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Fernando Pessoa – Heteronímia

Através dos heterónimos, Pessoa descobriu-se e conheceu-se; fingindo-se, foi sincero; pelas
“máscaras” se construiu e revelou.
Os diferentes heterónimos podem ser entendidos como expressão viva da arte poética.
Cada um corresponde a um fingimento artístico, à corporização de possibilidades de existência,
à criação de hipóteses de (ir)realizáveis de ser, de sentir e de viver. Por outro lado, desenvolve-
se em cada um uma reflexão existencial que é tanto a de cada um como a do criador que a
todos deu vida.
Segundo Pessoa, a origem dos seus heterónimos deriva do seu lado histérico, o qual assume
aspetos mentais que o levam ao silêncio e à poesia.

Alberto Caeiro Ricardo Reis Álvaro de Campos


“poeta bucólico” “poeta clássico”
Nascimento 1889, Lisboa (morreu 1887, Porto
em 1915 com
tuberculose)
Formação e Instrução primária Universitária
profissão Sem profissão Médico no Brasil
Características Estatura média, não Mais baixo, mais forte
físicas parecia tão frágil como do que Caeiro, mas
era; cara rapada; louro seco; cara rapada; um
sem cor, olhos azuis. vago moreno mate
Contexto de Surgiu “por pura e “depois de uma
escrita inesperada inspiração” deliberação abstrata,
heteronímica que subitamente se
concretiza numa ode”
Características Poeta simples que vive Escreve “melhor do que
estilísticas de um modo rústico, eu, mas com um
em pleno contacto com purismo que considero
a Natureza. exagerado”

O fingimento artístico: Alberto Caeiro, o poeta “bucólico”

Este heterónimo é considerado o Mestre dos outros, incluindo do ortónimo. É um poeta


bucólico, pois baseia-se na representação idealizada da vida pastoril, no ideal da simplicidade e
da inocência da vida campestre. Poeta da Natureza, Caeiro apresenta-se como um ser
deambulante, colhendo na realidade natural as suas sensações, matéria da sua poesia.
O poeta não passa pela Natureza, integra-se nela, assume-se como um elemento seu,
proclama-se o seu descobridor porque a ama e a compreende. Esta crença na Natureza faz de
Caeiro um poeta pagão, existindo uma visão panteísta: recusando qualquer tipo de misticismo
ou de metafísica, atribui à Natureza um caráter divino. Mestre sensacionista, Caeiro ensina a
amar a Natureza, a viver segundo os seus ritmos, o que possibilita a relação serena consigo
mesmo e com o mundo. Assim, Caeiro é um homem natural, inocente e feliz, seguro da sua
verdade, aprendida instintivamente na Natureza: a realidade é variada e bela, as coisas são o
que são, não existindo nelas nenhum mistério.

▪ Deambulação e contemplação da Natureza.


▪ Integração, comunhão e harmonia com os elementos naturais e afastamento social.
▪ Simplicidade e felicidade primordiais.
▪ Bucolismo como máscara poética.
▪ Vivencia tranquila no tempo presente.
▪ Ser parte da harmonia universal da Natureza.
▪ Abolir o pensamento.
▪ Viver tranquila e alegremente no seio da mãe Terra.
▪ Criação artística:
o Negar a intelectualização das emoções;
o Libertar-se da excessiva introspeção, da dor de pensar.

No poema «O Guardador de Rebanhos», Caeiro apresenta-se como «um pastor», usando


essa máscara poética pela semelhança existente entre ambos: um e outro deambulam; um e
outro vivem em comunhão com a Natureza; um e outro observam o ambiente que os rodeia.
Caeiro vive em plena sintonia com os elementos da Natureza, sendo para ele essencial a
ausência de pessoas para a criação do ambiente de paz.

Reflexão existencial: Alberto Caeiro, o primado das sensações

Caeiro recusa o pensamento e a validade de qualquer tipo de questionamento do «eu» e


do mundo. A sua poesia segue os princípios do Sensacionismo e centra-se na realidade objetiva,
defendendo que as coisas existem concretamente e não possuem um «dentro». Deste modo, o
conhecimento da realidade só é possível através dos sentidos, pois sentir o mundo é
compreendê-lo e pensá-lo seria desvirtuá-lo e não o compreender.
Há uma aprendizagem construída pela apreensão sensorial, sem interferência da
compreensão intelectual. Caeiro ensina a viver pelas sensações, rejeita a introspeção e a
subjetividade. A vivência pelas sensações, com predomínio das visuais, possibilita a fruição total
do presente. Assim, Caeiro rejeita a angústia perante a passagem do tempo, pois vive apenas
no presente.

Os sentidos (o tato, a visão, a audição, o paladar, o olfato) e as sensações opõem-se ao


conhecimento intelectual. «Em Caeiro, imagina-se o encontro e a descoberta da “eterna
novidade do mundo”, numa atitude de “pasmo essencial”, num presente absoluto, no fundo
num tempo sem tempo que é o da visão “originária”: a visão em que se vê tudo sempre da
primeira vez, em que não há reencontros, mas encontros sempre novos e puros.»
As perceções sensoriais assumem um papel crucial, pois a realidade é percecionada pelo
sujeito poético através dos cinco sentidos, tomando, dessa forma, conhecimento do mundo que
o rodeia.

▪ Sensacionismo: a sensação sobrepõe-se ao pensamento;


▪ Observação objetiva da realidade;
▪ Rejeição do pensamento abstrato e da intelectualização;
▪ “Filosofia” da antifilosofia.

