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Das Pedras aos Homens

Tecnologia Litica na Arqueologia Brasileira

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Das Pedras aos Homens
Tecnologia Lítica na Arqueologia Brasileira

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Das Pedras aos Homens
Tecnologia Lítica na Arqueologia Brasileira

Lucas Bueno
Andrei Isnardis
Organizadores

CAPES

FAPEMIG

A^VMENTVM
Belo Horizonte
2007
Todos os direitos reservados à
AR^VMENTVM Editora Ltda.
® Autores

Este livro ou parte dele não pode ser reproduzido por


qualquer meio sem a autorização da editora.

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (C1P)


(Sindicato Nacional dos Editores de Livros. RJ. Brasil)
D251
Das pedras aos homens : tecnologia lítica na arqueologia brasileira / Lucas Bueno, Andrei Isnardis.
organizadores. - Belo Horizonte, MG : Argvmentvm : FAPEMIG ; Brasília, DF : CAPES, 2007.
272 p. : il. ;
Textos apresentados no Simpósio de Tecnologia Lítica no Brasil : fundamentos teóricos, problemas e
perspectivas de pesquisa, realizado no Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas Gerais
entre 12 e 15 de junho de 2007
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-98885-24-7
1. Implementos líticos - Brasil - Congressos. 2. Brasil - Antiguidades - Congressos. 3. Arqueologia -
Metodologia - Congressos. 4. Arqueologia - Brasil - Congressos. I. Bueno, Lucas, 1973-. II. Isnardis, Andrei,
1 972-. 1. Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais. II. Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior. Título : Das pedras aos homens. Tecnologia lítica na arqueologia brasileira.

07-4667. CDD: 930.1028


CDU: 902.3
11.12.07 11.12.07 004657

Conselho Editorial:
Bernardo Jefferson de Oliveira | UFMG
Betânia Gonçalves Figueiredo | UFMG
Diana Gonçalves Vida] | USP
José Gonçalves Gondra | UERJ
Maurilane de Souza Biccas | USP
Mauro Lúcio Leitão Condé | UFMG
Olival Freire | UFBA

AR^VMENTVM Editora Ltda.


Rua dos Caetés, 530 sala 1113 - Centro
Belo Horizonte. MG. Brasil
Telefax: (31) 3212 9444
www.argumentumeditora.com.br
Sumário

Prefácio 7

Introdução
Lucas Bueno e Andrei Isnardis 9

O estudo das Indústrias Líticas


O PRONAPA, seus seguidores e imitadores
Pedro I. Schmitz........................................ 21

Da Tipologia à Tecnologia:
Reflexões sobre a variabilidade das indústrias líricas da Tradição Umbu
Adriana S. Dias........................................................................................ 33

Organização Tecnológica e Teoria do Design:


Entre estratégias e características de performance
Lucas Bueno ......................................................... 67

Indústrias Líticas como vetores de Organização Social


Ou: Um ensaio sobre pedras e pessoas
Klaus Hilbert.......................................................................... 95

Possibilidades de abordagens em Indústrias Expedientes


Paulo Jobim 117

Uma terminologia para Indústria Lítica Brasileira


Maria Jacqueline Rodet e Mareio Alonso ................. 141

Experimentação na Arqueologia Brasileira:


Entre gestos e funções
André Prous ..................................................... 155
Metodologia de análise para as Indústrias Líticas do Pleistoceno
no Brasil Central
Águeda Vilhena-Vialou....... 173

Notas sobre a solidão das Indústrias Líticas


Andrei Isnardis 195

Contexto e Tecnologia:
Parâmetros para uma interpretação das Indústrias Líticas do Sul do Brasil

Sirlei Hoeltz ..................................................................................... 209

Recent advances in stone-tool reduction analysis:


A review for brazilian archaeologists

Michael Shott ...................................................................... 243

Sobre os autores 269


Prefácio

Esse livro é resultado do simpósio “Tecnologia Lítica no Brasil. Fundamentos


Teóricos, problemas e perspectivas de pesquisa. ” realizado no Museu de História
Natural da Universidade Federal de Minas Gerais entre o período de 12 a 15 de
junho de 2007.
Os temas que cada um dos participantes do Simpósio Tecnologia Lítica no
Brasil abordou em sua apresentação e que aqui estão representados por cada um
dos capítulos que compõem este volume, são resultado de propostas que nós
organizadores lhes fizemos. Esses temas foram apresentados como sugestões e
foram aceitos pelos convidados. O melhor desse processo foi que o que dele resul­
tou. Ao invés de um possível constrangimento dos pesquisadores em deterem-se
sobre o que lhes foi proposto, presenciamos desenvolvimentos e abordagens nada
óbvios em cada contribuição, às vezes bem distintos do que tínhamos em mente ao
sugeri-los. Foram propostos temas que sabíamos que constavam das preocupações
e das discussões desenvolvidas por cada um dos convidados em suas próprias
pesquisas. Mais do que isso, conhecíamos pessoalmente cada um dos convidados,
com maior ou menor familiaridade em cada caso, assim como às suas abordagens
e orientações teóricas. Ainda assim, apesar desse suposto conhecimento prévio,
todos trataram dos temas de forma que ultrapassaram, de maneiras diferentes, as
expectativas. Isso testemunha não a fraqueza do nosso suposto conhecimento, mas
a competência e a inteligência de cada um dos participantes. Mais ainda, testemu­
nha que o diálogo e a discussão científicas podem sempre proporcionar novidades,
novos conhecimentos, descobertas, crescimento, estímulos.
0 evento foi separado em quatro atividades realizadas durante quatro dias,
sendo duas delas abertas ao público e outra restrita aos palestrantes. A primeira
delas foi uma conferência de abertura realizada no conservatório da UFMG no
primeiro dia do evento pelo debatedor convidado, Prof. Dr. Michael Shott e foi
aberta ao público em geral. A segunda atividade contou com a apresentação de 15
palestras por especialistas em análise de vestígios lítícos, realizadas no auditório do
Museu de História Natural da UFMG. Foram cinco palestras por dia, no período
da manhã. A terceira atividade foi realizada durante a parte da tarde desses mes­
mos três dias e constou de mesas-redondas com a participação apenas dos
palestrantes e do debatedor convidado. Nestas sessões foram discutidos os temas
abordados pelas palestras proferidas na parte da manhã. A quarta atividade
correspondeu a um conjunto de oficinas, realizadas nos laboratórios do Museu de
História Natural da UFMG, simultâneas às discussões do período da tarde, sobre
três temas: técnicas de lascamento, desenho de peças líricas e material lírico polido.

7
Prefácio

Os recursos paia a organização e realização do evento e dessa publicação


foram fornecidos pela CAPES e pela FAPEMIG. Toda a parte de infra-estrutura
do evento foi fornecida pelo Museu de História Natural da UFMG.
A plena realização deste evento e desta obra não seria possível sem a partici­
pação e empenho de uma série de pessoas. Agradecemos especialmente a Fabrí-
cio Femandino, diretor do MHNJB/UFMG, que desde o início deu todo o apoio e
colocou a infra-estrutura do Museu à nossa disposição.
Em função da estrutura do evento, com cinco palestras pela manhã e uma
mesa redonda durante todo o período da tarde dos tr ês dias do evento, o principal
fator que contribuiu para o sucesso do evento foi a disposição de todos os palestrantes
para um diálogo franco e de qualidade. Assim, gostaríamos de agradecer a todos
que aceitaram o convite e se dispuseram a apresentar e debater suas idéias e
propostas e também parabenizá-los pelo excelente nível de qualidade dos traba­
lhos e discussões apresentadas.
Neste mesmo sentido, gostaríamos de agradecer Michael Shott por ter aceitado
o convite de imediato e organizado seus compromissos em função das seguidas
mudanças da data de realização do evento. Tanto a conferência, quanto a palestra
e suas intervenções nas apresentações e discussões contribuíram de forma signifi­
cativa para estimular e enriquecer o debate.
Gostaríamos de agradecer ainda a Márcio Alonso, Gustavo Neves e Ângelo
Pessoa por terem aceitado o convite e ministrado as oficinas e a algumas pessoas
que foram de fundamental importância na realização do evento, nos ajudando a
organizar e documentar as atividades: Alice, Vanessa, Wagner e Victor.
Por fim, dedicamos um agradecimento especial a Juliana Machado, a princi­
pal responsável pela concretização deste trabalho por fazer com que nós pusésse­
mos os pés no chão e a mão na massa, sempre nos incentivando e colaborando
para organização de todo o projeto desde o início.

8
Introdução
Tecnologia lítica no Brasil: fundamentos teóricos e temas de pesquisa

A proposta do evento, cujo resultado se vê nesta publicação, foi discutir o


estado atual das pesquisas arqueológicas sobre tecnologia lítica no Brasil enfatizando
os aspectos teóricos a elas relacionados a partir da identificação dos principais
problemas de pesquisa e das abordagens metodológicas que vêm sendo
implementadas para encaminhá-los. 0 intuito foi agrupar arqueólogos cuja linha
de pesquisa principal envolvesse estudos sobre indústrias líticas de diferentes
ár eas geográficas do Brasil e que trabalhassem com enfoques teórico-metodológicos
distintos a fim de identificar- quais são, hoje, os principais problemas de pesquisa
com relação a esse tema e, em que medida, podería haver um diálogo entre as
diferentes correntes teóricas adotadas para construir uma agenda de pesquisa
para os próximos atros.
Com o crescimento do número de arqueólogos formados no Brasil e no exteri­
or, da quantidade de pesquisas realizadas e com a ampliação de sua abrangência
geográfica temos visto, nos últimos anos, uma ampliação do interesse por ques­
tões associados ao estudo do material Lítico. Esse incremento quantitativo tem sido
acompanhado também por mudanças qualitativas, com a apresentação de novas
propostas para caracterização e interpretação dos conjuntos líticos em diferentes
regiões do Brasil.
Nesse sentido, o simpósio agr upou pesquisadores não só de diferentes regiões
do Brasil, mas também de diferentes gerações e conr diferentes propostas teórico-
metodológicas discutindo como foi construído o contexto atualmente disponível
para lidar com aspectos associados à tecnologia lítica, se as propostas até hoje
apresentadas ainda se sustentam e quais são os interesses atuais e as lacunas para
que possamos constr uir um cenário de ocupação do território brasileiro na pré-
história a partir de contextos nos quais o material lítico corresponde à maioria dos
vestígios que compõem o registro arqueológico.
Dentre os pesquisadores convidados, autores que compõem esse livro, estão
jovens doutores que recém defenderam suas teses e que têm apresentado novas
propostas de trabalho para o estudo da tecnologia lítica e arqueólogos já renomados,
com larga experiência em pesquisa sobre o lema e que, em boa parte, são respon­
sáveis pelo contexto atualmente construído na Arqueologia Brasileira a respeito
da tecnologia lítica. Desta forma esse conjunto de pesquisadores é bastante hete­
rogêneo, tanto no que diz respeito à formação, à história acadêmica e experiência
profissional quanto aos pressupostos teórico-metodológicos adotados, o que, cer­
tamente contribuiu para estimular o debate e para fornecer uma síntese dos pro­
blemas e perspectivas envolvidos nos estudos sobre tecnologia lítica atualmente
no Brasil.
9
I Introdução

A participação de um convidado estrangeiro como debatedor de todas asse


sões foi bastante importante, possibilitando uma comparação e contraste com
que foi e vem sendo feito em outros países e que certamente muito contribui
para o encaminhamento dos temas selecionados.
Foram abordados principalmente quatro temas atualmente cruciais para i
arqueologia brasileira. O primeiro discute o papel das categorias clasificatório
explicativas empregadas pelo PRONAPA para compreender a variabilidad
tecnológica das indústrias líricas e sua utilização no contexto arqueológico brasile
ro hoje (ver Capítulo 1: Schmitz). O segundo está voltado para apresentação d;
novas tendências e envolve dois conjuntos de textos, nos quais foram tratado
aspectos como a relação entre indústrias líricas, comportamentos, territorialidad:
e organização social (ver Capítulos 2: Dias, capítulo 3: Bueno, capítulo 4: Hilbeni
e ainda a possibilidade de utilização das propostas do modelo de sequência d'
redução para indústrias líricas no contexto brasileiro(capítulo 11: Shott). 0 tercei
ro aborda questões metodológicas, abrindo espaço para a apresentação de um:
proposta de análise para as indústrias líricas expedientes (capítulo 5: Jobim), par.
a discussão da importância de uma revisão terminológica nos estudos sobn
tecnologia lírica (ver Capítulo 6: Rodet & Alonso), do papel e significado da expe
rimentação (ver capítulo 7: Prous) e dos critérios utilizados para caracteriza
tecnologicamente uma indústria, propiciando a distinção entre atributos natural
e culturais (ver capítulo 8: Vilhena-Vialou). O quarto tema tem como objetive
apresentar propostas que inserem o conjunto artefatual lírico em um contextc
mais amplo, articulando-o a outros itens da cultura material que compõem c
registro arqueológico (ver capítulo 9 e 10: Isnardis e Hoeltz).
Como no Brasil sempre houve uma dicotomia entre trabalhos realizados sobre
as influências das escolas francesa ou americana, outro ponto debatido neste
simpósio foi se essa dicotomia permanece e, em que medida podemos agrupar
essas perspectivas a fim de somar esforços para constr uir um quadro mais com­
pleto a respeito da dinâmica de ocupação do território durante o Holoceno. Com
este intuito convidamos a participar do simpósio o Dr. Michael Shott (Univ. oí
Akron - EUA), que tem trabalhado com questões associadas à tecnologia lírica já
por mais de vinte anos (Shott 1986, 1989, 1994, 1998) e se preocupado em
discutir a relação entre cadeia operatória e seqüência de redução (Shott 2005).
Sua participação foi bastante enriquecedora e contribuiu para fomentar o debate,
introduzindo um olhar estrangeiro na discussão de pontos caros à arqueologia
brasileira.
Nosso intuito com essa proposta foi levantar questões tais como: Essas diferen­
ças teórico-metodológicas podem ser complementares ao invés de opostas e
excludentes e como cada uma delas tem abordado os mesmos problemas de
pesquisa? Em que medida o próprio contexto arqueológico até o momento
construído pela arqueologia brasileira pode contribuir para que haja uma síntese
entre essas diferentes perspectivas? Com isso, esse encontro representou uma

10
Lucas Bueno c Andrci Isnardis

tentativa de construir uma ponte, um diálogo entre pesquisadores de diferentes


linhas teóricas, com problemas de pesquisa relacionados a diferentes contextos,
com o intuito de construir uma agenda de pesquisa sobre estudos de indústrias
liticas no Brasil.
Para isso, tanto no simpósio realizado quanto na sua versão publicada, mais do
que Tecnologia Lítica, buscamos trazer a discussão para questões que considera­
mos fundamentais pai a a arqueologia:

Em quais termos queremos compreender o registro arqueológico?

Quais são as informações e qual o cenário, ou melhor, qual história, qual tipo de
história queremos contar sobre o registro arqueológico no Brasil?

Sobre o que e sobre quem estamos falando?

Sobre o que queremos falar?

Qual é a Arqueologia que fazemos e que pretendemos fazer?

E possível chegai' a consensos?

Ao longo dos capítulos desse livro apresentamos discussões acerca do significa­


do da variabilidade artefatual em diferentes contextos, como abordá-la, quais mé­
todos e procedimentos podem ser aplicados e com quais perguntas e propostas eles
estão associados; discutimos a articulação e inserção das indústrias liticas em con­
texto, procurando enfatizai' sua associação com os demais vestígios, assim como
qual esfera de análise com relação à composição dos grupos sociais tem sido privi­
legiada nos estudos sobre tecnologia lítica e, com isso, formamos um amplo pano­
rama da trajetória e do estado atual dos problemas e perspectivas de pesquisa.
Cabe-nos observar e questionar em cada capítulo o que está sendo apresenta­
do e privilegiado, quais são os temas de pesquisa e como estes são implementados.
Por exemplo, vamos falar sobre artefatos ou sobre pessoas, sobre técnica ou
tecnologia, sobre tipologia ou estratégias e escolhas, sítios ou regiões? Uma ques­
tão importante diz respeito ao significado de um conjunto de conceitos utilizados
na Arqueologia Brasileira para classificar e organizar conjuntos no tempo e no
espaço: são os conceitos de Tradição, Horizonte e Fase. Sabemos que há diferen­
tes níveis e esferas de organização social entre o indivíduo e a sociedade - por
quais deles e como dentre eles passa a questão da Tradição e da Mudança? Se
queremos construir um História a partir do estudo do registro arqueológico essa
questão precisa ser colocada: por que e como as coisas mudam ou não mudam?
Como apreender essa dinâmica?
Outro aspecto importante de se observar diz respeito à escala de análise. Há
diferentes níveis de variação - macro-regional, regional, local, pontual, artefatual

11
Prefácio

— e não há um caminho unilinear. que envolve acúmulo de conhecimento para


cjue se possa passar de um nível ao outro - o que há é uma relação cíclica de retro-
alirnentação, baseada num exercício de comparação constante.
A inserção dessas discussões específicas sobre tecnologia lítica em um contex­
to mais amplo que questione e abra espaço para discutir os caminhos e objetivos
cia Arqueologia hoje no Brasil é uma demanda ainda mais premente se lembrar­
mos que grande parte dos estudos sobre tecnologia lítica e, de forma geral, sobre
Arqueologia brasileira são realizados hoje no âmbito da arqueologia de contrato.
Essa constatação não envolve uma crítica simplista e direta à qualidade dos traba­
lhos de contrato, mas sim um reconhecimento da complexidade do problema
envolvido na artíctdação entre teoria, método e problemas de ordem mercadológica.
Para que essa articulação não se perca e caminhe para a mesmice, para a implan­
tação de metodologias reproduzidas de forma descolada das perspectivas teóricas
e dos problemas de pesquisa específicos aos quais estão vinculadas, para que não
empreguemos supostas metodologias universais como autômatos é preciso uma
discussão que traga o elemento principal para o centro do debate: qual história
queremos contar e para quem vamos contá-la?
Para contar essa história é preciso definir teoria, método, problema, objetivo de
pesquisa e, como alguns dos autores aqui sugeriram, uma grande dose de inspira-
ção. Também por isso abandonamos nossa idéia inicial de fazer um simpósio fe­
chado — que na verdade não seria um simpósio, mas um grupo de trabalho só com
os palestrantes — e optamos por abrir inscrições e propiciar um espaço para debate
mais amplo. Afim de aproximar o público com o tema pensamos então nessa
articulação entre teoria e prática, palestras e oficinas, pois como o professor André
Prous disse em sua palestra, é praticamente impensável estudai' tecnologia lítica
hoje sem ao menos machucar um dedo, cortar a mão, enfim EXPERIMENTAR.

Perspectivas e propostas

Como veremos nos capítulos que se seguem, o principal aspecto que permeou
todas as apresentações e discussões durante o simpósio foi a ênfase na necessida­
de de inserir o material lítico em um contexto para que possamos compreendei
melhor seu significado. Nessa perspectiva, a variação das abordagens se encontra
em como construir contextos e qual deles selecionar para análise. Nos trabalhos
que compõem este livro, o contexto pode ser compreendido de maneiras um tante
diferentes e envolver níveis diferentes de análise: pode ser o discurso, sua cons­
trução, conceitos e vocabulário (Hilbert e Rodei e Lima), pode envolver a articu­
lação com demais vestígios (Isnardis), sua inserção espacial e temporal (Scliimitzj
e ainda as relações entre os sítios e a paisagem (Dias, Bueno e Hoeltz). Pode
também envolver uma evolução técnica dos instrumentos (Jobim) e demandai
conhecimentos oriundos da realização de trabalhos de experimentação (Prous)
Apesar dessas variações, em certa medida pode-se dizer que há um interesse

12
Lucas Bueno c Andrei Isnardis

consensual pelos processos de formação do registro arqueológico no que se refere


à formação dos conjuntos de vestígios liticos (Shott), ainda que não haja uma
proposta única, definida e sistemática, para lidar com essa questão atualmente na
Arqueologia Brasileira.
Como já mencionamos, uma das questões que motivou a organização deste
simpósio está associada à caracterização e ao significado conferido à variabilidade
das indústrias líticas. Como definir semelhanças e diferenças e como conferir
significado a elas. Pelo que veremos ao longo do livro, essa ênfase e ao mesmo
tempo diversidade de definições de contexto traz à tona uma multiplicidade de
fatores que influenciam a geração dessa variabilidade. Mais que isso, aponta para
a importância da definição da escala de análise, pois para diferentes escalas atu­
am diferentes vetores. Assim, em âmbito regional, a distribuição dos recursos
pode influenciar a localização dos sítios e diversidade de funções a eles associadas
e, com isso, requerer a produção e utilização de diferentes conjuntos de artefatos,
gerando uma variabilidade na composição dos conjuntos de vestígios descartados
em cada um desses sítios. Por outro lado, a utilização de um mesmo artefato em
diferentes atividades de modo recorrente e contínuo pode gerar uma variabilida­
de de formas associadas às diferentes etapas de vida deste mesmo artefato. Ainda
esse mesmo artefato pode sofrer transformações no âmbito de sua cadeia opera-
tória e forma em decorrência de modificações na sua forma de utilização, ocasio­
nado uma mudança tecnológica e assim, gerando variabilidade entre os conjuntos
de vestígios liticos de um mesmo sítio ao longo do tempo.
Esses aspectos que mencionamos como possíveis vetores de variabilidade es­
tão todos associados ao contexto sistêmico, mas como dissemos anteriormente há
outros vetores em jogo. Estes, como alguns dos autores enfatizaram, não estão
associados nem com contexto sistêmico nem com contexto pós-deposicional, mas
sim com método cientifico e construção do discurso, com a forma pela qual se
concebe a produção do conhecimento e a definição da relação estabelecida entre
sujeito e objeto do conhecimento, que passam por uma cisão e separação arbitrá­
ria, muitas vezes definida por uma relação autoritária. Ainda nesta mesma esfera,
o léxico disponível e amplamente utilizado, ainda que não totalmente aceito, aca­
ba muitas vezes por determinar características, abrangência e limite do que é essa
variabilidade, pois na ausência de conceitos específicos, detalhados e bem funda­
mentados, diminui-se o espaço para as diferenças, supervalorizam-se as seme­
lhanças e esvaziam-se significados.
Outro aspecto que merece destaque enquanto unanimidade, não com respeito
ao significado, mas à necessidade de discussão, e que se relaciona com os comen­
tários feitos acima, é o papel das grandes categorias classificatórias comumente
utilizadas na Arqueologia Brasileira, como tradições e fases. Por um lado, reco­
nhece-se a utilidade dessas categorias no momento em que foram propostas e o
papel que desempenharam para a elaboração dos quadros de ocupação regional,
dentro dos contextos teórico-metodológicos ao qual estavam vinculadas. No entan-

13
Introdução

to, por outro, reconhece-se do mesmo modo que o conhecimento a respeito não si
das indústrias líticas, mas das ocupações de um modo geral, deve agora ser feito
e está de fato sendo feito, sobre novas bases. De um modo geral, em todos o
trabalhos fica clara a importância de se discutir a tecnologia lítica em suas dimen
sões amplas, que incluem estratégias de obtenção e gestão da matéria-prima, mé
todos de debitagem e retoque, razão e distribuição do descarte dos instrumentos
bem como a inserção e distribuição desses componentes na paisagem.
Conforme também já mencionamos a discussão produziu um consenso en
tomo de outra questão: a percepção de que o léxico, qualquer léxico, tem un
caráter histórico, teórico, regional e pessoal. Portanto, uma terminologia não dev
ser proposta, mas sim construída, e isso envolve um processo de discussão 1
amadurecimento de discussões, ainda por ser feito no Brasil. A terminologia dev
ser clara, criteriosa e coerentemente empregada por cada autor, mas a construçã'
de uma coerência ampla de termos se dará na medida em que houver coerênci
na compreensão dos processos constitutivos das indústrias líticas e não com,
proposta em si.
Nos textos que aqui se seguem fica também claro que diversos arqueólogo
brasileiros estão se propondo a tratai’ diferentes sítios numa paisagem como con
juntos articulados de elementos, expressivos de maneiras de percepção, explora
ção e gestão de territórios. A escala das discussões predominante é regional
Contudo, essa discussão inter-sítios não é simplificadora das especificidades do:
sítios, não se faz de forma precipitada, pelo contrário, ela está atenta justamente i
variabilidade e a possíveis formas de articulação das especificidades. A aborda
gem é na escala inter-sítios porque os problemas de pesquisa colocados se cons
troem nessa escala, fundamentados nas possibilidades interpretativas concreta
dos sítios conhecidos. 0 conceito de organização tecnológica tem servido de ferra
menta a alguns dos autores, enquanto outros tratam da variabilidade por meio df
propostas distintas.
Essa congruência entre problemas e escalas trabalhadas ao mesmo tempt
segundo perspectivas distintas indica, por sua vez, que é possível combinar refe
rências teóricas que permitam pensar em estr atégias de gestão e sistemas de sítio:
de funcionalidades distintas com referências que enfatizam a necessidade de s«
compreender em minúcia os aspectos tecnológicos das coleções, os problema:
estratigráficos e as estruturas internas aos sítios.
A chamada arqueologia de contrato, ou seja, os diagnósticos, prospecções e
resgates arqueológicos que se fazem para os processos de licenciamento ambienta:
de empreendimentos diversos, têm ocupado e preocupado os arqueólogos brasi
leiros de modo crescente. Embora não tenha havido neste Simpósio uma apresen
tação específica sobre o tema, ele figurou nas discussões, deixando clara sua
importância no presente cenário. Não podemos nos furtar a tecer comentários e
respeito, crendo que construir discussões sobre isso é de inegável urgência. A
questão fundamental em relação à arqueologia de contrato, numa perspective

14
Lucas Bucno c Andrci Isnardis

cientifica, é como conciliar as possibilidades, constrangimentos e limitações dos


trabalhos que se fazem no âmbito dos processos de licenciamento com a produ­
ção de um conhecimento metodologicamente consistente sobre a pré-história - e
também a história evidentemente - brasileira. Na arqueologia de contrato uma
série de aspectos da pesquisa que, num trabalho acadêmico, seria definida por
critérios científicos é definida pelas peculiaridades do empreendimento. A come­
çar pela própria área de pesquisa, que é aquela que será impactada, direta ou
indiretamente. Em segundo lugar, o empreendimento define aspectos importan­
tes da amostr agem que se fará da região, em função da conformação espacial da
área impactada — o fato de se tratar de uma linha de transmissão, um gasoduto,
uma mineração ou uma usina hidrelétrica. Em cada um desses casos temos recor­
tes distintos na região que limitam a compreensão das ocupações humanas, uma
vez que direcionam os trabalhos para seções específicas da paisagem.
Outra questão relativa às imposições metodológicas do contrato é seu tempo
de execução. Além do prazo previamente definido para a execução dos trabalhos
de prospecção e resgate ser sempre restrito, os arqueólogos frequentemente con­
vivem com pressões dos empreendedores para acelerar o trabalho. Não são pou­
cos os casos em que boas propostas de levantamento arqueológico foram recusa­
das por exigirem prazos que desgostavam os empreendedores. Vale dizer que
nesses casos nenhum processo de licenciamento deixou de ser feito, o que quer
dizer que outro arqueólogo se dispôs a fazer o serviço em um prazo menor. Isso
não é discutido com frequência, mas o fato é que a restrição de prazo impõe, além
de um ritmo acelerado, que cada sítio seja escavado de uma só vez. Mesmo que
essa intervenção seja muito bem estruturada e desenvolvida, é impossível retornar
ao sítio num outro momento, após realizar as análises de laboratório, que certa­
mente apontarão para a necessidade de novas intervenções, pois um trabalho
bem feito sempre gera mais perguntas que respostas. Muitas das perguntas gera­
das, que poderíam ser abordadas com uma nova escavação no sítio ou outras
atividades de campo, serão postas na gaveta.
Assim como estes, uma série de outros aspectos foram levantados nas discus­
sões em relação à arqueologia de contrato hoje no Brasil, mas há um em especial
ao qual gostaríamos de dar destaque aqui. È crescente o número de trabalhos
dessa natureza e isso exige um número também crescente de arqueólogos traba­
lhando neles. Entre os que hoje se ocupam do contrato, há diversos profissionais
com uma formação acadêmica de qualidade, suficientemente boa para dar aos
trabalhos consistência teórica e metodológica, efetivamente produzindo conheci­
mento a partir deles. Há, contudo, um número crescente de jovens que são em­
pregados como aprendizes de arqueólogos nos projetos de contrato e que nele se
mantêm durante toda sua formação. O que quer dizer que as empresas de arque­
ologia de contrato e os arqueólogos autônomos que trabalham nesse campo estão,
a cada ano, formando novos arqueólogos. Alguns desses jovens passarão anos
trabalhando como assistentes até que eles próprios passem a responder como

15
Introdução

arqueólogos em novos processos de licenciamento. O problema é que muitos


desses jovens não têm uma formação acadêmica consistente. Alguns deles não
têm formação acadêmica alguma, nunca estudaram arqueologia. 0 resultado é
uma industrialização da arqueologia de contrato, com a formação de um proleta­
riado de técnicos sem formação técnica efetiva. 0 risco é que tenhamos novas
safras de jovens arqueólogos que não tiveram oportunidade de se formar corno
arqueólogos, com uma formação puramente empírica, obtida nos trabalhos de
arqueologia de contrato. Em diversos casos, as empresas ou outras instituições -
muitas vezes os trabalhos de arqueologia de contrato envolvem diretamente insti­
tuições de ensino e pesquisa acadêmica - são capazes de oferecer a formação
necessária. Em outr os casos, sabemos nós que não o são. Qual arqueologia, qual
conhecimento de nosso passado será gerado pelas safras vindouras de arqueólo­
gos estritamente práticos? Qual parece ser o caminho mais fácil para dar aos
trabalhos de arqueólogos insuficientemente formados uma aparência de coerên­
cia metodológica e científica quando eles de fato não a têm, não têm, por vezes,
consciência alguma de método? 0 caminho mais fácil, que já está sendo tomado
por alguns, é produzir relatórios onde se reproduz o conhecimento já existente;
relatórios em que a única preocupação é enquadrai- os achados em categorias
descritivas e classificatórias já existentes, sem se preocupai- em realizai- qualquer
interpretação dos sítios e das regiões, sem propor quaisquer questões ao final dos
trabalhos. Considerando que os trabalhos de arqueologia de contrato são muitas
vezes o único registro que se terá do patrimônio impactado, essa realidade é
profundamente preocupante.
Conforme dito com muita sabedoria no decorrer das discussões, a verdadeira
questão por detrás dos trabalhos de arqueologia de contrato está igualmente pre­
sente na arqueologia acadêmica: a qualidade dos trabalhos. 0 cenário brasileiro
atual não se divide entre uma arqueologia acadêmica autônoma e de boa qualida­
de e uma arqueologia de contrato pressionada pelas questões de mercado. A
fragilidade na formação, uma formação grandemente empiricista e a redução dos
trabalhos à reafirmação das categorias descritivas e classificatórias já existentes
são realidades nos dois campos. Trata-se, de fato, de trabalharmos para o aprimo­
ramento da formação dos arqueólogos brasileiros como um lodo. Na atual arque­
ologia de contrato do Brasil, trabalhos de ótima qualidade têm sido desenvolvi­
dos, produzindo-se, além das estritas necessidades dos processos de licenciamento,
um conhecimento consistente sobre nosso passado. Entre os que compõem este
volume como autores, estão arqueólogos que realizaram seus projetos de doutora­
do a partir de trabalhos de salvamento arqueológico. A maioria dos que compuse­
ram o grupo que se reuniu aqui para discutir tecnologia lítica já atuou ou atua hoje
no campo da arqueologia de contrato, experimentando diretamente seus percal­
ços e demonstrando na prática que é possível compatibilizá-la com avanços ex­
pressivos no conhecimento sobre pré-história brasileira. O leitor pode encontrar
neste volume trabalhos que envolvem estudos de caso ou referências a casos

16
Lucas Bueno e Andrei Isnardis

específicos de áreas de estudo que se tornaram objeto de análise em função de


processos de licenciamento ambiental (é o caso dos capítulos de Lucas Bueno,
Sirlei Hoeltz, Paulo Jobim). Não se trata, portanto, de dirigir um olhar crítico
externo à arqueologia de contrato e cobrar “dela” uma conduta distinta. Trata-se
de assumirmos coletivamente nossas responsabilidades com relação a nosso cam­
po de atuação profissional como um todo, de discutir arqueologia de contrato e
arqueologia acadêmica, construindo parâmetros e estratégias para promover o
crescimento em qualidade de ambas as dimensões de nossa atuação profissional.
Em nossa fala de encerramento das palestras nos declaramos contrários à
realização de um segundo simpósio de tecnologia lítica. 0 leitor não se assuste. A
experiência nada teve de tr aumática, muito pelo contrário, o encontro foi produti­
vo e prazeroso. A questão é que consideramos que, nas próximas ocasiões, nossas
discussões envolvendo tecnologia lítica poderíam se organizar por problemáticas
de pesquisa, por questões que interessem ou estejam sendo objeto de investigação
pelos pesquisadores, questões essas para as quais a análise de tecnologia lítica
possa contribuir. Promovendo discussões sobre questões de pesquisa, as diferen­
tes abordagens dos pesquisadores podem se articular, com suas diferenças, de
maneira a refletirmos criticamente sobre cada uma delas e sobre sua contribuição
para a compreensão do objeto. Este encontro, como exercício bem sucedido de
convívio de diferenças, nos estimula muito no sentido de reunirmo-nos com pes­
quisadores de olhares distintos.
São diversos os temas que figuraram nos textos aqui apresentados e frequenta­
ram as discussões. Um deles, que motiva muito os arqueólogos em atividade no
Brasil Central, é a aparente descontinuidade entre as ocupações da transição
Pleistoceno/Holoceno (e do Holoceno inicial) e as ocupações do Holoceno médio.
Tal questão envolve problemas metodológicos diversos. Envolve uma avaliação
da amostragem que temos hoje disponível para sítios do Holoceno médio e a
definição de estratégias paia aperfeiçoá-la; envolve, de forma destacada, as ma­
neiras de reconhecer semelhanças e diferenças entre contextos arqueológicos
cronologicamente distintos; assim como envolve as dificiddades de abordai- indús­
trias nas quais parece haver um grau muito reduzido de padronização. Em toda a
questão é a indústria lítica o pivô das discussões, na media em que corresponde à
parcela mais abundante e mais investigada do registro arqueológico de ambos os
períodos. 0 Holoceno médio é notório, com exceção do litoral Sul e Sudeste,
como o período menos investigado e mais amplamente desconhecido da ocupa­
ção humana no Brasil (especialmente no Brasil Central e Amazônia) e uma discus­
são coletiva podería nos auxiliar na avaliação desse desconhecimento, bem como
na construção de abordagens capazes de superá-lo. As mudanças percebidas nas
indústrias líticas precisam ser compreendidas de forma mais aprofundada, assim
como as articulações entre sítios distintos podem ser exploradas de maneira mais
sistemática - e nisto a tecnologia lítica pode desempenhar um papel fundamental.
Há hipóteses explicativas formuladas para explicar a escassez que tem sido cons-

17
Introdução

tatada de sítios do Holoceno médio, hipóteses que precisam ser debatidas e co;
sideradas como perspectivas de pesquisas futuras.
Alguns temas ganham forma inicialmente em contextos regionais específico
mas sua pertinência a outras áreas do país não demora a se fazer perceber. E esJ
o caso da ampla continuidade observada nos sítios de caçadores-coletores do Si
do Brasil, por A. Dias. A tecnologia lítica é um dos pontos centrais dos indicad
res dessa continuidade, aliada ao exame das demais categorias de vestígios e d
papel dos sítios em abrigo. A questão de como tratar continuidade e mudança
pertinente a todos nós, não sendo poucos os casos de uma aparente indistinção rí
registro arqueológico com grande extensão cronológica.
A presença de caçadores-coletores recentes, mesmo nas regiões amplament
dominadas demograficamente por horticultores ceramistas, e o reconhecimenl
dessa modalidade de base econômica no registro arqueológico é outro tema quE
vem ganhando visibilidade e se aplica a qualquer região brasileira. Tradiciona-
mente, a Arqueologia no Brasil agiu como se tivesse havido um extermínio dramá­
tico e geral do modo de vida caçador-coletor quando do desenvolvimento da
economias horticultoras, o que não tem qualquer fundamento. Diversos contexto;
têm colocado problemas e permitindo superar essa “tradição”. Reunir pesquisa­
dores que têm se confrontado com a questão em contextos geográficos distinto-
nos permitiría construir juntos possibilidades metodológicas para abordá-la. Ou
tro pré-conceito arqueológico brasileiro que tem sido superado aos poucos nos
últimos anos é a crença na inapetência dos ceramistas para elaborai' indústria;
líticas. Coleções líticas sofisticadas em contextos ceramistas variados têm, no;
últimos anos, sido evidenciadas com cada vez mais frequência e isso pode abri,
caminho para que as discussões envolvendo tecnologia lítica e tecnologia cerâmi
ca convirjam, transformando-se em discussões sobre tecnologia e em discussõet
sobre as populações ceramistas a partir de uma gama mais ampla de vestígios.
A questão da variabilidade artefatual entre sítios de uma mesma área é outro
tema transversal às regiões que pode produzir debates efetivamente produtivos
Autores diversos têm tratado do assunto a partir de perspectivas distintas, algu
mas das quais discutidas aqui. Se há um interesse em discutir contextos nums
escala inter-sítios, discutir a variabilidade, os critérios para reconhecê-la e seu
significado é questão central para a compreensão de diversos contextos que hoje
são objeto de pesquisa no Brasil.
Outra questão que envolve diretamente um número expressivo de pesquisado­
res e, do ponto de vista teórico e metodológico pode envolver um número bem
amplo, é a similaridade entre as indústrias líticas da transição Pleistoceno/Holocenc
e do Holoceno inicial em diferentes pontos do Brasil Central. As semelhanças há
muito vêm sendo apontadas e, no presente estágio de conhecimento, podemos
discutir de forma substantiva sua natureza, na medida em que as análises
tecnológicas em diversas áreas vêm se desenvolvendo É preciso que discutamos
as diferentes abordagens já desenvolvidas sobre essas indústrias e as bases do

18
Lucas Bucno e Andrci Isnardis

conhecimento que nos possibilitam reconhecê-las como semelhantes ou distintas.


Uma exposição dos critérios de análise e sua avaliação poderíam nos conduzir a
uma compreensão bem mais refinada desse horizonte de ocupações remotas,
assim como nos conduzir à construção de cenários hipotéticos para orientar novos
trabalhos.
Há outros temas que podem ser levantados, mas o mais importante é que, nos
próximos encontros, em lugar de enfatizarmos a importância dos contextos, discu­
tamos os contextos.
Cremos que o encontro que se consubstancia aqui na forma deste livro foi uma
experiência muito valiosa. Reunir diversos autores, de diversas regiões geográfi­
cas e com distintas perspectivas de análise, numa só publicação é algo que poucas
vezes se deu na arqueologia brasileira. Nossa expectativa é que neste livro os
leitores possam encontrar referências, reflexões e propostas para ampliar sua
percepção do que hoje se produz acerca de tecnologia lítica e, por extensão, ter
construído um olhar mais amplo sobre as possibilidades de análise que se tem
posto em prática hoje no Brasil. Propomos ao leitor que desfrute da diversidade
aqui apresentada para agregar-se ao debate, multiplicar as discussões que aqui se
constroem. Esperamos que a diversidade seja motivadora, estimulando o interes­
se pelos temas abordados, pelas perspectivas teóricas, pela construção de novos
problemas de pesquisa.
Como destaque entre os resultados deste encontro está o fato de que demons­
tramos experimentalmente que encontros deste tipo são possíveis, que a Arqueolo­
gia Brasileira chegou a um ponto onde é possível e divertido agrupar diferenças e
que todos aprendemos e estamos dispostos a aprender através da troca de expe­
riências decorrentes de diferentes histórias, gerações e perspectivas teóricas.

19

O estudo das Indústrias Líticas
O PRONAPA, seus seguidores e imitadores

Pedro Ignácio Schmitz

0 estudo das indústrias líticas no Brasil pode ser enquadrado em duas grandes
vertentes: uma francesa, mais estruturada e com regular feed-back de sua origem
européia, mais representada pela USP, a UFMG e a FUNDHAM, e uma de
origem americana, menos estruturada e mais autônoma, desenvolvida a partir do
PRONAPA, seus seguidores e imitadores. Apesar de minha primeira iniciação ter
sido feita em escolas de origem européia, considero-me mais à vontade na segun­
da, sobre a qual fui convidado a falar.
O PRONAPA (Programa Nacional de Pesquisa Arqueológica), desenvolvido
de 1965 a 1970, sob a coordenação de Clifford Evans e Betty J. Meggers, da
Smithsonian Institution, tinha como objetivo explícito estudar a origem e expansão
de populações, que tinham em comum uma cerâmica, denominada Tupiguarani.
A execução foi confiada a onze brasileiros, formados, com alguma prática e inte­
resse em ar queologia, mas que não eram especialistas, ou técnicos, nem em sítios
cerâmicos, nem líticos, com exceção de Wilson Rauth, que trabalhava em
sambaquis. Pertenciam a diversas instituições de estados litorâneos, localizados
desde o Rio Grande do Sul até o Rio Grande do Norte.
Para o desenvolvimento do programa, este grupo recebeu um mês de treina­
mento, no qual se estabeleceram os conceitos e os procedimentos a serem adotados
no trabalho (Meggers & Evans, 1965, 1970; Chmyz, 1966). Os conceitos básicos
pai a a organização do material apresentam semelhanças com os das classificações
biológicas: Tradição, para agrupar conjuntos de sítios ou de componentes que
partilham fenômenos culturais durante longo tempo e amplo espaço; Fase, para
conjuntos de sítios ou componentes, dentr o da tradição, que partilham fenômenos
culturais por tempo menor, em espaço mais restrito; Sitio ou componente, para
um espaço singular, ou camada arqueológica, em que se encontram associados
elementos culturais da fase e da tradição; Tipo, para um elemento discreto da
tradição, com tendência temporal definida dentro da fase. Este esquema procura­
va organizar e hierarquizar o material no tempo e no espaço.
E importante deixar claro que estes conceitos se distinguem daqueles estabele­
cidos em outros esquemas para organizar o material, como o que usa Cultura para
conceito básico e Sítio-tipo, Fácies e Tipo-guia (ou tipo-fóssil), como subdivisões da
mesma; às vezes também usa Horizonte com um sentido parecido, mas não igual
' Instituto Anchietano de Pesquisas/UNISINOS. E-niail: anchietano@unisinos.br

21
0 estudo das Indústrias Liticas

ao de Tradição. Outra diferença é que as unidades básicas para o estabeleciment<


cia cultura surgem de escavações em grandes superfícies e por camadas naturais
A prática de campo também foi definida para os pesquisadores do PRONAPA
com relação aos espaços a serem pesquisados, às amostras a serem colhidas, aos
ambientes a serem observados, às localizações a serem registradas com a preci­
são possível neste tempo. Os sítios e componentes seriam definidos por amostras
cie elementos superficiais ou recuperados em cortes estratigráficos, escavados ern
raiveis artificiais de 5 ou 10 cm, com tamanho adequado para produzir um núme­
ro suficiente de elementos para tratamento estatístico básico. Os elementos
cerâmicos a serem analisados eram, primeiramente, os fragmentos encontrados e
apenas secundanamente as peças inteiras que poderíam ser reconstituídas, e seu
uso. A cronologia relativa das amostras resultaria de sucessão de níveis estratigráficos
e de seriação do material segundo o método criado por James Ford, que era
colega de Betty e Clifford. A cronologia absoluta era conseguida por abundantes
datações de carbono quatorze, no Laboratório da Smithsonian Institution. As
denominações para as tradições, as fases, os sítios ou componentes, os tipos,
também foram padronizadas de modo a permitirem comparações em amplos
espaços e longas durações. Na execução, estas normas eram rigorosamente con­
troladas pela coordenação do Programa. Todos estes procedimentos foram pen­
sados para sítios cerâmicos da tradição Tupiguarani, objeto inicial do Programa.
Desde o começo dos trabalhos, ao lado dos sítios cerâmicos da chamada tradi­
ção Tupiguarani, começaram a surgir, nas mesmas áreas, assentamentos com
cerâmica diferente, para os quais também se criaram tradições, fases e tipos,
usando os mesmos critérios. Foram, então, criadas as tradições cerâmicas Vieira,
Taquara/Itararé, Una, Aratu, Uru e Pantanal. Junto com os sítios cerâmicos, não
tardaram a ser descobertos numerosos e variados sítios sem cerâmica, muitas
vezes com abundantes artefatos líticos.
Os arqueólogos do Programa e outros que utilizavam os mesmos procedimen­
tos se defrontaram, então, com dois problemas:
Primeiro, o que fazer com os artefatos líticos dos assentamentos cerâmicos
que, sendo poucos em razão do tipo de coleta, e aparentemente não especializados,
não se mostravam úteis para definir tipos que ajudassem a caracterizar as fases
dentro das tradições cerâmicas. Parecia suficiente descrevê-los como mais um
elemento do sítio e da tradição, sem excessivas preocupações com sua técnica de
produção, utilização e descarte, ou sua tecno-tipologia. Quando, especialmente
em estudos paralelos ou posteriores ao Pronapa, estes artefatos se tomaram nu­
merosos e diversificados, em coletas superficiais sistemáticas e escavações em
superfícies mais amplas, as descrições passaram a se tornar mais minuciosas
(Chinyz, 1976 a 1981,1983,1984; Mentz Ribeiro, 1991) e apareceram estudos
tecno-tipológicos iniciais, como em Candelária (Schmitz eí al., 1990), Camaquã
(Rüthschilling, 1989) e Itapiranga (De Masi & Artusi, 1985). Mas a terminologia
continuou ainda muito ao arbítrio dos pesquisadores.

22
Pedro Ignácio Schmilz.

Segundo, como proceder com os sitios pré-cerâmicos? Se para os sítios cerâmicos


parecia bastar uma descrição que complementasse as fases e tradições estabelecidas
a partir da cerâmica, isto não atendería os sítios pré-cerâmicos. 0 Pronapa e os
programas paralelos e posteriores, que seguiram seu modelo, já não estavam
restritos ao estudo da tradição Tupiguarani e de outras tradições cerâmicas, mas
buscavam localizar, identificai' e caracterizar todas as culturas pré-históricas, que
encontrassem em seu espaço dc pesquisa, em qualquer parte do território nacio­
nal, do que resultou grande variedade de sítios pré-históricos e manifestações
culturais. A solução adotada foi usar, enquanto cabiam, as normas e procedimen­
tos estabelecidos para os sítios cerâmicos e criar quadros semelhantes aos produ­
zidos para aqueles.
Para as denominações dos artefatos líticos estava disponível um pequeno voca­
bulário, organizado por Annette Laming-Emperaire (1967) por ocasião dos traba­
lhos arqueológicos no sambaqui dos Rosas, em Antonina, PR. Com esta professo­
ra diversos arqueólogos, do Pronapa e fora do Pronapa, tiveram sua iniciação em
escavações arqueológicas, em superfícies amplas, em sambaquis e em abrigos, e
algum treinamento em análise de material litico.
Também o casal Evans tinha organizado, em Antofagasta do Chile, um semi­
nário para estudo de material litico, sob a orientação de Denis Stanford, para o
qual foram convidados arqueólogos brasileiros diretamente ocupados com assen­
tamentos pré-cerâmicos antigos, de dentro e de fora do Pronapa. Em Estúdios
Atacamenos 8 apareceram contribuições, então apresentadas por Eurico T. Miller
(1987) e Pedro Ignácio Schinitz (1987).
Também Fleniken, em sua passagem pelo Brasil, fez contatos com arqueólo­
gos de diversas instituições. Mas, neste tempo, com exceção da Universidade de
São Paulo (USP), por onde transitavam regularmente arqueólogos franceses, não
havia treinamento especializado, ficando a execução muito confiada ao arbítrio do
pesquisador, a seu conhecimento, sua bibliografia e sua experiência prévia.
Os que mais se distinguiram no estudo do material litico foram: Eurico Th.
Miller (MARSUL, Taquara), Pedro Augusto Mentz Ribeiro (CEPA, Santa Cruz
do Sul), a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas (São Leopoldo) e Igor
Chmyz (UFPR).
Nas então criadas tradições cerâmicas, como Aratu, Uru e Pantanal, os artefa­
tos líticos costumavam ser simples e pouco numerosos e receberam, por isso, trata­
mento descritivo sumário. Na tradição Una, esses artefatos costumam ser numero­
sos e variados, merecendo, por isso, estudos mais cuidadosos (Schmilz, Rosa &
Bitencourt, 2004). O litico da tradição Tupiguarani recebeu, umas vezes, descri­
ções sumárias e generalizantes (De Masi & Schmitz, 1987), outras vezes descrições
mais elaboradas (Schmitz et al., 1990). Na tradição Vieira costuma não aparecer
material litico e, quando ele existe, é da tradição Umbu (Rütschilling, 1989).
Os sítios e componentes pré-cerâmicos foram organizados, à maneira dos
cerâmicos, em grandes tradições, divididas em fases, que ordenavam componen-

23
0 estudo das Indústrias Líticas

tes com a idéia de mostrar sua distribuição no tempo e no espaço. Fatores climá­
ticos e ambientais e, em menor escala, difusão cidtural e contatos entre grupos
poderíam ajudar a entender as características e a distribuição. As grandes tradi­
ções criadas com sítios do planalto brasileiro foram: Umbu, Humaitá e Itaparica,
nomes que se tornaram de uso comum. Também foi sugerida a tradição
Serranópolis, mas suas características não chegaram a ser definidas. No litoral
estavam os sambaquis, que não interessavam à maior parte destes pesquisadores.
Como nos sítios cerâmicos os artefatos de barro cozido e as tendências estatís­
ticas de seus tipos eram usados para estabelecer tradições e fases, assim nos
assentamentos pré-cerâmicos ocupariam esta função os artefatos líticos, com seus
tipos e tendências. De maneira complementai' foram usadas as variações climáti­
cas expressas nas camadas e no ambiente do entorno, os resíduos alimentares e
as formas e estruturas da instalação.
Quero mostrai' como estes procedimentos foram aplicados à chamada tradição
Umbu. Sob esta denominação foram reunidos sítios do Sul do Brasil em que
pontas de projétil líticas, geralmente numerosas, aparecem associadas a pequenos
e grandes artefatos bifaciais, a raspadores e raspadeiras de diversos tamanhos, a
lascas retocadas ou usadas diretamente, a percutores, junto com abundantes e
variados resíduos de lascamento, formando um contexto característico. Estes ele­
mentos estão presentes tanto em sítios a céu aberto quanto em abrigos rochosos.
Muitas vezes estão acompanhados de restos de alimentos, que indicam origem na
caça e na coleta generalizadas. Os mesmos sítios podem ter sido reocupados
durante milênios, em ciclos climáticos diferentes, aparentemente por pequenos
grupos, em estadias mais, ou menos longas. Em alguns abrigos são encontradas
gravuras, geralmente atribuídas a seus moradores. A tradição persiste, com as
características indicadas, desde aproximadamente 10.000 anos atrás, até o se­
gundo milênio de nossa era, mostrando considerável consistência e continuidade.
Ela foi dividida, pelos arqueólogos, num grande número de fases estratigráficas
ou locais, de cronologias não necessariamente diferentes. Os assentamentos são
encontrados em diversos ambientes atuais e passados da região subtropical, em
áreas abertas, em bordas de matas, na densa Floresta Atlântica da encosta leste
do planalto meridional, mas pouco nas florestas densas que acompanham o curso
médio e inferior dos rios Paraná, Paraguai, Uruguai e Jacuí, incluídos alguns de
seus afluentes maiores, onde ela é substituída pela denominada tradição Humaitá,
que é apresentada com contexto lítico, ambiental e, embora de modo parcial,
cronológico diferente. O limite setentrional da tradição Umbu é o cerrado do
Brasil Central, onde ela é substituída, no começo do Holoceno, por um contexto
Lítico diferente, denominado tradição Itaparica, na qual são comuns plano-conve-
xos alongados e, posteriormente, por conjuntos líticos de artefatos pouco defini­
dos para os quais alguma vez foi sugerido o nome de tradição Serranópolis (Schmitz,
Rosa & Bitencourt, 2004). Em direção ao sul, a tradição Umbu parece continuar
pelo Uruguai e pela Argentina, em ambientes parecidos com os do Sul do Brasil.

24
Pedro Ignácio Schmitz

Como foi o trabalho dos arqueólogos que criaram a Tradição Umbu?

Nos sítios superficiais eles fizeram coletas, predominantemente gerais ou sele­


tivas. Em numerosos abrigos realizaram cortes, com tamanhos variados, desde 1
x 1, a 1 x 2, a 2 x 2 m, às vezes contíguos, em níveis artificiais, registrando os
estratos naturais, peneirando os sedimentos em malha de 3 mm, o que permitiu
recolher todo tipo de artefatos e resíduos líticos, como também de restos
macroscópicos da fauna e da flora. Geralmente não foi usada flotação para coleta
de restos vegetais pequenos, nem foram recolhidas amostras de pólen para estudo
da vegetação. Apesar de certo volume de escavações, foram poucos os esqueletos
humanos que permitissem a reconstituição da população.
Foi o material lítico que recebeu a maior atenção. Ele foi separado em grandes
categorias de artefatos presumivelmente funcionais, a partir da morfologia e de
sinais macroscópicos de utilização. As sempre numerosas e características pontas
de projétil e sua associação permanente com um conjunto de outros artefatos
pareciam suficientes para caracterizar a tradição e distingui-la de outras tradições
locais, que não apresentavam as mesmas pontas e seu contexto. A divisão em
tipos morfológicos, estatísticos, estratigráficos e/ou por matéria-prima, foi usada
para criar fases cronológicas e/ou locais, à semelhança do que se fazia com a
cerâmica (Mentz Ribeiro & Hentschke, 1976; Mentz Ribeiro & Ribeiro, 1999;
Miller, 1969, 1974, para citar alguns). Mas grande parte destas classificações
obedeceu mais à intuição do que a critérios cientificamente testados. Os restos de
alimentos, quando abundantes, poderíam ser utilizados para confirmar estas fa­
ses, mas eles foram pouco usados, ou por serem poucos, ou porque o acesso aos
biólogos especialistas era difícil.
Com as fases assim constituídas poder-se-ia construir tanto um quadro históri­
co quanto um evolutivo, um geográfico ou ambiental e, ainda, um tecnológico.
Um quadro histórico mostraria predominantemente a origem da tradição as­
sim constituída, a gênese e sequência de suas fases, a dispersão no espaço, os
contatos com outras tradições, a substituição ou transformação de seus artefatos.
Um quadro evolutivo acentuaria as forças atuantes no processo, podendo ser
destacados, predominantemente, o ambiente, a sociedade ou a cultura.
Um quadro ambiental ou geográfico se assemelharia a uma geografia humana
da tradição como um todo e de suas diferentes fases.
Finalmente, um quadro tecnológico se preocuparia com o processo de produ­
ção, uso e descarte do material utilizado.
Quem mais se aproximou das expectativas, na síntese dos resultados produzi­
dos pelos arqueólogos, foi Arno Alvarez Kern, em sua tese de doutorado (Kern,
1981). Ele pouco tinha trabalhado em campo, mas se preocupou em criar uma
síntese das duas grandes tradições pré-cerâmicas do planalto meridional, a tradi­
ção Umbu e a tradição Humaitá. Reporto-me aqui exclusivamente ao que escre­
veu sobre a tradição Umbu.

25
0 estudo das Indústrias Líticas

Primeiro ele apresenta o quadro geográfico do planalto meridional, no qual se


encontram distribuídos os sítios e componentes da tradição. Depois mostra como
se deu a evolução do clima, da flora e da fauna nos períodos finais do Quaternário,
que são os que interessavam para o estudo do povoamento da área, distinguindo:
a transição Pleistoceno-Holoceno, o começo do Holoceno e o próprio Holoceno.
Com isto estabeleceu o quadro de referência cronológico e ambiental no qual se
desenvolveu a tradição com suas diversas fases e sítios.
Apresenta, depois, o inventário dos dados correspondentes às numerosas fa­
ses e sítios, colocados em suas regiões geográficas: o planalto do Paraná com os
vales dos rios Iguaçu e Tibagi; o vale do rio Paraná; o planalto de Santa Catarina
e o vale do rio Uruguai; a encosta meridional do planalto sul-brasileiro.
Os dados reunidos lhe possibilitam discutir como os diferentes tipos de sítios
estavam inseridos na paisagem, quais eram as indústrias líticas e ósseas produzi-
uas para sua exploração, em que ambientes estavam inseridos os assentamentos,
como se dera a adaptação cultural e como era a produção da subsistência.
Finalmente Kern elaborou um quadro da cronologia absoluta e relativa dos
sítios e como estes, e suas correspondentes fases, se distribuíam no espaço e no
tempo, voltando aos períodos, que havia estabelecido inicialmente: a transição
Pleistoceno-Holoceno, o início do Holoceno, o Holoceno pleno.
O resultado é. predominantemente, um quadro histórico, não tanto geográfico,
nem evolutivo, menos ainda tecnológico, mas contendo um pouco de tudo. Trata-
se da síntese possível no momento, que apresenta um quadro geral, ainda bastan­
te esquemático, de como grupos pré-históricos povoaram o planalto meridional,
desde o final do Pleistoceno até um tempo em que já populações agricultoras,
ceramistas. ocupavam grande parte desse espaço; em alguma região até os colo­
nos alemães já disputavam suas matas.
Depois de analisar toda a bibliografia para escrever a tese, Kern registra defi­
ciências que sentiu nos dados para construir um quadro mais completo, e faz
sugestões de pesquisa, algumas mais próximas do esquema de organização de
que falei acima, que usa Cultura como conceito unificador. Destaco algumas:
Primeiro, sugere trabalhos na própria tradição Umbu, onde seriam prioritários
estudos estatísticos e tipológicos dos artefatos para a caracterização das variações
regionais.
Logo, o estudo de assentamentos em áreas bem determinadas, que poderíam
mostrar a relação entre sítios de habitação e de acampamento e servir de indica­
dores de deslocamento estacionai.
O estudo da evolução tecno-tipológica, que podería mostrar estagnação e re­
gressão nas industrias.
■X. continuidade de prospecções, e a realização de escavações em grandes
-uperfícies por camadas naturais, para dar suporte à reconstituição da vida dos
grupos pré-históricos.

26
Pedro Ignácio Schmitz

A realização de melhores estudos geológicos para firmar as correlações entre


as fases e os períodos de oscilação climática.
A maior parte destes itens não foram retomados porque, neste tempo, houve
mudança de enfoque no estudo dos sítios regionais de caçadores.
Kern também achava errado usar as pontas de projétil como uma espécie de
fóssil-guia isolado, sem seu contexto, para distinguir a tradição Umbu de outras
tradições locais, especialmente a Humaitá.
Pesquisadores posteriores criticaram as tentativas de classificação tipológica e
funcional do material e a utilização das pontas de projétil, junto com seu contexto,
como identificadores, intuitivos ou demonstrados, da tradição, tentando, em
contrapartida, uma reconstituição tecnológica das peças, especialmente com a
intenção de mostrar que seria fictícia a separação entre a tradição Umbu e a
tradição Humaitá (Hilbert, 1994; Dias, 1994; Hoeltz, 1995). Estudos de cadeia
operatória são ainda posteriores. As críticas e novas abordagens não modificaram
a essência do conhecimento que temos sobre a tradição.
A tradição Umbu apresenta mais consistência na sua construção que a chama­
da tradição Humaitá, em cuja caracterização entra o predomínio de elementos
líticos maiores e mais volumosos, também predominantemente bifaciais como são
os da tradição Umbu, mas sem as características pontas de projétil com seu acom­
panhamento de artefatos menores. Os sítios se constituem de assentamentos a céu
aberto, em ambiente florestado, nos vales médios dos rios Paraná, Uruguai, Jacuí
e de seus afluentes maiores. Ela foi inicialmente descrita como Cultura Alto-
Paranaense, por Osvaldo F. Menghin (1955/1956), para território argentino e
paraguaio. No Brasil ela recebeu, junto com nova caracterização, também um
novo nome. Amostras estratigráficas são raras e as datas confiáveis quase
inexistentes. Na constituição brasileira inicial dessa tradição, por oposição à tradi­
ção Umbu, possivelmente se terão imiscuído elementos culturais estranhos, pare­
cidos em sua morfologia, mas provenientes de populações pré-cerâmicas, às vezes
até de populações ceramistas, como as da chamada tradição Taquara/Itararé, do
planalto sul-brasileiro e as da chamada tradição Tupiguarani, dos vales florestados
dos mesmos rios em que ela ocorre. Para validar a tradição será necessário reavaliar
todos os sítios e componentes que lhe foram atribuídos, e buscar amostras
estr atigráficas amplas e datadas, que permitam estabelecer, sem dúvidas razoá­
veis, os elementos constitutivos mínimos, tecnológicos, morfológicos, funcionais,
ambientais e regionais. Por enquanto há muito questionamento, mas sem novos
resultados.
Numa avaliação geral do conhecimento resultante da constituição da tradição
Umbu, pelos arqueólogos do Sul do Brasil, destaco alguns pontos, sem me alon­
gar:
Foram identificados e estudados numerosos assentamentos atribuídos a esta
tradição, localizados tanto em ambientes abertos quanto em florestas, com datas
que vão do nono milênio antes de Cristo até o segundo milênio de nossa era. Eles

27
0 estudo das Indústrias Líticas

se deram em abrigos, quando estes estão disponíveis, mas são mais numerosos
em sítios a céu aberto. 0 caráter dos assentamentos conhecidos é, predominante­
mente, de acampamentos de certa duração, nos quais se produzem e utilizam
artefatos variados, não só pontas de projétil, indicando atividades múltiplas de
seus ocupantes. Mesmo naqueles abrigos cujas camadas são espessas, a ocupação
não parece ter sido contínua, mas sucessiva, às vezes durante milhares de anos.
Do pequeno número e pouca densidade dos sítios pode-se inferir uma população
pouco numerosa. Os elementos constituintes básicos e seus contextos apresentam
caráter conservador, que leva a uma reprodução, sem maiores mudanças, duran­
te dez milênios, o que distingue esta tradição pré-cerâmica de outras, como a
Humaitá e a Itaparica. Os sítios mais antigos parecem estar localizados na parte
meridional do território brasileiro, mas finalmente eles ocuparam o espaço
subtropical em diversos de seus ambientes.
O fato de classificarmos os sítios na mesma tradição lítica não significa que os
imaginemos pertencentes a um mesmo grupo, etnia, ou tronco linguístico. Pelo
contrário, supomos que, através do tempo e do espaço, tenha havido múltiplas
apropriações diferenciadas dos elementos básicos por populações diferentes, que
deles se apropriaram de maneiras diferentes e os incorporaram a sua cultura.
Ilustrarei isso com uma situação que estou estudando.
Na densa Floresta Atlântica do leste de Santa Catarina foram registrados, nas
últimas décadas, cerca de 300 sítios arqueológicos pré-cerâmicos, com pontas de
projétil e contextos da chamada tradição Umbu. Estes sítios coincidem com os
lugares em que, no século XIX, foram registrados conflitos entre os índios Xokleng,
da família linguística Jê, e os colonizadores europeus, principalmente alemães da
colônia de Blumenau (Farias, 2005). Buscando entender essa estranha coinci­
dência, a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas iniciou um projeto, no
limite da Floresta Atlântica com a Mata com Araucária, na bacia do rio Itajaí do
Oeste, onde havia o conhecimento de numerosos sítios com pontas e de, ao me­
nos, dois sítios com casas subterrâneas, um destes com um montículo funerário.
As pontas de projétil costumam ser associadas com populações caçadoras nôma­
des, as casas subterrâneas e os montículos funerários com grupos Jê meridionais,
de certa estabilidade.
As escavações feitas em ambos os tipos de sítios mostraram que neles não
havia cerâmica, mas pontas de projétil e um fogão circular feito com seixos ou
pequenos blocos, característico dos sítios locais com pontas, mas que ainda não
era conhecido de casas subterrâneas. Estando excluída a re-ocupação destas, a
associação local parecia indicar que ambos tipos de assentamentos (sítios a céu
aberto e casas subterrâneas com montículos funerários) eram produzidos por uni
mesmo grupo ou sociedade indígena.
A datação de dois dos cinco fogões existentes num assentamento com pontas,
a céu aberto, proporcionou datas praticamente iguais: 4.110 anos A.P. e 4.140
anos A.P. No sítio, que compreende 13 casas subterrâneas e um montículo fune-

28
Pedro Ignácio Schmitz

reino, foram realizadas escavações em oito das casas e foi limpo o montículo. Em
nenhum desses trabalhos apareceu cerâmica, mas uma indústria lítica parecida
com a dos sítios a céu aberto. Nas três estruturas datadas, conseguimos uma
cronologia relativamente recente: uma depressão, com a típica indústria lítica,
inclusive uma ponta de projétil inteira, foi datada em 1.220 anos A.P., a outra
estrutura, com material lítico parecido e um fogão característico, foi datada em
1.180 anos A.P.. Uma casa bastante profunda foi datada em 650 anos A.P.
A continuidade da mesma indústria lítica nos dois tipos de sítios e a falta de
cerâmica nas casas subterrâneas, com datas relativamente recentes, causou estra­
nheza. Datas recentes para sítios pré-cerâmicos com pontas de projétil são confir­
madas para outros assentamentos nos vales dos rios Itajaí e Tubarão, em que
Walter F. Piazza (1969 e 1974), João Alfredo Rohr (1978) e Deisi Farias (2005
e com. pes. 2007) obtiveram cronologias semelhantes. Piazza também fala de
casas subterrâneas sem cerâmica (fase Cotia) no planalto catarinense, não longe
de nossa área de pesquisa.
Por outro lado, para confirmar nossa cronologia antiga, poderiamos lembrar a
data de 4.810 anos A.P., de Marco Aurélio De Masi, para o rio Canoas, um dos
formadores do Rio Uruguai, que ele coloca na formação do grupo Xokleng.
Não lenho certeza se nossa pesquisa na Floresta Atlântica de Santa Catarina
realmente está ligada à trajetória do grupo Xokleng, mas é muito provável (Schmitz,
2007). Em 1917, quando se iniciou a colonização da área em que instalamos
nosso projeto, ainda índios Xokleng viviam nas matas do lugar. Se for confirmada
nossa liipótese, teremos a possibilidade de mostrar como um grupo indígena, cuja
origem é colocada nos cerrados do Brasil Central (Urban, 1992), e cujos descen­
dentes ainda são numerosos no sul do Brasil, incorporou uma indústria lítica de
grande expansão e a fez sua, num complexo processo de formação étnica, junto
com casas subterrâneas e montículos funerários, agora característicos dos grupos
Jê meridionais. Já não será o estudo abstrato de uma tradição lítica, a chamada
Umbu, mas um estudo dinâmico, regional, encarnado.
Assim como este, muitos outros estudos poderão ser programados, tomando
como base o conhecimento que agora existe sobre as tradições pré-cerâmicas do
Brasil.
Com isso, termino. Mesmo faltos de treinamento mais sistemático, os pioneiros
da arqueologia forneceram um primeiro esboço das culturas pré-históricas do
território brasileiro, sua cronologia e distribuição espacial. O que Kern compendiou
para a tradição Umbu é um exemplo dos quadros que podem ser produzidos,
reunindo e pensando as informações disponíveis. Outros se tornam possíveis.
Estudos de formações regionais, como a que indiquei para a Floresta Atlântica de
Santa Catarina, darão ainda maior riqueza e dinamismo.

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31
ReJ

CH

1
Da Tipologia à Tecnologia:
Reflexões sobre a variabilidade das indústrias
líticas da Tradição Umbu

Adriana Schmidt Dias*

Os estudos arqueológicos de sociedades caçadoras coletoras no Brasil Meridi­


onal têm se centrado na discussão sobre a natureza da variabilidade dos conjun­
tos artefatuais e como esta se relaciona com aspectos de dimensão temporal,
regional e cultural. Pela perspectiva histórico-cultural, a Tradição Umbu pressu­
põe uma unidade tecnológica relacionada a sítios liticos que apresentam em seus
conjuntos pontas de projétil elaboradas a partir de lascas retocadas de forma
bifacial. Por sua vez, os ritmos de variação temporal e regional destes conjuntos
liticos ao longo de 10.000 anos de ocupação da região sub-tropical foram sistema­
tizados em 22 Fases arqueológicas (Kern, 1981; Meggers e Evans, 1977; Ribei­
ro, 1979, 1990, 1991; Schmitz, 1981, 1984, 1985, 1987). Os estudos de ver­
tente processual buscar am investigar como a organização da tecnologia influenciava
a variabilidade formal dos artefatos da Tradição Umbu. Desta forma, questões
relativas ao significado cultural das escolhas tecnológicas observadas passaram a
norteai’ estas pesquisas, integrando às propostas interpretativas aspectos das dinâ­
micas ambientais e dos sistemas de assentamento (Dias, 1994, 1995, 1996,
1999, 2003a, 2003b, 2004, 2006; Dias & Hoeltz, 1997; Dias & Silva, 2001;
Dias & Jacobus, 2005).
Ao contrapor as perspectivas analíticas destas correntes teóricas, percebemos
uma tensão paradigmática entre modelos que procuram integrar padrões gerais
de natureza diacrônica e inter-regional e modelos que buscam investigar a varia­
bilidade intra-regional em uma perspectiva sincrônica. Porém, mais que um jogo
de forças entre propostas teóricas, refletir sobre a variabilidade representada pe­
los conjuntos liticos que convencionamos chamar de Tradição Umbu pressupõe
compreender como a manutenção de estruturas comportamentais de longa dura­
ção se relaciona dialeticamente com processos de escolhas culturais concretas,
locais e específicas em termos temporais.
Nosso objetivo é contribuir’ para a reflexão sobre a variabilidade do registro
arqueológico de caçadores coletores associados à Tradição U mbu através da aná­
lise compar ativa de coleções líticas dos vales dos rios dos Sinos, Caí e Maquiné,

‘ Professora Adjunta do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande do


Sul (UFRGS). Pesquisadora do CNPq, dias.a@uol.com.br.

33
Da Tipologia à Tecnologia

região nordeste do Estado do Rio Grande do Sul. Os dados arqueológicos dispo—


níveis para esta região indicam uma ocupação estável e de longa duração po»
grupos de caçadores coletores, caracterizada por alta regularidade na organizaçãc=
da tecnologia, no sistema de assentamento e nas estratégias de exploração do=
recursos da floresta sub-tropical. Nosso objetivo, em um primeiro momento, c
discutir em termos sincrônicos e diacrônicos as características da organização
tecnológica da Tradição Umbu quanto à seleção das matérias-primas, às técnicas
e sequências de produção utilizadas e resultados materiais destas escolhas repre­
sentados pelos distintos tipos de instrumentos produzidos. E com base nestes
dados que analisaremos, em um segundo momento, como a variabilidade lítica
observada relaciona-se com a natureza dos registros arqueológicos, entendidos
em seu contexto regional enquanto reflexos de dinâmicas cidturais de apropriação
da paisagem pelas sociedades caçadoras coletoras ao longo do Holoceno.

Da Tipologia à Tecnologia: direcionamentos teórico-metodológicos para o


estudo de caçadores coletores no sul do Brasil

No contexto das pesquisas arqueológicas brasileiras entre as décadas de 1960


e 1970, o Estado do Rio Grande do Sul destaca-se pelo amplo desenvolvimento
de estudos voltados à caracterização das ocupações de caçadores coletores atra­
vés dos trabalhos pioneiros de Eurico Theófilo Miller, José Proença Brochado,
Pedro Ignácio Schmitz, Pedro Augusto Mentz Ribeiro, Guilherme Naue, Fernando
La Salvia e ítala Basile Becker (Dias, 1994; Prous, 1992). Os objetivos destas
pesquisas eram profundamente marcados pela história, acentuando sequências
culturais, difusão de elementos, distribuição espacial, migr ações, com o estabele­
cimento de tipos de valor histórico-espacial e fases e tradições tecnológicas
(Schmitz, 1976:1). Através da comparação do resultado destas pesquisas, deli-
neou-se uma tendência à definição de fases no sul do Brasil pela presença de
determinadas categorias tipológicas de artefatos considerados diagnósticos, como
as pontas de projétil líticas congregadas na Tradição Umbu1. Sua denominação
deriva da fase homônima definida por Miller a partir das escavações do sítio RS-
LN-01: Cerrito Dalpiaz2, primeira datada e definida através da seriação tipológica
de pontas de projétil, o que contribuiu para firmar o entendimento desta categoria
1 A tradição Umbu foi definida da seguinte forma: “as pontas de projétil líticas são antigas na
América do Sul e persistem no sul do Brasil depois de 5.000 a.C., na tradição Umbu. (...) Entre
a variedade de pontas apedunculadas e pedunculadas, há algumas com margens serrilhadas e
outras com retoque unifacial. A forma mais comum é triangular alongada, com pedúnculos de
lados paralelos ou expandidos e com base reta, côncava ou convexa. Trituradores e pequenas
bigomas líticas com concavidade central são típicos, assim como choppers, raspadores terminais e
lascas com marcas de uso. Frequentemente, estão também associados bolas [boleadeiras], ma­
chados polidos e semi-polidos e afiadores líticos” (Meggers e Evans, 1977: 548-551).
2 Este sítio em abrigo sob rocha situa-se “na encosta nordeste inferior da serra do Umbu, um dos
múltiplos ramos da Serra Geral, localmente denominada de Cerrito” (Miller, 1969: 48).

