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Abstract
During the analysis of two eastern Amazon
archaeological sites, Cavalo Branco and Nova
Ipixuna 3, where we identiied Tupinambá ce-
1
Doutorando em arqueologia pelo MAE/USP.
2
Mestranda em arqueologia pelo MAE/USP e Arqueológa da Scientia Consultoria Cientiica.
3
Sub-TradiçãoTupinambá da Amazônia: ligada aos grupos falantes do tronco Tupi (mais especiicamente
da família Tupi-Guarani, excetuando os Guarani), cuja cultura material seria (e essa pergunta que permeia
nossos estudos) uma extensão da Tradição Polícroma Amazônica. No entanto, diferenças tecno-tipológicas
(Almeida, 2008), tornam necessária uma distinção entre os Tupinambá da Amazônia e os Tupinambá do
litoral. Há divergências entre os próprios autores quanto ao uso de Tupi ou Tupinambá, questão muito mais
complexa do que uma simples terminologia, que mereceria um artigo por si só.
4
Trabalhos executados pela Scientia Consultoria Cientíica, nos anos de 2003 a 2005, sob coordenação da
Dra. Solange Caldarelli.
5
No presente artigo não estabeleceremos a discussão sobre a Longue Dureé e suas aplicações na pesquisa
arqueológica. Ver Braudel (1966) e Hodder (2007).
quanto à busca da longa duração temporal no do no sentido de que este não se restringisse
contexto Tupinambá. Nosso trabalho, por sua apenas à aldeia, mas que fosse compreendido
vez, procurou identiicar aspectos que indiquem como conjunto de “elementos espaciais que ajudam
essas continuidades para tipos de assentamento na execução de atividades no interior ou nas proximida-
Tupinambá na fronteira oriental da Amazônia. des dos assentamentos”.
O que torna necessário ressaltar que não pre- A bibliograia sobre as possibilidades de
tendemos realizar analogias diretas a partir dos análise espacial é extensa. Examinemos nossos
exemplos etnográicos. O que se propõe aqui é estudos de caso antes de recorrer aos dados et-
um diálogo entre os grupos Tupi-Guarani atuais nográicos.
e pré-históricos.
Scatamacchia e Moscoso (1989:39) ize-
ram uma leitura das fontes históricas documen-
Uma breve descrição dos
tadas durante os séculos XVI e XVII, buscando sítios Nova Ipixuna 3 e Cavalo
descrições que caracterizassem a “distribuição es- Branco
pacial das aldeias, a sua relação com o meio ambiente e O sitio arqueológico Cavalo Branco está
sua duração temporal (...). Em relação aos Tupinambás, localizado em área de pasto, em média e baixa
[observaram os autores], as informações mais completas vertente de morro com declividade suave. O sí-
descrevem apenas as aldeias ou sítios de habitação. En- tio encontra-se dentro do perímetro da cidade
tretanto, outras ocupações puderam ser evidenciadas ar- de Marabá/PA. O igarapé Matrinxã, delimita-
queologicamente, como é o caso dos acampamentos para dor da parte leste do sítio, é aluente do igarapé
coleta de moluscos e as áreas de enterramento”. Flecheiras que deságua no baixo rio Tocantins,
No caso dos acampamentos para coleta cuja distância para o sítio Cavalo Branco é de
de moluscos, Scatamacchia e Moscoso (op.cit.) aproximadamente 15 quilômetros.
referem-se ao trabalho realizado por Beltrão e Já o sítio arqueológico Nova Ipixuna 3
Faria (1970), em sítio litorâneo “Tupiguarani” está localizado, em município homônimo, na
onde, segundo as autoras, cerâmica, artefatos planície de inundação do rio Ipixuna (também
líticos e materiais ósseos foram evidenciados. aluente do rio Tocantins), cuja margem situa-
Meggers e Maranca (1980:237) correla- se aproximadamente 150 metros do sítio. O
cionam dados etno-históricos e etnográicos terreno possui suaves ondulações e atualmente
para reconstituição experimental de organiza- encontra-se coberto por pasto sujo com grande
ção social baseada na distribuição espacial dos quantidade de palmeiras.
tipos cerâmicos do sitio Queimada Nova, i- Os sítios Nova Ipixuna 3 e Cavalo Bran-
liado à tradição “Tupiguarani”, com o intuito co distam aproximadamente 25 quilômetros
de estimular investigações similares. As autoras um do outro. Ambos estão localizados na re-
comparam o espaço do sítio Queimada Nova gião sudeste do Pará.