O Guardador de Rebanhos – I

No poema I, Caeiro apresenta-se como «um pastor», usando essa máscara poética pela
semelhança existente entre ambos: ambos deambulam e vivem em comunhão com a Natureza,
observando o ambiente que os rodeia. É o poeta da natureza, de olhos ingénuos sempre abertos
para as coisas. De pastor, tem o deambulismo, o andar constantemente e sem rumo
definido, observando o que o rodeia, a variedade inesgotável da natureza, concentrado numa
única atividade: o olhar. A sua contemplação da natureza, da beleza primordial, faz com que o
«eu» sinta a realidade como se a vivesse intensamente, de acordo com um modo de vida similar
ao de um pastor, que contempla, além da proximidade e intimidade.
O pastor é o símbolo da solidão do pensamento contemplativo: é o homem que está
sozinho na natureza e que ocupa os seus dias vagueando com o seu rebanho, sem a perturbar,
alimentando-se do que ela dá, «vislumbrando os seus segredos no silêncio». Daí que o «eu» se
considere um pastor, visto que incorpora em si as qualidades de um pastor, mas não é limitado
pela vida que um pastor leva. Ou seja, ele serve-se da "arte do pastor para atingir o estado
contemplativo, como um budista se serviria da meditação". A consequência imediata de o
sujeito poético possuir uma alma assim é ter acesso a «toda a paz» que a natureza sem gente
proporciona - ela vai «sentar-se» a seu lado. Caeiro apresenta-se, assim, em suma, como
um poeta metáfora e como o poeta da natureza e do olhar.

O sujeito poético integra-se com a Natureza, vivendo em comunhão e harmonia com a


mesma. Pelo contrário, verifica-se a tendência para o afastamento social. Caeiro vive em plena
sintonia com os elementos da Natureza, sendo para ele essencial a ausência de pessoas para a
criação do ambiente de paz. Identifica-se com a natureza na medida em que anda ao ritmo das
estações e compara os seus estados de espírito com os momentos da natureza.

Caeiro é o poeta do olhar, o sensacionista para quem a visão é o sentido primordial. O verso
“Mas a minha tristeza é sossego” mostra como Caeiro troca tudo o resto, a vontade própria, a
personalidade, por uma forma superior de existência, feita só de sensações e em comunhão
com a natureza. Caeiro apresenta-se como o anti metafísico, negando a utilidade ou o valor do
pensamento. De facto, o pensamento é entendido como algo negativo, pois, se não pensasse,
os seus versos não teriam nada de tristeza, seriam apenas «alegres e contentes».
Alberto Caeiro afirma-se um poeta que exprime o desejo de abolir a consciência, isto é, o
vício de pensar, lamentando o fato de ter consciência dos seus pensamentos. Na segunda
estrofe, o sujeito poético defende que a recusa do ato de pensar é a via para alcançar a paz e a
felicidade. Quando afirma “pena de saber que” os seus “pensamentos são contentes”, o sujeito
refere-se ao conhecimento que lhe é trazido através do ato de pensar. A tristeza advém-lhe da
consciência de saber, pois “Se não o soubesse” seria completamente feliz. Alberto Caeiro nega
o valor do pensamento na última estrofe, pois este é negativo – “Pensar incomoda como andar
à chuva”

Genericamente, a comparação é o recurso estilístico de que Caeiro se socorre para exprimir


a concretização do abstrato, para aproximar o imaginário do real, tornando-o simples e
acessível.
A tentativa mais radical de Pessoa de fugir à dor de pensar foi a de transferir a sua alma
para um poeta bucólico que olha e sente o mundo com a simplicidade com que uma criança
olha uma flor. Porém, nem assim o poeta conseguiu libertar-se do pensamento, que se insinua
e acaba por enevoar a simples alegria de ver (v. 21-22).

O sujeito poético saúda, ironicamente, todos os que o leem, de forma gentil e humilde,
como homem do campo e da natureza, esperando que não lhe peçam mais do que a gentileza
firme de uma saudação passageira. Ele deseja não o conhecimento, mas a chuva quando é
precisa, senão o sol. Saúda-os, sugerindo-lhes tudo quanto é simples e objetivo, pacífico e
suave, ingénuo e natural – o sol, a chuva, a casa, a janela aberta, a cadeira predileta, a árvore
antiga, a criança despreocupada. O «eu» deseja uma cadeira, para que se sentem a ler os seus
versos e se lembrem os seus leitores da simplicidade que advoga. O seu maior desejo, porém,
consiste em que, ao lerem-no, o pensem como algo natural, como uma árvore antiga que
conheceram crianças a brincar.
Quanto a si, deseja fazer-se passar por «qualquer coisa natural», alheia ao ato de pensar.
Ele quer assumir-se natureza, libertar-se das cadeias e desejos humanos e existir de outras
maneiras. Assim, "o homem dilui-se na tristeza e perde a sua identidade para assumir uma
existência pacífica com a natureza que pretende tomar como sua. Caeiro quer perder-se para
se encontrar".

De seguida, o sujeito poético confessa-se sem ambições nem desejos - despindo-se da


vontade própria -, nem sequer de ser poeta, que constitui «a minha maneira de estar sozinho».
Estar sozinho é estar sozinho com as suas ideias, num estado contemplativo, de autorreflexão.
Ser poeta é uma necessidade para atingir a paz. O único desejo que lhe resta, ainda que residual,
é um desejo infantil. Ora, o cordeiro é o símbolo do ser pacífico, natural, ingénuo, desprovido
de pensamento, e da ligação à natureza. Ou então, antropomorfizando a natureza, deseja ser o
rebanho todo, para melhor fruir a felicidade e ultrapassar a tristeza que ocasionalmente o
assalta, representada simbolicamente pelo pôr do sol, pela nuvem que «passa a mão por cima
da luz», pelo silêncio que «corre (...) pela erva fora». ".

Encontramos aqui as razões que estiveram na génese de Caeiro: a tentativa de superação,


pelo recurso ao bucolismo e à ingenuidade, da infelicidade e tristeza que o dominam (a Pessoa).

