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LINDANOR CELINA: UM PERCURSO DE

VIDA, FICÇÃO E ESCRITA1

Maria das Neves de Oliveira Penha

Resumo:

Este estudo trata dos rastros autobiográficos na


relação vida e ficção, fictício e facto, no
romance Menina que vem de Itaiara, com
primeira edição em 1963, e reeditada na década
de 90 do século passado. Ficção e realidade,
pensamento atravessado por aquilo que
Antonio Candido (1975) cunhou como ficção e
confissão, referindo-se a Graciliano Ramos.
Constituem Estratégia de escrita em que há
complementariedade e não revelação ou
esclarecimento uma da outra, mas como
instâncias que remetem uma a outra, de modo
indissolúvel quando brotam do inconsciente e
tmam forma através de processos de construção
do romance. Recorre-se aqui também a outros
teóricos como Foucalt (2000) e Costa Lima
(1986) com a finalidade de enfatizar os
processos de autoria e máscaras narrativas.

Palavras:chave: Menina que vem de Itaiara,


narrativa, autobiografia, ficção e realidade.

Abstract: This study is about the


autobiographical in the relationship life and
fiction, fictio anda facto, in the novel Menina
que vem de Itaiara, with first edition in 1963,

1
Fragmento da dissertação A cartografia de irene na
trilogia de Lindanor Celina, orientada pelo professor Dr.
Joel Cardoso, no PPGL/UFPA, no ano de 2008.
and reedited in the decade of 90 of the last Lindanor Celina estreia como romancista, em
century. Fiction and reality throught crossed by 1963, com Menina que vem de Itaiara. No
what Antonio Candido (1975) pointed out as
momento em que o livro foi escrito, havia, aqui
fiction and confession, referring to the work of
Graciliano Ramos, it constitutes a strategy of no Pará, ainda uma incipiente percepção da
writing that is as that refer to each other, mulher na literatura, e por isso, alguns textos
indisputably when they spring from the
críticos sobre sua obra consideram o livro de
unconscious and take shape through processes
of construction of the novel. It refers here to caráter autobiográfico, isto motivado talvez por
others theorists such as Foucalt (2000) anda encontrarem na obra elementos pertencentes à
Costa Lima (1986) with the purpose to
sua vida. A autora investe na criação de um tipo
emphasize processes of authorship and
narrative masks. controverso, não para aproximar vida e
literatura, mas para envolver e misturar
Keywords: Menina que vem de Itaiara,
narrative, autobiography, fiction and reality. naturalmente seus limites. No entanto,
personagens desprovidos de relação nominal
com a vida da autora e o espaço da narrativa
são dados que ajudam a sustentar a tese de
serem essas obras textos ficcionais. Os relatos
sobre a identidade desse eu que narra têm como
paradigma, outras histórias, constituindo um
sujeito como o resultado das ficções por ela
contadas. Vida e ficção se constituem como
faces complementares, não no sentido de uma
revelar ou esclarecer a outra, mas como
instâncias que se remetem uma a outra,
indissociáveis, porque brotam do inconsciente.
Essa instância atemporal sem negação nem
contradição. Ademais a pressão do consciente
sobre o inconsciente provoca coisas estranhas
em nossa experiência consciente,
principalmente no que tange à intenção e à
enunciação.

Mais que um trabalho apontado como


autobiográfico, Lindanor Celina faz da
literatura seu labor diário com as palavras em
que “o prazer do texto se revela em toda a sua
extensão”. A escritora tece seu texto com a
noção de que um autor não é apenas escritor
real da obra artística, tampouco um possível Irene, é “digno de ser mais destacado pela
locutor fictício. Segundo Foucalt 91992, p. 47), cuidadosa concepção linguística, por um
“o autor” é uma espécie de “estilo” ou de uma constructo verbal fundado na soltura livre da
instituição jurídica, da qual seus discursos oralidade e do monólogo interior...”
assentam uma diversidade de “eus”, que (TUPIASSU, 2004, p.14). Neste livro, apesar
estabelecem relações estreitas entre de apresentar uma linguagem mais fluente, a
determinados textos. Nos textos da escritora, o escritora parece romper com o sistema
próprio conceito de “gênero literário”, por discursivo, vira-o ao avesso, numa possível
vezes perde seus contornos, entretanto, é desautomatização da linguagem, quando coloca
preciso frisar que eles apresentam uma várias vozes nesse jogo, para ir em busca do
regularidade do começo até a última frase de sentido subjetivo, que promove a exaltação do
cada livro: há começo, meio e fim. Estradas do interior do sujeito em pedaços e da passagem
Tempo-Foi – o segundo romance da trilogia da crise psicológica à angústia existencialista
apresenta um texto para ser mais vivido do que de Irene. A escritora de Estradas do Tempo-
lido, no qual a percepção, sensibilidade afloram Foi parece entender que o leitor, muitas vezes,
constantemente, em u fluir de experiências é colocado para dentro do sentimentos das
contadas de forma intensa. A narrativa para a personagens como também observa Aulagnier
autora é aquele momento em que a personagem (1979, p.82):
salta de um patamar de consciências para outro,
Freud observou que a arte não poupa
aquilo que James Joyce chamaria de Epifania2. muitas vezes os espectadores de
Em 1975, em viagem de férias à Grécia – berço experiências dolorosas que, na
verdade, são percebidas como fontes
de divindades, Lindanor Celina carregou o de prazer. Entretanto a expressão seja
encanto do Olimpo e concentrou seu enlevo pela via da palavra poética, seja pela
regra fundamental da psicanálise, leva-
para o livro O Diário da Ilha, momento em que
nos a questão da completude do signo
revela sua necessidade de andar e colher os e da difícil e complexa interpretação da
frutos do conhecimento, da visão e do tempo. linguagem.

