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AUTOFICÇÃO EM TEXTOS DE CLARICE LISPECTOR

Bianca Cardoso Batista (UNISC)

Eu acho que, quando não escrevo, estou morta.


Clarice Lispector

INTRODUÇÃO
A escrita e a leitura não são apenas atividades de entretenimento, produção
intelectual e trabalho, embora também possam ser. Escrever é mais do que simplesmente
jogar as palavras sobre o papel; ler é mais do que apenas buscar o sentido dessas palavras:
“Eu escrevo sem esperança de que o que eu escrevo altere qualquer coisa. Não altera em
nada... Porque no fundo a gente não está querendo alterar as coisas. A gente está querendo
desabrochar de um modo ou de outro...”1 dizia Clarice. Há, no excerto, uma intenção,
uma finalidade em seu tema que ultrapassa a ideia de comunicar a fim de, mas alerta para
o autoconhecimento produzido pelo autor durante a escrita. É interessante refletir sobre
essa autodescoberta do leitor durante a leitura.
É possível pensar nos textos de Clarice como um modo de escrita sobre si, um tipo
de narrativa que se desdobra em descrever as memórias, experiências e epifanias do
próprio eu, uma escrita sobre o íntimo, sobre o que é pessoal. Nesta perspectiva, este
trabalho se propõe a identificar, em alguns textos de Clarice, essas marcas. Para isso,
primeiramente, será apresentada uma conceituação de autobiografia e de autoficção a
partir autores Philippe Lejeune (2008), Serge Doubrovsky (1977), Simon Harel (1992) e
Diana Klinger (2007) e uma complexificação sobre os tênues limites entre ficção e
realidade, com Doubrovsky (1977). O texto aborda, ainda, para fins de contextualização
do leitor, uma breve trajetória da obra de Clarice Lispector e, finalmente, realiza a
interpretação dos textos “Felicidade Clandestina”, “Medo da Eternidade” e “Dies Irae”,
levando em consideração os conceitos abordados anteriormente.

NARRATIVA AUTOFICCIONAL
A autoficção é uma forma de escrita de si que apresenta elementos estéticos
específicos, bastante recorrentes não apenas nas narrativas contemporâneas, mas no
comportamento social. Com o avanço das tecnologias e a proliferação das mídias e redes

1
Trecho de Entrevista concedida a Júlio Lerner. TV Cultura. São Paulo, fevereiro de 1977.
sociais, é possível perceber que o falar sobre si é uma tendência muito forte: o ser humano
não apenas gosta, mas, em alguma medida, tem necessidade de falar e escrever sobre sua
própria vida, o que o acontece. Uma das características marcantes deste tipo de narrativa
é que ela dá ao leitor a ideia de que ele está diante de algo que possa ter, verdadeiramente,
acontecido com o autor da obra.
Um dos autores que marca essa concepção de escrita que se faz em torno de
detalhes, fatos e episódios da vida do autor de uma obra é Philippe Lejeune (2008) que
propõe o modelo autobiográfico. O autor define que “para que haja autobiografia é
preciso que haja relação de identidade entre o autor, o narrador e o personagem”
(LEJEUNE, 2008, p. 14). De acordo com sua perspectiva, ao criar um nome fictício para
uma personagem, este anula a possibilidade de autobiografia, mesmo que o público tenha
todas as razões (semelhanças, fatos biográficos, informações) para acreditar que se trata
da vida do autor da obra. Isso ocorre em vista de que, para Lejeune, a autobiografia, em
primeiro lugar, exige que o escritor assuma uma identidade na enunciação – o pacto
autobiográfico. Neste sentido, qualquer similaridade que surja no enunciado é
completamente secundária (LEJEUNE, 2008, p. 25).
Embora os textos da autora não sejam por ela assumidos como autobiográficos, a
escrita possui, inegavelmente, semelhanças com fatos de sua trajetória. Neste sentido, a
teoria elaborada por Lejeune é pertinente a este estudo. Em relação à teoria do autor,
Serge Doubrovsky escreveu Fils (1977), obra na qual cria o conceito de autoficção e a
distingue da autobiografia:

