


dois classificadores gerais: di, "semelhante" . ou "equivalente", e
am;
- a.i
--
am;te,·. "diferente", outro. O termo genérico para "parente"
é ani, que em sua acep9ao focal denota os irmaos de mesmo sexo de
Ego. E o para "nao-parente" é tiwa, que. em sua acep~ao minima de-
signa os primos cruzadQS de mesmo sexo.

Tiwa é um termo culturalmente ambiguo. Ele possui urna cono-


ta<¡:ao agressiva, e nao se costuina usá-lo c'omo vocativo para um ou
tro Araweté, ou em presen~a do .. referente ... Ele indica uma ausen-
cia de rela9ao, uma espécie de vácuo que pede preenchimento - um
tiwa é um af-i m ou um aplhi-p.iha potencial; tiLJa, termo reciproco,
sao . pessoas que nao se tratam por termos de parentesco ou afinida
de, apenas pelo nome pessoal. Ele é, assim, um termo de
que indica náo-rela9ao. Por oµtro lado, tiLJa é como o espirito do
inimigo morto trata seu matador; é ainda o vocativo com que os A-
raweté se dirigem aos brancas cujo nome desconhecern. Aplica-
do a nao-Araweté, ele particulariza a "rela~ao" genérica e absolu ·
tarnente negativa que ·há entre o "nós .. (bfde) e o inirnigo (awi'} •

' Chamar alguérn pelo ·vocativo awi é impensável, pois awi é urna cate
goria geral de seres rnatáveis, e com eles nao se fala; chamar um
inirnigo de tiw a é criar este rnínj rno de rela~ao
que reconhece ao
67
outro a si tua9ao de humano, de bfd!, de outro sujei to • Urn ti·wa

391
araweté: os deuses canibais

(67) Se os Araweté nao se dirigen a nenfium estrangeiro a:m:> aw-i, isso zW ~


- -
de que apliquen urna série de apelioos aos branoos que os visitam, nos quais
o tenro awt é usado a::rro referencia: "inimigo magro", "inirnigo da cabe<;:a rrole"
(un ~ssialário que usava ~u de felt:ro), "inirnigo preto", etc. Un CZLJi,
.
:i;::ortanto, e serpre um objeto, jama.is urn interlocutor, um sujeito out:ro.

é alguém que está na fronteira entre a alteridade absoluta e gené


rica dos inimigos e a identidade coletiva daqueles que sao "seme-
lhantes", os irmaos, ou que tem urna rela9ao com Ego qualificada ,
particular: cunhado, sogro, e'tc. Tiwa 'é, propriamente, o outro, o
nao-eu em posi9ao de sujeito; termo que faz a media9ao entre o ge
raleo particular, o alheio e o mesmo, o inimigo e o irmao, · ele
é ambiguo e dotado de movim·e nto: ou extrai um inimigo da generali
- 68
dade, ou instaura um Araweté na potencialidade

(68) o espirito do inirnic¡Jo m::>rto, cx:m vererros, se. torna part;e ~· pe;sona do
matador. Se o vocábulo am deixa-se cl.aranente derivar do 'I\lpinambá anama , pa-
rente, péirentela (Lelos Barl::osa, 1956:424), a etircologia de tiwa é problemáti-
ca. E)nbora a posi~ lógica oo tiwa Araweté ·e voque o -estatuto oo "cunhack>-íni-
. . Tup.i.nambá (tobayara, tovaja, e:tc;.) , .nao creio que. 9 tenco derive
mi.go"
. .
dessa
raíz; provavelnente, é urn cognato ~ formas Tupinambá e Guarani atuasaba, tua
sap, tyvasa (r..éry, 1972:231; ~, 1874:86, Nimuendaju, 1978:109), que foram
traduzidas ¡:or "aliaoo", "sócio", "a::mpadre", e sobre cujo sentido original há
dÚvida. Ikry dá a entender ,que era urn tenco de tratamento entre UITl§l espécie de
amigos fonnai.s, en que haveria mutualidade ("haveres en c:::arum") mas can proibi
~o de troca matrírronial. 'tVreux define o tuasap a:m:> un oospede - no ~text::q
especificarrente, era a::rro um anfitriao c::tlarnava os franceses que rroravam en sua
casa, e que se ¡x:x:liam unir sexua.lnente as suas filhas ou iJ::n0s. Entre os A-
pa¡:okuva, tyvasa sao os carpadres :¡;:;or rnnina<;ao dos filhos - nao tenlX> daoos
. . ..
sobre a sit~ao das pessoas assirn ligadas quanto a .ca.sam:mto ou sexo. De toda
forma, mesrco en Léry o tenro se aplica a estrangeiro-h5spede (aparece no fano-
so "Colóquio "), i.e. um ser "liminar", entre o inimigo e o patricio. A ser le-
gitima a associa9ao tiwa-atuasaba , teríarros que os valores psioológioos da pa-
lavra se inverteram, de :¡;:;ositivos para os Tupinambá a negatiV'Os ou arrbigoos ~
ra os Araweté; rnanteve-se, p:>rém, a marcac¡:ao de una "alteridade especial". E

392
entre si

verenos lago adiante que é dos tiwa, ·nao-parentes, que ·saem a maioria dos apl-
hi-piha, parceiro~ ~s.
A f onna Araweté para "inimigo" , co.vi., tarrbém é de origern incerta. Poder-se -
-ia super una deriva~, consistente, da raiz *aba , lx:rrem: *aba ->*áz.Ja ->*awa ->
*o:J.Vi ->co.vi.; mas sucede que já existe um derivado desta proto-fonna no interro-
gativo awa, "quen?". A p::>SSÍvel raiz que subjazeria as fonnas Tupinambá para
"cunhad:::>" e "in.imigo" se .enoontra. em ·Arél'Ñeté: -ow§:p, "fronteiro", "q;:osto" ,
"outro la&>". A fontia *he rowaña - nao
.
existe. Nao oostante,
. um Araweté
. serrpre '
justificava o uso da refer€ncia tiwa, .quan:b nao no sentioo mínirro de 11
filho
de MB cu FZ", dizen:lo que a aplicava porque o assim referidO era "do outro la-
do da terra" (iwi rowaña ti ha), i.e. que pertencia a um sub-gru¡:xJ territorial
distinto do seu, e que nao havia liga9ao pertinente de parentesoo entre eles •
A n0900 de tiwa, portante,
.
está associada
. a idéia. de "estrangeiro", "de outra'
terra".
A tao lerrbrada identidade lexical entre ''cunhado" e "inimigo" (Huxley,1963:
274; H.Clastres, 19?2) parece de fato daronstrável para algurnas linguas Tupi-
-QJarani, mas nao pax:a outras. Ela nao é neoessária, no entanto, para que se
. .
perceba a rel~ac» feita pelos TUpi.nanDa entre o afim e o inimigo: urna reJ~,
cx:no se sabe, que~ era de identidade, visto ' que o ccrrplexo do cativeiro
pressupunha a transformacrao do iJ:úmigo em _afim.
As fonnas ~tas de a;m; e a;m;t~ sao
rrfilto diftmdidas na semantica de pa-
rentesm TG. Entre os Parintintin, ena:intl::anos amotehe CXITO designando os pri-
rros cruzados de ambos os sexos, os membros da outra rnetade exogam:lca, e por
fim os indios nao-Parintintin. E o mgnato de di significa,cx:rro em Araweté,"ir
nao do mesrrosexo" (Kracke , 1984b:.101). Adianto que nao
tentarei, nas páginas
que seguem, nenhUma catpara<rOO sistenática cxm o mpioso material tenninológi-
oo m de que ooje se disp0e; tanp::>uoo creio ser útil retanar a antiga discU.s -
sao deWagley, Galvao, Philipson, MacD:maj.d, etc. sóbre o(s) sistema(s) de pa-
rentesm "'I\Jpi-Guarani" (ver Bibliografia} !

A distinc;ao entre termos de "parentesco~' e de "afinidade 11

nao corresponde a nenhurna distinc;ao identica em Araweté, e tampou


co a nossa diferencia9ao ocidental entre consangüíneos e afins.Eu
a utilizo para indicar que há urn sub-conjunto lexical que só sur-
ge para Ego a. partir de . seu casamento, ou de seus ·siblings. Vej~

mes a lista dos termos de "parentesco" e seu espectro de aplica -


9ao (exceto quando indicado, os termos sao usados por falantes de

393
araweté: os deuses canibais

ambos os sexos; e estao transcritos na forma nao-possuida, absolu


ta, o que é posslvel para todo o campo- da terminologia):

Geraxao + 2 (e acima):
.( 1) TamotJ - FF, MF; qualquer homem que os pais de Ego chamem de
papa11 ("F") ou de tamo11. Vocativo: he f'amo11.
(2) Bari - FM, MM; qualque~ ·mulher que os pais de Ego chamem de
-
mag ("M") ou de 11arf. Voc.: he tari.

Geraxao ·+ 1:
(3)
-
To (poss. he r-t) - F. Te'eme é a forma para "finado pai".
{Ja) To di - FB; todo homem que o pai chame de "irmao" · (cf.).
(3b) To ami - MH; todo homem que a mae chame de aplno (cf.) ou
hereki di ("ZH"); todo homem que o pai chame de
(cf.)
O vocativo para todas essas formas é papa11.
(4) Toti - MB; todo homem que a mae chame de "irmao", ou o pai
de tado'i ("WB"). Voc: he toti.
(5) Hi - M. Poss. he hi.
(5a) Hi di - MZ; toda mulher que a mae chame de "irma" (cf.).

(Sb) Hi ami - FW; toda mulher que o pai chame de aplhi (cf.• )ou de
.
. '
-
ha11lhf:. ("BW"}; toda mulher que a mae chame de aplhi-piha.
O vocativo para essas tres categ~rias é mªIJ·
(6) Bad! - FZ; toda mulher que o pai chame de "irma", ou a -
mae
de tado 'i ("HZ"}. Voc: he yade.

-
Gerac;ao O:
(7) Anl - B (FS, MS), FBS, MZS; em principio, qualquer homem que
os homens na categoria (3) e as mulheres na categoria (S)ch!
mem de "filho" - homem falando. z (FD, MD), FBD, MZD; em

394
entre si

principio, qualque;- ·mulher na categoria de "filha"' para (3)


e ( 5) · - mulher .f aiando .
(7a) Heéi 'i - eB, FeBS, MeZS;, regra de extensao idéntica a (7)

homem falando. ez, FeZD, MeZD; idem- mulher falando. Notar


que o principio Tupi-Guarani de idade relativa dos siblings
de mesmo sexo nao se aplica na gera~ao de Ego, exceto obvia-
mente no caso de FS, MS (h.f.) e FO, MD (m.f.). Voc: he
reci'i.
(7b) Ci'i - yB, FyBS, MyZS; ibidem - homem falando. yZ, FyZó,MyZD;
idem - mulher falando. Voc.: he ái ·'i, ou tiLJidl (h.f.),
.. ,.,,, - ou
C'l- 1- i; (m.f.).
(8) He·ni - Z (FD, MD), FBD, MZD; em principio, qualquer mulher
que (3) e (5) chamem de "filha" - homem falando. Voc.: he
r-eni.

(9) C.iLJi - B (FS, MS), FBS, MZS; em principio, qualquer homem na


categoría de "fi'lho" para (3) e (5) - mulher falando. Voc.:
he cirJi.

(10) TiLJa - MBC, FZC. Raramente usado para caracterizar rela9oes


entre sexos diferentes, ele significa propriamente: MBD, FZD¡
e qualquer mulher que um (3) chame de ti!pe ("ZD") ou uma (5}
chame de P!'t ("BD") .- homem falando. E MBS, FZS; e qualquer
homem que um (3) chame de ui'i C"ZS") ou urna (5) de
("BS") - mulher falando. t mais comum entre homens; e costu-
rna ser substituido por descritivos do tipo: "filho. do irmao
da mae" (toti ra'i re), "filho da irma do pai" (tiatie memi
re>;~ ídem para as primas cruz~das. Aplica-se ainda a qual
quer· pessoa que ambos os pais (F, M) charnem de tiLJa. Os voca
. tivos para essa categoria sao flutuantes: he tiLJa é forma ra
ra, usam-se normalmente o~ nomes pessoais. As formas aplhi

395
arawetá: os deuses canibais

(de hdmern ·para mulher), aplno · .(rnulher para hornero), qué· cono-
tarn acessibilidade sexual, podern ser usadas, mas se aplicarn
tarnbérn a outras .categorias de parentesco, ·e costumam ser a-
cionadas apenas após -ter havido contato - sexúal entre os pri-
rnos cruzados.

Gera9ao - 1:
(11) Ta 'i - S, BS, qualquer hornero que urn (7) chame de ta .' i - ho-
rnern falando. Forma pass. he rci.'i. Vocativos: apl, hádl.
(12) Haiyi - O, BD, qualquer rnulher que urn (7) chame de hait1i
hornero falando. F.poss. he raiyi. Voc.: apr, hadl. ·
( 13) Me mi - · S; D, ZS, ZD, .qualquer pessoa que urna -( 7) chame de
,.
memi~ - F.poss. he memi. Vocativos iguais a (11) e (12) .Existe
ainda a forma vocativa mapawe, usada por hornens e rnulheres '
velhos para seus "filhos" reais ou ~lassificatórios, . que co-
. nota o "ca~ula" de urna série de f i .lhos ¡ -rnai s .propr iamente o
Último filho tido pela pessoa, antes de ficar estéril.
(14) Yi'i - zs, qua~quer
homern que
.
urna (8)
..
chame de memi - homern
falando. Usa-se tambérn a forma descrit;iva (referencial} he
reni pa re, ''filho !li~. ''ex-habitante'') de rninha irma" •
., .
Voc . : h. e !f '!- -z. •

(15) B!p~ - ZD~ qualquer mulher que urna (8) c~ame d~ memi - hornero
fala~do. Mesl!la forma descri~iva de (14). Voc.: he d!pe.
(16) Pe 1
; - BS, BD1. qualquer pessoa que urn (9) . charn~ de.. apl - mu-
lher falando. Voc.: he pe'f.

Gera9ao-2 (e seguintes):
.( 17) Haamono - ss, so, os, ·no: ern principio, qualquer · pessoa que
urn (11) ou (12) chame de (11), (12) e (13) - hornero falando •

396
entre si

As formas ,descritivas ta'i apa pe, lit. "de um filho", ou


haiyi pá l"e I
11
, filh0 ·de ·filha", Sa0 USadaS também, e especial-
mente .quandO se tratam. de "filhos" e "filhas" classificató -
· rios (na primeira ou segunda ·gera9ao) - posi9ao casável. O
vocativo he raamono tende a só ser usado para aqueles paren-
tes que nao estao no horizonte de casamento possível.
(18) Hemldad!do ~ SS, so, os, DD; extensao identica a (17) - mu-
lher falando. Idem para os descritivos e vocativos. Os "fi-
lhos" de (14), (15) e (16) sao tiwa, nio-parentes, e recebem
designa9oes descritivas.

Os termos que implicam a ef etua9ao passada ou presente de


rela9oes sexuais e/ou maritais de Ego e seus siblings sao:

Gera9ao + 1:
(1) Háti ..;. WF I
HF - qualquer hornero chamado de "pai" por um conj}! -
ge ou urna aplhi '( h.f.) e ap.l no (m. f ~ ) . As posi9oes de BWF I

- '
ZHF nao recebem designativos, a menos que Ego tenha ti do re-
la9oes re'conhecidas como conju9e' de seu sibling. Voc.: he
rati.
(2) H·aao - WM, HM - qualquer mulher chamádá. de "mae" por um con-
juge, etc. Vocativo: he raco. -
Gerac;ao O:
(3} Temiyika - W. Forma poss.: he remiyik~. Vocativos: miti para
(lit. "mutum . listrado·" , i. e. a femea do mutum-pinima) , tayihi
(quando a esposa já tem filho).
· (4) Terekt - H. Forma ·poss .. : he rerekt. Vocativo: tadlno (quando
já há filhos).
(S.) Ha·d o'i :- WB, ZH; hornens que a w chama de "irmao" e maridos

397
araweté: os deuses canibaís

de "irmas" - homem falando. HZ, BW; mulheres qu~ o marido


chama de "irma" e esposas de "irmaos" - mulher falando. Este
termo designa, em sua forma indeterminada, uma relayao entre
af ins de mesmo sexo e 9erayao; mas as formas possuidas ou vo
·cativas conhecem·uma diferencia·y ao curiosa: he rado 'i (lit.
"meu -ad~'i") · desi9na o conjuge do sibling, e tadE'i (forma
logicamente absoluta da raiz -ado'i) designa o sibling do

conjuge: ZH/BW versus WB/Hz 69 •


. !
(69) Scbre o valor das inici.ais t- e h-, cf. supra, p. 184, nota l. A raiz
desse tenro para "cunhado" se reenccntra em Parintintin Citayro'11 oaro"brother
in law" para h.f. - Kracke, 1978:15)" e em Wayapi (e-lailo'i oaro FZS e MBS,cf.
P.Grenand, 1982:103).

· Nos casos de troca de irmas, onde ZH=WB e BW=HZ, o tratamen-


to que prevalece é a forma pronominal possessiva.
(6) Hay:;;hi - BW (h.f.), WZ; esposa de quem Ego chama de "irmao·" ,
"irmas" da esposa de Ego. Voc.: he ra11lhi.
(7) Hayihi-piha ("companheiro da ha11lhi") - . WZH, B (h.f.). o em-
prego deste termo como referéncia e vocativo para os .
irmaos -
casados de Ego é considerado mais "próprio" que os termos de
parentesco da categoria (~).Ele nao só exprime o casamento
possível de pares ou grupos de siblings de mesmo sexo (onde
WZH=B), como sublinha a equivalencia de dois irmaos f ace
...
a

mesma mulher, que se exprime no levirato e, de modo geral,no


·acesso sexual potencial as esposas de irmaos.
(8) Hereki di ("equivalente ao marido") - ZH (m.f .• ), · HB.Es~e ter
mo nao é usado como vocativo. &le indica, correlatamente a
(7}, a equivalencia de homens para duas irmas, e a mesma e-
quacrao possivel ZH=HB; compatível outrossim com a prática do
...
sororato e (mais rara) de poliginia sororal. Notar a a usen-

398
entre si

cia de termo para ·HBW.

Geraxªº - 1:
(9) haiyime - DH; marido de qualquer "filha" de Ego - homem fa-
lando. Voc.: he rai11im!·
(10) Ta'itati
- - . SW; esposa de qualquer "filho" de Ego - homem fa-
lando. Voc.: he ra'itati.
(11) Memirerek; - OH; marido de qualquer "filha" para Ego femini-

no. Voc.: he memirerek;.


(12) Memitati - SW; esposa de qualquer "filho" de Ego feminino •

Voc.: he memitati.
Neste grupo de termos é clara a forma~ao descritiva, a par-
tir das formas para· O, s (h. f.) e e (m. f.) . Exceto o sufixo (11),
"marido", os outros nao tem significado autonomo.

Termos sem conota9ao geracional:


(13) Aplhi - denota qualquer mulher em posi~ao casável; ou com a
qual se pode, se teve, se tem ou se quer ter rela9ao sexual.
Dentro do campo dos parentes e afins, inclui as "avós"(t!ari ),
a FZ (tia d!) , as MBD e FZD (cf. tit.Jal , as ZD (tifp~) , as "ne-
tas"; e as BW e WZ (hay?hj). Mais propriamente, urna aplhi e-
a esposa de urn aplhi-piha, mulher partilhada sexualmente '
com urn nao-irmao: i.e. urna aplhi nao pode ser designada si -
multaneamente como hay?hi.
(14) Aplno - denota qualquer homem equivalente a (13) para Ego
feminino. Correlativamente, as posi~oes de parentesco e afi
nidade incluidas sao: "avos", MB (tq ti), os MBS e FZS(tit.Ja),
os BS (p!'; ) , os "netos"; e os ZH e HB. Como em (13), um
aplno é idealmente o marido de urna aplhi-piha, i.e. urna nao -

399
araweté: os deuses canibais

-irma que . compartilha seu marido com Ego~

(15) Aprhi-piha - Nao-ani que compartilham conjuges; termo recI -

proco. E" no entanto muito mais usado entre homens que e~tre

mulheres. A própria forma do ternio, tom o sufixo ~piha, indi


ca que a origem dessa terminología é masculina: é o único e~

so· em que mulheres se entre-referem como x-piha. Isto é com-


patível coma idéia Araweté de que a iniciativa de . estabele-
·aos 70
-
c i mento d e re 1 a~oes d e· .,..h ~-p~
ap~ · ·h- a e- mari·aos •

(70) ~ serrpre perigoso buscar o sentioo


et.i.nQlógi?J de tenros ~ parentesco •
Nao obstante, a aburoancia de formas em -hi para mulheres, e o sufixo -no(-ro)
para o tenro aprno sugeren que se tratam de tecnOn..inos oo tipo já visto: "mae"
e "pai" de X. E de fato, os radicais a que eles se sufixam parecen ser especia
li~ lexicais das formas para filho
11 11
Assim, os vocativos para Hu e Wi,

- -
tay?:hi e tad!no, derivam de tad!, fonna absoluta de "fil.ho", "peque.no", "cri~
era"; e sao aliás usados caro terno de tratarcento de- país para f ilhos - es~
cialltente logo após º· nasc.imento do primeiro filho, quando este airrla nao tero
rare. A forma hayihi deriva do mesno terno, hadi, onde a inicial h- marca a
forma possuida genérica (3~ pess.). E apf~i, apfno (o. pr~ tenro se ~e
fnqüentemente realiz.ado caro apihi), derivam claramente do .vocativo ~t, "fi
lho". Neste caso, é entao ainda mais evidente o uso "artificial" do reciprocx:>
ap!hi-pihii entre nulheres, e sua origen masculina; a forma "prq,ria" seria o
inexistente *apfno-pihQ.
- -
Os terms para esposa e esposo ~ i~te p::ider ser apali~ •
Temi!fika seria deriva&:> da forma participial en herrtr- e o verbo teka: "aquela
- - - .
que vive (está) o:mi.go", cx:nfoone seu oognato Tupinambá temireko. E tereki de-
riva oo. verbo terekª-1 "carregar, portar" - o marioo é entao "o que me leva" ,
"o que me traz consigo". CUrioso l'X)tar que o significaOO desses tenlos nao 5Ó
traz urna a:>l'X)ta~ao "virilocal", c:x:::no inverte o uso cb sufbco -piha,onde é a e!
posa o "ponto fbco" a que se acresce o marick>, e que conota urna "uxcrilocalida
de" lógica ou real • .A. parte estes, e as fontla.S evidentemente descritivas do ti
to a; I "equivalente 00 pai I to czmt 1 0Utro pai I pai nao-parente etc• r OS
11 11 11
pC>
' - .
te.nros básioos sao inanalisáveis: MB, FZ, ZD etc. sao designados por fonrias
/

can oognatoS en 0Utta5 línguas Tupi-GJ.arani I mas n00 tero etinologia clara•

Esse é o repertório básico da terminologia ae ·rela9ao.Minha

400
entre si

maneira de traduzi-los, estendendo o significado "focal" pelas re


gras do tipo: "todo aquele que urn X de Ego chama de Y", é consis-
tente corn a mane ira Araweté de ca·lcular e justificar o emprego da
terrninologia. Urna pessoa sempre diz chamar urna outra de "X'' - qlla!!

do nao se tratam de parentes "genéticos", ou de rela9oes facilrne!!_


te descritas ("chamamos de toti aos irrnaos - cit,)i - de nossa hi")
- porque urn parente de liga9ao a chama.(va) de "Y". Os pais de EgQ.
especialmente, é que rnapeiam na infancia o seu campo terminológi-
co, levando-o a calcular através deles corno definir suas rela~oes

com os demais. A teoria nativa, assirn, paree.e ser "extensionista".

Há ainda urna grande quantidade de termos metafóricos, joco-


sos e alternativos para as posi~oes de parentesco, alguns intrad~

ziveis por rnim, como he rahe para BS de Ego feminino, he t,Joña pa


-
ra ce (Ego masculino; isto poderia ser traduzido como "meu limi -
te/divisa", onde wona é a linha de árvores que divide ro9as contí
guas - os netos, assim, estao no "limite" dos avos). Outra forma,
aquí jocosa, é designar os parentes (especialmente F e M) de urna
rnulher desejada pelo termo de parentesco que os ligam a ela, se-
guido da expressao dO pi ri 'l, 11
ainda nao COmi (mas VOU faze-lo) ".
Adiante, veremos as formas que marcam maternidade e paternidade '
genética e social, e gerrna~idade.

Todos os termos de parentesco e afinidade, com exce~ao dos


para F, M, S e O, podem ser seguidos pelos marcadores de pretéri-
to e de futuro, -pe e -p e 't, "ex-" e "futuro-". O primeiro é sis-
.
L ternaticamente usado (e alterna com -re)~ o segundo é antes urna
forma jocosa. o marcador de "ex-" designa rela9oes extintas, seja
• pela morte do parente de liga9ao, seja por divórcio, seja pela
transforrna9ao de urn "parente" ern urn "afirn".. Assim, he rati pe
'
.. meu ex-sogro", pode designar tanto o pai de urna esposa falecida,

401
araweté: os deuses camDais

. .

l. TERMOS DE PARENTESCO:EGO· MASCULINO .

5(A. ~
o=uA3" ~=

= º= ··I-1 ·~=
~ ~ r1 ~
A O Á 8 A O L1 O
1

.. . .. ( ) (~

o(io) (iO) (f4


oCfot ofT . 000 ººº
iT {iO) (fq i1 ff iT" f7 fto) (iO} 1T
o17 (io) (to)
o (fo)
o ·o(10) oHol (fo>


2. EGO FEMININO

1z.
o

~=
j ,A).. .
o=u

(fo)
o o o o o o ººººººo o o ot . o o o o o{icf
C•o) (10) (jO) (io) (fo) 11 i a (tot Ho) ti f 1 U U (fO) (<o) 1 fl CU) (fo) (fO)

402

entre. si

3. TERMOS DE AFINIDADE: EGO MASCULINO

' .

.. ~ . - .. 6 7 5
==.O•.
0-6

...

4. EGO FEMININO ..

. 1 ' z ."
6=0
. ,.

~g b=l ¡= ,,
;
5
~o

·-

Ü= o-~
403
araweté: os deuses canibais

quanto o de urna ex-esposa 71 • O uso das , formas em "ex-" se mantém

(71) Já urn sogro falecido é he rati reme. Quando é urn nDrto que está se diri -
ginó:> a urn vivo, porérn, a sib~ se inverte. Assim, Awara-hl, que dlamava
Yir!ñato-ro de "sogro", dirigia-se a ele nos cantos xamanisticos cx:rro he rati
pe - já que ela agora estava separada do marido, e casada oo céu cx:m urn
Mat.

como termo de tratamento, caso liga9oes posteriores nao venham a


interferir na lógica da designa9ao. No caso dos "ex-parentes", o
problema é outro. Quando se realiza urn casarnento entre MB e ZD I

FZ e BS - reais ou classificatórios, mas que se tratavam peles ter


mos correspondentes - ou entre individuos que eram considerados '
"irmaos" (classificatórios), define-se a rela9ao anterior, ou a
posi~ao de parent~sco do conjuge, pelas formas "ex-MB" (toti pe},
"ex-ZD", etc. Isto é especialmente importante no caso de casamen-
to entre ex-irmaos: aiwi pe e heni pe jamais se referirao recipr~

camente pelos "ex-termos"; esta é urna forma usada pelos outros •

O abandono das formas para MB, etc. nao é imperativo - embora urna
rnulher nao chame ou se refira a seu MB-marido como he toti, pode
m.e ncionar isso - e sobretudo ele pode ou nao afetar outras rela-
9oes terminológicas. Assirn, um ZS que é também um WB continua a
ser chamado de ZS (he yi'i) e a chamar o cunhado de he toti (MB).
A irrna-sogra pode ser alternativamente chamada de "irma" ou "so-
gra"; nunca será usada a forma heni pe nesses casos. Igualmente,
um hornem pode chamar um ZS que é seu DH tanto de "sobrinho" corno
de "genro"; e será chamado tanto de ·"tio" corno de "sogro" - aqui,
no entanto, a tendencia é que os gesros passern a chamar seus MB
(ou FZ) de sogro e sogra.

404
. entre si

(C) Casamento, atitudes, residincia

Os Araweté nao distinguem consistentementer em termos lexi


cais, parentes "verdadeiros" ou próximos daqueles "falsos" ou dis
tantes, como outros TG. O sufixo -het!_, "verdadeiro", aposto a wn
termo pode conotar, por exemplo, tanto germanidade real(mesma ma-
triz e mesmo semen), tanto germanidade classificatória "verdadei
ra" (FBS, versus FFBSS, ou o filho de um ap~hi-pihª do F), como
marcar que a pessoa assim designada se comporta de modo compatí-
vel com o termo que Ego lhe aplica. Por sua vez, o sufixo "ex-"
(pe) pode ser usado para caracterizar um mau parente, que nao age
como tal. Nao obstante, é possivel usar-se a distin9ao
ra distinguir conexoes classif icatórias via parentesco daquelas
via afinidade (como a diferen9a to a;, FB, e to am;, MH). Além
disso, pode-se sempre especificar a rela9ao genealógica encoberta
pelo termo categorial, mediante circunlóquios descritivos; "feíto
por um to d;", "vindo da barriga de urna hi am;", etc.
Isto é importante, porque os Araweté afirmam haver wna dis-
tin9ao entre posi9oes próprias e impróprias para casamento, .den-
tro de urna mesma categoria terminológica. Assim, . wn toti het!_(ger
mano da mae). nao deve casar com sua ZD, wna FZ com seu BS, wn MF
com sua DO, etc. Apenas os .kin-types distantes (d; ou am;) seriam
apropriados. Quando um MB casa com sua ZO real, diz-se dos dois
que "tornaram-se outros", ou "viraram nao-parentes" (od! mo-am.;te,
\.
oti-'l mo-ti"wa). Tal distin9ao nao se aplica aos primos cruzados ,que,

como primeiros ti'Wa próprios dentro da parentela de Ego, sao emi


...
nentemente casaveis.
.
Isto poderia sugerir que o casamento preferencial é o de
primos cruzad.o s (ambi-laterais), e que as unioes inter-geraci~

405
araweté : os deuses canibais

nais seriam apenas toleradas, ..como unioes "privilegiadas" 72 • Na

(72) Por "inter-geracional" entenda-se aquilo que Riviere (1969:67, n.l) chama
va . de "int.er-qenA:!logical level marriages", i •.e. unié5es onde os o5njuges es-
ti::> temiroloqicamente em g~ac;rOes diferentes. Náo cl:Jstante' sao c;x:mms tanto
- -
- ' entre gerayoes, no sentido cralOl.ógico,
esse tipo de casamento quanto as urú.oes
diferentes - · i.e. can grande difer~ de idade entre os o5njuges. CatO Rivie-
re, falo em casamento d:>llquo para o prirneiro tipo.

verdade, o casamento entre primos cruzados em prime.i ro gr a u . é ra-


r9 hoje em dia, e predominam as unioes obliquas entre paren tes
classificatórios, sejam do tipo MB/ZD, FZ/B$, sejam aquelas mais
distantes, do tipo FFBD/FBSS, ou os casamentos entre primos cruza
dos em segundo ou terceiro grau. No entanto, existe urna tendencia
a se desconhecerem as rela9oes terminológicas obliquas quando
rnais distantes (genealogicamente), especialmente se o parceiro es
tá na mesma gera9ao cronológica. Assim, urna F~o· nao é 9hamada de
(ou pensada como) "FZ 11 (tiatie), mas como tiwa, apenas.

Nao tenho condi~oes de estimar as freqüencias relativas dos


tipos de uniao; seja porque cada adulto Araweté qasou-se_ pelo me-
nos quatro vezes ao longo de sua vida, seja porque há sempre va--
rias vias de rela9io genealógica entte c6njuges, seja porque a
rnaioria dos casamentos é classif icada como se dando entre tiwa
(ou aprhi, ·a plno), termo que,· nesse caso, conota mesmo nivel gera
cional. Dos 44 casais existentes em fins de 1982, 27 estavam na
rela9ao indeterminada de tiwa (conexoes genealógicas
veis, ou FZDD, FMBD, MMBD), l era uni·a o com uma FZD, 2 com MBD, 3
com urna FZ classificatória, 4 corn ZO classificatórias, l com ZD
real, 3 com DO classificatórias(FBDDD,MZSDD); 2 na rela9ao de "ex
-irmaos"; e 1 era tido a boca pequena por incestuoso, onde o ho-
mern se uniu a sua to am; nemiyika pe, "ex-mulher de seu pai-outro"

406
entre si

- urna· hi. ami, portanto urna "mae". As baixa~ demográficas a -epoca


dos ataques Parakana e do contato , produziram urna recomposi~ao ge-
ral dos casamentos.
Urna vista d'olhos nas genealogias Araweté mostra a prática
de urna grande variedade de formas de casamento: troca de irmas,c~

samento ·de grupos de germanos, sororato, levirato, casamentos


oblíquos, com primos cruzados, sucessao matrimonial (por divórcio
ou morte) entre MB e ZS, e vários casamentos "incestuosos" (FBO,

etc.). A página 408 apresento urna amostra simplificada de urn con-


glomerado genealógico, para que se tenha urna idéia da situa~ao
73

(73) Ver P. Grenam 1982:113-117 para as foonas de casarento Wayapi, identicas


as Araweté. O casanento can a F'l é atestado (ou a FZ cx:uo parceira sexual ini-
ciatória) para os wayapi, os~ (Grfinberg, 1970:137); p::>SSivelmente para
os Tupinambá (Fernames, 1963:203). OS Tenetehara o proibiriam, juntamente con
o casamento avuncular (Wagley & Galvao, 1961:95), o qual é atestado para a
grarrle rnaiaria dos TG, que sao aliás um locus classicus dessa forma, juntarren-
te can os Caribe e a India oo SUl (Rivi.ere, 1969) •· o casamento can a· FZ ('"~­
si") nao se realiza, no entanto, entre os Caribe (ou pelo meros entre os Trio)
- ·Riviere op.cit.:143. ~curioso que tao pouca a~ tenha sido dada ao ~
i os de tinta derr~ sabre o "privilégio avuncu-
mento FZ/BS, ern favor 005 r _
lar" (Lévi-Strauss, 1967c:49S-ss; Riviere, op.cit.: cap.XIII, para urna discus -
sao detalhada). O casamento can a FZ, sl.nétrioo e inverso da uni.00 MB/ZO, te-
ria os me5nos efeitos endogamioos, ern ~ sisterra uxorilocal; que esta última ,
e estaria igua.lnente apoiado na rerltralidade da relac;ao ·s ¡z, que Riviere a¡:x:ll-
ta oo si.Stema social '!Tío (p. 276). 'As senelhanc¡=as estruturais entre os siste
mas 'IG e caribe ainda preciSaJn ser desenvolvidas. Riviere mta a OOvia re1ac;ao
entre o ccnplem oo ·"cunhado-inimigo" TUpinambá e o peito ou pito Caribe (cf.
ainda Riviere, 1977) - 'de minha parte, observo a semelhanc¡:a entre a categoria
'tiw e a "enerinJx?" '!Tio, que designa os -prim:>s cruzaoos ambi-laterais ~ os
~parentes (1969:140) • .
Toda a problemática de parentesa:> 'IG/Carihe perle ser pensada a partir de
urna filosofía que hisca fugir da troca matrinonia.l e da exogamia, bém coro ten
ta una dissol~ da diferenra parente/afim, e a diminui~ oo número de afins ·
"necessários" - e??fim, urna filosofia ende o incesto é tangenciado o::m:> limite
ideal-inp:>sslvel. Aquilo que os Araweté tém de mai~ próxino a rela~ evitati-

407
N.a.: H NÚMUtt .. UltTOI AO UUO 1
---------f------t---------
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&l•AL06fU H APfN°''' ll

=• 10 ~=·
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entre si .

va - o "nedo-vergonha" entre B e z - sugere que es~ é a rel~ investida de


dese j o , e que é o l~ar precário sobre o qual se nonta sua estrutura social . •
Ver Fernarrles, 1963:203, sobre o tratam:mto cerinonioso entre B e Z oos Tupi -
nambá. ·0esnecessário lenbrar que o ,casanento obliqu:> transfonna o gennarx:> de
sexo oposto em l'lll afim - o único afim con que nao
se JX)dern ter rela~ se-
xuais I a priori (poiS que nao há tab.l sobre re~ de \.'lll l'x:lnem con Slla SO-
gra, urna nulher c:on seu sogro, desde que a eSp:>Sa/esposo tenham norrido; ver
ainda, infra, a possibilidade de casarrentos poligam:>s de mae e fillia, pai e
filho, para alguns grupos TG).
Os casarrentos de "ex-inMos", entx:>ra envol~rxlc> mani~ terminológicas,
se aao sent:>re entre parentes classificatórios. Os casos, nas genealogias, de
qni0es do tipo FBS/FBD, sao em geral a::11enta00s a::no fruto de paternidade Mo-
-genética, mas social ("na verdade, foi outro fulaoo que fez beltrano, nao o
i.rnro do pai de sicrana ••• "). Os dois casos atuais sao da fonna:

1 1
A A
147
"'
e
0-6 0.=A !:JO-A.
. T" · ur .. •• r"' 6---·
,, 1º' "1
6===10
6

~ 0===6
1~ 1} f •

N::> primeiro, 19 chama tanto 23 a::no 24 de "filho", e eles eram, até o casam:m-
to, tidos cx::rro UmacS - urna vez que 267 e 19 sao .umaos, e 278 era chamado de
"i.nra:>" pelos primeiros, visto que seus ~vos pais casaram con a nesma
rrulher, e que 19 sucedeu a 278 junto a 20. As únicas rel.ac;Oes teI:mi.Ix>l.ógicas '
que foram nrx3ificadas a:m o casamento de 23 e 24 forarn: 20 passou a chamar 24
de 11 ?Xlra" , e 67 a dlalnar 23 de "cunhado". o l'rm:!n 19 nao se sentiria a vonta-
de em chamar 23 de "gen.ro", já que é filho de sua esposa. Naturalmente, 23
e 24 nao sao mais 11
il:m3os", errb:ira chamados de "filho/a" pelo nesno tanem. o
casamento entre 67 e 24 seria a:nsiderado ccm:> francanente incestuoso, e é in-
terdito. No segurrlo , tanto 5 CCJiO 6 charnarn 15 de "pai". Ela por urna lógica c las
sificatória; o harem porque se afirma. que foi gerado por 15 em 269. Este casa-
nento é visto CX1lD mais in'próprio que o cb prirneiro exenplo, e vale notar que
se trata de una uniao secundária, f ace a viuvez dé 6. Verenos adiante caco as
rela~s de aplhi-piha criam sihlingship classificatória.

O ideal expresso verbalmente pelos Araweté, de fato, pee os

409
araweté: os deuses canibais

primos cruzados como cónjuges ideais, tanto os patrilaterais quan


to os matriláterais. o casamento com a MBD é chamado "casamento
do ~r~wa", um pássaro, que em ~mito casa-se coma filha da suru
cucu, seu MB. o com a FZD é o "casamento da harpia" (kanono heri1
"como ' o gaviao.:..r'eal")' conforme' outro mito. ~ comurn que os adul-
tos estabele9api os cónju~es fqturqs .. ~ª~ crian9as d~ ~ldei.a,, empa-
relhando-as a seus primos cruzados; nao tenho meios . de saber -· se
ta·is di.sposi9oes sao efetivamente levadas a cabo. Outra forma de
compromisso matrimonial infantil é aquele onde wn MB ou urna FZ"re
servain" urna crian9a para futuro cónjuge, pedindo-a a irma ou ir-
mao (ver adiante). ·os casamentos obliquos e com primos cruzados
em primeiro grau sao concebidos, explicitamente, como forma de se
manterem juntos parentes próximos, ou melhor, como resultado da
liga<{ao entre Be z. os Araweté dizem que . "desejam" (pita) o:; fi-
lhos de seus irmaos de sexo cruzado, para si ou para seus ·filhos;
'
assim, dizem, "~ao nos dispersamos" (ire ohi na). Igualmente, ob-
serva-se urna tendéncia a se repetire~ alian9as entre duas parent~

las, a urn ponto tal que, após tres 9era9oes, constituem-se kind-
reds endógamos intrincadamente entrela9ados. Nao é urna no9ao , de
afinidade que comanda a concep~ao matrimonal Áraweté, mas urna de
parentesco; nao é o cunhado (ZH, BW) _ que cede urn filho para Ego
ou seu filho, mas o sibling (real ou classificatório) . Isto -
nao
significa, entretanto, que urna idéia de troca nao esteja envolvi-
da: pepi ka, "pagamento" ou "contrapartida" é como se definem .es-
tes casamentos. Urna ZD com que Ego casa é o "pagamento" de sua
irma; urn BS é o "pagam~nto" do i.rma~; e o mesmo se diz ao definir
o direito sobre as ZD e BS para os filhos de Ego. Oyo pepi-pepi ,
"trocar repetidamente", "trocar em série", "superpor-cancelar tro
ca com traca" (oyo é o pronome reciproco), é a forma verbal com

410
entre si

que se definem estes casarnentos: repeti~io de alian~as. O que os


Anaweté tern em vista, na uniao de ~rimos cruzados (e naquelas o
bl[quas) , é um ideal de endogamia de parentela. A ideología em «!9ao é
. . '
francamente a do. ciclo curto . de . reciproc~dade: . po+ urn sibling que cedo
agor:~. , qu~ro ~m conju,g~ mais t~rde ,par.a rneu filho ou fi1ha 74 •

(74) Exatamente oc::rro ro caso Parintintin., onde, se as uni0es oblíquas nao sao
permitidas, o ciclo matri.nonial tem a fonna da troca simétrica (pri.m::>s cruza
dos bilaterais),
.
mas conoeitualizada caro ciclo curto: . ao ceder urna irma a ou ~

tro harem, Ego ganha direito sobre os filhos desta, para c:Onjuge de seus pró
prios filhos. A rx:mi~o pelo MB é o narento ern que tais c:x:rrpranissos sao a
, firnedos. ·Ver Kracke, 1984b: 113,120,124.
Os paralelos da filosofia matrinonial Araweté sao claros a:mosfatos Pi
aroa e Trio (Kaplan,1975; Rivier~,1969). Mas a idéia de ~e casar con urn pr.irco
cruzado é casar ocrn o fil.ho de lit\ sibling de \.11.l dos pais - isto é, que U'T\ par
irmao/im reaparece na ger~ segui.nte caro urn casal (Thana.s,1982:90, apud
Riviere,1984:99, para ._o s Penon) - aproximaria os Araweté mais de Yalrnan (1967)
e de Riviere (1969:276) que de Durront e de J.Kaplan (1975:128,.1.94); oorquanto
? prim:> -cruzado seja um "Mo-parente.. , urn afiin potencial (tiwa), ele é ooncei
tualizado cx:m:> filho de um parente de urn dos pais, e nao oc::rro fil.ho de urn afim
destes. Isto me parece derivar da preponderancia ideológica do lél90 entre ir
rnao e iilla sobre o l.a.;ro entre cunhados, que é sircbolicanente "desmarcado". En
·tre~to, nao me parece que os Araweté leven sua vontade de endogamia (que é
mais de parentela que local, di~ti.nc;ao atualmente inpossível face a existencia
de urna
. só aldeia) aos extrenos e aos artificios Piaroa e caribe. .
Eles reconhe-
can a existencia da afini.dade, mas é caro nao lhe oonferissem inportancia. o
lugar efetivo de oorrosoo 00 principio da reciprocidade é ·a instituicrao dos
aprhi-piha, os anú.gos sexuais ligados por "anti-afinidade", ~nao a tecoonírnia
(Kaplan, 1975:cap.VIII) ou a repeti~ prescritiva de ali~a s:irrétrica, ou
a fiorao errlogatnica de localidade. Vale ootar que nao creio que se possa defi
nir o sistema rnatri.m:>nial Ar~té caro "prescritivo" ou "elementar" (contra
os casos guianeses): a rnerK)S se adotanros defini.9ao tautológica, os Araweté e~
sarn Can seus tiwa (quaisquer) , nao can seus af ins "dravidian:>s" ou "prim.:>s ca
tegoriais".Urn c:OnjU3e senpre é tiwa, mestro quaOOo parente, nao o contrário.

Por isso nao entendo direito a idéia de que as unioes conj~



gais entre MB/ZD e FZiBS "reais'' sao impróprias ~ mas ainda assirn

411
araweté : os deuses canibais

freqüentes. Diz-se que \lma rela9ao sexual com estes parent'es faz
nossa barriga- roncar, corno quando (se) ternos urna rela~ao com urna
irma - mas isto nao é levado rnuito a sério. o que parece haver,na
verdade, é urna ambigüidade da posi9ao do MB e FZ, quanto a sua
caracteriza'rao como parente ou ti"'a; e a decisao quanto a isto d~

pende de fatores .empíricos: diferen<ra de idade, proxirnidade so-


cfal, e sobretudo o comportamento recíproco dos interessados. No-
te-se que, _no sistema Araweté, a posi9ao de MB pode ser· transfor-
mada em várias outras: urn MB pode virar urn ZH, wn WF, e até mesmo
wn OH; o mesmo se diga da FZ. Quando nenhurna dessas solu9oes so-
brevém, acontece ainda que M'.B e ZS sejam aplhi ... piha: a mulher do
tio materno é parceira sexual muito comum para o ZS, e a mulher '
do sobrinho para o MB. Tem-se entao que essas posi<roes (MB, FZ) e
suas recíprocas sao -ca:rregadas de potencialidade, sobre-determin~

das; a afirma9ao de que rela9oes de casarnento só devem ser estab~


lecidas corn posi9oes distantes, nestas .categorias, pode ser urna
forma de neutralizar tal ambigüidade intrínseca. Por outro lado ,
rela9oes de aplhi-piha entre ~ e zs (FZ e BD) sao comuns - mesmo
entre parentes reais nestas categori·a s - ; e elas · ~xcluem, por de-
fini9ao, a afinidade: a co-partilha de conjuges é o oposto de uma
rela9ao de afinidade.

Nao existe urna palavra Araweté para "incesto". Há urna no9ao,


contudo - que nao sei traduzir -, que designa urna uniao imprópria:
ª"'~de. Ela qualifica os casamentos entre irmaos classificatórios
distantes, as unioes entre "pais" e "filhos", "avós" e "netos"clas
sificatórios (nao sei de nenhum caso ' de uniao entre FF/DD, etc. ,
reais - mas isto nao seria incestuoso). Parece aplicar-se igual
mente as unioes obllquas próximas. Os casamentos ª"'fde sao tidos
por menos adequados que os com tiwa - no sentido lato deste ter-

412
entre si

- -
mo -, mas nao sao rigorosamente incestuosos. O incesto - que ~
so
pode ser descrito corno urn "comer a mae", "comer a irma", etc. - é
algo It),Uito perigOSO, que produz efeitOS morta.is:o anus dos culpa-
'
dos se dilata , acarretando protusao retal; o casal morre de
ha'iwa, definharnento sobrenatural que sanciona toda infracrao se-
xual ou cósmica (ver adiante); e, o pior, os inimigos se abatem •
sobre a aldeia. Os culpados de incesto, diz-se, costurnam acabar
tao crivados de flechas inimigas que os urubus nao conseguem bi-
car seus cadáveres •••
o ataque dos inimigos sanciona urna outra infra9ao grave das
normas sociais: hostilidade entre irrnao e .irma. Incesto ou quere-
la, infracroes simétricas da distancia própria entre B e Z, afetam
mais que os culpados; toda a aldeia fica fraca e "mole" (t~m!) , e

é presa fácil dos inimigos.


As rela9oes e atitudes entre parentes e afins sao, no geraL
bastante relaxadas e pouco marcadas. Urna Única rela9ao é definida
como envolvendo "medo-vergonha" (áiye), por defini9ao: irmao/irma,
75
que é assirn o par marcado da estrutura de parentesco . Isto nao

(75) Digo "por definic¡2o" porque outras situac¡i)es envolvem ..rnedo-vergonha" tern
p:>rário e de origen psioológica, nOO-sociológica. Assim, todo joven que vai pe
la prineira vez residir uxcrilocalmente sente urn pouoo disso IX>S prineiros tern
pos, fare a seus sogros. Mas tal a::ostranginento passa logo, diz-se.

significa evita9ao irmaos de sexo oposto visitarn-se freqüente -


mente, demonstram muita estima recíproca, e sao o apoio principal
de urna pessoa em sua briga corn os outros. Urna mulher recorrerá ao
irmao, nao ao marido, nurn conflito com um estranho. E toda vez
que estoura urna briga conjuga!, é sernpre um irmao de sexo oposto
que acorre a consolar o conjuge. Por outro lado, essa solidarieda

413
araweté: os deuses canibais

de se desenrola em meio ·á um clima de respeito, e as brincadeiras


verbais de cunho sexual, tao apreciadas pelos Arawe.té, jamais tém
por objeto um sibling de sexo oposto. Solidariedade irrestrita e
- 76
respeito marcam esta rela~ao •

(76) Por ocasw. de una panradaria conjugal, o illliio da nulher re50lveu inter"'."
vir, e acabou agredió:> pela .u:ma, cega de raiva. Isto provooou escandal.c? gene-
rall7a3o na aldeia, cx:rtprovanó:> a fama de "louca" (daziara, "que dá voltas") da
mtlher.
cuando a dif~ de idades entre B e z é rmri.to grarx:Je, a rela~ se torna
patern:>-maternal. Una i.ntB adulta chama seu i.OOozinho de "fi}l'X)", e pode ~­
nt:> amamentá-lo.

Irmaos de mesmo sexo sao igualmente solidários, e sao os


companheiros de trabalho mais comuns. Mas a liberdade entre eles
.
é grande - embora nao chegue nunca a camaradagem jocosa dos ap!}ii-
-pi ha -, e o acesso de cada um ao conjuge do outro é tacitamente
admitido. As irmas, sobretudo, sao extremamente unidas. Um irmao
de mesmo sexo é he di, "meu outro", "eu outro";a rela9ao de Ego
com seu irmao de mesmo sexo é quase uma rela9ao reflexiva, de i-
dentidade. Nota-se, entretanto, que a ordem de nascimento - marca
da pela ter.minologia de parentesco - gera um~ diferen.9 a entre os
irmaos, e que um eB dispoe de ~utoridade sobre seu · yB; e o mesmo
entre ez e yZ. Embora empiricaiñente tenue, esse ordenamento se-
rial da autoridade é reconhecido como tal pelos Araweté: os ir-
maos "se sucedem", (-ptrt'), na barriga da mae, no levirato e no
sororato.
A rela~ao entre marido e mulhe~ é notavelmente livre, mas
ambivalente. As manifesta9oes de afeto ou de hostilidade sao aber
tamente manifestadas. o cóntato corporal público, erótico inclusi
ve, é admitido, e quando as coisas vao · bem os casais sao muito

414
entre si

carinhosos. Por outro lado, as cenas de ciúme e as brigas sao re-


lativamente freqüentes • . os maridos de mulheres jovens sao muito
ciosos das esposas, e vigiam-nas de perto. Já quando o casamento'
- '
se consolida com o nascimento de fi·lhos, sao as mulheres .gue . pa_!
sam a demonstrar ciúrne, especialJ1'ente quando sao mais velhas que
o marido. A violencia físic~ é comurn en.t re casais jovens, e em g~

ral as mulheres sao mais agressivas. A norma é que a vítima da a-


gressao (espancamento, mordidas, queimaduras, etc.} nao reaja, e
sequer proc~re furtar-~e aes golpes. Fora da rela9ao conjugal (e
das raras sovas que se dao em filhos pequenos) nao há qualquer es
pa90 para a violencia física entre os Araweté, que . nao se tradu -
zisse !mediatamente em marte. Por isso, tal rela9ao parece
. ficar
sobrecarregada, canalizando-se para lá os rancores e tensoes exó-
genas, . inibidos. Isto responde pela alta instabilidade conjugal
77
-
Ar awete, .
Juntamente com ou t ros f a t ores . .

(77) Ver capitulo "IV, oota 2,. Sobre o t.Ema oosrcológico do conflito H/W.

A diferen9a de tdade entre os conjuges é \un tra90 recorren


te entre· os povos Tupi-Guaraní, e pode estar associado a alian9a
obliqua (Fernqndes, 1963:154 para os Tupinambá; Wagley & Galva~

1961:97-99 para os . Tenetehara, onde se sublinha também a instabi-

lidade matrimonial até o primeiro filho; Mttller, 1984 para os Asu


rini, .onde isto estaría associado .. as unioes polígamas de tipo M+D
e F+S) . Ele se encontra também entre os Araweté, mas se tratam de
unioes secundárias ou ~emporárias, onde velhos iniciam s.exualmen
' t~ as moc;as pré-púberes, e as velhas acolhem te~porariamente · jo
vens sem esposa disponivel (ver adiante). Nao é urn fenomeno domi-
nante, e as unioes obliquas duradouras se fazem · entre pessoas de
mesma gera9ao cronológica. O que existe, no entanto, é urna situa-

415
araweté : os deuses canibais

c;ao demográfica particular, atualmente, que faz corn que 9 dos ca


sais da aldeia - e entre eles os rnais importantes politicamente -
apresentern diferen~as de cerca de 10 anos entre a rnulher e o rnari
do (contra 3 onde o marido é 10 ou até 20 anos mais velho que a
rnulher). Isto se deve ¡elevada ·rnortalidade dos homens na guerra,
que "deixou viúvas sern parceíros de sua idade.

Entre afins de mesmo sexo e gerac;ao, as rela<;oes sao -


nao-
-marcadas. Nao há evita~ao de qualquer espécie, nem tarnpouco soli
dariedade especial. Cunhados podem ser vistos saindo para cacrar
juntos, e podern estabelecer lac;os de arnizade duradouros; ou sim-
plesmente podem se ignorar. Corno parte dos la<;os de solidariedade
entre irrnaó e irma, º contudo, eles estao entre os convidados mais
freqüentes ao pátio de umá pessoa. Nao observei nenhuma assime
tria entre WB e ZH; no entanto, formula-se claramente a idéia de
que o hornero que recebeu a irma do .outro deve, em principio, forn~

cer urna contrapartida, urna irma ou filha para o WB. Deis cunhados
ou cunhadas podem ter rel-ac;oes sexuais com urna terceira pessoa I

mas nunca podem ser definidos como apfhi-p.iha, · relac;ao que envol-
ve partílha _de conjuges.

Entre afins de sexo oposto (mesma gerac;ao), as relac;oes sao ·


livres e semi-prazenteiras, e as brincadeiras sexuais verbais sao
pe·r mi tidas, mas normalmente na ausencia do sibling. A relac;ao de
dois irmaos de mesmo sexo face aos conjuges de cada urn é concebi-
da C0In0 de SUCeSSaO potencial - levirato e SOrOratO I nao dé SÍ

multaneidade. As relac;oes sexuais eventuais entre, p.ex., urn ho-


rnero e sua BW sao semi-clandestinas/ ou se faz vista grossa a ela~

Caso se tornero conspicuas, um dos envolvidos termina propendo urna


traca de cónjuges, o que é relativamente comurn. Esta rela~ao "dia
cronica" da equivalencia entre irmaos de mesmo sexo se opoe a par

416
entre.si

"h·~-p~.h- 78
tilh
. a 11
sincron 1 ca "de conJuges
• - - . ent re os ap~ a. •

(78) Os Araweté sao nonóganuci:>s • .Fala-se~ no passado, en alguns ~s de Poligi


ni.a sororal; e há situat;Oes de poliginia sinples, terporária. Assim, en 1982 ,
urna nulher de seus 27 estava sOltei;a (estéril, suas li~ nao se a::!l-
. ..
an.:>S
. . ~ . - . . .
solidavam), e norou por curtos periodos em casa de lxrlens casados, que manti"!,
ram _rel~ sexuais qan el.a: e a chamaram, nesta situ~ao, de "esposa". A si -
~ao pollgina é designada a:m:> oyiwarzg(trazer algo) de ambos os lados"~numa r~
ferencla a disposi~ das redes das esposas quanto a do marido. Nao soobe de
nenhum arranjo poliardr1cx>. A Poliginia Parece depender do fato de que é inoon
.
cebi.vel una nlll.her adulta rorar, seja sozinha,· seja em ca5a cbS pais;. caro
toda~ é .oonjugal, cria-se a -poliginia por escassez. de maridos. Já a falta
de mulheres casáyeis ~ leva. ~ po:µandria .p:>rque um hcuén pode norar sozinl:o.
o que nao quer dizer que a sit~ao sexual corres¡:x:>nda a conjuga!; a norx:>gamia
ou rara poliginia se superp5e una ..piuri:..gaird.a" - fruto dos la9QS de ap!hi-
-piha, ~ sinc:ronia, e .do elevatb número de casarrentos suoessivos.

No que diz respeito as relac;oes entre gerac;oes consecutivas,


o quadro é 'variado; dependendo das fáses do ciclo de vida e da si
. .
tuac;ao residencial pós-marital. Como observac;ao geral, registre -
·. \ . .
-se a pouca énfase em estruturas de autoridade baseadas na .dife -
renc;a geracional. Entre pais e filhos concebe-se urna comunidade
de subst~ncia, e suas relac;oes sao afetivamente marcadas. Há urna
~oc;ao de que filhos sao ""coisa do pai", filhas "coisa da mae" - o
que traduz apenas .urna ide~tidade dé género e das atividádes ec~no
micas de cada sexo, , pois ·a teoria da concepQaO é patrilateral • .No
entanto, esse ·"paralelismo" é compatlvél com o direito sexual-con
jugal da F·z e do MB sobre seus BS e · ZD.
A vida social Araweté exprime urna forte tendencia matrifo -
cal, que re9e as soluc;oes · residenciais. o· laQO mae-fÍlhos é ' rnais
·forte que o pai-filhos - e especialmente a relac;ao mae-filha. t
dificil caracterizar com precisao a "regra" pós-marital Araweté ' .
Do ponto de vista da norma, bá algum desacprdo. Os jovens dizem
que o ideal é a v;Lrilocalidade - o hornero leva a mulher para sua

417
arawetá: os deuses canibais

se9ao residencial; os mais velhos, porém, afirmam que, tradicio -


nalmente, os rapazes iam tomar residencia na se~ao ou aldeia da
mulher, e que só após o nascimento do primeiro filho é que po-
diam,
.
se quisessem (e convencessem a esposar, voltar a aldeia de
origem. A razao aduzida para a uxorilocalidade é que as maes -
nao
querem se separar das filhas .e, ademais, que so9ra e nora -
nao
costurnam se dar bem. Nunca se mencionava o papel do pai da mulhe~

nem no~oes .como. .. pagamento da noiva" - embora todo homem casado u


xorilocalmente passe a abrir r~a junto ·com o sogro ou marido da
sogra. Seja qual a solu9ao adotada, uxori- ou virilocal, o que se
tem, conceitualmente, .é urna residencia "matri- .. local: o cónju9e
de fora é definido como morando haéo pi, "junto a sogra", e o de
dentro como ohi pi, "coma mae".
- -
A situa9ao real depende de vários fatores, notadamente do
peso político das parentelas envolvidas, do número e c~mposi~ao '
de sua prole, da ~itua9ao geográfica, etc. Hoje ern dia, dizem os
Araweté, nao importa muito a solu9ao residenci~l, urna vez que to-
dos estao reunidos em urna só aldeia. O fator que continua determi
nante é a aloca9ao da for9a .de trabalho. A "uxorilocalidade" Ara-
weté significa isso: que um jovem passa a trabalh~r como sogro,ou
melhor, a colaborar na abertura da ro9a de milho da sogra.

Um casal-llder de uma familia extensa só tende a permitir


a salda de wna filha se consegue reter wn filho (atrair urna nora),
ou se casar rnais wna filha,
. .de modo a repor o g~nro perdido. A
boa adrninistra9ao de urna f amília consiste em arrumar casamentos '
que mantenham os f ilhos de ambos os
, sexos na unidade de produ9ao
de origem, trazendo gente de fora.

Assim, as 45 casas da aldeia correspondiam apenas 23 ro9as,


13 delas abertas por mais de urna casa conjuga! (ver ApendiceIII).

418
entre si

oessas 13, 8 envolviam 11 relac;oes de afinidade do tipo WF+WM/DH.


Dessas 11 relac;oes, 6 eram concebidas como fundadas na relac;ao
WM/DH (o marido da sogra, nesses casos, nao era o pai da esposa ,
embora pudesse s.er o .t i tul ar da roe; a) , e 2 na relac;ao WF /DH. As
associac;oes justificadas por outros cri térios se. realizavam em 6
roc;as: 6 . relac;oes F+M/~, das quais apenas 1 pensada como fundada
no lac;o F/S, 4 no lac;o M/S (o marido da mae é outro), e 1 no du-
plo lac;o F+M/S. Semente duas associac;oes se baseavam nos lac;os de
B/B, e urna no de MB/zs 79 •

(79) F.stou aquí tanancb o pcnto de vista masculino, i.e. do 00; tanássenos a
perspectiva feminina, e teríam::>s entao as 6 associaQOes "virilocais" a:rro en-
volverm HF+HM/SW, etc·.
A circnl~ matrim:l'lial cx:ncreta é bastante carplexa, e ali se blsca um e-
qµillbrio ou reci.procidade entre as ses:Qes envolvidas. Assirn, par exenplo,trés
familias extensas b:ocaram genros durante acJ)sto-set:snbro de 1982; da seguinte
fonna: o casal 105-66 se divorcioo, e cxrn isto o haten 105 deixaria de fazex:
n::it;a junto cxrn a e da esposa e seu marido (72 e 71). A nuera 66 casoo-se can
65, que estava solteiro, e trabalhava na roc;a do "il:niio" 69, líder da sec;ao ~
siderx:ial. III. O rapaz 65 passoo entao para a roc;a de 72, sua sogra. Rapidamen
te, o hc.roem 69 providencini que 105 casasse cxrn 106, sua "filha." que est.ava '
solteira, mrando precarianente (e iupxopriamente) em sua casa; assirn, .oouve
una troca explicita entre as casas 25 e 26, titulares de ro;:as plurifamillares:
trocaram-se genros, entre o casal 69-70 (casa 26). Em seguida, o rapaz 67
saiu da ~ VII e foi norar mcorilocalmente can 68, filha tanbém do hanem
69 (Ylliña~ro, chefe da aldeia). Polla> depois, o pai da esposa~ 69, que,
vellx>, residia a:rro agregado junto a filha e o genro, casou-se a:m a menina
136, filha. do lider da sec;oo VII, foDial1do a casa 45 (135-136) - eri:x>ra ~
nao ln.tvesse una traca clara de f~a de traba1h:> (pois 67 nao trabalhava na
ror;a de seu .m 19, pai de 136, mas na de seu pai 27), nota-se igualnente a el!:
cnl~ao reciproca de hatens entre ser;Oes residenciais. Boa parte da lógica que
preside as Seqúencias da troca de o3njuges que se verificam pericxiicamente, e
que afetam sobretudo os jovens easa.is, se explica por essa tentativa de re-e
qui.librar a forc;a de traba.lb:> entre as ser;Oes residenciais·•
.ApÓs un divórcio, o marido deixa a roc¡:a que plantal para a mulher ou os so-
gros: nao tem mais nenhum direito sobre seus prcrlutos.

419
araweté: os deuses canibais

A já referida mortalidade masculina na gera9ao dos 40-50 a-


nos levou a essa dif eren9a entre WF e WMH estes Últimos nem sem
pre chamados de "sogro" -; de toda forma, a tendencia que emerge•
é a de urna clara matrifocalidade e · "uxorilocalidade agrícola": 11
casos, contra 6 em que os filhos casados permanecem trabalhandona
ro9a dos pais (ou da mae) - e nesses 6, 4 envoívein e·s posas virilo
calizadas cuja mae é morta.

Este critério economico é mais decisivo, no determinar a r~

gra de ''residéncia" atual dos Araweté, que a proximidade espacial,


a qual depende de contingencias histórico-topográficas - fusaodas
aldeias, ausencia de plano fixo aldeao -, e que .permite solu9oes
de compromisso, como a de um ca·s al residir no setor da .parentela•
do marido, mas trabalhar na ro9a da mae da esposa (p.ex. casa 42,
ro9a coma casa 31). o que nao significa que a situa9ao espacial
' importante (cf. supra, · pps. 278-94).
- seja
nao

O exposto acima leva-me · a aceitar, assim,a palavra dos mais


velhos sobre a uxorilocalidade tradicional, e seu caráter "temp~

rário". Como já indiquei ~o § 1 deste capítulo, o~ casais adultos


procuram reagrupar-se conforme os grupos de siblings de onde vie-
ram, e tendero a formar núcleos mistos (irmaos e irmas casadas,que
atraíram seus conjuges), que. no entanto. nao abrem ro9as .C?omunais.
. .
A uxorilocalidade era pensada p~los Araweté como um mal ne-
cessário, wn recurso face a inexistencia eventual de mulheres ca-
sáveis na aldeia de origem. Já o ·trabalho na ro9a do sogro / sogra
nao é visto como problema; e papel qe titular da ro9a,_ que cabe
aos pais da esposa, nao implica nenhwn privilégio economico des-
tes quanto a unidade conjuga! da filha/genro. o casamento com uma
parenta, por sua vez, só faz redefinir uma rela9ao já existente '

420
entre si

entre um rapaz e seus sogros . .


Nao há regras de evita9ao entre afins de gera9ao adjacente,
embora uma cer~a reserva prev~le9a, bem como uma comensalidade o-
brigatória e respe·i tosa. Muito raras sao situa9oes de conf lito en
tre genro e sogro; ocorrem, contudo, se o primeiro se mostra pre-
gui9oso no trabalho agrlcola. Quando o casal mais jovem nao tem
filhos, pode suceder que os pais da esposa manobrem, influencian
do-a para que troque de marido. Por outro lado, os casamentos
virilocais costumam-se mostrar tensos na rela9ao com o casal mais
velho; nos dois únicos casos em que as esposas tinh~ mae viva,
o choque entre nora e sogra - na verdade um conflito entre a -
mae
-
do marido e a da mulher - era comum.

Nao é possivel falar de _uma rela9ao institucionalizada está


vel entre MB e ZC, 9u FZ e BC, urna vez que, como já mencionado,i~

to depende de urna série de fator.e s. quando os s .o brinhos sao pequ~

nos, sao tratados como filhos; nao se os chama por termos de pa-
rentesco, m~s pelo nome pessoal (e reciprocamente ) ou pelo v ocati
vo _"filho" - !!]>l. Quando já adolescentes, pode-se instaurar uma
considerável liberdade entre estes parentes, envol:vendo jogos ver
bais e contato físico; mas pode persistir também uma rela9ao pa-

. e FZ e seus
terno-maternal entre MB zc e BC. Entre gera9oes al-
ternadas, as rela9oes dependerao do contexto: o casamento de um
homem com ·suas netas classificatórias (FBCCD, etc., ou as" filhas"
c_l assif icatórias de um f ilho real, etc.) .é acei tável.

Quando eu perguntava se um rapaz, ao· se mudar de . aldeia pa-


ra casar, nao ficava intimidado e com saudade~ de casa, respon
diam-me que sim, mas que sempre se tinham parentes na aldeia da
esposa; e,· sobretudo, que logo se criavam la9os de aplh i - pi'ha en
tre o recém-cas.ado e os tiwa da aldeia.

421
araweté: os deuses canibais

(D) A rela9ao aplhi-pi'ha:


w ..
fintando a af inidade

Tu nao poderás te adornar nunca o suficier¿_


te para teuamigo; pois tu deves ser para
e7,e 'tma jLecha e um anseio pe7,o Super - ho-
mem.
(Nietzsche/Zaratustral

Um casamento, ou matrimonio, nao é objeto de nenhuma cerimo

nia ou. marca~ao- ritual (mas ver supra, p. 298, n.16), e a acele-
rada circula~ao matrimonial dos jovens torna o casamento um negó-
cio corriqueiro. No entanto, sempre que urna uniao se torna públi-
ca com a mudan9a de domicilio de um individuo, produz-se Uina in
tensa com~ao na aldeiá. o novo casal come9a !mediatamente a ser
visitado por outros casais, seu pátio é o mais alegre e barulhen-
to a noite. Ali se projetam excursóes a mata, pescarias; ali se
brinca, há muita "pe·g a9ao" flsica entre · todos, os homens se abra-
~am, as mulheres cochicham e riem. Dentro de alguns dias, nota-se
wna associa9ao freqüente entre o recém-casado e outro homem, bem
corno a de sua mulher corn a rnulher deste. Os dois casais come9arn a
sair juntos a mata, e a se pintar e decorar, mútua e ostensivamen
te, no pátio do casal rnais novo. Formaram-se os la9os de
-piha.
Um matrimonio expoe o casal ao desejo coletivo - especial-
mente a rnulher. Tao logo urna menina tornava-se esposa pela primei
ra vez, passava a ser considerada interessantissirna. por home ns
que, até ~ntao, '
a ignoravam. Mesmo uma recomposi~ao - matrimonial
produzia tal efeito: os novos casais viravam o centro de aten~ao.

O casarnento, assim, em vez de subtrair os cónjuges do campo se-


xual potencial dos outros, poe-nos ern evidencia ali: nada mais de

422
. entre si

sejável que a mulher do vizinho. Os casamentos Araweté sao,porta~

to, literalmente um negócio coletivo, que interessa a mais gente'


que o casal e suas parentelas imediatas - ele cria rela9oes múlti
plas, que extravasam a afinidade.
Era curioso observar a inveja· generalizada que um novo cas~

mento despertava. El"e nao só contagiava toda a aldeia (ver supra,



p. 303 1 n. 17), como gerava um fluxo de discursos cobii;osos sobre
o casal, planos de aventuras clandestinas com a jovem esposa,etc.
Tal perturba~ao se estabiliza quando wn casal . em particular vence
esta competi~ao "surda" pelo novo casal, e se transforma em seu

A marca principal da rela9ao de aplhi-piha é a alegria:tori.


Os aplhi-piha de mesmo sexo mantem um convlv~o de camaradagem jo-
cosa, que nao implica nenhuma conota9ao· agressiva;. eles º!Iº mo-ozof.,
"se alegram reciprocament;e": estao sempre abra~ados, manifestam '
urna amizade Intima e intensa, com forte matiz homossexlual; -
sao
companheiros assiduos de trabalho, usam livremente dos bens do
parceiro. Quando os homens saem para urna ca~ada coletiva, as mu -
lheres ligadas por esta rela9ao vao dormir na mesma casa. Na for-
ma~ao dos dan~arinos do cauim, como já mencionei, o la90 aplhi -
-pi ha é dominante. Os aplhi-pi:ha de sexo oposto (i. e. a aplhi e
o apln·o) sao também chamados de to'ri pa: "o que contém a alegria",
"o al~grador". Aqu~, o contraste pertinente é entre o "medo-verg2
nha" que 1:1-ga B/Z, e a "alegria" dos a·plhi-pi'ha.

o q.u e caracteriza ou subjaz a esse júbilo, o cimento ou "ob


jetivo" dessa rela~ao é a mutualidade sexual. Os aplhi-piha tro-
cam de conj.~ges temporariamente, segundo dois métodos: (1) OIJ~

iwi,"morar junto", pelo qual os homens vao a noite para a casa de


suas a;plhi, ocupando a rede do parceiro; pela roanha se retorna
..
a

423
araweté: os deuses canibais

situa9io conjugal; (2) oyo pepi, "trocar'', pelo qual as mulheres


passam a residir por algum tempo na casa dos apln·o .. Em ambos os
casos, porém, o quarteto é sempre visto . junto, .n o pátio de· um dos
casais. Os casais trocados costumam sair a ca9a de jabotis, toma~

do dire9oes diversas, e a noite se. reúnem para comer o que troux!


ram. Esta "mutualidade" sexual, assim é urna alternancia - cada nen
bro do quarteto alterna contatos sexuais com os dois outros de se
xo oposto -, nao um sistema de sexo grupal (que parece realizar -
-se eventualmente; .a estimula~ao er6tica entre aplhi e aplno -
e u
sual, nas reunioes noturnas nos pátios) •

O lugar e o momento privilegiados para a efetua9ao do siste


ma de aplhi-piha é a mata, · especialmente o periodo de "amadurecer
o milho", quando pares ou séries (nao-transitivas¡ ver adiante)de
casais assim ligados acampam juntos. Já no come~o da esta~ao do
mel, em setembro ·de 1982, percebia-se que as unidades mínimas de
coleta envolviam quase sempre grupos de aplhi-p'iha. Na mata, os
casais trocados saem para ca9ar e tirar mel, reunindo-se a noite:
"odia é da aplhi, a . noite da esposa", dizem os Araweté sobre o
sistema sexual da mata. As expressoes "levar para · ca~ar"(hero-at@,

"levar para tirar mel", "levar para o mato" sao metáforas que ca-
racterizam a institui~ao dos la9os· aplhi - ap?no. Se eu pergunta-
va se um homem era mesmo o ci'pl'no de urna mulher, o critério decisi
vo era esse: "sim, pois ele a levou para o mato em tal ocasiao" •
Isto marca a rela9ao como orientada - é o homem que "leva" a mu-
lher a mata, dominio masculino. E a mata, o jaboti e o mel confi-
guram a simb6lica da "lua de mel" Araweté - que nao se faz entre
esposo e esposa, mas entre ap?hi e aplno¡ nao envolve um, mas
dois casais. E esta "lua de mel" corresponde de fato a duas luna-
c;:oes - urna espécie de "lua nova" do milho, em que este se"oculta"

424
entre si

(ti'i, diz-se do milho nas chuvas e da lua nova), que é ao mesmo


tempo urna "lua cneia" do mel (quando as . colméias estao repletas).
O tempo das ·"chuvas do milho", (atcJac,f ami) é o tempo do mel e das
aplhi - -e gorda· como · o melé . a vagina de nossas aplhi, dizem os
' -80 •·
.(U'awete

(80) Ver supra, R>S· 352-ss. A noc;:ao de "vulva gorda" se reencx:ntra oos Sirio
no (Ho].nt)etg, 1969:16Í), onde alias aron~ social. e simbólica 00 nel é cen-
tral - deixei de registrá-la . anteriÓnnente; · O mel é a base do "cauim alcxX'>li-
co" Siriono, única ~i.nOnia . cx:>letiva deste pavo, e ocasiao de. cantos agressi
vos; apenas adultos cx:rn fil..OOs, após uma escarificai;ao cerim:mial, tanavam pa;-
te nesta Festa ao· ~l, que ·marcava o ace5so ao 'status de aldulto - o que nos
renete ao cauim ·T upinambá; -ver nota _·66· , ~ra p. 385 • (HolmbPxg, 1969:92 -
SS. , 220-s~.) •

o ciúrne, por defini9ao, está excluido dessa rela9ao; ao con


-
trário, ela é a única situa~ao de extra-conjugalidade sexual que
envolve o oposto do ciúme, a cessao benevolente, honrosa e entu -
siasmada do conjuge ªº parceiro: uma espécie de generosidade zel~

sa .·e os·tensi va 81.• Mesmo entre irmaos, que tefu acesso aos respecti

(81) Difícil caracterizar esse sentimento, essa "alegria" que nao tem urna ex-
pressao.Clara E!n portugues - ende n00 existe l.1m antOnin'o de 11Ciúme" • "Ciúme" I
em Arawété, póde ser expresso de m:xX1 indireto, pelo verbo m!Z_ 'e, que se trciduz
a::::m::> "guardar para si''. , "oonvencer alguém a nao se relacionar a outrem"; ou ~
lo verbo haih! - p::>ssível oognato do Tupinambá -ausub-, "amar" (Lenos Batjx>sa,
1956:37, l.39) -, mas~ em Araweté' conota zelo excessivo pelo que se tan, i:e-
cu.sa a partilhar algo que se encarece. Ciúme é avareza, oo cx:ntexto legít:inD '
da reJa~ . real ou ~al entre aplhi-pirza.

vos conj·uges, pode haver margem para ciúmes reprimidos, e para


desequilibrios: · um homem pode freqüentar a esposa do irmao sem
.que este saiba, queira ou retribua. Já a rela9ao entre a·plhi-piha
pressupee a .ostensividade e a simultaneidade: .é uma rela9ao ri-

425
araweté: os deuses canibais

tual de mutualidade.
o complexo simbólico. da rela9ao aplhi-piha é absolutamente
central na visao de mundo Araweté. Nao sei como exprimir de modo
s.i mples essa importancia e peso de que ele se reveste. Ter aplhi-
-piha é sinal de maturidade social, assertividade, generosidade ,
alegria, for9a vital, prest!gio. A apfhi é "a mulher"', pura po-s i-
tividade sexual e psicológica, sem o fardo da convivencia e .. das
quere¡as domésticas. E um aplhi-p·i ·ha é mais que um irmao, em cer-
to sentido¡ é urna conquista sobre o território dos tiwa, dos nao-
-parentes, é o estabelecimento de urna_ identi.dade ali onde só ha-
via diferen9a ou nao-rela9ao: .é um amigo. Note-se que a freqüente
associa9ao económica entre os quartetos de aplhi-piha nao envoí-
vem nunca o trabalho agrlcola, para QS homens (as mulheres podem-
-se associar para pilar milho, etc.), mas sima ca~a: a coopera -
9ao agrícola supoe pertencimento a mesma familia extensa, o . que
nao pode ocorrer entre aplhi-pi'ha.

Os aplhi-p_i .ha ·de sexo opas.t o se pintam, enfei tam e perfumam


mutuamente (o convite a um nao-cónjuge para pintura mútua, po.~ o-
casiao de um cauim, é proposta direta de "namoro'' e cria9ao de la
~os de amizade sexual). Ouando se vé um quarteto, numa festa qual
quer, profusamente decorado, com muitos 'b rincos, a cabe9a emplum.!
- .
da de branco, o corpo brilhando de urucum_, sentado numa mesma es-
teira1. ri.ndo e se abra9ando, nao há dúvida: sao os aplhi-piha. C_!
9a, dan9a, pintura, sexo, canto, perfume: o mundo dos aplhi-piha
- -
é um mundo ideal, de júbilo e de mutualidade. No mundo celeste,
a rela\:ao. entre os deuses e as almas dos mortos é sempre concebi
da sob a espécie da rela9ao a·plhi-pi'ha • Nao que lá nao ha ja af in!
dade: os mortos se casam no céu, com os M~f, tém filhos, vivem C_2
mo aqui. Mas a imagistica e ·o imaginário dos cantos xamanisticos.•·

426
• r entre si

sempre p0em ·em cena, em seus passeios a terr.a, as almas defuntas


acompanhadas de seus a·p?no ou· aplhi celestes - ·como convem as oca
sioes fest.ivas. ·um eufemismo para o passamento de alguém alude e-
xatamente a esse caráter "celestial" da relac;ao aplhi-piha: "'6ha
ki otori pa kati we" - "ele se foi, para junto de seu 'alegrador'".
A impressao que se teria ·, assim, é que o casamento é menos
wn meio de se conseguir uril conjuge que o de se ter acesso a um ca
sal de aplhi-piha que duplique e "idealize" a própria relac;ao· co!!
jugal. Um aplhi-pi'ha é um anti-afim, um antiéio.to da afinidade,sÍ!!
tese ideal do "eu outro., - o anl - é do "outro eu" - o ti.tila. Nao
por acaso; entao , se diz -de .um quarteto de aplhi • piha que ele "se
entre-cotne" co·y~ o): sexu·a lmente falando, é claro¡ mas como evi-
tar uma aproxima9ao com a "síntese canibal" da antropofagia, e
82
com o idea.l do ince-sto? Para wn hornero em situac;ao uxoriloéal,e!

(82) carparar o::m o terno Parintintin para "incesto",· oji 'u.: "o:mer-se a si
nesno" (:Kracke, 1984:123, n.4).

pecia.lmente, criar relac;oes de a·plhi ~pi·ha é urna estratégia para


se permanecer •entre si~ mesmo quando entre outros.
Um individuo/casal pode ter mai.s de um casal associado como
aplhi-pi·ha. :- a média é cinco ou seis. Ma·s estas relac;oes se atua-
lizam sucessiva ou consecutivamente ao longo da vida: nao é comum
que um casal mantenha duas relac;oes ao mesmo tempo, embora nomeie
vários casais au individuos pelos termos do conjunto aplhi-piha •
As rela~oes - de aplhi-piha nao sao transitivas: os a·plhi-piha de
meus aplhi-pi'ha nao estao .necessariamente nessa relac;ao comigo; é
usual que dois irmaos reais, que nao se podem chamar pelo termo a
cima, tenham um ou mais aplhi-pi·ha em comum. Trata-se portanto,de
urna rela-c;ao. diádica, que envolve, a cada vez, apenas dois casais.

427
araweté: os deuses canibais

· Re-casamentos, por viuvez ou divqrcio, produzem .urna n~cessi

dade de se decidir sobre a renovac;ao dos lac;:os de aplhi-piha. - Se


um membro de° quarteto marre, e o conjuge cas.a novamente, é desejá
vel qu~ · se reatualizem .as rela9o~s, promovend9. urna troca . oy~ iwi
que consolide . os antigos lac;:os.
t . bastante .comum que as ti;Gcas _· temporárias de conjuges ter-

minem virando definitivas: al se diz, em sentido · próprio, que os


homens "troca~am" . (o yo pe pi) d~ esposas~ Continuam·, entretanto, · a
se chamar de aplhi-piha. Essa te~minologia, afora os· periodos de
efetua~~o da mutualidaqe sexual, tende a ser muito mais usada en-
tre homens que ~ntre mulheres, e igualment~ o vocativo aplhi -
e

rnais usado que seu .reciproco a·pfno. A inic_iati va dessa rela9ao -


e
masculina - mas as mulheres pqdem . sugeri~la, ou ·resistir aos ar-
ranjos. As rela~~es de aplhi-pi'ha podem ser desati vadas, por oon-
fli to 83, recornposi9ao matrimonial, desinteresse¡ e elas sao mais

~ . ;
(83) ~ possivel a ruptura de urna rel~ de aplhi~p.Z:hádevidO a abusos de uma
aas· partes. un exenplo que te5te:nuñhei foi atril:clCb a urna "~iatrOO indé-
bita": .urn dos lx:mens. depilou crnpletamente o púbis de sua aplhi,
. . ~ -
indi~ de seu parceiro, que declarou que tal prática nao estava prevista 1
oo "ccntrato", e que,· afii'lal, os pelos da nenina ainda estavam"veroes" (daéi)
- pois ela era ben joven.

ativas. entre casais .jovens e/ou . sem filhos. Urna relac;:ao encerrada
costuma . ser cancelada ·terminologicamente (ou marcada pelo · sufixo
"ex-" 1 ele valor .puramente descri tivo nesse caso) I 0U 0$ termos sao
mantidos como vocativos, o que também ·é mais comum entre homens .
t

Por firn, urna associa~ao de amizade sexual pode ser reativada,após


long.o s periodos de laténcia.
Embora a rela9ao envolva deis casais, .os la9os diádicos en-
tre parceiros de mesmo sexo sao os mais importantes, e persistem,

428
entre si

.-
como vimos, apos mudan9as matrimoniais, mesmo que precisem ser re
-atualizados. O amigo do sexo oposto, conquanto focal, é . em verda
de um meio de se produzir um a'plhi-pi·ha - e isto vale sobretudo '
- w

para os homens.
Os quatro únicos casos .- dos muitos que estavam em vigor
de la9os de . aplhi-pi~ha que envolveram casais .mais velhos, em
'
1981-3, centraram-se no recasamento de um viúvo (que reativou uma
rela9ao com um casal, e estabeleceu urna nova), e , no casal "dono
da aldeia", qu~ se ligou sucessivamente a dois outros, ambos na
mesma relayao terminológica com ele: os maridos eram gi 'i, "ZS" ,.
do homem¡ as mulheres, irmas reais, eram pe'i, "~D", da mulher.Es
tes d ois Últimos casos sugerem que a cria9ao de lac;ros de
-piha sao um instrumento político importante: o líder da aldeia '
ao estabelecer rela9oes com casais situados em se9oes residenciais
distantes da sua, "extraia-os" dali, e os incorporava a seu pá-
84
tio e equipe de trabalho (estávamos na época da coleta de mel) •

( 84) Asfung3es econ&ti.cas da relac;:ao sao pouoo i.np:>rt.ant.es' no entarito • .o que


se cxmsegue can um la<;o de ap?hi-pihií é um certo prestigio FQlitioo - eventl.Ja!
mente - derivad:> do valor ?>ia:>lógico e social F05itivo do fato de se ter ami-
gos. O casal dcl1o da aldefa, atualizando suoessivanente Jac¡ris de ami.zade, em-
preendia assjm um esforc;o de abertura de sua ~ residencial, e-aecaptura
de parceiros - era ele que tanava a inicia;iva de ~da amizade. As rela-
c;Oes de ap?hi-pihéi, mesrco quando envolven gran:]e diferen-;a de idade entre os '
casais, e a:>rtam niveis geracionais., ~ siméb:icas ¡x:>r defini~ e na prática

Nos quatro casos acima, as primeiras relac;roes de aplhi-piha


nao duraram m.a is _que um més' sendo logo substituidas pelas segun-
das. No..entanto, os casais 11
desprezados" procuraram imediatamente
dois out:r:·o s ·c asais, para continuarem rela9oes de parceria. As·s im,
o estabel.ecimento ou abandono de urna relac;rao destas afeta a al-
deia como um todo, e - como quando de um casamento - toda urna má-

429
araweté: os deuses canibais

quina se punha em movimento a partir de um primeiro impulso: "co~

tágio" e ao mesmo tempo re-equilibrio, teciam-se tramas de aplhi-


-piha constantemente.

Donde sao recrutados os aplhi-pihª? Por definiyao, da cate-


goria dos tiwa. Os Araweté me corrigiam freq\ientemente·, quando eu
designava dóis ·irmaos {ou homens que se tratavam por "irm¡o") co-
mo aplhi-pi'1iª- por constatar que haviain trocado esposas. "Aos tiwa
é que chamamos de aplhi..:piha; áos anl chamamos de haylhi-piha'; •

Esta distinyao é importante, pols wn tiwa ao oposto de um anl ,


mas quando wn ·dos primeiros é transformado em amigo, ele partilha
de urna semelhanya com um irmao: acesso !!cito as respectivas espo
sas.

Os amigos - creio que esta é a traduyao melhor do termo


ap!_hi-piha - sao recrutados da periferia da parentela de Ego: do
. -
mesmo lugar de onde vem os afins. Um amigo é um tiwa nao-afim: wn
;. , ' .
"anti-cunhado", pois, s~ o que me lig~ a wn cun~ado é a inacessi-
. .
bilidade de meu sibling a mim, o que define -a amizade é .a mútua
acessibilidade sexual dos conjuges. Por outro lado, u:m amigo é di
-
verso de um irmao: a equivalªncia de doi~ irmaos diante das mes~

mas mulheres é anterior a existencia da.s mulheres, e a mútua aces


sibilidade sexual as esposas de irmaos é uma consegüencia. No ca-
-
so dos amigo~, é o la90 conjuga! que é anterio.r : a amizpde é wna
' .

conseqüencia da conjugalidade prévia (nao existem a~lhi-piha sol-


teiros); a "eqµivalencia" dos amigos é construida e definida a
partir do casamento - exatamente como o é a dif erenQa dos cunha-
dos. t por isso que a noQao de . tiwa inao. pode ser concebida como '
conotando simples af inidade potencial - e por isso que a termino-
logía Araw.eté nao é de duas se<;oes. um primo cruzado, um toti, um
nao-parente qualquer pode~se tornar, pela mesma via (o casamento),

430
entre si

ou af im, ou amigo. Os la9os de amizade se montam em geral nas bor


das das rela9oes de parentesco e qe afinidade: a'plhi-pi'ha sao pa-
rentes de afins, ou parentes classificatórios em posi9ao de afini
dade possivel - um ZHB, um M~BS, um WMZDH. Quando parentes próxi-
mos (MB, FZ, etc.) entram ~m rel~9oes de aplhi-piha, eles "viram
tiwa~ como no casamento. Os la9os· de amizade ,. como os de afinida-
de, remetem ao universo dos ti·wa. Assim, do solo genérico da .Pura
diferencra. negativa __(o "~ao-par_entesco") , esculpem-se duas rela-
9oes parti.c ulares., simétricas e inversas: dos tiwa saem os afins
e -os anti-afins; os cunhados por irma interposta e interdita, os
amigos por esposa compartilhada: reciprocidade X mutualidade. E,
assim como os Araweté conhecem urna reciprocidade "paralela" e ou
tra obllqua (troca de irrnas e casamento avuncular, etc.), poder!~

mos falar em uma mutualidade simultanea (os amigos) e outra se-


qüencial (sucessao leviral _e sororal entre germanos).
A terminologia de . ap-lhi-pi·ha interfere na terminologia de
parentes.co~ Um indiyíduo chama de "sogro" ou "sogra" aos pais de
seu parceiro de sexo oposto, e de "cunhado" aos siblings deste.Do
lado do amigo de mesmo sexo, contudo, nao existem mudan9as termi-
nológicas: um a'plhi-piha é um la90 estritamente individual. As
- - . '

relac;oes de "afinidade" criadas pela amizade sao puramente t•con -


vencionai~" - o fardo da afinidade sociológica é carregado pelo
a·plh.i-pi·ha - , entretanto. Nas gera9oes seguintes, os lac;os de ami
. - -
zade cruzados produzem op9oes classificatórias importantes. Os
f ilhos das aplhi do pai de Ego podem ser tratados como "irmaos .. ,
.já que
.. ....
uma aplhi do pai e urna hi amf:, urna "mae outra .. ; dá-se mes-
'
- 85 • Já os la9os paralelos, em si,
mo com os f ilhos do·s aplno da mae

(85) Assim, por exenplo, a re~ao teminolÓgica entre trés haten.s da al.deia '
tal catD justificada por ·um .deles (39):

431
araweté: os deuses canibais

Isto legitima ·a presav;a de 38,. aefictente fisic:o~ ·s01teiro, na sec;ao resi


denclal cx:mandada por 39 •. Por out.ro lado, . 60 é ao mesrtD teríp:> "mnao" para . 39
e "filho" para a i:mllher de 39, visto que 163 era . mna classificatória dest,a
(nao Dr.>Strada 00 deserro) - a teJ:minologia ~té' portanto, nao pretende u-
rna transitivid~ glObal; ó que preval~ sao as integrac;Qes i.ocais e os cálcu
los irrlividuais. ~ que 60 e 38 nao Se chamam de ''funao"¡.

nao produzem mudan~as: um aplhi-piha do pai, se nao tiver sido ªº


mesmo tempo aplno da mae, nao será chamado de "pai" (idem para a
amiga da mae, reciprocamente). Essa diferen~a, correlativa aquela
que se verifica nas gera~0es O e +l dos amigos, - a saber, para!~

lo/cruzado -, deriva do fato das rela~oes sexuais: chamo de "so-


. .
gro" ao pai daquela pessoa com quem tive rela~oes sexuais,de"pai"
aquele que tevé rela~oes com minha mae, etc.; as rela~oes via o
aplhi-piha, o amigo de mesmo sexo, nao acarretam mudan~as em ne -
nhuma· gera~ao.
Acrescente-se que essa forma de parentesco classificatório'
permite toda sorte de manipula~oes, e que muitos dos casamentosde
"ex-irmaos" se fazem entre pessoas ligadas por esses la~os (por
exemplo, no primeiro caso mostrado na nota 73, supra, a rela~ao

entre 278 e 267, país do casal 23-24, era essa de anti-afinidade'


. .
- seus pais eram amigos, logo eles eram "irmaos", logo seus fi-
lhos foram (ex-)irmaos, podendo. casar; q.v.). Já quando um aplno
da mae é c.o nsiderado como colaborador genético da substancia de
Ego, seus filhos de outro .leito sao .tidos como irmaos reais - e
o casamento é interdito ou imprópr.io (cf ~ ·O segundo caso da no'tia

432
entre si

73). Essas considera9oes se estendem a fortiori para o estabelec!


mento de lac;os de amiza'de/anti-afinidade entre filhos de amigos.

O átomo de parentesco Araweté se apresenta, enfim, como al-


go mais complexo que o clássico. modelo lévi-straussiano, urna vez
que incorpora "anti-partlculas" e um principio de incerteza - a
relaQao de anti-afinidade ou amizade. Do ponto de vista do siste-
ma de atitudes, há duas re.laQoes marcadas centrais: irmao/irma; e
aplhi-piha, amigos de mesmo sexo. A primeira se caracteriza pela
solidariedade e respeito, a segunda pela liberdade e camaradagem;
a primeira é o ponto de apoio da afinidade e da reciprocid~de, a
segunda o da mutualidade e anti-afinidade. As rela~oes entre cu-
nhados e irmaos .de mesmo sexo sao pouco marcadas, mas parecem o-
cultar um antagonismo latente. Na medida em .q ue o sibling de sexo
oposto é. quem socorre seu parente nas querelas conjugais, isto P2
de produzir hostilidade entre os afins de mesmo sexo - que no en-
.
tanto é reprimida: o apoio do germano é, normalmente, mais conso-
lador que ativo. Na medida em que irmaos de mesmo sexo tem o mes-
mo hor'izonte de conjuges potenciais, isto pode produzir certa com
petic;ao - e o acesso aos cc>'njuges dos irmaos é antes tolerado que
estimulado, podendo levar a ciúmes (também reprimidos, ou resolvi
dos pela "reciprocidade 11 : um irmao faz na BW o que seu irmao fez
na dele, como dizem os Araweté; ou se trocamos cónjuges). Arela
c;ao conjuga! se op0e a de B/Z por envolver a livre manifest.a 9ao '

dos dois aspectqs interditos nesta: sexo e hostilidade. Já a rela


-
c;ao entre. amigos de sexo oposto envolve, idealmente, apenas a pu-
ra libido positiva, nao-ambivalente: aplhi e ap~no nao brigam, se
nao deixam de estar nessa rela9ao, automaticamente.
O sistema Araweté de af inidade e anti-afinidade assenta, em

433
araweté: os deuses canibais

sintese, nurn modelo que opoe o "Nós" e o "Outro", de um modo que


pode ser esquematizado assim:
AW!
(ami te)

"'
(-)
/TIW!~
HADO'I AP!HI-PIHÁ

~AN!
reciprocidade mutualidade

w
(di)

B!DE

Onde o mer.idiano traz a oposi~ao genérica e dada: parente/


/nao-parente, e o horizonte a oposi9ao particular e construida .
cunhado/amigo. Face ao enigma e instabilidade da cate9oria tiwá,
só há duas solu9oes para ela: transformar os nao-parentes. em a-
fins ou anti-afins. No primeiro caso, fica-se próximo da origem :
wn hado'i, cunhado, é um tiwa domesticado, regularizado pela reci
- -
~rocidade. No segundo caso, chega-se além do destino: urn
-piha é mais que um irmao, é uro síncrono, um equivalente nao-ambi
valente - é um terceiro incluido, o Outro mir aculado ern duplo: ern
amigo. (Ver os efeitos desta fi<lura da anti-afinidade sobre as ob
serva~oes de Lévi-Strauss, 1967c:554-S, a respeito da superiorid~

de sócio-lógica da afinidade diante da fraternidade).

