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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8\ 15-24, 1998.

ANTECEDENTES INDÍGENAS: PROBLEMÁTICAS


TEÓRICO-METODOLÓGICAS DAS SÍNTESES
SOBRE A PRÉ-HISTÓRIA REGIONAL

Arno Alvarez Kern*

KERN, A.A. Antecedentes Indígenas: problemáticas teórico-metodológicas das sínteses sobre


a pré-história regional. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8: 15-24,
1998.

RESUMO: Uma síntese de pré-história regional deve ser estabelecida a


partir das informações arqueológicas organizadas em um quadro espaço-tempo-
ral. Devem ser destacados não apenas os dados obtidos a partir da análise dos
vestígios materiais em presença nos sítios, mas igualmente reconstituídos os
momentos de transição das paleopaisagens e das culturas. Os padrões de subsis­
tência, a exploração das fontes de matéria prima, as tipologias dos artefatos, os
símbolos da arte, os processos adaptativos, integração e conflito, são alguns
dos diversos aspectos que devem ser estudados, a partir de modelos que admitam
múltiplas variáveis e uma causalidade múltipla. O necessário rigor conceituai e
superação das interpretações simplistas, não impedem que inúmeros problemas
de ordem teórico-metodológica sejam ainda de difícil solução, como se evidencia
neste estudo.

UNITERMOS: Arqueologia pré-histórica - Síntese regional - Problemas


teórico-metodológicos.

1. Introdução tores prehistóricos que se estabeleceram em meio


às paleopaisagens em transformação, tendo como
A publicação do livro “Antecedentes Indíge­ base os documentos e as informações arqueológi­
nas”1teve como objetivo a realização de uma sín­ cas e históricas existentes atualmente. As linhas
tese histórica sobre a temática do processo de po­ gerais que guiaram este estudo foram a reconsti­
voamento indígena da região platina oriental. Esse tuição de cada um dos grupos étnicos que se insta­
imenso panorama de longa-duração está relaciona­ lou nessa área, a partir do estudo dos seus padrões
do aos caçadores, coletores, pescadores e horticul­ de subsistência, das fontes de matérias primas ex­
ploradas, das tipologias dos artefatos (líticos, ós­
seos, cerâmicos) que desenvolveram, das artes que
elaboraram, das cronologias históricas conhecidas,
(*) Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
dos processos adaptativos dos grupos prehistóricos
PUCRS.
(1) KERN, Am o Alvarez. Antecedentes Indígenas (Col. com as paleopaisagens em mudança, das relações
Síntese Riograndense vol. 16-17). Porto Alegre: Editora de conflito ou de integração com as outras etnias.
da UFGRS, 1994. 142 p. As informações foram organizadas em um quadro

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espaço-temporal, onde se destacaram os grandes de seu passado histórico. Mesmo que restem ainda
momentos de transição, tanto das paleopaisagens muitas etapas das pesquisas a serem realizadas, an­
como das culturas. A ocupação e o povoamento tes de uma versão ainda mais abrangente, esse estu­
da região platina oriental foram explicadas, ao lon­ do visa o resgate de uma memória histórica social.
go dos milênios, desde o momento que os primei­ Ela é ainda desconhecida ou simplesmente por nós
ros caçadores aqui chegaram, até as investidas co­ ignorada, propositadamente, como se tivéssemos
lonizadoras dos Guarani e dos povos ibéricos. que destacar apenas os atos e os fatos da sociedade
A realização desse estudo foi julgada neces­ branca, ocultando e desprezando a história milenar
sária, principalmente tendo em vista o atual esta­ de outras etnias, como se ela não existisse. A sínte­
do em que se encontram as pesquisas. A recons­ se histórica aqui desenvolvida, teve a finalidade
tituição deste longo processo histórico teve como de sanar esta lacuna considerável em nossos conhe­
ponto de partida o princípio de que este é um dos cimentos. Os crimes que se realizaram no nosso
maiores objetivos da Arqueologia. As problemáti­ passado histórico, como é o caso do genocídio de
cas teórico-metodológicas que se evidenciaram inúmeros grupos indígenas, ou os que se realizam
ao longo do trabalho, são as mesmas que emergem ainda hoje contra algumas minorias e a grande
cada vez que encetarmos a tarefa de organizar maioria de nossa sociedade, sempre nos deixam
sínteses regionais sobre a pré-história brasileira, com uma sensação de desconforto e de indignação.
seja na Região Sudeste, no Nordeste ou no Rio Muitas populações indígenas derrotadas ou perse­
da Prata. guidas, foram aniquiladas fisicamente num geno­
Esta análise permitiu, em um primeiro momen­ cídio imperdoável, por outros grupos indígenas ou
to, um maior rigor conceituai, bem como a supera­ pelos europeus. Nos nossos livros de História, fre­
ção de algumas interpretações teóricas e de mode­ qüentemente este fato é oculto ou ignorado. Entre­
los que ainda estão sendo utilizados, apesar de ul­ tanto, uma etnia não é composta apenas por grupos
trapassados. A interrelação e a contemporaneidade de indivíduos, mas igualmente pela tradição cultu­
dos complexos processos das transformações am­ ral que desenvolveu ao longo dos séculos. Quando
bientais, de desenvolvimento sociocultural e de ca­ grupos inteiros desaparecem da história, morrem
racterização das etnias em presença na história da juntamente com eles seus valores culturais, suas
região, tiveram que ser heurísticamente estudados práticas sociais, seus padrões técnico-econômicos
e teoricamente reinterpretados, bem como as ações de desenvolvimento, suas formas de organização
e reações que dialeticamente integram estes proces­ política, seus mitos e crenças, num etnocídio defi­
sos. Foram igualmente superados muitos conceitos nitivo. Entretanto, isto nem sempre ocorreu. Muitas
ou repensados os paradigmas de referência e as vezes as populações indígenas vencidas se miscige-
relações de pertinência entre os conceitos e a reali­
naram aos vencedores e transmitiram a esses os
dade evidenciada. Este fato ocorre fundamental­
seus padrões culturais, como ocorre em nossa so­
mente pela dificuldade de se forçarem os dados
ciedade. Se persiste atualmente um desconheci­
arqueológicos a entrar em quadros de referência
mento muito grande em relação às vicissitudes his­
conceituai apriorísticos, sem que se leve em conta
tóricas dos grupos étnicos que colaboraram com
a sua pertinência e adequação. Isto nos dá hoje em
nossa formação sócio-cultural, esperamos que este
dia a possibilidade de escrever com maior clareza
estudo possa minorar o problema.
novas páginas de nossa história, procurando supe­
rar as visões reducionistas ou simplesmente os pre­
conceitos existentes. Não ignoramos, entretanto,
2. Problemáticas
as limitações do atual estágio em que se encon­
tram as ciências da História e da Arqueologia, ten­
do em vista que trabalhamos apenas com amostra­ O povoamento pré-histórico tem uma trajetória
gens das informações arqueológicas e históricas de mais de três milhões de anos na face do planeta
possíveis, e com teorias e modelos que ainda estão e apenas pouco mais de dez mil anos na região do
sendo testados, adaptados ou substituídos por ou­ Região do Prata, segundo os registros atuais da do­
tros mais eficientes, na medida em que a pesquisa cumentação arqueológica. As venturas e as desven­
se desenvolve. turas pelas quais passaram os grupos de caçadores-
As sínteses diacrônicas globais são necessá­ pescadores-coletores nos processos adaptativos
rias, como forma de levar à sociedade a memória realizados em cada uma das paleopaisagens em mu­

