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DESEJO SEXUAL

SCRUTON
RO G E R S C RU TO N

DESEJO SEXUAL
Uma investigação filosófica

Tradução de Marcelo Gonzaga de Oliveira


Desejo sexual: uma investigação filosófica
Roger Scruton
1ª edição – junho de 2016
Copyright © by Roger Scruton, 2006.
Esta tradução é publicada em acordo com a Bloomsbury Publishing Plc.
Os direitos desta edição pertencem ao
CEDET – Centro de Desenvolvimento Profissional e Tecnológico
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Telefone: 19-3249-0580
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Editor:
Diogo Chiuso
Editor-assistente:
Thomaz Perroni
Tradução:
Marcelo Gonzaga de Oliveira
Revisão:
Gustavo Nogy
Capa:
J. Ontivero
Diagramação:
Maurício Amaral

FICHA CATALOGRÁFICA

Scruton, Roger
Desejo sexual: uma investigação filosófica / Roger Scruton; tradução de Marcelo Gonzaga de
Oliveira – Campinas, SP: VIDE Editorial, 2016.
ISBN: 978-85-67394-93-0
1. Filosofia moderna: ensaios 2. Ensaios e estudos filosóficos 3. Ética no sexo e reprodução
I. Autor II. Título
CDD – 190.2 / 501.01 / 176
ÍNDICE PARA CATÁLOGO SISTEMÁTICO
1. Filosofia moderna: ensaios – 190.2
2. Ensaios e estudos filosóficos – 501.01
3. Ética no sexo e reprodução – 176

Conselho editorial
Adelice Godoy
César Kyn d’Ávila
Diogo Chiuso
Silvio Grimaldo de Camargo
VIDE Editorial – www.videeditorial.com.br
Reservados todos os direitos desta obra. Proibida toda e qualquer reprodução desta edição
por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer
meio.
SUMÁRIO

PREFÁCIO....................................................................................................................... 9
CONSELHO AO LEITOR........................................................................................... 13

Capítulo 1
O PROBLEMA............................................................................................................... 15

Capítulo 2
EXCITAÇÃO................................................................................................................. 37

Capítulo 3
PESSOAS........................................................................................................................ 61

Capítulo 4
DESEJO........................................................................................................................... 93
A perspectiva de primeira-pessoa e a excitação........................................................ 95
Revelação involuntária.................................................................................................. 98
Encarnação...................................................................................................................104
Pessoas desencarnadas................................................................................................108
A natureza pessoal do objeto de desejo....................................................................112
A fenomenologia dos nomes próprios......................................................................115
Pensamento individualizante.....................................................................................117
A perspectiva da primeira-pessoa no desejo...........................................................123
Ética kantiana – uma digressão.................................................................................124
O curso do desejo........................................................................................................127
O objetivo do desejo...................................................................................................130

Capítulo 5
O OBJETIVO INDIVIDUAL.....................................................................................139
Distinções entre atitudes............................................................................................142
O universal e o particular............................................................................................142
O fundado em razões, o livre de razões e o que envolve razões...............................143
A atenção e a desatenção.............................................................................................147
O propositado e o despropositado...............................................................................149
O transferível e o intransferível...................................................................................151
Mediato e imediato......................................................................................................157
As características formais do desejo.........................................................................159
O objeto individual.....................................................................................................162
A “essência subjetiva”..................................................................................................170
Pensamentos individualizantes..................................................................................172
O paradoxo de Sartre..................................................................................................174
O objetivo do desejo...................................................................................................180
Pecado original............................................................................................................187
Animal e pessoa...........................................................................................................193

Capítulo 6
FENÔMENOS SEXUAIS...........................................................................................197
Obscenidade.................................................................................................................197
Modéstia e vergonha...................................................................................................200
O significado dos órgãos sexuais...............................................................................211
Prostituição..................................................................................................................220
Enamoramento............................................................................................................226
Ciúme............................................................................................................................228
Dom-juanismo.............................................................................................................234
Tristanismo...................................................................................................................237
Sadomasoquismo........................................................................................................242

Capítulo 7
A CIÊNCIA DO SEXO...............................................................................................251
A biologia do sexo.......................................................................................................251
Sociobiologia................................................................................................................255
Uma nota sobre Schopenhauer..................................................................................266
O inconsciente.............................................................................................................270
Psicologia freudiana: o problema geral....................................................................272
Freud: a teoria específica............................................................................................276
Crítica: a libido............................................................................................................281
Crítica: a zona erógena...............................................................................................284
A voz freudiana............................................................................................................288
Capítulo 8
AMOR...........................................................................................................................295
A questão de Platão.....................................................................................................298
Níveis de amizade........................................................................................................302
Amizade e estima........................................................................................................306
A intencionalidade da amizade.................................................................................314
Amor e amizade...........................................................................................................315
O amor erótico.............................................................................................................318
Tensões no amor..........................................................................................................323
Amor e indolência.......................................................................................................329
O curso do amor..........................................................................................................331
A expressão do amor no desejo.................................................................................336
Beleza............................................................................................................................343
Novos problemas.........................................................................................................346

Capítulo 9
SEXO E GÊNERO.......................................................................................................347
Sexo e gênero...............................................................................................................348
Construção de gênero.................................................................................................352
Feminismo kantiano...................................................................................................353
O papel do gênero.......................................................................................................355
Homem e mulher........................................................................................................356
Encarnação...................................................................................................................361
Encarnação e construção de gênero..........................................................................365
Tipos pessoais..............................................................................................................372
A questão de Platão e a raiz do desejo......................................................................377
Beleza e gênero............................................................................................................379
Homossexualidade e gênero......................................................................................382

Capítulo 10
PERVERSÃO...............................................................................................................387
Bestialidade..................................................................................................................396
Necrofilia......................................................................................................................399
Pedofilia........................................................................................................................402
Sadomasoquismo........................................................................................................405
Homossexualidade......................................................................................................414
Incesto...........................................................................................................................422
Fetichismo....................................................................................................................427
Masturbação.................................................................................................................430
Castidade......................................................................................................................433

Capítulo 11
MORALIDADE SEXUAL..........................................................................................435

Capítulo 12
A POLÍTICA DO SEXO.............................................................................................471

EPÍLOGO.....................................................................................................................491

Apêndices
I. A PRIMEIRA PESSOA...........................................................................................493
II. INTENCIONALIDADE........................................................................................515

ÍNDICE ONOMÁSTICO..........................................................................................541

ÍNDICE REMISSIVO.................................................................................................551
PREFÁCIO

O assunto do desejo sexual tem sido amplamente ignorado


pela filosofia moderna, e as biografias dos grandes filósofos mo-
dernos sugerem que eles evitaram a experiência do desejo tão
escrupulosamente como têm evitado a sua análise. Deixo para
outros a tarefa de explicar por que isso é assim. Mas o assunto
exige que eu faça uma observação geral sobre o problema que a
filosofia encontra quando entra neste domínio.
Até o final do século XIX, era quase impossível discutir o
desejo sexual, exceto como parte do amor erótico, e ainda assim
a convenção exigia que as peculiaridades do desejo permane-
cessem ocultas. Esta negligência deliberada também afetou a
discussão do amor erótico, que foi feito para parecer ainda mais
misterioso do que é, precisamente porque tinha sido privado de
seu principal motivo. Quando a interdição finalmente acabou –
graças a escritores como Krafft-Ebing, Charles Féré e Havelock
Ellis – foi em virtude de uma abordagem supostamente “cientí-
fica”, tornando-se um fenômeno natural generalizado.
Tal era o prestígio da ciência que qualquer investigação con-
duzida em seu nome poderia invocar poderosas correntes de
aprovação social, que foram suficientes para superar a relutân-
cia – de outra forma incapacitante – para enfrentar as realida-
des da experiência sexual. No entanto, foi precisamente essa
dependência do prestígio da ciência que levou à contínua ne-
gligência do assunto. Tornou-se necessário assumir que o com-
portamento sexual é um aspecto da condição de ‘animal’ do
homem – um “instinto” cuja expressão exibe as leis ocultas de
um complexo processo biológico. Mas, como exponho nas pá-
ginas a seguir, nenhuma taxonomia biológica poderia apreender
as especificidades do desejo sexual. O desejo é de fato um fenô-
meno natural, mas está além do alcance de qualquer “ciência
natural” do homem.
9
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Quando Freud apresentou suas revelações chocantes – dis-


farçadas mais uma vez como verdades neutras, “científicas”,
sobre um impulso universal – a linguagem consolidou-se na-
quela em que os detalhes da sexualidade humana são agora ha-
bitualmente apresentados. Freud descreveu o objetivo de desejo
sexual como:
a união dos órgãos genitais no ato conhecido como cópula, que leva
a uma liberação da tensão sexual e a uma extinção temporária do
instinto sexual – uma satisfação análoga à saciação da fome.


Essa linguagem – que mostra certo ódio do ato sexual e de
tudo que diz respeito a ele – não pode abarcar o que é distintivo
na experiência sexual. Sua adoção universal por “sexólogos” le-
vou, no entanto, a uma “ciência” notável, que pretende explicar
o que sequer tem linguagem para descrever. O Relatório Kin-
sey, assim como a literatura pseudocientífica seguinte, apenas
continua, de forma mais vulgar e vigorosa, o empreendimento
moralizante de Krafft-Ebing: o trabalho de confrontar nossos
sentimentos morais com uma descrição supostamente “científi-
ca” dos fatos que os ameaçam. O resultado foi a criação do “re-
latório do sexólogo” como um novo gênero literário. O estilo
é exemplificado pelo Masters and Johnson Report, com as suas
repetidas referências ao “bom funcionamento”, “adequação” e
“frequência” do “desempenho sexual”, e sua abordagem pseu-
do-experimental para questões que só podemos ver em termos
neutros se não as entendermos: “O indivíduo C vocalizou um
desejo de retornar ao programa acompanhado de sua esposa
como uma unidade familiar colaborativa.” O efeito dessa “des-
mistificação” do impulso sexual tem sido o aumento de supers-
tições novas e inéditas e o crescimento de um novo tipo de mis-
tério pseudocientífico, cuja dissipação é um dos objetivos deste
livro.
Apenas ocasionalmente um escritor dirigiu-se para a questão
crucial que esta literatura “científica” se esforçou por ignorar: a
questão do que uma pessoa experimenta quando deseja outra.
O desejo não é idêntico nem ao “instinto” que se expressa nele
nem ao amor que o preenche. É, conforme mostrarei, um fenô-
meno exclusivamente humano, e que nos impele precisamente
àquela noção restritiva de “decência” que proibiu sua discus-

10
prefácio

são. Neste livro, farei uma defesa da decência; mas, ao fazer


isso, ilustro a verdade da observação de Bernard Shaw, de que
é impossível explicar a decência sem ser indecente. Só espero
que o benefício, em termos de compreensão moral, exceda o
seu custo.
As primeiras versões do texto foram lidas por Joanna North,
John Casey, Bill Newton-Smith, Robert Grant, David Levy e
Sally Shreir, e sou muito grato a todos eles por suas inúmeras
críticas e sugestões. Estou particularmente grato a Ian McFe-
tridge, cuja meticulosa análise do primeiro projeto deu o indis-
pensável apoio sem o qual este livro não teria sido concluído
satisfatoriamente. Graças a sua generosidade, mente aberta e
penetração filosófica, este trabalho foi salvo de muitos erros e
obscuridades; só espero que ele não fique muito angustiado por
aqueles que permanecem.

11
CONSELHO AO LEITOR

1. Neste livro, sigo a prática tradicional no uso do pronome


masculino para referir-me indistintamente a homens e mulheres,
exceto quando o contexto exigir que o gênero esteja explícito.
Há duas razões para isso: em primeiro lugar, é estilisticamente
correto; em segundo, é a forma mais eficaz de deixar o sexo fora
disso – na medida em que se deve deixar o sexo fora da discus-
são do desejo. O que quero dizer com esta segunda razão pode
ser entendido somente no curso da minha exposição.
2. Como se trata de uma obra de filosofia, contém passagens
argumentativas um tanto difíceis, projetadas para fornecer ba-
ses para a discussão central. A maioria dessas passagens ocorre
no Capítulo 3 e nos dois apêndices. Apesar disso, o leitor que
ignorar estas seções será capaz de entender o argumento e apre-
ciar minhas questões principais. Quem encontrar dificuldade
em avançar no Capítulo 3 deve passar imediatamente para o
Capítulo 4, onde continuo a discussão do desejo sexual.

13
CAPÍTULO 1
O PROBLEMA

Filósofos modernos têm descrito o desejo sexual e o amor


erótico de maneiras surpreendentes e paradoxais. Para Kant, o
desejo sexual pode ser entendido apenas como parte da “pato-
logia” da condição humana.1 Para Hegel, o amor erótico envol-
ve uma contradição; para Sartre, a mesma contradição está pre-
sente no desejo.2 Schopenhauer considera o desejo sexual como
parte de uma ilusão – ilusão, simplificando, do indivíduo que
é sujeito e objeto em nossos empreendimentos sexuais.3 Esses
pontos de vista românticos e pós-românticos exibem um mes-
mo pessimismo, e cada um contrasta com as discussões sobre o
assunto que chegaram até nós de pensadores antigos.
Talvez o mais famoso desses pensadores tenha sido Platão,
que introduziu (em seus próprios termos) uma distinção que
causou grande confusão no debate que se seguiu: a distinção
entre amor erótico e desejo sexual. Platão é o ancestral intelec-
tual de um ponto de vista que persiste até hoje e que condiciona
muito do nosso pensamento moral. De acordo com esta pers-
pectiva, nossa natureza animal é o principal veículo do desejo
sexual, e oferece a sua principal motivação. No desejo, agimos

1 I. Kant, Lectures on Ethics, tr. L. Infield, new edn, Nova York, 1963, pp. 164 et seq., e
Foundations of the Metaphysic of Morals, Prussian Academy edition, p. 399 (tr. L. W.
Beck, Nova York, 1959, p. 15). Ver também Kant's Philosophical Correspondence: 1759-
99, ed. and tr. Arnulf Zweig, Chicago, 1967, p. 235, onde Kant se refere ao casamento
como um acordo entre duas pessoas para o “uso recíproco dos órgãos sexuais um do
outro”. As posições de Kant serão discutidas no Capítulo 4.
2 G. W. F. Hegel, The Philosophy of Right, tr. and ed. T. M. Knox, Oxford, 1942, addition
to. 158. J. P. Sartre, Being and Nothingness, tr. Hazel E. Barnes, Nova York, 1956, livro
III, Capítulo 3. As posições de Sartre serão discutidas no Capítulo 5.
3 Arthur Schopenhauer, The World as Will and Representation, tr. E. J. F. Payne, Indian
Hills, Colorado, 1958, vol. II, pp. 549 et seq. As posições de Schopenhauer serão
discutidas no Capítulo 7.
15
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

e sentimos como animais; de fato, o desejo é um motivo que


todos os seres sexuais – incluindo a maioria dos animais – com-
partilham. No amor erótico, no entanto, é a nossa natureza en-
quanto seres racionais que se envolve principalmente e, no exer-
cício dessa paixão, impulsos mais finos e mais duráveis ​​buscam
reconhecimento e satisfação.
Para Platão, parecia que os dois impulsos eram tão radical-
mente opostos que não poderiam coexistir alegremente em uma
única consciência. Assim, a fim de permitir o pleno florescimen-
to do amor erótico, seria necessário refinar, e eventualmente
abandonar, o elemento do desejo. O amor resultante – o amor
“platônico” – seria, ao mesmo tempo, intrinsecamente racional
e moralmente puro. Este amor puro tem, para Platão, um va-
lor diferenciado, comparável ao valor da própria Filosofia. Ele
fornece um elo com a realidade transcendente, uma etapa no
caminho para a emancipação e realização espirituais, que ocor-
rem apenas com a liberação final da alma para aquele mundo
de idéias de que ela desceu e em que tem sua eterna morada.
Assim, o tema do erótico adquiriu, para Platão, uma seriedade e
um pathos raramente expressos nos escritos de filósofos poste-
riores. Tão seriamente ele o considerava que permitia que seus
personagens o discutissem plenamente apenas quando bêbados,
em um diálogo que é justamente considerado como uma das
grandes realizações literárias da antiguidade.4
Vestígios da visão platônica podem ser encontrados em mui-
tos pensadores posteriores – nos neoplatônicos, em Santo Agos-
tinho, em Tomás de Aquino e no filósofo-poeta romano Boécio,
cuja filosofia do amor teve um efeito tão profundo na literatura
da Europa medieval e em especial sobre Chaucer, os trovadores,
Cavalcanti, Boccaccio e Dante.5 Ela sobrevive na idéia popular –

4 Platão, Banquete. As posições de Platão serão discutidas no Capítulo 8. É importante


reconhecer que o próprio Platão mudou de idéia sobre muitas questões fundamentais
ao longo de sua vida, e, apesar de o Banquete ser um trabalho relativamente maduro,
não é a última palavra de Platão sobre amor e desejo.
5 As visões de Agostinho sobre o erótico estão espalhadas nas Confissões, De Nuptiis et
Concupiscentia e na Cidade de Deus (esp. livros XIV, caps 16-26). A afirmação mais
conhecida de Boécio sobre a filosofia do amor está na Consolação da Filosofia. As fontes
medievais são: Chaucer, O Parlamento das Aves e O conto do Cavaleiro; Cavalcanti,
Canzone e Sonetos; Dante, La Vita Nuova e o Convivio; Boccaccio, La Visione Amorosa
e a Teseida; e o trovador Arnault Daniel, cujos poemas principais foram coletados em
Hugh Kenner (ed.), The Translations of Ezra Pound, London, 1953.

16
capítulo 1 - o problema

fundada na mais duvidosa das distinções metafísicas – de que o


desejo sexual é essencialmente “físico”, enquanto o amor sempre
tem um lado “espiritual”. Sobrevive, também, na teoria de Kant,
apesar da enorme distância moral e emocional que separa Kant
de Platão, e a despeito do pessimismo sem remorsos de Kant so-
bre a vida erótica da humanidade. É um dos objetivos principais
deste trabalho combater a teoria platônica. Não vou contestar a
distinção entre o animal e o racional (de fato, vou defender essa
distinção como crucial para a compreensão da nossa condição),
mas o impulso moral e filosófico que nos leva a atribuir desejo
sexual à parte animal da natureza humana.
No decorrer da exposição, tentarei explicar por que o dese-
jo sexual tem sido tão frequentemente considerado como mis-
terioso ou paradoxal; e vou mostrar que há mais verdade do
que pensamos nestas descrições. Também darei a base filosófica
para uma moralidade sexual, e demonstrarei que a considera-
ção moral não pode ser subtraída do ato sexual sem que, ao
mesmo tempo, destrua seu caráter distintivo. Existe um precon-
ceito moderno (embora não seja mais do que um preconceito)
de que não pode existir algo como uma moralidade especifica-
mente sexual. A moralidade, acredita-se, não está ligada ao ato
sexual, mas sempre a outra coisa, com a qual possa ser con-
junta. Podemos razoavelmente proibir a violência sexual, por
exemplo, mas isso é por causa da violência; considerado em si
e para si, e separado de circunstâncias fortuitas, o ato sexual
não é nem certo nem errado, mas apenas ‘natural’. Tal ponto de
vista pode parecer pouco plausível quando contrastado com a
imoralidade óbvia do abuso sexual de crianças ou do estupro
– crimes que parecem ameaçar a própria existência dos outros
como seres sexuais, e ameaçar também a vida sexual de seu
agressor. Mas a razão exata para rejeitar o preconceito moder-
no é difícil de descobrir, e não será antes do final deste livro que
o leitor vai conhecer as minhas razões para pensar que o ato
sexual é, e deve ser sempre, limitado por escrúpulos morais. E,
apesar de eu ser brando nas minhas conclusões morais – não
tendo nem o espaço nem a inclinação para considerar tudo o
que deve ser considerado a fim de apresentar uma ética sexual
abrangente – espero que pelo menos algumas das idéias de mo-
ralidade “tradicional” já não pareçam tão estranhas depois de
ler este livro como pareciam a muitos dos autores que estudei
17
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

no trabalho escrevê-lo. Quer o leitor concorde com as minhas


conclusões particulares ou não, ele vai, espero, concordar que
não é necessariamente um absurdo condenar relações homosse-
xuais, fornicação, masturbação, ou o que quer que seja, mesmo
que tenhamos um apelo em fazer essas coisas, e mesmo que não
haja nenhum Deus que as proíba.
Começar uma investigação filosófica sobre o desejo sexual
não é fácil. Além de o assunto sofrer mil preconceitos conflitan-
tes, o método que nos permite abordá-lo é incerto. Devemos nos
engajar na “análise conceitual”, separando as conexões intrin-
cadas de uso, e as conexões profundas de significado, que ligam
termos como “desejo”, “excitação”, “amor” e “prazer”? Ou de-
veríamos nos envolver em um exercício de “fenomenologia”,
tentando dar uma especificação que se adeque às experiências
sexuais de quem as têm? Ou ainda, devemos tentar localizar e
resolver os quebra-cabeças específicos, na ética e na filosofia
da mente, a que a reflexão sobre nossa experiência sexual dá
origem? Finalmente, devemos preparar o terreno para a ciência,
removendo as confusões iniciais que se interpõem no caminho
de uma investigação científica adequada sobre um dos fenôme-
nos vitais mais importantes e mais mal compreendidos?
Eu acredito que é necessário fazer todas essas coisas, e que
na verdade são todas partes de um único empreendimento filo-
sófico. O principal problema é de descrição – descrição no nível
mais raso possível. É necessário localizar o fenômeno do desejo
sexual para dizer o que ele é como uma experiência humana. É
essa busca por uma descrição superficial que tem sido chamada,
em vários momentos e para vários fins, tanto de “Fenomenolo-
gia” quanto de “Filosofia Analítica”.6
Como muitos filósofos “analíticos”, estou desconfiado da fe-
nomenologia. Desconfio, em particular, do método “cartesiano”
de Husserl: a suposição de que a experiência deve ser descrita
a partir do ponto de vista de primeira-pessoa. (Minhas razões
para esta suspeita constam do Apêndice 1.) Ao mesmo tempo,
estou muito agradecido a outra idéia de suma importância na
fenomenologia, e que só tardiamente está ganhando reconhe-

6 Sobre as possíveis fontes de conflito entre a Fenomenologia e a Filosofia Analítica, ver


Apêndice 1.

18
capítulo 1 - o problema

cimento entre os praticantes da “análise conceitual”. A idéia é


mais velha do que a fenomenologia – talvez tão antiga quanto
Aristóteles, e certamente tão antiga quanto Kant. Ela sustenta
que é preciso distinguir o mundo da experiência humana do
mundo da observação científica. No primeiro existimos como
agentes, assumindo o comando do nosso destino e nos relacio-
nando uns com os outros através de concepções que não têm lu-
gar na visão científica do universo. No segundo, existimos como
organismos, impulsionados por uma causalidade arcana e nos
relacionando uns com os outros através das leis de movimento
que nos governam e tanto quanto regulam todas as outras coi-
sas. Kant descreveu o primeiro mundo como “transcendental”,
o segundo como “empírico”, e traçou um caminho brilhante
entre duas visões exaustivas, incompatíveis entre si e, para ele,
igualmente impossíveis de sua relação. Em uma delas, o mundo
transcendental é um reino de existência independente do mun-
do empírico, de modo que os objetos pertencentes a um não
existem no outro. Na outra, os dois mundos não são distintos,
mas sim duas maneiras diferentes de ver o mesmo objeto: po-
demos vê-lo a partir da perspectiva “transcendental” do agente
humano ou pela perspectiva “empírica” ​​do observador científi-
co. Neste livro, defenderei uma versão da segunda idéia, e esta
defesa me coloca em débito com o discípulo de Kant – Dilthey
–, um pouco com Husserl, e um pouco com o trabalho recen-
te na filosofia analítica da ciência, mas que tem pouca relação
direta com Kant.7 Eu acredito que é preciso distinguir não dois
mundos, mas duas maneiras de entender o mundo e, em espe-
cial, dois empreendimentos conceituais distintos que formam
nosso entendimento.
O mundo é mais do que um objeto de curiosidade científica.
É benevolente aos nossos propósitos: em todos os lugares nos
deparamos com a ocasião para a ação e os meios pelos quais re-

7 Ver especialmente os fragmentos do trabalho reunidos como o volume VII dos Collected
Works de Dilthey (ed. B. Groethuysen, Leipzig, 1914), cujos excertos estão disponíveis
(sob o título 'The Construction of the Historical World in the Human Studies'), tr. e ed.
H. P. Rickman, em Dilthey, Selected Writings, Cambridge, 1976, pp. 168-245. A obra a
que me refiro sobre a filosofia da ciência moderna é focado na discussão dos conceitos
naturais (ver H. Putnam, 'The Meaning of "Meaning" ', em Philosophical Papers, vol.
II: Mind, Language and Reality, Cambridge, 1975, e S. Kripke, Naming and Necessity,
Oxford, 1978.)

19
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

alizá-la. O mundo é também diversificado, apresentando objetos


variados de desejo e contrastando obstáculos à nossa vontade.
Como seres práticos, instintivamente desenvolvemos categorias
que irão gravar e facilitar nossa interação com nosso meio, e
essas categorias levam a dupla marca da finalidade humana e
de variedade material – o que corresponde, por um lado, aos
nossos usos e, por outro, à condição natural dos objetos descri-
tos. Algumas categorias não fazem mais do que gravar o pro-
pósito para o qual um objeto pode ser usado: categorias como
“descanso”, “balanço” e “abrigo”. Outras descrevem alguma
característica recorrente do meio ambiente, e, talvez, simulta-
neamente postulam uma explicação de sua aparência unificada:
categorias como “animal”, “vegetal” e “rocha”. Outras catego-
rias parecem se encaixar em qualquer classe, combinando signi-
ficado funcional e poder explicativo. Quando descrevemos algo
tão difícil, o situamos na rede de fins humanos – é algo que vai
resistir a nossas tentativas de transformá-lo, e que pode também
nos ferir. Ao mesmo tempo, atribuímos um caráter físico, uma
constituição que o aliam a uma série de substâncias afins no
mundo da natureza.
Recentemente, os filósofos têm prestado muita atenção na
existência desses tipos contrastantes de categoria e, em particu-
lar, para a divisão entre tipos funcionais e naturais.8 Como se-
res duais, seres ativos e contemplativos, é natural nos valermos

8 Ver Putnam, 'The Meaning of "Meaning"', e Kripke, Naming and Necessity. O termo
“espécie natural” procede indiretamente de J. S. Mill, A System of Logic (Sistema de
Lógica Dedutiva e Indutiva), 10ª ed., Londres, 1879, livro I, capítulo VII. Mill se refere
a Espécies, que possuem uma existência objetiva, e, assim sendo, mantêm o “E”
maiúsculo para assinalar esse tipo de espécie. A observação de que nossas classificações
são frequentemente funcionais ou analíticas e, portanto, distorcem a natureza das coisas
a que se referem é muito mais antiga do que Mill, inspirando a distinção entre essência
“real” e “nominal” de Locke (Ensaios Sobre o Entendimento Humano, livro III, Capítulo
3, § 13), e o método de Buffon na Histoire Naturelle, em que ele explicitamente rejeita
nossos hábitos costumeiros de classificação, já que eles tentam “dividir a natureza onde
ela é indivisível.”
Sobre a distinção entre espécies naturais e funcionais, ver David Wiggins, Sameness
and Substance, Oxford, 1980, pp. 171 et seq. Talvez a idéia de uma espécie funcional
seja menos familiar do que uma espécie natural; esta idéia, entretanto, é necessária
para entender o “funcionalismo” como uma teoria de dementes. O Funcionalismo
foi detalhadamente explicado por D. C. Dennett nos artigos reunidos em seu livro
Brainstorms, Brighton, 1978.

20
capítulo 1 - o problema

das duas espécies de conceitos, e que existem tantas nuances


situadas na zona nebulosa entre o “duro” e o “macio”. Procu-
ramos tanto compreender o mundo e alterá-lo; e, geralmente,
fazemos ambos. Logo, nos munimos de categorias permeáveis ​​à
explicação (tipos naturais) e categorias permeáveis ao propósi-
to (tipos funcionais). Mas nossa relação com o mundo é muito
mais complexa do que isso faz parecer: além de propósito e
conhecimento, temos experiências, valores, emoções e crença
religiosa. Cada um deles também dita suas próprias trajetórias
conceituais, suas tentativas distintas de ordenar o mundo como
um objeto de nossos interesses.
A classificação pode ser comparada ao talho, em que um ob-
jeto é dividido, por vezes, de acordo com a sua natureza e, por
vezes, em desafio a ela. O açougueiro inglês, motivado por um
zeloso desdém ao cadáver diante dele, e também ao homem que
comerá essa carne, fatia a criatura selvagemente em blocos tos-
cos, com pouco mais do que um tradicional fair-play ao separá
-los. Um “pedaço de carne” inglês pode consistir de um pedaço
de músculo dorsal, um pedaço da espinha dorsal, um fragmento
de rim, um pouco de pele e medula, alguns cabelos, e a marca
indelével com que Jones, o fazendeiro, marcou seu cordeiro. Às
vezes – como na fatia de rim – a combinação de sabores resul-
tante dá origem a uma interessante “espécie gustativa”. Mas
isso não fazia parte da intenção. O açougueiro francês, movido
por um respeito nativo a les nourritures terrestres, esforça-se
em separar cada textura e sabor naturais de seus concorrentes,
destacando um filé completo do osso, gordura, rins e pele que o
envolvem. Ele divide a natureza mais perto das articulações do
que seu colega inglês; mas sua fidelidade à natureza é o resulta-
do de interesses que não têm nenhuma relação necessária com
as leis da natureza. Ele ainda não se compara ao anatomista,
que abandonando todo o interesse na aparência, explora os se-
gredos da natureza na ordem em que a natureza os concebeu.
Para o anatomista, a verdadeira ordem da carcaça é o que expli-
ca não só o seu sabor, mas também a sua estrutura, seus antigos
movimentos, seu falecimento e sua concepção.
Na classificação, como no açougue, normalmente estamos
mais interessados na​​ relação dos objetos conosco do que em
sua causalidade e constituição. Porque buscamos não apenas as

21
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

causas dos acontecimentos, mas também seu significado – mes-


mo quando eles não têm significado algum. Por exemplo, agru-
pamos as estrelas em constelações de acordo com nossas pró-
prias ficções, e ao fazê-lo, cometemos um ultraje astronômico.
Para o astrônomo, nossa idéia de “constelação” não exibe nada
além da emoção supersticiosa daqueles que primeiro a concebe-
ram. Para o astrólogo, transmite a visão mais profunda sobre o
mistério das coisas. Para o resto de nós, esta classificação é um
registro de nossa familiaridade com o mundo, uma homenagem
ao rosto humano que a abrange. Thomas Hardy nos apresenta
uma situação muito triste quando escreve que o jovem baterista
Hodge, morto na guerra dos Bôeres, “nunca conheceu... / O
significado do grande Karoo”: morrer em ambientes alheios à
nossa busca de sentido é morrer sem consolação. Daí a deso-
lação das “constelações estranhas aos olhos” a “oeste / Cada
noite acima de seu túmulo”.9
O exemplo das constelações trata de assuntos a que voltarei
no capítulo final. Mais útil para nós no momento é uma catego-
ria baseada em nosso interesse no belo: a categoria do ornamen-
tal. Consideremos, então, a classe de “mármores ornamentais”.
O objetivo desta classificação – de grande importância para es-
cultores, pedreiros e arquitetos sérios – é assimilar as pedras que

9 Drummer Hodge:
They throw in Drummer Hodge, to rest
Uncoffined - just as found:
His landmark is a kopje-crest
That breaks the veldt around;
And foreign constellations west
Each night above his mound.
Young Hodge the Drummer never knew -
Fresh from his Wessex home -
The meaning of the broad Karoo,
The Bush, the dusty loam,
And why uprose to nightly view
Strange stars amid the gloam.
Yet portion of that unknown plain
Will Hodge forever be;
His homely Northern breast and brain
Grow to some Southern tree,
And strange-eyed constellations reign
His stars eternally – NT.

22
capítulo 1 - o problema

são objeto de preocupação estética. Um mármore ornamental


pode ser polido; ele tem um padrão, uma cor, uma profundida-
de e uma translucidez superficial que o tornam adequado aos
nossos fins decorativos. A classificação inclui o ônix, o pórfiro e
o próprio mármore. Cientificamente falando, essa classificação
é um absurdo total: o ônix é um óxido, o pórfiro, um silicato,
o mármore, um carbonato, enquanto o calcário – um isótopo
do mármore – foi expressamente excluído da classe. Uma ciên-
cia das pedras deve ter por objetivo substituir todas essas clas-
sificações – cuja subserviência aos propósitos humanos limita
seu poder explicativo completo – por outras classificações mais
precisas, projetadas para apreender as semelhanças reais entre
os objetos subsumidos por elas. A Ciência busca, em outras pa-
lavras, descobrir os tipos naturais, pois apenas uma divisão do
mundo em espécies naturais pode permitir-nos ultrapassar as
aparências e chegar às “leis” subjacentes que as explicam.
Por esse motivo, uma ciência das pedras agruparia mármore
e calcário, formas cristalinas diferentes do carbonato de cálcio
geradas pela decomposição pressurizada de seres vivos. Tal ci-
ência provavelmente não encontraria nenhuma explicação para
o fato de a aparência e utilidade do mármore serem tão pró-
ximas da aparência e utilidade do ônix e do pórfiro. Por isso,
provavelmente não traria nenhuma classificação corresponden-
te à nossa idéia de um mármore ornamental. Pelo contrário, é
provável que dispense todas essas classificações, que tendem a
dissolver-se tão logo ultrapassamos a superfície da experiência
humana e chegamos à ordem física subjacente que a explica e
sustenta.
Alguns conceitos, portanto, incluindo os conceitos da ciência
natural, têm uma função explicativa. Não somente fornecem
os termos em que as explicações são formuladas; eles próprios
são explicativos, e subsumir um objeto a si já é fornecer uma
explicação de seu caráter empiricamente detectável.10 Outros
conceitos, incluindo muitos conceitos de bom-senso e compre-
ensão intuitiva, não são (ou não primariamente) explicativos.

10 Este ponto de vista – em que descrição e explicação são partes contínuas de um único
processo – tem sido sustentado por muitos escritores, incluindo W. V. Quine, Word
and Object, Cambridge, Mass., 1960, e Wilfred Sellars, Science, Perception and Reality,
Londres, 1963.

23
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Sua função é dividir o mundo de acordo com os nossos interes-


ses, marcar possibilidades de ação, emoção e experiência que
podem muito bem ser dificultadas pela demasiada atenção à
ordem subjacente das coisas. Conceitos desse tipo muitas vezes
tendem a ceder perante a pressão da inovação científica. Nós
sentimos essa pressão de muitas maneiras, mas quase imediata-
mente como uma espécie de instabilidade em nossas descrições
comuns. Parece que mesas e cadeiras não são realmente como
as descrevemos. Elas não são realmente coloridas, não são re-
almente sólidas, e assim por diante. Isso porque a melhor ex-
plicação para esses fenômenos indeléveis não faz menção à cor
(na melhor das hipóteses só à experiência da cor), e postula, no
lugar da mesa “sólida”, uma multidão descontínua de molécu-
las, cada uma separada de sua vizinha por uma distância maior
do que seu próprio diâmetro.
Não há necessidade de investigarmos agora o significado da
palavra “realmente” na boca da pessoa que diz que nenhuma
mesa é realmente colorida. (Trato desse ponto no Apêndice 2.)
O que é importante é o contraste entre a “fragilidade” de nos-
sas descrições comuns e a solidez “pétrea” das explicações que
parecem ameaçá-las, e somente se rendem, se chegarem a isso, a
explicações melhores do que elas mesmas. Ao mesmo tempo, as
descrições do pensamento e da ação comuns não podem ser re-
nunciadas. Sem elas, não temos um instrumento essencial para
a compreensão do nosso mundo. A classificação das pedras em
mármores ornamentais indica não uma similaridade estrutural,
mas uma similaridade parte fenomênica, parte funcional entre
as substâncias às quais ela é aplicada. E o propósito de marcar
essa semelhança é consagrar em uma classificação o propósito
comum a que podem servir tais objetos.
Como nosso exemplo mostra, a classificação em relação à
finalidade (classificação em termos de “tipos funcionais”) não é
o único caso de descrições “frágeis” geradas pela vida humana
cotidiana. Há também a classificação em relação à experiência
sensorial imediata – o tipo de classificação que registra “quali-
dades secundárias”.11 E há exemplos ainda mais elusivos: clas-

11 A distinção entre qualidades primárias e secundárias é pelo menos tão antiga quanto
Pierre Gassendi; no entanto, nunca deixou de ser problemática: para ter um vislumbre
das discussões modernas, veja o Apêndice 2.

24
capítulo 1 - o problema

sificações relativas às emoções (o amedrontador, o amável, o


nojento), e classificações relativas ao interesse estético (o orna-
mental, o sereno, o elegante e o harmonioso). Tais classificações
registram não as variedades de objetos materiais, mas as va-
riedades de “intencionalidade” humana – pegando emprestada
uma tecnicalidade conveniente dos fenomenólogos.
Quando digo “intencionalidade”, quero dizer a qualidade de
“fazer referência a algo” que está contida na consciência huma-
na: a qualidade de apontar para, e delinear, um objeto de pensa-
mento. A “consciência do mundo” que está no cerne da minha
experiência – e que parece constantemente projetar meus pensa-
mentos para uma realidade maior do que eu – existe em muitas
formas: crença, percepção, imaginação, emoção e desejo. Cada
um destes estados mentais marca um tipo de espaço ante mim
– uma abertura na qual um objeto pode ser encaixado. Meu
medo é o medo de alguma coisa, a minha percepção, percepção
de alguma coisa, e assim por diante. Às vezes eu sou o próprio
objeto de meus pensamentos; com mais frequência, no entanto,
o objeto é algo diferente de mim, algo que pertence ao “mundo
circundante” da minha experiência. (Para uma definição exata
do termo “intencionalidade”, ver Apêndice 2.)
Vou descrever este “mundo circundante” como Lebenswelt
(“mundo da vida”), um termo popular entre os fenomenólogos,
embora não exclusivo deles.12 O Lebenswelt não é um mundo
separado do mundo da ciência natural, mas um mundo dife-

12 Husserl se refere ao mundo da experiência humana como o "mundo natural"


(Naturwelt), um termo herdado por vários de seus discípulos (por exemplo, Patočka,
em Pfirozeny Svet jako Filosoficky Problem [O Mundo Natural como Problema
Filosófico], Praga, 1933 – três livros que posteriormente se mostraram férteis ao sugerir
uma função para a filosofia na interpretação da experiência humana de forma distinta
do papel da ciência). As denominações posteriores escolhidas por Husserl – Umwelt
(“mundo circundante”) e Lebenswelt – indicam um reconhecimento tardio de que é
precisamente pelo contraste com certa visão da “natureza” que o mundo da experiência
humana deve ser caracterizado. O termo Lebenswelt tem maior antiguidade. Aparece
em Dilthey e nas obras de certos teóricos da Einfühlung (como Lipps); também ocorre
em sociólogos fenomenológicos como Alfred Schutz, e está relacionado ao vocabulário
dos historiadores da arte hegelianos (como Wölfflin). (Ver Dilthey, Collected Works, vol.
VII. A expressão escolhida por Dilthey é, no entanto, mais hegeliana: “Objetificações da
vida”. Ver também Alfred Schutz, The Phenomenology of the Social World, tr. G. Walsh
e F. Lehnert, Portland, EUA, 1967; Heinrich Wolfflin, Renaissance and Barroque, tr. K.
Simon, Londres, 1964, pp. 77 et seq.)

25
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

rentemente descrito – descrito com os conceitos que designam


os objetos intencionais da experiência humana. Intencionalida-
de implica que a minha consciência é também uma forma de
representação: a minha consciência me mostra um mundo, e
também me coloca em relação a ele. Mas nem todas as formas
de representação são transparentes. As descrições usadas pela
ciência supõem que a natureza dos objetos identificados através
delas é ser descoberta. A representação identifica um objeto:
mas sua natureza deve ser determinada por maiores investiga-
ções. O mesmo não se aplica ao Lebenswelt, cujos objetos são
identificados por descrições que são, ou pretendem ser, transpa-
rentes para nossa experiência e propósitos. Os objetos do Le-
benswelt são concebidos sob classificações que refletem nosso
próprio interesse prático e contemplativo neles. Essas classifi-
cações tentam dividir o mundo de acordo com as exigências
das razões teórica e prática cotidianas.13 As classificações que
definem os “tipos fenomenológicos” do Lebenswelt são apenas
parcialmente responsivas ao empreendimento da previsão. Eles
por vezes se dissolvem sob o impacto da explicação científica;
não porque necessariamente conflitam com a visão de mundo
científica, mas porque eles não se sustentam diante do ponto de
vista do observador curioso, que não olha para os interesses das
pessoas, mas para a estrutura subjacente da realidade.
Além disso, a ciência pode não fornecer nenhum substituto
para os conceitos que ordenam e dirigem nossa experiência co-
tidiana. Um escultor armado com as teorias da química, geolo-
gia e cristalografia, mas sem o conceito (alheio a essas ciências)
de um mármore ornamental, não vai ter aquela noção imedia-
ta de similaridade de uso que permite que o seu colega menos
erudito relacione espontaneamente ônix e pórfiro. Sua própria
percepção será diferente, pois estará privada de um conceito em
função de que essas pedras seriam vistas.
Pode-se argumentar que a penetração científica na profundi-
dade das coisas pode tornar a superfície ininteligível – ou pelo
menos lenta e dolorosamente inteligível, e com uma hesitação
que mina as necessidades imediatas da ação humana. (E esse é

13 Cf. a idéia de Heidegger de que, para mim, as "coisas" existem essencialmente “para
serem usadas”: Being and Time, tr. J. Macquarrie e E. S. Robinson, Nova York, 1962, pp.
96 et seq.

26
capítulo 1 - o problema

exatamente o caso, devo dizer, com o fenômeno crucial do dese-


jo sexual humano.) Como agentes, pertencemos à superfície do
mundo, e entramos em relação imediata com ele. Os conceitos
por meio dos quais o representamos formam um elo vital com
a realidade, e sem esta ligação, ação e resposta adequadas não
poderiam surgir com a rapidez e competência necessárias para
garantir a nossa felicidade e sobrevivência. Não podemos subs-
tituir nossos conceitos cotidianos mais básicos por algo melhor
do que eles, pois eles evoluíram precisamente sob a pressão das
circunstâncias humanas e em resposta às necessidades das ge-
rações. Qualquer “reconstrução racional” – por mais obedien-
te que seja à verdade subjacente das coisas e às exigências da
objetividade científica – corre o risco de romper a ligação vital
que liga a nossa resposta para o mundo, e o mundo à nossa
resposta, em uma cadeia de competência humana espontânea.14
Não obstante, muitos de nossos conceitos cotidianos vaci-
lam precariamente sob o impacto do pensamento científico, e
um deles – o conceito de agente humano, ou de pessoa – será o
assunto de muito do que se segue. É o dever da filosofia, assim
como a necessidade da religião, sustentar e validar tais concei-
tos e a intencionalidade humana a que dão sentido e direção.
Estamos bastante familiarizados com os perigos que acompa-
nham a visão científica da condição humana – o ponto de vista
que nos representa, talvez verdadeiramente, como organismos
complexos, fustigados pelo funcionamento de uma causalidade
sobre a qual não exercemos nenhum controle. Mas é impor-
tante não nos apressarmos com essas soluções, não procurar
negar as verdades da ciência – tendo refúgio, por exemplo, em
alguma metafísica ilusória da liberdade humana – nem correr
impetuosamente para o santuário de proteção da fé religiosa,
buscando obter apoio dogmático para concepções que são, na
verdade, uma invenção nossa e que somente nós temos obriga-
ção de reparar. Precisamos mostrar detalhadamente que nossas
descrições espontâneas do Lebenswelt – descrições que tornam
a ação humana o recurso mais importante do nosso mundo
circundante – não estão suplantadas pelas verdades da ciência,

14 Cf. os argumentos distintos, mas complementares, apresentados contra o “racionalismo”


na política, por Michael Oakeshott (Rationalism in Politics, Londres, 1968) e F. A. von
Hayek (Studies in Philosophy, Politics and Economics, Londres, 1967).

27
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mas têm a sua própria verdade que, por não competir com o
propósito da explicação definitiva, não é abalada pelas expli-
cações que parecem, à primeira vista, entrar em conflito com
ela. A Filosofia, arte da revisão e reflexão, está encarregada de
uma grande tarefa de restituição. A ciência tem-nos afastado do
mundo, fazendo com desconfiemos dos conceitos por meio dos
quais lidamos com ele. Tentarei restaurar o conceito do desejo
sexual ao seu legítimo lugar na descrição do Lebenswelt e mos-
trar em detalhes por que uma ciência do sexo não pode nem
suplantar esse conceito nem iluminar o fenômeno humano que
ele descreve.
O conceito crucial para qualquer tentativa filosófica de
fornecer a base para o entendimento humano é o conceito de
pessoa. É uma tese bem conhecida da filosofia – expressa em
inúmeros idiomas e em inúmeros tons de voz – que os seres
humanos podem ser descritos sob duas óticas contrastantes (e,
para alguns, conflitantes): como organismos obedientes às leis
da natureza, e como pessoas, às vezes, obedientes, às vezes deso-
bedientes, à lei moral. As pessoas são agentes morais; suas ações
não têm apenas causas, mas também razões. Elas tomam deci-
sões para o futuro, e por isso têm, além de desejos, intenções.
Elas não se permitem ser sempre arrastadas por seus impulsos,
mas ocasionalmente resistem e os subjugam. Em tudo, o agente
moral é tanto ativo como passivo, e aparece como uma espécie
de legislador entre suas próprias emoções. Ele também é um ob-
jeto não só de carinho e amor (que podemos estender a toda a
natureza), mas também de louvor e de culpa, raiva e estima. Em
todas essas distinções intuitivas – entre razão e causa, intenção e
desejo, ação e paixão, estima e afeto – encontramos aspectos da
distinção vital subjacente a eles e ao esclarecimento daquilo a
que Kant dedicou alguns de seus maiores capítulos: a distinção
entre pessoa e coisa. Apenas uma pessoa tem direitos, deveres e
obrigações; apenas uma pessoa age por razões além das causas;
apenas uma pessoa merece nosso louvor, censura ou raiva. E é
como pessoas que percebemos e atuamos um sobre o outro, me-
diando todas as nossas respostas mútuas com o conceito obscu-
ro, mas indispensável, do agente moral livre.
Eu não acredito que possamos aceitar a majestosa teoria de
Kant, que atribui às pessoas um núcleo metafísico, o “eu trans-

28
capítulo 1 - o problema

cendental”, que se encontra para além da natureza e está eter-


namente livre de suas restrições. No entanto, sua teoria derivou
de idéias sobre a ação humana que não devemos rejeitar, e uma
das minhas maiores preocupações no que se segue será defender
o que é defensável na perspectiva de Kant, evitando a metafísi-
ca intolerável que ele – e, na mesma linha, Husserl, Heidegger,
Patočka e muitos outros – colocou no centro de uma teoria
do homem. Ao mesmo tempo, vou rejeitar qualquer tentativa
de dar uma teoria da natureza humana em termos meramente
científicos: nos termos da “melhor explicação” do que somos.
Porque nós somos meras aparências, e a melhor explicação da
nossa natureza provavelmente não irá empregar o conceito de
pessoa, mesmo que esse conceito defina o que somos uns para
os outros e para nós mesmos. Se esta idéia parece paradoxal, es-
pero que pareça menos paradoxal depois – ou, pelo menos, não
mais paradoxal do que a própria experiência humana.
Vou contrastar dois modos de compreensão: a compreensão
científica, que visa explicar o mundo, e ado “entendimento inten-
cional”, como vou chamá-la, que visa descrever, criticar e justifi-
car o Lebenswelt. O segundo é uma tentativa de compreender o
mundo através de conceitos com que experimentamos e agimos
sobre ele: esses conceitos identificam o “objeto intencional” de
nossos estados de espírito cotidianos. Uma compreensão inten-
cional, portanto, preenche o mundo com os significados implíci-
tos em nossos objetivos e emoções. A idéia de tal entendimento
é um donnée familiar da sociologia kantiana, subjacente à idéia
de que o mundo social em que agimos deve ser entendido de for-
ma diferente do mundo do observador desprendido por meio de
um ato de Verstehen.15 Não só essa “entendimento intencional”
é indispensável para nós como agentes racionais, mas também
pode não ser substituível por qualquer entendimento derivado
da ciência natural. A compreensão intencional não visa explicar
o mundo, mas familiarizar-se com ele, reconhecendo as ocasiões
para a ação, os objetos de simpatia e os locais de descanso.
Inevitavelmente nossa compreensão intencional deve conter
muitos elementos explicativos – pois não se pode agir adequa-

15 Dilthey, Collected Works, vol. VII; Max Weber, 'The Nature of Social Action', em W.
G. Runciman (ed.), Weber, Selections in Translation, Cambridge, 1978. Ver Capítulo 7,
nota 10.

29
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

damente sem um sistema de crenças. E possuir uma crença é


estar comprometido com a busca da verdade e, portanto, com
a construção de teorias científicas, e à conseqüente classifica-
ção do mundo em termos de espécies naturais. No entanto, não
há nenhuma razão para supor que tal classificação irá fornecer
base suficiente para a nossa conduta racional, assim como não
há nenhuma razão para pensar que a classificação química das
pedras servirá de base para a atividade do escultor. Em particu-
lar, este ponto de vista neutro e científico das coisas pode estar
bem adaptado para descrever os meios para cumprir nossos ob-
jetivos, mas deve permanecer permanentemente incapaz de des-
crever os fins a que aspiramos. As finalidades da vida também
são os significados de nossas experiências pessoais, e o mundo
da ciência é um mundo sem sentido.16
Considere as relações humanas mais elementares. As pessoas
individuais que encontro são membros de um tipo natural – o
tipo “ser humano” – e se comportam de acordo com as leis des-
se tipo. No entanto, eu submeto as pessoas e suas ações a con-
ceitos que não figuram na formulação dessas leis. Na verdade,
a alucinação dessas leis (pois é assim que deve ser descrita em
nosso atual estado de ignorância) parece freqüentemente afas-
tar as pessoas do relacionamento humano genuíno. Se os fatos
fundamentais sobre João são, para mim, a sua constituição bio-
lógica, a sua essência científica, sua estrutura neurológica, então
acho difícil responder-lhe com carinho, raiva, amor, desprezo
ou tristeza. Assim descrito, ele torna-se um mistério para mim,
uma vez que essas classificações não apreendem o objeto inten-
cional de emoção interpessoal.
O ponto é geral: a tentativa científica de penetrar “nas profun-
dezas” das coisas humanas é quase que universalmente acompa-
nhada por uma perda de resposta à “superfície”. Apesar disso,
é na superfície que vivemos e agimos: é lá que somos criados,
como aparências complexas sustentadas pela interação social

16 Eu voltarei a este ponto no Capítulo 12, onde explico mais sobre o que quero dizer
com “sentido” e sua conexão com o ponto de vista humano, que está sempre, no fim
das contas, em guerra com a "impessoalidade" da ciência. Para algumas interessantes
especulações checas sobre este tema, ver V. Belohradsky, Krize Eschatologie Neosobnosti,
Munique, 1981, e o penetrante e doutoral discurso de Vaclav Havel enviado para a
Universidade de Toulouse, "Politics and Conscience", Salisbury Review, 3 (2), 1985.

30
capítulo 1 - o problema

que nós, como aparências, também criamos. O mesmo “misté-


rio” que esconde a personalidade humana do neurofisiologista
também esconde a história humana do determinista marxista e a
moralidade humana do sociobiólogo. O encanto dessas ciências
é um encanto de desmistificação; mas elas acabam mistificando
mais profundamente o que pretendem explicar, justamente por
nos deixar esquecer o propósito de explicá-lo. (Como Wittgens-
tein disse, “o que está oculto não nos interessa”.)
No entanto, os conceitos da nossa compreensão intencional
não são fáceis de analisar. Sua imersão no sentimento e na ação
torna difícil precisá-los. O mundo humano pode não ser “pro-
fundo” cientificamente falando, mas é denso.17 Por isso, mui-
tas vezes é mais fácil falar da intencionalidade de uma emoção
como se fosse uma questão de percepção ao invés de pensamen-
to: o objeto do ódio é percebido com ódio. Entender o conceito
de pessoa pode também nos obrigar a entender um tipo de per-
cepção: entender o que é ver os seres humanos como pessoas. E
essa percepção, por sua vez, pode não ser facilmente desemba-
raçada da cultura construída sobre ela, ou dos fins últimos de
conduta de que se serve para focar.
Isso não significa que nosso entendimento intencional gere
uma “mera ideologia” no sentido marxista – um sistema de
crenças com nenhum atrativo além da sua capacidade para mis-
tificar o mundo de forma a apoiar os nossos empreendimentos
(“burgueses”).18 Os marxistas estão certos em diferenciar cren-
ças nos termos de sua explicação, e apontar para o estatuto
epistemológico desviado de uma crença, que pode sempre ser
explicado em função de algum interesse humano que não seja o
interesse na verdade. No entanto, embora muitos de nossos con-
ceitos devam ser explicados em termos funcionais, não se segue
que uma explicação funcional seja apropriada para as crenças
em que esses conceitos figuram. Assim, a existência do conceito
de “mármore ornamental” deve ser explicada em função de sua

17 Ver R. A. D. Grant, na crítica de S. R. Letwin, The Gentleman in Trollope, Salisbury


Review, 1 (1), 1982, p. 41–2.
18 A teoria marxista da ideologia tem suas origens em K. Marx e F. Engels, A ideologia
alemã, 1846. O contraste entre ideologia e ciência – vital para a teoria marxista da
história e à crítica marxista da filosofia – está tão bem estabelecido que um comentarista
foi capaz de dizer que “é uma característica definitória da ideologia não ser científica”
(G. A. Cohen, Karl Marx's Theory of History, a Defence, Princeton, 1978, p. 46).

31
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

utilidade ao focar nossos propósitos esculturais. Por outro lado,


o escultor que julga algum pedaço de pedra um mármore orna-
mental adquire essa crença como resultado de evidências. Tais
crenças “frágeis” não são científicas, já que empregam conceitos
que são alheios ao método científico. Ainda assim podem ser
verdadeiros ou falsos, e razoáveis ou não, pois são normalmente
causados não por nossas necessidades, mas pela nossa percep-
ção de como as coisas são.
O mesmo é genericamente válido para os conceitos que de-
finem o Lebenswelt. Em particular, há conceitos importantes
que informam a nossa experiência sexual, e que existem porque
servem a um interesse humano diverso do interesse na verda-
de científica (por exemplo, os conceitos de inocência e culpa,
normalidade e perversão, sagrado e profano). No entanto, a
funcionalidade desses conceitos não implica a funcionalidade
das crenças que os empregam. A objetividade dessas crenças
pode ser tão segura quanto a objetividade da ciência, mesmo
que se refiram não à estrutura subjacente da realidade, mas ao
Lebenswelt. Se o Lebenswelt é uma invenção burguesa, então
devemos louvar e emular a mente burguesa, que é mais bem
equipada para perceber a realidade humana do que a consciên-
cia ordenada do crítico “desmistificador”.
Há verdades genuínas e objetivas sobre o Lebenswelt a serem
compreendidas pela análise filosófica. A filosofia pode, portan-
to, realmente dar esclarecimentos sobre a condição humana,
precisamente através dessa “análise de conceitos” que parecia,
nos últimos anos, freqüentemente amortecer nossas percepções
humanas. Uma análise dos conceitos é o que está envolvido na
tentativa de alargar e aprofundar o reino da “compreensão in-
tencional”. Nada é capaz de iluminar a intencionalidade das
nossas respostas humanas naturais, salvo a análise dos conceitos
que estão envolvidos nisso. Esta tentativa de aprofundar nossa
compreensão intencional é uma tentativa de explorar o reino do
“dado”, mas não o do subjetivamente dado. Não estamos pre-
ocupados com o conhecimento subjetivo da experiência, mas
com as práticas compartilhadas pelas quais uma linguagem pú-
blica está ligada tanto ao mundo quanto à vida daqueles que
o descrevem. Esta é a idéia apreendida no slogan de Wittgens-
tein, que “o aceito, o dado, são formas de vida”, e no próprio
reconhecimento de Husserl (que não conseguiu convencê-lo a

32
capítulo 1 - o problema

rejeitar a desastrosa “psicologia transcendental” com o que se


onerou) de que o Lebenswelt é dado “intersubjetivamente”.19
A base do nosso entendimento do mundo humano encon-
tra-se em práticas partilhadas e acessíveis ao público, dentre
as quais a linguagem – que define os modos de representação
através dos quais percebemos o mundo – é o mais importante.
Não farei, então, nenhuma outra distinção entre as conclusões
“analítica” e “fenomenológica”. Dois idiomas estão igualmente
disponíveis para mim, e não há necessidade de nenhum deles ter
o monopólio da verdade, uma vez que, assim que nós aceitamos
a importação do argumento da “linguagem privada” (uma ver-
são dela aparece no Apêndice 1), não há como existir conflito
real entre eles.
Como, então, devemos enfrentar o problema do desejo se-
xual? Não é preciso muita observação para reconhecer que
nossa civilização sofreu uma profunda crise no comportamento
sexual e na moralidade sexual. Como já observei, parece-me
inevitável que a conduta sexual seja sobrecarregada com escrú-
pulos morais. Eu também acredito que muitos desses escrúpulos
são justificáveis, e que a incapacidade de ver isso decorre de
uma concepção errada da natureza do desejo. Por isso, minha
primeira tarefa será descritiva: o que é o desejo sexual como
um fenômeno da experiência humana? Tentarei, então, esboçar
uma moralidade sexual, cuja base será localizada não na cren-
ça religiosa, mas na natureza humana, e vou confiar no esque-
ma geral explorado por Aristóteles em sua Ética a Nicômaco,
a fim de passar dos fatos da natureza humana à moralidade
que eles implicam. Em muitos dos pontos que se seguem, minha
abordagem tocará na religião, não só porque – como tem sido
freqüentemente observado – sentimentos eróticos e religiosos
mostram um isomorfismo peculiar, mas também porque a expe-
riência religiosa fornece o pano de fundo cotidiano mais seguro
à moralidade sexual. Do ponto de vista do sujeito, a questão
complexa e dificilmente controlável da conduta sexual é escla-
recida e simplificada pelas concepções profundas da fé religiosa,
que dão às verdades filosóficas que vou elaborar uma realidade

19 E. Husserl, Die Krisis der europaischen Wissenschaften und die trans-zendentale


Phanomenologie, ed. W. Biemel, Haia, 1976, parte 2.

33
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

concreta, prática e imediata. A religião resgata conceitos como


pessoa, liberdade, responsabilidade, confiança e compromisso,
posse, entrega, união e separação pessoais, de todo o ceticismo,
menos daquele ligado ao próprio Deus. Infelizmente, esse últi-
mo ceticismo é, para o filósofo, o mais difícil de vencer. É, por-
tanto, uma desvantagem singular da filosofia dever ignorar o
apelo à fé, privando-se dos símbolos mais vívidos em que nosso
entendimento intencional está focado. A fé, que enche o mun-
do de significados, inclina-se muito precariamente sobre uma
tese metafísica injustificável. Para justificar esses significados,
o filósofo deve distanciar-se da fé e investigar a condição hu-
mana com o olhar descompromissado do antropólogo filosófi-
co. Ele deve dar atenção, como os fenomenologistas dizem, “às
coisas em si”.
Mas que coisas? Considerarei os três fenômenos básicos da
sensação sexual humana: excitação, desejo e amor. Defenderei
que são todos fenômenos puramente humanos, ou melhor, que
pertencem a esse reino de resposta recíproca que é mediado pelo
conceito de pessoa, e que está disponível apenas para os seres
que possuem e são motivados por esse conceito. Ver-se-á que as
implicações disto serão enormes.
Além dos fenômenos básicos, há a condição de que derivam:
a condição de existência sexual, com sua associada distinção
entre homem e mulher. Há também o que pode ser chamado
de “reino da experiência sexual”: um reino de emoções e per-
cepções que só estão disponíveis para nós por causa da nossa
suscetibilidade ao desejo sexual. Grande parte desse reino é mis-
terioso para nós. Considere, por exemplo, o ciúme sexual. É im-
possível negar o poder catastrófico desta emoção, que nos leva
para o comportamento mais desesperado, e que, no entanto, se
inicia da menor das circunstâncias. Como explicar essa catás-
trofe? O que há no ciúme que se mostra tão destrutivo para a
pessoa que sofre dele, e por que o ciúme é tão difícil de superar?
Veremos que a resposta a essas perguntas toca em um dos mais
profundos e surpreendentes fatos sobre a nossa natureza como
agentes racionais.
Vou considerar as importantes expressões do sentimento se-
xual: olhares, carícias e o próprio ato de amor. Tentarei explicar
o lugar e o valor das disposições – castidade, modéstia e vergo-

34
capítulo 1 - o problema

nha – que apresentaram um obstáculo exclusivamente humano


à indulgência sexual, e também descreverei algumas variações
do esforço sexual humano: as diversas “perversões” e as sempre
notáveis metas e estratégias de que a união sexual pode fazer
parte. Vou explorar as importantes diferenças entre desejo ho-
mossexual e heterossexual, e entre a sexualidade dos homens
e das mulheres. Em conclusão, procurarei dizer alguma coisa
sobre as instituições pelas quais o desejo sexual encontra seu
caminho seguro, e cuja construção é importantíssima na criação
das condições de realização sexual.
O desejo sexual, como a pessoa humana, é um artefato so-
cial, e pode ser construído de muitas maneiras. Mas para ser
construído corretamente, de modo que sua realização esteja
disponível para todos aqueles que experimentam suas formas
normais, então devem ser dadas as condições institucionais que
intrinsecamente exige. O problema do desejo sexual torna-se,
no final, um problema político, e as conclusões morais algo con-
servadoras que vou defender devem ser vistas como parte do
conservadorismo político maior que elas já implicam, e para
quem provêem, de fato, uma das mais importantes justificações
– uma justificação que decorre da qualidade interna da mais
privada das experiências humanas.

