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METAFÍSICA III

UNIDADE 1 - CAUSA PRIMEIRA: A EXISTÊNCIA DE DEUS


Introdução
Há muitas discussões sobre a existência de uma causa primeira e fundamental de toda a realidade.
Aristóteles, no primeiro livro da Metafísica, trata longamente das quatro causas que havia identificado na
Física, mostrando como os pensadores anteriores haviam refletido acerca delas. Mais ainda, seus
predecessores não encontraram nenhuma causa distinta das enumeradas por Aristóteles - material, formal,
eficiente e final -, mesmo que tenham se referido a elas de maneira confuso. Isso leva a concluir que não
existem causas além destas (Met., l. 1, c. 7; 988, a, 18 - 23). Se sua argumentação terminasse aqui, Aristóteles teria
indicado que existem quatro gêneros de causas. Porém, ele avança e sustenta que há um princípio primeiro,
e que as causas dos seres não são nem uma série infinita de causas, nem um número infinito de espécie de
causas (Met., l. 2, c. 2; 994, a, 1 - 2). O Filósofo desenvolve pouco o que seria a causa primeira, mas indica que
as causas dos seres eternos são mais verdadeiras e dotadas de mais entidade que todas as outras (Met., l. 2, c.
1; 993, b, 28 - 31). Em outros escritos de Aristóteles, como a Ética a Nicômaco, Aristóteles tratará da causa primeira
e da finalidade última, desta vez a partir do ponto de vista da conduta humana. Ainda que a presença da
divindade superior e infinita esteja latente em vários trechos das suas obras, ele não a estudou com o mesmo
grau de profundidade que será feito séculos depois, no período medieval. Porém, as noções filosóficas
descobertas por Aristóteles, enriquecidas por autores que o seguiram ou o anteciparam - como Platão - serão
matéria-prima para aprofundar na concepção da divindade, iniciando com os argumentos a favor da sua
existência. Sendo a Metafísica a filosofia primeira, o estudo das primeiras causa e das finalidades últimas,
bem como a ciência das coisas divinas, entramos agora em seu núcleo. Não deixa de ser perturbador que
haja explicações da realidade que descartem a necessidade da divindade como causa primeira. Sem dúvida,
elas serão radicalmente distintas das concepções teístas do mundo. Consequentemente, teremos visões
filosóficas bastante diversas, em torno da realidade ou não dessa causa primeira, imaterial, perfeita e
transcendente que chamamos Deus. Nesta primeira unidade de nossa disciplina, estudaremos as provas da
existência de Deus. Após analisá-las de modo geral, isto é, verificando o que significa uma prova desse tipo,
e quais são os caminhos pelos quais os seres humanos, com o uso das suas capacidades naturais, buscaram
alcançar a divindade, estudaremos de modo particular as cinco vias de Tomás de Aquino. O motivo dessa
escolha é que as vias tomistas são a mais influente e consistente tentativa de expor os argumentos filosóficos
a favor da existência de Deus. Por isso, elas são o alvo dos que buscam negar a causa primeira divina, e ao
mesmo tempo um dos principais apoios procuram afirmá-la.

1.1. Existência de Deus, questão filosófica


1.1.1. Divindade e Metafísica
A Metafísica é a ciência do ente enquanto ente, conforme a clássica definição aristotélica. Seu objeto
são as realidades, o que é dotado de ser, sem limitar-se ao que é material ou natural - tema da
filosofia da natureza -, ou com o ente vivo - campo da antropologia filosófica. Todos os entes, pelo
simples fato de o serem, são de interesse da Metafísica. Ela é a mais universal e fundamental das
ciências ou áreas do conhecimento. A filosofia é a ciência da verdade (επισηµην της αληθειας), e apenas
conhecemos o verdadeiro se soubermos quais as suas causas (Met., l. 2, c. 1; 993, b, 19 - 31). A relação
entre um objeto e suas causas, no âmbito de uma área do conhecimento ou ciência, é nítido.
Percebemos isso diariamente, pois sempre nos referimos a causas, quando tratamos de algum ente:
sua forma, a matéria da qual ele é feito, sua finalidade… Ao indicar o objeto da Metafísica, Aristóteles
se refere ao ente enquanto tal, e também à divindade. Os comentadores discutiram bastante se
haveria aqui uma incoerência, ou no mínimo uma inconsistência. Afinal, a divindade é algo específico,
um ente particular e concreto, ainda que imaterial, enquanto o ente como tal diz respeito a tudo o
que é, e não a um grupo determinado de realidades. A melhor interpretação considera que as coisas
divinas não são diretamente objeto da Metafísica, pois esta posição cabe ao ente enquanto ente. No
entanto, a divindade é a causa fundamental de todos os entes, e por isso ela é importante para o
estudo metafísico, o qual se volta à causa do que é. Pertence a uma mesma ciência conhecer os
indivíduos de determinado gênero, bem como às causas deste gênero.
Ainda que o ente não seja um gênero, é correto sustentar que a Metafísica contempla o ente
enquanto tal e a divindade, que é a causa do que é (WIPPEL, 17-20; TOMÁS DE AQUINO, Sententia Metaphysicae,
pr.). O estudo da divindade no âmbito da Metafísica não se confunde com o na Teologia, ciência
fundada na revelação divina e que parte de conhecimentos obtidos por uma comunicação da
divindade. Além disso, a divindade não é objeto direto da Metafísica, mas a ela interessa como
causa de tudo. Este ponto é importante, porque indica que nosso acesso à divindade ser dará por
meio dos efeitos que ela produz, os entes, e não diretamente. Sabemos mais o que Deus não é, do
que aquilo que ele é. Para alcançar a essência divina, é necessária a revelação sobrenatural; com a
razão, abarcamos a existência da divindade e alguns atributos que a diferenciam dos entes finitos.
Isso não significa que o conhecimento da divindade, no âmbito metafísico, seja irrelevante. Sem
dúvida, ele é limitado, porque a inteligência humana - não apenas a humana, mas a de qualquer ente
criado - é muito inferior a Deus. Por isso, conhecer naturalmente a Deus apenas cabe à divindade, e
não a qualquer outro ente. Por outro lado, a Teologia filosófica, que é parte da Metafísica, volta-se a
realidade mais rica, inteligível e plena, a divindade, e atinge o mais alto conhecimento humano,
excluindo o que nos é dado pela via sobrenatural. Frequentemente, parece que a perspectiva de
refletir sobre Deus e seus atributos assusta ou deixa perplexos vários pensadores, inclusive alguns
dos mais brilhantes e profundos. Porém, não adentrar nela mostra uma timidez que não é compatível
com a busca radical da verdade. Na atualidade, muitos autores não tratam da divindade ao estudar
a Metafísica, preferindo analisá-la apenas no âmbito da Filosofia da Religião, ou propondo uma
disciplina não metafísica, que seria a Teologia filosófica ou natural. Isso vai contra a tradição clássica,
e também está em desacordo com a observação da realidade, conforme o que afirmamos antes
acerca do conhecimento das causas como parte do estudo de um gênero. Não há problema em
nomear a reflexão filosófica sobre a divindade como Teologia natural, desde que não a separe do
restante da Metafísica. Pode ser um expediente eficaz - o que é duvidoso - para organização das
disciplinas, mas não deve alterar a substância do que examinamos. De fato, a divindade importa à
Metafísica, como mostraram Platão, Aristóteles e os pensadores que neles se inspiraram. Por isso,
em nosso curso, preferimos apresentar a divindade como parte final da Metafísica, sem solução de
continuidade com os temas anteriores. Iremos estudar metafisicamente, com o uso da razão.
Pretendemos verificar os argumentos sobre a existência de Deus. Uma pergunta pode surgir: tal
existência não é antes uma questão de fé, e não de filosofia? Aqui, estudaremos se a filosofia pode
responder de maneira contrária ou favorável à pergunta sobre a realidade de Deus. Não usaremos
noções teológicas, porque estas estão em outro âmbito, pressupondo métodos, objeto e meios de
conhecimento próprios. Portanto, nossa discussão não esgotará os argumentos sobre a existência
de Deus, porque ela pode ser acessível por meios diferentes da filosofia, como a fé ou o sentimento
moral. Examinaremos apenas se há argumentos de tipo filosófico para sustentar a afirmação que
Deus existe. Não analisaremos, a não ser de modo marginal, as razões positivas a favor do ateísmo,
até porque elas não são muito comuns na história da filosofia. Normalmente, a negação da existência
de Deus se dá pelo ataque aos argumentos favoráveis à divindade, e não pela comprovação da
inexistência do Ser superior. Isso é até esperado, porque é difícil fazer prova de algo negativo.
Mesmo que busquemos analisar os argumentos filosófico e, por isso, racionais a favor da existência
de Deus, é preciso reconhecer que ninguém se aproxima desse tema de maneira neutra, como se
nunca tivesse se perguntado dele. Ao começar a pensar filosoficamente, todos já possuem crenças
e pontos de vista que lhes foram transmitidos pela família, pela educação ou pela cultura que os
circunda. Essa bagagem prévia não impede que filosofemos de maneira séria e honesta. Ao
contrário, parte importante da nossa reflexão será avaliar e articular essas crenças anteriores, para
verificar se elas se mantêm em pé ou não. No caso da existência de Deus, isso tem ainda mais
importância, porque é uma posição que influencia em vários âmbitos da nossa realidade.
Saiba mais
Para uma série de pensadores, dentre os quais podemos destacar Heidegger, Carnap e vários iluministas, a
filosofia não pode sofrer influência de qualquer posição teológica prévia. De maneira aguda, Josef Pieper
mostra que Platão filosofou a partir de conceitos e noções obtidos “dos antigos”, que os receberam através
de uma revelação inicial, um presente vindo dos deuses (PIEPER, 115-7).
Assim, temos distintas formas de filosofar, de acordo com a posição que se tenha sobre as relações entre
teologia e filosofia: separação completa, ou autonomia com influências mútuas. O pensamento medieval, bem
como Platão e Aristóteles, estão na segunda categoria.