O Guardador de Rebanhos – II

“O meu olhar é nítido como um girassol” significa que tal como o girassol gira em direção ao
sol, o poeta também olha em seu redor e vê-o na sua totalidade. O sujeito vê a realidade à luz
do sol, com toda a nitidez que essa luz lhe propicia. Apreende objetivamente a realidade, não
olhando de maneira superficial para os elementos da Natureza.
“Tenho o costume de andar pelas estradas / Olhando para a direita e para a esquerda, / E
de vez em quando olhando para trás...”. O poeta olha em seu redor, raramente olhando para
trás. Não olha para trás, pois o que vem antes, ou seja, o passado, obriga-o a pensar sobre o
passado e não a vê-lo como ele é. O poeta opta por usar apenas os sentidos ao invés de
intelectualizar sobre aquilo que vê. Observa a realidade, atento à diversidade que o rodeia,
descobrindo novas coisas a cada olhar. Assim, a visão constitui o sentido primordial que o
permite conhecer o mundo.

O verso 9 apresenta-nos uma nova comparação, desta vez com uma criança, um símbolo
recorrente em Caeiro, pela inocência e ingenuidade que lhe estão associadas. Neste caso
específico, a comparação é estabelecida com uma criança "ao nascer", o que remete para um
ser não contaminado, constantemente surpreendido pelos estímulos da realidade que lhe
chegam através dos sentidos e que provocam o seu espanto ("pasmo essencial" ), resultante do
que o rodeia, novo para quem acabou de nascer. De modo semelhante, o sujeito poético sente-
se como a criança recém-nascida, que vê com uma inocência primordial, isto é, vê tudo como
se visse pela primeira vez, espantado perante "a eterna novidade do Mundo".

À semelhança do que sucede na primeira estrofe, a segunda abre com nova comparação,
que é uma forma de objetivação, concretização, através dos sentidos, de uma realidade
eminentemente abstrata dado que reside apenas no pensamento. No entanto, este versos
confirmam-nos que, apesar do seu esforço para afirmar o contrário, o sujeito poético ainda
pensa e não vê apenas. Dito de outra forma, ele apresenta uma teoria à qual falta uma prática
efetiva e continuada, confirmada por uma espécie de «insistência doentia» nas explicações dos
seus atos. Repare-se como ele começa por fazer uma constatação ("Creio no Mundo"), para de
seguida se justificar: "Porque o vejo. Mas não penso nele (...)". Se estivesse convicto das suas
afirmações, não necessitaria do raciocínio justificativo. Ainda assim, prossegue a sua afirmação
da supremacia do olhar sobre o pensamento: "Porque pensar é não compreender..."; "(Pensar
é estar doente dos olhos)". Este último verso é uma confirmação da negação do pensamento,
da metafísica, pois não devemos procurar ou atribuir significados ao mundo, devemos antes
deixar-nos guiar pelos sentidos, pelas sensações puras, aceitando pacificamente as coisas tais
quais elas são.

A terceira estrofe abre com uma afirmação categórica: "Eu não tenho filosofia: tenho
sentidos...". Esta afirmação clarifica a sua veia antifilosofia, evidenciando a recusa da metafísica,
do pensamento abstrato, defendendo em alternativa o primado dos sentidos. Os restantes
versos acabam por comprovar / aprofundar esta ideia, ao aclararem o tipo de relação que o
«eu» estabelece com a natureza, uma relação de amor. E é uma relação de amor porque no
amor não há perguntas, não há certezas acerca do «objeto» amado, não há «razões» que
justifiquem o «amor por», nem sequer uma definição do que é amar. Deste ato amoroso, está
ausente o pensamento, a racionalidade; o sujeito aceita apenas as coisas tais como são. Há,
portanto, uma tentativa de equiparação do amor ao seu desejo de inconsciência, de não pensar.

A última estrofe é constituída por um dístico silogístico: se "amar é a eterna inocência" e


se "a única inocência é não pensar", então "amar" é "não pensar". Neste sentido, não pensar é
uma espécie de amor sem objeto, um amor ideal. É um amor pela Natureza, um amor natural e
sinónimo de aceitação incondicional, sem questionação. No fundo, estamos perante a
necessidade humana de amor, de carinho, mesmo que unicamente no seio da Natureza.

Importância das sensações na poesia de Caeiro

Alberto Caeiro, o "Mestre", assume-se como o poeta das sensações. Ele próprio diz "Eu não
tenho filosofia: tenho sentidos...". Esta filosofia está expressa, essencialmente, no conjunto de
poemas intitulado "O Guardador de Rebanhos", onde se apresenta como um simples "pastor
dos seus pensamentos que são todos sensações".
E, nesta busca de sensações, opõe-se radicalmente a Fernando Pessoa ortónimo. Caeiro
compõe os seus poemas apenas a partir das sensações, negando mesmo a utilidade do
pensamento, enquanto que em Pessoa se passa precisamente o contrário, havendo uma
intelectualização do sentir: "O poeta é um fingidor" ("Autopsicografia").

Para Caeiro, "pensar é estar doente dos olhos", a sensação é a única realidade, logo há que
substituir o pensamento pela sensação. Ver é conhecer e compreender o mundo, por isso pensa
vendo e ouvindo. Os seus poemas são, por isso, a descrição da realidade tal como a entende
através dos sentidos, em especial da visão e da audição.
É, pois, um sensacionista a quem só interessa o que capta pelas sensações. Para Caeiro, o
que importa é ver de forma objetiva e natural a realidade, com a qual contacta a todo o
momento: "Para além da realidade imediata não há nada".

