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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, Suplemento 3: 319-330, 1999.

ARQUEOLOGIA, HISTÓRIA INDÍGENA E O


REGISTRO ETNOGRÁFICO: EXEMPLOS DO
ALTO RIO NEGRO

Eduardo Góes Neves*

Introdução zação social e política na Amazônia. Esse proble­


ma, que é relevante para a antropologia de todo o
continente americano, tornou-se uma questão bá­
A bacia amazônica é atualmente a região bra­
sica da arqueologia amazônica, ao contrário de ou­
sileira onde a Arqueologia foi melhor sucedida no
tras partes do Brasil. O encaminhamento desse
estabelecimento de problemas de pesquisa sig­
problema geral envolve a resolução de uma série
nificantes para uma Arqueologia de caráter nacio­
de problemas particulares mal resolvidos que in­
nal. Isso deve-se ao fato de que as pesquisas na
cluem desde diferentes abordagens para pesquisas
Amazônia têm sido, por quase cinqüenta anos, con­
de campo a diferentes perspectivas sobre o esta­
sistentemente voltadas para a resolução de proble­
belecimento de analogias etnográficas nas inter­
mas gerados no âmbito da Antropologia Social. Esse
pretações arqueológicas.
não foi o caso da Arqueologia praticada em outras
Finalmente, há o problema da identificação de
partes do Brasil, onde a disciplina permaneceu uma
fronteiras étnicas e lingüísticas no passado atra­
tarefa basicamente descritiva esvaziada de preocu­
vés do uso de vestígios arqueológicos, principal­
pações históricas ou antropológicas mais densas.
mente fragmentos cerâmicos. Tal problema não é
Os problemas de pesquisa gerados pela arqueo­
único da arqueologia amazônica, já que está pre­
logia da Amazônia são tanto teóricos como me­
sente na agenda das pesquisas arqueológicas rea­
todológicos, tendo implicações diretas para os ti­
lizadas na Europa (a expansão dos povos falantes
pos de reconstituição da história pré-colonial fei­ de línguas indo-européias), na Polinésia (nos mo­
tos na região bem como em outras áreas das terras delos que explicam a ocupação dessa imensa área
baixas da América do Sul. Embora bastante in- por portadores do complexo cultural Lapita) ou na
terrelacionados, esses problemas podem ser agru­ África, ao sul do Saara (a expansão Bantu). Nas
pados em três categorias gerais. terras baixas da América do Sul, percebe-se, no
Primeiramente, há o estudo da correlação entre entanto, que vários modelos apresentados para
variáveis ambientais e processos sociais. Pesquisas explicar padrões contemporâneos de distribuição
realizadas sob essa perspectiva na Amazônia remon­ de línguas indígenas apresentam premissas, nem
tam ao final da década de quarenta, inicialmente sempre explícitas, de como o registro arqueológi­
com uma forte influência da ecologia cultural nor­ co da Amazônia deveria parecer. Isso é devido ao
te-americana, do determinismo ecológico e do neo- fato de que, nas terras baixas, identificação lingüís­
evolucionismo. Há, no entanto, atualmente elemen­ tica funciona freqüentemente como identificador
tos para uma crítica dessas premissas iniciais, prin­ étnico, uma tendência que remonta aos trabalhos
cipalmente a partir da chamada Ecologia Histórica de von Martius no século passado.
e dos estudos de manejo ambiental. Por causa dessa situação, a região amazônica
Em segundo lugar, há o estudo do impacto da é normalmente tratada como uma área distinta nas
conquista européia sobre os padrões de organi­ sínteses disponíveis sobre a arqueologia brasilei­
ra. Esse é o caso, por exemplo, de Arqueologia Bra­
sileira, escrita por André Prous e publicada em
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade 1992, a mais completa síntese já produzida sobre
de São Paulo. a arqueologia brasileira. A explicação para esse