34
Adriana S. Dias

de artefatos enquanto marcadores espaço-temporais para as demais fases da Tra­


dição (Miller, 1969, 1974; Ribeiro, 1979; Ribeiro e Hentschke, 1976; para
criticas ver Dias, 1994, 1995, 1996).
A análise das coleções líticas relacionadas às fases da Tradição Umbu recebeu
pouca atenção nas publicações relacionadas ao enfoque histórico-cultural, restrita
à descrição dos principais tipos morfológicos de instrumentos e a observação do
predomínio de artefatos elaborados sobre lascas através do emprego da técnica
de lascamento por pressão (Dias, 1994; Kern, 1981, 1983; Prous, 1986/1990,
1992). Esta ausência de informações refletiu-se nas tentativas de sínteses relativas
à Tradição Umbu3 que enfatizaram a distribuição espaço temporal dos sítios em
detrimento de aproximações de natureza tecnológica, ecológica e econômica
(Schmitz, 1984: 2). Em termos geográficos, a Tradição Umbu está associada a
regiões de clima sub-tropical, e os Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina,
Paraná e São Paulo, abrangendo também o Uruguai e as Províncias Argentinas
de Missiones e Comentes. Quanto à cronologia, o início desta ocupação teria se
dado na transição Pleistoceno-Holoceno, situando-se os sítios mais antigos na
região sudoeste do Rio Grande do Sul4. A elevação da umidade e temperatura a
partir de 6.000 anos AP e a consequente expansão da vegetação florestal teriam
estimulado o aumento demográfico, associado a migrações e à diversificação cul­
tural materializada pelas distintas fases arqueológicas. A partir de 2.000 anos AP,
as sequências culturais da Tradição Umbu passam a indicar contato com as Tra­
dições ceramistas Taquara e Guarani, cuja origem cultural está associada ao pla­
nalto central brasileiro e à região amazônica, respectivamente. As migrações de
grupos ceramistas teriam restringido as áreas de domínio da Tradição Umbu à
região sudoeste e sul do Rio Grande do Sid, onde correspondería ao substrato
cidtural de emergência da Tradição ceramista Vieira, apresentando forte correla­
ção cultural com as seqüências arqueológicas do Uruguai.
Seguindo uma tendência que começa a se estruturar na arqueologia da região
sudeste do país no início da década de 19805, surgem as primeiras reflexões
críticas quanto à necessidade de investimentos em estudos tecno-tipológicos voltados
a avaliar aspectos de permanência e mudança refletidos nas indústrias líticas do
Brasil meridional, (Dias 1994, 1995, 1996; Hilbert, 1994; Hoeltz, 1995, 1997;
Kern, 1983; Schmitz, 1985; Rutshiling, 1985,1987,1989). Os resultados iniciais
destes trabalhos estimularam a publicação em 1997, por Dias e Hoeltz, do artigo
“Proposta Metodológica para o Estudo das Indústrias Líticas do Sul do Brasil”,

3 Para sínteses gerais sobre a Tradição Umbu ver Kern (1981, 1983), Ribeiro (1979, 1990,
1991) c Schmitz (1981, 1984, 1985, 1987).
4 Para sínteses sobre povoamento do território sul brasileiro ver Miller (1976, 1987) e Schmitz
(1987, 1990). Para uma revisão da cronologia apresentadas por estes trabalhos ver Dias e
Jacobus (2003:41-46) que sugerem a datação de 10.810 anos AP (SI 2622) para o sítio RS-1-
66: Milton Almeida como a mais antiga para ocupações da Tradição Umbu no sul do Brasil.
5 Ver Vilhena Vialou (1980), Caldarelli (1983) e Prous (1986/90).

35
Da Tipologia à Tecnologia

primeiro a propor parâmetros analíticos para a implementação de estudos


comparativos orientados pela noção de cadeia operatória ou seqüência de produção.
Tomando por referência as propostas de Collins (1975), as autoras compreen­
dem a manufatura de artefatos liticos como um processo contínuo, porém ordena­
do em uma seqüência de redução que pode ser descrita em termos de atributos
tecnológicos referentes às atividades específicas que cada passo de manufatura
compreendeu. Desta noção sistêmica da tecnologia, deriva a importância do estu­
do dos resíduos de lascamento ou debitagem na arqueologia contemporânea,
enquanto índice de informação sobre o processo tecnológico, ausente na análise
tipológica do artefato acabado (Andrewsky, 1998; Odell, 2006; Shott, 1994). Ao
deslocar a ênfase da tipologia para o processo de produção dos conjuntos artefatuais,
as propostas de Dias & Hoeltz (1997) abrir am a possibilidade para estudos
interpretativos dos significados culturais da variabilidade lítica nas industrias líticas
do sul do Brasil. Por sua vez, a sua aplicação ao estudo de conjuntos liticos da
Tradição Umbu derivados das pesquisas histórico culturais nos anos subseqüen-
tes revelaram igualmente a necessidade de um re-direcionamento teórico-
metodológico em projetos de campo de âmbito regional, a fim de oferecer subsí­
dios interpretativos de natureza contextual para a variabilidade observada (Dias,
1994, 1995b, 1996, 1999, 2003a, 2003b, 2004, 2006).
As propostas de Collins tiveram grande influência na arqueologia norte-ameri­
cana ao permitirem que os estudos de tecnologia lítica se transformassem em
meio para inferências processuais. Por sua vez, os testes deste modelo indicaram
que a variabilidade lítica pode relacionar-se a fatores variados como a relação
entre o tipo de matéria-prima e mecânica de fratura, as variações individuais entre
os produtores e as estratégias de uso, manutenção e descarte dos artefatos
(Andrefsky, 1998; Shott, 1994). Em decorrência destes limites analíticos, nos
anos 1990 a ênfase dos estudos liticos de vertente processual orienta-se para a
dinâmica do comportamento tecnológico. A organização tecnológica passa a ser
entendida como uma resposta às condições do ambiente natural e social que
incluem a previsão, a distribuição, a periodicidade, a produtividade, a mobilidade
e os potenciais de exploração dos recursos. Portanto, a forma dos artefatos e a
composição dos conjuntos liticos são produtos dos diferentes modos de
implementação destas escolhas tecnológicas (Carr, 1994; Nelson, 1991).
Os estudos de organização tecnológica derivam das reflexões etnoarqueológicas
de Binford6 quanto à relação entre variabilidade lítica e padrões de assentamento
caçador coletor que estimularam diversos estudos quanto à relação entre estraté­
gias de mobilidade, economia de matéria-prima e organização tecnológica. Na
maioria dos casos, concluiu-se que a compreensão do comportamento tecnológico
demanda ver os artefatos no contexto dinâmico de produção, uso e descarte, pois
sua variabilidade é simultaneamente conceituai, social e econômica e seus fatores

G Para uma síntese desta bibliografia ver Dias (2000).

36
Adriana S. Dias

causais só podem ser entendidos enquanto parte de um sistema tecnológico que


compreende esta totalidade de fatores (Bamforth, 1986, 1991; Carr, 1994; Nel­
son, 1991, Odell, 1996; Perlés, 1992; Shott,1986, 1996).
Compreender a tecnologia lítica como integrada aos sistemas tecnológicos de
uma dada sociedade permite situar a variabilidade observada como uma constru­
ção social resultante de escolhas culturalmente determinadas. Para Lemmonier, a
tecnologia é um produto social, sendo as escolhas tecnológicas estratégias dinâmi­
cas, relacionadas frequentemente com diferenciação e identidade social. As técni­
cas são produções sociais que expressam e definem identidades, auxiliando a
reafirmar, representar e dar sentido a um mundo socialmente construído de pos­
sibilidades e limites (Lemmonier, 1986:154-155). De acordo com esta lógica,
grupos vizinhos, em geral, têm plena consciência das suas escolhas técnicas mútu­
as e a ausência de um dado traço tecnológico em um dos sistemas pode represen­
tar uma estratégia consciente de demarcação de diferenciação social (Dobres &
Hoffman, 1994:221). Portanto, os sistemas tecnológicos são um recurso e um
produto de criação e manutenção de um ambiente natural e social, simbolicamen­
te constituído, estando a sua investigação voltada para o entendimento de sua
relação com os demais sistemas de representação social (Dias e Silva, 2001).
Os estudos de estilo tecnológico vinculam-se a esta vertente teórica, pois com­
preendem o fenômeno estilístico como algo inerente e subjacente aos processos
de produção dos quais resultam os aspectos visuais relacionados à tipologia dos
artefatos (Dias e Silva, 2001; Hegmon, 1992, 1998). Para Sackett, o estilo é uma
qualidade latente e inerente a qualquer variação artefatual, na medida em que a
forma é constituída de escolhas feitas pelo artesão, conscientemente ou não, de
um amplo espectro a sua disposição. Estas escolhas tecnológicas determinam a
variação forma] dos artefatos e são ditadas pela tradição cultural do artesão, abran­
gendo a cadeia operatória que lhes dá origem e as suas formas de uso e descarte,
traduzindo-se em noções de design peculiares a certos lugares e tempos. Portanto,
estilo e função são aspectos complementares que determinam a morfologia dos
artefatos e as características das cadeias operatórias que lhes dão origem. 0 as­
pecto funcional dos artefatos reside na maneira como as suas formas servem a um
determinado fim e o aspecto estilístico reside nas escolhas tecnológicas, cultural­
mente determinadas, que lhes deram origem (Sackett, 1977, 1982, 1993). Estu­
dos etnoarqueológicos levados a cabo nas últimas décadas têm demonstrado que
tecnologia, função e estilo são aspectos inter-relacionados do comportamento,
sinalizando fronteiras sociais e afiliação cultural que podem ser reconhecidas na
cultura material. Contudo, a natrrreza destes fenômenos é altamente contextualizada
em termos lústóricos, podendo relacionar-se a interesses inter-pessoais (relativos
a categorias de idade ou gênero) ou inter-grupais (na mediação de relações entre
grupos vizinhos), devendo os estudos arqueológicos sobre o tema centrar-se em
escalas de análise micro-regionais (Dietler & Herbich, 1998; Dobres & Hoffman,
1994, 1996; Wiessner, 1983, 1991).

37
Da Tipologia à Tecnologia

O objetivo da análise das indústrias líticas aqui apresentadas centrou-se t


• pS ^spectos da variabilidade lítica relacionados à organização tecnológi
.■ 'Çã-0 ni^u na região nordeste do Rio Grande do Sul. Através de estat
serv *jScnlJ'as’ os conjuntos líticos foram analisados de forma comparativa, ol
térias11 ° SC a re a?ao entre as distintas estratégias de escolha e obtenção de m
tinn« J nma®’ sua relação com as tecnologias de produção empregadas e com t
o cnn;.e y1®,08 resu',antes destas escolhas. Nossa intenção é demonstrar que
índicp na ° es,as e®co]llas que refletem os estilos tecnológicos, servindo coi
a a e 'Çã° de identidades culturais ou sociais a partir da análise lítica

^Gmnde Umbu na região nordeste do Rio

Os vales dos rios Maquiné, dos Sinos e Caí estão situados na encosta inferio.
do extremo sudeste da Serra Geral, delimitada ao sul pela Depressão Centra
Gaúcha e a leste pela baixada litorânea (figura 1). Atualmente, a pluviosidade
anual da região encontra-se entre 1500 e 1750 mm, distribuída regularmente ac
longo das estações, estando a umidade relativa em torno de 75 a 85%. 0 clima é
classificada como tropical temperado brando, com condições super-úmidas. A
classificado
média de temperaturas em janeiro encontra-se entre 22° e 24°C e, em julho,
entre 13° e 15°C. Esta área está associada à Floresta Estacionai que apresenta
uma composição de 20% a 50% de árvores caducidófilas no período desfavorá­
vel (inverno). A vanação de sua composição dependente da altitude, dividindo-se
entre Floresta das Terras Baixas (até 30 m), Floresta Sub-montana (30 até 400
m), Floresta Montana (de 400 até 800 m) e Floresta Alto-montana (acima de 800
m) (IBGE, 1986: 574-576).
Em termos geológicos esta região é caracterizada pela Formação Botucatu,
constituída por arenitos eólicos, situada a baixo dos derrames basáldcos da For­
mação Serra Geral, cuja zonas de fratura e irregularidades foram preenchidas,
total ou parcialmente, por cristais de quartzo, calcedônia, calcita ou zeolita. Em
algumas zonas, o arenito da Formação Botucatu fundiu-se em contato com as
lavas efusivas da Formação Serra Geral, dando origem ao arenito silicificado. Por
sua vez, a intensa ação erosiva na encosta da Serra Geral leva à desagregação da
rocha matriz, estando as matérias-primas dispersas na paisagem em função dc
arraste fluvial e pluvial (Leinz & Amaral, 1989).

38
Adriana S. Dias

75 150 km

Figura 1

As datações mais antigas para a ocupação desta região por caçadores coletores
da Tradição Umbu estão associadas ao abrigo sob rocha RS-TQ-58: Garivaldino,
situado no vale do rio Taquari, com 4 datações entre 94304^360 AP (Beta-
44739) e 7250+.350 (BA 44740) (Ribeiro et al, 1989; Ribeiro & Ribeiro, 1999).
A continuidade desta ocupação ao longo do Holoceno Médio é atestada no vale
do rio Caí por 4 datações radiocarbônicas, sendo as mais antigas relacionadas ao
sítio RS-C-61: Pilger, com datações de 8030 + 50 AP (2 sigma cal 9020-8730
AP) (Beta 229583) e 6180 _+ 50 AP (2 sigma cal 7240-6940) (Beta 227856)
(Dias, 2007). As demais estão associadas aos abrigos sob rocha RS-C-14: Bom
Jardim Velho, com o valor de 5655+.140 AP (SI-1199) e RS-C-12: Virador I,
com uma datação de 630^+205 AP (SI-1201) (Ribeiro, 1972, 1975). No vale do
rio Maquiné o abrigo sob rocha RS-LN-01: Cerrilo Dalpiaz apresenta três datações
relacionadas ao Holoceno Médio, entre 5950 + 190 (SI 234) e 4280 + 180 (SI
233) anos AP (Miller, 1969). Paia o vale do rio dos Sinos as 14 datações para os
sítios em abrigo sob rocha RS-S-327: Sangão, RS-S-337: Monjolo, RS-S-360:
Marimbondo e RS-S-359: Aterrado apontam para um período de ocupação con­
tinua entre 8790 + 40 (2 sigma cal 9930-9680 AP) (Beta 160845) e 440 + 90
AP (2 sigma cal 640-590 AP) (Beta 165621) (Dias, 2003a).
Estudos palinológicos na planície costeira e nos vales dos rios Caí e Taquari
indicam que o processo de expansão da Floresta Estacionai nesta área começa a se
firmai- a partir de 9.800 anos AP, restringindo-se aos vales de rios sob a forma de
matas de galeria, entremeadas por extensas áreas de campo. Seu desenvolvimento

39
Da Tipologia à Tecnologia

pleno no sul do Brasil se dá a partir da redução das massas polares e do aumento


da temperatura e da umidade entre 6.000 e 4.000 anos AP (Bauermann, 2003;
Grala & Lorscheitter, 2001). Estudos zooarqueológicos relacionados a sítios de
caçadores coletores da Tradição Umbu nesta região apontam para uma relação
adaptativa de longa duração co.m a Floresta Estacionai, caracterizada pela captura
preferencial de artiodáctilos, estando a diversidade ecológica local representada
pelos táxons secundários de captura. As aves e os moluscos terrestres e fluviais
também representam fatores significativos na subsistência destes caçadores coleto­
res, desempenhando as atividades de pesca um papel de menor significância nes­
tas economias (Dias & Jacobus, 2005; ver também Jacobus, 2004; Queiroz, 2004).
A fim de caracterizar a organização tecnológica da Tradição Umbu nesta área
foram selecionados para estudo os conjuntos líticos de três sítios em abrigo sob
rocha gerados através de metodologias relacionadas ao enfoque histórico-cultural.
Nossa intenção é demonstrar as potencialidades interpretativas oferecidas por es­
tas coleções para discutir aspectos da organização tecnológica enr âmbito macro-
regional. Os sítios em abrigo sob rocha RS-S-358: Toca Grande 2 (vale do rio dos
Sinos) e RS-LN-01: Cenito Dalpiaz (vale do rio Maquiné) foram escavados por
Eurico Miller nas décadas de 1960 e 1970 e suas coleções atualmente encontram-
se sob a guarda do Museu Arqueológico do Rio Grande do Sul (MARSUL). O sítio
RS-S-358: Toca Grande 2 situa-se na localidade de Campestre, município de San­
to Antônio da Patrulha (UTM 22J 543 881/ 6710 055), possuindo 87 m de
abertura por 25 m de profundidade, com altura máxima de 6 m. Neste sítio foi
escavada uma área de 173 m2, em níveis artificiais de 10 cm, até a profundidade
de 1,5 m. Não foram realizadas datações radiocarbônicas, produzindo as escava­
ções uma amostragem de 5245 peças liticas, das quais 259 são pontas de projétil
(Miller, 1974). O sítio RS-LN-01: Cerrito Dalpiaz, localiza-se no município de
Osório (UTM 22J 566 350/ 6731 200), possuindo 49 m de abertura e 15 m de
profundidade, com altura máxima de 7 m. Neste sítio foi escavada uma área de
129 m2, em níveis artificias de 10 cm, que atingiram uma profundidade de 2,5 m
até a rocha matriz. A coleção lítica deste sítio é composta por mais 160.000 peças,
das quais 1614 são pontas de projétil (Miller, 1969:70). Para a presente análise
selecionamos uma amostragem desta coleção7 relacionada à camada 2, datada
entre 5950 e 4280 anos AP, composta por 6666 peças. O sítio RS-C-43: Capivara
I (vale do rio Caí) situa-se no município de Lindolfo Collor (UTM 22J 479 191/
6726 049), possuindo uma abertura de 34 m, 3,7 m de profundidade máxima e
5,5 m de altura de aba no ponto mais alto. Suas escavações foram coordenadas por
Pedro Ignácio Schmitz, entre 1985 e 1986, abrangendo uma área de 49 m2. As
escavações em níveis artificiais de 10 cm atingiram uma profundidade de 1,5 m.
Não foram realizadas datações radiocarbônicas, sendo a cronologia de ocupação
estimada entre o Holoceno Inicial e o período colonial através da análise físico-

7 Quadrículas 21A, 24A. 25A, 27A, 29A, 32A, 32C, 32E, 321. 32L, 32N, 32P, 32Q, 32R.

40
Adriana S. Dias

química dos sedimentos (De Masi, 1991). 0 acervo encontra-se sob guarda do
Instituto Anchietano de Pesquisas, sendo a coleção lítica formada por 146.994
peças, das quais 454 são pontas de projétil liticas (Dias, 1994).

Estratégias de seleção das matérias-primas

As estratégias de seleção das matérias-primas nos sítios da Tradição Umbu


indicam exploração preferencial dos recursos mais abundantes nos locais de im­
plantação dos sítios. O aproveitamento das matérias-primas apresenta-se relacio­
nado com as tecnologias de produção utilizadas, sendo a variabilidade observada
entre os sítios decorrente das estratégias tecnológicas predominantes em cada
conjunto. Em todos os casos analisados, os resíduos de lascamento unipolar rela­
cionam-se ao processamento do basalto e do arenito silicificado, sendo raras as
exceções em calcedônia e quartzo. Por sua vez, o lascamento bipolar é utilizado
unicamente para o processamento da calcedônia e do quartzo.
No vale do rio Caí o arenito silicificado é a matéria-prima predominante (69%),
sendo o restante do conjunto representado pelo basalto (15%), a calcedônia (12%)
o quartzo (2,5%) e a hematita (0,5%), caracterizando-se a estratégia de obtenção
pela coleta de seixos nos cursos de água próximos ao sítio. No vale do rio dos
Sinos obsetva-se um aproveitamento eqiiitativo da calcedônia (43%) e do basalto
(41%), complementados pela utilização do arenito silicificado (8%) e do quartzo
(8%). A estratégia de obtenção do arenito silicificado relaciona-se à exploração
preferencial de afloramentos, sendo o restante das matérias-primas coletadas na
forma de seixos nos arroios próximos ao sítio A amostra do vale do rio Maquiné
caracteriza-se pela exploração prioritária de basalto (94%), originário de
afloramentos, complementado pela utilização da calcedônia (5%) e do arenito
silicificado (1%).

Matérias-Primas RS-C-43 RS-LN-01 RS-S-358


Arenito 101.102 67 2130
Basalto 21.881 6237 423
Calcedônia 19.108 340 2228
Quartzo 4,179 21 439
Hematita 724 1 25
Total 146.994 6666 5245

Figura 2

41
Da Tipologia à Tecnologia

Utilização das Matérias-Primas cm Sítios da TYadição Umbu na


Região Nordeste do RS

100%

50%

0%
RS-C-43 RS-S-358 RS-LN-01

Arenito Basalto SCalcedônia ■Quartzo

Figura 3

A análise diacrônica dos índices de aproveitamento das matérias-primas indi­


ca que as estratégias de seleção mantiveram-se estáveis ao longo do tempo, predo­
minando a exploração do basalto no vale do rio Maquiné e do arenito silicificado
no vale do rio Caí, embora neste último caso a exploração do basalto seja maior
nos períodos mais recentes de ocupação. No vale do rio dos Sinos a exploração do
basalto e da calcedônia competem em popularidade ao longo do tempo, manten­
do-se estável a exploração do arenito silicificado e do quartzo.

RS-C-43: Capivara I
Aproveitamento das Matérias-Primas

100%
80%
I i 1 I I I II su
60%'’
-•
40%

20%
0% L-l>, UI, U», UI, ur
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13 14 15
Arenito □Basalto SCalcedônia ■Quartzo □Hematita

Figura 4

42

Adriana S. Dias

RS-S-358: Toca Grande


Aproveitamento das Matérias-Primas

100%-fí
I
80%
60%-" b
B
40%

20% •z
0%
0 2 4 6 8 10 12 14
Níveis artificiais 10 cm

Arenito Basalto SCaleedónia ■Quartzo □Hematita

Figura 5

RS-LN-01: Cerrito Dalpiaz


Aproveitamento das Matérias-Primas

100%-r''''

80%
60%

40%

20%

0%
l— L— I—

100-110 110-120 120-130 130-140 140-150


Níveis artificiais

Basalto □Arenito SCalccdónia Quartzo

Figura 6

Estratégias de redução e composição dos conjuntos líticos

A fim de caracterizar a organização tecnológica em sua relação com as estraté­


gias de seleção de matérias-primas, as coleções foram analisadas de acordo com
os critérios estabelecidos por Dias e Hoeltz (1997). Em termos gerais, os conjun­
tos líticos apresentam-se majoritariamente compostos por lascas unipolares e
bipolares, sendo baixa a freqüência dos núcleos, indicando que as matérias-pri­
mas sofreram processamento inicial nos locais de coleta.
O conjunto lítico do sítio RS-C-43: Capivara 1 está representado em sua maio­
ria por microlascas (40%) e lascas unipolares (32%), das quais apenas 37 apre-

43
Da Tipologia à Tecnologia

sentaram modificação por uso ou retoque (0,02% do total da coleção). A maio


das lascas unipolares está relacionada a atividades de redução secundária 1
preparação de bifaces, apresentando dimensões entre 1 a 2,5 cm de comprime'
to (85% dos casos) e entre 2,5 a 4 cm de comprimento (12% dos casos), estai*
o restante do conjunto (3% dos casos) relacionado a atividades de redução prini-
ria ou preparação de núcleos. Do conjunto de lascas unipolares, 37 apresentara)
modificação por desgaste de borda ou retoque, configurando 0,02% do total d
coleção. Os núcleos unipolares estão representados na amostra por apenas 1*
peças (0,006% da coleção total), com mais de duas plataformas em várias por­
ções e dimensões médias de 10 x 8 x 5,6 cm. As lascas bipolares representai
5% da coleção total (dimensões médias de 3 x 2 x 0,5 cm), das quais apenas 41
apresentaram modificação por desgaste ou retoque (0,03% da amostra total). A
coleção ainda apresenta 201 núcleos bipolares (0,1% do conjunto total) de confi­
guração prismática ou cônica (dimensões médias de 3x2x1 cm). 0 restante d2
coleção é composto por fragmentos de lascamento (10%) e fragmentos naturais
sem modificação (12%), esta última categoria, em geral, relacionada ao basalto.
O conjunto dos instrumentos representa 1% da coleção total.
IXa amostra do vale do rio dos Sinos, o conjunto lítico é também representado,
em sua maioria, por resíduos de lascamento. Neste caso, a variabilidade relacio­
na-se a maior presença de lascas bipolares que constituem 32% do conjunto
(dimensões médias de 1,8 x 1,2 x 0, 4 cm), das quais 46 apresentaram modifica­
ção por desgaste de borda ou retoque (0,8% da amostra total). As lascas unipolares
representam 21% da amostra, seguidas em popularidade pelos fragmentos de
lascamento (17%). Quanto às suas características, predominam as relacionadas a
atividades de redução secundária ou preparação de bifaces, possuindo 51% des­
te conjunto dimensões entre 1 a 2,5 cm de comprimento, e 34% dimensões entre
2,5 e 4 cm de comprimento, estando o restante associado à redução primária ou
preparação de núcleos. Deste conjunto, 62 lascas unipolares apresentaram modi­
ficação por desgaste ou retoque de borda, configurando 1% do conjunto lítico.
Observa-se uma baixa frequência de microlascas (8%), núcleos unipolares (8
peças) e núcleos bipolares (18 peças), estes últimos representando apenas 0,5%
do conjunto total. Os núcleos unipolares (11 x 7,3 x 3,4 cm) podem apresentar
duas plataformas em ângulo ou mais de duas em várias posições e os núcleos
bipolares (3,6 x 2,6 x 1,7 cm), apresentam forma prismática, cônica ou globular.
Os fragmentos naturais totalizam 9% do conjunto lítico, sendo o restante da cole­
ção representado por instrumentos (13% da amostra).
A amostra do vale do rio Maquiné também caracteriza-se pela presença predo­
minante de resíduos de lascamento. No entanto, os índices de variabilidade nesta
coleção estão representados pelo predomínio de lascas unipolares (49%) e frag­
mentos de lascamento (37%). A semelhança dos demais sítios, as lascas unipolares
estão majoritariamente associadas a atividades de redução secundária ou prepa­
ração de bifaces, possuindo 69,5% do conjunto dimensões entre 1 e 2,5 cm de

44
Adriana S. Dias

comprimento e 24,5% dimensões entre 2,5 e 4 cm de comprimento, estando o


restante associado a atividades de redução primária ou preparação de núcleos.
Do conjunto total de lascas unipolares 21 apresentaram modificação por desgaste
de borda ou retoque, constituindo 0,31% da amostra. As lascas bipolares (1,9 x
1,3 x 05 cm) correspondem a 2% da amostra analisada, das quais 10 apresentam
modificação por desgaste de borda ou retoque (0,1% do conjunto total). Por sua
vez, as microlascas também estão minimamente representadas, correspondendo
a 2% da amostra analisada. A semelhança dos demais sítios analisados, os núcle­
os unipolares (3 peças) e bipolares (2 peças) totalizam 0,07% do conjunto lítico
analisado. Os núcleos unipolares (6,5 x 5,5 x 4,3 cm) apresentam uma ou mais
de duas plataformas em várias posições, sendo os núcleos bipolares similares aos
conjuntos dos rios Caí e dos Sinos. Os fragmentos naturais representam 4% do
conjunto, sendo o restante da coleção composto por instrumentos, que constituem
6% da amostra.

Figura 7
Sitio RS-C-43: lascas unipolares (1 e 2) e bipolares (3 a 5) retocadas

45
Da Tipologia à Tecnologia

Figura 8
3
et (I â1
RS-C-43: biface elaborado
1 cm
sobre lasca unipolar (1), pré-
forma de ponta de projétil (2),
micro-raspadores
pedunculados (3 a 5).
4
©0s
5

Categorias Tecno-tlpológicas RS-C-13 RS-LN-01 RS-S-358


Microlascas 58613 110 398
Lascas Unipolar es 46519 3277 1087
Lascas Bipolares 7816 141 1667
Núcleos Unipolares 10 5 8
Núcleos Bipolares 201 0 18
Fragmentos de lascamento 15032 2462 900
Fragmentos Naturais 17765 256 479
Fragmentos de artefatos 321 71 153
Bifaces sobre lasca 46 51 37
Unifaces sobre lasca 6 3
M icro- raspadores 10 16
Pré-forma* 135 139 171
Pontas de Projétil 404 121 259
Hematilas modificadas 20 0 14
Machados polidoa 1 0 0
I-ascas |x>lidas 2 23 26
Bolcadeiras 1 0 1
Percutores 28 5 3
Polidorcs manuais 4 0 2
Quebracoquinho 0 0 2
Almofariz 0 0 1

Totais 146994 6666 5215 Figura 9

46
Adriana S. Dias

Conjunto Artcfatual dc Sílim da Tradição Umbu na Região Nordeste do RS

50% <1
45% <

40%

ra
n
•_
■( ■
15%-rWl
10%-
5%
0% IU RSC-43 RS&358 RSLN-01

■ Micro lascas □ Lascas Bipolarcs □ Lascas Unipolarcs Secundárias


B Fragmentos dc Lascanvnto □ Instrumentos □ Fragmentos Naturais
□ Núcleos Bipolarcs c Unipolarcs

Figura 10

A análise diacrônica dos conjuntos líticos aponta para uma alta regularidade
na associação e frequência das categorias ao longo do tempo. Os índices de vari­
abilidade na coleção do vale do rio Caí estão relacionados a maior participação
relativa dos fragmentos naturais de basalto entre a superfície e os 60 cm de
profundidade, sendo esta tendência substituída em popularidade pelas microlascas
de arenito silicificado até a rocha matriz. As demais categorias mantêm-se em
frequência constante ao longo da ocupação. Quanto aos sítios do vale do rio dos
Sinos e Maquiné observa-se uma tendência à homogeneidade, com frequências
constantes de distribuição das categorias tecno-tipológicas ao longo da estratigrafia,
com exceções do predomínio de lascas bipolares e fragmentos naturais para o
sítio RS-LN-01 entre 130 e 150 cm de profundidade.

RS-C-43: Distribuição dos Conjunto Lítico na Estratigrafla

II
20%
0% i fflTJ11!111llll 12 13 14 15
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11

■ Micro lascas □ Lascas Unipolarcs


□ Lascas Bipolarcs □ Núcleos
B Fragmentos dc Lascamcnto □ Fragmentos Naturais
S Instrumentos

Figura 11

47
Da Tipologia à Tecnologia

RS-S-358: Toca Grande


Distribuição do Conjunto Litico na Estratigrnfla

1 4
S
B
100%<|

80% x

60% x
iWI S

40% ■ z

0%
0 2 3 4 5 6 7 88 9 10 10 ll
II 12
12 13
1 14
■ Micro lasca Lasca Bipolar Lasca Unipolar
Núcleos BFragmento de Lascamcnto □Fragmento Natural
E3 Instrumentos

Figura 12

RS-LN-01: Distribuição do Conjunto Litico na


Estratigrafia

100%<Jl
80%
60%
40% u
20% ■
0%-U^
100-110 110-120 120-130 130-140 140-150

■ M icrolascas Lascas Unipolares


Lascas Bipolarcs S Núcclos
® Fragmentos dc Lascamcnto Fragmentos Naturais
S Instrumentos
Figura 13

Relação entre estratégias de redução e produção de instrumentos

Os sítios analisados também apresentam categorias equivalentes de instru­


mentos, predominando em todos conjuntos as pré-formas de pontas de projétil8 e
as pontas de projétil. Estas apresentam quatro possibilidades de variação
morfológica: a) corpo lanceolado e sem pedúnculo; b) corpo triangular de bordas
regulares, com base de pedúnculo reta; c) corpo triangular de bordas regulares,

8 As pré-formas de pontas de projétil originam-se a partir da modificação primária bifacial de uma


lasca ou biface que lhes confere uma forma triangular através de retoque por percussão direta
com percutor brando que será preservada no corpo da ponta de projétil, após o retoque por
pressão que dá origem as aletas e ao pedúnculo. Nesta etapa de produção, a pré-fonna pode
sofrer também modificação em sua espessura através de retoques invasores, facilitando o
encabamento e melhorando sua amplitude de vôo (Bradley, 1975; Shott, 1993).

48
Adriana S. Dias

com base de pedúnculo bifurcada; e d) corpo triangular de bordas irregulares e


serrilhadas, com base de pedúnculo de morfologia variada. Em todas as amos­
tras, os instrumentos unifaciais, brutos e polidos são pouco representativos.

1 cm 1 cm

1 cm
1 cm
6

1 i
1 cm 1 cm

Figura 14
RS-C-43: Pontas de projétil com corpo triangular e base de pedúnculo reto (1 e 2) ou
bifurcado (3 e 4) e bordas serrilhadas (5 e 6).

49
Da Tipologia à Tecnologia

A
1 2 3 A

io
I 1

1 cm 1 cm 1 cm

4 5

-
1 i
1 cm 1 cm 1 cm
7

1 cm
Figura 15
RS-C-43: Pontas de Projétil de corpo lanceolado e sem pedunculo (1 a 6)
e ponta de projétil estilo “rabo de peixe”

A análise das estratégias de produção das pontas de projétil apresentou carac­


terísticas similares entre todos os sítios analisados, indicando estratégias tecnológicas
comuns que direcionam a tecnologia de redução unipolar à produção de pontas
de projétil de corpo triangular pedunculadas, sendo as pontas de projétil lanceoladas
e sem pedunculo elaboradas a partir de lascas bipolares. Observa-se um predomí­
nio em todos os conjuntos das formas lanceoladas e sem pedunculo, seguidas em
popularidade pelas pontas de corpo triangular e base de pedúnculo reto. Os
índices de variabilidade local associam-se as frequências das outras categorias de
pontas, observando-se uma grande similaridade entre os conjuntos do vale do rio
dos Sinos e Caí. Por usa vez, a coleção do rio Maquiné é a única que apresenta
tipos lanceolados relacionados tanto a bases de redução primária unipolar quanto
bipolar, sendo esta última menos freqüente neste conjunto.

50

i
Adriana S. Dias

0 conjunto de instrumentos do vale do rio Caí é composto por 1028 peças,


cujas características apontam para o predomínio de atividades de produção e
reciclagem de pontas de projétil. A coleção é composta por 454 pontas de projétil
que correspondem a 45% da amostra de instrumentos. Sua variabilidade
morfológica é dominada pelas pontas lanceoladas sem pedúnculo (54% do con­
junto de pontas de projétil), seguidas pelas pontas de projétil com corpo triangular
e base de pedúnculo reto (28%), com corpo triangular com bordas profundamen­
te serrilhadas (11%) e com coipo triangular e base de pedúnculo bifurcado (6%).
Este conjunto ainda apresenta quatro pontas de projétil (1%) consideradas atípicas
em coleções da Tradição Umbu, associadas às camadas ocupacionais mais pro­
fundas do sítio, sendo três triangulares sem pedúnculo e uma lanceolada com
pedúnculo do estilo “rabo de peixe”. Também são significativos nesta coleção os
fragmentos de pontas de projétil (31%) relacionadas a ápices, pedúnculos ou
bordas bifaciais e as pré-formas de pontas de projétil (13%), estas últimas elabo­
radas a partir da modificação de lascas unipolares (dimensões médias de 4 x 3 x
1 cm). O restante da coleção de instrumentos lascados é composto por micro-
raspadores pedunculados (1%), com dimensões médias de 2 x 2 x 0,5 cm, instru­
mentos bifacias elaborados sobre lascas unipolares (4%) e instrumentos unifaciais
(1%) elaborados sobre lascas unipolares e bipolares. Os instrumentos brutos
(5%) estão representados por percutores multi-funcionais (28 peças), fragmentos
de hematita com marcas de raspagem para extração de pigmentos (20 peças) e
polidores manuais de arenito friável (4 peças). Os instrumentos polidos são repre­
sentados por uma boleadeira com sulco periférico, um machado polido e duas
lascas unipolares com superfície externa polida.
O conjunto de instrumentos do vale do rio dos Sinos é composto por 689
peças, dentre as quais também se destacam como elemento predominante as
pontas de projétil (38% do conjunto de instrumentos), as pré-formas de pontas de
projétil (25%) e os fragmentos de pontas de projétil (21%). A variabilidade
morfológica neste sítio também é dominada pelas pontas de projétil lanceoladas e
sem pedúnculo (50% do conjunto de pontas), seguidas em popularidade pelas
pontas de projétil com corpo triangular e pedúnculo de base reta (25%), com
corpo triangular e pedúnculo de base bifurcado (17%) e com corpo triangular
com bordas serrilhadas (8%). O restante da coleção apresenta artefatos bifaciais
(5%) e unifaciais (1%) elaborados sobre lascas unipolares, bem como micro-
raspadores pedunculados (1%). Os instrumentos brutos correspondem a 3% da
coleção, estando representados por fragmentos de hematita com marcas de raspa­
gem para extração de pigmentos (14 peças), percutores (2 peças), polidores ma­
nuais (3 peças) e quebra-coquinhos (2 peças). Os artefatos polidos, por sua vez,
representam 6% da amostra de instrumentos, constituídos na maioria por lascas
unipolares com a superfície externa polida (26 peças), bem como uma boleadeira
com sulco periférico e um almorafiz.

51
Da Tipologia à Tecnologia

O conjunto de instrumentos do vale do rio Maquiné também caracteriza


pelo predomínio de atividades associadas à produção de pontas de projétil-
amostra analisada é composta por 415 peças, na qual se destacam as pré-forrni
de pontas de projétil (34%), as pontas de projétil (29%) e os fragmentos de ponU
de projétil (17%). Das 121 pontas de projétil representadas nesta amostra, 6OC
são lanceoladas sem pedúncnlo e 40% possuem corpo triangular e pedúnculo d
base reta. Os artefatos bifaciais elaborados sobre lasca unipolares representa^1
12% do conjunto artefatual, sendo baixa a frequência de artefatos unifaciais (19°
e micro-raspadores pedunculados (1%). Os instr umentos brutos (1%) estão re
presentados por percutores (4 peças) e os instrumentos polidos (6%) por lascas
unipolares com evidencias de polimento na face externa (23 peças).

Instrumentos em Sítios da Tradição Umbu na Região Nordeste do RS

45% I
40%
35% ■
30%
25% ___

10%/'1
5% -^\
0% K *-=
RS-C-43 RS-S-358 RS-LN-01
□ Preformas de Ponta de Projétil □ Pontas de Projétil
■ Fragmentos de artefatos □ Artefatos Bifaciais c LJnifaciais
E3 Artefatos brutos c polidos

Figura 16

Em todas as coleções, as pontas de projétil com corpo triangular e pedúnculo


de base reta (4 x 2 x 0,8 cm) foram produzidas a partir da redução secundária de
lascas unipolares e pré-formas, cuja matéria-prima preferencial é o arenito
süicificado (RS-C-43) e basalto (RS-S-358 e RS-LN-01), sendo raras as ocorrên­
cias em calcedônia. Em geral, quando as lascas unipolares são utilizadas como
suporte de redução primána, observa-se que o plano de percussão direto foi
utilizado como suporte para a preparação do pedúnculo. 0 retoque em geral é
bifacial, distribuído de forma contínua e regular, com extensão invasora e ângulo
de inclinação semi-abrupto (20° a 70°). As pontas de projétil de corpo triangular
e pedúnculo de base bifurcada apresentam as mesmas características do grupo
anterior, diferenciando-se apenas pelo comprimento ligeiramente menor (2,9 x
1,7 x 0,6 cm) e por uma tendência a apresentar uma extensão de retoque invaso­
ra, cujas cicatrizes ultrapassam a porção mediana das peças. 0 conjunto que
apresenta bordas irregulares e serrilhadas em função da presença de retoque

52
Adriana S. Dias

bifacial, de extensão envolvente ou invasora, apresenta dimensões menores que


as categorias anteriores (2,3 x 1,2 x 0,5 cm). As matérias-primas predominantes
são o basalto e o quartzo, podendo também ser elaboradas, em menores propor­
ções, em arenito silicificado e calcedônia, indicando bases de redução primária
variadas.
As pontas de projétil lanceoladas e sem pedúnculo se dividem quanto à
tecnologia de produção em dois grupos que apresentam distinções em âmbito
regional. Nos vales dos rios Caí e dos Sinos esta categoria foi predominantemente
produzida sobre lascas bipolares de calcedônia (2 x 1 x 0,5 cm), também orienta­
das de forma proximal. Neste caso o plano de percussão direta é aproveitado, sem
alterações, como terminação proximal da ponta de projétil, gerando uma base
reta. Por sua vez, a região distai em forma de vértice, pode receber retoque para
formar o ápice da peça. 0 retoque pode ser direto ou bifacial, ocorrendo mais
raramente de forma alterna. Sua extensão pode ser marginal, quando o retoque é
direto, ou invasor, no caso de retoque bifacial, com ocorrência contínua ao longo
da borda ou agrupada no ápice da peça, sendo o ângulo de inclinação semi-
abrupto e abrupto. No vale do rio Maquiné as pontas de projétil lanceoladas e
apedunculadas dividem-se quanto à tecnologia de produção em dois grupos que
se encontram associados na estratigrafia, competindo apenas em frequência. O
primeiro está representado por pontas de projétil elaboradas sobre lascas bipolares
de calcedônia (24 peças), cujas estratégias de produção são similares às observa­
das nos contextos dos vales dos rios Caí e Sinos. A segunda categoria é represen­
tada na amostra por 47 peças em basalto (3,6 x 1,5 x 0,7 cm), nas quais predo­
mina o retoque bifacial de extensão invasora e envolvente regular, com ângulo
semi-abrupto ou abrupto, sendo elaboradas a partir de pré-formas ou lascas
unipolares como suporte de redução inicial.
A variabilidade de frequência das distintas categorias de pontas de projétil nos
sítios estudados pode ser interpretada em função das estr atégias tecnológicas
empregadas em sua produção. Nos conjuntos dos vales dos rios dos Sinos e Caí,
as pontas de projétil lanceoladas são produtos de estratégias tecnológica relacio­
nadas à bipolaridade, sendo seus índices de descarte maiores que as pontas de
projétil pedunculadas, cuja vida útil pode ser ampliada através de reativação. Por
outro lado, esta variabilidade também sinaliza índices de identidade social mani­
festadas no registro regional, marcando uma maior integração cultural entre os
contextos arqueológicos dos vales dos rios Caí e Sinos, representando o contexto
do vale do Maquiné uma variação micro-regional.

53
Da Tipologia à Tecnologia

Varabilidade Tipologica das Pontas de Projétil para Tradição Umbu


na Região Nordeste do RS

60% -S\
50% ■

40%/|
30% • '\
20% ■z|

10%/Z1
0%-!^—
RS-C-43 RS-S-358 RS-LN-01
□ Lanceoladas semPcdúnculo
□ Triangulares combase de Pcdúnculo Reto
■ Triangulares combase de Pedúnculo Bifurcado
□ Pedunculadas com Bordas Serrilhadas
□ Outras

Figura 17

A analise diacrônica da distribuição das pontas de projétil na estratigrafia dos


sítios analisados indica a coexistência e a permanência das técnicas ao longo do
tempo. Os contextos dos vales dos rios dos Sinos e Caí apresentam seqüências
similares e complementares, com índices de variabilidade temporal relacionados
à distribuição estratigráíica das pontas de projétil de corpo triangular com
pedúnculos de base bifurcada ou de bordas serrilhadas. A primeira categoria
apresenta uma freqüencia ligeiramente maior e contínua no vale do rio dos Sinos
e no caso do rio Caí, tem uma distribuição localizada na seqüência estratigráíica,
i entre os 60 e 120 cm de profundidade. Por sua vez, as pontas de projétil
pedunculadas com bordas serrilhadas estão presentes, em proporções similares,
em toda a sequência do sítio RS-C-43: Capivara I e concentram-se na estratigrafia
do sítio RS-S-358: Foca Grande II entre os 20 e 70 cm de profundidade. Embora
estes sítios não apresentem datações, as pesquisas arqueológicas nos vales dos
rios dos Sinos, Caí e Taquan têm indicado uma seqüência contínua de ocupação
caçadora coletora ao longo do Holoceno, indicando que as variações de frequên­
cia entre pontas de projétil de bordas serrilhadas e de base de pedúnculo bifurca­
do podem representar índices de variabilidade identitária em escala micro-regio-
nal. Destaca-se ainda no caso do rio Caí a presença de uma ponta atípica na base
da seqüência (120 cm), representada pela forma lanceolada com pedúnculo do
estilo rabo de peixe”, cuja estimativa temporal aponta para o Holoceno Inicial,
indicando possibilidades de intercâmbios culturais com populações do extremo
sul (região pampeana e patagônica).
A baixa variabilidade morfológica das pontas de projétil no contexto do rio
Maquine marca também uma variação micro-regional. Embora apresente uma
alternância de popularidade entre categorias lanceoladas para as camadas mais

54
Adriana S. Dias

antigas (5950 AP) e pedunculadas para as mais recentes (4280 AP), ambas
apresentam-se associadas, independente da origem tecnológica, podendo sinali­
zar também uma variação de caráter funcional, relacionada à exploração mais
intensa de recursos de Floresta Estacionai no início do ótimo climático. Por sua
vez, as pontas lanceoloadas de calcedônia e basalto encontram-se associadas na
sequência em valores constantes, tanto na amostra aqui analisada como nos dados
apresentados por Miller (1969), indicando que a escolha pela sua produção a
partir de suportes derivados de estratégias tecnológicas unipolares representa um
marcador identitário de âmbito micro-regional.

III" IIIIIIIUI
RS-C-43: Capivara 1
Distribuição das Pontas de Projétil na Estratigrafia

100%

50%

E3 Ponta dc Projctil Lanccolada comPedúnculo "Rabo de PcLxc"


Ponta dc Projétil Triangular sem Pedúnculo
Ponta dc Projétil com Pedúnculo Bifurcado
Ponta dc projétil com Bordas Serrilhadas
Ponta dc Projétil com Pedúnculo Reto
Ponta dc Projétil Lanceolada sem Pcdunculo

Figura 18

RS-S-358: Toca Grande


Distribuição Pontas dc Projétil na Estratigrafia

100%-r
80% ■'

60% ■'
l THdTWWHLI
40% ■'

20% z
0%J-jS4-
0 1 2 3 4I 5 6 7 11 12 13 14

Nívics artificiais (10 cm)

Ponta dc Porjétil Lanccolada sem Pedúnculo Ponta Projétil Pedúnculo Reto


Ponta dc Projctil com Borda Serrilhada ■ Ponta dc Projétil Pedúnculo Bifurcado
E3 Ponta Poijétil Triangular sem Pedúnculo

Figura 19

55
Da Tipologia à Tecnologia

RS-LN-0 1: Ccrrito Dalpiaz


Distribuição Pontas de Projétil na Es t ra t ig ra f ia

100%-
80%-
60%-
40%-
20%-
0%-
100-110 110-120 120-130 130-140 140-150
Níveis artificiais

□ Ponta de Projétil Pedúnculo Reto


□ Ponta de Projétil Lanceoladas sem Pedúnculo

Figura 20

Relação entre variabilidade lítica e sistema de assentamento para a


Tradição Umbu

A interpretação da variabilidade sincrônica e diacrônica dos conjuntos lítico?


da 1 radição Umbu observada em escala macro-regional pode ser ampliada atra­
vés de um suporte contextual que considere a natureza funcional destes registro:
arqueológicos. Os primeiros trabalhos sobre sistemas de assentamento relaciona
dos à Tradição Umbu foram realizados por De Blasis no médio vale do rio Ribeira
do Iguape, ao sul do Estado de São Paulo (De Blasis 1988, 1996). A aplicaçãc
deste tipo de enfoque ao estudo dos contextos da região nordeste do Rio Grande
do Sul foram implementados por Dias para o alto vale do rio dos Sinos, utilizando
como referencial interpretativo os modelos etnoarqueológicos sobre mobilidade
de sociedades caçadoras coletoras de florestal tropical9 (Dias, 2003a, 2004,2006)
As prospecções arqueológicas realizadas em uma área de 216 Km2 permitiram i
identificação de 15 sítios relacionados à Tradição Umbu, concentrados em um:
micro-região de aproximadamente 40 Km2 e distribuídos em dois conjuntos. C
primeiro distribui-se por uma área de 16 Km2 e é composto por 9 sítios em abrige
sob rocha, associados à várzea do rio dos Sinos. O segundo distribui-se por um;
área de 1 Km2 junto ao curso médio do arroio Campestre, sendo composto por 1
sítios em abrigo sob rocha e um sítio a céu aberto.
Escavações arqueológicas foram realizadas em três destes sítios (RS-S-327, RS
S-360 e RS-S-337) com o objetivo de oferecer subsídios contextuais e cronológico
para as comparações intra e inter sítios, indicando uma ocupação contínua da áre;
entre 8790 e 440 anos AP. O material arqueológico distribui-se com ffeqüênci
constante ao longo da estratigrafia dos sítios, associado a estruturas de fogueira
que se formaram a partir de vários episódios de reutilização, originando lentes d

er Politis (1996a, 1996b, 1996c, 1998, 2001), Borrero& Yacobbacio (1989) e Jones(1993

56
Adriana S. Dias

carvões e cinzas, com espessuras que variaram entre 20 e 55 cm. Observa-se uma
recotTência na associação entre fogueiras, vestígios arqueofaunísticos e resíduos de
lascamento, indicando um padrão de descarte primário característico a áreas
domésticas ocupadas por curto espaço de tempo, de acordo com o modelo
etnoarqueológico adotado. Estes foram interpretados como residtado de um padrão
de alta mobilidade residencial, estando os vestígios arqueológicos associados a
atividades de preparação, distribuição e consumo de alimentos, bem como a produção
e manutenção de artefatos. As análises físico-químicas e granulométricas dos
sedimentos do sítio RS-S-327 indicam que a formação sedimentar está vinculada à
ação antrópica. As áreas de atividade periféricas às fogueiras estão caracterizadas
pela maior concentração de fosfatos (P2OS) e pela diminuição da fração cascalho
indicando áreas de descarte primário e pisoteio intensos (Bittencourt & Dias, 2005).
As escavações indicaram que não há variações temporais significativas na or­
ganização da tecnologia e nas características funcionais dos sítios. Independente
das datações obtidas, a distribuição estratigráfica do material lítico nestes sítios é
caracterizada por padrões recorrentes de descarte primário, associados à perife­
ria de estruturas de fogueiras. Por sua vez, a análise comparativa das coleções
líticas de sete sítios da região aponta para índices de variabilidade similar ao
observado em escala macro-regional10. As matérias-primas identificadas são de
origem local. A seleção do basalto está relacionada à coleta de seixos junto aos
cursos de água de fragmentos de basalto colunar, trazido por arraste fluvial das
encostas. Nos sítios próximos à várzea do rio dos Sinos observa-se a utilização
preferencial desta matéria-prima que corresponde entre 97% e 61% do conjunto
dos resíduos de lascamento, estando seus índices de utilização nos sítios do vale
do arroio Campestre, entre 36% e 27%. A utilização do arenito silicificado varia
entre 5% e 32%, estando sua procedência relacionada à exploração de
afloramentos. A calcedônia ocorre na área na forma de seixos (geodos) associados
ao arraste fluvial das encostas, e o quartzo está associado à exploração preferen­
cial de afloramentos. A utilização da calcedônia é preferencial nos sítios RS-S-358
e RS-S-359 localizados no vale do ar roio Campestre, correspondendo a 50% das
matérias-primas empregadas. Quanto ao quartzo sua utilização situa-se entre 9%
e 1% para a amostragem analisada, sendo mais frequente nos sítios do vale do
arroio Campestre.
Quanto à organização da tecnologia, os sítios RS-S-358 e RS-S-359 são os que
apresentam vestígios de lascamento bipolar em termos elevados, corr espondendo
a 32% e 25,9% da composição geral do conjunto lítico. Nos demais sítios, os
resíduos de bipolaridade variam entre 4,3% e 0,4% da composição geral da
indústria e relacionam-se ao processamento da calcedônia e do quartzo. Uma
10 Foram analisadas as coleções dos sítios RS-S-358: Toca Grande 2 c RS-S-359: Aterrado,
associados ao vale do arroio Campestre, RS-S-337: Monjolo, RS-S-237: Sangão, RS-S-265: Cam-
pestre, RS-S-360: Marimbondo e RS-S-361: Mato da Toca, associados a várzea do rios dos
Sinos. As coleções totalizaram um conjunto de 21.491 peças (Dias, 2003a).

57
Da Tipologia à Tecnologia

situação inversa observa-se quanto à participação relativa das lascas unipo


nos conjuntos analisados associadas à redução das matérias-primas basalto e ar
silicificado. Os menores índices estão associados aos sítios do vale do arroio C
pestre, que apresentam entre 20,9% e 16,2% de suas coleções compostas
esta categoria de resíduos. Nos sítios associados ao vale do rio dos Sinos as la.
unipolares distribuem-se entre 33,1% e 18,9% da composição geral das ind ú
as. A lascas que apresentavam dimensões inferiores a 1 cm foram incorpora
à categoria de microlascas, cuja origem tecnológica pode ser variada. Sua pa_rt
pação nas coleções variou entre 0,6% e 22,6%. Quanto às lascas unipola
maiores de 1 cm, a analise qualitativa dos conjuntos associados aos sítios R-S
37, RS-S-337 e RS-S-360 indicou um predomínio de lascas relacionadas ã >
dução de peças bifaciais, com dimensões entre 1 a 2,5 cm de compriment
representando entre 74,1% e 70,5% das amostras analisadas, sendo pouco r
presentativas as lascas relacionadas à preparação de núcleos. Esta observaçâ
confirma-se pela baixa presença de núcleos unipolares e bipolares na atnostr
analisada, com índices em geral entre 0,7% e 0,1%. A ausência de estratégias d
preparação de núcleos apresenta, por sua vez, relação com a presença de fra£
mentos naturais em todos os sítios estudados, indicando estratégias de coleta <
estocagem de matérias-primas. A participação relativa desta categoria para &
coleções estudadas varia entre 3,7% e 34,7% dos conjuntos. A participação rela­
tiva e ascas unipolares ou bipolares com retoque é pequena para todos os con­
juntos analisados, com índices entre 2% e 0,1%, e os fragmentos de lascas sem as
termmaçoes proximais e os fragmentos de núcleos apresentam uma participação
relativa similar entre os sítios analisados, variando entre 46% e 17%.
Quanto aos conjuntos de instrumentos, estes representam 13% da amostra
para os sítios do vale do arroio Campestre, enquanto os demais apresentaram uma
composição que varia entre 1% a 5%. A distribuição dos tipos de instrumentos,
por suavez, apresenta igualmente variações entre os sítios. Paia os sítios do vale do
arroio Campestre, as peças bifaciais representam entre 98% e 95% dos conjuntos
e arte atos. Sua representação nos sítios da várzea dos Sinos, no entanto, é mais
atingindo entre 89% e 51% dos conjuntos dos sítios RS-S-265, RS-S-360
e KS-S-327. Nos dois sítios restantes (RS-S-361 e RS-S-337) predominam os arte­
fatos polidos e brutos em relação à participação relativa de artefatos bifaciais.
As pontas de projétil representam entre 57% e 41% dos artefatos bifaciais dos
srtios do vale do arroio Campestre, estando presente também em suas coleções
pré-formas de pontas de projétil (27% a 25%) e os fragmentos de peças bifaciais
(23 a 11%). Dentre os sítios da várzea do rio dos Sinos, observa-se um predomí­
nio dos fragmentos de artefatos bifaciais, entre 42% e 50% dos conjuntos, desta-
cando-se, em um segundo plano, a presença de pontas de projétil. As pontas de
projétil lanceoladas estão majoritanamente representadas nos conjuntos artefatuais
dos sítios RS-S-359 e RS-S-358, sendo produzidas a partir do retoque periférico
’c lascas bipolares de calcedônia. Por sua vez, a unipolaridade se relaciona com
Adriana S. Dias

a produção das demais categorias de artefatos bifaciais para os todos os sítios


estudados, estando associada à produção de bifaces sobre lascas, pré-formas e
pontas de projétil pedunculadas, elaborados preferencialmente em basalto e arenito
siliciíicado, cujas características tecnológicas reproduzem as tendências observa­
das nas coleções dos vales dos rios Caí e Maquine. Também a variabilidade das
pontas de projétil não apresenta evidências de variação cronológica quanto à
distribuição estratigráfica e às datações radiocarbônicas.
Tomando por referência as pesquisas etnoarquelógicas sobre mobilidade de
caçadores coletores de floresta tropical, interpretamos as similaridades na organi­
zação tecnológica aqui demonstradas como relacionadas a um modelo de organiza­
ção social caracterizado por um alto grau de interação inter-bandos, mediado por
estratégias de mobilidade residencial freqüentes em um território regional amplo.
Seguindo este modelo, sugerimos que a borda nordeste do planalto sul-rio-grandense,
compreendendo os vales dos rios Taquari, Caí, Sinos e Maquiné, bem como a
planície litorânea adjacente, correspondería a um território regional de um grupo
de afiliação, comportando vários territórios de forragem de bandos locais. Partindo
de estudos demográficos para sociedades caçadoras coletoras contemporâneas,
podemos sugerir que os bandos locais de caçadores coletores associados à Tradi­
ção Umbu comportariam entre 20 e 30 indivíduos, sendo os grupos de afiliação
regional, compostos, em média, por 400 a 500 indivíduos (Kelly, 1995).
A alta mobilidade agiría de forma a potencializar a capacidade produtiva do
ambiente e manter os vínculos sociais e o fluxo de informação entre os distintos
bandos locais que fazem parte de um grupo de afiliação e que compartilham o
mesmo território regional. Os sítios arqueológicos derivados de um sistema de
assentamento caracterizado pela alta mobilidade seriam o produto de intervalos
breves de ocupação, gerando vestígios materiais pouco densos e altamente dispersos
na paisagem. Estes sítios possuiríam baixa variabilidade funcional e alta probabi­
lidade de apresentar depósitos primários, podendo variar entre dois tipos: unida­
des habitacionais e locações relacionadas a atividades específicas. Sugerimos que
estes sítios de atividades específicas associados à Tradição Umbu poderíam ser de
dois tipos. Um primeiro estaria relacionado a locais de extração de matéria-prima,
geralmente associados a afloramentos rochosos de boa qualidade ou determina­
dos pontos da paisagem, ao longo de cursos de água de maior fluxo, que concen­
trariam seixos ou placas derivados de arraste fluvial. Um segundo tipo de sítio
estaria relacionado ao sistema ideológico dos grupos, estando caracterizado pela
presença de gravações rupestre (petroglifos) em blocos isolados na paisagem ou
associados a abrigos sob rocha (Dias, 2003a, 2004).
Os abrigos sob rocha da borda nordeste do planalto sul-rio-grandense repre­
sentavam marcos nesta paisagem, sistematicamente reocupados como bases
residenciais ao longo do ciclo anual de forragem por distintos grupos locais. Os
episódios de ocupação seriam breves, porém mais freqüentes e menos espaçados
no ciclo de mobilidade, com alto grau de preservação de unidades de deposição

59
Da Tipologia à Tecnologia

primána em função dos intervalos de abandono entre as ocupações. 0 sistema


assentamento de caçadores coletores neste território regional também compor
ria sítios a céu aberto, de igual funcionalidade, porém estes apresentariam t
padrão de distribuição mais disperso na paisagem e em função dos episócli
rápidos de ocupação apresentariam baixa densidade de materiais. Por sua ve
sítios a céu aberto com alta densidade de material arqueológico indicanam epis
dios de reocupação relacionados à disponibilidade de determinados recursos 1'
cais ou estar associados a outros fatores de ordem social, como reunião inte
bandos em função de atividades rituais ou restrições aos sistemas de mobilidad
tradicional associadas a presença de grupos horticultores.
Os ciclos de mobilidade de caçadores coletores de Floresta Estacionai serian
mediados pela disponibilidade do ambiente, variando o número de translados e t
tamanho dos territórios de forragem de acordo com as estações. Nos períodos d«
maior produtividade da flora (verão e primavera), os movimentos residenciais po­
deríam ser mais restritos, havendo uma maior proximidade entre as bases residenciaús
e uma maior permanência nos assentamentos. Durante o inverno, a baixa produti­
vidade da flora determinaria uma maior distancia entre as bases residenciais, uma
menor permanência nos sítios e áreas de forragem mais extensas.

Considerações finais

A organização tecnológica da Tradição Umbu na região nordeste do Estado do


Rio Grande do Sul caracteriza-se por uma alta regularidade em termos sincrônicos
e diacrônicos. As estratégias de seleção das matérias-primas indicam exploração
preferencial dos recursos mais abundantes nos locais de implantação dos sítios, e
seu aproveitamento relaciona-se com as estratégias tecnológicas que predominam
em cada conjunto. Nesta região as estratégias de redução unipolar associam-se ao
processamento do arenito silicificado e do basalto, e as estratégias de redução
bipolar centram-se no processamento da calcedônia e do quartzo.
Os conjuntos líticos estão relacionados à produção e manutenção de artefatos
bifaciais de pequeno porte representados pelas pontas de projétil, predominando
as lascas unipolares pequenas associadas à redução de artefatos bifaciais, as las­
cas bipolares e as microlascas e os fragmentos de lascamentos relacionados a
ambas estratégias tecnológicas. A baixa freqüência de núcleos unipolares e bipolares
indica que o processamento inicial das matérias-primas ocorreu nos locais de
coleta, com o objetivo de produzir suportes de fácil transporte para as unidades
habitacionais, representados pelos instrumentos bifaciais elaborados sobre lascas
unipolares e pelos pequenos núcleos. As lascas extraídas destes suportes foram
utilizadas para a produção de pontas de projétil ou usadas de forma expeditiva,
com ou sem retoque, para a realização de atividades variadas. Observa-se tam­
bém uma tendência à deposição nos sítios de acúmulos intencionais de matérias-
primas e instrumentos brutos, ali deixados em antecipação a usos futuros.

60
Adriana S. Dias

Na região nordeste do Rio Grande do Sul as coleções de pontas de projétil


indicam estratégias tecnológicas regulares que direcionam a redução unipolar à
produção de pontas de projétil pedunculadas com corpo triangular e a redução
bipolar à confecção de pontas de projétil de corpo lanceolado e sem pedúnculo.
As pontas de projétil lanceoladas nos vales dos rios dos Sinos e Caí são produtos
de estratégias tecnológicas de caráter expeditivo relacionadas à bipolaridade, sen­
do seu descarte mais frequente do que as pontas de projétil pedunculadas, cuja
vida útil pode ser ampliada através de reativação, indicando estratégias tecnológicas
de curadoria. A análise diacrônica da distribuição das pontas de projétil indica a
coexistência e a permanência das técnicas ao longo do tempo. Por sua vez, as
variações de frequência podem sinalizar índices de identidade social, marcando
uma maior integração cultural entre os contextos arqueológicos dos vales dos rios
Caí e dos Sinos. O vale do rio Maquiné representaria uma variação neste contexto
macro-regional, indicada pela produção preferencial de pontas de projétil
lanceoladas a partir de suportes derivados de estratégias tecnológicas unipolares.
As semelhanças em termos de organização tecnológica em escala macro-regi­
onal podem ser interpretadas como resultado de um padrão de alta mobilidade
residencial. Os conjuntos líticos analisados caracterizam áreas de atividades do­
mésticas, nas quais predominam a produção e manutenção de pontas de projétil,
secundadas pela produção de outras categorias de artefatos elaborados em mate­
riais perecíveis e pela preparação, distribuição e consumo de alimentos. As simi­
laridades na organização tecnológica sinalizam um modelo de organização social
caracterizado por um alto grau de interação inter-bandos, mediado por estratégias
de mobilidade residencial freqüentes em um território regional amplo. Assim, a
região nordeste do Rio Grande do Sul correspondería a um território regional de
um grupo de afiliação, comportando vários territórios de forragem de bandos
locais, cujos membros poderíam mover-se sem restrição em função de objetivos
de natureza social e econômica. As características de fluidez da estrutura social e
do uso do espaço implicam em uma organização tecnológica homogênea para este
território regional, em função do fluxo constante de informações e pessoas. A
variabilidade local das industrias líticas, por sua vez, apontaria para estratégias de
demarcação, através da cultura material, dos territórios locais.
Embora os conceitos de Tradição e fase correspondam a expedientes de clas­
sificação que diagnosticam variabilidade entre conjuntos artefatuais, estes não
permitem explicar como esta variabilidade se relaciona a comportamentos cultu­
rais no passado. A partir do exercício reflexivo aqui apresentado, procuramos
demonstrar que a avaliação da procedência destes conceitos só pode se dar a
partir de estudos específicos, de caráter regional, que respeitem a contextualização
espacial dos sítios em suas características internas e externas. Estes aspectos
contextuais, por sua vez, devem estar associados a propostas metodológicas que
compreendam a variabilidade artefatual enquanto resultado de escolhas tecnológicas
que sinalizam, em última instância, identidades sociais no registro arqueológico.

61
Da Tipologia à Tecnologia

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66
5
Organização Tecnológica
1
e Teoria do Design:
Entre estratégias e características de performance
Bi
i
Lucas Bueno*

Introdução
t
Neste capítulo pretendemos abordar um problema geral enfrentado por todos
1 nós — como formar conjuntos e conferir significado a eles? E isso que estamos
fazendo quando selecionamos atributos para descrever e caracterizar os vestígios
líticos, cerâmicos, rupestres ou qualquer outra categoria de vestígios do registro
arqueológico. Quais atributos vamos utilizar, porque vamos utilizá-los e quais de­
les serão relevantes para definir mos conjuntos, para agrupar e separar vestígios a
fim de ordenar e organizar os dados e conferir significados a eles?
Vamos discutir- essa questão apresentando uma proposta orientada principal­
mente pela seleção e articulação de dois conceitos oriundos de diferentes pers­
pectivas teóricas — estratégias1 (Binford, 1979; e Nelson, 1991) e características
de performance (Schiffer & Skibo, 1997). Para exemplificar essa proposta utiliza­
remos um estudo de caso arqueológico sobre a variabilidade tecnológica entre os
sítios líticos da região do Lajeado, médio rio Tocantins (Bueno, 2007).
A idéia é apresentar uma proposta que focalize a formação e comparação dos
conjuntos em uma outra esfera que não a tipológica; o objetivo é deslocar a aten­
ção normalmente conferida aos tipos para a esfera das escolhas e das estratégias
implementadas para obtenção das performances almejadas (Hayden et al., 1996).
Com isso propomos uma perspectiva de análise que privilegia o aspecto dinâmico
da cadeia comportamental dos artefatos e que procura articulai- registro arqueoló­
gico e comportamentos (Schiffer, 1987).
A primeira questão é sobre o que vamos comparar: presença/ausência de
tipos, composição de listas tipológicas, cadeia operatória, escolhas, atividades,
comportamentos, articulação dos comportamentos?
Podemos comparar qualquer um desses aspectos, mas o importante é conhe­
cer a natureza e alcance de nossa amostra e que tipo de informações podemos
obter dessa comparação, que certamente não são as mesmas. Para exemplificar o
ponto em discussão podemos citar alguns exemplos:
* Museu de História Natural/ UFMG. lucasreisbueno@gmail.com
1 Há muitas definições possíveis para estratégias; a que nos referimos ao longo do texto se insere
na mesma perspectiva que a apresentada por Nelson (1991).

67
Organização Tecnológica e Teoria do Dcsign

- Conjuntos líricos distintos provenientes de sítios localizados em áreas di


por mais de 2.000 km e que apresentam um “tipo de artefato” com carac
cas formais similares. Pode-se comparar essa duas amostras e estabelecer
lhanças e diferenças entre os conjuntos, mas o que significa possuir tíf.
artefatos com características formais similares?
- Se na mesma situação apresentada acima, ao invés de um tipo de art
encontramos similaridades no conjunto de artefatos, em termos formais, relaci
e quantitativos, o que isso significa?
- Ou então uma cadeia operatória semelhante para produção de determin
artefatos, mas não para outros?
■ E, por fim, se a distribuição dos artefatos em diferentes sítios de uma me
área apresenta similaridades em relação à distribuição entre diferentes sítio;
outra área, o que tudo isso significa?
Essas questões não nos colocam em um ponto muito distante do debate et
Binford e Bordes na década de 70 sobre o significado da variabilidade
Musteriense na 1' rança (Binford, 1973; Bordes & Sonneville-Bordes, 1970), ni
apesar de terem se passado já mais de 30 anos, essa é ainda uma discuss
necessária no âmbito da arqueologia brasileira.
iccc se queremos de alguma mani
Nesse sentido, é importante refletir sobre isso,
ra interpretar o registro arqueológico e conferir a essa interpretação algum sentic
1 •*
do ponto de vista antropológico — queremos estudar e discutir a organização d;
sociedades humanas, e não apenas descrever a composição dos conjuntos artefatua
(lembrando que qualquer descrição já é também interpretação) para fundamenta
a organização do registro arqueológico em termos de distribuição espaço-tempo
ral de traços culturais.
De acordo com os exemplos acima, saber o que significa envolve saber quais
são os fatores que contribuíram para essa situação — o que fez com que os artefatos
sejam morfologicamente semelhantes? O que fez com que os conjuntos de artefatos
apresentem aspectos formais, relacionais e quantitativos similares? 0 que fez com
que tenhamos cadeias operatórias semelhantes? Onde estão, ao que se referem, do
que decorrem semelhanças e diferenças em diferentes escalas ou esferas de análise?
As perguntas, dessa forma, se encaminham para uma mesma questão: quais
fatores contribuíram para Formação dos Contextos Arqueológicos com os quais
estamos trabalhando? Por que os artefatos têm a forma que têm, aparecem no
lugar em que aparecem, numa determinada quantidade e em determinada rela­
ção com outros artefatos?
Essas questões também não são novas, haja vista a grande quantidade de
trabalhos que já foram, e continuam sendo, efetuados sobre processo de forma­
ção do registro arqueológico (Binford, 1979, 1980, 1983, 2001; Camilli, 1989;
Camilli & Ebert, 1992; Dibble, 1984,1987; Kent, 1984; Kuhn, 1994; Schiffer,
1972, 1987; Schiffer & Skibo, 1997; Shott, 1986). No entanto, como frisamos
Lucas Bueno

St anteriormente, é necessário incorporar essas preocupações e propostas à discus­


são de certos problemas de pesquisa que marcam a arqueologia brasileira.
s Nossa proposta é que, para avançarmos na discussão dessas questões, é preci­
>< so contextualizar os artefatos. Não são os tipos que devem ser comparados, mas os
comportamentos associados a sua produção, circulação, consumo e descarte, in-
6 dependentemente desses tipos terem sido definidos com base em atributos for-
\t mais e/ou tecnológicos. Ou seja, devemos comparar contextos, os quais são cons­
tituídos por idéias e comportamentos que, por sua vez, envolvem um conjunto de
objetos materiais em diferentes etapas de sua história de vida (Schiffer, 1987;
Schiffer & Skibo, 1997).
O que estamos propondo é uma abordagem que não seja exclusivamente tipo-
s lógica — o objetivo não é elaborar e comparar listas tipológicas, mas entender as
5. escolhas envolvidas na definição de estratégias associadas à realização de deter­
minadas atividades que demandam certas performances, por sua vez obtidas atr avés
I de designs mais ou menos específicos (Schiffer & Skibo, 1997). Ou seja, a forma é
entendida aqui como uma combinação entre a) escolhas organizadas e estruturadas,
1 voltadas pai a obtenção de determinadas performances; e b) um contínuo processo
i de transformação decorrente dos fatores situacionais que compõem seu ciclo de
vida (Dibble, 1984, 1987; Schiffer & Skibo, 1997; Shott & Weedman, 2007).
Este artigo surgiu de, e se fundamenta em, um problema de pesquisa muito
: específico — caracterizar e compreender a variabilidade dos conjuntos líticos no
Brasil Central. Temos para essa região duas situações bastante distintas no tempo.
Num primeiro momento, uma vasta região na qual aparecem, entre os artefatos
líticos, alguns tipos bastante semelhantes, classificados segundo o nome de les­
mas2. Em seguida, essa mesma região deixa de exibir artefatos formais padroniza­
dos, dando lugar a indústrias pouco formais e aparentemente diversificadas.
Assim, não há tipologia formal ou tecno-tipologia que tenha conseguido até o
momento apreender e interpretar as características e distinções dos conjuntos
artefatuais produzidos nessa macro-região justamente por questões teórico-
inetodológicas — ênfase na elaboração e comparação de tipos. O que temos que
saber é por que os artefatos apresentam essas características, além de comparar
essas razões, não o seu resultado, já que a mesma forma pode ser obtida através de
diferentes processos.

