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Características da Poesia de Antero

1859-1864: nota-se o predomínio de uma atitude romântica com temática religiosa. É


uma poesia de entusiasmo adolescente, herança da educação paterna. Esse conteúdo
é identificado em quase todos os poemas dos livros Raios de extinta luz e Primaveras
Românticas. Geralmente, essa fase é considerada menor na obra do artista.

1864-1874: concentra-se em Odes Modernas, poemas que representam a fase do


autor e sua adesão às ideias de justiça social, igualdade e dignidade humanas. Para ele,
o acto de escrever é revolucionário, revelando nítida influência das ideias de
Proudhon. Os poemas dessa fase reflectem o drama social da segunda metade do
século XIX. Deve-se notar, no entanto, que a influência religiosa não diminuiu, na sua
poesia, com a perda da fé. O poeta tendeu a unir às suas tendências políticas um certo
messianismo na espera da redenção libertária e socialista.

1874-1885: mais nítida no livro Sonetos Completos, revela o poeta atormentado por
questões humanas, filosóficas e metafísicas, resultando uma poesia dilemática,
angustiada e pessimista, envolvida com as ideias de morte e as tentativas de explicar e
entender Deus. De certa forma, essa fase representa uma síntese das perturbações
que ocupavam o poeta desde a juventude, Nela, Antero atinge o ponto alto de sua
carreira, com um raro refinamento artístico, que une a força de reflexões filosóficas
bem fundamentadas com beleza rítmica, criando frases imponentes e eloquentes.

De uma forma geral, sua obra representa uma incessante busca do Ideal, isto é, a
essência humana, corporificada em Deus, na Sociedade, ou no próprio Homem -
dependendo das oscilações ideológicas pelas quais passou o poeta.

Principais Obras

Poesia
Primaveras Românticas (1872)
Odes Modernas (1885)
Sonetos Completos (1886)
Raios da Extinta Luz (1892)

Prosa
Defesa da carta Enclítica de sua Santidade Pio IX contra a Chamada Opinião Liberal.
A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais.
Conferências Democráticas - Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos três
Séculos.
Tendências Gerais da Filosofia na Segunda Metade do Século XIX.
Sonetos
Através da literatura, Antero exprime a revolta e o inconformismo; reflecte
profundamente sobre o mundo, reflecte para agir. Daí o seu carácter forte de líder
que o transformou no mestre, mentor inspirador e símbolo da Geração de 70.
A poesia de Antero traduz as suas vivências e os seus anseios. Nela se encontra
uma faceta luminosa ou apolínea, tradutora do seu ardor revolucionário e de
grande elevação moral, e outra nocturna, que remete para o pessimismo e o
desejo de evasão.
António Sérgio afirma que o Antero apolíneo exprime a Luz, a Razão e o Amor
como fontes da harmonia do Universo e o Antero noturno ou dionisíaco canta a
noite, a morte, o pessimismo e um certo niilismo.
A sua poesia filosófica romântica aberta à modernidade permite diversas divisões,
mas julgamos pertinente a opção em quatro fases: a lírica ou de expressão do
amor; a do apostolado social e das ideias revolucionárias; a do pessimismo; e a
da metafísica e regresso a Deus.

Na primeira fase, exprime o amor espiritual, à maneira de Petrarca, sem a


sensualidade da lírica de Garrett, mas cantando a mulher como ser adorável,
uma “visão” , como sucede em "Ideal", "Beatrice", "Abnegação" ou "Idílio";
na segunda fase, traduz as preocupações sociais, o desejo profundo de
construir um mundo novo, considerando que a poesia é a voz da revolução que
visa a Justiça, o Amor e a Liberdade, como em "A um Poeta"; "Evolução"; "Hino
à Razão"; "Tese e Antítese"; "A Ideia";
na terceira fase, há um grande pessimismo e frustração a traduzir uma certa
decepção da luta, como em "O Palácio da Ventura"; "Despondency"; "Nox";
numa quarta fase, parece reconciliar-se e busca o descanso merecido "na
mão de Deus", como em "Na Mão de Deus"; "Salmo"; "A um Crucifixo"; "À
Virgem Santíssima"; "Solemnia Verba".

