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REPRESENTAÇÕES DO CONTEMPORÂNEO

TRADIÇÃO LITERÁRIA

AS FIGURAÇÕES DO POETA

1. Relação que o poeta estabelece com a poesia:


Para o poeta, a poesia é uma espécie de desabafo, de alívio.

A ARTE POÉTICA

O traço mais característico da poesia de O’Neill reside nas manifestações do cómico e do humor. A voz do
poeta é também a de um inconformista entre o real e o sonho, dando lugar a uma poesia ora de
provocação, ora de escárnio, ora de amor. Os principais aspetos da realidade satirizada são a miséria
material e moral, a podridão social e o inconformismo.
A ESTOUVACA

Deitada atravessada
Na estrada
A malhada
Vai ser atropelada
Foi

Alexandre O’Neill

Para concluir

Slogans publicitários da autoria de O’Neill Poemas ou excertos de poemas eu se tornaram


canções conhecidas:
UM ADEUS PORTUGUÊS Não tu és da cidade aventureira
Nos teus olhos altamente perigosos da cidade onde o amor encontra as suas ruas
vigora ainda o mais rigoroso amor e o cemitério ardente
a luz de ombros puros e a sombra da sua morte
de uma angústia já purificada tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
Não tu não podias ficar presa comigo onde morres ou vives não de asfixia
à roda em que apodreço mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
apodrecemos sem a moeda falsa do bem e do mal
a esta pata ensanguentada que vacila *
quase medita Nesta curva tão terna e lancinante
e avança mugindo pelo túnel que vai ser que já é o teu desaparecimento
de uma velha dor digo-te adeus
e como um adolescente
Não podias ficar nesta cadeira tropeço de ternura
onde passo o dia burocrático por ti.
o dia-a-dia da miséria Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta cama comigo


em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo


à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Não tu não mereces esta cidade não mereces


esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser
A HISTÓRIA DE UM POEMA

Quando escrevi «Um Adeus Português», há quase quarenta anos, estava a sofrer pressões inacreditáveis, por
parte de alguém da minha família, para não «ir atrás da francesa». A francesa, a minha querida e já falecida amiga Nora
Mitrani, queria que eu fosse ter com ela a Paris, onde vivia. «Vens, ficas cá e depois se vê», era o que o seu otimismo me
dizia por carta. Mas as coisas não se passaram assim.
A pressão (ou, melhor, a perseguição) chegou ao ponto de ter sido metida uma cunha à polícia política para que o
passaporte me fosse denegado, o que aconteceu, não sem que eu, primeiro, tivesse sido convocado para a própria sede
dessa polícia e interrogado pelo subinspetor Seixas. Seixas usou comigo de uma linguagem descomedida. Perguntou-me
que ia eu fazer a Paris. Respondi: - Turismo.
Quis saber se eu conhecia a senhora N. M. Eu disse que sim. Então Seixas retorquiu: - Se calhar V. quer ir porque
essa gaja lhe meteu alguma coisa na cachola. Com a serenidade que me foi possível, fiz-lhe saber que se enganava, que N.
M. não era uma gaja e que eu não tinha cachola. Pareceu surpreendido. Depois, irritado, mandou-me sair. E assim estive
anos sem conseguir passaporte.
Claro que o poema não se gerou apenas desta situação, mas ela contribuiu poderosamente, com outros fatores
circunstanciais bem conhecidos, para que o poema aparecesse. Era uma época em que tudo cheirava e sabia a ranço, em
que o amor era vigiado e mal tolerado, em que um jovem não era senhor dos seus passos (errados ou certos, não
interessa).
Semanas depois, «nascia» o poema e, com ele publicado, uma relativa notoriedade. É que o poema, ingénuo como
é, tem realmente a força do nojo e do desespero combinados com um derrame/contenção sentimental que não mais
igualei. Então, durante algum tempo, fiquei conhecido como o poeta de «Um Adeus Português».
A minha amiga, que não voltei a ver (quando a fui procurar em Paris já tinha morrido), ainda tomou conhecimento
deste poema. Escreveu-me: «Li o teu Adeus. Fiquei atrozmente comovida.»
Claro que um poema não é feito de nojos, desesperos e derrames sentimentais, mas, no caso, a felicidade de
expressão foi vivamente alimentada por uma raiva e um amor desmesurados, quer dizer, adolescentes. E o poema foi
ficando e passando para as antologias.
Explico tudo isto porque outro dia me chegou às mãos um número da Europe dedicado à literatura de Portugal. E
lá aparece, numa tradução bastante pobre, o tal «Adeus... ». Não é que, na nota proemial, em que me definem como
sarcástico, desesperado e terno, dizem que o poema foi inspirado por Nora Mitrani! Eu acho que, por enquanto, isso é
comigo. Também o João Botelho (o do excelente filme Conversa Acabada) me telefonou a pedir-me autorização para usar
o título do poema para título de um novo filme seu. Dei-lha logo. E nem sequer lhe perguntei se o que ele vai fazer tem a
ver com o poema ou não. Isso é lá com ele. Como, insisto, é só comigo que Nora Mitrani tenha sido ou não a inspiradora
de «Um Adeus Português». Pelo menos antes da presente explicação.
Tempos
Alexandre O’Neill, Jornal de Letras, Artes e Ideias, n.º 94, 1984