1.1.2. Espécies de argumentos sobre a existência de Deus


Conforme escrevemos, há caminhos ou argumentos favoráveis à existência da divindade que não
examinaremos profundamente. Porém, convém referir-nos a eles, para compreendermos as notas
próprias das vias metafísicas. Os argumentos fundados na fé sobre a existência de Deus não chegam
a resultados distintos daqueles propostos pela filosofia. Ao sustentarmos isso, tomamos uma posição
contrária à dos que afirmam que o Deus da Sagrada Escritura, de Abraão, Isaac e Jesus Cristo, é
fundamentalmente diferente do Deus que os filósofos expressam. Sem dúvida, a revelação permite
atingir camadas mais profundas e mesmo insuspeitadas sobre a divindade. No entanto, trata-se do
Deus que nossa razão pode vislumbrar, ainda que de maneira tateante e misturada com erros e
obscuridades. 5 Sendo assim, não haverá oposição entre o Deus que foi revelado e aquele que
nossa inteligência nos mostra, a partir da consideração da realidade. Por isso, a fé poderá servir de
impulso para a reflexão filosófica, e mesmo iluminar aspectos que em si são acessíveis pela razão,
mas que podem ter sido esquecidos, ou mesmo não percebidos. Mas isso não leva a confundir a fé
com a razão. Quando tratamos das provas da existência de Deus, estamos nos voltando para
argumentos que podem ser apresentados, refutados e confirmados com o uso da razão. A existência
de Deus não implica, por si mesma, uma revelação sobrenatural, que necessite da fé para ser aceita
pelo sujeito. Estamos no nível da inteligência humana, como sucede no âmbito das ciências, das
artes e das várias áreas da filosofia. Sem que se recorra ao sobrenatural, à revelação e à fé, há
autores que consideram que é possível provar a existência de Deus por meio da moralidade e da
psicologia humana. No primeiro caso, o fato de experimentarmos situações morais, nas quais
condutas humanas são avaliadas positiva ou negativamente, implica a referência a um padrão de
correção, que independe das opiniões dos seres humanos ou de elementos meramente continentes.
A partir desse padrão, podemos considerar as ações corretas ou incorretas, e chegamos aqui à
divindade, a única que pode representar a origem do bem e do mal. Nietzsche reconheceu a
possibilidade desse argumento, mas dele concluiu que, por Deus não existir, tampouco podemos
admitir a existência de “fatos morais”. Assim, visar um fundamento para os deveres éticos seria uma
falácia, um resquício das crenças cristãs, que já não tem mais lugar na sociedade (LINVILLE, 391-2).
Outros autores, como Grócio, sustentava que a lei moral vale “ainda que Deus não existisse”, por ser
ela acessível à razão. A prova pela moralidade não tem caráter metafísico, mas principalmente vital.
Bem desenvolvida, pode ser persuasiva para várias pessoas, que não admitem o relativismo e notam
a necessidade de uma base profunda para os juízos acerca do bem e do mal. Ao mesmo tempo, ela
aponta para Deus, mas não chega até ele. Tanto que gente que não admite a existência de Deus
frequentemente aceita a necessidade de seguir as normas éticas e buscar ações boas e retas. Com
respeito à psicologia humana, a argumentação parte do reconhecimento de que os eventos mentais
não são físicos, mas apresentam uma origem pessoal, imaterial. A consciência é emergente, no
sentido de que não depende exclusivamente da matéria para ser explicada e existir. Uma vez que
isso é admitido, a realidade não pode ser resumida ao âmbito das leis e elementos físicos. Logo, a
existência de Deus é necessária para fundamentar o surgimento da consciência e da dimensão
imaterial (MORELAND, 296, 340). É uma argumentação robusta, pois a subjetividade e intimidade
humanas, com seus atos próprias - conhecer e querer - não logram ser abarcados apenas pelo
material. Porém, essa prova não chega à ordem do universo e à presença de um organizador
sapiente de toda a realidade, responsável pelo surgimento de entes conscientes. Mas é um passo
interessante nessa direção, ainda que não tão metafisicamente convincente como outras vias que
estudaremos.
Reflita
As provas com base na moralidade e na psicologia humana são distintas das vias metafísicas. Ao mesmo
tempo, a força delas em parte é devida a que ambas se aproximam das provas metafísicas.
A moralidade é a ordem na conduta humana, bem como a avaliação dela como boa ou má. Nisso há vestígios
da via da ordem do universo, bem como de Deus como a própria bondade. Com respeito à prova psicológica,
ela nos mostra que há uma gradação nos seres, e que a matéria é incapaz de explicar o surgimento da
consciência, algo mais nobre que o meramente físico. São traços da via da contingência, porque a consciência
indica um ente que se mantém apesar de alterações físicas, e da via dos diversos graus de perfeição dos
seres. Portanto, qualquer prova da existência de Deus, mesmo uma religiosa ou psicológica, não será nunca
contrária ou irreconciliável com os argumentos metafísicos a favor da existência da divindade.

