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Escrevendo um capitulo da historia cultural Tupinamba através da variabilidade cerémica (Writing a Chapter of the Tapinamba Culture History through Ceramic Variability) Fernando Ozorio de Almeida’ Resumo: O objetivo desse artigo é a descrigao de aspectos da industria ceramica de sitios arqueolégicos Tupinamba do baixo rio Tocantins. O estudo da variabilidade cerimica permitiu nfo sé 4 insergao desse material em um contexto Tupinambé, como também gerou informagées sobre os outros grupos proximos geografica- mente e cronologicamente desse contexto. Dentro dessa teia de contatos desta- ca-se a relacio Tupinamba com grupos da Tradi¢éo Policroma Amazé6nica. Um tema espinhoso que ha tempos nao é revitalizado pela injegao de novos dados. Abstract: ‘The aim of this paper is to describe aspects of the ceramics from Tu- pinambé archaeological sites from the lower Tocantins River. Studying the ceramic variability enabled the insertion of this material in a Tupinambé context, and also permitted gaining information related to other groups which were geographically and chronologically close. Amongst this web of contacts emphasis is given to the relation amongst the Tupinambé and groups of the Polychrome Tradition, a prickly theme which for some time hasn't been renewed by the injection of new data. Introdugto A arqueologia ‘Tupinambé? Amazénica passa hoje por uma ebuli¢io que requer uma constante atualizagao devido uma macica produgio de dados. Em algumas dreas tradicionalmente ocupadas por grupos ‘Tupi-Guarani (e.g, sul do ‘Dourorando MAE-USP 2 Designacio dada aos vestigios arqueolégicos ligados aos antepassados setentrionais (os Guarani seriam os represencatites meridionais) de grupos da familia lingiistica Tupi-Guarani. Boletim Técnico n? 5 ~ Fundacao Casa da Cultura de Marabé, 2010. at pais) as pesquisas arqueolégicas estao avancadas, 0 que permite estudos refina- dos sobre sistemas de assentamento (e.g, MILHEIRA 2008, MILHEIRA & AL- ‘VES, 2009; NOELLI 1993) ou aplicagao de conceitos sofisticados como o de arqueologia simétrica (NEUMANN 2008). Em outras Areas os trabalhos ainda encontram-se atrasados com estudos predominantemente descritivos. Eo caso da arqueologia Tupinambé do baixo Tocantins, cujas pesquisas lentamente supera- ram um carter embriondrio na medida em que os grupos foram caracterizados espacialmente, cronologicamente e tecnologicamente. Sao os aspectos tecnoldgicos referentes 4 confecgéo de vasos ceramicos na pré-histéria do baixo Tocantins que esse artigo busca discutir. Como agrupar ou separar as ceramicas dos sitios pré-histéricos, Como inseri-los ou nao nas j4 conhecidas tradigées arqueoldgicas. Recorte Geografico Os estudos da tecnologia ceramica foram realizados com o acervo do resga- te de intimeros sitios Tupinamba proyenientes das implantagées de duas Linhas de ‘Transmissio (LT Tucuruf (PA)-Presidente Dutra (MA) e LT Tucurui (PA)-Agailandia (MA)), Trata-se de dois trabalhos realizados pela Scientia Consultoria Cientifica, sob coordena¢io da Dra. Solange Bezerra Caldarelli, em convénio com a Fundagao Casa da Cultura de Maraba (FCCM). O conyénio entre a Scientia ¢ a FCCM também ocorreu na andlise do material ceramico, que depois de analisado foi dividido entre essas instituigdes. O presente pesquisador, em conjunto com Daniella Magri Amaral ¢ Lorena Garcia, foi responsivel pelas sinteses que esse conjunto de sitios possui até © presente (SCIENTIA, 2008; SCIENTA eve elaboragao). Podemos distinguir dois compartimentos geogrificos para os sitios dessas LT’s. No primeiro haveria sitios de terra firme situados nas proximidades dos pequenos cursos d’égua