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HISTÓRIA E

ANTROPOLOGIA
CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Eduardo Gomes da Silva Filho


(Organizador)

Casa Leiria
História e Antropolo-
gia – conexões do tempo
presente, propõe em seus
textos promover uma diálo-
go com alguns dos estudos
que abordam a Nova Histó-
ria Indígena, é um presente
dos autores para uma refle-
xão sobre povos que ficaram
por muitos anos no esque-
cimento, cujas vozes que
ecoaram foram amenizadas
pelo exotismo e preconcei-
to. Logo, buscar conhecer
sua cultura, costumes, tra-
dições e organização social
e política, é compreender
um pouco de nós mesmos.

Alexandre da Silva Santos


HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA:
conexões do tempo presente
Eduardo Gomes da Silva Filho
(organizador)

HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA:
conexões do tempo presente

Casa Leiria
São Leopoldo/RS
2018
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA:
CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Organizador: Eduardo Gomes da Silva Filho.


Edição: Casa Leiria.
Revisão: Alexandre da Silva Santos

Os textos e as imagens são de responsabilidade dos autores.


Qualquer parte desta publicação pode ser reproduzida, desde
que citada a fonte.

Ficha catalográfica

Catalogação na Publicação
Bibliotecária: Carla Inês Costa dos Santos – CRB 10/973
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

SUMÁRIO

9 PREFÁCIO
Eduardo Gomes da Silva Filho
11 APRESENTAÇÃO
Eduardo Gomes da Silva Filho
15 CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE
UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO
Bruno da Cunha Araújo Pereira
45 MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS
E ALTERNATIVAS PARA A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS
INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA
Fernando Roque Fernandes
69 DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?
Laiana Pereira dos Santos
89 AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A
PARTIR DA EXPERIÊNCIA COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS
WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR
Ananda Machado
111 TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA
PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO
Jaspe Valle Neto
Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel
Jacy Alice Grande da Soledade
Ronaldo Nogueira de Moraes
127 A ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO NO RIO
MADEIRA E OS MUNDURUCU DO POSTO INDÍGENA DE
LARANJAL – BORBA/AM (1938-1940)
Davi Avelino Leal
137 A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA
“NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”
Alexandre da Silva Santos
Girlane Santos da Silva
155 UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUIÇÃO DAS IMAGENS
PRODUZIDAS NAS VIAGENS CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN
STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA
Marcos Paulo Mendes Araújo
177 ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO
GRANDE DO SUL, BRASIL
Estelamaris Dezordi
SUMÁRIO

195 A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E


GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS
Elemir Soares Martins

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

PREFÁCIO

O estudo acerca dos povos indígenas durante os dois últi-


mos séculos, vêm passando por profundas transformações, prin-
cipalmente a partir das reivindicações sociais de determinados
grupos étnicos. Nesse sentido, questões como o contato com es-
ses grupos, descortinam as emergências de novas etnogêneses.
A história desses povos, via de regra, foi contada pelo colo-
nizador, mas esta obra procura inverter essa perspectiva, na me-
dida em que abre espaço para as análises tanto de historiadores
e antropólogos, e, acima de tudo, em determinadas passagens,
do próprio índio.
Outrossim, muitas das temáticas discutidas nessa obra,
encontram ressonância em demandas históricas dos povos tra-
dicionais, sobretudo no tocante do direito à educação, políticas
sociais e direitos constitucionais.
Nesta obra, os autores recorrem a diversas fontes distintas,
para evidenciar o que muitos estudiosos definem atualmente
como “Nova História Indígena”. Isso pode ser observado em textos
que trazem à tona análises documentais, relatos orais, entrevistas
e materiais etnográficos. Entre outros aspectos abordados, tam-
bém podemos destacar a valorização das línguas indígenas, me-
mórias e narrativas orais, tanto como fonte, quanto metodologia.
A perspectiva interdisciplinar entre a História e a Antro-
pologia é um diferencial na interlocução do processo de análise
desta obra, pois nos auxiliam no olhar da convergência teórica e
metodológica dos conceitos empregados a partir da cosmovisão
de cada autor.
Nesse sentido, a emergência de um protagonismo indígena
categoriza-se como uma tônica pertinente e necessária ao mo-
mento histórico em que vivemos. Isso pode ser evidenciado ao
longo das últimas décadas, tanto pelos movimentos etnopolíti-
cos, quanto pela atuação das agências indígenas.
Portanto, às formas de organização e resistência indígena,
são parte fundamental deste processo, que vislumbra uma forte
PREFÁCIO

ressignificação cultural, além de emergir o protagonismo indí-


gena, que há tanto tempo foi “invisibilizado” pelo colonizador.

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

É a partir desde cenário, que a Nova História Indígena for-


talece tais conexões, principalmente sob à luz de uma etno-his-
tória. A relevância social de cada pesquisa apresentada nesta
obra, constitui-se como uma profícua contribuição à História
indígena do tempo presente, não apenas pelo fato da qualidade
de cada texto, mas pelas análises apresentadas a partir de pes-
quisas empíricas e trabalhos etnográficos.
Portanto, a coletânea de textos que por ora apresentamos
aos caríssimos leitores, constituem-se como contribuições inde-
léveis ao campo da História indígena do tempo presente, a partir
das reflexões necessárias entre a História e a Antropologia, par-
tindo da evidenciação do protagonismo indígena, como um ca-
minho crível a ser seguido, discutido, problematizado e, acima
de tudo, respeitado!

Eduardo Gomes da Silva Filho


PREFÁCIO

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

APRESENTAÇÃO

A obra “História e Antropologia: Conexões do Tempo Pre-


sente”, faz parte de uma iniciativa coletiva, fruto de uma série de
dez textos relacionados à interface entre a História e a Antropo-
logia, sobretudo, acerca da História indígena do tempo presente.
A organização da obra coube ao professor da Universidade
Federal de Roraima, Eduardo Gomes da Silva Filho, que convi-
dou outros pesquisadores ligados à temática da obra para cola-
borarem com a mesma. A ideia central passa pela socialização
de resultados de pesquisas já concluídas, ou em alguns casos,
em andamento, de pesquisadores que dialogam com a História
indígena em suas mais diversas nuances.
O capítulo inicial foi escrito pelo indigenista da Fundação
Nacional do Índio Bruno da Cunha Araújo Pereira, sob o título
“Conflitos e contatos no Vale do Javari, relato de uma experiên-
cia de campo”. Nele, o autor se debruçou sob o tema dos índios
isolados, nos trazendo uma importante perspectiva indigenista,
acerca da TI do Vale do Javari, na região oeste do Estado do Ama-
zonas, na divisa com o Peru. A análise principal do texto gira em
torno das etnias Matis e Korubo, partindo da experiência etno-
gráfica do autor com esses grupos étnicos isolados.
Na sequência, temos a contribuição dada pelo professor
Fernando Roque Fernandes, vinculado à Faculdade de Educação
da Universidade Federal do Amazonas e Doutorando em His-
tória Social pela Universidade Federal do Pará. Seu texto, de-
nominado “Movimentos indígenas contemporâneos: Desafios e
alternativas para a evidenciação das agências indígenas na escri-
ta da nova história indígena”, nos aponta para a emergência de
uma nova história indígena, abordando aspectos referentes ao
protagonismo indígena, explicitando e analisando o conceito de
agências indígenas na contemporaneidade.
APRESENTAÇÃO

Outro texto imprescindível para compreendermos o con-


ceito de História indígena do tempo presente, foi escrito pela
professora Laiana Pereira dos Santos, Mestre em História Social
pela Universidade Federal do Amazonas. Nele, a autora faz o

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

seguinte questionamento: “De qual protagonismo indígena es-


tamos falando?”, referindo-se às formas de protagonismo, resis-
tência e tradição dos povos tradicionais ameríndios, sobretudo,
à luz das perspectivas e vivências acadêmicas da autora, exaltan-
do o papel importante que os indígenas ocupam atualmente no
mundo acadêmico.
Já a Profª Dra. Ananda Machado, do curso de Gestão Ter-
ritorial Indígena do Instituto Insikiran da Universidade Federal
de Roraima, nos contemplou com uma profícua reflexão em seu
texto denominado: “As relações entre Histórias e Antropologia a
partir da experiência com biografias de indígenas Wapichana da
região serra da Lua-RR”. Nele, a autora faz um exercício de res-
significação cultural a partir da análise de algumas biografias de
personagens importantes da cultura e tradição do povo indígena
Wapichana.
Outro cenário importante que evidencia a luta e o prota-
gonismo indígena, principalmente no campo da educação, foi
analisado pelo professor Jaspe Valle Neto (et al), Doutorando
em Educação pela Universidade Federal do Amazonas. No tex-
to chamado: “Tensões e conquistas indígenas na luta pela esco-
la própria: Povo Mura em contexto”, o autor discorre acerca dos
processos históricos relacionados à educação escolar indígena,
abordando as ferramentas necessárias e a trajetória percorrida
pelo povo Mura, na luta pela escola própria.
Destarte, Davi Avelino Leal, Professor do Departamento de
História da Universidade Federal do Amazonas e Dr. em Socie-
dade e Cultura da Amazônia, aborda no seu capítulo “A atuação
do Serviço de Proteção ao Índio no Rio Madeira e os Mundurucu
do Posto Indígena de Laranjal – Borba/AM (1938-1940)”, as ten-
sões entre os agentes do SPI e os índios Mundurucu, além das
análises feitas a partir de fontes que relatam as ações de etnólo-
gos, missionários e índios principais neste território, o pesquisa-
dor ainda nos chama a atenção para a invasão de outros agentes
APRESENTAÇÃO

no território tradicional, fato que nos provoca uma necessária


reflexão.
No capítulo seguinte, denominado “A Literatura como
ferramenta para o ensino da “Nova História Indígena”, temos

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

um texto em coautoria, escrito por Alexandre da Silva Santos e


Girlane Santos da Silva, ambos ligados à Universidade Federal
do Amazonas, o primeiro no Mestrado em Letras e também em
História, a segunda na graduação em História. O texto nos cha-
ma a atenção à maneira inovadora como os autores trabalham
com a Literatura para o ensino de uma história indígena livre de
dogmas, e da visão estereotipada que ficou marcada pelo etno-
centrismo europeu. Portanto, os autores rompem este paradig-
ma e nos fornecem elementos teóricos e metodológicos necessá-
rios a esta compreensão.
Aprofundando a seara entre a História e Antropologia, o
professor Marcos Paulo Mendes Araújo, Mestre em História pela
Universidade Federal do Amazonas, relata no seu texto “Um bre-
ve estudo acerca da contribuição das imagens produzidas nas
viagens científicas de Karl von den Steinen e Emile Snethlage,
para a Antropologia”, uma série de experiências de Etnólogos
estrangeiros junto aos povos do Rio Xingu, em uma espécie de
exploração científica financiada por terceiros, com a finalidade
de ter um termômetro do potencial financeiro do local para fins
de exploração econômica.
A Antropóloga Estelamaris Dezordi, Mestra em Antropo-
logia pela Universidade Federal de Pelotas, no seu texto “Assim
nasceu a Tekoa Pyaú em Santo Ângelo, Rio Grande do Sul, Brasil”,
aborda em seu trabalho os aspectos da formação cultural e iden-
titária dos povo Mbyá Guarani, da região das Missões em Santo
Ângelo no Estado do Rio Grande do Sul. O trabalho da Antro-
póloga baseou-se em uma etnografia junto a esse povo, tendo
como base a História Oral e os próprios relatos da experiência
etnográfica.
A voz, o olhar e as experiências dos próprios indígenas não
poderiam ficar de fora desta obra, é neste contexto que o artigo
de Elemir Soares Martins, indígena residente na reserva Caa-
rapó-MS e mestrando em História na Universidade Federal da
APRESENTAÇÃO

Grande Dourados, descreve em seu texto “A liderança política/


capitão na ótica dos Kaiowá e Guarani da reserva Te’yikue, Caa-
rapó-MS”, os conflitos e tensões provocadas na sua própria etnia,
pelo cargo de Capitão, criado ainda na época da administração

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

do SPI e mantido atualmente pela Funai. O autor analisa o im-


pacto dessa figura dentro da reserva indígena, sob uma ótica lo-
cal e bastante perspicaz, agregando elementos essenciais para a
compreensão desses conflitos.
Em síntese, o livro “História e Antropologia: Conexões do
Tempo Presente”, se propõe a estreitar os laços entre a História e
a Antropologia, a partir da visão de uma nova safra de pesquisa-
dores ligados ao tema e que dialogam sobretudo, com a História
Indígena do tempo presente.

Eduardo Gomes da Silva Filho


APRESENTAÇÃO

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

CONFLITOS E CONTATOS NO
VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA
EXPERIÊNCIA DE CAMPO

Bruno da Cunha Araújo Pereira1

O objetivo deste artigo 2 é apresentar um olhar sobre


os últimos contatos que ocorreram entre povos indígenas
considerados “isolados” 3, na Terra Indígena Vale do Javari,
localizado no extremo oeste do Estado do Amazonas, na re-
gião de fronteira com o Peru. Na época dos acontecimentos,
entre final de 2014 e início de 2016, distanciei-me dos deba-
tes que ganharam repercussão nacional, por entender que
muitas vezes ele foi conduzido de forma leviana e irrespon-
sável, movido por interesses diversos, afastando-se de uma
análise mais aprofundada do que realmente estava em curso,
ou seja, um conf lito grave entre aqueles que demandava a
intervenção dos órgãos responsáveis do Estado, com atribui-

1 Indigenista da Fundação Nacional do Índio – Funai/Ministério da Justiça, au-


tarquia responsável pela coordenação e principal executora da política indige-
nista do Governo Federal, e trabalhando na região do Vale do Javari desde 2010.
2 Agradeço à revisão e comentários da antropóloga Beatriz A. Matos e dos indi-
genistas da Funai Fabrício Amorim, Bernardo Vargas da Silva e Leopoldo Dias.
3 Consideramos nesse artigo a definição de isolamento e contato de Amorim
(2017), ela define: “Apesar do termo “isolamento” sugerir um estado de não-re-
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

lação com outros, não é nesse sentido que aqui ele é usado. Falaremos de “si-
tuação de isolamento” antes de “indígenas isolados”; pois, em primeiro lugar,
é preciso deixar claro que não se trata de um estado que definiria um grupo
por sua “pureza” ou “essência” cultural preservada, por oposição a grupos que
mantém contato com a sociedade ocidental. Nesse sentido, o “isolamento” se
refere a uma situação sociopolítica em que determinado coletivo indígena se
encontra, definida por uma estratégia de relação com o entorno. Da mesma
forma, a definição do que seria “contato” é alvo de debates tanto por parte de
antropólogos e estudiosos do tema, como por parte de agentes do Estado e
definidores de políticas públicas. Aqui, o que chamaremos de “processo” ou
“situação de contato”, refere-se à atuação do órgão indigenista oficial. “Con-
tato”, da forma aqui abordada, é o início de relações (não bélicas) de troca e
comunicação contínua de um grupo indígena com os agentes do Estado.”

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ções para atuar em situações como esta, no caso a Funai e a


Sesai4.
Assim, neste artigo, pretende-se discutir a situação expos-
ta para se obter uma reflexão mais cuidadosa sobre o assunto, e
com o mesmo objetivo, desenvolver uma análise sobre quem vi-
veu de perto os fatos ocorridos. No período em questão, eu ocu-
pava o cargo na Funai de coordenador da Coordenação Regional
Vale do Javari - CRVJ (de meados de 2011 a março de 2016), e jun-
to com o outro colega de mesma função, na Frente de Proteção
Etno-ambiental Vale do Javari - FPEVJ5, o então Eriverto Vargas.
Juntos, tomamos a liderança na ação indigenista do Estado nos
últimos episódios de conflitos, bem como em estabelecer conta-
tos com os protagonizados pelos povos Matis e Korubo, no in-
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

terflúvio dos rios Coari e Branco, no interior da Terra Indígena


Vale do Javari.

O ATAQUE KORUBO AOS MATIS NA ROÇA DA


ALDEIA TODOWAK

Os Matis e Korubo são falantes de línguas do ramo Pano


Setentrional (FLECK, 2013) e vivem em áreas relativamente
próximas, na Terra Indígena Vale do Javari. Em 2014, a Funai
reconhecia quatro grupos locais Korubo: o primeiro, em situa-
ção de recente contato, conhecido como o grupo da Maya, con-
tatado em 1996 e vivendo na época em duas aldeias (Tapalaya
e Talaoca) nas margens e próximo da foz do rio Ituí; e outros
três em situação de isolamento - o grupo do rio Coari, o do rio
Itaquaí (também conhecido como grupo do Marubão)6 e o do
rio Curuena.

4 Secretaria Especial de Saúde Indígena, órgão Federal criado em 2010 e respon-


sável por coordenar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indíge-
nas.
5 Unidades descentralizadas da Funai especializadas na proteção dos povos in-
dígenas isolados e de recente contato, garantindo aos povos isolados o pleno
exercício de sua liberdade e das suas atividades tradicionais sem a necessária
obrigatoriedade de contatá-los. Atualmente, a Funai possui 11 Frentes na Ama-
zônia Legal.
6 Em referência ao igarapé Marubão, pequeno afluente da margem esquerda do
rio Itaquaí, onde esses Korubos eram normalmente avistados.

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

No que tange aos Matis, estes foram oficialmente conta-


tados em 1976 e o precário atendimento de saúde nas ações de
pós-contato, causou uma tragédia epidemiológica que dizimou
grande parte de seu povo em poucos anos. Até 2010, eles viviam
em duas aldeias nas margens do rio Ituí, em meio a um processo
de fortalecimento de seu próprio povo, devido a um aumento
populacional e a retomada de práticas culturais abandonadas
após o contato. Em consequência, eles decidiram voltar para o
lugar mencionado, a partir de 2005.
A imagem abaixo mostra-nos, por exemplo, a região pró-
xima onde viveram antes do contato de 76, isto é, nos médios
cursos dos rios Coari e Branco.

BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

Mapa 1: Geoprocessamento e Layout: Bernardo N. Vargas da Silva, 2017

No meio da manhã do dia 5 de dezembro de 2014, chegou


no rádio da sede da Coordenação Regional Vale do Javari (loca-
lizada na cidade de Atalaia do Norte-AM) a notícia de que em
uma roça da aldeia Matis Todowak, um grupo de Korubos iso-
lados havia desferido ataques fatais contra dois homens Matis.
Esse ocorrido foi transmitido da Base Ituí da Frente de Proteção
Etno-ambiental Vale do Javari (localizada na entrada da Terra

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Indígena, no encontro entre os rios Ituí e Itaquaí)7, pelo Coorde-


nador da FPEVJ, Eriverto Vargas. Ele havia acabado de falar pelo
rádio com o único sobrevivente Matis do ataque: Tumin Tukun,
então na função de vice-cacique da pequena aldeia Todowak.
A Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém-Contata-
dos-CGIIRC8 foi acionada imediatamente em Brasília-DF e ini-
ciaram os diálogos e preparativos locais para a ida de uma equipe
da Funai ao rio Coari. Com efeito, um helicóptero da Sesai foi
disponibilizado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena-DSEI
do Vale do Javari9 para transportar-me, como servidor da Funai,
e mais três Matis que trabalhavam no órgão de assistência à saú-
de indígena e/ou familiares das vítimas. No retorno da aeronave,
seria retirado da área de conflito o único funcionário não-indíge-
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

na da equipe da Sesai na aldeia, um técnico de saúde.


Após tomarmos conhecimento de algumas ameaças dos
Matis à integridade física de qualquer servidor da Funai que
fosse nesse voo, a nossa atitude foi abandonada. Essa decisão
prezou pela segurança da tripulação da aeronave, bem como da
equipe de saúde que estava envolvida nessa logística. Imedia-
tamente foi preparado um deslocamento fluvial apenas com a
equipe da Funai e indígenas para a aldeia. Nesse mesmo dia, às
19h30, uma equipe da instituição mencionada mais alguns Matis
da aldeia Todowak, que estavam em trânsito na cidade de Ata-
laia do Norte, partiram dali para a Base Ituí, alcançando-a à meia
noite. Lá nos aguardavam os demais servidores e funcionários
indígenas terceirizados da Funai que comporiam a equipe que
se deslocaria para o lugar do ocorrido. Em consequência, foram
preparados os insumos e selecionada a equipe entre os Matis e
Marubos mais experientes.

7 Estrutura remota e operacional da Frente de Proteção Etno-ambiental Vale do


Javari – FPEVJ, na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, a aproximadamente 32 km
em linha reta de Atalaia do Norte, no interior da terra indígena em questão.
8 Setor da Funai em Brasília, subordinada à Diretoria de Proteção Territorial, respon-
sável por planejar, formular, coordenar e implementar as políticas de proteção aos
grupos isolados e recém-contatados;
9 É a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indí-
gena, responsável pela execução de ações de atenção à saúde nas aldeias e de
saneamento ambiental e edificações de saúde indígena.

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Por sua vez, monitoramos a radiofonia e estimamos que


mais de cinquenta homens Matis já haviam se deslocado para a
mata em direção as suas aldeias no rio Branco, Tawaya e Buku-
wak, e Todowak. Eles chegariam nas margens do Coari antes do
anoitecer. O risco de uma retaliação armada contra os Korubo
era iminente.
Paralelamente a isso, na manhã do dia seis de dezembro, par-
tem da Base Ituí duas embarcações de alumínio de 8 metros cada,
com propulsão de motores de popa 40 Hp. A longa e chuvosa via-
gem de 16 horas pelos rios Ituí e Coari, ainda com suas águas baixas,
não permitiam chegar à aldeia nesse mesmo dia. Dessa forma, foi
necessário que a equipe parasse por quatro horas durante a ma-
drugada, nas margens do rio último mencionado para descansar.
O clima de tensão e alerta de todos pela possibilidade dos Korubo
estarem nas proximidades não permitiu ninguém dormir.
Ainda escuro, no dia 07, foi retomada a viagem e às 6h30
encostamos no barranco da aldeia. O clima era fúnebre e tenso.
Os choros vinham da mesma maloca que havíamos visitado no
ano anterior10. Os Matis não permitiram que a equipe subisse em
terra e indicaram rispidamente que deveríamos retornar dali. Per-
manecemos por mais duas horas insistindo na possibilidade de
dialogar com eles. Após várias vezes fomos expulsos, informamos
que iríamos acampar na outra margem, no caminho da roça, onde
houve o suposto ataque e procuraríamos os Korubo. Logo em se-
guida, eles informaram que era perigoso ficar ali e permitiram que
subíssemos para a aldeia. Alocaram-nos numa das casas de paxiú-
ba11 , sendo determinado que não saíssemos dela.
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

10 Em 2013, após a divulgação de um vídeo feito pelos Matis do Todowak de um


contato inicialmente amistoso com Korubo isolados numa praia do rio Coa-
ri, e que seguiu para momentos tensos na mata. Nesse cenário, a Funai (CRVJ
e FPEVJ) dirige-se para aquela aldeia. Três dias de conversas se sucederam e
a liderança principal e mais antiga (Txami) negou-se a mudar a aldeia, o que
foi recomendado pela equipe da instituição, devido ao perigo da proximida-
de com os isolados e os inúmeros avistamentos e encontros com eles. Txami
insistia que conhecia os Korubo, que ali era o local onde seu pai havia vivido
com ele e que não haveria ameaça de conflito, apesar das imagens do vídeo e
os relatos das mulheres da aldeia que demonstravam esse receio.
11 Casa rústica à seringueiro, que tem suas paredes e piso feitos com a casca e
fibras do tronco de uma palmeira conhecida como paxiúba barriguda.

19
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Eles nos acompanhavam na ida, enquanto interagiam com


seus parentes e seguiram para o luto, na maloca. Ficamos a sós
com os Marubo na pequena casa. Instalamos nosso rádio, pas-
sando a fazer contato com a Base Ituí (FPEVJ) e a monitorar as
conversações, bem como checar se todos os Matis adultos das
três aldeias estavam presentes ali. Nossa dúvida era se a ausên-
cia de alguns deles pudesse indicar uma expedição punitiva aos
Korubo. Logo, estava evidente que a tensão na radiofonia era
evidente. Um dos exemplos desse exposto, ocorre no fato de al-
gumas lideranças de outros povos do Vale do Javari ameaçarem
os Matis, caso algo acontecesse com o coordenador Marubo12 da
FPEVJ. Outros também incitavam os Matis com brados: “matem
todos Korubo!”. Após esses acontecimentos, decidimos interferir
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

pedindo calma a todos, e que naquele momento estávamos ao


lado dos que incitavam um possível conflito para evitar novas
perdas e ajudar no que fosse preciso.
Às 15h fomos chamados na casa comunal, onde estavam
dezenas de homens, mulheres e crianças. Os Matis, muito exal-
tados, expuseram sua raiva, indignação e tristeza com a situação
das mortes de Damë e Xucuruta. Acusavam a Funai de ser culpa-
da pelas mortes, e por ter removido para o rio Ituí, poucos meses
antes, um grupo Korubo recém contatado no rio Itaquaí. Segun-
do aqueles, os povos do rio Coari sentiriam a falta de seus “pa-
rentes” dos que estavam no Itaquaí e poderiam por isso atacar
os Matis, pensando que estes seriam os culpados pelo sumiço.
Informamos a esses que aqueles grupos não conviviam e nem se
reconheciam como parentes naquele momento. Estávamos dia-
logando com os Korubo do Marubão e estes falavam que sabiam
desses outros grupo, mas que haviam brigado com eles há muito
tempo (há algumas décadas), havendo separação e ausência de
visitas entre eles.
De várias formas os Matis expressavam sua revolta. Um
dos momentos mais intensos foi quando os pedaços de pau uti-
lizados pelos Korubo para matar os dois Matis foram expostos e
aproximados dos rostos dos dois coordenadores da Funai. Deu-

12 Eriverto Vargas é indígena Marubo da aldeia Maronal, rio Curuçá, também


localizada na Terra Indígena Vale do Javari.

20
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

-se uma longa e quase interminável conversa, em que insistía-


mos que estávamos ali para auxiliá-los e que não concordáva-
mos com novos embates. Argumentávamos que as famílias ali
residentes deveriam se mudar emergencialmente para as aldeias
no rio Branco, e depois conversaríamos com mais calma sobre
suas demandas e posições para superar aquela tensão. A grande
gritaria e o tom emotivo de cada um que se manifestava dificul-
tavam o diálogo. Em certo momento, as viúvas das vítimas in-
terferiram bruscamente na conversa, suspendendo-a e pedindo
aos homens que parassem, pois ainda sofriam a perda de seus
companheiros e não queriam mais ouvir aquelas explicações. A
discussão foi paralisada e retornamos para a nossa casa.
Enquanto isso, fomos informados por Micherlângelo Ne-
ves que praticamente todos homens adultos que haviam se des-
13

locado pela mata das aldeias do rio Branco, estavam presentes


naquele momento no Todowak. Avaliamos, naquele instante,
que uma perseguição punitiva aos Korubo não teria havido tem-
po de ser consumada, já que havíamos chegado em menos de 48
horas após o ataque Korubo. Nesse interim, às 16h30, os Matis
pediram para voltarmos para a maloca, e nos informaram que
haviam decidido aceitar a proposta de mudar todas as famílias
do Todowak para as aldeias Tawaya e Bukuwak, no rio Branco.
Após o luto, e quando os Matis quisessem, retomaríamos as con-
versas nestas aldeias do rio Branco. Os ânimos ficaram menos
exaltados e eles pareciam voltar a confiar na equipe da Funai na-
quele momento. Nos contaram então a história do ataque. Não
demonstravam tanta raiva, somente a tristeza e os choros de luto
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

continuavam.

O RELATO DOS MATIS PARA A EQUIPE DA FUNAI


SOBRE O ATAQUE KORUBO

No final da tarde daquele domingo (07 de dezembro de


2014), os Matis aceitaram nos acompanhar à roça onde haviam

13 Integrante da equipe que se deslocou para o Todowak e coordenador da Coor-


denação Técnica Local (CTL) Atalaia do Norte I, responsável pelo atendimen-
to aos Matis.

21
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

sido mortos Damë e Xucuruta. Realizamos uma reconstituição


do ataque com o único sobrevivente, Tumin Tukun, acompanha-
dos por mais de oitenta Matis. Pairava a dúvida em nós se o ata-
que havia sido premeditado ou simplesmente havia ocorrido um
desentendimento entre os isolados e aqueles.
Estava evidente que os Matis foram surpreendidos. Tumin
relatou que eles haviam percebido a presença dos Korubo, pois
uma panelinha com sementes de milho hidratadas, com a qual
plantavam no dia anterior, havia sido derrubada no chão. Mes-
mo com Damë e Tumin ressabiados de entrar na roça, após isso
Xucuruta continuou e subiu para o local mais alto da área plan-
tada onde tinha um pequeno tapiri14.
Segundo Tumin, os Korubo logo apareceram e se aproxi-
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

maram. Eram seis e estavam sem suas armas de guerra, as co-


nhecidas bordunas. Eles reconheceram uns aos outros, como os
mesmos do encontro de 2013 (citado mais acima) e lhes falou
para não aparecerem mais ali, e ainda que os Matis já haviam
ensinado eles a plantar macaxeira (se referia a esse encontro de
2013). Falou também que fossem para outro local, pois ali era
área Matis. Os Korubo, então, segundo Tumin, pediram para
abrir uma sacola plástica que continha comida e o outro gru-
po disse que não deveriam, pois poderiam pegar doenças. Nesse
momento, um dos Korubo levantou-se, passou por trás de Tu-
min e arrancou a espingarda de suas mãos, enfiando seu cano
bruscamente no chão.
Tumin gritou para Damë, que também estava armado,
para “atirar por cima” deles. Porém não houve tempo, e começou
uma correria, cada Matis seguido numa direção diferente. Dessa
maneira, dois Korubos perseguiram Damë, e três perseguiram
Xucuruta. Um dos Korubo pegou o pau/cavador que os Matis
usavam para plantar macaxeira e milho, e com ele matou Damã.
Xucuruta foi morto em um local diferente, golpeado com um
pedaço de pau pego no chão, que havia sido cortado na abertura
da roça. O narrador do evento, muito emocionado nesse mo-
mento, explicou como havia conseguido fugir da perseguição,

14 Construção regional rústica e, normalmente, temporária coberta com palhas


de palmeiras diversas (açaí, Patauá, Palheira, Paxiubinha, Jarina e Caranã).

22
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

empurrando o Korubo que o havia perseguido. Era o fim trágico


do sonho de viver bem na recém constituída aldeia Todowak.
Na manhã do dia oito, iniciamos o translado por barco de
dezenas de pessoas da aldeia Todowak até o varador da margem
direita do rio Coari, que leva às aldeias do rio Branco. Às 18h já
havíamos transportado algo em torno de 150 pessoas, o que re-
presentava praticamente todo aquele contigente humano, além
dos homens que haviam se deslocado antes. Permaneceram ali a
equipe da Funai e alguns Matis, entre crianças, velhos e adultos,
todos eles seriam transportados depois de barco.
Naquela noite poucos conseguiram dormir. Os Matis ti-
nham a convicção de que os Korubo espreitavam a aldeia e po-
deriam atacar novamente. Repassamos com a equipe nosso pla-
no de contingência15 para um possível ataque e a necessidade de
uma remoção aérea de todos. Na manhã do dia nove, os Matis
continuavam empenhados em encontrar evidências da presen-
ça do grupo rival nos arredores da aldeia. A cada saída de um
homem dos limites do descampado, tinha-se a certeza que os
Korubo haviam passado ali minutos antes. O clima de evacuação
era latente. O Kukahã (barco que transportaria os Matis restan-
tes da aldeia Todowak) ainda estava abastecendo em Tabatinga e
levaria pelo menos mais dois dias para estar na foz do rio Coari.
Os Matis insistiram durante o dia que deveríamos partir logo.
Não tínhamos como transportar todos com segurança nos dois
botes que tínhamos ali. Haviam ficado para trás dezesseis Matis,
entre adultos, idosos e crianças.
O dia foi de muita conversa na radiofonia e avaliação das
possibilidades de evacuação da aldeia. Os Matis estavam ator-
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

mentados e decidiram abandonar aquele lugar de qualquer for-


ma, imediatamente, cogitando até em ir andando, na companhia
dos idosos. Desceram no porto daquele ambiente e decidiram
calafetar com barro as velhas canoas furadas de madeira. Eles es-
tavam decididos a sair dali. Informamos no rádio sobre a decisão

15 Os Planos de Contingência são documentos elaborados para prevenção de


eventos adversos ou mitigação dos seus impactos, orientando respostas rápidas
e definindo seus responsáveis. Ele tem como finalidade mitigar os efeitos nega-
tivos à saúde dos povos indígenas em processo de contato com não indígenas e
indígenas em contato permanente no Vale do Javari (SESAI & FUNAI, 2018).

23
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

dos Matis e que iríamos acompanhá-los. Rapidamente as três


canoas de madeira são embarcadas com os bens pessoais (forno
de farinha, fogareiro, botijas de gás, ferramentas, etc.) e algumas
frutas e macaxeira. Uma noite chuvosa havia elevado um pouco
o nível do rio. A viagem, por sua vez, corre sem maiores proble-
mas e conseguimos sair na boca do rio Coari às 18h. Montamos
acampamento para crianças e idosos numa praia, onde ficamos
no decorrer do tempo.
No dia seguinte (10), chegamos à Base Ituí onde a embar-
cação Kukahã já nos aguardava. Os indígenas abandonaram as
canoas e embarcaram seus pertences. Antes da partida ainda pu-
demos entrevistar um morador da aldeia Todowak que estava
na Base. Ele nos disse que os Matis haviam revidado o ataque e
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

matado diversos Korubo. Questionei quando teria ocorrido esse


fato, e ele disse que foi no dia subsequente ao primeiro evento.
Segundo ele, os Korubo estavam bem próximo da aldeia Todo-
wak, a poucas horas de caminhada, e tinham tapiris novos e mi-
lho plantado. Teriam saído no amanhecer do sábado (06), ataca-
do os Korubo e às 10h já estavam de volta.
Disse ainda que foi por isso que eles decidiram evacuar a
aldeia, com receio de retaliação. Ele insistiu na explicação do
ataque Korubo baseada na “remoção” dos Korubo do rio Ita-
quaí, dizendo inclusive que uma das mulheres daquele grupo
sobrevivente ao revide Matis, teria dito que “eles (Korubos)
procuravam Pinu e Visa”16. Na ocasião não tínhamos certeza
se essa história era verídica. Também não parecia provável que
os Korubo tivessem matado os Matis e permanecido a apenas
duas horas de caminhada do local, menos ainda com suas mu-
lheres e crianças.
Logo após, em meados de janeiro de 2015, os Matis enviam
o recado de que estava na hora de se reunirem com a Funai. O
período acordado foi em fevereiro do mesmo ano mencionado
e então iniciou-se a articulação para a assembleia. O coordena-
dor da Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contata-
dos-CGIIRC, Carlos Travassos, confirma a vinda de Brasília-DF e

16 Pinu e Visa são irmãos e os homens mais velhos do grupo do Itaquaí (ou Ma-
rubão), contatados em outubro de 2014.

24
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Paulo Doles17, este, desempenhando função igual a de Travassos,


só que na instituição: União dos Povos Indígenas do Vale do Ja-
vari – Univaja, garantiu a participação.

A PAUTA MATIS APÓS AS MORTES NO TODOWAK

No dia 09 de fevereiro de 2015, uma comitiva parte de


Atalaia do Norte com servidores da Funai. Paulo Doles e Make
Turu18, então Secretário de Assuntos Indígenas de Atalaia, se-
guem para as aldeias Matis no rio Branco para retomar os diá-
logos e encaminhar propostas que atendessem as demandas
desse povo, bem como solucionar os problemas decorrentes da
proximidade deles com os Korubo do rio Coari. Seria a minha
sexta ida como coordenador da FUNAI-CRVJ às aldeias Matis,
no rio Branco, desde meados de 2012. No dia 11 estávamos todos
reunidos na maloca da aldeia Tawaya. Os residentes deste lugar
estavam saindo do luto e o clima para conversa era bem melhor.
A posição destacada e repetida era o pedido dos Matis, este que
fosse contatado aos Korubo do Coari pela Funai.
Os primeiros diziam que não sairiam do rio Branco19, pois
era também sua terra e que a Funai deveria “amansar” os iso-
lados para que não houvessem novos conflitos. Alguns falaram
que eram parentes dos Korubo20 e que viviam como eles anti-
gamente (“em malocas separadas e brigando por mulher”). Os

17 Indígena Marubo
18 Indígena Matis
19 “Desde 2006 uma parte dos Matis que vivia na Aldeia Aurélio (fundada em
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

1998 no rio Ituí), passaram a fazer uma roça na margem do rio Coari. A par-
tir de 2010 algumas famílias se mudaram de forma permanente. Na época, a
FPEVJ se manifestou contrária à essa mudança, por conta de proximidade do
grupo Korubo isolado do rio Coari. Avaliava-se na época que essa maior proxi-
midade poderia acarretar em disseminação de doenças aos isolados e ocorrên-
cia de conflitos (como acabou ocorrendo)”. (AMORIM, 2017)
20 “De fato, o único conflito contra os Korubo que nos foi narrado pelos Matis
durante nossa estadia nas aldeias
Tawaya e Bukuak teria ocorrido nas primeiras décadas do século XX. Foi du-
rante esse ataque que os Matis capturaram duas meninas Korubo que depois
se casaram com homens Matis e das quais descende muitos Matis. Atualmen-
te, os descendentes dessas meninas Korubo também se declaram Korubo em
certos contextos.” (MATOS, 2015).

25
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Matis se sucediam nas falas e, apesar de surgirem outros temas,


tais como fiscalização, acompanhamento da Funai nas aldeias,
escola e saúde, a principal reivindicação era o contato da Funai
com o grupo Korubo do Coari. Agora víamos os Matis falando
abertamente sobre a vontade/necessidade de se comunicar aos
Korubo.
Esse encontro foi um momento importante para nova-
mente debatermos sobre a suposição deles de que a ida do grupo
Korubo do rio Itaquaí/Marubão para a aldeia do grupo da Maya,
tinha sido a causa que deflagrou o ataque aos Matis. Alguns deles
insistiam que a FPEVJ deveria ter consultado aqueles sobre para
onde esses Korubo deveriam ter sido transportados. Voltamos a
falar que esses do Marubão afirmaram que sabiam da existência
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

de outros Korubo no rio Coari, mas não mantinham com estes


relações amistosas. Informamos ainda que foi uma decisão do
grupo do Marubão a ida para a aldeia Korubo de Tapalaya (do
grupo da Maya)21, no rio Ituí. Alguns Matis trouxeram então uma
nova possibilidade de explicação: os ataques aos Matis seriam
consequências de um conflito sem mortes ocorrido no final de
2011 entre os Korubo do Coari e os da Maya22.
Na reunião tentamos sondar informações sobre o revide
contra os Korubo, mas os Matis desviavam da conversa ou ne-
gavam que o tivessem realizado. A possibilidade de mudarem
novamente para novas aldeias no alto rio Branco (ou seja mais
distantes dos Korubo do Coari) também foi refutada naquele
momento. Alegavam que haviam acabado de montar suas al-
deias e roças e que aquela região também era deles. A assem-

21 O grupo do Marubão foi contatado nas cercanias de uma aldeia Kanamari, no


rio Itaquaí, em outubro de 2014. O grupo havia abandonado suas habitações e
roças após mortes (possivelmente por malária e/ou gripe) e alguns apresenta-
vam malária. Durante o contato, eles travam relação com os Korubo do grupo
da Maya após reconhecerem que a mulher mais velha desse grupo que “saia do
isolamento” (Lalanvet) era filha da Maya. Faziam quase 25 anos que elas ha-
viam se separado após o conflito que fez o grupo da Maya migar dessa região.
22 Em 2011, homens do grupo Korubo da Maya entraram no rio Coari visando se
encontrar com os Korubo de lá com o intuito de conseguir novos casamentos.
A empreitada terminou em um conflito violento na mata com dois Korubo da
Maya feridos a pauladas, Wanka e Leyu. Os mesmos foram resgatados pela
FPEVJ e receberam cuidados médicos da Sesai e ficaram bem.

26
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

bleia avançou e foram firmados acordos com a Funai a partir das


demandas Matis.
Dentre os encaminhamentos desse encontro, estavam al-
gumas atividades que atendiam os anseios Matis em relação à
Funai, tais como a visita de Txami à aldeia Todowak (abando-
nada) no rio Coari, sobrevoo nos lugares habitados pelos Ko-
rubo do Coari/Branco, construção da nova aldeia do Txami no
rio Branco, a ida de uma comissão Matis para Brasília-DF para
reunir-se com o presidente da Funai – a fim de reivindicar uma
Coordenação Técnica Local - CTL23 específica para o povo; bem
como a realização de expedições no entorno das aldeias Buku-
wak e Tawaya. Também a implementação de um programa de
vigilância Matis, a realização de expedição de monitoramento
das cabeceiras do rio Branco e a aviventação da demarcação da
terra indígena na região do município de Ipixuna-AM. Todas es-
sas atividades seriam atreladas a discussão sobre o contato com
os isolados do Coari, a principal demanda dos Matis.
Logo, ficou decidido que durante o ano monitoraríamos o
entorno das aldeias Matis e Korubo e iríamos amadurecendo as
pautas. Todas as ações acordadas foram se sucedendo durante o
ano, havendo apenas a agenda com a presidência da Funai em-
perrada, em virtude das mudanças de gestão do órgão ocorridas
na época. Em abril de 2015, uma consultoria em antropologia foi
realizada para diagnosticar o uso do território pelos Matis e a
percepção deles sobre o uso do mesmo pelos Korubo (MATOS,
2015). Na mesma época a Funai (CRVJ e a FPEVJ) e os Matis vol-
taram à aldeia Todowak para recolher alguns bens industriali-
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

zados que haviam ficado para trás na mudança forçada. Nessa


ocasião, foram registrados vestígios de presença recente dos Ko-
rubo do Coari na aldeia abandonada (NEVES & VARGAS, 2015).
Também nessa época é realizada uma nova expedição com
os Matis ao alto rio Branco, o monitoramento do território, e o
desenvolvimento de métodos para a vigilância em conjunto com

23 Coordenação Técnica Locais são unidades descentralizadas da Funai com


maior capilaridade nacional e proximidade aos povos indígenas e seus territó-
rios. Elas são subordinadas às Coordenações Regionais ou Frentes de Proteção
Etno-ambiental.

27
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

os Matis, conectando os jovens e velhos a seus territórios nas


cabeceiras do rio Branco e a sua respectiva história (GOIS, 2014
e 2015).
Em setembro de 2015, um sobrevoo com os Matis trouxe
informações preocupantes do abandono das grandes malocas
Korubo no interflúvio rio Coari – Branco e a criação de novos ro-
çados e pequenas habitações em dois pontos distintos na região
(GOIS, 2015b). No dia 26 de setembro de 2015, nos preparativos
finais para a subida da equipe que auxiliaria na construção da
nova aldeia Matis no rio Branco, Kuraya (NEVES, 2015), alardeia-
-se na radiofonia do Vale do Javari que os Matis haviam contata-
do os Korubo isolados do rio Coari nas proximidades da aldeia
Tawaya, no rio Branco (VARGAS, 2015).
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

O CONTATO NO RIO BRANCO E SEUS


DESDOBRAMENTOS

No final de 2015, um grupo de homens Matis se organi-


zou e capturou cinco crianças de um grupo Korubo isolado, o
qual havia acabado de atravessar o rio Branco, e levou-as para
a aldeia Matis Tawaya. As informações atravessam aproximada-
mente 200 km das aldeias Matis até chegarem no rádio da CRVJ
na tarde do dia 26 de setembro (sábado). Alguns Matis passaram
a fazer contato pela radiofonia com os servidores da Funai, na
Base, chamando-os para estarem presentes no local e continuar
os trabalhos de “amansamento” dos isolados.
Nesse mesmo dia, o enfermeiro do DSEI/Sesai, que cum-
pria serviço na aldeia Tawaya, Adriel da Silva, seguindo as orien-
tação passadas pela FPEVJ, informa que uma das cinco crianças
Korubo raptadas apresentava coriza. Um sinal de alerta, pois
poderia ser um sintoma de gripe, o que para um grupo em iso-
lamento sempre constitui uma ameaça grave. A situação pedia
uma ação rápida da Funai e Sesai, e na manhã do dia 27/09, nos
deslocamos para a Base Ituí da FPEVJ. A equipe se preparou e
discutiu a implementação do Plano de Contingência para Si-
tuações de Contato, documento norteador para situações como
essa, ainda em elaboração e que seria testado na prática pela pri-
meira vez.

28
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Sendo assim, um intérprete Korubo do grupo da Maya, Ma-


levo, passou a integrar a equipe pioneira que partiu da Base e que
era coordenada por mim e por Eriverto Vargas. Nosso grupo ain-
da foi composto por um auxiliar indigenista da FPEVJ, Gustavo
Sena; um enfermeiro do DSEI Vale do Javari, Josafá Nascimento;
dois Matis, Kuini e Damã; e dois Marubo, Carlos e Alcino.
A saída foi feita na manhã do dia 28/09 em dois botes de
alumínio. Após 10 horas de deslocamento acampamos na foz do
rio Branco. Nesse mesmo dia, a técnica de enfermagem, Sabrina
Onório, informa que as crianças Korubo haviam sido levadas da
aldeia e que depois disso os Matis haviam localizado os Korubo
adultos do grupo. No dia 29/09, viajamos por mais 11 horas e
chegamos na primeira aldeia Matis, Bukuwak. No final da tarde,
fizemos exames de malária em toda equipe e nos reunimos com
os Matis imediatamente. No meu diário de campo, escrevo:
Eles insistiam no posicionamento quanto a ausência da
Funai na região e o não atendimento de sua reivindicação
histórica de uma CTL para lhes atender, e que o contato já
havia sido anunciado há algum tempo. Citaram que na últi-
ma reunião com a presença do coordenador da CGIIRC em
fevereiro/2015, na aldeia Tawaya, foi solicitado o contato dos
Korubo isolados do Coari em virtude do conflito de 2014 e
dos constantes avistamentos deles próximos às roças Matis
no rio Branco. Sempre destacavam o não cumprimento do
acordo da Funai de ter a presença constante da instituição
na região com uma CTL que atendesse exclusivamente eles.
Deixamos os indígenas se manifestarem e fomos colocando
calmamente nosso posicionamento e o histórico dos acor-
dos e ações com eles após essa reunião com o coordenador
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

da CGIIRC. Informei que das seis pactuações, apenas a agen-


da com o presidente da Funai para discussão sobre uma CTL
Matis ainda não havia sido concretizada e que estava fora
do âmbito de minhas decisões. Contudo, informamos que
a Presidência do órgão havia se comprometido em estar na
Conferência Regional da Funai em Atalaia do Norte, que se
realizaria em novembro, e fazer essa discussão com os Matis.
Sentíamos nas discussões em Bukuwak que haviam divergên-
cias entre as duas aldeias, que se ressaltavam ao pedir que fôs-
semos discutir com os Matis do Tawaya a questão pois eles é
que haviam “pego” os Korubo no mato. Também despontava

29
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

uma nítida contrariedade de estarmos trazendo outras etnias


para esse contato, em especial, a presença de um Korubo da
Maya em nosso grupo, pois “os Matis falam melhor a língua
dos Korubo que o próprio Malevo”, como nos disse um Matis.
Ressaltamos que já haviam informações de que uma criança
Korubo apresentava secreção nas narinas e isso demandava a
urgência de nosso acesso a esse grupo em virtude do rápido
definhar deles quando contagiados pela gripe. Informamos
que ao amanhecer estaríamos nos deslocando para o acampa-
mento de contato montado pelos Matis. Fomos alertados que
primeiro fôssemos antes à aldeia Tawaya. Terminei convidan-
do uma comitiva de Bukuwak para participar da reunião na
aldeia Tawaya (PEREIRA, 2015).

