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Rev. do Museu de Arqueologia e Etnologia, S. Paulo, 2:139-145, 1992.

REVENDO O NASCIMENTO DOS MUSEUS


NO BRASIL

Maria José Elias*

O atual momento histórico exige reflexão No entanto, alguns pontos tocados pela
acerca do papel que vem sendo desempenhado autora merecem uma rediscussão. Se por um
pelas ciências humanas na produção do saber. lado, a visão de conjunto tem vantagens, por
É dentro desse contexto que surgem algumas outro ela corre os risco6 de uma excessiva
publicações de consulta obrigatória, como o generalização. Dada a nossa familiaridade
primeiro volume da História das Ciências So­ com o objeto, o texto suscitou-nos questões
ciais no Brasil, organizado por Sérgio Miceli que nos convidam ao diálogo, refletindo sobre
(1989), As Ciências no Brasil, de Fernando de a trajetória dos museus no Brasil.
Azevedo (1966) e a História da Inteligência Logo na introdução do capítulo, a autora
Brasileira, de Wilson Martins (1977). Empre­ delimita os procedimentos metodológicos que
endimentos de tal natureza demandam neces­ serão observados no texto e esclarece a pers­
sariamente um longo período de maturação, pectiva histórica do tratamento do tema, além
pois mais do que a construção de uma visão de expor as principais fontes de informação e
crítica, permitem a compreensão das ciências elencar as publicações. Ao mesmo tempo,
sociais no seu conjunto, através de uma análise propõe uma forma de conceituar as instituiçõ­
histórica. es e uma maneira de explicar suas origens e
Entre os estudos publicados no primeiro influências recebidas.
volume da História das Ciências Sociais no Ao discorrer sobre a formação dos museus
Brasil, o capítulo de Liliam K. M. Schwarcz, europeus, onde, de uma certa forma, podemos
“O nascimento dos museus brasileiros 1870- buscar os modelos para a conceituação e orga­
1910”, interessa particularmente aos estudio­ nização dos museus brasileiros, Schwarcz con­
sos de cultura material e em especial aos que sidera a criação dos Museus Nacionais, como
se dedicam à análise dos processos de forma­ o Louvre e o Prado, um movimento estatal de
ção das instituições científicas do final do sé­ postura acumulativa e “conquistadora”, tipica­
culo XIX e início do XX. Trata-se de um texto mente burguesa, dos Cabinets de Curiosités.
que tem por objetivo pensar os processos de No entanto, quanto ao primeiro caso (dos Mu­
formação dos museus brasileiros no âmbito da seus Nacionais), a criação dessas instituições
história das ciências sociais, situando essas ins­ serviu para demonstrar tanto a unidade (o Es­
tituições num amplo contexto e mostrando o tado Nacional), quanto a força do poder que
destaque que estas tiveram no passado. Pela une a Nação (Casa Reinante, Parlamento etc.);
primeira vez, tentou-se oferecer uma visão de força demonstrada na ostentação de riqueza,
conjunto dos museus brasileiros, pois, até aqui, cultura e saber. O segundo caso, dos Cabinets
pouco se escreveu além de artigos esparsos ou de Curiosités, insere-se no movimento paula­
trabalhos acadêmicos de circulação restrita.1 tino de conquista do espaço físico, cultural e
político da burguesia; demonstra não aprisio-
namento do saber, mas do universo circundan­
(*) Museu Paulista da Universidade de Sào Paulo.
te, na sua maior extensão possível, nas mãos
(1) É necessário ressaltar a importante contribuição da
museóloga Waldisa Rússio Guamieri nos anos setenta,
em artigo publicado pelo Suplemento Literário de O Es­ prefácio do Ministro Horácio Lafer, Wladimir Alves de
tado de S. Paulo, em 22/7/1979, “Existe um passado mu- Souza, Iniciação à Cultura Brasileira (o texto citado é do
seológico brasileiro?“, onde ela arrola uma bibliografia volume IV) e Grâce L. Mac Cann Morley, “Les musées
até então pouco conhecida: Brasil 1960, edição do Mi­ en Amérique Latine“, in Muséum, vol. XII, n° 4, 1959 e
nistério das Relações Exteriores, resultado de grupo de Aspectos da Política Cultural Brasileira, edição do Con­
trabalho chefiado por Francisco Gualberto de Oliveira; selho Federal de Cultura, Rio de Janeiro, 1976.