Essa afortunada experiência de


Quando Lindanor Celina escreveu seus
andarilha moldou a ficcionista, que buscava a
romances, estava convicta de que não há
simplicidade em seus textos. O cotidiano, não
trabalho artístico sem linguagem. Que a função
raro, apresentava-se cada vez mais bem
poética, como esclarece Freud (1992, p. 78),
lapidado, o dia-a-dia adquire mais importância
que não pertence apenas aos poemas, mas está
em sua escritura. A linguagem parece mais
presente em muitas manifestações da vida,
nítida, mais elaborada. O romance Eram Seis
precisa ser identificada e decifrada. Com esse
Assinalados – o terceiro romance da saga de
ponto de vista, acredito que há uma troca entre
2 a arte, a literatura de Lindanor, e a Psicanálise.
Epifania, segundo James Joyce, é uma manifestação
súbita da essência da personagem.
Seus textos como de qualquer artista é o insere brilhantemente no rol dos ficcionistas
próprio texto da vida. Segundo antonio Candico brasileiros e é considerada como romancista
(1975, p.33), “a obra depende estritamente do moderna.
artista e das condições sociais que determinam
No ano de 1974, a escritora resolveu
sua posição”. É por isso que não há
transferir residência para Paris, passando a
necessidade de se recorrer às “intenções
lecionar Literatura Portuguesa e Brasileira na
declaradas” dos autores para decifrar o enigma
Universidade de Lille III, a maior daquela
e para compreender o que eles quiseram dizer.
região francesa, na época. Com muito
É preciso que a vida psíquica seja, ela própria,
empenho, a romancista conseguiu doutorar-
um texto, para que se possa continuar no texto
se em Letras pela Sorbone. Lindanor não
da obra. Lindanor Celina é citada como
esqueceu a cidade Belém, onde modelou
romancista de costumes pelo crítico Afrânio
sua cultura literária. “Tenho saudades das
Coutinho, em virtude das “cenas e situações do
mangas que caem das mangueiras, nas ruas
livro que mostram a boa observação da
de Belém. Os moleques devem estar
autora”. O jornal O Estado de São Paulo
juntando muitas depois das chuvas e
premia o primeiro romance como “o livro do
enchendo seus paneirinhos”. Estava
semestre”, fato que ajuda a consolidar a sua
permanentemente em contato com seus
carreira literária, pois a tira do anonimato. Mais
amigos intelectuais paraenses. Para progredir
tarde escreveu também Breve Sempre, Pranto
nessa insaciável sede de aprender e alcançar o
po Dalcídio Jurandir, A viajante e seus
nível de uma grande escritora e intelectual, lia
espantos, Diário da Ilha. Escreveu igualmente
bastante e treinava muito seu francês, língua
Crônicas intemporais e Para Além do Anjos –
que aprendeu desde menina. Nos seus longos
aquele moço de Caen (romance).
anos na França e o consequente manejo
Cabe dizer que sua obra, composta em com a língua daquele país, jamais permitiu
linguagem densa e repleta de possibilidades que houvesse grandes influências na sua
interpretativas, instaura uma espécie de ficção maneira de escrever. A romancista escrevia
que se caracteriza pela revelação constante de fluentemente em língua portuguesa, sua
rupturas e sentidos móveis. Levando em conta a língua mãe, com a leveza do seu estilo. O
experiência da escritora paraense como idioma francês e a diferença de ambiente não
romancista e cronista, pude perceber que os perturbaram sua escritura, que quando aqui
questionamentos acerca da literatura e a aportava com sua volumosa bagagem
problematização dos procedimentos literários literária, só queria saber de falar em português
aparecem em sua obra. Segundo Gutemberg e rever os amigos:
Guerra (2004, p.23) sua arte é moderna,
Falar por telefone, estando aqui em
influenciada por autores clássicos e Belém? Não! Ela, então inventou
revolucionários. A escritora amazônida se uma palestra no Edifício Palácio
do Comércio, ali na Assis de menos um cunho confessional e mais a
Vasconcelos, e convidou toda a
livre invenção ficcional. Para isso, recorro
galera, tal como lhe foi possível. À
noite, casa lotada. Ela, felicíssima, a um aparato teórico que sirva de suporte
agradeceu a todos e disse que a para o estudo. Privilegio autores que
palestra era uma travessura, a
maneira que encontrou para ver agregam novos ângulos para se pensar o
os amigos. Foi um sucesso, uma tema.
noite memorável (WANZELLER,
2004, p.69).
O primeiro é o crítico literário
Antonio Candido, tomando por base o
que ele esclarece na introdução do livro
Lindanor Celina e a autobiografia
Ficção e confissão– ensaios sobre
Dados autobiográficos são meros Graciliano Ramos, obra que estuda as
disparadores para a ficção, para a
metáfora que toda obra literária relações entre ficção e autobiografia, na
deve ser. Quero sempre voltar à obra do festejado escritor a qual apresenta
infância e acredito que a infância
posições que seriam reavaliadas nos anos
na ficção é a infância de todos e
não propriamente a infância setenta, quando estuda as obras de outros
biográfica. (...) O que justifica uma
autores tais como Lima Barreto, Carlos
obra é ser ela maior que seu autor,
que sofre as agruras do tempo... Drummond de Andrade, dentre outros, como
(PRADO, 2006, p.67) aponta a autora da orelha do livro Flora
Ao me tornar leitora das obras de Süssekind. Essa obra tem servido para
Lindanor Celina, sobretudo da trilogia, e sem muitos críticos consubstanciarem suas
nenhum conhecimento prévio de sua biografia, posições vinculadas ao caráter confessional
mergulhei na imaginação de seus romances e de certas obras. O estudo da literatura vem
de suas personagens. Como Lindanor é se tornando cada vez mais diversificado,
daquelas que não faz questão de frear sua abrindo espaço para olhares múltiplos
imaginação, verticalizei o olhar na sua nem sempre convergentes. Alguns
fantasia. Isso permitiu-me haurir mais olhares investigam o estrato linguístico
prazer e sentidos insuspeitados. Para discursivo, outros focalizam as relações
alguns críticos, uma das hipóteses entre literatura e história e outros as
possíveis é de que a escritora ora eventuais relações entre o criador e a obra
sobressai, ora apaga-se, tanto constrói uma criada e também os que dão ênfase à figura
identidade que se assemelha autobiográfica - do leitor. Apesar do vasto do vasto currículo
para aqueles que encontram marcas da acadêmico n o campo da crítica e dos
pessoa Lindanor, que a aconselham a “ser estudos literários de Antonio Candido (1992,
ela própria” – quanto desfaz a ilusão p. 10) cabe atentar para o que ele, do alto de
autobiográfica por ela encenada e em sua honestidade e responsabilidades
cada um dos registros de encenação há intelectuais, afirma no prefácio da referida
obra Ficção e Confissão envelheceu Viegas (2006, p.13), “depende, por um lado,
visivelmente, o que me fez hesitar em da constituição do indivíduo do mundo
desenterrá-lo. O seu núcleo data de quarenta moderno dotado de livre arbítrio, e, por outro
e seis anos, e de lá para cá a crítica mudou lado, da distinção, da medida exata entre
muito e apareceram estudos mais de acordo ficção e não-ficção”35. Essa distinção constitui
com gosto do dia. É evidente que uma obra um aspecto definidor na obra da escritora em
escrita há mais de sessenta anos pode conter estudo, sobretudo no primeiro romance, como
observações que não se coadunem com o uma escrita moderna em primeira pessoa. Seu
estágio atual dos estudos literários. romance se distancia daquele unicum que é o