com os dados etnográicos da organização es- A mesma metodologia de escavação foi
pacial dos Tapirapé, a partir dos estudos reali- utilizada para os sítios Cavalo Branco e Nova
zados por Baldus (1970) e Wagley (1977) sobre Ipixuna 3. Ambos foram trabalhados a partir de
esse grupo indígena. uma amostragem sistemática, através de uma
Assis (1996:38), baseando-se principal- malha de quadras de 1m², porém com diferen-
mente em dados etno-históricos, construiu um ça na escolha do espaçamento do grid, obede-
modelo de espacialidade para os Tupinambá cendo às especiicidades espaciais de cada um
(do litoral), com o conceito do espaço habita- deles. Para a escavação do sítio Cavalo Branco
a malha foi formada com quadriculamento de Já o sítio Cavalo Branco foi delimitado
20mx20m; já para o Nova Ipixuna 3, o espaça- com a execução de 584 quadras, das quais 375
mento foi de 10mx10m. O rebaixamento das apresentaram material arqueológico e 209 foram
unidades foi feito através de níveis artiiciais de estéreis. O material foi encontrado, em média,
10cm até o esgotamento do material6. até os 30cm de profundidade. No entanto, hou-
O sítio Nova Ipixuna 3 foi delimitado ve casos extremos de material em até 210cm.
com escavação de 144 quadras, das quais 73 ne- A principal área de concentração cerâmica foi
gativas (ausência de material arqueológico) e 71 caracterizada por um sedimento extremamen-
positivas. O sítio apresentou uma camada arque- te escuro, de cor very dark brown, caracterizado
ológica sub-supericial com profundidade média como solo antrópico, a partir das análises físico-
de 30cm e máxima de 70cm em algumas situa- químicas do solo7 (Almeida, 2008). Estudiosos
ções. As escavações renderam a coleta de 2.439 da arqueologia Tupinambá, como Assis (1996),
fragmentos cerâmicos e 13 peças de material tendem a indicar essas manchas escuras como
lítico. Obteve-se o registro de manchas escuras sendo as antigas áreas de habitação.
de solo para a área de maior concentração ce- As escavações no sítio Cavalo Branco
râmica, porém não foram realizadas análise de renderam um total de aproximadamente 3.500
sedimentos. fragmentos líticos e 50.000 fragmentos cerâmi-
Fig.1 - LT Tucuruí-Açailândia: Mapa de localização dos sítios Nova Ipixuna 3 e Cavalo Branco.
6
Após dois níveis estéreis era realizada uma tradagem no centro da quadra.
7
Realizadas por Dirse Kern (MPEG).
cos. Na área onde foi encontrada uma grande ção foram as recorrentes bordas cambadas,
mancha de solo antrópico, supostamente a área assim como as bordas vazadas (ocas). Ambas
de habitação do sítio, a densidade de material poderiam ser consideradas como uma das par-
foi tamanha que, em um nível de 10cm, foram ticularidades da cerâmica Tupinambá do baixo
encontrados mais de mil fragmentos. e médio Tocantins (Almeida, 2008). Inlexões
em forma de ombro também foram seguida-
A cerâmica do sítio Cavalo mente observadas durante a análise cerâmica.
Os estudos indicaram a presença de 17
Branco diferentes tipos de formas cerâmicas (Fig.2),
A cerâmica do sítio Cavalo Branco pode, com vasos possuidores de contorno simples,
a grosso modo, ser descrita como sendo acor- inlectido e composto. Os volumes reconstituí-
delada, com antiplástico predominantemente dos dessas formas variaram de 0,04 a 47 litros.
mineral (46% da amostra), seguido pelo vege- Apesar da necessidade de realizar análi-
tal: carvão e/ou cariapé (28% da amostra). Foi ses mais aprofundadas, foi possível (Almeida,
observada principalmente a queima incompleta 2008:154-158) fazer sugestões quanto aos pos-
(63,5%). O tratamento de superfície era ino síveis usos dos vasos. Baseado-se no trabalho
com freqüente presença de engobo de colora- de Amaral (Scientia, 2008), com sítios Tupi-
ção branca e vermelha. nambá do médio baixo rio Tocantins e do oeste
Outros atributos que chamaram a aten- maranhense, assim como nos trabalhos de La
Salvia & Brochado (1989), e Brochado (1991), (ocasionalmente) com predominância dos dois
foram sugeridas funções de armazenamento de primeiros. O pigmento branco não necessaria-
alimentos, armazenamento de líquidos, serviço mente icava restrito como base para a execu-
e consumo de bebidas fermentadas (ou não- ção de motivos com pintura vermelha. O inver-
fermentadas), serviço e consumo de alimentos so também foi observado. Bandas vermelhas,
frios, assim como para cocção e assamento (Al- demarcadoras de inlexões no corpo do vaso,
meida, op. cit.). constantemente observadas na cerâmica Tupi,
A decoração mostrou-se extremamen- também foram freqüentes na análise da indús-
te rica e variada, tanto nos atributos plásticos tria do Cavalo Branco. Dos fragmentos estuda-
quanto nos pintados (Fig.3). Nesta última ca- dos8 considerados diagnósticos9, 33% possuíam
tegoria houve inúmeras combinações de pig- decoração pintada.
