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PS-01-Arroio Sujo).4 Destes sete sítios identifica- arqueológica. Objetivamos, com isto, apresentar
dos, apenas quatro deles se tornaram objeto de as particularidades de cada contexto arqueológico
pesquisa efetiva, dado seu grau de conservação que dizem respeito aos aspectos composicionais:
que se traduz em um significativo potencial de dimensão do sítio, características dos vestígios
pesquisa a ser explorado. Trata-se de dois sítios arqueológicos, gráficos de registro e análise de
que se localizam na Ilha da Feitoria (PT-01-Sotéia materiais e interpretações funcionais dos sítios. A
e PT-05-Lagoinha), outro na margem da Laguna e partir desses dados é que poderemos extrapolar
outros dois na Praia do Totó, denominados PS- a abordagem sistêmica desde o micro-espaço do
02-Camping e PS-03-Totó, assentados sobre sítio até o macro-espaço, referente ao território
pequenas elevações em meio à mata de restinga. de domínio.
Na Serra do Sudeste foram identificados
outros treze sítios Guarani, sendo três situados na
região da Colônia Maciel, próximos do Morro 1. Sítios do Litoral
Farroupilha, denominados de Sítio Tico-Tico,
Sítio da Escultura e Sítio do seu Maneco. Os A Planície Costeira corresponde à Bacia
outros dez sítios Guarani foram localizados nas Sedimentar Litorânea, baixa e plana. É onde se
proximidades do vale do arroio Andrade e arroio situa a margem ocidental da Laguna dos Patos,
Correntes, próximos do morro dos Três Cerros e que teve sua formação durante o quaternário
denominados Sítios Magalon 1, Magalon 2, Sítio através de um Sistema Deposicional de Leques
Dummer, Sítio PSGPA-03-Rutz, PSGPA-01-Sítio Aluviais e do acréscimo de quatro Sistemas
Raffi 1, Raffi 2, Sítios PSGPA-02-Schwanke 1, Deposicionais do tipo Laguna-Barreira (Radam
Schwanke 2, Sítio PSGPA-04-Ribes e Sítio Fouchi Brasil 1986; Tomazelli & Villwock 2000). Com
(ver na Fig. 1 o mapa da área piloto e unidades alturas médias entre 1 e 10 m, a planície litorâ-
amostrais). As intervenções arqueológicas nos nea é banhada pelas águas da Laguna dos Patos
sítios identificados, realizadas tanto no litoral que é um importante corpo aqüífero da Planície
como na serra, possibilitaram delimitar a área de Costeira com predominância de água “doce”,
ocupação de cada sítio, identificar estruturas embora com um significativo índice de salinização
arqueológicas em superfície e/ou sub-superfície, no verão. Além disso, é um grande criadouro de
concentrações cerâmicas, coleta de vestígios para
várias espécies aquáticas e, conseqüentemente,
análise tecno-tipológica e coleta de amostras para
um grande atrativo para as atividades de pesca
datação que permitiram a obtenção de um
desde a ocupação dos sistemas socioculturais pré-
quadro cronológico baseado em datações
históricos até tempos modernos.
absolutas. Com isto, pudemos abordar questões
Os sítios do litoral apresentaram semelhan-
específicas de cada sítio como a função desses
ças quanto à implantação na paisagem, pois
enquanto elementos inseridos em um sistema de
todos os sítios se situam em meio à mata de
assentamento mais amplo e a intensidade de
restinga e próximos de banhados e campo
ocupação – se permanente ou semi-permanente.
aberto, além de estarem diretamente voltados
para as águas da Laguna. Localizam-se em
Dados arqueológicos: apresentando o contexto terrenos suavemente elevadiços, formados por
areias quartzosas que são o registro de transgres-
Apresentamos aqui alguns dados empíricos sões e regressões das águas desta laguna ou, no
específicos de cada sítio que sofreu intervenção caso dos sítios Hospital e Las Acácias, em
elevações mais proeminentes na paisagem
formadas por dunas fósseis. Dos sete sítios
identificados no litoral, apenas quatro deles se
(4) Estes três sítios foram identificados e estudados
anteriormente por Schmitz (1966, comunicação pessoal) e
tornaram objeto efetivo de pesquisa gerando
Brochado (1974) (ver mais detalhes do trabalho realizado resultados que serão rapidamente apresentados
por estes pesquisadores em Milheira (2007a, 2008). abaixo.
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Fig. 1. Área piloto com as unidades amostrais de levantamento arqueológico. Elaboração: Rafael Milheira.
Fonte: Google Earth.
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aqui como vestígios de alimentação, dentre os sendo a data calibrada colocada numa faixa
quais foram identificadas peças carbonizadas e temporal mais ampla, situada entre os anos
calcinadas, sendo mais um fator que reforça a 1450 a 1660 da Era Cristã ou 500 a 290 AP
idéia de deposição de refugos e posterior queima (Beta Laboratory Inc., n° 234205). Do ponto de
do mesmo (ver na Fig. 4 o perfil com a evidenciação vista funcional, sugerimos que esse contexto
da estrutura de deposição de refugos). possa ser considerado uma estrutura de fogueira,
A segunda área de escavação foi definida pelo devido aos restos de alimentação e carvão em
achado de um pote cerâmico enterrado. Nesse torno da caçarola, o que indica que possa ter
caso, ampliou-se a sondagem para uma área de havido preparo e consumo de alimentação (ver
escavação de 4m², com plotagem total das peças, na Fig. 5 a escavação da estrutura de fogueira com
em que se pôde evidenciar um pote articulado e a evidenciação da vasilha e vestígios associados).