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do colecionador. Quanto ao Museu do Louvre, expor e fetichizar todo o mundo extra-euro-


embora o tenha considerado criação da Revo­ peu” (Schwarcz, 1989:25). Desconsidera o
lução, pode-se dizer que a Revolução Francesa neo-colonial ismo levado a cabo pelas poten­
não o criou, mas serviu como agente facilitador cias européias (Inglaterra, França, Alemanha
do acesso do público aos museus (Suano, e mesmo Bélgica, Dinamarca e Itália), que
1990). Segundo alguns autores, entendemos o neste momento estão vivendo a expansão na
gabinete de curiosidades como um desejo dos busca de novos territórios.
séculos XVI e XVII de alcançar a totalidade, Quanto à análise exposta em subtítulo “A
a universalidade, ou ainda conforme K. Po- era dos Museus no Brasil”, notamos informa­
mian de reunir fragmentos selecionados do ções relevantes: a postura de subserviência
universo, numa tentativa de inventarium (Po- dos museus brasileiros aos modelos europeus
mian, 1982; Morse, 1988; Impey e MacGregor, e norte-americanos; a postura coletora-classi-
1985).2 ficatória e tipológica — esta última é a carac­
No que diz respeito à diferenciação, no terística mais importante, embora não citada
final do século XIX entre Museus Científicos pela autora — dos viajantes estrangeiros, que
e Museus Artísticos, haveria necessidade de vinham ao Brasil estudar a flora, a fauna, a
mais informações para o esclarecimento do etnologia, etc. (Schwarcz, 1989:26), pois não
assunto (Pradel, 1961; Hamy, 1988 e 1989). havia incentivo do governo para expedições
O século XIX conhece a instauração maciça nacionais: o que se via era diletantismo e im­
das ciências, que podemos chamar de “no­ provisação.
vas”, como a Química, a Antropologia, a Et­ A partir de 1880, há no Brasil um amplo
nologia, a Lingüística, a Sociologia. Mesmo movimento na direção da institucionalização
as ciências mais antigas transformaram-se, so­ da pesquisa científica, congregando centros
fisticaram-se de tal maneira a partir do fim do tradicionais: as Faculdades de Direito (São
século XVIII, que podemos considerá-las Paulo e Olinda), a Faculdade de Medicina da
também novas. Assim é com a Física, a Bio­ Bahia e novas Instituições; os Institutos His­
logia, a Zoologia, a Botânica etc. Todo esse tóricos e os Museus Paraense, Paulista e Na­
