1) Bernardo Soares vive sozinho em Lisboa e passa os dias sonhando e refletindo sobre sua vida interior em vez de viver ativamente no mundo exterior.
2) Soares prefere criar um mundo falso em sua imaginação do que lidar com as impressões e experiências reais. Seus sonhos e memórias do passado são mais vividos do que a vida real.
3) Soares sofre por estar consciente de sua solidão e incapacidade de se integrar plenamente em qualquer paisagem ou vida, seja real ou sonhada. Sua única
1) Bernardo Soares vive sozinho em Lisboa e passa os dias sonhando e refletindo sobre sua vida interior em vez de viver ativamente no mundo exterior.
2) Soares prefere criar um mundo falso em sua imaginação do que lidar com as impressões e experiências reais. Seus sonhos e memórias do passado são mais vividos do que a vida real.
3) Soares sofre por estar consciente de sua solidão e incapacidade de se integrar plenamente em qualquer paisagem ou vida, seja real ou sonhada. Sua única
1) Bernardo Soares vive sozinho em Lisboa e passa os dias sonhando e refletindo sobre sua vida interior em vez de viver ativamente no mundo exterior.
2) Soares prefere criar um mundo falso em sua imaginação do que lidar com as impressões e experiências reais. Seus sonhos e memórias do passado são mais vividos do que a vida real.
3) Soares sofre por estar consciente de sua solidão e incapacidade de se integrar plenamente em qualquer paisagem ou vida, seja real ou sonhada. Sua única
Considerado um semi-heterónimo, o Mas são os próprios excertos,
ajudante de guarda-livros merece uma especialmente os pós-1929, que nos revelam abordagem individual dos heterónimos, já mais traços sobre este mero ajudante – para que, segundo o próprio Fernando Pessoa, além da referência ao patrão Vasques ou de em carta a Adolfo Casais Monteiro, “não informações sobre o escritório, os dados mais sendo a personalidade a minha, é, não relevantes são aqueles que evocam a sua diferente da minha, mas uma simples infância e juventude. mutilação dela. Sou eu menos o raciocínio e afetividade”. A morte da mãe com apenas 1 ano e o suicídio do pai colocam Soares sob a É impossível ler os fragmentos proteção de um tio que o traz para Lisboa. do Livro do Desassossego sem encontrar nas Órfão e inseguro, Soares será sempre um diversas passagens ecos do eu criador ou dos indivíduo tímido, um antissocial, um outros poetas que constituem a cosmogonia inadaptado e é nesta similitude de vivências pessoana. que vislumbramos ecos de Pessoa ele- próprio, o que submeteu a infância a um Bernardo Soares processo intelectualizado, tornando-a num espaço mítico e idílico; o que se isolou do Segundo Pessoa, Bernardo Soares ambiente social; o que tinha um emprego vive no Bairro dos Douradores e é ajudante rotineiro e distante das suas produções de guarda-livros no armazém de fazendas intelectuais. Vasques e C.ª – retrato pobre este para alguém que deambula pelos labirintos do ser A natureza fragmentária da e que inaugura um novo conceito de narrativa, sem linearidade e de carácter obra e a questão da autoria fragmentário. Antes da imersão nesta singular obra, Frequentador de uma casa de pasto impõe-se uma abordagem teórica quanto à tal como Pessoa, terá sido aí que travou génese de um livro que tem na inquietação conhecimento com este, tendo-o escolhido e na incerteza as suas notas dominantes. para confiar este livro descontínuo, A ideia deste livro terá surgido ainda intermitente, este não livro. em 1913, quando Pessoa estava É através das palavras do próprio ideologicamente ligado aos ideais da Pessoa no prefácio à obra que nos são dadas Renascença Portuguesa, através da revista A as pinceladas que pretendem tornar mais real Águia, na qual publicou o primeiro e único esta figura – “Era um homem que aparentava trecho em vida – “Floresta do Alheamento”. trinta anos, magro, mais alto que baixo, A correspondência trocada com amigos, curvado exageradamente quando como João Lebre e Lima e Armando sentado […]. Na face pálida e sem interesse Cortes-Rodrigues, atesta a intenção de juntar de feições, um ar de sofrimento […]”. fragmentos escritos num “estilo alheio, caminhando a aparente desordem a par e primeiro a manifestar a intenção de publicar passo com a persistente ideia de organizar esta obra, embora tal não tenha sido possível estes textos em livro”. Contudo, Pessoa