Autobiografia? Não, isto é um privilégio reservado aos importantes deste


mundo, no crepúsculo de suas vidas, e em belo estilo. Ficção, de
acontecimentos e fatos estritamente reais, se se quiser, autoficção, por ter
confiado a linguagem de uma aventura à aventura da linguagem, fora da
sabedoria e fora da sintaxe do romance, tradicional ou novo. Encontro, fios de
palavras, aliterações, assonâncias, dissonâncias, escrita de antes ou do depois
da literatura, concreta, como se dizem música. Ou ainda: autoficção,
pacientemente onanista, que espera agora compartilhar seu prazer.
(DOUBROVSKY, 1977, quarta capa, tradução minha) 2

2
No original: Autobiographie? Non, c’est un privilège reserve aux importants de ce monde, au
soir de leur vie, et dans un beau style. Fiction, d’événements et de faits strictement réels; si l’on
veut, autofiction, d’avoir confié le langage d’une aventure à l’aventure du langage , hors sagesse
et hors syntaxe du roman, traditionnel ou nouveau. Rencontre, fils de mots, allitérations,
assonances, dissonances, écriture d’avant et d’après littérature, concrète, comme on dit en
musique. Ou encore autofriction, patiemment onaniste, qui espère faire maintenant partager son
plaisir. (DOUBROVSKY, 1977, quarta capa).
Doubrovsky explica a diferença entre autobiografia e autoficção: na primeira,
conta-se a retrospectiva da vida de um autor desde seu nascimento, enquanto que, na
segunda, há a possibilidade de fazer recortes, dar mais ou menos ênfase a determinados
fatos e dar ao texto ares de romance, de ficção. Cabe aqui ressaltar que o segundo caso,
está mais próximo à narrativa: ao ato de contar algo e não, necessariamente, um
compromisso histórico-real. Além disso, a autoficção permite a pessoas comuns e
anônimas contarem suas experiências, diferentemente da autobiografia, gênero que é
destinado a pessoas de renome, famosos, etc.
Em sua tese de Doutoramento, Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor
e a virada etnográfica (2007), Diana Klinger apresenta reflexões sobre a autoficção como
uma tendência do contemporâneo, situada entre a mentira e a ficção, que aproxima o leitor
muito mais da verdade do que o mero relato documental. Para Klinger, a autoficção é
uma “máquina produtora de mitos do escritor” (KLINGER, 2007, p. 51). Ela avalia os
estudos de Doubrovsky, numa perspectiva psicanalítica, na qual o ato de escrever sobre
si faz com que o indivíduo crie um romance de sua vida.
Klinger entende a ficção como um processo no qual o indivíduo não dá sentido às
suas experiências antes de narrá-las, mas durante o ato de narrar: nesta ótica, o indivíduo
se constitui enquanto se narra. Assim, pode-se pensá-la como uma atividade intrínseca ao
ser humano: o sujeito, ao pensar e organizar o quer escrever, se auto-organiza, se
autoconstitui. A ficção por ele inventada não é verdadeira nem falsa, é apenas ficção.
Nessa linha de pensamento é importante ressaltar o psicanalista e teórico literário
Simon Harel (1992), que entende o ato de criação através da escrita como um processo
complexo no qual o autor, ao desenvolver os pensamentos, escrever e reler o material
produzido, passa por um frágil processo de autoanálise, que Harel denomina como uma
escrita reparadora. Neste sentido, a autoficção é vista como um método de cura, em que
o escritor se projeta, camufla-se, em suas personagens de forma confessional, como uma
ferramenta de cura na qual pode ser o analista e o analisado (HAREL, 1992).
Neste sentido, percebe-se que a autoficção não é algo contemporâneo, novo, que
foi inventado recentemente. O ser humano sempre buscou, de algum modo, narrar-se.
Isso pode ser observado, por exemplo, nas palavras de Lejeune: “Hoje sei que transformar
sua vida em narrativa é simplesmente viver. Somos homens-narrativas” (LEJEUNE,
2008, p.74).