A interpretação da obra de Antero não pode ser simplista até porque está sempre
presente um anseio e uma grande interrogação perante o sentido da nossa
própria existência, o mundo em que vivemos e a explicação ou presença de um
Deus que, racionalmente, queremos compreender.
Mais do que tradução dos seus desejos ou angústias pessoais, há, na obra
anteriana, as preocupações do ser humano que reconhece a sua condição e a sua
fragilidade, que sente esperanças e sofre os desalentos, que duvida perante os
mistérios da criação, da morte e de Deus.
Mas porque nos seus sonetos está todo o pulsar humano, julgamos que, para
facilitar a compreensão destas quatro fases que se apontam na evolução da obra
de Antero, podemos reflectir na própria evolução que sucede a muitos seres
humanos: dos ideais da juventude e da luta consciente caímos, muitas vezes, no
desânimo por não vermos realizados os nossos propósitos, acabando por
recorrermos a um Deus protector pois só o sonho e a contínua esperança
alimentam a vida.
No final, chega a verdade dos “Vencidos da Vida”.

CARACTERÍSTICAS ROMÂNTICAS EM ANTERO DE QUENTAL

Os poemas extensos (odes ou alegorias) oscilam entre um romantismo humanitarista


polémico e um romantismo de negrume pessimista e noturno. [...] [Há, a nível
estilístico,] um importante lastro romântico, mesmo nos sonetos, que são uma forma
de tradição clássica [em Antero com algumas raízes camonianas]. [...] É ainda
virtualmente «elmanista» [um Bocage que Antero repudiou] todo o lançamento
grandiloquentemente visionário de alguns sonetos [...], certos grandes rasgos
sentimentais, os cenários fantasmagóricos do terror crepuscular ou noturno, a
obsessão da morte, a multiplicidade de personificações, ou mitificações, de maiúscula
inicial - bem como o alegorismo a que dão ensejo. [...]
Mas há ainda talvez mais evidentes estigmas de um romantismo visionário, como o
claro-escuro [...] do vocabulário predileto.

Óscar Lopes, Antero de Quental - Vida e legado de uma utopia

PREDILEÇÃO DE ANTERO PELO SONETO

Apesar do seu pendor acentuadamente romântico, Antero de Quental teve um


grande apreço pelo soneto.

Em 1861, o poeta escreveu um artigo dedicado a João de Deus, exaltando esta


«forma de lirismo puro». Segundo Maria M. Gonçalves (in Poesia de Antero de
Quental), a relacionação de conteúdo e forma não é, neste poeta, alheia ao
pensamento hegeliano. Assim como «a Ideia (enquanto movimento geral do universo)
se exterioriza no Homem, primeiro através do espírito subjetivo (nível dos instintos),
depois, através do espírito objetivo (nível social) e, por fim, do espírito absoluto (que a
arte, religião e ciência e filosofia encarnam), também Antero propõe uma evolução
gradual no interior do poeta (no fundo da sua alma), por intermédio de uma forma
privilegiada, o soneto». A forma do soneto adapta-se admiravelmente à expressão
sintética da evolução dialética da Ideia: o soneto é a miniatura artística de um universo
em que a Ideia, como um astro, se desenvolve em forma de órbita. Com efeito, no
soneto, o desenvolvimento do assunto faz-se geralmente assim: nas duas quadras e no
primeiro terceto apresentam-se os factos e desenvolvem-se as ideias de maneira a
que, no último terceto, surja com naturalidade uma conclusão intensamente emotiva.
Só assim se poderá afirmar, como é de regra, que o bom soneto termina com chave de
ouro.
Como escreve a autora atrás citada (ibidem), o soneto «é o modo de expressão do
lirismo puro, o modo como Dante, Miguel Ângelo, Shakespeare e Camões vazaram os
sentimentos mais íntimos das suas almas, o que significa também que o soneto é, em
função das particularidades da sua forma, um molde - lugar onde um sentido fica
preso, gravado em epitáfio para sempre. Sem dúvida é o que melhor se coaduna com o
seu pensar intensivo, simplificante, concentrado e clássico, no dizer de António Sérgio»
Os românticos abandonaram o soneto, certamente por esta forma poética lhes
exigir uma disciplina formal que não estava de forma alguma nos seus hábitos. Mas o
facto de Antero colaborar com os realistas na reabilitação do soneto não significa que
o autor das Odes Modernas tenho sido realista na sua obra poética. São, pelo
contrário, evidentes as marcas românticas da sua poesia; o seu «eu» lírico é
continuamente atraído pela Morte: a morte é o motivo dominante dos seus poemas.
Se, para Antero, a ação, o movimento, a revolta são elogiados como sinal de
vida, a verdade é que a Morte surge sempre como fim de tudo, a Morte é motivo
dominante. Assim, para Maria M. Gonçalves, no poema Ad Amicos, revela-se a
ambiguidade desse elogio. Este soneto, sendo uma apologia da vida (notem-se os
lexemas e sintagmas: «vivo», «viver», «surgir à luz dourada», «no lábio a rir»,
«esperança infinda», «plenitude», «harmonia…», deixa claramente perceber, como
pano de fundo, o espectro da morte («mortalha regelada», «pira vasta») e, a íntima
atração que ela exerce sobre «eu» lírico (veja-se o último verso: «Mas melhor que
tudo isto é sempre a morte»).
AD AMICOS1