mentos vermelho, branco, preto, e amarelo A decoração plástica foi representada
8
A análise cerâmica equivale a 2.500 fragmentos diagnósticos.
9
Bordas, bases, paredes decoradas, apliques etc.
10
Beta Analytic.
11
A analise cerâmica equivale a 330 fragmentos diagnósticos de um total de 2349 fragmentos coletados.
12
Foram identiicados entre 1 a 3 peças de cada tipo de decoração plástica.
superiores a 8 litros), podem estar relacionados a Foram obtidas, até o momento, duas da-
funções mais “simples” como o armazenamen- tações radiocarbônicas para o sítio Nova Ipixu-
to, o preparo, e o consumo de alimentos (líqui- na 3 (Tabela 2):
dos ou sólidos). O sítio Nova Ipixuna 3 apresentou uma
Quanto ao material lítico, Sirlei Hoeltz datação que apontava para um período anterior
argumenta que o sítio Nova Ipixuna 3 “não apre- ao do contato com os europeus. No entanto, a
senta, em comparação com os fragmentos cerâmicos, uma cronologia desse sítio aponta também para uma
indústria lítica signiicativa. Considerando apenas as ocupação já no período colonial, diferentemente
13 peças que o compõem, as interpretações icam preju- do sítio Cavalo Branco.
dicadas. Entretanto, os tipos de artefatos, como a lasca
retocada e o quebra-coquinho ou bigorna, demonstram
que algumas atividades estavam sendo executadas com
Semelhanças e diferenças en-
o auxílio de objetos líticos, porém, não necessariamente tre os sítios
dentro da área do assentamento”. Ela também indica Retomemos alguns pontos explicitados
que, foi “possível observar certas similaridades entre os logo na introdução. O primeiro e mais simples
objetos líticos do sítio Cavalo Branco e do sítio Nova é a proximidade geográica entre os dois sítios,
Ipixuna 3 – ao menos, no que diz respeito à morfologia ambos situados na bacia do médio baixo rio
e ao tipo de matéria-prima” (Almeida, 2008: 251). Tocantins (a cerca de 15 quilômetros desse rio),
com uma distância aproximada de 25 quilôme- sítio Cavalo Branco foi observada também uma
tros um do outro. Da mesma forma, uma série grande variação de funções, algumas destas
de atributos comuns foram observados na cerâ- provavelmente ligadas ao cultivo de alimentos,
mica dos sítios Cavalo Branco e Nova Ipixuna como os assadores e os vasos para consumo de
3. Tais semelhanças levaram-nos a inferir estes bebidas fermentadas. O que não ocorreu no sí-
dois sítios como possuidores de uma indústria tio Nova Ipixuna 3, onde foi sugerida uma res-
cerâmica Tupinambá amazônica. trição quanto às funções dos vasos.
A última convergência entre esses sítios Também foram apontadas discrepâncias
refere-se à questão cronológica. Percebe-se que quanto à dimensão e à densidade do material
há duas datações bem próximas. Enquanto o sí- arqueológico nos sítios Cavalo Branco e Nova
tio Cavalo Branco possui uma data de 1.290 AP Ipixuna 3. O cálculo da densidade de material
a 1.160 AP, o sítio Nova Ipixuna 3 possui uma por m³ (Tabela 3) é ideal para esse tipo de com-
no período de 1.280 AP a 1.140 AP. Tal proximi- paração, uma vez que permite estabelecer rela-
dade temporal, no entanto, não justiicaria air- ções entre áreas com diferentes amostragens.
mar uma ocupação simultânea nos dois sítios.