Para uma abordagem não-tipológica (desconstruindo os tipos): estratégias e


características de performance
Para implementar essa proposta, devemos definir dois conceitos principais:
organização tecnológica e Teoria do Design.
0 conceito de Organização Tecnológica surge a partir dos trabalhos
etnoarqueológicos de Binford, na década de 70, preocupado em investigar a rela-
2 Para definição de Lesmas ver A.L.Emperaire 1967:76

69
Organização Tecnológica e Teoria do Design

ção entre variabilidade artefatual e padrões de mobilidade entre grupos caçac——


co etores. Essa proposta envolve, basicamente, trabalhar com a tecnologia ei-----
mos organizacionais, procurando identificar sua diferenciação intema com res=
a pro ução, uso e manutenção dos artefatos. Busca-se o entendimento da
entre as etapas de produção, circulação, uso e descarte dos artefatos e o r=
am lente, ou seja, como essas atividades se distribuem no espaço e como, atj
dessa distribuição, podemos definir a função de cada local ocupado para, por
entender o sistema de assentamento e subsistência desse grupo (Binford, 1979:2
ara e son (1991:57), organização tecnológica envolve a seleção e integras
das estratégias implementadas para produção, utilização, transporte e desc—
os arte atos e materiais necessários para sua produção e manutenção. Es
es rategias seriam uma resposta a condições do ambiente que inclu
previsibilidade, distribuição, periodicidade, produtividade e mobilidade dos
rsos, taman 10 e padrão de distribuição das áreas de recursos, além de po=
is imprevistos (Nelson, 1991:59). Estratégias, nessa perspectiva, são process
e reso ução e problemas que respondem a condições criadas pela relaçs
estabelecida entre os homens e seu ambiente.
ara dar com a questão da forma dos artefatos adotamos as propostas apr
sen a as por chiffere Skibo (1997) que compõem a Teoria do Design e enfatiza
importância c as características de performance nas escolhas realizadas pe!<
artesaos na definição do design dos artefatos.
. premissa básica do trabalho apresentado por esses autores é de que o desig
e guiado sempre pela performance, ou seja, de que o comportamento do artesã
q e etua uma sequência de atividades é influenciado pela performance de cad
a e as, inc uinc o aí todas as atividades pelas quais o artefato passa ao long
de sua história de vida (Schiffer & Skibo, 1997:29).
Característica de performance refere-se a um conjunto de capacidades d
mteraçao especificas de cada elemento que compõe uma atividade. Envolveu
' r l°’ lnteraÇões mecânicas, térmicas, físicas e sensoriais (características <1
Pe™fmance visual, musical, olfativa, etc.) (Schiffer & Skibo, 1997:30). Embor
rí 6 r ° "ã0 35 c’*em claramente, podemos incluir aí também caracterí
cas e pe ormance social e política, uma vez que são fatores fundamentais n
rminaçao c as escolhas, fazendo com que, nesse caso, a característica d
performance adquira um caráter contextual.

Articulando perspectivas em diferentes escalas

Nesse sentido, a proposta de trabalho que apresentamos para lidar com


questão da variabilidade tecnológica é eminentemente inclusiva.
Ao enfatizar a importância das escolhas, associando-as às performances d<
sempenhadas por cada artefato em situações específicas, mas interligadas e ass<
ciadas às demais esferas da sociedade, procuramos articular gestos e paisagens,

70
Lucas Bucno

1 que significa articular abordagens francesas e norte-americanas no estudo da


i tecnologia lítica, ou seja, articular diferentes escalas — micro e macro, intra-sítio e
í regional (Shott, 2005; Torrence, 2001).
& 0 que procuramos enfatizar aqui é que essas abordagens podem ser comple­
r mentares ao invés de excludentes e que a associação de ambas pode fornecer
1 uma visão mais ampla e completa a respeito dos vetores e significados da variabi­
lidade artefatual.

Tecnologia lítica no Lajeado, TO


t
O estudo de caso que apresentamos aqui foi realizado na região do Lajeado,
médio rio Tocantins, com o objetivo de investigar a variabilidade tecnológica nos
sítios liticos dessa região (Bueno, 2007). Como dissemos anteriormente, o primei­
ro passo foi definir o que eram variabilidade e tecnologia, para poder definir
amostra e procedimentos (Bueno, 2007: 9-24).
Apesar de Tecnologia ser um conceito amplamente utilizado seja na arqueolo­
gia, seja em outras áreas, sua definição é fundamenta] para levantarmos hipóteses
sobre os possíveis vetores que estariam influenciando a formação dos conjuntos
liticos identificados em cada sítio estudado.
Serão os conjuntos produzidos pelo mesmo grupo? Por grupos distintos? São
sítios com funções distintas e associados à mesma ocupação ou a diferentes ocu­
pações? São sítios de períodos distintos? Há sobreposição de ocupações? Pergun­
tas recorrentes na Ar queologia e que, no caso dos vestígios liticos, nos remetem ao
ponto central da discussão travada entre F. Bordes e Lewis Binford na década de
1960, já mencionada anteriormente.
Para implementai- esse trabalho, realizamos uma seqüência de procedimen­
tos: em primeiro lugar procuramos trabalhar com vários sítios ao invés de um só,
o que é fundamental para se conhecer a diversidade de vestígios produzidos e
contextualizá-los. Com esse mesmo propósito, incluímos na análise todos os vestí­
gios liticos, artefatos, lascas, fragmentos, núcleos, procurando definir a cadeia
operatória à qual estariam associados. A fim de referenciar esses vestígios no
tempo e no espaço, procuramos estabelecer uma cronologia para as ocupações da
região através de dados independentes da indústria lítica — cronologia com datações
absolutas — e selecionai- alguns sítios para a realização de análises mais detalha­
das a respeito da distribuição espacial intra-sítio. A combinação desses dados nos
permitiu então definir seu papel e articulação em um determinado sistema de
sítios, além de possibilitar a identificação de possíveis eventos de reocupação,
que, por sua vez apresentam consequências diferenciais sobre a composição dos
conjuntos de vestígios em cada sítio (Bueno, 2007).
Com base nessas análises procuramos articular os sítios entre si e no espaço
através da comparação dos conjuntos, enfocando tanto aspectos da implantação e
forma do sítio, quanto a caracterização do conjunto de vestígios. Com isso pude-

71
Organização Tecnológica e Teoria do Design

mos perceber uma articulação entre vestígios encontrados em clife


mas associados ao processo de gestão do mesmo conjunto c e arte a os,
possibilitou definir a história de vida desses artefatos, identificando locais
lização das diferentes etapas de sua cadeia operatória. A partir ls®0^
questões a respeito das performances envolvidas na gestão desse conjun
Para responder às perguntas sobre as performances possivelmente em o
implementação de uma determinada estratégia de gestão de arte atos e rn
primas, procuramos definir as escolhas efetuadas ao longo do piocesso e
ção, uso, circulação e descarte dos artefatos. Para tanto, nos voltamos a q
da caracterização dos vestígios, definição da cadeia operatória à qu es a
ciados, sua distribuição nos sítios, o papel e localização desses sítios, o que.
significa caracterizar os aspectos relacionados à organização da tecno ogta
Tendo caracterizado esses aspectos paia a região do Lajeado, proenr
comparar os dados obtidos com outras regiões do Brasil Central paia as qu
informações que indicam a presença de artefatos formalmente seme ante-,
de identificar outros aspectos que pudessem indicar o compartilhamento t
das escolhas e estratégias envolvidas na produção e circulação desses a e
Com isso procuramos fundamentar a comparação do conjunto artelatu
regiões numa esfera anterior à comparação tipológica, uma comparação e
fatores organizacionais que possibilitam levantar hipóteses a respeito a re
entre comportamento e formação do registro arqueológico.
Todos esses procedimentos foram realizados para contextualizar os conjun
de vestígios identificados; uma contextualização que envolve a dimensão tempo
— com obtenção de datações absolutas e análise espacial intra-sitio a im
identificar eventos de sobreposição e reocupação — e a dimensão espaci
diferentes escalas — artefatos em relação aos outros artefatos, intra-sítio, mte
sítio, regional, macro-regional.
A articulação desses aspectos que compõem essa contextualização nos permi
levantar ;assim hipóteses sobre as estratégias implementadas pelos grupos qu
produziram o conjunto de vestígios que estamos analisando, as performance
requeridas por essas estratégias e os designs decorrentes das escolhas efetuada,
pelos artesãos para obtenção de tais performances.

Amostra

A ocupação da região do Lajeado envolve ao menos três grandes períodos


distintos, separados por intervalos de duração variável, abrangendo todo o Holoceno
(Bueno, 2005/2006; Bueno, 2007). Neste artigo vamos nos ater à ocupação
referente ao que denominamos Horizonte 1, situado entre 10.500 e 8.900 anos
AP (datações radiocarbônicas não calibradas3).

ara um quadro geral das datas obtidas no Lajeado


ver Bueno (2007).

72
i
Lucas Bueno

c
ÁREA DE ESTUDO
c
LOCALIZAÇÃO NO ESTADO DE TOCANTINS
!lí
X
Jt 8 938

1<
p
L

l.
<7 +
5<

0 8 923
* PALMAS

í
L

3
i
A, Lajeado
2 100 km
8 920

» x l uu teuaroo MajaTAM


N

'1
8 912

0 6km

ESCALA

LEGENDA
s
Fonto de ASF
%
Sítios datados 8 WM

Sítio lítico

Sítio com arte rupestre

Sítio cerâmico

Cursos cfágua

Barragem / Reservatório o°

Área urbanizada
8 8'».“' N _____
762»mE 788 790

BASE CARTOGRÁFICA NOTAS


- IBGE. Eko j 1 100 000 ta»ia SC-22 X-O-V1. 1979 - Ongern da» coordenada» UTM Equador • Menda-o SI* W de Groen«x/>
• INVESTCO (Roíonalóno. barragem. »ube»ta;So o Lnha» do tron»rr»uSo) ocmoda» o» corolário» 10 COCAm e SOGkm. retpecv.amerte

DESENHO Marco» Brto.TOO» - Dalun; SAD69

Figura 1
Mapa com a localização dos sítios liticos da área de pesquisa, indicando quatro sítios para
os quais obtivemos datações absolutas e as principais fontes de arenito silicificado fino.
J
73
Organização Tecnológica e Teoria do Design

, . e®te período obtivemos datas em cinco sítios a céu aberto, sendo


< e es oc ac os em dunas na margem esquerda do rio Tocantins, entre a
no ajea o e a cidade de Miracema do Tocantins4. O outro sítio está tamb- —
CSn uerda’ mas a cerca de 50 km de distância dos demais, em fr^^=
ctdade de Palmas5 (Fig.l).
A partir da análise do conjunto de vestígios desses cinco sítios definin^M
caractensucas tecnológicas da indústria lítica associada a essa ocupação e p
1 COnle acionar a des os demais sítios a céu aberto para os quais não obs
ataçoes em função de serem sítios de superfície (Bueno, 2007).

Matérias-primas

tprích jn relaÇã0 às matérias-primas definimos dois conjuntos em função de ca—


_ «lia 6 “ 38 3 sua composição, textura e grau de homogeneidade, “■
nrimac <4 eZ' i?m lmPacl° direto na aptidão ao lascamento. Entre as matéi
eníX ?elhOr qUaIÍdade (g™P° D estão o arenito silicificado fino e o sfle-
^PH"138 maiS heter°gêneas, que apresentam uma série defissu-
o cniartTn e’ ^ortanto’ respondem de forma menos positiva ao lascamento, es«
desses dn' ° qUartzll° e 0 arenito silicificado médio. Para calcular a distribuiç"
IMP - ^P05 em Cada Sítio definimos um índice:
Ml soma vest. Grupo 1/ soma vest. Grupo 2
P,,_» grande---------------------------------------------
vanação identificada, íUJLl^Cldcl dos cinco sítios inicialmente analis
dos, quatro apresentam índices superiores
j a 1, enquanto apenas o sítio Capivai
5 apresenta um índice inferior a 1. Ou
seja, há um padrão, ou uma tendênc
geral, que é a de haver uma predominância das matérias-primas do grupo 1 e
relação às do grupo 2, i
mas que engloba também variações.
MT1 MT2________ MR2
| IMP LJI8 CAP5
13,2 2,43~ 1,02 5,04 0,25
Figura 2
Tabela com o IMP dos cinco sítios analisados

Para averiguar a que se deve tanto esse


padrão quanto suas variações levant
mos duas informações importantes com
relação à matéria-prima: distribuição
acesso e forma de apropriação.
Com relação ao primeiro
] aspecto, através de levantamentos sistemáticos i
área pesquisada identificamos
------ > uma distribuição diferencial entre as matérias-pi
mas que compõem cada um desses grupos, principalmente no que diz respeito
melhor matéria-prima dessa região, o arenito silicificado fino.

* Esses quatro sítios são Miracema do Tocantins 1 (MT1), Miracema do Tocantins 2 (MT
Mares 2 (MR2) e Lajeado 18 (LJ18)
Este sítio se chama Capivara 5 (CAP 5)
Lucas Bucno

Esta matéria-prima aparece sob duas formas distintas — seixos e afloramentos.


fí Os seixos são encontrados nas praias e cascalheiras que se formam em ambas as
& margens do Tocantins, mas que se concentram preferencialmente na margem
-I direita e na altura da foz do rio Lajeado, onde, em épocas de seca, era possível
atravessar o rio Tocantins de uma margem a outra sem qualquer embarcação.
c Esse local concentra a maior quantidade e diversidade de seixos de toda a área
rí pesquisada, tanto em termos de forma e tamanho quanto de litologia. Em meio a
x essa cascalheira é possível encontrar inúmeros artefatos, lascas — normalmente
grandes e corticais — e núcleos, inclusive fixos — os quais apresentam grandes
matacões como suporte. Os seixos de arenito siliciíicado fino apresentam essa
mesma diversidade de tamanho e forma, com córtex liso pouco espesso e, muitas
vezes, com uma face plana e de formato alongado, definindo plataformas de
is
lascamenlo naturais.
c
Quanto aos afloramentos de arenito siliciíicado fino, sua localização parece
i
estar restrita a alguns pontos na margem esquerda, à jusante da foz do Lajeado,
r
próximo à área onde identificamos a formação de dunas nas quais estão assenta­
dos os sítios Miracema do Tocantins 1 a 5. Esses afloramentos forneceram o
É
melhor arenito silificado fino da região, de coloração malhada (amarelo e verme­
i
lho) e, em todos os pontos nos quais foram encontrados, identificamos também a
presença de lascas, artefatos e núcleos (ver Fig.l).
0 sílex e o arenito siliciíicado médio aparecem quase exclusivamente sob a
forma de seixos e estão distribuídos por essas mesmas cascalheiras que se formam
ao longo do rio Tocantins. Há um tipo de sílex em especial, de coloração branca e
bastante homogêneo, cuja formação deve estar associada ao arenito siliciíicado
fino, pois encontramos em alguns desses sítios mais de uma lasca composta pelas
duas matérias-primas. Até o momento não foi possível precisar sua formação e
identificar a localização de suas fontes.
Já o quartzo e o quartzito, apesar de aparecerem predominantemente sob a
forma de seixos, são encontrados também em afloramentos e sob a forma de
nódulos. Essas são as duas matérias-primas que apresentam a mais ampla distri­
buição e acessibilidade, uma vez que, além de serem obtidas nas praias e
cascalheiras do rio Tocantins (que na época do inverno ficam submersas), apare­
cem também em áreas distantes do rio, no que seriam paleo-cascalheiras, antigos
meandros e em áreas de erosão da Formação Pimenteiras, a qual é composta em
parte por camadas de conglomerados formados basicamente por seixos de quart­
zo e quartzito. Há também em alguns pontos localizados entre antigos terraços do
rio Tocantins e o sopé da serra do Lajeado, o afloramento de grandes veios de
quartzo que parecem ter sido explorados, uma vez que junto a esses afloramentos
encontramos de forma recorrente vestígios lascados.
Essa distribuição diferencial das matérias-primas pode, dessa forma, ser um
dos vetores que influencia a variabilidade no IMP apresentado acima. Justamente
o único sítio que apresenta um IMP menor que 1 para a ocupação associada ao

75
Organização Tecnológica e Teoria do Design

período inicial do Holoceno é aquele que está cerca de 50 km distante da prú


pal fonte de arenito silicificado fino. No entanto, mesmo entre os demais sítios 0
se distribuem nas imediações dessa fonte, encontramos variações significativ.
Neste caso, essas vanações são acompanhadas por diferenças entre os sítios c
correntes de sua implantação na paisagem, tamanho do sítio, densidade e diveri
dade de vestígios, o que, por sua vez, pode ser decorrente de diferenças funci'
nais. Ou seja, o padrão definido para os conjuntos associados a este períoc
indica que há uma preferência, uma escolha, pelas matérias-primas melhores
que essa escolha é influenciada por, ao menos, dois motivos: distância e acessib
lidade das fontes de arenito silicificado fino e função de sítio.
Para encaminharmos a discussão e definirmos com maior detalhe as razõe
dessa escolha e os vetores que influenciaram a variabilidade na composição do
vestígios encontrados em cada sítio, podemos observai’ a distribuição dos vestígio
através da caracterização das cadeias operatórias empregadas na apropriação d«
cada matéria-prima.
O arenito silicificado fino corresponde à matéria-prima que foi explorada de
forma mais intensa, uma vez que dentre os vestígios dessa matéria-prima encontra­
dos nestes cinco sítios é muito rara a presença de superfície cortical. A grande
maioria dos vestígios corresponde a lascas, com uma representação destacada para
as lascas de preparo, retoque e reavivagem. As lascas de preparo apresentam em
geral talões lisos ou facetados preparados, algumas vezes com lábio destacado e
bulbo difuso, comprimento maior que largura, espessura bastante fina, perfil curvo
e cicatrizes na face externa que se encontram em diferentes direções — paralelas,
centrípetas e octogonais ao eixo de percussão. As lascas de retoque são em geral
mais curtas, tão largas quanto compridas, preferencialmente com talão liso, mas
com baixa incidência de talões com lábio, o número das cicatrizes na face externa
vana, mas suas direções seguem, na maioria das vezes, paralelas ao eixo de
debitagem da lasca, e o perfil vana entre linear e ligeiramente curvo. Essas catego­
rias de lascas combinam com os artefatos em geral encontrados nestes sítios e
associados a esse período de ocupação. Há tanto artefatos unifaciais quanto bifaciais,
predominado os primeiros. Nas duas categorias há o que chamamos de artefatos
í formais e informais, sendo que a principal diferença entre ambos decorre da inten­
sidade e padronização da transformação dos suportes selecionados.
Para essa matéria-prima não identificamos nenhum vestígio que pudesse indi­
car a utilização da percussão bipolar (ou sobre bigorna), sendo aplicada sempre a
percussão direta, com variação entre a utilização de percutor dtuo ou macio.
Nesses sítios não há, nesta matéria-prima, nenhum núcleo. No entanto, em sítios
superficiais localizados nas proximidades encontramos núcleos sobre seixo, sobre
lasca e sobre bloco.
Os núcleos sobre seixo normalmente são alongados e apresentam uma super­
fície extensa e plana oposta a uma superfície convexa, definindo um longo plano
de percussão. Esses núcleos são lascados a partir dessa superfície plana, fatiando

76
Lucas Bueno

o seixo lateralmente e gerando lascas que sempre apresentam córtex, as primeiras


total, as seguintes parcial em um dos bordos e algumas poucas apenas no talão.
Esses núcleos sobre seixo são pouco explorados, e são raras as lascas que encon­
tramos nos sítios que podemos relacionar a eles.
Os núcleos sobre bloco geram as lascas de maiores dimensões, normalmente
compridas e direcionadas pela definição de uma aresta, seja ela central — definin­
do uma lasca com bordos ligeiramente paralelos e simetria bilateral — seja ela
lateral — definindo bordos semi-paralelos com forma e espessura distintos (Fig. 3).
As maiores lascas produzidas a partir desses núcleos podem ser utilizadas como
novos núcleos, definido a super­
fície interna como plano de per­
cussão. Nesse caso, as lascas ob­
tidas têm uma espessura reduzida,
mas mantêm um equilíbrio
volumétrico entre comprimento/
largura/espessura, não apresen­
tam praticamente nada de super­ ■

fície cortical, têm talão prepara­


do e negativos na face externa
ortogonais ao seu eixo de
lascamento. Muitas das lascas que
chamamos de preparo podem ter
sido produzidas a partir desse tipo
de núcleo e, dessa maneira, trans­ I
formando essa grande lasca em
suporte para produção de artefa­
t \
tos unifacias plano convexos, ao
mesmo tempo em que são explo­
radas também para fornecer las­ D-
V
l\
cas que serão utilizadas com pou­
cos retoques ou, ainda, de forma
bruta. Essas peças seriam então
uma espécie de núcleo/suporte,
sofrendo uma transformação para Figura 3
serem utilizadas e ao mesmo tem­ Grandes lascas de arenito silicificado fino
po gerando lascas que também se­ obtidas a partir de núcleos sobre blocos. Lascas
como estas podem ter servido de suporte para
rão utilizadas. produção de artefatos unifaciais plano-convexos
0 sílex apresenta uma ampla formais através de um processo continuo de uso,
variação com relação à coloração, retoque e reavivagem de pequenos gumes.
densidade e homogeneidade. 0
sílex de coloração mais escura com a presença de bandas é o mais denso da
região e bastante resistente ao lascamento, e sua apropriação normalmente está

77
Organização Tecnológica e Teoria do Design

associada à utilização da técnica unipolar com percutores diu-os e pesados,


vista a quantidade e intensidade das marcas de percussão identificadas nos
os e lascas dessa matéria-prima. Já o sílex marrom claro e, principalmente, o =
branco que aparece em alguns sítios, principalmente no sítio Mirindiba 6 — <—-
posto quase exclusivamente por lascas de preparo e retoque dessa matéria-pi
e de quartzo hialino — é extremamente homogêneo e apresenta lascas finas, <—-
talão preparado, liso e acortical, uma série de cicatrizes na face externa e ausêi
de córtex. Essas lascas apresentam em geral comprimento maior que largtn
são menores do que as lascas de arenito silicifcado fino. Algumas delas, príncipe
mente as mais finas com talão preparado, apresentam bulbo difuso e formação
lábio, o que indica a utilização de percutor macio.
Apesar da presença de lascas de preparo, retoque e reavivagem associac:
aos artefatos plano-convexos formais característicos desse período, não encontw
mos entre esses cinco sítios datados nenhum artefato em sílex nessa categoria. F
poucos exemplares no total da coleção, provenientes de outros sítios, nonnalme—
te superficiais e também a céu aberto, localizados próximos à foz do rio Lajead
A maioria dos vestígios em sílex nos quais identificamos a presença de córte
indica a utilização de seixos como suporte inicial do lascamento. No entanto, ss
pouquíssimos os núcleos dessa matéria-prima presentes nos sítios. Não há ne
nhum evidência de lascamento bipolar e, em razão do exposto acima, parece qui
essa matéria-prima chega aos sítios analisados já previamente trabalhada.
O arenito silicificado médio e o quartzito apresentam características inuit<
semelhantes. Representam as lascas de maiores dimensões desse conjunto, con
maior extensão de superfície cortical, normalmente associadas às etapas iniciai
de descortiçamento dos núcleos. Essas lascas têm geralmente talão liso cortical
muitas vezes bastante espesso, com pouco ou nenhum preparo da plataforma di
percussão e poucos negativos de retiradas anteriores, os quais apresentam dire
çoes paralelas ao eixo de debitagem. 0 perfil é geralmente retilíneo e há um;
tendência por ângulos menores, próximos de 100°.
Os núcleos são quase exclusivamente de seixos, sendo que no caso do quartati
há também poucos nódulos e algumas plaquetas lascadas. A técnica de percussãi
é predominatemente unipolar com percutor duro, mas encontramos também al
guns casos de lascamento bipolar, principalmente em seixos de quartzito de me
nores dimensões. Para os seixos maiores e de formato alongado identificamos;
utilização da técnica de fatiagem de seixo a partir de uma das extremidades
gerando lascas com talão e um dos bordos laterais corticais, as quais muitas veze
encontramos retocadas ou com marcas de utilização.
Essa duas matérias-primas praticamente não estão representadas no conjunti
de artefatos formais, sejam eles unifaciais ou bifaciais, salvo algumas exceções
Estas exceções estão melhor representadas em sítios encontrados já a cerca de 31
km de distância da foz do Lajeado, próximo à foz de outro afluente do Tocantin
pela margem direita, o córrego Mirindiba.

78
Lucas Bucno

I O quartzo representa a matéria-prima na qual encontramos a maior frequência


l de vestígios produzidos pela técnica bipolar. A aplicação desse procedimento
s normalmente aparece associada à exploração de seixos globulares de pequenas
í dimensões. Apesar disso, predominam entre os vestígios dessa matéria-prima,
aqueles produzidos pela técnica unipolar com percutor duro.
3 As lascas apresentam superfície cortical, que pode ser de seixo, nódulo ou
i afloramento. 0 talão é geralmente cortical, as lascas têm perfil retilíneo, poucas
retiradas na face externa, e o talão raramente está preparado. Essas lascas são
5 pequenas e quase não há registro da produção de modificações secundárias. Nesse
I período da ocupação da região não há nenhum artefato formal nessa matéria-
prima e, mesmo entre os informais, ela é a matéria-prima menos representada.
Os núcleos estão presentes sob a forma de seixos, nódulos e blocos. Não há
nenhum registro do lascamento de cristais de quartzo nessa região. Como mencio­
namos acima, os seixos podem ser lascados pela técnica unipolar ou bipolar, sendo
I que, no caso da segunda, sua aplicação está diretamente associada à questão da
i forma e tamanho do suporte — seixos globulares de pequenas dimensões. No caso
dos seixos maiores a técnica mais utilizada envolve a fatiagem de seixo a partir de
uma de suas extremidades, gerando o mesmo tipo de lasca que no caso do quartzito.
Quanto a sua qualidade, predomina o quartzo leitoso, que na maioria das
vezes é pouco homogêneo e apresenta uma série de planos de fratura em sua
estrutura interna. Há pouquíssimos exemplares de quartzo hialino na coleção,
com exceção do sítio que mencionamos acima — Mirindiba 6.
Com essa caracterização vemos que há uma diferença significativa entre as
matérias-primas com relação aos dois aspectos anteriormente levantados: localiza­
ção das fontes e processo de apropriação. Essa diferença opõe, em um extremo,
o ASF, abundante, mas com localização restrita e utilizado preferencialmente de
forma mais intensiva, para produção de artefatos formais, indicando maior prepa­
ração e controle no seu lascamento e, em outro extremo, o quartzo, amplamente
distribuído e acessível, utilizado de maneira expedita, através da retirada de pou­
cas lascas dos núcleos, os quais podem ser lascados pela técnica uni ou bipolar,
gerando lascas que são pouco utilizadas e, quando o são, estão associadas à
produção de artefatos informais. Entre esses dois extremos estão sílex, arenito
silicificado médio e quartzito, com o sílex mais próximo do arenito silificado fino e
os outros dois mais próximos do quartzo.
Com base nesses dados podemos avançar a discussão a respeito do padrão e
das variações identificadas nos IMP de cada sítio: MT1, MT2, MR2 e LJ18
apresentam IMP maior que 1 em função da proximidade da principal fonte dessa
MP; há uma associação entre o uso dessa matéria-prima e a produção dos artefa­
tos formais característicos desse período; as variações encontradas entre esses
quatro sítios estão associadas à realização de atividades nas quais os artefatos
formais são produzidos, utilizados e reavivados, o que indica uma possível varia­
ção funcional destes sítios no âmbito de um mesmo sistema de sítios. Ou seja, o

79
Urganização Tecnológica e Teoria do Design

arenito silicifcado fino é escolhido, pois há uma preferência pela sua utiliza^^S
para produção dos artefatos característicos desse período, em especial os unifaci——
formais plano-convexos, o que é confirmado, inclusive, pela forma na qual apa----
ce no sítio Capivara 5 — lascas de preparo, retoque e artefatos formais. Com i=
identificamos a escolha, mas não chegamos a compreender suas razões. Por q
Há essa preferência, essa associação entre o ar enito silicificado fino e essa catc^S
ria de artefatos? O arenito silicificado fino apresenta alguma performance difere^>
ciada em relação às outras matérias-primas que influencia na obtenção do desrg==
desejado para esses artefatos?
A princípio, apenas por questões de composição e estrutura das matéria=
primas envolvidas, podemos dizer que o arenito silicificado fino corresponde
matéria-prima que responde de maneira mais positiva ao lascamento, sobre
qual é possível obter o maior controle da forma do produto gerado, justamente erw
razão da homogeneidade e grau de coesão dos grãos que compõem esse arenito—
Seria essa a performance que estaria sendo valorizada — responder de forms
positiva e permitir um maior controle no gerenciamento do volume disponível”
Essa é uma preocupação ou um aspecto valorizado no design dos artefatos a que
nos referimos?

Cadeia operalória e design dos artefatos formais plano-convexos

Em função das características dos suportes, das lascas e dos artefatos formais
plano-convexos desse período podemos dizer que os núcleos utilizados para sua
produção podem ter tido como suporte seixos ou blocos de afloramento. Em geral
não há a necessidade de um lascamento padronizado desses núcleos uma vez que
os requisitos formais do suporte que será utilizado para produção desses artefatos
apresenta poucas restrições, e não há, nessa região, restrições com relação à
disponibilidade da matéria-prima — pelo menos não em termos de abundância,
mas sim em termos de acessibilidade.
Como suportes para produção dos artefatos formais plano-convexos identifica­
mos a utilização de lascas de início de debitagem, com córtex total ou parcial (o
que fica exemplificado pelos artefatos que apresentam córtex às vezes em deter­
minadas partes dos bordos — ver artefato do LJ 18 - e por artefatos que apresen­
tam córtex na parte central — ver artefato do sítio Capivara 5 e do sítio LJ18) ou
lascas de debitagem plena, com diferentes combinações de retiradas, predomi­
nando, no entanto, lascas cujas retiradas de debitagem anterior produziram uma
superfície plana na parte central da face externa ou lascas cuja parte central é
definida por uma aresta longitudinal (Fig.4.1 e 4.2).

80

1.
Lucas Bueno

9
J < \
L
Y<4
E ■ V

Í

Figura 4.1
Artefatos plano-convexos unifaciais formais com superfície cortical na face externa.
Provenientes dos sítios Lajeado 18 e Capivara 5.

\
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Figura 4.2
Artefatos plano-convexos unifaciais formais com arestas-guia ou superfície plana na face
externa. Provenientes dos sítios Miracema do Tocantins 1 e lajeado 18.

81
Organização Tecnológica e Teoria do Dcsign
Os suportes utilizados para elaboração dessa categoria de artefatos adn
j certo espectio de vanações que permite um amplo leque de opções t -
relaçao as características formais dos núcleos a serem trabalhados, indicando
’ d 110 mencionamos anteriormente, a não necessidade de existência de nú=
os padronizados.
so pode ser dito de outra forma: as restrições de design impostas pela for^*
tnP nnXr0CeSS0 T*3 obtenÇao sao pequenas nessa etapa de produção e, porb=E
cias operatórias “ 3 partir de uma amPla êa,na de suportes, gestos e seque—

duas rara t partb da °t>servação dos artefatos, podemos apontar ao men»


ooX^s qUe definem restriCões mínimas que devem ser apresentada
por esses suportes: 1
1) O ângulo dos gumes dos artefatos i_
variam entre semi-abrupto c abrupto, fazenc®
com que seja necessário que as lascas
—s apresentem uma certa espessura e largura
para que possam fornecer gumes com esses ângulos sem que eles se esgotem muit—

s or os ev em ser extensos, ou seja, a lasca deve ter um comprimento sufici-


en e para que taja mais de um tipo de gume, tal qual identificamos nesses artefatos.
a que estes gumes sejam pequenos e que possa haver articulação e rotatividade
e as partes ativa e passiva do artefato, é necessária a obtenção de bordos longos
que podem vanar entre paralelos e sub-paralelos. Essa forma, por sua vez, é decor-
ente e uni outro requisito, a possibilidade de produção de bicos e pontas no
esmo arte ato que fornece gumes retilíneos, côncavos e convexos, caso este fre-
qüente para essa categoria de artefatos.
Esses critérios mínimos acima definidos indicam um aspecto fundamental en-
o vi o na e a oração desses artefatos — o requisito mais importante não passa só
e a orma, mas também pelo volume, pela articulação entre comprimento, largura
c espessura.
Apos a obtenção do suporte que ofereça esses requisitos mínimos podemos ter
orrencta e c ots processos distintos: 1) a formatação inicial desse suporte a
p a retira ate ascas longas, de perfil curvo, com talão preparado, finas, com
cicatrizes da face externa em direção paralela e ortogonal ao eixo da lasca; 2)
reahzaçao de retoques longos e curtos com a definição de pequenos gumes (Fig.5.1,

82


Lucas Bueno

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Figura 5.1, 5.2 e 5.3


Conjunto de lascas relacionadas ao preparo, retoque e
reavivagem oriundas dos cinco sítios analisados.

83
I Organização Tecnológica e Teoria do Design

No segundo caso não há propriamente uma etapa de façonnage, de prepara­


ção do volume e da forma do suporte, uma vez que este já passa a ser utilizado
com a produção de pequenos gumes através de retoques diretos sobre a lasca
obtida a partir do núcleo. Esses gumes, como mencionamos acima, podem ser
retilineos, côncavos, convexos, em ponta ou bico, dependendo da atividade na
qual o artefato será empregado primeiro. Essa definição de pequenos gumes, com
diferentes formas e extensões, constitui o processo através do qual o artefato
adquire sua forma que, nessa perspectiva, é extremamente dinâmica e constituída
por uma seqüência de etapas de utilização, reavivagem, reutilização e possivel­
mente reciclagem. Ao longo desse processo, privilegia-se num primeiro momento
a manutenção das partes que apresentam um dorso natural, como bordos mais
abruptos e/ou corticais, como a parte passiva do artefato, mas conforme se desen­
rola o processo de redução, essas partes podem também ser retocadas, transfor-
mando-se em parte ativa ou apenas readequando forma e extensão da parte pas­
siva. No Lajeado, predominam entre os plano-convexos associados ao período
mais antigo de ocupação, aqueles produzidos de acordo com essa seqüência.
Esse podería ser o caso, por exemplo, das lascas representadas na Fig.3 ou de
algumas lascas menores encontradas em outros sítios da região (Fig.6).
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■'.

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Figura 6
Lascas com a definição dc pequenos gumes que, ao sofrerem um processo contínuo de utilização,
retoque c reavivagcm, seriam transformadas em artefatos unifaciais plano-convexos formais.

84

z
Lucas Bueno

No primeiro caso — onde há uma façonnage inicial — encontramos o mesmo


processo em curso, com a diferença de que houve uma preparação da forma do
suporte após sua obtenção no núcleo. Essa preparação visa principalmente estabe­
lecer um volume adequado para a efetiva utilização e manutenção do artefato. A
diferença entre as duas sequências está relacionada principalmente com a questão
do volume e da forma inicial do suporte, sendo que no primeiro caso encontrare­
mos lascas de preparo sem a presença de negativos em sua face externa decorren­
tes do retoque dos gumes; e no segundo caso encontraremos lascas longas como as
de preparo que, na verdade, estariam associadas à reavivagem e manutenção do
volume desses artefatos com vistas ao prolongamento da vida-útil de seus gumes.
Esse processo pode ter diferentes graus de intensidade, o que está relacionado
com a forma do suporte, como já mencionamos, e à qualidade da matéria-prima,
mas também com uma série de fatores situacionais que podem envolver desde a
habilidade do artesão até a ocorrência de perda do artefato. Esse é, aliás, um
aspecto interessante do contexto arqueológico do Lajeado, pois muitos dos artefa­
tos plano-convexos encontrados inteiros foram localizados como achados isola­
dos, dissociados de quaisquer outros vestígios, enquanto aqueles coletados nos
sítios e associados a outros vestígios se encontram fragmentados.
De acordo com o que expusemos acima, a forma adquirida por esses artefatos
seria decorrente, essencialmente, da sua história de vida, das modificações pro­
duzidas pelas escolhas efetuadas pelo artesão ao longo das diferentes interações
pelas quais o artefato passou; ou seja, essa forma estaria em permanente processo
de construção, o que só terminaria no momento do descarte. Nesse caso, como já
mencionamos, o principal problema ou o aspecto crucial ao longo da vida-útil
desse artefato que deveria ser gerido pelo artesão está associado à manutenção do
volume do artefato, o que, por sua vez, requer um grande contr ole sobre a forma
e volume das modificações produzidas.
Isso nos leva à pergunta anteriormente feita: porque houve a seleção do arenito
silificado fino? Par a obter o design priorizado nesses artefatos — produção, manu­
tenção e reprodução de pequenos gumes com certa variação formal — a restrição
principal diz respeito à manutenção do volume da peça que, por sua vez requer
da matéria-prima selecionada uma performance específica — responder positiva­
mente ao lascamento, propiciando um maior controle sobre a forma e volume do
produto gerado.
Com isso podemos dizer que identificamos uma escolha e compreendemos
sua razão, ou seja, definimos a estratégia empregada para organizar as etapas de
obtenção, transformação e circulação de determinada matéria-prima.
Surgem assim novas questões: quais são as performances priorizadas por arte­
fatos que requerem esse tipo de design? E em qual contexto teremos a priorização
de tais performances?
A primeira questão pode ser encaminhada através de dois procedimentos:
traceologia ou análise da forma, ângulo e distribuição dos gumes.

85
Organização Tecnológica e Teoria do Design

No caso do Lajeado não procedemos a nenhum tipo de análise traceológica.


Se utilizarmos como parâmetro as análises realizadas em outros contextos do
Brasil Central com artefatos formalmente semelhantes aos que estamos estudando
(Prous et al., 1996/97; Schmitz et al., 2004), parece haver uma utilização prefe­
rencial em atividades que envolvem a ação de raspai’ madeiras, embora haja
também referências à utilização em material ósseo, couro e corantes.
Já com relação ao segundo procedimento a forma do gume que mais aparece
é a linear, seguida por gumes ligeiramente convexos e, depois, por gumes cônca­
vos. Quanto aos ângulos, predominam aqueles cuja variação está entre 50-70°,
seguidos pelos de 70-90°, sendo que há pouquíssimos exemplares com gumes
entre 30-50° e nenhum com gumes inferiores aos 30°. Com relação à distribui­
ção, a grande maioria dos artefatos formais padronizados apresenta retoques em
todos os bordos, havendo, no entanto, uma ligeira predominância nas partes meso-
distais dos bordos laterais e no bordo distai (Bueno, 2007:96). Quando há bordos
abruptos naturais, normalmente definidos pela presença de córtex, formando uma
espécie de dorso, eles tendem a se localizar na porção meso-proximal de um dos
bordos laterais. Afora essa localização, há artefatos que apresentam córtex na face
superior do suporte, normalmente definindo uma superfície plana paralela à face
inferior do artefato ou ligeiramente convexa. A articulação dessas características é
bastante variável entre os artefatos, assumindo diferentes combinações. A análise
da distribuição dos tipos de retoque, posição dos retoques, delineamento dos
gumes, repartição dos retoques e ângulo dos gumes em seis artefatos, indicou
uma combinação específica para cada um dos casos (Bueno, 2007: 97).
Apesar de não termos realizado análises traceológicas, a partir das caracterís­
ticas acima mencionadas podemos levantar a hipótese de que o design desses
artefatos, definido pela articulação de gumes com diferentes formas, ângidos e
localizações produzidos através de uma atividade intensa de retoque e reavivagem,
responderíam a ao menos duas performances principais: multifuncionalidade e
flexibilidade (Nelson, 1991; Hayden, 1996; Shott, 1986). Isso quer dizer que
com esse design os artefatos propiciariam a produção de diferentes gumes —
seriam flexíveis — e com isso poderíam ser utilizados em diferentes atividades —
seriam multifuncionais.
E preciso, no entanto, contextualizar o que chamamos de multifuncionais,
definindo também as restrições decorrentes da escolha desse design. Primeiro
com relação ao ângulo dos gumes: a baixa incidência de gumes com ângulos
semi-rasantes e rasantes (ângulo inferior a 50°) limita a possibilidade desses arte­
fatos serem utilizados em atividades cuja ação seja cortar ou realizar incisões
precisas. Esse tipo de restrição pode ser resolvido através de dois procedimentos
que identificamos em alguns artefatos: a realização de retoques diretos e inversos
no mesmo bordo, definindo um bordo bifacial e assim reduzindo o ângulo do
gume e a definição de um gume, normalmente localizado no bordo distai, ein
forma de bico. No entanto, como dissemos, esse tipo de procedimento é raratnen-

86
Lucas Bueno

te encontrado entre os artefatos dessa categoria. Essas atividades — de corte e


incisão — estão mais associadas aos artefatos informais, dentre os quais prevale­
cem os gumes rasantes e semi-rasantes (Bueno, 2007: 159). Com isso podemos
dizer que a ação privilegiada por esses artefatos é a de raspar. A segunda restrição
diz respeito à extensão da superfície a ser raspada, condicionada aqui pela exten­
são do gume. O comprimento médio dos artefatos que denominamos como for­
mais padronizados sobre lasca gira em torno de 6,86 cm (Bueno, 2007:165), o
que significa que o comprimento médio dos gumes deve ser inferior a isso, uma
vez que no mesmo bordo encontramos mais de um tipo de gume e dificilmente
um único gume ocupa toda a extensão de um dos bordos laterais. Essa restrição,
no entanto, se aplica apenas à largura do objeto a ser raspado, não ao seu compri­
mento, nem a sua espessura.
Agrupando esses dados relativos à descrição dos gumes e às análises
traceológicas realizadas em outros contextos, podemos dizer que esses ar tefatos
plano-convexos a que chamamos de formais padronizados podem ter sido empre­
gados em diferentes atividades que envolveram a realização de uma ação de
raspar superfícies de madeira de pequena extensão. Esta seria então uma das
performances envolvidas na escolha por esse design.
Uma outra performance a que podemos fazer referência está associada a um
aspecto do design e um aspecto decorrente da distribuição espacial de artefatos e
seus vestígios inter-sítios. Conforme mencionamos, nos cinco sítios analisados
encontramos uma quantidade variável de vestígios decorrentes de diferentes eta­
pas da produção desses artefatos e, ao mesmo tempo, poucos desses artefatos. Ou
melhor, vestígios de diferentes etapas da produção desses artefatos são encontra­
dos em diferentes locais da paisagem (diferentes sítios), acontecendo o mesmo
com os artefatos. Deste cenário podemos então deduzir que os artefatos em ques­
tão estariam sendo TRANSPORTADOS. Esses dados sobre a distribuição de
vestígios e artefatos indicam que eles estavam sendo produzidos, utilizados, re­
produzidos e descartados em diferentes locais.

Discussão

Com isso chegamos às duas características de performance mais valorizadas


na gestão dessa categoria de artefatos: multifurtcionalidade/jlexibilidade de um
lado e transportabilidade de outro. Isso por sua vez nos possibilita articular e
discutir a relação entre restrições e escolhas, que Schiffer e Skibo definem como
compromissos decorrentes das performances selecionadas (Schiffer & Skibo, 1997).
Como vimos o fato dos artefatos terem dimensões ligeiramente reduzidas, traz
como conseqüência limitações com relação às dimensões do material no qual eles
podem ser empregados. Por outro lado, o fato das dimensões serem reduzidas
viabiliza e facilita seu transporte, ou melhor, diminui os custos implicados em seu
transporte. Dessa maneira, vemos que o compromisso estabelecido entre essas

87
Organização Tecnológica e Teoria do Design

performances define uma hierarquia de escolhas, onde a transportabilidade tem


papel preponderante sobre a extensão dos gumes produzidos. Ou seja, o principal
atributo do design é que ele seja transportável e o segundo é que ele possa gerar
diferentes gumes e com isso ser utilizado em diferentes funções.
Respondidas todas essas questões, resta ainda um ponto que já mencionamos
anteriormente: em quais contextos essas performances assumiríam papel de des­
taque?
Muitos textos foram já produzidos com o intuito de discutir esses aspectos
(Andreksky, 1994, 2001; Bamforth, 1986, 1990, 1991; Binford, 1979, 1980;
Bleed, 1986; Carr, 1994; Hayden et dl., 1996; Henry, 1989; Kelly, 1983,
1989; Kuhn, 1989,1991, 1992,1993,1994; Nash, 1996; Nelson, 1991; Odell,
1996, 1998; Parry & Kelly, 1987; Shott, 1986, 1989, 1996; Torrence, 1989,
2001) e, na maioria dos casos, artefatos cujo design está orientado para obtenção
dessas performances — transportabilidade e multifuncionalidade — têm sido as­
sociados a ocupações de grupos que apresentam uma alto grau de mobilidade.
Para Kuhn (1994), conjuntos artefaluais compostos por uma série de peque­
nos artefatos unifaciais confeccionados sobre lasca representariam a solução óti­
ma para articular transportabilidade e multifuncionalidade na elaboração dos con­
juntos de artefatos transportados pelos caçadores-coletores em diversos tipos de
deslocamento, pois apresentam a melhor relação em termos de utilidade e peso.
Segundo Binford (1979), essas performances são responsáveis também pelas
principais características dos conjuntos de artefatos pessoais transportados pelos
Nunamiut. Para esse autor, a existência de um conjunto de artefatos com tais
características está relacionada ou à imprevisibilidade das atividades e do mo­
mento de sua realização, o que levaria a uma escassez de tempo hábil para produ­
ção dos artefatos quando necessário, ou à escassez de matérias-primas nos locais
de realização das atividades para as quais esses artefatos são fabricados.
No caso do Tocantins poderiamos ter uma combinação entre essas duas liipó-
teses: 1) o ASF, apesar de abundante, parece não estar amplamente acessível ao
longo de toda área pesquisada e muitas de suas fontes seriam sazonais, uma vez
que as cascalheiras ficam alagadas durante o inverno; 2) apesar de não termos
realizado nenhuma análise traceológica, a forma e o ângulo destes artefatos plano
convexos indicam uma associação com atividades de raspai-, e as análises realiza­
das com artefatos semelhantes de outros contextos no Brasil Central indicam uma
associação majoritária com a madeira — o que nos possibilita levantar a hipótese
de que esses artefatos líticos estariam na verdade associados à produção, acaba­
mento e reparo de outros artefatos produzidos majoritariamente em madeira,
devendo, portanto, estar disponíveis quando necessários. Embora não apareçam
nos sítios do Lajeado, em vários contextos associados a esse mesmo período e
onde há artefatos líticos semelhantes a estes, já foram identificadas pontas de
projétil em madeira e osso, objetos possivelmente produzidos e mantidos com a
utilização desses artefatos líticos. Esses dois aspectos sustentariam, dessa manei-

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i »
r
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ra, a elaboração de artefatos em antecipação ao uso, tr ansportados com os caça-


dores-colelores em diferentes tipos de deslocamento, utilizados para produção e
manutenção de outro conjunto de artefatos, elaborado em madeira e osso, que
demandariam gumes pequenos, com formas distintas, mas ângulos semelhantes,
exigindo dos artefatos versatilidade e flexibilidade.
Além disso, os dados sobre subsistência que dispomos para as ocupações
desse período indicam um consumo majoritário de animais de pequeno e médio
porte (os quais muitas vezes são capturados através de armadilhas, majoritaria-
mente produzidas com utilização de madeira) e de uma grande representatividade
de recursos vegetais, que pai a serem coletados demandam a realização de ativi­
dades como cavar, raspar, serrar, percutir, furar e cortar, algumas das quais
podem ser desempenhadas por esses artefatos (Kipnis, 2002).
Associando essas características com a distribuição dos sítios na paisagem,
podemos definir como uma das características dessa ocupação o deslocamento e
ocupação diferencial dos variados compartimentos da paisagem, nos quais há sítios
com composições e tamanhos distintos, provavelmente associados à realização de
diferentes tarefas e à obtenção de distintos recursos. Ao mesmo tempo, há alguns
sítios que se destacam nesse conjunto pela sua densidade e tamanho, indicando a
existência de uma hierarquia de sítios distribuídos de forma diferencial pela paisagem.
Dadas essas características, a dimensão da área estudada e a configuração da
paisagem em termos de disponibilidade e distribuição dos recursos tanto no espa­
ço quanto no tempo, podemos considerar que a área estudada representaria ape­
nas uma parte do território desse grupo, associada talvez a uma ocupação sazonal
no período de seca, onde as fontes de matéria-prima estariam disponíveis e não
havería problemas com relação à obtenção de recursos aquáticos, uma vez que os
sítios se distribuem em torno da foz do principal afluente do Tocantins pela mar­
gem direita nessa área (Bueno, 2007).
Nesse contexto os sítios em duna, como o MT 1, por exemplo, onde a propor­
ção de vestígios em ASF é muito superior a dos demais e onde prevalecem as
lascas de preparo, poderíam representar um conjunto de pequenos acampamen­
tos associados à realização de um trabalho inicial de preparação dessa matéria-
prima, que seria transportada para outro local e, assim, ao mesmo tempo em que
se monitorava a caça, se produzia uma série de suportes para serem armazenados
e transportados, aproveitando a estação seca que favorecia a acessibilidade das
fontes dessa matéria-prima.

Conclusão

Com essa descrição conseguimos duas coisas: inserir esses artefatos em con­
texto, articulando, estratégias, performances, escolhas e lüstória de vida, e definir
uma nova base comparativa com outros contextos nos quais artefatos com carac­
terísticas formais bastante semelhantes também aparecem.

89
Organização Tecnológica e Teoria do Design

Essas características formais são decorrentes da mesma articulação entre e=


tratégias, performances e escolhas? E neste nível que devemos basear nossas
comparações, pois ele nos permite trabalhar com um aspecto fundamental:
relação entre continuidade e mudança.
O que é e o que não é compartilhado no processo de produção de artefato^
com aspectos morfológicos semelhantes — são as estratégias, as performances, a—
restrições de design — quais são os vetores de variabilidade comuns aos contexto=
que estão sendo comparados e quais são distintos — temos, por exemplo, a=
mesmas estratégias e performances sendo obtidas através de diferentes cadeias
operatórias? Com essas perguntas podemos encaminhar a pesquisa para discutir"
o significado da semelhança desses conjuntos, pois atribuímos semelhanças e
diferenças não a aspectos descritivos, mas a comportamentos, a escolhas, a orga­
nização das atividades, a seleção de performances prioritárias.
Comparando diferentes contextos do Brasil Central — como o Lajeado,
Serranópolis (Schmitz et al., 2004) e a Lapa do Boquete, no Peruaçu (Fogaça.
2001), há uma série de características que indicam que houve no caso do Brasil
Central, no início do Holoceno, um compartilhamento no conjunto de estratégias
que orientaram as performances almejadas e que, portanto influenciaram nos
designs produzidos (Bueno, 2005/2006; Bueno, 2007). Ao mesmo tempo, há
uma variedade bastante significativa entre as características específicas do contor­
no formal, matéria-prima, suporte utilizado para produção de um determinado
conjunto de artefatos e também sobre a quantidade, distribuição e associação
desses artefatos (Bueno, 2007).
Assim, os artefatos plano-convexos formais cujas características morfológicas
nos remetem ao conjunto de artefatos característicos da ocupação do Planalto Cen­
tral brasileiro em diferentes locais no início do Holoceno estão sendo produzidos
segundo uma determinada articulação entre estratégias, performances e design. De
um modo geral eles mantêm as mesmas características, mas há diferenças, por
vezes, com relação ao suporte utilizado (lascas iniciais ou lascas de plena debitagem),
com relação à matéria-prima (arenito silicificado, sílex, e até quartzito e quartzo),
com relação ao contorno formal e volume (plano-convexo, plano-plano, piramidal).
Essas diferenças estão associadas a aspectos contextuais que envolvem escolhas
específicas ao longo da cadeia comportamental dos artefatos. Apesar da utilização
de matérias-primas de melhor qualidade garantir um melhor retorno com relação à
obtenção do resultado pretendido e assim possibilitar um maior aproveitamento da
matéria-prima, os custos associados a sua obtenção podem ser muito grandes,
sendo preferível escolher uma matéria-prima de menor qualidade. A matéria-pri­
ma c as características formais do suporte selecionado podem por sua vez, interferir
no contorno formal “final” do artefato, uma vez que este é decorrente das inúmeras
interações pelas quais o artefato passou ao longo de sua vida-útil, o que envolve, por
exemplo, quais e quantas vezes o artefato foi utilizado e reavivado e até mesmo
habilidade do artesão (o que pode estar envolvido na existência ou não de simetria).

90

£
Lucas Bueno

Essas questões contextuais podem envolver aspectos ainda mais específicos,


como por exemplo, a natureza, freqüência e distância dos deslocamentos e, ain­
da, o processo de ensino aprendizagem. Isso implica na existência de escolhas
distintas na produção de artefatos com designs semelhantes orientados para ob­
tenção das mesmas performances definidas pela implementação de estratégias
compartilhadas.
Com base nesses dados e nessa comparação entre os contextos podemos le­
vantar a hipótese de que a existência de estratégias semelhantes seria decorrente
da existência de redes de contato através da troca de pessoas e informações
envolvendo deslocamento/ visitação e também da existência de territórios com­
partilhados em contextos de aumento do risco, como propõe Kipnis (2002, 2003).
Nesse caso a produção de um conjunto artefatual semelhante podería desempe­
nhar um papel importante na rede de comunicação entre esses diferentes grupos,
realçando suas vinculações e fortalecendo os laços de reciprocidade, como já
indicado em outros contextos por diferentes autores (caso das pontas de projétil
entre os San do Kalahari, como apresentado por Wiessner, 1983).
Pensando nesse sentido conseguimos estabelecer níveis de análise distintos
para investigar similaridades e diferenças entre conjuntos liticos oriundos de con­
textos distintos, estejam esses contextos inseridos em micro ou macro-escalas; isso
quer dizer que podemos comparar esses aspectos no mesmo sítio (artefatos plano-
convexos oriundos de diferentes concentrações), entre sítios de uma mesma região
e entre conjuntos de sítios de diferentes regiões. Com isso é possível averiguar de
forma mais detalhada o que é e o que não é compartilhado e, dessa maneira,
articulamos ambas as escalas que havíamos mencionado no inicio da apresentação
— micro e macro, escolhas e estratégias, gestos e paisagem.
Neste estudo de caso procuramos apresentai’ o procedimento, os passos dados
no sentido de associai’ dois enfoques, ou diferentes escalas de análise, para com­
preender a forma de ocupação da paisagem em um determinado período. Partin­
do das matérias- primas, passando pelos gestos associados a sua exploração, pela
distribuição dos vestígios produzidos e pela articulação entre esses aspectos e a
distribuição dos sítios aos quais estão associados procuramos identificar as esco­
lhas efetuadas, os designs produzidos e as performances requeridas a fim de
entender a organização dessas atividades no espaço e assim caracterizar a tecnologia
lítica nessa ocupação associando-a a outros aspectos, como, por exemplo, mobili­
dade, território e paisagem.
Por enquanto essa é uma hipótese de pesquisa, mas uma hipótese que pode
ser testada no registro arqueológico e que articula níveis de variação em diferentes
escalas. Utilizando os conceitos de escolhas, design, performance e estratégias
apresentamos uma proposta que busca transpor uma ponte ainda em construção
na arqueologia brasileira, articulando vestígios, sítios, regiões e macro-regiões a
fim de elaborar uma visão dinâmica sobre a pré-história brasileira.

91
Organização Tecnológica c Teoria do Design

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94
Indústrias Líticas como vetores
de organização social
Ou:
Um ensaio sobre pedras e pessoas

Klaus Hilbert*

E um jogo com (de) palavras

Us and them
And after all tve’re only ordinary men
Black and blue
And who knows ivhich is uihich and who is who.
Up and down.
Bnt in the end it’s only round and round.
Haven ’t you heard il ’s a battle of words?
The pôster bearer cried.
Pink Floyd

A primeira frase é a mais importante de uma história. Um bom início de uma


história conecta o ouvinte ao narrador, o autor ao leitor. A primeira frase é como
uma isca que desperta a curiosidade, mas, sobretudo, esconde o anzol que pren­
de definitivamente o consumidor da narrativa ao seu objeto de desejo. A primeira
frase leva o leitor, ou o ouvinte, ao início do labirinto narrativo a partir do qual ele
é carregado por suas expectativas e por suas próprias fantasias. “No principio
criou Deus os céus e a terra...”, assim inicia o primeiro livro de Gênesis; “Era
uma vez...”, contam os irmãos Grimm; “Canta-me a cólera — ó deusa — funesta
de Aquiles Pelida...”, exclama em voz alta Homero no primeiro verso da llíada-,
“Aqui me pongo a cantar al compás de la vigüela...”, recita José Hernández em
Martin Fierro-, “I have a dream...”, anuncia Martin Luther King. ímediatamente,
o público fica em silêncio, atento, cheio de fantasias e expectativas. Esse é o
cenário que um bom contador de histórias deseja, e, naturalmente, merece.
Minha expectativa em relação a este simpósio sobre Tecnologia Lítica no Bra­
sil: Fundamentos Teóricos, Problemas e Perspectivas de Pesquisa é bem mais prag­
mática. Espero que os organizadores reúnam especialistas dispostos a refletir

’ Programa de Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do


Sul. Avenida Ipiranga, 6681 - 90619-900 Porto Alegre-RS. hilbert@pucrs.br.

95
Indústrias Líticas como vetores de organização social

sobre tecnologia lítica. Minha esperança é que os convidados tenham conheci­


mentos na área, usem a mesma linguagem, e, em geral, se comuniquem a partu
das mesmas experiências cotidianas no campo de atuação das tecnologias e das
indústrias líticas, compartilhem as mesmas vivências, enfim, sejam narradores de
histórias úteis e compreensíveis. Incompatibilidades nas realidades vividas entre
os participantes deste encontro dificultariam ou até inviabilizariam o diálogo e.
consequentemente, frustrariam determinadas metas do simpósio.
Devo confessar que sou o primeiro a romper com minhas próprias expectativas,
e, provavelmente, com as de alguns colegas, mas, com certeza, não com aqueles
que querem discutir novas propostas. E é justamente essa a minha intenção.
Toda boa história inicia com uma boa primeira frase. Lendo o título da minha
apresentação, “Indústrias líticas como vetores de organização social”, sugerido
pelos organizadores deste evento, com absolutas boas intenções, confesso que
não gostei dessa primeira frase. Senti o gosto de uma proposta anêmica, sem
perspectiva, de uma linguagem tecnicista e sem inspir ação. Perguntei-me se tinha
algo a dizer sobre tecnologia lítica, vetores ou organizações sociais.
Por um bom tempo, mastiguei esse título como se fosse uma batata quente.
Com a ponta da língua toquei-a de um lado da boca para outro, ficava em pânico,
formava com os lábios um bico para direcionar- o jato de ar frio direlamente sobre
essas coisas que se chamam “indústria lítica”, “vetor” e “organização social ’.
Logo depois, abri minha boca desesperada, bem aberta, e abanei com a mão
direita em forma de leque para aliviar- a sensação de desconforto que se acumula­
va na minha garganta. Aos poucos, à medida que o motivo do desconforto esfria­
va, comecei a quebrá-lo com os dentes, acomodava os pedaços, um por um, com
as laterais da língua para sentir suas consistências, degustava-os, empurrando-os
contra o céu da boca. Depois, em doses pequenas, comecei a engolir os elementos
estranhos de que o título estava composto, e pensei:
— “Vamos com calma, com muita calma! Por que esse pânico?”.
Primeiro, precisava entender o título, o sentido de cada palavra, a sequência
das palavras que revelam sua estrutura sintagmática e paradigmática (Saussure,
1989).
A primeira frase, como qualquer outra frase em uma narrativa, é criada como
se fosse um código, no qual várias palavras, vários signos são diferenciados e
estruturados em sequências horizontais. Várias frases, com o mesmo sentido,
formam estruturas verticais ou sintagmáticas. Nessas relações existem duas or­
dens de valores interligados e representados pelos signos, pelas palavras. A pri­
meira é irreversível, horizontal e seqüencial, a outra é vertical e marca o eixo das
relações associativas, ou paradigmáticas (Netto, 2003: 27; Souza, 2006: 20).
No titulo da minha apresentação - ainda não passamos da primeira frase — me
deparo com signos sequenciais, sintagmáticos, associativos ou metoníinicos. Ao
substituí-los por outros signos, por outras palavras, por outros conceitos, estabele-

96

I
Klaus Hilbcrl

ço novas relações, na esperança de uma compreensão diferente desse novo con­


texto paradigmático. Cada uma das colunas representa um outro paradigma, ou
uma outra figura metafórica.
A substituição de fenômenos desconhecidos por outros mais familiares, esse
processo de acomodação faz parte do nosso cotidiano e serve para minimizar o
desconforto da ignorância, da não-compreensão de um fenômeno de uma situa­
ção vivenciada. Muitas vezes resolvemos esse problema criando metáforas e
metonímias. “Puxamos a brasa para as nossas sardinhas”. Metáforas como essas
são figuras literárias que transmitem significados através da analogia, explicando
ou interpretando uma coisa em termos de alguma outra coisa, estabelecendo
novos paradigmas (Lakoff & Johnson, 1980).
Voltamos então para a primeira frase da nossa apresentação. Organizando e
dividindo o titulo em Linhas horizontais (sintagma-metonímia) e abrindo colunas
verticais (paradigmas-metáforas), criamos novas associações e analogias, acomo­
damos palavras com a esperança de criarmos novas relações de significados e,
como resultado, desenvolvemos novas propostas — aliás, o principal motivo desse
simpósio sobre tecnologia lítica.
0 sintagma de fato atualizado é:

Indústrias líticas como vetores de organização social

Procurando metáforas dentro de cada coluna, os novos sintagmas propostos


são:

A maneira de fazer como indicador do convívio entre pessoas


artefatos de pedra
Ou:
A preocupação com como fenômeno cultural inserido ações humanas
pedras nas
Ou:
A produção industrial e sua relação com as estruturas sociais
de objetos rochosos

Ou:
íl — ”
Cultura material e agency

Ou:
Uma história sobre e pessoas
pedras

97
Indústrias Líticas como vetores de organização social

Esta última acomodação me agrada mais. Eu posso contar histórias sobn


pedras e pessoas. E uma proposta democrática, ela abre o círculo. Todos nó:
podemos contar histórias sobre pedras e pessoas. Todos nós podemos troca:
experiências e idéias e, ainda, comunicar.
Feita essa primeira acomodação de compreensão inicial, precisava em seguida
buscar o sentido das coisas, o significado das palavras, dos fenômenos. Precisava
refletir sobre aquilo que se mostra, e como se mostra. Os fenômenos e as coisas se
mostram a nós, à pessoa humana. Somos nós que procuramos pelos significados
daquilo que se revela, fazemos isso de forma consciente, e quando falamos das coi­
sas, não estamos nos referindo apenas às coisas físicas, mas também às abstratas.
Como, por exemplos, as “indústrias líticas”, a “organização social”, ou os “vetores .

O Significado e o “Mundo Vivido”

Immanuel Kant ivas a real piss-anl


Who ivas very rarely stable
Heidegger, Heidegger ivas a boozy beggar
Who could think you under the lable
David Hume could oul-consume
Wilhelm Friedrich Hegel
And Wittgenstein ivas a beery sivine
Who ivas just as sloshed as Schlagel
There’s nothin’ Nietzsche couldn’t leach ya
‘Bout the raising of the ivrist
Monty Phyton

— “Posso compreender o sentido das coisas, das coisas da vida?”.


Muitas vezes pensei sobre isso. Até podería continuar pensando sozinho sobre
essas questões, mas com certeza não chegaria longe. Por isso procurei auxílio em
alguns filósofos e pensadores que se propuseram a responder a essas perguntas.
Interessante constatar que a guinada linguística, essas preocupações com o
significado das coisas através da linguagem, marcou a Filosofia já no final do
século XIX e no início do século XX. Percebendo o esvaziamento de todo o
processo metafísico que antes sustentava o significado das coisas, filósofos como
Edmund Husserl (2002), Martin Heidegger (2000), Alfred Schütz (1979) e ou­
tros duvidaram dos conceitos do Positivismo e se propuseram a refletir sobre algo
antes nunca pensado: “qual a matriz da significância?”. “De onde surge o signifi­
cado e o significante?”.
A filosofia fenomenológica é a procura pelo sentido e não pelos aspectos do
objeto. Para Maurice Merleau-Ponty (1973: 26), “uma fenomenologia é a vonta­
de dupla de coligir todas as experiências concretas do homem, e não somente
suas experiências de conhecimento”. Buscando compreender o sentido das coi-

98
Klaus Hilbert

sas, podemos colocai’ de lado tudo aquilo que não é o sentido. O filósofo da
fenomenologia Edmund Husserl diz que não interessa a existência dos fatos, mas
o sentido desse fato. Ele também argumentava que, em relação a algumas coisas,
temos a habilidade de entender seu significado e em relação a outras coisas temos
dificuldades. Intuímos o sentido das coisas, captamos sua essência, temos uma
idéia do sentido das coisas. De qualquer maneira, compreender o sentido das
coisas é uma potencialidade humana (Bello, 2006: 22).
Porém, em nosso cotidiano, às vezes enfrentamos realidades que não se en­
quadram perfeitamente em nossas experiências vivenciadas. Para contornar essas
situações concretamente vividas, procuramos acomodá-las em algum lugar de
nosso psiquismo, no nosso universo interior, pressupondo dessa maneira, um
campo ou algo capaz de acolhê-las. Esse algo deve ser anterior às nossas experi­
ências, diferente, impossível de ser experimentado, e a partir do qual as coisas
iniciam, se colocam em movimento. Husserl chama esse campo de “Lebensivelt”,
de “mundo vivido”. E para ser o lugar originário da experiência (Stein, 2004:
21). Esse “mundo vivido” está relacionado com a questão da experiência vivida.
Esse lugar que tem o caráter de princípio abre a possibilidade de recuperar
nossas próprias experiências. Husserl insistiu na idéia de que qualquer existência
real significa uma existência para, ou seja, para a consciência como fonte originá­
ria do sentido, onde tudo que é se identifica como tal (Waldenfels, 1997: 17).
Agora estamos falando da busca da matriz da significância que estava na
ÍLLebenswelt”, no “mundo vivido” de Edmund Husserl e na idéia de Martin
Heidegger do “Dosem”, “ser-no-mundo”. Mas, nem Husserl, nem Heidegger pre­
tendiam analisar as estruturas do mundo da cultura, articulada em instituições,
sociedades, etc. Eles queriam saber de onde surge originalmente o significado e o
significante, mas não de forma binária, numa disposição estruturalista. “Eles não
estavam procurando a estrutura do sentido, mas sim o sentido da estrutura” (Stein,
1997: 124). Eles estavam interessados em saber como as pessoas fazem o sentido
que posteriormente se concretizar ia nas estruturas econômicas, políticas, jurídicas,
sociais, etc. Assim, a pergunta pela gênesis do sentido gerava novidades na filoso­
fia, que já não esperava mais por um sentido dado por Deus ou pela natureza;
entretanto, procurava localizar o ponto de partida, de onde essa questão surge.
Husserl indica uma metodologia para compreender esses fenômenos, dito o
sentido das coisas. O “hodós", ou caminho a ser percorrido sugerido por Husserl
envolve dois passos: o primeiro busca o sentido dos fenômenos, a redução eidética
e o segundo contempla sobre o sujeito que busca o sentido.
Com o primeiro passo sugerido por Husserl, regressamos ao início das nossas
indagações.
— “Posso compreender o sentido das coisas, das coisas da vida?”.
Como nos interessa o sentido das coisas, podemos, portanto, colocar entre
parênteses, podemos colocar de lado, tudo que não é sentido. Assim, não interes-

99
Indústrias Líticas como vetores de organização social

sa, por exemplo, a existência do fato, mas o sentido desse fato. Isso não quer dizer
que Husserl negasse e existência dos fatos ou negasse o vínculo que nos liga ao
mundo físico, social e cultural, eles não o interessam, nesse primeiro passo
metodológico. Consequentemente, ele exclui o fato de sua existência para com­
preender sua essência.
Na segunda etapa do caminho fenomenológico a ser percorrido em Husserl, é
feita uma reflexão sobre o sujeito. “Quem é esse sujeito?”. Ao refletir, revelamos
quem nós somos. A novidade, e ponto de partida da filosofia fenomenológica de
Husserl, é essa reflexão sobre o sujeito (Bello, 2006: 27). Mas ele percebe a
subjetividade como um paradoxo. A subjetividade é simultaneamente ser sujeito
para o mundo e objeto no mundo. A subjetividade constitui o mundo e é também
constituída no mundo.
Com a finalidade de realizar essa análise do sujeito, e para facilitar essa com­
preensão, sugiro um pequeno exercício prático tomando como exemplo uma pe­
dra que está na minha frente. Ela está sobre esta mesa, desde que iniciei minha
apresentação, mas não tínhamos prestado atenção nela. Antes vimos essa pedra,
mas não pensávamos sobre ela. Agora estamos prestando atenção nela. Antes
estávamos cônscios, sabíamos ter visto a pedra, mas sem realizar reflexões sobre
ela. Nós já tínhamos uma experiência perceptiva da pedra, ela estava no nosso
interior, fazia parte do nosso "mundo vivido”, mas a pedra em si estava fora de
nós. Entretanto, no instante em que tivemos uma experiência perceptiva, quando
nos demos conta dela, a pedra também estava dentro de nós. Sabíamos que essa
pedra existe.
Trata-se de um ffenômeno interessante que apresenta dois níveis de percep-
ção: o ato perceptivo, o ato de1 ver a pedra, é formado pelo ver a pedra e pela
própria pedra em nossa frente. Enquanto objeto físico, ela obviamente está fora,
porém, enquanto vista, ela está dentro de nós.
Ao tocar a pedra, enquanto ato de tocar, estou vivenciando essa experiência.
Ao passo que ela existe, ela está fora, mas, como coisa tocada, ela está dentro de
mim. Existe uma diferença importante entre a coisa tocada e nós que, a estamos
tocando.
Estamos falando da consciência que uma pessoa pode ter das coisas. Através
do ato perceptivo, do ato vivido, temos acesso ao sujeito.
sujeito. Podemos
Podemos compreender
compreender
como o ser humano é feito. Viver experiências, saber o que está realizando, quer
dizer registrar. Essa percepção é algo consciente: nós tocamos, vemos, ouvimos,
cheiramos. No plano conceituai, na fenomenologia husseliana, a percepção e o
objeto são interdependentes, um dá sentido ao outro. Na expressão da percepção
sensível, há uma ampliação para a percepção interna, onde o sujeito se apresenta
na medida em que são incluídos os objetos internos, “o eu e suas vivências inter­
nas” (Husserl, 1980a: 106). Essas sensações são vivências das quais temos plena
consciência ao tempo em que elas estão acontecendo. 0 momento reflexivo dessa
consciência, o pensar sobre ela, representa uma vivência completamente nova,

100
Klaus Hilbcrt

mas da qual também temos consciência. Então temos dois níveis de consciência:
o primeiro do ato perceptível e um segundo nível, do ato reflexivo. A reflexão e a
vivência. Ela é uma característica exclusivamente humana (Bello, 2006: 29).
Entretanto, cada pessoa, cada sujeito é produto de diversos fatores, históricos,
culturais, e também íisicos. E justamente desses fatores, com suas variabilidades,
que Husserl pretendia livrai' a natureza da experiência. Ele procurou reafirmar a
racionalidade no nível da experiência, mas sem ignorar as variedades que as
experiências podem sustentar. Husserl argumenta que uma experiência
inquestionável não pode ser a experiência de um indivíduo histórico, com todos
seus preconceitos e pressuposições. Nessa linha argumentativa, ele procura certe­
zas no sentido de uma subjetividade pura e imutável (Husserl, 1980b). Quer
dizer que ele não só procura por considerações pessoais a partir das quais pode­
mos construir conhecimentos, mas também por um caminho essencial e invariável
de perceber as coisas da experiência.
Metodologicamente, Husserl lutava contra uma contradição: por um lado, e
principalmente no início de sua carreira, ele mantinha um projeto de uma filosofia
absoluta de redução transcendental, quer dizer, da exclusão do mundo na sua
realidade e na sua essência. Por outro lado, ele criou o conceito de “ Lebenswelt”,
do “mundo vivido”, que significa um mundo completamente subjetivo.
0 problema do conceito da “ Lebenswelt" de Husserl está relacionado com a
questão da experiência. 0 “mundo vivido” é para ser o lugar de origem da expe­
riência, porém um “não-lugar”, mas a experiência parte desse lugar, sem poder
fazer desse “mundo vivido” uma experiência (Stein, 1997: 113). Além disso, a
fenomenologia de Heidegger é hermenêutica. Seu método não exige lugar para se
realizar, não tem espaço. O mundo é o “como”, não é o “quê”, é o mundo onde
as coisas se dão (Stein, 1997: 129).
Martin Heidegger observa que a redução transcendental, da forma como era
pensada por Husserl, excluía o mais importante, o sujeito concreto, existente, que
sustentava o “eu” transcendental (Stein, 1997: 118). Heidegger (2000) sugere a
substituição do conceito da “Lebenswelt", do “mundo vivido”, por “in-der-Welt-
sein", “ser-no-mundo”. A ênfase “no” mundo marca uma das diferenças entre
Husserl e Heidegger. Através do processo de redução transcendental, Husserl
estabelece um “eu” transcendental que se converte no lugar de experiência do
conhecimento. Para Heidegger, entretanto, o lugar onde as coisas se dão é o
mundo. Por isto, o conceito central de Heidegger do “sein", do “ser” é o “Dasein",
“ser-aí”, ou “ser-no-mundo”. Ele se constitui porque o homem e as coisas se dão
no “Dasein", entendido por Heidegger como existência humana. O “Dasein" é a
entidade que na especificidade de seu ser, cada um de nós é, e onde cada um de
nós encontra na asserção fundamental seu “eu”. O “ser” do “Dasein" é simulta­
neamente a compreensão de seres diversos e de seu próprio ser. “Ser-no-mundo”
é nossa existência, é a especificidade de nosso ser, onde nós mesmos somos, é o
lugar onde sujeito se encontra com as coisas (Heidegger, 2000: 68).

101
Ihdústrias Líticas como vetores de organização social

Então perguntamos:
— “Como o homem e as coisas se dão?”.
Com essa pergunta, retorno ao início, ao significado e ao “mundo vivido e
palavras, e volto ao assunto da primeira frase.
Procurei demonstrar, com ajuda de alguns filósofos da fenomenologia, que
coisas como nós as conhecemos não são assim como nós as encontramos,
coisas que reconhecemos e, portanto, conhecemos, são articuladas pelas pa
vras. Nós as nomeamos. Esta pedra na minha mesa, por exemplo, é uma estniti
articulada de expressões. Falar é falar sobre alguma coisa.