1.1.3. A existência de Deus é evidente?


O argumento ontológico Pensadores importantes consideram que a existência de Deus é evidente
por si mesma. Uma vez que tenhamos compreendido os termos que fazem parte de certas
proposições, concluímos de maneira inequívoca e segura. No caso da divindade, quando
entendemos o que ela é, percebemos imediatamente que ela existe, de modo evidente e imediato.
Ou seja, formular o conceito de Deus implica em reconhecer imediatamente a sua existência. Na
história da filosofia, as tentativas de provar a existência de Deus dessa maneira foram chamadas de
argumentos ontológicos. Encontramos pela primeira vez esse argumento em Anselmo da Cantuária,
no século XI. Ele afirma que Deus é o maior ser que se possa conceber, porque esta é a sua
definição. Se Deus existe, então Ele é infinito e imenso, superior a todo o resto. Ora, Deus está no
entendimento de quem pare para refletir sobre Ele. Mesmo quem não acredite inicialmente na
divindade, pode formular o pensamento de um ser que seja o maior concebível. Então, Deus existe
no entendimento de quem pensa nEle. Existir na realidade é mais do que estar apenas no
pensamento de alguém. Então, se Deus existe apenas no pensamento, mas não na realidade, Ele
não é o maior ser concebível. Mas isso é absurdo, porque a noção de Deus é exatamente a de maior
ser concebível. Logo, Ele deve existir na realidade, por ser “aquilo maior do que o qual nada pode
ser pensado” (ANSELMO, Proslogium, c. 2). Já na época de Anselmo, surgiram vozes contra o argumento
ontológico. A principal delas foi a de Gaunilo, que escreveu um livro refutando a evidência da
existência de Deus. Esse autor afirmou que simplesmente formular a ideia de um ente “maior do qual
nada pode ser pensado” não garante a existência, fora da mente, de tal ente. Indo além, ele sustentou
que a impossibilidade de saltar do mundo mental para o real observa-se em outros conceitos, sobre
os quais ninguém tem dúvida da diferença entre existência intelectual e objetiva. Assim, posso
imaginar uma ilha perfeita, tão maravilhosa que seja inconcebível pensar em uma ilha melhor do que
ela. Logo, essa ilha precisa existir na realidade, porque, se assim não for, ela não será a mais
maravilhosa possível. Sabemos que essa conclusão é falsa, porque ninguém conhece a dita ilha,
mesmo que a tenha imaginado do melhor modo possível. Então, a mesma separação entre perfeição
no intelecto e existência real pode se dar em Deus. A resposta de Anselmo a Gaunilo foi simples,
ainda que alguns não a considerem satisfatória. Para o santo, a estrutura do argumento pode-se
aplicar apenas a Deus. Uma ilha pode ser a mais perfeita concebível como ilha, mas não será jamais
o ente superior a qualquer outro que possa ser concebido. Somente para este, que é Deus, a
existência é exigida por sua essência. Nesse ponto, Anselmo está correto, porque só Deus tem o ser
como algo necessário. Porém, o argumento de Gaunilo mostra a impossibilidade de saltar do mental
para o real. O argumento ontológico teve uma trajetória importante na história da filosofia. Descartes
o aperfeiçoou, sustentado que Deus é o ser mais perfeito, que possui todas as riquezas da perfeição.
Como existir é um atributo positivo, que aprimora quem o possui, Deus deve também existir, porque
isso faz parte da sua definição como ente sumamente perfeito (DESCARTES, 39-41). Hegel também
aceitará o argumento ontológico, porque, para ele, o pensamento é o ser, no sentido de que não há
qualquer ser que não seja objeto do pensamento. Se o ser é pensado pelo pensamento, o fato de
pensarmos Deus é a prova de que ele existe (BERTI, 145). Essa maneira peculiar de apresentar o
argumento ontológico é coerente com a filosofia hegeliana em seu todo. Tomás de Aquino não
aceitará o argumento ontológico, por dois motivos. Primeiro, porque ele representa um salto da mente
para a realidade exterior, e fazer isso não é correto nem consistente.
Em outras palavras, o conceito de algo, por mais bem elaborado e rico que seja, não garante que
esse algo exista fora da mente. Essa restrição vale também para o pensamento a respeito de Deus.
Segundo, nem todas as pessoas admitem que Deus sejam o ente em relação ao qual qual não possa
ser concebido nada maior. Essa definição de Deus, para quem não admite sua existência, nada diz.
É simplesmente a descrição de uma fantasia, que não pode ser provada apenas com a afirmação de
que pensei nesse ente. Ou seja, para quem não aceita a existência de Deus, partir da sua definição
é começar de maneira invertida. Mesmo se considerarmos o argumento ontológico equivocado, há
algo atraente e instigante nele. Se tivéssemos uma inteligência perfeita, ele serviria para provar a
existência de Deus; como não a temos, ele é falho. Deus é efetivamente seu próprio ser, ele é
necessariamente. Por isso, se conhecêssemos sua essência, concluiríamos que ser e existir fazem
parte dela. Porém, isso nos é inacessível. Assim, o argumento ontológico nos deixa perplexos,
porque intuímos que ele está fundado em uma verdade, mesmo que ele não consiga convencer um
ateu ou uma pessoa dubitativa.
1.2. Argumentos Cosmológicos: as Vias Tomistas
Os argumentos ontológicos são a priori, porque anteriores a qualquer conhecimento sensível ou
abstraído da realidade material. Da noção de Deus, pretende-se deduzir a sua existência, sem
recorrer a qualquer conhecimento adquirido anteriormente. Já os argumentos cosmológicos são a
posteriori, porque não se fundam em conceitos analíticos, formais, mas na observação do mundo e
em conclusões que são tiradas a partir do que apreendemos do universo. As demonstrações
cosmológicas são pelos efeitos: através deles, chegamos às causas. No caso de Deus, observando
a realidade, notamos nela notas que reclamam uma causa infinita e primeira, que sustente todo o
resto. As demonstrações através dos efeitos são denominadas quia, porque. Outro tipo de
demonstrações são as propter quid, que vão das causas para os efeitos. Não servem para Deus,
porque não conhecemos diretamente a causa divina, pois não temos essência à sua essência. O
argumento ontológico é uma tentativa de demonstração propter quid, mas apresenta as limitações
que apresentamos acima. A mais conhecida e articulada formulação de argumentos cosmológicos a
respeito da existência de Deus foi realizada por Tomás de Aquino, no início da Suma 10 teológica (I
q. 2 a.3). As cinco vias propostas por ele fundamentam-se em diferentes causalidades, e cada uma
apresenta como ponto de partida um aspecto da realidade facilmente apreensível. A partir daí, com
o emprego de noções metafísicas e de filosofia da natureza, se desenvolve um raciocínio para
explicar o efeito percebido. Chega-se assim a causas, que são reduzidas e elevadas para uma causa
primeira e fundamental, a quem chamamos Deus. Para compreender as cinco vias e reconhecer sua
força, é preciso conhecer conceitos filosóficos específicos. Elas não são algo solto e autônomo em
relação ao pensamento clássico, mas estão inseridas nele e o pressupõem. Sem noções básicas de
filosofia natural e metafísica, as vias parecem estar eivadas de saltos lógicos e falácias. Ao contrário,
uma vez que dominemos as noções necessárias e as empregamos nas explicações dos fenômenos
sensíveis apontoados por Tomás, as cinco vias se mostram sólidas, convincentes e sintéticas.
Autores importantes, muitos deles simpatizantes de Tomás de Aquino e do pensamento teísta,
sustentam que as cinco vias não pretendem ser provas em sentido próprio, mas são argumentações
que levam a um limite, que sugerem um mistério. É a posição, por exemplo, de David Fergusson,
Alistair McGrath, Remi Brague e Stanley Hauerwas, todos eles com escritos importantes e sérios. A
