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TRADIÇÃO LITERÁRIA
AS FIGURAÇÕES DO POETA
A ARTE POÉTICA
O traço mais característico da poesia de O’Neill reside nas manifestações do cómico e do humor. A voz do
poeta é também a de um inconformista entre o real e o sonho, dando lugar a uma poesia ora de
provocação, ora de escárnio, ora de amor. Os principais aspetos da realidade satirizada são a miséria
material e moral, a podridão social e o inconformismo.
A ESTOUVACA
Deitada atravessada
Na estrada
A malhada
Vai ser atropelada
Foi
Alexandre O’Neill
Para concluir
Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por
parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora
Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me
dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim.
A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o
passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede
dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me
que ia eu fazer a Paris. Respondi: - Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: - Se calhar V. quer ir porque
essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N.
M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive
anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores
circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em
que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não
interessa).
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como
é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais
igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento
deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de
expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi
ficando e passando para as antologias.
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europe dedicado à literatura de Portugal. E
lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como
sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é
comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabada) me telefonou a pedir-me autorização para usar
o título do poema para título de um novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a
ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora
de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.
Tempos
Alexandre O’Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984
Alexandre O’Neill optou por fazer referência ao Portugal seu contemporâneo e à forma como as pessoas viviam a
partir das metáforas do medo e dos monstros para ilustrar a perseguição, a diminuição da confiança que havia entre os
seres humanos, fazendo com que as pessoas olhassem os familiares e a si próprios como se de estranhos se tratasse e não
ousassem divulgar as suas ideias. Essa indistinção entre homens e seres nocivos ao seu próprio semelhante é notória,
quando O’Neill afirma que: “Monstros e homens lado a lado/Não à margem, mas na própria vida.//Absurdos monstros
que circulam /Quase honestamente.” (Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958)
Consciente da forma como o Estado controlava tudo e todos, O’Neill opta por referir-se a esses braços tentaculares
e invisíveis como se fossem monstros. Misturados entre os homens, esses seres terríficos deambulam “honestamente”, já
que foram criados pelo poder instituído, e procuram ter acesso aos pensamentos das pessoas, dado que circulam
indetetáveis, geram o medo que acompanha os homens em todas as situações por mais quotidianas que elas sejam.
Essa proliferação do medo está patente em “O Poema pouco original do medo” e “Perfilados de Medo”.
(manual p. 226) No primeiro, o autor evidencia o domínio avassalador do medo: ele “vai ter tudo”, desde aspeto humano
até aos objetos de luxo. A forma como os delatores se imiscuíam em todas as situações é enfatizada por essa
personificação do medo; não só ele vai ter “pernas” como “olhos”, “mãozinhas”, “ouvidos”, vai assumir a forma dos
funcionários de Estado ou mesmo dos familiares e dos amigos. Decorrente dessa situação, o medo apodera-se de todos
transformando-os em “ratos”, em seres dominados pelo terror incapazes de reagir e de ousar pensar. A capacidade de ter
acesso aos mais íntimos pensamentos das pessoas torna-se notória pelo facto de os “ouvidos” do medo poderem estar
“nas paredes”, “no chão”, “no tecto” e até “nos teus ouvidos”. Uma vez que esses delatores não são identificáveis, a
desconfiança instala-se, aumentam as “suspeitas”, a desconfiança entre as pessoas porque é impossível saber em quem
confiar. Por isso mesmo, o sujeito poético constata que a intenção do medo é, de facto, amedrontar de tal forma as
pessoas que, dominadas por ele, sejam reduzidas a “ratos”, a meros sobreviventes, sem vontade própria. Contudo esse
medo acaba por ser ambivalente. Se, por um lado, aprisiona as pessoas; por outro, é o motor da sua rebelião, do seu
inconformismo, é ele “que nos salva da loucura”, como é mencionado no segundo poema. Devido a esse fator, “Perfilados
de medo” combatem apesar de saberem que “Decisão e coragem valem menos/e a vida sem viver é mais segura”. Ao
viverem dominados por esse medo, transformaram-se, agora, em “irónicos fantasmas”, em seres quase incorpóreos que
buscam o que não são e o que nunca chegarão a ser. Dessa perspetiva, assumem o papel de “loucos”, de seres amorfos e
destituídos de capacidade para agir e pensar, semelhantes a um “Rebanho”; no entanto, não são conduzidos por um
pastor, são “perseguidos” pelo medo e daí viverem em sociedade, mas tão isolados que “da vida [perderam] o sentido”.
