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Reflexões do Poeta n’Os Lusíadas

CANTO I

O poeta indica o assunto global da obra, pede inspiração às Ninfas do Tejo e dedica o
poema ao rei D. Sebastião. Na estrofe 19, inicia a narração da viagem de Vasco da Gama à
Índia, referindo brevemente que a Armada já se encontra no Oceano Índico no momento em que
os deuses do Olimpo se reúnem em Consílio convocado por Júpiter para decidirem se os
portuguese deverão chegar à Índia. Apesar da oposição de Baco e graças à intervenção de
Vénus e Marte, a decisão é favorável aos portugueses que entretanto chegaram à Ilha de
Moçambique. Aí Baco prepara-lhes várias ciladas que culminam no fornecimento de um piloto
por ele industriado a conduzi-los ao perigoso porto de Quíloa. Vénus intervém, afastando a
armada do perigo e fazendo-a retomar o caminho certo até Mombaça. No final do Canto, o
poeta reflecte acerca dos perigos que em toda a parte espreitam o homem.

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O recado que trazem é de amigos,
Mas debaixo o veneno vem coberto,
Que os pensamentos eram de inimigos,
Segundo foi o engano descoberto.
Ó grandes e gravíssimos perigos,
Ó caminho de vida nunca certo,
Que aonde a gente põe sua esperança
Tenha a vida tão pouca segurança!

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No mar tanta tormenta e tanto dano,
Tantas vezes a morte apercebida!
Na terra tanta guerra, tanto engano,
Tanta necessidade avorrecida!
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?

Reflexão do Poeta:

Sempre inconformado com a decisão dos deuses do Olimpo, e depois de ter falhado várias
ciladas contra os portugueses, Baco faz uma última tentativa. Quando a armada de Vasco da
Gama se dirige ao porto de Mombaça, avisa o rei daquela cidade e influencia-o no sentido de
destruir os portugueses, ao mesmo tempo que um piloto falso convencia Vasco da Gama da
existência de cristãos em Mombaça.
Depois de ter contado estes perigos a que a armada esteve e está sujeita – ciladas, hostilidade
disfarçada que reduz as defesas e cria esperanças – o poeta interrompe a Narração para
expor as suas reflexões sobre a insegurança da vida.
De facto, as traições e perigos a que os navegadores estão sujeitos justificam o desabafo do
poeta sobre a fragilidade da condição humana que submete o homem a inúmeros e permanentes
perigos.
O poeta expõe, de forma dramática, as suas reflexões, lastimando o perigo, a incerteza e a
insegurança a que a frágil condição humana está permanentemente exposta, em toda a parte,
sem abrigo ou porto seguro.
Não será por acaso que esta reflexão surge no final do Canto I, quando o herói ainda tem um
longo e penoso caminho a percorrer. Ver-se-á no Canto X, até onde a ousadia , a coragem e o

1
desejo de ir sempre mais além pode levar o “bicho da terra tão pequeno”, tão dependente da
fragilidade da sua condição humana.

PARA REFLECTIR…

No início do poema Os Lusíadas, Camões refere, orgulhosamente, o homem como sendo


capaz de ir além do que “prometia a força humana” (est. 1, v.6). Agora, neste final de canto,
apresenta o mesmo homem como “um bicho da terra tão pequeno”. O poeta contradiz-se?
A contradição reside na própria vida humana? Poder-se-á falar, com propriedade, em
grandeza e pequenez do homem? Em que reside a grandeza? De que advém a pequenez?

Para uma síntese das Reflexões do Poeta:

Os Lusíadas são uma epopeia na qual se reflecte o optimismo do Renascimento, crente


nas capacidades do homem. Por isso, o herói liberta-se da sua pequenez humana de “bicho da
terra” e, através da ousadia e da coragem, ascende a um estádio superior, digno dos deuses.

No entanto, não é apenas a visão optimista do homem aquela que está patente na obra.
A verdade é que, a par da glorificação dos heróis que fizeram grande a Pátria e o homem e
devem, por isso, servir de exemplo, está presente um desencanto e um pessimismo do poeta que
olha para o Portugal seu contemporâneo com tristeza, nostalgia e desalento. Não podemos
esquecer que Camões publicou Os Lusíadas, 74 anos depois da viagem de Vasco da Gama, num
momento em que o Império português estava já em decadência e um futuro negro se pressentia.

Esse pessimismo está patente sobretudo nas reflexões do poeta, no final dos cantos I, V,
VI, VII, VIII, IX e X.

Nas suas reflexões, o poeta perseguido pela sorte e desprezado pelos seus
contemporâneos, assume o papel humanista de intervir, de forma pedagógica, na vida
contemporânea. Por isso:

 Critica a ignorância dos homens de armas e o seu desprezo pela cultura (Canto
V);
 Denuncia o desprezo pelo bem comum, a ambição desmedida, o poder exercido
com tirania, a hipocrisia dos aduladores do rei, a exploração do povo (Canto
VII);
 Denuncia o poder corruptor do ouro (Canto VIII);
 Propõe um modelo humano ideal de “Heróis esclarecidos” que terão ganho o
direito de ser na “Ilha de Vénus recebidos” (Canto IX, est. 95);
 Ergue-se contra o adormecimento da pátria, metida “No gosto da cobiça e na
rudeza / Duma austera, apagada e vil tristeza”. (Canto X, est. 145).

Mas o poema, acima de tudo, evidencia a grandeza do passado de Portugal: um pequeno


povo que cumpriu, ao longo da sua História, a missão de dilatar a Cristandade, que abriu novos
rumos ao conhecimento, que mostrou a capacidade do homem de concretizar o sonho.

Ao cantar o heroísmo do passado, o poeta pretende mostrar aos seus


contemporâneos a falta de grandeza do Portugal presente, e incentivar o rei a conduzir os
portugueses para um futuro de novo glorioso, para uma nova era de orgulho nacional.

