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O sujeito poético inicia o poema com a afirmação de que nunca guardou
rebanhos, isto é, de que não é um pastor na realidade, mas comporta-se como se
o fosse («Mas é como se os guardasse» - v. 2), ou seja, há uma parte de si que se
comporta como um pastor - a alma -, uma alma de pastor (comparação do verso
3) que «anda pela mão das Estações / A seguir e a olhar» (vv. 5-6).
No início da segunda estrofe, o sujeito poético identifica a sua tristeza com
sossego e considera-a «natural e justa». Porquê? Porque «é o que deve estar na
alma / Quando já pensa que existe / E as mãos colhem flores sem ela dar por
isso.» (vv. 16-18). Isto é, o «eu» sente-se triste porque pensa e porque pensa é
natural e justo que se sinta triste. É merecido ser triste quando o pensamento
invade a sua alma e esta não dá pela natureza, pelas flores que as mãos colhem.
Por outro lado, esta postura revela a aceitação do real tal como ele se
apresenta por parte do sujeito lírico. Este é um ser pragmático, não tem ilusões,
daí que a tristeza constitua uma imposição aceite livremente, uma submissão a
algo superior, uma aceitação voluntária do sofrimento e do Destino («Mas a minha
tristeza é sossego» - v. 14).
Além disso, o verso 14 acima referido aponta para uma linha central da poesia
de Alberto Caeiro: o objetivo da meditação do poeta é o «sossego», a paz. Caeiro
troca tudo o resto (uma vida comum, dinheiro, desejo sexual, desejo de posse,
passado, presente e futuro), a vontade própria, a personalidade, por uma forma
superior de existência, feita só de sensações e em comunhão com a natureza.
Esta ideologia aparenta semelhanças com o processo budista de
conhecimento, assente nas quatro verdades: 1.ª) a existência implica a dor; 2.ª) a
origem da dor é o desejo; 3.ª) a dor só cessa com o fim do desejo; 4.ª) há um
caminho de oito passos para acabar com o desejo: a visão correta, a intenção
correta, o discurso correto, a ação correta, a vida correta, o esforço correto, a
atitude correta e a concentração correta.
De seguida, o sujeito poético saúda, ironicamente, todos quantos o lerem (v.
49), de forma gentil e humilde, como homem do campo e da natureza, esperando
que não lhe peçam mais do que a gentileza firme de uma saudação passageira.
Uma interpretação «alternativa» para esta saudação aos leitores pode sugerir a
condição de mestre da parte de Caeiro, sediado no coração da natureza,
procurado por muitos interessados na sua «doutrina» (vv. 51-52), a quem acena
(v. 50). Ele deseja não o conhecimento, mas a chuva quando é precisa, senão o
sol.
Quanto a si, deseja fazer-se passar por «qualquer coisa natural» (v. 60),
alheia ao ato de pensar. Ele quer assumir-se natureza, libertar-se das cadeias e
desejos humanos e existir de outras maneiras. Assim, "o homem dilui-se na
tristeza e perde a sua identidade para assumir uma existência pacífica com a
natureza que pretende tomar como sua. Caeiro quer perder-se para
se encontrar".
O verso 9 apresenta-nos uma nova comparação, desta vez com uma
criança, um símbolo recorrente em Caeiro, pela inocência e ingenuidade que lhe
estão associadas. Neste caso específico, a comparação é estabelecida com uma
criança "ao nascer", o que remete para um ser não contaminado, constantemente
surpreendido pelos estímulos da realidade que lhe chegam através dos sentidos e
que provocam o seu espanto ("pasmo essencial" - v. 8), resultante do que o
rodeia, novo para quem acabou de nascer. De modo semelhante, o sujeito
poético sente-se como a criança recém-nascida, que vê com uma inocência
primordial, isto é, vê tudo como se visse pela primeira vez, espantado perante "a
eterna novidade do Mundo". Todos estes dados confirmam, no fundo, a afirmação
de Jacinto do Prado Coelho: "Caeiro (...) vive de impressões, sobretudo visuais, e
goza em cada impressão o seu conteúdo original.".
À semelhança do que sucede na primeira estrofe, a segunda abre com nova
comparação (neste caso, entre a sua crença no mundo e um malmequer), que é
uma forma de objetivação, concretização, através dos sentidos, de uma realidade
eminentemente abstrata dado que reside apenas no pensamento. No entanto,
este versos confirmam-nos que, apesar do seu esforço para afirmar o contrário, o
sujeito poético ainda pensa e não vê apenas. Dito de outra forma, ele apresenta
uma teoria à qual falta uma prática efetiva e continuada, confirmada por uma
espécie de «insistência doentia» nas explicações dos seus atos. Repare-se como
ele começa por fazer uma constatação ("Creio no Mundo"), para de seguida se
justificar: "Porque o vejo. Mas não penso nele (...)". Se estivesse convicto das
suas afirmações, não necessitaria do raciocínio justificativo. Ainda assim,
prossegue a sua afirmação da supremacia do olhar sobre o pensamento: "Porque
pensar é não compreender..." - v. 15; "(Pensar é estar doente dos olhos)" - v. 17).
Este último verso é uma confirmação da negação do pensamento, da metafísica,
pois não devemos procurar ou atribuir significados ao mundo, devemos antes
deixar-nos guiar pelos sentidos, pelas sensações puras, aceitando pacificamente
as coisas tais quais elas são ("Mas para olharmos para ele e estarmos de
acordo..." - v. 18).
A terceira estrofe abre com uma afirmação categórica: "Eu não tenho
filosofia: tenho sentidos...". Esta afirmação clarifica a sua veia antifilosofia,
evidenciando a recusa da metafísica, do pensamento abstrato, defendendo em
alternativa o primado dos sentidos. Os restantes versos acabam por comprovar /
aprofundar esta ideia, ao aclararem o tipo de relação que o «eu» estabelece com
a natureza, uma relação de amor ("Mas porque a amo..." - v. 21). E é uma relação
de amor porque no amor não há perguntas, não há certezas acerca do «objeto»
amado, não há «razões» que justifiquem o «amor por», nem sequer uma
definição do que é amar. Deste ato amoroso, está ausente o pensamento, a
racionalidade; o sujeito aceita apenas as coisas tais como são. Há, portanto, uma
tentativa de equiparação do amor ao seu desejo de inconsciência, de não pensar