semi-inteiro (ñaetá com decoração escovada). A análise dos materiais cerâmicos indicou
No interior desta vasilha se encontravam um predomínio de peças com superfície externa
dezenas de fragmentos de potes distintos, dando alisada (36,3%), uma quantidade maior de
a impressão de que se trata de uma caçarola em peças com decoração plástica (60,58%) e apenas
que foi colocada uma porção de cerâmicas (3,12%) de peças com decoração cromática. As
quebradas e posteriormente abandonada, ao medições de espessura das paredes cerâmicas
redor da qual havia ainda dezenas de vestígios (predomínio entre 8 e 10 mm), sugere se tratar
faunísticos associados. Este contexto foi datado de vasilhas de pequeno e médio porte, o que se
através da técnica de AMS em 380 ± 50 AP, complementa também pelas medições de diâme-
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tro de bordas (entre 12 e 36 cm). A projeção Totó, o sítio é “cortado” por este pequeno
gráfica dos potes a partir das bordas indica a arroio, de forma que são encontrados materiais
ocorrência de uma vasilha do tipo ñaembé, duas arqueológicos na sua margem em pleno processo
vasilhas do tipo ñaetá, dois potes do tipo de impactação e, por vezes, deposição em
cambuchi-caguâba e três yapepó. No que se contexto secundário (cf. Schiffer 1987). Seguin-
refere aos materiais líticos, foram identificadas do o procedimento metodológico padrão da
apenas cinco peças, sendo todas lascas ou pesquisa, realizou-se o trabalho de coleta de
fragmentos de lascas de quartzo. superfície e prospecções através da escavação de
Embora este sítio tenha demonstrado maior 60 sondagens espaçadas em 20 metros ao longo
densidade de materiais com relação aos sítios do sítio, com ocorrência de vestígios em quase
Sotéia e Lagoinha, tendo inclusive duas estrutu- todas as sondagens a não mais que 20 cm de
ras arqueológicas em profundidade (de deposi- profundidade. Através deste procedimento foi
ção de lixo e de combustão), ainda assim a sua possível compreender que se trata de um sítio
composição sugere se tratar de uma ocupação com uma área de dispersão de materiais bastante
semi-permanente, sendo, neste caso, interpretado ampla e que pode chegar até 200 metros de raio
como um sítio acampamento de pequenas com uma densidade de materiais superior a
proporções. todos os outros sítios identificados no litoral até
o momento.
À beira do arroio Totó foi escavada uma
PS-03-Totó estrutura funerária numa unidade de 2 m², em
que foi identificada uma urna funerária,
O sítio PS-03-Totó se localiza na praia do (cambuchí guaçú) com decoração pintada em
Totó, a aproximadamente 50 m da margem da linhas vermelhas geométricas sobre engobo
Laguna dos Patos. Localizado na foz do arroio branco, além da ocorrência de fragmentos de,
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no mínimo, três potes diferentes que estavam camada de terra preta antropogênica formada
associados (tigelas e caçarola). A urna estava pela decomposição de matéria orgânica, que
bastante fragmentada pelas ações naturais e por segue a topografia do terreno em declive na
isso não foi possível definir se os outros potes direção do arroio Totó, o qual, por sua vez,
estavam em seu interior, emborcados ou ao avança em direção à unidade de escavação
redor da mesma, não sendo possível também encharcando a área e submergindo parte da
identificar restos humanos (ver na Fig. 6 a estrutura (ver na Fig. 7 a escavação da estrutura
escavação da urna funerária e vestígios associados). arqueológica).
Numa outra área de intervenção foi A três metros, no sentido leste, foi escavada
escavada uma unidade de 4 m², onde foram uma trincheira de 10 m de comprimento por
coletados ao todo 716 materiais cerâmicos, 139 0,50 m de lado e 1,5 m de profunidade, na qual
materiais líticos, 172 vestígios arqueofaunísticos e foram coletados ao todo 335 materiais cerâmicos,
24 sementes de jerivá, além de grande quantida- 20 artefatos líticos e 45 vestígios arqueofaunísticos.
de de carvão que permitiu datar este contexto Nesta trincheira foram evidenciados vários
em 530 ± 40 AP, com data calibrada entre os blocos de argila in natura que chamavam atenção
anos 1390 a 1440 da Era Cristã ou 560 a 510 por aparecerem em vários pontos da escavação.
AP (Beta Laboratory Inc. n° 237665). Esta Inicialmente não conseguíamos inferir sobre a
estrutura se caracteriza então pela densa quanti- funcionalidade desses blocos de argila, se restos
dade de vestígios arqueológicos dispostos numa de produção de vasilhas cerâmicas ou talvez
depositados no solo pela dinâmica do
arroio Totó. Ao constatar a relação
destes blocos de argila in natura com
um esteio e estacas que parecem ter sido
suportados pela argila, foi possível
interpretar este contexto como uma
unidade habitacional, em que os blocos
de argila são vestígios de piso de chão
batido (tudju) – muito comum entre os
Mbyá Guarani (cf. Monticelli 1995) (ver
imagens da trincheira e estruturas da
unidade habitacional nas Figs. 8, 9 e 10).
A análise do material cerâmico
demonstra uma preocupação estética e
tecnológica maior que em todos os
outros sítios do litoral. Das 829 peças
analisadas (40,77%) apresentam
alisamento na superfície externa,
enquanto um número surpreendente
de (49,07%) apresentam algum tipo de
decoração plástica e (14,81%) decora-
ção cromática. Quanto às dimensões
das vasilhas, as medições de diâmetros
de borda (entre 12 e 50 cm) indicam
vasilhas de várias dimensões, desde
miniaturas até grandes potes, como
aquelas do tipo cambuchí guaçú. As
Fig. 6. Escavação da urna funerária associada a fragmentos de medições das espessuras das paredes
cerâmica de outros potes. Note-se o declive abrupto do terreno e indicam também esta tendência, pois há
o arroio Totó ao fundo. um predomínio de peças com espessura
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Fig. 7. Escavação da estrutura de terra preta referente à estrutura de deposição de refugos. Note-
se o grande acúmulo de artefatos arqueológicos à beira do arroio Totó.