As sensações são, portanto, o suporte desta poesia livre, inovadora, próxima da prosa e do
falar quotidiano e fazem de Caeiro um verdadeiro "Mestre" e o "Poeta da Natureza". É o mestre
porque, ao contrário dos demais heterónimos e do ortónimo, consegue submeter o pensar ao
sentir, o que lhe permite viver sem dor, envelhecer sem angústia e morrer sem desespero. Ele
não procura encontrar um sentido para a vida e para as coisas que o rodeiam; sente sem pensar,
o que faz dele um ser uno, não fragmentado, e da sua poesia algo simples e claro que transmite
calma e serenidade.
Linguagem, estilo e estrutura:

Alberto Caeiro tenta transmitir, através das suas palavras, a inocência e a pureza da sua
visão. Daí, algumas vezes, a simplicidade quase infantil do estilo.
▪ Linguagem simples, familiar, objetiva, prosaica e oralizante;
▪ Presença de máximas e de aforismos;
▪ Vocabulário concreto;
▪ Predomínio de construções sintáticas coordenadas e subordinadas adverbiais
(comparativas, causais e temporais);
▪ Predomínio do presente do indicativo;
▪ Verso livre e, normalmente, longo;
▪ Irregularidade estrofica, rítmica e métrica;
▪ Ausência de rima (versos soltos).
▪ Recursos expressivos predominantes: comparação, metáfora, anáfora e repetição.

Síntese: Alberto Caeiro

Caeiro é, desde logo, o único que consegue atingir a paz, a tranquilidade e a serenidade ao
recusar o pensamento e ao adotar o sentir - "Eu não tenho filosofia, tenho sentidos." -,
precisamente o oposto de Pessoa, que tudo racionalizava e era incapaz de sentir. Caeiro é, por
conseguinte, aquilo que o ortónimo não consegue ser, isto é, alguém que não procura qualquer
sentido para a vida ou para o universo, porque lhe basta aquilo que vê e sente em cada
momento.

Na verdade, todos os «eus» poéticos pessoanos são atingidos, de uma forma ou de outra,
pelo peso excessivo do pensamento, da razão, do racionalismo, causadores de dor e impeditivos
da felicidade. Assim, Pessoa apresenta-se como incapaz de sentir; Ricardo Reis controlar as suas
emoções através do uso da razão, para evitar a infelicidade; Álvaro de Campos, na sua fase
abúlica, lamenta-se do seu vício de pensar ("Pára, meu coração! Não penses! Deixa o pensar na
cabeça!"). Pelo contrário, Alberto Caeiro encontra a felicidade ao recusar o pensamento e a
existência de um lado abstrato / obscuro das coisas, defendendo a existência apenas do
concreto, do objetivo: "Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, / Sei a verdade e sou feliz".

Caeiro é considerado o Mestre em consequência dos seguintes princípios poéticos:

▪ Recusa do pensamento (que implica que se deturpe o significado das coisas que existem),
da essência, acreditando o poeta apenas na aparência (captada pelos sentidos), eliminando
assim a dor de pensar e alcançando a felicidade;
▪ Sensacionismo: Caeiro substitui o pensamento, que considera uma doença, pelas sensações
que colhe no exterior objetivo, defendendo que nada existe para além do que é percetível
para o ser humano, para além do que é captado pelos sentidos;
▪ Aceitação serena do mundo e da realidade tal qual eles são: as coisas são o que são,
resumem-se à sua aparência, não têm significados ocultos, e o poeta aceita-as como elas
são, sem as questionar, sem as pensar, visto que "pensar é não compreender" (pelo
contrário, o ortónimo pensa, vê para além das aparências, considerando que aquilo que vê
é apenas a exteriorização de outra coisa);
▪ Comunhão com a Natureza: o ser humano deve submeter-se às leis naturais e não deve
racionalizar processos que existem naturalmente (por exemplo, as ideias de vida ou de
morte, que existem enquanto verdades absolutas), daí a negação da existência de
significados ocultos na Natureza;
▪ Olhar ingénuo sobre o mundo: Caeiro aceita as ideias de vida e de morte sem mistérios,
despojadas de reflexão, de pensamento, de subjetividade;
▪ Neopaganismo: Caeiro tem uma visão pagã da existência, resultante da comunhão com a
Natureza, que passa pela descrença na transcendência e pela opção pela sensação,
considerara a única verdade;
▪ Irregularidade formal (verso livre, irregularidade métrica e estrófica), «seguida» por Álvaro
de Campos.

Note-se, porém, que existe uma grande liberdade dos discípulos em relação ao seu Mestre.
Por exemplo, Ricardo Reis é discípulo de Caeiro apenas em parte, visto que ama a Natureza e o
viver lúdico da infância, mas não possui a calma e a placidez exibidas pelo Mestre diante da
passagem / do fluir do tempo e da certeza da morte. Reis receia-a e angustia-se perante a sua
mortalidade e a do ser humano em geral.
Por sua vez, Álvaro de Campos, apesar de amar e reverenciar Caeiro, "exaspera-se por não
conseguir viver os seus ensinamentos". É o próprio Campos que afirma: "Mestre, só seria como
tu se tivesse sido tu".
Fernando Pessoa, por seu turno, é a antítese do Mestre, porque pensa e sofre em virtude
dessa racionalidade e da consciência. Ele que afirmou que cada um dos heterónimos constitui
uma espécie de drama. Em suma, Caeiro é o Mestre, mas quer o ortónimo quer os heterónimos
seguiram o seu próprio caminho com liberdade.

O fingimento artístico: Ricardo Reis, o poeta “clássico”

Ricardo Reis encarna o ideal de disciplina e de contenção. Aproxima-se de Pessoa ortónimo


pela relevância das temáticas do tempo destruidor e da dor de pensar, expressando-as,
contudo, de forma diferente: o ortónimo chora a infância perdida e analisa o mistério da
existência; Reis aceita as leis do Fado e rejeita as grandes interrogações.
Poeta clássico, Reis apresenta-se como um pagão por caráter e formação. A sua poesia está
repleta de referência mitológicas, pois Reis acredita nos deuses antigos, modelos a imitar
porque aceitam o seu destino (o Fado). Segundo ele, os deuses pagãos sobrevivem, apesar de
necessitarem de uma reconstrução. Reis figura os deuses como próximos e distantes, em
simultâneo: por um lado, revelam-se na Natureza; por outro, vivem acima do mundo humano e
revelam total indiferença pelos homens.
Reis identifica em Caeiro a essência do paganismo: o Mestre é um homem livre, que vive
segundo os seus sentidos e os ritmos da Natureza, apropriando-se do mundo físico (a única
realidade), sem o questionar. A única via para a felicidade possível é a aceitação serena do
mundo, da vida e das suas leis imutáveis.