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estado de coisas é parcialmente histórica: apesar desses três grandes problemas da arqueologia ama­
da importância de pesquisas realizadas em outras zônica, problemas esses - nunca é demais repetir
áreas do país, tais como os trabalhos de Lund na - fundamentais para toda a Arqueologia das terras
região de Lagoa Santa em Minas Gerais, pode-se baixas da América do Sul. É natural, então, que
dizer que a pesquisa arqueológica sistemática no uma discussão que pretenda verificar as possibili­
Brasil iniciou-se na região Amazônica na década dades de fertilização mútua entre a Arqueologia e
de setenta do século XIX. Assim, já em 1882, a a Antropologia Social deva procurar na região ama­
primeira síntese produzida sobre a arqueologia zônica exemplos de possibilidades e limitações de
brasileira, o impressionante trabalho de Ladislau perspectivas conjuntas de trabalho. Inicialmente,
Netto preparado para acompanhar a grande expo­ essa discussão deverá reconhecer uma diferença
sição antropológica realizada pelo Museu Nacio­ fundamental, bastante óbvia, mas que de certa
nal em 1882, dedicou uma parte considerável de maneira explica esse contato mais íntimo entre as
suas páginas a achados feitos na Amazônia (Netto ciências antropológicas na Amazônia: é esta a úni­
1885). Nesse mesmo período, outras monografias ca região do Brasil - com exceção de partes do Bra­
de fôlego foram escritas sobre a arqueologia ama­ sil central e da região sul - onde se pode postular
zônica: O Muiraquitã e Antigüidades do Amazo­ alguma forma de continuidade histórica entre as
nas, ambas de João Barbosa Rodrigues, e Contri­ populações contemporâneas e as populações que
buição à Etnologia do Vale Amazônico, de Charles ocuparam os sítios arqueológicos lá encontrados.
Hartt. Toda essa informação acumulada no final Em outras partes do Brasil, tal associação é difícil
do século XIX e no incício do século XX culmina­ se não impossível, o que, sem dúvida, traz conse­
ria finalmente com a breve, mas ainda atual, sínte­ qüências complexas no que se refere ao estabele­
se de Erland Nordenskiõld LArchéologie du Bas- cimento de políticas de proteção ao patrimônio ar­
sin de VAmazone, escrita em 1930 e baseada nas queológico. Nesse sentido, na região Amazônica,
coleções arqueológicas e notas de campo produzi­ a Arqueologia pode trabalhar de m aneira b i­
das por Nimuendajú no baixo Amazonas na déca­ dimensional, correlacionando tempo e espaço, con­
da de 20 para o Museu Etnográfico de Gotembur­ tinuidade e ruptura entre o passado pré-colonial e
go, material esse ainda não sistematicamente es­ o presente; no sul - e principalmente no sudeste -
tudado e publicado. do Brasil, essa operação tem quase sempre uma
A essa precedência histórica deve-se acrescen­ única dimensão, a do território reocupado pelo
tar também a importância do trabalho de Steward colono de ascendência européia, africana ou mesti­
e seus colaboradores no Handbook o f South Ame­ ça, uma vez que existe pouca continuidade bioló­
rican Indians. O trabalho de Steward foi importante gica ou cultural entre os antigos habitantes do que
porque estabeleceu uma tradição de pesquisas ba­ são hoje sítios arqueológicos e os atuais habitantes
seadas em premissas ecológicas na região. Essa dos espaços que foram outrora assentamentos in­
tradição, certamente deplorada por uma parcela sig­ dígenas.
nificativa da antropologia social brasileira, tem Talvez por essa razão seja difícil para os ar­
sido fundamental para a arqueologia amazônica, a queólogos brasilianistas que atuam fora da Ama­
ponto de não se poder fazer pesquisas na região sem zônia perceber que o objetivo básico da arqueolo­
ignorá-la, mesmo se o objetivo for crítico. Particu­ gia brasileira é bem simples: fazer história indíge­
larmente importante nesse caso foi o conceito de na. Nesse texto, procurarei discutir as possibilida­
“Cultura de Floresta Tropical” definido por Steward des e limitações da Arqueologia para a realização
e Lowie no volume três do Handbook, em 1948. Em dessa tarefa, tendo como base o último dos três
um outro trabalho (Neves 1998b), procurei mostrar problemas gerais da arqueologia amazônica ante­
como diferentes interpretações desse conceito fo­ riormente apresentados: a utilização do registro ar­
ram, na ausência de dados empíricos melhor esta­ queológico na identificação de fronteiras étnicas.
belecidos, responsáveis pelo debate que caracteri­ De maneira aparentemente contraditória, iniciarei
za a arqueologia amazônica desde a década de ses­ essa discussão apontando que, a meu ver, uma
senta até o presente. Arqueologia que se preocupe em ser história indí­
Foram, então, essa maior tradição histórica e gena é incapaz ou despreparada para fazer pa-
essa ligação constante com outras ciências antro­ leoetnografias e que, portanto, as características
pológicas as responsáveis pelo amadurecimento próprias do material de estudo da Arqueologia - o