Ainda quanto à cronologia, é importante
apontar que, tanto no sítio Cavalo Branco quan- O que diz a etnograia
to no sítio Nova Ipixuna 3, houve uma disso- Ainda nos faltam dados etnográicos que
nância nas datações. Tal constatação indica que resultem de estudos mais aprofundados sobre as
ambos os sítios sofreram reocupações. estruturas dos diferentes tipos de assentamento
A partir da rica tipologia de formas do utilizados pelos diferentes grupos pertencentes
Tabela 3 – Densidades líticas e cerâmicas dos Sítios Cavalo Branco e Nova Ipixuna 3
13
Como anteriormente mencionado o número total de fragmentos líticos e cerâmicos do sítio Cavalo Bran-
co é maior, em torno de 50.000 e 3500, respectivamente do que o apresentado na tabela. Nesta, só contabi-
lizamos o material das quadras pertencentes à malha de unidades de escavação (unidades complementares
foram separadas).
à família Tupi-Guarani da região amazônica. casas voltadas para si mesmas” (Viveiros de Castro,
Ainda assim, dados importantes para relexão 1996: 316).
e para o diálogo com a arqueologia podem ser Os Tapirapé, estudados por Baldus
destacados. (1970) e Wagley (1977), também sazonalmen-
Os Araweté, estudados por Viveiros de te15 fragmentavam a aldeia em grupos familiares
Castro (1986: 267-273), apresentaram um pa- que se deslocavam para a savana. Em um local
drão de assentamento ligado à sazonalidade. considerado mais propício, um abrigo temporá-
No período de chuva, a aldeia se fragmentava rio seria erguido. Além da caça, os homens pes-
em pequenos grupos nucleares que se dispersa- cavam e coletavam ovos de tartaruga. Tanto os
vam em diversos acampamentos pela mata, rea- homens como as mulheres coletavam frutas e
lizando atividades de trekking14, ou seja, ligados castanhas na mata. Segundo Wagley (op. cit.:52)
à coleta, e à caça de animais. Findado o período era comum a prática de queimadas nos acam-
das chuvas, ocorria um reagrupamento dentro pamentos. Isso porque a gramínea que nascia
do espaço da aldeia. O que não impediu que após essa prática seria atraente para atrair os
mesmo no período de seca, os Araweté produ- animais desejados.
zissem algumas estruturas que não pertenciam Os Parakanã constituíram um caso a
à aldeia. Tratava-se de acampamentos de mata, parte. A cisão interna, no im do século XIX,
para abrigar caçadores ou famílias, em curtas criou um grupo mais sedentário (os Parakanã
expedições. orientais) e um grupo praticamente nômade (os
Outro dado interessante do estudo feito Parakanã ocidentais). Quando Fausto (2000:59)
por Viveiros de Castro é o fato de que todas indica que os Parakanã ocidentais foram au-
as aldeias Araweté localizavam-se em áreas de mentando o período de trekking, para gradativa-
antigas roças: mente deixarem de praticar a agricultura, lê-se
“Se toda roça foi, antes, mata, toda aldeia foi, nas entrelinhas que o grupo, quando uno, pra-
antes, roça (grifo nosso). Quando um grupo decide mu- ticava sazonalmente essa atividade. Dessa for-
dar-se para outro lugar, abre primeiro as roças de milho, ma temos um curioso exemplo de um grupo,
e se instala no meio delas. Com o passar do tempo e das os Parakanã ocidentais, sem práticas agrícolas,
safras as plantações vão recuando, e resta uma aldeia” mas que se unia na aldeia em um período, para
(1996: 312). em seguida, com as mudanças sazonais, se frag-
Tais palavras sintetizam duas das princi- mentar em pequenos grupos, os quais constru-
pais características da aldeia Araweté explicita- íam acampamentos na mata.
das pelo autor; a primeira refere-se às escolhas Por im, encontramos os Urubu-Ka’apor,
que derivam à formação do espaço ocupado e a estudados por Balée (1994). Esse grupo, den-
segunda à estruturação desse espaço, formado tro dos escolhidos para dialogar com os dados
por seu “pluricentrismo, isto é, a ausência de um espa- arqueológicos, é o mais sedentário. Os Urubu-
ço ‘público’, cerimonial e centralmente situado. A aldeia Ka´apor se organizariam em um sistema eco-
parece um agregado de pequenas aldeias, ‘bairros’ de lógico mais próximo do indicado para os Tupi-
14
Balée (1994:210) deine grupos trekkers como sendo os que passam 6 meses por ano longe da aldeia, para
a qual acabam voltando. Os trekkers fariam parte de um grande grupo “agrário” em que também estariam
inseridos os cacicados e os semisendentários.