35
CAPÍTULO 2
EXCITAÇÃO

Os seres humanos conversam e cooperam, constroem e pro-


duzem, trabalham para acumular e trocam, formam sociedades,
leis e instituições, e em todas estas coisas o fenômeno da razão –
como um princípio distintivo de atividade – parece dominante.
De fato, há teorias do ser humano que descrevem esta ou aquela
atividade como central – a fala, por exemplo, o trabalho pro-
dutivo (Marx), ou a existência política (Aristóteles). Mas nós
sentimos que o poder persuasivo de tais teorias depende de se a
atividade em questão é uma expressão da essência mais profun-
da, a própria razão, que todo comportamento humano mostra.
Não devemos concluir, contudo, que é apenas como um ser
ativo que o homem mostra sua causalidade distintiva. Os homens
são distinguidos igualmente pela qualidade de suas experiências
e por uma receptividade – exibida na sua forma mais completa
na experiência estética – em que a sua natureza pode ser total-
mente absorvida no gozo atencioso. Aqueles que vêem as marcas
distintivas humanas em atividade podem tentar descobrir os fe-
nômenos radicais da sexualidade humana nos estratagemas do
desejo. Creio, no entanto, que só podemos entender o desejo se
exibirmos primeiro o esboço de um estado mais passivo da mente
– o estado de excitação, em que o corpo de uma pessoa desperta
para a presença ou pensamento de outro. A excitação fornece a
circunstância subjacente ao prazer sexual, e contém as sementes
de tudo o que é distintivo na sexualidade do ser racional.
A excitação sexual – considerada, por exemplo, nos termos
do Relatório Kinsey,20 e por outras tais práticas reducionistas –

20 Alfred C. Kinsey, W. B. Pomery, C. E. Martin et al., Sexual Behaviour in the Human


Male, Londres e Filadélfia, 1949; Sexual Behaviour in the Human Female, Londres e
Filadélfia, 1953.
37
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

é muitas vezes representada como um estado corporal, comum a


homens e animais, que incomoda os sujeitos a ela de modo que
só podem encontrar alívio no ato sexual. O ato sexual, pensa-
se, “descarrega” ou “libera” as tensões da excitação, acalman-
do-a. Deste ponto de vista, a ereção do pênis ou o relaxamento
vagina são os fenômenos radicais da excitação, e podem ser
observados em todo o reino animal. A sua função de agitar os
animais para a cópula é ilustrada também pela espécie humana.
Dessa forma, o prazer sexual é o prazer, sentido majoritaria-
mente nos órgãos sexuais, que acompanha o ato sexual e que
constantemente se acumula até o ponto de descarga e liberação.
O atrativo dessa operação está, em parte, em nos permitir
compreender a precisa natureza de tanto prazer sexual. Pois o
prazer sexual não é simplesmente o prazer de “obter o que você
deseja” – pelo contrário, ele é precisamente uma parte do que
você deseja. E é inegável que efeitos fisiológicos similares, e sen-
sações, podem ocorrer no ato de masturbação e no ato de amor:
talvez ocorram ao montar um cavalo, ou em todas essas cir-
cunstâncias fortuitas de contato a que os freudianos se referem
na sua teoria da “zona erógena”.21 Pode parecer razoável, por-
tanto, sugerir que o prazer sexual é fundamentalmente um pra-
zer sensível experimentado nas partes sexuais. Por outro lado,
se as coisas fossem tão simples, deveríamos nos admirar pela
ocorrência generalizada de frustração sexual. Seria natural, nes-
te caso, supor que o desejo sexual é o desejo pelo prazer sexual:
um desejo que poderia ser tão bem satisfeito pela masturbação
como pelos estratagemas que consomem tempo de cortejo e se-
dução. (Assim temos a irônica recomendação de Wilde: “mais
limpa, mais eficiente, e com uma pessoa bem melhor”.)
Além disso, o que quer que se diga sobre o prazer da mas-
turbação, é preciso reconhecer que há muito mais no ato sexual
do que seu estágio final: há um desejo de beijar e acariciar, e
prazeres associados a essas atividades. Um beijo apaixonado
é tanto uma expressão de desejo quanto uma fonte de prazer
sexual. Mais uma vez, alguém pode dizer que o prazer aqui não
é mais do que o prazer nos lábios ou na boca – dando assim

21 Essa teoria é discutida adiante, no Capítulo 7, em que são dadas as fontes freudianas e
pré-freudianas.

38
capítulo 2 - excitação

credibilidade à idéia da boca como uma “zona erógena”. Mas


tal sugestão é, para dizer o mínimo, incompleta. Apenas em cer-
tas circunstâncias o prazer “nos” lábios é considerado prazer
sexual ou parte dele. Considere dois atores se beijando – ou, de
certa maneira, não ir “até o fim”, como Pinter teria dito (“Joey:
Eu fui até o fim muitas vezes. Às vezes... você pode ficar feliz...
e não ir até o fim. De vez em quando... você pode ficar feliz...
sem ir nem um pouco” – The Homecoming).22 É concebível que
esses atores possam sentir prazer nas partes afetadas – por que
não? Descartar essa possibilidade seria um apriorismo injustifi-
cável. Mas certamente não seria o prazer sexual. Para ser prazer
sexual, deve ser uma parte integrante da excitação sexual. E é
precisamente isso o que é posto em dúvida pela suposição de
que os dois participantes estão representando.
O que é, então, a excitação, e que diferença isso faz para o
beijo? Devemos comparar os atores se beijando com uma pes-
soa que beija sua amiga afetuosamente. É verdade que, nesse
caso, há fortes propriedades agindo, derivadas do nosso senso
de permissão nas relações sexuais. Nas sociedades a que eu e
meus leitores pertencemos, o beijo tornou-se um símbolo mui-
to forte do ato sexual para ser considerado em outros termos.
Considere, no entanto, uma sociedade islâmica, em que qual-
quer tipo de demonstração de sentimento sexual seria chocante;
tão chocante que isso sequer apareceria como uma interpreta-
ção possível. Em tal sociedade, como se sabe, os amigos se bei-
jam livremente, e com evidente prazer. E o prazer não tem nada
a ver com qualquer “sensação prazerosa” localizado na boca ou
na bochecha, nas mãos ou na testa. Esses prazeres localizados
têm pouco significado diante do ato de atenção com que o beijo
é realizado. Embora possamos pensar no prazer do beijo como
algo focado na boca, isso se deve em grande parte ao fato de os
pensamentos de quem beija estarem focados em seu gesto, em
seu significado carinhoso, e, portanto, na boca apenas na me-
dida em que ela própria está representada nos pensamentos de
quem beija. O beijo é um reconhecimento da estima do outro,
e seu prazer está na alegria do outro nisso. Nesse caso, toda a
idéia de uma “sensação de prazer” parece evaporar. Pode haver

22 O termo usado é “part hog”, inspirado na expressão “going the whole hog”, presente na
mencionada peça de Harold Pinter – NT.

39
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

tal coisa, mas é de menor importância na explicação do ato, ou


na avaliação de sua qualidade agradável.
A excitação transforma esse prazer em um prazer sexual.
Mas é o prazer de beijar – o prazer que uma pessoa leva da ou-
tra ao expressar seu afeto – que se transforma. Não é o “prazer
físico” (seja ele qual for) sentido na boca ou na bochecha, mas
o que chamarei de “prazer intencional” envolvido no reconhe-
cimento do significado de um gesto. A excitação parece afetar
não tanto a sensação de beijar, mas seu “conteúdo intencional”,
mesmo que a própria sensação não seja de forma alguma isola-
da do pensamento que fornece seu contexto.
Devemos sempre distinguir os prazeres intencionais dos não
-intencionais. Alguns prazeres são essencialmente prazeres em
ou sobre um objeto; outros (como o prazer de um banho quen-
te) são meramente prazeres da sensação. Não está claro se os
prazeres do primeiro tipo podem ser atribuídos aos animais in-
feriores: talvez possam. Um cão pode sentir prazer, supostamen-
te, com a perspectiva de uma caminhada ou com o retorno de
seu dono. Há, naturalmente, problemas extremamente compli-
cados aqui, e não é suficiente sermos guiados por nossos hábitos
comuns da linguagem. A descrição da vida mental dos animais
deve depender de uma teoria global das capacidades animais,
e seria inadequado, nesta fase, fazer suposições injustificadas.
Um leão cochilando ao sol sente prazer no calor do sol, mas
o “no” aqui significa apenas “por causa do”. Evidentemente,
é um caso bastante diferente dos prazeres múltiplos que esta
situação pode inspirar em um ser humano. E é também evidente
que não poderíamos começar a entender a estrutura do prazer
humano se não reconhecermos o predomínio do componente
intencional: do prazer dirigido para um objeto, sobre o qual o
sujeito, em seu prazer, está interessado. Esse é certamente o pra-
zer que se expressa no beijo de afeto. O mesmo pode ser dito do
prazer que se expressa, e do prazer posterior que se antecipa, no
beijo de desejo?
Os prazeres não-intencionais (“prazeres da sensação”) com-
partilham as propriedades que definem a sensação: estão loca-
lizados no corpo, em um determinado lugar (mesmo que esse
lugar possa ocasionalmente ser o corpo todo). Eles têm inten-
sidade e duração; aumentam e diminuem; e como as sensações

40
capítulo 2 - excitação

que se encontram fora do domínio da vontade – um prazer


nunca é algo que fazemos, mesmo que façamos coisas para ob-
tê-lo.23 Como eu disse acima, o ato sexual, e muito do que o
precede, envolve tais prazeres – ou, pelo menos, envolve no caso
normal. E eles formam uma parte importante da experiência;
em particular sua capacidade de “superar” o sujeito, de modo
que ele está “dominado” por eles, adquire um papel importante
na intencionalidade do desejo. Para os freudianos, esses praze-
res são a verdadeira fonte de deleite sexual, que está inteiramen-
te focado em ocorrências nas zonas “erógenas”. E a tentativa
de Freud de basear a sexualidade na sensação tem um motivo
filosófico importante: é uma tentativa de incorporar o corpo
nos estratagemas do desejo – exatamente para mostrar por que
nossa existência como criaturas corpóreas é central para o fe-
nômeno da sexualidade. No entanto, é inegavelmente parado-
xal considerar os prazeres localizados do ato sexual como a
finalidade ou o objeto de desejo: de modo que considerá-los é
ignorar o drama do sentimento sexual e, em particular, ignorar
o fato do outro que é desejado. Muitas sensações prazerosas
acompanham espirros, por exemplo, ou, mais apropriadamen-
te, o aumento raivoso do tom de voz e o esforço na busca de
uma briga. Neste último caso, elas claramente não constituem o
objetivo, ou mesmo a gratificação, e menos ainda, a satisfação
ou resolução da raiva.24
Procópio, em sua História Secreta, diz muitas coisas escan-
dalosas sobre a imperatriz Teodora, esposa de Justiniano. Um
incidente em particular é interessante para nós. Teodora, de
acordo com Procópio, tinha o hábito de deitar nua em um sofá
com sementes de milheto polvilhado sobre suas coxas e órgãos
sexuais. Gansos seriam colocados sobre seu corpo e os pássaros
mordiscavam as sementes, dando brutos ósculos em sua carne.
O contato com seus bicos aparentemente causava êxtases em
Teodora (ou pelo menos fingia esses êxtases, já que ela estava
no palco nesse momento).25 Suponha que disséssemos que Teo-

23 Sobre a classificação dos estados mentais, nos termos dessas distinções formais, ver
meu livro Art and Imagination, Londres, 1974, Parte II.
24 A possibilidade de distinguir objetivo, gratificação, satisfação e resolução para um
único estado mental é um ponto que discuto mais detalhadamente no Capítulo 4.
25 Procópio, História Secreta, Livro IX, 20.

41
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

dora sentiu um prazer intenso com as bicadas dos gansos. Isso


certamente implica que o prazer dela dependia de alguma forma
do pensamento de que eram gansos a bicá-la, em vez de, diga-
mos, autômatos cuidadosamente simulados, ou qualquer outro
dispositivo que possa aplicar a pressão suave de uma cartilagem
em sua carne. Poderia ser assim, mas certamente devemos achar
tal prazer intrigante. Ela sente prazer nas bicadas dos gansos,
pelas bicadas ou sobre elas? (Que não são necessariamente as
mesmas coisas.) Mas então, por que diabos? A descrição corre-
ta, creio, é em termos de prazer não-intencional. Ela sente uma
sensação de prazer – uma série de sensações de prazer – que
por acaso são causadas por gansos. Isso não é necessariamente
anormal, nem é pervertido, a menos que suponhamos que ela
fique excitada com a experiência.
Mas é precisamente a suposição de excitação que nos in-
trigaria, pois pareceria que os gansos desempenham um papel
constitutivo em seu prazer, que eles são um tipo de objeto de
prazer. Assim, no caso normal de excitação sexual, o estímulo
físico não pode ser mentalmente afastado do senso de “o que
está acontecendo”: de uma noção de quem está fazendo o que
a quem. Tomi Ungerer produziu gravuras de “máquinas sexu-
ais” – máquinas destinadas a aplicar estímulos adequados às
“zonas erógenas” daqueles que “copulariam” com elas. Eu não
conheço o propósito de Ungerer, mas é inegável que o resultado
é uma sátira viva de uma visão da sexualidade – a visão que
vê o prazer sexual e a excitação sexual como respostas pura-
mente “físicas”, ou seja, respostas não-intencionais. Tal visão
corresponde à imagem da sexualidade infantil dada por mui-
tos psicanalistas, e na verdade as teorias da sexualidade infantil
oferecidas por Melanie Klein foram descritas favoravelmente
por dois de seus seguidores como o reconhecimento da natureza
da criança como uma “machine désirante”.26 A reflexão sobre o
caso de Teodora, e a idéia de excitação que seria necessária para
descrevê-lo, deve nos afastar de tais descrições, que só podem
ser aplicáveis após eliminar todas as referências ao objeto inten-
cional da experiência. Elas são, em outras palavras, necessaria-
mente falácias, cujo charme advém apenas do reconhecimento
secreto de que isto é assim, do seu caráter de “desmistificação”.

26 G. Deleuze and F. Guattari, L'Anti-Oedipe, Paris, 1972.

42
capítulo 2 - excitação

Assim, no caso normal de excitação sexual, seria bastante


extraordinário se as carícias de uma das partes fossem conside-
radas pela outra como as causas acidentais de uma sensação de
prazer, que poderia ter sido causada ​​de alguma outra forma. A
excitação sexual é uma resposta, mas não uma resposta a um
estímulo que poderia ser perfeitamente descrito como a mera
causa de uma sensação. É uma resposta, pelo menos em parte,
a um pensamento, onde o pensamento se refere a “o que está
acontecendo” entre mim e o outro. É claro, o prazer sexual não
é meramente prazer em ser tocado: isso poderia ocorrer quan-
do um amigo toca em outro, ou quando uma criança toca em
seu pai. (Existem inúmeras maneiras de ficarmos contentes com
contato humano.) No entanto, é um prazer intencional (pelo
menos em parte), e se houver dificuldade em especificar seu ob-
jeto, isso se deve em grande parte devido à complexidade do
pensamento em que está fundado.
O pensamento envolve a seguinte idéia: É ele quem está deli-
beradamente me tocando, pretendendo o meu reconhecimento
de seu ato (ou quem está deliberadamente me beijando, com
uma intenção similar). A sensação de prazer do sujeito é total-
mente arrebatada por este pensamento e, por assim dizer, pro-
jetada por meio dela em direção à outra pessoa. Isto é vivida-
mente demonstrado pela possibilidade de engano. Alguém pode
descobrir que os dedos que o estão tocando não são, como ele
pensou, os de sua amante, mas os de um intruso. Seu prazer (no
caso normal) transforma-se instantaneamente em desgosto; ele
sofre o mesmo tipo de inversão que uma emoção, quando fica
evidente que a crença sobre a qual se funda é falsa. Assim, o
prazer sexual, como uma emoção, pode estar em conflito com
os fatos. O homem que sente prazer, confundindo o toque de
outro com o de sua amante, deve ser comparado ao pai que sen-
te orgulho, confundindo o garoto que chega em primeiro lugar
com seu filho. Não sentimos menos estranheza na excitação de
um amante ser extinta pela descoberta de dedos desconhecidos
sobre seu corpo do que num sentimento de triunfo ser extinto
pela descoberta de que seu filho não ganhou o prêmio, afinal.
Da mesma forma, a descoberta de que estes dedos, mesmo sen-
do os dedos da minha amante, não estão deliberadamente em-
pregados em solicitar a minha atenção – pois ela está dormindo,

43
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

inconsciente ou morta, por exemplo – extinguirá o meu prazer,


mesmo que isso não mude o caráter de minhas sensações.
Até certo ponto, todos os prazeres – mesmo os prazeres não
-intencionais – podem ser prejudicados ou comprometidos por
uma mudança de entendimento. A carne adquire um gosto dife-
rente quando descubro que pertencia ao meu cão favorito. Mas
é importante perceber que a dependência do prazer na crença
é aqui muito mais flexível. Eu poderia ter pensado que estava
comendo carne de carneiro, e descobri que era alce ou canguru.
Isso não altera automaticamente o prazer físico de comê-la; pelo
contrário, o prazer vai, em um ser racional, reconciliá-lo com as
virtudes (muito deturpadas, se dependermos dos jornais) do alce
ou do canguru. Da mesma forma, embora seja uma enorme to-
lice não sair do banho relaxante após revelarem não se tratar de
água, mas ácido, isso não ocorre porque as sensações de prazer
na minha pele cessaram imediatamente. No caso do prazer se-
xual, o conhecimento de que uma mão indesejada me toca extin-
gue de uma vez o meu prazer. O prazer não poderia ser tomado
como uma confirmação posterior das virtudes sexuais até ago-
ra não reconhecidas de alguma pessoa anteriormente rejeitada.
Jacó, por exemplo, não descobriu atrativos previamente ignora-
dos em Lia: o seu prazer, na verdade, era com Raquel, quem ele
erroneamente pensou ser a destinatária de seus abraços (Gênesis
29, 25 – e veja a soberba realização desta cena em José e Seus
Irmãos de Thomas Mann). Se se muda a crença, é a persistência
do prazer, e não sua mudança, que precisa ser explicada.
Teodora pode ter fantasiado que as bicadas dos gansos fos-
sem os beijos violentos de algum amante imaginário. E quando
se tenta imaginar um estado “puro” de excitação autoinduzi-
da – combinado com prazer sexual desgovernado, ou aparente-
mente desgovernado – é realmente o caso que se está imaginan-
do. Se for assim, no entanto, ou a excitação sexual, ou o prazer
sexual (ou ambos), devem ser intencionais. A função da fantasia
é fornecer um objeto para nossos estados de espírito e, ao fazer
esse objeto subserviente à vontade, nos permite desfrutar de um
poder mágico que nós freqüentemente buscamos, mas não po-
demos ter. (A fantasia sexual, então, não é menos “desgoverna-
da” que o medo sentido em resposta à imagem de perigo – como
em um devaneio.)

44
capítulo 2 - excitação

Claro que, como eu já havia reconhecido, há prazeres não-in-


tencionais relacionados com o ato sexual, e que formam uma
parte importante do que procuramos no ato sexual. Mas eles
devem sua importância para nós em parte porque podem ser ele-
vados, por assim dizer, num estado de excitação, tomando em-
prestada a intencionalidade da excitação e se incorporando no
drama do encontro sexual. É razoavelmente concebível que esses
prazeres ocorram – até mesmo o prazer do orgasmo – sem a ex-
citação. A excitação é uma “tendência para” o outro, um movi-
mento na direção do ato sexual, que não pode ser separada nem
do pensamento sobre o qual se baseia, nem do desejo a que ela
leva. Isto pode soar mera especulação; mas, como veremos, há
sólidas considerações a favor de tal conceito de excitação. Para
entender esse conceito, precisamos analisar em primeiro lugar o
pensamento, e em segundo lugar o desejo a que ele se refere.
Ao falar em “pensamento”, estou ciente de parecer um pou-
co vago. A natureza “representativa” dos nossos estados men-
tais nem sempre pode ser confortavelmente descrita por este
termo: ou melhor, não se pode presumir que qualquer teoria
particular de “pensamento” (como a dada por Frege, que defen-
de que a identidade de um pensamento é dada pelas condições
da verdade de uma frase que o expressa) será suficiente para
cobrir todos os exemplos de intencionalidade. No entanto, para
os fins do presente capítulo, será suficiente tentar descrever, pelo
menos, alguns dos pensamentos que compõem a intencionalida-
de da excitação, uma vez que, embora o modo de representação
que é intrínseco à excitação não ser exaustivamente abrangido
por esta análise, ela fornecerá o que é necessário para uma com-
preensão do desejo.
O primeiro componente importante na intencionalidade da
excitação deve estar evidente a partir da discussão acima. A
excitação é uma resposta ao pensamento do outro, como um
agente autoconsciente, que está alerta para mim, e que é capaz
de ter “propósitos” para mim. A presença deste pensamento é
evidente a partir de nossa compreensão dessas duas expressões
muito importantes de interesse sexual: a carícia e o olhar.27 Uma

27 Veja as discussões sobre o olhar em Being and Nothingness [O Ser e o Nada], de J. P.


Sartre (tr. Hazel E. Barnes, Nova York, 1956, pp. 379 et seq.), e em “Sexual Perversion”,
no Mortal Questions, de T. Nagel (Cambridge, 1979).

45
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

carícia, quando vista sob o aspecto de excitação, tem o caráter


de descoberta – de uma “revelação”, para usar uma expressão
um tanto heideggeriana. Uma carícia de afeto é um gesto de tran-
quilização – uma tentativa de colocar na consciência do outro
uma imagem de sua própria preocupação por ele. Não é assim,
porém, a carícia de desejo, que percorre o corpo do receptor;
sua gentileza não é a de tranquilidade apenas, mas de explora-
ção. Destina-se a preencher a superfície do corpo do outro com
a consciência de seu interesse – interesse não só em seu corpo,
mas também nele enquanto corpo, em seu corpo como parte
integrante de sua identidade como um indivíduo. Essa consci-
ência é o ponto focal do prazer do destinatário. Do ponto de
vista do destinatário, a excitação, nestas circunstâncias, é uma
forma de permissão, uma elocução silenciosa do pensamento:
“Vá em frente! Familiarize-se com o que você quer conhecer”.
Sartre – no que talvez seja a análise filosófica mais penetrante
do desejo28 – fala da carícia como “encarnar” o outro: como
se, por minha ação, eu fizesse da sua alma carne, tornando-a
palpável. A metáfora não é de forma alguma despropositada.
No entanto, é importante acrescentar que tal “encarnação” não
significaria nada se não fosse o elemento de familiaridade, que é
tanto oferecida quanto procurada por quem acaricia.
A carícia é dada e recebida com a mesma consciência com
que o olhar é dado e recebido. Cada um deles tem, por assim
dizer, um componente epistêmico (um componente de expecta-
tiva e descoberta), que também é um importante foco de exci-
tação e desejo. Não é de surpreender, tendo isso em vista, que
o rosto deva ter uma importância tão suprema e imperiosa na
transação do desejo. E, no entanto, em alguns pontos de vista
do desejo, incluindo a visão freudiana, é muito estranho que
isso deva ser assim – estranho que o rosto tenha o poder de
determinar se vamos ou não ser atraídos para um ato que dá
prazer em outra parte bem diferente. Por que olhos, boca, nariz
e testa nos mesmerizam, quando têm tão pouca relação com a
proeza sexual e perfeição corporal de seu portador? A resposta
é simples: o rosto é a principal expressão da consciência, e ver
no rosto o objeto de atração sexual é encontrar o foco que toda

28 O Ser e o Nada, livro III, Capítulo 3. A teoria de Sartre é discutida no Capítulo 5.

46
capítulo 2 - excitação

a atração requer – o foco em outra existência, como um ser


que pode estar ciente de mim. Muito foi escrito sobre o olhar
do amor, que parece tão imperioso ao discriminar seu objeto e
tão peremptório para confrontá-lo com uma escolha intolerá-
vel. Na verdade, é o olhar de interesse sexual que precipita o
movimento da alma, pelo qual duas pessoas saem da multidão
em que estão presentes, ligados por um conhecimento que não
pode ser expresso em palavras, e oferecem um ao outro uma
comunicação silenciosa que ignora tudo, a não ser eles mesmos.
Assim como acontece com o olhar de desejo, o olhar de amor
concentra em si toda a vida do ser humano, sendo um apelo
direto ao outro para reconhecer minha existência encarnada. A
experiência foi bem descrita por Robert Grant:
[O “olhar do amor”] pode ser qualquer coisa, desde um sorriso
desanuviado e aberto a um olhar sério e preocupado, mas é
instantaneamente reconhecível para um destinatário compatível.
Ele difere completamente da careta ortodôntica da Miss Mundo, do
olhar malicioso e cativante da coquete, do olhar fechado, ressentido
da modelo (o que sugere nada mais do que um delinqüente juvenil
interrompido no ato de autoabuso). É completamente involuntário,
mais óbvio quanto mais travado pela modéstia (o processo é descrito
de forma ímpar e comovente por Shakespeare na corte de Ferdinando
e Miranda). O que ele anuncia é o fato da encarnação: eu estou aqui,
meu interior mais íntimo, no meu rosto. O resto do meu corpo, ele diz,
minhas partes íntimas, e, portanto, eu mesmo, tudo é vosso, se você
o quiser isso. Sendo desarmado, como o corpo nu cuja descoberta
ele prenuncia, é uma promessa de inocência, uma inocência não
posteriormente destruída, mas realizada no ato sexual.29

É uma tese familiar da filosofia da linguagem – que, graças ao


trabalho de Grice, Searle e Lewis,30 já não pode ser facilmente
contestada – que o ato de significar algo é essencialmente inter-
pessoal. Trata-se de uma intenção de se comunicar, e também
uma intenção de que esta seja eficaz em revelar o conteúdo do
que é dito. Trata-se, em suma, de um projeto elaborado sobre
a consciência do outro, numa tentativa de conseguir sua par-
ticipação em um ato cooperativo. Thomas Nagel sugere que a

29 R. A. D. Grant, “The Politics of Sex”, Salisbury Review, i (2.), 1983, p. 5. 10 H. P. Grice,


'Meaning', Phil. Rev., vol. 66 (1957), pp. 377-88; J. R. Searle, Speech Acts, Cambridge,
1970; D. K. Lewis, Convention, Cambridge, Mass., 1969.
30 Nagel, 'Sexual Perversion'.

47
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

complexa intencionalidade exemplificada pelo significado pode


ser encontrada também nos olhares de desejo, de modo que se
falarmos daqueles olhares como “significativos”, isso não deve
ser considerado uma metáfora. Se a sugestão de Nagel esti-
ver certa, então, seguindo a teoria do significado apresentada
por Grice, devemos esperar que o olhar de desejo envolva, em
primeiro lugar, a intenção de despertar o interesse sexual; em
segundo lugar, a intenção de que esta primeira intenção seja
reconhecida; em terceiro lugar, a intenção de que, ao ser reco-
nhecida, desempenhe um papel no que se pretende precipitar.
No entanto, embora existam motivos para pensar que a estrutu-
ra intencional de significado pode, por vezes, existir nos olhares
de desejo, a reciprocidade é normalmente de ordem inferior. No
caso normal, a intenção é que o desejo do outro seja precipita-
do, não por um reconhecimento da minha intenção, mas por
um reconhecimento do meu desejo. A reciprocidade pretendida
aqui talvez seja suficientemente semelhante a usar o significado
como uma metáfora conveniente para a excitação, desde que
não imaginemos que os gestos sexuais são expressões totalmen-
te “articuladas” de estados mentais cognitivos – desde que lem-
bremos, em outras palavras, que os gestos sexuais não podem
ser “traduzidos”.
A experiência da excitação pode, então, ser explicada pela
analogia com a compreensão linguística: assim como entendo
sua expressão por vinculá-la às intenções que você me ofereceu,
então respondo ao seu olhar ou carícia reconhecendo o desejo
por trás deles, e vendo, através do desejo, a possibilidade que
poderia ter permanecido escondida. Uma carícia pode ser acei-
ta ou rejeitada: em ambos os casos, é porque foi “lida” como
transmissora da mensagem “vamos fazer amor”. Ao descobrir
esta mensagem através da linguagem do seu carinho, eu a rece-
bo não como uma imagem crua, uma apresentação chocante de
uma possibilidade estranha, mas como um pensamento escon-
dido dentro de seu gesto, que você também está descobrindo
no próprio ato de me descobrir. As instruções de Ovídio para o
sedutor (Ars Amatoria, livro I) são finamente cientes desta in-
tencionalidade recíproca. Elas ilustram a idéia de que a carícia
e o olhar não devem revelar premeditação: que a conduta ver-
dadeiramente excitante é aquela em que o despertar da mulher
seduzida é feito de forma a parecer uma autodescoberta mútua,
48
capítulo 2 - excitação

de modo que ela pareça, aos seus próprios olhos, ser responsá-
vel por aquilo que ele sente.
A estrutura intencional que acabamos de descrever, enquan-
to claramente distinta da estrutura de sentido (linguística), tem
muito em comum com ela. Mas deturparíamos a intencionali-
dade da excitação se a víssemos simplesmente nestes termos,
sem considerar o elemento crucial do “despertar corporal”, que
cada participante tanto sente em si mesmo quanto busca no
outro. Esta experiência é um aspecto crucial da nossa experiên-
cia de encarnação – e da nossa natureza como seres corpóreos.
Ela pode ser ilustrada por um exemplo, que também ajudará
a enfatizar o tipo peculiar de representação que é intrínseca à
excitação. Considere o caso de uma mulher, que se abre para
explorações de seu amante:
Um bosque serei eu, e um cervo serás tu:
Alimenta-te onde quer, na montanha ou no vale nu;
Pasta em meus lábios, e se água te faltar,
Ruma ao sul, onde prazerosas fontes a devem dar.31
[Vênus e Adonis]

Esta abertura (nas linhas acima, um apelo) é um gesto funda-


mental da excitação, e seria inconcebível sem a idéia de que ele,
o amante, tenha um interesse por ela como ela tem por seu cor-
po. O incômodo de Vênus deriva diretamente de sua percepção
de que essa idéia não é nada mais que uma ilusão apaixonada –
tendo-se exposto demais, deve destruir a testemunha insensível
de sua humilhação. É parte integrante de pensamento da mu-
lher que seu amante é um ser consciente, e também consciente
de si mesmo como agente e paciente na transação sexual. Além
disso, ela pensa nele como alguém que tem uma concepção do
corpo dela, e dela no corpo. A sensação da carícia dele é um
convite: ela o experimenta como fundamentalmente dirigido a
ela através de seu corpo, e em seu corpo. A excitação está funda-
da em primeiro lugar no pensamento da presença corporal dele,

31 I’ll be a park, and thou shalt be my deer;


Feed where thou wilt, on mountain or in dale:
Graze on my lips, and if those hills be dry,
Stray lower, where the pleasant fountains lie – NT.

49
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

como uma fonte de interesse por ela, e em segundo lugar em um


desejo de dirigir a ele o equivalente do que ele dirige a ela.
No primeiro impulso da excitação, por conseguinte, há o co-
meço da referida cadeia de reciprocidade que é fundamental às
atitudes interpessoais. Ela imagina seu amante a imaginando a
imaginá-lo... (Sartre argumentou que tais cadeias infinitas de
respostas mostram que o desejo sexual é impossível. No en-
tanto, a regressão é indefinida, não infinita, e certamente não é
viciosa. É tal a cadeia de respostas envolvida sempre que uma
pessoa compreende o significado da outra.)32 Existe também
uma experiência específica de encarnação. Meu senso de unida-
de com o meu corpo, e da sua unidade com o seu são elemen-
tos cruciais no objetivo e na recepção da carícia excitante. Eu
desperto em meu corpo para a sua encarnação. Subjacente ao
estado de excitação da mulher está o pensamento: “Eu, no meu
corpo, sou algo para ele”, e a resposta dela – a “abertura” para
as abordagens dele, e tudo o que está implicado nisso – deve ser
entendida, em parte, como uma expressão desse pensamento, e
da intencionalidade interpessoal construída sobre ele.
Embora eu seja um com o meu corpo, minha experiência de
encarnação deve ser claramente distinguida da minha experi-
ência corporal. Na excitação, a unidade entre corpo e pessoa é
imediatamente experimentada, e constitui o foco vital de uma
resposta interpessoal. Mas o corpo não é o objeto dessa res-
posta – como é objeto de um exame do patologista ou de uma
exposição do anatomista. A excitação atravessa o corpo até o
espírito, que anima cada parte sua. De fato, há inclinações “bes-
tiais”, que procuram romper a ligação do corpo com o espírito
e apresentar o corpo como único foco de interesse sexual. Mas
a interpretação dessas inclinações é uma questão difícil, preci-
samente porque sua intencionalidade escapa ao nosso entendi-
mento. Considere novamente a experiência feminina. No caso
“normal” de bestialidade feminina, o animal em questão (um
cão favorito, por exemplo) é tratado como se fosse uma pessoa.
Não uma pessoa muito desenvolvida, e nem mesmo uma pes-
soa totalmente responsável. Mas, no entanto, uma criatura com

32 Ver Grice, “Meaning”, e a defesa de P. F. Strawson no “Intention and Convention in


Speech Acts”, Phil. Rev., 1964, rebublicada em Logico-Linguistic Papers, Londres, 1971.

50
capítulo 2 - excitação

pelo menos um dos atributos que distinguem pessoas: o atribu-


to do “ponto de vista subjetivo”, o que lhe permite ver o mundo
como algo diferente de si mesmo e ter interesse nele, não apenas
como o repositório de objetos quentes e aconchegantes, mas
também como o campo de ação de outros seres como ele. Pois
é essa noção da perspectiva do cão – uma noção que, mesmo
que errônea, é natural ao nosso modo antropomórfico de ver
as coisas – que permite os gestos da excitação. O cão também é
percebido como uma pessoa encarnada.
Não estou dizendo que não há bestialidade genuína nas mu-
lheres – um interesse no corpo do animal como tal. A descri-
ção de John Aubrey33 da condessa voyeurista de Pembroke, que
assistia ao acasalamento de cavalos para se preparar para os
amantes que estavam prestes a montá-la, é talvez um desses ca-
sos – embora se possa ver quão grande é a sombra projetada em
seu desejo por sua própria perspectiva autoconsciente. Talvez
a condessa desejasse ver seus amantes como animais, ficando
excitada diante da perspectiva de enxergar a si mesma como
tal, indiferente aos atributos humanos e demandas interpessoais
da criatura que a está montando. Este é um caso refinado de
verdadeira bestialidade, em que o outro é visto como – e é – um
animal de fato. A verdadeira bestialidade é pervertida. “Perverti-
da” significa desviada de algum objetivo “normal”. Neste caso,
a excitação é desviada de uma pessoa para a caricatura de uma
pessoa – para uma criatura que não possui, ou presume-se que
não, a perspectiva subjetiva que dá sentido à intencionalidade da
excitação. O ato bestial, que anula a responsabilidade do objeto,
anula também a responsabilidade do sujeito – e esse é seu ponto.
É uma tentativa do sujeito de fugir da carga de interpessoalidade
para ser apenas um animal num encontro que, de outra forma,
não poderia acontecer sem uma repugnância intolerável.
Claro, uma pessoa pode ter um prazer distintamente pessoal
nisto – no espetáculo de sua própria degradação. Mas que é
uma degradação não deve ser posto em dúvida. Trata-se de um
afastamento da condição normal de excitação, e uma rejeição
da responsabilidade pessoal. Sem dúvida ocorrem sensações fí-
sicas e transformações glandulares igualmente na excitação hu-

33 John Aubrey, Brief Lives, ed. V. L. Dick, Londres, 1949, p. 138.

51
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mana normal e na sua contrapartida pervertida (ou então não


haveria nenhum motivo para a idéia de “perversão”). E se a
única diferença estivesse no fato de que, no primeiro caso, o
objeto é concebido como uma pessoa, e no segundo caso, como
algo essencialmente não-pessoal, e não houvesse mais nenhuma
diferença além desta, então a distinção seria arbitrária. Mas as
diferenças entre as atitudes, os estratagemas e as satisfações que
surgem da excitação sexual normal daquelas que surgem de sua
perversão são tão grandes que justificam o contraste entre eles.
Deixado fora do contexto, pode-se sempre dar argumentos para
assimilar estados de espírito, por mais diferentes que sejam. Po-
der-se-ia, por exemplo, assimilar o amor ao ódio com base em
um fascínio comum pelo bem-estar do outro, ou a corrida à
natação com base em seus movimentos comuns. Meu raciocí-
nio implica que as transformações glandulares e sensações físi-
cas que acompanham a excitação estão para a excitação tanto
quanto os movimentos das pernas estão para a corrida. Elas são
uma parte essencial da excitação, mas podem ocorrer igualmen-
te sem ela. E, como no caso da corrida, o que as torna o que são
é a intencionalidade do estado de espírito que se exprime nelas.
Além disso, os órgãos sexuais não aparecem, por assim di-
zer, de forma neutra para nós nos momentos de excitação. O
órgão sexual sofre uma transformação que não é meramente
fisiológica, mas essencialmente dramática. Tanto aos próprios
olhos quanto aos olhos do outro, o órgão sexual se torna o
próprio indivíduo. Ser penetrada pelo pênis de um homem é ser
penetrada por ele (ser envolvido pela vagina de uma mulher é
ser envolvido por ela). Suponha que houvesse tais órgãos. Ou
suponhamos que um homem pudesse afivelar sua “ferramen-
ta”, removê-la, substituí-la e trocá-la. Neste caso, há um tipo
de despersonalização do falo: está, usando o utilíssimo termo
de Hannah Arendt, “instrumentalizado”.34 Ele começa a per-
der seu interesse pessoal intrínseco, e começa a parecer, em vez
disso, como os escabrosos consolos exibidos em sex shops, que
devem o seu apelo precisamente ao fato de não estarem ligados
a nenhum corpo humano e a nenhuma vontade humana (e que,
portanto, não têm absolutamente nenhum apelo sexual à pes-

34 Hannah Arendt, A Condição Humana, Chicago, 1958.

52
capítulo 2 - excitação

soa de inclinações normais). Mesmo que, por algum milagre,


fosse possível sentir sensações prazerosas ​​na ferramenta, ao in-
vés de por meio dela, ela deixaria de ser a destinatária do tipo
de atenção individualizada a que o amante almeja normalmen-
te. As carícias seriam dirigidas não à ferramenta em si, mas ao
corpo ao qual está conectada, talvez no ponto de ligação, que
começaria a reunir para si um pouco da magia do falo e algo de
sua dialética constante de modéstia e orgulho. (Não haveria ne-
nhum motivo em esconder ou revelar a coisa em si, mas muito
em “dramatizar” seu modo de ligação.)
Ser excitado pelo outro é incorporar esse outro em um pro-
jeto sexual, o projeto de fazer amor. Nós sentimos que há algo
pervertido, e talvez inexplicável, sobre o homem que alega que,
estando excitado por uma pessoa, é capaz de realizar o ato se-
xual com outra. Claro que existem muitos casos aqui – sendo a
imperatriz Messalina, talvez, o exemplo extremo; descrita por
Juvenal (Sátira VI), diz-se que era vítima de um apetite insaciá-
vel por sexo, e que, uma vez excitada por um homem, esse ape-
tite exigia que passasse para outro, e outro, e assim por diante,
ad infinitum. Mas note que um novo elemento importante foi
trazido para a investigação: o “apetite”. O objetivo é justa-
mente tirar o fenômeno do reino de excitação sexual normal, e
atribuir-lhe um caráter e uma explicação que não são de outra
forma exemplificados. Há algo muito importante em comum
entre o desejo da Imperatriz Messalina e o de qualquer outro
ser humano normal envolvido no ato sexual. Mas há também
algo muito diferente. A diferença está no conteúdo intencional,
e é, em parte, esta diferença de intencionalidade que é assinala-
da pela idéia de “apetite”.
Certamente há casos menos graves do que a ninfomania: o
caso mais normal é o de alguém que, excitado por uma pessoa,
procura conter a excitação a fim de se envolver no ato sexual
com outra. Aqui há, de fato, dois estados de excitação que po-
dem estar intimamente próximos, mas nunca poderão ser um
só. A primeira excitação não aponta para a segunda; não há
uma história natural dos acontecimentos de que a segunda é
um episódio. A antecipação invocada não é para o ato a que
se destina, mas para outro em que é negada. O caso deve ser
comparado com o de um homem que estimula seu “apetite”
por pinturas contemplando, por exemplo, o Bezerro de Ouro

53
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de Poussin. Pode ser que, após um período de “fome” visual,


tal projeto seja muito recomendável. Mas sabemos muito bem
que os termos “apetite” e “fome” estão sendo usados metafori-
camente. Não podemos concluir que o interesse real desse ho-
mem em estudar o Poussin seria igualmente satisfeito por um
Velásquez, um Gauguin, ou qualquer objeto que ele possa tam-
bém desfrutar. Pelo contrário, ele estava tentando reavivar em
si mesmo precisamente esse tipo de interesse pela pintura, que
o obriga a tratar cada exemplar individualmente. Em outras
palavras, seu interesse no Poussin não poderia ser satisfeito por
um Velásquez, digamos; se pudesse, isso só mostraria que não
era o Poussin que o interessava, mas qualquer pintura que fosse
“igualmente boa”. Nesse caso poderíamos realmente falar de
“apetite”, mas que tipo de apetite é esse, qual seu significado,
valor e lógica – tudo isso seria muito misterioso. Igualmente
no caso da excitação sexual. A excitação deverá ser entendida
como uma resposta a uma determinada pessoa. Mesmo que seja
possível “estimular o apetite” para tais respostas, não significa
que são “transferíveis” de objeto a objeto, como o desejo por
vinho que leva a saborear assiduamente de cada garrafa.
À intencionalidade da excitação deve ser acrescentada a da
animação. A intencionalidade “epistêmica” que encontrei na
excitação sexual tem um caráter intrinsecamente cumulativo,
e leva o sujeito constantemente avante com um efeito de des-
coberta. Cada fase de excitação contém uma antecipação da
próxima. A animação pode existir em ambas as formas não-in-
tencionais e intencionais – como um estado geral de resposta
exacerbada, e como um estado particular de animação sobre
algum assunto de interesse. Neste último caso, o elemento de
antecipação e descoberta – a “estrutura epistêmica” – é sempre
primordial. A animação é parte do caráter dinâmico da exci-
tação: e este caráter dinâmico marca mais uma diferença entre
a excitação sexual e a fome física. Em cada ponto há uma ex-
pectativa de prazer e antecipação que leva o sujeito adiante, e
que também faz parte do que é prazeroso agora. A animação
sexual é responsável pela qualidade “magistral” e “urgente” do
desejo. Isso leva à sensação de que o desejo “supera” o agente,
e o priva de sua liberdade. (E, portanto, de acordo com alguns
filósofos, nomeadamente Schopenhauer, leva à ilusão de que o
desejo é um exercício da vontade, e uma particularmente in-
frutífera, destinada à decepção pós-coito.) A animação envolve

54
capítulo 2 - excitação

o pensamento de que algo acontece, e não apenas uma sensa-


ção física – não estou animado desse jeito pela perspectiva de
um charuto, um copo de cerveja ou um banho quente. Estou
animado justamente por este empreendimento cooperativo, em
que eu e o outro evoluímos gradualmente nas perspectivas um
do outro, mudando para o outro e através do outro, com uma
antecipação constante e recíproca das nossas intenções mútuas.
Sobre o que, no entanto, estamos animados? Apesar de a ani-
mação sexual ser um caso especial (um caso muito especial) da
animação observada em toda a conversa amigável, ela tem um
foco que falta à conversa normal. Este foco é a nossa encarna-
ção mútua, o outro “estar em” seu corpo e eu no meu. Em nossa
animação, sentimos a agitação do outro, e nos familiarizamos
com o pulsar do espírito na carne, que enche o corpo com um
penetrante “eu”, e o transformamos em algo estranho, precioso
e passível de posse. O pênis que enrijece e a vagina que amacia
ao ansiado toque transmitem toda a pessoa, assim como ele
é transmitido em seu riso e seu sorriso. (Assim, mesmo sendo
possível “possuir” o outro em seu corpo, você não pode possuir
o corpo sozinho: a necrofilia, como o estupro, não envolve ne-
nhuma fruição do desejo.)
A excitação sexual tem, então, uma intencionalidade epis-
têmica: é uma resposta a outro indivíduo, com base na reve-
lação e na descoberta, e envolve uma intensificação recíproca
e cooperativa da experiência comum de encarnação. Ela não é
direcionada para além do indivíduo, para o mundo em geral, e
não é transferível a outro “igualmente bom”. Claro, a excitação
pode ter sua origem em pensamentos altamente generalizados,
que esvoaçam libidinosamente de objeto a objeto. Mas quando
esses pensamentos se concentram na experiência da excitação,
sua generalidade é posta de lado; é, então, o outro que conta, e
a sua forma encarnada em particular. Não só o outro, mas eu
mesmo, e o sentido da minha realidade física para ele. Nas pa-
lavras de Molly Bloom:
e como ele me beijou sob a parede mourisca e eu pensei, bem, tão
bom quanto qualquer outro, e então eu pedi-lhe com meus olhos
para que pedisse novamente sim, e então ele me perguntou se eu
sim para dizer sim a minha flor da montanha e primeiro eu coloquei
meus braços em torno dele sim e o puxei para mim para que ele
pudesse sentir meus seios todo o perfume sim e seu coração estava
batendo como louco e sim eu disse sim eu vou Sim!

55
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Pode ser facilmente visto porque é que, em muitos casos, a


excitação procura reclusão – reclusão com o outro em um lugar
privado, onde somente ele e sua perspectiva são relevantes para
a minha intenção. Além disso, a excitação normalmente tenta
abolir o que não é privado – em particular, abolir a perspectiva
do espectador, da “terceira pessoa” que não é nem você, nem
eu. Milan Kundera descreve uma orgia em que dois dos partici-
pantes vêem um ao outro na sala. A passagem mostra que um
grande esforço é necessário para manter a verdadeira excitação
sexual quando o véu da privacidade foi descartado. Com efeito,
a consciência da observação destrói a intencionalidade do ato:
Os dois casais estavam na mesma situação. As duas mulheres
inclinavam-se do mesmo jeito e faziam as mesmas coisas. Pareciam
dedicadas jardineiras trabalhando em um canteiro de flores,
jardineiras gêmeas, uma o reflexo da outra. Os olhares dos homens
se encontraram, e Jan viu que o corpo do homem careca estremecia
de tanto rir. Eles estavam unidos, como um objeto à sua imagem no
espelho: se um estremecia, o outro estremecia também (...). Esses
homens estavam unidos por comunicação telepática. Não só cada
um sabia o que o outro estava pensando; ambos sabiam que o outro
sabia. [O Livro do Riso e do Esquecimento]

Por fim, ambos acabam rindo, e sua anfitriã, companheira de


um dos homens, fica profundamente ofendida. O riso, porém, é
a expressão de uma percepção particular do ato sexual. Quando
visto a partir de uma perspectiva distante, em terceira-pessoa,
o foco do ato não é mais a encarnação dos participantes, mas
seus corpos. Esse testemunho alheio tende a matar a excitação
no sujeito. Claramente, nenhum dos homens está respondendo
à mulher diante de si – apenas ao contato de seu corpo. As duas
mulheres poderiam ser bonecas mecânicas; e, na verdade, elas se
tornaram tais nos olhos sorridentes dos alvos de suas atenções.
O riso expressa a incongruência do ato, quando ele é divorciado
do sentimento de excitação. O pessoal foi tornado público, e no
ato de reconhecimento público, tornou-se impessoal e rotineiro.
O frenesi da orgia pode ser visto, de fato, como uma reação à
futilidade da experiência sexual, quando o impulso para a im-
pessoalidade é elevado a único objetivo (ver Aldous Huxley, O
Macaco e a Essência).
A aversão ao público que é característica à excitação poderia
também ser descrita como um “medo do obsceno”. O obsceno
56
capítulo 2 - excitação

é a representação ou exibição do ato sexual de tal forma que


ameace ou ridicularize sua intencionalidade individualizante,
colocando o corpo em primeiro lugar nos pensamentos daque-
les que o exercem. Se o desejo por estimulo sexual for represen-
tado como dirigido indiferentemente, digamos, ao pênis, ou a
qualquer coisa que possua um pênis, ou a um corpo humano
considerado independentemente de sua ação, perspectiva e von-
tade – se, em outras palavras, a excitação sexual é representada
como um impulso ou apetite, focado em determinadas partes
do corpo, e indiferentemente satisfeito por qualquer coisa que
tenha o equipamento certo – então o resultado (como na bala-
da Nine Inch Will Please a Lady”, atribuída a Robert Burns) é
normalmente obsceno.
A obscenidade é semelhante à bestialidade. Ela basicamen-
te envolve a tentativa de separar o ato sexual de sua intencio-
nalidade interpessoal; de seu “direcionamento” epistêmico que
está contido na excitação sexual. Mas o divórcio provoca uma
mudança peculiar de atenção. Na obscenidade, a atenção é des-
viada da encarnação em relação ao corpo; o corpo se eleva e
inunda a nossa percepção, e neste pesadelo o espírito afunda,
assim como acontece na morte. Dessa forma, certas percep-
ções corporais – aquelas que crianças inglesas expressam no
som “ugh” e as americanas de influência ídiche no som “yuk”35
– desempenham um papel destacado na experiência da obsce-
nidade. A sensação do corpo como podre, pegajoso, grudento
– tudo aquilo a que Sartre se refere em sua análise célebre de le
visqueux36 – pode dominar nossas percepções, e em nenhum lu-
gar com mais insistência do que na nossa experiência sexual, em
que os corpos se juntam por meio de suas partes viscosas e gru-
dentas. Na experiência do obsceno, a pessoa é, por assim dizer,
eclipsada por seu corpo, o que, justamente porque ele se encaixa
exatamente à sua forma e movimento, cria uma ausência, uma
escuridão, onde ele deveria estar. Eu já não encontro a pessoa
cuja encarnação me seduziu: só o corpo que, em sua dissolução
assustadora, me fascina e também me repele.
Aos olhos de um observador, alguém que não é parte dessa
excitação, nossos corpos encorajam uma percepção obscena.

35 No Brasil, a expressão mais comum para expressar essa mesma sensação é “eca” – NT.
36 O Ser e o Nada, livro IV, cap. 2, III, especialmente p. 605-12.

57
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

(Daí a possibilidade de haver interpretações obscenas de atos


sexuais totalmente inocentes.) O observador não está envolvi-
do nas negociações delicadas em que nós persuadimos uns aos
outros a nossos corpos de modo a experimentar essa emoção
intensa que transforma a união sexual em uma união de pesso-
as. O espectador de nossas travessuras vê, em primeiro lugar, os
corpos aglutinados. A mera idéia de interesse seu é precisamente
um pensamento obsceno, em que a nossa forma de encarnação
é obliterada por nossos corpos, e transformada em algo estra-
nho, impessoal, presa da curiosidade fascinada da criança eno-
jada. Vemo-nos, por assim dizer, sob o aspecto do “eca!” (Esse
é um dos possíveis motivos para a visão de que, o que quer que
sejam, a masturbação e o voyeurismo do tipo experimentado na
cabine de vídeo não envolvam a liberação e a satisfação dos im-
pulsos que os seres mais afortunados podem liberar e satisfazer
no ato sexual.)
A excitação sexual só pode ocorrer entre pessoas, e é um
artefato de sua condição social. Um imenso trabalho moral tem
sido feito para a construção da intencionalidade da excitação, e
apesar de ser um trabalho voluntário, constantemente renovado
por cada geração consentida de adultos, poderia não ter ocor-
rido. O estado de espírito que descrevi é uma dessas conquistas
da civilização que seria tolice descartar, e que pode, como a mo-
ralidade, ser descartada a qualquer momento. Há, no entanto,
uma tentação conflitante com a excitação: a tentação de liberar
o ato sexual dos estratagemas exigentes de comunicação pesso-
al, e apresentar como apetite aquilo que só o pode ser ao perder
a sua intencionalidade característica.
Antes de dizer mais sobre essa intencionalidade, é necessário
esclarecer a questão do método. Questões sobre a natureza de
componentes mentais serão respondidas, não por investigação
científica, mas pela análise filosófica (que pode significar igual-
mente “fenomenológica” ou “conceitual”). Claro, a investigação
científica dos fenômenos mentais também é possível. Poderia ha-
ver uma ciência do comportamento sexual, que pode mostrar
semelhanças importantes entre os seres humanos e os animais
inferiores. É provável que existam tais semelhanças, uma vez que
o comportamento sexual é explicado, em ambos os casos, por
uma função reprodutiva. Mas tal investigação não responde as

58
capítulo 2 - excitação

perguntas que trouxe à tona. Estas questões dizem respeito à


superfície percebida das coisas, da qual nossos conceitos mentais
ganham sentido. Eu acredito que há um fenômeno significativo,
a que dei o nome de excitação, e que discriminamos este fenôme-
no – seja referindo-se a ele, ou, mais normalmente, ao responder
seletivamente a ele – em grande parte do nosso comportamento
social comum. Pode haver outras coisas que alguém pode que-
rer chamar pelo mesmo nome – a prontidão sexual de animais,
ou as cócegas que ocorrem no banho. Mas, no nível superficial
(que é o nível que interessa), estes devem ser distinguidos da
excitação, na medida em que eles não têm a intencionalidade da
excitação. Discuto um problema fenomenológico: o problema
da intencionalidade de um estado de espírito. Que tais proble-
mas sejam (cientificamente falando) superficiais não deve nos
levar a descartá-los; menos ainda deve nos levar a procurar uma
solução nos resultados da ciência. Pois as pessoas também são
superficiais, como são os seus valores, seus projetos, suas triste-
zas e seus desejos. É melhor, no entanto, a superficialidade das
pessoas do que a incompreensibilidade das coisas.
Como toda coisa rasa, no entanto, a excitação tem uma his-
tória. É a descendente de experiências que agora apenas vaga-
mente imaginamos, e a ancestral de outras que não temos como
saber. Muito teatro foi feito sobre nossa natureza “histórica”.
Nenhuma experiência humana, diz-se, e nenhuma concepção
do ser humano, faz sentido fora do contexto cultural que a gera
e a completa. A análise conceitual, que abstrai a partir desse
contexto, apenas descasca a pele verbal, e a preserva no for-
maldeído da lógica. Se o resultado é sempiterno, é porque não
há vida humana. O que a lógica preserva não é a realidade his-
tórica, mas apenas nossas tentativas fugazes de descrevê-la: ele
nos dá não o “real”, mas a essência “nominal.” Pode ser uma
verdade atemporal que os solteiros não têm esposas, mas isso se
tornou um obstáculo ao casamento?
No nível mais profundo, conforme nos dizem, não existe
uma verdade atemporal sobre sexo, somente a reconstituição
interminável de nossa experiência sexual da matéria flutuante
da história humana. O que podemos concluir, por conseguinte,
a partir de um exame do entendimento intencional contido em
algum fenômeno qualquer? De que forma isso pode levar ou à

59
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

descrição completa da realidade humana ou a uma prescrição


coerente a que todos possamos nos curvar? Uma verdadeira
“genealogia da moral” não reconheceria nenhuma experiência
sexual “natural”, nem nenhuma norma universal.
É com esses argumentos que Michel Foucault, em sua recente
História da Sexualidade,37 nos convenceria de que não há “ver-
dade” atemporal da experiência sexual, e que a moral sexual
é o produto de condições culturais que foram devorados pelo
verme do tempo. Não estou convencido por essas alegações, e
espero dar motivos suficientes para rejeitá-las. Quando sofrer
qualquer tentação intelectual, o leitor deve se lembrar de duas
importantes observações. Em primeiro lugar, uma experiência
pode ser determinada historicamente e ainda assim parte da na-
tureza humana; a natureza humana também é historicamente
determinada, e uma experiência que pertence à época da perso-
nalidade pertence à essência humana. Em segundo lugar, uma
descrição da experiência humana – mesmo com tudo o que foi
escrito sobre a “falácia naturalista” e o problema do “ser-dever
ser” – pode ter implicações normativas. O leitor pode duvidar
disso, mas deve reconhecer que sua dúvida é dogmática. Seu
dever é manter a mente aberta pelo tempo necessário para que
apresente minha defesa.
Está aí o necessário sobre o método. Para o presente, po-
demos tirar uma conclusão importante, que uma característica
normalmente considerada distintiva entre o amor erótico (que
a possui) do desejo sexual (que não a tem), está, de fato, pre-
sente não só no desejo, mas também na excitação, que é a cir-
cunstância em torno do ato sexual. Esta é a característica da
“intencionalidade interpessoal”. O problema que preocupava
Platão não existe: não existe qualquer conflito ou contradição
do tipo que ele imaginava entre desejo sexual e amor erótico, e
nem o primeiro pertence a alguma parte “mais baixa” da nossa
natureza do que o segundo. Na verdade, como vou apresentar,
apenas um ser racional pode experimentar desejo, e os senti-
mentos que são muitas vezes desprezados, indicativos de nossa
natureza “animal”, são sentimentos que nenhum mero animal
jamais sentiu.

37 Michel Foucault, História da Sexualidade, 3 vol. Paris, 1976, 1984.

60
CAPÍTULO 3
PESSOAS

Ao escolher o tema da excitação sexual, que não é nem a


origem nem a finalidade do desejo sexual, entrei no assunto in
mediis rebus.38 Minha intenção era descrever o fenômeno sexu-
al mais distintivo, e aquele que mais facilmente parece prestar-
se à teoria de que o desejo é um fato “biológico”, enraizado
na vida que compartilhamos com os animais. Defendi que a
excitação sexual é de fato uma resposta interpessoal, fundada
em uma intencionalidade epistêmica. Daí que só pessoas po-
dem experimentar a excitação, e somente pessoas – ou pessoas
imaginárias – podem ser objeto de excitação. Isso não significa
que devemos descartar imediatamente as semelhanças entre o
comportamento sexual dos animais e dos seres humanos. Como
animais, sentimos impulsos sexuais; como animais, nos repro-
duzimos sexualmente; como animais, sentimos uma necessida-
de de união por meio de nossos órgãos sexuais; e como animais,
experimentamos um prazer físico irresistível quando o fazemos.
Mas quase todas as comparações além dessas estão equivoca-
das. Os animais nunca estão sexualmente excitados; eles não
sentem desejo sexual, nem têm satisfação sexual. Quase tudo o
que importa na experiência sexual encontra-se fora de suas ca-
pacidades, não porque buscam esses objetivos e não conseguem
obtê-lo, mas porque não podem sequer buscá-los.
Colocar a tese tão cruamente é convidar ao ceticismo. No
mínimo, devo dizer algo mais sobre o significado de “animal”

38 Há duas expressões latinas que significam “no meio das coisas”: “in medias res” e “in
mediis rebus”. A primeira é um recurso literário em que a narrativa começa no meio da
história, e não no início. A segunda, usada no presente caso, indica o ponto a partir do
qual a investigação será conduzida – NT.
61
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

e “pessoa”. O conceito de animal pertence ao senso comum e


à ciência; o de pessoa é confinado ao senso comum. Ele denota
uma parte do Lebenswelt que é mais importante para nós do
que qualquer outra; no entanto, é uma parte que se desintegra
sob os olhos inquisidores da ciência.
Não é certo que todas as pessoas sejam animais (já que, em
alguns pontos de vista, Deus enquanto pessoa não pode ser um
animal). Mas o fato de que nós somos animais afeta todos os
conceitos – incluindo o de pessoa – por meio dos quais ten-
tamos atingir um entendimento ordinário da nossa condição.
Temos de começar, portanto, com algumas observações sobre a
idéia de animalidade.
Um animal é uma coisa viva, e tem uma vida individual: nas-
ce, floresce, declina e morre. Nossa percepção desse processo
e nossa familiaridade interior com ele como a raiz da nossa
própria experiência jazem profundamente enraizadas em nos-
so esquema conceitual. Nós percebemos de forma diferente as
coisas vivas e as sem vida, e reconhecemos nelas um princípio
de autogoverno que as destaca de seus arredores. E os animais
se destacam do resto da natureza como entidades que não estão
apenas vivendo, mas também estão ativos de uma forma muito
especial. Sua atividade resulta de sua vida, e é una com ele; e, em-
bora tenhamos apenas recentemente adquirido qualquer com-
preensão científica do processo orgânico, a vida e atividade de
um animal são instantaneamente reconhecíveis para nós. Nosso
conhecimento de que algum acontecimento – uma agitação em
uma cerca viva, um tamborilar em um telhado – é o resultado
da atividade dos animais nos fornece uma visão extremamente
concentrada nela, e uma rara capacidade de prever a sequência
mais complicada. O conceito “animal”, portanto, adquire um
lugar de honra em nossa compreensão intencional, que contém
tanto uma visão poderosa e um estímulo para a ação.
Há outra característica da existência animal que marcou o
Lebenswelt. Os animais são indivíduos paradigmáticos. O espí-
rito vital que gera a atividade dos animais e torna seres estabele-
ce uma unidade e harmonia singulares entre suas partes. É uma
parte inseparável de nossa percepção da atividade animal que o
animal aparece-nos como um só e inteiro. E isso tem consequ-
ências importantes, reveladas em nossas maneiras de descrever,
perceber e contar de animais.

62
capítulo 3 - pessoas

A pergunta “Quantos?” pressupõe um “típico”39 ou “subs-


tantivo contável”: uma descrição que responde à pergunta
“Quantos o quê?” O coelho diante de mim é um animal, dois
meio-animais, 1270 centímetros cúbicos de partes de coelho, e
assim por diante. O coelho pode ser desmembrado no espaço e
no tempo, em partes e “fatias temporais”, e os filósofos quine-
anos tiram conclusões substanciais e interessantes disso sobre
a relatividade ontológica e a impossibilidade de tradução radi-
cal.40 No entanto, vale a pena apontar uma distinção entre os
substantivos contáveis que
​​ o quineanos julgam artificiais, mas
que, aos olhos do senso comum, é de profunda importância.
Alguns substantivos contáveis atribuem uma unidade real, in-
dependente a suas instâncias, enquanto outros atribuem uma
unidade que é meramente relativa aos nossos interesses passa-
geiros. Assim, existem inúmeros indivíduos inorgânicos, que
existem como unidades dentro do limite da nossa percepção.
Este campo, este rio, esta pedra – todos são unidades: não dois
campos, mas um só; não dois rios, mas um só; e assim por dian-
te. Mas, de certa maneira, sua unidade é frágil, pois é um arte-
fato de nossa concepção. O que acontece é que, por qualquer
motivo, escolhemos considerar este campo como um. Mas po-
deríamos, sem dificuldade, contá-lo como dois ou três: as priori-
dades legais podem nos forçar a fazer tal escolha. O rio também
é um, ou dois, ou três, dependendo de nossas convenções terri-
toriais. Se a pedra parece ser mais naturalmente uma unidade,
é em parte porque – ao contrário do campo ou do rio – suas
partes podem ser removidas e separadas umas das outras, de
modo que o fato de estarem juntas em um só lugar, presas por
sua coesão cristalina, é um elemento interessante e adicional, a
que nos referimos obliquamente ao identificarmos esse objeto
como uma única pedra. Mas a unidade da pedra, enquanto mais
firme, por assim dizer, do que a unidade do campo ou do rio,
é menos substancial do que a unidade de um gato ou um cão.
A pedra pode ser dividida em partes, não apenas no processo
de contagem, mas também fisicamente. E quando é assim di-

39 Termo usado por Locke em seu Ensaio Acerca do Entendimento Humano (livro III,
cap. III, 15) – NT.
40 W. V. Quine, Word and Object, Cambridge, Mass., 1960, cap. 1; Ontological Relativity
and Other Essays, Nova York, 1969.