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registro arqueológico - condicionam as possibili­ ração, como por exemplo movimentações popu­
dades de história indígena que a Arqueologia pode lacionais. Alguns dos riscos dessa associação pa­
produzir. recem bastante claros, como por exemplo o do difu-
A premissa de que a Arqueologia seja capaz sionismo. Outro risco, menos óbvio mas igualmen­
de realizar paleoetnografias traz dentro de si con­ te problemático, consiste na aceitação de uma re­
cepções enganadas sobre a natureza e os padrões lação unívoca entre cultura material - nesse caso
de formação do registro arqueológico. Como já foi vasilhames cerâmicos - e línguas, famílias ou tron­
anteriormente apontado por Binford (1981), casos cos lingüísticos. No caso da Amazônia, onde, mal­
como o de Pompéia constituem uma minoria es­ grado a tradição de pesquisas, o volume acumula­
magadora dentre o leque de possíveis formas a do de informações sobre a arqueologia regional é
partir das quais um sítio arqueológico se nos apre­ relativamente pequeno, o recurso a informações
senta no presente. Em Pompéia, circunstâncias ex­ obtidas pela lingüística histórica, mesmo que hipo­
ternas inesperadas - uma erupção vulcânica - cria­ téticas, é quase inevitável.
ram condições para o congelamento das ativida­ Os argumentos contra a utilização de correla­
des rotineiras da população de uma cidade - se a ções simplistas entre língua e cultura material pa­
expressão o permite - “turística” do império ro­ recem convincentes: a etnografía amazônica ofe­
mano no início da era cristã. Assim, a arqueologia rece vários exemplos em que tais correlações não
de Pompéia oferece, potencialmente, as possibili­ se justificam. Casos conhecidos são os do alto rio
dades para a elaboração de uma espécie de paleoet- Negro e alto Xingú: sistemas multiétnicos - ou pelo
nografia daquela comunidade. Via de regra, as si­ menos multilingüísticos - nos quais as diferentes
tuações em Arqueologia são outras: sítios arqueo­ populações que compõem esses sistemas produ­
lógicos representam normalmente o resultado com­ zem, consomem e descartam as mesmas categori­
binado de processos de ocupação humana bem as, em termos de forma, função e decoração, de
como o da ação de uma série de elementos pós- vasilhames cerâmicos. Note-se aqui que o apego da
deposicionais, que podem ser tanto naturais - pro­ Arqueologia por cerâmica não é apenas perversão,
cessos geomorfológicos, “bioturbações” (por exem­ mas também resultado das condições usuais de
plo buracos de tatu, cupins e raízes) - como re­ preservação dos vestígios arqueológicos no que é
sultantes da própria ação humana posterior ou con­ hoje o território brasileiro. No caso do alto Xingú,
comitante à ocupação de um dado espaço. é bem conhecido o fato de que a cerâmica consu­
Isso posto, creio que a Arqueologia opera com mida e descartada pelos grupos xinguanos “autên­
mais desenvoltura em casos em que processos de ticos” é produzida localmente nas comunidades
longa duração estejam sob investigação. Geralmente Waurá de onde circulam por toda a área.
quando lidam com recortes sincrónicos, os arqueó­ No caso da bacia do alto rio Negro, especifi­
logos o fazem de maneira pouco confortável. Um camente na região do rio Uaupés, os diferentes
exemplo em conta é o do estabelecimento da (mais de dez) grupos que falam línguas da família
concomitância na ocupação das múltiplas linhas de Tukano Oriental produzem e consomem, local­
anéis concêntricos que constituem vários sítios ar­ mente em seus assentamentos, vasilhames cerâ­
queológicos no Brasil central, sítios esses associa­ micos de formas globulares, escurecidos após a
dos de maneira justificada a populações falantes de queima, normalmente decorados com decoração
línguas do tronco lingüístico macro-Gê. Nesses ca­ “resistente” e eventualmente com decoração pin­
sos, o grau de ambigüidade permitido pelo próprio tada em vermelho e amarelo, sempre após a queima.
método de datação utilizado, o de radiocarbono, di­ Tal padronização tecnológica e estilística na pro­
ficulta, quando não impede que se estabeleça com dução ceramista é percebida também em outros do­
precisão se os referidos anéis foram ocupados conco- mínios da cultura material, como, por exemplo, a
mitantemente ou não, o que, por sua vez, coloca pro­ cestaria que foi bastante estudada por Reichel-
blemas sobre as eventuais estimativas demográficas Dolmatoff. Em uma série de trabalhos instigantes,
que se proponham a partir desses sítios. o falecido antropólogo colombiano procurou asso­
É por essa razão que existe uma polêmica, po­ ciar padrões decorativos na cestaria e na decoração
rém, longa associação entre Arqueologia e a Lin­ das malocas Tukano ao consumo do alucinógeno
güística Histórica, principalmente se o objetivo for Banisteriopsis caapi (caapí). Essa associação é, em
o de se estudar processos históricos de longa du­ uma dimensão, inegável, já que o consumo de caapí