Propter solatium1

Renasço, amigos, vivo! Há pouco ainda


Disse ao viver: «Afunda-te no nada!»
E já, bem vedes, surjo à luz dourada,
- No lábio o rir, no peito esp'rança infinda!

Ah, flor da vida! flor viçosa e linda!


Envolto na mortalha regelada
Do só pensar - perdão! - foste olvidada...
Flor do sentir e crer e amar... bem vinda!

A vida! como a sinto, ardente, imensa!


Não única! tomando a imensidade!
Livre! perante Deus surgindo forte!

Que amor! que luz! que pira vasta, intensa!


Plenitude! harmonia! realidade!
Mas melhor que tudo isto é sempre a morte!

(1859 a 1863)
Antero de Quental, Raios de Extinta Luz

_________________
1
Expressão latina: «Aos amigos».
2
Expressão latina: «Para (vossa) consolação».

Tal como o cristianismo, Antero vê o Amor e a Justiça para lá da morte; só que, para o
cristianismo essa redenção é operada não apenas pela força e boa vontade do homem,
mas também, e sobretudo, pelos méritos de Cristo crucificado, e, para Antero, é a
evolução necessária e fatal da humanidade (o evoluir da Ideia idealista-racionalista)
em direção a esse ideal de Justiça e Amor, pressupondo sempre a luta e a morte dos
heróis.

Outro sinal de romantismo é o tema da Noite. Se a Morte surge em Antero ao


estabelecer a relação horizontal «eu»/mundo, a Noite aparece sempre que o poeta
estabelece a relação vertical «eu»/Deus («eu» e as «coisas tenebrosas»). «Nessa
situação, a Noite é sem dúvida o principal topos catalisador da relação. A função deste
elemento na obra de Antero inscreve-se dentro do mais puro espírito romântico. A
Noite é, acima de tudo, a presença do Além (e, portanto, a possível formalização do
espaço que as «coisas tenebrosas» ocupam) no aqui do «eu» que interroga. Não
possuindo nem forma, nem espaço, nem tempo - «Noite sem termo, Noite do não Ser»
- ela é a melhor maneira de designar o espaço das coisas sagradas (o inominável) face
ao mundo das coisas naturais. A Noite é a própria sacralização do divino.» A autora
que estamos citando, apoiando-se nos dois versos seguintes de Antero, estrutural e
semanticamente análogos, «Noite, irmã da Razão» e «irmã da Morte» (in Lacrimae
Rerum) e «Razão, irmã do Amor e da Justiça» (in Hino à Razão), esquematiza, assim, a
problemática fundamental em que o «eu» lírico se debate:

Antero de Quental, poeta filósofo?