Sobre metodologias e caminhos

Mich brennt’s in meinen Reiseschuh’ n


Fort mil der Zeit zu schreiten,
IVas sollen wir agieren nun,
Vor soviel klugen Leuten.
Joseph Eichendorff

Antes de entrar em detalhes nos diversos exemplos que pretendo apresentar


neste simpósio sobre tecnologia litica, preciso refletir e compartilhar com os ou-
vintes-leitores algumas idéias sobre metodologias. Como tentei mostrar nas refle­
xões anteriores, o filósofo da fenomenologia Edmund Husserl deixou instruções
metodológicas precisas de como aproximar-se ao sentido das coisas.
Indicar o caminho através do qual as investigações são conduzidas, simples­
mente faz parte das regras acadêmicas. No currículo de todas as faculdades exis­
tem disciplinas que ensinam métodos, técnicas e teorias. Historiar, filosofar, fazer
arqueologia, antropologia, etc. devem ser atingidos por meio de um procedimento
regrado e, por isso, sujeito à comprovação. Para que isso seja possível, os professo­
res apresentam um sistema de regras, um manual, uma espécie de um livro de
receitas, para que qualquer aluno possa entender, passo a passo, como atingir seus
objetivos. Aplicando corretamente esse manual, consequentemente, todos seus
usuários chegariam aos mesmos resultados. A metodologia das regras, das recei­
tas, é a coisa mais democrática do mundo, ninguém é excluído desse processo.
Metodologias aplicadas dessa maneira e ensinadas nas academias levam a crer
que é viável produzir arqueologia, filosofia, história ou antropologia método-
logicamente. E verdade: se não existissem metodologias, no sentido de aplicação
de determinadas regras, poucos entre nós seriam capazes de praticar qualquei
uma das ciências humanas. A Arqueologia, a História, a Filosofia, a Sociologia, í
Antropologia, seriam disciplinas apenas para gênios, e aí perderíam sentido. Serí
amos apenas reprodutores de receitas, bons cozinheiros de “cup noodles", de “ca
chorro quente , ou de “X-Burger”, e muito contentes nessa função.

102
Klaus Hilbert

Pergunto:
— “Existem para as ciências humanas essas metodologias regradas?”.
i Existem esses tipos de manuais, como se fossem receitas de comidas instantâ­
neas e universalmente válidas?
Metodologias nas ciências humanas não são como divisões ou multiplicações
1 matemáticas. Conhecimentos nas áreas humanas não são simples depoimentos
l verdadeiros ou falsos, são depoimentos personalizados e particulares, entrelaça­
i dos pelas interpretações. Conhecimentos não são apenas verdadeiros ou falsos,
são, sobretudo, novidades, são novos e surpreendentes enfoques sobre determi­
nados aspectos históricos ou culturais (Soentgen 1998: 71).
— “Mas como chegar a essas novidades sem usar metodologias regradas?”.
Para chegar às novidades, não precisamos obedecer às regras. Precisamos
saltar para frente, para trás, precisamos procurar diferentes pontos de vistas.
“Zwückzu den Sachenselbst", voltar “às coisas mesmas”, sugeria Edmund Husserl
como metodologia, e indicava um processo, um caminho sinuoso, com idas e
vindas (Waldenfels, 1997: 16). Faz parte desse processo o “colocar entre parên­
teses” seus conhecimentos, duvidar e corrigir seus próprios depoimentos. Conhe­
cimento adquirido dessa maneira torna-se um depoimento verdadeiro que permi­
te ver as coisas de um ângulo diferente. Esses depoimentos não podem ser
constnudos usando regras lineares e estreitas. Conhecer, saber as coisas, não é
um acontecimento que se pode forçar. Conhecimentos acontecem.
— “Acendeu uma luz, caiu a ficha, saquei!”.
Idéias e conhecimentos surgem espontaneamente.
Para provocar esses ensaios, cada um de nós tem suas metodologias. São
metodologias particulares. Cada um percorre seu caminho e jura que se trata de
uma regra universal. Mas na verdade, trata-se de uma espécie de superstição, de
magia. Humphrey Bogart costumava esfregar o lóbulo da orelha esquerda en­
quanto pensava. Alguns torcem o bigode, olham para o céu, brincam com o
“pirce" na língua, mordem a ponta do lápis, outros pensam em sistemas, listas de
atributos técno-funcionais, cadeias operatórias ou em tipologias. Mas nem para
todos funcionam esses métodos. A maioria apenas fica com a orelha vermelha,
com o bigode enroscado, com a ponta do lápis destruído ou com uma lista enorme
de números e códigos completamente inúteis.
Então perguntamos:
— “Se os métodos das ciências humanas são tão inúteis, por que usá-los?”.
Jens Soentgen (1998: 81) afirma que se trata de uma espécie de magia de
caça. Às vezes funciona, às vezes não. Mas, na verdade essas metodologias, esses
caminhos sinuosos, têm apenas um valor individual.
Entretanto, as metodologias regradas estão intimamente relacionadas com uma
atitude de seriedade. A seriedade é autoritária, afirmativa e relacionada com o

103
Industrias Líticas como vetores de organização social

poder. Os poderosos deste inundo odeiam as piadas, a sátira, os coringas-, c


bobos
----- ò e as crianças que falam verdades. Aqueles que não se levam a sério não sã
levados a sério pelos poderosos. Mas, seriedades são mentiras camufladas. Par.
Kristeva (1984: 225). a prática que resulta em algo novo é a prática do riso.
Neste sentido, quero citar José Brochado. Em uma das suas últimas apressa
tações em um congresso arqueológico. Brochado iniciou sua fala sobre teorias t
novas perspectivas da arqueologia brasileira dizendo: “Não precisamos fazer cara
feia para falar de teorias . Concordo plenamente com ele. Podemos falar sobre
coisas sérias com um sorriso. Aliás, é a forma mais convincente de falar sobre
coisas sérias.
— “Quem ri por último, ri melhor”.
Outros dizem:
— “A gente ri à toa”.
Ou:
O bobo ri quando não tem nada para falar!”.
— Bom! Chega de brincadeira!”.
— “Vamos falar sério agora!”.
Imediatamente e ao falar isso, incorporo uma posição de poder sobre os ouvin­
tes. Seriedade inspira medo e inquisição. A seriedade tem uma relação metafóri­
ca e íntima com a ciência. Na medida em que a arqueologia se tornou uma
ciência, ela perdeu sua popularidade, suas características lúdicas, transformou-se
em artefato dos poderosos, tornou-se arma oficial da ideologia dominante (Funari
et al.. 1999; Hall, 2000; Hilbert, 2001; Trigger, 2004).
Afirmamos que a Arqueologia é fala. Tratamos das coisas, é verdade, analisa­
mos artefatos, mas sempre transformamos as coisas em fala. Arqueólogos, antro­
pólogos, sociólogos, filósofos produzem textos. Na grande maioria dos casos, so­
mos apenas capazes de reproduzir o discurso atual, sem desenvolver nossas próprias
idéias, mesmo se essas idéias surgissem depois de ter esfregado bastante o lóbulo
de nossa orelha esquerda ou o bigode.
Então, dito tudo isso, pergunto:
As contribuições e os conhecimentos originais para as ciências humanas,
para a arqueologia, especificamente, apenas serão possíveis por meio da inspira­
ção de poucas pessoas talentosas, por gênios?”.
Gostaria de acreditar que não. Estou convencido de que é apenas uma ques­
tão de tentar, de pensar, de ser, principalmente, criativo, e de fugir dos caminhos
confortáveis e ditos sérios.
Uma maneira de fazer isso é através da “reduetio ad absurdum", uma forma
de criar um discurso diferente (Soentgen, 1998: 18). Esse discurso pode ser tão
absurdo e ao mesmo tempo tão verdadeiro quanto o depoimento daquela menina

104
Klaus Hilbert

que percebeu que o rei estava nu, e que suas roupas novas eram apenas ilusões.
Em sequência, quero praticar um exercício de “reductio ad absurdum". Atra­
vés da linguagem, da caricatura gostaria de criar uma dissonância com a intenção
de transformar algumas verdades sagradas da arqueologia em verdades profanas.
Especialistas de qualquer profissão odeiam quando outros interferem em suas
esferas de conhecimento através de um discurso diferente. Miss Maple, Sherlock
Holmes, Colombo, Axel Foley, são figuras fora de suas jurisdições. Entretanto,
são elas que resolvem com brilhantismo os casos criminalísticos mais complica­
dos. E na Arqueologia: Quem foram Heinrich Schliemann, Howard Carter, John
Lloyd Stevens, Raymond Dart, Erik von Dãniken e muitos outros? Esses arqueó­
logos são rejeitados pela maioria dos profissionais, somente porque tiveram a
sorte de descobrir algo novo e importante, sem ter titulação e uma metodologia
aprovada pela academia. Eles seguiram o caminho da intuição, e chegaram a
conclusões até absurdas. Mas, os profissionais que apenas seguiram uma sistemá­
tica, um método rígido, não descobriram nada além de cacos e estilhaços, porque
tinha de ser dessa maneira.
As próximas caricaturas não seguem uma ordem metodológica ou pedagógica.
São organizadas por critérios intuitivos.

Para uma Arqueologia da Infância, ou uma Arqueologia Infantil

IP/ien / ivas young


It seemed thal life ivas so tvondeifiil
A miracle, oh il ivas beautiful, magical
And all lhe birds in lhe Irees
Well they’d be singingso happily
Oh joyfidly, oh playfully ivatching me
Bul then theysenl me atvay
To teach me how to be sensible
Logical, oh responsible, practical
And they shoived me a ivorld
Where 1 could be so dependable
Oh clinicai, oh intellectual, cynical.
Supertramp

Pedras fazem parte do dia-a-dia de todos nós, desde a infância. Pedras nos
acompanham até a morte, marcam temporariamente o local da nossa sepultura.
Meu pensar sobre pedras e pessoas inicia e passa por experiências pessoais.
Muitas das minhas experiências são compartilhadas, outras são particulares e até
inacessíveis.
A maneira como cada pessoa se relaciona com objetos nos diferentes momen­
tos de suas vidas é eminentemente marcante, mas também mutante. As mesmas
pedras, por exemplo, que usavamos nas nossas infâncias para atirar nos cachor-

105
Industrias Líticas como vetores de organização social

ros brabos dos vizinhos, nos passannhos, as pedras que machucavam nossos pó- ==
esc, ços os seixos que fazíamos pular sobre a superfície do açude, aquelx —
pe n ias onitas, raras e mágicas que escondíamos em lugares secretos, ou coe
as quais nncáv amos no decorrer das nossas vidas, perderam suas forças, seu
ito, mu aram de sentido. E verdade, algumas pessoas continuam mimando,
consultando, espiritualizando, energizando pedras, outros até se tornaram profis-
n 1<U - ° SerV a^° e mampulação de pedras. Outras pessoas eliminam essas
<s c as suas ações, apagain-nas de suas memórias. Eles descartam simples-
j ° .^ eSSa e or’a- esse conhecimento adquirido em uma fase importante
35 aS’ am os esc°nderijos segredos e o sentido das pedras e esque-
eni seus encantos Pya estes, “pedras são apenas pedras”.
„i_„; 11 ,iessas re a?ões pessoais com as pedras, mudamos também as palavras
os "PnlTnÍ ” e ? OS “aerolitos”, a “Kryptonita”, “moonmcfc”,
fissiona' t’3 0 ra filosofal transformam-se no mundo científico dos pro-
nlano t™S,como “indústrias líticas”, “lascas”, “núcleos”, “raspadores
otudo dp exos ’ cioppers , etc.. Muitos arqueólogos fazem parte desse último
grupo de pessoas. Mas para outros, sempre haverá uma pedra no caminho.

A Kryptonita, ou Como aprendi a classificar pedras arqueológicas

I look a walk around lhe world to


ease my troubled mind.
I lefl my body laying someivhere
In lhe sands oftime (...).
Iflgo crazy lhen tvill you slill
call me Superman?
Ifl’m alive and well, will you be
lhere holding my hand?
I’ll keep you by my side wilh
my superhuman mighl.
Kryplonile.
3 Doors Down

Hoje, como arqueólogo experiente, estou cada vez mais convencido de que
nao posso desconsiderar uma sabedoria valiosa adquirida no “mundo vivido”. Sei
que devo tratar as pedras arqueológicas com o mesmo respeito e com a mesma
seriedade com que sempre tratei as pedras poderosas, bonitas, úteis e lúdicas da
minha infância e adolescência. As pedras arqueológicas foram feitas por pessoas,
e não por “indústrias líticas”. Classificar, avaliar e manipular pedras admiráveis e
valiosas, isso não aprendi a fazer na Universidade. Muito antes pelo contrário.
Tratar bem as pedras, isso eu já sabia antes. Estava preocupado com pedras
perdidas. Em um dos projetos de investigação da minha infância queria saber o

106
Klaus Hilbert

que aconteceu com aquela pedra com que o pastorzinho chamado David derru­
bou o guerreiro gigante Golias. Onde está essa pedra?
Ou a pedra fundamental de Roma, de 753 a. C.. Onde está essa pedra? Por
que ninguém sabe? Por que ninguém procurou? E vejam, estamos falando de
Roma!
E as pedras fundamentais da democracia?
Mais tarde, na universidade, descobri que estão debaixo do maior mercado de
inutilidades de Atenas.
Na arqueologia acadêmica conheci apenas a pronúncia de palavras novas, ou
de como executar gestos que assinalassem a importância do objeto e meu domínio
sobre ele, falando baixo, e de voz grave e séria.
Posso confessar agora que classificar líticos aprendi a fazer com pedra muito
mais importante e perigosa, realmente super-poderosa: a Kryptonita!
Não sei se preciso explicar, mas esse termo é usado para designar qualquer
fragmento que sobrou da explosão do planeta Krypton, do mundo original de
Supennan. Todos nós que lemos as aventuras de Superman, muitas vezes sem o
conhecimento dos pais e escondidos pelos cantos perdidos da casa ou nas profun­
didades da noite debaixo do cobertor, sabemos que existem cinco classes da
Kryptonita: a verde, vermelha, domada, azul e a branca, das quais as primeiras
três são tóxicas para o nosso herói.
A Kryptonita verde é a única variedade potencialmente fatal para Superman.
Ela provoca, inicialmente, inércia, seguida pela morte, se não for removida a
tempo da proximidade do Super-herói.
A Kryptonita vermelha provoca sintomas bizarros, imprescindíveis e não-mor-
tais. Em sua proximidade, Superman se transforma em seu próprio clone, em
uma criança ou em uma formiga gigante.
A Kryptonita dourada roubaria, de forma permanente, o Superman dos seus
supeipoderes, se fosse exposto às suas radiações.
Essas Kryptonitas, todos devem se lembrar, são igualmente danosas para
Supergirl, Krypto, o Superdog, e para todos os sobreviventes do planeta Krypton.
A Kryptonita azul é tóxica somente para as criaturas bizarras, enquanto a
Kryptonita branca apenas é danosa para as plantas.
Depois de saber diferenciai- todas essas Kryptonitas, classificar pedras arque­
ológicas era fácil, pois existem sites na internet, manuais e livros de auto-ajuda. A
única informação que a maioria desses livros não revela é o significado das pedras
classificadas pelos arqueólogos.
Com muita seriedade e autoridade ensinei aos alunos nos últimos anos os segre­
dos da classificação lítica e o uso correto das palavras tecno-tipológicas. Mas, nin­
guém jamais me perguntou o que tudo isso significava. Os que realmente tinham
dúvidas ficaram em silêncio, outros nunca mais voltaram às atdas. Hoje desconfio
que estes últimos já sabiam classificar o material arqueológico e que já tinham
aprendido, como eu, esse ofício com as poderosas Kryptonitas do planeta Krypton.

107
Indústrias Líticas como vetores de organização social

“MOON ROCKS" ou Como aprendí a fazer escavações arqueológicai

I ate a rock from the moon.


Moon in the rock, rock in the moon.
There’s a moon in myfood.
You niighl think l’m ivasting time.
You might laugh but not for long.
Talking Heads
Nosso único satélite se chama “Luna”. Ele ganhou esse nome em honra.
deusa Luna da mitologia romana. Homenageâmo-la no segundo dia da seman:
em nomes como Lunes, Luni, Lunedt1. Na mitologia grega a Deusa da Lua s<
chama Selene. Era filha dos titâmos Hipério e Theia, era irmã de Eos e Hélio*
Selene conduzia uma carruagem prateada pelo céu, puxada por cavalos brancos.
Marti, Mano, Moon ou Mond são os nomes que a mitologia nórdica reservou para
o Deus da lua. Marti é masculino. Homenageamo-lo no segundo dia da semana
em nomes como Montag, Monday . Ele atravessa o céu conduzindo nina carru­
agem, acompanhado pelos filhos Bil e Hjuld, e pelo temível lobo Hati, que corre
desesperadamente atrás de Mani. Quando Hati, finalmente, alcança e devora
Mam, o mundo chega a seu fim.
Noite de lua cheia também é lua de São Jorge, é noite dos namorados, dos
beijos voláteis, das promessas sussurradas e olvidadas na aurora, é das mulheres
solitárias dos marinheiros, dos caminhoneiros e dos taxistas, é dos lunáticos que
andam perdidos pelos campos prateados, é dos lobisomens que atacam os viajan­
tes distraídos. A lua é dos ladrões que saltam os muros e assaltam as casas, é dos
cachorros latindo, dos gatos e das gatas namorando nos telhados de zinco, dos
ratinhos sonhando com um queijo do tamanho da lua e é também dos grandes
navios que buzinam além dos horizontes. Em noites de lua cheia, marcamos
entrevistas com os vampiros, nascem crianças com lunares e com poeira dourada
nos olhos e nos cabelos. Em noites de lua cheia, ouvimos atentamente os sons que
vêm do lado escuro da lua.
Esta era a lua que precisava ser analisada, escalada, perfurada, quadriculada,
quantificada, enfim conquistada, em nome da Guerra Fria. Apollo 11 partiu da ter­
ra rumo à lua no dia 17 de julho de 1969. Em 20 de julho, iniciou a maior e mais
cara escavação e coleta de material lítico da história da humanidade. Neil Armstrong,
comandante da expedição, e Edwin “Buzz” Aldrin, piloto do módulo lunar, pousa­
ram no Mar da 1 ranqüilidade”. ''"The Eagle has landed...". Michael Collins, que
Ceou na cápsula de controle em órbita lunar, apenas acompanhou esse cenário,
igual a milhões de telespectadores na terra. Neil Armstrong, também de pernas for­
tes, saltou da escada do módulo lunar, carimbou as primeiras pegadas humanas na
superfície empoeirada do “Mar da Tranqüilidade” e exclamou sem fôlego: “Este é
um pequeno passo para o Homem..., mas um grande salto para a Humanidade”.

108
Klaus Hilbert

— “Mas qual foi o resultado deste grande salto para a Humanidade?”.


0 resultado mais importante foi a criação de um mito. 0 projeto Apollo repre­
sentava a conquista do espaço, a vitória da ideologia do “American tvay ofLife". A
coleta do material lítico lunar, a prova de que “tudo era possível”, foi um gesto
simbólico muito poderoso. As pedras recolhidas, as pegadas na poeira, as ima­
gens da superfície da lua, da terra e da bandeira, representam a conquista, a
vitória dos Estados Unidos que ao mesmo tempo declararam a derrota emblemática
da União Soviética. A superfície da lua foi transformada em um enorme palco,
pronto para receber uma peça dramática de dimensão galáctica que o mundo
inteiro assistiu. As pedras recolhidas, junto com as imagens, fragmentos de fala,
são as relíquias desse mega-evento.
E as pedras? Quais são os resultados da análise?
Sabemos que as pedras coletadas na lua são extremamente antigas, compara­
das com as rochas que ocorrem na terra. Medidas radiométricas apontam uma
data que varia entre 4,5 e 3,16 bilhões de anos terrestres. As erupções basálticas
mais recentes devem ter ocorrido há 1,2 bilhões de anos atrás.
Durante as seis campanhas do projeto Apollo que tiverem atuação direta na
superfície da lua, 382 kg de rochas basálticas foram recolhidas, a maioria durante
as missões Apollo 15, 16, e 17.
A coleta dessa amostra significante de rochas foi feita mediante o uso de
artefatos altamente desenvolvidos, que incluía martelos, pás côncavas, ancinhos,
pinças e tubos. A grande maioria das rochas foi fotografada antes da coleta para
registrar as condições em que foram encontradas. Depois, as pedras foram acon-
dicionadas em sacos etiquetados e regressaram à terra em containeres especiais,
para evitai' a contaminação das amostras. A grande maioria das rochas era de
basalto, com um nível muito alto de titânio.
Podemos ainda destacai' a descoberta de um novo mineral denominado de
“armalcolita”, composta pelos fragmentos dos nomes dos primeiros astronautas
de Apollo 11, Armstrong, Aldrin e Collins.
Agora sabemos que a lua tem uma massa, 0,012 M , e um volume, 0,02 V£
Sua distância média do planeta Terra é de 384.400 km e sua cor é cinza. A
temperatura varia entre 123°C, durante o dia, -233 °C durante a noite. A lua não
tem atmosfera, ela tem uma gravidade de 1/6 da gravidade da Terra e leva 27,322
dias para orbitar a Terra.
0 resultado material mais importante das diversas investigações na lua foi o
resgate das pedras lunares. Os “moon rocks” são exibidos em Museus de Ciências
e Tecnologias no mundo inteiro, mas não desenvolvem mais toda sua magia. Seus
poderes simbólicos têm prazo de validade bastante limitado. Em compensação,
agora sabemos que a lua é apenas uma grande rocha!
Ela não interessa mais à NASA. O palco está vazio, cheio de lixo, o pano de
fundo rasgado e o público está assistindo a outros espetáculos. A lua voltou a ser
dos namorados, dos ladrões, dos solitários, dos lunáticos.

109
Indústrias Líticas como vetores de organização social

A Pedra Hlosofal, ou Como aprendi a metodologia da análise da


“Chaine Opératoire”

IFíe sich Verdienst und Gliick verketten,


Das Jallt den Toren niemal ein.
ÍFenn sie den Stein der Weisen halten,
Der Weise mangelte dem Stein.
Johann Wolfgang von Goethe

Descobrir a fórmula mágica para desvendar os segredos de antigas tecnologias,


entender como certas construções foram erguidas, como determinados objetos
foram moldados, como funcionavam, a questão da significância, representa um
dos maiores desafios para arqueólogos profissionais e aficionados. Superar as
barreiras de tempo e do espaço, descobrir leis universais e eternas, significa
imortalidade e riqueza infinita. O esforço de encontr ar essas forças mágicas está
em nossos imaginános, narrados em mitos e nas telenovelas.
As magias e os mitos desenvolvidos pelos sábios das metafísicas da antiguida­
de revelam muita semelhança com as metodologias científicas sugeridas pelos
sábios da atualidade. Não pelas diferenças conceituais, mas simplesmente pela
fórmula. Os métodos regrados perdem suas forças com a mesma velocidade com
que as porções mágicas perdem sua eficácia. Métodos comparativos da antropolo­
gia e da arqueologia foram substituídos por conceitos evolutivos, por abordagens
sistêmicas, por modelos comportamentais, inteqoretativos, por visões modernas,
por visões pós-modemas.
Aprendi a metodologia de análise do material lítico da “Chaine opératoire
com Albus Dumblendore. Ele realmente sabia tudo sobre sequências operacionais.
Conhecia o segredo de transformar uma simples pedra, sem poderes, sem nome,
em pedras mágicas, com nomes complicados e importantes. Albus Dumblendore
fazia isso através da Pedra Filosofal. 0 lápis philosophorum, ou ph.ilosoph.icum, é
o objetivo final do trabalho do alquimista. Sua criação, chamada de conglulinatione
ou transmutalione feita da matéria-prima, é a obra mestra, magisterium, da alqui­
mia. Os alquimistas buscavam transformar, através da pedra filosofal, metais bai­
xos em ouro ou criar um elixir que garantisse a vida eterna. Esse processo de
transformação de matéria-prima em lapis philosophorum acontece em diversas
etapas sequenciais. Esses passos foram descritos pela primeira vez na Tabula
Smaragdina, em texto elaborado por Hermes Trismegistos.
Em seguida, gostaria de revelar os segredos dessa metodologia. Essas são as
diferentes etapas das seqüências de operações para a obtenção do lapis
philosophorum:
L) Liquefaclion: Nessa fase, a matéria-prima é diluída ou transformada em água
de mercúrio.

no
Klaus Hilbert

2) Nigredo: Representa o descenso da matéria em esferas inferiores da terra, o


que provoca sua negridão e putrefação, como se fosse um corpo na tumba, simbo­
lizado por um corvo.
3) Albedo: A clarificação da matéria, simbolizada pela transmutação do corvo em
um pombo.
4) Citricitas: Nos processos anteriores perdeu-se muito espiritas através da evapo­
ração. Pai a recompô-lo, a matéria precisa ser mergulhada em lacta philosophica.
A coloração amarela indica o sucesso dessa operação, a policromia, ou cauda,
pavonis, seu fracasso.
5) Distillatio: Nessa fase, a matéria luta em forma de um dragão vermelho consigo
mesma e se transforma em sangue.
6) Coagulatio: Nessa fase o espirito se condensa.
7) Tinctura-. A matéria transforma-se finalmente em lapis philosophorum.
Evidentemente, precisa-se de muita prática e de paciência para reproduzir
essa receita com sucesso. Mas, vale a pena tentar. Não existe maior prêmio para
um sábio dominar a compreensão analítica dos passos e gestos subsequentes da
"'Chame opératoire" da Pedra Filosofal. E outra dica: Nunca confie nos métodos e
nos caminhos fáceis!

Sobre substâncias e líticos

(...) omnis ut est igitur per se nalura duabus


constitit in rebus; nam corpora sunt et inane,
haec in quo sita sunt et qua diversa moventur.
Titus Lucretius Carus

Prefiro, e sempre preferi, as coisas discretas. Gosto das coisas usadas, dos
fragmentos, dos cacos, estilhaços e pedaços. Mas as perguntas que fazia e as
respostas que recebia sobre essas coisas, simples, discretas, aparentemente sem
valor, sempre me levaram a uma Arqueologia bombástica e pomposa. Percebo
hoje que minhas pequenas coisas apenas sustentavam enormes castelos no ar.
Algum tempo atrás, alguns arqueólogos propuseram uma troca dos paradigmas
também na arqueologia. Substituiu-se a palavra “comportamento” pela palavra
“ação”, que não mais buscava conceitos uniforinitarísticos do comportamento
humano baseado nas idéias dicotômicas entre o estímulo natural e a reação cultu­
ral (Wobst, 2000: 40). Finalmente, também para os arqueólogos, o ser humano é
percebido como “agency” (Dobres & Robb, 2000). Por fim, novas metáforas e
metonímias foram criadas e outras relações paradigmáticas e sintagmáticas foram
estabelecidas.

111
Industrias Líticas como vetores de organização social

-fiAs Pmgmitas mudaram. Questiona-se atualmente sobre os significados, as s- —


„„?”ac°eS’ie C°n?? surSem os significados. A pergunta “como se chama essa "
* oi stt stitui a pot o que significa isso?” e “como esta coisa faz sentido-'
19R6?FOS °S a?°S °Ílen,a suSerüam se podería “ler” o passado (Hodde—
da filo f a/llUlacfa llngüística ocorreu na arqueologia quase noventa anosdepc-
.- 3 SSa na° é uma crítica, apenas uma constatação, pois nós arqueólo#-
eram r- P* eocuPados com a objetividade dos nossos estudos. Objete-■
cebidn S1 e*3 °S Provas irrefutáveis e absolutamente seguras. Objetos eram
de T,?°LSat q“e aParecera>n de sociedades desaparecidas. Os probletna-
ínveT - 6 3 re at*v’dade das fontes eram problemas dos outros.
coisas°eS?1£atreC?nteS S°bre Cldtura material destacam o significado da=
obietos-qicr eiH- j * °la que os °bjetos podem ser vistos como signos. Esse=
Dessm« nl' anl seus donos e usuários nos processos comunicativos entrs
caracterísfie m 1 ° a,]Unciar Sllas identidades perante a sociedade. Essas dua=
dois coneeit r Cld,Ura materia1’ a comunicativa e a expressiva, representam
antrono^óXo" TtOS’ 6 ™ meSm° tenlP° mterligados. Os trabalhos mais sócio-
& Ishenvood 2004)Z o" ° Carater comunicativo e estrutural dos objetos (Douglas
ral destnr ? 2°°4 ’ ° °Utr° conceito’ mais situado na área da psicologia cultu-

& RoX^HeXpre5siv0! e de
ciso entendí °S ^Pe jtos comunicativos e expressivos da cultura material, pre-
que se inter rei P°S’Ça° ' ° SUJeítO’ do seu P°der transformativo, bem como o “eu”
prefiro intuir .aCI°na Com os fenômenos das materialidades. Por esses motivos,
de Restos^ de 6 mÜltÍplaS ^tívas, a listar sequências anafiticas
ae gestos e de atnbutos tecno-tipológicos.
um obieto Um-a C.°'eta de critérios que possam ajudar a diferenciar
ções que esse ohi ?’ atraVes d® uma descrição dos seus fenômenos e das sensa-
entar-se atravéc ° pr°V0Ca’ ® método fenomenológico é caracterizado por ori-
potéticos, teóricos°e iwisiveí aCeSSÍVeiS’ CoIocando entre parênteses aspectos hi-

^queXc^ M Vem teS’ relaci°"ados com a investigação das pedras

Cão com a filíJfí f ‘ ArqUe° °g°s’ com raras exceções, procuraram a comunica-
profZnl da fen°1men01ógÍca (W, 1994; Thomi. 1996). A maioria dos
do sZ Obiít de n UC°1Og,\Sente-Se mais confortável com a suposta objetividade
pedra mÍ do nòm r*1'86" (1"8: 175) lambém Pensa sobre 0 obÍet°
com ’sZÍP ?la fenomenológico. Ele percebe as pedras, em geral,
tam ÍendtnS Ar' parCeladas’ são materiais, ocorrem, e apresen-
vem como aroueólo 8u,n£LS dessas definições sobre substâncias me ser­
vem como arqueologo, para pensar sobre a relação entre pessoas e pedras.

112
Klaus Hilbert

í Primeiro, quero refletir sobre substâncias parceláveis.


Tratar com fragmentos, estilhaços e cacos não é novidade para o mundo ar­
queológico. Artefatos liticos e cacos cerâmicos são substâncias parceladas. Para
cada parcela, inventamos nomes diferentes. São eles: bloco, núcleo, fragmento,
estilhaço, lasca, etc., e assim criamos categorias classificatórias e analíticas. Cada
J categoria é tratada e retratada como unidade independente. Lascas, núcleos e
outras porções são categorias arqueológicas qualitativas, tecno-tipológicas e não
quantitativas. Lascas são analisadas separadamente dos núcleos que, por sua vez,
são diferenciados dos instrumentos retocados ou com marca de uso. Essas dife­
rentes porções são depois interligadas em sequências operacionais, mas qualitati­
vamente sempre mantidas separadas.
Ao regressar às coisas mesmas, ao voltar às substâncias parceláveis, coloca­
mos entre parênteses, todas essas parcialidades qualitativas arqueológicas, juntos
com seus modelos e pré-conceitos teóricos. Regressamos às categorias de subs­
tâncias para voltar “às coisas mesmas”, à sua essência.
Lembramos: substâncias são parceláveis. Parcelas são partes que contêm o
todo, que novamente podem ser parceladas em outras partes e que mais uma vez
contêm o todo, sem perder sua qualidade substancial. Todas as qualidades que
uma amostra pode ter também estão em suas porções, não importa, teoricamente,
o tamanho da porção. Mas, do ponto de vista quantitativo, trata-se apenas de uma
parte. Posso pegar um bloco de uma pedra, quebrá-lo, e o resultado dessa ação é
novamente um pedaço de pedra, que por sua vez é uma substância parcelável.
Posso encher uma piscina com água, por exemplo, depois retirar da piscina um
balde de água. Deste balde, outra vez, posso retirar um copo de água e, do copo,
um copinho de água. Trata-se sempre da substância água, apenas em quantida­
des diferentes.
A fenomenologia trata da aparição. Coisas e fenômenos aparecem, eles se mos­
tram. Mas, até onde podem ser reduzidas, ao ponto de desaparecerem? Teorica­
mente até chegar à sua estrutura molecular, como sugere Titus Lucretius Canis.
Seguindo a percepção fenomenológica, entretanto, o tamanho das porções tem
limites. Esses limites são perceptíveis e experimentáveis. Micro-gotinhas da água
assumem novas qualidades e, consequentemente, merecem ganhar um novo nome.
Chamamos pequenas porções de água de umidade. Micro-pedrinhas chamamos
de areia, micro-fragmentos de areia chamamos de poeira. Criamos novas categori­
as e nomes por causa da mudança das especificidades e experimentáveis das
substâncias e não por razões classificatórias, tipológicas, como fazemos com as
pedras arqueológicas. A umidade nos lábios ou o suor que sinto na palma da mão
são fenomenologicamente diferentes da água em um copo ou na piscina. Quantita­
tivamente é apenas um pouquinho de água. A poeira que o vento levanta provoca
sensações diferentes que a brita na beira da estrada ou os seixos na beira do rio.
Outra definição de substância sobre a qual pretendo refletir é que substâncias
têm tendências, inclinações. Uma substância não é apenas matéria-prima, moldável

113
Ikdistnas Líticas como vetores de organização social

» a^°’a'e> pelo sujeito que impõe seu domínio sobre a substância. Subslâncú^=
tais >•> ° aPenas '° ,m,es neutros, elas têm características ativas e produtivas. Crê-----
cia CXCln|?. °’ 1 ag'”entam-se em seus fractais, gases e a umidade têm a tendên-----
v- - lar' •6 86 nl*stllrar’ poeira a inclinação, de voar e entrar nos olhes-
rnip ci.l i * ala 3TU' em a^s°lut0, de um antropomorfismo. Não estou sugerindo----
mos “ T Personalidades, vícios ou vontades próprias. Masnãopode-
tiveranAnb1116 S“bs,ancias’ eni forma de coisas, têm poderes sobre nós, e que
sociais mostr-6 °S 1On?e‘ls e 35 nl,dheres na pré-história. Antropólogos culturais e
meZdos ‘^a,n 3 U UênC‘a qUe °bjet0S exercem sol»e as pessoas, em super-
(McCrackèn,
tendências
Ks^Sí^rççsriss
\
3"035 T°S P°V°S f.’olÍnésÍOS’ naS e,c
° ’ SS° slonL^ca que substâncias têm inclinações,
arqueólogos Ulamicas’ nao sao passivas ou inertes como vistas por muitos

Estudo descritivo dos fenômenos

“Von allen Werken die liebsten,


sind mir die gebrauchlen”.
Bertold Brecht
— “Quais seriam as alternativas?”.
Precisamos evitar as armadilhas classificatórias que estão relacionadas, de
alguma forma, aos modelos teóricos e metodológicos regrados. Vamos fingir que
não sabemos nada sobre pedras, estilhaços, fragmentos ou cacos. Vamos esque­
cer os núcleos, as lascas, os fragmentos.
A cultura material, em nosso caso específico a cultura material de pedra, pode
também ser pensada através da fenomenologia. Entendo aqui por uma aborda­
gem fenomenológica a tentativa de desistir das teorias, em detrimento das descri­
ções. Para ajudar nesse complexo processo descritivo da materialidade, podemos
pensar em tópicos que possam ser úteis na análise sensual que as materialidades
provocam em nós e de como percebemos essas materialidades. Não se trata de
uma nova proposta de um roteiro, de uma variedade da “Chame opéraloire".
Os topoi agrupam-se em torno de três áreas: superfície, estrutura própria e
origem (Soentgen, 1998: 200).
Através da superfície estabelecem-se as primeiras relações comunicativas en-
tre o objeto e o sujeito. Os olhos, esses órgão da distância, avaliam o brilho, a
rugosidade, a pátina do objeto. As mãos aproximam-se, as pontas dos dedos
percebem a superfície da peça. Algumas substâncias respiram, absorvem seu
entorno, outras não respiram. Substâncias basálticas, areníticas, graniticas, ma­
deira, cerâmica estão em constante intercâmbio com seu entorno, absorvem o
ambiente. Essas substâncias contam histórias, incorporam histórias. Outras subs-

114
Klaus Hilbcrt

tâncias, como as cristalinas, silicosas, as ágatas, os quartzos parecem inalteradas.


Suas superfícies são lisas, brilhantes, repelentes, as marcas, as impressões digitais
são removíveis. Essas substâncias parecem sempre novas.
Substâncias têm estr uturas próprias, são homogêneas ou com modulações in­
ternas. Pedaços de ágata, calcedônia ou outras materialidades silicosas aparen­
tam padronizados. Parecem produtos industrializados, são “indústrias lítícas”.
Porções de quartzos, substâncias basáltícas, areníticas são bem menos uniformi­
zados. Parecem ser feitas artesanalmente. Elas mostram estruturas próprias, vei­
os, irregularidades e modulações internas que destacam seu caráter individual,
suas inclinações e tendências.
Pedras têm histórias para contar que deixaram marcas. Pedras aparecem para
as pessoas de diferentes maneiras. Precisamos observar esses fenômenos relacio­
nados com a trajetória dessas pedras. Algumas estão relacionadas com água,
outras com terra, com água e terra, com calor, com frio, com pressão, fricção,
maceramento, queda, com vento, sol. Diferentes substâncias líticas reagem de
forma diferente a esses contatos. A quebra, efetuada pela ação humana, repre­
senta um episódio apenas passageiro na história dessas pedras.
A percepção fenomenológica passa necessariamente pela descrição. A descrição
adequada está relacionada com o sujeito que sente, vê, cheira e toca conscientemente
as coisas do nosso entorno, do nosso “mundo vivido”. A descrição passa pela
palavra, o que nos devolve para o início da apresentação, para a primeira frase.
Este ensaio sobre pedras e pessoas foi um experimento literário que privile­
giou o diálogo entre a filosofia fenomenológica e a arqueologia. Um diálogo que,
a meu ver, tentou formular propostas novas e interressantes sobre a relação entre
pedras e pessoas.

Referências Bibliográficas

BELLO, Â., 2006. Introdução à Fenomenologia. Bauru-SP: EDUSC.


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116
i
l Possibilidades de abordagens
em Indústrias Expedientes*

Paulo Jobim Campos Mello**

Introdução

0 termo “expediente”, ou “expedito”, para as indústrias líticas, se opõe ao de


“acurado”, sendo que ambos foram definidos por Binford (1977; 1979) há 30
anos. “Acurado” seria um instrumento mais trabalhado, fabricado antecipada­
mente para resolver as necessidades já previstas pelo grupo, enquanto “expedito”
seria aquele instrumento pouco transformado, feito para necessidades que apare­
cessem na hora.
Ainda para esse autor, essa variabilidade constatada nos instrumentos estaria
relacionada às atividades realizadas em diferentes tipos de sítios.
E interessante notar que, se utilizarmos essa abordagem, a quase totalidade
dos instrumentos líticos lascados do Holoceno Médio (período Arcaico), em parte
do Planalto central do Brasil1, entraria na categoria dos “expeditos”.
0 problema é que essa abordagem utiliza dados tipológicos. Fala-se de variá­
veis funcionais sem, no entanto, se conhecer as funções do objeto, o lugar que ele
ocupa no sistema e o modo como ele foi produzido.
0 objeto levado em conta pelo observador como tipo já está carregado de
informação que não vem do objeto, mas da analogia considerada para determiná-
lo. Essa analogia é só uma intuição. Por exemplo, um bordo retocado se toma

‘ 0 tema tio presente trabalho foi-nos sugerido pelos organizadores do Simpósio “Tecnologia
Litica no Brasil: fundamentos teóricos, problemas e perspectivas de pesquisa”, ocorrido em
junho de 2007, no Museu de História Natural, UFMG.
" Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia, Universidade Católica de Goiás.
1 Resumidamente, temos o seguinte quadro crono-espacial para as culturas pré-históricas do
Planalto Central Brasileiro:
- o período mais antigo, denominado de paleoíndio, que se inicia por volta de 11.000 AP e se
estende até cerca de 8.500 AP, onde aparecem, como fósseis-guias, os artefatos plano-convexos;
- o arcaico, onde os instrumentos unifaciais bem acabados desaparecem, sendo substituídos por
instrumentos menos elaborados, com uma indústria mal definida;
- e o ceramista, surgindo por volta de 2.000 AP, primeiro, ao que parece, com uma horticultura
incipiente, caracterizado pela fase Jatai; depois por grupos agricultores, habitantes de grandes
aldeias (fases Aratu e Uru, principalmente).

117
Possibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes

ônimo de utilização, se esse retoque é lateral, consideramos, por analogia ca


. ,°S ProPnos instrumentos ou com aqueles dos povos ditos primitivos, que ei
». a servTi par a r aspar. de acordo com a tipologia já se tratará de um raspado.
de rasp^1]'11 orala^ao’ ^a existencia de um raspador, é exata? Trata-se realmeni

Essa analogia vem de nos;


nossa experiência pessoal e, como podemos ver en
Sigaut (1993), ela traz consigo
> os inevitáveis riscos. O primeiro risco é o da igno
rância: é pela ignorância que i
não conseguimos identificar o objeto. 0 segundo, <
fln Séri°’ é ° fam^*ar’dade,tque geralínente
nos leva por unia trilha
ialsa que depois torna-se difícil de abandonai.
obietoç t®mos urna informação sobre a presença e quantidade de determinados
resnn«stò tCaS° trata‘se da informação sobre o objeto técnico. Ea
aX nTCa n p° P°í de laI ^rdagem tipológica.
definir nm ri ° ^U.e °S cr*térios e as características escolhidas para
história de <F° re ,etem ma’s a idéia que o pré-historiador faz do homem da pré-
Várias r 'riUS ° ')Jet,0S e m°d° de vida, que do valor real do objeto técnico,
mente nn« in P° Cm Ser ^e*tas aos estudos tipológicos, baseados exclusiva­
mente nos instrumentos acabados:

é satisfatória-'^0 term°S exchisivamente culturais das diferenças tipológicas não

coerência í t em
Cm termos
,cnnos c‘e ngor científico pois às listas tipológicas faltam
a r. ~ enia (ou seja, os nomes dados aos instrumentos referem-se, às vezes,
à função presumida,
as vezes à forma do objeto, por exemplo);
- é uma abordagem reducionista: só considera o instrumento finalizado, por uma
parte, resumindo-os, por outra, a
do tipo. algumas características que fundam a definição

Só levando <—
em conta o instrumento, ou seja, a fase final das operações técni-
cas, a tipologia é incap:
_>az de dar conta dos conjuntos de conhecimentos postos em
prática para se c ieoar ao objeto; ou seja, é impossível perceber a variabilidade
existente.
Isso fica claro no exemplo
< # da rponta- levallois \n(fig. 1), em que é possível perce-
ber que existem vários caminhos para se fabricar
. --------- „■ o mesmo objeto.

118
Paulo Jobim Campos Mello

structurc volumétriquc DISCOIDE


'í'
différentes
mélhodes

/ 1
tetòd Afias
o 1
001
volume t riq uc cx différe ntes «I ruclort
PALEOI.ITIIIQUE méthodcs volumétriquc
SUPERIEUR
levallois

W/ !
m\ UIt /Ml
différentes
mtth odes

4
Mructure voluméiriquc PYRA.MIDAl.E

Figura 1

Um determinado objeto, no caso uma ponta levallois, pode resultar de concepções de


lascamcnto diferentes, fato que uni estudo tipológico não permite evidenciar (Boeda, 1991:54).

Abordagem tecnológica

Em substituição a essa abordagem tipológica é sugerida uma abordagem


tecnológica.
Há várias definições para a técnica:
- “o modo de as pessoas fazerem as coisas”(White).
- “um conjunto de movimentos ou atos, usualmente e na maior parte das vezes
manual, organizado e tradicional, combinado para atingir um objetivo físico, quí-
mico ou orgânico conhecido” (Mauss).
Como podemos ver em Haudricourt (1987), há pelo menos 4 pontos de vista
diferentes para se estudar as atividades técnicas: o histórico ou evolutivo; o geo­
gráfico ou ecológico; o funcional, e o dinâmico. Discutiremos aqui apenas o últi­
mo. Nele, Leroi-Gourhan desenvolveu a idéia de se estudar o instrumento em
movimento, ocasião em que os objetos não são mais considerados neles mesmos,
mas como resultante de certos movimentos, e os instrumentos como transforma­
dores de instrumentos.

119
Possibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes
Elaborando o <conceito de tendência técnica, Leroi-Gourhan formula a hipóte
se . de que. existem,’ na m°rfogenese dos objetos técnicos, tendências universais. <
co oca, ame a, o princípio de uma universalidade tendencial da evolução.
tendência tem uni caráter inevitável, previsível, rectilíneo; é cia que leva o sfla
gnro na mão a adquirir um cabo, o fardo arrastado sobre duas varas a munira
ue roda (...) A presença de pedras suscita a existência de um muro, e a erecçãotfc
muro unplica a alavanca ou a roldana (...). (Leroi-Gourhan, 1984: 24)
As técnicas tendem naturalmente a se desenvolver, sem que seja necessário
uma motivação social. Ou seja, a técnica tem capacidades evolutivas autô­
nomas em relação aos seres vivos.
rpm 1 tcnd^nc‘a’ Portanto, constituiría uma espécie de porvir de evolução geral
entro ' rfUr~ ' ctcnn’n*srn° funcional. O ato de fabricação é, então, um diálogo
“ • r esao e o material trabalhado, um diálogo situado na junção entre o
meto externo e interno (Leroi-Gourhan, 1984: 255).
cnn m 6 P°SSÍV,el Perceber que o trabalho de Leroi-Gourhan envolve uma
servinrl<->C'la eSlrlltur‘ e funcional da técnica: quanto mais o órgão é estruturado,
o elem *\ecessi a es e operando de certa maneira, mais estruturado se toma
“meíns 1 ecruco’ ° gesto, o procedimento. Isso resultou na formalização dos
Há nmmentaLeS aÇã° S°bre a matéria” (Leroi-Gourhan, 1984: 35 e ss.).
norérn n- a-gran e PreocuPaÇã° com a descrição dos movimentos executados,
niento. ™ 6 ? qUe inleressa’ como não é só a descrição dos instru-
to com ,CIe,SSa’ ° importante é a relação desses movimentos com um obje­
to, com um obstáculo”, ou seja, o contato entre eles.
descriçãorfSSan.,C nes®a abordagem é que ela vai mais além do que a simples
existe com °° Jet° na° P°C em°s estudar o instrumento isoladamente, pois ele só
existe com os gestos que o toma eficiente.
Les objets fabriqués par 1’homme peuvent êlre comparés dans une certaine mesure
musée n’ aVanlS Pro l*1,s Par 'a nature. Mais l’objet tel qu’il se présente dans un
E c°mparable qu’au squelette de 1’être vivant : pour le comprendre il
font Z7 3 rd° 1UÍ 1 enscmble des gestes humains qui le produisent et qui le
zoo oX r.er‘ Ce‘e_nscmble J°uc le rôle des partes molles de 1’animal que le
le squ^ette°1H3Xurt,O1987miP09"dre mOIphologÍe des bêtes dont Ü étudie

mesmo ort^>°’ °i °bjet0 e?dste apenas no seu ciclo operacional, sendo que o
rsTmrttaneT P°. Pr°duzido P°r diferentes atividades humanas. “A técnica
ra sintaxe niíp6?' ^t0 °U utens^io, organizados em cadeia para uma verdadei-
1985a-l 17) 3 35 Senes oPeratórias a sua fixidez e subtileza” (Leroi-Gourhan,

encadeamcn|n<|IllCS ° consblldntes elementares da ação estão integrados em um


formÍçãm Og,C° ° ”®C^° de es,áSios e sequências no processo de trans-

120
Paulo Jobim Campos Mello

Assim, é introduzido o conceito de cadeia operatória2, que pode ser definida


cotno o encadeamento das operações mentais e dos gestos técnicos visando a
satisfazer uma necessidade (imediata ou não), segundo um projeto que preexiste
(Balfet, 1991). Ela se opõe à simples sucessão, pois é colocada a hipótese que as
primeiras operações técnicas influenciam as seguintes, e reciprocamente.
A cadeia operatória é, então, a totalidade dos estágios técnicos, desde a aqui­
sição da matéria-prima até o seu descarte, e inclui os vários processos de transfor­
mação e utilização. Também integra um nível conceituai e, assim, não pode ser
entendida sem referência ao conhecimento técnico do grupo.
Technological analysis is a global approach. The totality of produets from a single
industry is laken into account allowing for lhe differentiation of the various technical
stages wich can them be situated within an operational sequence, or chaine opératoire.
The chaine opératoir e, then, is the totality of technical stages from the acquisition of
the raw material through to ils discard, and includes the various processes of
transformation and utilization. The technological analysis (...) also allows the technical
knowledge (connaissance) and know how (savoir faire) necessary for the proper
achivemcnt of the operational sequence to be determined. Each technical stage
reílccls specific technical knowledge. (Boeda, 1995: 43)
0 que podemos ver, então, com a cadeia operatória, é que existem várias
soluções satisfatórias para a resolução de um problema técnico ou para a satisfa­
ção de uma necessidade (conforme fig 1, mais acima).
Essa “escolha” entre as diferentes cadeias operatórias possíveis se efetua em
função de um sabei' técnico, que constitui a tradição técnica do grupo (ele mesmo
um dos elementos da tradição cultural).
Voltando à proposta de Leroi-Gourhan sobre o “instrumento em movimento”,
podemos utilizar, também, as idéias de outro autor, P. Rabardel, que vê o artefato
como meio de ação, e estuda a relação instrumental entre o homem e o artefato.
Para Rabardel (1995), tanto o objeto técnico como o sistema técnico são im­
propriamente nomeados, pois eles não devem ser apreendidos somente através
das tecnologias que os fizeram nascer. Deveríam ser denominados de
“antropotécnicos”, uma vez que foram pensados e concebidos em função de um
ambiente humano.
Ou seja, “les produits de la technologie ne sont pas seuletnent techniqu.es, ils
sont anthropolechniques et doivent pouvoir êlre compris et analysés comme tels”
(Rabardel, 1995: 10).

2 Como pode ser visto cm Desrosiers (1991), o conceito de cadeia opcratória se formou somente
no início dos anos 50. No entanto, já em 1947 M. Mauss sublinhava a necessidade de uma
pesquisa aprofundada sobre as técnicas, de se estudar os diferentes momentos da fabricação,
desde a matéria pritna até o objeto acabado, mas ele parou por aí. Foi M. Magct (1953), que
começou a falar de “cadeia de operação” ou “de fabricação”, sendo que a introdução desse
conceito dentro da análise tecnológica foi finalmente realizada por Leroi-Gourhan.

121
l UHIUlUdade de abordagens em Indústrias Expedientes
P‘ua esse autor, é dada muito mais importância às atividades do homem qu
se re acionam à concepção do objeto, do que àquelas de uso do objeto, ou seja, s
a es os tornens quando mantém uma relação instrumental com o objete
n aurontphis qu’une interprétation totalment unilatérale de 1’objel technique don
(Rabar^rVçQS^ 59) enV'Sa^ clue sous Informe des anticipation des concepteun
E por esse motivo que Rabardel propõe a substituição do termo “objeto técni
C” ?.S‘"'la u'n °bjeto considerado pelo ponto de vista técnico, pelo de
.. , ° r ° senhdo antropológico, artefato significa “qualquer coisa que sofreu
«enrirl orlna<'ao tb' origem humana o referido autor, no entanto, amplia o
siKrph° o termo, sendo que o que vai interessar é, principalmente, o objeto
suscetível de um uso.

j ' 1 ar,cfr'ct o été conçu pour produire une classe d’effets, et sa mise en oeuire,
Autrpn^ <t°Jr '?°n.S Pr®vues Par les concepteurs, permet d’actualiser ces effets-
j nl ' T- í 'r 3 C lacJue ;5r,efact correspondem des possibilites de transformations
snsr-OT.dl i C ac,av’*é’JIU' °nt été anticipées, delibcrenient recherchées et qui sont
nonl rn ’ e-S.- e S ac,uabscr dans 1 usage. En ce sens 1’artefact (qu’il soit matériel ou
nosé« fR V j U>n^ r>° Ut’on a un Pr°blème ou à une classe de problèmes socialment
poses. (Rabardel, 1995: 60)

se excluem *°S e'n Uso P0<^em ser apreendidos de vários pontos de vista (que não
prónria ncr/'' ^a^ °i contrar’o, sao complementares), cada qual com sua
m7na deP‘ A^rntCla- AqUeleque vai interessar à Rabardel é o que ele deno ;
entre os hnm6 3 ° C°m° n3e*° aÇao 3, no qual aparece a relação instrumental
entre os homens e os artefatos. Ele é assim descrito:

1’utilisp ít P'ace dans une activité finalisée du point de vue de celui qui
nour on’p "* °rs un ®tatul de m°yen d’action pour le sujet, un tnoyen qu’il se donne
vue du "7 7 Un Jet <-)‘ ,ci le raPP°rt à rartefact'est appréhendé du point de
de 1’aeriX’ ,7 r 7 de SOn aclion- Dans cette perspective c’est la logique
”*—

(Rabardel 1 OoTr r \ d,enorn'nada de Situação de Atividade Instrumentada (SAI)


o instrumènt 1 ' • 6 caraclerizac^a Por três pólos: o sujeito (aquele que utiliza
L™ ™mo ° r ■lnsr,menl0 e 0 obJe‘° sobre o qual a ação, com a ajuda do
diferentes nóln ° P.ermite Perceber as várias relações existentes entre os
erentespolos,além de se levar em conta que todos esses pólos, e essas interações,

’ Os outros dois pontos de vista mencionados por Rabardel são:


sendo consid?r?d0o17c7end7tTdo\Tmem N artefat0S tendo suas P róPrias especificidades
próprias especificidades ee
é a organizadora da reúção com o artefato;' abordaBem’ 6 a log>ca do funcionamento que
palmentc em coml°o^X^afoVprod^em^r^ Centrad° sobre a evoIuÇ3° dos objetos, princi-
óacadonrocessodetrnnTf PJ^o^ui transformações nos produtos trabalhados. Aqui é a
Jog> P ocesso de transformação das coisas que é levado em conta. (Rabardel, 1995: 60 e ss.)

122
Pauio Jobim Campos Mello

estão em um determinado ambiente que, sem dúvida, também está em interação


com eles.
0 ponto fundamental da definição de instrumento é que ele não pode se
reduzir ao artefato (ao objeto técnico, à máquina, etc.). E preciso defini-lo como
uma entidade mista: o instrumento é uma entidade composta que compreende
uma entidade artefactual (um artefato, uma função de artefato, ou um conjunto de
artefatos), e um componente ligado ao esquema (ou aos esquemas) de utilização.'1
Essas duas dimensões do instrumento, apesar de estarem associadas uma à
outra, mantêm uma relação de certa independência: a um mesmo esquema de
utilização podem corresponder diferentes tipos de artefatos, e a um mesmo tipo
de artefato pode corresponder diferentes esquemas de utilização.
Assim, amplia-se a noção de que o instrumento é todo objeto (artefato) que o
sujeito associa à sua função para a execução de uma tarefa. Não é somente o
objeto que é associado, e associável: também o são os esquemas de utilização que
irão permitir a inserção de um instrumento como componente funcional da ação
do sujeito (Rabardel, 1995).
Ainda de acordo com Rabardel (1995: 117 e ss.) o instrumento constituído
pode ser efêmero, ligado unicamente às circunstâncias singulares da situação e às
condições às quais o sujeito se confronta, mas também pode ter um caráter mais
permanente e ser objeto de uma conservação como totalidade, assim como meio
disponível para ações futuras.
0 artefato não é em si um instrumento, ou componente de um instrumento, ele
é instituído como instrumento pelo sujeito que lhe dá seu stalus de meio para atingir
os fins da ação. Assim, um mesmo artefato pode ter status instrumentais bem
diferentes segundo os sujeitos, e para um mesmo sujeito, segundo as situações.
Um instrumento permanente, suscetível de conservação e, portanto, de
reutilização, consiste na associação estabilizada de duas invariantes que solidaria­
mente constituem um meio potencial de solução, de tratamento e de ação em uma
situação. No entanto, se coloca o problema de constituição do instrumento perma­
nente, de sua gênese: é o problema da constituição dessas duas invariantes:
esquemática e artefatual.

' Como podemos ver cm Rabardel (1995: 99 e ss.), para Piaget os esquemas constituem meios
do sujeito, que os ajuda a assimilar as situações e os objetos com os quais ele é confrontado; eles
são, também, a origem da formação dos conceitos. 0 esquema de uma ação é o conjunto estruturado
das características gencralizáveis da ação, quer dizer que permite repetir a mesma ação ou aplicá-
la a novos conteúdos.
Os esquemas de utilização concernem duas dimensões de atividade:
- as atividades relativas à tarefas secundárias, ou seja, relativas à gestão das características e
propriedades particulares do artefato (apesar de diferentes das principais, as tarefas secundárias
são funcionais e podem compreender fins próprios);
- atividades principais, orientadas para o objeto de atividade, c para os quais o artefato é um meio
de realização.

123
I ossibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes

r>>7 j6* o',a do Jado do esquema ou do artefato, essa construção não se real
neln c S al0S S3°’ 6111 £eraP preexistentes, e são todos instrumentalizar!
"enor->r?l d S esquemas são, frequentemente, vindos do repertório do sujeite
nnvnc 1 **. °S’ °U aco,nodados, ao novo artefato; às vezes esquemas inteiram en
termn« ?VelU sel construídos. O conjunto desses processos é caracterizado> e
nos de processos de instrumentação e de instrumentalização:
~ Cl ~US d mstrumentalisation concernem remergemee et 1’évolution dt
insritnCSanIjS ^rte aCt de ' áistrument : sélection, regroupement, produetion i
. - e oncl]ons, détoumements et catachrèses , altribuition de propriêtá
transformation", de artefact, (strueture, fonctionnement, etc.), qui prolongent k
créations et rea tsations d artefacts dont les limites sont de ce fait diíliciles <
déterminer;
- le processus d’instrumentation som relatifs à 1’éntergence et à 1’evolution da
oarTè65 U^hsaÜOn et d’action instrumentée: constitution. fonctionnement, évolutíoe
at.1.°n’ coordination combinaison, inclusion et assimilation reciproque
1995- 137)11 C artC aClS nouveaux a des schèmes déjà constitues, etc.. (Rabardel

ao suieitn A aC?' C’° Coni ° lr*esmo autor, esses dois tipos de processo são relativos
de sua ativí I '"J8 nilnen,a^za9ao’ Por atribuição de uma função ao artefato, resulta
é a oriemÀc- 1 ’ C°m° 3 acomoda?ão de seus esquemas. 0 que os distingue
próprio suSr íT atn2dade- N° pr°CeSS0 de instrumentação ela é voltada para o
relativo dê h 1 “. ° e_.SqUerna de utlfeação), enquanto que no processo cor-
mento. Os dni - lmenlaiJ2a9ao ela é voltada para o componente artefatual do instm-
instrumentnc Processos contribuem solidariamente à emergência e evolução dos-
Só consiid7 qUe Um deleS possa ser mais desenvoMdo, dominante.
So considerando o instrumento como
uma entidade mista, que inclui dois
componentes (o objeto strictu sensu e
o(s) esquema(s) de utilização associados,
conforme proposto por Rabardel) é que
poderemos obter informações capazes de
dar conta do instrumento em ação.
instrurnentnliT° POC^eniOS ver em ^oeda et al. (no prelo), quanto ao processo de
instrumento mat°’-e P comPreender que, no quadrL da tríade homem /
tiv^enS o bom ’ ° U1StrUmen,° conserva todo um registro de relações restri­
ções técnicas (i em 6 3 matéria de trabalho. Essas relações traduzem as restri-
üngulm se dulsere. “ e Culturais’ e vã° eí~ar o objeto. Dis-
E posslve? ne ?g°n" de reStriçÕeS: extrí"secas « -^ecas.
matéria de trabalb*2 ÜeS dp°S de restrÍ9°es extrínsecas, aquelas inerentes à

í°nduz a ‘Onerar um outro reglstro de


restrições estruturam» i ° ^aÇao, que consiste em uma tripla relação de
relação restritiva do insb^mernoT SC' lnlegradas à concePÇão do instrumento: a
com o material de trabalho, a relação de restri-

124
Paulo Jobim Campos Mello

ção de um instrumento com o homem, e a relação de restrição do homem, do


instrumento e da matéria de trabalho.
Essa abordagem proposta por Rabardel (1995) é fundamental para que se
possa fazer um estudo tecnológico global do material lítico pré-histórico, ou seja,
que se dê conta de um instrumento em ação (conforme proposta de Leroi-Gourhan),
sua dinâmica sendo interiorizada pela preensão que o operador exerce sobre ele.
Assim, para analisarmos um instrumento, temos que saber sua estrutura (orga­
nização), seu funcionamento e sua função, ou seja, qualquer estudo de um artefa­
to deve incluir esses três níveis de análise: “do que ele é feito”, “como ele traba­
lha”, e “para que ele serve”.
A organização é o conjunto das propriedades geométricas e físicas que resulta
da manufatura e uso do artefato: forma, tamanho, material, solidez, elasticidade,
etc. No nível organizacional o procedimento analítico é óbvio: usam-se todos os
meios disponíveis para a investigação — geométrico, físico, etc. — e para a
descrição do próprio objeto.
Esse é o ponto inicial para o estudo de qualquer objeto, e não causa muito
problema para o instrumento pré-histórico. A dificuldade começa com o outro
nível.
Alguns aspectos do funcionamento do objeto são ditados pela sua forma. Dado
um objeto não identificado, os meios de investigação disponíveis permitem-nos
calculai' alguma coisa sobre o seu funcionamento, mas não nos permite descobrir
sua função5.
Para entender o funcionamento de um instrumento, parte-se do princípio de
que a sua fabricação, qualquer que seja a época, não foi feita ao acaso. Se
existem esquemas de produção, existem, necessariamente, esquemas funcionais.
Esses dois esquemas são indissociáveis.
Todo objeto, portanto, é portador de um esquema de funcionamento. Esse
esquema é a essência mesma do objeto, e é a razão de sua existência, e isso nos
fará com que, em vez de privilegiarmos o estudo da produção e da função de um
objeto, passemos a considerar, também, o funcionamento do instrumento (Rabardel,
1995).

5 Para Sigaut, (1997) existe uma confusão entre funcionamento e função: cortar, furar, raspar,
centrifugar, etc. não são funções, mas uma categoria do modo de funcionamento. Segundo o
exemplo dado por esse autor, o açougueiro que corta a carne que eu pedi não faz isso do mesmo
modo, e nem com o mesmo instrumento, com que eu cortarei a minha, no meu prato, algumas
horas mais tarde. Para "cortar” ser uma função, devemos saber exatamenle o que vai ser cortado,
em que contexto c com qual propósito, em outras palavras, precisamos saber de que operação
estamos falando.
É a localização dentro de uma operação específica, com todas as finalidades que isso implica, que
define a função de um artefato. Seu funcionamento — como ele trabalha — fica no modo como
ele intervém no efeito que é produzido.

125
Possibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes
E ?e,rdade. que a analise do funcionamento do instrumento é difícil de ser
I ce k a, pois e a implica na consideração de duplas tais como: mão-instrumen-
freqü^ite1!!!316^3 ’ eSPaÇ°'£esto’ sendo que um dos componentes nos falta

POde,n Ser °bddas’ se formos capazes de ler as intenções morfológicas


maí« 11 e ,nelI3Cas cIue cada objeto recebe. Isso é possível, se decidirmos não
técniea ° ° Jeto ®nl sua generalidade, ocultando assim certas propriedades
co. —’1ClaiS-Cada ObJetO técnico residta da sinergia de propriedades com
m encias ^enteas precisas. Na medida em que outras características técni-
mn« m fonsecIüencias funcionais idênticas puderem ser utilizadas, nós podere-
nament ’ . cerrur no °bjeto o efeito de tal escolha, significativa de um funcio­
namento preciso e procurado.
1997) jet° Ser dec°mposto em três partes (Lepot, 1993 apud Boeda^

B 11 3116 reCePbva energia que põe o instrumento em funcionamento;


certos casn aile Preens*va que permite ao instrumento funcionar; ela pode em
certos casos se superpor à primeira;
C - Uma parte transformativa.

Co hU_*o o lkjL-
c(uía 3 Co ,x?tcucZã

»wúf-ú. X cZ CLAXX
5" *> o ss i tu Ss. 1As* J~X*A
fZcoó ~ pZz>S , Ò.
WVlta.yit t dortni )

CR = CP
cr-cr # cp

CR^CP f CT
V
c n = a p = ct
(>»>oCCÍ£eAx~>

Figura 2
Combinação entre os diferentes contatos: ret-rJ.- Hic=usi»u \s
:cepüvo (cr), preensivo (cp) e transformatívo (ct)
(Lepot, 1993, apud Boeda, 1997: Figura 1).

126
Paulo Jobim Campos Mello

Cada uma dessas partes é constituída de uma ou de várias Unidades Técno-


Funcional (UTF). Uma UTF se define como um conjunto de elementos e/ou ca­
racterísticas técnicas que coexistem em uma sinergia de efeitos. Uma parte distai
ou proximal, um bordo, um talão, etc. são alguns dos elementos levados em
conta. Um ângulo, um plano de secção, uma superfície, um gume, etc. constituem
características técnicas participantes da definição de uma UTF.
As UTFs, nos instrumentos líticos lascados, serão determinadas através da eviden-
ciação de uma organização particular de retiradas, cujas conseqüências técnicas
agem em sinergia para colocar uma característica técnica remarcável e coerente.
Assim, em cada instrumento serão identificados os “planos de corte” e “pla­
nos de bico” (Boeda, 1997: 66-7).
Planos de corte são aqueles criados pela intersecção de duas superfícies, sendo
que eles já podem apresentar-se favoráveis à utilização; ou, em certos casos, são
objetos de uma organização (retoques) em vista a uma funcionalização do bordo.
Nesse caso, essa modificação forma um novo plano, denominado plano de bico.

-... —.

S-....
plan de / ’
coupe

2 plan de bec

Figura 3
Esquema de plano de corte e de plano de bico (Boeda, 1997: Ggura 34).

Gênese e evolução dos objetos

Depois de se estudar a cadeia operatória, isso é, ver o esquema de produção e


tentar ver o esquema de funcionamento, é possível perceber que tudo isso tem um
caráter sincrônico.
No entanto, é clara a necessidade do pré-historiador estudar a técnica no senti­
do da “longa duração” — ou seja, da evolução. Como nenhum autor trabalhou es-

127
Possibilidade de abordagei•ns em Indústrias Expedientes
se aspecto diacrôniiico da tecnologia para o período pré-histórico, será preciso Vz
mar emprestado essa visão daqueles que colocaram questões fundamentaissokt
a “longa duração”
q . . ’ ~ para o período industrial, e transportá-las para a pré-histórii
tecnolo*lnCI’>a C e^es.®' se,n dúvida, G. Simondon, que construiu umateoriada
objetos^ coni ° objetivo de entender a natureza e evolução do sistema e<fe
sendo eCIUCOS’ Racionados, principalmente, ao mundo industrial modero).
SimondSUa ab°rdagem deu origem a múltiplos trabalhos6.
“imdo ele °.n5Stava *nteressado nos princípios de funcionamento, osquais.se-
Se<nmd 6 Ulem e determinam linhas de evolução para os objetos técnicos.
gênese7 é ?.atO1’_^Pesar de °s objetos técnicos estarem submetidos a uma
modificam no ' ° de^n*’la em cada um deles, pois suas individualidades se
técnico por seu"150 ' ° SUH Pr°Pr*a gênese; também é muito difícil definir o objeto
fixa correspondé3eilenClment° uma esPÓcie técnica, pois nenhuma concepção
partir de fnnnlor. 3 Um Uso definido, e um mesmo resultado pode ser obtido a
Ou seja, um mê'6"10 6 í eSh l,turas muito diferentes (Simondon, 1985).
quais são feitos à cu'?0 V &U 'ad° P°de ser obtido por instrumentos diferentes, os
e estruturas diferentes1 C ° SUPOrtes diferentes, eles próprios obtidos por métodos

pecificidade, são carac?” '** Un*dade do objeto técnico, sua individualidade, suaes-
Simondon está intere 1StlSas c e c°nsistência e de convergência de sua gênese,
do ele, definem e determf.? ° PrincíPios de funcionamento, os quais, segun-
E possível perceberTuT t eV°1,1Çã° d°S obJelos‘
individuação, isto é na hkt' • ° T CSta ^lteressa^o, também, nos processos de
O indivíduo técnico (que é^^ ° ?°,no se torna algo. 0 que interessa não é
individuação, que aparece nV' mafiubla ou aquele objeto), mas o processo de
somente através de uma séri» mei°, a série dos objetos técnicos. É também
objetos técnicos ° C,Ue e Poss*vel entender a lógica evolutiva dos

gências funcionais, mas também dos °bjefÇs técnicos respondem não só à exi-
c evem ser levadas em conta 00™^° °’ a exigências estruturais, as quais
portanto, uma lógica do objeto mm C°'r 1CI°nam 0 P°rvir dos objetos. Existiría,
trato ao concreto (Boeda, 2004) a° 'm C ° Uma ev°fi*ção, conduziría do abs-
Para Simondon (19851 n.m
uma solução onde os elementos0^^ ° °bjel° à organismo- “abstrato” é
quanto o “concreto” é uma soluço embsT*108’ S°luÇâ° C0mP0S,a’ en'
uns nos outros em uma sinergia de fornE dZ?”1-8 integrados’ Cindidos
g °nnaS’ de fun«oes e de funcionamento, com

X“±,“ S!? «srs-* * -<-™«,


7 A gênese de nn, i . para screm aplicados às técnici
que os argumentos de Simondon
eas pré-históricas conhecidas. sào
concernem, por suaC°n,a <J°S Processos <IUC estruluraram o objeto, processos
.. ao instrumento c ao sujeito (o utilizador). que

128
Paulo Jobim Campos Mello

niranã *n,e^*aÇao o fechamento, a indivisibilidade, levando à padro-


açao e, eventualmente, à redução das dimensões, bem como à redução do
gasto de energia.
uni est d’ geral de evolução para os objetos técnicos é a evolução de
:n. ~° a strat0 elementos justapostos, para um estado “concreto” de
•ntegraçao de funções num modo sinérgico8
àconve^" C,*la l.^C?*C0 esta’ amda segundo Simondon (1985: 22-3), relacionado
cias d eipenCJJ unções em uma unidade estrutural, uma vez que as divergên-
técnicos lre<s°CS unc*onais aparecem como um resíduo de abstração dos objetos

ceoc~a Progressiva dessa margem entre as funções das estruturas (con-


dive o-6"5 UriVa'enles clue definem o progresso de um projeto técnico; é essa
naj r£encia cI'le especifica o objeto técnico, pois não há, em uma época determi-
cas sã'10'a U1 , *a finalidade de sistemas funcionais possíveis; as espécies técni-
sao em número muito mais restrito que os usos aos quais se destinam os
je os técnicos; as necessidades humanas se diversificam ao infinito, mas as
eçoes < e convergência das espécies técnicas são em número finito.
ssas convergências são principalmente devidas a causas intrínsecas, pois são
jue evam o objeto técnico a evoluir para um pequeno número de tipos
pecí c os. C est ne pas le travail à la chaine qui produit la standartisation, mas
1985 2^í)Sat‘On ^nlr^ns^tlue clu'‘ Permeí au travail à la chaine d’exister. ” (Simondon,

, 1Q?U£as sao 38 causas desse movimento evolutivo? De acordo com Simondon


( 5. 25-6), elas residem na própria imperfeição do objeto técnico abstrato, pois
e e emprega mais material, demanda mais trabalho de construção e uma maior
energia durante o funcionamento; além disso, apesar de ser logicamente mais
simples, ele é tecnicamente mais complicado, pois é feito do relacionamento de
vários sistemas completos.
Existe, pois, uma convergência de restrições econômicas e de exigências pro­
priamente técnicas. Desses dois tipos de causas, parece que são as últimas que
predominam na evolução técnica: com efeito, as causas econômicas não são pu­
ras; elas interferem com uma rede difusa de motivações e de preferências que as
atenuam ou mesmo as subvertem (gosto pelo luxo, pelo desejo de novidade, etc.).
Assim, a compreensão de um objeto técnico passa pelo reconhecimento de
sua gênese, que pode ser analisada no plano sincrônico e diacrônico.
No plano sincrônico, o objeto é considerado como indivíduo entre um conjun­
to de objetos: ele ocupa um lugar temporário no desenrolar das operações técni­
cas. Mas é um indivíduo que tem uma especificidade.

8 Para Deforgc (1985) o exemplo mais marcante de sinergia funcional é o da micro-eletrônica,


que conjuga a integração das funções e da redução das dimensões até o limite do microscópico.

