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FILOSOFIA DA

RELIGIÃO

Alisson de Souza
A experiência
religiosa à luz
da filosofia
OBJETIVOS DE APRENDIZAGEM

>> Caracterizar a religião conforme suas dimensões metafísicas e ontológicas


e as concepções de sagrado e profano.
>> Descrever como os fenômenos religiosos são investigados a partir de suas
dimensões noumênicas e apriorísticas.
>> Definir as relações que se estabelecem entre os conceitos de imanência e
transcendência.

Introdução
As religiões são fortes influências na sociedade humana atual, atuando às vezes
de modo moral, ético e político. Cada vez mais pessoas declaradamente religiosas
ocupam esses espaços comuns. Durante a história, houve movimentos de aproxi-
mação e de afastamento da fé entre as mais diversas áreas. Sendo assim, como é
possível pensar a respeito dessas tendências? A razão pode compreender esses
fatos sobre a fé? A resposta é sim para todas essas questões. Entender a fé por
meio de fenômenos visíveis é a missão de várias ciências.
Neste capítulo, você estudará que forma a filosofia pode compreender de
maneira racional a experiência religiosa. Para entender como isso acontece,
primeiramente abordaremos a religião a partir das concepções e dimensões
metafísicas e ontológicas, além da compreensão sobre o sagrado e o profano. Em
seguida, veremos como se dá a investigação dos fenômenos religiosos por meio
das dimensões noumênicas e apriorísticas. Por fim, serão analisadas as relações
que envolvem os conceitos de imanência e transcendência.
2 A experiência religiosa à luz da filosofia

A religião a partir da óptica filosófica


Entender de que maneira as ciências podem ser capazes de compreender as
religiões por meio da racionalidade parece algo improvável. Uma vez que as
religiosidades pressupõem e discutem aspectos ligados diretamente à fé, de
que forma é possível estudá-las? Para isso, são necessários métodos para
ajudar a compreender os elementos que caracterizam as religiões nas suas
diferentes dimensões fenomenológicas. Uma dessas ciências é a filosofia,
um campo do conhecimento que estuda a existência humana e o saber por
meio da análise racional. Ela tem por objetivo duvidar, questionar e chegar ao
conhecimento verdadeiro por meio da lógica. Portanto, os filósofos buscam
encontrar respostas racionais para a origem das coisas, dos fenômenos da
natureza, da existência e da racionalidade humanas.
Segundo a tradição, Pitágoras teria sido o criador do termo filosofia:

[...] cunhado por um espírito religioso, que pressupunha só ser possível aos Deuses
uma sofia (‘sabedoria’), ou seja, uma posse certa e total do verdadeiro, uma contínua
aproximação ao verdadeiro, um amor ao saber nunca saciado totalmente, de onde, jus-
tamente, o nome ‘filo-sofia’, ou seja ‘amor pela sabedoria’ (REALE; ANTISERI, 1990, p. 21).

Wilkinson e Campbell (2014) afirmam que a filosofia é uma ciência que


pensa a respeito das questões fundamentais, sem significar uma busca
por uma teoria lúdica ou explicativa dessas questões. Ela possui diversos
ramos, tais como a ética, a estética, a filosofia política e a filosofia da re-
ligião. A filosofia da religião, por exemplo, se utiliza de certas ferramentas
para estruturar e completar o pensamento, como a metafísica, a lógica e a
epistemologia, ou teoria do conhecimento.
Reale e Antiseri (1990) afirmam que a filosofia explica as mais diversas
coisas a partir de três bases de pensamento. A primeira é o conteúdo, bus-
cando explicar a totalidade dos objetos de estudo e/ou de toda a realidade.
Assim, buscam-se os princípios, distinguindo-se de ciências particulares, as
quais se limitam a estudar uma parte específica sobre aquilo que é seu alvo.
A segunda base é o método, pelo qual se busca uma explicação racional
para aquilo que é observado filosoficamente.

