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FICHA INFORMATIVA

Os Lusíadas, de Luís de Camões

1. Os Lusíadas: estrutura da obra e planos

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2. Reflexões do poeta: críticas e conselhos aos Portugueses

Os Lusíadas é uma epopeia na qual se reflete o otimismo do Renascimento, crente nas capacidades
do Homem. Por isso, o herói liberta-se da sua pequenez humana de "bicho da Terra" e, através da
ousadia e da coragem, ascende a um estádio superior, digno dos deuses.
No entanto, não é apenas esta visão otimista do Homem aquela que está patente na obra. A verdade
é que, a par da glorificação dos heróis que fizeram grande a Pátria e o Homem e devem, por isso, servir de
exemplo, está presente um desencanto e um pessimismo do poeta que olha para o Portugal seu
contemporâneo com tristeza, nostalgia e desalento. Não podemos esquecer que Camões publicou Os
Lusíadas, 74 anos depois da viagem de Vasco da Gama, num momento em que o Império português estava
já em decadência e um futuro negro se pressentia.
Esse pessimismo está patente sobretudo nas reflexões do final de cantos.
O poeta apresenta-se, nas suas reflexões, como guerreiro e poeta a quem não "falta na vida honesto
estudo; Com longa experiência misturado" (C. X, 154). Um poeta que, ainda que perseguido pela sorte e
desprezado pelos seus contemporâneos, assume o papel humanista de intervir, de forma pedagógica, na
vida contemporânea. Por isso:
• critica a ignorância e o desprezo pela cultura revelados pelos homens de armas (C. V);
• denuncia o desprezo pelo bem comum, a ambição desmedida. o poder exercido com tirania, a hipocrisia
dos aduladores do Rei, a exploração do povo (C. VII);
• denuncia o poder corruptor do ouro (C. VIII);
• propõe um modelo humano ideal de "Heróis esclarecidos" que terão ganho o direito de ser na "Ilha de
Vénus recebidos" (C. IX, 95);
• ergue-se contra o adormecimento da pátria, metida "No gosto da cobiça e na rudeza / Duma austera,
apagada e vil tristeza." (C. X, 145).
Mas o poema, acima de tudo, evidencia a grandeza do passado de Portugal: um pequeno povo que
cumpriu, ao longo da sua História, a missão de dilatar a Cristandade, que abriu novos rumos ao conhecimento,
que mostrou a capacidade do Homem de concretizar o sonho.
Ao cantar o heroísmo do passado, poeta pretende mostrar aos seus contemporâneos a falta de
grandeza do Portugal presente, e incentivar o Rei a conduzir os Portugueses para um futuro de novo
glorioso, para uma nova era de orgulho nacional.

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Canto I – Reflexão sobre a fragilidade da condição humana
A reflexão presente no final do Canto I ocupa as estâncias 105 e 106. Nelas, o poeta, na sequência
da emboscada de que a frota havia sido vítima na costa africana, tece considerações sobre a fragilidade e o
valor da vida humana.
Assim, no início da estância 105, sintetiza os acontecimentos anteriormente vividos e denuncia a
hipocrisia dos que, fazendo passar-se por «amigos» (est. 105, v. 1) viriam a revelar-se «inimigos» (est. 105,
v. 3), quando «foi o engano descoberto» (est. 105, v. 4). A falsidade e a dissimulação expostas motivam a
admiração e o espanto do poeta, evidenciados nas interjeições e nas exclamações usadas nos versos da
segunda metade da estância 105. Neste momento do texto, salienta-se, através da hipérbole e da adjetivação,
a intensidade das ameaças ao ser humano, assim como a incerteza e a insegurança que caracterizam o seu
percurso existencial (est. 105, vv. 4-8).
A estância 106 recupera e desenvolve a perspetiva apresentada anteriormente, enumerando, nos
quatro primeiros versos, os perigos a que o ser humano está constantemente sujeito. A estrutura paralelística
dos versos 1 a 4 evidencia não apenas a diversidade («tormenta», «dano», «morte», «guerra», «engano»,
«necessidade») e a intensidade desses perigos («tanta», «tanto», «Tantas»), mas também a sua amplitude,
uma vez que atuam «no mar», da mesma forma que «na terra». Face às ameaças constantes, resta a
constatação do poeta, nos últimos quatro versos da estância 106, de que o ser humano é «um bicho da terra
tão pequeno», um «fraco humano» cuja «curta vida» é constantemente posta em causa pelo «Céu» indignado
e armado. Assim sendo, a interrogação retórica com que encerra a reflexão, associada à anáfora dos versos
5 e 6, expressa a perplexidade e o desalento do poeta face à aparente impossibilidade de o ser humano viver
de forma segura.