Figs. 8, 9, 10. Escavação da trincheira e evidenciação das estruturas da unidade habitacional caracterizadas por
esteios, estacas e blocos de argila in natura.
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Semi-Decidual e por rios e córregos que fluem no sítio Raffi foi realizada através de oito bordas
em direção à laguna dos Patos (Radam Brasil cerâmicas, sendo três vasilhas projetadas como
1986; Rosa 1985; Rogge 2004). do tipo ñaetá, três como cambuchí caguâba,
Na Serra do Sudeste os sítios demonstraram uma como yapepó e uma borda que remonta a
um padrão de assentamento semelhante, pois uma vasilha do tipo cambuchí com um formato
são localizados em topo/meia encosta de morro, “exótico”, por apresentar também uma borda
próximos do morro dos Três Cerros que é o com flange labial. A cerâmica analisada sugere
maior acidente geográfico, sendo um marco na também que tenhamos um conjunto formado
paisagem local. Esses sítios todos se encontram por potes de médias e grandes proporções. Há
em terras que são aradas há mais de 70 anos em um predomínio de fragmentos com espessuras
média, comprovando a potencialidade produti- entre 10 e 12 mm, surgindo um índice importante
va das terras, mas que, por outro lado, gerou nas espessuras acima de 14 mm. Complementam
vários problemas para preservação do registro esses dados as dimensões de diâmetro de borda,
arqueológico. Para a análise espacial dos sítios da que indicam a ocorrência de potes de dimensões
serra nos utilizamos apenas daqueles dez sítios médias e grandes.
localizados no vale do arroio Andrade que
formam um cluster. Esta escolha se deu em
função de que nesta área o trabalho de levanta- Sítio PSGPA-02-Schwanke 1
mento foi realizado de forma sistemática, se
comparado a outra área levantada na serra. No sítio Schwanke 1 não foram realizadas
sondagens ou medições topográficas. Logo, não
foi possível identificar qualquer tipo de estrutura
Sítio PSGPA-01-Raffi 1 sub-superficial. Somente coletas de superfície geo-
referenciada foram realizadas, através das quais,
No sítio Raffi 1 escavamos uma série de coletamos 197 peças cerâmicas no assentamento,
sondagens em área de mata densa secundária e entre as quais 182 são paredes e 15 são bordas.
em terreno arado, assim como realizamos coletas Destas peças analisadas 48,20% têm decoração
de superfície geo-referenciada nesses mesmos plástica, 37,05% têm alisamento externo e
locais. As sondagens não evidenciaram nenhum apenas 14,75% apresentam decoração cromáti-
tipo de estrutura arqueológica, mesmo nos locais ca. Além disso, as projeções de vasilhas permiti-
onde o Sr. Raffi indicou como pontos onde ram definir três vasilhas como do tipo ñaetá,
antigamente se encontrava terra preta com duas como yapepó e uma como ñaembé. As
muito carvão ou grandes concentrações de medições de diâmetro de borda sugerem potes de
cerâmica e materiais líticos. Somente as coletas de proporções medianas e grandes (dimensões entre
superfície deram resultado no que se refere ao 20 e 56 cm) o que é reforçado pelo predomínio
registro de vestígios arqueológicos. de paredes com 10 a 12 mm até paredes com 22
Foram coletadas 215 peças através de mm. Chama atenção no sítio, além das peças
coleta de superfície e sondagens (195 são paredes cerâmicas identificadas, uma estrutura de terra
cerâmicas e 20 são bordas) em que a análise do preta de formato circular com um diâmetro de
conjunto cerâmico identificou um predomínio aproximadamente 10 m, que pudemos caracteri-
de peças com algum tipo de decoração plástica zar como um fundo de cabana (cf. Pallestrini &
(42,78%), um menor índice de peças com Morais 1984; Noelli 1993; Assis 1996; Soares
decoração cromática (9,32%) e um índice 1997, 2005; Carle 2002).
também elevado de peças com superfície externa
alisada (47,90%). Essa coleta superficial permitiu
não só identificar vestígios, mas também definir Sítio PSGPA-03-Rutz
através da dispersão dos materiais no solo a
dimensão espacial do sítio, cuja área ultrapassa No sítio Rutz também não foram realizadas
400 metros de diâmetro. A projeção de vasilhas sondagens nem medições topográficas e não foi
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na paisagem. Neste sentido optamos por 1996; Soares 1997). Por definição, o teko’á se
interpretações que se pautam por uma relação constitui como o conjunto de aldeias e acampa-
intra e inter sítio, na qual o contexto macro- mentos que formam então um território de
espacial pode ser considerado uma área de domínio e influência, limitado por acidentes
domínio territorial dos grupos Guarani denomi- geográficos como rios, morros, arroios etc.. Esses
nada teko’á, que consiste no espaço onde as limites, além de serem definidos pelos aspectos
práticas sociais em nível regional se desenvolvem simbólico-religiosos são também estabelecidos
através de seus desdobramentos políticos, através das alianças políticas que determinam
religiosos, culturais, ambientais e econômicos. graus de prestígio e status social nas relações
A organização territorial Guarani se dá entre aldeias (Noelli 1993; Soares 1997, 1999).