· · Se urna irma é um meio de se obter urna esposa, urna esposa e


..
um meio de se conseguir um amigo. Isto, se caracteriza a segunda
opera~ao como crono-logicamente posterior, nao a torna menos fo-
cal. E permite que percebamos que o lugar paradoxal da anti-afini
. dade aproxima o aplhi-pihá daquilo que lhe parecia mais aposto: o
cativo de guerra, o inimigo Tupinambá, que, se por um lado encar-

434
entre si

nava plenamente a essencia da afinidade, por outro era um anti-


-afim: a guerra Tupinambá, como nota H. Clastres (1972:81), era
feita nao para capturar esposas, mas cunhados: em vez de "servi~o

da noiva", o prisioneiro é que' era servido, alimentado por aque -


les que o matariain e comeria.m (Thevet, 1953:273-4): se lhe eram
.
dados esposa - era par.a c.o nseguir nada alem
e alimento, nao - dele
mesmo. 0 -cativo Tupinambá realizava assim a sintese imposs!vel e~

treo afim e o anti-afim, que os Araweté separam: a ambivalencia'


dos ti~a e pura_potencia, que logo se bifurca entre cunhado e ami
90.
Os Araweté "capturam" aplhi-piha de um modo que nao deixa
de evocar a captura de "inimigos-cunhados" Tupinambá: ao contrá -
rio, mas no mesmo s.e ntido. E, se wn cativo era transformado
. - incon -
tinenti em cunhado, nos Araweté o jovem cunhado recém-chegado -
a

aldeia da esposa é transformado avidamente em aplhi-piha. Isto é:


em gente que se "entre-devora" •.•_ .. .
E caracteristico que os Araweté prefiram sublinhar, marcar
o_s tensivamente, as rela~o~s de anti-afinidade - em sua insolente'
obstina9ao de tentar burlar o limite do social, a saber: a inter-
di9ao do incesto e a reciprocidade. E que tenham escolhido, em
vez de evitar os cunhados, freqüentar os amigos.
Todo o sistema Araweté milita ern favor dessa recusa da afi-
nidade que, por imposslvel, nao é menos efetiva: casamento obll -
quo, redundancia de alian9as, fecha.mento de parentelas, e ao mes-
mo tempo dispersao da reciprocidade, pela prolifera9ao dos la9os
de anti-afinidade - mistura, de fato. Mistura de gera9oes, mistu-
ra de pais, mistura de aprhi-piha. "Somos todos misturados" 86 .

sao
(86) Os paralelos di.reto.s 00 instituto aplhi-piha poua>s, nas , sociedades
Tupi-Guaran.i. O únioo similar claro é o anti<p oosturne de troca tenporária '

435
araweté: os deuses canibais

de ~ entre h:mens iñ{x>rtantes, o:rro "fonna de expressar sua ami.za&" ,nos


Parintinti.n (Kracke, 1978:14) ~ A amizade fonnalizada Tapirapé (anchüuaiJa - · Wa-
gley, 1977:73-5) envolvía evita~ao e ~ciooaria predan:inant.enente cxm::> meio
de redistribuicrao ecx:n&ni.ca; nao obstante, o recrutanento OOs anchiwazva ba~
va-se oo mesrro crit.ério da ami.zade in-fonnal Araweté: parentesco distante ou
.
nacrparentesco. Já a institui<;ao oo yepe .wayapi (P.Gr:enand, 1982:138-141) ros-
tra semelhanr;as inpartantes cx::m o cimigo ~té: relact00 diádjca _e exclusiva •
<uepe significa "um só", "o e5colhido") , sua .tuncrao é a de capturar nao-paren-
tes - "amizade exterior", o:rro a chama Grenand, que ten o:rro :in'pli~ a in-
dividuali~ de um amigo a partir do solo. lx>stil e genéria:> _da alteridade •
Mas nao há infonnac;Oes sobre a rela~ entre yepe e (anti-)afinidade.
se o CXltparaDIDS CXJl\ a arnizade fonnal dos Je, o instituto do aplhi-piha pé:l
rece confundir urna <::p:)Si~ central básica a essas sociedades: amigo fcmnal X
cxnpanhei.ro, que se desdahra en evit~ao X 11 bp_rdade, hera?lf;:a X esa:>lha, estru
tura X "cx:mrunitas" ••• (Da Matta, 1976: 138-154; ~' 1981: 142-145; carnei
ro da CUnha, 1978: 74-94; 1979). ecuo o amigo formal, ele é um "anti-afim",mas
ao cx:ntrárlo: nao poxque, afim possivel (recrutado na parentela distante, ou 1
na metade cposta), a evitat;ao se desñobra em interdito sexual, mas -porque,af_im
possIvel, torna-se uu co-partilhador de esposa, a:¡uilo que un afim atual · nao
pode ser. CatD o~ Je, ele cnci:a a Jjhp..zdade deesoolha, a equiva -
J..eocia e a sinultaneidade, a intimidarle, e a t:roea de esposas (que nac> parece
definidora desta reiac;ao para os Je - ver Camei:ro ~ Omha, 1979:37). Em vez
de oois - e da dupla nega~ oo amigo fm:mal, metáfora restauradora que se re-
duplica pefa metaúmia do cmpanhei.risrro -, tetos aqui um só lugar, e a dupla
af~: Eu outro que é OUtro eu, estranlx> e amigo, tüJa que está mais próx!
m::> de mim que eu mesrco. o caso da amizade funerária Baroro é que parece ser
o único a real i zar a transfo~ de um afim real em Eu: mas aí é preciso que
a rCorte intervenha. - apenas quaIXlo o eu se torna Outro, m:>rto, é que o outro '
se torna Eu, meu arce maiwu (croc:ker, 1977a:l79).
Haveria ainda que aproximar a amizade Araweté oo sistema AltcrXinguarx> (Bas
so, 1973: 102-6; Viveims de Castro, 1977:193-ss.). Se eles possuem numera;os
t:r~ e.m o::m.Jn, oo contrastar· simultaneanente cxm o parentesco e a afinidade,
há entretanto uma difererv;a essencial: ali se tem uma disjurvrao entre amigos
de mesno sexo e de sexo qx:>ato ("amantes"' na~ de Basso); isto é, ;
. '
nao
se trata de rel B9'5es entre casais, nen de' I111tualidade sexual - ao cx:mtrário ,
nuitas vezes o "ami.9'.'" é um sibling oo "amante", um "nao-afim" benévolo. E o
sistema da amizade intersexual é semi-clandestioo. Se ali tambén venos essa
rusca de ~ cxm o estranho sem o fardo da aliancra, o lugar de tal institui-
~ oo·Alto Xingu é llE'OS central que ros Araweté - ela ñmciona catl:> un meca-

436
entre si

nisroo caupensatório, ao passo que équi ela é a ideología dani.nante. o sistema


da anti-afinidade Araweté talvez explique o paradoxo de um desejo endogfunico
associado a "paix00 pelo. OUtro" que sua cuslcologia manifesta, e que a distin-
gue tao clararrente oos casos guianeses (Riviere, 1984:70-1), aproximando-a do
cx:xtplexo Tupinambá de casarrento e ~tiveiro: uniao oblíqua mais honra em ceder
rrulheres do grupo aos. prisioneiros, mínima e máxima exogamia simultaneanente •

."
Nao é, enfim, por acaso que a anti-afinidade se define pelo
júbilo, e instaura ambiente celestial: eta é, .propriamente, um
tributo dos deuses, que evoca assim o tal mundo impossível do
-
a

''e~

tre si" de nossa epigrafe . ao capítulo. - o mundo do entre-


Mas nao:
si é aqui mesmo na terra, para os Araweté. ~ aquí que s·e fin ta a
afinidade. Para a fitar de face, é preciso olhar para o céu - ali
onde, ao contrário do que sonharn outras sociedades, a afinidade
cornec;a. Gente rnuito complicada, de fato, a hybri·s é o forte dos
Tupi: canibais e incestuosos, nao e prec iso
.. re~orrer a nenhurna
11
contradi9ao entre 0 político e o religioso" (H.Clastres) para se
ver que a semente da recusa da Alian9a sernpre esteve plantada em
sua filosofía. Esta nao foge do estado, mas da Sociedade:socieda
des contra Durkheim. Muito pouco realistas, talvez . Mas se recu
sarn, também exaltam a Alian9a: poem-na no Além, sitio do sentido.

(E) Concep~ao, sexualidade, ciclo de vida

;¡ .-
P rod u z ir urna crian9a (konomi) e uro trabalho demorado, que
87
exige cópulas constantes e gasto considerável de sernen(ta'i re)

(87) Ta-i é urna fOnt\a genérica para "filho"·, cri~a, broto de planta, f ilhote
-
de animal; -re é ·marca de pretérito ocminal, que marca o semen cx:mo "d:>jetifi
cado", i.e . separado do corpo.

437
araweté: os deuses canibais

de forma a esquentar e a engrossar (mo-wo, fazer inchar) o feto •


·Todos os componentes potenciais da pessoa est.a o no esp~rm~, que
se concentra na regiao lombar masculina (tomici: cp. Soares de
Souza, 1971:306 para os Tupinambá). Substancias corporais, carne,
sangue, ossos, e a alma-principio vital (;), tudo está e princi -
pia na semente masculina. A mae é um ta'i re riro, envoltório ou
receptáculo do semen, onde se processa sua transformacra~ (heriwa)
em crianc;a.

Minhas tentativas de esclarecer a natureza dessa transforma


crao por via materna foram baldadas. o sangue menstrual - que "se
ca" com a conce~ao - nao é reconhecido como tendo qualquer papel
no processo. Quando eu observava a semelhanc;a f!sica entre filhos
e maes, todos assentiam, dando uma expiica~ao gramaticalmente abs
trata: eles pareciam com ·as maes porque o semen vira crianc;a ohi
ropl, "através (ao longo, mediante) da mae". Esta era· a mesma ra-
zao aduzida para explicar porque o círculo de· parentes afetado p~

la obriga~ao de ikoako, abstinencia por doenc;a, inclui os paren-


tes matrilaterais de Ego. Em suma, a teor.ia estritamente patrila-
teral da concepc;ao soma-se o reconhecimento bilateral da f ilia~ao,
dos interditos de incesto e abstinencia.

Ou mais ainda. A proveniéncia da mesma matriz é mais f re-

qüentemente sublinhada, para afirmar fra~ernidade efetiva e afeti


va, que a comunidade de semente - na medida em que esta, substan-
cia exclusiva, é capaz .de mistura e divisao. os filhos de mesma
mae se concebeJ'.ll como partes metonímicas de um todo, espacial e

temporal; um fala dos demais como he k-br!, "pedac;o de mim"; he
rene'e pe he re, "o que ocupou meu assento" (útero, lugar:
-
hena,
pret. hene'e); he p.,;r.,; he re, "o que me revezou-substituiu". Já
os que partilham ' apenas da substancia do genitor, nao menos ir-

438
entre si

maos, especificam sua .condi9ao mediante a diferen9a das matrizes:


hir~ am;te pa re, "vindo de outro corpo". Isso traduz a matrifoca

lidade da vida social e afetiva Araweté, onde meio-irmaos uteri -


'
nos sentem-se mais próximos que os agnáticos 88 •

- entre
(88) Essa "contradi<;ae" , -
tearia patrilateral da c:onoepc;ao e reoonhecinen-
to bilateral da cx:rm.mi~ de substancia se enoontra em outras socledades da
regfu - os Yawalapíti (Viveiros de e.astro, 1977:206) e os Suyá (Seeger, 1981:
150), por exercplo. Devo esclarecer que uso aqui a~ de "grup:> de substan -
cia" em sentido lato, urna vez que nao sei ~ "substáncia" é essa que define
o a:njunto de pessoas -que os Araweté oonsideram cxno afetos a regra de abSti -
néncia por doen;a.s. Visto nao ser o sanen {cf. matrilateralidade), tanpouco é
o sangue. Seria ma.is ben urna "unidade mlsti.ca", substancia metafórica ou meto-
nímica: é un grupo sociolÓgicn, vale dizer, nao fisiolÓgicn (etro-).
Por ou:t+o lado, os 'l'Upinaat>á parecen ter repreSentado o caso rcrlical de i-
dentifica~ da cr~.:> ..1PIÚ - cf. as fmosas descri<;Oes dos filllos dos cat;i
VOS de guerra, devoraa:'6ipe1Bs maes Tupi.nélnbá (~, 1963:171-2). h:) con-
t:rário Araweté e de outros TUpi-Glarani., os TUp:inambá nao só proibiriam a
Q:)s

oolab:>rairao de genitores, cxno suspendiam as re~ sexuais oo inlcio da gra


videz, por tenor de incesto a:m o feto ('lllevet apud Fernandes, 1963:167). Mas,
ver J. f.bnteiro
.
(in lCJB, VIII:413) sobre a bilateralidade do resguardo em ca -
so de doent;a de parente, o que matiza a idéia de "unifili~o"· substancial.
Huxley (1963: 242) fala do san;¡ue menstrual acm::> fonnancb a substanci·a
oo feto, para os Kaapir - mas se oontradiz (cf.p.167).
A ~ao· oo papel (al lcx:us) transfonnati.\lo da nae AnMeté é-me obscura. A
fonna her-twa é causativo-a:imitativa, indica a ca\lsa9ao de um ato pela partici-
~ao nele. Mas, ara se me· di.zia que a mae he~ o semen E!\\ fillx> - nesse
caso, ela "transfonnava transfonnando-se"- Um. no outro. Ora, p::>rém, era o pró -
prio sEmen. que heri:wa; ou, cxno para sublinhar a passividade materna, dizia-se
que a sem:mte otif mOñ? te "sillplesmente faz-se" em fillx:>, ~ reflexiva. A di
- - -
fererv;a dos vertos é tanbéln significativa: transfonnar Ciwa)e fabricar(moñi) •
o primeiro possui una a:n::>t~ "mágica", o segundo é "materialista". o veroo'
- nao é usado neste
"p5r-criar" (mara)
- .
.
contexto.
.. -
- e (espirito de) animais nao intei=vem no ..
Note-se desde ja que deuses, xamas
processo conceptivo Araweté, ao oontrário dos Tapirapé, Par:intintin, Qiarani e
~yaki (Wagley, 1977:133-5, I<racke, 1983; Schaden, 1962:111-3; P. Clas -
tres,1972:48-50).

439
araweté: os deuse.s canibais

"Transformadora" ou simples receptáculo da semente, a -


mae
biológica é definida lingüisticamente como o habitat originário '
de seus filhos. "X pa re", lit • . "ex-morador de ·x (nome de mu-

lher) .. é o modo usual de designar a relac;ao filiativa materna. A


. - ' ..
mae biológica é ainda especificada como "a que me fez nascer". Já
o papel do genitor é concebi~o como . o d~ um fabricador ou de urn

doador: o pai "faz" (moñl)ou ."dá!' (me 'e) a crianc;a.


Como já disse, mais de wn inseminador pode "cooperar" (oy~

pi tiwa, como se diz de homens que abr~m a mesma roc;a - a compara-


c¡:ao é Araweté) ou se "revezar" na produc;ao da crianc;a; no proces-
so dito a; mo, lit. "aumentar". o número ideal parece ser de dois
ou tres; excesso de diversidade acarreta partos dolorosos, ou urna
pele manchada, sinal dos semens diferentes 89 •

(89) A mistura de semente hunana cx:m a dos espíritos (o "?-t:>rador da Agua"), c:o
I00 já referido 1 produz aLoz: to e nm te da mae. Nos Tapirapé a mistura exoessiva

de sementes leva ao infanticidio (wagley, 1977:134); nos Kamayurá, a genelari-


dade, que tarubém acarreta a · nmte dos filia; (Bastos, 1978:35). OS Araweté,que
tarrpouc:o aceitan os nascimentos núltiplos, atr~oos ao fatO da mae ter co-
mido, quan00 aó:>lescente, nuitos ovos de jaboti, tracajá e jacaré. OS Teneteha
ra atribuem a genelaridade ao ooit.o anti-natural can o Zurupari, "dem5nio da
floresta" - que equivale, assim, ao SenOOr do Ria ~té (Wagl.ey & Galvao ,
1961: 78). A expressao 011~ pitúJa, "faz.er nutirao" (cf. o Mbyá putyvo, SchadeJt
1962:65, n.10) se encx:11tra nesse· sentioo sexual entre os Ac.hé, onde o cognato'
japetyva designa o marioo securXiário, cx:>laborador marginal a substáncia socio-
lógica~ filho - P.Clastres, 1972:22-3.

Quando um xama está concebendo um filho, cessam seus can-


tos noturnos. "Comer" repetidamente a mulher o amolece, ele dorme
muito e nao canta-sonha. Um dos epítetos jocosos para a vagina(ou
para a "namorada", aplhi ) é justamente aray mo-pe há, "a que que-
bra o chocalho de xamanismo" - onde nao é difícil entrevermos . o

440
entre si

-
valor fálico do chocalho transformador e masculino do xama, ericr~

do de penas longas de arara ve~elha.

As precau90es do casal ou grupo envolvido na concep9ao sao


'
poucas; durante a gesta9ao, e algumas se acentuam apÓs o parto •

Nao devem comer anta, pois seu espirito pisotearia a barriga da


-
mae: ou usar de milho cujo cesto de transporte, vindo da ro9a, se
partiu¡ ou comer femeas grávidas de animais. Tudo isso é abortivo.
Nao devem ainda comer coxas de veado e mutum, o que enfraqueceria
.
as pernas da criancta. E os homens devem tomar cuidado na mata ,
pois as cobras tentarao mord~-los.

o · parto (mo-a, lit. "fazer cair") se realiza dentro de cas~

ou, mais comumente, na capoeira próxima. O marido da parturiente'


pode assisti-la, e mesmo ser quem "ergue" (hopf) a crian9a e cor-
ta o cordao umbilical. A ·placenta ('dae pe) é enterrada no local
do parto. Na maioria do·s casos, porém, quem pega a criancra e cor-
ta o cordao é urna mulher, parente da mae ou do marido. Idealment~

diziam-me, os meninos tinham seu cordao cortado por uma mulher,as


meninas por um homem. Os "cortadores do umbigo" (ipiri 1
r ka he re)
de urna crian9a tem. wn direito matriro~nial sobre ela, que lhes -
e
reservada pelos pais. No caso das meninas, ela se torna urna ipa'e
pi, "cuidada-criada~: deve. ser alimentada pelo futuro marido até
a puberdade, sendo-lhe entao entregue em casamento. No caso dos
meninos, seriam eles que, maduros, proveriam suas velhas esposas
de carne e sexo.

Atualmente nao há dessas crian9as ip~'e pi na aldeia. Mas


há vários "cortadores do umbigo" _que sustentam seu direito de re-
serva sobre o menino ou menina, e o tem reconhecido pelos pais •

Em todos os casos que registrei, tratavam-se de MB e FZ classifi-


catórios das crian9as, ou seus "avós" idem. Isto se coaduna corn a

441
araweté: os deuses canibais

ideologia de casamento obllquo e com a prática de unioes onde os


cónjuges mostram grande diferen~a de idade. A mulher .que ergueu

a crian~a nao parece manter nenhuma rela~ao especial com ela; mas
toda pessoa lembra quem cortou seu umbigo e quem a e.r gueu ao nas-
cer 90 •

(90) A prática de "criar" o c:Dljuge é referida entre os Tenetehara (Wagley &


Galvao, 1961:38, 98), os Tapirapé (Wagley, 1977:157-8> e os wayapi (P.Grenarxi,
1982:117), mas só no Últino eJCerplo é que se a associa aos casanentos cx:m FZ e
MB. Entre os 'l'llpinanbá, onde a "~" de esposas seria um privilégio dos PQ
derosos (Soares de Souza, 1971:305), o papel de cmtador de unhigo caberia ao
pai, para filhos lonens, e ao MB para as filhas, dentro do contexto de c.asame!!
to cx:m a ZD (FernaOOes, 1963:174-6, 218-9). O direito marital do rortador do
uni>igo se encx:ntra sob fOJ:ma inversa entre os Ac:hé: tanto a "levantadora"
(upiaregi) da c:r~ quanto o CX>rtador do unmgo (jllXZre) si:> espéci:es de pa -
dri.nh=ls, interdites sexualmente para seu chave, a quBJl devem entretanto ali-
mentar (P.Clastres, 1972:45-7). A i.nterven;io dom Parintintin se faz na oca-
siao da ~, ·quarm ele assegu:ra seu CÍi.reito sobre a criarx;a, ·para um de
seus fil.has (Kracke, 1984a:ll2-3).

Logo que nasce, a crian~á é banhada em água morna; -seu pai


lhe fura as orelhas, raspa os cabelos que ultrapassam a linha das
temperas, e ela é entao "modelada" (mo-kati, consertada) por al-
guém experiente: achata-se seu nariz, afastam-se as orelhas para
fora, massageia-se o peito, áfastam-se as sobrancelhas, ajusta-se
o maxilar inferior, empurrani-se os bra~os e os dedos na dire~ao '
do ombro, apertam-~e as coxas urna contra a outra, separam-se os
cabelos úmidos com um pauzinho. A impressao que tal opera~ao me
causava era a de um acabamento de wna pe~a de cerámica, antes do
cozimento. Poem-se-lhe em seguida pulseiras e amarrilhos abaixo '
do joelho; ela está pronta para a visita~ao que a aldeia (sobretu
do as mulheres) lhe fará.

442
entre si

os pais entram em urna "reclusao" atenuada, passando a maior


parte do tempo em casa e dependendo de parentes para algumas tar~

fas essenciais (cozinhar, buscar agua}. No dia mesmo do parto de-


'
vem tomar urna infusao amarga da casca da árvore iwirara (quina? -
- ver Wagley & Galvao, '1961:77) - a mesma que menstruadas e mata-
dores tomam, e cujo sentido, assim, parece ser o de purgar o san-
gue que se acumula no ~orpo, nesses estados. Mas a explica9ao Ar~

weté é que se toma o i wi rara "para comer jaboti" (sem sufocarmos


por incha9ao da glote) - a primeira carne, normalmente, comida pe
los pais •. Todos os homens que participaram . da concepc;ao devem be-
ber essa infusao; mas apenas o genitor principal ou marido (co-r~
91
sidente) tende a seguir rigorosamente as demais restric;oes •

(91) Drtma a adminis~ de w i mra - amaríssim:>, mas


- nao un. emétio:> - ao
pai indique que ele está cheio do san;ue puerperal, esse tena me parece relati
vanente ¡:a.ioo inq::ortante na ideologia Araweté, faoe ao que venos oo Alto Xingu
ou oos Je-suyá (Seeger, 1981:151-2). Nao se fazen escarifi~, etc. Já oo
caso do matador, a a~ de ~ inimigo na barriga é ooisa séria, que
p0e o primeiro en estado de norte teup:n:ária - mas t:anpx1co se faz qualquer
sangría. M1nha inpressao é que, cc:m:> um todo, o tema da poluic;ao-cx.-itágio pelo
sangue nao é 111.lÍto desenvolvido pelos Araweté. Ver ~ante, sobre a menstrua -

As restric;oes pós-parto sao variadas, embora nem todas se-


jam levadas demasiado a sério. Elas sao mais rigorosas enquanto
o umbigo da crianc;a nao seca e cai. Depois vao-se afrouxando, aos
-
poucos, a medida que a crianc;a vai ficando com o "pescoc;o duro" ,
a rir ("ter consciencia"), a engatinhar e a andar. Seu término
;
-
e

imprecisamente marcado, ~ a consolidac;ao definitiva da crianc;a(fi


xac;ao da alma ao corpo) extrapola o período principal da "couvade".
Algumas das restri9oes de atividade visam proteger os -
pro-
prios pais, agora definidos como ta'i ña (pai) e memi na (mae),i_!

443
araweté: os deuses canibais

- - -
to e, "donos de filho". As principais sao: nao se devem expor mui
to a luz do sol e da lua, ou o "excremento" dos ·a stros os enegre-
cerao; devem andar com cuidado, nao podem carregar água; andar
sobre pedras ou solo áspero, ou os espiritos I~ira ña e similares
flecharao seus pés (supra, p. 245). A mais importante -
precau~ao

é tomada pelo pai: ele nao deve. ir a mata ca~ar em hipótese algu-
ma, enquanto o umbigo do filho nao seca, ou atrairá sobre si mul-
tidoes de cobras, surucucus e jibóias, que o picarao ou engolirao
vivo. A maioria das restri~oes protege a crian~a: os pais nao de-
vem pegar em espelhos e pentes, ou causa.m febre e dores nela¡ nao
devem pisar nas placas de pedra que se desprendem nos lajeiros, o
que oprimiria seu peito; nao tocam em couro de ont;a,- ou sua pele
ficaria manchada .•• De um modo geral, evita-se qualquer esfort;o
violento que possa produzir efeitos "analógicos" negativos: pilar
milho, cortar árvores, carregar peso, etc.
As restri9oes ligadas a ingestao de alimentos sao mais nume
rosas: os país nao podem cozinhar ou assar carne, nem comer coi-
sas muito quentes¡ a mae nao pode fumar, e o pai só o faz com o
charuto filtrado por um ma~o de algodao. Os alimentos específicos
interditos sao:

Tucanos Poraque Veados


Araras Jacarés Antas
Papagaios Tu cunaré Macaco-prego
Nhambus Pescada Paca
Jaós Matrinxa Jaboti (fígado)
'
Jac upema Peixe-cachorra
Mutum-cavalo Curimatá
Bicudo
Tracajá

444
·entre si

-
Todas essas carnes, e as actoes anteriores, produzem um so-
efeito: o hapi, a "queima" da criancta, que resulta em sua morte •
Se bem entendi, tratar-se-ia de urna esp~cie de combustao interna,
'
nao manifestada por queimadura ou ·queda dos pelos (como o hapi xa
mánico do veado), mas por febre, dessecamento e emagrecimento. A
idéia subjacente parece ser a de que o recém-nascido é um ser "vo
látil", que deve ficar . longe do contágio com coisas quentes. Nao
se pode também pintá-lo de urucum, ou sua pele descascaría como '
se sapecada no fogo 92 • Alguns tipos de mel sao interditos, pois

(92) Essa afinidade perigosa da. crf.anra cx:.m o queimaOO se encentra ainda nos
casos de norte por hadi, canvuls0es cansadas pelo Senhor ~ TUcum (supra, p.
244); as quatro criancras assim vitimadas cairam no fogo, norremo queimadas.

produzem pústulas e feridas na pele¡ o ·mamao também, pois "desea_!


ca" a crian~a; a bacaba e dois tipos de cará a fariam inchar.
Nao sou capaz de encontrar nenhum principio subjacente aos
alimentos, cujo consumo é proibido ·aos pais. Surpreende-me, ao
contrário, que animais aparentemente "perigosos", como a piranha,
o trairao, e alguns que sao xamanizados no peyo, como o mel de xu
'
pé e os guaribas, sejam neutros. E vale notar que, com exce9ao do
(figado de) jaboti, os principais animais ca9ados pelos Araweté
(notadarnente tatus, porcos), nao entram na "lista" - que aliás es
tou longe de crer ser exaustiva. O tempo de vigéncia dessas proi-
93
bi9oes alimentares é indefinido, e fica a critério dos pais •

(93) Una a:rrparac¡:ao das proibi~ alimentares Araweté vigentes na


. as listas apresentadas nas m:::mografiaS ~
can .
nao
foi capaz de evidenciar ne-
nhuma estrutura estável.. exarre extensivo dos tab.ls al!
Ver Kracke 1981• .para um
mentares Parintintin, onde se nostra a natureza heterogenea dos critérios e C!!
ja oonclusao mais geral repousa numa teoría psicanalítica do ato alJJnentar(in-
oorpora~identifi~, etc.).

445
araweté: os deuses canibais

Já a perigosa capacidade oo pai de reoém-nascido (ou "grávido") atrair co


-
bras é urn ideologana a:J11?lexo entre os TUpi-Guarani. Assim, entre os Kaa¡r>r,se
uma rru1her grávida ve alguén 1t0rdido de cobra, "perde os cabelos, cai-lhe tam-
bém a carne, e nDrre" (Huxley, 1963:233). O marido de una grávida Wayapi ~
pode matar oobras, senao O feto "perde a pele" e DDrre; por Sua vez, a reclu -
sao da parturiente se deve ao t.eror de mo110 1 a Sucuri dona das águas, que abo_!:
rece o cheiro de sangue e rapta a alma das crian;as (canpbell, 1982:273-4). Já
entre os Ñandeva e os I<ayová-Qlarani, o odjepotá, transfo~aa· em animal, que
p.me aqueles que se aventuram oo mato durante a oouvade e a rnenstruat;ao, é
principalmente atri.OOido ao karuguá, ArarIris, que entre os Araweté, Wayapi e
Ac.hé é urna cobra de grame sensibil1dade olfativa.
Há dois temas entre~ados ~: a rela~ entre estadOs "sexuais" e cheiro
(de 5aD3\)e ou sexo), que atrai as cobras, e o tena da perda de pele, que evoca
a contrario essa capacidade de ren::wac;:ao da própria pele exibida pelas cobras,
siml:x:>lo, por sua vez, da troca de pele da irrortalidade. A "queda da pele" do
feto wayápi, caro a dos cabelos e carne da grávida Urubu-Kaa¡r>r, sa:, una espé-
cie de anteciflatrao nortifera,,m: ptooasso de ressurrei~ celeste dos nDrtos ~
la troca de pele - tema encx:ntraa:> nos dois grupos. Entre os Tapirapé adlanos
uma Uwersao parcial do tema, e sem as oabras: é apenas dep?is que cai a "pele
pó!rnatal" (a carnada aderente ao urucmn oan que se mita o nascituro) que os
pais saem da couvade (Wagley, 1977: 140) •
Por sua vez, a capacidade de atrair animais selvagens caracteriza o estado
dito bayja do pai de recém-nascido, entre os Aché, e disso ele se aproveita pa
ra i r ao mato ~. Sucede que, alán da ~, ele atrai o ca~: os jagua -
~, e tantán a ira caniba.l da Cobra Arar!ris. Parto e nens~oo criéltl este
estado ba!Jja (P.Clastres, 1972:26-8, 37-8, 179).
Para os Araweté nao há relac;B.o direta entre menstrtiacr00 e cpbras; m¡:lS o Se-
nhar do Rio (que para ootros 'ro é urna robra) é peric:P50 as rren.struadas e a al-
ma das cr~ pequenas. Por sua vez, a Cdlra Arariris detesta o cheiro do
seJCO (de vagina, que se qx3e aes perfmles celestes que ela aprecia) , e avanc;a'

sobre os xamas que se aventuram ao céu após urna rel~ sexual. Acrescente-$&
o:rt0 transf0J:ma9ao adicional do sistema, a ~ Araweté em um ¡x>der (nao nui

to apreciado) dos xamas que já foram trDrdidos ¡x>r urna surucucu - a robra ma.is
venenosa - e escaparam: senpre que eles x.amanizam algo, prcduzem ciruvas. tor-
renciais. Assim, tanto as cobras c:quáticas •(sucuri) caro as terrestres-veneoo-
sas tém Una lig~ cxm a água - o que poderia ser renetido ao caráter venero--
so do Arco-Iris na mitologia sul-americana (I.évi-Strauss, 1966:252-ss.). carpa
re-se ainda o significaó::> 00 cognato de peye, xami, entre os Aché (orrle nao

xarnanisrco): paje sao os hanens imunes ao veneno das cobras (Clastres 1972: 268).

446
entre si

A reJ~ entre troca de pele/ inortalidaie e rrens~ é especialmente


clara na oosnologia 'l\lkano (C.Hugh-Jones, 1979: 140, 153-4). Esta afinidade en
tre nulheres e cobras - que pode-se transfonnar numa incatpatibilidade - evoca
¡:o:r sua vez os mitos em que urna coqra eta o falo das nulheres, no tenpo em que
nao
os l'x:rnens dispunham de peras (I.évi-Strauss, 1966:132-ss.; Huxley, 1963 :
169-ss.).
A Festa do Mel Siriooo envolve urna escarificayao coletiva, e ela é 00.J:1Side-
rada atrair tcrlos os anima.is de cat;a, que aoorrem a ver "os l'xlTens gal.hardamen
te ornanentados cx:m penas e urucum, e a ouvi-los cantar". Aqui vem::>s associa -
dos dois tenas, até entao separados: a funt¡:ao propiciatória da casa que tem a
Festa cb Mel (Tenetehara), e ü atrac;ao 005 animais pelo sangue (Holmberg,1969:
220-2). Esta~ sangue = animais é indireta, vist:O que Hol.mberg afinna
que o que atrai os aninais é a aparencia e o canto _ d os txxrens - os Siricn::> CXJ!!
cebero a~ ccm:> un processo de seau;ao dos animais pelo cac;aoor (p. 240).
Entre os Aché, a Festa do Mel tem cx:m:> foco principal a licenya sexual e o
ca.sanento entre manbros de diferentes bandos (P.Clastres, ~.cit.:219-ss.).

Ainda bern pequenas (de "cabelo novo", como dizem), as cria~

9as sao freqüentemente subrnetidas a urna opera9ao xamanística, a


pedido dos pais: o "fechamento do corpo" (hiro r.;, cf. r.;, cica-
trizar) ou "tapagem" (hakapeti). Seu objetivo é permitir que os
pais retornem paulatinamente suas atividades, e evitar que a crian
9a tenha "dorna carne" (ha'a rahi). A simbólica é evidente: a
crian9a está aberta, as a~oes e substancias paternas penetram em
seu corpo. Este tratamento se repete durante meses, a qualquer si
nal de mal-estar do infante, e é especialmente necessário quando
os pais pretendem retornar a atividade sexual e beber o cauim al-
coólico.

o sexo e a _cauinagem sao as proibi9oes mais estritas e mais


demoradas. Ambas as coisas só podem ser feitas após a crian~a co-
me9ar a engatinhar (dizem os pais) ou a andar (dizern as maes ) . An
tes disso - e mesmo depois, se o xama nao fechar seu corpo -, ela

447
araweté: os deuses canibais

se encheria de esperma ou mingau, morrendo em meio a convulsoes e


vómitos. A abstinéncia sexual parece, de fato, ser mais demorada
para a mae que para o pai. Este, após alguns meses, pode procurar
outra mulher''para se esfriar" ( tq_tif mo-rahi) • As acrees da -
mae
sao mais diretamente nocivas a criancra, que está sempre colada a
ela¡ sao sempre as maes que se preocupam em pedir que fechem o
corpo dos filhos. A razao disso é que elas os amamentam. Para o
leite ~passa" (mo - wa) tudo o que a mulher ingere - semen inclusi-
ve. E passa também o afeto: dizem os Araweté que as filhas nao ca
sam virilocalmente, e que os homens sempre voltam a aldeia de ori
gem, porque "nao se esquece o leite tomado". outra expressao pro-
verbial é: tre mo- k amo he re tr!!._mo-a' o - "aquela que nos amamen-
tou nos causa saudade" 94 •

(94) o verbo-chave desta "saudade oo leite" é mo-!!_'o, conjugado can praare -


-objeto paciente. sua tradurrao lit. é "fazer-espírtto", mas se pode glosá-lo
caro "ser ¡::osto fora de si mesm::>, pela ausencia de algo desejaoo". A "saudade",
nesse caso, é algo que se sofre, nao que se "temu. A a~a de un ente queri
oo oos divide, ~ tira oo a'.Illi-ac;pra, nos separa entre o presente e o passada
A nOO-~ oo objeto do ~jo, assim, rx:>s "espiritualiza" - urna teoria DE
todoxanente freudi.ana (can o seio kleiniarX), ainda por cima) ••• A raiz a'o é
de ~00 cxnplexa. E: a mesma
que se encx:intra 00 oonoeito de "espirito" sepa
rado do cm:po: -a 'o we, orde we é marcaó:>r de pretérito. Ela é reencantrada rx:>
c:x:nceito de ex>isas me '! ~'o, que cansam ~igo mlstioo, separard:> rnssa
alna oo oorpo. Voltareuos a nm isso, e aos paralelos Tupi-G.larani, que auto-
rizan tilla tr~ geral da fonna a'o cat0 "inoorporal" ou "espiritual" •

Dias após o nascimento, entretanto, as criancras já comem c~

rá, batata e banana, mastigados pela mae. Mandioca, milho, outras


frutas e carne só sao introduzidos na dieta quando elas já estao
"prontas" (a!Je ) - isto é, quando já demonstram "consciencia", de-
pois passam a engatinhar, andar, etc. - que é também quando rece-

448
entre si

bem o nome, e podem ser ,pintadas de urucum, simbolo do estado no!.


mal de saúde (doentes nao se pintam) e da comunidade dos viventes.
Nao pude perceber nenhuma opera9ao xamanistica especial (ou outra .
cerimonia, como nos Tenetehara - Wagley & Galvao, 1961:80-1) lig!
da a introdu9ao do regime carnivo·r o. As opera9oes de fechamento '
do corpo sempre me foram interpretadas como procurando bloquear
contágios pais-filhos (neste contexto; pois elas também sao reali
zadas sobre adultos, como veremos).
A no9ao de "ter consciencia" - tradu~ao mais geral do verbo
kaak ; - é central, embora vaga, para definir o grau de "humanida-

de" dos infantes. Ela nao se confunde como falar (ñe'e) pois lQe
é cronologicamente anterior. Parece designar a capacidade da crian
9a responder a estimules lingülsticos ou para-lingüisticps. O

principal sinal é o riso (ptka). Se um bebe morre antes de


di~so
95
manifestar consciencia, nem seus pais o choram • A fala, porem, -
(95) Kaaki é pr~iarrente pensar, e kaaki ha o pensamento, seu CXlnteúdo. O es-
tado ativo de "tristeza" (ho'im) e o passivo de "saudade" Cmo-a'o) faz oosso'
kaak!_ ha sair de sua sede, que é o peito e os ouvidos, e i r até o objeto ·ou su
jeito do sentirrento. An00s OS estados sao peri<:PSOS 1 associados a "leveza" e
"finura-translucidez" do cmpo, e ¡:odem cxnstituir indicios de que a alma foi
extraida do corpo. No~se, o:atudo, que a leveza e a transparincia poden ser
induzidas pela ingestao de tabaco - supra 1 p.346-, e assim remeten a:> xama -
nisro.

é um sinal importante e ansiosamente esperado de matura9ao. Há um


ritual mágico para facilitar o aprendizado lingüístico (ao qual
fui submetido), que consiste em quebrar, junto a boca do infante,
folhas do arbusto ka'a ñe'e a·t~, enquanto se repetem palavras da
lingua.
Mas por alguns anos ainda a pessoa da crian9a nao está inte

449
araweté: os deuses cam'bais

gralmente estabilizada. · Sua alma-principio vital {[) desprende-se


·com .facilidade . do corpo (hir~), especialmente 'devido a cobi<;a dos
esplritos da água. Por isso, crian~as entre 1 e 4 anos sao fre -
qüentemente submetidas a outr~ opera9ao xamanistica, .mais comple•
xa que o ~echamento do corpo, o . imo·ne' em que o xama traz de vol-
ta a alma errante e a consolida (mo-atl, endurecer), voltando a
dar". "peso" ('mo-pohi) a pessoa.
Os pais evi tam lima nova concep<;ao até que seu · .f ilho · tenha
- . . . , ~

alcan9ado os 3-4 anos, tempo em que permanece mamando. Ate lá, r~


... . . . ·_ . . -
correm ao coito interrompido, pratica alias generalizada e unico'
- -
método anticoncepcional que afirmam conhecer (ta'i re hakawa
. - ,
"'d er'ramar o semen" - úma técni~a· que, tanto quanto saiba, só . foi

registrada entre os Txicao, para os indios brasileiros Mengei;,


. '

1977:108). o aborto é praticado por pressao abdomina'i. Mas filhos


n'a o desejados sao, em geral, mortos após o parto, enterrados jun-
to com a placenta ou sufocados pela ma~.

As razoes pa~a - o aborto .ou o infanticidio sao várias; divór


cio do casal durante a gesta<;~o, fato relativamente raro (a deci-
. '
sao é aí justificada laconicamente: hiro reti mi re, "matriz des-
prezada"); morte do marido n~sse periodo; gesta9ao em mulheres j2
vens, que ·tem "pregui<;a de amamentar" e · medo de se submeter
.. .
as
restri9oes; filhos concebidos ou nascidos d~ante epi~em~as, esp~

cialmente se os pais tomaram medica9ao dos brancos; deforma9oes '


na crian<;a (que se atribuem aos remédios ocidentais, ªº semen do
Morador da Agua, ou nao se eX'plicam); gravidez prematura em rela-
<;ao a '
anterior; e até simples querelas entre esposos, quando a mu
lher se vinga matando a crian<;a. As mulheres solteiras, por sua
vez, procuram abortar aos prime iros sinais de gravidez, dis·s eram-
-me (nao há solteiras, atualmente, em condi9oes de engravidar).

450
en.tre si

- em espacejar os nascimentos
Embora haja· essa preocupa9ao ,
e em criar os f ilhos dentro de wna situa~ao conjugal e psicológi-
ca estável, ter filhos é um valor essencial. As crian~as sao ado-
4
radas e mimadas ·por toda a aldeia - mulheres e mesmo homens disp~

tam o privilégio de passear com o recém-nascido ao colo. Se wna


mulher mo.r re deixando filho pequeno, outras se incwnbem de o ama-
mentar (em geral, uma irma da morta). Todos dizem preferir filhos
homens a mulheres·¡ ~porque ca~am", e proverao os · pais- quando. es-

tes envelhecerem 96 • o primeiro filho {ipiha, primogénito, ou

C96) Cl:2lparar o:m a pi:ef~ 00s Tenetehara por fil.has, que wagley & Galvao
(1961:83) atr:i.buem ao valor destas oo sistema uxo:rtlocal. Os Araweté, por ·un
raciocinio mais direto e a mais l~ prmo, subl.inham o valór dos fillx>s 00-
me:ns cx:m:> provedoJ;es de (:arl'lle. E isto ta;l.vez su:g ira a maior fluidez da i:egza'
uxoriloail Araweté. 'sObre a polltica det•iy:titica Tapirapé, ver waqley, 1977 :
. .
135-9.: a .noana era a de tres ·fillx>s par casal ,' can alternáncia de se>ee. Isso e
' . -
ra justificado pela difiolldade Ell\ se alimentar mais de 3 crianrras (o que nao
explica o parque da altemancia sexual). As mulheres Araweté espaoejam O.S par-
tos par afi.J:ma.ren Me> ter leite ·para mais de ma criaD;a ao mesm:> t.a1p:,>: fora
isso, sao nuito prolíficas, e desejam IÍu:itos filb::>s. se ~ cr:i.aBra ncrre, ime
. diatairente procuram substituí-la, especialmente se foro pr~to.

ik; pfda me he re, "o que aiargou a vagina") é sobremodo import'a.!!

te, porque estabiliza a uniao conjugar, até entao .normalmente tem


pestuosa, e sobretudo porque ele é, como vimos, o nomeador dos
pais, que lhes permitirá abandonar seus nomes de infancia.
Os konom.'t
- -(termo·
. .
para bebe de .· ambos . os sexos), após· nomea -
do's, passam a ser referidos e interpelados por seus nomes pes -
soais: seus pais usam o vocativo a·p!_, mas outros termos de paren-
tesco nao sao empregados. Sempre presos as saias da mae, os bebés
sao carregados para todo lado. Reeonhece-se wna "dona de crian-

451
araweté: os deuses canibais

9a" por suas roupas velhas e sujas, posto que sua saia e blusa-
-tipÓia sao fraldas para o bebé.
Dos tres anos em diante, quando comecram :a ter autonomia de
movimentos, a-s crian~as sao referidas genericamente como ta'i
roho, "filhotes grandes", ou como "homenzinhos" .e "mulherzinhas" •
Entre os sete e os onze anos, os -meninos sao classificados como
pi:.ri: aái, lit. "gente verde". Nessa fase, saem para cacrar nas re-
dondezas ,. .. para pescar e acompanham os pais nas expedicroes coleti-
vas do cauim. Comecram também a fazer suas .casinhas ao lado das
dos pais. Por volta dos doze anos, decide-se que é tempo de amar-
rar seu prepúcio; o pénis já está "cheio" (tenehe) e a glande po-
de expor-se, o que é motivo de chacota e vergonha do rapaz. A im-
posicrao do cordao peniano, uma linha fina de algodao, é feita dis
creta e individual.m ente. Qualquer homem que nao sej a o genitor ou
o marido da mae do rapaz pode realizar essa opera9ao. Seu pai, se
o fizer, definha da doen9a ha'iwa e morre.

Diz-se que, antes de portar o cordao-, os meninos nao devem


ter relacroes sexuai.s (os jogos· hotnossexuais entre garotos na fai.:.
xa dos seis-nove anos parecem ser comuns, mas nao se os leva a sé
rio). No entanto, desde cedo meninas e meninos brincam juntos, e
as meninas mais velhas costumam iniciar sexualmente os meninos •
De um mqdo geral, até a puberdade, as meninas sao consideravelmen
te mais extrovertidas e ousadas que os meninos de mesma idade, e
sao elas que tomam a iniciativa.

Nao há proibicrao alimentar que marque o estado dé jovem nao


-casado. Apenas devem evitar comen o quelonio -yi:rara, ou se cans~

rao facilmente quando adultos. Mas há duas interdicroes musicais ¡


nao podem repetir os cantos do deus Tepe·r~, ou seus pélos pubia -
nos nao crescerao (supra, p. 241); e nao podern- participar do can-

452
entre si

....
to e dan~a que comemora a marte de wna on~a, o Na ·neml-na n't.' ou

os felinos os atacariam na mata. Isso se estende a~ dan~as comemo


97
rativas da morte de um inimigq humano • Os jovens solteiros be-

(97) Assim, fica clara a inversa.o do sistema TUpinambá (supra,. oota 66) : só a-
¡X)s matar um inimigo é que o joven ¡x:rlja casar¡ éG\lÍ, só após casar é que se
J:X>de ~ em torro do rnat.aOOr e do espirito do rrorto.

bem cauim, mas em pequenas quantidades.

A partir dos dez-doze anos, os rapazes ini.ciam urna longa

série de casamentos tentativos, com meninas de sua idade ou pouco

mais velhas. Até. os quinze anos, mais ou menos, relutarn muito em

casar, só o fazendo quando nao há urn adulto disponivel que possa

tirar da casa dos pais urna menina em idade de menstruar. As meni-

nas entao se mudam para as casinhas dos rapazes. Esses ensaios

nao duram, em ger-al, maí's que semanas, as vezes dias.

A partir dos _quinze anos, os homens sao classificados como

p,;r~'i ohq_ (=
-
filho grande de gente?), termo que designa o
.
esta-

do de maturid~de jo~em, plenitude das for~as. Esta categoría se

estende até . 30 anos ou mais; seus limites sao ,imprecisos; creio

que se aplica aqueles. que ainda nao tem filhos casados. o segmen-

to mais jovem desta c·ategoria é turbulento e empreendedor; dele

saem numerosos tenetámo .de ~


ca~adas e, d~ziam,
.. _ aqueles
.
mais dispo~

tos a embarcar em -expedi9oes guerreiras. O segmento mais ·velho


. .
dos p~ra'i oho abriga vários xarnas iniciantes e alguns já bastan-
te ativos. ~ nesta classe, - igualmente, que se estabelecem e pral!

feram as rela9oes de amizade ap~hi-pihá.

Entre os quinze e os vinte anos se estende wn período em

que os homens se engajam em casamentos mais sérios que os dos me-

ninos, mas nao menos instáveis. Raros sao aqueles que nao tiveram

453
araweté : os deuses c~ibais

pelo menos cinco "esposas" nessa fase - e que. foram residir uxori
. localmente todas essas vezes. Eles se casam com mo~as de . sua ida-
de e com mulheres bem mais velhas, viúvas. A circula~ao matrimo-
·nial entre os Araweté é muito acelerada, e as trocas de conjuges
entre os jovens conhece ciclos quase- anuais 98 •

. .
(~8) Assim, entie 1979 e 1982, houve o seéjuinte circuito de reve7.amellto matri-
m:ni.al:
i 0+-6~0+-6.,.0+-6.,t.0+-6
66 IQf 106 . .H J6 H 16 ,l S

't Ü+-6.;.0+-6;.~
•• ., 'ª' 'ª'
o'º' +-1\~rl ....6~0 +-6
'iil y. ,, "' ,1

5 9=6~0+6~0
Uf Uf lll . 61 . 68

· (Cf. Aperxlice II\. para a; mineros). ccin ~


~ dt>as m:>rtes que inb:odnzi-
ram viúvos D.'.> sistema, tcrlas as demais trocas se fizerarn entre tareis sern fi- .
· 100s, algtins dos qua.is casados ou ca.sa:rd:>
. .
cx:m viúvas~
.
A ex~
. . é 135, . velho
viúvo, que se casa periodicamente cx:m neninOtas. O hanem lll, já maduro, "rou-
bou" lU de 67, vistci que . se CalSidel:o.1 (i.e. a mae. dá m:x¡a, filha classifica-
·tória de lll) que .o rapaz · 67 era a.ii1da joven, e poclia esperar par oUt:ra rrul.heJ:
- . . ·. .
Nao houve protesto do rapaz ou de sua fanu.lla. A nrx;a 112 custo\l um tanto a se
aa:>stunar ·a situac;ao de esposa de um adulto, e~ ~prOcesso _d e partilha' 1
de aplhi-pina .crin outros· ca$ais, até que ela se fi.Xasse na casa dO
- - . .
e marido -
que· o marido passasse a fazer x:cx;:a jmito oan a "filha"-sogra.

Os homens entre ós 35 e 50 anos sio definidos como"maduros"


~ dayi), ou "quase grandes-velhos" · (ho?Jl .'ha katti) ., ou "prontoe-CI'e!!
.cidos" (odf mo-hi re). Nesta fase é que constituem familia exten-
sa, atraindo genros e saindo da situa~ao uxorilocál. ·Dalf em dian
te, . sao "velhos" (taptna). Os homens maduros sao .o segmento mais

454
entre si

inf luente na soci~dade Araweté, especialmente quando lideres de


se~oes residencia~s importantes e quando xamas.
Os velhos Araweté nao dispoem de poder especial (nada da
~

"gerontocracia" que se quis ver, p.ex.• , entre os Tupinambá), mas


tampouco es tao em posi9ao linÍ.i nar. Os dois homens mais velhos da
aldeia ainda ca9avam, tinham . grande ro9as, e familias que · os apoia
vam. Os velhos tem outra fun9ao i~portante: quando viüvos, eles
casam com as meninas pré-púberes, e sao. seus defloradores princi
pais (mom_q_ ha, "o que fura"). Ay~-ro, um destes anciaos, ainda e-
ra xama ativo, mas cantava pouco; seus servi9os eram mais solici-
tados para o "fechamento do corpo" de crian9as pequenas e casos
de mordedura de cobra - opera9oes ·que ·nem sempre envolvem. a pre -
sen9a dos deuses. Meñ!-no, o outro, já fora abandonado pelos Mal,
como dizem . os Araweté - isto é, .nao mais cantava.
. As meninas entre os sete e onze .anos sao chamadas de kañi
n~'i ~ohq_, "mulher-crian9a". Muitas dela.s , como já dito, sao en-
tregues a wn velho, ou a um deficiente fisico que nao consegue
arrumar esposa adulta. Estes "criam" (ipa 'e) as meninas, · inician-
.
d o-as nos Jogos sexuai s 99 • como
. . - d.isse anter i orrnente ( p.
Ja 277) ,

(99) A prática de se entregaren neninotas a velhos, assim, ~ reflete nenhun


privilégio geraitocrátic;x:>, mas .é antes uma fama~ de se etparel.har
pessoas que estao éq.lém ou além de sua plena capacidade reprodutiva. OS~
e deficientes fo:r:mam entao uni.c;Jades ~jugais q:an meninas pré-púberes, e fican
integrados oo sistema Araweté ideal, oode cada casa = um casal. o nesro se di-
ga das nex:>s freqÜentes uni0es . entre rapazes e velhas. Via de regra, as noc1
nhas sao bastante J ; herais . fa~ a demaOOa sexual dos velhos ..

uma mo9a nao pode · ter seu catamenio em casa dos pais, ou estes s2
frem a mesma morte por ha' i;LJa que se abate sobre o pai que amar -
rar o cordao peniano do ~filho, os incestuosos, etc. (ver no ,próx!

455
araweté: os deuses canibais

mo capitulo, a análise do concei to de ha' iwa'). Assim·, devem ser


entregues a um marido. Por sua vez, os Araweté afirmam que as me-
ninas só menstruam se previamente defloradas, manualmente ou por
urn penis - e que só após o def loramento é que seus seios brotam.
O defloramento e primeiros tempos de atividade· sexual das
iéi papa re, "seiós brotantes" , · sao concebidos como uma fabrica -
-
9ao do corpo · feminino pelos homens. Estes "furam" (mom~), "esca -
varn-esculpem" (maga) e "fabricam" (moñi) a vagina e os lábios da
vulva. A atividade sexual faz as mo9as crescerem - o que se atri-
bui tanto i "alimenta9io seminal" que elas recebem quanto ao pro-
cesso de estiramento ou "produ9ao" dos lábios. Esta última opera-
~ªº é essencial: a deforma9ao progressiva dos labia majora, sobre
ser urna parte da arte erótica, é necessária i matura9ao sexual da
mulher. O comprímento dessa pe9a da anatomía feminína (que fica
oculta pela cinta intima) é wn tema freqüentemente discutido en-
tre homens - e mesmo entre mulheres -, e eu tinha a nítida impres
sao de que ela confería urna espécie de dignidade ¡ sua portadora,
de urn modo que evocaría os "grandes lábíos" dos homens Kayapó e
Suyá (S·e eger, 1980b: 43-ss.). A obsessao ocidental com o tamanho '
do penis parece ter seu correspondente Araweté (onde ela nao está
presente) no problema do tamanho dos lábios da vulva: todos eram
capazes de lembrar e descrever esse tra~o em mulheres há muito fa
lecidas - no que certamente deliravam -; e as velhas, dizem, tem-
-nos de um palmo de comprido ..•

A compara~ao
,,.,,,,, -
com o penis - -
. nao e superficia'l . O termo para os
labia majora é exatamente esse: kañi' nakau 1 "penis feminino". Am

bos, penis e lábios, sao normalmente chamados de "armas"


arco, espingarda ) de cada sexo. A aproxima9ao aos batoques Je tam
bém se justifica. Um dos ·epítetos das mortas celestes, ou melhor,

456
entre si

·das mulheres-tornadas-di vindade·s e da:s Maf femeas em geral, e


..
"

hama 'k-téa mi re, "vagina desenhada". Isto se refere ao conceito '


d~ que os g_randes. lábios pendentes das deusas e das mortas -
sao
- ~

profusamente decorados com linhas finas e geométricas, em jenipa-


po. Já o penis nao é objeto de nenhuma áten9ao especial no céu
apenas é re-endurecido, _como parte do processo geral de rejuvenes
cimento 100 •

(100} Que pensar disso tudo? Parece-ne haver urna série de paradoxos envolvidos
nesse p:rocesso, e ro valor erótico-siniJÓlioo dos grandes lábios . .Em prineiro '
_lugar, ao oontrário das práticas afri~ que visarn uma diferenc;;ia¡;ao rnfup.ma
dos órgaos genitais masculinos e ~emininos - ciromcisao e ablacrao do clitóri~
excis0es das partes "femininas" . e "masculinas". da genitália do sexo aposto(~
p.ex., V.Turner, . 1967:cap.yn; 1962; Gluckman, 1949) - os Araweté. f~icaxn um
.

penis f~ oo rnesro t:.enpj en que abren e alargam o canal vaginal;- ·um "pe- -
. nis", allás, duplo e incapaz de erec;ao (o clitóris - icir!, "broto" - nao pare
ce ser ilrportan~ na sexologia). Par ou~ lado, e aí o:::rro a ma:i:oria das tri-
l::os americanas, fazen o aposto da circuncisao, i.e. o esti.rarcento do prepúcio'
e sua amarr~. Porán,. en vez ~de estojq peniano el~rado, o que se tern é urna
espécie ~ "estojo" do .d upto ~s f~ - a apertada cinta íntima. H:> oon-
trário, por sua vez, dos conspicuos batoques do l.ábio inferior ma.scuJ..in:>, dos
Kayapó e outros, os lábios "inferiores" femininos sao mantidos estritamente o-
cultos. Os Araweté se destacam exatanente . ~lo contras~ entt:e a nudez masculi
na e a c:aiplicada veste feminina .•
Os SUyá, .que usan ba:tc:ques labiais masculinos, .sao, ooincidente:nente, o úni
oo povo arnericaro em que o estiranento oos l.ábios da vulva é registrado (5ee -
ger, 1981:·83; eles também concebem o baten cx:no. um fabricador da vagina) • Mas
o autor citaOO ~ ccnsidera esta ~ o:m::> participando do sistema senan-
tioo das Imtila<rOes oorp::irais Suyá, que sublinhariam antes as qualidades so-
cialnente mnstruídas (fala, audi~) que as naturalrrente "dadas" (sexualidade
faninina). Nao ·creio, outrossim, que ·os Suyá definamos grandes lábios roro um
"penis das I1lllheres" • Minha illpressao geral é, justamente; que o. que oorrespoil
nao
de ao CX)St\.Jne Araweté é seu hc:rcÓlogo Suyá imediato (e relativamente nen::>s
inp:lrtante}, mas 00 amtrário a marca~ das "faculdades sociais" via batoques
labiais, ·auriculares, et.e. A ''vagina pintada" das nortas celestes oorrespcxrle-
ria a deco~ dos mnarrentos oorporais Jé (vide o estojo. peniano Bororo)

457
araweté: os deuses canibais

Creio que, de um 1ccó:> geral,· o tamantx:> da "fexramenta" (anoa) feminina é ao '


mesrro tatp:> o testan.mh:> de um .r~co passado erótico e um sinal de .autoridade •
o ccnplem da saia-cinta e dos _grandes l.ábios oonstrói o genero ferriinioo Ar~
té, que é, assim, literal e si.Jrbolicamente mais vestido e investidO que o mas-
culino. A ausencia de cordao peniaro nos tOnens branccs patecia chocar os Ara-
weté ben J.'lEX)S que a CXll'lSta~ de que as brancas ~ portavam vulvas oonve -
nienterente elalx>radas. A au~ini~ao da singularidade étnica Araweté pare-
ce portante residir privilegiadaneÍlte em atributos femi.niros? Talvez. Mas ·há
um equivalente mascul.ioo dessa singularidade: o clx>ca.llX> de xamanisno ar91 •
Meslro os adultos que nao sao xamas possuern um G:r9f dentro de casa. Ar~ ña ,
"senh::lies do choc:airo é. outra sin~ descr:itiva da cxnli~ masculina a-
11
,

dulta, que faz par a::m a de "sentx:>res do diadema" (nao há nada equivalente ~
ra as nulheres, que 500 metonimi.zadas por sua CDldic;ac> materna: memi ña, "do .;.
nas de fil.OOs" é o epíteto mais geral que se lhes aplica). Assinl, em vez do
"arco e oo cesto" Adlé (P.Clastres, 1974:cap.V), os siml:olos das cxmdi<;é)es mas
culina e femin.ina 500 o ~ e a cinta. O prilreiro, una metáfora do falo ,
em sua funt;ao de crj ador; a seguhda·, um estojo da vagina e oo duplo penis femi
nino, coi9as que "quebran o clx>ca.UX>" 008 hanens ••• Mas verena; IX> próxino ca-
pitulo que o ara._JJ é· um objeto ambígoo. ·
COOsidera.000-se o extrBJc poCk:>r das mulheres em expor os grandes lábios, e
a natureza de "estojo paniarx>" da: cinta Intima, seria talvez possiVel conceber
nns o catplem cinta-grarldes lábios . <X:rto um aparellx:> de controle-&fase da se-
. ..
xualidade feminina (ao nodo dos estojos mc!scul.inos Kayapó - ver Seeger, 1980b:
52•4).
()lanto aos brinCDS, lxnens e mulheres usam-nos semelhantes, mas os das nu-
lheres sao ben mais Oll{>tick>s. Se a fabricat;ao da saia e manipul~ do alc;p -
aao é tarefa feminina·, os bri.Ílros ten sua matéria. prima fomecida pelos ~
e um presente de penas de 11107tel1I!!_ para os brinoos de una .rrulher é, nao só deli-
cado .e de bc::m-9Qsto, o:rro um cawité irresistlvel a entrada em re]~ de
aplhi .

~ interessante notar essa idéia Araweté de que o semen mas


-.
culino "alimenta" e faz ·crescer o corpo femiriino - corno o faz com
o feto dentro da mulher, mais tarde'. Assim, se o homern é quem "co
me" (o) metaforicamente a mulher, esta se alimenta literalmente '
dele. Por outro lado, a singular no~ao de \lm penis feminino(a que
compararia minha interpreta~ao do cauim como um "semen feminino~)

458
entre si

parece-me de algum modo associada a urna desmarca9ao da diferen9a


de genero, e tem uma rela9ao, indeterminável por mim, com o dogma
da exclusiva .c oncep9ao mascul~na. Outro neme dos lábios é hap-Cna,
que se aplica também a duas _bolsas internas ao corpo dos machos
(nao sei a que órgaos poss.am corresponder: vi-os em uma carapa9a
assada de jaboti), onde se armazena o sémen'. , qu~ dali segue para
os testículos (h~l'ha n't-
... 1 "pseudo-ovos"). Isto daria aos lábios
vaginais uma conota9ao genésica? Nao sei.
t desde cedo, portante, que as mulheres sao introduzidas a
atividade sexual. A manipula9ao dos lábios, quando demasiado ardo
rosa, leva por vezes a sua dilacera9ao·. As técnicas eróticas Ara-
weté incluem a extra9ao manual dos pelos pubianos femininos, e ca
ricias algo violentas. Os pelos· podem ser guardados como souvenir
de uma ex-amante; ou sao ostensiva.mente amarrados na haste · das
flechas, fanfarrice que desperta a curiosidade geral sobre a iden
tidade da homenageada. E, para encerrarmos o fetichismo dos lá-
bios, cumpre registrar que me foi dito repetidas vezes que os viú
vos saudosos cortam esta parte do corpo da _esposa morta, defuman
do-a e a envolvendo em algodao, reliquia guardada no estojo pat9._a,
cofr.e dos tesour.o s masculinos (penas, · contas, brin.c es, cabelo dos
filhos, etc·. ). Nunca vi uma pe9a dessas. se non e vero ••• 101

(101) Sd::Jre o c:x:nsuno da ~tália noqueada de in:imigas nortas, pelos hcmens ,


há urna passagem algo ambigua em Soares de SOUZa, 1971:321. E sd:lre o costune
de se gua:[-darem pedaiyoS de carne huna.na noqueada em oovelos de · al~, ver os
Diálogos das Grandezas oo Brasil, 1977: 267, e . a carta de V.Rodrigues nas CPJB,
I: 308. Ver _supra (p .175) os TOlilaho e a devorac¡:ao da vulva das nortas ~ · ·

Devidamente defloradas, as mo9as entao menstruam: he~i, ve~

bo que significa. simplesmente "descer" (o s~ngue); ou se usa a

459
araweté : os deuses canibais

expressao Yahi herowari, "a lua a inaugurou". Nao hi reclusio na


menarca, nem interditos alimentares especlficos. Toma-se, como em
todas as menstrua<;oes e partos, a infusao de iwirara. O sangue
que flui é considerado "esfriar" a menstruada, que esti portante
''quente" (haki - ver o mesmo conceito em Schaden, 1962:85-ss.) •

Ela deve evitar banho de rio - causaria inunda<;oes ou chuvas for-


tes -, e sexo, pois o contato sexual com urna menstruada pode fa-
zer o hornero sofrer de ha'iwa. As menstruadas, além disso, "chei-
rarn mal" (i k aal ) ; nao podem mastigar o cauim. Mas podem cozinhar.
O primeiro catamenio, e também os subseqüentes, é consideravelmen
te pouco marcado, entre os Araweté, se o compararmos com o comple
xo de resguardo que envolve a menarca para outros grupos Tupi-Gua
rani; e isso se estende a todo o sistema de ritos de passagem. O
sinal mais importante da puberdade é a imposi~ao da cinta intern~

que foi tecida pela mae, outra parenta, ou até pela sogra. Esta
pe~a recebe vários nomes: tupay hete, "roupa verdadeira",wi haka-
wa ha, "onde se derrama o sangue", ii re, "pe<;a de dentro". Ela
nao pode ser tirada na frente de urn hornero, sem que isto implique
convi• t e sexua 1102 •

(102) A apertada cinta interna inpede ,que se afasten as ooxas mais que alguns
centímetros, o que dá as lilllheres um amar oscilante e de passos curtos. E seu
uso a:nfere a expressao "~ir as pernas" um sentido sexual ain1a mais direto'
que em port:iJgues vulgar; tirar a ii re é, literalmente, pc:rler abr;i.r as pernas:
oyika, terno rorrente para o ato sexual.

As rnoc;as "com seios brotantes", pré-púber.es, nao devem co-


mer ovos demais (supra, n. 56), ou terao partos múltiplos; neme~

ra<;ao de jaboti, veado e outras cac;as - . pe9as que sangrem muito ,


em geral -, pois senao sua menarca será abundante e dolorosa. Sua
liberdade sexual é considerável, bem como sua capacidade de ini -

460
entre ·si

'
ciativa nesses assuntos. Quando ainda longe da puberdade, os
pais nao interferem, ou mesmo. estimulam as aventuras das filhas '
para gue aprendam corno sao as coisas. E sao eles que, as vez es
~

contra a vontade da menina, a entregam a um velho. Mas quando va~

- ·s e aproximando da puberdade, o controle sobre seu comportamento


$e intensifica. As moc;as muito "andadeiras" (~ata me'!) - aquelas
que circul.arn e~ bandos ale.g res a noi te, e se entregam a jogos se-
xuais c9m meninos de sua .idade ou menores - sao temidas pelos ge~

ros prospectivos: os jovens maridos sao muito ciurnentos de qual .-


quer .rela9ao ext.ra-conjugal nao-simétr.i ca (i.e. que nao envolva
partilha de- es~osas), o que é o caso das rela~oes das jovens esp~

sas corn meninos solteiros. os irmaos (sobretudo se solteiros, e


dependendo da irma para obter urna esposa) também controlam os pa~

sos das irmas nessa fase.

Da puberdade até os 30-35 anos, as mulheres estao na classe


das kañl moko. Casando-se muito cedo, só vem a ter filhos relati-
.vamente tarde, aos 18-20 . anos, que é quando se estabilizam os. ca-
, ,

~amentos. O nascimento do primeiro filho é ainda mais decisivo p~

ra elas que para seu marido. Este, logo que casa, recebe urn tecnó
nimo segundo o nome· da esposa; mas ela só abandona seu nome de
infancia quando seu primeiro filho é nominado. E a mudanc;a de vi-
da após o .nascimento .do primeiro filho é muito mais radical par.a
urna mulher que para seu marido; ela deixa de ser um apendic~ da
mae, e se volta para a própria
'
casa; deixa de pertencer ,
ªº bando
turbulento das moc;as sem filhos, alegres e licenciosas, e adota
um comportamento medido, recolhido e sempre solícito para corn as
necessidades do filho. D~ objeto de ciúmes do marido, passa agora
a ser quem. co~trola suas aventuras. As mem~ ña, mesmo jovens, sao
respeitadas, E7 a balan~a sutil da autoridade doméstica pende sen-

461
araweté: os deu$es canibais

sivelmente para o lado feminino após o primeiro filho.


As maes Araweté sao muito ciosas de seus filhos,tomando seu
partido cegarnente, mesmo -quando produzem estragos nas posses a-
lheias, ou se comportam de modo intolerável a paz aldea. Por ou-
tro lado, sua autoridade sobre --as crianc;as nao é muito maior que
a dos pais, e ambos estao constantemente a tentar cónter os fi-
lhos coma Única fonte de medo "a mao" na sociedadeAraweté: os
ta! o we, espectros dos mortos, os Xñi que rodam as aldeias a noi-
te, e os inimigos 103 .

(103) Sobre a ~ de "bidx>-papao" dos espectros dos nort:os, cp. can os Te-
netehara: Wagley & Galvao, 1961:83-5.

- classifica
Por volta dos 35 anos em diante, as mulheres sao
das· como "adultas" (o~f mo-hi re, como os homens; cf. mo-hi, com-
pletar), e, após a menopausa, como "velhas" Ctaplna)~ Mulheres de
meia-idade possuem wna enorme influencia na vida cotidiana Arawe-
té; com muita ascendencia sobre suas filhas, urna sectao ·residen
cial uxorilocal gira em torno da mulher mais velha, e é normalmen
te identificada por seu nome. O fato já registrado de que há urna
tendencia dos casais principais da aldeia serem compostosde ex-viú
vas mais velhas que seus atuais maridos, só faz aumentar o poder ·
destas mulheres. Tais senhoras, além da voz ativa que tem nos
negócios aldeoes, sao a principal fonte de rixas e intrigas, e
respondem pela politica micro-faccional da aldeia. Sao elas, mais
que seus maridos, quem disputa o destino pós-marital dos jovens
I

casais. ! muíto raro se ouvirem os homens expendo publicarnente '


suas diferenc;as ou conflitos; em troca, e passando por cima do
cuidadoso alheamento de seus maridos, as cinco ou seis grandes da
mas da aldeia Araweté dao o tom do cotidiano, mobilizando paren-

462
entre si

tes , .para S~ antagóni,z arem uma~ as ()Utras / num sis.tema de alian9as


sempre móvel e cq~t~nge~te. ~

,A vida cotidi.ana . Ar~weté é femi~ina. E .. o seria inteiramente,


~~o
'
fossem ciuas . fun9oes que cabe.ro.exclusivamente aos homens: o xa
manismo e .a guerra. Poi.s a primeira fonte de .autoridade de um ho-
mem, que eu mencionava páginas atrás (p. 319), a saber: a de lí-
der de familia. extensa, que controla filhas e assim genros, é urna
fonte "feminina", naquilo que controla e no modo de controle - a
ro9a, e em sua associa9ao a urna esposa, o verdadeiro centro da
unidáde social Araweté. Na triparti9ao funcional Araweté - que
nao deixa de evocar o· sistema tripartite indo-europeu de Dumézil'
- a qondi~ao d.e llder de familia extensa remete a agricultura e
ªº mundo f eminino; já a for9a mágica e o poder guerreiro sao inte
gralmente masculinos. SÓ que eles· exprimem um movimento para fora
da Sociedade. Os homens tem com a exterioridade e a morte a re la
~ao que as mulheres tern corn a interioridade e a vida. A importan-
cia ou dominancia dos hornens se fu,nda nisso.

-
Es tes sao, em suma, os ritmos e estruturas da vida cotidia-
na Araweté. Além do que Jª -
. foi dito, haveria que chamar a aten-
~ao para urna peculiaridade deste Pc:>vo, dentro do horizonte Tupi-
-Guarani: ·a ausencia ou rninimiza~ao de quaisquer transi~oes de ci
clo de vida - excetuando-se o nascirnento do prirneiro f ilho - e no
tadamente a auséncia de inicia9oes coletivas de puberdade, rnuito
importantes nos dernais TG, sobretudo as inicia~oes masculinas(Gu!
rani, Tapirapé, Aché; ou:tros grupos enfatizam igualmente a~ ini -
cia9oes masculinas e femininas: Kayabi, Kaapor, Tenetehara; ou-
tros ainda sublinham apenas a menarca: Wayapi, Siriono). Embora
nao creia que se possa encontrar uma causa in~quívoca desta ause~

463
araweté : os deuses canibais

cia,. sugiro que ela está associada a um deslocamento da problemá-


tica iniciatória para outro lugar, que a condensa: a morte. Em
certo sentido, tudo o que realmente acontece, entre os Araweté, ~

contece albures - Além.• Vamos entao lá, em busca de urna conclusaa.


Ali onde, enfim entre outros, está o sentido da Pessoa Araweté.

464
CAP!TULO VI

ENTRE OUTROS:

MORTOS, DE USES, xAMAs, MATADORES

Nao canto a noite porque no meu canto


O soi que canto acabará em noite.
Nao ignoro o que esque~o.
Canto por esquecé-lo.

(F. Pes·s oa/R. Reis)

Urna alma seca é mais sábia e melhor.


(Heráclito)

465
araweté: os deuses canibais

Até aqui viemos indi·c ando repetidas vezes a fun9ao organiza-


dora dos deuses, dos inimig~s e da Morte, enquanto figuras da alte
ridade, na vida social e cerimonial Araweté. ~ tempo entao de nos
determos sobre o disqurso da morte e da pessoa, que permitirá in-
tegrar o que se esbo9ou no capítulo IV e sistematizar 6 que resta
a dizer sobre o xamanisrno e a guerra, estas duas modalidades de ar
ticula9ao do triangulo do Outro (deus-morto-inimigo).

l. PERIGOS: ALGUNS

(A) Doen9a e abstinencia

A nocrao de "abster(-se)" - koako - desernpenha .um papel impor


tante na marca9ao das rela9oes de parentesco e no áiagnóstico das
doen9as. As restri9oes da couvade sao parte dessa ati tude mais. ge-
ral, o resguardo quanto a a9oes que produzem a introdu9ao de subs-
táncias ou principios malignos no corpo próprio ou de outrem. O
koako é a contrapartida ativa e "física" de uma psicología das pai
-
xoes, dos sentimentos negativos que tiram a pessoa "de si". Tanto
a fisiologia da abstinencia quanto a psicología da alegria (tori)
visam evitar a Doen9a, ·ha'iwa, aquilo que destrói a saúde corporal
e/ou rompe o delicádo vínculo entre corpo e alma.
Nao há feiti~aria ·entre os Araweté. A morte sernpre vem de
fora, mesmo quando produzida por urna ruptura do resguardo: das fle
chas inimigas, do assalto dos esplritos da ~ata, ou do desejo dos
deuses.
Urna pessoa pode fazer abstinencia em causa própria (oyi-koako)
ou em beneficio de urn parente: seja urn f ilho pequeno, ser aberto a

466
· .entre outros

con·tágios .malignos e · volátil pela solda precária alma-corpo, seja


um parente doente. o verbo é transitivo direto: a-memi-koako, "éu-
-filho-abster" - fa90 abstinencia por meu filho 1 . o objeto de toda

(1) Cognato~

de koako se acham entre os Parintintin (okivaku - Kracke, s/d.: 98),
- • • +

os ·wayapi (oyi-koako - Carrpbell, 1982:270-ss., que a interpreta apenasdentro


da couvade), os Guarani' (odJé-koakú - Schaden~ 1962:85-ss.). O últ:im::> autor pre
t:enJe derivar o verbo koakú da raiz roninal (h)aku, "quente": o mesno faz Bou
din (1978, vol.I:l07) para o Tenetehara kiraku. Nao sei se tém razao, ernl::ora ha
ja urna associa<¡:ao, J'XlS Guarani e albures, entre o resguardo e a si~ao "~
te'~ de seus objetos. Ver também caó::>gan, 1965.

abstinencia (~6~ko ha) sio coisas ditas me'e a'o: a9Ses perigosas
dos pais em couvade, certos alimentos (especialmente carnes), e o
sexo. Me'! ~'o, "coisas-~'o", traza mesma raiz do conceito de ·es-
. .
pectro ou espirito - -~'o we - e do verbo para "saudade", mo-a'o
(supra, p. 448, nota 94 ) •
Embora se use· o verbo · ko~ko para a9Ses de resguardo dos pais
de f ilhos pequenos, seu significado próprio remete ao complexo do
comer: carne e sexo. A coisa-a'o por excelencia é a vagina, e a
atividade sexual é designada ern geral por urna metáfora negativa e-
xemplar: ko~ko-i, "inabster-se". O sexo, assirn, é sempre um éxces-
so, uma nao-continencia. A divindade Yici~e aé~, o licencioso 11-
der do cauim alcoólico, recebe o epíteto de koako-i ha, "o inconti
- -
nente." . Ele é ainda o modelo do tori - pa, do amigo sexual, e seus
cantos mencionam invariavelmente ·o sentimento de iwa tori, lit.
"céu-ale.g ri.a " - o . júbilo. ce·l estial .. que marca a rela9io aplhi-piha
que analisamos acima.
Quando os pais quebram o resguardo da couvade, vimos que o
efeito é o hapi, o dessecamento igneo da crian9a (p. 445), ou sua
sufoca9ao por cauim e sémen!. Quando o resguardo incide sobre pare~

467
araweté: os deuses canibais

-
tes adul.tos, enfermos, os efei tos sao mais variados. Carnes como
a de jacamim, veado, inhambu, mutum-cavalo e anta, se ingeridas
por um parente (a fortiori pelo enfermo) podem provocar fraqueza
nos joelhos e nas pernas - os dois primeiros -, surdez - os seguin
tes -, e dores fortes na barriga - a última. Quando a doen9a é gr~

ve, o resultado da incontinencia é mortal: a morte por ha'iwá. O


mesmo efeito tem o sexo, se o praticamos quando doentes ou quando'
úm par~nte próximo o está: tama b!de rero-káñi - a vagina nos mata
(lit. ''nos p3e a perder").
Alguns dos alimentos acima, me'e a'o, liberam um poder efi-
caz, o .e spirito ha' o we do animal: jacamim, anta, veado. Diz-se . eE_
tao, quando ficamos subitamente doentes, que "me'! ra'owe b-f!de

reti", o espirito de algo nos espanca - e sempre se pode atribuir


isso a dncontinéncia alimentar de algum parente, quando nao a pró-
pria. Outra ingestao perigosa é a de animais -bman; ce, "mortos"
i.e. achados mortos na mata -; isto provoca tonturas e desmaios
(iwi 'kañi, "a terra sorne") dentro do grupo de substincia.

Essa no9ao de "parentes de substancia", se nao pude antes


vinculá-la a nenhuma no9ao de identidade substancial positiva (saE_
gue, semen\ - cf. supra, p.439, nota 88 ), recebe uma formula9ao n~
gativa ern Araweté: ogo koako me'e, "os que se abstem reciprocamen-
te". Talvez pudéssemos aproximar isto de urna teoria implícita so-
bre a proibi9ao do incesto: "comer'' alguém do grupo dos entre-absti-
nentes seria a forma forte de koako-l, que prescinde de doen9a pré
via para produzir a Doenc¡:a, o ha' iwa. Os parentes· que se entre"'."re!
guardam sao, tipicarnente: pais, fil.,hos e irrnaos reais, ou aqueles
que se charnam de b!d! dt,"nossos iguais". Com isto, sublinha-se a
inexistencia de resguardo entre conjuges. Um esposo é, por defini-
- um
9ao, ~
am~te, um outro, e assim o que ele faz .ou ·come nao - afeta

468
entre outros

a saúde de Ego (desde que nao seja, é claro, sexo com Ego) . Por
outro lado, mesmo irmaos classificatórios sao entre-abstinentes ,
na medida em que estao sob interdito do incesto. As fronteiras exa
'
tas desse "grupo" de resguardo sao fluidas, dependendo tanto da
gravidade da doen9a de Ego quanto do estado de suas rela9oes com
2
os a; • o paradigma do semelhante e a regra básica do resguardo ~

(2) E a disjmic;ao explicita entre marido e nulher quanto a abstinencia se viu


desrientida praticarnente várias vezes. Por ocasi.ao da epidenia de gripe de 1982,
nui tos c0njuges raspararn. a ca};)e(;a P?rque o outro estava a:m muita febre - e
trazia µmt>ém a ~a raspada, µma fonna de esfriar o "°rt'?· Isto poderia su~
rir a difurxlida idéia, na Anérica do Sul, de que os esposos, após urna looga oo~
viWncia, teI.1ni.narn i;:or criar Ja~ de substancia (Da .Matta, 1976: 93; ver ~·
-..;

80-95 para urna anál.ise ó:> resguardo Apinayé que se pode estender, a:m pequenas
nodifieat¡:Oes, para muitas outras sociedades. Os ~té, ao oontrário dos Api -
nayé, xinguaoos e outros, nao dizen que o resgu.arOO - abstinencia - é "por cau-
sa do san:JUe", afora o caso da nens~ao). Sobre os "grup:>s oor¡x>rais" na AS,
ver Seeger, 1975. Sobre o Alto Xingu, Viveiros ae ·castro, 1977: cap.V.
O "desguardo" sexual pode afetar ~tonimi.carnente parentes nOO-substanciais ,
no sentido estrito. Assim, urna norte em 1980 foi explicada ¡:orque a WD de Ego
havia tido rel~ sexuais quarxJo este seu MH (que nao era seu FB, seu to a; )
estava doente. Da nesma fonna, se urna~ tema nenarca ero casa dos pais, o ma
rido de sua mae ncrre de ha'wa.
Permito-me nao retanar éGUi as longas discuss0es sobre o "signific.aOO . da
cx:AIVade" (ver a Última recensao anericanista ero Menget, 1979, que a interpreta,
~ o caso oos Txi.cao, ero func;ao de urna t.eoria da substancia) - assim a::JrO

quarrlo, ao discutir c;s. ooanástica Araweté, dei.xei passar as diversas teorias so-
bre os rones p~ios.

o filho pequeno e a "couvade" - era sempre a esse contexto que os


Araweté recorriam para explicar as razoes do resguardo por doen~a

de parente: um doente é como um bebé, diziam¡ ele está fraco (hatl


na: "nao-forte") e sua alma também nao está segura (ipohi na:"nao-
pesada"). Note-se que, idealmente, marido e mulher só se abstem ao
mesmo tempo por seus f ilhos. Por sua vez, o resguardo de um filho

469
araweté: os deuses canibais

por wn pai/mae doente é especialmente enfatizado, e concebido como


wna contrapartida (pe.pi ka) do resguardo da couvade.
Aplicando-se por excelencia ao sexo, o koako ha ·também atin-
ge a menstrua9ao, levando a abstinencia de certas a9oes pela mu-
lher e seu marido, em beneficio de ambos~ O sexo na menstrua9ao
..
e
wna forma forte do sexo · em· geral: embora . a doenya ha'i'l.i}a que se
abate sobre os infratores seja, neste caso, atribuida ªº sangue (o
sangue da mulher ~trai o Senhor da Agua . ~e ela for ao rio; e fulmi
naria· o marido), ela sanciona outra~ transgressoes de cunho se-
xual onde o sangue riao é um símbolo explícito: con·tato entre o pe-
nis de um f ilho e seu pai, na amarrac;ao do prepúcio; incesto; sexo
durante doenc;a. O ~exo é a potencia de contágio mais forte, e a

principal causa mortis por desguardo. Na epidemia de 1982, cessou


por dois meses qualquer ativ-idade
.
sexual
..
na aldeia, visto q~e mes-
mo os sac:stinham parentes doentes. o desguardo sexual é o protóti-
poda Doen9a ha'i'l.i}a, que por sua vez remete ao fogo e ao calor, e
~o mundo celeste 3 •

(3) Ie-afirm nao ter observid:> qualquer ~a central do sangue · na simbÓ


lica Araweté. Eles nao sao nada neticuloeos quanto a se sujarem de sangue ani-
mal, e a cxner carne por ve:zes ben mal""'.passadas.O sangue .remete ao ·cru '( ~

palavra: U}i). Seu c::heiro, entretanto, cai na catecpria do cheiro de excremento


(tepocf a'a) - que JiK:> é
o· dleiro do podre ( 'a.i), mas se aproxima dele. Suspei-
to entretanto que o CXDtexto ai se ja o do 5an:Jlle animal, dentro de una dist:in -
yac entre carne (ha'a) - ~ entranhas (ilAñ') - estas Últimas sao consideradas mais
"sangrentas" que a prim:dra.
As cate<prias de cheiro Araweté (a'a,
teJ:no geral) sao
núl.tiplas. Nao e1'l<X>!!
trei i:ienhuma ooyao clara de cheiro do sangue humaoo, serelhante ao que teros t
IX>S Akuáwa (Andrade, 1984~ pitiú, que é ' prováve.l c:ognato do pichua Qiarani, o
qual evoca a "alma da carne crua" - cack>gan, 1965; ver adiante), e, em geral·,
em vários pavos da A.sui - ver Da Matta, 1_9 76:86-7, Viveiros de Castro, 1978a.
Sobre o áxiigo olfativo, ver Seeger, 198l:cap.V.
Entretanto, duas observa.crOes: o cheiro da genitáJ1a feminina cai na catego -

470
entre outros

sao
ria do pcXlre ( , di) ou da catinga . ~ .< ikac!) • 1µtix>s abaninados pelos deu
ses celestes, dentro de una cposi~ entre. o "fedor da norte" e o "odor de san-
t.:;.dade", que vereros a seguir. Além disso, cxrier carne crua. - o que por vezes
·sucede quazXlo un ~ador está cx::m .llllita fane ·- pode provocar fortes dores abdo-
. '
minais, alero de ser nuito perigoso se um parente está doente.
<l:Jtparar o relaxamento Araweté quanto ao cru cx::m a delicadeza Bororo e seu
esforyo de se-distinguir da ~dade . <v~eritler, 1976:41-s$.). Os Bororo, a-
liás, apresentam urn sistema de ''benzimento" alimentar serrelhante ao Araweté,o:::m
a diferenc;a significativa de que ali se trata de oferecer a cx:mida aos tx?pe pa-
ra que esteS "estraguem" a o:::mida ne'1tralizanCb-a para cx:>nsum:> humano; os Ar~
té neutralizam os peri~s irnanentes ao alimento dos deuses para depois estes o
ccrneren.

O termo genéri,co para doen9a é me 'e rahi, lit. "coisa-dor" •


As fontes de doen9as sao muitas - os brancos, a atual localiza9ao
dos Araweté na . bei~a do mundo, a fuma9a que se eleva dorio de ma-
drugada, o veneno das cobras, o espirito d·e certos ·animais ingeri-
dos ••• Estas me'e rahi ·estao ainda associadas as flechas de ali
mentes (jaboti e mel) e ao contágio por dispersao de urna substán -
cia-dor Chahi we) que se encontra em bebidas como o cauim e em coi
sas podres - notadamente nos túm~los.
Mas· ninguém morre de urna doen~a. Se esta pode ser a causa e-
ficiente de mui tasmort~ a causa final de todas as mortes "nao-ar-
tificiais" (flechadas e tiros de inimigos ou espirites da mata) e -
o ha' iwa, termo inanalisável por mim, e que designa a Doen9a·, aqui
4
lo que tira a pessoa do estado de hekawe, vivente • Toda morte po-

(4) Ha 'iwa possui, ccm::> únioo cognato nuito provável, o oonceito de baivwa oos
- -
~ - que é tuna OOen<ra nortal, misticamente causada, associada ao oonsurco de
carne de quati lanimal ligado aos ·nortos em vários grupos m, Araweté inclusi-
ve) , ~ mel puro, da carne humana pira., e a manipulac;ao direta 00 esqueleto (eta
nio) de urn humano. Ela deve ser distinguida oo tanbém perigoso estado bayja, as
-
- ! . -

soclado ao sangue menstrual e puerperal. (P.Clastres, 1972:163, 300, 328, 330 ;


ver supra, p. 446 n. 93_). Outro cognato 'posslvel é o a'yvo M::lyá-Glarani (cado-
gan, 1959:66), que o referido autor. traduz-.por: anuncié;lr desgr~, e analiSa em

471
araweté: os deuses canibais

"ferir can flecha", ferir a alma. Nao seise p::>sso transpor essa etirrologia pa
ra o oonoeito Araweté, oode oontuó:> o segrrento *-iwa significa tanDém "flechar,
picar".

de ser alocada a um efeito-ha'iwa produzido por alguma coisa ou a-


<;ao. Dentre as que conhec¡:o, estao: o espirito do jacamim, se este
animal é comido de outra forma que assado; o cauim venenoso tiewa;
'
o incesto, a menarca em. casa dos pais,
. sexo com menstruadas ou
quando se está doente; cópula com o Senhor dos Rios; enterro incor
reto dos mortos, manipulac¡:ao excessiva do cadáver; por fim,algumas
emissoes musicais perigosas 5 , o céu e os deuses-Mal. A no<;ao de

(5) Há urna série de cantos que nao caem exatanente na dist.int;OO "música aes deu
sesftnúsica dos inimigos" - ·ent>oia sua fonna seja idéntica a das ~ de gu~ .
ra -, que nao ¡x:den ser cantados: o "canto da centopé.ia" (ta.rape), o do ..Maca<X>
rronstruoso" (Ka'! dowl'fzG.), o ck> "Jaboti nonstnx>so" e o dos 1ñi, ben cx:no os
cantos "de Itakad!", .. de Ta' akati" e "de Maeapi", tres inimigos míticx:>s. Esta
classe de cantos proihidos remete a una rnais anpla, de cantos deletérios ao mi-
lix> e a sa\x3e - ver ac'H ante. Mas SÓ OS neocionados acima sao ha 1 wa ha, letais.

-
ha'iwa, em sua forma ideal,
. envolve um emagrecimento súbito (mokoi
yi) e urna combustao interna (mo-ak~ fJJoko, "grande aquecirnento")
febre e definhamento.
A rnenc¡:ao ao céu (iwa) como ha'iwa ha, letal, é um tanto obs-
cura para mim. Isto parece designar um tipo de causa de rnorte ern
que o céu estronda e se abre (opiri, iwa), fulminando a vitima su-
bitamente. Tal causa deve ser distinguida de outro fago celeste e
invisivel, . o tata na'iwa ha criado-lanc¡:ado (mara) pela ·oivindade ,
mediante seu poder xamanico e especialmente pelo uso do tabaco. As
mortes pelo fogo divino incluem toda morte sem causa Óbvia determi
nada - i.e. mesmo aquelas em que a causa eficiente foi urna pneumo-
nia trazida pelos brancas (do'~, tosse). Raciocinando ao modo Azan

472
entre outros

de, os Araweté afirmam: "todo mundo fica doente, mas só morre quem
for atingido pelo fogo divino fMat data)". Apenas, e caracteristi-
camente, o "bruxo" aqui é a Divindade - e a "vontade divina" é um
'
dese jo de· tipo sexual pela vi tima 6 •

(6) A ruptura do céu, que respoIXle por seu ixxrer assa5sino eventual~ remete ao
tema oo "céu m1per-quebrar" <iw<i ~ iwa ne~-h~> pelo peso oos nortos, o
apocaJ ipse Araweti "já evocado <sypra, :p.' 196). '. ~ao oonsegui enterx3er cnoo e po_!
que is.so acontece causa ncrtis individual (sei de trés, no passaó:>J. Usa -
cx:trD
-se a mesma expressao para designar as ful.nú.nac;Oes por raio visivel, corisoo. o
raio, tata ipe, é também chamado de "assassino das alturas" Ciwate ha nopl'ha).
Já o fogo divino é in.vi.SÍvel, ou se manifes~ ao lon;e; parece associado a
raios que caen no h::>rizonte. Nao cheguei a ter una idéia clara, en suma, de
todo esse m1plexo de associ~ entre ha 'iwa, céu e fogo. Notei ainda, e dis-

medo.res de cru" e "~ de fogo" . (supra, pps.


-220-1)
cuti can os Araweté, o singular paraó::>xo dos deuses Mat seren ao neSllO tenp:>" oo
e teren W "i;::Q
-
de.r de focp" celeste-letal. Ca'ltra-argunentarai1HTe que o fogo que os deuses des
ocnheciam era o de oozinha {me'! pip9_ ha., "de cozinhar ooisas"), e que este fo-
go celeste eles setpre tiveram, era pi:~io deles (e'e apa t~), estarrlo associa
- - -
do ao relanpejar de seus clx:>calhos ara_JJ e ao brilh:> de seus oorp:is. Fica paten-
te, de qualquer nodo, a c:x:D)~O "ol.Íllpica" desse Zeus-Mai! senlx)r cbs Raios
fulminantes.
I:bis dias antes de eu ir emrora dos Arawete, Arad:rhi entrou en cx:ma malari-
a:>, escapando por milagre, adrenalina e ~· As expli~ para sua ~a
foram as ma.is varj adas: "pol:q\E ela sinplesmente queria i r (rorrer) "; "por d~
jo de ser esposa de um Mat"; "para oos dar saudade" (b-l!de mo-~ 'o mo) i "porque
alguém andou mexerx3o na ossada de .Awara-hi, e espalhou me 'e rahi e ·hahi we"; fi
nalllente, alguns disseram ver um fago no oéu, e decretaram: iwa ra 'iwa ha, Ara-
do-hi ra 'iwa ha - o céu fulminara Aracb-hi.

Na impossibilidade de f azer uma síntese do signi.ticado de


ha'iwa
. -
que encontrasse um principio comum as diversas coisas que
produzem tal efei to, resta-me sublinhar que .a s causas ".i.manentes "
da Doen~a sao sobretudo excessos sexuais: incesto (sancionado ain
. . 7
da pelo ataque de inimigos) e a cópula contranatural com o Senhor

473
araweté.: os.d4l'uses canibais

. ' '

(7) emparar tal sanc¡:ao do incesto, canbustao por um fcxp celeste destruidor, e
posterior devor~ carú.bal pelas ·divindades~ o::m o deStino de um. culpado de
incesto entre os Yaronami: seu oorpo riáo gué:1ma na pira funeraria. (Lizot, 1976:
44), e portante suas cinzas nao poderao .ser ingeridas ne> r~to ." emocanjral ":·

da Agua; além disto, o contato com _a morte produz o ha'i~a. Mas a

causa ~rans9enqente de toda morte que nao envolva urna captura da ' '
alma pelos esplritos terrestres (Añ-i, . Iüiikatiha · e Aya:r.aeta) -
e · um

ha' i?.Ja prod.u zido pelos M~f. os d~~ses· cob.ic;am ·~s h~anos ( oy'f mira
- desej.o .raivoso, in:veja, avidez; cf. o onhimyr·o Kagwahiv, .Kracke,
1978: 282); os Maf sao "eoisas...:a 'o ·" , dizem os Araweté, e além dis-
.. '
so eles ~os mo-a 'o, "despresentificam.". Vem<?~ assim que o perigo
rnc¡lior na cosmologia Araweté nao é (em g.e ral ou no . contexto da que-
bra do resguardo), como por exemplo nos Guaran!, urna regressao ..
a
animalidade por metamor~ose (o "odjepotá" - S~haden.,. 19§_2 ,: 85-ss.),
mas ~a progressao demasiqQ.o rá.p ida ao estatuto de· alma celest·e d!,
vina. - >

. -
Mais nao seí dizer, sobre a nosología Araweté, e que. ja nao
o tenha fei to nos capítulos -anteriOJ:es. ·Relembro somente . que. a ·n o- j
~ao de doen~a parece apoíada nu.ma termodinamica do quente e do
.. .
frio, ernbora nao tao sistematicamente quanto ,em outras cosmologias ~ 1 • ~

da A •.Sul (Silv.erwoqd-Gope, 1978,. Menget, .19.79.), visto que a lingu!


gem das almas parece maís forte que uma teoria dos carpos, e que
. .
sua psicología, mesmo que baseada num idioma de qualidades sensí -

.veis, prevalece largamente sobre sua fisiologia. Vejamos assirn, an


tes de' irmos as almas' algumas idéias sobre razao e· emo9ao.
\

(B) O leve e o pesado, o fora e · o dentro

. - A atitude expressa. no k'oako remete a um outro conceito, ja

474
entre outros

mencionado, o de kaakt, "consciéncia 118 • Kaa'kt é um verbo complexo,

(8)° A diferéncia9ac> sonora dos dois ternes nem serrpre é fácil, na ·prosód.ia Ara
~té. Nao c:onhecro cx:>gnatos oo Últim:>¡ a tent~ et.:inológica me faria derivar
'
kaakt de duas raízes: o verbo -ka, ser-ter-estar, e una fonna arcaica para
tl~IÍ I *ak;, transi9ac entre 0 proto 'm *akan e 0 atual aci. Carparar 0 que
se ·seg\ie can o cxmceit.o maanatae d6s Fataleka: manória e peñsamento ooincidem;
cf. Guidieri, 1980:9~~3.

que significa: pensar, .· lembrar, saber, medí tar, manifestar a pre -


sen9a de urna consciencia; pode-se prefixar-lhe o causativo mo-, quan
do entao conota idéias corno "trazer a mente", lembrar, convencer •
A qualidade kaakt ha, pensamento ou consciéncia, parece desernpe -
nhar na personologia · Araweté o mesmo papel e.entra! . que as -
no9oes
de "alma-palavra" Guarani (api>u ou ñe'e; cf. bibliografia pertine_!!
te). Sua sede é · o peito e os ouvidos. Enquanto ligada ao peito,ela
se associa a no9ao de i, alma-principio vital, cuja presen9a den-
tro do corpo marca · o ·estado ·-normal da pessoa: saúde e vigilia. Sua
liga9ao aos ouvidos- se evidencia de modo negativo pela expressao
apiha-?, "surdo", com que se designa aqueles que procedem' errada -
mente, nao "ouvindo1' as regras sociais, ou aqueles que estao fer.a '
de si de raiva. Quem ko~ko-i, nao se abstém, é ªº mesmo tempo kaa
... ..,
k ~1., "inconsciente". Mas exatamente como para nosso conceito de
"consciencia", kaakt-l designa também as crian9as antes de manifes
- -
tarem capacidade dé resposta a estímulos comunicativos, e as · pes-
soas inconscientes por desmaio ou coma. {Que o nome seja conferido
ao infante - o que "nao f ala", em latim - ._ som~nte após este mani -
festar kaak;~ isto refor9a a aproxima9ao deste conceito com -o ' de
alma-palavra-nome Guara.ni). Quemé ou está "inconsciente" está em
perigo: ou ainda nao é um ~er humano completo (a crian9a) , ou pode
deixar de- ~e-lo Co. doente); seu principio.· vital (i') está mal-cola-
do ao corpo.