favor dela, está o desejo de desvincular os argumentos tomistas das provas em sentido cartesiano,
que não admitiriam qualquer dúvida e teriam uma força quase matemática. Contudo, esse receio, ou
mesmo recusa, em empregar o termo “prova” e entender as vias como tal é um equívoco. Basta ler
as obras de Tomás de Aquino, de Aristóteles e de autores similares, para verificar que eles realmente
procuraram demonstrar a existência de Deus, empregando as ferramentas intelectuais apropriadas,
que são filosóficas, e não empíricas ou meramente lógicas ( LEVERING, Introduction; ELDERS, 83).
Podemos aceitar ou não os argumentos de Tomás, mas eles são provas, e se mantêm ou caem a
partir desse ponto de vista.
1.2.1. Primeira via: o movimento e o motor imóvel
As cinco vias estão no art. 3 da questão 2 da Primeira Parte da Summa teologiae∫. Toda a questão
gira em torno da existência de Deus, a respeito da qual há três aspectos a esclarecer: se ela é
evidente por si mesma (art. 1), se ela é demonstrável (art. 2), e se Deus existe (art. 3). Para
argumentar a favor da existência de Deus, Tomás escreve que há cinco vias:
A via primeira e mais clara parte do movimento. Nossos sentidos atestam, com toda a certeza, que neste
mundo algumas coisas se movem. Ora, tudo o que se move é movido por outro. Nada se move que não esteja
em potência em relação àquilo para o qual é movido; por outro lado, o que move o faz enquanto se encontra
em ato. Mover nada mais é, portanto, do que levar algo da potência ao ato, e nada pode ser levado ao ato
senão por um ente em ato. Como algo quente em ato, tal qual o fogo, torna a madeira, que é quente em
potência, quente em ato, e assim a move e altera. Ora, não é possível que a mesma coisa, considerada sob
o mesmo aspecto, esteja simultaneamente em ato e em potência, a não ser sob aspectos diversos: por
exemplo, o que está quente em ato não pode estar simultaneamente quente em potência, mas está frio em
potência. É impossível que sob o mesmo aspecto e do mesmo modo algo seja motor e movido, ou que mova
a si próprio. É preciso que tudo o que se move seja movido por outro. Assim, se o que move é também movido,
o é necessariamente por outro, e este por outro ainda. Ora, não se pode continuar até o infinito, pois neste
caso não haveria um primeiro motor, por conseguinte, tampouco outros motores, pois os motores segundos
só se movem pela moção do primeiro motor, como o bastão, que só se move movido pela mão. É então
necessário chegar a um primeiro motor, não movido por nenhum outro, e este, todos entendem: é Deus.

As duas afirmações fundamentais desta vida são: “tudo que se move foi movido por outro” e “não se
pode continuar até o infinito” na cadeia de causas. Vamos examinar cada uma delas. Inicialmente,
parece que há realidades que se movem por si mesmas. Isso é ainda mais notável a partir da
descoberta da lei da inércia por Newton. Um corpo pode se movimentar localmente de modo
indefinido, sem que esteja sendo empurrado por outro. É o chamado movimento retilíneo uniforme,
que segue enquanto não houver outra força externa incidindo no corpo em questão. Assim, o avanço
da ciência teria demonstrado que a cadeia do movimento é falsa, um resquício da física medieval,
anterior à revolução científica. Ademais, vemos que os seres vivos se movem por si mesmos. Cada
um de nós levanta-se porque quer, guia-se pela sua própria vontade ou pelos seus reflexos. Não há
outro ente que nos controle. Antigamente, acreditava-se que os astros influenciavam nossa vontade
em cada momento; atualmente, sustentar isso não é viável, ao menos no mesmo modo que os
deterministas pensavam. É o ser humano quem dirige a própria conduta, e os animais fazem algo
similar a partir dos seus sentidos. Mesmos as plantas organizam e controlam seu crescimento e
alimentação; ou seja, eles se movimentam a si mesmas. A inércia e o movimento retilíneo uniformes
são aspectos importantes da descrição dos fenômenos. Porém, são conceitos mais teóricos dos que
descritivos da realidade, porque os seres estão constantemente submetidos, no mundo material, a
uma série considerável de forças. Não há algo que simplesmente esteja avançando, sem ser
movimentado por nada. E mesmo se isso possa ser dito, com alguma imprecisão, de certos corpos
no espaço, o movimento deles teve um começo. Portanto, a passagem da potência para o ato não
decorreu do próprio ente que se move, mas foi efetivada por outro ente em ato. Sempre é possível
chegar à origem do movimento que é externa ao sujeito movido. Com relação aos seres vivos, a
explicação é mais complexa. Agimos movidos por objetos que trazem em si um bem para nós. O
mesmo vale para o que conhecemos, que são entes verdadeiros. Então, nosso movimento não é
causado apenas por nós mesmos, mas é impulsionado por outras realidades. A própria natureza,
enquanto princípio do movimento, é atualizada por algo exterior a ela. Ela mesma se põe a funcionar
movida por algo: nossa digestão funciona porque engolimos algum alimento, a reprodução
pressupõe a ação de vários elementos atuais, e assim por diante. Mesmo os seres racionais se
movem em vista de um bem, que é algo em ato que eles buscam: por isso, levanto-me e vou fazer
um exercício, que foi apresentado a mim, pela minha inteligência, como o adequado a fazer. Quanto
à sucessão infinita de motores, ela deve ser entendida metafisicamente, não apenas temporalmente.
O primeiro motor é o que princípio da cadeia de motores, mas essa cadeia pode existir sem ter tido
começo temporal, pois sempre foi sustentada pelo motor imóvel.
Conforme estudamos anteriormente em Filosofia da Natureza, o universo poderia não ter início, em
termos filosóficos, pois Deus poderia estar continuamente causando e movimento outros entes
sempre. Mesmo que não houvesse um início temporal para o universo e os motores, o motor imóvel
teria precedência metafísica, porque o resto apenas existe em virtude dele. É algo semelhante ao
calor e ao fogo: eles são simultâneos, mas o fogo causa o calor, e não o contrário; por isso, o fogo é
anterior ao calor, em termos causais e metafísicos. Edward Feser considera que a primeira via diz
apenas respeito a causas que produzem seus efeitos simultaneamente às suas ações - por exemplo,
o calor e o fogo, ou minha alma que me mantém vivo, e assim por diante -, e não a causas cujos
efeitos sobrevivem a elas - os filhos em relação aos pais, um livro e seu autor, etc. (FESER, c. 3).
Entendo que Tomás não faz essa distinção, e a via pode se fundar em qualquer tipo de movimento,
na qual há a passagem da potência para o ato, através da ação de algo que esteja em ato.
1.2.2. Segunda via e o argumento kalam
A segunda via é próxima da primeira:
A segunda via parte da noção de causa eficiente. Encontramos nas realidades sensíveis a existência de uma
ordem entre as causas eficientes; mas não se encontra, nem é possível, algo que seja a causa eficiente de si
próprio, porque desse modo seria anterior a si próprio: o que é impossível. Ora, tampouco é possível, entre
as causas eficientes, continuar até o infinito, porque entre todas as causas eficientes ordenadas, a primeira é
a causa das intermediárias e as intermediárias são a causa da última, sejam elas numerosas ou apenas uma.
Por outro lado, supressa a causa, suprime-se também o efeito. Portanto, se não existisse a primeira entre as
causas eficientes, não haveria a última nem a intermediária. Mas se tivéssemos de continuar até o infinito na
série das causas eficientes, não haveria causa primeira; assim sendo, não haveria efeito último, nem causa
eficiente intermediária, o que evidentemente é falso. Logo, é necessário afirmar uma causa eficiente primeira,
a que todos chamam Deus.