Não há, a nosso ver, razão para responder afirmativamente a esta pergunta. Com
efeito, o poeta só indiretamente conheceu a teoria de Hegel que explica a evolução
histórica segundo a tese, antítese e síntese, não chegando a assimilá-la com perfeição.
As Odes Modernas revelam-nos, no entanto, a grande paixão com que o poeta abraçou
e cantou os ideais oriundos da filosofia de Hegel, da evolução histórica defendida por
Michelet, da teorias socialistas exaltadas por Proudhon. O tom revolucionário de
grande parte dos poemas das Odes tem origem nessa sua paixão e orienta-se à
transformação radical da tradição portuguesa.
Há em Antero um revolucionário e um místico. E ele próprio que o confessa: «Penso
como Proudhon e Michelet, como os ativos; sinto, imagino e sou como autor da
Imitação de Cristo».
Por tudo isto e por muito mais que da sua vida e obra podemos deduzir, impõe-se-nos
esta conclusão: a poesia de Antero é essencialmente romântica e o seu «eu» lírico, um
herói romântico.
António Afonso Borregana, Antero de Quental. O Texto Em Análise - Ensino Secundário, Lisboa, Texto
Editora, 1998
EVOLUÇÃO IDEOLÓGICA DA POESIA DE ANTERO DE QUENTAL
Ao longo da sua vida, o posicionamento ideológico do autor sofre transformações.
Costuma assinalar-se diacronicamente a evolução da sua ideologia do modo seguinte:

Abandono do catolicismo /Dúvida e incerteza


A crença no catolicismo é completamente abalada nos primeiros anos da vida
universitária. Cai, assim, num estado de dúvida e incerteza que o faz sentir uma
angustiante aspiração pelo Absoluto.
Socialismo utópico
Se o hegelianismo explica a origem e a realidade do Universo em Evolução, não
resolveu o problema do homem na terra, por isso surge a questão «Para que nos
criastes?». Antero vai agora à procura do sentido prático da vida que lhe será indicado
por Michelet e Proudhon.
Apostolado social
Antero lançou-se na ação social e labutou afincadamente pela implantação de uma
ordem na sociedade portuguesa. O seu socialismo nada teve de revolucionário ou de
anárquico. O bem-estar social devia provir não de uma revolta armada mas da
evolução pacífica, baseada na moralidade, na instrução e na autopromoção da classe
trabalhadora.
Pessimismo e budismo
Gorada a ação social, vitimado pela doença e outras contrariedades, encheu-se-Ihe a
alma de pessimismo, sob influência de Schopenhauer para quem tudo no mundo é
impulso (vontade) que, ao agir, só encontra obstáculos. Assim, na terra, tudo é
obstáculos, tudo é dor.
Antero convenceu-se de que o Universo era um sofrimento sem finalidade e que tudo
caminhava inevitavelmente para o nada. Só a consciência não fazia esse percurso
porque devia esforçar-se para atingir o Nirvana, onde havia um repouso completo, o
impulso não depararia com obstáculos e vigoraria o desejo do não-ser, combate o
catolicismo e o protestantismo, propondo uma religião que seria uma síntese de
panteísmo hindu e de maometismo judeo-cristão.

Dossier Exame - Português A, 12º ano,


Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003
LINHAS TEMÁTICAS DOS SONETOS DE ANTERO DE QUENTAL

A expressão do lirismo amoroso


O "filho abandonado" jamais poderá restabelecer o equilíbrio afetivo perdido tão
prematuramente. Por causa da polarização negativa da mãe, afastar-se-á não só das
mulheres, mas também do próprio corpo e dos seus aspetos sensuais. Passada a época
dos amores juvenis, a sexualidade de Antero é separada da vida e dos sentimentos
poéticos. […]
Segundo J. Bruno Carreiro, há a mencionar quatro ou cinco mulheres na vida do poeta.
Aquela que é designada nos Sonetos como "M. C.", "Beatrice", mulher casada, vivendo
nos arredores de Coimbra e cuja morte parece ter fortemente abalado Antero; Peppa,
amor fugaz, uma andaluza; Maria, jovem de quinze anos, que nos Sonetos é nomeada
"Pequenina", que foi identificada como sendo uma senhora ainda aparentada com a
família de Antero e residindo em Tomar: casou com um médico, amigo de Antero, em
1868; finalmente, uma aristocrata francesa, que conheceu em 1877 na casa de saúde
de Bellevue e por quem se apaixonou violentamente, segundo testemunhos dos seus
contemporâneos. Destas mulheres, uma das primeiras foi ceifada pela morte; e as
outras ou eram casadas ou estavam votadas a estabelecer em breve um lar. Antero,
solitário e desligado de qualquer ocupação, não concebe o casamento ou a família
como alternativa para si próprio.
Pedro Luzez, Colóquio Letras, nº 123/124