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

▪ Fruição contemplativa e serena da Natureza;


▪ Fruição moderada dos prazeres fugazes que são concedidos;
▪ Consciência da efemeridade da vida e da importância de usufruir o momento Presente.
Parte I – Convite para desfrutar, tranquilamente, da vida, para contemplar a Natureza, seguida
de ímpeto amoroso.

No início do poema, o sujeito poético, situado num espaço bucólico remete para a existência
de um interlocutor a quem o discurso é dirigido e cuja elaboração desvanece o individualismo
de Ricardo Reis, que, assim, procura ultrapassar o negativismo do ortónimo, fechado em si
mesmo. Convida Lídia a sentar-se consigo e a contemplar o rio e a sua corrente como metáforas
da brevidade e transitoriedade da vida e do fluir do tempo, numa atitude de observação,
passividade e de não intervenção. A vida é, assim, apresentada como uma viagem que flui como
um rio e cujo fim é inevitável e inexorável.
De facto, esse convite transforma-se, logo de seguida, num exercício intelectual – a razão
deverá predominar sobre a emoção. Assim, a partir da observação e interação com a Natureza,
comandada pela razão, ele convida-a a aprender uma lição: tal como o rio, a vida passa e não
volta (ninguém se banha duas vezes na mesma água do rio) – símbolo, portanto, da constante
mudança do indivíduo e do seu percurso a caminho do fim).

Essa constatação da brevidade da vida é aceite de modo sereno e conduz ao desejo de fruir
o momento e assumir compromissos. O raciocínio do sujeito poético é, momentaneamente,
quebrado pelo impulso amoroso de “entrelaçar as mãos”, expressando o desejo de fruir o
momento presente, único bem que nos é dado possuir. Esta atitude é compreensível em quem
(re)toma consciência da brevidade da vida, no entanto é um mero instante de “distração”, uma
mera hipótese que jamais se concretiza. Da constatação de que “não estamos de mãos
enlaçadas”, parte para a possibilidade de “Enlacemos as mãos”, que seria uma hipótese possível
de relacionamento amoroso, mas que, analisada a situação, se afigura inconsequente. Em suma,
este enlaçar de mãos, a simbolizar o compromisso, o adotar atitudes e decisões, o «fabricar»
qualquer coisa que fique, não é, portanto, mais do que uma hipótese, cuja concretização de
nada valeria.

No início da segunda estrofe, o paradoxo “crianças adultas” destaca a Natureza paradoxal


dos amantes que, apesar de possuírem a ingenuidade das “crianças”, são, afinal, adultas e por
isso sujeitas ao pensamento, que as obriga a reconhecer a passagem do tempo, a efemeridade
da vida, a qual não depende do sujeito, e a morte, representada pela imagem eufemística
do “mar muito longe”, onde todos os rios (todas as coisas humanas) vão desaguar. O sujeito
poético e Lídia têm uma consciência “adulta” de que a passagem do tempo é inexorável e de
que a vida é efémera. Por isso, adotam uma postura de rejeição estoica ao desenvolvimento
amoroso, mantendo uma ligação pura e sem paixão, como se fossem crianças. De facto, na
hierarquia do comando da vida humana, a posição mais alta cabe ao Fado/Destino, entidade a
quem até os deuses obedecem. Deste modo, porque a vida é fugaz e eles não estão de mãos
dadas (não estabeleceram laços, não se comprometeram, nada produziram que dure), talvez
fosse oportuno enlaçarem as mãos. Porém, refletindo melhor (possuidores da racionalidade do
adulto e, simultaneamente, da ingenuidade das crianças), a fugacidade da vida é tão
desconcertante que definitivamente o sujeito poético se decide pela não assunção de qualquer
compromisso afetivo.

Parte II – Refreamento do impulso amoroso, causado pela intelectualização dos sentimentos

A terceira estrofe inicia-se com a afirmação do refrear do impulso amoroso por parte do
sujeito poético e que se prolonga pelo resto do poema, que vai num crescendo de passividade
que culmina numa atitude de quase indiferença. Ou seja, em consequência da reflexão que
desenvolve sobre a vida, o sujeito poético decide desenlaçar as mãos das de Lídia, por considerar
que se trata de um dos “desassossegos grandes”, isto é, compromissos ou
emoções/sentimentos extremos (“amores”, “ódios”, “paixões”, “invejas”) e as preocupações
que lhes são inerentes (“cuidados”), que podem impedir que viva “silenciosamente”, ou seja,
em tranquilidade, sem agitação. Ao evitar esses “desassossegos”, o sujeito poético atinge a
ataraxia desejada, pois não vale a pena qualquer esforço, dado que o sujeito poético tem
consciência de que o que quer que façamos (ou não façamos) não vai ter qualquer influência na
nossa vida que, implacável e inexoravelmente, seguirá o seu curso em direção à morte. Assim,
dada a efemeridade da vida, ele justifica o desenlace das mãos com a inutilidade do cansaço
que esse gesto implica, isto é, as ligações, os afetos e os compromissos não valem o esforço.