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CANTO V

Vasco da Gama prossegue a sua narrativa ao rei de Melinde, contando agora a viagem
da Armada, de Lisboa a Melinde. É a narrativa da grande aventura marítima, em que os
marinheiros observaram maravilhados ou inquietos o Cruzeiro do Sul, o Fogo de Santelmo ou a
Tromba Marítima e enfrentaram perigos e obstáculos enormes como a hostilidade dos nativos,
no episódio de Fernão Veloso, a fúria de um monstro, no episódio do Gigante Adamastor, a
doença e a morte provocadas pelo escorbuto. O canto termina com a censura do poeta aos
seus contemporâneos que desprezam a poesia.
Terminada a narrativa da viagem de Lisboa até Melinde, feita por Vasco da Gama, o
poeta interrompe a narrativa para uma oportuna reflexão: os heróis da Antiguidade
realizaram grandes feitos, mas apenas foram imortalizados porque os poetas os cantaram. E
houve poetas para os cantarem, porque eles próprios valorizavam a poesia. Tal não acontece em
Portugal, onde os grandes senhores desprezam a poesia e os poetas.
Segundo o poeta, os feitos heróicos, ao serem glorificados em verso, servem de
exemplo e inspiração àqueles que querem igualar ou suplantar esses feitos. Funcionam como
um incitamento à acção heróica. O melhor exemplo disso é que os grandes heróis do passado
tomavam como exemplo os feitos de outros heróis cantados pelos poetas e trabalhavam para
merecerem ser cantados.
O caso português, e que leva a este desabafo por parte do poeta, é que, ao contrário dos
heróis da antiguidade, que amavam a poesia e por isso nela se inspiravam, os heróis portugueses
são incultos sendo que lhes é indiferente que se escreva sobre os seus feitos.
Nas duas últimas estrofes, o poeta critica e oferece uma explicação para algo que é,
aparentemente, contraditório: é que esta obra, Os Lusíadas, louva precisamente Vasco da
Gama que não preza a poesia tal como os outros da sua estirpe.
Esta obra tem um carácter pedagógico, a pedagogia humanista, a qual se revela,
particularmente, a partir deste Canto V. Esta epopeia pretende mostrar a capacidade de
realização do Homem, a vitória sobre a natureza adversa, o alargamento dos limites do saber. O
poeta propõe aos portugueses modelos de perfeição humana conjugando, por exemplo, “as
armas e as letras”.

92
Quão doce é o louvor e a justa glória
Dos próprios feitos, quando são soados! (1) (1) divulgados
Qualquer nobre trabalha que em memória
Vença ou iguale os grandes já passados.
As invejas da ilustre e alheia história
Fazem mil vezes feitos sublimados.
Quem valerosas obras exercita,
Louvor alheio muito o esperta e incita. (2)

(2) o louvor estimula quem deseja fazer grandes obras

93
Não tinha em tanto os feitos gloriosos
De Aquiles, Alexandro na peleja,
Quanto de quem o canta, os numerosos
Versos; isso só louva, isso deseja. (3)
(…)

(3) Alexandre Magno não prezava tanto os feitos de Aquiles como os versos de quem os cantou
(Homero);

3
94
Trabalha por mostrar Vasco da Gama
Que essas navegações que o mundo canta
Não merecem tamanha glória e fama
Como a sua, que o céu e a terra espanta.
(…)

95
Dá a terra lusitana Cipiões,
Césares, Alexandros, e dá Augustos; (4)
Mas não lhe dá contudo aqueles dois
Cuja falta os faz duros e robustos. (5) a falta desses dotes fá-los insensíveis
Octávio, entre as maiores opressões,
Compunha versos doutos e venustos. (6) (6) elegantes
(…)

(4) “Césares, Alexandros,”,”Augustos” e “Octávio”: dirigentes militares e políticos da


Antiguidade Clássica

96
(…)

97
Enfim, não houve forte Capitão,
Que não fosse também douto e ciente, (10)
Da Lácia, Grega, ou Bárbara nação,
Senão da Portuguesa tão somente.
Sem vergonha o não digo, que a razão
De algum não ser por versos excelente, (11)
É não se ver prezado o verso e rima,
Porque, quem não sabe arte, não na estima.

(10) erudito e sabedor (dado às letras e ao conhecimento)


(11) nenhum capitão ser cantado em verso como ilustre

98
(…)

99
As Musas agradeça o nosso Gama
o Muito amor da Pátria, que as obriga
A dar aos seus na lira (12) nome e fama (12) em verso
De toda a ilustre e bélica fadiga:
Que ele, nem quem na estirpe seu se chama ((13),
Calíope (14) não tem por tão amiga, (14) musa da epopeia
Nem as filhas do Tejo, que deixassem
As telas de ouro fino e que o cantassem.(15)

(13) nem Vasco da Gama nem nenhum dos seus familiares


(15) as ninfas do Tejo não deixariam as suas tarefas para cantar os feitos do Gama

No Canto V, (est. 92 a 100), o poeta censura os portugueses que desprezam a poesia,


tecendo uma crítica acerba à falta de estima que os líderes políticos portugueses revelam em

4
relação à criação literária, ao contrário da atitude que mantinham os grandes chefes militares e
políticos da Antiguidade, que protegiam os poetas ou eram eles próprios cultores das letras
(estes sabiam que só através da escrita se tornariam imortais; o poeta afirma que é por falta de
cultura que a elite portuguesa despreza a criação artística.
De facto, é o povo português que merece inúmeras críticas do poeta. O sentido crítico
do escritor e a sua capacidade de análise não lhe permitem omitir a percepção da situação
nacional, que começava a dar sinais de decadência: os portugueses do século XVI pareciam ter
esquecido o valor da arte e da cultura.
O poeta começa por mostrar como o canto, o louvor, incita à realização dos feitos
heróicos; dá em seguida exemplos do apreço que os antigos heróis gregos e romanos tinham
pelos seus poetas e da importância que davam ao conhecimento e à cultura, compatibilizando as
armas com o saber.
Não é, infelizmente, o que se passa com os portugueses, que não dão valor aos seus
poetas, porque não têm cultura para os conhecer. Ora, não se pode amar o que não se conhece, e
a falta de cultura dos heróis nacionais é responsável pela indiferença que manifestam pela
divulgação dos seus feitos, e, se não tiverem poetas que os cantem, serão esquecidos. Apesar
disso, o poeta, movido pelo amor da pátria, reitera o seu propósito de continuar a engrandecer,
com os seus versos, as “grandes obras” realizadas.
Manifesta, desta forma, a vertente crítica e pedagógica da sua epopeia, na defesa da
realização plena do homem, em todas as suas capacidades.

