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Da loucura ao assujeitamento do corpo feminino: uma óptica antropológica

Desde muito tempo sabemos que é impelido às mulheres o estado da loucura, seja devido aos
seus conhecimentos milenares de botânica, atrelados ao papael de resguardar as tradições
culturais de sua casa, seja pela adoração de deuses pagãos (em razão da sua submissão à vida
privada, em que lhe era negado o acesso à religião), somado a própria natureza da mulher, por
possuir um útero, sempre se convergiam para serem suscetíveis a loucura.

Na idade contemporânea, a loucura das mulheres consistia em qualquer manifestação de


vontade, ou ínfimo desmando de algum patriarca. Bastava uma contrariedade para que as
mulheres fossem internadas em sanatórios. Com isto, tivemos a internação
(institucionalização) de milhares de mulheres que apenas voltavam-se contra o sistema social,
seja no desejo de trabalhar, não ter filhos ou apenas estudar.

Ainda hoje vivemos um momento crítico, tanto no âmbito político, cultural e social, com o
crescimento (ou apenas aparecimento) da misoginia, da desvalorização da mulher, do
fortalecimento de valores ideológicos conservadores de extrema direita, que tomam cada dia
mais espaço e corpo na sociedade.

Pretende-se traçar um paralelo entre a loucura atribuída às mulheres, ao longo dos séculos,
reflexo de uma estrutura de poder social, com a História de Loucura de Foucault, analisando
num viés do círculo antropológico descrito por Foucault.

Nesse momento nota-se, pela primeira vez no livro, a exclusão social como


consequência da doença. O leproso é abandonado pela sociedade, e ela
aguarda e anseia pelo desaparecimento, tanto da doença, quanto de seus
pobres contagiados.

Vamos particularmente nos interessar pela História da loucura, escrito em


1961. Este livro é considerado hoje como uma referência fundamental para
as ciências humanas. Ele trata da evolução do modo de lidar com a questão
da loucura. O autor demonstra que os temas surgem como consequência
do tratamento dessa mesma questão, como a exclusão social, o descaso e
o surgimento de estereótipos.
o pesquisador Caio Souto, em entrevista ao Colunas Tortas. “Foucault ‘abre’ a
história da filosofia ao seu fora, demonstrando que há um a priori histórico na
constituição dos saberes”.

A História da loucura na idade clássica, obra de Michel Foucault publicada


em 1961, procura investigar como o ocidente, entre os séculos XVI e XIX,
percebeu a loucura, a partir de enunciados diversos: das artes plásticas, da
literatura, da filosofia, da administração pública e das ciências médicas. Nessa
miríade, diferentes formas de produção de sentido acerca da loucura se
entrecruzam e, em certos casos, se contrapõem.

Trata-se de um longo livro em que a arqueologia é utilizada para a


interpretação histórica do fenômeno da loucura como é experimentado em
diferentes momentos da Idade Média e Idade Clássica.

Assim, a loucura parte de um de um status reverenciado de êxtase divino na


Grécia antiga para chegar ao pois iluminismo como o diagnostico, medico de
uma doença que precisa ser tratada: segregada, confinada, drogada.

Foucault na sua obra história da loucura, fala dos quatro momentos de forma
que a loucura foi concebida; o conceito da loucura muda ao andar dos tempos,
isto é, toda historia do inicio da psiquiatria moderna se revela falseada por uma
ilusão retroactiva segundo o qual a loucura já estava dada, ainda que maneira
imperceptível na natureza humana.

A tese de foucault sobre a loucura fundamenta o seguinte: a loucura não é um


facto biológico, mas um facto cultural.

Loucura não é algo da natureza ou uma doença, mas um facto de cultura. A


história da loucura, em suma, é a história da progressiva medicalização da
loucura no pensamento ocidental.

1° Momento da idade média: nesta época, o louco era visto como um visionário,
profeta, sábio… o louco era visto como o homem mais inteligente.
2° Momento: Renascimento
O louco é visto como alguém que tem outra razão. Ora o indivíduo é louco
porque a sociedade o é.

A loucura é vista como um saber fechado, esotérico, que produz e manifesta a


realidade de outro mundo, e nos entrega o homem essencial, que em sua
natureza íntima é furor e paixão.

