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DESPONDENCY1

Deixá-la ir, a ave, a quem roubaram


Ninho e filhos e tudo, sem piedade…
Que a leve o ar sem fim da soledade
Onde as asas partidas a levaram…

Deixá-la ir, a vela, que arrojaram


Os tufões pelo mar, na escuridade
Quando a noite surgiu da imensidade,
Quando os ventos do sul se levantaram…

Deixá-la ir, a alma lastimosa,


Que perdeu fé e paz e confiança,
À morte queda, à morte silenciosa…

Deixá-la ir, a nota desprendida


Dum canto extremo… e a última esperança…
E a vida… e o amor… deixá-la ir, a vida.

Antero de Quental

1
desesperança
Despondency

Despondency, ou seja, desesperança é um soneto que poderá ser inserido na


fase noturna, pessimista de Antero. É um poema extremamente musical que apresenta
um forte sentimento de tristeza e de abandono como indica o próprio título. O seu
ritmo ligeiro sugerido pelo paralelismo, pela pontuação, pela repetição anafórica
exprime a fragilidade da vida e o consequente estado de abandono de quem a sente.
O poeta inicia o poema apresentando uma ave, por sinal um ser frágil “…a quem
roubaram / Ninho e filhos e tudo,... ", que fica, por esse motivo, ao abandono e
desprovida de tudo o que simbolizava a sua razão de viver. Atente-se na repetição da
conjunção coordenativa copulativa, presente no exemplo acima transcrito como forma
de reforçar a ideia de perda e consequente dor e carga emotiva sugeridas também
pelas reticências.
A sensação de indiferença encontra-se patente ao longo de todo o poema,
principalmente através de:
- repetição anafórica da expressão "Deixá-la ir";
- verbos de tom disfórico (roubar, levar, arrojar, perder);
- adjetivos ("lastimosa", "queda", "silenciosa" e "desprendida”);
- substantivos como, por exemplo, "noite", "morte", "escuridade", que mostram,
por parte do sujeito lírico, uma total indiferença perante a vida e, consequentemente,
um nítido desejo de antecipar a morte, visível igualmente no v. 11 "A morte queda, a
morte silenciosa... ", culminando no último verso do poema "E a vida... e o amor...
deixá-la ir, a vida!", onde as reticências imprimem um ritmo soluçante como se de um
moribundo se tratasse, acentuando-se ainda mais a ideia de abandono e de
desprendimento face à vida.

Ao longo do soneto verifica-se uma gradação na forma como o poeta apresenta


os vários elementos que estão inexoravelmente votados à morte: não só a ave, como
já referimos, mas também a vela, a alma, a nota e a esperança. Esta sequência de
imagens é usada para simbolizar a precariedade da vida. Note-se que a vela envolta
pelos ventos do sul não terá qualquer hipótese de salvação, assim como "a alma
lastimosa" que por ter perdido a "fé e paz e confiança" (pedras basilares que
sustentam a vida) se entrega abnegadamente à morte como único refrigério.
No último terceto está subjacente, de forma mais acentuada, uma certa
tendência romântica que espelha "o mal du siècle", a manifestação de cansaço, de
desespero pelo presente, a angústia que produz o viver, encontrando-se na morte o
estado final de perfeita e definitiva felicidade.

Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da
obra, Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição: 2006]

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