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D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Dominique Poulot
a c i o n a l
a compreensão do patrimônio contemporâneo
n
e seUs limites
r t í s t i c o
a
e
i s t ó r i c o
H
a t r i M ô n i o
A compreensão do Patrimônio deve criados durante os anos 19902. A presença de
refletir sobre uma questão recentemente objetos desse tipo nos museus pode assumir
levantada pelo antropólogo Igor Kopytoff: uma legitimidade científica, tanto quanto
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d o
“é possível falar em valor de uso para coisas apela-se para o que podemos chamar de
e v i s t a
“melancolia cultural”. Eles ressaltam uma
que ficaram obsoletas?”1. Um caso extremo
antropologia de restos ou resíduos. Sabemos
é o dos objetos identificados precisamente
r
que, desde os anos 1930, Marcel Mauss
com a vanguarda da história, como
estimulava os etnólogos considerá-la mais
instrumentos ou como fatores de progresso.
uma “lata de conserva” do que uma joia,
Este é o caso das ferramentas da pesquisa afirmando que “ao pesquisarmos um monte
científica ou, mais ainda, das obras de arte de lixo, podemos entender toda a vida de
contemporânea. uma sociedade”3.
Com o passar do tempo, e com sua De fato, a lata de conserva em uma 107
difícil, para dizer o mínimo, no caso de estudos sobre conservação (tais como
a c i o n a l
um bem patrimonial marcado pelo éthos aqueles evocados por Françoise Waquet ou
do progresso, pelo culto à instrumentação Peter Burke em suas respectivas histórias7)
n
por essa melancolia democrática tão pura cause o esquecimento dos objetos, e
e
de arte contemporâneas.
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científicos e técnicos
incontestável profundidade histórica.
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a c i o n a l
o Museu Central da República no Louvre. torno de 1840) aos Museus Tecnológicos
Como um estabelecimento consagrado às do Fim do Século – de modo a recuperar as
“artes mecânicas”, o Conservatório de Artes e categorias propostas pouco tempo depois
n
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Ofícios nasceu em 1794 como um depósito por Françoise Hamon. O surgimento da III
de aparelhos científicos, modelos de máquinas República incluiu, graças ao Tour de France
a
e invenções, graças ao abade Grégoire. Em (Circuito da França) de Madame Bruno, a
e
seguida, após 1819, ele exerceu um papel de importância do martelo-pilão de Creusot
i s t ó R i c o
ensino formal, particularmente de química para a indústria francesa e, mais amplamente,
industrial, mecânica e economia política, para o orgulho nacional. Essa tradição de
H
como demonstrou Jacques Payen. diferentes Tours nacionais se manifestou em
a t R i m ô n i o
Grégoire, tão importante para o toda a Europa. Até os anos 1950, muitos
D o m i n i q u e Po u l o t
posicionamento sobre a política patrimonial livros escolares elogiavam uma ou outra
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francesa, estigmatiza os mais diversos tipos de proeza, tecnológica ou humana (tal como
d o
destruição em seus diferentes Rapports sur le é o caso, notadamente, das descobertas
e v i s t a
vandalisme (Relatórios de Vandalismo). Pois científicas). Pasteur, cuja residência foi
R
o vandalismo que ele queria eliminar não se transformada em museu, precedeu Marie
resume apenas ao ataque ou ao desprezo de Curie no perfil legendário nacional.
obras de arte, mas também compreende as As “virtudes e os vícios” do patrimônio
perseguições praticadas contra os homens científico e técnico vão desta primeira
da ciência e os obstáculos colocados contra era até os Gloriosos Anos 1930 – talvez
o progresso do saber e das práticas. Nesse o episódio do Concorde seja o último a
sentido, reúne-se o patrimônio imaterial da ter mobilizado tal rede de representações
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ciência aos patrimônios materiais das “artes”, coletivas, de patriotismo científico e
como já dissemos antes, liberais e mecânicas. empresarial para hábitos populares. As obras-
Por fim, as espoliações cometidas em primas tecnológicas povoam ainda mais a
detrimento dos diferentes príncipes europeus, iconografia de marca – por exemplo, La
em favor dos sucessos militares republicanos, Rance ou Pleumer-Bodou. Qualquer que
ocorreram igualmente com as ciências e as seja a razão, temos visto se instalar então
tecnologias. Mais tarde, a reorganização certa negligência, mais ou menos assumida,
das exposições e dos museus executada com relação aos testemunhos materiais da
pelo ministro Chaptal ou, adicionalmente, ciência e da tecnologia. O relatório oficial
a configuração das coleções das Escolas de Françoise Héritier, produzido em 1991,
Centrais se inspiraram sempre nos modelos sobre a penúria dos museus de educação
enciclopédicos. nacionais marca uma tomada de consciência
O século XIX viu o estabelecimento quanto aos investimentos a serem dados
de ligações estreitas e frequentemente e aos ajustes a serem feitos. A elaboração
determinantes entre as exposições temporárias da grande Galeria da Evolução no Museu
Nacional de História Natural ou, após muitos documentação dos dispositivos e objetos
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Museu Patrimonial, em vez de uma nova dos assistentes de laboratório faz parte de uma
configuração para a seção Exploratória “era do testemunho”. Essa patrimonialização
de um Palácio da Descoberta ou de uma relaciona-se de fato com o que Philippe
n
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Cidade das Ciências, indicam as etapas da Lejeune chama de “pacto autobiográfico”, que
patrimonialização contemporânea. proporciona um estímulo a uma estrutura –
a
caso dos ecomuseus. Elas têm se baseado modo a permitir a comunidade relacionar-se
d o
a c i o n a l
do caráter mais elaborado de algumas de no Museu Nobel de Estocolmo como
suas novas ferramentas, que apresentam uma fetichização de objetos ligados a um ou outro
construção teórica que já está integrada à pesquisador. O museu de ciências tradicional
n
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medida. Contudo, à exceção dos artistas, o conserva, de fato, materiais de seus grandes
uso de uma instrumentação antiga é uma vultos – com efeito, esses instrumentos
a
excentricidade – da mesma forma que o uso puderam se parecer rapidamente com
e
nostálgico de ferramentas ultrapassadas por relíquias, bem antes de sua musealização,
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um profissional é uma vaidade sem grande assim como foi o caso de Galileu, em
importância coletiva se não estiver dentro do Florença. Além disso, o objeto de Galileu
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cenário de uma dramatização. tem tido uma carreira notável, sob a forma
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O novo patrimônio da ciência obsoleta autêntica e como réplicas, até como seus usos
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Durante a primeira modernidade nas representações de Galilée de Brecht, no
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científica, os dispositivos antigos de várias Piccolo Teatro de Milão, no passado. Nos dois
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gerações podiam ser utilizados para usos casos (museu e teatro), os dispositivos valem
e v i s t a
pedagógicos ou mercantis: entre esses estão as evidentemente como símbolos do avanço do
máquinas de vácuo, os dispositivos elétricos espírito humano. A proposta museográfica
R
ou o planetário físico ou de demonstração do historiador Raoul Hilberg, que queria
cujas telas de Joseph Wright of Derby nos colocar uma lata de zyklon B sobre um
legaram um testemunho. Porém, atualmente, pedestal, como obra-prima representativa do
os dispositivos de ontem são muito nazismo, no Museu do Holocausto, responde
sofisticados para serem usados dessa forma precisamente a esse tipo de destaque nas
em um processo de mediação científica e exposições11. Porém a polêmica de 1995 sobre
tecnológica, que exige dispositivos operados 111
o local do bombardeiro de Hiroshima, o
ad hoc10. Enola Gay, exposto no Museu da História do
Certamente, não é difícil pensar que, Ar e do Espaço do Smithsonian, demonstrou
no meio de tantos dispositivos com funções as ambiguidades da mediação de um
obscuras e aparências insignificantes para o objeto tratado, ora em nome do progresso
profano, podem-se encontrar alguns dignos científico e técnico, ora em nome de seus usos
de uma museografia. Instrumentos ligados históricos12.