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CANTO VI

Finda a narrativa de Vasco da Gama, a Armada sai de Melinde guiada por um piloto que
deverá ensinar-lhe o caminho até Calecute. Baco, vendo que os portugueses estão prestes a
chegar à Índia, resolve pedir ajuda a Neptuno, que convoca um Consílio dos deuses marinhos
cuja decisão é apoiar Baco, ordenando a Éolo que solte os ventos e faça afundar a Armada. É
então que, enquanto os marinheiros matam despreocupadamente o tempo ouvindo Fernão
Veloso contar o episódio lendário e cavaleiresco de Os Doze de Inglaterra, surge uma violenta
tempestade. Vasco da Gama, vendo as naus quase perdidas, dirige uma prece a Deus e, mais
uma vez, é Vénus que ajuda os portugueses, mandando as ninfas amorosas seduzir os ventos
para os acalmar. Dissipada a tempestade, a armada avista Calecute e Vasco da Gama agradece a
Deus. O canto termina com considerações do poeta sobre o caminho para alcançar a fama e
a glória conseguidas através do heroísmo.
Vencidos os perigos e o medo, desvendados os segredos do mar, é realizada a obra, e a
chegada, finalmente, é possível. O Adamastor, simbolicamente o maior de todos os perigos, foi
vencido pelo herói da viagem.
Neste final do Canto VI, chegados os marinheiros ao destino sonhado – a Índia - é o
momento de o poeta interromper, uma vez mais, a narração, para reflectir sobre um valor
universal bem renascentista: o valor da fama e dos meios para a alcançar.

95
Por meio destes hórridos (1) perigos, (1) terríveis
Destes trabalhos graves e temores,
Alcançam os que são de fama amigos
As honras imortais e graus maiores;
Não encostados sempre nos antigos
Troncos nobres de seus antecessores;
Não nos leitos dourados, entre os finos
Animais de Moscóvia zibelinos (2);

(2) peles dos zebelinos da Rússia, raras, muito apreciadas.

96
Não cos manjares novos e esquisitos,
Não cos passeios moles e ociosos,
Não cos vários deleites e infinitos,
Que afeminam os peitos generosos;
Não cos nunca vencidos apetitos,
Que a Fortuna tem sempre tão mimosos,
Que não sofre a nenhum que o passo mude (3)
Pera algũa obra heróica de virtude;

(3) que não consente que alguém altere a sua vida de prazeres.

97
Mas com buscar, co seu forçoso braço,
As honras que ele chame próprias suas;
Vigiando e vestindo o forjado aço (4), (4) armaduras
Sofrendo tempestades e ondas cruas,
Vencendo os torpes (5) frios no regaço (5) entorpecedores
Do Sul, e regiões de abrigo nuas,
Engolindo o corrupto mantimento (6) (6) alimentos apodrecidos
Temperado com um árduo sofrimento;

6
98
E com forçar o rosto, que se enfia (7), (7) empalidece pelo medo
A parecer seguro, ledo, inteiro,
Pera o pelouro ardente que assovia
E leva a perna ou braço ao companheiro.
Destarte o peito um calo honroso (8) cria,
Desprezador das honras e dinheiro,
Das honras e dinheiro que a ventura
Forjou (9), e não virtude justa e dura. (9) o destino concedeu

(8) força que lhe permite desprezar honrarias e riquezas dadas pela sorte e não obtidas pela
virtude própria

99
Destarte (10) se esclarece o entendimento, (10) deste modo
Que experiências fazem repousado,
E fica vendo, como de alto assento,
O baxo trato humano embaraçado (11).
Este, onde tiver força o regimento
Direito (12) e não de afeitos ocupado (13),
Subirá, como deve, a ilustre mando (14),
Contra vontade sua, e não rogando.

(11) (fica vendo) confuso, o baixo comportamento humano


(12) regime justo
(13) não dominado por compadrios
(14) poder

O poeta começa por enumerar as acções e atitudes que não conduzem à fama, utilizando
anaforicamente as construções negativas. Desta forma, o poeta critica implicitamente aqueles
que agem segundo esses padrões.
Quem se vale do nome herdado, os ociosos, os que só se entregam aos prazeres do
momento, são os que não alcançam a verdadeira fama.
A estrofe 97 inicia-se com a conjunção coordenada adversativa “Mas” porque pretende
introduzir uma ideia contrastiva em relação à anterior: o poeta vai agora enumerar as acções
necessárias para alcançar a fama.
Alcançam a verdadeira fama os que se esforçam, lutando, enfrentando tempestades,
perigos, fome, frio, vencendo a dor, com virtude e heroísmo, sem apego às honras nem ao
dinheiro.
A última estrofe funciona como uma conclusão, recorrendo ao articulador “Dest’arte”
(deste modo). Num mundo justo, quem proceder de acordo com os princípios
anteriormente enunciados alcançará o poder e a fama, por direito próprio e não por
compadrios.
A reflexão do poeta encaixa bem neste momento da narrativa, uma vez que a
chegada dos portugueses à Índia foi fruto do verdadeiro heroísmo e constitui um aviso
implícito aos seus contemporâneos.
Continuando a exercer a sua função pedagógica, o poeta defende um novo conceito de
nobreza, espelho do modelo de virtude renascentista. Segundo este modelo, a fama e a
imortalidade, o prestígio e o poder adquirem-se pelo esforço – na batalha, ou enfrentando os
elementos, sacrificando o corpo e sofrendo pela perda dos companheiros. Não se é nobre por
herança, vivendo no luxo e na ociosidade, nem com favores se deve alcançar relevo.

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CANTO VII

3
Vós, Portugueses, poucos quanto fortes,
Que o fraco poder vosso não pesais;
Vós, que à custa de vossas várias mortes
A lei da vida eterna (1) dilatais: (1) religião de Cristo.
Assim do céu deitadas são as sortes,
Que vós, por muito poucos que sejais,
Muito façais na santa Cristandade:
Que tanto, ó Cristo, exaltas a humildade!

