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As reflexões do poeta- O poder corruptor do dinheiro

4 reflexão

Contextualização

• No início deste canto (estâncias 3 a 14), Camões elogia os portugueses, porém, no


final, o seu tom é de crítica. Esta aparente contradição explica-se se tivermos em
conta que os Portugueses que o Poeta elogia e apresenta como exemplo, são os
heróis do passado, com Vasco da Gama à cabeça. No entanto, os portugueses
criticados são os contemporâneos de Camões, que, aparentemente, esqueceram o
heroísmo e a grandeza dos seus antepassados.

• Os lusitanos chegam a Calecute e, por esse motivo, o Poeta elogia a expansão


portuguesa pelo espírito de cruzada, na dilatação da fé pelo mundo, enquanto
critica as nações europeias do seu tempo, por não seguirem o exemplo português.
Além de descrever a Índia, Camões também relata os primeiros contactos entre os
Portugueses e os indianos.

• Vasco da Gama e os companheiros são recebidos pelo Catual e depois pelo


Samorim. Quando o Catual visita as naus, fica surpreendido ao vê-las todas
embandeiradas e pede a Paulo da Gama que lhe explique o significado das figuras
portuguesas que aí estão representadas, enquanto seu irmão, Vasco da Gama, é
recebido no palácio do Samorim. Paulo da Gama prepara-se para satisfazer o desejo
do Catual e narrar episódios da História de Portugal, no entanto Camões
interrompe a narração e invoca as ninfas do Tejo e do Mondego para o auxiliarem
nessa árdua tarefa.

Lamentações do poeta

• Num discurso nitidamente autobiográfico, refere-se à sua vida cheia de


adversidades (a pobreza, os perigos do mar e da terra, etc.).

• Lamenta a ingratidão daqueles que tem cantado em verso e dos nobres


portugueses
por desprezarem as artes, por não valorizarem o seu talento.

• Como consequência dessa ingratidão, outros poetas poderão inibir-se de cantar


os feitos futuros.
• Recusa cantar aqueles que sobrepõem os seus interesses ao bem comum e do
Rei, os que são dissimulados ou exploram o povo.

Objetivo do Poeta: cantar o verdadeiro herói – aquele que arrisca a sua vida, colocando-
a ao serviço de Deus e da Pátria, merecendo, assim, a imortalidade.

Reflexão do Poeta

• O Poeta invoca as ninfas do Tejo e do Mondego, lamentando-se pelos infortúnios


da vida, enquanto critica duramente os opressores e exploradores do povo.

Acontecimento motivador da reflexão

• pedido do Catual a Paulo da Gama para que lhe explique o significado das figuras
desenhadas nas bandeiras da nau.

Estrutura interna da reflexão

• Este excerto de Os Lusíadas pode dividir-se em quatro momentos:

1.º momento (estância 78):


1. A invocação: “Vós, Ninfas do Tejo e do Mondego”;

2. Objetivo: pedir às Ninfas que lhe deem inspiração para a composição da obra
(“Vosso favor invoco”);

3. Razões do pedido: o receio de que, sem a inspiração das Ninfas, não seja capaz
de cumprir o seu propósito (“Que, se não me ajudais, hei grande medo / Que o
meu fraco batel se alague cedo”).
2.º momento (estâncias 79 ‑ 81): Argumentos do poeta:

1. O poeta já canta, há muito tempo, os feitos dos portugueses (“o vosso Tejo e os
vossos Lusitanos”) ‑ os longos anos a escrever sobre os portugueses;

2. Trabalhos e danos que enfrentou:

a) os perigos e as aventuras / viagens do / pelo mar (79, v. 5);

b) os perigos / a participação da / na guerra (79, v. 6);

c) a errância pelo mundo;

d) a pobreza sofrida no Oriente (80, v. 1);

e) o desterro e os trabalhos passados em regiões estranhas (80, v. 2);

f) as esperanças e as desilusões (80, vv. 3-4);

g) os perigos das navegações: o naufrágio que sofreu (80, vv. 5-8);

h) a ingratidão (81) dos senhores (82, v. 1) que o poeta cantava e que, em


vez de honra e glória, lhe inventaram novos trabalhos (81, vv. 7-8),
levando os poetas do futuro a desistir de cantar os feitos que mereçam
“ter eterna glória”.