por se encontrar exilado no Brasil. lamenta-se, em carta a Cortes-Rodrigues, A atribuição de um nome a essa voz datada de 1914, de que tudo são “‘fragmentos, narrativa surgiu quando os pensamentos fragmentos, fragmentos’; ‘quebrados e passaram a assumir uma forte componente desconexos pedaços do Livro do intimista que Pessoa queria distanciar de si Desassossego, que ia complexamente e tortuosamente avançando’”. próprio. A intenção de Pessoa de rever os A partir da análise dos manuscritos, textos iniciais de forma a encontrar o “estilo” Eduardo Lourenço refere a “aparente de Soares e a conferir maior homogeneidade caoticidade textual empírica”. à obra não se concretizou. O aparente caos que domina o Resta-nos, então, enquanto leitores, pensamento de Bernardo Soares encontra aproveitar essa liberdade, procurando no na prosa, na “liberdade criativa da prosa”, uma caos da organização um possível fio maior liberdade de expressão. condutor, porque “ao escrever a sua alma Como ler o Livro do Desassossego se pelo Livro fora, também escreveu a nossa. o próprio Pessoa não deixou indicações Despersonalizando-se, conseguir corporizar, sobre a ordem de apresentação dos mais de em palavras, a essencial humanidade que é 350 fragmentos que deixou num envelope comum a todos nós”. que continha as iniciais L. do D.? As possibilidades são inúmeras, já que a ausência Tópicos de conteúdo de linearidade permite essa construção da narrativa pelos leitores, a contínua A partir dos excertos selecionados construção de um sentido orientado para pelo Programa, serão focadas as grandes este “puzzle” através da vontade dos leitores, linhas temáticas de Livro do Desassossego, sem preocupação cronológica e em que sendo estabelecidas, sempre que todas as leituras são legítimas. pertinentes, leituras intertextuais com a poesia de Pessoa ortónimo ou até dos Aliás, basta um olhar para as diversas heterónimos, já estudados. As linhas de edições da obra para rapidamente se análise a considerar são: perceber que é uma determinada sensibilidade na interpretação dos O imaginário urbano; fragmentos que comanda as diferentes O quotidiano; sequências organizativas levadas a cabo por Deambulação e sonho: o observador Jacinto do Prado Coelho; Teresa Sobral da acidental; Cunha, Richard Zenith; Jerónimo Pizarro e Perceção e transfiguração poética do Teresa Rita Lopes. real Na abordagem da obra, seguiu-se a edição de Richard Zenith, sem esquecer o importante contributo de Jorge de Sena, o Fragmento 1 – “Eu nunca fiz senão sonhar” figuras sonhadas, mais do que as saudades chorosas da infância perdida.
À semelhança do ortónimo, também O “passado morto” que se quer trazer
Soares parece anular a vida em favor do na algibeira, como dizia Campos, no poema sonho desta – “Eu nunca fiz senão sonhar. “Aniversário”, e que não pertence a qualquer Tem sido esse, e esse apenas, o sentido da espaço, ou as “flores do jardim”, “as hortas”, minha vida. Nunca tive outra preocupação todos esses elementos provincianos e verdadeira senão a minha vida interior” –, acolhedores só existem nele enquanto coisa fazendo a apologia da passividade da vida sonhada – “tudo isto, que nunca passou de – “Nunca pretendi ser senão um sonhador. A um sonho, está guardado em minha memória quem me falou de viver nunca prestei a fazer de dor e eu, que passei horas a atenção. Pertenci sempre ao que não está sonhá-los, passo horas depois a recordar tê- onde estou e ao que nunca pude ser.” –, num los sonhado e é, na verdade, saudade que eu claro diálogo com Ricardo Reis – “À vida tenho, um passado que eu choro”. nunca pedi senão que passasse por mim sem Tudo isto é o sonho, gravado ad que eu a sentisse”. aeternum na memória, e visto como “uma vida real morta que fito, solene, no seu “A [minha] mania de criar um mundo caixão”. falso” acompanhou-o sempre, o que é Para além da observação da paisagem revelador da primazia da imaginação criadora interior, há “também as paisagens e as vidas em relação às impressões exteriores, numa que não foram inteiramente interiores”, abstração permanente da perceção que nomeadamente os quadros que o marcaram permite a viagem na imaginação, quando “o e que “passam a realidade dentro de mim”. real se esquece de si mesmo para se deixar Há uma sensação diferente, “mais pungente apreender numa forma sem formas” 1. Aliás, e triste”, devido à impossibilidade de já Xavier de Maistre, em 1872, tinha afirmado integração numa dessas paisagens bucólicas. a inutilidade da viagem física e o primado da Afinal, o sonho e o real coincidem nessa falta imaginação. de dimensão física, no não espaço. A recusa do meio social e a afirmação O “mal da vida” é, afinal, o drama de do solipsismo, com esse “mundo de amigos ser consciente, essa “doença de ser dentro de mim, com vidas próprias, reais, consciente”, sem que haja para esta figura definidas e imperfeitas”, é uma marca uma ilha que abrigue “os isolados no sonhar!”