O filósofo francês Michel Foucault self de quem escreve. Luís Costa Lima (1986,

(1992, p. 45) ensina que há diferentes formas p.246), que nega a existência do gênero

de “escrita de si”, esboçadas em diferentes autobiográfico, nos períodoshistóricos

narrativaas da atualidade. Ao criticar a anteriores ao século XVIII, enfatiza que

subjetividade como um princípio que constitui “onde as coordenadas histórico-culturais não

o pensamento moderno, sinaliza para a permitem essa distinção, ficção e

desconstrução da categoria de autor e autobiografia são artefatos diversos do que

problematiza diferentes procedimentos de são para nós”. Para a escritora, o

biografização. A posição do filósofo permite Modernismo é interpretado tanto no seu gesto

repensar sobre o caminho textual do autor no de romper com o passado, quanto no

discurso da crítica contemporânea. Luís Costa reelaboar a tradição e mantém sempre o

Lima (1986, p. 246) se refere à categoria convívio do passado com o presente, ou seja,

“individualidade” no Ocidente a partir do “o importante não é ficar, é viver” – a

século XVIII, e a considera como noção delibrada consciência do agora, do transitório

atemporal, autoevidente e autojustificável e não desemboca no passado. E a fria e monótona

uma categoria cultural e, portanto, objetividade do trabalho textual de experiências

historicamente variável. Segundo Viegas – comprovante dos dados biográficos – vai

(2006, p. 12) se “a caracterização da abrindo espaço a uma visão que reelabora os

autobiografia como gênero depende do destino acontecimentos, portanto, promove uma

da individualidade”, a reflexão sobre essa desconstrução em espaços retrógrados.

historicidade se agrega paralela à Em Menina, Lindanor Celina

problematização do gênero autobiográfico aprofunda questionamentos sobre os liames