63
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

vidida, cada peça é em si uma pedra, existindo separadamente


do conjunto de que foi rompida. A pedra removida do bloco é
um indivíduo da mesma espécie do bloco de que veio. No nível
macroscópico, o substantivo “pedra” aparece na ciência das pe-
dras não como um substantivo contável, mas como um “subs-
tantivo incontável” ou genérico. A ciência das pedras não fala
de indivíduos macroscópicos, mas do material a partir do qual
são compostos – de pórfiro, ônix e calcário. É uma ciência que
emprega, em primeira instância, apenas substantivos incontá-
veis – substantivos que respondem a pergunta “Quanto?”, mas
não a pergunta “Quantos?”41 Uma pedra é, na realidade (quero
dizer, cientificamente), um pedaço de pedra.
Unidades reais são aquelas em que o todo é algo mais do
que a soma de suas partes, da mesma forma que um coelho é
mais do que uma coleção de frações de coelho, ou um carro é
algo mais do que uma coleção de componentes mecânicos. A
física moderna reconhece unidades reais no nível microscópico:
átomos e moléculas têm uma espécie de “unidade substancial”.
Mas, na experiência comum (macroscópica), apenas “sistemas”
se apresentam com tal unidade real. E entre os sistemas dois ti-
pos predominam: o natural e o funcional, ilustrado, respectiva-
mente, pelos coelhos e carros. As partes de um carro não são um
carro, uma vez que não têm a função definitória de um carro.
Esta função só surge quando as peças estão devidamente com-
binadas. Nossa contagem de carros, portanto, é limitada por
algo mais do que conveniência espacial e temporal. A função
que este conceito articula determina o número exato de indiví-
duos que são subsumidos por ela. Cada um destes indivíduos
é uma unidade substancial e indivisível, como um membro de
seu tipo funcional. Ao mesmo tempo, a unidade em questão é
um artefato. Carros existem pelo decreto humano, e possuem a
sua unidade apenas enquanto nós os mantivermos. Este tipo de
unidade é, em certo sentido, dependente de nossos propósitos.
Para encontrar a unidade natural, e a individualidade natural,
devemos procurar em outro lugar. Em particular, devemos olhar
para o reino animal.

41 Essa distinção, muito sutil em português, é apresentada nas perguntas “How much” e
“How many”, respectivamente – NT.

64
capítulo 3 - pessoas

A Biologia, ao contrário de Geologia, não pode prescindir de


substantivos contáveis ​​que abrangem objetos macroscópicos, já
que está preocupada com objetos cuja individualidade é, em
certo sentido, o fato mais fundamental sobre eles. Isto é, em cer-
ta medida, verdadeiro a respeito dos vegetais. Mas é muito mais
obviamente verdadeiro sobre os animais, cuja individualidade é
também uma forma de atividade. Um animal está ligado à sua
atividade, não só em substância, mas em seu comportamento.
Um animal não é um pedaço de carne, e não pode, via de re-
gra, ser dividido em partes que exemplificam cada uma delas o
mesmo tipo natural de onde vieram.42 Claro, as partes de uma
pedra não são elas próprias pedras. Mas uma pedra pode ser
fisicamente dividida em pedras, enquanto que a tentativa de di-
vidir um animal leva à cessação da atividade que constitui a sua
existência. Uma parte viva pode ser arrancada de um organismo
apenas quando suas leis de desenvolvimento permitam a divi-
são (como no caso de uma ameba). No caso normal, as partes
cortadas de um animal deixam de ser pedaços de matéria viva,
e um animal, quando dividido, certamente morrerá. Apenas en-
quanto indiviso continua a agir, e isso é o fundamento da nossa
crença na sua indivisibilidade.
A individualidade dos animais não é, portanto, nenhuma dis-
posição arbitrária. Não é uma jaula que impomos a eles para
nossos próprios fins. Encontra-se na natureza das coisas. Para
colocar a questão de outra forma: há um poder explicativo na
idéia de que Fido43 é uma coisa que não pode ser reproduzido
por qualquer outra forma. A individualidade de Fido não é, em
nenhum sentido, um artefato, mas encontra-se na essência de
Fido. Mesmo que as duas metades de Fido sejam posteriormen-
te unidas, reparando a unidade física, o objeto original de refe-
rência – o próprio Fido, a quem eu amava ou temia – não existe
mais nesse mundo.
Pode-se ver, apesar de serem comentários um tanto esboça-
dos, que os animais estão em conformidade com alguns dos

42 Este pode ser um dos motivos por trás afirmação de Aristóteles de que a palavra “carne”
apenas é usada homonimamente de carne morta – de carne cuja psyche se foi: De
Generatione et Corruptione, 3903; De Generatione Animalium, 734b; e em outros lugares.
43 Nome genérico para cachorros comumente usado pelos ingleses (mais ou menos
equivalente ao nosso “Totó”) – NE.

65
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

requisitos contidos na idéia de substância do filósofo raciona-


lista.44 E há outro interessante ponto de contato com o racio-
nalismo. Pois Fido, enquanto vive, age de modo a conservar a
sua vida, evitar lesões, sustentar sua força. Sua continuidade
individual vem de dentro, da mesma força vital que comanda
toda a sua atividade. Ele tem uma grande dose do que Espinoza
chama de conatus – a capacidade inata para a autopreservação
que, na opinião de Espinoza, era o único fundamento para essa
noção parcial da existência individual (substancialidade), que é
o melhor que nós (como meros tipos do único e verdadeiro indi-
víduo), em nossas vidas finitas, podemos mostrar.45 Os animais,
portanto, fornecem um dos mais vívidos exemplos da natureza
do indivíduo, autopreservação indivíduo, cuja individualidade
não é a consequência arbitrária de nossos modos de contagem e
classificação, mas uma parte profunda e imóvel de sua condição
natural, que deve ser reconhecida em qualquer verdadeira ex-
plicação da sua natureza. Um animal é uma entidade individual,
não de dicto, mas de re.
Estou me detendo neste ponto, já que será de alguma impor-
tância mais tarde, quando tratarei da individualidade do objeto
sexual. A questão será se o objeto individual do desejo é deseja-
do como animal ou como pessoa. Será crucial para decidir esta
questão a idéia da individualidade que está contido na intencio-
nalidade do desejo.
Os seres humanos são animais. Eles também são pessoas. A
questão que se apresenta é se a idéia de “pessoa” é meramente
uma qualificação de “animal” – denotando uma subclasse bio-
logicamente reconhecível da vida animal – ou se se trata de um
conceito de outro tipo, com algum propósito contrastante por
trás da sua aplicação. Em outras palavras, as pessoas são algo
como uma espécie biológica? Ou são uma classe, em que todos
os membros pertencem a uma única espécie, mas que deve ser
definida nos termos de algum outro propósito classificatório do
que a explicação das peculiaridades animais? Vou defender o úl-

44 Quero dizer, a idéia de substância que parece estar por trás do uso desse termo por
Descartes, Espinoza e Leibniz, segundo a qual uma substância é tanto a portadora de
atributos e quanto uma entidade capaz de existência independente. Ver W. Kneale,
“The Notion of a Substance”, Proceedings of the Aristotelian Society, vol. XL (1939-40).
45 Ética, livro III, prop. 7.

66
capítulo 3 - pessoas

timo ponto de vista – embora o fato de sermos animais de uma


determinada espécie desempenhe um papel crucial no desenvol-
vimento do conceito de pessoa. Considere a música dramática:
é um tipo particular de música, com uma importância musico-
lógica comparável às classificações “instrumental”, “sinfônica”
e “operística”? A resposta é “não”, porque embora a música
dramática seja certamente um tipo musical, não pode ser defini-
da nos termos das características intrínsecas – instrumentação
e estrutura musical – que formam a base da classificação musi-
cológica. Ela deve ser definida nos termos de uma resposta ge-
neralizada ao som musical. A música dramática pode pertencer
a qualquer categoria musicológica. Poder-se-ia dizer, também,
que pertence apenas a uma – digamos, à ária operística. A clas-
sificação não é musicológica: ela alinha seu objeto, mas não a
estruturas musicais semelhantes, e sim a uma resposta humana
semelhante a estruturas que podem, por si só, ser extremamente
díspares. Da mesma forma, o conceito de pessoa alinha os que
são absorvidos por ele a outros objetos de resposta semelhante.
Não é por acaso que os objetos desta resposta tendem a perten-
cer a uma única espécie biológica, mas isso é um dado sobre a
resposta, e não sobre a classificação.
Não deve passar em branco que o termo “pessoa” vem do
direito romano, que, por sua vez, veio emprestado do teatro.
Uma persona era uma máscara e, portanto, o termo passou a
designar a idéia de um “caráter” ou “personalidade” teatral.
Posteriormente, ele foi usado de modo mais geral, para se re-
ferir à representação (em todos os sentidos) do ser humano,
seu caráter, vida e interesses. Para o direito, uma persona sig-
nifica a coletânea de direitos e obrigações que os tribunais po-
dem julgar em nome do sujeito que aparece diante deles. Para
o direito romano, o sujeito humano individual não era nada
mais nada menos do que o conjunto de direitos e deveres li-
gados a ele: a pessoa que aparecia perante a lei era, em certo
sentido, uma criação dessa mesma lei.46 Poderiam ser pessoas,
portanto, seres humanos individuais ou corporações, uma vez
que uma corporação pode ter também direitos e deveres legais,
e a ação e responsabilidade que lhes permitem ser confrontadas
e compelidas.

46 Sir Ernest Barker, Principles of Social and Political Theory, Oxford, 1951, livro IV.

67
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Se nosso conceito de pessoa não fosse mais do que uma ex-


tensão e aperfeiçoamento da idéia desenvolvida no direito ro-
mano, então é claro que seria impossível pensar nele como base
de nossa rota principal para a compreensão do indivíduo hu-
mano. No sentido pretendido, no entanto, os homens se viam
como pessoas muito antes da invenção do direito romano, e
– por mais insuperável que a realização do direito tenha sido
na construção de instituições governamentais adaptadas à vida
individual – não é nem um pouco plausível supor que o con-
ceito de personalidade jurídica pode ser usado para captar as
particularidades reais que nos separam do resto do mundo ani-
mal. Devemos ter a idéia de personalidade jurídica em mente,
no entanto, uma vez que não é por acaso que os seres humanos
a exemplifiquem – não é por acaso que tenham direitos e obri-
gações, e que poderão ser responsabilizados ou prejudicados
perante um tribunal de direito. Muitas vezes ainda apontare-
mos esta circunstância familiar, mas, na verdade, extremamente
misteriosa.
Tradicionalmente, a distinção entre o indivíduo humano e o
animal foi elaborada em termos de uma idéia de razão. Somente
o homem, tem-se dito, é um animal racional, e a idéia de racio-
nalidade é necessária, e talvez também suficiente, para descrever
o que lhe é peculiar. Dentro de certos limites, creio eu, esta an-
tiga idéia está correta. Mas os limites são graves. O conceito de
racionalidade em si não é claro de modo algum, e – no final das
contas – só pode ser plenamente compreendido em função do
repertório de pensamento, sentimento e ação disponível ao in-
divíduo humano. Como Aristóteles percebeu, a razão existe em
duas formas complementares – a teórica e a prática. Os homens
raciocinam sobre o que acreditar, mas também sobre o que fa-
zer – e, talvez, até mesmo sobre o que sentir. Isto significa que a
transformação introduzida em sua natureza pela razão permeia
todo o seu pensamento, toda a sua atividade e toda a sua vida
emocional. No entanto, vale a pena explorar a sugestão antiga
um pouco mais. Veremos que isso nos leva diretamente ao nos-
so tema.
Um cão pode ter crenças. Mas ele não forma e altera suas
crenças através do raciocínio, nem consegue formular as im-
portantes idéias de possibilidade, necessidade, probabilidade

68
capítulo 3 - pessoas

e validade, que estruturam os processos mentais do ser total-


mente racional. Da mesma forma, um cão pode ter desejos, e
nesse sentido ele tem razões para sua conduta. Mas, em outro
sentido, ele age sem razão, em que o raciocínio não é um fator
causal adicional na explicação de seu comportamento. Ele não
delibera, faz planos, pesa alternativas ou toma resoluções; ele
simplesmente, e espontaneamente, faz o que lhe é solicitado por
seus desejos presentes. No caso do agente humano, parece-me
que (embora haja filósofos que neguem isso)47 crença e desejo
não são suficientes para explicar o seu repertório de conduta. O
ser racional existe e atua em outro plano, formando intenções,
fazendo planos, talvez com um prazo um pouco longo e de pers-
pectiva improvável. Ele pode contrariar seus próprios desejos e,
em tudo o que ele faz, é motivado – ou acredita estar motivado,
o que é, em si, ter uma espécie de motivo – não apenas por inte-
resse próprio, mas por uma concepção do que é bom.
Esses fatos – que, pelo menos para mim, são evidentes – exi-
gem cuidadosa exegese. O que os explica, e como se manifestam
nos detalhes da conduta humana? Alguns filósofos defendem
que nós, no limite, não precisamos procurar em outro lugar para
uma explicação que não a existência da linguagem, um disposi-
tivo sistemático para representar o mundo. O ser racional é um
ser linguístico. Ele é capaz de armazenar informações sobre o
mundo de forma simbólica, e recuperar essa informação para
uso posterior. O cavalo que se assustou com um tiro durante
a passagem pelo território do Mestre Gil pode não passar por
lá novamente.48 Neste sentido (de “resposta condicionada”),
ele tem uma memória de seu passado – mas só nesse sentido.
Nós dizemos que seu comportamento foi modificado, mas não
a ponto de desenvolver algum pensamento, da forma “Ontem
algo desagradável aconteceu aqui”. Acredita-se que essa capa-
cidade particular – a capacidade de cogitar pensamentos para

47 Ver, por exemplo, os ensaios sobre as razões para ações e intenções no trabalho de
Donald Davidson, Essays on Actions and Events, Oxford, 1980, seção I, e no trabalho de
Davidson, “Rational Animals”, Dialectica, 36 (1982).
48 Mestre Gil de Ham é uma narrativa de J.R.R. Tolkien publicada em 1949; uma edição
brasileira foi publicada pela Martins Fontes em 2012. Conta a história de Mestre Gil, um
fazendeiro desprovido de heroísmo, mas que, graças à boa sorte e à ajuda do cachorro
Garm, da égua cinzenta e da espada mágica Caudimordax (ou Morde-cauda), amansa
o dragão Chrysophylax e ganha enorme fortuna – NT.

69
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

além do conteúdo da experiência imediata, para o passado e o


futuro, a generalidades, particularidades, possibilidades e ne-
cessidades – é a prerrogativa do ser linguístico, que pode re-
presentar para si mesmo estados de coisas com as quais não se
depara imediatamente.49 Aceitar tal argumento não significa ne-
cessariamente negar a possibilidade de representação mental em
criaturas não-lingüísticas, mas simplesmente apontar os limites
de tal representação, argumentando que os processos mentais
distintivos dos seres racionais podem ser disponibilizados ape-
nas pela implantação de um sistema de símbolos.
Essa alegação é certamente plausível. Mas não precisamos
aceitá-la para reconhecer a importância da linguagem como um
índice de nossa atividade mental. Também não precisamos dis-
cutir as intrincadas questões levantadas pelas teorias do signifi-
cado, ou as reivindicações concorrentes das teorias representa-
cionais e expressivas de compreensão lingüística.50 No entanto,
há uma questão na filosofia da linguagem que deve ser levanta-
da aqui para que crie obstáculos à nossa discussão subseqüente.
Existem duas grandes abordagens para a filosofia da linguagem.
De acordo com a primeira abordagem, a característica distintiva
da criatura linguística é a própria linguagem, e é em função da
linguagem que as complexidades da sua vida mental – incluindo
características extremamente importantes como intencionalida-
de – devem ser explicadas.51 Ela tem intenções (além de meros
desejos) porque tem a linguagem para formular seus projetos.
Ela tem crenças sobre o passado e o futuro porque tem capa-
cidades para representar tempos passados e futuros – e assim
por diante. De acordo com a segunda abordagem, a linguagem
em si não é nada mais que um sistema inerte de sinais, que só
tem sentido porque é usado. E o que confere sentido a ele é o

49 Ver, por exemplo, Rationality, Londres, 1964, de J. F. Bennett. A tese é apresentada em


outro trabalho do mesmo autor, Linguistic Behaviour, Cambridge, 1976.
50 O conflito (real ou aparente) entre as teorias expressivas e de representação de
compreensão linguística concentra-se nos méritos rivais da teoria da “intenção e uso”
de H. P. Grice (“Meaning”, Phil. Rev., vol. 66 (1957), pp. 377-88), e a teoria da “análise
semântica” de Donald Davidson (“Truth and Meaning”, Synthese, VII (1967) pp. 304-
323). A visão de que as duas abordagens são incompatíveis é cada vez mais posta em
dúvida. Mas ver J. R. Searle, Speech-Acts, Cambridge, 1970.
51 Essa seria a abordagem de Davidson; ver “Thought and Talk”, em S. Guttenplan (ed.),
Mind and Language, Oxford, 1975.

70
capítulo 3 - pessoas

complexo sistema de representação mental (pensamento, cren-


ça, julgamento e intenção) que é usado para expressar.52 Uma
frase significa que a neve é branca,
​​ segundo essa visão, porque
é usada para expressar o pensamento de que a neve é ​​branca.
De acordo com a primeira abordagem, a posse da linguagem é
o fato básico, anterior à posse de estados racionais da mente.
De acordo com a segunda abordagem, são os estados mentais
que são anteriores, e que por si só podem explicar a existência
de um sistema de sinais como a linguagem.
Parece-me que não devemos decidir entre esses dois pontos
de vista, e que talvez nem pudéssemos fazê-lo. De cada ponto
de vista, no entanto, à linguagem é atribuída uma importância
especial em nossa compreensão das pessoas, como o principal
critério de racionalidade. Se a linguagem é a causa ou a conse-
quência de estados racionais da mente pode ser indiscernível; a
linguagem e os estados de espírito expressos por ela são partes
inseparáveis de
​​ um único “momento de consciência”, usando
a linguagem hegeliana. Se vamos estudar o que é distintivo na
constituição mental das pessoas, devemos estudar a expressão
desse conteúdo na forma linguística. Mesmo que haja seres ra-
cionais sem linguagem, somente poderíamos entendê-los pos-
tulando uma linguagem que seria a deles se tivessem alguma
(e, na verdade, é assim que compreendemos os pensamentos e
desígnios do bebê pré-lingüístico).
A aplicação mais básica da racionalidade é o raciocínio em si,
a expressão lingüística da que assume a forma de argumentação.
A lógica, que dita as formas do argumento válido, certamente
não é nada que não uma parte – talvez a parte mais fundamen-
tal – da linguagem. E a lógica dá uma visão sobre o pensamen-
to racional mostrando as relações entre proposições, o que nos
permite entender a distinção real entre a inferência válida e a
inválida. Podemos explicar o raciocínio tácito do dedutor ágil,
demonstrando-o como uma série de sentenças. Supomos, então,
que as relações lógicas entre essas sentenças são (não sabemos
como) causalmente eficazes na geração de seu comportamento.
Se não foram eficazes, ele não seria racional, mesmo que se, por
algum milagre, estivesse certo.

52 Essa é a abordagem de J. R. Searle, e.g., em Intentionality, Cambridge, 1982.

71
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Neste livro, estou preocupado com manifestações muito


mais recônditas da racionalidade –recônditas porque, à primei-
ra vista, não parecem ter nada a ver com o poder do racio-
cínio, nem podem ser evidentemente concentradas em hábitos
linguísticos evidentes. É minha convicção (que espero vindicar)
que a racionalidade não pode ser concebida como uma simples
adição à vida mental de um animal, o que deixa o restante da
mente inalterado. Pelo contrário, a racionalidade é, por assim
dizer, uma condição de existência, que informa o conteúdo total
da mentalidade do sujeito. Ou, pelo menos, informa todos os
estados de espírito que contêm um pouco de compreensão do
mundo. (Pode ser que as sensações dos homens sejam como as
sensações de cães, uma vez que as sensações não têm intencio-
nalidade. Mesmo assim, nenhum homem reage a uma sensação
como os cães reagem.)
Eu não nego que os animais tenham estados mentais; na ver-
dade, é essencial para a nossa idéia de atividade animal que
consideremos os animais como sensíveis de várias maneiras, ca-
pazes de ver coisas, ouvir coisas, sofrer impulsos de prazer e dor,
e motivar-se pela crença e desejo. Além disso, é essencial para
a nossa idéia de nós mesmos considerarmos nossa vida mental
como permeada por experiências animais, embebidas na fonte
da vida orgânica, e que não são meros aspectos do pensamento
racional que as engloba e às vezes as incorpora. No entanto, a
nossa vida mental é completamente diferente da vida mental de
animais, e não só os nossos pensamentos e projetos, mas nossas
emoções mais inescrutáveis e​​ aparentemente irracionais trazem
a marca da nossa racionalidade. Na verdade, é apenas um ser
racional que pode sofrer as dores de um sentimento irracional:
nada dentro do repertório mental de um animal pode alcançar
tal dignidade.
O que poderia nos levar a supor que não são apenas os pen-
samentos e ações, mas também as emoções e experiências do
ser racional que são distintas dos animais não-racionais? A
parte mais importante da resposta deve ser encontrada em um
conceito em que a racionalidade forçosamente esteja no centro
do nosso pensamento, e que será, em certo sentido, o principal
tema dos capítulos posteriores: o conceito de indivíduo. O ser
racional é também um ser autoconsciente, e esta autoconsciên-

72
capítulo 3 - pessoas

cia está na raiz de sua existência como pessoa. É esta caracterís-


tica que nos permite adotar, em relação a ele (e ele em relação a
si mesmo), a postura peculiar que inspira nosso uso do conceito
de pessoa. Claro, há um uso para o conceito de indivíduo ao
descrever o comportamento dos animais. Um cão distingue-se
de outros cães, e os seus próprios interesses daqueles de seus
companheiros. Mas ele não se distingue como um indivíduo,
uma vez que ele não tem o que eu chamo de “perspectiva em
primeira-pessoa” – uma característica da consciência que é dis-
tintiva dos seres que usam linguagem. Este ponto é de grande
complexidade, mas deve ser entendido o quanto antes se quiser-
mos fazer algum progresso na análise do desejo sexual.
Uma das características observadas do nosso uso da lingua-
gem é o surgimento do “caso em primeira-pessoa”. Eu sei sobre
você e seu estado de espírito, porque eu o observo; eu também
sei sobre mim e meu próprio estado de espírito, mas não atra-
vés de qualquer ato de observação. O caso em primeira-pessoa
é caracterizado por certas características altamente intrigantes.
Quando eu estou com dor, eu sei que eu estou com dor, sem ter
que observar a mim mesmo ou qualquer outra forma de desco-
berta. Isso é algo que eu simplesmente sei, e chega a ser absur-
do sugerir que eu posso não saber. Da mesma forma, quando
eu acredito que eu estou com dor, minha crença é, em certo
sentido, incorrigível: nada que você possa fazer, e nada que eu
possa descobrir, torna-la-á falsa. Claro, eu posso não ser sincero
ao afirmar estar com dor, e há áreas cinzentas onde a falta de
sinceridade beira o autoengano, e onde minha própria mente é
semeada com as sementes da confusão epistêmica. Mas, no caso
normal, e salvo acidentes de uso, minha sincera adoção da pro-
posição “Eu estou com dor” é suficiente para garantir a verdade
dessa proposição. Esta não é uma consequência trivial do meu
uso da linguagem. Pelo contrário, é a causa de grande parte da
filosofia e do mistério que cerca a condição humana. É precisa-
mente este “acesso privilegiado” que tenho na minha própria
mente o que dá origem à sensação de que o meu conhecimento
do mundo está para sempre condenado à imperfeição. Minhas
crenças sobre o mundo exterior parecem imperfeitas porque há
outra coisa – a consciência individual e suficiente da minha pró-
pria condição interna – com que posso contrastá-las. E, derivan-
do disso, temos o conhecido pensamento cartesiano, que o que
73
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

eu sou essencialmente é revelado para mim – não para você – no


ato de consciência em que agarro minha realidade interior, um
ego automotivado e consciente de si. O pensamento (seguindo
o argumentar) baseia-se em ilusão, mas tem uma importante
consequência – que a criatura linguística pode ser identificada,
tanto por si mesmo e pelos outros, não apenas como um animal,
mas também como si mesma.
Devemos resistir à idéia de que a mente pode ser entendida
em função da consciência em primeira-pessoa. É particularmen-
te importante evitar a perspectiva em primeira-pessoa quando
ela própria é objeto de discussão, pois os privilégios que essa
perspectiva contém são condicionados pela sua vacuidade.
Como vou discutir no Apêndice 1, a incorrigibilidade da minha
consciência em primeira-pessoa é uma indicação não do seu ca-
ráter fundacional, mas de sua fragilidade, de sua incapacidade
de sustentar qualquer conclusão objetiva e substancial sobre o
que eu sou.53 Se quisermos compreender a perspectiva em pri-
meira-pessoa, então temos de vê-la do ponto de vista em tercei-
ra-pessoa. Temos que pedir uma explicação não do meu autoco-
nhecimento, mas do seu. Temos de explicar como é que, quando
você profere sinceramente as palavras “eu estou com dor”, sua
declaração é verdadeira. Por que é que aqui, como disse Witt-
genstein, a verdade e a veracidade coincidem, de modo que os
critérios de sinceridade estabelecem a verdade do que é dito?
A visão cartesiana da consciência, que é baseada neste fato,
não faz nada para explicá-lo. A idéia de um acesso especial “pri-
vado” aos meus próprios estados mentais não pode fornecer
nenhuma explicação sobre minha consciência privilegiada. Na
melhor das hipóteses, fornece um retrato deste privilégio. A me-
táfora de um estado “interior” nos leva a pensar no autoconhe-
cimento como uma espécie de autorrevelação permanente de
cada item mental para seu dono. As sensações, crenças, desejos
e emoções ficariam brilhando na mente como jóias em um es-
tojo, cada uma visível à consciência inquiridora em virtude de

53 Poder-se-ia dizer que esta tese foi uma das principais conclusões de Kant em “Os
Paralogismos da Razão Pura”, na Crítica da Razão Pura, (1781, 1787), tr. Norman Kemp
Smith, Londres, 1929, em que Kant critica a inferência a partir da unidade puramente
“formal” pressuposta na autoconsciência (a “unidade transcendental da apercepção”) à
“unidade substancial” necessária para a teoria racionalista da alma.

74
capítulo 3 - pessoas

seu próprio brilho peculiar. Essa imagem pode parecer se encai-


xar nas sensações: certamente não se encaixa nas crenças, que
não são permanentemente “presentes” para a mente. E ainda é
debatível que as crenças sejam objetos de conhecimento incor-
rigível. Se eu lhe perguntar se você acredita que a França é uma
monarquia, em condições normais, você pode responder com
autoridade; mas até o momento da pergunta, você pode nunca
ter pensado nisso. (Qualquer dúvida diz respeito ao fato em si,
e não se você acredita.) Um erro tem de ser explicado não como
um engano (como se, olhando interiormente para sua crença,
você momentaneamente tivesse confundido a crença de que a
França é uma monarquia com a crença muito semelhante de
que a França é uma diarquia), mas em função de alguma falha
mental radical, como o autoengano. Não é o menor dos as-
pectos objetáveis da​​ imagem cartesiana o que faz o “privilégio
epistemológico” de um estado mental em uma característica in-
trínseca do mesmo. Torna-se um fato sobre a dor a vítima estar
consciente dela, de forma que sempre que haja dor, haverá tam-
bém a consciência da dor. Torna-se, então, impossível sugerir, o
que é verdadeiro, que possa haver criaturas com sensações, mas
sem o conhecimento incorrigível: não porque eles têm sensações
inconscientes, mas porque (sendo meramente animais) carecem
completamente da autoconsciência.
Temos de explicar, o que nenhum estudo meramente feno-
menológico (ou seja, em primeira-pessoa) pode explicar, o fato
de que quem diz sinceramente “Eu estou com dor” fala a ver-
dade – desde que, é claro, ele entenda o que ele diz. Estamos
lidando aqui com necessidades; o tipo particular de absurdo
envolvido na sugestão de que se eu estiver enganado, na mi-
nha crença presente de que eu estou com dor, isso não poderia
ser representado de nenhuma outra maneira. É o mesmo tipo
de absurdo atribuído à sugestão de que possa haver um objeto
físico não-espacial, ou um experiência não-temporal.54 Nenhu-
ma investigação em primeira-pessoa pode explicar uma verdade
tão necessária, uma vez que é uma verdade que é expressa em
uma linguagem pública, e garantida – se é que há uma garantia
– quer pelas regras da linguagem, quer pela “essência real” dos​​

54 Estes dois absurdos são discutidos e explicados por Kant na primeira parte extrema-
mente insatisfatória da Crítica da Razão Pura, a “Estética Transcendental”.

75
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

objetos aos quais a linguagem se refere, objetos que (pelo argu-


mento do Apêndice 1) devem ser publicamente identificáveis se
houver qualquer referência a eles.
Temos de explicar o que chamo de “regra de autoridade”.
Significa que quem pronunciar “Eu estou com dor” sinceramen-
te, e compreender essas palavras, está com dor: ele é uma auto-
ridade a respeito de seus próprios conteúdos mentais. A partir
desta regra, deriva-se que quem profere “Eu estou com dor”
sinceramente, mas não está com dor, não entende o que diz. O
privilégio epistemológico acaba por ser uma regra da linguagem
– uma condição na compreensão da frase “Eu estou com dor”.
A pessoa compreende tal sentença apenas se seus usos dela são
(com algumas exceções) verdadeiros. Nós podemos facilmente
prever a aplicação desta regra: observando o comportamento
de uma criança, nós a ensinamos a dizer “Eu estou com dor”
só quando está com dor. Quando ela passa a acertar, admitimos
que entende o que diz.55 Daí podemos explicar, em primeiro
lugar, como pode ser uma verdade necessária uma pessoa com
dor saber que está com dor; e, em segundo lugar, como o auto-
conhecimento é uma característica do desempenho linguístico.
De forma semelhante, podemos explicar a “autossugestão”
– o fato de que, quando eu estou com dor, eu sei que estou.56 A
falha em reconhecer a verdade, em tais circunstâncias, é uma in-
capacidade de compreender as palavras que a expressam – é por
isso que a observação da senhora Gradgrind (Tempos Difíceis,
Parte II, cap. 9), de que há dor em algum lugar na sala, mas não
perceber imediatamente que a dor é dela, é tão estranha. Pois ou
não foi essa sua intenção, ou então não sabe isso que significa.
O enunciado “Eu estou com dor” contém quatro palavras;
qual foi mal interpretada pela pessoa que a usa para fazer uma
afirmação falsa? Suponha que ela atribua a dor com precisão
nos outros: isto é evidência suficiente de que certamente ela en-
tende a palavra “dor” – assumindo que aceitamos a tese (ver
o Apêndice 1) de que tais palavras ganham seu sentido de seu

55 Fui influenciado nesse ponto pelo trabalho de Douglas Gasking, “Avowals”, em R. J.


Butler (ed.), Analytical Philosophy, First Series, Oxford, 1968, e pelo trabalho inédito de
M. J. Budd.
56 O termo “autossugestão” vem de Gilbert Ryle, The Concept of Mind, Londres, 1955.

76
capítulo 3 - pessoas

uso em terceira-pessoa. É assim com a incômoda palavra “eu”?


Alguém entende essa palavra assim como compreende uma de-
terminada aplicação dos predicados como “...está pensando”,
“...está com dor”, com certeza? Por que o erro ocasional mos-
traria que ele não entende, mesmo tendo plena capacidade de
compreender, uma “instância de substituição” de uma sentença
aberta cujo significado ele sabe?
Alguns filósofos defendem que “eu estou com dor” não deve
ser considerado simplesmente como uma “instância de substi-
tuição” onde “x está com dor” – ou seja, como uma aplicação
direta do predicado “...está com dor”. Elizabeth Anscombe, por
exemplo, argumentou que o sentido do “eu” não é o de um
termo de “referência”: de fato, esse “eu” não se refere a todos,57
de forma que “Eu sou RS” não é uma declaração de identidade.
Assim, embora seja verdade que, se RS estiver com dor, eu estou
com dor, essa verdade não é derivada de “RS está com dor”
pela mera substituição de termos com referência equivalente.
Essa tese tem sido objeto de algumas críticas bastante fortes;58
mas mesmo aqueles que a rejeitam reconhecem que a função do
“eu” não é como a de um nome próprio. Tem-se defendido, por
exemplo, que “eu” é um “dêitico”, como “agora” ou “aqui”,
cuja função é indicar algo no campo de referência marcando
sua relação com o interlocutor. Se isto é assim, então devemos
esperar precisamente o que encontramos: a autorreferência é
“imune a erros de identificação”.59 Da mesma forma que não
posso identificar erroneamente o lugar em que estou como aqui,
não posso me identificar equivocadamente como eu. E essa imu-
nidade ao erro pode ligar-se ao “eu”, mesmo que o termo tem
um uso referencial.
Essas especulações são inegavelmente importantes, e prome-
tem explicar certos tipos de incorrigibilidade (ou “imunidade
do erro”) no caso em primeira-pessoa. Mas elas não fornecem

57 G. E. M. Anscombe, “The First Person”, em Guttenplan, Mind and Language.


58 Ver, por exemplo, os ensaios de Anthony Kenny e Norman Malcolm em C. Diamond e
J. Teichman (eds.), Intention and Intentionality, Brighton, 1979.
59 A frase vem de S. Shoemaker, “Self-Reference and Self-Awareness”, Journal of Philosophy,
vol. LXV (1968), pp. 555-67. Ver também a discussão deste assunto em Gareth Evans,
The Varieties of Reference, ed. J. McDowell, Oxford, 1981, p. 179-92, em que Evans altera
a expressão ligeiramente.

77
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

uma explicação satisfatória do que aqui nos interessa, que é a


certeza do conhecimento em primeira-pessoa dos estados men-
tais atuais. Na melhor das hipóteses, explicam a certeza da au-
toidentificação: da minha crença de que eu estou me referin-
do a esta pessoa, e não àquela. Mas como poderiam explicar a
minha certeza sobre as propriedades mentais desta pessoa, eu
não sei. Ao mesmo tempo, parece-me que, mesmo nesse tipo
posterior de certeza, é o conceito de indivíduo que explica meu
privilégio epistemológico. Uma compreensão imperfeita da re-
gra de autoridade equivale a uma compreensão imperfeita da
individualidade. Tanto a palavra “eu” quanto, por implicação, a
palavra “ele” serão utilizadas incorretamente. Como isso pode
acontecer? Como pode uma regra tão absoluta e aparentemente
tão arbitrária como a nossa “regra de autoridade” ser utilizadas
por falíveis mortais? A resposta é esta: justificar a regra é justi-
ficar os conceitos com os quais ela nos oferece, e as funções que
esses conceitos cumprem. O propósito do conceito que estamos
considerando – o de pessoa, e seu subsidiário, o indivíduo – é
identificar o objeto das “reações interpessoais”. Ele pode cum-
prir essa finalidade somente na suposição de que aqueles que o
usam também obedeçam a regra de autoridade que determina
o seu sentido. Pois é somente nesta hipótese que nós podemos
“acreditar na sua palavra”, quando falam o que passa em suas
mentes. É isso que é a pedra angular das relações interpessoais.
Wittgenstein afirma que, se um leão pudesse falar, ainda as-
sim não o entenderíamos.60 Considere o que aconteceria se ti-
véssemos de aceitar o discurso emitido pela boca do leão como
uma expressão de sua mentalidade. Reconhecemos duas possi-
bilidades desde o início. Ou o orador é o leão, ou não é. Se não
for, pode ainda parecer possuir uma identidade mental própria.
Em tal caso, falaria por meio do leão, habitando o leão como
uma dríade habita uma árvore. Nós prontamente imaginamos
tais espíritos nos objetos que nos cercam, e é natural que os po-
vos primitivos realmente acreditem neles, os temam e adorem.
Isso não quer dizer que haja qualquer possibilidade real, de dic-
to ou de re, de que exista um espírito no leão ou na árvore. Mas
é uma idéia que podemos conceber e elaborar, e se não houves-

60 L. Wittgenstein, Investigações Filosóficas, tr. G. E. M; Anscombe, Oxford, 1952, parte I,


seção 244, e parte II, seção XI, p. 223.

78
capítulo 3 - pessoas

se nenhum lucro emocional considerável ao fazê-lo, metade da


nossa literatura não teria sentido.
Agora, o leão, ao contrário da árvore, tem uma mentalidade
própria independente. Seja a voz dele ou não, o leão ainda tem
seus próprios desejos, sensações e satisfações leoninos. Portan-
to, faz sentido nos perguntarmos o que seria verdadeiro se o
discurso dito por ele fosse uma expressão da mentalidade do
leão, ao invés de algum espírito que o possui. Considere o leão
de Androcles. Ele ruge, e uma voz sai da sua boca dizendo: “Eu
rujo. Além disso, há um espinho na minha pata. Eu não sou
capaz de me apoiar na dita pata. De fato, meu comportamento
exibe o padrão de desorganização característico da dor. Portan-
to, parece que estou com dor”. Suponhamos também que todas
as “autoatribuições” do leão sejam dessa natureza, e imagine-
mos também que muitas delas estejam simplesmente erradas,
mesmo quando enfaticamente afirmadas. Em tal caso, a voz está
claramente descrevendo o estado mental do leão assim como
descreveria o estado mental de qualquer outra coisa, usando a
base pública comum, nem exigindo nem alcançando qualquer
imunidade especial de erro ou dúvida. A voz do leão é, portan-
to, a voz de um “observador” do comportamento do leão, com
a única reserva de que o observador usaria “ele”, e a voz usa
“eu”. Mas então, se é assim, o “eu” neste caso na verdade quer
dizer “ele” – a distinção entre as duas idéias (de si e do outro)
foi quebrada. As atribuições da voz para o leão não são autoa-
tribuições do leão, mas as atribuições de algum outro ser. O leão
está possuído, mas não inspirado.
Como podemos combinar o leão com sua “voz”? Devemos
conceder à voz apenas os poderes de autoatribuição privilegia-
da de que tenho falado. A voz deve ter um tipo especial de au-
toridade. Não pode, exceto ocasionalmente e por razões mui-
to especiais, cometer erros sobre a mentalidade do leão. E seu
conhecimento deve ser “imediato”, sem depender de nenhuma
observação. Em outras palavras, a voz deve obedecer a regra de
autoridade. Esta não é apenas uma regra que a voz segue; tam-
bém é uma regra que ela obedece. É assim que a voz deve enten-
der suas próprias “autoatribuições”. Deve tomar como absurda
a sugestão de que ela possa estar errada. Assim que começa a
fazê-lo, corpo e alma estão unidos. A voz está começando a

79
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

expressar um indivíduo – ela mesma – e não apenas para se


referir a um organismo animal com o qual não tem nenhuma
relação “interior”. Ela agora entende a palavra “eu”: na verda-
de, apenas um indivíduo pode entender essa palavra: somente
um indivíduo conseguiria entender não apenas o que é referido
por “eu”, mas também o uso do “eu” como um instrumento de
comunicação.
Claro, é óbvio que quando a voz diz “Eu estou com dor”,
só o faz quando o leão está com dor. Os relatos das sensações
podem ser incorrigíveis, mas mesmo quando verdadeiros, não
são necessariamente verdades. Somente quando a voz do leão,
de fato, obedece a regra de autoridade, podemos conceder que
ele entenda o conceito de indivíduo. Sobre o tipo de “fato” que
estamos falando, também é uma importante questão filosófica.
Daremos um relato detalhado de como as coisas devem ser se é
que há conhecimento incorrigível e imediato.61 Mas essa não é
minha presente preocupação. Prefiro considerar a regra de au-
toridade que repousa sobre este fato. Como é possível tal regra?
Como podemos impedir a possibilidade de erros? Certamen-
te deve haver um ponto em que uma criança quer dizer o que
nós queremos dizer com a expressão “eu estou com dor”. Como
podemos, então, insistir que, daqui em diante, ele não comete-
rá nenhum erro no uso essa frase? Uma das observações mais
célebres de Wittgenstein é uma referência bastante útil para o
momento.62 Nenhum comportamento linguístico pode determi-
nar logicamente a sua própria sequência, uma vez que o tempo
passado não pode determinar logicamente o futuro. Um homem
pode “seguir uma regra” assim como nós, e ainda assim, em al-
gum momento futuro, divergir de nós, insistindo o tempo todo
que o que ele está fazendo é o mesmo que sempre fez. Não po-
demos estabelecer, de uma vez por todas, e sem qualquer possi-
bilidade de dúvida, que o outro realmente entende uma palavra
assim como nós – seja essa palavra “ele” ou “eu”. A questão é
que, se ele começa a cometer enganos no uso do “eu”, isso mos-
tra ou que deixou de compreender a palavra (como ocorre com

61 Houve uma tentativa, feita de duas formas contrastantes, por D. C. Dennett, Content and
Consciousness, Londres, 1969, e por H. P. Grice, “Method in Philosophical Psychology”,
Presidential Address to the American Philosophical Association, 1974-5.
62 Ver Investigações Filosóficas, parte I, seções 172 et seq.

80
capítulo 3 - pessoas

alguns psicóticos) ou que sempre entendeu essa palavra errone-


amente (uma possibilidade mais preocupante). O problema da
distinção entre essas alternativas é grave: mas é um problema
geral na teoria do significado, e não tem nenhuma relação espe-
cial com o “eu”.63
Além disso, nada na regra da autoridade de primeira-pessoa
exige que, sempre que alguém diz que está com dor, seja verdade
que esteja com dor. Implica somente que, se o enunciado não é
verdadeiro, isso não ocorre por um engano, mas por falta de
sinceridade. Há muita controvérsia sobre o conceito de since-
ridade. Teremos que ter cuidado para não criar mais uma vez
a dicotomia absoluta entre interno e externo, sujeito e objeto,
que alimenta a ilusão cartesiana. Mais adiante neste capítulo,
e no Capítulo 11, vou introduzir um conceito de “integridade”
que contém, creio eu, as sementes de uma teoria da sinceridade.
Uma consequência da ênfase na sinceridade é que, se alguém diz
falsamente que está com dor, nós podemos censurá-lo. Ele não
pode mais retirar o que disse alegando ignorância: sua única
desculpa é que não quis dizer isso. Nós o fizemos, com efeito,
responsável por sua declaração.
Dir-se-á, no entanto, que o problema original – ou, pelo me-
nos, grande parte dele – permanece. Como podemos responsa-
bilizar o outro por suas declarações em primeira-pessoa? Não é
esta a mesma pergunta com que começamos: por que, quando
falamos sinceramente, tais declarações são verdadeiras? Encon-
traremos uma resposta simplesmente por mostrar que temos
certo conceito – o conceito de indivíduo – em que o privilégio
de primeira-pessoa está consagrado de forma inabalável?
Alguém pode dizer que eu realmente ofereci uma resposta
para a questão do privilégio de primeira-pessoa. É preciso re-
conhecer, no entanto, que até agora dei apenas uma descrição
– ao invés de uma explicação – do caso em primeira-pessoa. Se
eu estiver certo, o privilégio de primeira-pessoa está incorpora-
do na nossa concepção de pessoa. Para entender esse conceito,
devemos examinar as formas de compreensão intencional que

63 Alguns filósofos extraíram conclusões radicais da generalidade dos argumentos de


Wittgenstein; ver, por exemplo, S. Kripke, Wittgenstein on Rule-Following and Private
Languages, Oxford, 1982.

81
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

medeia e que têm os seres humanos como seu foco. É em tal


sentido, creio eu, que a resposta completa para o problema da
primeira-pessoa será encontrada.
Esse sentido ficará mais claro se nos voltarmos a outro con-
ceito fundamental para as relações interpessoais – o conceito de
intenção. Nossas expressões de intenção também são dotadas
de uma forma de certeza da primeira-pessoa – a certeza do que
vamos fazer. Se um homem diz que vai fazer alguma coisa, en-
tendendo o que diz e dizendo isso sinceramente, então – desde
que isso seja uma expressão de intenção – ele realmente vai
fazer a coisa em questão, ou pelo menos tentar fazê-la, quan-
do surgir a ocasião. Ou, se ele não a fizer, é porque mudou de
idéia. A regra de autoridade aqui é, naturalmente, muito mais
complicada do que aquela dada pelas sensações. Ela pode ser
vista como uma espécie de limitação elaborada sobre as expli-
cações que podem ser dadas para a falsidade das declarações
em primeira-pessoa sobre o futuro. Elas podem não ser since-
ras; podem ser mal interpretadas; podem não ser decisões, mas
previsões; podem ser substituídas por uma mudança de idéia.
Talvez “fraqueza de vontade” seja uma quinta “rota de fuga”;
talvez autoengano seja uma sexta. O que não é permitido, no
entanto, é uma expressão sincera de intenção que não seja nem
cancelada nem cumprida.
Vou me concentrar na terceira “rota de fuga” – a distinção
bem conhecida entre previsão e decisão64 – uma vez que ela
proporciona uma ilustração vívida do porquê de um conceito
responder à regra de autoridade é tão útil para nós. Para formar
uma intenção, é necessário considerar o futuro, e ver a si mes-
mo desempenhar um papel ativo e determinante nesse futuro. É
preciso, simplificando, “identificar-se” com o seu futuro eu. Essa
atitude contrasta com outra – a de “alienação” em relação ao
seu próprio futuro – em que se vê a si mesmo não como ativo
e determinante, mas como a vítima passiva de forças externas
e do próprio passado, conduzido sob o impulso de causas que
estão fora do seu controle.

64 Ver, por exemplo, o ensaio seminal de S. Hampshire e H. L. A. Hart, “Decision,


Intention, and Uncertainty”, Mind, vol; LXVII (1958), p. 1-12. Também ver outro
trabalho de Hampshire, Thought and Action, Londres, 1956, cap. 2.

82
capítulo 3 - pessoas

O que está envolvido no primeiro tipo de atitude – a atitude


de identificação com um agente futuro? A intenção envolve uma
crença sobre o futuro,65 mas uma expressão sincera de intenção
não pode ser apenas o resultado do raciocínio indutivo. Nas pa-
lavras de Elizabeth Anscombe, a intenção e a previsão diferem
em sua “direção de ajuste”66 com a realidade. Ao dizer “eu vou
fazer isso”, eu estou assumindo a responsabilidade de garantir
que isso será feito; na previsão de que hei de fazer isso, eu es-
tou, caracteristicamente, propondo uma hipótese sobre como o
mundo será, sem assumir qualquer responsabilidade por isso.
No primeiro caso, devo tentar fazer o que eu digo e, na medida
em que apoio minha afirmação, o faço com razões práticas. Por
isso eu tenho uma certeza peculiar de que eu devo mesmo tentar
fazer o que digo: não ter essa certeza é ser hipócrita. É em virtu-
de deste tipo particular de certeza que as expressões de intenção
podem ser entendidas como obedientes à sua própria regra de
autoridade de primeira-pessoa.
Segue-se que, se eu tiver intenções, também terei alguma me-
dida da razão prática. Suponha que alguém expresse a intenção
de fazer x, e perceba que a única maneira de fazer x é através de
y, mas mesmo assim negue a intenção de fazer y. Ele deve se con-
siderar comprometido à veracidade das seguintes proposições:
“eu faço x”; “Eu faço x somente se fizer y”; “Eu não faço y”.
Em outras palavras, ele está comprometido com crenças contra-
ditórias. De modo que, se ele tem razão teórica – que o leva a
rejeitar essas contradições – ele tem razão prática também. Ele
é capaz de raciocinar sobre os meios para seus fins. Uma vez
que a capacidade de entender as inferências normais é essen-
cial para a compreensão da linguagem, podemos ver que uma
conexão foi criada entre a posse da expressividade e a posse de
ação racional. Esta é apenas uma parte dessa cadeia de conexão
que une intenção, ação racional, linguagem, a autoconsciência
e a perspectiva em primeira-pessoa em uma única idéia, e que
constitui a elaboração plena do conceito de pessoa.
O conceito de intenção, como já o caracterizei, só pode ser
aplicado para certos fatos a respeito do animal humano. É um

65 Ver as justificativas em H. P. Grice, “Intention and Uncertainty”, Proc. Brit. Acad.,1974.


66 Direction of fit – NT.

83
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

fato que essas afirmações sobre o futuro, apontadas como ma-


nifestações de intenção, são geralmente acompanhadas pela
tentativa do agente de realizar o que elas representam. Mas um
fato repousa uma prática importante. Dada a verdade geral de
que uma pessoa, em algum momento, tentará realizar suas ex-
pressões sinceras de intenção, essas expressões nos fornecerão
um meio peculiar de acesso ao seu comportamento futuro. Po-
demos agora, com efeito, argumentar contra o que ele pretende
fazer. Como Anscombe demonstrou, é precisamente a possibili-
dade de “argumentar contra” que é a marca distintiva não ape-
nas das intenções para o futuro, mas também da ação intencio-
nal.67 Nós podemos mudar o comportamento de uma pessoa
persuadindo-a a alterar suas declarações de intenção, e ela vai
mudá-las na medida em que for racional e que nossas razões
forem boas. Assim, temos um meio direto de acesso, através
da razão, àquele núcleo de atividade que é a fonte do seu com-
portamento. Quando este meio de acesso falha – ou porque o
agente é incapaz de aceitar razões (caso de irracionalidade), ou
porque a conexão factual entre a declaração e o desempenho é
rompida (caso de insanidade) – não temos nenhuma maneira de
lidar com a pessoa, exceto através das manipulações da ciência
preditiva. O agente tornou-se paciente.
Supondo que alguém expresse intenções, nos permitimos
confiar em sua palavra, tanto agora como no futuro. Mais uma
vez, o estamos responsabilizando – desta vez por seus atos. Se-
gue-se que as razões dadas para mudar o que ele diz também
mudarão o que ele faz, e a linguagem se torna um meio de aces-
so tanto ao seu presente estado mental quanto à sua atividade
futura. Nossa atitude em relação a ele pode agora destacá-lo
como o ponto focal de uma rede de intenções, como um agente
capaz de se comprometer com o seu futuro, e assumindo a res-
ponsabilidade por seu passado, como uma criatura com uma
perene “autoidentidade”. Diante de tal ser, posso razoavelmente
sentir gratidão e ressentimento, admiração e raiva. Ele é o obje-
to possível de toda uma variedade de respostas “interpessoais”,
através das quais nossas vidas como seres morais são principal-
mente realizadas.

67 G. E. M. Anscombe, Intention, Oxford, 1957.

84
capítulo 3 - pessoas

Quando estou interessado em alguém como pessoa, então


suas próprias concepções, suas razões para a ação e suas de-
clarações de vontade são de extrema importância para mim.
Na tentativa de mudar sua conduta, eu procuro antes de tudo
mudar estas coisas, e aceito que ele, por sua vez, possa ter razão.
Se eu não estiver interessado nele como pessoa, no entanto; se,
para mim, ele é um mero objeto humano que, para o bem ou
para o mal, jaz em meu caminho, não terei nenhuma considera-
ção especial por suas razões e decisões. Se eu tentar mudar seu
comportamento, eu devo (se eu for racional) tomar o caminho
mais eficiente. Por exemplo, se uma droga é mais eficaz do que
o cansativo processo de persuasão, vou usar uma droga. Tudo
depende da base disponível para a previsão. Para colocar na
linguagem que Kant tornou famosa: eu vou tratá-lo como um
meio, e não como um fim. Pois seus fins, suas razões, não têm
mais soberania para ditar as maneiras com que eu ajo em re-
lação a ele. Eu estou alienado dele como um agente racional, e
não me importo se ele está alienado de mim.
Assim como podemos tomar uma atitude com outra pessoa
que não envolva dar prioridade especial às suas atribuições in-
dividuais, podemos tomar essa mesma atitude com nosso pró-
prio “eu” futuro. Eu posso deixar de considerar minhas próprias
considerações sobre o futuro como tendo qualquer autoridade
especial na determinação de como as coisas serão. Nesse caso,
eu não posso dizer realmente que tenho intenções: todas as mi-
nhas declarações sobre o futuro se tornam previsões ao invés
de decisões. Elas se baseiam na, e são refutáveis pela, evidência
disponível. E é assim que eu as considero. Mas se eu não tenho
intenções para o futuro, parece que a minha atitude para com o
meu passado deve ser semelhantemente indiferente. Pois como
eu posso assumir a responsabilidade por qualquer coisa se eu
não tenho nenhuma intenção de consertá-la, nem nenhum sen-
tido de que procedeu de qualquer atividade planejada originada
em mim? Atitudes como remorso, autocomplacência e orgulho
não se tornam apenas irracionais, mas impossíveis. Dificilmen-
te é desejável ser assim, pois, como vou defender no Capítulo
11, esta erosão constante da vontade priva-nos da própria ca-
pacidade de valorizar o que possuímos atualmente. E como se
pode desejar racionalmente um estado em que algo não pode
ser desejável quando obtido? Parece, então, que não podemos,
85
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de forma consistente com a nossa natureza racional, rejeitar os


hábitos de autoatribuição que estão consagrados nas regras de
autoridade da primeira-pessoa.
O resultado da discussão acima é o seguinte:
1. Não pode haver uso verdadeiro da linguagem sem os pri-
vilégios do caso em primeira-pessoa.
2. Em virtude do privilégio da primeira pessoa, um homem
torna-se não apenas um ser racional, mas também um agente
racional, cujo comportamento é alterado quando lhe oferecem
razões para a ação (desde que as razões sejam boas, e ele seja
racional).
3. Por conseguinte, há uma prática pública, entre seres auto-
conscientes, de dar e receber razões, que o agente incorpora em
sua própria concepção do que é e faz. Ele se vê como um agente
entre muitos, responsável por suas ações e convidado a agir por
razões que também possam justificar sua conduta. Ele trata a si
mesmo como pessoa, e exige que os outros o façam, que signifi-
ca aceitar suas razões e suas autoconfissões – seu “consentimen-
to” – como a principal via para sua conduta e emoções. É sobre
nessa prática pública de dar e receber razões – que poderíamos
ser chamar (no espírito de Oakeshott)68 de conversa moral –
que nossas formas de lidar com as pessoas estão fundadas.
O mundo contém, então, uma classe de entidades a que nós
mesmos pertencemos, e que são os possíveis objetos de um com-
plicado padrão de resposta. Elas podem ser persuadidas, edu-
cadas e criticadas; podem ser atendidas em igualdade de con-
dições; e cada uma possui uma “esfera de responsabilidade”,
dentro da qual é responsável por aquilo que ocorre. Vou usar
o termo “responsabilidade” para indicar o fato de que um ser
racional é tanto responsável quanto persuasível. Eu vou ignorar
as complexidades que seriam necessárias para demonstrar – o
que eu acredito, no entanto, ser verdade – que essa idéia é a raiz
das concepções morais e legais de responsabilidade.69 Também

68 Michael Oakeshott, “The Voice of Poetry in the Conversation of Mankind”, em


Rationalism and Politics, Londres, 1968; e On Human Conduct, Londres, 1974.
69 A crescente ênfase sobre o conceito de responsabilidade, em vez do conceito de
liberdade, tem sido bastante útil na compreensão da atribuição de responsabilidade
legal. Ver os ensaios de H. L. A. Hart em Punishment and Responsability, Oxford, 1968.

86
capítulo 3 - pessoas

vou ignorar os argumentos que dizem que para o conceito de


liberdade ter qualquer significado real, deve ser explicado em
função da responsabilidade. No que se segue, no entanto, vou
usar muitas vezes a palavra “liberdade”: ela vividamente capta
o fato de que pensamos sobre o ser responsável e respondemos
a ele de maneiras que o distinguem do resto da natureza, e que
o coroam com um halo metafísico. Ressentimento, raiva, admi-
ração e estima – todos atribuem “liberdade” a seu objeto. Na
verdade, em relação ao ser livre, podemos sentir respostas que
nunca sentiríamos, salvo pela imaginação antropomórfica, em
relação aos animais. O conceito de “pessoa” é usado para des-
tacar os objetos dessas respostas e outras similares.
“Pessoa” não denota um tipo funcional, uma vez que não
existe um conjunto especificável de propósitos que orienta e li-
mita o emprego deste conceito. Também não denota uma espé-
cie natural, apesar de todas as pessoas terrenas serem, de fato,
membros da espécie natural “ser humano”. A pessoa entra em
nosso Lebenswelt como o alvo das respostas interpessoais. Uma
descrição científica de tribo pode muito bem prescindir de tal
idéia, assim como a descrição científica da mesa dispensa a idéia
de cor. Mas isso não altera o fato de que percebemos o mundo
em termos pessoais, e que nossa felicidade depende totalmente
disso. Claro, eu disse pouco sobre as muitas respostas de que as
pessoas são alvo. Basta dizer que são tão abrangentes quanto a
idéia de responsabilidade – como a idéia de que um ser pode ser
responsável por algo dito ou feito. Como veremos, elas incluem
muitas emoções que podemos, em nossa generosidade natural
em relação à criação, instintivamente imaginar que comparti-
lhamos com os animais.
A “atitude interpessoal” lança, no entanto, uma estranha
sombra metafísica, que aparece em todos os nossos pensamen-
tos sobre o outro, e que gera a idéia de uma individualidade
completamente irrefutável. Como resultado do hábito de autor-
referência, e do uso autoritário do “eu”, instintivamente acredi-
to que estou usando o termo para me referir, não a este animal
de cujos lábios minha voz emerge, mas a outra coisa. Eu sou eu

Meu argumento, de que os conceitos legais e morais podem ser entendidos em função
da idéia mais básica de responsabilidade que invoco nesta seção, é provavelmente tão
antigo quanto o Ética a Nicômaco de Aristóteles.

87
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mesmo, e o que eu sou essencialmente, conforme acredito, é o


indivíduo que eu sou. É fácil detectar a ilusão gramatical nessa
idéia – a ilusão de que o pronome “eu”70 refere-se a uma “indi-
vidualidade” que é “minha” – mas não é mera ilusão gramatical
que nos leva a subscrevê-la. (Na verdade, é nos falantes de lín-
guas latinas e eslavas que essa ilusão teve seu efeito mais devas-
tador, já que para essas pessoas o pronome reflexivo é metafisi-
camente inocente.) A idéia é, de fato, um irresistível subproduto
da compreensão diária da ação racional. Como Kant mostrou
de forma bastante perspicaz, é uma “idéia da razão”, gerada au-
tomaticamente por nossa necessidade de constantemente trans-
cender os limites do pensamento legitimado.71 Porque o “eu”
parece transparente para si mesmo, completamente desvelado a
si mesmo, e porque todos os meus projetos, todos os meus direi-
tos e responsabilidades, e todas as minhas crenças e sentimentos
são atribuídas a essa coisa, surge irresistivelmente a idéia de que
eu sou, essencialmente, esse eu que conhece a si mesmo, este
sujeito que se esconde dentro, atrás ou além do organismo, mas
que não pode ser idêntico com o organismo pela simples razão
de que os estados corporais e a substância deste organismo per-
manecem obscuros para mim, enquanto minha vida mental é
completa e totalmente conhecida.
Além disso, é como se me fosse apresentado, na minha ex-
periência interior, um exemplo de individualidade pura que é
tanto mais imediata e mais metafisicamente firme até mesmo
do que a apresentada pelo organismo animal. O eu não pode
ser dividido, nem pode ser constituído de qualquer outra for-
ma a partir de outros indivíduos. Isso é mostrado de maneira
bastante clara nos casos de dupla personalidade, que rapida-
mente obrigam-nos a falar não de um eu composto de várias
partes, mas ou de um único eu em um estado de perturbação,
ou de uma pluralidade de eus encarcerados um único invólucro
animal.72 O eu é um átomo puro, cuja existência individual me

70 O pronome reflexivo aqui usado é myself – eu mesmo – NT.


71 Ver Kant, “Os Paralogismos da Razão Pura”.
72 Ver, no entanto, os casos discutidos por T. Nagel, “Brain Bisection and the Unity of
Consciousness”, em Mortal Questions, Cambridge, 1979, em que Nagel apresenta razões
para duvidar da qualidade “atomística” do indivíduo, mas não o suficiente para pensar
que poderíamos supri-la por algo mais convincente.

88
capítulo 3 - pessoas

é totalmente familiar, uma vez que em nenhum momento eu


tenho que descobrir nada sobre ele para conhecê-lo como ele é.
Foi de tais pensamentos que nasceu a idéia de Leibniz da môna-
da – a substância anímica que é o único indivíduo verdadeiro, e
que nunca poderia ser dividida ou destruída.
Mais ainda; este eu é uma coisa ativa. Sou eu quem toma re-
soluções, com base em argumentos e interesses que são também
meus. Parece, portanto, que a ação brota de mim, e não do cor-
po através do qual eu ajo – pois ele não ouve razões mais do que
um carro ou uma vaca. Assim, junto com a idéia metafísica do
indivíduo como o verdadeiro locus da minha individualidade,
vem a idéia de vontade e sua liberdade. Eu sou essencialmente
um sujeito livre, cuja individualidade e liberdade são aspectos
complementares de uma única condição.
Essas idéias tiveram uma história distinta, começando em
Kant, passando por Fichte, Hegel e Schopenhauer, até Heideg-
ger e Sartre. Nenhuma discussão posterior foi além da brilhante
exposição de Kant, em que ele mostra que tal imagem metafí-
sica está implícita não só no nosso conhecimento de primeira
-pessoa, mas também em todos os nossos pensamentos morais.
Assim como Descartes tentou proporcionar um fundamento
metafísico para o conhecimento em primeira-pessoa ao postu-
lar a existência de um indivíduo imaterial e indivisível – talvez
até mesmo indestrutível –, Kant (que absolutamente rejeitou o
raciocínio de Descartes) tentou fornecer um fundamento me-
tafísico para a visão em primeira-pessoa da ação ao postular a
existência de um “eu transcendental” cuja liberdade está além
do alcance das leis da natureza. Como Kant reconheceu, essa
idéia está cheia de dificuldades insuperáveis. Como, por exem-
plo, esse eu transcendental pode agir no mundo empírico, que é
a sua única esfera de ação? Como uma liberdade transcenden-
tal pode lidar com as responsabilidades “imanentes” com que,
através de nossa presença física em um mundo físico, estamos
sobrecarregados por todos os lados? Assim como o ego carte-
siano se mostra impotente para explicar o autoconhecimento
que supostamente justifica a sua introdução, o mesmo acontece
com o eu transcendental, que se mostra incapaz de justificar a
razão prática que nos leva de forma indelével a imaginar sua
existência.