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constituía parte fundamental nos rituais de inicia­ vidos em um complicado e, às vezes doloroso, pro­
ção masculinos no alto rio Negro, mas, por outro cesso de devolução ou - para utilizar o termo tec­
lado, ela reduz as manifestações estéticas da cul­ nicamente empregado nesses casos - “repatria-
tura material a um epifenômeno do consumo de mento” de bens culturais às populações aborígenes,
alucinógenos e da produção de fosfenos que re­ incluindo coleções arqueológicas com objetos e
sultam desse consumo (Reichel-Dolmatoff 1985). vestígios ósseos humanos, guardados em museus
Sem a necessidade de se afastar por completo (Greenfield 1996).
a hipótese de Reichel-Dolmatoff, a padronização Se as sutilezas etnográficas costumam ser es­
tecnológica na cultura material Tukano deve tam­ quivas ao registro arqueológico, os processos de
bém ser entendida como o resultado do desenvol­ mudança histórica, ou pelo menos cronologias, são
vimento histórico de interações locais que também mais palpáveis, ao menos em arqueologia brasilei­
incluem o caapi, mas não são condicionadas pelo ra, na qual a estrutura cronológica básica de nossa
seu consumo. Esse desenvolvimento está provavel­ história pré-colonial está ainda em construção.
mente relacionado a um padrão mais amplo de in­ No que se segue, discutirei brevemente a uti­
teração cultural verificado na porção norte-ociden- lização que fiz de evidências arqueológicas, com­
tal da Amazônia. Essa é, ao menos pelo que foi binada com informações lingüísticas, históricas e
etnograficamente documentado, uma das áreas de etnográficas para esboçar a história do sistema re­
maior diversidade lingüística na Amazônia, já que gional do rio Uaupés.
se encontram ali representadas uma série de lín­
guas e famílias lingüísticas isoladas ou de peque­
na extensão geográfica, como Tikuna, Bora-Witoto, Um esboço da história do
Tukano, Maku, talvez Jivaro (Santos e Barclay 1994). sistema regional do rio Uaupés
A essas rupturas lingüísticas sobrepõe-se uma for­
te padronização material e religiosa, que se mani­ A história do sistema regional do Uaupés de­
festa, por exemplo, na construção, sob formas va­ ve ser entendida sob uma perspectiva comparati­
riáveis, de malocas multifamiliares, no uso de tam­ va com outros sistemas desse tipo registrados nas
bores ocos de sinalização (os “trocanos”); na con­ terras baixas da América do Sul. Tal perspectiva
fecção e uso de máscaras de entrecasca de árvores; pode permitir a comparação controlada de evidên­
no consumo de Banisteriopsis caapi e rapé prepa­ cias históricas ligadas ao desenvolvimento desses
rado a partir da resina de Virola sp. (paricá); nos sistemas regionais. Nesse sentido, é fundamental
“cultos de Juruparí” os rituais de iniciação mas­ a utilização de informações obtidas da Lingüística
culina que incluem o uso de flautas sagradas cuja Histórica, malgrado os problemas que podem re­
presença é interdita às mulheres. Enfim, o que pare­ sultar do uso indiscriminado dessas informações.
ce singular no caso dos povos Tukano do alto rio Retomando o exemplo anteriormente discutido, uma
Negro dentro do quadro etnográfico ortodoxo das comparação, baseada em critérios lingüísticos, en­
terras baixas - a impossibilidade de se compreen­ tre os sistemas regionais do Uaupés - ou alto rio
der isoladamente essas sociedades a partir de es­ Negro - e do alto Xingú pode ser iluminadora. Apa­
tudos com foco puramente local - talvez se cons­ rentemente, ambos os casos apresentam algumas
titua como um elemento definidor de outras socie­ semelhanças estruturais: trata-se de sistemas mul-
dades da Amazônia norte-ocidental, com a ressal­ tilingüísticos situados em áreas periféricas da re­
va de que o caso dos Tukano é melhor conhecido gião Amazônica onde as populações locais são in­
porque mais estudado. tegradas, dentre outras coisas, por redes de troca.
Assim, nos exemplos de sistemas regionais Casos semelhantes, talvez, de processos de “com­
acima apresentados, fica claro que o registro da pressão cultural”
cultura material não tem resolução fina o suficien­ Essas aparentes semelhanças estruturais es­
te para apreender as sutilezas étnicas que compõem condem, no entanto, diferenças básicas ligadas à
esses sistemas. É por tal razão que vejo com certo história desses sistemas. Assim, antes de apresen­
ceticismo a utilização de evidências arqueológicas tar os dados arqueológicos que baseiam essa afirma­
em processos de identificação, para fins legais, de ção, é interessante observar a composição lingüís­
grupos étnicos no passado. Que o digam os arqueó­ tica dos sistemas do alto rio Negro e alto Xingú
logos norte-americanos e australianos ora envol­ para demonstrar que a aparente diversidade lingüís-