Sabendo que Eros é "uma virtude atrativa que leva as coisas a se juntarem, criando
vida", o poeta, para negar essa mesma vida, vai-se cercar de todos os mecanismos de
defesa que o possam ajudar a evitar Eros. Para não ir muito longe, observarei apenas a
relação homem-mulher, na qual a interdição erótica é de uma evidência inegável:

a) quando constrói toda uma linha metafórica que corta qualquer


possibilidade de produzir vida, porquanto a mulher será sempre
"virgem", "anjo", “criança”, “pomba”, que vive "numa alcova" onde
ele faz questão absoluta de não entrar;
b) quando reforça alinha metafórica disseminada, trabalhando um
contraste de paradigmas cuja funcionalidade também é inegável. De um
lado, Sulamita e Beatrice, representando a castidade; de outro, Vénus,
Circe e Amazona, representando a atração voluptuosa, os feitiços
perigosos e as ambiguidades perturbadoras.

Dulce M. Viana Mindlin, Colóquio Letras, nº 123/124

A expressão do apostolado social


Este livro é uma tentativa, em muitos pontos imperfeita, seguramente, mas sempre
sincera, para dar à poesia contemporânea a cor moral, a feição espiritual da sociedade
moderna, fazendo-a assim corresponder à alta missão que foi sempre a da Poesia em
todos os tempos, isto é, a forma mais pura daquelas partes soberanas da alma coletiva
de uma época, a crença e a aspiração. Partindo deste princípio, a Poesia é a confissão
sincera do pensamento mais íntimo de uma idade - o autor, na retidão imparcial da
sua lógica, havia de necessariamente concluir com esta outra afirmação - a Poesia
moderna é a voz da Revolução - porque Revolução é o nome que o sacerdote da
história, o tempo, deixou cair sobre a fronte fatídica do nosso século... A poesia que
quiser corresponder ao sentir mais fundo do seu tempo hoje, tem forçosamente de ser
uma poesia revolucionária. Que importa que a palavra não pareça poética, às vestais
literárias do culto da "arte pela arte"? No ruído espantoso do desabar dos Impérios e
das Religiões há ainda uma harmonia grave e profunda para quem a escutar com a
alma penetrada do terror santo deste mistério que é o destino das Sociedades!"

Antero de Quental, Odes Modernas


O Povo há de inda um dia entrar dentro do Templo,
E há de essa rude mão erguer sobre o altar; [...]

O Povo há de fazer-se, então, bispo e levita;


E será missa nova a missa que disser: […]

O Evangelho novo é a bíblia da Igualdade:


Justiça, é esse o tema imenso do sermão:
A missa nova, essa é a missa da Liberdade:
E órgão acompanhar... a voz da Revolução!

Antero de Quental, Odes Modernas

A expressão do pessimismo e da angústia


Isto, porque não estou em estado de nada dizer de pensado e que mereça ler-se,
porque tenho passado mal de corpo e de espírito o suficiente para não prestar para
nada há dois meses. De corpo, com os meus desarranjos nervosos, insónias, de
espírito, atacado por um daqueles períodos de abatimento e indiferença de budista
que são próprios do meu temperamento. Já vê que pouco tenho aproveitado para o
meu livro: algumas leituras distraídas, nada mais. Sinto o desejo do Nirvana, se não
como um grande contemplativo, pelo menos como um doente. A doença, dum modo
ou de outro, é o meu estado normal. Há organizações assim. Tenho um horror
instintivo, e como que inato, a todas as ideias que representam a atividade da vida,
como plenitude, felicidade, esperança, e outras deste teor. Não ando senão por
intermitências, e aos empurrões. Para tudo dizer numa palavra, nasci monge. Entenda,
para seu governo, que não pode contar comigo senão por acidente. Sou, ou posso ser,
um auxiliar: soldado ativo, não. A minha cabeça conserva-se lúcida, mas o resto
insurge-se: ora o resto, em toda a gente, é alguma coisa: em mim, é muitíssimo, é
tanto que não lhe posso resistir e deixo-me ir levado. Isto é deplorável, dirá você. Mas
é assim, respondo-lho eu. Fatum. Penso como Proudhon, Michelet, como os ativos:
sinto, imagino e sou como o autor da Immitatio Christi. Você é forte porque tudo o
puxa no mesmo sentido. Não se orgulhe da sua força, porque é um fenómeno de
temperamento, como a fraqueza doutros. Em ambos, perfeita irresponsabilidade.
Simplesmente, uma é boa, outra é má.