Aqui, o elemento que percebemos é a causalidade, não o movimento, ainda que também o
movimento seja causado. É, nesse sentido, mais ampla do que o próprio movimento. Nesta via, a
questão da impossibilidade de uma sequência infinita, aqui de causas, volta, de modo ainda mais
claro do que expresso na via anterior. Há autores que não aceitam a causalidade, nos termos em
que ela foi descrita e compreendida pelo pensamento clássico. Para eles, observamos o que
habitualmente acontece e o consideramos uma característica intrínseca das coisas, que a faz se
comportar de certo modo e produzir efeitos nela e fora dela. Podemos afirmar que um trovão caiu
em uma árvore a destruiu. Contudo, o que de fato se deu é que percebemos uma sucessão temporal
entre o trovão e o fogo na árvore. Nossa inteligência tende a colocar o que aconteceu posteriormente
como causado pelo que sucedeu anteriormente. No entanto, isso não é seguro e nem sempre certo.
De fato, não há nada que impeça que o raio caia em uma árvore e ela permaneça íntegra. Não há
uma relação de necessidade entre um evento e outro, como indica o princípio de causalidade. Porém,
o equívoco da crítica se torna patente: o fato de não haver necessidade lógica ou mental entre causa
e efeito - o filho pode ser pensado sem que nos refiramos aos que o geraram -, na realidade o efeito
sempre demanda uma causa. A negação da causalidade é uma argumentação sofística, que tem
seu valor por nos levar a aprofundar no sentido de causa e efeito, mas não 14 é uma descrição da
realidade, nem algo que possa ser sustentado sem contradição. O próprio discurso que nega a
causalidade é ele mesmo causado pelo seu sujeito. Nos dias de hoje, há um argumento cosmológico
famoso sobre a existência de Deus, que se assemelha à segunda via, ainda que apresente
diferenças significativas. É o argumento kalām, formulado por William Lane Craig. Essa denominação
é devida à sua exposição na Idade Média por uma série de filósofos da tradição de pensamento
islâmico denominada kalām. Para Craig, o universo necessariamente teve uma origem, e apenas
Deus poderia ser a causa dela. Desenvolvendo esse raciocínio, tudo que começa a existir tem uma
causa de sua existência, e como o universo começou a existir, ele tem uma causa. Podemos arguir
que essa causa, transcendente ao universo e potente para trazê-lo ao ser, é um ser pessoal, que
escolhe livremente criar o mundo. Portanto, o argumento kalām conduz a um Deus criador do
universo (CRAIG; SINCLAIR, 101-3). Algumas das principais críticas ao argumento cosmológico
kalām é que ele conclui mais do que legitimamente poderia fazê-lo.
De fato, algo que começou a existir foi causado por outro; contudo, não está comprovado que o
universo teve uma origem temporal, porque ele poderia existir desde sempre. Aliás, era assim que a
maior parte dos filósofos gregos, inclusive Aristóteles, compreendiam o cosmos: uma realidade sem
início no tempo. Igualmente, o salto para um Deus pessoal é abrupto, porque o universo poderia
emanar necessariamente da divindade. A mera existência do mundo não permite concluir pela
existência prévia de um ser eterno e pessoal. As conclusões do argumento kalām são verdadeiras,
mas não decorrem das premissas apontadas por Craig ou pelos pensadores islâmicos.
1.2.3. Terceira via: entes necessários e contingentes
Vejamos agora a terceira via:
A terceira via é tomada do possível e do necessário. Ela é assim: encontramos, entre as coisas, as que podem
ser ou não ser: nelas são encontradas o gerar e o corromper-se; consequentemente, é possível que sejam e
que não sejam. Mas é impossível que qualquer das coisas que sejam assim, existam sempre: porque o que
pode não ser, em algum momento não é. Logo, se tudo pode não ser, houve um momento em que nada
houve. Mas se isso é verdadeiro, também agora nada existiria: pois o que não é só passa a ser por algo que
já é. Por conseguinte, se não existiu ente algum, foi impossível que algo começasse a existir; e desse modo,
nada existe: o que é evidentemente falso. Assim, nem todos os entes são possíveis, mas é preciso existir algo
necessário dentre as coisas. Ora, tudo o que é necessário tem a causa da sua necessidade em outro, ou não
a tem. Mas não é possível continuar até o infinito na série das coisas necessárias que têm a sua necessidade
causada, como não se pode fazer nas causas eficientes, como se provou. Portanto, é necessário afirmar a
existência de algo necessário por si mesmo, que não encontra em outro a causa de sua necessidade, mas
que é causa da necessidade dos outros: o que todos chamam Deus.

Essa via é muitas vezes considerada fraca por metafísicos contemporâneos, inclusive estudiosos de
Aristóteles e Tomás de Aquino. Para eles, há um sofisma no argumento: não é verdade que aquilo
que pode não ser, em algum momento não foi; sustentar isso é passar da possibilidade para a
realidade, o que configura uma mudança modal. A possibilidade é uma abertura ao sim e ao não, e
não implica o não, como parece indicar Tomás de Aquino. Mas, mesmo que aceitemos isso, não há
como admitir que do fato de todos os entes serem possíveis decorre que em algum momento nenhum
deles existe. Afinal, poderia sempre existir algum ente, que, sendo possível, daria origem a outro
possível, com um se corrompendo, mas o outro dando gerando outros entes possíveis, e assim
teríamos uma cadeia de entes que nunca implicaria na ausência absoluta de qualquer coisa (WIPPEL, 464-5).
Essa suposta refutação parece-me baseada em uma compreensão insuficiente da via. Os entes
possíveis são primordialmente aqueles compostos de matéria e forma, aos quais a corrupção é
natural. Eles não conseguem se manter em existência por si mesmos de maneira contínua, mas
todos se corrompem, em mais ou menos tempo. Portanto, todos esses entes contingentes, com o
passar do tempo, deixarão de ser; essa é a nossa experiência, que vale inclusive para planetas,
estrelas e galáxias. Se toda a realidade apenas apresentasse entes que se corrompem, então
haveria um momento em que todos esses entes simultaneamente deixariam de existir. Ao menos,
essa é uma possibilidade, que terminaria por ocorrer em uma sucessão sem fim de anos de
mudanças, corrupções e gerações. Porém, isso não se dá. Logo, há entes incorruptíveis, que
explicam a existência de entes possíveis (FESER, 2011, c. 3). Talvez pudéssemos pensar que a matéria
seja aquilo que não se destrói nunca, o que tornaria supérfluo o recurso a Deus como ser necessário.
Contudo, a matéria não existe sozinha, mas sempre atualizada por uma forma. Se os entes são, eles
receberam o ser de outro, bem como a forma, até que cheguemos a entes que não se corrompem -
as substâncias separadas -, cuja necessidade é causada por um ser que é necessário por si mesmo,
Deus.
1.2.4. Quarta via e os graus de perfeição
A quarta via é distinta das demais e dela decorrem vários atributos divinos. Escreve Tomás de
Aquino:
A quarta via parte dos graus que se encontram nas coisas. Encontra-se nas coisas algo mais ou menos bom,
mais ou menos verdadeiro, mais ou menos nobre etc. Ora, mais e menos se afirmam de coisas diferentes
conforme elas se aproximem diversamente daquilo que em si é o máximo. Assim, mais quente é o que mais
se aproxima do que é sumamente quente. Existe em grau supremo algo verdadeiro, bom, nobre e,
consequentemente o ente em grau supremo, pois, como se mostra no livro 2 da Metafísica, o que é em sumo
grau verdadeiro, é ente em sumo grau. Por outro lado, o que se encontra no mais alto grau em determinado
gênero é causa de tudo que é desse gênero: assim o fogo, que é quente, no mais alto grau, é causa do calor
de todo e qualquer corpo aquecido, como é explicado no mesmo livro. Existe então algo que é, para todos os
outros entes, causa de ser, de bondade e de toda a perfeição: nós o chamamos Deus.