à vida de um cientista notável podem ser O cuidado de uma interatividade é
reunidos, enquanto relíquias, em um museu atualmente constante nos museus de ciência
dedicado às glórias contemporâneas ou e está ligado à necessidade de preencher
um abismo entre a cultura cotidiana e
10. Duas apresentações recentes foram objeto dessa considera-
ção: Bernard Schiele, “Science museums and centres”. Routledge
Handbook of Public Communication of Science and Technolo- 11. Raoul Hilberg, La Politique de la mémoire, Paris, Gallimard,
gy (2014):40, e Serge Chaumier, “Le musée de science: agent de 1996.
socialisation aux sciences ou acteur de changement? Du musée 12. Vera L. Zolberg, “Museums as contested sites of remembrance:
temple aux sciences citoyennes”. THEMA. La revue des Musées de the Enola Gay affair.” The Sociological Review 43, nº 1 (1995):
la civilisation 2 (2015):10-22. 69-82.
o mundo dos cientistas. Supomos que a nossa segurança fisiológica”14, ao contrário
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
de todos de modo criativo. Por outro lado, de grande valor, aparelhos e dioramas que
ela constitui uma aposta teórica, na reflexão ilustram e identificam a história das grandes
contemporânea, sobre as relações entre
n
descobertas”15.
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humanos e não humanos. Por fim, ela realça- Portanto, a experiência da espetacularização
se sobre o corpo do visitante no momento é uma tentação. Pode-se aplicar a noção da
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em que o corpo do cientista tem se afastado sala histórica (ou period room) a conjuntos que
e
fascinação prejudicial com um reflexo sobre biológico. Por fim, em certos casos, os museus
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a apresentação em uma perspectiva eventual, Após uma crise de confiança com
como uma maravilha: uma tentativa que relação a isso, que assumiu diversas formas,
n
realça o desvio e consiste em uma variante de acordo com países e instituições, esses
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um pouco heterodoxa, mas que hoje está estabelecimentos entenderam mais uma
relativamente banalizada com a multiplicação vez, no fim do século XX, que suas coleções
a
de muitas coleções de curiosidades . Por 16
tinham alimentado continuamente a “criação”
e
isso os museus de tecnologia e ciência, tal
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e que continuavam a fazê-lo. Exposições
como os de ciências naturais, montam cada como Museum as Muse foram igualmente
vez mais exposições dedicadas à estética ou afirmações da responsabilidade do museu
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à apropriação indevida das peças. O prazer pela arte atual18. Simultaneamente, dentro
da mudança de cenário ou da desorientação, da história da arte, a “maneira de ver”19
D o m i n i q u e Po u l o t
e até de uma fascinação verdadeira, parece, particular do museu tem sido objeto de um
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então, preponderar sobre o (re)conhecimento reconhecimento amplamente reafirmado,
d o
dos contextos e dos significados primários realizada enquanto fundadora da disciplina.
e v i s t a
dos objetos. O Museu de Artes e Ofícios tem, Tais proposições podem ser consideradas
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assim, se sobreposto à arte contemporânea, como uma das respostas às descobertas feitas
mobilizando objetos de cientistas ou pelos próprios artistas, a partir da década
tecnológicos, ora a capricho da inspiração de 1970, acerca dos poderes do museu20.
de um artista convidado17, ora para evocar Em seu artigo fundamental “Função do
(como a suíte de Lautréamont, de 1869) a Museu”, Daniel Buren reconheceu um papel
“beleza como (…) o encontro fortuito de triplo para a instituição: estético, econômico
uma máquina de costura e um guarda-chuva e místico (“o museu/galeria confere 113
sobre uma mesa de dissecção”. imediatamente o status de “arte” a tudo que
se expõe com credibilidade (...) O museu
os poderes do mUseU (galeria) é o corpo místico da arte”)21. No
de arte caso de outros autores, a história do museu
é a de um controle social: trata-se de uma
Se os objetos científicos colocam a aparência de prisão, sugerida por Krzysztof
questão dos interesses e das mediações Wodiczko, quando este faz considerações
ao patrimônio de uma maneira nova e,
muitas vezes, inesperada, os museus de arte 18. The museum as muse, artists reflect, MoMA, 1999.
19. Svetlana Alpers, ‘Ways of Seeing’, in Ivan Karp and Steven
contemporânea têm de fazê-lo frente a uma D. Levine, Exhibiting Cultures: The Poetics and Politics of Museum
Display, Washington, Smithsonian Institute Press, 1991, pp.
25-32.
16. Stephen Greenblatt, “Resonance and wonder.” Bulletin of the 20. Museums by Artists, ed. AA Bronson and Peggy Gale, Art
American Academy of Arts and Sciences (1990): 11-34. Metropole, Toronto, 1983.