FICÇÃO E REALIDADE
É impossível discutir a escrita de si, seja autobiográfica ou autoficcional, sem
mencionar as tensões entre o real e o ficcional. O mais interessante a ser observado é que
um dos desdobramentos que mais intriga o leitor acerca desse tipo de narrativa é seu
estatuto, ou seja, o leitor não sabe, exatamente, até que ponto o texto é, de fato, real ou
fictício. Isso significa dizer que o leitor se encanta, justamente, pelo que não sabe: o que
foi vivido (real) e o que foi inventado (ficção). É importante lembrar que esses limites
entre a realidade e a ficção são questionáveis e complexos, e não se pretende aqui
delimitar ou definir o que é biográfico nos textos de Clarice, mas, sim, problematizar os
conceitos abordados e apreciar a narrativa, independentemente de sua veracidade
biográfica.
Serge Doubrovsky complexifica a questão com propriedade, ao afirmar que “todo
contar de si é ficcionalizante” e que, para compreendê-lo, é preciso estar atento ao que
ele entende por ficção: “uma ‘história’ que, qualquer que seja o acúmulo de referências e
sua precisão, nunca aconteceu na ‘realidade’, e cujo único lugar real é o discurso em que
ela se desenrola” (DOUBROVSKY, 1988, p. 73, tradução minha).3 Pensando nessa ótica,
a autoficção até pode surgir de experiências vividas pelo autor, porém, ao narrá-las, ou
seja, ao selecioná-las, organizá-las e transformá-las em texto, o autor perde o domínio do
que é verdadeiro ou falso, real ou ficcional e o que é inventado, imaginado ou lembrado.
Neste sentido, pode-se pensar que nem mesmo o texto mais “objetivo”, do ponto
de vista histórico ou biográfico, consegue alcançar o real, já que ele inexiste num plano
discursivo. Mesmo uma história absolutamente apoiada em fatos é fruto de um ponto de
vista de um historiador e não contempla o fato em si. Complexificando ainda mais o
conceito de realismo, pode-se inferir que este, enquanto estratégica estética, é o mais
“mentiroso”, já que promete ou dá a ilusão de que “abarca um todo”, de que “apresenta
somente a verdade”, quando o que realmente faz é apresentar um ponto de vista ou em
casos mais extremos, ficcionalizar para produzir um “efeito de real”. Parece complexo, e
é: mesmo o biógrafo mais comprometido não conseguiria abarcar a vida inteira de outra
pessoa; nem ela mesma poderia fazer isso.