15
Ao contrário do que acontece com os demais grupos, os Tapirapé deixam a aldeia no período de seca
(Wagley: 1977:52).
nambá (históricos do litoral), onde o “núcleo” por as suas habilidades, ao contrário de uma
aldeia era abandonado somente quando ela aldeia com espaço aberto para grandes ceri-
(aldeia) era transferida para um outro lugar. Ri- mônias. O que não impediria a existência de
beiro, que esteve entre os Ka´apor quase meio vasos decorados em estruturas temporárias.
século antes, teve a oportunidade de descrever Ao deixar a aldeia, o grupo pode ter esco-
abrigos de roça “de 2,5 metros de comprimento por lhido alguns dos seus melhores vasos, o que
1,1 de largura e dois de altura (...). Enquanto a roça provavelmente incluiria algum com decoração,
cresce na mata, eles icam a colher o que plantaram o para a temporada fora. Isso porque os vasos
ano passado no alto Coracy, onde também há mais caça decorados Tupi não possuíam apenas uso ritu-
do que peixe. Assim somente daqui a uns quatro ou alístico (vide La Salvia e Brochado, 1989). As
cinco meses voltarão àquele pouso” (2006: 86). funções eram múltiplas.
As considerações e questionamentos
Sítio “aldeia” Cavalo Branco e apresentados até aqui se encontram sumariza-
das a seguir da seguinte maneira:
sítio “acampamento” Nova Ipi- De um lado, encontramos o sítio Cavalo
xuna 3? Branco, de grande extensão, alta densidade de
Sem dúvida, não somente as dimensões vestígios arqueológicos, possuidor de uma ce-
dos dois sítios estudados variaram, como tam- râmica extremamente variada e elaborada, com
bém a densidade de material, esta última mui- inúmeras possibilidades funcionais, além de
to superior no Cavalo Branco do que no Nova uma indústria lítica bem representada quantita-
Ipixuna 3. Foi observado que a cerâmica do tivamente, com presença de artefatos de várias
sítio Nova Ipixuna 3 não era tão bem acaba- etapas de produção e diferentes possibilida-
da, com 43% de fragmentos com alisamento des de uso. Fatores que, ao lado de uma gran-
médio ou grosso na face externa frente a 29% de mancha de solo antrópico (de 2 ha.), tido
do sítio Cavalo Branco. Outra variável que logo por Petersen et. al (2001:100) como indicativo
chamou a nossa atenção foi a decoração da ce- de lixo residencial, podem indicar que o sítio
râmica. Enquanto o sítio Nova Ipixuna 3 pos- Cavalo Branco foi ocupado como aldeia. Do
suía “somente” 19% dos fragmentos analisados outro lado encontra-se o sítio Nova Ipixuna 3,
com alguma decoração, o sítio Cavalo Branco delimitado em uma pequena área , com baixa
apresentou 24% dos seus fragmentos analisa- densidade de vestígios arqueológicos, com ma-
dos com decoração plástica e 33% pintados. Se terial cerâmico de acabamento menos cuidado-
levarmos em conta que muito raramente deco- so, rara decoração, pouca variação funcional, e
rações plásticas e pintadas eram encontradas no uma escassa industria lítica.
mesmo vaso, poderíamos sugerir um número Foi possível identiicar tanto nos traba-
de fragmentos decorados (analisados) em torno lhos etnográicos (e.g. Viveiros de Castro, 1986;
de 55%. Balée, 1994; Fausto, 2000, etc.) quanto nos es-
Supõe-se que os vasos são decorados tudos de caráter arqueológico (e.g. Assis, 1996),
para serem mostrados (vide, por exemplo, a que uma multiplicidade de tipos de estruturas
análise funcional elaborada por Schaan, 2004), pode ocorrer fora da aldeia.
uma acanhada estrutura temporária, como um As variações começariam na localização
acampamento, ocupada talvez apenas por um das estruturas próximas ou distantes das al-
pequeno núcleo familiar, certamente não seria deias. A função da estrutura (e.g. caça, pesca,
o local mais adequado para a(o) artesã(o) ex- área de coleta, a combinação destes, ou área de
área no mapa de densidade de material (Fig. 7, e da Área 2. Sem dúvida, estamos lidando com
Área 2). Se a área 1 foi a grande responsável a mesma indústria cerâmica. Quase todos os as-
pela inferência de que o sítio Cavalo Branco pectos predominantes da cerâmica eram iguais
havia sido uma aldeia, resta saber qual seria a ou próximos, como demonstra a Tabela 5.