17. Mécanhumanimal – Enki Bilal No Museu de artes e ofícios – ex- 21 “Fonction du Musée”, (New York, oct. 1970), in cat. Function
posição de 4 de junho de 2013 em 5 de janeiro de 2014; Michael of the Museum, Oxford: Museum of Modern Art, mars 1973,
D. Picone, “Comic Art in Museums and Museums in Comic Art. reimpresso em Daniel Buren, Les Écrits, (1965-1990), tome I:
“European Comic Art 6, nº 2 (2013): 40-68. 1965-1976, pp. 169-173.
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D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Nelson Kon.
Acervo: Iphan/
Museu de Arte Sacra-BA
sobre os museus, observando a grande de Bordéus27, ou, no caso de Kwame Anthony
a c i o n a l
monumentos de agressão ou repressão22. Rockefeller sobre arte africana28.
Para Douglas Crimp23, a crítica da
colocação do helicóptero Bell D47 no os U s o s d a c o n s e r va ç ã o
n
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MoMA, um objeto de design, mas também
uma ferramenta de guerra usada contra O trabalho de naturalização da
experiência do museu nos últimos séculos
a
guerrilhas na América Latina, iniciou, a partir
e
de então, um registro bem conhecido de tem levado a um triunfo da visualidade e
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protestos, um princípio de várias intervenções das tendências que lhe são associadas – é
artísticas. Estes podem se apoiar na natureza isso que Jonathan Crary tem chamado de
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das peças expostas ou, ainda, se apoderar diferentes imperativos de controle de si
a t R i m ô n i o
do dispositivo do museu como tal. A próprio e da retenção social, da atenção,
do silêncio e da imobilidade, que quase
D o m i n i q u e Po u l o t
denúncia acerca da ligação dos museus com
não eram despertados nos primeiros
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os poderes políticos, industriais, financeiros,
d o
e até militares-industriais, tomou depois estabelecimentos e são manifestados pelo
e v i s t a
a aparência de lugar-comum24. A crítica ideal da conversação29. Encontramos uma
institucional25 quis, de fato, pensar o museu ilustração notável no caso de Marcel Proust,
R
dentro do que os sociólogos da arte (junto em que a celebração do museu passa por uma
com Howard Becker) chamam de “mundos negação de sua materialidade: uma “sala de
da arte”, e que compreendem, junto com o museu […] simboliza (...) por sua nudez e seu
mercado, o colecionismo e o espaço público despojamento de todas as particularidades, os
da crítica26. Nesse cenário, o catálogo de espaços internos onde o artista se abstrai para
exposição se torna o objeto por excelência criar”. Como observa Antoine Compagnon, o
dos estudos críticos por parte dos semiólogos, propósito, que parece se referir ao triunfo do 115
historiadores da arte ou filósofos, e, ainda, no cubo branco descrito por Brian O’Doherty
caso de Louis Marin, a partir de um exemplo em meados dos anos 1970, quase não tem
relação com “as paredes dos museus com que
Proust estava familiarizado” ou com “as telas
que eram apresentadas nos salões artificiais”30.
22. Assim como no Museu Whitney, em 1989 “Image World: Art
and Media Culture”.
23. Douglas Crimp, On the Museum’s Ruins, Cambridge, MA:
MIT Press, 1997.
24. O movimento dos indignados de Wall Street, de 20 de
outubro de 2011, criou, junto com o artista Noah Fischer, um 27. “La célébration des œuvres d’art: notes de travail sur un cata-
moveimento Occupy Museums! para combater “a intensa comer- logue d’exposition”, Actes de la Recherche en sciences sociales, 1975,
cialização e cooptação da arte”. n° 5-6: La critique du discours lettré, pp. 50-65.
25. Benjamin Buchloh, “From the Aesthetic of Administration 28. Kwame Anthony Appiah, “Is the Post- in Postmodernism the
to Institutional Critique (Some Aspects of Conceptual Art 1962- Post - in Postcolonial?”, Critical Inquiry, 17:2 (1991:Winter) p.
1969”, L’art conceptuel: une perspective, edited by C. Gintz. Paris: 336.
Musée d’art moderne de la Ville de Paris. 1989, pp. 41-54. Andrea 29. Jonathan Crary, “Géricault, the panorama, and sites of reality
Fraser, ““From the Critique of Institutions to an Institution of in the early nineteenth Century”. Grey Room Fall 2002, Nº 9,
Critique,” in John C. Welchman, ed., Institutional Critique and pp. 5-25.
After, Zurich: JPR/Ringier, 2006, pp. 123-136. 30. Antoine Compagnon “Proust au musée”, Marcel Proust,
26. Howard S. Becker, Les mondes de l’art. Paris, Flammarion, l’écriture et les arts, sous la direction de Jean-Yves Tadié, Galli-
1988. mard-BnF, RMN, 1999, p. 71.
Pelo contrário, a materialidade da de Copenhague35. Além disso, a revisão
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
instituição se tornou evidente depois de documental mais notória trazia uma confusão
a c i o n a l
algumas décadas: La Jeunesse des musées (A provinda dos sistemas de informação ligados
Juventude dos Museus), em Orsay, expôs a novas tecnologias e pelo uso dos museus
pouco tempo depois esses museus como que como fontes para interrogar, in situ ou não.
n
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tornados por estrangeiros, povoados por A coleta de dados diz respeito não apenas às
bancos repletos de pelos e vitrines obscuras, obras expostas ou conservadas, mas também
a
referência obrigatória da museografia31. impõe mais que uma simples atualização dos
Uma preocupação semelhante quanto aos conhecimentos elaborados ou difundidos
H
dispositivos materiais dos museus antigos pelos museus: ela usa sua legitimidade
a t R i m ô n i o
está ligada a debates arquitetônicos atuais e científica e até política. A nova ambição
D o m i n i q u e Po u l o t
contemporânea33. Além disso, para certos global a partir das coleções reexaminadas,
profissionais, o museu deverá, nos próximos virtualmente completas ou reconfiguradas.