3.º momento (estâncias 82 a 86) – Crítica ao exercício do poder:

‑ Acesso desonesto ao poder:

• a ambição;
• o interesse pessoal;
• a simulação.

‑ Mau exercício do poder:

• roubo do povo;
• pagamento injusto do trabalho.

4.º momento (estância 87):


a) Intenção do Poeta: cantar aqueles que arriscam a sua vida e a colocam ao serviço de
Deus e da Pátria / do Rei e, por isso, merecem a imortalidade;
b) Por oposição, nas estâncias 84 a 86, enumerou aqueles que não cantará:
i) os que colocam o interesse pessoal à frente do bem comum e do
interesse do rei;
a) ii) os ambiciosos que ascendem ao poder para se servir a si mesmos e abusam
desse poder;
b) iii) os dissimulados;
c) iv) os que exploram o povo.

Análise da reflexão

• A narrativa que estava a ser feita é interrompida, interrupção essa marcada pela
conjunção coordenativa adversativa «mas»: “Um ramo na mão tinha… Mas, ó
cego,…”.
• Na estância 78, o Poeta autocaracteriza-se como “cego”, “insano e temerário”
(dupla adjetivação), aventureiro e receoso do “caminho tão árduo, longo e vário”
(tripla adjetivação, exclamação e metáfora) por que se vai aventurar, isto é,
mostra ter medo de não ser capaz de concluir um projeto tão completo: narrar
novos episódios da História de Portugal, agora pela voz de Paulo da Gama, ao
Catual de Calecute, a pedido deste e a propósito dos símbolos das bandeiras.

• Assim, o Poeta invoca, em simultâneo, as ninfas do Tejo e do Mondego (apóstrofe


do verso 3, estância 78), solicitando-lhes inspiração para continuar a tarefa:
escrever esta epopeia. A leitura das restantes estâncias deste passo de Os
Lusíadas sugere que, além do já exposto, o Poeta se sente desalentado, por isso
necessita de um reforço de inspiração, daí dirigir-se, em simultâneo, às ninfas do
Tejo e do Mondego.
• Nos últimos quatro versos da estância 78, Camões faz uso de uma imagem para
“justificar” a invocação (“Vosso favor invoco” – v. 5) dirigida às ninfas: a sua
empresa / tarefa reveste-se de tal magnitude e é de tal monta que, se as ninfas
não o auxiliarem, ele receia não conseguir levá-la a cabo – a de cantar os feitos
gloriosos dos Portugueses. Camões admite que sente tantas dificuldades em
escrever (“vento tão contrário”) que teme não conseguir terminar a sua tarefa
(“o meu fraco batel se alague cedo”).

• Quais são, em suma, os motivos do desalento do Poeta?

1. A escrita do poema épico é difícil, morosa e exigente (“Olhai que há tanto


tempo que, cantando…”).

2. Vive sem apoios e é desconsiderado – a ingratidão dos seus


contemporâneos (“Pelo alto mar, com vento tão contrário…” – metáfora;
“Trabalhos nunca usados me inventaram.”).

3. Sofre (“… hei grande medo.”).

4. Está desanimado.

• De seguida, entre as estâncias 79 e 80, o Poeta, numa reflexão de tom


marcadamente biográfico (atestado pelo uso da primeira pessoa e pelo conteúdo
biográfico), salienta que tem vindo sempre a cantar os feitos lusos e, em
simultâneo, luta pela sua pátria e elenca as dificuldades, os obstáculos e os
perigos que tem enfrentado/sofrido/corrido:

1. as aventuras / os perigos no mar e na terra, como, por exemplo, a guerra


(“Os perigos Mavórcios inumanos”; “A Fortuna me traz peregrinando”, isto
é, em constante viagem);

2. os infortúnios do Destino (“A Fortuna me traz peregrinando” → o Destino


fê-lo percorrer o mundo);
3. a pobreza, a miséria (“Agora, com pobreza avorrecida”);

4. a condenação ao degredo em terras estranhas para o Poeta (“Por hospícios


alheios degradado”);

5. os naufrágios (“Agora às costas escapando a vida” → referência ao


naufrágio sofrido pelo Poeta em 1558, na foz do rio Mecon, onde quase
perdeu Os Lusíadas);

6. as desilusões (“Agora, da esperança já adquirida, / De novo mais que nunca


derribado”).

• A anáfora do advérbio de tempo «agora» traduz a multiplicidade de perigos e


sofrimentos enfrentados pelo Poeta: a pobreza, o degredo, a esperança, a vida
em risco.