A TRAJETÓRIA DE CLARICE

3
No original: “une 'histoire' qui, quelle que soit l'accumulation des références et leur exactitude,
n'a jamais 'eu lieu' dans la 'réalité', dont le seul lieu réel est le discours où elle se déploie”.
(DOUBROVSKY, 1988, p. 73).
Com a finalidade de contextualizar o leitor e para compreender os textos a serem,
posteriormente, interpretados, é interessante conhecer, a trajetória de Clarice Lispector,
um grande nome da literatura contemporânea brasileira. Clarice nasceu em 10 de
dezembro de 1920, em Tchetchelnik, na Ucrânia. Sua família, de origem judaica emigrou
para o Brasil em março de 1922. Após três anos no País, ela e a família mudam-se para a
cidade de Recife.
Um dos momentos mais marcantes e sua vida é quando, aos 9 anos, ficou órfã de
mãe. Anos mais tarde, em 1937, mudou-se com a família para o Rio de Janeiro e
ingressou no curso de Direito, formando-se em 1943 – ano em que se casou com o colega
de turma Maury Gurgel Valente e estreou na literatura com o romance Perto do Coração
Selvagem. Após o casamento, Clarice sempre acompanhou Maury, diplomata do
Ministério das Relações Exteriores, em suas viagens. Em função da carreira do marido
teve a possibilidade de morar em diversos países, como Inglaterra, Estados Unidos e Suíça
– país em que, em 1949, teve seu primeiro filho, Pedro, e quatro anos depois, nos Estados
Unidos o segundo filho, Paulo. (RELEITURAS, on-line).
Em 1959, Clarice se divorciou e retornou para o Rio de Janeiro com os dois filhos.
Começou a trilhar sua trajetória no jornalismo, assumindo a coluna “Correio Feminino”,
no Jornal do Brasil. Os textos apresentados a seguir foram retirados da obra A descoberta
do mundo, publicada em 1984, que reúne todos os textos publicados no Jornal do Brasil.
Em 1960 lançou a coletânea de contos Laços de Família, que recebeu o Prêmio Jabuti da
Câmara Brasileira do Livro e, um ano mais tarde, publicou A Maçã no Escuro, pelo qual
recebeu o prêmio de Melhor Livro do Ano (em 1962) (RELEITURAS, on-line).
O ano de 1966 marcou uma tragédia em sua vida, quando, ao dormir com um
cigarro aceso, acabou sofrendo diversas queimaduras em seu corpo e na mão direita. Sua
recuperação se deu através de inúmeras cirurgias, o que provocou um isolamento, embora
continuasse, sempre, escrevendo. Em 1969, já possuía mais de dez volumes publicados e
as temáticas de seus textos eram, na maioria das vezes, em torno de personagens que,
alienadas e em busca de um sentido para a vida, adquiriam gradativamente consciência
de sua subjetividade, aceitando seu lugar num universo arbitrário e eterno.
No ano de sua morte, publicou A Hora da Estrela e o falecimento foi causado por
um tipo de câncer, na véspera de seu aniversário de 57 anos, no Rio de Janeiro, no dia 9
de dezembro de 1977. Seu corpo foi sepultado no cemitério Israelita do Caju.

INTERPRETANDO CLARICE
Após a contextualização sobre o conceito de autoficção e a compreensão deste
efeito estético ou narrativo não apenas como uma tendência contemporânea, mas também
como um impulso interno da condição humana, este artigo se propõe a interpretar e
discutir alguns textos publicados, primeiramente, aos sábados, no Jornal do Brasil e,
posteriormente, reunidos na obra A descoberta do mundo (1984), que apresenta todas as
publicações da autora, no periódico, entre agosto de 1967 e dezembro de 1973. Os textos
eram definidos como crônicas, entretanto, alguns foram republicados como contos anos
mais tarde. É importante esclarecer que este trabalho não almeja definir ou identificar os
escritos nessa nomenclatura, mas debruçar-se sobre o seu conteúdo, a fim de interpretá-
los, observando a escrita sobre si e as linhas tênues entre ficção e realidade.
O primeiro texto chama-se “Tortura e glória” e foi, inicialmente, publicado em 2
de setembro de 1967 no Jornal do Brasil, e, depois, como “Felicidade clandestina”, que
dá nome a um livro de contos publicado em 1971. O texto conta a história sob a
perspectiva de uma narradora, em primeira pessoa, uma mulher adulta que relembra uma
experiência de sua infância. Essa narradora-protagonista inicia o texto descrevendo uma
conhecida de sua escola: “Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente
crespos. Veio a ter um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. [...]
Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono
de livraria” (LISPECTOR, 1984, p. 16). Os relatos que seguem evidenciam que a tal
menina não apenas não aproveitava o acesso que tinha aos livros, mas também torturava
as crianças que gostariam de tê-lo:

Pouco aproveitava. E nós menos ainda: até para aniversário, em vez de algum
livrinho, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. [...]
Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando
balas com barulho. [...] Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo
(LISPECTOR, 1984, p.16).

