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colaborativa na Amazô
Terra Indígena Kuatin
Rio Xingu,
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gia
ônia: Arqueologia
colaborativa na amazônia:
nemu, Terra Indígena Kuatinemu,
Pará Rio Xingu, Pará
EDUARDO BESPALEZ
Universidade de São Paulo, Brasil
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Silva, F. A. et al.
Além da questão demográfica, outros as- ante de novos desafios para o futuro de
pectos também têm afetado a dinâmica sua etnia. O projeto contemplou as es-
cultural e a trajetória histórica Asurini. tratégias metodológicas definidas para
Ou seja, diferentes grupos de indi- estabelecer a prática colaborativa: 1)
víduos, instituições e empresas com os os Asurini participaram na elaboração
mais variados interesses econômicos, da proposta e na definição da logística
políticos, científicos, sociais e religio- do projeto; 2) foram os guias na expe-
sos vêm atuando junto a eles no cotidi- dição pelo igarapé Ipiaçava, definindo
ano da aldeia (Silva 2005, 2007). Atual- os locais de acampamento e indicando
mente, vistoriar e proteger suas terras a localização dos sítios a serem pes-
contra possíveis invasões de grileiros, quisados; 3) foram contratados como
posseiros e madeireiros, passou a ser auxiliares no levantamento do poten-
crucial para os Asurini, que acompanham cial arqueológico da área e na logística
os embates relativos às tentativas de in- da expedição pelo Ipiaçava; 4) foram
vasão das terras indígenas nesta região responsáveis pela elaboração de parte
paraense do Baixo-Médio Xingu e, do material audiovisual (Figura 1).
especialmente, no atual contexto de
Durante a pesquisa, as velhas gerações
expectativa e especulação sobre a con-
prestaram depoimentos – gravados em
strução da UH Belo-Monte. A nova re-
áudio e vídeo - a respeito dos episó-
estruturação da FUNAI também traz
dios pré e pós-contato relembrando as
suas conseqüências como, por exem-
situações belicosas com outras popula-
plo: 1) o surgimento de lideranças jo-
ções indígenas desta região do Xingu
vens com uma maior responsabilidade
(p. ex. Xikrin-Kayapó e Araweté), da
na resolução dos assuntos administra-
localização dos antigos assentamentos
tivos e problemas (sociais, políticos,
e acampamentos, dos fatos que con-
econômicos) da aldeia; 2) o enfraqueci-
duziram à necessidade de instalar suas
mento do poder politico e decisório das
aldeias na área do igarapé Ipiaçava e do
velhas gerações; 3) a percepção Asurini
seu contato com os brancos. Por outro
de uma maior autonomia na direção
lado, os jovens se encarregaram de
de seus destinos; 4) a insegurança com
acompanhar esses relatos, formulando
relação ao seu futuro, diante do en-
fraquecimento da tutela do órgão indi-
genista governamental.
Portanto, a formulação do nosso pro-
jeto de pesquisa e a sua execução es-
tavam inseridas nesta conjuntura. Ou
seja, a proposta de pesquisa foi moti-
vada e conduzida a partir da demanda
das velhas e novas gerações que temem
a perda dos conhecimentos “tradicio-
nais” e, ao mesmo tempo, se vêem di- Figura 1 – Planejamento da pesquisa
da por lianas, cujas feições, ditadas pela nados com a fitogeografia amazônica,
topografia, constituem nas áreas aplai- agindo separadamente ou em combi-
nadas uma fisionomia florestal bastante nação. Contudo, pesquisas no âmbito
aberta, de baixa altura (raramente passa da ecologia histórica e das etnociências
dos 20m). Já nas áreas mais acidenta- revelam que os ambientes não podem
das, com estreitos vales ocupados por continuar sendo vistos exclusivamente
linhas de babaçu e largas encostas co- como formações primárias, mas tam-
bertas por cipoal, as árvores são mais bém como o resultado do manejo, ou
altas (<25m) e densamente distribuí- seja, da manipulação humana de com-
das. Dentro dos limites da T.I. Kuati- ponentes orgânicos e não orgânicos
nemu encontra-se, em menor escala, de forma consciente ou inconsciente,
a Floresta Densa (Ombrófila), classe conformando paisagens vivas.
sub-montana, nos contornos da Serra
Na T. I. Kuatinemu, durante a nossa ex-
do Bacajá. A Floresta Densa caracteri-
pedição ao igarapé Ipiaçava, constatamos
za-se pelas grandes árvores, com mais
a ocorrência das formações florestais
de 50m, que sobressaem entre 25-35m
apresentadas pelo RADAMBRASIL,
de altura do estrato arbóreo, porém,
principalmente, a formação mista de
quando ocorre na classe sub-montana,
palmeiras e árvores latifoliadas. Prati-
sua estrutura apresenta-se mais baixa
camente todos os locais visitados e
(<10-15m) (RADAMBRASIL, 1974a
que consistiram de aldeias antigas e
e b). Por fim, as inúmeras ilhas que
acampamentos, apresentavam este tipo
compõe a planície fluvial do rio Xingu
de vegetação, com predomínio de pal-
possuem solos aluviais e hidromórfi-
meiras de babaçu. Por se tratar de sítios
cos indiscriminados (eutróficos e dis-
histórico/arqueológicos, por apresen-
tróficos), cujos terraços são cobertos
tarem TPA e áreas com evidências de
por Floresta Densa, com estrutura
manejo de roças, de trilhas, etc, é certo
complexa, rica em palmeiras (como
que sejam áreas de florestas culturais.
açaí – Euterpe sp. e a buritirana – Mauri-
Os Asurini classificam essas forma-
tia armata Mart.).
ções, o que é outro indicador de mane-
Ressalta-se que a fonte dos dados da jo da paisagem. Foram coletados dados
descrição ambiental enquadra-se den- etnográficos sobre este etnoconhecimen-
tro de uma epistemologia que, segun- to botânico, porém, os mesmos ainda
do Balée (1989:95), é excessivamente não foram totalmente processados e
naturalística, que geralmente explica os analisados.
tipos de vegetação como provenientes
da idade e da estrutura geológica do
substrato, da composição e estrutura OS SÍTIOS HISTÓRICOS/ARQUEOLÓGICOS
do solo, do tipo de água aproveitável, NA T. I. KUATINEMU
das condições de drenagem, da quan- Localizamos seis sítios históricos/ar-
tidade e distribuição das chuvas. Tais queológicos e 1 área de ocorrência ar-
fatores, em parte, podem ser relacio- queológica4 (figura 4). Na sua maioria
Quadro 1
Sítio Sigla UTM Implantação Vegetação Sedimento Descrição Atividade Coleta Observações
Kuatinemu TI-KTM-01 Terraço fluvial não Gramíneas, roça- Arenoso, argiloso, Situado na atual sede Registro escrito, Cerâmica, lítico, metal, Foram localizadas duas oficina líti-
inundável, margem dos, pomares, áreas areno-siltoso e areno- da T.I. Kuatinemu. Os fotográfico, carvão, ossos de fauna, cas (Silva 2000, 2002). Foi coletada
22M 24327/ direita do médio de manejo, capoei- argiloso preto, cinza depósitos apresentam visual, e poço- plástico e sedimentos amostra para data TL, em torno do
9552274 Xingu, à montante ras e florestas e marrom, formados elementos Asurini e teste séc. XI, na abertura de latrina (Silva
da foz do igarapé por processos culturais não-Asurini et al 2004)
Ipiaçava e naturais
Avatikirera TI-KTM-02 Terraço fluvial Ecofatos, roçados, Arenoso preto, O sítio é formado por Registro escrito, Cerâmica, ossos de fauna, Materiais industrializados associa-
inundável, margem capoeira e floresta provável TPA; areno- elementos Asurini fotográfico, lítico dos aos Assurini. Oficina lítica as-
22M 0324420/ direita do Xingu, à argiloso preto, origi- e não-Asurini. Foi a visual, coleta sociadas às ocupações não-Asurini.
9553966 jusante da foz do nado por processos primeira aldeia Asurini de superfície e Área é usada em diversas atividades
Ipiaçava naturais no rio Xingu tradagem
Kuatinemu TI-KTM-03 Terraço fluvial não Ecofatos, capoeira Silte-argiloso preto, O sítio é formado por Registro escrito, Cerâmica, ossos de fauna, O sítio contém Tavyva abandonada
Velho inundável, margem e floresta provável TPA; argi- elementos Asurini e fotográfico e lítico, carvão e sedimentos no início dos anos 1980. Existe
22M 0338082/ direita do baixo loso, cinza-escuro não-Asurini visual, coleta oficina lítica. A área é usada em
9545402 Ipiaçava e marrom, possível de superfície e diversas atividades
origem natural poço-teste
Itapemuũ TI-KTM-04 Baixa encosta de co- Ecofatos, capoeira Silte-argiloso preto, O sítio é formado por Registro escrito, Cerâmica, ossos de fauna Materiais industrializados as-
lina suave, margem e floresta provável TPA; argiloso elementos Asurini e fotográfico, e líticos sociados aos Asurini. Oficina lítica
22M 0352567/ direita do médio marrom-amarelado, não-Asurini visual, coleta associada às ocupações não-Asur-
9538272 Ipiaçava possível origem natural de superfície e ini. A área é usada para diversas
tradagens atividades
Akapepugi TI-KTM-05 Terraço fluvial não Ecofatos, capoeira Silte-argiloso preto, O sítio é formado Registro escrito, Cerâmica, ossos de fauna e Os Asurini foram aldeados na área
inundável, margem e floresta provável TPA; arenoso apenas por elementos fotográfico, materiais industrializados pelo padre Anton Lukesh, início
22M 0354461/ direita do médio e areno-argiloso Asurini visual, coleta dos anos 1970
9539498 Ipiaçava marrom-escuro, e argi- de superfície e
loso marrom, origem tradagens
natural
Taiuviaka TI-KTM-06 Colina suave na Ecofatos, capoeira Arenoso marrom- O sítio é formado Registro escrito, Cerâmica, ossos de fauna e Os Asurini foram aldeados na área
margem direita de e floresta acinzentado-muito- apenas por materiais fotográfico, materiais industrializados pelo padre Anton Lukesh, início
22M 0362390/ nascente fluvial escuro, provável TPA; Asurini. Foi a última visual, coleta dos anos 1970
9540756 tributária da margem arenoso marrom- aldeia formada antes de superfície e
direita do médio escuro e marrom, de do contato com os tradagens
Ipiaçava origem natural brancos.