89
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Devemos aprender algo com Kant. O eu transcendental é


uma idéia inevitável. Nossa autoimagem como seres racionais
inflige essa idéia em nós. Ao mesmo tempo, a idéia é impotente
para resolver as ansiedades metafísicas que nos levam a invocá
-la, ou para nos mostrar o que a liberdade humana pode real-
mente querer dizer. Devemos olhar para a questão assim: somos
animais, e nossa individualidade não está mais assegurada do
que a dos animais. Também não estamos fora da natureza, nem
possuímos qualquer tipo de liberdade dos laços de causalidade
negada aos animais. No entanto, a linguagem nos impõe duas
idéias indispensáveis, a de autorreferência, que lança a sombra
do eu metafísico, e a de responsabilidade, que lança a sombra
da liberdade metafísica. Podemos tentar justificar essas som-
bras, para defender a crença de que elas são o que nós realmen-
te somos – e o primeiro passo para isso é defender (com Kant e
Sartre) que as duas sombras são realmente uma e a mesma coi-
sa, que eu sou minha liberdade, algo como este pedaço de cera
é a cera que o compõe. Alternativamente, podemos permanecer
céticos, como farei neste trabalho, e tratar essas sombras como
nada mais do que sombras. Elas nos acompanham a todos os
lugares, e a ausência delas seria de fato uma tragédia terrível,
muito pior do que a perda de uma sombra real (embora isso,
como von Chamisso mostra na história de Peter Schlemihl, tam-
bém seja bastante ruim), mas elas têm apenas uma existência
ilusória. Essas sombras têm grande alcance, e determinam nos-
sas atitudes interpessoais de inúmeras maneiras. Elas fornecem
o foco de muitas coisas que são extremamente reais na exis-
tência humana – incluindo amor, saudade e desejo – enquanto
permanecem irreais. Através de sua própria irrealidade, prome-
tem trair os anseios que norteiam sempre e a qualquer momen-
to. Pouca coisa é mais terrível do que a descoberta de que seu
amado não é um ser transcendental – que, mesmo no que mais
importa, ele possa ser superado.
Nossos pensamentos a respeito do “eu”, e nossos pensamen-
tos a respeito dos “eus” alheios, contêm, com isso, uma nova
idéia de unidade além e acima da idéia de individualidade ani-
mal. Esta unidade é imediatamente dada na experiência presen-
te. Supomos que ela se estique inquebrável ao longo do tempo,
uma vez que o próprio processo pelo qual o agente racional as-
sume a responsabilidade pelo seu passado e futuro parece gra-
90
capítulo 3 - pessoas

var um vínculo indissolúvel de unidade entre eles. Talvez não


haja necessidade metafísica subjacente à idéia de uma ação res-
ponsável. Somos, como Strindberg expressou, “conglomerados
de um estágio anterior da civilização e um presente, sucatas de
livros e jornais, pedaços de humanidade, farrapos arrancados de
roupas de férias que se desintegraram e viraram trapos – exata-
mente como a alma é costurada” (Prefácio de Miss Julie). Nos-
sos projetos e resoluções não precisam ter o tipo de coerência
implícito na idéia de um “eu” duradouro. Também foi dito que
não há absurdo lógico na idéia de uma fragmentação tempo-
ral completa do “eu” ao longo do tempo,73 um prazo constante
do sujeito e seus motivos. Nesse caso, sugere-se, seria absurdo
responsabilizar meu eu presente por algo que este corpo, sob
algum governo anterior, tenha feito. (A analogia com a mudan-
ça de governos pode nos dar a melhor forma de compreender
a nossa situação.) Não obstante, existe um ideal de integridade
pessoal que nos obriga a garantir a continuidade entre passado,
presente e futuro. Sem essa integridade, a conversação moral a
que me referi fica comprometida, assim como nossa existência
pessoal. Em todas as nossas relações interpessoais, portanto,
nós nos obrigamos a um ideal de “ação integral”, que é para
ser algo mais do que uma mera unidade animal – algo santifica-
do dentro da, e gerado pela, perspectiva de primeira-pessoa do
agente. É essa idéia de individualidade que serve para concen-
trar nossas emoções mais “sinceras”, e que eu considerarei mais
adiante no Capítulo 5.
Esses pensamentos da primeira-pessoa podem, como já disse,
ser ilusões. Mas eles são (imitando Leibniz) ilusões “bem fun-
damentadas”, que só podemos expor como tais do ponto de
vista da terceira-pessoa, e nunca a partir da absorção inalienada
da perspectiva da primeira-pessoa, que é a condição natural do
agente racional. As pessoas são caracterizadas por um ponto
de vista subjetivo, e também pela responsabilidade individual.
Mas, desde que não saiam desse ponto de vista ou deixem de
responder espontaneamente à demanda de ser completamente
responsáveis por aquilo que fazem, elas não podem renunciar
à ilusão transcendental que as inspira. Elas se vêem como indi-

73 Ver as considerações feitas por Derek Parfit em Reasons and Persons, Oxford, 1984,
parte III.

91
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

víduos unos, puros, paraísos de possibilidades, localizados fora


dos limites da causalidade natural, capazes de agir livremente e
integralmente, de modo a serem responsáveis pela ação presente
em qualquer tempo futuro. Esta imagem pode não ter nenhum
fundamento metafísico. Mas é ressurgente em nossa consciên-
cia, e em nenhuma outra circunstância é mais dominante do que
nos arrebatamentos do desejo sexual.

92
CAPÍTULO 4
DESEJO

Pode parecer estranho dizer que um animal pode sentir im-


pulsos sexuais, e não ficar excitado sexualmente. Mas isso é
em grande parte porque vemos nos estados mentais dos ani-
mais aquelas disposições sociais complexas que geram as nossas
ações. Vemos a agressividade do touro como uma espécie de
irascibilidade, embora seja evidente que a raiva – a disposição
de cobrar a retribuição para uma injustiça – é uma emoção que
nenhum touro pode sentir. Nenhum touro possui o conceito
fundamental (o de justiça) sobre o qual a raiva é fundada. A
raiva pode ser sentida apenas por pessoas, de outras pessoas,
ou de coisas consideradas como pessoas. De modo semelhante,
podemos ver a excitação de um cão como uma espécie de luxú-
ria, ou o ritual de acasalamento de um pássaro como uma espé-
cie de namoro, mesmo que não haja nenhuma possibilidade de
atribuir a tais criaturas o equipamento mental que justificaria
uma descrição tão densa do seu comportamento. Para aqueles
filósofos – como Mary Midgley74 – que repetem que temos de
olhar para as semelhanças, eu digo que temos de olhar para as
diferenças. E o lugar onde essas diferenças são mais reveladoras
é na esfera da existência pessoal e interpessoal, onde os animais
inferiores não podem invadir. Mesmo a descrição dos animais
de pastoreio como “sociais”, na medida em que implica certa
concepção do “eu” e do “outro” através da qual as relações
são mediadas, é uma falsa designação de seu comportamento. É
óbvio que a organização de um clã de gorilas pareça social; mas
onde estão as leis e instituições, as adjudicações, a alienação de
direitos, privilégios e deveres que compõem a consciência social

74 Mary Midgley, Beast and Man, Londres, 1979.


93
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

do homem? Sem a racionalidade, tais coisas nunca poderiam


existir, e mesmo que um macaco pareça possuí-las, ele apenas
as está imitando. Da mesma forma, todas essas atitudes que
envolvem uma “retroalimentação” da atividade social na expe-
riência individual, que criam o nosso senso do “eu”, estão além
da competência do gorila – incluindo o desejo sexual.
Referi-me no último capítulo a um par de atributos que penso
estarem estreitamente relacionados, e são particulares às pesso-
as: a perspectiva da primeira-pessoa e a responsabilidade. Cada
um teve muitos nomes na história da filosofia, e cada nome
reflete uma ambição teórica diferente, uma maneira diferente,
mas geralmente igualmente ousada e tendenciosa, de deduzir a
partir da linguagem autorreferencial uma teoria metafísica do
agente humano. O ego cartesiano, a apercepção de Leibniz, a
“unidade transcendental da consciência” e o “eu transcenden-
tal” kantiano, o Fürsichsein hegeliano, e o sartreano “pour-soi”
– são todas maneiras diferentes de descrever e desenvolver o
fato de que eu posso atribuir aos meus estados mentais atuais
algum tipo de autoridade epistemológica sobre mim mesmo.
Uma conseqüência dessa autoridade – uma teoria que apre-
sentei no Capítulo 3 e no Apêndice 1 – é que podemos, em geral,
fazer a distinção entre ser e parecer. Sobre algumas coisas – apa-
rências – temos o privilégio epistemológico: elas são imunes a
certos tipos de erro. Sobre outras coisas – seres – não temos esse
privilégio. A distinção não existe dentro da esfera da consciên-
cia da primeira-pessoa. Meus estados mentais atuais são como
parecem (ou, se não forem, isso é algo que requer um tipo muito
especial de explicação, como a proposta por Freud – uma expli-
cação que preserve minha “imunidade contra o erro”). Também
faz parte da autoconsciência estar ciente da distinção genérica,
para reconhecer que, sempre que temos de descobrir a verdade
presente, a verdade não é “parte de nós mesmos”. Em cada pon-
to da minha existência, eu sou capaz de propor uma distinção
entre como as coisas me parecem e como elas são. Ao fazer esta
distinção, estou identificando dentro de mim uma perspectiva
sobre o mundo, e a estou identificando como o minha.
O mesmo acontece com você. Eu não posso considerá-lo uma
pessoa sem também atribuir-lhe tal perspectiva, e uma consciên-
cia dessa perspectiva como sua. Além disso, sua perspectiva tem

94
capítulo 4 - desejo

um papel crucial na mediação das nossas relações. É através


dela que eu me aproximo de você, esperando cooperar ajustan-
do como o mundo lhe parece: esse é o passo crucial na conces-
são de razão, e, como argumentei no Capítulo 3, é o elemento
que transforma as nossas respostas ao outro de reação animal a
compreensão interpessoal. Pois ele fornece a base para todas es-
sas concepções – como responsabilidade, livre-arbítrio, direito,
dever e valor – através das quais os seres humanos percebem e
agem um em relação ao outro.
Assim, as pessoas também se distinguem do resto da natu-
reza pelo fato de sua responsabilidade. Elas não só mudam o
mundo, como podem ser premiadas ou criticadas por fazê-lo.
Esta característica das pessoas está intimamente ligada à sua
racionalidade: com o fato de que sabem por que fazem as coi-
sas, e que não precisam de nada mais substancial do que uma
razão para serem dissuadidas ou persuadidas. Elas podem deci-
dir fazer as coisas, e essas coisas, que mostram “como elas são
decididas”, também são coisas presas a elas e para quem devem
responder no fórum da conversa moral que os seres racionais
criam espontaneamente entre si. (Assim, somos culpados não
só por nossas ações intencionais, mas pelas coisas que resultam
da nossa negligência, ou por qualquer outra coisa que mostre
um defeito de caráter que podemos, em algum momento, ser
convencidos a mudar.)
Há muitas razões, algumas das quais já descritas, para acre-
ditar que a perspectiva da primeira-pessoa e a responsabilidade
estejam sistematicamente ligadas. E há muitas interpretações
metafísicas que tentam identificá-las – geralmente através de al-
guma variante da idéia de Kant de que o “eu transcendental”
também é “transcendentalmente livre”. Tratarei dessas teorias
mais tarde, uma vez que elas tentam apreender e solidificar uma
sombra metafísica dominante. Essa sombra encontra-se em
toda a nossa perspectiva interior, e também atravessa o campo
do desejo sexual.

A perspectiva de primeira-pessoa e a excitação


Na excitação sexual, o outro me parece não apenas como
algo afetado por mim, mas como uma perspectiva sobre mim.
Eu sou algo para ele, e ele para mim, e esse pensamento é parte

95
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

da fundação do que eu sinto. Mas é preciso distinguir dois ca-


sos. Pode ser que alguma parte de mim, alguma qualidade mi-
nha, ou algum aspecto meu apareça em sua perspectiva. Ou
pode ser que eu apareça. Minha mão, meu braço, ou mesmo
todo o meu corpo podem aparecer-lhe de forma visível ou tátil,
e ainda assim eu não apareço para ele, porque ele não ligou esta
aparência a uma pessoa em particular – a um sujeito determina-
do, como ele mesmo. Suponha que você acorde ao lado de um
corpo estranho. Você o sente, vê sua forma, ouve sua respiração,
mas por um bom tempo não é ninguém em particular para você,
nem mesmo a pessoa a que esse corpo pertence. Pode começar
a exibir as mudanças físicas que indicam excitação; e ao mesmo
tempo você pode não saber quem está sendo excitado – você
não atribui esta excitação a nenhuma pessoa em particular. E
quando você vê este corpo como uma pessoa em particular
(você pode até se lembrar de que pessoa), há uma súbita e esma-
gadora mudança. Só então é que esta excitação tem significado
para você, pois só assim é que se torna possível responder a ele
como outra pessoa. Agora você está vendo a condição do corpo
como expressão de uma perspectiva particular, e você pode pro-
curar ser um objeto dentro dessa perspectiva, e o recipiente de
gestos que são expressivos de outro “eu”.
Na peça Bent de Martin Sherman, dois homens confinados
em um campo de concentração nazista estão carregando pedras,
em um ritual cansativo, sob o olhar dos guardas. Eles não podem
se tocar ou ser vistos se comunicando. Mas eles são ordenados
a prestar continência de tempos em tempos a algumas jardas de
distância. Um deles, olhando à sua frente, começa a descrever
para o outro um ato imaginário de amor entre eles, represen-
tando os abraços que daria – se pudesse – em seu companheiro,
e evocando a excitação mais apaixonada. Desta forma, de for-
ma patética, mas convincente, os dois prisioneiros consumam
seu desejo. A chave para sua emoção reside na capacidade de
representação. Cada homem, através de suas palavras, é capaz
de representar a si mesmo na consciência do outro, como uma
“consciência representada”, centrada na perspectiva do outro.
O desejo que eles experimentam não pode ser separado de sua
compreensão mútua, e cada um figura na perspectiva do outro
não apenas como um corpo, mas como a encarnação de outro
ponto de vista. Assim, excitação sexual e desejo sexual podem
96
capítulo 4 - desejo

existir e ser consumados, desde que haja a interação recíproca


adequada entre duas perspectivas encarnadas da primeira-pes-
soa. A encarnação é necessária, mas não o contato corporal.
Nem é o contato corporal contato suficiente. Suponha que dois
corpos deitados dormindo em contato passem por todas essas
transformações físicas que são característicos do “sonho mo-
lhado”: este não é caso de excitação nem de desejo. O que faria
um dos dois casos é o caráter do sonho, e o papel desempenha-
do dentro do sonho pela presença encarnada do outro. Claro,
não poderia haver desejo entre duas mentes desencarnadas: o
desejo requer pensamentos do corpo, e de si mesmo e do outro
como criaturas vivas e encarnadas. O desejo é completamente
saturado, por assim dizer, pela vida. Mas a vida não seria nada
para nós sem a perspectiva que nos leva a refletir sobre isso. E
o desejo sexual, que expressa vida, também nos obriga a refletir
sobre a vida, e tomar uma parte autoconsciente em seu drama.
É em parte por força da proeminência da perspectiva da
primeira-pessoa, como um componente no sujeito e no obje-
to da excitação, que o desejo adquire o seu caráter “compro-
metedor”. Eu não posso experimentar a excitação sem querer
aparecer de determinada forma na perspectiva do outro. E a
premonição da excitação está presente no primeiro impulso do
desejo. O olhar do desejo projeta a existência de uma pessoa na
consciência do outro. E este olhar é comprometedor, pois busca
uma resposta de um ser livre, que pode sustentá-lo indignado,
ou que pode devolver um olhar. E devolver o olhar é aquiescer.
O olhar pede a você que responda para mim. Eu sou inevitavel-
mente responsabilizado por isso, e embora possa me desculpar
por conta da força da minha paixão, a última coisa que eu que-
ro é que você leve a sério essa desculpa, que me veja subjugado
pelo desejo como por uma força estranha, ao invés de andar
em sua direção triunfante sobre uma torrente de sentimentos
que eu também controlo. Minha própria ambição em relação
a você me faz “assumir responsabilidade” pelo meu desejo, e a
torná-lo parte de mim. Então, vemos – o que também podemos
ver por todo o reino da emoção interpessoal – que a perspectiva
da primeira-pessoa entra na intencionalidade de um sentimento
fazendo o sujeito responsável pelo que sente. Tão logo sofro de
uma emoção interpessoal desse tipo, minhas responsabilidades
se envolvem. Não importa que a emoção não seja algo que eu
97
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

faço – o que importa é apenas que tenha o tipo de intenciona-


lidade interpessoal que me leva a “ter propósitos em relação a”
outrem.

Revelação involuntária
Nossa existência como seres responsáveis ​​está intimamente
ligada com nossa capacidade de formar intenções – com o que os
filósofos por vezes chamam de “vontade”. E pode-se pensar que
esse fato basta para explicar todo o caráter “comprometedor” e
envolvente do desejo sexual. O desejo se expressa por padrões
de atividade deliberada, pelos quais podemos ser premiados ou
criticados. No entanto, apesar de ser, naturalmente, uma parte
da verdade, seria errado pensar que a atividade voluntária tem
aqui o tipo de importância suprema que tem em outras esferas
da comunicação interpessoal, ou que o que não é voluntária é,
em certo sentido, apenas uma expressão secundária e derivada
do eu. Pelo contrário, só podemos entender o desejo sexual se re-
conhecermos a importância central do aspecto involuntário do
comportamento humano, tanto como uma expressão de nossos
estados mentais como um momento crucial no que chamo de
“encarnação” do sujeito.75 É uma conseqüência infeliz da tenta-
tiva filosófica para conectar o “eu” com a “vontade” – ou com
sua liberdade – que muitas vezes não se viu a conexão entre o eu
e o que não é voluntário, uma conexão que é, de fato, igualmen-
te constitutiva de nossa natureza. Assim, um filósofo – no que
talvez seja o restabelecimento recente mais profundo da tese da
centralidade da vontade – defendeu que a “ação corporal é por
excelência um fenômeno do ego”, pois é através da ação que
“um homem pode sentir que ele próprio, como uma entidade
distinta está... fazendo com que sua presença seja sentida no
mundo”. Dessa forma, um homem pode “legitimamente sentir
que está representado neste evento – diferente de seus suores e
rubores, e até mesmo de seu riso”. Pelo contrário, no entanto,
nunca um homem é tão representado à perspectiva de outro
como quando fica envergonhado ou ri. A expressão em um ros-

75 Sobre a teoria da “encarnação”, ver Maurice Merleau-Ponty, The Phenomenology of


Perception, tr. C. Smith, Londres, 1962, parte I. O livro de Merleau-Ponty tem um
capítulo sobre “O Corpo em seu Ser Sexual” [“The Body in its Sexual Being”], que é, no
entanto, surpreendentemente inútil em relação às questões que levanto.

98
capítulo 4 - desejo

to é amplamente determinada por movimentos involuntários; e


ainda assim é a imagem viva da perspectiva de que “se esgueira”
dele, sendo então a imagem verdadeira e dominante do “eu”.
Seus olhares, sorrisos e rubores são as marcas involuntárias de
uma percepção autoconsciente. Eles revelam a perspectiva do
outro, em parte porque ele não os controla totalmente, e nós o
desejamos através deles precisamente quando seus movimentos
são mais involuntários – como no fechamento dos olhos e na
abertura da boca no beijo apaixonado.
Aqui devemos notar um fato peculiar: há movimentos que
são essencialmente involuntários, mas estão reservados às pes-
soas – a criaturas com uma perspectiva autoconsciente. Sorrisos
e rubores são os dois exemplos mais proeminentes. Milton co-
loca o ponto finamente in Paraíso Perdido:
pois os sorrisos da Razão fluem,
Aos brutos negados, e do amor alimento.76

Esses movimentos fisionômicos devem sua rica intenciona-


lidade a este caráter involuntário, pois é isso o que sugere que
mostram o outro “como ele realmente é”. Conseqüentemente,
eles se tornam o pivô e o foco das nossas respostas interpesso-
ais, e não menos do desejo sexual. O sorriso voluntário não é
um sorriso em absoluto, mas uma espécie de careta que, embora
possa ter suas próprias espécies de sinceridade – como no sorri-
so da realeza, que funciona como um tipo de serviço pago à boa
vontade – não é estimado como uma expressão da alma. Pelo
contrário, é percebido como uma máscara, que oculta o “ser
real” da pessoa que o usa. O sorriso deve ser entendido como
uma resposta a outra pessoa, a um pensamento ou percepção
da sua presença, e tem sua própria intencionalidade. Sorrir é
sorrir para alguém ou alguma coisa, e, portanto, quando vemos
alguém sorrindo na rua pensamos que ele está “sorrindo para
si mesmo”, o que significa que existe algum objeto escondido
em seu pensamento e sentimento presentes. O sorriso de amor é
uma espécie de reconhecimento e aceitação íntimos da presença
do outro – um reconhecimento involuntário de que sua existên-
cia lhe dá prazer.

76 For smiles from Reason flow / To brute denied, and are of love the food – NT.

99
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

O sorriso da amada não é de carne, mas uma espécie de esta-


se no movimento da carne. É um paradigma da “encarnação”:
do outro feito carne, e transformando, assim, a carne de que é
feito. Dessa forma, o sorriso de Beatriz transmite sua realidade
espiritual; Dante deve se fortalecer para suportá-lo, pois olhar
para ele é olhar para o sol (Paraíso, XXIII, 47-8):
tu já viste tantas coisas, que forte
te tornaste para meu sorriso suportar.77

É o sorriso de Beatriz que chama o poeta de volta a seu pro-


pósito celestial, e quando Beatriz o deixa com um sorriso, ela
dá lugar a Maria, que aparece num mesmo sorriso duradouro
(Paraíso, XXXI, 92, e 133-5). O simbolismo de Dante não é
forçado; pelo contrário, ele apreende o local exato do sorriso na
percepção de uma pessoa amada.
Um elemento ainda mais interessante (embora cada vez mais
raro) no drama sexual é o rubor. Isso também está fora do al-
cance da mentalidade animal. Charles Darwin escreveu78 que “o
rubor é a mais peculiar e mais humana de todas as expressões.
Os macacos ficam vermelhos de paixão, mas exigir-se-ia uma
quantidade esmagadora de evidências para nos fazer acreditar
que qualquer animal possa corar”. Por que esmagadora? A res-
posta é óbvia: não há evidência que se refira apenas à mudança
do semblante do animal que seja suficiente. A evidência teria que
nos persuadir a rever nossa descrição da mentalidade do animal,
de modo a abrir espaço para embaraço, vergonha, inocência,
culpa e – é claro – desejo sexual. Em outras palavras, ela teria
que ser suficiente para provar o animal é uma pessoa. Daí a ve-
racidade da perspicaz observação de Christopher Ricks de que:
é [a] calma e calmante falta de vergonha nos animais que os torna
uma figura tão freqüente e agradável em pinturas de nus, onde
contemplam a nudez bem-humorados nua ou olham para qualquer
outro lugar; em ambos os casos sem o menor constrangimento,
tornando mais fácil e certo para nós olhar para o nu e para eles com
a mesma equanimidade.79

77 Tu hai vedute cose, che possente / se’ fatto a sostener lo riso mio – NT.
78 Charles Darwin, The Expression of the Emotions in Man and Animals, Londres, 1872, p.
310.
79 Christopher Ricks, Keats and Embarrassment, Oxford, 1976, p. 50.

100
capítulo 4 - desejo

O rubor é uma resposta intimamente ligada com o nosso


senso de como aparecemos na perspectiva do outro. Portanto,
não é necessário que o sujeito seja observado por outro: apenas
que ele próprio acredite ser avaliado e julgado por outro. O
ponto é bem expressado por Mandeville (A Fábula das Abelhas,
Observação (C)):
deixe-os falar tantas indecências quanto quiserem no quarto ao lado
dessa virtuosa jovem, onde ficará certa de não ser descoberta, e ela
vai ouvir, até mesmo atentamente, sem corar em absoluto, porque ela,
então, não se enxerga como alguém envolvido... mas, se na mesma
circunstância, ela ouvir algo sobre si mesma que pareça desgraçá-
la, ou qualquer outra menção, de que seja secretamente culpada,
aposto de dez para um que ela vai se envergonhar e corar, mesmo
sem ninguém por perto; porque ela tem o que temer, de que ela seja,
ou, se tudo viesse à tona, fosse vista como alguém desprezível.

Precisamente porque envolve tais pensamentos da perspecti-


va do outro sobre mim, meu rubor serve como um índice crucial
de mim mesmo. É uma espécie de reconhecimento involuntário
de minha responsabilidade diante de você pelo que sou e sinto.
O pensamento do ruborizado é: “Eu, como um ser responsável,
estou representado em sua perspectiva”. É por esta razão que
os rubores são índices tão importantes não só de culpa, mas
também de inocência:
Como coraria, assim, sendo pega a brincar
Em plena inocência de pensar.
[Keats, “Eu estava na ponta-dos-pés”]80

E no rubor de modéstia, o sujeito mostra-se responsável por


sua própria inclinação sexual, tornando sua expressão, por as-
sim dizer, uma questão de política, uma negociação com o ou-
tro, e não uma questão de instinto ou liberação.
Christopher Ricks argumenta, em outro contexto, que “não
é só a associação óbvia do corar com a atração sexual ou a
fisicalidade da sensação, mas também sua estranha relação ao
involuntário que faz o rubor tão importante para a arte eróti-
ca... pois tanto o amor quanto o desejo têm uma estranha re-

80 How she would start, and blush, thus to be caught / Playing in all her innocence of thought
[Keats, “I Stood Tip-toe”] – NT.

101
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

lação com o involuntário”.81 Ricks tocou em algo que nos diz


respeito com frequência no que se segue – o papel crucial da
mudança involuntária como expressão e também como foco
do desejo. Essa mudança deve sua natureza de condutora do
desejo aos pensamentos do “eu” em que se funda. Um rubor é
atraente porque serve para “encarnar” a perspectiva do outro,
e ao mesmo tempo para exibir essa perspectiva como algo es-
sencialmente sensível para mim. O rubor de Maria ao encontrar
João, sendo involuntário, o impressiona pela sensação de que
ele o convocou – que foi, em certo sentido, causado por ele,
assim como causa o sorriso dela. Seu rubor é um fragmento de
sua perspectiva de primeira-pessoa, invocado de quaisquer regi-
ões cartesianas que possa por ventura habitar, e tornado visível
na superfície de seu rosto. Ao corar e sorrir, o outro é revelado
na vida de seu corpo. Em nossa experiência destas coisas, nossa
noção de unidade animal do outro combina com nossa noção
de sua unidade como uma pessoa, e nós percebemos essas duas
unidades como um todo indissociável. Essa experiência, eu afir-
mo, é o fundamento da nossa forma de vida.
A ereção já foi chamada de “um rubor do pênis”.82 De certa
maneira a descrição é inepta – pois o significado dos rubores
depende inteiramente do fato deles se alastrarem no rosto. Num
outro sentido, no entanto, a descrição é apropriada. Ela nos
lembra que as transformações dos órgãos sexuais são excitantes
apenas na medida em que são entendidas como involuntárias.
Quando Santo Agostinho se queixou de que o pênis é o úni-
co órgão do corpo que parece ter uma vontade própria,83 ele
estava, em parte, referindo-se à natureza involuntária da ere-
ção. Muitos dos que sofrem de impotência foram submetidos
à “prótese peniana”, que lhes permite gerar uma ereção pela
operação de uma discreta bomba.84 (Talvez se deva falar aqui
de uma ereção simulada, como se fala de um sorriso simulado.)
Nesse caso, uma ereção não é mais uma resposta sem mediação

81 Ibid., p. 54.
82 Ver Havelock Ellis, Studies in the Psychology of Sex, vol. I: On Modesty, 3ª ed., Filadélfia,
1923, p. 23.
83 Santo Agostinho, Cidade de Deus, livro XIV, cap. 23.
84 A operação e suas consequências emocionais são discutidas por Thomas Szasz, Sex:
Facts, Frauds and Follies, Londres, 1981, p. 84.

102
capítulo 4 - desejo

em relação ao outro, mas um ato deliberado. Um homem ergue


seu próprio pênis, e surge imediatamente a questão de perdas e
ganhos. Vale a pena? Será que vou apreciar? Será que ela vai?
Mais importante; existe um risco de ela descobrir o meu se-
gredo? Pois uma coisa é certa: este processo artificial deve ser
escondido – a minha ereção provoca a excitação dela somente
enquanto ela acreditar que ela seja sua causa, e não eu.
Tais exemplos, apesar de ilustrarem a importância geral das
transformações involuntários nas operações do desejo, desviam
nossa atenção das transformações mais importantes, que ocor-
rem no rosto. Embora os olhares sejam normalmente voluntá-
rios, e são, em todo caso, ações – realmente “ações básicas”,
no sentido de Danto85 – também participam desse padrão de
intercâmbio involuntário pelo qual uma pessoa é “revelada” em
seu corpo por quem a observa. Virar meus olhos para você é
de fato um ato voluntário; mas o que eu, em seguida, recebo
de você não é causado por mim. Como o símbolo de toda a
percepção, o olho significa aquela “transparência epistêmica”,
que permite que a pessoa humana seja revelada à outra em seu
corpo – “olhar para fora” de seu corpo – e, no ato da revelação,
invoque a perspectiva do outro sob a forma de rubores, sor-
risos ou um olhar recíproco. Michelangelo pede à sua amada
que faça de seu corpo um só olho, de modo que ele possa ser
totalmente transparente para si mesmo, enquanto se regozija
completamente nela:
faze de meu corpo todo um único olho
E não confia na parte de mim que de ti não gosta.86
[Soneto XXIII]

Esse anseio por transparência epistêmica envolve um dese-


jo não de tornar todas as expressões voluntárias, mas de fazer
com que os elementos voluntários e involuntários se misturem
intimamente na superfície percebida do corpo. A união de pers-
pectivas que é iniciada quando um olhar é respondido com um
rubor ou um sorriso encontra realização final em olhares com-

85 Ver A. Danto, “Ações Básicas”, em A. R. White (ed.), The Philosophy of Action, Oxford,
1968.
86 Fa del mio corpo tutto un occhio solo / Ne fia poi parte in me che non ti goda – NT.

103
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

pletamente recíprocos: a profunda atenção do “eu vendo você


me vendo”, em que nenhum de nós pode se dizer agente ou
paciente do que acontece:
Nossos olhares torcidos, amarrando
Nossos olhos numa dupla linha;
E entrelaçar nossas mãos, era ainda
O único meio para nos tornarmos um,
E as imagens buscadas em nossos olhos
Eram nossa única propagação.87

Essas linhas de Donne transmitem um dos pensamentos fun-


damentais do desejo que, nessa presente experiência do seu cor-
po, eu de alguma forma apreendi sua perspectiva e a uni com a
minha. As imagens que recebo em meus olhos, recebo dos seus,
e aquelas dos seus olhos vêm, igualmente, dos meus. Se há um
propósito coerente aqui – um que seja capaz de cumprimento –
é uma questão a que ainda voltarei.

Encarnação
Parece, então, que certas mudanças involuntárias no corpo
de outra pessoa são elementos importantes na geração e dire-
cionamento do desejo. Descrevi uma característica crucial da
intencionalidade interpessoal: a disposição de encontrar as
marcas da perspectiva do outro exibidas na superfície de seu
corpo. Um fenomenologista pode se referir a isso como o pen-
samento da “encarnação” (Sartre) ou “incorporação” do outro;
um hegeliano poderia descrevê-la como a percepção do “corpo
como espírito” – o corpo transparente, por assim dizer, à inter-
pretação mental. Tais descrições não acrescentam uma teoria
genuína para o que eu indiquei. Na verdade, se as observações
do Capítulo 1 estão certas, não pode haver nenhuma teoria des-
ses dados que não corra o risco de aboli-las – o risco de subs-

87 Our eye-beams twisted, and did thred


Our eyes, upon one double string;
So to’entergraft our hands, as yet
Was all the meanes to make us one,
And pictures in our eyes to get
Was all our propagation – NT.

104
capítulo 4 - desejo

tituir os conceitos através dos quais experimentamos o mundo


pelas idéias mais robustas que os irão explicar. A dificuldade
que nos aparece agora é a de “ficar na superfície”, por assim di-
zer: dar uma descrição do desejo sexual que seja suficientemen-
te rasa para captar o que é desejado pelo sujeito. Para alcan-
çar este resultado, será necessário nos abstermos da teoria (de
qualquer tentativa de explicar a causalidade do que é descrito)
pelo maior tempo possível. No Capítulo 7 vou enfrentar certas
questões que já podem ter ocorrido ao leitor, a fim de mostrar
os erros que surgem neste assunto quando o método científico é
invocado prematuramente.
A encarnação humana não é uma característica necessária
das pessoas – pois há pessoas sem corpos humanos e sem identi-
dade corporal de qualquer tipo, tais como empresas comerciais
identificáveis apenas
​​ por seus documentos. (Ironicamente, essas
pessoas incorpóreas são chamadas de “corporações” pela lei.)
No entanto, se há pessoas em absoluto, é necessário que haja
pessoas encarnadas. Pois como podemos identificar a ação e
a responsabilidade que atribuem a empresas se não pudermos
identificar as ações físicas das pessoas encarnadas que as repre-
sentam? Além disso, a encarnação é uma propriedade essencial
de tudo o que a possui – uma propriedade que uma pessoa não
pode deixar de ter sem também deixar de ser. Na verdade, é
possível argumentar que, do ponto de vista material (científico),
uma pessoa é idêntica ao seu corpo.88 Todas essas características
que constituem sua existência pessoal – ação, pensamento, fala
e resposta – são redescritas pelos cientistas como estados, movi-
mentos e mudanças no corpo e no cérebro. Qualquer metafísica
tolerável da pessoa humana deve levar a sério a sugestão de que,
por todos os nossos padrões normais de identidade, a “substân-
cia” a partir da qual pensamento e ação humanos emanam e a
que devem ser atribuídos é o corpo humano. Do ponto de vista
da compreensão material – a compreensão da estrutura objetiva
e da causalidade dos eventos – o eu e o corpo são uma e mesma
coisa.

88 Essa tese, uma sutil variação do que Aristóteles expôs em uma de suas mais grandiosas
passagens (De Anima, 403 a-b), foi defendida de inúmeras maneiras por filósofos
recentes. Ver especialmente Bernard Williams, “Are Persons Bodies?”, em Problems of
the Self, Cambridge, 1973.

105
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Do ponto de vista da compreensão intencional, no entan-


to, esta identidade parece fugir de nosso alcance. Identifico-me
constantemente sem referência a meu corpo, e de maneiras que
parecem excluí-lo. Além disso, eu sempre reajo a você como se
você não fosse seu corpo, mas em certo sentido, como se você
operasse através de seu corpo, que é um instrumento de seu
sofrimento e vontade. Surge, em nossas transações mútuas, a
impressão inevitável de que cada um de nós tem um centro de
existência que não é o corpo, mas o eu. Ao mesmo tempo, você
é cognoscível a mim somente através de seu corpo e seus efeitos,
e quando eu me dirijo a você, eu me dirijo diretamente e sem
hesitação a ele.
Em consequência, nossa experiência de encarnação é inci-
pientemente dualista. Em um estudo valioso, Helmuth Plessner
defende que minha relação com meu corpo é ao mesmo tempo
instrumental e constitutiva: Eu tenho o meu corpo, mas eu tam-
bém sou o meu corpo.89 Como resultado, eu vivo em um estado
de tensão no que diz respeito à minha existência física, sendo ao
mesmo tempo total e completamente ligado a ela.
A encarnação é um conceito de compreensão intencional; ex-
pressa uma característica do mundo humano que imediatamen-
te reconhecemos e respondemos, e todas as nossas referências
um do outro são também, direta ou indiretamente, referências
à encarnação. É duvidoso, porém, que qualquer idéia equiva-
lente possa figurar na compreensão material de nossa condição.
Uma ciência do homem referir-se-ia ao corpo humano como um
organismo biológico particular. E muitas vezes precisamos ver
nossos corpos dessa forma – quando feridos, digamos, quando
especulamos sobre dieta e exercício, ou como parte de nossa
contemplação da morte. Mas, ao fazê-lo, nos tornamos aliena-
dos de nossa carne, que deixa de aparecer para nós como algo
saturado com uma perspectiva de primeira-pessoa. Há uma ten-
são entre a compreensão científica do corpo humano e o enten-
dimento intencional de encarnação, que endossa a tensão ime-
diata contida na própria experiência da encarnação. Sentimos
que estamos “em casa” em nossos corpos, mas apenas porque

89 Helmuth Plessner, Lachen und Weinen, 3ª ed., Bern, 1961; tr. James Spencer Churchill
e Marjorie Grene, Laughing and Crying: A Study of the Limits of Human Behaviour,
Evanston, 1970.

106
capítulo 4 - desejo

temos a contínua suspeita de que poderíamos estar em algum


outro lugar.
A idéia de encarnação nos ajuda a entender por que trans-
formações involuntárias – “expressões” – têm uma função tão
importante na mediação de nossas atitudes interpessoais. Sorrir,
corar, rir e chorar; é precisamente a minha perda de controle
sobre o meu corpo, e seu controle sobre mim, que criam a expe-
riência imediata de uma pessoa encarnada. O corpo cessa, nes-
ses momentos, de ser um instrumento, e reafirma seus direitos
naturais como pessoa. Em tais expressões, o rosto não funciona
apenas como uma parte do corpo, mas como a pessoa inteira: o
eu se espalha em toda a sua superfície, e é “feito carne”.
Schopenhauer – cujo ponto de vista sobre estas questões é
um bom exemplo do caos que se segue da tentativa prematura
de explicá-los – diz que o rosto é o menos importante de todos
os índices de beleza, uma vez que é o menos relevante para a
função reprodutiva que subjaz e explica o desejo.90 Isso é quase
o inverso da verdade. Apesar de uma cara bonita dificilmente
superar um corpo deformado ou mutilado no despertar do inte-
resse sexual, é bem sabido que um rosto bonito pode compen-
sar muita feiúra corporal. (Considere a aleijada femme fatale,
Signora Neroni, brilhantemente representada por Trollope em
As Torres de Barchester, ou os olhos da cobra Serpentina em
O Vaso de Ouro, de Hoffman.) Um corpo bonito, no entanto,
sempre vai ser tornado repulsivo por uma cara feia, e certa-
mente nunca compensará isso. É no rosto que a nossa vida é
revelada – e revelada precisamente no que é mais involuntário.
Além disso, sendo a beleza facial em grande parte uma questão
de expressão, sua atratividade é a atratividade da própria vida.
Ao referir-se à “vontade”, Santo Agostinho também estava
chamando atenção a uma distinção real entre as mudanças in-
voluntárias que desempenham um papel na expressão da pers-
pectiva de primeira-pessoa (e, portanto, da coisa que tem von-
tade) e aquelas que não o fazem. A ereção do pênis (como o
relaxamento da vagina) é do último tipo: só pode ser entendida
no contexto de outras transformações, e é ela própria opaca a

90 A. Schopenhauer, The World as Will and Representation, tr. E. J. F. Payne, Indian Hills,
Colorado, 1958, vol. II, p. 543.

107
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

interpretação interpessoal. Suas ações estão fora de nossa aten-


ção, até que se liguem a algum drama interpessoal. (Por isso,
apesar de eu poder me apaixonar ao ver o retrato do outro, eu
não poderia ter a mesma reação a uma fotografia de seus órgãos
sexuais.) Uma excitação focada nos órgãos sexuais, sejam de
homem ou de mulher, que busca contornar o interesse prelimi-
nar no rosto, mãos, voz e postura, é pervertida. Ela pretende
focar o ato culminante de gratificação, enquanto anula nesse
ato sua distintiva intencionalidade – de sua direção para a in-
corporação da perspectiva do outro.
A razão tolera o mistério e não procura escondê-lo ou aboli-lo,
mas viver em paz com ele em uma relação de influência mútua.
Pois a razão reconhece, no final, que os mistérios surgem por
causa de sua própria criação assídua das condições em que eles
se desenvolvem, e que só pode aboli-los arriscando sua própria
capacidade de sobrevivência. (Assim, nas suas formas perverti-
das – racionalismo e Iluminismo – a razão luta contra o mistério,
preparando as condições para o seu próprio eclipse.) A encar-
nação é um mistério para nós precisamente porque, como seres
racionais, entendemos a nós mesmos a partir de um ponto de
vista da primeira-pessoa. Por consequência, a razão se estende
em uma tentativa de atenuar o estranho fato da existência corpo-
ral e conceder a ela a aparência de um papel social. Nós brinca-
mos com nossa encarnação; desenvolvemos normas sociais que
a expandem e limitam. Nós nos vestimos, disciplinamos o nosso
comportamento de acordo com uma idéia de boas maneiras, e
constantemente refinamos as ásperas demandas do corpo, confi-
nando-as a um reino secreto de imperativos sombrios e inescru-
táveis. Um desses estratagemas da razão, em seu contato próximo
com o corpo, é a transformação do sexo em gênero; ao discutir
este estratagema no Capítulo 9, tentarei mostrar como o mistério
da encarnação foi tanto acomodado quanto neutralizado no ato
sexual, e o corpo transformado, em nosso pensar, de uma prisão
para uma casa. Tal transformação do corpo é o Heimkehr do eu,
e o objetivo final da moralidade sexual.

Pessoas desencarnadas
Nem todas as nossas atitudes interpessoais exigem ou focam
na encarnação de seu objeto – um fato que precisa ser reconhe-
108
capítulo 4 - desejo

cido, se quisermos entender o papel especial da encarnação no


desejo. Nós somos animais políticos, e vivemos em circunstân-
cias de atividade coletiva, cercados e apoiados por “pessoas ar-
tificiais” que também criamos. Eu faço contratos com empresas,
tenho direitos contra eles e deveres para com eles. Eu tomo o
partido de um clube contra outro. Eu reconheço de mil manei-
ras a atividade corporativa das instituições e os direitos e deve-
res que são engendrados por ela. E esses direitos e deveres não
são meramente jurídicos. Eu posso estar sob a obrigação moral
de uma empresa que cuidou dos meus interesses, assim como
a empresa pode estar sob uma obrigação moral em relação a
mim. Claro, a identidade moral da empresa só é possível porque
os seres humanos individuais tomam decisões em seu nome e,
assim, assumem a responsabilidade por suas ações. Mas essas
decisões não são intrusões humanas arbitrárias na vida da em-
presa. Em vez disso, elas são produtos naturais – até mesmo
inevitáveis – produtos de sua própria energia e poder intrínse-
cos. Não tomar a decisão de dar um presente de despedida a
um velho e leal empregado é uma omissão pela qual a empresa
é justamente responsabilizada. A escolha moral está diante da
empresa, que, através de suas ações, tornou-se responsável pelo
destino de seus funcionários.
Eu posso estender para pessoas jurídicas muitas das atitudes
de indivíduos humanos. Eu posso amar, odiar, admirar, estimar,
desprezar e ressentir de qualquer tipo de entidade, incluindo
firmas, clubes, estados e nações. Também não precisa ser uma
“pessoa jurídica” em sentido legal. É um princípio do direito
inglês, por exemplo, que as associações sem personalidade jurí-
dica não são legalmente pessoas; no entanto, parecem ter obri-
gações e direitos, por mais difícil que seja julgar esses direitos e
obrigações.91
É um ponto fraco humano bem conhecido que entidades co-
letivas possam se tornar objetos de atitudes interpessoais, mes-
mo que não tenham qualquer ação corporativa, nem qualquer
tipo de personalidade. Assim, raças e classes podem ser objetos
de amor e de ódio, mesmo que não realizem ações intencionais,

91 Ver Salmond on Jurisprudence, 12 ed., ed. P. J. Fitzgerald, Londres, 1966, cap. 10, seção
esp. 73.

109
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

não tenham deveres, responsabilidades e direitos coletivos; mes-


mo que não sejam agentes. Nossa disposição de estender nossas
respostas interpessoais ultrapassa aqui sua competência. Onde
não há nenhuma ação, não há nenhuma pessoa – nem mesmo
uma pessoa jurídica. É o primeiro requisito de existência polí-
tica que as pessoas devam se submeter a um reinado de justiça
imparcial, em que direitos e obrigações são atribuídos apenas
aos agentes, que podem ser responsabilizados por seus atos. A
transição da vida pré-política da tribo à vida aberta e pública
da polis é a transição de idéias confusas de culpa a idéias claras
de responsabilidade – a transição, por exemplo, do juramento
de morte para o julgamento por assassinato. Há muito a ser
dito sobre essa transição – mais até do que Ésquilo expressa na
Oresteia. Mas terei de contar com uma compreensão intuitiva.
O objetivo da política é a construção de um fórum de ação res-
ponsável no terreno fervilhante do amor e ódio aglutinantes. O
século XX viu o colapso parcial desse objetivo, com partidos
tentando ganhar ou manter o seu poder através de ódio racial,
ódio de classe e amor ou ódio por idéias abstratas. Essa condi-
ção patológica contém, no entanto, uma clara indicação da nor-
malidade que ela trai: a normalidade de um Estado fundado na
ação e responsabilidade coletivas. Só tal Estado é uma pessoa
verdadeira, apto a conceder e reconhecer os direitos dos outros,
e a reivindicar a obrigação de seus cidadãos.
As pessoas coletivas podem alcançar uma espécie de “encar-
nação”. Um Estado puramente jurídico pode ter um aspecto
mais cordial, mais atraente, mais amável quando incorporado
em um povo que está vinculado por laços não formulados: la-
ços de raça, língua, cultura e história, laços que são, na nossa
percepção, feitos da carne. O Estado-nação é realmente a pessoa
artificial mais próxima, tanto na sua ação quanto em sua quase
encarnação, à pessoa humana individual, e não é surpreendente
que seja amado e odiado tão freqüentemente. No entanto, é
claro que a “encarnação” aqui alcançada não é a encarnação da
pessoa humana, mesmo que seja esta última sua principal fonte
de apelo. De um modo geral, nossos sentimentos em relação a
pessoas coletivas não exigem uma encarnação individualizada.
Por isso, seria absurdo sentir desejo sexual por uma empresa,
um clube, um escritório, um Estado ou uma nação. Embora

110
capítulo 4 - desejo

todas essas coisas possam ser amadas, nenhuma pode ser dese-
jada, pela simples razão de que nenhuma delas têm um corpo
humano que seja exclusivamente seu.
Na opinião de muitos, há também pessoas desencarnadas
que são indivíduos verdadeiros. Deus é o exemplo mais impor-
tante. Os cristãos acreditam que somente um Deus encarnado
pode inspirar o amor sincero e natural que seja a fonte da paz
terrena. No entanto, o amor dos muçulmanos por seu Deus de-
sencarnado é de um fervor incomparável. Dizem que o fervor
dirigido a Deus é, neste caso, menor do que o fervor contra seus
inimigos, e que é apenas no sufismo – que se dirige a Deus com
tanta ternura que parece um reconhecimento secreto de Sua en-
carnação – que o calor do verdadeiro amor humano entra na te-
ologia do Islã. Mas são especulações; na superfície, pelo menos,
Deus pode ser amado não apesar de, mas também por causa de,
sua desencarnação, e não apenas com um amor intellectualis. E,
se nós estendermos nossa imaginação para o reino dos diabos,
espíritos, anjos e gênios, reconheceremos de imediato que cada
atitude pessoal, com uma ou duas exceções, foram e continuam
a ser dirigidas a pessoas desencarnadas. Uma exceção impor-
tante, no entanto, é o desejo.
As pessoas nos interessam principalmente como agentes, e
é à sua ação que normalmente respondemos. Mas vemos que
esta ação emana não só de corpos humanos, mas também de
empresas, de instituições, e (estamos aptos a acreditar) de di-
vindades e poderes ocultos. Se não houvesse a encarnação hu-
mana, não haveria nenhum problema especial da identidade
pessoal. Trataríamos as pessoas como fazemos com outras fon-
tes duradouras de mudança, e determinaríamos sua identidade
de acordo com a sua continuidade. (Esta é a conclusão a que
chegou Derek Parfit, que poderia ser reprovado precisamente
por ignorar a realidade intencional de encarnação.92) No de-
sejo, no entanto, eu quero encontrar uma unidade entre seu
corpo e sua identidade pessoal, e manter em seu corpo a alma
que fala e olha a partir dele.
Embora as pessoas sejam essencialmente encarnadas para nós,
e embora nós sempre respondamos a elas enquanto encarnadas,

92 Ver Derek Parfit, Reasons and Persons, Oxford, 1983.

111
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

é apenas ocasionalmente que sua encarnação é em si o objeto


de nosso interesse, assim como é apenas ocasionalmente que
me interesso pelos edifícios da minha universidade, ao invés de
seu procedimento institucional. É só no desejo, em certas for-
mas carinhosas de amor e no ódio carinhoso do sadismo, que
você deve ser, para mim, plenamente revelado na carne que lhe
abriga.

A natureza pessoal do objeto de desejo


Ao nos referirmos à encarnação como o foco do desejo, iden-
tificamos uma importante característica distintiva – embora seja
compartilhada com outros estados de espírito. Para distinguir
o desejo desses outros estados, é necessário dizer mais sobre o
seu objetivo: o que se quer da pessoa encarnada no desejo? O
que, para colocar de forma técnica, é a intencionalidade do de-
sejo sexual? Uma imagem simples, comum a Freud, aos autores
do Relatório Kinsey e a outros volumes de um absurdo que já
esteve na moda, representa o desejo sexual da seguinte maneira.
A excitação sexual é um fenômeno localizado, um inchaço das
glândulas. Esta alteração física permite estímulo prazeroso e o
eventual clímax (orgasmo). Estes são, de acordo com a imagem,
os fenômenos radicais da sexualidade humana, e os principais
fenômenos que qualquer investigação científica deve examinar
e explicar. O mais simplório dos proponentes da imagem (por
exemplo, os autores do Kinsey)93 vê o orgasmo como algo pa-
recido com o objetivo do desejo, e a presença da outra pessoa
como a ocasião. A imagem pode, então, tornar-se completa da
seguinte forma: uma pessoa encontra outra. Isso provoca a ex-
citação, que leva ao desejo de estímulo da glândula, o que leva
à busca do outro, e ao agarramento que coloca o sujeito na
estrada para o orgasmo. Acontece que é a visão de outro ser hu-
mano que coloca este processo em movimento, geralmente um
ser humano do sexo oposto. Mas poderia ter sido um do mesmo
sexo; ou um cão, ou uma lagarta, ou uma extensão de água. A

93 The Kinsey Report (Alfred C. Kinsey, W. B. Pomery, C. E. Martin et al., Sexual Behaviour
in the Human Male, Londres e Filadélfia, 1949; Sexual Behaviour in the Human Female,
Londres e Filadélfia, 1953); mas essa visão é no mínima tão antiga quanto Freud: veja a
citação de Freud no prefácio.

112
capítulo 4 - desejo

vantagem de canalizar a resposta para os seres humanos é que


às vezes você pode convencê-los a cooperar.
Deve ser evidente, à luz de tudo o que foi dito no segundo
capítulo, que tal ponto de vista é inaceitável. Como Nagel e
Sartre defenderam, a tentativa de assimilar o desejo sexual ao
apetite ignora o componente interpessoal das respostas sexuais
humanas.94 Além disso, não é simplesmente que o objeto do
desejo – sobre este ponto de vista – não seja mais uma pessoa. É
também que a pessoa em particular só entra acidentalmente na
estrutura intencional do desejo que ocasiona. Nesse caso, ela foi
a responsável, mas poderia ter sido outra pessoa. Esta é uma das
razões porque é tão fácil de extrair dessa imagem uma idéia de
gosto sexual: alguns são “excitados” por mulheres, outros por
homens, outros por crianças, outros por porcos, cartuchos, cai-
xas de sorvete ou beterrabas. A outra pessoa pode, então, nem
ser levada em consideração. Quando o desejo sexual é repre-
sentado como “desejo de um orgasmo” ou “desejo de sensações
agradáveis nas
​​ glândulas sexuais”, o papel da outra pessoa tor-
na-se totalmente misterioso, assim como, virtualmente, todos os
complexos estratagemas da união sexual humana.
Se prestarmos atenção por um momento na linguagem co-
mum (embora seja um guia vacilante), não podemos deixar de
perceber um fenômeno singular: o objeto do desejo sexual é
identificado como a própria pessoa. O que você quer não é esta
ou aquela atividade, sensação ou liberação, abstratamente des-
critos; você quer Alberto, ou Maria, ou Titânia, ou Bottom. Há,
creio eu, uma verdade transmitida por esta expressão comum
que a análise filosófica deve reconhecer e defender. A comédia
do desejo de Titânia depende do fato de que Bottom foi trans-
formado em algo inadequado, de modo que seu desejo por ele a
leva a dar atenção ao objeto físico mais incongruente – estando,
ao mesmo tempo, bastante inconsciente do traje ridículo de seu
amante:

94 T. Nagel, “Sexual Perversion” em Mortal Questions, Cambridge, 1979; Nagel critica o


que ele chama de “visão radical adquirida” da experiência sexual – aproximadamente
a visão que expus no parágrafo anterior – enquanto Sartre (Being and Nothingness, tr.
Hazel E. Barnes, Nova York, 1956) critica de forma mais genérica a assimilação do
desejo sexual no apetite.

113
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Senta-te aqui, amado, neste leito florido,


Enquanto tento tuas amáveis faces corar,
E de rosas almíscar tua sedosa cabeça enfeitar,
E beijar tuas belas e grandes orelhas, querido.95

Titânia não ficou “excitada” por um membro da espécie burro,


mas despertou um desejo por Bottom, que é, no caso, um burro.
Pode-se dizer que este hábito de identificar a outra pessoa
como objeto do desejo não é mais que uma maneira de falar,
uma maneira conveniente de resumir as estratégias necessá-
rias para o cumprimento do objetivo de gratificação sexual.
Na verdade, porém, está muito longe disso. Isto é confirmado
por várias observações. Por exemplo, é muito difícil expressar
o desejo sexual como uma “atitude proposicional” (um “querer
algo”) sem deturpá-lo seriamente. Normalmente, qualquer fra-
se da forma “A quer B” pode ser representada como “A deseja
p” onde ‘p’ descreve uma mudança sofrida por B. “João quer o
copo de vinho” é equivalente a algo como: “João quer beber o
copo de vinho.” Esta tradução é muito difícil de fazer no caso
do desejo sexual. Enquanto há ocasiões em que se poderia de-
sejar traduzir “João quer Maria” como “João quer fazer amor
com Maria”, existem outros casos em que isso está longe de
ser óbvio. Maria poderia objetar sincera e apaixonadamente a
essa tradução da proposição de que Maria quer João. Há duas
razões para isso. Em primeiro lugar, o desejo sexual parece mais
com um vetor que ganha ímpeto do que com um projeto exato.
O sujeito pode estar extremamente confuso, a princípio, sobre
o que ele quer, e é aos poucos e através de um processo de des-
coberta que também é uma autodescoberta que seu desejo foca
em um objetivo específico. (Cf. Daphnis e Chloë, Livro I, §22:
ēthelon ti, ēgnooun ho ti thelousi).
Em segundo lugar, e mais importante, independentemente do
que se queira fazer com o objeto do desejo, o seu “ser quem ele
é” (numa aplicação individualizante dessa frase) entra essen-
cialmente em uma descrição do que é desejado. Elizabete ou
Alberto que são desejados, e não qualquer pessoa, respondendo

95 Come sit thee down upon this flowry bed,


While I try thy amiable cheeks to coy,
And stick muske roses in thy sleeke smoothe head,
And kiss thy fair large eares, my gentle joy – NT.

114
capítulo 4 - desejo

a qualquer descrição. Se João se frustra na tentativa de con-


quistar Maria, o conselho “Fique com Elizabete, ela é tão boa
quanto Maria” é bastante inadequado. Claro, Elizabete pode
consolar João. Mas a consolação consiste precisamente na ex-
tinção do desejo presente de João pela invasão de outro. Da
mesma forma, João pode fazer amor com Elizabete, pensando
o tempo todo em Maria, a quem ele abraça em sua imaginação.
Mas este “congresso de amor transferido”, como o Kama Sutra
chama,96 não é um caso de desejo transferido: o desejo era, e é,
por Maria, e Elizabete serve como um “instrumento” para sua
expressão. Independente do que Maria teria “feito para” João
(qualquer coisa que seja fiel à intencionalidade de seu desejo), o
termo “Maria” (ou algum termo de igual referência) designa o
objeto individual do desejo. Sua função é escolher uma pessoa
individual, expressando um pensamento individualizante. Po-
de-se argumentar que nenhum nome próprio realmente possa
transmitir um pensamento individualizante, e mesmo essa refe-
rência individualizante nunca está garantida apenas pelo con-
teúdo do nosso pensamento.97 Os nomes, como já foi dito, são
“designadores rígidos”, cuja referência não é determinada por
um conteúdo mental, mas pelo mundo ao qual nos referimos.
Ao mesmo tempo, no entanto, tentamos empregar nomes como
se a singularidade de seus referentes fosse o produto do pensa-
mento – como se nós mesmos, pela nossa concentração interior,
dotássemos aos nomes sua rigidez. O desejo sexual envolve um
tipo de luta mental contra o designador flácido: e a tragédia é
que é uma luta que estamos logicamente compelidos a perder.

A fenomenologia dos nomes próprios


Eu toquei em uma questão profunda e difícil na filosofia da
lógica, e antes de continuar esse assunto, vale a pena refletir

96 The Kama Sutra of Vatsyayana, tr. Sir R. Burton e F. F. Arbuthnot, Londres, 1963, p.
168-9.
97 As várias concepções sobre nomes, em que todas implicam que a referência
individualizante é alcançada de outra forma que não pela virtude do conteúdo do nosso
pensamento, são discutidas no Apêndice 2. A visão de Kripke sobre os nomes como
“designadores rígidos” está exposta em Naming and Necessity, Oxford, 1978. De uma
forma contrastante, Michael Dummett chega a conclusões parcialmente similares em
Frege: Philosophy of Language, Londres, 1973, apêndice ao cap. 5.

115
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

sobre a base fenomenológica para o que eu já disse: a base que


me leva a entender que é dada uma interpretação peculiarmente
individualizante aos nomes nos pensamentos de desejoso. Isto é
mais claramente revelado na poesia de nomes que adquirem um
papel na literatura erótica que não adquirem em outros lugares.
Romeu, Julieta, Manon, Helena, Tristão, Isolda – estes famosos
objetos de desejo erótico estão indissociavelmente ligados a seus
nomes, que são os estigmas do nosso desejo imaginário por eles.
Versos que atuam sobre o nome de um objeto desejado sempre
buscam reforçar a noção de que no nome está oculta uma qüi-
didade, uma individualidade insubstituível, e que este é o objeto
do desejo. O que é ocorre em tais versos não é o pensamento
do próprio nome (que denota um milhão de Marias, Julietas ou
Chloés), mas a misteriosa relação de referência, que permite ao
escritor ver nesse nome o único indivíduo escolhido por ele. Isso
explica a pungência da situação de Julieta quando, depois de ter
percebido que Romeu leva o nome odiado de Montecchio, ela
tenta separá-lo em pensamento do seu nome:
O que há em um nome? Isso que nós chamamos Rosa,
Por qualquer outra palavra seria igualmente doce,
Assim como Romeu, se não fosse de Romeu chamado,
Manteria essa adorada perfeição de que é senhor
Sem esse título. Romeu, abandona teu nome,
E em teu nome, que não é parte de ti,
Toma todo o meu ser.98

Como mostra a tragédia, é precisamente isso o que Romeu


não pode fazer. Abandonar seu nome é abandonar sua identida-
de, como filho desses pais particulares, herdeiro dessa particular
dívida de vingança. Como os dois amantes são apanhados na
teia do desastre, seus nomes começam a reunir para si a resso-
nância de sua paixão, e justamente o que se esforçam tanto para

98 What’s in a name? That which we call a Rose,


By any other word would smell as sweete,
So Romeo would, were he not Romeo call’d,
Retaine that dear perfection which he owes
Without that title. Romeo, doffe thy name,
And for thy name which is no part of thee,
Take all my self – NT.

116
capítulo 4 - desejo

abandonar é finalmente gravado em mármore em sua tumba


comum. Assim, antes do final da cena, Julieta já está dizendo:
A escravidão é rouca, e não pode ser dita em voz alta,
Ou então eu arrasaria a caverna onde Eco reside,
E faria sua aérea língua mais rouca do que a minha,
Com a repetição do meu Romeu.99

No Ato II, cena iii, a rejeição das reivindicações de Rosalina


é expressa por Romeu no esquecimento de seu nome, e quando
ele próprio depois se irrita contra o seu nome,
Ó, diga-me, frade, diga-me
Em que parte desta vil Anatomia
Porventura meu nome se oculta? Diga-me para que eu possa
saquear
O esconderijo do inimigo100
[III. iii]

suas palavras mostram a futilidade de seus esforços para re-


mover de sua consciência o ponto focal do amor de Julieta. Em
toda esta peça sobre a idéia de nomeação, vemos o registro de
intencionalidade sexual, que pode ser satisfeita sem a descrição
de seu objeto além da que o torna insubstituível. “No nome”,
defende Hegel, “o indivíduo como indivíduo puro é ‘avaliado,’
não só na ‘sua’ consciência, mas na consciência de todos” (Fe-
nomenologia do Espírito).

Pensamento individualizante
A intencionalidade individualizante do desejo talvez não
nos surpreenda, já que o desejo sexual é tanto uma resposta
interpessoal quanto a excitação sexual, e é parte de nossa per-

99 Bondage is hoarse, and may not speake aloud,


Else would I teare the Cave where Eccho lies,
And make her airie tongue more hoarse than myne,
With repetition of my Romeo – NT.
100 O tell me, friar, tell me
In what vile part of this Anatomie
Doth my name lodge: Tell me that I may sack
The hateful mansion – NT.

117
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

cepção do outro como uma pessoa que não vemos, por assim
dizer, apenas como um exemplo de sua espécie, substituível por
qualquer outro. Em todas as nossas relações com as pessoas,
a atitude de “respeito pelas pessoas” – a injunção, em termos
kantianos, de tratar os outros como fins em si mesmos, e nun-
ca como meio simplesmente – nos leva a atribuir um valor in-
substituível àqueles com quem nos relacionamos. Um contraste
óbvio pode ser feito aqui entre o desejo sexual e o apetite por
comida.101 Meu apetite por um prato de cenouras é acalmado
pela posse de qualquer prato de cenouras (organizado adequa-
damente). Alguém que proteste dizendo “Não, eu quero Elspeth
(nome de um prato especial de cenouras)”, protesta demais, e
incoerentemente.
No entanto, uma exceção importante ocorre aqui. Como o
Bispo Butler argumentou em seu ataque sobre o hedonismo,102
o que eu quero enquanto está diante de mim é este prato de
cenouras. Eu poderia realmente aceitar um substituto – mas en-
tão eu passaria a querer o substituto. Então, por que esse caso
é diferente do desejo sexual? Será que não é meramente uma
convenção que nos leva a dizer que quando transfiro o meu
apetite deste prato de cenouras para aquele há apenas um ape-
tite com dois objetos sucessivos, enquanto que quando transfiro
minhas atenções de Elizabete para Jane, há dois desejos, dife-
renciados precisamente por seus objetos sucessivos? Em ambos
os casos, com certeza, eu poderia dizer tanto que há um desejo,
e que existem dois – tudo vai depender do propósito da minha
contagem.
A resposta a essa objeção é longa e complexa, e vai nos ocu-
par ainda mais no próximo capítulo. Mas duas coisas devem
ser ditas o quanto antes para dissipar sua força imediata. Em
primeiro lugar, o desejo sexual é diferente do meu apetite por
estas cenouras, pois está fundado sobre um pensamento indi-
vidualizante. É parte do próprio direcionamento do desejo que
uma pessoa em particular seja concebida como seu objeto. As-
sim, surge a possibilidade – já discutida em relação à excitação

101 Meu argumento aqui é paralelo ao de Nagel (“Sexual Perversion”, p. 42-3).


102 Bispo [Bishop] Butler, Sermons, Londres, 1726, sermão I, “On the Social Nature of
Man”.

118
capítulo 4 - desejo

– de erros de identidade. O desejo de Jacó por Raquel parecia


satisfeito por sua noite com Lia, apenas na medida em que, e
durante o tempo em que, Jacó imaginou ser Raquel a mulher
com quem ele estava se deitando. Da mesma forma, eu poderia
razoavelmente pedir desculpas à gêmea de minha amante por
confundi-la com sua irmã, não apenas no ato de acariciá-la, mas
também no impulso de desejá-la. Pois em um sentido funda-
mental eu não a desejava, mas outra a quem ela se assemelha. O
desejo por um prato de cenouras não é igualmente dependente
de um pensamento individualizante, e, portanto, não dá origem
a erros de identidade. Comer o prato errado de cenouras pode
ser um mico, mas não é uma expressão equivocada do desejo –
eu realmente desejo o prato de cenouras que eu consumi. Claro
que eu posso cometer outros erros em meus apetites: posso des-
cobrir que não são cenouras, por exemplo, ou que são cenouras
de um tipo particularmente desagradável. Mas, no sentido rele-
vante, estes não são erros de identidade.
Há um contraste interessante no comportamento sexual dos
animais. Etólogos incansavelmente nos lembram dos hábitos
monogâmicos de lobos, cisnes e primatas.103 Por que isso é di-
ferente, dizem eles, do caso da fidelidade humana, e o que é
que nos leva a descrever esse comportamento em termos menos
elevados do que os que se aplicam a um casamento humano?
A resposta principal, creio eu, está na falta de pensamentos in-
dividualizantes genuínos na mentalidade animal. Mesmo que
um lobo possa ficar com sua companheira através de todas as
contingências, não é o mesmo que fidelidade ao companheiro
com base em uma concepção de quem ela é. Outra companheira
suficientemente semelhante à já existente pode ser encontrada e
aceita no lugar dela. Será que dizemos, então, que o lobo conti-
nua sua vida baseado em um engano? Ou vamos dizer, sim, que
ele continua exatamente como antes, e na mesma relação cogni-
tiva com o mundo? Se não podemos (e não podemos) fazer essa
distinção, então devemos, creio eu, aceitar a segunda descrição,
uma vez que é teoricamente mais simples: ela faz uma reivindi-
cação menos aventureira do que a primeira sobre as capacida-

103 Para uma crítica interessante, mas parcial, da tese dos etologistas, ver Konrad Lorenz,
On Agression (1963), tr. M. Latzke, Londres, 1966, cap. IX. A tese criticada pode ser
encontrada em Beast and Man, de Mary Midgley.