Na quinta estrofe, o sujeito poético «sugere» a Lídia que se amem tranquilamente, ou seja,
sem os excessos decorrentes do envolvimento físico ou de sentimentos intensos. Note-se como
esta atitude de passividade e de quase indiferença é de caráter voluntário (“podíamos / se
quiséssemos”), dado que existe a possibilidade de um envolvimento físico e emocional intenso
e está dependente da sua vontade, determinada pela constatação racional da inexorabilidade
da vida. Por essa razão, opta por uma existência caracterizada pela ataraxia, traduzida pelos
advérbios “tranquilamente” e “sossegadamente”. Assim, o sujeito poético e Lídia ficarão
sentados, lado a lado, ouvindo e vendo correr o rio, isto é, assistindo à passagem da vida, apenas
como mais um elemento natural, como as flores e o rio, enquanto “Pagãos inocentes da
decadência” – metáfora que aponta para o paganismo de Reis: dois pagãos despreocupados
com a passagem do tempo, com o declínio e a degeneração que aquela acarreta.
Ora, esta decisão do sujeito poético tem como finalidade evitar as sensações extremas e as
perturbações que implicam. Por outro lado, trata-se de uma forma de integrar o curso regular
e inevitável do mundo (traços epicuristas). Além disso, é evidente a preocupação com a
aceitação das forças superiores do universo (os deuses, o fado), através da adoção de um
estado de apatia conseguido por meio da recusa das paixões e da imitação da Natureza. Assim,
conjugando os princípios epicuristas e estoicos, o sujeito poético atinge o estado que permite
não recear a morte, o destino, etc.

Parte III – Abdicação voluntária do prazer, de modo a evitar sofrimento provocado pela
antevisão da morte

As duas estrofes finais constituem a conclusão do poema, a justificação da recusa aos


fugazes prazeres da vida: é a única forma de evitar o sofrimento causado pela antevisão da
morte. A ausência de perturbação e de emoções fortes durante a vida evita o sofrimento quando
chegar a morte. No momento inevitável da separação, quando a morte chegar, o sofrimento
não será tão penoso. Deste modo, o sujeito poético propõe a Lídia uma relação tranquila,
contida, sem envolvimento nem paixão, nem sequer emoção, como única forma de evitar o
sofrimento provocado pela separação que a morte de um deles acarreta. Esse medo é tão
grande que a morte não é nomeada senão através de eufemismos.

Os eufemismos utilizados para referir a morte contribuem para a sua apresentação como
algo leve e natural que corresponde ao curso indeclinável da Natureza e da vida. De acordo com
os princípios estoicos e epicuristas, a morte não trará sofrimento se a vivência não fizer “sofrer”.
Os seres humanos devem procurar uma existência semelhante à dos elementos naturais. Assim,
aceitando-se efémeros, reconhecem-se nas “flores” (v. 21) transitórias e no “rio” que segue de
forma irreversível o seu curso, tal como os humanos devem aceitar o destino que lhes coube.
Temas da poesia de Ricardo Reis
▪ Efemeridade da vida e inevitabilidade da morte;
▪ Privilégio do prazer de cada momento;
▪ Busca da felicidade relativa e da ausência de sofrimento (ataraxia) –
tranquilidade ou indiferença capaz de evitar a perturbação, a dor e o
Epicurismo sofrimento);
▪ Altivez e indiferença (egoísmo epicurista) – abdicação pessoal e consciente;
▪ Perceção direta da realidade e do ciclo da Natureza – carpe diem;
▪ Moderação dos prazeres/busca de um prazer relativo;
▪ Fuga ao sofrimento e à dor (aponia);

▪ Aceitação das leis do Destino/Fado (entidade inexorável) e do Tempo;


▪ Supressão do desejo, do prazer, da angústia e do lamento – indiferença face
às paixões e aos males (moderação) - apatia;
Estoicismo ▪ O acaso inabilita a providência;
▪ Autodisciplina e despojamento de bens materiais e espirituais;
▪ Abdicação de lutar.

▪ (Re)aparecimento dos antigos deuses na arte ou na literatura, a partir do


século XVIII;
Neopaganismo ▪ Renascimento da essência pagã, pela eliminação da racionalidade abstrata e
pela rejeição da metafísica ocidental;
▪ Cosmovisão hierárquica ascendente – animais, homens, deuses e Fado.

▪ Visão estoico-epicurista da existência;


▪ Perceção aguda da transitoriedade temporal, da brevidade da vida e
inevitabilidade da morte e do Destino;
▪ Inutilidade do esforço e da indagação sobre o futuro;
▪ Apelo ao carpe diem, à entrega moderada ao prazer e à fruição do momento
presente;
Horacianismo ▪ Culto ao aurea mediocritas (apologia de uma vida calma e simples, longe do
bulício das cidades, com um mínimo de dor ou gozo – próximo de Alberto
Caeiro);
▪ Símbolos clássicos do sorriso, do vinho, das flores: tentativa de iludir o
sofrimento resultante da consciência aguda da efemeridade da vida;
▪ Presença do locus amoenus (lugar aprazível);
▪ Autodomínio que evita as paixões e aceitação voluntária do destino.

▪ Intelectualização das emoções, oposto a Alberto Caeiro;


▪ O culto do Belo como forma de superar a brevidade e transitoriedade dos bens terrenos e da
vida;
▪ Intemporalidade das suas preocupações:
o Angústia humana perante a brevidade da vida e a certeza da morte;
o Busca de soluções tendentes a limitar o sofrimento que caracteriza a vida humana
▪ Outros temas clássicos:
o Miséria da condição humana – Efemeridade da vida e fatalidade da morte;
o Aceitação calma e serena das coisas;
o Equilíbrio interior pela busca de um prazer relativo.
Reflexão existencial: a consciência e a encenação da mortalidade
(Ricardo Reis)

▪ Homem = Morte
▪ Momento inevitável de niilismo;
o A vida é o adiamento da hora fatal;
o Brevidade da vida e a consciência da mortalidade.
▪ O Homem deve “encenar”, prevendo o instante final.

A poesia de Ricardo Reis desenvolve a consciência da transitoriedade da vida e a angústia


perante a passagem do tempo (= Pessoa ortónimo e Álvaro de Campos). O discípulo Reis não
consegue atingir a calma e o contentamento existencial que caracterizam Caeiro. À lição do
Mestre, Reis acrescenta a filosofia antiga, nela recolhendo os princípios epicuristas e estoicos
que norteiam o seu pensamento e a sua vida.