O que vale em filosofia é o argumento da razão, a motivação lógica, o logos. Não


basta à filosofia constatar, determinar dados de fato ou reunir experiências: ela
deve ir além do fato das experiências, para encontrar a causa ou as causas preci-
samente através da razão (REALE; ANTISERI, 1990, p. 22).
A experiência religiosa à luz da filosofia 3

Os autores citam que essa diferença é crucial na comparação entre fi-


losofia, arte e religião. Todas as três investigam e captam aquilo que é a
totalidade da realidade, mas o pensamento filosófico o faz a partir do logos,
enquanto as outras duas se utilizam de mitos/fantasias e de crenças/fé,
respectivamente (REALE; ANTISERI, 1990).
Por fim, a terceira base está ligada ao puro desejo de conhecer, ampliar
esses conhecimentos e contemplar a verdade. Segundo Aristóteles, é pre-
ciso se interessar por essa verdade sem buscar necessidades ou utilidades
puramente práticas. A filosofia nasce de uma busca pelo saber por meio
da liberdade de pensamento daquele que pensa, não buscando possíveis
vantagens. A filosofia “[...] é fim em si mesma porque tem por objetivo a
verdade, procurada, contemplada e desfrutada como tal [...] toda as outras
ciências podem ser mais necessárias do que esta, mas nenhuma será supe-
rior” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 23). Portanto, a filosofia é o pensamento que
gera mais pensamentos, sem que haja uma utilidade prática como objetivo.
Para compreender como a razão pode ser capaz de se comunicar e de inter-
pretar a fé, é essencial entender o que é a religião. Segundo Émile Durkheim, a
religião é um sistema solidário constituído por práticas e crenças por meio de um
sagrado. Mediante uma consonância entre as pessoas, mantém-se a harmonia
e evita-se transgressões numa determinada comunidade. Assim, é formada a
crença religiosa entre aqueles membros que aderem à essa comunidade sem
prejudicá-la e sem afetar a presença dos demais que a formam (DURKHEIM, 1996).
Para Croatto (2010), o sagrado é a expressão humana repleta de religio-
sidade e fé, buscando o encontro e o contato com o transcendente. O autor
cita que: “[...] pode-se afirmar que o sagrado não é a meta da atitude ou da
experiência religiosa. Esse fim seria o próprio transcendente” (CROATTO, 2010,
p. 61). Resumindo, atos são praticados para se encontrar o divino e por meio
do sagrado o indivíduo busca o encontro com o transcendente.
Para Eliade (1992, p. 13), o “Deus que fala com o homem” pratica a hierofa-
nia, ou seja, a manifestação do transcendente para com o ser humano. Nesse
sentido, segundo Mendonça (1999), a ultrapassagem do sentido humano de
uma experiência evidencia aquilo que é considerado sagrado.
A partir dessas considerações, de que maneira é possível que a razão
entenda a fé? Essa é a missão da filosofia da religião. Sweetman (2013, p. 16)
define esse estudo como “[...] a tentativa feita por filósofos de investigar a
racionalidade das afirmações religiosas básicas”. Para o autor, essa ciência
não prevê que o indivíduo tenha uma determinada crença específica.
4 A experiência religiosa à luz da filosofia

Torna-se necessário um distanciamento da filosofia da religião daquilo que


é uma crença pura, a qual deposita uma total confiança na existência e na ação
divina. Seu objetivo é compreender de modo racional o funcionamento e a pre-
sença da fé na sociedade e na religião. Dessa forma, é possível observar, buscar,
provar e compreender o funcionamento e a formação de uma religiosidade
de maneira mais didática e fácil, uma vez que se utilizam parâmetros experi-
mentáveis e visualizáveis, buscando provas racionais discutíveis e analisáveis.
Dessa maneira, podem-se utilizar duas formas de se estudar e de se analisar
a religião: a metafísica e a ontologia. A primeira, que teve seu nome cunhado
por discípulos de Aristóteles, representa aquilo que não se adequa à física, ou
seja, que não é representado pelo movimento ou pela mudança de forma. Cos-
tumeiramente, a metafísica é tratada como uma discussão próxima à teologia,
a qual trata sobre aquilo que é transcendental. Porém, esse discurso aborda o
entendimento daquilo que existe, sendo palpável ou não (WILKINSON; CAMP-
BELL, 2014). Por sua vez, Marilena Chauí (2015, p. 230) afirma que a metafísica,
ou filosofia primeira, “é o estudo ou o conhecimento da essência das coisas
ou do Ser real e verdadeiro das coisas, daquilo que elas são em si mesmas,
apesar das aparências que possam ter e das mudanças que possam sofrer”.
É importante entender que a metafísica é dividida em dois tipos: cosmo-
lógica e ontológica. A metafisica cosmológica discute a totalidade do ser,
segundo a filosofia platônica e, posteriormente, a filosofia de Hegel. Já a on-
tológica teoriza sobre a existência das coisas sem abordar o objeto observado
de maneira direta ou específica. “Assim, por exemplo, perguntar se a alma
existe é uma questão ontológica, visto que isso deixa inteiramente abertas
questões sobre quais outros tipos de coisas podem existir” (WILKINSON;
CAMPBELL, 2014, p. 38). Para o filósofo pré-socrático Parmênides, a ontologia
trata puramente sobre o ser. O ser é, e é idêntico a si mesmo, sendo eterno,
imutável, invisível aos sentidos e visível ao pensamento (CHAUÍ, 2015).