função da área 2. No entanto, encontramos algumas dife-
A análise das densidades da Área 1 e renças entre as áreas, que serão exploradas para
Área 2 (Tabela 4) mostraram uma grande dis- inferirmos respostas às questões referentes à
crepância entre os números, semelhante à com- Área 2. A comparação entre os tratamentos de
paração dos dados dos sítios Cavalo Branco e superfície indica que, enquanto a Área 1 apre-
Nova Ipixuna 3. senta uma grande maioria de fragmentos bem
Para comparar as indústrias cerâmicas acabados (alisamento ino), a Área 2 apresenta
das duas áreas, foram selecionadas quadras um número superior de fragmentos com alisa-
pertencentes a cada uma delas.16 Foi escolhido mento médio, tanto na face interna quanto na
o dobro de quadras da Área 1 (12) em relação face externa. Essa seria uma primeira evidência
à Área 2 (que possuía apenas 6 quadras inseri- de que a cerâmica da Área 2, da mesma forma
das na malha de sondagens analisada), com o como aconteceu no sítio Nova Ipixuna 3, não
objetivo de melhorar o senso de proporção. A era tão bem acabada quanto a da Área 1. No
amostragem icou assim dividida: a Área 1 apre- entanto, é preciso ter cautela. Não só os nú-
senta 292 fragmentos diagnósticos, e a Área 2, meros do alisamento médio são extremamen-
apenas 7617. te próximos na amostragem da Área 2, como
O material selecionado foi insuiciente também observou-se o fato de apenas a Área 1
para estabelecer uma comparação de uma das apresentar fragmentos com alisamento grossei-
principais categorias, a das formas, já que foi ro (Gráicos 1 e 2).
possível reconstituir apenas uma vasilha da A Área 2 não apresentou nenhum frag-
Área 2. No entanto, a comparação em outros mento com decoração corrugada, mas foram
campos trouxe resultados interessantes. encontradas decorações incisas, unguladas e di-
De forma geral, o que se observa é uma gitunguladas, além das roletadas, que não apare-
grande semelhança entre as cerâmicas da Área 1 cem na Área 1. Na verdade, essa maior variação
16
Foram analisadas, além de uma amostra qualitativa proveniente de áreas ampliadas e a trincheira, apenas
quadras da malha 40 x 40 metros (ao invés de 20x20 metros), ou seja, um quarto do total escavado.
17
É importante esclarecer que, se estamos lidando com diferentes amostragens, uma quase quatro vezes
superior à outra, nossos resultados devem ser obtidos em cima das devidas proporções numéricas.
encontrada na Área 1 é baseada mais na com- branco, preto e amarelo) em diferentes combi-
binação das decorações plásticas tradicionais nações, a Área 2, a exemplo do que foi obser-
do que na utilização de decorações diferentes vado no sítio Nova Ipixuna 3, apresentou pou-
(Gráico 3). quíssimos fragmentos pintados (Gráico 4).
É nas decorações pintadas, inalmente, As datações também carregam informa-
que é possível observar a maior diferenciação ções importantes na comparação das duas áreas.
entre as duas áreas. Enquanto que, na Área 1 Três momentos distintos de ocupação do sítio
foram encontradas quatro cores (i.e. vermelho, podem ser observados. Nada impede a ocor-
rência de outras reocupações nos intervalos das van (1992, 2006), de que machados de pedra
datas, ainda que seja mais sensato basear as in- encontrariam grande diiculdade em abrir cla-
ferências nos dados obtidos até o momento. reiras em áreas com mata primária, Balée (1994)
A primeira ocupação, por volta de 1.200 acredita que áreas com mata secundária (i.e. an-
AP, teria acontecido apenas na Área 1, possi- teriormente ocupadas) seriam indicadas para
velmente na forma de uma aldeia. Quatrocen- uma reocupação. O autor (ibid.: 147) indica que
tos anos depois, ocorreria a segunda (800 AP), esses locais seriam atraentes, pois possuiriam
uma estrutura temporária, provavelmente ape- solos mais férteis (fruto dos resíduos orgânicos
nas na Área 2. Por im, uma terceira ocupação, deixados pela ocupação anterior) e uma série
por volta de 680 AP, teria acontecido de novo de espécies “semi-domesticadas”18, interessan-
na Área 1, onde uma nova aldeia seria erguida, tes não só para a alimentação humana, como
com presença de lixeiras no entorno (vide Al- também a de outros animais. Ou seja: essas áre-
meida, 2008) (Tabela 6). as eram mais do que ideais para encontrar todo
tipo de alimento, de frutas à caça. Talvez um
De volta à etnograia local desses, uma antiga aldeia tomada por mata
O diálogo com a etnograia mais uma secundária, fosse interessante para a instalação
vez contribui para a problemática, ao indicar de acampamento temporário onde caça e coleta
a tendência à reocupação de áreas por grupos seriam a base da alimentação.