Toda loucura tem sua razão que a julga e controla, e toda razão tem sua
loucura na qual ela encontra sua verdade irrisória
3° Momento: idade clássica (xvi, xvii) nesta época a loucura era sacralizada.
Para foucault a partir de Descartes a loucura passou a ser considerada como
uma desrazão, não razão ao homem racional e ao louco. O louco é aquele que
não possuí a verdade.

Com um dos fundadores da filosofia moderna, a loucura passou a ser visto


como algo que nos leva ao erro.

Descartes diferencia o racional o e verdadeiro, do que é erróneo e falso, ou


melhor dizendo, a loucura vira uma perversão das leis da razão; razão e
desrazão se separam.

A loucura é, assim, silenciada, do ponto de vista filosófico e internada, do ponto


de vista institucional.

A loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos a
verdade.

Nesse período, a loucura, antes sacralizada é reduzida a um escândalo, um


crime.

Nesse período eram considerados louco os mendigos, desocupados,


homossexuais, vagabundos, devassos, bêbados e tudo que se desviava da
normalidade clássica.

Os loucos eram banidos da vida pública, reclusos, encarcerados e torturados


em hospícios, no que foucault chamou de grande enclausuramento. Os
chamados hospitais gerais proliferaram pela Europa.

96 Mil pessoas visitavam, por ano, o hospital Bethlehem para insanos, em


Londres, como forma de entretenimento.

O pensamento, como exercício de soberania de um sujeito que se atribui o


dever de perceber o verdadeiro, não pode ser insensato.

4° Momento: século xviii


Começaram a ver esse confirmamento do louco como uma barbárie, pois a
loucura não era mais um crime, mas a partir de então, é uma doença individual.

Cria se então, o mito de que há um homem normal, anterior a doença e em


contrapartida, define se o louco como um doente, que estaria distante da
normalidade.
A partir desse momento, os loucos foram liberados do encarceramento e
colocados sobre cuidados médicos. Ao invés de correntes de ferro, passaram a
ser medicados. Com a psicanálise, os loucos poderiam falar para os
psiquiatras. O louco torna se ainda um objecto de estudo, ou distancia-se o
normal do doente mental, e torna-se o ultimo objecto de um saber

A loucura continua a ser vigiada e confinada pela razão; o médico; omnipotente


e omnipresente é a autoridade que actua sobre os ditos loucos, representam o
poder da razão der confinar a loucura.

Segundo Foucault a constituição da loucura como doença mental, no fim do


século xviii, delineia a constatação de um dialogo rompido entre loucura e não
loucura, entre razão e não razão (…) a linguagem da psiquiatria, que é um
monologo da razão sobre a loucura, só pode estabelecer-se sobre um tal
silêncio, aqui todo discurso do louco é submetido a psiquiatria. “Só quem traz o
caos dentro de si pode dar a luz a estrela bailarina”.

A análise de Foucault recobre a concepção da loucura como uma ação divina,


em que os loucos seriam criaturas misteriosas com poderes místicos; a
concepção do louco como sujeito imoral, sendo assim, ladrões recorrentes,
portadores de doenças sexualmente transmissíveis ou pródigos eram
frequentemente internados – nesta época, que foi a construção do Hospital
Geral em Paris, cerca de 10% da população passou alguns dias internada; por
fim, aborda a noção psiquiátrica da loucura, que ocorre após a disciplina
tornar-se uma ciência separada da medicina.

Para Foucault, duas questões são fundamentais para entender a experiência


da loucura no Classicismo. Primeiramente, a loucura passa a ser considerada
e entendida somente em relação à razão, pois, num movimento de referência
recíproca, se por um lado elas se recusam, de outro uma fundamenta a outra.
Em segundo lugar, a loucura só passa a ter sentido no próprio campo da
razão, tornando-se uma de suas formas. A razão, dessa maneira, designa a
loucura como um momento essencial de sua própria natureza, já que agora
“a verdade da loucura é ser interior à razão, ser uma de suas figuras, uma
força e como que uma necessidade momentânea a fim de melhor certificar-se
de si mesma”[2]