que fazem parte da bacia do tio Tocantins, Todos estes sitios foram localizados em uma drea anteriormente ocupada pela Floresta Pluvial Tropical (amaz6nica), um local em que as estacdes seca ¢ chuvosa (mais ou menos scis meses para cada) sio bem definidas ¢ distintas entre si. O segundo com- partimento, ligado a um agrupamento mais heterogéneo de sitios, é um de rios secundérios (c.g, Mearim, Grajati, Pindaré) que cortam 0 Estado do Maranhao em ditegio ao Oceano Atlantico, A vegetagio nessa regio é mata de transi¢io, a Floresta Estacional Perenifélia Aberta, ¢ o clima ¢ levemente mais seco, Grupos da bacia do Tocantins em discussio: Os sitios do baixo Tocantins dificilmente apresentaram material cerami- co em camadas profundas. Os pacotes arqueoldgicos foram de até 50cm. Meto- dologia semelhante para os sitios, com delimivagées através de malhas sistematicas de quadras com Im*. O espagamento nas malhas variou com a dimensio dos ios. As escavagées foram realizadas em niveis artificiais de 10cm. 42 Boletim Técnico n¢ 5 - Fundac3o Casa da Cultura de Marab4, 2010. ne! Shona tre yu fs Google Fig. 1: Localizacao dos principais sitios a serem discutides (fonte: Google Earth) Praticamente todos os sitios Tupinamba foram encontrados em areas de pastoreio de gado. O material arqueolégico encontrava-se em solo antrépico (ter- ra preta), com variedades de cores de acordo com a dimensio do sitio — solo que pode estar relacionado com a fungao do mesmo (ALMEIDA & GARCIA 2008) - ¢ com a duracio dos perfodos em que estes sitios foram habitados. A dimensao dos sitios em geral se refletia na densidade de material ceramico. O sitio Cavalo Branco, por exemplo, possuifa uma trea mais que 10 vezes maior que o sitio Nova Ipixuna 2 (170.000 m? vs. 15.000 m?), Assim, mesmo utilizando diferentes es- pacamentos nas malhas de sondagem (c.g. 20x20m para o sitio Cavalo Branco e 10x10m para o sitio Nova Ipixuna 3) houve uma grande diferenca quanto as amostragens dos sitios. ‘Até 0 momento hd uma cronologia segura para os sitios Tapinamba do baixo Tocantins a partir do século VII d.C (ALMEIDA 2008, PEREIRA eg al. 2008, SCIENTIA 2008). No entanto, outras datagées mais recuadas j4 foram obtidas, remontando ao inicio da era Crista. Ainda assim, s&o necessdrias mais datagées para confirmé-las, Boletim Técnico n® 5 — Fundacao Casa da Cultura de Maraba, 2010. 43 Pressupostos Teéricos Para analisar a colegéo cer’imica desses sitios foram escolhidas categorias que possibilitassem identificar a variabilidade no material arqueolbgico quanto & tecnologia cerimica. Nesse proceso, em conjunto com minhas colegas, realizei dois diferentes exercicios interpretativos. O primeiro foi de criar agrupamentos para os sitios provenientes das escavagGes da LT Tucuru-Presidente Dutra, Depois de separados os sitios Tupinambé dessa LT, iniciei com Lorena Garcia 0 segundo exercicio interpretativo: o estudo da LT Tucurui-Agailandia, A pergunta mais recorrente foi: Em qual agrupamento esse sitio se encaixaria?? Resposta vinda do exercicio de observar as variacées internas da colecao do sitio Cavalo Branco, foco principal do meu mestrado, para depois identificar a variabi- lidade formal dos artefatos desse sitio frente aos outros sitios da regiao. Por fim, restaria estabelecer uma conexéo entre esse material ¢ a Tra- digéo Tupinamba. Para isso utilizei a definigao de “variabilidade dos objetos” cunhada por Schiffer e Skibo, definicio mais simples e abrangente. Para os autores “variabilidade” significa diferencas e semelhangas dentro de um deter- minado tempo e espago (1997, p. 27). Emprestei também de Schiffer (1992) a diferenciagao entre variabilidade e variacao. “Variabilidade”: material com um sentido amplo, cobrindo uma grande faixa temporal e espacial. E dentro dessa grande faixa, os pesquisadores constroem seqiiéneias baseadas nas “va- riagdes” observadas. Apesar de Schiffer e Skibo serem pesquisadores tradicionalmente ligados a uma linha comportamental (Behaviour Archaeology), suas definigoes de variabi- lidade e variagéo foram utilizadas em um contexto histérico cultural, o que nao acredito ser uma contradigao. Nessa visio histérico-culturalista cada cultura & compreendida em sua peculiaridade (SACKETT, 1977), A dicotomia entre estilo ¢ fungao nao tem fundamento, ambos se misturam: diversos pontos considerados funcionais, como a utilizagao de um determinado antiplastico para a produgao de um vaso ceramico, sao possiveis clementos estilisticos (idem). Sackett define estilo como uma forma especifica de fazer alguma coisa, sempre peculiar a um deter- minado tempo ¢ lugar. Para ele, as nocées de estilo e func4o compreendem toda © qualquer variabilidade formal de um objeto: € pouco provavel que as escolhas feitas por uma determinada sociedade ou etnia tenham sido feitas Por outra so- ciedade nao-relacionada a elas. E, na sua visio, so essas escolhas, extremamente especificas, que podem ser consideradas estilisticas (édem). Assim, se as perguntas por trés do meu estudo possufam 0 simples ob- jetivo de caracterizar os grupos ceramistas do baixo rio Tocantins, serviram para esse fim 0 igualmente simples conceito de variabilidade ¢ a viséo histérico- -cultural de estilo. 44 Boletim Técnico n* 5 - Fundagdo Casa da Cultura de Maraba, 2010. Descrigdo do material Cerdmico Ao sintetizar o material ceramico da LT Tucurui-Presidente Dutra, Da- niella Amaral e eu (SCIENTIA, 2008) fizemos 0 exercicio de buscar atabutos que criassem agrupamentos de distingio dos doze sitios dessa colecéo. Uma série de atributos foi testada. Com resultados diversos, a maioria nao criava agrupamentos condizentes com a localizagio geogrifica dos sitios, nem com nossas observagées de laboratério (vide tabela 1). er | ap | as | ah | ae | Bn Renhets | Rerenso | Gru Fads | vin zen 26 | came || OM 90, | 07mm | ath) pe 02m | ONE racawezen | 945% | Oath | i [ore | es | ve me | biotsazgm | 6008 | talk | amW | Ome om ak a we 2 am 120 | Sa TEN 4am tens | awe | 7am | ame | ene bdettatsen TERY ash | tants | ance | Tah teosaten 35H | assem 108 Jéa utilizagio do antiplastico teve um resultado muito mais congruente com os dois recortes geogréficos que possuiamos (bacias do Tocantins e do Atlan tico) € com nossas observagées de laboratério. Assim, comprovamos que a utilizagao do antiplastico como demarcador cultural, foi extremamente adequada para 0 presente contexto. Da mesma forma como ocorreu no contexto da Amaz6nia Central descrito por Lima (2008, p- 357). Esta autora (édem) ressalta que tais resultados fazem que as criticas softidas pelo PRONAPA — que utilizou 0 antiplistico como demarcador — devem, ao menos em parte, serem revistas. Boletim Técnico n? 5— Fundacao Casa da Cultura de Maraba, 2010. 45 Tabela 1: Com indtstrias produtoras de ceramicas muito semelhantes quanto A espessura, nao foi possfvel utilizar esse atributo para diferenciar os sitios (SCIENTIA 2008) ‘:15c0 SS a ET TF Fase SIA - che RR er ee wee [| tom | si [ima [me || sism | Been 7 220m osew 268 ( 31aaN | 220mm | arate) 909% [ee ee ate aT | i io aoe cam om | sz | ou | ws | a Tabela 1: Com excegdo dos stos Grajat e Ranchada, a utilizagdo do antipldstico criou grupos congruentes com nossas observagées de laboratério (SCIENTIA 2008) A divisao dos sitios através do antiplastico nos trouxe as seguintes divises: Tabela 3: Resultado das divisées dos sitios através do