475
araweté : os deuses canibais

Alguns estados emocionais produzem a saída do kadkt ha de


sua ·sede própria, o. corpo. A cólera "cega" (surda, diriam os Araw~
té) é um deles. Quando se está ñara, irado, ouve-se o ruido dos co
cos-babacru caindo; o sol fica vermelho, a garganta se fecha. A ira
é um fogo, como para nós, e há dois tipos de gente: aqueles que a
cozinham em fogo lento (os .. como o pau d'arco" ou "como castanhei-
ra", madeiras que ficam queimando por semanas, enema chuva lhes
apaga o fogo das entranhas), e aqueles que sao como "fogo de pa-
lha" (literalmente: "como palha de milho"). Quatro tipos de seres
-
sao especialmente raivosos: os inimigos, os Ma!, os mortos recen-
tes e os matadores de inimigos. Os xamas es.tao constantemente a ci
tar em seus cantos a cólera dos Maf (os verbos para raiva . sao .
mo-ira, oyi mira, e'!> e seu comportamento brusco-violento; preci-
sam aplacá-los, abrac;ando-os, e assim "cortar" (mo'f) a raiva.
Outro estado perigoso é a saudade ou tristeza pela ..
.
ausencia
de um ente querido. Nesses casos nosso kaakt ha sai (ihe), nós fi-
camos "em outro lugar" (ie te ete), o pensainento nos "faz chegar"
(mo-wahe) lá onde está seu objeto, e o sol também fica vermelho
"sobre nós" (b!de rehe) 9 • ~por isso que os mortos recentes sao p~

(9) Karohi p!dr heti - "o sol fica nuito venrellx:>", é um efeito que se produz
igualmente após urna cauinagern. Oiz-se que oo dia segtlinte, o da ressaca do
ca.uim, o creµísculo é muí.to ~llx:>. Nao sei cx:rro ligar isso a venrelhidOO so-
lar da raiva e da sat'rlade. Reoordo apenas que o venne1h:> é a Cor para os Arc:Me-
té. Para designar a idéia geral de "colorido" (na diferery;a, p.ex., entre urna
foto P&B - "cinza", en Araweté - e una colorida), usa-se a palavra "veD'llel.ho" ,
rretonímia conseqüente can a ali~ do verrrel.00 na vida social.
. t

rigosos: já fora de si de cólera por ter morrido, e de cobi9a rai-


vosa pelos parentes deixados, eles ainda mo-a'o os viventes, "des-

-476
entre outros

presentificarn-noslt ou "espiritualizam-nos". um morto-ausente, as-


sim, é bfd!_ mo-~'o ha, o que nos torna a'o - conceito obscuro e
absolutamente central na personologia Araweté. Embora se diga dos
~
M~l que eles sao ao mesmo tempo . me' e a' o e b-Cd! mo·- a 'o ha, já um
morto se divide em dois aspectos: seu espectro terrestre, coisa ca
davérica, é urna coisa-a'o; seu espirito celeste, ser esplendido ,
é o que nos torna ~'o, pois nos dá saudade. E a morte é wn proces-
so de mo-a'o we, "tornar-se ex-a'o", como veremos.
A tristeza, ho'ira, é wna "paixao ativa" do ponto de vista
lingüístico, ao contrário da saudade. Mas ela é também perigosa ,•
seu paradigma é o luto ou melancolía, que faz com que percamos o
necessário medo dos mortos recentes, e com isso nos exponhamos a

segui-los. Urna pessoa triste está "vazia" (hen-te mi re, esvaziada),


i.e. sua alma deixou o envelope corporal.
O desejo sexual, ha'ira, é outra paixio que nos deixa "in-
conscientes" - kaaki-l -, e ele se aproxima intimamente da raiva-
-ñara. um penis ereto é wn "penis irado"_, e se diz que o dese jo
feminino é o equivalente da cólera do homicida - nao por acaso, as
sim, a mulher tem sua "arma" 1 º.
(10) A sexualidade feminina, "quebradora do chocalh::>" dos hanens, quebra ~

bém sua anna proprianente dita, o arco. EmOOra nao existan tabus de mani~ao
do arco pelas m.tl.heres, quando um baten está entalharrlo urna pec;a de pau d'arco
para fazer sua anna ele precisa abster-se de sexo, ou a pec;:a quebra.
o leitor terá notado um riparadigma.. lingÜístico: ha'iwa, ~, ho'i~a ,
"tristeza", ha 'ira, desejo sexual - ao qual acresoentaria a palavra para "fare ..,
- Nao me arrisco a etinologizar; mas me parece claro que ho ira e ha'im-
ho'imQ. 1
~

trazan a mesna raiz do verbo para raiva, ou para enraivecer: mo-ira. A forma no
minal ñara pode ser um derivcd:> de urna antiga expres~ reflexiva. E o verbo 1'ª
ra a cobi~ raivosa, que traz urna clara cxn::>tacrao sexual, tem a mesma raiz :
oyi-mira. A tramr;ao de ñam por "raiva" é in¡:)erfeita: ñara designa tarcbém um
inpulso agressivo e eficaz de "incorporai;ao" de algo. ~ mar~ de caso

477
araweté: os deuses canibais

distintas escl.areOem isso: um sujeito pode estar ñara cx:m alguém (ñaÑ X-rehel, ·
-- - -
ou ñara por causa ou em func;ao de alcp-alguém Cñara X-re). Quaim um .lnnem diz
que está ñara nama ne, "can .raiva E9E vagina", ele designa seu desejo sexual •
Se a "raiva" levada a excessos p0e "fara de si" e é perigosa, a agressividade !
ficaz coootada pelo tenrc ñaro: - e a série ~· é positiva. Já a presenr¡:a· . ó:>
a:nceito de pulsao agressiva na palav.r:a "tristeza", ho'ira, suge.re exatamente '
essa idéia, de que a tristeza aqui é ~ paixao re-ativa~ nao cx::atpletanente dis
. .
tinta do rancor. Há um verbo similar, hero-ira, que significa "desprezar", aban
- - -
&:mar - urna esposa, \ml oferta-, e que 'CXX'lO'ta o rancor ressentido pelo objeto
do desprezo. Ele ¡x>ssivelmante é analisável em hel'9,_-, pref .causaUVQ-O!:lt\itativo,
e -ira, "ira" • .N.ao é ¡x>ssível lingüistic.anente fazer ~ cons~ passiva can
a fanna ho'ira, pela pref~oo do causativo mo-; fica-se ho'ira X-re, can al-
guán, "em" alguán - já a saudade é causada ¡x>r butrem, a:no já observei {supra,
p. 448 n. 94 ) • M1.nhas tentativas de produzir a fonna mo-ro 'ira cx:m proncite
paciente "desncronavam" IX>S ouvidos Araweté e geravam o~ mo-iÑ, enraive -
cer, que parece evocar - analÓgiea ou etim:>logicarrente - um "entristeoer".
caio· acabei me a.rriscard:>, prossigo, já nas áquas da analogia. O· ha' inicial
da fonna para desejo (e para I:X>e.rY;a?) pode ser .u na ~ de ha 'g, "cai:ne". De
todo m:xk>, existe em ~té urna expressao lingüística.para os sentimentos. aut:O
-
naros. ou eniSgeoos, que os cx:>loca .. derltro da came" de quem os tein. Assim, um
rnau. hunor sem razao - sen arrao que o 'tenha provocaó::> - é dito "residir s:inples-
mente dentro da carne" (ha,~ iwe te re ka) • Essa ncxrao de "entranharrento" na car
ne é irrportante para a ontologia do xamanisrro, ccm:>. ve.renos.
.
A natureza irasclvel dos Ma.f está obviamente associada a seu canibaliSJiO.

De todos os sentimentos oµ paixoes acima descritos, a sauda-


- inambiguamente negativos. Estas duas coisas c2
de e a tristeza sao
locai:n o sujeito (no primeiro caso, o objeto, . pois saudade é "pai-
xao" no sentido original 4a paiavra) em wn estado psico-f isiológi-
co peculiar, a leveza ou transparencia. Tristeza e saudade nos
mo-wew!!_, "fazem leves", e nos mo-k~y~ha, "fázem tran.sparentes". Se
o primeiro termo e afec~ao sé encontrani em outras psicologias TG
(ver o conceito de tristeza em Kagwahiv: "nao-pesado"; cf. Kracke,
1978:25, 280), a segunda no~ao é exclusiva dos Arawet¡. o termo
k-tyaha tem um espectro amplo de denotata: no sentido "materialºele

478
entre outros

designa o nao-espesso, o diáfano ou transparente, o amplo ou .abe_E


to; no sentido !•locativo" ele designa o exterior, o fora ("fora" é
di to: kiyaha we, "no amplo"); e no sentido "fisi·ológico" ele desig:
- 11
'
na a insonia, vigilia anorma1 ; o estado de k~gaha sugere ·assim u

(11) O únioo oognato .encontrado foi mo-ku'i-hmiJ, traduzido por "ralo"


•• > •
(f0.100
espesso), em Terrbé-Tenetehara (Bou:lin, 1978, vol.II:294).
A insOnia, estado típioo dos nelancólicos· e dos xamas (insOn.ia sen tristeza'
evidente é sinal 9e ~ xamanístlca), é ·una 1nversao da rel~ dia-ooite,
que imita a situa~ oos _nundos n1.n-terrestres - os deuses e nortos vigiarn a-
noite, pois para eles é dia. O sonambuliStD, por sua vez, é descrito caro
poihf, "estranharrento" da alma - a cons~ da e:xpressao é identica a de
heml-tio poihl, lit. "canida-feio", náusea a.linentar que leva ao v&nito, provoca
da por quebra de resguardo e p:lr assassinato. o sonani:ulisrro (noi;Or ou verbal) é.
una náusea espiritual, portanto, e envolve o aesc:olamento alma-corµ>, por noti-
.
vos variados ~ sabre ·OS scrix>s, ver adiante.

ma excorpora9ao, urna translucidez que é produzida pela saída da


alma; a idéia de leveza indica igualmente isso: a alma, como balao .
preso por cordao fino a seu lastro corporal, arrisca-se a se des-
prender e subir.
Leveza e transparencia podem ser provocadas por outros fato-·
res, notadamehte: urn forte susto~ muito sol, certas medica9oes oci
dentais. Estes, além da saudade e da tristeza, desprendem a ; do
hiPo, a alma de seu envoltório, o · corpo. A opera9ao xamanistica di
ta imone (carregar, · i.e.· carregar a alma de volta, dentro do choc!·
lho aPay) consiste em "tornar pesada" a pessoa e em "re-endurecer"
sua alma (mo-pohi, o-; mo-ati y~pe). Ela é efetuada sempre que u.in

xama, em seus passeios onlricos, vé urna alma errante no céu, ou


que o paciente se mostre magro e abúlico, deprimido. Os principais
objetos do imo'n!! sao as crian9as até os tres anos .e as mulheres ,•
nunca vi se realizar esta· opera9ao sobre um homem, ·embora se diga

, 479
araweté: os deuses canibais

que ela é feita, quando um adulto está muito magro. A magreza é si

nal palpivel de "leveza'' e·"translucidez'', e sintoma de excorpora-

9ao da alma. As crian~as perdem freqüentemente sua alma, pois esta

ainda nao está "dura" no corpo; e as mulheres, porque os deuse s-Mai'.'

cobi9am especialmente as humanas, conforme o "andro-centrismo" dos

Araweté. Já se ve aqui porque as mu l heres nao podem ser xarnas: sua

alma nao voltaria da viagem ªº céu.

~ra, se o peso e a opacidade parecem caracterizar a saúde

e assim a presen9a da alma é o que dá densidade e substancia a


pessoa, impedindo que ela se torne uro corpo sem alma, i.e. um t a 'o

we , um "ex-a' o ": um morto-vivo, urna sombra -,leveza e transparen -

cia sao estados buscados no xarnanisrno, e só os xarna.s podern-devem a

tingi-los sem perigo. O meio para isso é o tabaco ( supra, p. 346),

que nos "afina'', ''faz transparentes"e "torna leves'~. O xami é o ho-

mem capaz de controlar sua conexao alma- corpo, excorporando-se ati


-
va, nao . . t 12
passiva ou reativarnen e •

(12) Já para o.s Aché, o resguardo de urn hcmicida envolve sua enp~uma900 con a
plumagern branca do urubu, visarrlo torná-lo leve (P .Clastres, 1972:259); ccrrela
tivarnente, a pr~ Aché nesse mntexto ~ é a de perda da alma, mas a de
urna invasáo do ccrpo do matador. pela alma caníbal e inccrporal do norte.

O sentimento que nos torna pesados, densos e ende-centrados'

é a alegria, tori. A alegria nos faz esquecer (mo-raara8) a sauda-


de dos rnortos ausentes, e nos traz de volta a nós mesmos e ao pre-

sente·: é por isso que os áp1!hi - piha sempre interferem, após algu -

mas semanas de luto de uro parceiro seu, "para alegrá-lo"; é ainda

urna ap1hi a " acalmadora" privilegiada de um homicida em seu furor

hetero-induzido (pelo espirito do morto); e sao os amigos sexuais '

do morto no céu, os deuses e deusas, que o fazem esquecer dos vi-

480
entre outros

vos, "quebrando" sua tristeza (ho'ira ha'na).

A alegria está assim associada a capacidade de esquecer - uro


tema crucial na rela9ao vivos-mortos -, e a sexualidade. o sexo,se
envolve urna "incontinéncia" e urna "inconsciéncia", é igualmente p~

sitivo no fato de trazer alegria, e de caracterizar a saúde; ele


é assim ambivalente: por um lado é ' uma "coisa-a'o", que nos excor-

pora, por outro traz alegria, e nos torna pesados. Sua ambi~alen -
~ • M
cia nao deixa de replicar a da ''ra1va'', paixao excorporante e pul-
- afirmativa. E ambas caracterizam os Ma!, alegres inimigos, ca-
sao
nibais apaixonados. Por fim, se a morte produz tristeza e saudade,
a descida das almas celestes é sempre marcada pela alegria.

Esta é, em linhas gerais, a ~tica Araweté, que em sua psico-


logía das paixoes e das a9oes, da alegria e da tristeza, nao deixa
de se aproximar das formula~oes de um Spinoza. A diferen9a crucial
entre as éticas Araweté e spinozista - ambas igualmente ontologías
-, entretanto, está em seus respectivos axiomas fundantes e conclu
-
soes finais: em vez do amor intelectual a Deus, ternos o desejo se-
xual dos deuses; ern vez do Deus sive Natura, ternos um "Deus si ve
-------
Alter" ... E, se há um inegável paralelismo entre alma e corpo tam-
bérn entre os Araweté - a alegria e a tristeza sao af ec9oes corpó -
reo-espirituais -, nao deixa de haver um mais importante potencial
de divergencia entre urna e outro, que se instaura plenamente na
morte.

Para que possamos analisar com maior precisao a Pessoa, -


e

preciso recorrer a morte: ali se separam e se realizam de modo cla


ro - "transparente" - os destinos e voca9oes diferenciais dos com-
ponentes do ser humano, que a vida ern sua opacidade mistura. Se a
leveza é wn perigo constante, é porque é um desejo latente; a alma
Araweté é essencialmente leve, e anseia por subir. Os humanos, co-

481
araweté: os deuses can ibais

movimos (p. 229) sao "aqueles que irao", que nao sao entes, seres
"simplesmente existentes". A nao-presenc;:a fundadora, a impossibili
dade de urna plácida coincidéncia consigo mesma, caracterizam a
Pessoa: ela pertence ao Devir e a Morte.

2. MORTE; VÁRIASJ NENHUMA

(A) Morrer, funeral, disposi9oes

Marre-se muitas vezes na vida - e se morrerá algumas outras,


na morte. -Mant, morrer, designa todo estado de perda da conscien-
cia kaak; ha: pela embriaguez de cauim, intoxica9ao por tabaco, a-
cidente xamanlstico (quando os Maí! "derrubam" o xama) , estados de
choque produzidos por susto, doenc;:a ou ferirnento grave, e, final -
mente, a situac;:ao temporária de um homicida - que entra em mor te
e apodrecirnento até que o espirito do inirnigo rnorto o reviva. Bas-
tante apressados e melodramáticos, ' aliás, os Araweté decretarn es-
tar "morto" (-iman; ce) qualquer vitima de urna "transic;ao" corporal
violenta, que tire a pessoa de si: urna simples pancadaria conjuga!
era amplificada a tal ponto que, em minutos, do outro lado da al-
deia chegava a informac;ao de que fulano havia marrido, esquarteja-
do pela mulher. Outro caso que testemunhei foi o de urna mulher qu~

muito doente de pneumonia, teve seu estoque de roupas dividido cho


rosarnente entre as irrnas, pois estava morta. Quando ficou boa,teve
bastante trabalho para recuperar suas coisas.
Isso nao significa que eles se apressem a enterrar os que
assim estao"mortos", por suposto; uma das características princi -
pais dos humanos é que "nao marremos de verdade" - nem mesmo quan-

482
entre outros

~o marremos de verdade. A marte real é apenas um caso mais violen-


to, de certo ponto de vista, dentro das muitas martes e ressurrei-
9oes a que uma pessoa se submete e submeterá. De certo ponto de vis
' a morte é coisa séria, e os li-
ta: o do morto; pois para os vivos
mites do discurso sao estreitos aqui, nesse face-a-face com o ReaL
Por sua vez,usam-se vários eufemismos e torneios estilísti -
cos para mencionar a marte propriamente dita: iai rima, "ele se can
sou" (invertendo o nosso "descansar", como já o faziarn no caso da
"leveza"); ikqñi, "~le se perdeu" ou "desapareceu"; e os inevitá -
veis "foi-se juntar aos deuses", "foi para junto de seu t ori pa" ,
ou foi para o "lugar da boa existéncia'' (teka kati we, o equivalen
te ao no?SO "desta para melhor") - o céu.

O momento preciso da morte f Isica está associado a perda ou


"ida" dos batimentos cardíacos (ipa-ipa me'!> e da respira9ao (pi-
towo), ambos sinais da presen9a da (ou a própria) ;, alma-princí -
pie vital. A morte sobrevém quando o xama nao consegue mais manter
os Maf a distancia, eles que baixaram a terra em seu veículo
(algo como canoa, mas de algodao) para buscar o doente; quando, i-
gualmente, o xama nao consegue mais manter estanque o envelope cor
poral (hakapeti, tapar), e a alma se lhe escapa.

Os Araweté nao gostam de se aproximar muito de um ago nizant~

pois temem ser atingidos por alguma doen~a ha'iwa ha. um cadáver '
ou morto é coisa-a'o, e sua vista é vedada aos "donas de crian9a 11
,

especialmente as jovens maes. SÓ os parentes muito próximos, e es-


pecialmente o conjuge, é que em sua dar se abra9am ªº agonizante ,
chorando. Após caracterizada a marte, as manifesta9oes de pesar
sao notavelmente discretas, limitando-se a um choro curto e baixo
por parte do conjuge, dos irmaos e dos ap!hi-pi.ha do morto. A al-
deia inteira se reúne, em silencio, no pátio da casa atingida pela

483
araweté: os deuses canibais

morte, a uma distancia prudente - "assim como fazemos quando os


deuses vem comer" -, e contempla imóvel a prepara9ao do cadáver pe
los irmaos e o conjuge. Apesar da evidente consterna9ao, tudo se
passa como se todos se -esfor9assem por sublinhar a pouca importan-
cia da morte. Trocam-se frases, fala-se para um ouvinte genérico ,
naquele mesmo tom estranhamente neutro, arrastado e impessoal com
que se repetem as palavras do canto xamanistico (o M~l moyita, cf.
p. 326) , frases como: "awa pa ,;man; ne te?" - "quem disse que se
morre de verdade?"; "ele apenas foi levado pelo~ Mal; lego vai-se
casar lá no céu, e nossos xamas trá-lo-ao aqui de volta, para o so
lo em que pisou, onde comerá conosco, brilhando como os deuses ... "
O "solo em que pisei" - he pirañ~ - é o modo como os mortos celestes
designam a terra, na voz dos xamas.

o corpo é levado ao pátio de sua casa, onde fica em exposi-


9ao por algumas horas, em posi9ao sentada, apoiado contra o dorso
de seu conjuge. Entao, é entregue a uma parenta, para ser untado
de urucum, ter os cabelos emplumados, e os brincos postas. Essa ta
. refa cabe as mulheres, irmas do morto(a) ou de seu conjuge, ou -
a
mae, se se trata de crian9a. Ela dá o direito a herdar algumas pos
ses do f alecido - que entretanto sao distribuidas de modo assiste-
mático, conforme os caprichos do viúvo(a) ou irmaos; muita gente ,
mais tarde, pedirá pequenos objetos do morto, "para lembrar-se de-
le". Nunca se veste urna morta com .suas melhores roupas, que passam
as suas irmas ou filhas - afora a cinta íntima, que essa, uma vez
usada, nao o pode ser por mais ninguém.

Pronto, o corpo é envolvido em,uma rede velha, e car regado


rapidamente ao local do enterramento, pelos parentes masculinos ,
no estilo twehe - as duas pontas unidas da rede se apóiam na parte
frontal da cabe9a do carregador, e o fardo é levado as costas: as-

484
entre outros

sim se carrega milho, ca9a abatida, e cri-an9as já grandes -; "car-

regamos nossos mortos como nossos filhos", dizem os homens. Ideal-

mente, quem carrega e enterra u~ hornero sao seus irmaos (ani); uma

mulher, seu marido, ou pai, se solteira. O homem que ~arrega e se

pulta seu irmao pode afirmar, por esse ge~to, seu direito a suce

de-lo junto a viúva - disso há exemplos no passado. ~(Ver o parale

lo Tupinambá: sucessao leviral só após vingan9a; Thevet 1953:107).

As crian9as pequenas, ainda sem nome, sao enterradas dentro

de casa ou próximo a ela; aquelas já um pouco maiores o sao na ca-

poeira próxima, junto aos fundos da casa paterna. Os adultos sao

enterrados longe, a pelo menos 500 metros da aldeia, ao longo de

trilhas de ca9a que serao abandonadas. Se a morte de urna crian9a

pequena provoca pouca como9ao, seu enterro pode congregar muita

gente; 'já o séquito de um enterramento de adulto é muito pequeno .

Ao sepultamento de ~war~-hi só foram os casais adultos de sua se-


-
9ao irnediata (casas 3, 5, 39 - ela morava na casa 38) ·: seu marido,

que a carregou, u.m irmao e uma irma dele, uma irma dela e seu mari

do; um "irmao" da morta casado com urna "irma" do marido, e o c asal

ap~hi-piha de Awar~-hi e seu marido, vieram de outras se9oes. De


modo geral, o mínimo de gente se envolve com todo o acontecimento;

e foi comum, corno vim a saber, que se pedisse aos funcionários da

FUNAI que tornassem algumas providencias principais - abrir a cova,

carregar .º corpo -, por ocasiao de rnortes ocorridas de 1978 para


13
cá • Crian9as e solteiros evitam enterros: "ha'iwa ha".

(13) Una sirigular paralisia tana a:mta ae todos quaOOo alguém rrorre, caso forte
da "inércia" que já nencionei. Qu.aOOo da norte de Kawawa-yo-kañi, urna nenina de
e neio, sua
arx:> me
a levai para o pátio, e ali fioou, a::::m el.a no cx:>lo, por cer
ca de duas ooras, ch::>rarrlo ocasicnalnente; a sua volt.a sen~se, nao muito
perto, várias mulheres da aldeia, ronversando. Os pouros l'x:m:!ns observavarn de
longe. o pai sentava-se desconsoladq a porta .da casa, e os iIIt0os maiores (na

485
araweté : os deuses canibais

faixa dos sete-dez anos) ficavam dentro de casa, a::rn ar ausente. Passado algum
tenl;X), a mae pediu frac.amente que se 1he trouxesse urucum, e pediu ao narido '
que abrisse urna C0\7a oos :fuOOos da casa. O marido passal vários minutos sen dar
sinal de resposta; em seguida, pediu a um dos f illx:>s que buscasse urna pá, e uru
curn. o meni.rx> fingiu nao ter ouvido; neia oora mais tarde, una das filhas trou-
xe timidanente uma bola de urucum, e o pai se decidiu a cavar o túnul.o.
Ceno também na norte de Awar~-hi, pedirartt-1T1e que fosse buscar urna pá. a:rto
ne recusasse - fingindo .nao ter entendido-, levou ma.is ae urna oora até que um
dos irmOOs do narido fosse ao PQsto pedir o instrumento. Tal inércia, e a trans
fereocia de decis0es para a FUNAI Cem deis ou tres casos quan det:el::mi.oou o lo-
cal de enterro foi um branco), é rruito semelhante aqmlo que Wagley & Galvao ·
(1961:175) descrevem para os Tenetehara, e parece deperrler tanto de um rredo da
norte (do norto) quanto de urna inércia ma.is profuma, una evitac¡:ao de aparecer,
c:c:me;-ar, fazer qualquer coisa. Erx:arregar um estran:Jeiro., um i.nimigo, das deci
s0es é ainda perfeitanente inteliglvel: o norto-cadáver é já um outro, um inimi
go, natriz do espectro ta'o we; nada ma.is justo que os in:imigos se encarreguan'
dele. Ass:im, entre os parentes DI.lito próx.inos .e os est:rangeiros-brancos,. abre -
-se urna fenda de nOO-participantes, ~ distantes que nao se mexem fa
ce ao enterro. A norte é assunto da ~ imediata e do Pesto; a aldei a se e-
clipsa.

-
Abrem-se covas circulares (quando nao se aproveita o buraco
deixado por uma árvore qué tombou ou apodreceu); elas sao forradas
com esteiras de baba9u (ttpe) velhas; o cadáver, dentro da rede, é
acomodado deitado, de lado, coro as pernas fletidas, um dos bra9os
sob a cabe9a, o outro cruzado sobre o peito - esta é a posic;ao em
que os Araweté se deitam, no chao. Seu rosto deve ficar virado pa-
ra o poente, pois o caminho de subida da alma até o céu se estende
a W; a parte isso, o la9o sobre que o morto repousa - i.e. a dire-
c;ao de seu corpo - é indiferente. Sobre o corpo se poe outra estei
ra, ou pano velho, e entao se o cobre de . terra; as covas sao um
tanto rasas, com . no máximo um metro de profundidade.
Os mortos sao enterrados com alguns objetos - um espelho, um
facao, pe~as de roupa, pentes, que lhe poderao servir no Além. O

486
entre outros

resto de suas posses, como referi, é apropriado por parentes e ami


gos. Sobre a sepultura é acesa urna pequena fogueira, a que se atri
bui duas func¡:oes: afastar os quatis, animais necrófagos e alimento
' 14
predileto dos Añi, e iluminar o escuro caminho para o céu .

(14) A associa9ao dos quatis a:::m os nortos se acha entre os Aché, oooe estes
animais sao os res¡:onSáveis pela elevac¡:oo da alma ove até o céu, e sao ditos s~
ren eles mesnos ove (P.Clastres, 1972:163; cf. supra, nota 4; en M;liá et al.
1973:91 esta f~ao é atrlliÜda ao tamanduá). Para os surui o quati é também um
animal funéreo (Laraia, i.nf.pessoal), e o "dente de quati" (kLJatihosa) é um ~
trumento mági co do xama Akuáwa, dotado da forc¡:a-''mana" kaZ'owara (Arrlrade,1984a,
b). o quati é um procionideO (Nasua socialis)cnto o jupará, que, cx:no já referi
nos , é associado aos nortos e ao rro.mdo subterraneo para os Wayápi e Kaap:>r - p.
198, nota 12.

Quarido o morto e um "dono de crianc;:a", pai (e especialmente'


mae) de f ilho pequeno, nao se cobre o túmulo com terra, mas se o
f e cha com urna armac¡:ao 'de varas unidas, a modo de um jirau (e com o
mesmo neme: u~ra> . Diz-se que a terra pesaria sobre o peito do f i-
-
lho do morto. Tal armac¡:ao e chamada de "moquém dos -- .... ,,
A ni. (Añi
- -
mo- ka' e ha ) - pois es ses espirites se reunem a sua vol ta, para de-
vorar o cadáver: os Añi sao me' e h eh i a re, "comedores de assado".
Já se abre aqui urn sistema complexo de inversoes. O " moquém
dos 1ñi" é um anti-moquém·, onde a carne está embaixo do jirau, e o
f a go em cima; e ela está podre, nao assada. Urna inversao derrisó
ria do sistema humano. Por sua vez, o epíteto "comedores de assa -
do " é uro correspondente nao menos paradoxal do "comedores de cru "
com que se designamos Maf, que cornero as almas celestes cozidas, e
depois as ressuscitam para que se tornero incorruptiveis. O assado
conota o modo de vida selvático dos 1ñl, o cozido o modo aldeao
do s deuses. A oposic¡:ao que se poe é:
Podre/ "assado": Cozido/ "cru" :: 1ñi: Mal .

487
araweté: os deuses canibais

Urna figura em quiasma, onde o "assado" dos Aii-i se contrapee


ao· ·modo coz.i do dos Mat ,· e o estado podre da carne a "crueza" do ca
nibalismo div.ino. E valeria a pena contrapar esse "enterro em mo-
quém" dos Araweté aos célebres enterros em "urnas" - iga9abas, pa-
nelas de cauim - dos Tupin~bá (Cardim, 1978:111, Soares de Souza,
1971:328; Thevet, 1953: 97;. J~Monteiro
-in HCJB VIII:416; Carvalho
1983; César,1972). Mais ainda,podemos ver nesse enterro em moquém
urn mitema ligado ao do fogao de p~drá subterraneo Je (" four-de-
-terre''), que Levi-Strauss vai elaborar exatamente no contexto de
urna oposi9ao múltipla Je/Bororo/Tupi, que envolve o canibalismo, a
cerámica, o movimento exógeno agressivo dos TG, versus ~ forno sub
terráneo, seu simbolismo funerário e urna mitología da solidarieda-
de endógena MB/ZS Je (1971:548-551) - e o . lugar interrnediário dos
Bororo. t ali tamb~m que o autor, retornando o que deduzir.a antes
(1966:152), mostra como, dentro de seu molde· dual, Natureza/Cultu-
ra, os Je e os Tupi agregam os valores culinários diferentemente:
Je: N (podre + cru) //e (cozido) ~

Tupi: N (podre) //e (cr~ + cozido)

Sistema sobre o qual teremos muito a dizer, mas que se con -


firma em primeira instancia na . equa~ao estabelecida acima a partir
do "rnoquém dos Añ-i", onde o modo mais natural de prepara~ao da car
ne, em que ela fica próxima do cru, está ligado por urna "semi-in -
versao" ao podre, modo natural de transforma9ao da carne - isso pa
ra os 1ñl, seres mal-cheirosos e bárbaros; onde a natureza ''crua ''
dos deuses se vincula ao modo mais cultural de transforrna9ao-prep~

ra9ao da carne, o cozido - i.sso para os Mal, seres perfumados e ca


t

15
noros •

(15) Os Araweté afit'mavarn que o enterro sob oobertura de varas é a fonna -


pro-
pria e tradicional de sepult.anento, e que hoje en dia só se a faz para doIX>S

488
entre outros

de film (a:no era o caso de Awara-hi).


Através das nulheres raptadas pelos Kayapó, que retornaram, os Ara\oleté co-
nhecem o oozimento subterraneo, mas nao o praticam - "isso é a:>isa de .Añ-i", me
disse um, quando eu cx:mentei tal método.

A marte de Awara-hi, por ser ela "dona de filho .. , exigiu urna


interven9ao xamanística. Em _seu caminho para a sepultura, seu cor-
po foi seguido por um f ilho maior que carregava Awara, sua filhi -
nha de um ano, até a saída da aldeia. Ali, o xama Y~riñato-ro exe-
cutou o Awar~ mo't, a "separa9ao de Awara" (diz-se mo't para o ato
de quebrar urna espiga, um galho, colher urna fruta), que visava im-
pedir que a menina seguisse sua mae na marte. A técnica era a mes-
ma das opera9oes de fechamento do corpo: batimento do chocalho,sem
-
can9ao; mas os movirnentos do aray, cortando de cima para baixo o
espa90 entre a menina e o corpo da rnae, evocavam inequívocamente a
ruptura de um liarne invisivel - "por causa do leite", explicararn-
-me 16 •

(16) Cf.- o mo-a'o causado pela arnamenta9ao, supra, p. 448 oota 94. TOO lago
o a:>rµ:> de Awara-hi foi exp:::>sto oo pátio, sua filhinha ~u a chorar muito ,
oos bra<jl)s da Uina. de seu pai. Entao, es~ trouxe Awara até o seio da defunta,e
fez can que mamasse - "para acalmá-la", foi ttrlo que detx>iS consegui a guisa de
explicac¡:OO.

-
Alguns meses depois do sepultamento, as cavas sao abertas p~

ra inspe9ao: "para ver o cranio" - ou seja, assegurar-se da desapa


ri9ao das partes moles do cadáver. As sepulturas de "danos de
f ilho" tem sua cobertura destampada mais rapidamente; como me
explicararn, mesmo o sistema de jirau pesa sobre o peito da crian9a
No caso particular de Awar~-hi, foi-me aduzido que, como e hovera
muito na¡ semanas seguintes a sua morte (o que nao era cosmologica
mente fortuito), o corpo se desfizera logo. Assim, fui convidado a

489
araweté: os deuses canibais

assistir, em julho de 1982 (o enterro fora ern . mar~o), a urna inspe-


9ao periódica da sepultura, que fora aberta pelo marido da faleci-
da em maio, durante urna ausencia minha da aldeia.. O casal com quem
fui (o hornero era um "irmao" de Awara-hi-rern~) passou um bom tempo
a remexer a ossada com urna vareta, procurando sinais de predadore~

verificando a limpeza dos ossos, e meditando em voz alta, sobre os


despojos: "eis aqui o hiro pe ("ex-matriz") de TatoawI,. Morekati,
Awara ... ", enquanto apontava os ossos da bacia, lernbrando assim
donde sairam aquelas cr ianc;as. Ta is inspe9oes sao, . a·té ·certo pon-
to, fruto de urna curiosidade mesclada de saudade, bem como urna foE
rna de se garantir que as carnes se foram¡ mas elas sao perigosas ,
no caso de mortos assim recentes, e crian9as pequenas, "donas de
17
f ilho", menstruadas e doentes nao as rea'lizam •

(17) A idéia da chuva que, passa?rl:> por entre as varas do "rroquán dos AFii", ace
lerou a dea::rrposi<;ao do oorpo, sugere que o sistema Araweté do jirau, a ser ~
reo a forma "própria" de enterro, é um carprcmisso entre os sistemas de exposi -
9ao de cadáver s00re jiraus, que encontrarros em alguns .
grupos TG (Holmberg .
,
1969:232) e albures, e o sistema de apc:xirec.irrento induzido por umidifica<rao, do
tiµ:> Boro.ro. Por sua vez, a rnetorúmi.a ''ver o cráni.o" (dac1:-ñ'e reca) nos remete -
ria a tradicional quebra do cráni.o dos inimigos 'l\lpinambá - i.e. daqueles que,
nao poderx3o ter a ca:beya quebrada erxjllélllto vivos, eram desenterrados para isso-
- e d:>s rcortos Aché, onde essa operac;ao ·liberava definitivarrente a alma ianve
' . -
de sua sede c:raniana; isso era feito após a decn1{X)si~ das carnes (P .Clastres,
1972:300).

Como passar do tempo, porém, as covas abertas, que assim


permanecem, sao tratadas com indiferen9a, corno os restos do esque-
leto - nao se os teme nern protege. U~a ro9a queimada ern novembro '
de 1982 tinha em seu centro a cova aberta de um homem morto havia
cinco anos; os filhos dos titulares da planta9ao brincavam livrerne~

te ali, após terem perdido a curiosidade em rela9ao a ossada.

490
entre outros

Mas o período que se segue a morte de um adulto é extremamen


te perigoso. Urna morte provoca a !mediata fuga (~ya ~he) e disper-
sao da aldeia na mata, de onde só4 se retorna após pelo menos um
mes - fica-se no mato "até o ex-corpo acabar" (hi'ro pe pa d-f!.d!) •

Conforme ji mencione~ (pps. 171-2, supra), diz-se que, antigament~

urna aldeia era definitivamente abandonada quando urna morte ali so


·breviesse, o que me parece pouco verossirnil. O certo é que a dis-
persao temporária na mata vigora ainda hoje. E a trilha que leva a
sepultura é evitada por muito tempo; ela passa a ser chamada de
"caminho de X-reme" (nome do finado). Ao contrário da imensa maio-
ria dos Tupi-Guarani, os Araweté nunca enterraram os mortos dentro
de sua casa, mas sempre na mata - mesmo quando se abandonava defi-
nitivamente a aldeia (a exce~ao sao as crian9as - cujo espectro
terrestre é inexistente ou insignificante). Por sua vez, só os Ara
weté nomeiam suas aldeias conforme os mortos que lá morreram.
Tal dispersao e abandono da aldeia, o medo (c ide) que se aba
te violentamente sobre todos, após o enterro e especialmente a noi
te 18 , contrastam de modo visível com a ostensiva "profissao de in-

(18) Na norte de Awara-hi a aldeia, p::>r muito doente e a instancias do chefe do


Posta, ~ se dispersou; em troca, por um res nao se vi.u ninguém 005 pátios a
ooite - lá pelas oito roras todos já estavam fortemente tranc.aOOs, e em si
lencto sepulcral.

diferen9a" por ocasiao do momento da marte e de exposi9ao do cadá-


ver. Se ali se procurava marcar o caráter "ilusório" e nao-essen -
cial da morte, lembrando a futura vida celeste do morto, tao logo
o cadáver sai de cena a indiferen9a dá lugar a um mal-contido pani
co, e a inércia a pressa. Quando retornei do enterro de Awar~-hi ,
nao se via vivalma fara de casa. E durante vários días os síntomas

491
araweté : os deuses canibais

da gripe se duplicaram de urna melancolia profunda - muitas eram as


pessoas que diziam estar morrendo, "como Awara-hi" e "por causa de
Awara-hi".
A fuga da aldeia é explícitamente comparada a dispersao pro-
vocada pelo assalto de inimigos (a'wi pak~ me) e pela chegada do e!
pirito canibal Iaracl. Foge-se aqui do ta-o we, o duplo do cadáve~

espectro maligno que vaga nas cercanias da sepultura e na aldeia a


noite, que apedreja os viventes, agarra-os com suas maos geladas ,
paralisa-os de pavor - e com isso, com esse susto mortal, transfor
ma os viventes a sua imagem e semelhan9a: a manifesta9ao do ta'owe
~o-a'o we~quem a presenci~: transforma o vivente em outro corpo
sem alma, ex-a'o.

Durante esse mesmo tempo em que dura a dispersao, cessam por


completo os cantos xamanlsticos, e o sexo. Os deuses-Mar "fecharn
o k-trep~" ' o caminho oriental em que trafegam xamas' deuses e al-
mas divinizadas - como se vasos comunicantes, a via ocidental de
subida dos mortos nao pode estar operando ao mesmo tempo que o ca-
minho dos deuses. A razao para isso, diz-se, é que os Maf estao fu
riosos (ñara, de'e) coro o morto, e por extensao coro os humanos em
geral. O xama que tentar subir aos céus será recha9ado ou devorado.
A atividade sexual, por sua vez, é banida como se urna super-doen9a
irmanasse o morto a todos os sobreviventes (contrastar com a indi-
feren9a dos nao-aparentados, por ocasiao da morte e enterro), -
so
queªº contrário: o sexo aqui mataria os saos, pelo ha'iwa. Por
fim, se os deuses se fecharn, os lñ?, nos acampamentos da mata, se
mostrarn assanhados; os xamas lutam' toda noite para enfrentá-los e
abate-los a pauladas.

Urna morte é urna catástrofe cósmica, que desorganiza o apare-


-
lho do mundo, invertendo tuda: os humanos vao para o mato, o cami-

492
entre outros

nho de descida dos deuses se fecha, os Añi' se multiplicam, e . um


ex-semelhante - o morto - se torna um inimigo perigoso, invadindo
a aldeia.
E no entanto, sem a morte a ordem cósmica tampouco teria ra-
zao de ser. Há deuses porque há mortos, há mortos porque há deuses
- e por ambos, há viventes.

Nao existem marca~oes vislveis de luto, nem determina9óes de


parentesco ou alian~a que impliquem gestos rituais, presta~oes ce-
rimoniais, ou qualquer coisa do género. Também nao se pode falar
em término formal do luto; o que há é um apagamento paulatino da
tristeza. Um enlutado, ou triste (nao há termo para "luto" e cone-
xos), nao se pinta, canta ou tem rela~oes sexuais. _Aes poucos re-
toma tudo isso. No caso de um(a) viúvo(a), é um novo casamento, e
especialmente sua vinculacrao ao sistema ap!_hi-piha, que "quebra a
tristeza" definitivamente.

Nao obstante, há de haver sinais. Quando os xamas come~am a


"fazer cantar" (mo-ñi'ña) o espirito celeste do morto, é que ele já
está instalado em seu estatuto divino; sinal de que sua raiva pas-
sou, e de que o ta'o we terrestre se foi. As "segundas exéquias" -
segundas mortes - se realizaram, no céu e na mata. Processo impre-
cisamente definido - no estilo Araweté, que repugna cortes níti -
dos no fluxo das coisas -, a consolida9áo da alma celeste e a dis-
solu9ao do espectro terrestre sao fenomenos progressivos, parcial-
mente superpostos e discretamente continuos. Nao basta um xama can
tar pela primeira vez o morto, ou· as familias retornarem a aldeia,
copsiderando que o t~'o we se foi, para que o equilibrio seja auto

maticamente recuperado. O tempo mais que o rito cicatriza o vazio.


Já mencionei, no capitulo I, a insistencia dos mortos no dis
curso cotidiano Araweté. Eles sao lembrados por muito tempo, e a

493
arawet4: os deuses can.ibais

todo propósito. Anos depois, as vezes, um irmao, um pai, urna _esp2


sa do morto se lembra dele repentinamente - um sonho, um gesto, as
palavras de um xama, nada talvez. Ouve-se entao um choro sentido ,
baixo e continuo, vindo de dentro de urna casa, e a repeti9ao la-
mentosa do neme do ente querido. Outras vezes, no auge da alegria
de urna festa de cauim, um hornero explode em heti, gritando e chaman
do pelo filho morto. ~ dificil esquecer os mortos - pois só os mor
tos esquecem.

(B) Só os ossos esquecem: desintegrayao e síntese

da pessoa

"Em úttima anáZise, a morte como fe-


-
nomeno sociaL consiste em um dupLo e
penoso trabaLho de desagrega~ao e
sintese mentais; somente quando esse
trabal,ho se completa é que a socieda
de, reconciliada consigo mesma, pode
triunfar sobre a morte".
(R. Hertz)

A marte dispersa: a sociedade - que abandona a aldeia - e a


pessoa - que se fragmenta. fman; t!!t!l b!de i:waw'3._ka:"assim que mar-
remos, a pessoa se divide" 19 • Corpo(s}, alma(s}, sornbra(s), explo-

(19) O verlx> -waz.>a, possivelmente urna duplica~ iterativa de -wa, "partir",


significa dispersao, (bi)furcacrao, divisá:>, ramifica~. o sufixo -ka é um fac-
titivo-causativo. fwawaka se diz, ¡x::>r exenplo, de urna rede hidrográfica, e ó:>
esgalhamento de urna ázvore-tronro.

dem em dire~oes diversas e divergentes, e sao submetidos a proces-


sos múltiplos, novas mortes e novas sinteses. A figura que rege es
sas transforma9oes é um nao menos múltiplo e generalizado caniba -

494
entre outros

lismo. Se nao se pode dizer que .os Araweté - como fazem os Yano-
rnami (Lizot, 1976: 9) - considerem toda rnorte· corno urn ato cahibal ,
toda morte entretanto desencadeia urna série de atos canibais.
Ern linhas gerais, a repre~enta<rao Araweté da mor te e da pes·-
soa segue de perta o canon hertziano (Hertz, 1928), especialmente'
-
na conexao entre os estados do carpo, da alma e da sociedadei e na
situac;ao ambigua ou precária da alma até que processos naturais e
sociais re-sintetizem o que foi desagregado com ~ morte. No entan-
to, se as idéias Araweté sao distintas, seus conceitos sao obscu -
ros, e, por poucos, obrigados a uma polissemia que os torna de di-
ficil tradu~ao. Com este caveat, de que o uso de termos corno "cor-
po", "alma", "sombra", "principio vital", etc. é absolutamente irn-
próprio, tentemos analisar a, análise da Pessoa que a marte executa.
A morte Araweté decompoe a pes.s oa em tres elementos: o cadá
ver; o espectro (t~'o we) terrestre; o espirito celeste, Mai piha

ni ("o que estari coma Divindade"). As rela~oes que articulam es


sa tríade sao complexas, corno complexa é sua rela~ao corn a pessoa
do vivente.

O cadáver - te 'o me'!, "coisa morta", he te pe, "ex-corpo" ,


hiro pe, "ex-continente" - apodrece. Nosso carpo (het!), ou rnelho~

a parte de nossa pessoa que se transforma em cadáver, é designada'


como itoyo me'e rl, "o que apodrecerá"
2
º.
Nem por isso, contudo
'
(20) No~se desde já que todo o universo semántioo da norte e da escatología '
usa ab.mdanternente marcac'bres ranina.is de tan¡;:o: pe ou u>e, pretéritos, e ñ
(nl), futuro, sufixaOOs as raízes. 'Ibdas as línguas 'ffi apresentam urn elevado de
senvolvimento dessa forma de oonstl:'U9ao oonceitual, que "abriga" a urna focaliz~
~ sobre a relac;ao entre o estado puro, próprio ou presente de urn oonceito-le-
xema, e sua efetua~ temporal, i.e. nacrpresente. Os sufi..>a:>s de "pretérito"mar
carn freqüentemente estados de separa@ (real ou lÓgica: as partes do oor¡x>, p.
ex., receben estes sufixos quando pensadas fara de seu todo); o sufi.xo de "futu
ro" marca por sua vez novimentos de intencional.idade e p;?tencialidade.

495
araweté : os deuses canibais

A raiz verbal -togo indica o apodrec.im:mtó, ~to 'di é mais propriamente


o cheiro de podre. CUriosanente, F .Grenarrl (1980: 70} dá o oognato Wayapi -tugu
cerro significaroo "cozido". Nao se acha em Araweté a raiz pub, para apodrecer .

deixa de ser devorado; o apodrecimento é urn consumo canibal do cor


po - carne e ossos - pelos Añl e pela Iwi 11ari, a "Avó Terra". Ou
melhor: o apodrecimento é o sinal visível de um canibalismo xama -
nistico (tpey! ha iw!, "mediante a coisa xamanica") realizado pe-
los espirites mencionados. Os Añl moqueiam, e a Iwi yari cozi-
nha o cadáver. Se aprofundarmos o assunto, os Araweté dirao que e~

ses espirites comem a "imagern" (l) do dorpo morto, e que quem come
(o) materialmente o cadáver é a terra tout court. As entranhas da
terra, ou como diriam os Araweté, a "carne da terra" (iwi ra'a), é
- -
que come a carne do morto. Carne da terra significa aqui a materia
lidade física, bruta,· da terra, enquanto distinta dos espirites, o
eponimo (Avó Terra} e os Añl. Estas distin9oes sao semelhantes --
a
quela vigente nas refei9oes divinas de alimentos consumidos depois
pelos humanos: · os Ma! cornero xamanisticamente a l dos alimentos,sua
"imagem", enquanto os humanos cornero a "carne" (ha'a pe). Isto nao
significa qualquer insubstancialidade ou "simbolismo" das refei-
9oes dos deuses e espirites. A no9ao de tpeu! ha iwe permite justa
mente que a i das coisas contenha sua essencia: sacramento, -
nao
tropo; metamorfose, nao metáfora - transubstancia9ao, como todo
-1·ice compreend era
cato -21 •

(21) Ver Bateson, 1972:33-37, un de seus "rcetálogos" a propósito da representa-


<rao, que explora a diferenrra entre metáfora e sacranento a partir da arte.

o cadáver e seu apodrecimento sao assirn o ponto de apoio de


um processo de transubstancia9ao caníbal. Os lñi e a Iwi yari, se
nao sao denominados "comedores de podre" - como os urubus -, visto

496
entre outros

-
que moqueiarn ou cozinham a carne, sao entretanto "comedores de coi
sa (achada) morta", me'e tman; áe a re, um modo impróprio de consu
/

mo alimentar: vimos (p. 468) que comer animais mortos produz tontu
~

ras e desmaios, forma atenuada de morte. Sao portante necrófagos ,


modo desprezível de obten~ao de substancia, que se opoe a nobreza
do ca9ador, que mata o que come - como fazem os Mal.

Outro circunlóquio _para designar 'o corpo físico de bfd!, a


pessoa, é iwi pip! ha nl~ "o que irá para dentro da terra''. Esta
expressao se liga a várias outras: pipe é urn locativo que cono ta
interioridade. He pipe significa tanto "minha casa" quanto ''meu tG
mulo". E iwi pip! ha designa os seres terrestres, em oposi9ao aos
pássaros e aos habitantes dos mundos celestes. Os humanos sao, em
geral, iwi pipe ha, mas o sao plenamente quando mortos. Corn a mor-
te, blde iwe!fere, "a pessoa se divide ao meio": urna parteé "da
terra" (iwi apa) e irá para dentro dela; outra é "celeste"(iwa ha).
Os viventes, assim, estao entre a terra e o céu, entre os limites
inferior e superior, ou avessos, dessa fina membrana que é o solo,
o suporte dos humanos: as entranhas da terra e o "avesso do céu" ,
i.e. o mundo celeste dos deuses (iwa haipi ti).

O periodo de apodrecimento do cadáver é perigoso. Ele corres


pende ªº tempo de dispersao da aldeia na mata, e a vigencia do
ta'o we, o espectro que erra na terra enquanto seu corpo apodrece
dentro dela. Algurnas pessoas afirmam que o ta 'o we .. ergue-se" (tpo-i,
verbo de conota9ao agressiva - supra, p. 298) na hora e no local
da morte; outras, que ele se ergue propriamente na sepultura. o
ta'o we é urn corpo - um hiro , continente-envoltório -, dotado de
materialidade e forma humana. Ele é designado como het! pe,"ex-cor
po", ou bfde pe~ ex-pessoa. A no9ao ·ae hiro opoe-se, nesse contex-
to, a de ? enquanto sombra, imagem incorporal, representa~ao. Se

497
araweté : os deuses canibais

o ta'o we é uma representa9ao da pessoa rnorta, é contudo urna. repr!:


senta9ao livre, dotada de urn mínimo de . ser .que lhe· é próprio: o
ta'o we é um duplo do cadáver, efetua9ao do princípio-Morte que
22
consorne o. corpo · •

(22) Ver, para o oonceito de duplo, Vernant:


"lln duplo é coisa totalnente diversa de urna imagen. Ele nao e urn
objeto 'nat:ural', mas tanpouco é ~ produto rrental: nen urna imita
. .
yao de urn objeto real, nen urna ilusa:, do espirito, nern urna cria -
c;:ao do pensarrento. o duplo é urna reaTidade exterior ao sujeito I ,
mas que, em sua própria aparencia, se op0e ¡x>r seu caráter insóli
to .•• a cena ordinária da vida. Ele atua sirnu.lt.aneanv;mte en dois
plaIX>s contrastados: oo narento em que se Jl'Ostra presente, ele se
revela cx:rtO nao estarrlo aqui, cx:rtO pertenóendo a um inacessível a
lhures" (1965, I: 70).
O duplo é, a:m:> o define Vernant, urna "figur~ do invi.s ível", que ro caso
do ta'o we é a propria M:>rte, ou auséncia da pessoa. A definicrao do ta'o we co-
Jl'O hirq_, cartxrreal, quer marcar exatairiente o fato de sua existéncia autfux:ma ,
n8o-imaginária, i.e. uma "realidade .exterior ao Sl:ljeito", a:m:> diz Vernant. O
ta'o we nao é cxntudo urn duplo dél Pessoa, mas do ~: do Jl'Orto eIXIUanto Jl'Of
to, eIXI\)allto n00-vivo OU nacrpresente. carnei.ro da CUnha (1978), USaOOo a ocx;ao
de Vernant, evidenciou a::m clareza o caráter de "duplo" do mekarO' Tirrbira. ·

O ta'o we é urn carpo, rnais que tem um corpo: puro ern-si, cor
p~ reduzido afinal a condi9ao de objeto ~em sujeito. t um corpo
. ••vazio", o envol·tÓrio de urna sombra. o ta' o we é .geraQ.o a partir
qa l do vivente, sua sombra. A sombra ótica do carpo, i, é designa
da cornp ta'o we rol, "o que será t~'o we". Objeto paradoxal, o ta'o
we .é wn "corpo" gerado por urna "sombra", urn hiro liberado por urna
l: sombra materializada, ele é o inverso radical do vivente, onde
é o corpo que projeta urna sombra que lhe é servil; o ta'o we é urna

sombra livre, projetada por um cadáver irnóvel.


Após se erguer - e o vento, o voo de certos pássaros (espe -
cialrnente os bandos de rnaitacas, ara'!) sao índices desse rnovirnen-

498
entre outros

to-, o t a'o we corne9a a vagar pela mata, nas cercanías da sepult~

ra, e, a noite, na aldeia. Ele costurna tarnbérn tentar s e guir os pa~

sos . dos aldeoes ern fuga~ Os espectros de xarnas falecidos tern. a pe-
culiaridade de cantarero: nao obstante, esse canto é sernpre urna re-
peti9ao de cantos que o xarna houvera cantado quando vivo, nunca
urna rnanifesta~ao nova de cornunica9ao cornos Mal. Afora . estes caso~

todos os dernais ta'o we ernitem um som característico, r ouco e sin-


copado: "h o-ho- ho -ho". Os ta' o we tém as rnaos geiadas, seu toque é
arre piante, os o lhos esbugalhados e a · testa · a rnostra
. .
(ao contrário
. 23
dos viventes, que sempre cuidam que a franja lhes cubra a testa) .

(23) o tema da exi;:osi9ao da testa = norte rerorre em outros contextos. Os Añ-i


t.aniJán tero
tal característica, e os Kayapó, e os mata&::>res de in:imigo, cujo ca-
belo da franja cai. Os Araweté. acharn feio e>q;:x:>r a testa: . hi:wa- oho,
- "cara. gran -
de", é cx::rro ~os brancos,· os Añ-i, os Kayapó, e 0s deuses da ra9a Ara ru:urri
(sq>ra: 238; cf. Card.1.m,1978: 106, o penteack> a "S.Thané" dos 'l\Jpinarrbá) .

Eles aparecem ine s p~radamen.te aes . vivos, jogam-lhes pedras e paus,


agarr~m~nos. Um ta'o we nao é, em si, um assassino; ele mata os
vivo s de susto c u contamina9ao (mo-a ~ o w.e) ! .nao por inten9ao; ele
manifesta urna espécie de ".viscosidade", aderindo aos vivos de modo
automático. O ta ' o we é urna ma.ni~esta9ao grotesca, repetitiva, sem
nenhum atributo do morto rnais que - eventualmente - sua aparéncia
deformada. Nao obstante, diz-se que ele é "feroz", e que sua ade -
rencia aos vivos é motivada pela "raiva de ter marrido" e por seu
11
ciúme" (haihf) - desagrado em se separar - dos parentes, especial
mente marido e filhos. Mas tais sentimentos ~ao indicam que . o ta'o
we possua c onsciencia - ele é urn mort~-vivo, que reage mecanicame~

te. Perigo rnaior represen~a


- celeste de urn morto,
a por9ao qu~ essa
..
sim e capaz de atrair seus parentes.
Após urna morte, raramente se passa um dia sem que alguérn nao

499
araweté : os deuses canibais

depare como ta'o we recente, na mata, na aldeia, ou mesmo surgin-


do como · wna pequena imagem que emana do fogo doméstico. Os ta'o we
sao proteiformes, e sua defini9ao como "ex-corpo" do morto nao os
impede de se apresentar como wn rato, um animal qualquer, ou wn
som, wn movimento: ele cresce e diminui de tamanho, pode penetrar
24
pelas menores fendas da casa • Um ta'o we é, propriamente, qual-

(24) Una apari<;ao de Awrn-a-hi-reme-ra'o we, o "espectro da finada Awara-hi",que


- - - -
causou grémle ~ao foi a testemunhada por .Meña-oo, que teve um apavorante '
encentro o:m um rato de brinoos, na i:ocra.

quer coisa, menos a própria pessoa.


O ta'o we é definido, ainda, como "o companheiro dos lñl 11

Clñl newe ha), o "carregador de fogo dos lñl" - que leva a tocha
destes espirites, em suas caminhadas noturnas. Os ta'o we cornero
quatis, corno seus mestres Añl. Se wn ta'o we nao é, propria.mente ,
urn Añ-i - deles nao se diz que '' transforrnam-se em Añln corno as al-
mas celestes "viram Maf - é entretanto inequívocamente assirnilado'
a esses espirites. A necrofagia dos Añi é puramente destruidora, e
sua vincula9ao coma libera9ao do ta'o we nao é clara - se há, e-
redundante: os ta'o we vigorarn exatamente durante o período de apo
drecimento do carpo. Já o canibalismo divino é pressuposto da trans
forma9ao do rnorto ern Ma~ irnortal.
Os ta'o we "acabarn" (f:pa). Após um periodo de erráncia na al
deia ern que surgiu, o ta'o we se vai; ele ernpreende urna migra9ao '
obscura e anonima em dire9ao ao local de nascimento do morto
he). Lá chegando, ele rnorre ou se éxtingue (-tkañl, sorne), "trans -
formando-se em algo sernelhante a wn gambá morto" (o¿~ 4owa mikf:

heri ha, ~man; ce) • Esse destino final de trans.forma9ao em gambá


morto é urna imagem redundante da podridao - o cadáver de um animal

500
entre outros

fétido e podre, dupla corrup9ao. A morte do ta'o we coincide coma


desapari9io das partes moles do cadiver; o ta ·'o we leva consigo a
podridao, e a encarna: simulacro de gambá rnorto, resto impreciso
'
de nada 25 •

(25) Sobre o valor "pcrlre" do gambá na A.Su!, ver Lévi-Strauss 1966:172-ss. Pa


ra os Araweté, igualmente, o ganbi é llTl animal 'di, "fétido-pcxire", mas associa
do (o que também é cxrcum na mitologia arcericana) ao queimado. Alguns fragnentos
nú.ticos que obtive narrarn as desventuras de Garnbá, que ao tentar queimar sua ~
era perdeu o pélo 00 incerxuo - e out.ras versees a::ntam CCl10 a cx::riblstao de Gam-
-
bá deu origen ao nel. Infeli,znente tenho pouoos dados a respeito de tal origen
.
do nel, que ilustrasse arel~ abelha/ganbi apcntada por I.évi-Strauss(l967b :
67-ss. ) • Os Araweté ca1eu os quatis, cx:mi.da dos .Añi e dos ta 'o we, mas nao m-
nen gambás.

A rnigra~ao do ta'o we até o local de nascimento do morto co-

mo que refaz o percurso do vivente, em sentido contrário, fechand2


-o. E acarreta urna disjun9ao entre os vivos e os mortos: os vivos'
deixam as aldeias em que ficam os mortos, seguindo sempre adiante;
os mortos retornam as aldeias em que nasceram. Se aceitarmos a 1-

déia Araweté de que toda morte provocava mudan9a definitiva de al-


deia, ternos entao que a morte cria. urn duplo movimento, progressivo
para os vivos, regressivo para os mortos: no vácuo deixado por es-
sa dupla dispersao, fica a aldeia abandonada, e doravante nomeada
pelo corpo ali enterrado: o "leito" de fulano. Os viventes seguem
ern frente, os mortos voltam para trás: a morte é um movimento, e o
espec
>
t ro t erres t re apon t a para o passa d o 26 . Viver
. e- d eixar
. para

(26) túnulo, assim, é para os Araweté un ponto de dispersao, ~ de a:>noen -


Un
tra~; e a aldeia para onde retorna o ta'o we nao é urna "aldeia dos nortos" ,
mas o lugar ern que esta parte da pessoa desaparece definitivamente, lá onde ela
surgira: onde cx::rre<¡oU o a:>rpo, Sua. Última~ finda. Os ta'o we, na rredida
nesma ern que sao <nrpanheiros dos .Añi, nao vivem ern aldeias, mas sob o m:::do 00-
made-selvático.

501
araweté: os deuses canibais

seria interessante cxrrpararnris isto can os. sistemas en que a rorte e os ·tú-
~s refazan a tm.idade social que a vida di~sou, ao m:xk> dos Merina, D:>bu e

outros (Bloch & Parry, 1982:27-38), que p:>r sua vez evocain os "cl.ás nortuários"
Piaroa (Kaplan, 1984), as "casas do despertar" 'I\lkano (S. Hugh-Jones, 1979) e a
terrados Aroe Bororo (Crocker, 1979) - ver Kaplan 198lh, para essa a~
Sul~anericana -; todas estas Cosrrologias pensam a norte cx:m:> o l\igar de cancela
mento ~ diferen;as,' e 'de re-uniaO OOS seres de ITeSma '"subst::áncia lÓgica" I pa-
. .
ra usanTOS urna expressao de érocker. A norte e O Além sao o e~ de Una iirp:>s
sivel e desejada identidade e indifer~a: ·o cl..fu3sioo tema do "fim da afWda ' -
de", sonho que trac;:a em negativo~ candi~ da' vida social •
. A "volta. para casa" do ta' o we terrestre . nao
é ~lutanente urna reuniao do
rrorto can Seu.s satelhante·s, mas urna inversao ~lógica da trajetória de um
. .
CX>r¡x> individual; o destino da a;i.ma celeste tarrpoúoo será urn mergul.ho na segu -
ran;:a .identitária - pelo rneoos nao de rrOOo siJrples; 00 'céu, os nortos éstaroo
a serv~ oos vivos, para outra ooisa.

trás OS ÍnOrtoS: ta 1O We t!'e racip!!_1 '1 0S ta "o We f icam aS nOSSaS CX)S


tas" (atrás de nós) - cronol~gica e geograficamente falando. E as-
sim também os inimigos: os Araweté se deslocam, no tempo e no esp!
90, nurna interminável fuga dos mortos e · dos inimigos que os matam.
Apenas, essa é urna fuga em dire9ao a outros mortos e ' outros inimi
gas: os deuses. Neste sentido, os Araweté sao nomades, ou· o 'é seu
pensamento (como ' dizi~ H.Clastres do discurso profético Guaraní ,
usando urna metáfora deleuziana - 1978: 116): a marte é seu motor
e sua "meta", impondo-lhes urna incessante desterritorializa9ao que
só ela mesma terminará, mas sempre alhures.
Ora, apesar da. evidente ' associa9ao do ta'o we como morto de
que é um duplo, ele tem qualquer coisa de impessoal. Se sua apare~

cia física lembra a do morto - e nem sempre -, suas a9oes sao a-


- . t
9oes típicas de qualquer t~'o we; os espectros nao falam (os dos
xamas, se cantam, repetem-se), e se té'm urna singular mobilidade fa
ce a rigidez do cadáver, manifestam entretanto urna .impotencia ou
diminui9ao de ser face aos viventes: um ta 'o we nao age - reage e

502
.entre outros

repete: insiste. Ele é menos que um vivente.


A extin9ao do espectro nao esgota a persisténcia do morto
Ela libera um outro duplo, mais distante ainda de sua origem: os
apo!Jic'f:.., macacos.-da-noite (Aotus trivirgatus, cebídeo gregário, ba-
rulhento, de olhos esbugalhados e cara sarapintada). Estes animai-·
zinhos sao tidos em geral por "encarna9o~s" dos mortos (e chamados
de ta'o we) - cu rnelhor, da morte dos mortos, de seu espectro, vi!
to que os ta'o we, nao obstante morrerern como garnbás, transformam-
-se em macacos-da-noite (od! mo-apoyiéi). Diz-se que, assim que o
espectro se ''vai" ('ha), o apoyi ci "fica" (o pita), persistindo nas
proximidades das sepulturas. Mas, menos ainda que o ~spectro, o
apoyici nao guarda rela9ao corn o morto, senao a de urna vaga metoní
mia.
Diz-se que é a sombra da m~o (pa l> o "futuro macaco-~~-noi-

te", apoyici :ri, ~ltima sinédoque do morto. A sombra que .g era o

ta'o we é a silhueta corporal


' .
total; a sombra da rnao, parte de urna
parte extinta, gera o macaco-da-noite. Estes animais sao perigoso~

enquanto pensados como avatar~s dq morte; sao cognorninados "os rna-


tadores do luar" (!Jaheni rop ~ 'ha) ou "crista. dos Añ-i" (Añ-i dapite :re
ha), pois andam ernpoleirados na cabe9a desses espirites. Eles sufo
27
carn os adormecidos, estrangulando-os •

(27) As pessoas me ilustravam essa origen do apoyiCi agitarx:b suas maos o::>ntra
o ÍOfi1', de nodo a nover a sanbra, o que nao deixava de me sugerir um "Últirro a-
deus" macabro que o macaco-da-ooi,te representa.
Os Araweté nao tenen os macacos-da-noite ern si, anima.is inofensivos; mas no
periocb que segue una norte, cu quando se está oozinOO na mata, sem f0fi1', pode-
-se entrar en estaOO ~ cl:oque can a aparicsao de um apoyiéi-ta 'o we.
. Há assim urna sé.rie de anirnais ligados ao espectro dos rrortos: quatis, gambás,
macaoos-da-ooite. Ela renete a outras cosrrologias 'ffi. Já vinos o papel cb jupa-
rá (chamaOO en alguns lugares do Brasil de macaco-da-ooite) para os Wayapi e
os Urutu. Huxl.ey (1963:256-ss.) refere mit.os ern que este animal aparece ligado

503
araweté: os deuses canibais

ao luar, e carerrlo flores. OS Araweté afinnam que os apoyiCi car~,além de


frutas, flores. os Wayapi associam o. jupará e a preguixa can os nortos e o mun
do inferior; os Adlé, o quati ou o tamanduá (um desdentacb, caro a pregui<;a).OS
Urubu ligam o jupará aos jaguares do numó:> inferior,e opo6n os jaguares aos ~
bás, confonre o par mítico Filho de Mair/Filho de Gambá - e Mair é o "Senhor
oos Jaguares". OS Aché tanarn os jaguares por~ canibais dos nortos.
O que está subjacente a esse sistema, a .rreu parecier, é urna qx:>si~ central,
Cru;l>odre, Jaguar/Ganbá (quati, jupará, desdentados). Se o t~'o we t.errestre
~ ao pólo dos quatis, macacos-da-ooite, gambás, é de se esperar que a
func;ao-Jaguar envie ao céu - ao canibalisroo divino.

Um apoyiéi, justamente por ser urna emana9ao totalmente impes


soal e "abstrata" do morto, pode ser morto por mao humana, o que 1

nao sucede como ta'o we. Nao se mata u.m ta ' o we - como se faz com
os espirites de animais (ver adiante) -, po~s isto equivalería a
um assassinato dentro do grupo. Mesmo que o ta 'o we seja u.m "ou-
tro,., e disperse a aldeia como o fazem os inimigos, ele está dema-
siado próximo da imagem do morto: ser ambiguo por defini9ao, peri-
goso a sua revelía, ex-bfde (Pessoa, Araweté).
Os Araweté nunca me justif icaram a impossibilidade de se ma-
tar os ta'o we conforme o raciocinio acima. Chego a ele por urna
evidéncia negativa. Afirma-se que os Kayapó tem o costume de matar
(xamanisticamente) o espectro dos Araweté que eles mataram na guer
ra - as mulheres que viverarn entre os Kayapó sao responsáveis pela
difusao dessa estória. Matar um ta'o ?Je, assim, é se comportar co-
mo inimigo; seria matar u.m morto do próprio grupo. Nao se mata, a-
liás, tampouco os espiritas de inimigos martes - mas por outros
motivos, como se verá.
A impessoalidade do ta'o we e do apoyici parece associada a
urna no9ao de pluralidade e multiplicidade. A um morto nao corres -
pende propriamente ~ ta'o we e um macaco-da-noite. Este último a-

504
entre outros

·nimal, aliás, é sempre concebido em bandos. O 'ta'o we, por suave~

é um principio dé pluralidade. Já vimos que ele é proteiforrne; e-


tarnbérn ubíquo, aparecendo ao mesmo tempo ern toda parte. Bede ap~
'
ta'o we het?:"os ta'o we de wna pessoa sao muitos"; esta frase era
sernpre contraposta as rninhas tentativas de estabelecer qualquer u-
nivocidade entre um individuo e seu duplo. Ela tem dois significa-
dos: que a rnorte libera urna multiplicidade quantitativa de flesplri
tos" (o t~'o we terrestre, a alma celeste - que tarnbém pode ser re

ferida como ta'o we -, o macaco-da-noite), conforme a ramifica~ao'

ou dispersao (~wawaka) de nossa ;, sombra-principio vital, com a


morte; e que o ta'o we terrestre existe sobo modo da rnultiplicid~

de gualitativa, proteiforrne e ubíqua: ele é, de certa mane ira, o


aposto de urna irnagem individual - duplo, é múltiplo.
O que é o ta'o we? Ele é a marca de urna ausencia. Nao ape-
nas os mortos efetuam o t~'o we, os vivos tarnbém. Quando alguérn sai
para urna expedi9ao demorada na mata, sua ' casa fechada fica "cheia
de t~'o we", que rnexern em tudo, fazern barulho, quebram e roubam
coisas - esses duplos múltiplos sao todos referidos ao ausente 28 •

(28) Una vez, retornanOO de Altamira, oonstatei que sumira algo de minha casa •
Fesignad:>, cx::mentei ironicanente que deve.ria ter sido o meu ta'o we o ladrao.Aí
ne respalderarn: "te, hiro" - "nao,foi gente ~" • Hiro, oor¡:o-cxmtinente, e -
usado~ em oposic;ao a ta'o we - e entretanto o que define um ta'o we é que
ele é um hiro, urna coisa real, nao una imagen (i'). Biro, o::m::> -i, é temo de
significado p:>sicional. Un vi.venteé um hiro em oposi~ a um ta'o we; um ta'o
we é um hir9_ em oposi~ a urna i'-irnagem; e urna i' é um hiro em oposic;ao aqw.10
que náo tem causa ou forma, ~loqueé subjetivo. Assim, qu.aOOo eu perguntei'
se os cantos xamanísticcs eram ensillados aos xamas novatos pelos mais vellx>s ,
c::cntestaranHre: Ma! bfde ra 'a iwe na,
hiro - "os deuses nOO es~ dentro de OO.:!
sa cail'le, eles sao hiro". can isto, significavam que os cantos x.arnanísticos, ~
nifestarm a pr~ objetiva, exterior; dos deuses, I100 eram fruto "da cabe -
ca" (da carne. cerro dizem) do xana, mas da existencia real, nao-subjetiva, dos
Ma!. O que "está..dentro da carne", cerro vi.reos (supr~: . oota 10), é a sensac¡:OO ou

505
araweté: os deuses canibais

sentimento incausado, autórx:rro. Por sua vez, se é oossa l que sobe aos céus,ela
é nao obstante um hiro: um oorpo real. A no<;00 de hiro - que significa, em ge-
ral, a:::¡uilo que envolve algo, o:mtinente - designa assim o nodo de existP..ncia
objetiva, a realidade. Que, entretanto, oonhece graus, cerro se percebe m u.so
CC!ltrastivo cb conceito. O ta' o we de um rrorto é um hiro e um hi:ro pe: é urn
oorpo-real, e urn ex-oo:rpo~ ~ um puro ootpo, vazio de alma.

Urna vez que fomos, toda a aldeia, pescar em um lago próximo, al-
guém me disse, comentando o vozerio e a anirna9ao da clareira ern
que descansávamos: "aqui1 a noite, estará cheio de t~'o we" (1.e.

depois que fossemos ernbora). Quando urna crian9a se ve contrariada


pelos pais, seu ta ' o we produz pequenos acontecimentos vingativos:
desenterra batatas na ro~a, j oga coquinhos nas paredes da casa ,
etc. o t a' o we , aquí, marca a insistencia de urn desejo nao-satis -
feito, uma "ausencia" psicológica. Os doentes graves tarnbérn efe-
tuam o ta'o we - no que manifestam sua proxirnidade coma morte.
Todas essas manifesta9oes espectrais, múltiplas, dos ausen -
tes, se dao f o ra de sua vontade ou conscienc ia: ningu ém sabe de
seu t a ' o we . Ele é, propriament e, inconsciente - eu diria mesmo que
ele marca ~lugar do Inconsciente, para os Araweté, nessa sua exte
rioridade ao sujeito, sua rela9ao com o desejo, sua curnplicidade '
c orno corpo, e sua compulsao a repeti9ao. Um ta' o we é, portanto,
b f d~ p e ern sentido forte: ex-Pessoa, Pessoa separada de si mesma ,
Pessoa ausente, Objeto. ~ tudo isso que morre, devorado pela podri
dao.
O ta'o we , ern suma, é algo que menos que existe, antes in-
t
sis te ou subsiste na superf ície das coisas, ao modo dos "·incorpo -
rais" estóicos (Deleuze, 1974: 5-1 2). Ele é pu.ro acontecirnento, um
efeito, uma persistencia da memória. Nem ativo nem passivo, ou am-
bos - ou melhor, reativo -, ele é uma sornbra, · urn extra-ser, esté -

506
entre ou tros

ril e assignificante. A sucessao cronológica e ontológica entre a


sombra corporal (i') e o ta'o we é, portante, precisa: o ta'o we -
e

a sombra que a memória projeta de um corpo ausente, o efeito de urna


'
causa eficaz por agir in absentia; ele é o negativo que revela a
29
nao-presen9a da Pessoa • o ta'o we terrestre remete portan to
ªº
(29) Ver Huxley, 1963:204, para a ap~ alma-sanbra e a ~ao de "negati
vo" - que o autor tana um tanto ao pé da letra, erigindo o Sol cx:no cx:>nSCiencia
e divindade. A "luz" que projeta o ta 'o we é, na verdade, a nem5ria social, a
. - . .. .
consciencia da coletividade, que desenha a silhueta de urna ausencia.

passado, ele é da ordem da ' repeti9ao nua, mortá; negativa: pulsao


de morte que se evidencia na compulsao a repetiQao, é tambérn urna
insistencia marginal da vida. Corno veremos, a por9ao celeste da Pes
soa remeterá ao futuro, a uma repeti9ao viva, positiva e singular.
Sombra da memória - mas nao, como o pee a ideologia Araweté,
da rnernória do morto: da rnemória dos outros, dos viventes. Duplo
do cadáver, ele é entretanto um fantasma social. Nessa medida mes-
ma de sua rela9ao com a memória, é que as crian9as pequenas -
nao
efetuarn o ta'o we quando morrem (nem sao ·devoradas no céu). A pe-
quena como9ao causada pela morte de crian9as se desdobra no peque-
no temor que provoca: quem viveu pouco nao deixa marcas na memóri~

nao é chorado nem insiste no . mundo •. Inversamente, a morte de pes-


soa muito velha ou importante produz t~' o we especialmente conspi-
cuos e perigosos: eles sao funQaO direta do tamanho da lacuna que
. 30
preenchem a seu modo paradoxal • Essa é a acrobacia do fetichismo

(30) Assim, creio que a idéia do abarxlCl'lO definitivo de urna aldeia tao logo
qualquer norte ocorria pode ser matizada. Nenhuma das aldeias que rerebem nares
de nortos tero nc:::ries de criant;as; e os nort.os ep0ninos sao pessoas sarpre lerbr~
das pelo grupo - nesrro que nao tenham sido ''denos de aldeia"' xamis, matadores'
(muitos sao rra.tl.heres). CCJrpa"t"ár can o que diz Gallois dos Wayapi, que abarmna-

507
araweté: os deuses canibais

vam as alcleias SE!ITpre que várias pessoas ali rcorreram, ou Cllde faleoeu um "indi
vidoo de des~" (1984a).
- -

psicológico Araweté, que atribui ao rnorto urn · efeito gerado pela e


para a consciencia social: é a auséncia, nao o ausente, que pee ern
cena o t~'o we no campo perceptivo-afetivo dos _viventes. Mais urna
vez se rnostra o parentesco do ta'o we corno Inconsciente: indivi -
dual e irnpessoal, mecanice e ..maquinal", ele se constitui na ex-
terioridade do Sujeito - é cria~ao coletiva, exprime a libido dos
Outros. o ta'o we está onde a Pessoa nao está: anti-Sujeito, in-
-Pessoal e Inconsciente, quern gera o ta'o we de um sao os outros ,
mas a culpa é daquele.
Corne~arnos aqui a ter os prirneiros elementos para entender o
provérbio Araweté sobre a rnernória dos ossos. "Só os ossos esque
cem", porque quern lernbra é a carne; a rnemória está"déntro da car -
ne", e assim é o atributo e o jugo dos vivos: o apodrecirnento da

carne é a desagrega~ao da rnernória do morto, ern duplo sentido, o


"duplo e penoso" trabalho do olvido, esquecimento reciproco entre
vivos e rnortos. Mas a amnésia nao pára a!: ela prosseguirá no
- 31 •
ceu

( 31) Assim, é a¡::ós a dea:ltposi~ da carne que o tq 'o we esquece oos vi vo.s e
errpreende a caminhada regressiva até sua aJdeia de origen, numa "anamnese" mecá
nica e solitária, até se extinguir..
O provérbio Araw'eté reza: "B-tde a:r ñe'e mo-kañi", lit. "os o.ssos da gente fa
- - -
zen sumir a palavra". Ele se usa senpre que alguén alega ter esquecioo urn fato
-
irrportant.e de sua vida passada, e especialnente assuntos anoroso?. "Fazer su-
mir", mo-kañi, significa perder ou esquea:r (seu sinOn.ino é haarª1J), e "perder
a palavra" é esquecer algo, nao ser c.apaz de rx:meá-lo. Os vivos (hek(J]J}e me'e )
~ esquecem, porque a nenória (kaaki ha) f ica entranhada na came - o que se
aplica cx:m prq:>riedade aas assuntos da Carne, de arror e sexo.
No~se que a::iui há una "CC11tradi900 face a idéia de que a saudade OOs nor-
11

ta>-ausent.es, rnanifest.a~ da Il13'1Ória e da consciéncia kaak; hii, é algo que nos

508
entre outros

"desp:resentifica", mó-~ 1 0., separando nossa alma do corpo e tonlal'X3o-nos translú


cides e leves. Essa 0011tradic;ao expr~ um desejo: que os nortos oos esqu~am ,
para que possanos esquecer-oos deles. Pois a saudade é causada pelos ausentes ,
o:rro vinos; assim, quando a nerrória qµe está na carne do norte se dissolver,ter
mina o risco de que o siganos, atenderrlo o apelo da carne (a nossa, e a do nor-
te) e virando nOO-cai:ne, i. e. espírito, e ossos. A rrenória, no espat¡x:> da norte,
é oorruptível e corruptora.
O c:onceito de "vivente", "vivo", se exprine pela palavra hekCZZ;)e, que se en-
centra em outras Unguas TG (cf. TUpi.nanbá iko-be), e é ™ forma curp:>Sta, ex>m
a raíz Cb verlx> "existir". Os vivos sao os "existentes", os que estáo, os pre -
sentes. As almas celesteS pertencem a essa categoría, os espectros terrestres '
nao: a anima<;ao destes Últim::>s é de tipo reflexo, insistencia-subsisténcia, nao
existencia.

Prossigamos na explorac;ao desse conceito de t~'o we. Ele p~

de ser empregado para designar a porc;ao celeste da Pessoa, mas há


urna diferenc;a significativa. A forma flexionada,genit1vo-possessi-
va, do tipo he 1'~ 'o we, "meu - a, o we 11 , nao é admissivel senao para
referir a (futura) parte celeste da persona de Ego. A flexao pes-
soal do ta'o we terrestre exige a afixac;ao de -reme, "finado-au-
sente", ao pronome ou neme em fun9ao de sujeito. Por sua vez, a
forma genérico-absoluta marcada pelo prefixo t-, ta'o we, muito ra
ramente é usada para designar a(s) alma(s) celeste(s) em geral ~

- emprega-se a "terceira pessoa" h-~'o we, que nunca é usada para


referir os ta'o we terrestres. Outra maneira de indicar essa dis -
tincia diferencial dos -a'o we celeste e terrestre em rela<;ao ao
Sujeito, é pelo contraste d~ flexao possessiva:
bfde apa ta'o we = nossos espectros terrestres
(lit. "gente-coisa-espectro")
bf!de -r a 'o we = nossas al.mas celestes.
A primeira forma pressupoe uma relac;ao exterior, extrínseca, entre
sujeito e objeto, e mantém a flexao absoluta da raiz em t-. A se-

509
araweté : os deuses canibais

gunda, forma normal ·óo possessivo, é obrigatoriamente empregada pa


ra designar as partes do corpo, posi~oes de parentesco, e toda re
la<;ao de . posse intriI)seca. A flexao em r- para um. ~ espectro terres-
tre só é usada com a sufixa<;ao de -.r~em~ ao sujeito: o que exprime,
alternativamente, a extrinsicidade ou exterioridade do sujeito,sua
ausencia. Em outras palavras: o sujeito e o espectro terrestre nao
podem estar ce-presentes, sequer. lingüisti·c amente. E .esta distin-
9ao é coerente com o modo de emprego do suf ixo -rem~ após os nomes
pessoais: nunca se usa este para referir urn morto enquanto alma ce
leste - cujo modo de existencia é justamente a presen9a no canto '
xa·m anistico; ele indica o morto enquanto ex-vivo, refere um nome
pessoal a urna auséncia pessoal. O uso de urn nome pesscal (de mor-
to) sem o sufixo indica, seja que o discurso está no tempo pretéri
to (tempo do enunciado; tempo da enuncia~ao), seja q~e se trata
do morto qua presente alhures, no céu. Tudo isto sugere, em suma,
que o ta'o we terrestre é o "espirito" de um morto, é urna coisa-nor
te, e que o -a'o we celeste é o espirito de .\ Ullª Pessoa, urna coisa-
-vida.
Alguns animais também efetuarn o -a'o ~e.
Nesses casos, o ter
mo é sempre marcado pelo prefixo determinativo h- 32 , entrando . em

(32) Assim, a forma absoluta e "¡:u:ópria" do espectro é ·o espectro de seres h~

oos. Isto p:ideria ser intei:pretack> confarne a antiga teoría de Lem:>s Barbosa,de
que o t- inicial é prefixo de classe (human:>) , op:>ndo-se ao s- (Araw. h-) , de
animal-inurnaoo. Creio entretanto que a licrac>
mais .atual pode' ser mantlda, e pcr
de-se interpretar a aplicacraoexclusiva aos human:>s da forma en t- CX110 um caso
de semantica "cultural", . nao lingüística. A maneira genérica de se designar "es
pirito de animal" é me'e ra'o we,"espirito de algo" - que contrasta duplanente,
- - '
por flexionável e por "ooisificante", o:::m o ta'o we impessoal dos humanos.

construc¡:oes g_e ni ti vas. Os animais- pec¡:onhentos (cobras, aranhas, ar


rQias) devem ter seu ha'o we - que é designado corno ihi, o "adul-

510
entre outros

to" ero r~la9io ao animal real - (ihi pode ser interpretado corno"mae",
ou corno "cre·scido", cf. o verbo ~hi, completar; um animal adulto é
'
referido comó i'hi face ·aes aniinais jovens ou filhotes, ta'i) - mor
'
to pelo xarni, corno parte do tratamento da pessoa atac.;ida .• O ha'o
we é o responsável pela per~istencia da dor, após o animal ter si-
do rnorto: ele é, assim, a causa de uro efeito cuja causa visível
foi removida; é o que "insiste" após a rnorte_. Ou.t ros anirnais, co-
mes ti veis, geram ha'o tJe, notadarnente o veado e a anta, que devern
ter seu ·espirito rnorto pelo xarni, ou queimariam (hapi) os viventes•
... - pri_!!
Ero principio, todo animal te ria uro ha'o we - corno tero urna i.

cipio vital que se extingue com a roerte -., mas is so nao e urna teo- -
... 33
ria muito desenvolvida entre
.. os Arawete • Há uro outro animal que

(33) OUtros bich:>s tSn ha 'o we perigosos ou eficazes em certos contextos. Já


v:ircos que o espirito 00 jacarnirn se vinga de quen nao a::lret' a ave assada, e pro-
duz o ha'iwa; os tra..irOes, oo contexto das refei<;Qes cx:m os deuses, também tero
ha'o we, e idem os guaribas. Por sua vez, nao se deve pronunciar a palavra"ovo"
(hop!na) perto de carnes de quati e de peixes cx:m dentes afiados (trairao, pira
nha, peixe-cach:>rra), o.u estes anirnais. norderiam IlC?S!Sa barriga; usa-se o eufe -
miSirO "ooisa {da galinha, do tracajá, etc.)", ap~. Isto faz parte do sisterra de
"audi~ perigosas" Araweté, que incluí o eauim, o rx>oo da Agua, o canibal
Iara~, e certos cantos. Tanp:>uco se .deve falar em "xarnanisno" (pe11~) perto da
carne de anta ou veado, pois o ha 'o we ouve; fala-se em "trazer os deuses" (Ma!
· hero). A interdi9ao do JXJre do ovo é obscura para mim: ela se aplica tanbán ao
canenros ovos; se dissexnos o nare do que estancs a:::mendo, o Ovo fará nossa bar
riga doer. Oescxll1fio que o ovo é um problema filosófioo para os Araweté, na rne-
<Uda en qlE p::>r~ en peri<}) a teoría patrilateral d;éi fecundidade; nao obstante,
eles distinguen a clara - que é chamada de semen - da gema, "coisa vermelha" .,
só a:nem esta ú!tima, oo ca.sO de ovos ern que tal diferenra é visível. (Os ovos
de jabotis sao can:idos assados ou rroqueados, inteiros) • Por outro lado, os ovos
ten !J[lla clara cooota<¡:ao sexual, e CCl'lirlos equival.e a a:Der as partes genitais'
- o que é vedado aes pais en CDUV'ade, etc. ,Por fi.m, o ovo é urna espécie de fe-
to - e os Araweté rnanifestam certo receio em cri:ner férneas grávidas; ·nac, cxrnem
de forna alguna ·os fetos de anirnais, e ·os pais grávidos ou en couvade deven se
afastar de anima.is prenhes nortos.

511
araweté : os deuses canibais

Nao há,
aoque parece, nenhtan tenro além de ha'o we para designar os espiri-
tes animais; os ronoeitos m do paradigma piwara (Tenetehara), ompiwa (Wayapi),
ngarupiwat (Kayabi), PUpigwCU'a (Parintintin), que remeten a~ diversas, ro
no espirito de animal, substancia xamfuri.ca, duplo eficaz do xama, nao
etc. se
ena::>ntram entre os Araweté. Ha'o we, para o principio maligrx:refícaz dos seres
ex-vivos, e -i:pe41e ha, ºpoder xamfuú.ro", para o instrumento de eficácia mágica '
geral, sao os dois ronoeitos básicos para a interpretac;ao do sobrenatural.
Vale destacar que, oo sistema das emiss0es-audi<;<)es perigosas, nao está in-
cluido o rx:rre dos nortos, a~ ao ta'o we, etc. O ¡xxler evocativo da pala -
vra parece redundante nesses casos; e alias o canto xamanístiro é um pronuncia-
nento explícito desses rx::mes (é verdade que de¡::x:)is do apodrecinento do rorpo ;
mas antes tantxruro há restri<¡iíes).

tern ha'o we: trata-se do jaguar. O h~'o we de urn jaguar rnorto -


nao
é objeto de xamanismo nern de providencias agressivo-protetivas;nao
se o mata . Ele remete ao complexo da guerra e aos h~'o we de inimi
gos rnortos, que nao tém a ver com o xama e nao sao perigosos, ªº
contrário.
Enfim, tentemos divisar o sentido mais geral do conceito de
ta'o we. As linguas Tupi-Guaraní parecem dispor de duas proto-for-
mas que evocam as idéia~ de imagem, .alma, principio vital - i.e.
conceitos referentes ao aspecto incorporal dos seres animados, ou
ao modo mental, representacional, ·das coisas. A forma 1 - ponhamo
-la corno *an - é rnais estável, funciona ern geral corno nome, e en-
vía a urna série de concei tos que c.o notam a representa9ao. A forma
2, *a'u, é mais elusiva, cornpondo verbos, morfemas temporais ou as
pectuais, e remete a série do sonho, do principio ~essoal-animado,

e da a9ao espiritual. Tal distin~ao, entretanto, nao é sistemática


. '
nern consistente. Há linguas que empregarn as duas formas, outras urna
..
so (ou especializarn urna delas para forado campo da "alma" ) ; e se
as usa de variados modos: seja para designar aspectos diferenciais
da pessoa, especialmente a bifurca~ao desta após a rnorte, seja pa-

512
entre outros

ra distinguir entre a alma dos viventes e o espirito livre dos moE


tos e sonhadores. Ambas podem receber sufixos nominais de pretéri-
- - - 34 •
to-separa~~º' e em muitos casos nao se realizam sem tal flexao

{34) Nao seroo esse um trabalho de lexioog:cafia c:x:rtparada 'ffi, pe.nnito-1re mencio
nar rapidanente: ian-ve e o-ve Adlé (1~ 2), principios liberados após a m:>rte
(P. Clastres, 1972:303; Cadogan, 1978:42-4); o ia, alma viva wayapi (1?); · que
se bifurca em te-an-wer (1) e t-ai-we (2) na m:>rte (Gallois, 1984a; Carrpbell ,
1982:270-2); a fonna mo-au (2),"sonhar", nesta Ungua (P.Grenarrl, 1982:222); o
conoeito de ra'uva e o aspecto-tenpo verbal ra'uv (2) en Parintintin, que mar -
cam ~ oníricas e a idéia de alma-imagen dos ncrtos, contrastard:> can 'ang
(1), "sarbra" {Kracke, 1983); o sufi.xo verbal a 'u para "sonhar, oonjeturar", a
fanna ma'e ra'u para "coisa de mau agouro" e a t-a'u-wer para "fantasma" - to-
das derivadas de 2 - , e o t:e.rm Qn.g ( 1) para "alma-sanbra", tuck> isso em Tene-
tehara (Boudin, 1978, I); o i-unga (1) caro alma de vivente e o-wera (2) caro
alma de ncrto, em Akuáwa (Andrade, 1984b); i-ynga e in-vuera ( 1) para "alma" e
"alma de norte" em Tapi.rapé {Wagley, 1977:168, 181; Baldus, 1970:351-2). Por
fim, as formas TUpinartbá e GJarani do tipo angUIJ, anguár111 etc. cevreux,
1874 :
62-ss; cadogan 1962:62), que enviam a raiz 1; o .oonoeito de juru t-au-gu2, "bo-
ca fantasmal" ligada ap tupichua, parte canibal/telúrica aa alma (Caébgan,1962: ·
60, 69), o verbo ra'u para "sonhar" em MJyá (r:ooley, 1982:310}, que rerretern a
2.
Nao há caro determinar sentidos precisos e inequivooos oonfonne raí-
as duas
zes; entretanto, ?Xle-:se propor que e+as remeten a urna figura dual, oorpo/alrna,
que se desdcbra. em urna "alma do oo:cpo" e uma "al.rna da alma", dualisno sinc:rOni-
co ou diaci:Onioo, que furx:ie-separa as idéiaS de imagen e principio vital (san-
bra e sopro) , e ·que está vinculada a urna oposi~ t.erra/céu.
Em Araweté, a palavra para "sonhar"
.
é t:ce 110 1 derivada do verbo "oonnir"
- .
(t:aeJ sufixado cx.m um norfema de Wase ou de "espiritualidade". A fonna mo-~ 'o
p:>de significar "sonhar", mas é mais anpla ·que isso, indicando toda separacrao
alma/carr;o.

Em Araweté, como já vimos, a raiz a'o se encentra no verbo


para "sofrer saudade", mo·-a 'o, e no concei to de "coisas perigosas ",
me'e a'o; ela forma ainda um marcador de aspecto verbal que indica
a quase-realiza~ao de algo, i.e. a presen~a mental de urna inten~ao

513
araweté: os deuses canibais

- se efetuou 35 • Em todos os casos, o que se conota e- urna se-


que .n ao

(35) o mesno para o Guarani ra'u, cf. cadogan, 1950:245.

para9ao potencial entre um principio espiritual ou mental e seu su


porte corporal, ou base fisico-real. Assim, o conceito de -E'º we>
~'o-separado, é exatamente o estado ou resultado final dessa sepa-
ra~ao. Um ~'o we é urna "figura~ao do invislvel", o testemunho ou
resto de urna divisao - é urna co~sa despresentificada.
A obscuridade do sentido de -a'o we, e seu uso sutilmente di
ferenciado para designar as por9oes celeste e terrestre da pessoa'
se reencontram em outro conceito. Se -a'o we é usado de modo "for
te" para referiro espectro terrestre e a morte-ausencia, o concei-
to derivado da proto-forma 1 marca a essencia da parcela celeste
da Pessoa, aquela iwa ha ni, "que será do céµ": l, "alma".
O termo i, além de "sombra", "imagem", "reprodu9ao .. (a grav.!
9ao de urna voz é a ida fala <ñe'e); i nao é só a imagem visual).
designa tambérn a pulsa~ao sangüínea, os batimentos vitais do corpo.
Nessa acep9ao, eu o traduziria por "principio vital-animado", urna
vez que os movimentos pulsáteis do corpo vivo sao ao mesmo tempo a
presep9a e o índice da presen9a da l. Nesse sentido dinámico, l P2
de ser descrito como ~p~-~p~ me'e, "o que pulsa repetidamente". No

contexto da escatología, ele é designado como ~h~ me'~ rl, "aquilo


que irá (para o céu)", M~-! piha nl, "futuro companheiro dos deu
ses", e finalmente por duas expressoes decisivas: M~! di, "futuro
Maf!"., e bfde ri, "futura gente-Pessoa". Esta última defini9ao con
trasta claramente com b!d! pe, "ex~essoa", aplicada ao ta'o we
36
terrestre •

(36) Enbltindo os sufi.Jcos de estado passacb e futuro, pcxle-se designar a san-

514
entre outros

bra ótica do cxnpo cx:rro b-t& pe ñ, "o. que será ex-pessoa" ...

Nao se trata de homonimia: a no9ao de ; designa tanto o"prin


cipio vital" quanto a imagem-sombra. Mas tal principio nao é urna

abstra~ao; ele corresponde a urna imagem corporal, um hiro, quando

se encentra separado do corpo próprio - no sonho, na morte, .nas


perdas de alma ? por captura. espiritual. A distin9ao que há a fa-
zer é entre uma i ativa, a "imagem vital", e uma i passiva, a "ima

gem-sombra". A primeira é da ordem das causas, é interior (o corpo


é o envelope dessa l), possui .urna existencia autonorna e nao-condi-
cionada; a segunda, a i gerador~ do t~'o we terrestre, é da ordem
dos efeitos, é exterior, marca bruta de urna ausencia, e sua ''auto-

nomia" é antes um automatismo.


A i-imagecl vital é incausada; ela é gerada concomitanternente

a concep9ao da crian9a. o semen paterno é também chamado de bfde

r?, futuro ser humano - ele forma a pessoa em bloco, "corpo" e "al
ma". As almas simplesrnente comecram, nao tem passado, e sao estrita

mente individuais 37 • A sede principal desta i ativa é a traquéia

(37) Note-se aqui a ambigüidade significativa da expressoo bí!de rr, usada para
designar a serrente paterna e a alma dos v?-vos, e que se ap)ia na arrplitude de
5e."1tido do canceito de b-Cde :. o semen está para o vi'vente a:rro o vivente para o
rrorbrDeus. O vivo, assim, é rrortx::rdivindade em potencia - é por isso que pude
dizer que os hanens estao para os deuses a:no as crianc¡:as para os adultos (su -
pra: 195, nota 10); e é por isso que só a rrorte realiza plenamente a poténcia-
-bfde dos hurnaIX)s.

