Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
233
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
colonizadoras, assim como os resultados das forneciam subsídios e suportes para a organização
expedições, ficaram registrados na literatura e no das expedições que vinham ao Brasil, com o objetivo
colecionamento de artefatos. de formar e ampliar suas coleções sistemáticas.
Além da fauna e da flora que chamavam a Segundo Campos (1996), 'os maiores
atenção pela abundante diversidade, muitas testemunhos das expedições exploradoras credi-
populações aqui encontradas foram descritas e tam-se aos museus europeus, que difundiam a
ilustradas em relatos de viagens, monografias, cultura da curiosidade expondo objetos produzi
expedições científicas, artigos etnográficos, entre os dos por povos considerados exóticos’
séculos XVII e XIX, tendo como resultados os Com isso, podemos afirmar que os museus
quadros de Heckhout pintados quando veio ao contribuíram, e continuam contribuindo em muito,
Brasil em 1637 e 1644 como membro da comitiva para o desenvolvimento de estudos de etnologia
do Príncipe Maurício de Nassau, mais tarde, entre brasileira, por possuírem e conservarem em seus
1816 e 1831, os registros de Debret sobre acervos itens da cultural material produzidos no
aspectos considerados pitorescos, com a vinda da período de colonização portuguesa, de grupos que
Missão Francesa, em 1821, as ilustrações de já foram extintos, dos que perderam muitas das
Rugendas quando acompanhou a expedição técnicas de confecção e dos que ainda resistem
científica do Barão de von Langsdorff, entre vários mantendo suas tradições, nos fornecendo subsídios
outros que desejavam perpetuar de alguma forma de análise sobre as interferências decorrentes dos
as imagens das novas terras. O século XX traz um contatos, enquanto elemento gerador de mudanças.
facilitador para tais registros, o desenvolvimento da Assim como as sociedades passam por
técnica fotográfica, que ampliou consideravelmente processos dinâmicos de transformação de acordo
a quantidade de imagens da diversidade brasileira. com as contingências históricas, os museus também
Foram coletadas centenas de espécies de foram transformando as suas formas de atuação.
plantas, insetos, animais que eram taxidermizados Entre os séculos XVII e XVIII, os museus euro
para melhor conservação e grande quantidade de peus que atuavam como gabinete de curiosidades,
artefatos confeccionados pelos ‘índios do Brasil’ expondo sem muitos critérios tudo o que era
que eram expostos nos museus europeus, como considerado inusitado, foram incorporando uma
coleções exóticas privilegiadas. visão historicista e se transformando em museus de
Embora houvesse uma generalização, como história natural. Inaugurava-se um momento em que
se os índios pertencessem a uma única etnia, nos se manifestava uma preocupação classificatória que
relatos enviados por volta de 1684 pelos primeiros favoreceu tanto no aspecto de ordenação das
exploradores da terra maravilhosa, os Karajá já coleções a serem expostas, quanto na criação de
eram citados desde a primeira expedição de caça uma sistemática de coleta dos materiais associada
aos índios, comandada pelo bandeirante Antonio ao contexto de sua produção, estabelecendo,
Pires Campos, como afirma Ehrenreich, em 1888, assim, a necessidade de uma documentação
quando percorreu o Araguaia. criteriosa acerca dos objetos.
A partir de então, vários outros contatos Esse foi um passo decisorio a para atuação
foram registrados havendo a coleta de peças da dos museus que foram substituindo, ao largo de
produção material do grupo, de vocabulário suas experiências, a curiosidade - que dava
lingüístico, de mitos e de outros traços representati margem à criação de imagens fantásticas e distorcidas
vos desses povos. Os mitos e os vocabulários da realidade - pela investigação científica, a partir
coletados foram sendo registrados em relatórios, da elaboração de métodos sistemáticos de análise e
monografias e publicações que davam destaque aos coleta tanto de objetos, quanto de informação
relatos etnográficos. Os artefatos foram sendo relativa a esses e a seu contexto de coleta.
armazenados e expostos em museus estrangeiros, Intensificam-se, assim, as pesquisas sobre a
que ampliavam seu interesse em colecionar objetos cultura material dos povos indígenas brasileiros, a
representativos de culturas diversas e vistas como coleta e a formação de coleção em instituições
inusitadas. nacionais e estrangeiras, cabendo observar que
Com um interesse cada vez maior em essas instituições etnográficas encontram-se hoje
difundir seus acervos, essas instituições transforma- em outro momento, tendo como escopo as
ram-se nos principais agentes financiadores que investigações de caráter antropológico.