enquanto um fenômeno que se modifica ao que atam o sujeito a momentos de extrema

longo do tempo. rigidez teórica, lançando o texto narrado em


primeira pessoa como um texto de memória
A aparência de confissão da vida do
da autora como sugerem alguns críticos.
artista não deve jamais ser confundida com a
Outros tentam disfarçar, colocando a escrita
imaginação, como afirma a antropóloga
da vida da autora como um palimpsesto, personagem central e relatos de
inscrita em várias camadas sobrepostas experiências. Na leitura de Menina, a
que ora surge, ora escapa. Ilusão difícil romancista quando cria personagens parece
de ser mantida, a meu ver, já que o camuflar a sua intimidade, num livre exercício
próprio diálogo que a escritora mantém de autoficcionalização e essa não revelação
com a obra de Dalcídio Jurandir reforça a explícita de sua identidade pode levar o leitor a
idéia de invenção. A escritora espelhou-se crer na não veracidade do que é narrado, ao
no romancista para criar ficcionalmente: mesmo tempo em que pode levá-lo a
“Tu, o imutável, o sempre igual. Tu o reconhecer a sinceridade das histórias contadas.
nosso espelho e nosso espanto” (CELINA, Essa aparente face ambivalente de
1983, p.19). No exercício da reelaboração, Lindanor, volto a frisar, interessa
do diálogo, da intertextualidade com a obra sobremaneira àqueles que querem encontrar
do romancista, Lindanor Celina reforça sua a vida da escritora em suas obras, que em
formação intelectual e atribui a ele o título determinados momentos estiveram junto à sua
de maior romancista do Brasil: intimidade. O jogo da “escritura” consiste em
sombrear as representações conscientes ou pré-
Dele eu só conhecia o Chove
conscientes sobre as quais o leitor poderá
nos Campos de Cachoeira e o
Marajó. Dalcídio Jurandir estava sempre afirmar que pertencem ao escritor.
para mim mais alto que uma Disso resulta o jogo de claro-escuro do texto
estrela. Exatamente uma estrela [...]
eu me cochichava: que sorte eles literário, através do qual a relação de
têm de o conhecerem assim tão de encobrir/descobrir do inconsciente deixará
pertinho, um homem desses, o
sempre na sombra a eficácia psíquica do texto,
maoir romancista do Brasil
(CELINA, 1983, p.11-12). para se interessar apenas por sua permanência
literária. Esse constante movimento de
A escritora reverencia seu mestre e
abrir/fechar do inconsciente apresenta enormes
reconhece nele a substância que ficou, com a
dificuldades para atividade interpretativa. Como
clareza de que a transmissão de saberes se
constata Clarice “o autor revela a sua
efetua por um sistema de trocas. Ela aprendeu
intimidade inconscientemente, as que escrevi, e
com Dalcídio a fazer romances – a inventar. Se
imagino quantas, foi sem querer”
há rememoração em sua escritura é o resíduo
(LISPECTOR. 1982, p.74).
de um átimo do olhar, da vivência comum a
Os fatos narrados em romances escritos em
todo ficcionista, que inicia ou termina seu
primeira pessoa, podem ser validos tanto como
percurso de tinta e papel através das suas
“fonte de experiências” como “suporte de
visões, seus pensamentos, de um detalhe. A
invenção”, dessa feita, provocará uma mescla
trajetória da personagem Irene se insere
nos limites entre a vida do autor e a
nos traços vinculados à construção do
ficcionalidade. Daí decorre a confusão entre a
sujeito moderno: a identidade da
experiência e sua ficção como ilustra a citação de Lindanor Celina e, ao citar Mário Quintana,
seguinte “Eu, nada, dura, especada no chão, o mostra que pode estar aí um grande disfarce
pranto caindo, me cegando, os soluços meu do escritor, exatamente para manter velados os
peito sacudindo” (CELINA, 1963, p. 51), uma dados de sua trajetória humana, pois, mesmo
das marcas da personagem em primeira pessoa. nas autobiografias, a linearidade da trajetória
No meu entender de leitora de Lindanor, neste da vida contada se abre numa rede de
discurso literário, autores e leitores parecem “possíveis ficcionais”, em que o texto, ao inv
pactuar: optam pela inventividade. A realidade invés de refletir a vida do autor, participa da
é compreendida como produto das várias criação do “mito do escritor”, ou seja, o autor
interpretações e versões distribuídas em várias passa a limpo a sua existência. A intenção
imagens captadas pela cabeça do leitor. Na obra maior deste tema, nesta pesquisa, é tornar
de Lindanor, verdade e ficção podem ser menos determinantes os limites entre ficção e a
substituídas, no máximo, por uma relação vida do escritor, ou entre ficção e a teoria e
mútua entre ambas as categorias: ficção diluir, na medida do possível, um estudo
pressupõe os fatos e vice-versa, como afirma reduzido e pautado tão somente na vida da
João Carlos Pereira (2004, p. 5): autora. A relevância se constitui exatamente em
entender o grau de encenação que constrói o
Por maior que seja a quantidade de cenário textual da obra de Lindanor.
fatos biográficos levados para a obra,
nenhum escritor aceita deslocar o
Para Lejeune (1975, p. 441), em seu
holofote da criação artística para livro Le pacte autobiographique, a identidade
iluminar sua vida pessoal. Para esse
dos nomes do autor, narrador e personagem
fim existem as autobiografias, que
pertencem a outro domínio que não definem não só a autobiografia, como também