▪ O Epicurismo defende que a felicidade humana tem por base o prazer comedido e uma
existência simples, dedicada à reflexão e afastada das lutas sociais e políticas. Tal facto
permite a conquista da independência de espírito, que conduz à ataraxia (estado de
indiferença, ausência de dor e de preocupação) e à verdadeira sabedoria. O homem sábio é
tranquilo e sereno. Cada dia é único e deve ser vivido na sua singularidade, pois pode ser o
último (“carpe diem” = goza o dia) – máxima do poeta latino Horácio.

▪ O Estoicismo defende que a felicidade humana não consiste no prazer, mas sim na
autossuficiência fundada na independência face às circunstâncias exteriores. O homem
sábio é aquele que vive racionalmente e de acordo com a Natureza. A doutrina estoica
advoga uma atitude de resignação e de aceitação relativamente à condição e ao destino
humanos.

Reis é um epicurista triste: faz a apologia do gozo comedido, do “carpe diem” e da suprema
indiferença (princípios epicuristas); apela à fortaleza de ânimos para enfrentar o fatalismo da
morte e da dor de viver (princípios estoicos). Estes princípios visam atingir o estado da (pouca)
felicidade que é permitida aos humanos: viver sem desassossegos grandes, aceitando as leis do
destino (Fado) e aguardar serenamente a morte.
A efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte são temáticas obsessivas e geradoras
de uma profunda angústia que Reis tenta ultrapassar através do domínio da emoção pela razão.
Trata-se de uma lição de não-vida: não amar para não sofrer, não desejar para não se ser
desiludido, não questionar para não encontrar o vazio.

Antes de nós nos mesmos arvoredos

▪ Fugacidade da vida, da passagem invencível do Tempo e da pequenez dos nossos atos;


▪ Debilidade humana, perante forças maiores.

O tema deste poema de Ricardo Reis é o destino humano.


O poema é uma lição de abnegação e essa lição significa uma tentativa de encontrar a
felicidade, pois a vida humana rege-se pelas leis que regem o universo – estas caracterizam-se
pela efemeridade que subjaz a qualquer ciclo regenerador. O universo é um todo determinístico
- tudo é o resultado de causas prévias; a autonomia individual consiste na aceitação das leis.
Assim, não vale a pena desejar nada que não esteja de acordo com essas leis. Patenteiam-
se aqui as filosofias epicurista e estoica, oriundas da Grécia antiga, que preconizam a abnegação
motivada pela constatação da inutilidade do desejo. A comunhão com a Natureza pressupõe a
perda da identidade no Todo, para alcançar a Identidade suprema.

O homem é inserido num mundo uno, situando-se ao mesmo nível que os elementos
naturais, aparecendo como parcela finita do infinito que é o Ser - Deus ter-se-ia materializado
nos diferentes objetos criados e não apenas no ser humano. E esta reflexão conduz-nos à
conceção platónica da existência, pela oposição entre a "areia" que o poeta vê e a "alta praia".
O número três, que aparece na referência às ondas ("ondas três"), associa-se ao destino do
Homem e ao mito das três parcas: a primeira dava o fio (da vida), a segunda fiava (a vida do
homem na terra) e a terceira cortava o fio (momento que equivale à morte).
O número três liga-se ainda às nereidas (deusas), filhas do Oceano, que personificavam as
ondas, na Antiguidade Clássica, e que fiavam, teciam e cantavam. Também a poesia é um
processo de criação, que traduz o destino do Homem, remetendo para o ato de "tecer".
O sujeito poético propõe uma visão pagã da existência e defende a integração do Homem
na Natureza, constatando a brevidade e a efemeridade da vida humana. A renúncia à ação, pelo
reconhecimento da inutilidade da mesma (influência das filosofias epicurista e estoica) surge
como a única atitude que conduz à tranquilidade.

Estabelece-se na primeira estrofe uma relação entre «nós» e os elementos da Natureza que
é caracterizada por uma similitude de condições que decorre da participação da mesma
realidade perene («Antes de nós nos mesmos arvoredos / Passou o vento, quando havia vento,
/ E as folhas não falavam / De outro modo do que hoje.»; «Não fazemos mais ruído no que existe
/ Do que as folhas das árvores / Ou os passos do vento»); e por uma diferença de condições que
decorre da finitude e da transitoriedade que caracterizam o homem e a sua consciência do
tempo «Passamos» e da consciência da inutilidade do esforço humano («agitamo-nos
debalde»).
A terceira estrofe contém uma exortação à fruição calma do momento, à serenidade
epicurista do contacto direto com a Natureza («Tentemos pois com abandono assíduo / Entregar
nosso esforço à Natureza»), e ao desejo único de identificação com ela («E não querer mais vida
/ Que a das árvores verdes.»), numa indiferença à perturbação causada pela ameaça inelutável
do Fado.

Nas quatro primeiras estrofes do poema, refere-se um destino comum a todos os homens,
através do recurso a um sujeito plural. Na última quadra, evoca-se a situação particular do «eu»
e refere-se à experiência direta da fugacidade da vida e da passagem inexorável do Tempo,
através do recurso a um sujeito singular de primeira pessoa («o meu indício» v. 17).
Toda a última estrofe é constituída por uma interrogação retórica que remete para a
consciência que o «eu» possui da fugacidade da vida e que releva o fosso existente entre a
pequenez humana («Se aqui, à beira-mar, o meu indício / Na areia o mar com ondas três o
apaga,» vv. 17-18) e a vastidão e a inexorabilidade do Tempo («Que fará na alta praia / Em que
o mar é o Tempo?» vv. 19-20).

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre

Esta ode refere-se a um tema central da poesia de Ricardo Reis: o Destino.