("leito da alma''). Outros pontos notiveis sio os pulsos, o peito -

-cora9io, e a "rnoleira" (fontanela}. As crian9as de "cabe9a mole",


com a fontanela ainda aberta, sao presas fáceis do Senhor da Agua,
que por ali extrai suasalrnas. Fala-se de cada um destes pontos corno

515
araweté : os deuses canibais

se de tantas t distintas (id;)¡ mas elas sao sintetizadas em uma


imagem corporal única, desde que se conc'eba a t separada do c"orpo ~-
Essa multiplicidade das i no corpo indica apenas sua presen9a infu
sa ali; é diferente da multiplicidade qualitativa, exterior e es -
sencial dos ta'o we: al forado corpo é urna; a sombra fora do cor
po, ou os efeitos do corpo ausente, sao ' muitos. Um atributo básico
38
da t ativa é a consciéncia e a percep9ao (kaak; ha> .

(38) . Especularrl:>,
.
sugeriría que a localizac;:ao da t na traquéia (i.e. oo ponto
de in.ser?:> da laringe oo tranoo) est.á ligada a duas royOes: (1) este é um si-
tio "aberto", espécie de fontanela· que nunca se fech_a; (2) ele ranete a ~

caoora das almas celestes, que é a transf~ Araweté do terna TUpi - Qlarani
~ rel~ alma (oeleste)=palavra. Quard:)'estanos tristes ou assustaó::>s, a ; da

traquéia corre para a depressao clavicular - suponOO que para a carótida ou ju-
gular -, o::m::> que se afastaneb de sua p::>si~ central, indicio e inicio de
fuga do oorpo.

Esta t ativa se distingue claramente da no9ao de t como re-


presenta9ao-reprodu9ao, imagem vece-visual. Ela é, propriamente ,
bfd~. Assim, se procurarmos saber o que, do xarna, viaja aos- céus
e trata comos deuses, saberemos que é ·e'e te, "o pró~rio" ·xarna •

De fato, é sua t, aquilo que está dentro de seu corpo e que na moE
te residirá no céu; mas nao é uma "imagem" do xarna, é seu
pio pessoal. Assim tarnbém, o que vemos das pessoas ern nossos so-
nhos sao elas mesmas, nao sua "imagem". A t ativa é, portanto, pr~

sen9a plena da Pessoa: onde ela estiver, lá estará a Pessoa. Por


sua ve z, o t~'o we, produto da i passiva, está ali onde esteve a
Pessoa. Esta t que "será do alto" é a marca dos viventes, dos pre-
sentes. Em Araweté, t nao pode receber flexao temporal; ela coinci
de corn a vida. Separada do corpo, transforma-se e o transforma ern
-a'o we, explodindo em duas dire9oes: passado-passiva, sombra, re-

516
entre outros

peti9ao mecánica do corpo; e futuro-ativa, principio vital, repetí


9ao viva e 'interna (a
.
puls.
·..
a 9ao.. rítmica
.
da vida) da Pessoa.
A ambigüidade do conce.i to de: l, e a _do de -a 'o we - . a mesma
ambigüidade -, sugere que ·a Péssoa. dos viventes é um ser ·fendid'o
ou divislvel; que tal tissibilidade possui uma pluralidade de as -
pectes:
..
~orporalidade/espirituaf.idade;
' . exterioridade/interiorida
' .
-
de; passado/futuro ••• Mas tal cisao intrínseca nao é simples; se
o fantasma terrestre, espécie de emana9ao de um CO!Pº sem aima,
~ . :' - .
-
e
pura negatividade, o principio celeste nao é pacifica positividade.
A dualidade da alma Ar~weté nao.. se deix~
'
reduzir
. .
ao maniqueísmo
cristao ou a teolog~a da divisao alma/corpo. Sigamos a trajetóri~
-
dessa; celeste, qu7 chamei de "principio pesso_al", e vejarnos o
-
quanto de "identidade" ela carrega consigo.
:.

Com a marte, a ; escapa pela traquéia ou alto do cranio, em


barcando na "canoa" dos Ma-f! que deseeu a buscá-la. Em sua subida
aos céus, ela se detém por momentos na altura da copa das -
arvores
mais altas - é o céu de Da'f ña, o Senhor dos Passarinhos 39 • Ali

(39) Tal lugar evoca o ka'aorovapy, "superficie das fo.lhas da selva",


secundário dos Guaraní de Arnambai (Cadogan, 1962: 70).

ela pára, e escuta as lamenta9oes de seus parentes na terra. Se-


gue entao. rumo Oeste. Nos dominios . de Senhor dos Queixadas Ociden
tal, Mo 'iroéo, toma cauim, e segue subindo·. Já no mundo ·c eleste . ·, .
mas ainda próximo a terra, a alma é recebida por Iriwt mor~¿e ta ,
o Senhor ~os Urubus; esta divindade S?pra sobre o rosto do ha'o we:
"vamos .meu . neto, reviva", ela diz ao marta., que parece assim tra-
zer em si um certo estupor mortal: a- marte é urna espécie de des-
. . 4o
maio •

517
araweté: os deuses canibais

(40) E esse papel ressuscibd:>r do Urul::u-deus ecoa temas que Lévi-Strauss anali
.
sou nas Mythologiques, notadamente no mito de referéncia Bororo. Inverte-se a-
-
qui o papel necrófago dos urub.ls, mas é significativo o fato de que seja um
Urubu a figura encarregada de tratar da alma cx:uo alma norta.

Re-desperta, a alma é conduzida pelo Senhor dos Urubus a al-


deia dos Mat he·te, no centro-meio do céu. Ao chegar ali, os Maf

se atropelam para ver o visitante, e o cercam tumultuariamente. O


ha'o t11e é entao pintado com jenlpapo, em tra~os grosseiros (um pa-
drao chamado "desenho reto", dito .ser de "alma nova", h~'o t11e iia-

ho), pelos Mal ti.a 'i e Ma! ti.aiyi, "f.ilhos .. e "filhas .. da Divindade-
- i.e., os homens e mulheres da aldeia dos deuses. Os Maf homens ,
achegando-se ao morto, exigem que este lhes dé presentes, notad!
mente penas de cotinga, tucano e arara (para as almas masculinas}; ·
quando a alma é de mulher, propo·em que copule com eles. Como os
mortos sempre recusam - por medo, avareza, e sobretudo por raiva
de ter morrido - entao os deuses os matam·. As almas masculinas sao
flechadas; as femininas tero simplesmente seu pesco~o partido.· Is to
é justo: os mortos se comportam incivilmente em terra alheia, ne-
gando-se a estabelecer rela~oes - com os denos do céu - sobo único
modo possivel para um estrangeiro-inimigo: dar o que tem, como si-
nal de boa vontade.
Os Araweté sempre comparavam essa recep~ao agressiva dos
Ma! aquilo que eles mesmos faziam quando deparavam coro algum ca~a­
dor kamara em seu território, poucos anos atrás. E diziam: os Ma!
fazem conosco assim como fazemos cdm voce, toda vez que vocé che-
ga aqui - pedem presentes, gritam excitados, arrebatam nossas coi-
sas •.• Mas como os ha'o t11e sao avaros, e as almas femihinas sao
hama haihf - "esquivo-ciosas da sua vagina" -,. eles nos matam41 . o

518
entre outros

(41) Note-se aí a i.rOnica propagarila "subliminar" que meus anfitri0es faziam,de


seus direitos sobre minhas ooisas e de meu dever de cede-las.

morto, no céu, é assim o estrangeiro, o ininíigo. Como se, do ou-


tro lado do espelho da morte·,, os deuses fossem o "nós", e os huma-
nos o inimigo ~ urna variac;ao barroca do principio geral de que "o
morto é o inimigo", válido para aquelas sociedades que encaram a
morte como urna deserc;ao para o "outro - lado", o campo inimigo (Car-
neiro da Cunha, 1978: 143-ss.; H.Clastres ; 1968; P.Clastres, 1972:·
301; J.Henry, 1964: 68-9; C.Hugh-Jones, 1979:113; Lévi-Strauss ,
1955: 264-ss.; etc.). Mas urna variac;ao significativa.
Nao apenas por essa avareza, inadmissivel quando se está en-
tre outr~s, os mortos sao tratados ~orno inimigos no céu. Os deuses
manifestam urna dupla "ira" em relac;ao as almas: eles ficam -
nara-
ha'o we rehe, com raiva das almas, pelo fato de estarem mortas
- urn morto é feio, cheira mal, e é ele mesmo um ser colérico (ñara),
-
por ter sido separado dos seus, ele recalcitra em aceitar sua
nova condic;ao -; e ficam ñara h~'o ?Je re, com·raiva"pelas almas,i!
toé, cobic;am-nas avidamente, querem-nas para eles. Os deuses ha'o
we p~ta het?, "desejam muito urna alma".
A solu<rao desse desejo ambivalente é a morte e devora<rao. E-
xecutadas, as vítirnas sao esquartejadas e cozidas em urna grande
panela de pedra (ita ña'e). Quem realiza essa opéra~ao é a Ma-e

d.ari, a '"Avó Ma!" - um simétrico da "Avó Terra" canibal. Todos os


deuses" e mortos-virados-divindade, comern esta carne da alma. Sua
pele foi previamente retirada, e po~ta a secar ao sol; ela é guar-
dada como urna espécie de troféu pelos M~f, e os cantos xarnanísti -
cos rnencionarn freqüentemente o zumbido das mamangabas-eternas que
pousarn sobre estas peles. Os ossos das almas devoradas sao cuidado

519
araweté: os deuses canibais

samente separados e ar~urnados (mo-noa) - e nesse cuidado os Mal


. . . .
contrasta.ro corn os lñi,
que roem os ossos do cadáver terrestre e/ou
-- 42
dispersam-nos. A partir desses ossos , a divindade Tiwawl ou seu

(42) Todo o esqueleto, segunOO cilguns; scmmte o oonjunto aroplata-úmero, segU!}


do out.ros. Neste Últirn:> ca.5o, -isso evoca.o rostume.dito tradicional dos matado-
res Araweté, de daflcrarem can a aroplata-úmero do inimigo durante o op-p;rahi. ~
norativo, ¡:)endente as 00Stás em ~- enfeite decorado a:m penas de nergu.lháo.
0

irrnao Na-Ma! recornpoern xamanistica.rnente o corpo da alma, agora li-


vre de toda carne "humana:". Em seguida o ressurrecto, ou re-compo~

to, é carregado (o gesto é o de carregar urna crian~a adormecida)a-


té o od.fpfd.aka, um banho de água efervescente, i.e. que ferve sern
fogo, que lhe "troca a pele" e o "revive", tornando-o forte, jovern
e belo. Tornou-se um Ma!. t entao pintado com jenipapo - ·no padrao
ip~df me'!, gregas finlssirnas que cobrern o corpo todo-; as rnulhe-
res tern sua vulva pintada. A pintura negra reluz sobre a pele rnui-
to branca, nova, ·e o corpo brilha-fulgu:ra. Doravante, as almas sao -
imortais, ou rnelhor, sao eternamente jovens: assirn que corne~am a
envelhecer, se as mergulha no od.!ptd.aka, e trocarn de pele, os den-
-
tes rebrotam, o penis-. .
recupera - 43 • Essa
seu poder de erec;ao "hacia

( 43)Od!pf&ika se analisa em: o, prefixo de 3a. pess. ; d.!, prornre reflexivo ,•


p!&l, aeScascar, perder a pele; ka, factitivo-causativo. Trata~se assim de
-
"descascador de pele". As baratas,
.
um
as robras, "vários artrópodes sao .cognanina-
dos otifp!tial<a ña, "Senl'x>res da troca de pele", por rrostraren essa característi-
ca, e nisso
.
soo "sinOninos" dos Mal.
- Este é um tema clássioo qa mitologia
.
Tupi-
-G.la.rani. A associ~ dos Ma! c:an a pedra e a troca de pele remete ao a::rtplexo
da "Vi:da Breve", analisado n'O c:ru e o Cozido CLévi-Strauss, 1966:152:-177; cf.
especialmente o "cha:macb da pedra"). Por seu lado, o tema do cozimento ou banh:>
rejuvenesoedor :runa água que ferve sen fe<;p se .acha identico em un mito Kayabi
da "vida br~" (Grünberg, 1970:186-7). Entre os Tapirapé, é um pote de água
realmente fei:Vente que faz os g8neos mítioos c::rescerem subitarrente (Wagley,1977:
179-':80). O banl'x> na "água mágica" de Mair se liga a inortalidade e a troca de

520
entre outros

pele entre os Kaapor (Huxley, 1963:226-7). ·.Aqui ainda acham?s outro notivo es~·
tológiro Araweté: o "enccrrpridanento" dos nortos, oper~oo a que sao sul::ITetidos
por Mair (lcx::.cit. ) . Os Araweté dizan que o ha'o we , ao sair do rorpo, é peque-
no cCm:> un rato; assim que ele chega ~s céus o Senhor dos Unlbus o "espicha"
(ipih~). De nod:> geral, os deuses e almas celestes sao ben mais altos que os hu
IllélIX)S, e o banl'X> mágiro faz-oos c:rescer - cf. a idéia de que "saros c:rian«;as" ,
. . .
p. 195, nota 10. Nos Wayapi, terros urna ncdernizat;ao da fervura san fogo, oozi -
rrento atenuado: ao chegar ao céu, os nortos "estao sujos e podres, mas a! tanam
banho can sabao e ficam igual gente" (Gallois, 1985: 183, citando um indio). A
esp.m do sat>ao parece .
substituir a efervescend.a a frio da hacia das almas Ara -
weté; e a expressao "igual gente" replica a bfde r?, "o que será gente" - aqui-
lo que era cx::rro um cadáver se torna cx::rro um vivente, após o banlx:>. Já os Ai<Me-
té se nostravam absolutamente fascinad::>s pelos remédios efervescentes dos bran-
cns; os funcionários da FtNAI c:reditavam esta obsessoo a um antigo chefe do Po~
. .
to, viciado nos "sais de frutas". Na verdade, os indios viam nestes produtos
una annstra - nao sei se real 00 s:imbólica - da água odfpfti.aka, e a:xro tal urna
panacéia universal, que os ajudava a "digerir" Cmo-t1Cl1J)e ) a canida assµt cx::rro(di
ziam) o banho mágiro "ressuscita" (que tanDém se pode dizer mo-!:JQ2i)e, "fazer
-
passar", "acordar") os noitos.
o tema da recx:riposicrao das carnes a partir do esqueleto é outro clássioo da
rnitologia sul-americana. Reneto apenas, no cx:mtexto ~' ao Deus-Jaguar Shi
paya, Maru8Cl1J)a, espécie de Zeus-Aguia de PLaueteu, que está eternamente a devo-
rar, e a recx:ripar para redevorar, a carne dé seus inimigos nortos, nrx;rueaó:>s (Ni
muen:Jaju, 1981:22).

das almas" é comparada as depressoes circulares de pedra que exis-


tem nos lajeiros do Ipixuna (onde .os peixes sao mortos a timbó); e
a água efervescente é uma figura de compromisso entre água estagn~
da e água corrente: ela gira em círculos, seu ruido é como o de
urna cachoeira, mas nao se trata de um rio, e sim de urna "bacict' (ver
Carneiro da Cunha, 1981:168-70, para a oposi9áo água corrente/es -
tagnada ,· corre la ti va a vi vos / mortos, entre os Krahó; a imersao dos
mortos Araweté numa água circulante signif icaria um processo ini -
ciatório, se estendermos aqui a associa9ao Jé entre imersao em -
a-
gua corrente e matura9ao). Essa água mágico-revitalizante, que

521
araweté: os deuses canibais

ferve sem fogo embaixo, é urna inversao simétrica do "moquém dos


-- ....
A o túmulo, aparelho de apodrecimento que "assa" com o fogo em
n-z.. '
cima.
-
Alguns xamas importantes afirmam que as crian9as pequenas
- i.e. aquelas que nao liberam um ta'o we terrestre - nao sao devo
radas. Elas sao esfregadas com o sumo da fruta a~a a! oho (um tipo
-
de ara~á?), que lhes troca a pele, e sao postas logo no banho res
suscitador. Fica claro, aqui, que aquilo que os deuses matam e co-
mem, no céu, é um equivalente do ta'o we terrestre - o aspecto mor
tal / rnortlfero da pessoa.

O banho de rejuvenescimento, bern corno o prévio cozirnento e

devora~ao dos rnortos no céu, sao responsáveis pelos trovoes ou


trovoadas longlnquas. Após· urna morte, e mesmo bastante tempo de-
pois dela, meteoros diversos, como o arco-iris, trovoes, raios ,
etc. sao interpretados corno Indices de processos de transforrna9ao'
dos mortos no céu. Sempre que trovejava forte, o cornentário era:
"cawa M~! deml-tio pe" - "alguém acaba de ser devorado pelos deu-
ses". (Ver os pichua Aché1 sinais celestes-meteorológicos das al-
mas dos mortos - P.Clastres, 1972:231).

A devora~ao da carne da alma rnorta, e seu "cozimento" ressus


citador - ou seja, um duplo cozimento, que replica o duplo apodre-
~imento do tafo we terrestre, devorado pela terra e depois trans -
formado em "gambá rnorto" - sao essenciais para a desintegra~ao e
re-sintese definitivas do morto, isto é, para sua transforrna9ao em
divindade e conseqüente olvido dos vivos. Tal processo é demoradp,
e coincide parcialmente com o apodrecimento do cadáver na terra

- no e ntanto, ele é concebido como independente deste último; -


nao
se trata aqui de articular a corrup9ao do cadáver diretarnente a

urna "purifica9ao 11 da alma (Bloch & Parry, 1982:26). A necessidade

522
entre outros

do canibalismo divino reside justamente no fato de que o apodreci-


mento nao é suficiente para a transfigura<raO da Pessoa.
Mesmo . quando se considera que o ta'o we terrestre se extin-
quiu, os perigos nao acabaram, para os viventes. Durante muito tem
po a alma celeste de um morto produz um efeito de "suc~ao" nas
dos viventes, levando estas atrás de si para o dominio dos deuses.
As primeiras descidas de urna alma divinizada a terra, mediante os
xamas, sao também devolucroes das i de seus filhos e conjuges, que
escaparam em sonho atrás daquela. Os xamas precisarn convencer a
alma a abrir mao de seus parentes; e sublinharn (para quem? •.. ) a
nova e espléndida situa~ao da alma, agora casada com um deus, ela
mesma urna divindade, um Mal da'i ou uma M~f daiyi, um deus macho
ou femea. Se, ao chegar ao céu, os Mal precisaram mentir para a al
- -
ma, afirmando-lhe que seus filhos estavam lá, agora nao é mais men
tira: devorada e renascida, ela leva uma outra vida.

Nao obstante, muitasoperacroes imone, de re-assentamento das


;, sao feítas, pois uma alma recém-divinizada funciona integralrnen
te como um Mal, a saber, exerce um fascínio irresistível sobre os
viventes. Quem nao esquece os mortos sao os vivos, sabem no fundo
os Araweté. A razao mais freqüente para urna marte "natural" é exa-
tamente isso: Ma! demiyika ptta mo, "por desejar (o mortoJ estar
comos deuses". Esta espécie de "saudade do futuro" é a perdi<;ao
secreta de todo vivente. O apego do morto
I
a terra é urna bela racio
nalizacrao - a~é certo ponto - deste impulso para o alto que move
imperceptivelmente toda alma humana.

Entretanto, dizern - desejam - os Araweté que, após a trans -


forma~ao em divindade, após a devora9ao e o banho da irnortalidade,
a raiva-cobi9a do rnorto cessa. Ele torna conjuge celeste, e se diz
que a "alegria celestial" (i~a tori) - i.e. as rela9oes de aplhi-

523
araweté: os ~euses canibais

pi ha que ele cria no céu - , bem czomo os perfumes ("pfd:C-pftit "'ª,ter

mo "esotérico" para os perfumes divinos) de que seu novo arilbientel


está impregnado, o · fazem esquecer da terra. o ·@tifpftiaka, assim, e
um banho de esquecimento, e a devorac;ao, ao fixar o morto no céu ,
substitui a idéia comum em outras · escatologias, · de que é o aceitar
a comida dos espirites que marca o ingresso definitivo da alma . no
-
mund o d os mor t os - aqu i , e-se · • p or sua vez, os, per f wnes
a comi. d a 44

(44) Ver carneiro da o.mha, 1981:162, 166, para o banho do olvido Krahó, e o te
ma de aceita~ de cx:midá pelo mekál::Ó.

celestes, em .sua func;ao amnésica, se opoem claramente ao "fedor


da morte", o cheiro da carne podre, ·sitio das memórias do passado.
O "odor de santidade", se podemos falar assim,. é ·o sinal de urna
"re-enc·arnac;ao" sob -novo modo ontológico, a O±vindade incorruptí -
vel, capaz de ·esquecer.. Vemos finalmente qual é o sentido Último
.. . 45
do provérbio Araweté sobre· a memoria -dos ossos • Nao é bastante '

(45). Que inverte o esf~ Glarani de "fazer a:m que os ossos pennanec;am a es~
ta" (H.Clastres, 1978:104) - ·mas inversao can o nesno objeti'vo: ressurrei9ao,su
pera~ da condic;ao·humana.

que os ossos do cadáver terrestre se lirnpem de carne, para que - o


morto deixe os vivos: é preciso .ainda o canibalismo divino, o con-
swno dessa "carne espiritual" que te·rn as · almas chegadas ao céu, p~

ra que, do puro esqueleto, renasc;a um deus ·sem memória. Transfor-


mar-se em divindáde, é esquecer. ·o canibalismo é uma - operac¡:ao espi
ritual - e,porque ela se realiza, é que os Araweté dao pouca ·impor -
tincia aos ossos terrestres, deixando de elaborar sistemas vis!
veis de ·"segundas exéquias" ,· ''culto dos. ossos", etc. Se o ta 'o we
terrestre representa. um inegáve~ perigo; a transforma~ao natural '

524
entre outros

do apodrecimento termina por aniquilá-lo; já a alma celeste, a Pes


soa própria, essa exige urna alquimia mais rápida e complexa: imor-
taliza~ao com esquecimento. Vemos também que, invertendo o tema pi
tagórico da anamnese como identificayao ao divino (Vernant, 1965 ,
I: 80-107), os Araweté propoem urna amnésia propriamente divina, su
blinhando sua funyao "purificadora" e sua ·fun9ao de compromisso
como futuro. Impede-se aqui ·uma indesejável nao-desencarnayaO - a
derencia aos viventes -, median-t e a transformayao do morto naq.u ilo
mesmo que lhe devorou a memória: um deus canibal, outro Outro. An
ti-aletheia.
Nada disso é assim tao simples. Nem os mortos esquecem tao '
depressa os vivos, nem estes querem abolir drasticamente o lac;o
que os liga aqueles. Por vários anos os xamas trazem terra o mor a
46
to, fazendo com que pise novamente sobre seu antigo solo , venha

(46) Mo-pira ytpe i wi i:h!, ''faz.e%: pisar novamente a terra", se diz éb ato xama-
ni.stioo de trazer um norto, o que envia aD mo-pyro G.Jarani, que designa o ato
de~ de una alma-palavra divina em \llTla crian<¡2 (caó::>gan, 1950:244).

comer com os vivos, venha narrar o que ocorre no céu, venha falar
com os parentes que deixou, e venha cantar o júbilo do Além. Um
dia, após irem-se tornando infreqüentes, cessam seus passeios - e-
ai, quando os vivos realmente esquecem o morto, que este é dita es
quecer os vi vos. Ele se transformou em um Maf gené.r ico, e igualmeE_
te num genérico "ancest_r al" (pi:r~w? 'ha) • Resta seu nome, que poc;le
entao ser reposto em uso. Morreu enfim, de certa forma: findou o
trabalho do luto.
Mas até lá, outros martas terao surgido. Os mortos sao neces
sários aos vivos. O canibalismo celeste e a diviniza9ao nao sa~

apenas uma trapay_a piedosa com que se quer convencer os mortos de

525
araweté : os deuses canibais

que eles estao bem, e ~ue portante devem nos deixar em paz. O xama
nismo , por s eu lado, nao se resume a urna luta com os mortos pela
alma dos sobreviventes. Ao contrário: através dos mortos, os vivos
conseguem se relacionar com os deuses. Se os mortos sao outros, P!
rigosos por extrairem os vivos do Real, do presente, sao também
urna ponte e um penhor preciosos para a re-presentif ica~ao dos dese
jados, dos Ausentes: os Mal, os verdadeiros Outros, que nos abando
- -
naram no come90 do Tempo, criando por exclusao a condi9ao humana ,
essa que a marte supera em si ~ por si. Os mortos nao sao necessá-
rios aos vivos para tranqüilizá-los, oferecendo-lh es a imagem de
urna existéncia impossível ou indesejável. Nao: eles sao um vislum-
bre do sobre-humano, e realizam plenamente o destino da Pessoa Ara
weté - tornar-se o Outro, o Deus, o Inimigo.
Mas antes de pormos de frente o enigma do canibalismo divin~

vejamos como os mortos se apresentam na vida Araweté. Para isso, é


preciso olhar para o xamanismo e a guerra.

3, A PALAVRA ALHEIA: O OUTRO COMO MÚSICA E SEUS CANTORES


1

Th e re are n o o th e re in eterni t9.


(M. Bloch & J. Parry)

Estendemo-nos, na se9ao anterior, sobre os valores s imbóli -


cos do ta' o we terrestre, ex-pessoa definida pela ausencia . Veja-
mos agora o modo de presen9a de bfde ra'o we, a alma dos homens
que se transforma ero Divindade.
As almas se casam no céu, coro os ·Ma! . Mesmo se marido e mu -
lher morrem juntos, separar-se-ao; após a rnorte há um recorne~o , fru

to da ressurrei9ao. Novos filhos, nova vida . Mas n ao se perdem , por

526
entre outros

isso, as vincula9oes afetivas e de parentesco com os humanos na


terra. Ao contrário, os mortos sao os peces no estabelecimento de
rela9oes de alian9a entre os humanos e as divindades~ Nos cantos
'
xamanisticos, é coI'l)urn ouvirmos o xama tratar e ser tratado pelos
Maf conforme o vocabulário da afinidade: o deus é urn cunhado, urn

genro, um marido da mae ••• Se o morto; no céu, é wn estrangeiro-a


f im., que· realiza a máxima exogarnia - teogarnia - , o importante é que
ele transforma os Maf em afins dos vivos. Aqui, ao contrário do
sistema Tupinambá, primeiro se mata e come o inimigo, para depois
torná-lo urn afim; na verdade, urn semelhante, um deus. Os que se
tornam afins, propriarnente, sao Os deuses e os vivos. Engenhosame~

te, os Araweté puseram o canibalismo - essa "negacrao da alian9a"(H.


Clastres, 1978:47) - a servi90 da impossível alian9a entre o cé~ e
a terra.

A questao, portante, nao é simplesmente a de saber se "há ou


tres" no Além, se a imagem do Outro Mundo espelha, inverte, sancio
na ou consola o modus vivendi terreno. Bem, de toda forma a cosmo-
logia Araweté parece contradizer a difundidíssima equa9ao- mor te=
=fim dos afins ·que, para bem ou para mal, redu9ao ao absurdo ou so
nho secreto, marca a escatología de quase todas as sociedades huma
nas. Semelhantes nisso aos etnólogos - para usarmos urna sorrateira
peti9ao de principio lévi-straussiana (L.-Str., 1955:264) -, as s~

c·iedades primitivas · dos mais di versos rincoes do planeta afirmam ,


diretarnente ou a contrario, que a dif eren9a e a alian9a sao a con-
di9ao necessária da vida soc·ial; e assim o Além, libertando-os do
demasiado humano da troca, reconduz os homens ao mundo do Mesmo •

Mundo em que, finalmente absorvidos em sua unicidade ou dissolvi -


dos na generalidade, os mortos oscilarn entre o incesto e o auto-ca
nibalismo, de urn lado, e a ausencia bendita de desejo e de necessi

527
araweté: os deuses canibais

dade de outro. Mundos de extremos, em que toda diferen~a é abolid~

seja porque se fixam e tornarn incornunicáveis as diferen~as que a

vida entrela9ava, seja porque as categorias sociais se confundem '

num "caosmos" assignificante. De um modo cu .de outro, excesso ou

aus~ncia de dist~ncia, o que o mundo dos mortos desenha é o social


pelo avesso: sinistra ou bem-aventurada identidade indiferente. E

isso é, sub .specie, Xavante (Maybury-Lewis, 1967:291) , _ Krahó (Ca!

neiro da Cunha,1981), Tukano (C.Hugh-Hones, 1979), Piaroa (Kaplan,

l981,1984b - mas ver Riviere,1984:113), Xinguano (Viveiros de Cas


tro,1977)¡ e Merina, Dobu, Melpa, Girni, Hindu ••. (Bloch & Parry,

1982). Seria qui~á universal, a julgar pela freqüéncia com que se

evoca o célebre final d'As Estruturas Elernentares do Parentesco -


essa Crítica da Razao (Pura) Sociológica que, depois de ter leva

do os homens ao tribunal simbólico da reciprocidade, concedeu-lhes

o imaginário sursis do incesto póstumo.

Nao se ousa aqui ignorar o óbvio, nem desqualificar a valida

de geral e imutável do principio .da reciprocidade, ou do papel co~

solador da ideolog.ia. Mas há outros na eternidade Araweté. Aliás,

só há outros - e isso é bom. Em outro sentido, contudo, o aforisma

poste em epígrafe se m~ntém de pé, e os Araweté nao surgem afinal

corno tic "anómalos" assirn. Pois a marte cancela de fato a Diferen-

~ originária, aquela que cumpre superar: o canibalismo divino

transforma os humanos ero divindades. Por sua vez, se no Alérn há

afinidade e procria~ao 47 , o modo privilegiado de rela9áo entre os

(47) Relativize-se a generaliza.~ um tanto apressada de Hunphreys (1981: 275),


~rtanto. t

mortos e os deuses, pressupondo casamento ( logo afinidade), segue

o estilo de ti anti-afinidade 11 do sistema aplhi-piha - é. is so que irn

528
entre outros

porta aos olhos dos vivos, pelo menos; ninguém se interessa muito,
por exernplo1 pelo.s filhos celestes das almas. E rnais, as rela9oes
de afinidade e parentesco entre os · mortos nao sao irnportántes ern
si. Ernbora as rela~oes vigentes na terra se mantenham (exceto, si~

ni·f icativamente, o casaJnento - m~s pares de cunhados, país e fi -


lhos, marido e ·mulher pod.em surgir no mesmo canto xarnanistico), os
rnortos se "dispersarn" ontologicamente, tornados outros, divinos •

Nao há propriamente mortos entre si e "para ·si", mas apenas media-


dos pelos deuses.
Mas há rnortos para os vivos. E por isso a questao é menos a
de indagarmos do destino da af inidade no Além e seguir entáo in-
dagando qual a correspondencia analógica entre rnortos e vivos, se
reflexo, se inversao, se san9ao - que a de perceber a funx~o cosm2
lógica ativa cumprida pela afinidade . na rela9ao E2!!! os deuses. Nao
se trata de um· problema "especulativo" para os Araweté, mas de .urna
questao estratégica, essa da rela9ao v·ivos~mortos. Eis ainda PºE.
que eles · nao cuidam mµito em elaborar um dfscurso sobre as rela-
9oe~ inter-mortos - como tampouco o . faziam sobre aquelas inter-vi-
vos -; o que interessa sao as rela9oes entre-outros: vivos de um
lado, · deuses do outro, os mortos e os . x.;i.rnas- no m~io. Os deuses Ara
weté . sao os. af ins - nao sao a comida, como os cunhados Tupinambá ,
mas os canibais em Pessoa, conforme a peculiar visao invertida dos
Araweté, que se olham com os olhos dos deuses: ~re Mai deml-do r-i.
...

- "somos o futuro alimento dos qeuses"¡ mas seremos os deuses. Ve-


-se, p~r fim, em que e corno a "cosmologia__" Araweté é diretamente u
ma sociol9gia, e nao um fantasma seu.

(A) O Xamanismo e a Música dos Oeuses

Os deuses e os mortos sao .música, ou ·m úsicos: mardka me'e •

529
araweté: os deuses canibais

O modo de rnanifesta9ao essencial destes Outros é o canto, e seu


veiculo é o xarna. Urn xarna é um Ma-C de r~pa. , "suporte-lei to para os
Ma!,'' um Ma'l deaaka, "vidente dos deuses 1148 , urn ha 'o we mo-ñiña ha,

(48) Cf. o Guarani jeahaka, de forma idéntica, que Cadogan (1959:18; também H.
Clastres, 1978:106-7) traduz por coisa visível, reflexo, manifest:arao,epifania.
Talvez se pudesse assim fazer· o epíteto do xama Araweté significar "reflexo da
Divindade", "aquele que rranifesta a Divindade", a torna vislvel. Na verdade, pe:>
rém, o xana a torna a'lrlivel. Ele ve, os demais ouvem.

"o que faz cantar as almas", e, por firn, urn me'e pe110 ha, "benze-
dor" (lit. "o que faz ventar [corn o rnovirnento do chocalho] sobre '
as coisas") •
Só os hornens sao xarnas. As mulheres, ernbora sonhern e assirn '
vejamos Mal, nao podern interagir corn estes - se se atrevessern a
cantar, i.e. a conversar coro os deuses, eles lhes quebrariarn o pe!_
co90. Isso significa que só os homens sao capazes de controlar a
excorpora9ao, corno vimos {p.453). Masé algo mais: só os home ns
sao xarnas porque as rela9oes deuses-humanos sao concebidas sob urna
ética masculina: as rnulheres sao o objeto, ocuparn o lugar do morto
- penhor da alian9a, nao parte. Elas sao a comida predileta, ern arn
bes os sentidos, dos deuses. Por isso, o "rnorto ideal" é urna mu-
lher, a marte um movimento feminino, na medida ern que ser devorado
é urna posi~ao passiva. Os homéns podem ir ao céu sem ser (estar)ITOE
tos, e voltar - os xarnas -; ou podem ficar no céu sem ser devora-
dos - os guerreiros. As mulheres nao resta·senao calar na terra e
serem comidas no céu. Mas, se as rnulheres vivas nao cantarn - ape-
nas repetem as can9oes mara mi re, ' já postas por wn hornero-, as
martas cantarn um bocado, pela boca dos xamas.
Nao há inicia9ao ou "chamado" formais ao xamanismo. Certos
sonhos, se freqüentes, podem indicar urna voca9ao xamanística - es-

530
entre outros

pecialmente os sonhos. com jaguares e com a "Coisa-On9a" ce~este ,


.. ..
- e, mais que
que e dita mo-pey! mo , "xamanizadora". Mas um xama um
ser que sonha, alguém que fuma: pe·t; a- i. , "nao-comedor de tabaco",
....

..
e
4

o modo usual de designar um nao-xama. - o tabaco e.. o emblema, o


instrumento de fabrica9ao e de opera9ao do xama. o treinamento xa-
manístico consiste em um longo ciclo de intoxica9oes por tabaco, ·~
té que o homem mo-kidaha, se fa9a translúcido, e os deuses "che-
guem" (i wahe) até ele.

O tabaco é onipresente na vida cotidiana Araweté, e todos fu


mam socialmente - homens, mulheres, crian9as. Os charutos de 3-0
centimetros, feítos de folhas secas ao fogo e enroladas em casca
de tauari, sao uma coisa social por excelencia. o primeiro gesto
de recep9ao a um visitante é a oferta de urna baforada no charuto
da casa, aceso expressamente para isso, e após urna refei9ao coleti
va o tabaco corre de. mao em mao. Jamais se pode recusar um pedido
de tabaco, e jamais se fuma sozinho, exceto no xarnanismo (mas
se divide o charuto comos deuses). Quern acende um charuto tem de
compartilhá-lo.

Se todos fumam, apenas alguns hornens sao "comedores de fumo"


- xamas. Urna das ocupa9oes noturnas favoritas dos Araweté sao as
sessoes coletivas de embriaguez por tabaco, que servem também para
ir "tornando transparentes" os xamas iniciantes ou candidatos. Noi
tes a fio, cada vez em um pátio, boa parte da aldeia se reunia pa-
ra tal propósito. O dono do pátio era quem fornecia o tabaco, e
alguns homens eram vistos como os tenetamo da sessao - i.e., eram
aqueles que receberiam as doses mais maci9as do narcótico. Nas se!
soes de "comer fumo", sempre realizadas em completa escuridao (afo
ra algurnas brasas para acender os charutos), pois o tabaco aborre-
ce a luz e · pode produzir ha.pi, fulrnina9oes, os homens sao servidos

531
araweté: os deuses canibais

por outro·s , e especialmente pelas mulheres - esposas ou dplhi. Is-


to é: eles nao pegam no charuto, -que lhes é pos to na boca por ou-
trem, ao modo do cauim alcoólico. Este é o gesto chamado de mo-
-petem~, que designa também quem foi o "iniciador" de um ·xama: o
mo-petem~-ha do xama é aquela pessoa que lhe intoxicou por tabaco'
até que ele atingisse a translucidez necessária a visao.
Muita gente - mulheres inclusive, e · até xamas experientes
- se embriaga assim nessas sessóes, e desmaia; morto pelo tabaco •
Com o passar do tempo e o correr dos charutos, corne~a-se a ouvir
grunhidos de sufoca~ao, tosse e vómitos _f uriosos (preparam-se . cas-
cos de jabo~i especialmente para isso). Mas um individuo, .sobretu-
do quando se trata de urn .''fumante ~ovo" (petemo iiah~, : xama .ini-
ciante), só pára de .s er "enchido" 49 de fumo quando desfalece. o

(49) Mo-pt~, cat0 se· diz da adrrdnistrar;ao de cauim aostonens, e das grávidas
enchidas can o semen masculino. Ptri:a é a palavra para "prenhe" (cf. Tupinambá'
puruabore) •

ambiente lembra o das cauinagens, com a diferen~a que nao ~~ canta


nern se fala alto; ouvern-se apenas os estertores da intoxi~a~ao. Os
. . .
Araweté corno um todo demonstrarn urna forte atra9ao por experiencias

dess·e tipo: embriaguez de cauim, narcose .de tabaco. Eles gostam


muito de "morrer" dessas coisas.
Mas o tabaco, se é um "matador de gente", é téimbém um ressus
citador essencial. Sua fuma~a
é um. 'dos principais instrumentos dos
.
- - ou seja, daqueles que, por experientes, nao morrem
xamas . -
mais
coma droga - para despertar os desfalecidos 50 • Como já vimos, é a
' .

(50) Ver Wagley, 1976:255-6,. para ~denticas ses,s0es


ooletivas de intoxica~
por tabaco, visando induzti o sonho entre os candidatos a xam3s Tapirapé; e op.
cit.: 262, para a expli~ de CXll'C os xarras· ressuscltaln após teren sió::> rror -

532
entre outros

tos pelo Trová:>: 14


NÓs norrem::is e o tahaoo restitui-J'X)S a vida. San tabaco, o
Trovao oos matar.ia". Aprineira coisa que os Ma-C
- pedem oo xana é urna baforada
.
1

de seu charuto.

fumac¡:a de tabaco que ressuscita os mortos no céu. Esta substancia,


. .
em suma, é um conversor ontológico de "mao dupla", efetuando pass!
gens morte-vida vida-morte e um transformador Natureza-(Cultura)-
-Sobrenatureza, como no mito de criac¡:ao dos animais (supra: 224-5,
347) •

Além do processo de impregnac¡:ao por ·tabaco, os xamas novatos


costumam lanc¡:ar mao do pagika, o alucinógeno Anadenanthera peregri
~' que é torrado e misturado ao fumo dos charutos. Essa droga é
muito potente, e capaz de fazer o homem mais "ignorante" (koa i')

ficar transparente e enxergar os deuses. Mulheres nao a consomem


nunca. o paricá e o tabaco, além de "diafanizadores" eflcazes, sao
designados por expressofts que sublinham seu . caráter mortífero: "di
visores da cabe~a ao meio" (dac? iwauarf! ha), "bordunas-martelos"
(dacika ha), "dissolvedores da terra" (iwi k~e ha, ci=. o tema do
- -
dilúvio, p: 185). o uso do paricá, entretanto, nao é obrigatório 1

nem muito difundido. Os xamas mais velhos afirmam nao carecer del~

poste que os Mal já passaram definitivamente para "dentro de sua


carne" - eles estao, por ass~m dizer, i~pregnados de divindade.Mas
o fumo é indispensável, sempre.

Os xamas iniciantes devem-se abster '(ikoako) de sexo e de al


guns alimentos: tatus-canastra ("cheiram mal"), comidas e condimen
tos estrangeiros (sal_, ac¡:úcar, Óleo), e especialmente de fi.·utas
cruas (comern bananas assadas). Todas estas coisas, notadamente o
sexo, ºquebram a transparencia" (ki11ahf! hana), "apagam" (ie} o xa-
-
ma, e fazem-no "ficar" (-pita). A idéia de "apag~r" se refere ao
fato de que a pele dos xamas iniciantes brilha continuamente, e dá

533
araweté: os deuses canibais

choques corno o poraque (aos olhos dos outros xarnas) • Essa lumines-
cencia é atribuida ao tabaco, que é urna "coisa que ilurnina"Sl e

(51) Me'e e~e ha. Nunca se fora pontas funadas de charuto, ou oos •
deve jogar
perderos na mata. Ver a nesma ~entre os Shipaya, oo oontexto de treinanen
to xamanlstico - Nim.lendaju, 1981:12. Isso marca o tabaco cx:rco um "m:>stra-carni-
ntn", que oos orienta até a divindade.
Se os xarnas experientes tan os deuses "dentro da carne" (ha'~ iwe), isso nao
significa que os Ma! nao se apresentem caro seres reais, hiro, durante as ses-
sOes xam:mlsticas. Mas para os novatos, os deuses sao SE!!'Pre hirq__, isto é, sao
ainda a::rrpletamante exteriores.

urna "coisa dé revela<rao-saber": me'e koa ha. "Coisa de saber" é tu


do aquilo que nos pee ern contato com os M~f - o que inclui os so-
nhos, a morte, e os estados de choque por doen<ta e ferimentos. As-
sim, por exemplo, a pessoa mordida por urna cobra venenosa é visita
da por urna ''coisa de saber", o ha 'o we do animal; e aqueles homens
que escapam de morrer desse acidente sao candidatos a xama (do ti-
po hewfd! me'~, que fazem chover - supra:446).
Tudo isto pode nos levar a conceber o xama Araweté como um
"wounded surgeon", um doente-morto que voltou, experirnentou a ex -
corpora<tªº e a controlou. Mas tal noyao nao é rnuito elaborada, ao
contrário do que se encentra em outras sociedades - como as Alto-
-Xinguanas, por exemplo (Viveiros de Castro, 1977: 223-229). Tam-
pouco se acha a idéia de urna "fabrica~ao" ou inicia<tªº do xama por
algum espirito ou divindade em particular. De modo geral, nao exis
tem espirites tutelares ou familiares dos xamas: há urna
genérica de todo xarna com todo o universo sobrenatural. A Única
forma de especializa~ao que encontramos residia no fato de que
certos xamas realizam preferencialmente alguns tipos de benzimento
alimentar - que envolvem d.i vindades específicas - , e que alguns

534
entre out ros

nao "sabem" (koa) benzer o cauim alcoólico. Mas nenhuma razao era
aduzida para isso; há xamas polivalentes, e nao sao necessariamen-
te os mais prestigiados. Os critérios de avalia9ao da qualidade de
'
wn xama sao de ordem essencialmente estético-teológica: a beleza e
complexidade de seus cantos; nao se punham jamais considera9oes de
ordem instrumental ou de eficácia terapéutica.

Ao lado do fumo, o emblema principal do xama é o chocalho


ar~y. Toda casa conjugal - i.e. todo homem casado - tem um ar~y .
Ele pode ser usado por "nao-xamas", como instrumento para pequenas
curas, e para acompanhar os cantos noturnos de homens que, mesmo
nao considerados como pey!, véem de quando em vez os deuses. Isto
significa que todo adulto é um pouco xama, e que no limite toda u-
nidade conjuga! é urna unidade xamanlstica. Nao há um critério níti
do de separa~ao entre xamas e nao-xamas: há homens que faz muitos
anos nao cantam nem benzem nada, outros que rarissimamente tém vi-
-
soes noturnas, rapazes que apenas há semanas come9aram a cantar
- todos estes "sao" xamas. Mas apenas aqueles que cantam freqüente
mente, e benzem os alimentos, sao referidos como pey!· A capacida-
de xamanística é u.ro atributo ou qualidade inerehte a condi9ao mas-
culina adulta, e nao um papel social determinado; é isso que a po~

se do ar~u marca. Alguns hornens realizam esse potencial mais plen~

mente que outros - assim também como apenas alguns homens possuem'
o estatuto ideal de matador.

A arag é urna pe~a singular. Sua forma é a de u.ro cone invertí


do, estreito e de base abaulada, tran9ado de talas de aruma. Essa
estrutura interna é feíta pelas mulheres. Dentro se colocam peda -
~os da casca do caramujo do mato yaraci·ta. o cone tran9ado é en tao
envolvido completamente em linha de algodao, deixando-se exposta '
a base, que é a parte superior; entre esta e o corpo recoberto da

535
araweté: os deuses canibais

pe9a prende-se um fleco nao-fiado de algodao, a modo de um "colari


nho'', que oculta os pontos de inser9io de quatro ou mais penas cau -
dais de arara-verrnelha. Esse acabamento · todo é feito pelos homens.
Pronto, o aray lembra muito urna tocha olimpica, ou um artefato tea
tral do mesmo tipo. Seu som é marcadamente chiante e continuo, nao
se prestando a marca9oes ri tmicas fortes .• Embora haja urna varieda-
de de movimentos que se pode realizar com ele, seu modo de emprego
dominante nao é o de um instrumento de ritmo. Ele contrasta a.s sim
como maracá de dan9a, objeto despojado, feito com urna pequenacuí~

enchido com sementes ·de tiririca-preta ou. mictangas, e que tem urna
fun9ao subordinada de acompanha.mento. ~ possível realizar urna dan-
9a opirahé sem o marak~'i; ma~ nao há manifesta9ao xamanística. sem
o ara9, e ele pode ser usado sem que se cante, como instrumento .e
ficaz em si.

O ar~u é o instrumento transformador por exceléncia.Aray iw~

"através do aray" ~"dentro do aray", é a explica9ao lacónica e


auto-evidente para qualquer indaga9ao sobre como, onde e porque se
realiza.ro opera9oes míticas de ressurrei9ao e metamorfose, místicas
de consumo espiritual dos alimentos pelos deuses, te_rapéuticas de
re-assentamento das almas ou de fechamento do· corpo. o arae possui
urna interioridade essencial: é um receptáculo de for9as ou entida-
des espirituais, um "spirit catcher"; as almas perdidas de crian -
9as e mulheres sao trazidas "dentro do aray" até sua sede corporal;
as al.mas raptadas pelo espirito Ayaraeta ficam morando dentro de
seu ar~u (supra: 247). Neste sentido, o arae é urna espécie de "cor
po", envoltório - hiro - místico das coisas "sem corpo"; ele é a
materializa9ao e o suporte visível das l, dos deuse s e da for9a ge
nérica do xa.manismo, a ipe!J! ha. A ipege ha reside e se exerce
arau iwe 52 • o arau 1 como o tabaco, é uma coisa de saber, e urna coi

536
entre outros

(52) Este diocalho corresponde, p:::>rtanto, aos maracás Tupin.ambi: "Os selvagens'
crean numa cousa que cresre cx:rro abéoora [as arlas dos c00calh:>sJ . . . cada 00-
rren p:::>ssui o seu, particularnente .•• " (Staden, 1974:173-4). Hans Staden deixa
claro que os maracás, periodicarrente 'animados pelo poder dos xamas-profetas er-
rantes, erarn o receptáculo de espirites - quase certamente da alma de nortos -
- capazes de falar e de ·incitar os harens a guerra e ao canibalisrro. Eram ch¿:ma
dos de "rneu filho" i:or seus donos, e recebiam aten¡i5es humanas. tbtar a ~ao
singularizadora, identitária, do maracá - todo hatera p:::>ssuí.a o seu, "particular
. . .
rnente" -, e a simb51ica de substancia envolvida ("rneu ·fi}h)"). Merns fetichis -
tas que os Tupinarrbá, os Arcf.tleté nao taMrn o ªl'<EI p:::>r sede fixa ae ·espíritos 1
mas coro un corp:> mistico genérico: p:::>r outro lado, a furu;OO fáli~ cb choca1.00
é marcada. Cf. tarrbém 'lhevet,1953:117, inúmeras das O>JB, e H.Clastres,1978:47.

sa que ilumina. Ele é, allás, uma coisa ígneo-fulgurante: relarnpe-


ja e incendeia a terra, nas maos dos xamas e dos deuses. Dele se
diz ser um "continente de raios" (tata ip! niro). Ora, eis assirn '
que o chocalho é, além de um corpo m!stico, um falo: já vimos corno

a vagina e o ato sexual sao "quebradores do aray", e corno a bolsa


escrotal recebe esta mesma designac;ao de "saco de raios". Ele é, ~

demais, um emblema da masculinidade: "senhores do ar~y" ( supra:458)


pode ser posto corno o correlato, seja do eplteto coletivo ferninino
memi ña, "donas de filho", seja da sinédoque hama me'!,· "seres com
vagina" (seus possiveis recíprocos nao sao usados para .designar a
condic;ao masculina.) • o chocalho corresponde en tao ao f ilho ou a va
gina: filho-falo.
Nao há tabu quanto a simples manipula9ao do ara~ pelas mulh~

res - de resto, sao elas que fabricam sua éstrutura -¡ mas urna mu-
lher nao deve acionar u.m chocalho acabado: ele suscita os Mal, que
matariam a imprudente que a tanto ousasse. Corpo-receptáculo, e ao
mesmo tempo falo, nao seria dificil ver no arag um símbolo da cria
tividade mistica masculina, que correspondéria ao papel "mágico"

537
araweté: os deuses canibais

da mulher na criatividade biol5gica, minimizado na teori~ da con -


cep9ao e revelado por inversao na produ9ao do chocalho. O papel da
mulher na f abrica9ao do corpo-interior da pe9a como que inverte a
divisao de trabalho conceptivo, sublinhando em negativo o poder
transformador do aray. Por que outra razao o emblema da masculini-
dade deveria ser tranqado pelas mulheres (os homens sabem traba-
lhar o aruma, sao eles que fazem as peneiras), senao para marcar a
natureza "conceptiva'' do chocalho, que envolve os dois sexos? A
esta metáfora do falo, fabricado pelas mulheres (os homens "vestem"
a pe9a) corresponderia talvez a fabrica9ao masculina dos grandes
lábios, o "pinis feminino". Bem, nao gostaria de me arriscar de-
mais nesta linha interpretativa; mas creio que parece claro q ue o
a r ay é um objeto ambiguo - e se poderia assim aproximá-lo das fla~

tas Tukano e Alto-Xinguanas e de suas análogas melanésias, com a


ressalva de que o tema· e a ritualiza9ao da diferen~a homem/mulher
sao basta~te atenuados entre os Araweté. A concep9ao Tupinambá do
maracá como um "filho" nao pode deixar de sugerir que o ar~tJ esta
ria para o homem como o filho para a mulher: figuras do falo.

Nao resisto, ainda, a tentaqao de sugerir urna corrésponden-


cia entre o aray e o útero, correlata a equa~ao explícita arco =pe
nis =grandes lábios. Essa correla9ao exprimiría urna oposi9ao com-
plementar entre interioridade-concavidade criativa (chocalho, úte-
r o ) e exterioridade-convexidade agressiva (penis, lábios ) . A cerra
da cobertura de algodao da ferramenta xamánica - que inverte a si-
tua9ao do penis, exposto mas corn a glande protegida pelo prepúcio,
- o
amarrado com um fino cordao; dr~y
.
tero seu corpo coberto por todo
um novelo de algodao, mas sua ponta fica exposta - poderia ainda ,.
ser vista como um equivalente da saia-cinta íntima das mulheres •••
Tal sistema, caso tivesse sua relevancia explorada em detalhe (s5

538
entre outros

vim a concebe-lo depois que deixei os Araweté) se enquadraria per-


fei tamente dentro de urna distin9ao interna ao género masculino: m~

tador/xama, onde o xama e seu cpocalho ocupam urna situa9ao femini-


na face ao matador e seu arco. A distin9ao matador/xama tem funda-
.. .. .. 53
mento na musica e na cosmologia Arawete - como se vera agora •

(53) E a oposi9ao aroo/chocalho é pertinente. o aroo é fabricado integralmente'


pelos lx:rcens, e inplica ~ disj~ sexual marido/nulher - oo periodo de enta
lharnento e encurvamanto .da pe<;a; o sexo é proibido, ou a mu1her quebraría meto-
nimica e literalmente a arma. o clx:>cal.ho exige urna oolabora<;ao técnica marido-
-mulher - o CX>:tp:) (hete ou hiro) do instrumento é tran;:ado pela nulher, o fio
can que o .h auem o reoobre é fiado por ela -; mas .a atividade sexual posterior '
ou genérica é urna quebra metafórica do a:r><EJ (o que se "quebra" é a ccmunica.<;ao
can os deuses). Náo há restric;Oes se.xuais durante a fabrica~ do chocalho.
o.itras oposicr0es poderiam ser es~adas. O aroo é obtido :EX>r Separé500 de
una matriz maci9a, o tronoo de ipe, abatido pelo hane.m; o chocalho é p:rcx:luzido'
pela CCltPJSixao de urna natriz dispersa, as talinhas de ~, em geral ooleta -
das pelas 'm.tl.heres. o aroo é o suporte (htpª) das flechas, que sao designadas
pela dupla metonimia kano pepa, "penas de gavia:, (real)" - mesm:> as emplumadas
can penas de mutum. O chocalho é o suporte das penas de arara - seu nare é um
provável derivado de ara, "arara". Ora, a harpía é urna ave masculina - norta ou
capturada, ela é possuída pelos l'latens, e suas penas só entram na fabricac;ao de
flechas -; as ararás de est.irnat;ao, entx:::>ra capturadas· també.m pelos lxrrens, -
sao
senpre de propriedade feminina, e suas penas entram na fabrica~ de adorn:>s pa
ra ambos os sexos. Acrescente-se que, se as araras sao as aves roa.is conspicuas'
da aldeia, mundo faninino, as harpías sao o sínb::>lo do nurx3o celeste e ma.sculi-
ID dos deuses. o~, por fim, é um instrumento protetor e "centrípeto" - a-
trai e inoorpora for9as -, e quarrlo usado de nodo centrífugo trata-se de di5pe!'
sar flechas alheias. o aroo é arma ofensiva e"oentrífuga" por definic;ao.
A natureza "ferrii.nina" do arqp é obviamente relativa e relacional (face ao ~
o:>) • As penas cauda.is de arara vexmelha remeten a urna simbologia ígnea muito
difurdida entre os TG - ver Wagley, 1976:263, Huxley, 1963: 210-11, 244.

-
O aray é também movimento, e vento. Como se diz do xama, de
que ele é uma metonimia, o a'ray é me'! pe11q_ ha, coisa que faz ven

539
araweté: os deuses canibais

tar. Peyo (que em outras llnguas TG significa "soprar" - Dooley,


1982:310; Kakumasu, 1977) designa o deslocamento de ar produzido
pelo chocalho, por sua _agitayao (mo at), e por extensao a -
operacrao
de conduc¡:ao dos deuses e mortos a terra para comer. Esse vento é

algo que conduz coisas, transfere poderes e entidades- de um dom!-


nio a outro do universo.
- Ara
Com tal equipamento, enfim - tabaco e chocalho -, o xarna
weté se capacita a diversas opera9oes de prevenc¡:ao e cura, que sao
semelhantes as terapeuticas xamanisticas típicas da América do Sul:
fumigac¡:ao com tabaco (mo-c!ma), sopro resfriador (h~wawi), -
suc9ao
de substáncias ou principios patogenicos (p i t!) - empregada nas
mordidas pec¡:onhentas e na extrac¡:ao das flechas alimen.tares, etc. -,
e as operac¡:oes de fecha.mento ou tapagem do corpo e de recohduc¡:~ da

alma. Essas duas Últimas sao efetuadas · diretamente pelo · aray, o fu


mo é um acessório. Fechamento e tapagem sao realizados tanto para
impedir que substancias entrem quanto que a alma saia. O primeiro
caso envolve normalmente as crianc¡:as pequenas (semen, cauim ) ; o
segundo as pessoas muito doentes, quando entao a tapagem é associa
da a dispersao ou afastamento dos Ma! que avanc¡:am a recolher a al-
ma.
A operac¡:ao imone, re-conduc¡:ao da alma, é o oposto da tapagell\
ou melhor, é prévia a esta: o xama re-assenta a l e depois fecha
o corpo do paciente para que ela nao escape de novo.

Creio já ter mencionado que os maiores pacientes dos xamas ,


seja para fechamento de corpo, seja para imone, sao as crianc¡:as
..
pequenas e as mulheres: as primeiras porque tem a alma mal-assenta
da e o corpo aberto; as segundas porque sao o objeto principal da
cobic¡:a dos esplritos extratores de alma, e dos Ma!.
Os xamas sao ainda responsáveis por duas outras operac¡:oes já

540
entre outros

referidas no capitulo anterior: a dispe~sio das flechas alimenta -


res, e a morte de espiritas malignos. Nesse Último caso se encon -
tramos ha'o we de carnes perigosas, os de animais pe9onhentos, e
' .
54
os esplritos tetrestrés: lñi e coftgªneres, Ayaraeta e Iwikatiha •

(54) E)rbora se diga que o xama pode matar o SenOOr da Agua, todas as operé19005
de re-~ de almas roubadas por 'esse espirito nao
envolveram norte(tiap!c!)
do raptor, mas apenas O imone ha, · iSto é, O xama era considerado cátD tendo"oon
- -
venciooº a alma a deixar a casa do Senl'x>r dos Rios, lndihriando este. Diz-se
que o xama fala bai.xi.nOO, ao ouvid::> da i extraviada, instard:> para que o siga •
As vezes, porém, Iwikatiha blcqueia a porta de sua casa, e o xama precisa mat.á-
-lo - mediante o~:- para ·passar· can sua carga.

A marte desses espíritos antropomorfos sempre envolve alguém mais


.
além do xama. Este, através do chocalho e com o auxilio eventual
dos Ma!, ºamarra" (papo) os espiritas, que caem por terra. Sao en-
- ' -
tao mortos a pancadas, golpes d·e facao ou flechadas, desferidos so
bre o solo! no lu9ar para onde aponta o movimento do a~~ll· ~ a mu-
lher do xama ou o conjuge do paciente quem, normalmente, funcio.na
como auxiliar.
Assisti a várias mortes de ha'o we de aranhas e arraias, fei
tos .sem cantos xamanísticos,
. . e a apenas urna captura e morte de(qua
. -
tro) lñi que se atreveram a penetrar na . aldei~ em julho de 1981. O
xama que identificou esses espiritas pos-s~ a correr desabaladame~

te pelos pátios, de madrugada, .t entando cercá-los como aray, en-


quan t o a lternava um cant o que era a voz dos x7n-~55
~ e ou t ro que era

( 55) O canto Cbs 1ñi mencionava que eles haviam ron-ido pela mata e ao longo
oo Xingu a · ooite toda,· haviam rrerto tres tamanduás; os Añ:C chamavam o xaÍta de
"neu. netoº,. e eram. tratados de ..aves ti • Essas sao as formas usadas entre os huma
nos e varios espí.ritos, terrestres e celestes. A excec¡:.i:> sao os ~f! he te, que
erpregarn teDtos de afinidade ou o rone p:róprio do xama.

541
araweté : os deuses canibais

a narra9ao da presen9a dos Mal ali na terra, em lµta corporal com


os Añi. A opera9ao terminou com um vizinho do xama flechando os
Añi, que se tinham refugiado numa moita de curauá.
O xarna, se é um comedor de fwno e um senhor do aray, é por-
que isto o capacita a ser um suporte dos Mal, que cantarn por sua
boca. O canto xarnanistico ou "música dos deuses" é a atividade ma.is
freqüente dos xarnas, independendo de situa9oes de crise e de ri-
tuais coletivos .. Como já ·aescrevi· no capítulo I, raramente se · pas-
sava urna noite sem que pelo menos um xarna cantasse - exceto duran-
te a epidemia de gripe e após ~ morte de Awar~-hi, quan9o o carni -
nho para o céu esteve fechado: o~ deuses nao queriarn se contaminar
corn a doen9a, e além disso ninguérn podia fumar com bronquite - sem
fumo nao há canto dos deuses.

Nao há homem adulto que nao tenha cantado algumas vezes na


vida. Mas os xamas sao aqueles que cantarn quase toda noite. o can-
to é uma fun9ao do sonho e/ou da ingestao de tabaco. Normalmente ,
a gera9ao de um canto segue esta seqüencia: urn hornero dorme, sonha,
acorda, fuma, e come~a a cantar, narrando o que viu e ouviu no so-
nho; quando os deuses e mortos querem vir a terra, entao o canto
se desdobra em wna narra9ao da descida destes seres. Há urna pro -
gressao de intensidade, que nem sempre se completa: canto na rede;
canto dentro de casa, com fumo e aray; saida para o pátio, com dan
9a e canto que manif esta a presen9a dos deuses e mortos na terra .
As sessoes de xamanismo alimentar ou de re-condu9ao de almas -
sao
o ponto máximo da seqüencia, quando o xama sai de seu pátio ou ca-
sa e interfere sobre pessoas e obje~os da aldeia.

A música dos deuses é a área mais complexa da cultura Arawe~

té. Onica fonte de informa9ao sobre o estado atual do cosmos e a


situa9ao dos mortos celestes, ela é o "rito'' central da vida do

542
entre outros

grupo.
Maf! maraka, "música das divindades", é urna expressao tanto
genitiva quanto possessiva. Isto é: as can~oes sao "dos M~f!", o xa
ma nao as aprende de outro xama, e nao tem controle sobre elas •

Quando eu perguntei pela primeira vez se podía gravar um Maf! mara-


ka, responderam-me que "a música nao é nossa (do xama), é dos Maf!"
- os homens nada tinham a decidir quanto a isso, portante. E quan-
9,o cometi a gaf fe de come~tar com urn xami sobre o que ele havia

·cantado, sua rea9io evasiva foi: ''nao cantei nada, quem cantou fo-
ram os Ma!". Essa exterioridade da música divina se manifesta de
muitas maneiras: cantos de xamis falecidos, por exernplo, sao fre-
qüentemente lembrados, mas raramente se declina o nome do cantor ;
se se o faz, é mediante a expressao "nJñe k-t X mo-ñifía" - "assim
X fez cantar". Isto contrasta nitidamente comas músicas de dan9a
ou .. música dos inimigos", que sao identificadas pelo nome do can-
tador-matador. O modo de se "localizar" urna can9ao xamanística re-
corre a outros critérios: a ocasiao do canto (quando se tratou de
w:n pego alimentar, o benzimento de um cauim, urna re-condu9ao de
alma de alguém), as diyindades manifestadas no canto, os mortos
que cantararn, as palavras e melodia - apenas acessoriamente se
-
apoe o nome do xama. -
Isso nao significa que os xamas nao saibam o que estao can -
tando, ou que nao se julgue as qualidades de um xarna por seus can-
tos.

"O xama é come> um rádio", dizem. Com isto querem dizer que
ele é um veículo, e que o corpo-sujeito da voz está alhures, que
nao está dentro do xama. o xami nao incorpora as divindades e os
mortos, ele conta-canta o que ve e ouve: os deuses nao estao "den-
tro de sua carne", nem ocupam o seu hiro. Excorporado pelo sonho ,

543
araweté: os deuses canibais

o .xama ou seu "ex-corpo" (hir~ pe) fica na rede, enquanto sua ;


- aquela "que seri do ~éu" - sai e viaja. Mas é quando ela vol ta
que o xama canta. E, quando os deuses descem a terra ·com -ele - que
é qu~m "faz descer" (mo-eigi, hero-eidi) 6s deuses -, descem em
corpo, nao em seu corpo. Nao é tao fácil distinguir isso,entretan-
to. Assim,por exemplo,o movimento opiwani, o batimento forte e rit
ma?o do pé direito do xama enquanto ele dan~a agachado e ofegante,
é o indice da presen9a dos deuses na terra; urna ocasiao em que
Yiriñato-ro trouxe urna f ilha sua, e ·que se destacou por um opiwani
especialmente forte, o comentário foi: "Iwane oyi hero-atl-atl"
-"twan~ (a menina) fez seu pai bater forte (o pé)". O prefixo ver
bal hero- é, como vimos, causativo-comitativo, que indica a causa-
9ao de urna a9ao pela participa9ao nela - o que sugere urna vincula-
9ao intima da alma ·de Iwane com o xama, mas nao implica .. que ela
houvesse "P<>ssuldo" o pai. De resto, a no9ao de possessao é compl~
tamente estranha ao pensamento Araweté: almas saem, mas nao entram
em corpós alheios •
....
Um ·xama encena ou representa os deuses e mortos, ele torna
visíveis e aud!veis s~as a9oes, mas nao os encarna em sentido ohto
lógico. Nesta medida mesma, um xama tem conscienéia do qué cantou,
e- capaz de esclarecer pontos ambiguos
... - 56 , e sabe o que se
da can9ao

(5~) O que nl.UlCa faz, entretanto (supra: 64-5), para Sua esposa, dentro ·
excet;.o
de cása. Is~ torna a mulher do xama una intérprete prirtlegiada damensagém
dos cantos xamanístiros. Una vez que pe.rguntei a urna m:x;a quem, afinal que
norte -, havia aparecido 00 canto "de" fulano, ela disse que nao podia saber ,
¡'.X)is nao era esposa do fül.ano ••• E nao obstante ouvira e sábia O canto inteiro.

passa a sua volta durante o transe. Nao creio mesmo que se possa
falar em "transe". Um xama cantando trazos .olhos fechados e a ca-

be~a baixa, e se mostra ·alheio a movimeñta~ao e conversa a sua

544
entre outros

volta. Mas e·le se movimenta intencional e deliberadamente durante


o canto, e atende a solicita9oes de espectadores para que feche o

corpo de seus filh9s, etc. Tais pedidos sao feitos ao xama, -


nao
aos espi"ritos.
Como mencionei na Introdu9ao, estas músicas dos deuses nada
tem de "sagradas·" ou esotéricas. Após tei:em sido cantadas por wn

xama, podem ser repetidas por qualquer pessoa, e muitas viram su-
cessos populares, prestando-se a varia9oes jocosas e adapta9oes de
circunstancia. Mulheres e crian9as especialmente fazem isso . Só
quem nao repete o canto é, em principio, o xama que o atualizou
Mas urna can9ao xamánica nao é- passivel de "re-utiliza9ao 11
por nin
guém, enquanto manifestac;ao divina - pode-se repetir a can9ao, nao
a situac;ao enunciativa original. As can9oes de inimigos ou de dan-
9a, ao contrário, existem para serem repetidas na mesma situa9ao -
- o optrahe -; .elas formam um repertório mus i cal, enquanto a músi-
.
ca dos deuses sedimenta um repertório cosmológico e temático, mas
nao permite, a rigor, repeti9ao. Um Maf maraka é a materializa~ao'
57
de urna singularidade individual e histórica •

{57) Por isso, os Araweté preferiam ouvir minha.s grava95es de Maf mm>aka asde
núsica de opt-r>ahe. ~ pedjarn para i:eprcrluzir cantos-danras, o int.eresse se
voltava para o que nao era nn.ísica - as vozes faladas em segun::k> plano, os caren
tários, barul.h:>s, que pennitiarn urna rararor~ao daquele nanento. Já quan00 se
tratava de ouvir urna fita can canto xamanístico, o interesse era p::rler assistir
a urna re-atua.liz~o da emissao vocal - era ela em si que resporrlia pela singu-
laridade do 11a1ento.

- avaliadas por seu timbre e esti


As qualidades de um xama ·sao
lo vocal, e pela originalidade de seus cantos. As vozes de baixo
profundo, fortes e firmes sao as preferidas. Presta-se especial a-
tenc;ao ao controle da emissao em vibrato. Isto porque todo canto

545
araweté: os deuses canibais

xamanistico envolve essa oscila9ao em ·vibrato, que nao deve ser e-


xagerada, ou o cantor é desprezado como "tremedor" (~iriri me'e) •

A voz forte e grave contrasta claramente com o estilo vocal femini


no, que é o da emissao em falsete agudissimo e em quase-surdina
-
- e assim que as mulheres repetem as can9oes masculinas em geral.
Nao sendo musicólogo, e pior, tendo um péssimo ouvido musi-
cal, sóposso dar impressoes vagas sobre o canto dos deuses como
música. O canto xamanistico é wn solo vócal, apoiado no aray, que
segue wn padrao fixo para todos os xamas. Seu estilo é marcadamen-
te diferente da música vocal que conhe90 de outros pavos TG 58 , e

(58) Afora o argjl, o maracá de dan:;a e a rorneta urew~ de anuncja~ oos cac;a-
dares, nao há outros instrumentos llUlSicais entre os Araweté. Eles conhecem as
.flautas Asurinl - que chamam de "taquara furada" -, e usavam um apito de osso '
de gaviao ou cn;a, cuja ~ des~. A dis~ lexical entre "núsica"
(maraka)
- e "canto" <oñ-Lña>
- é-me assim obscura, poderXJo talvez. diferenciar a me-
lodia da letra. No entanto, a recitac¡:ao da letra de una ~ é designada sim
plesnente ceno mom~'o, "oontar".
.
o verl:o opi:rahe, que significa "canto" em ou-
.
tras linguas, em Araweté deoota o can~ coletivo do cauim e de guerra ,
nais especialmente a danc;a¡ os cantos de o~rahe sao chamados de "música dos
i.nim:ig:)s" ou "música dos ancestrais" - ver adiante.

soa pouco melodioso a ouvidos ocidentais. Ele parece jogar com in-
tervalos micro-tonais, e seu ritmo é pouco marcado, baseando-se n~

rna extensao for~ada da respira~ao, de forma que cada frase termina


sernpre um pouco além do fólego, e caindo em volume e firmeza - a
curva melódica é descendente. O efeito é o de urna ladainha algo mo
nótona, lembrando rnais urna reza ou recita~ao formal que urna can~ao.
...
As can~oes dos deuses podem ser rnuito extensas, chegando as
vezes a mais de cem "versos", e usam abundantemente constru~oes pa
ralellsticas. Essa estrutura ern versos ou frases é bem marcada. To
da can9ao de xamá se .c onstrói assim: urn refrao curto, em geral sem

546
entre outros

significado lexical, mas capaz de identificar a divindade envolvi-


da; e entao uma frase lingüístico-musical completa, que termina can
o mesmo refrao: a próxima frase é introduzida pelo refrao, e assim
'
por diante. Os cantos sao constituidos por blocos de versos, liga-
dos tematicamente :· é mui to comum que se mude o refrao no meio do
canto, iniciando outro bloco melódico e semantico-temático, mas há
interferencias mútuas •. Tais blocos sao definidos pelo verbo mo-wá,
"mudar" • .Os versos em que o xama nomeia um personagem do canto
- morto ou deus, ou espirito de vivo - sao destacados como papá ou
hente, "dizer o neme" {comparar com seeger, 1980:99). A divisao em
blocos nao é ·obrigatória, e se pode manter um mesmo refrao e linha
melódica por todo o canto; já a divisao refrao/frase é siste~ática.

A questao da "originalidade" dos cantos é interessante, urna


vez que urna can~ao é considerada a priori corno manif esta~ao exte -
rior ao sujeito. No entanto, todos sabem e percebem que certos can
tos repetem frases, figuras de linguagem ou temas que já foram can
tados antes, e assim reconhecem implícitamente que houve um preces
so direto de imita9ao entre xamas. Isto fica patente quando o tema
repetido é algo impróprio para a nova ocasiao: assim,por exemplo ,
a presen9a de alguns versos a respeito de abelhas· eternas dentro
de um canto de benzime~to do cauim doce delatava a origem do plá-
gio - tratava~se de fragmento de um canto de xamanismo do mel. Is
to, se nao desacredita a, digamos, autenticidade ontológica do can
to, pesa contra a frui~ao estética e o prestigio do cantor. As ino
va~oes temáticas, quando felizes, sao fortemente apreciadas. o
que há é, como sempre, um compromisso entre redundáncia necessária
e ruido-inova~ao. Um bom canto é aquele que rearruma temas e f igu-
ras de linguagem semi-fixos em um novo arranjo enunciativo, é espe
cialmente aquele que produz enunciados cosmologicamente relevantes,

547
araweté: os deuses canibais

pondo em cena rnortos do grupo em situa9oes determinadas. Um canto


original e dito mara mi rr-l, ainda nao atualizado, ou apenas
mtr'6-p-tta, "born" (lit. "desejado pelas gentes"}.
O repertório retórico dos cantos é extenso mas relativamente
fechado. Ele lan9a mao de metáforas características, alusoés míti-
cas e imagens exemplares. Corno urn todo, os cantos xamanfsticos sao
urna fanopéia - projec;ao de imagens visuais sobre a mente, para u-
sarmos urna definic;ao de Pound -, evocac;oes vívidas mas elípticas
de situa9oes visuais ou sensoriais. Por outro lado, esse estilo
"oriental" se associa a urn uso fixo de epitetos que nao deixa de
evocar a poesia homérica: os "comedores de pequenos jabotis" -
sao
os hornens; a "flor dos deuses" é urna sinédoque para as mulheres ce
lestes, com seus brincos; a "canoa fragrante" é o veiculo dos Ma-f!,
etc. Mais proximarnente, isso lembra a poesía esotérica Guarani,que
entretanto é mais elaborada nessa proliferac;ao de image~s cristali
zadas (Cadogan, 1959).

A complexidade essencial dos cantos xamanísticos Araweté re-


s~de ern outro lugar: no agenciarnento enunciativo ali estabelecido.
A música dos deuses é urn solo vocal, mas é, lingüisticamente, um
diálogo ou urna polifonia, onde diversos personagens aparecem de di
versas rnaneiras. Saber quern canta,, quern diz o que para quern, é o
problema básico.

O canto xamanístico é urna can9ao de canc;oes, urn discurso de


discursos, é polilógico. Quase nunca urn xama muda de timbre ou de
torn para indicar que mudou o sujeito· da enunciac;ao das frases can-
tadas; parte dessa inforrna9ao depende do contexto. interno, parte
do contexto externo, e parte de um procedimento metalingüístico: o
embutimento ci tacional pela aposic;ao de fórmulas do tipo 11
assim dis
se X". Já mencionamos esse aspecto da pragmática Araweté ( supra :

548
entre outtos

62-4) , essa prevalenc-ia do discurso citado, que recebe seu máximo


rendimento no Ma~ maraká: a música dos deuses é a narra9ao da pal~
59
vra alheia .

(59) Ver a obra clássica de Bakhtin (1979:130-159) para a teoria do "discurso


de Outrem", onde se encxmtra a explora9ao minuciosa das fo.I'IT0S lingüísticas,his
tóricas e psicológicas de apreensao do Outro dentro da linguagem. ver ainda, ~
ra a análise do embutimento citacional em urna sociedade de tradi9ao oral, Sher-
zer, 1980; e .as especul~ d.e _Lyotard (in Lyotard & '!hébapd, 19.79:62-ss.) so-
• ¡ r - ~ •

brea "pragmática do discurso pagao", onde ele questiona a ¡:osiqao do narrador-


-sujeito nas sociedades tradicionais.

Típicamente, o canto xamanístico envolve tres posi9oes: um


. '

morto, os Ma!, o xarna, em um sistema onde o morto é o principal e-


nunciador, transmitindo citacionalmente ªº xama o que disseram os
Mal. Mas o que os Maf disseram é quase sempre algo dirigido ao
rnorto, ou ao xarna,. ou a si mesmos . sobre o morto ou o xama. Assim,
a forma tipica de urna frase é _urna _constru9ao dialógica complexa: o
xarna canta algo dito pelos Maf, citado pelo morto, referente a ele
" -
(xama), por exernplo •.• Quem fala, assirn, sao os tres: Maf, morto,
-
xama, um dentro do outro.

Há constru9oes mais _simples, onde o xama canta o que dizem


os Maf a respeito 9os humanos, e outras bem mais intrincadas, onde
um morto cita a outro o que urna divindade está dizendo sobre um vi
vente (que nao o xarna) •

A melhor maneira de dar uma - l déia desse sistema recursivo, e


de situar a imagistica e espirito do Maf maraka, é tentarmos '. tráciu
zir e glosar um .. Passo portante a transcreve·r um canto que Kañipa-
y~-ro ( 19·, principal da se9~0: VII da aldeia) produiiu na madrugada
de 26 de dezembro de 1982, fruto de uma . i~spira~ao nao-vinculada a
qualquer ritual, mas que se desdobrou em .um pe·yo terapeutico de

549
araweté: os deuses canibais

sua esposa {que tinha dores no peito). Chamá-lo-ei de "canto da


castanheira", conforme a imagem focal que desenvolve, e já que ele
nao tem um nome.

O CANTO DA CASTANHEIRA

BLOCO I - (Refrao inicial e final na forma "'Nai ·dai dai") :

(1) Mar? mo pa ne ia'i oh~ rarawoñi ue?


(2) Mar? mo pa Ma! ia'i aho rarawoñ?-woñ? ik~ ye Modida-ro?
{3) Mar{ mona ha Ma! yiyeha-we ia'i iwa narawoñ{-woñ{ ye?
(4) Ka Ma! reka ia'i iwa narawoñi-woñ{ neka He, Arariña-no
(5) Ka Ma! reka ia'i oho rarawoñ{-woñ{

BLOCO II - (Refrao inicial e final na forma Kadlne-kañ{):

Ka Ma! reka ia'i iwa narawoñi-woñ{ neka


(6)
-
(7) Mar{ mona ha Ma! reka, Kadlne-kañi, ia'i oho rarawoñl-woñi?
(8) (Forte, alto) Ma! reka reka, Kadlne-kañi, ia 'i iwa --
....
narawon'l--

(11) Mar{ mona ha Ma! rek~, Kadlne-kañ{, ia'i iwa áawoñ{ ml?

(12) ~a Ma! reka ia'i iwa narawoñi-woñ{ ye, i e Modida-ro


- - - - - -
(13) He pet{ heña-mi-re meni i ki Ma! ika

(14) Ca M~! reka ia'i iwá narawoñi~woñi rek~, da hi ki Ararlñª-no

(15) {Forte: o xama bate o chocalho contra o peito da esposa) Ca


Ma! re·ka ia '-i oho rarawoñl-woñ{
- neka-
(16) Ca Ma! reka p·i!, Ka<ilne-kañ{, ia 'i oho · éawoñ{ i ki Ma! 0110

550
entre outros

(17) Na.n e rait1id:t pita-mo !Je M~f rek!!_, ia''i Ohf!_ cawoñl ml
(18) Mari mo na ha Mal re·ka, Ka'dfne-kañl, ia''i iwa na~awoñl?

BLOCO III - (Volta o refrao 1, • após pausa):

(19) Marl mo pa ne ia'i i:wa narawoñl ki:e ye?


(20) Mari mo pa ne ia'i i:wa narawoñl? He petl heña-mi-re meni i ki:

Maf.
( 21) -
Mari mo pa n:e 1-.a
. ,1-. .i wa- narawoni.
.
--·- y.e.? !Nane rai11id; pi:ta-mo
Maf. !!_df.-p-te ye, 1-. e Arariña-no
. ( 22) Mari mo- na ... ..
h.a Ma'l toc1; aco awi-awi t:• k. a. ?

- - --
.... Maf.·? E11a eiai!Jid; mara
(23) Mari mo pa ne ia'i -twa narawon:!:_, he
• kt .Mal
rehe-we 1-

(24) Ne-reh! 11e ia 'i oh!!_ rarawoñl !JB, Nai dai d~i, atif.-od!-odl ne'e
me'e i ki: Maf
(25) Mari mona ha Ma! !}iyeha-we ia'i i:wa narawoñi-woñl 11e e Modi-

ti.a-ro?

· (26) Mari mona ha Maf ia'i iwa narawo~i 11e? _Kañlpau!-ro-rem! ye


he a-o i ki Maf O!f!!_ (forte)
(27) Ni te kt Ma! he rereka he raña ita ña'e ne (forte)

(28) Ne re(!me ye he a-o i kt Ma'l OtfO, Nai dai d~i, he rana ita
ñafe nehe i ki: Maf. (forte)

(30) E-pirano eiai11id; nehe i ki: M~f., Nai dai d~i, tiriha nehe ·toél
aco'iwa i ki Maf.
(31) Mari mo pa ne ia'i iwa moi11i-moi1Ji 11e?

- - - -
(32) Ka Mat reka ia'i iwa moiyi-moiyi (Bate o chocalho sobre a es-
-
posa)
(33) Marl mo na ha Ma! ia 'i -t·wa meni-meni, Iowe 'f-do? E!J~ eiai!Jid;

551
araweté: os deuses canibais

~34) Ce e e !Jaac1!-dad; a re moneme oho


....
o-mo-poi.-po~,
.... .
t. ki M~f!, Nai
.
dai dai, t:re remf-d.o
.
l't.
... d.orocf! oho· ....
mopoi.-po~
. .... .
t. ki Maf
-
(35) Kad!ne-!fO oho rewe, moneme, i.
• kf; Mai!, eyg_ ca'ha toói - 'iwa
.
- ªªº
(36) Ce e e e:rt:p~ df!to haiyi mara he rehe-we, he rehe t{d.e Ma1! re ka

Pt!
(37) Ad.f-od.!-o~! kf; ne'e me'e, ega yaac{-dadi' he rehe, i ki ·Maf!

(38) Mari mo pa ne ia'i f;wa narawoñl-woñl ye?

( 39) Cee~_; ñane reml-do ri d.orocf· oho o-mo~po·i-poi

(41) Kañi nero-ata pita-mo ye Ma! ia'i iwa narawoñi


( 4 2) Mari mo- pa ne ici :ri , i oho moiyi?
( 4 3) -
Mari mo na ha Maf he pet~
....
he pe ti moma-moma?
(44) ~re
. --- hewo-hewo ye i . k-i:
pi.rana M~f, Nd.i dai dai, tir-tdf-wika-w-i:
- -

- __ -
ka ne he iciri'i oho moiyi df d!' i ki Maf!
.,,. -- ...
( 4 5) Mari mo na ha Maf! ia'i iwa- narawoni.-won-i?
(a partir do Último verso, a voz vai morrendo aos· poucos, re

petindo· o refrao)

Esse canto, economice no que toca ao vocabulário, é porem-


urna boa amostra do regirne enunciativo das can~óes xamanisticas, a-

lém de deixar claro qual a partida que se joga coro os deuses. A

enunciadora principal nao é nomeada em momento nenhurn - seria KañI


pay~, urna filha do xama que morreu pequena (dois anos) em 1978.Ela

se dirige, conforme um jogo de pergunta e resposta que marca to-

do o canto, aos deuses, ao pai, a uni "avo" morto (Medida-ro), a um

irmao de seu pai, Arariña-no - isto é, a l desse hornero, que esta-


. a l'i no ceu
ria - .
Junto -GO • A•l.em d a menina, outra alma
coro o . xama fal~

(60) Houve p:>rém quem disoordasse de tal intexpretacrao, sugerindo que a irenina .
norta dir~gia-se ao seu FB em carne e osso, que donn.i.a ali ao laoo do xama, e

552
entre outros

·certamente estava ouvindo o canto. Da nesma for:ma, pelo neros urna pessoa con
_quan a:::rrentei o canto especuloo que a alma cantora nao era a de K.añipaye , mas
de urna f iTha classificatória do xama, que rrorrera há nerx>S tenpo. "SÓ ~paye­
-ro e sua nul.her saben quem era", - di~seram-me. Isto nao significa que o rrorto -
-enunciador nao nao
¡:ossa ser rx:rneado 00 canto; só pode, a::xro tbda pessoa, se
auto-narear, mas apenas d.izer seu rane citarrlo um enunciado albeio. ApÓs urna
. .
rrorte recente, a alma cb rrorto é rararrente rareada, na medida em que é a canto-
ra principal; mas os déuses podem dizér seu nare, citados pelo xama, ou o xama
pode citá-la, etc.

a do seu "pai" morto Yowe'!-do, que sé será nomeado no verso 33,

mas que já fala no verso 17. Este personagem, como o outro morto
citado, tem parentes próximos vivos na se~ao residencial do xama .
o canto, a s sim, poe em cena mortos e vivos de uma parentela restri
ta, localizada.
Vejamos o conteúdo da can~ao, nurna tradu~ao livre. Traduzo
Ma! por "deus" ou .. deuses", conforme o contexto, urna vez que as
marcas de número sao indiretas ou ínexistentes em Araweté.
O refrao dos blocos I e III nao tem significado; ele envía
aos canto s dos Mat hete. O refrao do bloco II é o nome de urna di-
vindade feminina, Mulher-·canindé (urna arara azul-amarela) , a qual
dá a impressao de funcionar como urna "interlocutora" muda ou abs -
-
trata da menina marta e do xama, nesta parte. Na verdade, ela nao
é urna personagem do canto, mas um refrao, mesmo quando nomeada no
meio de certos versos: nao se canta para ela, canta-se seu nome •

Isto nao impede que esta parte do canto seja identificada como ma-
nifestando, de um modo. que me é obscuro, essa divindade. O bloca I
introduz o tema:
(1 ) "Por que voce empluma a grande castanheira?"
( 2) "Por que os deuses estao emplumando a grande castanheira, Mo-
c3.ic3.a-ro?"

553
araweté: os deuses canibais

(3) "Por que os deuses solteiros emplumarn a face da c·as. tanheira?'~

(4} "Eis aqui os deuses, a· emplumar a ·face da castanheira, Arari-


ñ~-no",

(5) "Eis aqui os deuses emplumando a grande castanheira".


Todas estas frases sao enunciadas pela menina morta. A primei
ra é urna interpela9ao a um Mal ("vocé .. ). Só se saberá que se trata
de urna alma, e da filha do xamá, a partir do verso (9); nenhuma '
marca até lá indica que seja outro que o xama o sujeito da enuncia
<;ao. A imagem focal é a de urna grande castanheira celeste (ia'i
oho) sendo decorada com a plumagem branca da harpia pelos deuses ,
que assim fazem sua "face" (folhas) brilhar a distancia. O(s) Ma-r
faz(em) isso, conforme as interpreta<;oes que me foram t:r:;ansmitidas,
porque estariam irados (e'e) coma morta, e ardendo de desejo por
ela. Nunca cheguei a entender a rela<;ao .entre o ato de emplumar
(-woñi') a castanheira e esse desejo divino. Tal imagem é nova, foi
criada nesse canto, mas encontrou aceita9ao e foi entendida por
todos; ela associa deis ternas canónicos do discurso sobre o céu .•
as castanheiras e as harpias.
A mudan<;a de refrao que introduz o bloco II foi acompanhada
de um aumento de volwne vocal e intensidade afetiva, e marcou a
descida dos deuses a terra:

(6) "Eis aquí os deuses emplumando a face da castanheira, ei-los",


(7) "Por que ·assim fazem os deuses, (Mulher-Canindé), emplumando'
a grande castanheira?"
(8) "Cá estao os deuses, cá estao, (Mulher-Canindé), emplumando
- t
a face da castanheira, cá estao, ca- estao
-
os deuses";
(9) "Porque deseja sua filha, disse o -deus, (Mulher-Canindé), por
isso ele disse: vamos emplumar -a graride castanheira",
(10) "Foi isto que disse o deus, (Mulher-Canindé), as ·pessoas -
nao

554
entre outros

comeram a coisa, disse o deus";


(11) "Por que fazem assim os deuses, (Mulher-Canindé}, por que dis
seram: vamos emplumar a castanheira?"
'
(12} "Eis aqui, veja os deuses emplumando a face da castanheira ,
Mociiaa-ro".
(13) "Acenda meu charuto jogado fora, disse o deus".
(14) "Eis aí os deuses a emplumar a face da castanheira, veja,Ara-

-
riña-no".
(15} "Eis aqui os deuses emplumando a grande castanheira, ei-los".
(16} "Eis o que os deuses disseram, (Mulher-Canindé), vamos empl~

mar a grande castanheira, eles· se entre-disseram".


(17) "Porque desejam nossa filhinha, por isso os deuses disseram :
vamos emplumar a grande castanheira".
(18) "Por que fazem assim os deuses, (Mulher-Canindé), emplumando
a face da castanheira?"

Neste bloco a situa9ao enunciativa se complexifica. Os versos


6 a 8 sao acompanhados da batida de pé do xama, que indica a pre -
sen9a do que está cantando aqui na terra. Quem diz estes versos, a
-
parenternente, é ainda a menina, ou wna espécie de síntese xama-mor
ta. O verso 9 é enunciado pela menina morta, e se refere a ela mes
ma. Ela diz: os deuses disseram (a voce,xama) que desejam sua fi-
lha (eu, que falo), disseram que é por des~jar sua filha que empl~

mam as castanheiras. o verso 10 rnostra a interpola9ao de outro mo-


tivo, e outra razao da ira dos Ma!. A menina diz . ao pai que os deu
ses disseram que eles "nao comeram a coisa" - isto é, nao f oram

chamados ainda a comer jaboti pelos humanos. A época do canto ini-


ciavam-s~ preparativos para as ca~adas coletivas de jaboti, mas
nenhuma refei9ao fora oferecida aos Mal. o canto de Kañipaye-ro di
rige assim urna mensagem geral a aldeia. Os versos 11 e 12 sao enun

555
araweté: os deuses canibais

ciados pela menina, o prirneiro é urna interrogac;ao abstrata, · o se-


gundo urna deixis dirigida a Modida-ro. O verso 13 . traz a · menina
transrnitindo ao pai o que o deus pediu a ele, xarna - ' que acendesse
seu· charuto. Este é urn gesto de cordialidade;- sugerindo que o xama
deve oferecer seu charuto ao Maf! (o "rneu charuto" é na verdade o
tabaco do xama). Ora, nessa mesma ocasiao o charuto de Kañipay~-ro

havia-se apagado, e sua esposa teve que acende-lo. o ·verso eviden-


cía assirn urna espécie de curto-circuito ou constru~ao ern abismo: o
pedido dos deuses ªº xama é um pedido do xama a esposa por intermé
dio da filha, etc. O verso 14 é semelhante ao 12. O verso 15 foi
enunciado enquanto o 'Xama f azia ·rnovimentos corn o chocalho sobre o
peito da esposa, fechando seu co~po (hiro r;) ap6s ter re-conduzi-
do a alma de Tawiéir~-hi a sua sede. · A frase seria dita pela meni-
'
na; seria :ela que trazia a alma da rnae: "o-hi mone" - "carregava
-
(a alma de) a pr6pria rnae", foi a frase corn que se interpretou os
-
movirnentos do xarna e o verso 15.

O verso 16 traz a menina citando ao pai o que disseram os


deuses. O verso 17 p5e em cena outro enunciador. Quem diz que os
deuses disseram que desejarn nossa (ñane, nós inclusivo) f ilhinha

nao pode ser a menina, nem os deuses. Esta construc;ao ern estilo in
direto linear (Bakhtin, 1979:136)í sernelhante aquela do verso 9(o~

de entretanto surgia urna auto-referencia indireta complexa) indica


que o enunciador é ·Yowe'!-do, falecido "írmao" do xama. Ná verdad~

essa interpreta~ao é retrospectiva, e depende . da norneac;ao de Yowe'


'!-do no verso - 33 - até lá, reinava arnbigüidade. Todos foram unani
mes em me esclarecer que a expressao "nossa f ilhinha" nao era urna
frase dirigida pelo xama a sua ·esposa, como eu pensava. Com a pos-
sivel exce9ao dos versos 6 a 8, o xama nao está em posi9ao de su-
jeito (de enunciado · cu de enunciac;ao) nesse bloco do canto. Ele ci

556
entre outros

ta cita9oes: diz o que sua filha -0u irmao dizem que os deuses dis-

seram. O verso 18, por fim, poe a palavra outra vez na "boca" da

menina.

O bloco III foi introduzido pela ''volta" (o~iwi) do _ refrao

I, após alguns minutos .de pausa, em que o xamá,,agachado, f\llllava e


batia o chocalho:

(19) "Por que vece empluma a face da castanheira, de manha?"

(20) "Por que vecé empluma a face da castanheira?"; "Acenda meu

charuto abandonado, disse o deus" •·

(21) "Por que vece empluma a face da castanheira?"; "Por desejar

nossa filhinha, disse o deus a si mesmo, Arariña-non.

(22) ·"Por que os deuses ficam assim, a errar suas flechas nos tuca
nos grandes?''

(23) "Por que vece empluma a face da castanheira, deus?"; "Ande,

ponha--passe sua filhinha para mim,· disse o deus".

(24) "Por sua causa, realmente, se emplumam as castanheiras, (Re-

frac), nao fui servido-oferecido de coisa nenhuma, disse o

deus".

(25) "Por que os deuses solteiros emplumam assim· a face das casta-
nheiras, Mod.iaa-ro?.;,

(26) "Por que os deuses emplumam assim a face da castanheira?" .


I

"Vou devorar o finado Kañipaye-ro, disse o deus".

(27) "Assim o deus me levará, para cozinhar-me em sua panela de p~

dra".

(28) "Comeremos seu finada pai, os deuses disseram repetidamente";

"Vao cozinhar-me em sua panela de pedra, disseram os deuses" •

. (29) "Enfim, mais urna vez os deuses vao-me devorar do outro lado

do céu, é o que disseram".

(30) "Pergunte-pe9a a sua filhinha, disse o deus, (Refrao), para

557
araweté: os deuses canibais

nós dois irmos flechar o"s tucanos grandes, disse o deus".


(31) "Por que voce unta (com urucum) a face da castanheira?"

(32) "Cá estao os deuses, untando completamente a face da casta -


nheira".
(33) "Por que os deuses acendem-iluminam assim a face da castanhei

ra, Yowe',!-do?"; "Ande, passe sua filhinha para mim".


(34) "Eeeeh! um comedor-de-pequenos-jabotis espantou os grandes
monem!, disseram os deuses"; (Refrao); "Nossa futura comida
fez debandarem as grandes juritis, disseram os deuses".
(35) "A plumagem das grandes ·arar.a s-canindé-eternas, monem!, disse
ramos deuses; ande, vamos flechar os grandes tucanos".
(36) "Eeeh! quanto iquilo de 'passar filha para mim', que disseram

os deuses; para mim os deuses (desnecessariamente) disseram


(tal coisa)".
(37) "Nada me foi oferecido, ande, (de) pequenos jabotis para mim,
disse o deus".
(38) "Por que vocé empluma a face da castanheira?"

( 3 9) "Eeeeh! Nossa futura comida fez debandarem as grandes juritis"


(40) "Por que voce empluma a grande (árvore) iéiri'i?"

(41) "Por vontade de levar mulher para cacrar, o deus empluma a fa-

ce da castanheira".
(42) "Por que voce unta (de urucum) a face da grande iéiri'i?"

(43) "Por que os deuses acabam com rneu tabaco?"