(às vezes) o da criatividade. Na os demais gêneros íntimos (diários,
literatura brasileira, uma preciosa
exceção rompe o silêncio da verdade autorretratos, ensaios), “É pelo nome próprio
para anunciar que, em seus livros, os que a pessoa e o discurso se articulam antes
pesquisadores encontrarão todas as
mesmo de se articularem na primeira pessoa”.
informações de que necessitam para
contar sua trajetória humana. “Está O autor afirma que nem mesmo um
tudo lá”, revela o poeta Mário
pseudônimo abalaria essa identidade, uma vez
Quintana. Em Lindanor Celina, talvez
nem tudo esteja “lá”, mas ela se que quem usa pseudônimo o faz de si, de uma
envolvia de tal forma com o que pessoa real, é nada mais que um desdobramento
escrevia ou com as personagens que
criava, que alguém que tenha tido o do nome, a identidade não sofrerá nenhum
mínimo de ligação com a autora de prejuízo. Uma pessoa poderá ser identificada
“Breve Sempre” dificilmente deixará
por diversos nomes, aos quais corresponderão
de notar um traço que se aproxime da
ficção. biografias distintas, um processo de produção
de subjetividades, em que a obra corresponde a
A citação do escritor João Carlos
diversas invenções de si. As fronteiras entre
reforça nitidamente o caráter ficional da obra
fato e ficção, para Lejeune, estão cada vez mais narrados em relação aos acontecimentos reais
fluidas; ele problematiza ainda a forma como o ao longo da vida de seu autor, mas pelo acordo
nome próprio do autor pode ser percebido pelo firmado com o leitor, através de dados
leitor como ficcional ou ambíguo. No romance extratextuais que determinam seu modo de
de Lindanor, em estudo, algumas marcas leitura. Para ele, a autobiografianada mais é que
podem induzir a uma confusão entre invenção e um contrato de identidade selado pelo nome
experiência. Foi citado anteriormente a próprio inscrito na capa, única marca do texto
linguagem em primeira pessoa a que acrescento de alguém fora-do-texto, fazendo com que uma
os textos que evocam a infância, a recorrência a pessoa real assuma a responsabilidade da
estados passados impressivos, a tentativa de enunciação do texto real, já que a formação da
retratação e avaliação e a representação do figura autoral não é apenas resultado da escrita,
cotidiano, como aparece nitidamente na citação mas da invenção elaborada pelo leitor que se
abaixo de Menina: coloca na posição de autor, como depoimentos,
entrevistas, fotos etc. Ele ainda define
Como era bom teimar uns momentos autobiografia como “narrativa retrospectiva em
com o sono e ficar ouvindo coisas
prosa que uma pessoa real faz de sua própria
assim agradáveis, como a vinda
iminente de titio, na próxima compra existência, quando focaliza especialmente sua
da casa, que estava por dias, demora vida individual, sobretudo a história de sua
era seu Zé mudar-se para a outra, na
Boca-do-Caminho. Havia, certo, personalidade”. Castelo Branco (1994, p.51)
pedaços menos alegres, queixas em afirma que o destino do sujeito é plural:
geral a respeito de Xonda... desde a
noite em que eu fora dormir sufocada
com a alegria da compra da casa, dia (...) O mais curioso é que o sujeito que
seguinte bem cedo, soltei a língua, é tantos, que é autor, personagem e
botando mamãe debaixo de confissão sujeito da enunciação, termina por se
(CELINA, 1963, p. 63). dissipar no processo autobiográfico,
termina por destituir-se de sua precária
ancoragem para se transformar num
Há regras específicas que fazem com
náufrago de seu próprio discurso.
que os discursos da inventiva literária
favoreçam um estreito contato com variadas Menina que vem de Itaiara suscita uma
opções de construção de mundo. Na citação colagem da vida de Lindanor à sua obra e pode
acima, há quem reforce que a autora passou, na até mesmo estabelecer um vínculo estreito entre
sua infância, por essa situação exposta na ela e o leitor, reforçada pela imagem da
ficcção. Esse deslocamnto entre essas duas escritora transitada na mídia. A romancista, no
categorias, que se faz presente nas narrativas lançamento de alguns de seus livros, concedeu
contemporâneas em primeira pessoa, várias entrevistas a diversos veículos de
incorporam elementos biográficos do autor comunicação como em O Liberal, A Província
empírico. Felipe Lejeune (1975) define um do Pará, O Diário do Pará. O contato do leitor
texto autobiográfico, não pela verdade dos fatos com a obra e a mídia – pela presença de
referências biográficas, favorece, de forma Criamos juntos uma ficção e não uma
mentira... e foi essa maldita ficção que
contundente, a hibridização entre narrador e
trepou comigo e me prometeu uma
autor empírico, o que permite entender tratar-se vida de miudezas, peixes salmonados,
de “autoficção” como completa Viegas aluguel dividido, filhos, bichos, feira
na Serzedelo Correia e mãos dadas
“discursos que, ao mesmo tempo, não têm para sempre. (...) Era isso que ela
referente extratextual, mas também não se queria: uma imitação da vida.... ou
aquela velha lengalenga de sacrificar a
desligam completamente dele” (VIEGAS, merda da vida em detrimento da arte?
2006, p. 16). O “pacto autobiográfico” reforça a Só isso? (LISPECTOR, 2005, p. 45)
identidade entre texto e pessoa, mas o que se
observa, reforça Viegas (2006), é a identidade, A escritora Clarice Lispector,