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dança, os progressos técnico-econômicos desen­ desde o Brasil central, passando pela região su­
volvidos, as diversas formas de organização sócio- deste, até chegar ao sul. Nós não vemos esta imensa
políticas criadas, as manifestações artísticas e reli­ região como um ambiente distinto do restante da
giosas imaginadas, as longas migrações realizadas, América do Sul apenas porque habitamos nela e a
cheias de riscos e aventuras, são importantes capí­ partir dela é que examinamos curiosamente o resto
tulos desta história de longa duração. Foi Braudel deste imenso continente. Já numa primeira observa­
quem afirmou ser a História a ciência que funda­ ção, ainda muito geral, percebemos a oeste e a norte
mentalmente analisa “a dialética da longa dura­ as imensas, extensas e contínuas paisagens das ca­
ção”. Isto é igualmente válido para as reconstitui­ deias de montanhas dos Andes e da floresta tropical
ções arqueológicas do passado remoto, pois traba­ amazônica. A leste podemos olhar o horizonte lon­
lhamos com as dinâmicas das interações entre os gínquo e imutável do oceano Atlântico. É em rela­
elementos relacionados às estruturas sociocultu- ção a estas portentosas paisagens que a bacia do
rais, que perduram longamente no tempo. rio da Prata começa pouco a pouco a destacar-se.
São estas sínteses que nos fazem finalmente Apesar de suas características de área de tran­
compreender as ações e as reações ocorridas nestes sição entre a zona tropical ao norte, as paisagens
extensos e complexos processos históricos por que austrais da Patagônia ao sul e as cadeias de monta­
passam as sociedades e as culturas, durante séculos nhas andinas a oeste, esta área tem mantido certas
e milênios. Podemos observar um exemplo disso características durante os processos históricos que
quando estudamos o povoamento das paisagens em se desenvolveram ao longo do tempo. Em seus li­
que vivemos. Nos confrontos e nos encontros que mites é que se situam as praias, as planícies, as
aqui se estabelecem entre as sociedades indígenas colinas, os rios e os relevos tão familiares das paisa­
de caçadores-pescadores-coletores com os grupos gens onde vivemos. Essa pequena área periférica
de horticultores, e finalmente destes com as socie­ em relação ao conjunto da América do Sul, tem
dades européias, percebe-se a persistência de práti­ limites razoavelmente definidos. Ela é delineada
cas e modos de vida prehistóricos e históricos mes­ ao sul e a oeste pelas extensões das paisagens aber­
clados. Nas comunidades indígenas coloniais ame­ tas da Patagônia e do Chaco, bem como pelos
ricanas percebemos ainda as origens paleolíticas imensos volumes de água dos maiores rios da re­
tradicionais e as modernizações neolíticas de suas gião e seus afluentes (Paraná, Paraguai, Tietê, Igua­
culturas materiais. Podemos observar, por outro la­ çu, Paranapanema e Uruguai) que descem lenta­
do, a sobrevivência de antigos elementos greco- mente para o largo estuário que denominamos de
romano-feudais mesclados a padrões modernos rio da Prata. São paisagens que não evitam os con­
emergentes, nas sociedades provenientes da Euro­ tatos socioculturais, ao mesmo tempo em que nos
pa. Tradição e modernidade são portanto, termos alertam para mudanças importantes que pouco a
que descrevem complexos de síntese e de exclusão pouco se estabelecem em relação aos relevos, aos
cultural. contingentes faunísticos e florísticos, bem como
Os dados necessários à reconstituição dos pro­ às novas condições climáticas. A leste, a imensa
cessos históricos ao longo de períodos tão extensos paisagem portentosa das massas de água do ocea­
e em paisagens tão diversificadas a nível continen­ no Atlântico demarcam um limite que parece ape­
tal, nos são evidenciados principalmente pelas des­ nas ter sido ultrapassado muito recentemente. Para
cobertas arqueológicas mais recentes. São compro­ o norte, erguem-se os volumes e as enérgicas for­
vados pelos novos métodos de datação absoluta e mas dos relevos dos planaltos do centro e do sul-
relativa. Foram essas datações que nos possibili­ brasileiro, ao mesmo tempo em que se instalam
taram superar, desde os inícios desta segunda meta­ pouco a pouco as condições climáticas, florísticas
de do século 20, as limitadas visões que até então e faunísticas dos trópicos. Essa imensa área tem
vigoravam. Ultrapassamos assim, de maneira ine­ mantido certos aspectos culturais comuns que so­
xorável, a idéia que vigorou no passado de uma mente hoje começamos a compreender em sua
história local de poucos séculos de duração. variedade e complexidade, devido aos contatos
A área onde atualmente habitamos, ou seja, a culturais diversificados ocorridos nas paisagens
bacia do rio da Prata oriental, está situada entre os que a limitam.
vales dos rios Paraguai, Paraná, Uruguai e o oceano As etnias que povoaram essas paisagens não
Atlântico. Abrange áreas muito afastadas entre si, têm um passado tão recente como se chegou a acre­