No amanhecer do dia 30/09, nos deslocamos para aldeia


CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

Tawaya. Passamos pelos cochos24 usados pelos Korubo para


atravessar o rio Branco e em seguida pelo acampamento criado
pelos Matis para os Korubo. Do barranco, os que atravessaram
acenam para não pararmos ali e assim passamos direto para a
aldeia Tawaya. Atendemos a eles e fomos para a aldeia onde nos
aguardavam na maloca principal para uma reunião. Escrevo no
meu diário:
Realmente os ânimos estavam mais crispados no Tawaya e
os Matis acusavam a Funai de não ter feito o contato e que
estavam amansando os Korubo pois eles estavam constan-
temente nos arredores de suas aldeias e que temiam novos
conflitos com eles. Destacava em minhas palavras, junto
com o coordenador da FPEVJ, que era nosso dever institu-
cional assumir o contato e que naquele momento estávamos
extremamente preocupados com o estado de saúde do gru-
po. Solicitei que a reunião não se alongasse muito naquele
primeiro momento e que o enfermeiro, que compunha nos-
sa equipe, pudesse avaliar os Korubo o mais rápido possível.
Iniciei o discurso sobre a necessidade de isolamento (qua-
rentena) desse grupo para tratamento de saúde. As informa-
ções proferidas sobre o contato e suas motivações se alterna-
vam e destacava-se o receio dos Matis de nós retirarmos os
Korubo de lá, como havíamos procedido no contato dos Ko-
rubo no “Marubão” em 2014, no rio Itaquaí. Os Matis insis-

24 Embarcações rústicas confeccionadas escavando o tronco de uma palmeira


chamada regionalmente de paxiúba barriguda.

30
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

tiam na ideia que se retirássemos os Korubo dali, os outros


que ainda estavam na mata sentiriam sua falta no Coari e
viriam atrás deles no rio Branco. Insistiam que deixássemos
os Korubo onde estavam para poder atrair os demais que es-
tavam no mato e que fizéssemos roça para “amansá-los” no
próprio rio Branco. Falavam que nosso cheiro e fumaça de
motores iriam contaminar os Korubo com doenças, o que
não aconteceria se ficassem com os Matis, ao invés da Funai.
Fomos questionados sobre o que faríamos com os demais
isolados que estavam no mato, se iríamos contatá-los logo
ou se os Matis deveriam fazê-lo também. A reunião trans-
corre nervosa e nós repetíamos que precisávamos logo ter
acesso ao acampamento Korubo. Após mais de 2 horas de re-
união onde nossa estratégia era não se delongar demais nem
tencionar, acordamos de ir ver os Korubo e nos reunirmos
novamente no Tawaya à tarde. Por mais que pedíssemos que
não, parte da aldeia nos acompanhou (aprox. 40 indígenas,
entre homens, mulheres e crianças), o que mostrava que
toda carga de doenças infectocontagiosa já havia acessado os
Korubo. Lá confirmamos serem 10 Korubo, sendo 3 homens
adultos (de aproximadamente 45, 25 e 18 anos), 2 mulhe-
res adultas (de aproximadamente 20 anos ambas, estando
uma grávida), 1 adolescente (de aproximadamente14 anos),
4 crianças (1 menino e 1 menina, ambos com cerca de 5 anos
e 2 meninas, ambas com cerca de 9 anos). (PEREIRA, 2015).

Vimos os Korubo e conseguimos fazer a primeira análise


da saúde deles. Apenas um menino apresentava secreção. Os
demais pareciam estar bem. Já havíamos detectado na aldeia
Tawaya alguns Matis com gripe e conjuntivite. Já era o prenún-
cio do que teríamos pela frente. Retornamos para Tawaya, como
acordado com os Matis, para retomar as conversas sobre o início
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

de fato do atendimento de saúde e dos diálogo com os Korubo do


Coari pela equipe da Funai. Confirmamos as informações preli-
minares da Sesai, ou seja, os índices de casos de malária estavam
baixos nas aldeias. Naquele mês, apenas um ou dois casos ha-
viam sido registrados.
No final da tarde do dia 30/09, vimos passar uma canoa
com quatro Matis e dois Korubos. Chovia intensamente e soube-
mos que os Matis haviam observados novos vestígios de Korubo
nas imediações da aldeia Tawaya, e levaram esses recém-conta-
tados do acampamento para tentar encontrar os que ainda esta-

31
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

vam no mato. À tarde, os Matis não haviam se reunido conosco,


como prometido. Na manhã seguinte (01/10), após uma longa
espera pela convocação dos Matis para nos reunirmos novamen-
te, decidimos que não poderíamos mais esperar e que iríamos
nos deslocar até os Korubo e assumir os trabalhos do contato.
Comunicamo-nos pela radiofonia com as equipes de apoio local
em Atalaia e solicitamos o envio imediato dos insumos progra-
mados para os trabalhos do acampamento de contato de nossa
equipe e o envio de mais pessoas para compô-la. Ratificamos a
importância de enviarem uma enfermeira e alguns Matsés (Ma-
yoruna) para a composição de nosso grupo, em virtude de eles
falarem uma língua semelhante à dos Korubo, e estarem mais
“neutros” nesse conflito, bem como da possibilidade dos demais
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

povos do Vale do Javari de também participarem dessa discussão


e atividade.
Ao perceber que sairíamos da aldeia Tawaya, somos convo-
cados para a maloca. Os Matis se exaltavam fazendo as seguintes
perguntas: “como a Funai tá pensando? Para onde vocês vão?”.
Expusemos novamente a gravidade da situação e fomos mais en-
fáticos sobre a questão de nossa obrigação em escutar aqueles
Korubos, saber de suas histórias e intenções a partir de agora. Os
Matis expressaram algumas insatisfações decorrente disso, tais
como: “os Korubo são nossos, nós os pegamos no mato”, “agora
temos a SESAI para cuidar da saúde, Funai não sabia aplicar re-
médio em nosso contato”, “temos que fazer roça na terra firme
e amansá-los aqui no rio Branco”, “o Malevo não entende bem a
língua deles, nós sabemos mais, e eles brigaram com essa turma
há três anos atrás”, “Pedimos o contato para Funai, não fizeram,
então fizemos”.
Após horas de conversa, os Matis concordaram que assu-
míssemos o contato e que eles dariam apoio aos trabalhos, a
começar pela quarentena a ser estabelecida. Identificamos os
pensamentos divergentes, avaliamos os riscos e traçamos nossa
atuação. Nesse sentido, o primeiro passo seria montar um acam-
pamento independente, exclusivo para nossa equipe fora da al-
deia Tawaya e passar a protagonizar a relação de confiança com
esse grupo Korubo recém contatado. Para tanto, foi acordado

32
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

na aldeia a participação de dois Matis na equipe de contato que


entraria na quarentena.
Com o objetivo de dar segurança à equipe e implementar
as regras da quarentena para o tratamento de saúde, o acam-
pamento de contato é montado na margem oposta ao feito pe-
los Matis para os Korubo. É debatido e alinhado com a equipe
os protocolos de segurança e saúde a partir daquele momen-
to25. Foram criadas as fichas de avaliação individuais, com fotos
de acompanhamento dos exames clínicos de cada paciente. O
acampamento de contato é estabelecido e se inicia as ações de
saúde e diálogos diretos com os Korubos. As rotinas começam
a ser implementadas e com apenas três dias, os exames clíni-
cos mostram as primeiras alterações provocadas pela gripe. Dois
Korubos apresentam tosse, febre alta e catarro. A conjuntivite
acomete a praticamente todos. O intérprete Malevo exerce pa-
pel fundamental e percebe-se que a confiança vai se estabele-
cendo com os recém contatados. Começam a surgir lentamente

25 Foram estabelecidas uma série de normas de conduta que permitissem o bom an-
damento dos trabalhos numa situação delicada como a questão. Dentre elas, pode-
mos destacar algumas, como por exemplo: Afeição/empatia/tranquilidade com os
Korubo, regras específicas para visitação ao acampamento Korubo, não utilização
de armas de fogo próximo a eles, atendimentos de saúde e diálogos com a Funai
apenas no acampamento deles, equipe devidamente identificada com camisas da
Funai, não aceitar alimentos daqueles, restrição a pessoas autorizadas para registros
de áudio e imagem, protocolos para utilização dos sistemas de comunicação, rondas
constantes no entorno do acampamento da equipe de contato, plano de fuga em caso
de possível ataque e restrição temporária de pessoas estranhas aos trabalhos de con-
tato ao rio Branco (exceção aos Matis). (FUNAI, 2016). Outros protocolos foram
implementados junto com a equipe de Sesai para o bom desenvolvimento das
ações diárias no contato, alguns deles foram: a utilização de máscaras e luvas
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

o máximo possível, o manejo higiênicos com alimentos e dejetos no acampa-


mento da equipe de contato, a criação de um local específico para quarentena
dos novos ingressos no acampamento de contato, a priorização da não troca
constantes nas equipes para evitar a circulação de doenças vindas, sobretudo
da cidade, e o estranhamento dos korubos, o fornecimento de alimentação
tradicional aos recém contatados, a realização de análise clínicas e exames de
malária periódicos, a priorização dos atendimentos de saúde às demais ati-
vidades numa situação de contato, a participação de mulheres na equipe, a
disponibilização de sabão para lavagem das mãos em pontos estratégicos do
acampamento da equipe e da embarcação que fazia o translado das equipes, a
mudança do primeiro acampamento Korubo para jusante do acampamento da
equipe de contato para o não contato desses com águas e possíveis resíduos de
combustíveis e sabão de nosso grupo. (REIS & ALBERTONI, 2018).

33
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

as versões deles sobre mortes no rio Coari por doenças e pelas


armas de fogo dos Matis. No princípio dos diálogos, os primei-
ros negam que existissem outros de seu grupo na mata, o que
sabíamos que não era verdade, possivelmente eles estavam pro-
tegendo os demais.
Na noite do dia 05/10, nosso acampamento recebeu a visita
inesperada de alguns Matis, estes solicitaram que “liberássemos”
dois indígenas dos recém-contatados para localizar e contatar
um outro grupo Korubo, cujos rastros haviam sido identifica-
dos. Eles estariam a mais de duas horas de caminhada da foz
do igarapé Tawaya. Não autorizamos a retirada dos que estavam
sob nossos cuidados, e informamos que já sabíamos os nomes
de todos desse outro grupo e o quanto era arriscado iniciar uma
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

nova “perseguição”. Antes do meio dia do dia 07/10 a embarca-


ção regional da Funai que saiu de Atalaia atraca no barranco do
acampamento, trazendo os servidores da Funai Waldecy Jaste,
Micherlângelo Neves e João Curina e o médico da Sesai, Dr. Luiz
Enrique Ramon, além de insumos médicos e logísticos.
Apenas Jaste e o médico ficam no acampamento e os de-
mais seguiram viagem com a finalidade de construir a nova al-
deia Kuraya junto com os Matis. Por volta das 15h30 fomos infor-
mados pela radiofonia do Tawaya que os Matis haviam “pego” o
segundo grupo Korubo. Eram mais onze indígenas. Informamos
no rádio que iríamos nos deslocar imediatamente para o local.
Antes de partir, nos dirigimos até o acampamento Korubo para
questionar se eles aceitariam a chegada dos demais que os Ma-
tis acabavam de capturar na mata. Fizemos essa consulta, pois
já tínhamos informações que esses dois grupos haviam briga-
do recentemente, separando-se, e que esse que acabava de ser
contatado estava fugindo daquele primeiro que foi pego pelos
Matis no dia 26/09. Não tínhamos condições de montar outro
acampamento de contato e decidimos (Funai e Sesai) quebrar
a quarentena do primeiro grupo e colocá-los todos juntos. Os
Korubo consentiram em trazermos seus parentes. O reencontro
foi de muita emoção para alguns e de desconfiança para outros.
Os trabalhos, dessa maneira, seguiram na estabilização da
saúde dos dois grupos Korubo, nas entrevistas e consultas aos

34
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

membros do grupo recém contatado e no planejamento dos pró-


ximos passos a serem seguidos no contato. Fomos informados
pela radiofonia da subida nos próximos dias da equipe coorde-
nada pelo servidor da CGIIRC, Fabrício Amorim26, que iria ren-
der a nossa no trabalho em campo. Alguns indígenas de nossa
equipe já demonstravam cansaço, pois estavam a mais de cem
dias trabalhando com a FPEVJ e já era o momento de substituí-
-los. Malevo também se queixava de saudade de sua família e
desceria conosco. Era importante manter a ordem e a autoesti-
ma no acampamento. Após minha última reunião gravada com
todo o grupo Korubo, em que eles ratificaram novamente o de-
sejo de voltar às suas casas e roças no rio Coari, preparo-me para
a descida para a cidade de Atalaia. Antes teríamos de cumprir
nossa última agenda no rio Branco: reunir com os Matis no Ta-
waya e fechar a agenda prometida pelo presidente da Funai com
eles, em Atalaia do Norte.
No amanhecer do dia 15/10 realizamos a reunião com os
Matis. Foi uma reunião amena, porém marcada por nítidos mo-
mentos de desconfiança e rispidez, sobretudo quando informei
que estava consultando os Korubo recém contatados e que tí-
nhamos de respeitar as decisões deles sobre os temas que afetas-
sem a vida deles. Informei que aqueles queriam voltar para suas
casas e comer o milho de seus roçados.
Os Matis repetiam que Funai tinha de construir um posto
de atração e roça ali e continuar com os trabalhos de pacificação
nas margens do rio Branco e que eles iriam ensiná-los a viver
pacificamente. Informamos que qualquer decisão tomada pela
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

Funai e Sesai quanto a situação dos Korubo seria comunicada


aos Matis e fechamos a descida de onze lideranças Matis para
a participação da etapa regional da 1 Conferência Nacional de
Política Indigenista, que seria realizada em Atalaia do Norte, a
partir do dia 29 daquele outubro de 2015. Partimos de Tawaya
às 10h e chegamos no lugar mencionado no final da tarde do
dia 16/10.

26 Participaram dessa segunda equipe, dentre outros, o auxiliar indigenista Ber-


nardo Natividade, o médico Lucas Albertoni, a enfermeira Luziane da Silva e
os indígenas Dashe Mayoruna e Francinei Marubo.

35
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Os trabalhos prosseguiram em campo seguindo os proto-


colos estabelecidos, no controle de surtos de doenças e no avan-
ço no diálogo com os recém-contatados. Através da comunica-
ção pelo telefone satelital quase que diária com o acampamento,
soubemos do aumento das interferências dos Matis nos traba-
lhos do contato. Nesse contexto, os Korubo passaram a demons-
trar uma ansiedade maior com a morosidade no fim do trata-
mento de saúde e a não saída do rio Branco. Além disso, a pouca
disponibilidade de caça no local, a dependência das roças Matis
para o fornecimento de alimentos tradicionais e o trânsito de
embarcações e pessoas no rio Branco não permitiam o ambiente
favorável para a quarentena epidemiológica.
Os Matis, então, desceram para a conferência em Atalaia
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

e soubemos na véspera do evento que o presidente da Funai na


época, João Pedro Gonçalves, não viria mais à região, pois acom-
panharia a presidente da república, Dilma Rousseff, nos Jogos
Olímpicos Indígenas, realizado em Palmas - TO. Havíamos dei-
xado claro para a Direção da Funai que a equipe de campo tinha
sinalizado que deveriam sair imediatamente do rio Branco e que
os Matis tinham sido enfáticos que só conversariam com o presi-
dente do órgão. A presidência da instituição havia consentido a
retirada dos Korubo do rio Branco para um novo acampamento
de contato aberto no igarapé Quebrado, afluente do Ituí, próxi-
mo a Base Ituí.
Após a Conferência Regional, marcamos para dialogar
com os Matis, Sesai e Paulo Doles (presidente do Univaja), na
sede da CRVJ em Atalaia do Norte. Concomitante a esta reu-
nião, foi realizada outra na aldeia Tawaya com os Matis que
permaneciam nas aldeias. Na primeira, um dos Matis interfere
bruscamente a apresentação preliminar dizendo: “Não quero
saber disso. Quero saber da Funai, se vocês vão ou não tirar os
Korubo de lá?” Após respondermos que o órgão respeitaria a
decisão dos Korubo e que iríamos sair do rio Branco com eles,
a reunião ficou extremamente tensa, com as exposições aca-
loradas dos Matis presentes. Pela primeira vez, em tom emo-
cionado, um dos Matis confirma abertamente que eles haviam
revidado o ataque Korubo.

36
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A reunião foi encerrada para que os ânimos não se exal-


tassem ainda mais. Os Matis se retiram da sala da coordenação
da CRVJ e disseram “que não querem mais saber da Funai e dos
Korubo”, que nós poderíamos levam eles para onde nós quisés-
semos. Minutos após essa reunião, fui informado pelo rádio e
telefone satelital que a outra assembleia na aldeia havia sido
também tensa e que os Matis haviam interrompido ela abrup-
tamente e se deslocado em canoas para o acampamento de tra-
tamento dos Korubo. Dessa forma foi quebrada mais uma vez a
quarentena estabelecida. Em consequência, a equipe da Funai é
impedida de se aproximar do local, porém conseguiu que uma
comissão Matis fosse ao rádio dialogar comigo, pois eles não
acreditavam que os seus velhos tinham autorizado que o órgão
retirasse os Korubo dali. Expus que aquele ato era irresponsável
e colocava em risco a integridade física dos Korubo e de nossa
equipe em campo. Ressalto que não aceitaríamos ameaças com
armas aos Korubo, nem à equipe local de contato.
Os Matis decidem então recuar, liberam o acampamento
onde estavam os Korubo e retornam para a aldeia Tawaya. Se-
gundo a equipe local, a desconfiança e medo dos Korubo era
evidente após esse ato. Nesse mesmo dia, a equipe local de con-
tato, tentando restabelecer a confiança provando que não esta-
vam mentindo para o grupo recém-contatado, colocou Maluxin
(mulher mais idosa do grupo recém contatado) para conversar
num rádio com sua irmã Maya (matriarca do grupo contatado
em 1996), que se encontrava na aldeia Tapalawa, no rio Ituí. A
conversa culmina num convite da Maya para todos viverem jun-
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

tos no Ituí.
No dia seguinte uma nova reunião na sede CRVJ é reali-
zada com os Matis, integrantes do movimento indígena local
e o coordenador da CGIIRC, Carlos Travassos. Após 2 horas de
diálogo, alguns dos mais velhos Matis falam que a Funai estava
errando novamente e que não queriam mais saber dos Korubo,
poderíamos retirar eles do rio Branco. Nesse mesmo dia a equi-
pe local, que já estava com todos os equipamentos prontos para
a partida, descem o rio Branco. Ao passar pela aldeia Bukuwak,
um cabo atravessado de uma margem a outra veda a passagem

37
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

dos botes. Diversos Matis estavam gritando na beira pintados


de jenipapo e urucum, alguns com máscaras de mariwin27, ar-
cos e flechas empunhados. Entoando gritos de guerra, retira-
ram rispidamente o coordenador da equipe local de um dos
botes, porém permitem que os demais continuem a descida do
rio. Os Matis mantiveram Fabrício Amorim por três dias na
aldeia Bukuwak e o liberaram em seguida. Ele foi bem tratado
na aldeia nesse período.
Em dezembro de 2015, durante a realização da I Conferên-
cia Nacional de Política Indigenista, em Brasília, os representan-
tes dos povos indígenas do Vale do Javari, reuniram-se finalmen-
te com o presidente da Funai, João Pedro Gonçalves. Naquele
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

momento os Matis pedem a minha exoneração e do coordena-


dor da FPEVJ, Evirerto Vargas.
O presidente confirma sua ida às aldeias Matis para o mês
de janeiro de 2016. Em 15 de janeiro de 2016 a Base Ituí informa a
CRVJ, pela internet, que canoas com um grande contingente de
homens Matis havia passado pela Base Ituí a caminho de Ata-
laia. As informações e movimentos na cidade sobre uma possível
ocupação do prédio da Funai eram nítidos. No dia 19 de janeiro
os Matis ocuparam a sede da instituição mencionada por último
e demonstraram descontentamento com as decisões da Funai,
e pediram a minha saída da coordenação da CRVJ. Com efeito,
minha exoneração é publicada no Diário Oficial da União em 24
de março de 2016.

O RELATO KORUBO PARA A EQUIPE DA FUNAI


SOBRE O ATAQUE AOS MATIS

Durante o período que estivemos em campo, no contato,


pudemos dialogar e consultar os Korubo enquanto convales-

27 “Onipresentes nos discursos dirigidos às crianças, os mariwin são ancestrais


genéricos (impessoais) cujo papel consiste em bater nas crianças com o ob-
jetivo de endurecer, disciplinar e torná-las mais ativas e vigorosas... Muitas
vezes, chegam na aldeia adultos adornados com máscaras, representando os
espíritos ancestrais, munidos de varas, mexendo-se, curvando-se e grunhindo
de modo assustador. As crianças são levadas a eles. A menos que consigam es-
capar, todos são açoitados, dos mais jovens aos pré-adolescentes”. (ISA, 2008)

38
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ciam. Ainda no acampamento de contato, foram questionados


se conheciam e visitavam os Korubo do Marubão. Eles sempre
disseram que não. Foram apresentadas fotos dos Korubo do
Marubão e, em mais de um momento, aqueles mostravam que
desconheciam os da fotografia. Alguns desses diálogos só pude-
ram ocorrer porque estávamos sem a presença dos Matis, o que
deixava os Korubo nitidamente mais confortáveis. Foram nesses
momentos que eles também puderam falar das motivação que
os levaram a atacar os Matis e sobre o revide.
Alguns falaram que o motivo principal que teria desenca-
deado o ataque foi a morte de uma criança com menos de um
ano, pela descrição deles, por doença. Outros também relata-
ram dispersamente que os Matis estariam sovinando alguns
bens. Eles teriam ido até a roça do Todowak sem suas bordunas
para não despertar a desconfiança dos Matis. Enquanto seis ho-
mens Korubo adentraram na roça, outros observavam da mata.
Após o ataque, eles teriam retornado para seus tapiris, os quais
não estavam distantes do local (aproximadamente duas a três
horas de caminhada).
Na manhã do dia seguinte, quando o sol ainda estava baixo,
eles teriam sido cercados pelos Matis, que abriram fogo contra o
grupo. Segundo o relato de alguns deles, todos os homens adul-
tos deles teriam conseguido fugir. Conseguimos coletar o nome
de oito Korubos que teriam sido mortos no ataque, porém esse
número poderia ser maior. Os Korubo misturavam os nomes e a
motivação das mortes. Algumas delas também foram creditadas
a toxoe, como denominam os sintomas da gripe.
Questionados por que ficaram tão próximos do local onde
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

atacaram os Matis, havendo ali suas mulheres e crianças, um in-


terlocutor falou que eles não esperavam uma retaliação tão rá-
pida. Falavam que quando atacavam “não-indígenas antes, eles
não voltavam tão rápido”. No relato deles, sentíamos que eles
não se referiam aos Matis como “índios” ou “parentes”. Se refe-
riam aos Matis naquele momentos como latkute, que significa
“não-indígena”28. Ouvimos repetidas vezes que os Matis usavam,
como os “brancos”, botas, roupas, canoas com motores e espin-

28 Literalmente lakute significa “roupa”.

39
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

gardas. O uso de espingardas pelos Matis no revide foi muito


utilizado no discurso reprovado dos Korubo, como uma forma
desigual de luta.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E ALGUMAS REFLEXÕES

A partir desse relato detalhado tentei mostrar a comple-


xidade de uma atuação indigenista em situações de contatos e
conflitos que envolvem povos indígenas, sobretudo com os iso-
lados, e, quem sabe, instigar um debate sério e necessário sobre
o aperfeiçoamento da política pública para a proteção e promo-
ção de direitos de povos indígenas isolados e recém-contatados.
Há ainda que se considerar a precarização nos últimos anos do
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

órgão oficial indigenista, fator importante que não foi tratado


aqui, e que renderia um outro artigo.
Abordamos aqui a perspectiva de um indigenista de cam-
po numa situação extrema e que exigia bastante prudência, e é
evidente que ela não representa todas as opiniões das pessoas
envolvidas nos casos relatados. Também não podemos deixar de
registrar que as evocações das versões/falas dos indígenas, neste
trabalho, não representam uma unanimidade, algumas vezes as
opiniões eram divergentes no interior de cada povo ou de cada
grupo. Contudo, as versões aqui expostas foram as que julguei
mais preponderantes e que se destacaram nos diálogos com in-
divíduos e seus coletivos.
Percebemos nessa experiência em campo e no convívio
e trabalho de cerca de oito anos com os povos da Terra Indíge-
na Vale do Javari, que essas aparentes unidades caracterizadas
como “povos” ou “etnias” podem não ser tão nítidas. Em 2011,
como mostramos acima, os Korubo do grupo da Maya (contata-
dos em 1996) brigaram com os Korubo do grupo do Coari, estes
então isolados, quando tentavam contatá-los para resolver ques-
tões matrimoniais daquele grupo. E hoje, após o recente contato
no rio Branco, eles estão reconstruindo relações de convivência
e parentesco. Os Matis, ou alguns, reivindicam em alguns mo-
mentos o parentesco com os Korubo do grupo do Coari. E esse
parentesco tem sido acionado tanto pelos Matis quanto pelos
Korubo contatado, quando afirmam que devem participar de

40
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

decisões sobre questões relativas aos Korubo que permanecem


isolados no Coari.
Por outro lado, como levar em conta o direito à autonomia e
autodeterminação dos isolados? Quando os Matis demandaram
da Funai que realizássemos o contato com o grupo Korubo do
Coari, logo após o ataque em 2014 que vitimou os dois homens
Matis na roça da aldeia Tawaya, nós, da Funai, entendemos que a
decisão de entrar no rio Coari para contatar os Korubo isolados,
além de ser extremamente arriscada considerando o histórico de
conflitos deles com seu entorno29 e a imprevisibilidade ineren-
te a processos de contato, também deveria considerar questões
sobre a autodeterminação desses isolados. Estariam dispostos a
essa forma de contato ou interação? Como “consultá-los” sobre
o tema? Quais sinais ou formas de se comunicar/relacionar evi-
denciariam uma posição deles sobre o tema? Entendíamos que
os Korubo do Coari demonstravam, através de atos de hostilida-
de contra os Matis e contra os Korubo da Maya, que não estariam
interessados em contatos no formato que os Matis, os Korubo da
Maya ou a Funai poderiam querer.
Os povos isolados, mesmo não sendo verbalmente consul-
tados, devem ser considerados sujeitos ativos nessa discussão
sobre “isolamento” e “contato”. E nós, enquanto Funai, devemos
sempre avaliar as condições de realizar nossas ações, conside-
rando que as leis que direcionam as políticas indigenistas30 se
baseiam em princípios como a “proteção física e cultural”, “direi-
to de consulta”, “autonomia” e “autodeterminação” desses povos
que, em conflitos como o que tratamos aqui, podem se contra-
BRUNO DA CUNHA ARAÚJO PEREIRA

dizer. A autonomia de uns incidiria sobre a integridade física de


outros, por exemplo? E o que fazer, quando os povos (ou grupos)
desconhecem e não participaram na elaboração desses princí-
pios e seus respectivos marcos jurídicos? Quais instrumentos
jurídicos e ações estatais poderiam garantir de fato o direito dos

29 Da década de 70 até 1996, foram mortos sete funcionários a serviço da Funai


em trabalhos envolvendo contatos com grupos Korubo no Vale do Javari.
30 Sobre os dispositivos legais para a proteção dos direitos do povos indígenas
isolados ver: http://www.funai.gov.br/index.php/nossas-acoes/povos-indige
nas-isolados-e-de-recente-contato

41
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

isolados de decidirem sobre tudo que afete suas vidas, inclusive


quando outros índios contatados acionam as possibilidades de
parentesco com eles e também se atribuem o direito de decidir
sobre eles?
Parte do grupo Korubo do Coari ainda permanece em si-
tuação de isolamento no rio Coari, próxima às aldeias Matis, e
um clima de tensão e insegurança ainda paira naquela região. Os
Matis continuam informando que os isolados estão transitan-
do perto de suas aldeias e pedem a Funai o contato do restante
do grupo. Os Korubo que foram contatados pelos Matis no rio
Branco, no final de 2015, e que hoje vivem com os Korubo do
grupo da Maya no rio Ituí, também reivindicam o contato com
os seus parentes no rio Coari. Essa é uma das situações em curso
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

no Vale do Javari que envolvem os chamados povos indígenas


isolados.

REFERÊNCIAS

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

__________. Relatório de sobrevoo às malocas Korubo no rio


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de maio de 2018.

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Disponível em: http:// www.funai.gov.br. Acesso em 09 de maio


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43
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Disponível em: http://u.saude.gov.br/index.php/o-ministerio/


principal/secretarias/secretaria-sesai. Acesso em 09 de
maio de 2018.
Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Matis.
Acesso em 10 de maio de 2018.
CONFLITOS E CONTATOS NO VALE DO JAVARI, RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA DE CAMPO

44
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

MOVIMENTOS INDÍGENAS
CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS
E ALTERNATIVAS PARA A
EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS
INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA
HISTÓRIA INDÍGENA

Fernando Roque Fernandes1

INTRODUÇÃO

O presente texto se insere nas discussões sobre a temática


Movimentos Indígenas no Brasil Contemporâneo. O protagonis-
mo indígena que aciona tal discussão aponta para fenômenos
de emergências políticas e sociais desencadeadas por coletivos
indígenas no decorrer das relações de contato com outros gru-
pos indígenas e com a comunidade envolvente. Tais processos
se tornaram mais evidentes, no Brasil, a partir dos anos 1970,
quando um processo histórico que optamos por denominar de
cidadanização2 passou a tomar forma no contexto do Regime
Civil-Militar (1964-1985)3. A partir dali particulares estratégias

1 Doutorando em História Social pelo Programa de Pós-Graduação da Univer-


sidade Federal do Pará.
2 Conforme apontou Fernandes (2018), a ideia de cidadanização deve ser pensa-
FERNANDO ROQUE FERNANDES

da como um processo a partir do qual as relações entre Estado, políticas sociais


e cidadania passaram a operar sob novos significados à medida que os movi-
mentos sociais passaram a indicar que as ações desses, implementadas pelos
governos, deveriam ser pensadas como elementos a serviço da democracia,
instaurando uma compreensão de que o cidadão seria, então, o agente central
de todo o processo estatal. Desse modo, o modelo constitucional estabelecido
em 1988, foi influenciado pelas agências indígenas iniciadas ainda no contexto
do Regime Civil-Militar no Brasil, especialmente a partir dos anos 1970.
3 Concordamos com a interpretação de Marcos Napolitano (2014) sobre o Regi-
me Civil-Militar no Brasil. Para o autor, em 1964 houve um golpe de Estado, o
qual foi resultado de uma ampla coalizão civil-militar, conservadora e antirre-
formista. Nesse sentido, “o golpe foi resultado de uma profunda divisão na so-

45
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

desenvolvidas por sujeitos e coletivos indígenas e pró-indígenas


passaram a influenciar as políticas de Estado auxiliando na re-
formulação da concepção de cidadania existente na atualidade
(FERNANDES, 2018). Diante desse encaminhamento, enten-
demos que as agências empreendidas por determinados grupos
sociais na conjuntura de crise naquele período, possibilitaram
a emergência política de agentes sociais-alvos dos projetos de
assimilação e integração4 defendidos pelo Estado. Naquele con-
texto, certos grupos indígenas interviram de modo perceptível
no cenário político-brasileiro, a partir de um processo que se
tornou mais evidente na década de 1980, especialmente com o
reconhecimento constitucional da diferença de povos existentes
no Brasil (FERNANDES & COELHO, 2017). A partir dali, a luta
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

por reconhecimento territorial, saúde e educação diferenciadas


MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

ciedade brasileira, marcada pelo embate de projetos distintos de país, os quais


faziam leituras diferenciadas do que deveria ser o processo de modernização e
de reformas sociais” (Napolitano, 2014, p. 8).
4 A ideia de integração deve ser pensada a partir de uma disposição criada pela
comunidade envolvente como uma categoria que permitiu classificar, dentro
de certos padrões, num jogo de escalas, o grau de assimilação dos sujeitos in-
dígenas. Nos termos do Estatuto do Índio (1973), ao atingir certo nível de en-
volvimento com os padrões culturais envolventes, os indígenas poderiam ser
emancipados do órgão tutelar (Fundação Nacional do Índio – FUNAI/1967),
desde que solicitassem esse procedimento (Brasil, 1973). Darcy Ribeiro (1982)
parece ter sido o primeiro a estabelecer categorias classificatórias sobre a con-
dição dos indígenas nas suas relações com a comunidade envolvente. O autor
criou uma classificação para os grupos indígenas, cunhando os termos: grupos
isolados, grupos em contato intermitente ou permanente e grupos integrados.
Estes últimos, de acordo Ribeiro (1982, p. 434), seriam grupos indígenas arti-
culados com a esfera econômica e institucional da nova sociedade brasileira.
Manuela Carneiro da Cunha (1985) observou que a noção de integrado, de-
fendida por Darcy Ribeiro (1982), foi apropriada de forma equivocada pelos
responsáveis pela criação do Estatuto do Índio e pelos defensores dos projetos
integracionistas. Para Cunha (1985), as classificações feitas pelo autor se refe-
rem à coletivos indígenas, ou seja, a grupos étnicos e não aos sujeitos que os
compõem individualmente. Outra questão é que a noção de integração defen-
dida por Darcy Ribeiro (1982) se conformaria na articulação econômica e ins-
titucional com a sociedade envolvente, não se constituindo, portanto, como
uma descaracterização étnica destas sociedades por consequência do contato
com a comunidade não indígena. Conforme aponta João Pacheco de Oliveira
(1985, p. 25), a condição de “índio” era vista pelo Estado como transitória, “um
estágio na caminhada civilizatória do estado de ‘isolados’ até aquele de inte-
grado, (quando então cessariam os efeitos da tutela, ainda que persistissem
alguns costumes e valores da tradição tribal)”.

46
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

e autodeterminação5 constituíram a base das demandas sociais


empreendidas por determinados povos indígenas no âmbito ju-
rídico institucional.
Paralelo a isso, é preciso considerar que o protagonismo
indígena na história do Brasil faz parte das relações de contato,
entre atores indígenas e não-indígenas, ocorridas desde os pri-
meiros séculos da implementação de projetos colonizadores eu-
ropeus na América. Nesses termos, entendemos que a natureza
disso no Brasil, a partir da segunda metade do século XX, é algo
particular de uma conjuntura histórica ainda em curso e que
merece atenção dos pesquisadores da Nova História Indígena,
assim como de outras áreas de pesquisa.6 Nesse sentido, nosso
objetivo é apresentar elementos teórico-metodológicos que pos-
sibilitem ao pesquisador da temática dos Movimentos Indígenas
Contemporâneos enveredar por uma discussão ainda incipiente

5 Conforme Antonio Armando Ulian do Lago Albuquerque (2003, p. 158-159),


a possibilidade de autodeterminação está relacionada à ideia de que os povos
indígenas não precisam ser determinados por outros que não eles próprios.
Isto significa dizer que a autodeterminação consiste em um Direito enquanto
conjunto de regras, normas, padrões e leis reconhecidas socialmente que ga-
rantem a certos povos, segmentos ou grupos sociais o poder de decidir sobre
seus próprios modos de ser, viver, e organizar-se política, econômica, social e
culturalmente, sem serem subjugados ou dominados por outros grupos, seg-
mentos, classes sociais ou povos alheios às suas formações sociais específicas.
Assim, sob a insígnia da autodeterminação, os indígenas não necessitam da
tutela estatal enquanto povos e indivíduos. Ainda para o autor, as questões
relativas à autodeterminação dos povos, no Brasil, começaram a tomar expres-
são nos anos 1970, norteando várias discussões em encontros e assembleias
ocorridos a partir de então.
6 Conforme apontou John Manoel Monteiro (2001, p. 5), a Nova História Indíge-
na surge a partir do final dos anos 1970 quando uma nova vertente de estudos
FERNANDO ROQUE FERNANDES

passou a unir preocupações teóricas referentes à relação história/antropologia


“com as demandas cada vez mais militantes de um emergente movimento indí-
gena, que encontrava apoio em largos setores progressistas que renasciam numa
frente ampla que encontrava cada vez mais espaço frente a uma ditadura que
lentamente se desmaterializava”. Para Monteiro (2001), a problematização da
noção de direitos indígenas enquanto direitos históricos, especialmente àque-
les relacionados à territorialidade, estimulou a produção de vários estudos que
buscavam nos documentos coloniais os fundamentos históricos e jurídicos das
demandas apresentadas por vários grupos indígenas da atualidade. Nesse senti-
do, o autor aponta para uma reformulação na concepção de História Indígena e
do Indigenismo que resulta, em grande medida, das próprias agências dos mo-
vimentos indígenas da segunda metade do século XX.

47
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

no âmbito das pesquisas no Ensino Superior. Desse modo, se-


guimos apresentando reflexões que permitam a evidenciação
do protagonismo indígena para além das possibilidades teóricas
que fundamentam as análises sobre o passado colonial ou im-
perial, assim como pretendemos apresentar elementos que pro-
blematizem a ideia de que os indígenas são apenas vítimas do
processo histórico e das narrativas que constituem os discursos
que cercam a História do Brasil na atualidade.

NOVA HISTÓRIA E NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

Diante da produção historiográfica que se desenvolveu


sobre a questão do protagonismo indígena, não é incomum lo-
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

calizarmos uma grande quantidade de trabalhos desenvolvidos


sobre os períodos Colonial e Imperial.7 Como consequência, as
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

questões do tempo presente têm sido deixadas de lado no âmbi-


to da historiografia, mesmo apesar de o tempo presente permitir
possibilidades mais ricas no que concerne ao acesso às fontes
de pesquisa e às falas de muitos atores indígenas diretamente
ligados aos movimentos étnicos recentes. Nesse ponto, é pre-
ciso deixar evidente que não é nossa intenção estabelecer uma
crítica ao posicionamento de pesquisadores que enveredaram
pelas questões indígenas e indigenistas nos períodos colonial e/
ou imperial. Mesmo porque, tais escolhas resultam de um pro-
cesso historiográfico que informa determinados caminhos, fon-
tes e objetos de pesquisa, o qual ainda precisa de uma análise
detalhada de modo a evidenciar suas razões e implicações na
historiografia indigenista brasileira.
No entanto, a razão que nos leva a esta questão tem sua
origem no lugar privilegiado que a Nova História tem ocupado
nos estudos que envolvem os processos históricos das relações de
contato entre povos indígenas e não indígenas, desde o início da
colonização no Brasil. Entendemos que o problema não é, neces-

7 Apenas a critério de exemplificação, citamos alguns trabalhos mais conhe-


cidos, os quais informam a preocupação de conhecidos pesquisadores com
a temática colonial: (Farage, 1986); (Cunha, 1992); (Monteiro, 1994); (Vain-
fas, 1995); (Raminelli, 1996); (Santos, 2002); (Almeida, 2003/2013); (Coelho,
2005/2016) e (Carvalho Júnior, 2005/2017).

48
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

sariamente, a concepção de Nova História e, muito menos, o fato


de ter sido projetada a partir da França, com os Annales. Mesmo
porque um de seus fundamentos é a preocupação com todas as
atividades humanas, sem exclusões (Burke, 2011). O modo como
se tem, também, privilegiado o papel desempenhado pela histo-
riografia inglesa, especialmente representada pelas concepções de
uma história “vista de baixo” (Sharpe, 2011) não é necessariamente
o problema a ser enfrentado, já que apresenta um modelo teórico
que privilegia as ações empreendidas pelo “homem comum” e com
base numa perspectiva apresentada por Edward Palmer Thomp-
son nos anos 1960, o qual evidenciava o papel desempenhado por
sujeitos considerados sem importância nos grandes eventos da
história (Sharpe, 2011). O problema também não é a análise que
se debruça sobre as relações cotidianas do “subalterno” ou do su-
jeito “ordinário”, conforme apontou, de modo brilhante, Michel
de Certeau ao considerar as táticas de sobrevivência dos grupos
subalternos em condição de dominação frente a um poder opres-
sor (Certeau, 2014). Por conseguinte, não é o modelo de análise
que se tornou conhecido no âmbito das discussões historiográfi-
cas brasileiras e que tomou força, no Brasil, a partir dos anos 1990,
pois, ao privilegiar o protagonismo indígena dos primeiros anos
do contato, apresentam-se elementos importantes para analisar-
mos as relações, na maioria das vezes conflituosas, desenvolvidas
por sujeitos e coletivos indígenas e não indígenas nos períodos co-
lonial e imperial brasileiros, do qual a coletânea “História dos Ín-
dios no Brasil”, organizada por Manuela Carneiro da Cunha (1992)
se constituiu em clássico conhecido sobre a temática.
Então, o que há de necessário, mas ainda pouco revelado,
FERNANDO ROQUE FERNANDES

valorizado, evidenciado no âmbito da historiografia brasileira?


Acreditamos ser urgente e necessária uma mudança no modo
como projetamos nossas reflexões teóricas acerca da Nova His-
tória Indígena. Tanto a perspectiva francesa de Nova História
como a perspectiva inglesa de uma história “vista de baixo” não
são suficientes para se pensar as relações estabelecidas entre po-
vos indígenas e não indígenas no decorrer da história do Brasil.
É preciso uma reflexão a partir do próprio processo histórico que
possibilite a evidenciação da natureza dessas relações e privile-

49
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

gie não apenas o protagonismo indígena nos processos históri-


cos, mas também na reformulação dos modelos narrativo que
envolvem as discussões historiográficas sobre o lugar social dos
povos indígenas assim como uma análise que privilegie o papel
desempenhado por estes sujeitos na transformação do pensa-
mento político da sociedade brasileira no contexto do Regime
Civil-Militar. Nesses termos, a evidenciação do protagonismo
indígena na história deve ser pensada levando em consideração
as agências sociais empreendidas pelos sujeitos e coletivos indí-
genas a partir dos anos 1970, as quais ainda estão em curso, em
pleno despontar do século XXI.
Dito de outro modo, é preciso se dar conta dos desdobra-
mentos da conjuntura política do contexto do Regime Civil-Mi-
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

litar no Brasil e perceber que o protagonismo indígena se fez


sentir, inclusive, no modo como historiadores, sociólogos e an-
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

tropólogos passaram a pensar o lugar social dos povos indígenas


nas narrativas desenvolvidas sobre a história do Brasil. Deve-se
considerar, também, que o modo como a Nova História Indígena
é escrita hoje, no Brasil, não é apenas resultado das influências
francesas ou inglesas, relacionadas ao movimento historiográfi-
co denominado de Nova História Cultural. No caso do Brasil, os
movimentos indígenas dimensionaram de modo direto a críti-
ca desenvolvida por historiadores e antropólogos em direção ao
modelo tradicional de se pensar o papel desempenhado pelos
povos indígenas na conformação do Estado Plurinacional Bra-
sileiro. Assim, ressalvadas as questões teórico-metodológicas
que informam tais escolhas, as análises sobre os Movimentos
Indígenas Contemporâneos avança na questão, justamente, por
considerar que a própria mudança de análise sobre o protago-
nismo indígena na escrita da História do Brasil se deve ao deslo-
camento da problemática que resulta não apenas de mudanças
ocorridas com os movimentos historiográficos da Nova História
Cultural, mas, especialmente, das agências indígenas desenca-
deadas na segunda metade do século XX.
Nesse sentido, é preciso considerar que a própria mudança
no modo como a historiografia passou a analisar o papel desem-
penhado pelos povos indígenas no processo histórico, privile-

50
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

giando seu protagonismo, resultou de um fenômeno particular


de suas agências rumo à autodeterminação. Como atores funda-
mentais no processo de formulação de uma nova postura de ação
civil ao longo do Regime Civil-Militar, os povos indígenas foram
agentes importantes na reformulação da própria concepção de
cidadania que dá base ao modelo de Democracia Representativa
existente no país. É a este fenômeno social que denominamos
de cidadanização e é a partir dele que consideramos importante
propor análises que avancem na evidenciação de agentes sociais
e históricos importantes na reelaboração da concepção de polí-
ticas sociais, cidadania e mesmo na atualização da perspectiva
historiográfica que se debruça sobre as ações desses indivíduos e
coletivos indígenas. As emergências políticas e sociais de povos
indígenas no Brasil são as principais informantes de uma Nova
História Indígena que privilegia as agências indígenas e reco-
nhece o processo histórico que concorreu para a institucionali-
zação do pensamento social indígena brasileiro.

EMERGÊNCIAS POLÍTICAS E SOCIAIS DE SUJEITOS


E COLETIVOS INDÍGENAS NO BRASIL

Partimos do pressuposto de que os povos indígenas pas-


saram a se articular politicamente na defesa de direitos sociais
(relacionados à questão da terra, saúde, saneamento básico e
educação), bem como desenvolveram processos de emergên-
cias étnicas, a partir das emergências políticas, mas também do
fortalecimento de propostas educacionais diferenciadas para
seus coletivos. Assim, as lutas dos movimentos indígenas, que
tomaram força na década de 1970, resultaram no reconhecimen-
FERNANDO ROQUE FERNANDES

to jurídico de suas diferenças, através da Constituição de 1988


e na ampliação das demandas por uma formação diferenciada
a partir dos anos 1990. Nesses termos, a Constituinte de 1988
reflete, em parte, as ações empreendidas por diferentes grupos
sociais, nos quais se incluem os povos indígenas. Diante disso,
o reconhecimento da diversidade e da diferença concorreu para
a reivindicação de políticas sociais pelas e para as comunidades
indígenas, resultando na emergência social desses grupos. Isto
pelo menos juridicamente.

51
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Assim, os processos de emergência política e social aqui


mencionados indicam processos de etnogêneses8. Estes apresen-
tam características semelhantes a outros fenômenos sociais, en-
volvendo povos indígenas de diferentes países latino-americanos,
conforme apontou Bartolomé (2006). No caso do Brasil, tal fe-
nômeno se inicia na segunda metade do século XX e se constitui
como chave para compreender as agências indígenas no tempo
presente. Nesse sentido, o papel a ser desempenhado pelo pesqui-
sador da temática dos Movimentos Indígenas Contemporâneos
deve caminhar no sentido de evidenciar como tais processos ocor-
reram e de que modo os povos indígenas desempenharam e ainda
desempenham papel importante nesses processos.
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

ALGUNS CONCEITOS PARA A EVIDENCIAÇÃO DAS


AGÊNCIAS INDÍGENAS
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

Em importante artigo sobre os usos do conceito de etnogê-


nese, Miguel Bartolomé, professor e pesquisador do Instituto Na-
cional de Antropologia e História do México (INAH – Oaxaca),
analisou conclusões de diferentes pesquisadores que se utilizaram
deste conceito para evidenciar os processos de emergência social
e política, assim como os processos de emergências étnicas, vi-
venciados por povos indígenas no decorrer da história da América
Latina. Bartolomé chegou à conclusão de que “a etnogênese, en-
tendida como construção ou reconstrução identitária, constitui
tema sumamente complexo e não se presta a uma interpretação
unívoca”. Desse modo “a etnogênese foi e é um processo histórico
constante que reflete a dinâmica cultural e política das sociedades
anteriores ou exteriores ao desenvolvimento dos Estados Nacio-
nais da atualidade” (Bartolomé, 2006, p. 40).
Esse teórico observa ainda que o fenômeno das etnogêne-
ses (no plural mesmo), destaca “o dinamismo inerente às estru-
turas sociais, uma vez que tais estruturas não atuam sobre agen-
tes passivos, mas sobre sujeitos ativos, capazes de modificá-las

8 Miguel Bartolomé (2006) se utilizou da concepção de Etnogêneses por enten-


der que os grupos sociais desenvolvem ações particulares de emergências so-
ciais e políticas que indicam suas especificidades. Desse modo, cada processo
de etnogênese deve ser analisado de modo particular e em perspectiva.