Canto V – Crítica à falta de cultura e de apreço pelos poetas que os Portugueses revelam
No final do Canto V. o poeta desenvolve uma reflexão amargurada acerca da relação dos portugueses
com as artes e as letras.
Depois de terminado o relato de Vasco da Gama ao rei de Melinde, e constatado o interesse da
audiência pela História e pelos feitos dos portugueses, o poeta reflete, na estância 92, sobre «o louvor» e a
«justa glória» que merecem os feitos nacionais. Refere que a inveja de grandes feitos passados desperta a
vontade de os imitar, da mesma forma que quem pratica «valerosas obras» (v. 7) se sente estimulado pelo
reconhecimento alheio.
Exemplificando essa ideia, recorda, na estância 93, que o imperador Alexandre, o Grande, valorizava
mais quem exaltava os «feitos gloriosos» de Aquiles através dos seus versos, ou seja, Homero, do que os
próprios atos bélicos (vv. 1-4), da mesma forma que Temístocles se «deleitava» com a «voz» que celebrava
as conquistas de Melcíades (vv. 5-8).
Referindo-se a Vasco da Gama, o poeta salienta, na estância 94, o empenho do capitão português
em mostrar que as anteriores «navegações que o mundo canta» são superadas, em «glória e fama», pela
dos portugueses, capazes de espantar «o Céu e a Terra», os deuses e os homens. Mas lembra que Eneias
é conhecido porque estimou com «dões, mercês, favores e honra» Virgílio, poeta que o cantou em verso e
divulgou a «Romana glória», ou seja, o herói foi exaltado por um poeta que mereceu a sua estima e a sua
consideração.
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Tal, contudo, não acontece na «terra Lusitana», como explica de seguida o poeta na estância 95,
pois, embora nela se encontrem heróis militares, carecem dos dons «cuja falta os faz duros e robustos» e
escasseia-lhes a sensibilidade artística que existia, por exemplo, em Otávio Augusto, imperador romano que
versificava (como o confirmaria Fúlvia, esposa de Marco António, preterida por este em favor de Glafira, que
mereceu versos seus).
Também o imperador César dominou a França sem que os seus dotes com as «armas» fossem
incompatíveis com a «ciência», o saber, realça o poeta no início da estância 96. Deste modo, igualava Cícero
na eloquência, mantendo «numa mão a pena e noutra a lança», ou seja, personificando o herói letrado, capaz
de conciliar a destreza nas armas com o cultivo das letras. Também Cipião se interessava pelas comédias e
Alexandre pela obra de Homero.
Na estância 97, o poeta conclui que apenas os capitães portugueses, ao contrário dos romanos,
gregos ou bárbaros, se não mostraram cultos e que a razão (merecedora de «vergonha») para tal facto se
encontra no desprezo votado a «verso e rima». Como «quem não sabe arte» não a estima, não há quem
valorize através da poesia o que ou quem é «excelente».
E continua a crítica ao desprezo dos portugueses pelas artes e pelas letras, na estância 98,
salientando que esse desprezo, e não a falta de capacidades, é o único responsável pela inexistência de
autores épicos e poderá conduzir também à inexistência de heróis (por não serem devidamente conhecidos
e os seus feitos convenientemente celebrados), num claro enaltecimento do canto como meio de criação e
valorização dos heróis. O «pior de tudo», acrescenta ainda, é que a rudeza e a insensibilidade dos
portugueses os levaram a ficar indiferentes à situação.
Deste modo, segundo o poeta (na estância 99), Vasco da Gama deve apenas ao amor das musas
pela pátria o reconhecimento do seu nome e dos seus feitos, pois nem ele nem os seus descendentes
valorizaram a poesia a ponto de levar as «Filhas do Tejo» a celebrá-los.
Refere, na estância 100, que as Tágides celebram «todo o Lusitano feito» com «amor fraterno»,
«puro gosto» e «respeito» e apela, por fim, a que todos estejam sempre dispostos a cometer «grandes obras»,
já que elas nunca perderão a sua relevância e serão reconhecidas por via literária «ou por qualquer outra
via».