antiplastico { Sitios Isolados Sitios Tupi Outros Sitios Remanso Bela Vista Frade Ranchada Bom Jesus 1 | Belo Horizonte Bom Jesus 2 Bom Jesus 4 Bom Jesus 5 Bom Jesus 6 Bom Jesus 7.) Grajad @) Boletim Técnico n° 5 - Fundagiio Casa da Cultura de Maraba, 2010. O que nio significa que os outros atributos analisados foram igno- rados, € que estes atributos n4o possuiam o peso de contestar a diviséo geo- grafia-antiplastico. Por exemplo, apesar de o sitio Grajati ser de outro recorte geogtafico € possuir um antiplistico diferente (cariapé ao invés de mineral) do agrupamento Tupinamba (formado por todos os sitios Bom Jesus ¢ pelo sitio Bela Vista), os tratamentos de superficies, as formas e as decoragées inseriram- -no neste agrupamento’, Por outro lado, o sitio Ranchada, possuidor de an- tipldstico mineral, foi excluido do agrupamento ‘Tupinambé por causa da sua pasta mais escura, das suas bordas onduladas ¢ por praticamente nao possuir decoragées. Os sitios Frade e Belo Horizonte nao foram excluidos do agrupa- mento Tupinambd sé por causa do antilpléstico diferente (cariapé). Entre ou- tros atributos dissonantes, estes sitios possufam um acabamento de superficie inferior (poucas decoragées), bases planas, ¢ formas menos elaboradas que a dos sitios Tupinambas (SCIENTIA 2008). Deixando os demais sitios de lado podemos partir para a descrigao desse agrupamento denominado ‘Tupinamba. A primeira semelhanga ‘dentro do grupo é a ja citada geografia: todos esses sitios pertencem & bacia do baixo Tocantins. O segundo ponto em comum é por parte da ceramica produzida pelos habitantes dos sitios do grupo BJs-Bela Vista: genericamente descrita como acor- delada, com antiplistico mineral fino ou médio, queima incompleta, espessura fina, e constante presenca de decoragao pintada. A decorag’o plastica, com a presenca de fragmentos corrugados ¢ ungulados, auxilia no relacionamento dessa cerdmica com as tradices Tupinamb e Guarani. Entretanto, nado é sé de semelhangas que se constroem agrupamentos. Se considerarmos 0s atributos “clAssicos” dos Tupinambas ¢ Guaranis, notaremos algumas diferengas no grupo de sitios BJs-Bela Vista. A que mais chama a atencao éa presenga de ombros e carenas nas vasilhas: se no “cléssico” ‘Tupinambé e Gua- rani (vide LA SALVIA e BROCHADO 1989, PROUS, 1992) essas inflexdes no corpo das vasilhas s4o encontradas com freqiiéncia por toda a parede do vaso, no gtupo de sitios aqui analisados essa caracteristica aparece de forma mais pontual, como nos “ombros” das vasilhas. A excegao ficou por conta do sitio Bom Jesus 5, que possui aproximadamente 14% de seus fragmentos diagnésticos inseridos em uma dessas categorias (SCIENTIA, op. cit.). Outra diferenca é quanto ao anti- plastico, mineral para os Tupinambé do baixo ‘Tocantins € de caco moido para os ‘Tupinambé do litoral ¢ os Guarani (PROUS, 1992) 2 No entanto, a distincia geogrifica excluiu o sitio Grajadi desse artigo, cujo interesse € apenas sobre os Tupi- nambé do baixo Tocantins. Boletim Técnico n® 5 ~ Fundacao Casa da Cultura de Maraba, 2010. a7 Fig. 2: Vaso extrovertido e com — Fig, 3: Vaso com pescoco propicio Fig. 4: Vaso com ombro ambro (angulo na face superior) para a armazenagem de liquides (sitio Cavalo Branco) do sitio Cavalo Branco (sitio Cavalo Branco) Preparado o contexto Tupinambé, um novo exercicio foi iniciado. Pegar um objeto isolado, o sitio Cavalo Branco, pertencente & segunda LT’ (Tucurui- -Agailandia), e relaciond-lo com os demais sitios. ‘A ceramica do sitio Cavalo Branco possuia potes com tamanhos varid- veis (com diametros de boca entre Sem e 64cm), construidos através da técnica do acordelamento. Observamos uma grande variagao na