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ditar. Ao longo das últimas décadas, as pesquisas passado por muito tempo oculto, ora sob as cama­
têm descortinado uma história que não se insere das de terra acumuladas pelos séculos sobre os sí­
mais nos estreitos limites que ainda hoje freqüente­ tios arqueológicos, ora sob o manto da nossa indife­
mente são divulgados, mas sim em mais de doze rença, ignorância e preconceito.
milênios. Durante os trinta últimos anos, foram des­ No momento em que nos decidimos reconsti­
cobertos milhares de sítios arqueológicos, nos cam­ tuir o povoamento de uma região, isto não pode
pos e nas florestas, em margens de rios e de lagoas, nem deve significar a história de um dos países
na planície costeira e nas encostas das serras. Os desta área, nem mesmo de uma das províncias ou
restos materiais de suas culturas terminaram origi­ um dos estados federados locais. Não podemos ig­
nando centenas de sítios arqueológicos, que com­ norar que estas abstrações administrativas são cria­
provam esta ocupação. Grupos variados de caça­ ções políticas relativamente recentes. Os limites
dores, coletores, pescadores e horticultores, perten­ atuais não correspondem nem mesmo a fronteiras
centes a sociedades e culturas indígenas muito dis­ naturais, como já se pretendeu, tendo sido contesta­
tintas, estavam adaptados aos diversos ambientes das a mão armada no passado. Lefebvre lembrou
que encontraram e ocupavam todas as paisagens certa vez que as denominadas “fronteiras naturais”
desta imensa região platina. foram assim definidas, quando as sociedades em
A ocupação européia deu origem, por um lado, presença cansaram de empurrar os limites políticos
ao genocídio de centenas de indivíduos pertencen­ de um lado para outro, ao longo da história, esco­
tes a estes grupos indígenas. Por outro lado, teve lhendo finalmente alguns acidentes geográficos
início uma intensa miscigenação já nos momentos como balizas para seus tratados de limites. É muito
iniciais da conquista. Ocorreram igualmente trans­ comum, nos estudos atuais, as referências à A rg en ­
formações socioculturais importantes, tais como a tina, ao Uruguai, ao Paraguai, ao Brasil ou a algum
influência cultural mútua, as aculturações forçadas dos estados da federação (como é o caso do Rio
e espontâneas, bem como as intensas alterações Grande do Sul), quando se trata da época colonial
dos costumes tradicionais das diversas comunida­ ou do passado pré-histórico. Entretanto, estas são
des indígenas locais, num processo gradual de eu­ apenas designações cômodas, mas impróprias, a
ropeização. Os contatos estabelecidos deram ori­ territórios reconhecidos oficialmente como tal so­
gem também a uma série de influências das culturas mente a partir do século XIX. No sul do Brasil, a
indígenas sobre as novas sociedades emergentes única “história regional” que podemos escrever e
que aqui se organizaram no período colonial. Uma interpretar com os dados de que dispomos, só pode
significativa herança cultural e social aborígene tor­ referir-se necessariamente às paisagens do rio da
nou este novo mundo ibero-indígena distinto das Prata e a uma bacia hidrográfica platina na sua ver­
metrópoles ibéricas. Resultantes dessas relações tente atlântica.
são, por exemplo, o uso, por parte da sociedade Qual foi o papel da ciência arqueológica na
atual, da variada e abundante farmacopéia baseada reconstituição de um panorama histórico como
em ervas nativas, assim como as inúmeras plantas este? Um número reduzido de arqueólogos argenti­
domesticadas. Muitos padrões culturais regionais nos, uruguaios e sul-brasileiros realizaram nos anos
ainda persistem, tais como o mate e as boleadeiras, 60 e 70 um esforço muito grande para percorrer
além, do extraordinário vocabulário tupiguarani, esta imensa área inserida na bacia do rio da Prata,
que distingue com diferentes matizes os nossos lin­ e descobrir os locais onde se encontravam os sítios
guajares brasileiro e espanhol platinos dos idiomas arqueológicos. Fizeram o levantamento topográfico
falados na Espanha e em Portugal. Os contatos e e ambiental desses locais, coletaram na superfície
os impactos resultantes dos confrontos interétnicos ou escavaram em poços de sondagem amostras das
provocaram igualmente o lento e irreversível etno- culturas materiais remanescentes, compararam es­
cídio de culturas aqui estabelecidas há milênios. ses dados com os das regiões vizinhas, e reuniram
Apresentar em uma síntese este processo histórico importantes informações para os primeiros relató­
de longa duração, desde as suas origens pleistocê- rios e publicações sobre o nosso passado arqueoló­
nicas até o início da conquista ibérica, é o objetivo gico pré-histórico e colonial. A primeira etapa da
deste estudo recentemente publicado. Graças às no­ pesquisa, que denominamos de “prospecção ar­
vas descobertas que as pesquisas arqueológicas têm queológica”, estava então em andamento. Outros
proporcionado, ele tem como meta desvelar um pesquisadores vieram somar-se a estes, nos anos