52
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

de acordo com seus interesses contextuais”. Citando Jonathan


Hill (1996), Bartolomé (2006, p. 40) destacou que “o conceito de
etnogênese foi utilizado na análise dos recorrentes processos de
emergência social e política dos grupos tradicionalmente sub-
metidos a relações de dominação”. Com base em suas análises,
consideramos possível verificar de que modo certos grupos indí-
genas, ao se articular em associações e organizações, fortalece-
ram coletividades, adquirindo as ferramentas necessárias para
pressionar o Estado a desenvolver políticas sociais que atendes-
sem suas demandas.
No entanto, se deve ter em mente que as questões con-
cernentes ao fenômeno das etnogêneses são acompanhadas de
algumas críticas, especialmente àquelas que dizem respeito ao
entendimento de que, apesar da utilização do termo genérico
“índios”, existe uma diversidade de povos estabelecidos em dife-
rentes partes da América Latina que desenvolveram e que ainda
desenvolvem estratégias particulares para a manutenção de suas
diferenças. Isto significa que, em perspectiva étnica, cada grupo,
ao se relacionar com grupos dominantes, desenvolve sua própria
etnogênese, o que torna insustentável defender a tese de que ela
apresenta uma lógica universal, especialmente considerando
cada processo histórico e as razões pelas quais as emergências
políticas e sociais ocorrem.
Uma das críticas mais recorrentes nos meios acadêmicos
aponta para a impossibilidade de se desenvolver uma análise que
evidencia todos os processos de etnogêneses ocorridos no Brasil
a partir da segunda metade do século XX. Ela não está incorreta.
No entanto, críticas esse posicionamento, em alguns casos de-
FERNANDO ROQUE FERNANDES

correm, justamente, da desconsideração de que, a depender da


perspectiva (política ou social), alguns desses fenômenos ocor-
reram de modo articulado e simultâneo em várias partes do país.
As pesquisas que sugerimos devem apontar para a evidenciação
de diferentes fenômenos ocorridos a partir de conjunturas e rea-
lidades distintas, mas que, em certos momentos, conseguiram
articular relações de modo a atribuir sentidos coletivos pluriét-
nicos para os movimentos indígenas desencadeados a partir dos
anos 1970.

53
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Apesar de considerarmos algumas especificidades históri-


cas pelas quais os grupos mencionados nesta narrativa desenvol-
veram seus protagonismos, não nos parece ser possível indicar,
numa única pesquisa, como tais processos ocorrem em todos os
grupos, tendo em vista as centenas de cosmologias dos grupos
étnicos que desenvolvem emergências políticas a partir dos mo-
vimentos indígenas muitas vezes articulados com vários grupos
étnicos. Há casos, por exemplo, de organizações indígenas com-
postas por dezenas de grupos étnicos. Um dos exemplos mais
conhecidos é o da Coordenação das Organizações Indígenas da
Amazônia Brasileira (COIAB), uma organização indígena sem
fins lucrativos, fundada em 1989, que reúne 75 organizações in-
dígenas, distribuídas pelos nove estados da Amazônia Brasileira.
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

Para compreender tais processos é preciso pensar em et-


nogêneses, a partir de uma análise que considera diferentes
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

nuances de movimentos étnicos e pluriétnicos desenvolvidos


em âmbito local, regional, nacional e, em certos casos, interna-
cional. No caso do Brasil, a dificuldade de se desenvolver uma
pesquisa que considere cada fenômeno de etnogênese ocorrido
é evidente. Por conta disso, e levando em consideração o que
apontou Bartolomé (2006), sugerimos uma análise que consi-
dere certas etnogêneses desenvolvidas no âmbito político, em
especial, por aqueles movimentos pluriétnicos que iniciaram
as articulações políticas nos anos 1970 e 1980, através do desen-
volvimento de assembleias, associações e organizações indíge-
nas e pró-indígenas.
Em outras palavras, diante da impossibilidade de se traba-
lhar os fenômenos particulares de todos os grupos étnicos envol-
vidos nas articulações políticas frente ao Estado, consideramos
importante o desenvolvimento de análises que privilegiem os
fenômenos pluriétnicos que agrupam uma diversidade de etnias
indígenas. Assim, a proposta poderá ser encaminhada a partir da
análise de ações desencadeadas por certos movimentos indíge-
nas que estabeleceram relações políticas entre si e apresentaram
indícios de certa homogeneidade nas articulações rumo a cons-
titucionalização de direitos, especialmente naquelas relaciona-
das às demandas sobre territorialidade, saúde e educação.

54
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A evidenciação das estratégias utilizadas por diferentes


coletivos indígenas diante da questão territorialidade é impor-
tante para se pensar as dimensões dos movimentos indígenas.
Deve-se ter em mente que tais movimentos se articulam, muitas
vezes, a partir das noções de territorialidades estabelecidas pe-
los próprios indígenas. Assim, é necessário observar que ao falar
em movimentos indígenas de caráter mais amplo, as percep-
ções sobre o alcance desses movimentos devem ser pensadas em
perspectivas diferenciadas. Isso significa dizer que as dimensões
espaciais representadas pela comunidade envolvente, podem
não coincidir com as dimensões representadas pelos indígenas.
Daí a necessidade de se pensar as projeções desses entendimen-
tos pelo menos, em três sentidos: 1. Temporal e espacialmente,
considerando os limites territoriais historicamente estabeleci-
dos; 2. Considerar as representações espaciais desses territórios
para os povos indígenas e 3. As representações espaciais desses
territórios para os não indígenas. Como resultado, teremos uma
reflexão em perspectiva espacial e temporalmente sobre as di-
mensões das articulações dos grupos indígenas e os significados
dessas dimensões para indígenas e não indígenas. Em síntese,
é preciso pensar as territorialidades em perspectiva espacial e
temporal, indígena e não indígena.
Ressaltamos que tais características não se desenvolvem
apenas com base nas cosmologias indígenas, mesmo que cada
grupo apresente sentidos particulares para suas ações. O que
propomos em perspectiva de análise historiográfica, e isto nos
parece possível, é verificar como, por exemplo, a criação de as-
sociações e organizações indígenas, baseadas em modelos ins-
titucionais oriundos da comunidade envolvente, acabaram se
FERNANDO ROQUE FERNANDES

constituindo em mecanismos importantes na luta dos povos


indígenas frente ao Estado, estabelecendo comunicação com
a comunidade envolvente a partir de suas próprias instituições
tradicionais9 e de suas territorialidades.

9 Aqui a concepção de tradição não significa algo ultrapassado ou mesmo está-


tico, mas um conjunto de elementos sócio históricos que possibilitam a cons-
tituição de fronteiras étnicas entre grupos que se distinguem entre si a partir
de elementos que os diferenciam. A concepção de tradição, nesse sentido, é
utilizada para indicar ações particulares, de grupos étnicos específicos.

55
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

No desenrolar dessas articulações, o conjunto de demandas


desses movimentos inclui reivindicações por uma educação es-
pecífica e diferenciada para as comunidades indígenas. A nosso
ver, a educação é o elemento que se conecta a todas as outras de-
mandas, sempre indicando uma consciência de que através dela
é possível encaminhar de modo mais autônomo outras deman-
das sociais rumo a autodeterminação. Por conta desse posiciona-
mento, em relação à educação específica e diferenciada, é possí-
vel identificar elementos que sustentam a tese de que os povos
indígenas têm criado estratégias que fortalecem processos cada
vez mais evidentes de autodeterminação frente ao Estado através
das instituições educacionais. Tais estratégias se tornaram mais
evidentes nos últimos anos, quando indígenas passaram a acessar
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

o ensino superior em cifras cada vez maiores, na busca por uma


formação que lhes auxilie na reivindicação e mesmo resolução de
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

seus problemas mais elementares. Nesses casos, determinados


sujeitos indígenas têm acessado as instituições superiores na in-
tenção de fortalecer as lutas de seus movimentos.
Ainda sobre o ingresso de indígenas nas universidades, é im-
portante mencionar que algumas questões têm apontado para os
resultados da criação de novos modelos educacionais voltados ao
atendimento das demandas dos povos indígenas por uma forma-
ção específica e diferenciada. No entanto, mais do que impactar
no cotidiano de sujeitos e coletividades indígenas, as instituições
universitárias têm sido transformadas pela presença desses ato-
res. No entanto, como instituição voltada ao atendimento das de-
mandas da sociedade através da formação de recursos humanos,
a universidade tem enfrentado desafios para atender as deman-
das dos povos indígenas pela formação no ensino superior. Apesar
disso, mesmo com os desafios enfrentados, ela tem se constituí-
do como instituição de fronteira importante à medida em que se
transforma em espaço onde diferentes grupos sociais interagem e
criam novas formas de relações interétnicas.
Frederick Barth (2011, p. 196), ao tratar das fronteiras ét-
nicas, observa que “situações de contato social entre pessoas
de culturas diferentes também estão implicadas na manuten-
ção da fronteira étnica”. Nesse sentido, os grupos étnicos podem

56
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

continuar existindo como unidades significativas à medida que


apresentam diferenças culturais persistentes. Assim, “a persis-
tência de grupos étnicos em contato implica não apenas critérios
e sinais de identificação, mas igualmente uma estruturação da
interação que permite a persistência das diferenças”. Nesses ter-
mos, a presença de indígenas nas instituições de ensino superior
não implica, necessariamente, em processos de desestruturação
étnica de sujeitos ou coletivos indígenas, mas, por outro lado,
pode provocar mudanças significativas no modo de pensar e agir
das próprias instituições universitárias e dos sujeitos que nela
interagem.
Alguns autores também têm sustentado a tese de que os
sujeitos indígenas, ao acessarem os mecanismos oriundos da co-
munidade envolvente, utilizando-os em benefício próprio, têm
desenvolvido um processo denominado de decolonialidade ou
descolonização, através das relações interculturais. Nelson Mal-
donado-Torres (2017, p. 88), por exemplo, observa que uma ati-
tude decolonial “encontra suas raízes nos projetos insurgentes
que resistem, questionam e buscam mudar padrões coloniais do
ser, do saber e do poder”.10
O que se pretende apontar aqui é que o acesso de indíge-
nas ao Ensino Superior estabelece uma íntima relação com as
emergências políticas e sociais de povos indígenas no Brasil e
confirma um processo de luta que não apenas resulta, mas forta-
lece os Movimentos Indígenas Contemporâneos. Considerando
os processos de etnicidade, a presença de sujeitos indígenas nas
instituições de ensino superior, a nosso ver, resultam numa ope-
ração de duplo sentido: 1. Aquele que possibilita os processos de
etnogêneses, defendidos por Hill (1996) e Bartolomé (2006) e 2.
FERNANDO ROQUE FERNANDES

Em sintonia com as análises de Fredrik Barth (2011), aqueles re-


lacionados aos processos de valorização e fortalecimento étnico,
voltados à manutenção das diferenças, em perspectiva relacio-
nal, consequente da interação social entre diferentes grupos so-

10 Uma excelente reflexão sobre a bibliografia que tem se desenvolvido sobre


a questão decolonial na América Latina pode ser encontrada em (Ballestrin,
2013). Lacerda (2014) também indica questões importantes para se pensar as
contribuições decoloniais dos movimentos indígenas na América Latina para
a superação do mito do “Estado-Nação”.

57
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ciais numa comunidade de caráter englobante, onde diferentes


grupos étnicos estabelecem relações nos espaços de fronteiras
étnicas.
Conforme Barth (2011, p. 188),
[...] as distinções étnicas não dependem de uma ausência
de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrá-
rio, frequentemente as próprias fundações sobre as quais são
levantados os sistemas sociais englobantes. A interação em
um sistema social como este não leva a seu desaparecimento
por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem
permanecer apesar dos contatos interétnicos e da interde-
pendência dos grupos.
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

Por conta de tais observações, consideramos que a etni-


cidade se constitui como estratégia importante nos processos
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

de autodeterminação dos povos indígenas. Pois, além de servir


como ferramenta que possibilita a apropriação de mecanismos
necessários ao usufruto e reivindicação de direitos sociais frente
à comunidade não indígena (atuando em direção ao ambiente
externo às comunidades) a etnicidade atua como fundamento
dos processos de (re) valorização identitária. Tais procedimen-
tos ocorrem à medida que a etnicidade resulta no fortalecimento
e valorização étnica (atuando em direção ao ambiente interno
das comunidades). Assim, apesar de nos utilizarmos aqui da
questão do acesso de indígenas ao Ensino Superior, as relações
interétnicas constituem as bases das relações estabelecidas en-
tre coletivos indígenas e não indígenas, podendo se instituir ele-
mentos de análise na evidenciação das agências indígenas.
Em síntese, considerando que a ação dos povos indígenas
tem por consequência processos que dizem respeito ao âmbito
interno e externo de suas comunidades, é salutar observar que,
além de fortalecer a luta pelo reconhecimento de suas diferenças,
a etnicidade fomenta a manutenção dos componentes que con-
formam as características identitárias de diferentes povos indíge-
nas. Por conta disso, levantamos a hipótese de que o movimento
interno (decorrente do impacto consequente da interação com
outros grupos), bem como a seleção e apropriação de mecanis-
mos externos que influenciam na manutenção da organização

58
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

interna dos grupos indígenas são operações condicionadas pe-


las relações de etnicidade. Ou seja, a relação estabelecida entre
grupos indígenas e não indígenas tende a modificar os modos de
vida e de organização dessas sociedades. Considerando mais uma
vez o que aponta Frederick Barth (2011), a relação entre diferentes
grupos étnicos acaba mesmo é por evidenciar as diferenças e pos-
sibilitar uma relação de associação, seleção e diferenciação num
imbricado jogo de interações culturais. Tais processos concorrem
para a manutenção da consciência dos sujeitos que operam a par-
tir de cosmologias distintas na manutenção de suas tradições e na
fundamentação dos argumentos necessários à luta pelo reconhe-
cimento de suas diferenças frente à comunidade englobante.
Dessa forma, a etnicidade é também, resultado da própria
interação de grupos com características culturais diferenciadas.
Tais interações criam um ambiente favorável à evidenciação de
distinções étnicas. A razão disso é que “as distinções de catego-
rias étnicas não dependem de uma ausência de mobilidade, con-
tato e informação”, mas, na interação é que se evidenciam as dis-
tinções e se desenvolvem as múltiplas estratégias de associação
ou rejeição das práticas culturais do outro (Barth, 2011, p. 188).
Com base nas análises relacionadas aos movimentos in-
dígenas desenvolvidos a partir dos anos 1970, acreditamos ser
possível evidenciar indícios de que a interação entre os povos
indígenas e a comunidade envolvente é exemplo elucidativo dos
procedimentos de etnicidade ocorridos ao longo da história da
sociedade brasileira. Os movimentos indígenas, em caráter po-
lítico, constituem parte de um conjunto de estratégias utilizadas
em defesa da manutenção das etnicidades as quais refletem um
FERNANDO ROQUE FERNANDES

complexo jogo de forças que se propõem a instaurar costumes


e procedimentos diante das relações de caráter mais amplo que
constituem a sociedade englobante. Nesse sentido, apesar das
particularidades de cada grupo étnico, a articulação entre dife-
rentes coletivos em caráter regional, nacional e mesmo inter-
nacional representam um processo histórico que evidencia um
jogo de relações que indicam uma luta constante pela evidencia-
ção, acentuação, reconstituição e reconhecimento das diferen-
ças étnicas perante o Estado.

59
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Nos termos dessa análise, entendemos que a diversida-


de de povos existentes numa comunidade territorial de caráter
multicultural leva ao desenvolvimento de um âmbito social en-
globante onde, apesar das lutas pela manutenção das diferen-
ças, o cotidiano também se constitui pela realização de alianças
e negociações, de trocas simbólicas, materiais e experienciais
que constituem a base dessas diferenças.11 Pensar a diversidade
sociocultural nesses termos, ajudará a perceber que, apesar do
ambiente multicultural, uma dimensão histórica conecta os di-
ferentes atores sociais. Nas sugestões e possibilidades apresenta-
das neste texto, é preciso considerar que o fator primordial que
conecta os diferentes sujeitos e coletivos é a agência indígena a
partir da atuação política dos múltiplos protagonistas que, re-
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

presentados pelos movimentos étnicos, constituem a base das


emergências políticas e sociais iniciada nos anos 1970. Tais ações,
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

resultaram em pelo menos dois processos: um é das emergências


políticas e sociais de povos indígenas, no contexto histórico da
sociedade brasileira e o outro é na luta pelo acesso ao ensino su-
perior como estratégia de ação política pela conquista de direitos
relacionados à territorialidade.
Assim, em fins dos anos 1980, tais questões foram legiti-
madas pelo texto constitucional e fortalecidas pela atuação em
defesa de uma educação diferenciada que, aliada à manutenção
das tradições e reconhecimento de certas territorialidades con-
correu, por exemplo, para o crescimento do acesso de indígenas
no âmbito das universidades. Assim, tais mudanças auxiliaram
no fortalecimento das ações em defesa, manutenção e conquis-
ta de direitos, instaurando um processo decolonial através das
agências indígenas decorrentes de estratégias de sobrevivência.
Para evidenciar as agências indígenas, indicamos como al-
ternativa uma análise a partir das reflexões de Michel de Certeau

11 Para Alberto Melucci (1989), os movimentos sociais e os movimentos étnicos


contemporâneos atuam de modo particular em relação aos movimentos de
períodos anteriores. Estes indicam um processo alternativo, em que o âmbito
político e econômico abre espaço para ações coletivas que demandam mudan-
ças nas estruturas de uma sociedade onde diferentes grupos étnicos intera-
gem, reivindicando transformações e estabelecendo acordos para o bem-estar
social dos componentes daquela sociedade.

60
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

(2014), para o qual, evidências de práticas de consumo nos per-


mitem compreender como sujeitos e grupos em condições su-
balternas na estratificação social subvertem a ordem dominan-
te através de uma formalidade de práticas muitas vezes diversa
daquela pensada para limitar suas ações. Para Certeau (2014),
a formalidade das práticas se constitui como um processo de
consumo dos mecanismos criados pela ordem dominante com o
fim de limitar as ações de sujeitos e grupos sociais em condição
subalterna no intuito de condicioná-los à normativas que não
dialogam com suas realidades.
Certeau (2014, p. 37-44) observa que ao serem apropriadas
pelos sujeitos e grupos subalternos, mas nem por isso passivos,
tais mecanismos adquirem outros significados, diferentes da-
queles projetados pela ordem dominante, passando a operar a
partir de novos significados, constituindo-se em táticas de so-
brevivência. Conforme o autor, a presença e circulação de um
mecanismo de controle não indica de modo algum o que ele
significa para seus usuários. A manipulação de tais mecanismos
por aqueles que não o fabricam, concorre para a materialização
de práticas sociais particulares, as quais o autor denominou de
táticas de consumo. Tais operações seriam “engenhosidades do
fraco para tirar partido do forte”. Nesse sentido, os procedimen-
tos de consumo seriam responsáveis pela manutenção das dife-
renças e concorreriam para a politização das práticas de grupos
periféricos na organização social.
As agências indígenas, por sua vez, não devem ser pensa-
das somente pela capacidade de apropriação e assimilação das
estratégias da comunidade envolvente e sua operacionalização
FERNANDO ROQUE FERNANDES

em benefício próprio. Os povos indígenas, conforme já aponta-


do, apresentam lógicas próprias de conceber e interpretar a rea-
lidade de modo a adequá-la a seus modos de percepção de mun-
do. Fomentar uma imagem centrada na ideia de que os povos
indígenas apenas agem a partir da assimilação e da apropriação
das estratégias da comunidade envolvente é corroborar com o
esvaziamento da agência indígena em termos de iniciativa. Há,
nesse ponto, em relação ao protagonismo indígena, uma dife-
rença entre iniciativas (agências indígenas) e respostas (resis-

61
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

tência indígena) à estímulos exógenos no campo das relações


sociais e, especialmente, políticas.
Portanto, se faz necessário que estejamos atentos aos pro-
cessos pelos quais os povos indígenas articulam suas agendas
com os mecanismos apropriados do modus operandi da co-
munidade envolvente. Pois, muitos grupos indígenas passam a
operar tais mecanismos de modo que lhes possibilitem a manu-
tenção12 e reelaboração de suas próprias etnicidades. O sentido
exógeno de tais agências (ações) é dimensionado, especialmente
pelos mecanismos alienígenas que, no caso específico daquilo
que propomos, operam no âmbito político das lógicas estatais,
a partir de instituições como associações, organizações e escolas
indígenas.
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

Considerar tais processos, no âmbito das relações estabe-


lecidas entre comunidades indígenas e comunidade envolvente,
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

inseridas numa sociedade de caráter englobante, é possibilitar


a evidenciação do poder de articulação política muitas vezes
inerentes às próprias comunidades indígenas. Poder este que
é acionado à medida que as relações endógenas e exógenas são
constantemente reformuladas a partir do contato com o outro.
Conforme aponta Bruce Albert (2002, p. 14), a forma como
a noção de resistência é utilizada deve ser vista com cautela, já
que tende a conceber as ações empreendidas por sujeitos e cole-
tivos indígenas como processos resultantes de condições de sub-
jugação na qual muitos estão submetidos. Para Albert (2002),
o reducionismo antropológico do conceito de resistência, tende
a criar um certo “resistenciocentrismo” que “paradoxalmente,
tende a ofuscar, com sua retórica, a especificidade e sutileza das
lógicas e formas de agência próprias dos atores sociais”, já que,

12 Nos termos que pensamos para este texto, a noção de manutenção deve ser
entendida como um processo a partir do qual povos e comunidades indígenas
desenvolvem estratégias para manterem suas diferenças nas relações que esta-
belecem com outros grupos. É preciso atentar para o fato de que manutenção
não significa necessariamente a luta para se manter o mesmo, já que os proces-
sos que conformam as relações culturais são dinâmicos e estão em constante
transformação. Assim, percebemos a manutenção das tradições sócio históri-
cas a partir de um conjunto de agências sociais desenvolvidas com o intuito da
evidenciação, autoidentificação e luta pelo reconhecimento das diferenças e
diversidades étnicas.

62
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

em certos casos, os povos indígenas estão alheios ao contato com


a comunidade envolvente ou dela tendem a desenvolver uma re-
lação de distanciamento do mundo exterior.
De todo modo, para o autor, a noção de resistência deve
ser entendida “por meio de diversos quadros rituais, de situa-
ções conflitivas nas quais os povos indígenas enfrentam, direta
ou indiretamente, segmentos da sociedade regional no campo
político”. Nesses termos, as agências indígenas devem ser enten-
didas para além de condicionamentos sócio históricos que im-
pulsionam certos grupos étnicos às resistências. Isto é, entendê-
-las para além de respostas criativas aos estímulos desenvolvidos
pela comunidade envolvente, de modo muitas vezes conflituo-
so, levando à diferentes táticas de sobrevivência, é entender que
os povos indígenas também são capazes de articular estratégias
que, em sentido inverso, estimulam a comunidade envolvente
a responder com projetos assimilacionistas, segregacionistas e
excludentes.
Desse modo, considerar que os povos indígenas são arti-
culadores de estratégias de sobrevivência, num cenário de cons-
tantes transformações sociais, permite a evidenciação do prota-
gonismo indígena para além da noção de resistência, indicando
iniciativas particulares no seio das próprias relações que estes
estabelecem com os não indígenas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base nestas considerações, acreditamos ser possível


desenvolver algumas pesquisas sobre Movimentos Indígenas
Contemporâneos, de modo que os processos históricos particu-
FERNANDO ROQUE FERNANDES

lares de certos grupos sejam apresentados como possibilidade


de evidenciação da interconexão étnica que diferentes povos de-
senvolveram e ainda desenvolvem de modo a possibilitar proces-
sos de emergências políticas e sociais no Brasil Contemporâneo.
O protagonismo indígena desencadeado no contexto do Regime
Civil-Militar, em partes, constituiu um movimento particular
que acarretou numa transformação do pensamento político e
social brasileiro, especialmente no que concerne à concepção de
democracia que emerge a partir dos anos 1980.

63
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Os povos indígenas, a partir de suas agências, foram


protagonistas de uma série de manifestações de caráter social
que concorreram para uma problematização do lugar que ocu-
pavam na sociedade brasileira. Suas ações foram igualmente
importantes para uma modificação no modo de se pensar o
lugar dos povos indígenas na sociedade a partir das pesquisas
acadêmicas.
Suas ações também concorreram para uma modificação
na concepção de História Indígena e do Indigenismo no Bra-
sil. Desse modo, foram para além dos paradigmas criados pelas
historiografias francesa e inglesa, ou seja, os elementos funda-
mentais da nova concepção de história que propõe uma evi-
denciação do protagonismo indígena na História do Brasil e,
A EVIDENCIAÇÃO DAS AGÊNCIAS INDÍGENAS NA ESCRITA DA NOVA HISTÓRIA INDÍGENA

respectivamente, do modo com ensinamos História Indígena e


do Indigenismo nas salas de aula da Educação Básica ao Ensino
MOVIMENTOS INDÍGENAS CONTEMPORÂNEOS: DESAFIOS E ALTERNATIVAS PARA

Superior.
No entanto, para uma modificação evidente do modo
como ensinamos história indígena hoje, precisamos avançar nas
pesquisas não apenas relacionadas ao passado colonial ou impe-
rial, mas, sobretudo, na história contemporânea. Desse modo,
acreditamos ser possível evidenciar o protagonismo através das
agências de coletivos e indivíduos que jamais esmaeceram frente
aos obstáculos impostos pelos projetos de integração, assimila-
ção ou extinção empreendidos pelos centros de poder desde as
primeiras relações de contato.

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FERNANDO ROQUE FERNANDES

67
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA


ESTAMOS FALANDO?

Laiana Pereira dos Santos1

INTRODUÇÃO

Este trabalho está recheado de indagações ou talvez preo-


cupações, que pretende aqui atender a um único objetivo: pos-
sibilitar pensamentos e reflexões a partir de experiências vividas
no mundo acadêmico. Assim, este estudo é direcionado para
índios historiadores e pesquisadores não indígenas, na tentati-
va de possibilitar ponderações nessa “construção” que tentaram
fazer de nossas histórias ao longo do tempo.
Dessa forma, o motivo da escrita esbarra em vontades co-
letivas, minhas e de inúmeros parentes indígenas, em saber até
quando seremos objetos de estudo, meramente. E é nesse cami-
nho desconhecido que surge a pergunta: de qual protagonismo
indígena estamos falando? E porque não lutarmos para conquis-
tar espaços dentro das universidades saindo da condição de ser
observado passando a ser observador? Revelando nossas visões
de mundo, nossos desejos e anseios, perspectivas e maneiras de
pensar e fazer história.
É válido ressaltar que não há desprezo em relação a pesquisa-
dores não indígenas, muito pelo contrário, é reconhecível a grande
contribuição nos marcos dos balanços historiográficos com as pos-
sibilidades que a Nova História Indígena proporcionou.
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

Como afirmou Manuela Carneiro da Cunha (1992, p.18),


durante muito tempo os indígenas não foram vítimas apenas da
eliminação física, mas também da eliminação enquanto sujeitos
históricos.
O que a nova história indígena possibilitou como “novo”
está na postura, nas abordagens, no olhar de quem escreve as

1 Mestre em História Social pela Universidade Federal do Amazonas (2016).


Contato eletrônico: laianasantosrr@gmail.com

69
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

narrativas e na nova forma de pensar os sujeitos históricos, o co-


tidiano, a consideração em relação aos conhecimentos tradicio-
nais, etc.
Os espaços de batalha no mundo científico perpassaram
por vários momentos até chegar ao entendimento desse novo
olhar da história indígena. No entanto, na história do tem-
po presente surge a necessidade de compreender e efetivar a
condição de ser protagonista indígena, um protagonismo que
dialoga entre dois mundos distintos, por um lado compreen-
dendo os critérios do caráter científico da sociedade nacional
e por outro lado expondo seu domínio dos conhecimentos
tradicionais.
Segundo Manuela Carneiro da Cunha (2008) o conheci-
mento tradicional tem regimes diferentes do conhecimento he-
gemônico, “científico” e essa diferença deve ser mantida, ou seja,
que é preciso manter em paralelo formas diferentes de produzir
conhecimentos, não querendo fundi-las uma na outra. Para a
autora, o grande problema é a arrogância da “ciência” que tende
a ignorar outras formas de conhecimento2·

TECENDO TRADIÇÕES INDÍGENAS3


DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

Como aporte teórico foi selecionado a tese da parente


Márcia Mura como forte referência na “demarcação” dos povos
indígenas no meio acadêmico. A proposta é fazer uma breve re-
flexão a partir de três conceitos que foram necessários para que
ela pudesse direcionar a sua pesquisa, a ideia não é detalhar toda
a exposição da autora, até porque seria impossível, porque ela é
bastante densa.
Essa fala de “demarcação” é própria da Márcia Mura, quan-
do em novembro de 2017, participamos juntas do evento come-
morativo de 25 anos de História dos Índios no Brasil, na USP.

2 CUNHA, Manuela Carneiro da. Entrevista com Manuela Carneiro da Cunha:


Povos tradicionais tem um pacto com o meio ambiente. Instituto Sociedade,
População e Natureza. 2008. Disponível em: http://www.ispn.org.br/entrevis
ta-com-manuela-carneiro-da-cunha /Acesso em 8 de out. de 2017.
3 Título da Tese de Doutorado de Márcia Nunes Maciel – Márcia Mura. Progra-
ma de Pós-Graduação em História Social: USP. São Paulo, 2016.

70
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Márcia, no primeiro dia do evento, fez uma intervenção propon-


do a composição de uma mesa somente por indígenas, pois para
aquela ocasião era fundamental ter a presença efetiva de indíge-
nas para abertura do evento. A partir disso, ela disse: “Estamos
aqui para demarcar nosso espaço na USP!”.
A preocupação dela vai ao encontro dos questionamentos
levantados inicialmente neste texto: de qual protagonismo in-
dígena estamos falando? Em sua tese intitulada Tecendo Tradi-
ções Indígenas, Márcia Mura questiona paradigmas usuais per-
cebendo o “outro” como “objeto de pesquisa”. Enaltecendo o que
ela chama de reconhecimento de “vozes próprias” gerando suas
próprias falas.
Por meio do método da história oral ou tradição oral do pon-
to de vista indígena, ela procura requalificar memórias comunitá-
rias de grupos que passaram por processos de desterritorialização,
nesse caso, os povos são aqueles situados às margens de lagos e
rios no eixo que vai de Manicoré/AM a Porto Velho/RO.
Na nota introdutória, a autora indígena relata que tomou
conhecimento de um conceito encontrado no livro do Cristino
Wapichana, chamado “Sapatos Trocados – como o tatu ganhou
suas grandes garras” e a partir disso utilizou como ponto de re-
flexão para pensar o seu lugar como pesquisadora sendo parte da
própria pesquisa.
Márcia Mura relata:
Desde o mestrado venho escrevendo sobre a minha própria
história, por meio da História Oral com pessoas da minha
família e as demais famílias da mesma comunidade, mas
ainda assim meu olhar sobre as narrativas ainda era muito
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

direcionado pelas teorias acadêmicas. No doutorado, me


propus a vivenciar as experiências nos espaços de tradições
e buscar a partir delas novos conceitos. Quis aprender com
os mais velhos, entender os modos tradicionais da maneira
como se aprendem as tradições: fazendo parte delas. Indo
para a roça, para a casa de farinha, para as pescarias das mu-
lheres, ticar o peixe, dançar e lutar junto com os parentes nas
aldeias atravessadas por rodovias e participar dos Festejos e
ladainhas nos espaços de antigos seringais que resultaram
nas localidades, vilas e distritos às margens do rio Madeira”.

71
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Partindo desse anseio em tentar lançar um outro olhar com


as experiências vividas junto aos mais velhos nas comunidades,
Márcia encontra a história do tatu e do veado que trocaram os
sapatos, segue o relato abaixo:
Kapaxi era um tatu e o animal mais rápido de todos. Como
o Jabuti ia dar uma festa e não queria ninguém de fora, convi-
dou aquele para avisar a todos os animais, convite que foi aceito
com satisfação. Por sua vez, o anfitrião recomendou então que
ele passasse primeiro na casa do compadre Aro, o veado, tão logo
avisasse a comadre preguiça. Kapaxi saiu disparado levantando
poeira, ele era rápido e gostava de se gabar por isso. Algum tem-
po depois o compadre Aro chegou ao pequeno vale onde viviam
o Jabuti e sua família.
O compadre Aro era rápido para fazer abrigos, por isso o
Jabuti o convidou para fazer os abrigos para os convidados da
festa. No outro dia, cedo da manhã, chegou de volta o veloz, que
chegou cumprimentando os parentes e desafiando para uma
competição de corrida. De tanto insistir o veado aceitou, mas
primeiro propôs a competição de fazer abrigos, que era a habili-
dade mais rápida que ele tinha, o outro aceitou, mas propôs mais
duas provas: nadar e terminar correndo.
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

Mas antes que iniciassem a competição, o Jabuti propôs


aos dois que fossem depois que todos os preparativos da festa es-
tivessem prontos, e assim foi. Durante a festa os dois atletas ten-
taram descansar escondidos nos abrigos dos pequeninos, mas
eles foram impedidos porque Aro caiu numa armadilha armada
na porta do seu abrigo e fico preso nos cipós. Kapaxi o ajudou a
se livrar da armadilha e juntos voltaram para a festa, mas nessa
hora de tumulto trocaram os sapatos e não se deram conta.
No outro dia, durante a competição, Kapaxi saiu na frente e
como estava com vantagem aproveitou para dar umas cambalho-
tas para animar a torcida. Ao sair da água Aro percebeu que estava
com os sapatos trocados, mas não quis falar nada para não atra-
palhar a competição. A próxima prova consistia em cavar o abrigo.
Kapaxi, que não tinha habilidade em cavar buracos estranhou por
ter feito o seu tão rápido, e saiu na frente na corrida. Para sua sur-
presa Aro o ultrapassou na corrida e ele não conseguiu alcançá-lo.

72
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Ao sentar para descansar viu que não estava com seus sapa-
tos e foi tomado pela tristeza, porque não ia mais ser admirado,
principalmente pelas crianças, por não ser o mais veloz na corri-
da. E precisou descobrir outras habilidades que lhe trouxessem
alegria e que fizessem com que fosse aceito pelos outros.
Ao decidir ir atrás de Aro para recuperar os seus sapatos,
percorreu muitos lugares. Por onde passava cavava um abrigo
para descansar e depois o deixava ali para que outros animais pu-
dessem utilizá-lo. Assim, ele se sentia bem com aqueles novos sa-
patos e, mesmo não encontrando os seus, nunca desistiu de pro-
curá-los. Continuou cavando abrigos, fez muitos amigos e ficou
conhecido como o mais veloz na construção de abrigos e bondoso.
Ao ler essa história, Márcia compreendeu que estava tro-
cando os sapatos, assim como se trocam os paradigmas. Di-
ferente do tatu, que mesmo incorporando os novos sapatos
continuou buscando os antigos, ela não estava triste por não
querer tomar como ponto de partida os conceitos clássicos da
academia. Pois a mesma estava sem saber como fazer essa troca
de paradigmas, foi então que se deu conta que estava trocando
os sapatos no momento em que se sentiu mais correspondida
com os novos caminhos encontrados na literatura indígena e
na sabedoria dos antigos.
No mestrado, Márcia relata que ao ter contato com algu-
mas narrativas, percebia um forte apagamento das memórias
indígenas, mas ainda assim encontrava alguns vestígios. Foram
esses que se tornaram os primeiros passos para o doutorado. Ela
afirma: “Senti a necessidade de puxar o fiozinho de memória
indígena, que estava com uma ponta solta, para ser novamente
tecida. E foi o que fiz, fui puxando esse fio para costurar com a
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

mão nessa história”.


A escrita do Tecendo tradições é uma mboiningã: mbo-i-
-ningã – escrever/tecer com as mãos, os fios de memórias e as
vivências das tradições nas aldeias e nos espaços resultantes dos
seringais, é mesmo uma escrivivência.
Márcia Mura explicita que essa ideia é um conceito prati-
cado pela escritora indígena Graça Graúna, que em outubro de
2014 no auditório da ECA/USP no Caxiri da Cuia, em um encon-

73
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

tro de escritores e estudantes indígenas, a autora a apresentou


ao conceito e logo ela se identificou, pois a tese é fruto de uma
escrivivência que incide fundamentalmente na ação mutua de
vivenciar e escrever.
Dessa maneira, selecionei esses três conceitos que foram
essenciais para a Márcia na construção da sua tese. Primeiro
para pensarmos o protagonismo indígena no contexto tradicio-
nal e acadêmico, de maneira que todas as narrativas, frutos de
pesquisas são reflexos de trocas de sapatos, de mãos que tecem
suas próprias histórias por meio da escrivivência. Portanto, nes-
sas trocas de sapatos é que podemos perceber como os povos in-
dígenas passaram a procurar novas habilidades para (re) existir
no mundo científico, sem perder o fio de suas memórias.
O PROTAGONISMO INDÍGENA
A população indígena não desapareceu como pensado nos
séculos anteriores, muito pelo contrário elas (re) existem e querem
escrever suas narrativas históricas. O itinerário acadêmico nos con-
duz a pensar que necessitamos de leituras escritas por indígenas
sobre o protagonismo indígena sejam em qual perspectiva for.
Momento expressivo, consciência coletiva sobre ser his-
toriador indígena, geógrafo indígena, filosofo indígena, antro-
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

pólogo indígena, sociólogo indígena, economista indígena, ad-


vogado indígena, etc. a partir de objetivos comuns, no entanto,
cada um com suas especificidades.
Para tal, cabe a nós indígenas refletirmos sobre o sentido
de sermos protagonistas. Na visão do mundo indígena o prota-
gonismo passa a ser visto como
“a luta pelo bem comum da comunidade ou povo indígena
e feita com a participação de todos (homens, mulheres, jo-
vens, crianças, anciões, pajés, tuxauas etc.). Cada pessoa na
comunidade exerce um papel importante no fortalecimento
do movimento indígena. Daí o símbolo de FEIXE DE VARA
utilizado pelas comunidades quando refletem sobre a im-
portância da união”. 4

4 FARIAS, Junior Nicacio. O protagonismo indígena no contexto dos saberes tra-


dicionais e acadêmicos: entrevista [jan. 2018]. Entrevistadora: Laiana Pereira dos
Santos. Boa Vista, RR: 2018.

74
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A fala acima é o registro de um dos vários diálogos com os


parentes indígenas e único utilizado neste trabalho, por ainda
está em andamento. O protagonismo nessa perspectiva é visto
como luta e união, na comunidade indígena não existe o “eu”,
mas sim a luta pelo bem comum de todos.
Para o Wapichana Junior Nicacio, estudante de Direito na
Universidade Federal de Roraima, a preocupação com o pro-
tagonismo indígena está intimamente relacionada à trabalhos
acadêmicos que não retornam às comunidades. A crítica que
parte dele está na maioria dos pedidos de autorização para reali-
zação de pesquisas não retornando às comunidades e utilizando
os povos indígenas meramente como objeto.
Junior acrescenta ainda que dos poucos trabalhos acadê-
micos que leu, escritos por indígenas, percebeu “o compromisso
em ajudar a sua comunidade, porque envolvia os jovens alunos
da comunidade e o trabalho foi usado como referência de estudo
na escola”.
Nesse caso, o protagonismo indígena no contexto acadê-
mico, torna-se necessário e visto como luta e resistência frente
à comunidade científica pretensiosa (sem generalizar) que aca-
bou gerando desapontamento.
Para explicar com mais precisão esse conceito, partimos
da premissa do sentido de protagonizar, que surgiu na Grécia
Antiga e passou a ser um termo adotado pelas áreas das ciên-
cias humanas a partir da formação do estado moderno, chegan-
do à sociedade capitalista contemporânea quando organizações
e movimentos sociais tornaram-se evidentes e independentes,
sendo caracterizados como protagonistas de suas lutas e histó-
rias. (BICALHO, 2011).
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

Assim, é valido relembrar que este trabalho foca na refle-


xão perante o protagonismo indígena acadêmico, não deixan-
do de lado o valor do protagonismo das lideranças, mulheres,
homens e jovens indígenas, tampouco os da perspectiva social,
cultural e político.
Sendo assim, o protagonismo indígena no contexto dos
saberes tradicionais e acadêmicos, aqueles saberes passados
de geração a geração e reconhecidos com rigor científico pe-

75
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

rante a sociedade nacional, tem seu espaço garantido em


Roraima.
Com efeito, na trajetória da educação escolar indígena, o
Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena, criado em
2001 dentro da Universidade Federal de Roraima (UFRR) como
um núcleo, assumiu diversos papéis, além da formação para
professores indígenas em nível superior. Este espaço garante a
presença indígena na universidade, populações historicamen-
te excluídas. (FREITAS, 2011).
Na UFRR, além do Instituto Insikiran, os povos indígenas
têm a possibilidade do vestibular para ingressarem nos demais
cursos por meio do vestibular tradicional com cotas e o vesti-
bular específico indígena (PSEI).
O Instituto Insikiran prevendo de imediato a formação
de professores indígenas criou o curso de Licenciatura Inter-
cultural em 2001, em 2009 o Bacharelado em Gestão Territorial
e o Curso de Gestão em Saúde Coletiva Indígena em 2012.
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

Foto 1: “Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena”


Fonte: Arquivo pessoal, 2014.

76
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Conforme o Projeto Político Pedagógico (PPP) da Licen-


ciatura Intercultural, aprovado em 2002, este curso possui três
princípios norteadores da proposta pedagógica: a transdiscipli-
naridade, a interculturalidade e a dialogia social. O professor
indígena que cursa a Licenciatura Intercultural tem a opção de
escolher em qual área de habilitação será a sua formação, essas
áreas de habilitação são Comunicação e Artes (CA), Ciências
da Natureza (CN) e Ciências Sociais (CS). O grande desafio da
formação de professores indígenas tem sido atender a esses três
princípios que são a base da proposta pedagógica. É necessá-
rio realizar discussões para que se possa harmonizar esse saber
como acadêmico e/ou científico.
É importante ressaltar ainda que esee é um dos pontos
sempre discutidos entre os professores formadores do Instituto
Insikiran, pois é necessário avaliar até que ponto está havendo a
interação entre a cultura indígena e a envolvente, e de que forma
essa relação vem favorecendo na formação dos docentes indíge-
nas. A interculturalidade nada mais é que um diálogo entre duas
culturas diferentes, baseadas no respeito pela diversidade. Para
Celia Collet (2006), a educação intercultural seria vista como:

[...]instrumento de inclusão das minorias e de atribuição de


poder às populações que estão às margens da cultura domi-
nante. A ideia subjacente a essa visão seria que, através do
domínio tanto de seus códigos específicos como dos códigos
“ocidentais” ou nacionais, as minorias poderiam reivindicar
um espaço na sociedade e na economia nacionais e globais.

Para os alunos indígenas que estão no espaço do Instituto


Insikiran, a interculturalidade permite-lhes compreender seus
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

próprios conhecimentos e os “códigos ocidentais” que Collet


propõe favorecerem em direção à avanços e a autonomia. Dessa
forma, a educação intercultural evidencia em processos de hi-
bridização cultural, que são intensos. (PRESTES, 2013)
Minha experiência no Instituto Insikiran iniciou em 2014
quando estava na pesquisa para a dissertação do mestrado, lá
tive contato com os alunos Wapichana, Macuxi, Taurepang,
Ingaricó, Yanomami e Yekuana. Neste espaço foi possível com-

77
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

preender melhor suas trajetórias, seus anseios, suas preocupa-


ções e seus posicionamentos frente à sociedade envolvente.
Não existe em números específicos por etnia a quantidade
de alunos que passaram pelo processo de formação no Insikiran,
desde a sua criação. Em 2014, a estimativa de alunos juntando os
três cursos e todas as etnias, somavam mais de 500 alunos.
Ainda em 2014 a pesquisa que teve obteve como um dos
resultados a delimitação e análise das trajetórias escolares e uni-
versitárias do meu grupo étnico, o wapichana, iniciou as pri-
meiras reflexões acerca do protagonismo indígena. Por meio de
entrevistas foi possível perceber as semelhanças em todas essas
trajetórias, inclusive se estendendo aos demais grupos étnicos,
pois parte dos alunos indígenas ali presentes vivenciaram os dois
momentos da educação para índios e a educação indígena espe-
cífica e diferenciada nos primeiros anos ao ser implantada.
No Insikiran, por exemplo, os parentes indígenas desen-
volvem pesquisas e constroem suas próprias narrativas. O gran-
de desafio é ter um olhar científico sobre seu cotidiano. Luciano
(2006) contribui afirmando:
Os saberes indígenas respondem às suas necessidades e
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

desejos. Suas crenças, valores, tecnologias etc. provêm de


um conhecimento comunitário prático e profundo gerado
a partir de milhares de anos de observações e experiências
empíricas que são compartilhadas e orientadas para garantir
a manutenção de um modo de vida específico. Esta consta-
tação é importante para desconstruir a ideia preconceituosa
de que os índios são incapazes de assegurar a sua própria so-
brevivência e, por isso, precisam dos brancos para ensiná-los
a viver. É óbvio que os conhecimentos científicos e tecno-
lógicos da sociedade moderna são importantes e desejáveis
para aperfeiçoar suas condições de vida, como é o desejo de
toda a sociedade humana. Mas, isso não significa que sem
eles os índios não possam se manter.