(44) "Nossa terra (solo ) i fragrante, disse o deus, (Refrio), as-


sim que tiver untado a grande iéiri'i perfumar-nos-emes um
ao outro (coma .resina da árvore), disse o deus".
(45) "Por que os deuses emplumam a face da castanheira?"

f irn

558
entre outros

Aqui, neste bloco, o número de "vozes"' e a intensidade emo-


cional do canto atingem seu potencial máximo: cría-se um confronto
direto entre os Ma-t e o xama, e este irá falar por si algumas ve-
'
zes. Vejamos. o verso 19 é a interpela9ao usua1 da .menina ao deus,
que sublinha o fato de que lá no céu é dia, e alude (apud os comen
tadores) ao brilho da castanheira emplumada na luz da manha. A pri
meira parte . do verso 20 repete o 19; a segunda repete a
do 13: a menina diz ao pai o que disse o deus sobre o charuto (no-
varnente o fumo do xama se apagara). O verso 21 traz duas .vozes e
dois de·s tinatários: primeiro a menina interpela o deus; em seguida
Yowe'I-do retoma o que dissera no verso 17, mas desta vez fala pa-
-
ra seu outro irmao, . ...--
Ararina-no 61 • O verso 22 e- interpretado ( pelos

(61) A grarile varierla:ie de procedinentos citacionais, ben a:m::> o erprego de di-


ferentes verbos para "di7.er", "falar", etc., nao me é o:npletamente clara. Essa
variedade é sintático-seinanticamente relevante, e provavelmente permite ao ou -
vinte nativo intel:pre~ can ani:>igüidade mínima, oo que toca ao regime de
· "vozes". Eu tive de reoorrer a glosas e extensos a:mentários para desex>brir a
lÓgica Cb discurso citado, de forma a ¡xrler detectar as "aspas" sintáticas e os
casos de discurso i.ndireto. A c:ons~ao citacional que tennina urna proposicrao
por "i k-t X", "assim disse X", nao é necessarianente urna citat;ao verbatim, as -
peada; ídem para a aposi~ da forma X pi;!", "X falou". Por sua vez, o norfema
11

ml, que enoe.rra urna oracrao, aspeia a el~ precedente. Vejam::>s por exenplo
a trad~ detaThada do verso 17: ñan! (possessivo, la.pes.pl.incl.) raiJJi-d;
(filha-dirninutivo) p-tta-mo (~ioo a) Ma~ {deus) reka (estar) ia 'i oho
{castanheira grarX!e) éa-woñ-i (emrtativo-euplumar) ml (marc.citac.). Ou seja :
"por estarem osdeuses desejando nossa filhinha, (disserarn): 'vanos errplumar a
grarrle castanheira 111 • Nao é ciio claro, portante, que se trate aquí de um discur
so indireto, mas antes de uma interpretayao de Y0t1e' !-do sobre a razao dos deu-
ses terén dita o que disserarn (e que vem em discurso direto). Já no verso 21,
a cxmst.ru;ao é inequivocammte em estilo indireto linear: ñane raiyid; p'6ta-mo
(por desejar nossa filhinha) Maf odf-p-t! (deus, 3a.pess.-reflei.-di7.er) ye
(part. enfática), i e (ele disse) Azoañña-no. Ou seja: "por desejar nossa filhl
nha, disse o deus a si nesrro - veja, ele disse isso, Ararrña-no". (Tanei J jbP..r-
dades a::m o número gramatical). o verso 9 é out.ro exenplo de estilo indireto :

559
araweté = os deuses canibais

"por desejar sua {do xarna) filha, «iisse o deus". Esta frase só poderia ser in -
terpretada .a:m:> cita9ao literal caso os ouvintes a ~sern a:xro enunciada pelo
. .
xama, cnto sujeito da cit:a9aO. Mas assirn nao é: Opostulado é que nao é Oxana,
- -
. . .
mas o rrorto, que fala, pela boca do xama. A exDe9ao que confirma a regra sao os
~

versos 27 e 29, quando Kfilllpay~~o fala.

ouvintes) como urna pergunta da menina morta aos deuses, a respeito


de outros deuses. O verso 23 traz a pergunta~motivo, na primeira
parte; em seguida, a transmissao de urna ordem dos deuse.s (o modo
verbal é imperativo} ªº xama, pela menina, que é o· objeto da ordem:
- a lhe dar (mara, passar para, colocar junto)sua
o Maf insta o xama
filhinha. A primeira parte do verso 24 traz diretament!= a palavra
dos deuses, que se dirigem a menina. A segunda parte é a menina
que cita para o pai o que reclamanl os deuses: que nao se 1hes - deu
coisa alguma - i.e. jabotis. Nota~se aqui que a interpola9ao do t~

ma dos jabotis termina por assimilar este alimento a f ilha do xama:

ambas as cois'as sao pedidas pelos deuses aos homens' na pessoa de


Kañipaye-ro. o verso 25 retoma o tema dos M~! solteiros (yiyeha,
mais o coletivo ~e} - jovens, portante, que cobi~am a filha jovem
'
do xama-62 - e a pergunta e- dirigida pela menina ao avo- Moeiaa-ro.

(62) As crianc;as rrortas se tornam, ap5s a esfreg~ da pele a:m o suno de


aracf oho e o banh:;> ressuscitad:>r, · noras ou m:xr-os na plenitude de sua beleza e
vigor. Nao há almas de crian:;as nortas no oou, apenas fillX>s celestes dos rror -
tos, etc.

o verso 26 traz enfim a amea9a que estava latente a todo o


jogo de pedidos, perguntas e respostas até aquí: o M~f, nomeando o
Xama e já lhe designando CQffiQ "finado" (-rem!) I aViSa que VaÍ deVQ
rá-lo. Quem diz "disse o deus", e quem portante citou o nome dó
pai-finado, foi sua filha. Eis assim que, por dupla interposi9ao ,
o xama se auto-nomeia, e como morto antecipado. Este verso e os se

560
entre outros

guintes foram cantados em tom mais grave, com a voz muito forte e
entona9ao macabra . Neste momento os ouvintes (de minha grava9ao )
demonst ravam gra nde entusi asmo, e a "auto "--nomea9ao de Kañipaye-ro

era indub itavelmente o ponto alto do canto , provocando risos e co-
mentários e xcitados. O verso 27 traz pela primeira vez a voz do xa
ma como sujeito: é ele quem diz que será devorado. O verso 28, em
sua primei ra parte, poe a filha do xama citando os deuses, que de-
claram que de vorarao seu "fi nado pai". A segunda parte traz nova -
mente a voz do xama, num belo exemplo . de estilo indireto. Assimtarn
bém o verso 29: o xama cita os deuses; a no9ao de "mais urna vez"· a
lude as numerosas ocasioes anteriores em que o xama se defrontou '
com esse perigo. o "outro lado do céu" (lit. ••do lado das costas do
céu"; iwaraw! é a forma poética para i wá, céu) refere-se ao avesso
do céu visível, i.e. ao patamar celeste dos deuses.

O verso 30 traz o pedido que, se aceito, garantirá a incolu-


midade do xama no céu. o deus - citado pelo xama, nao mais por sua
filha - manda q ue Kañipaye-ro pe9a a filha, conven9a-a a ir com
ele "flecha r t ucanes", urna metonimia para "levar ao mato ", por sua
vez urna me t áfora de rela9oes sexuais e, como já vimos, o tema defi
nidor das rela9oes de aprhi-piha.

Os versos 31 e 32 trazem novarnente a voz da menina morta. O


tema da pintura da castanheira com urucum, desdobramento daquele '
da empluma9ao, além de evocar wn curioso trata.mento antroponorfo da
arvore, pre para a introdu9ao de um motivo olfativo, as fragrancias
celestes. O verso 32 foi acompanhado de batida - de pe e de novo
peyo da esposa do xama (que ficou todo o tempo do canto sentada
em urna esteira dentro de casa, enquanto seu marido andava, dan9ava,
fumava e cantava, tarnbém dentro da casa). Como no verso 15, a
constru9ao deitica alude a presen9a aqui e agora dos deuses na ter

561
araweté: os deuses canibais

ra, e gera urna espécie de ubiqüidade ou interferencia cosmológica,


visto· que os deuses estao aquí, mas untando a castanheira celeste'
...
- . como se neste ·rnornento .o ceu e aterra se superpusessem, duas ima

gens coabitando na "tela'' da voz do xami .. O verso 33, na primeira


parte, é urna pergunta da menina morta a .. Yowe'_!-do; a fulgu_ra9ao da
castanheira é produzida magicamente pelos deuses, em sua ira-dese-
63
jo • A segunda frase é urna ei ta9ao verbatim do que os deuses es tao

...
(63) Ou rerete ao brilho da plumagem da harpía. A relc39ao qastanheira-harpia e
emblemática, e urn dos nares xaman.ísticos desta ave é ia'i iwa neh.G., "o que resi
de jtmto a face (folhagem) da castanheira", que é por sua vez urna ne~ora para
as flechas, e urna .imagem da guerra. Toda a fanopéia desse canto caracteriza os
deuses caro matadores-guerreiros, e ao mesno tanpo caro arderrlo de desejo pela
nenina norta.

dizendo para Yowe'l-do. O verso 34 é enunciado pela morta, que ci-


ta o que comentam os deuses, agitados e alert.a s: um humano ( um "co
medor-de-pequenos-jabotis") está se aproximando, e sua prese.n 9a as
susta os pássaros da capoeira que circunda a aldeia dos Ma~, as
juritis e cotingas celestes (''grandes", oh~). A expressio "nossa '

futura comida" é um motivo clássico do canibalismo Tupi-Guaraní


- era assim que os Tupinambá chamavam seus cativos de guerra. O
xama, entao, está agora entrando na aldeia, e se defrontará com os
deuses 64 •

( 64) Até aqui, a cena d::> canto era algo i.ndefinida. A grame castanheira esta-
ría ern qualquer parte do mundo celeste, nas proximidades da aldeia Cbs deuses ;
a filha do xana se m1~rtava cqyo urna nensageira do que diziarn os deuses, en-
guanto ele nao
chegava. Mas nada disso é muí.to claro, e os índ.ioos espaciais da
trajetória do xana sao vagos ·ou deliberaBamante confusos - cx:m::> 00 caso dos deu
ses estaran aquí na terra e la 00 céu. Os cantos de benzimento alirrentar sao '
usualmente, mais especifioos em detalhar aspectos Cb deslocamento espacial da
canitiva divina que desee a terra.

562
entre outros -

O verso 35 é dito pela menina, que cita os deuses a convidi-


1

-la para ca9ar tucanes, araras e cotingas, aves cuja plumagem e u-


..
sada nos brincos, ~ se constitui ero presente dos· ca9adores is suas
aplhi. o verso 36 traz de volta o xarna como sujéito, e é decisivo
no enredo. Kañipay~-ro, citando aquilo que disserarn os deuses, de

lhe pedir a filha, diz (a ninguém ern particular) · que tal pedido
..
e
desnecessário. A glosa dos ouvintes era essa: "Kañipay~-ro disse
assim, para os Mal: 'podern levar Kañipay~, ela nao e minha, é de
voces, nao virn aqui pegá-la de volta nao' ••. ". o verso, em si,
..
e
urna espécie de resumo elíptico do que se passara no céu, e nao pro
priarnente um diálogo entre o xama e os Maf; tal diálogo é subenten
dido (e exposto na glosa, ern meu beneficio) . Duas idéias centrais
estao sendo jogadas aqui: prirneiro, que a rnorta, enquanto tal, per
tence aos deuses, nao a seu pai terreno - disjun9ao xama/filha mor
ta-; segundo, que, nao obstante, os deuses ' reconhecern . no xama urn
poder sobre sua filha, e · que ele deve reiterar · por isso a cessao '
dela aos Ma~ - o que assegura a incolurnidade do xama no céu. O xa-
mi aceita a "virilocalidade" da filha, e os deuses aceitam-no como
. 65
a f l.ID •

(65) E há outra traca subjacente, que os a::mmtadores desse canto sugeriram,mas


que fica clara em outros cantos. caro vim:>s, a ~ de :Kañipay~ro envolveu '
um imo~, re-assentarrento da alma de sua es¡:osa - que no entanto nao foi o foco
principal da ~: "Cutres imone tematiiam de no:b mais detal.haOO essa reposi-
~ da alma -; assim, a pe:rrnan€ncia da filha norta no céu é o "pagam:mto" (pepi
ka) do retorrx> da 1: da esposa do xana, liberada pelos deuses. Nao é portante
por acaso que a grarrle rnaioria dos imone ponharn em ~ nortos, no canto xama -
nlstico; n00 só p::>rque as alJnas rcortas atraen as ? dos viventes, mas po:r:que o
xa.nB parece jogar a:rn esse "tana-lá-dá-cá" faoe aos deuses: fiquem a:rn quem es-
tá norto realnente, e devolvam o vivo. Note-se que urna alma norta atrai urna vi-
va ao oéu, mas sc:mmte os Ma-e t.Em o ?Xler de dete-la - só os deuses matarn.

563
araweté: os deuses canibais

O verso 37 é urna solicita9ao arrogante dos Maf ao xama, que


duplica sua demanda da fillia com urn pedido de jabotis; aqui o cantor
cita diretamente o que dizern os deuses a ele. Do verso 38 ao final
alternarn-se enunciados ditos pela rnorta, frases dos deuses(citadas
pela morta), e do xarna. Os versos 38 a 40 sao proferidos pela rneni
na. A árvore iéiri'i dá urna resina muito perfumada, e seu corres -
pondente terrestre, muito usado pelas mulheres ou entre quartetos
de aplhi-pihá, é o avatar da fragrancia celestial. O verso 41 é di
to diretarnente pelo xarna, construindo-se como urna constata~ao gené
rica e conclusiva: ele responde a pergunta-terna do canto, o porque
dos deuses ernplurnarern a castanheira. Nao se trata rnais ou apenas •
de sua filha, mas das rnulheres (humanas) em geral. O "levar para
ca9ar" é sexo. o verso 43 prepara o firn do canto: o xama consumiu
todo o charuto - os deuses o fizeram, como ele diz -; sua inspira-
9ao está terminando. No verso 44 ternos . uro Último vislwnbre da cena
celeste: a menina morta diz ao pai o que os deuses dizem a ela, so
bre o perfume que impregna o próprio chao que pisa.ro. E o verso 45
repete o terna inicial.

Creio que, apesar de rninha.s limitacroes como tradutor e comen


tador, essa can9ao da castanheira permite que se percebam alguns
tra~os fundamentais do canto xamanístico, quanto a forma e ªº con-
teúdo. Ela é o único exemplo que tenho de urn canto estruturado con
forme o esquema pergunta-resposta; e, ernbora longe de ser o único
a tematizar o estatuto amea~ador dos deuses, é urn que marca corn vi
gor o furor caníbal dos Maf. Outros.cantos sao mais jubilosos, es-
pecialmente aqueles ern que os deúses descero, paramentados e ale -
gres, para comer. E outros sao muito rnais complexos, no regime e-
nunciativo, na extensao e no vocabulário - nao me atreví a analisá

564
entre outros

-los em detalhe, por ora.

Os Ma! hete, assim como os ha'o we . de mortos, estao presen-


- associados
tes em quase todos os cantos, mesmo aqueles que sao a
'
ou enunciados por outras divindades. Assim,por exemplo, urna can-

9ao de re-assent~mento da alma de um menino, que ouvi em mar90 de

1982, tinha a seguinte disposi9ao: o refrao a identificava como

sendo d~, e dita por, á Coruja-tornada-Divindade (Orokoro 'á-mo-Uaf),

que falava para o pai(vivo) do menino sobre o que diziam os Maf


(het!l a respeito do que dizia o Iraparadf, que é urna espécie de

tr~ns~igura9ao celeste genérica dos inimigos e/ou matadores. Outr~

também por ocasiao de um imon!, era cantado pela morta Awar~-hi ,

com um refrao que mencionava o Senhor dos Periquitos <Citá';), e

tematizava a mesma problemática do canto da castanheira: a marta

dizia · ao xama (seu irmaq) que um Maf quería sair com ela, e pedía

que ela pedisse ªº seu cunhado (i.e. o xama) que o permitisse.

As can9oes produzidas pelos xamas nas sessoes de re.a ssenta

mento de almas errantes nao mantero uma conexao de conteúdo com o

objetivo de tal opera9ao, em geral - nisso contrastam com os pey~

alimentares, em que as divindades que cantam qu sao mencionadas

sao aquelas ligadas ªº tipo de alimento em pauta. o imone é quase


'
sempre urna iniciativa do xama, nao do paciente; é o xama que, em

sonho, ve a alma de· alguém (na maioria das vezes urna mulher ou

crian9a), e se dirige entao para a casa do desavisado paciente, e

o xamaniza. Mesmo . nos casos, por exemplo, em que urna alma foi rap-

tada pelo Senhor da Agua, aquilo que o xama canta durante a re-con
du9io espiritual pode ser totalmente alheio ¡ problemitica da cap-

tura. A can9ao, assim, é anterior e determinante em rela9ao ¡ ope-

ra9ao terapeutica.

Conforme se deve ter notado, os mortos nomeados na can9ao da -

565
araweté : os deuses canibais

castanheira nao sao designados como "falecidos" (sufixo.-rem~) ou


como h~ 'o we, mas , como presente·s, por seu neme próprio ou conexao-
de parentesco. No canto em questio, aliis, o único "finado" era o
próprio xama.

Tanto almas mortas de mulheres quanto de homens cantam ou·sao -


cantadas I pelós xamas ~ A Única dif·eren9a significativa é que as al
mas masculinas, quando sujei to· ·do canto, tematizam menos as si tua-
9oes de afinidade e os motivos sexuais, falando preferencialmente'
de ca9a, guerra e lutas no céu contra perigosos espirites canibais
- outros que os Maf hete.
- Os . cantos de Iaracl;
- b caníbal comedor
de a9aí, sempre envolvem como personagem algwna alma de matador
-guerreiro; e os cantos ·ae benzimento do cauim trazem urna alma mas
culina como cantador do cauim mis~ioo. Embora ·eu nao possa afirmá-
-lo com seguran9a, - observei wna maior freqüencia, seja n'os cantos
atualizados durante minha estada, seja ·naqueles lembrados, de ma-
nifesta9oes de almas feminina~. Excluo aqui o dado o~j~tivo, que
foi o de que a marte de Awar~-hi, em mar~o de 1982, gerou urna pro-
lifera9ao de cantos em que esta alma recente se manifestava. Isto
pode.r ia ser explicado pelo maior "rendimento sociológic.o" de urna '
alma feminina, do pont9 de vista masculino do xama: ~la poe direta
mente a questao da afinidade.

A morte de Awara-hi permitiu ainda que eu entrevisse wna fu~

9ao do canto xamanístico, que é o de comentar, pela boca do morto,


eventos atuais. Assim, por duas vezes Awara-hi se referiu a · coisas
que estavam acontecendo na aldeia: urna vez Y~riñato-ro cantou o
medo desta· alma em se aproximar de?e (se~ ex-sogro), . pois que ela
o via, e a todos da aldeia, semelhantes a brancos, armados de lon-
gas espingardas - e de fato a primeira e grande distribui~ao de
a.r mas aos Araweté foi fei ta um dia após a morte de Awara-hi. Outra

566
entre outros

vez ela comentou jocosamente o re-casamento de seu viúvo com urna


menina, falando sobre a vulva pelada das deusas femeas - e todos
entenderam a referencia.
'
Todos os xamas ativos da aldeia, . ao longo de 1982, trouxeram
a alma des ta mulher morta: alguns eram seus "irmaos", outros "so-
gros", "pais", apfno, etc. Isto nos leva a duas questoes: quem se
manifesta, e quem canta ou faz cantar que mortos. Ao que parece ,
todo morto surge pelo menos uma vez na boca dos xamas, no período
após o luto e dispersao da aldeia. Mesmo crian9as pequenas (quando
já tém nome) assim o fazem. Alguns mortos em particular, porém, ·in

sistem nos cantos, e alguns reaparecem após anos de ausencia. Cer-


tos mortos - notadamente filhos pequenos - sé sao cantados por seus
pais, ou parentes próximos; outros o sao por todos os xamas. Há
mortos que,. segundo me dizem, jamais apareceram nos cantos, outros
que vém sempre. Essa diferen9a é creditada a vontade dos mortos
'
sao eles que suscitam sua presen9a, nao o xama. Por sua vez, quan-
do dois ou mais mortos aparecem juntos em um canto, podem estar
(ou ter estado) nas mais variadas rela9oes recíprocas de parentes-
co: pais e filhos (caso do canto da castanheira), irmaos, tio e so
brinho, cunhadas, etc.etc. Além disso, é comurn que um xama cante
um morto com o qual suas rela9oes de parentesco nao sao importan -
tes - ou nao sao focalizadas: nesses casos, o xama pode ser urna
ponte para que a alma interpele ou se refira a urn parente vivo de-
la; ele é entao o ponto neutro do triangulo.

Nao creio, em suma, que se possam encontrar regularidades


significativas quanto a esse aspecto, do ponto de vista sociológi-
co. Se a tendencia é que os xamas cantero (ou insistam cantando)mor
tos de sua parentela, a própria fluidez deste "grupo" social faz
com que se possa cantar qualquer morto: além do _que, urn hornero pode

567
araweté: os deuses canibais

trazer um afirn morto, urna esposa, um cunhado, um sogro, um pai. Os


cantos xarnanisticos, assirn, sobre nao serern casos de possessao,nao
configurarn um "culto" de ancestrais. Relac;ao genérica dos rnortos '
do grupo corn os xarnas, os quais podern, entretanto - mas nao neces-
sariarnente -,servir para que um rnorto comente sua ligac;ao-separa -
c;ao corn parentes que deixou na terra. Mesma relac;ao global que já

encontrávarnos entre os xarnas e as divindades. A 11


especializa9ao"de
certos xarnas ern certos mortos parece ser urn f enorneno sernelhante
aquele da preferencia de certos xamas po r certas divindades, ternas
e torneios de linguagern. Área livre a fabula9ao. Na medida mesmo
em que o canto xarnanístico depende de um impulso oníric~ prévio ,
arriscar-me-ia a dizer que as deterrninac;oes imediatas das rnanifes-
tac;oes singulares de rnortos, via xarnas específicos , sao de ordern
- i ca, e nao
ps i co 1 og - . . . 1 66 . E v id enternente a b ase on1r1-
- soc10-cer1rnon1a " .

(66) Poder-se-á objetar que os peyo alimentares, implicarrlo a vinda de divinda-


des específicas,rrostram um evidente constranginento externo, de orden ceri.no
nial. De acorde - mas isso se aplica aos deuses, nao aos rrortos que eventua.J.rren
te descero para a::rcer. Al.érn disso, vários peyo nao se realizararn porque nenhum
xana cx:::ru;eguiu se inspirar na ooite precedente: "os deuses nao vierarn (a mim)",
era a explicac;:ao Cbs candidatos ao benz.:i.mento. O::rto já nencionei antes, oo.nna.1.-
rrente o respansável pela cerinOnia, tenetamo ou "dooo do milho", é o xama ou
pede a um xarna previarcente que realize a operaliao· Isto nao impede que outros
xarnas tragam deuses para a::rner - a::nfigurando xarnanisrro.s múltiplos e simulta
neos -, e/ou que o "contratado" fracasse. Por fim, nao sei exatanente qual a re
lacrao entre o sonh:> e o canto. Sei que o xama nao sorlha o canto, ele canta o so
nh::>, i.e. o intez:preta, no duplo sentido de "interpretar". E sei que os xamas
:pXien cantar san ter sonhado, induzindo visees e palavras a partir da ingestao
de tabaoo em grandes quantidades.

ca, alérn de se prestar a múltiplas interpretac;oes do xarna e dos


ouvintes de seus freqüenternente ambiguos cantos, é o sedimento de
experiencias sociologicarnente condicionadas, passadas ou presentes

568
entre outros

- mas as media9oes estao inteiramente fora de meu alcance. Quem

canta sao os deuses e os mortos - nao os xamas.

O fenómeno da insistencia de certos mortos, e a correlativa'

ausencia de outros, é semelhante ao problema dos critérios de esco

lha de um morto epónimo para cada aldeia abandonada - parece ser

fun9ao da importancia objetiva e subjetiva do morto. Nada rnais sei

dizer. Note-se que, igualmente, há divindades que raramente ou nun

ca sao cantadas, ou vém a terra.

Dois tra9os, ou condi9oes negativas, caracterizam entretanto

todo canto xamanístico: (1) nenhum canto se refere ao processo de

devora9ao do morto pelos deuses - sernpre que a alma aparece, e


..
porque já "tornou-se Ma!" ; (2) um xarna sé traz mortos que conhe-

ceu quando vivos. A prirneira característica deriva, ern parte, , do

fecharnento do caminho celeste oriental durante a dispersao aldea,

a vigencia do espectro terre~tre e a cessa9io dos cantos nesse pe-

riodo. Mas ela depende ainda da idéia de que só os deuses - e mor

tos divinizados - cantam. A recep9ao da alma ~o ceu e sua devora-

9ao estabelecern a disjun9ao morto/vivos , físico-espiritual, e o

canto posterior da alma é a voz de quern já está ontologicarnente do

outro lado do espelho. O terna do canibalismo se desenvolve na rela

9ao xama (viventes)/deuses. Quanto ªºsegundo ponto, ele indica que

a participa9ao das almas no discurso e na vida do grupo dura o

que dura a memoria experiencia! dos vivos. Urn rnorto só se lernbra

daqueles que se lembrarn dele, e sé se mostra aqueles que o viram •

Assirn, os rnortos se dissolvem na generalidade da condi9ao divina

a medida que seus conternporaneos vio-se juntando a eles. Quem can-

ta, portante, nao sao ancestrais sao conternporaneos que se foram.

o canto xamanistico nao é um modo de perpetua9ao temporal

da sociedade no Além, mas urna técnica de por a micro~diacronia - o

569
araweté: os deuses canibais

movimento que leva cada urn a SUa morte - a servi<;O da conexao sin-
crónica entre duas esferas do cosmos·, ·que a rnacro-diacronia sepa -
rou: céu e terra, deuses e humanos, os que se forarn e os abandona-
dos. A presen<ra dos rnortos é o penhor da presenc;a ·aos idos, dos
deuses, aqui e agora. Por isso, os vivos governarn os rnortos; e o
impulso "extra-mundano" da religiao Araweté nao traduz nenhuma con
cep<rao negativa da condi<;ao de vivente, mas é urna estratégia de
presentifica<;ao do Alhures, nao de eterniza<;ao do presente e/ou sua
nega<;ao. Os mortos sao a tenue superfI~ie de contato ent~e as duas
metades do universo, e se "saciifioarn'' para que aos viyentes seja
dada a gra<;a de contemplar, na voz do xam~, a visao . fugaz . destes
Outros temidos e desejados, origem e destino .dos humanos: os · deu-
ses. Se o xarna é um Mat deáaka, um ·"refletor da Divindadeº, é por-
que todo o sistema se monta como um jogo de imagens - assim diziam
Hubert e Mauss do sacrificio (1968:305). O discurso xamanístico e
um jogo teatral de cita<;oes de cita<;oes, refl.e xos de .reflexos,ecos
de ecos - interminável polifonía onde quem f ala é sempre o outro ,
fala do que fala o Outro. A palavra Alheia só pode ser apreendida'
em seus reflexos: videmus nunc per speculwn in aenigmáte, para ~i­

tarmos um rnestre das cita<;oes, J.L.Borges, citando Leon Bloy citaE_


do S. Paulo (l Cor.XIII, 12), que falava do que nao se via, agora,
67
senao em enigma e através de um espelho (Borges, 1960) •

( 6 7) E é talvez nesse mesno sentido que se possa interpretar o principal a tribu


to do xama Wayapi (Gallois, 1985): waruá, que os indios traduzem p:>r "espelho"
- e q\E reificam num objeto místico de tipo visual, e.rx¡uanto o jogo refletor do
xarra Araweté se exprime sobretudo
.
no eco vocal do canto cita.do. Este espelho Wa
-
yapi é urna espécie de "retrovisor" - algo. que penni.te se enxergar o que nao é
visivel de frente, san ne:li~. O::>ntrarianente, os xarnas Tapirapé usam espe -
1.hos ~a afugentar os espíritos (Wagley, 1976:249, 267), que,já reflexos, nao
poden ou nao tolerarn a:::ntenplar a própria imagen.

570
entre outros

t:: assim entao que a palavra do xama estabelece urna constan -


te e deslizante diferen9a entre as ~ozes que se rebatern ern sua pró ·
pria voz, que aparece como urn "relais" a mais na longa cadeia enun-
ciativa. Assim como é impossivel a urna pessoa dizer o próprio nom~

impossivel é ªº xama falar senao do que lhe falarn, e/ou o que lhe
falam. Quando fala de si, é outro que está falando; e quando fala
por si, é como objeto prévio do discurso alheio: vítima canibal •

Ele e~iste no elemento do discurso de outrem, e sua palavra será . '


por sua vez retomada mais adiante. Pois, se os cantos xamanísticos
raramente sao identificados pelo neme de seu cantor, a informa9ao 1
neles contida é posta na sua conta. "Fulano (urna alma) disse tal
coisa (algo que disse urn deus), disse tal xama", dizem os outros .
t:: sempre alguém em particular que disse - nao há voz impessoal (su
pra: 62) -, mas nunca é aquele em particular que está dizendo. As
sim corno é paralisante come9ar algo, por-se corno sujeito de urna
- que concerna e concerte os outros (supra: 300-ss.),
a9ao difícil
também é dizer algo, algo que nao seja o que foi dito por outrem .
Por isso,- se os ,tenetamo sao . indispensáveis - ou "ninguém" come9a
nada -, indispensáveis igualmente sao os xamas - ou ninguém"diria"
nada. Neste sentido -é que sugeri que o lugar da chefia polltica na
sociedade Araweté tenderá a ser mais compatível com a posi9ao de
xama que com a de guerrei~o: líder aldeao e xama sao os depositá -
rios da a9ao e da palavra dos outros (supra: 317-19).

Ora, se a posi9ao de lideran9a aldea se funda em última aná-


lise na lideran9a do grupo doméstico, e se esta conota urna fun9ao
"feminina" - seja pprque o mundo da aldeia, a for9a de identifica-
9ao e de fechamento da seyao residencial/f am!lia extensa sao ferni-
ninos, seja porque o meio de exercício da lideranya é o controle
sobre ~s mulheres (uxorilocalidade) - a posi~ao de xama mantérn uma

571
araweté: os deuses canibais

rela~ao intrinseca corn o grupo doméstico. Já rnencionei várias ve-


zes a importancia da unidade conjugal-doméstica no xamanisrno. Toda
casa/hornero casado tern urn ar~y, objeto emblemático que é o fruto do
trabalho de urn casal: a interioridade doméstica é o "templo" xarna-
nistico por excelencia, o equivalente Araweté das "tocaias" TG.; a

esposa do xarna é sua principal auxiliar, que vigia para que seu
charuto esteja sernpre aceso, acompanha seus passos, interpreta seus
cantos, dan~a corn ele durante a dispersao das fléchas alimentares,
e o assiste no perigoso benzimento do rnel. Toda se9ao residencial

tern pelo menos um xama importante, e poderiarnos dizer que os aray

de cada grupo doméstico estao para o chocalho e a voz do xama prin


cipal assim como cada casa está para a casa•matriz da se9ao resi -
dencial. A correspondencia, certarnente, nao é perfeita: há líderes
de familias extensas que nao sao xamas, ha se9oes do tipo "hori -
zontal"(joint families) que tém rnais de um xarna, etc. o que quero
sugerir aqui é outra coisa, entretanto: que a unidade xarnanistica'
é o casal, nao o individuo ; e que a prolifera~ao de xarnas entre
os Araweté indica que esta fun~ao é urna for9a que tanto unifica a
coletividade - notadarnente na posi9ao representativa do xama nos
benzimentos alimentares, onde ele encarna a fun~ao de "dono" do
alimento, ofertado aos visitantes celestes - quanto trabalha por
sua dispersao. Um xama casado, e seus filhos, sao o ·ernbriao poten-
68
cial de um grupo loca1 . Se o xamanismo é o atributo exclusivamen

(68) A imp::>rbncia da t.midade oonjugal no xarnaniSlll) é atestável para out.ros gru


p:JS Tupi-Guaraní: Tapirapé (Wagley, 1976:255, 258-9), Guarani (Nimuendaju,1978:

51, 105) e Tenetehara (caso da es¡:x:>Sa de um feiticeiro - ver Wagley & Ga.lvao ,
1961: 126). Para estes mesrros ~s, fica "clara a re~o entre xarnanisrro e li-
deran<ra de familia extensa ou faar00. Mas nao creio que já se ten.ha meditérl::> so
bre essa rel~ xamanisrco-c.asal, que nao me parece pertinente para outros po-
vos da A.do Sul.

572
entre outros

· te masculino, e aparece corno fun9ao complementar as fun9oes fernini


nas, e se, no contexto do xamanisrno, a rnulher é urna mera auxiliar
ou urna paciente o hornero sendo o agente -, esta posi9ao é,porém,
face a posi9ao de guerreiro-matador, marcada por urna natureza re
lativarnente feminina. Nao só por sua vincula9ao a estrutura domés
tica; mas pelo próprio caráter da rela9ao do xama com os deuses.

A posi9ao ou qualidade de xarna nao assegura - aqui ao contrá


rio de numerosos povos Tupi-Guarani - nenhurn destino privilegiado'
no Alérn para os xarnas rnortos. Eles serao re-rnortos e devorados co-
rno todas as humanas e todos os hornens que nao sejarn matadores. A
única peculiaridade dos xarnas rnortos está na natureza cantante de
seu espectro terrestre, mas isso parece ser urn fenómeno marginal ,
e automático como tudo que envía ao ta'o we.
-
O xama tern, naturalmente, algo- de guerreiro ele se arrisca
no céu, entre os canibais, e nao tern medo de tratar com os deuses-
, e sua condi9ao masculina é o que lhe garante a excorpora9ao nao
-definitiva. Mas essa mesma capacidade de excorporáqao constante ,
esse demorar-se entre os deuses, essa funqao de suporte da pala -
vra dos mortos, tudo isso o transforma nurna espécie de morto ante-
cipado. Sua posi9ao, face aos deuses, nao é muito diferente da dos
mortos recém-chegados ao céu,e seu papel de anfitriao da cornunida-
de nos peyo alimentares o situa corno "nutridor", semelhante ao
"dono do cauim" f ace aos demais homens ou aos convidados das al-
deias estrangeiras. Senda urn homern, o xama pode realizar corn suces
so a me~ia9ao entre o mundo feminino da aldeia e o ·rnundo hiper-mas
culino dos deuses, celestes. Fun9ao masculina, mas fun9ao humana .
os homens estao, de certo modo, entre as mulheres e os deuses; por
outro lado, as. mulheres mortas sao a garantía de urna alian9a entre
os homens e os deuses. E, enquanto rnortas divinizadas - i.e. já

573
araweté = os deuses canibais

- podem fazer, a sa-


devoradas -, e1as fazem aquilo que as vivas nao
ber: cantar. Um canto que entretanto é, via de regra, uro citar a
palavra dos deuses, a respei to delas mesmas·, como no caso da can
- da castanheira.
9ao

Essa ambivalencia do xama, que resulta de seu papel de media


dor ou "refletor" da morte e da Divindade, pode ser contraposta a
outra, a do matador, que também encentra expressao musical. Se o
xama é urna espécie de outro,.wn morto, o matador será outro outro,
e assim sua palavra. E: no contexto da distin9ao xama/guerreiro que
se pode apreender o sistema da Pessoa. Note-se que essa aproxima -
<;:ao do xama a urna posi9ao "f.eminina" é puramente relacional; e que

os deuses sao xamas por excelencia. A ipey!_ ha, for9a xamanística,


é o poder transformador universal. Mas os deuses sao também, e so-
bretudo, guerreir,o s, canibais. Enquanto vivente, o xama é urn homent
que se relaciona aos deuses por urna estrutur~ de af inidade - e tal
vez por isso cante mais as mortas que os mortos -; enquanto morto
(antecipado ou definitivo) ' o xama se encentra na posi9ao feminina
genérica dos humanos face aos deuse-s : coisa para ser comida. Se a
posi9ao de xama é urna reflexao cómplexa sobre a mortalidade, a po-
si9ao de matador é urna visao antecipada d~ imortalidade. Se o xa
ü
ma é o suporte da fun9ao canora dos Mai., o. matador roa.r ea pelo aves
so os deuses como canibais. Se o xam~ é o instrumento pelo qual os
deuses falam (mas falam de que? de comida, e de sexo) , o matador ,
este fala como o inimigo, e é incomestível.

Urna palavra final, entretanto, sobre o estatuto dos Maf como


afins dos humanos, neste contexto. ~ can9ad da castanheira que ana
lisamos acima, se caracterizava o confronto x·a ma/deuses como se
dando na arena da afinidade, nao trazia urna nomea9ao explícita e
reciproca dos envolvidos por termos de afinidade, ou outros.Outros

574
entre outros

cantos xamanísticos - que por longos ou fragmentários deixo de tra


duzir aqui - o fazem, freqüentemente.
Dado que o modo de incorpora9ao de todo morto no céu e, após
~

a devora9ao caníbal, um re-casamento coro deuses e deusas, a rela-


~ao global e genérica dos humanos com os Ma~ só pode ser urna de a-
finidade. Isto se exprime no discurso ~raweté de várias formas.Boa
parte das divindades cele-s tes é referida como ñan!!_ ramoy oho, "nos
sos av6s grandes" - notadamente o Senhor dos Urubus e ds perigosos
deuses canibais do tipo Iarac~, Teredeta, etc., que nisso se "apa-
r.entam" aos espirites da mata. Já aqueles deuses que ergueram a
abóbada celeste - Aranam?, Hehede'a, Maraira, Awerika - sao sempre
referidos pelo epíteto ñane rati pik,, "nossos longos sogros''.Eles
parecem ter urna rela9ao mais . próxima com ·os humanos, e vivero aliás
todos juntos ·com os Ma! hete. E estes, os Ma! hete, os can ibais
e futuros conjuges dos viventes?

Os Ma~ het!_, como um todo, sao ire tiwa oho: "nossos (plural
exclusivo, no contexto do diálogo com o antropólogo) tiwéí grandes",
''nossos gigantescos nao-paren tes". Tiwa, como j á vimos, é um "meio
termo" de parentesco, que designa os nao-parentes, aliados poten-
ciais e primos cruzados, posi<tªº instável e tenso-aberta (supra .•
391-3, 433-4): algo entre o Ego e o I?imigo, seu emprego conotauna
exterioridade interna, se posso me exprimir assim. Os Ma-C hete sao,
de fato, o arquétipo dos tiwa: estao do "outro lado", mas ligados
aos viventes; sao inimigos, mas nos transformaremos neles,transfoE
mados por eles; sao afins potenciais. Urna rnorte é (como) um casa -
mento: transforma os tiwa em afins reais.

-
Deve-se notar que os xamas e os Maf!, tanto quanto pude saber,
nunca se interpelam como tiwa. Os outros deuses sao eventualmente
designados pelos termos mencionados acima: sogro, avo, etc. Já os

575
araweté: os deuses canibais

-
Maí! hete, ou sao apenas citados corno "Maí!", e citarn o xama - pelo
neme pessoal deste, ou estao ern urna rela~ao especifica, de afinida
de real, com o cantor ou outros viventes a quem se dirigem através
do cantor. Os Maf que se manifestam nos cantos de mortos comprazem
-se ern aludir aos parentes vivos do rnorto, sejarn eles o próprio xa
rna ou outros, destinatários ou "personagens" vivos do canto: os
deuses hornens falam de seus cunhados, sogros, ex-filhos de su as
esposas humanas; as deusas femeas interpelarn su as cunhadas, sogras,
etc. Termos da série do parentesco nunca sao usados, mesmo que lo-
gicamente possiveis. Urn xama citará, por exernplo, um Ma! con:io "may
nerek;", "marido de minha mae", nao como "pai". E o novo conjuge
de um morto, divino, sublinha constantemente a ruptura da rela~ao

do morto com o(a) viúvo(a). os cantos que trouxeram a Awara-hi re-


petiam com insistencia: "Heml-d.ar; ne remiuika pe" .- "g deliciosa,
sua ex-esposa", falando para o viúvo ••.
Já quando um xama faz cantar urna finada ap~hi sua, é tratado
pelo deus que a acompanha de aplhi-piha, "amigo"; quando dos benzi
mentas alimentares, alegres, os Ma! gostam de chamar o xama deste
termo. Desse modo, é possível a rela~ao de "anti-afinidade" entre
homens e deuses; mas aqui, ao contrário do que se passa entre os
humanos, é a amizade que é subordinada. O idioma, vocabular ou sirn
bólico, da afinidade predomina sobre a amizade. De toda forma, os
deuses sao sernpre nao-parentes dos vivos: tiwa, "outros".
Essa é a mesma rela~ao, tiwa, entre um hornero e o inimigo que
matou.

(B) Os Matadores e a Música dos Inirnigos

- corno vimos, cantam os deuses e os mortos do grupo.


Os xamas,

576
entre outros

Vejamos agora o .que cantam os matadores do grupo, e como.


Se os mortos sao, a seu modo, duplamente inimigos - espectro
terrestre inimigo dos viventes, alma celeste inimiga dos deuses
- e os deuses, ~o seu, também inimigos - inimigos dos Araweté qua
mortos -, nao há lugar no céu para os inimigos reais dos Araweté.

Diz-se que a.s almas_ dos inimigos (Kayapó, .brancos, Parakana, etc.),
ao chegarem ao céu, sao arremessadas de volta a terra pelos Maf , e
aqui perecem definitivamente. Neste sentido, os inimigos só tem ou
sao ta'o we, espectro ter~estre, figura9ao da morte - mortíferos ,
sao mortais. E neste sentido o Além é um mundo sem inimigos, sem
Outros - na medida em que os inimigos nao sao propriamente humanos,
bfde , nao tema alma celeste, principio da pessoa, nem o direito a
serem devorados e transformados em divindades 69 .

(69) ~ta gente afinnava, entretanto, que os Asuriní nortos tém seu lugar no
céu, ern aldeia própria; e assim também os brancos. No primeiro caso, isso se
justifica pelo parentesco dos ~uriní cxxn os AraWeté, retontarrlo a cisao Tupi
ancestral. o segurxb era certamente una indulgencia ern rneu beneficio •

...
Note-se porem que se os inimigos mortos, enguanto ma tadores
de Araweté, nao vao para o céu, os xarnas dos inimigos lá estao, e
em posi9ao importante. Eles forrnam a classe de divindades ditas
Awi' peye (supra: 243), "pajés dos inimigos" ou "pajés inimigos",se

res que subiram ao céu corn os deuses quando da separa9ao cósmica


originária, e que vem freqüentemente a terra comer ou cantar. Os
awi pey~ sao corno que urna modifica9ao-xama, urna existencia sob o
modo-xama dos inimigos - e é nesta qualidade que eles participam

da Divindade. Eles sublinham o aspecto-xama da Divindade ern geral,


ao mesmo tempo que excluem irnplicitamente o aspecto-inimigo - -
nao
sao perigosos para as almas humanas, nem canibais . Sao urna espécie

577
araweté: os de uses canibais

de profissao de fé politeísta do panteon Araweté: deuses estrangei


ros.
Semelhante situa~ao inverte radicalmente o destino póstumo
do xama e do matador Araweté. Os xamas Araweté, enquanto tais, nao
tem tratamento post-mortero especial: sao comida dos deuses, e ne-
les se transformarao, nesses 11
xama·S dos Araweté 11 que sao os Maí!

hete em geral. Em contrapartida, os matadores Araweté, e o espiri-


to de inimigos mortos por Araweté, nao só sobem aos céus como ali
desfrutam de urna posi~ao privilegiada: fundidos em urna só figura ,
o matador-inimigo morto é imune a devora9ao. Ele se torna. um
Iraparadf, um Araweté-Inimigo-Imortal.
Nunca assisti ao processo que segue a morte de um inimigo,de
serte que aqui dependo exclusivamente de informa9oes verbais. Para
ir a guerra, os homens escolhiam como líder a um matador - moropl'
, -70
ha • O grupo de guerreiros cobria-se inteiramente de preto do

(70) Esta palavra é una haplología de moro- ou mir+-, prefixo verbal que indi-
ca que o verl::o subseqüente se refere a human:>s, e da raiz verbal naninalizada
(hJopl'ha, que significa "matad::>r". Ela dencrnina um es~tuto s0cial, o de hcrni-
cida; o verl:x:> corrente para "matar", yok.G. , produz fannas gerais, nao-lexicali-
11

zadas", cx:m:> yoka ha, "matador", tuCb o que mata. Morop~'ha designa apenas o to
micida Araweté. O único oognatp ide.ntificável deste conceito é a fonra Ad1é
brupiare, can o nesm::> significaoo (P.Clastres, 1972:248} - onde bru- é o ArZM.
moro-.

jenipapo, e cada hornero portava pulseiras, testeiras e jarreteiras'


de folha nova de baba~u. As armas eram o arco e a flecha grande,de
ponta de taboca e penas de harpia. , Sobre o cadáver dos inimigos
deixavam-se os adornos de baba~u; quando possível, recuperavam-se
as flechas. Urna flecha que já matou ca~a grossa ou inimigo tem
sua ponta barrada de vermelho, e é um troféu.

578
entre outros

Diz-se também que se seccionava o bra90 direito do inimigo ,


de modo a obter os ossos da omoplata e úmero, que entravam na con
fec9ao de um adorno para dan9a (supra: 520). Cheguei a ver um anti
go troféu desse tipo, feito com o úmero de um branco¡ já nao tra -
zia as penas d~ mergulhao (karara) , e era cuidadosamente escondido
dos funcionários da FUNAI. Nao se o portava nos opirahe. A prática
de se decepar a cabe9a dos inimigos era-me desconhecida até sair
da aldeia - quando os Araweté trouxeram a cabe9a do Parakana que
mataram, em abril de 1983 (supra: 61).
Nao se faziam prisioneiros. Todos eram mortos, e os corpos a
bandonados. Tanto os inimigos mortos na guerra quanto os Araweté
que assim tornbaram nao eram enterrados. No Último caso, disserarn -
-me que por medo; mortos por flechas inirnigas sao "dos urubus" (i ri
-
wo apa ) , nao - para recuperar seus corpos 71 •
- se volta atras

{71) As pessoas rrortas ¡::or inimigos sao tratadas cc:rro todo rrorto, 00 céu: sao
devoradas e de¡::ois inersas oo banb::> ressusci tador. A diferen;:a é que, quarrlo um
ataque inimigo manda para o Além fillÍta gente de urna só vez, seus cor¡::os sao -
p:>stos toebs juntos na bacía das almas.
Tais eventos de rrorte em rnassa, resultantes sobretu::b das incursé5es KayapS ,
sao lanbrados a::m horror, nao só pelo fató en si da perda de familias inteiras,
mas poI:que os sobreviventes temiam que o céu, pesado de tantos rrortos de urna só
vez, desabasse sobre el~, acabard:> o rcmrl:>.
o espectro terrestre dos nort:os na guerra nao parece ter qualquer particula-
r jct3<Je que o distinga; e a dispersao da aldeia, nesse caso, se deve antes oos
inimigos que oo ta'o we. Na verdade, algunas pessoas aventaram a hipótese de
que os ta'o we das vitimas de inimigos ficassern junto a estes, o que é verossi-
mil, e cx:npatlvel can a estória de que os xamis Kayapó "rnatam o ta'o we" dos
Araweté que eles rnatavarn.

Vai-se a luta por dois motivos: por vingan9a (yepi, ou pepi -


ka , "contrapartida" ) de urna rnorte ou ataque infligidos, e pelo sirn
ples desejo de matar inirnigos: a'w-l yoka pi:ta-mo. Alguém que já -
e

579
araweté: os deuses canibais

matador, especialmente, possui tal desejo "dentro da carne". Ne-

nhurna das duas razoes, diga-se de passagern~ ¡mplica que os Araweté

tenharn dernonstrado- urna grande eficácia retaliativa ou ofensiva.Até

a introdu9ao das armas de fago, eles costumavarn ser ~ntes vitimas

que ofensores; seu modo de vida em pequenos . grupos locais disper -

.sos tornava-os presa fácil para os numerosos Kayapó e os guerri-

lheiros "kamikaze" Parakana. Ambas essas t~ibos erarn francamente '

temidas por produzirem rnuito mais baixas entre os Araweté do que

vice-versa. A dispersao e fuga ~raro saidas mais usu~is que a con~

tra-ofensiva, podendo entretanto combinar-se com ela. Os Asuriní

sao o único povo recente sobre quem exereeram clara superioridade'

bélica. Apesar dessa posi9ao rnais passiva que ativa nas guerras his

tóricas, os Araweté nao sao absolutamente "pacifistas" (como, por

exemplo, os Tapirapé), nern covardes. O est.atuto de matador configu

ra urn complexo cosmológico central, o que me permite defini-los co

mo um povo de guerreiros.

Todo hornero que matou ou mesmo flechou um inimigo marre. As-

sim que chega a aldeia ele se recolhe ero casa, e jaz como que des-
!
rnaiado vários dias, sem comer nada. Sua barriga está cheia do san-

gue do inimigo, e ele vomita continuamente. Essa rnorte nao é urna

simples excorpora9ao, é algo mais forte que as mortes por tabaco,

cauim, etc. ~ um devir-cadáver: o matador ouve o zumbido das ves-

pas e dos besouros, o ruflar das asas dos urubus que se aproxirnam

de "seu" corpo morto - seu próprio cadáver, mas que é ac mesmo tem

po o cadáver real, do inimigo morto, na mata. Ele se sente "como

apodrecer'' (i toy~ herl) . Os espí~itos Iwira ña -


e congeneres so
pram em seu rosto, para que reviva; já os Ma t nao se acercam, nem
-
os xarnas. o matador, como o dono de crian9a (a compara9ao e - dos

Araweté), deve tornar a infusao de casca de iwirara , "para poder

580
entre outros

comer jaboti".

Qu ando o inirnigo foi realmente morto, o periodo de rnorte do

matador i prolongada, ·cerca de tris a cinco dias - especialmente


'
se se trata de um primeiro homicidio. Quando aquele foi apenas fle

chado mas escapou, a récupera~ao é mais rápida: a do guerreiro e


aquela que a determina, a do espirito do inimigo. Pois, passado
~ . 72 -
~1 gum tempo, o ha'o we do inimigo (·aw~ na'o we) . ressuscita ou
..

( 72) A dis~ entre -a '·o we celeste e terrestre nao faz sentido para o caso
de inirnigos; ou rrelhor, se os inimigos em geyal. só existan p:>st--nortan a:irro

ta ' o we , os inimigos nortos p:>r Araweté, fundincb-se cx:rn a alma celeste do mata
Cbr, só rcanifestariam um ha ' o we celeste.

desperta (iperay), e exorta com violencia seu matador: "eya ca-p o ~

tiwa! ey~, ter!-pirahe!" - ''ande, levante-se, t~wa! Ande, vá dan-

9ar!" O inimigo está raivoso, mas está i~dissoluvelmente ligado a


-
seu matador; corn o tempo, seu ódio cessará, e ele e o guerreiro
' . .
oyo mo- o r i , "alegrar-se-ao mutuamente".

~ o inirnigo morto, portante , quem aco rda seu matador, e o

''faz levantar'' para a dan9a. ~ ele que está p o r tris do cantado r ,

aquele que, como vimos, "ergue consigo" o s homens no o pi:rahe (su-

pra: 298-9}. t quem está, literalmente, por trás: o inirnigo morto'

é chamado de maraka memo'9_ ha, "ensinador do canto", termo que de-


signa a posi9ao as costas do cantador, nas dan9as do cauirn, ocupa-

da por um hornero experi~nte (urn matador), que "sopra"

líder. ~ o rnorto, assi~, que ergue o matador que ergue. os demais .

Mais urna vez, é um outro que come9a: na pónta da cadeia temporal de

urna can~ao está um inirnigo rnorto.

Erguido pelo inirnigo, o matador reúne a sua volta todos os

hornens, em unía dan~a comemorativa, - onde enuncia pela primeira vez

581
araweté: os deuses canibais

o canto que o inimigo lhe "ensinou". Diz-se que, normalmente, essa


primeira dan9a nao era acompanhada de cauinagem, visto que realiz~

da poucos días depois do homicidio; mas subseqüentemente preparava


-se um grande cauim, onde o matador repetiria as can9oes. Por isso
se chamam em geral os inimigos de "tempero do cauim" (p. 349) - urna
metáfora caníbal~

Mas a metáfora principal para inimigo é mara ka ni, "o que se


rá música". O inimigo morto, o inimigo bom que é o inimigo morto ,
é o que será música. As can9oes do matador sao awi maraka "música
dos inimigos", expressao ge ni ti vo-possessi va, como a "Maf! mara ka"'.
A música dos inimigos é um canto do inimigo, cantado pelo matador.
Os aw; maraka, ao contrário dos cantos xamanísticos, sao sempre
- -
identificados pelo nome do guerreiro que os pós pela primeira vez:
um "canto de inimigo" é também o "canto de fulano" (o matador ) •
A música de dan~a (op~rahe maraka, ou maraka hete, "música
verdadeira") contrasta sistematicamente com a música xamanística .
Todas a.s cancroes de dan9a apresentam urna forma fixa:, letras c urtas
(quatro a cito versos, repetidos dezenas de vezes), tempo ritmado'
(quase sempre binário), linha melódica monótona, e urna divisao em
duas partes, marcada por urna diferencra de andamento {a cada urna
corresponde urna parte da letra). o canto xamanístico é sempre um

solo; a música de dan9a é coletiva, cantada em uníssono, no regis


tro grave, por todos os homens 73 • Cada xama- só canta urna can9ao di

(73) As mulheres, que quando ~ no op-érahe nao cantarn, p:xiem repetir as


can:;Oes de clarxra ou guerra livremmte - e o fazern oo rnesno diapasao agu:X>, a:m
- As musicas
' TTrU'akii..
o registro em falsete, que usam para o Maf! -
. de dazl9a nao - uti-
lizan o vihrato: elas jogam a:m a duracraa
siJahica, um sistema de cesuras ou in
tervalos rítmioos que "quebram" as palavras ao rneio, e urna repetiqao quase-hip-
nótica. Una letra ou can:;ao de ~ funciona cntn os refrOes do canto xamanis-
tioo, i.e. cerco apoio para outra coisa: oo Ültim::> caso, para o .verso; oo prirnei

582

j

entre outros

·ro, para a Ciarv;a. ~ interessante rotar que as mulheres, ao repetirem a::m sua
vozinha aguda e meio lamuriante as ~ xamanísticas, podem estar enunciél!!
do palavras di tas ·por urna alma feminina - e que foram originalmente manifesta
das pela voz grave dos xamas.

vina por vez (solo noturno, ou benzirnento alimentar), é hornern de


urna só visao; mas vários xarnas podem. cantar simultanea e indepen -
dentemente, povoando as noites com u~a multidao de vozes, caleido!
cópio polifónico que transforma o discurso num teatro vertiginoso.
Já um inimig.o morto ensina várias can9oes a seu matador, e os
opirahe como um todo sempre implicam a enuncia9ao coletiva, unani-
me, de diversas can9oes curtas em seqüéncia monótona.
-
Entendamo-nos sobre a r .elayao entre a aUJi maraka e a música-
-canto de dan9a em geral. Exatamente corno no caso do repertório e
dos critérios da onomástica Araweté (supra: 374,383), há tres
classes de música, com urna em nivel lógico diferente: a música dos
deuses, i.e. o canto xamanistico: a música dos inimigos, i.e. os
cantos de matador; e a "música dos ancestrais" (ptroUJ!''ha maraka).
- -
As duas últimas categorías f ·ormam o genero da música de dan9a, e
tém estrutura idéntica. Ora, assim como o conteúdo dos "nemes con-
forme um ancestral" (pir~w!''ha ne) era majoritariamente tributário

das séries semanticas "divina" e "inimiga", com urna pequena parte


enviando a nomes de ancestrais míticos ou martes com nemes de ani-
mais, objetos, etc~, a classe das "músicas de ancestrais" é hetero
....
génea. As pirowi'ha maraka sio: (a) cantares de inimigo, awi.
maraka, enunciadas origin~lmente por ancestrais míticos ou mortos
remotos; (b) can<;Óes inimigas, · cantadas por tribos reais ou míti -
cas, i.e. músicas "estrangeiras" (a maioria remete aos antigos ex-
-Araweté que se separaram. e viraram inimigos); (e) um pequeno nume -
ro de cantos atribuidos a animais míticos - e todos estes sao peri

583
araweté: os deuses canibais

.
gosos, suJeitos a -
restri~oes · de em i ssao
' - 74 •

(74) A canc;ao dos Añl é urna "música de ancestral", mas nunca é cantada em dan -
9a51 sanente pelo xama quarrlo este cita os Añl cantarm,
nas sess0es de captura
e rrorte destes espirites. As preca~ verbcrmusj,cais Arawet.é sao a::rrplexas, e
~u cx:::inhecirnento das músicas de dan~a e de ancestrais é pequerX>. o úniro canto

xarnanistioo que nao i'.xxie ser


repetido é o aO cariibal Iaraa.r. Já as c:an<;Qes de
op~rahé restritas sao: .
(1) AciCi rei yi pe ("Entranhas do Guariba"): associada ao Guariba M:>nstroosq
- - .
nao se pode eantá-la durante a fase de amadurecirrento 00 mil.ro (quaOOo, de res-
to, nOO há opirahe, ?)ÍS se está na mata), OU ele nao cresce.
(2) Na nimt-ná nl ("Futura vítima da C>JY;a") - é o canto dos rnatacbres de on-
<ra; também prejudica o rnilho brotante, e nao ¡xx1e ser cantado p::>r rrenioos.
{3) Yato !Ji' {"Pessoal de Yato") - um dos inimigos que se dispersararn; efei-
tos delet.érios sobre o · milh:).
(4) Os cantos da "Centopéia" ,_ do "Macaro-prego M:>nstrooso", do "Jaboti Gig~
- le-
-
te", e os dos inimigos mítiros Itakad!, Ta'akati, Madapi - txxbs estes sao
tais, ha'iwa ha, sua emissao é suicidio. N\mca os ouvi.
--
·· A enrmc~ao original de urn canto ca1e1orativ0 da norte de urn inimigo também
nao ¡xxlia ser acarpanhada por rapazes pré-púberes, e muito menos por mulheres.

As - de
can~oes dan~a remetem quase todas, assim, direta ou in
diretamente a série "inimiga". A série divina é coberta integral -
mente pela música xamanistica. Nenhurna can~ao de op~rahe, pelo que
pude saber, men·c iona os Maf
- e . os mortos celestes; elas · falam
'
de
animais, inirnigos rnortos, flechas, guerra •••

Há cantos xamanisticos ern que as almas rnortas nao aparecem ,


e que se apóiam fortemente em ternas ou trechos tradicionais de mi-
tos, referentes a divindade que fala (ou sobre quern se fala)no can
>
to. No entanto, . essa variante da . música dos deuses nao é urn mito
cantado; considera-se que é a divind~de que, aqui e agora, esta-se
manifestando pela boca do xama (é rnantida a forma citacional). A
música dos deuses nunca é "comemorativa", ela é sernpre urna irrup
~ao singular da palavra alheia, mesmo quando usa trechos da tradi-

584
· entre outros

c¡:ao. Tal natureza "evenemencial" é . d~stacada pelo costume de se


apor, a menc¡:ao de um canto xamanistico enunciado por (através de)
um xama falecido, o comentário: "assirn o finado-fulano fez cantar,
por aquilo que iria apodrecer" (i~e. sua boca de mortal, ~tri ami

iwe, "por sua finada boca").


Já as músicas . de dan9a, afora o momento pontual de sua pri -
meira enunciac¡:ao - ~orno canto inspirado pelo inirnigo morto -, -
sao
sernpre repetic¡:oes literais de. urn ~epertório. Aliás, já ali erarn re
petidas: cantadas ern coro. E, se elas identificarn (e sao identifi-
cadas por) o aut~r-guerreiro, cons~r9ern urna memória coletiva e tra
~icional. A única forma de se cornporern novas músicas de danc¡:a é pe
la rnorte de urn inimigo (a ~orte _ de urna on9a é comernorada . corn urn
canto tradicional - cf. nota 74), ao passo que a música dos deuses
está ern continua invenc¡:ao.

Assim corno urna "boa" canc¡:ao xarnanística é aquela que poe em


cena rnortos (ou vivos) do grupo, e a partir daí cria inforrnac¡:ao(os
cantos que abusarn de cliches temáticos e míticos, e / ou nao trazem
rnortos, sao próprios de xarnas iniciantes ) ' as canc¡:oes de danc¡:a da
classe aw? maraka - i.e. aquelas ern que o compositor é um homicida
vivo ou recenternente falecido - parece~ ser preferidas aquelas"dos
ancestrais". Já vimos como a simbólica do opirahe é sernpre a de
urna danc¡:a de guerra (p. 298-9): todo~ portam suas armas, e a fun-
c¡:ao de "levantador" dos hornens que cabe ao cantador é urna func¡:ao
guerreira. A morte de uro inimigo, assirn,parece ser a situac¡:ao-mode

Comparadas as músicas dos deuses, os "cantares de inirnigo"


sao de baixo conteúdo inforrnacional, no que toca a letra. A propen
sao da poesia Araweté_ para a fanopéia é levada ao máximo, cons-
truindo formas rnuito sernelhantes ao hai-kai: irnagens sintéticas ,

585
araweté: os deuses canibais

ellpticas e vigorosas. A diferen9a essencial entre os dois grandes

generes poético-musicais reside no regime enunciativo, i.e. naqui-

lo que singularizava a música xamanistica. Se nesta última as pos!

9oes enunciativas eram cuidadosamente especificadas, de modo que

a "voz'' do xami ~e distinguia das demais vozes mediante o procedi-

mento citacional ou o contexto interno do sistema de vozes, num

revezamento de pontos de vista, as can9oes de inimigo tém um ponto

de vista invariável: elas sao cantadas do ponto de vista do inimi-

~· t este que fala, é o sujeito do enunciado atualizado pelo can-


tor-homicida. Resulta assim um fenomeno de identificayao do morto

com seu matador, mediante um outro jogo especular complexo, visto

que há embutimento citacional também nos cantares de inimigo. Vej~

rnos tres awl maraka, e a figura que deles emerge.

(I) Canto de Yakat!-ro-reme, que lhe foi "ensinado" p~


lo espirito d~ urn Parakana rnorto em 1976:

(1) A-mant' pa he (l) .. Estou rnorrendo,


(la.parte, ª.!}
(2) Moiwitg_-ami p-b! (2)disse o finado Moiwito;
damento lento) .
(3) He reml-na te k-t pt! (3)Minha ca9a-vítima as-
sim disse,
(4) Koiarawi-ami pie (4)disse o finado Koiara-
wi".

.
(5) Ne rika oho p-z,pe (S)''Em .seu grande pitio,
(~a.parte, an (6) Eh, i kt Towaho (6)eh! disse o Tow~ho,

damento
-
rápi-
-
(7) He rem-F!-na neka (7)eis minha ca9a-vítima,
do) ( 8) I"fla
.. rika pipe (8)no pátio do grande pá~
ªªº saro".

Bem: o "finado Moiwito" ou Koiarawi, que diz estar morrendo,

é Maria-ro, urn Araweté morto pelos Parakana antes da contra-ofensi

va que resultou na rnorte do inimigo que enuncia o presente canto .

Ele é nomeado por seu norne de infancia (Moiwito} e um apelido que

586

entre outros

nao sei traduzir (Koiaraw,!). O inimigo-cantor, assim, é colocado

como o matador de Maria-ro (verso 3), que cita o que este canta:

''estou morrendo''.

Na segunda parte muda o enunciador. O "seu" (de voci, ne )


grande pátio refere-se aos urubus, mencionados pelo torneio "gran

de pássaro" no verso 8. O ''grande pitio do urubu'' é . uma metáfora

macabra para o sitio em que ficou o carpo do inimigo-cantor - é a

clareira aberta pelos urúbus na mata, a volta do cadáver, para de-

vorá-lo. Quem canta esta segunda parte, dirigindo-se aos urubus, é

o ''Towaho'' citado pelo inimigo morto no verso 6. Towaho é o no me

de uma antiga tribo inimiga dos Araweté; como já sugeri, a palavra


75
pode ser urna contra<;ao de *towa oho, "inimigo grande" • Acontece'

(75) Cf. supra: 175. Essa possível haplologia se justifica se verificamos para
lelos lexicalizados em .Araweté: p-eaa, "pebre", fonna p-l!daho, "trairao" (lit.
"peixe grande"); tay~, "porco do mato", fonna ta!faho, "que.ixada" (lit. "porcao").

que esse "Towaho" é ninguém menos que o próprio Yakati-ro, isto é,

o matador do inimígo que está cantando: do ponto de vista do inimi

go, seu matador é um Tow~ho, isto é, um inimigo arquetípico... O

matador, Yakati-ro, cita-se a si mesmo, fazendo o inimigo dizer o

que ele estaría dizendo. o sistema enunciativo é urna interminável'

reverberayao: o inimigo cita um Araweté morto e depois cita seu ma

tador, tudo pela boca deste último que "cita" globalmente o qu'e

lhe diz o inimigo, e quem acaba senda citado, é, duas vezes, um

Araweté: o morto, na primeira parte, o matador, na segunda, sempre

do ponto de vista do terceiro, o inimigo morto. Quem é, afinal,que

fala, ·quem é o morto, e quem o inimigo?

587
araweté·: os deuses canibais

(II) Canto de' Kañiw!dl-no-rerne, · que· lhe foi "ensinado"


pelo espirito de urn Asurini f ·lechado no
da década de 70:

(l) Tata -go r ori-rori (1)"0 gaviao tatq se ale


gra,
( 2) Ki moneme irapadi. ne (2)disse o moneme(pousa-
(la.parte ) do) no arquinho;
(3)Está alegre(no) galho
de !:JO Ói 1

(4) He no ra ha kt he hañl (4)Assim ouviu rninha mu-


lher".

( S )Takatidr mo-yere (S)"A taquarinha se des-


via,
(6)0!Ji-mo-yer! na -
- ne re he ( 6) ela se desvia de nos;
(2a.parte) - ne ata (7)Ela se desvia de nos-
(?)Oyi - mo-y ere na
ne so carninho,
(8)Pa da k~ he kañl mo- (8)Assim conversava rni-
rañita nha mulher".

Este canto é mais simples do ponto de vista enunciativo. t o


espirito do inirnigo , que escapou corn vida das flechas de Kañiw!dI-
- ter morrido; ele cita o que ouviu
- no, que se rejubila por nao ou
disse sua esposa. O prirneiro bloco se constrói sobre a irnagem do
gaviaozinho tat~ (marcado pelo sufixo -y o , "amarelo", i.e. eterno-
-espiritual) sal titando alegre no galho da árvore yo el '.i; urna ca-
tinga moneme , pousada no arco do cantor, é quern diz isso a esposa
do inimigo. O segundo bloco comernora a má pontaria do cantor, cuja
flecha (''taquarinha'', sinédoque derrisória para a .enorme ponta de
t aboca das flechas de guerra Arawet~; assim tarnbém a forma irapadl
do verso 2) se desvía do inirnigo e sua mulher (ña'n e , nós inclusi-
vo), que puderarn fugir - o hornero saiu flechado, mas nao gravemente.
Aqui também o espirito do inimigo cita a esposa.

588
entre outros

O Asurini que assim canta teria sido tocaiado e flechado quan

d o estava sozinho na mata; a esposa é aí urna figura do canto, -


nao

do evento real. Mas, quemé essa he kañ-l, "minh~ mulher", que can-

ta? Nao é a imaginária esposa do Asuriní: é ninguérn m~nos que

Kañiw1dI-hi, ou seja, a esposa do cantador-matador. As várias pes-

s oas com quem conversei, buscando urna interpreta9ao desse canto


'
foram unánimes em afirmar que "minha mulher" designava a mulher do

cantador; mas que quem dizia ''minha mulher'' era o espirito do ini-

migo . O canto é enunciado de s e u ponto de vista: as flechas se

desviam dele; mas o regime da enuncia9ao faz com que o cantado r re

· fira-se a sua própria esposa c o mo "minha esposa", só que isso -


e
dito pelo inimigo.

Essa peculiar identifica9ao do cantor com sua vítima f ica

clara ainda no terceiro canto analisado:

(III) Canto de Moneme-do, inspirado por um Parakana

que matou em 1976:

( 1) N~pa aramana- (1) "Es tes besouros-aramana,


( 2) Aramana ika- i ka (2) Os a r ama na pendurados,
( 3) N~pa maman a (3) Estas mamangabas,
-
( 4) Na ne a wok o re ( 4) (Pendentes) de nossos l o ngos
cabelos".

O espirito do inimigo alude aqui a sua condi9ao de cadáver :

os besouros e vespas que pousam sobre "nossos longos cabelos", e

ali ficam pendentes, sugerem seu estado de putrefa~ao. O pronorne

"nossos" (inclusivo), indica que se trata do morto e de seu mata-

dor: ambos estao fundidos na morte e na voz, entrela9ados, ousaria

dizer, como os longos cabelos da can9ao. Observe-se, de passagem ,

urna incongruencia de conteüdo: os Parakana, tanto quanto eu saiba,

589
araweté: os deuses canibais

trazem seus cabelos raspados ou bem curtos; a imagem "longos cabe-


los" é, portanto, algo imprópria. Isto sugere que o canto em pauta
deve ter se apropriado de alguma figura tradicional, provavelmente
de algum canto antigo referente aos Towaho, tribo descrita como
"gente do cabelo comprido" 76 •

(76) os tres C11JJ:¡ maruka .ac.irna forarn cantados, junt.anente a:m vários outros, du-
rante urna cauinagem em agosto de 1982. O cantador-líder desta festa era, p::>r a-
caso, ele mesrro urn morop!'hG, que cantou as ~ que lhe tinham sido direta-
mente inspiradas pelos i.nimigos que rnatou; nao oonsegui oontudo tradu~s inte-
ligíveis desses seus cantos. N:>te-se que a última canrao
carentada foi "p::>sta"
(mara) p::>r urn Araweté vivo ,que aliás participou da festa, mas cx::mo sinples dan-
qarirx:>. "Suas" ~ forarn, corco todas as outras, corrluzidas pelo maI'akCEJ,que
tinha as rostas urn velh:> do grupo - e que nao era matador, mas cbno de toa mem5
ria. V-e-se assim que, urna vez m1p:>stas, a5 ~ de in.i.migo tornam-se pro-
priedade COtUn, o que nao é p::>ssivel para una can;:ao xamanística.

A identifica~ao do homicida a sua vítima, que se instaurava


desde o momento da "morte" e "putrefa~ao" do primeiro, prossegue
portante no regime enunciativo dos cantares de inimigo. Pela boca
do matador quem fala é o morto, mas de um modo diferente do jogo '
citacional da música xamanistica. Pois, se o xama faz cantar os
deuses e mortos do grupo, mas "triangula" e difere daquilo que can
ta, o inimigo morto faz cantar seu matador, que é ele falando. O
xama encena e transmite; o matador encarna e devérn, reverberando o
inimigo, de urna forma que o Outro que diz é o Outro dizendo ele, e
.
vice-versa 77 .

'
(77) As dif~as entre o Mat maraka e o Awi' marakéí podern ser assim listadas :

590
entre outros

características Ma! maraka Aw-i marakO.


- - - -
Enunciadores Deuses e nortos do
.
grupo Inirnigos rrortos >

Cantor
.
xama lbnicida

P.e~ao relevante Esposa do xana, auxiliar e GruJ:X> dos horre.ns em torrn do


intérprete cantador; 11
ensinador do can-
to"
• --

''Ambiente''do can- Ouvido a distancia pela al cantado ern grarrle proximi,.:¡ ,,.,.:¡.,,,
to deia - física
' <

Li~ao
<#

dos can - Simultaneidade, supeqx::>Si- Consecutividade, urussooo de


tos <;ao de cantos cantos ero seqüencia

Forna Solo COral


.

Natureza Manifestar;ao singular, Natureza CCBllE!norativa , eminen


'
reprodutlvel -
ir
temente r eprodutlvel -
~

.
.
.
Estl:utura cante longo, divisao
frac/frase
re- Canto curte, dualisrro mar·
por ~a de andarrento
-

Regine da errun - Especifi~ao das posic#)es "Reverbera9ao": identifi~ac


cia~ ernmciativas: dist:inc;ao ' carplexa entre sujeito da e-
cantor/ canto/ persona.gens . nuncia9ao e cb enunciado.. Fer
Fonna. triangular . ma dual-especular predanina. -
.

Conteúdo Infonnacionalmente eleva~ Infornacionalrnente restrito ,


entase na .furlyao referen - emase na .ftm;ao ¡:x:>ética
cial
' . ,.

Lugar casa (mata, pátio) Pátio (aldeia)


'
. l . . . .- .

oposi9'5es poderiam se beneficiar de tma cmpara9ao a::rn aquelas


Essas que
5eeger (1980:cap.4) analisa para a akia e o ngere Suyá, ben a:m:::> a::rn a difer~
~ entre o bre masculino e o xeng_a feminino Aché (~liá et al., 1973; Clastres,
1974: cap.5). can as devidas diferenc;as, em ambas estas sociedades há oposi<rOes
oorrelativas, individual/ooletivo e rnasculino/femi.nioo; e ern ambas o pólo indi-
vidual-~ envolve urna afinnay00 da individualidade oo cantor, tma fonna
de insul::mis~ pennitida as regras da reciprocidade: matrinonial para os Suyá ,
que "cantam para as i.Ws"; alimentar para os Aché, que tambérn cantam o que n00
podern ccrrer, i.e. a prépria ca9a, ou a habilidade cmo ~or. Nos Araweté, se
pcderros dizer que seus dois gereros rnusicais destacarn um indivídtn (xama e mata

591
araweté: os deuses canibais

oor), as estruturas do canto nunca sao aut,o.:.referidas; a palavra é senpre a-


lheia; o que rreoos se diz é "eu", e Eu é quem menos f ala. Se a música oos inimi.
c.ps Araweté tan serrel.hanqas cx:>m o ngere Suyá (danc;a, a::>letiva, etc.), ela nao
distingue gzupos intenx:is• a sociedade (os ngere caracterizam grup:>s ceri.m:>-
niais), mas ao contrário a unifica ero torro do cantador. Por sua vez, a rrúsica'
dos deuses tematiza o exato qxJSto da akia e oo bre: discorre sobre a afinida~
e a cx::mida alheia. o solo vocal 00 xana se diferencia das asser~ individuais
dos solistas Suyá e Aché - aproximarxlo-se delas na cacofonía simultanea de mui-
tos solistas - por ser um discurso oos OUtros sobre ele ou sobre out:ros. E, se
o matador Araweté é um líder-cantador, e se seu canto mneriora um feito seu,sua
voz se perde oo unísSOl'X) de tQd)s, e será deµ:>is repetida, to:rnada dcminio pú -
blico. A dis~ rnascul..ioo/ femi.nin:> nao é relevante para os Araweté, orrle o
canto é senpre posto pelos hanens - que podan entretanto cantar mul.heres (rror -
tas, inimigas) - ou rrelh:>r, a dis~oo é entre cantores/nao-cantoras.
O pólo marcado, na música Suyá e Aché, é a akia e o bre, que temati.zam, 0000
tam ou provéin da Natureza - urna espécie de reto:roo musical daquilo que o discur
so da Sociedade recalca. O pólo marcado da música Araweté é a Sobre-natureza,es
se nundo ambígoo e tent.aOOr de deuses canibai.s e rrortos esplendioos.
Outra ~ interessante seria o:rn as "rezas" (porah ei) i..rrlividuais
G.larani - Schaden, 1962:121-6 -, que sao enviadas em sonb::> pelos deuses e almas
celestes de rrortos, manterrlo urna relacrao intrínseca o:rn o rane e a alma-palavra
oo possuioor da reza; elas exprimem a essencia "vocal" da Pessoa. A estas rezas
pessoais e intransferíveis Schaden cx:mtrapSe os porahei coletivos e Ei]blicos.Se
o canto xamanistioo Araweté µ:>ssui algo da singularidad.e dos poruhei pessoais
G.larani, ele naoé oontuOO ~ canto pessoal, é o canto (um canto, pois um xama
cantará inumeráveis cantos ao lol'lc:P de sua vida) de um deus ou de um rrorto, que
nao manifesta a essencia do xana-cantor. As "rezas" Araweté náo sao talisrnas ou
feticres - o que se diz nelas i.np:>rta~ ~ o sinples dizé-lo <c:x::i:o afintla Scha
den das rezas Guaraní) . Já o que seria urn canto "pessoal", a saber, o canto ins
pirado pelo inimigo rrorto, esse é i.m:?d.iatarrente absorvido oo repert:Qrio coleti-
vo, e nao parece ter nenhuma fun<rao posterior na vida 00 guerreiro - é o espíri
to do inimigo rrorto, nro as canc¡i)es, que é importante ro Além.
Corpa.re-se por firn o sistema carerorativo dos ClJ¡)i maraka a::m a dan<;a de ini-
ci~ dos adolescentes Tapirapé, cuja simbología é a de urna quase-vítirna que
escapou de canibais (Wagley, 1977:156-7) - i.e., urna inversao da inicia«irao Tupi
nambá - , e can o "cantar sozi.nlx:>" dos iniciados Tenetehara (1. e. sua ascensao a
~de líderes-cantadores), em Wagley & Galvao, 1961:93. Nao obstante, oon -
fonne mencionei anteriorrrente (p.463-4) , os Araweté nao enfatizarn simbolos e ri

592
entre outros

tuais de inici~ao, e o primeiro tx:rnicid.io - can a ronseqüente ¡::osi~ de can-


tador - nao era urna prova obrigatória de inici~ao. Qualquer adulto p:ide, can -
tarrlo ~s alheias, ocupar a ¡::osi9ao de cantador de op-i:rahe. Os Araweté náo
sao TUpinambá, e o sistema iniciatório da norte de ini.rnigo se desloca para o
'
céu, no que inporta.
A filosofia discursiva expressa na música vocal Araweté aparece-rre, enfim,~

no sui generis. Pois se, ern sentido amplo, se pode dizer que a .Música sercpre
vern do Outro - o tema do "entusiasm:J" é provavel.n'ente uni.V"ersal -, há outros e
OUtros, e muitas maneiras de virem. No caso Araweté rae é apenas a origen que é
alheia, da palavra cantada: é a enuncia9ao mesma, sua natureza transitiva e re-
cursiva, a::m suas vertiginosas const::rwróes em abisno de cita90es dentro de cita
~s, ou essas identificac;xSes especulares dos cantares de inimigo. Contrastando
exenplarmente a:m obre Aché - essa canc;ao solitária e singular do ca9ador, re-
beldía insistente e inútil contra um mundo cbni.nado pela palavra dos outros, ~
~
la lei da troca -, o principio essencial do regime discursivo Araweté, desenvol
-
vido ao máx.i.no em sua música, é esse, em suma: quem fala é sarpre mais de um ,
e é um outro - o que ben pode ser urna multicao.

Essa identifica~ao do homicida ao inimigo morto, geradora


da paradoxal situac;ao da danc;a de guerra, onde a comunidade mascu-
lina se unifica em torno do cantador para, todos, repetirem as pa-
lavras do inirnigo - essa identifica9ao tem u.m prec;o. Ela implica '

urn rnovirnento de altera9ao, um devir-outro do guerreiro, urna trai-

9ao a sociedade. o matador se torna um inimigo. o espirito da viti


ma jamais o deixa. Logo após um homicidio, as armas do guerreiro '
devem ser afastadas dele, pois o awi na'o we, - sedente de vingan9a,
inspira a seu matador um furor,
, urna vontade cega de prosseguir ma-
tando 1 mas agora seus parentes e cornpanheiros de tribo. Por muito
tempo o guerreiro estará exposto a esse perigo: ele é presa de a-
cessos de fúria, e suas aplhi precisam acudi-lo, abra~ando-o, acal
mando-o corn palavras doces (elas meyita o matador, mesmo verbo que
designa a repeti9ao f alada dos cantos de Maf pelas mulheres ern ge-
ral, e a esposa do xama em particular - supra: 326). As vezes ele
precisa fugir para a mata: o espirito do inimigo "chega no mata-

593
araweté : os deuses canibais

dor'' e o ''ergue'' para matar quem estiver na frente. Diz-se que o


inimigo "empluma a cabe<ra" (rawoñ-i , ver o canto da c.a stanheira) do
homicida, e o transtorna: ''awl na'o we ;wahi ¿f¿l moropl'h~ nehe-
-w e , morop!'h~ o¿f-mo-awl ire rehe" - ''o espirito do inimigo, ao
chegar sobre o matador, transforma-o em inimigo para nós". Ele nao
pode vingar-se diretamente no matador, . pois este "é" ele, de algu-
ma forma; ou antes, o espirito do inimigo "é do matador", é um a-
pendice seu, algo que ele trará eternamente consigo. Só muitos anos
depois, ao que parece, é que o inimigo rnorto entra em quiescencia
e deixa seu matador em paz.

Mesmo assim, os matadores eram classif icados como pessoas


ternperamentalmente instáveis, ou pelo menos capazes de ir as vias
de fato tjuando irritados. Nisso eles se distingue~ da gente "ino -
fensiva"
. - me'e) - todos os dernais, exceto as rnulheres
(mari-; se-
xualrnente vorazes (s upra: 477). As raras explosoes de violéncia e~

tra-conjugal lernbradas pelos Araweté envolveram matadores - notada


mente uro conflito sem martes acorrido há urna década, ero que do is
moropl' ha trocaram flechas por causa de urna rnulher. Atualrnente
(1982-3) há cinco matadores vivos. Apenas uro deles era xama ativo;

mas i~to é urna coincidencia, visto que numerosos matadores recem-


- falecidos eram xamas de prestigio. A posi~ao de matador nao confe
re nenhurn privilé~io social ou cerimonial, e nao distingue conspi-
cuamente os hornens. A única marca visível é a franja falhada, po.is
o espirito do inirnigo faz cair os cabelQs da fronte do homicida.

Apesar disso, do perigo místico que cerca o matador, e de


seu nao-destaque dentro da sociedade, o estatuto de moropl'ha -
e
honroso, os matadores sao admirados e ligeirarnente temidos; pude
observar que os cinco moropl'ha erarn algurnas das poucas pessoas
que jamais serviam de objeto de deboche jocoso, que vitimava até '

594
entre outros

- de peso: "Os matadores de inimigo sao


mesmo xamas - assim, sao fero- -
zes". O colapso demográfico da época do cantato fez os Araweté peE

derem, em pouco tempo., cerca de oi to moropl 'ha, e is to era f re-

qüentemente lembrado. Antigamente, diziam, todos os homens eram ma

tadores - mo r opr'ha pete mem~ , "todos matadores , sem exce9ao". De-

clara~ao certamente exagerada, mas que exprime um ideal; e as dan-

9as do cauim congregavam numerosos portadores desse estatuto.

O essencial da pessoa do matador se revela postumamente. O

espirito do inimigo , que fica sempre "com" ou "no" matador - hopl'

' ha- ne h e -, sobe com este ao céu, quando ele morre. O matador e
seu espirito "tutelar" se tornam um Iraparadf - odf- mo -Iraparade-

-
-, urna espécie de ser temido pelos Maf. Isto . significa que um

Iraparadf , i.e. a alma de um matador acrescida de sua de~ermina9a~

-inimigo, nao é devorada pelos deu$eS. Ela segue diretamente ppra

o banho da imortalidade; transforma-se em urn Maf sem passar pe la

preva da devora~ao. Ou mesmo . sem passar pela preva da morte, tout

court . Assim como antigamente "todo hornero era um matador", de -


va-
-
rios guerreiros da antiguidade se diz que nao morreram, mas aseen-

deram aos céus em corpo e alma, por serem matadores. O dogma se e~

prime literalmente: morop~ ' ha -imani na, "um matador nao morre".Uma

morte infligida vale urna (ou duas) morte sofrida - e vimos como ,
por matar um inimigo, o matador já morrera e ressucitara; doravan-
·.
te é imortal - e por isso nao é devorado. Ele mesmo já é urn caní-
78
bal - pois o sangue do inimigo vai para sua barriga , e ele já

(78) Carparar can o canibalisrro do matador Yaocmami., que ap5s urna norte van.ita
a gordura e os cabelos de sua vítima, ~inal de que O:meu sua alma; e a posses -
sao do guerreiro pelo "principio vital" da vítima, qué o at.o~ta e enlO\.Xjl.leCe,

de um nodo serrelhante a "chegada" 00 ai,ñ ~'o we 00 lx:micida Araweté (Lizot ,


1976: 13, 228).

-595
araweté: os deuses canibais

é um inimigo - ou seja, ele já é um Ma~. Se o xama é um morto ante

cipado, o matador é um deus antecipado: ele já encarna, de modo

complexo, a figura do Inimigo, sendo ao mesmo tempo o Araweté em

sua plenitude.

"Tel qu'en Lui-meme enfin l'éternité le change", disse Mal-

larmé de Poe, em sua morte. Pois é isso, a devora9ao canibal do

morto - sua transf orma9ao "Ne le-Mesmo" , is to é, em deus incorrup-·

tivel, principio pessoal imortal. Mas o matador, por ser Outro

sendo o inimigo -, é aquele que já é Si mesmo. Um matador ''nao tem

corpo", e o essencial de sua alma é ser ela outra, ter consigo o

espirito do inimigo. Um matador, isto é, nao tem ta'o we - nao apo

drece na morte. Seja porque, na antiguidade ideal, ele subia encar

nado ao céu, seja porque, no mundo real e atual, u.m matador, mort~

- produz espectro terrestre. Seu carpo, na terra, apodrece,


nao sa-

bem perfeitarnente os Araweté - mas ele nao libera o ta 'o we; ou,

dizem outros, seu ta'o we é ''inofensivo'', exatamente o que ele nao

era quando vivo. Vemos assim que a via do kandire Guaraní, o esta-

do de 1'nio-putrefa9ao dos ossos" , é atingida entre os Arawet~ pelo

excesso e hybris do matador, nao pela ascese e medida do xama (H.

Clastres, 1978:cap.IV; Cadogan, 1959:59, 143-8): imortalidade, vi-

tória contra a putrefa9ao. Afinal, o matador já apodreceu, junto

com o cadáver de seu inimigo; ressurrecto, erguido pelo espirito

do outro , possui doravante u.m corpo místico, imputrescível e inde-

vorável. Toda a simbologia Guarani da alma-palavra, e da ressurrei

9ao como um "manter ereto o esque leto pelo fluxo da palavra", "res

tituir o dizer" (H.Clastres , Cadoga~, loc.cit.), se encentra , en-

tre os Araweté, deslocada para o complexo do matador: quem o "re-

-ergue " é a palavra do Outro, é a voz do inimigo que o mantém ere-.:::

to. o matador Araweté, é verdade, nao muda de nome; mas muda de

596
entre outros

corpo, e de alma: vira outro, e imortal. Ele nao é devorado· pelo


mesmo motivo que nao apodrece, na terra e no ceu: o homicidio é a
via Araweté do aguyje Guarani, isto é, da matura~ao. Aguyje, o es-

' tado espiritual de completude ou perfei9ao que permite alcan~ar a


imortalidade sem morrer (H.Clastres, 1978:97), significa tarnbérn,ou
originalmente, o estado de maturidade de wn fruto (Cadogan, 1959 :
51, 19~; Dooley, 1982:26). Os mortais comuns, assim, sao "verdes"
...
- crian9as, como diriam os Araweté (supra: 195,n.10, passim) -; e
preciso a morte e o cozimento divino para que amadure9am, cres~am

ou se tornem completos. Nao o xama Guarani, nao o homicida Araweté:


estes já foram transformados ou sublimados, nao sao mais crus; e
portante nao apodrecerao ou serao cozidos. Já vemos aqui de que la
do estao os Araweté: do lado dos Tupinambá, para quem só os bravos,
os matadores, tinham acesso ao Além (Thevet, 1978:121 - a alma dos
covardes ia-se coro os Anha, i.e. os Añi, existencia terrestre e ma
ligna, alma da podridao; Thevet, 1953:84-6; Léry, 1972:159; Fernan
des, 1963:285; Métraux, 1979:112) 79 • As crian~as nao tero ta'o we

(79) Os Shipaya, can.ibais e can deuses idem, apresentarn urna versao fraca Cb te-
ma Araweté sobre a incolurnidade do guerreiro oo Além: só as almas que chegam
portando um colar de dentes hunanos sao,
por tenidas, poup.3das de urna surra mi-
nistrada pelo espirito que as recebe (Nim.Jendaju, 1981:30). E o tema Araweté é
urna versao que por sua vez enfraquece o ck>gma Tupinambá, em que só os matacbres
tinham acesso a inortalidade.

porque estao aquém da condi~ao humana, os matadores nao o tero por-


que estao além - já sao deuses. Fica bastante clara aqui qual era
pelo menos ~ das fun~oes centrais do canibalismo Tupinambá. Da
atitude dos cativos de guerra, dizia Cardim:
"e alg\lll.S andam tao contentes can haveran ser canidos que por ne-
nhuma via a:nsentirao ser resgataoos para servir, poniue dizan

597
araweté: o~ deuses canibais

que é triste cousa. norrer¡ e ser fedorento e canido de bichos ••. "
(1978:114).

t; neste complexo que se · insere o canfbalismo divino Araweté,

e a imunidade do matador. Se os ·Tupinambá eram . devorados - queriam


sé-lo - para nao apodrecer, o matador Araweté nao é · devorado por-
que nao apodrece. Nos Tupinambá, sé unt matador-caníbal é imortal ¡
e só urna vít:irna cánibal nao apodrece'; nos Araweté, só um matador é
!mortal e ·nao a podrece. o cani·balisrno, enf im, é urna· culinária es pi
ritual, e nele a vinganc;a · é apenas um dos ingred.ientes. Enquanto '
éulinária, é urna operac;ao sobre o cru, o cozido e o podre; espiri
tual, refléte a cóncep9ao da Pessoa Tupi-Guaran!. Veremos.
. .
o espirito de um jaguar (ña na'-o we) -.r ecebe o mesmo tratarnen

to e ·destino do espirito de um inimigo¡ nada mais ·justo, poste que


o jaguar é um inirnigo, awl. E mais urna vez reencontramos um locus
Glassicus Tupincimbá,~ que executavam os jaguares coro honras ·de pri-
sioneiro de guerra, tornando -'n emes sobré súas cabe9as (Cardirn, 197 8:
27; Thevet, 1953:·156) (BOJ. Corno o espirito do iriimigo, o ha.'o we

(80) Entretanto, se os inirl'igos humanos eram C:rnidos, os jaguares nao. ou seja,


em quiasma: ·trata.va-se urn jaguar, símbolo do cani.b:ilisrro, a:m:> se fosse urn huma
oo; e se tratava urn humano irúmigo do "ponto de vista" do jaguar - era devora-
do. De todos os 'l\Ipi-Guarani, creio que apenas os Aché cn1en jaguares (e uru -
bus), o que se 'liga a duas idéias: a alma-ove dos hc:mens inp:>rtantes se trans -
forma em jaguar canibal; e se cnuern os nortos para que sua alma nao os a:xna, pe
netrando em rx:>sso rorpo (P.Clastres, · 1972:242-3, 275, 302, 332-3). O matador
Aché, por sua vez, é tarnl:ém canibalizado por sua vítima, que penetra por seu
arrus e Ll-ie devora as entranhas - a ·a.1.rra-ianve <leste norto-canibal deve ser vo-
mitada (op.cit.: 250-1). o sistema Aché de vingar urna rrorte natural pela e.xecu-
9ao de outra pessoa do próprio gru¡:o (urna ~i~) . produz urna tor'j2o peculiar
ro jogo de identifi~ao-substitui9ao entre norte e matador: o matador da crié!!!
<rase tornava, após "nnrrer", sua própria vítima. - era adotado pela mae dp rror-
to. (op.cit.:259-60).

598
entre ou tros

de um jaguar nao é matável xamanisticamente. Ele f±ca junto a seu

matador, de quem se torna uma espécie de animal doméstico ou -


cao

de ca9a: dorme embaixo da rede de seu dono, e lhe mostra, em so-

nhos, sitios de ca9a abundante, especialmente jabotis. Um na na'o

we é um "apontador de jabotis" (no que se liga por inversao ao deus


Coisa-On9a, principal consumidor dos jabotis ca9ados pelos huma-

nos). o canto comemorativo da morte de um jaguar obedece a mesma

enuncia9ao invertida do cantar de inimigo. Seu nome é "Futura Víti


ma da On9a": é um canto em que a On9a fala dos humanos que comerá.
Um jaguar morto é portante a imagem invertida de urn jaguar
vivo, predador, selvagem e competidor do homem. Exatamente como o
espirito do inimigo, que se torna o oposto de um inimigo vivo - ao
pre90 de tornar seu matador o "inverso" de um Araweté, a saber, um
inimigo: de amea9a de morte torna-se garantía de vida eterna; de
81
causa de medo, motivo de medo dos inimigos celestes, os Ma! . Se

(81) Carparar can o valor oos craruos-troféus para os Shipaya (Nimuendaju,


1981: 23-4 ) e a:::m o papel ros espiritas de Kayapó rrortos entre os Tapirapé -
eles se tornavam "familiares" dos xamis, avisando-os de ataques ros Kayapó vi
vos (Wagley, 1977: 184-5). Veraros adiante caro o xama Tapirapé encarna as fun
<i>es de ambivalencia do matador Araweté, e é o "guerreiro" dest:;a sociedade sem
guerreiros. Sobre sua transfonnac;ao pÓstuma em jaguar, cf . Wagley, 1oc.cit.

o matador devérn o inimigo, ao matá-lo, o inimigo se torna outra


coisa , quando morre o matador - parte dele. Da metáfora a metoní-
mia (L.-Strauss , 19 6 2b: 141) ? Ou será mais bem um sistema i ntermi
nável de deslocamentos de um signo ab~oluto: a morte como devir?
Irapara'd.-1!, isso que se torpa um matador-inimigo ao morrer, é
um termo corrente nos cantos xamanisticos. Ele parece ser a forma'
82
poética de i rapa, arco-arma , e é assim urna sinédoque da fun9ao-

(82) Confonre t.ml paradigma: iwa, céu, é dito iwaraw!; ara , arara, é dito aradf,

599
araweté: os deuses canibais

rn discµrso xamanistioo. Irapa é urna contréi9ao de *ibira-pa.x>a , "pau encurvado",


i.e. aroo. A ~&> -dr ( - I'i) EX>deria ser um diminutivo. Esta palavra pare-
ce ter-se originado de um cantar de inimi<p, o canto dos I apf 'f z,ñ, ex-Araweté'
que se cindiram.

-homicida. "Iraparad-1!" é como os deuses e os mortos celestes deno-

minam os inimigos, em geral; é o termo da língua celeste para a po

si~ao-Inimigo. Os Awi Pey e , os matadores Araweté, os brancos e ou-


tros inimigos vivos, ao serem mencionados pelos Maf, o sao por es-

~e epíteto. Algumas vezes que eu perguntei de quem o s deuses esta-

vam falando, citados pelos mortos via xama - dizendo que Ira paradf

f izera is so, ou estava ali, etc. - , respo nderam-me : "n e r e ", "de

v oce". Falavam de mim - perguntaram urna vez, por exemplo, a Arayi-

kañi-no quem era aquele Irap aradf que escre via e fumava tanto, ali

no pátio de benzimento do cauim .•. o termo pode ser usado acusato-

riamente, como no caso de urna can9ao de Mira-no, onde urna mulher

morta perguntou por seu I r ap aradf - e todo s entenderarn que era de


- -
seu marido que fal a va, pois este a havia d e ixado morrer nas -
maos

dos Kayapó, fu9ind o covardemente. Através dessa c o rtante iro nía I

ele era assim re s po nsabilizado c o mo o "matador" da esposa.

A figura genérica do Iraparadf, ou sua especifica~ao pessoal

como urna alma de um matado r, sempre intervém naqueles cantos que '

manifestam divindades perigosas - assim, quem cita o caníbal Iara-

el para o xama é normalme nte o espirito de . urn ex-matador -, ou

q u ando os deuses e mortos tem algo a dizer para urn matador vivo.

Ao designar o estatuto do matador Araweté, o conceito de

I r apa r adf s e revela como sendo esserlcialmente urna perspectiva: se

os Ma! sao ao mesmo tempo o correspondente celeste dos Araweté e

urna figura9ao do I n i migo, se eles nos olham coro olhos de inimigo ,

e se os o lhamos c o mo inimigo s, os Iraparadf sao os Araweté se pen-

600
entre outros

sando como inimigos, ativamente; eles sao urna espécie de simétrico


dos Ma~ (N.B.: eles sao Maf), que os M~f ternem assirn corno os mor-
tos comuns tememos Maf. Esta perspectiva complexa, esta capacida-
de de se ver como inirnigo, que ao mesmo tempo aponta para o angulo
ideal da vi sao de si mesmo·;· qua hornero Araweté, parece-me urn segre-
do essencial de todo o sistema da antropofagia Tupi-Guarani. O ini
migo é sernpre o outro: que é o Iraparadl, senao urn outro dos ou-
tros, urn inirnigo dos Maf, que sao os senhores da perspectiva celes
te?