129
Possibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes
No plano diacrônico, o objeto está em relação com os objetos que lhe &
anteriores. A compreensão de um objeto, ou de um sistema de objetos ao qual tte
pertence, passa por uma apropriação da dimensão evolutiva do objeto e do pró
pno sistema (Boeda, 1997).
Isso pode ser visto e m eforge (1985: 71 e ss.) que, para integrar a evolução T
dessa reflexão sobre as
técnicas, desenvolve 3 instrumentos específicos, instm*
mentos rudimentares, mas operatórios, se desejamos distinguir dois níveis (te
exame: o macro e o micro.9

1 • urnento é a noção de linha genética, que é uma linha constituída


por objetos que tenham
t a mesma função de uso e utilizam o mesmo princípio;
- o rsegundo ‘
' instrumento é a noção de “lei de evolução”, a qual Deforge utiliza
(entre as várias c ‘ ’
..J08*611168 acIue^a enunciada por Simondon — que é a evolução
do abstrato para o concreto”;

passa em 1®trumento proposto responde ao desejo de melhor conhecer o quese


de um objeto °S n'OIn®ntos evolução, reconstituindo sinteticamente em tomo
redes de relaè~>U C 6 T31108’ se varias linhas estão presentes concorrentemente, as
consumo de miP recJ)rocas cllle o objeto mantém com o sistema de produção, de
do sistema mais vasto” ° C°m SCUS congêneres’ em resumo: todos os subsistemas

preferiu utilizar enn e'°JU<'ão técnica do material lítico lascado, Boeda (1997)
deu por duas razões- °S instrumentos,
dos U1strumentos’ os núcleos e as peças bifaciais. Isso se

le ensemble des intenu^1011^ ayantd aPPréhender 1’outil, il nous faut reconnaítre


question: comment cpt°nS| iU ta‘Jeur; 11 ne suffit cependant pas de répondre à la
rintérieur, d’ordre techn U 3 * Ce qui éqmvaudrait à un regard de
1’outil a été fait comme lnstrun’entabste. II faut aussi comprendre: Pourquoi
comparatif, technologique.^nart “utrc,'ncnt? n s’3»1 alors d’un regard extérieur,
nous pouvons déterminer 1« - ? resPonses obtenues à ces deux questions,
systeme de produetion qui aboutit à 1’outil.
e

(...) nous croyons les nucléus et les pièces bifaciales mieux à même de montrer des
évolutions et de démontrer leur sens. A notre avis, 1’outil, 1’objet final fonctionnel,
est moins porteur d’informaüons. (Boeda, 1997: 145)

7 Deforge (1995:72) escreve micro e macro para micro-sistema, macro-sistema; micro-evolução,


macro-evolução, etc. Esta oposição c para relacionar as “tendências conjunturais” c “tendências
pesadas” (estruturais). Por exemplo, o preço da energia pode baixar conjunturalmente, mas a
tendência “pesada” é tributária da rarefação inelutável desse produto; semelhantemente os mo­
delos de carros podem mudar a cada ano, mas sobre um longo período as tendências pesadas
aparecem, sendo que o mesmo pode ocorrer cm qualquer objeto, mesmo os pré-históricos. É o
que ele chama de “lei de evolução” a um nível macro de observação.

130

I
- Paulo Jobini Campos Mello
Essas duas classes de material estão ligadas a duas grandes estruturas de las-
camento: nfaçonnage e a debitagem, sendo que as concepções técnicas subjacentes
a elas são radicalmente diferentes.
Uma vez que as indústrias líticas da região onde se desenvolve nossa pesquisa
(o Planalto Central) se Emitam à estrutura de debitagem, focalizaremos a evolução
dos objetos principalmente em relação a essa estrutura.
Boeda (Boeda et aZ., 2005) estabeleceu, para a debitagem, uma escala que
compreende cinco níveis evolutivos capazes de responder à uma demanda de
instnunentos cada vez mais estruturadas, sendo agrupadas em dois subconjuntos .
1) o primeiro subconjunto agrupa os sistemas técnicos de produção que só
necessitam de uma parte do bloco, denominada de núcleo, para realizar seus
objetivos, sendo que o restante do bloco não desempenha nenhum papel técnico.
Também as características tecno-funcionais procuradas são limitadas à uma parte
dos suportes retirados; o resto pode ter qualquer forma.
• Sistema A: trata-se da produção de um gume, não importando as outras caracte
rísticas das lascas.
• Sistema B: trata-se da adoção da noção de recorrência de retiradas sucessivas,
permitindo aumentar as características próprias ao gume: regularidade, e eaçao
específica.
- Sistema C : t
trata-se da exploração das características de convexidade presentes
sobrej uma parte do bloco e da noção de recorrência, permitindo
naturalmente ------
produzir um gume, mas também, pela primeira vez, uma pequena série de retira-
das com um controle sobre sua morfologia.

2) o segundo subconjunto agrupa os sistemas técnicos de produção que neces­


sitam da integralidade do bloco para realizar seus objetivos. As características
técno-funcionais dos instrumentos são em grande parte obtidas durante a produ­
ção, ou seja, os suportes produzidos são cada vez mais próximos dos futuros
instrumentos.
- Sistema D: trata-se da adoção de uma noção de recorrência de retiradas organi­
zadas de tal modo que permite a colocação de características de convexidade
capazes de produzir os objetivos procurados. O bloco pode ser, então, explorado
por séries sucessivas idênticas umas às outras, produzindo exclusivamente a mes­
ma gama de retiradas, com risco de perder a característica pré-detenninada das
retiradas.
- Sistema E : trata-se da organização da integralidade do bloco em vista de lhe
conferir forma e características técnicas particulares, de tal modo que determina­
rão, de uma maneira precisa, a morfologia e as características técnicas das peças
que dali forem retiradas. Trata-se do máximo de predeterminação.

131
Possibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes
Ou seja, de início apenas a parte transformativa, o gume, é que é buscado, a
obtenção do gume é a única intenção do lascador. Porém, vai ocorrendo uma
evolução: além do gume, começa-se a procurar a forma da lasca (gume + forma],
depois se procura também a espessura (gume + forma + espessura), e assim su­
cessivamente até se ter um controle total, uma predeterminação total da lasca que
sai do núcleo, o que, consequentemente terá implicações na preparação do núcleo.
Para o controle da lasca que se quer retirar, o lascador utiliza três fatores,
nervura, convexidade distai e convexidade lateral, que serão, progressivamente,

utilizados com intensidade cada vez maior.


Convexidade distai | Convexidade lateral |
Nervura
fraca forte
fraca forte fraca forte

_________ A__________ X
_________ B_________ X
_________ C_________ Y X X
_X
D (discóide - piramidal) x X
E (levallois - laminar) X X
X

Figura 4

Boeda, comunicação pessoal.

Vejamos, por exemplo, o caso da debitagem C onde os lascadores tentavai


reproduzir um algoritmo10 com o Cm de produzir instrumentos feitos às eus <■
lascas pré-determinadas.
Em termos de organização volumétrica, o princípio desse algoritmo poc e
descrito como se segue:
- o lascador vai, simultaneamente, levando em conta duas superfícies: a superfície
de debitagem e a superfície de percussão;
- a superfície de debitagem deverá apresentar os critérios técnicos de convexidade
comuns a toda debitagem de retiradas pré-determinadas; para isso, o lascador
poderá utilizar dois tipos de superfície: seja uma superfície natural apresentando
todos os critérios técnicos procurados, seja uma antiga superfície de debitagem
preenchendo de novo todos os critérios técnicos necessários à obtenção de uma
nova série;
- quanto à superfície de percussão, ela é igualmente uma superfície natural ou
organizada para preencher as condições de fratura e de controle da onda de
choque provocado pelo percutor em percussão interna.

10 0 termo algoritmo corresponde à menor operação técnica que necessita uma superfície de
plano de percussão e uma superfície de debitagem; essas superfícies podem, ou não, ser organi-
zadas (Boeda, 2001; 74).

132
Paulo Jobim Campos Mello
As restrições internas de tal organização de núcleo, em função das necessida-
es de determinados instrumentos do lascador e dos acasos da debitagem, fazem
com que, mesmo se o lascador o deseje, a produção de um algoritmo dado sobre
um mesmo bloco não seja sempre possível.
om efeito, a morfologia do bloco inicial tem uma importância sobre a sequência
das séries de retiradas.
Prcnonsl exemple du débitage clactonien du site High Lodge (Anglaterre). L analyse
< u materiel montre que différcntes moqrhologies de blocs de départ ont éte choisies.
Résuhat: une grande vanabilité niorphologiquc des nucléus , à l’origine d appellatíons
aussi diverses que chopper, nucléus discoide, nucléus informe, etc. Car, si vous
prenez un bloc qui vous permet de conduire le débitage en gardant les mêmes
surfaces mais en alternant leur rôle technique (surface de débitage qui devient
surface de plan de frappe et inversement), 1c nucléus final aura une morphologie
identique à celle d’un chopper. Si, sur un même bloc, les contraintes techniques
conduissent à reproduire cet algorithme en différents endroits, la moqrhologie finale
du nucléus sera alors celle de nucléus discoide, informe, ou protoprismatique.
Ainsi, à High Lodge, bien qu’il s’agisse toujours du même mode de débitage: le
débitage Clactonien, la diversité morphologique des blocs de départ explique la
diversité des nucléus retrouvés. A 1’inverse, quand des blocs de forme similaire ont
systématiquement été utiliés, au final les nucléus présent toujours la même
morphologie. (Boeda, 1997: 117)
Quando dizemos que lascas vindas da debitagem tipo C são lascas pré-deter-
minadas, isso induz que os blocos de matéria-prima foram configurados de modo
específico ou apresentam uma configuração natural para produzir objetos deseja­
dos. Dito de outro modo, a debitagem C responde à organização de um certo
número de critérios técnicos específicos. Esses critérios são organizados à custa
do volume inicial do bloco bruto de matéria-prima sem o reestruturar inteiramen­
te. Mas a inicialização dos núcleos C se dá somente sobre uma parte do bloco
inicial. Geralmente a superfície de debitagem é escolhida em função de seus
critérios de convexidade natural, a fim de que não seja necessário organizá-los. Só
a superfície de percussão é organizada em função da superfície de debitagem.
lascador introduz uma estrutura seguindo critérios técnicos precisos que agirão
em sinergia para obter o resultado previsto.
Ou seja, do bloco de matéria-prima (conjunto A) são construídos dois
subconjuntos: B, que é a parte que resta intacta, e B’ que é a parte estruturada a
partir dos critérios próprios a A, e à custa de A. Apesar de B e B estarem
estreitamente imbricados, pois pertencem todos dois à A, do ponto de vista
operacional eles são independentes. Ou seja, dependendo da morfologia do blo­
co, pode-se continuar efetuando numerosas séries de retiradas, independentes
uma das outras (C, D, etc.) (Boeda, 1997:118).

133
Indústrias Expedientes
Possibilidade de abordagens cm

Em certos casos, quando a morfo-


logia do bloco permite, é possível efe­
tuar numerosas séries de retiradas;
mas não é porque a debitagem conti­ A
nua que se obtém uma sinergia entre
o bloco suporte e o núcleo. Com efei­
to, as sequências operatórias são in­
dependentes uma das outras, e se o ___ B'
número depende da capacidade in­
trínseca do bloco inicial A, o núcleo
B’ não substitui a totalidade desse blo­
co contrariamente ao que podemos ob­ A
servar para a debitagem Levallois.
Para Boeda (1997), tanto a
debitagem discóide como a levallois
se situam na linha da C. Discóide e
levallois estão em paralelo, como duas
linhas irmãs. De princípios técnicos A
idênticos, vindas da C, irão aparecer
variantes que, através de modificações
sucessivas, se acentuarão ao ponto
de as diferenças acabarem por serem
Figura 5
irredutíveis, ou seja, têm a mesma ori­
gem, mas seguem linhas diferentes Núcleo tipo C
(Boeda, 1997: 128).
Dois princípios próprios ao C parecem na origem dessas divergências: 1) a
superfície de debitagem; 2) o ângulo da chameira das duas superfícies.
No inicio da produção, o núcleo Ceo discóide só apresentam um algoritmo, o
que toma difícil toda atribuição a um ou outro dos sistemas técnicos. No entanto,
no caso de um sistema discóide, o lascador necessita deixar uma charneira propí­
cia à debitagem seguinte e manterá, assim, a estrutura.
igundo principio
No caso do discóide, os critérios associados reforçarão o segundo
(chameira) em detrimento do primeiro (superfície de debitagem/superfície de
plano de percussão), dando àquela um nível de complexidade organizacional
específica e particular, no sentido onde ela mantém uma irreversibilidade técnica
(no núcleo discóide, fazer outra coisa que discóide não é fácil).
No caso do levallois, o ângulo da chameira será imediatamente definido, cri­
ando orientações preferenciais que restarão as mesmas durante toda a sequência
de debitagem 0 levallois representa uma forma de complexidade organizacional
específica diferente, na medida onde ele é adaptado a produzir uma gama de
produtos mais diversificados que o discóide, deixando lugar a uma expressão
funcional (uso de signo) rica de possibilidades.

134

I
Paulo Jobim Campos Mello

l.EVALLOIS
DISCOIIIE

<riiilcrsc€líui»

lliêrarchisatiuii

A/B
feltrar ci*litc>

BZa
l

l> c r i p h t r I >| ••«

l
ilélaclicmc"*

Figura 6
nes discóide e levallois: 1) duas
Propriedades técnicas que estruturam as concc|^” - 2) existência, ou não, de
superfícies secantes delimitando um plano c c convexidade lateral e distai;
hierarquia entre as superfícies; 3) convexidadei pe^enc ou } 65)
41 -nsição do plano de debitagem em relaçao ao plano

135
I Possibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes

Considerações finais

As indústrias lítícas do holoceno médio, no Planalto Central, foram muito


pouco estudadas. Acreditamos que esse fato se deve às características c o mate
litico, que se apresenta pouco elaborado, não se prestando, portanto, para os
estudos tipológicos.
Propomos, então, que seja utilizada a abordagem tecnológica para me or
caracterizar essa indústria.
O estudo dos núcleos poderá mostrar o estágio tecnológico dos grupos, >em
como proporcionar uma visão da evolução da técnica empregada por eles.
A analise diacrítica dos instrumentos, a identificação das UTFs (figs. 7 e ),
juntamente com a análise do restante do material lascado, poderão indicar nao so
como os mesmos foram fabricados, mas também seus possíveis modos de funcio
namento.
Com isso esperamos perceber realmente a variabilidade existente nas indústri
as líticas.

UTFi
PcretSO*
Pt> ret 60*

Figura 7

Sítio Es2. Leitura diacrítica e análise das UTFs (sem escala)

136

I
Paulo Jobim Campos Mello

A-2913

B-1182

D-172 E-156

Figura 8

Gumes convexos sobre suportes com dois dorsos perpendiculares e adjacentes.


A-B: Estiva II (camada superior); C: Pedreira; D-E: Laje.

137
Possibilidade de abordagens em Indústrias Expedientes

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SIMONDON, G. (1985) Du mode dexistence des objets techniques. Aubier-Montaigne, Pans.

139
i
Uma terminologia para
Indústria Lítica Brasileira

Maria Jacqueline Rodet*


Mareio Alonso**

Terminologia ou Terminologias?

Para descrever uma indústria lítica é necessário um vocabulário específico que


proporcione uma definição precisa e rigorosa e em conseqüência permita a com­
preensão dos produtos estudados. Um vocabulário existe e foi tradicionalmente
desenvolvido na Europa. Alguns dos termos definidos para os produtos das cadei­
as operatórias são frequentemente utilizados no Brasil de maneira direta (por
exemplo, lascas de façonagem); em outros casos, foram criados termos específi­
cos à indústria lítica brasileira (por exemplo, percussão bipolar). No entanto, não
há uma conformidade na utilização dos termos pelos arqueólogos; em consequên­
cia, existe uma dificuldade de homogeneização desta terminologia: objetos dife­
rentes podem ser designados pelo mesmo termo, como por exemplo, o termo
“lesma”, adaptado diretamente do francês limace, que muitas vezes é aplicado
indiscriminadamente para definir instrumentos unifaciais.
A questão terminológica, em nosso entendimento, só pode avançar a partir de
uma descrição tecnológica detalhada dos objetos e de suas cadeias operatórias,
que por sua vez, depende de um trabalho minucioso de conhecimento das técni­
cas e dos métodos empregados.
Existe a necessidade de uma terminologia brasileira? E possível construir uma
terminologia individualmente, ou, ao contrário, é necessário um consenso por
parte dos tecnólogos/arqueólogos?
Nossa intenção é avançar na questão, mas a partir do que já foi realizado por
outros arqueólogos, respeitando, sempre que possível, termos que já estão consa­
grados pela bibliografia. Acreditamos que para falar a mesma língua e poder

■ Doutora em arqueologia, bolsista CNPq, Programa de Pós-graduação de Antropologia, UFMG,


Setor de Arqueologia MHN/UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
jacqueline.rodet@gmail.com
" Mestrando em Arqueologia no Programa de Pós-graduação de Antropologia, UFMG, Setor de
Arqueologia MHN/UFMG, Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, mg.alonso@gmail.com

141
ma terminologia para Indústria Lítica Brasileira

existe realmente' co,nParável é preciso criar esta discussão, também para ver s
desvantagens <1 ? necessidade desta linguagem comum: quais as vantagense &'
Assim este Sban1VerSÍdade’ e ° que ela reflete?
mas criados pela ai ''1° leni COni° °bjetivo propor uma discussão sobre os proble-
a descrição dos el nC'a C e un’a terminologia comum entre os arqueólogos pare
gt>ns passos em diI e,n~C,1'OS daS ^dústrias líticas brasileiras, realizando assim al-
aÇões técnicas <-»>» <'3° 3 cornPosição de um léxico descritivo dos elementosedas
qUe compõe estas indústrias.
Estado da arte

lário ademi o^deS^e °S anos 1960 existe uma preocupação em criar um vocabu-
lário adequado
Calderon lOro.^ o3 ' anaEse das indústrias líticas (Laming-Emperaire, 1967:
por A. Lamin f r°US 1986/1990). Esta preocupação foi muito bem traduzida
da América rin ç.ni.pera^re (1967) em seu Guia para o Estudo das indústrias Líticas
lógicas). Neste tJ.7’ mdltardo peI° CEPA (Centro de Ensino de Pesquisas Arqueo
ológico sen ri n ° - orarn definidas 170 palavras do vocabulário lítico arque -
No entanto, apTsar ‘|”lp°rtantes acompanhadas por ilustrações.
estes foram emnreg 1 S |ermos terern sido estabelecidos de maneira rigorosa,
não tivessem sido -T' ar9ue°l°gos, de modo pouco sistemático, como se
seja proposto no mon" °S PC & comaradade científica nacional. Embora o livro
momento
Utieas, observam^Z^r^^- a base do estudo das indústrias
preocupação com r> < 811,15 ° ementos que anunciam já naquele momento uma
Mais tarde, no intàn «T"3 tarde chamad° de tecnologia.
. t,res apontam para a dificuldlde°? 198°’ C°m a tecnologla Ja em voga, çertosMo-
a imprecisão na terminoln • — ,lrna Vlsa° de conjunto das indústrias, haja vista
Kem(1981, 1989) manife^ CmpreSac^a na descrição das séries estudarias. A.
por termos diferentes, ou ai preocuPa9ao: ° mesmo objeto pode ser descrito
dificultando assim a precisão UI^ .mesmo termo se referir a objetos distintos,
que se ocupam de um mesm.?60^^!3113 P&ra tlUe arclueólogos de regiões diversas,
T. MiUer Jr. (1981) le™ > P0SSam comP^ seus resultados.
certos instrumentos encontrad Um °Utr° Pr°blema relacionado à questão de que
baseadas em funções presumiri, arqueoIogicamente têm classificações que são
clue ^ao são apropriadas. ' maS na° veiaficadas, ou em analogias gerais

definições de cunho tecnológico d°S lermos’ 011 ainda, a ausência de


tecnologia lítica. Assim termos con°U Uma ®rande dificuldade na expressão da
talhadores grosseiros, faca percussãoV brand°’ Percussâo controlada,
retoques, faces inferior/sunerior ”P°lar’ percussão macia ou I
leve, tipos de
para nomear elementos de uma inriú ,"!erna/extenia, etc., criados muitas’
ma descrição/definição tecnXnadpXeSPeCÍfiCa’ -J vezes
nenhu­

142
Maria Jacqueline Rodet c Mareio Alonso
ond? °Ulr° ^°’ outros termos foram emprestados do vocabulário europeu,
ca) e forain°,TeS')On<'em 3 Urn °^Jeto específico (ou a uma ação técnica específi-
rnlafi ' H1 ^"'Ptegados no Brasil sem nenhum questionamento ou uma real
obieto ?ap3| a?,tat*va‘ P°r exemplo, o termo Biface, que faz referência a um
forma d ° ae°.lt’co brferior e médio na Europa — instrumento de pedra, em
cm A 6 ain< nC 03 faÇ°nad° sofore as duas faces. A dimensão varia entre 30 e 5
çegujjj Pessuya’ a regularidade de seu contorno e a técnica de fabricação variam
1997) L°e ',enoc os aos quais pertencem (Dicionário da Pré-história Leroi-Gourhan,
acI'u no Brasil, se refere a qualquer objeto que em realidade tenha um

ÓTo ex C °U Um retoque bifac®”


muito 1 eX?"r • é 0 termo lâmina (ou lamínula), que corresponde a um vestígio
rm- rV 'j na Europa (Dicionário i-Gourh.ari', 1997;
--------------- da Pré-história Leroi-Gourhan,
rf e ’ 1995) e nos Estados U.22
E„,„J— Unidos, J- ■-
sendo ‘-■'•-«z-L-, amri
utilizado aqui para se referir a
nara se

suportes alongados. termos já não estivessem


cristal re^^a<^e' esse não seria um problema, se os
será 3f °S.nas Publicações internacionais; em consequência, um leitor europeu
co une ido ao ler uma publicação brasileira e vice-versa.
(198i?S lan<J? urtigos distintos poderiamos nos perguntar, como fez A. Kern
fio que significa, nas diversas publicações, o termo biface, ou um talhador?
mais']U1C a’ ° qUe Seiaa um buril nas indústrias líricas brasileiras? Poderiamos ir
onge e nos interrogar sobre quais definições daríamos para lesmas, plano-
é°nJef°|S’ raspadores, etc., sabendo da enorme diversidade existente? A questão
!am estudos tecnológicos minuciosos que definam estes elementos não a
partir e uma morfologia, mas pela tecnologia presente neles.
s tecnólogos líricos brasileiros encontram um problema que é constante quando
es u am as séries líricas, principalmente quando estas provêm de regiões diferen­
tes e muito distantes: é a questão de decidir quais termos utilizar parajiescrever
33 cadeias operatóriase as ações técnicas que estão ligadas a elas.

Nota-se que a falta de precisão gerou e gera uma confusão que é refletida na
descrição dos objetos e na utilização dúbia de vocabulários. A leitura tecnológica |
deve ser seguida de uma expressão, de uma troca com o outro, para que
possamos falar uma mesma língua. A precisão do vocabulário permite-nos um
maior desempenho na analise do material arqueológico. Sem nenhuma dúvida
este vocabulário deve adotar voluntariamente os termos convencionais, usuais
e já consagrados pela arqueologia brasileira, mesmo se estes não são tão bem
adaptados ao objeto que designa. Mesmo se a maioria dos objetos não cum­
prem as funções pelas quais são designados. A grande vantagem é que certos
termos estão aceitos pela comunidade científica e já totalmente integrados ao
vocabulário dos tecnólogos. No entanto, como foi levantado acima, alguns
termos necessitam de uma revisão, de uma adequação e principalmente de

uma definição (ou redefinição) clara.

143
Uma terminologia para Indústria Lítica Brasileira
efirtições gerais ou casos particulares?

existem definir'^3 Vez.nia*s frequente no Brasil observarmos publicações ottô


tria apresentada^N ehClu°SaS’ °U Um ’®x'co’ Para os termos utilizados na indís-
entre definições d ° entanto’ toma-se necessário fazermos uma diferencia;ã
Ções mais genérica*.tClnlOb P313 um estudo específico (casos particulares) e detri­
tos ou ações técnj38' Poc^er*am resultar em classificações para certos elemeiv
poderíam ser apfi03^ coasecfü®nc*a’ os termos definidos desta última forrar

podería ser aplicado °U ° a^a° técnica — ou ainda um objeto bem definido -


realizado sobre dois tio °U?aS c°frções. Como exemplo podemos citar o trabalho
que, a partir de séries ° ?ercussao: 3 percussão direta dura e direta macia, em
estigmas destes doi« . exp,enmentais, foram descritos tecnoiogicamente todos os
. Se for possível oísXiÍmT^0 (R°det & Alonso’ 2006)’
utsistente da comija utiliz -?1 a<3es tecnológicas numa série estudada (abrasão
suporte, etc.), é possível 0^° C a.Percussao macia, utilização de um certo tipo de
tendo assim certeza de mio S®®lu a buscá-las dentro de conjuntos comparáveis,
C°nseqüência, que corresn^XTí de um fenômeno que se repete e, em
e a uma busca específica pelos pré-históricos (fig. V-

ff '
r
(

LT » 4374-472
£

4374-354

U;-. -1
4374-378
4374^8
o_ '____ 2 3 A 5 cm

Conjunto de lascas de façonagem provenientesFigurado1 sitio arqueológico do Boquete, norte de


Minas Gerais: trata-se de lascas muito normalizadas provenientes de umafase defaçonagem
de instrumentos unifaciais. Os talões são lisos, muito abrasados, lábios proeminentes, bulbo
difusos, etc., estigmas de uma percussão direta macia, matéria-prima de excelente qualidade
para o lascamento. Este tipo de vestígio é encontrado somente nos níveis mais profundos
datados de 12 000/10 000 BP (clichê MJ. Rodei).

144
Maria Jacqueline Rodet c Mareio Alonso

cidturasí .mu*tas vezes, é o uso de termos com definição precisa para


no Br^ií^n *or*cas européias para nomear objetos assemelhados encontrados
autores d m CaS° COrnum ® a alusão a certos suportes de objetos que alguns
lâminas pn°mu]am corretamente lascas alongadas, enquanto outros chamam de
cria-si rr Glt01 ’ Pr’nc*Palmente aquele que esta começando sua formação,
desenvolví ° 1CU^a<^e clue muit0 provavelmente o acompanhará ao longo de seu

Quais ,’1U*,as vezes nos depar amos com a utilização de termos regionais, os
ao são compreendidos pela comunidade científica como um todo.
0 que é uma lesma?
obiet^d üU|Slrai GSte com um outro exemplo, gostaríamos de tomar um
anti 6 C eslaclue na arqueologia brasileira, marca de períodos arqueológicos
con^°h T' ‘a^Umas regiões do país, a lesma (do francês limace).. Na literatura
~ a a so,uente uma autora (Laming-Emperaire, 1967) expôs com clareza as
díZíuT TenCÍaíS e esPecíHcas de uma lesma, de modo que possamos
igui a dos demais instrumentos. Caracterização esta que, em nosso entendi-
nto, pode ser aplicada a várias séries estudadas:

('\ h
I ’ \ ll I
&

;l^w í- $

■â 1\
fr- W Íí'l
V,l
Mi M
MjP,
gO-AMVA VIU _ F„n„u„ iqmdor
■•’• no-ccrvrxni- i — Pjir ’ Terminal. 2 —
H;upMl.»r . m ferrnduni:“n3^“n«p£í« lAilor -JuciroriiiH nu ur-
---lor <üsc3:cui; 4 - Raupin
rvitsrme: ã e u — Ha*p. jador u.irln."' -
• fíinnc Itupador dc narbt: 0 —
r carcDBdo 7 — Ho
PinltM. f> _ Ratpaticr ccom oratro; 10 — F<rrAr.jcntac ileullt
•ICJlada»; II — Lw.ua.

Figura 2
Ilustração de lesma (de acordo com Laming-Emperaire, 1967)

145


Uma terminologia para Indústria Lítica Brasileira
Utensílio de bloco (ou de lasca) deJbnna alongada, lembrando uma lesma. Tipica­
mente, comporta duas pontas e dois bordos ativos longitudinais, sendo que o retoque
afeta toda a periferia daferramenta. A face inferior é plana (Est. VIII, n° 11). Certas
lesmas apresentam um só bordofuncional, ou um bordo e uma ponta, ou um bordo
e duas pontas, ou dois bordos e uma ponta. O bordo ativo é obtido por lascamentoi
abruptos, executados a partir da face inferior plana. O bordo ativo (ou os borda
ativos), à medida que o utensílio é gasto e reavivado, recua progressivamente, tor­
nando-se retilíneo e, a seguir, ligeiramente côncavo. O corpo da lesma se adelgaça.
Finalmente, nenhum retoque é mais exeqüível. A lesma se quebra em duas, seja ao j
serfeito o ultimo retoque seja durante o uso. A forma maisJreqüente de se encontrar I
uma lesma é gasta ou muito usada, ou então em fragmentos que representam a I
metade do utensílio.
Por suas dimensões, as lesmasformam um conjunto intermediário entre as plainas e ,
os raspadores (1967:76) — (fig. 2).
Certamente esta definição poderá hoje ser revista com base na análise tecnológica,
mas trata-se de um trabalho que pode ser aplicado a conjuntos líticos diferentes. No
entanto, como já dissemos acima, apesar de existir uma definição desde 1967, as
pu > cações sobre coleções líricas utilizaram e utilizam termos diferenciados e apre­
sentam, por exemplo, sob a designação de lesma, objetos plano-convexos que não
correspondem às características já definidas
Mesmo que a autora tenha se inspira­ e apresentadas sob esta classificação.
do em instrumentos europeus, esta defi­ !
nição certamente se aproxima de uma clas­
se de objetos existentes no Brasil (fig. 3).
A falta de estudos tecnológicos extensivos
e sistemáticos para estes instrumentos
impede uma real compreensão e classifi­
cação destes unifacias. No entanto, é evi­
dente que certos instrumentos brasileiros
apresentam estas características. Por ou­
tro lado, nossa questão atual é a de saber
se estamos diante de um objeto procura­
do (a intenção), ou se, ao contrário, trata-
se de um estado técnico de um instrumento
(cf. 4.1), que durante a sua vida útil vai se
tomando cada vez menos espesso, com
flancos cada vez mais abruptos e extremi­
dades, que inicialmente eram em forma
ogival, evoluem para formas mais pontia­
Figura 3
gudas (fig. 7, fotos 6 el).
Instrumento unifacial proveniente do sítio
arqueológico de Buritizciro, Minas Gerais.

146
Maria Jacqueline Rodet e Mareio Alonso

De resto, nas publicações em geral, raramente encontramos os objetos acorrí


panhados de definições tecnológicas. Além disso, quando estas existem, são in
completas e podem ser bastante diferentes entre um autor e outro. Frequentemente
observamos alunos ou estagiários em arqueologia nomeando como únicos o jetos
tecnologicainente diferentes (fig. 7): instrumentos que poderíam ser reagrupac os
dentro de uma categoria geral que podemos chamar de plano-convexos aciais
— são comumente denominados como lesmas. .
Vale ressaltar que, mesmo tendo a possibilidade de ser analisac o a partir
vários pontos de vista, o essencial no estudo de um objeto vem da suape orman
humana, ou seja, do surgimento do desejo de realizar um objeto c c e suas tra
formações/evoluções. Segundo Pelegnn [2005], um objeto é antes e tu
projeto: a reflexão do lascador corresponde a uma série de operações cogru
sensório-motoras que serão realizadas em várias etapas envolven o a repres
ção mental do objeto a ser fabricado, ou seja, o modelo presente na me \
lascador que reflete a sua cultura e que corresponde a formas i eais e Ç
— imagens mentais, estocadas na mente. Para realizar esse tra <. i°
coloca em obra o seu savoir-faire, seus conhecimentos (que corre [ j .
conhecimento visível e transmissível) e suas habilidades (que correspo
competência adquirida pela experiência pessoal e pela prática . ----

Assim sendo, cada objeto corresponde a um projeto, mais ou n' P


vel (dependendo do nível de elaboração do mesmo: cadeias P únic0 A
elaboradas ou mais simples), mas certamente trata-se c e cultu-
categoria lesma, caso exista realmente, deve refleta uma cultura ou ctU
ras, se pensarmos nos objetos que passam e um gru1 ao
provavelmente a um momento çronologiço. be esic ui odo
longo de uma cronologia, certamente ^rimí técnica
outro, as variações tecnológicas de sua co Ç
empregada, presença/ausência de abrasaP’J‘Ce utn só objeto, instru-
Neste sentido, como chamar de lesma e considerar ioooo
mentos que tem às vezes entre si u-c
BP? Ou, ainda, instrumentos que sao diierentes 5

a indústria lítica
Questões sobre os limites da denominação de termos para
brasileira
Para algumas categorias de-utensílios os termos utilizados para designá-los
correspondem facilmente ao objeto denominado. Um exemplo são as pontas de
projétil, para as quais existe uma ligação direta entre o objeto e a função designa­
da para o mesmo. Beltrão et al. (1981), admite que “ponta”, apesar de ser uma
categoria descritiva formal, já tem uma conotação de categoria funcional e é reco­
nhecida como uma idéia, seja o instrumento uma ponta de projétil, de lança, etc..

147
Uma terminologia para Indústria Lílica Brasileira

Assim, certas indústrias, ou certos instrumentos dentro delas, são maisfad-


mente reconhecíveis e descritos, assim como suas cadeias operatórias: objcthos
claros e bem definidos mais sistematizados e normalizados, criando produtos
manifestos, formais. Neste sentido as regtdaridades presentes nas coleções serão
mais facilmente reconhecíveis. Porém, a característica mais marcante das indús­
trias brasileiras é a informalidade.
No caso das pontas de projétil, apesar do termo remeter imediatamente ao
objeto, existe uma ausência de descrição tecnológica destes instrumentos. Poucos
autores descreveram as fases tecnológicas de realização destes objetos — coroo
exemplo podemos citar os trabalhos de E. Fogaça (2001) e M.J. Rodet (2006).

O Estado Técnico ” das peças

-í a,COIp° com nossa experiência no norte do estado de Minas Gerais, a


mn -f *• erS?s utensíbos unifaciais permitiu uma reflexão sobre a as diferen- !
semnro ?.°^'as estes objetos. A leitura tecnológica demonstrou não estarmos
sempre diante de exemplares normalizados de um modelo definido. Pelo contrá-
muito rediUedte n°tar C'Ue a ^ace inferior do suporte esta incompleta, às vezes
=™ ue Sem 3 convex*d3de dos bordos do objeto ou, ainda, notam-se
ditamos one eaírUPt0S’ COnsecIüê"cia d® refrescamentos constantes. De fato.jçre- I
ou de sua reeJní co’TesPo,ldam a estados diferentes de suas utilizações e
tégia global de «é lIfaçao’ e 35 são a expressão de diferentes etapas de uma estra-
os mt ou íeno ° °U?e UüBzaÇ5° d0 obJeto- Co™ resultadoTiê^»
- U/ abruptos até sere^^Í5’ °U men°S larg0S’ conl bordos cada vez mais
abandonados, q„.„do „So M mais ângulos parí o
Podemos ir mlh" amauhhzaÇao adequada (Rodet, 2006:87).
(Chauchat, 1991); tratam-se deh & discilssao a n°Çao de “PeCa desviante”
não correspondem a i iCertas P*5?35’ encontradas em sítios no Peru, que
sítio do Boquete (em «s C ° 'nental Pré-definido. Este é também o caso do
Minas G^TlLÍe“ K- exter"a>> la"° de
características que podem situá laJÍT°! °bservar P6?35 cIue’ aPesar de terem
tam uma taxa muito elevada ril í í Um 'n°del° Plaa°-convexo, apresen-
normas estabelecidas nXÍoí í d° Üp° refletido’ 35 d^ciam das
nadas. Trata-se de um nm *i penodo e’ em consequência, estas são abando­
no entorno dos lascadores ^ería E P,reCÍS0ágmpre pensargue^
aprender. No quadro desta aprend' Cna"Ças °u adolescentes com desejo de
Vção de adquirir a habilidade motoÍTau^ te^^0 repeÜT °-gest0 na
de peças “desviantes” (Rodet, 2006). 9 C°m° C°nsequencia a produção
suaÍaddlÍperarôriÍ16 k"1 & conhecimento tecnológ>™ do objeto e de

148
Maria Jacqueline Rodei e Mareio Alonso

eds jmifaciais, muitas vezes, parecem estar em “estados técni-


^rentes . este sentido, é necessário observá-las com uma visão critica
para tentar discernir o que é uma peça “desviante”, ou uma peça abandonada j
delo ! 3 " *)oss* técnica, ou ainda uma peça correspondendo ao mo-
Mi f pCJa<- ° re^eréncia a uma “forma aceitável”. Os utensílios do norte de
sões38 1^ uma ‘or|ga evolução quanto às suas formas e às suas dimen- I
• as ascas suportes iniciais eram seguramente maiores, pois estas estão I
^nconip i tas. Acreditamos que as transformações por utilização e reavivagem
ícaram os bordos, diminuindo-os em largura e em comprimento. Algu­
mas vezes, como é o caso de peças provenientes do sitio de Buritizeiro, Minas
rais, os utensílios estão muito reavivados com bordos laterais muito abruptos
e extremidades pontudas (fig. 7 — fotos 1 e 4) (Rodet, 2006).
n a análise tecnológica dessas diversas peças nos leva a ter um olhar
C.ntico s°bre elas, questionando-se sobre a possibilidade de estarmos diante
i erentes casos de figura, ou seja, de tratar-se umas vezes de objetos em
esta os técnicos diferentes, outras vezes, realmente de um utensílio pré-defini-
c o e característico, com uma imagem mental precisa.

■4 simplicidade das indústrias líticas brasileiras


Quando falamos de “simplicidade das indústrias líticas” é necessário em pri­
meiro lugar definir o que é para nós uma ‘indústria simples’: tratasse de uma i
e inição utilizada para opor-se à definição de. “indústria elaborada”. Simples no
sentido de que o produto final (o instrumento desejado — fig. 4) é muito próximo
do produto inicial (a lasca suporte bruta de debitagem ou o bloco suporte). São
indústrias com poucas etapas na elaboração de suas cadeias operatórias — uma ou
duas fases principais que, em geral, são marcadas com pouca ou nenhuma mudan­
ça técnica — percussão direta dura, percussão direta macia, etc. (Rodet, 2006).

Figura 4 ~
Plano-convexo experimental sobre núcleo; o
objeto está colocado sobre o núcleo —face
inferior voltada para cima — de ondefoi
retirada a lasca suporte. Notar que não há
muitas transformações posteriores à retirada —
foto superior. Lê-se diretamente no objeto que ele
foi realizado sobre uma lasca suporte espessa,
realizada sobre percussão direta dura, etc.
(Clichê D. Duarte e A.C. Cunha)

149
Uma terminologia para Indústria Lítica Brasileira

Em segundo lugar, é necessário ressaltar tratar-se na realidade de uma gene-


ralização, pois existem indústrias bastante elaboradas no Brasil, por exemplo, a
de pontas de projétil, onde existem varias fases em suas cadeias operatórias,
finalizando em geral com a utilização da oressão
pressão para os bordos em ger e para
as aletas e pedúnculos em particular (Cg. 5).

Figura 5

Ponta de projétil proveniente do sitio de Buritízeiro, Minas Gerais: objeto bastante elabora­
do. E possível observar pelo menos três técnicas diferentes — percussão direta dura, direta
macia, pressão (clichê MJ.Rodet).

Assim, é claro que nem todas as indústrias pré-históricas brasileiras são sim­
ples, mas no geral, ao que parece, a. grande maioria dos conjuntos líticos são
pouco.elaborados, principal menteno “Brasã Central”, o que não significa_gue
.—estes não sejam extremamente funcionais e que não correspondam corretamente
ao objetivo almejado.

Apesar da simplicidade das indústrias líticas do norte de Minas Gerais, algu­


mas peças são mais específicas e às vezes com uma certa predeterminação nos
gestos técnicos.

Enfim, o que gostaríamos de ressaltar é que esta simplicidade dificulta a com­


preensão dos conjuntos: a relação entre o instrumento procurado e o suporte é,
em geral, tênue. Por exemplo, a maioria dos unifaciais plano-convexos é realizada
sobre lascas de início de debitagem com mais ou menos córtex.

150
Maria Jacqueline Rodet c Mareio Alonso

Descrição: tecnológica ou funcional?

0 que nós tecnólogos estamos procurando


descrever? A tecnologia presente nos instru­
mentos, ou nas coleções, ou a suposta função
presente nos objetos?
E freqüente observarmos esta confusão nos
textos de arqueologia.

4 diversidade da indústria lílica pré-


histórica brasileira

Perguntaino-nos ainda como devem ser tra­


tadas as diversidades, as especificidades das
indústrias de cada região do Brasil. Üma ter­
minologia visando nomear elementos de con­ i
juntos Éticos, muitas vezes dessemelhantes ou
pouco semelhantes, não reduziría o principal
aspecto de sua riqueza e, em consequência,
sua compreensão?
Enfim, deve-se evitar a subjetividade, atra­
vés da precisão das caracterizações, acompa­
nhadas de fotografias nítidas e desenhos siste­
máticos. Ou, i) fazemos desenhos simples e
que podem ser entendidos por especialistas ou
não especialistas ii) ou, seguimos as normas
que já estão estabelecidas pela comunidade
cientifica internacional iii) ou, criamos nossas
próprias normas. 4
3

Reflexões finais Figura 6


Tipos de retoque (de acordo
cotn Inizan et al., 1995)
- Quais são os limites do que estamos
discutindo?
Nossa intenção foi a de avaliar o estágio atual de nossas análises: como a ter­
minologia é tratada, as convergências e os problemas existentes advindos da falta
de rigor descritivo e da falta de um léxico voltado para as indústrias brasileiras.
Existem termos que já estão consagrados na arqueologia brasileira; estes de­
vem ser reaproveitados. Existem outros que mesmo tendo sido pouco utilizados
no Brasil, são largamente aceitos pela comunidade internacional e podem, com

151

I
Uma terminologia para Indústria Líüca Brasileira

muita facilidade, serem aceitos aqui; por exemplo, os termos utilizados para de-
pardclo^ t er^?te^Pos de retoque — escamoso, escalariforme, paralelo, setni-

• a ^tera,ura brasileira existem categorias gerais bem definidas, tais como os


• lmentos uni aciais e os bifaciais. Dentro da classe de instrumentos unifaciais,
bem dèí?5 °S p’ano'convexos, que, em linhas gerais, formam uni grupo já
! °' .° ®"ta”to’ existe a necessidade de estudos tecnológicos sistemáti-
estudn r> ° y 1V1 U °S ^versos instrumentos do conjunto. Este tipo de
sílioq A rít T e,llnla co,nPreensão das especificidades e da evolução destes uten-
de Mintí c ° de eXe™P!° P°demos citar os estudos realizados no norte do estado
de certos nw'^’ C °" poss*ve^ isolar algumas cadeias operatórias específicas
passagem Plekt °S ln®t’lllnentos unifaciais achatados para os períodos antigos - j
tos para os úliin^Tl - ° oce?° e Holoceno antigo; instrumentos bifaciais robus-
(Rode “ 2006) " Set°r - pen'odo do «omalo com os neobranlem

Enfim, vale sintetizar os dois principais problemas levantados neste artigo:

1) a necessidade da utilização de um vocabulário mais homogêneo-que-defina


algumas ações técnicas básicas (e que são utilizadas já em muitas regiões do
Brasil);

2) descrições tecnológicas minuciosas para os instrumentos e suas cadeias


operatórias, para que estes não sejam classificados por suas formas, mas pela
tecnologia presente neles.

Finalmente, lembramos que o _estudo tecnológico é uma das abordagens


metodológicas que permite a compreensão dos grupos pré-históricos. Estas análi­
ses, quando possível, devem ser acompanhadas de estudos interdisciplinares. A
geologia, a geomorfologia assim como a análise da paisagem e a localização das
jazidas líticas que foram utilizadas (ou potencialmente utilizadas) pelos pré-históri­
cos são alguns dos aspectos que devem completar as análises das indústrias líticas.

152
Maria Jacqueline Rodet
e Mareio Alonso

Figura 7

Exemplos de instrumentos unifaciais: trata-se de in


Unia terminologia para Indústria Lítica Brasileira

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Agradecemos a Marco Túlio pelas correções gramaticais.

154
Experimentação na
Arqueologia Brasileira:
Entre gestos e Junções

André Prous

Homenagem a T. O. Millerjr.

Introdução

A etnoarqueologia desenvolveu-se muito nos últimos anos, permitindo reunir


uma grande quantidade de informações sobre a cultura material das populações
tradicionais, e sobre o papel da mesma nas atividades tradicionais. No entanto, a
etnoarqueologia não permite observar atividades ou técnicas já desaparecidas.
Por outro lado, as informações fornecidas pelos remanescentes de populações
indígenas sobre técnicas já abandonadas pela geração atual (por exemplo, Moi,
2007) precisam ser interpretadas com cautela. Finalmente, a simples observação
das atividades realizadas numa aldeia indígena ou cabocla não fornece ao pesqui­
sador utna experiência física e real do saber técnico. Apenas através do esforço
próprio de fazer e utilizai' os instrumentos e realizar as tarefas tradicionais, o
arqueólogo acaba entendendo de fato o discurso e as ações dos seus informantes.
Depois de evocar os pioneiros neste campo em outros continentes, mostrare­
mos que existem vários tipos de experiências e experimentações. A seguir, lem­
braremos os primeiros arqueólogos que manifestaram, no Brasil, a preocupação
em praticar, no calor da vida, algumas atividades que se costumam observar
apenas através de vestígios mortos. Mencionaremos, finamente, algumas das ati­
vidades desenvolvidas na UFMG ao longo dos últimos trinta anos para melhorar o
nosso entendimento das coleções em fase de estudo. Não pretendemos aqui apre­
sentar todas as experiências realizadas no Brasil, mesmo porque muitas devem ter
sido praticadas informalmente, de forma isolada, por vários pesquisadores, sem
ter sido divulgadas através de publicações. Levantar a memória destes trabalhos
merecería ser realizado através de uma pesquisa específica.

155
I
Experimentação na Arqueologia Brasileira

Alguns casos ilustrativos do nascimento da experimentação fora do Brasil

Desde o final do século XIX, os primeiros pré-ltistoriadores (tais o francês


Lartet, o britânico J. Evans, o alemão Pfeiffer e o dinamarquês Nilsson) utilizaram
o conhecimento dos últimos lascadores de pedra europeus — os fabricantes de
peças de pederneira — para entender as grandes linhas dos processos de lascamento
e testaram os gumes de pedra. Na primeira metade do século XX, os pré-historía-
dores estavam conscientes de que era preciso ir além do reconhecimento da forma
dos instrumentos pré-históricos e alguns deles começaram a fabricar réplicas e a |
utilizar os artefatos de forma mais sistemática (geralmente, instrumentos lascado?
retocados, ou lâminas polidas). Entre eles, podemos mencionar Couttier (França), ,
que realizou algumas das primeiras duplicações de artefatos lascados, tendo obser­
vado que o calor melhorava a resposta das rochas ao choque. 0 britânico J. Exans,
por sua vez, foi um dos primeiros a mencionar as marcas de utilização nos gumes |
de pedra. Já em meados do século XX, o dinamarquês J. Iversen testava a eficiên­
cia dos gumes de machados de pedra, cortando árvores. A observação de popula­
ções recém-colonizadas que utilizavam técnicas tradicionais na fabricação de arte­
fatos de madeira, osso, concha, cerâmica, etc. foi também aproveitada,
particularmente pelos “exploradores” da Austrália. Mas foi o russo S. I. Semenov
que, em meados do século XX, especializou-se no estudo dos vestígios de uso.
Foi, entretanto, nos anos de 1960 que os Europeus sentiram a necessidade de
entender melhor a tecnologia pré-histórica, para diferenciar os conjuntos liticos,
não apenas pela morfologia dos seus fósseis-guias, mas também, pela tecnologia
utilizada pelos diversos grupos. Nos Estados Unidos, a atração de Ishi, um jovem
índio cujo grupo tinha até então conseguido fugir do contato com os ‘ Brancos e
lascava ainda a pedra, utilizando a pressão para produzir pontas de flecha, foi
também um elemento fundamental para despertar a vocação de pioneiros no
redescobrimento desta técnica, particularmente típica das antigas culturas norte-
americanas. No Brasil, a Missão da UNESCO, integrada na mesma época por A.
Laming-Emperaire entre os Xetá do Paraná, não teve a mesma sorte, provavel­
mente porque esta pesquisadora voltou para a Europa, sem deixar discípulos
interessados em aproveitar os conhecimentos destes últimos lascadores.
O encontro famoso, realizado em Bordeaux, dos tecnólogos e experimentadores
franceses F. Bordes e J. Tixier com o norte-americano D. Crabtree, permitiu
comparar as tecnologias paleolíticas de lascamento do Velho Mundo às técnicas
de pressão americanas. Ao mesmo tempo, o livro de Semenov, traduzido para o
inglês, despertava o interesse dos pesquisadores anglo-saxônicos.
A partir dos anos de 1970, as experimentações tornaram-se mais sistemáticas,
e o número de experimentadores aumentou. No campo da traceologia, precisou-
se esperar os anos de 1980 para que o trabalho de Semenov fosse entendido.
Desde então, se desenvolveram duas escolas principais: uma que realiza análises
exclusivamente sob baixo aumento (com a lupa binocular) e outra, que utiliza

156
André Prous

microscópios (metalográficos ou de varredura) e fortes aumentos. Qualquer que


seja a orientação dos pesquisadores, a análise funcional dos micro-traços requer
um trabalho prévio experimental.
Hoje em dia, a experimentação tomou-se uma ferramenta indispensável para
quem deseja analisai' de maneira sistemática as coleções arqueológicas. Depois
de orientada mais particularmente para as indústrias líticas sobre sílex e obsidiana,
a experimentação e os estudos traceológicos vêm sendo aplicados a novas matéri­
as, como o quartzo. Por outro lado, a experimentação passou a ser amplamente
usada no estudo da cerâmica e do metal. 0 estudo tecnológico de outras matérias,
como a madeira (provavelmente, esta, por ser raramente preservada nos sítios), o
osso e a concha, foi muito menos desenvolvido, com poucas exceções (Camps
Faber, 1977). Em razão do grande número de oleiros tradicionais ainda existen­
tes no mundo, parece que a resolução dos problemas ligados ao estudo da produ­
ção cerâmica orientou-se mais paia a observação etnoarqueológica que para a
experimentação.
No caso da traceologia, ainda muito limitada em razão do grande investimento
em tempo e material que requer sua prática, nota-se atualmente uma diversifica­
ção das matérias-primas estudadas (Lima & Mansur, 1986/90; Mansur 1999).

Experiências e Experimentação

Em 1989, apresentamos uma palestra durante a 5a reunião da SAB, na qual


explicitávamos a diferença entre várias categorias de experiências vividas pelos
arqueólogos:

- 4s experiências didáticas realizadas durante a aprendizagem, indispensáveis


a todos os arqueólogos (por exemplo, aprender a retirar lascas e fabricar ins­
trumentos simples de pedra; fabricar uma vasilha de cerâmica). Obviamente,
estas experiências serão mais proveitosas quando realizadas sob orientação de
mestres (arqueólogos ou artesões).
- As experiências de vida (etnoarqueologia). Viver em situações parecidas —
embora nunca semelhantes — com as de populações de tecnologia tradicional
permite perceber o que significa realizar as tarefas cotidianas. Desde acender
e manter um fogo, caçar, pescar, esquartejai' um animal, coletai' vegetais,
preparar alimentos, montai' um acampamento, construir abrigos, fabricar e
utilizar artefatos diversos no decorrer de certo período, são exemplos de situ­
ações que qualquer arqueólogo deveria ter vivido.
- Experimentações pragmáticas realizadas de forma assistemática diante de
uma situação nova, para esclarecer processos verificados em determinada es­
cavação. Por exemplo, realizar fogueiras com materiais locais para tentar re­
produzir as feições originais de uma estrutura de combustão específica. Como

157
Experimentação na Arqueologia Brasileira

exemplo, podemos mencionar fogueiras de Santana do Riacho, que se apre­


sentavam cobertas por uma lente de areia amarela.
- Experiências sistemáticas. As únicas cpie podem ser realmente denominadas
de experimentação. São realizadas para resolver um fenômeno geral, utilizan­
do um protocolo rigoroso. Frisávamos a possibilidade de se trabalhar de for­
mas diferenciadas, equivalentes respectivamente às pesquisas in vivo ou ín
vitro de outras disciplinas. Separam-se, então, as variáveis do problema pro­
posto, para estudar sua influência separ adamente. Podemos exemplificar com
as experimentações de lascamento de diversas matérias-primas, sucessivamente
realizadas com percutores de pedra ou de madeira dura, praticadas em diver­
sas variedades de matérias-primas, para tentar reconhecer os estigmas de
lascamento típicos de cada técnica.
Não repetiremos aqui o conteúdo desse texto, que o leitor interessado pode
encontrar em biblioteca (Prous, 1989), pois o nosso objetivo aqui é mais de fazer i
uma revisão — certamente incompleta — da experimentação na arqueologia bra­
sileira.
Poderiamos também diferenciar as experiências feitas na forma de realização
de tarefa envolvendo uma ou várias cadeias operatórias. Trata-se de fixar um ,
objetivo que corresponda a uma necessidade da vida real, realizando as opera­
ções necessárias de forma “natural”, em tempo real. Por exemplo, podemos fa­
bricar um arco e suas flechas; neste caso, o experimentador escolherá a madeira,
fabricará um instrumento cortante (provavelmente, de pedra), cortará o galho ou
o tronco Gno, o descascará (com uma lasca ou uma plaina de concha), formatará
a vara com um instrumento lítíco (o mesmo anterior, ou outro, fabricado para
especialmente); depois, extrará as fibras vegetais e preparará uma corda. Cortará
as varas para as setas, as endireitará no fogo, etc. Os instr umentos e seu desgaste
são finalmente analisados depois de completada a tarefa proposta.
0 resultado será diferente — e complementar — daquele conseguido de forma
totalmente artificial numa experiência sistemática de cunho mais limitado, desti­
nada a isolar variáveis; por exemplo, quando se utiliza um raspador durante certo
período sem parar, a não ser para verificar a cada 5 minutos o desenvolvimento
do micro-polido.
Tal realização de tarefa pode ser feita tanto informalmente, como “experiência
de vida” por qualquer estudante ou arqueólogo, quanto de forma mais controla­
da, como parte de um programa de pesquisa sistemática.

158
André Prous

História das práticas experimentais no Brasil

Nesta apresentação, focalizaremos essencialmente as pesquisas realizadas em


materiais líricos, por ser este o tema do presente simpósio. Mencionaremos, no
entanto, outras áreas, para não dar a impressão que estas seriam menos propícias
ao trabalho experimental.

0 pioneiro no estudo do uso de instrumentos no Brasil: Herbert von Ihering

0 primeiro Diretor do Museu Paulista provavelmente foi o primeiro pesquisa­


dor a testai- no país instrumentos de pedra. Nos primeiros anos do século XX,
bem antes do dinamarquês Iversen, utilizou um machado com lâmina de pedra
polida para cortar árvores, notando o tempo necessário para este intento.

4s primeiras reflexões sobre as modalidades de construção dos sambaquis:


Ricardo Krone

Depois de notar a diversidade das conchas contidas nos sambaquis do Rio


Ribeira de Iguape, R. Krone foi o primeiro a tentar avaliar a quantidade de ostras
que seriam consumidas, para que suas valvas permitissem construir um sambaqui
de volume determinado. Enchendo um balde de 20 1 com ostras e extraindo a
seguir as lesmas, verificou que conseguia uma média de 740 g de carne. A partir
disto, concluiu que lm3 de concha correspondia a 37 kg de carne de ostra, um
dado que usou para avaliar o tempo necessário para edificar diversos sítios em
função do número de habitantes, considerando que todas as valvas seriam resídu­
os alimentares.

Observações a respeito da fabricação de artefatos ósseos: Guilherme Tiburtius

Embora G. Tiburtius não parece ter reproduzido instrumentos pré-históricos,


gostaríamos de frisar aqui sua preocupação em entender os processos de fabrica­
ção dos artefatos pré-históricos deixados pelos habitantes dos sambaquis. Exem­
plo disto é sua descrição do modo de elaboração dos anzóis de osso no sambaqui
fluvial de Itacoara (SC), a partir dos artefatos inacabados encontrados neste sítio
(Tiburtius & Bigarella, 1951). Mais uma vez, esse amador, no mais belo sentido
da palavra, mostrava-se um pioneiro na arqueologia brasileira.

Avaliação do investimento na realização de grafismos rupestres: Desidério


Aytai
Em sua brilhante análise do sítio rupestr e de Itapeva (SP), o engenheiro e
etnólogo D. Aytai tentou avariar o tempo investido na realização das gravuras em
cada setor do painel decorado. Testando as várias técnicas pré-históricas utiliza­
das no sítio (polimento, picoteamento) no bloco desprendido do mesmo suporte
de arenito das gravuras, calculou o volume de matéria retirada por minuto de

159
Experimentação na Arqueologia Brasileira

ti abalho pai a cada técnica. A partir desta experiência e do cálculo das superfícies
giaxadas, avaliou o tempo total investido no sítio em 1.250 horas, com uma |
margem de erro entre 10 e 15%. Não se trata de um cálctdo ingênuo, mas do
tratamento de uma das diversas variáveis que o autor levou etn conta na análise
de investimento.
O primeiro lascador moderno de pedra no Brasil: Tom O. Miller Jr.
'1 ^a^,a}^anc’° isoladamente em Campinas, T. O. Miller Jr. começou a lascar o
s ex oc no fim dos anos de 1960; utilizou-o em tarefas simples, como cortar
carne para conseguir uma melhor compreensão dos instrumentos encontrados.
ais c o que analisar os processos tecnológicos, estava então preocupado com a
re ação entre os gumes produzidos e suas funções (gumes agudos seriam procura-
c os para cortar carne e gumes abruptos destinados a matérias duras como a
ma eua). reocupava-se menos com as peças como um todo, e mais com as
ume a es e trabalho formadas por cada gume existente. Tendendo a considerar
as as ascas como instrumentos, avaliava o tipo de matérias mais trabalhadas
em unção a porcentagem de gumes mais ou menos agudos encontrados em
ac a conjunto estratigi áfico (componente) dos sítios: muitos gumes abruptos indi-
anam um meio florestal; poucos, um meio aberto. Foi provavelmente o primeiro
nao indígena que se preocupou em lascar pedra no Brasil.
a,m i<a~ „°'J^one'ro no campo da etnoarqueologia, ao procurar, no final dos
anos c e / , informações sobre os processos de fabricação tradicional da cerâ-
entre os aingang (Miller, 1978). Por outro lado, procurou o último sobre-
en e c o gi upo etá contatado na Serra dos Dourados, pela expedição prepara-
I oureiro emandes. Este rapaz ainda tinha algumas lembranças das técnicas
ou um ; oco sobre bigorna. Esta debitagem, realizada com um bloco altera-
o pelo calor, fraturou-se segundo fendas de origem térmicas não aparentes em
[ icie e não em split, como seria de se esperar, levando o arqueólogo a inter-
pretar erradamente os estigmas de lascamento térmico como sendo típicos do
sendo típicos do
i,i,sobre
lascamento r bigi
gorna (Miller, 1979). Confiando mais no resultado do proces-
so .1 eX£JC.0 a le,Jle índio que nos resultados que ele mesmo obtinha ao lascar
e igoma, i illei deixou escapar a chance de desvendar as características
uma orma e c ebitagem muito representada no Brasil pré-histórico e que
íamos demorar a entender na região de Lagoa Santa.
> C C}U CfUCr ^Orma’ este í°i o primeiro arqueólogo a publicar um texto prático
sobre abordagem do material lítico a partir de experimentações, como conseqü-
cia do curso que ministrou em Florianópolis em 1974 (Miller, 1975), depois de
er pi oposto uma abordagem das indústrias líticas (Miller, 1968) diferente daque-
propoSla pelo guia de A. Laming-Emperaire (1967), até então o único docu­
mento de referencia para os brasileiros.
sejando desenvolver o conhecimento da tecnologia lítica no Brasil, convi-
c ou o tecnólogo
tecnoloeo e experimentador J. Flenniken através da Fundação Fulbright.

160
André Prous

Este deveria ficar alguns meses em Natal, onde um centro de pesquisa arqueoló­
gica vinha sendo criado na UFRN. Infelizmente, problemas diversos inviabilizaram
este projeto; como acompanhava nosso interesse em tecnologia litica, T. Miller
generosamente nós propôs receber o pesquisador norte-americano na Universida­
de Federal de Minas Gerais. Infelizmente, T. Miller nunca conseguiu espaço para
firmar um centro de pesquisas, e permaneceu sem discípulos. Durante nossa
permanência em São Paulo (1971-1975), foi a única pessoa com a qual pudemos
dialogar sobre o trabalho da pedra.

Lascar, picolear e polir esculturas e depressões (os zoólitos do litoral meridional)

No início dos anos de 1971, estivemos estudando esculturas realizadas pelos


antigos moradores do litoral sul-brasileiro em rochas básicas. Tratava-se de rochas
raramente estudadas pelos experimentadores, lascando mal e, portanto, trabalha­
das essencialmente pelos artesãos pré-históricos por picoteamento e abrasão —
métodos também raramente abordados pelos tecnólogos da época. Sentimos a
necessidade de conhecer melhor estas matérias-primas, analisando os procedimen­
tos possíveis de fabricação e o tempo investido na elaboração destas peças (Prous,
1973; Prous, 1977). Estudar a fabricação dos zoólitos proporcionou informações
não apenas sobre a realização de esculturas, mas também de lâminas de machados
(elas mesmas obtidas através de lascamenlo inicial, de picoteamento e de polimen­
to parcial) e de recipientes (a escavação das cavidades dos pilões e tigelas de pedra
requeria as mesmas técnicas que a escavação da cavidade ventral apresentada pela
maioria dos zoólitos). De qualquer forma, nosso trabalho, nessa época, não signifi­
cou um envolvimento durável, nem muito sistemático, pois pretendíamos apenas
realizar o que íamos chamar, mais tarde, de “experiência pragmática”.

Meados dos anos de 1980 — o grande empurrão: tecnologia da pedra lascada


e traceologia litica.

0 acordo realizado entr e o grupo de pesquisa, chefiado por J. Tixier no CNRS


(Laboratório de Tecnologia Pré-Histórica de Meudon), e o Instituto de Pré-Histó­
ria da USP através do Pe A. Passos facilitou a vinda de pesquisadores franceses
peritos em lascamento da pedra. Em sua vinda ao Brasil, J. Tixier orientou estu­
dantes brasileiros - esteve em São Paulo e Belo Horizonte. Embora não tenha
sido acompanhada de experimentações sistemáticas em matérias-primas locais,
ajudou a cristalizar as iniciativas incipientes. A partir desse momento, a UFMG
manteve contatos regulares com a equipe de J. Tixier (inicialmente em Meudon e,
aseguir, na Universidade de Paris X). Foi assim que recebemos de J. Pelegrin um
rápido treinamento em utilização do punch e de extração de lâminas por pressão,
e que vários jovens pesquisadores do MHN-UFMG foram estudar em Nanterre.
Ao mesmo tempo a UFMG recebia, durante três meses, o norte-americano J.
Flenniken, que já tinha estudado indústrias de quartzo e cuja presença foi muito

161
I Experimentação na Arqueologia Brasileira
i

importante para firmar o interesse já existente do setor de Arqueologia do Museu I


de História Natural em investir em tecnologia. Como muitos americanos, J.
Flenniken era também perito em lascamento por pressão, um domínio com o qual
tínhamos tido apenas um rápido contato com F. Bordes na França. Este pesquisa­
dor esteve também no Rio Grande do Std.
Logo depois, o Museu de História Natural trazia para Belo Horizonte atraceóloga
argentina M. E. Mansur, que acabava de defender uma brilhante tese na Univer­
sidade de Bordeaux. A conseqüência dessa estadia foi a criação de um laborató­
rio de traceologia, logo confiado a M. Afonso Lima, que a seguir iria estagiar no |
Laboratório do CONICET, dirigido por M. E. Mansur em Ushuaia. Já frisamos
que a traceologia implica experimentação prévia, com as mesmas matérias-primas
utilizadas nas indústrias pré-ltistóricas em estudo. (Fig. 3, d)
Os diversos cursos ministrados pelos professores visitantes e por A. Prous ao
longo desse decênio foram freqüentados por jovens pesquisadores de vários esta-
dos (Santa Catarina, Rio de Janeiro, Goiás, Bahia etc.). A preocupação em inves­
tir no estudo de coleções locais e matérias regionais, pouco conhecidas dos pes­
quisadores europeus e norte-americanos em geral, foi essencial paia preparar a
nova geração de arqueólogos que estava despontando.

A experimentação na reprodução e na utilização dos artefatos de pedra


lascada no MHN-UFMG (Fig. 1)

As primeiras experimentações sistemáticas foram destinadas a praticar a


debitagem sobre bigorna, com ênfase sobre a debitagem do quartzo hialino, maté­
ria-prima dominante nas regiões de Lagoa Santa e da Serra do Cipó. Estes traba­
lhos foram amplamente divulgados (Prous & Lima, 1986; Prous et al., 2006a;
Pious et al., no prelo). Mais tarde, abordamos a debitagem (e a façonagem de
lâminas de machado) sobre bigorna de outras matérias exóticas, tais como o quart­
zo de não hialino, a ágata (particularmente utilizada no sul e no oeste do Brasil, cf.
Prous et al., no prelo), o arenito silicificado e a hematita (utilizada no centro do
estado de Minas Gerais), evidenciando a existência de modos de trabalho diferen­
ciados e resultados distintos em função das qualidades de matérias-primas.
A eficiência das lascas bipolares e peças nucleiformes como cunhas foi tam­
bém testada no trabalho da madeira, tendo em vista entender a significação das
pièces esquillées nas indústrias pré-históricas (Prous et al., 2002).

162
André Prous

LASCAMENTO: DEBITAGEM E FAÇONAGEM

b. debitagem de lâminas por pressão

a debitagem de lâminas
com percussão

c. debitagem sobre d. debitagem sobre


bigorna de pedra bigorna de madeira

e. debitagem indireta, com punch

g. plaina

f. façonagem de uma plaina

Figura 1

163
Experimentação na Arqueologia Brasileira

Realizamos a seguir estudos experimentais de utilização de instrumentos não


modificados: quebra-cocos, bigornas para finalidades diversas, percutores, etc.
em quartzito, quartzo e calcário, analisando a seguir os vestígios de utilização.
Paralelamente, estudavamos quebra-cocos ainda em uso nas fazendas dos arre­
dores de Belo Horizonte (Moura & Prous, 1989). Essa pesquisa evidenciou as
erenças entre as bigornas utilizadas para a debitagem de peças líticas e os
suportes destinados a quebrar outras matérias duras. Mostrou que as manchas
o eosas, deixadas pela quebra de coquinhos em bigornas de calcário, apareciam
somente após meses de enterramento, evidenciando o fato que os micro-vestígios
o sen ados imediatamente após a utilização podem ser diferentes daqueles que
se encontram em peças ar queológicas. Estudamos também as marcas de uso em
vanos tipos de batedores e martelos.
_ Tínhamos reconhecido em 1993 a existência de percussão orgânica para extra-
çao e ascas a partir de um rápido exame da indústria, datada do Holoceno inicial,
6 Un Svt° • ^°'^s (GO NI 7), cujo acesso nos tinha sido gentilmente franqueado
por . i artins. Mais tarde, indícios de percussão leve apareceram também nas
pnmeiras in ústrias de Montalvânia e do Vale do Peruaçu, sendo particularmente
an a os por M. J. Rodet. No entanto, sempre guardamos dúvidas sobre o diag­
nostico, pois tínhamos conseguido estigmas semelhantes com percutores de pedra
em uma silexita verde, muito utilizada nas experimentações do Setor da UFMC nos
anos e 80. Assim sendo, M. J. Rodet iniciou, recentemente, com M. Alonso,
experimentações com percutor orgânico em matérias locais que devem permitir
ahnar a interpretação dos elementos diagnósticos (Rodet & Alonso, 2007).
j Tj°S Pnnl®*ros anos do século XXI, orientamos um grupo de estudo do Museu
de Histona Natural, com M. Alonso, G. Neves, A. Pessoa Lima, H. Piló e L.
avier. stes pesquisadores e estudantes dedicaram-se a estudar objetos de pe-
a picoteac a e polida. (Fig. 2) Inicialmente fabricaram lâminas polidas, assim
r'h> C1,0S 6 3 UÜ1Í2aÇã0 machados de pedra. Lâminas foram realizadas em
oc as asicas, arenito compacto e hematíta. Os processos de lascamento e
[ coteamento oram executados com vários tipos de percutores e a finalização,
om um po or de arenito. Perfurações dos cabos foram realizadas com fogo,
QnnQV60165 Ce ®rant^es roedores e com cinzéis de pedra (Neves & Amorelli,
P , ’ ^eslaranl'Se a preparação de grude com cera e resina e sua utilidade,
stu ou se a iferença de gestos quando se utilizavam lâminas de feno e lâminas
e pe ra em como os vestígios deixados nos troncos, cortados respectivaniente
com ca a um os dois tipos de instrumentos. Atualmente, membros desta equipe
1 e ) estão iniciando um projeto de fabricar virotes e tembetás em vários
tipos de matérias-primas.

164
André Prous

FABRICAÇÃO E UTILIZAÇÃO DE MACHADOS

b. lâmina inicialmente lascada,


depois polida e picoteada
a. polimento de uma lâmina

c. encabamento por inserção d. corte de arvore


num galho vivo

marcas típicas deixadas f. cabos com aberturas praticadas


por lâmina de pedra por fogo e com cinzel de pedra

Figura 2

165
Experimentação na Arqueologia Brasileira

A utilização de pedras abrasivas para polir a madeira foi tema da monografia


de graduação de A. Pessoa Lima, permitindo entender melhor a formação e as
modalidades de uso dos “calibradores” encontrados em grande número nas esca­
vações de sítios tupiguarani. (Fig. 3)

UTILIZAÇÃO DE INSTRUMENTOS LASCADOS E BRUTOS

a. regularização de vara com b. polimento de vara com calibrador


raspador côncavo de cristal

d. micropolido de uso
em gume de pedra

c. galho rachado com cunha


(peça nucleiforme)

Figura 3

Finalmente, preocupada em interpretar pequenos bolsões cheios de fragmen-


tos menores de quartzo, também em sítios tupiguarani do Vale do Rio Doce, a
equipe c a UFMG estudou raladores de mandioca em madeira com dentes de
Pec ra etnográficos (Waiwai e Baniwa), reproduziu e utilizou estes objetos, para
ve ícar se averia vestígios diagnósticos de uso nos elementos líticos lascados.
ste tra > 10, tema de monografia de F. Amoreli, foi realizado com a colaboração
do etnologo Jorge Manoel Costa e Souza, e de índios Waiwai (Prous et al., 2006b).

166
André Prous

,4 experimentação na fabricação e na utilização em matérias não líticas e


de figuras rupestres

As conchas foram amplamente utilizadas pelos homens pré-históricos, sendo


preservadas nos abrigos e nos sítios litorâneos de tipo sambaqui. A presença de
conchas perfuradas, muitas vezes interpretadas como indicação da extração da
lesma para consumo alimentar, enquanto havia registros etnográficos de uso das
carapaças como instrumento, exigia a verificação destas possibilidades. No final
do decênio de 1970, capturamos e criamos os gastrópodes gigantes da família
Strophochilidea, verificando que a extração da lesma não devia ser feita por per­
furação, mas por exposição ao calor, enquanto a abertura de orifícios em concha
fresca proporcionava ao redor dos mesmos gumes robustos, criando plainas mui­
to eficientes para trabalhar a madeira. Nossa colaboradora M. E. Solá estudou o
valor nutritivo destes animais em sua dissertação de Mestrado em bioquímica
fSola, 1978). Fabricamos também alguns instrumentos sobre concha de bivalve,
mas de forma assistemática, por falta de matéria-prima suficiente (Prous, 1986b).
Dos instrumentos de osso, os mais frequentes encontrados nos abrigos do
Brasil central são “espátulas” de osso de pata de mamíferos — geralmente, vea­
dos. A partir de ossos metapodiais de carneiros, em proveniência da fazenda
veterinária da UFMG, M. Alonso fabricou uma série destes instrumentos, abrindo
as diáfises por percussão, e polindo a extremidade distai ativa sobre um polidor
fixo de arenito, com abrasivo (areia), e terminando com um polidor móvel, tam­
bém de arenito; verificando o investimento em tempo e cansaço.
0 interesse pela cerâmica é uma vertente recente das pesquisas do Setor de
Arqueologia do MHN — UFMG, embora tivéssemos, já no final dos anos 1980,
promovido um curso de cerâmica par a os arqueólogos do Setor, ministrado por
dois professores da escola de Belas Artes da UFMG, com queima das vasilhas
realizada a céu aberto.
Neste início do século XXI, a equipe de cerâmica dirigida por A. Carvalho, C.
Jácome e L. Panachuk treinou a fabricação artesanal de potes de barro, tanto na
Universidade (com fornos modernos) quanto no Museu de História Natural (com
métodos tradicionais). Ao elaborar as vasilhas, analisaram os gestos e as marcas
que estes deixam nos potes; realizar am lestes de qualidade dos antiplásticos em
plaquetas. Atualmente, A. Carvalho desenvolve um trabalho experimental sobre
vestígios de utilização das vasilhas, que deve tornar-se tema do seu Mestrado.
(Fig.4)

167
Experimentação na Arqueologia Brasileira

FABRICAÇÃO DE CERÂMICA

a. placas para teste de antiplástico b. réplica de vasilhas arqueológicas

Figura 4

Embora limitadas, nossas experiências em duplicação de arte rupestre envolvem,


irso de pigmentos minerais com várias formas de preparação (moagetn, raspagem,
decantação), com ou sem liga, com e sem carga, que ajudaram a interpretar os
resíduos encontrados no grande abrigo de Santana do Riacho (Silva & Torri, 1991).
Gravuras picoteadas de cervídeos, semelhantes ao modelo arqueológico, foram
realizadas em blocos de calcário na Lapa do Boquete, com vários tipos de percutores
e/ou cinzéis (de seixo, bloco anguloso ou lasca; de calcário ou sílex) e percussão
(direta ou indireta), para avaliar a precisão do desenho, as técnicas e o tempo
necessário para picotear uma superfície definida em cada situação (L. Pires, ms).