movimento insere-se no processo agudo de cional. Afirma que esta efervescência surge
racionalização do pensamento e conseqüente da introdução de novas idéias, a partir de
apreensão racional do real, que está no bojo 1870, no Brasil: o evolucionismo e o natura­
das transformações sócio-econômico-cultu- lismo. Poderíamos incorporar no rol dessas
rais do período pós-iluminista. instituições o Museu Paranaense que, apesar
Referindo-se ao século XIX, o texto res­ da suá trajetória acidentada, não foi lembrado.
salta a dificuldade na obtenção de verbas para Essa Instituição, criada em 1874 por par­
os museus etnográfico-antropológicos de todo ticulares e pela Associação Paranaense de
o mundo e o suposto refluxo de “imperialis­ Aclimação, mostra-se bastante ativa na segun­
mo”: “é o momento mesmo de perda das co­ da metade do século XIX e início do XX.
lônias que favorece a reposição dos objetos e Como evidencia a sua participação na Expo­
a recriação desses museus, que acabam por sição Antropológica Brasileira, realizada no
Museu Nacional do Rio de Janeiro, em 1882,
acompanhada de três estudos: “Pequeno Vo­
(2) Neste texto, Pomian analisa os Gabinetes de Curiosi­ cabulário da Língua Caingangue, dos Caiguás
dades como locais onde se reúnem as grandes categorias e Chavantes” de autoria de Telêmaco Borba,
de seres e de coisas, conhecidas na Renascença e no “Memória sobre os índios Coroados ou Ca­
século XVH, orientado por um pensamento anterior à rnés” por Frei Luiz de Cemetille e uma bro­
revolução .científica que irá ocorrer na Europá nos pri­
chura, “Os índios da Província do Paraná” por
mordios do século XVIII. Sobre a revolução cientifica
européia da época moderna pode-se consultar a análise
Antônio Ricardo Lustosa de Andrade; consta
de Richard Morse em Espelho Próspero — Cultura e também na Exposição de Berlim, onde fun­
Idéias nas Américas. Sobre a organização dos Gabinetes cionava como instrumento para incentivar a
de Curiosidades, seus inventários e categorias de objetos imigração alemã para o Paraná; aparece em
pode-se ver O. Impey e A. MacGregor (Eds.), “The Ori- 1900, oferecendo um catálogo de suas expo­
gin of Museuns — The Cabinets of Curiosities in Sixteen sições, detalhadamente descritas em suas vá­
and Seventeenth Centuries in Europe“. rias seções: arqueologia, etnologia, história,