(C) Xamas e Guerreiros: conclusao

o ideal Araweté expresso na idéia de que antigarnente todos


os hornens erarn matadores traduz, implícitamente, urna situa9ao em
que só as mulheres seriarn devoradas pelos Maf - visto que crian9as
pequenas nao o sao. Ou rnelhor dizendo, que a posi9ao de alimento
dos deuses é urna posi9ao feminina; que a situa9ao de vivente é fe-
rninina, face aos deuses - que portante o rnorto (ex-vivente) tipico
é urna rnulher, assim como o irnortal ideal é um hornero: o homicida •

Ideal, mas paradoxal: urn hornero rnorto, alguérn que só realiza plena-
mente sua esséncia nurna dupla rela9ao corn a morte; um matador
..
e

várias vezes Outro. Ele morreu, ele é o inirnigo morto, e ele


..
so
realiza a potencia destas mortes quando morre, e, confrontado com
os Ma!, nao é tratado como um inimigo (nao é devorado) porque é um
inimigo, um Iraparadf, e assim é imediatamente um M~f imortal.
No tempo em que convi vi com os Araweté '· a posi9ao de matador
era francamente menos importante e conspicua que a de xama. O lu-
gar de cantador dos opira'he era vicariamente ocupado por qualquer
adulto, sem rnaiores considera9oes sobre seu estatuto . Ern troca, o

601
araweté: os deuses can.ibais

exercício do xarnanisrno, sobre ser cotidiano, cabia a hornens deter-

minados, envolvendo rnais que a memória de cantos: a capacidade de

manifestar singularmente a palavra alheia. Por outro lado, urna vez

homicida sempre homicida; já urn xarna só é considerado como tal en-

quanto exerce de modo regular seus poderes.

Essa importancia diferencial dos dois principais modos de ser


masculinos pode ser creditada, em parte, ao estado de relativa paz

vivida pelos Araweté ern 1981-2; mas creio que ela se enraíza em

urna diferen9a estrutural. O xama Araweté, se é urn "morto antecipa-

do" - e o e porque, corno dizia C.Hugh-Jones do xama Barasana(l979:·

113), ele é capaz de separar ern vida os componentes de sua pessoa,

metaforizando a morte -, desernpenha porém urna fun9ao vital e so-

cial; ele é um ser-para-o-grupo. O matador Araweté, se · é um "deus

antecipado" - e o é porque, como o xama Guaraní, ele é capaz de


- separar na rnorte os componentes de sua pessoa, sublimando
nao a

carne -, rnanifesta urna fun9ao mortal e individual; ele é um ser-p~

- e urn vivente por excelencia, o representante dos vi-


ra-si. O xarna

vos no ceu, e o canal de transmissao dos mortos celestes; ele é urn

mediador, que, ubiquo mas sempre distinto do que comunica, comuni-

ca o que está separado. Sua eficacia depende exatarnente de ele es-

tar vivo, e trazer os mortos. Já o matador, ele nao representa nin

guém, mas encarna o inimigo, com quem impossivelmente se confunde;

ele é o lugar de urna metamorfose complexa, que no entanto só bene-

ficiará a si mesmo. Sua "eficácia", a potencia de seu estatuto -


so

se atualiza positivamente quando ele está morto. Se o sistema do

xarnanismo traz subjacente urna possib~lídade dispersiva - cada se-

9ao residencial com seu xama, no limite cada casa, cada adulto -,é

pelo xamanismo que se realiza a Grande Alian~a, deuses-viventes,ma

nifestada no canto e ·no banquete: os xamas cantam os Ma! e os tra

602
entre outros

zem a terra a comer. O complexo do homiciqa, se une a comunidade a


sua volta - e, pela ·m orte de um in-imigo, contrapee-se a dispersao
-
implicada na morte de um mernbro do grupo -, nao menos .estranha o
matador, o distingue-separa. ~ .claro, o ideal de urna sociedade coro
posta de guerreiros-matadores está ainda presente na ideologia Ara
weté, e terá sido duplamente "vital" em ·s.ua história de tantas guer
~

ras. Mas, do ponto de vista da escatologia pes.s oal, um matador e


alguém que já passou para o outro lado, virado inirnigo e virado
divindade. Por isso, se o xama está para o -morto como o matador pa
ra o deus, o xama estará para os vivos corno o matador para os mor-
tos. A sociedade Araweté seria impensável sem o xamanisrno: mas o
ideal masculino Araweté seria impossivel sem a figura do matador .

A Divindade, os M~!, sao ao mesmo tempo xamas .e matadores,vi


da e morte. Sao o arquétipo do xama, visto que detém a ciencia da
ressurrei9ao; e sao o arquétipo do matador Araweté, urna vez que fu
soes ambivalentes de Ego e Inimigo, que transformarn os mortos em
si mesmos (e em "si-mesmos") pela devora9ao, como o homicida trans
formava o inimigo, transformando-se nele. Apesar disso, a condi~ao

de xama nao distingue um morto, mas a de matador sim: e se nao - há


lugar no céu para os (matadores) inimi9os, há para os "xamas inimi
ges", e para os matadores Araweté - ambos sao "inimigos dos Maf" ,
Iraparadf, mas sao Ma!, e tém rela~oes com os M~f hete e os huma. -
nos. o aspecto-xama dos inimigos e o a·specto-inimigo dos Araweté
sao realiza9oes parciais da sintese divina: os Maf, ~amas-matado -
res-inimigos-Araweté.

Os deuses Araweté sao essehcialmente guerreiros, e quero crer


que sua posi9ao de Afim está correlacionada a isso; outros deuses
Tupi-Guaraní sao essencialrnente xamas, e sua posi9ao Paterna o ex-
plicaria; o "homem-deus" Araweté é urn homicida, nao uro xama. ~ nes

603
araweté : os deuses canibais

te sentido que, duplarnente nao-celestes, e duplamente desvincula -


das da rnorte - essa provincia masculina -, as rnulheres encarnam a
vida, e a condi9ao humana, e serao por isso os mortos (as mortas)i
deais, comida dos deuses. o xama - o valor funcional do atributo
"xama" -, estando entre a vida e a morte, mas do lado dos vivos, ~

cupa assim urna posi9ao intermediária entre o mundo mortal, indivi-


dual e póstumo do guerreiro e o mundo vital, presente e coletivo
da ferninilidade:

MA! B!DE
IMORTAIS MORTAIS

" "· r---¡

matadores
-----'-~-<..~~
nao-matadores
-\'
' - I " ' ':;¡- -
"' xamas nao-xamas

" homens 1 " ' " <::¡


mulheres

~ esta posi~ao intermediária e mediadora do xama que lhe


confere seu valor político, sua capacidade de representa~ao, que
se exerce entre as esferas do cosmos e dentro da -sociedade. Ela se
materializa na estrutura do canto xamanístico, cámara de ecos onde
entretanto sempre se sabe que outro fala. Já o lugar liminar e ex-
cessivo do matador é marcado por sua exterioridade ao social: na
reverbera~ao quase-incestuosa que mantém consigo mesmo via o inimi
go, que o transforma em um, e que só o realiza na morte. Este é o
paradoxo do guerreiro Araweté: puro espirito, hornero sem sombra e
sem carne, ele é o Inimigo. Seu triuafo sobre a morte a exige:
of death is that its final a:>J'XI\leSt
" ••• the ultimate irony is
only adúeved by embracing it oneself ••• Sudl a solution is
clearly not available to arr¡ on-going social system •.. (Bloch &
11

Parry, 1982: 39).

604
entre outros

Bem, talvez esta solu9ao nao seja viável para um sistema so-

cial, mas pode se-la para cada homem. De resto, os Tupinambá e os

Guarani, com seu duplo jogo do canibalismo e do profetismo, des-

territorializa9oes paralelas, desafios complementares a Sociedade

e a Identidade, sao o testemunho de que sistemas sociais inteiros

a tentaram. Os Araweté, mais comedidos, menos trágicos, talvez mais

engenhosos, transferiram sua máquina desejante para o céu, e depo-


-
sitaram nos Ma7..,, a sua propria . -
'essencia", que é ternporali~ade e é

alteridade: os Araweté sao aqueles que irao, que se tornarao.

Por que o canibalismo em tudo isso? Que secreta rela9ao ele

entretém com o Devir, para que seja a figura que rege a quimica

pessoal Araweté? Pois haveria métodos menos drásticos que esse, de

sintetiza9ao do principio pessoal; e o canibalismo divino aparece

a primeira vista como wn capricho bárbaro suplementar, urna determi

na9ao marginal dos deuses. Mas nao.

4. O COGITO CANIBAL OU O ANTI-NARCISO

"Ti dos por fundamenta 'lmen te di versos, os mo!:


tos servem para afirmar os vivos. O pensa -
mento Krahó pa:rece proceder .•• por comp'le -
mentaridades, por nega~oes: eu sou aquito
que eu nao
BOU nao
é".
(M.M. carneiro da Omha)

A morte, vimo-lo, opera um4 divisao da pessoa, e a torna um

ser duplarnente separado. O i, principio pessoal do vivente, libe-

ra, enquanto sombra, o espectro terrestre, duplo do cadáver; en~

quanto principio vital-consciente, libera o duplo celeste, o Maf

605
araweté: os deuses canibais

dl, ftitura divindade. O prirneiro segue corn os Jñl, irnagern regressi


va da Natureza selvagem, e vigora durante o apodrecirnento da car -
ne; o segundo é transformado ern M~f a partir dos ossos, mediante

devorac;ao e cozimento ressuscitador. Ambos sao -a'o we, isto é,pes


soas divididas ou separadas; o prirneiro urn corpo sem alma, ou urna
"anti-almaº, emanac¡:ao animada de· urn cadáver; o segundo urna alma
sem corpo, ou dotada de um "anti-corpo 11 , incorruptível e Sobrenatu
ral. O primeiro e auséncia, e passado: b~de pe, ex-Pessoa. O segu~

do é presenc¡:a, e futuro: bfde ri, o que será Pessoa.


Há um jogo de duplas simetrías. A morte propria libera um
principio que sofrerá urn duplo apodrecirnento: o corpo apodrece, e

depois seu espectro se transforma em um cadáver de gambá. O outro


principio sofrerá urn duplo cozirnento: devorac;ao e irnersao no banho
efervescente rejuvenescedor. Essas transforma~oes divergentes da
matéria do vivente opera.ro com um sistema ternário:

Vivo Mor to
rl + hi r o) ( -a'o we )
" J"'>
-.-..r1~~~~~~~~~~~..i_~~~~~--1

Céu / Ma -i , Terra/Añi'
(alma + anti-corpo) (corpo + anti-alma}

Que possui um dinamismo evidente, incapaz de ser estabiliza-


do mediante a reduc;ao do "terceiro" termo (o principio celeste) a
urna func;ao de mediac;ao. o duplo celeste nao é mediador entre os es
tados opostos no nivel superior; ele encarna a presenc;a plena da
pessoa mais intensa e perfeitarnente que o vivente. Ternos aqui um
exemplo do que Durnont charnava de "oposic;ao hierárquica"¡ dinamica
e assirnétrica (1979), ou da operac;ao dos principios de "recursivi-
dade complementar" mais ''invers io anal6gica'' analisados por J.Fox
(1983) . Ern certo sentido, sao os viventes que constituem um termo

606
entre outros

rnédio {mas nao mediador ) entre a pura ausencia e negatividade do

duplo terrestre e a presen9a e plenitude do duplo celeste. E que a

oposi9ao vivos/rnortos nao é estática e "horizontal", mas se desdo-


'
bra ern duas, ern niveis de inclusao diversos: Vida / Morte e, dentro

da Morte, vida /morte. Dentro da Morte, porérn, a oposi9ao vida / rnor-

te é máxima: a diferen9a entre os principios celeste e terrestre '

da pessoa é rnaior que a diferen9a vivo/rnorto. Ern outras palavras,a


-
Morte e o termo englobante, a Vida o englobado.

A vida dos mortos c~lestes nao é urna inversao ou negativo da

condi9ao de vivente - ela o é da condi9ao de rno rto, do aspecto ter

restre-putrefato do rnorto. No que tange ao ''modus vivendi'', ela e

urna arnplif ica9ao inten·siva, urna hipérbole. ~ nesse sentido, tal vez,

que se pode entender a equivalencia entre os conceitos de bfde ri,

o que será Pessoa, e Ma! di, o que será Divindade, para designar a

alma ativa do morto. Os verdadeiros Bfde sao os Maf - isto é, os

gigantescos tiwa, Outros, dos viventes -, e a Pessoa só se cornple

.t a ou realiza ern. seu Devir {o que será) ., devir n ecessariamente ~

tro: o deus, o morto, o inimigo. Entre _bfde pe, o que foi Pessoa ,

e bfd~ ri, o que será Pessoa, está e flui bfd!, a Pessoa, entre a
-
terra e o ceu, o passado e o futuro, a cavaleiro do Devir. Tendo

sido, vindo a ser, ela nao é, propriarnente, nada: é outra - devém.

Ao contrário do cogito Krahó {o trecho em epígrafe a cima -


e
urna boa síntese da dialética Je), portante, EU é aquilo que'cainda)

nao é, e isso que serei é o que nao sou: urn deus, "ambiguo e tenta

dor" como disse Nietzsche de otitro omest~s, "comedor de carne crua"

- Dionisia, aliás urna vitirna caníbal como o morto Araweté {Detien-

ne, 1977). Eu só serei plenamente ·após ter sido devorado por meu
I

inimigo - porque, qua rnorto, sou urn inirnigo Ỽ Sujeito (Bfde) ce-

leste, o Maf -; ou se devorei {rnatei} urn inimigo na terra, o que

607
araweté: os deuses canibais

me torna um Inimigo, lego um Deus. O sistema é um anel tenso, que

nao tem avesso: o morto é o inimigo, . o inimigo é o deus, o deus é o


..
morto, e o morto e o eu. O cogito canibal: nio a geometría narci

sica da representa~io especular, mas a topologia do devir-outro.

A peculiar inversao do perspectivismo Araweté, que pee os sujeitos

como objeto da antropofagia divina, permite que se perceba direta-

mente aquilo que o exo-canibalismo ativo Tupinarnbá ocultava: que o

canibalismo Tupi-Guarani é o contrário de urna "incorporac;:ao" nar-

cisista, ao modo dos fantasmas canibalísticos da psicanálise; -


e
urna alterac;:ao, um devir-Outro, onde o que se incorpora é menos urna

imaginária "substancia" do inimigo que sua posixªº - a posi9ao de

Inimigo. Identidade "ao contrário", Anti-Narciso.

A Morte, outro neme do Tempo, permite que se perceba a natu-


... .
reza intercalar da Pe~soa Araweté: a oposic;:ao entre os principios
.
celeste e terrestre da pessoa nao é sincronica, mas diacronica, e
remete a um jogo de repetic;:ao diferencial, onde o "termo" repetido

- a pessoa -, nao existe fora da repetic;:ao. o principio celeste

é bfde r~, o que será pessoa; o terrestre é brde pe, o que foi pe~

soa. Bfde, a Pessoa, nao está~ lugar nenhurn, ela está entre, di-

vidida entre a repeti~ao nua e morta do duplo terrestre - sombra

estéril que repete urna ausencia - e a repeti~ao viva e plena do

duplo celeste - ponto futuro, que desloca a presen~a para um além

e a identidade para um tornar-se outro: deus, inimigo. A alterida-

de é intrínseca a Pessoa Araweté - é neste sentido que eu dizia

no come~o desse trabalho que o Outro nao é um espelho, mas um des-

tino, - e urna
e que assim nao - entida~e num campo de identidades, mas

pólo de defasagem, instaurador de incoatividade, devir do ser.

~ claro, tanto o ta'o we quanto o Ma~ di estao no futuro,vis


to que o que há, o que é presente, sao os vivos, e a marte é o Fu-

608
entre outros

turo. A diferen9a é entre urn "futuro do passado" (o que terá si-


do) e um futuro do presente (o que será): a sombra que volta, a di
vindade que vai. Mas este futuro é também urn passado absoluto: an-
tes da Separa9ao original, que ~criou a marte e a Diferen9a, os hu-
manos eram (pois estavam coro os) Ma~~ morrendo, serao Ma!. t isso
que os homens sao: mas isso, é a Marte.

(Os Araweté sabem que um dia o céu lhes cairá sobre a cabe9~

pesado de tantos rnortos. Neste dia, quern ainda nao tiver marrido ,
rnorrerá. Os deuses voltarao a terra, o cosmos perderá sua estrutu-
ra. O futuro será o passado, e o presente, eterno: o ser do devir
é o volver. Por isso, os Araweté tém medo.)

Tuda passa, nada permanece? A volta dos mortos, no canto xa-


manistico, é urna bern precária forma de permanencia. Corno vimos, as
almas celestes nao sao ancestrais, seu princípio pessoal nao de-
mora rnais que duas -
gera~oes para mergulhar no olvido e sua voz
cessar. Os ossos se dispersam na terra, os viventes seguem ern fren
te, os nemes nao retornam senao errática e esporadicamente, e -
nao
significam quase nada. O que perdura, pela marte~ e o que retorna?
Nao os nemes, nao os ossos. Os viventes estao sob o signo da impeE
manencia. Mas a morte garante urna outra continuidade: entre a ter-
ra e o céu, os vivos e os deuses. A sociedade Araweté persiste, em
seu nomadismo e dispersao, porque ela nao é composta apenas de ho-
mens, mas de deuses também. Em última análise, portante, trata-se
de urna sociedade dualista, e radical: a metade terrestre , os hu-
manos, e a metade celeste, os deuses, ligadas por afinidade: os hu
manos dao rnortos, conjuges, e alimento a seus cunhados canibais •

Que recebem em troca? A imortalidade, talvez, e a garantia que se


transformarao em seus Outros. Dualismo complexo, assimétrico e dia
cronico: mas que nos mostra que a sociedade só está inteira, só se

609
araweté: os deuses canibais

integra enquanto "cosmologia". o ·princípio da metafísica ~raweté,

o de que o Ser só se realiza no elemento da exterioridade (para u

sarrnos urn jargao hegeliano) - deus, morto, inirnigo ~' determina a

nao-elabora~ao de diferen9as internas ao corpo social~ . que, neste

sentido, nao tem interior, ou substancia interna. o acentrismo só

cio-morf ológico Araweté é fun~ao da estrutura vertical e diacróni-

ca do cosmos, e a sociedade é sua cosmología, na acep~ao estrita

do termo; urna perspectiva funcionalista ou sócio-centrica estará

condenada a contemplar o nada.

E nisso tuda, o canibalismo? Sahlins dizia que "o problema

do canibalismo é ... que ele é sempre 'simbólico', mesmo quando .é

'real'" :-- falando de urn povo canibal que também concebía seus deu -

ses (e chefes) corno wife-takers, estrangeiros-canibais temidos-de


. d os 83 . Eu d 1r1a,
seJa . . toman d o o caso Arawete,
- que o canibalismo

(83) Sahlins, 1983:88, sobre os ilhéus das Fiji. seria rrera roincidencia depa -
ranros can urn mesno ·epíteto - "c.6isa Grande" - usado, entre os fijia.IX)s·, para
designar os cliefes e as vítirnas sacrificiais (hunanas), e, entre os Guarani-
-M:Jyá, para o cadáver? (Mba'e guachu - Cadogan, 1959:200). Nao ~r acaso, certa
nente, a linhagem senhorial nas Fiji, e os chefes havaiarx:>s, erarn os "TubarOes"
da terra - cx::rro os deuses Araweté sao "jaguares" I o deus Shipaya é um Jaguar '
etc. (Sahlins, op.cit. :76).

Tupi -Guaraní, mesmo quando "imaginário", pertence ao Sirnbólico,nao

a fantasmagoría individual e identitária do Imaginário (tomando es

tes dois substantivos na acep~ao que lhes dá Lacan). E mais que is

so: . enquanto mecanism0 de produ9ao da Pessoa TG, o canibalismo se

dá ou se deu no Real, extravasando ~ representa~ao: afinal, os Tu-

pinambá nao comiam seus inimigos metaforicamente (tampouco_ o fazem

os Ma! Araweté); e as me't áforas, tomadas ao pé da letra, sao outra

coisa.

610
entre outros

O· canibalismo dos Araweté nem sempre toi imaginário, ao que

parece. suas gestas estao povoadas de entre-devora9oes que mantive

ram com outros povos .Tupi. Meus dados aqui sao escassos e ambiguos.

Mesmo aquelas pessoas que negavam terminantemente ser seu povo ca-

nibal - sublinhando ao contrário sua condi9ao de vítima do caniba-

lismo dos Tow~ho, To¿-c e outro inimigos antigos - , .reconheciam en.-

tretanto que vários mortos recentes eram aw:r a re, "comedores de

inimigo" . Dizem todos que, nas guerras do Ipíxuna, contra Asurini

e Parakana, jamais se comeram inimigos; mas que antigamente - di-

zem alguns - se o fazia. Minha impressao é que a antropofagia real

foi, pelo menos neste século, urna prática restrita e ínfreqliente ,

urna possibílidade que alguns realizaram. A expressao awi a r e e

corrente, e aw? ka'e,_ "inimigo moqueado", é o neme pessoal de um

morto da época dq ~ontato. Fato ou fic9ao, o importante é a cren~a


.-
tradicional Araweté: um awi a re vive muito tempo, marre velho, e

imune is doen9as, é forte~ O canibalismo ativo "real'', assim,é pro

dutor de urna imortalidade ou eterna juventude relativas, que ecoam

a imortalidade real dos canibais celestes e o passaporte para a

nao-morte que é o homicidio Araweté. A carne de um inimígo, entao,

é o contrário das carnes ha'iwa ha, letais: poderíamos super que

o vigor dos Ma~ se deve tanto a sua ciencia do re-cozimento na ba-

ciadas almas quanto ao seu canibalismo; seriam entao imortais nao ·

apenas por xamas, mas por matadores-canibais.

A longevidade dos velhos que ainda resistíam na tribo, em

1981-3, era semi-jocosamente atribuida a sua condí9ao de comedores

de inimígo. Quando eu inquiría estes mesmos velhos sobre a proce -

dencía de tal imputa~ao, eles riam muito, e negavarn - só a velhis-

sima Pañora-hi aceitou de bom grado a pecha, e disse que era isso

mesmo. Mas nunca conseguí tirar muito mais dela, ou de outros - es

611
araweté: os deuses canibais

te nao era urn assunto de que gostavam de falar. Diziam: "nao, isso
já acabou há muito tempo, agora somos 'mansos'" •.• Nao me arrisco:
a Única coisa certa é que, se os Araweté nao sao canibais convic -
tos, seus deuses o sao, e eles sao as vítirnas eleitas.
O canibalismo divino i urna opera~io culinário-funeriria, que
aciona urn sistema com as categorias do cru, do cozido e do podre ·;
da carne, dos ossos e da alma.
Se considerarrnos que a trlade pessoal Araweté: vivo/espec
tro/alrna remete a urna triparti~ao cosmológica - aquela que indica-
mos no capítulo IV (p. 204) - teriamos o sistema:

MORTE
Céu-Maf
Principio vital
SOBRENATUREZA Ossos, pele
Futuro
Duplo cozimento
CULTURA
Terra-Añi
Sombra
NATUREZA Carne
Passado
Duplo apodrecimento

Onde a Cultura aparece como um estado ao mesmo tempo arnbiva-


lente e neutro, nao marcado. Detenhamo-nos, em primeiro lugar, so-
bre as transforrna~oes rnateriais que sofrern as partes da pes so a
dividida. o duplo cozirnento da imortalidade, e sua inversao simé -
trica, o duplo apodrecirnento da morte definitiva (ambos envolvendo,
'
como vimos, transubstancia~oes canibais), determinarn como que por
exclusao qual o signo da vida provisória dos humanos de -carne e
osso, entre céu e terra: o cru. Se urn morto termina como duas ve-

612


entre outros

zes podre, e um imortal como duas vezes cozido (em lugar dos ''nas-

cidos duas vezes" do hinduismo ternos aquí os "coz idos duas vezes 11
),

é porque um vivente é "duas vezes" cru - coisa ambigua, coisa in-


'
comp~eta, coisa . imatura, que só a morte elaborará (supra: 596), em

duas dire9oes divergentes.

E assim podemos entender urna das determina9oes dos Ma! como

"comedores de carne crua". Eles o sao, porque sao antropófagos. Na

verdade os deuses comem cozido - isto é, eles nos cozinham. O que

sao assim esses deuses? Eles sao jaguares com fogo. O sistema ope-
.. ra por urna inversao de perspectivas. Do ponto de vista dos humano~

os deuses sao '' comedores de cru", porque . nao tinham o fago terres-

tre de cozinha - que, na mitología Tupi-Guarani, foi roubado do

Urubu, nao do Jaguar como entre os Je (i.e. do Senhor do Podre , nao

do Cru - Huxley, 1963:16-18; Lévi-Strauss, 1 966:149 -152 ). Isto é ,

os deuses sao . jaguares. Do ponto 'de vista dos deuses, os humanos

~- crus, comida crua, que carece de ser duas vezes cozida para se

livrar da corrup9ao. Teriamos entao1 - como modelo de base da cosmo-

logia Tupi-Guaraní, desdobrando a equa9ao lévi-straussiana ( supra:

488) :

Natureza:Podre :: Cultura:Cru :: Sobrenatureza:Cozido

Um sistema, entretanto, que nao é estável (p.204), e que nos

Araweté, pelo menos, aparece sobredeterminado. A ambigüidade do

estatuto do humano se repete, invertida, no plano do divino. O que


' .
é u~ jaguar com fago, senao um Arawete caníbal? Creio que pod~mqs

assim propor urna hipótese sobre porque o . mito Tupi-Guaraní do rou-

bo do fogo civilizador poe como parte perdedora , e símbolo da Natu

re:z:a, o urubu - operando assim co.m um intervalo máximo, podre/cozi

do. Porque ao jaguar e ao cru está reservada outra fun9ao, a de

613
araweté : os deuses canibais

encarnar positivamente o canibalismo, exógeno e agressivo.


Isso poderia iluminar, ao menos em parte, as diferen<ras Je /

/ Tupi identificadas por Lévi-Strauss, no que toca a agrega9ao da


triade culinária conforme a matriz dual Natureza/Cultura - mas ele
nao as elabora nessa dire9ao (mesmo quando toma o canibalismo Tupi
-
como tra90 pertinente na compara9ao - 1971:551-2). Curiosamente ,
houvesse na mitología Araweté o motivo do fogo do urubu, teríamos'
que o s humanos o roubaram para depois ensiná-los aos deuses-jagua-
res celestes . . .84•

(84) Essa ambigüidade essencial dos Ma-e, perfeitos oozinheiros das almas e core
dores de cru, ¡x:rle ser cx:nparada a oo Kuenoi Piaroa., um dos oois inrOOs-demiur-
gos; ele ten duas cabeyas, urna a:rne carne crua, outra oozida (Kaplan, 1982:15).

Outro motivo difundido na mitología Tupi é a do~ irmaos miti


cos, cuja caracteriza<¡:ao como On9a/Gambá é direta .(Araweté, Kaapor,
Shipaya) ou indireta (Tupinambá, Guaraní - onde os jaguares -
sao
antagonistas dos gemeos , um deles filho de Gambá, outro de Maira ;
ver Métraux, 1979:cap.II, para as fontes). Vimos como o gambá, urna
fun9ao-podre, marca a parte terrestre da pessoa póstuma; ve-se en-
tao como o jaguar, símbolo do cru, marca a fun9ao desempenhada pe-
1 os Ma~8 s o b re a a 1ma ce
. 1 es t e: o caniºb a 1 ismo
· 85 •

(85) Na:, será entao por 'acase que entre os Kaap?r, onde o xamanisrro é um valor
sul::x:>rdinado ao valor "guerreiro", o ganbá seja tido cx:rco um xama (Huxley, 1963:
249); que entre os Tapir~, onde o xama é um "guerreiro", sua norte desenca -
deie jaguares (Wagley, 1977:185); que entre os Akuáwa-Asurini, onde o xarnanisrro
parece prevaleoer sabre a guerra, SCl1.Varo, o espirito Jaguar, seja o familiar ex
elusivo oo xama (Andrade, 1984a). Já nencidnarcos o deus-jaguar Shipaya, canibaJ.
Posso peroeber a<;1)ra que a peculiaridade do espectro terrestre OOs xanas Aré!Me-
té, a::¡uela de cantaren - rrostrando assim urna maior "anima.crac" que os _roortos oo-
muns, ¡xx3e ser urna inversao distintiva do estatuto "n.00-gambá", jaguar-inputres
civel , da alma celeste oo matador. A afinid.:rle entre os jaguares e o céu é urna

614
entre outros

oonstante na mitologia Tupi-G.Jarani - reoordaros apenas o. jaguar azul .do Ap:>ca-


lipse Apa:EXJkuva (Nimuerrlaju, 1978).

Na triparti9ao cosmo l óg ita Araweté, assim, se a Cultura -


e

um estado ambivalente e nao-marcado, a Sobrenatureza é ambivalente

e marcada, e a Natureza é nao-ambivalente e marcada: inequívoca e

maligna podridao. Em outras cosmologías TG, haverá outras distri -

bui~oes de valor. A ambigüidade constitutiva dos Maf é um tra90 ca

racterístico do pensamento Araweté.

Como observa9ao fina¡ a essa questao, lembraria que apenas '

as mulheres, enquanto :nao-matadoras, sao vítimas inevitáveis do

canibalismo celeste. Neste sentido, apenas as mulheres sao necessa

riamente cruas - pois serao cozidas e comidas. Isto se coadunaría'

corn minha defini9ao do mundo da Cultura e do Humano como basicamen

te feminino.

Humano:Divino :: Mulher:Hornem :: Cru:Cozido

A o p o si9ao entre a alma celeste e o espectro terrestre em

termos de pele e ossos versus carne (é a partir dos ossos que as

almas sao recornpostas, sua pele velha é guardada como troféu; o

ta'o we é associado ao apodrecimento da carne) remete ao clissico

complexo das "segundas exéquias" e seu jogo de permanencia/corrup-

9ao, morte / regenera9ao, etc. (Hertz, 1928). Blo ch & Parry (1982 .
20-21) lan9am a interessante hipótese de que essa oposi9ao, a que

correspondería ainda urna outra, homern(ossos)/mulher(carne), seria

operativa apenas nos sistemas sociais ern que a distin9ao consanglii

neos/afins é determinante, ao passo que os sistemas endogamicos ou

fortemente cognáticos nao a levariam em canta. Nao sei até que pon
.. , .:..
to os Arawete - para quem a di~tin9ao nao se exerce sobre o carpo

morto, mas vige entre ossos celestes e carne terrestre (os ossos

615
araweté: os deuses canibais

do cadáver sao irrelevantes) - corroboraríam essa sugestao. Pode-


-se dizer que, em parte, sim: considerando-se que o céu é masculi-
no, a terra (humanos) feminina - mas a distin9ao consangüíneos / a
. .
fins nio é ''internan ao sistema sodlal, vigorando mais bem entre '
-

os vivos e os deuses. o ideai "sociológico" e endogámico, como vi-


~ .
mos; o cosmo l ogico ;_ - .
e exogamico 86

(86) Já rrencionanos o ~culto cbs 05505" G.larani.. (H,Clastres, 1978:20-21) e o te


ma do kandire, nio-putrefa9ao do esqueleto, ligad:> ao aguyje, matur~ao-sublima
9ao que tx:xJe ser vista caro transcendencia da matéria "crua" em dire<;ao a0 divi
no (supra: 596 ) • No~se apenas que a cosrrologia ·QJarani atual, em seu anti-~
ni.balisno ascético, distribuirá os_valores cosnológiros-de nodo radicalmente in
verso aos Araweté: o jaguar e o cru sao ~orc;:as regressivas ¡;:erigosas, .e a asee-
. -
se é una espécie de norte do jaguar que cada huna.no tem em si.
e
A ·associac;:ao entre espectro terrestre carne se ·evidencia na c:rerura Kaa:fX'r'
.de que o Anyang, ~spirito da norte, · caníbal, tem a pele verde (podre?) e nao
tan 05505 (Huxley, 1963:203).
Carparar ainda CXJn a defini9ao dos mekarO Krah5 caro nao terx:b carne, só pe-
le e os50 - aqui, ao a:>ntrário dos Araweté, is50 Ínarca sUa. Mo-vitalidade (car
ne=sangue--vida), nao a perenidade do corpo mistiro celeste; o lugar da perrnanen
cia Krahó estaria nas ossadas reais e nos nemes - cf. eameiio da Cunha, 1978 :
145, 1981:170. Os Bororo - onde as oposic;Qes -ac~ receben. uro elalx:>rado desen -
volvimento - apresentarn una interes~te transfonna~ do tema da pele dos nor-
. . '
tos. A pele do jaguar norte pelo a.roe maiwu, Substituto-representante cb defun-
·to humano, que o vinga - pele de :Jaguar que é a pele do norte, eñ::iuanto' bcpe-
-jaguar (supra: 390} - deve ser oferecida pelo vingador:aos parentes clamcos'
do deñmto; ela é urna espécie de última J?EEigraphé, ~cric;ao da pessoa(No-
vaes, 1981). Nos Araweté, sao
os deuses-jaguares que guardarn cx:rro troféu a pele
das al.mas devoradas •.• (Os humanos nao fazem uso do oouro das o~ nortas) •·

O canibalismo divino Araweté aparece para marcar,duplamente,


a figura do Inimigo-Outro. Os mortos sio devorados porque se recu-
sam a entrar em relac;ao de alianc;a com os Ma!: eles sao inimigos
dos deuses ~nquanto encarna96es do "N6s", os Araweté c~lestes. Por
sua vez, os deuses sao canibais porque sao inimigos, diante de

616
entre Olltros

I nós, os mortos humanos. Es.se canibalismo aparece como a condi9ao


da aliari9a entr~ os vivos e os deuses, mediante a transforma9io
dos mortos em deuses. Os Maf, os verdadeiros Afins dos humanos,
sao sempre definidos corno os' que comem: na terra, a comida dos ho
rnens; no céu, os próprios hornens. Este é o penhor da alian9a.
o canibalismo divino Araweté situa-se alérn da distin9ao en
tre "exo-" e "ende-canibalismo" - e sugere que ela, nao só aqui,é
destituida de. um sentido mais que superficial (corno já observava

(
Lévi-Strauss; 1962b: 156, sobre a oposi9ao endo/exo-praxis em 9!
ral). o que é ''dentro" e "fora", quemé o ''outro'', na rela~ao en
tre homens e deuses? O que se come é -.sernpre o outro: morto do gr~

po, é outro, deve ser morto e comido pelos deuses; inimigo, outro,
deve ser rnorto ("comido") por urn já-deus, o matador. E nao é só is
so: "o canibal nio é sempre o outro?" (Clastres & Lizot,1978:126)
- sim, mas nao no sentido etnocentrico banal; é que quando se -
e

canibal, é-se Outro, sernpre. Entre hornens e deuses, via rnortos,


cria-se urna reverbera9ao Eu-outro que inibe qualquer
de "identidade". Os rnorto·s , outros, sa·o comidos pelos outros, de~
s.e s, para se transformarem ern Nós ... deuses inirnigos. E o vivente?
O vi vente, a Pes~oa·, é algo e.ntre dois outros, anfibología: o mor
to que foi, o deus que será~ Seu ser é o produto desta dupla alte
ridade, que o canibalismo efetu~. Para isso os deuses devorara os
rnortos: ,para que os Araweté possam ser - sej arn rea is. Entre outros,
vive-se, interva l o. -
Na rnorte, e-se, para d oxo 87 .

(87) Os Aché p0ern claranente que os mortos do grupo ·devan ser devorados porque
sao inirnigos, canibais oontra os vivos; e os inirnigos mortos pcdiain ser cani
/ dos (P.Clastres,1972:322,323-35). Por outro la90, leia-se Guidieri sobre a me
tafísica ·Fataleka (Malaita), aqui -rnuito sanelhante as idéias 'l\Jpi-Guarani:
"can efeitó, o taifili' (o ser) só parece ser capaz de oorqui.star a u
nidade, um ~tatuto. definiqvo - ,estatuto de a:::rcpletude que supoe a

617
araweté: os deuses canibais

supressao da di.sjunc;ao característica do hcmem durante a sua existencia


[entre a "sanbra" intrínseca e o "reflexo'' extrínseco] - na ausencia, i's
toé, na rrorte ••• O tempo dos viventes, .para o pensarrento irrlígena, é
por definit;ao um tatp:> cx>nti~ente. Seu caráter essencial é de ser ambí
guo: ma~a rwaruu, "entre duas coisas" • • • (1972:90).
A posi9ao do canibaliSl"OC) no sistlna Fataleka da Jn€!li>ria e produ9ao da ilrortali
dade/ancestralidade transforma figuras 'l\lpi (e se aparenta, em seu "substancia
lisrro", a teoria de Florestan sobre a natureza "sacrificial" do canibalisrro Tu
pinambá) ; para que um rrorto do grupo vire ancestral (seja lE!Wrado) , un inimi
go procisa ser rrorto e devorado; e ser devorado é ser esquecido - os que tenni
nam na boca dos inirni.gos nao podan aceder ªº status de ancestral. lv:J contrário
do caso Tupi, aquí a devorac;:ao c~ela a "sanbra" ilrortal-menorial, o nare; a
putrefac;ao é corrli9ao da mem5ria. Por outro lado, e em analogia aos Arav.,ieté-Tu
pinarnbá, para os Fata~eka o Akalo, o ancestral, é um super-rnatador,e o matador
(Ram::>)um equivalente huma.ro do Akalo. Ver Guidieri,1980:149-153 e passim, para
urna análise CQll)le.xa da metafísica Fataleka, que só puderros ronsultar após a
reda9ao da tese.

A antropofagia, emblema dos Tupi no imaginário ocidental,


sempre pos urn enigma para a antropología - chegando a ter sido re
-
solvido pela denega9ao (Arens,1979) 88 • Menos, creio, por motivos

(88) Ver a crítica documental definitiva que Forsyth, 1983, faz ao uso dos ma
teriais Tupi quinhentistas por Arens, necessária no contexto anglófono.

fágicos, que por urna espécie de repugnancia lógica. Talvez o cani


balisrno seja como o incesto, gesto impossível: impossível f azer

coincidir os carpos e os signos, as pessoas e · seus nomes (Deleu


ze & Guattari, 1972:190). O que se come é sempre, no e pelo ato
mesmo, outra coisa que o que era antes: o símbolo se furta sob o
gesto, o ato afasta a meta. Impossível mas real, o canibalismo é
rnais um paradoxo que um enigma:se o ritual é "essencialmente a ª!
te do possível" (C.Hugh-Jones, 1979:i80), entao o canibalismo nao
é um ritual. Como o real, ele é a. arte do irnpossível, a arte de a

travessar espelhos, de devir: metamorfose invisível.


O canibali~mo Tupi-Guarani - aquele real, dos Tupinambá,e o

618
entre outros

"imaginário" e invertido des s es Tupinambá celestes que sao os Maf!

Araweté - fala, de fato, da Pessoa, do Eu e do Outro. Ou melhor


'
ele nao "fala", pois nao "significa" - impossível como o movimentq.
'
ele faz, e nao e- absolutamente um "fantasma agido" 89 , mas urna ma- -

(89) .Ver a soberana e inane palavra final de A.Green, que a partir de una dedu-
c;ao estritaire.nte intel:na a psicanálise (aliás, coerente), sentencia san apela -
-
900:
" ••• a própria natureza das pu1sOes canibalísticas é tal, que a
relacrao oral canibaUstica ao seio nao
¡x>de ser senao fantasrráti-
ca. E, se certos grup:>s huma.ros praticam o canibaliSITO real, eles
nao fazem senao agir [atualizarJ um 'fantasna raranejado e raciona
lizado ••• Nao há entao, propriamente, canibalisrro real, bruto. o
fato primeiro, apesar do que a pré-história e a antropologia tes-
tanunhem, nao é o canibalisrro real. A realldade do canibalisrro é
a po~siliilidade de f azer passar no real o fantasma que o susten -
ta" (1972: 45, grifo oo original).
Que n00 haja canibalisrro "bruto" ("real" ••• ) , est.arcr::>s todos de acordo. Que
ele tenha que ser redutioo ·a un aparelh::> aa ·identifiC-a9ao narclsica irnaginária-
- oo plam do grupo social e da ex>srrologia, e da cnnst:ruc;ao da Pessoa - isso é
una viol enci a de diva. A ilrpossiliilidade do canibalisrro real é de outra orden '
que essa, de deriva~ (perversao?) de um genériro e ooi:mal canibalisrro pulsio -
nal.

quina de devir-Outro. Por isso, se ele opera sobre o mesmo campo


que a d i alética da Identidade Jé - a saber, a constitui9ao do "Eu"

através do "Outro" -, ele nao me parece po der ser pesto em conti -


nuidade com 05 jogos de dupla nega9ao que fundam a Pessoa e a So -
ciedade Je. o canibalismo nao é urn caso limite ou "literal" da dia
lética do Sujeito, mas urna saída dessa dialética. Ele caracteriza'
urna singularidade Tupi-Guaraní, e é perfeit amente consistente com

o complexo de for9as que levou muitas dessas sociedades a ~estrui-

9io (H.Clastres, 1978). Para consequirem o que se propunham, os Tu


pinambá e5co lheram rnuito bem 05 seus meios - e assim também os Ara

619
araweté: os deuses canibais

weté com suas idéias -; o canibalismo nao é urn exagero barroco oc~

sional de urna necessidade simbólica que poderia ser "satisfeita "'


por outros meios. ~ claro, através do can~balismo os Tupinarnbá rea
lizavam urna série de opera<;oes ·, e dentre elas a de- produ<;ao de i-

dentidades - que prescindiría, entretanto, do puro ato físico da


_., 9 o
devora<;io da v1tima, cuja razio deve ser buscada alhures •

(90) E subl,inho aqui, no cx:ntexto de um contniste


~
á -d.ialética pessoal Je ,
CXlll

exat.artente O canibalisno. Pois - P?X'ª ficatrrOS no material Araweté - nao


terá
passado desapercebicb ao leitor o "~ ~ .familia" que aproxima, por exerrplo, o
. -
jogo ~cular de substitui<;Qes nortuáriás Bororo e o .~- enunciativo dos
cantos de matador Araweté. Ainda nesse caso ~cífia:?, as di°f~as nao
sao
rreoos significativas.

Comer o outro é, certamente, exagerar, excesso sacrificial .


E; estabelecer, ao mesmo tempo, urna continuidade máxima com a víti-

ma - criando urna imanéncia animal entre Q devor~dor e o devorado - ,


e pressupor urna descontinuidade nao menos absoluta, humana e trans
cendente, entre o Eu e o Outro, pois o que se come será por definí
9ao o nao-Eu, será urna "coisa" (Bataille, 1983:24.53). Devorar um
'' semelhante" - por suposto é urn semelhante, mesmo que inimigo, ou
- se trataría de um canibalismo ritual, humano, pleno de precau-
nao
<;oes e ris~os míticos - é exatamente impedir que ele possa devol -
ver urna imagem, constituir urna identidade'.. ~, de certa forma, des-
truir a representa9ao, quebrando o espelho da fun9ao imaginária •

Devorar o inimigo nao é, tampouco, "identificar....:se" a ele - é pro-


jetar-se na alteridade, passar para o ·· outro lado, tornar-se, nao
o inimigo, mas Inimigo. O canibal cdmerá sempre ·, enf im, nada mais
que si mesmo (Guidieri, 1972: 1.09, diz que todo canibalismo é, no
fundo, um ende-canibalismo; sim, como é sempre exo-canibalismo ••• ).
Por isso, ele é sempre (o·) Outro, e nao tem avesso. E, se a motiva

620
entre outros

~ao explicita do canibalismo era a vingan9a, para os Tupinambá - e

a vontade de ser devorado era urna vontade de ser vingado -, é Pº!:


que a vingan9a ela mesma, como o canibalismo, é impossível e inter
4

minável, outra figura do Devir. O canibalismo, enfim, é mais que

urna media~ao através da alteridade, visando a restitui9ao da iden-

tidade¡ ele é urna inescapável passagem para a alteridade: devir-

-Morto, devir-Animal, devir-Inimigo. Eu sou o Inimigo. ~ isto que

dizem os Araweté, por seus deuses.

Outra coisa disse Cunhambebe? - O chefe Tupinambá nao disse

que aquilo que comia nao era humano, que era urna coisa, um outro

que ele, um animal. Nao: ele disse: eu nao sou "Humano".

Durante isto Cunhambebe tinha a


sua frente um grande cesto cheio
de carne humana. Comia de uma per
na,- segurou-a diante da boca e
perguntou-me se também queria co-
mer. Respondi: "Um animal, irracig_
nai nao come um outro parceiro, e
um homem deve devorar um outro ho
mem?" Mordeu-a entao e disse:
"Jauara iahi - Sou um jaguar.Est~
!'> gostoso".

(H.Staden)

621

CAPÍTULO VII

OS SERES DO DEVIR:

A METAF!SICA TUPI-GUARAN!

Or~ pour qu'une conception puisse


itre attribuée aux primitifs, il
ne suffit pas qu'elle soit étrange;
il faut encore avoir des raisons
pour la leur .atribuer.
(Durkheim)

623
araweté: os deuses canibais

Se o leitor conseguiu chegar até aqui, atravessando o cip~

al de "notas" de cinco piginas, as enfiadas de referincias comp~

rativas, a prolifera9ao de paralelos e a repeti9ac obsessiva e an

tecipada de conclusoes, concordará que é tempo de . concluir - mas

que é difícil faze-lo ao mesmo tempo sem mais redundancias e com

brevidade. Como é impossivel come9ar outro livro desde aqui, ou

quem sabe reescrever este em versao mais enxuta, o jeito é repa~

sar as carreiras os pontos que fui alinhavando ªº longo deste de

masiadamente longo percurso, atacar um da capo e fazer um balan90

do que resta por resolver.

Concluo antecipando que nem tudo que se prometeu se ··poderá

c_umprir. Contra minhas pretensoes iniciai.s, sintetizar· urri "modelo

Tupi-Guarani" talvez ainda seja viável, mas ao pre90 de algumas

simplifica9oes drásticas; o que fica além de minhas for9as é PªE


tir dai para urna compara9ao sistemática com outras formas sócio-

-cosmológicas do continente, · e para o aprofundamento teórico das

li9oes do material Araweté.


Entretanto, creio ter esbo9ado um perfil ~azoavelmente niti

do da problemática Araweté, justificando as generalidades adiant~

das na Introdu9ao (pps.24-8) e respondendo como foi possível -


a

questao condutora do trabalho, a saber, a razao do canibalismo di

vino dos Maf. Creio, outrossim, ter caracterizado a forma pe cu-

liar de articula9ao entre "sociología" e "cosmología" nos Araweté

- rela9ao nao analógico-expressiva, mas instrumental -, e anali -

sado a situa9ao paradoxal de sua categoría da Pessoa,deterrninada

como vazio circunscrito pelo triángulo do Outro, deus-morto-inimi

go, e constituida pela nao-identidadé a si, ou seja, pelo Devir e

a morte. O fragmento de Heráclito aposto como divisa geral deste

trabalho descreve o jogo final entre deuses e humanos no pensame~

to Araweté, e poderia bem servir como resumo de sua metafísica •

624
os seres do devir

Vejo por fim que o próprio título que escolhi, que me parecera ób

vio e neutro, cria urna figura tipicamente Araweté: pois "Araweté 11

é, para os Araweté, um "nome conforme o inimigo" ou um "nome


~
de

inimigo" - usado aliis por eles como nome pessoal -, sendo o nome

com que os outros, os brancos, os designam. Os ''Araweté'' nao exis

tem senao na rela9ao com e na voz do Outro - como os Araweté, is-

t o é, as Pessoas (Bfde) ,nao sao senao o op:>sto e um momento da Divin

dade, Ma!.

Passemos assim a alguns pontos, a guisa de conclusao.

A frase de Cunhambebe citada por Hans Staden deve certamen-

te ter sido urna tirada de humor, negro ou Zen - Tupinambá sem dú-

vida; ainda assim, e mesmo que nao tenha iluminado o alemao, tra-

ta-se de declara9ao de um non-sense revelador. Falando do que co-

mía, f al ando do que fazia ,. o guerreiro caníbal Tupinambá determi-

nou a sua perspectiva, o lado em que estava, a dire9ao para a qual

se deslocava: ele era um jaguar, _porque seu alimento era urn ho

mem; se a perna que comía era de um inirnigo, a boca que a comía

(e que falava) era a do Inimigo, o jaguar, esse canibal incomestI

vel. Um jaguar, 11
naturalmente'', civilizado: afinal, comia carne

cozida-moqueada - um jaguar com fogo. A antropofagia de Cunharr~e­

be, assim, nao era nem urna alelofagia (devora9ao do sernelhante) ,


como pensava Staden, nem urna omofagia (comer cru), para usarmos o

vocabu lário do canibalismo grego (Detienne , 1 972a :235 ) . Era um

devi r-fera, mas policiado pela cozinha.

Metáfora? Nao sei. A "equa~ ao Cunhambebe" nao me parece

em seu caráter mesmo de boutade individual - urna boa candidata a

galería das frases célebres do pensamento selvagem , do tipo "os

homens Bororo sao araras" ou "os gemeos Nuer sao pássaros", corn

que Von den Steinen e Evans-Pritchard contribuiram para o debate

625
araweté: os deuses canibais

intelectualista entre totemismo e participa~ao mlstica, metáfora'


e pré-logismo (Cracker, 1977b; Lévi-Strauss, 1962a:ll4-7). Metáfo

ra talvez, visto que nao metamorfose - os canibais Tupinarnbá -


nao

tem pélo pintalgado ou garras de felino -, nem, creio, cren~a

Cunhambebe nao terá sido um bom exemplo para Lévy-Bruhl. Mas metá
fora bastante literal: os homens .Bororo e os gemeos Nuer nao voam;

os "jaguares" Tupinambá comiam realmente carne humana. O "modo de

falar" de Cunhambebe determinava seu modo de comer, que era modo


de' pensar. Nao se trata aqui, portante, nem de um imagi_nário "vi
rar jaguar" (tao comum aliás nas cosmo1ogias sul-americanas - Rei
chel-Dolmatoff, 1975), nem de um simples "fazer como"<? jaguar

(os jaguares nao coz~nham) - mas talvez wn virar-jaguar, onde "j~

guar" é uma qual).dade do ato, nao do sujeito. De resto,Cunhambebe


nao .disse ser urn jaguar, visto que_ ern su~ lingua o verbo "ser"nao

funcJona corno cópula proposicional; propo~ apenas: jauára iche


'
1
jaguar eu. O mundo Tupi está cheio dessas on~as •

(1) Assim os Shipaya tan cerro cerinimia central a descida dos rrortos para fes-
xama, e esse processo é '
tejar can OS vivos. As alna.s-iánái tanarn O COrp), do
p)r algum rrotivo, urna "jaguariz~" - anbora as almas nao sejam o~:
"O pajé Mixzré ne dis~ ~lara e distintamente: os iáñai .. nao ¡;x:>-
dian danctar e beter cx:m:> os vivos, ·por isso t:anavam seu éorpo, e
en:j\.la!lto 'ele mesno' , incapaz de fazer ~quer
coisa, permane -
cia dentro da casa de festa, os iána.i ~avaro lá fora can seu
cor(X). Perguntei-lhe entao caro se sentia nesta cx:::asw, e rece-
bi a resp'.)sta: 'As vezes me parece que eu sou, neste m::mmto, um
jaguar'." (Nimuerrlaju, 1981:32).
Nao siS, naturalrrente, entre os Tupi-GuaJ;ani o jaguar desenpenha um papel
cosnológico central: suas asscx::ia<rOes can o xamanisno e a chefia na Amfu:'ica do
SUl forarn extensarrente analisadas por Reichel-I:blmatoff, 1975:caps. 3 e 6. Mi-
nha hipótese aqui, c:xxro vinos, é que o lugar ocupado por este animal na COSll'O-
logia 'ffi está associ~ ao canibalisrro positivo.

626
os seres do devir.

Metáfora para mim, certarnente. Pois ela me aponta para a i-


déia de que o canibalismo Tupinarnbá implicava isso, urn comporta -
rnento-fera da Sociedade. Fenómeno evidentemente (eminentemente )
4

cultural, ele nao é menos, por isso,, um questionamento da Cultura


(Pouillon, 1972:16), urn modo d~ transcendé-la "por baixo": pela

Natureza. A . gigantesca e elaborada aparelhagern simbólica dos ri-


tuais de captura , ''afiniza9ao'', execu9ao dos cativos, restaura9io
' .

rnist.i,ca pela vingan9a, re-noma9ao do executor - tudo isso termina


va ern algo que sempre se furtou a~ explica9oes (H.Clastres, 1972:
82) : o ato de comer'· ·o canibalismo. Por que os Tupinambá comiarn
seus "afins" - .e nao s.implesmente os rnatavarn , os adotavarn (os Iro
queses, ern rnui tas coi~.as seme.l hantes aos T~pinambá, al ternavarn as
solu9oes: ou devoravam os cativos, ou os adotavarn como substitu -
tos de mortos do grupo - Chodowiec, 1972), ou outra coi~a qual-
:

qµer? . A. c~srnolo9ia . Araweté tal ve~ o . tenha ~sclarecido em pa_rte. E


por ai, enfim , pelo ato de comer, q:ue penetram os jaguares. E,

quando º evocarmos os paraleios gregos, ver-se-á que o p~radoxo da


religiao Tupinambá é .esse: urna ortodoxia dionisíaca, urna antropo-·
fagia generalizada, urna nega9ao · da Sociedade que· é ao mesmo tempo
seu principal ritual cívico-político.

l. POLARIDADE ESPIRITUAL. E COSMOLOGIA TUPI-GUARANI

A desagrega9ao póstuma da Pessoa ern dois principios antago-


nicos, que examinamos na escatología Araweté, é um terna que per-
corre com inflexoes específicas todas as cosmologias Tupi-Guaraní,
remet~ndo a urna dupla diferen9a ern rela9ao ao estado de vivente :
principio de regressao a Natureza, principio de progressao a So-

627
araweté: os deuses canibais

brenatureza. Tal duplo movimento se encentra associado a algumas

polaridades básicas, a saber: animalidade/divindade e comer/falar

(canibalismo/canto). Essa divisao da Pessoa em componentes diver-

gentes pode ser,porém, ou imanente e constitutiva de todo ser hu-

mano, ou diferenciar condi9oes pessoais dentro da sociedade. Os

Araweté sao interessantes por somarem estas duas possibilidades ;

todo humano possui em germe um aspecto-espectro e urn principio-al

ma, destino terrestre e destino divino; mas a condi9ao de matador

sobredetermina esse dualismo, na medida em que ela sublima a par-

cela terrestre do sujeito e o transforma em deus-alma antecipado.

Em muitas outras sociedades, será a condi9ao de xama que distin -


2
gue a situa9ao póstuma da pessoa • Minha primeira hipótese geral,

(2) E terá sido por isto que Schaden (1959:119} decreta que o "herói nútioo da
tradicrao tribal" para todos os TUpi-G.larani. se nodela necessariarrente na figu-
ra do xama, nao na do guerreiro. Assim nao é, para os Araweté, onde, conquanto
xamas, as divindades Maf ten cx:rco signo principal sua posi~o-guerreira - nao
serrlo, é verdade, "heróis culturais". Creio que Schaden extrapola a sit~ '
dos Glarani atuais; de toda forma, conoordaria con ele quanto a urna ma.ior emi-
nencia, em geral, da tuncrao-.x.arna sobre a tunyao-guerreiro para os 'ffi, mas elas
se cx::rnbinam em figuras cx:rrplexas.

portanto, articula a polaridade espiritual Tupi-Guaraní ao par fun

cional básico destas sociedades, a saber: xama/guerreiro. Mas ca-

be introduzir um terceiro termo: este par organiza a condi9ao ~

culina (os casos de mulheres-pajés sao marginais ou teóricos), de

terminando assirn por exclusao a condi9ao feminina; e ele se com-

poe de modo variável com outra posi9ao que, primeira na ordem do

real, é sobredeterminada pelos valor~s do xamanismo e/ou da guer-

ra - a posi9ao de chefe aldeao ou líder de familia extensa, a fun

9ao-sogro (supra: 319-20). Um modelo triádico virtual, a partir do

qual se podem derivar transforma9oes, poria:

628
os seres do devir

'
Hatens Mulheres Haoens
Natureza: (Guerreiro) : : Cultura:SOgro/Chefe .... Sobrenatureza: (Xarr0)
Pcdre, MJrte Cru, Vida Cozido, Inortalidade
\

-
Modelo que, quero crer, nao se encontra nessa forma simples
e completa em nenhuma sociedade TG concreta. Nos Araweté, como vi

rnos, é a condi9ao de gu·erreiro-rriatador que conota a imortalidade


(mediante urna passagem prévia pela podridao, que o dispensa de
um dos cozimentos celestes); e a lider.a n9a parece associada ao · lu

gar de xama. Essa matriz poderia ser comparada - para que suas s~

melhanc;as (que mereceriam rt1aior reflexao) com a tripartic;ao fun -


cional indo-européia de Dumézil nao nos levern a tomá-la como ba-
nal e universal -, por exemplo, ao modelo de cinco fun~oes da es-
trutura social Tukano, analisado por C.Hugh-Jones (1979:54-75), o

qual se mostra ·aliás bastante mais elaborado e estável; ou ainda


i matriz dualista J~, que agrega diferentemente os valores acima,

e onde a fun9ao-xama é pouco marcada.


os Wayapi (Gallois, 1985; Campbell, 1982:270-2), os Akuáwa

(Andrade, 1984) ·, os Kaapor (Huxley, 1963:144) parecem apr:esentar

casos simples de destinó dual genérico da pessoa dos mortos: es-


pectro terrestre, associado ao podre, aos seres-.4 ñ.i' e ao cadáver,
versus alma celeste, ±mortal, ligada aos seres-Maf e ao principio

vital. A posi~ao de chefia estaria associada ao xamanismo para os


-
Akuawa, a... 1 ideran9a guerreira para os Kaapor 3 . A .
situa~ao
- wayapi

(3) Huxley (op.cit.:82) sugere um ethos de continencia sexual dos chefes Kaa -
i.:or (os "lntEns-cabecra") que o aproxima dos xarnas de outros grupos. A irrp::>rtan
cia tradicional do chefe aldeao a::m:> chefe de guerra, investido de pcderes de
iniciador, é destacada entre os Kaapor (op.cit. :172), que por sua vez perderam
o xarranisno, dependenOO de especialistas Tenetehara.

seria mais complexa, visto haver uma · continuidade ou homología en

629
araweté: os deuses canibais

tre "os deis especialistas da sociedade Wayipi" (P.Grenand, 1982:


238), o xama e o chefe de guerra. Ambos se guiam pelos sonhos, e
o xama é urna espécie de guerreiro - seja por enfrentar os espíri-
tos, seja porque "o xamanismo é urna continuac;:ao da guerra" por
meios mágicos (urna situa9ao semelhante ao que encontramos nos Ya-
n.o mami, onde o xama convoca hostes espiri tuais para se abaterem '
sobre os inimigos). A impressao que resta é que o caráter perma -
nente da fun9ao-xama (contra a vigencia temporária do chefe de
guerra) a colocaria como base da. lideran9a aldea, ao meno.s atual-.
mente. Nos tres grupos acima, as condi9oes pessoais de xama ou m~

tador nao parecem distinguir os mortos, contudo. Vale notar, ain-


da para os Wayapi, que o xamanismo se destaca por nao intervir na
rela9ao da sociedade coro as almas .celestes e o Senhor dos humano~

Ñqnde j ara . Esta rela9ao é estabelecida pela dan9a ritual (ap o rai)

e a música de flautas, acionada quando epidemias aumentam ·o pesó


do céu e perigam faze-lo cair e, em geral, para homenagear o he-
rói-deus criador (Gallois, 1984a ) . O xama nao interfere nesse pla
no, esse das rela9oes com a Sobrenatureza (tal como defino este
conceito, supra: 204), mas apena·s na rela9ao com o mundo da Natu-
reza: espectros, espirites animais, mestres de animais.
Entre os Kayabi, povo de tradi9ao belicosa, a posi9ao de
chef ia é modelada no guerreiro:
"os Kayabi véan sua sociedad.e ideal dirigida p:>r um chefe vel.00
e aguerrido, que só pode exeroer a:m plenitude sua ftn;ao pura -
mante p:>litica e ooordenaoora quando muitos xamas bons garantan
a todos os mernbros do grupo a assisténcia transcendental. Assim,
chefe e xarta a:>rresporrlem a il¡lagem ideal de urna personalidade I
mas a fo~ do xana atua indeperrlent.emante do chefe, eJXIUanto ,
ªº <Xntrário, o chefe nao p:xle preencher sua fun9ao sen o xama -
nisrro" (Grünberg, 1970: 126).

Grünberg (p.127) observa ainda que a guerra (condi9ao de ho

630
os seres do devir


micida) era pré-requisito para a funda9ao de urna nova maloca - i.

e. para sua lideran9a -, e que a dan9i dos crinios era a princi

pal cerimonia religiosa dos Kayabi.


~

No entanto é a posi9ao de xama que, como se depreende da


passagem acima, beneficia-se de urna eminincia de tipo ''hindu" (re

cordem-se as observa9oes de L.Dumont sobre a rela9ao entre o rei


e o bramane, a for9a e a hierarquia), e que se exprimirá em urna
distin9ao espiritual. Parece haver para os Kayabi . um só principio
.
póstumo (o a~'an, alma-n~m~ - op.cit.:155) da pessoa, que se diri

ge para o mundo celeste. Mas as almas dos · xamas falecidos - eles


que , em vida, eram urna espécie de alma excorporada (p.157) - des-
frutam urna situa9ao especial: transformam-se nos Ma'it (fun-

9ao-Maf), xarnas celeste~· e - principais auxiliares dos pajés vivos


(pps. 157-8).

Tal associa9ao entre principio espiritual único e diferen9a


xarnas / comuns é particularmente clara entre os Tapirapé. Ali, as

almas mortas dos comuns (an ch ynga invuera - -fun9ao-Jñl) vivem er-
rantes na floresta, na terra, enquanto o s xamas defuntos - habitam
urna aldeia própria, a Oeste (Wagley, 1977:169).. Ern publica9ao an-
terior, Wagley sublinhava com mais enfase esse destino diferen
cial:
" ... o maior prestigio que a cultura tapirapé oferece cxmverge
para os pajés. Ieflexc de tal prestigio é o oonceito de que eles
terao urna p:)s-vida a parte, ben cxxro a identifi~ao dos heróis
cultura:Ls oo passaoo a:m pajés ••. Erquanto un leigo tapirapé se
torna urna alma desoorporificada pela 110rte, a vida póstuma de
um pajé nada mais é que a o:intinuat;ao de sua vida atual, ern
cira.mstanclas ideais" (1976:253) 4 •

.
(4) Nessa versao, óS nortos canuns viveriam em aldeias terrenas abandonadas ,
repetindo mecanicamante suas vidas; a aldeia oos xamas seria a Leste - exceto

631
araweté: os deuses canibais

os xamás executaoos caro feiticeiros, que derroravam-se ern vilegiatura numa al-
deia a Oeste, até que seus ferirnentos cicatrizassem. Ver supra: 200, para a
regularidad.e destas transformaef>es, na obra de Wagley e/ou na escatología Tapi
-
rape.
Apesar do estilo "centro-brasileiro" da estrutura social e cerinonial Tapi
ra~, é possivel identificanros temas básicos da COSirologia ~ nesse plano rres

rro. Assim, a farrosa q:osi~o entre os "grupos de o:rrer" e as ºsociedades de


pássa.ros" (Wagley, 1977:101-118; Baldus, 1979:44-59) rarete a outras tantas ,
contorne suas fururOes e associ~ mitológicas, a saber: terra (origen ctOni
ca)/céu (origan alada); a::mida-consmo (grllEX)S "de cx::rrer")/canto-pro&.i<;ao (os
pássaros ensinaram os cantos, as wtra sao equipes de trabalho) ; sugiro que, em
seu todo, estes agrupanentos materializarn valores mrpierrentares, rerretencb a
ct:x:>si9ao Natureza/Sabrenatureza.

As almas dos xamas mortos (panoe invuera - fun9ao-Maf) sao

familiares do Trovao Kanawana , contra quem os xamas vivos devem


combater, na mais importante cerimonia Tapirapé, ligada a matura-
9ao do rnilho e a inicia9ao xamanística. A ambivalencia intrínseca

do xarna Tapirapé, já mencionada várias vezes nesse trabalho, se


configura corno urn caso forte do devir-inimigo do matador Araweté'
- e, como este, sua posi9ao póstuma é especial. o xarna Tapirapé é

o Guerreiro desta sociedade, que a proteje contra os numerosos es

piritos canibais do cosmos, as almas dos mortos, o Trovao e as al


-
mas dos xamas mortos. Mas, na qualidade de amigo dos inirnigos dos

viventes, ele é ao mesmo tempo protetor e amea9ador:


"Un pajé nunca tern rrecb em suas viagens en sonlx:> [ao oontrário
dos leigos J, po:rque os
espíritos sao seus amigos e a for~ 00 pa
jé at.Jirenta a propon;ao que ele corifraterniza con os espirites de
rraúacos da floresta". (Wagley, 1976:241).

Cren~a conforme a um motivo comurn a outros grupos TG(Wayap~



Tenetehara, Asurini, Kayabi, Parintintin), o de que o grau de po-

der do xama é fun9ao do número e qualidade dos espíritos que con-

trola - algo que nao encontramos entre os Araweté. O tremendo po-

632
os seres do devir

der do xama Tapirapé responsável pela concep9ao das crian9as, a


5
abundancia de ca9a , a seguran9a do grupo - se desdobra em sua ma

(5) OS xam3.s tan re~ sexuais con as f"'erreas dos quei.xadas, prciluzindo os
¡:x:>roos. Essa c:renya, i.nvertencX> radicalmente o cx::rrplexo Guarani do odjepotá ,
transfo~ao em animal ¡:x:>r contágio sexual can estes, que se segue ao consurro
de carne crua - o caso forte é a transfonna.~o em jaguar ¡:x:>r cópula can o "es-
pirito da carne crua" transfigurado ero jaguar-nulher (o tupichua; cf. cad::>gan,
1965:7-8; 1962:81; H.Clastres, 1978:94) -, marca inequivoc.arrente 1.m\ devir-ani-
mal cb xarr0 Ta.pirapé, e sua ¡x>si9ao ambigua, extra-social: natureza e sobrena-
tureza, animal e "e.ivioo", protetor e inimigo. A ncrte de 1.m\ xama desencadeava
a fÚ.ria cbs jaguares, enviaó:)s aterra pelo Jaguar c.eleste (Wagley, 1977:185).
o xama é assim, rrorto, rretaúmicarente associaao aos jaguares; já o xama Guara
ni é 1.m\ anti-jaguar, visto que evita carer carne e procura o estado oposto do
odjepotá , isto é, a transfigurai;:ao em divindade sem ncrrer.

lignidade face aos viventes. Ele é o Assassino, feiticeiro e rap-


tor de almas. Wagley observava que os tres xamas mais poderosos ,
em 1939, eram eles mesmos matadores de antigos xamas (1976:246) -
pois o destino de urn xama poderoso é ser executado por feiti9ari~

O xama Tapirapé, assirn, é um "ser-para-a-rnorte", corno disse P.


Clastres do guerreiro chaquenho (1982:236) - e como o é, de um rno
do diverso, o matador Araweté. Seu poder é sua perdi9ao~ seu des-
tino póstumo "em circunstancias ideais" é ao mesmo tempo urna trans
forrna9ao em inimigo. Um xama pleno é urn xama morto - por isso a
inicia9ao xamanística é urna rnorte do novi90 pelas flechas do Tro-
vao e seus asseclas, os xamas mortos e os espirites Top; (1976:
259-264; o furor e a possessao dos novi9os no tempo de sua inicia
9ao, quando espirites perigosos os enlouquecem, lernbra o furor do
6
matador Araweté) _. Mas só os xamas mortos sao irnortais, se cornpa-
/
(6) E assirn a inici~o xarnanistica oontrasta can a inicia.<¡:ao pubertaria. o
xama deve enfrentar o T:rovao e seus familiares, e tennina invariavelnente "ncr

633
araweté: os deuses canibais

to" por estes. Já o a.OOlescente eleve encenar um mito ern. que um jovern escapa de
inirni.gos canibais; é isto que ,seu canto celebra - arte da fuga, posic¡:ao anti-
-guerreira (Wagley, 1977:156-7).
o xarnanisrro Tapirapé, apesar de sua inp:)rtáncia vital para a rosnologia do
grup::>, se extinguiu, nas décadas que se seguirarn a primeira viagan de Wagley •
.
Isso talvez possa ser explicado pelo excesso de <XJl'ltradi~ encarnadas na fi-
gura do xam.3; um processo análogo ao ~qno da .antropofagia por outros p::1VOS
Tupi. -"'·-- .?
-uucu. aru.

rados ªº destino das almas dos leigos, que, após um período de


vida precária, morrem, transformando-se em animais diversos(l976:
240). Assim, o xama encarna a parte celeste . da Pessoa, os leigos
a por9ao terrestre-espectral:· Sobrenatureza (Trovao) X Natureza
(animais). Nos Tapirapé, em suma, o xama é a um só tempo o ideal
de Ego e o Inimigo; nos Araweté isso é o matador, ser sem sanbra, ini-
migo em vida. Ambiva~encia.

A posi9ao de xama é, para este povo TG, um dos fatores de-


terminantes na consolida9ao . da chefia do grupQ doméstico - nao se
podendo falar aqui em chefia aldea, no entender de Wagley. E a

relac¡:ao entre ambas as posic;:oes é de imp~icac;:ao mútua: UlJl xama


poderoso, portante um feiticeiro em potencial, procura ter um gru
po doméstico forte, que o proteja (1976:246).
Entre os Tenetehara, onde se registra· urna nítida associa9ao
entre a posic¡:ao de xama e a . de líder de familia extensa (sogro) ,
e onde, há muito, os valores guerreiros sao nao-marcados 7 Wagley
& Galvao, 1961:43, 123 -, parece coexistirem duas formas de dife-
rencia~ao espiritual póstuma, mas também aqui a partir de um -
so
principio pessoal, o -7 • A primeira seria entre os finados
e k UJe de

(7) ~.cit. :110. Os autores nao registram outros tenros para "alma.", etc., ·que
entretanto enmntranns oo dicionário TetDé Tenetehara de Boudin (1978). Suspei
to que o teJ::m:> ekwe seja analisável an "ex-corpo", e que as investigacrres de
Wagley e Galvao nao tenham sido, nessa área, profundas.

634
os seres do devir

morte natural e os de ºmorte feia" - incestuosos ou vítimas (?)

de feiti~aria. As almas dos primgiros iriam para a ''aldeia dos


sobrenaturais", -juntando-se aes criadores e heróis culturais (Tu-
pa, Ma{ra), urn lugar de abundancia e imortalidade (fun~ao-Maf) .Já
as almas dos segundos tornar-se-iam espirites e malignos, associa

dos as aldeias abandonadas e sepulturas - sao os azang


-Añi>, que controlam o crescimento do milho e sao freqüentemente
incorporados e coJn,batidos pelos xamas, juntamente com os espiri-
tes (piwara) de animais mortos, o Senhor da Agua e o da Mata (op.

cit.:110-1). Tanto bs ''bons mortos'' quanto os deuses-her6is -


sao

distantes e neutros; o xamanismo e a cosmología dos Tenetehara ,


sernelhantes nisso aes Wayapi e diversamente dos Araweté, se diri -

ge para o enfrentarnento da Natureza.- aza~g, piwara, Mestres de


Anirnais. Bem, a essa distin~ao entre "boa" e "ma'' morte (com mui-

tos exemplos em outras .partes do mundo - cf. Bloch & Parry, 1982:
15-18) 8 se superpo~ urna outra, laconicamente indicada: apenas os

(8) ~ parece tambán vigorar para os Siriooo: as almas dos lx:rrens "bcns" nao -
reto:rnariarn para assanbrar os vivos, as dos "rnaus" sim (Holnt>erg, 1969:243) •
- .
Holrnberg declara enfaticamente (loc.cit.) que nao existe OUtro Mmcb p)sturro ,
que as idéias sabré a alma ·ga:, "a:nfusas e vagas". ~clona contudo dois tipos
de espíritos da mata, os kuríik.wa (cognato de *Ka.rowcura?) e abaci'l<LJaia, antx:>s'
identifica&:>s cnn os espectros dos nortos (¡:ps .239-40, 242). O autor é tao p~
cx:nceitooso quanto a simples inteligeocia dos Siriooo, que se torna dificil a-
creditar oo que diz, sobre esta área de sua cultura. Já os costumes funerarios
nostrarn aspectos interessantes: após a dea:trposicrao das carnes (o cadáver era
exposto numa plataforma), os parentes oo norte deviarn enterrar seu esqueleto,
de nodo a evitar o surginEnto de urn kurúkwa - exceto o craruo, que era guarda-
00 caro reliquia protetora. Tem-se ~ urna inversao oo d::>sturre Acné, que pr~
creve o esfacel.anento ck> craruo J;ÓS-decx:lrposicrao, de nodo a dispersar a al-
ma-ianve que ali se aloja (Holnt>erg,1969:232-6; P.Clastres,1972:300) . Ver Nirnu
endaju,1978:6, sdJre a norte súbita ou violenta caro má, para os Apapocúva.

635
araweté: os deuses canibais

xarnis tinharn acesso ao "paraíso'' na aldeia de Maira (p.200). Por


f irn, os autores apresentam indicios de que poderia haver uma bi -

burca9ao terra/céu para a pessoa de qualquer morto, ao modo Ara-


weté, mas se apressam a por isso na conta de alguma influencia
crista (loc .cit. ).
O xamanismo Tenetehara envol ve a incorporac;:.a o de espiri tos
animais, de mortos e outros. Apenases xamas que controlavam deter
minados espirites eram capazes de curar as doen~as causadas por
estes espirites, incorporando-os, cantando suas can~oes e extrain
9
do os objetos que· introduziam no corpo do paciente (pps.116-ss.) .

(9)Assirn, a "p::>ssessao" nao inplicava absolutarrente urna sul:mi.ssao do xarna ao


espirito. o sistema de inoorpor~OO.-possessao (que oo ca.so Tenetehara parecía
envolver urna verdade.ira transfo~ oo espíri~anirnal - cf. a descri~ de
Snethlage sobre o "xana-sapo", apud Wagley & Galvao, 196l:U2-3) é relativatle:!!
te raro no xamanisrro sul-arrericaI'X), que opera em geral por videncia, au:lic;:ao ,
e exoor¡x>:ra~. Mas ele é regi-Straó:> para os Akuáwa (os possuidos pelo kax>owa-
1"a devoram pintos vivos), os Asur.inÍ (os xamas encarnarn a Onr;a e o Veacb), tal
vez os Parintintin, os Shipaya; e, fora da área Tupi, para os Yaronarni - Andra
de , 1985; .Mtlller, 1985; Kracke, 1983; Nim.lendaju, 1981; Lizot, 1976:22.

O espirito animal mais poderoso e perigoso, que na época da visi-


ta dos autores-fonte nao era controlado por nenhum xarna, é o do
jaguar. O piwara do jaguar tem o poder de penetrar no carpo de ou
tres animai s, "jaguar izando-os" e tornando-os monstruosos (p. 114).
Essa crenc;:a, que inverte o papel benévolo-útil do espirito do ja-
guar (morto pelo cac;:ador) nos Araweté, evoca de perto os monstros
Mbyá, animais excessivos , cuja nome é seguido do modificador - ja

gua , jaguar. A cada espécie animal dorresponde um destes exempla-

res solitários e monstruosos (Cadogan, 1959:·104). O jaguar, as-


sim , é urna espécie de "animal do animal", limite animal da espiri
tualidade ou vice-versa. Um "xama de jaguar" Tenetehara seria en-

636
os seres do devir

tao urna espécie de super-xama, capaz de incorporar a essencia da

animalidade/alteridade.

o xama Tenetehara, enfim,


., se poderoso, está exposto a acusa

9oes de feiti9aria, como seu· homólogo Tapirapé; é muito raro que

se o mate, contudo, pois se cri que ele se tornará um azang e po-

derá vingar-se (p.125). Ele participa, de qualquer modo, dessa a~

bigüidade intrínseca do papel masculino focal das sociedades TG -

ora o xama, ora o guerreiro: protetor e amea9ador, instrumento de

poder ·e de perdi9ao, vincula9ao com os mortos e as feras, destino

pósttírno especial.

- dos TG do norte, registremos


Para terminarmos esta recensao

que OS dados Parintintin nao permitem urna COr1'.'ela9ao entre desti

no póstumo e condi9ao pessoal. Ao que parece, todos os humanos


'
transformavam-se em añang, espectros terrestres, ao morrer(Krack~

1983:7). No entanto, os xamas (que já nao mais existiam, quando

da pesquisa de W.Kracke) em vida possuiriam mais de um principio

espiritual: além do ra'úv, alma, eram dotados do rupigwára, espé-

cie de dup,l o espiritual do xama (op.cit. :17) que respondia por

sua eficácia. O destino do rupigwára após a morte de seu portador

é desconhecido. No que toca a determina9ao do lugar da chefia al-

dea, já mencionamos (supra:98) a vigencia de urna dupla ideologia

dos fundamentos da lideran9a, conforme Kracke (1978): o chefe co-

mo guerreiro ou como provedor. Seria o caso, talvez, de sugerir -

mos a hipótese de que o aspecto-provedor do chefe estaria associa

do ¡ figura do xama, visto que este er~ um tipo de ''pai espiri

tual'.', cujos sonhos concepcionais introduziam espirites desejosos

de nascer no útero das mulheres. A ambigüidade da posi9ao de che-

fe - ao mesmo tempo um sogro e um pai (1978:34) - poderia ser vin

culada a oposi9ao guerreiro/xama.

637
araweté : os deuses canibais

~ a etnografia dos Guaran! atuais que . mostra a maior elabo-

rac;ao de uma teoría da Pessoa e das almas, ,desenvolvendo ·rnaxirna -

mente a distinc;io entre principios cele~te e terrestre do ser hu-

mano; ali tambérn se enc?ntra a rnais . completa op_erac;ao de. urna ma-

triz triádica, Natureza/Cultura/So.b x-enaturez._a . . E onde, por firn ,


a posic;ao de! xarna conh~ce rnaior destaque e menor amb_igüi_da~e - e

onde a arnbigüidade car.acteriza inequívocamente o estado cultural.

Já f iz largo uso e rnenc;ao dos fatos Gu~X'ani n~ste traba~ho; por

outro lado, há numerosas diferenc;as internas a_cosmo.l,ogia Guarani,

e apenas um ponto de vista "norte-amazonico" permite que eu con-

funda, resumindo, as iSéias Mbyá, Kayová e Ñand_e va ( expos t;as sis-

tema ticamente em Schaden, 1962; para os Ñand~va, ver Nimuendaju ,

1978; os Mbyá, Cadogan, 1959; os Kayová, Meliá, F. & G. Grünberg,

1976).

Os Guaraní di.stinguem, gros.so modo., urna alma de erige~ -e


destino .di vj,,nos,, ligada ao nome pessoa,l e as rezas .ind.i:viduais . ,
a pa_l avr~ e a respirac;.a o I e Uffia alma de destino. terrestre 1 de

conotac;ao .anii:ial, ligad~ ~o temperarnent_o ind~ v~d~al e . a aliment-a-

c;ao, a sombra e ao carpo-cadáver. A primeira. é d9-c1a, e .pronta, e

manifesta a presenc;a . do.s qeuses, a história do cosmos; a segunda

cresce corn ,a pessoa, e encar_n a su.a historicidade. ~ssas distin-

c;oes sao_ em tudo semelhantes a dos d~is -a' o _we Araweté, conquan-

to mais elaboradas: pr:ogressao a So~renatur_eza, regressao a Natu-

reza.

Assim, Schaden diz que o agvú, .linguagem-alrna. Ñandeva, " e~


de · origem .divina, is to é, participa 'da natureza. dos espíri tos· -so-

brenaturais''; sua sede seria o peito; ela é "dada" por Nande"rÚ

(o deus-Pai) e na morte retorna a . ele:

"as re.la~ que a parte divina da alma do defundo mantén can

638
os seres do devit

os carpanheiros sobreviventes sao análogas as que ligain os espi-


rites protetores (yvyrai.djá) aos seus protegidos. Aparea; em so-
·nlx:>s aos rrembros da familia, traz-lhes rezas, .•. , lhes p:>de
entregar crianc;:as ~ deverao nascer ou renascer oo seio da f arní
lia" (1962:.118) •

Ji o a~syguá, o outro princípio pessoal, ''representa o car~

ter animal da pessoa", e sua sedeé a ·regiao bucal: "daquilo que


urna pessoa come, alimenta-se seu atsyguá''; ele se rnanifesta ern
sernelhan9as físicas e cornportamentais do individuo corn o animal
que "encarna"; desenvolve-se a partir de urn quase-nada, na crian-
c;a, crescendo conforme os -excessos cometidos pelo individuo. ~ o
atsyguá que se desprende do carpo, quando este se decornpoe: vaga
i noite, de dia retorna i sepultura. Ele ''só anda nos lugares ern
que o corpo andou corno vivo" - repetic;ao rnecanica;
O ayv~-separado, ayv~-kue· , alma ·celeste , encarna assirn a
Pessoa própria, enqua·r ito o dtsyguá -separado, ·tornado anguer!I (ex-
sornbra), espectro, este "pouco alma" corno expliéava urn Guarani a
Schaden, encarna o Individuo, sua história e sua rnorte (1962:115-
118) .

Nirnue'ndaju, para os Apapokuva-Ñandeva ,· descreve corno o


ayvykué , álma celeste, que se encarna ern urna crianc;a deve ter sua
procedencia divina identificada pelo xarna, e isto fundamenta o no
me pessoal. Associado aos sentirnentos bons e suaves e as comidas
vegetais, ele se opoe ao asgiguá, ''alcia - animal", fonte dos senti-
mentes rnaus ou impetuosos e ao apetite por carne. o .autor observa
que, quando urna pessoa tern o asyiguá de um animal predador, este
predominari integralmente sobre o ayvykué~ Este é o caso dos Kain
gang , inirnigos dos Apapokuva, que eram puros asyiguá felinos - pu
ros jaguares . O jaguar é, assirn, o limite do asyigua: jaguar, ini
migo, alma terrestre. Transformada posturnarnente em anguéry, esta

639
araweté: os deuses canibais

por9ao animal é muito temida, devendo ser morta pelos xamas meno-

res (enquanto ao rezador principal, paié, cabe a identifica9ao da

alma divina e sua recondu9ao ao céu) - 1978:53-67, 139.

A reencarna9ao possível dos ayvykué (Nimuendaju, 1978:65-6)

é assim a forma forte, ou máxima, de presen9a das almas celestes

éntre os ~andeva, e seria devida ao apego da pessoa i vida e aos

parentes queridos. Caracteristicamente, essa "aderencia" é o opo!

to da repeti9ao mecánica e mortal do espectro terrestre: é o re -

nascimento dentro da parentela. As outras parcialidades Guaraní ,

nao parece terern tal cren9a na reencarna9ao. Para os Kayová, a

por9ao-ayvu da pessoa é a encarna9ao dos tavytera, seres celestes


que sao a tranafigura9ao ou correspondente Sobrenatural dos viven

tes (Schaden, 1962:121), e após a marte retorna a origem. A por-

9ao-anguéry só é liberada pelos adultos; como urna. crian9a "nao

percorreu lugares'', ela nao tem história, nem espectro (loc.cit.).

A personologia Kaycvá descrita por Meliá, F. & G.Grünberg (1976 :

248-9) identifica o mesmo dualismo: ñ.e'e, "alma espiritual" epa-

lavra-nome, que vai para o paraíso, e a a, ''alma do carpo'', que

se torna espectro-angue e pode incorporar-se -ero um animal.

Cadogan ll959:cap.XIX) mostra o mesmo dualismo entre os

Mbyá: de um lado a ñe'e, alrna-sopro-palavra de origem divina, de

outro a "alma tel5rica ou imperfeita'1 , resultado da vida das pai-

~ces e dos apetites, o "modo imperfeito de viver" - isto e, a

condi<(ao humana em geral, corno bem evidenciou H.Clastres (1978)

~ esta por9ao da pessoa, que para os Mbyá só parece ter realidade


póstuma (ao contrário do asyiguá Ñanq.eva e do a Kayová) I que se

tornará o angue, espectro assassino responsável pela dispersao


- uma morte 10
dos viventes apos

(10) outro nene para o espectro Mbyá é takykuéri gua (Cacbgan, 1959:104), que

640
os seres do devir

creio rmer anallsar tcf. Dx>ley, 1982:29, "ak11kue") em "o que fica atrás", o
que resta. Isto repete literalmente a idéia Araweté de que os ta'o we "ficam
atrás de n5s" (supra: 502), oo sentido geográfioo e te1poral.

A por~ao animal da Pessoa está associada a um outro concei


to, o de tupichúa, que para os Pai-Kayová de Amambái significaria
••espirito animal", que acompanha o homem, pausado em seu ombro ,
regendo seus apetites: seu outro nome é "lx>ca fantasmal". Para os
Mbyá, tupichúa seria um espirito maligno que, encarnando-se em um
homem culpado de transgressoes as regras sociais, o converte "em
espécie de homem-jaguár, devorador de carne crua" (Cadogan, 1962:
81-2). Este autor registra ainda que o tupichüa seria a "alma da
carne crua", aquilo que, se encarnado na pessoa que consumir a
carne desta forma, a transforma regressivamente (jepotaá) em ja-
guar (1965:7).
Ve-s.e claramente aqui que a fun~ao-jaguar, encarnada nos A-
raweté pelos Ma!, divi~os "comedores de carne crua", e nos Tupi -
n~á pelos próprios humanos qua canibais, encentra-se nos Guara-
ní relegada ao pólo da Natureza, contrapartida ativa da podridao
(espectro terrest+e) e aposto radical do principio pessoal, alma-
-nome-vegetal-cant9-esqueleto-divino. Isto se coaduna com o ethos
radicalmente anti-caníbal dos Guarani atuais, e ao deslocamento '
da problemática qa transcendencia para a via ascética, abolindo
todo excesso. A figura e o valor do guerreiro (c~nibal) desapar!
cem de todo entre os Guarani, e a posi9ao de xama se hipertrofia.
0 xama - OU · melhor, _O . "rezador"/lÍder religioso - . se .constitui no
fundamento da tribo ou agregado aldeao, condutor- das cerimonias '
que reúnem os grupos locais dispersos, a tal ponto que se pode
dizer que uma sociedade Guarani é antes de tudo wna sociedade re-
ligiosa, uni-ficada pelo xama - Nimuendaju, 1978:92-ss.: Schaden,

641
aravieté: os deuses canibais

1962: ·19, 99. O espa90 do politice foi integralmente investido pe


la religiao. Ext rapolando para os Guaraní antigos o que sabemos
sobre os Tupinambá, dir-se-ia que o sogro-guerreiro , "principal"
das enormes malocas e líder dos homens de sua casa na guerra 11 ,de

(11) "Em geral, um grande número de genros favorecía as tentativas feítas nes-
se sentido [de fundar urna nova maloca] por alguns ~fes de familia. Isso era
rruito inp:)rtante para estes, pois os hcrrens atraídos para sua maloca deviam
cxnsti tuir os grupos de guerreiros a ele subordinados. 'Ibdas as fontes . . • sao
un.3nimes em indicar o fato da maloca oonstituir, por isso, um grupo guerreiro'
forterrente solidário" .(Femandes, 1963:72-3). A carpilac;~ de Florestan a res-
peito das regras de f~oo e funcionarrento das aldei~ 'l'llpinambá toma bas -
tante claro aquele principio de subo~ lógica da aldeia ao grupo dcrrésti
oo, que analisei para os Araweté - supra: 287. A p~ da unidade aldea ,
nesse sentido, se fazia nao por urna dialética interna, que cp.isesse-unisse as
unidades datésticas e/ ou grupos oerinaú.ais, mas por urna reI.a<roo can os inimi-
gos.

saparece para dar lugar ªº xama-pai (ñande ru, nosso pai, é o ti-
tulo dos lideres político-religiosos Guarani atuais) - do mesmo
modo e talvez pelo mesmo impulso que fez estes antigos · canibais '
se converterem em ascetás, que buscam superar a condi9ao humana
"por cima", pela Sobrenatureza. Sem aceitarmos necessariamente a
tese de H.Clastres que pee urna contradic¡:ao entre o religioso e o
político como motora do profetismo antigo (mas que dizer das mi-
gra9oes que ainda continuam, ao contrário do que a autora supoe -
1978:85-?) dos Tupi-Guaraní, é f or9a que se reconhe9a urna inver -
sao notável das sociedades TG antigas no que toca a estrutura fun
cional dos Guaraní modernos. Assim, se naquelas o poder político
assentava numa base concreta de con~role sobre as mulheres (fun-
9ao-sogro) e numa simbólica do guerreiro-canibal (Fernandes,1963:
325-ss.), o papel de xama em sua expressao máxima, isto é, como
profeta (car a i) era marcado exatamente por sua exterioridade f!si

642
os seres do devir

ca e social (parentesco} ao grupo tribal - e, como observa H.


Clastres (op.cit.:41-5), o estatuto de chefe é incompatível como
de profeta. Atualmente o que se encontra entre os Guaran! é a fu-
sao desses deis papéis, na figura do chefe religioso - espécie de
rotiniza9ao do carisma, institucionaliza9ao dessa figura aparent~
. 12
mente impossível, o chefe-profeta ; e nada mais resta dos guer -

(12) E será p::>r isso que se verifica o que a autora chama de "deslocanento ser
frido pelo discurso sd>re a Terra san Mal: de agora em diante cabe-lhe urna ftm
crao que náda o destinava a preencher - a de validar a sociedad.e" (1978:108).

reiros da Antiguidade.
Hélene Clastres demonstrou com elegáncia de que forma a cos
mologia Guaraní contemporánea, sobre trazer em si o mesmo desejo'

que movía as soc~edades TG antigas - uma recusa da Sociedade en-

quanto espa90 da imperrnanencia, urna nega~ao da condi~ao humana


'
mortal -, definirá a Cultura corno rneio de ambivaléncia, e onde a

polaridade espiritual da Pessoa exprime essa ambivalencia mesma :

"A cultura é a marca do sd>renatural na terra imperfeita, o sig-


no de urna eleic;ao que f?epara os tanen.s da animalidad.e. • • Mas ao
nesno tenpo a cultura é o que separa os tanen.s dos .i.rrortais,pois
para os Qlarani de hoje a:m::> para os .Tupi de antigamente, a via
da Terra sem Mal é a renúncia a vida social. ( ••. ) Entre esses
deis pól()S, os lxnens oa.ipain ~ posic¡:ao média, que os torna arn-
bivalentes ••• .Possuem, portante, urna dupla natureza • • • . ( •.• )
• • . catpreénde-:se o ·lugar, aparentenente paradoxai, ocupa.00 pela
vida social no pensamento dos Guarani, ao ~ t.enp:> caro sign:>
de sua desgrac¡.:a e signo da sua eleic;ao: define-se cx:m:> a madi.a -
c;ao necessária entre um éq.lém (a natureza, que é i.nediatez) e um
além (o sobrenatural, que é ultrapassagem). Seu ser duplo situa,
desta mane.ira, os lntens_ entre duas negat¡i5es possiveis da socie-
dad.e: a primeira, por assim dizer, para baixo, cx:nsiste en ign:>-
rar as exigencias da vida social, em pretender furtar-se a traca
.•• (ela) resolve no mau sentido a ambigüidade inerente ao hanem,

643
araweté: os deuses canibais

ao situar este últino Ch lado da natur:eza e da animalidade... A


outra consiste, nao em descxmh~ a orden social que define a
oondi9ao humana, mas em ultrapassar esta cx:>ndic;ao, isto é, em l.!
bertar-se da rede das rela~ 1unanas •.•• é a renúncia ~ben '
estar desse mundo, a procura neoessariamente solltária da :irrorta
lidade. (1978:92-95).
11

...
E assim, a urna regressao a Natureza., isto é, submissao a
por9ao terrestre-animal da Pessoa, produzida pela infra~ao das
normas da Cultura (notadamente: uso do fogo de cozinha, reciproci
d a d e a 1 imentar, temperan9a sexual ) 13 , contrapee-se
- - i ca
urna et 1-

{13) O hioo que pede a carpletude ou perfei<;.3o, transcrito ao final oo livro


de H. Clastres <ws. 120-122), sublinha especialmente as "oormas da alirrenta-
crao"' o CCltlfX}rtarrento culinário e social próprio.

deal da ascese, pela abstinencia de carne, continencia sexual,uso


abundante do tabaco, generosidade absoluta, o canto e a dan9a(l978:
97-108) - forma simétrica de transcender a condi9ao humana, isto
é, a cozinha, a sexualidade, a reciprocidade, de modo a, tornando
leve o corpo, sublimar integralmente a carne e alcan9ar a transfi
. .
gura9ao-matura9ao (o aguyje) e a imortaliza9ao-imputrescibilidade
(o kandire}. Como bem observou H. Clastres, trata-se aqui de urna
4upla ética - a simplesmente humana, de respeito .as normas, que
busca evitar a regress¡o anima1, · e a étic~ da salva9ao individuaL
do renunciador que busca superar a condi9ao humano-mortal, progre
dindo a divindade. Ao contrário do verdadeiro renunciante coleti-
vo que era a sociedade nomade dos movimentos proféticos, o moder-
no renunciador Guarani é sempre ind~vidual, e individualista:
". • . as rel ~ can o sagrado 500 setFre pessoais. . . o caráter
individual.ista da rel.igw Guaraní •• ·• .assume aqui a fonna de ne-
cessidade inq?eriosa ••• t a .e ssencia de urna religiao cujo projeto
é a realizac¡2o do tx:nen CCitD deus e que se preterrle reflexao so

644
os seres do devir

brea i.m:>rtalidade. Ora, a ilrortalidade 'SÓ é pensável a:m:> a oon


tra-ordem. • • Ser rrortal ou ser social: duas express0es da mesma'
realidade~ Quer dizer que só é possivel pensar a:m:> nao-necessá-
ria arela~ ccm a nprte na medida mesma en que se pode pensar
cxm:> nao-necessária a sua rela9ao a:m outros" (op.cit.:99-100).

Se o mundo da Natureza era morte, ferocidade e podridao so-


litárias, o mundo ideal da Sobr~natur~za é uma nao menos solitá-
ria perfei<;ao. Nega<;oes simétricas da Sociedade: morte absoluta
.
ou imortalidade, fim de qualquer .
forma de ambivalencia -
do humano,
de sua condi9ao intercalar; o hornero é algo entre dois outros, que
.
os Guaran! poriam como o Jaguar e o Deus-Pai, a besta caníbal e
os senhores das palavras abundantes, a corrup<;ao e a incorruptibi
lidade. A condi<;ao humana é pura potencia, e dessemelhan9a a si:
aqui corno nos Araweté, só Albures seu destino se realiza. A dife-
ren9a significativa entre as filosofías Araweté e Guaran!, entre
tanto, é que a primeira nao procede a urna avalia<;ao moral negati-
va da condi~ao de vivente: que sua concep9ao da Divindade é ela
mesma ambigua; que a Reciprocidade, sobre poder ser contornada na
própria terra, é mecanismo posto a servi90 da alian9a com os deu
ses - os quais portante, em que pese a "extraordinária religiosi-
dade" do~
Guarani, estao bastante mais perto do .hornero que a Divi!!
dade destes últimos 14 ; por fim, enquanto os Guaran! desenvolveram

(14) E assim a Mo-p~ constibltiva da Divindade, sua rela~ can o De-


vir, manifes~se-á nos cantos sagra(bs ·Guaran! de fonna nuito outra que a do
jogo recur~ivo da palavra Al.heia Cbs Araweté. h;¡Ui, os deuses nunca falain: as
ºbelas palavras" do discurso profético sao um solllóquio desesperado. Diz H.
Clastres:
"A bela linguagem nao é a que, dirig~sé aos deuses mais que
aos hc:l1ens {jx>is o. canto Guarani. é una forma: de prece) , apenas
deslocaria as rela~: é urna linguagem sen rel~. • • Nela ,
quem fala é tarcbém, ao mesrro tetp::>, quem esa.ita. E, se interroga,
sabe que nao ha outra resposta além <le sua própria pergunta •••

645
araweté: os deuses canibais

pergunta que nao pede nenhuma resposta • 0u melh:>r I


( • • • ) Una Q

que as belas palavras parecen indicar é que pergunta e resposta•


sao igualnente inp:>ssíveis.
Basta prestar ª~º ros tarpos e
fonnas verbais: a af~ só está oo passado e no futuro; o
presente é serpre o tenpo da nega~ ••• " (1978:114-5).
Na rrúsica oos deuses Araweté, nao é o tenpo (verbal) que marca o deslizatle;!!
to da palavra, mas o regime enunciativo: a afirma~ está .
senpre na boca de ou -
tro; o Eu é senpre a pessoa-objeto. Antl-prece, a nrusica divina é a voz afirma
tlva dos deuses.

urna ética anti-canibal, os Araweté inventaram uma escatologia ca-


nibal - transforma9oes divergentes da sociología canibal dos ve-
lhos Tupinambá.