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80, ampliando as áreas prospectadas. Iniciou-se, rizou, as culturas materiais produzidas pelas popu­
igualmente, uma segunda etapa da pesquisa, que é lações que se estabeleceram na América do Sul, se
o estudo dos vestígios arqueológicos, realizado a integram muito bem à pre-história do resto do pla­
partir de escavações arqueológicas mais amplas, neta. Migrando possivelmente ao longo das encos­
assim como nas análises de laboratório detalhadas tas dos Andes, ou através da planície amazônica
e precisas. As primeiras sínteses puderam então então desprovida da atual vegetação florestal de
ser elaboradas, reunindo o conjunto dos dados em grande porte e de milhares de espécies, os grupos
panoramas cronológicos sistematizados e tentando de caçadores-coletores-pescadores se instalaram
definir e conceituar os conjuntos de elementos das pouco a pouco nas paisagens atlânticas da bacia
culturas materiais encontrados. Buscaram-se as in­ do rio da Prata. Este processo de instalação ocorre
formações históricas e etnográficas necessárias pa­ no momento em que esta região sofre o impacto
ra a compreensão e a interpretação dos dados ar­ das transformações ambientais do final da última
queológicos conhecidos. glaciação.
Para uma análise mais completa, foram leva­
dos em conta os dados relativos às transformações
3. Abordagens das paleopaisagens, bem como aqueles relaciona­
dos aos elementos remanescentes das culturas
Origens paleolíticas e os materiais encontrados: indústrias líticas, ósseas,
caçadores-coletores-pescadores conchíferas, arte, cerâmica, etc.. Os dados foram
organizados segundo variáveis temporais e espa­
A primeira abordagem dessa complexa proble­ ciais. Neste momento da análise, tentou-se a defini­
mática que são as sínteses regionais, implica em ção sócio-cultural destes grupos, assim como expli­
estabelecer as grandes linhas do povoamento da citar o tipo de relações adaptativas dialéticas em
região, inseridas nos quadros das migrações pré- relação aos ambientes passados. Procurou-se evi­
históricas que ocuparam o planeta e, em particular, denciar a correlação existente entre os padrões de
a América. subsistência e o conjunto tecnotipológico da cultu­
A gradual ocupação do continente americano ra material, ou seja, o conhecimento técnico e os
se desenvolve no final da última glaciação e duran­ tipos de implementos produzidos. Desta maneira,
te o início do Holoceno. Esse povoamento é realiza­ foram estudados os caçadores-coletores instalados
do por grupos pré-históricos dotados de uma cultu­ nas florestas subtropicais do planalto sul-brasileiro
ra material que é o prolongamento dos padrões cul­ e em suas encostas, os pescadores-coletores mari­
turais paleolíticos. Implementos líticos lascados nhos que ocuparam o litoral atlântico e os caçado-
(talhadeiras, lâminas bifaciais, facas, picões, bolas, res-pescadores dos pampas platinos e dos campos
pontas de projétil, furadores, raspadores, etc.) são do alto do planalto meridional.
encontrados nos sítios paleolíticos africanos, euro­
peus e asiáticos. Recursos tecnológicos tais como O processo de neolitização
o lascamento primário e secundário, lascamento e os horticultores aldeões
bipolar, lascamento por pressão, retoques por per­
cussão, etc., são conhecimentos que se evidenciam Numa segunda abordagem, estivemos interes­
na cultura material encontrada nos sítios paleolíti­ sados em explicitar o processo de neolitização re­
cos muito anteriores à ocupação pré-histórica de gional. Isto significou estudar as modificações
nossa região. O mesmo pode ser destacado em rela­ socio-culturais por que passaram as sociedades
ção às manifestações artísticas e religiosas. Estas indígenas há mais de dois milênios, a organização
heranças culturais são destacadas com o objetivo social em aldeias, a produção artesanal da cerâmi­
de inserir as manifestações locais nos quadros mais ca, a domesticação de plantas nativas e a produção
amplos e complexos da pré-história da humanidade. horticultora do cultivo.
A aparência física dos primeiros povoadores Atualmente se conhece muito mais a respeito
é, ainda, a correspondente ao Homo sapiens sa­ das imensas transformações que ocorreram nos iní­
piens. Ainda não foram encontrados os restos es- cios do Holoceno, com as pesquisas arqueológicas
queletais que possam indicar a existência de ho­ que se ampliaram no Oriente Próximo e na Euro­
mens mais antigos. Ao contrário do que se popula­ pa, e que se iniciaram em outros continentes, como

