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A historiografia europeia do rococó já conta, atualmeiíte, com uma relação

de títulos bastante significativa, na qual os alemães' dcupam situação de des-


taque. Continuam entretanto escassos,os estudos de síntese sobre conjuntos
dé obras pertencentes ao estilo, tanto na arte civil quanto religiosa, de todos
os países de sua área de expansão. Não contando em suas origens eom o
suporte defuma doutrina teórica sistematizada, como o barroco da Contra-
0LW6ifLA j M^wnn fanar KA & %^0\ro Reforma ou o classicismo das Academias e tendo conhecido uma área de
expansão geográfica que se estende, grosso modo, de Ouro Preto a São Peters-
burgo, o rococó apresenta-se em consequência sqb aspectos extremamente
variados, incorporados aos múltiplos sistemas de representações culturais
dos países e regiões que o adotaram. Daí a dificuldade de integrar-em um
conjunto unitário de categorias estéticas e histórico-artísticas uma extensa
gama"de manifestações diversificadas e as divergências de opinião que ainda
hoje separam os autores, entre os quais subsistem os que teimam era incor-
porá-lq a outros estilos ou considerá-lo etapa final do barroco.
A questão do rococó religioso que nos interessa aqui diretamente é bas-
tante sintomática. Tendo em vista as restrições ao estilo na França, què Victor^'
Lucien Tapié creditou às tradições de racionalidade cartesiana e austeridade
jansenista do catolicismo francês , como explicar sua ampla aceitação em
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regiões da Europa Central tais como à Baviera, Suábia, Krancônia e Boémia,


que praticamente reinventaram os dados básicos do estilo, adaptando-o à
árquitetura e decoração de edifícios religiosos? E que no oeste europeu, negli-
genciado pela Espanha, o rococó religioso tenha tido grande desenvolvimen-
to em Portugal e em sua colónia brasileira do outro lado do Atlântico, onde
algumas de suas realizações mais espetaculares foram produzidas por artis-
tas mestiços, formados cm oficinas ha tradição corporativa medieval?
As indagações são. muitas como se vê. O rococó religioso é ainda um
estilo pouco conhecido em seus aspectos teóricos e especificidades formais
face ao barroco. O que explica sem dúvida o fato de persistirem na historio-
grafia artística brasileira interpretações de cunho nacionalista e regionalista
para defini-lo, como as que estiveram na base da criação de conceitos como
os de "barroco nacional" e ''barroco mineiro".
Uma das dificuldades do estudo do rococó religioso é a variedade de
aspectos que assumem suas manifestações, pois até mesmo na Alemanha
há diferenças marcantes entre o rococó das regiões da Baviera e da Suábia,
geograficamente próximas. As diferenças são ainda mais acentuadas em
Portugal e no Brasil onde, repetindo o fenómeno centro-europeu, o estilo
apresentasse diversificado em escolas regionais, resultantes da adaptação
de modelos europeus franceses ou germânicos a tradições arquitetònicas
e artísticas locais. Algumas dessas escolas alcançaram desenvolvimento
abrangente, notadamente a portuguesa do Minho e a brasileira de Minas
Gerais, favorecendo o desenvolvimento pleno de artistas excepcionais como
André Soares e Xntônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que atuaram tam-
bém como arquitetos amadores. Em outras como as de Lisboa e a do Rio.de
Janeiro o desenvolvimento do rococó sofreu entraves pela concorrência de
outros estilos, notadamente o barroco tardio italiano, na versão pombalina,
aclimatada em Portugal.
As relações do rococó religioso com o barroco tardio e a correta iden-
tificação das modalidades formais dos dois estilos na árquitetura e decora-
ção das igrejas da segunda metade do século xvni, constitui outra dificul-
dade para os estudiosos do estilo na área luso-brasileira. Isto porque a
influência italiana e principalmente romana, incentivada oficialmente na