Esta via foi profundamente estudada no decorrer do século 20, sendo que alguns autores a
consideram como a mais platônica de todas as vias. Ainda que haja algo de verdade nisso, pois a
via tratar da noção de participação, central para Platão e não tanto importante em Aristóteles, o fato
é que, para sustentá-la, Tomás recorre a este último autor, que ressaltou a relação entre ente e
verdade na Metafísica. Nesta via, vemos a questão dos graus de bondade, verdade e nobreza dos
entes, todos estes. atributos ligados, mais ou menos estreitamente, aos transcendentais. Há uma
hierarquia entre tudo o que existe, que leva a considerar que tudo tem sua origem em um ente que
seja pleno e perfeito, suma verdade e bondade. Isso explica nossa capacidade de distinguir graus
distintos dessas qualidades nos entes, bem como o fato de reconhecermos traços dessas qualidades
sublimes em todas as coisas, o que nos remete à fonte de tudo, que é Deus. Têm dificuldade para
compreender essa via aqueles autores que não valorizam a analogia e a participação. Um caso
ilustrativo é do excelente Enrico Berti, que considera não haver diferença de graus entre os entes,
mas apenas distintos gêneros de entes. Não seria uma diferença de quantidade, como supostamente
propõe Tomás, mas qualitativa. Por isso, a prova parte de algo falso e fracassa (BERTI, 2022, 82-6).
Porém, esta prova é sólida e convincente, como pensam Maritain, Gilson e Fabro. Ainda que as
coisas sejam ou não sejam, nós temos um enorme gradiente de entes, pois alguns são apenas em
outros - os acidentes -, outros tendem a corromper-se - os entes naturais -, enquanto que outros
permanecem em seu ser - as substâncias separadas -, havendo inúmeras distinções nesses e em
outros grupos de entes. Mas algo deve ser por si mesmo, possuindo o ser em grau máximo, e por
isso sendo a causa dos demais entes: é a divindade.
1.2.5. Quinta via e a ordem do cosmos
A última via é apresentada assim:
A quinta via é tomada do governo das coisas. Com efeito, vemos que algumas coisas que carecem de
conhecimento, como os corpos físicos, agem em vista de um fim, o que se manifesta pelo fato de que, sempre
ou na maioria das vezes, agem da mesma maneira, a fim de alcançarem o que é ótimo. Fica claro que não é
por acaso, mas em virtude de uma intenção, que alcançam o fim. Ora, aquilo que não tem conhecimento não
tende a um fim, a não ser dirigido por algo que conhece e que é inteligente, como a flecha pelo arqueiro. Logo,
existe algo inteligente pelo qual todas as coisas naturais são ordenadas ao fim, e a isso nós chamamos Deus.

A segunda via se funda na causalidade eficiente; a quarta, na causalidade formal; a quinta deriva da
causalidade final. A ordem que encontramos no universo não pode ser fruto de acaso; por haver
padrões, indica uma inteligência reguladora por trás de tudo. Isso é nítido nos entes inanimados, mas
também é notável nos animados, inclusive nos inteligentes. De fato, mesmo que os entes racionais
escolham a sua conduta, com base em um fim consciente, eles apresentam inclinações e modos de
ser que são naturais, vindos de fora. Apenas assim podemos entender o funcionamento dos nossos
órgãos vitais. Esta via foi considerada em outras obras de Tomás de Aquino, como seu Comentário
ao Evangelho de João, como a prova mais eficaz (Super Io., pr. 1). Como toda a natureza está ordenada,
deve haver algo mais alto que ela, que a governa e ordena. Reconhecer a ordem e os padrões dos
cosmos não significa sustentar que eles sejam sempre exatos e infalíveis. Há uma série de realidades
que são defeituosas; porém, reconhecer que algo está fora do devido, já pressupõe admitir que há
um padrão correto. Se não houvesse saúde, não teria sentido apontar a doença. As falhas na
natureza apenas são observadas como tal porque existe um comportamento previsível e esperado.
Esta via baseia-se, por tanto, na inteligibilidade e organização de toda a realidade, o que em si
mesmo é instigante. Que sejamos capazes de compreender o que existe com a nossa inteligência,
mostra a adequação de um à outra, que por sua vez aponta para um autor comum de tudo. Quando
enfraquecemos o poder da razão humana, podemos duvidar da ordem do universo como um todo.
Isso não deve nos estranhar, porque nossa razão é um reflexo da inteligência divina; se a primeira é
desconsiderada, podemos nos cegar para a segunda. Considerações Finais As provas para a
existência de Deus são um assunto inesgotável, pela sua riqueza e complexidade. Nelas, temos uma
concentração de toda a filosofia, porque as concepções intelectuais predominantes de uma pessoa
podem possibilitá-la entender e admitir essas provas, ou dificultar muito que os argumentos sejam
compreendidos e ponderados. Em certa medida, essas provas ou vias são o fruto final de toda a
filosofia; não tanto seu ponto de partida, mas a conclusão que se alcança a partir de premissas que
abarcam um número expressivo de conceitos filosóficos. O aspecto moral influencia grandemente
na aceitação ou não das provas de existência de Deus, pois apenas refletimos sobre elas a partir de
uma posição que já adotamos, de um modo ou outro. Isso não quer dizer que quem não admita tais
provas seja desonesto intelectualmente; pode acontecer que alguém efetivamente não enxergue a
força e coerência delas. Mas é preciso ter consciência desse aspecto não diretamente racional, mas
que influencia o pensamento de todos nós. Também no sentido de eventualmente admitir como
verdadeiras algumas argumentações que sejam defeituosas. Para mim, essas provas são
convincentes, muito mais do que todos os argumentos que foram direcionados contra elas. Porém,
isso não significa que elas sejam óbvias, ou simples. Ao contrário. Por ser o fundamento de tudo, a
divindade muitas vezes está escondida; de fato, ela é imensa demais para caber em nossa mente, e
isso pode nos levar a desconsiderá-la. Por outro lado, se a divindade é o que percebemos que deve
ser, então ela certamente será superior à nossa capacidade. Chegamos aqui a um aparente
paradoxo, mas que ressalta a beleza da filosofia e nos faz admirar a capacidade humana e, mais
ainda, a grandeza do universo e da divindade. Justamente o fundamento de tudo, a causa primeira
de toda a realidade, se ela é tal, será de difícil compreensão para nós. Ou seja, justamente o que
ilumina tudo, é forte demais para que o apreendamos. Se assim não fosse, teríamos nos deparado
com uma mera construção intelectual humana, que por isso mesmo é insuficiente e limitada.
UNIDADE 2 – ATRIBUTOS DIVINOS
Introdução
O conhecimento sobre Deus e seus atributos é tema largamente discutido em filosofia. Mesmo quem admita
a existência de Deus pode considerar que é impossível saber o que for a respeito dEle, por ser algo infinito e
inefável, inadequado para ser apreendido por nossa inteligência limitada. Também há os autores que
consideram ser possível entender racionalmente quem é Deus, suas qualidades e modos de ser, como se
esse fosse um tema adequado à inteligência humana. Assim, temos duas posições opostas: o agnosticismo
e o racionalismo. Na primeira, abrimos mão de refletir a respeito de Deus e suas notas, porque elas estão
muito acima de nós; no segundo, julgamo-nos capazes de abarcar a divindade com a nossa inteligência,
sendo desnecessária a fé e a cautelara para mergulharmos em quem a divindade é. Mesmo que nossa razão
seja insuficiente para entender a essência divina, ela serve para que compreendamos primariamente o que
Deus não é, e secundariamente algo do que ele é. Esse é o estudo dos atributos divinos, que estão
estreitamente ligados às provas da existência divinas. Os argumentos elaborados para provar que Deus existe
nos levam a alguém com qualidades únicas, específicas, próprias da divindade. Nesta unidade, vamos nos
voltar a elas. Sabemos que não é fácil mentalizar um ente imaterial, que é tão diferente de tudo o mais que
conhecemos, ainda que Ele seja a causa de todas as coisas. Estamos diante de um caso em que há uma
desproporção enorme entre o efeito e a causa, pois o primeiro reflete apenas algo ínfimo da segunda. Assim,
todos os demais entes nos remetem a Deus, mas de modo extremamente imperfeito, porque a distância entre
qualquer ser finito e a divindade é infinita. Contudo, tais entes finitos são o único caminho para filosofar acerca
da divindade. Estudaremos diretamente os seguintes atributos divinas: unicidade, simplicidade, imutabilidade,
imaterialidade, eternidade, bondade, infinitude, omnisciência, inteligência e onipotência. Todos eles decorrem
de Deus ser o próprio ser subsistente, atualidade plena e perfeita.
2.1. Atributos Divinos em Geral. Unicidade, Simplicidade e Imutabilidade
2.1.1. Entendimento humano e atributos divinos
Na filosofia clássica, considera-se que podemos saber diretamente que Deus é ou existe, mas não
o que Ele é, qual a sua essência. Nas palavras de Tomás de Aquino: “A divina substância excede,
por sua imensidade, toda forma que nosso intelecto alcança; e por isso não podemos apreendê-la
conhecendo o que ela seja” (C. G., l. 1, c. 14). No entanto, podemos saber o que a essência divina não
é, o que configura uma espécie de conhecimento. Removemos da noção de Deus elementos que
observamos em outras realidades. Assim, vamos distinguindo a divindade daquilo que possui uma
existência limitada. Quanto melhor diferenciarmos Deus do resto, mais profundo será nosso
conhecimento dEle. Este método é chamado por Tomás de Aquino de via da remoção, porque
tiramos o que não se adequa a Deus. Por ele, chegamos a que Deus é distinto de todas as
substâncias, mas não sabemos o que Ele seja em si mesmo, de maneira essencial. Esse modo de
compreender a divindade tem por fundamento a teologia negativa, ou apofática, introduzida no
Ocidente através da tradução das obras de Pseudo Dionísio Areopagita. Essa teologia reconhece
que, na medida em que nos aproximamos da divindade, as palavras vão se tornando cada vez mais
inadequadas e limitadas para expressá-la. Não significa que as afirmações que façamos sobre Deus
- onipotente, sábio, bom - sejam apenas metafóricas, ou mesmo falsas. Apenas que as palavras que
empregamos, bem como os conceitos relativos a elas que temos em nossas mentes, são muito
inferiores à realidade divina. Por isso, ao lado da remoção, temos a via da excelência. Pela primeira,
eliminamos da noção de Deus aquilo que não lhe convém; pela segunda, atribuímos a Deus noções
afirmativas, cientes de que elas têm um sentido muito superior na divindade do que em todas as
demais realidades. Sempre que tratarmos dos atributos divinos, lançaremos mão dessas duas vias.
Ademais, os nomes que predicamos de Deus são analógicos, porque nós os aplicamos de modo em
parte similar, em parte diferente, ao tratar dos entes finitos. Em outras palavras, afirmar que Deus
seja bom, sábio, poderoso e inteligente, não tem o mesmo sentido – unívoco – de quando
qualificamos um ente finito com a mesma expressão. Porém, não há uma diferença total, o que
impediria mesmo de usar palavras humanas para tratar da divindade. Mesmo sendo uma analogia,
e por isso trazer elementos comuns entre os vários empregos da palavra, qualquer conceito humano
está muito distante da realidade divina, conforme estabelece a via da excelência. Através dos efeitos,
chegamos a Deus, que é a causa. Atribuímos à divindade atributos que percebemos a partir dos
efeitos que ela produz. Porém, estamos longe da essência de Deus, que está além das nossas
forças. Muitas das confusões sobre Deus advêm da antropomorfização de seus atributos. Daí que
alguns o acusem de cruel, ou o considerem desinteressado dos assuntos humanos, ou sujeito a
mudanças de modo similar às dos entes naturais. Esse equívoco é compreensível, porque
conhecemos essas notas primariamente ao observá-las nos seres humanos. Ao pensar em justiça,
misericórdia e inteligência, é razoável que venha às nossas mentes exemplos de seres humanos
dotados dessas qualidades. Em Deus, contudo, elas existirão de maneira distinta. Certamente, muito
mais sublime e perfeita, mas nem sempre compreensível para nós.
2.1.2. Unicidade: plenitude do ser
É possível iniciar os estudos dos atributos divinos por vários caminhos, porque cada um deles está
relacionado aos outros, às vezes de maneira direta. Aqui, iremos começar com a unicidade. Deus é
único, ou seja, não pode haver uma multiplicidade de deuses. Em Metafísica 2, vimos que a essência
de Deus é o seu próprio ato de ser, sem que a primeira limite de qualquer modo o segundo. Ter como
essência o próprio ato de ser, sem qualquer condicionamento ou gradação, mas de modo pleno e
total, apenas pode se dar um um único ser. Se outros pleiteassem essa plenitude de ser, eles
difeririam uns dos outros por algo; logo, seriam de alguma maneira limitados. Se todos fossem a
plenitude, seriam o mesmo ente, sem distinção entre eles, o que não se dá. A divindade não pode
ser material; por isso, não se dá nela a multiplicidade de indivíduos com a mesma forma, como
observamos nos seres humanos, nas várias espécies animais e vegetais, e assim por diante.
Logo, a forma plena, sem limitação, com plena atualidade, só pode ser uma, e será de um único
indivíduo imaterial. Portanto, a unicidade divina está fundada em sua total atualidade, que é
decorrência de possuir o ato de ser sem qualquer limitação. Em Deus não há qualquer potência
passiva, que sempre implica possibilidade de aperfeiçoamento e atualização, bem como a presença
de alguma limitação. Tal possibilidade não se dá em quem já tem toda a perfeição, sem que nada
possa ser a ela acrescentado ou aprimorado. Ou seja, Deus não pode ser completado, terminado,
aperfeiçoado, porque ele é o próprio ato de ser plenamente atual. Sendo o ato pleno, que
corresponde à perfeição sem mácula ou limitações, Deus é a causa da perfeição de todo o resto.
Nenhum outro ente atualiza-se por si mesmo, mas necessita de outro que o passe da potência para
o ato. Reconhecer isso leva a perceber que é necessário haver um ente que seja ato por si mesmo,
que é a causa primeira da perfeição e atualidade de todos os demais entes. Chegamos aqui às
fronteiras das vias um, dois e quatro de Tomás de Aquino. O que afirmamos não leva a Deus tenhas
todas as qualidades misturadas, como uma colcha de retalhos ou um armazém no qual encontramos
todos os bens e formas substanciais e acidentais. Ao contrário, cada forma implica uma limitação,
uma determinação, e Deus está além disso. Podemos sustentar que ele é a forma máxima, mas isso
significa que sua forma é seu ato de ser, sem que a primeira limite em nada o segundo. Para os
entes limitados, a forma é maneira concreta como eles são, dentre várias outras possibilidades. Para
Deus, o ato de ser é a essência. Com isso, podemos compreender melhor a simplicidade divina.