A narradora relembra um episódio de “tortura chinesa” em que a filha do livreiro


decidiu contar-lhe que tinha em suas posses a obra As reinações de Narizinho: “Era um
livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o,
dormindo-o. E, completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela
sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria” (LISPECTOR, 1984, p.17). O texto
explora intensamente a ansiedade da narradora para ter acesso ao livro, enquanto a outra
menina não apenas inventa desculpas para não entregar o livro, mas posterga o
empréstimo para o próximo dia:
O plano secreto da filha do dono da livraria era tranquilo e diabólico. No dia
seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com um sorriso e o coração batendo.
Para ouvir a resposta calma: o livro ainda não estava em seu poder, que eu
voltasse no dia seguinte. Mal sabia eu como mais tarde, no decorrer da vida, o
drama do dia seguinte ia se repetir com o coração batendo (LISPECTOR, 1984,
p.17).

No trecho destacado, pode-se observar que o enredo ultrapassa a narrativa das


meninas, e alerta o leitor para as inúmeras circunstâncias às quais o indivíduo é exposto
durante sua vida, em que, assim como a filha do dono da livraria, o “destino parece
zombar” das limitações humanas. Neste sentido, pode-se identificar um tipo de escrita
que lembra a “escrita do divã”, uma escrita reparadora, na qual o escritor reavalia o que
fez no passado – neste caso, a ingenuidade da narradora ao ir tantas vezes à casa da menina
ruiva e se deixar, de algum modo, torturar por ela:

E assim continuou. Quanto tempo? Não sei. Ela sabia que era tempo
indefinido, enquanto o fel não escorresse de seu corpo grosso. Eu já começara
a adivinhar que ela me escolhera para eu sofrer, às vezes adivinho. Mas,
adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer está
precisando que eu sofra.
Quanto tempo? Eu ia diariamente à sua casa, sem faltar um dia sequer. Às
vezes ela dizia: pois o livro esteve comigo ontem de tarde, mas você não veio,
de modo que o emprestei a outra menina. E eu, que não era dada a olheiras,
sentia as olheiras se formando sob os meus olhos espantados (LISPECTOR,
1984, p. 17-18).

O fragmento expõe, mais uma vez, um senso crítico da narradora-protagonista


mais madura em relação a seu comportamento habitual (já que ela afirma que aceita, no
tempo presente), ou seja, novamente pode-se pensar a escrita de si, ou autoficção, como
um modo de autoconstrução, em que a partir do texto, o autor cria uma possibilidade de
autoconhecimento. Ainda no excerto é exposto, de forma ainda mais explícita, o
sarcasmo, a malícia e a tortura da jovem ruiva inescrupulosa com a narradora, em função,
segundo a mesma, de ser mais bonita que a ruiva: “Como essa menina devia nos odiar,
nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres”
(LISPECTOR, 1984, p. 16).
O clímax do texto acontece quando surge uma terceira personagem, a esposa do
dono da livraria que, ao notar o estranho aparecimento diário da mesma em sua casa,
acaba descobrindo as atrocidades da própria filha: “Voltou-se para a filha e com enorme
surpresa exclamou: mas este livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! E o pior
para ela não era essa descoberta. Devia ser a descoberta da filha que tinha” (LISPECTOR,
1984, p. 18).
Nos trechos finais, a narradora, após saber que teria a obra “pelo tempo que
quisesse” (LISPECTOR, 1984, p. 18), descreve detalhadamente o deleite, o prazer e a
demora com que faz a leitura da obra: “Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que
não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. [...] Criava as mais falsas dificuldades para
aquela coisa clandestina que era a felicidade. Como demorei!” (LISPECTOR, 1984, p.
18) No fragmento a narradora menciona esse sentimento de felicidade clandestina, uma
felicidade que ela usufruía às escondidas, já que o livro não era seu, de fato, embora,
naquele momento, ela fingisse para si mesma que fosse. Como se não tivesse o direito de
ser feliz.
Alguns aspectos do texto podem ser pensados como relatos ou memórias da
própria escritora, como, por exemplo, a escrita em primeira pessoa; o livro tão cobiçado
pela narradora ser As reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato – autor que a própria
Clarice afirmou ter lido; a história se passar no Recife, cidade em que ela viveu durante
a infância. Entretanto é preciso ver além destes aspectos biográficos: a autoficção permite
o autoconhecimento, tanto de quem escreve quanto de quem lê; a obra interpretada
complexifica o amor pela leitura; e, principalmente, o sentimento do leitor diante da
possibilidade de leitura, a autoconsciência do amadurecimento que ela proporciona, como
é possível perceber nas palavras fim do conto: “Não era mais uma menina com um livro:
era uma mulher com o seu amante” (LISPECTOR, 1984, p. 19). O fragmento final
expressa a paixão, o amor e, sobretudo, o elo entre o leitor e o livro.
O texto trata, fundamentalmente, de três temas: o amor da narradora pela leitura,
a crueldade da menina com a narradora e a felicidade clandestina – título do conto e do
livro de contos – uma felicidade que possivelmente ela (a narradora) sentisse não ser a
ela permitida. A partir do texto emerge a sensibilidade da narradora em relação à leitura
e a paixão pelas obras literárias que se manifesta quando a narradora comenta que a
menina sardenta possuía tudo o que uma menina poderia querer: um pai dono de livraria.
O segundo texto chama-se “Medo da eternidade” e foi publicado em 6 de junho
de 1970. A história é, aparentemente simples, mas carrega uma metáfora interessante
sobre a vida e o peso da existência humana. Assim como o texto anterior, escrito em
primeira pessoa do singular, a narradora-protagonista é uma mulher adulta que rememora
um episódio marcante de sua infância, no qual teve o “aflitivo e dramático contato com a
eternidade” (LISPECTOR, 1984, p.446). A narradora-protagonista conta que, quando era
muito pequena, nunca havia provado um chiclete. Ela explica que, no Recife, não se
falava muito neste tipo específico de bala, que era demasiado cara:

Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola
me explicou:
- Tome cuidado para não perder, porque esta bala nunca se acaba. Dura a vida
inteira.
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto (LISPECTOR, 1984, p. 446).

A narradora explica que a ideia de algo que nunca acabava lhe transportara para
um mundo de fantasia. “Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir
do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre [...] de aparência tão
inocente, tornando possível o mundo impossível do qual eu já começara a me dar conta”
(LISPECTOR, 1984, p.446-447). O trecho evidencia uma reflexão sobre a tal pastilha
que prometia algo inacreditável e até então impossível para a menina: a ideia de
eternidade.

Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.


- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente
deveria haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar
o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você
perca, eu já perdi vários.
Perder a eternidade? Nunca (LISPECTOR, 1984, p.447).

O trecho destacado alimenta uma expectativa intensa da narradora, uma ideia de


que a eternidade é algo a ser cobiçado. A surpresa ocorre, porém, quando, após mastigar
por alguns minutos, o chiclete perde o sabor adocicado:

- Acabou-se o docinho. E agora?


- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha
na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada.
Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava
gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie
de medo, como se tem diante da ideia de eternidade ou de infinito
(LISPECTOR, 1984, p.447)

A narrativa desperta o leitor para o fato de que o chiclete, assim como a vida, não
pode ser eterno. Ele perde o gosto, se torna descartável. Mais do que isso, o texto alerta
para a sensação de medo que o indivíduo sente, muitas vezes, diante do que parece ser
infinito: o estranhamento que se tem diante do mar, de alturas extremas, ou de tudo que,
de alguma forma, pareça interminável – o peso da eternidade é o medo do desconhecido:
assustador. Neste sentido, a obra, além de metáfora, é, também, uma reflexão íntima da
autora. No conto, a menina logo se desfaz do chiclete voluntariamente e, inclusive, finge
desgosto para não contar à irmã que a experiência com a bala que nunca termina não
apenas fora desagradável, mas também, em alguma medida, assustadora. Diante do
ocorrido, a irmã lhe tranquiliza, afirmando que outras oportunidades de provar chicletes
aparecerão:

Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da
mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim. (LISPECTOR, 1984,
p.447-448)

Assim como o primeiro texto, este também apresenta detalhes que se assemelham
à realidade de Clarice e que dão ao texto um tom autoficcional: a infância no Recife; as
condições financeiras desfavoráveis; a irmã mais velha que lhe explicava tudo, enfim. É
importante ressaltar que o texto é mais do que isso: é valioso na riqueza da metáfora, na
ingenuidade da infância e na complexidade do tema – o medo da eternidade.
O terceiro texto chama-se “Dies Irae” e foi publicado em 14 de outubro de 1967
no Jornal do Brasil. Este texto se difere dos anteriores por não ter, necessariamente, um
enredo com personagens. Ele mais parece uma espécie de desabafo sobre o papel. O título,
que significa “Dia de Ira”, remete ao famoso hino, em latim, do século XIII que, acredita-
se, tenha sido escrito por Tomás de Celano. Seu uso principal é dentro da liturgia do
réquiem, como sequência, na tradicional missa católica para os mortos.4 A letra do hino
revela um caos, assim como o caos do texto de Clarice:

Amanheci em cólera. Não, não, o mundo não me agrada. A maioria das pessoas
estão mortas e não sabem, ou estão vivas com charlatanismo. E o amor, em vez
de dar, exige. E quem gosta de nós quer que sejamos alguma coisa de que eles
precisam. Mentir dá remorso. E não mentir é um dom que o mundo não merece.
(LISPECTOR, 1984, p. 33)

Os trechos iniciais do texto já evidenciam um tom de desabafo, angústia, ironia e


insatisfação, uma espécie de caos interno. Este texto, marcado por uma escrita intimista,
parece ter sido escrito em um diário ou algo semelhante, mas, na verdade, fora, assim
como os outros, publicado no Jornal do Brasil. Uma narrativa marcada por um fluxo de

4
Informações obtidas em: <http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/1217/36/>.
Acesso em: 14 de set de 2018.
consciência, no qual Clarice parece ter se deixado, simplesmente, levar pelos sentimentos,
uma escrita íntima e pessoal: “Avisei a meus filhos que amanheci em cólera, e que eles
não ligassem. Mas eu quero ligar. Quereria fazer alguma coisa definitiva que rebentasse
com o tendão tenso que sustenta meu coração” (LISPECTOR, 1984, p. 33). O trecho
anterior expõe as semelhanças com fatos biográficos como o fato de que a escritora
possuía filhos e sua escrita possui um tom de sarcasmo e uma possível despreocupação
com a opinião alheia (RELEITURAS, on-line):

Não, não tenho pena dos que morrem de fome. A ira é o que me toma. E acho
certo roubar para comer. – Acabo de ser interrompida pelo telefonema de uma
moça chamada Teresa que ficou muito contente de eu me lembrar dela.
Lembro-me: era uma desconhecida, que um dia apareceu no hospital, durante
os quase três meses onde passei para me salvar do incêndio. Ela se sentara,
ficara um pouco calada, falara um pouco. Depois fora embora. E agora me
telefonou para ser franca: que eu não escreva no jornal nada de crônicas ou
coisa parecida. (LISPECTOR, 1984, p. 34)