Foucault busca denunciar a rigidez dos métodos tidos como “mais humanos”
de lidar com os internos dos manicômios,
É a partir da metade do século XVII que a ligação entre a loucura e o
internamento ocorrerá. O internamento é importante para Foucault por duas
razões: primeiramente, por ele ser a estrutura mais visível da experiência
clássica da loucura e, em segundo lugar, porque será exatamente ele que
provocará o escândalo quando essa experiência desaparecer, no século XIX,
da cultura européia, a ponto de, por exemplo, com Pinel ou Tuke, aparecer a
idéia de uma libertação dos loucos do internamento produzido pelo século
XVII. Mas, ao contrário de fazer a história dessa suposta “libertação”,
Foucault prestará atenção à racionalidade própria desse internamento,
tentando entender os seus mecanismos e as suas práticas específicas. [3]

Neste livro, Foucault aplica seu procedimento arqueológico, explicado


detalhadamente pelo Colunas Tortas na série Arqueologia do Saber. Sua
intenção é entender como a loucura passou a ser objeto de um discurso, o que
tornou possível a existência deste objeto particular e dos conceitos e métodos
específicos da psiquiatria moderna.

O tipo de pesquisa empreendida por Foucault na História da Loucura é


chamada de arqueológica e observa as regras de formação do
discurso analisado, as regularidades que existem na própria dispersão dos
enunciados, ao invés de procurar um fio condutor na história para dar conta,
cronologicamente, do conceito de loucura. A historicidade tradicional não
importa para este tipo específico de análise, já que o discurso pode
compreender séries de enunciados não cronológicos: o discurso tem sua
própria cronologia.

A associação entre a visão psiquiátrica da loucura, compreendida como doença mental, e o


modo capitalista de produção permitiu a adoção de critérios de utilidade e produtividade dentro
da sociedade: a internação tornou-se o destino de muitos indivíduos considerados incapazes
para o trabalho ou desviantes sociais, como mendigos, pobres de toda ordem e desempregado

A loucura existe como o inconveniente desta sociedade que


criamos, o resto de uma fórmula social que não consegue
aproveitar todos os seus recursos humanos. Ela é a consequência
da recusa da multiplicidade; ela é a incapacidade de lidar com várias formas
de viver e de pensar. Sociedade industrial, capitalista, da unidimensionalidade,
na qual nos tornamos objetos que devem ser formatados, enquadrados e
disciplinados. 
Não apenas traçamos uma verdade em forma de modelo, como também
criamos as ferramentas para talhar a alma deste ser humano segundo a
imagem e semelhança deste falso ideal. O resultado não é óbvio? Ao se traçar
um círculo, separa-se o dentro do fora, alguns simplesmente não se encaixarão
e serão deixados de lado, enquanto outros terão suas almas destroçadas no
processo de inclusão.
O normal e o anormal caminham de mãos juntas, a relação é
íntima! Um como modelo e o outro como ameaça. 

"O poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os
lugares …. O poder não é uma instituição e nem uma estrutura, não é uma certa potência
de que alguns sejam dotados: é o nome dado a uma situação estratégica complexa numa
sociedade determinada." (Michel Foucault, em 'História da sexualidade, vol.I - A vontade
de saber')