Como que eu ande, se sou ao mesmo tempo solicitado, com intensidade igual, em dois
sentidos contrários? Pensa que renego as nossas grandes verdades, filosóficas e
morais? Engana-se. Vejo-as tão bem como nunca. Simplesmente, vejo-as: nada mais.
Ora a gente não é segundo o que vê, somente, mas ao mesmo tempo segundo o que
sente, segundo a direção para que vai por uma tendência que é a expressão exata do
eu de cada qual. Percebe esta trapalhada? Creio que é imoralíssima. Em todo o caso,
moral ou imoral, é isto o que se dá em mim: ora, segundo Hegel, tout ce qui est, est
raisonnable. Seja como for, o que é certo é que, neste momento, estou atacado da
náusea da realidade. Não sei quanto tempo durará o ataque. Não é o primeiro: é uma
das minhas alternativas, conforme predomina um ou outro dos dois fatores da minha
vida mora.

Antero de Quental, Carta a Oliveira Martins (12 de Janeiro de 1872)

A reação ao pessimismo
Passaram anos em que não vi Antero, instalado então em Vila do Conde. Sabia que o
meu amigo estava quase são, quase sereno. Mas foi uma preciosa surpresa, quando,
ao fim dessa separação, chegando ao Porto e correndo com Oliveira Martins a Vila do
Conde, avistei na estação um Antero gordo, róseo, reflorido, com as lapelas do casaco
de alpaca atiradas para trás galhardamente, e meneando na mão a grossa bengala da
Índia que em Lisboa eu lhe dera para amparar a tristeza e a fadiga. Era uma regressão,
quase o antigo Antero coimbrão, mais amadurecido, mais doce: - apenas, no lugar da
fulva grenha flamejante e romântica, alvejava um sereno começo de calva socrática.
Era sobretudo uma restauração moral, à velha maneira de Lázaro uma miraculosa
saída do túmulo pessimista e das sombras da negação. Findara a luta implacável, o seu
grande coração, enfim, descansava em paz!
Como chegara Antero a esse repouso apetecido? Escutando com uma atenção mais
grave, mais crente, aquela voz da Consciência, que tanto tempo desconhecera, e que
apesar de todos os desenganos e sempre em segredo protesta e afirma o Bem.
Fora atendendo reverentemente essa doce voz; e conseguindo, por um desesperado
esforço do pensamento, penetrar a sua significação; e refazendo, guiado por ela, a sua
educação filosófica; e procurando depois a sua confirmação na história, nas doutrinas
dos moralistas, nas confissões dos místicos, que ele chegara a descobrir, a
compreender bem o fim último e verdadeiro de tudo, não só do homem moral, mas de
toda a Natureza, mesmo na sua modalidade física. E essa descoberta é de inefável
beleza e contentamento - pois que o fim de tudo é o Bem! O Universo tem por fim o
supremo Bem - o Bem é o momento final e augusto de toda a evolução do Universo.
Possuía, pois, Antero, enfim, a "sua filosofia ", essa filosofia que ele tantos anos
perseguira como deusa esquiva entre selvas duvidosas. […] E a lei moral dessa filosofia
[…] consistia em renunciar a tudo quanto limita e escraviza o espírito - egoísmo,
paixões, vaidades, ambições, contingências, materialidades do mundo, - e em procurar
a união do espírito, assim libertado e limpo de todo o pesado lodo terreno, com o seu
tipo de perfeição que usualmente se chama "Deus".