Área de TI-KTM-Oc-01 Confluência da Mata ciliar Arenoso marrom Fragmento isolado de Registro escrito, Cerâmica O fragmento pode ter rolado pela
ocorrência 1 margem direita vasilha, em local usada fotográfico, ação fluvial
22M de tributário da como acampamento visual e coleta
64824/9537874 margem direita do Asurini de superfície
Ipiaçava
por Anumaí, irmã dos xamãs primor- sobre a história de ocupação territo-
diais e a primeira uirasimbé – dona do rial de populações indígenas (Zedeño
mingau – que deixou o mundo dos 1997, Stewart et al. 2004). Foi eviden-
homens por causa de um confronto ciado o potencial do conhecimento
com Tapijawara – ser sobrenatural indígena para a identificação dos mar-
monstruoso – que tentou afogar os cos paisagísticos das antigas ocupa-
humanos com as águas do mundo ções humanas, dos distintos padrões
subterrâneo. Anumaí teria jogado suas de assentamento pré e pós-contato,
vasilhas cerâmicas com paredes gros- dos processos de ocupação e uso do
sas em Tapijawara para fazê-lo voltar às território e das evidências de domes-
profundezas, sendo que estas se que- ticação da paisagem e uso dos recur-
braram restando apenas os fragmentos sos naturais. Com este conhecimento,
espalhados no chão, até os dias de hoje. a T.I. Kuatinemu se transforma em uma
Alguns fragmentos cerâmicos podem paisagem cultural e os locais de ocupação
pertencer a Tauwuma – ser sobrenatu- humana são lugares de memória carrega-
ral – que teria abandonado o mundo dos de significados sócio-cosmológicos.
dos vivos depois que seu irmão matou
No que se refere à pesquisa arque-
seu amante – que aparecia para ela em
ológica, o aprendizado em campo foi
forma de anta. Esses fragmentos são
imenso, pois a articulação do ponto de
finos como os dos Asurini, porém eles
vista ocidental com o ponto de vista
só são encontrados junto à árvore do
indígena sobre a arqueologia da área
frutão, lugar onde Tauvuma mantinha
nos fez refletir sobre a nossa prática
relações sexuais com este homem-anta
científica. A interpretação êmica sobre
e lhe servia o mingau. Cada vez que
a paisagem e os vestígios arqueológicos
ele consumia o mingau, o homem-anta
permitiu experimentar empiricamente
quebrava a vasilha e Tauvuma precisava
o que teoricamente se define como
refazer suas vasilhas. Ao partir do mundo
multivocalidade (Layton 1989; Green
dos homens ela se tranformou em Tauva,
et. al. 2003, Jackson e Smith 2005).
retornando apenas em momentos rituais
O passado e o presente se encontram
específicos que evocam o seu espírito
nas narrativas Asurini sobre estes ma-
(Müller 1990, Silva 2000, 2002).
teriais, revelando um regime próprio
de historicidade que difere daquele
dos pesquisadores (Price 1983). Du-
CONCLUSÃO
rante todo o trabalho debatemos
O resultado obtido na T.I. Kuatinemu com os Asurini sobre temas como a
possibilitou vislumbrar o grande po- origem e expansão dos povos Tupi,
tencial que a área oferece para a disci- o surgimento de seu povo nas terras
plina e para a história das populações do Xingu, a natureza e a autoria dos
indígenas desta região amazônica. Os vestígios arqueológicos. As reflexões
dados arqueológicos e etnoarqueológi- Asurini sobre os mesmos foram todas
cos obtidos com os Asurini podem ser pautadas em sua filosofia ameríndia
comparados com trabalhos recentes
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