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é o caso da América. Sabemos com certeza que a à caça, à pesca e à coleta. Por outro lado, o termo
Revolução Neolítica não foi nem “neolítica” nem agricultura refere-se ao plantio (cultura) em campo
uma “revolução”, porque as transformações deno­ aberto (agri). Esta técnica só foi conhecida após a
minadas de “neolíticas” são muito mais complexas invenção do arado nos momentos finais da Pré-
do que se imaginava inicialmente. Em primeiro História. Todos os grupos neolíticos apenas conhe­
lugar, muitas das invenções atribuídas ao neolítico ceram a horticultura, ou seja, o cultivo de plantas
são anteriores: o polimento da pedra, os primeiros domesticadas em pequenas hortas, numa escala li­
objetos em cerâmica e os primeiros animais domes­ mitada, nas clareiras abertas nas florestas. O siste­
ticados, são conquistas culturais realizadas já no ma de cultivo, posto em prática por grupos aldeões,
Paleolítico Superior. A domesticação das plantas tais como os Tupi e os Guarani, caracteriza-se pela
se originou na coleta desenvolvida no Mesolitico, utilização de pequenas clareiras abertas pelos ho­
associada ao avanço tecnológico e às transforma­ mens nas matas das várzeas dos rios. A finalidade
ções ambientais pós-glaciares. Assim, as inovações é o plantio de plantas domesticadas. Na América,
técnicas deste momento da história foram paleo­ o cultivo parece ter sido realizado pelas mulheres.
líticas e mesolíticas, tendo finalmente se populari­ Limitado às hortas, em meio a clareiras, a variedade
zado no Neolítico. Por outro lado, ao contrário do de plantas nativas domesticadas incluía o milho, a
que se pensou no passado, não existiu apenas um mandioca, o tabaco, as batatas, os feijões, os poron­
foco de transformações, no Oriente Próximo, mas gos, o algodão, o amendoim, etc.. Este sistema indí­
diversos em todo o planeta, estando inclusive um gena de plantio, denominado de horticultura, não
deles situado na América. Mesmo nestes núcleos pode ser confundido com a agricultura de campo
de invenção continua a ocorrer o que denominamos aberto e arado, introduzido pelos europeus na Amé­
de “a contemporaneidade do não contemporâneo”, rica apenas na época colonial.
ou seja, a coexistência de grupos neolitizados total A domesticação dos animais é conhecida
ou parcialmente, com outros que mantêm apesar igualmente desde o Paleolítico. Durante a última
de tudo as suas tradições milenares de caça-coleta- glaciação, na Europa, já se domesticara o cão e há
pesca. evidências da domesticação do cavalo. Mais tarde,
Tende-se hoje a utilizar o termo “processo de em muitas regiões do globo, domesticaram-se ani­
neolitização” e sugerir modificações complexas ao mais diferentes: o gado zebu na índia, o camelo
longo do tempo, com variações culturais muito am­ no Oriente Próximo, a lhama nos Andes, etc.. Abe­
plas e diversificadas em cada uma das áreas em lhas, porcos, cabras, alpacas, vicunhas, dromedá­
que ocorreu. A domesticação das plantas foi uma rios, renas, galinhas, são alguns dos animais que
decorrência de milênios de coletas de plantas selva­ as sociedades pré-históricas terminaram domesti­
gens. Na América, como podemos constatar das cando e colocando a seu serviço. A carne, as gordu­
evidências atualmente conhecidas, as sociedades ras, os tendões, o leite, a manteiga, o queijo e o yo-
locais foram igualmente muito criativas, chegando gurte, foram produtos oriundos da domesticação
mesmo a “inventar” o milho, uma planta inexis­ dos animais. Ao lado dos aldeões horticultores, sur­
tente em estado natural, tal como a vemos hoje. giram os rebanhos conduzidos por pastores. Muitas
Inovações e influências culturais distintas em cada aldeias também tiveram seus rebanhos, assim como
região, deram origem a processos de neolitização os pastores não desconheceram o plantio. Tomava-
capazes de produzir diferentes técnicas de produzir se ainda mais complexa a diferenciação das socie­
o alimento. Na América, não foi igualmente um dades e das culturas, o que levou muitos arqueólo­
processo rápido e intenso, como geralmente é uma gos a se referirem de maneira mais precisa aos di­
revolução, mas durou séculos, o que poderia justifi­ versos “neolíticos”.
car igualmente a utilização do conceito de “proces­ Um outro importante aspecto desta complexa
so de neolitização”. questão refere-se às características básicas dos no­
Superamos igualmente a hipótese que associa­ vos padrões de subsistência. Em lugar de uma pre­
va a agricultura à sedentarização, nos grupos deno­ tensa revolução agrícola , como já se imaginou,
minados de “neolíticos”. Na América atlântica tro­ sabemos que às atividades predadoras da caça, da
pical ou subtropical, como sabemos, o cultivo de pesca e da coleta, somam-se os produtos da horti­
plantas domesticadas está associado ao semi-no­ cultura e da domesticação dos animais. Como a
madismo das aldeias e ainda muito correlacionado densidade demográfica dos grupos pré-históricos