Canto VII – Reflexão sobre os critérios para merecer o canto


A reflexão presente no final do Canto VII parte de uma análise de pendor autobiográfico e dos
lamentos do poeta pelos infortúnios vividos e pela falta de reconhecimento da sua obra pelos seus
contemporâneos para abordar o desinteresse nacional face às letras e terminar com considerações sobre os
critérios para se ser merecedor de canto.
Inicia-se com uma invocação às Ninfas do Tejo e do Mondego, na estância 78, em que o poeta lhes
solicita ajuda para continuar o seu «caminho», literal ou associado ao trabalho de construção da sua epopeia,
«tão árduo, longo e vário» (v. 4), metaforicamente entendido como uma navegação em condições adversas
(«por mar alto, com vento tão contrário», v. 6) e vivida com «grande medo» de que o seu «batel se alague
cedo» (vv. 7-8), ou seja, de que a sua pretensão se torne impossível de concretizar. Sentindo-se «cego»,
«insano e temerário» (vv. 1-2) por perseguir um objetivo de tamanha exigência, o poeta explica, em seguida,
as razões para esse estado de espírito.

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Destaca, nas estâncias 79 e 80, a peregrinação (viagem longa e cansativa) em que se sente viver
(v. 3) enquanto vai «cantando» (v. 1) os portugueses, sujeito a muitos e diversos desafios, no mar e na terra,
que a anáfora de «Agora» realça. Apesar da multiplicidade de perigos a que continuamente se expõe (guerra,
pobreza, degredo, desesperança), resiste levando «Nua mão sempre a espada e noutra a pena» (est. 79, v.
8), de acordo com o modelo de herói letrado que em distintos momentos da epopeia defende.
Todavia o poeta salienta ainda, na estância 81, uma última adversidade, que se junta a todas as
«tamanhas misérias» (v. 2) vividas e que contribui para o seu «duro estado» (v. 8), a sua tristeza e o seu
sofrimento: a ausência de reconhecimento por parte daqueles a quem dedica a sua obra, que, ao invés de
retribuírem o canto com um «prémio» (v. 4) justo e a honra desejada, concorrem para a sua situação difícil.
A constatação de tal atitude leva o poeta, na estância 82, a referir-se, com recurso à ironia, aos
«engenhos de senhores» (v. 1) que desprezam quem os glorifica e a salientar o exemplo negativo que dão a
«futuros escritores» (v. 5) que desejem, através das suas obras, registar feitos dignos de memória.
Face a tantos «males», o poeta, desalentado, reforça, na estância 83, a necessidade do «favor» das
ninfas, já que possui matéria épica («feitos diversos», v. 4), mas não deseja enaltecer quem «o não mereça»
(v. 6) nem louvar figuras importantes que se revelem ingratas.
Nas estâncias 84, 85 e 86, dedica-se, então, a identificar aqueles que, na sua perspetiva, não são
merecedores do canto:
• aqueles que colocam os seus próprios interesses acima do «bem comum, e do seu Rei» (est. 84, v.
2), afrontando a «divina e humana Lei» (est. 84. v. 4);
• os ambiciosos que anseiem «subir a grandes cargos» para porem em prática os seus vícios (est.
84, vv. 5-8);
• os que se servem do poder para satisfazer os seus objetivos impróprios (est. 85, vv. 1-2);
• os hipócritas e dissimulados que se transformam e disfarçam para agradar e satisfazer os seus
desejos (est. 85, vv. 3-4);
• os que, para «contentar o Rei» novo (D. Sebastião), exploram e roubam o povo, (est. 85, vv. 5-8);
• aqueles que defendem «severamente» a lei, mas que não aplicam o mesmo critério de retidão e de
justiça no pagamento do trabalho da «servil gente» (est. 86, vv. 1-4);
• os que, sem experiência, encontram justificações para aplicar impostos excessivos sobre os
«trabalhos alheios» (est. 86, vv. 5-8).
Por fim, identificados os que não se revelam dignos da atenção do poeta, é definido, na estância 87,
o perfil dos que merecem as suas palavras: aqueles que se entregaram ao serviço de Deus ou do rei e que,
através das suas obras, atingiram a «fama». O poeta retoma, deste modo, o ideal de herói apresentado na
Proposição, marcado pela entrega à pátria e pela imortalidade garantida através da consecução de feitos
memoráveis. Tal definição de herói parece remeter, como sugere o recurso ao pretérito perfeito do indicativo,
para os protagonistas dos acontecimentos narrados na epopeia, portugueses de um tempo passado
caracterizados pela ousadia e pela coragem, a que aqueles a quem o poeta se dirige nas suas reflexões de
pendor subjetivo se opõem, como as críticas tornam evidente. No final da reflexão, o poeta alude a Apolo e
às Musas, com quem conta para continuarem a inspirá-lo e, «descansado», retomar o seu trabalho com novo
vigor (vv. 5-8).