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a c i o n a l
artes – e dos patrimônios – autóctones, escândalos do passado41, a propósito, assim
ligadas ao reconhecimento de especificidades como os falsos Vermeer e o verdadeiro Van
culturais e processos políticos. Porém, na Meegeren42. Quando o museu começa a
n
R t í s t i c o
verdade, as ligações entre os museus e os manifestar sua responsabilidade artística,
poderes nesse novo cenário “global” ressaltam escolhe a partir de agora a forma de se dirigir
a
“uma etnografia da produção e do movimento diretamente ao público.
e
dos objetos”, dentro de um “comércio” O museu Boijmans, de Roterdã,
i s t ó R i c o
cultural inédito nessa escala e dentro desta consagrou uma sala às telas “rejeitadas” da
“forma”38. Nesse sentido, as configurações coleção permanente, que explica as razões
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locais de apresentação de obras (se fossem que fizeram com que fossem descartadas.
a t R i m ô n i o
mundializadas) permanecem determinantes. Aprendemos que uma coleção permanente
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O museu de arte, que quase não tem deve excluir telas por razões de espaço ou de
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proposto ou conhecido outras classificações qualidade tanto material quanto artística ou,
d o
além do sistema de escolas elaborado entre ainda, devido a conveniências para com a
e v i s t a
o final do século XVIII e o início do século sua amarração e suspensão. Porém, além das
XIX, tem visto surgir outros modelos opiniões de um especialista, há o gosto do
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na segunda metade do século XX39, cuja conservador, que assume sozinho sua escolha
proposta temática de Nicolas Serota para a de exposição. Um dos aspectos problemáticos
Tate Modern constitui uma ilustração. Tal nessa ocorrência é que ele se parece com um
reinvenção do modo do século passado, ou colecionador particular, por meio de uma
do que se chama de “coleção de curiosidades”, série de negativas e identificações paradoxais.
também tem servido como classificações Em uma sala do museu, a 27, lemos, de
alternativas40. Ao ligarem-se às tradições fato, com relação a uma seleção de obras 117
são evidentemente ideológicas: não será difícil importante que você deve ter em mente
comparar a semelhança do heroísmo ideal do quando passa pela porta consiste em seguir
n
reprodutibilidade técnica das obras, que tem mesmo nível com relação a práticas culturais.
transformado a visita ao museu, que pode se Não evocaremos aqui os “direitos de leitor”
H
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desenvolver a partir de então no interior das listados ao mesmo tempo pelo romancista
salas dispostas em rede, cheias de informações Daniel Pennac, que deseja permitir uma
D o m i n i q u e Po u l o t
que alimentam canais heteróclitos. Como leitura prazerosa, e também tão casual quanto
P
118
o grande desgosto dos que defendem o
Os museus têm colocado os interesses fechamento dos espaços de contemplação
do público em primeiro plano nas últimas e criticam a abertura das portas de vidro
décadas. Contrariamente aos modos de acesso para o percurso de escultura do Louvre. Em
regulados ao conhecimento especializado, todos esses casos, a promoção de um museu
sempre exigentes, ou mesmo intimidatórios, concebido como lugar de deambulação
a possibilidade de uma visita ao museu, urbana queria acabar com a limitação
livre de todo constrangimento devido à falta tradicional à arte e ao conhecimento. As
de aprendizado, tem parecido ser o novo intenções nos estabelecimentos buscaram
ideal. Entre outros elementos, o sucesso o convite aos seus visitantes por meio de
de livrarias de David Finn, lançado em práticas de apropriação e caça ilegal. No
1985, com o título How to visit a museum, lugar da autoridade exclusiva do conservador
43. Neil Harris, ‘Polling for Opinions’, Museums News, 69, 44. David Finn, How to visit a museum, New York, 1985, pp. 10-
5, 1990, pp. 48-53. Ver também Julia D. Harrison, “Ideas of 11, citado por Donald Preziosi,
Museums in the 1990s”, Museum Management and Curatorship “Palpable and Mute as a Globed Fruit: Art and/as Embodiment”,
(1993), 13, pp. 160-176. Tate Papers, 15, 1, abril de 2011.
sobre as coleções, surgiu, mais ou menos passa por uma apropriação singular do
a c i o n a l
experiências do visitante – evidente quando Assim o Le Monde pôde saudar, em 1989,
“objetos de família” se tornam objetos a apresentação de uma relíquia no museu
de museu no Museu de Etnologia, como
n
de Caen – era o sapato perdido por Maria
r t í s t i c o
escreveu recentemente Chantal Georgel, Antonieta quando subiu no cadafalso,
porém, a partir de agora, ampliado para tendo sido comprado pelo conde de
a
muitas coleções . Assim, o museu se torna
45
Guernon-Ranville, ministro de Charles
e
algumas vezes um teatro de lembranças e
i s t ó r i c o
X. Presenciamos a apresentação de um
saberes dos visitantes. objeto em três locais de descanso, segundo
Em certos casos, principalmente, trata-se os diferentes momentos do processo, sob
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a t r i M ô n i o
de um museu em que se simula a discussão a forma de um culto fetichista, ao qual
pública da memória e da história, de suas os visitantes foram levados, de fato, a
D o m i n i q u e Po u l o t
apostas e seus méritos respectivos nos debates transformar em zombaria.
P
cívicos e políticos. Nos museus do holocausto,
d o
Mais geralmente, uma geração de
do terror ou de genocídios, o passado é
e v i s t a
artistas (de Warhol a Fred Wilson)
conjugado ao presente dentro do ritmo de
tem começado a explorar as
r
exposições comemorativas. Sarah Gensburger
reservas dos museus ao atualizar
e Marie-Claire Lavabre são interrogadas, junto
certas peças e testemunhar
a outras pessoas, sobre “o fato de se imputar
passados difíceis ou
uma eficácia à memória, à evocação do passado
contestáveis. Esse é
ou, mais ainda, a uma narrativa histórica”,
especialmente o caso
entre a instrumentação e a instrumentalização.
de Hans Haacke,
O desafio consiste em “compreender essa
quando, depois de 119
crença na capacidade da memória em atuar
atacar a biografia
nas representações coletivas e nas ligações
cultural de objetos,
constituídas em um contexto paradoxal, não
descobriu a sucessão
obstante ainda permeado por uma razão
ritualizada; a afirmação de uma crise das de proprietários
m U ta ç ã o d o pat r i m ô n i o
obras, antigas e modernas, é particularmente i m at e r i a l
a c i o n a l
acerca não só das transferências e espoliações, França, em 2006, marcou uma mudança na
mas também das devoluções e, enfim, relação nacional com objetos do patrimônio.