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nunca foi grande e o território onde essas múlti­ uso dessas técnicas. Mesmo em nosso litoral, en­
plas atividades se desenvolvem é extenso, cria-se contramos o domínio do polimento da pedra nos
uma situação que já foi denominada de “economia sambaquis, provavelmente antes do aparecimento
da abundância”. Os grupos pré-históricos que parti­ da cerâmica e da domesticação das plantas. A do­
cipam do processo de neolitização na vertente mesticação dos animais não foi conhecida pelos
atlântica do continente sul-americano, são bem um nossos grupos indígenas locais, antes da chegada
exemplo disto. Apresentam características que nos do gado trazido pelos espanhóis e portugueses. Por
levam a repensar certas explicações consagradas outro lado, alguns de nossos grupos indígenas sul-
no passado. Quando estudamos os Tupi no litoral americanos demonstraram capacidades extraordi­
atlântico brasileiro e os Guarani no rio da Prata, nárias de invenção e domínio técnico, igualmente
percebemos como sub-utilizam seus recursos e co­ importantes do ponto de vista histórico, principal­
mo dedicam poucas horas por dia à subsistência. mente ao domesticarem inúmeras plantas nativas.
Os recursos alimentares das grandes áreas que per­ Realizaram uma inovação cultural extraordinária
correm, servem perfeitamente para atender às ne­ ao inventar, através do cruzamento de algumas gra­
cessidades básicas de uma população proporcional míneas, uma planta que não existe em estado selva­
ao território. Grande parte das atividades que se gem e é incapaz de se reproduzir sozinha, o milho.
relacionam com a obtenção de alimentos, como a Esta planta é conhecida nos sítios arqueológicos
caça e a pesca, são igualmente atividades lúdicas. andinos já desde as origens do Holoceno. A domes­
As noções de trabalho e de produção, que os euro­ ticação das plantas se fazia centrada na mandioca
peus trouxeram no século XVI para a América, doce, ou aipim, entre os grupos tupis do Brasil tro­
eram totalmente ausentes do cotidiano desses gru­ pical, e no milho entre os Guarani, instalados nos
pos horticultores. A reação contrária dos indíge­ ambientes subtropicais do rio da Prata. Os conheci­
nas ao trabalho compulsório terminou gerando pre­ mentos técnicos da horticultura parecem ter sido
conceitos por parte do branco. Para ele, o índio introduzidos no oriente da bacia do rio da Prata
seria indolente e preguiçoso. O europeu não perce­ por esses horticultores e aldeões guaranis. No mes­
beu, ou não quis perceber, que tinha diante de si mo momento em que isso acontecia, outros grupos
um modo de viver capaz de lhe oferecer uma lição permaneciam basicamente caçadores e coletores
de vida digna de ser examinada. Estes poucos nômades no pampa, mantendo contato com os in­
exemplos nos demonstram a diversidade dos pro­ vasores, mas pouco utilizando as novas invenções
cessos de neolitização em cada uma das regiões disponíveis. Já os caçadores-coletores do planalto
onde ele ocorreu. Nos fazem igualmente racioci­ usufruíram não apenas destas inovações trazidas,
nar sobre a excessiva simplificação das idéias que mas igualmente de outras que migram pelos altos
se tem sobre o complexo episódio histórico deno­ do planalto, desde o Brasil central até as encostas
minado de Neolítico. mais meridionais.
Na América, o processo de neolitização é com­ Sabemos hoje que estas modificações sócio-
plexo, quando comparamos os dados que temos culturais que ocorreram no Holoceno médio, e que
com aqueles do Velho Mundo. Os animais que po­ se relacionam com o processo de neolitização, de­
dem ser domesticados são aqueles que vivem gre­ vem ter sido acompanhadas dos deslocamentos de
gários e que se organizam como rebanhos. Na populações. Elas devem ser estudadas caso a caso,
América, eles são em pequenos número, restringin­ em cada um dos centros de invenção e em cada
do-se às lhamas, alpacas, vicunhas. Em compensa­ uma das áreas nas quais as novas tecnologias e as
ção, são em grande número e diversificadas as es­ novas formas de organização sócio-econômicas se
pécies vegetais domesticadas, como vimos. O do­ estabeleceram. É o que tentaremos fazer em rela­
mínio das técnicas de domesticação das plantas e ção à área oriental da região do rio da Prata. Sabe­
dos animais, assim como do polimento da pedra e mos que, aqui, as novas condições ambientais
da arte de fazer a cerâmica, por exemplo, não são quentes e úmidas do período denominado de “Óti­
coincidentes nem no tempo nem no espaço. Sabe­ mo Climático” (6.000 a 4.000 A.P) propiciaram o
mos que o polimento da pedra e o processo de coc- auge do desenvolvimento das sociedades de caça-
ção da cerâmica já era conhecido pelas popula­ dores-coletores-pescadores. Somente após 2.000
ções paleolíticas, pois na Europa muitas das esta­ A.P, portanto muito recentemente em relação ao
tuetas femininas da arte paleolítica evidenciam o conjunto do povoamento da região, grupos horti­

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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8: 15-24, 1998.