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Canto VIII – Crítica ao poder corruptor do dinheiro
No final do Canto VIII, na sequência dos acontecimentos vividos em Calecute, com as traições
sofridas e a cilada dos indianos que determinou a exigência da entrega de mercadorias pelos portugueses,
para que lhes fosse permitido partir, são tecidas considerações sobre o poder corruptor do dinheiro.
Na estância 96, partindo da menção ao «cobiçoso/ Regedor, corrompido e pouco nobre», de quem
Vasco da Gama desconfia, o poeta conclui acerca do «vil interesse» e da «sede immiga» do dinheiro, que
age sobre todos (sugestivamente aludidos através do pronome da primeira pessoa do plural, «nos», no verso
8, e da antítese «rico»/«pobre»), compelindo-os a «tudo».
Para comprovar e ilustrar a sua perspetiva, o poeta recua à Antiguidade, de onde recolhe os exemplos
da força do «metal luzente e louro» apresentados na estância 97:
• o rei da Trácia matou Polidoro, filho de Príamo, que estava ao seu cuidado, para se apoderar do seu
«tesouro»;
• a filha de Acrísio, Dánae, encerrada numa torre pelo seu pai, para evitar que tivesse filhos,
engravidou de Júpiter, transformado em «chuva de ouro»;
• Tarpeia entregou a cidadela romana aos inimigos sabinos, acabando soterrada em ouro.
Retomando a referência ao dinheiro («Este»), que se repetirá, em anáfora, nas estâncias 98 e 99,
para reforçar a intensidade e a diversidade dos seus efeitos, o poeta enumera, em seguida, as consequências
da sua influência, transversais a toda a sociedade. Assim, o dinheiro:
• leva à rendição (até) de fortalezas bem dotadas (est. 98, v. 1);
• transforma os «amigos» em pessoas falsas e traidoras (est. 98, v. 21);
• conduz os «mais nobres» e honrosos a ações mesquinhas (est. 98, v. 3);
• promove a traição e a entrega de «Capitães aos inimigos» (est. 98, v. 4);
• desvirtua a castidade e a pureza (est. 98, vv. 5-6);
• deturpa o saber, o conhecimento, o bom senso e a sensatez (est. 98, vv. 7-8);
• potencia a interpretação ambígua de textos e de leis (est. 99, vv. 1-2);
• origina «perjúrios» (falsidades) (est. 99, v. 3);
• fomenta a tirania dos reis (est. 99, v. 4);
• corrompe e ilude («Até» e «mil vezes») os membros do clero (est. 99, vv. 5-8).