• No final da estância 79, o Poeta compara-se a Cânace, filha de Éolo, personagem


mitológica que se suicidou e escreveu ao irmão Macareu uma carte de despedida,
com a pena na mão direita e a espada na outra (segundo Ovídio, baseado em
Eurípides, Cânace foi obrigada pelo pau, que lhe enviou uma espada, a cometer
suicídio como punição pelo facto de ter mantido uma relação incestuosa com o
irmão, da qual nasceu uma criança que foi morta pelo avô, que a lançou aos cães).
Essa comparação aponta para o facto de o Poeta aliar à sua coragem na guerra a
sua faceta de artista (estância 79, vv. 7-8). A espada simboliza as batalhas em que
o Poeta participou, o seu lado guerreiro, enquanto a pena remete para a sua obra
literária, para a arte, para a escrita.

• No último verso da estância 80, a expressão “o Rei judaico” refere-se a Ezequias,


rei de Judá, que, sabendo da morte iminente, pediu a Deus mais quinze anos de
vida. Através da referência ao milagre bíblico de Ezequias, o Poeta mostra que o
naufrágio que sofreu colocou a sua vida em perigo de tal maneira que o facto de
se ter salvado foi igualmente milagroso.

• Na estância 81, finalizada a enumeração dos infortúnios que pautaram a sua vida,
introduz um novo a que dá destaque através do articulador «ainda», criando a
sensação de instabilidade: o Poeta louva os Portugueses no seu canto, mas os seus
contemporâneos, em vez de o premiarem, pelo contrário, ingratos, não o honram
nem sentem ingratidão pela sua tarefa, antes lhe “inventaram” novos trabalhos e
privações. Deste modo, podemos concluir que os Portugueses contemporâneos
são os responsáveis pelo sofrimento e pelo desencanto do Poeta.

• No contexto da enumeração, destaca-se outro recurso expressivo – a antítese


entre a Realidade e o Sonho:
misérias prémio
trabalhos descansos
duro estado capelas de louro
sofrimento honra
| |
Realidade Sonho

Irrealizável

• Na estância 82, de forma ironia, através de uma apóstrofe, dirige-se novamente


às ninfas, destacando a oposição entre a política e a cultura e a oposição entre
“senhores” e escritores. Os “valerosos” senhores de Portugal, em vez de
acarinharem e glorificarem aqueles que, como ele, através da poesia/arte, cantam
os feitos ilustres dos Portugueses, os maltratam, são ingratos.

• Quais são as consequências da atitude dos guerreiros nobres portugueses?


1. Desmotivação dos poetas e dos escritores, que se sentirão inibidos de
cantarem os feitos lusos.

2. Falta de escritores para perpetuar as façanhas dos heróis.

3. Perda da memória coletiva.

Assim, Camões procura a incultura, o desinteresse pela arte a ingratidão dos


Portugueses. Dito de outra forma, os grandes senhores não amam a poesia nem
incentivam as artes, o que fará com que os grandes feitos do futuro não sejam cantados
e, portanto, deles não fique memória. Critica ainda a ambição desmedida e o facto de
sobreporem os seus interesses aos do “bem comum e do seu Rei”, a dissimulação, o
abuso de poder e a exploração do povo.

• Na estância 83, Camões apresenta-se desmotivado e invoca o «favor» das ninfas


para engrandecer a fama da sua pátria, mas jura não louvar quem não merece:
“… que eu tenho já jurado / Que não no empregue em quem o não mereça”.

• Porquê? Porque, mesmo que louve um “subido”, um senhor, tem a certeza de que
não será reconhecido: “Nem por lisonja louve algum subido, / Sob pena de não
ser agradecido.”

• Entre as estâncias 84 e 86, o Poeta enumera aqueles que recusa cantar:

1. Os que se centram apenas nos seus interesses pessoais, esquecendo-se do


bem comum (o rei e a pátria): “… que fama desse / A quem ao bem comum
e do seu Rei / Antepuser seu próprio interesse, / Imigo da divina e humana
Lei.”

2. Os ambiciosos, que pretendem obter cargos de poder a fim de serem ainda


mais tiranos e prepotentes: “Nenhum ambicioso que quisesse / Subir a
grandes caros, cantarei, / Só por poder com torpes exercícios” (= atos de
corrupção).