a
Certas iniciativas dos museus, como os mundo”, cujo movimento arquitetônico leva
do Vaticano, que, depois do verão de 2012, a crer que seu responsável (Jean Nouvel)
H
a pastoral48, parecem escolher, no sentido então que “pela primeira vez, uma inflexão
d o
a c i o n a l
ratificação de “uma decisão que rompe com Contudo, além do projeto presidencial
dois séculos de hierarquização estética dos do Museu do Cais Branly, a construção
bens culturais”. pluridisciplinar do Museu das Confluências
n
R t í s t i c o
De fato, a definição do patrimônio de Lyon54, a construção do Museu de Artes
francês permanece em grande parte e Civilizações Mediterrâneas em Marselha
a
dominada pelos interesses tradicionais. Ela assim como a reorganização do Museu do
e
é mais estrita do que aquela imaginada pelo Homem55 têm marcado a década de 201056.
i s t ó R i c o
Conselho da Europa, a propósito da herança O fenômeno merece ser notado, pois a
cultural europeia, “constituída por criações divulgação da etnografia francesa vulgarizada
H
da natureza e do homem, por riquezas por meio de certas narrativas de sucesso nos
a t R i m ô n i o
materiais, mas também por valores morais e anos 1970-1980, ligadas à nostalgia de um
D o m i n i q u e Po u l o t
religiosos, por convicções e conhecimentos, mundo perdido57, não resultou em uma
P
por temores e esperanças e por visões de renovação das exposições ou museus.
d o
mundo e modos de vida, cuja diversidade é Muito pelo contrário, Jean Jamin notou,
e v i s t a
a origem da riqueza da cultura comum sobre em 1991, que “museus, coleções e objetos quase
a qual se funda a construção europeia”. Para não parecem interessar à antropologia. Por causa
R
os juristas franceses, certas atividades ou de uma deserção tanto física quanto intelectual
práticas, tais como os costumes, as tradições
e as habilidades, não têm “necessidade de 53. A segunda reprimenda é desenvolvida particularmente em
um enquadramento jurídico para poder se Sally Price, Paris primitive. Jacques Chirac’s Museum on the Quai
Branly, Chicago, University of Chicago Press, 2007, capítulo 5,
manifestar. Nesse sentido, o patrimônio “An anti-palace on the Seine”, que enxerga um dispositivo de pu-
rificação de eventuais comunitarismos no museu, em nome do
no aspecto jurídico não cobre mais que princípio da laicidade. O texto de Daniel Fabre (“O patrimônio
um subgrupo do patrimônio no aspecto cultural imaterial. Notas sobre a conjuntura francesa”) acompanha 121
a apresentação do relato do estudo de Gaetano Ciarcia, O prejuízo
amplo. O legislador seleciona certo número permanente. Relatório de um estudo sobre a noção de “patrimônio
imaterial”, Ministério da Cultura e Comunicação, 2006.
de elementos para organizar seu regime 54. A apresentação do projeto no site na internet evoca: “sete expo-
sições de declínio, por exemplo: conflitos e exclusões, diversidade
de proteção. A direita francesa está hoje cultural e mestiçagem, biodiversidade e todas as questões ligadas
ao domínio do moderno”. Michel Côté, seu diretor, publicou,
concentrada na proteção dos elementos durante o ano de 2008, uma série de trabalhos sobre a aposta do
projeto (A paixão da coleção: as origens do Museu das Confluências,
materiais do patrimônio, em uma abordagem séculos XVII-XIX, maio; Práticas de exposição e mediação e atividades
bem mais restritiva”52. As críticas endereçadas culturais, setembro; Coleções, política e práticas, dezembro; todos
editados pelo Departamento do Rhône).
ao Museu do Cais Branly revelam uma 55. Isso após um primeiro relatório de Jean-Pierre Mohen, O Novo
Museu do Homem, Paris, Odile Jacob-Muséum nacional de his-
situação marcada continuamente pelo tória natural, 2004. Sobre sua história Claude Blanckaert, éd. Le
Musée de l’Homme. Histoire d’un musée laboratoire, Paris, Musée de
“culto exclusivo do objeto tridimensional, l’Homme, 2015.
desprezando todas as outras expressões de 56. Em 16 de fevereiro de 2009, a Ministra da Cultura divulgou
um relatório sobre os “diferentes sítios prováveis de acolher o fu-
culturas” e pela “ausência das comunidades turo Museu da História da França”, entre os quais Fontainebleau,
Mansão de Soubise, Invalides, Versalhes e Vincennes. Com relação
a esse fenômeno paralelo da museologia francesa, eu me permito
reenviar a D. Poulot a referência “Gloires et opprobres politiques au
musée”, Sociétés & Représentations, n° 26, nov. 2008, pp. 197-217.
52. Marie Cornu, Droit des biens culturels et des archives, Legame- 57. Assinala Philippe Joutard em Ces voix qui nous viennent du
dia, novembro de 2003. passé, Hachette, 1983.
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
122
D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Acervo: Iphan.
de Belém
Ladrilho hidráulico
r e v i s t a d o P a t r i M ô n i o H i s t ó r i c o e a r t í s t i c o n a c i o n a l
123
caso francês, em que as etnologias do pós- a fonte para os pesquisadores do futuro (...).
guerra foram paralisadas devido à lembrança Porém essa opção unânime causa uma seleção
a
de Vichy. Os sucessivos colóquios ligados tácita e insidiosa dos sujeitos de estudo: nós
e
Populares durante a década de 1990 oscilaram etnografia de obras, conferindo a esse último
regularmente entre o retorno enraivecido de termo seu sentido mais amplo. Os objetos da
H
diversos estabelecimentos se parecem com oral... são sempre os primeiros eleitos e, por
d o
homenagens devotadas aos fundadores da isso, sua descrição externa, sua numeração e,
e v i s t a
etnologia francesa, respeitando uma liberdade portanto, sua capitalização patrimonial são
às vezes suavizante. Nesse contexto, não imediatamente concebíveis60”. Entretanto,
R
deixa de ser interessante que uma evolução esse paradigma tem ele próprio uma história,
aparentemente terminológica – de que o e os “últimos” puderam conhecer certas
patrimônio imaterial substituiu o patrimônio épocas de ressurreições.
etnológico – consiste em uma mudança Como demonstrou David L. Hoyt, “ao
dentro do âmbito disciplinar e político59. contrário da imagem de relíquias ou fósseis
de uma cultura desaparecida, cultivada
124 a energia do primitivo e pelos estudos das últimas décadas do século
a p o l í t i c a f o l c l o r i s ta XIX, os etnógrafos do século XX têm seus
objetos vivos. Eles não têm mais necessidade
Em longo prazo, a tentativa da etnologia de restaurar a vida nas coleções”61. A
parece se confundir com a busca por objetos, afirmação de um sujeito vivo se opera no
em número sempre crescente, suscetíveis de reconhecimento de um “primitivo” sempre
também se tornarem materiais de exposição. ativo, atuante no presente, e não no passado.