Destarte, a maior parte das narrativas construídas são pro-


dutos que conhecemos como trabalho de conclusão de curso.
O protagonismo indígena se materializa a partir do momento
que eles são lançados como pesquisadores, observando as pro-
blemáticas dentro das suas comunidades ou algo que chame

78
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

atenção dos alunos e merece ser pesquisado, levando em conta


seus conhecimentos tipicamente tradicionais. Por outro lado,
o Instituto Insikiran contribui na perspectiva acadêmica, téc-
nica, prática e até de uma possível reconstrução social. (PÉREZ
GÓMEZ, 1998).
Nesse interim, legitimar os saberes indígenas no ensino
superior possibilita reflexões acerca de práticas e conhecimen-
tos escritos por eles, sobre eles. Já que a crítica é sempre sobre
escritos de não indígenas sobre eles.
Assim, “O indígena não tem que parar no tempo para
afirmar sua identidade, o importante é que seus saberes e sua
cultura continuem sendo transmitidos às novas gerações”.
(GOMES, 2011, p. 44).
As narrativas devem ser entendidas como seletivas, com-
preendendo um determinado período, em função da escolha do
que ficaria registrado. Para tanto, é importante observar que as
narrativas são escolhas do pesquisador indígena (LOPES, 2013).
Essas devem contribuir com a Nova História Indígena, cons-
truindo suas próprias narrativas, desvencilhando-se daquelas
remotas descrições sobre as primeiras notícias dos seus povos,
em que desconsideravam seus processos históricos.
É importante ressaltar que no Projeto Político Pedagógi-
co do curso de Licenciatura Intercultural, por exemplo, está ga-
rantido que os trabalhos de conclusão de curso possibilitem ao
aluno indígena ser atuante na pesquisa, não como objeto, mas
como o pesquisador. Um ser pensante que constitui narrativas
essencialmente nativas, a partir de seu olhar.
Nesse contexto de detectar problemas, intervir através de
um projeto e mostrar análises a partir dos resultados, é possível
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

aos alunos indígenas para que eles possam compreender que,


a partir de seu cotidiano, eles são sujeitos capazes de construir
suas próprias histórias.
Como tem sido constantemente enfatizado aqui, a forma-
ção por meio do Insikiran tem sido um meio para ganhar auto-
nomia e garantir reconhecimento e respeito, isso tem gerado um
sentimento de materializar seus conhecimentos, proteger seus
saberes, contextualizar com a cultura envolvente e não mais per-

79
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

der a memória tradicional indígena. Pois é desse protagonismo


que estamos falando.
Dessa forma, da experiência que obtivemos ao se fazer a
leitura dos trabalhos de conclusão de curso da Licenciatura In-
tercultural, foram observadas as seguintes reflexões: o Projeto
Político Pedagógico da Escola Estadual Indígena Sizenando Di-
niz – Centro de Formação Wapixana/Serra da Lua; proposta pe-
dagógica para o fortalecimento da cultura e da arte Wapixana
da comunidade Pium; análise do ensino da língua Wapixana na
Escola Estadual Indígena Vovô Emiliano Wapixana; propostas
pedagógicas para a valorização cultural Wapixana: o artesana-
to na aula de arte indígena, produção de material didático em
Wapixana; a análise do ensino da língua nas escolas da região
da serra da lua; reflexão sobre o ensino de língua Wapixana na
Escola Estadual Indígena Reinaldo Prill; produção de material
didático na Escola Estadual Indígena Tuxaua Otávio manduca;
e fortalecer a língua e a cultura Wapixana na comunidade Serra
da Moça.
Em sintese, nas narrativas foi possível perceber que todas
elas iniciam através de uma abordagem histórica baseada nas fa-
las (oralidade) de índios mais antigos das comunidades, de fatos
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

e histórias que foram sendo repassados de geração em geração.


Como não foi possível estar com todos os Wapichana, como de-
sejado, no espaço do Instituto Insikiran, foi considerado funda-
mental incluir pequenos trechos a partir dessas narrativas.
Sendo assim, as reflexões sobre o Projeto Político Peda-
gógico da Escola Estadual Indígena Sizenando Diniz – Centro
de Formação Wapichana/Serra da Lua, foi objeto de estudo do
Wapichana Gleidson Nicásio Rodrigues, em 2010, havendo nes-
se lugar o docente Gleidson, o atual professor de História da
Escola Estadual Indígena Tuxaua Luís Cadete na Comunidade
Canauanim.
Na sua pesquisa, ele salienta que a educação escolar indí-
gena deve na verdade fortalecer a identidade cultural dos povos
indígenas, sendo estes os objetivos traçados pelos tuxauas em
reivindicação à educação específica e diferenciada, e isso deve
ser trabalhado tanto na prática em sala de aula como na teoria.

80
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Gleidson problematiza, afirmando:


A educação escolar indígena apresenta um avanço muito im-
portante, mas ainda não conseguiu a qualidade do ensino na
prática, sabemos que o diferenciado para os povos indígenas
não é uma forma de isolamento do mundo, mas sim uma
dinâmica de construir autonomia de ter garantias em seus
direitos fundamentadas na sua diversidade cultural. Mas,
nem todos estão preparados para lhe dar com as mudanças,
a quebra de paradigmas para muitos professores torna-se di-
fícil. (RODRIGUES, 2010, p. 03).

A partir de suas experiências, vários alunos indígenas ex-


ternalizam suas dificuldades, modelam e remodelam propos-
tas pedagógicas. Embora sejam narrativas construídas a partir
da perspectiva da Ciências da Natureza, Comunicação e Artes,
e Ciências Sociais, todas elas envolvem assuntos relacionados
a sua cultura e, sobretudo, à valorização da mesma. Se por um
lado a História oficial, por um tempo, silenciou a presença dos
indígenas de suas narrativas, por outro lado, os protagonistas in-
dígenas expressam suas longas e ricas histórias.
Nessa linha, o Wapichana Benjamim José Pinto construiu
sua narrativa a partir da proposta pedagógica para o fortaleci-
mento da cultura e da arte Wapichana da comunidade Pium, em
2012. Considerando que “toda a discussão sobre a construção de
uma escola indígena específica, diferenciada e de qualidade é
construída e sustentada em reuniões comunitárias regionais e
nas assembleias gerais das lideranças” (PINTO, 2012, p. 12).
Enfatizando ainda a experiência para fortalecer o ensino da
língua materna nas escolas, o trabalho como formador que en-
sina a língua Wapichana, no curso de magistério para os profes-
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

sores que trabalhavam nas comunidades Wapichana, segundo


o professor de História, foi uma experiência muito boa ensinar
a base da comunicação para que os professores pudessem apro-
fundar o estudo da língua com os falantes de suas comunidades.
Ainda na sua trajetória, ele desenvolveu projetos educativos com
trabalhos em horta escolar, roça, piscicultura e avicultura. Para
Pinto (2012), “Esses projetos são fundamentais para que a equipe
de professores conheça de fato seus alunos, reconheça suas ne-

81
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

cessidades, sua situação socioeconômica, suas expectativas, seu


dia a dia e o que fazem fora da escola” (PINTO, 2012, p. 13).
Aquele docente, relata que em janeiro de 2005, iniciou a
vida de acadêmico no Instituto Insikiran:
No período das aulas deixava a família na Malacacheta, que
fica a uma distância de 39 km de Boa Vista, e durante os dois
primeiros anos ia visitá-los de bicicleta no fim de semana.
Voltava toda segunda-feira pela manhã, saía às 05:00 horas,
pedalava por três horas, chegava um pouco antes das 08:00
horas quando a aula já ia começar.

A partir da formação passou a compreender que o ensino


da língua Wapichana focaliza a necessidade de dar ao aluno a
condição para que ele amplie o domínio da “língua e da lingua-
gem”, aprendizagem fundamental para o exercício da cidadania e
da cultura. A proposta é que a escola organize o ensino de modo
que o aluno possa desenvolver seus conhecimentos discursivos
e linguísticos sabendo ler e escrever, conforme seus propósitos e
demandas sociais.
Ainda em sua narrativa o Wapichana Benjamim acrescenta:
[...] a educação escolar indígena deve contar com a participa-
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

ção da comunidade, com o objetivo de fortalecer a cultura,


tomando decisões para que o projeto da sociedade coletiva
continue existindo. Nesse sentido, as escolas indígenas de-
vem construir materiais educativos que reflitam sobre a so-
ciedade local e discutam a valorização cultural. Temos que
respeitar nossas tradições culturais. Essa é nossa maior preo-
cupação e luta. Os mais velhos são os nossos “computadores
vivos” que guardam todos os conhecimentos sagrados, em
relações as tradições culturais. (PINTO, 2012, p. 31-32).

Nesse contexto, a relevância do pensamento crítico do aca-


dêmico indígena tem provocado e estimulado na formação de in-
telectuais indígenas, e dado a oportunidade de atender as deman-
das de seus povos. Essa participação de acadêmicos indígenas em
atividades de pesquisa tem contribuindo para o diálogo de saberes,
“para transformar os espaços acadêmicos, em espaços de trânsito,
troca e articulação de saberes e alternativas para uma população
que se confronta com inúmeros desafios novos” (BRAND, 2011).

82
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Nesse sentido, a análise do ensino da língua Wapichana na


Escola Estadual Indígena Vovô Emiliano Wapichana, realizada
em 2012 pelo parente Venceslau da Silva Ribeiro, traz indicativos
de que a cultura indígena Wapichana está:
Sob controle das lideranças e professores, as suas danças são:
parixara, músicas regionais em língua portuguesa, músicas
nacionais, músicas de própria autoria. Como o costume é
sempre produzir o pajuarú, pois, no dia da sua festa é muito
difícil faltar, porque é bebendo e conversando que vão se di-
vertindo. (RIBEIRO, 2012, s/n.).

Carmélia Manduca Nicácio, professora Wapichana, a par-


tir de sua narrativa intitulada Propostas pedagógicas para a va-
lorização cultural Wapichana: o artesanato na aula de arte indí-
gena, traz uma admirável observação aos idosos da comunidade.
Sabemos que existem idosos nas comunidades que sabem
produzir e ainda preservam suas artes, os quais são verdadei-
ras “bibliotecas do saber” das tradições dos povos indígenas.
E é a partir da valorização deste saber que surgiu a proposta
deste trabalho. (NICÁCIO, 2009, p. 15).

Ela ressalta ainda que hoje é necessário apostar na edu-


cação como forma de mudar a realidade, mas para isso aconte-
cer é necessário mudar a educação e usá-la conforme o contexto
em que está inserido. A valorização dos idosos na comunidade
como a inserção de “bibliotecas do saber” pretende-se por meio
da arte indígena de preservar e repassar o artesanato aos jovens
Wapichana.
A partir desses resumidos trechos de seus posicionamen-
tos frente à educação escolar indígena e formação de professores
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

indígenas, torna-se evidente a diferença entre as visões de mun-


do e de vida que orientam os povos indígenas, e como eles con-
duzem seus processos de aprendizagem por meio de suas lógicas
e racionalidades ao constituir seus conhecimentos.
Dessa forma, pode-se concluir que cada cultura tem for-
ma própria de organizar, produzir, transmitir e aplicar conheci-
mentos. É recente a sistematização do conhecimento no mundo
indígena, há uma grande vontade em unir o saber tradicional

83
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ao saber acadêmico, mas o comum é os povos indígenas organi-


zarem seus saberes livres de métodos e dogmas fechados e ab-
solutos, e se garantem na efetividade prática e nos resultados
concretos que acontecem no seu cotidiano. (LUCIANO, 2006,
p. 170-171).
Nesse sentido, todas as breves narrativas Wapichana aqui
apresentadas foram construídas a partir de estudos do seu uni-
verso indígena, estabelecendo dentro dos padrões acadêmicos,
o embasamento teórico.
Para Ioris (2011, p.63):
São narrativas ricamente alimentadas por rememorações
passadas por gerações, prodigiosas de lembranças e imagens
de um passado fragmentado [...] e que, mais recentemente,
têm sido reavivadas e revalorizadas, por conta do movimen-
to indígena de reafirmação étnica e cultural.

Mais do que isso, expressam histórias que “moram” dentro


deles, e isso demonstra o engajamento com o atual movimen-
to de se reafirmarem, expressa sua importância para a história
indígena Wapichana que se reproduz na ênfase na coragem, na
luta, reconhecimento e no respeito.
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

Por fim, é importante relembrar que para esta breve refle-


xão a respeito do protagonismo indígena, os exemplos utiliza-
dos são apenas algumas das narrativas escritas por wapichanas
no Instituto Insikiran. O que deixa claro que a quantidade de
pesquisas e estudos ali constituídos são expressivos e sem nú-
meros específicos de tudo o que já foi produzido. Atualmente,
o Instituto trabalha com a digitalização de todos os trabalhos
de conclusão de curso, visando a maior circulação dos mesmos.
O fato é que o protagonismo indígena apresenta diversas faces
e no entendimento do mundo indígena, ela representa a “de-
marcação” desses povos nesse espaço, ou seja, o acadêmico e o
científico.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escrever sobre protagonismo indígena tem sido o foco nos


últimos dois anos dos estudos desenvolvidos por mim. Esse tra-

84
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

jeto teve início no final do mestrado enquanto professora e pes-


quisadora indígena que luta para a permanência no espaço aca-
dêmico desses temas. E isso tem como objetivo, construir uma
reflexão acerca das discussões sobre esse objeto.
Foi a partir disso, que começamos a observar e conversar
sobre isso com os parentes indígenas. Chegamos a conclusão de
que todos ou a maioria que estão no mundo acadêmico possuem
o mesmo desapontamento por conta de alguma experiência vi-
vida. Como consequência desse contexto que as inquietações de
qual protagonismo indígena estamos falando.
Assim, estamos na luta constante para mostrarmos que o
protagonismo da qual estamos falando é aquela instituída por
um corpo de pensadores e intelectuais indígenas, plenamente
capazes de materializar suas histórias, memórias e tradições
através de narrativas que já são reconhecidas em suas comuni-
dades e aldeias e agora alcançam a sociedade nacional.
Também enfatizamos o fato da necessidade de leitura dos
trabalhos escritos por parentes indígenas, pois o diferencial da
literatura indígena está exatamente na habilidade da troca de sa-
patos, na mesma habilidade em que se encontra a escrivivência
e o tecer das memórias.
Sendo assim, esperamos, a partir dessa leitura, que o pro-
tagonismo indígena seja lembrado como um veículo capaz de
tentar reverter a situação histórica do entendimento sobre o in-
dígena. Por fim, as marcas e as reflexões aqui propostas é a ma-
neira desse universo, sobre o pensar e fazer a história, como uma
participação do indivíduo que faz parte desse contexto.
LAIANA PEREIRA DOS SANTOS

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xana na Escola Estadual Indígena Vovô Emiliano Wapixa-
na. Boa Vista: Instituto Insikiran – UFRR, 2012. Monografia
(Graduação em Licenciatura Intercultural com Habilitação
em Comunicação e Arte).

87
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

RODRIGUES, Gleidson Nicasio. O Projeto Político Pedagógico


da Escola Estadual Indígena Sizenando Diniz – Centro de
Formação Wapichana/Serra da Lua. Boa Vista: Instituto
Insikiran – UFRR, 2010. Monografia (Graduação em Licen-
ciatura Intercultural com Habilitação em Ciências Sociais).
DE QUAL PROTAGONISMO INDÍGENA ESTAMOS FALANDO?

88
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS


E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA
EXPERIÊNCIA COM BIOGRAFIAS DE
INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO
SERRA DA LUA-RR

Ananda Machado1

INTRODUÇÃO

A partir do exercício de escrever as biografias de Casimi-


ro Manoel Cadete e de Alfredo de Sousa, conseguimos entender
melhor o processo histórico que produziu mudanças no pano-
rama sociocultural Wapichana em Roraima entre os anos 1916
e 2018. Identificamos essas mudanças vividas pelo povo Wapi-
chana através da pesquisa de campo, em fontes primárias e se-
cundárias. Assim conseguimos refletir sobre os conhecimentos
históricos, antropológicos e linguísticos Wapichana.
Analisamos, nessas biografias, os impactos das ações do
Estado, da escolarização e das igrejas nas formas de transmissão
oral do conhecimento e do uso da língua Wapichana. Coletamos
e transcrevemos na língua Wapichana narrativas históricas para
entender também as dificuldades, as impossibilidades de tradu-
ção cultural e linguística, as dinâmicas das mudanças, constru-
ções e recriações das identidades culturais Wapichana.
No doutorado em história social concluído em 2016, a
pesquisa reconstituiu aspectos de uma história social da língua
Wapichana em Roraima a partir da análise de algumas histórias
de vida e de objetos. Tomamos como base as abordagens teórico-
ANANDA MACHADO

-metodológicas da história oral, da etno-história, da antropolo-

1 Doutora em História pela UFRJ. Professora do curso Gestão Territorial In-


dígena, Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena; colaboradora do
Mestrado em Letras (PPGL-UFRR); coordenadora do Programa de Valorização
das Línguas e Culturas Macuxi e Wapichana (PRAE e PRPPG-UFRR).

89
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

gia e da micro-história para tentar responder à seguinte questão:


como as transformações provocadas pela escrita alfabética, a es-
cola, as igrejas, e outras instituições nos territórios indígenas, e
os processos de demarcação territorial (desterritorialização- re-
territorialização) influenciaram nas dinâmicas e estratégias de
resiliência cultural? Tomamos como exemplo trajetórias de vida
para, a partir delas, discutir padrões recorrentes, identificar da-
dos mensuráveis e questões históricas.
Após a conclusão da tese continuamos adotando a meto-
dologia da história oral porque este vem agregando valor ao tra-
balho de escrita biográfica que começamos a realizar após um
convite do professor João Pacheco de Oliveira no âmbito do pro-
jeto “Os Brasis e suas Memórias”. A história oral exige todo um
esforço de revisão bibliográfica e busca de outras fontes antes
de realizar as entrevistas. E este movimento é enriquecedor. Por
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA

outro lado, percebemos que os estudos antropológicos e etno-


COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

gráficos que realizamos desde 2009 em Roraima, contribuíram


bastante durante a pesquisa das biografias na compreensão da
cultura do biografado. Muitas perguntas importantes ficariam
de fora se não incluíssemos referências antropológicas, linguís-
ticas e etnográficas.
No caso dos Wapichana, Nádia Farage realizou tanto estu-
dos históricos, quanto antropológicos em Roraima. Segundo a
autora, a ocupação do Rio Branco por não indígenas iniciou-se
nos anos setenta do século XVIII, a partir de então “dos índios
dependiam não só da extração das ‘drogas do sertão’, como tam-
bém todos os outros serviços voltados para a vida cotidiana dos
colonos: eram os remeiros, os guias, os pescadores, os caçadores,
carregadores, as amas de leite, as farinheiras... (FARAGE, 1991, p.
26). Enfim os indígenas foram agentes essenciais ao processo de
adaptação e sobrevivência de europeus na Amazônia.
De fato, quando estudamos a imposição do uso da língua
portuguesa na Amazônia, sabemos que durante 100 anos não
houve sucesso e as amas de leite ensinavam suas línguas indí-
genas às crianças portuguesas e essas aprendiam, dentre outras
línguas, o Nheengatu. Para conduzir o trabalho de exploração
que impuseram aos índios, os portugueses também aprende-

90
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ram essas línguas. Confirmamos nas biografias que escrevemos


até então muitas das funções desempenhadas pelos indígenas
Wapichana, incluindo serviços como o de vaqueiros; de retirada
de balata (anos 1930-40); garimpagem e até de padeiros.
O mapa da Bacia do Rio Branco- primeiros aldeamentos-
do século XVII (FARAGE, 1991) evidencia a existência de mais
de 22 povos indígenas no lugar hoje denominado Roraima, são
eles: Arina, Waika, Macuxi, Paraviana, Jaricuna, Sucuri, Wapi-
xana, Guaxumará (Watumara), Pauxiana, Tapicari, Sapará, Gui-
nau, Procotó, Acarapi, Irimissana, Caripuna, Amariba, Atorai,
Parauana, Arawa, Macu, Aruaqui, Auaqui (Awake).
Se considerarmos isoladamente o Estado de Roraima
em 2018, encontraremos mais de 20 etnias indígenas: Macu-
xi, Patamona, Taurepang, Waimiri Atroari, Wai Wai, Ingarikó,
Ye’kuana, Wapichana, Sapara, Yanomami, Sanuma, Yanomama,
Atoraiu, Pauixana, Hixicariana, Mawaiana, Taruma, Xereu, Ka-
tuena, Karafaiana, de três famílias linguísticas: Karib, Aruak e
Yanomami. Aos povos que sobreviveram ao genocídio foi ofe-
recida a sua desorganização enquanto sociedade. Assim os que
não foram mortos ou escravizados, viveram deslocados do seu
território tradicional. Mas, houve resistência e, mesmo diante de
tantos problemas, os povos indígenas continuam lutando pelos
seus direitos territoriais.
Em 1918 Farabee (apud FARAGE, 1997) registrou dados que
definiam os Wapichana como habitantes dos campos do vale do
rio Urarioera ao Rupununi. Com população entre 10 a 11 000 in-
divíduos. No Brasil viviam 3 000 a 4 000 em comunidades e 1 000
em cidades e fazendas. O autor encontrou, na época, vivendo na
região, os “Vapidiana” verdadeiros e os Atoradi.
W.C. Farabee (1918) realizou, segundo Farage (1997), a úni-
ca etnografia dos Wapichana, após seguiram-se as etnografias
das relações de contato, considerada por muitos autores como
ANANDA MACHADO

um inventário de perdas. Isso porque buscavam a imagem do


original: o que teria sido e desagregou. Em certo sentido, esses
autores desejavam a reiteração. Em nosso processo de pesquisa
teremos ponto de vista diferente, analisaremos as dinâmicas de
troca e transformação para compreender historicamente como

91
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

se deu o processo de esquecimento e de preservação do uso da


língua Wapichana.
Coudreau (1887) relatou dos antigos habitantes do setor
Norte da Serra da Lua, os Atoraiu, e das histórias sobre a Serra.
Ele afirmou que ali era uma imensa Região que divide a oeste e
norte o território dos Wapichana e a leste, os Atoraiu. No entan-
to, Henri Coudreau mostrou que mesmo no chamado território
dos Atoraiu, havia várias vilas Wapichana e Macuxi. O mesmo
autor fez o retrato dos Wapichana e de seu território e, segundo
ele, embora com nome português, mulheres e crianças desco-
nheciam a língua portuguesa. O recrutamento de mão de obra
indígena se dava pela intermediação de agentes índios em troca
da obtenção de objetos manufaturados.
E cada um desses viajantes e estudiosos escrevia as línguas
indígenas puxando a ortografia para a sonoridade que as letras
tinham em suas línguas: Farabee (inglês); Coudreau (Francês);
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA
COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

Curt Nimuendaju (alemão) dentre outros. Eles etnografavam


também a partir de seus pontos de vista.
Hoje há 18 Comunidades na Região Serra da Lua, dentro
nove terras indígenas, com falantes de línguas pertencentes ao
tronco linguístico Aruak, que compõem a região indígena que
é hoje referência geográfica do atual território Wapichana. Os
limites da Região são os Rios Tacutu, ao norte e leste, o Rio Bran-
co, a oeste, os Rios secundários da bacia do Rio Branco, são o
Quitauau, Urubu, Jacamim, Arraia, e a Serra da Lua é o limite
sul da Região. Atualmente a Região fica dentro dos municípios
Cantá e Bonfim-Roraima.
A Região Serra da Lua é composta pelas seguintes comuni-
dades indígenas: Malacacheta, Canauani, Moscow, Murirú, Alto
Arraia, Pium, Jacamim, Marupá, Wapum, Água Boa, Cachoe-
rinha do Sapo, Jabutí, São Domingos, Bom Jesus, Cumaru, São
João Manoá e Tabalascada2. Há muito tempo os povos Macuxi e
Wapichana dividem o mesmo espaço político e geográfico.

2 São João e Cumaru são as únicas comunidades nas quais há somente aulas de
Macuxi, nas outras todas há o ensino da língua Wapichana nas escolas indíge-
nas. E há tanto aulas de Macuxi como de Wapichana nas comunidades Manoa
e Tabalascada. (Informações obtidas durante a orientação dos Trabalhos de
Conclusão de Curso de quatro alunos Wapichana da região).

92
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A regularização fundiária começou e foram declaradas al-


gumas Terras Indígenas com um território contínuo de 52. 800
ha. Mas há ainda Terras Indígenas demarcadas em “ilha”, isto é,
cercadas de fazendas por todos os lados.
Das comunidades mencionadas Jacamim, Wapum, Mos-
kow, Muriru e Alto Arraia são com população quase 100% falan-
tes da língua Wapichana, sendo que há alguns Atoraiu e Paui-
xana entre eles. Por outro lado, a comunidade Tabalascada tem
aproximadamente 10% de falantes da língua Wapichana. Além
dessa língua, há também falantes de Macuxi na região, princi-
palmente nas comunidades Cumaru e São João.

AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA:


QUADRO TEÓRICO
As perguntas que fazemos ao passado, como aquelas que
fazemos a culturas diferentes da nossa, são determinadas
por nossas questões presentes; mas, se queremos aprender
algo com nossos “objetos”, temos que perceber que eles são
também “sujeitos” e procurar compreender o seu “ponto de
vista” (VILHENA, 1997).

Se “o objeto histórico é sempre resultado de uma elabo-


ração” (FERREIRA, 2006, p. xi) trabalharemos na direção de
construí-lo considerando o campo de possibilidades existentes
entre a história e a antropologia. Sabemos que é complexo par-
tir de casos específicos da memória observada no trabalho de
campo antropológico que pontuam trajetórias e da relação com
sociedades que já estão no mundo da escrita, mas a oralidade
continua sendo a forma principal de transmissão dos conheci-
mentos. Nesse contexto interessa-nos em especial a relação com
narrativas orais que podem referir-se tanto ao passado, quanto
ao presente e servir de base para a construção do futuro.
Na história do presente, assim como na antropologia, o
ANANDA MACHADO

pesquisador é contemporâneo ao objeto que trabalha: os atores


da história, compartilhando com eles categorias e referências
comuns. Dessa forma há proximidade entre os sujeitos da histó-
ria, o pesquisador e, sobretudo, há perspectiva de emancipação,
recuperação de memória e reafirmação de identidades. “[...] a

93
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

história oral tem uma função propriamente política de purgação


da memória” (FRANÇOIS in FERREIRA, 2006, p.12).
Dessa forma as técnicas, metodologias e reflexões teóricas
do campo da história oral nos ajudaram na análise dos movi-
mentos sociais indígenas e indigenistas no que tangenciam a
história Wapichana, uma vez que houve possibilidade de reto-
mar versões até então excluídas, gerar documentos de forma que
a memória possa nortear nossas reflexões históricas. Percebe-
mos que cada vez mais a antropologia e a história se aproximam.
Alguns trabalhos em especial conseguem transitar entre esses
dois campos de conhecimento. Tais como os de Pacheco de Oli-
veira, Carneiro da Cunha, Farage, dentre outros.
Nossas fontes são, portanto, oriundas dos estudos da his-
tória oral, da leitura cuidadosa dos documentos missionários, da
documentação que evidencia as trocas entre comunidades, da
etnografia, de documentos das lideranças indígenas na luta pelo
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA
COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

direito ao uso da língua e da cultura Wapichana.


Na dimensão político-cultural pensaremos sobre multi-
culturalismo e olharemos para as identidades como processos
de construção, criação e, ao mesmo tempo, imposição, tanto
prática, como simbólica. Assim a análise dos conflitos e das per-
cepções divergentes nos pareceu fundamental na pesquisa his-
tórica.
Na busca de definir o arsenal teórico e metodológico da
pesquisa lembramos que a etno-história estuda sociedades ágra-
fas (sem escrita alfabética) desde os tempos dos primeiros con-
tatos com o colonizador, utilizando tanto os documentos escri-
tos, como a tradição oral. E as técnicas requeridas são diferentes
daquelas para se estudar sociedades com documentação abun-
dante de seu próprio passado. Os etno-historiadores articulam
disciplinas diferentes e trabalham a história de modo integrado.
Porém a memória e a história, cada uma com suas peculiarida-
des, não podem ser confundidas e nem, tampouco há uma linea-
ridade de produção da história como registro do passado.
O desafio do etno-historiador é combinar um estudo res-
peitoso das visões indígenas tradicionais da história e da
causalidade, com aquilo que nós consideramos como in-

94
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

vestigações etno-históricas e históricas mais convencionais.


O estudo das tradições orais pode desempenhar um papel
importante, servindo como ponte entre o espaço existente
entre as duas abordagens (TRIGGER, 1982, p. 10).

Le Goff (1994) considera o conceito de memória é de funda-


mental importância, por isso ele surge nas ciências humanas (na
história, na antropologia e na sociologia), enfatizando a memória
social e coletiva em detrimento da memória individual. “A memó-
ria, como propriedade de conservar certas informações, remete-
-nos em primeiro lugar certas funções específicas, graças às quais
o homem pode atualizar impressões ou informações passadas, ou
que ele representa como passadas” (LE GOFF, 1994, p. 423).
O autor acima (1996) explica que as sociedades com me-
mória social oral, ou que estão em vias de constituir sua memó-
ria coletiva escrita permitem compreender a luta pelo domínio
da memória, e faz parte das forças sociais pelo poder tornar-se
senhores da memória e do esquecimento é preocupação das
classes, dos grupos, dos indivíduos que lideraram e dominam as
sociedades. Assim os silêncios são reveladores dos mecanismos
de manipulação da memória coletiva (LE GOFF, 2003).
Muitos argumentam que os povos indígenas devem escre-
ver sua própria história como uma forma de controlar o seu pró-
prio destino. No entanto, mesmo com muitos indígenas gradua-
dos, mestres e doutores, ainda há antropólogos, historiadores,
etno-historiadores, etnólogos e linguistas dispostos e prepara-
dos para cooperar com os indígenas, dentro da perspectiva des-
ses grupos, registrando sua história, sobretudo se tal colabora-
ção for por eles solicitada.
A interdisciplinaridade, respeitadas as especificidades de
cada área de conhecimento, pode contribuir na direção de arti-
cular memória, antropologia e história, conhecimentos indíge-
nas e textos escritos por indigenistas, viajantes e missionários,
ANANDA MACHADO

textos em línguas indígenas e em português, dentre tantas ou-


tras combinações relações interessantes entre as disciplinas.
A história oral trabalha questões teórico metodológicas
que ao incluir o desafio da tradução cultural e linguística no pro-
cesso de coleta de narrativas, cria novos paradigmas. Há tensão

95
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

entre o uso do português e das línguas indígenas, das políticas


de línguas, das formas de interferência no destino do povo, e
percebe-se como é importante produzir textos históricos inclu-
sive na língua Wapichana.
A memória é constituída a partir do presente e tem como
função principal manter a coesão do grupo, identificando-o
como uma “comunidade de memória”, produzida, criada, como
mostra suas narrativas. Cada pessoa, especialmente as mais ve-
lhas, requer para si o papel de guardiã da memória e o passado
comum é recriado como estratégia de luta. Uma forma de co-
nhecer essa diversidade e esse jogo de poderes é ouvir os mais
velhos, mas estes nas comunidades indígenas vêm enfrentando
problemas em encontrar interlocutores interessados e atentos.
Quando trabalhamos as biografias de alguns Wapichana
percebemos que os netos e algumas vezes até os filhos desconhe-
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA

cem a história de vida dos avós e dos pais. Todos os entrevistados


COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

ficaram felizes em compartilhar seus conhecimentos. Por eles


eu teria voltado muitas vezes para entrevista-los novamente.
No caso dos que daqui já se foram lamento não ter comparecido
mais vezes para ouvi-los.
Em relação às línguas e povos indígenas Aruak em Rorai-
ma, há pouquíssimas pesquisas realizadas e nosso enfoque foi a
sócio história desses povos. Até o momento dos pesquisadores
que escreveram sobre os povos Aruak em Roraima conhecemos
a tese de Farage (1997) que estudou as práticas retóricas entre
os Wapichana e conseguiu explanar sobre as classificações das
plantas, dos narradores e dos pajés. A dissertação de Carneiro
(2007), escrita dez anos depois da tese de Farage, sobre a topo-
nímia da Região Serra da Lua (Wapichana), que mostra como o
estudo da taxonomia contribui no conhecimento da língua, da
cultura e da possibilidade de reflexão a partir desse aspecto acer-
ca da forma de pensar do povo Wapichana da região.
Carneiro retoma o diálogo com alguns dos narradores
Wapichana que foram entrevistados por Farage e por nós tam-
bém. Manoel Gomes dos Santos (2006) que escreveu como tese
de doutorado uma gramática da língua Wapixana. Cirino (2008)
que trabalhou sobre o processo de evangelização entre os Wapi-

96
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

chana e Machado (2016) que escreveu aspectos de uma história


social da língua Wapichana a partir de histórias de vida.
Como metodologia buscamos conhecimentos através da
observação etnográfica, do trabalho de campo, do fichamento bi-
bliográfico, do trabalho com documentos e fontes primárias3 e se-
cundárias existentes na Diocese de Roraima, no Museu do Índio,
Arquivo do Mosteiro de São Bento, Biblioteca Nacional, Arquivo
Nacional e Museu Nacional. Na continuidade da pesquisa preten-

3 Sobre os Wapichana encontramos: Documentação da Comissão Ron-


don, Política indigenista do SPI, vocabulários de línguas indígenas.
Comissão Rondon1875-1953. Museu do Índio. Relatórios pesquisado-
res SEDOC- Museu do Índio, 1950-1994. Documentos avulsos, Arquivo
do Mosteiro de São Bento, sobre a força de trabalho indígena, 1623 a
1960. 3 000 Fotos apoiando artigos sobre idiomas, costumes e crença
dos índios do Rio Branco, 1890- 1950- D. Eggerath. Arquivo do Mos-
teiro de São Bento. E ainda pretendemos encontrar: documento sobre
a conquista do Rio Branco, comércio indígena com holandeses, rela-
tos de Lobo D’Almada (1493-1887) no Arquivo Histórico do Itamaraty
(documentação copiada no arquivo público do Amazonas). Arquivo
iconográfico (Serviço de Documentação Geral da Marinha-32), com
fotos de mulheres e crianças Wapichana, 1873-1981. Coleção José Car-
los Rodrigues, Biblioteca Nacional, 1790 a 1909, cartas etnográficas.
Coleção Lagomaggiore, manuscritos da Biblioteca Nacional 1846 a
1878. Relatórios sobre medição de terras do engenheiro Silva Couti-
nho acerca dos povos no alto Rio Branco como resultado de expedição
realizada em 1869, no Guia de Fundos do arquivo Nacional, Vol. I 1991
(relação dos documentos identificados do Ministério da agricultura,
SPE-005. Balanço das populações indígenas em áreas de fronteira com
estimativas demográficas para os anos de 1927-28, no Guia de fundos
do Arquivo Nacional, Vol. I 1991, Fichário Kardex SPO. Descrição do
Rio Branco por Lobo D’Almada, com estatística dos índios aldeados
em 1787 na área e estudos sobre índios dos sertões do Norte do Brasil
feito pela Comissão Holandesa (1641), no Guia de fundos do Arquivo
Nacional, Vol. I 1991, relação de códices. A lei que cria a missão de São
Joaquim no Rio Branco em 1839, no Guia de Fundos do Arquivo Nacio-
ANANDA MACHADO

nal, Vol. II 1991, fichário Kardex, SPO 122, G.8 a 10). Relatório do mis-
sionário Gregório Bene sobre conflitos com negociantes e soldados do
Forte São Joaquim pelo controle da força de trabalho indígena, no Guia
de fundos do arquivo Nacional, Vol. II 1991, relação de documentos em
caixas. Fotos de Wapixanas nos Anais da biblioteca nacional, Vol. 109.
Anotações de D. Atanásio Aguiar à tradução de Koch- Grunberg “entre
os índios do Rio Branco”, no Arquivo do IHGB, RIHGB, T. 48, 1885.

97
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

demos visitar o Conselho Indígena de Roraima (CIR), no Arquivo


Histórico do Itamaraty, Arquivo Público do Amazonas, Arquivo
Iconográfico do Serviço de Documentação Geral da Marinha e o
Centro de Documentação da Consolata (Cauamé- Boa Vista).
Em relação às pesquisas nos arquivos, trataremos os docu-
mentos do modo como parafraseamos Chartier: “pelas escolhas
que faz e pelas relações que estabelece, o historiador atribui um
sentido inédito às palavras que arranca do silêncio dos arqui-
vos” (2000, p.9). Com a vantagem de estar há 9 anos realizando
trabalhos de campo (antropologia), portanto a relação passado-
presente enriquece e potencializa as possibilidades de interpre-
tação e uso dos documentos.
Como já explicitamos, a pesquisa foi realizada tanto no
campo da memória, como da história, antropologia, etno-lin-
guística e ambos foram bem documentados, com a intenção de
contribuir para esclarecer sobre os diferentes contextos, perío-
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA
COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

dos vividos e de uso da língua indígena pelas populações Wapi-


chana em Roraima.
Para trabalhar a história recente recuperaremos informa-
ções sobre o passado com entrevistas gravadas que reconstituam
algumas trajetórias de vida. Como exige a metodologia da histó-
ria oral, as entrevistas foram preparadas e desenvolvidas após re-
visão exaustiva do objeto de estudo em fontes primárias e secun-
dárias para construção de base de conhecimentos firme sobre o
tema. As versões gravadas são novos documentos, que poderão
ser incorporados ao conjunto de fontes para outras pesquisas,
objetos de análises. Pretendemos deixar cópias, com a devida
autorização, para as organizações, Museu do Índio (PRODO-
CLIN), Projeto Brasis e suas Memórias (apenas das biografias
Wapichana incluídas no projeto) e Centro de documentação do
Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena (UFRR).
Como “a história oral não constitui um fim em si mesma”,
e não é apenas porque temos pessoas interessadas em falar do
passado que iniciaremos uma pesquisa de histórica oral (AL-
BERTI, 2005, p. 29), selecionaremos de forma criteriosa4 os

4 A escolha se deu por pessoas consideradas mais representativas e com depoi-


mentos essenciais para o desenvolvimento das entrevistas. Os mais idosos

98
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Wapichana que entrevistamos para redigir as biografias e


reconstituir parte da história social Wapichana.
A relação da história oral com arquivos e demais ins-
tituições de consulta a documentos é, portanto, bidi-
recional: enquanto se obtém, das fontes já existentes,
material para a pesquisa e realização de entrevistas, es-
tas últimas tornar-se-ão novos documentos, enrique-
cendo e, muitas vezes, explicando aqueles aos quais se
recorreu de início (ALBERTI, 2005, p. 81).

Além da história oral, nos inspiramos também nas


metodologias e referencial teórico da micro-história. Nessa
área Giovanni Levi e Jacques Revel são referências. Eles re-
fletem sobre “[...] o que é importante e o que não o é quando
se escreve uma biografia, ou seja, sobre as condições e os
contextos nos quais tal história toma corpo e sentido” (RE-
VEL in LEVI, 2000, p.23). Assim foi possível reconstruir uma
série de histórias de vida inscritas no espaço de uma comu-
nidade e região e representamos uma amostra circunscrita
no que ela conseguiu nos ensinar de generalizável.
Os trabalhos de micro-história possuem dimensão
experimental, aceitam recortes diferentes, construções al-
ternativas e “[...] criação de condições de observação que
farão aparecer formas, organizações, objetos inéditos” (RE-
VEL in LEVI, 2000, p. 20). Assim percebemos condições e
contextos, enquanto as histórias que construímos tomaram
corpo e sentido.
É interessante refletir sobre os acontecimentos, buscando
entender como cada parte da vida permanece na memória. “O
modo no qual esse feito foi elaborado, transformado, interpre-
tado na larga duração da memória [...]” (PORTELLI, s/d, p. 5).
Como Alessandro Portelli sugere, precisamos ir além do que a
materialidade visível do acontecimento evidencia. Portanto, é
necessário atravessar os fatos históricos para descobrir seus sig-
nificados. Com nossa análise, observamos os aspectos simbóli-
ANANDA MACHADO

cos, alguns processos articulados e subterrâneos.

foram e continuarão sendo privilegiados. A facilidade de acesso também foi


considerada na hora de estabelecer a ordem dos entrevistados, até porque a
partir da relação estabelecida, houve mediação com novos contatos (ALBER-
TI, 2005).

99
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Após sistematizar os dados levantados para cada biografia,


fizemos um roteiro geral, com atenção à cronologia e relevân-
cia aos dados organizados com visão abrangente e aprofundada,
apontando o que buscávamos saber com as entrevistas, permi-
tindo identificar recorrências, divergências e concordâncias nas
diferentes versões. Com base no roteiro geral trabalhamos as en-
trevistas individuais, material que serviu também como instru-
mento de análise e avaliação dos resultados da pesquisa.
Coletamos, e pretendemos continuar nesse movimento,
narrativas pelos Wapichana sobre a chegada dos primeiros não
indígenas e das relações com outros povos na Região Serra da
Lua. Privilegiamos a coleta de narrativas na língua Wapichana,
evidenciamos em nosso texto biográfico como os narradores fo-
ram mobilizados e como as narrativas históricas circulam.
Constatamos que a retomada de valores que as línguas in-
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA

dígenas nomeiam e que estão guardados na memória do povo


COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

continuam fortemente presentes dentro das narrativas orais nas


comunidades indígenas. Nessa perspectiva comprovamos que
os estudos com base nas técnicas, nas metodologias e teorias da
história oral, da etno-história, da antropologia, da etno-linguís-
tica, da memória e da micro-história, são viáveis.
A pesquisa com os povos indígenas implicou desafio adi-
cional que foi o de estudar culturas diferentes. Assim a pesqui-
sa necessitou não apenas das habilidades de um bom historia-
dor convencional, mas também de profundos conhecimentos
de etnologia, documentação cultural e linguística, para ser
capaz de avaliar fontes e interpretá-las com uma compreen-
são razoável das percepções e motivações dos povos indígenas
envolvidos.
Empregamos uma variação de métodos ampla para ex-
plicar acontecimentos históricos particulares e os processos de
mudança cultural que transformaram a cultura, a língua e a vida
Wapichana. A apresentação dos dados se deu na forma de ma-
pas, gráficos e análises detalhadas na tentativa de pontuar his-
toricamente os aspectos importantes às discussões qualitativas.
Pretende-se que no corpo das biografias seja possível continuar
incluindo parte das transcrições na língua Wapichana, com a

100
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ajuda dos pesquisadores que pretendemos agregar com a pes-


quisa, e traduções na língua portuguesa.
Na medida do possível, as entrevistas filmadas serão edita-
das e legendadas para que possam no futuro ser usadas pelos in-
dígenas no ensino de história, sociologia, antropologia, de suas
línguas e culturas. Assim, nas biografias publicadas, apresenta-
mos os entrevistados, com fotos e seus textos devidamente ana-
lisados. Conseguimos também editar alguns vídeos, mas esses
ainda não estão na internet.