Canto IX – Reflexões sobre o caminho para merecer a fama


No final do Canto IX, e na sequência do desembarque dos portugueses na Ilha dos Amores e do
acolhimento preparado por Vénus e pelas ninfas, o poeta explicita o significado alegórico da ínsula (estâncias
89-91) e reflete sobre a forma de nela ser recebido, ou seja, sobre o percurso que garante a fama e a
imortalidade por ela representadas (estâncias 92-95).
Começando por, na estância 88, associar a ilha e a companhia das ninfas a uma compensação pelos
«trabalhos tão longos» (v. 4) cumpridos pelos portugueses, o poeta explica, em seguida, que o mundo reserva
um «prémio» para os «feitos grandes», marcados pela «ousadia/Forte e famosa» (vv. 5-6), prémio esse que
corresponde à «fama grande e nome alto e subido» (v. 8), ou seja, à notoriedade e à imortalidade.

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É esse o significado da «Ilha angélica» e das ninfas que a povoam, refere-se na estância 89. Elas
oferecem, pois, as «Honras» (v. 4) devidas a quem se torna célebre, as distinções, o triunfo e a glória. Em
suma, «os deleites desta Ilha» (v. 8) correspondem à imortalidade.
Como explica o poeta na estância 90, na Antiguidade era garantida, através da Fama, a quem
praticava «obras valerosas» e se distinguia pelo «trabalho imenso» no «caminho da virtude, alto e fragoso»
(vv. 5-7), num percurso que, no seu final, se revelaria «doce, alegre e deleitoso» (v. 8).
E a imortalidade, lembra o poeta na estância 91, começou por constituir o prémio atribuído a figuras
«de fraca carne humana» (v. 8) pelos feitos «soberanos», que, com «esforço e arte» (v. 3), as levaram a
ascender ao estatuto de deuses. Destaca-se a ideia de que os seres divinos começaram por ser humanos,
que atingiram a maior retribuição possível pelas suas ações ilustres e significativas: tornaram-se para sempre
memoráveis, inesquecíveis, libertando-se, assim, «da lei da Morte» referida na Proposição. Sugere-se, deste
modo, a possibilidade de os homens, e os portugueses em particular, alcançarem a imortalidade e um estatuto
divino, como aconteceu às entidades mencionadas na enumeração dos versos 5 a 8, que exemplificam este
processo de mitificação.
A «Fama», metaforicamente apresentada no primeiro verso da estância 92 como «trombeta» das
grandes obras, assegura a sua divulgação e a elevação dos seus autores a um plano sobre-humano, pelo
que, passando a interpelar diretamente todos os que desejem reconhecimento (através da apóstrofe «ó vós
que as famas estimais», v. 5), o poeta se dedica, em seguida, a enunciar os critérios necessários para o
atingirem. Exortando os que desejam tornar-se «tamanhos» (relevantes e notáveis) a recusar o «ócio» que
escraviza a vontade e a determinação (vv. 7-8).
Orienta-os também, na estância 93, a travar a «cobiça» (v. 1), a «ambição» (v. 2) e a «tirania» (v. 4),
que «Verdadeiro valor não dão à gente» (v. 6). Numa observação pessoal de valor genérico, o poeta lembra
que é preferível ser digno de «honras» e detentor de «ouro» (v. 5) através de uma conduta adequada a
«possuí-los sem os merecer» (v. 8).
Aponta também, na estância 94, a procura da justiça, através de «leis iguais» e imparciais para os
«grandes» e para os «pequenos» (vv. 1-2), em tempo de paz, e a disponibilidade para a luta contra o inimigo
mouro (vv. 3-4) como ideais a perseguir para garantir um reino forte, em que todos possuam as «riquezas
merecidas» (vv. 5-8).
Desse modo, conclui, aqueles a quem se dirige contribuirão para tornar o rei esclarecido e ilustre,
como se refere na estância 95. A anáfora dos versos 2 e 3 realça o contributo equitativamente relevante dos
«conselhos» e das «espadas», do saber e da arte da guerra, para a obtenção da imortalidade já conseguida
pelos antepassados. A reflexão termina com um último conselho: cada um deve procurar cumprir o que
deseja, não criando «impossibilidades» (v. 5), pois «quem quis», lembra o poeta, «sempre pôde» (v. 6). Desse
modo, elevar-se-á ao patamar dos «Heróis esclarecidos» (v. 7) e será merecedor da receção na «Ilha de
Vénus» (v. 8), com o significado alegórico explicitado nas estâncias iniciais da reflexão.