a construção do narrador e do autor. Há uma no trecho acima, afirma que as citações da

variedade de possibilidades ficcionais, que mais vida pessoal se misturam às literárias, numa

se aproxima da criação do leitor com o autor, evidente noção de que a realidade é uma

em vez de apenas se espelhar na vida do autor. construção simbólica permeadas por

Ao ler romances, o leitor “desconsidera” imagens e não dados verificáveis. Isso

a materialidade do texto e da sua produção, a pode justificar, por exemplo o


descompromisso de algumas referências
fim de submergir na imaginação apresentada.
geográficas do romance de Lindanor que
Assim mesmo, como acontece num teatro, o
geram polêmicas, sobre sua vida ou sua
arco e as luzes do proscênio formam uma
imaginação: “Morávamos em Buritizal
moldura que simboliza o limite, a fronteira da
quando meu pai, num de seus arrancos da
realidade física dos espectadores do espaço
mocidade, se mudou para Itaiara. Mamãe
destinado à peça, que é encenada para eles e,
nunca lhe perdoou essa presepada que
metaforicamente, dentro deles. Nessas duas
considerou funesta em nossa vida” (1963,
formas culturais, a materialidade do significante
p.8). A escritora de Menina parece ter
– sejam as palavras impressas, sejam os atores
consciência de que dados empíricos não
no palco – é palpável e compartilhada pela
perturbam o espaço da ficção e do autor, que
presença concreta do espectador. Segundo
cria um ser de sua inventiva, “ser de
Viegas (2006, p.32), “A obra atua como uma
papel”. O espaço geográfico jamais será
moldura que divide as duas realidades – a da
conferido pelos leitores para que descubra a
percepção sensorial e a da crença fictícia – e
veracidade da história, no máximo, uma
exterioriza a divisão do ego”. Os textos deixam
simples comparação com o real da escritora,
sempre uma desconfiaça se os fatos são de fato
que nascera em Castanhal, no Pará.
reais ou ficcionais. Dessa feita, o leitor tende a
Segundo Elizabeth Bruss (1997, p.14), em
desconfiar da autonomia da arte, abrindo
seu livro sobre o ato autobiográfico, se os
precedentes para as duas categorias:
“textos da infância” não conseguem
demonstrar a “história de sua
personalidade”, em muitos deles, o autor narrativas: “qualquer semelhança com fatos,
procura “retratar-se e avaliar-se, o que nomes ou pessoas reais é mera coincidência”,
constitui um dos traços principais do ato todo romance se faz com memória e
autobiográfico”: imaginação.
A romancista da tríade em estudo parece
... papai, através de suas
não querer desfazer-se do clichê citado por
narrativas, baseadas em viagens
recentes, ia-se embora, nas estradas Carvalho (2002), já que considera suas
da lembrança, atrás das cidades,
personagens como obra de sua invenção, como
portos que conhecera há quantos
anos, quando embarcadiço. se verifica na página de abertura do romance
Pernambuco, Ceará, Salvador, rio Menina Que Vem de Itaiara: “Situações e
de Janeiro, tudo via de novo, nas
conversas de seu Álvaro do personagens desta estória são fictícias”, bem
Guamá. Vez em quando um como em Eram Seis Assinalados: “Esta história
espanto (...) Não se incomodava
é ficção. Personagens centrais e suas ações são
com avida insossa de Iataira, o
cineminha duas vezes por semanna inventadas. Qualquer semelhança com fatos ou
(CARVALHO, 2002, p. 21). com pessoas vivas ou mortas será simples
coincidência”. No pôquer da ficção, esse
Apesar de a caracterização da
possível blefe seria aplicado
personagem narradora parecer coincidir com
desmascaradamente, de cara limpa. Lindanor
alguns dados biográficos de Lindanor, ao
não se engana, tem certeza do que está fazendo,
reconstituir cenas, personagens e detalhes da
como ela própria reforça nas páginas iniciais do
meninice da autora não são, evidentemente,
primeiro e terceiro romances. Lindanor, com
fatos vividos e simplesmente transformados em
essa frase de abertura, tenta neutralizar a
uma narrativa, como esclarece Carvalho (2002,
assustadora pessoalidade que alguns insistem
p.21) “é uma evidente combinação de memória
em encontrar em seus romances. Lindanor,
e imaginação, como todo romance, em maior ou
quando opta escrever seu primeiro romance, em
menor grau, de forma mais ou menos direta.”.
que a personagem é narradora e que focaliza a
O autor pode partir da realidade, mas o ponto
condição da mulher, o faz com a intenção de
de chegada é guiado pela sua inventividade.
preservar-se. Como explica Lúcia Castelo
Itaiara é o cenário ficcional que poderia
Branco (1994, p.182), em relação à escrita
representar Bragança, a cidade onde viveu a
feminina:
escritora. Ela certamente acionou os
mecanismos da memória e se valeu da
A estratégia de que comumente uma
imaginação literária para emoldurar a cidade na autora se utiliza para fazer com que sua
voz de Irene, com nítida clareza de que a própria intimidade seja resguardada é a
da apresentação do outro, dos amigos,
invenção de imagens torna mais perto a vida da dos conhecidos, das figuras notórias
arte. Bernardo Carvalho (2002) lembra que ao (ou não) que passam por sua vida, em
lugar da revelação de si mesma.
contrário da frase clichê que acompanha certas
linguagem agir. No clichê antes referido, a