4
Vede-los Alemães, soberbo gado(2), (2) rebanho orgulhoso.
Que por tão largos campos se apascenta,
Do sucessor de Pedro(3), rebelado, (3) Papa.
Novo pastor(4), e nova seita inventa: (4) Lutero.
Vede-lo em feias guerras ocupado,
Que ainda com o cego error (5) se não contenta, (5) Luteranismo.
Não contra o soberbíssimo Otomano(6), (6) Turco.
Mas por sair do jugo soberano.

5
Vede-lo duro Inglês, que se nomeia
Rei da velha e santíssima cidade(7), (7) Jerusalém.
Que o torpe Ismaelita (8) senhoreia, (8) Muçulmanos
(Quem viu honra tão longe da verdade?)
Entre as Boreais neves se recreia,
Nova maneira faz de Cristandade(9): (9) Igreja Anglicana.
Para os de Cristo tem a espada nua,
Não por tomar a terra que era sua.

6
Guarda-lhe por entanto um falso(10) Rei (10) Ilegítimo.
A cidade Hierosólima (11) terrestre, (11) Jerusalém.
Enquanto ele não guarda a santa lei
Da cidade Hierosólima celeste.
Pois de ti, Galo (12) indigno(13) , que direi? (12) francês.
Que o nome Cristianíssimo quiseste,
Não para defendê-lo, nem guardá-lo,
Mas para ser contra ele, e derrubá-lo!
(13) Francisco I, rei de França que se aliou aos turcos para combater Carlos V.

7
Achas que tens direito em senhorios
De Cristãos, sendo o teu tão largo e tanto,
E não contra o Cinífio (14) e Nilo, rios
Inimigos do antigo nome santo (15)? (15) religião de Cristo
Ali se hão de provar da espada os fios
Em quem quer reprovar da Igreja o canto (16). (16) Papa
De Carlos(17), de Luís(18), o nome e a terra
Herdaste, e as causas não da justa guerra?
(14) rio da Tripolitânia. Os dois rios referidos neste verso designam a Líbia e o Egipto,
ocupados pelos Turcos.
(17) Carlos Magno.

8
18) S. Luís.

8
Pois que direi daqueles(19) que em delícias, (19) Italianos
Que o vil ócio no mundo traz consigo,
Gastam as vidas, logram as divícias(20), (20) riquezas
Esquecidos de seu valor antigo?
Nascem da tirania inimicícias(21),
Que o povo forte tem de si inimigo:
Contigo, Itália, falo, já submersa
Em Vícios mil, e de ti mesma adversa.
(21) inimizades. Esta estrofe alude à corrupção das cortes e às violências dos condottieri e
tiranos das cidades italianas.

9
Ó míseros Cristãos, pela ventura,
Sois os dentes de Cadmo(22) desparzidos,
Que uns aos outros se dão a morte dura,
Sendo todos de um ventre produzidos?
Não vedes a divina sepultura(23) (23) Santo Sepulcro (de Cristo)
Possuída de cães(24), que sempre unidos (24) Turcos
Vos vêm tomar a vossa antiga terra,
Fazendo-se famosos pela guerra?
(22) Cadmo–filho de um rei fenício, matou um dragão que guardava uma fonte, para onde ele
mandar alguns companheiros, logo devorados pelo monstro; depois semeou os dentes do animal
e deles nasceram homens armados que se mataram uns aos outros.

10
Vedes que têm por uso e por decreto,
Do qual são tão inteiros observantes,
Ajuntarem o exército inquieto
Contra os povos que são de Cristo amantes;
Entre vós nunca deixa a fera Aleto(24)
De semear cizânias repugnantes:
Olhai se estais seguros de perigos,
Que eles e vós sois vossos inimigos.
(24) uma das Fúrias, a que semeava a discórdia.

11
Se cobiça de grandes senhorios
Vos faz ir conquistar terras alheias,
Não vedes que Pactolo e Hermo(25), rios,
Ambos volvem auríferas areias?
Em Lídia, Assíria, lavram de ouro os fios;
África esconde em si luzentes veias;
Mova-vos já sequer riqueza tanta,
Pois mover-vos não pode a Casa Santa(26).
(25) rios da Lídia, Ásia Menor, segundo a lenda, tinham areias de ouro.
(26) Palestina

12
Aquelas invenções feras e novas
De instrumentos mortais da artilharia,
Já devem de fazer as duras provas

9
Nos muros de Bizâncio(27) e de Turquia. (27) Constantinopla
Fazei que torne lá às silvestres covas
Dos Cáspios montes, e da Cítia fria(28)
A Turca geração, que multiplica
Na polícia(29) da vossa Europa rica. (29) Civilização
(28) Turquestão e Sibéria, de clima muito frio.

13
Gregos, Traces, Arménios, Georgianos,
Bradando-vos estão que o povo bruto(30) (30) Turcos
Lhe obriga os caros filhos aos profanos
Preceptos do Alcorão (duro tributo!)
Em castigar os feitos inumanos
Vos gloriai de peito forte e astuto,
E não queirais louvores arrogantes
De serdes contra os vossos muito possantes.

14
Mas entanto que cegos o sedentos
Andais de vosso sangue, ó gente insana!
Não faltarão Cristãos atrevimentos
Nesta pequena casa Lusitana(31): (31) Portugal
De África tem marítimos assentos,
É na Ásia mais que todas soberana,
Na quarta parte nova(32) os campos ara, (32) América (Brasil).
E se mais mundo houvera, lá chegara.