RESULTADOS DO ENCONTRO ENTRE


ANTROPOLOGIA, HISTÓRIA E BIOGRAFIAS DE
INDÍGENAS WAPICHANA

Constatamos que desde os anos 1912 há resistência e tentati-


vas de afirmação de identidade étnica em conflito com a imposi-
ção estatal e religiosa no território indígena Wapichana. Inclusive
um dos objetivos iniciais da pesquisa foi atingido, pois consegui-
mos identificar na sociedade Wapichana os momentos de avanço
e de retração do uso da língua e da cultura Wapichana. Assim, o
processo de mudanças no uso da cultura e da língua Wapichana
foi resultado do impacto da desterritorialização, da escolarização,
da instauração das igrejas, postos de saúde e luz elétrica nas co-
munidades indígenas. E o início do uso da escrita na Região Ser-
ra da Lua foi estratégia de catequização, o que também contribui
para transformações linguísticas e mudanças culturais.
Nas fontes históricas escritas encontramos muito pouco
texto nas línguas indígenas, esse fato em si já foi indício da di-
minuição do uso da língua Wapichana pelo povo no processo
histórico vivido. E quando encontramos textos escritos na língua
Wapichana, grande parte deles era tradução das orações cató-
licas ou evangélicas e da bíblia. Portanto, o acesso à escola foi
pago com transformações radicais, pois eram obrigados a falar
ANANDA MACHADO

português, acreditar e seguir a bíblia. Na atualidade, com os en-


trevistados e no trabalho de campo, percebemos que os Wapi-
chana ainda continuam fortemente vinculados às igrejas.
A partir de algumas histórias de vida que ouvimos na Re-
gião Serra da Lua, consideramos que o uso da língua foi marcan-

101
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

te na construção da identidade e na preservação do território


Wapichana. Esperamos que uma coleção de biografias, uma vez
que concluímos apenas duas, possa comprovar a importância
desse uso. E esses registros poderão ser exemplos esclarecedores
sobre o que entra em jogo numa comunidade e região pelo uso
ou não da língua indígena.
Através de pesquisas preliminares percebemos diferença
no percentual de falantes da língua Wapichana de uma comuni-
dade para outra. Supomos que a distância dos centros urbanos,
a ausência de energia elétrica 24 horas e ter todos os professo-
res falantes de língua Wapichana na escola ajuda a preservar o
uso da língua. No entanto algumas comunidades, mesmo sendo
próximas às cidades, conseguem ter todas as crianças falantes de
língua Wapichana. Com a continuidade da pesquisa identifica-
remos os indicadores que poderão explicar essas questões.
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA

Alguns dos conhecimentos dos mais idosos que ouvimos


COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

ou lemos nas obras de outros autores, evidenciam que muitas


vezes a língua é um veículo indispensável para deslocar-se no
tempo. Bessa Freire (1992), professor que vem ministrando cur-
sos com vários povos indígenas no Brasil aproveitou uma de suas
experiências em Roraima e refletiu com seus alunos sobre a si-
tuação dos que têm dificuldade em se comunicar com os sábios
em língua indígena, juntos estabeleceram uma analogia entre o
conhecimento da língua com o deslocamento no espaço ama-
zônico, que em alguns lugares só pode ser feito com canoa. Um
dos alunos compreendeu com lucidez a importância da língua
na construção da identidade, quando perguntou “quer dizer que
a língua é a canoa do tempo?” Cogitamos que de fato o conhe-
cimento da língua é uma chave para compreensão da história
que reconstituímos, por isso traduzimos as perguntas de nossas
entrevistas, para que elas fossem feitas na língua Wapichana e
deixassem os entrevistados sem a preocupação da tradução.
Talvez entre os fatores diferenciais da intensidade do uso e
da defesa da língua Wapichana em cada período histórico este-
jam a forma da presença missionária e a do Estado na região in-
dígena Serra da Lua. Pelo que estudamos até então percebemos
momentos de avanço e de retração tanto no uso como na defesa

102
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

do mesmo. No dialogo e assessoria do trabalho com os profes-


sores de língua Wapichana da Região Serra da Lua desde 2012,
podemos perceber em que a língua mudou, uma vez que eles
estão usando palavras novas, criando neologismos. Assim bus-
camos compreender também por que a língua mudou. E perce-
be-se que o fato da língua mudar de uma geração a outra, de uma
região geográfica a outras e de uma pessoa para outra, denuncia
que é uma língua extremamente viva.
Na escola, por exemplo, o debate da língua é travado pelo
movimento de professores e lideranças indígenas com intensi-
dade diferente de comunidade para comunidade e em relação
também com cada período histórico. Com a pesquisa, a partir
das biografias, comparamos de que forma diferentes comunida-
des lidam com a língua Wapichana, qual foi o impacto do uso da
língua e até que ponto o povo conseguiu conquistar mais direito
pelo uso da língua. Até porque, durante muito tempo, para ser
considerado indígena e usufruir dos direitos por eles conquista-
dos, a pessoa deveria falar sua língua indígena.
Percebemos que as comunidades de falantes de língua
Wapichana conseguem preservar questões culturais mais do
que as outras nas quais as línguas são pouco faladas, pois têm
relações diferentes com o meio, com o Estado e com as igrejas.
Conseguimos identificar alguns aspectos que fizeram com que
uma comunidade Wapichana usasse mais a língua do que outra.
Alguns dos motivos foram o tempo e a intensidade do contato
com outras culturas. Diante das influências externas, cada co-
munidade identifica ou não a língua e as práticas culturais como
parte fundamental na construção de sua identidade indígena.
No ano de 1932 na comunidade Tabalascada e 1938 na co-
munidade Malacacheta, que tomamos aqui como exemplo, ir-
mãs Beneditinas começaram a catequese e a ensinar a ler e a es-
crever, isso acontecia apenas duas vezes ao ano, durante 15 dias e
ANANDA MACHADO

reuniam indígenas de todas as comunidades da região. Durante


dez anos não tiveram sucesso porque os indígenas eram mo-
nolíngues em língua Wapichana (PEREIRA, 2012).
A vida do biografado Casimiro Manoel Cadete contemplou
o período no qual foi inaugurada a primeira turma de alfabeti-

103
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

zação em língua portuguesa na Região Serra da Lua (1932). Ele


participou da primeira turma de alfabetização e catequese, em
1932, na comunidade Tabalascada. Esse evento foi acontecimen-
to chave na entrada da língua portuguesa e da escrita na região
Serra da Lua.
Pela dificuldade no acesso, as irmãs não trabalharam nas
comunidades Alto Arraia, Jacamim, Manoá, Marupá, Moscou,
Pium e Wapun, coincidentemente as que têm maiores índices de
falantes da língua Wapichana atualmente na região. No ano de
1945 foi fundada por Casemiro Cadete, na comunidade Canaua-
nin, a primeira escola na região. Nos anos 1950 a congregação da
Consolata passou a apenas realizar cultos na região, suspenden-
do outras atividades. Foi quando as famílias reivindicaram uma
escola na comunidade Malacacheta que até hoje funciona como
Centro de Formação Wapichana.
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA

Já para reconstituir a história de vida do indígena Alfredo


COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

de Souza, observamos principalmente sua contribuição pela


transmissão e resistência do uso da língua Wapichana em Ro-
raima. Ele não foi alfabetizado e não frequentou a escola. A
trajetória de Alfredo comparada à de Casimiro nos mostraram
a abundância de possibilidades de relação com a sociedade
envolvente e com sua própria cultura. Alfredo incluiu muitas
vezes em suas falas o fato de não escrever e de não saber nada,
por isso, reforçamos, em nosso dialogo com ele, o valor dos co-
nhecimentos que ele adquiriu e conseguiu ensinar para seus fi-
lhos e netos. Observamos que muitas famílias que conseguem
continuar a transmissão desses conhecimentos mantêm uma
vida mais voltada para o interior da comunidade, ao contrário
de outras, como a de Casimiro Cadete que assumiu papel de
liderança e passou muito tempo viajando e participando de re-
uniões fora.
“Eu só sei os trabalhos, a pessoa fazendo roça, derru-
bando, brocando, tudo plantando mandioca, plantando tudo,
qualquer coisa de planta, taioba ou melancia, abóbora e tudo.
Aí eu aprendi só sobre plantação, eu não sei escrever” (entre-
vista com Alfredo de Souza em 18 de julho de 2014). Alfredo
viajou entre o Brasil, a República Cooperativa da Guiana, tra-

104
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

balhou na roça, com balata, no garimpo e viveu em outras co-


munidades indígenas e regiões. Quando demonstramos inte-
resse sobre as particularidades dos contextos Wapichana entre
os dois países, Brasil e República Cooperativa da Guiana, Al-
fredo fez uma comparação mencionando as diferenças entre o
uso da língua Wapichana de um lado e do outro da fronteira.
Alfredo de Souza nasceu em 1916, de pais Atoraiu (língua da
família Aruak), mas não conheceu o pai, sua mãe casou com
outro e abandonou os filhos. Na época ele ficou com o padri-
nho na Guiana Inglesa e lembra de ter sofrido bastante até ser
adotado e vir para o Brasil.
O biografado Casimiro Cadete foi um kuadpayzu, isto
é, um historiador, que contou sobre sua experiência. “Kua-
dpayzu é historiador né, o homem que conta história, é his-
toriador” (Entrevista da autora com Casimiro em 26 de maio
de 2013 apud MACHADO, 2016, p. 88). Percebemos como é
relevante o papel social de resistência que os kuadpayzu de-
sempenham no processo de transmissão e manutenção das
narrativas Wapichana.
A partir da leitura da tese de Nádia Farage e das entre-
vistas com Casimiro, aprendemos que os Wapichana têm uma
classificação para cada tipo de memória: a memória daquilo
que realmente viveram e a memória do que ouviram contar.
Chamam seus historiadores de kuadpayzu, o que aponta para
uma das concepções interessantes que esse povo tem de his-
tória. Têm categorias diferentes para as falas dos kuadpayzu,
quando contam das suas experiências; ou quando as narrati-
vas são kutuanhau dau’au, isto é, acerca do que ouviram de
outras gerações. “Kutuanhau dau’au quer dizer que nós con-
versamos do passado, da história do passado, daqueles que
não existem mais, só a história”, esclareceu Casimiro na mes-
ma entrevista.
ANANDA MACHADO

Segundo Nádia Farage, o aspecto interessante do gê-


nero narrativo kotuanhau dau‘au é o “efeito de incerteza” que
fica aparente em textos como “tentarei contar”, ou “parece”, ou
“quem sabe”? Desse modo, nesse mundo feito de linguagem, “se
inaugura convencionalmente com formas temporais como ko-

105
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

tua’naa5, ou kotu’a- faz tempo, antigamente- que situam o regi-


me narrativo” (FARAGE, 1997, p. 197).
Ouvimos de Casimiro Cadete narrativas históricas que nos
fizeram enfrentar dificuldades, percebendo as impossibilidades
de tradução cultural, linguística e vivenciamos uma das dinâmicas
de aquisição e transmissão do conhecimento na construção das
experiências culturais Wapichana. Assim, a partir das gravações e
filmagens, tivemos a possibilidade de construir novos textos.
A história é então um dos espaços privilegiados de de-
senvolvimento desses processos de construção de identidades
(FERREIRA, 2010). Portanto incentivar a pesquisa científica e
histórica da língua Wapichana de forma a engajar toda a comu-
nidade, pode contribuir na busca de condições necessárias ao
registro da memória dos povos que a falam, mesmo que esses
vivam socialmente inclusos em sociedades com número maior
de pessoas que falam a língua portuguesa.
AS RELAÇÕES ENTRE HISTÓRIAS E ANTROPOLOGIA A PARTIR DA EXPERIÊNCIA
COM BIOGRAFIAS DE INDÍGENAS WAPICHANA DA REGIÃO SERRA DA LUA-RR

Mais do que o legado deixado pelos antigos, segundo Ná-


dia Farage (2002, p. 514), é importante o que hoje é dito sobre o
passado pelos Wapichana. Portanto, “a condição da narrativa é,
no presente, a recriação constante, infinita do passado”. Assim,
escrever as biografias documentar as falas dos kuadpayzu para
serem futuramente analisadas na construção verbal tem sido
enriquecedor para algumas disciplinas: história, antropologia,
etno-linguística, dentre outras. E ao mesmo tempo que para a
pesquisadora e para as comunidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS E PERSPECTIVAS DE


FUTUROS ESTUDOS

Enfim, percebe-se claramente as influências da igreja, das


fazendas e da escola no processo de diminuição do uso da língua
Wapichana e na modificação das formas de transmissão de co-
nhecimentos. Pretendemos continuar e aprofundar esse estudo.

5 Na citação mantemos a forma de escrever da autora, ela segue o padrão usado


na República Cooperativa da Guiana pelos Wapichana que lá vivem. Optamos
por escrever aqui, fora das citações, usando a variação escrita da língua Wapi-
chana que os professores dessa língua na Regão Serra da Lua estão construindo
na atualidade.

106
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Outro passo da pesquisa previsto é a realização de estudo


sociolinguístico6, atualizaremos dados com a intenção de ma-
pear os falantes de língua Wapichana em Roraima. Criamos um
questionário sociolinguístico que será aplicado ora nesse forma-
to, ora como entrevistas para explicitar as histórias de vida dos
falantes da língua Wapichana. Os professores de língua Wapi-
chana participarão desse processo coordenando em suas comu-
nidades a aplicação dos questionários.
No decorrer da continuidade da pesquisa, se for necessá-
rio visitaremos outras regiões como Murupu, Taiano, Amajari
ou outra. Mesmo que o trabalho de campo venha sendo realiza-
do e pretenda continuar principalmente na Região Serra da Lua,
partindo das comunidades que têm moradores mais antigos e
privilegiando os lugares com indígenas Atoraiu e Pauixana, já
que estes são minoria entre os Wapichana.
Sabemos que há comunidades Wapichana em outras re-
giões, mas direcionaremos nosso olhar para o lugar que é tido
como território destes povos e temos parceria de trabalho desde
2009 por ter realizado orientações no curso de Licenciatura In-
tercultural (Instituto Insikiran de Formação Superior Indígena
(UFRR) e desenvolvido alguns projetos de extensão em comuni-
dades da Região Serra da Lua.
Está em processo a realização de um censo linguístico e de
mapeamento do número de falantes e da intensidade de uso da
língua Wapichana nas comunidades para compreender por que

6 O questionário sociolinguístico abordará questões de identificação, com dis-


criminação do povo, se é falante da língua Wapichana, Atoraiu ou Macuxi,
comunidade que mora, onde nasceu; deslocamento, perguntando se já morou
na cidade, qual, o que fazia lá, se já morou em outras comunidades indíge-
nas, se conhece comunidades indígenas de outros povos; sobre o estado civil,
quantos filhos tem, se os filhos são falantes da língua indígena, a escolaridade
dos membros da família; atividade profissional, onde fica o local de trabalho,
quais as principais dificuldades que enfrenta no trabalho, se há outra atividade
ANANDA MACHADO

que exerce; escolaridade, se parou de estudar e por quê, se os professores eram


indígenas e de que povo, se falavam a língua indígena e se tiveram dificuldade
na escola por conta do uso da língua Wapichana, em que língua os pais fala-
vam, em que língua fala com seus parentes próximos, se fala língua de origem
com amigos quando está na cidade, se o uso da língua é frequente no dia-a-dia
(escola, igreja, comunidade em geral), se sabe escrever e como vê o ensino da
língua indígena na escola.

107
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

razão alguns grupos usam mais, outros menos e até deixam de


usar e o que está em jogo nesse processo. Estamos desde 2016
também realizando o Inventário das Línguas Macuxi e Wapi-
chana Região Serra da Lua- Instituto do patrimônio Histórico
e Artístico Nacional (IPHAN). Todo esse movimento e esforço
interdisciplinar caminha na direção de construir políticas lin-
guísticas de memória e para o multilinguismo.

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Editora, 2005.
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CIRINO, Carlos Alberto Marinho. A “boa nova” na língua indíge-


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ANANDA MACHADO

109
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS


NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA:
POVO MURA EM CONTEXTO

Jaspe Valle Neto1


Valéria Augusta Cerqueira de Medeiros Weigel2
Jacy Alice Grande da Soledade3
Ronaldo Nogueira de Moraes4

INTRODUÇÃO

O texto traz uma reflexão dos processos históricos da edu-


cação escolar indígena, visando apresentar de forma súmula os
momentos desenvolvidos e marcados por aspectos alienadores,
opressores, de resistência e de luta dos povos indígenas. Nessa

JASPE VALLE NETO, VALÉRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS WEIGEL,


JACY ALICE GRANDE DA SOLEDADE E RONALDO NOGUEIRA DE MORAES
lógica, procuramos tecer um diálogo na tentativa de compreen-
der como se deu esse percurso histórico, identificando o movi-
mento indígena como atuante na conquista da implementação
do projeto de construção da escola própria.
Ademais, o estudo procurou compreender como vem sen-
do estabelecida a relação do povo Mura (aqui nos referimos aos
Mura de Autazes-AM) com os processos escolares, em especial,
destacando sua militância pela consolidação de sua escola, com
ênfase na educação escolar específica e diferenciada, expressan-
do o fortalecimento de sua identidade e cultura.
Foi nesse contexto que pretendemos desenvolver o assunto
proposto, com o intuito de compreender as ocorrências supra-

1 Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de


Educação da Universidade Federal do Amazonas.
2 Doutora em Ciências Sociais (Antropologia). Professora e Orientadora do
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Educação da Universidade Fe-
deral do Amazonas.
3 Doutoranda em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de
Educação da Universidade Federal do Amazonas.
4 Psicólogo pela Universidade Nilton Lins. Especialista em Docência do Ensino
Superior pela Universidade do Norte (UNINORTE).

111
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

mencionadas, vinculando os tópicos abordados na compreensão


dos processos que compõem a educação escolar indígena.

DE ESCOLA PARA ÍNDIOS À ESCOLA DE ÍNDIOS:


POR ENTRE AÇÕES ALIENADORAS E PROCESSOS
EMANCIPATÓRIOS

Após a chegada dos colonizadores no Brasil e de seu conta-


to com os indígenas, a cultura e a identidade desses últimos so-
freram impactos significativos. Isso se deu devido ao processo de
TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO

catequização, escravatura e desculturação dos povos indígenas


em face da apropriação da cultura ocidental, imposta pelos colo-
nizadores. Daí em diante, a luta desses povos pela manutenção
de suas culturas e fortalecimento da identidade tem sido cons-
tante, haja vista de que vivem e convivem em meio à sociedade
envolvente, o que dificulta sua preservação cultural e identitária.
O processo de escolarização, em seu primeiro momento
(período colonial), objetivou o extermínio cultural dos povos
indígenas. Segundo Ferreira (2001), a fase colonial em meados
de 1549, além de ter sido a inicial no processo de educação for-
mal para os indígenas, é também considerada a mais duradoura
da história da educação escolar indígena no Brasil, com apro-
ximadamente quatro séculos de perduração. Nesse contexto, a
catequese monitorada pelos padres jesuítas, nos dois primeiros
séculos de colonização, foi vista como prática que extinguia a
cultura dos povos indígenas, além de prepará-los para o trabalho
empreendedor colonial. Nesse ínterim, o palco da escola torna-
ra-se o espaço dessas ações. D’Angelis (2012, p. 19), conclui que:
A Catequese refere-se às práticas das missões religiosas com
objetivo de conversão da população indígena ao Cristianis-
mo. Esse período corresponde aos dois primeiros séculos
da colonização, em que a escola era tão somente um ins-
trumento da catequese. Essa, por sua vez, com freqüência
garantia o fluxo de mão de obra indígena para o empreendi-
mento colonial [...].

No período de colonização, a educação foi marcada pela


atuação dos jesuítas e dos salesianos que catequizavam os(as)

112
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

indígenas, objetivando a negação das diversidades e das iden-


tidades, no intuito de convertê-los(as) ao cristianismo, bem
como prepará-los(as) para assumirem várias tarefas voltadas
para a mão de obra a serviço dos detentores de poder e obrigá-
-los(as) a aprenderem a língua portuguesa e se desproverem de
sua nativa.
Luciano (2011) chama a atenção que os povos indígenas que
habitavam o Brasil na época colonial já possuíam uma educação
própria, no entanto, foi negligenciada pelos colonizadores. O
autor salienta que:
[...] O modelo de escola trazida e implantada pelos portu-
gueses (com professor, sala de aula, livros, cadernos, car-
teiras, disciplinas, currículos, diretor, horários etc.) é total-
mente estranho às culturas indígenas. Em decorrência dessa
estranheza, os povos indígenas passaram mais de quatro
séculos indiferentes e resistentes à dominação sistemática
da escola, por meio de diversas estratégias (LUCIANO, 2011,

JASPE VALLE NETO, VALÉRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS WEIGEL,


p. 74-75).

JACY ALICE GRANDE DA SOLEDADE E RONALDO NOGUEIRA DE MORAES


Diante disso, o processo de colonização trouxe consequên-
cias irreparáveis aos povos indígenas. Eles foram aos poucos
anulando suas culturas, sendo obrigados(as) a se adequar à civi-
lização da cultura ocidental. Silva (1998) aborda que a fase colo-
nial (1549-1777) refere-se à:
[...] negação da diversidade dos índios ou, em outros termos,
o total aniquilamento das diversas culturas e a incorporação
de mão-de-obra indígena à sociedade nacional. Porém, [...]
a educação missionária, através de fracassos e frustrações,
mostrou logo sua inoperância. O educador constatava que
o índio não aprende e que no profundo do seu ser é intocá-
vel. O que vemos então, desde aquela época, é que formas
propriamente indígenas de resistência à novas situações de
contato foram desenvolvidas (SILVA, 1998, p. 34).

Luciano (2011) ressalta que até a década de 1960 eles não


vivenciavam nem projetavam um modelo de escola alternativo,
onde seu “alicerce” fosse planejado nas estruturas dos próprios
saberes indígenas, com ênfase para a valorização da identidade e
da cultura dessa população.

113
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

No término dos anos de 1970, iniciou o surgimento de or-


ganizações não-governamentais5 que militaram em favor do pro-
gresso de políticas para eles, com isso houve uma acentuada mo-
bilização pelas causas educativas formais indígenas. Em especial,
criou-se um movimento por uma educação escolar específica e
diferenciada das não-indígenas, uma luta pelas causas educativas
próprias, onde ocorreram diversos encontros de professores(as)
nativos, em particular, em nossa região amazônica, com vistas à
elaboração de um projeto de escola própria, à luz dos saberes cul-
turais e fortalecimento da identidade daqueles indivíduos.
TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO

D’Angelis (2012), notifica que as ONGs pró-índios propi-


ciaram a implementação de assembleias indígenas no cenário de
todo o território brasileiro e, no ano de 1974, muitas articulações
foram traçadas, resultando assim, em lideranças mais fortaleci-
das e unidas, pois, anteriormente, ocorria de maneira muito iso-
lada, sem força política. Ferreira (2001, p. 87) considera a força
dessas organizações como fator muito importante para o forta-
lecimento e o progresso das políticas que envolvem esse assunto.
Para a autora:
A atuação das organizações não-governamentais pró-índio e
a respectiva articulação com o movimento indígena fizeram
com que se delineasse uma política indigenista paralela à
oficial, visando a defesa dos territórios indígenas, a assistên-
cia à saúde e a educação escolar. Várias universidades (USP,
UFRJ, UNICAMP, entre outras) passaram a contribuir com
assessorias especializadas. Com a promulgação da Consti-
tuição Federal de 1988, vários direitos fundamentais das
sociedades indígenas foram garantidos. Nesse contexto sur-
giram os chamados projetos alternativos e os encontros de
educação para índios [...].

5 Ferreira (2001, p. 87) destaca as seguintes organizações não-governamentais:


a Comissão Pró-Índio de São Paulo (CPI/SP), o Centro Ecumênico de Do-
cumentação e Informação (CEDI), a Associação Nacional de Apoio ao Índio
(ANAÍ) e o Centro de Trabalho Indigenista (CTI). Além dessas ONG’S, setores
progressistas da Igreja Católica também passaram a apoiar as lutas indígenas,
dentre eles destacam-se a Operação Anchieta (OPAN), no ano de 1969 e o
Conselho Indigenista Missionário (CIMI), no ano de 1972. Essas duas últimas
focavam suas atuações na defesa dos direitos humanos e das minorias étnicas,
portanto, suas ações voltaram-se para a prestação de serviços no desenvolvi-
mento da educação escolar indígena.

114
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Uma organização que merece destaque neste estudo, re-


fere-se à Operação Anchieta (OPAN), atualmente, denominada
Operação Amazônia Nativa. Essa instância realizou vários en-
contros desde o ano de 1982, com o intuito de discutir e tecer
diretrizes para subsidiar melhorias quanto ao processo de esco-
larização nas áreas indígenas. Os indigenistas que participaram
desses eventos objetivavam a promoção de intercâmbios onde
experiências são trocadas tendo em vista a elaboração de novas
propostas que contribuam para a educação escolar daqueles in-
divíduos.
No III Encontro organizado pela OPAN, a temática cen-
tral abordada foi: “A educação indígena dentro da problemática
mais central do contato”. Nesse encontro, ficou definido o que a
OPAN compreende por escola alternativa e por escola própria.
Essa compreensão ficou relatada no documento descrito em seu
relatório, como se confere:

JASPE VALLE NETO, VALÉRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS WEIGEL,


Uma escola que assume os interesses indígenas em seu pro-

JACY ALICE GRANDE DA SOLEDADE E RONALDO NOGUEIRA DE MORAES


cesso de autodeterminação [...] Uma escola alternativa deve
ser autogerida, contar com a participação real dos educan-
dos, da comunidade e dos agentes educacionais em sua dire-
ção. Ela deve ser eficiente no seu comprometimento com as
causas da comunidade. Nesse sentido, deve ter como ponto
de partida a cultura tradicional do grupo e suas questões
atuais, principalmente as mais urgentes, como a luta pela
garantia de seu território [...] Essa escola tem como objeti-
vo dar aos índios as condições para eles adquirirem uma vi-
são crítica de sua participação frente à sociedade nacional e
para isso ela deve articular-se com outras organizações dos
trabalhadores da cidade e do campo que também lutam por
sua libertação. Além de servir como instrumento no contato
com a sociedade envolvente, essa escola deve ser um espaço
de valorização e desenvolvimento da cultura indígena (FER-
REIRA, 2001, p. 89).

O surgimento de ONGs em parceria com os trabalhos in-


dígenas demarcou um momento em que o movimento se fez
presente de forma mais organizada e apoiado por grupos sen-
sibilizados e focados pelas causas indígenas, em especial, pelas
causas educacionais. Ferreira (2001) argumenta que esse mo-
mento não somente marcou esse movimento pró-índio, como

115
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

também conseguiu alcançar alguns avanços significativos, como


as conquistas legais a nível nacional.
Além dos eventos promovidos pela OPAN, chamamos a
atenção para os encontros de professores(as) indígenas, reali-
zados desde o ano de 1988, nos Estados do Amazonas, Acre e
Roraima. Esses são observados por Ferreira (2001) como sendo
“[...] a maior articulação de professores indígenas do país” (p.
105). Por intermediação desses eventos “[...] foram fundadas or-
ganizações locais, como a OPISAM (Organização de Professores
Indígenas Sateré-Mawé) e a OPIR (Organização dos Professores
TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO

Indígenas de Roraima). Vários eventos regionais foram promo-


vidos a partir da realização desses encontros” (Idem, p. 105). No
parecer de Silva (1991 apud FERREIRA, 2001), esse movimento
“[...] tem produzido efeitos diretos e indiretos sobre uma popu-
lação escolar de grandes proporções6” (p. 105).
É importante a observação de que, desde de 1991, os(as)
professores(as) Mura de Autazes/Am passaram a frequentar
anualmente esses encontros da Comissão dos Professores Indí-
genas do Amazonas, Roraima e Acre (COPIAR). Uma outra ob-
servação importante no contexto deste estudo é que a Organiza-
ção dos Professores Indígenas Mura (OPIM) foi criada
Com o desdobramento de todo esse processo de mobilização
indígena, em 09 de outubro de 1992, um grupo de profes-
sores Mura da região de Autazes reuniu-se na comunidade
do lago do Iguapenú, juntamente com professores indígenas
Sateré-Mawé e Munduruku dos municípios de Borba e Nova
Olinda do Norte e criaram a Organização dos Professores
Indígenas Mura (OPIM). Definiram como finalidade: lutar
pelos direitos dos professores indígenas e da comunida-
de Mura, denunciando qualquer irregularidade no âmbito
educacional e atuar na construção de uma educação escolar

6 Silva (1991 apud FERREIRA, 2001, p. 105) relata que essa população foi estima-
da naquele momento em 727 professores e 16.269 alunos das regiões do Alto
Rio Negro (Baniwa, Tukano, Piratapuia, Tuyuka, Dessano e Baré); Alto Soli-
mões (Tikuna, Kokama e Marubo); Médio Solimões e Alto Amazonas (Cambe-
ba, Mayoruna, Kokama, Tikuna, Miranha e Mura); Baixo Amazonas e Madeira
(Sateré-Mawé e Munduruku) e Roraima (Macuxi, Wapixana, Taurepang, Ya-
nomami e Waimiri-Atroari). Os professores, totalizando 97, responsáveis por
2.161 alunos, participaram dos Encontros.

116
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

específica, que viesse subsidiar o desenvolvimento de sua


própria cultura, primando pela qualidade social (SANTOS,
2008, p. 82-83).

Diante do exposto, é possível perceber que o movimento


indígena em todo o território brasileiro, em particular, do povo
Mura, tem se dedicado às reivindicações que propõe o processo
da educação escolar como determinante de suas estratégias de
ação para educar as sociedades indígenas tanto nos aspectos de
manutenção de suas culturas e línguas, como também, perce-
bem a educação formal como elo para outras reivindicações que
possam contribuir para a autonomia desses indivíduos, que são
vistos como um povo que tem seus modos próprios de vida so-
cial, no entanto, ainda desrespeitados pela sociedade envolven-
te. Para Silva (1998) esses encontros, além de terem possibilitado
o fortalecimento do movimento, concomitantemente

JASPE VALLE NETO, VALÉRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS WEIGEL,


[...] representaram momentos decisivos, onde as articula-

JACY ALICE GRANDE DA SOLEDADE E RONALDO NOGUEIRA DE MORAES


ções culturais e políticas tornaram-se possíveis, e as trocas
de experiências e conhecimentos fizeram surgir uma nova
concepção de educação escolar indígena, que respeita os
conhecimentos, as tradições e os costumes de cada povo,
valorizando e fortalecendo a identidade étnica, ao mesmo
tempo que procura passar conhecimentos necessários para
uma melhor relação com a sociedade não-índia (p. 65).

Para os(as) professores(as) Mura os encontros e movimen-


tos são importantíssimos, pois possibilitaram uma maior ascen-
são quanto às questões da educação escolar Mura.
Incentivado pelas lideranças, nós, professores Mura, a partir
do ano de 1991, passamos a participar dos encontros reali-
zados pela Comissão dos Professores Indígenas do Amazo-
nas, Acre e Roraima (COPIAR), atualmente Conselho dos
Professores Indígenas da Amazônia Brasileira (COPIAM),
participando das discussões e levantando expectativas de
mudanças na educação escolar nas terras indígenas Mura,
com o objetivo de construir uma educação escolar indígena
diferenciada, específica, intercultural, bilíngüe e de qualida-
de que atendesse aos anseios e interesses de nosso povo [...]
(OPIM, 2003, p. 11 apud MORAES, et. al., 2009, p. 88).

117
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Desde então, o povo Mura vem se dedicando a consoli-


dação de sua escola específica e diferenciada. Nesse viés várias
conquistas já foram alcançadas, tais como: a) a criação da Orga-
nização dos Professores Indígenas Mura (OPIM), que tem como
objetivo a tomada de decisões sobre os processos escolares e a
formação continuada de seus professores(as), além de defende-
rem causas específicas dos Mura; b) a criação do Setor Indígena
Mura dentro da Secretaria Municipal de Educação em Autazes-
-AM, para articular os processos educativos formais aos anseios
e interesses próprios desse povo; c) a formação de seus professo-
TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO

res(as) no magistério indígena Mura, visando aperfeiçoamento


e especialização para atuação na escola própria; d) a organização
da gestão escolar, participativa e democrática, com gestor(a),
professores(as) e equipe técnica exclusivamente Mura; e) a ela-
boração e implementação do Projeto Político-Pedagógico Mura,
visando atender e articular os modos de vida do povo aos con-
teúdos e programas escolares; f) o curso de licenciatura específi-
ca Mura, atendendo às reivindicações da formação em nível su-
perior dos(as) professores(as) Mura, que visam constantemente
a formação continuada e, consequentemente, a obtenção de um
espaço igualitário como pessoas ativas que participam dos pa-
péis no exercício da cidadania.
Luciano (2011) considera que foi com a promulgação da
Constituição Federal de 1988 que a revolução indigenista na área
da educação formal se fortaleceu politicamente. Ele assim afirma:
Em termos conceituais e políticos foi a Constituição Fede-
ral de 1988 que revolucionou o rumo da política indigenista
oficial e, junto, a educação escolar indígena. Resultado de
longo processo histórico de mobilizações sociais e políticas
de setores da sociedade civil brasileira, principalmente dos
povos indígenas e das suas organizações, as concepções de
cidadania indígena e de educação encontraram amparo na
legislação do país. A Constituição Federal de 1988 superou a
concepção equivocada da incapacidade indígena que funda-
mentou o princípio jurídico da tutela, por meio do qual, era
concedido ao Estado o poder e a responsabilidade de decidir
e responder pela vida e pelo destino dos povos indígenas do
país, visão esta que imperou por quase 500 anos (p. 75-76).

118
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Este mesmo autor ainda complementa argumentando que:


[...] A referida Constituição é explícita quanto à garantia dos
direitos indígenas ao reconhecer suas culturas, tradições,
línguas, organizações sociais, crenças, enfim, o direito de
continuarem vivendo segundo suas culturas e suas livres es-
colhas, sendo-lhes garantido, inclusive o direito de ingressar
em juízo na defesa deles, superando a idéia de incapacidade
civil e política destes indivíduos e coletividades ( p. 76).

Com a organização do movimento indígena fortalecida, os


professores nativos iniciaram um processo de mobilização que
visava a articulação desses docentes na elaboração de novas di-
retrizes e políticas que tratassem do assunto da educação escolar
em conformidade com seus interesses.
A Constituição Federativa do Brasil, promulgada em ou-
tubro de 1988 assegura para os povos indígenas, em especial, no
capítulo “Dos Índios”, conquistas significativas para essas socie-
dades. Em seu artigo 231, a Lei Magna reconheceu “[...] sua or-

JASPE VALLE NETO, VALÉRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS WEIGEL,


JACY ALICE GRANDE DA SOLEDADE E RONALDO NOGUEIRA DE MORAES
ganização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os di-
reitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar to-
dos os seus bens”.
Questões relativas à diversidade cultural e à linguística são
citadas em outros momentos na Constituição Federativa do Bra-
sil de 1988. Isso pode ser visto na seção “DA EDUCAÇÃO” (pará-
grafo primeiro, artigo 210): “O ensino fundamental regular será
ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades
indígenas também a utilização de suas línguas maternas e pro-
cessos próprios de aprendizagens”. No compreender de Luciano
(2011)
O Sistema de ensino brasileiro passou por uma ampla refor-
mulação a partir da promulgação da Constituição Federal,
em 1988, seguida pela aprovação da nova Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (LDB) em 1996. A educação es-
colar indígena também iniciou, neste período, um processo
longo de mudanças ainda não concluído. Os povos indíge-
nas conquistaram pela primeira vez na história do Brasil, o
direito a ter prerrogativas diferenciadas do sistema de ensino
nacional (p. 98).

119
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

É importante destacar que a vigência dessas leis não limi-


tou o movimento social indígena. Após as mesmas entrarem em
evidência formal e legal, encontros e assembleias continuaram
sendo realizados até os dias atuais. D’Angelis (2012) compreende
a atual legislação brasileira, a partir da Constituição Federal de
1988, como favorecedora para as novas proposições voltadas à
área da educação escolar indígena no país. O autor observa ain-
da que,
Os anos 90, especialmente, marcaram a aceleração das dis-
TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO

cussões e proposições para regulamentação da educação es-


colar nas comunidades indígenas, a partir da promulgação
da Constituição Federal de 1988. Essa carta assegura aos in-
dígenas o reconhecimento à sua organização social, cultura,
língua, crenças e tradições (Art. 231). Na área da educação, a
Lei n° 9394, de 1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, conhecida como LDB) institucionalizou o dever do
Estado de oferecer uma educação escolar intercultural e bilín-
güe. A Resolução n° 3, de 1999, do Conselho Nacional de Edu-
cação (CNE) estabeleceu normas nacionais para o reconhe-
cimento e funcionamento das escolas indígenas. Por sua vez,
o Ministério da Educação agiu em consonância com a nova
legislação, e publicou o Referencial Curricular Nacional para
as Escolas Indígenas (RCNEI), criação do Comitê Nacional de
Educação Escolar Indígena, que atuava como órgão consultor
das ações do Ministério, e também financiando diversas pu-
blicações para escolas indígenas (p. 24-25).

Luciano (2011) destaca a década de 1990 como o marco para


implementação de projetos que visualizem a autonomia das es-
colas próprias para os povos indígenas. Silva (1998) observa que
todo esse processo de busca pelo fortalecimento da identidade
dessas pessoas, a busca pelo respeito e por um processo de espa-
ço às diferenças, não é tarefa simples. Num trecho da fala desta
autora, percebemos que toda a luta em torno da identidade da
escola, vai além desse interesse:
Penso que é preciso ir além do “respeito ao outro”. O respeito
entre as culturas, o “dar lugar e espaço às diferenças”, é um
passo – decisivo – mas que não esgota o delicado processo
de construção de uma sociedade plural. [...] É importante
destacar que, se a autonomia é uma das bandeiras mais im-

120
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

portantes dos povos indígenas (e seus aliados) em todo o


mundo, ela tem conteúdos e práticas diferenciadas, a partir
da diversidade das realidades dos povos indígenas, no marco
dos respectivos Estados Nacionais. São portanto processos
dinâmicos, em construção e definição, a partir da situação
sócio-política e cultural dos povos indígenas e dos países em
que estão inseridos (p. 247).

Em dias atuais, os povos indígenas têm conseguido avan-


çar no campo da educação escolar. Conquistas significativas com
ênfase aos modos próprios e específicos culturais têm sido le-
vado em consideração no âmbito escolar desses indivíduos. No
entanto, não se pode ignorar que nem tudo tem sido um “mar de
rosas” para esses povos, pois após o contato com os colonizado-
res já não são e nem serão os mesmos. Hoje, participam das es-
truturas sociais regidas pelo poder capitalista, com isso, buscam
constantemente alternativas para enfrentarem essa realidade de
forma consciente, porém na tentativa de resistir a tudo que vier

JASPE VALLE NETO, VALÉRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS WEIGEL,


oprimi-los e negá-los culturalmente.

JACY ALICE GRANDE DA SOLEDADE E RONALDO NOGUEIRA DE MORAES


A RELAÇÃO ESCOLA E POVO MURA: UMA BREVE
SÍNTESE

É importante a observação que o povo Mura de Autazes-


-AM, juntamente com sua escola, professores e alunos são par-
ticipantes da dinâmica dos modos de produção capitalista, pois
são consumidores de ações oriundas do capital. Nesse contexto,
o povo Mura de Autazes-AM e seus docentes, estes acabam so-
frendo diversas tensões que oriundas da dinâmica produtivista,
tais como: salários mal remunerados(as), com isso sentem-se
insatisfeitos com a valorização do seu trabalho. Outra situação
é a inexistência de plano de saúde para o(a) professor(a) Mura,
para que ele cuide da melhoria de seu bem estar físico7, como
também a ausência de um projeto de educação para o ensino
médio. Considerando que a escola Mura atende seus alunos(as)
até o nono ano do ensino fundamental, o que os conduzem pos-
teriormente à matricularem-se em escolas não indígenas e isso

7 Desde o contato com as pessoas não indígenas, doenças diversas têm afetado
os moradores das aldeias Mura no município de Autazes-AM.

121
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

pode provocar a desarticulação do trabalho desenvolvido ante-


riormente na escola diferenciada, o qual era centrado na valori-
zação da cultura e identidade Mura. Uma vez fora de sua própria
escola, os(as) alunos(as) Mura se apropriam mais fortemente de
conteúdos escolares reprodutores da ideologia dominante, re-
forçando a formação de trabalhadores(as) que participarão ati-
vamente dos modos de produção capitalista.
Nesse viés, o problema vivenciado pelo povo e seus profes-
sores(as) Mura, gera tensões sobre como trabalhar a educação
escolar desses indivíduos de forma mais ampla que considere o
TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO

problema enunciado e de que modo encontrar alternativas para


atuação no contexto escolar, construindo ações pedagógicas
que traduzam processos emancipatórios e busquem encontrar
equilíbrio e justiça social. Com isso, almeja-se o acesso dos(as)
alunos(as) ao conhecimento e fortalecimento da cultura Mura,
obtendo a conquista do respeito por parte dos diversos grupos
sociais, para que possam ser vistos como um povo que possui
direito à diferença e ideais próprios, enfrentando vigorosamente
o preconceito e a discriminação em que resulta em alienação.
Por outro lado, podemos dizer que os Mura não encon-
tram-se estagnados em referência à luta pelo reconhecimento
de sua cultura e identidade e pela manutenção das mesmas. As
práticas dos(as) professores(as) Mura de Autazes-AM estão ca-
minhando para a construção de um ideal que se articula aos an-
seios de seu povo. Foram eles(as) quem iniciaram o processo de
militância junto às instâncias de governo para que fosse criado o
Projeto Político-Pedagógico Mura, com intuito de construir uma
escola própria com ênfase na interculturalidade, visando ao for-
talecimento da identidade e cultura do povo.
Desse modo, o PPP-Mura foi construído com a coletividade
do povo, participando ativamente desse processo os(as) profes-
sores(as) e lideranças Mura, com contribuição de indigenistas.
Esse projeto tornou-se norte e diretriz para o fazer pedagógico
em articulação com as dimensões políticas e sociais das aldeias
Mura em Autazes-AM. Com isso, se transformou num projeto
em ação, não ficando “engavetado”, mas agindo cotidianamente
na escola e na vida do povo das aldeias. Ele também se funda-

122
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

menta na Constituição Federal de 1988 que reconhece o direito à


diferença aos povos indígenas e à educação escolar diferenciada,
específica, intercultural e bilíngue, assegurando aos povos indí-
genas modos próprios de aprendizagem.
Nessa direção, as escolas Mura vêm desenvolvendo ações
que fortalecem a cultura e a identidade do povo. Isso porque a
organização curricular proposta no PPP-Mura apresenta itens
que servem de temas de estudos, como: a história da aldeia, his-
tória do grupo e da cultura do povo Mura, como também as or-
ganizações indígenas, o direito dos índios, povos indígenas no
Brasil, povos indígenas no Amazonas e terra indígena. Todos
esses temas curriculares apresentam objetivo geral, objetivos di-
dáticos e problematização.
Mediante as experiências vivenciadas junto ao povo Mura,
podemos sinalizar alguns tópicos que se articulam seus proces-
sos escolares, tais como:
- Os modos como são acionadas as práticas pedagógicas

JASPE VALLE NETO, VALÉRIA AUGUSTA CERQUEIRA DE MEDEIROS WEIGEL,


JACY ALICE GRANDE DA SOLEDADE E RONALDO NOGUEIRA DE MORAES
na Escola Mura diferem em alguns aspectos das escolas não in-
dígenas, como por exemplo: a proposta curricular é construída
coletivamente, através de reuniões bimestrais, contando com a
participação de lideranças da aldeia São Félix, pais, gestor(a),
professores(as) e demais membros da equipe técnica que com-
põe o quadro de funcionários da escola;
- Nessas reuniões, todos têm a oportunidade de expressar os
problemas vivenciados no cotidiano da aldeia (tais como drogas
lícitas e ilícitas, doenças diversas, as consequências da relação São
Félix com a sociedade envolvente, etc.), com o objetivo de encon-
trar alternativas para solucionar os problemas identificados;
- A partir dessa exposição, a proposta curricular é gerada
com ênfase em temáticas que traduzem tais problemas nos estu-
dos dos(as) alunos(as). Ademais, temas que valorizam a identida-
de e cultura do povo Mura, como sua própria história, modos de
produção da vida e visão de mundo – são condicionantes basilares
que são discutidos constantemente nas propostas das aulas.
Desse modo, a educação escolar Mura ocorre “[...] confor-
me as necessidades e interesses dos alunos e da aldeia, levando
em conta os relatos históricos repassados pelos mais velhos, li-

123
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

deranças, parteiras, agente de saúde, pais e membros da aldeia”


(PPP-MURA, 2003, p. 52). Durante o percurso educativo de en-
sino e aprendizagem “[...] objetiva-se que o aluno valorize sua
cultura, a cultura de outros povos indígenas e não-indígenas e
reconheça sua identidade étnica, tornando-se crítico e conhece-
dor do seu direito, capaz de discutir e argumentar sobre assuntos
variados” (PPP-MURA, 2003, p. 52).
Um dos grandes objetivos da educação escolar indígena
Mura é formar cidadãos para que atuem e lutem por seus ideais
e que continuem morando na aldeia, e ensinando seus filhos,
TENSÕES E CONQUISTAS INDÍGENAS NA LUTA PELA ESCOLA PRÓPRIA: POVO MURA EM CONTEXTO

netos e demais “parentes” a fortalecer sua cultura e identidade.


Portanto, seus ideais fogem das mazelas dominante do capital,
potencializando com que os Mura criem estratégias próprias
para seus modos de organização de vida, possibilitando relati-
vizar (pelo menos nos aspectos formativos escolares) os modos
de produção capitalista, fomentando, dialeticamente, a conso-
lidação de uma práxis que potencialize a emancipação cultural
e social do povo. Nesse sentido, podemos dizer que a educação
escolar Mura caminha nessa direção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo desenvolvido possibilitou refletir quanto aos


processos históricos constituídos sobre a educação escolar in-
dígena brasileira, além de apresentar a relação do povo Mura
com o contexto escolar. Nessa direção, é possível considerar que
a implementação da educação escolar indígena à luz de suas es-
pecificidades e modos diferenciados de realização, tem sido uma
grande força no cenário das lutas e reivindicações desses povos,
propiciando que o direito à educação própria seja uma das prin-
cipais articulações políticas dos mesmos.
Diante desse cenário, acreditamos que as conquistas então
registradas, como também outras aspiradas pela sociedade indí-
gena, foram e, indubitavelmente, continuarão sendo frutos das
consequentes e perseverantes militâncias em prol de sua autono-
mia política, econômica, social, cultural, territorial e educacional.
Esperamos que este estudo possibilite uma reflexão crítica
sobre a educação escolar indígena no contexto histórico, contri-

124
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

buindo para obtenção de resultados mais satisfatórios no proces-


so de construção crítica e reflexiva da pesquisa em educação sobre
os povos indígenas, em particular, do povo Mura de Autazes-AM.
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125
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

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126
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE
PROTEÇÃO AO ÍNDIO NO RIO
MADEIRA E OS MUNDURUCU DO
POSTO INDÍGENA DE LARANJAL –
BORBA/AM (1938-1940)

Davi Avelino Leal1

A aldeia Laranjal, situada no município de Borba/AM,


concentra desde o início do século XIX, os índios Mundurucu.
No ano de 1929, ela foi transformada em posto do SPI, reunindo
um conjunto de aldeias menores com as de: Cipó, Laranjal, Paca,
Laguinho, Caiaué, Tauaquéra, Castanhalzinho e Piracantinga.
Conforme Melo (2009, p. 196), em 1930 o posto já conta-
va com dois barracões para festejos, e dezoitos moradias, onde
vivem 142 indígenas que trabalhavam em duas roças de uso co-
mum. Segundo o relatório elaborado por Bento Lemos, em 1930
(MELO, 2009, p. 196), o posto de Laranjal era também reconhe-
cido por grandes festas em que os índios ensaiavam suas danças
clássicas. Foi justamente no dia do festejo que ocorreu o assas-
sinato de um dos mais importantes comerciantes de Laranjal. A
consulta ao Livro de Decisão e Julgados da Justiça do Amazonas
(1938) permitiu adentrar a este mundo permeado de conflitos e
tensões.
No dia 21 de junho de 1938, por conta de uma festa no al-
deamento de Cipó, pertencente ao posto do SPI de Laranjal, em
homenagem a São Marçal, Militino de Souza e Silva, delegado de
índios em Cipó e seu filho Durvalino de Souza e Silva se envol-
veram no assassinato do comerciante de nome Amadeu Fonte-
DAVI AVELINO LEAL

nele Olímpio, residente em Laranjal e que tinha ido “prestigiar”


a festa.

1 Professor de História da Amazônia do Departamento de História da Univer-


sidade Federal do Amazonas. Licenciado em História, Mestre e Doutor em
Sociedade e Cultura na Amazônia/UFAM.

127
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Imediatamente presos pelos policiais que faziam a segu-


rança da festa, Militino (o pai), foi indiciado por ser o mentor do
crime e o filho de 18 anos Durvalino por ter desferido as facadas
de levaram Amadeu a óbito.
Na sua defesa, Militino Silva fornece pistas que nos ajudam
a entender o contexto maior do conflito em que estavam envolvi-
dos vítima e acusados e que envolvia o controle de castanhais no
limite entre os dois aldeamentos indígenas.
No rio Canumã o estabelecimento do aldeamento Mundurucu
Os territórios situados no baixo rio Madeira concentram,
desde o início do século XIX, índios de diversas etnias que, na-
quele momento, evitavam o contato e a guerra com os índios Ara-
ra. Nesse contexto, Canumã destacava-se por possuir um impor-
tante aldeamento de índios Mundurucu e Mura e reunir, no ano
de 1856, por volta de 888 pessoas incluindo indígenas e os cha-
mados “civilizados”. Em relatório apresentado por João Wilkens
de Mattos (1856) tem-se a informação que a grande presença de
A ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO NO RIO MADEIRA E OS
MUNDURUCU DO POSTO INDÍGENA DE LARANJAL - BORBA/AM (1938-1940)

índios nessa missão se dá pela procura dos Mundurucu que fu-


giam dos ataques praticados pelos índios Arara.
Trinta anos antes, por volta de 1820, Karl Von Spix havia pas-
sado por Canumã e notado que ali ficava a primeira missão dos
índios Mundurucu, fundada por volta de 1811 pelo carmelita Frei
José Álvares das Chagas e que abrigava cerca de mil índios, sendo
dirigida pelo padre secular de nome Antônio Jesuíno Gonçalves.
Na rica descrição do cotidiano da missão, Spix conta que vi-
sitara por alguns dias as aldeias Mundurucu, sendo recebidos em
Canumã por mulheres e crianças. As mulheres ofereceram casta-
nhas e beijus, quanto às crianças notou que embora frequentas-
sem a catequese, “havia uma certa repugnância dos pupilos para
com tudo que visava o progresso”, pois permaneciam realizando
as festas com muito caxiri e carne de caça.
Os dois também não deixaram de notar que a simples no-
tícia de que haviam chegado a Canumã fez com que corresse a
notícia que os índios seriam levados para trabalhos forçados. Isso
porque o governo provincial do Pará vinha realizando trimestral-
mente o recrutamento de índios nas várias aldeias Mundurucu
(SPIX & MARTIUS, 1981, pp. 273-275).

128
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Quase meio século depois, a prática de envio de índios de


Canumã para trabalhos forçados pode ser observada através da
leitura do ofício encaminhado ao Presidente de Província subs-
tituto, Manoel Gomes de Correa de Miranda, pelo diretor de ín-
dios José Lino Pereira Brasil, que informa sobre o envio de qua-
tro índios para trabalharem nas obras públicas da capital.
Ele aproveita para queixar-se da atuação do principal, Da-
niel, que junto com José Antônio Pucu, este como ajudante, es-
tão dando mal exemplo e praticando todo tipo de desobediên-
cias. Como influente comerciante e deputado provincial, sugere
a imediata substituição dos nomes para que o trabalho não seja
comprometido (Diretoria de Índios, 1853, fl.03).
Outro dado é que os conflitos envolvendo “civilizados” e
“índios” prejudicavam as roças e plantações de tabaco e afeta-
vam diretamente o trabalho de extração de copaíba.
Ocupou também o cargo de diretor de índios em Canumã
o seringalista Francisco Portilho Bentes, que fora nomeado para
atuar na administração da aldeia a partir de setembro de 1856.
No início da década de 1860, assume o cargo Antônio Francisco
Parente Júnior, tendo que administrar uma aldeia relativamen-
te abandonada pelos índios. Outrora, com mais de 400 índios,
Canumã conta agora com apenas 148 Mundurucu.
O diretor de índios do rio Madeira, José Maria da Concei-
ção, comunica ao Presidente de Província, Ferreira Pena, a situa-
ção das aldeias e malocas de índios do dito rio para o ano de 1853.
A crise da administração dos aldeamentos se instalara e diante
das críticas feitas pelos presidentes de província o regime de di-
retorias é extinto no ano de 1866.
Este ano marca também a viagem de Tavares Bastos para a
Província do Amazonas e a crítica contundente à política indi-
genista do Império. De acordo com o autor, os diretores parciais
eram verdadeiros ladrões, pois se aproveitavam do trabalho dos
DAVI AVELINO LEAL

índios na extração da borracha ou na coleta da castanha em be-


neficio próprio (BASTOS, 2000, p. 170).
Apesar de todas as críticas, uma breve consulta aos ma-
nuscritos, sob a guarda da Igreja Católica, relativos às correspon-
dências entre Diretoria Parcial e Diretoria Geral, revela que, na

129
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

prática, os diretores parciais continuam atuando livremente nos


aldeamentos.
Em 1887, vinte e um anos após a extinção formal das dire-
torias parciais, Januário Oliveira de Carvalho envia um oficio ao
“todo poderoso” Diretor Geral de Índios da Província, Cônego
Raimundo Amâncio de Miranda, informando sobre os índios al-
deados em Capanã (Ofício da Diretoria de Índios, 25/09/1887
– Capanã, Rio Madeira).
A ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO NO RIO MADEIRA E OS
MUNDURUCU DO POSTO INDÍGENA DE LARANJAL - BORBA/AM (1938-1940)

Fonte: MELO, Joaquim. 2009, p. 197.