Para eles as memórias da personagem produção da reconstituição da experiência da

se alargam nos dois outros romances da vida da autora é colocada em xeque por ela

trilogia que, a meu ver, vão sempre num mesma. Miranda explica que é “pela menor

exercício exaustivo de imaginação. É oportuno separação atemporal entre o evento e o seu

ressaltar que esses romances não são narrados registro, o que é mais difícil de ser atingido

em primeira pessoa, numa evidente prova de pela autobiografia, em razão do caráter seletivo

criação. Apesar de a autora não querer da memória, que modifica, filtra e hierarquiza a

desempenhar o papel de escritora de lembrança” (MIRANDA, 1992, p. 71).

memórias, o faz com consciência dos limites Delineando seu perfil na meninice, a narradora

que cercam a pessoalidade de suas obras. Se de Menina Que vem de Itaiara insere

algo profundamente comprometedor sequências de discursos, que justificam seus

transparece, é por conta do inconsciente, que momentos de felicidades alternados com

sempre teima em vir à tona. Ela parece fazer momentos de desprazeres, que, em nenhum

bom uso das palavras de Fernando Pessoa momento, justificam ser da autora:

“falar é o modo mais simples de nos tornarmos O batismo, isso eu gostava de assistir.
desconhecidos”. E Clarice Lispector (1982, p. Brincar com os amigos na igreja deles.
De ordinário em dia de domingo. Mais
5) enfatiza:
tarde, quando principiamos a nos dar
intimamente com eles, fomos
Um dos meus filhos me diz: “por que é
convidados. Papai não se importava,
que você às vezes escreve sobre
foi sempre um independente em
assuntos pessoais? Respondi-lhe que,
matéria de religião. Mamãe, de
em primeiro lugar, nunca toquei,
começo, protestava: “essa menina anda
realmente, em meus assuntos pessoais,
de pegadio com os protestantes, nem
sou até uma pessoa muito secreta. E
parece que está no catecismo” (...) falei
mesmo com amigos só vou até certo
a papai, implorei que queria tocar. Mas
ponto.
papai, poucas vezes o vi tão firme e
decidido... importante era eu me
formar, arranjar um lugar de professora
Lindanor Celina, tal qual Clarice, expõe e em manter, ajudar a educar minhas
sem querer os traços mais fortes que compõem irmãs. (CELINA, 1963, p. 69-124).