Historicamente, metafísica grega foi reelaborada e adaptada para


compor a metafísica cristã. Uma das questões fundamentais que
constituem essa nova metafísica é de que Deus é um ser trino, uma pessoa
misteriosa que se revela por meio da fé das pessoas. Por essência, Ele tam-
bém é eterno, infinito, onisciente, onipotente, onipresente, bondoso, justo e
misericordioso. Dessa forma, torna-se racional a existência de Deus, mesmo
que sua concepção seja um mistério da fé, contrapondo em parte a metafísica
grega, que sustentava que “[...] a divindade era uma força imaterial, racional e
impessoal conhecida pela razão” (CHAUÍ, 2015, p. 243).
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Outro aspecto importante é a criação do mundo. Chauí (2015) afirma que era
necessário provar que o mundo existe e que ele não é eterno, tendo sido criado
do nada por Deus e que, quando houver a chegada do Juízo Final, ele voltará
para o nada. Sendo assim, o mundo seria proveniente de uma vontade sublime e
governado pela providência divina. Por isso, Deus se utilizaria de meios naturais
e sobrenaturais, leis da natureza e milagres, respectivamente. Esse argumento
se faz necessário na metafísica cristã, pois a razão propõe que Deus é perfeito,
completo, pleno e eterno, não precisando de nada para sua existência. Portanto,
o mundo foi criado por sua vontade, não por uma necessidade.
A metafísica cristã sustenta que Deus, mesmo sendo imaterial e infinito,
atua de modo pleno e sua ação tem efeitos sobre aquilo que é material e finito,
assim como o mundo e o ser humano. Nesse quesito metafísico, muitas concep-
ções do cristianismo não seriam aceitas por gregos antigos, como a tentativa
de “[...] provar que Deus é causa eficiente de todas as coisas e que uma causa
imaterial e infinita pode produzir um efeito material e finito, mesmo que isso
seja um mistério de fé que a razão é obrigada a aceitar” (CHAUÍ, 2015, p. 244).
Pode-se afirmar que para a metafísica grega a criação do mundo por
Deus é algo irracional e contraditório, pois aborda um ser que é infinito e
imaterial. Contudo, para a metafísica cristã o mistério da fé afirma e prova
que “[...] a alma humana existe e que é imortal, estando destinada à salvação
ou à condenação eternas, segundo a Providência Divina” (CHAUÍ, 2015, p. 244).
A metafisica cristã provaria também que não existe contradição entre a
onisciência-onipotência de Deus e a liberdade humana. Essa contradição
existe para a razão, mas não se sustenta na fé.
Conclui-se que a metafísica cristã é uma releitura da metafísica grega,
mas adiciona uma realidade não presente no pensamento grego, propondo
que o ser humano conheça o Deus que se manifesta e se faz real e presente
por meio da fé. Na próxima seção, você veremos de que forma os fenômenos
religiosos são interpretados pelas perspectivas noumênicas e apriorísticas.

Fenômenos religiosos a partir das


dimensões noumênicas e apriorísticas
Os fatos religiosos podem ser observados e estudados pelas mais diversas
ciências humanas e sociais, mesmo que ocorram de modo particular com uma
pessoa, uma comunidade, uma religiosidade. A filosofia da religião é necessária
para enriquecer os mais diversos conhecimentos, evitando um entendimento
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insuficiente de uma experiência religiosa e de suas manifestações e linguagens


quando essa é observada de modo puramente ligado à fé, dependendo de
relatos e percepções particulares, não fatos mensuráveis (CROATTO, 2010).