A. experimentação oportunística na avaliação de situações arqueológicas

Durante as pesquisas de campo, o arqueólogo encontra-se por vezes diante de


situações que requerem um esclarecimento através de experimentações simples.
Citaremos, como exemplo, as estruturas de combustão encontradas no Grande
Abrigo de Santana do Riacho e datadas dos últimos quatro milênios. Nelas, os
carvões estavam recobertos por lentes de areia amarelada, uma feição nova que
nao conseguíamos interpretar. Acendendo fogueiras e expondo ao fogo diversas
matérias localmente disponíveis, verificamos que os seixos de tilito desmancha­
vam após certo tempo de exposição ao calor, deixando exatamente os mesmos
vestígios encontrados nas fogueiras pré-históricas.
Muitas outras particularidades de estruturas de combustão podem ser facil­
mente mal interpretadas por quem não tem experiência em acender e alimentar
fogo e nunca escavou os restos das próprias fogueiras — um hábito longamente
mantido quando acampávamos durante as escavações realizadas no vale do rio
Peruaçu ou na Serra do Cipó.

168
L
André Prous

Obviamente, realizar tarefas “tradicionais”, tais como pescar e caçar com ar­
madilhas; fabricar cordas ou cestos com fibras vegetais extraídas das plantas
locais; fabricar e queimar algumas vasilhas de cerâmica; fabricar e utilizar um
propulsor de dardos; cortar árvores com um machado de pedra, etc. não nos
tomam peritos nestas tarefas. No entanto, estas operações ajudam a entender
algumas das dificuldades técnicas; a perceber certos “jeitos” de fabricação, ou
avaliar mais acuradamente o investimento na fabricação dos objetos e na realiza­
ção das tarefas. Fabricar um raspador ou uma lasca cortante é uma coisa, que
informa sobre a tecnologia de uma forma quase que abstrata; utilizá-los para
trabalhar madeira ou desarticular um animal e cortar sua carne, analisando de­
pois o resultado dizem respeito à atuação na vida quotidiana e aos seres reais com
os quais tentamos estabelecer um contato por além dos milênios.

Conclusão

Mesmo que todo candidato a arqueólogo não pense em se tomar experimentador,


acreditamos que precisa manter um contato mínimo com as matérias e situações
que deverá estudar. Acampar, pescar, viver algumas semanas em ambiente mais
natural que o meio urbano, tendo que ir buscar água, lenha; viver ao ritmo da luz
solar etc., deveria, a nosso ver, fazer parte do treinamento obrigatório dos futuros
pesquisadores, embora seja impensável mserir uma matéria correspondente no
currículo acadêmico.
Por outro lado, a maioria dos ar queólogos que vão trabalhar em sítios pré-
históricos brasileiros tem ou terá contato com vestígios líticos e cerâmicos (e,
dependendo das regiões, com outros, de concha e osso!). Para estudá-los, acredi­
tamos ser indispensável um conhecimento prático, mesmo que elementar, das
técnicas de fabricação e uso. A maioria dos arqueólogos da primeira geração não
teve a sorte de receber uma formação sistemática e foi inicialmente obrigado a
tocar a todos os aspectos da pré-história regional. Desta forma, é normal que não
tenham tido oportunidades para experimentar as tecnologias pré-históricas. Mas,
que um estudante de pós-graduação de hoje não sinta a necessidade de entender
melhor os objetos aos quais vai dedicai' seus estudos parece-me totalmente incom­
preensível. Mesmo sem recorrer aos indígenas — geralmente longínquos e nem
sempre disponíveis — não faltam oleiras caboclas para ensinar as técnicas tradici­
onais, nem cursos de arte nas universidades que possam proporcionar pelo me­
nos um contato inicial com o trabalho da argila. A questão é mais complicada
quando se trata dos instrumentos líticos, mas existem agora, em várias universida­
des brasileiras, especialistas aos quais se pode recorrer. Para o trabalho do osso e
da concha, os novatos podem começar a experimentar por si mesmo, ou procu­
rando os raros artesãos que ainda trabalham estas matérias. Nada disto significa
experimentação, mas, apenas, experiência. Esta é indispensável a todos.

169
Experimentação na Arqueologia Brasileira

Quanto à experimentação sistemática, destinada a resolver problemas concre­


tos, trata-se de um campo reservado a poucos especialistas, mas pode também ser
praticada na oportunidade de um trabalho de dissertação ou tese. Podemos dizer
que, no Brasil, pesquisadores envolvidos de forma especializada em atividades
experimentais não existem ainda. Nossas próprias incursões neste campo sempre
foram muito limitadas quantitativa e qualitativamente. E não podería ser diferente,
em razão da falta de arqueólogos para cobrir as necessidades de um país imenso.
Com a recente multiplicação dos pesquisadores formados nos últimos anos,
podemos esperar que alguns destes profissionais possam dedicar-se a esclarecer
os muitos pontos ainda desconhecidos da tecnologia indígena e pré-histórica, para
beneficio de toda a comunidade dos arqueólogos. Para tanto, precisaria que as
Universidades abrissem vagas para esta especialidade, pois o principal campo de
trabalho atual — a arqueologia de contrato — não terá, provavelmente, interesse
em sustentar tecnólogos especializados.

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Ilustrações

As fotografias que compõem as pranchas são provenientes do acervo de Setor


de Arqueologia pré-histórica da UFMG, exceto a fotografia “e” da figura 1, que
foi tirada durante o curso de tecnologia que ministrei em Porto Alegre, na UFRS.

172
Metodologia de análise para as Indústrias
Líticas do Pleistoceno no Brasil Central
I
Agueda Vilhena Vialou*

Para tratar do tema que me foi proposto, Natural X Cultural metodologia de


análise para as indústrias líticas do pleistoceno no Brasil Central, pertinente com
notórias dificuldades, quanto à representatividade dos sítios e de suas indústrias
extremamente reduzidas, é preciso situar não só os sítios do Pleistoceno, mas
evocar os sítios do período conhecido da passagem do Pleistoceno-Holoceno, com
culturas muito bem caracterizadas e com uma expansão intensa por todo conti­
nente. E uma forma de situar o problema e mostrar que as propostas de método
de estudo da tecnologia lítica devem estar conjugadas ao estudo do próprio sítio e
seu contexto. Através do estudo que estamos realizando em Santa Elina, Mato
Grosso, indicamos aqui a metodologia que utilizamos. Acreditamos também que a
metodologia tradicional muito desenvolvida para as indústrias do Paleolítico Mé­
dio e Superior não estão em adequação com os exemplares das indústrias até
agora conhecidas no Pleistoceno americano.

Indústria lítica, fenômeno universal e a originalidade americana

E comum e considerado normal a caracterização de uma cultura ou de uma


época pelas indústrias líticas. Percorrem-se períodos, conquistas cerebrais e de
territórios quando se trata das indústrias de transformação do seixo e plaqueta
como os bifaces, das indústrias feitas sobre lascas ou lâminas como os raspadores,
os buris, do microlitismo e das pontas de projétil, para finalizar com uma indústria
lítica pobre em lascamento, priorizando o polimento. Essa síntese cursiva da “evo­
lução” e das tranformações do instrumental lítico não tem uma sequência “evolutiva”
na América. Os povoamentos da América já pelo Hotno Sapiens Sapiens e a au­
sência de uma longa cronologia suprimem completamente as etapas iniciais da
produção lítica no tempo. No entanto, o bom número de sítios estudados a partir
de 12000 anos BP, correspondentes ao período de transição do Pleistoceno ao
Holoceno na totalidade do continente americano, nos conduz a constatar a exis­
tência de uma indústria já muito bem elaborada com uma tecnologia apurada no
que diz respeito aos objetos de projeção, típicos como armas de caça ou pesca. Ao
longo de alguns milênios desse período de transição do Norte ao Std do continente

' Muséum National d’Histoire Naturelle, Paris.

173
Metodologia de análise para as Indústrias Líticas do Plcisloccno no Brasil Central

e em diferentes paisagens os tipos de pontas clóvis, folsom, fishtail, paiján, etc.


existiram localmente, distintamente e já com uma forma definida. Não há nos
sítios representados com essas armas de projétil, nem em suas proximidades,
ocupações de períodos anteriores que possam revelar um prototipo de pontas e
peças bifaciais em geral. E verdade que dentre esses casos já são bem poucos os
sítios indicadores da presença do final do Pleistoceno e convém assinalar que não
foi encontrado nas culturas pleistocênicas nada que indique uma concepção ao
utensílio em forma de ponta.
No Velho Mundo as pontas de projétil ocorreram a partir do Paleolítico supe­
rior. A ponta de flecha, associada ao arco, é uma invenção do mesolítico e junto
com os microlitos (peças diminutas e de formas geométricas — trapézios, triângu­
los), existem em profusão nessa época e correspondem a uma formulação econô­
mica adaptada à caça de fauna solitária ou em pequenos bandos existentes em
meio florestal. O microlitismo não foi detectado no Brasil. Já o processo de
neolitização com os múltiplos aspectos da sedentarização, o cultivo de plantas, a
agricultura, a domesticação de animais e a criação das aldeias com novas tecnologias
líticas, instrumentos polidos, almofarizes, mós para moer, esmagar e a introdução
da cerâmica, ocorreu diferentemente e muito tardiamente na América do Sul
(particularmente o centro e o leste). Não é possível estabelecer uma continuidade
entre as culturas do Pleistoceno e as do Holoceno pelo número reduzido de sítios
e de vestígios. A mudança climática que separa esses períodos, entre 12000 e
9000 anos BP, identificada por um clima mais quente e úmido, provocou mudan­
ças no meio-ambiente, a vegetação se diferencia e conseqüentemente o desapare­
cimento de grandes mamíferos, como mastodonte, glossotério, hipparium e um
tipo de camelídeo, que estiveram associados a vários sítios freqüentados também
pelo homem, segundo a região. E nesse período de transição que há um bom
número de sítios pré-históricos e a maior parte deles ainda com fauna fóssil hoje
extinta e com as pontas de projétil típicas desse período, fishtail, paiján.

P'ovoamenio de todo territótrio americano — 12000 — 9000 anos BP

E o período da passagem do Pleistoceno ao Holoceno, das grandes mudanças


climáticas, das adaptações a uma cobertura vegetal que se modifica e a uma
fauna, a dos grandes mamíferos que se extingue.
Do Norte ao extremo Sul dos sub-continentes foram encontrados vestígios de
ocupações humanas, sendo uma grande parte delas marcadas por uma indústria
lítica muito bem elaborada e com pontas de projétil bifaciais.
Apresentamos suscintamente dois exemplos de utenílios elaborados: as pon­
tas, presentes em toda a América, e as peças plano-convexas, típicas do Brasil.

174
Agueda Vilhena Vialou

Pontas

Algumas ocupações desse período estão intimamente ligadas à caça dos gran­
des mamíferos, mamutes e bisões, na cultura Clóvis com as pontas do mesmo
nome. As pontas em rabo de peixe, Jlshtail, principalmente do cône sul em sítios
datados de mais de 11000 anos BP, Fell, Los Toldos, Piedra Milseo, mas também
dos pampas argentinos, Cerro el Sombrero e sítio uruguaio Urupez, parecem asso­
ciadas à grande fauna, Mylodontinae (Cardich, 1978; Miotli, 1992; Flegenheimer,
1995; Politis, 1987; Menegliin, 2000). Essas pontas bifaciais bastante típicas
para o norte e a outra para o sid diferem muito na sua tecnologia, sendo uma, a
Clóvis, cuidadosamente canelada ifluted) e a Jishtail, como o nome indica, se
caracteriza pelo “esboço” de um pedúnculo (“taiZ”) onde apenas algumas peças
apresentam um canelamento parcial e irregular.
Essa distinção é importante porque vai reforçar a idéia de que houve na mes­
ma época manifestações tecnológicas diferentes. Mas outros tipos de pontas ocor­
rem na América do Sul, dentre os quais se destaca a ponta Paiján.
Os trabalhos recentes de Chauchat & Pellegrin (2004) demonstram a originali­
dade da Ponta Paiján, como técnica pelo primor de preparo, com as pré-formas
identificadas em sítios apropriados, entre os de exploração da matéria-prima e os
habitais, e também como conotação econômica em local de subsistência de pesca
marítima. Ela se insere nessa época de grandes artesãos de pontas de projétil por
toda a América a 11000 anos BP. Mas Paiján é típica de uma região, o deserto de
Cupisnique, Peru. As pesquisas sistemáticas sobre uma centena de sítios mostra­
ram que as jazidas ricas em fósseis de fauna extinta com datações do final do Pleis-
toceno, área conhecida como Pampa de los Fósiles, nunca foram contemporâneas
aos sítios de ocupações humanas pré-históricas. As instalações humanas da cultura
e do homem de paiján (esqueleto de 2 indivíduos datados de 11000 anos) que
ocuparam um grande espaço não longe de Pampa de los Fósiles, desconheceram a
megafauna local, sucedendo-a no tempo (Chauchat, 1982; Falguères et aL, 1994).
E interessante notar que essas pontas de elaborações complexas e variadas
não têm precedentes, ou seja, sem referências culturais anteriores. Elas se inse­
rem nessa época de grandes ar tesãos de pontas de projétil por toda a América.
A inovação das pontas ocorre em uma mesma época em regiões diferentes e
em vários sítios. Ela traduz um novo comportamento para a caça relacionado às
necessidades econômicas visto sua freqüência e o grande número de peças nos
sítios. Significa também sua expansão para além dos territórios dos sítios “foyers”.
E enfim, as pontas revelam ora sua especificidade cultural com uma tecnologia e
tipologia conforme a região, ora sua standartização.
Outros sítios como Telarmachay e Pachamachay (Lavallée, 1985; Rick, 1980)
vieram contribuir no estudo de variações tecno-tipológicas das pontas de acordo
com os períodos cronológicos. As culturas das pontas e das peças bifaciais perdu­
raram no tempo, mas também, em função das atividades econômicas, diversifica-

175
I Metodologia de análise para as Indústrias Líticas do Pleistoceno no Brasil Central

ram-se seja no tamanho, seja na sua morfologia, e evidentemente isso decorre ds


uma mudança na técnica de confecção.
No Brasil, fora o setor meridional do país, com uma grande variedade de
pontas e de diversas épocas (novas descobertas em sítios sambaquis-íluviais esca­
vados por L. Figuti, Capelinlia, no std do Estado de São Paulo indicam uma
grande produção — cerca de 100 - de pontas em nível datado de 9000 anos BP.
Lima, 2005), as pontas são raras, mas testemunham que os povos de sítios como
Caverna Pintada e Gruta do Gavião, no Pará, Cerca Grande e Boquete em Minas
Gerais já conheciam e eventualmente as confeccionavam há 11000 e 10000 ano-
atrás (Hilbert, 2005; Prous, 1991; Rodet, 2006, Roosevelt, 1996).

Peças plano convexas do planalto central brasileiro

Entre 10000 e 8500 anos BP existe uma profusão de artefatos confecciona­


dos a partir de uma lasca laminar espessa (como em Serranópolis e vários sítios do
Estado de Goiás, Schmitz, 2005) ou de uma plaqueta ou de um seixo achatado
(como nos sítios do Tocantins, Bueno, 2005). São as peças plano-convexas mais
ou menos padronizadas, utilizando um suporte plano que requer às vezes um
preparo de sua forma, para reduzir- a lasca, seixo ou plaqueta com retiradas
unifaciais profundas, couvrantes e invadentes. Essas retiradas devem atingir a
totalidade da face superior retirando grande parte do córtex. Uma vez que o
suporte está formatado nas dimensões desejadas, os retoques atingem todo o
contorno da peça e são diferenciais: largos e em escamas, lateralmente e finos,
lamelares e longos nas duas extremidades. A forma final do artefato é muito
importante, sendo para isso muitas vezes necessário a insistência do retoque de
acabamento, além de grandes retiradas anteriores defaçonnage em geral na parte
mesial da peça para reduzir a sua largura.
Essas peças foram designadas lesmas, por se assemelharem ao tipo limace, e
também ao racloir double, utensílios do Paleolítico Médio, cultura mousteriense.
No entanto, as peças brasileiras em relação às européias são em geral mais volu­
mosas, suas extremidades são geralmente arredondadas e não em forma de ponta
como as do paleolítico europeu.

Utensílios e sítios

A maioria desses sítios com ocupações da passagem Pleistoceno-Holoceno re-


fere-se à presença mais antiga situada na base da seqüência estratigráfica. Esse
fato é comprovado sobretudo quando se trata de ocupações em abrigos. E o caso
de Piedra Museo (Miotti, 1992, Miotti & Cattaneo, 1997) e dos sítios de Serranópolis.
E é incontestavelmente o caso dos sítios a céu aberto e de superfície do deserto de
Cupisnique, cultura Paiján, os do vale do Uruguai e Ibicuí, Arroio dos fósseis e
Arroio Touro Passo (Miller, 1987).

176
Agueda Vilhcna Vialou

Interessante é notar que esses tipos de utensílios, pontas e peças plano-conve­


xas não cohabitam os mesmos territórios. Pode-se dizer que a cultura das pontas
(por ser bifacial) está ligada às outras peças bifaciais. São artefatos que recorrem
à utilização de retoques por pressão, na fase final. As peças unifaciais dessas
culturas são bem finas e também feitas por pressão. Isso ocorre amplamente na
região andina.
A cultura das peças unifaciais espessas, as plano-convexas, ocorre abundante­
mente no Planalto Central. Os retoques são feitos por percussão. As peças plano-
convexas não estão associadas às culturas das pontas de projétil bifaciais existen­
tes em outras regiões do Brasil.
Esse modo de elaboração de utensílio já muito bem organizado, com um
método de lascamenlo recorrente na própria ocupação, onde o modelo do objeto
desejado ponta ou plano-convexo se expande, significa que ele vai se tomar recor­
rente em vários outros sítios próximos ou distantes. E um modelo que inova e que
se torna referência. Mas como ele aparece sem nenhum preparo anterior, o mo­
delo pode corresponder a criações espontâneas, ocorrendo ao mesmo tempo em
vários lugares: é o que se chama de convergência cultural, muito comum nas
criações técnicas e nas manifestações artísticas, provocadas pelas necessidades
locais.
Essas indústrias bem elaboradas são acompanhadas também de utensílios
bem simples, como em qualquer região e período.
Os casos isolados de uma ou outra ponta podem ser significativos do conheci­
mento dessa técnica. Mas os objetos raros e sem vestígios de seu preparo no seu
hábitat podem significar também troca, contato.

Sítios do Pleistoceno

Períodos que precedem de imediato a passagem Pleistoceno-Holoceno -


14000 - 12000 anos BP.

As referências aos sítios pré-históricos do final do Pleistoceno são poucas e,


portanto, são necessárias para a compreensão das primeiras instalações humanas,
atestando ou não sua presença nos locais onde ocorreram posteriormente as pon­
tas.
0 sítio de Monte Verde é a referência da ocupação pleistocênica na América
do Sul, onde estão presentes todos os testemunhos para justificar e provar a
presença do Homem no período considerado como pré-projétil', construções de
cabanas, fauna extinta, maslodonte, indústria lítica, peças bifaciais grosseiras e
“bolas”, enfim, todo o referencial ao hábitat do homem pré-histórico. Foi datado
por volta de 13000 anos BP (11790 +/- 200 anos BP -Tx 5374 sobre osso
queimado e 13565 +/- 250 - Tx 3208, sobre carvões de fogueira) (Dillehay,

177
Metodologia de análise para as Indústrias Líticas do Pleistoccno no Brasil Central

1989; Dillehay & Collins, 1988). Entretanto, no que diz respeito a seqüênciade
ocupações posteriores, não houve nesse sítio e nas proximidades vestígios de
ocupações mais recentes que poderíam ser da passagem Pleistoceno-Holoceno. 0
material litico encontra-se sem outro contexto que o próprio sítio, não permitindo
hipóteses a uma continuidade tecnológica.
A fase Ayacucho (14150 + /-180 anos BP Uclal464) da gruta de Pikimachay
no vale de Ayacucho, Peru, escavada por MacNeish, apresenta uma posibilidade
de antiguidade de ocupação humana nesse sítio composto de uma indústria lítica
rudimentar 212 utensílios e mil produtos de lascamento, denticulados (em rocha
vulcânica local) associados a 517 ossos, dentre eles muitos de fauna extinta
megatério, scelidotério, equideo, camelideo e cervideo. Essa fase precede uma
outra fase, fria, de 13000 a 11000, fase Huanta com poucos vestígios: 7 utensí­
lios sendo 1 ponta de projétil bifacial foliácea feita com retoque por pressão
(MacNeish 1980-83).
Nesse período não há vestígios característicos que possam identificar e reunir
os sítios. Até mesmo o material litico proveniente desses sítios mostram que não
há uma indústria litica muito elaborada (salvo Taima-Taima com a ponta El Jobo
no pélvis de um mastodonte e datado de 13860 anos BP) (Gruhn, 1974; Gruhn
& Bryan, 1989).
Os sítios da Patagônia, Los Toldos, 12600 +/-600 anos BP (FRA 98) e Piedra
Museo 12890 anos BP possuem uma seqüência de ocupações, apresentando na
base estratigráíica do abrigo, apenas uma camada de sedimento estéril e que é
seguida do nível mais antigo de ocupações na Patagônia, um nível pleistocênico
bem tardio precedendo o nível de pontas de projétil bifaciais, presentes na passa­
gem Pleistoceno-Holoceno. Cardich mostra bem que as peças líticas do nível 11
de Los Toldos são objetos de grandes dimensões, com retoques unifaciais e estão
bem separadas estratigraficamente das peças bifaciais do nivel posterior (Cardich,
1987 ; Cardich e Flegenheimer, 1978).
Convém assinalar que todos sítios em abrigos ou cavernas da Patagônia e da
região de Magalhães não possuem sedimentações inferiores às datações de 13000
anos BP.O que lhes conferem um valor sui-generis aos vestígios arqueológicos
desse período de “antigüidade máxima” para a região.
Não há ruptura entre as ocupações dos sítios de Los Toldos e Piedra Museo,
tidas como pleistocênicas, e as ocupações da passagem Pleistoceno-Holoceno. A
proximidade de 1 a 2 milênios com os sitios bem reconhecidos do fim do Pleistoceno
e inicio do Holoceno é nítida, dando a essas culturas uma continuidade cultural
com um período anterior aos objetos bifaciais, no caso as pontas fishtail.

178
Agucda Vilhena Vialou

Ocupações do Pleisloceno final: 50000 - 14000 anos BP.

São bem poucos os sítios com datações pleistocênicas na América: Pedra Fu-
rada que apresenta uma sequência de ocupações desde 50000 anos, Monte
Verde, 33000 e 13000 anos, Santa Elina, 25000, 10000 e uma sequência
ininterrompida até 2000 anos BP e Abrigo do Sol, 14700 anos BP com seqüên-
cia até 5000 e uma isolada de 300 anos BP
0 sítio Monte Verde, Puerto Montt, Chile, é excepcional por ser um sítio a céu
aberto. Sua descoberta se deu pelas pesquisas em Monte Verde II. Há uma
decalagem no espaço, mas a correspondência estratigráfica se faz em boa correla­
ção entre o Monte Verde I e o mais recente, Monte Verde II. O nível datado de
33370 +/- 530 anos BP (Beta 6754) contém carvões esparsos e apenas 26
pedras fraturadas, sendo que 11 delas apresentam marcas de uso ou de percus­
são. 0 próprio pesquisador T. O. Dillehay emite reservas a respeito desses vestí­
gios de MV I, não os justificando, nem insistindo para a comprovação de uma
ocupação humana tão antiga para a América.
0 Abrigo do Sol, Vila Bela, Mato Grosso, Brasil, pesquisado por E. Miller, tem
unia série de datações acompanhando uma seqüência de ocupações, desde 14700
anos BP. Os vestígios líticos em rocha local, basalto e arenito, são bastante rudi­
mentares. Em seu artigo há apenas uma prancha com fotos de 18 objetos, e
segundo a legenda “percutores, talhadores e núcleos” e lascas diversas ‘"com e
sem evidência de uso e retoque” (Miller, 1987).
Esses objetos merecem um estudo preciso tanto nas lascas como nos blocos que
podem ser naturais. Não há retoques. Quanto à estratígrafia, não só é complexa por
causa da queda de grandes blocos e pelas camadas de blocos separando prováveis
níveis, como .is datações obtidas não correspondem ao seu posicionamento estra-
tigráfico. Os p roblemas estratigráficos a serem revistos nesse abrigo lembram os
que foram muitas vezes levantados para o sítio Alice Boer, Rio Claro, Estado de São
Paulo, com datações controvertidas de 14200 +/- 1150 (SI 1208) até 2200 +/-
200 anos (TL). Nesse sítio não é a indústria lítica que causa dúvidas, com lascamentos
e retoques claros e até ponta de projétil bifacial, mas por suas datações e inversões
estratigráficas, não se pode situar o material lítico (Moreira da Cunha, 1994).
0 abrigo rupestre, Pedra Furada, Toca do Boqueirão da Pedra Furada, Sao
Raimundo Nonato, Piauí, Brasil, pesquisado por N. Guidon e F. Parenti (Parenti,
2002) é um caso especial pela extensão anunciada de uma seqüência ininterrompida
de ocupações durante 50000 anos — desde o Pleistoceno até todo o Holoceno. È
preciso acompanhar e distniguir melhor as fases nessa seqüência e estabelecer os
grupos de líticos para cada período, referentes ao Pleistoceno anterior a 14000
anos como estabelecemos nesse trabalho. A fase mais antiga, PF 1, vai de 47000
anos BP (Gif TAN 89098) a 38000 anos BP (Gif 8124), 196 peças líticas , sendo
26 utensílios.

179
Metodologia de análise para as Indústrias Líricas do Pleistoceno no Brasil Central

A segunda fase, PF2 vai de 32160 +/-100 anos BP (Gif 6653) a 25000 anos
BP (Gif 5648), 273 objetos líricos, sendo 23 utensílios.
A terceira fase, PF 3, situa-se entre 21400 +/- 400 anos BP (Gif 6160) e
14300+/- 210 anos BP (Gif 6159) com 126 líricos e apenas 3 utensílios e é
seguida da fase Serra Talhada a partir de 10400 +/- 180 anos BP (Gif 5862) alê
8000 e assim por diante (Parenti, 2002) Há uma estabilidade técnica nas peças
595 pleistocênicas, caracterizada pelo talhe de seixos e de lascamento limitado a
rochas locais, quartzo e quartzito. São essencialmente lascas corticais
retocadas, ' raspadores”, denticulados e bicos. Das dezenas de fogueiras que acom­
panham esses níveis, as datações por TL mostraram uma discordância de dalas
seja com a de 14 C seja entre as peças aquecidas pertencentes à mesma fogueira,
com idades variando de 80000 a 160000 anos BP.
0 abrigo rupestre de Santa Elina, Jangada, Mato Grosso, Brasil (Pesquisas
coordenadas por A Vilhena Vialou, D Vialou, Muséum National d’Histoire Naturelle
- Paris e L. Figuti, Museu de Arqueologia e Etnologia da USP), situa-se no setor
Aguas Limpas, da serra das Araras, de 500 km direção SW/NE. Santa Elina
encontra-se na primeira cadeia do dobramento calcário pré-cambriano com arenito.
Está a 30 metros de altura, em relação ao vale nesse relevo que pode atingir 600
metros de altitude. A escolha de Santa Elina como hábitat se deve à sua proteção,
por estar no interior da serra, na primeira linha de uma série de cadeias monta­
nhosas que formam uma verdadeira barreira. O abrigo está de frente à grande
massa dessa potente serra, num vale estreito, com um vão de 80 metros, onde
correm riachos intermitentes provindos da serra mais alta. Mas Santa Elina se
encontra dando as costas à primeira “cortina” dessa serra, onde o acesso é ainda
fácil pela existência de alguns vãos a partir da grande planície, o pediplano cuiabano
(Vilhena Vialou, 2003 e 2005).
Com esse relevo inhabitual para a região, pois é mais comum a visão das
chapadas areníticas, uma vegetação apropriada de floresta vai estar agregada a
essa serra. Essa situação da localização do sítio num espaço fechado podería ter
conservado a megafauna de forma relictual.
Existe uma longa e ininterrupta sequência de ocupações holocênicas nos últi­
mos LOOOO anos. A conservação de vegetais é excepcional, fibras trabalhadas,
frutos, carvões de fogueiras. A indústria lítica, com exceção de algumas peças, é
pouca e bem rudimentar, baseada em simples lascamentos efetuados nos cantos
dos blocos de calcário dolomítico local, mas as estruturas de pedras são numero­
sas em todas habitações, no espaço e no tempo. Uma mudança no depósito do
abrigo ocorreu no período recente a partir de 6000 anos atrás, deixando o preen­
chimento do abrigo em sedimento arenoso durante o Pleistoceno final e o Holoceno
antigo para uma sedimentação pulverulenta e que foi completamente antropizada.
Quanto à ocupaçãç pré-histórica da passagem Pleistoceno-Holoceno ela está
em posição estratigráfica em uma sedimentação arenosa bem distinta dos níveis
mais recentes de 6000 anos atrás. Várias datações de fogueiras entre 9400 e

180
Agueda Vilhena Vialou

10120 anos BP, definem esse nível sem pontas de projétil, nem utensílios bifaciais,
mas com uma produção importante de lascamentos de calcários bem finos e alguns
lascamentos em silex e em arenito, rochas encontradas nas redondezas. No espaço
habitacional (30 m2) há evidências da convivência do homem com a fauna fóssil
extinta, o glossotérío. E assim o primeiro e único sitio brasileiro que testemunha ao
mesmo tempo a coexistência da presença humana com a fauna fóssil extinta.
De forma bem distinta estratigraficamente, separada por 1 metro de sedimen­
tos arenosos, intercalados por camadas de blocos de calcário, há um outro nível
estratigráfico e que constitui assim o mais antigo nível arqueológico do abrigo
rupestre de Santa Elina, chamado Conjunto 111 4. Aí, numa superfície de 30
metros quadrados, entre 2,80- 3 e 3,50 metros de profundidade do solo atual,
conforme o local da escavação, há uma película de sedimento, que se diferencia
do sedimento em geral, pela sua coloração ligeiramente mais cinza (pela cor e
pela dispersão das cinzas) e com pequenos pedaços de carvões.
Esse nível foi datado de 25000 anos BP por 3 métodos e laboratórios diferen­
tes de datação, OSL, UTh, SMA, aplicados em vestígios diferentes, osso, micro
carvão e sedimento. Todos os vestígios datados provém de um mesmo nível, são
próximos espacialmente e, afinal, todas as datas obtidas são concordantes.
Um único indivíduo de glossotérío ocorre nesse solo e apresenta somente sua
parte dianteira. Não há outros restos faunísticos de grande e de médio porte. Os
vestígios de micro fauna são pouco presentes e não são representativos. A forma
alta e inclinada do paredão do abrigo de Santa Elina protegeu completamente o
hábitat das ocupações, sobretudo da umidade. A preservação dos ossos de
megafauna aí encontrados é boa, indicando um posicionamento estável dos vestí­
gios no solo onde foi encontrado. Não há evidências de material carreado pelas
águas, diferentemente do que ocorre posteriormente, em períodos datados entre
23 e 19 mil anos BP com as madeiras fossilizadas (Vilhena Vialou, 2005).
Ossos, blocos de calcário, sedimento arenoso com uma película acinzentada e
com micro partículas de carvão e pedras lascadas formam o “chão da ocupação”.
Cerca de 200 ossos identificáveis costelas, vértebras, mandíbula, maxilar e mais
de 5000 osteodermos pertencem ao Glossotherium Letsomii. Nessa distribuição
dos restos faunísticos ocorrem nítidas intervenções humanas: agrupamento de
osteodermos com marcas de fratura por aquecimento e 2 osteodermos tiveram
suas faces abrasadas, dando-lhes uma simetria e apagando as características típi­
cas e diferentes de cada face do osteodermo.
A indústria lítica, cerca de 200 peças, constituída essencialmente de lascas e
plaquetas retocadas, é contemporânea e está associada à preguiça terrícola. A
matéria-prima é principalmente o calcário detrítico (com introdução de grãos de
quartzo visíveis a olho nu) que ocorre nas formações calcário-arenito situadas a 30
metros abaixo das ocupações do sítio, e também em menor quantidade a silícia e
o quartzo. Essas rochas não estão presentes no próprio abrigo, tendo sido neces­
sariamente trazidas ao sítio pelo homem.

181
Metodologia de análise para as Indústrias Liticas do 1’leistoccno no Brasil Central

Lascas retocadas, plaquetas retocadas, cujos tamanhos variam de grandes e


robustas (10x6x2 cm) a pequenas e finas (2 x 1 x 0,5 cm), e lascas e estühaã
provindas de lascamentos e do retoque compõem a indústria lítica desse nível
pleistocênico. A técnica de retiradas ao longo dos bordos ligeiramente espessos, 1
a 2 cm. confere aos utensílios duas arestas, uma em cada face. 0 aspecto espesso
do bordo é acentuado por retiradas abruptas, dando-lhe uma melhor robusteza.
Outro retoque recorrente é a reentrância, seja como denticulado, seja por em
entalhe forte e marrado por utilização. Os retoques sobre lasca são semi-abruptos.
sem suprimir o gume em bisel das lascas.
Foram consideradas marcas de uso nas peças já retocadas e o aspecto da
superfície como o lustro e a pátina. O material lítico está bem distribuído rao
espaço do habitat em associação com a fauna e em concordância com uma sedi­
mentação compacta e coerente.

Metodologia

Pelos exemplos dos sítios do Pleistoceno que acabamos de mencionar, coruta-


ta-se que as indústrias líricas são bastante rudimentares sem possibilidades de
serem estabelecidas eqüivalências com as culturas compreendendo pontas or
peças plano-convexas que as sucederam, inclusive com as indústrias ocorridas
nos mesmos locais. As dificuldades encontr adas pela “originalidade” das indús­
trias por falta de elementos indicadores de um lascamento organizado e a falta d e
utensílios bem caracterizados, fazem com que sejam reforçados os trabalhos de
identificação da intervenção humana nos objetos. Essa indústria precisa também
e, sobretudo, pertencer a um sítio pré-histórico comprovado por atividades cultu­
rais e inserido num contexto global para a compreensão dos fenômenos
geomorfológicos atuantes na formação da paisagem e na configuração do sítio.
Movimentações das camadas, queda de blocos, fenômenos de tafonomia. etc.
devem ser vistos na própria escala do sírio atr avés de sua estratigrafia. São esses
os fatores fundamentais para a situação espacial e cronocultural dos vestígios. Os
choques, aos quais os vestígios líricos, apesar de sua resistência como rochx
podem ser submetidos em função de seu posicionamento no solo do sitio, vão
provocar marcas que deverão ser identificadas como tal e descritas.
O estudo do material lítico do Pleistoceno do planalto central deve se submetei
também, como todas as indústrias líricas, às normas invariáveis da tecnologia
lítica: reconhecer a rocha, identificar o lascamento, o retoque, reconstituir a ca-
deia operatória.
A metodologia empregada pode sim variar e no caso dessa indústria simples e
rudimentar americana, ela deve estar mais próxima da metodologia utilizada para
as peças do paleolítico médio e inferior do que a metodologia em voga, ampla­
mente difundida para indústrias bem elaboradas do Paleolítico superior (Tixierrt
al., 1980, Boêda et al., 1990).

182
Agueda Vilhena Vialou

Ficou demonstrado acima que a indústria lítica, nos dois casos, de Pedra
Furada e de Santa Elina, há um número razoável de peças, algumas centenas, com
evidências de lascamento, em seixos de quartzito e quartzo, para o sítio do Piauí e
em plaquetas de calcário, para o sítio do Mato Grosso. Ficou claro também que es­
sas retiradas no suporte bruto, seixo e plaqueta, transformaram apenas os bordos.
Em Santa Elina, por exemplo, procedemos à coleta de todas as peças com
marcas de retiradas provenientes dos níveis arenosos a fim de reconhecer os
elementos discriminantes da intervenção humana.
0 método empregado para a transformação do lítico se fez em função da
escolha do suporte. As lascas provêm de blocos de calcário de textura fina. As
plaquetas foram selecionadas pela forma retangular, sendo algumas com as faces
planas e outras tendo na face superior uma nervura central que dá a um dos bordos
uma forma inclinada e a do outro bordo uma forma abrupta com duplo gume de
90°. Foram também selecionadas pelo tamanho, não ultrapassando para as maio­
res, 10 cm por 8 cm de espessura. As plaquetas menores, reduzidas a menos de 2
cm, são achatadas e sem a nervura central superior. Convém assinalar que elas
foram trazidas ao sítio pelos pré-históricos. Resultando assim dois métodos:
Método de lascamento a partir de blocos ou plaquetas
Obtenção de Núcleos e Lascas
Os núcleos apresentam claramente os negativos de lascas (Fig. I)1
As lascas possuem retoques curtos e contínuos (Fig. 2)
Método de talhe/retoques em plaquetas
Para a obtenção dos utensílios sobre plaquetas e fragmentos de blocos foram
feitas retiradas de pequenas lascas e estílhas. (Fig. 3)
As retiradas / retoques — podem ser :
abruptas, formando um dorso (Fig. 4)
curtas, regulares e contínuas, formando um denticulamento em bordos
finos (Fig. 5)
oblíquas e contínuas sobre um mesmo bordo e face (Fig. 6)
reentrantes em bordos espessos (Fig. 7)
A análise por MEB deverá examinai' partícularmente:
Marcas de uso:
Microrretoques em lascas
Desgastes retirando o fio do gume do bordo, deixando-o irregular
Patinas diferenciais dos retoques nas plaquetas e nas lascas
Pátina e lustro naturais da plaqueta com córtex

1 Ver todas as figuras no final do capítulo.

183
T
Metodologia de análise para as Indústrias Lilicas do Pleistoceno no Brasil Central

Foram consideradas à parte na categoria de peças prováveis ou duvidosas, as


peças que, apesar de terem as características de lascamento e de retoque, mas
que por aspectos diferenciais podem provir de choques entre pedras, pelo
pisoteamento dos homens ou animais nesse solo pré-histórico (tafonomia):
No suporte
• Reentrâncias isoladas, tipo clactoniano.
• Reentrâncias acentuadas, formando um ângulo.
• Retiradas leves, tipo descamamento.
• Retiradas frescas e sem patina.

Na lasca
• Lascas ou estilhas de aspecto fresco, sem pátina.
• Lascas mesmo patinadas que podem provir de uma pressão nos blocos da
camada, e provocam o destacamento da lasca por descamamento.

E importante asinalar que não foram encontradas as remontagens das ‘'que­


bras" nas proximidades dos blocos ou plaquetas.
Não existe nos utensílios de Santa Elina a etapa de façonnage (retiradas para
dar a forma da peça; retiradas anteriores aos retoques: dando à peça uma confi­
guração final de suas dimensões e forma). Os retoques são feitos sobre uma lasca
ou plaqueta em sua forma original e não retrabalhada.
Os retoques são pois periféricos, atingindo especificamente o gume dos bor­
dos, podendo ser estes espessos ou agudos. De fato, os retoques são efetuados
nesse limite do gume.
0 esquema de lascamento adotado é recorrente no sentido da escolha de dois
tipos de suporte. Dois modelos de retoques decorrem desses suportes:
a - retoques ou retiradas em plaquetas

b - retoques em lascas
As plaquctas foram previamente selecionadas ao serem inseridas no hábitat:
são peças de dimensões variadas entre 2 e 12 cm, de forma retangular a
quadrangular para as menores. Desses suportes naturais são sua forma e tamanho
que prevalecem para sua seleção na escolha e na determinação de serem modifi­
cados por retiradas/retoques As pequenas lascas e as estilhas (inferiores a 2 cm)
encontradas no mesmo solo de ocupação que a fauna extinta — Glossotério — e
que as plaquetas retocadas, fazem parte do preparo desses utensílios sobre
plaquctas. São as mesmas rochas. Esse lascamento é o testemunho de atividade
in loco, de um preparo expeditivo da massa a ser transformada por retiradas
obtidas por percurtor duro. As lascas de retoque nesse caso, são semelhantes às

184
Agueda Vilhena Vialou

lascas de preparo de um bloco: elas são em geral lascas iniciais corticais, com
talão cortical ou liso.
0 modelo a compreende 2 módulos de tamanho; as peças robustas e grandes
maiores que - 4 cm e as peças pequenas, inferiores a 2 cm.
i óc ulo a 1-grande: a técnica empregada é de retiradas diretas, dando prefe-
rencia a uma das faces como plano de percussão, escolhendo um só sentido a
partir de um único plano de percussão.
Módulo a 2-peqtieno: retiradas diretas em uma face da plaqueta. Nas peque­
nas p aquetas, menos de 2 cm os retoques podem ser, seja reentrantes, no calcário,
onnando denticulamento, com bicos salientes, seja abrupto, na silícia. Nas peças
entre 2 e 3 cm os retoques são largos e longos, para atingir o topo da peça,
geiramente inclinados (semi-abruptos) conservando a forma de seu contorno.
modelo 6, está ligado à outra modalidade de confecção de utensílio tendo
como suporte uma lasca. As lascas retocadas são de tamanhos que variam entre 2
e cm. Podem ser lascas corticais, lascas com uma nervura central. O talão pode
ser cortical, liso ou diedro e os retoques são curtos, limitando-se ao bordo da peça.
lustro na peça em geral se deve à posição, localização dessa rocha calcária
susceptível das interferências do solo arenoso: fica assim claro que as plaquetas
em um córtex natural e que essa película superficial ficou submetida a uma
erosão de contato com o sedimento arenoso, dando-lhe um lustro diferencial
conforme as arestas e parles mais expostas do suporte.
U retoque/retirada efetuado(a) na plaqueta, evidencia o aspecto “fresco” da
rocha, diferenciando essa superfície rochosa da superfície do córtex e da super-
cie com lustro. Nesse sentido o lustro seria anterior à intervenção humana. Nota-
se assim, nas peças do nível de 25000 anos BP, que na parte retocada a rocha
tem um ligeiro lustro que a diferencia do lustro do córtex. De fato é o córtex que
tem uma reação mais acentuada em relação aos agentes geoquímicos e mecânicos
dos sedimentos.
Algumas peças, plaquetas naturais, que possuem quebras nos bordos, têm
esse aspecto fresco de uma intervenção mecânica natural, pois não ficaram sub­
metidas às alterações de pátina e de lustro do sedimento arenoso. Esse choque e
essa quebra na plaqueta são mais recentes que o período de 25000 anos BP,
visto que todas as demais peças possuem uma leve pátina. O lustro ocorre natural­
mente nas superfícies das peças enquanto o lustro do micro polido é feito pela
utilização. A traceologia, através do MEB, desses objetos é indispensável; ela
permite enumerar os efeitos de desgate pelo uso, com os micro polimentos,
batidas, os denteamentos, os aspectos “mordidos — embotados”, as estrias nas
faces que variam também de acordo com o tipo de gume — espesso ou em bisel
muito fino.

185
Metodologia de análise para as Indústrias Líticas do Pleistoceno no Brasil Central

< AMisidemções Jiriais


Set iam esses basicamente os únicos sítios reconhecidos no Brasil e nocontí-
n< nte sul-americano que possuem dados inequívocos sobre ocupações pleistocênka;
anletiotes a 14000 anos BP. É bem pouco o que se sabe dessas indústrias do
k islot eno, e ficou constatado todo o limite da definição dos utensílios. 0 falo
recorrente sao os retoques que dizem respeito exclusivamete ao contorno da peça.
Há nos seixos, plaquetas> ou nas lascas derivadas desses suportes, retiradas
tangeneiais, unicamente nos bordos. Essas retiradas podem configurar: seja ape-
nas o gume, corrigindo-o ao iormar
formar um 1fio de gume que corte (seixos); seja um
gume formado por reentrância(s), denticulados,, ou retiradas abruptas, que dão ao
bordo do gume uma espessura robusta.
E preciso trabalhar com maior afinco o assunto do meio-ambiente e do clima,
para compreender as necessidades locais a partir do uso da pedra.
Aqui se faz merecida uma referência breve a uma cultura holocênica, a dos
sambaquieiros do litoral brasileiro, que perdurou por mais de 7 milênios. Em
relação à sua indústria lítica pobre em lascamento, ela se distingue de toda a
industria lítica contemporânea de sítios não muito distantes, mas em contextos
geográficos diferentes, não litorâneos. Evidentemente não é possível fazer um
paralelo qualquer nem uma correlação com as indústrias de povos pleistocênicos
que se encontram também em contextos geográficos incomparáveis. Mas vale a
observação de que em período recente e com culturas duradouras houve a possi­
bilidade de existir um povo que não desenvolveu a técnica de lascamento, apesar
de utilizarem, e muito, as rochas, trazendo de longe algumas delas.
Em períodos mais recentes, as culturas de ceramistas que viveram em aldeias,
atestam esse descaso para com o lascamento. Outras técnicas, o polimento, outros
artefatos, e assim surgem outras necessidades e outras utilidades.
Se os povoamentos das Américas se fizeram tardiamente e pelo Homo Sapiens,
como dissemos no início do artigo, esse homem estava apto a se adaptar a qual­
quer situação e já veio com uma bagagem cerebral e de conhecimentos anterio­
res, o que permitiu reagir âs circuntâncias tal como o Homem Moderno.
De maneira hipotética perguntamos se a pedra transformada pelo lascamento
e bem elaborada pelos retoques, segundo os cânones evolutivos dos outros conti­
nentes, era uma referência cultural importante para os primeiros homens ameri­
canos. Os poucos vestígios conservados não traduzem outras modalidades de suas
atividades de subsistência. Os vegetais e a fauna em geral, que existem com
parcimônia em alguns dos sítios holocênicos, são os testemunhos que faltam para
completar o possível panorama das alternativas de sua vida. Essa ausência de
conservação de vestígios tão marcante nesses períodos corresponde não só à du­
ração do tempo tão importante que nos separa deles, mas a fenômenos climáticos
e tafonômicos ainda não bem conhecidos por nós, pré-histonadores, quanto à sua
interferência nos locais de ocupações humanas.

186
Agueda Vilhcna Vialou

Ab’Saber em 1977 em sua primeira aproximação dos domínios naturais para


a América do Sul, define o período entre 19000 e 13000 anos BP como sendo de
clima seco. As mudanças climáticas nessa faixa de idade — 25000 - 11000 anos
BP foram tão importantes no centro do continente, região do centro-oeste do
Brasil, que não permitiram a conservação dos vestígios, ou não os deixou in. loco?
0 carreamento dos sedimentos foi tão importante assim, a ponto de que nesse
intervalo de tempo no abrigo de Santa Elina não se encontre vestígio algum,
mesmo de fauna natural?
A diversidade é grande tanto no ecossistema como nas manifestações culturais
para os níveis a partir da passagem do Pleistoceno-Holoceno. A implantação de
populações já bem estabelecidas por todo o continente permite o registro de
culturas bem definidas e com características regionais. O meio-ambiente e os
meios de subsistência, fatores determinantes para a configuração das culturas
pré-históricas, confirmam a presença do homem na grande diversidade de paisa­
gens, clima e fauna.
Realmente, se é necessário considerar o lascamento (débitage) para se ter a
certeza da intervenção humana, estamos nos orientando de maneira inadaptada
para o estudo das indústrias pleistocênicas brasileiras.
0 lascamento é um dos métodos para a transformação da pedra, para fornecer
as indústrias sobre lascas ou lâminas. O caráter discriminante do lascamento para
definir um material antrópico, se considerado como a única prova de uma ação
antrópica, levaria a um raciocínio absurdo, porque eliminaria todos os suportes
diretamente talhados a partir de seixos, blocos e plaquetas.
Os sítios aqui estudados com uma indústria sobre seixo ou plaqueta mostra­
ram que houve outro tipo de método. Deve-se levar em conta as retiradas para
talhar uma peça. Os cientistas, acostumados também à forma bem acabada no
caso do talhe dos bifaces e de peças bifaciais em outras indústrias, precisam
examinar o talhe das plaquetas a partir daquilo que foi feito e do que foi desejado
pelos pré-históricos. Pode ser um material unicamente funcional voltado para a
obtenção de instrumentos que satisfaçam as necessidades de suas atividades coti­
dianas na alimentação, materiais para cortar, raspar, perfurar ao descarnar um
animal nas atividades de boucherie-, lançar, quebrar, na coleta de frutos, e as
múltiplas ações no trabalho da madeira e de outros vegetais. Necessitam de peças
tanto robustas, e nesse caso talvez não transformadas mas apenas marcadas pelo
desgaste e provavelmente facilmente descartadas, como de pequenos e finos ob­
jetos, também em pedra para uma ação mais delicada. Os retoques identificados
nas peças de Santa Elina são retoques válidos para qualquer outra cultura. A
diferença está no fato em que não foram feitos outros utensílios que fossem defi­
nidos em conformidade aos padrões idealizados por nós, arqueólogos.

187
Metodologia de análise para as Indústrias Liticas do Pleisloceno no Brasil Central

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1
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189
Metodologia de análise para as Indústrias Líticas do Pleistoceno no Brasil Central

Figuras

Figura 1
Núcleo, 12 cm

Figura 2
Lasca com retoques curtos e contínuos, 3cm.

190
Agueda Vilhena Vialou

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Figura 3
Estilhas, peças de 1,5 cm

191
í
Metodologia de análise para as Indústrias Líticas do Pleistoceno no Brasil Central

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1

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Figura 4
Plaqueta com retoques abruptos. Peça de 8cm.

Figura 5
Plaqueta pequena com retoques curtos, formando um denticulado. Peça de 3cm

Figura 6
Plaqueta pequena com retoques oblíquos contínuos . Peça de 4cm

192
Agueda Vilhena Vialou

Figura 7
Plaqueta grande, 6cm, bordo superior com retiradas abruptas e bordo lateral esquerdo
com uma ampla reentrância clatoniana e com marcas de desgaste pelo uso.

193
Notas sobre a solidão
das Indústrias Líticas

Andrei Isnardis

Puxando o fio da prosa

Haverá quem diga que a solidão é uma condição básica das indústrias líticas,
uma vez que são muitos os casos em que nada além das rochas lascadas pode ser
recuperado nos sítios arqueológicos. Mas não é dessa solidão crônica, se é que e a
de fato existe, que tratarei acpii. São muitos os casos, no patrimônio arqueológico
brasileiro e na bibliografia arqueológica brasileira, em que o material lítico não se
encontra assim isolado, como único testemunho da ação humana pretérita, e po e
ser recuperado num registro arqueológico que é composto de numerosos outros
elementos. A solidão de que falo aqui é aquela que os arqueólogos promovem ao
tratar de forma pouco sistemática as relações entre as indústrias líticas e os demais
componentes do registro arqueológico.
Este artigo é uma reflexão autocrítica sobre como conduzimos as pesquisas e
sobre como apresentamos seus resultados, no que se refere à artic açã° en^e
distintas categorias de vestígios. Quando se olha para o conjunto a ogr a
arqueológica brasileira, os vestígios líticos lascados são ti atados, na maior parte
do tempo e na maior parte dos casos, estabelecendo-se poucas re ações com as
demais categorias de vestígios e com as estruturas arqueológicas, mpõe se c este
modo às indústrias líticas uma acentuada solidão, que muitas vezes esv< onza
seu potencial interpretativo do conjunto do registro arqueológico e mita sua con
tribuição para o conhecimento sobre as sociedades humanas pretéritas.
Não se trata de dizer que os arqueólogos brasileiros nunca estabelecem rela­
ções entre as distintas categorias de vestígios. Na bibliografia arqueo ogica
leira se fazem relações entre as indústrias líticas e os demais vestígios, como se
pode ver em numerosas publicações dos diversos centros de pesquisa. Contudo,
creio que haja uma certa timidez ao se estabelecerem essas re ações, que mu
vezes não são exploradas de forma sistemática. Na condução as pesquisas,
decurso das análises e também no momento de apresentar seus resultados na
forma de publicações, promove-se um raciocínio que tende a isolar o matenal
lítico das estruturas em que fora encontrado e das demais estruturas dos siüos e

* Pesquisador do Setor de Arqueologia da UFMG. isnardis@grnail.com

195
Notas sobre a solidão das Indústrias Líticas

de seus outros vestígios. As relações que se estabelecem entre o material lítico e o


restante do registro arqueológico acabam por se apresentar de forma simplificada,
um tanto superficial ou, dito de outra maneira, de forma tímida, quando podería
ser mais desenvolvida, mais rica, mais atrevida.
Neste artigo convido o leitor a me acompanhar no exame de como a solidão e
a timidez ganham forma nas publicações, na reflexão sobre possíveis causas dessa
timidez e sobre as implicações dessa solidão. A argumentação aqui desenvolvida
não se pretende um balanço crítico do tema a partir de uma exploração exaustiva
da bibliografia. O que proponho é uma parada par a refletirmos, a partir de obser­
vações de parte da produção arqueológica brasileira, tanto “clássica”1 quanto
contemporânea, sobre como temos construído o conhecimento, sobre como
estruturamos nossa prática de pesquisa, nosso raciocínio e nossas publicações —
que, penso eu, apresentam certa coerência entre si. O que serve de ponto de
partida aqui são sobretudo impressões, subjetivas. A intenção é tomar explícito o
que na maioria dos casos permanece implícito — aliás, deixar as coisas implícitas
é prática frequente na produção arqueológica brasileira no que diz respeito a
referências teóricas e postura epistemológica.

As indústrias líricas e as publicações arqueológicas brasileiras: como publicamos

O ofício de pré-historiadores é composto por ingr edientes variados, que pode­


ríam ser agrupados em diferentes etapas, ao se considerar um processo de pes­
quisa que vai desde o acesso às primeiras informações sobre sítios (ou desde a
localização destes) até a divulgação dos resultados. Alguns destes ingredientes
estão entre os que dão ao ofício seu sabor mais típico, como a escavação, a longa
limpeza e marcação do material, as extensas análises. Há uma dimensão absolu­
tamente crucial do trabalho do arqueólogo da pré-história brasileira que sempre
foi muito pouco discutida entre nós: o texto que se produz como resultado do
trabalho. O texto é parte essencial da pesquisa; e nisso a arqueologia não se
distingue de outros campos científicos, especialmente dos demais campos das
ciências humanas. Embora crucial, a importância do texto no processo de cons­
trução do conhecimento em Pré-História não costuma ser discutida entre nós.
Se observarmos a bibliografia brasileira, não será difícil perceber recorrências,
perceber que há uma certa tradição2 na estruturação dos textos. 0 que pretendo
é atentar para um conjunto específico de aspectos dos textos: como as diferentes
categorias de vestígios e estruturas são apresentadas e como são feitas as articula­
ções entre elas. Creio que há uma estruturação recorrente em relação a esses
aspectos que deve ser objeto de reflexão.

1 0 que chamo aqui de “clássica” é a bibliografia que, embora contemporânea, já faz parte do
corpo básico de nossa disciplina e, como os clássicos, já foi lida por todos.
2 0 uso do termo é uma provocação proposital.

196
Andrei Isnardis

Se olharmos para os artigos publicados pelos pesquisadores brasileiros, vere­


mos que é reduzidíssimo o número daqueles em que se apresentam análises de
distribuição espacial de materiais líticos, o que quer dizer que estamos exploran­
do pouco a organização dos vestígios líticos em estruturas mesmo envolvendo
apenas essa categoria de vestígios. Artigos em que sítios ou conjuntos de sítios são
interpretados a partir da análise de relações entre vestígios diferentes são também
consideravelmente pouco numerosos. Nos artigos, as limitações de tamanho im­
põem restrições difíceis de se administrar, mas, ainda assim, deve significar go
a presença tão pequena nas publicações das últimas reuniões da Sociedade de
Arqueologia Brasileira de artigos analisando industrias líricas em relação a outros
vestígios. Parte dos artigos apresentados em congressos podem ser vistos como
fragmentos ou sub-produtos de trabalhos mais amplos aos quais estão re aciona
dos, e, assim, não seria de se estranhar que tratassem apenas de aspectos especí
ficos dos sítios ou regiões. Mas uma freqüência tão reduzida quer dizer que as
relações entre diferentes categorias e a análise de estruturas arqueológicas que
envolvam material lítico não estão entre as preocupações centrais, não guram
entre os projetos de iniciação científica dos bolsistas, não figuram entre as isser
tações de mestrado, pois, caso figurassem, sua presença se faria notar nos encon
tros da SAB. ,
Em geral, as publicações que ultrapassam o formato de artigos, sejam e as
monografias de sítios ou sínteses de pesquisas regionais, se re erem a penoc
cronológicos amplos. Assim, referem-se a períodos distintos de ocupaçoes pre
históricas distintas. Na grande maioria das publicações, os capít os se or»al .
em função das clássicas classes de vestígios com que trabalhamos, as m u
liticas lascadas, a cerâmica, os restos faunístícos, os vestígios florísticos, as
turas funerárias, a arte rupestre e, algumas vezes, outras classes c e estru t
evidentes — fogueiras, estruturas alimentares, depósitos, estacas e seus
—, sendo raros os casos em que estruturas discretas são an a as. »
exemplos o leitor pode ver Schmitz, 2004; Prous, 1992/93; Martin,
2006. Os diferentes elementos que compõem o registro arqueologico sao ap -
sentados conforme essas categorias, cada qual em seu capíti o. m ca a 1
são apresentadas as características consideradas dignas de estaque, as
rísticas ordinárias, os resultados das análises. No caso do maten co, e
a caracterização das diferentes categorias de artefatos e nuc eos, e, no
trabalhos atentos à tecnologia, os métodos de debitagem e < e con® .
artefatos. Também no capítulo específico do matéria tico — como ,
das outras classes de vestígios -, se veríam as dúvidas e inconclusoes, quando
essas são de fato incluídas.
Nesses capítulos especializados a cronologia poc’e: ser apresentada de modos
j, aa seguir
diferentes: ora se apresenta o lítico por períodos, r os vestígios faunístícos
por períodos, os florísticos por períodos, oia a cclasse de vestígios em questão é
apresentada de forma geral, com algumas observaçoes ou comentários breves

197
Notas sobre a solidão das Indústrias Líticas

sobre suas referências cronológicas — o que não raro gera dúvidas sérias no
leitor. Quando a apresentação de cada uma das classes é feita por períodos, não
é raro ver periodizações diferentes, em função das características do material.
Exemplificando, não é difícil encontrar publicações em que as indústrias líticas
são apresentadas com três horizontes distintos, em função da variação dos vestígi­
os, sendo um mais antigo, até os primeiros milênios holocênicos, um segundo,
desde o holoceno médio até antes do sm-gimento da cerâmica no(s) sítio(s) ou na
região, e um terceiro, correspondente ao período de ocorrência de material
cerâmico; enquanto, por exemplo, os restos faunísticos não são apresentados de
acordo com os mesmos horizontes, o mesmo podendo ocorrer para as outras
classes de vestígios. Se a indústria lítica está organizada em três horizontes distin­
tos, em função de sua variabilidade, por que então as demais categorias não são
tratadas com uma periodização coerente? Certamente porque não variam de for­
ma coerente. Mas essa não-covariação não é problematizada. Tem-se uma mu­
dança nítida na indústria lítica de um período A para um período B, e a fauna,
contudo, não varia; e isto sequer é discutido. E perfeitamente razoável que isso
aconteça, mas não me parece razoável que o pesquisador não tenha nada a dizer
diante dessa constatação. Se num mesmo sítio há uma mudança no material lítico,
é porque alguma mudança houve no modo como vivia a população humana que o
produziu, seja essa mudança resultado de inovações tecnológicas, seja ela resulta­
do da chegada de novidades, seja uma mudança de população ou resultado de
uma mudança do papel do sítio no sistema de uso e exploração do território. Se o
material lítico mudou, é porque mudaram as atividades a ele associadas que se
realizavam no sítio, ou porque mudou o modo de se realizar essas atividades. Se
a fauna permanece a mesma enquanto a indústria lítica varia, há algo a ser discu­
tido, pois podem estar se mantendo elementos do sistema econômico — as espé­
cies utilizadas e o papel do sítio na exploração dessas espécies —, enquanto algu­
mas mudanças têm lugar, mudanças que podem incluir um outro papel para os
artefatos líticos. Não valería por em questão essas variações diferenciadas?
Após os capítulos específicos sobre cada classe de vestígios, as publicações
geralmente apresentam um capítulo de síntese (ele também bastante sintético),
que se propõe a articular as informações e traçar um panorama geral. Nesse
capítulo de síntese, alguns aspectos de destaque de cada uma das categorias são
retomados e algumas relações são estabelecidas, visando re-articular as ocupa­
ções, geralmente por períodos — definidos com base nos vestígios de maior des­
taque na análise, em geral as indústrias líticas e/ou cerâmicas. Essas relações em
geral são realizadas de modo bastante ligeiro e aí se configura a timidez de que
falei. E muito raro observar-se nas publicações uma exploração sistemática das
possibilidades de correlação entre os vestígios. E mais frequente se encontrar
afirmações de que, durante o período em que o material lítico se caracterizava
pelos traços tais, a fauna apresentava freqüência dominante das espécies X e Y,
no mesmo momento em que os sepultamentos tais foram realizados em determi-

198
Andrei Isnardis

nada área do sítio. Mais do que relacionados, os vestígios são reunidos por perío­
do, mais uma vez apresentados em classes. A caracterização das diferentes ocu­
pações que se delineiam no capítulo de síntese não se vale de questionamentos
sistemáticos sobre possíveis correlações entre os vestígios, para daí tentar cons-
tniir interpretações para as estruturas e as maneiras como o sítio foi utilizado e
para seu papel no sistema de ocupação humana do período em foco. A conexão
entre as grandes categorias de vestígios se faz fundamentalmente através das
datações que lhes são atribuídas e só muito timidamente através das relações que
essas possam guardar- no registro arqueológico.
Será essa organização uma mera estratégia textual? Será que essa maneira nos
parece a maneira mais clara de se apresentar um conjunto de elementos de com­
posição muito complexa e difícil de ser abordada em sua totalidade? Ou será que
essa forma de compartimentar a publicação é uma expressão de uma forma tam­
bém compartimentada de perceber o registro arqueológico e, sobretudo, de lidar
com ele?
0 que merece ser notado é que a organização das publicações, sua divisão em
capítulos e itens, corresponde bastante bem à organização de nossos laboratórios.

Do sítio ao laboratório
Creio que nossas publicações assumem essa estrutura porque é assim que
estruturamos todo o nosso trato com o material arqueológico, uma vez que o
retiramos de campo. É conforme as grandes classes de vestígios que a divisão
social do trabalho arqueológico” está organizada. Nossos laboratórios, nossas equi­
pes e, portanto, o conjunto de nossas pesquisas se estruturam conforme as gran­
des categorias em que agrupamos os elementos do registro arqueológico. Como
nos apresentamos aos colegas, como identificamos os colegas? Como alguém que
trabalha com litico ou com cerâmica ou com arte rupestre ou com arqueo-fauna ...
Qual é a aventura vivida pelos vestígios materiais que analisamos a partir do
momento em que destruímos parcialmente um sítio arqueológico e dele retiramos
peças? Pensando nos vestígios liticos lascados, cada uma das peças que analisa­
mos é retirada da micro-estrutura3 em que se encontrava, retirada do sítio em que
se encontrava e, por fim, retirada da paisagem, do conjunto de sítios em que se
encontrava. Após uma temporada dentro de um saco plástico, dentro de uma
caixa, em alguma estante, esse vestígio chega então ao ponto crítico de seu percur­
so: nossa mesa, onde será analisado. É na mesa, desconectado dos demais ele­
mentos do registro arqueológico que não sejam liticos, que esse vestígio vai ser
inquirido acerca de seus atributos, pretendendo-se dele extrair elementos que
sirvam a uma interpretação do nível arqueológico, da unidade de escavação, do

5 Micro-estrutura aqui é utilizado conforme Prous (1992), ou seja, as pequenas unidades de


vestígios que entre si mantêm relações espaciais significativas.

199

I.
Notas sobre a solidão das Indústrias Líticas

sítio, da região e do período de que provêm — elementos que sirvam à compreen­


são da sociedade humana pretérita que o produziu. Essa unidade de escavação, o
sítio, a região e o nível arqueológico ou camada estratigráfica estão representados
ali em nossa mesa de análise por um número ou conjunto de números e letras. 0
caso é que, no decorrer da construção analítica, muitas vezes nos esquecemos do
que esses números e letr as significam, ou seja, nos esquecemos das relações que
esse vestígio que está sendo analisado mantinha com toda uma rede de elemen­
tos, rede esta fundamental para a compreensão das ações humanas que o produ­
ziram. Os números e letras são longamente postos de lado. Quando são evocados,
o são sobretudo par a confirmar as afinidades da peça que examinamos com as
demais peças que estão sobre a mesa, todas elas líticas. Ali pretendemos dar
sentido aos vestígios líticos lascados, na solidão da mesa.

.Algumas possíveis razões para a solidão e a timidez

Um ponto que estimula sem dúvida a solidão das indústrias líticas e a timidez
no estabelecimento de relações é uma já referida solidão crônica do material
lí tico. Embora abundem no patrimônio brasileiro sítios em que numerosos e di­
versificados vestígios nos chegam, com ricas e complexas estruturas, há casos em
que nada mais se conserva além das valentes peças líticas, resistentes às mais
intensas variações de umidade e temperatura, às ações químicas dos sedimentos,
ao interesse dos roedores e insetos. Evidentemente não há como cobrar de al­
guém que só pode recolher peças líticas que trate de outras categorias de vestígi­
os. Essa solidão crônica, porém, é por vezes supervalorizada. Estruturas discretas
poderíam ser mais sistematicamente buscadas, envolvendo a distribuição espacial
do material lítico — onde ele está presente e onde está ausente. Vale insistir na
idéia de que não devemos desistir a princípio de explorar o contexto mesmo nos
casos em que o que se vê de imediato é somente uma coleção de peças líticas.
A freqüência relativa elevada de material lítico, mesmo em sítios com outros
materiais, contribui sem dúvida para sua maior valorização como material a infor­
mar sobre as sociedades pretéritas. Dispondo os sítios de uma maior fartura de
peças líticas do que de qualquer outro tipo de material, certamente qualquer
arqueólogo qualificado para isso investirá prioritariamente na análise de material
lítico.
Muito mais do que a abundância, uma noção básica é de fundamental impor­
tância para que se compreenda o tamanho de nosso investimento em tecnologia
lítica: cremos que a tecnologia, em sua conceituação ampla, é dimensão importan­
te para a compreensão das sociedades humanas e é concretamente abordável a
partir da cultura material.
Fatores de ordem prática são também fundamentais. Trata-se de se avaliar
qual o potencial informativo dos vestígios e direcionar os recursos disponíveis,
sempre restritos, para aqueles que avaliamos como contendo o melhor potencial

200
Andrei Isnardis

informativo. Diante do nível de sofisticação hoje disponível das análises de indús­


trias líticas, tais vestígios serão com freqüência avaliados como os mais promisso-
re*’ e nele investiremos mais. Investindo mais em análises de indústrias líticas,
' amos nos especializar nelas e formar a nós mesmos e àqueles que trabalham
conosco como especialistas4.
E a especialização é sem dúvida outro componente fundamental para contri-
uir na concentração dos esforços numa determinada categoria de vestígios. Se
nos azemos especialistas, ou seja, se nos tornamos mais aptos a lidar com uma
temática específica, vemos a ela como o caminho mais seguro e menos tortuoso
para obtermos resultados razoáveis. E mais especialistas ainda nos tomaremos.
s problemas decorrentes da especialização nas ciências contemporâneas têm
st o muito debatidos; esta não é a ocasião de retomar debate tão extenso. Basta
su nliai que fazer opções implica sempre em deixar possibilidades de lado. Mas
são também evidentes os benefícios da especialização, sobretudo pelo fato de ela
proporcionar um conhecimento mais aprofundado e uma otimização na nossa
ormação: diante de tão vasta bibliografia e de tanto a conhecer, optamos por um
campo determinado, no qual poderemos nos aprofundar a contento, o que não
nos parece possível se mantemos igual interesse por campos distintos. E nessa
opção intervem um outro elemento fundamental: paixão.
Embora as remiruscências da tradição positivista nas ciências insistam em
I negá-la, a paixão é um elemento fundamental na construção do conhecimento
científico. Aqueles que fazem pesquisa de qualidade invariavelmente gostam de
aze-la, gostam de ou, por que não?, amam seus objetos. As especializações ten­
dem a corresponder àquele campo que mais nos agrada, que mais nos instiga
intelectualmente, pai a o qual parecemos ter mais vocação, ou pelo qual nos sen­
timos mais desafiados. Todos os que participam deste simpósio sobre tecnologia
lítica, além de se interessarem pelo tema enquanto questão relevante ao estudo da
pré-história, gostam de tecnologia lítica. Não gostassem, não estariam aqui, não
teriam feito o percurso que fizeram em sua vida profissional. Não é de espantar
que priorizemos nosso objeto de paixão, sobre o qual nos consideramos mais
aptos a falar e que nos é emocionalmente mais atraente —"emocional” no sentido
que Humberto Maturana dá ao termo, como “disposição corporal para a condu­
ta” (Maturana & Varela, 1995).
Se gostamos de indústrias líticas, se nos consideramos aptos a tratar delas, se as
avaliamos como tendo grande potencial informativo sobre as comunidades huma­
nas pré-históricas e se temos recursos limitados de modo que nos é muitas vezes
I
necessário concentrar esforços em apenas parte dos materiais de que dispomos,
não é difícil compreender porque nos concentramos tanto em indústrias líticas.
’ Esse é também um fator importante: se nos especializamos nesse campo, formaremos novos
especialistas neles; e assim vão se formando tradições, em determinadas instituições, de priorizar
determinadas categorias de vestígios. Veja-se, como ilustração, o caso do Setor de Arqueologia da
UFMG com as indústrias líticas e o caso do MAE-USP com as indústrias cerâmicas.

201
Notas sobre a solidão das Indústrias Lílicas

O fato é que tal concentração e tal especialização acabam produzindo como


efeito colateral uma certa secundarização dos demais vestígios. Nossa especializa­
ção tende a nos afastar dos demais elementos do registro, que encaminhamos, ou
encaminharíamos tão logo fosse possível, a outros especialistas. Não são poucas as
vezes em que limitamos as questões que poderiamos dirigir aos demais vestígios
pelo fato de nossa energia estar muito focalizada no material lítico ou por uma
certa debilidade de nosso conhecimento sobre as possibilidades interpretativas e
exigências metodológicas da abordagem dos outros materiais. E isso pode limitar
também as questões que dirigimos ao próprio material lítico.

Sobre as consequências da solidão e outros caminhos possíveis

Não há novidade alguma em falar que os vestígios arqueológicos só ganham


significado enquanto elementos de um contexto. E baseado nesta mesma lógica
que as análises que se ocupam unicamente de tecnologia lítica se desenvolvem.
Alguém que pretenda compreender os métodos (na concepção que Tixier dá ao
termo [Tixier et al., 1989) de lascamento envolvidos na produção de artefatos
plano-convexos em diferentes sítios de uma mesma região só poderá fazê-lo arti­
culando diferentes categorias de vestígios líticos, só poderá fazê-lo compreenden­
do o contexto. Alguns dos trabalhos que atualmente se desenvolvem no Brasil no
trato das industrias liticas — entre eles aqueles desenvolvidos por alguns dos
pesquisadores aqui presentes — as têm tratado como articuladas a contextos que
transcendem os sítios, as têm tratado numa perspectiva intersítio, quer utilizando
o conceito de organização tecnológica cunhado por Binford (1979), quer se valen­
do de outros recursos para raciocinar em termos da distribuição na paisagem das
diferentes atividades envolvendo os materiais líticos. Também aí é uma articula­
ção em rede dos diferentes conjuntos líticos que permitirá interpretações.
Em nossas práticas cotidianas devemos estar ativamente atentos às possibilida­
des de compreender o material lítico numa trama de relações que envolve outros
materiais. Temos efetívamente feito isso pouco e de forma pouco sistemática. Se
compreendemos o registro arqueológico como um conjunto de estruturas ou como
uma rede de elementos, ou seja, se reconhecemos que há relações significativas
entre esses elementos, é preciso que exploremos essas relações.
A noção de estrutura é um ótimo princípio de compreensão do registro arque­
ológico. 0 que compõem uma estrutura? Elementos. Mas não elementos isolados,
dispersos. Estrutura é um conjunto de elementos com relações significativas entre
si (Lévi-Strauss, 1985). Para a compreensão da estrutura é indispensável a com­
preensão das relações; sem elas os elementos perdem significado. Nos termos de
Leroi-Gourhan, explorando a metáfora do registro arqueológico como texto, “os
próprios objetos (...) são como substantivos de um texto, cujo sentido escaparia
substancialmente se não estivesse esclarecido pela sintaxe que os outros elemen­
tos de informação tomariam compreensíveis” (Leroi-Gourhan, 1981:3).

202
Andrei Isnardis

1 osso trabalho como arqueólogos é um trabalho fundamentalmente interpretatívo.