Reflita
A Metafísica é a ciência do ente enquanto tal, e a causa de todos entes é, ao fim e a o cabo, a divindade. Se
Deus é o ato de ser subsistente, ele é a meta final de todo o estudo metafísico. Afinal, o ser é a noção central
de tudo o que estudamos nas três disciplinas de Metafísica. O ato e a potência, a substância, os acidentes, a
distinção real entre essência e ato de ser, os transcendentais, a causalidade, e todos os demais conceitos
que analisamos giram em torno do ato de ser, a atualidade mais importante. E Deus é esse ato em si mesmo,
de modo simples e absoluto.

2.1.3. Simplicidade e imutabilidade divinas Deus é ato pleno, o próprio ato de ser.
Nele, a essência e o ato de ser são o mesmo. Por isso, ele é absolutamente simples, sem qualquer
composição. Se nele houvesse princípios que se unificam, como se dá nos entes hilemórficos, ou
mesmos nas substâncias separadas, cujo ser é distinto da sua essência, então haveria algo anterior
a ele, isto é, os tais princípios. Sendo a causa primeira e perfeita, Deus é simples. Em outras palavras,
qualquer mistura – substância e acidente, ato e potência, ato de ser e essência, matéria e forma, e
assim por diante – indica que há atos e substâncias anteriores que levam à junção de elementos que
configuram o ente composto. A unidade, nos compostos, é posterior aos elementos que a compõem.
Assim, a cor de um ser humano vem da carga genética que ele recebe; sem o pa25 trimônio genético,
que é anterior à própria existência, a mulher não seria morena ou loira. Esse raciocínio vale para
qualquer composto. A composição entre ato de ser e essência é a mais radical e fundamental de
todas, e ela não se encontra em Deus. Menos ainda veremos nele a composição entre substância e
acidentes, ou entre ato e potência, e absolutamente não a de forma e matéria. Deus é o ato de ser,
sem nada menos nem distinto disso. Ele é o primeiro, causa de todas as demais coisas, e por isso
não é gerado, nem fruto de qualquer composição. Podemos relacionar a simplicidade com a
unicidade divina, porque ao ser plenamente atual, Deus não tem composição. A composição implica
um aperfeiçoamento, uma atualização de elementos anteriormente potenciais. Apenas pode se
compor o que tem potencialidade para isso. A forma humana necessita de uma matéria disposta a
recebê-la; então, temos o ser humano composto de alma e corpo. Como não há potencialidade
passiva em Deus, a composição é impossível; logo, a divindade é simples. Podemos concluir também
que Deus é imutável ou imóvel. Não há movimento nele, porque Ele é totalmente simples e atual.
Não se trata da imutabilidade de algo fossilizado, ou esgotado; é justamente o contrário. A
imutabilidade divina vem de sua atualidade plena, de Ele ser o puro ato de ser. Sendo o motor imóvel,
não há qualquer mudança em Deus. Nele, não há passagem da potência para o ato. Se houvesse,
teríamos que conceber algo com atualidade anterior a Deus, que permitiria acontecer o movimento.
Afinal, só pode haver movimento com a presença de algo atual, que muitas vezes serve como causa
eficiente. Aqui, tocamos os argumentos da primeira via, e o motor imóvel aristotélico. O motor imóvel
necessariamente possui um nível de ser que está acima do restante, porque ele é plenamente ato,
sem possibilidade de aperfeiçoamento.
2.2. Atributos Derivados da Imutabilidade e da Simplicidade
2.2.1. Imaterialidade e eternidade divinas
Os primeiros pensadores, que denominamos pré-socráticos, buscaram em causas materiais o
fundamento de toda a realidade. Platão irá discordar deles frontalmente, defendendo que a realidade
imaterial é mais perfeita que a material; por isso, a divindade não poderia ter corpo. Aristóteles seguiu
na mesma trilha, ao sustentar que as causas primeiras da realidade são imateriais. A partir do que
estudamos acerca da divindade, especialmente da imobilidade, concluímos facilmente que a
divindade é, de fato, imaterial. Toda matéria está sujeita ao movimento, notadamente o local. Sendo
assim, alguém absolutamente imóvel terá que ser imaterial, incorpóreo. Pode haver movimento em
substâncias separadas, pois elas conhecem, agem pontualmente, o que demanda ao menos algum
tipo de movimento, ainda que diferente do natural ou material. Contudo, um ser imóvel
necessariamente será imaterial. Portanto, a imaterialidade pode existir junto com o movimento, mas
a materialidade não pode estar em algo imóvel. O imóvel será imaterial, ainda que nem todo imaterial
seja imóvel. Outra razão a favor da imaterialidade divina é que a matéria sempre pode ser dividida
em partes, e por isso sempre traz consigo a potencialidade. Além disso, ela está relacionada
diretamente ao acidente quantidade. Ora, a potencialidade e a quantidade são excluídos da
divindade em virtude da sua simplicidade e plena atualidade, nas quais não cabem acidentes. Logo,
é preciso que a divindade seja incorpórea. Por ser imóvel e imaterial, a divindade não está no tempo
nem no espaço. Estes dois são categorias relacionadas à medida do movimento temporal e local.
Nas palavras de Aristóteles, aceitas por outros filósofos, o tempo é a medida ou número do
movimento segundo um antes e um depois (Fis.. l. 4, c. 11; 219, b, 1 - 2), conforme estudarmos em Filosofia
da Natureza. As mudanças se dão em passos, sucessivamente. Podemos comparar tais mudanças
em termos de extensão temporal, utilizando ou não uma duração padrão. Contudo, se tratamos de
um ente que não apresenta mudança alguma, ele certamente não estará inserido no tempo. A
passagem de períodos temporais apenas tem significado para o que se move, o que é característico
de todos os entes materiais. A eternidade de Deus não significa mera duração constante, sem início
nem término. Antes, é a posse plena e simultânea do próprio ser, da sua existência. Deus é de
maneira imediata e cabal, plena, sem se aperfeiçoar com o transcorrer do tempo, nem se deteriorar
nele. Não se trata de simplesmente ficar parado, ou durar para sempre; é uma plenitude na posse
de si mesmo.
2.2.2. Bondade e infinitude divinas Estudamos em Metafísica 2 que o ente e o bem são
transcendentais e, por isso, conversíveis um ao outro. Todo ente é bom devido ao seu ser. Ora, Deus
é o próprio ato de ser, a atualidade plena e absoluta. Logo, ele também é a bondade, da qual derivam
todos os demais bens. Esta noção está subjacente na quarta via de Tomás de Aquino, e é instigante.
O bem sempre será algo atual; aquilo que atualiza todas as coisas, é a causa do bem delas. Como
sucede nos vários atributos, nossa linguagem é inadequada para descrever as notas da divindade,
e isso é notório em relação à bondade. O bem é o ente enquanto apetecível, ou seja, por satisfazer
alguma necessidade ou trazer alguma perfeição. Deus não apenas é bom nesse sentido, por ser a
verdade e o bem ao qual todo o universo se inclina, mas ele é o fundamento e a causa de todo o
bem. Tal como indicamos anteriormente, é um equívoco medir a bondade de Deus por critérios
humanos. A presença do mal no mundo é um argumento frequentemente levantado contra a
existência de um Deus bom e onipotente. Pois, se há o mal, ou Deus não é bom, ou não é onipotente;
se fosse ambas as coisas, ele eliminaria esse mal. Por mais que esse argumento tenha
impressionado pensadores inteligentes, principalmente no iluminismo - são famosos os
questionamentos de Voltaire inspirados no terremoto de Lisboa - e em momentos da antiguidade, ele
erra ao considerar que sejamos capazes de avaliar as consequências dos vários eventos que
sucedem. Agostinho explica que, por Deus ser onipotente e bom, ele apenas permite o mal para que
surjam bens maiores (Enchiridion, c. 3.11). De fato, se não houvesse liberdade, a crueldade humana
desapareceria; mas também o mérito e a caridade não teriam lugar. O preço das segundas é admitir
a primeira. Por se o ato de ser subsistente, Deus não tem limites. Sua atualidade não depende de
qualquer potencialidade anterior; por isso, ele simplesmente é de maneira absoluta, não de um modo
ou outro, por mais perfeito que fosse. Sua infinitude não é quantitativa, pois ele é imaterial, mas a
que deriva nada o poder abarcar, limitar ou condicionar. Apenas Deus é assim, e precisa ser assim,
por ser a causa primeira, que causa a verdade, a bondade e a nobreza em todo o resto. A
potencialidade é o que estende as fronteiras na qual algo é atualizado. Um ser humano pode pensar
e falar, mas não ser um anjo; sua potência é para algumas realidades, mas não para outras. Não
pode voar como uma ave, mas pode correr com suas pernas. Tudo é de certo modo, por força do
que lhe é possível atualizar. Não tendo qualquer potência, devido à sua simplicidade, Deus não tem
limite e é pura atualidade.
2.2.3 Onisciência e inteligência divinas e liberdade humana
Dois atributos próximos são a inteligência e a onisciência divinas. Deus é inteligente, porque ordena
toda a realidade de maneira razoável e inteligível. Apenas alguém com inteligência pode proporcionar
leis para a realidade, tanto no âmbito físico quanto no moral. A complexidade da realidade é muito
superior a tudo o que possamos conceber; ao mesmo tempo, ela é ordenada e inteligível. O primeiro
motor move todos os outros, porque nele inicia-se o movimento. O irracional não é quem inicia o
movimento, empregando o racional como instrumento. O que se dá é o contrário: quem tem
inteligência elabora planos e padrões, e os realiza utilizando como instrumentos os entes irracionais.
Então, o motor inicial é maximamente inteligente, porque o movimento ordenado surge dele. Sendo
inteligente, Deus conhece as coisas. E o faz de maneira muito mais completa e perfeita do que
qualquer ente limitado. Todas as realidades dependem de Deus, dele derivam; por isso, Ele as
conhece na essência delas, como o ordenador conhece aquilo que ele organizou. A realidade tem
infinitas possibilidades e foi causada pela causa não-causada. Nesta última, há uma tal atualidade
que permite que dela surjam todos os entes que conhecemos. De certo modo, tudo está presente
em Deus, como o efeito encontra-se na causa. Um objeto de carpintaria encontra-se na mente e na
capacidade do marceneiro; se conhecermos o artista perfeitamente, sabemos o que ele pode
realizar. De modo paralelo, se pudéssemos abarcar Deus, compreenderíamos todo o universo, que
veio dEle. Deus é o único que se conhece perfeitamente. Ele conhece os entes e suas distintas
possibilidades, o que eles são em ato e o que podem ser em potência, a partir de si mesmo. É como
se ele visse a realidade fora de si mesmo a partir da observação da essência divino. O espelho é um
reflexo dos objetos ao seu redor; nesse sentido, a imagem que ele reflete é causada por esses
mesmos objetos, pela luz e as características do espelho. No caso de Deus, não é que Ele seja um
espelho da realidade, mas a realidade decorre da essência dele. Seria como se o espelho desse o
ser e fizesse existir o que está aparecendo nele; invertemos os polos de causalidade na relação.