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tica do alto rio Negro é de fato bem menor que a TABELA 2


do alto Xingú. No alto Xingú, encontram-se repre­ Troncos lingüísticos, famílias lingüísticas e línguas
sentadas populações que falam um relativamente indígenas do alto rio Negro
pequeno número de línguas pertencentes a pelo
Tronco Família Língua
menos quatro troncos lingüísticos diferentes -
Arawak (família Mairpuran), Tupi (família Tupi- Arawak Maipuran Baniwa
Guarani), Karib, Macro-Gê, e mesmo um caso de Hohodene
língua isolada (Trumai) - cujas ligações genéticas Siusí
Carutana
potenciais, quaisquer que se postule, são bastante
Ipeka
antigas. A diversidade lingüística do alto Xingú Catapolitani
ocorre então em um nível hierárquico, por assim di­ Piapoco
zer, profundo: o nível dos troncos lingüísticos, já que Uerequena
o que se verifica nesse caso é a ocorrência de apenas
Tukano Oriental Arapaço
uma ou duas línguas representadas - em muitos ca­ Bará
sos com relações genéticas óbvias - por tronco ou Barasana
família. Em um caso como esse, é legítimo postular Desano
que a diversidade lingüística ali verificada resulta de Karapanã
Makuna
um processo inicial de diferenciação ocorrido em
Miriti-Tapuya
outras partes da bacia Amazônica ou do Brasil cen­ Pápiwa
tral (Tabela 1). O Xingú seria, então, um exemplo de Pira-Tapuya
cul-de-sac cuja história se iniciou antes do séc. XVI, Siriano
mas que continuou a se modificar, por agregação, Taiwano
Tatuyo
durante o período colonial.
Uanana
No alto rio Negro, as evidências lingüísticas, Yurití
combinadas com a Arqueologia e a tradição oral,
indicam um processo oposto, uma “descompres- Tukano Central Cubeo

são” demográfica, desencadeada pela colonização Maku Nukak


ibérica da América do Sul. Nessa região, a diver­ Bará
sidade lingüística ocorre em dois níveis hierárqui­ Hupdâ
Yuhupdâ
cos. Nesse caso, há um grupo menor de troncos
Dow
lingüísticos representados, apenas três: Arawak Nadeb
(família Maipuran), Tukano (famílias Central e Orien­
tal) e Makú (pelo menos seis línguas diferentes cu­
ja associação genética não é clara) (Tabela 2). Há um grande número de línguas representadas em cada
um desses troncos e famílias, principalmente nos
dois primeiros casos, mas a localização desses tron­
___________________TABELA 1___________________ cos no espaço regional é bastante clara: o rio Içana
Troncos lingüísticos, famílias lingüísticas e algumas e afluentes são ocupados por falantes de línguas
línguas indígenas do alto Xingú Maipuran Arawak; o rio Uaupés e afluentes são
ocupados por falantes de línguas da família Tukano;
Tronco Família Língua as áreas de interflúvio são ocupadas por falantes de
Arawak Maipuran Waurá línguas Makú (ver Figura 1).
Yawalapiti Se é relativamente grande o número de lín­
Mehinaku
guas faladas em cada família, os dados de lingüís­
Tupi Tupi-Guarani Kamayurá tica comparativa indicam que a semelhança entre
Awetí essas línguas é bastante grande. Assim, algumas
Carib Kuikuru das línguas Maipuran Arawak faladas na bacia do
Kalapalo rio Içana, tais como Curripaco, Baniwa do Içana,
Macro-Gê Suyá Hohodene, Siusí, Ipeka e Catapolitani são cogna-
tas, e em alguns casos mutuamente inteligíveis
Não classificado Trumai
(Payne 1991:482-486), sugerindo um processo lo­

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km

Fig. I - As três principais famílias e troncos lingüísticos da bacia do rio Negro.

cal de longa duração, de diferenciação a partir de ocupadas por falantes de línguas Tukano. Assim,
uma proto-língua falada por uma “população fun­ a bacia do Uaupés constitui-se como uma espécie
dadora”. No caso das línguas Maipuran do alto rio de anomalia lingüística, uma intrusão Tukano em
Negro, há que se considerar também uma relação uma área predominantemente Maipuran.
genética com outras línguas da mesma família, al­ No entanto, como no caso da línguas Maipuran
gumas extintas, faladas em outras partes das bacias do alto rio Negro, as línguas Tukano do alto rio
do rio Negro e Orinoco, tais como Baré, Manao e Negro são também cognatas e em muitos casos -
mesmo Maipure. Foi essa a razão que levou vários mas não sempre - mutuamente inteligíveis, o que
arqueólogos (Lathrap 1970; Lathrap & Oliver 1987; também indica um processo de diferenciação lo­
Rouse 1985, 1986) a sugerir que as bacias do Ne­ cal. Em ambos os casos, Tukano e Maipuran, tra-
gro e Orinoco formaram uma avenida de ligação ta-se de populações exogâmicas em constante flu­
entre o norte da América do Sul e a Amazônia cen­ xo regional, longe, portanto, de apresentar isola­
tral, uma hipótese sugestiva mas problemática à mento lingüístico absoluto. É plausível propor-se,
luz de dados arqueológicos resultantes de pesqui­ nesse caso, que o processo de diferenciação lin­
sas recentes na bacia do rio Negro (Heckenberger, güística foi bastante lento. Quanto às línguas Tu­
Neves & Petersen 1998; Neves 1997). kano do Uaupés, a exceção a esse caso é o Cubeo,
Independente da validade dessas hipóteses falada na extremidade norte da área de dispersão
arqueológicas, parece claro que uma boa parte das dessas línguas. Os Cubeo têm, além da língua, al­
bacias do médio e alto rio Negro era ocupada por gumas características que os diferenciam de ou­
falantes de línguas Maipuran no início do período tros grupos Tukano da bacia do Uaupés, tais como
colonial, pelo menos no que se refere às populações a ausência de exogamia lingüística (há casamento
ribeirinhas. A única exceção a esse quadro parece entre indivíduos de diferentes fratrías Cubeo) (Gold­
ser a bacia do rio Uaupés, cujas áreas ribeirinhas são man 1963). Tais diferenças levaram Reichel-Dolma-