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rpocii do reinado de D. João-v (1706-1750) persistiu no período posterior,
concorrendo com os modelos do rococó francês e germânico. No caso bra-
sileiro é preciso ainda lembrar que a sociedade que deu origem ao rococó
loi a mesma que engendrou o barroco, tendo-se em vista a homogeneidade
(tu cultura colonial, rigidamente enquadrada pelo catolicismo"triderítino,
bom como o tempo histórico relativamente breve que condicionou a suces-
são desses estilos na colónia: o barroco joanino entre 1720 e 1760 aproxima-
damente, e o rococó de 1760 em diante.
. À análise das modalidades formais do rococó na árquitetura religiosa
brasileira revela de imediato a importância primordial das decorações in-
ternas, que transfiguram espaços arquitetônieos retilíneos e estáticos, dando
a lóniea estilística ao monumento. A movimentação poligonal ou curvilínea
Icm com efeito caráter de excepcionalidade na tradição arquitetônica por-
tuguesa, apegada à simplicidade estrutural e às volumetrias planas como
demonstrou George Rubler - A simplicidade estrutural já pressupõe em si
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mesma a imprescindível complementação dos revestimentos em talha dou-


rada, pintura ou azulejos, tão caros à sensibilidade artística dos lusitanos.
Ultrapassando a função meramente decorativa, essas artes ornamentais as-
sumem em consequência nas igrejas luso-brasileiras a função subsidiária
de dinamizar os espaços, rompendo a estaticidade das paredes ê tetos e re-
criando ambientes que integram, em visão imitaria, valores formais e sim-
bólicos expressos em técnicas diversas.
A leitura estética de uma igreja do rococó religioso luso^-brasileiro
faz-se portanto de dentro para fora, repetindo fenómeno recorrente, na fase
barroca. O local privilegiado para uma visão do conjunto é a entrada da nave,
uma vez transposta a barreira do guarda-vento luso ou de sua versão tropical,
o tapa-vénto de nossas igrejas coloniais. Em um ambiente de luxo refinado,
no qual as cintilações douradas dos ornatos são postas em evidência pelos
fundos claros ou eni tonalidades suaves, os efeilos pictóricos st; unem aos da
talha e azulejos configurando uma decoração sunluosa, simultaneamente
leve c graciosa, destinada a produzir uma sensação básica de bem-estar que
predispõe à oração na esperança e na alegria, mensagem de serenidade que
caracteriza o rococó religioso eni oposição ao barroco, dominado pelos efei-
tos dramáticos e um sentimento trágico da existência.

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Se este livro ajudar a compreender melhor os aspectos específicos do


rococó religioso, estimulando a revisão de conceitos tradicionalmente acei-
tos e favorecer a fruição estética de manifestações singulares do estilo em
igrejas excepcionais, como as Nossa Senhora do Carmo e São Francisco de
Assis em Ouro Preto, Santa Rita e Carmo da Antiga Sé no Rio de Janeiro e
São Bento ou Nossa Senhora do Amparo em Olinda, terá cumprido seu prin-
cipal objetivo. " •

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HISTORIOGRAFIA

0 impulso definitivo que os estudos do barroco receberam na primeira


metade do século xx, com o suporte teórico de Wolfflin, Dvorak, Weisbach,
Eugénio D'Ors e outros, preparou o terreno à renovação similar no campo
vizinho e pouco explorado do rococó, até então visto apenas como variante
ou fase final do barroco. O movimento se inicia a,partir dos anos 1950,
impulsionado pela divulgação ria Europa da tese pioneira do americano
Eiske fimbalP, que fixou de forma determinante as origens parisienses do
estilo e revelou o papel dos decoradores e ornamentistas franceses na géne-
se e evolução das formas que lhe sãõ próprias. Estavam lançadas as bases
para o equaeionamento da questão essencial da autonomia do rococó face
ao barroco, condicionada pela vinculação do estilo a um tempo histórico e
ai um meio social distintos dos que deram origem ao barroco italiano seis-
centista, a sociedade francesa do chamado Antigo Regime, na primeira me-
tade do século xvin.
Paralelamente, novos enfoques abriam-se à pesquisa dos fatos relati-
vos à internacionalização do estilo edo problema da extensão de suas cate-,
gorias artísticas a outras áreas culturais, como a música e a literatura.
Poderia o rococó; a exemplo do barroco, ser também considerado como um

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estilo de época, buscando-se a convergência de seus ideais estéticos com as
principais diretrizes da cultura setecentista.europeia?
Uma resposta decididamente afirmativa foi dada pelos organizadores
da quarta exposição internacional do Conselho da Europa, realizada em
Munique em 1958, cuja proposta já se manifestava no próprio tema escolhido:
Qrséculo do rococó. Arte e civilização do século xvin. Além dos textos publi-
cados no catálogo propriamente dito , o rococó visto como uma espécie de
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denominador comum da cultura e das artes do período constituiu na oca-


sião tema de um excelente ensaio paraletode Arno Schõnberger e Halldor
Soehner, com um capítulo específico dedicado às manifestações do "Espíri-
to do Século" na base de suas manifestações artísticas, da filosofia das Luzes
à religião^passando pela revolução das ideias políticas, pelo desenvolvimen-
to das ciências e da técnica, e atétnesmo por uma nova visão da história . 3