Fonte:
https://www.ex-isto.com/2019/02/foucault-microfisica-do-poder.html

O modo como o poder é expresso no século XX produz uma ordem normativa, que
não pretende apenas reprimir, mas convencer os indivíduos que essas normas
sejam aceitas, se apresentando como a melhor alternativa racionalmente possível,
ao invés de ser imposta como uma lei. As formas de poder não estão localizadas
num local específico, mas operam em redes de dispositivos e mecanismos, que são
assumidos e transmitidos de uma pessoa a outra, nas diversas relações que
estabelecemos com os outros, muitas vezes de maneiras bem sutis. "O poder deve
ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em
cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é
apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas
suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de
exercer esse poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo inerte ou consentido do
poder, são sempre centros de transmissão." (Michel Foucault, em 'Microfísica do
poder')  Foucault constata que o poder atravessa o corpo dos indivíduos, seus
sentimentos e comportamentos. Para ele, a psiquiatria é um exemplo de instituição
que legitima cientificamente um modelo de "normalidade", e os indivíduos que
aderem tal modelo se tornam agentes de normalização, passando a exigir a si
mesmos e aos outros uma adequação a essas normas. Este regime disciplinar
fabrica corpos "dóceis", submissos e adestrados, aumentando a força da economia
e da utilidade, porém diminuindo as forças políticas e de escolha, incentivando uma
postura de obediência constante. Os indivíduos são constantemente vigiados para
verificar se o que fizeram está conforme as regras, por uma série de olhares alheios, e não
apenas um. Ao uso de olhares vigilantes e o controle de corpos, ele chama de
'procedimentos disciplinares', que são praticados em instituições como hospitais,
escolas, fábricas e prisões, garantindo uma vigilância e normatização autorizada e
legitimada pelo saber. "Trata-se dos procedimentos disciplinares que são praticados em
instituições como hospitais, escolas, fábricas e prisões, garantindo uma vigilância e
normatização da sociedade autorizada e legitimada pelo saber. Não são estabelecidos por
meio de leis, mas pela concordância dos sujeitos para com os discursos de "verdade"."
(Michel Foucault, em 'A microfísica do poder') As diversas formas de expressões de
poder exercem controles sobre o corpo, sobre os gestos, as atitudes, os
comportamentos, hábitos e discursos. Inclusive norteando os enunciados de
"verdades", mantendo e partilhando os modos adequados, corretos e os padrões
que devem ser adotados nas relações. Eles não são estabelecidos por meio de leis,
mas pela concordância dos sujeitos para com os discursos de "verdade". Por meio
dos saberes instituídos, o que temos por verdadeiro, correto, normal, justo e
adequado, é justamente o que as pessoas aceitam e legitimam por meio dos
poderes estabelecidos, de modo que se tornam também reprodutoras, vigiando e
punindo as outras que, de algum modo, fogem do convencional estabelecido, de
acordo com uma conveniência de grupo, instituição ou cultura. Deste modo, o poder
não ocorre mais de um ponto exterior ao indivíduo, mas opera dentro do corpo de
cada pessoa, conduzindo seus comportamentos e ações, fabricando um tipo de ser
humano específico e adequado ao funcionamento e manutenção de um tipo
específico de sociedade, produzindo a individualidade, sendo o indivíduo um
produto do poder e do saber. Por Bruno Carrasco. Referências: FOUCAULT, Michel.
Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. ARANHA, Maria Lúcia; MARTINS, Maria
Helena. Filosofando: introdução à filosofia. São Paulo: Moderna, 2009.

Fonte:
https://www.ex-isto.com/2019/02/foucault-microfisica-do-poder.html

O Círculo Antropológico é o movimento narcisista do homem moderno de olhar para


o próprio umbigo e dizer, quero saber quem sou, e a partir deste conhecimento, quero
colonizar o outro. É este movimento que culmina em Kant, Hegel. A loucura é o
corpo que se recusa a funcionar normalmente.

A questão importante que aparece na imbricação da relação Deus, homem e mundo está
relacionada ao fato de que o homem se define como habitante do mundo [Weltbewohner] e,
assim, toda a reflexão sobre o homem será também remetida a uma questão sobre o mundo.
Todavia, Foucault adverte que não se trata de uma perspectiva naturalista, que levaria a um
conhecimento sobre a natureza. Trata-se, antes, do “desenvolvimento da consciência de si e
do Eu sou: o sujeito afetando-se no movimento pelo qual ele torna-se objeto para si mesmo
[...] Eu sou enquanto homem um objeto sensível externo para mim mesmo, uma parte do
mundo.” (FOUCAULT, TC, p.69-70). O homem seria assim um fenômeno de si mesmo e para
si mesmo.

4) a Antropologia seria o “livro do exercício cotidiano e não da teoria e da Escola”


(FOUCAULT, TC, p. 46). Segundo Foucault, para Kant o homem recebe uma educação da
escola e do mundo. A Antropologia seria a análise de como o homem aprende ou adquire o
mundo66. “A Antropologia não será, pois a história da cultura nem a análise sucessiva de
suas formas, mas prática ao mesmo tempo imediata e imperativa de uma cultura
inteiramente dada. Ela ensina o homem a reconhecer, em sua própria cultura, a escola do
mundo.” (FOUCAULT, TC, p. 47).

Kant diz que a Antropologia, na obra sobre o assunto, é o conhecimento do homem enquanto
cidadão do mundo, mas não parece ser exatamente este o objeto da Antropologia, salienta
Foucault: “A maioria das análises, e quase todas as da primeira parte, desenvolvem-se não
na dimensão cosmopolita da Welt (mundo), mas naquela, no interior do Gemüt67.”
(FOUCAULT, TC, p. 48).
Assim se completaria o estudo de Foucault sobre a Antropologia kantiana, mas essa análise
preparava sua Crítica às antropologias posteriores à Kant. Pois a antropologia, dirá Foucault,
diferentemente da operação operada por Kant, será não somente a ciência do homem, e
ciência e horizonte de todas as ciências do homem, mas ciência daquilo que funda e limita
para o homem seu conhecimento. É aí que se oculta a ambiguidade deste Menschen-
Kenntniss [conhecimento do homem].” (FOUCAULT, TC, p.104). Esta ambiguidade da qual fala
Foucault é o fato de que a Antropologia é um conhecimento que objetiva o homem em seu
ser natural, mas também é um conhecimento do “conhecimento do homem” “em um
movimento que interroga o 109 sujeito sobre si mesmo, sobre seus limites e sobre aquilo
que ele autoriza no saber que dele se tem” (Foucault, TC, p. 104). E é neste movimento que
reside a grande confusão da qual Foucault não cessa de nos alertar. Pois a Antropologia deve
ser um conhecimento do conhecimento do homem, ou seja, o conhecimento do homem
enquanto fundamento de todo o conhecimento possível, sem perder a dimensão Crítica.

As técnicas de disciplina corporal são assujeitadoras porque criam não apenas corpos
padronizados, mas também subjetividades controladas. Nas palavras de Francisco Ortega,
“Trata-se da formação de um sujeito que se autocontrola, autovigia e autogoverna. Uma
característica fundamental dessa atividade é a autoperitagem. O eu que se pericia tem no
corpo e no ato de se periciar a fonte básica de sua identidade”.2 César 1 A atribuição da
responsabilidade ao indivíduo por sua adequação corporal e identitária às demandas sociais é
visível no processo que Guita Grin Debert denomina de “reprivatização da velhice”, ou seja,

“sua transformação em um problema de indivíduos negligentes que não se envolveram no


consumo de bens e serviços capazes de retardar seus problemas. Neste sentido, a velhice
poderia novamente desaparecer do leque de preocupações sociais” (DEBERT, 2003, p. 154).
Sobre a mesma questão, consulte também DEBERT, 1999. 2 ORTEGA, 2002, p. 155. Estudos
Feministas, Florianópolis, 14(3): 681-693, setembro-dezembro/2006 683 CORPOS ELÉTRICOS:
DO ASSUJEITAMENTO À ESTÉTICA DA EXISTÊNCIA Sabino exemplifica esse assujeitamento
pela atividade física em seu estudo sobre os “marombeiros”: “No processo de cultivo à
forma é o indivíduo, e tãosomente ele, quem vai prestar contas ao olhar crítico e
hierarquizante dos seus pares, além de se submeter ao escrutínio constante da fita métrica e
do espelho em um processo que dele exige uma conduta ascética, racional e individualista”.3

A questão antropológica é indissociável do uso que o homem faz do mundo, de como


entra no seu jogo e a partir do qual toma consciência de si tornando-se objeto para ele
mesmo. “O mundo é descoberto nas implicações do “Eu sou”, como figura desse
movimento pelo qual passa o eu, ao se tornar objeto, adquire um lugar no campo da
experiência e encontra nele um sistema concreto de pertença” (FOUCAULT, M. Gênese
e estrutura da Antropologia de Kant, p. 72).
Percebe-se assim que o mundo não é simplesmente fonte para uma 'faculdade' sensível,
mas sobre o fundo de uma correlação transcendental passividade-espontaneidade; que o
mundo não é simplesmente domínio para um entendimento sintético, mas sobre o fundo
de urna correlação transcendental necessidade-liberdade; que o mundo não é
simplesmente limite para o uso das Idéias, mas sobre o fundo de uma correlação
transcendental razão-espírito (Vernunft - Geist). E por aí, nesse sistema de correlações,
se funda a transcendencia recíproca entre verdade e liberdade [grifos do autor]
(FOUCAULT, M., Introduction à l'Anthropologie de Kant, op. cit., p. 80.).

O que vimos então no livro História da Loucura? Que seu nascimento


coincide com a delimitação do que Foucault chamou de Círculo
Antropológico. Como assim, o que isso significa? Simples, traça-se um
círculo e coloca-se um modelo de homem no meio, com suas verdades, sua
maneira de pensar, agir, viver. A partir deste modelo, tem-se o certo e o
errado, o doente e o são, o normal e o patológico.
Mas ao estudarmos este homem cartesiano (“Penso logo existo”), não
podemos esquecer que algo é artificialmente deixado de fora, do lado de fora
do círculo. A loucura guarda os segredos e profundidades deixados de fora
durante a tentativa de encontrar o próprio ser do homem, o fundamento
daquilo que somos. Define-se ainda segundo um modelo, mas não podemos
nos esquecer, este modelo é histórico e geográfico: fala do nascimento da
sociedade burguesa na Europa e nada além disso.
Em outras palavras, este modelo de ser humano é profundamente (ou
deveríamos dizer superficialmente?) histórico, nasce com a ascensão da
industrialização, do capitalismo e finalmente da burguesia. Um modelo
econômico define um modelo de homem. Primeiramente, ele exclui todos
aqueles que não se encaixam (na Era Clássica) e depois desenvolve as
ferramentas disciplinares de inclusão perversa (na Era Moderna). Aliás, é
exatamente isto que Foucault começa a estudar posteriormente, pesquisas que
resultaram no seu livro Vigiar e Punir.

O que vimos então no livro História da Loucura? Que seu nascimento


coincide com a delimitação do que Foucault chamou de Círculo
Antropológico. Como assim, o que isso significa? Simples, traça-se um
círculo e coloca-se um modelo de homem no meio, com suas verdades, sua
maneira de pensar, agir, viver. A partir deste modelo, tem-se o certo e o
errado, o doente e o são, o normal e o patológico.
Mas ao estudarmos este homem cartesiano (“Penso logo existo”), não
podemos esquecer que algo é artificialmente deixado de fora, do lado de fora
do círculo. A loucura guarda os segredos e profundidades deixados de fora
durante a tentativa de encontrar o próprio ser do homem, o fundamento
daquilo que somos. Define-se ainda segundo um modelo, mas não podemos
nos esquecer, este modelo é histórico e geográfico: fala do nascimento da
sociedade burguesa na Europa e nada além disso.
Em outras palavras, este modelo de ser humano é profundamente (ou
deveríamos dizer superficialmente?) histórico, nasce com a ascensão da
industrialização, do capitalismo e finalmente da burguesia. Um modelo
econômico define um modelo de homem. Primeiramente, ele exclui todos
aqueles que não se encaixam (na Era Clássica) e depois desenvolve as
ferramentas disciplinares de inclusão perversa (na Era Moderna). Aliás, é
exatamente isto que Foucault começa a estudar posteriormente, pesquisas que
resultaram no seu livro Vigiar e Punir.

O Círculo Antropológico é o movimento narcisista do homem


moderno de olhar para o próprio umbigo e dizer, quero saber quem
sou, e a partir deste conhecimento, quero colonizar o outro. É este
movimento que culmina em Kant, Hegel.

O psiquiatra não se aproxima da verdade científica, ele é


instrumento de controle social. Aliás, o psiquiatra não teria surgido
sem o nascimento de uma sociedade disciplinar. O asilo ao mesmo
tempo libertou o homem das correntes desumanas que o
prendiam, mas acorrentou-o ao modelo de homem e sua
verdade.
Eis o nascimento da psicologia, da psiquiatria e até mesmo (quer queira, quer
não) da psicanálise. Essa ideia de que possuímos em nós uma verdade (uma
medida). O homo psychologicus é um descendente direto do homo mente
captus. Eis a nossa sina, viver esta grande mentira na qual nos alienamos, este
círculo que separa o que é normal e o que é loucura.

Pode-se considerar que a palavra Poder, em suas mais diversas significações,


desde etimológica, política e econômica, está sempre ligada á ideia de autoridade,
persuasão, controle, regulação e força. No que se refere ao pensamento de Foucault
sobre o poder, é importante destacar que o autor estudou o poder não para criar uma
teoria sobre o poder, mas para identificar sujeitos atuando sobre os outros sujeitos. 1
Foucault, assim, procurou demonstrar as diversas formas de poder, explícitas e
veladas, em cada espaço da sociedade, inclusive em micro espaços. Mais do que a
compreensão do poder instituído no macro espaço representado pelo Estado e suas
instâncias reguladoras, Foucault traz um olhar sobre os micro poderes que perpassam
todas as relações sociais.
Inspira-se nos estudos de Nietzsche e inicial a genealogia do poder, a partir dos
quais afirma que os valores são historicamente construídos, sendo que são construídos a
partir das relações de poder em uma sociedade. Em sua construção, Foucault nos traz a
1
Foucault, M. Microfísica do poder. 28th ed. Rio de Janeiro: Edições Graal; 2014
tríade poder, direito e verdade, onde demonstra o poder como direito, pelas formas que
a sociedade se coloca e se movimenta. O poder, como verdade, vem se instruir, ora
pelos discursos de quem lhe é obrigado a produzi-lo, ora pelos movimentos dos quais se
tornam vitimados pela própria organização que os acomete e, por vezes, sem a devida
consciência e reflexão.
A relação de poder postas pelas instituições, caracterizadas por relações
opressor-oprimido, são marcadas pela disciplina. Essas práticas disciplinares,
largamente difundidas nas instituições, constituem-se em estratégias que se transformam
em práticas discursivas que disciplinam o corpo, instituindo gestos, atitudes, conduta e
posturas, regulam a mente e ordenam a fala.2
O objetivo do poder é, ao mesmo tempo, econômico e político, utilizando a
disciplina para diminuir a resistência dos indivíduos e tornar os homens politicamente
dóceis. Assim, a sociedade fabrica corpos submissos e condicionados a viver de acordo
com o modelo imposto, o qual Foucault denomina de corpos dóceis, característica
voltada a utilidade e manutenção de um modelo social.
Foucault descreve o poder como elemento central na determinação dos valores
em uma sociedade, sendo que não há valores universais, para Foucault, mas sim valores
construídos historicamente a partir das relações de poder em sociedade. Estes valores,
assim sendo, atendem a demanda das relações de poder da sociedade. Sob esta visão,
Foucault apresenta o poder como uma fonte criadora, no sentido de que as relações de
poder criam a realidade em que os homens irão viver, criam valores e os difundem na
sociedade, sendo absorvidos pelos homens dóceis, que passam a reproduzir e viver de
acordo com estes.
Ainda em sua análise, Foucault traz uma nova inversão do processo de
dominação, uma vez que, com a modernidade das sociedades, as relações de poder
passam a ser cada vez mais sutis, dissimuladas, e ainda mais eficientes para a
dominação, uma vez que os homens acreditam que tenham autonomia em suas decisões
e crenças. Deleuze determina que passa-se a ter uma sociedade de controle. Assim, o
poder não exerce mais controle através da força física, mas os próprios sujeitos que,
uma vez sob este controle sutil, se tornam dominados e reproduzem em sociedade estas
premissas, estas verdades. Os padrões de comportamento são determinados por
indivíduos ligados a um centro de decisão, ou seja, aqueles que detém o poder, e são
estes que determinam padrões de comportamento, verdades e valores, passando os
sujeitos a determinarem suas vidas nestes padrões determinados em uma prática
disciplinar, agora sutil e dissimulada.3
Através da prática disciplinar é que o poder exerce sua face de dominação.
Ocorre que, este poder nãos e encontra apenas em uma estrutura, como o Estado, mas
disseminado por todos os micro espaços da sociedade. Daí é que falamos em práticas
sutis e dissimuladas, uma vez que não estão mais inseridas unicamente no Estado, mas
2
Collier SJ. Topologias de poder: a análise de Foucault sobre o governo político para além da
governamentalidade. Rev. Bras. Ciênc. Polít. [Internet] 2011 [cited 2018 Dec 10]; 5:245-284. Available
from: http://www.scielo.br/pdf/rbcpol/n5/a10n5.pdf
3
Silva JP. Poder e direito em Foucault: relendo vigiar e punir 40 anos depois. Lua Nova [Internet]. 2016
[cited 2018 Dec 10]; 97:139-171. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ln/n97/0102-6445-ln-97-
00139.pdf
orbitando todas as ações sociais, todos os micro espaços, inclusive no campo da
individualidade. Assim, toda ação individual consciente e inconsciente pode contribuir
para reproduzir as condições de dominação, as práticas disciplinares, como também
questioná-las, com vistas a modificação da realidade social.

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