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toff (1996: xxii) a sugerir tratar-se esse grupo de A utilização combinada dos dados lingüísticos
uma população Maipuran que se “tukanizou” com a tradição oral Tukano permite que se estabe­
como aconteceu com os Tariana, outro grupo ri­ leça uma outra hipótese também bastante sugesti­
beirinho da região. Se, no entanto, a classificação va. Há atualmente falantes de línguas Tukano Ori­
lingüística proposta por Waltz & Wheeler (1972) ental dispersos por uma área que inclui virtualmen­
estiver correta, a hipótese de Reichel-Dolmatoff te a totalidade das bacias do médio e baixo Uaupés
não pode ser aceita, já que esses autores indicam e locais ao longo do rio Negro. A tradição oral des­
que a língua Cubeo é mais próxima das línguas ses grupos indica, no entanto, diferentes centros
Tukano Ocidental faladas nos atuais territórios do de origem, todos eles situados ao longo do rio Pa-
Peru e Equador que das línguas Tukano Oriental purí (um afluente da margem direita do Uaupés)
faladas na bacia do Uaupés. ou no médio Uaupés (ver Figura 2). Inicialmente,
Assim, encontra-se na bacia do Uaupés a maior alguns desses grupos não estavam diferenciados
diversidade lingüística dentro das famílias Tukano, lingüisticamente, tal como estão hoje. Esse era pro­
o que talvez indique uma origem local para as lín­ vavelmente o caso dos Bará e dos Tuyuka; dos Desa-
guas dessa família, ao contrário de uma origem sub- na e dos Siriano; dos Karapanã e dos Tatuyo (Waltz
andina como foi sugerido por Berta Ribeiro (1980) & Wheeler 1972). Esses grupos estavam prova­
e Greg Urban (1992). Essas evidências permitem velmente assentados em territórios localizados ao
que se postule que essa intrusão Tukano no alto rio longo do Papurí e seus afluentes. Desse modo, sa­
Negro é antiga o suficiente para permitir a diferen­ bemos que o território ancestral Tukano ficava no
ciação interna local das várias línguas da família Turi igarapé, o dos Desana no Macucú igarapé, o
Tukano Oriental bem como da diferenciação dessas dos Pira-Tapuya no baixo Papurí etc.. Esses gru­
línguas e do Cubeo. pos eram agricultores de mandioca e pescadores

Fig. 2 - Lugares de origem de alguns grupos lingüísticos Tukano Oriental na bacia do alto rio Negro.