O estudo filosófico da religião desvenda o fenômeno religioso pre-


ocupando-se com o absoluto, não com o encontro dele ou com ele.
Tampouco se interessa pelo fato de poder haver um Deus, mas busca entender
o ser e o fundamento da realidade. Para isso, utiliza-se da razão como forma
de acesso ao conhecimento. Assim, nem Deus (teodiceia), nem mundo (cosmovi-
são), nem ser humano (antropologia filosófica/ética) são considerados a partir
da experiência religiosa (fenomenologia) e da fé. Eles são compreendidos de
maneira racional analítica. “A filosofia da religião fala de Deus e do ser humano
religioso. É um saber, não um compromisso. Não substitui o ato religioso, mas
reflete criticamente a respeito dele” (CROATTO, 2010, p. 22).

A teologia, por sua vez, é uma ciência que parte dos dados da fé. Dessa
forma, pretende-se falar a partir de Deus e de sua relação estabelecida com
o ser humano. É comum abordar a teologia a partir da tradição judaico-cristã,
tendo como fonte a Bíblia, mas esse conceito pode ser estendido a toda e
qualquer religião, uma vez que se trata de um trabalho especulativo gerado
pela experiência de fé. Ou seja, é um trabalho realizado a partir da própria
fé. A teologia é uma ciência que utiliza a revelação, o dado de fé, mas se
fundamentando de maneira racional.

Seu ponto de partida é a experiência de fé (diferente da filosofia), mas seu método


é racional: uma coisa é, por exemplo, a vivência da esperança escatológica; outra
é a análise e a conceitualização da esperança (escatologia). No primeiro caso, a
Bíblia é a palavra pela qual Deus fala; no segundo, é a fonte de dados para enten-
der racionalmente o alcance de tal experiência religiosa (CROATTO, 2010, p. 23).

Observe que a fenomenologia da religião é parte crucial para análises racionais


dos estudos filosóficos e teológicos explanados anteriormente, além de vários
outros que envolvem a religiosidade. Porém, enquanto estudo e ciência, por
tratar de algo tão amplo e particular, a perspectiva fenomenológica da religião
possui características bem delimitadas e especificadas. A primeira delas é a que
a fenomenologia da religião não estuda os fatos em si mesmos, o que cabe à
história das religiões. Sua missão é entender a intencionalidade que cerca esses
fatos. Assim, parte-se de testemunhos, documentos e fatos para se explorar seus
significados e sentidos para aquele que os expressa ou relata (CROATTO, 2010).
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A segunda é a estrutura. Tanto os ritos quanto as ações e os mitos possuem


uma forma estruturada de pensamento e um núcleo de sentido, permitindo
variações entre ordens de elementos (sintagma) e uma mobilidade entre
diferentes exemplos por meio de seus modelos (paradigma). Um mito utili-
zado em várias religiosidades, como o mito da criação, por exemplo, mantém
uma estrutura básica, mesmo tendo variação literária. “É este sentido que a
fenomenologia busca estabelecer, ensaiando uma tipologia, ou, se preferir,
uma morfologia dos fatos religiosos” (CROATTO, 2010, p. 26).
A terceira característica é que os fenômenos religiosos precisam ser situados
no espaço-tempo. Ou seja, é preciso destacar a cultura, a vivência e o contexto
histórico em que esses fenômenos ocorreram ou ocorrem, com o auxílio da his-
tória. Assim, torna-se mais fácil entender o que eles significaram ou significam.
A quarta característica pressupõe que o estudioso reduza o seu próprio juízo,
a fim de ressaltar a vivência do outro. Por se tratar de fatos religiosos localizados
historicamente, como dito anteriormente, possuem um âmbito cultural, linguís-
tico, institucional e social específico e delimitado. Portanto, concentrar-se na
vivência alheia é de fundamental importância para fenomenologia da religião.
A quinta característica propõe que é preciso entrar em sintonia com as
intenções originárias daquele fenômeno observado. Por isso, novamente, a
localização no espaço-tempo é fundamental, para que seja compreendida de
maneira fiel a linguagem das experiências religiosas vivenciadas. Segundo
Croatto (2010, p. 27), “[...] a fenomenologia da religião estuda: 1) o sentido das
expressões religiosas no seu contexto específico; 2) sua estrutura e coerência
(sua morfologia); 3) sua dinâmica (desenvolvimento, afirmação, divisões, etc.)”.
Segundo Zilles (1991), Kant apresenta o noúmeno (ou númeno) como um
princípio da consciência para a compreensão e o domínio da fé. Nesse sentido,
existiriam três formas de fé encontradas ao se ultrapassar os limites da razão:

a) a crença nos milagres como superação das leis da experiência empírica; b) a


ilusão pela qual se admitem realidades além dos conceitos racionais ou a crença
nos mistérios; c) a ilusão que nos leva a empregar meios naturais para produzir o
efeito de provar a influência sobrenatural de Deus sobre nossa moralidade ou a
crença nos meios da graça (ZILLES, 1991, p. 58).

Segundo essa visão, Kant destrói a estrutura racional da existência de


Deus, mas não elimina o conteúdo religioso. A presença divina não pode ser
compreendida racionalmente por meio dos sentidos. Então, a característica
noúmena de Deus é admitida a partir do pressuposto de que a realidade não
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se reduz ao mundo empírico. Por noúmeno, entende-se aquilo que não exige
comprovação via sentidos para se conhecer. Portanto, até aquele que não
crê em Deus compreende a frase “Deus existe”. A fé permite que o indivíduo
raciocine de maneira plausível, admitindo a realidade metafísica da existência
de um ser superior (ZILLES, 1991).
A partir daí, conclui-se que:

Kant priva a religião de todo o fundamento especulativo, instalando-a na esfera


moral. Ele a reduz ao metro das normas éticas da razão prática. Fora disso tudo é
superstição e imposição eclesiástica (dogmas, ritos, hierarquias, etc.). Resta todavia
a pergunta: não é a própria posição kantiana uma nova posição dogmática sob
aparência crítica? Apesar disso, o pensamento crítico de Kant foi uma oportuni-
dade, infelizmente perdida, para o cristianismo entrar no mundo da modernidade
(ZILLES, 1991, p. 60).

Na próxima seção, serão abordados os conceitos e as relações existentes


entre imanência e transcendência.

A imanência e a transcendência
A comparação entre transcendência e imanência nasceu na Grécia antiga.
Platão foi quem propôs e formulou ambos os conceitos. Ele observou que há
diferenças entre o mundo material, sensível, e a realidade imaterial, supras-
sensível. Sua filosofia conflitava com o pensamento o aristotélico e discutia
a importância e a legitimidade das concepções e percepções imanentes e
transcendentes. Posteriormente, esse mesmo conflito é encontrado em Santo
Agostinho e São Tomás de Aquino, dois grandes filósofos da filosofia medieval.
Diversos embates intelectuais existiram entre Platão e Aristóteles, mestre
e discípulo, respectivamente. Como apresentado anteriormente, a metafísica
é a observação daquilo que está além da física, ou seja, a contraposição entre
o invisível e o visível. A metafisica é o saber que habita o mundo das ideias.
Entende-se, assim, que a metafísica “[...] indaga as causas e os princípios
primeiros ou supremos [...] indaga o ser enquanto ser [...] indaga a substância;
[...] indaga Deus e a substância suprassensível” (REALE; ANTISERI, 1990, p. 178).
Era dessa forma que Platão e tantos outros filósofos definiam a metafísica,
aquilo que estava além dos sentidos humanos, sendo ela a filosofia primeira,
ou a chamada teologia. Por consequência, aquele que buscava os princípios e
as causas primeiras da humanidade e da existência buscava o encontro com
o Deus, sendo este o primeiro motor, causa e princípio do mundo.
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A metafísica, portanto:

[...] é a ciência mais elevada precisamente porque não está ligada às necessidades
materiais. A metafísica não é a ciência voltada para objetivos práticos ou empíricos.
As ciências que têm tais objetivos submetem-se a eles: não valem em si e por si mes-
mas, mas somente à medida que efetivam os objetivos. Já a metafísica é ciência que
vale em si e por si mesma, já que tem em si mesma o seu corpo — e, nesse sentido,
é ciência “livre” por excelência. Dizer isso nada mais significa do que afirmar que
a metafísica não responde a necessidades materiais, mas sim espirituais, ou seja,
àquela necessidade que nasce quando as necessidades físicas estão satisfeitas: a
pura necessidade de saber e conhecer o verdadeiro, a necessidade radical de respon-
der aos “porquês”, especialmente o “por quê” último (REALE; ANTISERI, 1990, p. 180).