através de diferentes dimensões espaciais, desde a O teko’á pode atingir, segundo Noelli (1993),
casa (oka), onde reside a família nuclear, até o um raio de 50 km, abrangendo neste espaço
guará o território Guarani, no seu nível mais vários tipos de ambientes, cujas características
amplo. Vários limites sócio-políticos são conhecidos físicas e os pontos estratégicos para exploração
na organização social dos grupos Guarani que de seus recursos são mapeados cognitivamente
formam o cacicado e suas áreas de abrangência: a pelos grupos, constituindo as partes do territó-
família nuclear, a família extensa ou teýy, a rio. O teko’á é constituído por eco-zonas ou
aldeia ou amundá, o conjunto de aldeias diferentes esferas de convívio e atuação cultural,
inseridas em um território ou teko’á e o conjun- integrando aldeias e sítios para acampamentos
to de teko’á que forma um território amplo, de pesca, caça e coleta, assim como as roças e os
como uma nação, guará (Noelli 1993; Assis caminhos entre esses espaços. Conforme Meliá
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(1987, apud Noelli 1993) existem três raios de mento e estratégia de dominação territorial. Para
ação dos grupos indígenas dentro do teko’á: a entendermos o contexto de ocupação e o
vegetação circundante, a roça e a aldeia. domínio territorial numa perspectiva sistêmica é
Além dos macro-espaços que constituem o necessária a caracterização de cada porção do
território Guarani, são conhecidas áreas de teko’á.
funcionalidade específica, voltadas para a
exploração de recursos, referenciadas pela
literatura arqueológica como micro-ambientes A porção litorânea do teko’á do arroio Pelotas
ou ecozonas. Aí se desenvolvia a captação dos
recursos ambientais e a produção de bens Para a caracterização da porção litorânea
materiais. Nesses assentamentos voltados à caça, do teko’á do arroio Pelotas é importante
pesca, roça e coleta, denominados de acampa- delinearmos alguns aspectos que evidenciam a
mentos (Novaes 1983; Noelli 1993; Assis 1996), similaridade nas formas do assentamento,
os grupos indígenas construíam abrigos utiliza- buscando-se elementos para o entendimento de
dos pelo tempo necessário à execução de cada um padrão de assentamento litorâneo, embora
atividade. Denominados pelos Guarani como existam diferenças funcionais dos sítios. Esta
tapýi (Novaes 1983; Assis 1996), estes acampa- interpretação se dá em virtude de diversos
mentos se localizavam geralmente às margens dos fatores: a) os sítios se localizam próximos à
rios, córregos e lagoas, elementos da maior laguna, em áreas elevadiças como paleo-dunas e
importância para a economia Guarani. Durante pequenas elevações no terreno; b) no que se
todo ano ou em períodos sazonais, grupos de refere ao terreno, as terras litorâneas são de
pessoas de uma ou mais aldeias deslocavam-se de fraco potencial para o cultivo agrícola de
suas residências e acampavam às margens dessas algumas espécies porque a planície costeira se
áreas de assentamento para exploração desses caracteriza por ser arenosa e muito recente,
recursos. Nos acampamentos construíam fatores estes que limitam a capacidade produtiva
estruturas necessárias ao convívio quotidiano e local (RadamBrasil 1986); c) os sítios se situam
utilizavam instrumentos para o abate, manipula- em áreas de ecótono ambiental, o que garante o
ção, armazenamento e transporte dos alimentos. abastecimento relativo a uma dieta alimentar
Os tapýi eram bastante simples do ponto de vista equilibrada de animais, peixes, aves, répteis e
arquitetônico e geralmente tinham estruturas mamíferos que circulam por estas áreas, além de
auxiliares para o controle dos recursos na uma série de tipos de frutos, raízes para alimenta-
paisagem, para coleta de moluscos e manipula- ção e árvores e juncais para construção de
ção de alimentos. Suas estruturas composicionais estruturas arquitetônicas e cestaria; d) quanto à
simples deixavam poucos vestígios, o que se dava distribuição dos sítios na paisagem, ao analisar o
também porque o objetivo estratégico de mapa de distribuição dos sítios Guarani fica
ocupação do acampamento era o de abastecer a evidente a alta dispersão dos mesmos ao longo
aldeia principal, gerando poucos vestígios da faixa litorânea, com distâncias entre 2 e 3 km
materiais no solo. entre si.
Trazendo os dados apresentados para a Em linhas gerais percebemos algumas
discussão sistêmica do conjunto de sítios Guarani características similares que configuram um
da área de estudo, podemos inferir que os padrão de assentamento Guarani no litoral. No
mesmos sejam elementos de um teko’á que se entanto, para entendermos a correlação sistêmica
articula entre a região litorânea e serrana. O entre os sítios é necessário compreender as
teko’á do arroio Pelotas, como denominamos o particularidades de cada tipo de assentamento:
território de domínio estudado, abrangeria aldeia e acampamento. Estes dois tipos de
então uma área de pelo menos 35 km de raio, assentamentos, além de terem funções diferenciadas
havendo duas porções: litoral e serra, que se têm também características físicas e composicionais
diferenciam não somente pelas características também distintas, resultantes das atividades
ambientais, mas também pelo tipo de assenta- culturais a que se destinaram. Como visto acima,
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através da análise e sistematização dos dados é C) A análise dos conjuntos cerâmicos dos
possível pensar que, do ponto de vista funcional, sítios acampamento demonstrou que há um
os sítios Sotéia e Lagoinha na Ilha da Feitoria e o predomínio de peças com espessuras entre 8 e 10
sítio Camping na margem sudoeste da Laguna mm que remontam a potes pequenos e médios.
podem ser interpretados como sítios acampa- Essa constatação é reforçada se conjugada com
mento que tiveram uma ocupação rápida ou os valores de diâmetros de bordas que indicam
semi-permanente, voltada para a pesca e/ou que os potes cerâmicos também são de pequeno
coleta de recursos lacustres. Por outro lado, o e médio porte. No sítio Totó, por sua vez, o
sítio Totó foi considerado uma aldeia litorânea, índice de espessura também tem predomínio
ocupado para moradia permanente. Este entre 8 e 10 mm, mas há uma variação significati-
panorama interpretativo surge a partir de um va desses índices, surgindo peças mais finas e mais
esquema comparativo relativo aos aspectos grossas. Da mesma forma, as projeções de potes e
composicionais dos sítios acampamento e aldeia: os valores de diâmetro de bordas indicam que o
conjunto artefatual do sítio Totó é muito
A) Os sítios acampamento têm uma densida- variado, havendo grande quantidade de vasilhas
de e dispersão de materiais arqueológicos de pequeno, médio e grande porte.