O trecho destacado evidencia a necessidade de nomear o sentimento e expurgá-lo


no papel, e o segundo revela algo que parece ter acontecido durante o processo de escrita:
ser interrompida por um telefonema: a descrição desse contexto também dá ao texto um
tom autoficcional. Posteriormente ela explica que o telefonema fora de alguém que a
visitara durante a recuperação do incêndio em seu apartamento – outro episódio que dá,
ao leitor, a sensação de que isso realmente aconteceu com ela.
O texto faz ainda menção a uma mudança climática estranha: “Estou escrevendo
de manhã e o tempo de repente escureceu de tal forma que foi preciso acender as luzes.
[...] Sim, aqui é noite escura às dez horas da manhã. É a ira de Deus” (LISPECTOR,
1984, p. 34). Neste ponto, a narradora pede a Deus que se a “escuridão se transformar em
chuva, que volte o dilúvio, mas sem a arca, nós que não soubemos fazer um mundo onde
viver e não sabemos na nossa paralisia como viver” (LISPECTOR, 1984, p. 34-35).
Este é um tipo de texto no qual tem-se a sensação de ter acesso aos pensamentos
de Clarice: a ideia de que ela está, assim como em suas palavras, inteira e entregue, fiel a
si. Diferentemente dos textos anteriores, neste, não há personagens para depositar
frustrações: há apenas as frustrações com o que a incomoda, há indignação, ira, cólera e
caos. Aqui, se percebe a urgência pela escrita de si, a necessidade de falar sobre si, de
narrar, de se auto narrar – característica muito presente nos dias atuais, nas redes sociais
e também fora delas. Aparentemente todos querem ou precisam, em alguma medida, ser
ouvidos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após a leitura e problematização acerca dos conceitos de autobiografia e
autoficção, percebe-se que na primeira há um compromisso maior em contar uma
retrospectiva de vida, baseada em uma cronologia; já a segunda, permite dar ao texto um
tom mais ficcional, fazendo seleções, recortes, dando mais ou menos importância a
determinados fatos, etc. A autoficção é também apresentada como uma “escrita do divã”
na qual o indivíduo (autor) tem a possibilidade de depositar sobre uma personagem as
suas frustrações a fim de compreender aspectos mal resolvidos ao longo de sua trajetória
e, a partir de então, se autoavaliar. A escrita de si é um conceito que vê o ato de narrar
como uma condição humana que dá sentido à vida. Neste sentido, narrar é viver.
Embora a autoficção não seja uma prática contemporânea, há discussões deste tipo
de texto recentes. Quanto à conceitos de verdade e mentira, real e inventado e o
imaginário: este debate requer um maior aprofundamento, contudo, o “real evento” – não
pode ser alcançado pelas palavras de um historiador, nem pelas memórias de um
romancista. Ao pensar a narrativa como a vida, o próprio conceito de realidade é
questionável.
Já os textos de Clarice Lispector aqui estudados são, de algum modo, autoficções
por se enquadrarem nos parâmetros abordados: escritos em primeira pessoa e semelhantes
à vida da autora; contudo mais do que isso, são reflexões profundas e íntimas, são
desabafos, memórias, emoções, dúvidas, etc. A escrita clariceana está ligada a um
compromisso com o que diz respeito à dimensão humana. São textos que, sem dúvida, a
transformaram enquanto os escrevia e também se tornam constituintes da subjetividade
dos leitores que a eles depositam um olhar atento ou ouvido apurado.

REFERÊNCIAS

CATOLICISMO ROMANO. Site. Dies Irae. Disponível em:


<http://www.catolicismoromano.com.br/content/view/1217/36/>. Acesso em: 14 de set de 2018.

DOUBROVSKY, Serge. Fils: roman. Paris: Éditions Galilée, 1977.

______. Autobiographies: de Corneille à Sartre. Collection Perspectives Critiques.


Paris: PUF, 1988.

HAREL, Simon. L’écriture réparatrice. Le défaut autobiographique. Montréal: XYZ


éditeur, 1992.
KLINGER, Diane Irene. Escritas de si, escritas do outro: o retorno do autor e a virada
etnográfica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007.

LEJEUNE, Philippe. O pacto autobiográfico: de Rousseau à internet. Belo Horizonte:


UFMG, 2008.

LISPECTOR, Clarice. A descoberta do Mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

______. Entrevista a Júlio Lerner. TV Cultura. São Paulo, fevereiro de 1977. In:
Revista Shalon, n.296. São Paulo, 1992.

RELEITURAS. Site com biografias de diversos escritores. Disponível em:


<http://www.releituras.com/clispector_bio.asp>. Acesso em: 17 ago. 2018.

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