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numismática, jardim zoológico (sendo que a (...) o sentido prático nesse centro de estudos”
seção de mineralogía viria em catálogo sepa­ (Schwarcz, 1989:40). A autora dá grande ên­
rado) e uma Biblioteca Pública. Vale ainda fase à construção de um monumento arquite­
ressaltar a presença de pesquisadores nacio­ tônico enquanto criação de um centro de es­
nais e estrangeiros no Museu, como por exem­ tudos. No entanto, na documentação que re­
plo Orville Derby, da Comissão Geográfica e gistra as preocupações de se construir este
Geológica de São Paulo e Per Karl Dusen, da marco transparece a necessidade da sociedade
Academia Real Sueca das Ciências. brasileira da segunda metade do século XIX
É interessante notar juntamente com em fixar visualmente e, portanto, material­
Schwarcz que, no momento da instalação dos mente, o momento da fundação da Nação; dis­
primeiros museus “modernos” (sic) no país, o cussões sobre a utilização do edificio-monu­
Brasil já era, há muito, objeto de coleções e mento são desdobramentos da questão.
análises de instituições estrangeiras. Não é de Novos equívocos se repetem quando
estranhar, pois, que a criação dos museus bra­ Schwarcz afirma que, estando o prédio deso­
sileiros se dê concomitantemente à vinda de cupado por “não oferecer condições para o
cientistas estrangeiros ao Brasil; tal é o caso, funcionamento normal de uma escola”, o Mu­
entre outros, de Carlos Frederico Hartt, Emílio seu Paulista “cumpria (...) apenas o papel de
Goeldi e Hermann von Ihering. Interessante monumento histórico (...)”. A seguir, informa
também é constatar uma certa uniformidade que o Museu Paulista “(...) adquiriu as cole­
no percurso científico dos museus brasileiros: ções pertencentes a Joaquim Sertório, locali­
João Batista de Lacerda, Hermann von Ihe- zadas no Museu do Estado (...)”. Esta afirma­
ring, Emílio Goeldi são importantes adminis­ tiva levaria ao risco de confundir o leitor, que
tradores do Museu Nacional, Museu Paulista poderia não perceber que, na realidade, o Mu­
e Museu Paraense, respectivamente: os três seu Paulista é o próprio Museu do Estado.
estão à frente de seus museus no mesmo pe­ Esse último havia surgido a partir da reunião
ríodo (1893-1916). da coleção Sertório e das coleções do Museu
Ao discorrer sobre o Museu Nacional, Provincial — criado pela Sociedade Auxilia­
Schwarcz detém-se na análise da revista do dora para o Progresso da Província de São
mesmo, reiterando suas afirmações anteriores Paulo e entregue ao governo provincial em
de importação de teorias da Europa e dos Es­ 1877. Mais tarde, com a República, o Museu
tados Unidos, atividades voltadas para as ciên­ Provincial passa a ser o Museu do Estado e,
cias naturais. Nota a autora a característica com a Lei nc 200 de 28 de agosto de 1893, o
nacionalista deste museu, ligado ao poder cen­ Museu do Estado passa a ser Museu Paulista,
tral (imperial e depois federal), que apenas assegurando ao acervo o direito de ocupação
aceitava cientistas brasileiros (Schwarcz, do edifício construído para ser um monumen­
1989:32). to à Independência. Em face desses detalhes,
Ao tratar do Museu Paulista, o texto con­ poder-se-ia considerar que a autora teria sido
funde a questão da construção de um monu­ vítima da complexa trama que envolveu a
mento comemorativo no local do Grito do Ipi­ criação do Museu do Estado, sua organização
ranga, com a edificação de um museu em São por von Ihering e a concomitante transferência
Paulo. Diz a autora: “segundo a História Ofi­ do Museu para o prédio abandonado do Mo­
cial (sic), a criação de um museu esteve a numento do Ipiranga, este também de tumul­
princípio ligada à idéia de se erguer um mo­ tuada história.
numento escultural e grandioso em homena­ Outro equívoco seria considerar o núcleo
gem à Independência Nacional” (Schwarcz, formador do Museu constituído por porcela­
1989:39). Não há no texto referências às pro­ nas, cristais e móveis (Schwarcz, 1989:56) .
postas de monumentos comemorativos à In­ Estas coleções, longe de se limitarem a esses
dependência desde 1824, que se concretiza­ elementos (que somente com a vinda do his­
ram na construção de um palácio na década toriador Affonso de E. Taunay serão acrescen­
de oitenta do século XIX. Mais adiante, es­ tados ao acervo do Museu), são descritas por
creve que “houve dificuldades em implemen­ Koseritz quando de sua visita ao Museu Ser­
tar o projeto de Tommaso Gaudencio Bezzi tório (Koseritz, 1972:251-253).
em razão do fato de a elite local não perceber Quanto ao funcionamento do Museu Pau­