Canto X – Crítica aos Portugueses seus contemporâneos / Apelo ao Rei


Na última reflexão do poeta em Os Lusíadas, coincidente com as estâncias finais da obra, Camões
lamenta-se, uma vez mais, pelo menosprezo votado à sua obra pelos portugueses, dirige críticas à pátria e
encerra a obra com uma exortação ao Rei D. Sebastião.

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Tendo concluído a narração dos eventos associados à viagem de Vasco da Gama, o poeta inicia as
suas considerações finais dirigindo-se à sua «Musa», na estância 145. Expressa a intenção de não continuar
a sua obra, por ter «a Lira [...]/ Destemperada e a voz enrouquecida» (vv. 1-2), metáforas através das quais
confessa a sua desilusão e o seu cansaço, cujos motivos associa não ao canto e ao seu trabalho de
composição, mas ao facto de «cantar a gente surda e endurecida» (v. 4), ou seja, indiferente e insensível aos
seus versos. Com tal referência, critica os seus contemporâneos e, em termos gerais, a pátria, que, «metida/
No gosto da cobiça e na rudeza/ Dhua austera, apagada e vil tristeza» (vv. 6-8), dominada pela ganância,
pela vileza e pela melancolia, não retribui nem estimula o talento.
Na estância 146, acrescenta que manifesta o orgulho necessário para enfrentar os trabalhos com
vontade e alegria (vv. 1-4). Ainda nesta estância, o poeta inicia uma interpelação ao «Rei», que o ocupará
até ao término da epopeia. Depois de salientar a intervenção divina que conduziu D. Sebastião ao trono,
apela a que o monarca atente nos seus súbditos, comparando-os com «as outras gentes» (v. 7), e traça-lhe
um retrato dos seus «vassalos excelentes» (v. 8).
Nas estâncias 147 e 148, os portugueses são descritos como corajosos, destemidos e personificando
o espírito de sacrifício face aos diversos perigos que continuamente enfrentam, elencados na enumeração
dos versos 3 a 8 da estância 147, que enfatiza a sua ousadia e a sua resistência. São ainda caracterizados
como abnegados, «obedientes», prestáveis e preparados para aceder aos desejos do seu rei, «contentes»
por poder satisfazê-lo e humildes nesse serviço de o tornar «vencedor» na luta contra todos os perigos (est.
148).
Na estância 149, o poeta solicita ao monarca que, dada a excelência de tais vassalos, os favoreça
com a sua humanidade, aliviando-os de leis severas (v. 3) e promovendo os mais experientes, conhecedores,
por contacto direto, das circunstâncias em que ocorrem as «cousas» (vv. 5-8).
Pede-lhe também, na estância 150, que favoreça cada um de acordo com o seu «talento» e os «seus
ofícios» (vv. 1-2), dando o exemplo dos «Religiosos» que, nas suas ocupações, devem rezar por todos e
penitenciar-se «pelos vícios / Comuns», rejeitando qualquer «ambição» e abdicando de bens materiais.
Quanto aos «Cavaleiros», o poeta requer ao rei, na estância 151, que os estime, uma vez que, com
a sua coragem e audácia, dilatam a Fé e o Império (vv. 1-4) e, sujeitando-se dedicadamente à expansão,
vencem dois «inimigos»: os «vivos», os adversários que enfrentam no cumprimento da sua missão, e «os
trabalhos excessivos», mais numerosos e significativos.
Nos últimos pedidos dirigido a D. Sebastião, o poeta solicita-lhe, na estância 152, que promova os
portugueses perante outras nações, de modo que se difunda a ideia de que não são apenas «pera mandados»
(bons súbditos), mas que têm competências «pera mandar» (vv. 1-4), e que se aconselhe com homens
«esprimentados» (v. 5). Para justificar a valorização da experiência (já introduzida na segunda metade da
estância 149), destaca-se a supremacia do saber prático dos que efetivamente «viram», durante um período
de tempo significativo para a aprendizagem empírica («largos anos, largos meses», v. 6), sobre o saber
teórico dos «cientes» (v. 7).
Na estância 153, são apresentados como exemplos Formião e Aníbal, filósofo e general,
respetivamente, e a reação de escárnio do segundo aos discursos do primeiro sobre a guerra, por carecerem
do conhecimento que apenas a realidade concreta, e não a «fantasia» (v. 6), propicia. De facto, sintetiza o
poeta, a «disciplina militar» (v. 5) útil e proveitosa não se adquire «Sonhando, imaginando ou estudando» (v.