119
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

des intelectuais do lobo. Ela nos permite ver a “fidelidade” do


lobo como – por assim dizer – fidelidade de re. Ela não precisa
ser considerada “fidelidade de dicto”, em que as disposições de
uma criatura estão focados em um indivíduo em virtude da ten-
dência individualizante de seus pensamentos.
Como já sugeri, no entanto, a idéia de um pensamento indi-
vidualizante está longe de ser clara. Se um pensamento se con-
centra sobre um indivíduo, será certo que isso é em virtude das
circunstâncias? Os nomes realmente focam nossos pensamentos
nos indivíduos; mas isso é porque eles são designadores rígi-
dos. Sua referência determina o seu sentido, e a singularidade
de sua referência é um fato sobre o mundo, em vez de um resul-
tado dos pensamentos em que eles ocorrem. Não é justamente o
caso, portanto, do lobo, cujas emoções estão ligadas a sua com-
panheira não em virtude de sua estrutura intencional somente,
mas também porque há apenas uma loba que serve como seu
objeto?
A resposta a essa objeção está em nossa discussão sobre a
poesia dos nomes. É verdade que os nomes de adquirem o seu
sentido de sua referência. Eles são, no entanto, tratados – no
amor e desejo – como se sua referência fosse determinada pelo
seu sentido. Eles estão ligados, em pensamento, a uma idéia de
individualidade, e resumem nossas tentativas para concentrar
nosso pensamento na qüididade do outro, e no “sentido” inde-
finível de sua presença moral e emocional. Nossos pensamen-
tos interpessoais voltam-nos constantemente para o indivíduo
e para a necessidade de compreender a sua individualidade em
um ato de referência. Mesmo nossos pronomes – e, especial-
mente, o pronome “você” – adquirem esta penumbra. Daí o
desejo impotente de vingança contra um perdido e quase esque-
cido pai encontra expressão persuasiva no uso de Sylvia Plath
do pronome alemão:
Papai, eu tive que matá-lo.
Você morreu antes que eu tivesse tempo –
Peso marmóreo, um saco cheio de Deus,
Estátua medonha com um dedo do pé cinza
Grande como uma foca de São Francisco
E uma cabeça no bizarro Atlântico

120
capítulo 4 - desejo

Onde se misturam o verde leguminoso e o azul


Nas águas ao largo da bela Nauset.
Eu costumava rezar para recuperar você.
Ach, du [Ah, você].104

A natureza precisa do pensamento individualizante contido


nessa última palavra e da empresa (impossível) a que se com-
promete a autora serão o tema do capítulo seguinte.
No presente, vou oferecer uma compreensão intuitiva do
“pensamento individualizante”, a fim de considerar o seu papel
na intencionalidade do desejo sexual. Considere o seguinte: o
desejo de visitar um lugar particular; o desejo de visitar minha
antiga escola; o desejo de contemplar uma obra de arte em par-
ticular. Não são todas formas de se concentrar num indivíduo
insubstituível? Suponha que alguém me pergunte por que eu
desejo visitar Nuremberg. Duas respostas amplas podem sur-
gir. Na primeira, posso apresentar o interesse por Nuremberg
por conta de alguma propriedade que pode igualmente ter sido
exemplificada em algum outro lugar – a sua atmosfera de cida-
de provincial alemã, por exemplo. A segunda apresenta o inte-
resse por Nuremberg por si só – por conta de ser Nuremberg,
com uma história, cultura e identidade política particulares, ne-
nhuma das quais pode ser destacada da cidade. No primeiro
caso, pode-se legitimamente referir a alguma outra cidade que
iria “ser tão boa quanto”. No segundo caso, no entanto, tal
referência é, no mínimo, problemática. A frase crucial aqui é
“por si só”: um dispositivo que serve para bloquear a passagem
para o propósito, e concentrar todo o raciocínio sobre a coisa
em si. Como veremos no próximo capítulo, esta frase, que se
aplica igualmente ao objeto do desejo e ao objeto do interes-

104 Daddy, I have had to kill you.


You died before I had time –
Marble-heavy, a bag full of God,
Ghastly statue with one grey toe
Big as a Frisco seal
And a head in the freakish Atlantic
Where it pours bean green over blue
In the waters off beautiful Nauset.
I used to pray to recover you.
Ach, du – NT.

121
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

se estético, contém uma pista para a idéia de um “pensamento


individualizante”.
Não há necessidade de nos determos no segundo exemplo.
Estou interessado nesta escola porque é a minha escola; nenhu-
ma outra escola seria “tão boa quanto”, já que nenhuma outra
escola seria a minha. Mas podemos imaginar, aqui, uma espécie
de substituição irreal. Se fosse outra a minha escola, então seria
esta o objeto deste exato interesse. É apenas o elemento dêitico
da identificação original – a identificação da escola como minha
– que bloqueia a substituição. É evidente que a atenção indivi-
duante para sua amada precedeu a capacidade do poeta dizer
“Die geliebte Müllerin ist mein, ist mein!” Como vou mostrar,
o desejo sexual, a contemplação estética e certa forma de amor
são caracterizados pelo fato de que até mesmo essa substituição
irreal está descartada. Qualquer objeto que “teria sido tão bom
quanto” o objeto da contemplação estética ou do desejo tam-
bém seria idêntico ao objeto. Não existe nenhum mundo possí-
vel em que outro objeto é o objeto desse exato ato de atenção.
O estudo desses exemplos, espero, será o suficiente para in-
troduzir a compreensão intuitiva do “pensamento individuali-
zante” sobre a qual eu mantenho que o desejo sexual é a expres-
são de tal pensamento. Para defender essa sugestão, no entanto,
uma observação geral precisa ser feita, e o ponto novamente diz
respeito à relação entre o desejo e a fome. Pode-se dizer que o
desejo sexual ganha sua intencionalidade individualizante do
fato de ter um objeto pessoal. É simplesmente uma caracterís-
tica das pessoas exigir certo tipo de tratamento: o respeito que
nos proíbe de olhar para elas como passíveis de substituição. O
que distingue o desejo de fome não é, portanto, a estrutura do
impulso em si, mas um recurso independente dessas entidades a
que se dirigem. Suponha que as pessoas fossem as únicas coisas
comestíveis. Suponha também que elas não sentissem dor ao se-
rem comidas e que fossem reconstituídas prontamente. Quantas
formalidades e desculpas seriam agora necessárias para satisfa-
zer a fome! As pessoas aprenderiam a esconder o seu apetite, e
a não presumir o consentimento daqueles que observam com
olhares famintos. Tornar-se-ia um crime terrível fazer uma re-
feição sem o consentimento da mesma. Talvez, no final, o casa-
mento pudesse ser considerado como a única solução decente
para uma situação moral de outra forma intolerável. Por que é

122
capítulo 4 - desejo

que este não é um caso de fome – fome física normal – dentro


de um projeto individualizante? E, neste caso, qual é a diferença
entre este tipo de fome e o desejo?
A resposta é evidente. Em tais circunstâncias, a fome cer-
tamente geraria as cortesias que atualmente associamos com
desejo. Mas isso é devido à ausência de uma alimentação mais
adequada. Se houvesse qualquer coisa não-humana para comer,
nós certamente a comeríamos. As cortesias não vêm da estru-
tura interna de fome, mas da demanda moral inalienável que
as pessoas fazem umas das outras. Em contraste, o ser humano
é o objeto normal do desejo. O objeto do desejo deve ter não
apenas carne humana, mas também a perspectiva em primeira
-pessoa que serve para individualizá-lo em seus próprios olhos e
nos olhos de seu admirador. Colocando de outra forma: ao con-
trário da fome, o desejo sexual está interessado na encarnação
do outro, e não em seu corpo. A intencionalidade interpessoal
encontra-se, portanto, no próprio desejo, e não é imposta pelas
privações acidentais de nossa existência.

A perspectiva da primeira-pessoa no desejo


Podemos agora unir nossas duas observações principais: em
primeiro lugar, que o desejo é dirigido para a encarnação do ou-
tro, no sentido especial deste termo que venho tentando definir.
Em segundo lugar, que tem uma intencionalidade individualizan-
te inerente. Ambas apontam na mesma direção: ambas nos con-
vidam a ver a perspectiva do outro como uma parte fundamental
do objeto de desejo. É a perspectiva do outro que se torna real
para nós na sua encarnação, e que provê a imagem mais imediata
de sua individualidade insubstituível. Como as coisas parecem
para ele – estamos aptos a sentir – eles só podem parecer para
ele. Pois apenas a perspectiva dele expressa o seu verdadeiro eu.
Daí que o desejo sexual esteja alerta para cada sinal em que a
perspectiva do outro é revelada: daí decorre o caráter “compro-
metedor” do desejo que Sartre comentou.105 O desejo não é uma
ação; ainda assim, se revela nos gestos – voluntários e involun-
tários – através dos quais o eu se apresenta à observação. No
desejo, você está comprometido nos olhos do objeto do desejo,

105 Sartre, O Ser e o Nada, pp. 387 et seq.

123
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

já que você mostrou que tem projetos vulneráveis ​​a suas inten-
ções. Seu desejo não desculpa, mas culpa. “Eu queria tanto!”
pode ser uma desculpa para tocar num bolo; mas nunca é uma
desculpa para tocar numa dama. Pelo contrário, é a condenação
final. “Então era isso! Ele me queria. Que nojento!” Um toque
acidental teria sido irrepreensível, mesmo que a “sensação fosse
a mesma”. Assim como um toque celebrado no curso normal da
comunicação. É a expressão do desejo na ponta dos dedos que
compromete. Da mesma forma, quando uma mulher está re-
voltada com olhar desejoso de um homem, em seu pensamento
há algo do tipo “Como ele se atreve!” – ela tem raiva daquele
homem, que aparece para ela como responsável pelo desejo que
se revela em seus olhos. (É inegável, porém, que existem diferen-
ças significativas entre a experiência masculina e feminina. No
Capítulo 6 voltarei a essas diferenças, de modo a mostrar que a
minha ênfase nas experiências femininas não é arbitrária.)
Este senso da responsabilidade do outro pode parecer estra-
nho e injusto. Mas não se limita ao destinatário de atenções
sexuais. Ele está lá no primeiro impulso do desejo. O amante
frustrado sente que foi desprezado. Sua recusa não é apenas
um fato, como o bolo que se encontra fora de alcance. Ela é
sentida como uma reação ao desejo, que por sua vez carrega as
marcas do seu compromisso. É “injusto” que o objeto de desejo
deva ser responsabilizado por sua recusa. No entanto, todos
nós devemos aprender as delicadas negociações pelas quais a
nos desembaraçamos das atenções não solicitadas dos outros
sem ofender sua autoestima, e uma das características mais im-
portantes da educação moral consiste na aquisição do controlo
implícito nesta transação.

Ética kantiana – uma digressão


Nem todos os filósofos estavam preparados para reconhe-
cer a natureza pessoal do objeto de desejo. Kant, por exemplo,
insistiu que “o desejo sexual não é uma inclinação que um ser
humano tem para o outro como tal, mas é uma inclinação para
o sexo do outro”, tendo previamente defendido o seguinte:
O amor sexual faz da pessoa amada um objeto de apetite; tão logo
o apetite tenha acalmado, a pessoa é posta de lado como se faz com
um limão já sugado. [Comparação curiosa!] O amor sexual pode,

124
capítulo 4 - desejo

naturalmente, ser combinado com o amor humano e assim levar com


ele as características deste último, mas tomado por si e para si, não
é nada mais do que apetite. Tomado por si só, é uma degradação da
natureza humana; pois assim que uma pessoa se torna um objeto do
apetite de outra, todos os motivos de relacionamento moral deixam
de funcionar, porque, como um objeto do apetite, a outra pessoa se
torna uma coisa e pode ser tratado como tal por qualquer um.106

Obviamente o argumento de Kant está um tanto vago nesta


passagem, embora o pensamento seja o pensamento central –
reformulada na terminologia vívida do imperativo categórico
– de uma tradição que começa com Platão. A consequência da
visão de Kant é que o desejo nunca é uma forma de amor, mas
na melhor das hipóteses apenas “se combina com” amor, assim
como um interesse na figura de alguém pode ser combinada com
amor. Mas se, tomado em si mesmo, o desejo é uma degradação
da natureza humana, por que isso deve deixar de ser quando
conjugado com um estado de espírito totalmente diferente? O
amor não é um apetite, e tem a intencionalidade muito especial
das atitudes interpessoais. O apetite por carne humana é pouco
redimido pelo amor em relação à pessoa que é comida; então
por que o amor redimiria o desejo? Essa forma de pensamento
é característica da incapacidade de Kant de ver que a nossa na-
tureza animal não está apenas conjugada com – mas também
inteiramente transformado por – o aspecto da autoconsciência
que ele chama de “razão prática”, e cujo funcionamento ele lo-
caliza (em última instância) no eu transcendental. Ou melhor,
não é que ele não consiga ver, pois ele vê, ou pelo menos vê a
necessidade de um conceito de “‘encarnação”:
o corpo é parte do eu; na sua união com o eu constitui a pessoa;
uma pessoa não pode fazer de sua pessoa uma coisa.

Mas ele não consegue ver todas as consequências de tal pen-


samento, como é evidente na frase final dessa sentença: “e é
exatamente isso o que acontece na vaga libido.”107 O que é im-
possível não pode ser exatamente o que acontece.
O pensamento de Kant é parte da tentativa de criticar, do
ponto de vista do imperativo categórico, os motivos do forni-

106 I. Kant, Lectures on Ethics, tr. L. Infield, Nova York, 1963, p. 164.
107 Ibidem, p. 166.

125
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

cador. Ele quer mostrar que o fornicador está usando o outro,


e ele próprio, como uma coisa (ou seja, desafiando a segunda
formulação do imperativo categórico, que proíbe a abordagem
instrumental da natureza humana). O fornicador usa sua pessoa
como sua ferramenta, por assim dizer. (Na linguagem jurídica
tradicional, fazia parte da decência se referir à ferramenta de um
homem como sua “pessoa”.108 A perda da decência tem andado
de mãos dadas com a “instrumentalização” de Hannah Arendt,
um fato ilustrado pelo uso vulgar da “ferramenta”. É muito fácil
ver as conexões que um kantiano desejaria fazer aqui.)
Os argumentos de Kant ficam aquém do alvo; mas curiosa-
mente eles exemplificam a mesma concepção injustificada da
sexualidade humana que rejeitei anteriormente. Para Kant, o
desejo sexual é um tipo de apetite – encontra-se fora da esfera
do sentimento interpessoal, e não leva as marcas intrínsecas de
responsabilidade ou amor. Kant descarta o desejo como degra-
dado, porque acredita que seja um resíduo animal (quando na
verdade os animais não podem e não sentem isso). Basta apenas
afastar o estigma da “bestialidade” – defender, diante da per-
missiva moralidade moderna, a reabilitação de nossa natureza
“animal” – para que a moralidade libertária recebida tenha o
mesmo destino: o desejo sexual, considerado em si, está fora da
esfera da avaliação moral. A moralidade está ligada não ao ato
sexual, mas somente às suas circunstâncias secundárias. Assim,
pode-se ver a base filosófica para uma observação que tem sido
freqüentemente feita: a permissividade e o puritanismo (do tipo
exemplificado no menosprezo de Kant pela sexualidade) são os
dois lados de uma mesma moeda.
O próprio Kant não teve essa conclusão. Mas muitos dos
seus discípulos a tiveram, incluindo o sociólogo Roberto Mi-
chels (mais conhecido por sua “lei de ferro da oligarquia” do
que por suas reflexões imaturas sobre a natureza da experiência
sexual):109
o impulso sexual é claramente distinto da fome por uma questão
de importância... O objeto da fome é de origem animal ou mesmo
vegetal. A origem do impulso sexual, por outro lado, está na posse de

108 Ver, por exemplo, o caso de Fairclough v. Whipp (1951) 35 Cr. App. R. 138.
109 Sobre a “lei de ferro da oligarquia”, ver o trabalho de Roberto Michels, Political Parties,
Basle, 1915, tr. Eden e Cedar Paul, Londres, 1921.

126
capítulo 4 - desejo

outro ser humano. Abstratamente considerado, o instinto sexual não


tem valor moral, positivo ou negativo... Mas tomado concretamente,
o amor sexual tem de ser justificado nos termos do imperativo
categórico. Em outras palavras, o amor sexual, envolvendo, como lhe
é próprio, a atividade mútua de dois indivíduos, não deve consistir
no uso de uma das partes simplesmente para satisfazer a outra –
considerando que um ato sexual que não fere ninguém é indiferente,
eticamente falando e, portanto, não pode ser imoral.110

Michels deixa claro, creio eu, o fracasso da ética kantiana,


quando separada de uma teoria satisfatória do desejo sexual.
E, já que a ética kantiana é, ou se tornou, a ética predominante
de nossa civilização, o exemplo é ameaçador. Dois fatores estão
faltando na avaliação kantiana do desejo: sua intencionalidade
individualizante e seu foco na “encarnação”. É a restauração
desses fatores, como vou mostrar, que permite aos kantianos,
finalmente, apresentar um código sexual persuasivo.

O curso do desejo
Vamos retornar à discussão da intencionalidade do desejo.
O que é buscado pela pessoa que deseja a outra? Já comentei
sobre a dificuldade em afirmar o objetivo de desejo de forma
proposicional. Embora o desejo envolva uma forte ânsia pelo
outro, não há nenhuma maneira fácil de separar esse anseio da
pessoa individual que é desejada – nenhuma maneira fácil de
descrever, em termos abstratos, apenas o que o outro suposta-
mente deve fazer para me satisfazer. O outro é o meu desejo –
esse é o pensamento imediato, apreendido no poema de Rückert
“Du bist die Ruh”:
Essa ânsia por você
É o que a faz cessar.111

Até certo ponto, esta impressão é um produto composto de


coisas mais simples: da reciprocidade integral à excitação, e
dos momentos dramáticos que estão implícitos nisso. O aman-
te busca subjugar o objeto do desejo, e tenta obrigá-lo a dar
seu consentimento obrigando o seu desejo. Este é o primeiro

110 Robert Michels, Sexual Ethics, a Study of Borderland Questions, Nova York, 1914, p. 34.
111 Die Sehnsucht du / Und was sie stillt – NT.

127
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

movimento em direção à reciprocidade sexual. Na comédia de


Maquiavel, Mandrágora, Lucrécia é “seduzida” por um estrata-
gema complexo, envolvendo mentiras consideráveis, a acreditar
que deve dormir com um estranho. O “sedutor”, movido pelo
desejo por ela, apresenta a si mesmo como o estranho em ques-
tão. O detalhe que transforma esse absurdo em drama ocorre
com a descrição retrospectiva dada pelo amante (Calímaco) de
seu sucesso. Ele se revela, implora a ela com a força do seu dese-
jo, e provoca uma confissão do desejo recíproco. Só então ela se
rende, e fica claro que Calímaco não queria dormir com Lucré-
cia a qualquer custo, mas ter a oportunidade de fazer Lucrécia
se submeter voluntariamente à sua própria emoção, e à dele.
É parcialmente porque o sujeito do desejo se coloca à dis-
posição do consentimento do outro que, em um sentido muito
importante, o seu desejo tem “seu próprio curso”: ele cresce
fora da atividade mútua dos participantes, e – mesmo que pos-
sa tender nesta ou naquela direção – seu propósito permanece
parcialmente encoberto no início, pela opacidade da pessoa que
é desejada. O objeto de desejo se torna transparente para mim
apenas “no curso do” desejo.
Ao mesmo tempo, o desejo tem um reconhecível foco sexu-
al – um foco na natureza sexual, e nas partes sexuais, de outra
pessoa. Embora o outro seja tratado como uma pessoa no ato
de amor, ele é desejado como um homem, ou como uma mulher.
Isto é tão verdadeiro para o sentimento homossexual quanto
é para o heterossexual, e é uma parte ineliminável da emoção
e do drama do ato sexual. Este ato de união pode ter ocorrido
com outra pessoa do mesmo sexo, e eu me aproximo da outra
parcialmente como representante do seu sexo.
Isso não significa que eu necessariamente tenha uma concep-
ção muito clara do sexo como categoria biológica. Posso não
estar ciente do papel do sexo na reprodução, ou de qualquer
outro fato científico sobre o assunto. Posso até não ter consciên-
cia de que existam dois sexos. Suponha que Jane foi criada em
uma ilha habitada apenas por mulheres. Ainda é o caso quando,
ao olhar para Miriam com olhos de desejo, a enxerga como um
membro de um conjunto. Miriam começa a ser apreciada por
suas partes do corpo – os olhos, a boca, sua maneira de se mo-
ver ou de ficar parada. Essas são características “carregadas da

128
capítulo 4 - desejo

espécie”, e trazem a marca de uma espécie biológica, embora o


interesse de Jane nelas seja um interesse no indivíduo Miriam,
e mesmo que falte a Jane o conceito de espécie ou de sexualida-
de. Quando o desejo começa a ter foco, foca nessas coisas: ele
as escolhe, e as separa do pensamento de que os olhos, a boca
ou a postura de qualquer outra pessoa poderiam ser tão bons
quanto. No primeiríssimo movimento do desejo há, portanto,
um tipo de paradoxo: o corpo do outro é interessante porque é
um exemplo de um tipo corporal; mas o próprio interesse que
incide sobre ele insiste que não existe tal coisa, que é ele único,
insubstituível, o único objeto da presente emoção. Isto é outro
aspecto da tensão que está presente no nosso entendimento in-
tencional de encarnação.
O interesse sexual no outro tem uma tendência natural para
gravitar, no “curso de desejo”, para suas partes distintamente
sexuais: as peças que têm um papel especial na transmissão do
prazer sexual. Devemos distinguir duas formas em que essa gra-
vitação de interesse pode ocorrer: o caminho do prazer curioso,
como vou chamá-lo, e o caminho do desejo. A curiosidade sexu-
al é totalmente diferente da maior parte da curiosidade normal.
Se eu estou curioso para saber a anatomia do peixe-agulha, por
exemplo, a minha curiosidade pode ser satisfeita por uma expe-
riência de dissecação ou pela leitura de um livro – por qualquer
coisa, em suma, que transmita as informações necessárias. A
informação que satisfaz a minha curiosidade aqui também lhe
dá fim. A curiosidade sexual, pelo contrário, se renova incessan-
temente; pois o objeto da curiosidade não é a região do corpo
em si, mas a região “enquanto habitada por uma consciência
agradável”, e o prazer é uma coisa dinâmica, que tem um signi-
ficado constantemente mutável na experiência da pessoa que o
sente. A curiosidade está em parte dirigida para seu sentimento,
e, portanto, sempre avança conforme seu sentimento evolui.
O “prazer curioso” está fixado nesta experiência: é a essência
da sexualidade infantil e dos estratagemas sexuais dos pedófilos,
para quem o importantíssimo episódio sexual é de “exposição”
da parte prazerosa enquanto solicita um interesse inexperiente
nela. O “segredinho sujo” dos freudianos, no entanto, não tem
significado algum no desejo, em que a parte sexual é interessan-
te apenas levando em conta o seu papel dramático. A mulher

129
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

está interessada nas partes sexuais de seu amante, porque ela


deseja ser penetrada por ele, e senti-lo sentir prazer dentro dela.
O pênis é o avatar de sua presença, e o espaço que percorre ao
entrar nela é imediatamente invadido e ocupado pelo próprio
homem. Toda mera curiosidade é dissolvida nesta experiência;
a excitação diz respeito a toda a ação dos participantes e a tudo
o que são e significam um ao outro. A intencionalidade da ex-
citação vence e elimina a da curiosidade, direcionando a res-
posta da mulher para o outro, como o objeto completo de uma
preocupação pessoal. Ao mesmo tempo, porém, características
cruciais de sua encarnação – como o movimento penetrante de
seus órgãos sexuais – se destacam no campo de sua atenção,
nitidamente gravadas e imóveis na nuvem envolvente do prazer.

O objetivo do desejo
Qual, então, é o objetivo do desejo? A fim de responder a
esta pergunta, devemos distinguir os vários componentes da es-
trutura intencional de desejo. Os desejos dos animais têm uma
intencionalidade relativamente simples, apreendida na atitude
proposicional que denota o objetivo ou direção do desejo. Os
desejos que são indicativos de nossa natureza racional são mui-
to diferentes, e não seguem a regra da simples intencionalidade
dirigida a objetivos do desejo animal, mesmo quando há um ob-
jetivo reconhecível. Considere uma atividade humana dirigida a
objetivos – o futebol. Aqui o objetivo do jogador muda de um
momento para outro, mas geralmente pode ser resumido como
o objetivo de marcar gols. Ao mesmo tempo, existe um projeto
superior – o de ganhar – que pode não ser alcançado sem tornar
o jogo um fracasso. Os jogadores jogam não apenas para marcar
gols ou ganhar, mas pelo prazer de jogar – um prazer de trabalho
de equipe, exercício e participação envolvente em um empre-
endimento comum. Finalmente, há uma “satisfação” global que
pode ou não existir: o “bom jogo”, no qual gozo, realização e
exercício benéfico se reúnem, proporcionando uma experiência
que está cheia de significado para quem a vivencia. Se alguém
perguntasse, “Qual é o objetivo do futebol?”, a resposta poderia
ser dada em qualquer uma dessas quatro formas: há o objetivo
imediato (pontuar), o projeto mais longínquo (vencer), o motivo
(diversão) e a satisfação (uma experiência “significativa”).

130
capítulo 4 - desejo

O futebol é uma atividade sofisticada e orientada por regras,


e sua estrutura não é a mesma do ato sexual, nem mesmo do ato
realizado pelo atleta sexual, ansioso apenas por “pontuar”. No
entanto, as respostas interpessoais tendem a apresentar o mes-
mo tipo de intencionalidade em múltiplas camadas das ativida-
des sociais – o que não é surpreendente, pois são atividades so-
ciais. Considere a raiva. Ela tem como objetivo inicial a punição
– ferir quem o tenha prejudicado. A raiva de muitas pessoas não
passa dessa fase. Ao mesmo tempo, está implícito nas próprias
capacidades racionais que tornam possível a raiva que quem
está sujeito à raiva tenderá a prosseguir no caminho que a raiva
definiu para ele. Do objetivo inicial de raiva surge, como uma
continuação racional, o projeto de longo prazo de vingança e
arrependimento. O homem irritado que pode vindicar sua cau-
sa e assegurar o arrependimento do infrator não só expressou
sua raiva; ele também, num sentido importante, a cumpriu. Ele
a trabalhou até seu triunfo, e deu a ela a forma que ela natural-
mente exige. Este projeto de longo prazo exige a cooperação do
objeto. O homem irritado deve persuadir o outro a se ver pela
mesma ótica sob a qual ele é visto por aquele que está com raiva
e, assim, vir a lamentar o que fez. Uma descrição completa da
intencionalidade da raiva iria mais longe ainda, e tentaria des-
crever a raiva “satisfatória” – a raiva que, devidamente dirigida,
e devidamente processada, assegura para o sujeito os melhores
benefícios que a raiva pode conferir. Pois isso também, num ser
racional, é uma parte do objetivo da raiva, mesmo que seja um
objetivo que raramente pode ser atingido.
Voltemos, no entanto, ao desejo sexual. A teoria completa da
sua intencionalidade não será finalizada antes da conclusão des-
te livro, onde tentarei descrever o cumprimento do desejo. Mas
agora estamos em posição para descrever o objetivo inicial, e
indicar alguns dos projetos de longo prazo que esse objetivo
implica. No verdadeiro desejo sexual, o objetivo é “união com
o outro”, onde “o outro” denota uma pessoa em particular, com
uma perspectiva particular sobre minhas ações. A reciprocidade
que está envolvida nesse objetivo é alcançada no estado de ex-
citação mútua, e o caráter interpessoal da excitação determina
a natureza da “união” que é procurada. Resumindo: o objetivo
inicial do desejo é o contato físico com o outro, do tipo que é
o objeto e a causa da excitação. Nenhuma busca por excitação
131
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

entra na amizade normal ou na terna afeição em relação a uma


criança, mesmo quando estejam focadas na encarnação do ob-
jeto. A excitação é, por conseguinte, o diferencial mais impor-
tante do desejo.
À luz de nosso estudo anterior da encarnação e da intencio-
nalidade individualizante do desejo, podemos ver que o objeti-
vo do desejo, assim descrito, deve envolver o outro essencial-
mente. Ele não pode se deixar usar pelo meu propósito sexual,
sem os meus propósitos estarem focados nele como a pessoa
em particular que ele é. É ele que está encarnado na criatura a
quem eu acaricio, e é a sua perspectiva que está presa no drama
comprometedor da excitação.
Isso não proíbe a possibilidade de uma sexualidade que pula
de um objeto a outro com o prazer orgástico de novidade – a
Aphrodite pandemos da luxúria desenfreada. Só para salientar,
o que é evidentemente verdadeiro, que a “novidade” procurada
não é a de “novas sensações”, “novas posições”, “novas contor-
ções” ou qualquer coisa do tipo – mas a de novas pessoas. Em
outras palavras, o que se busca é uma renovação do objetivo
do desejo, com outra pessoa. E renovar o objetivo do desejo é
começar de novo, com um novo desejo. Até que ponto isso pode
ser feito é outra questão. Quaisquer que sejam as peculiaridades
do desejo orgástico, não é nenhuma exceção à regra de que a
outra pessoa entra essencialmente no objetivo do desejo.
Da mesma forma com a excitação, o estado do marinheiro
quando desembarca com o único pensamento “mulher” em seu
corpo. Sua condição pode ser descrita como desejo por uma
mulher, mas por nenhuma mulher em particular. Tal descrição,
no entanto, deturpa seriamente a transição que ocorre quando
a mulher é encontrada e ele se coloca resoluto no caminho da
satisfação. Pois agora ele encontrou a mulher que quer, a quem
ele pretende excitar e sobre a qual seus pensamentos e energias
estão focados. Seria melhor dizer que, até aquele momento, ele
não desejou nenhuma mulher. Sua condição era de desejar o
desejo. E tal era a sua necessidade que ele tomou a primeira
oportunidade para satisfazer o seu desejo: trocar o desejo de
desejo por desejo. É uma característica importante do desejo
sexual surgir desta forma a partir de um impulso generalizado.
No entanto, o desejo é tão distinto do impulso que o compele

132
capítulo 4 - desejo

como a raiva do excesso de adrenalina. Deve-se pensar em


“fome sexual” como se pensa a fome de conversa; não como
um apetite, mas como uma predisposição para uma resposta
individualizante.
O objetivo do desejo sexual não para na “união”. Existe ain-
da o projeto adicional e em desenvolvimento do prazer sexual.
Agora, a excitação pode ser alcançada sem prazer sexual, em-
bora o prazer requeira a excitação, tanto no sujeito quanto no
objeto. O prazer sexual é dirigido à excitação do outro, e um
prazer que não requeira a excitação do outro – como quando
um homem realiza o ato sexual num corpo de uma testemu-
nha frígida – é pervertido. O caso extremo de tal prazer é o do
necrófilo, e um homem que seja indiferente ao prazer de sua
parceira é, em certo sentido, um necrófilo disfarçado: se o seu
entusiasmo é de fato realçado pela frigidez dela, é porque ele só
pode desfrutá-la sob o aspecto da morte. Pelo seu comporta-
mento sexual, em certo sentido, ele deseja vê-la morta.
O prazer sexual carrega o sujeito ainda fundo no caminho
da excitação. Envolve-o ainda mais profundamente com o ob-
jeto de seu prazer, reforçando a sua necessidade pela resposta
do outro e pelo aumento da autoidentificação do outro com o
ato sexual. Mas, alguém poderia objetar, aonde isso tudo leva,
senão ao orgasmo ou a algum desses eventos prazerosos? E por
que, então, o orgasmo não tem aparece como finalidade última
deste desejo, o gratificante episódio final? Por que quereríamos
investigar mais sobre a satisfação sexual?
Considere novamente o caso da raiva. O homem que explo-
de em ira certamente alivia seus sentimentos, e pode depois ter
agradáveis sensações de ​​ relaxamento conforme a adrenalina es-
coa de seu sistema. Mas esta explosão temporária não faz parte
da intencionalidade da sua ira, uma vez que não tem relação
com os pensamentos que a motivam. Se isso é o que ele quer,
ele ficaria satisfeito com uma injeção de adrenalina; por que se
preocupar em perder tempo buscando uma ocasião apropriada
para isso e o risco do insulto alheio? Além disso, não é injusto
procurar obter alívio perseguindo o outro, quando uma injeção
teria sido tão boa quanto? Claramente, o prazer do relaxamento
não tem nenhuma relação com o projeto da raiva, mesmo que
possa aparecer em uma explicação científica “do que se passa”.

133
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

O mesmo acontece com o orgasmo. Embora a experiência seja


muito importante, não é parte do objetivo ou projeto do de-
sejo. Ela não tem raiz no pensamento sobre o qual o desejo
está fundado, e não desempenha nenhum papel na continuação
do objetivo da união. Em um sentido muito importante, é uma
interrupção do congresso, do qual o sujeito deve se recuperar,
como e quando puder.
Ver o orgasmo como o objetivo do desejo é tão equivocado
quanto ver a exultação experimentada por um jogador após
marcar um gol como o objetivo do futebol, e não como um des-
dobramento prazeroso de um objetivo cumprido. Mas há mais
sobre a adoração do orgasmo do que isso: não é apenas o re-
sultado de uma falsa assimilação do desejo ao apetite. Espiritu-
almente falando, é também o sinal de uma superstição peculiar
e predominante: a crença de que, para cada atividade humana
deve haver alguma experiência única e evidente que constitui
o seu sucesso e que pode ser obtida não pela virtude, mas pela
habilidade (para usar uma dicotomia aristotélica). Em outras
palavras, ela resulta da idéia de que a gratificação sexual está
disponível para todos, qualquer que seja o seu caráter moral, e
que pode ser alcançada pela técnica. As raízes dessa superstição
não precisam nos preocupar – embora a análise da democracia
americana de Tocqueville sugira que elas podem não ser difíceis
de rastrear.112 Mas suas consequências são de alguma importân-
cia. Para serem vistos como questões de técnica, os objetivos hu-
manos devem ser suficientemente específicos, e suficientemente
circunscritos, a serem objetos de conselho, em que fins e meios
possam ser separados adequadamente. A outra pessoa, neste
ponto de vista, não pode ser descrita como fim do desejo: ela,
portanto, figura como meio, um substituto para o que quer que
um aparelho sofisticado (machine désirante) possa cumprir suas
funções melhor do que ele mesmo. Esse é o preço do ethos de
“sucesso disponível” – o ethos que vê cada projeto humano em
termos de uma realização igualmente distribuída.
O orgasmo não poderia ser o objetivo do desejo sexual,
mesmo que seja por vezes o objetivo do que chamei de “prazer
curioso”. A outra pessoa não é o meio para satisfazer o desejo,

112 Alexis de Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Paris, 1835.

134
capítulo 4 - desejo

mas parte da finalidade do desejo. Suponha que um homem,


ao se masturbar, pense num fluxo de fantasias desconexas, oca-
sionalmente divagando sobre o imposto que deve pagar, sobre
o futuro de seu filho e sobre o comportamento escandaloso do
gato do vizinho. O processo pode levar ao orgasmo e, presumi-
velmente, tem o orgasmo como objetivo; mas não é uma expres-
são do desejo. Imaginem agora o mesmo homem executando os
mesmos movimentos, mas com os olhos fixos na mulher que se
despe na janela vizinha. Agora há um objeto fantasioso de de-
sejo. O que nos permite dizer que o homem realmente deseja a
mulher? O mínimo é que ele deveria procurar ganhar o interesse
e cumplicidade dela em seu ato, ou que tenha fantasias em que
ela participe. Ele não apenas fazer isso, mas envolvê-la também.
É claro que ninguém com bom senso imaginaria que ele pudesse
alcançar seu propósito desta forma; provavelmente seu motivo
não é o desejo, mas o prazer curioso, e a própria mulher entra
como um mero instrumento na fantasia que o ajuda a alcançar
seu objetivo. Na verdade, é uma característica de todo esse tipo
de imodéstia a conduta sexual que tende a considerar o outro
como o instrumento, e não como o objeto da libertação sexual,
de forma que o outro não pode ser objeto de desejo. Ao ser tra-
tado dessa forma, o outro se sente ultrajado e degradado, e na
maioria dos sistemas de direito penal, a exposição indecente é
tratada como uma grave agressão pessoal.
Há duas outras etapas no caminho do desejo que temos de
mencionar: o projeto da intimidade, e a realização do desejo
no amor erótico. A intimidade é o ponto para o qual os gestos
inaugurais da corte amorosa são dirigidos, e é um projeto re-
velado já nos primeiros olhares de desejo. O olhar que afasta
os amantes da multidão fala em voz baixa de coisas que estão
fora da esfera de conhecimento dos outros. O projeto da intimi-
dade surge automaticamente, embora não inevitavelmente, do
vínculo do desejo. É o ponto para o qual o desejo naturalmente
conduz por seus próprios artifícios. A luxúria generalizada só
pode ser sustentada por complexas estratégias de substituição,
tais como as da orgia, que impedem a passagem do prazer para
a intimidade – que impedem o “conhecimento” carnal do outro.
Mas é uma continuação natural do prazer sexual buscar esses
conhecimentos – atingir pelas palavras, carícias e olhares, por

135
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

assim dizer, o coração do outro, e conhecê-lo de dentro, como


uma criatura que é parte de si mesmo.
Assim como o prazer sexual tende à intimidade, a intimi-
dade tende ao amor – a uma noção de compromisso fundada
na reciprocidade do desejo. A pessoa que está comprometida
por seu desejo por outra adquiriu uma vulnerabilidade crucial:
a vulnerabilidade de alguém que tenha foi subjugado em seu
corpo pela presença encarnada do outro. Esta vulnerabilidade
só é finalmente apaziguada no amor (como Gilda, no Rigoletto,
alivia seu breve momento de excitação nos braços do duque
de Mântua sacrificando sua vida por ele). É através do estudo
do amor erótico, portanto, que seremos capazes de caracterizar
integralmente a intencionalidade do desejo.
Essas observações serão justificadas em capítulos posterio-
res. Antes de deixar a presente discussão, no entanto, é impor-
tante ver no que elas não implicam. Ao fazer do amor erótico
a realização do desejo, não estou implicando que todo desejo
sexual leve ao amor mais do que quando digo que toda a raiva
leva à vindicação e ao arrependimento, ou que todo jogo de
futebol seja um “bom jogo”, simplesmente pela identificação
dessas condições como o cumprimento das duas respectivas ati-
vidades. A intencionalidade das emoções interpessoais varia de
lugar para lugar e de tempos em tempos. A realização que re-
conhecemos na vindicação pode ser atribuída em alguma outra
cultura à vingança. Nesses casos complexos, a intencionalidade
é um vetor que pode ser estendido de inúmeras maneiras pela
mistura de outras preocupações. Até certo ponto, ela se tornará
uma questão de discussão moral em que deveríamos criar as
condições que restringem uma direção do desejo em prol de
outra. Ao utilizar o termo “realização”, já estou insinuando que
a estrutura intencional que identifico como uma continuação
natural da finalidade e do projeto do desejo – a estrutura que
leva primeiro à intimidade e, em seguida, ao amor – é também
a recomendada. Até o final do livro, devo deixar claras (ou tão
claras quanto puder) as minhas razões.
Essa ênfase na intimidade não implica que todo desejo se-
xual é aconchegante, suave ou fiel. Longe disso. No entanto,
cada forma desenvolvida do desejo sexual tenderá a ir além do
encontro presente a um projeto de união íntima com seu objeto.

136
capítulo 4 - desejo

Para alguns, esta união só pode ser assegurada pela dissolução


do objeto, por sua conversão no destinatário sofrido de nossa
vontade: assim era o Marquês de Sade. Para outros, só pode ser
assegurada pela sedução, em que todo o eu está concentrado
no ato inicial de amor que é, em seguida, retido: assim era Don
Juan. Para outros ainda, só pode ser assegurada pela total dedi-
cação do eu para o outro, de modo a procurar a posse absoluta
e a remoção do outro do convívio da vida diária: assim era
Tristão. Discutirei esses arquétipos do desejo com mais detalhes
no Capítulo 6.
Defendi que o desejo se concentra na encarnação do outro, e
na perspectiva em primeira-pessoa que essa encarnação revela.
Cheguei inclusive a sugerir que, como resultado disso, a indi-
vidualidade do outro – sua individualidade não como animal,
mas como “eu” – torna-se inextricavelmente entrelaçada com a
intencionalidade do desejo. Então, esbocei brevemente o objeti-
vo do desejo – o objetivo da “união” com o outro – e os vários
“momentos” que esse objetivo contém. No entanto, antes de
preencher esse esboço e apresentar as razões necessárias para
identificar a realização do desejo nos termos nupciais em que
me aventurei, faremos uma pausa para confrontar a difícil idéia
da individualidade. Pois esta idéia está na raiz do mistério uni-
versalmente reconhecido da experiência sexual.

137
CAPÍTULO 5
O OBJETIVO INDIVIDUAL

No capítulo anterior, dei um esboço preliminar do objetivo


do desejo, que é a “união com o outro” fundada na resposta
à sua encarnação individual. Poetas e filósofos têm pensado
neste objetivo como irrealizável, porque é paradoxal. A na-
tureza desse paradoxo, no entanto, é uma questão disputada.
Lucrécio, consciente de sua metafísica materialista, acredita
que reside no desejo de unidade entre dois corpos separados.
Como alguém pode se sentir tentado a concordar com Yeats
sobre a tradução de Dryden dessa relevante passagem do livro
IV ser a descrição mais fina da relação sexual na língua ingle-
sa, penso ser apropriado usá-la como um lembrete da experi-
ência familiar:
Então, o amor com fantasmas engana nossos olhos ansiosos,
Que mesmo a visão contínua nunca satisfaz;
Nossas mãos puxam o nada das partes que agarram,
Perdidas sobre os encantadores membros, em vão:
Nem quando o par juvenil mais perto estava,
Quando as mãos se entrelaçam, e as coxas se enroscam
Apenas na espuma furiosa do desejo completo,
Quando ambos forçavam, ambos murmuravam, ambos expiravam,
Eles apertam, torcem, e suas línguas úmidas dardejavam,
Como se cada um forçasse seu caminho para o coração do outro:
Em vão; eles só cruzam a costa,
Pois os corpos, não podem perfurar, nem estar nos corpos perdidos:
Mas procuram ter certeza de si, quando ambos se envolvem,
Nessa momentânea raiva tumultuada,

139
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Tão emaranhado nas redes do amor,


Até que o homem se dissolve nesse excesso de alegria.
Então, quando o recipiente estoura,
E vazantes marés os nervos adormecidos traem,
Uma pausa se segue; e a Natureza concorda por um tempo,
Até que com renovada raiva novos espíritos fervem;
E, em seguida, a mesma vã violência volta,
Com chamas revitalizadas queimam os fornos erguidos.
O tempo um no outro se perde,
Mas permanecem trancados por barras adamantinas;
Todas as maneiras que tentam, sem sucesso se mostram,
Para curar a ferida secreta do amor saudoso.113

Muitos não notaram o paradoxo em Lucrécio, que toma a


idéia de “união” literalmente, e sugere um projeto em que nin-
guém em sã consciência jamais embarcaria. O paradoxo usual-
mente deriva de uma tensão entre duas coisas: entre o interesse

113 So Love with fantomes cheats our longing eyes,


Which hourly seeing never satisfies;
Our hands pull nothing from the parts they strain,
But wonder o’er the lovely limbs in vain:
Nor when the Youthful pair more closely join,
When hands in hands they lock, and thighs in thighs they twine
Just in the raging foam of full desire,
When both press on, both murmur, both expire,
They grip, they squeeze, their humid tongues they dart,
As each wou’d force their way to t’other’s heart:
In vain; they only cruze about the coast,
For bodies cannot pierce, nor be in bodies lost:
As sure they strive to be, when both engage,
In that tumultuous momentary rage,
So ‘tangled in the nets of love they lie,
Till man dissolves in that excess of joy.
Then, when the gather’d bag has burst its way,
And ebbing tides the slacken’d nerves betray,
A pause ensues; and Nature nods a while,
Till with recruited rage new spirits boil;
And then the same vain violence returns,
With flames renew’d the erected furnace burns.
Agen they in each other wou’d be lost,
But still by adamantine bars are crossed;
All ways they try, successless all they prove,
To cure the secret sore of lingring love – NT.

140
capítulo 5 - o objetivo individual

do sujeito na individualidade do outro e sua tentativa de “apre-


ender” essa individualidade em uma atividade de contato “físi-
co”. Um brilho grandiloqüente dessa idéia é a versão de Sartre
do paradoxo. De acordo com Sartre, o desejo tem o objetivo de
possuir o outro em sua liberdade – e, portanto, manter como
objeto aquilo que só pode existir como sujeito. Neste ponto de
vista, o conflito entre o interesse na identidade subjetiva do ou-
tro e a atenção ao seu corpo é glosado em termos da incomen-
surabilidade metafísica entre o eu e o outro. Formas similares de
frasear o paradoxo podem ser encontradas em Schopenhauer,114
Hegel115 e Kierkegaard.116 Às vezes, o pensamento dominante é
este: você pode desejar outro apenas como um indivíduo e, por-
tanto, apenas como um sujeito. E mesmo assim, você somente
pode possuí-lo como um membro de sua espécie – já que você
só o pode possuir como um objeto. Às vezes, o paradoxo é ex-
presso nos termos de uma idéia de liberdade: Eu sou desejado
apenas como um ser livre, mas desfrutado somente em um ato
que me torna prisioneiro. É um encanto singular à teoria de
Sartre tornar esses dois paradoxos em um só.
O paradoxo só pode começar a parecer convincente, no en-
tanto, se pudermos sustentar a primeira premissa: que eu desejo
o outro como um indivíduo e que a individualidade do outro
reside em sua natureza como um sujeito. A premissa tem duas
partes: uma relativa ao objeto intencional do desejo, e outra à
idéia metafísica da individualidade. Alega-se que vejo o outro
como um indivíduo, e também que a sua “individualidade” re-
side em sua natureza enquanto sujeito. Pode ser que a tese me-
tafísica seja falsa, mesmo que capte o sentido de individualidade
que está envolvido na intencionalidade do desejo. Nesse caso,
o paradoxo nos aparece imediatamente sob a forma de uma
ilusão metafísica que está no coração do desejo sexual. A fim

114 Schopenhauer: “A paixão individual e muito especial de dois amantes é tão inexplicável
quanto a individualidade, também bastante especial, de qualquer pessoa, que lhe é
exclusivamente peculiar: de fato, são uma única e mesma coisa; a última tem explícito o
que na primeira está implícito” (The World as Will and Representation, tr. E. J. F. Payne,
Indian Hills, Colorado, 1958, vol. II, p. 536).
115 Ver o paradoxo de Hegel sobre o mestre e o escravo, que será discutido adiante, no
Capítulo 10.
116 S. Kierkegaard, Either/Or, tr. W. Lowrie Nova York, 1959, vol. II: The Aesthetic Validity
of Marriage, p. 111-14.

141
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de esclarecer esta questão, é necessário começar destacando al-


gumas características das atitudes interpessoais que podem nos
levar a falar da “individualidade” de seu objeto. Considerarei
seis dessas características, correspondentes a seis distinções en-
tre atitudes.

Distinções entre atitudes


O universal e o particular
Algumas atitudes interpessoais são tais que um universal (no
sentido de um predicado n qualquer) entra em seu objeto inten-
cional e fornece o verdadeiro objeto de atenção. Tais atitudes
são direcionadas para o indivíduo apenas como um exemplo de
uma classe. Entre essas atitudes “universais”, as emoções mo-
rais – indignação, admiração, desprezo e assim por diante – são
fundamentais. Se eu sentir desprezo por James, é por causa de
alguma característica de James: Se William tivesse essa carac-
terística, eu sentiria desprezo por William também. O objeto
do desprezo é o particular – James – como um caso do univer-
sal (covarde, imbecil, egoísta ou qualquer outro). Claro que,
para recriar um ponto a partir da discussão da “universalidade”
de Hare, o universal pode ser tão específico que, no final das
contas, somente James o exemplifique. Mas deve ser possível
caracterizá-lo sem fazer nenhuma “referência identificadora” a
James. O que eu desprezo é a covardia ou o egoísmo de James, e
eu me sentiria exatamente da mesma forma em relação a qual-
quer outra pessoa que mostre o mesmo defeito. Se eu não senti
exatamente o mesmo, é porque alguma coisa foi deixada de
fora da “descrição segundo a qual” James é desprezado, algo
que faria a distinção entre James e aqueles outros contra quem
reagi de forma diferente.
A idéia da universalidade deve ser separada da do “objeto
formal” de uma emoção, explicada no Apêndice 2. O objeto
formal é dado por uma descrição que o objeto intencional deve
satisfazer se for o objeto da sensação dada. Por exemplo, João
só pode ser objeto de desprezo se for considerado inferior de
alguma forma. Esta restrição “formal” apresenta uma condição
necessária sobre o objeto de desprezo, mas não fornece a com-
pleta “descrição segundo a qual” qualquer pessoa é desprezada.

142
capítulo 5 - o objetivo individual

Atitudes como amor, ódio e desejo sexual têm objetos par-


ticulares. Elas não impõem obrigação alguma sobre o sujeito
para que responda de formas similares a situações similares.
Embora haja, sem dúvida, alguma característica de James que
seja uma razão (talvez até mesmo a razão) para que eu o ame,
não sou obrigado a amar William também, só porque ele com-
partilha essa característica. (Imagine, se não fosse assim, a vida
amorosa impossível de gêmeos idênticos.) Aqui temos um refle-
xo da distinção de Kant entre amor e estima, e os princípios de
uma explicação do por que ele escolheu separar o “patológico”
do “racional” dessa forma.117

O fundado em razões, o livre de razões e o que envolve razões


O último parágrafo chama a atenção para uma segunda dis-
tinção. Algumas atitudes só podem ser consideradas com base
em “pensamentos justificantes” – isto é, com base em razões
que parecem apoiá-las. Outras atitudes são, conforme vou cha-
má-las, “livres de razões”, pois embora possam haver razões
para elas, sua existência não depende que o sujeito tenha razões.
Atitudes que são universais são automaticamente fundadas em
razões. Sua própria natureza admite graus, e é uma marca das
atitudes morais que a crença do sujeito na existência de razões
seja aqui ilimitada.118
Atitudes particulares também podem ser fundadas em razões.
Um exemplo é fornecido pelo ressentimento. Meu ressentimen-
to de vocês depende da relação particular entre nós: eu posso,
portanto, me ressentir de você por algum ato ou qualidade de
que não me ressentiria em qualquer outra pessoa. No entanto,
o ressentimento é baseado em razões. Se eu me ressinto de você

117 Sobre a distinção entre amor e estima, ver I. Kant, Foundations of the Metaphysics of
Morals, Prussian Academy edition, p. 395 et seq. Para a distinção entre o racional e
o patológico, ver ibid., 399. Kant também defende, entretanto, que “o amor (...) é um
suplemento indispensável à imperfeição da natureza humana como uma livre assunção
da vontade de outrem sob as próprias máximas”: Das Ende aller Dinge, Prussian
Academy edition, vol. VIII, p. 337.
118 Já defendi em outros lugares a visão de que no julgamento moral, precisamente porque
o componente crucial não é uma crença, mas uma atitude, a crença em razões é
inexaurível: “Attitudes, Beliefs and Reasons”, em John Casey (ed.), Morality and Moral
Reasoning, Londres, 1971.

143
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

é por causa de alguma característica, que eu também acredito


que justifique o meu sentimento. Existem, no entanto, atitudes
particulares que não são de modo nenhum fundadas em razões.
Eu posso apenas querer algo, sem razão alguma (mas talvez
não um pires de lama).119 Alguns desejos animais, nesse sentido,
também não têm razões. Um cão só quer cheirar o outro – por
nenhuma razão (embora, é claro, possa haver uma excelente
racionalização evolutiva de seu ato). As pessoas se cheiram de
forma semelhante (uma criança e sua mãe, um homem e sua es-
posa). Os filósofos que defendem (com Elizabeth Anscombe)120
que todo desejo depende de uma “caracterização de desejabili-
dade” de seu objeto ignoram o fato de que o conceito de dese-
jabilidade pertence apenas à explicação do comportamento dos
seres racionais. O conceito de desejo, no entanto, pode ser utili-
zado na descrição e explicação do comportamento meramente
animal. Essa é uma razão a priori para pensar que pode haver
desejo que não se baseia em uma concepção de desejabilidade.
O leitor não deve ter nenhuma dificuldade para aceitar o que é
de fato a descrição mais natural do desejo de cheirar.
Afirmei que o amor não é universal. Mas é baseado em ra-
zões? Alguns filósofos duvidaram de que fosse ou pudesse ser.121
No entanto, parece haver uma tendência definitiva no amor de
encontrar um fundamento em seu objeto. Eu acredito que haja
uma razão pela qual eu amo James, e que, se eu não posso agora
encontrar essa razão, é por um lapso de memória, uma falha
de expressão ou uma falha epistemológica. Não está claro, no
entanto, que o amor realmente seja baseado em razões que são
oferecidas por ele. Talvez seja melhor dizer que o amor busca
basear-se em razões, e é suscetível de sofrer reversões quando
os seus motivos são destruídos. Uma atitude verdadeiramente
fundada em razões – como o ressentimento – é passível de re-
futação por uma demonstração de que o objeto não possui a
característica pela qual se está ressentido. O amor parece susce-
tível de ser enfraquecido, e de sofrer todo tipo de reversão catas-

119 G. E. M. Anscombe, Intention, Oxford, 1957, seção 37.


120 Ibid.
121 Por exemplo, D. W. Hamlyn, “The Phenomena of Love and Hate”, em Perception,
Learning and the Self, Londres, 1983.

144
capítulo 5 - o objetivo individual

trófica, mas não exatamente de ser refutado. Poderia ser melhor,


portanto, descrever o amor como o que “envolve razões”, de
modo a não obscurecer as distinções reais entre os estados de
espírito que estamos aqui considerando.
É possível ver com certo ceticismo a opinião de que uma
atitude possa ser fundada em razões ou mesmo que somente
envolva razões e ainda deixe de ser universal. Pascal sustentou
que o amor é fundado em razões, e concluiu que ele não pode-
ria, portanto, ser interpretado (exceto paradoxalmente) como o
amor do indivíduo:
O homem que ama uma mulher por sua beleza, a ama de verdade?
Não; pois a varíola, que remove sua beleza sem matar a pessoa,
fará com que ele não a ame mais. E se alguém me ama pelo meu
juízo ou minha memória, ele realmente me ama? Não; pois eu posso
perder essas qualidades sem deixar de ser. Onde, então, está o eu,
se não no corpo ou na alma? E como se pode amar o corpo e a
alma, a menos que por conta de qualidades que não são de forma
alguma constitutivas do eu, uma vez que são perecíveis? Dever-
se-ia amar a substância anímica de uma pessoa abstratamente, e
quaisquer qualidades que possam residir nela? Isso só poderia ser,
e seria, injusto. Nunca, portanto, se ama a pessoa, mas apenas as
qualidades; ou, se se ama a pessoa, deve-se dizer que é o conjunto de
qualidades que constituem a pessoa.122

Condillac critica, com razão, este argumento por sua depen-


dência da natureza “perecível” das qualidades: como se eu fosse
a dizer ao homem cujo pé cortei: “Como você sobreviveu sem
o pé, então não foi você quem eu feri”.123 Mas observe as im-
portantes implicações metafísicas que Pascal extrai do que, de
fato, não é nada mais do que um argumento sobre a intencio-
nalidade do amor. O argumento entra em colapso tão logo se vê
que a dependência de razões e a universalidade são logicamente
distintas.
A diferença é evidenciada mais claramente pelo importante
caso das atitudes estéticas. O interesse estético é o interesse no

122 Blaise Pascal, Pensées (n. 306 das traduções Penguin por J. M. Cohen, Harmondsworth,
1961).
123 E. B. de Condillac, Traité des sensations et des animaux, em Ouevres completes, Paris,
1821, vol. 3, p. 90.

145
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

objeto individual, não como exemplo de um universal, mas como


o objeto particular que é.124 Uma obra de arte pode ser um tipo
com muitos símbolos – como um romance ou uma sinfonia. Mas
identificar o tipo é identificar o indivíduo, e qualquer interesse
no tipo é o interesse no indivíduo que o exemplifica. Meu amor
pelo Concerto para Violino de Beethoven pode coexistir com a
aversão a todas as outras obras musicais sem que, por isso, seja
inconsistente consigo mesmo. O interesse estético é, não obstan-
te, fundado em razões.125 Tem que haver algo que possa ser dito
ou apontado em resposta à pergunta “Por que você está interes-
sado nisso?” Se não houvesse resposta, deveríamos estar lidando
com um caso de torpor, e não de interesse estético.
Pode-se argumentar que os exemplos – amor pessoal e in-
teresse estético – foram criados artificialmente: não fiz nada
mais do que estipular que eles são estados de espírito que são
particulares, seja quando estão fundados em razões, seja quan-
do envolvem razões. É verdade que não precisa haver qualquer
estado mental correspondente às minhas duas descrições. Mas
também é verdade que as características que descrevi pertencem
à verdadeira essência de tudo o que os possui. Eles definem ti-
pos de intencionalidade; mais do que isso, é nos termos da sua
intencionalidade que os estados de espírito são distinguidos por
aqueles os gozam ou sofrem. Realmente há uma coisa como o
amor pessoal, e seu envolvimento com a razão é parte do que
significa para nós, e explica por que devemos ter notado a sua
existência desde o princípio.
O aprofundamento teórico sobre a distinção entre o funda-
do em razões, o livre de razões e o que envolve razões é uma
questão de considerável dificuldade. Vale a pena ressaltar, con-
tudo, que a distinção em três partes pode ser abordada com o
mesmo espírito com que Elizabeth Anscombe lida com a ação

124 Essa visão aparece de muitas formas: especialmente nas versões decorrentes de Kant
(Critique of Judgement, 1790, tr. J. H. Bernard, Nova York, 1951), e nas decorrentes
de Croce (Aesthetic, 2ª ed., tr. D. Ainslee, Londres, 1923). Para uma discussão dessas
visões, e uma defesa em particular de uma delas, ver meu livre Art and Imagination,
Londres, 1974, cap. 9.
125 Defendo esse ponto em Art and Imagination e em The Aesthetics of Architecture,
Londres, 1979, cap. 5.

146
capítulo 5 - o objetivo individual

intencional e a não-intencional.126 Poderíamos dizer, como um


primeiro passo (mas não seria mais do que um primeiro passo),
que uma atitude é fundada em razões se admite a aplicação da
(ou de certo sentido da) pergunta “Por que você sente isso?” E
aqui a resposta pode ser uma espécie de variável, como no caso
da ação intencional: “Eu não tenho certeza” (diferente daquilo
que Anscombe chama de “uma rejeição da questão”). Quanto
mais se tem de procurar por uma razão – quanto mais se tem
de “descobrir o porquê”, por exemplo, de se amar uma pessoa,
mesmo quando se está firme na crença de que, amando-o, tem-
se uma razão – mais deveríamos falar de amor como algo que
envolve razões, e não fundado em razões.
Se escolhêssemos essa abordagem, tornar-se-ia tão difícil
atribuir atitudes fundadas e que envolvem razões às criaturas
sem palavras quanto é difícil, na visão de Anscombe, descrever
suas ações como intencionais. Deve-se notar, no entanto, que,
para os fins do meu argumento, é completamente desnecessário
decidir essas complexas questões de psicologia filosófica.