espessura dos potes. As oleiras que habitaram o local variavam a espessura do vaso de acordo com 0 tama- nho, volume e fungao (e.g. assadores tendem a ser mais grossos). Ainda assim, se comparados com os vasos Guarani ou com os Tupinambé do litoral, os fragmen- tos ceramicos do sitio Cavalo Branco seriam considerados finos. A grande variedade de formas observada no sitio parece ligada & presenga de pontos inflexéo na parede dos vasos. Esta ocorreu com maior freqiiéncia nesse sitio se comparado com o agrupamento BJ’s-Bela Vista. Outro detalhe a se destacar so as bordas. Quase sempre recebiam um cuidado especial das oleiras, como alguma forma de decoragio: de um simples ungulado no Kébio a uma pintura complexa no bojo superior. Aparentemente as ceramistas tinham horror a vasos sem nenhuma decoracio: estes sio uma mino- ria. Alguma marca ou assinatura tinha de ser deixada. Fen Fotos 1 e 2: Deconagies pintadus e corrugadas utilizadas na drea da borda dos vasos (sitio Cavalo Branco) Nao foram identificadas bases anelares ou em pedestal. As formas termina- vam, quase sempre, de maneira arredondada (bases convexas) ¢, raras As vezes, de for- ma plana. Foi possivel observar que as bases planas eram do tipo plana-convexa, isto é, sem um ponto de inflexao que demarcasse a fronteira entre a base e 0 bojo inferior. Por vezes extremamente alisados € por outras polidos, os fragmentos tinham grande variagao quanto & textura. Isso porque também foram encontradas pegas com um tratamento de superficie tosco. A utilizagdo de um determinado antiplastico afearia a textura da superficie do vaso, Dentre as varidveis observadas, notou-se uma grande preferéncia pelo uso de carvao efou quartzo (natural ou inserido pelas ol ras). Nos fragmentos observados com carvao, percebeu-se uma maior tendéncia & porosidade, causada pela queima (desaparecimento) desse carvao da pasta. Essa po- rosidade, em alguns casos, gerou uma fragilidade nos fragmentos (e, por conseqiién- cia, nos vasos), o que também ocorreu devido ao tamanho dos gros de quartzo. Em diversos momentos esses gros foram encontrados em tamanhos “inadequados” (Le. acima de 5mm), que certamente afetaram a sustentabilidade do vaso. Fotos 3 e 4: Fragmentos do sitio Cavalo Branco com decoragées corrugadas e incisas Os vasos nao precisavam ter uma vida titi] muito extensa. A grande quan- tidade de material cerimico do sitio, que deve ter sido constantemente renovado, ajuda a sustentar essa inferéncia, Tal renovacao do estoque de vasos, ou pelo me- nos de parte dele para determinados eventos, parece ter sido uma constante entre os Tupinambé da Amazénia. Observamos algumas idiossincrasias na industria ceramica do sitio Cava- lo Branco, também presente nos demais sitios da regido: motivos pintados com linhas largas, decorag6es incisas, corrugados localizados apenas na borda. Se por um lado unimos terminologicamente os Tupinamba do leste amazénico, por outro a comparagéo tecnolégica indica grande variabilidade desses grupos com relag4o aos Tupinamba do litoral, assim como dos Guarani (Meridionais). Dai chaméa-los de'Tupinambé da Amazénia, ¢ nao apenas de Tupinambas. 48 Boletim Técnico n® 5 — Fundacao Casa da Cultura de Maraba, 2010. Boletim Técnico n@ § — Fundacao Casa da Cultura de Maraba, 2010. 