Essa situação se prolongou a tal ponto que relatos da insta-


lação do Serviço de Proteção ao Índio e Localização dos Traba-
lhadores Nacionais (SPILTN) no Amazonas (1910) revelam que
os agentes do “SERVIÇO” encontravam em atuação os chama-
dos diretores parciais. Joaquim Melo (2009, p.99) reproduz uma
parte do relatório do engenheiro agrimensor, João Augusto Zany,
para o ano de 1912, onde este apresenta as condições das aldeias
Mura e cita textualmente a presença de diretores parciais,
Seguindo pelo Autaz-Miry, tendo visitado a Aldeia de Panta-
leão, uma das mais povoada dos Autaz, como as outras deca-
dentes pela mesma razão. Nesta os pseudocivilizados foram

130
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

requerendo ao Estado as terras próximas as aldeias de modo


a ficar esta reduzida a um pequeno triângulo. São proprie-
tários das terras vizinhas, atualmente, os Srs. Luiz Magno
de Faria e João Hermes de Araújo, este é diretor parcial de
índios pelo Estado do Amazonas (ZANY, 1912, pp. 1, 2).

As críticas direcionada às diretorias parciais não foram sufi-


cientes para extinguir a sua prática e mesmo com a implementação
da nova política indigenista, em 1910, muitos delegados não dife-
riam em nada dos antigos diretores. Não se trata evidentemente
de denunciar uma pura e simples continuidade da política indi-
genista, porém mudanças de ofícios e aparelhos não significam
automaticamente que práticas e valores foram transformados.

RETORNANDO AO CASO

A desavença entre Amadeu Olímpio e Militino de Souza


tem inicio quando, no mesmo período do ano anterior (1937), na
festa de São João realizada no aldeamento de Laranjal, os índios
do outro aldeamento, Cipó, foram xingados e expulsos por Ama-
deu Olímpio que disse que eles não eram bem-vindos à locali-
dade. Nessa ocasião, Militino estava resolvendo problemas em
Manaus e só soube do ocorrido quando chegou ao aldeamento
do Cipó e ouviu as queixas dos índios contra Olímpio.
No ano seguinte por conta dos festejos de São Marçal
(29/06/1938) na aldeia de Cipó, como forma de provocação,
Amadeu Olímpio decide visitar e espalha para os vizinhos, dias
antes da festa, que lá iria e que não teria problema.
Ainda de acordo com o denunciado, o pai de Amadeu Olím-
pio, o senhor de nome Adolfo Manoel Olímpio, havia comprado
um castanhal em Mari-Mari, fronteiriço com o aldeamento de
Cipó e extremando com as demarcações em Laranjal, e estava
proibindo os índios de Cipó de tirar castanha na ilha do Caimbé.
Segundo Militino, Caimbé ficava fora das possessões de Adolfo
DAVI AVELINO LEAL

Olímpio e que seu dono Firmino de tal nunca se opôs que os to-
dos os caboclos (sic) tirassem castanha dali e que essa proibição
na última safra havia prejudicado os índios de Cipó.
No dia da festa, por volta das 21 horas, Amadeu Olímpio
aparece acompanhado por um sócio de nome Manuel Candido

131
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

da Silva. Ao percebê-los no aldeamento os índios avisam a Mi-


litino da Silva que Amadeu Olímpio encontrava-se no terreiro e
que não queriam que o comerciante de Laranjal permanecesse
na festa pois ainda não tinham esquecido o que ocorrera no ano
anterior.
Após uma discussão entre os dois citados e aproveitando
do tumulto causado pelo acúmulo de pessoas, Durvalino de
Souza, filho de Militino, desfere uma facada certeira em Amadeu
Olímpio, matando-o na hora.
Durvalino é julgado e condenado à reclusão e Militino é
condenado por ser o autor intelectual do crime. A leitura do do-
cumento revela o tom altamente preconceituoso contra os ín-
dios de Cipó, atribuindo a Militino e seu filho o caráter de per-
versidade e índole criminosa por terem matado um comerciante
de caráter pacífico e que não tinha inimigos na região.
A ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO NO RIO MADEIRA E OS
MUNDURUCU DO POSTO INDÍGENA DE LARANJAL - BORBA/AM (1938-1940)

Fonte: MELO, Joaquim. 2009, p. 197.

O fato dos índios do aldeamento de Cipó terem sido expul-


sos da festa de São João configura, por si só, motivo de ruptura

132
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

das relações entre os aldeamentos, pois o princípio da reciproci-


dade foi rompido, fazendo daquele que não quer trocar possível
inimigo.
As festas de santo, comuns no interior da Amazônia, con-
figuram-se não apenas como momento de trocas, onde laços de
reciprocidade são confirmados, mas trazem também a possibi-
lidades de tensões latentes emergirem, afinal esses momentos
lúdicos e pouco regulados da vida social dão margem a violên-
cia, pois tocam em valores fundamentais da cultura (FRANCO,
1997, p. 26).
Somado a esse grave acontecimento, de caráter cultural,
veio à proibição de coletar castanha em territórios que não eram
reconhecidamente pertencentes a Afonso Olímpio, mas que
agora os moradores de Cipó se viam impedidos de entrar.
Esse processo de esgarçamento das relações explodiu no
momento da festa, em que, tanto os moradores, quanto do dele-
gado de índios da localidade, o senhor Militino, tomaram como
provocação a chegada do contendedor Amadeu Olímpio.
A tensão e o conflito emergem entre os próprios Mun-
durucu ou entre comerciantes que desde 1912 tinham recebido
a autorização para trabalhar nas áreas dos postos indígenas, e
que acabavam se apossando de castanhais frequentados coleti-
vamente pelos Mundurucu do rio Madeira.
É nesse contexto que os Mura, Parintitin, Piharans e Mu-
dunrucu adentram a década de 1930 vendo seus territórios co-
letivos sendo imprensados e espremidos por comerciantes e fa-
zendeiros que atrás de castanhas, madeira e pasto deslocam os
índios para os fundos do terreno ou os obrigam a abandonarem
os rios e territórios tradicionalmente ocupados.
A análise empreendida por Santos da formatação dos lotes
Mura em Autazes permite perceber essa lógica em que os con-
frontantes dos territórios demarcados são de famílias de pecua-
DAVI AVELINO LEAL

ristas ou de comerciantes (SANTOS, 2009, p. 66).


Os territórios que permaneceram sob o controle dos índios
foram aqueles reconhecidamente transformados em postos do
SPI, mas que também nunca deixaram de ser alvo de esbulho,
tentativa de invasão por parte de pecuaristas e comerciantes in-

133
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

fluentes que moravam nas cidades mais próximas, e que conti-


nuam até hoje fazendo parte da territorialidade indígena.
Nesse novo processo de territorialização do rio Madeira,
que se inicia em meados do século XIX, quando o interesse co-
mercial se volta para a extração da borracha, e que não termina
necessariamente com a crise da borracha, mas duas décadas de-
pois, porque a castanha, abundante no Madeira, passa a se valo-
rizar e é o principal produto da pauta de exportação do Estado
do Amazonas na década de 1930.
A grande crise de 1912 não atingiu a todos da mesma forma.
A relativa autonomia conquistada por seringueiros, que já na dé-
cada de 1920 aparecem compondo um campesinato de fronteira
(VELHO, 1920, p. 10), não se concretiza imediatamente no Rio
Madeira, pois lá os trabalhadores estão sofrendo com os meca-
nismos de imobilização da força de trabalho gerado pelo contro-
le cerrado dos rios ricos em castanhais.
Nesse sentido, o rio Madeira permanece relativamente
A ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO NO RIO MADEIRA E OS
MUNDURUCU DO POSTO INDÍGENA DE LARANJAL - BORBA/AM (1938-1940)

fechado, por conta da imobilização da força de trabalho, por


mais duas décadas. Além de castanhais e seringais, os códigos
de posturas elaborados a partir do último quarto do século XIX
limitam, em vários municípios, os lagos de pesca, as aves que
podem ser abatidas, a caça e coleta de outros produtos extraídos
da floresta. Mais do que um discurso de proteção da natureza o
que está em jogo nesses códigos é o controle sobre os recursos e
sobre as pessoas que entram em conflito com as formas especi-
ficas que o uso desses mesmos recurso desenvolvidos pelos que
chamamos hoje de povos tradicionais (seringueiros, castanhei-
ros, pescadores e povos indígenas).

FONTES

FALA do Vice-presidente Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda


dirigida a Assembleia Legislativa da Província. Sessão Or-
dinária da 1ª Legislatura. 05/09/1852
LIVRO de Decisões e Julgado do Superior Tribunal de Justiça
do Amazonas (Período 1937-1939). Typografia Phenix, rua
Joaquim Sarmento 78, Manaus.

134
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

OFÍCIO de Januário Carvalho ao Diretor Geral em 25/09/1887 –


Capaná, Rio Madeira. Assunto: Enviando lista dos índios
Mura em Capaná e falando dos problemas na vila (25 Mura).
OFÍCIO do Inspetor de Quarteirão, Antonio Collares ao Dire-
tor Geral Raimundo Amâncio de Miranda em 21/07/1886 –
(Borba). Assunto: Tratando do estado dos Índios da Aldeia
de Autaz-Assú.

REFERÊNCIAS

BASTOS, Tavares. O vale do Amazonas: a livre navegação do


Amazonas, estatística, produção, comercio questões fis-
cais do vale. Belo Horizonte, Itatiaia, 2000.
FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. O SPI no Amazonas: política
indigenista e conflitos regionais (191-1932). Rio de Janeiro:
Museu do Índio, 2007.
LEAL, Davi Avelino. Direitos e processos diferenciados de territo-
rialização: os conflitos pelos usos dos recursos naturais no
rio Madeira (1861-1932). Tese de Doutorado defendida em
2013 no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultu-
ra na Amazônia a Universidade Federal do Amazonas.
MELO, Joaquim. SPI – A Política Indigenista no Amazonas. Ma-
naus: Edições do Governo do Estado, 2009.
OLIVEIRA, João Pacheco de. O paradoxo da tutela e a produ-
ção da indianidade: ação indigenista no Alto Solimões.
In: FREIRE, Carlos Augusto da Rocha. Memórias do SPI:
textos, imagens e documentos sobre o Serviço de Prote-
ção aos Índios (1910-1967). Rio de Janeiro: Museu do Ín-
dios, 2011.
DAVI AVELINO LEAL

SANTOS, Ana Flávia Moreira dos. Conflitos Fundiários, Territo-


rialização e Disputas Classificatórias, Autazes (AM), Pri-
meiras Décadas do Séc. XX. Tese de Doutorado defendida
em 2009 no Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social do Museu Nacional/UFRJ.

135
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

SPIX, John, MARTIUS, Carl. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Tra-


dução: Lúcia Furquim Lahmeyer. Belo Horizonte: Ed. Ita-
tiaia/São Paulo: USP, 1981.
VELHO, Otávio Guilherme. Capitalismo Autoritário e Campesi-
nato. Rio de Janeiro: Difel, 1979.
A ATUAÇÃO DO SERVIÇO DE PROTEÇÃO AO ÍNDIO NO RIO MADEIRA E OS
MUNDURUCU DO POSTO INDÍGENA DE LARANJAL - BORBA/AM (1938-1940)

136
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A LITERATURA COMO FERRAMENTA


PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA
INDÍGENA”

Alexandre da Silva Santos1


Girlane Santos da Silva2

No presente trabalho é dado ênfase na utilização da li-


teratura como ferramenta metodológica pra o ensino da nova
História Indígena, mais particularmente através de uma narra-
tiva da cosmogonia Desana, intitulado “Origem do mundo e da
humanidade”, dividido em duas partes: a primeira se concentra
na criação de tudo, explicando como as coisas que nos cercam
apareceram, como o universo foi criado, quem teve participação
nisso; e a segunda, enfatiza o surgimento da humanidade, dos
homens, bem como a criação do sol e da terra e das línguas, nes-
se contexto.
Em delimitação, utilizaremos como exemplo dessa lite-

ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA


ratura como fonte, o primeiro momento do conto (mito), re-
gistrado por Luiz Gomes Lana, pertencente a etnia Tuxáua, de
nome de origem Tõrãmū Pārõkumu, que escutou as histórias
do desanas de seu pai, o Umusī Pārõkumu. Este um baya, ou
seja, mestre de cerimônias, estabelecido dentro de um sistema
social Dessana (Kumu), cujo poder atribuído era o de controlar
os fenômenos da natureza, como também profetizar malefícios
e executar ritos, isso na ausência do pajé.
Partimos do pressuposto que Kruger (2011) observa sobre
esse livro, ou seja, para o crítico literário: “...quer-nos parecer que,

1 Mestrando em Letras- Estudos literários. Mestrando em História, ambos pela


Universidade Federal do Amazonas (UFAM). E-mail: alexandresantosp@
gmail.com.
2 Aluna-pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Políticas, Instituições e Práti-
cas Sociais (POLIS), e componente do Grupo de Estudos Africanos. Graduan-
da em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) * E-mail: gir-
lane.silva.1995@gmail.com.

137
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

em virtude da estrutura disfarçada por trás dos enunciados míti-


cos, haja a ‘genuína motivação literária”3 (KRUGER, 2011, p. 15).
Para esse autor, esse intercâmbio entre Mito e Literatura o
texto mencionado nos parágrafos anteriores, “são apresentados
como gêneros literários, (...) ao nos debruçarmos sobre formas
ficcionais e dramáticas, são intitulados como realidades míticas”
(KRUGER, 2011, p. 16, Grifo Nosso).
Assim, não pretendemos fazer uso do mito pelos padrões
internos ao texto, mas externos, ou seja, considerando os ele-
mentos contextuais. Isso significa afirmar que não usaremos
os padrões críticos próprios da literatura, mas do entendimen-
to das narrativas de um povo que até pouco tempo recebia um
olhar metaforizado.
Dessa forma, esta proposta visa contribuir em assuntos
A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”

relacionados à sala de aula, que em tempos de mudanças de-


corrente do novo ensino público, no Brasil, constituem em uma
reorganização de conteúdos ministrados nos segmentos do fun-
damental e médio, constituem um pacote de fatores auxiliares
ao trabalho do docente e à aprendizagem do discente. Em sín-
tese, tem o intuito de fazer com que o aluno consiga de forma
mais viabilizada, compreender o conteúdo a ser trabalhado pelo
professor.
Em outras palavras, esperamos que as aulas relacionadas
ao universo indígena seja também vista e ministrada pensando
nos saberes socialmente construídos e trazidos pelos alunos,
como o resultado de uma prática comunitária, de acordo com
o que expôs Freire (1996), em Pedagogia do Oprimido: saberes
necessários à prática educativa.
Desse modo, pensar em um texto de natureza literária,
ainda que seja pela viés de uma narrativa mítica, justifica-se no
entendimento de que ambos possuem uma função pedagógica e

3 O teórico se refere à literariedade, elemento presente em um texto literário,


em que consiste na existência de várias linguagens no tecido textual, que esta-
belece um processo de revelações de outros textos, artisticamente, realizando
articulações dinâmicas entre os elementos sociais, culturais, políticas e histó-
ricos existentes na obra, carregados de sentidos variados acerca da realidade.
Para mais informações, buscar a leitura de Bakhtin, em A estética da criação
verbal, de 2001, e Questões de literatura e estética, de 1998.

138
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

podem ser utilizados para romper as ideias que reduzem os “ín-


dios” a características homogêneas, selvagens e atrasadas.
Significa propiciar condições concretas aos educandos em
suas relações uns com os outros, de forma que possam assumir o
ser social e histórico que formam parte de sua identidade, como
seres pensantes criativos, realizadores de sonhos.
Nesse sentido, é importante ressaltar a aprovação da Lei
11.645/08, que prevê a obrigatoriedade do ensino de História e
Cultura (Africana e afro-brasileira) indígena nos estabelecimen-
tos de ensino público e privado em todo o país. A partir disso, foi
surgindo gradualmente a necessidade da utilização das chama-
das “linguagens alternativas para o ensino de história” (ABUD,
2005, p. 310) como: teatro, produções cinematográficas, jornais,
literatura, música.
Todos eles auxiliam na construção de um saber histórico
humanizado, de forma mais facilitada e crítica, sob a luz de no-
vas interpretações sobre indivíduos que antes eram reduzidos a
meros figurantes de sua história, e agora podem relatar fatos de
acordo com a sua perspectiva, ou seja, podem ser protagonistas
de suas vidas.

ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA


UMA BREVE HISTÓRIA DA “NOVA HISTÓRIA
INDÍGENA”

A chamada “nova história indígena” emerge com força no


Brasil nas décadas finais do século XX, como forma de ampliar
críticas sobre uma produção historiográfica eurocêntrica, e visa
perpetuar uma desconstrução de imagens negativas oriundas de
interpretações ainda do século XVI, que são atribuídas aos “Ín-
dios”, como por exemplo: a ideia de preguiçoso e selvagem, em-
basado principalmente pela ideia de “Democracia Racial”, que
procurava através do Ensino de História representar:
[...] o africano como pacífico diante do trabalho escravo e
como elemento peculiar para a formação de uma cultura
brasileira; estudava os povos indígenas de modo simplifi-
cado, na visão romântica do bom selvagem, sem diferenças
entre as culturas desses povos, mencionando a escravização
apenas antes da chegada dos africanos e não informando

139
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

acerca de suas resistências à dominação europeia. E proje-


tava os portugueses como aqueles que descobriram e ocupa-
ram um território vazio, silenciando sobre as ações de exter-
mínio dos povos que aqui viviam. (BRASIL, 1998, p. 22 – 23).

Para Thiago Cavalcante em Etno-história e história indíge-


na: questões sobre conceitos, métodos e relevância da pesquisa
(2011), houve a partir de 1990 uma eclosão de produções acadê-
micas relacionadas aos indígenas no Brasil4, os processos que
os envolveram e a criação de laboratórios e núcleos que aborda-
vam essa temática como seu eixo principal, devido a inúmeras
inquietações ligadas aos movimentos indígenas5, contribuíram
para a existência de novas discussões acerca do assunto.
De acordo com Jonh Monteiro (2001),em sua tese intitula-
A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”

da Tupis, Tapuias e Historiadores: Estudos de História Indígena e


do Indigenismo, esse crescimento se deve principalmente a uma
transformação nas configurações que permeavam os direitos
históricos e de forma primordial os territoriais relacionados aos

4 Nesse contexto de produções cientificas, podem ser citadas as seguintes obras:


História dos índios no Brasil (CUNHA, 1992), As muralhas dos sertões: os po-
vos indígenas no Rio Branco e a colonização (FARAGI, 1991), Negros da terra:
índios e bandeirantes nas origens de São Paulo (MONTEIRO, 1994), A heresia
dos índios: catolicismo e rebeldia no Brasil Colônia (VAINFAS, 1995). Para dis-
cussões mais atuais, verificar o artigo “Nova História Indígena: o protagonismo
dos índios”, produzido pelo professor Dr. Luís Rafael no blog Café História
– História feita com cliques, que cita as seguintes obras: Metamorfoses indíge-
nas: identidade e cultura nas aldeias coloniais do Rio de Janeiro (CELESTINO,
2003), Religião como Tradução: missionários, Tupi e Tapuia no Brasil Colonial
(POMPA, 2003), Quando os índios eram vassalos: colonização e relações de
poder no Norte do Brasil na segunda metade do séc. XVIII (DOMINGUES,
2000), Nem cidadãos, nem brasileiros: indígenas na formação do Estado na-
cional brasileiro e conflitos na província de São Paulo (1822-1845) (SPOSITO,
2012), Civilização e Revolta: os Botocudos e a catequese na Província de Minas
(MATOS, 2004). O vapor e o botoque: imigrantes alemães e índios Xokleng no
Vale do Itajaí/SC (1850-1926) (WITTMAN, 2007).
5 Segundo o professor Paulo H. Borges, em O movimento indígena no Brasil:
histórico e desafios (2005), ao realizar uma breve análise sobre grupos repre-
sentativos relacionados as questões indígenas, que promoveram discussões
que se propagaram pelo país nos anos posteriores, cita os representantes do
povos Apiaká, Kayabi, Tapirapé, Rikbaktsa, Pareci, Nambikwara, Xavante e
Bororo na I Assembleia de Lideres em Diamantino/MP em 1974, que discuti-
ram assuntos relacionados a demarcação de terras até a necessidade de uma
união de grupo étnicos.

140
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

indígenas, com isso, foi estimulado inúmeras pesquisas de forte


cunho antropológico para substanciar as reivindicações de diver-
sos grupos sociais envolvidos em tal causa.
Consoante Monteiro (2001), esta corrente foi oriunda dos
anos de 1970, ao serem repensados inúmeros pressupostos teóri-
cos a cerca dessas sociedades e que fora nitidamente marcada por
uma divisão na visão tradicional americanista.
Uma dessas concepções era baseada no estruturalismo, en-
quanto uma segunda se voltava para um contato mais próximo
com os estudos interétnicos, aliado a utilização de fontes histó-
ricas e ao uso de uma teoria social enriquecida por mitos, narra-
tivas orais e rituais. Essa respectiva corrente foi responsável por
instigar pesquisas na área da História, que consideravam uma
gama de pluralidades étnicas e diferentes grupos sociais porta-
dores de particularidades únicas a serem investigadas.
Apesar de surgirem vários grupos de pesquisa que contem-
plassem tal temática, a produção acadêmica é considerada tímida
se comparada as produções de México e Peru. Segundo a profes-
sora Maria Cristina Bohn Martins (2009), embora haja inúmeras
lacunas históricas, os produtos estão relacionados a nova história
indígena estão em um constante de ritmo de crescimento, para ela:

ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA


Ainda que devamos reconhecer as enormes lacunas existen-
tes no conhecimento que possuímos sobre os povos nativos
das Américas, podemos dizer que a sua história afirma-se
hoje como um campo de estudos em forte expansão, atraindo
interesse de investigadores em várias instituições de ensino e
pesquisa no país. (MARTINS, 2009, p. 154).

Ainda segundo a docente, essas novas interpretações es-


tavam associadas ao que porventura foi chamado de “Visão dos
Vencidos”, que possuía como objetivo evidenciar os descasos da
colonização para com as sociedades colonizadas. Isto é, expor o
número aproximado morto ocasionados pela exploração euro-
peia e o desaparecimento total de grupos étnicos. Assim, essa
“nova” produção historiográfica estava imbricada na ideia de
contrapor uma tradição considerada como padrão, que propaga-
va a imagem do Bom Colonizador e que amenizada seus efeitos
para com os povos indígenas.

141
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Nesse sentido, as produções historiográficas do final da se-


gunda metade do século XX, segundo Donghi (1997), estavam se
renovando intensamente, e ligadas ao advento da história social,
no qual, deixava para traz uma historiografia baseada na ótica do
colonizador. Migrando para uma, embasada no “olhar indígena”,
rompendo com “estereótipo de dois mundos”, sob o qual a coloni-
zação se deu através do relacionamento colonizador e colonizado.
Por conseguinte, essa nova forma de interpretação acerca des-
se assunto, crítica a produção histórica da Conquista e Colonização
fortemente produzidas até a primeira metade do século XX. Com
efeito, começa-se a valorizar mais o legado deixado pelas civiliza-
ções pré-colombianas, expondo a grande catástrofe demográfica
que ocorrera nas Américas, no período chamado de Reconquista.
Um dos exemplos do exposto acima, está presente no li-
A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”

vro: Visão dos Vencidos (1987), de Miguel de León-Portilla e A


Conquista da América Espanhola (1992), de Marianne Mahn-Lot.
Dessa nova produção, há um tecido textual que traça o impacto
da figura do conquistador para com o conquistado.
Para tanto, Jonh Manuel Monteiro (2001), ressalta que é ne-
cessário um certo cuidado com tal perspectiva, pois, “Um dos pe-
rigos desta abordagem é que invista em uma imagem cristalizada
– fossilizada diria outros – dos índios, seja como habitantes de
um passado longínquo ou de uma floresta distante.” (MONTEI-
RO, 2001, p. 4). Por negligenciar certo protagonismo, tal concep-
ção é veemente questionada, dando margem alguns anos depois
a chamada “nova história indígena”, que procura através do olhar
do “índio” contar sua versão do passado.
Logo, essa nova interpretação de se ler esse indivíduo, sur-
ge como uma forma de enxergar sobre o universo indígena, que
contempla a visão do “Índio” e como este compreende a história
e seus processos, ela que agora aborda elementos identitários,
culturais e sociais, derrubando compreensões eurocêntricas e
positivistas acerca do mesmo.

LITERATURA COMO FERRAMENTA DIDÁTICA

Um escritor de ficção desempenha uma função que vai além


daquela que registra na escrita as emoções mais abstratas. Uma

142
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

vez passadas ao papel é o eco de vários discursos que refletem


uma época, um momento individual e coletivo. Em virtude dis-
so, as suas práticas discursivas podem revelar-nos pistas de uma
complexa rede de interações de uma sociedade, como também
fazer representações da existência.
Assim, as fronteiras entre história e literatura, ainda que
estejam bem definidas no debate acadêmico contemporâneo,
fomentam um espaço de debate e reflexões cada vez mais profí-
cuo. Em relação a esses saberes, o literário também é uma fonte
histórica, porque “(...) é visto como um bom observatório das
representações de uma determinada sociedade e época.” (GREC-
CO, 2015, p. 122).
Partindo do pressuposto que ensinar exige práticas educa-
tivas e críticas, o uso desse universo de conhecimento (o literá-
rio), propicia condições aos educandos de investigação, desco-
brimento e questionamentos acerca do passado, presente e de
sua realidade como um todo, a partir do instante em que possam
se assumir como seres sociais, históricos, culturais, pensantes
dentro do processo de ensino e aprendizagem.
De acordo com Coelho (2000, p. 20), “...a escola é, hoje, o
espaço privilegiado, em que deverão ser lançadas as bases para

ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA


a formação do indivíduo”. E é nele que privilegiamos os estudos
literários, pois, de maneira mais abrangente do que quaisquer
outros, há um estímulo ao exercício da cognição, a percepção do
real em suas várias camadas. Por isso é importante que os agen-
tes de uma escola, assim como os pais, saibam os seus papéis da
formação do educando ou seja: mediadores do conhecimento.
Desse modo, para Welleck & Warren (2003), “as obras li-
terárias têm uma função social, ou individual no que tange des-
cobrir o mundo” (WELLECK; WARREN, 2003, p. 113). Em outras
palavras, significa pensar os saberes socialmente construídos na
prática comunitária, a partir do texto, discutindo com os alunos a
realidade concreta a que se deve associar a disciplina ao conteúdo.
Com efeito, esse discente será o que Freire expõe, isto é:
“O sujeito que se abre ao mundo e aos outros, inaugura com seu
gesto a relação dialógica em que se confirma como inquietação e
curiosidade” (FREIRE, 1996, p. 154).

143
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Considerando essas observações, o incremento desse diá-


logo interdisciplinar colabora para a construção de um processo
de organização estratégico da realidade, na medida em que ele
é constituído de investigação e criação para mimetizar uma de-
terminada época e na compreensão do homem em um tempo.
(BORGES, 2010).
Esse traço da natureza literária, que pode e deve ser apro-
veitado também a ensino, é, desde Aristóteles e no Renascimen-
to, o entendimento da realidade por um jogo de representação,
que já foi complemento de compreensão do mundo quando as-
sociado ao imaginário romântico, no século XIX, ou ainda, uma
leitura de envolvimentos políticos, críticos e ideológicos da par-
te do autor sobre a existência ao redor, no XX.
Segundo defende Pesavento, o texto literário pode ser visto
A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”

como objeto de investigação da história, desde que “tomemos


na sua acepção de escolha seleção, recorte, montagem.”(PESA-
VENTO,1999, p. 820). Nisso, o texto literário é visto neste estudo
como um vestígio de conhecimento sobre o homem no tempo.
Em outros termos, toda ficção que está enraizada na socie-
dade, é em determinadas condições de espaço, tempo, cultura e
relações sociais a matéria prima do escritor, que através da lin-
guagem materializa sua subjetividade criadora. Por conta disso,
Chartier, em A história ou a leitura do tempo, de 2009, escreveu
que algumas obras literárias realizam uma profunda representa-
ção da coletividade do passado.
Em virtude disso, os historiadores devem compreendê-las
como fontes, que comunicam contextos históricos e sociais e isto
requer consulta de outras informações acerca de uma determi-
nada época. Porém, sempre é preciso estar atento aos ambientes
socioculturais do período analisado para se evitar anacronismos.
Sendo assim, ao se estudar a história de um povo, a cultura
do mesmo, neste caso a indígena, as exposições realizadas acima
permitem um aprofundamento na alma popular e conhecimen-
to de um grupo, de uma etnia, haja vista que a abordagem feita
nos textos literários considerando o que Pesavento (1999), Bor-
ges (2010) e Chartier (2009) discutem, demonstram que as re-
presentações e o imaginário, muitas vezes, transcendem o texto.

144
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A partir da realidade literária, o estudante pode ter a possi-


bilidade de perceber o valor histórico que o tecido textual reve-
la, permitindo uma interpretação sobre o passado, muitas vezes
distante de sua realidade.
Segundo o autor de O uso da literatura na interpretação
histórica: a arte literária como ferramenta para o ensino e a
aprendizagem nas aulas de história, de 2013: “ A comunicação do
texto literário emerge como campo fértil, que a partir de aborda-
gens feitas pelo professor em sala de aula, representa um ganho
não apenas para uma determinada área, mas também para o co-
nhecimento histórico durante o ensino” (ROCHA, 2013, p. 706,
GRIFO NOSSO).
Em síntese, de acordo com Bakhtin, em Questões de litera-
tura e estética: a teoria o romance, de 1998:
A literatura de ficção contemporânea revela o pluringuilismo
e o dialogismo, as diferentes vozes em interlocução no texto,
além da voz do narrador. Sendo assim, esse tipo de expressão
é capaz de constituir algum conhecimento do mundo e alar-
gar a visão do leitor, isso ocorre por meio da transfiguração
da realidade. (BAKHTIN, 1998, p. 67)

ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA


Logo, essa polifonia do qual o teórico menciona, confere
ao texto literário realizar uma leitura dos códigos discursivos,
sociais e culturais de uma sociedade. Afinal, todo ser humano
que vive integrado no contexto de um grupo faz parte de mar-
cações das instâncias mencionadas. E é por essa caracteriza que
o crítico expõe que as imagens criadas nesse tipo de tecido tex-
tual, torna-se um caminho possível para nos permitir atingir o
real, como também vislumbrar as coisas que possa vir a tornar-se
realidade, haja vista ela ser uma construção de relações coletivas
e individuais, em um jogo complexo e em rede de abstrações e
materialidade.
Não é por acaso que a relação ensino e literatura, desde o
período do Renascimento perdeu o caráter público e passou ao
privado, isto é, consoante Zilberman (2006), em Sim, a literatu-
ra educa, transferiu-se para a escola a tarefa de ensinar aquela
em natureza pedagógica. Maia tarde, após a Revolução de 1789,
a autora expõe que “Os franceses introduzem na escola a litera-

145
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

tura nacional, que, a partir de então torna-se objeto da história


literária...” (ZILBERMAN, 2006, p. 19).
Este aspecto do uso pedagógica da literatura é mais uma
possibilidade metodológica ao docente de história para minis-
trar as suas aulas. Ela pode ser usada como tal porque as mudan-
ças que ocorreram desde o século XVI, conferiram ao ensino da-
quela o objetivo de conhecer a história de um país, de um grupo,
de uma sociedade.
Essa escolarização do literário e o existente em relação à
História, trouxe um reducionismo sobre a essencial natureza
dessas duas áreas. Não cabe, neste momento intensificar essa
discussão, mas chamar atenção ao professor que ele pode e deve
transcender a essa delimitação, possibilitando um diálogo fértil
entre a expressão da ficção e a de narrativa de um tempo.
A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”

Por isso é importante que essa característica de aula seja


um espaço funcional. Há uma ‘docência do espaço’ dentro da
sala de aula e este espaço pedagógico deve ser aproveitado pelo
professor. Segundo Vital Didonet em A escola que queremos, de
2013, o espaço pedagógico é referido como um lugar onde os alu-
nos aprendem lições sobre a relação entre o corpo e a mente, o
movimento e o pensamento, este lugar tem que gerar ideias, sen-
timentos, movimentos no sentido da busca do conhecimento.
O uso da literatura no ensino de História possibilita isso,
tanto que para a Lei de Diretrizes e Base – LDB, há a menção de
a educação abranger os processos formativos que estão inclu-
sos no desenvolvimento da vida de uma pessoa, como: família,
convivência humana, trabalho, movimentos sociais e manifes-
tações culturais, porque estas etapas são componentes princi-
pais no ato de aprender, que associados a um bom intermédio
(professor) possibilitam o sucesso garantido de que se interessa
a educação, isto é, a formação do individuo como ser pensante.

A “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA” E A LITERATURA

Mediante as inúmera transformações ocasionadas, princi-


palmente, pela regulamentação da lei 11.649/08, o ensino de his-
tória atualmente deve ser repensado a partir das necessidades de
se contemplar as demandas que são oriundas das perspectivas

146
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

atuais sobre o papel dos indígenas e negros na formação do pro-


cesso histórico do país. E consequêntemente, a desmistificação
de estereótipos que reduzem esses atores a meros coadjuvantes
de suas histórias, assim como prevê os objetivos estipulados pe-
los Parâmetros Curriculares Nacionais – PCNs – (1998) de Histó-
ria para o Terceiro e Quarto Ciclo do Ensino Fundamental:
Conhecer e valorizar a pluralidade do patrimônio sociocul-
tural brasileiro, bem como aspectos socioculturais de outros
povos e nações, posicionando-se contra qualquer discrimi-
nação baseada em diferenças culturais, de classe social, de
crenças, de sexo, de etnia ou outras características indivi-
duais e sociais; (BRASIL, 1998, p. 7)

Assim, após essas mudanças, foi necessário que escolas e


professores repensassem em estratégias de ensino que envol-
vessem essa temática para que não se tornassem profissionais
“(...) obsoleto e ser considerado como mobília antiga que muitos
guardam como lembrança de alguém ou de um tempo passado.”
(FREITAS. PETERSON, 2015, p. 34). Diante disso, a literatura
como parte de uma linguagem auxiliadora no processo de ensino
da história, proporciona também a elucidação de assuntos tidos

ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA


como enfadonhos e desinteressantes, auxiliando a compreensão
de forma facilitada de determinados temas.
Para exemplificar o exposto, tomemos o uso de uma nar-
rativa mítica, portanto, de tradição de uma oralidade, que ga-
nhou literariedade na escrita de Lana (1995), em Antes o mundo
já existia. Em um primeiro momento, após a exposição para os
alunos sobre o protagonismo indígena, já discutido neste teci-
do, é necessário expor a eles as narrativas rio – negrinas quase
sempre aludem à cosmogonia, como ocorre no início do conto
“Origem do mundo e da humanidade – Primeira parte: Origem
do mundo”.
Neste texto, “No princípio o mundo não existia. As trevas
cobriam tudo. Enquanto não havia nada, apareceu uma mulher
por si mesma. Isso aconteceu no meio das trevas. Ela apareceu
sustentando-se sobre o seu banco de quartzo branco” (LANA;
LANA, 1995, p. 19). Esse trecho corrobora afirmação da presença
do elemento cosmogônico.

147
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Sendo assim, as narrativas que constituem o livro expres-


sam a trajetória do povo desana em sua existência na Terra. A
partir desse exposto, o professor de História pode utilizar o iní-
cio de conto para ministrar uma aula que especifica as peculiari-
dades da cosmogonia no universo indígena.
Com efeito, provocar uma reflexão na cabeça dos educan-
dos quanto as semelhanças e diferenças entre os mitos indígenas
e os da cultura greco-latina, possibilita uma discussão fértil ao
terreno da aprendizagem. Esse direcionamento ajuda a entender
as peculiaridades e diversidade de cada grupo étnico indígena,
em comparação ao corpo uniforme da apresentação da mitolo-
gia da Grécia Antiga.
Obviamente, faz-se necessário que o docente percorra os
ensinamentos de autoria de Mircea Eliade, em Mito e Realidade,
A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”

de 1994. Neste pergaminho do conhecimento, a autora nos ensi-


na que “A maioria do mitos gregos foi recontada e, consequen-
temente, modificada articulada e sistematizada por Hesíodo e
Homero, pelos rapsodos e mitógrafos...” (ELIADE, 1994, p. 10).
Logo, é sugestivo até, expor aos alunos que em virtude
de na Amazônia os grupos indígenas não tiveram, em maioria,
chances de resistir aos passos devastadores dos colonizadores e
missionários em quase dois séculos de um genocídio. Antes o
mundo não existia, de Lana & Lana (1995), é, por outro lado, essa
resistência – no sentido de contribuir para a preservação cultural
de um povo (os desanas), por meio da fixação de mitos e de um
pouco da própria história desses indivíduos.
Dessa forma, quando o conto observado narra que surgiu
uma mulher6 no meio das trevas, haviam coisas misteriosas para
ela criar, entre elas: “...um banco de quartzo branco, uma forqui-
lha para segurar o cigarro, uma cuia de ipadu7, o suporte desta
cuia de ipadu, uma cuia de farinha de tapioca e o suporte desta
cuia” (LANA; LANA, 1995, p. 19).
A partir desse trecho, o docente pode explicar aos alunos
alguns traços da agricultura dos povos indígenas, ou seja, eles

6 Personagem de nome Yebá Buró, também conhecida como a “Avó do mundo”


ou “Avó da Terra”.
7 Folhas tostadas e socadas em pilão especial

148
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

compartilham um mesmo modo de vida básico, que inclui a


caça e coleta, mas no qual predomina a pesca e a agricultura de
coivara, sendo a “mandioca brava8” o principal produto.
Nesse interim, quando a literatura temática alguns aspec-
tos da realidade, ela ultrapassa sempre as questões clássicas dos
historiadores e leva-nos um sistema de indagações. O professor
de história pode e deve ser utilizar dessa característica em sala
de aula.
Com efeito, podemos entender que, ao mesmo tempo, a
história se confunde e se opõe à ficção. Na literatura, em essên-
cia, há elementos de uma historização. Ela é uma fonte histórica
enquanto materialidade de práticas de representação de uma
realidade. Assim, para compreender o literário, deve o docente
entender as razões da produção, as modalidades das realizações
da ficção, e as formas de apropriação do passado.
Chartier (1999), expõe que o autor é “o resultado de opera-
ções específicas e complexas que referem a unidade e a coerência
de uma obra, à identidade do sujeito construído” (CHARTIER,
1999, p. 199). Em resumo, o professor deve ter a ciência de que o
texto poder ser de natureza ficcional, mas o autor do texto não é
que escreve o mesmo, mas a função social que ele desempenha.

ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA


Para uma mesma aula, em que o educador possa estar
ministrando sobre uma introdução ao protagonismo indígena
na história brasileira, pode expor no trecho em que se trata de
uma ação e um pensamento de Yebá Buró, ler com os alunos,
em um primeiro momento ou como reflexão para próximo en-
contro com os educandos, realizar a leitura: “Foi ela que pen-
sou sobre o futuro mundo, sobre os futuros seres. Depois de ter
aparecido, ela começou a pensar como deveria ser o mundo.
No seu Quarto de Quartzo Branco, ela comeu ipadu, fumou o
cigarro e se pôs a pensar como deveria ser o mundo” (LANA;
LANA, 1995, p. 19).
Após esse instante, deve explicar aos discentes que esse
recorte da narrativa é uma leitura, em termos simbólicos, da
maloca, construída artisticamente como representação do uni-

8 Em Antes o mundo não existia, há um conto (mito) intitulado “Mito de ori-


gem da mandioca”.

149
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

verso e este é aquela. Com isso, o teto de palha é o céu, os esteios


de suporte são as montanhas, as paredes são as cadeias de serras
que parecem cercar a paisagem visível na beira do mundo, e sob
o chão corre o Rio dos Mortos. E como causa disso, houve uma
exposição sobre a moradia desse indivíduo.
Antes o mundo não existia é, nas palavras de Kruger (2011),
uma representação de um instante em que passou a vigorar o si-
lêncio de um povo, que pela narrativa mítica desse livro, quebra
aquele, nos revelando a reflexão sobre a origem do universo, do
homem e das coisas. Convém ressaltar que interpretação dis-
so só será possível se aquele que media a aula, comprometer-se
com uma educação e ensino que priorize um percurso de cons-
trução e desconstrução que o aluno deve fazer.
A LITERATURA COMO FERRAMENTA PARA O ENSINO DA “NOVA HISTÓRIA INDÍGENA”

Para Luiz & Ferro (2011), esse contexto possibilita a concre-


tização de relações entre o microtexto, na camada da narrativa
literária, e no macro texto, evidenciando um contexto histórico,
social e cultural. Dessa forma, chegamos a comunicação da au-
tora de Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura, de 2009, ou
seja: “Quanto mais conhecimento textual o leitor tiver, quanto
maior a sua exposição a todo tipo de texto, mais fácil será sua
compreensão” (KLEIMAN, 2009, p. 20).
Para tanto, ainda nos concentrando na figura do professor,
neste instante de nossa proposta, é merecedor de atenção que o
professor selecione primeiro as obras baseado no tema da aula e
na maturidade intelectual e de mundo dos seus alunos. Afinal, o
exercício da leitura, em qualquer área do conhecimento, é uma
seleção combinada de textos.
Por fim, pensar no uso da literatura como ferramenta
de ensino de história, permite a possibilidade de se trabalhar
com discursos que revelam um campo simbólico de uma de-
terminada época. Em outras palavras, ela é o observatório das
representações de uma sociedade em um específico tempo,
sendo ela esse atributo, a história é o seu complemento. Isto
é, enquanto a primeira observa, as temporalidades, neste con-
texto apresentado, segunda (história) interpreta a ampulheta
do tempo.

150
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

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ALEXANDRE DA SILVA SANTOS E GIRLANE SANTOS DA SILVA

153
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

UM BREVE ESTUDO ACERCA DA


CONTRIBUIÇÃO DAS IMAGENS
PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN
STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A
ANTROPOLOGIA

Marcos Paulo Mendes Araújo1

INTRODUÇÃO

No século XIX o novo mundo foi “redescoberto”, mas dessa


vez não pelos antigos exploradores. No mencionado período, de-
sembarcaram por aqui no continente americano um número sig-
nificativo de cientistas que buscavam todo tipo de informação que
pudesse servir aos interesses dos grandes financistas da época.
Em relação ao Brasil, cabe destacar a figura do Imperador
Dom Pedro II, que procurou incentivar a vinda desses pesquisa-
dores para o país. Havia uma urgente necessidade de produzir
conhecimentos sobre nosso território e nossas riquezas natu-
rais. Essa busca tinha por finalidade a criação de oportunidades
de negócios futuros.
Sobre essa necessidade nacional, Clarice Ferreira de Sá
escreveu:
Fazia-se necessário conhecer o vasto território no qual se lo-
calizava a nação e para tanto se investia em viagens para a
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

pesquisa e registro do que havia em terras longínquas. Era


de extrema importância que um artista acompanhasse as
expedições científicas realizadas, pois o registro através da
imagem faria parte da formação deste imaginário brasileiro.2

1 Professor da Faculdade Fucapi (Manaus), da Secretaria Estadual de Educa-


ção do Amazonas (SEDUC) e da Secretaria Municipal de Educação de Ma-
naus (SEMED). Mestre em História pela Universidade Federal do Amazonas.
Especialista em História e Cultura Antiga pela UFF e em Docência do Ensino
Superior pela UFRJ. Bacharel em Ciências Jurídicas pela UNIG.
2 SÁ, C. F. de. Os registros científicos da Comissão Científica de Exploração ao

155
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Interessante observar que a pesquisadora comenta que era


importante a presença de profissionais que pudessem registrar
aspectos dessas viagens científicas realizadas por esses pesquisa-
dores estrangeiros. Tais registros poderiam ser feitos através de
desenhos ou fotografias. Neste último caso, como supor, que um
equipamento inventado no fim da terceira década do século XIX,
em pouquíssimo tempo iria transformar a visão de mundo das
pessoas? O que atraiu inicialmente a atenção das pessoas, apenas
como algo curioso ou mesmo “mágico”, e responsável por boa par-
te desses registros, foi a fotografia, que aos poucos foi ganhando
outras dimensões sociais. Sobre isso, comentou Turazzi3:
As imagens do mundo visível não foram mais as mesmas
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

depois dos anos 1839-1840. A invenção que chamamos de


fotografia foi apresentada à Academia de Ciências de Paris
em 19 de agosto de 1839. O que veio depois, ou pelo me-
nos bem depois, todos nós conhecemos: vivemos hoje em
um mundo abarrotado de imagens fotográficas. Mas o que
aconteceu nos meses que se seguiram àquela célebre re-
união de cientistas, jornalistas e curiosos ainda esconde
muitas surpresas e controvérsias. Uma delas é como essa
novidade chegou por aqui.

Nesse interim, uma vez no Brasil em 1840, através do navio


Oriental, o primeiro ensaio fotográfico em solo nacional foi rea-
lizado na cidade do Rio de janeiro em meados do mês de janeiro
daquele ano. O feito aconteceu na antiga hospedaria Pharoux,
que atualmente dá lugar à Praça XV de novembro. Essa primeira
experiência foi realizada pelo francês Louis Jacques Mandé Da-
guerre. Esse feito no Brasil coube ao abade Combes.
No início, a difusão das imagens fotográficas não foi algo
muito fácil em razão dos valores envolvidos, mas aos poucos, foi
sendo popularizado, o que proporcionou algum lucro aos cha-
mados daguerreotipistas.

Ceará e a importância da construção da nação. In. 19&20 Rio de Janeiro, vol.


VI, n. 1. Jan./mar. 2011. Disponível em http://www.dezenovevinte.net/obras/
ccientifica_cc.htm. Acesso em 22 de fevereiro de 2015.
3 TURAZZI, M. I. Máquina viajante. In. Revista de História da Biblioteca
Nacional. Ano 5, n. 52. Janeiro de 2010. P. 18.