Tupi-Guarani. Baseado na hipótese de Dene- Tamanhos eram os atrativos dessas áre-
Gráico 3 - Decoração Plástica na cerâmica da Área Gráico 4 - Decoração Pintada na cerâmica da Área
1 e Área 2 1 e Área 2
18
Que serviriam inclusive de referência, assim como os restos materiais deixados pela antiga ocupação, para
identiicar esses locais.
as que estas podem não ter sido palco apenas gia destas indicou que haviam sido produzidas
de reocupação por um mesmo grupo, como a partir de seixos com dimensões limitadas
também por grupos diferentes. Para Balée (i.e. com comprimento diicilmente maior que
(1994.:140), “(…) the major long term beneiciaries 10cm). Sem dúvida, trata-se de uma tecnolo-
of the past forest management by the Ka’apor Indians gia muito mais pertinente a lidar com a mata
have not been Ka’apor descendents. Rather, the benei- secundária do que com as grandes árvores da
ciaries have been there traditional enemies, the foraging loresta primária.
Guajá, who traditionally rely heavily on the palms and O mapa de distribuição das lâminas po-
other disturbance indicator plants found in the Ka’apor lidas pelo sítio indicou que, dos 10 exemplares
fallows (…)”19. O que leva a se cogitar a possi- encontrados na malha de sondagens (de 20 x
bilidade de que os sítios arqueológicos da re- 20m), apenas três (CB-139, CB-984 e CB-2263)
gião-foco de estudo poderiam não só possuir pertenciam à Área 1. Outros três (CB-1138,
diferentes tipos de assentamentos por parte de CB-1543 e CB-1687) foram encontrados no
um mesmo grupo, mas também ocupações por entorno desse local. Já na Área 2, foram en-
grupos diversos. contradas duas lâminas de machado (CB-943
e CB-967) e outra nas proximidades (CB-975).
Trata-se de um número signiicativo, não ob-
Sugerindo uma função para a servado no sítio Nova Ipixuna 3, para uma área
Área 2 de dimensões reduzidas,20 ao ponto de ser pos-
Os machados de pedra do sítio Cavalo sível inferir que a Área 2 poderia estar ligada a
Branco podem contribuir para a discussão. Foi uma atividade que necessitasse da abertura de
observado anteriormente que a indústria lítica uma clareira. A priori, essa abertura seria muito
desse sítio utilizava como principal suporte os mais necessária em uma área de roça do que em
seixos de rio. As lâminas de machado parecem um acampamento temporário.
não ter fugido à regra, e mesmo sendo uma A hipótese de que o sítio pode ter sido
maioria de lâminas fragmentadas, a morfolo- ocupado na forma de uma área de roça é respal-
19
Outro exemplo pode ser observado no estudo de Silva et al. (2004), que indica a presença de fragmentos
de cerâmica Tupi em uma aldeia Xikrim (sudeste paraense).
20
Como foi observado anteiormente, a densidade de fragmentos líticos por m³ da Área 2 era muito inferior
à da Área 1, o que não se aplica à comparação entre a quantidade de lâminas de machado nessas áreas, fato
que dá às lâminas um papel preponderante na compreensão da funcionalidade da Área 2.
dada pela única lâmina ainda não comentada. lâminas especializadas, este gume é geralmente dissimé-
A peça CB-1654, que pode ser observada no trico (uma das faces sendo mais convexa que a outra),
canto superior esquerdo do mapa (Fig. 8), foi para facilitar o ataque da matéria trabalhada. Os en-
encontrada em um local do sítio com presença xós servem, sobretudo, para aplainar, cavar ou limpar
quase nula de cerâmica. A análise de sua mor- concavidades largas(...).
fologia leva a crer, segundo Galhardo (Almeida, Assim, apesar de ser impossível fazer
2008; Scientia, 2008), que a peça era um enxó, uma ligação direta da Área 2 com essa lâmina,
instrumento descrito por Prous et al. (2002, esse é mais um indício de que, em algum mo-
apud Almeida, op. cit.) como: (...) morfologicamente mento, a área do sítio Cavalo Branco ou parte
semelhante ao machado, mas encabado de forma que o dela foi utilizada como roçado.
