Você está na página 1de 11

Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 3 28 Rafael Lazzarotto Simioni

Rafael Lazzarotto Simioni

CURSO DE ESCOLA DA EXEGESE

HERMENÊUTICA 1.1 MOTIVOS

França, início do século XIX. A Revolução Francesa de 1789 pro-

JURÍDICA
vocou transformações enormes em todas as áreas da experiência humana,
inclusive na concepção de Estado, de direito e de decisão jurídica. O Ilumi-
nismo francês apresentou-se como uma ideologia tão forte que até mesmo o
passado histórico precisava ser negado. Isso porque, para assegurarem-se os

CONTEMPORÂNE três pilares do Iluminismo – liberdade, igualdade e fraternidade – era neces-


sário colocar um ponto final na história de trevas que foi a Idade Média. O
século das Luzes precisava se separar dos tempos das trevas, dos tempos da

A
dominação, da desigualdade social e do obscurantismo místico-religioso que
caracterizaram a Idade Média.

1.1.1 Desconectar o Direito do Passado Histórico


Era necessário, portanto, uma concepção de direito desconectada
DO POSITIVISMO CLÁSSICO AO do passado. Era necessário mudar o curso da história, colocando os ideais de
liberdade, igualdade e fraternidade em um futuro que merecia ser persegui-
PÓS-POSITIVISMO JURÍDICO do. A Revolução Francesa procurou romper com o passado. Negar o passado
das trevas para dar um novo curso à história. Para tanto, o direito tornou-se
um instrumento importante, especialmente porque a lei escrita permitia exa-
tamente essa desvinculação do passado histórico. A lei escrita permitia que
se desconsiderassem as razões históricas que justificaram as normas jurídi-
cas. Porque a partir do momento em que a norma apresentava-se na forma
escrita, o seu texto constituía, por si só, a expressão do que deveria ser inter-
pretado, argumentado e decidido no campo do direito.
Curitiba Razões históricas, motivos do passado, costumes, tudo isso era ob-
Juruá Editora jeto de uma forte crítica por parte dos ideais iluministas. Precisamente por-
2014 que o passado de trevas que foi a Idade Média devia ser deixado para trás,
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 29 30 Rafael Lazzarotto Simioni

para que o esclarecimento guiasse a sociedade no sentido dos seus ideais de leis, não as leis do governo. Por isso o legislativo, diferentemente de hoje,
liberdade, igualdade e fraternidade. Nesse contexto, portanto, era imprescin- era considerado um dos poderes mais importantes da estrutura do Estado3.
dível uma concepção de direito não histórica, quer dizer, um direito que orien- Para a decisão jurídica cabia apenas aplicar a lei. E daí, também, tanto a fór-
tasse as decisões somente para aquilo que era fruto da razão do próprio ilu- mula de Rousseau, para quem os magistrados só têm que obedecer as leis
minismo: os textos legais sistematizados, em especial o Code civil, a expres- fundamentais do Estado4, quanto a de Montesquieu, segundo o qual o juiz é a
são máxima da razão iluminista sobre o direito na época. boca da lei5. Isso porque a lei não só emana de uma vontade geral considera-
O Code civil não era apenas um código civil tal como o entende- da sempre correta na proteção dos interesses privados, mas também porque a
mos hoje. O Code civil constituía, por si só, o fundamento tanto da experiên- sua duração revela a todos a equidade e a segurança que ela propicia6. A
cia quanto da racionalidade do direito. Era o resultado da sistematização de obediência à lei é sinônimo de liberdade, porque obedecer a uma lei é obede-
um conjunto de textos legais que permitia respostas jurídicas para todas as cer à vontade pública, não à vontade de alguém7. Com efeito, a ideia de lei
questões práticas1. Todas as questões jurídicas estavam previstas nos textos no iluminismo é uma ideia quase sobrenatural. A lei é a expressão máxima
legais sistematizados no Code. E se porventura uma questão não estivesse de uma vontade política que procura se esforçar para atingir a perfeição da
prevista lá, era porque não se tratava de uma questão jurídica. E com esse vontade de Deus. E nesse sentido, a lei passa a ter um caráter igualmente
fundamento se poderia então argumentar o afastamento de qualquer presta- sagrado, pois embora não expressem a perfeição ideal das leis de Deus, as
ção jurisdicional para uma pretensão sem respaldo jurídico. leis civis revelam-se, contudo, como expressão da razão iluminista.
E o fato de se acreditar que todas as questões práticas encontravam Pensa-se nas vantagens de tempo e de esforço que o legalismo da
Escola da Exegese permitiu para as decisões jurídicas. Se antes era necessá-
uma resposta jurídica nos textos legais do Code civil, permitia a tomada de
rio argumentar, para justificar uma resposta do direito a uma questão, sob as
decisões jurídicas sem nenhuma necessidade de interpretar as situações prá-
diversas – e incontroláveis – variáveis dos costumes históricos de cada estra-
ticas a partir de seus contextos históricos, como também permitia que a ar- to social, agora torna-se possível simplesmente argumentar que a resposta a
gumentação jurídica ficasse restrita a uma lógica bastante simples de mera tal questão jurídica é esta porque o texto da lei diz que é esta e não outra. O
subsunção do caso no texto legal. As respostas do direito às questões práticas ganho de tempo e de simplicidade na argumentação jurídica é significativo.
poderiam então ser simplesmente deduzidas dos textos legais segundo uma
lógica analítica exageradamente dogmática. E utilizamos a expressão “dogmá-
tica” aqui no sentido forte de que o texto da lei, por si só, constituía um
dogma que não poderia ser questionado, nem mesmo interpretado, muito
menos contrariado ou relativizado pela argumentação e pela decisão jurídica. ggi, poiché solo da queste trae la propria autorità e, lungi dall’esserne autore o padrone,
Interpretar o texto da lei constituía inclusive um ato reprovável, já ne è solo garante, amministratore e, al massimo, interprete”.
3
que o texto legal era considerado não só como o resultado racional e ilumi- Tanto que se pode ler em Rousseau uma expectativa bastante otimista depositada no legis-
lativo: “È impossibile corrompere il legislatore in corpo, ma ingannarlo è facile. I suoi
nado de uma decisão política do legislativo, mas sobretudo como um valor rappresentanti, invece sono difficili da ingannare, ma facili da corrompere, e raramente
superior ao próprio governo. Conforme Rousseau, o governo é o garantidor, accade che non siano” (ROUSSEAU, Jean-Jacques. Considerazioni sul Governo di Polo-
administrador e no máximo interprete das leis2. É o governo que depende das nia e sul progetto di riformarlo. In: _____. Scritti politici. A cura di Maria Garin. Bari:
Laterza & Figli, 1994. v. 3, [p. 175-281], p. 204).
4
Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Frammenti politici. In: _____. Scritti politici. Roma:
Laterza & Figli, 1994. v. 2, [p. 227-316], p. 244.
5
Cf. MONTESQUIEU. De l’esprit des lois. Paris: Librairie Garnier Frères, 1927. p. 154
1
Como observou WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tra- [Livre XI, Chapitre VI].
6
dução de A. M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 379: Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Frammenti politici. In: _____. Scritti politici. Roma:
“É precisamente a crença jusracionalista na possibilidade de um direito justo em absolu- Laterza & Figli, 1994. v. 2, [p. 227-316], p. 245.
to (numa certa situação histórica) que faz crer ao legislador que é possível regular uma 7
Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques., p. 108: “As leis não são, propriamente, mais do que as con-
vez por todas qualquer situação pensável”. dições da associação civil. O povo, submetido às leis, deve ser o seu autor. Só àqueles que se
2
Cf. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Frammenti politici. In: _____. Scritti politici. Roma: associam cabe regulamentar as condições da sociedade. [...] Então, das luzes públicas resul-
Laterza & Figli, 1994. v. 2, [p. 227-316], p. 244: “Pertanto, se le leggi esistono prima del ta a união do entendimento e da vontade no corpo social, daí o perfeito concurso das partes
governo, esse sono indipendenti dal governo anzi è il governo stesso che dipende dalle le- e, enfim, a maior força do todo. Eis donde nasce a necessidade de um Legislador”.
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 31 32 Rafael Lazzarotto Simioni

Essa concepção de direito foi conhecida também como o legalismo para a pretensão de governo de um território ou de uma nação por um Esta-
da codificação pós-revolucionária. Nessa concepção, não há nenhuma dife- do. Um poder central de controle e direção daquela forma de sociedade estra-
rença entre direito e texto legal. Direito e texto de lei confundem-se em uma tificada exigia, como condição de possibilidade, a unificação da jurisdição e
única identidade dogmática. O direito é o texto da lei, tanto quanto o texto da também do direito. Quer dizer, a pretensão do Estado de governar um territó-
lei é o direito. E assim a Escola da Exegese permitiu entender o direito exa- rio multijurisdicionalizado, onde o direito se encontrava fragmentado na
tamente segundo os ideais da Revolução Francesa: negando os costumes e forma de múltiplos direitos costumeiros, de índole jusnaturalista, exigia um
tradições que vinham das “trevas” da Idade Média, para permitir apenas a instrumento capaz de unificar tanto as múltiplas jurisdições quanto os frag-
legitimidade esclarecida da lei editada segundo as exigências do século das mentados direitos costumeiros de cada estrato social.
Luzes. Para isso a lei escrita foi uma resposta perfeita. Porque com base na
lei escrita, o próprio direito se torna geral e abstrato: geral no sentido da di-
1.1.2 Multijurisdicionalidade e Direito Costumeiro Fragmentado fusão para todas as pessoas e estratos sociais do território do Estado ou da
A Escola da Exegese erigiu o texto da lei como o único material nação; e abstrato no sentido de que a sua aplicação não dependeria mais de
para ser trabalhado sob o nome de direito. Porque uma vez escrita, a lei po- nenhuma razão histórica, mas tão somente da subsunção do caso concreto
deria ser tanto entendida por todos, quanto difundida para todos que a ela se nos elementos sintáticos descritos no texto da lei.
encontravam submetida8. Esses três motivos juntos constituíram uma boa razão para justifi-
Essa combinação de meio de comunicação e meio de difusão insti- car as pretensões da Escola da Exegese. A sua concepção legalista de direito
tuída pela forma escrita da lei permitiu resolver também um problema histó- permitiu, de uma só vez: a) coordenar a necessidade do Iluminismo de rom-
rico do Estado medieval, que era o problema da multijurisdicionalidade: ha- per com o passado; b) unificar a múltiplas jurisdições que antes eram dividas
via tantas jurisdições quanto o número de classes, estamentos ou estratos em conformidade com os estratos sociais medievais; bem como c) substituir
sociais. Havia uma jurisdição para mercadores, outra para nobres, outra ain- os direitos costumeiros de cada estrato social medieval por um direito racio-
da para religiosos, para plebeus etc. Cada estrato social tinha uma jurisdição nal, geral e abstrato, que vale para todos e que, exatamente por isso, apresen-
correspondente9. E isso acontecia exatamente porque não havia relações jurí- tou-se como instrumento de promoção dos ideais de igualdade, liberdade e
dicas significativas entre estratos sociais distintos. Nobres não realizavam fraternidade.
contratos com plebeus e vice-versa10. As relações eram de dominação, explo-
ração e submissão. E do mesmo modo que cada estrato social possuía a sua 1.2 FUNDAMENTOS
própria jurisdição, também havia um direito costumeiro fragmentado, de ín-
dole jusnaturalista, com tantos costumes quanto o número de estratos sociais.
1.2.1 Justificações Teóricas
Cada estrato social possuía tanto o seu próprio direito costumeiro
quanto uma jurisdição correspondente11. E isso representava um problema Mas apesar da proeminência da lei escrita como o único vetor vá-
lido da decisão jurídica na Escola da Exegese, há também outros dois pres-
supostos que constituem o seu estilo de interpretação, argumentação e de-
8
cisão. Ao lado do pressuposto político do legalismo liberal, a Escola da
Sobre os meios de difusão da comunicação, ver-se: LUHMANN, Niklas; DE GIORGI, Exegese tem também um pressuposto filosófico no jusnaturalismo ilumi-
Raffaele. Teoria della società. 11. ed. Milano: Franco Angeli, 2003.
9
Cf. TARELLO, Giovani. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e codifica-
zione del diritto. Bologna: Il Mulino, 1976. p. 27.
10
Relações jurídicas entre nobres e plebeus eram tão raras e inusitadas que inclusive vira- [...], in cui la concomitanza di tendenze storicistiche e di tendenze corporativistiche, mentre
vam novelas, como as de Shakespeare. Uma interessante ilustração desse período históri- ostacolava nella prima metà del secolo XIX il processo di codificazione, dissuadeva
co e do significado do início da proteção jurídica aos contratos firmados por plebeus pode dall’adozione di uno schema di interpretazione storiografica fondato sulla contrapposizione
ser lida em FOUCAULT, Michel. Eu, Pierre Rivière. tra diritto frantumato in sistemi particolari e diritto unificato da una codificazione unifor-
11
Cf. TARELLO, Giovani. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e codifica- me”. Também Wieacker destaca, a respeito do Código de Napolão, essa necessidade política
zione del diritto. Bologna: Il Mulino, 1976. p. 28-29: “L’espressione ‘particolarismo jiuridi- de “substituir o antigo particularismo feudal por um direito geral dos franceses baseado na
co’ è stata inventada e fatta circolare dai giuristi positivisti dall’Ottocento, proprio al fine di razão”. (WIEACKER, Franz. História do direito privado moderno. 2. ed. Tradução de A.
contrapporre la felice situazione del diritto codificato a quella, infelice, che la precedeva; M. Botelho Hespanha. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1993. p. 386)
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 33 34 Rafael Lazzarotto Simioni

nista, bem como um pressuposto cultural no fenômeno das codificações zavam o lugar, o sentido e a própria corporeidade material do direito. E exa-
pós-Revolução Francesa12. Esses três pressupostos juntos, articulados de tamente em razão da combinação entre a fundamentação política, jusfilosófi-
modo implícito nos discursos da Escola da Exegese, constituíram as suas ca e cultural das codificações, a ideia de código passou a simbolizar também
bases fundamentais de justificação científica. São três, pois, os fundamen- a ideia de que todas as respostas jurídicas, todo o direito, toda a regulamen-
tos que constituem a justificação teórica (científica) da Escola da Exegese: tação jurídica, estava de modo total, exclusivo e definitivo, no código. O có-
uma imagem política da lei escrita, uma imagem filosófica jusnaturalista e digo era o direito completo. O direito era o código. Não havia direito fora do
uma imagem cultural da forma codificada dessa lei escrita. A lei escrita texto legal do código.
tinha, assim, um fundamento simultaneamente político, filosófico (jusnatu- E essa ideia foi uma conquista da Escola da Exegese, pois antes de-
ralismo iluminista) e cultural. la, nos códigos dos séculos XVII e XVIII, não havia uma ruptura com as tra-
O fundamento político da lei escrita apontava para o modelo de Es- dições históricas, tampouco havia uma concepção de inexistência de lacunas,
tado da época, segundo o qual somente as leis politicamente legitimadas pelo tanto que esses códigos remetiam, no caso de lacunas, a fontes subsidiárias
Estado de assembleia representativa e com seus poderes separados poderiam de direito, que eram os recursos ao direito natural13. A partir da Escola da
pretender validade. Separava-se assim a lei escrita das normas morais, religi- Exegese, contudo, a codificação ganha o sentido da completude e da autossu-
osas, éticas e toda aquela carga histórica que fundamentava o direito costu- ficiência. Tanto que o juiz já não poderia mais recusar-se a julgar um caso
meiro. Esse fundamento político da lei escrita permitia, portanto, renunciar sob o pretexto de lacuna na lei14.
ao direito costumeiro e cumprir com as exigências de rompimento com o
passado da Revolução Francesa. No lugar do passado histórico e de suas tra- 1.2.2 Justificações Práticas
dições consuetudinárias, colocava-se agora a legitimidade política do Estado, Dessa justificação teórica da ideia de direito na Escola da Exegese
já fundamentada por filósofos como Rosseau e Montesquieu. foram projetadas – e dogmatizadas – as suas justificações práticas. E entende-
Naturalmente, um fundamento político é insuficiente para constitu- mos por justificação prática aquele conjunto de argumentos que são realizados
ir o pano de fundo dos discursos práticos que seriam necessários à aplicação previamente pela doutrina jurídica para, depois, na prática das decisões jurídi-
do direito pelas decisões jurídicas. A fundamentação de uma decisão jurídica cas, não se precisar discuti-los em cada situação concreta. Essas justificações
exige mais fundamentos prévios. Uma fundamentação política dos textos práticas são argumentos que tornam seus postulados já argumentados para as
legais deixa aberto um espaço muito grande para argumentações. E por isso decisões. E exatamente porque não se precisa argumentar o que já está argu-
o fechamento dessa rede de pré-fundamentações foi realizada com base nos mentado, a importância simbólica dessas justificações práticas é determinante
ideais filosóficos do jusnaturalismo iluminista, que pregava a existência de do estilo de interpretação, argumentação e decisão jurídica.
um direito natural-racional superior, o qual foi colocado como fundamento No caso da Escola da Exegese, podem ser sinalizadas três funda-
metafísico dos textos legais. Quer dizer: um direito natural-racional metafísi- mentações prévias para os discursos práticos das decisões jurídicas: identifi-
co, colocado como pano de fundo dos textos legais, para cobrir qualquer cação do direito com a lei escrita; exclusividade da lei escrita como critério
aresta eventualmente aberta por perguntas sobre os motivos da decisão por de orientação discursiva; e suficiência da lei escrita para simbolizar a unida-
uma e não outra resposta do direito. de e a totalidade do direito15.
Essa combinação de justificações políticas e jusfilosóficas ilumi- A identificação do direito com a lei escrita tinha o sentido de afir-
nistas permitiram então um arranjo ideal com o momento cultural da época, mar, ao mesmo tempo, que não havia direito além daquele escrito nas leis. E
cuja moda eram as codificações: a sistematização dos textos legais em códi- esse sentido é importante para se entender os vetores discursivos da Escola
gos que não apenas facilitavam a pesquisa das soluções jurídicas, mas que
sobretudo corporificavam o direito. Com efeito, os códigos eram mais que
coletâneas de leis: eles simbolizavam a própria unidade do direito. Simboli- 13
Cf. TARELLO, Giovani. Storia della cultura giuridica moderna: assolutismo e codifi-
cazione del diritto. Bologna: Il Mulino, 1976. p. 47 e 221.
14
Trata-se do art. 4º do Code civil: que tem a regra do non liquet. XXX citar o art. Quarto
no orginal.
12 15
Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico,
da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 181. da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 183.
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 35 36 Rafael Lazzarotto Simioni

da Exegese. Ao afirmar que não há direito além da lei escrita, essa justifica- inovador ou realizador. E eventual pergunta pela justiça da decisão já estaria
ção diz, ao mesmo tempo, que não há outro direito possível. E se porventura previamente respondida pela fundamentação teórica dessa concepção de di-
existirem outras normas importantes – éticas, morais, religiosas, culturais reito: o dever de fidelidade da decisão ao texto da lei, à lettre de la loi17, já se
etc. – já estava claro que essas outras normas não eram jurídicas, não eram encontrava fortemente justificado pela fundamentação do princípio da sepa-
direito. Como lidar então com a questão da justiça em um contexto teórico ração dos poderes, que exigia do Judiciário apenas la bouche qui prononce
como esse? Como responder a um eventual reclamo de injustiça da decisão, lês paroles de la loi18. E a força desse argumento era tanta que inclusive jus-
que deve seguir fielmente a operação lógica de subsunção do caso ao texto tificou a criação dos tribunais de cassação mais como protetores das leis do
legal e que, exatamente por isso, corre o risco de apresentar-se injusta em que como juiz dos cidadãos.
determinadas situações? O interessante é que a resposta para essas questões Obviamente, um estilo de direito no qual as decisões jurídicas de-
já está dada pela justificação teórico-científica da Escola da Exegese: o texto veriam não apenas seguir uma lógica puramente dedutiva de subsunção dos
da lei já está fundamentado tanto na política daquele modelo de Estado libe- casos nos textos legais, mas também orientar seus processos argumentativos-
ral, quanto na ideia jusfilosófica do direito natural-racional do iluminismo. -decisórios exclusivamente com base na abstração (histórica e contextual)
E assim a Escola da Exegese torna indiscutível essa justificação: o di- dos textos legais, só poderia supor a suficiência da lei escrita como símbolo
reito é a lei escrita, porque somente a lei escrita tem a legitimidade política e a da unidade e da totalidade do direito. Todas as respostas jurídicas e procedi-
correção jusfilosófica necessária para cumprir com os ideais do Iluminismo. E mentos decisórios estão na lei escrita. Logo: a lei escrita só pode ser infali-
nessas condições, questionar o texto legal já significaria questionar a própria velmente completa, suficiente e consistente, na sua sistematicidade lógico-
legitimidade política ou a própria correção jusfilosófica do texto legal. Natu- -analítica. Em outras palavras, a Escola da Exegese sustentava a inexistência
ralmente, uma argumentação jurídica que pretendesse ir contra todos os ideais de lacunas no direito para a decisão dos casos. E se eventualmente ocorresse
iluministas que pululavam sobre esses dois fundamentos, seria tão difícil de ser um caso sem resposta no direito, a resposta já estaria previamente dada: um
realizada quanto incoerente com o próprio contexto político da decisão jurídica. pedido sem resposta na lei é um pedido sem fundamento jurídico, que deve,
Ao lado dessa identificação do direito com a lei escrita, a Escola da portanto, conduzir à improcedência da demanda19.
Exegese disponibilizou também um outro argumento prévio importante para
a prática das decisões jurídicas: a exclusividade da lei escrita como o único
17
critério de orientação discursiva. Sob esse postulado, afirmava-se que todos MONTESQUIEU. De l’esprit des lois. Paris: Librairie Garnier Frères, 1927. p. 74 [Livre
os critérios para a tomada de decisões jurídicas já estavam dados na lei escri- VI, Chapitre III]: “Dans le gouvernement républicain il est de la nature de la constitution
ta, de modo exclusivo. Quer dizer: somente no texto legal a decisão jurídica que les juges suivent la lettre de la loi. Il n’y a point de citroyen contre qui on puisse in-
terpréter une loi, quand il s’agit de ses biens, de son honneur, ou de sa vie”.
poderia encontrar os critérios necessários para julgar questões práticas. Veja- 18
MONTESQUIEU. De l’esprit des lois. Paris: Librairie Garnier Frères, 1927, p. 154 [Livre
se que enquanto o postulado da identificação do direito com a lei escrita XI, Chapitre VI]: “si les tribunaux ne doivent pas être fixes, les jugements doivent l’être à
afirma que não existe outro direito além da lei escrita, esse postulado da ex- un tel pointe, qu’ils ne soiente jamais qu’un texte précis de la loi”. E desse modo, “Il
clusividade da lei escrita como o único critério decisório afirma que o juiz pourroit arriver que la loi, qui est en même temps clairvoyante et aveugle, seroit, en de
não pode recorrer critérios normativos complementares para a decisão, como certains cas, trop rigoureuse. Mais les juges de la nation ne sont, comme nous avons dit,
que la bouche que prononce les paroles de la loi; des êtres inanimés qui n’en peuvent
são as cláusulas gerais, o bem comum e outros conceitos normativos inde-
modérer ni la force ni la rigueur”. (Ibidem, p. 159). Essa concepção está na própria fun-
terminados. Para Castanheira Neves, na Escola da Exegese “a lei é não só a damentação moral e política da Revolução Francesa. Em um de seus relatórios, Robespierre
única fonte do direito como ainda o critério normativo-jurídico exclusivo”16. escreveu que “o magistrado é obrigado a imolar seu interesse ao interesse do povo, e o
O problema da diferença entre aplicação pura do direito e aplicação orgulho do poder à igualdade. É preciso que a lei fale sobretudo com autoridade àquele
realizadora, que hoje tanto se discute, não existia na época. A decisão jurídi- que é seu órgão. É preciso que o governo exerça um controle sobre si mesmo, para con-
vservar todas as suas partes em harmonia com a lei” (ROBESPIERRE, Maximilien de.
ca sempre seria uma pura aplicação do direito escrito, sem nenhum conteúdo Sobre os princípios de moral política que devem guiar a Convenção Nacional na adminis-
tração interna da República. Relatório apresentado em nome do Comitê de Salvação Pú-
blica, 05.02.1794. In: _____. Discursos e relatório na Convenção. Tradução de Maria
Helena Franco Martins. Rio de Janeiro: Eduerj e Contraponto, 1999. [p. 141-162], p. 148).
16 19
Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, Assim sustentavam importantes pensadores da Escola da Exegese, como Demolombe,
da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 184. Bonnecase, Blondeau e Huc. Vale a pena transcrever as palavras Blondeau: “il aura des
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 37 38 Rafael Lazzarotto Simioni

E assim a Escola da Exegese orientava a interpretação, a argu- Depois de explicitarmos os motivos, as razões teóricas e justifica-
mentação e a decisão jurídica. Disponibilizando essas três categorias de ções práticas da Escola da Exegese, fica fácil compreender as suas recomen-
argumentos prévios – argumentos autologicamente já argumentados – esse dações quanto à interpretação, à argumentação e a decisão jurídica.
estilo de pensamento jurídico permitiu uma simplificação radical da deci- No que tange à interpretação, a recomendação era: fica proibido in-
são jurídica. Pois de uma complexa pesquisa, de um lado histórico-cultural terpretar o texto da lei. Difícil seria ter espaço, na época, para uma pergunta
dos costumes e, de outro, metafísica do direito natural aplicável, a Escola do tipo: como interpretar uma proibição de interpretar? Uma pergunta como
da Exegese reduziu a decisão jurídica a apenas duas variáveis: qual é o fa- essa já apareceria como uma ingenuidade. Porque já se deveria saber previ-
to, de um lado, e qual é o direito, de outro. Entre o fato e o direito torna- amente que a interpretação do texto legal significava uma calúnia à própria
-se então suficiente uma simples operação lógica de subsunção dedutiva. pretensão de racionalidade dos fundamentos políticos, jusfilosóficos e cultu-
rais daquela concepção de direito – fundamentos esses que, como acima de-
1.3 INTERPRETAÇÃO, ARGUMENTAÇÃO E DECISÃO monstrado, já se encontravam previamente argumentados pela doutrina da
JURÍDICA Escola da Exegese.
A estrutura argumentativa desse tipo de construção teórica é circular:
a) é proibido interpretar, porque não é essa a função do judiciário; b) não é
essa a função do judiciário porque o direito tem seu fundamento político no
motifs aussi puissants pour s’abstenir que pour agir, et devra considérer ces lois comme Estado; c) o Estado tem seu fundamento político na separação dos poderes; d)
n’existant pas, et rejeter la demande” (apud GÉNY, François. Méthode d’interprétation a separação dos poderes afirma que o judiciário é responsável somente pela
et sources en droit prive positif: essai critique. 2. ed. Paris: Librairie Générale de Droit aplicação da lei; e) a aplicação da lei exige fidelidade ao texto da lei; f) porque
& de Jurisprudence, 1919. t. I, p. 25). Uma resposta da Escola da Exegese às críticas da interpretar a lei seria já violar a separação dos poderes; logo 1: g) é proibido
Escola Científica de Gény pode ser lida em: BONNECASE, Julien. L’École de l’Exégèse
en Droit Civil: les traits distinctifs de sa doctrine et de ses méthodes d’après la profession
interpretar sob pena de violar a separação dos poderes; h) a separação dos po-
de foi de ses plus illustres représentants. 10. ed. Paris: E. De Boccard, 1924, especialmen- deres tem fundamento no iluminismo jusfilosófico; logo 2: é proibido interpre-
te p. 244-279. Bonnecase, contudo, já admite a falibilidade do legislador quando reconhe- tar sob pena de violar também a própria concepção do iluminismo jusfilosófi-
ce que há um ideal em relação ao qual a lei pode se apresentar inadequada: “por una par- co. Conclusão geral: interpretar a lei viola tanto o fundamento político quanto
te, la persona humana es quien concibe el Derecho y, por otra, únicamente lo concibe ba- o fundamento filosófico do direito, já previamente argumentados, ambos, no
jo la imperiosa presión de la necesidad que a cada instante siente, de asegurar el campo
de acción que corresponda a su actividad innata. Si el legislador se niega a comprender
nível das justificações teóricas da doutrina da Escola da Exegese.
las aspiraciones ideales del alma humana, la familia zozobrará con el Derecho, encarga- Tratava-se, assim, de um positivismo exegético, um positivismo
do de asegurar su existencia, en el materialismo más brutal, en la negación, a la vez, de hermenêutico bastante estrito, concentrado apenas na dimensão sintática do
los datos de la naturaleza y de la razón” (BONNECASE, Julien. La filosofía del código de texto da lei. Uma “incondicional fidelidade aos textos legais”20.
Napoleon aplicada al derecho de familia. Tradução de Lic. Jose M. Cajica Jr. Puebla, Mé-
xico: José M. Cajica Jr, 1945, p. 24). Em uma de suas obras mais maduras, Bonnecase chega
a afirmar, referindo-se ao espírito da lei ou à vontade do legislador na interpretação jurídica, 1.3.1 Interpretação
que “Así lo había determinado la escuela de la exegesis, que durante todo el siglo XIX agru-
pó en su seno y vinculó a sus dogmas la mayor parte de los civilistas franceses, especial- A interpretação do direito recomendada pela Escola da Exegese
mente los más ilustres de ellos. Con facilidad se comprende que semejante concepción de la partia de duas estratégias teóricas distintas: a) a observação do texto legal
enseñanza del derecho producía en el espíritu de los oyentes un efecto enteramente destruc- como o único objeto da interpretação, na forma de um objetivismo herme-
tor del pasado, frente al cual nada era la célebre imagen del río Leteo que arrastra en sus nêutico que apresentava-se como uma boa solução para o problema do subje-
aguas el ovido” (BONNECASE, Julien. Introducción al estudio del derecho. 2. ed. Tradu- tivismo histórico-cultural que potencialmente influenciava a interpretação; e
ção de Jorge Guerrero R. Bogotá: Temis Librería, 1982, p. XIV-XV). Assim também De-
molombe, que parecendo prenunciar a insufiência dos métodos da Escola da Exegese, inicia b) a combinação desse objetivismo hermenêutico com uma metodologia de
o prefácio do seu gigantesco Cours de Code Napoléon com a seguinte pergunta: “A quelles pura dedução lógica do sentido literal do texto da lei.
conditions un cours de Code Napoléon doit-il aujourd’hui satisfaire?” (DEMOLOMBE, C.
Cours de Code Napoléon: Traité de la publication des effets et de l’application des lois en
général. 3. ed. Paris: Auguste Durand e L. Hachette Et Cia., 1886. t. I, p. I). xxxWieacker,
20
Gesetz und richterkunts, 6; e Privatrechtgechichchte der Neuzeit, 399. Savigny, Uber Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico,
Gesetzgebung und rechtwissenschaft in unserer Zeit, einf. xxx da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 187.
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 39 40 Rafael Lazzarotto Simioni

Naturalmente, a combinação do formalismo da lógica dedutiva dução lógica do sentido da sua vontade, para deduzir dela, logicamente, o
com o igualmente formal conteúdo sintático do texto legal não era suficiente sentido do texto legal.
para guiar a interpretação jurídica de modo infalível em todos os casos. Às Observam-se duas operações de interpretação ou dois níveis ana-
vezes surgiam dúvidas sobre qual a dedução lógica correta do texto da lei. E líticos de interpretação: no primeiro, a interpretação do texto da lei; on se-
apesar da Escola da Exegese ter o texto legal como o único objeto de inter- gundo, a interpretação da vontade do legislador para, depois, realizar uma
pretação jurídica possível (os fatos, por exemplo, não representavam pro- dedução lógica dessa interpretação para interpretar o texto da lei. Para a
blemas de interpretação), às vezes ocorriam dúvidas. primeira operação, a Escola da Exegese atribuiu o nome de interpretação
Para os casos de dúvida sobre a interpretação correta – e somente gramatical. Para a segunda operação, atribuiu o nome de interpretação ló-
no caso de dúvida – admitia-se a necessidade do recurso a um valor excep- gica. A interpretação gramatical também era lógica, mas estava restrita à
cionalmente utilizado na interpretação jurídica, que era o recurso à vontade análise lógica dos elementos sintáticos do texto legal. O sistema de refe-
do legislador21. Essa vontade não poderia ser, contudo, suposta ou argu- rência utilizado para essa operação de subsunção lógica do fato à norma era
mentada simplesmente como razoável ou justa ou qualquer outro argumen- apenas o texto da lei. Já a interpretação lógica possuía outro sistema de re-
to. A vontade do legislador deveria ser comprovada sobretudo através da ferência. A referência comunicativa apontava para fora do texto legal, para
pesquisa dos trabalhos preparatórios à edição da lei. Essa vontade do legis- a vontade do legislador, para posteriormente deduzir logicamente dela o
lador era entendida como uma vontade racional a priori, já justificada no sentido da lei.
âmbito da política. De modo que a vontade do legislador figurava como um
elemento de valor decisivo para complementar a técnica da interpretação Assim, a recomendação da Escola da Exegese a respeito da inter-
dos textos legais nos casos de dúvida. E essa vontade do legislador não po- pretação jurídica era bastante simples: interpreta-se apenas o sentido grama-
deria ser discutida, pois tratava-se de uma razão política contra a qual o tical do texto da lei, sem considerar todo o restante da realidade que interfere
judiciário não poderia questionar. nesse ato de conhecimento. Sem considerar as tradições históricas, culturais,
sociais, políticas e também ideológicas diante das quais a interpretação sem-
Importante destacar, contudo, que a pesquisa da vontade do legis-
pre está submetida. E essa desconsideração não era apenas uma omissão in-
lador também necessitava de interpretação. A leitura dos trabalhos prepara-
tórios à edição das leis também exigia interpretação. E essa interpretação gênua do método de interpretação jurídica. Pelo contrário, essa desconside-
da vontade do legislador seguia a mesma metodologia recomendada para a ração era expressamente recomendada. Os juízes estavam proibidos de sair
interpretação dos textos legais: uma analítica puramente formal da vontade dos limites estritamente gramaticais do texto da lei, para buscar em elemen-
do legislador para determinar, dedutivamente, o sentido do texto da lei por tos exteriores ao texto os suplementos necessários para uma interpretação
ele editada. Quer dizer, a vontade do legislador devia ser interpretada atra- mais sofisticada. A interpretação gramatical não era apenas o método de in-
vés da mesma combinação de um objetivismo hermenêutico com uma de- terpretação possível na época, era também o método de interpretação reco-
mendado dogmaticamente.
O único suplemento admitido era o recurso à vontade do legislador,
por meio da chamada interpretação lógica. A referência à lógica, aqui, está
21
Cf. GÉNY, François. Méthode d’interprétation et sources en droit prive positif: essai no sentido da lógica de dedução da vontade do legislador para suplementar a
critique. 2. ed. Paris: Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, 1919. t. I, p. 32: insuficiência dos elementos gramaticais do texto legal. Um formalismo bas-
“Mais, souvent, la pensée du législateur, qui contient seule la règle impérative pour tante seguro em termos de controle dos argumentos e das decisões possíveis,
l’interprète, n’est pas exactement traduite par la formule employée. Celle-ci reste obscure
ou incomplète, en tout cas, manifestement insuffisante, à elle seule, pour révéler la soluti-
mas exageradamente reducionista em termos de capacidade intelectiva e de
on demandée. Alors, intervient, afin de suppleer à l’impuissance de l’interprétation abrangência normativa do direito. A redução de todo o direito ao texto da lei,
grammaticale, l’interprétation improprement appelée logique, dont l’essence, comme l’a na sombra da vontade do legislador, simplificava bastante a interpretação
montré R. Von Jhering, consiste, en passant au-dessus des mots, à chercher la pensée de jurídica. Hoje nós podemos criticar essa simplificação demonstrando os gra-
la oi justqu’en l’âme de son auteur”, ou seja, a vontade do legislador. Assim também
BONNECASE, Julien. L’École de l’Exégèse en Droit Civil: les traits distinctifs de sa
ves déficits de compreensão do direito como um importante instrumento de
doctrine et de ses méthodes d’après la profession de foi de ses plus illustres représentants. transformação social. Mas na época, essa simplificação era necessária para
10. ed. Paris: E. De Boccard, 1924. p. 131, fala em: “La prédominance de l’intention du um direito capaz de servir aos motivos do Iluminismo: romper com o passa-
législateur dans l’interprétation du texte de loi”.
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 41 42 Rafael Lazzarotto Simioni

do, com a multijurisdicionalidade e com a fragmentação dos vários direitos vontade do legislador, pode-se já ter uma ideia da simplificação drástica que
costumeiros. essa metodologia proporciona sobre a argumentação jurídica. A argumenta-
Importante sinalizar também que não havia contradição entre os ção jurídica, nesse contexto, torna-se tão simplificada a ponto de dispensar
fundamentos da Escola da Exegese e a utilização excepcional do recurso à qualquer tipo de análise mais sofisticada das questões submetidas à decisão
vontade do legislador. Isso porque entre a interpretação gramatical (a refe- jurídica.
rência somente ao texto da lei) e a interpretação lógica (a referência à vonta- Toda a complexidade que qualquer acontecimento social sempre
de do legislador para interpretar o texto da lei), não havia nenhuma mediação carrega consigo fica filtrada pela suficiência e exclusividade do texto da lei
normativa. Quer dizer, tratava-se de pura lógica dedutiva. A fonte do direito para a resposta correta do direito. Todos os motivos, que podem ser tanto de
continuava sendo, portanto, o suficiente e exclusivo texto da lei. Somente na ordem antropo-psico-fisiológica, quanto de ordem econômica, política, reli-
interpretação desse texto é que se tornava possível suplementar o seu sentido giosa, moral, ética, cultural etc., ficam simplesmente dispensados de compa-
gramatical com a vontade do legislador. recer à argumentação jurídica da Escola da Exegese, porque a única justifi-
cação necessária já está previamente dada, de modo suficiente e exclusivo,
Essa técnica de interpretação não se distancia muito das práticas
no texto da lei.
contemporâneas de interpretação restritiva, como acontece especialmente no
campo do direito tributário e do direito penal. Entretanto se sabe que toda Em termos pragmáticos, uma argumentação jurídica desse estilo de
essa construção teórica da Escola da Exegese não é apenas inconveniente concepção teórica acontece nestes termos: a solução é x porque o art. x da lei
para uma pretensão de compreensão mais sofisticada e abrangente do direito, x diz que a solução é x e não outra. Uma argumentação, portanto, exagera-
mas sobretudo impossível de ser realizada. Isso porque simplesmente não há damente simples e, ao mesmo tempo, muito potente em termos de conven-
interpretação que parta de um grau zero de compreensão. Como nos ensinou cimento. Isso porque o caráter circular e tautológico do procedimento lógico-
-argumentativo garante que não haverá necessidade de justificar motivos ou
a filosofia hermenêutica de Heidegger, toda interpretação pressupõe pré-
razões superiores à própria circularidade e tautologicidade estabelecida pelo
-compreensões que são sempre históricas22.
próprio argumento. Em outras palavras, a força desse estilo de argumentação
Esse tipo de interpretação gramatical e lógica recomendado pela está exatamente na circularidade dos fundamentos, cuja relação é estabeleci-
Escola da Exegese só pôde ser sustentado sob a forma exageradamente dog- da na forma de uma justificação recíproca, onde a solução é x porque a lei
mática – no sentido forte da expressão. Nesse tipo de metodologia interpreta- diz que a solução é x e não outra. A única saída argumentativa seria pergun-
tiva não tinha lugar para princípios morais, valores éticos, orientações a con- tar pelo fundamento da lei que diz que a solução é x e não outra. Mas essa
sequências etc. Mas não se pode perder de vista que, na época, essa dogmati- saída já está previamente trancada pela própria fundamentação teórica da
cidade era conveniente para assentar os ideais pós-revolucionários do Ilumi- Escola da Exegese: o fundamento da lei vem, como antes observado, tanto
nismo. O problema, portanto, está na ingênua utilização desse método de da política quanto da filosofia jusnaturalista do iluminismo. Quer dizer, os
interpretação no contexto da sociedade contemporânea. Pois apesar da sua argumentos já estão argumentados. E exatamente nessa tautologia está a for-
sedutora simplicidade e segurança, as questões jurídicas do mundo contem- ça e a simplicidade desse estilo de argumentação.
porâneo exigem muito mais da interpretação jurídica do que apenas a expli- Entretanto a argumentação sempre pode ser muito criativa, sempre
citação do sentido gramatical das leis escritas. pode surpreender. E podemos supor, diante da ausência de comprovação his-
tória, que ao mesmo tempo em que se sufocava a argumentação jurídica den-
1.3.2 Argumentação tro dos limites da prisão sintática do texto legal, também se a oxigenava no
Se a interpretação jurídica recomendada pela Escola da Exegese só lado da questão da definição dos fatos. Isso porque a diferença entre questões
admitia a análise dos elementos sintáticos do texto da lei, sob a sombra da de fato e questões de direito, sempre presentes em todas as teorias que traba-
lham com lógicas de subsunção, permite um isolamento lógico das questões
de direito, mas não permite esse mesmo isolamento sobre as questões de fa-
to. A definição dos fatos sempre pode ser transbordada pela argumentação
22
Cf. HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Parte I. 14. ed. Tradução de Márcia Sá Cavalcante jurídica. Sempre pode ser narrada, argumentativamente, de modo a explicitar
Schuback. Petrópolis: Vozes; São Paulo: Universidade de São Francisco, 2005. especialmen- alguns aspectos, silenciando outros. E isso permite supor que a argumenta-
te p. 229 e ss.
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 43 44 Rafael Lazzarotto Simioni

ção jurídica na Escola da Exegese era uma argumentação que explorava bas- Se a interpretação na Escola da Exegese se restringia ao sentido lógi-
tante a configuração fática dos acontecimentos, de modo a induzir a subsun- co-sintático do texto legal, na sombra da vontade do legislador, com um estilo
ção em uma ou noutra norma jurídica. de argumentação jurídica que se desenvolvia apenas na justificação da confi-
Como ilustração, pode-se considerar que um fato pode ser definido guração dos fatos para uma adequada subsunção, logo se pode perceber que a
como o conjunto dos elementos “a”, “b”, “c”, “d”, “e” e “f”, enquanto que os decisão jurídica, nesse contexto, encontrava-se tão somente sob a alternativa
elementos sintáticos do texto da lei são “b”, “c” e “e”. A argumentação pode entre considerar provada uma ou outra narrativa possível da situação fática.
então desenvolver-se na forma de uma fundamentação que procura justificar Toda a problematicidade da decisão se restringia, portanto, à questão
a convicção de que aquele fato pode ser entendido como um fato que se sub- da subsunção do fato à norma. E isso significa, em termos pragmáticos, um
sume ou que não se subsume nos elementos sintáticos do texto legal. Como problema de decisão sobre apenas duas variáveis reciprocamente lineares: a
acima destacado, trata-se de uma argumentação bastante comum no campo variável “narrativa do fato” e a variável “texto legal aplicável”. Em outras pa-
do direito tributário e no do direito penal dos dias de hoje. lavras, a decisão jurídica tinha como problema de decisão apenas a escolha – e
Podemos denominar esse estilo de argumentação de argumentação a respectiva justificação – entre a narrativa x ou a narrativa y do fato litigioso,
de subsunção, quer dizer, uma argumentação que, diante da simplicidade e pois a justificação argumentativa da escolha de uma dessas narrativas já justi-
força da tautologia no lado da descrição sintática do texto legal, procura ficava, logicamente, também a escolha do texto legal aplicável.
complicar e enfraquecer a linearidade no lado da descrição dos fatos. Se o Por isso que a decisão jurídica, nesse contexto teorético, poderia ser
direito é inquestionável, a argumentação então questiona os fatos. Quando o simplesmente explicada através daquele antigo silogismo aristotélico da pre-
direito já está previamente argumentado com suficiência e exclusividade, missa maior, premissa menor e conclusão. A premissa maior era a lei, a pre-
então não resta outro espaço para a argumentação jurídica senão construir e missa menor a narrativa do fato e a conclusão logo aparecia como a pura apli-
justificar uma determinada narrativa – e não outra – a respeito dos fatos. cação da lei ao caso concreto, pois a justificação da validade ou adequação da
Importante chamar a atenção para o fato de que esse estilo de ar- lei (a premissa maior) já estava justificada politicamente e filosoficamente pela
gumentação se encontra bastante presente tanto fundamentação das lides na própria fundamentação teórica da Escola da Exegese, diante da qual só sobra-
práxis forense quanto na justificação das respostas às avaliações nos cursos va uma margem de argumentação para a justificativa da narrativa adequada e
de direito: de um lado, a simplificação técnica do isso é assim porque o arti- verdadeira a respeito do fato (premissa menor). E esse tipo de explicação pode
go tal diz que é assim, e do outro, a complexificação fática do mas e se o ser encontrado até hoje em alguns manuais e cursos de direito processual23.
agente que praticou o ato estivesse sob outra motivação. Uma combinação de Entretanto, a decisão jurídica poderia ser surpreendida por casos –
simplicidade gramatical-legal e complexidade fática cujo arranjo lógico, que leia-se: argumentações que justificavam determinadas narrativas a respeito
se chama subsunção, passa a constituir a dinâmica e o sentido da argumenta- de fatos – que não se subsumiam perfeitamente nos elementos sintáticos
ção jurídica. dos textos legais. Com efeito, a argumentação jurídica poderia surpreender
a lógica da subsunção com a apresentação narrativa de uma premissa me-
Nesse estilo de argumentação jurídica ficam de fora, portanto, ar-
nor potencialmente comprometedora da operação silogística. Em termos
gumentos importantes como a força ou o peso – que sempre precisam ser
lógicos, esse problema da decisão jurídica poderia ser denominado, como
argumentados – de princípios morais, valores éticos, coerências e consistên-
hoje, de casos difíceis. Mas na época não havia essa compreensão do direi-
cias em relação às exigências sistêmicas de outros contextos normativos co- to. E por esse motivo, esse tipo de problema de decisão não era visto pro-
mo a religião, a cultura, as tradições históricas e também as finalidades pro- priamente como um problema de decisão, mas sim como um problema de
jetadas para o futuro. Essa ordem de valores argumentativos torna-se supér- lacunas no direito.
flua no estilo da argumentação jurídica da Escola da Exegese. E novamente
aqui é importante destacar que esse estilo de argumentação era necessário Eventuais lacunas, contudo, eram consideradas apenas como lacu-
nas aparentes, pois a justificação dogmática da completude, suficiência e
diante dos ideais do Iluminismo pós-revolucionário. Mas é evidentemente
insuficiente para os dias de hoje.

1.3.3 Decisão 23
Por uma questão de polidez, preferimos não citar os autores que continuam a utilizar esse
método de explicação da decisão jurídica do Século XIX..
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 45 46 Rafael Lazzarotto Simioni

exclusividade da lei escrita para responder a todas as questões jurídicas res- Trata-se de um estilo bastante conservador de decisão jurídica25.
pondia também ao problema das lacunas: diante de uma aparente lacuna – Apesar de estar no contexto pós-revolucionário francês, a orientação da deci-
ou, em nossa perspectiva, diante de uma dificuldade na lógica de subsunção são ao texto da lei impede que a argumentação possa produzir justificações
da narrativa à sintaxe da lei ou no silogismo entre a premissa maior e a me- baseadas em exigências teleológicas, finalistas, de orientação àquilo que se
nor – a decisão poderia recorrer a métodos de integração igualmente lógicos quer para o futuro. A única orientação possível era o passado do texto da lei,
e dogmatizados, como a analogia, em um primeiro momento, e os princípios na sombra da vontade do legislador que editou a lei. Argumentos de princí-
gerais, em último caso – ou, em nossa perspectiva, a decisão poderia recorrer pio, como são aqueles necessários de justificação com base na moral, nos
a suplementos lógicos (analogia) ou a suplementos ontológicos (os princípios valores éticos, nas tradições culturais e etc., não tinham lugar nesse estilo de
gerais), transcendentes ao sistema de referência que era o texto da lei. decisão jurídica. Como também não tinham lugar os argumentos de conse-
A analogia era chamada de analogia legis e sua utilização era reali- quências, orientados para um prognóstico jurídico dos possíveis efeitos cola-
zada através da justificação, por meio da argumentação, da existência de si- terais da decisão.
milaridades entre o caso em questão e o caso previsto na lei – entre a narrati- Entretanto, é importante reconhecer e admirar o esforço de cientifi-
va provada e narrativa esperada pelos elementos sintáticos do texto legal. Já cidade da Escola da Exegese. Especialmente porque a decisão jurídica não
a referência a princípios gerais, que era denominada analogia iuris, somente poderia não decidir (non liquet) – art. 4º do Código Civil de Napoleão. Diante
poderia ser utilizada em último caso, quando não era possível justificar a uti- da proibição do diferimento da decisão, as decisões jurídicas às vezes colo-
lização da analogia legis. cam-se diante de situações nas quais é necessário criar o direito. Portanto,
Uma última hipótese possível era a situação da decisão constatar la- era bem mais fácil para a Escola do Direito Livre – uma corrente crítica à
cunas e não conseguir justificar nem o uso da analogia legis, tampouco o recur- Escola da Exegese – resolver esse problema, porque para ela se poderia de-
so à analogia iuris. Nessa hipótese, a recomendação da Escola da Exegese era a cidir qualquer coisa, segundo a consciência do juiz. Mas a Escola da Exegese
de declarar a inexistência de fundamento jurídico para a pretensão. Com efeito, procurou constituir critérios lógicos, fortemente dogmatizados, de modo a
se o direito era a lei escrita, “um caso que não estivesse directa ou indirecta- evitar qualquer decisão construtiva do direito. E cumprir assim com um dos
mente regulado nela seria um caso que carecia de tutela jurídica”24. Julgava-se lemas da Revolução, segundo o qual o juiz é tão somente a boca da lei.
então improcedente a demanda, justificando essa improcedência na própria fal- Utilizando a distinção aristotélica – a forma é a essência imaterial,
ta de direito, quer dizer, uma falta de pretensão jurídica prevista em lei. enquanto a matéria é a essência substancial26 – e firmada por Kant entre ra-
zão teórica e razão prática, podemos ver que as decisões da Escola da Exege-
se tinham muito de razão teórica e nada de razão prática. Uma concepção
1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS estritamente formal do direito, diante da qual a materialidade da justiça ou da
correção moral ficavam afastadas. E assim a Escola da Exegese conseguiu
Hoje nós podemos observar que nesse estilo de decisão jurídica da construir um sistema fechado do direito, capaz de garantir graus bastante
Escola da Exegese a incapacidade de justificação argumentativa de uma de- altos de segurança formal e simplicidade cognitiva, cujo efeito colateral foi a
terminada subsunção era resolvida com a improcedência da ação. Quer dizer, produção de graus igualmente altos de insegurança material e de complexi-
nós podemos identificar uma certa tendência à simplificação drástica das dade silenciada.
formas de interpretação, argumentação e decisão. Qualquer complicação já
poderia ser vista como uma carência de direito. E pode-se supor também
que, por incapacidade de justificar, argumentativamente, uma resposta do 25
Importante considerar também que essa concepção positivista-legalista do direito produ-
direito, tornava-se mais fácil justificar a falta de direito, para um juízo, então, ziu influência tanto nos países capitalistas quanto nos socialistas, inclusive aqueles com
de improcedência da demanda. tendências comunistas (Cf. GILISSEN, John. Introdução histórica ao direito. 4. ed.
Tradução de A. M. Hespanha e L. M. Macaista Malheiros. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 2003. p. 417)
26
Embora Aristóteles admita uma matéria inteligível quando se trata da explicação dos entes
matemáticos (cf. ARISTÓTELES. Metafísica. Ensaio introdutório, texto grego com tra-
24
Cf. NEVES, A. Castanheira. Digesta: escritos acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, dução e comentários de Giovanni Reale. Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola,
da sua Metodologia e Outros. Coimbra: Coimbra, 1995. v. 2, p. 189. 2002. v. III, p. 29 (A 5/6, 987b 15).
Curso de Hermenêutica Jurídica Contemporânea 47 48 Rafael Lazzarotto Simioni

Quanto mais segurança formal, mais insegurança material se pro- pretensão de suficiência e exclusividade dos textos legais, tornando não só
duz. E quanto mais simplicidade cognitiva, mais complexidade fica silencia- conveniente, mas sobretudo necessária, a introdução teórica de uma distinção
da, sufocada pela forma estritamente sintática do texto da lei. Com efeito, o entre o direito e o texto da lei, a partir da qual o direito seria muito mais am-
formalismo desse estilo de decisão desempenhava satisfatória segurança e plo do que os restritos elementos sintáticos do texto legal28. Mas ela subsiste
simplicidade formal do direito, mas exatamente em razão disso, produzia até os nossos dias, naturalmente em menor grau, e ainda produz fortes in-
também muita complexidade e insegurança material. Isso porque, diante da fluências nas expectativas práticas de segurança e simplicidade nas opera-
simples regra do texto legal, qualquer um já poderia planejar estrategicamen- ções de interpretação, argumentação e decisão.
te seu comportamento de modo a evitar a incidência da lei, fazendo assim Com o declínio da Escola da Exegese, pelos motivos acima salien-
crescer a complexidade na dimensão prática, silenciada pelo formalismo teo- tados, foi assim aberta a porta para a Escola do Direito Livre, na qual o texto
rético do direito. da lei era a fonte principal do direito, mas não mais a fonte exclusiva e sufi-
Nos dias atuais, pode-se constatar a presença do estilo de interpre- ciente, pois agora, a interpretação, a argumentação e a decisão jurídica pode-
tação, de argumentação e também de decisão da Escola da Exegese. A justi- riam utilizar referências externas em suas operações, que apontavam para os
ficação jurídica da segurança e da simplicidade das súmulas vinculantes é mais variados elementos possíveis (tradições históricas, princípios morais,
apenas uma das ilustrações possíveis. E exatamente por isso que a súmula valores éticos, costumes culturais, finalidades etc.), introduzidos argumenta-
vinculante, como um texto que é, também fica sujeita à interpretação, a pon- tivamente na decisão sob o nome de “consciência”. E essa exagerada liber-
to de logo ser necessária, no lado do silogismo jurídico, uma súmula das sú- dade decisória só seria corrigida posteriormente, pelas Escolas Histórica e da
mulas, e no lado dos fatos, recursos à argumentação jurídica necessária para Jurisprudência dos Interesses, até chegarmos à teoria pura do direito de Kel-
justificar narrativas que complicam a simplicidade e segurança daquele silo- sen e à atual diversidade de perspectivas contemporâneas que se convencio-
gismo. nou chamar de pós-positivismo.
Ao contrário de uma grande parte de importantes juristas, nós não
podemos concluir que a Escola da Exegese teve seu fim com a escola cientí-
fica de Gény e Saleilles em 1899. Claro que ela teve seu declínio (entre 1880
e 1890), especialmente diante das exigências da sociedade industrial – que
exigia um direito modificável para adaptar-se às constantes transformações
sociais – e do início da política daquele modelo de Estado que hoje nós cha-
mamos de Estado de Bem-estar Social27. Esses motivos tornaram obsoleta a

27
Para Saleilles e Gény, contudo, os motivos desse declínio estavam associados ao progres-
so científico e social, que já ultrapassavam os ideais da codificação “qui puisse embrasser
et prévoir tout l’ensemble des rapports juridiques – mais que la jurisprudence, et égale-
ment la doctrine, en interprétant la loi, ne se plaçaient qu’au pont de vue d’une recherche besoin de la vie juridique” (SALEILLES, Rymond. Étude sur la théorie générale de
de volonté, et qu’elles ne faisaient que tirer les solutions logiques qu’eût acceptées le lé- l’obligation d’après le premier projet de Code Civil pour l’empire allemand. 3. ed.
gislateur; non pas le législateur moderne, mais l’auteur nême de la loi, quel que fût Paris: Librairie Générale de Droit et de Jurisprudence, 1925, p. VII). Assim também em:
l’intervalle à jeter en bloc entre le passé et le présent” (SALEILLES, Rymond. Préface. SALEILLES, Raymond. De la déclaration de volonté: contribution a l’étude de l’acte ju-
In: GÉNY, François. Méthode d’interprétation et sources en droit prive positif: essai ridique dans le code civil allemand. Paris: Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence,
critique. 2. ed. Paris: Librairie Générale de Droit & de Jurisprudence, 1919. t. I, [p. XIII- 1929, p. IX: “il s’agit de savoir aujourd’hui si, en face de certaines diées vers lesquelles
XXV], p. XVI. Saleilles considerou o estudo do direito comparado como a causa dos maio- toutes les législations paraissent s’orienter, le droit français saura garder son rôle à la
res avanços e progressos no Direito. Em um prefácio de 01.10.1889, escreveu: “c’est le tête du progrès juridique universel, ou s’il passera l’hégémonie à d’autres”.
28
mérite des études de droit comparé de fournir à cette marche du progres juridique les Cf. SALEILLES, Raymundo. La posesión: elementos que la constituyen y su sistema en
éléments d’observation qui lui sont indispensables. Il n’est pas une seule des conceptions el código civil de imperio alemán. Rad. J. Mª. Navarro de Palencia. Madrid: Librería Ge-
scientifiques imaginées en France ou ailleurs, pas un seul des usagens inspirés par la neral de Victoriano Suárez, 1909. p. 397: “todo acto útil y pacíficamente realizado con-
pratique du monde civilisé, qui ne puisse répondre à une intention possible des individus forme en la apariencia con el orden social, es ya un derecho naciente, y no puede ceder
qui entrent en rapports d’affaires, et donner satisfaction, aujourd’hui ou plus tard, à un sino ante un derecho anterior, más enérgico y más integralizado”.

Você também pode gostar