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lista, o texto traz à tona questões bastante in­ nidade, com o progresso, tentará rodear-se das
teressantes para sua história, quando trata do várias expressões do “moderno”: desde a
personalismo de von Ihering, de sua animosi­ construção de ferrovias até a produção de
dade com o Museu Nacional, da presença ma­ ciência (Ortiz, 1986; Hardman, 1991). É o
ciça de cientistas estrangeiros nas páginas da caso das oligarquias do café (São Paulo) e da
Revista do Museu Paulista e do que significou borracha (Pará). Os projetos são idênticos e
para os cientistas brasileiros a figura de Af- não diversos.
fonso de Escragnolle Taunay. No que toca à decadência dos Museus de
Ao afirmar que o museu de von Ihering Ciências Naturais no Brasil, foram relaciona­
“preenchia todos os requisitos formais ante­ das três circunstâncias. Uma delas está ligada
riores que seus mestres lhe impunham, sem a à derrocada da escola evolucionista, o que in­
mínima condição de viabilizá-los” (Schwarcz, correria no risco de se retirar o sentido do
1989:59), certamente não teria levado em con­ estudo sobre o processo histórico de transfor­
ta as expedições realizadas no período de von mação da natureza: se ela evolui, não pode ser
Ihering, a Estação Biológica do Alto da Serra, determinada;4 outra, mais consistente, diz res­
o Horto Botânico plantado em área localizada peito ao desenvolvimento das ciências aplica­
na parte posterior do Monumento. Referindo- das, o que privilegia as Instituições a elas vol­
se ao Monumento do Ipiranga, o texto indica tadas. Seria o caso do Instituto Agronômico
que von Ihering não teria conseguido viabili­ de Campinas, Instituto Manguinhos, no Rio
zar os seus projetos, contrariando o que a do­ de Janeiro, citados por Schwarcz, mas tam­
cumentação do período (Revista do Museu bém do Instituto Butantã, do Instituto Bioló­
Paulista, relatórios, etc.) parece demonstrar. gico de Defesa Animal, em São Paulo, e da
Ao final, deparamos com uma nova ques­ Escola Agrícola Luiz de Queiroz, em Piraci­
tão contraditória. Afirma a autora que “em caba. Uma terceira, refere-se à ascensão das
seus momentos de nascimento, os estabeleci­ Universidades, notadamente a de São Paulo,
mentos locais só contariam com um aspecto como fóruns de construção do saber unlver­
unificador: o próprio nome ’museu’, que en­ salizante, fazendo dos Museus de Ciência Na­
cobria projetos absolutamente diversos” tural Pura seu apêndice, como é o caso do
(Schwarcz, 1989:56). Quando confirma esta Museu Paulista (Schwarcz, 1989:56).
afirmativa, diz que o Museu Nacional é fruto Analisar os museus significa também
de um projeto descolonizador de D. João VI compreender o acervo, as exposições e sua
e que o Museu Paulista e o Museu Paraense produção científica a partir dessas coleções.
têm gênese idêntica...3 Uma observação desta natureza nos leva a per­
Há, na verdade, o projeto da camada do­ ceber que, enquanto o Museu Nacional tinha
minante que os convoca. O texto peca por não uma postura racista, extremamente etnocêntri-
definir claramente o que entende por “proje­ ca, voltada à antropologia física de inspiração
to”. Depois desta distinção imprescindível, francesa, tão bem representada nas obras de
nota-se que os projetos dos três museus bra­ um Paul Brocard, Quatrefages etc., o Museu
sileiros são muito parecidos: nascem da ne­ Paulista não estava preocupado com dados
cessidade de uma parcela da classe dominante craniométricos, mas com uma abordagem vol­
afirmar-se enquanto tal, ostentando sua rique­ tada essencialmente à confecção de registros
za e saber. Uma elite ilustrada, onde ter arti­ etnográficos, com destaque a itens da cultura
culações com centros de estudo, patrociná-los material, procurando dar conta da universali­
em suas gestões políticas, acrescentar-lhe-ia dade e diversidade das técnicas, das institui-
signos de status. Neste contexto, autores como
Renato Ortiz e Francisco Foot Hardman ana­
lisam a postura dessa elite brasileira dos fins (4) Assim, o Museu Paulista figurou desde a criação da
do século XIX que, preocupada com a moder­ USP (25/1/1934) na relação das Instituições que deveriam
concorrer para ampliar o ensino e ação na Universidade
(artigo 4fi): ”... i — Museu de Arqueologia, História e
Etnografía que é o Museu Paulista”, considerado institui­
(3) Quanto à questão do Museu Nacional, sugerimos mais ção complementar da USP, com representação no Conse­
uma vez a leitura do texto de Waldisa Rússio, “Existe um lho Universitário. Ernesto de Souza Campos, História da
passado museológico brasileiro?”. Universidade de São Pqulo, p. 114.