O Canto VII inicia-se com a chegada da armada a Calecute. Das estrofes 2 a 14, o poeta elogia a
expansão portuguesa como cruzada criticando as nações europeias que não seguem o exemplo
português.
Após a descrição da Índia, conta os primeiros contactos entre portugueses e indianos,
através de um mensageiro enviado por Vasco da Gama a anunciar a sua chegada. O mouro
Monçaíde visita a nau de Vasco da Gama e descreve o Malabar, após o que o Capitão e os
outros nobres portugueses desembarcaram e são recebidos pelo Catual e depois pelo Samorim.
O Catual visita a Armada e pede a Paulo da Gama que lhe explique o significado das figuras das
bandeiras portuguesas. O Poeta invoca as Ninfas do Tejo e a do Mondego ao mesmo tempo que
critica duramente os opressores e exploradores do povo.
Depois da concretização do feito que escolheu para acção fulcral do seu poema – viagem de
descoberta do caminho marítimo para a Índia – o poeta não contém as suas reflexões de carácter
pedagógico e de intervenção na vida contemporânea. Com elas encerrou o Canto VI e inicia
agora o Canto VII.
Quer tornar agora bem clara a sua mensagem: louvor àqueles homens que indo além do que
“prometia a força humana!” (Canto I, est. 1) chagaram à “terra de riqueza abundante” (Canto
VII, est. 1); crítica aos males do seu tempo.
Na estrofe 3, o poeta dirige-se aos portugueses que são, por isso, o seu destinatário. Caracteriza
a sua acção em defesa do Cristianismo. Segundo o poeta, os portugueses são tão fortes como
poucos e não se deixam limitar pela sua pequenez, dando a vida pela expansão da fé cristã. Por
isso, são um povo que, embora pequeno, foi escolhido por Deus para realizar grandes obras na
defesa da Cristandade, até porque Cristo exalta os humildes.
O poeta critica outros povos, nomeadamente, a Alemanha, a Inglaterra, a França, a Itália,
Aponta-lhes o facto de não se empenharem na luta contra os turcos, em defesa da Cristandade.
Aos ingleses e aos alemães critica a divisão que provocaram na Cristandade com a criação do
Anglicanismo e do Luteranismo, aos franceses a aliança com os turcos, aos italianos o ócio e a
corrupção das suas repúblicas.

10
Das estrofes 9 à 19, o poeta exorta à luta contra os turcos, pela defesa da Cristandade e dos
reinos europeus.
Na estrofe 14, é usado o conector adversativo “Mas” que introduz o contraste entre os povos
europeus anteriormente criticados e os portugueses.
É interessante verificar que a perspectiva apresentada pelo poeta engrandece a acção dos
portugueses, alargando o seu âmbito para além do interesse nacional e confirma a noção, já
anteriormente observada, de que “o peito ilustre lusitano”, representado pelos seus reis e heróis
individuais, se apresenta n’ Os Lusíadas incumbido de uma missão transcendente e mística –
alargar a Cristandade.
Enquanto as referidas nações europeias se esgotam cegamente em lutas fratricidas, os
portugueses, na sua pequenez, ousaram avançar em nome da Cristandade, edificando um reino
em África, Ásia e América. O poeta conclui afirmando: “E, se mais mundo houvera, lá
chegara”, mostrando às outras nações que os portugueses descobririam mais terras ainda, se
mais houvesse para descobrir.

78
Um ramo na mão tinha... Mas, ó cego!
Eu, que cometo insano e temerário,
Sem vós, Ninfas do Tejo e do Mondego,
Por caminho tão árduo, longo e vário!
Vosso favor invoco, que navego
Por alto mar, com vento tão contrário,
Que, se não me ajudais, hei grande medo
Que o meu fraco batel se alague cedo.

79
Olhai que há tanto tempo que, cantando
O vosso Tejo e os vossos Lusitanos,
A fortuna mo traz peregrinando,
Novos trabalhos vendo, e novos danos:
Agora o mar, agora experimentando
Os perigos Mavórcios inumanos,
Qual Canace, que à morte se condena,
Numa mão sempre a espada, e noutra a pena.

80
Agora, com pobreza avorrecida,
Por hospícios alheios degradado;
Agora, da esperança já adquirida,
De novo, mais que nunca, derribado;
Agora às costas escapando a vida,
Que dum fio pendia tão delgado
Que não menos milagre foi salvar-se
Que para o Rei Judaico acrescentar-se.

81
E ainda, Ninfas minhas, não bastava
Que tamanhas misérias me cercassem,
Senão que aqueles, que eu cantando andava
Tal prémio de meus versos me tornassem:
A troco dos descansos que esperava,
Das capelas de louro que me honrassem,
Trabalhos nunca usados me inventaram,
Com que em tão duro estado me deitaram.

11
82
Vede, Ninfas, que engenhos de senhores
O vosso Tejo cria valorosos,
Que assim sabem prezar com tais favores
A quem os faz, cantando, gloriosos!
Que exemplos a futuros escritores,
Para espertar engenhos curiosos,
Para porem as coisas em memória,
Que merecerem ter eterna glória!

83
Pois logo em tantos males é forçado,
Que só vosso favor me não faleça,
Principalmente aqui, que sou chegado
Onde feitos diversos engrandeça:
Dai-mo vós sós, que eu tenho já jurado
Que não o empregue em quem o não mereça,
Nem por lisonja louve algum subido,
Sob pena de não ser agradecido.

84
Nem creiais, Ninfas, não, que a fama desse
A quem ao bem comum e do seu Rei
Antepuser seu próprio interesse,
Inimigo da divina e humana Lei.
Nenhum ambicioso, que quisesse
Subir a grandes cargos, cantarei,
Só por poder com torpes exercícios
Usar mais largamente de seus vícios;

85
Nenhum que use de seu poder bastante,
Para servir a seu desejo feio,
E que, por comprazer ao vulgo errante,
Se muda em mais figuras que Proteio.
Nem, Camenas, também cuideis que canto
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar ao Rei no ofício novo,
A despir e roubar o pobre povo.

86
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do Rei severamente,
E não acha que é justo e bom respeito,
Que se pague o suor da servil gente;
Nem quem sempre, com pouco experto peito,
Razões aprende, e cuida que é prudente,
Para taxar, com mão rapace e escassa,
Os trabalhos alheios, que não passa.

87
Aqueles sós direi, que aventuraram
Por seu Deus, por seu Rei, a amada vida,

12
Onde, perdendo-a, em fama a dilataram,
Tão bem de suas obras merecida.
Apolo, e as Musas que me acompanharam,
Me dobrarão a fúria concedida,
Enquanto eu tomo alento descansado,
Por tornar ao trabalho, mais folgado.