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que tinham suas aldeias ligadas pelas extensas tri­ antigos dos Tukano eram bem menores e mais pró­
lhas que ainda cortam as áreas de interflúvio da re­ ximos uns dos outros naquele período do que atual­
gião. Seus padrões de assentamento eram prova­ mente.
velmente similares aos padrões verificados atual­ No início do período colonial, o baixo rio Uau­
mente por Chemela (1993) entre os Uanano: al­ pés e o rio Tiquié eram étnicamente mais hetero­
deias com posição mais alta na hierarquia estão lo­ gêneos, embora com uma influência Maipuran
calizadas rio abaixo, enquanto as de posição infe­ bastante marcada, já que essas regiões se caracte­
rior localizam-se rio acima. rizavam pelo tipo de fronteira étnica diversificada
Entre 1993 e 1994, realizei sete meses de pes­ proposta por Wright (1992). Dentre os grupos Tu­
quisas arqueológicas de campo na região do mé­ kano assentados nessa fronteira, havia os Arapaço
dio e baixo Uaupés. Essas pesquisas resultaram na e Mirití-Tapuya, hoje com populações bastante
formulação de uma cronologia preliminar que se reduzidas e já sem sua língua ancestral. E prová­
inicia há cerca de três mil anos antes do presente e vel que outros grupos Tukano que desapareceram,
chega até os dias de hoje. A reconstituição hipoté­ de acordo com a tradição oral, como o sib mais alto
tica da história indígena do baixo Uaupés, que ago­ de todos, os Wauro, compunham também essa
ra apresento, resulta da interpretação dos dados ar­ fronteira étnica dinâmica. A identificação dos gru­
queológicos associada aos já mencionados dados pos Maipuran que ocuparam o baixo Uaupés e áreas
da lingüísitica e da tradição oral. adjacentes no rio Negro é difícil, já que, com a ex­
Os dados arqueológicos (Neves 1998a) indi­ ceção do trabalho de Meira (1991), não há pesqui­
cam que o tamanho médio dos assentamentos pré- sas sistemáticas disponíveis nessas áreas. Usando
coloniais na bacia do Uaupés não era maior no sé- as evidências históricas e lingüísticas, arrisco-me
culo.XIX (Coudreau 1886, Wallace 1905) que nos a propor que o baixo Uaupés foi ocupado por po­
períodos anteriores à chegada dos europeus, um pulações relacionadas aos índios Uerequena que
correlato possível das condições ecológicas da re­ atualmente ocupam o rio Xié. As outras áreas da
gião. Tais condições eram ampliadas pelas difi­ bacia do alto rio Negro, o rio Negro, o rio Içana, o
culdades de se abrir roças com machados de pedra rio Xié e o rio Guainía foram ocupadas exclusiva­
polida. Assim, plantas como a pupunha e o patauá, mente por grupos falantes de línguas Maipuran
que têm um conteúdo calórico bastante grande, Arawak ao longo de centenas de anos. Na aldeia
eram uma fonte de carbohidratos tão importante de Marabitana, localizada no baixo Uaupés, pes­
quanto os produtos do processamento da mandio­ quisas arqueológicas identificaram a ocorrência de
ca. Assim, as dificuldades de se abrir novas roças, vestígios cerâmicos associados à “Tradição de Li­
a distribuição desigual de recursos naturais em um nhas Paralelas” e datadas ao redor de 2.500 anos
ambiente frágil e a existência de territórios bem antes do presente. Essa tradição, definida pela ar­
definidos estimularam a ocupação contínua dos queóloga venezuelana Alberta Zucchi (1991,
mesmos locais ao longo de décadas, ao contrário 1993), é associada por essa autora a antigas popu­
do que propõe o determinismo amazônico “clássi­ lações Maipuran do noroeste da Amazônia.
co” (Meggers 1995). No início do século XV d.C., um contigente
A exogamia através do casamento preferenci­ populacional de língua Maipuran penetrou no rio
al entre primos cruzados (FZD) é um elemento Uaupés vindo do norte através de uma das rotas
definidor das sociedades indígenas contemporâ­ terrestres que atravessam a região. Essa popula­
neas do alto rio Negro (Jackson 1983), dentre ou­ ção compunha os ancestrais dos índios Tariana que
tras coisas pelo fato de que em alguns casos o ca­ até hoje ocupam a região. A ocupação Tariana do
samento é consumado entre indivíduos que resi­ médio Uaupés é contada em uma rica tradição oral
dem a dezenas de quilômetros de distância, algo já registrada desde o século passado (Amorim 1926,
que formaliza e cristaliza a área de extensão do Moreira 1994). Usando essas informações, foi
sistema regional do alto rio Negro. A tradição oral identificado e escavado um dos sítios ligados a essa
e a Lingüística Histórica permitem que se formule ocupação Tariana ancestral na região, o que per­
uma hipótese postulando que o princípio de alian­ mitiu a identificação cronológica do início dessa
ça por casamento já prevalecia antes do século ocupação. A análise detalhada do corpo de tradi­
XVI, só que, do ponto de vista territorial, de uma ções orais Tariana demandaria um espaço e deta­
maneira bem menos extensa, já que os territórios lhe que escapam aos objetivos desse texto. Em ou­

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tro trabalho (Neves 1998a), arrisquei uma inter­ Embora as trajetórias dessas populações te­
pretação instrumental desses textos e dos relatos nham sido diferentes, e a explicação dessas di­
que obtive no campo. Essa interpretação permitiu ferenças constitua em si um tema fascinante de
a elaboração de algumas hipóteses sobre o quadro estudo, a história dos índios do Uaupés a partir do
étnico e político do médio Uaupés no início do sé­ século XVI deve ser entendida à luz da ocupação
culo XVI. Essas hipóteses sugerem que as trans­ européia da região. Assim, a partir do final do sé­
formações provocadas pela ocupação européia so­ culo XVII, o aumento da demanda de mão-de-obra
bre as populações indígenas da região não foram escrava índia tanto no baixo Amazonas como no
uniformes, pelo menos em termos dos territórios litoral das Guianas promoveu um aumento da guer­
ocupados pelas mesmas. À medida que alguns gru­ ra nativa na região, guerras essas, é bom lembrar,
pos, como os Uanana e Cubeo, parecem ter manti­ que já ocorriam antes do início da colonização,
do seus territórios ancestrais, outros, como os Mi- conforme atestado pela escavação de sítios pré-
rití-Tapuya e os Arapaço, foram quase que total­ coloniais cercados por valetas defensivas. O pa­
mente eliminados, enquanto grupos, como os Tu- drão de guerra ao qual me refiro está ligado ao
kano e Dessana, iniciaram um processo de expan­ engajamento de alguns grupos indígenas como in­
são em direção ao rio Negro que continua ocorren­ termediários no tráfico de escravos. Esse foi o pa­
do até o presente (Figura 3). pel dos Manao no médio Rio Negro (Farage 1991)

Grupos que se mudaram de territórios ancestrais


Grupos que não se mudaram de territórios ancestrais

Fig. 3 - Movimentos populacionais na bacia do rio Uaupés (séculos XV XX).

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NEVES, E.G. Arqueologia, história indígena e o registro etnográfico: exemplos do alto rio Negro. Rev. do Museu de
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e dos Tariana no rio Uaupés (Neves 1998a). O trá­ trução das aldeias circulares no Brasil central, um
fico de escravos no alto e médio rio Negro causou elemento fundamental na visão dos grupos Gê des­
um colapso na população indígena da região. Esti­ sa região. Do mesmo modo, pesquisas na Amazô­
mativas baseadas em documentação histórica pri­ nia central (Heckenberger, Neves e Petersen 1998)
mária indicam que cerca de 20.000 índios foram e no alto Xingú (Heckenberger 1998) têm trazido
removidos para outras áreas da Amazônia apenas evidências cada vez maiores, embora ainda hipoté­
nas primeiras décadas do século XVIII (Wright ticas, sobre a existência de grandes adensamentos
1991). Essa depopulação rápida e intensa criou uma populacionais nessas áreas durante o período pré-
espécie de vazio demográfico em áreas do alto rio colonial.
Negro e seus afluentes, vazio que passou a ser pre­ No caso do alto rio Negro, a Arqueologia su­
enchido, com idas e vindas, pelas populações ante­ gere que as sociedades Tukano, hoje mais ou me­
riormente assentadas em áreas de cabeceira, e, por­ nos “hegemônicas” na bacia do rio Uaupés, eram
tanto, mais abrigadas do apresamento escravagista. anteriormente periféricas no contexto regional. A
Tais movimentos se cristalizam no século ausência de informações sobre a história “profun­
XIX, quando o alto rio Negro mergulha no aban­ da” dessa região, somada a uma série de acidentes
dono que até hoje caracteriza a região, dando ori­ históricos, levou a uma exposição privilegiada das
gem ao padrão etnográfico descrito na literatura etnografías Tukano em detrimento do estudo dos
inicialmente por Koch-Grünberg (1909). O esboço grupos Maipuran Arawak que também ocupam o
histórico aqui apresentado indica, no entanto, que alto rio Negro e ocupavam áreas-chave da região até
tal padrão é nada mais que o resultado de um lon­ o início do século XVIII. Assim, é plausível que se
go processo histórico alternando períodos de rápi­ proponha que uma série de elementos “aberrantes”
da mudança - antes e depois do século XVI - com na organização social Tukano, como a presença,
períodos de equilíbrio. pelo menos no plano ideológico, de uma hierar­
quia em sibs bem marcada, represente de fato uma
influência Maipuran “tukanizada” que se consa­
Conclusões grou na literatura como um elemento essencialmen­
te “Tukano”. Essa e outras hipóteses que apresen­
No início desse texto, afirmei que a arqueolo­ tei ao longo deste texto estão baseadas em uma
gia Amazônica se destaca dentro do quadro da ar­ projeção no passado, mais ou menos problemáti­
queologia brasileira graças a uma preocupação ca, de categorias étnicas definidas no presente etno­
constante com o teste de hipóteses da Antropologia gráfico. Esse é, no entanto, um risco inevitável,
Social. Uma espécie recente de Arqueologia pra­ apesar das próprias ressalvas apresentadas no iní­
ticada na Amazônia e áreas contígüas tem, no en­ cio do texto, se a Arqueologia no Brasil é conce­
tanto, apontado para caminhos que demandam um bida como história indígena.
novo olhar para os temas de pesquisa da antropo­ Tais problemas são menores em face da con­
logia social das terras baixas da América do Sul. tribuição feita pela Arqueologia quando ela colo­
Assim, a Arqueologia tem oferecido algumas das ca o presente etnográfico em uma perspectiva his­
evidências mais consistentes para a crítica do cha­ tórica. Nesses casos, a Arqueologia deixa de ape­
mado “standard model” (Viveiros de Castro 1996) nas testar hipóteses da Etnologia, passando a apre­
que tem caracterizado a antropologia regional nos sentar diferentes possibilidades para o entendi­
últimos cinqüenta anos. Dentre essas evidências mento da configuração etnográfica do Brasil. Desse
há, por exemplo, os trabalhos de Wüst (1988) que processo crítico surge uma visão mais rica e diver­
estabelecem cronologicamente o início da cons­ sificada de nossa história pré-colonial.

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