bastante baixas se comparadas à aldeia. A aldeia
do Totó, por exemplo, tem uma densidade de D) Os potes cerâmicos dos sítios acampa-
materiais pelo menos 7,5 vezes maior que o sítio mento são representativos de classes eminente-
acampamento Camping, o segundo em índice de mente funcionais ou utilitárias, utilizadas no
densidade no litoral. Além disso, a dispersão dos quotidiano para preparação de alimento, como
materiais arqueológicos nos sítios acampamento as panelas e caçarolas (yapepó e ñaetá), tigelas
não ultrapassa o diâmetro de 200 m, enquanto para beber (cambuchí-caguâba) e pratos para
a aldeia do Totó parece ter uma distribuição de comer (ñaembé) (La Salvia & Brochado 1989).
materiais que pode chegar a um diâmetro de Os potes utilizados para produção de bebidas
400 m, demonstrando se tratar de um assenta- alcoólicas fermentadas, para rituais funerários e/
mento densamente ocupado e disperso pelo ou armazenamento de água conhecidos como
terreno. cambuchí guaçú (talhas) não foram encontra-
dos nestes sítios acampamento. Este é um dado
B) As coletas de superfície e as sondagens importante, já que se pode considerar que as
demonstraram claramente que os sítios acampa- talhas são indicadores de permanência, pois são
mento se caracterizam por serem de ocorrência potes que não são normalmente transportados,
predominantemente superficial, pois não foram sendo encontrados mais freqüentemente em
identificadas estruturas sub-superficiais ou aldeias (Shapiro 1984; Rogge 1997; Soares
camadas arqueológicas indicadoras de ocupação 1997). Além disso, a análise dos aspectos formais
mais densa. Somente foram identificadas e tecno-tipológicos indica um predomínio de
estruturas arqueológicas no caso do sítio PS-02- fragmentos de vasilhas sem decoração plástica ou
Camping, mas que, a priori, não parecem indicar cromática, com acabamento superficial bastante
um contexto denso de ocupação. Por outro simples, sem nenhum tipo de sofisticação
lado, na aldeia do Totó foram identificadas uma tecnológica aparente, indicando também se
estrutura funerária, uma estrutura de deposição tratar de vasilhas funcionais de uso quotidiano
de lixo e uma estrutura arquitetônica, inclusive (La Salvia & Brochado 1989).
com esteio, estacas e blocos de argila in natura, Por outro lado, o registro material da aldeia
contexto que sugere se tratar de um piso de do Totó permitiu a identificação de, no mínimo,
habitação com suas respectivas estruturas duas vasilhas do tipo cambuchí guaçú (uma
arquitetônicas de sustentação da residência, como urna funerária e a outra na estrutura de
indicando, neste caso, se tratar de um espaço deposição de lixo). É importante destacar
mais permanentemente ocupado se comparado também que além das talhas foi registrado um
aos demais sítios litorâneos. conjunto muito variado de vasilhas cerâmicas,
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em que foram identificados potes de todos os tipos, de assentamento Guarani litorâneo completa-
tanto aqueles utilizados para atividades funcionais mente integrado e sincrônico, em que os sítios
quotidianas, como aqueles para fins ritualísticos, acampamento, localizados em pontos estratégi-
produção de bebidas e armazenamento de água. cos do território de domínio, permitem otimizar
No que se refere ao acabamento das vasilhas, o a captação de recursos para então abastecer a
conjunto cerâmico da aldeia do Totó também aldeia central. É importante lembrar que os
indicou uma variação muito importante, em que sítios acampamento estão localizados em áreas
muitas peças apresentam decorações plásticas e em que os recursos lacustres, como camarão, siris
cromáticas, brunidura, polimento, indicando se e peixes, até hoje são pescados em maior abun-
tratar de um conjunto artefatual tecnologicamente dância, são, neste caso, “pesqueiros”, mapeados
mais sofisticado no que se refere ao estilo das cognitivamente como pontos integrantes do
vasilhas. território de domínio, onde é possível explorar
os recursos com maior sucesso. Esse é o caso da
E) Outra questão importante diz respeito Ilha da Feitoria, onde se localizam os sítios Sotéia
aos materiais líticos. A análise deste tipo de e Lagoinha, em que dezenas de pescadores hoje
material proveniente dos sítios acampamento ocupam a margem leste para pescar camarão e
permite interpretar que estejamos lidando com siri sazonalmente entre os meses de fevereiro e
uma indústria expediente, em que o investimento abril (Milheira 2007b). Da mesma forma, no
em obtenção de matéria prima não foi muito Pontal da Barra, entrada do canal São Gonçalo
acentuado, seguindo-se a um baixo investimento onde se localiza o sítio Las Acácias, diversas
na manufatura dos instrumentos, visto que espécies migram para a Lagoa Mirim no verão,
predominam poucas lascas e blocos de quartzo. sendo um local de pesca abundante.
No sítio Totó, por sua vez, a análise dos materiais A aldeia do Totó localiza-se num ponto da
líticos sugere que se trata de uma indústria de costa de onde é possível visualizar todos os
curadoria, já que houve um investimento outros sítios litorâneos. Este fator permite
bastante significativo em obtenção de matéria pensar que a aldeia tenha sido posicionada
prima (dadas as grandes distâncias das fontes), estrategicamente numa área central, possivelmen-
assim como se percebe que a atividades de te para controle territorial e maior facilidade
manufatura de artefatos líticos foi realizada em com relação à mobilidade e logística para
vias de otimização no uso destas matérias primas. atividades de exploração ambiental e econômica.