De acordo com os dois versos iniciais do poema, cada ser humano cumpre um destino que
lhe está de antemão reservado. O ser humano não cumpre o que deseja, isto é, não alcança o
que deseja, nem deseja o que cumpre, visto que é o Destino que decide por ele, que se limita a
cumprir a sua (do Destino) vontade. A primeira forma verbal tem o significado de “executar”,
“desempenhar”, “completar”, enquanto a segunda significa “caber”, “pertencer”.
Nos versos 3 e 4 é destacado o facto de o destino que o ser humano “cumpre” nem sempre
ser o que ambiciona, daí resultando uma natural insatisfação. O «eu» defende, pois, a inerte
aceitação do Destino, dado que nada podemos contra ele – o que devemos fazer é aceitar as
leis da vida em vez de tentar modificá-las.

Quer isto dizer que o ser humano não tem poder e liberdade de escolher o seu destino; pelo
contrário, este é uma força superior que o oprime e decide por si, limitando-se ele a cumprir a
vontade do Fado. O Homem é, portanto, um ser permanentemente insatisfeito e frustrado, visto
que não vive o que deseja, não alcança a vida que pretende ou sonha, mas também não se
satisfaz com o destino que lhe coube.
Por sua vez, a comparação dos versos 5 e 6 entre o ser humano e “as pedras na orla dos
canteiros” acentua a imobilidade e a impossibilidade de resistir e contrariar o destino. Essa
comparação é explicada nos dois versos seguintes: a “Sorte” / o Destino coloca onde quer ou
onde deve cada um de nós, sem que haja (tal como sucede com as pedras) a possibilidade de
mudar de posição.

Nos últimos quatro versos, o sujeito poético evidencia a sua resignação ao aceitar o poder
do Destino. Assim, cada ser humano deve desistir de ter “melhor conhecimento” do que lhe
calhou em sorte na vida e deve limitar-se a consentir o que lhe coube. A procura de desejos
frívolos é encarada como a principal barreira para se poder atingir o conhecimento. Os dois
versos finais (duas frases declarativas) confirmam a abdicação do sujeito poético e a sua
anuência voluntária ao Destino, pois este é inexorável, na permite e é impossível resistir-lhe.

O sujeito poético defende, em suma, uma filosofia de vida que assenta na aceitação
voluntária e tranquila do Destino, sem o tentar combater ou fugir-lhe, pois todos esses esforços
serão inúteis. Deste modo, o «eu» revela o seu conformismo face ao Destino, numa atitude
estoica de nada desejar e de aceitar com dignidade o que lhe é imposto. De facto, de acordo
com o Estoicismo, o homem não deve lutar contra o Destino, antes cumpri-lo sem o questionar
ou se lhe opor. A conceção de vida segundo Reis é marcada por uma profunda simplicidade, por
uma intensa serenidade na aceitação da relatividade das coisas. Contrariamente a Alberto
Caeiro, Ricardo Reis, prosseguindo na esteira do Estoicismo, “prefere” a prevalência da cognição
face às emoções.

A relação entre Homem, a divindade e o Destino, na poesia de Ricardo Reis, ocupa um lugar
central e é uma relação de subordinação:
▪ Homem:
o A sua liberdade é condicionada, tem limites;
o Sente-se fraco e inútil;
▪ Deuses:
o Paganismo;
o Conceito de deuses;
o Sobrepõem-se ao ser humano;
▪ Destino / Fatum:
o É uma ameaça implacável e inexorável que paira sobre o Homem;
o Situa-se acima do Homem e dos próprios deuses;
o Dita todas as leis do Universo;
o Conduz à morte;
o É inútil resistir-lhe ou procurar contrariá-lo.
Linguagem e estilo de Ricardo Reis

A estética defendida nas odes de Ricardo Reis visa uma impersonalidade austera, a desafiar
as injúrias do tempo. O que interessa é modelar o pensamento, porque a expressão virá a seguir,
obediente.

Aspetos fónicos:
• Composição preferida: a ode horaciana, com estrofes regulares em verso decassilábico,
alternado ou não com o hexassílabo;
• Eufonia;
• Verso branco / solto;
• Regularidade estrófica, rítmica e métrica (versos predominantemente decassilábicos e
hexassilábicos).
• Recurso frequente à assonância, à aliteração e à rima interior.
• Predomínio de construções sintáticas subordinadas e com influência da sintaxe latina
(inversão da ordem frásica padrão).
• Privilégio do presente do indicativo e uso frequente da primeira pessoa do plural;
utilização do gerúndio com valor aspetual imperfetivo.
• Recursos expressivos predominantes: anástrofe, metáfora, aliteração, apóstrofe.

Aspetos morfossintáticos e semânticos:


• Submissão da expressão ao conteúdo: a uma ideia perfeita corresponde uma expressão
perfeita;
• Sintaxe alatinada:
o Ordem inesperada das palavras;
o Anteposição do complemento direto ao verbo («As rosas amo...» em lugar da
ordem tradicional da língua portuguesa: «Amo as rosas...»);
• Uso de latinismos: "astro", "ledo", "ínfero", "vila", "vólucres", "inscientes", etc.;
• Uso frequente da inversão (hipérbato e anástrofe) e da elipse;
• Uso frequente do imperativo (de acordo com a feição moralista das odes) ou do
conjuntivo com valor de imperativo;
• Uso do gerúndio;
• Perífrases (remetem para um contexto religioso e mitológico grego ou latino);
• Eufemismos (traduzem / suavizam a ideia de morte, que Ricardo Reis, afinal, teme);
• Estilo denso e rigorosamente elaborado, construído, pensado, nos antípodas, por
exemplo, de Alberto Caeiro;
• Seleção cuidada de fonemas ou vocábulos sugestivos das ideias que pretende exprimir
(a elevação, a nobreza, o classicismo da linguagem).
• Linguagem culta, erudita e latinizante;
• Estilo e forma complexos espelham o conteúdo;
• Tom didático e moralista (conselhos expressos no imperativo ou no conjuntivo com
valor exortativo; uso da 1ª pessoa do plural);
• Tom coloquial na presença de um interlocutor.

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