Alexandre O’Neill optou por fazer referência ao Portugal seu contemporâneo e à forma como as pessoas viviam a
partir das metáforas do medo e dos monstros para ilustrar a perseguição, a diminuição da confiança que havia entre os
seres humanos, fazendo com que as pessoas olhassem os familiares e a si próprios como se de estranhos se tratasse e não
ousassem divulgar as suas ideias. Essa indistinção entre homens e seres nocivos ao seu próprio semelhante é notória,
quando O’Neill afirma que: “Monstros e homens lado a lado/Não à margem, mas na própria vida.//Absurdos monstros
que circulam /Quase honestamente.” (Alexandre O’Neill, No Reino da Dinamarca, 1958)
Consciente da forma como o Estado controlava tudo e todos, O’Neill opta por referir-se a esses braços tentaculares
e invisíveis como se fossem monstros. Misturados entre os homens, esses seres terríficos deambulam “honestamente”, já
que foram criados pelo poder instituído, e procuram ter acesso aos pensamentos das pessoas, dado que circulam
indetetáveis, geram o medo que acompanha os homens em todas as situações por mais quotidianas que elas sejam.
Essa proliferação do medo está patente em “O Poema pouco original do medo” e “Perfilados de Medo”.
(manual p. 226) No primeiro, o autor evidencia o domínio avassalador do medo: ele “vai ter tudo”, desde aspeto humano
até aos objetos de luxo. A forma como os delatores se imiscuíam em todas as situações é enfatizada por essa
personificação do medo; não só ele vai ter “pernas” como “olhos”, “mãozinhas”, “ouvidos”, vai assumir a forma dos
funcionários de Estado ou mesmo dos familiares e dos amigos. Decorrente dessa situação, o medo apodera-se de todos
transformando-os em “ratos”, em seres dominados pelo terror incapazes de reagir e de ousar pensar. A capacidade de ter
acesso aos mais íntimos pensamentos das pessoas torna-se notória pelo facto de os “ouvidos” do medo poderem estar
“nas paredes”, “no chão”, “no tecto” e até “nos teus ouvidos”. Uma vez que esses delatores não são identificáveis, a
desconfiança instala-se, aumentam as “suspeitas”, a desconfiança entre as pessoas porque é impossível saber em quem
confiar. Por isso mesmo, o sujeito poético constata que a intenção do medo é, de facto, amedrontar de tal forma as
pessoas que, dominadas por ele, sejam reduzidas a “ratos”, a meros sobreviventes, sem vontade própria. Contudo esse
medo acaba por ser ambivalente. Se, por um lado, aprisiona as pessoas; por outro, é o motor da sua rebelião, do seu
inconformismo, é ele “que nos salva da loucura”, como é mencionado no segundo poema. Devido a esse fator, “Perfilados
de medo” combatem apesar de saberem que “Decisão e coragem valem menos/e a vida sem viver é mais segura”. Ao
viverem dominados por esse medo, transformaram-se, agora, em “irónicos fantasmas”, em seres quase incorpóreos que
buscam o que não são e o que nunca chegarão a ser. Dessa perspetiva, assumem o papel de “loucos”, de seres amorfos e
destituídos de capacidade para agir e pensar, semelhantes a um “Rebanho”; no entanto, não são conduzidos por um
pastor, são “perseguidos” pelo medo e daí viverem em sociedade, mas tão isolados que “da vida [perderam] o sentido”.
Da mesma forma que se refere ao regime e às suas imposições através da metáfora do medo e dos monstros,
O’Neill não deixa de tecer críticas ao ambiente que o rodeia quando, supostamente, está a relatar a forma inglória como se
processou um dos seus relacionamentos amorosos. Em “Um Adeus Português” torna-se evidente que o afastamento
dos dois é causado pelo ambiente castrador e persecutório existente em Portugal que não permite que um estrangeiro
consiga sobreviver em tais condições.
Numa espécie de diálogo virtual com a amada, o sujeito poético vai mesclando essas alusões a um Estado
controlador, tirano, mesquinho e medíocre. Por isso mesmo, a amada não poderia acomodar-se “à roda em que [ele
apodrece] / apodrecemos”; a viver sob a égide da “pata ensanguentada” que a todos persegue; limitando-se a “ficar
[naquela] cadeira/onde [passa] o dia burocrático”, vendo a “estupidez” e o “medo perfilado” de um “modo funcionário de
viver” já que até os gestos quotidianos foram institucionalizados. Neste contexto, o sujeito poético compreende que não
era possível viver com o fantasma dos delatores, não sabendo quando chegaria o “dia sórdido/canino/policial” em que
alguém os denunciaria nem ficar reduzida à apatia que dominou os portugueses confinados “à pequena dor”, essa
“pequena dor à portuguesa”. O ambiente de Lisboa, corroído pela “náusea”, “idiotia”, “razão absurda de ser”, pela
“asfixia”, pela falsidade, não é compatível com o local de origem da amada: a “cidade aventureira”. Como tal, só restou ao
sujeito poético despedir-se, dizer-lhe adeus e permanecer neste ambiente letal e castrador.
Estes poemas de O’Neill apresentam algumas das características que Fernando Guimarães (in A Poesia
Contemporânea Portuguesa, 2.ª ed. revista e aumentada, Vila Nova de Famalicão: Edições Quasi, 2002, pp. 9 a
17) deteta na poesia das décadas de 40 e 50. Vislumbra-se uma espécie de antilirismo, dado o teor reflexivo dos poemas,
que recorre aos símbolos como um espaço de confluência de analogias e associações, criando uma rede de “leituras
sobrepostas” e centrando a atenção do leitor sobre a tessitura verbal do poema. A poesia funcionava como um ato de
libertação, combatendo uma sociedade repressiva e (re)posicionando o homem dentro de uma outra realidade. Nestes
poemas torna-se evidente a capacidade deste escritor em invadir o “lado menor, medíocre, quotidiano e ridículo das
coisas”, como refere António Quadros (in A ideia de Portugal na literatura portuguesa dos últimos 100 anos, Lisboa:
Guimarães Editores, 1989, pág. 195); apresentando uma visão anti-heroica do Portugal seu contemporâneo, enfatizando o
que ele tinha de mesquinho e feio. É esse “olhar ácido” que António Quadros considera estar de acordo com uma espécie
de “realismo satírico e liquidatário de todas as heranças românticas ou transcendentais”, que usa o quotidiano para
contrapor à imagem sublimada que o regime divulgou e impôs aos portugueses.
Outra das possibilidades encontradas por alguns autores foi o recurso a intertextos clássicos e bíblicos. No entanto,
esta opção pressupõe que o leitor conheça esses intertextos e seja capaz de os atualizar. Mais uma vez, o leitor é implicado
ativamente no processo de criação poética e, dada a especificidade dos intertextos utilizados, se não tiver acesso a esses
referentes a sua interpretação do texto ficará limitada à significação primeira das palavras.