Da mesma forma que se refere ao regime e às suas imposições através da metáfora do medo e dos monstros,
O’Neill não deixa de tecer críticas ao ambiente que o rodeia quando, supostamente, está a relatar a forma inglória como se
processou um dos seus relacionamentos amorosos. Em “Um Adeus Português” torna-se evidente que o afastamento
dos dois é causado pelo ambiente castrador e persecutório existente em Portugal que não permite que um estrangeiro
consiga sobreviver em tais condições.
Numa espécie de diálogo virtual com a amada, o sujeito poético vai mesclando essas alusões a um Estado
controlador, tirano, mesquinho e medíocre. Por isso mesmo, a amada não poderia acomodar-se “à roda em que [ele
apodrece] / apodrecemos”; a viver sob a égide da “pata ensanguentada” que a todos persegue; limitando-se a “ficar
[naquela] cadeira/onde [passa] o dia burocrático”, vendo a “estupidez” e o “medo perfilado” de um “modo funcionário de
viver” já que até os gestos quotidianos foram institucionalizados. Neste contexto, o sujeito poético compreende que não
era possível viver com o fantasma dos delatores, não sabendo quando chegaria o “dia sórdido/canino/policial” em que
alguém os denunciaria nem ficar reduzida à apatia que dominou os portugueses confinados “à pequena dor”, essa
“pequena dor à portuguesa”. O ambiente de Lisboa, corroído pela “náusea”, “idiotia”, “razão absurda de ser”, pela
“asfixia”, pela falsidade, não é compatível com o local de origem da amada: a “cidade aventureira”. Como tal, só restou ao
sujeito poético despedir-se, dizer-lhe adeus e permanecer neste ambiente letal e castrador.
Estes poemas de O’Neill apresentam algumas das características que Fernando Guimarães (in A Poesia
Contemporânea Portuguesa, 2.ª ed. revista e aumentada, Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2002, pp. 9 a
17) deteta na poesia das décadas de 40 e 50. Vislumbra-se uma espécie de antilirismo, dado o teor reflexivo dos poemas,
que recorre aos símbolos como um espaço de confluência de analogias e associações, criando uma rede de “leituras
sobrepostas” e centrando a atenção do leitor sobre a tessitura verbal do poema. A poesia funcionava como um ato de
libertação, combatendo uma sociedade repressiva e (re)posicionando o homem dentro de uma outra realidade. Nestes
poemas torna-se evidente a capacidade deste escritor em invadir o “lado menor, medíocre, quotidiano e ridículo das
coisas”, como refere António Quadros (in A ideia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa:
Guimarães Editores, 1989, pág. 195); apresentando uma visão anti-heroica do Portugal seu contemporâneo, enfatizando o
que ele tinha de mesquinho e feio. É esse “olhar ácido” que António Quadros considera estar de acordo com uma espécie
de “realismo satírico e liquidatário de todas as heranças românticas ou transcendentais”, que usa o quotidiano para
contrapor à imagem sublimada que o regime divulgou e impôs aos portugueses.
Outra das possibilidades encontradas por alguns autores foi o recurso a intertextos clássicos e bíblicos. No entanto,
esta opção pressupõe que o leitor conheça esses intertextos e seja capaz de os atualizar. Mais uma vez, o leitor é implicado
ativamente no processo de criação poética e, dada a especificidade dos intertextos utilizados, se não tiver acesso a esses
referentes a sua interpretação do texto ficará limitada à significação primeira das palavras.
Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade
do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 72-74.
O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO