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Rimas, de Luís de Camões

AS TEMÁTICAS ESTRUTURANTES DO LIRISMO CAMONIANO

Composições poéticas representativas:

 Descalça vai pera a fonte (p. 178, manual)


Este vilancete1 apresenta um retrato feminino que se enquadra, apesar da forma poética ser palaciana,
no ideal de beleza renascentista/petrarquista.
Assim, Lianor é apresentada como possuidora de:
 pele branca: “mãos de prata”, “mais branca que a neve pura”;
 cabelos louros: “cabelos de ouro o trançado”;
 beleza fora do comum: “tão linda que o mundo espanta;/ chove nela graça tanta/ que dá graça à
fermosura;”;
 poder que inspira amores arrebatadores: “vai fermosa, e não segura”.

 Se Helena apartar (cf. ficha de revisões para a 4.ª FAS)


Este vilancete, para além da apresentação do retrato feminino, introduz um outro aspecto petrarquista, o
do poder transformador da mulher.
Helena, de olhos verdes – “A verdura amena/ gados que pasceis /sabei que a deveis/ aos olhos de
Helena” - e de uma inumana graciosidade – “os corações prende /com graça inumana” - , transforma
tudo o que toca/vê e aqueles que a admiram. Assim, ela transforma:

 os diferentes elementos da natureza: “Os ventos serena, /faz flores de abrolhos. / faz serras
floridas, /faz claras as fontes;”;
 as vidas: “Trá-las suspendidas,/(…) na luz dos seus olhos”;
 os corações, as almas: “Os corações prende/com graça inumana;/ de cada pestana/ ua alma lhe
pende.”;
 o próprio Amor: “Amor se lhe rende/e, posto em giolhos, /pasma nos seus olhos.”

 Verdes são os campos


Nesta cantiga2, retoma-se o motivo do poder transformador da mulher amada, introduzindo-se, também, o
tópico da saudade (“…lembranças/do meu coração”).
Assim, o sujeito poético interpela vários elementos da natureza no sentido de assinalar a importância e
beleza da amada:
 o campo – “Campo, que te estendes”
 as ovelhas – “ovelhas, que nela/vosso pasto tendes”
 e o gado – “Gado, que pasceis”.
Após esta interpelação, o sujeito poético remata a composição, mostrando-lhes que tudo o que têm ou
são o devem às “ graças dos olhos /do meu coração”, ou seja, toda a beleza da natureza se deve à
presença da mulher amada. Sem ela, nada seria como se apresenta aos olhos de quem observa a
natureza na sua variedade.

1
Vilancete – composição de origem palaciana, formada por um mote de dois ou três versos e por glosas de sete
versos de redondilha maior (7 versos) ou menor (5 versos).
2
Cantiga – composição de origem palaciana, formada por um mote de quatro ou cinco versos e por glosas de oito a
dez versos de redondilha maior (7 sílabas) ou menor (5 sílabas).
 Endechas3 a Bárbara Escrava (p.180, manual)
O retrato de Bárbara, “uma cativa com quem andava de amores na Índia”, revela-nos uma surpreendente
síntese entre um retrato psicológico que se enquadra nos parâmetros petrarquistas e um retrato físico
transgressor que enaltece a beleza exótica de uma mulher de pele negra.
A cativa Bárbara é descrita fisicamente como:
 formosa;
 com um “rosto singular”;
 com olhos e cabelos pretos;
 de pele negra - ”pretidão de Amor”.
Este retrato não pode estar mais afastado dos cânones da mulher branca e loura dos sonetos
petrarquistas, no entanto, as características psicológicas desta escrava, que enfeitiçou o poeta,
prefiguram uma dimensão espiritual renascentista. Assim, Bárbara é:
 sossegada - “olhos sossegados”;
 graciosa – “ua graça viva”;
 doce – “Tão doce a figura”;
 mansa – “Leda mansidão”;
 diferente, única – “Bem parece estranha”;
 serena – “Presença serena”;
 dotada de poderes quase sobrenaturais – “…/que a tormenta amansa”.
Esta mulher fascina de tal modo o sujeito poético que transforma a sua dor num calmo prazer - “nela
enfim descansa/toda a minha pena”.

 Um mover d’olhos brando e piadoso (p. 176, manual)


Apesar da quase ausência de traços físicos, a concepção de mulher aqui presente – idealizada, perfeita,
divina – bem como a referência ao poder transformador do amor integram este soneto na corrente
petrarquista.
O retrato da amada é construído através de:
 aspectos exteriores qualificados (1ª quadra): um mover d’olhos – brando e piadoso sem ver de
quê; um riso – honesto, quase forçado; um gesto – doce, humilde, duvidoso de qualquer alegria;
 qualidades, atitudes, estados qualificados (2ªquadra e 1º terceto): despejo – quieto, vergonhoso;
repouso – gravíssimo, modesto; bondade – pura, indício manifesto de alma, limpo e gracioso ;
ousar- encolhido; brandura; medo – sem ter culpa; ar – sereno; sofrimento – longo, obediente.

 Ondados fios de ouro reluzente (p. 174, manual)


O retrato feminino presente neste soneto enquadra-se, igualmente, no arquétipo petrarquista.
Vejamos, através da estrutura interna da composição, o modo como o sujeito poético elabora esta
pintura:
1- uma primeira parte, constituída pelas duas quadras e o primeiro terceto, que apresenta, através
de metáforas e hipérboles, o retrato da amada – cabelos loiros (“Ondados fios de ouro
reluzentes”), faces rosadas (“rosas”), olhos claros e doces –(“Olhos, que vos moveis tão
docemente, /Em mil divinos raios encendidos”), riso honesto, lábios vermelhos e dentes
nacarados – “De perlas e corais nasce e parece”;

3
Endechas – poema de fundo melancólico, constituído por quadras ou oitavas, utilizando versos de cinco ou seis
sílabas, proveniente do Cancioneiro Geral.
2- uma segunda parte, composta pelo último terceto, em que o sujeito poético revela que a imagem
da mulher é apenas resultado da imaginação – “Se, imaginando só tanta beleza” – e que anseia
ardentemente pelo momento em que a possa contemplar – “Que será quando a vir?...Ah! Quem
a visse…”.
O retrato desta mulher torna-se, assim, particularmente interessante, uma vez que é produto da memória;
a mulher amada está ausente, como se pode comprovar através da interrogação retórica do último terceto
– “Que será quando a vir?”
No lirismo camoniano, encontramos, pois, a influência do lirismo petrarquista nesta imagem celeste e
imaterial da amada, reforçada pela experiência pessoal da separação.

O Amor

Utilizando as palavras de Jacinto do Prado Coelho sobre o lirismo camoniano, “o conjunto dos seus
poemas líricos constitui, por assim dizer, um diário, uma longa série de confidências, queixas e
meditações. Mas, como a própria vida que flui, como o próprio amor que nos domina, esse é contraditório,
vário e paradoxal.”
Da leitura dos poemas de Camões é possível reconstruir o seu percurso afectivo marcado pelas
vicissitudes do amor.

Composições poéticas representativas:

 Amor é fogo que arde e sem se ver


Trata-se de um soneto que ilustra a complexidade do sentimento amoroso visível na série de definições
paradoxais que o sujeito poético tenta atribuir-lhe e que constituem a primeira parte:
 fogo que arde sem se ver;
 ferida que dói e não se sente;
 contentamento descontente;
 dor que desatina sem doer;
 não querer mais que bem-querer;
 andar solitário entre a gente;
 nunca contentar-se de contente;
 cuidar que ganha em se perder;
 querer estar preso por vontade;
 servir a quem vence o vencedor;
 ter com quem nos mata lealdade.
Na segunda parte, o sujeito poético remata a composição com uma interrogação retórica que evidencia
quer o carácter contraditório do Amor – “Se tão contrário a si é o mesmo Amor” – quer a perplexidade do
sujeito poético face à aceitação desse sentimento, que apenas provoca sofrimento, por parte do homem –
“como causar pode seu favor/Nos corações humanos amizade”.

 Tanto de meu estado me acho incerto (p.185, manual)


O soneto pode ser perspetivado como uma ilustração, um caso prático, dos efeitos paradoxais do amor
sobre o sujeito poético, tão bem analisado e teorizado no soneto anterior “Amor é fogo que arde sem se
ver”. Ora vejamos:
Na primeira parte, constituída pelas duas quadras e primeiro terceto, o sujeito poético evidencia o
desconcerto em que vive – “Tanto do meu estado me acho incerto” e “É tudo quanto sinto, um
desconcerto”– que se traduz por uma série de contradições, antíteses, dualidades:
 “em vivo ardor tremendo estou de frio”;
 “juntamente choro e rio”;
 “O mundo todo abarco e nada aperto”;
 “ De alma um fogo me sai, da vista um rio”;
 “Agora espero, agora desconfio”;
 “Agora desvario, agora acerto”;
 “Estando em Terra, chego ao Céu voando”;
 “Num’hora acho mil anos”;
 “em mil anos não posso achar uma hora”.
Na segunda parte, o sujeito poético tenta revelar a razão desse seu desconcerto, mas sem muita
convicção – “não sei” e “porém suspeito” – e a resposta reside nas duas últimas palavras do soneto –
“minha Senhora”. É a visão da mulher amada a responsável por todo o desvario da sua vida – “só porque
vos vi”- fazendo lembrar o sofrimento amoroso dos trovadores medievais.

 Sete anos de pastor Jacob servia


Ao longo do soneto, assinale-se:
 a fidelidade amorosa do pastor – “sete anos de Pastor Jacob servia/ (…) mas não servia ao pai,
servia a ela, / e a ela só por prémio pretendia”;
 a persistência apesar dos entraves – “Vendo o trite pastor que com enganos/lhe fora assi
negada a sua pastora/ (…) começa de servir outros sete anos”;
 o carácter contemplativo do amor – “Os dias, na esperança de um só dia, / passava,
contentando-se com vê-la”;
 a vivência psicológica do tempo – “(…) – Mais servira, se não fora/para tão longo amor tão curta
a vida”;
 a negação da vivência amorosa em plenitude – “porém o pai, usando de cautela, / em lugar de
Raquel lhe dava Lia”;
 a injustiça resultante da negação desse amor – “lhe fora a si negada a sua pastora,/como se a
não tivera merecida”
O tema dos amores contrariados tem a sua origem na lírica trovadoresca, permanece uma constante na
tradição literária ocidental e assume em Camões uma das formas mais dolorosas da vivência amorosa.

 O céu, a terra, o vento sossegado (p.32, Caderno de atividades)


Este soneto pode ser considerado como uma página desse referido diário – uma página que dá
testemunho do sentimento de mágoa vivido pelo poeta aquando da morte de Dinamene, uma escrava
asiática que Camões amou e que morreu num naufrágio. Este soneto faz parte de uma série de sete
sonetos dedicados à morte de Dinamene.
O conceito de amor apresentado neste soneto é também característico do Renascimento – o amor que
causa sofrimento – e, no caso particular de Camões, o amor é uma entidade superior, uma força cruel,
que mata, que mortifica, mas que continuamente é desejado e vivido. É também algo de inefável, que não
pode ser definido em termos lógicos “ um não sei o quê, que nasce não sei onde / vem não sei como, e
dói não sei porquê”, o que o situa muito para além do entendimento humano.
O soneto revela outras originalidades:
 o retomar da herança medieval presente na interpelação das ondas do mar por parte do
pescador – “- Ondas – dezia – antes que Amor me mate,/Tornai-me a minha Ninfa”;
 o tipo de natureza descrita – nocturna e marinha – que se afasta do típico locus amoenus
clássico e que antecipa a natureza romântica;
 a identificação da natureza com a morte, característica também antecipadamente romântica.

 Busque Amor novas artes, novo engenho


Este soneto, que glosa, de novo, o tema do amor, apresenta uma estrutura interna bipartida:
- na 1ª parte, constituída pelas duas quadras, o sujeito poético sugere que o “Amor” já pouco “mal” lhe
poderá fazer, porque ele já perdeu as esperanças de poder vir a ser feliz – “ Que não pode tirar-me as
esperanças,/Que mal me tirará o que eu não tenho.” Assim, o Amor terá que encontrar novas artimanhas
– “novas artes, novo engenho, / (…) novas esquivanças” – para “matar” de amor o “eu” lírico.
- na 2º parte, composta pelos dois tercetos, o sujeito poético perde a sua autoconfiança inicial, referindo
que, embora não possa “haver desgosto /Onde esperança falta”, o Amor sempre encontra uma maneira
de o fazer sofrer. Sublinhe-se que os quatro últimos versos do soneto retomam a temática da dificuldade
em definir o amor, que aparece noutras composições poéticas.

 Quem ora soubesse (p.184, manual)


 Pede o desejo, Dama, que vos veja (p.186, manual)
 Transforma-se o amador na cousa amada (p.188, manual)

A natureza

Na lírica camoniana, a natureza aparece geralmente associada à expressão do sentimento amoroso,


característica, aliás, que percorre a lírica nacional desde as cantigas trovadorescas até à poesia
palaciana.
Os quadros da natureza camoniana seguem predominantemente as regras do locus amoenus clássico:
cenários bucólicos, diurnos, verdejantes, suaves, por onde cantam águas frescas e cristalinas. Associado
a estes espaços idílicos e perfeitos está, muitas vezes, presente o sentimento da natureza, outra das
influências petrarquistas: o sujeito poético só é sensível à beleza da natureza se a sua amada estiver
presente ou se o seu amor for correspondido. Há, pois, uma relação de correspondência entre o “eu” lírico
e a natureza.
Vejamos alguns exemplos desse lirismo no qual a natureza assume lugar de relevância:

 A fermosura desta fresca serra


O soneto apresenta uma estrutura bipartida que corresponde a dois momentos diferentes da vivência
interior do sujeito poético:
1- na primeira parte, composta pelos primeiros onze versos, o sujeito poético descreve o quadro da
natureza em que se encontra, e que corresponde, genericamente4, ao locus amoenus :

 uma serra fresca e formosa;

4
Há dois elementos que subvertem o locus amoenus, neste soneto: o som do mar e o pôr do sol.
 uns castanheiros frondosos e verdes;
 ribeiros mansos;
 um espaço alegre – “Donde toda a tristeza se desterra”;
 o rouco som do mar;
 a estranha terra;
 o pôr do sol nos outeiros;
 os gados que recolhem aos estábulos;
 as nuvens que vogam pelo céu suavemente – “Das nuvens pelo ar a branda guerra.”
Resumidamente, trata-se de uma natureza harmoniosa e, por conseguinte, propícia ao amor.
2- na segunda parte, composta pelos restantes quatro versos, o sujeito poético revela a sua
incapacidade de fruir a beleza da natureza na ausência da amada: “Sem ti tudo me anoja e me
aborrece;/ Sem ti, perpetuamente estou passando, /Nas mores alegrias, mor tristeza.” Veja- se o
tom dramático que o “eu” lírico imprime ao discurso, ao introduzir um novo elemento nesta
relação eu/natureza – o “tu” – “se não te vejo”, “sem ti”, “sem ti”.

A beleza da natureza torna-se, por isso, irrelevante sem a presença da mulher amada.
Sublinhe-se, também, a diferença em termos de construção frásica / linguagem entre a primeira e a
segunda partes:
Na primeira parte, de pendor claramente descritivo, predominam:
 as frases nominais – “A fermosura desta fresca serra/ E a sombra dos verdes castanheiros”;
 as enumerações – “O rouco som do mar, a estranha terra, /O esconder do sol pelos outeiros”;
 os adjetivos – fresca, verdes, manso, rouco, estranha, derradeiros, branda;
 o uso exclusivo da terceira pessoa.

Na segunda parte, e revelando a dinâmica interior do sujeito poético, predominam:


 as formas verbais – está, vejo, magoando, enoja, aborrece, estou passando ;
 o jogo entre as primeira e segunda pessoas – ti/me;
 as anáforas - “Sem ti /Sem ti”;
 as enumerações - “tudo me anoja e aborrece”;
 a aliteração das nasais - “…perpetuamente estou passando”;
 a antítese – “nas mores alegrias, mor tristeza.”

 Alegres campos, verdes arvoredos (p. 190. Manual)


Este soneto é muito semelhante ao anterior, não só pelo quadro da natureza apresentado como também
pela relação afectiva que o sujeito poético estabelece com o espaço envolvente. Assim:
 os campos são alegres e os arvoredos verdes;
 as águas são cristalinas, claras e frescas;
 os montes são silvestres e os penedos ásperos- “Compostos em concerto desigual”.
No entanto, esta beleza não consegue impressionar o sujeito poético, porque o seu coração está triste e
saudoso – “Sabei que, sem licença do meu mal, /Já não podeis fazer meus olhos ledos.”
A relação entre o sujeito poético e a natureza reveste-se, neste soneto, talvez de uma maior proximidade
do que no anterior, porque as lágrimas do “eu” fecundarão a terra, nela fazendo crescer as saudades da
sua amada: ”Semearei em vós lembranças tristes, /Regando-vos com lágrimas saudosas, /E nascerão
saudades do meu bem.”
Atente-se na linguagem metafórica da composição poética bem adaptada à sua temática naturalista:
 semear lembranças tristes;
 regar com lágrimas saudosas;
 nascer saudades.

 Aquela triste e leda madrugada (p.191, manual)


Nesta composição poética, o tema da natureza aparece associado, como é comum na lírica camoniana, à
expressão do sentimento amoroso, mas o tom intensamente melancólico e a transposição do sofrimento
do sujeito poético para a madrugada tornam este soneto num dos mais belos textos da lírica portuguesa.
Atentemos na estruturação temática do soneto:
1- na primeira parte, constituída pela primeira quadra, em que predomina o emprego do discurso
de 1ª pessoa, o sujeito poético expressa um desejo: “Enquanto houver no mundo
saudade/Quero que seja sempre celebrada.”;
2- na segunda parte, composta pelas restantes estrofes, em que se constata o emprego exclusivo
da terceira pessoa, conferindo, desse modo, um carácter narrativo a estes versos, o sujeito
poético apresenta a justificação para o desejo que expressou.
A madrugada, descrita de forma antitética e personificada – triste vs leda, cheia de mágoa vs amena,
cheia de piedade vs marchetada – torna-se a personagem central de uma cena dolorosa: a separação de
dois amantes - ”Viu apartar-se d’ua vontade, /Que nunca poderá ver-se apartada”. Assim tornada
testemunha do sofrimento dos dois amantes, a madrugada que tudo “viu” e “ouviu” (“as lágrimas em fio” e
as “palavras magoadas”), torna-se também ela participante do sofrimento dos dois apaixonados.
Este soneto apresenta uma conjugação perfeita de recursos expressivos que ajudam à transmissão do
sofrimento amoroso, tais como:
 adjetivação antitética – “Aquela triste e leda madrugada”;
 personificação – “Cheia toda de mágoa e piedade”;
 jogos de palavras – “Viu apartar-se d’ua outra vontade, /Que nunca poderá ver-se apartada.”;
 hipérbole – “S’acrescentaram em grande e largo rio”;
 paradoxo – “Que puderam tornar o fogo frio /E dar descanso às almas condenadas”.

De referir que o tema da partida/separação que domina esta composição faz parte da nossa tradição
lírica, já aparecendo trabalhado na lírica trovadoresca, na poesia palaciana do Cancioneiro Geral e
mantendo-se bem presente, sobretudo na poesia de resistência à ditadura salazarista dos poetas
panfletários do século XX, de que o soneto “E alegre se fez triste”, de Manuel Alegre, é exemplo.

O desconcerto do mundo

A temática do desconcerto do mundo foi cara a Camões, não só pelas circunstâncias sociais de uma
época de grandes transformações na qual viveu, mas também pela riqueza e variedade das suas
experiências de vida.
(…) O desconcerto do mundo aparece a Camões sob diversas formas. É um facto objetivo de que os
prémios e os castigos estão distribuídos desencontradamente. Há aqui um vício social particularmente
flagrante na sociedade portuguesa do século XVI, em que a expansão ultramarina proporcionava
enormes contrastes e mutações de opulência e miséria e dava largas oportunidades aos aventureiros
sem escrúpulos: a terra (escreve Camões referindo-se à Índia) é a mãe de “vilões ruins e madrasta de
homens honrados”.
António José Saraiva, Luís de Camões

Composições poéticas representativas:


 Os bons vi sempre passar5 (p.203, manual)
Apesar da forma poética escolhida não ser ainda caracteristicamente renascentista, o tema versado por
esta esparsa enquadra-se no tema clássico do desconcerto do mundo.
Assim, o poema estrutura-se em torno:
 da identificação da oposição “bons/maus” e do paradoxo a ela ligado – os bons passam “graves
tormentos” e os maus vivem em “mar de contentamentos” – o que conduz à ideia do desconcerto
do mundo;
 da constatação do desfasamento existente entre o mundo e o sujeito poético : ”Fui mau; mas fui
castigado. /Assi que, só pera mi, /Anda o Mundo concertado.”;
 da conclusão de que é um facto de que os castigos e as recompensas são atribuídas de forma
desencontrada e injusta, o que causa perplexidade.
Esta temática do desconcerto do mundo foi cara a Camões, dada a sua consciência de um mundo em
mudança, palco de agudas mutações quer a nível social, quer moral.

 Cá nesta Babilónia, donde mana


Ao longo do soneto, o sujeito poético define e caracteriza predominantemente um espaço físico –
Babilónia6 - como um lugar:

 dominado pelo mal – “(…)donde mana/matéria a quanto mal o mundo cria”;


 profanado pela sensualidade, em detrimento do amor puro – “(…) onde o puro Amor não tem
valia/que a Mãe7, que manda mais, tudo profana;”
 marcada pela inversão de valores – “pode mais que a honra a tirania;”; “(…) onde a nobreza/com
esforço e saber pedindo vão/ às portas da cobiça e da vileza”;
 caracterizada pelo exercício errado do poder – “(…) onde a errada e cega Monarquia/cuida que
um nome vão a Deus engana”.
Atente-se nas expressões metafóricas – “neste labirinto” e “neste escuro caos de confusão” – com que o
sujeito poético sintetiza a conotação negativa do espaço referido. Sublinhe-se, ainda, o verso 13 –
“cumprindo o curso estou da natureza” – que aponta claramente para a inevitabilidade do percurso de
vida do poeta.
Nesta primeira e longa parte do soneto, tornam-se expressivos:

 a anáfora do deítico espacial “cá” (seis vezes repetido);


 o gerúndio “cumprindo”, marcando a continuidade da vivência;
 a aliteração da oclusiva presente nos versos 12 e 13 – “cá neste escuro caos de
confusão/cumprindo o curso…” – reveladora da intensidade do sofrimento.

O último verso do soneto demarca-se do resto da composição poética quer a nível formal, quer
ideológico. Assim, o carácter exclamativo associado ao jogo dramático, resultante da presença dos
pronomes pessoais “me”/ “ti”, opõem-se ao carácter descritivo (predomínio de um discurso de terceira
pessoa) dos restantes versos. Curiosamente, só no último verso e na última palavra desse mesmo verso,

5
Esparsa – espécie de trova curta, muito frequente no Cancioneiro Geral, de fundo melancólico, composto em
redondilha e que consta geralmente de um mínimo de oito versos e máximo de dezasseis. Ao contrário das cantigas
e dos vilancetes, a esparsa aborda diretamente o assunto, dá-lhe forma epigramática, e terminas sem refrão nem
variações.
6
Babilónia – capital da antiga Suméria, no sul da Mesopotâmia. Para os judeus, que aí estiveram exilados, “Babel”
significa confusão.
7
“Mãe” – Vénus, símbolo da sensualidade imperiosa
o sujeito poético revela a verdadeira intenção do seu longo discurso – enaltecer, ainda que
implicitamente, a sua terra prometida, “Sião”8.
Numa leitura mais pessoal e simbólica, Babilónia representa para o poeta o exílio, o desterro em Goa, e
Sião, a sua pátria, Portugal

O Discurso autobiográfico - Balanço de vida

Algumas composições poéticas camonianas revelam um pendor autobiográfico, em que o poeta aparece,
quase sempre, como vítima de um destino inexorável e injusto que se adapta a um cenário mais
abrangente do desconcerto do mundo.
Este pendor pessoal que preside a praticamente todo o lirismo de Camões confere grande autenticidade
às suas composições poéticas e revela, ao mesmo tempo, um ser hipertrofiado com uma série de
vivências e experiências pessoais: amores, saudades, desenganos, frustrações, pessimismo existencial,
revolta contra um destino adverso, desejo de fuga…

Composições poéticas representativas:

 Erros meus, má fortuna, amor ardente (p. 196, manual)


Este soneto é talvez dos mais sofridos de toda a lírica camoniana, uma vez que o sujeito poético culpa
não só o mundo e os amores infelizes, mas também a sua própria conduta pelo percurso desencantado
da sua vida.
Atentemos:
 na identificação da atitude predominante do sujeito poético: o “eu” lírico faz um balanço da sua
vida, dominada pelos seus erros, mas também pelo destino (“fortuna”) e pela paixão (”amor
ardente”). Este balanço de vida é construído pela referência/enumeração aos factores que
dominaram a sua vida e pelo emprego de formas verbais no pretérito perfeito (“conjuraram”,
“sobejaram”).O valor semântico destas formas verbais revela-nos um sujeito lírico amargurado e
desesperado, mas também alguém que se sente vítima do destino e alvo de uma perseguição
por parte da fatalidade e da vida. No entanto, o eu poético tenta analisar um pouco mais
objectivamente o seu percurso de vida e culpa-se também a ele próprio daquilo por que passou,
facto reforçado pelo emprego da 1ª pessoa:
- erros meus,
- errei todo o discurso;
- dei causa;
- meu duro génio.
 na constatação de que as experiências passadas condicionam a atitude presente do poeta (2ª
quadra) – “A não querer já nunca ser contente”. De sublinhar o valor semântico do emprego da
consecutiva ( “…mas tenho tão presente(…)/ Que as magoadas iras me ensinaram /a não querer
já nunca ser contente.”) que reforça a importância da vivência do passado como condicionante
da atitude presente do “eu”;
 na referência à mudança da atitude do “eu” lírico observada nos dois últimos versos do soneto.
Na verdade, a uma certa resignação, a uma certa atitude contemplativa que domina os doze
primeiros versos do soneto, segue-se um sentimento de revolta e a expressão de um desejo de
vingança, presente nos dois últimos versos, a que o emprego do conjuntivo, modo adequado á

8
Sião – para os judeus, é sinónimo de Jerusalém e tem um significado muito profundo, que envolve a sua alma e os
seus sentimentos. Sião é o símbolo da Terra Prometida.
expressão de desejos (”pudesse”, “fartasse”), da interjeição “oh!” e da exclamativa – “…que
fartasse/ este meu duro génio de vinganças!” – conferem um tom determinado e mesmo violento.
Os aspetos clássicos, a nível temático, presentes no poema são:
 o desencanto e a desilusão;
 o papel do destino e da fortuna;
 a valorização da experiência da vida;
 o balanço de vida.

 O dia em que nasci, moura e pereça (p.193, manual)


Nesta composição camoniana perpassa um cenário apocalíptico, que o sujeito poético associa ao dia em
que nasceu, porque esse dia “deitou ao mundo a vida /mais desgraçada que jamais se viu!”.
Analisemos a estrutura bipartida do soneto:
- a primeira parte, composta pelas duas quadras e pelo primeiro terceto, apresenta uma atmosfera de fim
de mundo – “Cuidem que o mundo já se destruiu” -, de hecatombe global, construída pelos seguintes
aspetos:
- Eclipse nesse passo o Sol padeça;
- A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça;
- Mostre o mundo sinais de se acabar
- Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar
- A mãe ao próprio filho não conheça.
Note-se que, ao descrever esta atmosfera catastrófica de uma forma extremamente dinâmica (são
utilizadas dezassete formas verbais), o sujeito poético lança uma série de pragas e maldições, que
surgem de forma gradativa, iniciando-se nos fenómenos da natureza – o eclipse do Sol -, passando pelos
fenómenos paranormais – nascimento de monstros e chuva de sangue – para terminar naquilo que é
mais inconcebível e desumano – “A mãe ao próprio filho não conheça”.
Face a esta tragédia, “As pessoas pasmadas”, não sabendo o que está a acontecer, entram em pânico e
choram – “As lágrimas no rosto, a cor perdida,”.
- a segunda parte, o último terceto que aqui funciona como chave de ouro, ou seja conclusão, constitui
um apelo do sujeito poético à “gente temerosa”, no sentido de a acalmar e de lhe fornecer a resposta
para tamanho desvario : esse dia horrendo foi o que viu nascer o “eu” lírico.
Sublinhe-se que, ao longo de todo o soneto, o “eu” se assume como um ser único e excepcional, pela sua
vida infeliz, opondo-se, por isso, à generalidade dos outros seres humanos.

 Enquanto quis Fortuna que tivesse (p.212, Manual)


Este soneto apresenta uma reflexão do sujeito poético sobre a sua obra lírica, ao mesmo tempo que
constitui um aviso a todos aqueles que “Amor obriga a ser sujeitos /A diversas vontades!”.
Assim, é possível definir a estrutura interna do poema em duas partes:
 a primeira parte é constituída pelas duas quadras que correspondem, cada uma delas, a dois
momentos diferentes, visto que nos primeiros quatro versos, o sujeito poético refere que
enquanto a Fortuna o deixou ter “esperança de algum contentamento” , os seus versos eram
suaves e verdadeiros; já na segunda quadra (atente-se no emprego do conector porém que
inicia este segundo momento), o eu lírico afirma que o Amor lhe “escureceu o engenho co
tormento”, para que ele não pudesse avisar “algum juízo isento” dos enganos do mesmo Amor;
 a segunda parte integra os dois tercetos e constitui um aviso a todos os incautos que se deixam
prender nas malhas do Amor. O sujeito poético alerta para o facto de que a vivência do Amor
leva a “casos tão diversos”, que “Verdades puras são, e não defeitos…” que serão entendidos de
acordo com o grau de paixão vivida: “E sabei que, segundo o amor tiverdes, /Tereis o
entendimento de meus versos!”
A cada uma das partes do soneto corresponde um tipo de discurso diferente. A primeira parte apresenta
discurso de 1ª pessoa (“tivesse”, ”Me”, “escrevesse”, “Minha”, “Me”, “dissesse”) e de 3ª pessoa (“quis”,
“tivesse”, “fez”, “seus”, “escureceu”, “seus”) pessoas, o que evidencia o jogo entre o sujeito poético e o
Amor; na segunda parte há um claro predomínio da segunda pessoa (“vós”, “lerdes”, "sabei”, “tiverdes”,
“Tereis”), revelador do carácter apelativo deste segundo momento do poema.

 Nunca em prazeres passados (p.194, manual)

A mudança

O tema da mudança, um dos protótipos literários mais universais, constitui um dos tópicos mais versados
pelos poetas renascentistas. Camões, poeta do Renascimento, foi sensível ao tema e em algumas das
suas composições desenvolveu-o, associando-o ao desencanto face à sua existência e ao mundo.

Composições representativas:

 Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (p. 201, Manual)


Neste soneto de Camões, atentemos na estrutura interna e seu conteúdo:
1- na primeira parte, constituída pelas duas quadras e pelo primeiro terceto, o sujeito poético refere
a mudança:
 no mundo - “tempos”, “vontades”, “ser”, “confiança”;
 nos sentimentos “diferentes em tudo da esperança”, “ficam as mágoas (…)/as
saudades.”;
 na natureza - “O tempo cobre o chão de verde manto, /que já coberto foi de neve fria,”;
 no “eu” - “…converte em choro o doce canto.”.
A mudança aparece, assim, como uma característica universal, imbuída de aspetos negativos ao nível do
mundo e do “eu”. A única nota discordante opera-se na Natureza, que assume um papel destoante em
relação ao mundo e ao homem.
2- na segunda parte, último terceto (chave de ouro), assistimos à mudança da própria mudança –
“outra mudança faz de mor espanto, /que não se muda já como soía.”
O discurso poético organiza-se de forma reiterativa – a nível lexical e morfossintáctico -, de modo a
sublinhar o carácter constante e permanente da mudança:
 emprego reiterativo de formas do verbo “mudar” e de palavras cognatas:
. mudam-se (2 vezes);
. muda-se (2 vezes);
. mudança (2 vezes);
. mudar-se;
. se muda.
 emprego de vocábulos relacionados semanticamente com “mudança”
. novas;
. novidades;
. diferentes;
. converte.
 emprego de advérbios e expressões adverbiais que transmitem a ideia de continuidade e
irreversibilidade da mudança:
. sempre;
. continuamente;
. cada dia;
. já (2 vezes).
 emprego de construções anafóricas e de paralelismos:
. mudam-se/mudam-se;
. muda-se/muda-se;
. do mal/do bem.
 utilização de jogos de palavras – o mesmo verbo utilizado na forma ativa e na forma passiva –
“O tempo cobre o chão de verde manto,/que já coberto foi de neve fria.“