234
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
235
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia São Paulo, 72: 233-248,
2002.
236
CAM POS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
237
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
As coleções do MAE/USP
238
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
239
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
240
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e E tnologia, Sao Paulo, 12. 233-248,
2002.
brinquedo para menina, então m ulher fe z O barro é coletado pelo homem e manipulado
boneca para menina, de cera de abelha. pelas oleiras que acrescentam as cinzas da madeira
Boneca não servia, era muito mole. Então, cega-machado, queimada durante o preparo das
m ulher fe z de barro. Não serviu também, refeições. Fazem pequenas bolas que utilizarão para
quebrava à-toa. M ulher pensou, pensou a modelagem das bonecas, como também para os
muito, para ver se ficava bom. Tirava potes e panelas (Figs. 7, 8 ,9 ,1 0 ). Enquanto as
madeira para tirar cinza: não servia. ceramistas confeccionam as bonecas, divertem as
Depois, tirou outra madeira chamada cega- crianças e ajudam as meninas no manuseio do
machado. A í fico u bom, e durava mais, barro e no preparo de figurinhas e miniaturas de
ficava bom mesmo! panelas, associando à diversão, o aprendizado
tribal (Fig. 11).
Narração de Arutana, chefe ritual dos A modelagem das figuras é feita a partir de
Karajá, relatada por Simões (1992). uma bola de barro previamente preparada, na qual,
a oleira, com os dedos umedecidos, vai aos poucos
dando forma à boneca. Posteriormente acrescenta
O relato dá a impressão de que as bonecas de a cabeça, os braços e os adereços. As figuras
barro não deram certo e somente as de madeira eram sempre representam cenas do ciclo da vida
confeccionadas. No entanto, podemos constatar cotidiana dos Karajá, como a representação de
que embora ainda existam as esculpidas em madeira, mulheres pilando, ralando mandioca, homens em
a maior parte das bonecas produzidas continua canoas, miniatura de animais, figuras mitológicas,
sendo a de cerâmica. Como forma de solucionar o entre outras. Para aplicar no rosto a marca tribal
problem a da fragilidade, a partir da década de (omarury), utilizam alfinetes, pedaços apontados
1950, elas passam pelo processo de cozimento. de bambu ou qualquer material pontiagudo que
Adquirindo maior resistência, foi possível estiver disponível.
inserir algumas modificações, como a substituição D epois de prontas, as peças são colocadas
da antiga cabeleira de cera, aplicada na boneca para secar ao sol e quando estão quase secas
depois de seca, pela de cerâmica, cozida juntam en são levadas para a queim a que dura cerca de
te com a peça. Com esse processo, há a aplicação duas horas. Terminado o cozim ento elas passam
de braços, mãos e pernas mais alongadas, amplian a ser decoradas com urucum ou argila verm elha e
do também o repertório figurativo incluindo cenas os detalhes em preto, com a casca de uma
do cotidiano como a de ralar mandioca, pilar o árvore conhecida em G oiás com o komatê,
milho etc., que passaram a ser mais exploradas e m acerada e misturada à fuligem retirada das
mais comercializadas. panelas.
241
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
Fig. 8 - Preparo da
m atéria prim a. F oto
M. F. Simões.
242
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 72: 233-248,
2002.
Fig. 9 - Oleira com criança, adicionando os detalhes nas bonecas. Foto M. F. Simões.
243
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
São aplicados às bonecas os padrões ornamen O grupo ou indivíduo que produz essa
tais, que seguem os mesmos utilizados na pintura manifestação procura representar, em última
corporal, como forma de representação do ciclo de instância, sua imagem do real, sua visão de mundo
vida, traduzindo o lugar que cada indivíduo ocupa e, conseqüentemente, a posição que ocupa dentro
na sociedade Karajá. Alguns padrões simbolizam dele. Mas, tal manifestação cosmológica não pode
formas da natureza como o desenho das costas do ser compreendida em sua totalidade, se for vista
tracajá, da cascavel, do urubu-rei, as asas do morcego, somente no momento de sua materialização como
entre inumeráveis motivos (Figs. 12,13,14). obra acabada. Essa realidade, matéria prima de
suas produções, nada mais é do que seu dia a dia.
