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A Hermenêutica Constitucional sob o Paradigma do Estado Democrático de Direito

Menelick de Carvalho Netto*

Fonte: CARVALHO NETTO, Menelick de. "A hermenêutica constitucional sob o paradigma do
Estado Democrático de Direito". In: Notícia do direito brasileiro. Nova série, nº 6. Brasília: Ed. UnB,
2º semestre de 1998.

São épocas difíceis para o constitucionalista essas em que o sentimento de Constituição, para
empregar a expressão divulgada por Pablo Lucas Verdú, é aniquilado não só pela continuidade e
prevalência de prática constitucionais típicas da ordem autocrática anterior, mas igualmente pela
tentativa recorrente de alteração formal da Constituição. Tentativas essas que, alcancem ou não o fim
menor e específico a que visam diretamente, terminam sempre por ferir a aura de supremacia de que se
deve revestir a Constituição para que seja capaz de legitimar e de articular tanto o Estado quanto todo o
demais Direito que nela se assentam. Instaura-se, assim, uma situação que tende a desvelar dois
paradoxos básicos da modernidade. Torna-se cada vez mais visível que, na modernidade, tanto o
Direito funda a si mesmo, bem como que igualmente a política, o Estado, é o próprio fundamento de si
mesma. Esses paradoxos do fundamento de ambos os sistemas são velados, como demonstra Niklas
Luhmann, pela aquisição evolutiva que representou a invenção da Constituição formal nos finais do
século XVIII. É a diferenciação entre um Direito superior, a Constituição, e o demais Direito, que
acopla estruturalmente Direito e política, possibilitando o fechamento operacional, a um só tempo, do
Direito e da Política. Em outros termos, é por intermédio da Constituição que o sistema da política
ganha legitimidade operacional e é também por meio dela que a observância ao Direito pode ser
imposta de forma coercitiva. Nessa situação os próprios órgãos legitimados pela Constituição voltam-
se contra a sua base de legitimidade para devorá-la, tal como Cronos fizera com os seus próprios filhos.
Revela-se a face brutal da privatização do público, do poder estatal instrumentalizado, reduzido a mero
prêmio do eleito, visto como “as batatas” a que faz jus o vencedor, no dizer de Machado. É o
sentimento de anomia que passa a campear solto, vigoroso, alimentando-se a fartar das dificuldades que
encontramos em recuperar as sementes de liberdade presentes em nossa Constituição, mergulhadas em
nossas tradições. E as tradições de qualquer comunidade político-jurídica são sempre plurais, por mais
autoritárias que possam ser as eventualmente vitoriosas ao longo de sua história.

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Professor de Teoria da Constituição, Teoria Geral do Direito Público e Direito Constitucional Comparado dos Cursos de
Graduação e Pós-Graduação em Direito da UFMG. Doutor em Filosofia do Direito pela UFMG.
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A força normativa da Constituição, como uma homenagem formal a Konrad Hesse, é reduzida a
um mero ideal loewensteineano o que só vem, em último termo, reforçar a força normativa, a
idealidade, da facticidade que se revela na continuidade das velhas práticas políticas e jurídicas que a
Constituição veio abolir, na medida em que se a eleva à condição de “realidade.” Ora, se, superando os
supostos de uma filosofia da consciência, tematizarmos a condição humana como uma condição
lingüística, discursiva, hermenêutica veremos que a nossa própria “realidade” cotidiana e inafastável é
permeada de idealidades, de pretensões idealizantes, constitutivas da capacidade lingüística como tal.
Por isso mesmo a oposição entre a constituição formal tomada como constituição ideal e a efetiva
pragmática político-jurídica vista como constituição real é, ela própria, uma construção idealizada,
uma armadilha conceitual que eterniza o que pretendera denunciar, pois, por um lado, é incapaz de
revelar a natureza de idealidade normativa das terríveis pretensões idealizantes que ganham curso sob a
capa do que denomina “realidade”, e. por outro, absolutiza o poder de regulamentação de condutas da
Constituição e do Direito em geral. Cumpre salientar, portanto, que, por um lado, contra a primeira
deficiência da visão da Teoria da Constituição clássica, o Direito moderno é um Direito que se volta
para a regulamentação de condutas futuras, sendo-lhe inerente a assunção do risco do eventual
descumprimento de suas normas. Aliás, o Direito regula apenas as condutas possíveis, refoge a ele a
regulamentação de condutas necessárias ou impossíveis. E, contra a segunda falha apontada,
recordamos o próprio Hans Kelsen, o mais formalista dos juristas, que requer, uma vez que o objeto da
norma jurídica não é uma determinada conduta humana e sim a internalização de um certo padrão de
conduta, ou seja, uma outra norma de caráter sociológico, para a própria existência formal de uma
norma um mínimo de internalização social. Ao nosso ver, para que a colocação do problema deixe de
ser ela própria um seu reforço, é preciso que busquemos postulá-lo de outro modo. Esse outro modo,
acreditamos, deve vincular-se ao reconhecimento de que as práticas sociais, ou melhor, as posturas e
supostos assumidos pelos distintos atores em sua ação, a gramática dessas prática sociais, é atribuidora
de sentido, de significação.
Assim, acreditamos que o Judiciário ocupe um papel central na árdua tarefa de promover não
somente a segurança jurídica, mas a crença no próprio Direito, na justiça. Outra característica essencial
do Direito moderno é o seu caráter textual. O fato de que só temos acesso às suas normas mediante
textos discursivamente construídos e reconstruídos. Portanto, os supostos da atividade de interpretação
de todos os operadores jurídicos, do legislador ao destinatário da norma, são da maior relevância para a
implementação de um ordenamento, o que nos remete para a tematização das gramáticas subjacentes às
práticas sociais instauradas. Uma delas é a que revela a crença de que todos os problemas e virtudes de
nossa vida jurídica dependeriam da qualidade literal de nossos textos legislativos. Esquece-se que os
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textos são o objeto da atividade de interpretação e não o seu sujeito. Que o anseado aprimoramento de
nossas instituições pode requerer algo muito mais complexo do que a simples reforma de textos
constitucionais e legislativos. Tudo está a indicar que a reforma, para ser produtiva, deveria dar-se
precisamente no âmbito das posturas e das práticas sociais, ou seja, das gramáticas mediante as quais
implementamos nossa vida cotidiana. E, nesse aspecto, a atividade jurisdicional, na medida em que lhe
é atribuída um papel central na arquitetura constitucional para o assentamento das expectativas
jurídicas prevalentes na sociedade, é sempre o pólo em torno do qual se desenvolveu e se desenvolve a
discussão teorética e teórica sobre a leitura e a aplicação dos textos legislativos, ou seja, sobre a
atividade de interpretação.
Contudo, o que é interpretação? Será que interpretamos apenas textos? Nesse passo, temos que nos
referir, ainda que rapidamente a Hans Georg Gadamer e à denominada virada hermenêutica que
empreendeu. Gadamer vincula-se à tradição teorética da hermenêutica filosófica, uma corrente de
pensamento na história da filosofia que se dedica ao estudo do estatuto das denominadas ciências do
espírito, das ciências humanas e sociais. A sua importância para nós reside no impacto que sua obra
produzirá sobre o conceito de ciência em geral, encontrando-se na raiz da conceito de paradigma de
Thomas Kuhn, a informar toda a atual filosofia da ciência.
Para resgatarmos os exigentes pressupostos que informam a postura do juiz em uma tutela
jurisdicional constitucionalmente adequada ao paradigma do Estado Democrático de Direito,
tomaremos os supostos iniciais de Ronald Dworkin, enquanto um autor que tem por tema de sua
predileção precisamente a reforma judicial que pretendemos tematizar. Para ele, a unicidade e a
irrepetibilidade que caracterizam todos os eventos históricos, ou seja, também qualquer caso concreto
sobre o qual se pretenda tutela jurisdicional, exigem do juiz hercúleo esforço no sentido de encontrar
no ordenamento considerado em sua inteireza a única decisão correta para este caso específico,
irrepetível por definição. Em outros termos, todo e qualquer caso deve ser tratado pelo julgador como
um caso difícil, como um hard case (DWORKIN, R. Taking Rights seriously. Cambridge,
Massachusetts, Harvard University Press, 1978, p. 81 a 130. _______ A Matter of Principle.
Cambridge, Massachusetts, Harvard University Press, 1985, p. 119 a 145). Mas, comecemos do
começo. Afinal de contas o que é um paradigma? E ainda mais precisamente, o que é e quais são os
paradigmas constitucionais? Em que eles afetam a questão da interpretação em geral e da interpretação
constitucional em particular?
De início, portanto, cabe-nos introduzir a noção de paradigma e o seu emprego na Teoria Geral
do Direito e no Direito Constitucional. O conceito de paradigma, como já tivemos ocasião de afirmar,
vem da filosofia da ciência de Thomas Kuhn ( KUHN, T. S. A Estrutura das Revoluções Científicas.
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São Paulo: Editora Perspectiva, 1994, sobretudo da p. 218 à 232.). Tal noção apresenta um duplo
aspecto. Por um lado, possibilita explicar o desenvolvimento científico como um processo que se
verifica mediante rupturas, através da tematização e explicitação de aspectos centrais dos grandes
esquemas gerais de pré-compreensões e visões-de-mundo, consubstanciados no pano-de-fundo
naturalizado de silêncio assentado na gramática das práticas sociais, que a um só tempo tornam
possível a linguagem, a comunicação, e limitam ou condicionam o nosso agir e a nossa percepção de
nós mesmos e do mundo. Por outro, também padece de óbvias simplificações, que só são válidas na
medida em que permitem que se apresente essas grades seletivas gerais pressupostas nas visões de
mundo prevalentes e tendencialmente hegemônicas em determinadas sociedades por certos períodos de
tempo e em contextos determinados. É claro que a história como tal é irrecuperável e
incomensuravelmente mais rica do que os esquemas que aqui serão apresentados, bem como se
reconhece as infinitas possibilidades de reconstrução e releitura dos eventos históricos. Assim, o nível
de detalhamento e preciosismo na reconstrução desses paradigmas vincula-se diretamente aos objetivos
da pesquisa que se pretende empreender. Aqui, no sentido de introduzirmos rapidamente a aplicação do
conceito no Direito Constitucional, sobretudo com vistas aos supostos da hermenêutica constitucional,
reconstruiremos um único grande paradigma de Direito e de organização política para toda a
antigüidade e idade média, como contraponto à modernidade que, por sua vez, será apresentada em três
grandes paradigmas (o do Estado de Direito, o do Estado de Bem-Estar Social e o do Estado
Democrático de Direito) que tendencialmente se sucedem, em um processo de superação e subsunção
(aufheben), muito embora aspectos relevantes dos paradigmas anteriores, inclusive o da antigüidade,
ainda possam encontrar, no nível fático, curso dentre nós, a condicionar leituras inadequadas dos textos
constitucionais e legais. Daí mesmo a razão e a necessidade de também apresentarmos os paradigmas
anteriores pois, mediante essa contraposição, melhor poderemos compreender o novo paradigma
positivado e suposto pela Constituição da República de 1988.
Examinemos, primeiramente, o primeiro paradigma constitucional em contraponto com o pré-
moderno.
O Direito e a organização política pré-modernos encontravam tradução, em última análise,
em um amálgama normativo indiferenciado de religião, direito, moral, tradição e costumes
transcendentalmente justificados e que essencialmente não se discerniam. O Direito é visto como a
coisa devida a alguém, em razão de seu local de nascimento na hierarquia social tida como absoluta e
divinizada nas sociedades de castas, e a justiça se realiza sobretudo pela sabedoria e sensibilidade
do aplicador em “bem observar” o princípio da eqüidade tomado como a harmonia requerida
pelo tratamento desigual que deveria reconhecer e reproduzir as diferenças, as desigualdades,
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absolutizadas da tessitura social (a phronesis aristotélica, a servir de modelo para a postura do


hermeneuta). O Direito, portanto, se apresentava como ordenamentos sucessivos, consagradores dos
privilégios de cada casta e facção de casta, reciprocamente excludentes, de normas oriundas da
barafunda legislativa imemorial, das tradições, dos usos e costumes locais, aplicadas casuisticamente
como normas concretas e individuais, e não como um único ordenamento jurídico integrado por
normas gerais e abstratas válidas para todos.

Verifica-se a dissolução desse paradigma ao longo de pelo menos três séculos, por um sem
número de fatores que vão desde a ação dissolvente do capital, a diluir os laços e entraves feudais e a
fazer com que cada vez mais indivíduos livres e possessivos participem do crescente mercado como
proprietários, no mínimo, do próprio corpo, ou seja, da força de trabalho que lhes possibilita o
comparecimento cotidiano ao mercado enquanto proprietários de uma mercadoria a ser vendida
(Marx); passando pelo desenvolvimento das práticas de investigação policial (Foucault, Umberto Eco);
pela destruição da cosmologia feudal fechada e hierarquizada, substituída pela isonômica estrutura
matemática de átomos que constitui o universo infinito da física de Galileu (Koyré); pelas lutas por
liberdade de confissão religiosa e pela conseqüente distinção e separação das esferas normativas da
religião, da moral, da ética social e do Direito (Weber), etc. Seja como for, o relevante é que todos
esses processos de mudança se integram em uma profunda alteração de paradigma. As intuições da
moral individual racionalista, vistas como verdades matemáticas inquestionáveis, colocam em xeque a
tradição, agora reduzida a meros usos e costumes sociais, que, para os homens da época, só podem ser
explicados como o resultado da corrupção histórica e que, assim, deviam ser alterados pela imposição
de normas racionalmente elaboradas pelos homens enquanto sujeitos de sua história, inaugurando ou
remodelando um tipo recente de organização política, os Estados nacionais, espaços laicos de definição
e imposição dessas regras racionais que deveriam reger impositivamente a organização e a reprodução
social, a normatividade propriamente jurídica. O Direito, enquanto essa normatividade específica,
diferenciada e decorrente de idéias abstratas consideradas verdadeiras por evidência, como analisa
Marcuse, só poderia ser compreendido agora como um ordenamento de leis racionalmente elaboradas e
impostas à observação de todos por um aparato de organização política laicizado. O que se produz
mediante um processo de redução, em que o direito deixa de ser a coisa devida transcendentalmente
assentada na rígida e imutável hierarquia social da sociedade de castas, para se transformar no Direito,
ou seja, em um ordenamento constitucional e legal que impõe, à toda uma afluente sociedade de
classes, a observância daquelas idéias abstratas tomadas como Direito Natural pelo jusracionalismo.
Idéias abstratas tais como a da liberdade individual de se "fazer tudo aquilo que as leis não proíbam”
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(Locke/Montesquieu) ou da "liberdade de ter" dos modernos em oposição à "liberdade de ser" dos


antigos (Hegel, Benjamin Constant); tais como a da igualdade de todos que, conquanto muito diferentes
em outros aspectos, são iguais diante da lei. Ou, como explica Pashukanis, são iguais no sentido de
todos se apresentarem agora como proprietários, no mínimo, de si próprios, e, assim, formalmente,
todos devem ser iguais perante a lei, porque proprietários, sujeitos de direito, devendo-se pôr fim aos
odiosos privilégios de nascimento. Pela primeira vez na história pós-tribal, todos os membros da
sociedade são, ou devem ser, proprietários, homens livres e, assim, igualmente sujeitos de direito,
capazes, até mesmo o mais humilde trabalhador braçal, de realizar atos jurídicos contratuais como o da
compra e venda da força de trabalho. Com o movimento constitucionalista implantam-se Estados de
Direito que resultam da conformação da organização política à necessidade de que essas idéias, tidas
como direito natural de cunho racional, verdades matemáticas absolutas e inquestionáveis
(caracterizadoras do indivíduo - essa outra invenção da modernidade) pudessem encontrar livre curso e
se impor. O Direito é visto, assim, como um sistema normativo de regras gerais e abstratas, válidas
universalmente para todos os membros da sociedade. O Direito Público, no entanto, deveria assegurar,
mesmo que por intermédio de formas e sistemas de governo variados, o não retorno ao absolutismo,
precisamente para que aquelas idéias abstratas pudessem ter livre curso na sociedade, mediante a
limitação do Estado à lei e a adoção do princípio da separação dos poderes que, ainda que lido de
distintos modos, sempre deveria requerer, no mínimo, também a aprovação da representação censitária
da “melhor sociedade” no processo de elaboração dessas mesmas leis. E, assim, às leis deveria ser
reservado o tratamento de toda a matéria relativa à vida, à liberdade e à propriedade dos súditos.
Contudo, em face do Direito Privado, reino por excelência daquelas verdades evidentes, o Direito
Público, ao variar, em seus detalhes, de país para país, é visto como mera convenção, pois da
“sociedade política” deveria participar apenas a "melhor sociedade", convencionalmente estabelecida
pelo requisito de renda mínima para o exercício do voto, bem assim pelos critérios mínimos crescentes
de renda censitariamente escalonados para que alguém pudesse se candidatar a cargos públicos
nacionais, regionais e locais. O Direito Privado, por sua vez, corresponderia àquelas verdades
matemáticas inerentes a todo e qualquer indivíduo: os direitos à vida, à liberdade, à igualdade e à
propriedade privada. Assim, sociedade política e sociedade civil são separadas por um profundo fosso.
Na primeira, os interesses gerais deveriam prevalecer mediante a atribuição de sua identificação e
guarda aos membros dessa “sociedade política”, dessa “melhor sociedade”, àqueles cultural e
economicamente bem aquinhoados. E a "razão prática" apontava para o estabelecimento do mínimo de
leis gerais e abstratas, pois já que liberdade é fazer tudo aquilo que as leis não proíbam, quanto menos
leis, mais livres seriam as pessoas para desenvolver as suas propriedades (aqui o termo é empregado na
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acepção da época, como também abrangente dos dotes físicos e mentais de uma pessoa). A segunda, a
sociedade civil, é o espaço naturalizado em que as propriedades devem ser desenvolvidas o mais
livremente possível mediante a garantia da igualdade formal de todos perante a lei, não importando
quão desiguais possam ser em termos materiais. O Direito, enquanto ordenamento, ao estabelecer
limites universais preponderantemente negativos (não furtar, não matar, etc., como traduzido, por
exemplo, por Fichte) é, então, visto como o conjunto de regras que delimitam os espaços de liberdade
dos indivíduos - as linhas demarcatórias da fronteiras em que termina a liberdade de um indivíduo e em
que se inicia a liberdade de outro. Assim, o paradigma do Estado de Direito ao limitar o Estado à
legalidade, ou seja, ao requerer que a lei discutida e aprovada pelos representantes da "melhor
sociedade" autorize a atuação de um Estado mínimo, restrito ao policiamento para assegurar a
manutenção do respeito àquelas fronteiras anteriormente referidas e, assim, garantir o livre jogo da
vontade dos atores sociais individualizados, vedada a organização corporativo-coletiva, configura, aos
olhos dos homens de então, um ordenamento jurídico de regras gerais e abstratas, essencialmente
negativas, que consagram os direitos individuais ou de 1ª geração, uma ordem jurídica liberal clássica.
É claro que sob este primeiro paradigma constitucional, o do Estado de Direito, a questão da
atividade hermenêutica do juiz só poderia ser vista como uma atividade mecânica, resultado de
uma leitura direta dos textos que deveriam ser claros e distintos, e a interpretação algo a ser
evitado até mesmo pela consulta ao legislador na hipótese de dúvidas do juiz diante de textos
obscuros e intrincados. Ao juiz é reservado o papel de mera “bouche de la loi”.

A vivência daquelas idéias abstratas que conformavam o paradigma inicial do


constitucionalismo logo conduz à negação prática das mesmas na história. A liberdade e igualdade
abstratas, bem como a propriedade privada terminam por fundamentar as práticas sociais do período de
maior exploração do homem pelo homem de que se tem notícia na história, possibilitando um acúmulo
de capital jamais visto e as revoluções industriais. Idéias socialistas, comunistas e anarquistas começam
a colocar agora em xeque a ordem liberal e a um só tempo animam os movimentos coletivos de massa
cada vez mais significativos e neles se reforçam com a luta pelos direitos coletivos e sociais, como o de
greve e de livre organização sindical e partidária, como a pretensão a um salário mínimo, a uma
jornada máxima de trabalho, à seguridade e previdência sociais, ao acesso à saúde, à educação e ao
lazer. Mudanças profundas também de toda ordem conformam a nova sociedade de massas que surge
após a 1ª Guerra Mundial e, com ela o novo paradigma constitucional do Estado Social. No que toca
diretamente ao nosso tema, desde o socialismo implantado na União Soviética em 1918, passando pelas
sociais democracias como as da Alemanha de 1919 e da Áustria de 1920, até o nazismo e o fascismo
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em ascensão, todas as formas de organização política configuraram um novo paradigma, o do Estado


Social, que, por sua vez, pressupõe a materialização dos direitos anteriormente formais. Não se trata
apenas do acréscimo dos chamados direitos de segunda geração (os direitos coletivos e sociais), mas
inclusive da redefinição dos de 1ª (os individuais); a liberdade não mais pode ser considerada como o
direito de se fazer tudo o que não seja proibido por um mínimo de leis, mas agora pressupõe
precisamente toda uma plêiade de leis sociais e coletivas que possibilitem, no mínimo, o
reconhecimento das diferenças materiais e o tratamento privilegiado do lado social ou economicamente
mais fraco da relação, ou seja, a internalização na legislação de uma igualdade não mais apenas formal,
mas tendencialmente material. Não mais se acredita na verdade absoluta de cunho matemático dos
direitos individuais. O direito privado, assim como o público, apresentam-se agora como meras
convenções e a distinção entre eles é meramente didática e não mais ontológica. A propriedade privada,
quando admitida, o é como um mecanismo de incentivo à produtividade e operosidade sociais, não
mais em termos absolutos, mas condicionada ao seu uso, à sua função social. Assim, todo o Direito é
público, imposição de um Estado colocado acima da sociedade, uma sociedade amorfa, carente de
acesso à saúde ou à educação, massa pronta a ser moldada pelo Leviatã onisciente sobre o qual recai
essa imensa tarefa. O Estado subsume toda a dimensão do público e tem que prover os serviços
inerentes aos direitos de 2ª geração à sociedade, como saúde, educação, previdência, mediante os quais
alicia clientelas.

Com essa crescente complexificação da estrutura da sociedade, verificada após a


Primeira Guerra Mundial, no século XX tem curso, portanto, uma remodelação do Estado e do Direito,
aqui designada “passagem do paradigma do Estado de Direito para o do Estado Social ou de Bem-Estar
Social”, em que o Direito é materializado e, precisamente em razão dessas exigências de materialização
do Direito, não somente o Estado tem a sua seara de atuação extraordinariamente ampliada para
abranger tarefas vinculadas a essas novas finalidades econômicas e sociais que, agora, lhe são
atribuídas, como o próprio oredenamento ganha um novo grau de complexidade. O juiz agora não pode
ter a sua atividade reduzida a uma mera tarefa mecânica de aplicação silogística da lei tomada como a
premissa maior sob a qual se subsume automaticamente o fato. A hermenêutica jurídica reclama
métodos mais sofisticados como as análises teleológica, sistêmica e histórica capazes de emancipar o
sentido da lei da vontade subjetiva do legislador na direção da vontade objetiva da própria lei,
profundamente inserida nas diretrizes de materialização do Direito que a mesma prefigura, mergulhada
na dinâmica das necessidades dos programas e tarefas sociais. Aqui o trabalho do juiz já tem que ser
visto como algo mais complexo a garantir as dinâmicas e amplas finalidades sociais que recaem sobre
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os ombros do Estado. Explica-se assim, por exemplo, tanto a tentativa de Hans Kelsen de limitar a
interpretação da lei através de uma ciência do Direito encarregada de delinear o quadro das
leituras possíveis para a escolha discricionária da autoridade aplicadora, quanto o decisionismo
em que o mesmo recai quando da segunda edição de sua Teoria Pura do Direito.
Com o final da 2ª Guerra Mundial, o modelo do Estado Social já começa a ser questionado,
conjuntamente com os abusos perpetrados nos campos de concentração e com a explosão das bombas
atômicas de Hiroshima e Nagasaqui, bem como pelo movimento hippie na década de sessenta. No
entanto, é no início da década de setenta que a crise do paradigma do Estado Social manifesta-se em
toda a sua dimensão. A própria crise econômica no bojo da qual ainda nos encontramos coloca em
xeque a racionalidade objetivista dos tecnocratas e do planejamento econômico, bem como a oposição
antitética entre a técnica e a política. O Estado interventor transforma-se em empresa acima de outras
empresas. As sociedades hipercomplexas da era da informação ou pós-industrial comportam relações
extremamente intrincadas e fluidas. Tem lugar aqui o advento dos direitos da 3ª geração, os chamados
interesses ou direitos difusos, que compreendem os direitos ambientais, do consumidor e da criança,
dentre outros. São direitos cujos titulares, na hipótese de dano, não podem ser clara e nitidamente
determinados. O Estado, quando não diretamente responsável pelo dano verificado foi, no mínimo,
negligente no seu dever de fiscalização ou de atuação criando uma situação difusa de risco para a
sociedade. A relação entre o público e o privado é novamente colocada em xeque. Associações da
sociedade civil passam a representar o interesse público contra o Estado privatizado ou omisso. Os
direitos de 1ª e 2ª geração ganham novo significado. Os de 1ª são retomados como direitos (agora
revestidos de uma conotação sobretudo processual) de participação no debate público que informa e
conforma a soberania democrática de um novo paradigma, o paradigma constitucional do Estado
Democrático de Direito e seu Direito participativo, pluralista e aberto.

Ora, é claro que uma concepção distinta e respectivamente adequada acerca da atividade
hermenêutica ou interpretativa do juiz integra cada um desses paradigmas, a configurar distintos
entendimentos, por exemplo, do princípio da separação dos poderes, o que nos permite detectar,
também aqui, uma grande e significativa transformação na visão dessa atividade, bem como um
incremento correspondente de exigências quanto à postura do juiz não somente em face dos textos
jurídicos dos quais este hauriria a norma, mas inclusive diante do caso concreto, dos elementos fáticos
que são igualmente interpretados e que, na realidade, integram necessariamante o processo de
densificação normativa ou de aplicação do Direito, tal como ressaltado na atual doutrina constitucional
e na teoria geral do Direito por seus teóricos centrais como Konrad Hesse, Robert Alexy, Friedrich
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Müller, Klaus Günther, Laurence Tribe, Ronald Dworkin, Gomes Canotilho, Paulo Bonavides e
Oliveira Baracho dentre tantos outros.
Assim, a partir deste rápido escorço, podemos ver como se verificou um incremento das
exigências relativas à postura do aplicador da lei e do responsável pela tutela jurisdicional que se
assenta em uma crescente capacidade de sofisticação da doutrina e da jurisprudência para fazer face aos
desafios decorrentes do processo de contínuo aumento da complexidade da sociedade moderna.
Podemos verificar a profundidade das exigências pressupostas sob o paradigma do Estado
Democrático de Direito se tomarmos, com Habermas, “a teoria do Direito de Dworkin como nosso fio
condutor, pois, lidamos inicialmente com o problema da racionalidade, tal como posto por uma
prestação jurisdicional (Rechtsprechung) cujas decisões devem cumprir simultaneamente os critérios
da certeza jurídica e da aceitabilidade racional.” (HABERMAS, Jürgen. Faktizität und Geltung.
Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt sobre o Reno,
Suhrkamp, 1994, p. 292.)
Desse modo, no paradigma do Estado Democrático de Direito, é de se requerer do Judiciário
que tome decisões que, ao retrabalharem construtivamente os princípios e regras constitutivos do
Direito vigente, satisfaçam, a um só tempo, a exigência de dar curso e reforçar a crença tanto na
legalidade, entendida como segurança jurídica, como certeza do Direito, quanto ao sentimento de
justiça realizada, que deflui da adequabilidade da decisão às particularidades do caso concreto.
Para tanto, é fundamental que o decisor saiba que a própria composição estrutural do
ordenamento jurídico é mais complexa que a de um mero conjunto hierarquizado de regras, em que
acreditava o positivismo jurídico: ordenamento de regras, ou seja, de normas aplicáveis à maneira do
tudo ou nada, porque capazes de regular as suas próprias condições de aplicação na medida em que
portadoras daquela estrutura descrita por Kelsen como a estrutura mesma da norma jurídica: “Se é A,
deve ser B.” Ora, os princípios são também normas jurídicas, muito embora não apresentem essa
estrutura. Operam ativamente no ordenamento ao condicionarem a leitura das regras, suas
contextualizações e interrelações, e ao possibilitarem a integração construtiva da decisão adequada de
um “hard case.” Os princípios, ao contrário das regras, como demonstra Dworkin, podem ser
contrários sem ser contraditórios, sem se eliminarem reciprocamente. E, assim, subsistem no
ordenamento princípios contrários que estão sempre em concorrência entre si para reger uma
determinada situação. A sensibilidade do juiz para as especificidades do caso concreto que tem
diante de si é fundamental, portanto, para que possa encontrar a norma adequada a produzir
justiça naquela situação específica. É precisamente a diferença entre os discursos legislativos de
justificação, regidos pelas exigências de universalidade e abstração, e os discursos judiciais e
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executivos de aplicação, regidos pelas exigências de respeito às especificidades e à concretude de


cada caso, ao densificarem as normas gerais e abstratas na produção das normas individuais e
concretas, que fornece o substrato do que Klaus Günther denomina senso de adequabilidade, que,
no Estado Democrático de Direito, é de se exigir do concretizador do ordenamento ao tomar suas
decisões (GÜNTHER, KLAUS. The sense of appropriateness. Trad. John Farrel. New York: State
University of New York Press, 1993). É desse modo que Dworkin, também crítico literário e profundo
conhecedor da teoria da linguagem, pode afirmar que há uma única decisão correta para um caso
concreto (the right answer). Dworkin, é claro, sabe tão bem quanto Kelsen que qualquer texto
possibilita várias leituras, o problema da decisão judicial, no entanto, é que a mesma se dá como
solução de um litígio concreto e envolve igualmente a interpretação dos fatos que configuram uma
situação de aplicação única e irrepetível. Esses fatos, como revelam a própria ciência e sua teoria, por
exemplo, através do conceito de “paradigma” em Thomas Kunh, são, na verdade, equivalentes a texto,
ou seja, somente apreensíveis por meio da atividade de interpretação, mediante uma atividade de
reconstrução da situação fática profundamente marcada pelo ponto de vista de cada um dos envolvidos.
Por isso mesmo, aqui, no domínio dos discursos de aplicação normativa, faz-se justiça não somente na
medida em que o julgador seja capaz de tomar uma decisão consistente com o Direito vigente, mas para
isso ele tem que ser igualmente capaz de se colocar no lugar de cada um desses envolvidos, de buscar
ver a questão de todos os ângulos possíveis e, assim, proceder racional ou fundamentadamente à
escolha da única norma plenamente adequada à complexidade e à unicidade da situação de aplicação
que se apresenta. Com essa abertura para a complexidade de toda situação de aplicação, o aplicador
deve exigir então que o ordenamento jurídico apresente-se diante dele, não através de uma única regra
integrante de um todo passivo, harmônico e predeterminado que já teria de antemão regulado de modo
absoluto a aplicação de suas regras, mas em sua integralidade, como um mar revolto de normas em
permanente tensão concorrendo entre si para regerem situações. A imparcialidade aqui, ressalta
Günther, se traduz na capacidade de o juiz levar em conta a reconstrução fática de todos os afetados
pelo provimento e, desse modo, fazer com que o ordenamento como um todo, enquanto pluralidade de
normas que concorrem entre si para reger situações, se faça presente, buscando então qual a norma que
mais se adequa à situação; qual a norma que, em face das peculiaridades específicas daquele caso visto
como um hard case, promove justiça para as partes, sem deixar resíduos de injustiças decorrentes da
cegueira à situação de aplicação. Cegueira esta que até bem pouco tempo atrás poderia ser confundida
com a própria imparciliadade por haver sido elevada à condição de suposto implícito do conceito
mesmo de ordenamento jurídico dos dois primeiros paradigmas constitucionais na modernidade.
Redução conceitual que visualizava o Direito ou como um ordenamento de per si racional, harmônico e
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sistemático de regras claras e distintas ou como um ordenamento de regras previamente racionalizado,


harmonizado, sistematizado e integralizado pelos juristas em sua doutrina e em seu operar. De toda
sorte, pressupunha-se sempre a redução da estrutura da norma jurídica à estrutura das regras, ou seja,
das normas que, estruturalmente, buscam regular suas próprias condições de aplicação. Por isso
mesmo, a própria natureza jurídica dos princípios gerais do Direito era sempre objeto de discussão.
Nesse contexto, é claro que os princípios só poderiam ser considerados relevantes enquanto meios de
integração das possíveis lacunas legislativas. Ao criticar o modo de aplicação normativa prevalente na
modernidade, Günther toma um dos exemplos de Kant, autor paradigmático do período do Estado
liberal, mas que neste aspecto, o da insensibilidade para com a situação de aplicação, continua a sê-lo
também para o Estado social. Para entendermos o exemplo dado por Kant como modelo para a atuação
da razão prática, é necessário procedermos a uma drástica síntese das duas críticas centrais de Kant.
Assim, podemos dizer em uma só frase que se, para Kant, no domínio da razão pura, devemos agir de
modo a nos submetermos aos dados da experiência, no domínio da razão prática, por outro lado, não
podemos nos deixar guiar pelas conseqüências práticas de nossos atos, mas somente pelo imperativo
categórico da generalidade: devemos agir de tal modo que a máxima de nossa ação possa sempre ser
uma lei universal. É neste contexto, que Kant prolata o seguinte exemplo. Um dia, estava ele a lecionar
em Koenigsberg, quando um aluno entra esbaforido e diz estar sendo perseguido pela polícia política
do Kaiser, solicitando a Kant que lhe permitisse esconder-se em sua sala de aula. O professor lhe indica
a sua mesa para que ele sob ela se oculte. Chegando, a polícia política revista em vão a sala e, ao sair,
um de seus membros resolve indagar a Kant se este vira o aluno que estavam perseguindo. Kant sabe
muito bem que essa polícia política tortura e mata os que apreende. No entanto, Kant também
reconhece a bondade universal do princípio moral “não mentir”. Assim, Kant, tal como investigado na
sua crítica da razão prática, não hesita e responde ao policial que o aluno se encontra debaixo de sua
mesa, dando curso ao que supõe ser o seu dever moral, de validade universal, não mentir. Este exemplo
dado por Kant ilustra muito bem a crítica que Günther, seguindo Dworkin, pretende fazer ao modo de
aplicação do Direito ínsito aos paradigmas constitucionais anteriores. A crença na bondade da
universalidade da regra fazia com que os homens cometessem tremendas injustiças por se fazerem
cegos às distintas situações de aplicação. E essas injustiças decorriam do fato de eles serem,
efetivamente, incapazes de ver que os princípios, distintamente das regras, requerem aplicação
concorrente, balizada por outros princípios, sobretudo os de sentido contrário. No caso em exame, se
outra fosse a postura de Kant, para ele teria se tornado claro que o princípio moralmente adequado para
reger aquela situação específica não seria de modo algum o do “não mentir”, mas sim princípio de igual
validade universal, mas de sentido contrário, do “não delatar.” O princípio mais adequado à situação de
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aplicação afasta, naquele caso, a aplicação do impróprio porque aqui este produziria injustiça, sem
afetar-lhe a validade universal. Aliás, suposto da validade universal de um princípio é precisamente
uma reserva de aplicação segundo as especificidades das distintas situações. Ora, o Direito, tal como a
moral, é também integrado por princípios, sobretudo no domínio constitucional, o que requer uma
aplicação das normas sensível às distintas situações de aplicação.
As propostas de Dworkin para uma interpretação construtiva teoricamente dirigida do Direito
vigente podem, assim, ser defendidas nos termos de uma leitura procedimentalista que altera as
exigências idealizadas da construção de uma teoria sobre o conteúdo idealista dos pressupostos
pragmáticos necessários ao discurso jurídico, a operar no interior dos limites requeridos pelo princípio
da separação de poderes, sem que o judiciário invada as competências legislativas e subverta os estritos
limites legais da Administração (Gesetzesbindung der Verwaltung). É claro que aqui o princípio da
separação de poderes ganha o conteúdo da distinção entre o domínio das atividades legislativas ou
discursos de justificação, ou seja, daqueles discursos que têm por critério de imparcialidade a
universalidade, e o domínio da atividade de aplicação de normas, ou seja, dos discursos que, por sua
vez, têm por critério de imparcialidade a sensibilidade para com as especificidades de cada situação de
aplicação consoante a ótica de todos os afetados.
Apenas assim a concepção do Juiz Hércules, de Dworkin, pode ganhar solidez, buscando-se
compreender a prestação jurisdicional em seu aspecto funcional específico referente à implantação,
consolidação, desenvolvimento e reprodução não somente da certeza do Direito, bem como, a um só
tempo, do sentimento de Constituição e de Justiça. Único sentimento capaz de adequadamente
assegurar solidez à ordem jurídica de um Estado Democrático de Direito. Como afirma Marcelo
Andrade Cattoni de Oliveira “a legitimidade da ordem jurídico-democrática requer decisões
consistentes não apenas com o tratamento anterior de casos análogos e com o sistema de normas
vigentes, mas pressupõe igualmente que sejam racionalmente fundadas nos fatos da questão, de tal
modo que os cidadãos possam aceitá-las como decisões racionais” (OLIVEIRA, Marcelo A. C. de.
Tutela jurisdicional e Estado Democrático de Direito. Belo Horizonte: Del Rey. 1997, p. 131).
É relevante ressaltarmos mais uma vez, com Ronald Dworkin, que o custo, inclusive funcional,
da insensibilidade simplificadora da situação de aplicação, típica dos paradigmas anteriores, é alto. Não
levar a sério os direitos, ou seja, simplificar uma situação de aplicação de modo a simplesmente
desconhecer direitos dos envolvidos por se enfocar a questão do ângulo de um único princípio aplicado
ao modo do tudo ou nada, típico das regras, termina por subverter o próprio valor da segurança jurídica
que se pretendera assegurar. Por isso mesmo, afirmamos a mera aparência de consistência de uma
decisão deste tipo, ainda que com apenas um único princípio jurídico. Os princípios não podem, em
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nenhum caso, ganharem aplicação de regra, ao preço de produzirem injustiças que subvertem a crença
na própria juridicidade, na Constituição e no ordenamento. É tempo de nos conscientizarmos da
importância não somente do que Pablo Lucas Verdú denomina sentimento de Constituição para a
efetividade da própria ordem constitucional, mas que precisamente para se cultivar esse sentimento em
um Estado Democrático de Direito, das decisões judiciais deve-se requerer que apresentem um nível de
racionalidade discursiva compatível com o atual conceito processual de cidadania, com o conceito de
Häberle da comunidade aberta de intérpretes da Constituição. Ou para dizer em outros termos, ao nosso
poder judiciário em geral, ao Supremo Tribunal Federal em particular, compete assumir a guarda da
Constituição de modo a densificar o princípio da moralidade constitucionalmente acolhido que, no
âmbito da prestação jurisidicional, encontra tradução na satisfação da exigência segundo a qual a
decisão tomada possa ser considerada consistentemente fundamentada tanto à luz do Direito vigente
quanto dos fatos específicos do caso concreto em questão de modo a se assegurar a um só tempo a
certeza do Direito e a correção, a justiça, da decisão tomada.
Assim, podemos concluir que, sob as exigências da hermenêutica constitucional ínsita ao
paradigma do Estado Democrático de Direito, requer-se do aplicador do Direito que tenha claro a
complexidade de sua tarefa de intérprete de textos e equivalentes a texto, que jamais a veja como algo
mecânico, sob pena de se dar curso a uma insensibilidade, a uma cegueira, já não mais compatível com
a Constituição que temos e com a doutrina e jurisprudência constitucionais que a história nos incumbe
hoje de produzir.

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