Enquanto Vasco da Gama é recebido no palácio do Samorim, o Catual (nalguns povos do


Oriente, o Catual era um funcionário público ou o Intendente responsável pelos negócios com
os estrangeiros) visita as naus onde é acolhido por Paulo da Gama (irmão de Vasco da Gama).
Ao ver as bandeiras com pinturas alusivas a feitos e heróis da História de Portugal, o chefe
indiano mostra curiosidade em saber o que cada uma delas representa. Quando Paulo da Gama
se prepara para satisfazer o desejo e a curiosidade do Catual, o poeta interrompe de novo a
narração para introduzir as suas reflexões.
Em síntese, pode dizer-se que o poeta faz agora uma nova invocação às ninfas do Tejo e do
Mondego em primeiro lugar porque vai, mais uma vez, contar episódios da História de Portugal,
agora pela voz de Paulo da Gama ao Catual de Calecute, a propósito dos símbolos das
bandeiras. Por outro lado, o poeta mostra-se desalentado precisando, por isso, de um reforço de
inspiração.
Se compararmos o estado de espírito com que o poeta faz esta invocação às Tágides com aquele
presente no início da obra, na Invocação nas estrofes 4 e 5, percebemos que, particularmente
nas estrofes78 a 81, o poeta revela cansaço, receio, desilusão e desalento.
Esta reflexão apresenta um tom marcadamente autobiográfico pelo uso da 1ª pessoa e também
pelo conteúdo biográfico. De facto, nas estrofes 79 a 81 são referidos dados biográficos
coincidentes com a vida de Camões: longos anos a escrever sobre os portugueses, aventuras no
mar e na guerra, naufrágio sofrido, desterro, pobreza, desilusões, ingratidão dos senhores.
Através do articulador “Agora”, o poeta refere diferentes momentos da sua vida. O articulador
“E ainda” que inicia a estrofe 81, finaliza a enumeração dos infortúnios, acrescentando um novo
infortúnio que é destacado, criando a sensação de que a partir de agora já não consegue suportar
mais nada. A apreciação geral que o poeta faz da sua vida é que foram longos anos de uma vida
muito difícil e penosa, uma peregrinação em que a sorte sempre faltou e as desgraças o
acompanharam. No entanto, a dupla condição de soldado e de poeta esteve sempre presente:
“caminho tão árduo, longo e vário”(est.78); “A Fortuna me traz peregrinando,/ Novos trabalhos
vendo e novos danos”(est. 79); “Numa mão sempre a espada e noutra a pena”(est.79) e
“tamanhas misérias”(est.81).
Na estrofe 81, o poeta revela uma ironia amarga a propósito da ingratidão dos senhores que
cantou. De facto, e com muita ironia, o poeta aponta às ninfas os “valerosos” senhores de
Portugal que pagam dessa forma (com ingratidão) os versos que lhes são dedicados, inibindo,
assim, a vontade de outros poetas cantarem os feitos dos Portugueses. Este tópico já havia sido
abordado na reflexão do final do Canto V.
Nas estrofes 84 a 86, o poeta afirma que apenas vai cantar quem o merece e enumera aqueles
que não terão lugar no seu canto. Neste sentido, o poeta não cantará os que colocam o interesse
pessoal à frente do bem comum e do interesse do rei; os ambiciosos que ascendem ao poder
para se servir a si mesmos e abusam desse poder; os dissimulados (os fingidos, os hipócritas) e
os exploradores do povo.
Só na estrofe 87 é que o poeta vai enunciar quem realmente cantará: os que colocaram a vida ao
serviço de Deus e da Pátria.
As grandes intenções críticas implícitas nesta invocação / reflexão prendem-se com uma severa
crítica aos contemporâneos pelo desprezo que dedicam aos poetas, pela ambição desmedida, por
sobreporem os seus interesses aos do “bem comum e do seu Rei”, por serem dissimulados, por
abusarem do poder e explorarem o povo.

13
CANTO VIII

Paulo da Gama explica ao Catual o significado dos símbolos das bandeiras portuguesas,
contando-lhe episódios da História de Portugal nelas representados. Baco intervém de novo
contra os portugueses, aparecendo em sonhos a um sacerdote brâmane e instigando-o contra os
navegadores através da informação de que vêm com o intuito de pilhagem. O Samorim
interroga Vasco da Gama que acaba por regressar às naus mas é retido no caminho pelo Catual
subornado que apenas deixa partir os portugueses depois de estes lhe entregarem as fazendas
que traziam. O poeta tece considerações sobre o vil poder do ouro (dinheiro).

96
Nas naus estar se deixa vagaroso,
Até ver o que o tempo lhe descobre:
Que não se fia já do cobiçoso
Regedor corrompido e pouco nobre.
Veja agora o juízo curioso
Quanto no rico, assim como no pobre,
Pode o vil interesse e sede inimiga
Do dinheiro, que a tudo nos obriga.

98
Este rende munidas fortalezas,
Faz tredores e falsos os amigos:
Este a mais nobres faz fazer vilezas,
E entrega Capitães aos inimigos;
Este corrompe virginais purezas,
Sem temer de honra ou fama alguns perigos:
Este deprava às vezes as ciências,
Os juízos cegando e as consciências;

99
Este interpreta mais que sutilmente.
Os textos; este faz e desfaz leis;
Este causa os perjúrios entre a gente,
E mil vezes tiranos torna os Reis.
Até os que só a Deus Omnipotente
Se dedicam, mil vezes ouvireis
Que corrompe este encantador, e ilude;
Mas não sem cor, contudo, de virtude.