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7), mas através da experiência sensorial, contactando fisicamente com o mundo, «vendo, tratando e
pelejando» (v. 8).
A partir da estância 154, o poeta centra o discurso em si próprio, sugerindo, através da interrogação
retórica dos versos 1 e 2 desta estância, uma autocensura por se surpreender a orientar o rei, não passando
ele de um homem «humilde, baxo e rudo» (v. 1). Ainda assim, lembra, são por vezes os «pequenos» quem
produz os melhores louvores (vv. 3-4) e salienta as qualidades pessoais que fazem de si uma voz credível:
conjuga o «honesto estudo» com a «longa esperiencia» e o «engenho» (vv. 5-7), personificando, com este
perfil, o guerreiro letrado que «raramente» se encontra (v. 8). Tal como já fizera em momentos anteriores da
epopeia, o poeta retoma a defesa do herói que leva «nua mão a pena e noutra a lança» (Canto V. est. 96, v.
3).
Na estância 155, reforça a sua disponibilidade para servir D. Sebastião com a sua destreza nas
«armas» e com a sua «mente» oferecida «às Musas» (vv. 1-2), ou seja, com o seu canto. No final da obra,
ainda nesta estância, manifesta o desejo de ser reconhecido pelo rei (vv. 3-4) e, caso aquele se dedique a
«empresa» digna «de ser cantada» (v. 6), ou seja, concretize os feitos merecedores de relato épico que a sua
«inclinação divina» fazia antecipar (vv. 7-8), nomeadamente investindo contra os mouros.
Como referido na estância 156, dispõe-se a celebrá-lo e a lembrá-lo «em todo o mundo» (v. 6)
através dos seus versos, como um Alexandre Magno que não tivesse inveja de Aquiles, por ter encontrado
quem também registasse em epopeia as suas façanhas (vv. 5-8).

3. A mitificação do herói épico

Quem é o herói épico?


Camões apresenta na Proposição aquele que será o protagonista da epopeia, "o peito ilustre
lusitano", ou seja, Os Lusíadas, os Portugueses que realizaram grandes feitos. É um herói coletivo,
composto por um friso de heróis individuais – Vasco da Gama e os marinheiros, no plano da viagem, os
Reis e os heróis que realizaram "obras valerosas", no plano da História de Portugal.

Como é mitificado o herói?


O "bicho da Terra tão pequeno", referenciado no final do Canto I, é o Homem na sua condição de
fragilidade face aos perigos que permanentemente o ameaçam. Ora, os Portugueses, comandados por Vasco
da Gama, levam a cabo uma luta sem tréguas contra os perigos que se colocam na frente do seu sonho e,
com coragem e audácia, conseguem vencê-los. Ousam navegar por " mares nunca dantes navegados" e,
face ao mais temível de todos os perigos, o desconhecido, personificado pelo Gigante Adamastor, vencem o
próprio medo, pela voz de Vasco da Gama que se ergue, apesar das terríveis ameaças.
A viagem que empreendem é a do caminho marítimo para a Índia, mas representa muito mais
do que uma viagem geográfica. É a viagem do confronto com os limites, do desvendamento dos
segredos escondidos, a viagem do conhecimento.
Ultrapassando todos os obstáculos, os nautas ultrapassaram-se a si mesmos, ultrapassaram a sua
condição de "bichos da Terra tão pequenos", concretizando o lema renascentista da crença nas