A atenção e a desatenção
Algumas atitudes se concentram em características específi-
cas de seu objeto, e ignoram outras. O medo, por exemplo, con-
centra-se sobre o perigo atual e tudo o que o causa, ignorando
as características do objeto ameaçador que poderiam ter sido
consideradas prazerosas ou admiráveis. Tal atitude é “desaten-
ta”, no sentido de que deve necessariamente ignorar alguma
parte do que é apresentado. Em contrapartida, as atitudes aten-
tas não ignoram nada: nenhuma característica de seu objeto
é descontada, e nenhuma característica pode ganhar destaque
com a exclusão total das outras sem mudar de atitude. O exem-
plo mais conhecido de uma atitude atenta é o interesse estético;
cada característica do dito objeto é relevante para a atenção que
o abraça. Mas também se deve reconhecer que certos tipos de
amor – o amor erótico entre eles – são semelhantes. O amante
para quem cada fio de cabelo de sua amada possui um significa-
do individual é como o esteta que pondera cada nota da parti-
tura. Este tipo de luxúria para o detalhe é uma continuação dra-

126 G. E. M. Anscombe, Intention.

147
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mática inevitável do interesse atencioso que, justamente porque


considera tudo como relevante, tenta também não considerar
nada insignificante.127
A atenção do interesse estético já foi descrita diversas vezes;
mas de uma forma ou outra, foi reconhecida pela maioria das
teorias estéticas pós-kantianas. E isso deu origem a um mal-en-
tendido perigoso. Já que todas as características de uma obra de
arte são relevantes para meu interesse nela, estou naturalmen-
te disposto a procurar ligações entre as características que me
permitam captá-las como uma unidade em minha mente. Se eu
conseguir alcançar essa unidade, isso é um fato sobre mim: eu
sou capaz de captar em minha atenção a totalidade do objeto
diante de mim. Claro, é apenas em virtude da obra de arte que
eu sou capaz de fazer isso. Mas não se deve deduzir disso que
a própria obra de arte possui algum tipo de unidade (orgânica
ou não), e que, ao apreciá-la esteticamente, é essa unidade que
percebo. Saber quais características de uma obra de arte facili-
tam o empreendimento da percepção unificada é outra questão.
Talvez não exista uma única resposta para esta pergunta. Talvez
a pergunta deva ser respondida separadamente para cada obra.
Talvez, em suma, seja uma questão para o crítico, e não para o
filósofo. E, no entanto, quantos filósofos foram tentados a ob-
ter, a partir da premissa de que a resposta estética é atenciosa,
a conclusão de que as obras de arte são objetos peculiarmente
unificados, talvez com um tipo especial de individualidade me-
tafísica que os diferencia do resto da criação do homem?128
É como uma falácia, e uma que teremos que considerar com
frequência, que o objeto do amor é dotado de uma unidade
peculiar – uma unidade que liga todas as suas características
em uma totalidade que pode ser apreendida em um único ato
intuitivo. E, uma vez que sua presença física se apresenta tão

127 Ver Art and Imagination, cap. 1, e também “Photography and Representation” em The
Aesthetic Understanding, Londres, 1983.
128 Essa falácia é fundamental à teoria da arte de Croce, como mostrado em seu Aesthetic, e
também à visão decorrente apresentada por R. G. Collingwood em seu Principles of Art,
Oxford, 1937. Os filósofos analíticos não estão imunes a esse erro. Ver especialmente
o trabalho de P. F. Strawson, “Aesthetic Appraisal and Works of Art”, em Freedom and
Resentment and Other Essays, Londres, 1974, em que Strawson defende que as obras
de arte são distinguidas por um critério particular de identidade – que torna todas as
características esteticamente relevantes em propriedades essenciais.

148
capítulo 5 - o objetivo individual

manifestamente sem essa unidade – pois fisicamente ele tem a


unidade de um animal, de quem podemos remover cabelos e
unhas dos pés sem prejuízo para o todo – surge a idéia de que
sua unidade é de outro tipo e tem alguma outra fonte. Surge, de
fato, a grande ilusão metafísica do amor: a ilusão de que, ao ver
o outro sob o aspecto do amor, eu sou confrontado com a uni-
dade “transcendental” subjacente a partir da qual fluem todas
as suas ações. Há outras fontes dessa ilusão. Mas é instrutivo
reconhecer sua analogia com um grande erro da estética pós
-kantiana – a falácia de acreditar que a “unidade intencional”
de uma atitude é também a percepção de uma “unidade mate-
rial” em seu objeto. Este é um lapso intelectual de que nenhum
ser humano pode, em sua existência cotidiana, ser curado.

O propositado e o despropositado
A última distinção é algumas vezes confundida com outra; no
entanto, não são idênticas. Algumas atitudes se aproximam (ou
recuam) de seu objeto com um “fim em vista;” outras não. Ao
primeiro tipo pertencem todas as nossas emoções mais práticas,
tais como a agressão (que tem o objetivo de ferir) e o medo (que
visa evitar). Outras atitudes – o interesse estético novamente
fornece um paradigma – não têm nenhum “fim em vista”. Elas
são, na utilíssima expressão de Kant, “desinteressada” (ohne In-
teresse), divorciadas de interesses práticos imediatos. Quando
me aproximo de um objeto com um determinado fim em vista,
o meu propósito determina um critério de relevância – algumas
características do objeto têm uma influência sobre ele, outros
não. Portanto, há uma tendência na filosofia da arte de explicar
a atenção do interesse estético nos termos de seu caráter despro-
positado, que nos priva da capacidade de distinguir o relevante
do redundante.129
É, no entanto, muito simples reduzir as duas distinções em
uma, pois poderia haver atitudes que são atentas e também pro-
positais. O amor é uma delas, mas um exemplo mais vívido é
dado pelo desejo sexual. Não podemos negar que o desejo tem
um objetivo; no entanto, parece ter – ou, pelo menos, tender a –

129 Ver, por exemplo, S. Hampshire, “Logic and Appreciation”, em W. Elton (ed.) Aesthetic
and Language, Oxford, 1954.

149
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

o caráter atencioso do amor: todas as características do objeto


podem fortalecer ou ameaçar o desejo, e nada pode ser descar-
tado a priori como irrelevante para o interesse do observador.
Pode-se considerar que, se isso é assim, o desejo deve ser algo
que envolve razões – e talvez até mesmo fundado em razões.
Mas essa conclusão é muito precipitada. Ser ou não uma ati-
tude que envolva razões depende do tipo de ameaça que novas
descobertas oferecem a ela. Uma descoberta que destrói uma
crença sobre a qual a atitude está fundada envolve a refutação
de uma razão; ela ameaça a atitude ameaçando a sua fundação
intelectual. Uma descoberta que simplesmente chama a atenção
para alguma característica nova e despercebida, e sobre a qual
não havia nenhuma crença ou descrença anterior, não ameaça o
fundamento intelectual, mas o foco imediato do estado de espí-
rito do sujeito. A diferença aqui pode não parecer imediatamen-
te óbvia. Mas tornar-se-á evidente no curso de nossa discussão.
A distinção entre o propositado e o despropositado está lon-
ge de terminada. Considere a amizade. Em certo sentido, é des-
propositada: não há “fim em vista” que motiva o amigo quando
ele procura a companhia de seu companheiro. No entanto, seria
errado dizer que a amizade é despropositada, se queremos dizer
que não há objetivos ou projetos que são próprios de um amigo.
Um “verdadeiro amigo” procura o bem-estar do outro e perse-
gue esse fim ativamente sempre que possível. No entanto, se há
alguma finalidade ulterior – por exemplo, se procura o bem-es-
tar do outro para ganhar o favor ou buscar alguma recompensa
– então devemos dizer que ele não está motivado pela amizade.
Além disso, pode-se desejar o bem-estar do outro por carida-
de, pela preocupação desinteressada por um universo bem or-
denado, por dever religioso ou simplesmente “por si mesmo”,
sem estar motivado pelo afeto humano. A preocupação com o
bem-estar de um amigo é um tipo particular de preocupação, e
não é destacável do motivo da amizade. A tentativa de separar
o propósito da amizade da prática da amizade está, portanto,
repleta de dificuldades peculiares.
Nesse ponto, alguém pode tomar uma esquecida tecnicali-
dade da teologia e descrever os propósitos da amizade como
imanentes. Ou seja, eles se encontram na própria prática da
amizade, e nunca poderiam ser alcançados por outros meios

150
capítulo 5 - o objetivo individual

ou motivos. Em certo sentido, isso faz da amizade desproposi-


tada – já que não tem nenhum propósito destacável. Em outro
sentido, faz da amizade profundamente propositada, uma vez
que todas as amizades podem agora ser incluídas dentro de um
único objetivo principal. A amizade, dito de outra forma, é a
descrição de um objetivo. Ela denota uma atividade que é uma
finalidade em si mesma.
Na maioria das atitudes interpessoais, o despropositado, o
propositado e o “imanentemente propositado” se cruzam e qua-
lificam um ao outro. Quando eu entro em uma loja e começo
minha transação com o assistente, minha atitude é uma mistura
inextricável destes três componentes. O propósito imanente da
conversa agradável se mistura com a contemplação despropo-
sitada de produtos que não tenho vontade de comprar, e com
as negociações propositadas da presente compra, para produ-
zir essa “prontidão contratual” espontânea que é a condição
normal da existência econômica. Podem-se ver muitas defesas
elegantes da economia de mercado, tratando do “entendimen-
to tácito” que é parte integrante da cooperação humana como
um apelo pela manutenção dos acordos em que os fins econô-
micos são sempre acompanhados pelos fins imanentes da exis-
tência social, não representando, portanto, uma ameaça para
eles. Uma reflexão sobre tais discussões – e, em particular, as de
Hayek e Polanyi130 – certamente deve nos fazer perceber quão
difícil é efetuar uma divisão entre o propositado e o despropo-
sitado na conduta humana. No entanto, essa distinção (que vi-
mos ser uma tripla distinção) pode ser efetivamente empregada
quando se discute o núcleo fundamental da intencionalidade
humana. Sempre fará sentido perguntar, de alguma estrutura
básica intencional – medo, digamos, ou raiva, ou desejo sexual
– a que categoria pertence.

O transferível e o intransferível
A distinção acima nos leva, por etapas naturais, a uma quin-
ta, e é uma que já teve destaque nos argumentos dos capítulos
anteriores: a distinção entre o transferível e o intransferível. Fa-

130 Ver F. A. Hayek, Studies in Philosophy, Politics and Economics, Londres, 1967, e Michael
Polanyi, Personal Knowledge, Londres, 1958, cap. 7.

151
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ria sentido dizer a alguém que estava pegando um copo de água,


“Tome isto, é tão bom quanto isso”, e entregar-lhe um copo de
cerveja ou suco de laranja, ou qualquer outra coisa para saciar
sua sede. Aqui, o desejo pode ser transferido de um objeto a
outro; ou, se preferir, os objetos podem ser substituídos um pelo
outro, sem precipitar uma mudança de atitude mental.
Algumas atitudes interpessoais são transferíveis. Suponha
que alguém, em um acesso de raiva contra a humanidade, ataca
outra pessoa na rua. Ele deseja bater nessa pessoa em particu-
lar; mas seu desejo poderia ser transferido para outro. Faria
sentido (embora ele não fosse sensato) dizer: “Bata neste aqui,
ele é tão bom quanto esse”. A transmissibilidade é aqui uma
consequência da natureza generalizada da agressão subjacente
ao desejo original. Claro, um homem ficar enlouquecido, como
o Ajax de Sófocles, sob a ilusão de que cada destinatário de seus
golpes o ofendeu pessoalmente. Mas o pathos de Ajax reside no
fato de que sua fúria, embora não transferível, foi humilhante-
mente desviada por desígnios divinos.
Pode-se pensar que, sempre que a outra pessoa entra especi-
ficamente na intencionalidade da minha atitude, a atitude não é
transferível. Mas há uma variedade de casos a considerar. Supo-
nha que eu esteja procurando uma companhia para ir comigo
a uma apresentação de O Pato Selvagem. “Eu estava contando
com Paulo, mas ele está ocupado”. “Talvez João possa; ele gos-
ta de Ibsen. Ele seria tão bom quanto Paulo”. O contraste óbvio
com esse exemplo é o caso do amor. Parece absurdo responder
à observação “João, meu amado, me deixou; o que devo fazer?”
dessa forma: “Vou ficar com Paulo; ele será tão bom quanto
João”. Eu digo que parece absurdo, porque mais tarde terei de
examinar os argumentos que sugerem que essa sensação de ab-
surdo não é mais que uma ilusão bem fundada, para usar nova-
mente o idioma de Leibniz.
Qual é (se é que há) a diferença relevante entre os dois casos?
No primeiro caso, há um propósito definido e não-imanente
pelo qual eu preciso de um companheiro. É esta a diferença?
Não é óbvio que seja. Há atitudes que são aparentemente in-
transferíveis, mas que ainda possuem objetivos definidos: o de-
sejo sexual é o exemplo óbvio. Queiramos ou não dizer que o
objetivo é, em tais casos, sempre imanente até certo ponto é

152
capítulo 5 - o objetivo individual

outra questão. Voltando à discussão de Kant do desejo sexu-


al, podemos ver uma tendência clara (manifesta em toda a sua
filosofia moral) em explicar a intransferibilidade das atitudes
interpessoais com base no fato de que seu objeto é visto “não
apenas como um meio, mas como um fim”. (Precisamente a
mesma tendência pode ser vista na tentativa de Kant de expli-
car a individualidade do objeto estético nos termos da natureza
“desinteressada” da atitude que nós dirigimos a ela.) Presumi-
velmente, ver alguém como um fim é ter apenas fins imanentes
para ele (fins para os quais ele entra essencialmente).
No entanto, deve ser dito de uma vez que a abordagem
de Kant destas questões – embora louvável pela sua percep-
ção dominante, de que as relações interpessoais em geral, e em
particular a moralidade, fundamentam-se na individualidade
insubstituível das pessoas – é demasiado radical. Considere a
curiosidade. Esta é uma atitude completamente transferível. Um
homem curioso sobre vacas pode passar bastante livremente de
uma para outra, satisfazendo sua curiosidade em cada uma. E
ainda assim sua curiosidade não precisa ter nenhum outro pro-
pósito do que ela própria, e certamente não possui uma finali-
dade específica comparável a uma visita ao teatro. O objeto da
curiosidade é tratado não como um meio, mas como um fim em
si mesmo.
Penso ser melhor abordar o exemplo dado através da idéia
de relevância. O objetivo do freqüentador do teatro resolve o
que é “relevante” a seu interesse. Ele é bem servido por alguém
com as propriedades relevantes, e mal servido por alguém sem
elas. Sua atitude é transferível porque há propriedades relevan-
tes que servem para concentrá-la, mesmo que ele precise de um
companheiro (isto é, uma instância individual dessas proprie-
dades), e não apenas de um conjunto de instâncias qualitativas
bradleyanas131 (algo que seria muito desconfortável de levar ao
teatro). Claro que você ficaria insultado ao saber que você foi
quisto como companheiro apenas como a instanciação de um
universal. É muito importante que eu esconda de você (e de
mim) a idéia de que outra pessoa possa “ser tão boa quanto”.
(Quase toda cortesia comum pode ser vista como um estratage-

131 Francis Herbert Bradley, filósofo inglês – NT.

153
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ma para esconder esse pensamento.) Mas a idéia é, no entanto,


convincente. (Assim nós somos entretidos, ou entristecidos, pelo
anúncio no The New York Review of Books, que diz: “homem
bonito, próspero, bissexual, 39, procura mãe judia que goste
de teatro, música (não pop), autorrealização, 30-35, na área
da Filadélfia, com carro próprio e compromissos, para relação
erótica significativa”. Imagine a discussão posterior, em que a
mulher diz: “Mas eu me encaixo perfeitamente na descrição;
que direito você tem de se queixar?” Talvez ela deva procurar
um advogado.)
Devemos distinguir aqui dois tipos de transferência: a fac-
tual e a contrafactual. É a último que realmente nos interessa.
Minha raiva por Alfredo pode ser intransferível, simplesmente
porque está ligada à coisa específica que Alfredo fez, e ninguém
mais. Neste caso, não é o fato de Alfredo ser uma pessoa que
faz da minha atitude intransferível. De maneira semelhante eu
poderia ficar angustiado com um meteorito em particular que
abriu uma cratera em meu jardim. Seria absurdo tomar outra
catástrofe, não importa o quão semelhante, e dizer: “Fique com
esta, é praticamente igual à outra”. Foi este meteorito, que cau-
sou esta catástrofe, que me aborreceu. Em ambos os casos, a
identificação de um objeto individual entra na intencionalidade
da atitude. No entanto, em outro sentido, a intransferibilida-
de da atitude é aqui uma questão trivial, dadas as razões em
que podemos identificar aspectos relevantes do objeto que são
o foco do que eu sinto. Se João tivesse feito o que Alfredo fez, eu
teria ficado igualmente zangado com João; se outro meteorito
tivesse devastado meu jardim, eu teria sido tão aborrecido com
isso. Essas atitudes são factualmente, mas não contrafactual-
mente, intransferíveis.
Os casos interessantes são os de intransferibilidade contra-
factual. Eu não posso dizer quais propriedades da minha Eli-
zabeth teriam de ser possuídas por outra mulher para ela ser
um objeto deste desejo presente. Se isso é uma ilusão, é uma
ilusão que levamos bastante a sério, e pela qual vivemos. Se o
exemplo do desejo sexual não parece plausível, então considere
o amor erótico, o drama que se concentra quase exclusivamente
em um pensamento contrafactual: o pensamento de que outra
pessoa não poderia ter sido o que esta pessoa é para mim. Esse

154
capítulo 5 - o objetivo individual

pensamento está na base de toda dor, toda felicidade erótica e


todo suicídio de amor. (Veja a cena III do teatro de bonecos de
Chikamatsu, Os Suicídios de Amor em Sonezaki.)
A explicação que pode ser dada imediatamente é que todas
essas atitudes devem sua intransferibilidade contrafactual ao
simples fato de que seus objetos são (ou são considerados como)
pessoas. Nunca seria o caso de eu me tornar tão apegado a, ou
repelido por, uma mera coisa de forma a ser incapaz de encarar
a situação contrafactual que despertaria em mim uma emoção
semelhante. Eu poderia ser tão apegado ao meu piano que se
tornaria impossível dizer algum outro seria tão bom quanto?
Mais uma vez o exemplo do interesse estético nos faz hesi-
tar. Nós podemos ter interesse estético em algo que não é uma
pessoa, e ao fazê-lo, o consideramos “por ele mesmo”, e sem
tolerar a idéia de que algum outro objeto poderia ter sido “tão
bom quanto”. Não deve passar despercebido que nós elogiamos
igualmente como belos o objeto do prazer estético, o objeto do
desejo sexual e o objeto do amor. E é uma hipótese plausível
que esta linguagem indique uma estrutura intencional comum,
o que explica a enorme importância destas atitudes em concen-
trar nossas mentes sobre o aqui e agora. Alguns filósofos ten-
taram explicar a experiência estética em termos quase-pessoais.
Tomando sua sugestão da idéia de Kant de que o objeto estético
é visto como intencional (embora despropositado), eles supõem
que nós o vemos como a expressão de uma intenção, uma idéia
ou uma característica. A intencionalidade individualizante da
atitude estética é, portanto, apenas um caso especial da inten-
cionalidade individualizante da interpessoal.
Mas tais sugestões são o resultado de teoria, e os fenômenos
que são invocados para explicar podem ser entendidos sem elas.
Podemos, portanto, sugerir que a intransferibilidade contrafac-
tual é uma propriedade atitudinal separada da interpessoalidade.
O desejo sexual é intransferível? Sugeri que sim, e para de-
fender essa sugestão é necessário dissipar certos mal-entendidos
possíveis. Dizer que o desejo é intransferível não quer dizer que
seja exclusivo. Alguém pode desejar várias pessoas, mas não
com o mesmo desejo. Também não decorre que o desejo não
se baseia em outros estados da mente (instintos, necessidades
e assim por diante) que são transferíveis. Considere Don Juan.

155
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A essência de sua personalidade é a sedução, e a sedução é uma


empresa interpessoal. Você não poderia seduzir uma maçã, um
cão ou um cadáver, nem mesmo uma criança (um caso proble-
mático sobre o qual terei algo a dizer mais adiante), embora to-
dos possam ter usos sexuais. Seduzir é provocar o consentimen-
to de alguém representando a si mesmo de certa maneira. Don
Juan é sedutor porque sente paixão por todas as mulheres que
conhece, e ainda assim sua paixão não é transferível. Seria ab-
surdo interromper sua sedução de Zerlina dizendo: “Fique com
esta, ela é tão boa quanto essa” (daí o pathos da interrupção de
Donna Elvira). A característica extraordinária do Don (como
Mozart o descreve) não é transferir uma única paixão a uma
sucessão de objetos, mas fazer com que sua paixão constante-
mente ressurja sob novas formas. O ato sexual é suficiente para
anular (ou até satisfazer) o desejo anterior, e preparar o terreno
para outro. Assim, quando Leporello lê de sua lista, e nos diz
que “in Espagna, son’ già mill’ e tre”, ele não está contando os
objetos de uma única paixão, mas as diversas paixões que ins-
piraram. Essa é a fonte de mania de Don Juan, o “demonismo”
que Mozart capta tão brilhantemente em “Fin’ caldo vino”.
Esse tipo de desejo não é mais “transferível” do que é o de Tris-
tão por Isolda: ele simplesmente ressurge de infinitas formas.
Como todos os pecados, é uma forma de ansiedade infatigável.
Do ponto de vista objetivo (fora do escopo da intencionalida-
de humana), temos de reconhecer que o desejo sexual e o amor
erótico são ambos manifestações de outras coisas – de necessi-
dades animais e hábitos emocionais. Essas outras coisas podem
ser transferidas de um objeto a outro e ainda assim permanece-
rem as mesmas. A transferibilidade é essencial à idéia biológica
de uma necessidade, uma vez que a necessidade é relativa a uma
função, e uma função pode ser cumprida por qualquer objeto
que tenha a característica em questão. No entanto, apesar de
um amante poder expressar seus sentimentos nas palavras “Eu
preciso de você”, ele não quer dizer “Eu tenho uma necessidade
que você pode satisfazer”. A ênfase está no insubstituível você.
A necessidade de estímulo sexual e a necessidade de companhei-
rismo podem ser satisfeitas por um número infinito de coisas.
Mas isso não nos diz nada sobre a intencionalidade do desejo.
Um estado de espírito pode não ter a intencionalidade da con-
dição biológica que a subjaz e explica. Pensar de outra maneira
156
capítulo 5 - o objetivo individual

é imaginar que você poderia extrair a idéia legal do direito de


propriedade de uma descrição do instinto territorial, ou o con-
ceito de autoridade de uma descrição da disposição da criança
a obedecer.

Mediato e imediato
Há outra distinção que serve para alinhar o sexual e o estéti-
co e separá-los da moral. É a distinção entre as atitudes que são
fundadas na percepção de seu objeto (atitudes que chamarei de
“imediatas”) e atitudes que dependem apenas do pensamento.
Considere a admiração moral. Isso é algo que eu posso sentir
em relação a uma pessoa que nunca conheci, simplesmente com
base no que eu acredito ser verdade sobre ela. Eu posso admirar
Cicero ou Marco Aurélio, sem a menor experiência, seja lite-
ral ou imaginativa, dos próprios homens. É uma idéia recebida
da estética (desde que Baumgarten inventou a palavra)132 que a
apreciação estética se baseia na percepção de seu objeto, e não
pode ser baseada apenas no pensamento. Esse ponto foi apre-
sentado de várias maneiras. Alguns falam da natureza “sensual”
do interesse estético; outros se referem a seu caráter “concreto”
ou “imediato;” outros dizem que o julgamento estético é dis-
tinguido pelo fato de que você deve “ver o objeto por si mes-
mo”.133 Todas essas expressões sugerem diferentes formas de
teorizar uma única observação.
É evidente que algumas atitudes, como o interesse estético,
estão enraizadas na experiência real de seu objeto e não podem
existir sem essa experiência, enquanto outras (especialmente
aquelas que são “universais”) podem ser separado da experi-
ência, já que sua intencionalidade é construída a partir do pen-
samento exclusivamente. O desejo sexual pertence à primeira
categoria. Ele é despertado por uma experiência de encarnação
– pela visão, som ou cheiro de seu objeto. E é tão difícil imagi-
nar um desejo sexual que começa de uma mera descrição, quan-

132 A. G. Baumgarten, Reflections on Poetry, 1735.


133 Essa tese já foi sustentada de inúmeras formas. Veja, por exemplo, a seção 32 da Crítica
do Juízo de Kant, e, para uma retomada moderna particularmente influente, F. N.
Sibley, “Aesthetic Concepts”, Phil. Rev., 1957, e “Aesthetic and Non-Aesthetic”, Phil. Rev.
1965.

157
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

to é difícil imaginar apreciação estética “em segunda mão”. Nós


realmente podemos imaginar uma descrição tão convincente
que serve para completar a lacuna, por assim dizer, entre pen-
samento e experiência – uma espécie de equivalente sexual das
descrições que Thomas Mann nos dá (em Doutor Fausto) das
obras de Adrian Leverkühn. Mas essa descrição forneceria um
objeto para o desejo só porque permitiria que o sujeito “imagi-
nasse como seria” experimentar a encarnação da pessoa descri-
ta. O exemplo, portanto, apenas confirma o ponto: que o desejo
é dependente da experiência que o produz. Assim, os exemplos
mais plausíveis de “desejo vicário” são aqueles em que o sujeito
é movido por uma representação que lhe permite criar na ima-
ginação a forma encarnada do objeto de desejo. Tal exemplo é
dado pela Flauta Mágica de Mozart, em que Tamino apaixona
por Pamina ao ver o seu retrato.
O imediatismo do desejo contribui de uma forma a sua inten-
cionalidade individualizante. Parece sempre haver uma espécie
de halo de indicialidade em torno do objeto do desejo: uma sen-
sação de “aqui e agora”. O objeto do desejo é identificado por
uma presença física que, mesmo quando meramente imaginária,
como a presença de Pamina em seu retrato, é essencialmente
“percebida por mim”. O amado se apresenta para mim em uma
relação indicial. Ou, para falar em fenomenologês, ele é sempre
um “isto” para mim. E esse elemento indexical serve para con-
centrar meus pensamentos individualizantes dentro do quadro
de uma percepção imediata. Parece que eu estou presente, aqui
e agora, dentro do imediatismo da minha experiência, com o
outro indivíduo, cuja natureza nunca poderia ser apreendida
em uma descrição, porque nunca poderia ser traduzida de sua
forma sensorial “dada”.
Tais pensamentos são inebriantes, e é bom estar ciente das
consequências de ceder a eles. Mais importante ainda, o mis-
tério da “substância” que está por trás de suas propriedades
se agrava com o mistério da própria experiência. Uma experi-
ência permanece para sempre fora dos conceitos que a conte-
nham. Assim, supõe-se, a irredutibilidade de uma substância a
suas propriedades (a implausibilidade de uma descrição “sem
propriedade”) é semelhante à irredutibilidade de uma experi-
ência aos pensamentos que tentam transmiti-la. Essa confusão

158
capítulo 5 - o objetivo individual

de mistérios pode ser observada tanto na experiência estética


quanto no desejo sexual. Ela motiva a teoria neoplatônica do
amor (veja abaixo), as teorias expressionistas e idealistas da arte
e grande parte da filosofia hindu do desejo. Também está por
trás da, de outro modo inexplicável, disposição de Kant para
confundir, na Crítica da Razão Pura, a distinção entre indivíduo
e propriedade com a distinção entre intuição e conceito.134 Não
me proponho a desvendar tais confusões na sua totalidade. Em
vez disso, vou permitir-lhes, que cuidadosamente desvendem a
si mesmas. Mas, mesmo sem elas, podemos notar fortes moti-
vos para supor que nossa disposição de descrever o objeto do
desejo e o objeto do interesse estético nos mesmos termos não
é acidental. O “belo” é o próprio objeto de atitudes que são
atentas, intransferíveis e imediatas, e quando alguém se refere
ao objeto de alguma outra atitude nestes termos – quando ele se
refere, por exemplo, a uma bela máquina, uma bela prova, um
belo caso jurídico – é porque se rendeu à experiência imediata
de algo, encontrando ordem e significado nela.

As características formais do desejo


O objetivo de delinear as seis distinções a que me referi é
em parte para desagregar a alegação altamente complexa que
algumas de nossas atitudes são direcionadas aos indivíduos en-
quanto indivíduos, e outras aos indivíduos somente enquanto
membros de alguma classe. Há um sentido em que as atitudes
universais podem ainda ser direcionadas aos indivíduos enquan-
to indivíduos – pois elas podem existir sem propósito (ou com
um propósito meramente “imanente”), e neste sentido bastante
estreito, portanto, podem envolver um interesse no indivíduo
como um fim em si mesmo. Na verdade, este é exatamente o que
está envolvido nas atitudes morais, tais como estima e desprezo.
No entanto, nenhuma tem o caráter atencioso do amor, nem
tem a intransferibilidade contrafactual do interesse estético ou
do desejo. Descobrimos, portanto, um ninho de distinções dife-
rentes dentro da única distinção sobre a qual Kant tentou fun-
dar a moralidade do “respeito pelas pessoas”. E não devemos

134 A confusão já foi bastante esclarecida e criticada por P. F. Strawson em The Bound of
Sense, Londres, 1966, e também por R. Walker, Kant, Londres, 1978, cap. IV.

159
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

nos surpreender, portanto, se falarmos tanto de amor quanto


de desejo de maneiras que seriam proibidas para Kant por sua
própria ambição metafísica.
O desejo sexual é especial: não há “objeto universal” que seja
o seu verdadeiro foco, mas apenas o objeto particular da busca.
Vou discutir este característica com mais detalhes mais tarde, a
fim de considerar tanto a sua explicação quanto suas consequ-
ências reais ou imaginárias.
O desejo não é baseado em razões, embora possa, de vez
em quando, ser justificado, seja a partir do ponto de vista da
primeira-pessoa, seja da terceira-pessoa. Esta questão de justifi-
cação será retomada no Capítulo 11. Por enquanto basta reco-
nhecer que, embora seja possível argumentar contra a busca de
um dado objeto sexual, há algo estranho na tentativa de argu-
mentar contra desejá-lo. O melhor que eu posso fazer, para de-
sencorajar o seu desejo por Felipe, é chamar a sua atenção para
características que você pode não ter notado, e que você pode
achar repulsivas: “Como você pode desejar um homem que pas-
sa óleo no cabelo e cutuca o nariz?” Mas o desejo, assim como
o amor, envolve razões? O desejo tenta encontrar o fundamento
que também irá justificá-lo? A pergunta é difícil de responder.
Pois parece haver dois tipos de desejo. Um é bastante indiferen-
te às exigências da razão, e o outro tenta – muitas vezes sem
sucesso – obedecê-las. O segundo tipo de desejo, no entanto,
já está caminhando na direção do amor, e se envolve razões, as
envolve da mesma maneira que o amor. Este é o desejo apreen-
dido por Schumann, em Frauenliebe und Leben, em que não há
realidade além da necessidade de amar. Normalmente, quando
nos referimos ao desejo sexual, é precisamente para separá-lo
do amor de que pode ser componente. Assim identificado, ele
deixa de ser uma parte do desejo, devendo “envolver razões”.
O desejo tem um propósito, embora esse propósito seja par-
cialmente imanente, inseparável do objeto particular de busca.
Eu descrevi este propósito como “união”, e dei uma caracteri-
zação parcial do mesmo no objetivo da excitação mútua. Com
o andamento do livro continuarei a desenvolver essa descrição,
até demonstrar a intencionalidade completa do desejo.
O desejo é atencioso: qualquer característica de seu objeto
pode ser introduzida em seu foco, e todas são relevantes para a

160
capítulo 5 - o objetivo individual

sua história e drama. O desejo se assemelha ao interesse estético


não só nesse aspecto, mas também em sua imediação: como a
experiência estética, o desejo encontra o seu objeto na maté-
ria imediata da experiência – na forma encarnada do outro, tal
como aparece. Portanto, não pode haver tal coisa como “desejo
por ouvir dizer” ou “desejo por reputação”. Finalmente, e mais
importante ainda, o desejo é intransferível, e assim, nas palavras
de Blake, “amarra o outro para o seu prazer”.135
O amor é distinto de desejo, em primeiro lugar, no conteúdo
real do seu objetivo – que é imanente, mas menos específico
do que o objetivo do desejo – e em segundo lugar, no fato de
somente envolver razões. Todo amor pode ser ameaçado pelos
novos conhecimentos que destruirão a crença vital. O resulta-
do desse conhecimento pode ser catastrófico. O desejo também
tem suas catástrofes – a maior delas, o ciúme, está intimamente
relacionada com a sua intencionalidade individualizante – mas
pelo menos está desta. E, no entanto, nessa liberdade está ou-
tra catástrofe. Pois o desejo sobrevive à demonstração de que
seu objeto é indigno – e, portanto, tem o poder de degradar o
sujeito, forçando-o a ter relações íntimas com uma pessoa que
ele não consegue estimar. Mais tarde vou levantar a questão a
respeito do amor; se, ao contrário do desejo, é mediato, capaz
de viver só à base de pensamento.
Agora é possível corrigir alguns dos mal-entendidos, e defen-
der alguns insights, contidos em dois contrastes de Kant – entre
amor e estima, e entre amor e desejo.136 A estima é universal,
despropositada, desatenciosa, fundada em razões, mediata e
transferível. É, portanto, diferente do amor em todos os aspec-
tos, salvo, talvez, seu fundamento em razões e (talvez) seu cará-
ter mediato. O desejo difere da estima em cada uma das carac-
terísticas formais que discutimos. No entanto, paradoxalmente,
são o amor e o desejo que envolvem o pleno reconhecimento da
individualidade do outro. A estima, por sua qualidade universal
e transferível, ignora a circunstância individual, e fica contente
com qualquer um que mostre as qualidades necessárias. Colo-
cando mais imediatamente: a estima, ao contrário do amor ou

135 “Bind another to its delight” – NT.


136 Ver nota 114.

161
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

do desejo, não é uma forma de “interesse”. É difícil ver como


poderia existir uma moralidade plausível que coloca o indiví-
duo antes de cada abstração, que não reconhece nenhum valor
equivalente ao valor infinito da pessoa humana, mas que con-
sidera o interesse como nada mais do que parte da “patologia”
do homem. Só quando virmos amor e desejo como abrangidos
por nossas percepções morais que vamos ser capazes de realizar
o que Kant procurou realizar. Só então que seremos capazes de
dar as bases para uma moralidade secular, em que o indivíduo
é a última fonte de valor. Kant erroneamente considerou que a
distinção entre ver o outro como um indivíduo ou como uma
instância, um “exemplo”, deve ser feita nos termos da distinção
de o ver como um fim ou como um meio. Por isso, ele imaginou
que o caráter despropositado da estima garantiria sua centrali-
dade moral. Pelo contrário; a estima é despropositada porque,
em parte, abstraiu do objeto individual de interesse, e desemba-
raçou seu valor moral de sua existência individual. É somente
em atitudes propositadas, intencionais, como amor, amizade e
desejo, que ele se torna, enquanto um indivíduo, insubstituível.

O objeto individual
Como o desejo pode possuir a estrutura intencional que des-
crevemos? Como, em particular, ele pode ser intransferível? A
resposta óbvia – que o desejo é dirigido ao indivíduo, e não ao
tipo – não é mais clara do que a conceito de “pessoa singular”
que é invocado nela. É nos termos desse conceito que devemos
procurar entender, primeiro, os paradoxos do desejo, e, em se-
guida, a satisfação do desejo.
Individuum est ineffabile, dizem os escolásticos. Muitas coi-
sas são sugeridas por esse enunciado. Aqui vai uma delas: obri-
gados pela necessidade metafísica, nós fazemos uma distinção
entre o indivíduo e as propriedades atribuídas a ele. Mas como
podemos fazer essa distinção? Como separamos, em pensamen-
to, o indivíduo de suas propriedades? (Eu uso o termo “pro-
priedade” vagamente, de modo a incluir relações: a proprieda-
de é determinada por cada predicado significativo.) Parece que
precisamos de alguma característica definitória que constitua
o indivíduo como o que ele é. Mas essa característica é uma
propriedade, e como pode uma propriedade ser idêntica ao in-
162
capítulo 5 - o objetivo individual

divíduo que a carrega? Propriedades essenciais ainda são pro-


priedades, distintas apenas pelo fato de que seu possuidor não
pode deixar de tê-las sem também deixar de ser.
Tentou-se contornar essa dificuldade através da idéia de uma
essência individual – o haecceitas de Duns Scotus.137 Isso é con-
siderado uma propriedade essencial, ou uma lista de proprieda-
des essenciais, que somente pode ser instanciado por um único
indivíduo de um determinado tipo, de modo que, ao identificá
-lo, identifica-se também o indivíduo que o possui. Não preciso
dizer que a idéia de uma essência individual está repleta de difi-
culdades. Como pode haver uma propriedade que, por sua pró-
pria natureza, é instanciada apenas uma vez? Os exemplos mais
plausíveis estão comprometidos pelos paradoxos da teologia (a
propriedade de ser um deus, por exemplo, que parece ter no má-
ximo uma única instância, mas talvez apenas porque tenha me-
nos do que uma). Outros exemplos ou contrabandeiam alguma
referência secreta para o indivíduo singular que as instanciam
– a propriedade de ser idêntico a João, por exemplo – ou então
dependem, por sua instanciação única, de alguma circunstância
acidental.
Considere, por exemplo, a propriedade de ser o homem mais
alto que existe. Realmente pode-se dizer que esta propriedade
só pode ser instanciada por um único objeto: ao mesmo tempo,
no entanto, ela nunca poderia ser uma característica essencial
de qualquer objeto que a possua. Pode-se sempre dizer, do mais
alto, do mais gordo, do homem mais inteligente, que eles pode-
riam ter sido de outro modo. A “essência individual”, interpre-
tada tão vagamente, nem sequer é uma propriedade essencial
– neste caso, a idéia de que, ao compreender a essência individu-
al, compreende-se verdadeiramente o indivíduo é um absurdo.
Portanto, isso só pode ser afirmado de algumas propriedades
comparativas: o mais perfeito, o mais poderoso, o mais expe-
riente. E, repetindo, porque esses são os atributos de Deus.138

137 Sobre o caráter “pernicioso” dessa idéia, ver D. Wiggins, Sameness and Substance,
Oxford, 1980, p. 120.
138 Não devemos ficar surpresos, portanto, com o fato de que a maior das tentativas
de dar sentido à idéia de uma essência individual – a tentativa de Espinoza – tende
naturalmente à conclusão de que só há uma coisa, e essa coisa é Deus.

163
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Os exemplos putativos mais plausíveis de essências individu-


ais são “pontos coordenados”. Considere o universo da Física
moderna. Ele consiste em pontos e regiões espaço-temporais,
variadamente modificados pela distribuição de energia. Os in-
divíduos aqui são caracterizados exclusivamente pelas coorde-
nadas espaço-temporais que lhes foram atribuídas. Mas o que
é possuir uma posição dentro de um sistema de coordenadas?
É possuir uma propriedade relacional complexa. Como é que
a mera posse de tal propriedade é suficiente para individuali-
zar alguma coisa? Certamente, só porque temos uma idéia in-
dependente do seja ocupar uma posição espaço-temporal. Nós
individualizamos pontos do espaço-tempo relacionando-os aos
objetos que se encontram neles. Um ponto não é, para nós, um
verdadeiro indivíduo, mas um lugar onde os indivíduos podem
ser encontrados. E apesar de um indivíduo poder ser identifica-
do exclusivamente por seu lugar e tempo, não tem uma posição
essencialmente, e poderia estar em outro lugar e em outro mo-
mento. É, de toda forma, uma decepção ouvir que as “substân-
cias” últimas de nosso mundo têm todas as suas propriedades
acidentalmente, exceto sua localização espaço-temporal.
A resposta padrão para essas dificuldades é rejeitar toda
a idéia de uma essência individual. Diz-se que não podemos
encontrar a idéia da individualidade em uma lista de proprie-
dades, pois tal lista não pode ser ligada essencialmente a uma
única coisa. Isso não pode nem mesmo ser dito da descrição
completa (a noção completa) dessa coisa. Qualquer tentativa de
encontrar tal propriedade descritiva é uma tentativa de eliminar
a distinção entre referência e predicação, entre o “isto” e o “tal
qual”.139 Um conjunto de argumentos filosóficos, que remonta
pelo menos ao Individuals de Strawson,140 e tendo seus ances-
trais nas discussões de lógicos medievais, nos convence de que
a “ecceidade” não é descritiva, mas indexical, e não pode haver
um equivalente puramente descritivo de um indexical. Se um
sistema de coordenadas parece nos dar uma maneira respeitável
de identificar indivíduos genuínos dentro dele, é porque o em-
prego de tal sistema é inerentemente indexical. Nenhum lugar
foi individualizado dentro de qualquer sistema desse tipo para

139 Wiggins, Sameness and Substance.


140 P. F. Strawson, Individuals, an Essay in Descriptive Metaphysics, Londres, 1959.

164
capítulo 5 - o objetivo individual

mim, até que um “aqui” e um “agora” (ou, no caso do sistema


de coordenadas de Kripke para pessoas, um “eu” ou um “ele”)
tenham sido escolhidos como pertencentes a ele. Tendo identifi-
cado um ponto como aqui e agora, o resto se encaixa. Mas até
o momento dessa identificação, nós literalmente não sabemos
do que estamos falando.
Mas o que é identificado por tais índices de “referência iden-
tificadora”? Um velho problema de Descartes – o da passagem
do sujeito ao objeto – ressurge aqui como um problema de re-
ferência. Quando eu escolho um lugar no esquema espaço-tem-
poral, estou escolhendo como um ser, ou como algo que tem
alguma relação com o “lugar onde eu sou”? Nesse caso, cada
ato de identificação não pressupõe algum ato prévio de identi-
ficação do meu “ponto de vista”? Mas então, por que minha
conseqüente descrição dos conteúdos do mundo é uma descri-
ção do mundo, e não o meu ponto de vista sobre ela? A filo-
sofia racionalista – e, em particular, os sistemas de Espinoza e
Leibniz – pode ser vista como algo que envolve a tentativa de
dar uma descrição do mundo que envolve a individuação de
nenhum ponto de vista.141 A individuação seria, então, do que
existe objetivamente, e não apenas do que aparece num ponto
de vista que é meu.
Esses pensamentos nos levam a um conceito central e perene
do “indivíduo humano”. É amplamente suposto que, no meu
caso, eu tenho, em virtude da consciência privilegiada da mi-
nha própria condição subjetiva, uma espécie de “conhecimento
direto” de um indivíduo puro, cuja “ecceidade” está incorrigi-
velmente e imediatamente apresentada à consciência cuja iden-
tidade ela compartilha. Em suma, uma penumbra da “essência
individual” se liga à perspectiva da primeira-pessoa. Como ar-
gumentei no Capítulo 2, há algo sobre a base da autorreferência
que dá origem à idéia do eu como um paradigma individual: eu
naturalmente acredito que tenho contato, no meu próprio caso,
como um donnée imediato da consciência, com uma “unida-
de pura”. Esta unidade é o “ponto de vista” leibniziano, que é

141 Ver especialmente Bernard Williams, Descartes, The Project of Pure Enquiry, Londres,
1978, sobre o conceito cartesiano “absolute” do mundo. Críticas pertinentes a essa
concepção, em uma versão atribuída a Leibniz, podem ser encontradas em Strawson,
Individuals, cap. 4.

165
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

tanto um estado mental em desenvolvimento meu quanto um


espelho do mundo objetivo que me contém. É este algo que eu
identifico automaticamente ao usar a palavra “eu”.
Argumentou-se muito contra essa ilusão – a ilusão de que os
privilégios da autorreferência dão alguma garantia especial da
minha existência como uma “substância” individual. O argu-
mento de Kant, presente nos “Paralogismos da Razão Pura”,142
foi feito para mostrar que, ao identificar a “mim mesmo”, não
estou identificando nada mais do que um ponto de vista sobre
o mundo, e não uma entidade dentro dele. Seja qual for o co-
nhecimento privilegiado que pode estar associado com a minha
autoidentificação, ele não fornece qualquer razão para a cren-
ça de que eu existo como uma substância individual. O “eu” é
transcendental; ele não pode ser um objeto de sua própria cons-
ciência e manter a sua identidade como o sujeito que está cons-
ciente. Como, portanto, pode a minha consciência transparente
como um sujeito me dar qualquer pista sobre o que eu sou ob-
jetivamente? Kant defendeu – com considerável plausibilidade
– que o privilégio da autoconsciência (a “unidade transcenden-
tal da apercepção”) é compatível com praticamente qualquer
teoria filosófica da natureza humana. Eu poderia muito bem ser
tanto uma propriedade como uma substância, de acordo com
tudo o que minha consciência mostra.
Alguns filósofos resistiram a tais argumentos. Outros aceita-
ram sua amplitude, mas insistindo que há, no entanto, alguma
verdade sobre o “eu” que é verdade para mim enquanto sujeito
e que resiste à passagem para o ponto de vista da terceira-pes-
soa. Fichte, por exemplo, aceitou o argumento de Kant de que
o eu não é idêntico a nenhum indivíduo no mundo. Ao mes-
mo tempo, ele acreditava que isso simplesmente mostrou que
o mundo era “posto” pelo eu como um reino de objetos cuja
natureza é totalmente subserviente ao ponto de vista subjetivo.
O eu se torna, para Fichte, o verdadeiro objeto de investigação
filosófica, uma coisa-em-si-mesma, uma entidade na qual a li-
berdade e a intelecção estão conjugadas, um item com uma es-
trutura e desenvolvimento que precede cada processo objetivo

142 “Dialética Transcendental”, Crítica da Razão Pura (1781, 1787), tr. Norman Kemp
Smith, Londres, 1929.

166
capítulo 5 - o objetivo individual

– em suma, a verdadeira substância metafísica, mas uma a que


a categoria de “substância” não pode ser aplicada.143
A filosofia do “eu” de Fichte é um paradigma de todas essas
tentativas de elevar a perspectiva da primeira-pessoa a um princí-
pio metafísico. Uma visão mais modesta, mas não menos rica em
implicações metafísicas, é a visão moderna de que há verdades
em primeira-pessoa, que não podem ser expressas de nenhuma
outra forma. Thomas Nagel disse, por exemplo,144 que qualquer
visão do mundo puramente “sem perspectiva” necessariamente
deixaria de fora um fato importante sobre ele. Pois ela deixará de
fora qualquer referência ao eu – o ponto de vista a partir do que
o mundo é identificado. Daí que toda identificação dos objetos
no universo “sem perspectiva” será crucialmente incompleta. Os
objetos serão identificados apenas um em relação ao outro, mas
não em relação ao orador que os descreve. Como vou mostrar,
esses pontos de vista tiram conclusões inadequadas a partir do
que é, de fato, uma simples premissa de referência indexical.
De acordo com a visão de que estamos considerando, a in-
dividualidade da pessoa está conectada com a perspectiva da
primeira-pessoa. A intimidade da minha consciência desta pers-
pectiva pode ser expressa como uma “unidade transcendental”
obtida dentro dela. Eu não preciso descobrir que essa dor, essa
percepção e este pensamento pertencem a uma única consciên-
cia: o fato é “dado” para mim no próprio ato de consciência.
Nem é possível imaginar o que seria desta unidade se fosse se-
parada. Não poderia haver “ponto de vista” numa “consciên-
cia dividida” a partir do qual sua natureza dividida pudesse ser
observada. De “fora” é vista não como uma única consciência
que foi dividida, mas como duas “unidades” separadas e mis-
teriosamente relacionadas. De “dentro”, rigorosamente não é
observável. Se eu estou numa posição de atribuir um estado
mental “dado” a uma ou outra das duas “unidades”, isso só
pode acontecer porque o estado mental é apresentado a mim
como “meu;” portanto, sei imediatamente que ele pertence a
uma única unidade que inclui as outras duas.

143 J. G. Fichte, The Science of Knowledge, tr. e ed. P. Heath e J. Lachs, Cambridge, 1982, 2ª
Introdução.
144 T. Nagel, “Subjective and Objective”, em Mortal Questions, Cambridge, 1979.

167
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Tais fatos podem tentar um filósofo a concluir que a perspec-


tiva da primeira-pessoa fornece um modelo para a individuali-
dade da pessoa indivisa, e também para a identidade da pessoa,
como a coisa particular que ela é. Pode-se pensar que você não
pode ter minha perspectiva sem ser eu, de modo que, se você
vê as coisas exatamente como eu as vejo, então você é eu: você
está olhando pelos meus olhos, por assim dizer, para um mundo
que se abre para mim precisamente no ponto de observação que
você ocupa. Tais conclusões não têm fundamento. A menos que
adotemos o princípio de Leibniz da identidade dos indiscerní-
veis, não há nada que impeça a conclusão de que possa haver
dois pontos de vista indiscerníveis sobre o mesmo universo de
objetos. No entanto, a ênfase na perspectiva da primeira-pessoa
contém uma adoção oculta de indexicalidade, e isso dá uma
espécie de credibilidade espúria à visão de que isso basta para
individualizá-la àquilo a que pertence.
“Como o mundo aparece” não é o único objeto de minha
consciência presente. O mesmo se aplica aos meus estados men-
tais atuais em geral (“como o mundo aparece” é apenas um
estado mental entre outros). Como mostrei anteriormente, uma
maneira de resumir essa consciência privilegiada é dizer que, na
perspectiva da primeira-pessoa sobre minha própria mentalida-
de, a distinção entre a aparência e a realidade se decompõe. (Esta
é a idéia de subjetividade: a ausência de uma distinção entre o
ser e o parecer. E é precisamente isso que caracteriza a posição
do sujeito. Colocando a questão na linguagem hegeliana: o rei-
no do sujeito e o reino da subjetividade são uma única e mesma
coisa.) Seria absurdo pensar que poderíamos transportar esta
distinção para a perspectiva da primeira-pessoa. Pois “como as
coisas aparecem” é igualmente uma descrição do meu estado
mental. Se eu posso duvidar de sua veracidade, eu posso apenas
saber como as coisas “parecem aparecer”, o que também pode
ser, por sua vez, posto em dúvida. O sujeito se dissolve em uma
regressão pirrônica de incerteza.
Outra pessoa pode ter conhecimento de como as coisas apa-
recem para mim. E esse conhecimento poderia ser completo.
Presumivelmente, Deus tem completo conhecimento de como
as coisas aparecem para mim. Mas ele não tem o meu ponto de
vista, ou mesmo qualquer ponto de vista (expressando a idéia

168
capítulo 5 - o objetivo individual

em termos leibnizianos). Ele sabe isso como ele sabe todas as


coisas, nem mediata nem imediatamente, mas como o exercício
de sua própria vontade imutável. (Assim, Kant argumentou que
o conhecimento de Deus do mundo é como o nosso conheci-
mento de como as coisas são (é intelectual), mas ainda tem o
caráter certo de nosso conhecimento de como as coisas parecem
(é “intuitivo”). No entanto, não podemos compreender a idéia
de uma “intuição intelectual”, exceto negativamente.)145 A dife-
rença não está no que eu sei, mas em como eu sei disso. Quando
você sabe que eu estou com dor, você sabe, assim como eu, que
alguém está com dor. Se qualquer um de nós está com a van-
tagem aqui, é você; pois você não poderia saber disso sem ter
alguma idéia de quem eu sou – isto é, de quem tem essa dor. Por
outro lado, eu poderia saber que eu estou com dor sem saber
nada sobre quem eu sou. Mesmo ao despertar de uma opera-
ção de transferência de cérebro que deixa minha identidade em
dúvida, eu ainda posso saber com absoluta autoridade que eu
(quem quer que eu seja) estou com dor.146
Voltemos agora ao nosso problema. A perspectiva em primei-
ra-pessoa é uma genuína “essência individual”? Ela é, em outras
palavras, uma propriedade que é ao mesmo tempo essencial a,
e instanciada exclusivamente por, qualquer um que a possua?
É difícil acreditar que a minha perspectiva é uma propriedade
essencial minha. É essencial que eu tenha uma perspectiva: sem
ela eu não seria uma pessoa e, portanto, não deveria existir. Mas
é essencial que eu tenha a perspectiva particular que eu tenho?
Certamente não. Eu poderia ter visto o mundo a partir de outro
ponto de vista. Além disso, não está claro que a perspectiva da
primeira-pessoa é individuante do jeito certo. Ela contém, em
sua descrição, um elemento ineliminável de indexicalidade. É a
“minha” perspectiva, precisamente por ser definitiva do “ponto
de vista” que é meu. Ao identificá-lo, não estou fazendo mais do
que reafirmar o “eu” como um ponto de partida para identificar

145 I. Kant, Lectures on Philosophical Theology, tr. Allen J. Wood, R. Gertrude, M. Clark,
Ithaca e Londres, 1978, p. 150. A noção de uma “intuição intellectual” foi considerada
de grande importância nessa conexão por vários seguidores de Kant, e notadamente
por Fichte em The Science of Knowledge.
146 Ver Z. Vendler, “A Note on the Paralogisms”, em G. Ryle (ed.), Contemporary Aspects of
Philosophy, Stocksfield, 1976.

169
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

todo o resto. É uma fraude pensar nessa identificação como a


descrição de uma propriedade minha, assim como seria conside-
rar a sentença “a coisa que está aqui agora” como identificadora
de um objeto por suas propriedades. Os pensamentos do “eu”,
como os pensamentos do “aqui”, são pensamentos indexicais,
e devem o seu estatuto referencial a isso. Alguns filósofos vão
mais longe e defendem que a “imunidade a erros de identifica-
ção”147 que caracteriza o conhecimento em primeira-pessoa é
do mesmo tipo que a imunidade semelhante exemplificada por
pensamentos sobre o aqui e agora. As minhas habilidades de me
referir a um lugar como “aqui”, e a um momento como “ago-
ra”, são similarmente imunes a certos tipos de erro.148 Qualquer
privilégio epistemológico atribuído a eles é atribuído em virtude
da posição especial do orador. Já que ele não precisa de um ato
de identificação para se referir a si mesmo, isso simplesmente
reforça a conclusão de que ele não sabe nada de especial sobre
si mesmo e, em particular, que ele nem conhece, nem se refere
a qualquer componente especial da realidade, como um “eu”
sobre o qual fundamente sua certeza fortuita.

A “essência subjetiva”
Como sugeri no Capítulo 3, tais argumentos, independente-
mente da sua força, não podem explicar inteiramente o fenô-
meno do privilégio da primeira-pessoa. No entanto, além dessa
sugestão, eles devem inevitavelmente nos levar a rejeitar a no-
ção de uma “essência subjetiva”. Ao mesmo tempo, há algo em
nossas atitudes interpessoais que nos leva a pensar desta forma
sobre os outros, de modo que ainda pode ser o caso da “es-
sência subjetiva” aparecer como o objeto intencional de certos
estados mentais. Nós tendemos a pensar nas pessoas como indi-
víduos quintessenciais, constituídos por suas perspectivas sub-
jetivas invioláveis, que estão enclausuradas dentro deles como
uma noz sob a carne. O pensamento parece ser confirmado em
cada uso do “eu”; em cada declaração de sentimento, intenção
e compromisso. E já que eu reajo a você como pessoa em gran-
de parte com base em seus pensamentos do “eu”, eu não posso

147 Ver as referências a Shoemaker e Evans na nota 57.


148 G. Evans, The Varieties of Reference, ed. J. McDowell, Oxford, 1982, caps. 6 e 7.

170
capítulo 5 - o objetivo individual

evitar a impressão de que é com seu “eu” que me relaciono, e


que contém o tesouro oculto do seu ser. Ao conceder a auto-
ridade da primeira-pessoa a você, eu atribuo à sua perspecti-
va um estatuto especial de mediador entre nós. Embora não
haja nenhum fundamento metafísico para o pensamento de que
essa perspectiva seja essencialmente o que você é, não é menos
verdade que eu exijo que você a mantenha existindo como o
verdadeiro foco invariável da minha atitude em relação a você.
A prática de dar e buscar razões, por meio de que toda a nos-
sa comunicação interpessoal é realizada, exige que assumamos
uma responsabilidade ilimitada pelos nossos atos, opiniões e
expressões, e também por nossos atos e manifestações passa-
dos e futuros. Assim, aos olhos dos outros, a minha unidade
atual de consciência está associada inevitavelmente à idéia da
minha continuidade temporal ininterrupta como um agente. Eu
apareço como um “centro de responsabilidade” e um “iniciador
da mudança” duradouro. Eu vivo através dos meus atos, e em
meus atos minha perspectiva ininterrupta encontra a realidade
externa. Tudo isso é incorporada na idéia do que eu sou, não só
por mim, mas também pelos outros que me obrigam a ser “fiel
a mim mesmo” se quiserem se relacionar comigo. É assim que
nossas atitudes interpessoais tornam-se estruturadas por uma
idéia metafísica peculiar.
Aos olhos “sem perspectiva” da ciência, não somos mais do
que animais (embora, é claro, animais altamente sofisticados),
com a individualidade limitada que isso implica. Em nossos
próprios olhos, somos “pontos de vista”, e o que somos para
nós mesmos, somos para qualquer outra criatura com um “eu”
como o nosso. Assim, a estrutura intencional de nossas atitudes
interpessoais é construída sobre uma concepção do indivíduo
que não tem correspondência no mundo dos animais. Somos,
como Kant persuasivamente defendeu, as vítimas de ilusões
transcendentais, e de nenhuma mais persistente do que esta, a
mônada de Leibniz, que abriga os nossos sofrimentos e nossas
alegrias.149 Se tivéssemos que descrever o mundo objetivamente,
de nenhum ponto de vista dentro dele, o “eu” e todos os seus
mistérios desapareceriam – como desapareceram da metafísica

149 “Os Paralogismos da Razão Pura”, e também “A Anfibologia dos Conceitos da Razão
Pura” em A Crítica da Razão Pura.

171
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

impessoal de Espinoza.150 Se, por outro lado, tentamos construir


o mundo, como Leibniz fez, a partir de uma idéia de existência
individual que tem o eu como seu modelo, então vamos efeti-
vamente nos privar dessa única ordem objetiva em que os indi-
víduos podem entrar como partes componentes. Os “pontos de
vista” leibnizianos não mantêm nenhuma relação real entre si,
mas apenas refletem, ad infinitum, os espaços despovoados que
sempre os rompem.
Devemos, portanto, levar a idéia da individualidade meta-
física do eu menos a sério do que os filósofos que a apoiariam
– pois é uma idéia que não tem lugar na descrição científica
do mundo – e mais a sério do que aqueles que a rejeitariam
de antemão – pois ela denota uma característica indispensável
do entendimento intencional pelo qual vivemos. É uma “ilu-
são bem fundamentada”, que só poderíamos remover da nossa
consciência ao custo da própria consciência.

Pensamentos individualizantes
O que, então, poderíamos dizer sobre a “intencionalidade in-
dividualizante” do desejo? Este tipo de intencionalidade não é
de nenhuma maneira a coisa simples que à primeira vista parece
ser. Como vimos, ela pode ser “desagregada” em componentes
logicamente independentes, dos quais o mais importante para os
nossos propósitos é a “intransferibilidade”, que o desejo com-
partilha com o amor e o interesse estético. A intransferibilidade
não requer que seja atribuída ao objeto nem uma individuali-
dade não-arbitrária, nem uma perspectiva da primeira-pessoa.
Isto se dá pelo caso do interesse estético em um amontoado
de coisas. É claro que, tratando-se de indivíduos, amontoados
são bastante arbitrários: eles podem ser divididos, destruídos e

150 A “ausência do eu” na metafísica de Espinoza é uma de suas características mais


admiráveis. Não há proposição remotamente equivalente ao cogito de Descartes até o
livro 2, proposição XI da Ética, em que afirma que “a primeira coisa que constitui o ser
real da mente humana não é nada mais do que a idéia de uma coisa individual existir de
fato” – uma proposição que faz da existência individual da mente humana dependente
de um idéia de individualidade. E a teoria detalhada da individualidade humana de
Espinoza no livro 3 deixa claro que não há identidade do eu que não a que pode ser
atribuída ao corpo; o que for destacável do corpo não é o eu individual, mas o atributo
eterno da razão que participa da natureza de Deus.

172
capítulo 5 - o objetivo individual

reconstituídos à vontade; e eles podem ser entendidos por al-


guém que se abstém de tomar qualquer decisão rígida e rápida
a respeito de como eles devem ser contados (como um ou como
muitos). E, claro, seria absurdo pensar em um amontoado como
possuidor uma perspectiva em primeira-pessoa.
Ao mesmo tempo, o interesse estético projeta sobre seu ob-
jeto uma unidade e integridade que, materialmente falando, ele
pode não possuir. Como mostrei anteriormente, a descrição fi-
losófica imprecisa dessa tendência é a raiz de uma falácia pre-
valecente. É erroneamente suposto que a obra de arte possui,
como uma propriedade peculiar metafísica, a individualidade
com que nossa atitude a dota. Como assinalei, esta falácia é
paralela à “ilusão bem fundamentada” contida em nossas res-
postas interpessoais. Assim, um amontoado esteticamente bem
sucedido, como a Mesquita Süleymaniye em Istambul, é vista
como possuidora de uma individualidade que coincide com a
atitude dirigida a ela. Nenhuma pedra pode ser removida, acre-
dita-se, sem destruir a sua unidade.
Eu poderia manter esta atitude, entretanto, sem ter ilusões
quanto à realidade metafísica do Süleymaniye. Eu sei que ele é
um amontoado de pedras que não tem mais unidade do que eu
sou capaz de impor-lhe. Algo semelhante pode também ocorrer
interpessoalmente. Eu posso olhar para o meu vizinho, e até
mesmo para meu amigo, com olhos desencantados, conscien-
te de que ele não corresponde, em seu coração metafísico, aos
exigentes requisitos da minha atitude. No entanto, há uma ten-
dência inevitável de vê-lo como uma unidade transcendental. E
essa percepção do outro será dominante em toda “conversação
moral” bem sucedida. Além disso, temos uma base para essa
atitude que não temos para a nossa atitude em relação à arte.
A outra pessoa exibe a mesma unidade de consciência que eu
descubro em mim mesmo. Eu o vejo como um outro “eu”, e
nesse “eu” está resumido todo o sua potencial para me apoiar
e me prejudicar. Seria impossível para ele aparecer na minha
Lebenswelt como o objeto dessas respostas que eu não posso
negar-lhe racionalmente, sem também aparecer como um indi-
víduo metafísico.
No caso do interesse estético, estou freqüentemente ciente
do fato de que o objeto deve sua individualidade especial à mi-

173
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

nha maneira de vê-lo. Alguns chegam a defender que é parte


integrante do significado da resposta estética permitir essa per-
cepção. Nós, então, retrocedemos da experiência cotidiana para
ver que o mundo está de acordo com uma ordem consoladora,
e que a origem desta ordem está em nós.151
Em contrapartida, a intencionalidade individualizante das
atitudes interpessoais surge de uma crença sobre seu objeto. É
algo nele – notadamente sua posse de uma perspectiva em pri-
meira-pessoa – que dá base à minha atenção individualizan-
te. Esta atenção é invocada de mim automaticamente no curso
de minhas relações com ele. Eu não tenho de tomar nenhuma
atitude que não coordenaria espontaneamente nossa relação.
A visão freqüentemente sustentada de que desejo e prazer es-
tético estão intimamente relacionados – talvez espécies de um
mesmo gênero – tem algum fundamento, como vou mostrar.
Mas eles diferem especificamente no fato do primeiro, diferente
do segundo, extrair a sua intencionalidade individualizante do
pensamento de que está concentrado em um indivíduo real e
metafisicamente integrado, que pode também ser identificado
e tomado em forma corpórea. Temos agora de nos perguntar
como este pensamento entra no objetivo do desejo, e como, se
é que isso ocorre, ele dá origem à noção familiar do paradoxo.

O paradoxo de Sartre
Vamos começar com uma observação sobre a teoria de Sar-
tre.152 Sartre reconhece que o principal problema para qualquer
teoria do desejo é explicar a sua intencionalidade individualizan-
te;153 ele também reconhece que nenhuma teoria do desejo que
o representa como um instinto, com o prazer sexual (prazer nos
órgãos de procriação) como seu objetivo, poderia possivelmente
explicar a realidade fenomenológica, pois não explicaria como
outro ser pode ser um componente essencial no projeto do desejo.

151 Assim temos Kant, que defende (na Crítica do Juízo) que no julgamento da beleza nós
entendemos a harmonia entre nossas próprias faculdades e o mundo dos objetos, e em
consequência vemos nas obras da natureza uma idéia de finalidade que é entendida a
partir de nossa atividade e natureza.
152 Being and Nothingness, tr. Hazel E. Barnes, Nova York, 1956, livro III, cap. 3.
153 Ibid., p. 384-5.

174
capítulo 5 - o objetivo individual

Ao mesmo tempo, é evidente que a encarnação do outro é de


interesse fundamental no desejo: em um ponto, Sartre afirma
que “a pressão carnal de duas pessoas, uma contra a outra, é o
verdadeiro objetivo do desejo”.154 No entanto, as palavras “car-
nal” e “pessoas” precisam de interpretação. Eu não quero me
pressionar contra a sua carne por qualquer sensação confortável
que isso pode fornecer, mas por causa da consciência que satura
sua carne. Em minhas carícias, diz Sartre, eu “encarno” você:
ou seja, eu invoco a sua consciência (o seu “por si mesmo”) em
sua carne, para ser capaz de possuí-lo. Ao explicar essa idéia,
Sartre se refere à importância do comportamento “involuntário”
(comportamento que pode ser “invocado”) como um índice da
consciência do outro. Assim, ele oferece uma teoria dos fenô-
menos para os quais chamei a atenção nos capítulos 2 e 4 – os
fenômenos da excitação e da transparência corporal. O objetivo
do desejo é primeiro encarnar na perspectiva da primeira-pessoa
(o “por si mesmo”) do outro; e, depois, se unir a ela como carne.
Parece haver duas formas de consumar essa união: o dese-
jo sexual normal e o sadomasoquismo. Sartre escreve como se
a primeira desabasse na segunda, e como se fosse impossível,
justamente da maneira que a segunda é impossível. No desejo
sexual normal, eu quero que o outro apareça em sua carne, e
quero que ele me deseje da mesma forma. Nossas energias são
gastas nessa empreitada de “encarnação” mútua. E, desde que a
mutualidade do desejo seja sustentada, cada um convocando o
outro para a superfície de sua carne, o objetivo do desejo pode
ser pelo menos perseguido, se não cumprido. (O orgasmo, na
visão de Sartre, assim como na visão defendida no Capítulo 4,
é pouco melhor do que uma interrupção do desejo, e certamen-
te não faz parte do seu objetivo.) Em um sentido importante,
no entanto, eu não posso realmente me unir com a sua pers-
pectiva de primeira-pessoa. Tudo que posso fazer é invocá-la e,
da mesma forma, me entregar. Nós não fazemos mais do que
aparecer uns aos outros, tornando a nossa carne transparente,
como acontece num olhar desejoso. No desejo, aparecemos na
superfície de nossos corpos como peixes nas bordas de reser-
vatórios vizinhos, espreitando desesperançosamente o elemento
inatingível onde o outro tem seu ser.

154 Ibid., p. 396.

175
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

O verdadeiro significado desta condição inamenizável é reve-


lado nos “dois recifes em que o desejo pode encalhar” – sadis-
mo e masoquismo. O sadismo, de acordo com Sartre, é “como
uma semente no próprio desejo, como a derrota do desejo; de
fato, assim que procuro tomar o corpo do Outro, que através
da minha encarnação eu induzi a se encarnar, eu quebro a reci-
procidade da encarnação, supero meu corpo em suas próprias
possibilidades, e me dirijo ao sadismo”.155 No sadismo, o corpo
do outro é usado como um instrumento; ele está cheio de tor-
mento, para que o “por si mesmo” do outro, finalmente, iden-
tifique-se com o seu corpo, revelando sua liberdade em um ato
de autotraição. O sádico, no entanto, se recusa a ser encarnado:
ele fica distante do processo que humilha o corpo de seu com-
panheiro, pois ele pretende manter o poder de se “apropriar da
encarnação do outro”.156
O pensamento do desejo é mais ou menos este: em minha
encarnação eu sou vulnerável, pois fui invocado por sua ação
para a superfície da minha carne. Para manter a posse da minha
vontade, eu devo recusar ou “transcender” esta encarnação. A
primeira resposta é frigidez, a segunda, sadismo. No sadismo,
eu supero meu desejo tornando-o um instrumento de domínio
sobre você. Eu embarco em um projeto, que é possuir (se apro-
priar) o “por si mesmo” que eu compeli na superfície do seu
corpo. Mas eu nunca posso ter sucesso nisso. Se conseguir com-
pelir algo de você, o que estou compelindo não é a expressão
de sua liberdade: e mesmo que eu obtenha o olhar que expressa
a sua liberdade, é um olhar de alienação pura, em que sou re-
velado como um instrumento de sofrimento, com o qual você
nunca vai se unir livremente. (Estou usando minhas próprias
palavras, uma vez que a linguagem de Sartre é obscura e até
contraditória.)
Se olharmos para trás, para o objetivo do desejo sexual “nor-
mal”, descobriremos que ele se assemelha significativamente
ao objetivo do sadismo, e é igualmente irrealizável. O que eu
desejo possuir ao possuir você é precisamente essa perspectiva
em primeira-pessoa que eu obrigo, com minha encarnação, a

155 Ibid., p. 404.


156 Ibid., p. 399.

176
capítulo 5 - o objetivo individual

se encarnar. Essa perspectiva não é nada mais do que a sua li-


berdade, que eu não posso possuir ou me apropriar, mas que só
posso observar. Eu posso me envolver com você em um esforço
cooperativo – o esforço de “encarnação” mútua. Mas eu nunca
posso “tomar posse” da liberdade que é sua, nem me unir, de
forma alguma, com o você quintessencial.
O paradoxo do desejo sexual é, de acordo com Sartre, exem-
plificado também pelo amor e ódio. Na verdade, Sartre o con-
sidera uma aflição fundamental, que lança uma sombra de im-
possibilidade sobre cada tentativa de se unir ao outro e o outro
a si. Todas as relações humanas exemplificam o paradoxo da li-
berdade. Sartre adapta a famosa máxima de Rousseau: eu sem-
pre devo “forçar o outro a ser livre”. A estrutura intelectual de
seu argumento não vem de Rousseau, mas de Hegel, cuja pará-
bola do senhor e do escravo é o ancestral da invocação poética
do sadomasoquismo de Sartre.157 De acordo com uma versão
da imagem hegeliana, não é o desejo sexual que está repleto de
contradições, mas a luxúria. A luxúria é a forma de bestialida-
de que tem o corpo humano como objeto: sua versão extrema
é o estupro, mas é sempre, em alguma medida, equivalente ao
estupro, uma vez que vê o outro instrumentalmente, e procura
obrigá-lo a aceitar o que quer que lhe seja imposto. O parado-
xo pode, então, ser formulado da seguinte forma. O outro, ao
se tornar um instrumento do meu prazer, torna-se uma coisa.
Mas a força da minha paixão surge apenas porque eu o con-
sidero como uma pessoa, que vai responder à minha violação
de sua liberdade com ódio e dor. Ao mesmo tempo, eu fantasio
que ele consente com minha ação, e que responde com o mes-
mo impulso lascivo que eu tenho. É somente nesta suposição
que eu o quis. Portanto, eu o privo de sua natureza pessoal em
pensamento e a devolvo em forma de fantasia. De uma forma
profunda eu estou em desacordo comigo mesmo, desejando que
ele seja pessoa e coisa simultaneamente.
O “paradoxo da luxúria” irá nos preocupar em vários pon-
tos nos capítulos seguintes. Mas claramente não dá base sufi-
ciente para a teoria do desejo de Sartre. Essa teoria envolve a
tentativa de provar que a intencionalidade individualizante do

157 Ver o argumento sobre sadismo no Cap. 10.

177
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

desejo contém as sementes de paradoxo. É verdade que – em al-


gum nível metafísico – Hegel quis afirmar que o amor e o desejo
são contraditórios. “O amor”, escreveu, “é uma tremenda con-
tradição; o entendimento não pode resolvê-la”.158 Pois o amor
impõe entrega total do que é totalmente livre, e unidade absolu-
ta do que é totalmente diverso. Ao mesmo tempo, essa contra-
dição nas relações interpessoais era, para Hegel, um elemento
na natureza “dialética” da realidade; e é a essência das con-
tradições dialéticas serem “transcendidas” (aufgehoben). Sartre,
pelo contrário, pretende retratar as contradições do amor e do
desejo como insolúveis. Chegou, portanto, a comparar o de-
sejo ao danoso sadomasoquismo, em que o corpo do outro é
“instrumentalizado”.
Mesmo sem aceitar a teoria de Sartre sobre a liberdade, po-
demos discernir um certo paradoxo no sadismo. O desejo é di-
recionado à individualidade do outro. E ainda assim, tentando
se “apropriar” do outro para seus próprios fins, o desejo não o
trata mais como um indivíduo. Essa “apropriação” parece ser
parte do objetivo do sádico. Daí que o desejo sádico envolva o
paradoxo em que todos cairemos, de acordo com Kant, quando
o imperativo categórico é violado: o paradoxo de tratar como
um meio o que só pode ser tratado como um fim.
Mas, mesmo que isso seja uma consequência do sadismo, só
é uma conseqüência do desejo na suposição de que o desejo leva
naturalmente ao sadismo. Como vimos, a distinção kantiana en-
tre tratar como um fim e tratar como um meio não é a simples
distinção que Kant imaginou que fosse. É de fato uma distinção
composta, que deve ser entendida nos termos das seis divisões
entre atitudes que apresentei na primeira parte deste capítulo.
Na medida em que o meu propósito com o desejo é imanente,
e na medida em que busco o seu consentimento, eu o trato com
tanto respeito como em qualquer outra transação. O desejo na-
tural não está em conflito nem com a estima nem com o amor, e
não leva ao sadomasoquismo, mas ao “trabalho mútuo”. Apenas
uma teoria metafísica da liberdade dá plausibilidade à afirmação
de Sartre que, porque eu quero você, eu também quero me apro-

158 G. W. F. Hegel, The Philosophy of Right, tr. e ed. T. M. Knox, Oxford, 1942, complemento
ao parágrafo 158.

178
capítulo 5 - o objetivo individual

priar de sua liberdade, anulando de seu corpo a perspectiva que


eu também gostaria de possuir através dele.
No Capítulo 3, sugeri uma teoria da liberdade mais plausível.
A “liberdade”, como disse, é uma metáfora através da qual em-
belezamos o fato da nossa responsabilidade. A capacidade das
pessoas de declarar e assumir responsabilidade por suas ações
futuras dá crédito à nossa “conversa moral”: é para significar
as ocasiões proveitosas ​​de conversa em que anunciamos que
os homens são livres. Os homens são livres porque agem e são
influenciados por razões. Ao solicitar o consentimento do outro
para o meu desejo por ele, eu respeito sua liberdade, mesmo
no contato final, em que ambos somos dominados pelo prazer.
Assim entendido, o conceito de liberdade é metafisicamente ino-
cente. E assim entendido, não dá nenhuma base para a teoria de
que existe um “paradoxo do desejo”.
A teoria de Sartre faz contato com um idioma, e as implica-
ções disso são agora freqüentemente questionadas – o idioma da
posse. O homem desejoso se expressa em termos que implicam
um “direito de propriedade” sobre o objeto desejado. Esta lin-
guagem lembra a tendência bem conhecida entre os guerreiros
de reivindicar tanto a terra e as mulheres que nela habitavam.
Mas seria errado pensar que a linguagem da “posse” aplica-se
apenas às atividades do macho humano. Há um egoísmo intole-
rável no coração de todo desejo, que corresponde, e prenuncia,
o egoísmo do amor:
O amor só busca o próprio agrado,
Amarrar o outro para o seu prazer;
Alegra-se quando é o outro prejudicado,
E um inferno no céu acaba por fazer.159

Tais observações são questões de sabedoria, e não de análise


filosófica. O desejo de “possuir” pode ser uma característica do
amor: pode até mesmo ser uma característica do desejo. Mas
não é uma característica essencial de nenhum deles.

159 Love seeketh only self to please,


To bind another to its delight;
Joys in another’s loss of ease,
And builds a Hell in Heaven’s despite – NT.

179
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Devemos ser cuidadosos ao distinguir entre a ilusão meta-


física cotidiana gerada pela perspectiva da primeira-pessoa e
o brilho metafísico que endossa suas reivindicações. A teoria
de Sartre é esse brilho: como a teoria do eu transcendental de
Kant – de onde vem, em última análise – ela ultrapassa o que é
“dado” na compreensão intencional. Ela propõe uma teoria da
essência individual (que eu sou a minha liberdade) e, em segui-
da, sugere que essa teoria capta o que é pensado pelo homem
que vê a si mesmo ou o outro como uma pessoa. No entanto,
nossa compreensão interpessoal nunca poderia chegar tão lon-
ge. Ela depende apenas do sentido que as autoatribuições pro-
cedem do núcleo da individualidade humana, e têm uma auto-
ridade epistêmica peculiar. Essa idéia está muito aquém de uma
teoria da alma. Certamente, isso não implica que a liberdade é
a substância da alma. Implica apenas que cada pessoa é indivi-
dualizada dentro de sua própria perspectiva, e que a autoridade
de sua perspectiva se estende para o passado e para o futuro,
determinando suas responsabilidades.
Assim, embora seja verdade que a perspectiva da primeira
-pessoa nos permite subsumir as ações do outro sob o conceito
da responsabilidade e, assim, estender a ele atitudes fundadas
nas idéias de direito, dever, obrigação e privilégio, isso não im-
plica que devemos pensar nele como transcendentalmente livre,
à maneira de Kant ou Sartre. No máximo, implica apenas que
devemos ver a sua “essência” como residente em um “ponto de
vista” distinto. Se há um paradoxo nas nossas atitudes interpes-
soais não é a consequência de uma idéia metafísica de liberdade,
mas de outra idéia metafísica, a da individualidade absoluta que
é “dada” para o indivíduo em sua consciência de si.

O objetivo do desejo
É claro que é impossível para mim “estar unido” com sua
perspectiva em primeira-pessoa – o que simplesmente me tor-
naria você, abolindo a separação subjacente ao desejo. Se fosse
esse o objetivo do desejo sexual, poderíamos explicar a inten-
cionalidade individualizante do desejo em termos que também
mostram o seu objetivo repleto de paradoxos. Mas por mais
convincente que a descrição possa ser, certamente não é mais
do que metafórica, exatamente da maneira que a descrição de
180
capítulo 5 - o objetivo individual

Lucrécio é metafórica. Não é isso que buscamos no desejo, mes-


mo se o que buscamos possa ser sugestivamente descrito nestes
termos.
Nossa primeira tarefa, portanto, deve ser descrever a “união
sexual” em termos mais literais. O leitor deve se lembrar de que
uma das principais dificuldades encontradas na descrição do
objetivo do desejo está no fato de que o desejo, porque depen-
de minuciosamente das reações do outro, “segue o seu próprio
rumo”. Precisamos, portanto, saber exatamente como o outro é
concebido “no rumo do” desejo; e em especial, se a ilusão bem-
fundada de sua individualidade metafísica impede – de alguma
forma análoga à sugerida por Sartre – a formação de um obje-
tivo verdadeiramente coerente.
Nós devemos voltar nossa atenção mais uma vez para a “re-
ciprocidade” de desejo. A “reciprocidade” que é buscada no
desejo não distingue em si o desejo de inúmeras outras atitu-
des humanas. A cooperação é o cerne da existência social, e
baseia-se na mutualidade – na disposição humana para desejar
que nossos desejos coincidam, de modo que nossas transações
possam ser governadas pelo consentimento, e não pela coerção.
Nas relações de negócios do dia-a-dia, esta mutualidade pode
ser materializada em contratos implícitos ou explícitos; mas
isso não deve nos cegar para o fato de que é apenas a condição
normal da existência social entre seres autoconscientes, que vi-
sam regulamentar a conduta um do outro pela persuasão, e que,
portanto, têm um motivo anterior de se alinharem às práticas
que comandam a seu consentimento comum.
A reciprocidade exemplificada pelo significado, a que me re-
feri no Capítulo 2, é mais concentrada do que a reciprocidade
da cooperação normal. Ela não decorre de um desejo por um
propósito comum, mas de uma “intenção reflexiva” – uma in-
tenção de que a própria intenção seja reconhecida pelo outro.
Quando a estrutura intencional característica do significado
surge, surge também a possibilidade de, e a tendência para, uma
“escalada” progressiva das intenções reflexivas. A enorme con-
centração de emoção humana que cada símbolo contém pode
ser vista como o resultado do convite que oferece ao observador
para reconhecer as intenções manifestas que estão por trás dela,
e para entender o símbolo através da compreensão delas.

181
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

No Capítulo 2, referi-me à visão de Thomas Nagel que o


olhar do desejo contém um núcleo desta reciprocidade inten-
sificada – a reciprocidade envolvida quando o outro vem com-
partilhar o meu estado de espírito, precisamente através do re-
conhecimento da minha intenção de que ele deveria fazê-lo. Eu
não acho que essa idéia capte a reciprocidade que está envolvi-
da na condução do desejo. O olhar desejoso tem essa qualidade
em parte porque é um caso que significa algo – assim como o
olhar de cumplicidade e o olhar de raiva. É um convite simbóli-
co, e até mesmo parcialmente convencional, oferecido ao outro.
No ardor do desejo, no entanto, outra forma de reciprocidade
governa as intenções dos participantes. E é isso que está na raiz
da intencionalidade individualizante do desejo.
Esta nova reciprocidade envolve os corpos dos participantes,
e é conhecida popularmente, mas pertinentemente, como o ato
de “fazer amor”. Ele começa com olhares e carícias, passa para
beijos, e culmina no ato sexual. Como disse, ele é mais bem des-
crito como um vetor do que como um simples objetivo. Pode ser
difícil desviar o desejo de sua tendência natural; mas isso não
significa que a relação sexual é o objetivo do desejo. O objetivo
é dado pelo teor intencional do desejo que, inicialmente pelo
menos, reside na excitação mútua. No entanto, escondida den-
tro deste esforço inicial, está uma noção distinta e crescente do
que eu quero do outro. Eu quero que ele tenha conhecimento
de mim no meu corpo, e tenha prazer em mim lá, assim como
eu tenho prazer nele. É igualmente crucial para a minha atitude
que sua atenção esteja focada em mim (como um indivíduo)
quanto a minha esteja focada nele. Em todo desejo natural há,
em realidade, um elemento de narcisismo. Pois eu me esforço
para me ver através dos olhos dele. Eu gostaria de aparecer em
sua consciência de forma esmagadora, e eu respondo a tudo
nele que transmite essa impressão.
Há, claramente, mais nisso do que na reciprocidade do inter-
câmbio amigável, e mais do que na reciprocidade de significado.
Há o desejo de estar “presente como corpo” para o outro, e
observar a própria presença através dos seus olhos. Há também
o desejo de que ele deseje o mesmo: pois ele deve responder a
cada um dos meus desejos com uma afirmação mental corres-
pondente. No ardor pleno do desejo, cada participante está se

182
capítulo 5 - o objetivo individual

esforçando para estar presente em seu corpo, e se esforçando


também para ver seu próprio esforço a partir de um ponto de
vista fora dele. Parte da excitação resulta da interação desses
dois atos de atenção.
Pode parecer que encontramos tanto o paradoxo quanto sua
solução. Pois é claro que eu não posso de fato ver a minha pre-
sença com seus olhos; na medida em que estou tentando fazê-lo,
o meu objetivo deve permanecer sempre frustrado. No entanto,
embora eu esteja realmente “faminto” por você e por essa pro-
ximidade suprema de você que é satisfeita apenas em um ato
de identificação mental, apenas um erro imaginativo me levaria
a pensar que eu realmente devo compartilhar sua perspectiva
antes que eu consiga me ver como você me vê – o tipo de erro
que leva algumas pessoas a fazer amor com a ajuda de espelhos.
Toda intimidade humana requer um ato de simpatia, um “como
se”, que projeta o participante na paisagem mental de seu com-
panheiro. É difícil descrever tal ato: mas isso não deve nos levar
a considerá-lo paradoxal. Pois devemos reconhecer que ele exis-
te, e que constitui o fundamento não só da intimidade pessoal,
mas também da arte representacional.160
Este paradoxo em particular, portanto, foi declarado e resol-
vido num só ato. Mas outro paradoxo mais profundo se escon-
de por trás dele. Pois é neste ponto – o ponto de identificação
imaginativa – que a ilusão bem-fundada da emoção interpessoal
começa a assumir o controle. Nossos esforços estão concentra-
dos em nos fazer presentes e perceptíveis em forma corpórea. O
corpo é tangível, apreensível: eu posso tocá-lo, apertá-lo, mordê
-lo. Ele responde como uma unidade à minha presença, e o pra-
zer ou a dor em qualquer parte dele também são prazer ou dor
na criatura como um todo. Eu me regozijo nesta unidade e no
fato de que eu tenho em minhas mãos a coisa única que é você.
(Imagine algum dispositivo astuto que permita que um homem
penetre Joana enquanto beija o rosto de Maria, escondendo
dele o fato de que são dois corpos que recebem suas atenções.
Se ele viesse a descobrir a verdade, então, independentemente
do prazer expresso por Joana e Maria, ele deve se considerar
enganado. Ele não estava, como havia pensado, fazendo amor

160 Ver meu trabalho Art and Imagination, cap. 11.

183
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

com outra pessoa, mas estava sendo, estranha e prazerosamen-


te, abusado.)
A unidade corporal que está ao meu alcance é identificada no
meu pensamento com outra unidade, a da perspectiva que “se
esgueira” de seu rosto. É no poço dessa perspectiva que todos
os meus gestos desejosos são lançados, e eu procuro em sua su-
perfície corporal pelos sinais do meu próprio significado. Assim
surge, dentro do núcleo da excitação recíproca que é o “curso”’
natural do desejo, um pensamento peculiar, e que é peculiar a
essas atitudes interpessoais que incidem sobre a “encarnação”
do objeto. Eu procuro uni-lo com seu corpo. Eu procuro invo-
car a sua perspectiva em sua carne, para que se torne idêntico
à sua carne; assim, eu finalmente descubro sua verdadeira indi-
vidualidade (o seu eu) como um constituinte do mundo físico
em que eu me movo e ajo. Eu desejo que você seja o seu corpo,
não no sentido direto, em que isto é sempre verdadeiro, mas
no sentido metafísico em que isso nunca pode ser verdade, no
sentido de uma identidade entre a sua “unidade de consciência”
e a unidade animal do seu corpo.
Esse, creio eu, é o verdadeiro mistério da encarnação. É parte
do gênio do cristianismo que nos convida a compreender a re-
lação entre Deus e sua criação nos termos de um mistério que
temos, por assim dizer, continuamente em nossas mãos. O mis-
tério com que nos confrontamos no ato sexual, não podemos
nem resolver nem abjurar. Nenhuma perspectiva de primeira
-pessoa pode suportar a identidade de uma pessoa, nem pode
ser unida à única coisa – o corpo – em que a individualidade
nos é revelada. No entanto, o paroxismo de desejo é tão pode-
roso que me parece é como se a própria transparência do seu eu
fosse, por um momento, revelada na superfície do seu corpo em
uma união misteriosa que pode ser tocada, mas nunca compre-
endida. As partes do corpo que permanecem escuras para mim
estão escuras apenas pela sombra projetada pela chama do seu
eu. Essa queima da alma na carne – a llama de amor viva de
São João da Cruz – é o símbolo de todas as uniões místicas, e o
verdadeiro motivo para a identidade das imagens entre a poesia
de desejo e da poesia de adoração.
A unidade que eu me esforço para extrair de você é uma que
busco também para impor em mim. Nós estamos envolvidos

184
capítulo 5 - o objetivo individual

em uma empresa impossível, mas necessária. Estamos tentando


unir nossos corpos com um “proprietário” inexistente, que é
incapaz de possuir a individualidade por que anseia, mas que
sustenta a ilusão de sua própria existência, como um reflexo
no olho do outro. É nisso que reside o verdadeiro significado
das autoexpressões “involuntárias”, que, como disse, formam o
foco inicial do desejo. O sorriso que me atrai é de carne e osso.
O desejo de beijá-lo é o desejo de plantar meus lábios nesse sor-
riso, e não numa boca: numa parte do corpo em que invoquei
a perspectiva do outro. Um sorriso é realmente o alimento do
amor, enquanto uma boca pode ser o alimento do amor apenas
para alguém cujo furor transformou desejo em apetite – alguém
que, como a Pentesileia de Kleist, procura saciar seu anelo into-
lerável na carne morta de seu amado antagonista. No celebrado
relato de Dante do destino eterno do amor carnal, Francesca
não recorda a boca, mas o sorriso de Guinevere, desejado e bei-
jado por Lancelot:
Ao lermos que na boca beijara
O riso ansiado de tal namorado,
Este, que de mim não se separa,
Minha boca trêmula havia beijado.161
[Inferno, V, 133-6]

Numa sutil transição, ela se lembra de Paolo beijando não


seu sorriso, mas sua boca, pois ela foi subjugada por ele e não
é, em seus próprios olhos, nada mais do que carne para ele.
Francesca é uma vítima do paradoxo do desejo. Atraída por um
sorriso, ela se torna uma boca. Procurando unir sua perspectiva
com seu corpo, ela se perde em seu corpo. Aquilo que ela queria,
ela não pode ter. E o que ela consegue não é mais do que a cin-
za de seu propósito perdido. Este processo – o “Untergang da
pessoa no desejo”, como descrito por um fenomenólogo162 – é
uma expressão direta da disparidade que existe entre o objetivo
transcendente do desejo e os meios meramente imanentes atra-
vés dos quais podemos tentar alcançá-lo. A punição de Paolo e

161 Quando leggero il disiato riso / esser baciato da cotanto amante, / questi, che esteira da me
non fia diviso, / la bocca mi baciò tutto tremante.
162 Aurel Kolnai, Sexualethik, Sinn und Grundlagen der Geschlechtsmoral, Paderborn, 1930,
p. 66.

185
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Francesca é que eles devem ser arrastados pelo primeiro círculo


do Inferno, seus corpos para sempre inseparáveis, suas almas
para sempre divididas pelo remorso que seus corpos causaram.
O paradoxo só poderia ser resolvido pela abolição da ilusão
bem-fundada de que provém: a ilusão de que eu sou essencial-
mente o que sou “por mim mesmo;” que a minha perspectiva
de primeira-pessoa contém a “essência individual” que sou eu.
Somente poderíamos abandonar essa ilusão perdendo a capaci-
dade de conversação moral. Pois é a nossa confiança nesta ima-
gem que gera nossos compromissos. Apenas aqueles que sofrem
de ilusões transcendentais podem ser francos no diálogo, pois o
diálogo nos obriga a construir a nossa visão do outro a partir
dos dados de suas declarações em primeira-pessoa.
Em comparação com o amor, a estima e a admiração, o de-
sejo tem uma qualidade “problemática”. O problema deriva da
tentativa de unir a individualidade ilusória do eu do outro com
a individualidade real, mas resistente, do animal de que ele é
idêntico. É como corpo que eu sou capaz de perceber e compre-
ender sua individualidade. O “ponto de vista” leibniziano está
permanentemente além da minha compreensão; para mim isso
não é mais real, mais substancial, do que um ocupante da reali-
dade como o número 2. O “projeto” de longo prazo do desejo
pode, portanto, ser interpretado em função de um “problema”
que todos os seres racionais têm razão para superar – o proble-
ma de tentar apreender no corpo do outro a perspectiva que se
esgueira dele e que nunca pode ser apreendida.
Se essas reflexões estão corretas, podemos tirar as seguintes
conclusões:
(1) As propriedades formais do desejo – e em particular a
sua intransferibilidade – têm um fundamento real no
objetivo do desejo.
(2) O objetivo do desejo é individualizante, na medida em
que envolve pensamentos individualizantes sobre seu
objeto.
(3) Esses pensamentos individualizantes identificam o ob-
jeto de duas formas: em função de sua individualida-
de verdadeira como um corpo humano, e em função de
sua individualidade ilusória como uma perspectiva de
primeira-pessoa.

186
capítulo 5 - o objetivo individual

(4) O desejo envolve a tentativa de unir esses dois padrões


de individualização em um pensamento que é inerente-
mente paradoxal.
Dessa forma, mesmo que o termo “união” não seja mais do
que uma metáfora para o objetivo do desejo, ele capta o ele-
mento do paradoxo envolvido na estratégia que visa invocar
a perspectiva do outro à superfície de sua carne. O objetivo
inicial do desejo, que é a excitação mútua, está muito longe
de ser paradoxal. Pois envolve o desejo de superar o outro, de
levá-lo a revelar-se naquelas transformações involuntárias que
me transmitem a imagem de seu interesse em mim. Ao mesmo
tempo, essas transformações – que são o alimento do amor –
devem deixar o desejo insatisfeito. Elas são sempre menores do
que a revelação plena da alteridade individual que eu procuro
compreender. No meu desejo, sou tomado pela ilusão de uma
unidade transcendental subjacente à opacidade da carne, o re-
positório de infinitas possibilidades morais e a promessa daque-
la perfeita presença envolvente que justificaria – se pudesse ser
obtida – a turbulência da busca sexual.

Pecado original
Eu listei quatro características do desejo que, juntas, entram
no paradoxo de Sartre. Mas essas características – pode-se dizer
– também estão presentes em outros sentimentos, tais como a
ternura em relação a uma criança. Por que esses outros senti-
mentos não são paradoxais também? A proximidade do desejo
com o amor de uma criança – e sua ênfase comum na encar-
nação – é um tema bem conhecido da literatura. E a teoria da
transcendência neoplatônica foi aplicada a ambos. No poema
do inglês medieval Pearl, ao poeta é concedida, através da visão
sagrada de sua falecida filha, a mesma revelação concedida a
Dante através da visão de Beatriz: e os termos de referência são
quase os mesmos. Então o que é que na visão de Dante traz a
marca do desejo?
Devemos aqui voltar para a idéia de encarnação. É verdade
que a minha preocupação terna por uma criança se concentra
em sua forma encarnação, e é totalmente dependente do sentido
de seu corpo frágil como o veículo de uma consciência nascente,
a roupa translúcida de um espírito que, porque ainda se desen-

187
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

volve no ritmo de um corpo humano, parece-nos inseparável


do corpo em que cresce. Eu quero tocar nesse corpo, segurá-lo,
beijá-lo, para pressioná-lo contra mim – e ao mesmo tempo não
há nada de desejo nisto, pois não há nada de excitação.
Por que então a excitação faz tanta diferença? A resposta
está no lugar particular ocupado pelo corpo na excitação sexu-
al. Na excitação, eu sou, de alguma forma, vencido pelo meu
corpo, que por sua vez é vencido pelo seu (ou por você no seu).
(Essa é a lição que Francesca aprendeu tão vividamente.) Não é
que eu simplesmente atenda à sua encarnação e tenha carinho
por você nela. Nossos corpos estão em primeiro lugar em nos-
sos pensamentos, e nos dominam através das transformações
involuntárias de suas partes aglutinantes. Eu me esforço para
uni-lo ao seu corpo na excitação, induzindo apenas essa “sub-
jugação” de sua vontade. Eu não recorro apenas a sorrisos ou a
gestos ternos de amizade e confiança. Eu também gostaria que
você se envolvesse em um ato em que o seu eu é desestabilizado,
que fuja ante a violência do corpo, e que seja incapaz de convo-
car seus recursos habituais. A experiência da sua encarnação na
excitação é também a experiência de sua subjugação ao corpo.
É a prova final, oferecida a mim no momento exato da minha
tentativa de me unir à sua perspectiva, de que a sua perspec-
tiva realmente não o define. (Por este motivo muitas pessoas
acham difícil desejar aqueles a quem respeitam, e direcionam
suas atenções apenas àqueles em quem a desordem do espíri-
to não é uma ameaça a suas “queridas ilusões”.) Sua unidade
“transcendental” me escapa no exato momento da nossa con-
junção, e eu mantenho apenas as cinzas do que foi queimado.
Minha tentativa de uni-lo ao seu corpo, e de mantê-lo enquanto
encarnado, é ameaçada pela própria experiência que a requer.
O paradoxo não está ausente do amor por uma criança, nem
está ausente das ternas formas de sadismo. Mas é só no desejo
que ele também me ameaça. Apenas no desejo eu estou expos-
to à humilhação pelo corpo. É de tal maneira, creio eu, que se
deve ter em conta o tradicional horror paulino e agostiniano da
“concupiscência.”163 Os primeiros moralistas cristãos claramen-

163 Ver Santo Agostinho, De Nuptiis et Concupiscentia, e a encíclica do Papa Inocêncio III,
De Miseria Humanae Conditionis. As visões do atual pontífice, apesar de seguirem a
tradição agostiniana, mostram uma notável influência kantiana, que as aproxima das
teorias tratadas nesta obra: “A troca do dom da pessoa constitui a verdadeira fonte

188
capítulo 5 - o objetivo individual

te quiseram que este termo se referisse ao curso do desejo na


excitação, condição que repudiaram como um afastamento da
nossa realização espiritual, uma brincadeira perigosa no limiar
da perdição. É a sua visão da sexualidade que moldou a lingua-
gem moral de nossa civilização, e que continua a espreitar som-
bria e pesarosamente de baixo da superfície brilhante da prosa
de Sartre. E é uma visão que devemos levar a sério.
Gregório de Nissa afirmou que, se Adão e Eva não tivessem
pecado, eles teriam permanecido virgens, e a raça humana teria
se multiplicado pelo método que é usado pelos anjos, e não
por “aquele método animal e irracional pelo qual eles agora se
sucedem”.164 Para esse ponto de vista, o efeito mais lamentável
do fruto proibido do conhecimento não é o fato de vermos o
desejo de formas impuras e egotistas (embora isso também seja
verdade), mas o de sentirmos esse desejo. Não há dúvida sobre
a estranheza teológica da visão de Gregório. (Ele é forçado a
admitir, por exemplo, que Deus distinguiu os sexos apenas por
antecipação da Queda.) Ao mesmo tempo, Gregório não fala
só por toda uma tradição de ensino cristão, mas também pela
moralidade que cintila mais sombriamente nas palavras dos
profetas do Antigo Testamento, e nas palavras do profeta do
Islã, que nos exortam repetidamente, a todo custo, a esconder
nossas partes íntimas. Para esta moralidade, é na experiência
da excitação que nossa condição caída fica presente para nós, e
é também sempre renovada por nós. É a excitação que inspira
o escritor da homilia anglo-saxã, Hali Meidhad (Holy Maiden-
hood ou Santa Virgindade):
Esse vício que te gerou em tua mãe, o mesmo
Que queima indecente a carne, a coceira ardente
Dessa emoção carnal ante o repugnante trabalho,

da experiência da inocência... [Por contraste] a extorsão da mulher pelo homem, e


vice-versa, reduzindo-os mentalmente a um mero objeto, marca exatamente o início
da vergonha” (Papa João Paulo II (Karól Woytila), Love and Responsability, 1960,
tr. H. J. Willetts, Londres, 1981, citado em Paul Johnson, Pope John Paul II and the
Catholic Restoration, Londres, 1982. A passagem tinha a intenção de ser um comentário
ao Gênesis 2:25 – “E estavam ambos nus, o homem e a mulher, e não estavam
envergonhados” – um verso que é crucial para as teorias cristãs da encarnação).
164 De Hominis Opificio, cap. 17, tr. H A. Wilson, em Gregory of Nyssa, Dogmatic Treatises
etc., Oxford, 1893.

189
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Dessa relação animal, dessa união sem vergonha,


Desse ato sujo, fedorento e devasso.165

O casamento, insiste o autor monástico, não nos pode salvar,


nem pode qualquer outra companhia, da imundície da excita-
ção sexual. Pois nessa condição estamos vinculados à nossa car-
ne de um modo que nenhum amor ou apego pode reproduzir. A
excitação nos contamina com a mortalidade, e alimenta nossas
almas com as venenosas iguarias do pecado.
Esse pensamento encontra sua expressão mais clara em A
Cidade de Deus de Santo Agostinho, que afirma explicitamente
que devemos ver no fenômeno da excitação o sinal do pecado
original. Sozinhos dentre os órgãos externos que nos implicam
à ação, os órgãos sexuais se encontram além de nossa vontade.
(Agostinho evidentemente não estava pensando na ação em si,
mas nas ações pelas quais podemos ser elogiados ou recrimina-
dos). Esses órgãos impõem suas transformações sobre nós, e nos
arrastam junto com eles em um projeto que nos amarra ao des-
tino mortal de nossa carne. Mesmo que nós nos excitemos vo-
luntariamente, não somos nós os autores da ação conseqüente,
mas a luxúria carnal invocamos.166 É por esta razão, argumenta
Agostinho, que desejamos esconder nossos órgãos sexuais, que
são o testemunho vivo da nossa escravização. Ao mesmo tem-
po, nós cercamos o ato sexual com vergonha e hesitação. De
fato, “um homem que está em injustamente furioso com seu
próximo preferiria ter mil olhos sobre ele a um único quando
está na cópula carnal com sua esposa”.167
Nesses termos Agostinho explicou tanto a primazia das
transformações involuntárias na transação do desejo quanto os
intrigantes fenômenos da conduta sexual – vergonha, modéstia,
compulsão sexual e a gênese da castidade. Em todos esses fe-
nômenos, ele viu os sinais da nossa guerra contra a carne. Pois

165 Bella Millett (ed.), Hali Meidhad, Oxford (Early English Text Society), 1982, p. 4. Minha
tradução não apreende a vigorosa aliteração do original. [Segue a tradução feita por
Roger Scruton: “That vice that begot thee of thy mother, that same / Improper burning
of the flesh, that fiery itch of / That carnal excitement before that digusting work, /
That animal intercourse, that shameless togetherness, / That filthy, stinking and wanton
deed” – NT].
166 Santo Agostinho, A Cidade de Deus, livro XIV, cap. 19.
167 Ibid.

190
capítulo 5 - o objetivo individual

a carne é o veículo de mortalidade e, portanto, a verdadeira


portadora do contágio do pecado original. Ele resumiu seu pen-
samento em uma passagem de grande sutileza:
Esta disputa, luta, briga entre a luxúria e a vontade, esta
necessidade da luxúria contra a suficiência da vontade, não tinha
o matrimônio no paraíso, a menos que a desobediência tenha se
tornado a punição pelo pecado da desobediência. Caso contrário,
esses membros teriam obedecido à vontade, assim como o resto.168

Colocando de forma ligeiramente diferente: nossa carne de-


sobedientemente nos prende à sua vontade, porque nossos pais
desobedientes tentaram restringir a vontade de Deus. E a vonta-
de da carne é a morte.
É inegável que você possa ver a excitação dessa forma, dife-
rente do que você pode em qualquer outra atitude interpessoal.
A excitação é uma interrupção crítica de nossa união pessoal,
em que somos forçados, contra a lógica da nossa conduta ra-
cional, a nos manter e a nos render ao fato incompreensível da
encarnação. A estrutura intencional do desejo sexual representa
um grande trabalho moral, por meio do qual o homem tem
procurado superar o problema de sua própria encarnação. Mas
o desejo é assombrado, se não pela consciência do pecado ori-
ginal, pelo menos pelo que chamei de “medo do obsceno”: o
medo de que a experiência da encarnação pode ser superada e
eclipsada pela experiência do corpo.
Nós não devemos ficar surpresos ao descobrir que o sentido
do pecado original no sexo está associado, por escritores judai-
co-cristãos e islâmicos, precisamente aos mesmos aspectos da
excitação sexual que as representações obscenas dominantes: o
caráter dissolutivo, corruptor e “viscoso” desse “feito imundo,
fedorento e devasso”. A fusão da carne na excitação sexual é
uma premonição de nossa fusão final na morte, e – por uma
lógica convincente – o escritor cristão encontra no ato sexual
a vívida lembrança da morte e da decadência, que são os casti-
gos de Deus por nossa transgressão original. (Marvell explora
esse modo de pensar, e também o sustenta quando adverte sua
amante tímida de que “os vermes vão provar / Essa preserva-

168 Ibid, cap. 23.

191
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

da virgindade”.169) Refletindo sobre isso, vemos o significado


emocional do horror de Sartre à viscosidade, do sentido de Le-
opardi de que seu eu e suas “queridas ilusões” não são nada
além de lama, e da confissão negativa de Iago (no Otello de
Boito), em que todas as alegrias humanas são reduzidas a fango
originale: o limo primordial. O esforço espiritual da humanida-
de – de se ver como dotada de uma identidade transcendental
e uma liberdade transcendental – é constantemente ameaçado
pela revelação da carne. O indivíduo não é o observador puro
que deseja ser. Ele só existe porque nasce no mundo, do lodo
mesmo da “alteridade” que ele vaidosamente recusa. O eu está
irreversivelmente contaminado e corrompido por um encontro
“original” com o lodo. Pois foi de um dos disfarces do lodo – o
da mãe – que o eu nasceu. “O homem nascido da mulher” passa
a existir através do pecado original, que é, como diz Schope-
nhauer, o “crime da própria existência”.170
Swift é por vezes repreendido por se manter tão assiduamen-
te no excremento nocivo dos Yahoos (em comparação com os
Houyhnhnms, abençoados com a capacidade de emitir somen-
te excreções perfumadas, que parecem apreciar a encarnação
que a razão demanda: uma encarnação que não é uma forma
visível de decadência). Mas o propósito de Swift era renovar a
experiência do pecado original, em face da constante tentação
do homem de esquecê-la. Esta tentação é ela mesma um sinal
do que ela procura negar. Não deve ser nenhuma surpresa des-
cobrir que as sociedades utópicas de nosso século, fundadas na
negação do pecado original, invariavelmente têm campos esta-
belecidos para a produção de sofrimento humano, em que os
“inimigos da sociedade” são forçados a passar por todo tipo
de humilhação até que – sua identidade com sua carne sofrida
finalmente se tornando repugnantemente aparente – possam ser
despachados para a eternidade sem nenhum senso de pertenci-
mento à ordem imaculada que os expulsou. Em face deste gran-
de crime, temos de reconhecer a necessidade da visão de Swift
de nossa natureza. Mesmo que hesitemos em adotar o sentido
monástico da vileza da procriação, devemos reconhecer os peri-
gos implícitos de uma moralidade que ignora o corpo, e que não

169 “Worms shall try / That long-preserved virginity” – NT.


170 O Mundo como Vontade e Representação, vol. I, livro 3, seção 51.

192
capítulo 5 - o objetivo individual

oferece nenhuma resposta à questão de saber se o corpo deve


ser disciplinado e, se sim, como. A mesmíssima moral kantiana
que nos deixa impotentes diante do desejo sexual é fundamen-
tal à visão de um “comunismo completo”, em que toda a vida
será conduzida de acordo com as exigências transcendentais de
uma liberdade metafísica. Em ambos os casos, a negação do pe-
cado original envolve uma tentativa de rivalizar a obra de Deus.
E em ambos os casos o pecado original retorna para exigir sua
pena terrível.

Animal e pessoa
Ao longo da discussão posterior, encontraremos novamente
a experiência do pecado original como uma falha moral dentro
da estrutura do desejo. O significado desta experiência é preci-
samente o mistério da nossa encarnação: é “original” já que não
podemos escapar disso mais do que podemos fugir da nossa
carne. E ainda assim o mistério sempre escapa ao nosso alcance,
e nos leva a distinguir nossa natureza racional de nossa natu-
reza animal de maneiras que oferecem alguma redenção final
de uma escravidão que só podemos fingir aceitar, mas que nun-
ca aceitamos de verdade. Em O Parlamento das Aves, Chaucer
apresenta um vívido contraste entre o acasalamento de animais
e o de pessoas. Os vários pássaros são reunidos para o seu rito
diurno de acasalamento, e a deusa Natureza preside o agrupa-
mento conforme eles, um a um, se apresentam para declarar
sua vontade irresistível. No caráter das águias, Chaucer (inspi-
rado no Songe Saincte Valentin de Grandson) representa o que
é distintamente humano na atração sexual, enquanto que os
outros pássaros dão voz ao instinto animal.171 As aves inferiores
se unem apenas como espécie, e acasalam apenas como espécie,
com aquela paixão transferível que mostra a estrutura de uma
necessidade biológica. As águias, porém, se reúnem e acasalam
como indivíduos. Os três que desejam a fêmea a desejam, e es-
tão em competindo. Aqui há mais do que um instinto de união;

171 Para uma interpretação desse poema, ver J. A. Bennett, The Parliament of Fowls, an
Interpretation, Oxford, 1957. Eu estou particularmente endividado à obra de Victoria
Rothschild, “The Parliament of Fowls, Chaucer’s Mirror up to Nature?”, The Review of
English Studies, vol. XXXV, (1984), pp. 164-84.

193
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

há também uma escolha, e a escolha se torna uma opção de


amor. A Natureza ordena que só aquele que for escolhido pela
fêmea, por sua “escolha al fre”, terá o prazer de tê-la. E para
dar melhores razões para esta escolha, ela ordena que seja adia-
da por um ano, enquanto as partes envolvidas permanecem em
castidade voluntária. Assim, o fervor do desejo é incorporado
em um projeto racional, e unificado com as responsabilidades
do indivíduo.
Chaucer não foi o único a separar desta maneira o “governo”
da natureza dos animais do “estatuto” pelo qual governa as vi-
das livres de indivíduos racionais. A imagem do Parlamento ba-
seia-se numa vital tradição neoplatônica, desde Boécio a Alain
de L’lsle (a quem Chaucer se refere explicitamente), que tenta
dar uma resolução metafísica para o problema da sexualidade
humana. Para o neoplatônico, a sexualidade é elevada pela ra-
zão do reino do apetite corporal ao reino da escolha. Ao fazer a
escolha, uma pessoa faz um voto, ou o que equivale a um voto.
O significado dos votos é eterno, já que envolvem a parte eterna
da nossa natureza. Assim, na escolha sexual, eu estou preso a
uma lealdade eterna. Mas o que leva à minha escolha? É uma
escolha de união com outro indivíduo, e a individualidade do
outro pode ser compreendida apenas com o tempo, através de
sua encarnação sensorial (que, porque o desejo é imediato, pode
ser o objeto do desejo). A ocasião da minha escolha atemporal
é, portanto, o momento presente. Minha liberdade suprema do
cativeiro da mortalidade é tornada real para mim na aparente
falta de liberdade com que, confrontado com o rosto do outro,
eu me atrelo a ele de uma vez e para sempre no amor. O que me
prende é a parte eterna dele: a alma que me confronta através
de suas características, e que pode se retrair ou se entregar por
seu próprio arbítrio. O momento do desejo é o “ponto de inter-
secção do atemporal com o temporal”, a exibição de um espí-
rito eterno num traje terreno, e uma ocasião para uma escolha
que, embora eternamente cogente, acontece aqui e agora. Nesta
visão, os enigmas do desejo sexual estão explicitamente repre-
sentados como casos especiais do mistério da encarnação. Um
teólogo neoplatônico poderia argumentar que a nossa encarna-
ção é necessária por causa de suas oportunidades epistemológi-
cas; pois ela nos apresenta a oportunidade de conhecermos nós
mesmos e os outros como indivíduos, e assim a sentir o pathos
194
capítulo 5 - o objetivo individual

das lealdades eternas. Da mesma forma, ele pode justificar o


ardor do desejo como o momento mais importante da nossa
necessidade de nos unirmos como indivíduos e de reconhecer a
imensidão do voto que brota da nossa união.
Nós, que não temos essa visão serena, devemos lidar com o
problema do desejo de outras maneiras. Ou, se não podemos
lidar com ele, temos de tomar medidas para superá-lo, de re-
mover o desejo do lugar central que ocupa em nossas vidas.
Algumas sociedades limitam o congresso sexual a atos ritualís-
ticos da relação sexual; neste estratagema particular podem ser
discernidos o medo do desejo e a conseqüente necessidade de
afastar a sexualidade da esfera das relações pessoais. De forma
semelhante, os gracejos emancipados dos anos 60, que procu-
raram alívio da pressão das relações íntimas na partouze172 e
na orgia, podem ser vistos como estratégias para a eliminação
do desejo. Há aqueles que vêem esse comportamento como “in-
fantil” ou “imaturo”. Mais significativamente, porém, envolve
cortar uma atitude humana fundamental da sua intencionalida-
de característica, de modo a destruir a mais poderosa forma de
união pessoal. Este pode ser um passo no caminho para outra
forma, menos exclusiva, de vínculo social; ou pode ser apenas
mais um exemplo do solipsismo que ameaça a vida do homem
excessivamente emancipado.
Nós nos consideramos uns aos outros como insubstituíveis
na excitação, assim como fazemos no amor, e os pensamentos
individualizantes são, em ambos os casos, centrais para nosso
esforço. Como afirmei, esses pensamentos têm um grande com-
ponente ilusório. Além disso, mesmo na sua interpretação mais
metafisicamente inocente, eles são, de certa maneira, falsos. Ou,
pelo menos, eles não correspondem a nenhum “fato da matéria”
cientificamente determinável. Mesmo que pudéssemos fazer um
relato explicativo do que uma pessoa ganha de outra no amor
e no desejo, é claro que ele poderia ser igualmente beneficiado
por alguém que não seja a pessoa a quem ele dirige suas aten-
ções. Mas é imperativo que não pensemos nisto. Se o fizermos,
nosso empreendimento estará comprometido. Com esses pensa-

172 Um tipo de festa encenada por jovens da esquerda em Paris durante a década de 60, em
que cada pessoa tinha que levar um parceiro para ter o direito de ter relações sexuais
com qualquer um presente.

195
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mentos, ameaçamos a possibilidade de qualquer apego humano


duradouro e, portanto, ameaçamos a condição que por si só
pode nos salvar da ansiedade do sentimento falso e da luxúria.
Os pensamentos individualizantes são, em certo sentido, mis-
tificações. Mas é por essas mistificações que vivemos. Elas são
o bálsamo necessário para a dor da encarnação: a dor que nos
é imposta por nossa dupla natureza, em que vemos o eu e seus
projetos sendo constantemente arrastados pelo corpo e suas ne-
cessidades. Eu procuro pelo outro em seu corpo, pois nenhuma
outra atitude pode aplacar o medo de sua alteridade, o medo de
que ele voe para longe do meu alcance, e o medo de que, se eu
apertá-lo, ele se torne como a sombra de Dido para os braços
de Enéias.
Conforme ascendemos para o território do amor, veremos
mais claramente que este confronto com a nossa encarnação é
inevitável, e que, além da renúncia, não há outro remédio que
não o amor e o desejo. Ao mesmo tempo, veremos mais cla-
ramente por que é o desejo, e não o amor, que nos obriga a
apostar a nós mesmos no resultado desse confronto. Vamos ver
por que há uma moralidade que pode proibir o desejo, mas ne-
nhuma moralidade que proíba o amor.
Antes de passar a esse ponto, no entanto, há ainda duas ta-
refas para completar a análise do desejo sexual. Primeiro, é ne-
cessário rever alguns dos fenômenos da sexualidade, e mostrar
sua conformidade ao conteúdo intencional que descrevi. Em se-
gundo lugar, é necessário responder à persistente – e até agora
negligenciada – pergunta do cientista, a questão do lugar do
desejo sexual (que decorre e se concentra de nossos corpos ani-
mais) em nossa vida como animais.

196
CAPÍTULO 6
FENÔMENOS SEXUAIS

A descrição que dei de intencionalidade sexual é a descrição


de uma norma. No devido tempo, o conceito da sexualmente
normal deve ser examinado, e não somente por causa da crítica
generalizada dessa idéia como arbitrária ou veladamente “ideo-
lógica”. Vou tentar extrair uma teoria da normalidade sexual a
partir do conceito de pessoa, respondendo a essas críticas. Neste
capítulo, no entanto, eu examino a complexidade e a variedade
da intencionalidade sexual, para mostrar que as características
que identifiquei estão na raiz da experiência sexual comum.
Vou, portanto, examinar alguns dos fenômenos do desejo – pre-
liminares, estratagemas, variedades e obsessões. A análise será
seletiva, e vou adiar qualquer tentativa de apresentar uma psy-
chopathia sexualis até o Capítulo 10. O meu objetivo principal
será mostrar que minha teoria da intencionalidade individuali-
zante do desejo pode explicar o que vivemos.

Obscenidade
Há uma teoria do obsceno no que eu já escrevi. A obscenida-
de não diz respeito às coisas em si, mas a um modo de vê-las ou
representá-las. Se dissermos que certas partes do corpo humano
são obscenas, queremos dizer somente que, por algum motivo,
somos levados a vê-las assim: sua natureza ou função nos faz
focar em sua realidade carnal, eclipsando a encarnação da pes-
soa individual. (Daí a idéia de “partes íntimas”, que devem ser
escondidas simplesmente porque eles provocam uma percepção
obscena.) A obscenidade envolve uma percepção “despersona-
lizada” da sexualidade humana, em que o corpo e sua função
sexual aparecem em primeiro lugar em nossos pensamentos,

197
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

obliterando todos os outros. A cópula dos animais freqüente-


mente nos parece obscena; o mesmo acontece com a cópula dos
seres humanos, quando vista a partir de um ponto de vista fora
da perspectiva de primeira-pessoa dos envolvidos. Assim, na re-
presentação literária, a distinção entre o genuinamente erótico
e o licencioso não é uma distinção de assunto, mas de perspec-
tiva. A obra genuinamente erótica é aquele que convida o leitor
a recriar na imaginação o ponto de vista em primeira-pessoa
de alguém em um encontro erótico. A obra pornográfica, como
regra, mantém a perspectiva em terceira-pessoa do observador
voyeurista. No voyeurismo, um casal é visto de um ponto de
vista que, por assim dizer, alarga seus corpos: o ponto de vista
do buraco da fechadura, como o utilizado por Cleland em Fan-
ny Hill. O artifício de Cleland não deve ser confundido com a
técnica genuinamente erótica e infinitamente mais emocionante
de Laclos em Les Liaisons dangereuses, onde o ponto de vista
é sempre o do participante do ato, e os órgãos sexuais não são
mais do que instrumentos em um jogo de domínio psicológico.
Um leitor de Cleland pode até concordar com Lawrence Sterne,
quando diz que “há mais pecado e maldade entrando no mundo
através de buracos de fechadura do que através de todos os ou-
tros buracos juntos”. Um leitor de Laclos, por outro lado, sabe
que não é bem assim – talvez seja bem pior.
Qualquer parte do corpo humano pode ser representada sem
obscenidade: até mesmo os órgãos genitais. No entanto, existe
uma grande diferença entre a representação de um pénis flácido
(e talvez diminuto) e a representação de um vigoroso e alarga-
do. A característica importante da obscenidade é normalmente
o “estado de interesse” das partes do corpo, que dão um teste-
munho vibrante da excitação. Da mesma forma, todo o corpo
pode aparecer como obsceno: como acontece com o corpo do
tentador Basini para o Törless de Musil. Tendo sido apresenta-
do a ele em sua disponibilidade sexual, o corpo de Basini ame-
aça a compostura de Törless com sua carne saturada de prazer.
Uma percepção semelhante do corpo pode ocorrer na vio-
lência e na doença. É apenas um pequeno abuso de linguagem
descrever certas manifestações de violência como obscenas. Pois
elas também podem encontrar morada no corpo pela exclusão
da pessoa encarnada. O corpo é mostrado em triunfo, desinte-

198
capítulo 6 - fenômenos sexuais

grando-se sob sua própria dinâmica, o espírito em desordem


pela dor que o assalta, substituído pela contorção, despedaça-
mento, dissolução da carne. Novamente enfrentamos aqui o
mistério da encarnação, e novamente passamos por essa perigo-
sa mudança de atenção que é a marca do pecado original – da
pessoa encarnada ao corpo dominante e dissolvente.
Outras situações também despertam respostas análogas. Uma
pessoa escorrega numa casca de banana: observando a maneira
em que, por um momento, ela é só corpo, eu sinto um estranho
embaraço. Fico magoado e confuso; na minha confusão eu rio,
me distanciando do destino do outro.173 O riso, em tais casos,
envolve o reconhecimento de que uma pessoa decaiu, derrota-
da pelas leis impessoais do movimento do corpo (cf. a idéia já
tratada do Untergang da pessoa no desejo). Há, naturalmente,
uma diferença entre isso e a verdadeira obscenidade: pois aqui
eu não me concentro na carne enquanto carne, e não aprecio o
pensamento de sua operação autônoma. Uma vez recuperado
deste embaraço, estendo uma mão amiga ao objeto de minha
confusão, restitui-o ao mundo humano de que foi momentane-
amente expulso.
O medo do obsceno é o medo da qualidade depersonalizante
da curiosidade sexual. Esta tendência é uma parte integrante
do nosso interesse um no outro. Ao mesmo tempo, é limitada
pelos movimentos do desejo, que incidem sobre o indivíduo e se
recusam a considerá-lo apenas como um membro de seu sexo,
ou a submetê-lo à “concentração nos detalhes”, que é a marca
da curiosidade sexual. Peter Porter expressa esse ponto com cui-
dadosas ambiguidades (“Conventions of Death”):
O que eu quero é um corpo específico,
E que os detalhes sejam obscenos
Por definição.174

A curiosidade e seus prazeres podem dominar o desejo.


Quando isso acontece, percebemos de repente que somos irre-

173 Esse tipo de riso – apesar de que não todos os tipos – foi razoavelmente caracterizado
por Henri Bergson, Le Rire, 23 ed. Paris, 1924; Laughter, Filadélfia, 1970.
174 “What I want is a particular body, / The further particulars being obscene / By
definition” – NT.

199
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

levantes um para o outro, precisamente no momento em que


nos esforçamos para estarmos unidos. Um colapso ocorre no
coração do desejo, e todas as suas façanhas e perigos parecem
inúteis e até mesmo vergonhosos quando o prazer se esvai. Este
é o fenômeno para o qual os romanos conceberam a frase omne
animal post coitum triste, que implica que o coito entristece ao
nos lembrar de nossa natureza animal. (Pois a atenção obscena
só enxerga o animal, e nunca o eu.) Vou defender em capítulos
posteriores que é intrínseco ao desejo ser sujeito a tal debilita-
mento. Alguns são gratos a este fato, acreditando que temos de
“liberar” nossos espíritos animais reprimidos. Mas não deve-
mos supor, porque os nossos desejos sexuais estão construídos
sobre uma base de impulso animal, que é o impulso animal que
precisamos, e buscamos, satisfazer.

Modéstia e vergonha
Certas emoções interpessoais altamente complexas – cons-
trangimento, vergonha e nojo – têm um lugar obviamente im-
portante na conduta sexual das pessoas, e franqueza absoluta
geralmente não é recomendada ou valorizada nas questões se-
xuais. Além disso, o recente declínio na prática da modéstia e a
disposição de falar abertamente sobre o ato sexual não foram
acompanhados da intensificação da paixão sexual, mas, pelo
contrário, por um relaxamento – um “declínio”, como Henry
James certa vez disse, “no sentimento do sexo”.175 No entanto,
é evidente que o embaraço não é nenhuma consequência aci-
dental do desejo. Pois o sujeito do desejo está, em seu próprio
impulso, buscando uma resposta recíproca; ele está, portanto,
possuído pelo pensamento de si mesmo como um possível ob-
jeto de desejo, e envergonhado pela inevitável conclusão de que
talvez ele não o seja. Além disso, ele está tentando obter do
outro uma resposta profundamente comprometedora. Apenas
em circunstâncias especiais é embaraçoso demonstrar amizade
por alguém, ou recebê-la de outrem. O inverso é verdadeiro no
desejo: apenas em circunstâncias especiais esta emoção não é
embaraçosa para ambas as partes. (E cf. a comparação de Santo
Agostinho entre excitação e raiva.)

175 Henry James, Notebooks, ed. T. Matthieson, p. 124, e o prefácio ao The Bostonians.

200
capítulo 6 - fenômenos sexuais

Sugiro a seguinte análise da estrutura intencional do cons-


trangimento: o sujeito acredita que corre o risco de desprezo, in-
dignação, reprovação ou outra avaliação negativa do outro. Ele
teme esta situação, e acredita que só pode evitá-la mediante sua
própria conduta. Tudo depende do que faz e de como se mostra.
O constrangimento é a expressão desse medo, e seu sinal natu-
ral é a hesitação – cuja forma extrema é a paralisia diante dos
olhos inquisitivos do outro. O constrangimento envolve o meu
duplo sentido; inteiramente individual e inteiramente social. No
constrangimento, eu apareço ante o outro como um indivíduo,
e sou compreendido, questionado, elogiado e condenado como
tal, sendo completamente responsável para os outros.
A vergonha é um caso especial de constrangimento. O ho-
mem que está “com vergonha de si mesmo” partilha da atitude
que teme. Ele vê sua própria natureza com desprezo, indignação
ou desaprovação, ou, de alguma outra forma, julga a si mes-
mo negativamente. Seu medo do julgamento do outro se torna
medo de ser descoberto, medo de que o outro o conheça como
ele conhece a si mesmo. Assim, enquanto alguém pode viver
com um embaraço normal, confortável diante da perspectiva
de que ele pode persuadir o outro a vê-lo de forma diferente,
é muito difícil viver com vergonha. Pois a vergonha não tem
remédio. Você não pode desfazer uma descoberta, nem desmen-
tir uma verdade conhecida. O primeiro recurso, portanto, é se
esconder, e é uma manifestação instintiva da vergonha o sujeito
tentar – como o Adão de Masaccio quando é expulso do Pa-
raíso – ocultar o rosto em suas mãos, cobrindo essa parte dele
onde sua perspectiva está exposta, por assim dizer, ao olhar te-
mível do julgamento de outro.176
É um toque humano que leva Masaccio a descrever Eva cobrin-
do não seu rosto, mas seu sexo e seios. Pois, para Eva, a vergonha
não é a vergonha moral de um erro descoberto, mas vergonha se-

176 Havelock Ellis tem um estudo interessante a respeito da cobertura do rosto na vergonha.
Ver Studies in the Psychology of Sex, vol. I: On Modesty, 3ª ed., Filadélfia, 1923, p. 58-
9. O hábito muçulmano do véu é um índice de vergonha e modéstia. Conforme as
mulheres islâmicas, quanto mais você esconde, mais vulnerável se torna o resquício
de superfície ainda descoberta. Os olhos, mãos e tornozelos das mulheres cobertas
se tornam particularmente excitantes, e também particularmente vulneráveis a
qualquer olhar concupiscente. Frequentemente parece que as mãos da mulher reagem
espontaneamente ao olhar focado nelas, mesmo que o homem não tenha sido visto.