cultores aldeões de origem amazônica aqui se esta­ Finalmente, o último momento desta análise
beleceram. Mas nessa época, outros grupos apre­ centrou-se na penetração dos novos invasores e po-
sentaram inovações neolitizantes em sua cultura. voadores da bacia platina, que se instalaram a partir
E o caso dos caçadores-pescadores do pampa, que de frentes de expansão colonizadora, nos primor­
se apresentam como portadores de uma cerâmica dios do período colonial. Os contingentes popula­
muito diferente da amazônica. E também os caça- cionais ibéricos foram, inicialmente, liderados pe­
dores-coletores do planalto meridional brasileiro, los conquistadores, e, posteriormente pelos missio­
que parecem receber influências culturais do norte, nários e funcionários das monarquias ibéricas.
mas de diferentes origens. Três grandes vagas de Ocuparam espaços, fundaram cidades, absorveram
inovações neolíticas, pouco a pouco penetraram e algumas comunidades indígenas e aniquilaram ou­
se instalaram nessa área. Uma primeira manifesta­ tras. Foram sinteticamente estudados os impactos
ção dessas modificações culturais parece migrar e os contatos que se estabeleceram entre os grupos
pelos altos do planalto sul-brasileiro, vinda do Bra­ indígenas remanescentes e estes novos povoadores,
sil central, através dos contatos ou das migrações igualmente modemizadores, como os grupos gua­
dos grupos Jê. Ela vem acompanhada por uma nova ranis haviam sido há 1.500 anos.
tecnologia de construções de casas subterrâneas
em conjuntos estabelecidos em meio às matas de
pinheiro araucária, bem como de um estilo cerâmi­ 4. Conclusões e os rumos futuros
co muito específico. Outro ponto de origem parece das intervenções arqueológicas regionais
ser a foz do rio da Prata, onde uma cerâmica tão antiga
como a trazida pelos artífices guaranis, parece estar A definição destas várias abordagens foi esta­
se desenvolvendo, já há algum tempo. E, finalmen­ belecida basicamente para atingir três objetivos.
te, aquela que parece ser a vaga mais importante, Primeiramente, para se obter uma boa organização
que é a contribuição amazônica a estas inovações cronológica e espacial, mesmo que provisória, das
culturais. Se a chegada dos primeiros grupos pleis- diversas informações disponíveis. Em segundo lu­
tocênicos paleolíticos representou uma primeira gar, como única forma possível de obter-se uma
ocupação de caçadores portadores da tecnologia reconstituição a mais verossímel possível dos mo­
da pedra lascada, as migrações holocênicas dos dos de vida e das atividades do cotidiano, bem co­
horticultores habitantes de aldeias representou um mo captar realidades passadas já desaparecidas. E,
outro aporte importante de novas tecnologias. Por finalmente, para demonstrar como os estudos in-
difusão cultural ou por migração étnica, terminou terdisciplinares são férteis do ponto de vista cientí­
realizando-se uma modernização sócio-cultural nos fico. Eles reúnem dados e interpretações propor­
padrões de subsistência dos grupos de caçadores- cionadas pelas ciências da natureza e das ciências
coletores-pescadores, instalados na área em estu­ humanas que estudam o passado, geomorfologia,
dos. Foram então especificados os novos padrões paleontologia, paleobotânica, etnohistória, arqueo­
de subsistência dos grupos de horticultores que in­ logia e história.
vadiam pouco a pouco a região, bem como as suas Os dados obtidos nas escavações arqueológi­
complexas relações com os dos caçadores-coleto- cas, nas analogias etnográficas e mesmo nas pes­
res-pescadores ainda remanescentes na região. quisas históricas, são ainda em grande parte desco­
Mais uma vez, foram relacionadas diversas variá­ nhecidos da sociedade atual. São portanto apresen­
veis: paleopaisagens, tipos de organização sócio- tados no presente estudo de maneira sintética, vi­
cultural, distribuição temporal e evidências tecnoti- sando a divulgação do conhecimento.
pológicas da cultura material. Não podemos igno­ Do ponto de vista teórico e metodológico, al­
rar, neste momento, a importância das relações gumas orientações importantes caracterizam a pu­
existentes entre os dados da etnografía dos grupos blicação. A interdisciplinaridade permite a recons­
indígenas da região e suas relações com as informa­ tituição de processos históricos multilineares, mul-
ções arqueológicas, para os estudos sobre os grupos ticausais e com inúmeras variáveis, agindo e rea­
de horticultores da floresta tropical ou subtropical, gindo entre si, de maneira complexa. Apenas essas
os caçadores-coletores-horticultores instalados nas abordagens nos possibilitarão superar as visões re-
alturas do planalto meridional brasileiro e os caça­ ducionistas, baseadas em abordagens unicausais e
dores-pescadores ceramistas das zonas pampeanas. mecanicistas. Estas evidências são sempre que pos­

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KERN, A.A. Antecedentes Indígenas: problemáticas teórico-metodológicas das sínteses sobre a pré-história regional.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8: 15-24, 1998.