. evidente desta obra, em que o princípio da Não há soluções mágicas e não há “ilhas autossuficiência percorre outros trechos, extremas do sul”, como diria o ortónimo, que como veremos, transformando o sonho no permitam a fuga perene da realidade. Cresce motor da comunhão com o “outro” a tristeza, cresce a angústia – “Ter de viver – “quando sonho isto, e me visiono e, por pouco que seja, de agir; ter de roçar encontrando-os, todo eu me alegro, me pelo facto de haver outra gente, real realizo, me pulo, brilham-me os olhos, abro os também, na vida!” –, cresce a consciência e braços e tenho uma felicidade enorme, o sentido de inutilidade de tudo. real” –, fazendo com que haja saudades das Fragmento 2 – “Amo, pelas tardes são cheias de um bulício que não quer dizer nada; de noite são cheias de uma falta de bulício que não quer dizer nada. Eu de dia sou demoradas de verão, o sossego da cidade nulo, e de noite sou eu”. baixa” É lancinante a apologia do inútil, do não ser, nesse destino comum e abstrato Apesar da manifesta indiferença pelo para os homens e para as coisas. O tédio de mundo, o olhar deste ajudante de guarda- existir é evidente, nessa tristeza que invade livros tudo observa e tudo regista, sendo a o seu ser “Nessas horas lentas e vazias”. E cidade de Lisboa um espaço de construção porquê? Porque tudo é uma sensação sua, intelectual deste “viajante acidental”, que, tal mas também uma coisa externa, que não como Cesário Verde, também deambula cabe a Soares alterar. Os sonhos, então, nem pelas ruas da capital, mas também viaja em sempre substituem a realidade. Por vezes, até transportes, visualizando as paisagens físicas são idênticos à realidade, porque surgem do e as suas gentes, que são também, como exterior, “como o elétrico que dá a volta na revela a dado momento, paisagens – “Não curva extrema da rua”. distingo, fundamentalmente, um homem de uma árvore”. A observação dos transeuntes revela essa massa anónima e quotidiana, As descrições da cidade de Lisboa nomeadamente os “casais futuros”; os “pares conferem a verosimilhança necessária ao das costureiras”; os “rapazes com pressa de ajudante de guarda-livros e marcam a prazer”; os “reformados de tudo” ou antítese realidade exterior (visto) vs. realidade os “vadios parados que são donos das lojas”. interior (sentido). Soares desprende-se de Desta forma, essa “gente normal” acaba por tudo o que é humano, menos das sensações, ser símbolo da realidade observada, atores de que são tudo. Daí que a perceção exterior um filme do qual Soares é observador: “Por da capital seja, no fundo, uma extensão dele ali arrasto, até haver noite, uma sensação de próprio, tal como acontecia com Campos, em vida parecida com a dessas ruas”. “Lisbon Revisited”. Acentua-se a transitoriedade de tudo À semelhança do poema “O e o sentimento de alheamento face a tudo Sentimento dum ocidental”, também aqui se isto que é, afinal, “a salada coletiva da vida”, o sente esse contágio metonímico da cidade, que faz com que haja “uma paz de angústia, que se reflete no espaço vazio do “eu” e o meu sossego é feito de resignação”. Sem – “Amo, pelas tardes demoradas de verão, o vontade própria, Soares caminha na vida de sossego da cidade baixa, e sobretudo aquele forma automatizada e sem ambições, sossego que o contraste acentua na parte desejos ou emoções – “Passa tudo isso, e que o dia mergulha em mais bulício. […] toda nada de tudo isso me diz nada, tudo é alheio a linha separada dos cais quedos tudo isso me ao meu sentir, indiferente, até, ao destino conforta de tristeza, se me insiro, por essas próprio, inconsciência”. tardes, na solidão do seu conjunto”. […] Por ali arrasto, até haver noite, uma sensação de vida parecida com a dessas ruas. De dia elas