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Considerações do Poeta - críticas e conselhos aos Portugueses

Os Lusíadas são uma epopeia na qual se reflete o otimismo do Renascimento, crente nas
capacidades do Homem. Por isso, o herói liberta-se da sua pequenez humana de "bicho da
Terra" e, através da ousadia e da coragem, ascende a um estádio superior, digno dos deuses.

No entanto, não é apenas esta visão otimista do Homem aquela que está patente na obra. A
verdade é que, a par da glorificação dos heróis que fizeram grande a Pátria e o Homem e
devem, por isso, servir de exemplo, está presente um desencanto e um pessimismo do poeta
que olha para o Portugal seu contemporâneo com tristeza, nostalgia e desalento. Não
podemos esquecer que Camões publicou Os Lusíadas, 74 anos depois da viagem de Vasco da
Gama, num momento em que o império português estava já em decadência e um futuro negro
se pressentia.

Esse pessimismo está patente sobretudo nas reflexões do final dos Cantos.

O poeta apresenta-se, nas suas reflexões, como guerreiro e poeta a quem não "falta na vida
honesto estudo; com longa experiência misturado" (C. X, 154). Um poeta que, ainda que
perseguido pela sorte e desprezado pelos seus contemporâneos, assume o papel humanista de
intervir, de forma pedagógica, na vida contemporânea. Por isso:

 critica a ignorância e o desprezo pela cultura revelados pelos homens de armas (C. V);
 denuncia o desprezo pelo bem comum, a ambição desmedida, o poder exercido com
tirania, a hipocrisia dos aduladores do Rei, a exploração do povo (C. VII);
 denuncia o poder corruptor do ouro (C. VIII);
 propõe um modelo humano ideal de "Heróis esclarecidos" que terão ganhado o direito
de ser na "Ilha de Vénus recebidos" (C. IX, 95);
 ergue-se contra o adormecimento da Pátria, metida "No gosto da cobiça e na rudeza /
Duma austera, apagada e vil tristeza". (C. X, 145).

Mas, o poema, acima de tudo, evidencia a grandeza do passado de Portugal: um pequeno


povo que cumpriu, ao longo da sua História, a missão de dilatar a Cristandade, que abriu novos
rumos ao conhecimento, que mostrou a capacidade do Homem de concretizar o sonho.

Ao cantar o heroísmo do passado, o poeta pretende mostrar aos seus contemporâneos a falta
de grandeza do Portugal presente, e incentivar o Rei a conduzir os Portugueses para um futuro
de novo glorioso, para uma nova era de orgulho nacional.

Canto I - Reflexão sobre a fragilidade da condição humana

As traições e perigos a que os navegadores estão sujeitos justificam o desabafo do poeta sobre
a fragilidade da condição humana, que submete o Homem a inúmeros e permanentes perigos.
Não será por acaso que esta reflexão surge no final do Canto I, quando o herói ainda tem um
longo e penoso caminho a percorrer. Ver-se-á, no Canto X, até onde a ousadia, a coragem e o
desejo de ir sempre mais além podem levar o "bicho da terra tão pequeno", tão dependente
da fragilidade da sua condição humana.

Canto V - Crítica à falta de cultura e de apreço pelos poetas que os Portugueses revelam

O poeta começa por mostrar como o canto e o louvor incitam à realização dos feitos heroicos;
dá em seguida exemplos do apreço que os antigos heróis gregos e romanos tinham pelos seus
poetas e da importância que davam ao conhecimento e à cultura, conciliando as armas com o
saber.

Não é, infelizmente, o que se passa com os portugueses, que não dão valor aos seus poetas,
porque não têm cultura para os conhecer. Ora, não se pode amar o que não se conhece, e a
falta de cultura dos heróis nacionais é responsável pela indiferença que manifestam pela
divulgação dos seus feitos, e, se não tiverem poetas que os cantem, serão esquecidos. Apesar
disso, o poeta, movido pelo amor da Pátria, reitera o seu propósito de continuar a
engrandecer, com os seus versos, as "grandes obras" realizadas.

Manifesta, desta forma, a vertente crítica e pedagógica da sua epopeia, na defesa da


realização plena do Homem, em todas as suas capacidades.

Canto VI - Reflexão sobre o verdadeiro e árduo caminho da fama e da glória

Continuando a exercer a sua função pedagógica, o poeta defende um novo conceito de


nobreza, espelho do modelo da virtude renascentista. Segundo este modelo, a fama e a
imortalidade, o prestígio e o poder adquirem-se pelo esforço - na batalha ou enfrentando os
elementos, sacrificando o corpo e sofrendo pela perda dos companheiros. Não se é nobre por
herança, permanecendo no luxo e na ociosidade, nem pela concessão de favores se deve
alcançar lugar de relevo.

Canto VII - Elogio ao espírito de cruzada dos portugueses / crítica aos outros povos

Percorrido tão longo e difícil caminho, é momento para que, na chegada a Calecut (est. 3-7), o
poeta faça novo louvor aos portugueses. Exalta então o seu espírito de cruzada, a incansável
divulgação da fé, por África, Ásia, América, "E, se mais mundos houvera, lá chegara", assim
inserindo a viagem à Índia na missão transcendente que assumiram, e que é marca da sua
identidade nacional.

Por oposição, critica duramente as outras nações europeias - os "Alemães, soberbo gado", o
"duro inglês, o "Galo indigno", os italianos que, "em delícias, / Que o vil ócio no mundo traz
consigo, / Gastam as vidas" - por não seguirem o seu exemplo, no combate aos infiéis...