Depois de narrar o odioso acto de suborno do Catual sobre os portugueses, exigindo-lhes a


entrega de valores, o poeta interrompe, de novo, a narração, para apresentar mais uma reflexão
de alcance humanista e pedagógico.
Nos quatro últimos versos da estrofe 96, o poeta dirige-se aos que têm curiosidade em ajuizar,
julgar (do bem e do mal): “juízo curioso”. Adverte para o poder negativo e ilimitado que o
dinheiro exerce sobre todos, sem distinção de classes. Ao usar a 1ª pessoa do plural ( nos obriga)
no último verso, alarga-se a crítica, evidenciando que ninguém, nem aquele que reflecte sobre o
problema, escapa ao poder do dinheiro.
Nas estrofes 98 e 99, sempre que o poeta refere o pronome “Este” pretende que o seu referente
seja “o dinheiro”. Recorrendo a esta repetição (anáfora), o narrador enumera os efeitos
perniciosos do dinheiro: faz render fortalezas; faz dos amigos traidores; corrompe os mais
nobres caracteres e as maiores purezas; deturpa o conhecimento e entorpece a consciência;

14
condiciona os textos e as leis; está na origem de difamações; favorece a tirania dos reis;
corrompe até os sacerdotes, sob a aparência da virtude.
O uso anafórico de “Este” nas estrofes 98 e 99 funciona como acumulação e, por isso, amplifica
o carácter pernicioso do dinheiro.
A antítese é outra das figuras usadas reiteradamente na estrofe 98. O seu uso evidencia o poder
que o dinheiro tem de converter tudo no seu contrário.
A segunda parte da estrofe 99 “Até os que só a Deus Omnipotente / se dedicam, mil vezes
ouvireis /
Que corrompe este encantador, e ilude;” constitui um hipérbato. Se o desfizermos e ordenarmos
os elementos da frase segundo a ordem habitual obtemos “Ouvireis mil vezes que este
encantador corrompe e ilude até os que só a Deus omnipotente se dedicam.”
A título de exemplo, temos um texto de Shakespeare in Timão de Atenas que aborda igualmente
o poder do ouro “Ouro amarelo, fulgurante, ouro precioso! (…) Basta uma porção dele para
fazer do preto, branco; do feio, belo; do errado, certo; do baixo, nobre; do velho, jovem; do
cobarde, valente. Ó deuses!, por que isso? O que é isso, ó deuses? (…) O ouro arrasta os
sacerdotes e os servos para longe do seu altar, arranca o travesseiro onde repousa a cabeça dos
íntegros. Esse escravo dourado ata e desata vínculos sagrados; abençoa o amaldiçoado; torna
adorável a lepra repugnante; nomeia ladrões e confere-lhes títulos, genuflexões e a aprovação na
bancada dos senadores.”
Este tema parece ser realmente intemporal…

15
CANTO IX

Após vencerem algumas dificuldades, os portugueses saem de Calecute, iniciando a


viagem de regresso à Pátria. Vénus decide preparar uma recompensa para os marinheiros,
fazendo-os chegar à Ilha dos Amores. Para isso, manda o seu filho Cupido desfechar setas sobre
as ninfas que, feridas de amor e pela deusa instruídas, receberão, de forma apaixonada, os
portugueses.
A Armada avista a Ilha dos Amores e, quando os marinheiros desembarcaram para
caçar, vêem as ninfas que se deixam perseguir e depois seduzir. Tétis explica a Vasco da Gama
a razão daquele encontro, referindo as futuras glórias que lhe serão dadas a conhecer. Após a
explicação da simbologia da ilha, o poeta termina, tecendo considerações sobre a forma de
alcançar a fama.

92
Mas a Fama, trombeta de obras tais,
Lhe deu no Mundo nomes tão estranhos
De Deuses, Semideuses, Imortais,
Indígetes (1), Heróicos e de Magnos. (1) ilustres, venerados como divindades
Por isso, ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo (2), (2) indolente
Que o ânimo, de livre, faz escravo.

93
E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente (3); (3)que oprime
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Milhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.

94
Ou dai na paz as leis iguais, constantes,
Que aos grandes não dêem o dos pequenos (4),
Ou vos vesti nas armas rutilantes,
Contra a lei dos imigos Sarracenos:
Fareis os Reinos grandes e possantes,
E todos tereis mais e nenhum menos:
Possuireis riquezas merecidas,
Com as honras que ilustram tanto as vidas.

(4) aquilo que é dos humildes

95
E fareis claro (5) o Rei que tanto amais, (5) ilustre
Agora cos conselhos bem cuidados,
Agora co as espadas, que imortais
Vos farão, como os vossos já passados (6). (6) antepassados

16
Impossibilidades não façais,
Que quem quis, sempre pôde; e numerados (7) (7) mencionados
Sereis entre os Heróis esclarecidos
E nesta «Ilha de Vénus» recebidos.

Ao terminar o Canto IX, nas estrofes 92 e 95, o poeta dirige-se a quantos desejam
prémio igual ao dos heróis da epopeia, àqueles que desejam ser famosos, aconselhando-os sobre
o caminho a seguir. Na verdade, é aos seus contemporâneos que Camões se dirige. “Ò vós que
as famas estimais” é a apóstrofe que nomeia esse destinatário da exortação do poeta.

O poeta esboça o perfil dos que merecem ser imortalizados pela fama, reiterando
valores como a justiça, a coragem, o amor à Pátria, a lealdade ao rei. Assim, terão de
despertar do adormecimento e do ócio, pôr de lado a cobiça e a tirania, serem justos e
lutarem pela pátria e pelo rei.

Na estrofe 92, as formas verbais no Imperativo “despertai” e “ponde” que se seguem à


apóstrofe, enunciam as acções que os destinatários devem levar a cabo, exprimem a exortação e
o apelo. O poeta destaca os valores da virtude, do esforço, do desapego dos interesses pessoais,
da justiça e o heroísmo no serviço da pátria.

A estrofe 95 termina com o prémio destinado aos heróis “Sereis entre os Heróis
esclarecidos / E nesta ilha recebidos”.

A Ilha dos Amores – o herói imortalizado

Na viagem de regresso a Portugal, Vénus prepara aos marinheiros uma recompensa


pelos perigos que enfrentaram, corajosamente. Fá-los aportar a uma ilha paradisíaca, povoada
de belas ninfas, antecipadamente feridas pelas setas de Cupido e, por isso, preparadas para os
receber. Ensinadas por Vénus, numa atitude premeditada de jogo de sedução, as deusas fingem
assustar-se com os nautas, mas logo se lhes rendem.