sível confrontadas com as teorias e os documentos Sínteses regionais como esta, visam a recons­
históricos disponíveis, especialmente para con­ tituição do passado com a finalidade clara de pro­
firmá-los ou rejeitá-los. Sendo este um trabalho dução deliberada e objetiva de uma memória social.
de síntese, não se pretende esgotar a bibliografia Esta memória histórica assim criada, serve de ponto
nem apresentar em detalhes todos os dados conhe­ de referência para a compreensão de nosso presen­
cidos pelas pesquisas arqueológicas ou históricas. te, atuando junto à sociedade de duas distintas ma­
A organização científica das diversas abordagens neiras. Por um lado, estabelece as bases de conheci­
não dá origem a uma visão histórica “eclética”, mento necessárias para a compreensão do proces­
como muitos com certeza poderão erroneamente so diacrônico global da região em que vivemos. E
pensar, mas sim a uma síntese dos conhecimentos em segundo lugar, nos permite um conhecimento
complementares obtidos nas pesquisas. melhor dos fundamentos e as características de
O trabalho de resgate das informações relati­ nossa identidade sócio-cultural, como comunida­
vas aos processos de povoamento regionais é um de inserida em um duplo contexto, histórico e
trabalho a ser ainda desenvolvido pelas próximas ambiental.
gerações de arqueólogos platinos. Dever-se-á rea­ A compreensão deste extenso panorama his­
lizar prospecções em áreas ainda virgens de traba­ tórico aqui sintetizado, tem a finalidade de nos fa­
lhos de campo, bem como fazer escavações em su­ zer pensar sobre problemáticas importantes, tanto
perfícies amplas nos sítios arqueológicos conhe­ no campo das ciências humanas como de nossa
cidos e capazes de propiciar bons resultados para história local. Toma-se necessária uma visão críti­
as problemáticas propostas. Deveremos também ca em relação ao nosso legado histórico. E neces­
aprofundar as análises, repensar as interpretações sário conhecer as origens de nossa história e, a par­
e ampliar a utilização de teorias e modelos hipotéti­ tir dela, desenvolvermos uma consciência crítica
cos testáveis para enriquecer as nossas interpreta­ sobre quem somos. A nossa sociedade formou-se
ções e conclusões. Apesar da imensa tarefa que se a partir de inúmeras migrações de variadas origens,
encontra ainda diante de nós, o trabalho já realizado
espontâneas ou forçadas. Os indígenas vieram da
proporcionou uma série de novas informações ca­
Ásia, no decorrer da última glaciação, povoando
pazes de nos apresentar uma visão sintética de uma
pouco a pouco toda a América. Os negros saíram
história ainda em grande parte desconhecida.
da África, como escravos, obrigados a uma migra­
Temos igualmente a necessidade de conscien­
ção forçada. Os brancos migraram em levas suces­
tizar-nos da proteção destes riquíssimos arquivos
sivas, da Europa, ao longo de todo o período colo­
documentais que são os sítios arqueológicos, fonte
nial. É importante que a nossa sociedade atual
imprescindível para as nossas reconstituições his­
tenha consciência deste longo processo histórico
tóricas. De maneira preconceituosa e sem a menor
consciência, a nossa sociedade investe contra seu para que possamos compreender nossa inserção em
próprio passado, ao destruir de maneira irrefletida sua última, relativa e transitória etapa. Dessa ma­
o seu patrimônio cultural e artístico, histórico ou neira tomaremos consciência de nossa situação
arqueológico. Insensível e irrefletidamente, aniqui­ existencial. Muito já se valorizou a herança dos
lamos seus últimos vestígios e os de sua participa­ europeus para a nossa sociedade. É tempo, agora,
ção em nossa história. Na voragem dessa destruição de respeitar e reconhecer finalmente o legado étni­
incontrolável, em flagrante desrespeito às leis de co de outras etnias que nos antecederam e que nos
proteção ambiental e patrimonial, estão rapidamen­ acompanham ainda atualmente. Os grupos indíge­
te desaparecendo muitos dos sítios arqueológicos, nas, por sua vez, poderão tomar consciência da
ou seja, os arquivos do solo onde se depositaram importância do processo histórico do qual foram
no passado os vestígios da cultura material de nos­ protagonistas, repensando os caminhos de seu pró­
sos antepassados, tenham sido eles indígenas, ne­ prio destino. A resultante poderá ser, talvez, uma
gros ou brancos. Sendo um legado de todos nós, sociedade mais justa, coesa e solidária.
esses arquivos do solo não podem ser arrasados Essa história talvez faça prevalecer, finalmen­
por alguns, de maneira irrefletida. É responsabili­ te, a idéia de que a construção de uma nova socie­
dade de toda a sociedade impedir esta destruição dade pode perfeitamente ser feita, sem que neces­
sistemática, e não apenas o vão esforço de legisla­ sariamente se tenha de destruir o ambiente, o pa­
dores, de alguns raros historiadores, arqueólogos trimônio cultural do passado e as outras etnias que
e funcionários de órgãos patrimoniais. compartilham conosco o espaço social.

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KERN, A.A. Antecedentes Indígenas: problemáticas teórico-metodológicas das sínteses sobre a pré-história regional.
Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8: 15-24, 1998.

KERN, A.A. Indigenous antecedents: theorical-methodological problems in syntheses about


regional pre-history. Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 8: 15-24,
1998.

ABSTRACT: A synthesis of regional pre-history must be established starting


from archaeological information organized in a space-time framework. Not only
the data obtained from the analysis of material traces present at the sites should
receive attention, but also equally the moments of transition of the paleo-scene-
ries and cultures should be reconstituted. Patterns of subsistence, exploration
of sources of raw material, the typology of artifacts, the art symbols, the adaptive
processes, integration and conflict, are some of the diverse aspects to be studied,
from models which admit multiple variables and a manifold causality. The neces­
sary conceptual rigor and superation of simplistic interpretations not withstan­
ding, inumerous problems of theoretical-methodological character will still be
difficult to solve, as this study makes clear.

UNITERMS: Pre-historical Archaeology - Regional synthesis -Theoretical-


methodological problems.

Recebido para publicação em 25 de maio de 1998.

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