(pie c e ato fazemos é uma interpretação do registro arqueológico. Mesmo estu-
( iosos com diferentes perspectivas teóricas concordam com esta premissa. A
enneneutica, que se ocupa das reflexões sobre a interpretação, em suas várias
eições. tem como um de seus componentes básicos a noção do círculo hermenêutico,
<]u seja, a de que o sentido das partes deriva de suas relações com o todo, assim
como o entendimento do todo se faz a partir das relações entre as partes (para uma
orm ação a este respeito construída por um arqueólogo, vide Hodder, 1999;
para a discussão do tema a partir das perspectivas da Semiótica e da Filosofia, ver
co 1993 e Rorty, 1993, respectivamente). Conforme Eco (qp. cil.), um texto —
tomemos aqui o texto como metáfora para o registro arqueológico (à maneira de
oclcler, op. cil.) — é composto de elementos significativos que guardam em si
estruturação e coerência. A interpretação seria uma busca de relações coerentes
entre os elementos do texto. Assim, uma interpretação será mais consistente, se
maior número de elementos, em relação, ela conseguir reunir. Relacionar o maior
número possível de elementos do registro arqueológico é, pois, caminho para inter­
pretações mais consistentes desse registro.
Uma objeção pode ser feita imediatamente: mas a questão está no que se
considera o todo a ser interpetado. Sem dúvida. Se considero o todo em questão,
o objeto de que pretendo tratar, a tecnologia lítica de uma determinada ocupação
humana reconhecível no registro arqueológico, então deveria eu me preocupar
em reunir o maior número possível de elementos referentes à indústria lítica. Mas
ficam algumas perguntas diante dessa possibilidade de argumentação. Primeiro:
o que é o objeto? Não estaríamos sendo redutores do potencial do registro arque­
ológico, se elegemos a tecnologia como objeto? E possível pensar na indústria
lítica como sendo o todo a ser interpretado? Ela não é evidentemente parte de um
conjunto de elementos mais amplo? É possível construir uma boa compreensão
dela a partir dela mesma ou essa compreensão seria redutora? Sim, é possível
construir uma boa compreensão da indústria htíca a partir dela mesma. Mas é
possível fazer mais do que isso. Ao pensar na indústria lítica devemos considerá-
la como fazendo sentido na medida em que está integrada às ações e concepções
dos grupos humanos que as produziram, ações e concepções essas que envolvem
outras matérias, que nos chegam na forma de outros materiais no registro arque­
I
ológico.
Afinal qual é nosso objeto? È a classe de vestígios ou são as sociedades huma­
nas que os produziram? O que nos interessa enquanto pesquisadores: as varia­
ções em cada urna das categorias que nós criamos ou as sociedades que produzi­
ram esses materiais que classificamos?
Uma variação diferenciada das distintas categorias de vestígios pode concreta­
mente influenciar não somente na interpretação do sítio como um todo, mas tam­
bém na interpretação e cada uma dessas categorias. Suponhamos um sítio em
que, ao longo de guns poucos milênios de ocupação, é possível distinguir níveis

203
Notas sobre a solidão das Indústrias Líticas

arqueológicos entre os quais os vestígios lítícos permanecem qualitativamente


inalterados. Há, contudo, uma variação quantitativa dessas peças líticas, com
níveis em que elas são substantivamente menos numerosas. A partir desses ele­
mentos, pensar-se-ia que as atividades realizadas no sítio permaneceram as mes­
mas, tendo havido uma provável alteração na intensidade do uso do sítio. Porém,
ao se observarem os demais vestígios, se verifica que os níveis em que as peças
líticas se tomam menos numerosas são justamente os níveis em que há uma fre­
quência mais elevada de restos faunísticos, que aí são mais numerosos e diversi­
ficados que nos outros níveis. Não sem antes considerar a possibilidade da varia­
ção ser de origem tafonômica, é possível então pensar numa mudança de outra
ordem no uso do sítio, que teria sido, nos níveis em questão, palco de outras
atividades produtoras dos referidos restos faunísticos.
Mais do que isso. 0 olhar para os vestígios lítícos também pode ser modifica­
do, informado pelos outros tipos de vestígios. O material lítico pode não ter se
tornado simplesmente menos numeroso em razão de uma menor freqüência das
atividades em que era empregado, mas sim estar envolvido em outras atividades,
podendo, embora semelhante ao material dos demais níveis, ter mudado de fun­
ção. Este não é meramente um caso hipotético. Corresponde em grande medida
ao caso da Lapa Pequena de Montes Claros, que atualmente é objeto de pesquisa
de Lucas Bueno, sendo dele a maior parte do raciocínio que aqui, abusadamente,
apresento.
0 material lítico, qualquer que seja ele, é um conjunto de vestígios que envol­
via outros materiais, aqueles nos quais esses instrumentos foram utilizados, e está,
direta ou indiretamente, articulado a outros materiais nos quais os artefatos lítícos
não foram empregados, mas que foram objeto de ações humanas nos mesmos
sítios. De forma mais ou menos intensa, todas as atividades conformam usos e
áreas de atividade de alguma forma relacionadas àquelas em que os artefatos
lítícos foram empregados. Assim, o conjunto dos vestígios pode concretamente
oferecer elementos para nossa compreensão do material lítico, senão em seus
aspectos tecnológicos em sentido estrito, ao menos como vestígios materiais resul­
tantes de agrupamentos humanos pretéritos que, vivendo na região que tomamos
como objeto e ocupando os locais que chamamos de sítio, realizaram um conjunto
de atividades relacionadas, na medida em que integram um modo de vida, uma
maneira de viver numa determinada paisagem.
Na análise das ocupações pré-históricas tardias da região de Diamantina te­
mos escavado e realizado coletas de superfície em diversos abrigos que têm reve­
lado indústrias líticas bastante interessantes. Parece haver uma recorrência entre
determinado tipo de material lítico e determinadas morfologias e implantações
dos abrigos na paisagem. Nos abrigos de piso regular plano e acesso fácil a partir
dos campos circundantes há coleções marcadas pela presença de plano-convexos
sobre plaquetas e sobre lascas produzidos com matérias-primas alóctones, des-
cartados em fase final de exploração — com gumes recursivamente reavivados e

204
Andrei Isnardis
muito abruptos -
, marcadas também peça presença de lascas de quartzo com
' retoques delicacLlos e regulares produzindo gumes semi-circulares, assim como
I presença de núcleos
I . , ------ e,n quartzo e núcleos em quartzito com pequeno número de
f aS’ aco,nPar>hados de lascas de debitagem em quartzito e retocados nada
I regulares, sobre! cassons e lascas fragmentadas, tanto em quartzo quanto em
Ii - ---------
uarlzito. Reconhecemos até o momento cinco abrigos cujo material lítico de
per icie e de níveis superiores das sondagens assumem essa feição. Outros
ngos, contudo, dentre os 54 já identificados como sítios na região, não apresen-
m coleções semelhantes, embora diversos apresentem também materiais de
superfície e materiais em seus níveis superiores. Estamos trabalhando com uma
upotese inteipretativa para os abrigos com a coleção descrita — que tenho cha-
ntado de abrigos de borda de campo — que seria a de áreas de atividade, asseme-
tadas a acampamentos temporários, nas quais os instrumentos mais formaliza­
dos sobre plaquetas e lascas de quartzitos alóctones foram utilizados e descartados
após seu esgotamento, tendo sido também utilizados e descartados, sem contudo
apresentarem sinais de esgotamento, instrumentos retocados pouco padroniza­
dos, núcleos e lascas brutas de debitagem, produzidas com a vanedade de quartzito
local aquela disponível no próprio abrigo em questão.
Se eu me detiver apenas sobre a indústria lítica, o que podería dizer a respeito
, dos demais abrigos? Apresentando eles coleções com características distintas e
não apresentando vestígios líticos semelhantes aos descritos nos abrigos de borda
de campo, podería correr o risco de tratá-los apenas pelo que não têm, dizendo
assim que eles não cumprem no sistema de uso e ocupação de território o mesmo
Papel que os abrigos de borda de campo. Detendo-me somente sobre a indústria
lítica, podería verificar que — e isto é apenas uma mera possibilidade, uma vez
que a análise das coleções de outros tipos de sítios ainda está se iniciando — em
outros sítios há mitras etapas da cadeia operatoria dos artefatos dos abrigos de
borda de campo ou que há vestígios que sugerem outras cadeias operatórias sem
conexão evidente com os artefatos retocados das bordas de campo. Eu correría o
risco de me limitar a dizer que os abrigos diferentes daqueles de borda de campo
não se integram à indústria dos plano-convexos e dos retocados em quartzo.
Entretanto, se eu me voltar para outras classes de vestígios posso me deparar
com estruturas e coleções que indicam outros usos dos abrigos. Num dos abrigos,
por exemplo, cuja morfologia e implantação na paisagem escapam àquelas dos
abrigos de borda de campo, esse horizonte de ocupações tardias apresenta estru­
turas de depósitos de vegetais, além de sepultamentos secundários. A coleção de
material lítico ali reunida não contém peças em quartzito semelhantes àquelas dos
abrigos de borda de campo, enquanto a indústria em quartzo guarda algumas
semelhanças com a daquela categoria de sítios, apesar de estarem ausentes as
peças de gume semi-circular de retoques mais regulares. Considerar os outros
elementos do abrigo e não simplesmente recusá-lo pelo fato dele não se conectar
de forma evi ente ustna dos plano-convexos e dos retocados de quartzo me

205
Notas sobre a solidão das Indústrias Líticas

permite pensá-lo como complementar aos abrigos de borda de campo, não em


relação à indústria lítica mas em relação ao conjunto da octtpação pré-histórica
tar ia como um todo. Posso pensar numa complementariedade em termos de um
sistema de sítios, que congrega esses abrigos, outros abrigos e outros sítios fora de
a rigos. A diferença na indústria lítica é acompanhada pela diversidade de outros
materiais, o que somado à implantação e rnorfologias distintas, pode me prover
e ementos para atribuir ao sítio um papel distinto daquele desempenhado pelos
a ingos c e borda de campo (porém integrado a ele) no sistema de uso da paisa­
gem aquela porção do Planalto Meridional do Espinhaço. A presença ali de
outros materiais indicativos de outras atividades e os atributos distintos do abrigo
po em, inc usive, me permitir compreender, porque estão ausentes dali os artefa­
tos p ano convexos e os retocados de quartzo de gumes semi-circulares, compre­
ensão que não seria possível através de elementos estritamente ligados ao material
htico, como a disponibilidade de matéria-prima, por exemplo.

Arrematando a prosa

0 que tenho dito aqui sobre a necessidade de reduzir a solidão e superar a


timidez (dito assim, mais parece um texto de auto-ajuda!) não deve ser novidade
para quase ninguém, sendo, inclusive, óbvio para muitos. Contudo, a observação
de nossas práticas sugere que vale a pena repetir o que não é novidade ou dar
destaque ao que é óbvio. Há muito se comentam e se discutem a disjunção entre
prática e teoria na Arqueologia — e não somente na Arqueologia brasileira (Hodder,
1999:30-31) — e a presença de um forte empirismo no nosso oficio. Parece-me
um fenômeno semelhante, ou relacionado, o fato das práticas muitas vezes se
distanciarem de princípios teórico-metodológicos sobre os quais, a princípio, há
um amplo consenso.
Os artefatos líticos só fazem sentido enquanto articulados a atividades huma­
nas e, portanto, um acesso muito mais amplo à significação dos artefatos é conse­
guido quando estes são articulados aos demais vestígios materiais dessas ativida­
des. Devemos estar conscientes de quais são as perguntas que estamos fazendo ao
material lítico, preocupados com a que vai servir o estudo das indústrias líticas.
Enfim, se pensamos as indústrias líticas em relação aos demais vestígios, me
parece que nos aproximamos mais do nosso objeto original de pesquisa: as socie­
dades humanas cuja cultura material nos chegou na forma de registro ar queológi­
co. A divisão desse registro em grandes categorias, conforme nosso entendimento
da natureza dos materiais, é uma invenção nossa. È preciso que estejamos atentos
para não reificarmos nossas categorias. Tal cuidado deve ser igualmente estendi­
do às nossas publicações, de modo que possamos realizar construções textuais em
que ganhem destaque as interpretações que realizamos do nosso objeto e não as
categorias classificatórias nas quais o compartimentamos.

206
Andrei Isnardis

Referências Bibliográficas

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LÉVI-STRAUSS, C„ 1985. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempode
MARTIN, G„ 1997. Pré-História do Nordeste do Brasil. Recife. Umv

MATURANA, H.; VARELA, F., 1995. A árvore do conhecimento. As bases biológicas d


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VIANNA, S. A. (org.), 2006. Arqueologia na Bacia do
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207
Contexto e Tecnologia:
Parâmetros para uma interpretação das
indústrias líticas do sul do Brasil

Sirlei Elaine Hoeltz*

i\as décadas de 60 e 70, a Arqueologia Brasileira fundamentou-se a partir da


concepção de dois conceitos básicos, tradição e fase, para definir e caracterizar as
sociedades pretéritas std-brasileiras — justificadas por apresentarem uma grande
j dispersão espacial e um longo período de duração. Desse modo, foram definidas
para o sul do Brasil as Tradições Pré-cerâmicas Umbu e Humailá para caracteri­
zar as sociedades caçadoras coletoras, e as Tradições Taquara e Guarani, entre
outras, para car acterizar as sociedades ceramistas. Para as Tradições pré-cerâmi-
cas esta definição é de caráter tipológico, vinculada à presença em seus conjuntos
Üticos de determinados artefatos guia. Sob tais critérios, a Tradição Umbu ficou
caracterizada pela associação à sua indústria de pontas de projétil e à Tradição
Humaitá, de artefatos bifaciais de grande porte.
Todavia, a partir da década de 80, as críticas à adoção de tais conceitos
passam a ser recorrentes1 quanto às caracterizações destas tradições pré-cerâmi­
cas. A discussão reside, portanto, não somente nas definições dos conceitos, se­
gundo Kern (1983/1984: 99), vagos e imprecisos, mas também na veracidade da
dualidade imposta às populações caçadoras coletoras, respaldada pelas evidênci­
as de que os artefatos guia de ambas as Tradições podem compor um mesmo
conjunto lítico. As explicações correntes para esses casos transitam entre a
reocupação da área (sobreposição), intrusões (contato entre os grupos) e proces­
sos migratórios ou difusão. Soma-se ao debate uma outra evidência: sítios arque­
ológicos representados pela associação de objetos líticos (especialmente dos indi­
cadores da tradição Humaitá) a fragmentos cerâmicos. Casos assim permitiríam
relacionar- esses conjuntos líticos a popidações horticultoras e não a caçadores
coletores. Evidentemente, tal tema requer um estudo mais detalhado, visto a
pertinência das inúmeras questões — com destaque inclusive para a afirmação de
Schmitz (1991: 17) de que “há poucos trabalhos extensivos e nenhum trabalho
aprofundado sobre a tradição Humaitá, embora todos arqueólogos do Estado, em
um momento ou outro, tenham lidado com ela”.

Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).


G9Ê S&5); Kem (19^^$^7eSZmm

209
Contexto c Tecnologia

Não é difícil julgar que as dificuldades que norteiam esses estudos são de
ordens diversas, parecendo ser o reflexo de aspectos ligados, por exemplo, à
enorme variabilidade artefatual verificada tanto intra quanto intersítio; à vasta
dispersão espacial dessas indústrias liticas; à recorrência com que os materiais
líricos indiscriminadamente se associam à cerâmica; à alta freqüência de sítios
superficiais e destituídos de dados cronológicos; à falta de um instrumental teóri-
co-metodológico compatível a comparações e à carência de pesquisas em escala
regional mais ampla (talvez, seja este o aspecto principal destas discussões).
Não há dúvidas de que estamos tratando de contextos bastante complexos e
que, consequentemente, não podem ser generalizados. Inicialmente é preciso
decifrar os sítios, oportunamente contextualizá-los e, por fim, agregá-los a estu­
dos regionais, em um esforço para somar os dados disponíveis em todos os traba­
lhos, à maneira de um mosaico em que todas as peças têm igual valor, a fim de
minimizar as divergências em voga.
Para que possamos ilustrar as razões desta discussão ampla, apresentamos um
estudo de duas pesquisas que desenvolvemos no planalto sul-brasileiro — ambas
fomentadas por trabalhos de arqueologia por contrato. Recorremos a esses traba­
lhos visto que os resultados contestam as definições tradicionalmente aceitas para
a tradição Humaitá, pois os instrumentais teórico-metodológicos adotados se dis­
tanciam das análises tipológicas tradicionais. Tais estudos objetivam recriar um
cenário regional a fim de demonstrar que há lacunas nessa definição e que
reinterpretá-la é pertinente.
Um desses estudos, efetuado em 2003, desenvolveu-se na área do canteiro de
obras da Usina Hidrelétrica de Barra Grande (SC), margem direita do rio Pelotas,
e resultou no Projeto de levantamento arqueológico na área de inundação e salva­
mento arqueológico no canteiro de obras da UHE de Barra Grande, SC/RS".
Neste, ficou constatada a ocorrência de diferentes estratégias de organização
tecnológica para uso do espaço, levando-nos a sugerir que tínhamos duas popula­
ções cultural e cronologicamente distintas: caçadores coletores (tradição Umbu) e
horticultores (tradição Taquara). O outro trabalho, efetuado em 2005, desenvol­
veu-se na área de implantação da Linha de Transmissão Garabi-Itá (RS), nas pro­
ximidades do rio Uruguai, e resultou na tese intitulada “Tecnologia lírica: uma
proposta de leitura para a compreensão das indústrias do Rio Grande do Sul,
Brasil, em tempos remotos”. Tal estudo permitiu-nos observar que a variabilidade
das indústrias líricas dos caçadores coletores do sul do Brasil encontra-se, princi­
palmente, na complementaridade entre peças bifaciais e instrumentos sobre lascas
e, a partir disso, sugerimos que estávamos tratando de um ou mais grupos sociais
aptos a efetuar diferentes tarefas, mas portadores de uma herança técnica comum.
A partir dessas contextualizações, sugerimos que as duas tradições líricas acei­
tas para o sul do Brasil são formulações prévias de uma realidade mais complexa
que podem ser compreendidas sob uma única tradição tecno ógica, e cuja varia­
bilidade artefatual se explicaria por mudanças uncro . entais, regionais

210
Sirlei Elaine Hocltz
1111 ^torilicas. Acrescentamos, contudo, que é possível haver peças ^agas
Andep-
porte com datas antigas, considerando-se também possive q
^°es tenham tido
j uma continuidade ou um novo ciclo.
Js Wfoes arqueológicas do sul do Brasil

a Ce,tes básicos'0^3 ,Br^süe*ra fundamentou-se a partir da concepção de dois con-


as pesquisas5? a<^1^° e ^ase’ tornando-se ambos pontos de referência de todas
ern anos ■ rata'se de termos amplamente utilizados pelos norte-americanos
j e Plülli s^terJ 9^eS a déC£,da de 1960 e que teriam sido sistematizados por Willey
L tesvin li Ambos os conceitos foram então adotados pelos pesquisado-
■ sitas defi ~S 3° ^,0^, arna Nacional de Pesquisas Arqueológicas (PRONAPA), e
3 Para r P°dem ser encontradas na Terminologia Arqueológica Brasileira
■ sítios erarnica (Chmyz, 1966). E será a partir desses conceitos que os inúmeros
■ eni S, .‘^"^'ógicos, identificados especialmente do período do Holoceno Médio
I Ser lar|te (8 500 AP), serão classificados. Essa alta densidade de sítios parece
■ C ecorrente de alterações do ambiente geográfico, que, neste período, apre-
I d ' 3 Urna diversidade de recursos alimentares e uma cobertura vegetal mais
usa e vanada às populações pré-históricas (Kern, 1991; 38).
■ ■ .si111’ em razão da composição diversificada de seus vestígios arqueológicos,
ais sítios foram classificados como representantes de ocupações relacionadas a
( nas populações distintas; os grupos de caçadores coletores e os grupos ceramistas.
^ntre os caçadores coletores, foram determinadas quatro tradições tecnológicas
liticas; os coletores litorâneos de moluscos, representados nos concheiros ou
sanibaquis da planície costeira; a tradição lítíca de talhadores de bifaces cujos
representantes ocuparam as paisagens florestadas (Tradição Humaitá); a tradição
foca com pontas de projétil cujos grupos ocuparam regiões de paisagens mais
abertas — os campos (Tradição Umbu); e a tradição lítíca tardia de formadores de
montículos (cerritos) que se situaram em areas de banhado nos campos do sul e
nas bordas das lagoas litorâneas. E entre as tradições ceramistas, que ocuparam
as mesmas regiões, embora mais tardiamente, há: a tradição Taquara, cujos gru­
pos situaram-se no planalto; a tradição Vieira, que se localizou nas áreas de cam­
po e a tradição Tupiguarani, de âmbito quase continental, que esteve representa­
da em todas as áreas de selva do território.
As duas pesquisas apresentadas a seguir se designam a demonstrar que a
leitura dos registros líticos, se calcados em outros parâmetros, como tecnologia e
contexto, propõe uma outra interpretação para as populações caçadoras coletoras
sul-brasileiras.
Contexto c Tecnologia

As pesquisas na área da UHE de Barra Grande/ SC~


As pesquisas, no sul do Estado de Santa Catarina, ocorreram no canteiro e
obras da UHE de Barra Grande, na margem direita - rio Pelotas, município te
---------- do
Anita Garibaldi. Trata-se de uma região
rr*<riãn topograficamente douco acidentada, com
tnnrun-aficamente pouco
suaves colinas e pequenas grutas.
A área estudada compreende um total de 21 sítios arqueológicos. Destes, 20
e apenas’llm stbo encontra-se sob gruta. Na sua maioria,
-- -------------------
localizam-se a céu' aberto
correspondem a sítios exclusivamente líticos, porém, 6 desses conjuntos líticos
associam-se a ragmentos cerâmicos3. Dentre os sítios lito-cerâmicos (sítios SC-
tin»
AG-40, ------- * ”> SC-AG-95, SC-AG-98
SC-AG-47, ~ Je e SC-AG-99 e SC-AG-100), 4 são do
es ituras ane ares com um ou mais aterros no seu interior e vestígios de
eXl. ^mrentO; lOdaV1^’ eXCet0 em um deles’ a quantidade de material cerâmico
°imsona. Destaca-se que casas subterrâneas também foram identificadas
o o, contu o encontravam-se no limite ou fora do canteiro de obras.
cmanrium*°namos ° s*tios para análise, por apresentarem indústrias líticas
oeXl nr11^ Ilumerosas <mais de 300 peças, o restante varia de 3 a 73
peças), visando, desse modo, às comparações intra e intersítios.

Identificação c Composição dos Sítios

Sítios N° dc objetos líticos N° de cerâmicas1


1 SC-AG-24 374
2 SC-AG-40 788 3.023
3 SC-AG-47 943 81
4 SC-AG-97A 492
5 SC-AG-97B 2.523

Figura 1

0 sítio SC-AG-24 (UTM 482.169 E/6.228.707 N), único sob gruta (com
17,4m de largura, 12,9m de profundidade e 4,25m de altura), localiza-se a
aproximadamente 600 m ao sul do sítio 97 — entre os dois extremos da área
pesquisada, onde um divisor de águas os separa. Os sítios SC-AG-40 (UTM 481.998
E/6.928.577 N) e SC-AG-47 (UTM 481.950 E/6.928.428 N) encontram-se igual-

2 Projeto de Levantamento Arqueológico na Área de Inundação e Salvamento Arqueológico no


Canteiro de Obras da UHE Barra Grande, SC/RS — Relatório Final: 1/2002 (Trabalhos de
Campo) e 2/2003 (Trabalhos Laboratoriais). Scientia Ambiental SC LTDA e Núcleo de Pesquisas
Arqueológicas/U FRGS.
3 A análise completa da coleção lítica encontra-se cm Hoeltz & Brüggemann (2003) e da cerâmica
em Herberts (2003).
1 A análise do material cerâmico encontra-se cm Herberts (2003: 4- ).

212
Sirlei Elaine Hoeltz

mesnra colina — Um. ouLro-> em torno de 500 metros. Localizados sobre uma
97A e 97B ' ,neia encosta e topo, respectivamente — distanciam-se dos sítios
niente 1 02»°' ^ue km. ® s^° 40 ocupa uma área de aproximada-
no topo de m ' ° s!lic\SC’AG-g7 (UTM 482.607 E/6.929.346 N) localiza-se
divisão e á™ SUaV.e P'atô e compreende uma área de 26 250 m2. Todavia, a sua
unia cot m C Uas an’c'ac^es (A e deu-se ainda nos trabalhos de campo, visto que
prima en?entraÇã° objetos líticos diferenciava-se (quanto ao tipo de matéria-
1 £ as lmensões das peças) de todos os outros objetos dispersos na área.
concentração, denominada de SC-AG-97B, localiza-se a NW e restringe-se a
uma Pequena porção de 12 m2.
Teoria e método para a leitura dos objetos líticos5
I E* . avamos,
r nesse período, ainda procurando nos distanciar das análises ex-
usivamente típológicas que vinham, desde a década de 60, sendo empregadas
c°m exaustão. A metodologia empregada nessa pesquisa resultou, portanto, de
unia convergência de modelos que já vínhamos adotando ao longo de nossos
tru alhos e, assim, criamos uma lista de atributos técnicos e tipológicos adequada
ao material em análise. Essa lista compreende atributos propostos no modelo de
Hilbert (1994) e Dias & Hoeltz (1997) para a análise dos núcleos, resíduos de •
apeamento e artefatos brutos; e agrega ainda atributos propostos por Dias &
oeltz (2002) para a classificação dos artefatos bifaciais. Essa adequação é de­
corrente da prática de nossos estudos que nos levou a perceber que as indústrias
líticas são singulares e, portanto, que os métodos de análise empregados deveríam
ser flexíveis a ponto de responder as suas particularidades.
Para criarmos tais modelos tínhamos como referência certos pressupostos teó­
ricos, dentre eles: Andrefski (1998), Brezzilon (1977), Collins (1989/90), Laming-
Emperaire (1967), Tixier et al. (1980) e Vialou (1980). Baseando-nos em Collins
(op. cit.: 51-52) por exemplo, seguimos a concepção de que a manufatura dos
instrumentos, embora siga um procedimento linear, não invalida a possibilidade
de analisá-la em etapas (ou grupo de produtos), mesmo que estas etapas não
sejam suficientemente distintas, em termos de procedimento e rendimento, a pon­
to de individualizá-las. Para o autor, cada grupo contém características próprias
com qualidades de rendimento diferentes entre si, mas de forma que o rendimen­
to de dada etapa ou grupo dependa do rendimento anterior. Seu modelo de
análise compõe-se de cinco etapas: 1) obtenção da matéria-prima, 2) preparação
e redução inicial de núcleos (preparação inicial da matéria-prima para a extração
de córtex), 3) lascamento pnmário opcional (modificação primária ou pré-formatação
das bases de produção de artefatos, sejam estes produzidos sobre núcleos ou
sobre lascas através c tecno ogia unipolar ou bipolar), 4) lascamento secundário
Aspectos lcón^°:’a„l,1 (2003: 83-183*) análise detalhada das indústrias líticas encontram-se em
5 Aspectos
Hoeltz & BrilgB
Contexto e Tecnologia

e formatização opcional (modificação secundária, associada à finalização e ao


aca lamento por retoque) e 5) conservação ou modificação opcional de peças
esgastadas pelo uso. O autor considera ainda que cada grupo de produtos, exceto
o primeiro, consiste de duas classes de materiais: os produtos de dejetos (resíduos
e ascamento) e os objetos destinados a maior redução ou uso.
ssim, elaboramos uma lista de análise6 que foca tanto a procedência da
matéria-prima quanto as tecnologias de produção empregadas na transformação
essas ' erentes matérias-primas em artefatos, a distribuição quantitativa e qua-
tativa os i esíduos de lascamento e a análise funcional dos artefatos relacionadas
a retoques e marcas de utilização. Os diferentes objetos foram designados de
orma rásica e, dentre eles, incluem-se: blocos naturais, lascas, núcleos, frag-
entos e ascas e núcleos, detritos, artefatos bifaciais e unifaciais, artefatos bm-
s e po os e, por fim, termóferos. Para cada uma dessas formas básicas relaci-
1 °^a ,jU'0S clue 33 caracterizassem visando ao processamento estatístico dos
os. ortanto, destacamos que os objetos eram analisados individualmen­
te, segundo critérios preestabelecidos.
> , . COI^ecÇão da listagem de atributos deu-se facilmente para todas as formas
j en lca as’ excet0 para os artefatos bifaciais e unifaciais. A diversidade
íri e^aS eia taman^la (lue decidimos, além dos atributos comuns a todas as
cõp<ú d P?-6 0I?gem c a matéria-prima, dimensões, quantidade de córtex e altera-
de dp npp 6 SVP°rt/ empregado (bloco, seixo, placa ou lasca) e da quantida-
eundn n t' V°S’ C 358 cadas segtmdo 8 tipos tecnológicos, individualizados se-
SZmlT epP0S1Çã° das retiradas, a presença de córtex e a forma das
dos artefato65! f r°CUI avamos, com tais procedimentos, verificar se a produção
dos artefatos bifaciais e unifaciais era padronizada.
arnueolópírnc35 a3a^ses’ os resultados permitiríam comparar os vários sítios
as adotXs nel Caf ° qUe é qUe Se m°dlfica no cIue diz respeito estratégi-

pre histoncas, procuravamos também identificá-las culturalmente.

A interpretação da leitura das indústrias líticas

casÍbScSlnd ’ 3 regÍâ° dlSPÕC 06 inúmeros afloramentos de rochas vulcani-

uma região com altas cotas de altitude. te por tratar se de


6 Veja descrição da lista de atributos cm Hoeltz & Bruggemann (2003: 88-109).

214
Sirlei Elaine Hoeltz

distintas 3 1SPon’^^ac)e de diferentes rochas na área, observamos também


is i as estratégias para a aquisição das matérias-primas, ou seja, os grupos opta-
• pre eiencialmente, pelos basaltos, pelas calcedômas ou pelos meta-lamitos.
m nas in ústrias — SC-AG-47 e SC-AG-97A (e também nos 16 sítios satélites)
r os o Jetos líticos foram produzidos na sua maioria de blocos de basaltos (94,0%),
°C 'f5 C e)?a^Xa cIuaüdade de lascamento, mas, conforme observado, disponíveis
em un ância e de fácil acesso. O restante dos objetos são de calcedônia (4,2%),
e quartzo (0,4%) e de meta-lamitos (1,4%). Há, inclusive, afloramentos basálticos
muito próximos a esses assentamentos, em média, 500 m ou 1,0 km; e não
rarainente com objetos, como lascas e peças bifacias, dispostos isoladamente so-
7!~,nos fedores dessas rochas. Destacamos, contudo, que no sítio sob gruta
^"24) os blocos de rochas basálticas (67,8%) foram igualmente as mais
adas, mas estas diferem dos basaltos adquiridos nos outros dois sítios, justa­
mente por apresentar uma granulometria afanítica e, portanto, com alta qualidade
e lascamento. As fontes de tais rochas não foram identificadas nas proximidades
(a area em estudo, mas visto a abundância de afloramentos basálticos, é provável
que se encontrem disponíveis, mas em áreas de difícil acesso.
Exceções a essa aquisição ocorreram nos sítios SC-AG-40 e SC-AG-97B. No
primeiro caso, o(s) grupo(s) adquiriu(ram) preferencialmente as calcedônias
(61,8%), em detrimento dos basaltos (37,1%), dos quartzos (0,9%) e dos meta-
lamitos (0,2%). No segundo, a relação novamente se inverte e a preferência deu-
se quase exclusivamente sobre blocos de meta-lamitos (97,6%), em detrimento
das calcedônias (2,2%) e dos basaltos (0,2%) —, sendo relevante, nessa escolha,
a alta qualidade dos meta-lamitos. A predominância de blocos em detrimento de
seixos sustenta a afirmação de que a proximidade de afloramentos basálticos e de
blocos rolados de meta-lamitos aos sítios resultou, para as populações, em baixos
custos na procura e no transporte dessas matérias-primas. Inclusive a presença de
blocos naturais de meta-lamitos in silu (sítio 97B) leva-nos a sugerir que talvez a
disponibilidade dessas rochas tenha motivado o assentamento do grupo. Para o
restante dos sítios podemos apenas sugerir que outras variáveis, além da abun­
dância e da disponibilidade dos basaltos direcionaram tais estratégias.
Mas prosseguindo com as análises, observamos que as escolhas diferenciadas
das matérias-primas resultaram em objetos líticos tecnicamente distintos. Essa rela­
ção parece indicar que nas estratégias de seleção, aquisição e transporte de maté­
rias-primas já estavam implícitos os objetivos da produção, e estes refletiríam a fun­
cionalidade dos sítios e, como consequência, vistos em contexto, a configtu-ação dos
assentamentos desses grupos humanos. Assim, na classificação dos objetos, segun­
do a designação de formas básicas, encontramos porcentagens relativamente equiva­
lentes em 4 sítios (24, 47, 97A e 97B), sendo as lascas unipolares (de preparação)
as peças mais representativas (variando entre 43% e 57%). As freqüências do
restante das Ce conjunto a outro, mas ainda assim predo­
minam os e os de lasca, em detrimento dos outros objetos.
Contexto c Tecnologia

O sítio SC-AG-40, no entanto, destoa dessa ordem, pois a porcentagem de


lascas bipolares (34%) ultrapassa as de lascas unipolares (26%) — embora a
quantidade de detritos e de fragmentos de lasca seja igualmente relevante. Mas
nessa indústria, em particular, vimos que os objetos foram preferencialmente
produzidos de calcedônia e, nesse caso, não causa estranheza a direta
proporcionalidade verificada entre essas rochas ou cristais e o lascamento bipolar.
Ratifica-se essa relação ao observarmos que as indústrias que compõem uma
razoável quantidade de núcleos bipolares, como os sítios SC-AG-24 (25%) e SC-
AG-40 (24%), o são, na sua maioria, de calcedônias. Reforçando esta relação,
têm-se lascas unipolares predominantemente de basaltos, numa média de 71,2%
entre os sítios, e lascas bipolares predominantemente de calcedônias, numa mé­
dia bastante alta de 83,6%. É provável que os fragmentos de lasca (56%) e os
detritos (72,5%) de calcedônias do sítio SC-AG-40 sejam igualmente produtos do
lascamento bipolar, visto as suas altas porcentagens.
Mas um outro sítio também destoa do restante, o sítio SC-AG-97A por apresen­
tar uma alta porcentagem de peças bifaciais e unifaciais (25%) e núcleos (12%) —
nas outras 4 indústrias esses percentuais não ultrapassam os 3%. Trata-se de peças
basicamente produzidas de basalto e igualmente relevantes são as dimensões de
suas peças bifaciais (entre 5 e 11 cm de comprimento, em média). Peças maiores
do que essas foram somente identificadas nos sítios satélites (entre 22,0 e 26,0
cm). Inclusive, teve destaque tanto nos trabalhos em campo quanto no inicio das
análises, essa variabilidade observada entre as indústrias, nas dimensões dos obje­
tos. Constatamos que o conjunto lítico do sítio SC-AG-24 (sob gruta) compõe-se por
peças relativamente pequenas (entre 1,0 e 4,0 cm, em média). Seguem os conjun­
tos dos sítios SC-AG-40 e SC-AG-97B, com peças um pouco maiores do que o
antenor (entre 1,0 e 5,0 cm, em média); ressaltando-se que essas três indústrias
compõem-se predominantemente de lascas. E como contraste, tem-se os sítios SC-
47 e SC-AG-97A cujos objetos são relativamente grandes se comparados às
outras indústrias (chegam, em média, a 7,0 e 11,0 cm, respectivamente) — desta­
cando-se, novamente, que esses conjuntos compõem-se não somente de lascas mas
também de peças bifaciais e unifaciais. Entretanto, poderiamos sugerir que tal
diversidade podería simplesmente ser o reflexo de aspectos ligados à funcionalida­
de dos sítios e não, necessariamente, a aspectos culturais.
Outro dado relevante é que em todos os conjuntos identificamos um número
muito reduzido de lascas unipolares retocadas; sugerindo que, ao menos nesses
locais, as lascas residuais não eram utilizadas para a execução de tarefas — talvez
servissem como suportes na produção de peças bifaciais, como pode ser o caso do
sítio SC-AG-24 e SC-AG-97B. Essa hipótese sustenta-se ao observarmos que, no
sítio 97 B, 39% das lascas unipolares apresentam cantos dorsais reduzidos, prova­
velmente indicando que o preparo dos planos de percussão cumprisse com o
objetivo dos artesãos de produzir lascas adequadas a atividades específicas —
visto que neste sítio houve uma intensa produção de lascas a partir de meta-

216
I
Sirlei Elaine Hoeltz
>. Idêntica sugestão pode-
1 lamitos, matéria-prima de alta qualidade de lascamento.
ríamos atribuir ao sítio SC-AG-24 (sob gruta), pois seu conjunto
seu —v apresenta
lítico■«-ifin-riva
caracteres técnicos semelhantes a este do sítio 97B. A diferença mais si
resume-se apenas à quantidade total de peças e ao tipo de matena prima
da — embora, ambas, de alta qualidade.

lí B

■ .í

■; i

I v

- . -í
c

Figura 2
ytrea da Usina Hidrelétrica dc Barra Grande: peças bifaciais de grande port<te.
Ilustrações: Adélcio Briiggemann.

217
I
Contexto e Tecnologia

E quanto às peças bifaciais (Fig. 2), é na indústria do sítio SC-AG-97A que


elas se destacam. AJém de numerosas (24,6%), compreendem peças muito gran­
des, chegando a medir 23 cm de comprimento (artefatos tradicionalmente atribu­
ídos à tradição Humaitá). Todavia, embora em menores proporções, estas peças
ocorrem também nos sítios lito-cerâmicos: SC-AG-40 (3,0%), SC-AG-47 (0,4%)
e na maioria dos 16 sítios líticos periféricos. Segundo nossa classificação, o tipo 7,
que corresponde a “peças com retiradas periféricas bifaciais em todo o contorno
(ou apenas em uma lateral), e uma terminação em ponta”, é o mais frequente. E,
indiferente ao tipo, tais peças têm, na sua maioria, blocos como suporte e zonas
corticais que as revestem em não mais do que 1/3. Nas indústrias dos sítios SC-
AG-24 (sob gruta) e SC-AG-97B, no entanto, as peças bifaciais não correspondem
a essas classificações. No primeiro caso, tem-se apenas uma pequena ponta de
projétil pedunculada (3,6 x 2,0 x 0,5 cm). Produzida sobre lasca de basalto
(matéria-prima idêntica a outras peças deste sítio), apresenta corpo triangular e
bordas finamente retocadas. No segundo caso, tem-se uma pequena peça bifacial
de meta-lamito (matéria-prima preferencial de todo o conjunto), confeccionada
sobre lasca e recoberta até ¥2 por córtex.
Por fim, além dos objetos já relacionados, evidenciamos, nos sítios SC-AG-40
(lito-cerâmico) e SC-AG-97A (lítico), percutores/multifuncionais de basalto (sei­
xos) e aliadores de cerâmica. Neste último, tem-se ainda um fragmento de mão de
pilão. £ preciso ainda destacar que, em um dos sítios satélites (sítio SC-AG-15),
foi identificado um machado polido sobre seixo de basalto.
Poderiamos, a partir dos dados até aqui descritos, julgar que esses 5 sítios
enquadrar-se-iam perfeitamente às tradições culturais definidas para 0 sul do
Brasil. Ou seja, os sítios exclusivamente líticos como o SC-AG-24 (sob gruta), com
ponta de projétil, e o SC-AG-97B, com pequenas lascas, compreenderíam os
caça ores coletores da tradição Umbu, enquanto a indústria do sítio SC-AG-97A,
com suas grandes peças bifaciais e unifaciais, representariam os grupos da tradi­
ção Humaitá. Os sítios lito-cerâmicos, como o SC-AG-40 e o SC-AG-47, estariam
relacionados a tradição Taquara devido à presença de um marcador cultural
., °rte , rePresentado pela cerâmica. Restaria explicar a presença de artefatos
ticos aciais, cuja tipologia remete à Tradição Humaitá, associada a estes dois
sítios, aspecto este que podería ser interpretado como índice de “sobreposição”
de ocupações. Estamos aqui apenas reforçando o quanto análises estritamente
tipologicas e que descontextualizam os conjuntos líticos podem conduzir a dadas
interpretações. Neste caso, desconsiderar-se os sítios periféricos ao sítio SC-AG-
97A e relacioná-lo à tradição Humaitá, tendo por suporte apenas a presença do
artefato guia, representaria uma concordância com a perspectiva tradicional de
que a variabilidade entre conjuntos líticos pressupõe grupos culturalmente distin­
tos e que todo sítio lítico é necessariamente relacionado a um grupo caçador
coletor (Dias, 2007).

218
Sirlei Elaine Hoeltz
Portanto, para reavaliarmos estas interpretações, vejamos, inicialmente, as
conclusões obtidas nas análises dos materiais cerâmicos. Herberts (2003: 68-75)
ocalizou suas análises principalmente nos sítios SC-AG-40 e SC-AG-98, visto que
eram quantitativamente mais numerosos do que os sítios SC-AG-47, SC-AG-95,
- . e SC-AG-1007. A escassa quantidade e a forte fragmentação dos cacos
cerâmicos desses 4 íiltimos sítios inviabilizaram maiores interpretações. Contudo,
destaca-se que os sítios 95, 99 e 100 compreendem estruturas anelares e, confor­
me observado pela autora, tais sítios não costumam fornecer cultura material
expressiva (Menghin: 1957; Ribeiro & Ribeiro: 1985 eRohr: 1971 apud Herberts:
op. cit.). Quanto ao sítio SC-AG-98, a autora relacionou-o a um sítio cemitério,
ligado a práticas cerimoniais. Associado ao que denominou de estrutura de com­
bustão funerária, havia duas pequenas vasilhas (comer e beber) e um tortual de
fuso fragmentado. A análise da cerâmica do sítio SC-AG-40, passível de um estu­
do mais criterioso, revelou uma alta porcentagem de vasilhames sem decoração
(93,8%), e, quando existente, esta ocorria somente em uma faixa zonal — na sua
metade inferior. Serviríam para cozer ou processar alimentos, armazenar líquidos
e também para o consumo (alimentos ou líquidos). Associados aos vasilhames,
foram também identificados tortuais de fuso. Este sítio pôde ser datado (C 14) e
apresentou uma cronologia, já calibrada, de 1 640 AD. Todos esses dados leva­
ram a autora a caracterizá-lo como um sítio habitação (aldeia) e relacioná-lo aos
grupos portadores da tradição Taquara - Itararé.
Tais informações, acrescentadas às nossas análises, conduziram-nos a reavaliar
os tradicionais paradigmas de caracterização das populações pré-ceramicas sul-
brasileiras e a ratificar que a variabilidade constatada em suas indústrias líticas
compreende um espectro de parâmetros mais amplo do que estes que foram
utilizados para definí-las.
Inicialmente, o estudo dos objetos líticos permitiu-nos concluir que, no conjun­
to das indústrias, há duas escolhas tecnológicas distintas: uma delas representada
nos sítios SC-AG-24 (sob gruta) e SC-AG-97B; e a outra, nos sítios SC-AG-40, SC-
AG-47 e SC-AG-97A. Tais diferenças são claras e persistem ao longo de todos os
estágios de produção, ou seja, desde a seleção e aquisição das matérias-primas,
passando pelas etapas de transporte e lascamentos iniciais, até a finalização e
abandono dos instrumentos.
Nos dois primeiros sítios, exclusivamente líticos (SC-AG-24 e 97B), o emprego
de rochas de alta qualidade de lascamento (basaltos quase vítreos e meta-lamitos,
respectivamente) resultou na produção de indústrias compostas por um alto
percentual de resíduos de lascamento. Dentre esses resíduos, têm-se apenas dois
instrumentos: uma ponta-de-projétil, no sítio sob gruta, e uma pequena peça bifacial,
no outro. A procedência deste tipo de basalto não foi determinada, mas os blocos

7 Os sinos 40 ®atólítcsOnlra'n Se entrc 33 indústrias líticas analisadas e o restante, entre os sítios

219
Contexto e Tecnologia

de meta-lamitos encontravain-se acessíveis e em abundância, dentro, e nas proxi­


midades, do assentamento. Tais dados levaram-nos a sugerir que ambos os locais
representam sítios oficina (Prous, 1992: 31) — locais de permanência temporária
destinados à produção de instrumentos. Além disso, por apresentarem produções
a partir de matérias-primas de alta qualidade (diferente dos basaltos identificados
nos outros 3 sítios) que resultam em objetos de pequenas dimensões, dentre eles,
lascas, núcleos fragmentados e peças bifaciais elaboradas sobre lascas (como a
ponta de projétil pedunculada), associamos ambos os sítios aos caçadores coleto­
res da tradição Umbu, cujas análises tecnológicas realizadas até o presente indi­
cam conjuntos dessa natureza (Dias, 1994, 2003a). Talvez o objetivo dessas
produções residisse na criação de instrumentos formais, que, segundo Andrefsld
Jr. (1994: 21-23), correspondem a instrumentos transportados por populações
móveis, confeccionados de matérias-primas de alta qualidade de lascamento e
passíveis de serem reavivados na indisponibilidade de rochas adequadas.
Nos outros três sítios, dois lito-cerâmicos e um lítico (SC-AC-40, 47 e 97A), a
aquisição de rochas basálticas resultou na produção de indústrias quase similares,
não fosse o percentual desigual dos tipos de formas básicas presentes — como as
grandes peças bifaciais, as lascas unipolares de basalto e as lascas bipolares de
calcedônia. Tal similaridade pôde ser observada na aquisição de basaltos de bai­
xa qualidade de lascamento (em afloramentos dispostos aos arredores dos sítios);
na redução do volume dos blocos de matéria-prima antes de transportá-los aos
sítios (agilizar o transporte); na produção de grandes peças bifaciais e unifaciais
(tecnicamente idênticas, vanáveis apenas segundo a presença de córtex na porção
proximal e a forma das extremidades), sendo o “tipo 7” o mais frequente; na
manutenção, nessas peças bifaciais, de zonas corticais; na popularidade das las­
cas unipolares desprovidas de córtex e na ausência de lascas retocadas.
E, paralelamente a esses dados, têm-se os fragmentos cerâmicos — portadores
da tradição Taquara-Itararé — que se associam às indústrias dos sítios 40 e 47; as
estrutuias anelares e os vestígios de combustão funerária identificados dentro da
área de estudo; as casas subterrâneas nas proximidades da área pesquisada, os
16 sítios satélites, cujas indústrias liticas são idênticas tecnicamente, mas numeri­
camente menores do que os conjuntos dos três sítios em questão; as ocorrências
isoladas de lascas unipolares e de peças bifaciais dispostas sobre e nos arredores
dos afloramentos basálticos; e a proximidade constatada entre todos esses sítios.
A reunião dessas informações permitiu-nos concluir que o sítio lítico SC-AG-
97A não corresponde a populações pré-cerâmicas, pois, contextualizado, pode
agregar-se aos sítios cerâmicos, SC-AG-40 e SC-AG-47, e aos 16 sítios periféricos,
e, juntos, representar um sistema único de assentamento, pertencente às popula­
ções horticultoras da tradição Taquara. Sustentamos essa hipótese a partir do mo­
delo proposto por Dias (2003b) sobre a variabilidade lítica em sistemas de assen­
tamento de horticultores. Analisando este tema com relação à Tradição Guarani a
autora sugere “que a variabilidade dos conjuntos líricos Guarani reflete, em última

220
Sirlei Elaine Hoeltz
I instância, variações de áreas de atividades relacionadas ao conceito de tekoha^ .
gun o Dias (op. cit.), a organização tecnológica das indústrias líricas da tra ição
uarani reside na produção de distintos conjuntos de artefatos, a partir de técnicas
| como o lascamento bipolar e unipolar, o picoteamento e o polimento. E estes
conjuntos, relacionados a atividades específicas, concentram-se no espaço da área
i < e domínio (tekohá) segundo a distribuição diferencial das tarefas. Exemplifica,
argumentando que nas áreas domésticas, associados à cerâmica, os conjuntos líricos,
como os resíduos de lascamento unipolar e bipolar, os artefatos brutos e passivos e
OS artefatos polidos, relacionar-se-iam principalmente a atividades de preparo e
consumo de alimentos e à confecção de artefatos. Diferentemente, nas áreas para
além do perímetro da aldeia, o instrumental lírico, como os machados polidos e os
artefatos bifaciais de grande porte, estaria relacionado ao cultivo, ao manejo
agroílorestal e à extração de matérias-primas minerais e vegetais.
Observamos que incorporar o modelo sugerido para as populações Guarani
(Dias, 2003b) à área estudada enriquece as possibilidades interpretarivas quanto
à relação contextual entre os sítios que compõem o sistema de assentamento da
tradição Taquara aqui analisado. O sítio SC-AG-40 relacionar-se-ia ao âm ito c a
aldeia, com seus conjuntos liticos designados às atividades domesticas. Por sua
vez, os sítios SC-AG-47, SC-AG-97A e todos os outros sírios periféricos estanam
relacionados às áreas de atividades específicas, no caso, a produção das peças
unifaciais e bifaciais e os machados polidos (sítio 47 e penfencos) para serem
utilizados nas áreas de cultivo (sítio 97AT
Concluímos o estudo sugerindo que, no cai ^Iir4Q
Grande, ao menos duas populações cultural e cronologicamente d«stm as ocupa­
ram a área. Num primeL momento, assentaram-se os caçadores coletores da
tradição Umbu, desempenhando atividades de produção de peças Wactaut entre

nizando-se segundo um complexo sistema e a

As Pesquisas na área de implania^ da Linha de Traasmissár,


Garabi-Tá8
Esta pesquisa localiza-se na região norte do Estado do Rio Grande do Sul e
encontra-se vinculada ao trabalho desenvolvido para a implantação da Linha de
Transmissão Garabi-Itá9, cuja extensão aproximou-se de 363 km — as coordena­
das geográficas dos pontos inicial e final são 28° 14’ 06” S - 55° 43’ 01" W
(Garabi) e 27° 16’ 25" S - 52° 24 26" W (Itá), respectivamente.

8 Tal pesquisa resultou na tese de doutoramento desta autora (Hoeltz 2005) Cnni-.rU „ .
........... -
(Capítulo 5).
’ Veja Montícelli & Brochado (2001), coordenadores do trabalho.

221
Contexto e Tecnologia

Geologicamente, a região corresponde ao Gmpo São Bento, o qual compreen­


de as formações Botucatu (rochas sedimentares) e Serra Geral (rochas vulcâni­
cas). Segundo a topografia, o traçado pode ser dividido dos municípios de Garabi
a Santo Ângelo, onde apresenta um relevo levemente acidentado, e de Santo
Ângelo a Itá, onde o relevo é tipicamente montanhoso.
Ao longo da área de impacto do traçado foram identificados 81 sítios arqueo­
lógicos e todos, sem exceção, foram localizados em superfície e a céu aberto.
Correspondem, na sua maioria, a sítios liticos (64 sítios) e foram encontrados ao
longo de toda a extensão da LT, diferentemente dos sítios lito-cerâmicos (alguns
materiais históricos e fragmentos ósseos) que se concentraram entre as cidades
missioneiras de São Nicolau e Caibaté.
Selecionamos três sítios para estudo e para tanto nos restringimos ao vale do rio
Ijui (primeiro trecho do traçado, com uma distância aproximada de 58,5 km entre
o primeiro e o terceiro sítio), que apresentava indústrias líticas inteiramente ade­
quadas às analises, ou seja, compostas por artefatos guia das tradições Umbu e
Humaitá (pontas de projétil, grandes peças bifaciais, talhadores e peças
bumerangóides). São eles: 1) Sítio 66-Ujc-04 (Zona 21 J - E: 0.745.146 N:
6.870.421), com área de 6 500 m2 e conjunto lírico totalizando 117 peças; 2) Sítio
92-UJJ-ll (Zona 21 J - E: 0.757.190 N: 6.869.369, com área de 18 000 m2e
conjunto lírico totalizando 90 peças; e o Sírio 173-Ujz-02 (Zona 21 J - E: 0.745.146
N: 6.870.421), com área de 9 800 m2, e conjunto lírico totalizando 944 peças.
Ao propor essa pesquisa estávamos preocupados não somente em retomar as
discussões em tomo dos conceitos que autorizam a validade das clássicas definições
das sociedades caçadoras coletoras sul-brasileiras, mas também em propor um
instrumental teórico metodológico que se fundamenta nas análises tecnológicas
francesas as quais exploram categorias cognitivas culturalmente construídas e, assim,
ultrapassam as classificações unicamente tipológicas e também as análises tecno-
tipológicas e funcionais que vínhamos adotando ao longo dos anos. A intenção era
avalizar a nossa hipótese de que as duas tradições líticas aceitas para o sul do Brasil
são formulações prévias de uma realidade mais complexa que podem ser compre­
endidas sob uma única tradição tecnológica e cuja variabilidade artefatual se explicaria
por mudanças funcionais, ambientais, regionais ou históricas. Mas precisávamos
testar tais hipóteses, e, para tanto, faltava-nos um instrumental analítico suficien­
temente adequado. Por essa razão, demos destaque à apresentação da metodologia
que adotamos, pois sugerimos a sua aplicação em pesquisas futuras na intenção de
completar um quebra-cabeça histórico, relutante ao encaixe de suas peças.

Teoria e método para a leitura dos objetos liticos pré-históricos

As análises tecnológicas seguidas por Boêda permitem, teoricamente, compre­


ender um sistema técnico de produção segundo dois eixos. O primeiro diz respei­
to à cadeia operatória, que traduz a sucessão lógica dos eventos técnicos e o

222
I
Sirlci Elaine Hoeltz
gundo refere-se ao esquema operatório, que traduz os aspectos cognitivos desta
«itleia operatória. Para o autor, a realização de um ato ou de uma sucessão lógica
e atos só é possível pela aplicação de conhecimentos técnicos e de saber-fazer; e
J ga que esles conhecimentos são aquisições obtidas desde muito cedo e quotidi-
ananiente pelos artesãos. Acrescenta que, dependendo da estrutura interna das
sociedades e da complexidade das técnicas em uso, a aquisição precoce faz com
íTUe os conhecimentos sejam aprendidos sem necessariamente serem pensados
ou discutidos (Simondom, 1958; Piaget, 1967 e Pelegrin, 1995 apud Boéda,
1997: 12 [grifo do autor]), e que estes conhecimentos e saber-fazer técnicos são
considerados rígidos e não serão renegociados na vida adulta (Simondom, op. cit.)
— porém, uma flexibilidade de adaptação sempre é possível . Para Boéda (op.
dt.) é desta rigidez, sinônimo de estabilidade, que se permite reconhecer, indivi­
dualizar e diferenciar as sociedades.
Em nosso estudo, portanto, o instrumental teórico-metodológico aplicado para
operacionalizar a interpretação da dinâmica de vida do(s) grupo(s) pré-histónco(s)
Pesquisado(s), apóia-se na análise das etapas que compõem uma cadeia operato-
ria, a qual, na prática, compreende os seguintes estágios ou etapas. aqiusição e
matéria-prima, produção de instrumentos e agenciamento do conjunto de instru­
mentos - estes estágios repousam sobre bases conceituais dtferentese ocorrem em
sucessão temporal (Perlès, 1992: 225-226). Assim, Boéda (1997), Boéda eZ
(1990), Fogaça (2003), Geneste (1991), Karlin et a . (1991). Pedes (op. cü.)
foram os prmcipais trabalhos selecionados e que, .mbncados, forneceram as pnn-
cipais diretrizes para compor a metodologia empregada nesta pesquisa.
Essa abordagem das atividades técnicas, diferentemente da empregada na pes­
quisa anterior (UHE Barra Grande), levou-nos a compreender os objetos a partu

que conduziram o artesao aPrden]Çcrono]ógica as retiradas determmadas pelo arte-


.. ), procura-se dispor em refletida10. Todavia, para operacionalizar a leitura
sao ao curso de uma camm i necessárj0 que se levem em conta alguns concei-
c a genese de um mstrumen,^ fundamenta] importância, pois, segundo
B°oedaT199e?-tr29-3?), representam o primeiro nível de variabilidade de uma in-
i. debitagem e façonnage, e ambos correspondem a uma

instrumentos. Segundo o autor (Boéda, op. cit.: 37-38),


mentos ou suportes oe u . i i r -r . . •
f connage fazem parte de duas grandes lamihas estruturais que
e i agem j concepção particular do tratamento da matéria-prima, resid­
ia 1 a obtenção do suporte dos instrumentos ou dos próprios instrumentos.

io n . nios tíc,"cos ao longo das análises referem-se ao vocabulário recorrente na


S ,rlatura (,a lcc"° üca f^ncesa; neste sentido, recorremos ao glossário de “termos de
tecnoloí liúca" »»rescn,ado P- Fogaça (2001: 421-434) para defini-los.

223
Contexto e Tecnologia

No caso da produção de um dado instrumento, o artesão, após a obtenção do


suporte, efetua retiradas numa ordem cronológica a partir das quais organiza
superfícies a fim de impor ao objeto uma determinada estrutura e, neste processo,
ele cria superfícies adequadas para compor unidades ativas e/ou passivas. Nesse
sentido, na leitura de um dado instrumento, partimos da afirmação de que um
instrumento decompõe-se em três partes distintas, segundo Lepot (1993 apud
Boeda, 1997: 17)”: 1) uma parte receptiva de energia que coloca o instrumento
em funcionamento; 2) uma parte preensiva que permite ao instrumento funcio­
nar, podendo, em certos casos se sobrepor à primeira; e 3) uma parte transformativa.
E para Boeda (op. cit: 34), cada uma destas partes é constituída de uma ou várias
Unidades Tecno-Funcionais (UTFs), sendo que uma UTF define-se como um
conjunto de elementos e/ou caracteres técnicos que coexistem em uma sinergia de
efeitos. 0 autor (Boeda, op. cit.-. 110) acrescenta que “A análise das Unidades
Tecno-Funcionais de um instrumento pode nos revelar uma complexidade insus­
peita a olho nu. E por isso que pensamos que na ausência de um tal estudo, a
realidade do instrumento continua impermeável” .
Portanto, a diferenciação das seqiiências ou etapas de lascamento traduz-se
pela interpretação do objetivo de cada retirada, individualmente, para em seguida
relacioná-las a uma ou mais unidades tecno-funcionais. Este procedimento resulta
na identificação técnica de cada uma das etapas; podendo tratar-se de uma Unida­
de Tecno-Funcional Transformativa (parte ativa do instrumento) ou de uma Unida­
de Tecno-Funcional Preensiva (parte passiva do instrumento). Para reconhecer­
mos uma UTF transformativa, baseamo-nos no trabalho de Boeda (1997: 66-67)
em que o autor observa que há várias combinações entre as duas superfícies que
compõem uma peça bifacial (entre superfícies planas e convexas). Ele explica que
a assimetria existente entre estas duas superfícies faz com que os planos de seção
das bordas sejam também assimétricos — e a estes planos denomina “planos de
corte”. Ao seguir a análise técnica, o autor identifica um trabalho de confecção feito
às custas destas bordas; e conclui que, se esta modificação tratar-se de uma afiação
(ou retoque — assim denominado nestas análises), tem-se um novo plano de seção
— o qual denomina “plano de bico”12. E, ao observar o modo como estas afiações
foram efetuadas, Boeda identifica sempre o mesmo procedimento, isto é, a modifi­
cação se faz às custas da superfície superior, convexa ou irregular, e a partir da
superfície inferior, sempre plana. A partir destas observações o autor afirma que
não há outra maneira de modificação para as peças bifaciais.

11 Em nossas análises adotamos as terminologias indicadas e utilizadas por Boeda (1997).


12 “0 ângulo de bico é também chamado ângtdo de afiação (affutage). Esse ângulo corresponde
à afiação de um ângulo de corte. Foi considerada importante essa distinção para detalhar os
diferentes estados de modificação de uma Unidade Tecno-Funcional (UTF)” (Boeda, 1997: 67).

224
Sirlei Elaine Hoeltz
Ao término da leitura de produção dos objetos líricos deverá ser P°ss
Micar a operação de lascamento, o suporte, a construção volu métrica ou es
o modo de organização das UTFs transformativas e preensivas, as carac
!®es dessas UTFs, enfim, todos os elementos e caracteres técnicos que a
"a reconstituição de produção da peça. A partir dessas interpretações sera possi-
'fl definir como e por que os instrumentos foram produzidos e, ao comp
objetos, definir quem os produziu. > Sellet
Para concluir esta apresentação teórica, reproduzimos a o servaça , .
(s/d: 110), ao advertir que “...Ainda que o estudo de uma q
requeira uma taxonomia, esta taxonomia não tem valor explicativo a
tipo de classificação necessária em uma análise de cadeia, opera o
cada situação e necessita de respostas analíticas precisas .
A interpretação da cadeia operatória desenvolvida na produç ~
indústrias líticas dos sítios 66, 92 e 173

Geologicamente, conforme apresentado, a região ex^ metamórficas.


litológica que compreende tanto rochas sedimentares quan ° disponíveis
Quanto à forma de ocorrência, essas matérias-primas encon ou pelo
em afloramentos ou em blocos dispersos, transportar os emao ]ongo
fluxo das águas dos rios. No entanto, ao verificar as suas d)SP°^”chas ígneas
do trajeto da linha de transmissão Garabi-Itá, observamos e rochas
(principalmente os basaltos) são de longe mais eSpessura das ca-
sedimentares e metamórficas — contraste este c evi o a a£joramentos rochosos
madas basálticas. Constatamos também que raramen e ,em ser facilmen-
são visíveis, ao contrário dos seixos, blocos e matacoes ^g, após a análise da
te identificáveis ao longo do percurso. Outro c a 0 e os grandes blocos
coleção lírica selecionada, é a alta frequência co ev;dente que, na mai-
correspondem aos suportes dos instrumentos. SSir'ignt0 senlelhante no que diz
oria dos sítios, os artesãos tiveram um comporta»’ matérias-primas,
respeito às estratégias adotadas no estágio e aqu ,. . am na toinada de decisão
Há de se verificar, portanto, quais aspectos m e esc0]]ia da matéria-prima
desses grupos. Um aspecto provável de ueni contrário dos basaltos
seria a qualidade de lascamento das roc ias me < vesículas e amígdalas (facil-
locais, que são bastante friáveis e impregna ng0 jmportando o tipo c e
mente desgastam-se e/ou partem-se < eaton varjaç3es texturais (meta-lamito,
golpe), as rochas metamórficas, apesar de suas van ç

13 Veja Hoeltz (2005: 127-136), onde a autora apresenta um roteiro de leitura para instrumentos,
núcleos, lascas e detritos.
'* A nomenclatura .
utilizada representa as dimensões da matéria-pnma: , , .
seixo (0,2cm a 6,4cm),
bloco (6,4cm a 25,6cm) e matacão (maior de 25,6cm).

225
Contexto c Tecnologia

meta-arenito-muito-fino e meta-arenito-fino) mostram-se homogêneas e pouco


friáveis — o que as torna mais aptas ao lascamento e a um funcionamento mais
eficaz. Outros aspectos a orientarem as estratégias, e não menos importantes,
parecem ter sido a necessidade técnica e a restrição funcional, pois foram os
blocos (sendo os de transporte em superfície mais frequentes do que os de trans­
porte fluvial) as formas preferencialmente selecionadas dentre todas as formas
disponíveis na área. Nesse caso, além da necessidade de investigar a qualidade
da matéria-prima, era preciso que o artesão considerasse igualmente as caracte­
rísticas em relação à transportabilidade e morfologia das rochas. Ora, conforme
observado na área, as diversas rochas são mais facilmente encontradas na forma
de blocos dispersos sobre os terrenos do que compondo os seus afloramentos
originais. Assim, essa disponibilidade fez com que o “custo de aquisição” das
rochas metamórficas não fosse alto, pois, apesar- de pouco abundantes, os artesãos
tiveram os meios de acesso (pequenas distâncias) e a extração facilitados. Um
terceiro aspecto diz respeito à tradição cultural do grupo que podería ter exercido
influência na preferência desse tipo de rocha, pois a análise tecnológica das peças
demonstrou que a produção processava-se sempre a partir de rochas de boa
qualidade de lascamento — indiferente ao tipo técnico produzido.
Determinado o modo de aquisição das matérias-primas, passamos ao estudo
de como os artesãos as processaram a fim de compreender a dinâmica do
lascamento, seqüência por sequência, e, assim, determinar as intenções subjacentes
a esses atos. No texto original (Hoeltz, 2005: 161-371), a apresentação de cada
um dos sítios iniciou com a descrição da composição total de sua indústria fítica,
seguiu com a descrição da análise diacrítica de cada uma das peças (selecionadas
por amostragem segundo as diferentes construções volumétricas) e finalizou com
uma síntese dos resultados obtidos nas análises, além de uma abordagem compa­
rativa intra e interindústrias (ou sítios) a fim de melhor compreender os esquemas
operatórios implicados. Todavia, neste artigo, o recorte resume-se à síntese dos
resultados e às suas comparações.

Síntese dos resultados do sítio 66

Sua indústria litica totaliza 117 peças. Dentre estas, individualizam-se: 49


lascas, 26 núcleos, 37 instrumentos, 02 artefatos brutos e 03 detritos. Para aná­
lise, selecionamos 20 instrumentos e 03 núcleos. As lascas, os detritos e os arte­
fatos brutos foram analisados na sua totalidade (nos três sítios selecionados).
A análise das lascas residuais do conjunto lítico demonstrou que os blocos,
antes de serem transportados até o local de assentamento, sofreram um tratamen­
to inicial fora do sítio e talvez até tenham sido trazidos já em um estágio mais
avançado de lascamento. 0 principal argumento diz respeito à ausência na indús­
tria de lascas corticais e a significativa presença de lascas cobertas por apenas
25% de córtex. Outra razão reside na diferença quantitativa desproporcional en-

226
Sirlei Elaine Hoeltz

tre instrumentos e lascas (produtos de debitagem e façonnage). Faz-se referência


também aos instrumentos produzidos com apenas poucos golpes, isto é, aque es
em que os artesãos mantiveram grande parte da superfície cortical do bloco (su
porte) original. Ora, se estes tivessem sido produzidos dentro do sítio,.seria espe
rado que um número maior de lascas corticais fizessem parte do conjunto.
Tem-se uma indústria lírica pouco numerosa, composta por núcleos e instru
mentos produzidos através de dois esquemas operacionais: debitagem efaçonnage.
Os núcleos foram explorados por debitagem e os instrumentos, segun o o tipo c e
suporte, foram obtidos por um lascamento inicial de debitagem ou façonnage.
Ressalta-se que, no caso da obtenção de um suporte por debitagem, a pro uçao
imediatamente seguia através de façonnage até a finalização ou o an ono c o
instrumento — tal procedimento indica que, neste último caso, havia erarqui_
mente a integração de ambas as operações em um mesmo processo e pro uç
A técnica utilizada para essas operações foi a percussão direta através e
percutor duro e a produção dos instrumentos parece guiada por um rac'°
peculiar que tem inicio na seleção de blocos, em geral espessos e e mo o ogi
alongada. Os estágios iniciais da produção limitam-se a uma seqüencia que com­
preende poucas retiradas para em seguida efetuarem-se as sequências qi
à criação das UTFs transformativas. Acrescenta-se que o ordenamento da produ­
ção dessas unidades dá-se sempre primeiramente pela organização as p
es planas, seguida da organização dos planos de corte e bico.
As análises das lascas residuais apontam algumas controvérsias
refere ao local de ocorrência das etapas de produção posteriores ao
lascamento das matérias-primas. Os tipos de lascas identifica as na in ,
correspondem, na grande maioria, aos negativos dos lasçamentos prese
os instrumentos. Uma das principais discordâncias diz respeito as comnri-
é?â maioria das lascas defaçonnage não deveria ultrapassar os c
mento e, no entanto, estas apresentam comprimentos geralmente J om-
o citado - discordância talvez reforçada pela pouca quantidade de
pondo a indústria. Outro elemento não correlacionável e a c isposiçc reDre-
sobre as lascas que, geralmente irregulares, não conespon e observa-
sentaria as lascas obtidas pela façonnage dos blocos. Conduzem ^^3^ de
ções, apesar das condições não ideais do sítio, a sugerirmos a po ° e
que os instrumentos tenham sido produzidos em ocais ora c o ressalta-se
não seria esta uma hipótese impossível. Quanto a nÍo X^dos
que nos outros sítios identificados ao longo do transec (os si « auantidade
para estudo) essa situação se repete, isto é, há uma mm oTnegatí!
de.instrumentos e as lascas residuais. Contudo, e preciso res < parecem
vos impressos sobre os núcleos, resultantes da operaçao de
compatíveis com as lascas residuais do conjunto, pelo menos no que^izrepeito
às dimensões. As formas retangulares e a presença de resíduo cortical nas lascas
maiores (maiores do 5,0 cm) reforçam essa afirmaçao.

227

Contexto e Tecnologia

Há uma variabilidade quanto aos métodos empregados para a exploração dos


núcleos e a produção dos instrumentos. Segundo o esquema operacional emprega­
do, podem-se diferenciar os núcleos e os instrumentos em distintas estruturas,
denominadas de “categorias”. Para os núcleos têm-se duas categorias (A: estrutura
piramidal e B: estrutura discóide). Para os instrumentos têm-se três categorias que,
segundo a construção volumétrica final e a organização (planos de corte e bico) das
UTFs(t), se subdividem em seis tecno-tipos: a) peças bifaciais (tecno-tipos: C, D, E
e F); b) peças trifaciais (tecno-tipo G) e c) lascas retocadas (tecno-tipo H).
A concepção das peças bifaciais resulta em estruturas em que individualizam
duas superfícies (lados) de lascamentos delimitadas por um plano de interseção.
Apesar da variabilidade observada ao término dessas produções, algumas propri­
edades técnicas são comuns aos quatro tecno-tipos identificados: a) o lascainento
inicial se processa a partir de blocos elipsóides (blocos transportados em superfí­
cie) de meta-arenito muito fino — apenas uma peça é de meta-lamito com trans­
porte fluvial; b) os blocos correspondem aos suportes dos instrumentos; c) os
planos de corte são criados a partir de superfícies planas; d) a extremidade distai
é pontiaguda; e e) a superfície cortical é mantida e relaciona-se sempre à UTF
preensiva (Fig. 3). A concepção das peças ttifaciais, por sua vez, resulta em uma
estrutura em que se identificam três superfícies (lados) de lascamentos: um dos
lados da peça compõe-se por duas superfícies laterais opostas e convergentes
(lateral esquerda e lateral direita) e o lado oposto, por uma superfície que inter­
cepta quase ortogonalmente estas duas (a base da peça).

Figura 3
Área de implantação da linha de transmissão Garabi-Itá: peças bifaciais multifuncionais.
Ilustrações: Sirlei Elaine Hoeltz.

228
Sirlei Elaine Hoeltz

As três categorias de instrumentos foram produzidas pelos artesãos com a


intenção de que cada peça suporte uma ou várias UTFs(t). Boêda e outros (2004:
9), ao analisarem objetos líticos compostos por várias UTFs(t), os denominaram
de ‘‘suporte de instrumentos”. Para os autores, trata-se de peças façonnadas
potencialmente capazes de receber mais do que uma Unidade Tecno-Funcional
transformativa, e correspondendo estas unidades a instrumentos idênticos e/ou
diferenciados. Pelo fato de possuírem suportes (blocos ou lascas como matriz para
façonnage) e construções volumétricas finais diferenciadas, os diversos instru­
mentos terão por consequência um esquema de preensão e de utilização próprios
a cada um.
A evidência de que dois esquemas de produção — debitagem e façonnage —
tenham sido utilizados, não é suficiente para que se garanta uma distinção em
termos de tradição técnica; contudo, pela análise tecnológica das peças, assegura-
se haver uma forte coerência e semelhança nos conhecimentos e saber-fazer em­
pregados pelos artesãos — até mesmo entre as peças resultantes de ambas as
operações.
Há complementaridade entre bifaces e instrumentos sobre lascas, em que
estes últimos possuem UTFs(t) mais agudas que não ocorrem nos instrumentos de
façonnage. Cada instrumento possui critérios técnicos integrados à sua estrutu
volumétrica — e isto é o que os torna funcionais. Assim, cada instrumento possi.
a sua individualidade e especificidade. Portanto, a variabilidade de tecno-tipos
relaciona-se à função e funcionalidade diferenciadas.
A indústria lítica do sítio 66 deve pertencer a um grupo cultural homogêneo e
não a um palimpsesto de materiais pertencentes a tradições técnicas diferencia­
das.

Síntese dos resultados do sítio 92

0 conjunto lítico do sítio 92 totaliza 90 peças. Dentre estas, individualizam-se:


63 lascas, 07 núcleos, 15 instrumentos, 02 artefatos brutos e 03 detritos. Neste
caso, selecionamos para estudo 13 instrumentos e 03 núcleos.
E interessante observar que a matéria-prima preferencialmente adquirida nes­
te sítio corresponde ao meta-arenito fino — rocha com textura mais grosseira do
que os meta-arenitos adquiridos nos outros dois sítios. Quanto a essa escolha apre­
sentamos algumas suposições: como a textura dessas rochas metamórficas varia
localmente na região, dependendo do grau de aquecimento sofrido pelos arenitos,
é provável que esses blocos de meta-arenito fino estivessem disponíveis mais pró­
ximos ao local do assentamento do que os outros tipos de rochas metamórficas e,
portanto, a sua coleta não exigiu do grupo grandes esforços. Além disso, se este
tipo de meta-arenito, que apresenta baixa qualidade de lascamento em compara­
ção às outras rochas disponíveis, foi empregado na produção dos instrumentos, é
porque o mesmo era adequado para os objetivos pretendidos.