2. CANIBALISMO TUPI: A IDENTIDADE AO CONTRÁRIO

Pouco sabemos sobre a escatologia e a teoria Tupinambá da


Pessoa. O que é claro é que ambas teciam-se a volta da guerra e
da execu9ao ritual dos cativos, meta, motor e motivo fundamentáis
desta sociedade: "Co~o os Tupinan\bá sao muito belicosos, todos os
seus fundamentos sao como farao guerra · aos seus contrários" - na
frase lapidar de Soares de Soúza, epigrafada por Florestan Fernan-
des. E sabemos também (supra:597-8) que o estomago do inimigo era
o único túmulo digno de um guerreiro Tupinambá;. sem a marte em
maos alheias paralisar-se-ia o mecanismo pendular e interminável

"Et ne pensez pas, que le pr~sonnier s'estonne de ces rx:ruvelles


[que será devorado en breve], ains a ~inion que sa nort est ho-
norable, et qu' i l luy vault beauooup mieux nouriJ:; ainsi, que en
sa maison de quelque nort oontagieuse: car (disent-ils) on ne
se peult venger de la nort, qui offense et tue les tx:mres, mais

646
os seres do devir

on veme bien ceux qui ont esté occis et massacrez en fait de


guerre ...." ('Ihevet, 1953:196 - eu sublinhJ).

A escatología Tupinambá parece ter combinado os vários moti


~

vos que identificamos nas sociedades TG contemporaneas: um princí


pio espiritual único, mas destino diferencial dos mortos conforme
urna "boa" ou "má" morte (na guerra ou ero casa), ou ainda conforme
a condi9ao pessoal do morto (homicida ou nao). ~vreux (1894:25l)a
firma ser este principio o An, quando no corpo, tornado An-guere
após a morte. Léry (1972:195-6), descrevendo os costumes funerá -
ríos (para os que morrem de _doen9a, etc.), aponta o temor da ne-
crofagia dos espiritos-Anhánga · cfun~ao-Jñ;): deixavam-se alimen -
tos junto a sepultura, caso contrário o Anhángua desenterraria e
devoraria o cadáver; e isso era feito até que apodrecesse o corpo.
"Afirmam eles que o nosso corpo é feíto de limo e do pó da terra'
... ; portante fica-lhe sujeito [a terra] até transformar-se em na
tureza espiritual". Já vimos como as almas dos covardes (i.e. nao
- matadores) iam-se com os Anha , e que apenas os guerreiros tinham
acesso · ao mundo dos antepassados, deuses e heróis civilizadores ,
no céu (p . 597). Métra~x (1979:11-2) associa essa cren~a as nume-
rosas prova9oes e obstáculos a serem enfrentados pelas almas em
·..
sua viagem ao paraíso, e observa que as almas femininas dificil -
mente ali entravam, exceto as esposas de . grandes matadores e cani
bais: transforma9ao do tema Araweté de que só as mul heres sao ne-
cessariamente devoradas pelos M~~(ver tambérn Gandavo, 1980:137) .
~ perfeitamente razoável super, portante, que, do ponto de
vista da vitima, a execu9ao e devora9ao caníbal eram opera9oes
que, libertando-a · do apodrecirnento, da necrofagia dos Anha e de
seu próprio destino espectral, transformavam-na em puro espirito,
hornero sem sombra. Mas outra continuidade era também obtida: ainda

647
araweté: os deuses canibais

de seu ponto de vista, sua morte era sua própria vingan9a. "E,
como estes cativos veem · chegada a hora em que hao de padecer, co-
mecrarn a prega_r e dizer grandes louvores de sua pessoa, dizendo
que já estavam vingaios de quem os há de matar •.• " (Soares de Sou-
za, 1971:326). Já estavarn vingados: porque já haviam morto e corni
do muitos dos inimigos, porque seus parentes vivos os vingariarn •
Sua rnorte, presente, juntava o passado e o futuro. Onica forma de
vingar-se da morte, como tao bem observou Thevet. Absoluta cumpli
cidade entre vítimas e executores. Pois, agora do ponto de vista
·-
destes últimos, a morte e devora9ao do inimigo consumavam uma vin
gan9a das mortes sofridas, assegurando ao mesmo tempo o acessodos
jovens i condi9io de homicida, isto é, de Pessoa plena, capaz de
irnortalidade póstuma - vimos que o paraíso é dos bravos. Novarnen-
te passado e futuro. A morte do inimigo era duas vezes vida, duas
vezes nega9io da morte: vingan9a, transfigura9io. · "Exo"-canibali~

mo? Sem ter morto um inimigo um homem nao existía; a execu9ao ri-
tual era a cerimonia de inicia9io masculina, que assirn, alérn de
cancelar uma morte prévia, vingan9a restauradora, criava vida, in
ventava homens. Só um matador podía casar-se e ter filhos, pois
os Tupina.mbá, semelhantes ai a muitos outros pavos, equacionavam'
a fun9ao guerreira e ºmortifera do homem a fun9ao reprodutiva e
vital da mulher. Os ritos da menarca e os do prirneiro homicidio e
rarn identicos; as jovens "cumpriam o mesmo ritual dos carrascos "
(Thevet, 1978:133): escarifica9ao, tatuagem, ;eclusao, abstinen -
cia. Ambos, rnulher e matador, derrarnavam urn sangue vital para o
grupo 15 •

(15) Ver o que diz 5ahlins (1983: 83) : ".. • no sistema global oo sacrificio [nas
ilhas Fiji], nulheres cruas e hcrrens cozioos ten a nesma finalidade • .Aml:x:>s sao
reprodutivos, 'life-giving': a mulher diretanente, a vítima sacrificial cx:rco '
un neio de troca de mana entre hanens e deuses. Eis aqui outra e:xpress00 de

648

os seres do devir

sua equivalencia: urna esposa estéril nao é estraJXJUlada para aa:npanhar a alma
do seu marido ro Além, fonte ances!Xal da reprodu:rao humana e natural; e, qu~
to ao guerreiro defurrlo que nunca matou, nunca trouxe para casa un sacrif ício
hll'l\al'X), ele está condenado a pilar um nonte de excrerrento cx::m sua ma9a de guer
4 -

ra, por toda a eternidade... [Nota: J Trata-se, caro dizem os Maori, de 'o carn
po de batalha can o hanen, o parto can a mulher' • • • Os Azteca agiarn e pens~

varn conforme esta nesma representacrao da reprodu:rao social". Para os Azteca,


ver Duverger: "No rratento do nasclirento, a parteira, alegremente, lanc;ava gri
tos de guerra, 'pois a parturiente acaba de lutar o ban canbate; ela se to~
ra un bravo guerreiro; ela havia feito un cativo, ela havia capturado um be
re'" (1979:93). o dispositivo sacrificial Azteca, apesar de suas numerosas se
me~as can o carplexo Tupinambá, organizava- se conforme outras idéias, re
f erentes a manu~ao do e::¡uilíbrio energétio;> do cosrros (idéias que se reen
contram em diversas cosrrologias sul-americanas - ver Reichel-Dolmatoff, 1973,
. .
1976). A antropofagia era urna prática secundária e derivada (Duverger, 1979:
202) I nao a notiva~ do sacrificio. A equa9ao Azteca: (filho : mulher : : ca
tiv0 : hanem) invertia \.S'l\a outra, cativo = filho de seu captor. O doro de u
ma vítima sacrificial era chamado de "pai" por esta, e nao a:nia de sua carne,
porque isso seria auto-cani..baliSTO (Duverger, q>.cit.:204). Sociedades tao di
ferentes cano a Grécia clássica e os ~gor da Nova Guiné também desenvolvern
estas correl~ entre estados ou atributos fernininos "típicos .. - menst.ruaCj:ao,
parto,· cas~to - e as~ agressivas p~rias do papel masculioo - guerra
ou caya. Cf. Vernant, 1974:38; Huber, 1980:48. Já entre os 'I\lkano, é o x~
nisno masculioo que aparece c:x::m::> o correlato da menstrua<;:ao; e ao contrário
dos Azteca, orrle o parto é um sinulacro da guerra, e dos Tupinarrbá, orrle o ho
micídio é o equivalente "nortífero" da menstrua<;oo, para os 'I\lk.:mo a inicia<;ao
masculina mimetiza o aspecto "life-giving" da menstrua<;ao: os harens re¡:etern
as mulheres, tanarn a seu cargo o parto; oos '1\Jpinarrt>á é a norte do OUtro, nao
o parto do Mesm:>, que inventa a masculinidade (ver S.Hugh~ones, 1979:125, ~
si.m; C.Hugh.Jones, 1979).

O canibalismo Tupinarnbá, como diz H.Clastres (1972:81), "in


sere-se ern um sistema infinitamente complexo", que nao se deixa
reduzir a urna "fun<;ao11 simples. Corno todo rito central de urna cul
tura, corno todo mito ern geral, nao há urn nivel privilegiado de e~

plica~ao para ele; pois ele mesmo i, ern si, ''une mis e en rapp ort
de plusieurs niveaux d'explication" (L.-Strauss, 1973:82; cf . S.

649
araweté: os deuses canibais

Hugh-Jones, 1979:246, sobre o ~ dos Tukano). Ele sera, - assim,


urna figura sobredeterrninada: canibalismo restaurador talvez, que
cancela a "heteronornia" produzida pela morte ~entro da sociedade,
e que resgata a rela9ao do grupo com seu passado; mas também cani
balisrno produtor e instituinte, que irnpulsiona a máquina social
para o futuro, ao criar a espiral da vinganc;a 4 e que produz Pes
soas plenas, adultos-rnatadores-pais; canibalismo funerário enfirn,
onde os inirnigos canibais servern de transubstanciadores do prisi2
neiro, convertendo-o ern "born rnorto" - ern _ser sublimado e memorial,
sem carne que apodrece e espectro que arneac;a, ern ser capaz de ser
vingado, cuja ·r norte faz sentido e cria movirnento. Complexo, so
bretudo, por ser urna figura sacrific.ial, o canibalisrro se pretende
superac;ao in actu dos limites lógicos e fronteiras conce'i tuais qtE

a Cultura mesma se irnpoe.


Nao ternos espac;o aqui para urna recensao do copioso material
prirnário e interpretativo sobx;e a a,ntropofagia Tupi-Guaraní, e em
particular para urna discussao detalhada daquilo que melhor já se
. .
e~creveu sobre ela - a soberba ~onografia que Florestan Fernandes
dedicou a guerra Tupinarnbá enguanto aparelho de captura de vítimas
sacrificiais humanas. Credor do mérito de ter tornado a sério a
quilo que todos os cronistas dfziarn sobr.e. a motiva9ao da guerra
Tupinarnbá - a vinganc;:a de sangue. .,., Florestan irá aplicar sobre
isto a teoría maussiana do sacrificio, e procur~ri
determinar o
16
lugar central dos mortos do grupo no sistema caniba1 •

(16) Ver Carneiro da Cunha & Viveiros de Castro, 1985; em prepara9ao, para ~
. . ·'
.,;.

ma discussao mais sistemática dos tenas abordados a seguir. Alguns desenvolví


mentes ali presentes foram ino:::>rporados as 'páginas abaixo.

Mortos recentes a serem vingados, ou ancestrais .mí tices · a se


rem cornernorados, a execu9io e devora9io _rituais envolviam um ''jo

650
os seres do devir

go de irnagens" e urn processo de substituic;oes ern que o prisionei

ro inirnigo, sobredeterrninado e ''ambivalente" corno é próprio de to


da vítirna sacrificial, aparece corno urn rneio de cornunica~ao entre
l
aqueles e os viventes. A antropofagia ritual, culrninac;ao do pr~

qesso guerreiro, surgiria corno urna conseqÜencia natural do siste

ma do Sacrificio:

"Tudo girava en torno da cx:munhao ooletiva, prarovida pela inges


tao da carne da vítirna, cx:m a entidade sobrenatural beneficiária
do sacrificio ••• O canibalism::> tupinambá tinha urna fW'1'íªº reli
giosa: a de pratover urna m::xlalidade coletiva de a:munhao clireta
e imediata can o sagrado''. (1970: 326, 327) .

Quern comia , em suma, seriam os mortos do grupo (ou a ''enti


dade sobrenatural" , referencia aos espiritas contidos nos maracás,
que incitavarn a guerra caníbal), representados pelo sacrificante
(a sociedade) e encarnados no sacrificador (o executor); e o gue
'
comiam, do inirnigo, era a sua pr6pria (dos mortos do grupo) ''subs
táncia" (p. 325) - eu talvez dissesse sua própria morte . Creio nao
estar me afastando demasiado do raciocinio de Florestan se disser
que o canibalismo forneceria urna espécie de corpo místico as al

mas ou espirites a serem vingados-comemorados. Essencialrnente fu


nerário, portante (mas nao no sentido a que aludí acima), o cani

balismo seria urna recupera9ao-incorpora9ao do morto, ~ inimigo ,


pelo grupo - restaurac;io do ~'Nós coletivo'', recuperac;ao da auton~
mia (pps. 332 , 336 , 339). Para Florestan, assirn, a rela~ao deter
minante e inicial - a distancia a ser preenchida pelo sacrificio '
- era entre os viventes e os mortos do grupo: o que ele chama da
"dialética interna" do sacrificio humano (p . 319). A difer~a fun
dante, a alteridade primeira era essa: a rnorte, o morto, levavam '

consigo ''a verdade da sociedade '' (Bataille , 1973:64), produzindo


urna heteronornia, urna dessernelhanc;a a si:

651
araweté: os deuses canibais

". • • o sacrificio da vi tima f azia parte das cerimónias funerá


rias devidas [~1 parente 1irorto] , e ao invés de ser urna ron.se
qüencia do inperativo da vinganc;a, era sua causa. ( ••• ) ••• o sa
crifício nao era causado pela a9ao dos ini.rnigos, mas ¡:x>r necessi
dade do 'espirito' do parente rrorto ¡:x>r eles. ( ••• ) Sabe-se que
a vi tima nao podia sair do • oosso gnJpO. • ( ••• ) De acorde can
esse sumário exame, aquilo que se poderia interpretar a:m::> sendo
a 'Idéia diretriz' da noc;2o de ving5a dos Tupinambá traduzia,
essencialmente: a intenc;ao de socorrer o 'espirito' de um par:en
te, rrorto en cordi~ que punham em risco a integridade de sua
'pessoa', ou de satisfazer a necessidade de rela9ao sacrificial
do 'espirito' de um antepassado ou ancestral mítico. A 'puni<;ao'
se apresenta, assim, nao c:x::rro a causa da a<;ao sacrificatória:mas
c:x::rro lJlla de suas consa:¡Üéncias lógicas". (1970:318, 139, 320
grifos oo original).

E com isso Florestan produz urna interpreta9ao nao-trivial


do explícito e onipresente motivo da guerra e do canibalismo: a
vingan9a de sangue. -
Ernbora nao o diga com todas as letras, o que
o autor propoe é urna teoría do bode expiatório, da substitui9ao
sacrificial, onde a vitima ao mesmo tempo encarna e aplaca o mor
to - o morto é o Inimigo; é ele que, fazendo pesar sobre os vivos
o imperativo da vingan9a, mantinha estes numa espécie de desassos
sego fundamental 17 •

(17) "Nao se pode negar que, de fato, os textos revelamos Tupi.nambá a:m::> . se -
res rrental.Jrente atormentados ..... (Fernarrles, 1963:303). No final de sua segu.I'!
da obra o autor, estendendo urna generaliza9ao de Lévy-Bruhl, marcará o ºsacri
ficio sangrento" c:x::rro tendo valor expiatório, que seria inposto pelo espirito
do rrorto: " ••• o terror infundido pela vi.nganya dos espirites dos rrortos, senoo
muito maior que o tenor corresporxiente incutido pela expectativa de vingan-;a
¡:x>sterior dos ini.rnigos, é que dá a ving~a 'o caráter de 'obrig~ao essen
cial'" (1970:345). Nenhuna fonte consigna esta arrea9a e autoriza esta conclu
sao, que Florestan ~ de ir buscar na teoría, pois ela é essencial para o fe
ch.amento de seu m:xlelo de sacrificio aos ancestrais. AD postular o "culto dos
rrortos" ocm::> base oo sistana guerreiro, Florestan repete urna fél'OC>Sa teoria de

652
os seres do devir

~teirlnetz, rejeitada por Mauss e Durkh~irn. Steinmetz deriva a pena jurídica


da vingani;a de sangue, e esta pc;>r sua vez do terror aos nortos, base do culto
a estes. Mauss, en urna minuciosa crítica de Steinmetz, irdic.a que os casos de
vingani;a exigida por esp{ritos de fU1CéStrais sao enpiricamente pouco numerosos,
nao fundaOOo a universalidade exigida pela teoria ~ pauta - e que surgen ali
"onde a familia patriare.al está perfeitamente organiz9C}a, eme o ancestral é
deus e age corro tal" (Mauss, 1969:681). Mas istó é justamente o que Florestan
pretende de.nonstrar, pelo exane do sacrificio Tupinambá - o que é una peti~ao
de principio. e.aro se sabe, Ma45s e I;>urkheim senpre distiDJUirarn entre as or!_
gens da pena e as da ving~a, e ambas de qualquer medo de (ou culto a) os m:>_E
tos. A vendetta, \loltada para fora do grupo, teria seu fundamento en um i.npul
so de restaura~ da 5olidariedade "religiosa" do cla, ferida pela norte de um
de seus rnsnbros; a pena jurídica, ao excluir do grupo un de seus membros, deri
va da infra~ao de interdi~ rituais, e visa cancelar urna inpureza, um "tabu"
'cDurkheirn, 1973; Mauss, 1969; ver Verdier, 1980:16). Florestan segue de ~
to a teoría durkhe.i.miana da "ving~a de sangue" - e!roora nao insista na idéia
do. "saD:3Ue" caro ~íntx::>lo do cla -, mas a reifica no "inperativo de vingarv;a"
posto pelo espirito de um norto que é preciso vingar para transfoimar en an~
~al, e assim reenoontra Steinmetz, I.évy,..Bruhl e outros.
Nada há de absurdo na articul~ entre "anoestrali~ao" e sacrificio
humarK>. t o que se passa, por exenplo, .entre os Fataleka.
de Malaita (Guidie -
ri, 1980) •. Mas nada há de ~sário., nem os dados Tupinarrbá autorizam tal
hipótese.
~ interessante, por fim, ob~ar a · seme~a entre a teoria expiató
ria ~ Florestan e a leitura que René Girard (1972:379-85) faz do canibalisrro
Tupi, no cont.extO de sua teoría g~al do Sacrificio - a qual, una espécie de
"batailleanism:>" de di.reita, nuito fez para desacreditar este conceito. o ca
ni.balism:> 'I\Jpi i, para Girard, um exerrplo da figura universal da vítirna enissá
ria, substituto ·Si.ntJÓlico do ·assassinato intra-sOe:ial, o desloe.amento da vio
lencia "númética" para fora: o bode expiatório cc:rro fundamento da Religiao.
Ver as observ~ de Verdier, 1980:13-14, e de Detienne, 1979:35.

A guerra Tupinambá será entao fun~ao do sacrificio humano


(ele é ''o alfa e o Smega da guerra"~ 1970:351); o sacrificio,
por sua vez, i fun~io das necessidades e exigencias do espirito
do morto do grupo; o canibalismo é, em s_uma, um sistema de segu~
...
das exiquias, por inimigo interposto - semelhante, de resto, as

653
araweté: os deuses canibais

--
prá ticas malaias descritas ·por Hertz, em q~e a captura de cabe9as

encerrava o luto e aplacava a alma do morto (1928:6, 20). Em seu

caráter .de ''comunhio . coletiva", o canibalismo nao . seria assim .um

refinamento de crueldade, como . dizi~ Hertz do ex6-canibali~rno, ao

contrastá-lo com o ethos devocional do "repasto sagrado" endo-cani

bal (op.cit.:27), mas urn ato de piedade filial; a morte do · inimi

~o era a imola9ao (p. 210) dé urna vitima - sacrificio, literalm~n


-
te: transferencia de energías (p. 324), recupera9ao d_e essencia vi

tal; sacrificio .-
.ao parente morto tp,332).
.
Note-se de passagem que

~sta ~déia de recupera9io. mistica s~ adequa bem i leitura pslcan~

lítica da "rela9ao oral canibal", forma de recupera9ao do "objeto

perdido'' (o morto; Green, 1972:50) .~ Mas o grande modelo que ori

enta ~ teoria de Florestan é o culto de ancestrais - idealmente,

de agnatas · -, cujo rito · principal é a antropofagia. A guerra Tu

pinambá, "instrumentum religionis.", e urna luta contra a Morte. Sua

func;ao é a de restaurar a a·utonomia · e a coincidencia a si, perdi /

da com a mort~; trata-se portante, ~sse gigantesco dispositivo,

de urna ''máquina de _ su~rirnir o temp?'' ., como se disse do mito e do

rito: o que se devora, entao, é o devir; é ele, disfa~9ado ern mor r-

· te (oa se r~velando corno" Morte), que é 6 I~i~(go.

Ber¡i, , comecemos por perguntar: . até que ponto a guerra cani

bal Tupinambá pode 'ser encaixada no modelo sacrificial de Hubert

& Mauss? Este nao é jamais temperado por- Rlorestan, no curso de

sua demonstra9ao; na verdade, é a guerra que recebe urna "lapida

9io'' sutil. até que se adapte ao escrinio da teoria, para ali bri

lhar sem ja9a. Todas as impurezas sao postas no limbo das "fun

96es derivadas''. O Sagrado .sao os Ancestrais¡ ~ assim o matador

seria urna espécie de . complemento do ·xama: sabemos como o xamanis

mo Tupinambá f uncionava dominantemente corno um preladio ~ guerra

654
-os seres do devir

- pela boca do xarna o~ "espirites'' pediam ''vítimas'', os feito·s


dos antepassados erarn evocados como emula9ao, as dividas de san
gue lembradas -; o matador, entao, no outro extremo da cadeia,
fazia passar para o Sagrado a vitima, oficiando um rito funeririo.
o xama trazia os mortos 'do grupo, o -matador remetia a estes - os i
nimigos sacrificadós. Voila.
Nao se poe em dÚvida que o sistema canibal Tupinambá defina
urna estrutura de tipo "sacrificial" .- Como tal, ele de fato envol
. - 18
ve todo um jogo de identifica9oes e substitui9oes , onde o "lu

(18) A~~ pela difurrlida prática de exumac;ao .de cadáveres inimigos para o
esfacelamento de seu cránio, recurso de desespero na falta de inimigos sobre
quem se vingar e tanar oovo neme (imchieta, 1933:2~6-7), gue sugere c:quela ca
suística de ersatz tipica do sacrificio (lanbren0s· dos oois e pepinos Nuer}, e
que se reencontra entre os Jíva:to: na falta de ~as humanas para serem enc:o
lhidas,· usavam-se cabec;as de pregui9as ·(Harner, 1973:148-9);· os Tupinambá ado
tavam substitutos metonímicos, os Jívaro m=tafórioos. Notar ainda que o tema
Jívaro e Murrlurucu da captura de ~as dá lugar, entre os Tupinarnbá, ao do
esfacelamento do crarüo, o que nos p:Je n~ pista irtpossível de seguir aqui.

gar de morto'' circulava incessantemente no interior


1
da série,
criando urna figura continua onde as posic;oes se fundiam e inter-
--exprimiam: mortos do g.rupo, cativo e matador se espelhavam, de
um modo semelhante aquele que descrevi para. o "cogi to caníbal" A

raweté (supra: 581).


Veremos a seguir alguns -ingulos desse jogo de irnagens.O que
se deve observar aq~i ~que Florestan, ern seu . afi de .demonstrar
que a antropofag.i a Tupi era urna "comunhao corn os ancestrais", pro
cede a algumas re~u9oes e interpola9oes.

* * *

Thevet descre~e um processo de substitui9io efe~uado pela


captura de prisioneiros. Estes erarn cedidos a viúva de urn morto

655
araweté : os deuses canibais

na guerra, como compensa~ao, ati odia de sua marte (1953:194).

Havia ainda um .ritual de "renova~io da sepultura" e de lustr~9io

dos bens do morto; o cativo renovava· o túmulo · ant,.es de ser intro

duzido na aldeia; em seguida, na casa qo finado, eram-lhe entre

gues os objetos pessoais daquele, -para que os usasse. As armas,

antes de serern passadas aos parentes, eram lqvaqas pelo prisionei

ro, para as livrar da ''corrup9io''. Thevet aproxima estas oper~

95es de um sacrificio: o cativo agia ''como se ele fosse urna viti


19
ma que devesse ser irnolada a. sua Ido rnorto] mempria" (1953:'193) •

(19) Fica inplícito neste trecho que mesmo as rrortes r..aturais deviam ser vinga
das (os rrortos em terreiro e devorados nao fXXli.am, óbviarrente, ter . túmulo} •
Urna passagem ambigua das CPJB,1:307 parece sugerir a mesma coisa.

O cativo, assim, nio s6 tomari~ o lugar e os objetos do mor

.. que obturando o vazio que ele deixara,. mas seria urna


to, como p~

9a essencial de um ciclo funerário, ·e de ou tro, ma tr imoriial: rep·~

nha em :circula9ao os objetos do rnorto, era "casado" corn sua vi'úva,

e depois sua execu9a'o capaci tava 'o vingador a sucessa.'o leviral

(1953:105-106, 194).

~ essencialme~te a partir d~ste texto que Florestan tecerá


..
; ·
sua teoría. A execu9ao de ~~a ~itirna era éxigida pelo espirito

do morto, e este rito d~ segundas exiquias o situaría no lugar de

ancestral 1 aplacando sua sede de - vingan9a e lhe res ti tuindo a "S\IDS

tincia" perdida. O espirito do morto infundiría certas ''qualid!

des" suas na vítima, que seria entao ao mesmo tempo sua encarna

9ao· e meio de apaziguamento~ A devora9ao devolvería ao grupo a~

''energias'' perdidas na pessoa do parente morto.

Ora, Florestan superestima, senao inventa, mediante urna co

lagem de fontes onde a solda do desejo teórico é rnaior que as par

tes documentaís, a importancia dos mortos do grupo como recipien


. -

656
os seres do devir

dários individualizados do sacrificio. Os dados a respeito da

interveniencia efetiva de espíritos de mortos individuais no sis

tema sao vagos, senao nulos; o mesmo se diga de qualquer rela9ao


entre o matador e o morto a ser vingado (para Florestan, o mata
dor encarnava o espirito do ancestral). Conquanto seja provável

que o xamanismo Tupinambá tenha envolvido urna comunica9ao com al


mas dos mortos ou ancestrais míticos, ern nenhuma fonte encentra

mos registro de "imperativos de ving:a n9a" postos por espíritos de


-
mortos, via o xama. O "desejo de comer carne humana'' que Staden

atribuí aos espirites infundidos nos chocalhos de cadA homem(l974:

174), após urna complexa opera9ao de transfusao xamanística que

preludiava a guerra(atestada por vários outros cronistas), é tudo

o· que sabemos: é muito pouco certo que se tratassem de espíritos

de mortos humanos individualizados. Nada sugere que o prirnus rnQ

vens da guerra Tupi fosse localizado na esfera da ''Religiao" nes

te sen t l..d o 20 .

(20) O próprio 1hevet distintue claramente o espirito "Houiousira", que seria


a fonte dos poderes proféticos dos xamas - usados para a condu9ao das· expedí
~s guerreiras - , das al..nas cbs rrortos, "Cherepicouare", sobre cujo estqdo
no Além os xamas inforinavam os viventes . Nao menciona, nem dese jos canibais
dos espíritos (caro Staden), nem iltperativos de vingarn;:a dos rrortos (1953: 76-8,
82-4, 117-8) . I.embrerros que os rnaracás de cada hanem, ao serem i nfundidos can
espíritos pelo xama, eram chamados de "querido fiTho" por seus denos - e -
nao
de "ancestral " ou algo assim .•• (Staden,1974:174).

Em segundo lugar, a vingan9a nao parece ter se exercido ja

mais na base de urna reciprocidade simples, em jogo "soma zero" de

morte por morte. A retalia9ao ·vicária e "por atacado", a evoca

9ao global de "mortos" que deviam ser vingados - tudo isso era o
modo usual de condu9ao da guerra e de manifesta9ao do impulso da

vingan9a. O que havia a vingar era , a bem dizer, o pas sado, vi

657
araweté: os deuses canibais

sando o futuro. ·A substitui9ao de um morto · por ~ cativo, bem e~

rno a vingarn~a individualizada, pareC~f!l _ ter sido antes casos partí


9 ulares que regra. O canibalismo, enquanto forma de socializa9ao

máxima da vinganc;a - incluindo no camp? da· "rev i ndi ta carpulsória"


(Fernandes 1963:123) as centenas de pessoas que corniam da carne
do cativo -, indica a mesma dispersao da vingan9a do lado dos vi
ventes; quem se vingava, quem era vingado, sobre . quem ~e exercia
21
a vingan9a - tudo isto remetía ao elemento da generalidade .

(21) Ver carneiro da CUnha & Viveiros de castro, 1985. AD canentar a leitura
que Mauss faz de Steinmetz, Durkheim (1969: 126-30) manifesta urna inusitada
perplexidade quanto ao bem-fundado das idéias de seu sobrinho, que eram ali,
aliás I identicas as suas .(as d 'A Divi sao do Trabalho Social) . A lÓgica da re
para9ao-restaura9ao do corpo social pela vinganr~. parece-lhe deixar escapar
qualquer coisa. Justifica esta dúvida evocando os casos em que urna norte exi
ge urna víti.JM expiatória do prÓprio grup:? {o que seria, no horizonte etnJgráfi
co em que JX>s novenos, um pouco o caso dos Aché - P·.Clastresr 1972:254-269). E
concluí que todas as teorías scbre a pena e a vingan9a nos pSem diante de
"phénomenes tres carplexes dont les sentiments tres
sinples, qu 'atteint la conscience irnnédiate, ne
sauraient rendre <XXtpte ... " (p.130)
O que é, mesno que pela negativa, urna bela defini~o ·ao que se passa IX> caniba
lisrro Tupinarrbá, onde a "sinplicidade " do ódio áos inimigos servia de signifi
cante a operac;Oes bern rnais carplexas que a restaura9ao da integridade do "Nós "
coletivo ou a satisfa9ao de "necessido.des sacrificiais" da um ancestral.

~ preciso lembrar, s obre t~d o , que sempre havia alguém a vin


g ar, mesmo os mortos em casa, os parentes distantes, os parentes

dos aliados, os afins, etc. E semp re havia alguém que precisava

vingar: alguém a querer ganhar norne,. inic~ar-s e como adulto sobre


a cabe9a dos contrários. Para pode~ caracterizar a execu9ao ri

tual como sacrificio funerário, expiatório-propiciatório, Flores


tan precisou minimizar o valor produtivo, positivo da execu9Go ri
tual, e sugerir que es se aspecto reme tia a urna "func;:ao ii.eri vada do

658
os seres do devir

sacrificio humano" - precisou subordinar a fun9ao prospectiva a'

fun9ao retrospectiva, a p~odu9ao a recupera9ao, o futuro ªº passa


do; o pre90 da inven9io .de u~ culto funcionalista dos ancestrais
foi essa redu9ao da vin9an9a ~ um mecanismo de cornpensa9ao místi
ca, de homeostase do Imaginário:
"Os referidos efeitos do massacre da prineira víti
ma devem ser carpreerrlidos caro 'f~ao derivada'
so sacrificio humano ••• ( ••• ) ••• ~ possível dis
<.
ti~r duas conexé5es sociais específicas do sacri
ficio humano: a de objetiva9ao do carisma por inter
médio do sacrificio da pri.Reira vítiina e a de CXJti
dianiz.ac;:3o oo carisma por meio de sacrificios ulte
riore5. J:X> ponto de vista da f~ao social do sa
crifício hurna.rx:> na sociedade tupinarnbá, arrt>as repre
sentam 'f~ derivadas', pois a ·f~ao pri.rnária,
a qual se prerrliam as duas formas de rotini749ao
.
do
carisma (sacrificio e xamaiiisrro) é de natureza re
ligiosa". (1970: 201, 215)".

,_
Ora, já vimos corno a. execu9io t::i tual era condi9io sine qua
.non .de
- "
.aces·s o . ao ·estatuto
.. "'
~
de homem adulto, c~paz de procriar, e
corno a guerr·a e · o canibalismo criavam urna condf~ao pessoal ( "reli
giosa") ideal: sq os bravos sao dotados de alma imortal. A acurnu
la9io de nornes, fun9io direta da morte de inimigos, era "a maior
honra" Tupinambá (Staden, 1974:172); matava-se assirn por vingan9a
mas também para ganhar nome • . Se o prirneiro motivo sugere urna "re
cupera9ao" e urna CC?mplementariedade, o segundo é · aberto, curnulati
vo, suplementar (supra! 388) .• Matavam-se e se corniam quantos se
podia - vingan9a antecipada? Seja; mas também predacio positiva
(Bloch &· Parry, 1982:8), acumula~ao~

"De tooas as honras e gostos da vida, nenhum é tama


nho para este gentio o::m:> .1!'3tar e tonar rones nas
cabe:;as de seus CXJntrários, nem entre eles há fe~
tas que cheguem as que f azem ria norte dos que matio
can grarxles oerini>nias .•. " (cardim, ·1977:113).

659
arawet': os deuses canibais

Matavam-se e se comiam mulheres, crian9as; se um prisionei


ro adoecia, dizia-se: "queremos matá-lo, antes que. morra" (Staden,
1974:120); desenterravam-se os inimigos para, p~rtindo-lhes o era
nio, tomar nome; A condi~ao pessoal da -vítima era irrelevante:
"para matar um menino de cinco annos vao tao enfeitados como P.e
ra matar um .gigante" (Cardim, op.cit.: 118) 22 • Sem inimigo nao

(22) ~ significativo, entretanto, que os bons cant.ores ou músicos gozassem de


imunidade ou fossem perdoados (5oares de Souza, 1971:316; cardim 1978:111; J.
lt>nteiro in HC.JB,VIII:415). Isto rX>.S traz de volta ao cx:crplexo da oralidade e
a oposi~ canto/canibalism:>. H.Clastres (1978:41-ss) interpreta estas pass~
gens cx:uo se referindo aos caraís, os "profetas", exclusivamente, conforme sua
teoría da "extra-territorialidade" destas figuras. Ist.o nos parece for9ado:
era a questao da excelencia vemo-musical que ~tava em jogo (cf. o destaque
dos chamados ºsenhores da fala", os~ hábeis no discursar), e era ela que
fundava urna imunidade a .devora~. S~s~ o que fizerem os jesuitas can esse
"pendor" Tupinanbá para a música, que nao pode se~ post.o ccm:> sinples testenu
nho da alma bárbara, infantil, danesticada pelo canto, etc., mas que deve sim
ser interrogado em sua significac;ao oosnológica. caro observa can agudeza Já
cx:me 1-bnteiro: "Assi que a 2~ bem-aventuranxa destes é serem cantores, que a
prime.ira é ~rem matadores" (HCJB,VIII:415). E tais "bem-aventur_ancras" estao,
evidenterrente, correlacionadas; se a prineira foi obstáculo a cate::iuese, a se
gurrla foi poderosa arma estratégica: de urna fonna .ou de outra, os Tupinambá ~
. -
cabavam e acabaram setpre m:>rrendo pela boca, de .seus i~gos ou dos ·padres.

há a pessoa, feixe de nornes, corpo laboriosamente coberto de inci


soes comemorativas, rosto ornado de pedrarias que legitirnavam a
fala, alma imortal. Sem mortos alheios nao há, literalmente, vi
vos. Nao parece possível, em suma, privilegiar a func;ao recupera
tiva do sistema canibal face a ·sua fun9ao cr~ativa e dinamica.

O valor do prisioneiro como fonte de nomes ilumina urna a s so


ci•~~o pouco comentada, talvez devido ao caráter mais espetacular
de sua qualifica9ao como um "afim". Antes de ser um cunhado (p.e

660
os seres do devir

radoxal), o i nimigo era urna ave ra~a. Tio logo entravam amarra

dos na aldeia, os cativos eram recebidos pelas mulhere s , numa ce

rimonia que invertia a sauda9ao lacrimosa· com que elas recebiam vi

sitantes amigos - e na qua! se choravam as agruras pass~das. Para

bs cativos, seu destino de ''f utura comida'.' (Staden 1974:87) era

graficamente lembrado, e sua devora~ao antec ipada cbm ~legria


23
feroz; eram cobertos de pancadas e insultos pelas rnulheres . As

(23) Que a:>m isso tanbém tanavarn oovos nones (J.t-bnteiro in HCJB,VIII:411). A
recepcrao dos cativos constrastava igualmente can a acolhida fe.minina dos j~
v~ que haviam norto um ini.migo ·pela prirceira vez na guerra: entao, as mulhe
res proferiam, an meio a louvores, os rones que o ra.paz tanara (J .t-bnteiro, i
dern: 410).

sim que eram conduzidos as suas rede s , porém, cessavarn os agraves

(Gandavo, 1980:136). Os cativos eram bem tratados: davam-se-lhes

mulheres, desfrutavam de urna liberdade semi-vigiada, e eram ali

mentados por seus "donas" - o captor ou aquele a quem forarn cedi

dos - , a té que f os se chegáda a sua hora (coi sa que podía dercorar a

nos).

Entrementes, erarn tratados como animais de estima~ao, como

"xerimbabos" - termo com que jocosamente se os chamava (Staden,

1974:84). Esse simbolismo · é es tratégico par a se entender a lógi

ca do cativeiro. Ele nos alerta para o fato de que, desde a s ua

entrada na aldeia, o inimigo ficava subordinado a esfera feminina.

Traz ia-se-o para lá, aliás, sob este pretexto: Staden é poupado e

levado para a aldeia "a fim de que suas mulheres tamb ém me vissan"

(1974:82). Recebido pelas mulheres, ligado ao grupo por urna mu

lher que tanto o servia como o vigiava, preparado para a cerimo

nia da morte pelas mulheres, e le era, depois que morto por um ho

mem, devorado por todos - mas preferencialmente pelas mulheres, a

crermos nas f arnosas desc ri9oes da voracidade caníbal das velhas

661
araweté: os deuses canibais

(Léry 1972:150-151), em urn ritual onde elas hav~am contri·buído


com aspectos essenciais, a bebida e a lou9a.
Os animais de estima9ao favoritos dos Tupi eram (e sa0} · as
aves belamente coloridas, cuja plumiria fornecia a ornamenta9ao
para os ritos de. execu9ao. Os cantos que antecediam a morte do
cativo o comparavam a .· um papagaio: "se tu foras papagaio, voando
nos fugiras" ·, diziarn as· rnulheres, e ainda: · "nós somos aquelas que
fazemos estirar o pesco90 ao pássaro" (Cardim, 1978:1Í6) 24 • Se

(24) Já o exécutor arrernedava urna ave .de rapina, em sua aproxima9ao a vítima
(Cardiro, p.117). 'lhevet descreve a ~luma900 do cativo e a chuva de penas de
papagaio a:rn que as mulheres o oobriam em sua entrada na aldeia, "cx::m:> sigoc>
de sua nnrte" (1953: 193-4).

lan9armos mio dos paralelos contemporineps, veremos que as aves


de estirna9ao - papagaios e araras em particular - sao de propried~

de feminina. Mesmo que sua piumária vá enfeitar .os homens, elas


sao criadas e alimentadas pelas mulher~s.

Caberia assl.m perguntar qual o homólogo das pena's de


..
pass~
.

ro que o cativo forneceria. A resposta parece simples: nomes; em

primeiro lugar a seu executor, e subsidiariamente a várias pe~

soas - os que o haviam capturado, os que o recapturavam nurna ence


na9ao de fuga prévia a execu9ao, as mulheres que o recebiam; as
esposas dos executores. E, se a guerra e a morte in situ talvez
possam ser aproximadas (metaforicamente) da ca~a, o que é verossí
mil se nos socorremos novamente dos paralelos contemporaneos, en
t ·a o o aprisionamento de inimigos correspondería ao -cativeiro das
aves ornamentais. O inimigo iria adornar seu matador assim como
as penas das a~es a que era assimi ~ 25 •
. ' 1 a~o

(25} O Pe. Antonio Blázquez regoz1Ja-se C'Cll\ os sinais de cristianiza9ao de al


guns Tupi da Bahía: '"Vendieron también todo el plumaje que tenían para se vis
tir ellos y sus mujeres, lo qual aver hecho es muy cierta señal del Spíritu San

662

os seres do devir

to aver tocado sus cor~nes. Porque estas plumas~ que ellos tienen, son las
rrejores alhajas que; ellos tienen y dellas usavan quando ma.tavan sus contrários
y los canían ... " (CPJB,III:l 37) . Staden é conciso: "Seus tesauros sao penas
de pássaros".

Note~se, entretanto, que as aves de estima9ao nao eram cría

das para serem comidas, ao passo que os prisioneiros sim .Mais que

uro papaga ~o , o cativo era urna esp~cie de ''jaboti com plumas'',cri!

do por seus adornos (nomes que forneceria) e por sua carne; sua

pessoa sof ría urna apropria9ao diferencial conforme os sexos . As

mulh eres também podiam tomar nomes sobre ele , como vimos, e até

mesmo matá-lo quando furiosas - mesmo.· ai, porém, preci savam cha

mar um homern para quebrar o cranio do cadáv€r (Anchieta,1933 :203)

-; e, por sua vez, os homens tarnbém comiam a carne do inimigo.Mas

o "renome" das mulheres era claramente subsidiário a a<;ao masculi

na; . já o repasto caníbal era dominado por elas ; e+a, de certo mo

do, a forma po~ excelencia de sua participa9ao no sistema da vin

gan9 a . A gula das velhas talvez seja bem mais que o estereótipo

que ali se quis ver (Bucher, 19 77) . O valor ''nominal'' d o prisio

neiro, digamos assim, era por9ao sua atribuida principalmente ao

matador;
.
seu valor ''substancial'',
. . a carne , parece ter cabido
'
an

tes as mulheres. o cranio e os nomes, entao , aos homens, que CaE

turavam os inimigos;. o corpo as mulhere s , que os "criavam", como

a bichos de estirna9ao .

Os Tupinambá parecem ter desenvolvido urna técnica de "domes

tica9ao" dos inimigos que atingiria o requinte de urna autentica

husbandry - pois o cativo produzia filhos corn a mulher cedida, os

quais seriam mortos e sobre eles novos nemes tornados . A prática

de se entregarem mulheres aos cativos, o que era sempre cons ide

rada "grande honra" para elas e .seus parentes, ter ia ~nt ao tal ob

je t i vo: "na noi te em que 1 os prisioneiros 1 chegarn lh.e dao por mu

663
araweté: os deuses can ibais

lher urna f ilha daquele que o tomou, ou urna das parentas mais che

gadas; e a causa é pola honra que daquele casamento lhe nasce,pof

que tendo f ilhos do tapuia, nele hao de tomar os mesmos no.mes e


com a mesma sólenidade que no pai" (J.Monteiro, in HCJB,VIII:411)
26 Explica9ao parcial, insuficiente para cobrir todas as fun9oes

(26) o costume de se mataresn e caneran os filhos dos cativos oom mulheres do


grupo era causa de escandalo para os eurq:>eus: as maes · ~ os avós rresiros ¡:x:xliam
a:>rOO-los (Soares de Souza, 1971:325). 'Ihevet dá caro razao a teoria patrilate
ral da concep;ao: filhos de inilnigos eram ini..migos; matá-los era necessário
"para que nao viran ini.nú.gos" (1953:1349-40). caro se depreende disto tudo, a
articulac¡:ao da guerra Tupinambá can a honra passava por a:>nex0es de idéias bas
tante diversas da acepcrao mediterranea do conceito.

des ta cessao de mulher"es aos inimigo's; mas ela permite entrever

temas inequívocamente indígenas.


Este ''cas~mento" do prisioneiro, problema f~moso, deve en

tao ser reinserido em um sistema de múltiplas finalidades. Ele pa

r~ce estar associado, antes de mais nada, a ligac¡:ao do cativo com

o dominio da feminilidade. Pois o caso era tanto o da entrega de

urna mulher do g~upo ao cativo, para s~rvi-lo, quanto o da entrega

do cativo a urna mulher, para guardá-lo. Por isso, está em jogo

tanto urna relac¡:ao entre homens de grupos inimigos (onde o · cativo

é termo, e a mulher cedida relac¡:ao), quanto urna relac¡:ao entre os


homens e as mulheres do grupo, através dos cativos ~ que passam

entao a ser "relac¡:ao", valor: urna posi9ao, essa de "signo", que

ern condi9oes usuais ocupada pelas rnulheres. Afirn talvez,terrno;

mas sobretudo rela9ao: ''anti-''afim, o cativo ~ figur~ que materia


.
l iza . comp 1 exo d as ca t egorias
um rearranJO . . 27
cu lt urais
t
(27) Vale insistir sobre a posi9ao marcada das mulheres na antropofagia Tupi,
e sobre o registro "feI'ni.nino" do cativo. Tais aspectos se erquadram nas obser
va~ de Lévi-Strauss sobre o lugar das rnulheres nos sistemas can.ibais (1984:
141-9).

664
os seres do devir

* * *

Mas· nisto tudo, e o canibalismo? Honras, nomes, ving~rn;:a, nada dis

so i suficiente par& dar con~a desta forma. singular de se trata


rem os inimigos. Por que se corniarn os "animais de estima9ao''? Flo
restan, cr iticarrlo as hipóteses que pr<?punham urna "incorpora9ao das
virtudes'' do inirnigo por via oral, apropriando-se de seu ''mana",

desenvolve explicac;6es mGltiplas - destruic;ao defensiva do supo!


te corporal da alma da vítíma, recupera9ao da "substancia" (as as

pas sao dele) do morto a ser vingado -, para terminar fundindo-as


--·
na idéia da "comunhi6 com a entidade sobrenattlral'' que se duplic!
i

va de urna "superioridade mágica" sobre os inimigos, alcan9ada pe

la devorac;ao: isto explicava porque a cornunidade precisava associ


ar-se a tríade cativo-rnatador-espíri to, carendo a carne do primeiro:

"O problema central, aquí, oonsiste em saber porque a ooletivida


de se associava ao processo de recupera9ao mística. ( ..• ) tal as
sociac;ao seria dispensável, oo que concerne a situa9ao da entida
de sobrenatural. Tanan:lo-se por base os resultados da análise
reoonstrutiva, inp)e-se lag:> urna resposta: é que a coletividade
precisava p0r-se em seguran;:a oontra o 'espirito' da víti.ma. Po
rém, é possível que este fator fosse antes resultante que causal,
isto é, efeito da antrq:ofagia cerinonial combinada aos ritos
de purif icac;ao [do matador:] . Nesse caso, o que se a chava atrás
da referida associa9ao? Parece que a necessidade de rerrover ou
inverter o estado de heteronania mágica, criado pela rrorte de
um parente em oondic;Oes que exigiam a rela9ao sacrificial. A co
letividade se assot:iava ao processo de recupera9ao mística, :pJr
que o que ele signif:icava para a entidade sobrenatural, signifi
cava tambérn para o grupo. Se aquela recuperasse a sua integrida
de, a coletividade recuperaría a sua. Por isso a rela9ao sacri
ficial,caro fonna de vingan9a,estaria inccrnpleta sem a antrcpofa
gia. A ooletividade precisava participar do processo de recupera
9ao nústica, porque scm:mte esta participac;ao poderia assegurar-
-lhe autorania mágica diante d~ determinado gru:pJ hostil e pr~
pqrcionar-lhe um danínio mágioo efetivo sobre ele. O paren te

665
araw_eté: os deuses canibais

rrorto, cuja integridade fora restabelecida em conseqüencia da re


cuperac;:ao mística, voltava a fazer parte do 'oosso grupo', o::xro
rrsrbro potencial da sociedade dos ancestrais míticos e dos ante
passados; a unidade mística do 1
nosso 'grupo 1 se reC'Olpuñha' ªº
m:srro terrp:::> que a do grupo hostil se quebrava. A antropofagia ,
reconduzindo os
.
devoradores
. ao estado' de autorxxnia mágica, .confe ~ -
ria-lhes danínio ou poder mágico sobre a ooletividade inimiga .
' -
Esta n:::iva interpretat;ao do caníbalisrro tupinambá... (1970:
327; cf.tb. p. 342).

Este parágrafo sintetiza a teoría de Florestan. Malgrado o

que quer demonstrar, o que aí fica claro é que o sistema . Tupin am

bá se caracterizava por um desequilibrio perpétuo, onde a "autono

mia" ·de uns só podía ser obtida as custas da "heteronomia ti dos ou

tros. E que, portanto, ~ idéia mais geral de Florestan 7 a de que

a guerra garantía a eunomia e o equilibrio sociais amea9ados pela


'
morte, a qual dissimilava a Sociedade e lhe confrontava com o de

vir ,· deve ser abandonada~ Pois o ' que acontece é que a Sociedad e

Tupinambá incluía os ~nimigos, ela nao ' existia fora da rela9ao com

o Ou tro - heteronomia generalizada·, dialética "externa" do sacri

fício humano, necess idade de mortos alhei~s e de morte em -


maos a

lheias. A no9ao de restaura9 ao da identidade grupal via vingan9a,

a idéia de urna " au tonomía" só fazem sentido dentro de urna perspe~

tiva que confunde o local e o global; que~ adotando a fenomenolo

gia nativa, confunde a ótica de cada grupo local, tribo,aldeia ou

parentela (as unidades de vingan~a), com a estrutura social gl~

bal, e esta nao tem nem suje i to nem centro, constituindo-se como
. '

rela9ao-ao-inimigo e corno puro devir: a vingan9a interminável é o

fundame nto da Sociedade. Duplament~ in-termihável: nao tem termo,

e nao se deixa prender por seus ' termos.

A sociedade Tupinambá, e nquanto unidade empír i co-fe nomenoló

gica - aldeia, gr u po de aldeia s , "tribo" -, é urna coisa ~~~~~~~~


amorfa.

666
··· · os seres do devir

Estav~m aus~ntes quaisquer segmentaq6es internas, linhageir~s,et~

rias., rituais; nenhum artifí.cio "dic;tlético" contrapunha-unia . par


tes de urna totalidade anteposta como Principio~ para recons~i~uí-
\
~la entao como sist.e ma d~ di~eren<;as. As casas-grandes ou malo

cas, uni4ades . elernentares da sociedade, jµst~punharn-se rnetonimica

mente, ¡ revelia de qualquer . in~t~ncia englobante. Toda essa von


tade de indiferen9a . interna, que aparecia aos cronistas como aqu~

la urbanidade definidora da vida entre paren tes, dentro da ald.e ia,


.
se compensava pela proje9ao radical das di~eren9as· ''para fara",

pela transforrna9ao de toda alteridade ern ódio. E no entanto, es


tes Outros retornavam, indispensáveis, unificadores dos grupos lo
>
cais moleculares (''nao há festas que cheguem is que fazem na mor

te dos que matao ..• "), e estas diferen9as encontravam seu regirne
em urna troca de mortos, ern vez de urna troca de esposas. A execu

9ao cerimonial do inirnigo fundava, a um só tempo, a sempre lábil


' .
. -28
unidade aldea , e rnantinha a máquina global das dif eren9as ope

(28) Raretó cqu.i ao bélo ensaio de P.Huber (1980). robre o ritual de ca9a aos
porcos .ent.re os Anggor, sociedade melanésia, "flexível." e 11
frouxarrente estrutu
rada" o:::rro se disse .de . tantas_ da regiao e éiaqui. Diz Huber que é preciso ver
corro "a sociedade pode ser concebida corro furu;ao de um certo tipo de evento.
A sociedade Anggor "é, si.nplesmente, urna furu;:ao da ca9a aos parcos" (p.45). Urn
evento cria o soci~l, q\le nao existe cano Substancia anteposta. E exatanente
isto para o caso do ritual ant.ropofágico e a "Sociedade" Tupinarnbá.

+ando. Simpiose fúnebre, alian9a as avessas (por isso o cativo é


um "an_ti-afim"), movimento perpétuo; revezamento indefinido de pon
tos de vista: ·se a verdadeira Sociedade implica essencialmente a

posi~ao de Inimigo, esta posi9io se determina como fundante, re

versíve1 e generalizada, criadora de urna topologia sui generis,i_!2


capaz de ser reduzida a urna dialética interior/exte~ior de tipo
·. :eométrico, · cristalino e digital.. .t:-se sempre, e antes, o inimigo

667
araweté: os deuses canibais

de alguém, e é isso que define o Eu: . identidade aos contrários, i

dentidade ao contrário. A simbólica de transforma9ao do cativo em

''cunhado" talvez manifeste ista, esta paradoxal ''exterioridáde in

terna" do inirnigo. Suprema honra ceder um'a irrna ao iriimigo, supre

rna honra matá-lo, suprema honra morrer por maos inimigas: é que o

dual matador-cativo encarna as duas fases da Pessoa Tupinambá, li

gado por urna inimizade vital, feíta de tempo e de morte.

Mas cheguemos ao canibalismo. Vimos que Florestan o explica

em termos de co-participa9ao sacrificial, que visa urna autonomía

e urna superioridade ''mágicas" diante do inimigo. Mas a antiga hi

pótese sobre urna ~incorpora9io das qualidades" dos inimigos, que


-
Métraux urna vez aventou (1979:82; e depois afastou, 1967:69), nao

é de todo absurda. H.Clastres já notava que ela seria con~orme as

analogías alimentares Tupinambá, que interditavam aos jovens car

nes de anirnais lentos, prescreviam aos futuros xamis urna dieta de


;/

pássaros canoros e águas de cascata (1972:82). De fato,"eles tim

para si que as naturezas e condi~5es daguilo gue cornero se muda n~

les" (HCJB,VIII:419). Bem, se afastarrnos a idéia - que remonta a

Montaigne, e que Florestan retornou em nivel "abstrato" - de um en

do-canibalismo por estomago inirnigo interposto (comernos quem co

rneu nossos parentes, logo •.• ) por pouco verossímil, entao há que

perguntar o gue, que gualidades sao incorporadas pela devora9ao.

O costume de ~e devorarem rnulheres, crian9as, quern se pude!

se, p5e de lado qualquer inten9io de incorpora9ao de ''for9as''. Se

e melhor cativo era um hornero adulto, e matadór, os Tupinambá abs~

lutamente nao rejeitavam o que lhes caísse a -


mao. Ora, tudo o
que as vítimas tinham em comum - sua "natureza e condi9ao" - era

o serem inimigas. Ponharnos entao a hipótese de que o que se co

mia era essa condiiao; a qualidade incorporada era assim urna posi

668
os seres do devir

~io, nio urna ·substincia - nio era matéria, mas relaxio. A "natur!
za" do que se comia era urna abstraxao: canibalismo espiritual, por
tanto. O que se comia era urna posi~ao: a posi9io de Inimigo, nao
a substancia de um inimigo. ' O que se come do homem será sempre
Espirito, rela9io incorporal: é impossível a manduca~io sem ser
"conforme o Espirito'', quando o que se come é o homem. IncorporA
xio da Inimizade, portante, e nio devora~io da carne ou do ''espí
rito" (concebido como substancia) de um inimigo: generalidade e
abstra9io. Note-se, por fim: o que diz o principio analógico da
teoría aliment~r? Que ''a natureza e condi~io do que se come'' se
muda em quem come. Isto é: se quem come um animal lento se torna
moroso-,
.)
quem come um inimigo se mudará em... inimig!=>?

Esta é a minha teoria sobre o canibalismo Tupinarnbá. Ela e-


consistente com o que vimos entre os Araweté, lá quando se tratou
da "música dos inimigos": lá também o matador se tornava Inimigo,
e falava como o inimigo. Incorpora~io de um incorporal, devir-i
nimigo: é isso, o canibalismo; o contrário dá suc9ao narcísica da
identifica~io: quem come é que (se) altera •

-
Talvez demasiado abstrata, e.sta teoría ao menos nao imputa
cren9as aos Tupinambá, mas_ propoe um movimento lógico imanente ao
complexo canibal. Vejamos outra hipótese. A no9ao . de um· caniba
lismo ~efensivo, que visava burlar a vingan9ada alma da vítima,
é inadequada: o resguardo do matad_o r, segundo Cardirn e outros, vi
sava protege-lo da alma (imortal) do morto - a ele justarnente,que
nao comía dele. Tal idéia seria compatível corn urna concep9ao dual
da alma, ao modo Gua.rani e Araweté: devorado., nao apodrecendo, a
vi tima nao liberaria seu espec.tro maligno. Note-se, entretanto,
que o espectro de um rnorto , é perigoso para seus companheiros, . nao
para seus ini~igos - entre os Araweté como entre os -Tupin('lmbá. Ne~

669
ai'awet~: os deuses canibais

sa coriexio de idéLas, o canibális~o · se~ia, ao boritriri6,uma opera


<rªº essencial para o destino.-·póstumo da ví tiina.

* * *

Se o que se comia, no ca ti vo, era o Inimigó - em · cjeral, é tam


bém como figura geral do Morto ou da inerte que- o prisidneiro de
guerra se determina. Mais u~a · vez p~rece · impbssiv~l . re~utir o te
ma da guerra de ·vingan9a -Tupihambi ¡ iétalia~io · ori ' ·a6 · impulso - co~

retivo de um desequilibrio religioso produzido ·pela morte'. ·o fo


co do movim·e nto . guerreiro era o futuro·, nio ó ·passado. Instruin·e n
to -da religiio? Sim, mas esta religiio se ~oltavá ~ara a postgri
dade, nao para os ancestrais. •
~ preciso extrair as devidas implica9oes do fato de que a
morte nas rnaos dos inimigos !.. a execu9ao ritual em terreiro- era
' .
a mor te ideal. E que por is so, a "heteronomia" produzida pela caE_
tura e devora9ao de um membro do grupo terminava sendo essencial .
• ~ .... 4 ;- •

A marte em terreiro era urna "life-giving death" (De Coppet, 1981):


marte plenamente vingável, isto é, nio-absurda¡ perpetua<rao db nQ
~

me do morto na memória dos vivos (Fernarides, 1970:255) de s~u gr~

po, desdobrando e legitimando assim os 'nemes que este morto acum~

lou em vida, sobre a rnorte de seus inimigos, e servindo ademais


para futuras aquisi9oes de neme . por aqueles q~e o deveraovingar;
e por fim, contra-produ9ao direta ae · nomes e pessoas plenas ha so
ciedade inimiga, na medida em que sua marte serve a inicia9ao dos
outros. ~ verdade, como diz Florestan com alguma irania~ que as
"vítimas" nao se apresentavam espontanearnente ao massacre, preci
savam ser obtidas a for9a (1970:160) ~ Mas nao é menos verdade que
a marte na guerra era a Única morte digna do ~uerreiro, criando
o pretexto da vingan9a e dando vida a máquina social. A heterono
mia era a condixªº da autonomia¡ a morte era o motor do socius,

670
· · os·2res do devir

levándo.- o sempi:;-e adiante, isto é, aos· inimigos. ·o que é a vingan


c;a como intencioñalidade primeira, sen~o um modo de reconhecer que
a verdade do Eü está ñas· rnaos do Outro, sempre? Interminável, era

caracteristico da vingan9a
'
Tupinamb~
jarnais atingir o equilibrio:
29
há sempre alguém a menos ou· a mais na· batan9a

(29) OU seja: e.xatarnente ao contrário do que postula R.Girard (1972), a inter ·


minabilidade aa· vingan9a 'T upi ~o ~e mostra caro vi olencia negativa, impossi
bi1itadora da vida social, que precisa ser desviada para a violencia substitu
tiva .do "Sacrificio". Ela é plenanente posi~iva,sua ausencia de te,rno é o que
a constitui caro furrlante, instrunento de acesso da sociedade ao mundo do tem
. .

po: ela é o vir-a-ser Tupi. Por isso _tarrbém, · a crítica de Verdier (1980) a Gi
rard, em nare de una vingaJ19a "dcrnesticad.:i", sistana de regula9ao e controle
~ociais, par_ece7 oos insuficiente para dar conta dos fatos Tupi.nambá.
Acrescente-se enfirn, se isso for necessário,· que nao se trata aquí, ab
solutamerite, de estar a fazer quaiqu~ "apolo;iia da violencia" Tupinambá :._:. mas
9e mostrar que ali se. passavam ferimenos ·irredutíveis asnossas idéias de vin
gan;:a, violencia, etc. Feri:men9s . "muito caiplexps_, cujos sentimentos muito
sirrples". • . já disse Durkheirn.

- alheias era a "mor te fo,r mosa" para


Por is so, morrer em maos
os Tupinarnbi, expressio que repete ~ kalos thanatos dos her6is ho
méricos, a "bela morte" no· campo de bata:l.ha (Anchieta, 1933: 223;

Vernant, 1984). Por isso, o est5mago dos· inirnigos era o "leito


de. honra ... de que fala tvreux .( 1874:107): rnorrer pela rna9a do con

trá.rio era enfirn, como . -observou Thevet em passagern já citada, .o


único modo de tornar .a morte vindicável~ isto é, justificável. Pa

ra o grupo, portante, seus rnortos erarn preciosos para o vir-a-ser

dos viventes; pois nio se dava que a vingan9a surgisse porque as


p.essoas morrern e precisara ·ser resgatadas do fluxo do devir; tratava-
-se de morrer (em mios inimigas de prefer~ncia) para haver a vin

gan9a, e assim futuro, ·que novos viventes viessem e o vivessem.

Os mortos eram, eles, o instrumen~o da religiao Tupinambá, reli


giao da guerra, de vivos em busca de renome e imortalidade. Ins

671
araweté: os deuses canibais

trumento da religiao, pretexto da vingan<;a, os mortos eram o nexo

com os inimigos, e nao, como quis Florestan, o contrário. Sacrifí

cio is avessas, onde o inimigo nao é meio, mas fim: o outro como

destino. Assim, o triingulo sacrificial de Florestan deve ser rea

valiado: o 11
morto do grupo 11 1 . mesmO que figura individual interve

niente, era lugar neutro e vicário, a percorrer todos os termos


11
da série - um avatar do famoso significante flutuante''. Cativo e

matador, os outros termos, também.eram figuras da marte, e era en

tre eles que a partida se jogava: faziam seu destino no auelo, u

sando os martas como trampolim. Vejarnos como ''morto", "inimigo"

e ''matador'' se inter-exprimem.

O inimigo era um morto. Vimos como o cativo podia funcionar


como lugar-tenente de um morto do grupo, ~orno q}guém cuja prese~
!

9ª ao mesmo tempo canee lava e sublinhava a ausencia daquele_. Flo .

restan fo.rnece, neste contexto de substi tu.i 9ao sacrificial ·, ele

mentes para que se perceba q ·ue 0 cativo substituí o morto; -sim,

mas o morto enguanto morto (mantendo com este, enguanto ex-viven

te, urna rela9io da mesma espicie que aquela· ~ntre o ta'o ·we. e a

pessoa que o gera, no pens~mento Araweti1. E assirn - admitindo-se

esta substitui9io individualizada -, a idéia de Florestan sobre a

necessidade sacrificial de aplacar o espirito do ºancestral"- ter.ia

algum · sentido. Matar a . vítirna, urn "representante" seu (enguanto

morto} , nao estaría traindo u~ ressentimento contra este morto

pesto is avessas como temor da f6ria do ancestral, na aus~ncia de

vingan9a? Isso talvez explicasse porque nao se adotavam os p"ris.i~

neiros, incorporando-os em vida, isto é, co_mo substitutos do mor

to enguanto vivo (como faziam . os Txicao1


30
. o par cativo~matador

(30) Menget (1977:87, 114, 153, 255) deixa claro que os Txicao consideravam a
rror te de um inimi.go, erquant.o vinganc;a contra a rrorte (era isto a guerra Txi

672
os seres. do devir

cao), caro solucrao menoo boa que sua captura - mas o cativo. nao substituía o
rrorto ao nivel de sua parentela, ocuparrlo sua posi9ao, e siro a rúvel global,
trazerrlo JX'N'Os rx::mes para a sociedade .

assirn, encarnaría faces complementares do rnorto, presentif icando

sob ~modo opositivo essa ausencia-divisao · produzida pelo e no

morto. Ele seria entao o inirnigo e .seu vingador, é ele que quali

f ica o jogo especular do duelo cerirnonial, ele é o "terceiro in

cluido'' do sacrificio. O rnorto enguanto vivo seria representado

pelo matador; enguanto rnorto - isto é, enguanto inirnigo - pelo i

nimigo. Se o par rnatador-cativo constituí, corno dissernos,a Pessoa,

é porque ela só estará inteira, entao, no rnorto: na ausencia. Sao


precisos tres para fazer urn, e duas mortes? Talvez: mas a Pessoa

é isso mesmo, ausente., marta, rela9ao; ela aí é puro limite, . coE_

gelamen.to ;imagináfio de . um devir que se estabelecé entre o cativo

e · o matador, intercalaridade que é defasagern, defasagern que . é o

devir da Pessoa.

Um morto era o inirnigo. De vários modos; Cardirn, ao falar

dos costumes funerários do gentio, diz: "depois de rnorto laltjuérn

do grupo] o lavao, e · pintao rnuito galante, corno pintao os contrá

rios'' (1978:111) . . Isto é, os rnortos erarn p~ntados como padrao or

namental dos cativos para a festa da execu9ao: imagens póstumas

de inimigos prestes a morrer. Quase como se urna marte em casa fos

se irnprópria, esta pintura nao estaria afirmando ªº mesmo tempo

que todo morto (em casa) é um inirnigo, e que por isso todo homem

deve morrer como inimigo, como se rnorresse em terreiro alheio, de

corado para urna · execu9ao "própria", pública?

O tratamento do corpo dos mortos - daqueles que nao foram

sepultados no estomago dos inimigos, m~s tiveram a indigna morte

entre parentes , na rede como as mulheres (Gandavo , 1980:137 } - a

673
araweté:·os deuses canibais

presentava um aspecto notável: a _ amarra~ao · do cadáver, que podia


. . ' ,,. . .
chegar ·a .um completo enovelamento - is to e, ligadura e velamen to
(Ca~dim, 1978: 111; Monteiro in HCJB, VIII: 416) ·. Thevet esclarece
que isto visava o nao-retorno do morto, coisa que os Tupinambá .
muito receavam (1953:97)~ Curiosa simetria: ao passo que os íni
migos mortos eram desmembrados, ·despeda<;ados (para serem comidos
após urna cauinagem), os mortos do grupo erammantidos "coesos",
ligados e vela4os, eventualmente ~etidos
deritr6 daquelas pahelas
que guardavam a beb.i da ·dos festins públicos canibais 31 • E mais:

(31) o enterro en Urn.as-panelas visava evitar tcx:lo eontato do oorpo can a ter
ra. Isto ros leva ao horror da pqdridio~ ·.

se p inimigo morto era comido,.. o sepµltamento de um membr:o d·o gr~

po exigia a deposi~io cotidiana de alirn~ntos sobr~ o seu túmulo


- até que as carnes ·fossem consurniqas - para que osJ Anhang na.o de
senterrassern e devorassern o cadáver, como já vimos (p. -6:4 7) • Met!,
fórica e meton~micamente, um· morto em _casa era u~ inimigo: pint!,
do como tal, temido como tal, evocando os Anhang, aquelesdem5nios
rnuitissimo tem,i.dos por serem urna figurayao da má morte - com eles
iam ter os covardes. Já os que morr,i.am em rnaos alheias;, .· como · ini
migos dos inimigos, estes nao tinham espectro, pois foram devora
dos - e es tes· eram prezados, pois morreram C()IDO -heróis, de mor te
"social", nao-natural, morreram com sentido.~ Entre "Morto'' e 11
I
nimigo", ~ss~m,
instaura-se urna reverber_a~ao de signif-icado .. · de
32
grande complexidade •

(32) Ver Carneiro da CUnha 1978:144 e passim, para _a análise do rresm::> ceitplexo
conceitual: rcorto, inirnigo, afim~ ~treos Krahó, cp:upo Je-Timbira, . onde ele
entretanto entrará em una oosnologia e uhá forma social muito· diversa do sis
tena Tupinarrbá.

674
os seres do devir

Mas o mesmo se dará en.tre_ o cativo e seu executor. Protag~

nistas do drama da execu9ao~ átomo dual que atualizava o essen


cial da sociedade, o diálogo que trocavam par~cia permutar suas
4
posi9oes - o cativo justificava sua rnorte, afirmando sua c0ndi9ao
de matador; caucionava a .devc;:>ra9ao que ia sofrer, evocando ·os ini
migos que comefa; legitimava o nome q~e seu executor iría tomar,
lembranao· o neme que deixaria; ped.i a a vingan9a que · o escolhera
como vít~ma, porque só ela permitiria que ele -próprio fosse vinga
do: seu presente seria o ~uturo de seu matador, seu passado foi o
de um ma.tador; do discurso do cativo, diz Anchieta "que. mais par~

cia estava ele para matar os outros que para ser morto"(l933:224)
·-; todo um conjunto de .gestos cabalísticos feítos com a borduna ,
a a~rna da morte ·que, decorada como o rosto do cativo, era passada
entre as suas . pernas e as do matador· (HCJB,VIII:412),parecia unir
estes deis homens; o simulacro d~ duelo que era encenado - dava-
-se a vítirna certo espa<;o. para a esquiva e . o revide - parecía qu~

rer afirmar a ~igualdade'' dos an~agon~stas. E por fim, havia o ri


goroso regirne de resguardo do matador: afastando-se para sua casa
após a pancada fatal, ~ra .o 6nico a nio comer do cativo (ao con
trário, aplicavarn-se-lhe n.o pulso os · lábios .cortados do inimigo·,
. .
corno se a inv~rter a rela9io canibal - Cardirn, 1978:120; tar~alho,
1983:45); jej\léU"d:> por dias em sua rede-; tinha seus bens livremente apropria
dos por todos · ('lhevet, 1953:274; Soares de Souza, 1971:324); era escarifica
do e · submetido a diversas precau9oes místicas contra a alma da vi
tima. Esse resguardo era corno urn luto: as festas que o encerra
vam erarn análogas as que, faziam os paren tes de urn rnorto. E· ressur
gia com novo nome, corno novo homern: transfigurado, _corno sua víti
roa, por quem - di zern os cronistas corn muí ta razao - ele se enlutava.

Mas volternos ao · pon~o de vista do cativo, que é 0 essencial

675
araweté: os deuses canibais

nesta conexao escatoló9ica do canibalismo. Se a rnorte•ern terreiro


é a marte forrnosa, a execu~ao e devora9ao devem ser entendidas
corno práticas diretarnente funerárias (e nao. parte de urn hipotéti
co ritual de segundas exéquias) • Os inirnigos erarn os coveiros·
por exceléncia, seu estómago a sepultura mais segura: os rones que
eles tornavam, as {narcas que inscreviam ern seus carpos, erarn a -me
rnória rnais eficaz que cada hornero podia deixar de si: se o inimigo
born é um inimigo morto, o boro rnorto é aquele que o · foi pela ma9a
do · inimlgo.
o canibalismo cdmo modo funerário - o exo-canibalismo corno
.funeral, esta é a singularidade Tupinarnbá depende de um conju~

to de cren9as escatológicas a que aludimos reiteradas ve2es rteste


livro. Um destes temas é o horror ao enterramento do corpo. Vimos
~orno Cardim explicava a relutáncia de rnuitos cativos ein serem res

9a_tados: nporque dizem que é tris.te causa m9rrer, e · ser fedorento


e comido de bichos" ••• (supra: pp. 5-97-8) 33 • Jácome Monteiro é

(33) Nao creio entretanto ser possível reduzir apenas a urna escatología esta
- .
· sabranceria can que os cativos recusavarn o resgate. Morrer
.
em terreiro
.
era de -
ver e prerrogativa: <X>nfirJna9ao de que se infligira dano aos ini.mi.g~, gar~
ti~ de que se seria vingado. Por isso muitos desprezavarn as oportunidades de fu

ga: seriarn rejeitados pelo~ seus, por fazerem crer aos ini.mi.gos que sua na9ao
nao os era capaz de virqar (Garrlavo, 1980:97¡ Abbeville, 1975:231).

ainda mais explícito¡ falando dos a9ouros ·ao gentío nas suas gue!
ras, ele relata -que urna das coisas que fazia urna expedi9ao desis
tir de seu inténto era o apodrecimento das provis6~s que levava:
"se a carne depois de cozida · toma bichos, o que é mui fácil por
causa da muita que'n tura da terra·, · e ~ dizem que assi como a carne
toma bichos, assirn seus contrários riao os cornerao, mas deixá-los-
-aó encher de bichos depois que os rnatarem, o que é a mor desonra
que h a- en t re es t es b-ar b aros ••• " (HCJB,VIII:413).

676
os seres do devir

Anchieta, ainda: "os prisioneiros, no entanto, julgam ser

assim tratados excelentemente e com distin9ao, e pedem urna morte

tao ••. gloriosa; porquanto, dizem que só os fraco s e medrosos de


4

ánimo é que morrern e vao, sepultados , suportar o peso da terra,

que eles creem ser gravíssirno" (1933:45). Gravíssimo, de fato,nos

dois sentidos da palavra. Se a terra pesa, poderiamos dizer, usan

do um conceito Araweté, que a marte caníbal aligeira, torna leve

a pessoa, soltando rnais d~pressa a alma de seu lastro?

Esse horror a terra e a podridao, de que a devora9ao liber

tava, é fun~ao de urna polaridade espiritual póstuma , e do destino

diferencial das pessoas conforme seu valor: a terra, os Anhang, a

podridao e a mortalidade definitiva, de um lado: o céu, os deuses

e antepassados, ~ a imortalidade, de outro. O primeiro destino e

o dos covardes e o da maioria das mulherés: o segundo é o destino

do . guerreiro. A marte .heróica era assirn o coroamento de urna vida

heróica: sobre matar e comer muitos inirnigos, o ideal parecia ser

o de terminar comido; assim se tinha a carne sublimada , e o

rito liberado qe toda mortaiidade. O canibalismo se insere porta~

to na problemáti ca pan-Tupi de imortaliza9ao pela sublirna9ao da

por9ao corruptível da pessoa. Ele é a forma suprema de "espiri

tualiza9ao": o guerreiro ideal nao tem corpo, pois foi devorado.

Este é o modo Tupinambá de realiza9ao daqu ele anseio que depois os

xamas-ascetas Guaraní procurararn realizar pela rejei9ao de toda a

lirnenta9ao carnívora, pelo jejum e pela dan9a: a diviniza9ao como

supera9ao do corpo putrescível.

Ora, o objetivo de sublima9ao da pessoa poderia af inal ser

o btido de modo menos violento. Por exemplo, pelo ende-ca nibalismo ,

como diz Thevet que f aziam os · "Tapuias", que comiam seus próp.rio s

mortos porque aterra nao era digna de os apodrecer (1953 :273): e

677
araweté: os deuses canibais

como fazem tantos povos do mundo 34 .·. Mas os .Tupinambá engrenaram

(34) Ver, p.ex., os Gim1 na Nova Guine, orrle as nulheres a:mem ~us
parentes
masculinos nortos, caro técnica de regener~ao da pessoa, e justificam esta
prática dizendo que o rrorto "nao deve ser deixado apodrecer" (Gillison, 1983:
35,39,41).

este seu horror a terra na paixao pela .g uerra, sua vontade de i


mortalidade em um devir guerreiro, p_ond<? a q~estao da morte qe <?!
da um como alavanca para todo o funcionamento da vida social. Dai
a curiosa separa9ao entre a parte do individuo e a parte do grupo,
a estranha dialética da honra e da ofensa: morrer ein maos alhe i as
e ser devorado era uma honra para o individuo, e um i'nsulto a hon
ra de seu grupo , que exigía resposta equivalente. Era urna honra,
entao, ser a causa de urna ofensa ao próprio · grupo 35 • Ser devorado

. (35) DaÍ a necessidade de Florestan af~nnar que esta rrorte "punha em risoo a
integridade da .'pessoa.", exigindo o sacrificio reparador. Esta idéia se
baseia, aparentemente, ·apenas em una 6bserva9ao obsc\ir'a de Gandavo, que afinna
que0s rrortos andam ºna· outra vida feridos, despeda<;ados, ou de qualquer rnane:i,
raque acabaram nesta" (198Ó:l24). Sobre. ser
. estranha·face a todos os outros
textos que afirmam a "fornosura" da norte em terreiro e o horror a nao-devorsi
cao, esta afirmac¡:ao leva a una pista falsa, por confundir des tino do individuo
e resposta do grupo.

era ~elhor que apodrecer no chao¡ mas se era devorado por vinga~

9a, nao p o r pi e dade~·· ~q ue a honra, afinal, r epousav~ sobre i!


so : sobre s~ po der se~, via devo ra9ao ,motor de perpe tuac¡:io ~a vi~
ganc¡:a, o penhor da perseveraxao no próprio dev i r da sociedade. O

ódio reciproc o dos inirnigos era urna sqtil colabo ra9io , com es se
. .
seu simulacro de "exo-''canibali s mo onde os home ns se entredevora
t
vam para que seus grupos se perpetuassern ·no q ue tinham de· e s sen
c i al: sua rela9 io-ao-inirnigo, a vi ng an9a. A i mo rtalidade era ob ti
~

O.a pela vin_ga n~a, e a busc a da imo rtalidade a produzia. Entre a


morte do inimigo e a imortalidade .pessoal, e s tava a trajetória_ de

678
os seres do devir

cada um, ~ o destino de to4os. Devir-imortaL, isto ~, interminabi

lidade do devir.

3 .. EPILOGO: ANTROPOFAGIA E -ESTRUTURA SOCIAL TUPI·GUARANI


" ••• ; pois muitas pessoas pensam que aom
preenderam suficientemente uma coisa qua~
do dei~am de se assombrar com e Za."
(Spinoza)

g necessário terminar. Para isso, retomemos um problema clás

sico: a defini9ao do cativo de . guerra como um "cunhado" de seus ma

tadores. Vejamos como o tema do canibaiismo se articula ao da afi

nidade;. e como ambos nos devolvem ao impulso fundamental da cosmo

logia Tupi~Guarani.

Hélene Clastres, hesitando em se decidir por urna explica9ao

do canibalismo Tupi, vai por em eyidencia a rela~ao semantica e

objetiva entre inimigos e cunhados. Touaja (tobayar, etc.) é a p~

lavra que designa ·ambas estas cagegorias; e já dissemos como se

cedia uma mulher ao prisioneiro, que se transforrnava assim em um

"cunhado". A gue~ra de captura de "cunhados" para serem mortos e

comidos traduziria, entao, talvez, o anseio por um mundo ideal, o~

de a af inidade - a alian9a e a dependéncia dos outros - nao ex is

tisse. Os Tupinambá, assim, estariam realizando uma vingan~a -


nao

contra seus inimigos, mas contra · seus "cunhados'', ou melhor: urna

vinganxa contra a.afinidade (19.72:81). Voltamos ao tema tantas v~

zes aludido ~qui: o mundo . sem afins. A morte dos .cativos de guer

ra seria urna inversao do motivo considerado usual da guerra indí

gena - a captura de mulheres. Em vez de se apresarem mulheres ini

migas, e com isso escapar do fardo da alian9a, negando-se a reci

procidade, os Tupinambá negavam ao contrário esta mesma exigencia

fundadora da vida social: capturavam preferencialmente homens,que

679
.arawetá: os deuses canibais

viravam em cunhados, para os matar. Criavam um simulacro de afini


dade, para desviar contra este o desejo de aniquilar~ prescindir
de, os afins reais. 4 guerra Tupi ·seria urna ''nega9io ritual da a
lian~a" (1978:47) - ritual de inversao, portante; ritual de rebe
liao. Negatividade 36 •

(36) · ~ curioso ooservar o paralelisrro inverso desta idéia can as ~ - · Girard


(1972:383-ss) sobrero canibalisrro. ~te autor, que achaque o "elemento antr2
pófago" da guerra TUpinambá "nao exige nenh\lna expli<29ªº particular", por ser
a manifesta~oo de um mais geral "canibalismo do espirito huma00 ere que se
11
'

trata cqui do deslocamento de urna violencia intestina para o exterior do grupo;


a ~ac, inimigo = cunhado se explica assim: o "cunhado" é o "substituto sa
crificial" do innao, é a vítima expiatória do desejo insistente e recalcado de
matar o sernelhante. Para H.Clastres, trata-se é de nao matar os cunhados reais,
trata-se é de. realizar ritualmente o desejo irrpossível de matar o diferente.
Mas para arri:x>s, oo fim das ex>ntas, trata-se senpre de outra <X>isa que o que é
feito.

Aqu.i temQs tal vez umá idéia interessante, que forma· sistema
com o complexo que subjazeria ao profetismo e ao mito da · "Terra
sem Mal" dos Tupinambá. e Guarani antigos. A autora mostrou como a
suspensao das regras sociais que vigorava no seio das · migra~oes e
na palavra dos profetas só poupava ~ costume - bania-se o traba
lho, a autoridade, as regras de incesto -, justamente o canibalis
mo e a guerra de vingan~as (1978:47). Como se o profetismo e as
migra~oes pusessem "em prática" aquilo que a guerra canibal -
so
ousava manifestar ritual e negativo-indiretamente: o fim .da Sacie
dade, da ~ei e da Alian9a. Vingan9a contra a marte, como observou
Thevet, vingan~a contra a afinidade, como sugere H.Clastres,a "vi!!
' contra as bas·es da condic;:ao
gan9a" Tupinambá seria urna dupla luta
humana: submissao aos ou-tros e a marte. E assim reencontramos no
guerreiro Tupinambá a mesma paixao do asceta Guaraní: derrotar a
marte é derrotar a sociedade (supra:645).

680
os seres do devir

Mas será mesmo que se pode ler o profetismo Tupi-Guarani na

clave da nega9ao? Ora, se aquilo . que seu discurso preservava - ou

mesmo exacerbava - era a vingan9a e o canibalismo, entao ele -


nao

era urna negac;:ao dos fundamentos da sociedade (simétrica ·e inversa

da nega9ao gestada por um "Estado" que e.staria a nascer entre os

Tupi), mas urna af-irrna9ao justamente daquilo que permanecía essen


--
cial para esta sociedade. Fundarnentalistas mais que revolucioná

ríos, o que os profetas anunciavam era a contarninac;:ao de todo o

campo social pelo princ!pio que sempre guiou a trajet6ria pessoal

de cada hornero: o acesso i Te~ra sem Mal que, corno vimos, era o ho
. t e d a proeza e d a mor t e guerre1ras
. 37 o
rizon . profetismo seria ne

(37) Estas pondera.c;Oes sao urna paráfrase do que se escreveu em carneiro da


c.unha & Viveiros dé Castro, 1985. A qualificayao dos argurentos de H.Clastres,
entretanto, é de Manuela C. da CUnha.

gador apenas na medida em que a vinganc;:a e o canibalismo ji o eram,

negadores da alian9a. Será, entretanto, possivel sujeitar estas

figuras ao irnpirio da negatividade, ao jogo da representa9ao (''ri

tual de nega9io 11 • • • )· ?

Comecemos por observar que é interessante


.
que os Tupi-Guara
-
ni tenham pesto no real - no profetismo e no canibalismo - aquilo

que a maioria das sociedades humanas parece nao mais que desejar,

ou que, por considerar impossível, pinta em cores sombrias,confor

mando os homens a sua condi9ao: morte, reciprocidade , finitude e

negac;:ao. Essa realiza9ao do impossível, se encontrou sua maior ex

pressao - e entao seu necessário "fracasso" - no ·turbilhao do pro

fetismo, nunca deixou de guiar a trama da vida coti-diana. "Nega

9ao" da aiian9a , o sistema da guerra era o que unia a todos os Tu

pinambá, em anti -alian9a mortal/vital. Ritual certamente, mas nao

simples representa9ao: se nao se matavam os afins reais, comiam-

681
araweté: os deuses canibais

-se de verdade os afins simbólicos. E veremos como aquilo que os

Araweté já intentavam, com seu singular instituto da partilha· de

esposas, reencontra-se no sistema· Tupinambá: a as.socia~ao de um

desejo de endogamia, que dissolva e dispense a afinidade, com urna

necessidade absoluta do outro, do inimigo. ~ "


tal ambiguidade (tal

''ambivalincia") que marca a filosofía Tupi, e talvez a distinga

de outras do continente : se)a daquelas que parecem apoteoses bar

rocas do principio da reciprocidade (como as Je~Bororo), seja da

quelas que manifestam um horror de mónada ao exterior e se conce

bem como massa internamente indiferenciada, territorializada, sem

pre q tra~ar fronteiras contra o . que é o nao-Eu (como as Piaroa-

~caribe) 38. ~ com estas últimas que a filosofía Tupi apresenta

(38) Ver, Jn?lis urna· vez, Kaplan, 1975, 19Blb, 1~84; Riviere, .1969, 1984.

mais semelhan9as; com a d ife ren~a essencial que o lugar da ex te

rioridade é o'utro, a diferen~a é diferente.

* * *
Dava-se urna mulher ao cativo (ou o contrário, como vimos).

Esta é diversamente qualificada, pelos cronistas, como irrna ou fi

lha do captor, do dono do cativo, do futur o executor, do c~efe da

aldeia; e a inda corno a vi Úv·a de urn morto a se.r vingado. O ca ti vo

nao era um afim genérico, portante; rnantinha urna re la9ao específi


ca
.
* .corn
.
os hornens que lhe dariarn, dir.eta ou indiretamente ·, a morte.

Sua entrega i guarda da . irma do matador parece ser o caso paradi~

rnático: os pais costumavam reservar c ativos pa ra a inicia~ao do

filho, ao mesmo tempo ern que lhes davam suas filhas.

Mas o prisióneir-0 era um afim ' sui generis. Em vez de prestar

o ''servi90 da no~va'' ' como competia aos jovens que. pleiteavam espo

sa , ele receb~a
- pedira, e era entretido e
urna mulher que nao ali

mentado por seus afins . Em vez de ser participante obrigatório nas

682
os seres do devir

expedi~oes bélicás lideradas pelQ sogro, era a própria presa de


guerra. Em vez de provedor de alimento, era a "futura comida".
Por ·fim, em vez de termo de uma rela~ao de troca matrimonial en
\

tre homens do mesmo grupo, o cativo, homem exterior, era rela9ao,


objeto de presta~oes ·entre. os homens desse grupo.

Uma das obriga9oes do homem recém-casado erá presentear seus


jovens cunhados · com cativos, para que se iniciassem ou vingassem
seu pai. o prisio~eiro, portanto, era uma presta~ao matrimo nial, o
"equivalente" de urna esposa r~cebida. Mas os cativos nao eram ap~

nas presta9ao entre afins: também entre irmaos, entre amigos;eram


um presente dado a quem se estimava cu se devia algo. Servindo
.
pa
-
ra muitas coisa~, ~s inimigos consolidavam óu criavarn · múltiplas
' 39
entre homens e mulheres , pais e filhos, afins, amigos.

~ 39) Thevet registra a anedota edificante de urna viúva que, faoe a oovardia
dos parentes de seu marido, vcil ela rresma a guerra e traz cativos para que
$ellS filhos vinguem o pai. Acostumarrlo-se a tal rnister macabro, ela tex:mina as

surnirrlo a aparencia de un.hanan e se vota ao celibato. Na falta de prisionei


ros, assi.rn, as mulheres viren hanens: essa parece ser a JTOral da história .

.Eram, em suma, o nexo central da sociedade : sem es se elemento ex


terior e fundante, obje~o da · gu.erra . de captura, nada vinha a ser,
nem mesmo os individuos: para , ter filhos, um homem carecía de ma
tar um inirnigo. Muito mais que cunhados, p~r tanto, eram os inimi
gos: eram quase tudo.
Por 6utro lado, a equa9ao inimigo = cunhado tarvez seja mais
,

esclarecedora da situa~ao qos cunhados (ZH) verdadeiros que dos


.inimigos cativos. O cativeiro vigiado por urna esposa era urna si
tua9ao-limite da uxorilocalidade ".temporária" a qual todo jovem
estava, em principio, condenado. Pois o home~ que tomava mulher
nio-aparentada estava A merci do sqgro e c unhados, vivendo em ca
sa estrangei·r a, incorporado a economia doméstica e guerreira dos

683
araweté: os deuses canibais

afins . Ele encenava uma como versao atenuada do drama do cativo,


inimigo "uxorilocalizado" a revelia e votado a morte nas maos dos

afins. Trata-se menos, portante, do cativo ser um "cunhado'' que

do cunhado (ZH) ser um "cativo ". Mas de um se passa ao outro: p~

ra se obter ~ma mulher, é preciso matar um inimigo; para se poder

escapar do cativeiro uxorilocal, é preciso ofertar inimigos aos

cunhados.
Isto talvez de urna boa idéia do que pensari am os Tupinambá

da uxor ilocalidade; e este é um ponto essencial. Se o nexo do ini

migo era o fundamento simbólico de toda a trama social interna Tu

pinambá, a uxorilocalidade aparece como o nexo real desta tr ama .

E assim é necessário pSr em rela9ao duas práticas famosas dos Tu

pinambá: ésta do cativeiro e "afiniza9ao " dos inimigos , e a do ~

samento avuncular • . Pois, se o cativeiro é a máxima uxorilocalida


de, o casamento com a filha da irrna é o limite mínimo dessa forma
40
residencial, ou o modo de se escapar dela .

(40) />quele que tana por esposa a filha da innao nao sai, em principio, de seu
grupo residencial; por sua vez, aquele que cede urna filha para os irmaos de
sua mulher quita urna parte da divida corn os afihs. 'fuevet é explícito: a entre
ga de urna fil.ha libera o pái de sua "servl,dao " (1953: 130) . Talvez seja dema.is
sugerir que essa presta<;ao da filha fosse c;x>ndi9ao para a saida da situa~ao u
xorilocal; mas de toda forma, a cessao de urna filha ou a prestaxªº de um cati.
vo sao a contrapartida da obten9ao de urna esposa - e se desrespeitadas, leva
vam ao confisco da Im.llher por seus innaos ('Ihevet, p. 131; CPJB,1:307). Pri
sioneiro e filha se "equivalem". ~ interessante a:rnparar este sistema can a ló
gica que preside (parte da) nanina9ao Timbira: a li, o ZH "salda" parte de sua
divida produzindo um alter-ego de seu WB; ~sto é, seu filho será naninado por

..
este últino, recebendo os rones dele. {Ladeira, 1982: 81). Os Tupinarnbá davam
urna f ilha ero troca de una esposa, ou um cativo ero troca de si mesrros (poi s o
cativo seria urna espécie de versao cx:mestível do ZH), para seus afins; os Tim
bira "dao" um filho que recebe os nanes de seu MB, tornando-se "ldentico" a es
te. O ZH Tupinambá dá nanes, isto é, cativos, a seu WB; o WB Timbira dá seus
nares ac filho do ZH. E, se o ZS Timbira é um duplo do MB, o cativo Tupinambá

684
os seres do devir

é o "substituto em espécie" do ZH.

Tudo se passa corno se as estruturas de troca matrimonial ex

plodissern em duas dire9oes polares: de urn lado, esta hiper -ex og~

rnia absoluta, onde se cediarn temporariamente rnulhe~es aos inirni

gos, os quais eram qualif icados como "an ti -afins. ~', cunhados para

doxais; de cutre, essa avareza endogami ca , esse limite inferior

da reciprocidade que tangencia o incesto (Livi -Strauss,1967c:523),

mov~mento de contra-afinidade: o ~asamento com a filha da irmi.

~ corno se nao houvesse um lugar estável pa ra a af inidade no siste

ma Tupinambi: entre a ''uniio privilegiada'' do casarnento avunc ular

e a situa9i~ "desprivilegiada" do cativo-ma~ido, ~ corno se a afi

nid~de ~esaparecesse, dilacerada entre seus contrários.

Entre .tais -extrernos de "exo-" e endogamia (reside ncial, al

dea, de parentela) estavarn os casamentos comuns e inicia is, de mo

derado coeficiente exogimico - que quanto rnaior, mais levava a u

rna residéncia uxorilocal tio cornpuls6ria e "temporária" como a dffi

cativos: mas que ern vez de terminar com a rnorte , acabava eventual

mente pela cessio de filhas ou cativos. Estes casamentos comuns e

iniciais , porém, erarn apenas · isso. Pois toda a maquina do renome

tinha como conseqÜéncia, ou objetivo, a sua supe raxao: a po lig~

rnia dos chefes/grandes guerreiros era um valor e resultado esse n

ciais da guerr~; e ela implicava a v~rilocalidade, bem como urna

inversao de hierarquía entre doadores e receptores de mulheres :

ceder f ilhas cu irmas aos c h efes e heróis e~a urna honra (Fernan

des, 1963:224: a uniao de chefes com meninas pequenas pode suge


-.
rir que estas cairiam na categoria de ''filha de irma'').

Tanto a uniao avuncular corno a poligamia dos guerreiros apa

recem assim como formas de esquiva ou de escape do campo gravita

cional da uxori localídade . Longe de ser urna regra automi tic a que

685
araweté: os deuses canibais

permitisse derivar _um cálculo de seus efeitos sobre a • estrutura


social, a · uxorilocalidade era um efei.to do s.istema político (e es
te uma f un~ao da "cosmologia" da v;ingan~a) .~ a ades~o a seus ter-
mos, em cada caso, era um limite negativo que dependia do estado
histórico do sistema. Trocando em miúdos: residia assim quem -
nao
tinha outra saída ~supra, p. 96). Eis porque a no~ao de · "uxorilo
-
calidade temporária" para o caso Tupinambá é inadequada: ela su
bentende, nao só urna "viriiocalidade definitiva", como urna norma
tividade mecanica, e nada disso se aplica. Q axioma uxorilocal eta
urna situa~ao inicial da qual a questao era escapar, e nem sempre
se conseguía - se o sogro é poderoso, e a parentela do genro fra
41
ca... ·

(41) Riviere (1969:272-5) menciona a interpretayao de Kirchoff do casamento !.


vuncular ccm:> nolo de evitar o ~serviQO da noiva", e a questiona para o caso
Trio. Esta dúvida talvez val.ha tant>érn para os TUpinarrbá
.
- mas meu ponto d:>noer
ne a uxorilocalidade (adenais, penso que do ponto de vista do ZH que cede a f.!
-
' .

lha, estava efetivamente envolvido· o rootivo de escape ao servic;:o da ooiva, ou


salvo da divida matri.nonial). ro oooparar Cp .. 275) os efeit.os da uniao MB/ZD em
sociedades patrilocais e matrilocais, o autor irá constatar que, nestas últi
mas,. o resultado é a erxklgam.ia
. aldea. Mas o problema é justarrente o destes . ró -
tulos juralistas e autanáticos, "patri-viri" e "matri-uxorilocal"; o que se
passa ros 'l\Jpi (e tanbén nas G.lianas - Riviere, 1984) é que o casanentó avun
cular é parte de una estratégia geral de erdogamia, que inflete ou cría solu
~ residenciais a pC?steriori - SEJl1?re a partir dé un "atrator uxorilocal •• de
base, mas do qual se quer e se pode (se se puder) escapar. Note-se por f im que
a difun:llda idéia de urna paisagem "patri-virilocal" para as sociedádes amaror1!_
cas (Turner, 1979a:l65; idéia que vem de Iarie, e Murdock, e que P. Clastres
tanbém oatproU - 1974:cap.3), a oontrastar a:m a uxorilocalidade Je-Bororo, é
cada.vez Jte!X)S sustentável. o que é preciso explicar sao os. casos de patrilo
calia.aae, caro '1\lkan::> e Jívaro, porque a sii{~ao geral é a da subordinac¡:ao
daS sol~s residenciais a un <:01plexo . de fatores: . polI~co,. . matrim:>niais,cul
turais.

