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Emílio Fogaça*
Nesta rápida intervenção pretendo propor alguns tópicos para discussão, apoiando-me
no balanço dos conhecimentos acumulados durante mais de vinte anos e que nos é agora
atualizado e sintetizado pelo Prof. Schmitz em sua conferência (Schmitz, inédito).
Em suas reflexões, o Prof. Schmitz nos aponta uma série de problemas novos,
naturalmente decorrentes das pesquisas desenvolvidas no Planalto Central – a necessidade
de implementar estudos específicos sobre diferentes categorias de vestígios ou o
reconhecimento das relações estabelecidas entre sítios em áreas já intensa e extensamente
estudadas –, além daqueles que não puderam ser tratados, falta de tempo ou de recursos,
pelos pré-historiadores concernidos.
Talvez seja triste constatar que a principal contribuição inovadora para essa temática,
que não marginaliza os fatos arqueológicos em prol de modelos interpretativos no mínimo
fátuos, seja fornecida pelo próprio Prof. Schmitz (No prelo), ao investigar as relações entre
sítios de Serranópolis, tendo como ponto de partida a cultura material neles preservada.
A continuidade da pesquisa sobre o povoamento do Planalto Central Brasileiro, que só
pode ser um empreendimento coletivo, parece permanecer na dependência de uns poucos
arqueólogos debruçados sobre sítios e vestígios. Enquanto que, por sobre suas cabeças,
pairam espectros de natimortos, incapazes de perceber diferenças entre o homem pré-
histórico da savana brasileira e os !Kung do Kalahari.
Daí a minha preocupação em levantar uma discussão sobre o futuro. Destaco portanto
alguns aspectos que a meu ver merecem um desenvolvimento sistemático.
*
Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia/UCG
e-mail: emilio@ucg.br
Publicado In: Anais do 2º Workshop Arqueológico de Xingó. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe / Museu 2
Arqueológico de Xingó. 2002, p. 46-56.
prima. Nesses casos, os principais indícios da relação desses sítios com as ocupações mais
antigas dos abrigos derivam de algumas características das indústrias líticas, uma vez que
faltam datações absolutas para os sítios abertos (Prous e Fogaça, 1999).
Os sítios à céu aberto conhecidos são, quase na totalidade, sítios superficiais. Na falta
de cartas geológicas detalhadas (escalas 1:10.000 ou 1:25.000), sondar sistematicamente o
subsolo (segundo os métodos ditos ‘probabilísticos’) em busca de sítios em depósitos da
transição Pleistoceno/Holoceno seria praticamente procurar uma agulha no palheiro. Tendo
em vista no entanto a importância da informação que pode ser produzida por sítios dessa
natureza, parece-me útil tentar desenvolver metodologias de prospecção geologicamente
orientadas, integrando desde o início o geológo e o arqueólogo2. Trata-se de praticar uma
‘arqueologia da paleo-paisagem’3. Se, por um lado, alguns trabalhos de arqueologia de
contrato desenvolveram metodologia eficaz para amostrar a distribuição horizontal de sítios
pré-históricos, por outro lado ainda não resolveram o problema da representatividade
‘vertical’, para identificar a cronologia das ocupações regionais.
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Emprego voluntariamente o termo ‘pré-cerâmico’. Pretendo dessa maneira destacar o fato de que, mesmo em
recentes projetos de arqueologia de contrato, em áreas de usinas hidrelétricas, que se utilizaram de metodologia
rigorosa para prospecção, a quantidade de sítios com material cerâmico é sempre predominante (cf., por
exemplo,Melo, 1996; Viana et al., 1999; Caldarelli, 2001 – áreas que conheço diretamente).
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Um trabalho a nível de doutoramento desenvolvido atualmente no IGPA procura contribuir nesse sentido, ao
identificar as dinâmicas, naturais e antrópicas, na formação de uma paisagem fluvial (Júlio Cézar R. de Rubin,
com. pes. 2002).
3 Tenho em mente como exemplo os trabalhos desenvolvidos recentemente na Garganta de Olduvai (Tanzânia)
para prospecção de sítios geologicamente orientada (Blumenschine e Masao, 1991; Blumenschine e Peters,
1995).
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Destaco esse exemplo para frisar que dificilmente pode haver na ciência boa crítica
que não seja construtiva. E que, conforme Gallay (1986), o conhecimento arqueológico pode
ser acumulativo. Não basta tentar substituir os paradigmas interpretativos. Um novo
entendimento deve não somente basear-se em novos fatos (daí a importância das
descobertas em setores do conhecimento incipientes) como também mostrar-se capaz de
explicar os fatos antigos.
Existe em todo o Planalto Central brasileiro um fenômeno análogo, que pode ser
abordado como uma escolha cultural: a produção de suportes unifaciais para instrumentos
líticos. Tal escolha é melhor compreendida quando comparamos essas indústrias com
aquelas, aproximadamente contemporâneas, conhecidas no sul do Brasil: as indústrias
denominadas Umbu e Humaitá4 (cf., por exemplo, Hoeltz, 1997). Enquanto que os
caçadores meridionais concebiam seus artefatos sobre duas ou três faces do suporte, em
todo o centro do Brasil as soluções adotadas concentraram-se sobre a modificação apenas
de uma das faces de robustas lascas, eventualmente laminares.