Ao vencer todos os obstáculos da viagem, os marinheiros ganharam o estatuto de heróis,


semelhantes aos deuses e, por isso, acedem ao mundo dos deuses. O prémio que recebem é um
prémio digno de Vénus, o mais sublime dos prémios, o Amor na sua plena fruição. Na verdade,
este episódio apresenta-nos uma atmosfera claramente renascentista, na medida em que o
erotismo é visto como um bem da Natureza, o maior dos bens, colocado no plano do sagrado,
“o que deu para dar-se a Natureza”. Unindo-se às ninfas, num casamento simbólico, os
marinheiros recebem das suas mãos as coroas de louros que representam a imortalidade
alcançada. De realçar o facto de Vasco da Gama aqui conquistar Tétis, a deusa do mar que
rejeitou o Adamastor, como se o perigo do desconhecido fosse duplamente vencido.

Esta ilha imaginária pertence, pois, ao plano do sonho que dá sentido à existência, o
sonho pelo qual os nautas lutaram, arriscando a vida, o sonho que permite atingir a plenitude da
Beleza, do Amor, do Conhecimento.

No final do Canto IX, o poeta esboça o perfil dos que podem ser “nesta ilha de Vénus
recebidos”, reiterando valores como a justiça, a coragem, o amor à Pátria, a lealdade ao rei.

17
CANTO X

As ninfas oferecem um banquete aos portugueses. Após uma Invocação do poeta a


Calíope, uma ninfa faz profecias sobre as futuras vitórias dos portugueses no Oriente. Tétis
conduz Vasco da Gama ao cume de um monte para lhe mostrar a Máquina do Mundo e indicar
nela os lugares onde chegará o Império Português. Os portugueses despedem-se e regressam a
Portugal. O poeta termina, lamentando-se pelo seu destino infeliz de poeta incompreendido por
aqueles a quem canta e exortando o rei D. Sebastião a continuar a glória dos Portugueses.

144
Assi foram cortando o mar sereno,
Com vento sempre manso e nunca irado,
Até que houveram vista do terreno
Em que naceram, sempre desejado.
Entraram pela foz do Tejo ameno,
E à sua pátria e Rei temido e amado
O prémio e glória dão por que mandou,
E com títulos novos se ilustrou.

145
Nô mais, Musa, nô mais, que a Lira tenho
Destemperada (1) e a voz enrouquecida, (1) desafinada
E não do canto, mas de ver que venho
Cantar a gente surda e endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho
Não no dá a pátria, não, que está metida
No gosto da cobiça e na rudeza
Dũa austera, apagada e vil tristeza.

146
E não sei por que influxo de Destino
Não tem um ledo orgulho e geral gosto,
Que os ânimos levanta de contino
A ter pera trabalhos ledo o rosto.
Por isso vós, ó Rei, que por divino
Conselho estais no régio sólio (2) posto, (2) trono
Olhai que sois (e vede as outras gentes)
Senhor só de vassalos excelentes.

147
Olhai que ledos vão, por várias vias,
Quais rompentes (3) liões e bravos touros, (3) dilaceradores
Dando os corpos a fomes e vigias,
A ferro, a fogo, a setas e pelouros (4), (4) bala de pedra ou metal
A quentes regiões, a plagas (5) frias, (5) praias
A golpes de Idolátras (6) e de Mouros, (6) aqueles que adoram ídolos
A perigos incógnitos do mundo,
A naufrágios, a pexes, ao profundo.

148
Por vos servir, a tudo aparelhados;

18
De vós tão longe, sempre obedientes;
A quaisquer vossos ásperos mandados,
Sem dar reposta, prontos e contentes.
Só com saber que são de vós olhados,
Demónios infernais, negros e ardentes,
Cometerão convosco, e não duvido
Que vencedor vos façam, não vencido.

149
Favorecei-os logo, e alegrai-os
Com a presença e leda humanidade;
De rigorosas leis desalivai-os, (7) (7) aliviai-os
Que assi se abre o caminho à santidade.
Os mais experimentados levantai-os, (8) (8) promovei-os
Se, com a experiência, têm bondade
Pera vosso conselho, pois que sabem
O como, o quando, e onde as cousas cabem.

Reflexão do Poeta:

O poeta reflecte sobre o desinteresse da nação face às manifestações artísticas, dirigindo-se à


sua “Musa” (est. 145) inspiradora sobre esse assunto, e ainda acerca da “cobiça” e da “tristeza”
que dominam os ânimos. Interpela também o Rei D. Sebastião (est. 146) para que valorize os
verdadeiros heróis.

Os últimos versos de Os Lusíadas revelam sentimentos contraditórios: desalento, orgulho,


esperança. “No mais, Musa, no mais…” O poeta recusa continuar o seu canto, não por cansaço,
mas por desânimo. O seu desalento advém de constatar que canta “para gente surda e
endurecida”, mergulhada “no gosto da cobiça e na rudeza / duma austera, apagada e vil
tristeza”. É a imagem de Portugal do seu tempo.

A estrofe 144 relata a chegada a Lisboa, a qual decorre num ambiente sereno e os marinheiros
oferecem ao rei D. Manuel I e à nação a fama e o orgulho desejados. Este rei foi o primeiro a
assumir o título de Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África,
Senhor do Comércio, da Conquista e da Navegação da Arábia, Pérsia e Índia.
A partir da estrofe 145, o poeta manifesta a sua incompreensão e lamenta-se já que os
portugueses não valorizam o trabalho épico. A nação está de tal modo submetida à ambição e ao
desencanto que ninguém revela orgulho no trabalho.
O rei deve reconhecer a coragem dos seus vassalos para recompensar os mais
experientes.
Na estrofe 146, os portugueses são apresentados como “vassalos excelentes”, “ledos”
(est. 147). Mostram-se “sempre obedientes” (est. 148) e preparados para responder aos desejos
do seu monarca, que executam “contentes” (est. 148) e orgulhosos.
Perante tão extraordinárias qualidades, o rei deve recompensar os seus súbditos,
aliviando-os de leis cruéis e injustas, promovendo os mais experientes e estimando os que
dilatam a Fé e o Império sem temer os inimigos nem regatear esforços.
Por contraste, o poeta tem orgulho nos que estão dispostos a reavivar a grandeza do
passado, evidenciando ainda esperança de que o rei os estimule para dar continuidade à
glorificação do “peito ilustre lusitano” e dar matéria a novo canto. O poema encerra, pois, com
uma mensagem que abarca o passado, o presente e o futuro. A glória do passado deverá ser
encarada como exemplo presente para construir um futuro grandioso.

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