Fragmento 3 – “Quando outra virtude não realidade e outra, tal como todos são iguais – bons e maus –, porque, no sono, todos são indistintos. haja em mim, há pelo menos a da perpétua Apesar de a vida ser vista como sem novidade da sensaçao liberta” sentido, incluindo a sua, só ele tem essa consciência – assim, só para ele a vida é sem Em mais um movimento sentido, porque só ele tem essa consciência. deambulatório – “Descendo hoje a Rua Nova Soares, enquanto ser acordado (consciente), do Almada” –, Soares descreve um opõe-se àquele homem adormecido, símbolo acontecimento banal do quotidiano – “reparei da inconsciência humana. de repente nas costas do homem que a Desta forma, a ternura (irónica) que descia adiante de mim” – que desperta nele sente por este homem individual é algo parecido com ternura pela “vulgaridade metonimicamente alargada a toda a humana”, pela “inocência de viver sem humanidade, da qual se distancia, mas pela analisar”. É evidente a ternura pela vida sem qual sente a compaixão condescendente por surpresas e vazia de pensamento analítico. quem não tem “consciência da Este olhar de ternura “absurda e inconsciência”. fria” que se estende aos demais – “tudo Tal como Ricardo Reis, Soares isto” – é como uma sensação “idêntica àquela também observa os outros de forma que nos assalta perante alguém que distanciada e sente o repúdio da dorme”. Estes seres que por ele passam com inconsciência, o repúdio da “normalidade” da a sua atitude consciente são, no fundo, vida inconsciente, como o partilhar, o inconscientes, porque não têm consciência conviver. Ser consciente é isolar-se de quem da sua consciência, tal como a ceifeira. sente tudo isto, é ser estrangeiro, é sentir Também “as costas deste homem desassossego. dormem”, aliás, todo ele dorme, porque vive inconscientemente – “Vai inconsciente. Vive Fragmento 4 – “Releio passivamente, inconsciente. Dorme, porque todos dormimos. Toda a vida é um sonho. Ninguém recebendo o que sinto como uma inspiração sabe o que faz, ninguém sabe o que quer, e um livramento, aquelas frases simples de ninguém sabe o que sabe. Dormimos a vida, eternas crianças do Destino”. Caeiro” A sua ternura estende-se a toda a A espontaneidade de Caeiro no humanidade infantil, a toda a sociedade Poema VII de O Guardador de Rebanhos, de dormente (inconsciente), Caeiro – “Porque eu sou do tamanho do que sentindo “compaixão do único consciente”, vejo” – não encontra eco no Livro do alheio a tudo isto. Desassossego, no qual tudo é metafísico. Se tudo é um estado de sonolência, Assim, nessa ânsia de se deixar todas as ações são inúteis, sendo meras contaminar pela naturalidade do Mestre, coisas que sucedem no intervalo entre uma repete os versos do “pastor por metáfora”, inteligência perante a estupidez dos adultos. para se esvaziar da metafísica – “Frases Colecionar destinos, traçar rotas sem viajar é como estas, que parecem crescer sem o ato supremo de inteligência e de lucidez – vontade que as houvesse dito, limpam-me de a negação da viagem física. toda a metafísica que espontaneamente acrescento à vida”. No presente, Soares desconhece o paradeiro deste jovem, supondo sentir pena, Porém, tudo isto é em vão, visto que mas imaginando que este rapazito deve ser é incapaz de apenas fruir a vida, agora “estúpido”, isto é, inconsciente, porque, “consciente de saber ver, olho a tributável, quotidiano. Está “morto” agora, vasta metafísica objetiva dos céus todos com enquanto antes estava “vivo” e viajava com a uma segurança que me dá vontade de alma – “deve ser homem, estúpido, morrer cantando. ‘Sou do tamanho do que cumpridor dos seus deveres, casado talvez, vejo!’ E o vago luar, inteiramente meu, sustentáculo social de qualquer – morto, começa a estragar de vago o azul meio- enfim, em sua mesma vida. negro do horizonte.” É até capaz de ter viajado com o A dicotomia corpo, ele que tão bem viajava com a alma.” espontaneidade/racionalidade é latente e, após sonhar apregoar “uma nova O mundo deve ser construído dentro personalidade larga aos grandes espaços da de cada indivíduo através da imaginação, daí matéria vazia”, Soares retrai-se e fica a necessidade da ação exterior. É “melhor, subjugado pela “paz indecifrável do luar duro senão mais verdadeiro, o sonhar com que começa largo com o anoitecer”. Bordéus do que desembarcar em Bordéus.”