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ções e dos comportamentos das sociedades di­ tropológica Brasileira de 1882. Estas exposi­
tas primitivas. Ora com um viés evolucionista, ções de fins do século XDÍ e inícios do século
ora com um viés difusionista. XX são a melhor expressão do caráter enci­
Neste contexto, pode-se entender a abor­ clopédico dos museus: arcos, flechas, arte plu-
dagem sobre o racismo na produção científica mária, minerais, quadros históricos etc., que
do Brasil, durante este período. As críticas de se reúnem em um mesmo espaço, com o ob­
Schwarcz, por exemplo, à importância do Mu­ jetivo de transmitir conhecimentos e constituir
seu Nacional para os estudos de craniometria, veículo pedagógico. As várias fotografias des­
deixaram de levar em conta a relevância que tas exposições consistem em riquíssimo ma­
este assunto tinha também na Europa de então, terial de análise.
em especial na França. Um fato importante, ao qual a autora se
No mesmo texto, sempre na tônica de refere en passant, talvez em função de constar
quem se propõe a analisar os museus etnográ­ na Revista do Museu Paulista apenas enquan­
ficos — apesar de o título ser outro — faz to relatórios das diversas seções do Museu,
uma estatística das suas publicações. Quando compreende o contato intensivo e mesmo a
escreve “museus etnográficos”, referindo-se a prestação de serviços a esta Instituição, por
Museu Nacional, Museu Paraense de História arqueólogos e etnólogos estrangeiros ou re-
(futuro Museu Paraense Emílio Goeldi) e Mu­ cém-radicados no Brasil. No tocante à etno­
seu Paulista — os “museus etnográficos lo­ logia, ainda da época de von Ihering, destaca-
cais” —, retrata apenas parcialmente a reali­ se a presença — breve, é verdade — de Curt
dade das instituições, naquele momento. Nem Nimuendajú, contratado para estudar os Gua­
o Museu Nacional nem o Museu Emílio Goel­ ranis em São Paulo. O interesse pelo colecio-
di ou o Museu Paulista foram somente museus nismo e pelo inventário ergológico das socie­
etnográficos. Tal como ocorria em todos os dades tribais brasileiras fica bastante eviden­
grandes museus da época, seus acervos eram ciado, por exemplo, na aquisição da preciosa
muito diversificados, englobando além das coleção Karajá e Javaé carreada ao Museu
coleções etnográficas, coleções zoológicas, Paulista por Franz Adam, camarada de viagem
coleções de botânica, coleções mineralógicas de Fritz Krause em sua conhecida expedição
e coleções de História e Numismática. Apesar ao Araguaia. Este mesmo interesse também se
disso, devido às razões da própria política do reflete na promoção de expedições que muitas
país, em certos momentos de sua história, es­ vezes transcendem o desejo manifesto de ad­
ses museus receberam grandes coleções etno­ quirir “espécimes naturais”. É o caso da via­
gráficas, como por exemplo o Museu Nacio­ gem de Emest e Walter Garbe aos Botocudos
nal, que recebeu o material coletado pela Co­ do Rio Doce, na primeira década deste século,
missão Rondon, em parte também destinada cujo relatório acompanhado de farta docu­
à Comissão Geográfica e Geológica de São mentação fotográfica é transformado em tra­
Paulo.5 balho originalíssimo por von Ihering e publi­
Da mesma maneira, a forma como a au­ cado na mencionada Revista, momentos após
tora descreve os museus carece de informa­ a completa descaracterização desta etnia.
ções sobre a apresentação das sociedades in­ Walter Garbe encontrou um pequeno grupo
dígenas brasileiras nas exposições. Na reali­ de Botocudos que ainda conservava os costu­
dade, a autora não utiliza as exposições como mes antigos, descritos por Paul Ehrenreich,
fonte para sua pesquisa, embora estas sejam que esteve com eles em 1884. A sua coleta
documentos essenciais para a compreensão entre os Botocudos parece ser bastante siste­
dos museus. Percebe-se a importância que es­ mática e traz ao Museu Paulista um elenco de
tes eventos vão ter desde a confecção de ca­ objetos que alcança um amplo espectro desse
tálogos para os visitantes — lembramos o do repertório ergológico. A escolha não depen­
Museu Paranaense de 1900 —, até as grandes deu da curiosidade da indumentária ou dos
exposições, como é o caso da Exposição An­ instrumentos musicais, mas do significado
desses objetos no contexto da cultura material.
Outro lado interessante, provavelmente não
(5) Ver os relatórios da Comissão Geográfica e Geológica consultado para a elaboração do texto em
de São Paulo do final do século XIX até 1910. questão, é o noticiário da vinda de Edgard