Portanto, é correto afirmar que Deus conhece apenas a si mesmo. Porém, isso não implica
desinteresse e ignorância em relação a todo o resto que existe; ao contrário, através da ideia de si,
Deus alcança todas as coisas. Mais ainda, Deus conhece o presente, o passado, o futuro e os
futuríveis, isto é, as possibilidades do futuro. Ele sabe o que é necessário e o que é contingente,
também o que depende da liberdade humana.
Não só do mundo que efetivamente existe, mas de todos que poderiam existir. É difícil para nós
compreender o que seja um conhecimento desse tipo, mas é o que podemos deduzir da reflexão
sobre Deus. Ademais, nele o intelecto e a ideia são a mesma coisa. Deus é o pensamento de si
mesmo, o que foi percebido por Aristóteles. O ato de pensar e o resultado do pensamento confluem
na mesma realidade em Deus: ele não é uma sujeito com uma ideia diferente de si mesmo, mas a
ideia é ele também. Isso decorre da simplicidade divina, que não admite a presença de realidades
divisíveis em Deus. Avançando, concluímos que a eternidade de Deus o faz ver todas as coisas –
presentes, passadas e futuras – de maneira simultânea. Por isso, Ele sabe o que virá acontecer em
nosso futuro, porque para Ele nada mais é do que o presente da sua eternidade. Isso vale para o
que já sucedeu e o que virá a acontecer. Não se trata propriamente de que Deus prevê ou antecipa
o que virá a suceder, com base em deduções e probabilidades. Em Deus não existe previsão ou
adivinhação, mas o conhecimento das coisas como são efetivamente. Exatamente porque Ele está
fora do tempo, ele sabe o que ocorre; não apenas prevê ou descobre com anterioridade. Neste ponto,
entra uma questão muito debatida a respeito da divindade. Se Deus sabe tudo, inclusive o futuro e
os futuríveis, a liberdade humana não fica prejudicada? Afinal, se é conhecido por Deus que amanhã
à tarde eu estudarei aquelas páginas de um livro específico, isso necessariamente ocorrerá. Logo,
minha ação não é livre, ainda que eu a sinta como tal. Esse raciocínio vale para qualquer ação
humana realizada com livre-arbítrio, inclusive para a salvação da alma, tema que preocupava
especialmente os pensadores teístas. De fato, o conhecimento de Deus é infalível. Por isso, tudo
ocorrerá como Ele sabe, e isso é inevitável. Contudo, é preciso diferenciar aqui o que é a causa da
ação e a do conhecimento. A ação humana não será X porque Deus assim o sabe;ao contrário, Deus
sabe que ocorrerá X porque o agente realizará esse comportamento. A causa do conhecimento é a
ação, e não o contrário. O que vimos a respeito da eternidade e do conhecimento ajuda a esclarecer
essa questão, que sempre será complicada e surpreendente. Nosso tempo não é igual ao divino;
nós estamos submetidos ao movimento, que se dá em etapas. A divindade está na eternidade, e
abarca todas as coisas simultaneamente, em plenitude.
2.2.4. Vontade e onipotência divinas
Se a divindade conhece, ela também quer e ama. Sua vontade é um dos seus elementos, algo com
o qual ela se identifica. Do mesmo modo como dizemos que Deus é o seu saber, o conhecimento de
si mesmo pleno e absoluto, Ele também quer, é sua própria vontade e o amor que vem dela. É
comum que vários místicos identifiquem a divindade com o amor, e isso está correto também em
termos filosóficos. Sendo a causa primeira, todos os efeitos decorrem de Deus. Conforme vimos,
Deus conhece as distintas coisas, pois as conhece em Si mesmo, causa de todos os demais. Por
outro lado, ao ser inteligente, Deus quer todos os efeitos que surgem dele. Ao menos, permite que
eles ocorram e os sustenta no ser. Há a liberdade divina, que está ligada à Sua vontade; Deus não
cria o mundo por necessidade, nem age de maneira obrigada, pois Ele tem todo o bem em si mesmo,
e não pode ser direcionado a outro bem que lhe faça falta. A vontade divina é o mesmo que a
divindade, assim como é mesmo que sua inteligência e ideia. Mais uma vez, estamos diante da
simplicidade e unicidade divinas. Não nos é fácil compreender como a inteligência e a vontade sejam
a própria divindade, mas é o que sucede. A divindade é onipotente. Ela pode tudo, pois o que existe
necessariamente decorre dela. Além disso, em Deus não há potência que limite sua ação, pois Ele
é ato puro. Portanto, sua ação é plena, inclusive no que se dá fora do interior de Deus. Nós agimos
sobre o que existe, modificando-o, criando-o ou destruindo-o. No entanto, sempre o fazemos a partir
de algo preexistente. Mesmo quando destruímos, não o fazemos cabalmente, mas separando a
forma substancial que se ligava a uma matéria e substituindo-a por uma nova forma. A ação de Deus
é diferente, porque as coisas são a partir do momento em que Ele as deseja e permite. Elas deixariam
de existir e desapareceriam totalmente, se a divindade não as sustentasse. Apenas uma ação infinita
poderia explicar o surgimento da realidade a partir do nada. Seja como for que expliquemos o
universo, admitindo ou não seu início no tempo, o princípio metafísico de tudo deve ter uma força
infinita e plena. Cabe perguntar se então tudo acontece por vontade expressa de Deus. Temos aqui
um problema similar ao que examinamos no ponto anterior, sobre a onisciência e a liberdade
humana. Se todos os eventos são frutos da vontade divina, e esta é infalível, então todo o universo
nada mais é do que a realização da vontade imutável e cerrada de Deus. Somos como um filme
cujas falas, personagens, roupas e paisagens são definidas pelo diretor e pelo produtor. Conta-se
uma história, mas ela nada mais é do que o enredo estabelecido previamente, e este
necessariamente deverá ocorrer. Conforme vimos acima, é possível conjugar a presciência de Deus
com a liberdade efetiva dos seres pessoais. Algo similar sucede com a onipotência e a autonomia
dessas pessoas. Permitir a liberdade de escolha de parte dos entes, com a multiplicidade de
possibilidades que isso traz, foi querido por Deus.
Ao introduzir seres livres, Deus enriqueceu o universo de maneira notável. Exatamente porque são
livres, tais entes podem amar e escolher o bem por si mesmos. Evidentemente, a onipotência divina
tem muitos caminhos para influenciar na história de na vida de cada pessoa. Mas pode fazê-lo
respeitando a natureza das pessoas, sem determinar o que elas estabelecem e preferem. Deus
poderia gerar imagens e desejos em nossas almas, guiando-nos de maneira mais ou menos intensa.
Mesmo então, isso não destroçaria a liberdade, porque seríamos nós quem escolheríamos o que
nos foi sugerido. De qualquer modo, vemos que não é assim que Deus rege o mundo – se admitimos
que Ele interfere na realidade –, porque o bem e a verdade não se apresentam a nós de maneira
absolutamente distinta, clara e convincente. A reclamação de pensadores como Bertrand Russell,
de que Deus não teria fornecido suficientes evidências da sua existência, traz algo de verdadeiro,
ainda que parta do erro metodológico de que Deus teria que se adequar ao que nós queremos. De
fato, não conhecemos a Deus de modo direto e evidente, nem experimentamos sensivelmente Seu
poder e vontade. No entanto, muitos filósofos consi33 deram que chegar à existência da divindade é
possível; mais do que isso, é exigido pelo pensamento reto. Estamos diante daquelas tomadas de
posição intelectual que influenciam todo o resto. Para quem adere ao teísmo, a ação e presença de
Deus são suficientemente reconhecíveis. Para os que escolhem o ateísmo ou agnosticismo, esses
mesmos fatos e argumentos parecem confusos e não-convincentes. A onipotência de Deus implica
em que Ele possa fazer o que quiser, sem estar vinculado ao bem ou à sua própria natureza?
Podemos postular uma liberdade absoluta em Deus, ligada à sua onipotência. Sendo assim, ele
poderia ter feito o universo de maneira totalmente diferente, inclusive desrespeitando regras como a
não-contradição ou a necessidade de fazer o bem e evitar o mal. Esta postura é radical, e levaria a
sustentar que seria possível um círculo quadrado, ou um morto vivo, ou ainda uma madeira de ferro.
De maneira menos drástica, mas também forte, Guilherme de Ockham considera que Deus pode
fazer tudo o que não implique uma contradição. Assim, Ele poderia nos ordenar a ser cruéis, a matar
ou mesmo odiar a divindade. A liberdade divina traria consigo essa abertura; mesmo que Deus jamais
mande algum ser humano cometer uma ação ruim, Ele poderia fazê-lo, se o desejasse. A natureza
divina caracteriza-se exatamente por essa liberdade plena, e por isso ela não está vinculada ao bem
ou ao razoável. Outra posição é a apresentada por Tomás de Aquino, segundo a qual Deus age de
acordo com sua natureza, com seu modo de ser. Ora, essa natureza é a causa e fonte do bem; mais
ainda, o bem é o que está de acordo com ela. Por isso, Deus não pode fazer o mal. Seria algo
impossível, uma contradição em si mesmo. A liberdade divina é compreendida dentro da natureza,
em conformidade com ela e uma decorrência dela. Uma liberdade que não estivesse vinculada ao
bem e à essência divina seria um contrassenso, porque não haveria motivo para escolher algo em
detrimento de outro, pois tudo é relativo e aberto.
Considerações Finais
Ao mesmo tempo em que temos dificuldades para aprofundar nos atributos divinos, pois estamos tratando de
uma realidade superior a qualquer intelecto limitado, observamos que eles estão intimamente interligados. Há
uma significativa coerência ao discorrer sobre esses atributos, porque um conduz ao outro, por uma questão
de dedução e consistência. A divindade permanece um mistério, mas é impressionante o quanto a inteligência
humana pode alcançar a respeito dela. Tudo vem de sabermos que Deus é o ato de ser subsistente, a plena
atualidade. A partir dessa noção, empregando a razão e observando a realidade, somos capazes de formular
outros atributos. Não é um processo meramente dedutivo, mas lógico e rigoroso. Sem dúvida, há várias
dificuldades que despertam dúvidas e perplexidades. Como harmonizar a simplicidade divina com a criação
do mundo? De que modo manter a liberdade humana e a presciência divina? Como entender a onipotência
divina e sua intervenção nas criaturas? Aqui, percebermos que a filosofia não é capaz de explicar tudo. Abre-
se o caminho para a teologia, que será o campo do conhecimento que tratar das verdades reveladas a nós
pelo próprio Deus, que nos permite ir muito além do que nos permite apenas nossa razão. Sendo Deus a
causa primeira, a suma bondade, a inteligência infinita que regula tudo, o ser perfeito e totalmente atual, então
o universo certamente será, em seu todo, algo bom. Afinal, ele é um reflexo, ainda que extremamente limitado,
de quem o fez e sustenta. Por isso, a Metafísica e toda a Filosofia, unidas à Teologia, nos mostram que a
admiração pela verdade e bondade das coisas é a postura vital correta, que afasta o pessimismo e a
desesperança sobre o mundo que nos cerca e a vida de cada um de nós.

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