Daniel Fabre evocou, em seu propósito, um Não se trata mais de coletar restos de uma
“paradigma dos últimos”: o etnólogo seria “o cultura desaparecida ou dos últimos exemplos
último a poder dizer: tal prática, tal crença, tal de tal costume ou prática: abandonamos
objeto ou tal conhecimento existiu; tal palavra
60. Daniel Fabre, “L’ethnologue et ses sources”, Terrain, n° 7, Paris,
1986, pp. 3-12; “D’une ethnologie romantique”, Daniel Fabre
58. Jean Jamin, “Les musées d’anthropologie sont-ils dépassés ?”, et Jean-Marie Privat (dir.), Savoirs romantiques. Une naissance de
Le futur antérieur des musées, Ed. du Renard, maio de 1991, p. 113. l’ethnologie, Presses universitaires de Nancy, 2010.
59. Gérard Derèze demonstrou isso para o francófono belga em 61. David L. Hoyt, “The Reanimation of the Primitive: Fin-de-
“De la culture populaire au patrimoine immatériel”, Hermès, 42, Siècle Ethnographic Discourse in Western Europe”, History of
2005, pp. 47-53. Science, vol. 39, pp. 331-354.
a perspectiva histórica e positivista para o que apresentaram um olhar erudito sobre
a c i o n a l
que coloca um fim na tese das sobrevivências. do folclore, da Mélusine ou da Revue des
Uma mudança semelhante de pontos traditions populaires, aparecem como cientistas
de referência temporais resulta em uma inúteis para a recuperação francesa. Maurice
n
R t í s t i c o
articulação do regionalismo e da etnologia, Barrès também condena a salvaguarda das
que se transformam em ferramentas igrejas da França, que assumiram a forma de
a
políticas62. museus ou pontos culturais, sem, portanto,
e
No final do século XIX, diversos museus defenderem similarmente o catolicismo, fato
i s t ó R i c o
nasceram após a organização de uma sala da este dado após a separação da Igreja e do
França no Museu de Etnografia do Trocadéro, Estado em 1905. Este é o nome da energia
H
em 1884 (que fechou em 1928). Esses nacional, da força de suas paisagens e dos
a t R i m ô n i o
museus eram o Museu Basco, de Bayonne, modos de vida imbuídos nos monumentos,
D o m i n i q u e Po u l o t
o Museu Bretão, de Quimper, ou o Museon bem como das tradições, que não devem
P
Arlaten, de Arles, concebido em 1898 por ser conservadas para fins de estudo ou
d o
Frédéric Mistral. Em 1904, inaugura-se um arquivamento, mas sim mobilizadas a fim de
e v i s t a
Museu de Dauphine, em Grenoble, concebido alimentar um projeto efetivo. Nada é pior que
por Hippolyte Müller, destinado para “recriar o embalsamento dos museus ou a restauração
R
o pensamento que criou o objeto”. Todavia, a segundo os procedimentos científicos como
França não conhecia o importante museu ao os de Viollet-Le-Duc.
ar livre, ao contrário dos “Museus das casas”, Basta citar Arnold Van Gennep, fundador
que se multiplicavam no início do século da etnologia francesa, para compreender a
XX nos países escandinavos, na Holanda, na diferença assim declarada: “quem se interessa
Alemanha e também na Romênia, no Reino por folclore, escreve ele, o torna vivo e direto;
Unido e nos Estados Unidos. é isso que queremos, na biologia sociológica, 125
modernidade
e
a c i o n a l
de vida” de uma população70. Os primeiros descontinuidade ou continuidade das gerações.
ecomuseus, concebidos em Marquèze, no É um espelho que essa população oferece a
seus componentes, para se compreenderem
n
contorno do Parque Natural Regional de
R t í s t i c o
Landes de Gascogne, e, depois, em Ouessant, melhor, com relação a seu trabalho, seus
dentro do Parque Natural Regional da comportamentos e sua intimidade”71.
a
Armórica, servem como referências. Essa Museu do homem e da natureza, o
e
ecomuseu visa valorizar o restabelecimento
i s t ó R i c o
geração de ecomuseus é resultado do ativismo
de representantes políticos ou líderes do ponto temporal em que o homem
apaixonados que encontraram os meios para apareceu e, depois, a demonstração tanto da
H
sociedade tradicional, quanto da sociedade
a t R i m ô n i o
um reconhecimento coletivo. Os exemplos
industrial, resultando finalmente no futuro,
mais célebres são, então, os ecomuseus
D o m i n i q u e Po u l o t
em nome de uma “função de informação e
da Comunidade Urbana de Creusot
P
análise crítica”. O ecomuseu ideal reivindica
Montceau-les-Mines, de Fourmies-Trélon, de
d o
a dupla qualidade de ser conservador do
e v i s t a
Nord-Dauphiné e da cidade nova de Saint-
patrimônio natural e cultural das populações
Quentin-en-Yvelines.
referidas, bem como de ser o laboratório deste
R
Um ecomuseu reúne, em princípio,
patrimônio, porque é assunto, ao mesmo
diferentes lugares no interior de uma região e
tempo, de estudos teóricos e práticos, assim
oferece a seus visitantes os meios para conhecer
como da operacionalização desses estudos.
a história e a geografia locais; ele mostra
Concretamente, trata-se de um conjunto de
as ligações estreitas estabelecidas por uma
museus constituídos em rede, organizados
comunidade de habitantes entre o ambiente,
por pessoas com status algumas vezes incerto,
os recursos naturais e as técnicas agrícolas, 127
entre voluntário e profissional.