Eça de Queirós, "Um Génio Que Era Um Santo", em Notas Contemporâneas, pp. 273-274, Edição "Livros
do Brasil "

A superação do pessimismo: o refúgio na Morte


Quanto aos Sonetos, que publiquei na Revista, devo dizer-te que os escrevi sem a
menor tristeza ou desalento, antes com paz íntima e profunda confiança. Se a doença
foi ocasião de refletir com mais madureza no símbolo misterioso que é a Morte, é isso
muito natural, porque em tal estado a Morte apresenta-se ao nosso pensamento com
mais insistência ou mais autoridade: mas dessas reflexões concluí coisas que nada têm
de tristes, antes são muito confortativas, uma espécie de Filosofia idealista da Morte, e
foi isso o que eu quis exprimir naquela composição, mostrando como o pensamento se
eleva gradualmente desde uma impressão toda negativa até à mais alta idealidade,
compreensiva e plácida. Fui pois teólogo e não romântico - pelo menos, tal foi a minha
intenção.

Antero de Quental, Carta a António de Azevedo Castelo Branco (Março/Abril de 1875)


Durante muito tempo, a ideia da morte passou despercebida para o meu espírito.
Lembra-me de que, quando era rapaz, […] evitava sistematicamente pensar na morte,
porque, dizia eu, como era coisa que nunca tinha experimentado não podia ter ideia
dela.
A ideia da Morte é a base da vida moral. Os seres que a não têm não são morais - […]
Se o homem fosse imortal estaria exatamente no mesmo caso, por muito que a sua
razão progredisse. Porquê? Porque, sendo imortal, adorava-se, considerava-se
absoluto. Mas a consciência da sua finitude é que lhe faz sentir que o eu pessoal,
sendo nada, não é para esse que deve viver mas para algo que é eterno […].
Mas a Morte tem uma razão metafísica; por conseguinte, é necessária. Os seres são
necessariamente relativos, limitados e imperfeitos, por isso é que são seres reais, visto
que a realidade exclui o absoluto e a perfeição: absoluto e perfeição não se podem
conceber senão como tipo ideal e não como atualidade e realidade. […] A Morte não é
mais do que a manifestação física dessa necessidade metafísica.

Antero de Quental, Filosofia (excertos citados por Manuel Tavares e Mário Ferro em O Pensamento de
Antero de Quental, p. 125, Editorial Presença, 1995)

A superação do pessimismo: o refúgio em Deus


Havemos de convir em que os mitos, as lendas, os símbolos, os sonhos do velho Credo,
envolvem em si um sentir humano, um elemento psicológico, uma expressão moral
que falta em grande medida, senão totalmente, aos nossos naturalismos,
determinismos, positivismos e outros. Pois, se não faltasse, como resistiria ainda o
velho Credo? Todo o seu segredo, o segredo da sua ainda fortíssima atração e da
espécie de cega obstinação com que tantos e tantos seguem em despeito das
evidências contrárias, esse segredo está nisso, nesse poder de falar ao coração e à
imaginação e, por aí, comunicar uma eficácia e uma segurança incomparáveis para a
ação. Esse poder, confessemo-lo, não o temos nós ainda.
O homem, minha nobre Amiga, esse famoso "animal racional ", aquilo de que
justamente tem menos é de racional, e enquanto se lhe falar só à inteligência
consegue-se pouco dele. Veremos se uma filosofia mais profunda, que está incubando
e apenas por ora se denuncia por certos sintomas esporádicos, é capaz de descobrir o
caminho secreto das suas simpatias e da sua confiança.
O Transcendentalismo tem de ser restaurado, de um feitio ou de outro. Só ele pode
satisfazer, ou, pelo menos, iludir e entreter as desmedidas aspirações, as ambições e
esperanças incorrigíveis do coração humano. Sem isso, receio que, apesar de toda a
ciência que já há, e da muita que se há de ir ainda produzindo e acumulando (coisa
aliás excelente e até indispensável), o bípede singular que inventou Deus e pôs a
virtude, que se não vê nem palpa, acima de todos os bens visíveis e palpáveis deste
mundo, o bípede capaz destes sublimes paradoxos não tenha outra alternativa, para
não cair numa soez mediocridade, senão a de uma maldade diabólica.