Nas camadas VIII e VII da Lapa do Boquete (vale do Peruaçu), foram adotadas
complexas estratégias de reaproveitamento de artefatos, sempre mantendo-se a face lisa
preservada (apenas em alguns casos com negativos rasantes periféricos de refrescamento
dos gumes). A opção pelo prolongamento da vida útil dos suportes não ultrapassou os
limites da escolha tecnológica dos grupos planaltinos (Fogaça, 2001a).
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Tive recentemente a oportunidade de examinar parte do material atualmente estudado por Sirley Hoeltz para o
seu doutorado. As observação que apresento foram autorizadas pela pesquisadora, a quem agradeço.
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Acho importante estabelecer essas duas categorias no interior das indústrias ‘plano-
convexas’ (ou unifaciais) pois somente as lesmas, ao meu ver, parecem ser bons
marcadores desses períodos antigos: em um estudo realizado sobre indústrias recentes dos
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(d) peças bifaciais foliáceas: com base no estudo de lascas provenientes das
camadas antigas da Lapa do Boquete (Fogaça, 2001a), considero a existência de bons
indicadores da produção regular de pequenas peças bifaciais, essencialmente pontas de
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projétil foliáceas; na camada VII daquele abrigo (datações C entre 10.500 e 9.500 B.P.) foi
recuperado apenas um fragmento, porém em associação com detritos especiais; em uma
coleção de 4988 lascas analisadas, 1844 peças foram interpretadas como detritos desse
tipo de trabalho, classificadas em cinco grupos tecnológicos; são, em geral, lascas delgadas
com talão linear ou puntiforme, em muitos casos com perfil helicoidal, nas faces superiores
observa-se negativos de retiradas centrípetas provenientes de todas as direções
(característica típica das chamadas ‘lascas de biface’); apesar de que tais lascas dificilmente
poderiam provir dos instrumentos unifaciais e lesmas conhecidos, permanece intrigante a
pouca quantidade de pontas recuperadas nos abrigos do Planalto Central; os indícios a céu
aberto são mais numerosos, mas não podem ser relacionados com os abrigos devido à falta
de datações: em Serranópolis (Schmitz, inédito), no alto curso do rio Paranã (Mendonça de
Souza; Ferraz, e Mendonça de Souza, 1977; Mendonça de Souza; Simonsen, e Passos
Oliveira, 1983-84), no alto Tocantins (Simonsen, 1975), na Serra do Cipó (Prous e Malta.
Coord., 1991) e, ainda que questionável, em Lagoa Santa (Walter, 1958; Hurt e Blasi, 1969).
Mas penso que ainda é pouco para caraterizar em definitivo a tradição tecnológica
Itaparica. Resta-nos um longo caminho até podermos conhecer a sua gênese e seu
desenvolvimento ulterior.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizo essa intervenção frisando que os comentários que aqui expus visam
essencialmente destacar o potencial para a pesquisa futura oferecido pelos dados e os
estudos já realizados sobre o povoamento do Planalto Central do Brasil. Minha intenção é
incitar a discussão sobre o porvir dessa arqueologia. Penso que os desafios que destaquei
propõem uma reflexão metodológica, única capaz de dar um prosseguimento construtivo à
investigação.
BILBIOGRAFIA CITADA
BOËDA, E.
1997 Technogenèse de systemes de production lithique au Paléolithique inférieur et
moyen en Europe occidentale et au Proche Orient. Habilitation à diriger des recherches.
Nanterre, Universidade de Paris X, 2 volumes, 173 p. + ilustrações.
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2001 Projeto de levantamento arqueológico na área diretamente afetada da UHE
Guaporé, MT. Relatório Final. Tangará Energia S/A – Grupo Rede.
FOGAÇA, E.
2001 a Mãos para o pensamento. A variabilidade tecnológica de indústrias líticas de
caçadores-coletores holocênicos a partir de um estudo de caso: as camadas VII e VIII da
Lapa do Boquete (Minas Gerais, Brasil, 12.000 – 10.500 B.P.). Tese de Doutoramento. Porto
Alegre, PPGH/PUCRS, 2 volumes, 452 p. + iluustrações.
FOGAÇA, E. (org.)
1991 Projeto de pesquisa arqueológica das UHEs Serra da Mesa e Cana Brava.
Relatório final da etapa de avaliação do potencial arqueológico da área (1989 – 1991).
Goiânia, Furnas Centrais Elétricas S.A. / Universidade Católica de Goiás, 310 p.
GALLAY, A.
Publicado In: Anais do 2º Workshop Arqueológico de Xingó. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe / Museu 9
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HOELTZ, S.E.
1997 Artesãos e artefatos pré-históricos do vale do rio Pardo. Santa Cruz do Sul,
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1969 O Projeto arqueológico Lagoa Santa, Minas Gerais, Brasil. Arquivos do Museu
Paranaense, série Arqueologia, nº 4, 63 p.
SCHMITZ, P.I.
Padrão de estabelecimento em Serranópolis: 11.000 anos de ocupação do Planalto Central
brasileiro. No prelo.
Inédito O povoamento do Planalto Central do Brasil. 11.000 a 8.500 anos A.P. Conferência
a ser ministrada durante o 2º Workshop do Museu Arqueológico do Xingó, Canindé, Sergipe,
outubro de 2002.
Publicado In: Anais do 2º Workshop Arqueológico de Xingó. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe / Museu 10
Arqueológico de Xingó. 2002, p. 46-56.
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1999 Sub-projeto de Levantamento do Patrimônio Arqueológico Pré-histórico da Região
da UHE-Manso/MT. Relatório final. Goiânia, IGPA/UCG, Goiânia (impresso).
WALTER, H.V.
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