49 As formas também tém uma grande afinidade com as Tiadigées Tupi- namba e Guarani, Notamos semelhangas em algumas formas do sitio Cavalo Branco ¢ os cambuxis dos Guarani. Da mesma maneira, as decoragées corrugadas ¢ unguladas, a policromia usada como “demarcadora de fronteiras” nas inflexGes das vasilhas, as carenas ¢, principalmente, o grande ntimero de ombros, confirma- ram a ligagéo desse material com essas tradig6es. Isso resumindo a andlise apenas ao duo forma-decoragao, Fotos 5, 6 € 7: Fragmentos do sitio Cavalo Branco com deconagées pintadas “em grega” tipicamente encontradas nas decoracoes Guarani. e Tupinambd do litoral Assim, apés termos montando 0 contexto Tupinambé para o baixo To- cantins através dos sitios da primeira LT, inserimos 0 sitio Cavalo Branco neste universo. Do mesmo modo como aconteceu com o sitio Nova Ipixuna 2 ¢ po- deria acontecer com varios dos sitios encontracdos nos acervos da FCCM e do Museu Paraense Emilio Goeldi (e.g. sitio Santa Cruz e sitio Espirito Santo). Restaria, por fim, relacionar esses sitios Tupinambés do leste amazénico a uma fase arqueolégica j4 criada para o baixo Tocantins. Trata-se da fase Tauari. Fotos 8 ¢ 9: Fiugmentos com motivos pintados pertencentes ao sitio Bom Jesus 2 50 Boletim Técnico n° 5 — FundacSo Casa da Cultura de Maraba, 2010. O ponto de partida é sempre 0 geogrdfico: todos os sitios aqui relacionados com os Tupinamba (Cavalo Branco, Nova Ipixuna 2, BJ’s, Santa Cruz e Espirito Santo) foram localizados na bacia do baixo rio Tocantins, no interior da margem direita desse rio‘. Todos foram encontrados em um raio de 70km da cidade de Marabé e localizados em uma rea até poucos anos coberta pela Floresta Pluvial ‘Tropical (floresta amaz6nica). Caracterfsticas compartilhadas pela fase Tauart. Vaso (praticamente) inteiro com decoragio incisa ¢ fragmento de borda vazada com pintura policrémica (sitio Espirito Santo) Fotos 10¢1 Através de observagées realizadas no acervo do Museu Paraense Emi- lio Goeldi, ¢ da leitura da desctic¢ao feita por Simées € Araiijo-Costa (1987) é possfvel caracterizar a fase Tauari. Esta, descrita como acordelada, com tem- pero de areia (grossa ou fina), assim como, em menor escala, de cariapé ou carvao+cariapé. O tratamento de superficie nao possufa a sofisticagao da fase Taud (encontrada a jusante do rio Tocantins, e pertencente a Tradigio Policro- ma Amaz6nica), mas os vasos pintados estavam sempre bem alisados. A policro- mia apareceu sob faixas ¢ motivos. Fotos 12 ¢ 13: Oxira borda vazada com pintura policrémica e fragmento de borda com bicromia do sttio Santa Cruz (acervo da FCCM) 4 Com excegiio do sitio Santa Cruz que esti no baixe Araguaia, Boletim Técnico n2 5 — Fundac¢ao Casa da Cultura de Maraba, 2010. 51 A decorago plastica da fase Tauari contaria com o constante aparecimen- to de corrugados ¢ ungulados e diminuicao dos fragmentos incisos (freqiientes na fase Taud). Alguns dos corrugados eram diibios e se confundiam com um alisa- mento grosseiro (caracterfstica observada no sitio Cavalo Branco). As bases eram conyexas. As bordas, geralmente simples ou extrovertidas, possufam exemplares vazados. Haveria inflexdes nos vasos, principalmente ombros. Ou seja, descric&es que combinam com as realizadas até 0 momento dos sitios aqui descritos. Sem scala Fotos 14 ¢ 15: Fragmentos pintados Fotos 16 e 17: /) ce do-sloiBids Viewe e ‘negmento corrugado e fragmento inciso do sitio Nova Ipixuna 2 Por fim, seria interessante discutir sobre as duas fases citadas do baixo To- cantins, a fase Tauari, Tupinambé, ea fase Taud, da Tradigao Polfcroma da Amazénia (MEGGERS 1992a, 1992b, Miller et a/, 1992). A ceramica Taud possufa poucos elementos que pudessem sustentar uma correlagéo entre essa fase ¢ os Tupinambé, mas apresentou caracteristicas em comum com a fase Tauri (e.g. cerdmica acorde- lada, antiplistico mineral, decoragées incisas, pinturas vermelhas, bordas vazadas, formas com ombros). Ou seja, a proximidade é mais regional do que geral. A pre- senga das bordas vazadas seria um diagnéstico do contato desses grupos. Tudo indi- ca que as