156
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Mas, se no início os valores eram altíssimos, duas décadas


depois a popularidade esperada foi surgindo em função do apa-
recimento de técnicas que foram aos poucos barateando os cus-
tos para produção de imagens a partir de técnicas fotográficas.
Um exemplo disso foi o uso do colódio úmido e do papel albu-
minado, que acabaram reduzindo significativamente o valor da
multiplicação das ampliações.4
Assim, os processos fotográficos foram sendo incorporados
aos poucos nos meios sociais. Inicialmente, o espaço privado foi
o alvo dos primeiros fotógrafos que produziam imagens fami-
liares. A fotografia, por vezes, serviu como cartão de visita ou
ainda como o registro da presença das pessoas em determinados
eventos e/ou instituições. E foi justamente a partir desses usos
que ela acabou ganhando um espaço cada vez maior no país, até
chegar ao ponto do governo institucionalizar o seu uso.
Mas, se por um lado ela ganhou aos pouco uma significa-
tiva projeção, por outro, ainda existiam certas barreiras para seu
uso frequente nas expedições científicas, sobretudo, nas mais
antigas, principalmente em razão da logística que deveria ser
montada para seu uso pleno durante as viagens. Nesse caso, ao
lado das máquinas fotográficas, viajavam também as pranchetas
de desenho que seriam utilizadas para igualmente registrar as-
pectos observados pelos cientistas.
E foi pensando nisso, que esta proposta de estudo nasceu.
Após algumas leituras de relatos de viagens científicas observa-
das, fica evidenciado que as imagens produzidas nas expedições
são de fato os fios condutores da criação de consciência, acerca
dos conhecimentos reunidos sobre os locais e pessoas visitadas.
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

A fim de ilustrar este estudo, foram escolhidas duas jornadas que


tiveram como propostas o fazer ciência, e realizadas por alemães:
a primeira conduzida por Karl von den Steinen, no ano de 1884,
entre as Províncias do Mato Grosso e do Pará. O objetivo central
dessa expedição foi identificar as nascentes do Rio Xingu. Para
tal, o explorador contou com a ajuda do governo que colocou
militares a disposição de Karl von den Steinen para facilitar as
atividades desenvolvidas pelo explorador.

4 VASQUES, P. Fotografia, reflexos e reflexões. Porto Alegre: L&PM, 1986. P. 19.

157
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Essa expedição contou também com a presença de Wi-


lhelm von den Steinen. Primo do líder da jornada, ele possuía
uma sólida formação em desenho, o que em muito colaborou
com os registros da viagem, que serão alvos deste estudo de ago-
ra adiante.
Sendo assim, a segunda viagem exploratória escolhida para
ilustrar esse estudo, foi a realizada pela cientista Mathilde Maria
Elisabeth Emilie Stnethlage. Essa pesquisadora realizou uma tra-
vessia entre os rios Xingu e Tapajós no ano de 1909.
Em ambos os casos, foram produzidas imagens que ajudam
a entender a dinâmica dessas viagens, com todos os seus porme-
nores. A proposta central do trabalho, dessa forma, é apresentar
um estudo sobre tais imagens e sua importância para os estudos
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

antropológicos realizados posteriormente no Brasil, acerca das


populações indígenas mencionadas por Karl von den Steinen e
Emilie Snethlage.

WILHELM VON DEN STEINEN E AS IMAGENS DA


VIAGEM AO XINGU DE 1884

Imagem 1 – Karl von den Steinen com a arma na mão, Wilhelm von de Stei-
nen de cachimbo e Otto Clauss deitado. Fonte: https://www.visual-history.
de/2015/06/23/alberto-henschel-und-die-fruehe-portraetfotografie-in-brasilien/.

158
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

No início do ano de 1884, chegou ao Brasil uma comissão


científica formada por três alemães: o médico e etnólogo Karl
von den Steinen, que liderava a expedição; o engenheiro Otto
Claus e o desenhista Wilhelm von den Steinen5. Após desembar-
carem em setembro de 1883 na cidade de Montevidéu no Uru-
guai, provenientes de uma expedição ao polo sul, Karl von den
Steinen e Otto Claus, encontraram Wilhelm, este os esperava,
para juntos empreenderem uma viagem científica no território
brasileiro (imagem 1).
A chegada de Karl von den Steinen ao Brasil e sua intenção
de realizar uma viagem científica no interior do país, foi acom-
panhada com interesse e entusiasmo por alguns intelectuais
brasileiros. Para algumas pessoas, as pesquisas promovidas pe-
los cientistas estrangeiros, no território nacional, colaboravam
com os esforços empreendidos por uma elite intelectual brasilei-
ra que perseguia o estabelecimento de uma identidade nacional.
Sobre isso, Maria Isaura Pereira de Queiroz assim se referiu:
Um dos principais problemas que os cientistas sociais bra-
sileiros buscaram resolver em fins do século XIX foi o da
existência e características da brasilidade, que segundo eles
se comporia de duas vertentes: um patrimônio cultural for-
mado por elementos harmoniosos entre si, que se conserva-
ria semelhante através do espaço e do tempo; e a partilha do
patrimônio cultural pela grande maioria dos habitantes do
país, em todas as camadas sociais6.

A chegada dos três alemães ocorreu após uma série de con-


tatos estabelecidos entre autoridades de ambos os países, ou
seja, do Brasil e da Alemanha. Sua entrada no território brasi-
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

leiro deu-se através do Paraguai, de onde partiram em um va-


por em direção a cidade de Corumbá, após uma estada de apro-

5 Como foi dito anteriormente Wilhelm von den Steinen era primo de Karl von
den Steinen e atuou na comissão como pintor e desenhista. Consta na obra de
etnólogo que seu primo recebeu instruções para viagem na cidade Hamburgo
onde estudou com o professor Neumayer, que também o orientou na escolha
dos instrumentos necessários à expedição.
6 QUEIROZ, M. I. P. de. Identidade Cultura, Identidade nacional no Bra-
sil. In. Tempo Social: Revista de Sociologia da Universidade de São Paulo. I (1):
29-46, 1º semestre de 1989. P. 62-63.

159
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ximadamente três semanas na capital paraguaia. Nesse tempo


realizaram uma espécie de oficina para se adaptarem à língua
portuguesa. A chegada à cidade de Corumbá, ocorreu no dia 26
de março, data que marca oficialmente a chegada de Karl von
Steinen e seus companheiros em solo nacional.
Logo em seguida, o grupo embarca no vapor “Coxipó” em
direção a Cuiabá, fato que marcaria o início da viagem explorató-
ria do grupo. Assim, o desembarque dos alemães ocorreu no dia
30 do mesmo mês. No seu livro, Karl von den Steinen informou
que nesta cidade ele e seus companheiros permaneceram por
quase dois meses, tempo em que fizeram os contatos necessá-
rios à viagem, pois organizaram os equipamentos e contrataram
pessoas. Durante esse tempo, Steinen registrou vários aspectos
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

da cidade, tais como: informações sobre os moradores, clima, as


ruas e casas, as festividades, bem como, sobre sua estada entre os
brasileiros da capital mato-grossense.
Levando em conta o estudo realizado por Maria Helena
Ortolan Matos, é possível afirmar que as viagens realizadas por
Karl von den Steinen no Brasil estão inseridas em um contexto
onde as explorações científicas eram tratadas como uma espécie
de investimento por determinados agentes financiadores. Estes
esperavam que os relatos desses viajantes, como os de Steinen,
pudessem apontar as potencialidades econômicas das regiões
visitadas7.
A presença de Karl von den Steinen no território brasileiro,
sobretudo, nas áreas margeadas pelo rio Xingu, ao que parece,
foi diretamente influenciada pela presença de outros europeus
na região amazônica, como fica constatado no primeiro capítu-
lo de sua obra sobre a visita ao Xingu, em 1884. Nesta parte do
trabalho do alemão, aparece o nome de vários viajantes, explo-
radores e cientistas que estiveram na região desde o século XVI8.

7 MATOS, M. H. O. Barbosa Rodrigues e o indigenismo brasileiro: quando o


naturalista viajante faz mais que olhar e anotar, ele incomoda. In. CARVALHO
JÚNIOR, A. D. de.; NORONHA, N. M. (orgs.) A Amazônia dos Viajantes:
História e Ciência. Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2011. P. 168.
8 Karl von den Steinen menciona, entre outros, Francisco de Orellana, Pedro
Teixeira, Christoval Acuña, Maurício de Heriarte, Samuel Fritz, além dos pa-
dres Manoel de Souza e Rochus Hundertpfund.

160
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Isso demonstra que Steinen possuía um conjunto de informa-


ções bastante diversificado sobre a região que pretendia visitar.
Mas, de todas as possíveis influências presentes na obra de
Karl von den Steinen que o levaram a visitar os sertões do Brasil
em duas ocasiões, a que parece ter sido mais significativa, foi a
do Príncipe Adalbert von Preussen, que esteve visitando a parte
norte do Xingu em 1843, quando teve a oportunidade de conhe-
cer as comunidades indígenas situadas na região denominada de
Piranhacoára.
Os registros deixados pelo nobre, dão conta que as regiões
visitadas por ele eram consideradas desconhecidas, o que atraiu
o interesse de alguns pesquisadores para a necessidade de ex-
plorar o Xingu. Ao que parece, esta foi a motivação inicial que
conduziu Karl von den Steinen ao Brasil, a fim de explorar os as-
pectos geográficos e naturais do rio mencionado pelo nobre em
sua obra.9
Além de conhecer a geografia do rio Xingu, também inte-
ressava a Karl von den Steinen investigar as populações nativas
que habitavam suas margens, e foi justamente estas investiga-
ções e pesquisas que apareceram em 1886 no livro publicado por
Steinen, na Alemanha, e que ganhou uma tradução no Brasil sob
o título de O Brasil Central.
Nesse sentido, as pesquisas realizadas por Karl von den Stei-
nen entre às populações indígenas no Brasil, foram fortemente
influenciadas pelas teorias das ideias elementares e dos círculos
culturais difundidas por Aldolf Bastian10, que esteve com Steinen

9 O livro escrito pelo príncipe Adalberto da Prússia ganhou pelo menos duas
traduções no Brasil, entre elas, a que foi publicada pelo Senado Federal: PRÚS-
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

SIA, A. da. Brasil: Amazonas – Xingu. Trad. Eduardo de Lima e Castro. Bra-
sília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2002. Coleção: O Brasil Visto por
Estrangeiros.
10 Karl von den Steinen foi um discípulo do etnólogo Adolf Bastian que criou
a corrente teórica que ficou conhecida como Teoria das Ideias Elementares
ou Elementargedanken. Segundo Robert Lowie, Bastian defendia a ideia da
existência de uma unidade psíquica na humanidade que produz em todos os
homens um conjunto de ideias semelhantes, mas que os estímulos externos
provocariam reações diferentes nos mesmos, o que acabaria por resultar em
diferenças ou similitudes entre os povos que estavam organizados em áreas
culturais. In. LOWIE, R. História de la Etnologia. México: Fondo de Cultura
Economica, 1946. p. 50.

161
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

na Polinésia em 1880. E foi justamente após este encontro que


Karl von den Steinen passou a ter interesse nas pesquisas etnoló-
gicas, acarretando o início de suas viagens pelo mundo.
E foi, justamente nesse contexto, que Karl von den Stei-
nen desembarcou no território brasileiro com outros dois com-
panheiros. Munidos de alguns conhecimentos sobre o Xingu,
parcos recursos financeiros e com alguns equipamentos, vieram
ao Brasil com o intuito de realizar a viagem entre as cidades de
Cuiabá e Belém do Pará a fim de identificar, entre outras coisas,
as nascentes do rio mencionado.
Como mencionado anteriormente, a viagem ocorreu ao
longo de quase seis meses e os pesquisadores contaram com a
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS

companhia de dois oficiais do Exército Brasileiro, ou seja, vinte


CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

cinco praças do 8º Batalhão de Infantaria, militares de cavalaria,


além de dois guias e de um prático. Logo após o término da via-
gem exploratória, Karl von den Steinen publicou na Alemanha o
resultado de suas pesquisas em uma obra composta por vinte e
quatro capítulos e nove apêndices.
Nela, o pesquisador registrou, entre outras coisas, infor-
mações sobre a Província do Mato Grosso, aspectos sobre a via-
gem realizada entre a cidade de Assunção e Corumbá, além do
trecho entre esta cidade e Cuiabá. Mas, de todas as observações,
descrições e análises apresentadas na obra, as que ganharam
mais destaque, foram aquelas relacionadas aos contatos com os
grupos indígenas que habitavam as margens dos rios onde esti-
veram os expedicionários.
Sobre esses contatos com os índios, foram destinados treze
capítulos da obra, onde os mesmos aparecem em destaque, inclu-
sive no título dos capítulos, além de outros três que também pos-
suem informações sobre tais grupos indígenas. Sobre a disposição
dessas informações no livro, elas estão situadas entre as seções
doze e vinte e quatro. Ainda sobre as mesmas presentes na obra,
as que fazem menção aos grupos indígenas foram encontrados ao
longo da viagem, e cabe mencionar que esses grupos foram, res-
pectivamente, Bacairí, Trumaí, Suiá, Manitsauá e Juruna.
Sendo assim, os registros de Karl von den Steinen estavam
carregados com os discursos naturalistas da época, que demons-

162
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

trava preocupação com a ação devastadora que os contatos com


a civilização poderiam provocar entre as populações indígenas,
estes eram observados como primitivas. Para isso, ele procurou,
além de realizar as pesquisas antropológicas entre os índios, re-
colher peças da cultura material que pudessem documentar a
existência desses grupos.
O que os nossos museus conservam da imagem de antigos
tempos é no fundo uma miserável coleção de coisas em série.
Dentro de um armário de vidro está a vida de um povo. Mas,
na falta de coisa melhor, esses trapos coloridos e esses vasos
maravilhosos servirão para testemunhar às gerações vindou-
ras o desenvolvimento da humanidade, e, por isso, assumem
progressivamente a importância de documentos, embora
pareçam bagatelas11.

Além da produção textual produzida por Karl von den Stei-


nen sobre a viagem, também foi produzida um rico conjunto de
imagens. Para tal feito, o médico e antropólogo trouxe o primo, o
desenhista Wilhelm von den Steinen, que ficou encarregado de
produzir as imagens da expedição.
Mesmo levando em conta que na época da viagem foi rea-
lizada a produção de desenhos de viagem, a proposta não era de
representar um diferencial para a produção de conhecimentos
científicos. Wilhelm foi contratado por Karl para servir como
cronista artístico da expedição, o que o colocava de certa forma,
em uma posição de destaque.
Nesse contexto, o desenhista da 1ª expedição científica rea-
lizada especificamente ao rio Xingu, havia estudado na Acade-
mia de Artes de Dusseldorf, onde foi matriculado no ano de 1879,
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

aos vinte anos de idade. Considerada como uma das academias


mais respeitadas na época, o jovem Wilhelm pode compartilhar
seus dias com alguns dos melhores ilustradores da Europa da-
quela época.
Os anos seguintes à formatura não foram de grandes traba-
lhos. Segundo Renate Loschner o desenhista realizou alguns tra-

11 STEINEN, K. v. d. O Brasil Central: expedição em 1884 para a exploração do


rio Xingu. Trad. Catarina Baratz Cannabrava. Ed. Ilustrada. São Paulo: Cia.
Editora Nacional, 1942. P. 378.

163
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

balhos pouco significativos, com destaque apenas para algumas


ilustrações para a obra de Arthur Baessler sobre arte pré-colom-
biana do Perú antigo. Assim, é importante registrar que a viagem
ao Xingu, em 1884, foi a grande oportunidade da vida de Wi-
lhelm para mostrar seu trabalho como desenhista e ilustrador.
Durante a viagem ao Xingu, o artista produziu basicamen-
te esboços a lápis, desenhos a bico de pena e alguns poucos dese-
nhos a óleo que acabaram perdidos por ocasião de um acidente,
que levou para o fundo do rio, uma canoa com todo seu trabalho.
Como consequência, a produção do desenhista que foi publica-
da na obra de seu primo, e é possível perceber sua preocupação
com certos detalhamentos, tais como: fisionomias, detalhes da
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS

indumentária, aspectos relacionados aos adornos, pinturas e ta-


CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

tuagens. (imagem 2)

Imagem 2 – Desenho demonstrando as dificuldades enfrenta-


das por karl von den Steinen em 1884 durante sua expedição. Fon-
te: http://olimpiareisresque.blogspot.com.br/2013/11/

Ainda segundo Loschner é interessante informar que a


obra de Wilhelm retrata aspectos de algumas comunidades que
já não existem mais, ou seja, tais registros se tornaram únicos.
Outro aspecto que merece destaque no conjunto da obra do ar-
tista, são os retratos que ele produziu de alguns índios que tive-
ram contato com os expedicionários ao longo da viagem.

164
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Também foi alvo de seus lápis e bicos de pena, aspectos do


cotidiano dos indígenas visitados. Procurou produzir imagens
fiéis das moradias, dos objetos mais simples, armas, ferramen-
tas. Sobre esse aspecto comentou Loschner:

Com o lápis, Steinen acompanhava delicadas estruturas


trançadas, procurando desvendar a habilidade artesanal dos
índios. Preocupava-se com detalhes, como a amarração de
redes e dispositivos para fogões. Desenhava ossos, conchas,
animais, equipamento doméstico, cestos de transporte, pa-
nelas, tigelas, flechas, máscaras, figuras de palha e madeira,
e muito mais.12

É possível perceber que o artista possuía significativo in-


teresse em retratar pessoas e seu cotidiano, a ponto de não ter
explorado de forma mais incisiva as paisagens. Nesse sentido,
o que destoa do texto de seu primo, é o fato de que ele procura
dar ênfase aos aspectos naturais dos pontos visitados pelos
expedicionários.
Sobre isso Loschner registrou:

O desenho correspondente de Wilhelm é um desaponto. Do


traçado uniforme com que o desenho é tratado emergem fo-
lhas de palmeira meramente sugeridas. Mesmo em outros
quadros, Wilhelm mal individualizou as formas vegetais.
Suas paisagens poderiam localizar-se em qualquer parte do
mundo: montanhas, floresta e plantas são apenas indicadas
quando Wilhelm registra casas indígenas, povoados ou a ve-
getação tropical além da margem de um rio.13

Também é importante registrar que a obra de Karl von


MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

den Steinen também conta com muitas pranchas produzidas


pelo artista Johannes Gehrts. Elas foram criadas a partir das
descrições de Wilhelm. Esse artista especializou-se em pintu-
ras e desenhos relacionados à história e a mitologia dos gru-
pos observados. As obras desse artista de Dussedorf procuram

12 LOSCHNER, R. As ilustrações nos livros de viagem de Karl von den Steinen.


In. COELHO, V. p. (org.) Karl von den Steinen: Um Século de Antropologia
Xingu. São Paulo: Edusp, 1993. P. 141.
13 Idem 12. Pag. 144.

165
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

reproduzir aspectos da vida indígena, do decorrer da viagem e


de acontecimentos fora do comum14. (imagem 3)
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

Imagem 3 – Dueto de Flautas. Fonte: https://br.pin


terest.com/pin/731553533194906630/

Sobre as ilustrações contidas na versão do livro de Karl von


den Steinen, publicada no Brasil em 1942, a partir da obra origi-
nal “Durch Central-Brasilien” em 1886, em Leipzig, Alemanha;
após alguns levantamentos, obteve como resultado: a obra em
10 estampas feitas por Johannes Gehrts, e outras 13 de autoria do
próprio Wilhelm von den Steinen. No início de cada capítulo são
encontradas vinhetas. Além disso, são encontradas 48 gravuras
atribuídas à Wilhelm. Dessas estampas vinte e sete, elas são vol-
tadas para a apresentação de paisagens visitadas pelos explora-
dores. Outras catorze apresentam a representação de pessoas,
além de seis estampas com imagens de objetos.
Levando em conta o trabalho de Wilhelm von den Steinen,
acerca de seus desenhos e ilustrações de pessoas e do cotidiano
das aldeias, bem como, na coordenação e montagem das demais
obras que compõem o livro publicado por seu primo Karl sobre
a 1ª viagem de exploração do rio Xingu, Loschner afirma que o
mesmo tornou-se uma espécie de “pai” da etnologia brasileira,
figurando com significativo destaque ao lado de figuras como

14 Idem 13. Pág. 144.

166
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Adalberto da Prússia ou mesmo Humboldt, que foram igual-


mente importantes para o paisagismo artístico.

A TRAVESSIA ENTRE O XINGU E O TAPAJÓS15.

Nascida Henriette Mathilde Maria Elisabeth Emilie Sne-


thlage16 (imagem 4) em Brandeburgo no dia 13 de abril de 1868,
formou-se em Ciências Naturais, tornando-se mais tarde orni-
tóloga. Segundo algumas pesquisas, Emília foi aluna de dois ex-
poentes do Darwinismo: Friedrich Weismann e Ernest Haeckel,
que contribuíram significativamente com as pesquisas e as obras
de Emília.

Imagem 4 – Emília Snethlage. Fonte: http://conexaoplaneta.


com.br/blog/emilie-snethlage-uma-mulher-inspiradora/
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

Emília chegou a ser diretora do Museu Paraense Emilio


Goeldi, em 1909 realizou uma viagem exploratória pelo territó-

15 Título do texto de Emília Snethlage. A obra de referência para este texto é um


fac-silime publicado em 2002 pelo Governo do Estado do Amazonas. SNE-
THLAGE, E. A Travessia entre o Xingu e o Tapajós (fac-similado). Manaus:
Edições Governo do Estado do Amazonas; Secretaria de Estado da Cultura, Tu-
rismo e Desporto, 2002. Coleção Documentos da Amazônia, n. 98. O original
da obra foi publicado em 1913 por: E, Lohse e Cia. (Pará).
16 A pesquisadora será tratada a partir deste ponto do trabalho simplesmente
como Emília.

167
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

rio compreendido entre os rios Xingu e Tapajós. A pesquisadora


saiu de Belém no dia 11 de outubro de 1908 e após oito dias, che-
gou à cidade de Santarém onde realizou alguns estudos prelimi-
nares que serviram de base para a jornada que iria realizar quase
um ano depois. Durante o tempo que permaneceu na região em
1908, realizou a pesquisadora pequenas incursões em compa-
nhia de moradores da região.
No ano seguinte, no mês de junho, a pesquisadora vol-
tou para a região. Tendo chegado à localidade de Victoria,
a bordo do vapor Brito. Nesta localidade, Emília aguardou
por duas semanas até a chegada daquele que seria seu com-
panheiro de viagem. Durante este tempo, aproveitou para
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

realizar algumas pesquisas. Visitou algumas colônias, tendo


realizado algumas observações na região de Altamira às mar-
gens do rio Xingu.
Algum tempo depois encontrou o coronel Ernesto Accioly
de Souza que, segundo a pesquisadora, foi decisivo para o su-
cesso da expedição, tenho acompanhado a mesma durante um
determinado período. Após alguns dias de extremo sacrifício
navegando por rios no período da seca, chegaram à localidade
conhecida como Santa Júlia, onde permaneceram até o dia 18
de julho de 1909, data em que partiram em direção à Bocca do
Juruá onde chegaram no dia 04 de agosto.
Após alguns dias na mencionada região, continuaram
a jornada até chegarem na região conhecida como Bocca do
Curuá. Neste local, a pesquisadora informa ter encontrado pela
primeira vez com índios selvagens. Ainda segundo Emília, tra-
tava-se de índios Chipayas e Curuahés. Sobre esses nativos, a
pesquisadora apresentou em seu texto um estudo detalhado,
mencionando inclusive as obras de Coudreau, Adalberto da
Prússia e Karl von den Steinen.
Sobre os índios com que travou contato, em uma passa-
gem de sua obra, comentou Emília Snethlage o seguinte:

Não obstante esta indiferença aparente o tudo me fez uma


impressão de cortesia e formalidade completas, muito

168
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

surpreendentes em selvagens que costumamos considerar


como pouco mais adeantados que os animaes. [sic].17

Essa passagem é interessante, pois parece demonstrar


que a pesquisadora que possuía atenção aos estudos da fauna
e da flora, não demonstra possuir um olhar acerca dos índios
diferente daqueles de sua época que eram carregados de cer-
to preconceito. Para reforçar isso, também podemos destacar
outra passagem que possui a mesma perspectiva, quando há a
apresentação de comentários sobre a esposa e os filhos do índio
Manoelsinho:
A sua mulher, uma Juruna bela de aspecto altivo, e os seus
filhos ainda estavam vestidos (mais exacto não vestidos) à
moda primitiva, em quanto ele mesmo trajava calça e camisa
e até um chapéu de feltro preto, do qual parecia não pouco
desvanecer-se.18

Continuando seus relatos, Emília informa que logo no iní-


cio os índios não queriam acompanhar a pesquisadora na viagem
entre o Xingu e o Tapajós, mas que aos poucos foram convenci-
dos a realizarem a viagem exploratória. Quem tratou de arrumar
os indígenas para acompanhar Emília foi o coronel Ernesto, em
conjunto com o índio Manoelsinho. Segundo a pesquisadora,
nessa ocasião ela teve um accesso de malária19.
O dia 28 de agosto de 1909 foi o escolhido para o início
da viagem de travessia (imagem 5). No dia combinado, Emí-
lia chegou cedo ao local combinado e encontrou seus acompa-
nhantes na “aventura”. Eram eles: o índio Maitumá com suas
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

duas esposas (Comaicarú e Umarú); o índio João com sua espo-


sa Parimarú, o índio Topá e outro índio Caruahé (de nome não
informado), ou seja, a comitiva era formada por Emília, quatro
índios e três índias.

17 SNETHLAGE, E. A Travessia entre o Xingu e o Tapajós (fac-similado). Ma-


naus: Edições Governo do Estado do Amazonas; Secretaria de Estado da Cultu-
ra, Turismo e Desporto, 2002. Coleção Documentos da Amazônia, n. 98. P. 64
18 Idem 17. P. 64.
19 Idem 17. P.69.

169
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

Imagem 5 – Mapa dos territórios percorridos por Emí-


lia e seus companheiros de viagem.
Fonte: http://historiaszoologicas.blogspot.com.br/2014/08/

A expedição exploratória do território compreendido entre


os rios Xingu e Tapajóz representou uma página muito signifi-
cativa das explorações da Amazônia brasileira. Emilia Snethla-
ge, ao longo dos vários dias em que esteve à frente da jornada,
realizou uma série de estudos sobre as regiões visitadas, dando
notícias sobre aspectos da vegetação, clima, animais em geral
(pássaros, macacos, peixes, etc.).
Também foi alvo do texto, os aspectos relacionados ao re-
lacionamento entre a pesquisadora e seus acompanhantes. Esse
contato mais próximo serviu para estreitar as relações de Emília
com esse outro mundo (dos nativos), que até então era muito
distante para ela. Um aspecto muito interessante, e que possui
relação com o intenso contato dela com seus acompanhantes,
diz respeito à língua. Segundo Emília, naqueles dias de convi-

170
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

vência, ela tentou aperfeiçoar seus conhecimentos acerca da lín-


gua dos índios Curuahé. Sobe isso comentou:
Aproveitei de todas as ocasiões para completar o meu voca-
bulário curuahé, mas isto foi agora bem mais difícil que no
tempo em que manoelsinho servia como interprete...Tentei,
com efeito, obter alguns verbos, imitando as acções de comer,
beber, dormir, etc, o que divertia muito os índios; mas não sei
qual é a forma gramatical das palavras obtidas d’este modo20.

A viagem que estava programada inicialmente para um


pouco mais de uma semana, acabou sofrendo com muitos con-
tratempos. Em decorrência disso, a expedição acabou sendo
estendida, sendo concluída após vinte e seis dias de caminha-
da. Ao longo desse tempo, durante o convívio da pesquisadora
alemã com os nativos muita coisa ocorreu, tais como, proble-
mas para aquisição de alimentos, dificuldades para arrumarem
acampamentos seguros.
Esse período serviu, entre outras coisas, para mudar a visão
da pesquisadora sobre os indígenas da Amazônia. Sobre isso, ela
comentou:
Aprendi a estimar e amar os índios curuahés como gente es-
sencialmente boa, d’um carater infantil e amavel, doceis e não
destituidos de intelligencia, bem dignos d’uma outra sorte
que da de tantas outras tribos selvagens que foram malvada-
mente aniquiladas por uma civilização nem sempre superior
sob o ponto de vista moral aos seus costumes primitivos.21

Sem dúvida, essa passagem do texto é muito significativa


para os estudos antropológicos da época. Uma pesquisadora tão
intensamente dedicada à causa da Amazônia, ao registrar essa
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

visão em sua obra, contribuía em muito para construção de uma


visão mais contemporânea sobre os índios brasileiros.
A fim de enriquecer sua pesquisa, Emília Snethlage pro-
curou registrar em forma de vocabulário algumas palavras e
expressões das línguas dos índios Chipaya e Curuahé, respecti-
vamente. Ao todo foram 227 vocábulos que procuraram cercar
aspectos relacionados ao corpo, universo, estações climáticas,

20 Idem 17. Páginas 78-79.


21 Idem 17. Páginas 88-89.

171
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

pessoas, ferramentas, armas, objetos de uso cotidiano, animais


da floresta, plantas e árvores, além de verbos relacionados aos
afazeres dos expedicionários ao longo da viagem.
Por fim, chegamos ao aspecto que mais interessa a este es-
tudo, que são as imagens produzidas ao longo da expedição. Na
obra publicada em 1913, os leitores puderam contemplar 17 foto-
grafias produzidas pela própria pesquisadora. Infelizmente, não
foi informado no texto que tipo de máquina ela utilizou.
As fotos servem para dimensionar bem a expedição. Além
das imagens que retratam as paisagens por onde o grupo passou,
temos nove fotografias exclusivamente destinadas às pessoas ou
às suas ações nos ambientes por onde passaram ou residiram.
Sobre as fotografias que contribuem com os estudos antropo-
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

lógicos no Brasil cabe dar destaque as fotos que apresentam os


índios que tiveram contato com a pesquisadora. Em uma dessas
fotografias é possível ver o índio Manoelsinho com seus compa-
nheiros (nativos) em uma pose feita na região da boca do Curuá.
Nessa foto, é possível observar ao menos 20 indígenas, entre ho-
mens, mulheres e crianças.
Em outra imagem, também tirada às margens do rio Curuá,
é possível ver índios Chipaya e Curuahé juntos. Além dessa, em
outra foto, é possível observar um grupo formado por oito índios
seminus armados com flechas, que seriam Chipaya e Curuahé.
(imagem 6)

Imagem 6 – índios em pose às margens do rio Curuá.


Fonte: http://historiaszoologicas.blogspot.com.br/2014/08/

172
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Emília aproveitou também para fotografar seus três guias


Curuahé. Para isso, ela optou por fotografá-los de frente com
suas armas, bem como, em uma pose lateral. Um dos índios apa-
rece completamente nu e os outros dois com um pano na cintura
que não tapa a genitália.
Em outra foto, a pesquisadora optou por fotografar so-
mente as índias. Para isso, optou também por juntar as mulhe-
res Chipaya e Curuahé. As indígenas aparecem com seus trajes
e ornamentos típicos, bem como, com seus filhos e filhas, igual-
mente, ornamentados. Nessa fotografia, merece destaque duas
indígenas que estão carregando as crianças mais novas.
Por fim, merece destaque também uma fotografia feita por
Emília de um casal de índios Chipaya. O índio aparece seminu
com um adorno de penas na cabeça, enquanto sua esposa apre-
senta uma espécie de saia listrada, alguns ornamentos no pulso e
na canela, e um enorme colar, estando com os seios descobertos.
As imagens produzidas por Emília Snethlage sem dúvida
contribuem significativamente para os estudos antropológicos
acerca de alguns grupos humanos da floresta amazônica. Os co-
nhecimentos difundidos pela pesquisadora a partir de seus tex-
tos e suas imagens, até hoje ajudam a entender aspectos impor-
tantes da cultura dos Chipaya e dos Curuahé,

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

Após uma leitura atenta da obra de Karl von den Steinen


sobre sua visita ao Xingu em 1884, bem como, do texto produ-
zido por Henriette Mathilde Maria Elisabeth Emilie Snethlage a
partir de sua travessia entre os rios Xingu e Tapajóz, vinte e cinco
MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

anos depois de Steinen, é possível compreender a importância e


a dimensão desses estudos para Antropologia.
É necessário dizer que ambas as obras estiveram compro-
metidas inicialmente com aspectos geográficos. Porém, ao longo
de ambas as viagens, os aspectos humanos ganharam status e
acabaram roubando a cena. Foram produzidos conhecimentos
sobre alguns grupos indígenas da Amazônia que até hoje reper-
cutem nos meios acadêmicos, tornando-se referência para vá-
rios outros estudos.

173
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Além disso, as imagens que foram produzidas e que com-


põem a obra de Emília Snethlage e que estão presentes da obra
de Steinen, ajudam a dimensionar as viagens exploratórias, as
dificuldades enfrentadas pelos exploradores, mas sem dúvida, o
principal é o conjunto de informações coletadas sobre as popu-
lações indígenas que foram localizadas e estudadas pelos pes-
quisadores.

REFERÊNCIAS:

FONTES IMPRESSAS:
UM BREVE ESTUDO ACERCA DA CONTRIBUÇÃO DAS IMAGENS PRODUZIDAS NAS VIAGENS
CIENTÍFICAS DE KARL VON DEN STEINEN E EMILE SNETHLAGE, PARA A ANTROPOLOGIA

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HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

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MARCOS PAULO MENDES ARAÚJO

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-mulher-inspiradora/
http://historiaszoologicas.blogspot.com.br/2014/08/
https://www.visual-history.de/2015/06/23/alberto-henschel
-und-die-fruehe-portraetfotografie-in-brasilien/
http://olimpiareisresque.blogspot.com.br/2013/11/

175
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM


SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL,
BRASIL

Estelamaris Dezordi1

INTRODUÇÃO

Os Mbyá pertencem à família linguística Tupi-Guarani, fa-


lantes da língua Guarani, estão presentes nos estados litorâneos
brasileiros desde o Espírito Santo até o Rio Grande do Sul. Exis-
tem informações de que algumas famílias estabeleceram aldeias
nos estados brasileiros do Pará e Tocantins, eles também vivem
nos territórios argentino, paraguaio e eventualmente em espaço
uruguaio (TEMPASS, 2010).
De acordo com dados levantados e contabilizados no úl-
timo Censo pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Esta-
tística), no ano de 2010, os Mbyá residentes no Brasil somariam
8026 pessoas. Considerando os registros que foram coletados e
processados cinco anos atrás, decorre disso que a grande mo-
bilidade espacial que permeia o modo de ser dessa etnia, deve-
-se atentar para a imprecisão dessas informações que não estão
atualizadas nesse momento. Estas estão residindo na região no-
roeste do Estado do Rio Grande do Sul em torno de 250 pessoas
da etnia Mbyá. Para ser mais específico, no município de São
Miguel das Missões na Tekoa Koenju (Aldeia Alvorecer), vive
a grande maioria, já em Santo Ângelo na Tekoa Pyaú (Aldeia
ESTELAMARIS DEZORDI

Nova), estão vivendo cerca de 36 pessoas.

1 Mestra em Antropologia - Programa de Pós-Graduação de An-


tropologia (PPGAnt), área de concentração Antropologia Social e
Cultural pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel), bolsista da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande do Sul (FAPERGS).
E-mail: estelamarisdezordi@gmail.com.

177
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Figura 1: Mapa de localização Região das Missões, municípios de Santo Ângelo e


São Miguel das Missões – RS. Fonte: MATTOS, Gil & DEZORDI, Estelamaris.

A população Mbyá recenseada pelos pesquisadores do


IBGE em 2010 passou a fazer parte do cenário na região das
Missões, em meados do final da década de 1980 e início de
1990, quando algumas poucas famílias começaram a chegar em
São Miguel das Missões e organizar seus acampamentos. Essa
situação foi relatada por Souza (1998) quando esteve no local
acompanhando a movimentação de José Acosta e sua família,
que na época circulavam entre a Argentina e o Brasil, e poste-
riormente de outras famílias que se estabeleceram no entorno
do Parque da Fonte Missioneira - local que abriga remanes-
centes de uma das fontes de abastecimento de água da antiga
Redução de São Miguel Arcanjo (1687). Assim, retroceder no
tempo, permite reativar memórias que estão relacionadas aos
acontecimentos históricos ocorridos na Região das Missões e
demais locais no Estado do Rio Grande do Sul e que dizem res-
peito às migrações e à circulação dos Mbyá em busca de terras
para viver.

178
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

O “retorno” e o assentamento dos Mbyá que retomam es-


paços considerados por eles como territórios pertencentes aos
seus antepassados, podem ser analisados por um viés que salien-
ta os contatos com a sociedade nacional.
Ao observar as novas situações de deslocamentos dos Gua-
rani que circulam pelas Missões brasileiras, argentinas e para-
guaias, é possível perceber a presença de um contexto sócio-his-
tórico de movimento.
Sobre movimento e territorialização, Cavalcante (2013, p.
36) afirma,
A importância da territorialização humana não exclui, no
entanto, a importância do movimento que está presente na
vida das pessoas desde os tempos mais remotos, logo se con-
clui que a territorialização não é estática, pois também se dá
no movimento.

Se a territorialização não é estática, em outros termos,


pode ser percebida em contextos mais amplos. Logo, nas situa-
ções que envolvem esses processos, estão implicadas a historici-
dade e as realidades vivenciadas em cada comunidade indígena.
Para Pacheco de Oliveira (1998, p. 55), a noção de
territorialização
[...] é definida como um processo de reorganização social
que implica: 1) a criação de uma nova unidade sociocultu-
ral mediante o estabelecimento de uma identidade étnica
diferenciadora; 2) a constituição de mecanismos políticos
especializados; 3) a redefinição do controle social sobre os
recursos ambientais; 4) a reelaboração da cultura e da rela-
ção com o passado.

Dessa forma, a volta dos Mbyá está vinculada às historici-


dades e à natural mobilidade espacial, objetivando reorganiza-
ESTELAMARIS DEZORDI

rem-se socialmente, bem como suprir as necessidades relativas


à aquisição de espaços territoriais que forneçam boas condi-
ções de manutenção da sua cultura e sustentabilidade daquelas
famílias.
Garlet (1997, p.19) chama atenção a respeito das memórias
que evocam fatos, locais e ou personagens míticos/históricos:

179
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A necessidade de migrar e reterritorializar impele a uma ree-


laboração da memória, para que a mesma passe também a
justificar os novos espaços que estão sendo incorporados. Os
Mbyá reformularam sua noção de território apoiando-se nos
mitos que, readaptados, incorporam fatos, locais e persona-
gens históricos. Esta reconstrução do discurso mítico procura
igualmente compreender, explicar e dar conta da situação do
contato interétnico, ou seja, justificar a “irrupção do branco”.

Essas reelaborações de memórias estão expressas nas falas


dos Mbyá quando trazem à tona explicações sobre o porquê bus-
caram a região das Missões para viver e aproximaram-se da Tava
Miri São Miguel (antigo templo religioso pertencente à Redução
de São Miguel Arcanjo) na década de 1990. E mais recentemente
no ano de 2013, retornaram a Santo Ângelo, justificando que esse
local também é sagrado por ser pertencente aos seus antepassa-
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

dos e ter abrigado a Redução de San Angel Custódio2.


A reconstrução de discursos dos Mbyá, explicitado por
Garlet (1997), está diretamente ligado às questões que envolvem
os conflitos e lutas em busca de aquisição de terras ou de ma-
nutenção de seu território. Porém, deve-se levar em conta que
as diversas etnias indígenas brasileiras apresentam realidades
variadas no que diz respeito a essa problemática. Nesse sentido,
Pacheco de Oliveira (2002), salienta a urgência de rever a situa-
ção das sociedades indígenas no Brasil contemporâneo, já que
elas não se enquadram em um único sistema. O autor cita como
exemplo justamente os Mbyá, os quais, por possuírem “uma
complexa relação com a terra”, adotam processos de “desloca-
mentos cíclicos”.
Relatos apontando deslocamentos ou fluxos migratórios
envolvendo os Guarani estão registrados na etnografia clássica
por Nimuendajú (1987), Susnik (1979-1980), Cadogan (1997),
Schaden (1974). As informações relativas a esses deslocamentos,
em boa parte explanam sobre as motivações espirituais ligadas
a busca da “terra sem mal”. Assim, elas são citadas e analisadas
para dar conta de expor uma série de fatores que ocasionavam

2 Povoado fundado no ano de 1706, por padres jesuítas e índios Guarani na


região noroeste do estado do Rio Grande do Sul, Brasil.

180
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

os movimentos e promoviam a dinamicidade de ocupação dos


espaços territoriais, em contextos que apresentavam grandes
resquícios de padrões colonizadores.
Ao comparar as situações de deslocamentos em tempos
passados e nos tempos atuais, percebe-se uma continuidade re-
ferida às questões míticas/religiosas e de certa maneira também
envoltas num padrão “colonizador”, porém é necessário abrir
o campo de análise para outros fatores que estão presentes na
atualidade, sejam eles de ordem política, social, ambiental e ou
os ocasionados pelos contatos interétnicos.
Sendo assim, a expansão do campo de observação requer
um olhar mais atento às razões destes deslocamentos, Pissola-
to (2004, p.66-67) ao fazer uso da expressão mobilidade, sugere
que estes movimentos sejam pensados partir de uma ótica múl-
tipla na contemporaneidade,
Quero dizer que a mobilidade Mbya contemporânea deve ser
considerada a partir de diferentes pontos de vista (inclusive
o “religioso”), e nem sempre se configura em migração (ou
migração para o leste), podendo ser imediatamente com-
parada aos grandes movimentos populacionais focalizados
pelos estudos clássicos.

Se tomarmos como base os referenciais das rotas apresen-


tadas por Garlet (1997) como espaços de circulação percorridos
durante os processos de mobilidade espacial dos Mbyá, desde
o período colonial até os dias atuais, é possível perceber que ao
longo do tempo passaram pela região das Missões e dispersaram-
-se para seguir rumo a outros estados ou acabaram encontrando
espaços para se acomodarem na região noroeste do Rio Grande
do Sul. Confirmando assim, a hipótese levantada por Pissolato
(2004) de que nem sempre os Mbyá rumaram a leste em busca
do oceano, a fim de se estabelecerem com suas tekoa.
ESTELAMARIS DEZORDI

Por outro lado, Garlet (1997) demonstra que algumas fa-


mílias acabaram readaptando e reelaborando suas memórias li-
gadas a História das Missões, para justificar a luta pela terra e a
presença dos Mbyá na região, fundando suas tekoa.
As reflexões trazidas neste estudo têm o intuito de contex-
tualizar algumas informações preliminares para a compreensão

181
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

da temática que será tratada a seguir. Logo, a proposta de ana-


lisar e registrar o nascimento de uma aldeia Mbyá na cidade de
Santo Ângelo, apresentando fragmentos desta etnografia, é o de
colaborar com a produção de conhecimentos que são pertinen-
tes tanto para a Antropologia quanto para a História.

FRAGMENTOS DE UMA ETNOGRAFIA: ASSIM SURGE


A TEKOA PYAÚ

Entre as falas que se mesclam nas vozes de Floriano Romeu


(líder espiritual da comunidade) e de Anildo Romeu (cacique –
líder político), às vezes, Marianito (sobrinho-neto de Floriano,
que acompanha as crianças e os jovens na escola e auxilia no re-
cebimento de visitas, quando Anildo não está na aldeia). Dessa
forma, as narrativas vão se constituindo pelas vozes masculinas
que são as responsáveis, nesse momento, por dar corpo a uma
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

nova história: o surgimento da Tekoa Pyaú.


A chegada da família Romeu a Santo Ângelo ocorreu em
29 de julho de 2013. Aproximadamente 14 membros desta saí-
ram da cidade gaúcha de Nova Santa Rita, local onde estavam
acampados por, mais ou menos, quatro meses após o retorno de
San Ignacio na Argentina. Anildo inicia a fala contando sobre o
retorno de sua família ao Brasil, em poucas palavras, ele expõe
brevemente os locais percorridos e os fatos que aconteceram en-
quanto estavam na Argentina.
Segundo o cacique, eles estiveram na Província de Mis-
siones (nas aldeias de Jaboti, 25 de maio, Capiovi, Ouro Verde),
após o falecimento da avó materna (esta, sepultada na aldeia
Capiovi), moraram San Ignacio, em Mártires e em Oberá. Esses
deslocamentos ocorreram depois da saída da família de São Mi-
guel das Missões, um tanto em razão da doença de Dória (mãe
de Anildo e esposa de Floriano). Eles abrigavam-se na casa de
parentes de sangue e irmãos Guarani.
Devido ao agravamento da doença e a fragilidade da saú-
de de sua mãe Dória, Anildo conta que a família procurou um
xamã (pessoa responsável por rituais de cura) na localidade de
Bonpland – Departamento Candelária. Apesar do tratamento
para a cura, Dória faleceu e foi enterrada nessa localidade. Em

182
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

conversas com Paulo Joel Bender Leal, amigo da família Romeu


desde os tempos em que viveram em São Miguel das Missões, a
provável causa da morte de Dória foi câncer.
Anildo explica que a morte de sua mãe desestabilizou a fa-
mília, gerando grande tristeza, e a necessidade de mudarem o
local de moradia. Logo depois do fato, partiram para Santa Ana,
ainda no território argentino. Mas, o último lugar em que vive-
ram antes de retornar ao Brasil foi em San Ignacio.
Nesse período de deslocamentos, quando os familiares es-
tavam residindo na Argentina, o filho mais velho de Floriano,
Marcelo, morava em Passo da Estância, em um acampamento
na beira da estrada, em Barra do Ribeiro, quando visitou o pai e
os irmãos duas vezes.
O cacique Anildo ainda relatou que a situação da famí-
lia na Argentina estava complicada, lá trabalhavam no corte de
erva-mate e vendiam artesanato, porém as condições de assis-
tência do governo do país (saúde, alimentação, terra) eram pre-
cárias. Situação que reforçou a ideia de Floriano que já pensava
em retornar para o Brasil. Durante o tempo em que viveu na Ar-
gentina, ele manteve contato por telefone com o advogado Paulo
Leal, que mora em Santo Ângelo e os auxiliou nas negociações
com o prefeito desta cidade Valdir Andres e com o secretário do
Meio Ambiente, José Ricardo Martins Ferreira, em busca de um
espaço para estabelecer a sua família.
Motivados por Marcelo, Erica e Miguelina voltam primeiro
para o Brasil e se instalam num acampamento indígena localizado
no município de Barra do Ribeiro. O terceiro filho de Floriano a
voltar foi Anildo por não se adaptar na Argentina: “[...] já não me
acostumo mais lá”. Falou da saudade que sentia do tempo em que
viveu na Tekoa Koenju, retornou de San Ignacio com a esposa e a
filha Kelly Nadia e foi ao encontro do irmão Marcelo. As irmãs de
ESTELAMARIS DEZORDI

Floriano, Edina e Norma, continuaram na Tekoa Koenju quando


ele partiu com a esposa e os filhos menores para a Argentina. Em
2012, Floriano vem ao Brasil com os filhos menores. Eles passaram
uma semana visitando Norma em São Miguel das Missões e, de-
pois, rumaram para o mesmo local onde já estavam os filhos mais
velhos e a irmã Edina para o acampamento em Barra do Ribeiro.

183
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Sobre os motivos dos deslocamentos e a maneira diferen-


ciada como os Mbyá relacionam-se com a terra. Melià (1988,
p.19) traz importantes contribuições para a compreensão, nesse
caso específico, aplicado à mobilidade espacial da família Ro-
meu. Este discorre sobre o assunto:
Sigue siendo objeto de discusión etnológica el motivo o mo-
tivo de la migración guarani en general y la que dio origem
a la nácion chiriguano, en particular. [...] Los guaraní se han
caracterizado tradicionalmente por sus fuertes tendencias
migratórias. El tipo de cultivo practicado, que requería sue-
los bastante específicos, así como las estructuras sociales y
culturales que correspondían a estas bases económicas se-
rían la razón suficiente de su movilidad expansiva.