Apesar da abrangência excessiva, tendo-se em vista que o rococó não


foi a única forma de expressão artística do século xvm, o congresso de Muni-
que teve o mérito de situar definitivamente o estilo como conceituação formal
independente na evolução da cultura do período moderno. É sintomático que
o rococó já tenha sido focalizado, com peso análogo ao do barroco e do ma-
neirismo, no convénio organizado pela Accademia dei Lincei de Roma, em
1960, dedicado a questões conceituais e terminológicas ligadas a esses três
estilos e à viabilidade da aplicação dè categorias formais, cunhadas no campo
das "artes do desenho", aos da literatura e da música do período .
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Cinco anos mais tarde, a Fundação Giorgio Cini de Veneza dedicou


um de seus cursos internacionais ao tema da "Sensibilidade e Racionalida-
de no Setecentos", no qual o rococó, também enfocado em sentido cultural
amplo, foi analisado.poi^especialistas de diversas áreas. No campo das artes
plásticas, as excelentes palestras de Victor-Lucien Tapié, dedicadas ao rococó
internacional constituem, sem dúvida, o mais lúcido e abrangente ensaio
sobre o assunto até então elaborado .
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Entretanto, quando foram divulgadas as atas do. "curso de Veneza em


1967, já havia sido publicado no ano anterior o livro Esthétique du kococo
do belga Philippe Minguet, hoje considerado um clássico, com influência
comparável à da obra de Fiske Rimball na evolução posterior dos estudos
sobre o rococó. Desenvolvendo linha depensamentò próxima à do aludido

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ensaio de Tapié, Minguet chegou à definição estética de um "estilo arquite-
lural rococó", irredutível aos estilos barroco e clássico, ressaltando a "espe-
cificidade de uma arte" a ser apreendida em sua intencionalidade própria . 6

Vale assinalar que na mesma época especialistas alemães defenderam pon-


los de vista análogos, como demonstra o verbete "Rococó" elaborado por
I lans Seldmayr e Hermann Bauer para a Enciclopédia Universale delVarte,
que tem proporções de um verdadeiro ertsaio . Esse texto é referência fun-
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damental para os que se dedicam à pesquisa do rococó, tanto pela clareza e


fundamentação científica das ideias expostas, como pela abrangência da
abordagem, que identifica o estilo em diversas regiões europeias, com o
apoio de extensa bibliografia.

A historiografia do rococó ainda conheceria no mesmo período outras ^


obras importantes, sobre aspectos específicos do estuda do estilo, entre as
quais sobressai o estudo de Hermann Bauer sobre a rocaille, verdadeira exe-
gese sobre a*origem e características essenciais de seu principal tema orna-
mental . Do mesmo período são ainda os livros de Henry. A. Millon, uma ten-
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tativa de identificação e análise da árquitetura barroca e rococó na Itália,


França e países germânicos ; a ampla síntese de Eberhard Hempel sobre a
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evolução desses estilos na Europa Central, incluindo os países eslavos e o10

excelente estudo de Henry Russel Hitchcock sobre a árquitetura rococó na


Alemanha do Sul . Merecem também referência os livros de Pierre Char-
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pentrat, nas coleções Les neuf muses e Architecture universelle \e apesar


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da deliberada disposição do autor de se manter à margem de conceituações


estilísticas, contêm boas análises da árquitetura e do espaço rococós. Final-
mente, o mstigante texto de Jean Starobinski sobre o século xvm, incluído
na coleção Art-Ideés-Histoire da editora Skira , descortina novos horizontes
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para a compreensão do rococó enquanto fenómeno cultural. .