Tal como acima se referiu, o tema da mudança é um dos mais glosados pelos poetas renascentistas, no
entanto, a sua expressão na lírica camoniana, reveste-se de um tom mais sofrido. A diferença constatada
entre a mudança na natureza que se opera no sentido positivo e aquela que se opera no mundo e no
sujeito poético, ambas direcionadas negativamente, agudizadas pela mudança da própria mudança,
intensificam o sofrimento do “eu” poético que se sente um joguete nas mãos do destino e da fatalidade.

Bom estudo!
Rimas, de Camões

Exercício 1
Exercício 2

Lê com atenção o soneto camoniano que se segue.

Males, que contra mim vos conjurastes1,


quanto há de durar tão duro intento?
Se dura porque dura meu tormento,
baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas se assi perfiais porque cuidastes


derrubar meu tão alto pensamento,
mais pode a causa dele, em que o sustento,
5
que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E, pois vossa tenção, com minha morte,


há de acabar o mal destes amores,
dai já fim a um tormento tão comprido,

porque d’ambos contente seja a sorte:


vós, porque me acabastes, vencedores;
1 e eu, porque acabei de vós vencido.
0

CAMÕES, Luís de, 1994. Rimas (texto estabelecido, revisto e prefaciado


por Álvaro J. da Costa Pimpão). Coimbra: Almedina (p. 158) (1.ª ed.: 1595)

1. conjurar: conspirar.

Apresenta, de forma bem estruturada, as tuas respostas ao questionário.

1. Explica, baseando-te nas duas quadras do soneto, dois dos aspetos


com que o sujeito poético procura caracterizar a sua vida.

2. Explicita o valor expressivo da apóstrofe com que se inicia o poema.

3. Comenta o sentido que a conclusão do texto produz (vv. 9-14).


Exercício 3

Leia o poema. Em caso de necessidade, consulte o glossário no final.

1 Doces lembranças da passada glória,


que me tirou Fortuna roubadora,
deixai-me repousar em paz ũa hora,
que comigo ganhais pouca vitória.

5 Impressa tenho na alma larga história


deste passado bem que nunca fora
ou fora, e não passara; mas já agora
em mim não pode haver mais que memória.

Vivo em lembranças, mouro1 de esquecido


10 de quem sempre deverá ser lembrado,
se lhe lembrara estado tão contente.

Oh! quem tornar pudera a ser nacido2!


soubera-me lograr3 do bem passado,
se conhecer soubera o mal presente.

Camões, Luís de, 1994. Rimas. Coimbra: Almedina

GLOSSÁRIO
1
morro.
2
nascido.
3
aproveitar, desfrutar.

1. Explicite a oposição que se estabelece entre o passado e o presente do sujeito


poético, fundamentando a resposta com elementos textuais significativos.

2. Relacione o desejo do sujeito lírico expresso no último terceto com o conteúdo da


estrofe anterior.
Exercício 4

1 Já não sinto, Senhora, os desenganos


com que minha afeição1 sempre tratastes,
nem ver o galardão2 que me negastes,
merecido por fé, há tantos anos.

5 A mágoa choro só, só choro os danos


de ver por quem, Senhora, me trocastes;
mas em tal caso vós só me vingastes
de vossa ingratidão, vossos enganos.

Dobrada3 glória dá qualquer vingança


10 que o ofendido toma do culpado,
quando se satisfaz com cousa justa;

mas eu, de vossos males e esquivança4


- de que agora me vejo bem vingado -,
não o quisera eu tanto à vossa custa.
Camões, Luís de, 1994. Rimas. Coimbra: Almedina

GLOSSÁRIO
1
afeto.
2
prémio, recompensa.
3
duplicada.
4
desprezo.

1. Descreva o estado de alma do sujeito poético, nas duas primeiras quadras,


fundamentando a sua reposta com elementos textuais pertinentes.

2. Explicite o contraste que se estabelece entre os dois tercetos.

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