artesanais, manufatureiras ou industriais. A maior parte deles é construída
Assim, o ecomuseu é definido como o oposto com vistas às atividades em vias de
do museu tradicional (“o templo da cultura”) desaparecimento, mesmo que isso não seja
e se assenta sobre um território, sua paisagem seu princípio: eles apresentam as ferramentas
e a população. Em 1976, Georges-Henri e técnicas tradicionais e convidam artesãos
Rivière precisou esta definição: “É um espelho antigos para dar explicações aos visitantes e
onde essa população se vê e reconhece, até realizar diversas demonstrações72. Nesse
onde ela procura por uma explicação sentido, eles participam de uma dinâmica do
“patrimônio” na sociedade, a qual as pesquisas
70. A primeira definição de ecomuseu, proposta por Georges-Henri
Rivière, foi adotada em 1971, na Nona Conferência do Conselho
Internacional de Museus, nestes termos: “o ecomuseu é um museu 71. Hugues de Varine, Nouvelles Muséologies, Macon, Editions
aberto e interdisciplinar, que exibe o homem no tempo e no espaço, W./M.N.E.S., 1986.
em seu ambiente natural e cultural, convidando toda a população 72. Ver o manifesto de Terrain, a revista da Missão do Patrimônio
a participar de seu próprio desenvolvimento por intermédio de di- etnológico do Ministério da Cultura; Fleury (E.), “Avant-propos”,
versos meios de expressão baseados essencialmente na realidade dos Terrain, nº 11, 1988, pp. 5-7. Um balanço dessa etnologia é forne-
sítios, dos edifícios, dos objetos, das coisas reais mais falantes que as cido por Martine Segalen (sob a direção de), L’autre et le semblable,
palavras ou que as imagens que invadem nossa vida”. Paris, Presses du CNRS, 1989.
comandadas simultaneamente pela Missão A categoria dos “Museus da Sociedade”
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
história local. Hugues de Varine, um dos explícita dos habitantes. Esses Museus da
P
a c i o n a l
de museus franceses: a rudeza das discussões Missão ao lado da Diretoria do Patrimônio,
político-administrativas fica ligada tanto a uma propriamente em três ou duas dimensões,
competição pelos recursos quanto a lógicas permanecendo como o principal atributo
n
R t í s t i c o
institucionais contraditórias79. dos museus. Entretanto, o Conselho reuniu
em sua composição todos os atores da cadeia
a
a
a p o s ta d o i n v e n t á r i o patrimonial, com as diferentes diretorias
e
d o pat r i m ô n i o i m at e r i a l do ministério interessadas na música,
i s t ó R i c o
dança, espetáculos ao vivo, arquivos etc. e,
Após o decreto de 2006, a Missão do evidentemente, em museus”82.
H
Patrimônio Etnológica, depois transformada Tratava-se de investigar a identidade em
a t R i m ô n i o
em Missão de Etnologia, teve o objetivo geral e sua transmissão, mas sem o cuidado
D o m i n i q u e Po u l o t
de “estudar e promover, junto com outras de um inventário, nem de conservação83. Ao
P
instâncias competentes, diversos aspectos contrário, dois representantes eminentes da
d o
dos patrimônios material e imaterial que antropologia francesa insistiam, nesse caso,
e v i s t a
interessam à etnologia através do território no imperativo de assegurar que os objetos
estudados (festas, práticas, manifestações etc.)
R
nacional ou que dizem respeito aos campos
de ação da Diretoria, notadamente os não fossem “mais tratados como sobreviventes
territórios e a arquitetura”. A primeira de fatos antigos que foram degenerados, mas
Missão, fundada após o relatório “A que, pelo contrário, fossem tratados como a
Etnologia da França. Necessidades e Projetos”, expressão contemporânea de representações
apresentado por Redjem Benzaïd, Inspetor- conflituais das identidades [... ] e dos grupos
Geral de Finanças, em 197980, já considerava sociais de que participavam”84. A tarefa do
centro de pesquisas ligado ao CNRS, que 129
todos os objetos da futura convenção com
um título emblemático, como provam os
pedidos de oferta regulares81, publicados na
82. Em 1980, foram criados dois organismos distintos, em nível
revista Terrain. Daniel Fabre acreditou assim ministerial: o Conselho do Patrimônio Etnológico e a Missão
do Patrimônio Etnológico. Ambos substituindo a Diretoria de
que o Conselho do Patrimônio Etnológico Arquitetura e Patrimônio, com a missão de “recensear, estudar,
proteger, conservar e divulgar o patrimônio arqueológico, arqui-
do Ministério da Cultura, criado em 1980, tetônico, urbano, etnológico, fotográfico e das riquezas artísticas
da França”. O Conselho do Patrimônio Etnológico, formado por
teve, desde a origem, o cuidado de defender quatro anos por representantes do governo e especialistas, era “a
os bens “imateriais”, caracterizando os instância científica que definia, dentro do ministério encarregado
pela cultura, as orientações de uma política nacional de etnologia
modos de vida, e as formas de pensamento e da França”. A Missão do Patrimônio Etnológico era ser o órgão
de execução, composto por um grupo de funcionários centrais e
“etnólogos regionais” ou “conselheiros de etnologia”, em princí-
pio no número de catorze, pertencentes às Diretorias Regionais de
Assuntos Culturais.
79. Ver em outro campo Nathalie Heinich, “La collecte du 83. Sylvie Grenet, “Problématiques et enjeux du patrimoine
contemporain comme enjeu professionnel” [“A coleta do culturel immatériel au Ministère de la culture”, Patrimoine culturel
contemporâneo como desafio profissional”], Bulletin du Musée immatériel et transmission la polyphonie corse traditionnelle peut-elle
basque [Boletim do museu Basco] (2012): 56-60. disparaître? Centre des musiques traditionnelles corses, 22 e 23 de
80. Rapport sur l’ethnologie de la France. Besoins et projets. op. cit. junho de 2006, Ajaccio.
81. A Terrain foi lançada em 1983, e a coleção “Ethnologie de la 84. Jean Cuisenier et Martine Segalen, Ethnologie de la France,
France” foi iniciada no ano seguinte, sob a forma de duas séries. Paris, PUF, 1986, p. 87.
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
130
D o m i n i q u e Po u l o t A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
Aurelio Fabian.