Antero de Quental, Carta a Maria Amália de Carvalho (23 de Fevereiro de 1889)

PARA UMA SÍNTESE DAS LINHAS TEMÁTICAS DOS SONETOS DE ANTERO DE QUENTAL

Interessa ter em conta as linhas temáticas dos sonetos de Antero que, em Dimensão
Literária, Português A-12º ano, são quatro:
1. A expressão do amor: o amor espiritual
Nestes, Antero canta os seus amores, espiritualizados, à semelhança de Petrarca. Há
nestes poemas a adoração abnegada do Eterno Feminino.
Os textos poéticos «Abnegação», «Ideal», «Idílio» inscrevem-se nesta linha temática.

2. As preocupações sociais, as ideias revolucionárias


A degeneração da burguesia num capitalismo de especulação que nada produzia faz
com que Antero apele para a Justiça, o Pensamento, a Ideia (que será a luz do mundo),
a revolta e a luta (até tudo estar no seu lugar), o trabalho (de que alguma coisa ficará),
o Cristo (avô da plebe), a liberdade (sob o império da Razão).
Sob esta égide encontram-se os sonetos «A um poeta», «Evolução», «Hino à Razão»,
«Tese e Antítese», «A Ideia» e muitos outros.
3. O pessimismo e a evasão
O pessimismo manifesta-se em 1874 e desenvolve-se desde 1876 a 1882; extingue-se
nos anos imediatos e em 1886 deixava o poeta, sem nostalgia, numa região espiritual
já percorrida.
Nos sonetos deste ciclo vê-se a dor em todo o lado e ouve-se continuamente dizer que
é preferível o «não ser» ao «ser como é».
Veem-se já influências do budismo.
É o pessimismo que leva Antero a evadir-se, a fugir para além de tudo o que existe e o
faz sofrer. Procura refugiar-se num mundo indefinido, longínquo e vago, na ação
material, absorvente e enérgica, num sono no colo da mãe, no desprendimento do
sensível, na aspiração a um Deus clemente, que o leve para o Céu.
Estes conteúdos são visíveis nas composições poéticas «O Palácio da Ventura», «Mãe»,
«Despondency», «Nox».

4. A metafísica, Deus e a morte


A leitura de Proudhon e Hegel, o falecimento de pessoas queridas e a sua enfermidade
levaram-no a meditar na morte, que é considerada sob vários aspetos: morte -
liberdade; morte - fim de todos os sofrimentos; morte - irmã do amor e da verdade;
morte - consoladora das tribulações; morte - berço onde se pode dormir; morte - paz
santa e inefável.
Reportados a esta quarta linha temática encontram-se, por exemplo, os sonetos «A
um crucifixo», «Na mão de Deus», «À Virgem Santíssima», «Solemnia Verba».

Dossier Exame - Português A, 12º ano,


Maria José Peixoto, Célia Fonseca, Edições ASA, 2003
TEMÁTICA, ESTILO E LINGUAGEM DA POESIA DE ANTERO DE QUENTAL

 Amor (retrato da mulher anjo como reflexo da "divina formosura",


característica dos românticos, lirismo de êxtase);
 Sonho (transfiguração do ambiente circundante, tendência para a evasão
através do sonho);
 Morte (presença da noite, debilidade espiritual, a dor de Ser, solidão,
ceticismo);
 Tédio (inquietações metafísicas, introversão);
 Sentimento/Razão (um sentimento de contraste e consciência da limitação de
todas as coisas, perspetiva filosófica da vida e do mundo, anseio de renovação
moral e social);
 Grandes ideais (Liberdade, Justiça, Amor, Bem, poesia de combate);
 Religiosidade (busca de um Deus diferente);
 Tom arrebatado e solene;
 Grande expressividade semântica e morfológica (verbos, adjetivos, advérbios,
conjunções adversativas e copulativas);
 Uso de determinados recursos estilísticos como forma de expressão dos seus
estados de espírito (vocativo, reticências, interrogações);
 Alegorias (Ideia, Razão, Noite, Morte);
 Forma dialogada em alguns poemas.

Cecília Sucena e Dalila Chumbinho, Sebenta de Português: Antero de Quental – introdução ao estudo da
obra, Estoril, Edição da papelaria Bonanza, [Edição: 2006]

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