229

I
Contexto e Tecnologia

As análises das lascas residuais apontam, assim como paia o sítio 66, que os
blocos de meta-arenito sofreram um tr atamento inicial fora do assentamento. Cor­
robora com essa sugestão, além das razões já indicadas, a ausência ou a baixa
ocorrência de lascas corticais oriundas daqueles instrumentos produzidos com
um mínimo de golpes, mas frequentes nessa indústria. Assim, o comportamento
de ambos os grupos (ou do grupo), quanto às estratégias adotadas no estágio
inicial do lascamento das matérias-primas, pode ser equiparado. 0 lascamento
inicial dos blocos foi efetuado provavelmente no próprio local da aquisição ou em
algum local próximo ao sítio.
Tem-se uma indústria quantitativamente menor do que a recuperada no sítio
66, mas composta igualmente por núcleos e instrumentos produzidos através das
operações de debitagem e/ou façonnage. Também a técnica utilizada para essas
operações corresponde à percussão direta com o emprego de um percutor duro.
Diferentemente do indicado no sítio 66, muitas lascas desse conjunto parecem
perfeitamente correlacionáveis aos negativos dos lascamentos presentes nos ins­
trumentos, apesar de ambos os conjuntos apresentarem um número reduzido de
lascas, se comparado à quantidade de instrumentos. Tais lascas são compatíveis
tanto nas dimensões (em média, 3,3 X 3,0 X 1,2 cm) quanto na morfologia
(retangulares) e na forma do talão (não apenas irregulares). A esse contexto soma-
se a insignificante presença de núcleos que podem corroborar com a lüpótese de
que era a façonnage, antes da debitagem, a operação posta em prática no local
mesmo que nem todas as etapas do lascamento tenham sido ali executadas.
Os artesãos, na produção de seus instrumentos, seguiram um raciocínio seme­
lhante ao identificado na produção das peças da indústria anterior. Há inicialmen­
te a seleção de blocos, em geral espessos e de morfologia alongada, cujos estágios
iniciais de produção limitam-se a uma sequência que compreende poucas retira­
das, para em seguida efetuar as sequências que levam à criação das UTFs
transformativas. Do mesmo modo, o ordenamento da produção dessas unidades
dá-se sempre primeiramente pela organização das superfícies planas, seguida da
organização dos planos de corte e bico.
Segundo o tipo de operação e a estrutura adquirida durante a produção, têm-
se igualmente núcleos e instrumentos divididos em categorias que se subdividem
em tecno-tipos. Para os núcleos, suas propriedades técnicas em nada se diferen­
ciam das propriedades que resultaram na categoria A (estrutura piramidal) da
indústria anterior. Para os instrumentos, no entanto, há três categorias, das quais
duas podem ser identificadas na indústria anterior (peças bifaciais e lascas
retocadas), e a outra é exclusiva desta indústria (peças unifaciais). As peças bifaciais
subdividiram-se em cinco novos tecno-tipos (I, J, K, L e M), que representam,
contudo, não uma mudança no esquema operacional, se comparado às peças
bifaciais do sítio 66 - visto que suas produções igualmente ocorreram a partir da
façonnage de blocos elipsóides —, mas uma variação na construção volumétrica
final e na organização das UTFs(t) e (p). Ressalta-se que, não raro, há semelhan-

230
Sirlei Elaine Hoeltz

ças de caracteres técnicos entre esses tecno-tipos e também entre estes e os tecno-
tipos precedentes.
A categoria das peças trifaciais está ausente, e a categoria das peças unifaciais
(tecno-tipo N) encontra-se representada por apenas uma peça. Essa situação pode
ser decorrente de uma quantidade de peças relativamente pequena no conjunto,
conforme já observado, e/ou das condições ambientais precárias em que o sítio se
encontra. Mas há um outro fator que pode estar exercendo influência na compo­
sição desta indústria em particular. Nas análises das peças bifaciais é evidente a
recorrência de peças cuja extremidade distai delineia-se num gume transversal
(caracterizadas pelas categorias I, J, K e M). Mesmo as peças multifuncionais com
formas curvas (tecno-tipo M) apresentam pelo menos uma UTF(t) com tais carac­
terísticas: plano de seção (plano de bico) plano/côncavo, retoques bilaterais, uni­
laterais ou alternantes e gume, em geral, agudo variando entre 40 e 70°. A
organização desse gume transversal parece de tal forma integrado à UTF preensiva
(seja ela cortical ou delineando um “estrangulamento ) que a peça toma uma
morfologia particular (Fig.4). Assim, nessa regularidade podem estar subentendi­
dos os objetivos desta produção e consequentemente a representação funcional
deste sítio arqueológico.

Figura 4
Área de implantação da linha de transmissão Carabi-Itá: peças bifaciais multifuncionais,
ilustrações: Sirlei Elaine Hoeltz.

231
Contexto e Tecnologia

Neste tecno-tipo M, em particular, reúnem-se as três peças mais originais de


toda a coleção analisada, seja pelo plano de suas construções volumétricas, seja
pelo plano funcional. Os blocos que serviram de suportes são alongados, e as
matérias-primas correspondentes são os meta-arenitos muito finos (2 peças) e os
meta-arenitos finos (1 peça). As dimensões são pouco variadas, em média, apre­
sentam 17,3 X 5,2 X 3,8 cm — comprimento, largura e espessura, respectiva­
mente. A construção volumétrica é excepcional, pois, apesar- de formas elipsóides
alongadas, a extremidade distai é curva, e a porção proximal individualiza-se
numa espécie de “estrangiúamento”. A variação maior fica por conta de uma das
peças que se apresenta na forma de um “bumerangue”. Não há como garantir,
mas, neste caso, é provável que houve a seleção de um bloco naturalmente curvo.
Diferentemente dos outros tecno-tipos indicados para esta categoria, tais produ­
ções envolvem várias etapas de lascamento — onde nada resta de superfície cortical.
Com seção mesial losangular, pode-se identificar UTFs(t) ao longo da periferia de
todas as peças. Dispondo ou não de um bloco inicial curvo, estas produções não
parecem tecnicamente fáceis de serem realizadas.
Do mesmo modo que verificado para o sítio 66, existe uma certa popularidade
de peças que foram submetidas a uma economia de seqüências gestuais, exceto
para as peças representadas pelo tecno-tipo M. Além disso, nesse contexto parece
que as atividades são menos diversificadas do que no sítio anterior em razão de
uma certa padronização verificada entre as UTFs(t) das peças.
Para alguns objetos deste conjunto, assim como no sítio 66, pode-se fazer
referência aos “suportes de instrumentos” (Boèda et al., 2004: 9), pois trata-se de
objetos produzidos com a intenção de suportar uma ou várias UTFs transformativas.
Além disso, pelo fato de possuírem suportes (blocos ou lascas como matriz para
Jaçonnagé) e construções volumétricas finais diferenciadas, os diversos instru­
mentos terão por conseqüência um esquema de preensão e de utilização próprios
a cada um.
A cadeia operatória em seus vários estágios de produção apresenta procedi­
mentos efetivamente idênticos aos efetuados ao longo da cadeia operatória de
produção da indústria lítica do sítio 66 — não obstante composta por certas cate­
gorias e tecno-tipos diferenciados. A partir dessa observação não há como tratá-la
como pertencente a um grupo portador de técnicas de produção diversas do
grupo que produziu a indústria anterior. Nesse sentido, parece razoável que se
discuta não a tradição técnica, mas as atividades cotidianas ou eventuais desen­
volvidas por esse(s) grupo(s) pré-histórico(s) em cada contexto.
Tratando-se de uma indústria composta por instrumentos tanto uni quanto
multifuncionais, mas que possuem, na maioria das peças, uma propriedade técni­
ca comum, ou seja, UTFs(t) padronizadas (gume transversal), não seria ilógico
sugerir que no local desta ocupação os artesãos estivessem executando não várias,
mas apenas uma atividade específica ou, e numa hipótese mais provável, uma
tarefa principal. Contudo, não se exclui a possibilidade de terem ocorrido outras,

232
Sirlei Elaine Hocltz

considerando-se a presença de peças bifaciais curvas (multifuncionais), lascas


retocadas e do provável reaproveitamento dos núcleos.
Concluindo, diriamos que as semelhanças verificadas entre a cadeia operató-
ria desta indústria lítica e a do sítio 66, somada à distância relativamente próxima
entre os assentamentos (em torno de 14,0 Km), leva à hipótese de que se trata de
um mesmo grupo de artesão, dotados de uma tradição técnica comum, que fa­
zem, nestes locais, paradas temporárias e que alternam as tarefas de acordo com
a situação (imposta pelo meio ou pelo grupo). Ou então, trata-se de dois grupos,
mas também originários de uma mesma tradição técnica e que se dividiram para
executarem as diferentes tarefas — advertimos que, indiferente do método de
datação que fosse empregado, é impossível provar uma ou outra hipótese.

Síntese dos resultados do sítio 173

0 conjunto lítico do sítio 173 é quantitativamente muito maior do que os


outros dois sítios: totaliza 944 peças. Dentre estas, individualizam-se: 623 lascas,
79 núcleos, 189 instrumentos, 02 artefatos brutos e 51 detritos. Para análise,
selecionamos 43 instrumentos e 06 núcleos.
Neste sítio, as rochas de meta-arenito muito fino representam quase 70°/(
amostra, havendo, em menores proporções, ocorrências de meta-lamito e nu
arenito fino. Tratando-se todas de rochas metamórficas, é provável que nes
estágio da seleção e aquisição da matéria-prima o aspecto “distância do sítio'
tenha sido relevante. Já se comentou a variabilidade textural dessas rochas de­
pendendo do grau de aquecimento térmico sofrido; portanto, a fonte do meta-
arenito selecionado deveria estar mais próxima ou, ao menos, mais acessível do
que os outros tipos. Essa hipótese ganha respaldo ao se comparar esta indústria às
anteriores: no sítio 66, assim como neste, o meta-arenito muito fino é a rocha mais
popular e, no sítio 92, a rocha de meta-arenito fino ganha popularidade; mas, em
nenhum desses sítios pode-se fazer uma correlação entre uma dada textura e um
determinado tipo técnico de peça. Assim, parece que o que estava em jogo para
o(s) grupo(s) no momento da seleção e aquisição da matéria-prima era apenas o
tipo de rocha (no caso, as rochas metamórficas) e não as suas variações texturais.
Considerando-se, novamente, as possíveis interferências que podem ter altera­
do o registro arqueológico, é inegável que, pelo menos, o lascamento inicial da
matéria-prima tenha ocorrido em algum lugar fora do sítio — provavelmente no
próprio local de coleta dos blocos, encontrados dispersos na área de circulação.
Assim, podemos afir mar que as estratégias adotadas nos dois estágios iniciais da
cadeia operatória (aquisição e lascamento inicial da matéria-prima) são comuns
aos três sítios selecionados para estudo.
Neste sítio há uma indústria muito mais numerosa do que nos outros dois
sítios, porém composta igualmente por núcleos e instrumentos produzidos através
de dois esquemas operatórios: debitagem e façonnage. Por debitagem, os artesãos

233
Contexto e Tecnologia

exploraram os núcleos e produziram suportes de instrumentos (lascas retocadas


ou algumas das peças bifaciais e trifaciais), e por façonnage produziram instru­
mentos. Essa combinação de dois esquemas operatórios para produzir um único
instrumento demonstra a complexidade do sistema de produção desta indústria.
I dêntica complexidade pode ser verificada na indústria do sítio 66, quando da
produção das peças trifaciais, o que não ocorre na indústria do sítio 92 (onde
somente lascas retocadas foram obtidas a partir da debitagem).
Apesar da desigualdade verificada entre a quantidade de instrumentos e de
lascas, os resíduos de lascamento de ambas as operações estão entre as lascas do
conjunto. As lascas residuais de façonnage apresentam elementos e caracteres
técnicos, como dimensões (menores do que 8,0 cm), morfologias (pouco espessas
e retangulares), talões (nem sempre irregulares) e nervuras (uma vertical ou em
duas paralelas), compatíveis aos negativos das peças bifaciais. Somadas a essas
evidências, as ocorrências de lascas de bordas e fragmentos de peças bifaciais
v êm confirmar que, pelo menos, certas etapas da produção desses instrumentos se
processaram dentro do assentamento. As lascas de debitagem, embora reconhe­
cidamente como produtos deste tipo de lascamento, em muitos casos, nem pare-
cem ter saído dos núcleos do conjunto e, sim, terem sido importadas de um outro
local. Contudo, há de se destacar (conforme observado em ambas as indústrias
anteriores) a possibilidade dos núcleos encontrarem-se em estágios já avançados
de exploração. Constata-se, inclusive, que este tipo de lasca foi recorrentemente
utilizado como suporte de instrumentos. Teriam sido importadas para o assenta­
mento e lá façonnadas? — uma resposta afirmativa seria cabível, pois idêntico
procedimento os artesãos tiveram com os blocos iniciais das peças façonnadas.
A técnica utilizada para essas operações também corr esponde à percussão
direta com o emprego de um percutor duro, sendo as pontas de projétil quase
sempre finalizadas por pressão.
Os núcleos e os instrumentos deste conjunto puderam, assim como o verificado
para as indústrias anteriores, ser agrupados segundo as suas construções estrutu­
rais. Para os núcleos, obtivemos estruturas piramidais (Categoria A), discóides
(Categoria B) e irregulares (Categoria O). Para os instrumentos, obtivemos peças bi­
faciais, peças trifaciais e lascas retocadas. A categoria dos instrumentos subdividiu-
se, ainda segundo a construção volumétrica final e a organização das UTFs transfor-
mativas e preensivas, em dez distintos tecno-tipos: P, Q, R, S, T (grandes peças
bi-faciais); U, V, X (pequenas peças bifaciais); Z (peças trifaciais) e H (lascas
retocadas).
No que diz respeito aos núcleos, tais categorias podem igualmente ser encontra­
das nas indústrias dos sítios 66 e 92. As diferenças ficam apenas por conta de
uma desigualdade quantitativa — o que não é de estranhar dada a popularidade de
peças desta indústria em relação às outras. Assim, conforme já argumentado para
os outros conjuntos líticos, é provável que na exploração de tais núcleos esteja
subentendida a intenção dos artesãos em obter lascas predeterminadas, seja para

234
Sirlci Elaine Hoeltz

a produção das pequenas peças bifaciais e/ou das pequenas lascas retocadas (pois
estas íillimas não parecem corresponder a lascas residuais da façonnage\ As evi­
dências de modificações em certos gumes, tomando-os agudos, sugerem a hipóte­
se do reaproveitamento de núcleos como instrumentos — principalmente da cate­
goria discóide (semelhante observação foi constatada nas duas indústrias anteriores).
Os instrumentos, por sua vez, estão representados por categorias já identificadas
em um ou em ambos os sítios analisados: peças bifaciais, peças trifaciais e lascas
retocadas. A diferença entre os sítios, no entanto, reside na maior variabilidade
de tecno-tipos nesta indústria do que nas outras duas, que se verifica pela diferen­
ça entre alguns caracteres técnicos que igualmente distinguem os tecno-tipos já
apresentados, como: a operação utilizada na produção do suporte, a organização
das UTFs transformativas e preensivas e a construção volumétrica final. Mas há
outros elementos que revelam instrumentos somente representados neste conjun­
to, que são as pequenas peças bifaciais produzidas a partir de lascas ou blocos.
Nesse sentido, as pequenas dimensões parecem revelar a produção de peças com
o objetivo de atender a funções específicas e distintas das que têm sido apresen­
tadas até o momento.
Mas nessa diversidade de instrumentos, há um elemento comum não somente
observado nas peças desta indústria, mas igualmente nas peças das outras duas
indústrias, que diz respeito ao número de UTFs(t) resultantes em uma única peça.
Não raro tem-se peças cujos suportes receberam mais de uma UTF(t) e julga-
se não se tratar de puro acaso, dadas as nítidas diferenças e a regularidade com
que foram confeccionadas — tratando-se, portanto, na sua maioria, de instrumen­
tos multifuncionais.
As diferenças nos arranjos das UTFs transformativas e preensivas podem ser
constatadas entre as gr andes peças bifaciais (Fig.5). Em geral, a metade superior ■

(porção mesio-distal) da peça corresponde à sua parte ativa e a inferior (porção


mesio-proximal), à sua parte preensiva. A extremidade distai é variável: as laterais
convergentes formam uma borda distai arredondada (tecno-tipo P) ou pontiaguda
(tecno-tipos: Q, R, S e T). As bordas mesio-distais, em geral, apresentam nitida­
mente duas UTFs(t), sendo que uma delas delineia um gume denticulado (tecno-
tipos: P, Q e T). Do mesmo modo que sugerido para as UTFs(t) distais, a disposi­
ção lateral e não muito extensa deste denticulado parece corresponder a uma
tarefa específica (e distinta das atividades para as quais as UTF(t) distais foram
produzidas). Por sua vez, a porção mesio-proximal, na maioria dos casos, apre­
senta-se coberta por superfície cortical e relaciona-se, portanto, à UTF preensiva
(tecno-tipos: P, Q e T); em outros casos, apresenta-se desprovida de córtex e pode
estar tanto relacionada à UTF preensiva quanto à UTF transformativa.

235
Contexto e Tecnologia

S. 173
013

Lado 1 Lateral esquerda Lado 2 Lateral direita

-cm

Figura 5
Area de implantação da linha de transmissão Garabi-Itá: peças bifaciais multifuncionais.
Ilustrações: Sirlei Elaine Hoeltz.

Ainda dentre as grandes peças bifaciais, o tecno-tipo S é sem dúvida um dos


tipos tecnicamente mais complexos. Relativamente menor do que os outros tipos
e indubitavelmente multifuncional, compõe, no mínimo, três UTFs(t). Um de seus
gumes laterais é convexo e com retoques bilaterais — idêntico a peças do tecno-
tipo M com formas bumerangóides —, ao contrário do gume oposto que, retilíneo
e com retoques unilaterais, provavelmente corresponde a uma atividade diferente
daquela. Se tivessem sido criados para idênticos fins, por que a ambiguidade? Há
ainda a extremidade proximal que, modificada, adiciona à peça mais uma UTF(t)
— com objetivos iguais ou diferentes das outras UTFs(t).
No que diz respeito às pequenas peças bifaciais — categoria exclusiva desta
indústria —, elas podem ser produzidas tanto a partir de uma operação de debitageni
quanto porfaçonnage. Existe o tecno-tipo U que, não fossem as pequenas dimen­
sões, em nada se diferenciaria do tecno-tipo T das grandes peças bifaciais (ressal­
tamos, contudo, enorme diferença dimensional verificada entre estas peças: de
9,7 a 25,5 cm de comprimento). Existem as peças lanceoladas que apresentam
mais do que uma UTF(t) e encontram-se organizadas de modos diferenciados,

236
Sirlei Elaine Hoellz

impondo às peças míiltíplas funções. E existem as pontas de projétil que, embora


apresentem um esquema de produção semelhante às peças lanceoladas, as suas
UTFs(t) encontram-se integradas umas às outras, impondo-lhes uma coexistência
mútua — esta é a característica técnica que a faz ser diferente das outras peças.
As peças trifaciais (tecno-tipo Z), estruturalmente diferentes das peças bifaciais,
parecem corresponder a objetivos igualmente distintos. No entanto, algumas se­
melhanças podem ser apontadas. Por exemplo, quando comparadas ao tecno-tipo
T (grandes peças bifaciais), em ambas a localização e a organização das UTFs(t)
ocorrem a partir de superfícies planas (correspondendo talvez a suportes obtidos
através da operação de debitagem). Do mesmo modo, em ambos os tipos técnicos
é possível individualizar-se UTFs(t) tanto na extremidade distai quanto nas late­
rais inesiais — diferentemente dos tecno-tipos: P, Q e R (grandes peças bifaciais),
onde as UTFs(t), além de localizarem-se nas laterais distais, apresentam organiza­
ções de planos de corte e bico diferenciadas.
Concluímos a análise do sítio 173, argumentando que há caracteres técnicos
correlacionáveis entre peças de diferentes categorias. Ou seja, que soluções técni­
cas idênticas estavam sendo reproduzidas em peças criadas a partir de métodos
operacionais distintos. Desse modo, afirmamos que, embora esta indústria lítica
componha peças estruturalmente distintas, há uma forte coerência e vánas seme­
lhanças nos conhecimentos e no saber-fazer empregados.
Ficou evidente, a partir da análise dos diferentes estágios das cadeias operató-
rias, que as produções das três indústrias analisadas são muito semelhantes entre
si. Observamos que desde a aquisição das matérias-primas, passando pelos pro­
cessos de lascamento, até chegar à finalização dos instrumentos, os procedimen­
tos se equivalem. Ou seja, os artesãos selecionavam, preferencialmente, os blocos
de meta-aienitos; processavam-nos através das operações de debitagem (obtendo
os instrumentos sobre lascas) e façonnage (obtendo, na sua maioria, as grandes
peças bifaciais); e, segundo a organização diferencial de determinados caracteres
técnicos, produziam uma grande diversidade de instrumentos (na sua maioria,
correspondendo a peças multifuncionais).
Assim sendo, temos argumentos suficientes para afirmar que estamos tratando
de um ou vários grupos de caçadores coletores, portadores de uma mesma tradi­
ção tecnológica e cuja produção lítica era motivada para atender a diversas tare­
fas. E esta afirmação leva-nos a sugerir que as pontas de projétil presentes apenas
na indústria do sítio 173, nada mais eram do que o resultado da ocorrência de
uma atividade específica — seja que a produção de pontas encontrava-se restrita
a determinados locais, seja que as pontas estavam sendo preparadas pai a serem
utilizadas. Representando instrumentos diferentes, específicos — até mesmo con­
cretos — estas pontas não foram produzidas em todos os sítios, mas estavam
inseridas em uma tradição técnica comum a qual foi identificada nos outros obje­
tos líticos da indústria.

237
Contexto e Tecnologia

Portanto, o estudo da cadeia operatória das indústrias líticas desses três sítios
localizados no vale do rio Ijuí fornece-nos subsídios para sugerir que as tradições
Umbu e Humaitá encontram-se arraigadas em diferenciações questionáveis. Pa-
rece-nos claro que a variabilidade das indústrias líticas dos caçadores coletores do
sul do Brasil encontra-se, principalmente, na complementaridade entre peças
bifaciais e instrumentos sobre lascas, possuindo, estes últimos, UTFs transformativas
mais agudas que não ocorrem nos instrumentosfaçonnados. Desse modo, depen­
dendo da(s) atividade(s) desempenhada(s) em um dado sítio, teremos uma dife­
renciação na popularidade das categorias de instrumentos produzidas. E, se essas
indústrias forem submetidas simplesmente a uma análise tipológica, ter-se-á a
falsa impressão de que se trata de instrumentos tão diferentes que, inevitavelmen­
te, serão vistos como produções advindas de populações culturais distintas.

Considerações finais

As definições das sociedades caçadoras coletoras snl-brasileiras, fundamenta­


das a partir dos conceitos de fase e tradição, mostrain-se, a cada nova análise de
coleções líticas, débeis, visto que os conjuntos líticos, quando analisados em con­
texto e com métodos que não priorizem seus aspectos tipológicos, parecem repre­
sentar uma outra realidade, diferente da aceita atualmente.
Os resultados da pesquisa na área da UHE de Barra Grande demonstraram
que, ao menos neste estudo, os sítios exclusivamente líticos e compostos por gran­
des peças bifacias estão relacionados a sistemas de assentamentos pertencentes a
populações horticultoras, no caso, da tradição Taquara, e não a grupos de caçado­
res coletores da tradição Humaitá — como poder-se-ia concluir, caso aceitas as
definições tradicionais. Por outro lado, as pesquisas na área de implantação da
linha de transmissão Garabi-Itá levou-nos a concluir que os três sítios analisados
representam um ou vários grupos de caçadores coletores, portadores de uma
mesma tradição tecnológica e cuja produção era motivada para atender a diversas
tarefas. Nesse sentido, parece-nos claro que a variabilidade das indústrias líticas
dos caçadores coletores do sul do Brasil encontra-se, principalmente, na
complementaridade entre peças bifaciais e instrumentos sobre lascas.
Comparando ambos os trabalhos, mas cientes de que outros estudos precisam
ser agregados a estes, avalizamos a nossa hipótese de que as duas tradições líticas
aceitas para o sul do Brasil são formulações prévias de uma realidade mais com­
plexa que podem ser compreendidas sob uma única tradição tecnológica e cuja
variabilidade artefatual se explicaria por mudanças funcionais, ambientais, regio­
nais ou históricas. Todavia, acrescentamos que é possível haver peças bifaciais de
grande porte com datas antigas, mas com a possibilidade de que as suas produ­
ções tenham tido uma continuidade ou um novo ciclo.

238
Sirlei Elaine Hoeltz

Agradecimentos: Ambas as pesquisas sintetizadas neste artigo desenvol-


veram-se a partir de trabalhos fomentados por arqueologia por contra­
to. Para os trabalhos na UHE de Barra Grande meus agradecimentos a
Adélcio Brüggemann, pela parceria, e aos colegas que participaram das
atividades de laboratório e de campo. Para os trabalhos na área da LT
Garabi-Itá, que resultou em minha tese de doutorado na PUCRS, agra­
deço ao Prof. Dr. Eric Boèda e Prof. Dr. Emílio Fogaça, que orientaram
a pesquisa e à Prof. Dra. Gislene MonticeUi, coordenadora do projeto.
Agradeço ainda à Prof. Dra. Adriana Dias, com quem detenho longas
discussões, aos meus professores do Doutorado Internacional de Ar­
queologia, em especial ao Prof. Dr. Pedro Ignácio Schmitz, e a todos os
colegas que auxiliaram nos trabalhos de campo. Finalmente, sou grata
à Scientia Ambiental SC e ao CNPq pelo apoio financeiro.

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242
Recent advances in
stone-tool reduction analysis:
A review for brazilian archaeologists

Michael J. Shott*

Brazilian archaeology has benefited from decades of French influence (e.g,,


Laming-Emperaire 1967). A vast country whose archaeological record remains
poorly documented and whose archaeological traditíons are of surprisingly recent
origin (Schmitz, this volume), Brazil is well served by the systematic French
approach. But no system, no national tradition, is sufGcient for all analytical
purposes, another way to say that all approaches have limits. Cabrera (2004), for
instance, chronicled both advantages (e.g., comparability) and disadvantages (e.g.,
ambiguity in type deGnitions, assumption of equivalence in typology between widely
separated regions) of European systematics applied to the nearby Uruguayan
archaeological record.
My subject is the patterned reduction that stone tools experience from íirst use
to discard. Reduction poses the challenge of its own recognition and measurement,
but possesses systematic properties of its own and holds great potential in the
study of ancient tools users, their industries, and their cultures. One limitation of
French systematics is its imperfect grasp of reduction, manifested in extreme
cases by the implicit or explicit denial that such reduction occurs. Although the
reality of reduction is perfectly obvious to many, I am at some pains to document
it here for the sake of the many more who remain skeptical. But my chief purpose
is to commend to Brazilian ar chaeologists the methods that archaeologists elsewhere,
chiefly in the Anglophone world, have developed to measure degree and pattern
of reduction and to use such measures in Service to higher theoretical goals.
In particular-, I link reduction to the curation corrcept. Indirectly, reduction
measures curation. In turn, curation is a potent theoretical entity that reveals
much about prehistoric industries and the cultures in which they were embedded.
Curation also calibrates tool use to discard and assemblage formation. To adopt
the reduction thesis, Brazilian archaeology need not abandon French systematics
or its own. Reduction and the apparatus of analysis that has grown up around it
complements, not replaces, it.

‘ Dept. of Classical Studies, Anthropology and Archaeology. 302 Buchtel Common. University of
Akron. Akron, OH 44325-1910 USA. shott@uakron.edu

243
Rccent advances in stone-tool reduction analysis

The reduction thesis

By their nature or circumstances of use, many objects do not change in size


and form during use. Like other people, many archaeologists conclude from this
trivial fact that objects’ size and form are constants in use that bear some necessary
relationsliip to function. No matter hovv true this is generally, it is demonstrably
untrue of commonplace tliings like pencils. Nor is it true of stone tools, perhaps
the most abundant and therefore informative archaeological material. No one ever
doubted that stone tools vvere reduced as they were fashioned, but until recently
few archaeologists assimilated the extension or corollary that many stone tools
continued to be reduced during use, such that their size and form at first use may
differ from size and form at discard.
This is the reduction thesis, and it has far-reaching implications for ontological
fundamentais like the nature and identity of types and hovv tool assemblages form.
The reduction thesis can improve the quality and expand the breadth of lithic
analysis by accounting for systematic patterns of reduction before interpreting
variation in tool size and form as the result of cognition, design or use.
The reduction thesis had independent Old World and New World origins. It is
most developed in Australia, North America and in the European Paleolithic, all
of vvhich areas or time periods have extensive hunter-gatherer archaeological
records. The reduction thesis, however, is poorly assimilated in the French tradition
of lithic analysis. Brazil and South America’s Southern Cone also have extensive
hunter-gatherer records, highly influenced by French systematies. The range and
diversity of South American lithic industries and the research problems they are
used to address can accommodate a suitably broad range of analytical approaches.
There is no reason not to consider reduction analysis among them.

Variation and lhe challenge of types

Before tuming to lhe reduction thesis itself, I first consider the premises that
underlie traditional lithic analysis of tool form. especially the classification of
specimens in types defined on morphological or other grounds. No one who has
attempted it wotdd doubt that classification of stone tools is difficult, but even
biological classification, vvliich seems straightforvvard, can be problematic. Consider
"species," a fundamental biological unit of observation and inference. “Species”,
however, is ambiguous in its conmion definition that involves reproductive
boundaries. Biologists work vvith living taxa, difficult enough to classiíy. It is not
alwavs easy to identify reproductive boundaries, so biologists sometimes rely upon
gross differences in size and anatomy to distinguish species.
But paleontologists cannot observe reproduetion; for them, classification is
even less straightforvvard. their dilenunas more akin to archaeology's. Unable to
observe living organisms, paleontologists must order the great diversity of fóssil

211
Michael J. Sholt

specimens into meaningful units like species but must not confuse them with other
sources of variation like individual difference, growth from birth to maturity and
taplionomic distortion. When contemplating two or more specimens that broadly
are similar but that differ in some respects, paleontologists must decide if the fóssil
individuais were conspecifics that document the taxon’s range of variation or
tnenibers of two or more taxa separated by time, selection, and evolutionary change.
Like paleontologists, archaeologists must define types from the great variation
expressed in stone tools. But they cannot observe in use the tools that they classify,
and must remember that some stone tools were only parts of larger wholes, not
wlioles themselves. Like paleontologists, archaeologists also must consider
systematic variation that occurs within, not just between, taxa. Types are Platonic
ideais that specimens only approximate, so there is ordinary variation within them.
Stone tools do not grow but, on the contrary, become smaller with use. Reduction
is an archaeological analogue of biological growth that works in the opposite direction.
Finally, tools can be broken after deposition, so suffer some taphonomic efiects.
As in paleontology, so in archaeology: classification can be complicated.
Bifaces and some other tools are so extensively modified by hafting and use to
be impossible to mistake for other types. North American fluted bifaces, for instance,
are a relatively homogeneous type that requires no sophisticated methods to
recognize, but the definition of speciíic íluted-biface types like Clovis and Gainey
is much disputed, and possible historical links between, say, Clovis and Fluted
Fishtail points remain unclear. Ancient people only hafted some stone tools and
used many, hafted or otherwise, that were not constrained in size or form by their
manner of use. Most lithic classification is by size and form, but these properties
are ill-suited to flake (and some core) tools that vary widely in those respects but
perhaps less in the characteristics of their use and retouch. For every biface,
archaeologists might encounter dozens of unmodified or slightly modified flake
tools.
Whatever its problematics in use, lithic classification traditionally started from
two related premises. First, their size and form was essential to the definition of
tool types. Any type defined differed from any other in these respects, and all
tools belong unambiguously to one or the other. There is no continuum of variation
between types. There is no continuity, metrically or moqrhologically, between
knives and forks, wrenches and hammers, Middle Paleolithic single, double and
convergent scrapers, or lesmas and raspadores. These beliefs are archaeological
variants of essentialism, the view that types are discrete Platonic essences and that
their boundaries are marked by gaps or discontinuities in size and form however
measured or categorized.
The second premise is that the size and form in which archaeologists find tools
are the size and form in which they were used, excepting of course the fracture
experienced by many specimens. It is equivalent to supposing that we find short
stubs of pencils in trash cans because that is the size at which people used pencils

245
Recent advanccs in stone-tool reduction analysis

or, for that matter, that cigarettes were sinoked only for Deeting moments because
usually they are found as short butts.
Unlike metal, pottery and other important materiais, stone is a reductive médium;
no one assembles stone tools. From original cobble to íinished tool and beyond,
size change occiu s only in one direction. However trite it may seem, this observation
has deceptively profound implications for both typological premises. Taking them
in reverse order, the undeniable fact of reduction means that many tools are found
at whatever their size and form not because they were designed for use that way
but because they were reduced dming use and then discarded. They were not
designed for use at that size and form, but thrown away precisely because that
diminished size and perhaps changed form rendered them useless. The second
premise therefore is compromised by reduction.
Reduction itself occurs retouch flake by retouch flake, so in a sense is a discrete
process. But it is better understood as a continuous process (Shott, 1996a), both
because the incrementai units—retouch flakes—ordinarily are very small relative
to die tool and because reduction is measured by continuous variables or dimensions
like length and width. If tools are reduced and reduction is continuous, then tools
vary in continuous terms (Hiscock & Attenbrow, 2005). Things that vary so cannot
approximate Platonic essences. Any types formed among the complex variation
in stone-tool size and form are empirical tendencies; they are populations, not
essential types.
This is not to deny the validity of typological concepts nor the reality of many
stone-tool types. Even empirical tendencies sometimes are discretely different
from one another. It is, however, to deny the necessity of essential types and to
acknowledge the possibility that much variation in stone-tool size and form owes to
continuous reduction combined with modes of use and retouch. In recent decades,
therefore, archaeologists around the world have reimagined the nature of lithic
types and the nature of variation within and between them.

Documenling reduction

Reduction of tools in use is documented in several ways. First among them is


ethnographic observation, inherently limited because of the rarity of stone-tool use
in the present and recent past. Despite this severe limitation of the ethnographic
record, prominent examples exist.
Tindale (1965) observed the use of a flake hafted to an Australian spearthrower,
a lula in Australian terminology. Over two weeks of repeated use, the tula was
transformed from an unretouched flake into a much smaller remnant of very
different forni recognizable to Australian archaeologists as a tula slug. Later, Hayden
(1977) observed the reduction in size and change in form that Central Desert
Australian retouched flakes experienced in the course of use that ranged from
hours to days.

246
Michael J. Shott

Perhaps the best and most well documented ethnographic case of reduction is
in hafted Ethiopian hidescrapers. Gallagher (e.g., 1977) was possibly the first to
note the transformations wrought in obsidian and chert hidescrapers of the Ethiopian
liiglilands between first use and discard. The basic parameters of his account
were repeated by Haaland (1987) and especially Weedman (2000, 2002) in her
detailed study. Shott and Weedman (2007) devised measures of reduction Erom
Weedtnan’s data, as discussed below.
Experimental data do not prove that ancient tools were reduced by retouch
during use. But they do demonstrate how easy it is to reduce the size and alter the
form of types like hafted hidescrapers (Morrow 1996) and Folsom bifaces (Shott
et al., nd).
There is no direct observation of reduction from archaeological data, because
we were not there to see how tools were used, retouched and reduced. But
archaeologists have documented reduction effects in detailed studies of lithic
industries from many areas. Reduction and its effects on tool size and form—and
therefore on typologies based on these properties—register clearly in Lower (Potts,
1991; Sahnouni et al., 1997) Middle (Dibble 1995) and Upper Paleolithic tools
(Hiscock, 1996). They occur in North American stemmed bifaces (Cresson,
1990; Hoffman, 1985; Truncer, 1990; Wheat, 1975), Paleoindian flakeshavers
(Crimes & Crimes, 1985)—”limaces” in Paleolithic parlance, perhaps comparable
to the common Brazilian type “lesma”—and hidescrapers (Ahler, 1975:Figs. N-
5, N-6; Shott, 1995). They clarify many apparent problems with Australian lithic
typology by demonstrating how what once were considered distinct types are
merely arbitrary subdivisions of reduction continua in flake tools (Hiscock &
Attenbrow, 2005). They obtain even in Neolithic Swedish shaft-hole axes (Lekberg,
2000:Fig. 2). Thus, reduction effects are recognized in many tool types of many
ages from many parts of the world.
The typological implications of the reduction thesis are difficult to exaggerate.
Traditionally, much variation observed in tool assemblages is attributed to cultural
affinity, activity variation or other factors. Indeed, Paleolithic archaeologists record
affinity or activity almost entirely in different type proportions. If the reduction
thesis is correct, these conclusions are questionable uriless we control for the
effects of retouch on tool size and form. There are no Developed Oldowan industries,
no distinct notched-tool types, no Quina Mousterian facies. There is instead complex
and fascinating assemblage variation to explain. More than any other recent
development, the reduction thesis shows that how we classify determines what we
perceive about the past. Reduction is a cultural practice that no lithic analyst can
ignore.
Typological implications of the reduction thesis have made lithic analysts stand
up and take notice. But some might consider its value to be purely negative, as
revealing our ignorance where we thought we knew. Some considerable variation
in tool size and form that we might attribute to typology owes instead to pattern

247
Reccnt advanccs in stonc-tool reduction analysis

and degree of reduction. So perhaps the reduction thesis is an empty shell that
provides no positive knowledge.
Perhaps not. True, the reduction thesis has largely negative implications for
typology. (In a larger sense, even in tiús respect it is quite positive or constructive,
because it improves typological practice and inference. This value alone commends
the reduction thesis to the attention of lithic analysts.) Typology aside, however,
the reduction thesis has undoubted positive value. To describe that value, however,
requires defining and distinguishing three concepts: use-life, utility, and curation.

Reduction and curation

Around the world, the reduction thesis explains some variation in tool size and
fonn as well as, perhaps better than, traditional approaches. But the reduction
thesis reveals more than just each tooPs path through one formal type to another.
Trivially, each tool entered the archaeological record by being discarded for some
reason. At the higher levei of assemblages as sets of tools, variation in degree of
reduction identifies both the amount of reduction that tools experienced and the
processes that led to discard.
To exploit the wider potential that the reduction thesis possesses, it is necessary
to distinguish between three entities: reduction, curation, and use life. The physical
necessity and reality of reduction was established above, if it ever needed proving.
Use life is simply the Service life of objects, measured in time or in units of work
(e.g., for hidescrapers, number of strokes drawn or amount of hide worked). Use
life can be expressed as an average for tools of a type or class, or as a distribution
of values akin to the distribution of age-at-death in human populations (Hildebrand
& Hagstrum, 1999; Shott & Sillitoe, 2005). It is vital not to confuse use life with
curation, on the false logic that things that last longer on average necessarily are
more or better curated than things that last shorter times. Given the careful definition
of curation below, very short-lived flake tools, for instance, can be curated more or
better than longer-lived tltings (Shott & Sillitoe, 2005).
That leaves curation. It is well known that Binford (1973) originated tiús
concept, which has proven higlily productive in the analysis of lithic assemblages.
With time, however, curation carne to mean different things to different
archaeologists, everything from hafting to retouched to transpor! to “production in
anticipation of future use”. It seems best to call hafting “hafting,” retouch “retouch,”
and transport “transport,” and it is inconceivable that any tool was made without
anticipation of future use even if that future was only moments away. At some
length, I argued that curation is the ratio or relationship between two Utilities,
maximum and realized (Shott, 1996b). “Utility” in the abstract is amount ofwork
or use. Meximum utility is the maximum amount of work that can be accomplished
with a tool, equivalent to Elston’s (1992:41) “use-life utility,” Schiffers (1976:54)
“number of uses”, and DeBoer’s (1983:26) “remnant uselife”. Realized utility is

248
Michael J. Shott

the amount that a tool actually is used. In this sense, maximum utility is a constant
property of a tool type, which can be imagined as one Idnd of use (e.g., hidescraper)
or several (e.g., hidescraper, planer, cutter); the utility concept accommodates
niultifunctionality of tools. Realized utility is that amount that a tool accomplishes
during its use life. Thus, realized utility is a variable property of individual tools
within types. Curation is the ratio of realized to maximum utility, and thus is a
ineasurement and property of individual tools. The range and relative frequency
of curation values of individual specimens within a type—a curation distribution—
is a property of types and assemblages.
Consider an example. If maximum utility is the maximum conceivable amount
ofwriting use, resharpening and reduction that a pencil can experience to the limit
of prehension, then realized utility is the amount that each pencil is used before
loss or discard. Maximum utility is a relatively fixed quantity, but a glance at trash
cans and other places where abandoned pencils accumulate makes it clear that
realized utility varies among pencils. The curation rate of a pencil is the ratio of its
realized to maximum utility. In the case of a pencil only half reduced, curation is
0.5. In the case of a pencil reduced to the shortest stub that can be used, curation
approaches 1.0. For a collection or assemblage of pencils, the range and relative
frequency of such individual curation values comprise its curation distributior
Elsewhere I argued that curation conceived and defined in this way rerm
the ambiguity traditionally associated with the concept (Shott, 1996b). Yet,
admit that some ambiguity or limitation resides as well in curation defined in this
way. For instance, maximum utility is clear enough in concept but may be elusive
in practice. The maximum utility of a pencil can be equated with its minimum
length to remain prehensible. That length is apt to differ between the furnble-
fingered and the adroit. But then, it is apt to differ within relatively narrow ranges,
and it seems reasonable to use population averages to stand for maximum utility.
Also, curation is defined as a ratio between Utilities, which themselves express
quantities of work performed. But in practice amount of work is defined by amount
of reduction, not work directly. Two tool users who have different standards or
preferences conceivably could reduce the satne original tool to the same reduced
size but perform different amounts of work in the process. Consider again the
pencil example. You might resharpen your pencil often, preferring to use one that
has a relatively acute lip and resharpening it every, say, 10 fines of text. On the
other hand, I might be content to wear the tip down to a stub before resharpening
it once every 50 lines of text. Ambiguities inust be resolved, but they do not
invalidate the curation concept nor are they obstacles to its use in practice.

Measuring reduction

Measuring utility requires knowing the amount of usable material that a tool
contained originally (Kulin, 1994; Shott, 1996b:270). This abstract quantity is

249
Recent advances in slonc-tool reduction analysis

approximated by object inass, size or volume; Kuhn (1994:429) added edge


length for some purposes. Obviously, estimating either utility value requires knowing
original size of specimens. Thus, reduction measures curation and the amount or
degree of reduction measures amount or degree of curation. Curation itself is a
variable linked in models of activity and assemblage formation to important
characteristics of ancient cultures. Via the curation concept, then, reduction registers
cultural properties and practices that are worth knowing.
As important as it is for typology and curation analysis, reduction has proven
difficult to measure. Until accurate and precise reduction indices were devised,
tool reduction could only be approximated qualitatively. For instance, Dibble’s
(1995) Middle Paleolithic reduction thesis equated reduction stage with typological
status (i.e., if a flake tool was reduced so much, it became a Type A tool, if so
much more a Type B tool, and so on). Essentially, reduction approximated tliis
way is a nominal variable, a necessary status in the absence of reduction measures.
But only reduction indices grounded in estimates of tools’ original size can measure
reduction and curation as ratio-scale, continuous variables. This point is much
more than academic, because continuous measurement of reduction is faithful to
the continuous nature of the reduction process (e.g., Bradbury & Carr, 1999;
Hiscock & Attenbrow, 2005; Shott, 1996a). Ratio-scale reduction can be analyzed
in ways that nominal- or ordinal-scale reduction cannot be. So measuring reduction
requires comparing the end result—the tool as discarded to enter the archaeological
record and thus found by archaeologists—to its original size and form. Measuring
reduction thus requires estimating original size and/or form.

Reduction and original size

Various methods have been used to estimate the original size and form offlake
blanks that were used and retouched. They fali into two general categories—
geometric and allometric—along with a third set of miscellaneous measures (e.g.,
distinctions between tool haft element and blade).

Geometry

Kuhn’s (1990) “Geometric Index of Unifacial Reduction” (GIUR) was the first
popular reduction measure in this category. It is based on the progressive alteration
to the cross-section form of flakes as they are retouched during use. Unretouched
flakes begin their period of use with unmodified, often tr iangular, sections. As
their edges grow dull with use and are resharpened, sections are modiíied. The
GIUR measures the degree of that modiíication in a rather complex geometric
way:

250
Michael J. Shott

GIUR= D sin(a)

T
where D is depth of retouch (clistance between original edge and edge as retouched),
a is retouch angle and t is height of the retouched edge. GIUR is approximated
more simply as the ratio of t—thickness of the retouched segment of the edge—to
T, the flake’s maximum thickness as viewed in cross-section (Fig. 1).

B
t T-.5
-.«tinlil

Figure 1
Two Examples of Calculation of GIUR Using the Approximation t/T. Views are flake cross-
sections, t = thickness of retouched edge, and T=maximum thickness. Shading indicates
segments of edge removed by retouch.

Hiscock & Clarkson (2005) report good results in the use of GIUR, in controlled
experimental studies where degree and pattern of retouch are known. Like all
methods, GIUR has limitations, some of which are inherent and others depending
on mode or pattern of tool use (Shott, 2005). Briefly, GIUR assumes that ílake
cross-section always is triangular (as opposed to plano-convex or trapezoidal) such
that the value of t does not approach T except at the latest stages of retouch. But
depending on cross-section form, t may approach T well before the flake tool is
exhausted. This is the “Hat flake” problem (Dibble, 1995:Fig. 12). Between the
extremes of perfectly triangular and trapezoidal sections are incurvate and excurvate
sections. In these cases, t/T rises slowly (incurvate sections) or rapidly (excurvate
sections) with unit increases in invasive resharpening. That is, the same amount of
use, resharpening, and reduction yield a range of t/T values depending on sectional
geometry.
Just among flakes of triangular section, acute angles on relatively thin flakes
require absolutely more reduction to reach the same t/T value than do steep
angles on tlúcker flakes. Geometric limitations are simultaneously limitations of

251
Recent advances in stone-tool reduction analysis

scale. As tool size and sectional area increase, absolutely more resharpening is
needed to reach any given t/T value. (GIUR shares this scale effect with reduction
measures like the allomeuic inethods discussed below.) Hiscock & Clarkson’s
(2005) experiment shows that GIUR increases as a nonlinear function of weight
loss in ílake-tool reduction. As they note, this means that “not all increments in lhe
Kuhn index are equivalem”. It is a rubber, not a rigid, yardstick.
GIUR’s limitations are just that, not fatal flaws. To control for them, for instance,
comparison of t/T values can be confined to specimens of similar sectional geometry.
And there is little doubt that the GIUR works well on ílake sidescrapers. To
judge from lüs illustration, for instance, the tula whose reduction Tindale (1965:Fig.
19) documented was used íirst on one lateral edge, then rehafted and used on the
other. GIUR should be a valid measure of its reduction.

ERP
Eren et al.'s (2005) Estimated Reduction Percentage (ERP) essentially is a
three-dimensional volumetric extension of Kuhn’s (1990) geometric reduction
index. Its calculation begins with a geometric estimate of volume of edge lost to
retouch, Eren eí al.'s “Estimated Volume Lost”. This quantity is found as:

EVL = L* D^_sin2(a)cot(b)-sin(a)cos(a)
2
where D and a are as above, b is dorsal plane angle and L is length of retouched
edge. After this quantity is measured, the actual remaining volume of the lool V
is measured (Eren et al. used water-filled graduated cylinders). Finally, ERP is:

ERP = V
V + EVL

In Eren and Predergasfs (2007) experiments, ERP emerges as the best general
reduction measure, a provisional conclusion that should be further examined in
future broader comparisons. And its conclusion is not surprising. If reduction is
measured by weight, a good proxy for which is volume, then of course a volume
measure like ERP will perform better than a fully geomeüic one like Kuhn’s
index.
Recent experimental results are somewhat equivocai on the comparative merits
of GIUR and ERP. Hiscock & Clarkson (2007) found a high correlation between
GIUR and mass loss, contra Eren & Prendergast (2007). Such conflicting results
call for further experimentation.

252
Michael J. Sholt

Retouch Invasiveness

Andrefsky (2006) used an index of retouch invasiveness that he called HRI,


he “hafted biface retouch index”, on North American bifaces; Clarkson (2002)
used nearly the same index on Australian Dake tools. For general reference, here
I call both of them Invasiveness índices (II). The approach subdivides lhe plan
area of tools into various numbers of sections, often 16. Each section is assigned
a value between 0 and 1, depending upon the degree of invasiveness of its retouch.
For instance, Andrefsky assigned a value of 0 to sections “dominated by flake
scars originating from the bifacial edge and extending to the midline (2006:746).
If “the entire edge contains resharpening flake scars ’ (ibid.), the section receives
a value of 1. Intermediate values also can be assigned depending upon the number
and invasiveness of retouch scars. Andrefsky (2006:746) calculated the index as:

II = S Sj/n

Where S. is the sum of section scores and n is the number of sections.


II measures amount of invasive retouch and its distribution by zone or segment
of the subdivided tool’s perimeter. Like GIUR, II was tested in controlled
experiments. Standard templates cannot be used to measure the index because
each tool’s size determines the size of its constituent segments. The index also
equates amount of faceting with amount of reduetion, but striedy measures only
the former. A tool that originally was veiy large but that was resharpened minimally
along its edge many times may yield a similar value to an original small tool.
Because of the varying convexity of edge sections, they are not necessarily equal
in length but all contribute equally to II. Finally, why does II require a tool s
subdivision into eight or 16, or any other particular number of zones? On what
lheoretical or practical ground are those numbers preferable to, say, four or 29 or
amy other number chosen at random?

Flake “Allometry”
Allometry concerns how the proportions of components of things vary with the
sizes of those things. As reduetion progresses some dimensions are inuch reduced,
others little reduced. Their proportions change accordingly. In reduetion studies,
allometry (Blades, 2003) refers chiefly to the relationship between attributes of
flake blanks that change little with reduetion (e.g., flake thickness, and platform
area and thickness) and those that do, particularly surface area and mass. Hiscock
& Clarkson (2007) identified these as ratios of flake surface area to thickness or
platform area, but they also include the ratío of platform area to mass (Dibble &
Pelcin, 1995). In Dibble and Pelcins controlled experiments, platform area was
a good predictor of flake size, measured as mass or surface area. They used the
following expression to estimate original mass of flakes from platform dimensions:

253
Recent advances in stone-lool reduction analysis

Mass (g) = (-0.361 *PT)-(3.305*tanEPA)+(l ,663*tanEPA)*PT

where PT is platform tlúckness, EPA is exterior platform angle, and tan is the
geometric function tangent.
Later experimental data and analyses qualified this conclusion (Davis & Shea
1998; Shott et al., 1999) and yielded somewhat different allometric equations.
But Bradbury et al. (2007) showed that flake thickness remains a useful allometric
estimator of original size in most raw materiais, and Blades (2003) demonstrated
that measnre in use. Nevertheless, there is sufficient variation by material, hammer,
core size and industry to cast some doubt on platform size as an independent
measnre of original flake size. It should be used with care.
Quinn et al. (2007) devised an allometric measnre, what elsewhere (Shott &
Nelson, 2007) called the “Curation Index for Tip Resharpening” (CITR). Il bears
some similarity as well to haft-blade ratios described below. Quinn et al. subtracted
estimated original length found as an empirical allometric regression of length
upon thickness of the unretouched blades that occurred in their assemblages. In
retouched specimens, they then subtracted haft length (recognized from marginal
notching) from total length, calling the difference “bit” length. Finally, Quinn et
al. estimated reduction as:

CITR = (original bit length - remaining bit length)


original bit length.
This index cotdd prove valuable in the study of other types like Folsom bifaces,
whose tip form and sharpness are implicated in reduction analysis (e.g., Ahler &
Geib, 2000; Buchanan, 2006) and generally in evolutionary studies of biface
design and function (e.g., Hughes, 1998).
Hiscock and Clarkson (2005) disliked allometric measures and discussed the
relevant literature at some length. Briefly, ratios of platform dimensions or area to
any measure of flakes’ original sizes are statistically significant almost everywhere
studied. But assemblage-level correlations accommodate sufficient variation to
have little predictive value for individual flakes. Moreover, most correlations are
better for hard-hammer than soft-hammer or certainly pressure flakes, so these
estimates of original size and, by extension, reduction are Limited by technology.
Blades (2003) estimated original size (i.e., surface area) of flake blanks used for
Lpper Paleolithic endscrapers from thickness, because thickness correlated better
with size in experimental studies than did platform dimensions. In Hiscock and
Clarkson s experiment, allometric estimates of surface area from platform area
performed poorly but estimates from flake thickness were fairly accurate (2007:
Table 4).

254
Michacl J. Shott

Haft-Blade ralio

Many ílake tools were not hafted. But tools like bifaces are common outside
Australia, at least in North America, and they were modified as much for hafting
as for intended use. Even slightly retouched ílake tools like endscrapers can be
designed and partially modified for hafting (e.g., Morrow, 1996; Shott, 1995).
When hafts can be distinguished from blades, bits or other functional segments,
the relative size of haft and functional elements can be a reduction measure. In
tools designed for hafting, especially in lashed or socketed hafts, as opposed to the
niastic hafts common in Australia (e.g., Tindale, 1965), haft elements tend to be
relatively standardized in both size and form. Excluding broken or recycled
specimens, haft elements of little reduced and much reduced tools are similar.
T ools not reduced at all sometimes are found in caches or at quarries and workshops,
and little reduced ones can be found in some assemblages. Subject to these
qualifications, measures like the ratio of haft to blade (or other functional segment)
length, area or mass estimate amount of reduction experienced by tools. Grimes &
Crimes (1985) used this logic to calculate measures of reduction and, by extension,
euration and to plot their distribution among specimens in an assemblage of North
American Paleoindian ílakeshavers.

Comparing reduction measures

By now archaeologists have devised several reduction measures and tested


several of them. GIUR and ERP exploit section (usually cross-section) geometry.
Andrefsky’s (2006) and CIarkson’s (2002) invasiveness index II and, to some
extent, Dibble’s (1995) approaches exploit kind and extent of retouch to gauge
reduction. Allometry measures exploit the correlation between dimensions of ori­
ginal, unretouched ílake blanks that are affected and unaffected by reduction.
Form of manufactured tools, as opposed to form or size of original ílake blanks,
can yield reduction estimates by, for instance, calculation of haft-blade ratios.
Thus, archaeologists have a number of reduction measures based on form,
retouch characteristics, the allometry of original size and form, and archaeological
context. All have some value, which might vary by tool type, industry, toolstone,
context or other factors. All are inherently limited, but in different respects; no
biface-reduction measure, for instance, can be grounded in the cross-section
geometry of flakes or in platform allometry because bifaces lack these features.
Even some ílake tools like scrapers are modified extensively before use by trimniing
or removing features like their platforms. But several indices can be measured on
the same specimens, so there are opportunities, some already taken (e.g., Hiscock
& Clarkson, 2007), to compare them. Comparisons can involve any two or more
indices. They should be attempted in a range of assemblages that differ in tool
types and industry, toolstone, geography and other salient respects.

255
Recent advances in stone-tool reduction analysis

Comparisons will be complicated because measures do not scale identically.


The GIUR is a ratio that varies nominally between 0 and 1 and measures reduction
in two-dimensional cross-section form of three-dimensional objects. II varies over
the same range but measures reduction by lhe sum of interval scores of retouch
extent. Flake allometry measures also are ratios, one between two two-dimensional
ratio measures (platform area and surface area), another between one such measiue
(platform area) and mass, and a third between a one-dimensional (thickness) and
two-dimensional (area) ratio variable.
No matter their differences in scale, reduction measures are worth comparing
further in controlled experimental context and also in archaeological evidence.
But reduction is best measured using all means available, and no single estimator
is likely to be best for all purposes or in all tool types. Several estimators are apt to
correlate with one another, as did GIUR and length of retouch in the Capertree
assemblage that Hiscock and Attenbrow (2005) studied. Generally, which ones
are best under which conditions?

Applications

Measurement of reduction is a means to an end, not an end in itself. Reduction


measures must be applied to tools and assemblages of experimental, ethnographic,
and archaeological origin. Lithic analysis have begun tliis effort in recent years,
although I know of no relevant work in the French tradition, including in Latin
America. Therefore, the following briefreview concerns Anglophone sources that
might interest Brazilian archaeologists.

Experimental studies

Important experimental studies, some of which compared several reduction


measures, were noted above (e.g., Andrefsky, 2006; Eren & Prendergast, 2007;
Hiscock & Clarkson, 2007; Quinn et al., 2007). With colleagues, my own recent
work involved Folsom replicated fluted points (Shott et al., nd). A set of
approximately 20 points was made, hafted to foreshaft and shaft, and fired with
spearthrower or atlatl at animal carcasses. Each point was used until its tip, edge
or entire blade was dulled or damaged. Then it was repaired by retouching,
rehafted if necessary, and used again. The cycle was repeated until each specimen
broke irrevocably or was too small for further reworking. Points were measured at
first use, and at each stage of reworking. The experimental design gives the number
of reworkings, the reduction in size and change in form at each stage, and the
difference between size at first use and at discard.
We tested several reduction measures, íinding that the simple computation of
length multiplied by width, the product divided by thickness (L*W/T), was the
most accurate reduction measure. The product of length and width functioned as

256
Michael J. Shott

t rough measur e of surface area which, we reasoned, declined through use because
ength and to a lesser extent width were reduced at each stage. Following Blades
2003), we found that maximum thickness changed little, if at all, with retouch.
riius, as Folsom replicates were progressively retouched, the ratio of area to
hickness more or less constandy declined.

Ethnographic data

Shott & Weedman (2007) examined pattern and degree of reduction in


ethnographic hafted obsidian hidescrapers from highland Ethiopia originally
documented by Weedman (2000, 2002). Weedman measured each hidescraper
blade before first use and after each resharpening of its bit. Interestingly, specimens
of one scraper type were little modified for hafting and experienced relatively little
use before discard. (As above, reduction is common but not universal. Sometimes
tools are not reduced, or at least by much.) In a second type extensively modified
for hafting, length of use and number of resharpenings correlated significantly
with allometric measures L*W/T that can be calculated for archaeological
specimens, requiring no direct ethnographic observation. This result and measure
is similar to Shott et al.'s> (nd) conclusion for Folsom replicates.

Archaeological studies

Buchanan (2006) conducted a sophisticated study of reduction in Folsom points.


He used digital technology to calculate a number of nonorthogonal dimensions
and their ratios, then examined variation in these measures with derived measures
of size. Fitting the data to an allometric equation. Buchanan (2006:193-195)
concluded lhat most lengtli measures were positively allometric, width and basal
measures negatively so. Tliis conclusion makes sense, because length is more
reduced by reworking than are other dimensions. Buchanan’s study is significant
for this reason and also because it used a set of dimensions unlike the orthogonal
ones common in other studies. Compared to Shott et al.'s (nd) much less
sophisticated (if better controlled, owing to its experimental origin) analysis of
simple orthogonal dimensions, Buchanan’s demonstrates the value of digital data-
capture and the deíinition and use of many nonorthogonal dimensions.
Even more recently, Shott & Ballenger (2007) used reduction measures devised
for early Holocene Dalton stemmed bifaces of North America. They distinguished
between potential and realized utility (called “expended utility” or EU), and
approximated the difference in archaeological specimens as the ratio of (relatively
unchanging) base width to (constantly declining) blade width. They validated this
measure against experimental and archaeological data, then applied the measure
to several hundred Dalton specimens recovered from two dislinct contexts:
occupation sites and biuial caches. On the reasoning that most specimens discarded

257
Recent advances in stone-tool reduction analysis

at occupation sites were depleted while still-useful points were place in burial
caches, Shott & Ballenger found significant differences in EU values and, therefore,
curation between the contexts.

Challenges to reduction analysis

Many reduction measures are inevitable, perhaps even desirable to some extent.
No doubt still more will be devised, then tested with experimental and archaeological
data. Besides new measures themselves, several urgent tasks confront reduction
analysis.
The first concerns our concepts of appropriate or relevant dimensions or
characteristics. Perhaps only weight is both a measure of size and a unitary character
that is measured in only one way. So siinple a dimension as length can be parsed
by component or orientation (e.g., total, axial, blade, stem). There is no universal
length measure suitable for all purposes, nor should there be. Instead, different
measures record different aspects of reduction (e.g., ERP measures weight loss,
GIUR the change in cross-section geometry, EU [Shott & Ballenger, 2007] changing
blade-stem allometry). Many reduction measures are calculated from orthogonal
dimensions (e.g., maximum length, maximum width) or ratios among them.
Orthogonal dimensions are perfectly legitimate and have the added virtue of wide
use. Yet they reduce complex wholes to (usually) a few linear dimensions. They
are no more afull description oftool size and design than are stick-figure caricatures
adequate depictions of the human form. Archaeologists should consider measuring
two-dimensional or, ideally, three-dimensional form and size using attribute schemes
like Buchanan’s (2006) that are more detailed and therefore better approximations
of actual size and form.
Second, as work advances in the development of new reduction measures, the
need for their comparative evaluation and integration grows acute. We need well
controlled experiments that apply different measures to the same specimens. Several
specimens of the same type can be fashioned, then repeatedly dulled and
resharpened. At each resharpening stage, variables like dimensions, mass, and
edge angles sufficient to calculate several reduction measures can be recorded
and compared for their validity and accuracy in estimating degree of reduction.
But other reduction measures may be devised in the future. Because specimens
continue to experience reduction in size and change in shape at each resharpening,
it is not always possible to make observations necessary for new reduction measures
from the same original specimens. Size and form at, say, second resharpening is
lost once specimens are resharpened a tliird time, and so on. To control comparisons
among the number of measures that is apt to grow, accurate casts of each specimen
should be made at each resharpening episode to serve as archival Controls for the
later testing of even further reduction measures.

258
Michael J. Shott

Third, archaeologists must determine each measure’s fidelity to underlying


causes and pattems of reduction. Lithic analysts might emulate paleodemographers,
who confront similar problems in using several estimates of age-at-death in skeletal
populations (Shott, 2005:120). Although archaeologists have begun to compare
reduction measures, much more must be done.
Fourth, reduction measures must be applied to a wider range of stone tool
types and industries, a task for which Brazilian archaeology is as well suited as
any. In Brazilian perspective, extensive retouched tools like lesmas are an ideal
candidate for such analysis, but so are points and other bifaces.

Reduction distributions

Reduction should be measured for its own sake, to avoid some pitfalls of traditional
typology, and to estimate curation. In this latter respect particularly, however,
archaeologists must do more than merely measure. We must exploit resulting data
by compiling and analyzing curation distributions. This section briefly explains the
value of the analysis of distributions and explores some recent approaches. l
Like use-life, curation can be measured by central tendency (e.g., mean,
median)(Schiffer, 1976:54). Unless allspecimens had identical histories, however,
the distribution of curation values is as important as central tendency (Shott, 1996b;
Shott & Sillitoe, 2005). Two artifact categories can be equal in mean curation but
very different in their distributions, one showing little variation around the mean,
the other a great deal. Consider yet another analogy to pencils. Two sets of
discarded pencils both average, say, 50% reduction of original length. In one, all
pencils ar e reduced to that figure. In the other, pencils are discarded in equal
proportions from slight reduction of 1 % to practically complete reduction to stubs
at 99%. The populations are identical in mean curation but very different in the
distribution of curation values.
At the assemblage levei, degree or amount of curation is distributed across
specimens to form curation distributions or curves. Curation distributions may seem
esoteric, but actually influence how the ar chaeological record forms. To appreciate
why, consider two different hypothetical distributions (in arbitrary units) for the
same artifact class. In one case, all specimens are curated to exactly tire saine
degree, like the first set of hypothetical pencils. There is no distribution, only a
single value. The other includes specimens that vary greatly in the degree of curation
experienced before discard, like the second set of pencils. Curation means are
identical, but curation distributions differ. In the first case, each specimen represents
about the same degree or amount of use, at least as this quantity is measured by
curation. Specimens from the second distribution represent more variable curation
rates, so are not equivalentin degree or amount of use experienced. Figure 2 shows
cumulative distributions of curation values in three hypothetical assemblage scenarios

259
Recent advances in stone-tool reduction analysis

that vary from high (1, equivalent to low rates of infant and juvenile mortality) to
intermediate (2, equivalent to constant, age-independent risk of death or failure) to
low (3, equivalent to lúgh rates of infant and juvenile mortality) curation.

1.0

1 (b=2 08)

8•
s
CZ
O
> *
.6 • 2 (b= 068)
*
>
.4 .
3D ♦3(b-0.01)

i .2.

0.0 _ * l
0 T T 10 7*2

AGE

Figure 2
Hypothetical cumulative survivorship distributions. Note the change in form and in
Gompertz-Makeham b parameter from Curve 1 to Curve 3.

Inferring amount of tool use represented in these asseinblages is confounded


by curation’s distribution independently of ils mean (Shott & Sillitoe, 2005). This
hypothetical ilhistration is simpliGed, but it shows how curation distribution affects
archaeological inference and assemblage formation. The same use of the same
number of specimens in curation distributions can yield very different assemblage
size and composition (Shott & Sillitoe, 2005: Table 1).
As in Figure 2, cumulative survivorship characterizes the distribution of curation
values among specimens in or between tool types and assemblages. For instance,
Dalton bifaces differed in degree of curation between two North American late
Paleoindian contexts (Shott & Ballenger, 2007:Fig. 13). Specimens in Oklahoma
assemblage were curated more extensively than those from Sloan & Hawldns (Fig.
3). Why this should be is a matter for Dalton experts to determine, although it
probably had to do with the nature of Sloan and Hawkins as votive deposits.
Elsewhere, a tool class called “ílakeshavers”—perhaps similar to Brazilian les­
mas—differed in degree of curation between two North American Paleoindian
assemblages (Crimes & Crimes, 1985; Shott, 1996b:Fig. 1). Specimens in the
Vail assemblage were curated more extensively than those from Bull Brook. Why

260
Michael J. Shott

this should be is a matter for Paleoindian scholars to determine; perhaps it owed


to lower raw-material supply at Vail, or to more extensive mobility and the need it
created to use tools more thoroughly. In Australia, Cooper (1954:94-96) did not
compile curation curves but described similar variation in the lengths of discarded
tidas and in the average lengths between assemblages, attributing this variation in
part to toolstone supply effects.

1.0
V

.8»

$ OKLAHOMA

i
CD
.6 •
4 \
4 \

> Xt
I2
4 .
t
t
8
.2.

SLOANMAWKINS **

oo._
o.o T To" 1.5 20 2.5 30 35

EU

Figure 3
Cumulaüve Survivorship Curves for Dalton Bifaces from Two Contexts. Oklahoma
assemblages are occupational, while SIoan/Hawkins are burial caches. “Age is expressed
as “expended utilty” (EU). Source: Shott and Ballenger (2007:Fig. 13).

Curation curves can be compared between assemblages, but they also can be
analyzed. Depending on their forms and the distribution of values that comprise
thern, curves fitted to the Weibull, Gompertz-Makeham and other theoretical models
may implicate the effects of chance versus attrition in tool failure (e.g., Shott &
Sillitoe, 2005), with far-reaching implications for assemblage formation. Weibull
ais a scale (i.e., use life) parameter, â a shape parameter that implicates diíferent
causes of failure or discard (Shott & Sillitoe, 2004). If â= 1, failure is by chance;
ifâ> 1, failure is by attrition. Significant departure from 1 was gauged by maximuin
likelihood estimation (Shott & Sillitoe, 2004:344). Gompertz-Makeham a also is a
scale parameter, b a shape parameter that measures failure rate as a function of
time. Gompertz-Makeham b can be interpreted as curation rate, higher values
indicating greater curation (Shott & Sillitoe, 2005). Weibull and Gompertz-Makeham
parameters do not scale identically; the sarne data can yield different estimates for
parameters of the two models.

261
Recent advances in stone-tool reduction analysis

Shott & Sillitoe (2005) analyzed used flakes from highland New Guinea. Because
flakes were not retouched before or during use, and because most were liand-
held, they were subject to little reduction. Across flake types, average time of use
compared to maximum time of use of specimens of the type was a measure of
curation, higher values indicating higher curation. The most relevant aspect of this
study is Shott & Sillitoe’s (2005:658-659) argument that distributions of flakes
used for different lengths of time for different ptuposes pattemed with the Gompertz-
Makehatn b parameter. They reasoned that tliis parameter was a measure of
curation, a point expanded upon below.
In North American Paleoindian assemblages, fluted bifaces and endscrapers
have different characteristic cumulative-survivorship curves and failure distributions
(Shott & Sillitoe, 2005). Biface discard is governed by chance, which is no surprise
considering that bifaces (“points”) are thin for their size and in use are subjected
to many physical stresses from slriking objects at high speeds. End-scraper discard
is governed by attrition, again no surprise considering that scrapers are thicker
and more robust for their size and in use are subjected to fewer and less variable
stresses. Perhaps discard of Brazilian lesmas, like endscrapers, is governed by
attrition wliile discard of, say, Paiján points is governed by chance.
Whatever reduction or curation measures imply about tool use, they more
directly suggest how assemblages formed. Attrited tools do not fail at unpredictable
times and places. Therefore, attrited tools should accumulate at places in numbers
sufficient for their assemblages to be identiffed as large “sites”. Attrited tools have
more predictable life histories and longevity. Their size and composition in
assemblages register the joint effects of rate of activity performance and difference
in use life. Therefore, their assemblages should show correlation between size and
composition. Tools that fail by chance do so without regard to time or place, so
might be more dispersed across the landscape. They should accumulate in more
but smaller assemblages and at rates independent of activity performance.
Are curation measurement and survivorship analysis difficult? The proper
response to such a question is to deny its legitimacy and to argue instead that
archaeologists should determine what they need to know and orily then determine
how they can learn it. Unlike the great philosopher Homer Simpson, to whom
something worth doing well may not be worth the trouble (Fig. 4), litliic analysts
know better than to plead inconvenience as an excuse not to do something that is
worth doing. And besides, curation measurement and survivorship analysis are
neither difficult nor time-consuming. Lithic analysts can conduct such analysis
while not entirely denying Homer’s urge for ease.

262
Michael J. Sholt

Figure 4
Homer Simpson’s Pliilosophical Approach to Work.

Broader implications of the reduction thesis

Besides its obvious implications for lithic typology and cnration, the reduction
thesis has a deceptively profound implication for the meaning to attach to tool
assemblages. The traditional archaeological view identiíies tool size and fonn with
templates and thereby constructs types. It associates types with activities, whether
broad (“scraper”) or narrow (“dry-hide scraper”). The traditional preinises are
that variation in tool size and form is essential (i.e., forming sets of discrete formal
types) and that types bear some relationship to activity or function. Traditional
lithic classiíication identifies kinds of activities or uses. The presence of a cleaver
in an assemblage indicates butchering, the presence of a scraper scraping.
The reduction thesis has different premises. It views variation in tool size and
form as continuous, i.e., forming complex patterns of variable association and
distribution but not discrete, essential types. It does not so much reject as moot
the traditional view’s form-function identities. However tools were used, much of
their size-form variation owes to amount of use and pattem of retouch. The reduction
thesis has more quantitative than qualitative, premises. In its view, the presence in
an assemblage of, say, a tula slug is not evidence of a kind of activity, unless that
activity is defined broadly as scraping-planing-cutting. Instead, its presence registers
an amount of reduction that attended some kind and amount of tool use. That is,
a type’s presence in an assemblage no longer means “Kind of Tool or Activity X”
but instead “Amount of Reduction Y”.

263
Recent advanccs in stone-tool reduction analysis

Conclitsion

Reduction analysis is integral to determining the form of used slone tools, just
as are stylistic and functional aspects of design. No one doubts that size and form
can be measured, nor that their measurement and analysis bear on rnany
archaeological questions. No less is true of reduction. Reduction is also a key
aspect of the organization of stone tool use. Access to suitable materiais, movement,
resource scheduling, work group composition, among other aspects of land use,
can be understood through analysis of stone artifacts, including the reduction
process.
When we do all of this, then archaeologists can measure ctuatíon in a range of
contexts. We can plot its variation against teclmological, environmental and cultural
factors and in the process better explain curation as a complex bul systematic
variable, not as a simplistic and apparently arbitrary qualilative State. Wherever
we work and whatever our intellectual tradition, stone-tool analysis makes no
sense without understanding the places that tools occupy in the reduction process.

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Inference. In Primitive Art and Technology, J.Raymond, B.Loveseth and G.Reardon eds.,
pp. 7-15. University of Calgary Department of Archaeology. Calgary, AB, CAN.

267
Sobre os autores

Lucas Buerio

Professor Colaborador da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisador


do Museu de História Natural da UFMG.

Andrei Isnardis

Pesquisador do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas


Gerais.

Pedro I. Schmitz

Pesquisador e Coordenador do Instituto Anchietano de Pesquisa, Universidade


do Vale do Rio Sinos.

Adriana S. Dias

Professora do Departamento de História da Universidade Federal do Rio Grande


do Sul.

Klaus Hilbert

Professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.

Paulo Jobim

Professor da Universidade Católica de Goiás.

Maria Jacqueline Rodet

Professora Colaborador da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisado­


ra do Museu de História Natural da UFMG.

Mareio Alonso

Pesquisador do Museu de História Natural da Universidade Federal de Minas


Gerais.

269
F
Sobre os autores

André Prous

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais e Pesquisador do Museu de


História Natural da UFMG.

Agueda Vilhena-Vialou

Pesquisadora do Muséum National D‘Histoire Naturelle da França.

Sirlei. Hoeltz

Pesquisadora da Sciência Consultoria Ambiental.

Michael Shott.

Professor e Diretor do Departamento de Antropologia e Arqueologia da Universi­


dade de Akron, EUA.

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Ia EDIÇÃO: Dezembro, 2007


PRODUÇÃO: Segrac
FORMATO: 15 x 21 cm; 272 p.
TIPOLOGIA: Bodoni
PAPEL DA CAPA: Reciclato 240 g/m2
PAPEL DO MIOLO: Masler 75 g/m2
CAPA & PROJETO GRÁFICO: Milton Fernandes
REVISÃO: Erick Ramalho

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Editora
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