Acervo: Iphan/
Feira de Caruaru, PE
Artesanato tradicional da
R e v i s t a d o P a t R i m ô n i o H i s t ó R i c o e a R t í s t i c o n a c i o n a l
131
desafio mUseológico
uma perspectiva paralela: analisar o objeto do e mUseográfico
a c i o n a l
a c i o n a l
de “civilização”, e não apenas de “cultura nos Museus da Sociedade. Tratava-se de
popular”88. Ele resumiu o projeto nestes introduzir o visitante à prática cotidiana
termos: “Diante dos movimentos potentes
n
do etnólogo em sua coleta de informações,
R t í s t i c o
de desistências de identidade e comunitárias por meio de entrevistas e filmes. O novo
que caracterizam o mundo contemporâneo, museu queria aparecer na condição de
a
torna-se indispensável criar locais de herdeiro da tradição das ATP, de forma que
e
encontro e abertura. Diante dos muros ele influencia ainda hoje os estabelecimentos
i s t ó R i c o
que são levantados, das incompreensões da região. Mas essa declaração de intenção
que se acumulam e das rejeições que são nunca foi completamente condenada. Como
H
preparadas, torna-se indispensável restabelecer
a t R i m ô n i o
escreveu, nesse caso, Christian Bromberger,
as pontes entre as culturas europeia e “o MuCEM mistura as fronteiras e não
D o m i n i q u e Po u l o t
mediterrânea […]. A criação do MuCEM corresponde a nenhuma entidade política
P
traduz preferencialmente a vontade de reatar estabelecida: nem Marselha, nem Provença,
d o
em vez de se enclausurar, de escolher trocar nem França, nem Europa. O projeto não
e v i s t a
e compartilhar em vez de rejeitar o outro, pretende, em suas melhores bases, apresentar
de criar um grande lugar de encontro e
R
sucessivamente ares culturais, mas (…),
meditação entre as culturas em Marselha”. preferencialmente, reforçar identidades e
Portanto, o Museu das Civilizações mudar como se pensam as convergências,
da Europa e do Mediterrâneo (MuCEM) os parentescos e as diferenças. Esse
se interessava pelas civilizações da Europa estabelecimento, onde não se questionaria
e do Mediterrâneo, da Idade Média até nem a si mesmo, nem aos outros, mas a
a época contemporânea, apoiando-se no
si mesmo e aos outros em conjunto, suas
133
conjunto das ciências sociais, com a etnologia
afinidades, seus atritos e seus conflitos, não se
permanecendo como disciplina central. O
sujeita às dimensões habituais de um museu,
programa museográfico se pautava em um
podendo gerar incômodo”89.
questionamento reduzido para cinco temas,
Durante o ano de 2008, Stéphane
com estes sendo renovados a cada cinco
Martin, presidente do Museu do Cais
anos: “O paraíso”, “A água”, “A cidade”,
“O caminho” e “Masculino e feminino”. 89. Christian Bromberger, membro do Conselho Científico do
Na espera de sua realização definitiva, o MuCEM, a propósito de seu projeto científico, em “D’un mu-
sée… l’autre. Réflexions d’un observateur participant”, etnográ-
MuCEM realizou uma série de exposições fica, novembro de 2007, 11 (2), pp. 407-420: “não está certo
em qual estágio estaremos se a configuração escolhida for a mais
temporárias que definiam notadamente a pertinente e a mais convincente”. “Falta considerar a deslocaliza-
ção e a transformação do MNATP em termos de continuidade ou
ambição de sua campanha de coleta. Uma ruptura? A área coberta pelo museu também deveria ser vasta e se
estender da Escandinávia ao Saara, de Portugal ao Irã e à Rússia?
Se a conservação das coleções do MNATP é uma prioridade na-
88. Michel Colardelle, Le Musée et le Centre Interdisciplinaire cional, ele deve ocupar um local preeminente no futuro museu
d’études des civilisations de l’Europe et de la Méditerranée, Étude focado no presente, sem negligenciar seu fundo histórico e em um
préalable pour un projet de “délocalisation” du MNATP-CEF de espaço que se situe bem longe na França rural? Sem dúvida, falta
Paris à Marseille. Et Michel Colardelle, Réinventer un musée, considerar dois sítios, na condição de dois projetos distintos, cada
RMN, 2002 um marcado por seu tempo.”
Branly, recebeu a missão de conduzir uma entre uma museologia de colaboração com as
A compreensão do patrimônio contemporâneo e seus limites
povos mediterrâneos” em Marselha – o que e uma museologia crítica enraizada, por sua
e
tradicional e funcionaria como uma cidade das possíveis explicações das vicissitudes do
P
com vocação dupla, nacional e internacional, MuCEM seria que a reorganização de uma
d o
dedicada a questionar as relações que unem instituição prestigiosa e central não podia
e v i s t a
a Europa aos países mediterrâneos, por tomar a forma de um museu crítico na região
R
a c i o n a l
disponíveis em vários dossiês temáticos. O estatal. Uma transformação emblemática
segundo inventário afirmava, segundo o ou sentimental do patrimônio imaterial
n
propósito ministerial, estar “mais próximo afastaria a França do programa científico
r t í s t i c o
do espírito da Convenção”, que “visava a que representava a afirmação do patrimônio
reunir as práticas vivas, em colaboração com etnológico durante a década de 1980. Uma
a
a ajuda das comunidades, dos grupos e dos primeira aposta é a mudança ou não das
e
i s t ó r i c o
indivíduos”. Ele teve início em março de normas do patrimônio, considerando o
2008 e se apoiou nas ferramentas utilizadas
gerenciamento da disciplina. Uma segunda
para o inventário dos recursos etnológicos
H
aposta é a eventual desapropriação das
a t r i M ô n i o
do patrimônio imaterial (IREPI) da
comunidades patrimoniais precisamente para
Universidade Laval de Quebec.
D o m i n i q u e Po u l o t
o benefício do etnólogo94.
Portanto, as fragilidades da tentativa
P
d o
patrimonial francesa aplicada ao imaterial 94. Um exemplo, o do Companheirismo, foi desenvolvido por
e v i s t a
ficam evidentes. Uma política de patrimônio Nicolas Adell em “Polyphony vs. Monograph: The Problem of
Participation in a French ICH Dossier”, Nicolas Adell, Regina F.
imaterial que passa da postura documental Bendix et alii ed. Between Imagined Communities and Communities
r
of Practice Participation, Territory and the Making of Heritage, Göt-
para a postura participativa, do inventário tingen Studies in Cultural Property, Volume 8, 2015, p. 237 sqq.
135