gume seja perpendicular ao comprimento do cabo. Nas O que não impossibilita que, assim como
Fig. 8 - Mapa de dispersão das lâminas (ou fragmentos de lâminas) de machado no sítio Cavalo Branco
o exemplo etnográico dos Guajá e dos Ka’apor, râmica das quadras localizadas a cada 40 metros
outro grupo também tenha utilizado a área para (i.e. ¼ da amostragem inicial).
abertura de roça, acampamento temporário etc. A seleção fotográica (Fig.9), realizada
Apesar de, a priori, ter sido considerado que o com o material cerâmico de quadras não analisa-
sítio Cavalo Branco havia sido ocupado por um das do sítio Cavalo Branco, em alguns momen-
único grupo, nada indica que uma reocupação tos parece ter indicado a presença de cerâmica
por parte de um diferente grupo não possa ter diferente da encontrada na Área 1 e na Área 2.
ocorrido. Ocupações que, se ocorreram, o te- Extremamente simples, com coloração diferente,
riam sido, provavelmente, por períodos curtos e com presença de antiplástico mineral em gran-
e cujas dimensões das estruturas não só podem des proporções e dimensões, essa cerâmica (e.g.
ter escapado à malha sistemática de quadras im- quadras 200V-380D e 140V-260D) deixa sugeri-
plantadas no sítio Cavalo Branco (de 20 x 20m) da a hipótese, a ser testada em um estudo futuro,
como também pela escolha de só analisar a ce- da reocupação do sítio por um grupo diferente.
Resumindo Conclusões
Através de um estudo que buscou a todo A impossibilidade de se chegar a inferên-
o momento um diálogo entre arqueologia e et- cias mais concretas quanto aos dados espaciais
nograia, buscamos relacionar dimensão espa- da arqueologia Tupinambá da Amazônia traz a
cial, densidade de material, e características da certeza de que estamos lidando com uma com-
cerâmica arqueológica dos sítios Cavalo Bran- plexa rede de possibilidades. Os resultados dos
co e Nova Ipixuna 3, para observar um com- estudos parecem airmar a dissonância entre as
plexo de estruturas, com diferentes funções, dinâmicas espaciais dos grupos amazônicos e os
localizadas em variadas distâncias do entorno do litoral, o que esperamos levar a uma relexão
da aldeia. O estudo comparativo dos sítios Ca- maior quanto a ambos os grupos. Há uma série
valo Branco, considerados por nós uma aldeia, de outros dados, ainda a ser publicada, quanto à
e Nova Ipixuna 3, com função sugerida de variabilidade cerâmica e à morfologia das aldeias
acampamento, ainda que denominado de for- desses e de outros sítios estudados (vide Almei-
ma abrangente como uma estrutura temporá- da, 2008; Scientia, 2008), que certamente trará
ria, teve a intenção de jogar luz sobre as ques- subsídios para uma melhor compreensão desses
tões de assentamento dos grupos Tupinambá tão pouco conhecidos Tupinambá Amazônicos.
amazônicos. Curiosamente, “iluminou” um Não temos a menor dúvida de que o aprofunda-
dos nossos objetos de estudo, o sítio Cavalo
mento nos estudos desses grupos, aliando varia-
Branco, em uma análise intra-sítio. Foi inferi-
bilidade material e espacial com a profundidade
do que além de ter sido ocupado, pelo menos
temporal (que deve ser empurrada mais para o
uma vez, na forma de aldeia, o sítio Cavalo
Branco teria sido ocupado também, pelo mes- fundo com novas pesquisas, principalmente na
mo grupo, como uma estrutura temporária. Amazônia ocidental), trará mais um ingrediente
Sugeriu-se que o sítio foi utilizado como roça, para a cada vez mais revigorada arqueologia dos
e que talvez essa estrutura estivesse ligada a Tupinambá e dos Guarani.
tal função. Da mesma forma, baseados em
algumas características dissonantes presentes Agradecimentos
em alguns fragmentos cerâmicos encontrados Solange B. Caldarelli, Renato Kipnis,
fora das duas manchas de solo antrópico, su- Eduardo G. Neves, Fabiola A. Silva, Daniella
geriu-se que o sitio possivelmente foi ocupado Novo, Danilo Galhardo, Silrlei Hoeltz, Eneida
por outro(s) grupo(s). Malerbi e Sérgio da Silveira.
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