Portugal sob a égide da ditadura: o rosto metamorfoseado das palavras. Tese de mestrado de Paula Fernanda da Silva Morais. Universidade
do Minho – Instituto de Letras e Ciências Humanas, julho de 2005, pp. 72-74.
O POEMA POUCO ORIGINAL DO MEDO

O medo vai ter tudo Vai ter capitais


pernas países
ambulâncias suspeitas como toda a gente
e o luxo blindado muitíssimos amigos
de alguns automóveis beijos
namorados esverdeados
Vai ter olhos onde ninguém os veja amantes silenciosos
mãozinhas cautelosas ardentes
enredos quase inocentes e angustiados
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão Ah o medo vai ter tudo
no tecto tudo
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!) (Penso no que o medo vai ter
ouvidos nos teus ouvidos e tenho medo .
que é justamente
O medo vai ter tudo o que o medo quer)
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo *
milagres O medo vai ter tudo
cortejos quase tudo
frases corajosas e cada um por seu caminho
meninas exemplares havemos todos de chegar
seguras casas de penhor quase todos
maliciosas casas de passe a ratos
conferências várias
congressos muitos Sim
óptimos empregos a ratos
poemas originais
e poemas como este Alexandre O’Neill, Abandono Vigiado, 1960
projectos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
com certeza a deles
a tua voz talvez
talvez a minha

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