O conjunto lítico, além de ter variabilidade em A aldeia, nesse caso, é o ponto central, para
suporte (blocos, plaquetas e seixos) e matéria onde as atividades são voltadas e pode ser
prima (arenito friável, arenito silicificado, interpretado como o local de ocupação aglutinante
calcedônia, quartzo, basalto e granito) é também e de convergência, já que é de onde os grupos se
muito mais variado (se comparado aos sítios- deslocam para atividades específicas nas ecozonas
acampamento) nos seus aspectos tipológicos e e acampamentos anexos e voltam ao fim das
quantitativos, pois se identificaram diferentes atividades. A aldeia é o espaço da vida coletiva,
tipos de lascas em variados suportes, afiadores da socialização, onde as tradições Guarani se
em canaleta, fragmentos de lâminas de machado estruturam e reestruturam a partir do
e blocos e seixos de quartzo (Binford 1979; compartilhamento de idéias e de visões de
Noelli 1993).7 mundo através de gerações.
Seguindo esses critérios comparativos
apresentados acima, correlacionados ao padrão
de assentamento, pode-se pensar em um sistema A porção serrana do teko’á do arroio Pelotas
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Fig. 13. Mapa com localização dos sítios arqueológicos no litoral e serra, demonstrando o contex-
to regional a partir do conjunto de sítios e o contexto macro-regional que caracteriza o teko’á do
arroio Pelotas.
Considerando-se esta correlação sistêmica e suas respectivas aldeias e, por outro lado,
entre o assentamento litorâneo e serrano ficam permitem a continuidade cultural e o modo de
as perguntas: quais os fatores que estariam ser Guarani (ñande reko); b) crescimento
envolvidos na estratégia de assentamento demográfico, fator que gera a divisão de
Guarani nessas diferentes áreas? Por que os aldeias e força a necessidade da aquisição de
grupos Guarani, assentados na região serrana, novas terras para assentamento; c) pressão
teriam ocupado o litoral em busca de novas populacional causada por grupos inimigos,
áreas de moradia? sejam eles Guarani ou não-Guarani que
Segundo Brochado (1984), os grupos podem estar relacionados a problemas de
Guarani expandem seu território de domínio fronteiras; d) escassez de recursos ambientais
lentamente de forma radial a partir de um na área de domínio, fator esse que gera a
ponto central. Essa forma de expansão ficou necessidade de adaptação a novas áreas
conhecida como “enxameamento”, em que o ecológicas; e) esgotamento das terras cultivadas
território pode ser dominado ou expandido pela horticultura; f) a busca da “terra sem
sob vários modos, como por exemplo, guerras, males” (yvy marane’y).
alianças políticas, fortalecimento das relações Todos estes fatores podem ter condiciona-
familiares, guaranização, cuñadazgo etc. do o processo de ocupação Guarani na região
(Noelli 1993, 2004; Assis 1996; Soares 1997). de estudo. No modelo de expansão e ocupa-
Vários fatores determinam a expansão territorial, ção regional em discussão sugerimos que os
os quais são relacionados aos aspectos cultu- sítios do interior, por serem mais antigos, se
rais, sociais, econômicos, políticos e simbóli- situarem na área de cobertura vegetal de
cos: a) as relações de reciprocidade, embasadas floresta tropical, em terras de maior potencial
na estrutura social de parentesco e alianças agrícola e próximos dos melhores e mais
políticas que, por um lado, permitem a abundante recursos ambientais, constituam o
aquisição de prestígio pelas lideranças, famílias centro do sistema de assentamento. Em
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a abrangência social do convite da família à desses recursos uma nova rede de troca de bens
região. O primeiro passo é o caruguaçu amonã materiais surge, integrando o litoral e a serra, o
– ‘fazer convite’, que seguirá conforme o evento que faz com que a porção litorânea do território
que está em andamento, fazer uma casa, uma passe a ter fundamental importância no sistema
roça ou convite para casamento.10 de assentamento, surgindo assim novas lideran-
Neste sentido, percebe-se que os convites e as ças, que, por sua vez, dão continuidade ao
atividades coletivas fortalecem os laços de processo de expansão aumentando seus domíni-
reciprocidade entre aldeias, sendo um aspecto os em torno da Laguna dos Patos, estabelecendo
que amplia o grau de prestígio da aldeia e de suas novas relações de contato e fronteiras com os
lideranças. Além disso, as atividades coletivas que grupos Guarani e não-Guarani, como os
geram visitações entre aldeias de um mesmo ou cerriteiros.
de diferentes teko’á são fatores importantes para O padrão de distribuição e as datas dos
a sustentação econômica dos grupos. Através sítios arqueológicos são elementos que devem ser
dessas visitações, possivelmente acompanhadas de considerados também para a proposição deste
artigos para comercialização ou trocas de modelo. Ao analisarmos o mapa de distribuição
presentes, podemos imaginar que o assentamen- dos sítios, fica claro que a porção serrana do
to litorâneo possa suprir suas necessidades com território de domínio tem um padrão de
relação a determinados tipos de materiais distribuição dos sítios arqueológicos aglomera-
ausentes na região praial, como é o caso, por dos, formando clusters densos na paisagem. Este
exemplo, do material lítico.11 padrão de distribuição de sítios verificado está de
Levando em consideração essas relações de acordo com o padrão de assentamento esperado
prestígio social, os sítios serranos podem ser para sítios Guarani em paisagens com relevo,
vistos, nesse caso, como a parte do sistema de zonas de interflúvio e em meio a florestas
assentamento mais antiga e tradicional, onde as tropicais. Os sítios se localizam em topo de
lideranças tenham maior prestígio social. É a morro e meia encosta, em confluência de rios e
porção do teko’á onde habitam os caciques de arroios muito próximos uns dos outros (ver, por
maior influência regional, os quais determinam exemplo, Schmitz 1985, 2006 [1991]; Noelli
ou influenciam significativamente nas escolhas de 1993, 2004; Rogge 1995-1996; Dias 2003;
novos assentamentos, o que origina a expansão Soares 1997, 1999; Fausto 2001). Esta é,
do território de domínio. No litoral, por sua vez, portanto, uma forma tradicional de ocupação
seria a porção do teko’á mais recentemente do espaço, em que a expansão vai se dando em
ocupada, não se configurando como um espaço duas escalas de tempo e espaço.
tradicionalmente ocupado. Apesar disso, a Uma escala de ocupação de um amplo
possibilidade em explorar os recursos lacustres espaço, que se dá de forma lenta e gradual, na
parece ser um fator importante, que talvez tenha medida em que se estabelece o sistema de expan-
influenciado na escolha deste local para a são do território Guarani por “enxameamento”
expansão do assentamento. Com a exploração para novos ambientes, ampliando, por sua vez, o
território de domínio. Esse processo pode dar-se
através de várias gerações em escalas espaciais
(10) “Em nível de teko’á, podendo talvez ser expandido ainda não medidas pela arqueologia. Nessa
ao guará, a honra de ‘comer no mesmo prato’ e seu escala, novos territórios são acoplados ao
papel social podem ser percebidos nos convites mais território conhecido, novas regiões vão sendo
abrangentes, no caso em que se convidam outras aldeias
conhecidas e mapeadas ao longo do tempo,
para os festins de cauinagens, rituais antropofágicos e
outras festas que envolvem excedente de produção novas áreas de captação de recursos vão sendo
agrícola” (Soares 1997: 145). exploradas e uma nova constituição cognitiva do
(11) Por outro lado, imagina-se que materiais litorâne- espaço vai sendo construída (Posey 1986; Zedeño
os, ausentes na região serrana, poderiam ser cambia-
1997, 2000). Durante o processo de reconheci-
dos da mesma forma, porém, não podemos avançar
nesse aspecto devido à falta de vestígios indicativos mento e dominação do território, grupos de
dessa relação. menor prestígio, com lideranças menos influen-
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tes, vão sendo “empurrados” e, na medida em tenção das relações de reciprocidade e privilégios
que o espaço vai se tornando conhecido e nas aldeias e entre elas, a partir da permanente
tradicional, a ocupação tende a se tornar mais interação social, política, econômica e cultural.
densa e mais importante dentro do sistema de É, portanto, a partir da “circunscrição social” e
assentamento (Soares 1997). da manutenção de redes de relações de reciproci-
Dentro deste processo de expansão ampla e dade que se mantém a estrutura social, o modo
lenta, ocorre uma expansão em uma outra escala de ser Guarani (ñande reko), bem como
mais rápida e com menor amplitude espacial. comenta Noelli (2004: 24): “Las redes regionales y la
Isto se dá quando ocorre o abandono das estructura política y social de alianzas, sostenidas por el
aldeias, ocupando-se novas aldeias dentro do intercambio permanente, explica la reproducción
território ou mesmo retornando-se para as constante da la cultura material y otros rasgos del
aldeias antigas. Este processo se desencadeia em ñande rekó Guarani”
média, dentro de três a cinco anos, mas pode Este modelo de interpretação pode ser
dar-se a qualquer momento, por motivos pensado para entendermos o processo de
variados.12 As trajetórias de “idas e vindas” ocupação litorâneo e a ocupação na serra.
dentro do território de domínio, relativas à Entendemos que o processo de expansão
ocupação e reocupação de aldeias não pode ser territorial tenha se dado de forma “radial” do
medida em nosso trabalho pela ausência de centro do assentamento (Serra do Sudeste) para
datações de todos os sítios da serra, mas sugeri- a periferia (litoral). Esta percepção se dá porque
mos, como hipótese, que tenha se dado de forma o padrão de distribuição das aldeias na serra
“centrípeta”, assim como proposto por Schmitz sugere uma situação de “circunscrição social e
(1985) para os sítios no vale do Médio e Alto territorial”, indicando se tratar de um sistema de
Jacuí-RS. Entretanto, diferentemente do modelo assentamento tradicional e antigo, o que é
de Schmitz (1985), que considera apenas a sugerido também pela data do sítio PSGPA-04-
presença de uma ou duas aldeias movimentando- Ribes, com idade de 510 ± 70 A.P. Por outro lado,
se no território, consideramos que possamos no litoral, o padrão de distribuição dos sítios
estar frente a um sistema multi-aldeão, que se demonstra uma situação de contemporaneidade e
caracteriza pela fragmentação política das mais recente implantação, relativa ao reconheci-
lideranças em mais de uma aldeia, mas, ainda mento e início da dominação do território.
assim, com a manutenção da unidade sociológica Novas áreas vão sendo ocupadas lenta e gradual-
que caracteriza o sistema de assentamento mente, permitindo pensar no litoral como um
(Fausto 2001). Este sistema de ocupação território que vai sendo anexado ao território de
territorial “centrípeto” sugere a ocupação e domínio Guarani original, o que é indicado
reocupação do mesmo espaço ao longo de também pelas datações dos sítios do litoral (Sítio
gerações em uma situação de “circunscrição PS-03-Totó, com idade de 530 ± 40 AP e Sítio
social e territorial” (cf. Fausto 2001; Lima & PS-02-Camping, com idade de 380 ± 50 AP).
López Mazz 1999-2000), em que a unidade Ao mesmo tempo em que ocorre este desloca-
sociológica se mantém coesa, gerando a manu- mento “radial” do interior para a periferia,
consideramos que os deslocamentos “centrípetos”,
referentes à ocupação e reocupação das aldeias
do interior sejam constantes, garantindo a
(12) Segundo Fausto (2001), este tipo de deslocamen- permanência de redes sociais de reciprocidade e,
to é classificado como de média distância, implicando por conseguinte, mantendo a estrutura social e o
no abandono de aldeias e roças e a mudança para
longe, mas dentro de uma região plenamente modo de ser Guarani.
conhecida. O abandono das aldeias dos Parakanãs Este sistema de expansão centro/periferia
orientais, segundo o autor, se dá em média dentro de pode ser considerado também em nível mais
três anos e pode ocorrer por razões mais variadas, amplo, abrangendo todas as áreas de ocupação
desde a morte de crianças, ataque de inimigos,
conflito interno, ausência de roça, até a presença Guarani no estado do Rio Grande do Sul.
exagerada de pulgas. Sabemos que grande parte do estado foi ocupa-
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da pelos grupos Guarani, pois, com exceção da processo se deu num período de mais de 500
região da campanha e dos campos do nordeste anos em que os grupos passaram a ocupar a
do estado, todas as outras regiões foram domi- borda da Laguna dos Patos. Quando se dá a
nadas (Noelli 2004). Sabe-se que esses grupos chegada dos europeus, as sociedades indígenas
tiveram deslocamentos expansionistas de norte Guarani já estavam estabelecidas na zona
para sul e de leste para oeste, seguindo as regiões litorânea, em pleno processo histórico de
de várzeas férteis dos médios e grandes afluentes articulação inter-cultural e expansão territorial.
dos Rios Uruguai, Ijuí e Jacuí (Rogge 2004). As Logo, considerar que esse processo é recente e
datações nestas regiões chegam até 1800 A.P., no teve como fator original a colonização e a
centro do estado e até 1300 e 1000 A.P., em exploração européia no interior do estado, como
diferentes locais (Noelli 2004). querem alguns historiadores, seria desconsiderar
Num segundo momento de expansão todo um cabedal de informações arqueológicas e
territorial as populações Guarani se voltaram etnológicas constituídas nos últimos 40 anos.
para a região da Serra do Sudeste, por volta de
500 AP. (como indicado pela data do sítio
Ribes), mas num determinado momento ainda Considerações finais
não compreendido, passaram a ocupar as
regiões das lagoas e lagunas do litoral do estado, Ao apresentar este modelo interpretativo de
o que se deu em torno de 900 A.P. (Noelli 1999- ocupação regional Guarani, buscamos articular
2000; Rogge 2004; Schmitz 2006 [1991]), até a dados arqueológicos, etnohistóricos e etnográficos,
colonização européia, quando este quadro no intuito geral de dar significado social e
muda radicalmente em função de todo impacto histórico à estática do registro arqueológico
etnocida que a colonização causou sobre as (Binford 1980; 1991 [1983] Schiffer 1987).
populações indígenas: doenças contagiosas, Buscamos lançar um novo olhar sobre a arqueo-
escravização, matança, descaracterização cultu- logia Guarani, abordando discussões que dizem
ral, roubo de terras etc. (Brochado 1984; respeito aos aspectos culturais numa perspectiva
Schmitz 2000, 2006 [1991]; Noelli 1993, 1999- holística, em que foram levados em consideração
2000). conceitos de territorialidade, organização social,
As datas de ocupação do litoral como um relações de parentesco, alianças políticas e
todo demonstram uma ocupação tardia, mas estratégias de ocupação espacial e anexação de
sugerem um processo articulado, entre assenta- territórios. Desta forma, acreditamos ter
mentos de diferentes regiões, em busca de novos ultrapassado a abordagem meramente descritiva
territórios de domínio. Nota-se isto através da dos dados arqueológicos, atingindo uma
sistematização de datas químicas de sítios estrutura sistêmica e interpretativa mais ampla.
Guarani ao longo do litoral, que demonstram Com o desenvolvimento deste modelo
que este processo de expansão, que parte das interpretativo, vários problemas de pesquisa
terras altas do interior em direção às terras surgem como rumo para pesquisas futuras.
baixas do litoral, tenha se dado num mesmo Várias questões ficam em aberto, sem condições
horizonte cronológico. Neste sentido, as datas do de serem respondidas no momento em virtude
Sítio Camping e Totó vêm a reforçar que o da incipiência dos trabalhos arqueológicos na
processo de ocupação Guarani da região região e do alto grau hipotético do próprio
lagunar tenha se dado num período já relativa- modelo. Enfatizamos que ainda são escassos os
mente próximo da colonização européia no dados relativos à cronologia regional, mapeamento
Brasil, tendo sido barrado pelas atividades de outras áreas de ocupação, refino do mapeamento
etnocidas a partir do século XVI. Sobre isso, é da área já inicialmente estudada, escavação de
importante destacar que se trata de um processo sítios em áreas amplas para compreensão da
de longa duração que envolve estratégias de organização espacial intra-sítio, estudos de
dominação territorial, por parte dos grupos demografia regional e um diagnóstico mais
Guarani, em ocupar o litoral, visto que esse apurado das relações sociais entre os grupos
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Guarani e não-Guarani. Neste sentido, sugere-se sensibilidade com que orientou este trabalho
que o modelo sirva de base para pesquisadores de pesquisa. Ao Prof. Dr. Paulo DeBlasis
futuros que venham a contribuir para o desen- (MAE-USP) pelas inspirações teóricas e ricas
volvimento de uma história Guarani de longa leituras críticas que rechearam esta pesquisa,
duração na porção meridional da Laguna dos e ao Prof. Dr. Fábio Vergara Cerqueira
Patos e na Serra do Sudeste. (LEPAARQ-UFPEL) pelo apoio incondicio-
nal concedido em termos de logística e
suporte financeiro. Agradeço também a
Agradecimentos todos os colegas do LEPAARQ-UFPEL e de
outras instituições que auxiliaram nos
Agradeço imensamente à Profa. Dra. trabalhos de campo e laboratório de forma
Elaine Farias Veloso Hirata (MAE-USP) pela exaustiva e exemplar.
Referências bibliográficas
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