vasilhas com bordas vazadas (ou ocas) do baixo ‘Tocantins nada mais eram do que os vasos chocalhos marajoara. Interessante atributo comum (interessante porque 08 vasos chocalho remetem a um contexto ritual), entre os ‘Tupinambé do Leste Amazénico ¢ os ceramistas da fase Marajoara, O que nao impede a indicagao, apesar de cu nao acreditar, de que a relagao Tupinabé-Marajoara vai de acordo com © modelo brochadiano (BROCHADO, 1984), que provavelmente interpretaria a ceriimica do baixo Tocantins como um “elo perdido” entre os Policromos Marajo- aras ¢ os Tupinambds litoraneos, Elo que seria gradativamente espalhado nas fases discutidas. No entanto, apenas refinamento dos estudos tecnoldgicos ¢ cronolégi- cos dos sitios pertencentes & fase Taud possibilicard inferéncias mais consistentes so- brea relagio entre Tupinambis ¢ grupos da'Tradigao Policroma do leste amarénico. Conclusées A grande quantidade de sitios Tupinambé no interior da margem dircita do rio Tocantins, mais ou menos na altura da atual cidade de Maraba (5° de lati- tude), indica que essa regido foi um “nticleo” Tupinambé no leste amazénico, Do material Tupinamba encontrado na Amazénia oriental analisado até o momen- to, & 0 da fase Tauarf que se aproxima dos “clissicos” Tupinambé (litordneos) ¢ Guarani, principalmente pela morfologia dos vasos ¢ pelas decoragées utilizadas. Outros fatores como antiplisticos ¢ espessura dos fragmentos diferenciam os Tu- pinambé da regido das Tradigdes Tupinambé do litoral e Guarani. Elementos que os diferenciam entre os demais, mas que os identificam entre si. Por fim, foi posstvel observar no entorno do “bico do papagaio” (0 encon- tro dos rios Araguaia e Tocantins), area onde estao localizados os sitios Tupinambas (fase’Tauiati), so vistas influéncias dos grupos citcunvizinhos. Para norte, na jusante do tio, foi dado destaque ao contato entre grupos portadores da’Tradi¢ao Policroma Amazdnica com os ‘Tupinambés. Actedito que a compreensio dessa relacio pode futuramente esclarecer intimeros pontos obscuros da pré-histéria amazénica. Agradecimentos Primeiramente gostaria de agradecer a Née von Auingen ca toda equipe da Casa da Cultura de Maraba por me acolherem durante minhas visitas entre os anos de 2004 ¢ 2005. Dentro da FCM gostaria de agradecer especialmente & antiga equi- pe de Arqueologia: Irislane Moraes, Marlon Prado, Daniel Roldao, Priscila Wanzeller Oliveira, Hélida Leite e Luis Coimbra. Com meu orientador Eduardo Gées Neves compattilho muitas das idéias aqui expostas. Por fim gostatia de agradecer a Lorena Garcia, Daniella Amaral e Rafael Pedott por toda a ajuda. Agradeco a Solange Calda- relli, Fernanda Araiijo-Costa, ¢ toda a equipe Scientia, pelas oportunidades durante 0s anos em que estivemos juntos. A Daniella Novo agradego pela revisio ¢ apoio. Este trabalho foi financiado com uma bolsa do CNPq entre 2004 e 2006. Referéncias bibliograficas: ALMEIDA, FE O. de. O Complexo Tupi da Amazénica Oriental. Tese (Mestra- do), MAE-Universidade de Sao Paulo, Sao Paulo, 2008. ALMEIDA, EO. de & GARCIA G. Aspectos do Espaco Tupinamba. Revista de Arqueologia, 21(2): 97-119, 2008. ARAUJO-COSTA, F. Projeto Baixo Tocantins: Salvamento Arqueolégico na Regido de Tucurui. Tese (Mestrado), FFLCH-Universidade de Sio Paulo, Sto Paulo, 1983. 52 Boletim Tecnico n? 5 — Fundacao Casa da Cultura de Maraba, 2010. Boletim Técnico nS - Fundacao Casa da Cultura de Maraba, 2010. 53 CALDARELLI, 8. (org,). Projeto de Levantamento Arqueolégico na faixa de Serviodao da Linha de Transmisséo Tucuru//PA — Presidente Dutra. So Pau. lo: Scienta Consultoria Cientifica, 2002a. CALDARELLI, S. (org.). 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