Podemos compreender, primeiramente, que
toda produção cultural é fruto de uma elaboração e
Considerações finais atuação sobre essa realidade, isto é, dada em
função de um processo histórico e, portanto, de um
posicionamento dentro e diante dele por parte dos
A partir destas primeiras reflexões, que partem próprios agentes que as fazem: cultura e história.
da hipótese de que as bonecas simbolizam os Desse modo, o cotidiano de um grupo é parte
diferentes aspectos da organização cultural e os integrante de sua cultura e se reflete em suas formas
diversos planos da cosmologia Karajá, não de atuação tanto material, quanto simbólica.
podemos descartar o fato de que, toda manifesta E ainda, que a natureza polissemântica dos
ção humana é produto de uma ação sobre a objetos registra as mudanças e/ou permanências
realidade e se expressa de maneira simbólica, se nas formas e padrões representados na arte
tivermos como pressuposto que toda linguagem, figurativa. A partir daí, discutir as questões relativas
seja ela verbal ou não, se baseia num encadeamen- à etnicidade através da pintura corporal e do
to articulado de símbolos. grafismo presente nos artefatos, como códigos que
244
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
Fig. 12 - Alguns motivos tradicionais: a) casco de jaboti; b) gavião; c) rabo de quati. Ilustração Luiz
Pereira Kurikalá Karajá.
traduzem o sistema cultural dos Karajá e das atributos culturais nas bonecas cerâmicas através
interferências ocorridas com os contatos com a da tatuagem tribal, da pintura corporal, dos adornos
sociedade global. Tal discussão traduz-se no objetivo etc., e por que e com que objetivo existe tradicio
geral deste estudo que é o de situar a relação entre nalmente uma intensa produção desses artefatos.
tecnologia, arte e cultura, a fim de contribuir com A partir das evidências formais a serem
algumas bases teóricas sobre a questão da organi obtidas, visa-se compreender no plano antropológi
zação social de populações indígenas co, o nexus dessa produção no contexto mágico-
A proposta desta pesquisa é a de identificar e simbólico Karajá, lembrando a observação de
compreender as formas de organização do universo Lévy Strauss, que: *o objeto tira a substância das
mágico-simbólico no contexto sócio-cultural Karajá. propriedades invariantes que o pensamento mítico
Verificar como elas se materializam sob a forma de consegue extrair quando coloca em paralelo uma
245
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
246
CAM POS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12. 233-_48,
2002.
distinguem grupos, categorias de idade, sexo, Outro fato importante a se destacar é o efeito
situações cerimoniais, posição ciánica, ea s gerado pela atribuição do nome, dado por uma
marcas tribais diferenciadoras de outros grupos. suposta similaridade ao conceito ocidental de
Um exemplo interessante é a marca cultural - ‘bonecas’. Por sua definição enquanto brinquedo
omarury, de dois pequenos círculos tatuados a de menina que imita uma forma humana, essa
fogo na face, logo abaixo dos olhos, representando produção não despertou muito interesse aos
o Sol e a Lua. Trata-se de um a marca que simboli estudiosos em investigar a dimensão simbólica no
za um dos mitos de origem relacionado à figura que contexto da arte figurativa ou estatuária, a exemplo
ensinou os Karajá-a pescar, caçar, fazer roça, dos estudos das figuras africanas, que buscam em
construir canoa e fabricar a corda do arco. O grupo sua singularidade, seus significados étnicos mais
acredita que a vida e todas essas atividades cotidianas amplos.
só são possíveis, graças ao sol, que foi concedido Este é um dos motivos que nos impede uma
ao homem pelo urubu-rei, segundo relato mítico. visão mais tangível da representação simbólica das
Cabe observar que a figura do urubu também se bonecas Karajá, e perceber mais atentamente que
encontra representada nos motivos gráficos que são elas vão para muito além do brinquedo.
transferidos nos artefatos e na pintura corporal.
CAMPOS, S.L. Karajá dolls: just a toy? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São
Paulo, 12:233-248,2002.
ABSTRACT: This article presents the initial reflections on the Karaja dolls, based
on the hypothesis that they are more than a toy and that the painting and the adornments
present in the handicraft production represent different aspects of the cultural organization,
symbolizing the several plans of the cosmology of this group.
Referências bibliográficas
247
CAMPOS, S.L. Bonecas Karajá: apenas um brinquedo? Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 12: 233-248,
2002.
RIBEIRO, B. TAVEIRA, E.
1988 D icionário do artesanato indígena. Belo 1982 Etnografia da Cesta Karajá. Goiás: Coleção
Horizonte: Itatiaia, São Paulo: Edusp. Teses Universitárias, Ed. da Universidade
SIMÕES, M.F. Federal de Goiás.
1992 Cerâmica Karajá e outras notas etnográficas. VIDAL, L. (Org.)
Goiânia: Ed. UCG/IGPA. 1992 Grafismo Indígena. São Paulo: Studio Nobel/
Edusp, FAPESP.
248