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Roquette Pinto ao Museu, em 1918 (já na ges­ teção aos índios pôs fim.6 Vale ainda lembrar
tão do historiador Affonso de E. Taunay), para que houve uma sindicância interna na Institui­
organizar e proceder a um catálogo sistemáti­ ção pela Secretaria do Interior, quando von
co das coleções etnográficas ali alocadas, ma­ Ihering recebeu críticas contundentes à sua ad­
terial este originalmente pertencente ao Mu­ ministração, culminando com a sua saída.
seu Nacional, reunido pela Comissão de Li­ As divergências apontadas resultam, tal­
nhas Telegráficas (Comissão Rondon). vez, da opção feita por Schwarcz sobre as fon­
Ao tratar da saída de von Ihering da dire­ tes de consulta, e o encaminhamento da aná­
ção do Museu Paulista em 1916, Schwarcz lise. As publicações produzidas pelas Institui­
afirma que esta teria origem na polêmica criada ções dão, certamente, uma idéia da situação,
em tomo de suas declarações sobre o extermí­ de seus objetivos e de sua metodologia de tra­
nio dos índios (1908). Não há dúvida de que, balho. Mas, outras fontes teriam que ser ana­
provavelmente, a saída de von Ihering estives­ lisadas para uma compreensão mais completa
se ligada ao crescente nacionalismo desenvol­ dos museus, enquanto instituições produtoras
vido no contexto da Primeira Grande Guerra, de ciência e instrumentos de ação cultural e
que tomava insustentável a situação de um educacional. Consideramos, em primeiro lu­
cientista alemão à frente de uma Instituição gar, a necessidade do exame do próprio acer­
programada para ser o símbolo da nacionali­ vo, seus programas científicos, suas expedi­
dade. Um segundo motivo seria a orientação ções científicas, suas exposições e sua atuação
de von Ihering ao Museu Paulista, não corres­ pedagógica, a correspondência de seu corpo
pondendo aos anseios da elite governante, que administrativo e ainda uma visão da comuni­
pretendia nele ver perpetuada a memória da dade acadêmica a seu respeito.
Independência: o projeto mais desenvolvido Naturalmente, seriam muitas exigências
trazia a zoologia como prioridade, preterindo a cumprir para que suas respostas pudessem
o crescimento das coleções de história. Isto sim ficar dimensionadas nos limites de um artigo.
teria mais peso no afastamento de von Ihering, No entanto, o texto em questão, certamente,
do que suas declarações sobre o extermínio de contribuiu de forma substancial, ao cuidar da
índios, que ocorrera oito anos antes do seu Instituição Museu como um produto histórico
afastamento efetivo (longo período!), extermí­ de uma vontade de fazer ciência e abrir o diá­
nio, aliás, que a fundação do Serviço de Pro­ logo a respeito do tema.

Referências bibliográficas

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not, 1989.
— Aspectos da Política Cultural Brasileira, edição
do Conselho Federal de Cultura. Rio de Janeiro,
(6) Um excelente acompanhamento sobre essas questões 1976 (conforme citação de Waldisa Rússio em ar­
estão na obra de José Mauro Gagliardi, O Indígena e a tigo publicado pelo Suplemento Literário de O Es­
República. tado de São Paulo em 22/07/1979).

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