Ainda tratando sobre as motivações para os movimentos


migratórios dos Guarani, Melià (1988) segue explicitando:
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

La respuesta no es unívoca y probablemente obedece a va-


rios niveles de comprensión y ha estado y está sujeta a las
mismas vicissitudes históricas del Pueblo guaraní. En la
búsqueda de la tierra-sin-mal y en la consiguiente migración
convergen vários factores: una crisis de carácter económico
provocada por reducción y agotamiento de los campos de
cultivo, un aumento considerable en la demografia, tensio-
nes sociales y políticas en el seno de una comunidade. [...] La
tierra-sin-mal es ante todo la tierra buena, fácil para ser cul-
tivada, productiva, suficiente y amena, tranquila y apacible,
donde los guaraní puedan vivir en plenitude su modo de ser
auténtico. Esto es lo que siempre han buscado, donde se han
estabelecido, y lo que procuran guardar celosamente una vez
conseguido (Melià,1988 p. 22-23).

Conforme explicado por Melià (1988), pode-se perceber


que a motivação das migrações está relacionada a questões so-
cioambientais, tensões sociais, políticas nas comunidades, ao
aumento da demografia e, ainda, a um contexto cosmológico li-
gado à espiritualidade dos Guarani, aqui referindo ao contexto
Mbyá vivenciado na Tekoa Pyaú.
Para Garlet (1997), a mobilidade espacial dos Mbyá ocorre
em uma série de fatores ligados aos já citados por Melià (1988).
O autor afirma que, geralmente, mais de um fator desencadeia

184
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

as caminhadas dessas famílias, então, o que precisa ser analisa-


do é se realmente existe uma única motivação ou um conjunto
de motivos que impulsionou a parentela Romeu a percorrer di-
ferentes locais entre o Brasil e a Argentina e, posteriormente,
retornar à Região das Missões.
Analisar esse(s) motivo(s) é justamente um dos objetivos
da presente investigação. Nesse sentido, segundo informações
até então apuradas, é possível apresentar que, no tempo em que a
família Romeu esteve na Argentina, Floriano sempre seguiu man-
tendo contato com algumas pessoas na Região das Missões, in-
clusive com representantes do poder público municipal e federal.
Após diversas tratativas com a Prefeitura Municipal de
Santo Ângelo, representada pelas Secretarias de Assistência So-
cial e Meio Ambiente, finalmente chegou a confirmação de que
a família seria recebida em uma fração de terras pertencente ao
município, no distrito de Atafona, Barra do São João, à distân-
cia de 5km da zona urbana. Assim, a família Romeu partiu em
direção a Santo Ângelo, em um ônibus fretado com o auxílio fi-
nanceiro de Norma Romeu (irmã de Floriano). Para a viagem,
levaram poucos pertences, tais como: roupas, instrumentos
musicais (violão, violino, mbaraká ou mbaepu [chocalho globu-
lar]), utensílios de uso doméstico (panelas), colchões e cobertas,
além de documentos pessoais e de valor afetivo, como algumas
fotografias.
Entre as muitas conversas e anotações no diário de campo
em meados do mês de agosto de 2014, um momento em espe-
cial se destaca, quando Floriano refere que: “aqui iniciamos uma
semente, temos que buscar nossos caminhos pela paz, sem bri-
gas, não é com armas que vamos conquistar nosso espaço”. A fala
desse líder espiritual traduz exatamente a vontade dos Mbyá de
estabelecerem-se em Santo Ângelo e iniciarem metaforicamen-
ESTELAMARIS DEZORDI

te a fase da semeadura na luta pelo reconhecimento.

“AQUI NOS ACOLHERAM”: SEMEAR PARA COLHER

Ao chegar em Santo Ângelo, os Mbyá foram acolhidos em


um pequeno terreno de aproximadamente 2,5 hectares perten-
cente à prefeitura municipal. Essa área faz divisa com proprieda-

185
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

des particulares nas laterais, e à frente com a estrada geral Santo


Ângelo-Atafona e, ao fundo, com o Arroio São João.
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Figura 2: Imagem Google – localização Tekoa Pyaú Elabo-


ração: MATTOS, Gil & DEZORDI, Estelamaris.

O terreno onde a família Romeu se encontra assentada,


possui algumas árvores frutíferas como: bergamoteira (Citrus
nobilis), ameixeira-do-inverno, limoeiro, eucalipto (eucalyp-
tus), taquara (bambusoideae). A área dispõe de água encanada
e energia elétrica em precárias condições, tais como uma casa
de alvenaria que abrigava anteriormente a Associação de prote-
ção aos animais de Santo Ângelo - ASPA e um galpão do mesmo
material da residência, em que ficavam os animais. Floriano co-
menta que todos ficaram abrigados neste galpão nos primeiros
15 dias, após a chegada a Santo Ângelo, até receberem os mate-
riais necessários para a construção das barracas de lona preta
que, até hoje, os abrigam. Percebe-se que não há local apropria-
do para o cultivo de suas roças.
Em uma tarde de novembro de 2013, em uma visita, com
colegas guias de turismo, fomos até o local em que Floriano e

186
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

seus familiares já estavam morando, para entregar doações de


alimentos e roupas arrecadadas. Neste dia foram feitos alguns
registros fotográficos.

Figura 3: Pátio externo Tekoa Pyaú . Foto: Acervo pessoal da autora, 2013.

ESTELAMARIS DEZORDI

Figura 4: O fogo familiar. Foto: Acervo pessoal da autora, 2013.

187
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Figura 5: Pé da Bergamoteira (Citrus Nobilis) – pátio exter-


no Tekoa Pyaú. Foto: Acervo pessoal da autora, 2013.

Essas imagens ilustram os primeiros meses de luta para a


construção das casas improvisadas, construídas com lona preta
cedida pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente. As madei-
ras e taquaras foram coletadas nas matas vizinhas mediante au-
torização dos respectivos proprietários, que vivem nas imedia-
ções da aldeia.
Essas condições chamam atenção ainda para alguns de-
talhes que podem ser percebidos agora, mas que, em um olhar
inicial, passaram desapercebidos, como o fogo sempre aceso no
entorno das casas, a bergamoteira, que é citada mais de uma vez
nesta escrita, cujo entorno estava sendo moldado como futuro
espaço de convivência das famílias e, depois, serviria de abrigo
durante as rodas de conversas e chimarrão3.
As doações recebidas se acumulavam em uma espécie de
depósito, no pedaço de terra vermelha. Algumas extensões de
rede de luz já prontas para uso, bancos, cadeiras e mesas usadas,
espalhavam-se pelo cenário. A impressão ao longo da observa-
ção era de que havia um espaço vazio, este em que a Opy (casa

3 Bebida típica do estado do Rio Grande do Sul.

188
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

de reza) seria construída. Nesse momento, a sensação era de que


algo ainda estava sendo constituído.
A presença do fogo, descrito pela expressão che ypyky kue-
ra, para os Kaiowá, também representa para os Mbyá um gru-
po de parentes reunidos em torno de um fogo familiar; a partir
disso, explicita-se o sentimento de convivência familiar, íntima
e continuada. Pereira (1999, p.81) explica que, para os antropólo-
gos, essa expressão pode ser identificada como conceito próximo
ao de família nuclear, o que para o etnólogo pode ser chamado
de “fogo familiar”, traduzido como uma
Unidade sociológica no interior do grupo familiar extenso
ou parentela [...], composto por vários fogos, interligados
por relações de consanguinidade, afinidade ou aliança polí-
tica. [...] O fogo prepara os alimentos, protege contra o frio
e em torno dele as pessoas se reúnem para tomar mate ao
amanhecer e ao anoitecer.

A partir da vivência em campo, foi possível perceber que na


Tekoa Pyaú a presença do fogo possui simbologia semelhante,
pois, em volta dele estabelece-se o momento privilegiado de en-
contro entre os membros da comunidade para que ocorra troca
de experiências e de relatos de vida. Esse costume representa um
espaço para o fortalecimento e a manutenção da cultura Mbyá.
Sendo assim, a constituição do grupo de canto e dança,
coordenado por Floriano Romeu, está vinculada à espiritualida-
de e à manutenção cultural dos Mbyá. A partir da formação do
grupo, foi possível viabilizar a inserção desta comunidade nos
espaços externos da tekoa. A criação do coral Tape Porã (Cami-
nho Bonito) foi primordial para concretizar a visibilidade do
grupo na sociedade local e regional. As danças e os cantos sagra-
dos fazem parte das tradições espirituais que ocorrem na Opy e
as músicas apresentadas ao público, que em geral são compostas
ESTELAMARIS DEZORDI

para esse fim (ARNDT, 2010). Alguns cantos são musicalizados e


entoados para os visitantes não indígenas que chegam na tekoa.
Embora os movimentos ainda sejam incipientes, é possível
perceber que aos poucos, as pessoas da comunidade local, os não
indígenas, se mostram disponíveis ao reconhecimento e à valori-
zação da cultura Mbyá. Ainda que muitas pessoas do município

189
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

desconheçam a localização da aldeia, lentamente a comunidade


vai tendo visibilidade.
Os poderes públicos municipal, estadual, federal e demais
instituições têm conhecimento da situação referente ao espaço
territorial cedido para abrigar os Guarani e da necessidade de
que sejam ampliados. Providências em relação a essa situação
vêm sendo tomadas desde 2013.
As Secretarias Municipais de Assistência Social, Trabalho
e Cidadania e do Meio Ambiente têm empenhado diversos es-
forços, com o auxílio do Ministério Público Federal e do Mi-
nistério Público do Trabalho, para a compra de uma fração de
terras maior.
A expectativa da comunidade indígena em relação à compra
de uma nova área de terra vai ao encontro da ampliação do seu
espaço territorial e consequente manutenção de seu modo de ser.
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

Essa conquista permitirá melhorias nas condições de moradia e


sustentabilidade, incluindo o plantio de alimentos para subsistên-
cia, como a mandioca, a batata doce, o milho, a coleta de madeiras
e sementes para produção de artesanato e a melhor distribuição
das casas nos espaços. Também será possível a construção da Opy
em local considerado apropriado pelos Mbyá, ou seja, em espaço
reservado, distante daqueles de convivência comuns.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo objetivou expor parte dos dados da pesquisa


de campo na Tekoa Pyaú, para relatar e analisar parcialmente o
nascimento da “nova aldeia”. Assim evidencia-se uma gama de
elementos que permite inferir sobre as motivações desencadea-
doras dos deslocamentos dos Mbyá e as ações resultantes desses
processos de territorialização.
O surgimento de novas tekoa está vinculado a fatores de
ordem espiritual (cosmológicas) e sócio-política, atrelados a
questões ecológicas e de distribuição de terras (Garlet, 1997). A
tekoa que nasceu em Santo Ângelo representa o “retorno” de fa-
mílias Mbyá para esta cidade, da mesma forma como ocorreu em
São Miguel das Missões nos anos de 1990, as quais passaram a
reivindicar os direitos relativos à terra ao se apropriarem dos es-

190
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

paços considerados antigos territórios (narrativas relacionadas


ao período das Missões Jesuíticas) e ao se sentirem parte deles.
As distintas formas utilizadas para caracterizar a situação
atual dos Mbyá no município deixam transparecer que, inde-
pendentemente de estarem provisoriamente instalados em um
pequeno pedaço de terra, eles conseguem manter os costumes
– o seu modo de ser, mesmo que para isso precisem lançar mão
de estratégias para reorganizar e ressignificar os hábitos diários.
Ao dialogar com a sociedade envolvente, principalmente
com a comunidade local e seus entornos, os Mbyá constroem
uma rede permanente de contatos externos que permite acio-
nar mecanismos de ajuda para resolução dos problemas a serem
sanados. São exemplos dessas relações o ato da retirada de ma-
deira de corticeira em terras de propriedade de Lauro Belinazo
(mora a uma distância de mais ou menos 15 Km da aldeia) para
a confecção do artesanato, mel e ervas medicinais nas terras dos
vizinhos próximos, assim como as negociações que estão sendo
efetivadas para a aquisição de uma fração maior de terras.
Essas redes também se espalham entre os parentes, sejam
eles consanguíneos, por afinidades e ou agregados, pois as vi-
sitas, mais ou menos estendidas, demonstram a efetivação do
seu modo de ser. As famílias que transitam entre os territórios
do Brasil, da Argentina, do Paraguai e, por vezes, do Uruguai se-
guem movimentos de “mobilidade espacial” ou de “circulação”,
sugerindo, como apontam Garlet (1997), Pissolato (2004), uma
continuidade histórica para retornar aos antigos espaços em
busca de novas territorializações.
A circularidade dos Mbyá permite reagregar as famílias ex-
tensas que, muitas vezes, dispersam-se por falta de espaço. Esse
movimento demonstra a resistência das comunidades indíge-
nas, e a reciprocidade está posta no modo de ser guarani: “se
ESTELAMARIS DEZORDI

recebo, retribuo”. No caso observado neste momento, parte da


família de Floriano Romeu está reunida e, segundo manifesta-
ções de Anildo, assim que conseguirem mais terras, seu irmão
Marcelo vai deslocar-se para viver junto dos demais parentes. Da
mesma maneira, coloca-se a possibilidade de aceitar outras fa-
mílias agregadas por vínculos de afinidade.

191
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

O empenho dos Mbyá está balizado pela união e pela


perseverança em busca de mais terras para instalar definitiva-
mente a Tekoa Pyaú. Nota-se, por meio das ações cotidianas,
o papel que cada um tem em manter a coesão e a estabilidade
para fortalecer a tekoa, o papel das mulheres é de fundamen-
tal importância para a formação e sustentação da família. Por
mais que os contatos interétnicos tenham modificado e deses-
truturado as relações dos diferentes grupos, os indígenas estão
conseguindo reinventar seus costumes frente aos momentos
de diversidade e dificuldades. Sem deixarem que sua cultura se
modifique ou desapareça na tentativa de minimizar os impac-
tos externos seguem determinados em buscar seus espaços por
meio do diálogo.

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PARTICIPANTES DA PESQUISA – ENTREVISTAS E


ORGANIZAÇÃO DE MAPAS

DEZORDI, Estelamaris. 2013.


LEAL, Paulo Joel Bender. 2015.
MATTOS, Gil de. 2015.
ASSIM NASCEU A TEKOA PYAÚ EM SANTO ÂNGELO, RIO GRANDE DO SUL, BRASIL

ROMEU, Anildo. 2015.


ROMEU, Floriano. 2015.

194
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA
ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA
RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

Elemir Soares Martins1

CONSIDERAÇÕES SOBRE A RELEVÂNCIA DA


PESQUISA

Sou um Guarani, nasci e cresci na reserva indígena, fruto


do reservamento durante o esbulho que teve entre 1915 e 1928,
projetado pelo Estado brasileiro e consolidado pelo SPI. Consi-
dero-me pesquisador indígena dedicado a pesquisar sobre a his-
tória silenciada e sobre as reservas indígenas no Estado de Mato
Grosso do Sul, em especial, da Te’ýikue, Caarapó, MS.
Conforme a memória que tenho, a parentela dos meus pais
já vivia no contexto do “esparramos”, termo definido pelo histo-
riador (BRAND, 1993) e viviam perambulando pelas regiões que
ligavam o Brasil ao Paraguai. E isso se deu porque os ypykykuera
dos avós do meu pai foram empurrados pelo avanço das instala-
ções e da migração dos estrangeiros para a ocupação da Região
do atual Mato Grosso do Sul. Esse processo se intensificou no
governo de Getúlio Vargas com a instalação da Colônia Agrícola
Nacional de Dourados, que teve início na década de 1930.
Quando a família do meu pai veio para a Reserva Teyikue
de Porto Lindo, teve que se identificar como Kaiowá, estes ti-
nham já se estabelecido na Reserva e eles não aceitavam os
Guarani na Comunidade. No caso da minha mãe, ela pertence à
ELEMIR SOARES MARTINS

família Martins, o ypyky dela já tinha se estabelecido na Comu-


nidade, todavia por ela ter casado com um guarani, não foi mais
bem aceito pela família, e, por conseguinte vivia mais no meio
da família guarani.

1 Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Uni-


versidade Federal da Grande Dourados.

195
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Nasci com o fruto de casamento Interétnico que teve du-


rante a construção de identidade Guarani Nhandeva e Guarani e
Kaiowá, aqui não cabe discutir toda trajetória que houve até che-
gar a atualidade. Entretanto, considero-me com toda influência
do teko, língua, crença e costume dos grupos mencionados2.
Fiz essa pequena apresentação com objetivo de mostrar
que cada família indígena na reserva tem a sua realidade distin-
ta. Nessa composição de grupo, há ainda a figura de xamã (re-
A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

zador e rezadora), líder da família, o sábio. Nesse sentido, po-


demos notar essa incapacidade do chefe do posto indígena de
perceber a política.

INTRODUÇÃO

O artigo é um fruto de análise realizada por mim, na comu-


nidade em que convivo com várias parentelas. Para tanto, nesses
últimos anos, a eleição pelo cargo de capitão tornou-se bastante
concorrido. Desenvolvo essa discussão para mostrar como esse
cargo criado pelo SPI e atual FUNAI, vem criando grande divisão
entre a família indígena.
O trabalho se desenvolveu a partir da pesquisa sobre a vi-
são que se tem em relação ao “capitão”, buscando as bibliografias
que são referentes aos Kaiowá e Guarani, como também a partir
das entrevistas, do método etnográfico e a participação de reu-
niões, cujo intuito era de trazer a reflexão sobre a concepção dos
moradores da reserva Te’yikue. Paralelo a isso, há também o fato
de se estabelecer um panorama histórico da criação da Reserva
Kaiowá e Guarani da Te’yikue, marcada por repressão, redução
de seus territórios, violência e remoção. As ponderações que os
moradores da aldeia têm sobre a administração do Capitão na
redução de seu espaço na decisão política, igualmente como a

2 Os meus pais ao longo do casamento e vivência trocaram saberes, costumes,


línguas, jeito de ser, um com outro, por isso, no entanto, demonstraram-me
uma mistura que houve. Tanto que quando estou no meio dos Guarani eu con-
sigo dialogar de uma forma que a pessoa não percebe que sou Kaiowá, por
exemplo, quando utilizo uma linguagem metafórica, o mesmo acontece quan-
do estou no meio dos Kaiowá. Cabe a nós pesquisador, aprofundarmos mais
o nosso estudo além do senso-comum para romper o preconceito que existe
entre indígena sobre a sua identidade.

196
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

dos rezadores, é o argumento sobre essa problemática, ou seja,


como aconteceu/acontece.
Isso se deve à figura de influência do capitão. Na atualidade
isso ocorre por diversas formas, porque entraram muita admi-
nistração do município e do estado. Por isso a pesquisa volta-se
para a visão dos Kaiowá e Guarani sobre o “capitão” construído
dentro da Comunidade Caarapó. Intento problematizar a forma
como ele se constituiu desde o período da colonização, que vem
a ser o Centro-Oeste do Brasil. Sendo assim, a intenção da cria-
ção dessa entidade para administrar o processo de confinamento
(BRAND, 2004) e averiguar quais são as entidades envolvidas na
construção dessa imagem dentro do Reserva. Com efeito, isso
exige-nos voltar no tempo do período colonial na formação de
aldeamento para os indígenas, pois desde esse tempo histórico
já tinha sido construída a figura representativa do Capitão para a
gestão do Aldeamento.
Assim, desde o início da colonização portuguesa, posterior
ao ano de 1500 os colonos – ou, como se autoconsideram, “mo-
radores” - vieram criando aldeamentos. Em primeiro momento
próximo às vilas, assim podendo utilizá-la da mão de obra dos
indígenas, que, por exemplo, trabalhavam como assalariado nas
plantações, no trabalho doméstico etc., (PERRONE-MOISÉS,
org. CUNHA, 1992, p. 115-119). Outra forma foi como guia para
entrar no interior do sertão, pois eles conheciam muito bem a
geografia do espaço. Porém, isso somente valia para aqueles que
foram aldeados, ou seja, os indígenas que aceitaram a catequiza-
ção e foram trazidos às Reduções Jesuíticas.
E aqueles que responderem com hostilidade aos colonos,
por não aceitaram serem catequizados e “civilizados”, eram es-
cravizados ou massacrados pela “guerra justa”, lembrando que
nesse período era legitimado o etnocídio a favor da “civilização”
ELEMIR SOARES MARTINS

europeia, fazendo com que se concretizasse o etnocentrismo


acentuado, com a finalidade de os colonos europeus de realiza-
rem a manutenção do domínio sobre outras sociedades. Perro-
ne-Moisés também analisa a classificação feita pelos colonos, ou
seja, “os índios aldeados, os aliados e os hostis”; e a partir dessa
classificação é que eles, colonizadores, justificam a ação feita
para tratar os indígenas durante a colonização.

197
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Desde o início da colonização, a intenção dos colonos e je-


suítas foi construir uma política indigenista amparada no inte-
resse da Coroa Portuguesa e mais adiante deles mesmos. As pro-
pagandas que eles faziam eram que os indígenas aceitavam ser
aldeados sem nenhuma utilização da base da força, mas isso não
quer dizer que eles faziam a vontade dos indígenas, eles faziam
certa condição para que se aplicasse a guerra para certos grupos.
A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

Assim, eles justificavam que tal grupo era hostil, antropofágico


e ameaçava a vila local, dessa maneira eles pediam para a Coroa
Portuguesa que declarasse a “Guerra Justa”.
Havia também dubiedade de ação que levara em dilema
entre colonizações jesuítas e colonos, pois aos primeiros interes-
sava a conversão e o letramento dos indígenas, e aos segundos a
utilização da mão de obra a partir da escravização. Porém, essa
ação somente poderia ser liberada se caso os indígenas fossem
capturados na Guerra. Além disso, os colonos denunciavam a
ação jesuítica de poder ir contra a vontade da Coroa, porque os
jesuítas somente se interessavam na salvação da alma dos indí-
genas. Em vários momentos eles inventavam essas justificativas
para que se pudesse avançar sobre os grupos indígenas.
A construção do Aldeamento, feita durante a Colonização
portuguesa sobre o Brasil, era constituída por vários grupos ét-
nicos que habitavam o território, dificultando a invasão e a ocu-
pação dos lusos para legitimar as sesmarias. Porém, os colonos
necessitavam dos indígenas para a exploração do espaço, que so-
mente os nativos conheciam bem, por isso a intenção deles era
manter os aliados e aldeados, que os ajudassem na exploração,
na extração de recursos naturais e na proteção de suas colônias.
Naquele momento, o Estado e a Religião estavam juntos. Por
sua vez, a outra maneira de se estabelecer um aldeamento é a
conquista espiritual dos nativos, a conversão dos indígenas ao
cristianismo, por isso a instalação das Igrejas dentro das aldeias.
Atualmente, ela é uma das Instituições mais influentes dentro
da aldeia, em viés do Pentecostalismo. Segundo Moraes (2014) a
Igreja Pentecostal conseguiu torna-se homogênea mais rapida-
mente do que a Protestante, mas isso vai acontecer muito mais
para frente, em uma das últimas décadas de 1900.

198
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Retornando ao período da criação de Reserva Indígenas –


RI – com a finalidade de manter essa formação que o Brand (p.
67-88, 2014) denomina de “confinamento para aldeamentos dos
grupos étnicos Kaiowá e Guarani”, isso precisa de uma entidade
que poderá legitimar o controle desse espaço, tanto no manu-
seio da força de trabalho, quanto para deixar livre o espaço para
a ocupação das novas áreas de conquista.

A HISTÓRIA OBSERVADA A PARTIR DO CONCEITO


DA PERSPECTIVA SKINERIANA E KOSELECKIANA

Após o meu ingresso no mestrado em História (PPGH-U-


FGD), tenho me aprofundado mais na leitura sobre a teoria da
história, nesse estudo, em Skiner, há uma crítica ao essencialis-
mo do objeto, que veio à discussão em meados das décadas de
1950 e 1960.
Uma das críticas primeiramente lançada à teoria tradi-
cional da história das ideias foi a teoria Skineriana, trata-se de
questionar a maneira da elaboração dos conceitos e sua signifi-
cação pelo tradicional de utilizarem-se do anacronismo, ideias
que não são cabíveis para a significação da realidade em seu con-
texto, de criarem pensamentos impensáveis (JASMIIN, 2006).
O contextualismo linguístico de Quentin Skiner resulta da
ideia ou teoria apreendida de um contexto específico, fazer his-
tória com a preocupação metodológica de analisar os conceitos
para compreender e apreender o significado original com pre-
cisão produzida no interior de um contexto, não caindo ao erro
do anacronismo, de não tentar desviar-se dos conceitos originais
surgido em tempos específicos. Portanto, para a compreensão de
um significado em um recorte temporal é preciso contextualizar
o momento, colocar em foco os termos exatos dos fatos de um
ELEMIR SOARES MARTINS

contexto histórico (JASMIN, 2006).


Portanto, o conceito de Capitão, não o termo, já vinha sen-
do utilizado em outros contextos. E nesse contexto do processo
de aldeamento (PERRONE-MOISÉS, org. CUNHA, 1992) dos in-
dígenas, em geral, e de confinamento (BRAND, 2004) dos Kaio-
wá e Guarani, vem sendo utilizado para substituir a figura do
Xamã dentro da aldeia.

199
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

Assim, na perspectiva Skineriana, vale ressaltar que o


conceito de “capitão” vem se configurando para que haja de
fato a colonização afetando diretamente a aldeia. Criando-se
uma figura que não cabe em outras realidades, pois essa figu-
ra conseguiu desmontar a cultura dos Kaiowá e Guarani para
remodelar a política e forma de reorganização da sociedade,
e que vem construir um novo arranjo política, uma estratégia
A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

de aliança, articulação de grupos e a relação com os agentes de


fora da Comunidade.
Paralelamente a isso, um historiador mais conhecido no
campo de estudo sobre a história conceitual é Reinhart Kosel-
leck, que contrapôs o fazer história de Skiner a partir do Con-
textualismo Linguístico, na medida em que se reproduz a sig-
nificação de um conceito e isso impossibilita a transposição e
adequação ao presente. Dessa maneira a necessidade de ressig-
nificar os conceitos, procurar uma nova adaptação dos termos e
seus significados ao momento atual, a hermenêutica das ciên-
cias humana, renova também a interpretação dos conceitos e
cada época reinterpreta e constroem seus significados. Assim, o
que se produz é a cognição que transpôs significados às ideias,
é a produção interpretativa que se constrói com os efeitos da re-
cepção daquelas com os intérpretes (JASMIN, 2006).
É nessa perspectiva que o conceito de Capitão está sendo
posto pelos Kaiowá e Guarani. Por outro lado, a própria Lide-
rança da Te’yikue Caarapó rejeita esse termo, porque primeira-
mente a palavra faz-nos pensar em uma figura que representa
um sujeito do quartel, contudo, quando é necessário se apodera
dessa palavra. Pois, segundo Koselleck, a palavra em si, quando
não se altera, transforma-se em cada espaço e tempo, no caso da
sociedade Kaiowá e Guarani, a intensão da imposição da figura
do Capitão é exatamente para poder manter aqueles aldeados,
reservados e reduzidos em seu espaço para liberar espaços para
a criação de fazendas e ao mesmo tempo utilizando-se da força
de trabalho deles.
Em uma de suas obras “Uma História dos Conceitos: pro-
blemas teóricos e práticos” Koselleck pontuam seis naturezas
teóricas dos conceitos em si. O primeiro é que há a diferença en-

200
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

tre a palavra e o conceito, a palavra pode vir a se tornar conceito,


entretanto, nem toda é assim o conceito, mas só uma palavra. O
segundo se refere à utilização e o emprego do conceito, é ao mes-
mo tempo um fato linguístico, mas de certa forma tem relação
com a realidade concreta, portanto, constrói a (re) significação
e sua (re) interpretação à realidade, ultrapassando a dimensão
linguística.
O terceiro aponta na questão da seleção da escrita para a
história dos conceitos, por abarcar conceitos imbricados na con-
fusão entre perguntas e respostas, por isso a necessidade desse
procedimento e a seleção se fazem a partir das análises feitas nos
textos comparativos e dos que analisam a expansão das línguas
em conjuntos. Além disso, há também um procedimento que
analisa o objeto na medida em que se mantém o mesmo e o que
muda é a perspectiva em relação ao objeto.
O quarto ponto trata sobre a hipótese de que todos os con-
ceitos são formulados teoricamente relacionando-se com a rea-
lidade única, dessa forma a palavra pode permanecer o mesmo,
porém o que se altera é o conteúdo designado sobre elas, e as
mudanças podem também ocorrer, mesmo que no movimento
sincrônico ou diacrônico.
O quinto ressalta a maneira em que a diacronia avalia as
alterações de um conceito para outra perspectiva, por isso não é
atemporal, remetendo ao impacto e a duração contida na sincro-
nia sucedida pela ressignificação dos conceitos. O sexto ponto é
a chave principal para a utilização do método, pois é necessário
que haja a distinção a apreensão das palavras, de fatos e da rea-
lidade concreta em si, ou seja, se há diversas perspectivas sobre
a realidade concreta que designa um conceito a uma realidade
(JASMIN, 2006).
ELEMIR SOARES MARTINS

Dessa forma, para fundamentar o conceito de Capitão nas


Reservas de Kaiowá e Guarani, é necessário a ressignificação
desse, pois dizendo que esse termo se utiliza no quartel não se-
ria adequado para se encaixar na sociedade Kaiowá e Guarani.
Seria inadequada para substituir os xamãs que lideravam essa
sociedade, então a questão é “como é possível que o Capitão fos-
se aceito pelos Kaiowá e Guarani? ”, será que foi pela dominação

201
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

ideológica ou pela base de força? Certamente essa figura veio


para remodelar a sociedade Kaiowá e Guarani, principalmen-
te pela força política, ditando regras, organizando as decisões,
a composição dos grupos, isto é: quem pode residir, mandar e
obedecer. No entanto, a configuração disso, se faz não somente
em torno dele, mas envolve fatores que são coordenados pelos
status que são formados, como por exemplo, o status do profes-
A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

sor, do agente de saúde, do diretor da escola, do pastor da Igreja,


entre outros, tudo com base em um vínculo para articular me-
lhor ainda o respectivo status.
Voltando a história dos conceitos, ela não pode dissociar
da história social, pois a primeira colabora com elaboração ex-
plicativa para a formação social, da história da sociedade, das
estruturas, dos estabelecimentos da cultura e das formas de or-
ganização política, por isso elas estão interligadas.
Na base Koselleckiana o que dá sentido a história dos con-
ceitos é a diversidade de seu significado e a temporalidade em
que se dá, portanto, a elaboração de um conceito pressupõe dar
significado às experiências do sujeito na mesma data ou em di-
ferentes momentos.
A contribuição do conceito ao trabalho da história é dar
inteligibilidade ao conhecimento em diferentes temporalidades,
do contrário seria inconveniente a clareza e ao subsídio do co-
nhecimento histórico. Como também expropriar o conceito de
seu contexto produz significação que não corresponde à história
trabalhada e pensada (JASMIN, 2006). A diferença da palavra
para esse sentido é que na primeira é possível pensar isolada-
mente, do contrário o segundo condensa a multidão de objetos,
ou seja, uma palavra possibilita a sua significação enquanto o
conceito contém em si múltiplos sentidos dependendo da tem-
poralidade e do lugar em que se situa.
Em virtude disso, a política ganhou ênfase nos estudos his-
toriográficos na década de 1970 (FERRAS, 2011), em diferentes
perspectivas na reflexão sobre os problemas que enfrentam na
relação com a dominação política, por se opor na renovação dos
estudos da história. Retomando esse campo, construiu-se uma
dimensão para essa nova atribuição, esta agora estava inserida

202
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

na problematização e renovação dos objetos para o estudo, ga-


nhando um novo conceito e ressignificando a partir de diversas
perspectivas.
A tradicional história política declinou-se acompanhada de
desenvolvimento da história das mentalidades políticas, consti-
tuindo uma história das ideias. Assim, as fraquezas que abarcam
essa última, são em primeiro o dicionário por não ter nada de
história, somente utilizá-lo como consulta; a segunda é a doutri-
na, por representar algo como definido ou estático, a terceira por
ocorrer relação de um texto com a outra somente com aquilo que
vai preceder ou suceder, o comparativismo textual, a quarta é o
reconstrutivismo de textos ao transcrever-se um texto com coe-
rência e com nitidez, e a última o tipologismo, ou seja, de forma
sistematizada em etapas, períodos e correntes, de forma contínua.
Nesse interim, a história conceitual da política em outro sentido
vem renovar o campo da história política, e o objeto de estudo é a
formação da evolução e aprimoramento da racionalidade política,
dessa maneira, o campo das ideias e mentalidades diferenciou-se
do método da história conceitual da política.
Sendo assim, a pesquisa teórica vem articular a pesqui-
sa em relação ao objeto de estudo, o conceito de Capitão, que
vem sendo instituído na sociedade ao longo do tempo e vem se
transformando e se moldando nisso, o olhar do homem sobre o
mundo, construindo a sua visão e a sua interpretação nele (DEL-
GADO 2003). Dessa forma, a contribuição dos estudiosos de
conceito propõe um método que visa analisar a maneira em que
se constitui um conceito. Com efeito, o termo capitão refere-se
ao comandante de um grupo de exército, chefe de uma tropa,
desportivo ou de um grupo.
Segundo o Brand (2001) em um dos relatos dos anciões
ELEMIR SOARES MARTINS

que foram obrigados a ir à reserva, quando chegaram ao lugar


perderam o seu prestígio e acabaram se insatisfazendo por não
aceitarem que uma figura imposta no lugar de um xamã, que
configura a administração do tekoha tradicional. Essa reconfi-
guração dos espaços de relação dos indígenas, principalmente
a partir da administração é que causa impacto e a problemática
reconstrução da sociedade Kaiowá e Guarani.

203
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

A ESTABILIZAÇÃO DA FIGURA DE “CAPITÃO” NAS


ACOMODAÇÕES DAS ETNIAS GUARANI E KAIOWÁ,
NA REGIÃO DO MATO GROSSO DO SUL

O Serviço de Proteção ao Índio – SPI – é o primeiro órgão


indigenista projetado pelo Engenheiro Militar Candido Maria-
no da Silva Rondon, em 1910, a fim de dar sua contribuição ao
“Progresso do Brasil” de poder integrar os indígenas à sociedade
A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

nacional, mais um projeto positivista sancionado para legitimar


um etnocídio para com as diversidades do modo de viver de cada
grupo étnico.
Nesse interim, o território Kaiowá e Guarani se estendia
desde o Rio Apa até o Rio Paraná (sentido Norte e Sul) e do Rio
Brilhante a Porto Murtinho (no sentido Leste e Oeste), geogra-
ficamente os Kaiowá do Rio Iguatemi para cima, enquanto os
Guarani do Rio Iguatemi para baixo (BRAND, 1993; PEREIRA,
2004). O confinamento dos Kaiowá e Guarani na região de Mato
Grosso do Sul ocorreu entre 1915 a 1928, feito pelo Órgão Indige-
nista o Serviço de Proteção ao Índio - SPI.
Nesse contexto, as parentelas Kaiowá e Guarani estavam
dispersas pela Região, logo que a expansão das ocupações dos co-
lonos estava adentrando para o interior do Brasil atingindo essa
Região, principalmente com a finalidade dos neocolonialistas de
poder instalar a criação de gado na Região, e para a formação de
agropastoril foi necessário para a expulsão desses coletivos.
Desde o século XIX, o impacto do processo da coloniza-
ção atingiu essa região, principalmente após a Guerra da Tríplice
Aliança (CAVALCANTE, 2015) e na instalação da Empresa Com-
panhia Mate Laranjeira, depois da entrega da terra para o em-
presário Tomás Laranjeira, mas como essa empresa estava indo
contra a formação da nacionalidade brasileira, no governo de
Getúlio Vargas foi extinto.
Segundo Pereira (2009), a Reserva é um espaço de aco-
modação dos Kaiowá e Guarani, é uma estratégia dos neocolo-
nialistas para poder criar dificuldades para os que resistem em
permanecer em seus tekoha, fazendo com que os que já estão
na Reserva convidem a seus parentes, pois somente ali teria

204
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

“recurso” e “espaço” para eles, ou seja, forjamento da área de


acomodação.
Para que a Região fosse liberada para os colonos, foram
criadas oitos (Reservas), nos atuais municípios de Dourados,
Caarapó, Amambai, Coronel Sapucaí, Tacuru, Paranhos e Por-
to Lindo. Muitos coletivos foram tirados à força do seu tekoha
para ser levado nos confinamentos, relatos de muitos moradores
antigos da Te’yikue contam as injustiças feitas pelas remoções e
expulsão dos Te’yi Guarani e Kaiowá dos seus Tey’iretã.
Essa redução do espaço entre os Guarani e Kaiowá fez com
que se aglomerassem diversas famílias dessas etnias, como tam-
bém as outras, isso fez com que surgissem vários problemas e
conflitos na Comunidade, principalmente com os conflitos po-
líticos acirrados entre os que se puseram como estabelecidos da
aldeia (ELIAS, 1897 – 1990).
Para Norbert Elias, em “Os Estabelecidos e Outsiders”, os
grupos que se instalavam anterior aos outros, assim estigmati-
zavam os que formavam recentemente na cidade, praticavam
um tipo de exclusão social, pois o modo de ser desses grupos
novos (Outsiders) incomodava o modo de ser dos estabelecidos,
assim descaracterizavam-na pela questão cultural chegando até a
subalternidade.
Fazendo uma analogia, podemos analisar da mesma for-
ma como os primeiros grupos de ypykuera dos Kaiowá se es-
tabeleceram, logo estigmatizando os grupos que recente che-
garam para se instalar nas Reservas. Nestas, foram instalados
Postos Indígenas, com objetivo de organizar a chefia de Capi-
tão, que tinham, e até agora tem, a finalidade de atender os
problemas que os Guarani e Kaiowá enfrentam, principalmen-
te a questão da saúde, onde se aglomeram os recursos que vem
ELEMIR SOARES MARTINS

para as aldeias.
Destaco nesse momento três grandes figuras que se cons-
troem nesse contexto da formação das reservas, que formam
grupos bem coesos e bem articulados, estabelecem-se como os
coletivos dominantes dentro das Aldeias, tais como as figuras
que ocupam o posto de Capitão, e tem por finalidade gestar e ad-
ministrar a aldeia, a gestão e administração da escola, e a direção

205
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

da Igreja, ou seja, o Pastor. Mas, a pesquisa irá vincular mais a


construção da figura do “Capitão”.
Na Reserva indígena Te’yikue, a formação desses grupos é
bem visível, e a partir da análise desses grupos pode se perceber
como se estabelecem as relações sociais dentro da aldeia, além
disso, mostra quais são os coletivos têm privilégios e os despri-
vilegiados. A escolha de Capitão, desde 1915, até recentemente,
era feito pelo Órgão Indigenista, e coloca um indivíduo de certo
A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

grupo familiar no posto de Capitão, logo essa família se apodera


desse posto, possivelmente torna-se hereditário, da mesma for-
ma acontece em outros postos.
Em pesquisa de campo do Shaden (PEREIRA, 2008), na re-
serva Te’yikue, na década de 70, quando os Kaiowá já tinham se
estabelecidos no lugar, um pequeno grupo de Guarani tentou ir
morar na aldeia, porém foram impedidos de se instalarem, pois
havia certa rivalidade entre os Kaiowá e Guarani, tanto é que al-
guns grupos de Guarani não revelaram ser Guarani, e para se ins-
talar na aldeia declararam ser do coletivo de Kaiowá. Até agora
os grupos que se autodenominam Kaiowá ou Guarani tem essa
rivalidade, era a forma de alguns grupos familiares tentarem ser
aceitos na Comunidade, podendo ocupar a “área de acomoda-
ção” (PEREIRA, 2007) na reserva, pois era muito difícil suportar
a expulsão forçada e estigma de seu grupo no lugar anteriormen-
te vivido no tekoha.
Na dissertação de VIEIRA (2010):
É assim que encontramos, na TI Sete Cerros, o cacique prin-
cipal, Luciano Valiente, cujos filhos: Silvano, Arístides, Car-
linhos e Pedro, sucessivamente têm ocupado o posto de ca-
pitão ou de vice. Enquanto os dois primeiros suicidaram-se,
o terceiro foi destituído depois de 15 anos no poder e atual-
mente briga contra seu irmão mais novo, Pedro, que ocupou
o seu lugar (p. 60).

Ou seja, a administração da Reserva somente fica o car-


go no meio de certa família, monopolizando-se o poder, e isso
acontece em outras reservas também. Isso se deve porque no
próprio modo de ser dos Kaiowá e Guarani, de atenderem so-
mente a sua família, a articulação desse status entre os seus trará

206
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

o bem-estar social, ou seja, o que atende o interesse da família


a qual pertence que abarca os ypykykuera, além disso, pode se
estender a sua rede de parentela.

O IMPACTO DA FIGURA DE CAPITÃO NA RESERVA


TE’YIKUE

Brand (2001) que discorre minuciosamente sobre a fala de


uma Kaiowá, o teórico diz: “O bom mesmo é ficar sem capitão”,
mostra além da inconformidade dos Kaiowá com o Capitão inva-
dindo o Te’yi Guasu deles, desarticulando a administração pró-
prio dos Kaiowá, e reconfigurando a relação de poder, o vínculo
de apoio político e social entre os Kaiowás e Guarani, pois o apoio
estava ligado ao articulador dos Ypykuera dos Kaiowá, e para arti-
cular a parentela, cria-se um vínculo com os outros ypykuera.
Por sua vez, os problemas produzidos na Reserva, se de-
vem a esse ser um espaço reduzido, e que muitas vezes criam
atritos, por não conseguirem criar laços de parentesco entre uns
e outros, e esses conflitos ocorrem em vários cantos da reserva,
como o Capitão não consegue ter uma solução para esses proble-
mas. Em uma das conversas com um jovem que mora na cidade,
uma vez disse que perdeu o ônibus escolar para retornar à cidade
para a volta na sua casa, ele foi a pé, no caminho ele foi abordado
pelo grupo de “malucos”, e foi espancado e levaram os materiais
escolares, ou seja, “Umi maluko imachetepa ou cheve ha ndaika-
tui ajapo mba’eve, Che nupã hikuai ha oipe’a Che kadernoryru.
Ohecha aja Che kadernoryru asipara ha akañy chuguikuera”, ele
conseguiu fugir dos malucos quando os estavam desatentos ve-
rificando a mochila. Ele contou que esses grupos foram contra-
tados pelas famílias que residem perto da casa dele, pois os seus
pais tinham se desentendido com vizinho, a ideia era assustá-lo.
ELEMIR SOARES MARTINS

O jovem disse que “se fosse o Ñande Ru, isso não teria acon-
tecido, pois ele iria fazer reza a meu favor e aconselharia a minha
família a não entrar em conflito com vizinhos e iria aconselhar
também os outros”. E ele acrescenta que o Capitão foi na sua casa
com sua equipe de segurança enfurecendo mais ainda o conflito.
Atualmente, ocorre eleição para que os moradores da
Te’yikue coloquem representante no cargo de liderança indíge-

207
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

na, que tem a duração de 4 anos, no “Barracão”. O local é no


Posto Central ou na escola, a comunidade faz uma reunião, para
montar uma Comissão para decidir quantos candidatos vão
concorrer para o cargo. Este foi institucionalizado pelos Órgãos
Indigenistas como Capitão da Reserva, para se ter uma ideia,
o capitão funciona também como uma espécie de “autoridade
moral”, assim como o pastor nas comunidades evangélicas.
O último plebiscito foi no ano passado, foram oito candi-
A LIDERANÇA POLÍTICA/CAPITÃO NA ÓTICA DOS KAIOWÁ E GUARANI DA RESERVA TE’YIKUE, CAARAPÓ-MS

datos a disputar pelo cargo de Capitão, somente uma mulher se


candidatou. Ela é professora de Ciências na escola indígena da
aldeia, funcionária do serviço público de educação.
A maioria dos candidatos é do Posto Central, poucos são
de outra região, por exemplo, esse ano só houve um candidato
da região Mbokaja da etnia guarani, os outros sete candidatos
eram das regiões próximas ao centro da reserva. O eleito a cargo
de liderança indígena foi da região do Posto Central, e como essa
nova liderança é Kaiowá, não pertence à parentela do seu ante-
cessor, porém o vice fazia parte de outra parentela, portanto, foi
implantado o sistema de parentela às demais famílias.
Essas situações são somente uns dos exemplos de vários
que geram problemas na Comunidade, podemos ver que o espa-
ço reduzido, sem nenhum reconhecimento ao modo de viver dos
Kaiowá e Guarani, a escassez recurso na Comunidade, o desco-
nhecimento das autoridades públicas, a forma como os Kaiowá e
Guarani concebem a política, acabam gerando uma nova forma
de reorganização social do Kaiowá e Guarani.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Trazendo uma reflexão do impacto da figura de Capitão,


apresentando as teorias relacionada ao modo de viver dos Kaio-
wá e Guarani, pontuando as contribuições da história dos con-
ceitos para se entender a construção da figura do Capitão.
Através de estudo do conceito propriamente dito, ao “Ca-
pitão” é possível desvendar toda uma trama de relação que se
construiu em meio aos Kaiowá e Guarani para entender nova-
mente a sua organização social e política, depois do “esparramo”
(BRAND, 1993), fazendo um panorama do processo da criação

208
HISTÓRIA E ANTROPOLOGIA: CONEXÕES DO TEMPO PRESENTE

das Reservas no Mato Grosso do Sul, na qual uma das Reser-


vas ou Posto Indígena criada pelo SPI, que se tornou mais para
frente a FUNAI, a Reserva de Caarapó ou como os moradores da
Comunidade chamam de Tekoha Te’yikue.
No noticiário, nos jornais e na divulgação relacionada à
Comunidade Kaiowá e Guarani, muitos têm utilizado o termo
“Capitão”. Não cabendo julgar a ação da liderança indígena, pois
a Constituição Federal Brasileira de 1998 no artigo 231 reconhece
aos povos indígenas a sua organização social e política própria e
autônoma, cabendo cada comunidade criar regras, leis e normas
para a sua organização. Essa figura de Capitão, ao adentrar na
organização política dos Kaiowá e Guarani, é um novo arranjo
político entre os moradores da Te’yikue, anterior a Constituição
de 1988, com o advento disso, a sociedade indígena foi desres-
peitada, discriminada e estigmatizada pela sociedade e pelas au-
toridades públicas.

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FERREIRA, M. M. História, tempo presente e história oral. Topoi
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VIEIRA, José Maria Trajano. Entre a Aldeia e a Cidade: O transito
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210
CASA LEIRIA
Rua do Parque, 470
São Leopoldo-RS Brasil
casaleiria@casaleiria.com.br
Professor da Universi-
dade Federal de Roraima –
UFRR, Eduardo Gomes da
Silva Filho, organizador de
História e Antropologia –
Conexões do tempo presen-
te, é também indigenista e
atuante em estudos relacio-
nados à resistência do povo
Waimiri-Atroari frente aos
projetos desenvolvidos du-
rante a Ditadura Civil-Mili-
tar. Seus trabalhos acadêmi-
cos visam a reflexão sobre os
povos indígenas e o prota-
gonismo de indivíduos que
foram tratados com descaso
e preconceito na história
brasileira.
Nesta obra, os autores recorrem a diversas
fontes distintas, para evidenciar o que muitos
estudiosos definem atualmente como “Nova
História Indígena”. Isso pode ser observado
em textos que trazem à tona análises docu-
mentais, relatos orais, entrevistas e materiais
etnográficos. Entre outros aspectos aborda-
dos, também podemos destacar a valorização
das línguas indígenas, memórias e narrativas
orais, tanto como fonte e metodologia.

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