Considerando que a metafísica não se preocupa com a materialidade


das coisas, ela, por sua vez, exige o entendimento da imanência e da trans-
cendência. A imanência é a qualidade daquilo que pertence à realidade ou a
natureza, sendo sensível ao ser humano. É aquilo que está intimamente ligado
ao interior do ser, do ato, do objeto de pensamento. Em alguns discursos,
como no panteísmo, Deus seria imanente ao mundo, pois se encontra em
todos os lugares. Para a escolástica, o imanente se opõe ao transitivo, pois
só produziria um efeito ou uma percepção no interior daquele que o produziu
ou o percebeu (JAPIASSÚ; MARCONDES, 2001).
Ao contrário da imanência, a transcendência designa aquilo que pertence a
uma outra natureza, oriunda de uma ordem superior. “Nas concepções teístas,
por exemplo, Deus é transcendente em relação ao mundo criado” (JAPIASSÚ;
MARCONDES, 2001, p. 185). Também se entende que algo é transcendental
quando está além do conhecimento, além da compreensão por meio de uma
experiência possível. Ou seja, é algo exterior ao mundo experimental.

Para compreender de maneira mais didática os conceitos de ima-


nência e transcendência, podemos evocar alguns exemplos. Como na
imanência a matéria não é separada de Deus, ele se encontra em tudo que existe
na natureza. Muitas religiões panteístas, como o hinduísmo, adotam essa ideia.
No Brasil, isso é encontrado nas religiosidades afro-brasileiras e indígenas, uma
vez que em sua concepção a presença divina também se dá em meio à natureza.
A transcendência, por sua vez, está fortemente ligada à uma entidade primeira,
um primeiro motor, o qual é separado da matéria. Na tradição judaico-cristã e
islâmica, Deus é um ser transcendente, que é capaz de interagir com toda a sua
criação, mas não é visível aos sentidos. Mantendo ainda essa integridade, no
cristianismo Jesus Cristo é Deus que se personifica de maneira humana. Sendo
assim, Jesus é a personificação imanente do Deus transcendente.
10 A experiência religiosa à luz da filosofia

Portanto, imanência e transcendência tratam do entendimento e da per-


cepção daquilo que é metafísico. Algumas religiões, por exemplo, entendem
que Deus é parte da essência daquilo que existe no mundo. Em outras, Deus é
um ser que não é acessível de maneira direta, mesmo que atue na realidade,
obviamente se utilizando de seus próprios meios. Por isso, as religiosidades
são tão diversificadas entre si e entendem a presença divina de maneiras
distintas. Sendo assim, não cabe à filosofia definir e compreender qual a forma
da fé, uma vez que essa é particular e, às vezes, abstrata. Cabe a ela discutir
de maneira racional a estruturação, investigando premissas religiosas básicas.

Referências
CHAUÍ, M. Convite à filosofia. 14. ed. São Paulo: Ática, 2015.
CROATTO, J. S. As linguagens da experiência religiosa: uma introdução à fenomenologia
da religião. 3.ed. São Paulo: Paulinas, 2010.
DURKHEIM, E. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
ELIADE, M. O sagrado e o profano: a essência das religiões. 3.ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2010.
JAPIASSÚ, H.; MARCONDES, D. Dicionário básico de filosofia. 3. ed. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2001. E-book. Disponível em: http://raycydio.yolasite.com/resources/diciona-
rio_de_filosofia_japiassu.pdf. Acesso em: 29 set. 2020.
MENDONÇA, A. G. Fenomenologia da experiência religiosa. Numen 03, Juíz de Fora, v. 2,
n. 2, p. 65-89.1999. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/numen/article/
view/21737. Acesso em: 29 set. 2020.
REALE, G.; ANTISERI, D. História da filosofia: Antiguidade e Idade Média. 11. ed. São
Paulo: Paulus, 2012.
SWEETMAN, B. Religião: conceitos-chave em filosofia. Porto Alegre: Penso, 2013.
WILKINSON, M. B.; CAMPBELL, H. N. Filosofia da religião: uma introdução. São Paulo:
Paulinas, 2014.
ZILLES, U. Filosofia da religião. São Paulo: Paulinas, 1991.

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