Canto VII - Crítica aos contemporâneos ambiciosos que exploram e oprimem o povo

Numa reflexão de tom marcadamente autobiográfico, o poeta exprime um estado de espírito


bem diferente do que caracterizava, no Canto I, a Invocação às Tágides. Agora percorre um
caminho - "árduo, longo e vário", e precisa de auxílio, porque teme não chegar a bom porto.
De uma vida cheia de adversidades, enumera a pobreza, a desilusão, os perigos do mar e da
guerra, "Nua mão sempre a espada e noutra a pena".

Denuncia que, como paga do seu labor, recebe novas contrariedades, e desta forma
apresenta, uma vez mais, a crítica aos contemporâneos, deixando o alerta: em consequência
de tais maus exemplos de ingratidão deixarão de aparecer outros poetas que cantem a pátria.
E a crítica aumenta de tom na parte final, quando enumera aqueles que nunca cantará e que,
implicitamente, denuncia abundarem no seu tempo: os ambiciosos que sobrepõem os seus
interesses aos do "bem comum e do seu Rei", os dissimulados, os exploradores do povo, que
não defendem "que se pague o suor da servil gente".

No final, retoma a definição do seu herói - o que arrisca a vida "por seu Deus, por seu Rei".

Canto VIII - Crítica ao poder do dinheiro

O poeta enumera os efeitos perniciosos do ouro que provoca derrotas, faz dos amigos
traidores, mancha o que há de mais puro, deturpa o conhecimento e a consciência, condiciona
as leis, dá origem a difamações e à tirania dos reis, corrompe até os sacerdotes, sob a
aparência da virtude. Retomando a função pedagógica do seu canto, o poeta aponta o dedo à
sociedade sua contemporânea, orientada por valores materialistas.

Canto IX - Reflexões sobre o caminho para merecer a fama

Na sequência da cerimónia simbólica de entrega das coroas de louros aos marinheiros e a


Vasco da Gama, o poeta dirige-se àqueles que desejam ser famosos, aconselhando-os sobre o
caminho a seguir. Na verdade, é também aos seus contemporâneos que Camões se dirige,
exortando-os a despertar do adormecimento e do ócio, a pôr de lado a cobiça e a tirania, a
serem justos e a lutarem pela Pátria e pelo rei. Só assim serão eternizados como os
marinheiros, e serão também "nesta ilha de Vénus recebidos."

Canto X - Crítica aos Portugueses seus contemporâneos / Apelo ao Rei

Os últimos versos de Os Lusíadas revelam sentimentos contraditórios: desalento, orgulho,


esperança. "No mais, Musa, no mais..." pede o poeta, recusando continuar o seu canto, não
por cansaço, mas por desânimo. O seu desalento advém de constatar que canta para "gente
surda e endurecida", mergulhada "no gosto da cobiça e na rudeza / duma austera, apagada e
vil tristeza". É a imagem do Portugal do seu tempo.

Por contraste, o poeta tem orgulho nos que estão dispostos a reavivar a grandeza do passado,
evidenciando ainda a esperança de que o Rei os estimule para dar continuidade à glorificação
do "peito ilustre lusitano" e dar matéria a novo canto. O poema encerra, pois, com uma
mensagem que abarca o passado, o presente e o futuro. A glória do passado deverá ser
encarada como exemplo presente para construir um futuro grandioso.

Velho do Restelo - um episódio em final de canto


(Canto IV, est. 94-104)

Situado no final do Canto IV, este episódio insere-se na narrativa feita por Vasco da Gama ao
rei de Melinde. De certa forma, estabelece a ponte entre o plano da História de Portugal e o
plano da Viagem.

No momento em que a armada está prestes a partir, uma figura destaca-se da multidão e
levanta a voz, condenando a viagem. A caracterização sublinha a idade )"velho"), o aspecto
respeitável ("aspeito venerando"), a atitude de descontentamento ("meneando / três vezes a
cabeça, descontente"). a voz solene e audível ("A voz pesada um pouco alevantando"), e a
sabedoria resultante da experiência de vida ("Cum saber só de experiências feito"; "experto
peito"). De facto, a figura do Velho do Restelo impõe uma autoridade e respeitabilidade que
lhe permitem falar e ser ouvido sem contestação. As suas palavras têm o peso da idade e da
experiência que daí resulta e a autoridade provém, exactamente, dessa vivida e longa
experiência.

Naturalmente, o "Velho do Restelo" não é uma personagem histórica, mas uma criação de
Camões com um profundo significado simbólico.
Numa análise superficial e meramente historicista, o Velho representa a corrente de opinião
que via com desagrado a expansão para o Oriente, preferindo as conquistas militares no Norte
de África.

Mas o Velho do Restelo representa muito mais. Ele é a representação daqueles que condenam
a ousadia do Homem, o impulso do ser para transcender tudo o que o limita, o sonho de ir
mais além.

Opositor de toda a forma de ambição humana, vê no progresso a fonte de todos os males.


Nesse sentido, o Velho do Restelo é um conservador que se opõe ao juvenil impulso criador r
transformador daqueles que não se contentam nem conformam com o já adquirido e já vivido.

Por outro lado ainda, podemos ver o Velho como símbolo dos que, em nome do bom senso,
recusam a aventura, defendendo que é preferível a tranquilidade duma vida mediana à
promessa de riquezas que, frequentemente, se traduzem em desgraças. Encontramos aqui um
eco de uma ideia humanista: a nostalgia da Idade do Ouro, tempo de paz e tranquilidade de
que o Homem se viu afastado e a que pode voltar, reduzindo a sua ambição a uma sábia
mediania ("aurea mediocritas"), já que foi a ambição que lançou o ser humano na Idade do
Ferro, em que vive (est. 98). Neste sentido, o episódio pode ser entendido como a
manifestação do espírito humanista, favorável à paz e tranquilidade, contrário ao espírito
guerreiro da Idade Média.

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