Assim, o saber “florir”, o ser A viagem mental não se prende à
espontâneo não é possível e o duro realidade que desfila perante os seus olhos, pensamento analítico abate-se sobre mas sim aos pensamentos individuais. Para Bernardo Soares. além disso, para quem desiste da vida, a experiência dessa mesma vida é inútil. Para quê, no fundo, viver, se há o Fragmento 5 – “O único viajante com sonho? Paris, China… serão realidades iguais, porque (re)construídas pelos mesmos verdadeira alma que conheci era um significados, apenas mudando a geografia. garoto de escritório que havia numa outra Segundo Soares, há um anjo da çasa, onde em tempos fui empregado” guarda que abandona as crianças, “como as mães animais às crias crescidas, ao cevado Através da singular história de um que é o nosso destino”, o que torna os rapazito que trabalhava num escritório e homens vítimas inocentes e ingénuas das que “Não só era o maior viajante, porque o teias do Destino, que sobre tudo desce. mais verdadeiro”, como também uma das pessoas mais felizes, aflora-se a inocência do jovem colecionador, que coleciona com Fragmento 6 – “Tudo é absurdo” interiores, que formarão a imaginação – “Saio do carro exausto e sonâmbulo. Vivi a vida inteira”. “Tudo é absurdo” – todos aqueles que Efetivamente, Soares faz do se empenham em algo são absurdos, seja quotidiano a base da sua viagem imaginária, em garantir a subsistência da família, seja em escrevendo nas páginas desconexas do seu alcançar a fama e a glória. Os ecos da poesia diário o desassossego da existência humana. de Reis são evidentes neste excerto (“Um lê Este passeio de elétrico (relembrando os que para saber, inutilmente. Pessoa fez com Ofélia) transforma-se numa Outro goza para viver, inutilmente”), viagem pela imaginação, em que, assumindo- em que Soares narra os seus pensamentos se como um espectador do mundo, deriva enquanto vai “num carro elétrico”, “reparando para o mundo da imaginação. Tal como no lentamente” em pormenores – “coisas, vozes excerto 3, Soares é o homem que se afasta e frases” – das pessoas que o circundam. da realidade, que observa os outros, embora excluindo-se do convívio com estes, que não Esse olhar analítico leva-o ao são seus semelhantes nas suas vidas pormenor do vestido que observa, derivando inconscientes. para a fábrica onde foi confecionado e na qual os operários fazem diariamente o seu trabalho. Desta forma, toda a vida social acaba por estar ali representada porque tem aquele vestido sem rosto diante de si – “mas não é só isto: vejo, para além, as vidas domésticas dos que vivem a sua vida social nessas fábricas e nesses escritórios.. Todo o mundo se me desenrola aos olhos só porque tenho diante de mim, abaixo de um pescoço moreno, que de outro lado tem não sei que cara, um orlar irregular regular verde-escuro sobre um verde-claro de vestido. Toda a vida social jaz a meus olhos”. O ato espontâneo de analisar o real e de partir para a imaginação de todas as vidas contidas naquele vestido leva este observador acidental a preencher a sua vida com a vida dos outros. Estes continuam com as suas ações dinâmicas, enquanto o observador contempla, estaticamente. A visão do real afasta-se da objetividade para se tornar no real imbuído de sensações