A ~ecensao feita por Florestan (1963:215-32) mostra que o

686
. os seres do devir

sistema residencial Tupinarnl?á era complexo: (1) a uxorilocalidade

est~ita vigorava no caso· de jovens nao-aparentados com a familia

da mulher; isto sugere que o avunculato era o limite de urna venta


~

de endogamica m~is ampla, e que a p oss ível existencia da troca si

métrica {primos cruzados bilaterais ) como f orma alternativa tam

bém intentaría essa repeti9ao de la~os entre parentelas, ao modo

_P iaroa (Kaplan, 1975); (2) a uniao avuncular, conquanto forma "pre

ferencial" (mas nao prescritiva, como já notava Anchieta), seria

praticada sobretudo pelos primogenitos e f ilhos de líderes resi

denciais, corno parte de urna estratégi_a de sucessao virilocal; (3)

o avµnculato se articulava ao motivo da poligamia, fun~ao por sua

vez do renome guerreiro. A guerra, as sim , inscrevia-se no sistema

de casarnento e residencia diretamente ., seus efei tos iam além do

ritual de homicidio qualificante. A uxorilocalidade nao era " tero

porária", mas temporal - ponto de partida que se abria ao evento,

gerador de urna· dinamica de dif erencia9ao dependente da proeza

guerreira (de Ego ou de seus parentes mais velhos - ou as duas coi

sas).

Assim os Tupinambá, em vez de obterem mulheres diretamente

dos inimigos (a captura de esposas nunca foi motivo ·da guerra) ., ob

tinham- nas e as acumulavam por intermédio dos i nimig os (ou dos

cunhados - a ZO). Em vez de matarem os parentes das mulheres que

poderiam tomar na guerra, davam _parentas aos homens capturados, ~

matando-os, obtinham esposas do pr6prio grupo: a endogamia <lepe n

dia da "exonímia" · e da morte alheia. Escapando da "s ervidao" uxo

rilocal pelo renome guerreiro, um hornero seria entao capaz de ~por

esta sujei9ao a seus jovens genros, maridos das muitas filhas que
42
ele gerara nas suas rnuitas esposas - e assi m o ciclo passava pe
- .

687
araweté: os deuses canibais

(42) "E assirn quem tem roa.is filhas é mais honrado pelos genros que oom elas ad
quirem, que sao seripre sujeitos a seus sogros e cunhados .•. 11 (-A nchieta, 1933:
329).

los inimigos, necessariamente: a ''uxorilocaliza9io" de ~ativos e

ra ao mesmo tempo a caricatura ·dramátic;a de urna situa9io interna,

o meio para cada um de escapar a ela, e o instrumento para a impor

aos outros.

Partindo da defini9ao do cativo como um cunhado, vim dar es

sa enfase na questao da uxorilocalidade, porque 'os modos de resi

dencia me parecem mais importantes para o entendimento do siste

ma Tupinambá que os as vezes postulados grupos de descendencia p~

trilinear. As unidades guerreiras e cerimoniais da sociedade eram

as malocas (ca~as grandes multifamiliares): os homens que ali mo

ravam eram o bando guerreiro elementar; elas eram as unidades de

produ9ao coletiva do cauim, ·e as partes anfitr{ is nas festas de

devora9ao canibal; os líderes das malocas formavam o "conselho de

chefes" (Fernandes, 1963:cap.V), o corpo poli~ico '·miximo da al


deia. Tudo leva a c~er que essas unidades residenciais eram cen

tradas sobre urna familia . poligimica encabe9ada por um grande guer

reiro, capaz de ''adquirir" um grande nGméro de genros, ao mesmo

tempo em que procurava manter os f ilhos homens casados viri.local


43
mente - um sistema naturalmente instáve1 • De toda forma o nexo

(43) Algunas imica~es ('lbevet, 1953:135) 'sugerem que a virilocalidade, irre


diata ou progressiva, só era acessivel aqs filhos de parentelas fortes; outras
(cf ~ Fernandes 1963:224-225) que o casamento dentro da rresma maloca era possí
vel: o que por sua vez sugere a maloca cx:xro abrigo de urna parentela bilateral
e um fechainento errlogfunico possivel.

propriamente político que fundava o grupo residencial era ,a rela

9ao de dependencia do genro recém-casado (ou pretendente - pois o

servi90 da noiva come9ava bem antes da uniao) para com o sogro po

688
os seres dp deYir

lígamo, lfder guerreiro, e para com seus cunhados so,lteiros óu "vi


riloc.a lizado.s ". O fundamento do poder . político, a base dessa es
tru~ura social pode ser -: como se disse de outras sociedades do
continente - a afinida~e e a dependencia dos "wife-takers". Mas,
pelo menos nos Tupinambá, esta base sociológica depende de urna
"cosmolo9ia!': no caso, a guerra-, .o · que confere ao sistema um dina
mismo e abertura ao evento mui to fortes. Nenhuma institui9ao ••trans
' ' -
versal" ou · segmentacr.a o institucional neutraliza o m.o vimento do
conjunto, nenhuma regra: unive.r sal - exceto a vingan9a, o renome - .
articula um cálculo "'prescritivo". Sociedade "performativa"., que
fez do Ódio ao inimígo· o que · os h~vaianos fizeram do amor e do se
xo - signi·ficantes instituintes do socius {Sahlins, 19'85) -, aqui
a proeza guerreira era o que mantinha o sistema, isto é, mantinha
o movimento de escapar dele: poligamia, funda9ao de nova casa,
-a
tracrao de genros, retencrao de filhos. Com isso, o estado 'his.t óri
co do si.stema determinava· seu curso posterior, sempre a. partir do
."a.tratar uxorilocal" - sistema meta-estáv.e l, carregado de histori
cidade, onde tudo dependía. de quantos inimigos se podia computar.

o líder guerreiro era antes de tudo um sogro, e um chefe de


casa-grande. As aldeias Tupinambá naó eram nada mais que a agreg!
qio destas malocas centrípetas, fundadas na afinidade e voltadas
para a guerra: "Em geral, um grande número de genros favorecia as
tentativas feitas nesse sentido de fundar urna nova .casa-grande
por alguns chef es de familia. Is,so era mui to importante para es
tes, pois os homens atr'a idos para a sua maloca deviam constituir
os grupos de guerreiros a ele subordinados. Todas as fontes ••• sao
unanimes em indicar o fato da maloca constituir, por isso, um gr~

po guerreiro fortemente solidário" (Fernandes, 196.3:72-73). A com


pila~ao de Florestan a respeito das regras de forma9ao dos grupos

689
araweté ! os'deuses canibais

locais deixa claro que a ~ldeia éra urna unid~de ~ubordiriada i ca


.. . .
sa-grande :· era um agregado tendenci~l ·e instáve-1, · sem composic;ao

f ixa, fundindo·- se e permutando.· seus · membros com -aldei-as vi Z·i nhas.

A cisao por desav~n9as interna's era fato coím.im, · e rnuitas .ve·zes · os

inimigos mais feroz es eram grupos· :f ronteir:i9os -qué- out rora se fa

ziarn· um, e .que ainda re:conheciam la9os.,. de pa.rentesc·o: a guerra en

t.r;e os indios de Salvador e os de · Itaparica r ·e montava· -a .urna cisao

por causa de uma mulher (Soares .d'e Souza.; 19.71:·301) ; .o cer imonial

de pazes ent,re chef es inimigos, testemunh·a do pelo Pe. Leonardó dó

Vale, .foi possível porque "ai·nda que ·elles tenhao o guer·rear· pelá

melhor vida e . pass a tempos t que há' nao de.ixa0 de conhecer a quie.

ta9ao que de has guerras ce.ssarem lhes nace,. espedialménte polo

parentesco e l.i;an9a de ~ casame-ntos "que .·antre él~les <liá, e amizade

que noutros . tempos · tiver.ao" .(CPJB;II1:47S). Knchieta se ·m aravilha

com a guerra de Piratininga ter: «'.>pos to tios e . sobrinhós, ·pai·s· . ·e

filhos, irmaos., primos •. .; . .(CPJB:. ,111:551) ,., Se. pór .urn ·lado ·a :unida

de ,guerreira' máxima. erarn os blocos de · aldeias · ali-a-das,ligadas .por

parentesco, por outro a transíc;~o do parente para. o _ inimigo podía

ser brusca e drástica, e comec;ar dentro de urna s6 aldeia.

Mas a ·solidatiedade .da _casa...;grande tamb.ém precisa ser. mati

::.aO.a. A grande instabilidaO.e matrimonial Tupinambá.,_ ' tao fla~entada

pelos jesuitas, sugere que fuesmo a maloca era ,um agrupamento flui

do; sua composic;=ao, . apoiada nos lac;os de af inida9e, ero .,,vi:gor ·. num

momento dadó., de.pendía da,. ou se .rnanif estava ern-, a a.tividade ·guer

reira. Ou seja, a · sociedade Tupin~mbá se ·apoiava inteirarnente .· na

"dialética externa" da captu.r a de inimigos para ·vin9an9a · e repoma

c;ao. A guerra produ~ia a sociedad e, em todos · os n.í v,eis .: as pessoas,

a Pessoa, o grupo residencial (onda a guerra era .o pre90 .e a · fun

9io da afinidade}, a . aldeia · (onde o parentesco criava ·um agrup!:

690
. .
· ·os séres do devit

mento fluido unificado pela guerra), o bloca territorial de alía

dos (onde a cerirnonia canibal servia corno exibi9ao de "unidade"

contra os inimigos do momento, qualif icando todos os . pr~sentes co


..

rno obje~os possiveis da vinganc;:a destes).

E quanto a tao falada ' ''patriiiriea~idade'' .a6s Tupinambá?


~

Pa

rece indisputável que eles pro.fessavam urna forma extr'e ma de teo


.
ria patrilateral da concep9a.'o: · o e>Gerripio da devora·c;r'ao dos filhos
. . .
dos .cativos com rnulheres do grupo o atesta, e era justificado p~

los indios coro base na citada teoria; igualmente, · a licitude do

casarnento corn a f ilha da irma justif icáva-se assim , a crermos nos

cronistas,· a ·c ome9ar pela memóría de Anchieta sobre o "casamento

dós indios . do Brasil ... (1933:448-56°) . . Mas, da patrilateralidade co.!}


,.,
cepcional-concei. tual para a patrilinearidade la to sensu ( i 'sto - é;

sem sentido sobiológico precis6)~ e ~esta p~ra a presen9a de gru

pos pa·trilineare's ' éorpórados ., vai urna distanciá que ' nada auforiza

a franquear. PoiS" ·o que ·chamá a aten9aó é justamente o descompas

so entre a abun·a ancia de · informac;:oes sobre a patrifilia9ao conceE..

tiv~, · ~o~ sua incidinbia sbbr~ a · Uniio avbncular (mas ela parece
muito 'mais justificat que fundar o cas~mento com .a ZD) , e a · ine

xistencia de quaisquer indicios de a9ao" córporada de corte agnáti

co ( ou· outro) • .

Inexistindo qualquer forma de . posÍ9ao de identidades ''carpo

rati vas", o CCJTplexo da guerra-devora9ao e~a o único foco de surgi

mento .de identidades ao nivel do irnaginár io grupal (a 11


autonomia 11

cara a Florestan e á Clastres -nao pássa disso, de figura do imagi

nário coletivo, da subjetividade vivida>. Foco que, sobre nao · de

finir unidades fixas de vingan~a, nao seguía ' línhas de 11


descenden

cia" . . O átomo da unidade guerreira era o par sogro-genro (ou ZH

uxorilocalizado/WB), assirn corno o par mínimo da vingan~a era o

691
araweté: os deuses c:anibais

dual matador-cativo, ta.mbém concebido dentro de urna simbólica da

af inidade ..

A vingancra Tupinarnbá nao remete · auma "teoria da descenden

cia",. mas a urna "t.eoria da alian9a" (Dumont, 1971). Deve-se rorn

per aqui a associa9ao, que remonta a Robertson Smith, entre a vin

gan<;a e a rnanifesta9ao das f!o:ntei.ras _identi tárias. de grupos "cor


parados •t, tipi~ament.e linhagens. Mas tampouco se trata de · f azer

valer a idéia de grupos de alian9a matrimonial.consti~uídos, onde

a troca de rnulheres seria duplicada pela ci~cula9ao de ca ti vos. Se


'
há urn.~ . superposi9.a o entre est~s circ~i tos, eles. nao. def iniam ._gr~
pos internos a sociedade. A intensidade .e centralidade da guerra

Tupinarnbá pode estar correlacionada. a isto: nenhu.m outro mecanis

me- competía corn a guerra .para assegurar a viabilidade das giga!!

tescas aldeias '· nenhum jogo estrutural, nephum .esqueleto uniline~r,

nenhum sist~ma de ali.a n9a perpétu~


. .
entre grupos bem qef. inidqs: sem

essa rela9io com


. o exterior~
..
essa. preda9io guerreira
. . onipresente,
.

a forma Tupinambá nao viria a ser. A ausencia de ~qualguer .. dialé

tica interna" implicava a proje9ao da Dife.r en<;a par_a o e.xtez:ior,

a .o mesmo tempo em que im1¡>unha urna passagem . por es _s a, e_xter ~or idade

para constituir a .. interioridade .. do socius Tupinambi.

O :tnimigo era o centro da sociedade: nao é isto q'u e a execu

9ao solene na pra9a central da aldeia, onde a .. vítima.. brilhava,

soberbamente emplumado como se um convidado de honra - era a han

ra que se jogava ali -, nio é isto que ela exprimia?

Se, como mostrou Lévi--StJ:"auss ·, a :r;ela<tªº d~ alian~a é logi

camente anterior a .de filia9ao, resg.atando esta de · sua. continuida

de bruta coma Natureza, aqui se dá ,o mesmo: a rela<;ao como Ini

migo é anterior i rela9ao consigo mesmo e com o grupo, resgatand~

-a de urna identidade-a-si indiferente e na.t ural - urna n-a qual o.s

692
os seres do deVir

outros seriam simples espelhos a devolver a imagem de um Ser ante


poste como telos. Nao há Tupinambá que nao seja, que nao nas9a e

.
que nao morra inimigo de . outrem: .toda
. ori9em já é resposta.Livres
e ferozes, inconstantes e indiferentes, os Tupinamb,á .só eram ser
vos da guerra: est~ os fazia existir, e os empur~ava pa~a a fren
te. Habitantes de urna sociedade sem "cOrJ¡>Or.a 9oes" - incorporal,p~
deríamos dizer - e canibal {incorporante, entao), seu combustível
era o tempo. ·

• * *

Inacabemos, finalmente, com urna volta ao canibalismo. Se a


alian9a e a mortalidade definem o espa~o da Cultura - a primeira
diferenciando os homens da animalidade, a segunda os exilando da
divindade -, vimos como a cosmología Tupinambá se arrlsca nas fron
teiras desse duplo limite, e como isso ainda ecoa no pensamento
Araweté. Se os deuses Araweté, mortais imortais, sao os afins por
excelencia, os inimigos devorados dos Tupinambá também o eram; um
afim bom é um afim morto; e um bom morto é um deus.
e poss!vel. pensar o canibalismo a partir deste desejo de
ir além da· condi~ao humana. O canibalismo terreno Tupinambá, aqu!
le divino dos Araweté, a ascese anti-canibal dos 'Guaraní sao trars
forma9oes da mesma -matriz: a instabilidade da cultura entre Natu
reza e Sobrenatureza. Pode-se entao recuperar o sentido do caniba
lismo como estrutura sacrificial;sem precisar recorrer a no9ao de
comunhao com os a·n cestrais.
A presen9a da coletividade .na cerimónia de execú9ao se ex
plica de outro modo que o fez Florestan. Note-se que o último p~

rágrafo citado deste autor, onde ele justifica a participa9ao da


coletividade na morte do prisioneiro, nao coloca o problema da di
f eren9a entre a condic;ao e comportamento do matador e os dos de

693
araweté: os deuses canibais

mais. Porque o matador nao come sua vítima?

Deve-se destacar um aspecto do canibalismo que, nem por tal


-
ves exagerado .peÍo etnocentrismo dos cronistas, nem por de difi
cil redu~ao estrutural, deixa de ser essencial. Refiro-me a fero
. .
cidade manifestada. no· ritual canibal, a orgia· de sangue em que se
. .
mergulhavam as crian~as pequenas, a famosa gula das velhas, os
. .
rompante~ de furor, o vivo Ódio ao inimigo, o ethos desenfreado e
brutal que emerge de todas as descri96es dos festins antropofági
cos. ~preciso repor as coisás no plano do . comportamento, no pla
no do real, e assumir que estamos aqui no elemento da violencia,

e numa opera9ao alimentar. O sacrificio do inimigo envolve aquilo


. .
que Florestan evocava de passagem como sendo o "plano animal" da
guerra Tupinambá, para logo descartá-lo por inútil enquanto expli
. . '

ca~ao das causas do fenomeno (1970:44-47). Inútil sem dúvida, se


.,

a idéia for tomada literalmente; pois a guerra nao é ca9a, e a an


tr6pofagia nio era "alimentar", mas ritual. Ritual alimentar, en
tretanto - e implicando urna animaliza9io flsimbólica''.

"A regr.a essencial da antropofagia", diz H. Clastres, "é tal


vez a exigef\Cia que todo mundo dela participe" (1972:'80); outra

regra, é que tudo do inimigo era comido - o máximo de gente, · o má


ximo de carne. Só o executor ,. recolhido a casa, em silencio abso
luto e em jejurn, está albeio a festa. Enquanto · todos coroam os
dias de bebedeira de cauim ~om uma ' máxima . encena9ao de ferocidade
coletiva, o · matador é a imagem da medida e da cautela. Está claro
que há aí urna divisao do trabalho simbólico. Se o executor entra
em "estado liminar" - morto, temporariamente sem nome, desaposs~

do de tuda que tinha, cheio. do .sangue místico da ví tima, que deve


rá purgar por incisoes comemorativas -, a sociedade está em pleno
e exuberante furici9narnento. Mas · as co,isas podem ser vistas ao con

694
·0,s.seres do devir

trário: é o matador qu~ encarna a parte da estrutura; é ele quern

exerce o trabalho do símbolo, quern ..suporta o processo de "reprod~


' - .

9ao" da. Sociedade . . Operador do sacrif ício., . ele é . o pi vot do · jogo

de irnagens, encenando a vingan9a, ~spe. lhando o inirnigo e . o morto


. ·.

a ser vingado, manifestando o valor central do grupo: é o Guerrei

ro, ·a Pessoa, o Nome e o Nwne. Liberada do fardo da r~presenta9ao

lá fora a coletiv.idade é o opost~ de urna Socie~ade: canibalismo

destruidor generalizado, ferocidade bruta. Enquanto em casa o rna

tador se espiritualiza, no pátio os demais se "anirnalizam" - to

dos "jaguares''.· Enquanto, pouco antes, a vingan9a exigia um~ ela

horada troca de palav~as entre o executor e a vítima, ~gora a vin

gan9a é urna confusao de bocas e de gritos, de vozes e de imprec~

96es. Ao matador o espirito e as palavras, o neme; aos dernais a

carne e ~ sangue. O matador representa; os outros vao ao real -

mas para irem, alguém precisa ficar. o canibalismo só é possível

porque ~ nao come. A atualiza9ao exige que alguém se incumba da

ritualiza9ao. O matador, calado e recluso, é aquele que depois


' .
cantará, e dirá seu norne. Ritualmente morto, é o único propriame~

te Humano durante a devora9ao - é o guardiao do Simbólico; enquán

to a .comunidade "incorpora", ele é puro Espir·i to. No.t e-se enf im

que o matador, justamente aquele ,que se. envolve em duelo "narcísi

co., coma vítima, é que está sob o . interdito caníbal - como sepa

ra desmentir qualquer leitura· disto tudo no registro do Imaginá

rio. Quern come a{nda .sao os Outros.

A antropofagia ritual Tupinambi nio e, ern absol~to, urna re

cupera9ao de substincia (mística ou mo ral) perdida · pelo grupo,nem

wfla assirnila9ao das for9as do inimigo. Ela é urn dev.ir-In im igo,que

ern código alimentar se tra<luz em devir-Animal. o que se incorpora,

como disse mais atrás, · nao é o inimigo como sub s tanc ia ou partic~

695
araweté ~ os deuses canibais

laridade, mas a posi9ao metafísica de Inimigo. Se a guerra era u

rna "vinga.n9a contra a Af inidade", digamos en tao que a devora9ao é

urna "incorpora9ao da Inimizade" - a transforma9ao do Ego em Inimi

go, sua determina9io ~elo valor-Inimigd.

A oposi9ao matador/coletividade é essencial,_e o · triangulo

que canta é: cativo/matador/sociedade~ Funcionário do simbólico

e vítima do imaginário, o matador entra em ressohancia com sua vi

tima, e este par encena a Pessoa, o lugar do Bu que é po·ssível; a

comunidade canioal encarna (incorpora) o Outro, o Inimigo como po


. .
si9ao. A liminariedade do matador e a morte da vítima retiram am

bos da sociedade, em dire9ao a Sobrenatureza; a ferocidade do gr~

po o coloca do lado da Natureza: a cerim6nia c~ia um duplo afasta

mento da Cultura. Por isso ela nao é urna simples opera9ao de reli

giosidade durkheimiana - a restaura9ao da eunornia coletiva -, ~as

urna atua9ao metafísica. O canibalis~ é urna crítica animal da So

ciedade; mas também uma vontade de diviniza9ao.

O Jaguar-Cunharnbebe, a ética anti-caníbal Guaraní, a conCE!E

9ao dos deuses Araweté como "comedores de carne crua" , mostra co

rno ternos transforma90.es de urna matriz triádica: animalidade,


.
huma -
nidade, di vindade, posta nos termos de r ·e gime alimentar . E termi

nemos com urna evoca9ao da Grécia antiga, onde o canibalismo tam

bém foi uro . operador cosmol6gico de base.

Marcel Detienne (1972a,b,1977) mostrou-nos como, para o pe~

sarn~nto grego, o espa90 da condi9ao humana (a Cultura) conf igur:~

va um sistema político-religioso ancorado no sacrif Icio alimentar

aos deuses: aos humanos as carnes putrescíveis como eles mesmos;

aos deuses a fuma<;a dos ossos e seu perfume, signo de sua imorta

lidade. Do outro lado, os humanos se distinguem dos animais por

terern fogo e leis; sem fogo, os animais sao omófagos, comedores

696
1

os seres do. devir

de cru; sem justi9a, sao alelófagos, entredevoram-se:

"Entre animais e deuses, a ¡x>s ic;:ao do hanem é ben guardada: to

cotidiana do
.
do o sistema político-religioso a sustenta, Jredianfe a
sacrifíciq
.
prática
s~ent9de ti¡x> alinentar. Mas, sob ~
ta forma fixa, o roodelo tri~co nao é correto nern ~· Ele
só se torna assim quando se percebe seu caráter dinámico. A con
di~ h\.Dimanao se define sanente pelo que ela nao -é, . mas tam
bém pelo que ela nao mais é. Na cidade <:Fega, onde a hi.stória
cultural se ~ia oc:m. o discurso mítico scbre as origens, de
senvolve-se una dupla tradi~ao, marcada pela alternancia da Ida
de de Qlro e da Selvageria. Ora (é o mito de Hesíodo) os hanens
vierarn a o:rrer carne depois de ter conhecido a cxmansalidade can
os deuses, ora (oo mito das Mulheres-Abelhas) os tx:mens só p~
grediram a seu atual regí.roe alimentar após ter vivido muito tem
po a vida dos animais selvagens, oc:rnendo cru e se devorando uns
aos out.ros ••• O nodelo apresenta assim duas abert\.lr'as sinétricas,
una .
pelo alto outra pelo baixo, que desenhatl neste canpo concei -
tual duas orien~ cx:>ncorrentes 1 cuja hcrrologia é destacada
pela preserv;a,· ern ambas as extremidades, de um mesno mediador:
Praneteu. Em um caso, pela ~do sacrifício, Prareteu asse
gura a passa~ da a:mensalidade da Idade de OUro a a1imentacrao
carnívora; oo outro, pelo roubo do fogo e a inveni;ao das técni
cas, Praneteu retira .a humanidade da vida se lvagem e a resgata
da bestialidad.e ••• " (1972a: 235-6, eu subli nho).

Tal sistema de pQsi9ao do humano como fun9ao do _f_o_g~o~_s_a_c_r


___
i

ficial - onde o fogo o distingue dos animais, o sacrificio evoca

a comensalidade perdida com os deuses (cf. Vernant, 1979:47 ) - e

de .constru<;:ao da .po lis em torno desse f ogo será questiona do,pelo s

seus d o is lados , por quatro "anti-si s temas", movimento s de r e for

ma ou renúnc ia da vida s o cial e r~ligio s a da cidade, entre o VIQ

e ·O IV9 séculos A.• c.: e eles se apóiam em urna simbólica do caniba

lismo. Ass i m, o Pitagorismo e o Orfismo pretendem r omper a linha

. que separa os h omens dos deuses, denunc i~.ndo o reg ime carnívoro

como mo dalidade da antropofagia, e pregando a as c ese vege tariana,

697
araweté: os deuses canibals

imita9ao da divindade • . Detienne observ~ que há duas variantes do


movimento pitagórico: os Puros, rejeitando toda forma de sacrifí
cio sangrento, e toda.- carne, embarcam em um projet9 anti-político
.
radical, configurando urna seita de rénunciadores (1978:14;1972a:
239) ao modo hindu; a outra vertente, reformista; menos religiosa
que polltica, estabelecia- um
.
ca~u!smo
. .
alim~ntar que
. . recusava ape-
nas certos tipos de vftirnas (especialmente aquela típica: o boi).
A ascese dos Pitagóricas e dos seguidores de Orfeu traz o mesmo
impulso Guarani: superac;io da condic;ao humana "por cima"; a -
pr~

pria diferen9a enterna ao Pitagorismo evoca a "dupla" itica" Guara


ni, aquela dos cornuns, ~ue ie cont~ntam em . ~~nter ¡ distincia a
"alma da carne cr~a" e _o jaguar que dorrne ern cada humano,e aquela
dos xamas que buscam, - pela nortifica~~o do corpo, torná-lo leve e
imortal (supra: 644). Se voltarrnos atrás na história Guaraní, ve
remos que o discurso dos profetas, em s~a radi~alidade anti-polf
tica, aproxima-os dos fiiis de Orfeu: critica total : da Sociedade,
marginalidade, errancia, teologia esotérica (Detienne, 1979:15,
1972b:202).

Do outro lado, ternos os movimentos que buscam a -


superac;ao
da condi9io humano-política "por baixo", em dire9io i anirnalidade:
Dionisismo e Cin.i srno. O sacrificio dionls!aco, devora9ao se-lvagem
da carne crua de urn animal perseguido fora dos muros da cidade,i~

verte sisternaticamente a norma sacrif icial da polis; e a tradi9ao


afirma que essa omofagia terminava ern alelofagia, i.e. em caniba
lismo ( 1972: 241-2) .• Dionísio, es se deus que "oscila permanenteine~

te entre os pólos da ·selvageria e dd Paraíso redescoberto" (1977:.


204), é concebido como ca~ador selvagern,"comedor de carne crua"
( omestés 1. ornádios) e éanibal. O Cinismo por f im, mov imento bastan
te posterior, assume urn caráter abertarnente "animalesco", crítica

698
os seres do devir

radical e individualista do fogo prorneteico e das leis da polis;

postura essencialmente política e . intelectual, o Cini smo · questio

nará os fundamentos mesmos da sociedade: proibi9ao do incesto, do



parricidio, do canibalismo.

Ora, se é possivel ver no Pitagorismo e no Orfismo espécies

de realiza9oes de urna "forma Guaraní", é legítimo propo r que o ca

nibalismo Tupinambá manifesta o . mesmo impulso de trans c endencia

do humano ."por baixo" - pelo jaguár - que o Dionisismo. Que os

deuses canibais Araweté recebam o mesmo epíteto de Dionísio, come

dores de cru , isso fortalece o pa~alelo. _ Mas o que e importante

reter aqu i é essa matriz triádica Animais/Homens/Deuses, e obser

var q~e a cosmologia Tupi-Guarani tende para os "anti - si stemas"

gregos, ou s eja, que ela poe a condi9ao humana, nao só corno ínter

calar (entre bestas e deuses) ma s como precári~, como mo mento a

ser superado; o e~pa90 da Cultura nio é bastiao a ser fortificado,

mas ponto de passagem, lugar equívoco e amb i valente. Pouco sabemos

da religiio Tupinambá; mas o profetismo e o canibalismo parecem

ter configurado urna sintese em que se buscava essa supera9io da

condi9ao humana "por cima e por baixo ": a palavra dos profetas pr~

gava a aboli9ao do trab alho , da proibi9ao do incesto, exortava ao

nomadismo e a dan9a; mas mantinh a o canibalismo, esse núcleo de

excesso que .marca indelevelrnente a tilosofia Tupi-Guaraní. Pouco

sabernos desta religi_ao: mas seu impulso pode ser ainda encont ra do

na religiao dos Araweté, onde só um matador é igual ao deus imor

tal -caníbal. Assim como Dionísio, deus omófago e canibal, é tam

bém personagem central da mi tología dos renun c iantes vegetarianos

do Or-fisrno, assim também a Divindade Araweté. junta extremos: ela

é o jaguar e o canto, a carne crua e o perfume, é canibal e come~

sal dos homens , é ferocidade e imorta lidade, Idade de Ouro e Sel

699
araweté; os deuses canibais

vageria: o animal e o divino numa só figura., o além-hum.ano. Os A


u .
raweté corn seus M~~, jaguares perfumados, talvez · guardern urn eco
longínquo do que terá sido a sabedoria Tupinarnbá: a verdade está
sernpre com o Outro, e sempre no futuro. ·

'

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AP~NDiCES

717
AP~NDICE I: ALDEIAS ARAWET~ 11. Kañinadl-oo ko f! Bacajá
( "CUia de K . ")
Esta lista de aldeias <::X:XTE9ª ern t orno de 1940- 45
12. Ñamire ri~ Bacajá
- ép:x::a de nascirrento dos principais informantes deste 13·. Ita pi:ki: 'f! Bacajá
aspecto da história do grupo. Ela inclui aldeias de dife ( "Ped.ra c:xnpri~")
rentes b locos territoriais e está, tanto quanto pa;sível,
14. Ita pfdi Bacajá
ordenada temporalnente . Serrpre que dispusenos de infonna
( "Pedra vennelba 11
)
~5 adicionais, estas sao indicadas: (a) éroca. aproxima
da; (b) blooo territorial; (e) ataques inimig::>s. Todos
ls . Toro.v2. ripa Bacajá
16 . Iareaka-oo l'tpa Bacajá
os oorres nao-tr.;iduzidos sao da fo.rma (Norre pessoal) +
11

hipa", que significa "leito" ou "terra de fulano", e in


17 . Matad!- hi Pipa ata:¡uesKayapó (circa
18. ~i te :ri:pa 1955) oo Bacajá
dica que a _pessoa ali foi enterrada.
19 . fla- tot.!_ ripa cisao do grupo
20 • Matad! dipa Bacajá- Ipixuna
l. Iatad! rripa 1940 Bacajá
-
2. Mada ' i-hi rt:pa-
21. Paratac! ni pa Ipixuna
- Bacaj á .
Yi:ta ' i oho Pipa-
').
. 22 . · Iwa pitE_ peha Piranhaq4ara_
Bacajá
·- , e"A~rreio-do-c:iiu" >
("Terra do Jat:OOá Grande")'
4. Iraiy.iwa-hi :ri:~ . Bacajá ~ · 23. T~az:a ' e-tc;>ti ripa eCtn J:ardim
..
5 . Arar Ira-no Pipa . . Bacajá 24 . Naiía~ro l'tpa . Ban Jaidi.m
6. Tiap! di:pa _Bacajá 25. Tararni-hi :ri:pa . Ban Jardim
7. ~-rerre Pipa Bacajá · ·· 26. Yal<oati.:.ro l'tpa cisao deste bloco
- -
8. Takara-hi ri:pa Bacajá 27. Qilaf-kam nipa Jatcbá
- ·-
9. Tapl na-no r>ipa Bacajá 28. Yaa !'f na ti'. 1.>c Jatobá
lo. Peka-hi :ri:pa Bacajá ( ÍILugar dos carapanas")
. -
29. Tod!na-hi rtp_q_ San Jardim 43 • Paranl ne ha Ipixuna
. -
30 . Tayopi-hi 1'1:pa san Jard.i.m (e .1962) ( "Beira do rio") ·
31. Tawicíre-hi ka '-t nakai.>a he Ban Jardim 4 4 • Mad!ma ri:J>a Ipixuna
0nde T. derrarrou cauim11 )
1
45. ~r~-k.iñí Pipa Ipixuna
( '
- - -
32. Tiwawr-ro iwa-iwa he Piranhaquara (1965-7) 46. Naña-hi rt:pa Ipixuna
47. Kañr-mat-hi l'ipa Ipi>cuna; pr:iJreiro ata:}ue
( "onde T. f oi f lechacb") - - -
33. Awi' ka pe ataque Kayap5 1967; cisao 4a. Tayip~ r-tpa Parakara (c. 1974)
("Lugar do ipe") Ipixuna
( "caEX>eira d::>s Inirni cps ti ) do grup:> do Piranh~a
34. Ta iiaho ataqtes Kayap5, grélMe cisao 49. Arakaiyi'i ti ~ Jardim (~ sul, se
("Aldeia Novaº dos blocos sul e rorte ( "Lugar das árvores A • ) paraoo desde 1960)
35. Irawacll-oo rt-pa Ipixuna 50. YorodÍ ni:pa Ban Jardim
36 • Ka pi tf!_ i iaho assédio KayapS oo Alto 51. Iwarawi-hi ripa Ban Jardim
( "Ra;a Nova") Ipixuna
- -
s2 . .Arni.yiti-hi l'ipa Ban Jarcli.m (ataque Paraka
s3.
- -
Kañrnadf-no rf:¡>a na., i91s-G>
37. Awad do he Ipixuna
("Onde se a::>rreu milho 11 ) 54. PfdO. ihi pi 8an Jardirn
38. ArananI ni:pa Ipixuna ("Lugar da linha de pesca")

39 . Takawi rt-péí Ipixuna


Ipixuna (contatos can oo "gate.!_
55. A tia.ro nena Ban Jard.im
40. A 1<.ay ha we
( "Lugar da casa redonda")
11
("Onde a casa gue.irrou") ros , chóques a:rn A.suriní)
41. Ia 'i r>ipa Ipixuna 5&. Madf-hi ripa Ipixuna, 1976
( "Lugar da castanheira") 5 7 • r-Ere-hi Pipa !pixuna
42. Aroho ' i r>ipa Ipixuna 58. Yi:ta'i cfmo he Ipixuna (antiga aldeia
("Lugar do pé de frutao") ("Lugar do jirau no játcbá") dos Asuriní)
59. Kañ..í-ITDko-ro
. -
Y"tpa Ipixuna . APOOICE II: CENSO E GENEAU'XiIAs
/

60. Toropa' i ripa Jatcbá


61 : Oyo we 'e ñ No censo a seguir, os Ín:livíduos nurreracbs de
r:1e Jatobá
(= ?) 1 a 136 perfaziam a ¡x>pulac:;ao Araweté em janeiro de
62. Macilpa-do mo-pe
he Jatcbá 1983. A numerac:;ao segue a partir da casa l (setores
("Onde M. quebrou a perna) VI / VIII) até a casa 44 ·do setor V (os individuos
135 e 136 ren-etem a casa 45 do setor VII). Os dados
se ordenpm assim: (a) nace pessoal IT\3.ÍS usado; (b)
sexo (He M); (e) núrrero da casa; (d) · folha da ge~
al:ogia; (e) idade estimada. A partir do nQ 137 in-
clus.i ve, deixo de oonsignilr casa e j:dade. Nas genea
logias, alguns irrl.i víduos aparecem em rnais de urna
folha, de m:xlo a evidenciar suas ligac:;Oes. só regis
.. trei, dos rrortos, . aque les que deixa ;-~ descem:lencia
".~vaem 1983; igualrrente, nao est~o .r~presentados 03
filhos rrortos solteiros dos Araweté que viviam na é-
poea da pesquisa. Os núrreros nas extremidades de ca-
da linha ~orizontal nas qenealogias (grupo de
genra-
nos) 1ndicam ·a rotiexao fraterna maís próxíma e/ou á
folha ero ·que se' 7etoma o grupo .' Linhas tracejadas de
filiac:;ao, ' germanidade ou casamento ind.icarn relaQÜes

" .
.
cla.Ssificatórias ou putativas. Os contornos oontínu-
.
os a circunscrever gtup::>s de pessoas vivas irrlicam a
casa a que pertencem.
SETORES DA ALDEIA ATUAL

721
SETORES I-Il
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4. Kad!ne-kañI
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M / 9 I f.7-8 B-C I 30
5. Irano-ro H I 2 I f.7 e-o / 35 (ver f.1-2. io·2. 108)
6. Yowe'l-hi M/ 2 / f.7 e-o / 30 29. Miri:aka H / "9 I f.7-8 o I 8
3 / f .6 e-o / 25 M I 9 I f.7-8 o/ 5
7. Iadlma-ro
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8. Iadima-hi
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M/ 3 / f .6 e-o l 18
30. rci-kañi
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31. Picinga- .
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9. Iad!ma M/ 3 / f.6 o / 3 32. I!Pl-'do H / 10 / f.4 o/ 25
10. Towañiway H / 3 / f .6 o / 1/2 33. Iaplf-hi M / 10 / f .4 D / 25
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4 / f.7-8 e-o / 4
-
-
14. KañI-poka'e
-
15. Iriw~p!!i-ro
M/
H / s / f .6 e / 40 36. Kañi-newo-hi
(ver f.l-2, 136)
M / 11 / f.4 o / 18
16. Iriwip~i-hi M/ 5 / f .6 C-D / 35 37. Kañi-newo M / 11 / f.4 o / l
,
17. K~rereti . H/ Sa / f.6 o / 12 38. Toiyi ,_ H / 12 / f.4 e / 35
18. Tareara· M/ 5 / f .6 o / 4 39. Mar.i pa ' i -no H / 13 / f.4 e / 45
-
19. KañI-pay~-ro H / 6 / f. 7-8 B-C / 35 40. Tapay~-hi M / 13 / f.4 e / so
20. Tawicire-hi MI 6 / f.7-8 B-C / 40 41. Kin~ H / 13 / f .4 D / 4
21 . Ayo M / 6 / f. 7-8 D / 5 42. Araiyi-kañI-no H / 14 / f.4 e / 50
,
22. Pocihe M / 6 / f.7-8 D / 2 43. Iwa-may~ M I 14 / f.. 4 e-o / 30
2 3. Kamaraéi H / 7 / f.7-8 D / 14 44. Moneme' !-do H / 15 / f . 4 e I 30
24. Yowe'l M/ 7 / f.7-8 o / 12 45. Moneme'I-hi M / 15 / f.4 e-o / 28
-
I

.. ..... .. ..
46. · Monem~' 1-ti-piha-kañI M / 15 / f.4 D / 5 69. Yiriñato-ro H/ 25 / f.3 B-C / 35
47. Kañi-mara-no H / 16 / f.5 ~-O /30 70. Arado-hi M¡ 2s / f.3 e-o¡ 45
48. Moy-piki M / 16 / f .5 C-D / 10 71. Moiwera H / 26 ¡ t.1-2 e-o ¡ 30
(ver f . 1-2, 108) 72. Maria-hi M/ 26 ¡ t.1-2 e-o¡ 40
49. Moyn~i'o-ro H / 17 / f.4 C-D / 40 73. Neña-hi M / 26 / f.1-2 D / 7
50 . Mad!p~'!-hi M / 17 / f.4 C-D / 35 74. Kanopi~-ro H ¡ . 27 J f .1-2 e-o/ 40
51. 'l'emek~ M / 17 / f.4 D / 6 75. K~wiay!.-hi M / 21 ¡ f.1-2 e-o/ 40

52. TaramI H / 17 / f.4 D / 2 76. Ey2. H / 27 / f.1-2 O/ 9
53 . Irawadl-do H / 18 / f.4 D / 20 77. Kanopi~ H / 27 / f.l-2 O/ 6
54. Irawayi-hi M / 18 / f.4 D / 20 78. Tod!na H / 27 / f .1-2 O /3
55. Ticinea H / 18 / f .4 D / 2 79. Moiraw!-do H / 28 / f.1-2 .. C-D /45
56. Ta ' ia-ro H / 19 / f.S B-C / 40 80. Mopita-hi M ¡ 28 ¡ f.1-2 e-o ¡ 45
57. Ta'ia-hi M/ 19 / f.5 C / 35 81. K!:p~ira H / 28 / f.l-2 D / 11
58. Kanoe H / 19 / f .5 D / 6 82. Kañi-ma! M / 28 / f.1-2 D / 8
.......
H / 20 / f.3 C-D / 50
- -
83. Kac!-oho H / 28 / f.1-2 D / 3
59. Moipara-no
60. Ap!dima-hi M / 20 / f.3 D / 18 84. Tamo-ro H / 29 / f .1-2 e-o/ so
61. Arawete H / 21 / f.3 C-D / 25 85. Tamo-hi M / 29 / f,1-2 C-D / 45
62 . Teredeta- kañI M ¡ 21 ¡ f.3 e-o/ 35 . 86. Ap2_ H / 29 / f .1-2 D / 6
63. M'oipara H / 22 / f.3 D / 20 87. Moiyiwa MI 29 / f.1-2 D / 4
64. Y±riñato M / 22 / f.3 D / 15 88. Yarayi-kañI M / 29 / f.1-2 D / 3
65. Na'1 H / 23 / f.3 D / 14 89. Merereti H / 30 / f.1-2 D / 18
66. Iwa-kañI M / 23 / f.3 D / 13 90. K!:rere M / 30 / f.1-2 D / 14
67. Arariña 24 / f.3 D / 13 91. Mita-hi-piha H / 31 / f.1-2 C-D / 55
ti /
-
92. Mita-hi
- M / 31 / f.1-2 C-D / 40
(ver f. 7 - 8, 2 7, 2 8)
68 . Arariña-kañI M / 24 / f.3 D / 11 (ver f .4 , 49)
9 3 . Pateka H / 31 / f.1-2 D / 8 118. fla-maf-hi M / 39' / f .6 C-D / 50
'
q 4. Kañi-ayo M / 31 / f.1-2 D / 6 11°9. Irayi-oho. H / 39 / f .6 D / 9
q s. Ta p ldaiw!-k a~I M / 31 / f.l-2 D ! 4 120. Cere'r m!6I H / 40 / f .6 D / 13
96 . Takayarna-ro H / 32 / f.1-2 D / 28 121. Yap!dafw!-kañi M / 40 / f.6 D / 12
97 . KañI-wid!-hi M / 32 / f. l-2 C-D ! 30 122. Iatadr-no H / { . 5 C / 30
41 /
- -·
9 8 . Madeh a H / 33 / f.1-2 e-o/ 20 123. Homi-hi M / 41 / f.5 e I 40
99. Apit e M/ 33 ¡ f .1-2 e-o/ 15 124. Kañi-b!eH'. M / 41 / f .5 D / 9
. ~

io o. Meña-no H / 34 / f.l-2 B / 75 125. Yato


,_ M ! 41 / f .5 DI 6
.
l.O l. P añora-h i M / 34 / f. 1- 2 B / 80 126. Hi:era H / 41 / f .5 D / 4
102. Heweye-ro H ¡ 35 ¡ r.1-2 e-o¡ 28 127 . . o~o~o-ti-peha-
.~· - 4 -

10 3. Heweye-hi M/ 35 ¡ f.1-2 e-o¡ 2s kañI M/ 41 / f .5 D / l


10 4. Heweye M/ 35 / f.1-2 D / 2 128. ~api:ri: H / 42 / f.5 D / . 18
ios . Pin ah a H ¡ 36 ¡ f.3 e-o/ 30 129. Kañiti
- '
M / 42 I f .5 D _/ 13
106. r a ra'fma M¡ 36 ¡ f.3 e-o¡ 20 130. Awe H / 43 / fi ~ S B~C / 45
107 . Moe!-do H / 37 / f .l-2 ~-0
/ 35 131. PacicI":'hi M / 4-3 / f .,5 B. / 58
108. _Moiyi-hi M ¡ 37 ¡ r.1-2 e-o¡ 28 134 .. Kaí)I-ata-no H / 44 / f.5 C-D ! 25
' - -
10 9. Mocl! M/ 37 / f .l-2 Q/ 5 133. KañI-ata-hi M ¡ 44 ¡. f .5 e-o / 22
'-
110. KañI-kiéa-yo M / 37 / f . ~ -2 D / 3 134. KañI-ata
.,., _ M / 44 / f.S O / l/?
111. Tato-awí-no H / 38 / f.6 C-D / 35 135. Aya-ro
_ , · H / 45 / ~.7-a B / 80
· 112. _Mad!pa'! M/ 38 / f .6 O/ 15 · ( V~ r f . 1- 2. B)
113. Tato-awi
- -
H / 38 / f.6 D / 11 136. Hiato- M / 45 / f.7-8 O/ 9
l l 4. Mateha-,..1. M / 38 . / f .~ O/ 8 \ :
'
115. Morekati H / 38 / .
f .6 D / 6
116. Awara M/ 38 / f .6 D / 2
T
* * * * * * ¡:
117. T iwawl-no · H / 39 / f .6 C-D Í 45
.. .
137. Maria-ro H / f.1-2 C-D 1.6 2. _Ta,paya- ro ,H / f . 1-2 A (f .6 A-B)
-
138. llomi-ro H / f.5 e . .16 3.. Moipara-hi M / f. 3 8
-
}_3 9. Kanopia-hi M / f. 1-2 D 164. Iarawf-do - H / f .3 B
f. 1-2 D 16 5. Arado-ro H / f .3 C-D
140. Kawiad!-do
.- H / -
e-o 166. Arn~yiti-ro H / f .3 C-D
..
141. Araiyi-kañí-hi M/ f .4
; ..
167 . Amiyiti-hi M / e-o
f .3 ..
' '
M. / f. 1-2 168. . Iraiatf-no ' H / f .3 B-C
14 3. Moira.w l-hi D
. -
169. Iraiyi-hi

t . ;

M / f.3 B-C
144. Mopito-ro H / f.l-2 D
- . :
145. Moira-hi M / f.1-2 D 110. Y'e teweri-no
.. - H / f .3 B
-
; ·f:l-2 D 171 : Tayopi-hi
. M / f.3 B (f .5 A-B)
146. Mita-no H

147 . Iwa-no H / f.1-2 B 172. B!tai-hi M ! f .3 B


'.
148. rwañi-hi M / f.1-2 B 173. I.warawi-ro H / f .3 A
(=205)
. .
174. Iwarawi-hi
'
M i 'f. 3 A
1.49. Teme.k f-hi M / f. 4 B
. -
- .. '
1-o .
.~~ Pañora-no H / f .1-2 B 175. Moy-kato-ro
.. H / f .3 A
- .
176. Moy-kato-hi M / f .3 A
15 l.. Madewe-ro
- H / f.l-2 B
., - - .
15 2. Madewe-hi M / f~l~2 B 177. Naña-hi M / f. 3 A (f.7-8 A)
-
is J. Ka rama-ro H / f. 1-2 A 178. Moy-pik:i:-ro H / f .3 A-B (f.7-8 A)
], 7 9. Y:i:.riai-ro H / ~. 3 A (f .7-8 A)

155 . Torowa-hi M / f.1-2 A 180. Mere-ro H / f .3 A-B'(f.7-8 A-B)


- - -
15 6 . M:i:r:i:aka-no H / f.6 s.:..c 181 . Mere-hi
( - M / f .3 A (f. 7-8 A)
15 7. Aeldo ¡¡ · / f. 1-2 A (f .6 A - 8)
' ' - 18 2. Yar:i:wa-no

H / f .3 A (f .5 A, f.7-8 Al
-
15 8. Aiyi-hi / f. 1-2 A (f. 6 A-B) 183. Yar:i:wa-hi M / f .3 A (f. 5 A, f. 7-8 A)
1 ::> _, • Ka ~m
~ l
M
.• .
184. Moynai'o-hi
-
~a -
ea -1i
1
M' / f . 1-2 B
. - M / f .3 B
'
16 ('. . M(iña-hi M / f. 1-2 B lBs. · Taprna-no H / f .3 B
-
.....] 161. t-1oy-p:i:k i- ro H / f. 1-2 D i86 . Tod.rnanI-no
- H / f.3 A-B
éÑ
.......
-..J
~
t\)

187. Toelnani-hi M I f.3 A-B 211. Aymi.-ro H I f .5 A

189. Ma6!p~'I-do H / f.4 C-D 213.


.-
212. Toiyi-ro
Kañi-maf-hi
H / f .4 B
M I f .4 B
190. Temeki-no H / f. 4 C-D 214. Moko-ro H / f .4 B
191. Iareaka-no H / f .4 A 215. Ireyere-hi M / f. 4 A
192. Iareaka-hi M / f .4 A 216. Ir.eyer~-ro H I f .4 A
19 3. Tapaya-ro H / f .4 e 217. Ipekf ..-hi M / f .4 supra A
19 4. Tiap! H / f. 4 A 218. Koira-ro H / f .4 supra A
195. Yicirepa-hi M / f. 4 A 219. Mo61'.-do
-
..... H / f .3 A
196. Takara-ro H / f .4 A 220. Mofir . . , hi M / f .3 A
-
19 7. ·Takara-hi M / f .4 A 221. o·
a ci-ro H / f.3 supra A, f .6 A
198. KañI-aw!-hi M / f .4 A-B
- -
199. Kañi-aw!-do H / f.4 A-B
222. oaci-hi
.....
223. Aradf ma-hi
M / f .3 supra A, f .6 A

- - M / f .5 B
200 .. Karamrra-no H / f.3 B-C 224. Maña to-ro H / f .5 B
M / f .4 A
-
201. Dece-hi 225. Mañato-hi M / f .5 B
202. De ce-ro H I f. 4 A 226. T1arayi-hi r.j / f .5 A-B
203. Ip~-p!:ki-ro H / f .4 A-B 227. Ti:arae.f-do H / f .5 A-B
'
204. Temekf-no H I f .4 A-8 228. Moneme-ña-kani-
- _,
205. Temekf-hi M / f .4 A-B no H / nao repres. (F 226. f~S A-B)
206. Kaiyi-hi M I f. 4 B-C 229. Monerne-ña-kañI-
20 7. Ita-hi M / f. 7-8 A-B (=280)
- - 226)
hi M / nao repres. (M
208. Mamaña-yo-kañr- 230. Pacl'.c!-no H / f .5 B
no H / f . 4 B-C 231.
-
Aradi'ma-ro H / f .5 B-C
-
209. KañI-kica-hi M / f. 4 B 232. Tarep!-zto H / .f. 5 A-B
-
210. .Aymi-hi M / f . 5 A 2 3 3. Iwa-may~-ro H / f .5 A-B
2J4. TarepI-hi M / f .5 B 261. Tanayi-h~ M I f .6 B-C
2.35. Iwa-mayo-hi M/ f .5 A-B 26.2. Tanayi-r6 H / f .6 B-C
236. Mo-iwito-ro H / f .6 B-C 263. Awf na-no H / f~ 6 A-B
-
237. Mo-iwito-hi M/ •f. 6 B-C 26 4. Mano-hi M/ .f • . 6 A-B
238. Mik:tra-no H / f .6 B 265. Mano-ro H / f .6 A-B
239. Mik;;ra-hi MI f .6 B 266. Koira-hi M / f .6 A
240. Tayopi-ro H / f .6 B 267. Yowe'.t-do ·H /. f. 6 e-o (f.7-8 C-D)
2 41. TaranI-hi M / f .6 B 268. Moira'i-no H / f. 7-.8 B
-
242. Ira-kica-no H / f .5 B-C 269. Moira'Iñi-hi M/ f.7-8 B..
- -
243. I ra-k.i:ca-.h i M / f.5 B-C 270. Modfda-ro f.7-8 A-B
-
2 4 4·. Koho-hi
-
M / f .5 A 271.
-
Tawf--no
H /
H / f.7-8 supra A
245. KañI-nadf-no H / f .4 B, f .5 A-B 272. Tawf-hi M / f .7-8 supra A
- .
246. Kañi-nadf-hi M / f. ·4 B, f .5 A-B 273. Modfda-hi M I f. 7-8 A-B
2 4 7. Marikai·-ro H / f .6 B-C (f .4 B) 274. KañI-wid!·no
2 48. Arac!me-ro H / supra A
f .5
-- -
275 • . Iakoati-ro
H /
H /
f .1-2 C-D, f.7-8 B-C
~.7.8 A-B
-
249. Arac!me-hi M ./ f.5 supra A 276. Iakoati-hi M / f. 1 ... a A-B
- -
250. Parapici-hi M / f.5 A 277. Tapfdorí-no H / f.7-8 AB
251! Irayiwa-no H . / f .6 e 278. Tawicire-ro / f. 7-8 B-C
252. Iwa-topí-.hi M / f" 6 e 279. Ita-no
- H
H / f. 7-8 A-B
25 3. rrayiwa-hi M/ f .6 e
254. Yi:riñato-hi M. / f .6 B-C 281. Tapaya-hi / f .1-2
- M A
255. Yi:riñato-ro H / f .6 B 282. Ita-nopf-do H / f .6 B

256. M:tr:taka-hi M / f .6 B 283. Ita-nopf-hi M/
- f .6 C-D
f .6 B
257. Tap!na-hi M I 284. Tamoi-ro H / f . 1-2 A
258. T~ptna-no H / f .6 e-o 285. Madapf-hi .M / f .1-2 A
259. f.la-ma!-do H / f .6 G-D 286. Tiwaw!-hi
- M / f .6 e-o
-..J
~
-
~ -260. Manayi-hi M / f .6 A-B
APf:NDICE III: SI'hJ7\c;r~o Dl\S ,RCQ\S
(ano agríoola 1983-4)


..

i50
Distinguern-se tres graus quanto a posi~ao r~
lativa das r~as (ou casas que as plantam): oyo-pi
'
sao ~as conexas, servidas por urri mesiro cami~o;
oyo-api sao rcx;as anexas, separadas por urna divisa
de paus nao-derrubados; e oyo-pitiwa se d.iz de urna
(:~1)
rcx;:a conjunta, aberta por. mais de urna familia con =o-6
jugal. · Tais graus correspon::len . a distancias so ·~7
ciais decrescentes entre as familias - e sao eres
c~ntem~te mais consistentes nesta oorresporrlencia.
o o 109 · HO
Apenas as rcx;as conjuntas posSU611 uma ·existencia
I
"jurídica" reconhecida. I
I .

.... /

·As genea-logias a seguir seguem as conve~oes:


(a) sua ordem é a mesma dos setores da áldeia e
das genealogías do Apend.ice II (quando possível)
urna ccnipara9ao será instrutiva; (b) os números en
tre ( · ) colocados sobre o sinal = (oonjugalidade)
referem-se a casa do casal; · (e) os contorrps conti
nuos circunscrevem familias de r09a conjunta; os .. . / (2.7) . \,
A::tü 6::;e 1
tracejados, ro;as anexas ou proximarnente conexas.
Apenas a casa 4 parece ter r~a isolada (nao-cone
_ _ _ ___._ _ _ _--4-_
~"°{~5
,.,,. - ...._ ,r
(Z ~\
\7" 13'1 ¡
:J
xa); (d) os núrreros dos irrlivíduos rerretem ao Apen
dice II; os sinais de filia9ao, frate~nidade ou
81
·o= '666 /
60 Sq ~ 18 77 76 .,/
conjugalida<le de tracejados derotam rela9oes e las '-.... --- .,,,,, / ' - ____ ,,, "'
sificatórias ou putativas.
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'\ 70 I ~S
' , ... ...;._1I
. 1

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1
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·60 Ht 0606
52 5f fH H5' ii6 H3

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6& 61
~6 ¿ 3.5

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;
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INDICE

ANALÍTICO E ONOMSTICO

l. AUTORES 480,487,490,513,519,522,582,591- 2,598,


617,633,635,658,686
d'ABBEVILLE, C. 339,385,676 COOPER, D. 121
ADALBERTO DA PR0SSIA 142 COUDREAU, H. 132,136,143
AGOSTINHO, P. 97,227 CROCKER, J.C. 29,111,120,267,390,436,502,
ALBERT,B. 97,111,389 626
ANQUETA, J.de 35,386,655,663,671,657,677, DA MATTA, R. 46,96,lll,119,125,389,436,
687-8,690-1 469-70
ANDRADE, L. 99,470,487,513,614,629,636 DANIEL, J. 142
ARENS, W. 618 DE COPPET, D. 6 70
ARNAUD, E. 130,140,144,147 DELEUZE, G. 105,123-4,208,502,506,618
ASPELIN, P. 133 ~ETIENNE, M. 116-7,607,625,653,696-8
BAKHTIN, M. 549,555 DOOLEY, R 4 63,227,513,540,597,641
BALDUS, H. 49,89-92,-107,113,199,513,632 DOUGLAS, M. 46,258
BAIAE, W. 94,97,145 D~ZIL, G. 629
BASSO, E. 97;106,287,314,316,436 DUMONT, J.P. 116
BASTOS, R. 97,313,344,440 DUMONT, L. 122,124, 411 ,606,631, 692
BATAILLE, G. 620,651,653 DURKHEIM, E. 24,86,88,623,653,658,671,696
BATESON, G. 69,496 DUVERGER, C. 649
BENVENISTE, E. 212 EVANS-PRITOiARD, E. 49,116,121,209 ,625
BETTELHEIM, B. 344 d'~VREUX, Y. 386,392,513,647,671
BLÁZQUEZ, A. 662
BLOCH, M. 502,522,526,528,604,615,635,659 ~DIDA, P. 114
BLOY, L. 570 FERNANDES, F. 25,37,82,84-8,97,117,202,
BORGES, J.L. 23,113,570 384-7,407,409,415,439,442,597,642,646 ,
BOUDIN, M. 467,479,513,634 650-9,665-6,668,670,672,678,685-6,688-9~
BU<liER, B. 663 691;693-4
FERRATER-MORA J. 116
CADOGAN , L. 35,101-2,105,113,150,189,201, FORSYTH, D. 618
212,253,257,387,467,470-1 ,513-4,517,525, FOUCAULT, H. 113
530 , 548 ,596-7,610,633 ,636,638,640-1 FOX,. J. 606
CAMPBELL, A. 67,99,206-7,250 ,255,446-7,
513,629 . GALLOIS, D. 96,99,139,141,196,198,233,255,
CAMPOS, A.de 183 259,319,507,513,521,570,629-30
CANETTI, E. 299 GALVAO, E. 89,97,137,140,153,162,178,185,
CARDIM, F. 339,350,385-6,488,499,597-8, 201,233,250 ,255, 259 ,265,273,361,393,407,
659-60 ,662 ,669,673-6 415,440,442-3,449,451,462,486,5 72 ,592,
CAROOSO DE OLIVEIRA, R. 119 634,636
CARNEIRO DA CUNHA, M. 28,53,86,118-20,122, GANDAVO, P. de H. 387,647 ,661,6 73 ,676,6 78
200,252,382,389,436,498,519,521,524,528, GEERTZ, C. 125
605,616,650,658,674,681 GIANNOTTI, J.A. 105
CARVALHO, J.E. 130,145-7,166,180,355 GILLISON, G. 344,678
CARVALHO, S.M. 488,675 GIRARD, R. 653,671,680
CASTELLO BRANCO, J .M. 141-2 GLUCKMAN, M. 457
~SAR, J.V. 488 GODOY, L. 212
CHODOWIEC, U. 627 COMES , M. 164
CLASTRES , H. 37,53,57,81,94,102-5,114-5, GREEN, A. 114,619,654
122-3,222,259,261,295,388,393,435,437, GRENAND, F. 63 ,9 8-9 ,496
502,519,524,527,530 , 537 , 596-7,616-7,619 , GRENAND, P. 62,96,98-9,139,158,164,1 71-2,
627,633 ,640,642-6,6 49,660,668 ,6 79-81,69~ . 198,209,216,227 ,298 ,387,391 , 398,407,436,
694 4 42. 513. 6 30
CLASTRES, P. 28,47,87-8,102-S,165,202,212, GRt!NBERG, F. 102,167,350,640
294,317 ,387-8,439-40 ,442,446-7,458,471, GRUNBERG, G. 43,96,102,158,162-3,167,1S7,

737
indice

189,197,250,255-6,259,350,388,407,520, LOPES DA SILVA, Ma.A. 389-90


630,638,640 LOWIE, R. 686
GUATTARI, F. 105, 116, 123-4,618 LUKESCH, A. 58, 220
GUIDIERI·, · R. 123, 222, 4 75 ,617-8,620, 653 LYON, P. 103
LYOTARD, J.-F. 549
HAGE, P. 121 • r
HARARY, F. 121 MAC DONALD, J.F. 93,393
HARNER, M. 390,,655 MALINa.ISKI, B. 86. ' "
HENRY, J. ·. 519 MALLARMe, S. 596
HERÁCLITO 9, 123,465,624 MARTIUS, K.F.von 83
H~RITIER, F. 32, 384 MAUSS, M. 86 ~7 ,114-5,119-20,124-,570,653-4,
HERTZ, R. 494-5,615,654 658
HOBBES, T. 9 3 MAYBURY- LEWIS, D. 29,528
HOLMBERG, A. 93-4,97,113,387,425,447,490, MELATTI, J.C. 82,95,120,200,389
635 MELIÁ, B. 24,82,'100,102,167,201,350,591,
HUBER, P. 649, 66 7 638,640
HUBERT, H. 114-5,570,654 MENGET, P. 111,139,173,179,ZS0,350,377,
HUGH-JONES, C. 113 ,200, 314 ,319, 344, 390, . 388,450,469,474,6?2 . .
447,519,528,602,618,629,649 HtTRAUX, A. 53,83-4,101,113,140,202,253,
HUGH-JONES, S. 41,189,250,344,502,649-50 255-6,384-7,59~,614,647,668
HUMPHREYS, S. 528 MEYERSON, l. 119
HUXLEY, F. 41,90,94-5,114,140,165,171,18~ - MONTAIGNE, M.de 668
191,197-8,238,255 ,294,319,350,360, 393, MONTEIRO, J. 385-6,439,488,660-1,664,674,
439,446-7,503,507,521,539,613-4,616.629 676
MULLER, R. 38,43,99,130-1,134,136,143,167-
JACKSON, J. 314 -8,258,415 ,636
K.AKUMASU J.Y. 540 MURDOCK, G. .13 7 ,_686
31-2 , 4 7 , 1O5 , 111 , 116 , 12 3 ·, 2O5 ,
KAP LAN , J . O. MURPHY, R. 97
224-5,233,411,502,528,614,6B2,687 NEEDHAM, R. 193
KHLI~BNIKOV, V. 183
NIETZSOiE, F. 88,422,607
KRACKE, W. 43,92,96,98,114,158,170-1,178, NIMUENDAJU, C. 35,57,82-4,90,100-1,105,109,
198-9,207,217,224,255,258,309,313-4,319, 137-8,141-4,175,185,187,190,196,201,223,
350,352,388,391,393,398,411,427,436,439, 238,255-7,265,350,387,392,521,534,572,
442,445,467,474,478,513,636-7 597~599,615,626,635-6,638-41
KRAUSE, F. 83 . NOBLE, G • • 83 .
LACAN, J. 610 . . NORDENSKOLD: E. 83
LADEIRA, Ma.E. 186,388-9,684 NOVAES, S.C. 616
LARAI A, R. 86 , 9 6- 7 , 13 8, 140, 2 5 3, 3 8 8 , 4 8 7 OBERG, K. 97
LATHRAP, D. 83 OLIVEIRAF9, J;p, SS '
LAVE, J.C. 200,389 OVERING, J. - ver KAPLAN ,J. O.
LEA, V. 389
LEACH, E. 126 PANOFSKY, E. 117
LEITE, Y. 145 PA~NIDES 123
LEMLE, M. 145 PARRY, J. 502,522,526,528,604,615,635,659
LEMOS BARBOSA, A. 63,392,425,510 PEIRANO, M. 88,387-8,390
LrRY, J.de 42,292,339,392,597,647,662 PESSOA, F. (Ricardo Reís) 465
L~VI-STRAUSS, C. 29,31,41,46,57,66,86,95- PHILIPS, S. 298
-6, 110-2,116,121-2,155, 189,212,259-60, PHILIPSON, J. J9~
263,346,351-2,364,366,384,407,433-4,446- , POE, E.A. 596
- 7 '488, 501, 518-20, 52.7, 599, 613-4. 617.626, POOLE, F .P. 222
649,664,685,692 POUILLON, J. 222, 627
L~VY-BRUHL, L. 116,121,626,652-3 POUND, E. 54 8
LIENHARDT, G. 209
LINS. E.T. 253 RADCLIFFE-BROWN, A. 126
LIZOT, J. 57,222,259,368,378,380,388,474, RAMOS, A. 97,387-8,390
595,617,636 REICHEL-DOLMATOFF, G. 233,626,649

738
índice

RIBEiRO, ' B • .43 ~ 58 ,143,14 7-8·, 151,.163, 180, 2 76 VIDAL, .. L. _1 41,144


RIBEIRb, D. ·94 · · . · : . ' VIERTLER, R. 390,4-71
RIBEIRO, F. 72 VON DEN STEINEN, K• . 625
RIVI~RE, P. 31-2,93,97,126,170,179,314,319,
406-7,411,437-,528,682,686 ' '. ' WAGLEY, C • . 40,4·9 ,89-'9'2,94,97,99,10-7, 113,
ROA BASTOS, A. 162 140,151,153,162,164,171,178-9,1!5,189,
ROBERTSON SMITH, W. 692 199-201, 233. 250 ,255-6 ,259. 2.65', 2 73. 314.
RODRIGUES, A. 82-3,144-5 345,-361, 388. 39 3,407 ,415 ,-436 ,439-40, 4Lf2-
RODRIGUES, V. 459 -3,446, 449,451,462,486,513, 520, 532, 539,
ROE , '. P • . 2 50 . 570,572,592,599,614,631-4,636
WATSON, J. 102 ,
ROSSET, C. 208
ROUSSEAU, . J .-J. ll 7 WEINER, A. 88
SAHLINS, ·M. 126,610,648-9,689 YALMAN, N. 411
SALMON, H. 121
SAMPAIO, T. 258
SANTOS, s •. C.dqs _ 133 ***** '
SCHÁDEN, I¡:._ 57, 9Q, 93, 96, 101-2, 105,.113~117 ~
147' 15.l, 196..• 2_0 1-2. ~ 12. 233 ,2 3'6. t45, 25ú t
25 3, 256-8. 2~.5. 38}., 439-40. 460 '46 7' 4 74, 59 2, 2. POVOS
628,638-41 ' . . .
AOI~ (Guayaki) 93,102-3,106,165,202,212,,294,
SCHMIDT, M. 97
3S7,439-40,442,4~6-7,458,463,471;480,487,
SCHMIDT, W. 83 . ,. .
SEEGER, A. lll-2,116;-7,119,12~,20cr~ios,232,
490,504,513,522,578,591-3,598,617
1:: .. ,
635 • 658
A.KU....WA (Asurin1) 96-7 , .J,,38, 140, 253 ,_255, 286,
..
547 .
352,,3_8 6. _3 89 .. 436 ,439, 4 43. 45'6 -8, 469-)0'
591-2
SHERZER, J. 549
. . 470;487,513,614,629,636 '
ALTO-XINGUANOS 31,36,60,97,109,114,344,368,
3 78, 436. 443, 4~9 ,528,.5.34
.

.
SILVERWOOD-COPE, P. 474
AMANAY~ 139 ..
SIMOND<lJ, G. 122
ANAMB~ 137
SOARES, M.F. 145
SOARES DE SOUZA, G•. 385,_438,442,459,488;
ANGGOR 6.49, 66 7
646,648,660,664,6~,,690 ' AP APOCUVA (G~ara~i) .83., 90, 10.o '-1,196, 2_0·2, 223-
SPERBER, D. 65, 121,212 - . '
-4, 238, 386, 615, 639-40
APIAKÁ 139,
SPINOZA, B. 230,481,679
APINAY~ 13 7, 469
STADEN; H.' 34~:-50,385-6,537,6it,625,657,
65~-61,663 '' . ' ARAPESH 222
ARARA. 137-9, 175
STEINER, F. 258
ARUAQUE 84,97,139
STEINMETZ, M.R. 653,658
ASURINI 42-3, 71, 113, 130, 133, 135-6, 139, 143-4,
STEWARD~ " J .H. 82, 148
147,156,166-8,174-5,208,221,255.258,286,
STOCKING, G.W . . 108
291,577,588-9,611,636
TlifBAUD, J.-L. 549 . AZANDE 49
THEVET, A. 84, 350, 385..;6, 435, 439, 485, 488, AZTECA 649
537,597-8,646-8,655-7,662,664,671,674-
BARASANA (Tukano) . 602
- 5. 6 77. 6 80 • 6 83:- l(, 688 ' '
THOMÁS, ·D. 411
BORORO 29,36,57,114,120,287,384-5,390,436,
45 7 ,4 71,4 88,490. 502 ,_518, 616, 6.25-6, 682, 68&
TURNBULL, C. . 46
TURNER; .T. 98, 686. CARIBE 31,106-7,137,287,365,407,411,682
TURNER, V. 45 7 CURUAYA 143, 175
TUZIN, D. 222
DINKA 209
VALADAO, V. 314 DOBU 502,528
VALE, L. do 690
FATALEKA 123,475,6.17-B
VERDIER, R. 653;6 71
VERNANT, J.-P. 53,116,301,498,525;649,671,
FIJl 610, 648-9
697 GIMI 528 ,6 78
VERSWIJVER, G. 389 GOROTIRE (KayapÓ) ' 141

739
Indice

GRtCIA 625,649,671,696-9 158, 170-1~178,198-9 ,207, 224 ,255, 258,286,


GUAJÁ 99,106,139,146,164 309,313-4,3l9,350,352,387-8,391,393~39'
GUARANI 28,43 ,53 ,5 7, 82, 90, 9 3-4, 96 ,99-105, 411,427,436,439,442,445,467,474,478,512~
113,117,147,151,167,185,196,201-2,212, -3 636-7
2 36, 251,255. 25 7 ,259 ,261,265 ,286 ,'350. PEMON ' 411
386-7' 392, 439' 463,46 7,4 74,...5 ,502 ,513-4. PIAROA 32,47,116,205,224-5,389-90,411,502,
517,524-5,530,572,592,596-7,605,616, 528,614,682
638-48, 680,<6AJ3 ,'696 ,-698
GUIANA (tndios da) 93,97,170,179,314,319, SAMO 384
389-90 ,43 7' 686 SANUMÁ (Yanomami) 387
SHIPAYA 109, 138, 140-3, 175, 187, 190 ,202., 258,
HAVAIANOS 610,689 286,350,521,534,597,599,610,614,626,636
HINDUS 52~,631,698 SIRIONO 93,97,106,146,387,425,447,463; 635
IROQUESES 62 7 SURUf 96-7,106,138,140,286~487
SUYA 295,232,352,439,443,456-7,591-2
~ 28-32,35-6,46,67 ,93,95, 97-8, 109'112-3,
120,125,200,230,252,287,389-90,436,488,. TAKUNYAP! 140,142,350
613-4,619-20,682,686
•,J
TAP A..J0s 139 .
JfVARO 384,390,655,686 TAPIRAP2 43,49,89-94,97,106,113-4,l51,164,
JURUNA 109,137-8,140-1,175,350 171, 178, 189, 199-200,2'55-6,259 ,265,286,
314,436,439-40,442,446,451,463,513,520,
KAAPOR (Urubu) 41,90,94-6,139-40,145,147, 520, 532-3, 5 70 ,5 72 ,580, 592' 599' 614 ,631-4
165,171,185,197,238,253,255,319,350, TAPIRAUA 137
360,439,446,463,487,503-4,521,614,616, TAPUIAS 677
629 TEMB~ (Tenetehara) 238,314,479
KALAPALO 314,316 TENETEHARA 89,97,138-9,153,162,178,185,200-
KAMARA (Nao-indios) 56,65-77,194,380,577 -l,232-3,250,255,259,265,273,361,407,
KAMAYURÁ 42,97,227,253,313,440 . 440,442,447,449,451,462-3,467,512-3,572,
KARAJA 92 592,634-7
KAYABI 43,96,158,l62-3,"187,189,197,250, TI·MBIRA 137,498,684
253,255-6,259,286,350,407,463,512,520, Towaho 175,240,459,586,611
630-1 TRIO 32,407,411,686
KAY.APO 56 ,6 7, 92, 98, 130, 135, 13 7-8, 141, 166, TUKANO 31,36,109,113,189,200,314,319,344,
173-4, 177'194, 208, 221, 378, 456-7 ,489 ,499, 390, 44 7 ,502 ,52 8, 6'29 ,649 ,686
504,577,580,599 TUPI-CAWAHIB 96
KAYOVÁ (Guaraní) 102,201,233,256,258,386, TUPI- GUARANI 22-5, 108-17, 136-142, 202-4,
446,640-1 256-61, 512-3, 627-9 e passim
KRAH6 120,186,200,252,382,521,524,528,605, TUPINAMBÁ 25 ,42, 83,85-8, 97, 101, 107-8, 113,
616,674 . 118,202,258,261,286,291,295,339,349,384-
KULINA 36 -6,389,392-3,407,425,435,439,442,453,48~
KUPE..:.ROB ¡3·7 488,490,499,513,527,5 37,562,597-8,605,
MAORI 649 618,620-1,625-6,642, 646-96
MA~ 93,109,148 TURIWARA 139
MBYA (Guaraní) 102,113,150,189,227,245,386, TXIcAO 139, 179, 350, 377 ,384-5, 388,469, 6 72-3
440,471,513,610,636,638,640-1 WAYAPI 62 ,6 7, 96, 98-9, 106, 113, 139, 158, 164,
MELPA 528 171-2,196-8,207,227,232-3,250,255,286,
MERINA 502 ,528 298,319,387,391,398,407,436,442,446,463,
MUNDURUCU 97,109,137 467,487,496,503-4,507-8,512-3,521,570,
629-30
ÑANDEVA (Guaraní) 387,446,638-40
NUER 49,86,209,625-6.655 XAVANTE 384,389-90,528
XETÁ 106, 146
XIKRIN (Kayapo) 133,141
PACA.JA 137-8,140,142
PARAKANA 39-40,56,61;11,135,138-9,156,167, YANOMAMI 31,36,60,97,259,368,378,384,388-9,
175,177,180,220,577,579-80,587,611 4 74 , 595 • 6 36
PARECI 97 YARUMÁ 139
PARINTINI'IN (Kagwahív) 43,92,96,98,106~137, YAWALAPfTI 36,208,223,227,232,439

740
índice

***** nomina~ao 387, 390.


CADÁVE'R - 484-7.489-91,495-7; e o espectro
3. TOPICOS 497-ss; e o matador 580; 647,673-8.
A\:Al - 158,243,354. CANIBALISMO - 22,~4,84,88,95; endo- e exo-
ALDEIAS - morfologia 74-5,278-80,285-8; lo 103,617,678; e os deuses 220-1,260-1,487-8,
caliza~ao 168-9; popula~ao 170; nomea~ao -
700; e canto/palavra 260,386,628-ss,638-41,
170-2; mudan~a 170-1; concentra~ao/disper­ 660; ·e animalidade 225; dos A.ñi 215,487-8;
sao 264-74; e o milho 264-5,286-=- 7; e mata. e o cauim 349-50; e os Guarani 105,641-2;
272-4; aparencia 275-6; e xamanismo 285-6; tipos de 222; e onomástica 384-6.388; Tupi/
sociabilidade 289-93; "dono" da 305,311-3. Je 488; morte e putrefa~ao 494-6,597-8; mor
te e memória 522-5; e o matador 595-6; seu-
ALMA - 117-8,193,217,248,259,449,450,469, significado na cosmología Araweté 616-ss;
474,479-80,481,514,517-26; conceitos TG de e a dialética da identidade 618-21; na Gre-
512-7; nas cosmologías TG 627-46. ,cia 625-6,696-9; analise da teoria de Flo-
A'o r.>e - 448.467-8,474,477,480,483,509- .restan Fernandes 650-9 ,665-9; como devir-
-10,512-4. 1 - 79,438,475,483,496,498,503- outro 668-9,695-6; como morte ideal 671-4;
-4, 514-26. Ta'o ~ - 57,79,462,492~3,497- e funeral 675-7; na cosmologia TG 693-700.
-507,509-13,522,577,596-7,606,672.
CANTADOR - 329 ,349,362-3.
AMBIVALtNClA - 113-5,259,615,632-4,643-5,
682. CASAS - 276-8,282.

A.NI - 206,215-8,244-5,255,462,487-8,493. CAUIM - ciclo do 265-7,322-41; e opirahi


496-7,499,503,541-2,584,597,606,629,631, 298,582; servi~o do 267,271-4,318,322,331-
637,647,674. -3; doce 322-7; alcoólico 328-39; sistema
do 348-9; precau~oes 328,335-6,343-4,447-
ANIMALIDADE - 79; animais 223-8; e divinda -8,467; e animalidade 225,347; simbolismo
de na cosmología TG 628-ss,700. - do 158 ,162,331,341-7; paralelos TG 350.
ANTA - espirito da 325 ,260,343. Ver Xama- CENTRO - na geografía 135,166-7; e a con-
nismo (Peyo). cep~ao de espa~o 194; e morfologia social
ARARAS - 539. 280,285-6; o inimigo como centro da socie-
dade Tupinamba 692.
ARAWET~ - trabalho de campo entre os 35-6,
38-41,58-62,65,69-70,77-9; cultura material
ceu E TERRA - 184-6,197-ss,203-4,219,222,
426,437,497,517-26,615,638.
48,146-8; nome 130,143-4; loca liza~ao,terri
torio 130-6; situa~ao etnográfica 136-9 ; r"é CHEIROS - 211,215,218,426,470-1,488,524,
giao 140-4; lingua 144-6; aparencia 148-9;- 564.
agricultura 150-3,265-8 ; ca~a e coleta 153- COBRAS - 187,239,444,446-7, 520 ,534.
-9, 164-5,264-5,268-9,271 ; divisao do traba-
lho 159-62; história e ~eografia 166-9,176- COMPARA(/AO - 22-4,29-32,35,107-ss.
-81; guerras 173-7; toponimos 171-2; demo-
CORPO - fabrica~ao do 438,515; fecharnento/
~rafia 174,180-2; cerimonialismo 234; ciclo
anual 264-71; cotidiano 289-300. tapagem 447-8; e alma de crian~a 450; femi
ni no 456-60; 11 carne 11 e sentimentos 4 78,50&-
ARA~ (chocalho de xamanismo) - 147,207, -9 ,524 ,580; na ética Araweté 481; e morte
324-5,347,440-1,477,535-7,539,546; simbo- 495-9,606,615-6; conceito de 497-8.
lismo do 537-9. CORUJA - 189.
ARMAS - 156-7,1 75; simbolismo das 456-8,477,
COSMOLOGIA - e sociedade Ar~weté 23-7 ,48-
539. -53,234-5,252,362-4,463-4, 609-10,624; con
BAGABA - 185 ,238 . teÚdos 184-93; e temporalidade 19·4-6,229-30,
CABELOS - 360,594. 259; principios da 251-60; e inven~ao 252;
e alteridade 383-ss; e afinidade 437.527-8;
CACA - 294-5,447; e ritual 327,329-30,334; vida e morte na cosmo logía Araweté 527-9,
valor simbólico da 209,349-51,361,662; e 612; comparada 254-60,529,645-6,693.

741
índice

Cos rnologia Tupi- Guarani (TG) - 35, 76, 90, FOGO - 189,192,276,343,445,472-3~487,511;
101,105,114-7,258-9; patamares cósmicos . e canibalismo 613-4,697-ss.
197,202; catacli s mologia 196- !3; modelo da
GAMBA - 224-5,242,501,503-4,614 - 5.
203-4,613,627-8;· e recusa ·da afinidade 43'7;
e valores "cu~inários·.. . 488; analise c0mpa- ._ GAVIAO - carrapateiro 189-90; tesoura 238; ·
rada .62p-:.46; .H..Clastres ~ . a 643-5; e estru acau¡ 241. ' .
tura social 24 -'5,106-13,1.15-7,126:-7,437, -
626-48,666- 71,689,6~2~ conclus¡o 699~7b6.
GU4RIBA - : 20~i2~0,330,35~-9,3~0~584. Ver
Xaman.i smo ..
Cosmologia e e st.rutura social. Je -
29-
-32, 35, 76,90, tl5,2Q0, 389-90,613~682. GUERRA~ J4; dant;á de -289-90,581.- 2,593;. ex ·
Cosmologías ·da Guiana - 32,437, 407,411, pedii;oes 578-'80·; trofeus 579; e'· afinidade-:-
437 ,681-.2.. . . 642 ; ·· e o ca ti vo Tt'.ipinamba 1¡.3~·4. ,349, 350',435,
Cosmo logía e o r~··gime da 9 iferen.c;a - 32, 661~4 9 64 7, 682-4; Flores tan sobr'e a 86-8 ,: .
45-7,301 , 362-4,384-90~436 ~ 7,527-9,66J-8, , . 650-ss.
681-2,692-3. .
/IA'O wE - de animais 235,343,359·,510-'t'; e
CRU, COZIDO, 'MOQ!JEADO;. PODRE:.... 220 ·, 2,60,270, ·' xamanismo 359-60,534 ~ 541'"'2; do · jagua-r 598-9.
.. ·.. . ,

321-2,341-3,347--'8,351,361-2,487-8,496,521:.... · • e

-2, 59·1- 8, 612--5. HARPIA - ?40, 356 ,4 iO, 539 .•


HOMENS' - e· mandioca 162 ,272-4; ciclo de v i:-
DEUSES - 22,53,116-7; os "idos" 184-6,210;
da 451-5; como · Tilediadores 363-4,463,573-4.
os alimentos dos 233-5; mort~os e inimÍ:gos
237; espécies de 237-44 (Arar.zami 184-5,19~ IDENTIDADE - · 26-,120-2,207-·8,36.5,3·8 3,388,608,
224,231,238,383.•.499.; Al.Ji' Peye ·184-6,243, , 6 1 7,691.
577-8; iarocl ·243,492,511,584·; Na-Ma! 224-
INDIVIDUALISMO TG - 93-4, ~·26-7 ,644-5 ~
-5 ' 238-9·. J
·Taroyo. 186 , 189·' Tepere 241-2 ' 452··'
Yiéire-aoo 239',333.:...4·,467; ver Queixadas e INIMIGOS - 20i-9; de~ses, mo~tos, .221,255,
Urubus); como ·afins dos humano s 185,261, . 492-3,672-4; e o cauim 349,351,582; espíri
526-9,574-'6; e os homeris no r itual '362-4; -· to'.. dos 360,386,57.S,5Bl-2,595 ,599-ss; e
·no-.:-
como foco da ac;ao coletiva 317 .' · . · mes 37 4. 378-80' 383-9 ;'.' como música 582·; e·
Mczf-. definic;a~ , atr-ibutos, ~pite.tos . paren~esco 391-3,,434-5,,576._;, como .funda~n~o
210-7; e a temporal id.ad.e ·214-5-,.259-60; ,am- do social 667,683,692.
b iguidade dos ·219-22.; "come~ores de cru".
JABUTI - 153-4,165,208,223,264,2.70,355.- .8,
220,487-8,613- ss; e humanizac;ao Í54; e s~~
443,584,599. Ver Xamanismo.
xo 191,4 ~4 ,518- ~; e os Añi 218; morte e . '
mortos 471-2,518- 9; cbgnaE6s ' TG ZS6-8; co-· JAGUAR - 197, 20L, i2.o, 2-36, 239 ,498 , ·3 50,:3s6, ..
mo xamas 5 77 ,603; . como matador es · '6 03; nó 390, 444, 504, 512, 584., 59,Ef-9 ,61,3:....4, 621, 625-6,
sis t e ma da pess.oa 606 .. 639,641,' i oo. . .. · · · · ·
DEVIR - 26,116,122-4,230,254,580,608,624, JUPARÁ - !_9 8 ~ 487,503-4.
626,678-9,695-6.
LEITE - 346 ;448, 490-. ·
DOEN~A E ABSTIN~NCIA - .336 ,438,444-5 ,.452-3,
455,460-1,466-8,471-6,483,492-3,533, L IDERAN<;A - 9 8 ,,300-: 20., 36 3-4, 4/i.2- 3, 5 71- 3,
. , .
604, ,6 34.
ESP1RITOS - ~orno "senho.res" de coisas,. 729-
-32; critérios e espécies . 237-50 k-: Senhor .. LINGUAGEM - filod~fia · di · 62-5,78-9,260 ~ 317,
da Agua 215,217-9,249-50,440,,Sl.l ; .4yapae- 343, 368,,378 ,511,.5 71,5.84, 5.93 ,645-:6.
ta 215, 246-9); e país de recem-.nascidos .
245 - 6,444. Ver Añl. MACACO-DA-NOITE - 198,503-4: ,
ETHOS - 42-5,50-8,291-2,300-5,329,483,485- MANDIOCA - 67,147,151- 2, 264, 345;. e homens
- 6,49 1-2; e canibalism'! Tupinamba '694. · . 't
162,272-4; e os Añi' ·245..:6.
ETICA (TEORIA DAS PAIXOES) - categorias .. MATADOR - 246, 298 - 9,314,318-20,349,44 ~ ,
da 42,346,423,448- 9,468,474-81,519~523, 574,578,580-2,593- 5,599-605; destino póstu
581,677; atividade e passividade 515. mo do 578,595-7; Tupinamba 675,694 - 5 .' -;-
ETNOLOGIA TUPI-GUARAN! . - 36-7 ,82-4,89 - 90, · MEL ~ 15.8,165...:.6,246-9,272-3,351-5,345,358,
95 - 6,99 - 100·. 361-2,424-5,447. .

742
índice

HEMÓRIA (E ESQUECIMENTO) - SS-6,173,475,48<r 390 , 394-400 ,402- 3 (uso 367,401,404-5,409,


-1, 507-9, 522-5, 6 70. . . .. • 431-2) ;' atitudes de 413-7 ,420-1,423-7,433-
HENSTRUA<;AO. - 187, 249-50, 328, 337 ,.342, 44~,. -5,438-9; incesto 367,407-9,411-3,437.
Casamen-to - 298,367; tipos de 405-12;
44 7. 455-6 ,"459-60 '4 70 ;648--9 ~
oblÍquo 406-8,684-6; filosofía matrimoni ~l
MILHO - 48-9,147,151,163-4,220,241,348; e Arawete 410:...11; endogamia 410-li',685; ati-
a morfologia Arawete 264-71,275; e cheffa . tudes no 414-16,461-2; e a rela~ao de ami-
312-3;sistema do 321-ss; e o dominio· femi- zade 422-4,426-30,434-5; e corte do umbigo
nino 27·2-4, 3.62. ., ·
MORTE, MORTOS - .28, 34, 53-8, 86-8; 11_3, 118;
-
441-2; e'nt're os 'jovens 454; do ca ti vo Tupi
namba~ 664, 682-ss,687.
Lógi ca da · substancia· - 336,341-2,344,34~
171.:.. 3, 19.2, 196. 221, 252. 254-5. 299. 334. 346'.-7,
366,467-ss; teoria da concep~ao' 437-40; pa_E.
374-7~381-7,390,4~6,605; funer~is e t~~~io
483-91; perigo dos 49.i-3,519; na .cosmología to, precau!;oes, aborto 441-5 ,450- 1. ·· .
Residencia - 96-7,314-5,683-7; Araweté
492-4,501-~,523~ 7,529,580,605 -9 ,672-4; mor-
-279-80,417-21; se~oes residenciais 278-80,
te e prq~u~ao do soc.ial Tupinambá 648,690; 287~8,309~10,314-6; e ro~as 280,312~3,418-
imortalidade 212,259,390,520-1,574,595-8,
659,671,677-9. -20.
Morfología TG - 92,666-7,688-90.
MULHERES - 4·4; e milho 161-3; e os deuses A'finidade - 261,365-6,·391,397-400;403#
249-50,573-4; e a aldeia ·272-3; e cauim 330, 427,433-7,683-4; ~ lideran~a 98,315-6,319- ·
341-3; como signo do humano 364,463,615; ci· -20,642-3,688-90; recus~ da 365-6 ,411,413,
clo de :vida 455-ss; ·sexo 456-60;. e· xamanismo 416,435,437,682; e canibalismo 393,679-93.
530,572-4; martas 530,573-4,615; na cosmolo- Amizade (apihi-pihii) - 2729274,325;335, ·
gía TG 628; e o Alem Tupinambá 647; e o com- twa
365:-6·,399-400.,4 11,422-37,453; · e 391-
plexo canibal 661-4. -2,395-6,426,430,434; atributos da 422-3,
MOSICA nos· DEUSES _(CANTO XAMANI~TICO) _- 34, 426-7,480; contexto e fun~ao da 424-6,429;
e afinidade 427,433~7; e termino1ogia 431-
50-2. 64' 150, 210, 231-2. 324-5. 330-1, 381,,5,29-
-2; sistema da 4?4; e o .inimigo 1:upin.amba
-30, 5,4 2-70, 58_4.; est'rutura da 548-50,569-71., 435; compara~ao sul-americana 436-7.
MOSICA DOS INIMIGOS (CANTO DE GUERRA) - 34, Ancestrais - "culto" de 86,88,252,568-
61,150,296-9,330-1,379,581-3,586-90; estru- -9,659; da humanidade 185; come fonte de
tura da 582,584,586-70; e o canto xamanisti nomes 374-7,379.
co 590-1; compara~ao sul-aemricana 591-3. - PARICÁ - 147-8,241,533.
NA (SENHOR) - 232-4,233-4,244-6,362. PEDRA - 152,173,185,193,219,239.
NATUREZA, CULTURA (SOCIEDADE), SOBRENATUREZA PEIXES - 157,224,249,269.
26,79,105,114-7,127,153-204-5,219-22,226,228-
-30,258-9,364,437,488,612-15,ti27-9,643-5,680. PESSOA - 118-9,124-6,383-90.
Pes soa Arawete - 22-3,27-8,34,617; natu
NOMES PESSOAIS - uso 367-8,370-1,451-2; mu-
reza terrestr~ dos homens 204; os abandona
dan~a 368-70 ; tecnonimos 369-70,372-3,382;
dos 184,196;/ o conceito de 205-9; e a alte
depois da morte 371,381-2,525; nomina~ao ridade 228,237,607-8,617; e a temporalidade
373-4; critérios e reper torio 374-82; sig- 229,259,482,605,608-9; os viventes como cri
nificado 377-8; apelidos 352-3,378-9,392; an~as 195,515,521,597; e os nomes 383-4; na
principios da onomástica Arawete 372-3; com morte 495-ss,605-6; e o espectro 505-6,509-
para~ao sul-americana 383-90. - -10,516; e alma 514-7; como devir 608,617~
OPiRAHE (DAN<;A) - 265,271,274,296-300,318, 624.
328,332-3. Pessoa TG - 22-3, 27-8,34,101,117,127,
384-90,629-47,659-ss,668.
ossos - 56,494,508-9,519-20,524,615-6. Pessoa Je - 120,125,389-90,436,607,620.
ovo - 511. PREGUI<:A - 504.
PARENTESCO - 34,365-7; categorías básicas PROFETISMO - 34 ,84,100,103··5',680-l.
365-6,391-3; tú.Ja (afim potencial) 365,391-
3,395-6,411,430,434,575-6,581; terminología QUATI S - 227, 471,487,503-4.

743

o
'12 Indice

QUEIXADAS - 208, Zl6,226-7,234,324; os Senho TROVAO - 190,522.


res dos 215,217,234,517. URUBUS ( e o SENHOR DOS) - 190,192,198,226,
REGIME ALIMENTAR - 151-5,157,163-6,234,269, 239-40,246,497,517~8,579-80,587,673.
290-6,444,447-ss,452,468. VEADO - 235,240,343,359-60.
RELA90ES COMOS BRANCOS - 66-76, 179-81, VENENO - 345.
306-7. 314.
VINGAN~A - 87-8,389,579,621,648,650,652-3,
SACRIF1CIO - 46,114-5,234-5,360,620,650- 657-9,666,670-1,675,678-9,692.
-ss,655,695.
SANGUE - 249 ~ 50,443,446-7,470. XAMANISMO - Ver Música dos Deuses.
S~MEN - 191,247,342-5,351-2,437-8,440,448, Xamanismo Araweté - xamanismo como atri-
450,467,515. buto de todos os espíritos 206; potencia xa
manica 206-7,210; natureza do 257; o discur
SEXUALIDADE - e os deuses 191; pudor 148- so do xamanismo ·na vida cotidiana 50-3; xa-=
-9; e mel 165-6,352; devora<;ao genital 175, manismo e s e<;oes residenciais 317-8; "coisa
459; semen e mel 224,247,345,351; e o Se- xamanica" 325; movimentos 324,326; no sisee
nhor da Água 250; e cauim 328,331~345; fe!. ma cerimonial 362-3; e refei<;oes rituais -
menta<;ao e gesta<;ao 341-3; usos e metáfo- 234; e perigos alimentares 235-6,540-1; e
ras 158,352-3,424-5,428,440,448,456-9; co- sexualidade 440-1; tapagem e fechamento do
mida e 362; e a amizade 423-ss ; cobras,
sangue, chuva etc . 445~6; proibi<;oes 447-
corpo 447-8,489, 540 ; re condu<;ao de almas
479-80,523 ,540; epi:.tetos do xama 530; trei
'
-8,468-9,477; inicia<;ao a
452; e contagio namento 530-4.; re la<;ao com os deuses 534-S;
470; e morte 492; arco e chocalho 537-9. morte de ta'o we e Añl 540-1; e lideran~a
TABACO - 346-7,353,472,531-3. 571-2; xamas e matadores 573-4,601-5.
Peyo - 265,267,269-71,274,318; do cauim
TAMANDUÁ - 487,504. doce 323-7; como terapeutica 325-6; do mel
TA NA {SENHOR DA ALDEIA) - 311-5. Ver Li- 354-5; do jaboti 355-8; do veado 359-60; do
peixe 269,359.
deran<;a. Xamanismo TG - e estrutura social 48-9;
TATU - 154,227,240-1,266. lugar da palavra do xama 63-5,252-3,317 (ver
TENETAMO (L1DER) - 301-2,304-9,32Q,322, Linguagem); ambivalencia 113-4; e lideran<;a
316-20; xama e gue rreiro 318-20,601-5,628-
324,327,354 ~ 8,363,453. Ver. Lideran<;a. 9; xamanis mo e pes soa nas sociedades TG 629-
TIMBO - 345,348,358-9. 46.

E ste livro foi impresso nas oficinas gráficas


da Editora Vozes Ltda.,
Rua Freí Luís, 100 - Petrópolis, RJ,
com filmes e papel f ornecidos pelo editor .

744
Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai
www.etnolinguistica.org
Sobre o autor

EDUARDO BATALHA VIVEIROS DE


CASTRO, 35 anos, carioca, doutor em antro-
pologia social pelo Museu Nacional (UFRJ),
professor do Programa de P6s-gradua~áo em
Antropología Social do Museu Nacional,
com experiencia etnográfica entre socieda-
des indígenas no Mato Grosso, Acre, Rorai-
ma e Pará. Tem artigos publicados em revis-
tas especializadas, no Brasil e no exterior.

O autor com máquina fotográfica e sapatos


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Tres Ma1 (deuses) e. embaixo a direita. os humanos


(desenho Araweté)

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