É constrangedor observar que, ao decisivo avanço da historiografia do


rococó nos anos 6o do século xx, não se seguiu, como seria de esperar,
desenvolvimento similar nas décadas de 70 e 80. Se algumas monografias
básicas vieram a lume, como o excelente ensaio de Rarstein Harries sobre
a igreja rococó da Baviera , não mais surgiram, ao que nos consta, novas
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teorias-e conceíluações aplicáveis ao fenómeno do rococó em sentido amplo,
na esteira de FisRe Kimball, Philippe Minguet e Jean Starobinski:
A impressão que transparece na leitura de algumas publicações mais
reôentes, nas quais o barroco e o rococó são geralmente apresentados em
visão conjunta, é muitas yezes a de um retrocesso teórico e conceituai, em
aspectos fundamentais como o da autonomia do estilo e a análise arquitetó-
riica ou estética dc edifícios e obras que lhe são afetas. Com algumas exce-
ções, entre as quais se situam textos como os de Germain Bazin e Georges
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Cattaui , o rococó volta a ser definido, seja como aspecto extremo ou hiper-
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trofia do barroco *, seja como estilo ou moda decorativa, subordinando-se à


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evolução geral do barroco . No último caso inclui-se o excelente livro de


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Christian Norberg-Schulz , cujas eruditas análises de tipologia espacial, in-


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questionáveis no que se refere ao barroco tardio, revelam-se insuficientes


para a análise dos aspectos arquitetônicos do rococó, por negligenciarem a
questão ornamental* sem a qual o estilo não pode ser apreendido em sua
significação plena.
Quanto à obra coletiva coordenada por Anthony Blunt , até agora o
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estudo de maior fôlego dedicado à análise conjunta do barroco e rococó, suà


abordagem peca pelo enfoque demasiadamente historicista, não chegando
os autores a definir, no esqopo dos capítulos específicos, uma clara separa-
ção conceituai entre os dois estilos, na árquitetura e artes ornamentais das
diversas regiões europeias e americanas tratadas no livro. E um evidente
recuo teórico marca o livro L'art Baroque de Yves Bottineau, elaborado em
1986 para as edições Mazenod, que nos remete à situação que caracterizava
os estudos sobre o rococó anteriormente a Fiske Kimball. Não satisfeito de
negar a autonomia do rococó face ao barroco, o autor chega ao extremo de
rejeitar as' origens francesas do estilo, situando-o na descendência do bar-
roco italiano. O mais curioso é que, após relacionar uma série de caracterís-
ticas estabelecidas por Philippe Minguet como "próprias do rococó", Botti-
neau chega à ambígua conclusão de que, afinal de contas, elas poderiam ser
consideradas como uma "variação ou evolução normal" de formas utiliza-
das anteriormente pelo barroco , 22

A ambiguidade de Bottineeu foi objeto de um comentário malicioso


do próprio Philippe Minguet, no capítulo dedicado ao rococó de seu livro

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•/''ratice Baroque *, que traz a seguinte epígrafe: "Sobre uma palinódia do
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jiutor acerca do caráter algo barroco do rococó francês, feita pela necessi-
dade de agradar ao editor". Poderia também ser imputada à injunções edi-
loriuis a total ausência de tratamento específico dado ao rococó no recente
Pie Kttnst des Barock, de Rolf Tornan e Barbara Borngasse? O enfoque da
obra, predominantemente historicista poderia explicar em parte essa ausên-
cia, se uma definição sumária dó rococó como "estilo barroco tardio", inse-
rida no glossário do final do volume, não indicasse tratar-se de um partido
deliberado dos autores . Toda a árquitetura do rococó da Baviera e outras
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escolas regionais alemãs são vistas sob esse enfoque, que nega a própria tra-
dição historiográfica alemã que desde os-anos 1960 estabelecera de forma
definitiva a autonomia do rococó face ao barroco, como já foi visto.
A -conclusão que se impõe é que o rococó continua nós dias de hoje
sujeito a interpretações restritivas ou preconceituosas até mesmo na França
o na Alemanha, países onde encontrou suas origens e desenvolvimento mais
abrangente na Europa. E continua inexistindo obra de referência geral sobre
o rococó internacional, apresentando um panorama coerente da diversifica-
da gama de manifestações do estilo nos âmbitos civil e religioso, integradas
cm um conjunto unitário de categorias estéticas e histórico-artístícas. Obra
essa que, evitando as naturais limitações é ambiguidades da inserção do
estilo no plano geral de obras dedicadas ao barroco, possa colocar em evi-
dência seus aspectos autónomos e modalidades dê desenvolvimento em sua
vasta área de expansão, incluindo não apenas a Europa, mas também o con-
tinente americano.

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