3. Os falsos, corruptos, manipuladores e hipócritas, que mudam de atitude


conforme os seus objetivos: “Nenhum que use de seu poder bastante /
Pera servir a seu desejo feio, / E que, por comprazer ao vulgo errante, / Se
muda em mais figuras que Proteio.” (= para agradar ao povo, facilmente
influenciável; Proteu era uma divindade marítima que tinha o poder de se
metamorfosear, tomando as formas que mais lhe convenham – neste caso,
através dele o Poeta critica aqueles que mudam de comportamento
conforme as circunstâncias).

4. Os manipuladores e os dissimuladores, que convencem o rei a roubar o


povo, apoderando-se dos seus parcos bens: “Quem, com hábito honesto
e grave, veio, / Por contentar o Rei, no ofício novo, / A despir e roubar o
pobre povo.” (= para agradar ao rei, que é ainda jovem e inexperiente na
governação).

5. Os que aplicam a lei de forma injusta, conforme a classe social dos


destinatários: “Nem quem acha que é justo e que é direito / Guardar-se a
lei do rei severamente…” (= aplicar a lei régia com excesso de zelo).

6. ▪ Os que não reconhecem o trabalho do povo e lhe recusam o salário: “E


não achaque é justo e bom respeito / Que se pague o suor da servil
gente…”.

7. ▪ Os que não têm experiência e não valorizam o trabalho dos outros ou o


julgam deforma injusta: “Nem quem sempre, com pouco experto peito, /
Razões aprende [= inventa pretextos], e cuida que é prudente, / Pera taxar,
com mão rapace e escassa, / Os trabalhos alheios que não passa.” (= para
aplicar impostos com mão que rouba e é avarenta).

• A enumeração presente nestas estâncias evidencia:


- os tipos humanos que o Poeta se recusa a cantar;
- a intencionalidade crítica, com a denúncia dos vícios da sociedade;
- a expressão do desalento, provocada pela subversão de valores da sociedade
sua contemporânea.

• As várias referências ao Rei nestas estrofes pretende destacar a forma como os


que aconselham o rei devem agir, adotando um comportamento politicamente
ético, sem corrupção e tendo sempre em consideração o interesse comum.

• Em suma, nestas três estâncias, o Poeta revela que tem consciência sobre a
realidade cultural e social do seu tempo, por isso critica
→ a ambição desmedida,
→ a hipocrisia,
→ a injustiça,
→ o oportunismo.
• Na última estância desta reflexão, o Poeta mostra-se disposto a cantar quem
merece.

• Quem vai ele cantar?


- Os heróis do passado, pelo seu caráter e feitos (atente-se no uso das formas
verbais no pretérito perfeito: “aventuraram”, “dilataram”).

• Qual o motivo?
- Esses heróis dilataram a fé e o império.

• Quais são as suas características?

Coragem.
Ousadia.
Determinação.
Espírito de sacrifício.
Abnegação.

Merecem a fama e a glória.
A imortalidade.

Contraste com o caráter ou a essência dos contemporâneos.
• Após este “desabafo”, o Poeta sente-se mais animado e confiante para continuar
a obra. Tem a certeza do apoio de Apolo, deus da poesia, e das Musas, que não o
desamparam, para lhe reforçarem o ânimo.

• As formas verbais no futuro (“dobrarão”, “direi”) do indicativo sugerem a intenção


de o Poeta dar continuidade à sua obra épica, comprometendo-se a louvar apenas
quem, no seu entender, for digno de tal.

Modelo de herói
Para Camões, o modelo de herói corresponde à figura de guerreiro e culto,
dedicado às letras, isto é, que concilia, simultaneamente, essas duas funções.
Por outro lado, esse modelo é o oposto dos guerreiros nobres seus
contemporâneos, que são ignorantes.

Discurso da reflexão
Discurso autobiográfico:
- Reflexão sobre a vida pessoal, marcada por vários e diferentes infortúnios.
- O Poeta como vítima da ingratidão e do menosprezo dos seus contemporâneos.

Discurso crítico:
- Reflexão sobre a realidade cultural da nação.
- Ignorância e desprezo pelas artes.
- Falta de grandeza moral dos seus contemporâneos.
- Homens subordinados aos vícios.

Discurso laudatório:
- Engrandecimento do herói do passado, que se distingue e eleva por mérito próprio.
- Apresentação do ideal de herói.

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