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capacidades do Homem. Afinal, a sua inquietação e ambição, tão condenadas pelo pessimismo do Velho
do Restelo, levaram-nos a bom porto, ao porto sonhado.
Por isso merecem o prémio
devido aos heróis, aportam à Ilha dos
Amores, o espaço do sonho concretizado,
onde o Homem, colocado ao nível dos
Deuses, alcança o Amor, a Beleza, a
Felicidade e a Harmonia absolutas.
Espaço do Homem realizado em
plenitude, do conhecimento, representado
na Máquina do Mundo, a ele têm acesso
apenas aqueles que, superando a sua
própria condição, chegam "além do que
prometia a força humana". A recompensa que recebem é de uma natureza que nenhum bem material pode
igualar, é o prémio da imortalidade, venceram a "lei da morte", unindo-se às ninfas e recebendo
simbolicamente as coroas de louros dos heróis divinizados.
Afinal os Portugueses realizam-se como povo predestinado, escolhido desde o milagre da batalha
de Ourique, e cujo destino é reafirmado por Júpiter no Consílio dos Deuses. A "gente ousada, mais que
quantas / No mundo cometeram grandes coisas" como afirma o Gigante Adamastor, é a gente mitificada no
poema de Camões.

4. A antiepopeia
A riqueza do poema está também precisamente nesta vertente didática e interventiva, nesta
capacidade de Camões de mostrar o outro lado da epopeia – a antiepopeia. Na verdade, nos momentos em
que o poeta tece críticas aos Portugueses ou quando deixa conselhos aos seus contemporâneos, a matéria
épica e o canto sublime dão lugar à antiepopeia, isto é, ao reconhecimento e à condenação da vileza, da
miséria humana, do parasitismo.

“Sem dúvida, Os Lusíadas são um texto renascentista. Proveniente do espírito otimista do


Renascimento e da sua inspiração humanista, têm o calor dum ato de fé nas capacidades
humanas. Mas não são apenas isso. Digamos que se trata de um poema bifronte, onde o sopro
épico é contrariado por uma voz antiépica. Há uma outra face do poema, uma outra voz através
da qual se ouve não já a confiança mas a dúvida.
Observemos mais de perto. Como se viu, Os Lusíadas são um poema de glorificação dos
portugueses enquanto nação, coletividade. Para isso, o poeta desenrola perante o leitor uma
história de Portugal como epopeia, selecionando os episódios e as figuras de modo a fazer
avultar o lado heroico e exemplar da nossa história. [...] Além disso, através da exaltação dos
portugueses, o poema tende à universalidade: glorifica não apenas estes ou aqueles homens,
mas o homem: a sua capacidade realizadora, descobridora – e a aventura das descobertas é a
prova recente e magnífica dessas capacidades [...].

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Mas, mais ainda, Os Lusíadas glorificam a capacidade de alargar e aprofundar o saber; a
realização plena do homem no que respeita ao amor; e por fim (talvez o mais importante) o poder
de edificar a vida face ao destino. Não ser vítima de uma qualquer fatalidade. Libertar-se. Edificar
o seu próprio destino.
Por isso, um dos temas épicos mais importantes consiste na comparação sistemática com os
modelos antigos, tema que tem o apogeu na divinização dos heróis.
Mas o poema tem outra face. Camões não é apenas o aedo 1 que exalta e glorifica. É também
a consciência crítica que faz o diagnóstico lúcido e sombrio duma decadência que se aproxima.
Não desconhece nem esconde os erros, os defeitos e os crimes de tantos portugueses. No final
do Canto VII denuncia com mágoa a hipocrisia o espírito de adulação, o abuso do poder, a
exploração dos humildes; e têm um sabor de ironia amarga os versos em que se queixa da
ingratidão dos contemporâneos.”

1
Aedo – poeta.
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