essa identidade da experiência da vida,


considerados por alguns como contornos Para alguns leitores, amigos íntimos
precisos de sua identidade. Se são as e conhecedores da biografia da autora, a
“impressões pessoais” registradas por ela em citação acima seguiria, ao mesmo tempo, o
seus romances, não passam de fragmentos da impulso confessional e o desejo de
memória, já que nem tudo pode voltar a ser preservar-se Talvez queiram acreditar que
como antes, essa lembrança volta em Lindanor se utiliza desse binômio
pedacinhos, é lacunar. Isso é importante porque falar/revelar e termina por expor sua vida
a recuperação dos momentos de outrora faz a
pessoal, mesmo que inconscientemente, Só ela se vestia do jeito que se
vestia, no apuro de seus vestidos
através da narradora, que segundo a
soltos, tecidos leves, insinuantes
psicanálise, é a forma de o autor se mostrar. transparências, já naquele tempo
Mas ela impõe limites para a encenação de aquelas saias, aqueles vestidos
ousados, esvoaçantes, iguais seus
sua intimidade nas páginas de Menina: cabelos, a irreverência das saias vasês,
segundo informação de pessoas muito algumas de pouca roda, que semi-
expunham as formas do corpo, a
próximas à escritora, a doença do pai que se
bainha batendo pouco abaixo dos
arrastou por muitos anos, por exemplo, que joelhos, quem sabe para destacar as
pernas muito alvas (TUPIASSÚ, 2004,
foi uma das vivências mais dolorosas de
p.10).
Lindanor, jamais é mencionada na primeira
história, obra de evidente confissão para Sempre foi assim. A irreverência, a
alguns críticos. música, as cantorias e as rezas, muitas
rezas. [...] Tia Linda era o referencial,
Lendo alguns textos críticos sobre
era o modelo que encantava e
Lindanor, observei que, para alguns, a despertava curiosidade das mulheres
relação entre fato biográfico e a da família, dos amigos conhecidos.
[...]Lindanor Celina, tia Linda, tia
personalidade da protagonista está bem danada, tia assanhada, tia engraçada.
definida na descrição da infância e da Viajou, cantou, chorou, dançou,
desenhou, escreveu, viveu, pintou e
juventude da escritora, que para mim ficou bordou, ousou (BEDRAN,2004, p. 55).
praticamente esquecida quando li o terceiro
romance Eram Seis Assinalados. A vida
Esses comentários de parentes e
íntima da romancista não é relevante, mas, por
amigos me forçam a creditar que Lindanor foi
necessidade de apontá-la como ficcionista, fui
uma pessoa repleta de alegria, de humor, de
levada a conhecê-la:
garra, de irreverência. O terceiro romance,
Sinto muita saudade de minha amiga
Lindanor Celina. Aquela alegria, fase em que Irene está com quase dezoito
aquela disposição para a vida fazem anos, revela uma jovem depressiva e muito
muita falta. Acho que Lindanor Celina
foi uma pessoa única. Era uma aquém das perspectivas apontadas em
mulher decidida e corajosa. [...] era Lindanor. Essa dicotomia ficção/experiência
determinada e tinha um bom coração
em ambas são contrastantes. Se na infância a
(BARATA, 2004, p. 64).
pessoa acumula tantas situações esmagadoras,
Em suas conversas não aparecia o
moralismo tolo. Irreverente, brincava como se tornar um adulto maduro? A
com tudo o que lhe cercava e lhe possível resposta é fornecida pela
vinha à mente. O importante era a
psicanálise, que afirma ser na infância o
mocidade presente no brilho dos
olhos, no corpinho arrumado, no momento de desempenhar o papel da
palavreado solto e alegre.[...] Lindanor
maturação, através da passagem por
adorava ser fotografada, filmada,
lembrada, exaltada (GUERRA, 2004, diferentes etapas, como aponta Aulagnier
p.23-24). (1979, p.169) “A criança na sua totalidade,
compreende o conjunto das posições e
enunciados identificatórios nos quais a Irene: Eu me divertindo com a minha
desgraça. Com a minha tristeza. – ao
ela, sucessivamente se reconhece”, assim, o
menos por isso! Fazer calar os
efeito do projeto do eu de uma criança é aleives! Irene por essas bandas.
tanto de “oferecer ao eu esta imagem futura na Afirmar a esse povo que minha filha
crime nenhum praticou. Que aborto
qual ela se projeta, quanto preservar a que nada, sequer pendeu para os lados
lembrança dos enunciados passados, que não do hospital. [...] Ou a insultam e ela
chega com os olhos inchados de choro.
são nada mais que a história da qual ela se (CELINA, 1994, p. 218/219)
constrói enquanto relato” (1979, p.169).
Sendo assim, Irene apresenta uma O ambíguo jogo entre os registros da
estrutura de comportamento diverso da autora, vida de Lindanor e sua criação representado
tudo em decorrência das muitas cenas de pela personagem Irene sugere que autores
violências cometidas pela sua mãe. Para sentir participem ativamente da construção desse
o todo unificado da vida da personagem e espaço “autobiográfico”, construído, no
para perceber a experiência traumática que ela contexto da cultura exposta, não somente
absorveu, sua evolução, ao longo da obra, impresso em tinta e papel, mas de imagens e
cabe fazer a leitura dos três livros, na ordem virtualidades, já que antes era uma iniciativa do
em que foram escritos. Só assim dá para se leitor, movido por sua curiosidade de ter
sentir a estranheza da personagem se acesso à pessoa real por trás das palavras
comparada com a sua criadora. Senti que Irene escritas. Mas, ao mesmo tempo, o texto da
3
é tal qual Dionísio no panteão grego – um escritora em primeira pessoa pode
deus a parte, um deus de lugar nenhum, simplesmente “fingir” o relato da verdade de
inacessível e misterioso, que representa a uma experiência pessoal, “sem que o leitor seja
figura do outro – do sombrio, do que é capaz de desfazer a ambiguidade entre história
diferente, desnorteante, desconcertante, concreta de um eu real, que remeteria ao
anômico. Segundo os depoimentos de seus autor, e a sua criação metafórica em termos
amigos mais íntimos, extraído do livro de invenção ficcional” ( FOUCAULT, Op. cit.
Lindanor, a menina que veio de Itaiara, a 1992, p.33).
escritora Lindanor era a figura da A literatura não está comprometida
expressividade, do notório e da alegria. Ela com a verdade factual, com um relato
impunnha o reconhecimento de sua presença fidedigno da realidade, já que sua verdade
nos lugares mais familiares. Por isso, é interna. Os ficcionistas mentem
reluto em fazer comparações entre ambas, fantasiosamente, entendem que ficção não
pela distância de mundo existencial: é documento, imaginam insondáveis
3 universos, tudo em nome da criação.
Segundo o Dicionário de Símbolos (2001, p. 341),
Dionísio é a divindade grega cuja significação é
abusivamente simplificada quando se faz dela o Lindanor Celina não escapa a esse
símbolo do entusiasmo.
paradigma, blefa no espaço da inventividade
e suas obras mobilizaram meu interesse em
estudá-las de forma sistemática. Este
trabalho não é outra coisa, senão o
resultado desta observação: a criação de
Lindanor. Toda graça em ler os seus
romances decorre do fato de ela encenar
uma identidade que desmacara a doce
ilusão de autobiografia, por meio de uma
ficção conseguida com a linguagem que
se sobrepõe à subjetividade. Os romances
sem “espelhar a realidade” ou “dizer a
verdade”56 movem-se entre um e outro
espaço – os três livros da trilogia – que
funcionam como um circuito em série,
interligados de um para os outros, em
que Irene se fantasia para representar-se
e representar o mundo de Itaiara.
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BARATA, Norma. A Amizade que veio com a Itaiara. Belém: SECULT/PA, 2004.
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Lindanor, A Menina Que Veio de Itaiara. Belém:
SECULT/PA, 2004. Sobre a autora:

BEDRAN, Madeleine (Mady). Menina Linda. In


Mestra em Letras pelo Programa de Pós-graduação em
TUPIASSÚ e outros (org). Lindanor, A Menina
Que Veio de Itaiara. Belém: SECULT/PA, 2004. Letras da UFPA; realizou pesquisa sobre Lindanor
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FOUCAULT, Michel. O que é um autor? 3ª
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organizada por Peter Gay. Rio de Janeiro: Imago
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Que Veio de Itaiara. Belém: SECULT/PA, 2004.
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