201
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

xual. A vergonha moral é a forma de culpa peculiarmente social,


mas a vergonha sexual é outra coisa – o sinal, de inocência sexu-
al, não de culpa. Ao usarmos a palavra “vergonha” para denotar
esse estranho recuo do corpo, estamos falando metaforicamente,
e o que temos em mente não tem nada a ver com a idéia de jul-
gamento adverso. No entanto, esta conclusão, embora seja tenta-
dora, há muito tem sido considerada insatisfatória. Embora haja
algo estranho e até mesmo um pouco patológico em uma pessoa
que sente que seus órgãos e funções sexuais são desprezíveis ou
maus em si, sentimos que este horror moral do corpo é apenas
uma expressão exagerada de uma reticência e até mesmo repug-
nância que parecem estar presentes em todos, a não ser nas pes-
soas mais lascivas da humanidade. Em seu clássico estudo sobre
a modéstia,177 Havelock Ellis reuniu evidências impressionantes
para mostrar que a disposição para esconder os órgãos genitais
e as funções sexuais dos olhares curiosos e atenções indesejadas
de outros é uma característica humana quase universal, por mais
que esteja sobrecarregada de convenções e indumentárias sociais.
Além disso, em todos os lugares ocorre a disposição de desviar-se
do olhar do outro – ocultar o rosto com as mãos, e corar quando
não se está tendo sucesso. O próprio Ellis ofereceu várias explica-
ções para a vergonha, vendo-a em parte como uma sobrevivente
do instinto animal de evitar a relação sexual não desejada, e em
parte como um produto social, o principal elemento do “medo de
ser nojento”. A primeira explicação não nos interessa, uma vez
que, mesmo verdadeira, não diz nada sobre a intencionalidade
da vergonha sexual. A segunda, no entanto, é mais interessante,
já que é uma explicação em função da compreensão intencional
do sujeito. Se for verdade, estabeleceria que a vergonha sexual é
uma espécie genuína de vergonha – o resultado de uma crença
anterior no caráter repugnante da própria sexualidade e o medo
do nojo alheio ao exibi-la.
Naturalmente, não podemos rejeitar tal análise da vergonha
fora de pronto. Havelock Ellis não era o único a pensar que a
situação dos órgãos sexuais inter urinam et faeces desempenha
um papel determinante em nossos pensamentos sobre eles. Há
um impulso humano de evitar a sujeira, e em especial a sujeira
dos excrementos humanos. Nós não precisamos especular sobre

177 Ibid., vol I.

202
capítulo 6 - fenômenos sexuais

a origem desse impulso – se é inato ou adquirido, se é a conti-


nuação ou a inversão de algum sentimento infantil, e assim por
diante – para reconhecer a sua grande importância no mundo
da criança. A criança pensa que seu corpo tem partes “sujas”.
Ela também aprende a esconder essas partes e, através do uso
de roupas, a submeter seu corpo ao drama do revelado e do
oculto. As roupas são tão importantes que muitos escritores as
quiseram ver como a origem da vergonha sexual, criada a partir
do hábito de esconder o que também pode ser sedutoramente
revelado. “Vergonha, vergonha divina”, escreveu Carlyle, “sur-
giu misteriosamente sob as Roupas”.178 A que se pode adicionar
o comentário de Montaigne, de que “há certas coisas que estão
escondidas para serem mostradas”.
A explicação é, no entanto, improvável. A evidência antro-
pológica sugere que mesmo as pessoas que não têm qualquer
disposição para esconder os seus órgãos sexuais sentem vergo-
nha quando essas partes estão expostas à atenção indesejada.179
No entanto, há muito charme, para a inteligência moderna, na
teoria freudiana, que combina a explicação escatológica e a in-
dumentária. Para Freud, a vergonha é a sobrevivente da idéia
infantil de um “segredinho sujo” que cada um de nós carrega
sobre si, e que nos fala não apenas da sujeira escondida, mas
também de prazeres proibidos.
A hipótese é confirmada pelo amplo uso de palavras que de-
notam sujeira (“imundície”, por exemplo180) para descrever a
literatura obscena e o comportamento lascivo (isto é, sem ver-
gonha). Aurel Kolnai defendeu, em um trabalho que se baseia
mais na fenomenologia do que em fatos antropológicos, que a
“sujeira” é a categoria principal da moral sexual, e que a dico-
tomia “puro / impuro” está no coração de todos os nossos sen-
timentos morais relativos ao ato sexual.181 Embora os tempos

178 T. Carlyle, Sartor Resartus, Everyman Edition, 1908, p. 30.


179 A evidência está convenientemente reunida na obra de Ellis, Studies in the Psychology
of Sex, vol I.
180 Filth pode significar imundície e imoralidade – NT.
181 Aurel Kolnai, Sexualethik, sinn und Grundlagen der Geschlechtsmoral, Paderborn, 1930,
p. 13: “Die Kategorie der Schmutzer kommt primar und unmittelbar nur in sexuellen
Bezirk der Ethos vor; nur hier ist ‘moralisch unsauberer Ding’ als wirklich dinglicher,
massiver Realitätsbestandteil vorhanden.” Eu faço uma defesa dessa observação no
Capítulo 11.

203
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

tenham mudado de forma a tornar essa hipótese menos do que


completamente persuasivo, não se pode negar que ela contém
uma verdade importante, e que os pensamentos de “pureza” são
prioritários na mente de uma pessoa sujeita à sensação ardente
da vergonha sexual.
Por outro lado, a teoria escatológica da vergonha sexual está
particularmente invertida. A pessoa modesta não pensa em seus
órgãos sexuais como “sujos”. Pelo contrário, é parte da modés-
tia fazer com que tais pensamentos – que são os pensamentos
de uma criança – sejam vencidos ou afastados. (Os freudianos
argumentam, no entanto, que esses pensamentos não são afas-
tados, mas reprimidos, sugerindo assim que continuam a exer-
cer sua influência, mas de uma forma secreta.) Além disso, uma
mulher modesta pode sentir vergonha a respeito de seus seios.
Eles não são “sujos” de modo algum nem mesmo para uma
criança; mas compartilham com os órgãos genitais o fato de
serem recipientes de prazer sexual e foco de interesse sexual.
As ocasiões normais de vergonha são as do olhar lúbrico, do
gesto obsceno ou da pronunciação lasciva. Eles causam vergo-
nha porque sujam o que, em si, não é sujo. O pensamento do
sujeito é algo do tipo “eu estou contaminado pelos seus olha-
res”. O sujeito é levado a sentir vergonha, porque se sente “de-
gradado” pelo interesse do outro, pelo tom de sua conversa ou
pelas implicações de seu gesto. Não é o desgosto do outro pelo
meu corpo que provoca esta resposta, mas, pelo contrário, o seu
prazer. A mulher que supõe que está sendo despida na imagina-
ção do homem que a observa não sente que ele está pensando
em algo que é sujo por si só, mas que ele está pensando em seu
corpo de uma maneira que o perverte. Ele é testemunha da pre-
sença viva e corrosiva de um pensamento obsceno. A resposta
dela contém uma pequena premonição de estupro, a vítima que
pode, como Lucrécia, se sentir tão contaminada pelo contato de
seu agressor que é incapaz de viver consigo mesma. Sua “con-
dição ontológica” muda sem esperança de remédio. Ela nunca
mais estará limpa. Ela, contra sua vontade, foi forçada a se ver
como comparsa num crime, e a vítima deste crime é seu próprio
corpo, “contaminado”, “poluído” e “revirado”182 – para usar as

182 Defiled, polluted, rifled – NT.

204
capítulo 6 - fenômenos sexuais

palavras que ocorrem com mais frequência em Shakespeare, em


sua descrição insuperável da angústia mental de Lucrécia.
Qual é a natureza do pensamento degradante que induz à
vergonha? É necessário distinguir duas possibilidades. No pri-
meiro caso, o homem que olha para ela pode elaborar certa
crença sobre a mulher, uma crença que a constrange. (Ele pode
acreditar que ela seja uma prostituta, por exemplo). Ela pode
ficar ofendida por essa crença, mas, ao refutá-la, ela pode su-
perar seu embaraço e reafirmar seu direito à consideração dele.
No segundo caso, o que nos interessa, o pensamento do homem
não é uma crença sobre a mulher, mas uma maneira de vê-la.
Esta “maneira de ver” é degradante em alguma medida por ser
infecciosa. Ao reconhecer o pensamento dele, a mulher o com-
partilha; sua percepção de si mesma é transformada de uma
forma que a degrada. Ela não pode recuperar sua equanimidade
refutando uma acusação injusta, pois não há nenhuma acusa-
ção. O pensamento em si a desonra, e ela se afasta do homem
que o transmite com um movimento instintivo de repugnância.
Não é difícil descrever este pensamento, que se intromete in-
devidamente na vida mental da vítima, assim como não é criar a
condição do que isso também a acusa. O que é difícil é separá-lo
dos outros pensamentos que o compõem, e que reforçam a sua
pena. Há um elemento na análise freudiana que eu já descartei,
mas que deve ser mencionado aqui, mesmo que seja só porque
corresponde ao que tem sido a principal explicação rival à es-
catológica e à indumentária: o elemento do “prazer proibido”.
Costuma-se dizer que o pensamento dominante da vergonha é a
idéia do ato sexual – realizado, talvez, com o homem cujo olhar
dá ensejo à crise atual – na mente de alguém que acredita que o
ato seja proibido. Os freudianos estendem o conceito de “tabu”
para descrever esta noção poderosa do sexualmente proibido,
o que significa que é algo que é ao mesmo tempo mais forte e
menos questionável do que qualquer injunção moral normal.
Pensando em si mesma como partícipe do ato proibido, a mu-
lher tem vergonha de descobrir (óbvio que “inconscientemen-
te”) que ela também o quer. Assim, Restif de la Bretonne (uma
autoridade indiscutível, apesar de horrível, sobre estas questões)
escreveu que “é a garota mais modesta quem cora mais, a que

205
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

está mais disposta aos prazeres do amor”.183 Por conta disso, o


caráter degradante do pensamento reside inteiramente na idéia
de estar disposto a fazer o que é proibido.
Mas a teoria certamente está errada. A mulher no meu exem-
plo se sente mais envergonhada diante dos olhares desejosos
do homem a quem ela menos quer. (Há uma razão, que em
breve aparecerá, para concentrar-me na experiência da mulher.)
É o seu desgosto pelo outro que desperta a aversão sexual em
relação a si mesma: não porque ela percebe que ela o deseja,
mas justamente porque ela percebe o quanto ela não quer fazer
isso com ele. Por que esse pensamento é degradante? É aqui
que encontramos o componente central da intencionalidade da
vergonha. A mulher é obrigada por seu pensamento a ver a si
mesma como uma “criatura sexual”: como uma criatura que
pode realizar o ato sexual com “homens” e, talvez, até mesmo
com um homem que ela não conhece. Em outras palavras, ela
vê sua sexualidade divorciada da intencionalidade individuali-
zante do desejo, e reformulada como um impulso corporal, um
apetite animal em que ela está à mercê de seu corpo. Este pen-
samento a degrada, porque ele a representa como subserviente
a seu corpo, sem referência à sua singularidade como um objeto
de desejo, ou à comparável singularidade de quem ela, por sua
vez, poderia desejar. Em outras palavras, ela se torna o objeto
de um pensamento obsceno. O olhar lascivo a convida a pensar
de uma forma que ameaça a natureza interpessoal de sua vida
sexual, e seu amor-próprio – respeito pelo seu próprio eu, e pelo
eu em geral, como o objeto imanente de desejo – faz com que
ela evite o pensamento. Ela se afasta do seu significado corrosi-
vo e dos olhos do homem que “compartilha” desse pensamento
com ela, e que, portanto, “conhece” sua angústia.
Assim, a ocasião para a vergonha não é nem o pensamento
de “prazer proibido”, nem a exposição dos órgãos sexuais. É,
ao contrário, a exposição aos pensamentos desejosos daquele
que não é desejado, e que obrigam, através de seu interesse, à
degradante percepção de si mesmo como parceira de uma obs-
cenidade. Esta é a verdadeira substância da queixa da mulher,
de que ela é tratada como um “objeto sexual” pelos homens. A.

183 Nicolas Restif de la Bretonne, M. Nicolas, Paris, 1827, vol. I, p. 94.

206
capítulo 6 - fenômenos sexuais

Duval, um aluno de Ingres, contou que certa vez uma modelo


posava nua e desinibida na École des Beaux Arts quando, de
repente, ela gritou e correu para suas roupas. Ela tinha visto um
operário no telhado, que olhou lascivamente para ela através da
claraboia.184
Essa teoria aponta para uma ocasião curiosa da vergonha:
não o tirar, mas o colocar das roupas após o ato sexual. Mais
uma vez, a experiência é característica da mulher, que não se sen-
te mais vista com olhos de desejo e nem fortalecida pela emoção
da exposição. De repente, tudo parece sem graça, arbitrário e
mundano; o que era há apenas um momento um corpo brilhan-
te, oferecido e aceito como uma vida individual, é agora apenas
um pedaço de carne humana, prestes a ser reembalado e pre-
servado para outra ocasião. Em nenhum momento a mulher se
sente mais desvalorizada ou dispensável ​​do que este e, portanto,
por vergonha, ela vai querer ficar parada com seu amante, nua,
falando de sua nudez, até que a aceite novamente como parte
dela. (Sei Shōnagon protesta, em O Livro de Cabeceira, contra
a vulgaridade intolerável do homem que se levanta muito cedo
depois do amor, e a força do desprezo dela por ele é um espelho
de sua vergonha. Em um sentido, seu desprezo é por si mesma, e
é induzido pela percepção obscena de sua própria encarnação).
Nem todo olhar desejoso inspira vergonha. Pelo contrário,
desde que um gesto não transgrida a divisão tênue entre o inte-
resse sexual e a representação obscena, uma mulher vai recebê
-lo bem. Pois o gesto desejoso é um símbolo de seu poder e das
múltiplas possibilidades sexuais que reforçam esse poder, desde
que ela se recuse a cumpri-las. A mudança ocorre quando, por
alguma palavra ou gesto, o homem revela uma percepção obs-
cena de seu corpo e a obriga a vislumbrar imaginativamente o
que seu interesse realmente significa. (Camille Mélinaud expres-
sa esse ponto com uma bela definição da modéstia: “o pudor é
a vergonha do animal que existe em nós”.)185
Os homens recebem bem os olhares desejosos das mulheres,
que raramente mostram percepção obscena, mesmo quando fo-

184 A história está em L. Lombroso e G. Ferrero, La Femme prostituée, Paris, 1893, p. 590.
185 “La pudeur c'est la honte de l'animalite qui est en nous.” Camille Mélinaud, “La
Psychologie de la pudeur”, La Revue, nº 10, p. 397.

207
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

cados no corpo. Mas só os homens homossexuais acolhem bem


os olhares desejosos de homens. Para o heterossexual, os olhares
desejosos do homossexual já são, em muitos casos, obscenos,
convidando-o a atos que o repelem, e colocando-o subitamente
dentro da perspectiva predatória do homem – a perspectiva que
uma mulher tem de enfrentar diariamente, mas contra o que um
homem tem poucas defesas sociais.
A vergonha sexual é um caso especial de um fenômeno mais
amplo: a vergonha do corpo – a vergonha induzida pela percep-
ção do próprio corpo a partir de um ponto de vista fora dele,
como um item curioso em si. Essa vergonha é uma experiên-
cia avassaladora durante a infância, quando o poder do adulto,
que controla o mundo objetivo, dá autoridade adicional para a
percepção do adulto. A criança vê seu corpo como um “objeto
aos olhos dos adultos”. No encontro desigual entre seu próprio
senso de unidade com o seu corpo e a distância moralizante do
adulto em relação a ele, a criança experimenta a tensão da en-
carnação na sua forma mais aguda. Daí a disposição da criança
de se esconder dos olhares adultos: uma espécie de pudor que,
porque tem o corpo como seu objeto principal, prefigura a mo-
déstia sexual do ser humano maduro.
Não devemos lamentar esta modéstia nas crianças. Pelo con-
trário, é a consequência necessária do desenvolvimento de uma
perspectiva em primeira-pessoa, e de um crescente sentimento
de responsabilidade em relação ao mundo humano. É a crian-
ça desavergonhada que deve despertar nosso desagrado. Se ela
não sentir a tensão de sua encarnação é porque lhe falta uma
capacidade mental crucial: a capacidade de sustentar, em um
único pensamento, as visões subjetiva e objetiva de sua própria
condição. Ela não adquiriu o que os moralistas do século XVIII
chamaram de “senso moral”.
Existem, portanto, várias formas de vergonha: vergonha mo-
ral, que nos faz recuar ante o julgamento adverso; vergonha
corporal, que nos faz recuar diante da lascívia e da curiosidade;
e vergonha sexual, através da qual evitamos a percepção obsce-
na inerente ao desejo indesejado do outro. Em cada uma delas
há o mesmo pensamento fundamental que estrutura o constran-
gimento: o pensamento de que me apresento diante do outro, e
sou julgado, como um indivíduo. A vergonha do corpo, portan-

208
capítulo 6 - fenômenos sexuais

to, mostra o profundo reconhecimento de que eu, enquanto in-


divíduo, estou presente na individualidade do meu corpo, e que
sou, de uma forma estranha, responsável por isso. Max Scheler
viu todas as formas de vergonha como um “sentimento proteti-
vo [Schutzgefühl] do indivíduo e de seu valor individual contra
a totalidade da esfera pública”,186 e derivou disso a conexão
entre vergonha e honra – uma conexão que, segundo ele, é mais
próxima nas mulheres do que nos homens. Com tal teoria – que
Scheler desenvolve durante algum tempo – podemos concordar,
e observar quão significativo é o testemunho da vergonha cor-
poral para o nosso senso de que o eu e o corpo são idênticos, e
de que a individualidade e o distanciamento do eu não são nada
mais do que a individualidade e distanciamento do corpo.
Um fenômeno acessório interessante é a “vergonha verbal”
– a disposição humana universal para descrever o ato de amor
em termos exemplificados por esta sentença. Tal disposição não
é nem pudor nem eufemismo, mas apenas uma reserva modesta.
É parte da disposição de evitar a ocasião da vergonha sexual. A
frase “fazer amor”, que usa a linguagem das relações pessoais,
evita a implicação de que os participantes estão envolvidos ape-
nas como corpos no ato que os excita. A disposição para falar
em “amor” e “fazer amor” ao descrever os fenômenos do dese-
jo é tão difundida que ninguém tem a menor dificuldade para
compreender, sem mais explicações, o verdadeiro significado de
uma frase como faire l’amour. Ocasionalmente, o imaginário é
diversificado; ocasionalmente, qualquer sugestão de um ato é
omitida, como no turco sevişmek (literalmente: “amar-se mu-
tuamente”); ou a palavra para beijo pode ser estendida para
designar o ato sexual, como no francês baiser. Algumas línguas
descrevem o beijo em si na língua do amor, como no grego mo-
derno phili, ou no checo polibek (do libit se, gostar). A pala-
vra polida para o ato sexual pode também ser uma variante de
“estar junto”, como no antigo grego sunousiazo (curiosamente
transformado no grego moderno sunousiazomai – como se ape-
nas a voz passiva pudesse apreender o grau exato de reticência).
O grego antigo também recorreu à teologia, descrevendo o ato
sexual por meio do verbo aphrodisiazein (ou, para as mulheres,

186 Max Scheler, Über Scham und Schamgefühl, em Schriften aus dem Nachlass, 2ª edição,
ed. Maria Scheler, Bern, 1957, p. 80.

209
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

aphrodisiasthenai), uma descrição que também é aplicada por


Aristóteles à cópula dos animais.187 Algumas línguas africanas
têm vários “níveis” diferentes de referência sexual, desde o ex-
tremamente protelatório ao obscenamente direto – a utilização
de cada um depende do contexto social específico. Mas em to-
dos os casos há uma distinção clara entre a referência “educada”
ao sexo, relativa à relação pessoal, e a ênfase obscena no corpo
e em seu papel. Aquelas palavras que pretendem designar o ato
“diretamente”, sem maiores implicações sobre a relação espe-
cial entre os participantes, são evitadas como obscenas. Mais
uma vez, os freudianos tentam explicar isso como uma espécie
de “tabu”, mas a explicação não é mais do que uma repetição
do fato a ser explicado. Além disso, é bastante incompreensível
que a palavra “foda” seja utilizada sem constrangimento como
palavrão, mas é com imensa relutância, mesmo por aqueles
para quem estas palavras são uma parte familiar do vocabu-
lário cotidiano, que é usada para se referir ao ato de amor. A
tentativa de D. H. Lawrence de redimi-las (em O Amante de
Lady Chatterley), acabando com a “hipocrisia” que nos protege
das verdades do sexo, é parcialmente responsável por um dos
mais marcantes de seus muitos desastres literários. O resultado
é insuportavelmente recatado, e estranhamente muito mais “eu-
femístico” do que a honrada linguagem do amor que pretendeu
substituir. Lawrence está certo em uma coisa: o uso desemba-
raçado dessas palavras está reservado para situações de intimi-
dade sexual; o que ofende em seu livro é a sensação de que essa
intimidade é observada muito perto e de forma muito lúbrica.
Com aqueles que não são nossos amantes, nós quase invaria-
velmente descrevemos o ato de amor por meio de circunlóquios
(a não ser para ressaltar o efeito). Aristide Bruant comenta que
“quase todas as expressões para se referir ao ‘coito’ são obsce-
nas”,188 o que significa que, enquanto a maioria delas é circun-
locutória (battre le beurre, être sous presse, faire la bête à deux
dos, manger de la soupe à la quequette, voire la feuille à I’envers
e assim por diante189), sua circunlocução leva-nos precisamente

187 De Generatione Animalium, 725b, por exemplo.


188 Aristide Bruant, Dictionnaire français-argot, Paris, 1901, vocábulo coït.
189 Essas expressões idiomáticas correspondem, por exemplo, ao “molhar o biscoito”,
“afogar o ganso” e assim por diante – NT.

210
capítulo 6 - fenômenos sexuais

a uma percepção corporal e despersonalizada da relação sexual.


(Talvez o melhor exemplo disso seja a descrição do punk inglês
do ato de fazer amor como “amasso”.190) Os termos “médicos”,
pelo contrário, não são obscenos. Mas eles podem ser usados​​
apenas por sua complexa afetação de “neutralidade”, de estar
completamente fora da intencionalidade humana; ao usar tais
termos, observamos nossas ações de um ponto de vista que as
torna “alheias à nossa preocupação”. A “modéstia verbal”, que
governa a maior parte de nossa referência ao ato sexual, foi des-
crita por Wayland Young como parte da “negação de Eros”.191
Na verdade, é um sinal de nosso respeito por Eros descrever o
ato sexual não na linguagem obscena do prazer curioso, mas na
linguagem do desejo.

O significado dos órgãos sexuais


Por que, afinal, a vergonha e a obscenidade se focam tão vivi-
damente nas partes sexuais – nos órgãos e nas regiões do corpo
ativadas na circunstância da excitação? As teorias escatológica
e indumentária pretendem explicar esse fato, mas nenhuma foi
bem-sucedida. A primeira não explica a atitude de uma mulher
em relação aos seus seios; a segunda falha em reconhecer que
a vergonha das partes sexuais, ao contrário das roupas, é uma
característica humana universal. Isso nos leva a uma pergunta
difícil: a do lugar dos órgãos sexuais no desejo. De um ponto de
vista, é claro, é fácil descrever esse lugar. Do ponto de vista da
biologia, o desejo sexual requer contato entre os órgãos sexuais,
que são os loci do prazer e os canais de reprodução. Mas de ou-
tro ponto de vista – o da compreensão intencional – o papel dos
órgãos sexuais é obscuro. Como nós os vemos, e como devemos
vê-los, nos “pensamentos desejosos” que motivam nossos es-
tratagemas sexuais? Por que as experiências de base biológica
que são “dadas” a nós por nossos órgãos sexuais devem ser
incorporadas à intencionalidade de uma resposta interpessoal?
Esta última questão é uma das mais difíceis, e não serei capaz
de enfrentá-la até o Capítulo 9. Mas anunciarei a solução que
vou propor mais tarde.

190 Squelching – NT.


191 Wayland Young, Eros Denied, Londres, 1965, cap. 1.

211
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Em uma passagem marcante, Sartre observa que “nenhum


órgão fino e preênsil constituído de músculos estriados pode ser
um órgão sexual, um sexo”.192 Ele não quer dizer que nenhum
órgão assim descrito poderia tomar o papel desempenhado pe-
los órgãos sexuais na atividade de reprodução biológica, mas
que tal órgão nunca seria percebido da forma que percebemos
os órgãos do sexo. Ele comenta enigmaticamente que “se o sexo
aparecesse como um órgão, seria apenas uma manifestação da
vida vegetativa”, mas seu ponto é mais abrangente do que isso
implica, e sua referência posterior à “passividade orgânica do
sexo no coito” mostra que ele não está preocupado com a dis-
tinção entre o ativo e o vegetativo. Mais uma vez, o pensamen-
to de Sartre é profundamente agostiniano. O desejo sexual nos
obriga a unir através de órgãos que estão, de uma forma impor-
tante, fora de nossa vontade. Estes órgãos não são órgãos do
“fazer”, mesmo que passem por transformações surpreendentes
(como a ereção) como consequência das coisas feitas.
Somos impelidos a distinguir entre os órgãos que são inte-
ressantes para nós o tempo todo, em virtude da sua capacidade
de mudar as coisas ao seu redor, e os órgãos que são interessan-
tes apenas ocasionalmente, e não por causa de sua capacidade
de iniciar a mudança, mas por sua capacidade de passar por
ela – de “responder” à influência externa. As mãos, que explo-
ram, agarram e manipulam, têm um papel vital a desempenhar
na relação sexual. Através delas, vamos em direção ao outro,
e quando apertamos as mãos, expressamos nossa vontade de
estar unidos. Mas esses órgãos que nos unem estão cheios de
movimento, e de prontidão para partir em outra missão. Eles
permanecem presos no contato, e não por uma agradável sensa-
ção que os compele, mas por uma determinação voluntária em
nós, de que nossas mãos são os avatares. Nossas mãos repou-
sam juntas, mas seu repouso é algo que fazemos com elas.
Como já discuti no último capítulo, nossos órgãos sexuais
não são os fornecedores ativos de intenção. Eles são endureci-
dos ou amolecidos, mas não porque queremos que isso acon-
teça. (Frank Harris alega (Minha Vida, Meus Amores) que
Maupassant foi capaz de “ordenar” uma ereção; se a história

192 J. P. Sartre, Being and Nothingness, tr. Hazel E. Barnes, Nova York, 1956, p. 397.

212
capítulo 6 - fenômenos sexuais

é verdadeira, Maupassant deve ser comparado a alguém que


“ordena” uma dor de cabeça – ou seja, quem realiza alguma
operação mental que “ocasiona” o que é desejado.) A trans-
formação dos órgãos sexuais é essencialmente uma resposta,
algo que acontece a eles e neles. E nós, neles, somos vencidos.
O prazer do seu contato nos cimenta com uma força que não é
de nossa própria invenção. Este prazer não é algo que fazemos,
nem é a expressão da nossa vontade, embora seja sensível aos
nossos pensamentos e sentimentos.
Que as relações sexuais devam culminar na união desses ór-
gãos “passivos”, em vez de na união das mãos ou olhares, é de
extrema importância espiritual para nós. Pois somos “derrota-
dos” nesses órgãos; sua transformação representa a conquista
da vontade, e a absorção do autogoverno pouco a pouco. É só
quando entendermos este ponto que veremos o que está certo e
o que está errado na teoria escatológico da vergonha sexual, e
quão perto estão as idéias de “pureza” sexual das de “limpeza”
fecal.
Yeats lamentou que “o amor armou sua mansão / Na casa
dos excrementos”.193 Mas seu pesar é incoerente. Pois o amor
não poderia (fenomenologicamente falando) ter escolhido uma
residência melhor. As partes sexuais possuem uma função vi-
tal e regularmente exercida, que nós podemos controlar, mas
que se encontra importantemente fora do alcance de nossas in-
tenções. É nossa observação constante dessa função, e eventual
familiaridade com ela, que nos prepara para o drama do ato
sexual. Eu vejo minhas partes sexuais me vencendo, em obedi-
ência ao ritmo natural e legítimo do meu corpo. O que acontece
com elas acontece comigo e como resultado do que fiz – o que
comi ou bebi. Elas são, portanto, um símbolo do triunfo final
do corpo sobre a vontade; da sua capacidade infinita de “ter a
última palavra” em todas as nossas operações alimentares. Esta
habilidade – que é mais pronunciada na morte, quando o cor-
po finalmente extingue toda a nossa resistência – é aquela que
aprendemos a incorporar em nosso sentido do que somos. É
precisamente a dedicação obstinada do corpo na tarefa de nos
superar, de impor sua lei férrea do movimento, que nos obriga

193 “Love has pitched his mansion / In the house of excrement” – NT.

213
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

a reconhecer nossa unidade com ele. A excreção é o “não” final


a todas as nossas ilusões transcendentais – para o cari inganni
do poeta que imagina com Leopardi, que “sè stesso” é algo di-
ferente de “fango”, algo diferente de lama ou lodo.194 Ela nos
prepara, portanto, para a única união disponível ou concebível
– a união dos eus dentro e através de seus corpos.
Quando eu urino, minha vida e atividade são interrompidas
por um momento. (Diferente da respiração ou do bater do cora-
ção). Eu permito que o corpo “faça como preferir”, consciente
de que não posso resistir muito tempo a seu império, e de que
ele não faz mais do que me comprometer com as consequên-
cias da minha ação anterior, quando levantei meu copo em um
momento de hilaridade. Por isso, vejo meu órgão sexual como
o conduíte das ordens do corpo, o instrumento de seu domínio.
Aconteça o que acontecer comigo através dele, é uma expressão
do comando do corpo. A excreção tem uma tarefa diária de me
subjugar e, portanto, os órgãos excretores adquirem o nimbus
de autoridade que é o tributo final do corpo. Inevitavelmente,
portanto, eles transformam a excitação sexual em um impera-
tivo corporal. O próprio fato de que eles estão me convocan-
do lembra-me que, na presente excitação, eu sou superado pelo
meu corpo. Também não posso lamentar esse fato, porque eu
sou o meu corpo, e nada me lembra disso mais vividamente do
que os órgãos através dos quais o corpo expressa o seu senho-
rio. Assim, Rochester se sente traído por seu pênis, que – apesar
de seus hábitos notórios – torna-se impotente diante da mulher
que ele ama. Ele, portanto, deseja todas as doenças do corpo, e
conclui:
Não mijes tu, quem recusou-se a funcionar,
Quando todas as minhas alegrias, por ti, vieram a desmoronar.195

Em outras palavras, ele quer que seu pênis perca a capaci-


dade pela qual se afirma, e através da qual ele constantemente
lembra Rochester de sua conexão inseparável. O senso da au-
toridade do corpo na paixão sexual cresce a partir do chamado

194 Leopardi, “A sè stesso.” Eu discuto o sentido desse poema em The Aesthetic Understanding,
Londres, 1983, p. 237-40.
195 “May’st thou not piss, who did’st refuse to spend, / When all my joys did on false thee
depend” – NT.

214
capítulo 6 - fenômenos sexuais

familiar da necessidade corporal que, como um desfile diário,


lembra-nos da autoridade duradoura do soberano. Se não fosse
por isso, a ilusão transcendental do desejo – a ilusão de que eu
me uno ao outro como um eu transcendental – ameaçaria todos
os projetos de intimidade atualmente possíveis. Isso constante-
mente incutiria em mim a disparidade absoluta entre a minha
resposta a você e a resposta do meu corpo ao seu corpo. Do
jeito que é, no entanto, o ato sexual é apresentado a mim como
a conclusão inevitável de um processo progressivo de “encarna-
ção”, em que a soberania do corpo é afirmada, e em que eu es-
tou ciente do fato de que eu sou o meu corpo, e que sou tornado
real para você através dele.
No caso da mulher, há uma função semelhante ainda mais
imperativa, que é dada pelo conduíte sexual, mas desta vez é
uma que não pode ser controlada: a menstruação. Isso a cria
sensação de estar mais à mercê de seu corpo do que um homem
poderia estar, de estar sujeito a uma autocracia adicional de sua
parte sexual. Embora este fato já tenha sido lamentado, e às
vezes até infrutiferamente contrariado, é um fato não obstante,
e nenhuma moralidade sexual pode ignorá-lo, assim como ne-
nhuma moralidade sexual pode ignorar o outro, e maior, fato
de que ele é o lembrete regular: o fato da gravidez. Não se deve
supor nem que o esboço acima do entendimento intencional
dos excrementos serve para resumir completamente a sensação
percebida do domínio corporal através dos órgãos sexuais, nem
que a percepção é a mesma para ambos os sexos. Pelo contrá-
rio, homens e mulheres percebem seus corpos de forma dife-
rente. Isso tem sido recentemente evidenciado na reivindicação
feminista de que as mulheres têm alguma necessidade especial,
e algum direito especial, de “controlar seus próprios corpos”
como único meio de estabelecer a igualdade com os homens.
No entanto, em nenhum dos sexos o papel excremental dos ór-
gãos sexuais é causa de arrependimento ou grandes embaraços.
Na verdade, o processo de educação em que deixamos de com-
partilhar a fascinação, ou o horror, infantil por seu excremento
é exatamente o que parece ser: um processo de compreensão e
repúdio. Nós percebemos que, se há uma distinção entre nossas
ações, entre puro e impuro, não tem absolutamente nada a ver
com os excrementos. A coprofilia e a coprofobia são perversões
semelhantes; pois ambas vinculam o ato sexual a um prurido
215
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

infantil, e ao mesmo tempo procuram substituir sua intenciona-


lidade interpessoal com algo animal. A insistência mesma de in-
terpretar a vergonha sexual como uma espécie de desgosto clo-
acal está impregnada dessa perversão: pois mostra a disposição
infantil para interpretar um relacionamento moral em termos
meramente animais. Aquilo que parecia tão trágico para Yeats
não é nada além de um dos dons da natureza, que nos permite
embarcar em um elaborado projeto social: a construção coope-
rativa do desejo sexual.
Ao mesmo tempo, por trás da teoria escatológica da vergo-
nha e do nojo, esconde-se a emoção indelével que identifiquei
no último capítulo como o sentimento do pecado original. Os
órgãos sexuais não são apenas exemplos claros do domínio do
corpo; eles são também fendas, cujas emissões úmidas e odores
amoníacos atestam a misteriosa putrefação do corpo. Daí a des-
crição deliberadamente satânica de Verlaine:
Veja! Tudo é nada, putas ao preço de seus
Cus e bucetas das quais o olhar e o gosto e o fedor
E o tocar fazem dos eleitos devotos seus.
Tabernáculos e Santos dos Santos do despudor.196

O fato de sermos superados por essas partes aumenta a ten-


são da encarnação e, portanto, nos impõe – como nenhum ou-
tro contato corporal poderia nos impor – a tarefa de abolir a
separação que experimentamos entre o corpo e a alma.
Se combinarmos essas observações com nossos apontamen-
tos anteriores sobre a excitação sexual, podemos tirar uma con-
clusão moral simples, mas importante. Defendi que a excitação
tem um componente epistêmico – é uma resposta a uma ativi-
dade de descoberta ou revelação. Os fatos observáveis sobre
​​
a anatomia do outro são facilmente apreciados, e não têm ne-
nhum interesse especial, razão pela qual as pessoas podem estar
nuas e não ficar envergonhadas. Mas há outro tipo de familia-
ridade que é buscada na experiência da excitação. Nesta expe-
riência, o que é normalmente recusado (talvez não da visão ou

196 Mais quoi! Tout n’est rien, putains, aux pris de vos / Cuts et cons dont la vue et le gout
et l’odeur / Et le toucher font des elus de vos devots, / Tabernacles et Saint des Saints de
l’impudeur.

216
capítulo 6 - fenômenos sexuais

do tato, mas de um tipo de “exploração”) é agora “oferecido”.


A disposição de oferta requer a disposição de recusar. Só porque
os órgãos sexuais são recusados (porque não lhes é permitido
exibir abertamente os sintomas da excitação) é possível abri-los
à experiência da excitação. Isso não é motivo de vergonha; no
entanto, é um resultado da vergonha que devemos obedecer ao
edito que nos diz para conter a nós mesmos. Assim, na medida
em que nós valorizamos o desejo, devemos também valorizar
a vergonha que salvaguarda sua experiência nuclear – a expe-
riência da excitação. Um antropólogo funcionalista pode apo-
derar-se disto como uma explicação da instituição universal da
vergonha sexual; mais tarde, vou mostrar que, quer explique
quer não, certamente justifica a nossa reticência sexual habitual.
O que faz da modéstia uma virtude é que a modéstia é a pré-
condição do desejo.
Os órgãos sexuais são como o rosto, porquanto ambos es-
tão sujeitos a enormes transformações involuntárias que não
falham em revelar e comprometer o sujeito. Mas aqueles não
têm e não podem ter a função individualizante do rosto: o pa-
pel de apresentar o meu índice perceptível aqui e agora. Você
pode reconhecer alguém por seu pênis, mas não no seu pênis. O
rosto, como o locus da perspectiva do outro, é o foco natural
de toda a atenção individualizante, e é para a representação do
rosto que a arte erótica se dirige principalmente, retratando os
sentimentos sexuais do sujeito como um tipo de radiação no seu
ponto de vista.
Uma arte que se concentra nos órgãos sexuais não será eró-
tica, mas obscena: ela será, portanto, uma arte que nega a in-
tencionalidade interpessoal do desejo. É uma marca da obsce-
nidade ao longo dos tempos focar nos órgãos e mecanismos
do encontro sexual, excluindo toda a representação individuali-
zante dos próprios sujeitos. A ladainha é familiar. Em primeiro
lugar, há a concentração exclusiva nos órgãos, e um interesse
absorto em suas particularidades físicas; em segundo lugar, a
tentativa de concentrar a experiência sexual nos órgãos sexu-
ais para torná-la numa sensação peculiar, fortalecendo, assim, a
idéia dos órgãos genitais como “fruto proibido” (o fruto da ár-
vore do conhecimento, cuja degustação trouxe vergonha, folhas
de figueira e também – se Gregório de Nissa estiver certo – dese-

217
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

jo). Esta segunda característica da obscenidade é usada contra si


mesma, condenando a exiguidade da luxúria, na grande crítica
do conde de Rochester contra seu pênis:
Pior parte de mim, e portanto mais odiada,
Por toda a cidade conhecida vara hasteada
Em que toda miserável sua boceta ardente alivia,
Como um porco ao se esfregar num portão faria.197

A imagem de Rochester nesta passagem lembra outra conde-


nação da luxúria, atribuído por Xenofonte a Sócrates (Mem. i
229f.):
Diz-se, então, que Sócrates, na presença de Eutidemo e de muitas
outras pessoas, comparou Crítias a um porco, se a intenção deste era
a de esfregar-se em Eutidemo como os leitões fazem com uma pedra.

A consequência imediata dessas duas obsessões – com os


próprios órgãos e com os prazeres da sensação – é um colapso
do sentimento erótico. Essa é, na verdade, é a intenção oculta
da obscenidade. O resultado é “masturbatório”, uma vez que
localizou o interesse sexual ali, e o afastou da intencionalidade
que lhe dá sentido.
Na verdadeira arte erótica, geralmente é o rosto, e não o ór-
gão sexual, que fornece o foco de atenção. A Vênus reclinada
olha para fora da imagem ou em direção a seu amante, e o inte-
resse por seus membros se move sempre para cima, para o rosto
que os supera. Uma pintura que esconde o rosto, mas expõe
os órgãos genitais beira inevitavelmente o obsceno. (Courbet
pintou um famoso “retrato inferior” – que pertence agora a
uma coleção particular.)198 Ao mesmo tempo, o “vaguear” da
atenção, dos olhares individualizantes dos olhos aos contornos
das partes inferiores em que o corpo tem precedência sobre o
espírito encarnado, é uma parte natural do drama do desejo.
A fina arte do erotismo deve incentivar a atenção a se desviar,
mas sem romper a intencionalidade interpessoal que faz com

197 Worst part of me, and henceforth hated most,


Through all the town the common rubbing post
On whom each wretch relieves her tingling cunt,
As hogs on gates do rub themselves and grunt – NT.
198 A imagem é parcialmente descrita em Wayland Young, Eros Denied, p. 95-6.

218
capítulo 6 - fenômenos sexuais

que as nossas emoções se envolvam, assim como percebemos o


conjunto ideal da beleza que é o objeto de interesse estético e a
beleza que é o objeto de desejo. É assim que Velásquez, em sua
transformação familiar da Vênus reclinada, distancia sua mode-
lo de nós, em uma postura que expõe suas ancas voluptuosas e
esconde seu rosto. Uma imagem obscura de seu rosto aparece,
no entanto, no espelho que Cupido sustenta. A atenção do es-
pectador é mantida entre o corpo real e sexual, e o rosto dis-
tante, que não é nada mais do que a idéia abstrata de um rosto,
esboçado, sem corpo e sem expressão. Somos trazidos de volta,
no meio de nosso interesse sexual despersonalizado, à presença
individual neste corpo, embora apenas a percebamos levemente,
e não possamos nos envolver com ela como nos envolvemos
com o olhar da Vênus de Urbino. Nossos sentimentos chegam à
beira do orgíaco, e ainda assim se voltam para a mulher, e para
o rosto, que estão parcialmente escondidos. (A imagem já foi
danificada por uma sufragista pudica, que cutucou a nádega da
Vênus com seu guarda-chuva. Instada a se explicar, a agressora
disse que ela atacou a nádega “porque ela é estúpida!”)
A modéstia é a disposição de sentir vergonha corporal (in-
cluindo vergonha sexual), e de modo a evitar a sua ocasião. É
algo mais do que o desejo de cobrir a si mesmo, ou de esconder
as partes privadas, caso contrário concordaríamos com a excla-
mação de Madame d’Épinay (Mémoires, vol. I), “Bela virtude!
presa por alfinetes!”199 Nós valorizamos a modéstia em parte
porque valorizamos o desejo, e olhamos com desconfiança os
hábitos que desatam o nó da ligação individual. Havelock Ellis
apresentou esse ponto de forma tendenciosa, mas correta (como
vou mostrar), quando escreveu:
Na arte do amor (...) [a modéstia] é mais do que uma graça; ela
deve ser sempre fundamental. A modéstia não é, de fato, a última
palavra do amor, mas é a base necessária para todas as audácias
mais requintadas do amor, a fundação que sozinha dá valor e doçura
ao que Senancour chama de “delicioso atrevimento”. Sem modéstia,
não poderíamos ter, nem avaliar com justiça seu verdadeiro valor,
aquele candor corajoso e puro que é, ao mesmo tempo, a revelação
final do amor e o selo de sua sinceridade.200

199 “Belle vertu! qu’on attaché sur soi avec des épingles!” – NT.
200 Havelock Ellis, Studies in the Psychology of Sex, vol. I, p. 82.

219
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

O nome usual para o desejo imodesto – o desejo que atro-


pela a reticência dos outros, e trata cada novo objeto como um
equivalente do último – é luxúria. A análise anterior sobre a
vergonha contém uma explicação do que é vergonhoso na lu-
xúria. Ela também nos permite ver por que a modéstia mascu-
lina e a feminina foram tradicionalmente vistas como virtudes
distintas (e talvez desiguais). Os homens tradicionalmente são
os iniciadores da união sexual, e as mulheres as destinatárias
de suas atenções. A modéstia deles consiste no ardor – numa
concentração flamejante sobre a mulher individual, de um tipo
que não seja lascivo, mas dependente. Este ardor modesto foi
criado para minar a resistência da mulher, e não por inspirar
pensamentos lascivos – que, na verdade, apenas aumentariam a
sua vergonha e, portanto, sua relutância – mas por convencê-la
a não se sentir humilhada, e sim valorizada como a destinatária
das atenções de seu amante. A própria mulher irá, então (como
defendem Senancour e Stendhal),201 reagir em conformidade.
Sua resposta, despertada pela noção do seu valor para o outro,
concentrar-se-á nele, encontrando todos os argumentos em seu
favor, até que ela se sinta injusta por prejudicá-lo com sua resis-
tência, e possa, portanto, somente considerando os pensamen-
tos morais, se entregar àquilo que ela deseja.
O esboço do drama é familiar, e ensaiado em cada obra de li-
teratura erótica, cortês, cerimonial ou profana. O que é familiar
na experiência ou na literatura pode, no entanto, permanecer fi-
losoficamente impenetrável. Nos próximos capítulos, portanto,
vou me esforçar para traçar com mais precisão o percurso do
amor, e as consequências morais e políticas do conflito entre o
foco corporal da luxúria e os vínculos concentrados do desejo.
Uma característica particular deste conflito já foi discutida: o
“medo do obsceno”.

Prostituição
Esse “medo do obsceno” anima a visão comum de que a
prostituição é inerentemente vergonhosa. Consideremos pri-
meiro a prostituição de mercado (para distingui-la da “prosti-
tuição sagrada” e da “prostituição de comando” – ver abaixo).

201 E. P. de Senancour, De l’amour, Paris, 1834, vol. I, p. 209.

220
capítulo 6 - fenômenos sexuais

A essência do bem de mercado é ser transferível – cambiável a


qualquer momento pelo seu preço (ou “valor de troca”, como
os economistas clássicos chamavam). Por isso, é substituível por
qualquer simulacro que seja “tão bom quanto”. Se a prostituta
fica humilhada, é porque ela divorciou o ato sexual do seu pro-
jeto de união sexual. Ela não é o objeto do desejo de seu cliente,
mas a mercadoria que satisfaz sua necessidade. Mesmo que ela
responda com algum tipo de excitação, não pode envolver o
florescimento da reciprocidade que é parte integrante do “cami-
nho do desejo”. Desejar seu cliente seria tornar-se intensamente
consciente de sua transferibilidade – do fato de que ela, como
mercadoria, não é desejada. A perpetuação de seu desejo, então,
tomaria de uma vez um aspecto pervertido, como o desejo do
estuprador, que não busca nenhuma reciprocidade, e que inclu-
sive procura matar a reciprocidade, para que isso não se mostre
uma invasão demasiado poderosa de sua perspectiva egocên-
trica. Por isso, a prostituta deve abster-se de desejar seu cliente,
ou então inventar para si um objeto fantasioso de desejo. Em
qualquer um dos casos, o cliente também é utilizado como um
meio: quer como um meio de ganhar dinheiro, quer como um
meio para satisfazer seu anseio pelo outro. A mulher que “vende
seu corpo” é, então, forçada a também ver seu parceiro em ter-
mos monetários, como alguém que não tem nenhum valor além
daquele do mercado. Qualquer um que fornecesse o dinheiro
seria “tão bom quanto”.
Vale a pena fazer uma pausa para perceber o poder que o
dinheiro tem de reconstituir as relações humanas à sua própria
imagem: um poder que é o tema de infinitas discussões morais.
O dinheiro representa uma transação quantificável: uma transa-
ção cujo objetivo pode ser expresso em termos exatos e finitos.
Todas as obrigações monetárias são, portanto, obrigações que
podem ser quitadas. Como já indiquei, as obrigações que sur-
gem no decorrer do desejo não são simplesmente “quitáveis”.
O dinheiro é útil para a prostituta, por representar o ato sexual
como uma transação fugaz e por acabar com qualquer dúvida
a respeito do cumprimento de suas obrigações. Inevitavelmente,
porém, o ato é transformado pelo dinheiro, que impõe a “inten-
cionalidade do mercado” numa conduta que não a pode susten-
tar. Assim, em seu impressionante trabalho, The Philosophy of
Money, Simmel apresenta o seguinte argumento:
221
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

O dinheiro nunca é um mediador adequado das relações pessoais


– tais como a relação do amor verdadeiro, por mais abrupta que
possa ter sido sua interrupção – que se destinam a ser permanentes e
fundadas na sinceridade das forças de sua ligação. O dinheiro serve
melhor, objetiva e simbolicamente, àquela satisfação comprável que
rejeita qualquer relação que continue para além do impulso sexual
momentâneo, porque é absolutamente independente da pessoa e
corta completamente quaisquer outras consequências desde o início.
Na medida em que se paga com dinheiro, está-se completamente
resolvido com qualquer objeto. (...) Já que na prostituição a relação
entre os sexos está especificamente confinada ao ato sexual, ele é
reduzido ao seu conteúdo puramente genérico. Ele consiste no
que qualquer membro da espécie pode executar e experimentar. É
um relacionamento em que as personalidades mais contrastantes
tornam-se iguais e as diferenças individuais são eliminadas. Dessa
forma, a contrapartida econômica deste tipo de relacionamento é o
dinheiro, que também, transcendendo todas as distinções individuais,
representa a espécie-tipo dos valores econômicos. Por outro lado,
nós experimentamos na natureza do próprio dinheiro algo da
essência da prostituição. (...) O imperativo moral de Kant de nunca
usar seres humanos como um simples meio e, ao mesmo tempo,
de aceitá-los e tratá-los sempre como fins em si, é flagrantemente
ignorado por ambas as partes no caso da prostituição. De todos os
relacionamentos humanos, a prostituição talvez seja o exemplo mais
marcante da degradação mútua em um simples meio, e este pode ser
o fator mais forte e mais fundamental para colocar a prostituição
em uma relação histórica tão estreita com a economia monetária, a
economia dos “meios” no sentido mais estrito.202

Citei o argumento inteiro, porque a passagem de Simmel dá


voz às intuições fundamentais sobre a natureza do desejo. Mas
também sugere um paradoxo. Pois como pode ser dado à tran-
sação sexual um “equivalente monetário”? Como pode haver
desejo que considera o dinheiro como parte de seu objetivo?
Claramente, não pode haver tal desejo; daí o velho ditado espa-
nhol: el cuerpo de una mujer no es pagadero – o corpo de uma
mulher não é mercadoria. O que é desejado de uma mulher é
precisamente aquilo que não pode ser comprado, e o dinheiro
dado deve ser visto como uma oblação à sacerdotisa de Vênus,

202 Georg Simmel, The Philosophy of Money, tr. T. Bottomore, D. Frisby e K. Maengelberg,
Londres, 1978, p. 376-7.

222
capítulo 6 - fenômenos sexuais

que ela paga por sua proteção:203 daí a instituição do bordel,


em que, através do pagamento a um terceiro, o cliente se liberta
da consciência do que está fazendo com a mulher que ele es-
colhe. Para o sexo ser um verdadeiro “produto consumível”, a
prostituta deve ser substituída por um objeto impessoal – uma
boneca, por exemplo – para que o sexo possa ser produzido
como uma mercadoria. Em uma “sociedade de consumo”, po-
de-se esperar que o ideal de beleza se torne “bonecalizado” e
“fetichizado” – como, aliás, vemos nas modelos de passarela de
hoje e na própria aparência da prostituta moderna.204
O paradoxo é também ilustrado pelo amor por riquezas. En-
quanto um homem pode ser desejado por sua aparência, suas
virtudes, seu poder, é difícil ver sentido em ser desejado por
suas riquezas. O paradoxo está consagrado no mito de Dânae,
de quem se diz ter desejado Zeus como parte de seu desejo por
dinheiro, de maneira que ela acolheu o deus em seus abraços
quando ele apareceu para ela na forma de uma chuva de ouro.
Um dístico de Parmênio da Antologia Grega (Amatory Epi-
grams, nº 33) tenta dar sentido a isso, referindo-se não ao uso
do dinheiro na compra, mas à sua forma simbólica como um
presente:
Você choveu como ouro sobre Dânae, olímpico Zeus,
Para a criança receber um presente, e não tremer diante do filho
de Cronos.

Mas isso também confirma o paradoxo: pois o que foi dado


a Zeus não foi dado pelo dinheiro, e não poderia ser dado como
dinheiro.
É precisamente esta distância entre a transação monetária e
a transação do desejo que é mais libertadora para a prostituta.
A prostituição de mercado liberta a mulher de todo laço moral
com seu cliente, justamente da maneira que o mercado desfaz os
laços da “economia moral” que vinculam o servo ao senhor feu-

203 Bernardo de Quiros y Llanas Aguilaniedo, La Mala Vida en Madrid, Madri, 1901,
p. 204.
204 Nesse exame do ethos do consumismo, Jean Baudrillard tem pouco a dizer sobre a
prostituição, mas muito sobre o significado sexual das bonecas e a “fetichização” do
corpo, tornando-o “embonecado” e, portanto, sujeito ao processo de “simulação e
restituição”: La Société de consommation, Paris, 1970, p. 235 et seq.

223
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

dal.205 Deve-se comparar a prostituição de mercado com a pros-


tituição de comando –que está para aquela como a escravidão
está para a economia capitalista nos “tipos ideais” que devemos
a Marx.206 A representação clássica desta condição, que tam-
bém mostra que é parte de uma estratégia “depersonalisante”
por parte do escravizador, é dada no notório História de O. A
heroína é escravizada por uma confraria de homens violentos,
que a enche de ordens. O que se segue não é de estranhar:
Quando usamos o traje que vestimos à noite, como o que estou
vestindo agora, e nosso sexo fica descoberto, não é uma questão
de conveniência; isso poderia ser feito de outra forma. É por uma
questão de insolência, para que seus olhos fiquem fixos lá, e não em
qualquer outro lugar; para que você saiba que este é o seu mestre, a
que, acima de tudo, os seus lábios estão destinados. Durante o dia,
quando estamos vestidos normalmente, quando você estiver vestida
como está agora, você vai seguir as mesmas regras, e seu único dever
será o de abrir nossas roupas, se isso lhe for ordenado, e fechá-las
novamente quando terminarmos com você.207

O extraordinário sucesso desse livro obsceno mostra que ele


captou uma fantasia fundamental. A fantasia é a de uma prosti-
tuição supremamente atingida, em que a mulher não tem nem a
liberdade de recusa – em que a economia de mercado é substitu-
ída por uma economia de comando. Neste tipo de prostituição,
o espírito da mulher está totalmente superado pela força da
autocracia masculina. Ao mesmo tempo, no entanto, o coman-
do destrói a base da relação pessoal, e a obriga a ligar seus inte-
resses e alegrias ao pênis abstrato, não importando quem é seu
dono ou por que ele busca sua submissão a isso. Esta é a fanta-
sia radical da obscenidade, e descreve o conteúdo do medo que
está subjacente ao paroxismo de vergonha. Conforme implica,
sua execução envolve a revogação de todo o sentimento indi-
vidualizado na mulher; sua escravidão é meramente, para usar

205 A frase “economia moral” é usada por E. P. Thompson em “The Peculiarities of the
English” (em The Poverty of the Theory, Londres, 1978) para descrever os acordos que,
em seu entender, foram varridos pela Revolução Industrial e pela evacuação do campo.
206 Eu me refiro aqui aos tipos ideais de “comunismo primitivo”, “escravidão”, “feudalismo”,
“capitalismo”, “socialismo”, e “comunismo (total)” conforme descritos no Capital e em
outros lugares. Uso a expressão “tipo ideal” no sentido dado por Weber: ver a entrada
ideal type no meu Dictionary of Political Thought, Londres, 1982.
207 Pauline Réage, Histoire d’O, Sceaux, 1954.

224
capítulo 6 - fenômenos sexuais

a linguagem marxista, a forma “realizada” e “objetiva” dessa


alienação “subjetiva”.
A prostituição de comando está no outro extremo da pros-
tituição do mercado. Entre elas está o sistema “feudal”, repre-
sentado pelo harém. Aqui, a restauração da “economia moral”
remove o paradoxo do desejo da prostituta. Na verdade, ela não
é mais uma prostituta, já que está vinculada a um “único senhor
absoluto da vida e do amor”. Quaisquer que sejam as deficiências
de sua circunstância, ela está restaurada para o reino do erótico,
por ser obrigada a realizar o ato sexual somente com alguém a
quem também está ligada por um laço moral inteligível.
“A prostituição existente de fato” nunca tem seus motivos
tão puros como os três casos que considerei. Como defende Wi-
cksteed, as relações econômicas têm uma tendência natural para
gerar relações não-econômicas,208 e do solo da prostituição de
“mercado”, portanto, podem brotar amizade mútua e preocu-
pação. (Considerem também a gueixa e a cortesã.) No entanto, a
prostituição fornece “tipos ideais” da transação sexual, do sexo
removido do reino da relação pessoal e transformado em um
“trabalho alienado”. Os dois principais tipos que dei envolvem
a exploração dos outros – a sua utilização como um meio. Eles
fornecem paradigmas contra os quais é possível definir um ideal
de amor sexual. No amor, o outro não é tratado como meio,
mas como fim; seus desejos e prazeres são meus, e os meus, es-
pero, são dele. O desejo por amor, e o desejo por dinheiro; cada
um deles penetra em nossas vidas, transformando a qualidade
de todas as relações humanas, incluindo aquelas fundadas no
desejo. O amor e o dinheiro são sentidos como forças cósmicas,
e por esta razão a prostituta aparece-nos como um símbolo de
transgressão – da possibilidade de que, a qualquer momento,
podemos nos entregar a uma força que guerreia com o amor.
(Wagner distingue o poder de Wotan do poder de Alberich, que,
tendo renunciado ao amor, só podia obter as mulheres pagando
por elas. O mundo de Alberich está envenenado pela ausência
de amor e, ao tomar o produto do trabalho de Alberich, Wotan
se identifica com ele, e se vê derrotado, descobrindo que seu
próprio mundo também está envenenado.)

208 P. H. Wicksteed, An Introduction to Political Economy, Londres, 1910.

225
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Enamoramento
Vou explorar mais elaboradamente o fenômeno do amor eró-
tico no Capítulo 8. Mas é novamente necessário antecipar obser-
vações posteriores se quisermos ter uma visão clara dos proble-
mas que se apresentam a nós. A característica mais intrigante do
amor erótico é que você pode se apaixonar e, além disso, com um
contato mínimo com o objeto, não mais do que Tamino teve ao
contemplar o retrato de Pamina. A imagem recorrente da “poção
do amor” expressa a convicção de que esse tipo de amor é uma
compulsão, que não é de forma alguma como a estima, e não
requer nenhum conhecimento do caráter do outro.
Para entender o “enamoramento” é preciso perceber que sua
intencionalidade é um caso especial de intencionalidade do dese-
jo. A pessoa que ama vê a personalidade de seu amado em todos
os seus atos e gestos, e fica, por assim dizer, encantada por eles.
A pessoa que se apaixona faz a assimilação inversa: ela vê gestos
e características que despertam seu desejo e, a fim de que o dese-
jo justifique o esforço a que instantaneamente se comprometeu,
imagina uma personalidade que se encaixe no que ela vê. Esta é a
“idealização” do objeto do desejo. Depois disso, tudo é descober-
ta e decepção, ou, se sua imaginação triunfar, a confirmação do
desejo inicial. Inicialmente, não há distinção entre amor e “pai-
xão”: a diferença é revelada quando o amante é submetido a um
“teste” – e é por isso que o amor verdadeiro exige um período
de namoro, e o amor de Tamino por Pamina deve ser submetido
à provação. A pessoa que se apaixona quer que o sorriso, as pa-
lavras, os atos do outro sejam “para ele”, que sejam feitos sem-
pre, em alguma medida, por causa dela. Ela sente, ao perceber
o outro, uma premonição do “lar”: do que é “meu por direito”.
Garibaldi descreve assim seu primeiro encontro com Anita:
Ficamos em silêncio e extasiados, olhando um para o outro, como
duas pessoas que não se vêem pela primeira vez, e que buscam nas
características do outro algo que ative a memória.
Enfim, eu a cumprimentei, e disse: “Você precisa ser minha”.
Eu falava pouco português, e pronunciei as ousadas palavras em
italiano. No entanto, fui magnético na minha insolência. Eu tinha
feito um nó que só a morte poderia desatar.209

209 G. Garibaldi, Memorie autobiografiche, 7ª ed., Florença, 1888, p. 56.

226
capítulo 6 - fenômenos sexuais

O egoísmo de Garibaldi nessa passagem é essencial para esse


tipo de amor. Ele, que se apaixona, quer um reconhecimento
elaborado de si mesmo. Ele precisa que a personalidade do ou-
tro atenda suas expectativas – expectativas que ele próprio mal
compreende, a não ser por intermédio da intimação contida no
rosto que ele encara. O sujeito “se apaixona” quando deseja, e
reconhece no desejo a possibilidade do amor. Ele antecipa, em
seguida, o consolo final que justificará seu trabalho, e imagina
a personalidade que irá fornecê-lo. O amor, aqui, é verdadeira-
mente um palpite inspirado: e aguarda o que Stendhal chama de
momento de “cristalização”.210
Há uma experiência primitiva em que o amante freqüente-
mente evoca ao entrar neste reino “mágico”. Ele se lembra de
alguma criatura humana que já cuidou dele, cujas mãos e ca-
racterísticas ficaram marcadas com a impressão de segurança,
intimidade e familiaridade. Assim, muitas faces vistas no decor-
rer da vida parecem já prefigurar alguma intimidade futura, e
vemos nela, com ou sem razão, não apenas a presença de certa
perspectiva, mas também a trajetória dos nossos dias dentro de
sua visão. Esta experiência se combina com o desejo sexual para
superar os obstáculos naturais à paixão – o constrangimento
e desconfiança que acompanham o pensamento de tão íntima
união. Ela nos liberta para a união e para as consolações que
nossa memória secreta nos leva imediatamente a buscar. Daí a
natureza “irresistível” do enamoramento, que, ao nos apresen-
tar à sensação de algo totalmente novo e esmagador, apenas
nos coloca num caminho já percorrido, em que trilhamos com
antigas e indeléveis expectativas.
O esboço da gênese do amor nos permite ver que há uma de-
pendência ontológica peculiar que surge no decurso do mesmo,
e que essa dependência é ensaiada através de um desejo com-
pletamente individualizado. O medo dessa dependência, aliada
a um sonho de liberdade sexual inalcançável, leva ao flerte e à
coqueteria. No olho semicerrado da coquete, o eu é oferecido
e negado. A coqueteria é o gozo vicário de uma operação que
não pode ser realizada sem catástrofe; ela só pode chegar a uma
conclusão abolindo-se. Por isso, defende Simmel em um ensaio

210 Stendhal, De l’amour, Paris, 1891.

227
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

marcante, a coqueteria é uma expressão da “Zweckmäβigkeit


ohne Zweck” – “intencionalidade sem intenção” – o que, para
Kant, é o núcleo da experiência estética.211 Nela, o objetivo do
desejo nunca é perseguido; todos os gestos pairam no ar, incom-
pletos, e são extintos antes que qualquer finalidade possa ha-
bitá-los. A coqueteria, portanto, é uma forma de jogo: mas en-
quanto só joga com a realidade, é com a realidade que ele joga.
A coqueteria é um reconhecimento oblíquo da dependência que
se arrisca no desejo, e um sinal de que a coquete, menos honesta
do que a prostituta, é mais sexualmente alerta. Pois a coquete
se detém precisamente porque seu impulso pertence ao desejo:
é um impulso que só pode se tornar uma “transação” no jogo.

Ciúme
A dependência ontológica que se encontra no laço erótico é
agudamente exibida pelo mais misterioso dos fenômenos sexu-
ais: a condição do ciúme. A experiência do ciúme é uma expe-
riência de rejeição: não apenas a rejeição por outra pessoa, mas
a rejeição pelo mundo a que se tinha entrado ao juntar-se com
o outro. A vítima do ciúme encontrou uma divisão ontológica.
Ela deixou de pertencer ao mundo que a continha, e entrou em
uma espécie de pesadelo, presa de pensamentos horríveis e fan-
tasias de que não consegue se livrar. Dryden descreve o ciúme
como o “tirano da mente”, mas sua tirania não tem paralelo
real no mundo da política: é antes a tirania exercida pelo tenta-
dor sobre a mente de Santo Antônio. (Seu equivalente político
mais próximo, portanto, não é tirania, mas a inveja ardente do
inferior: que nada mais é do que uma tirania negativa.)
O ciúme começa na descoberta – a descoberta de um rival.
Logo após, a vítima cai, como o herói trágico, em um abismo
de sofrimento solitário. Ele só conhece uma consolação, que é a
descoberta inversa. Ele precisa descobrir que isso não é verdade.
Existem graus de ciúme. Em sua forma extrema (como o ciúme
de Otelo), pode tornar sua vítima irreconhecível para si mesmo
e para os outros. Na sua forma mais branda, permanece oculto,
como uma falha geológica que, não obstante, cede sob a menor

211 Georg Simmel, “Die Koketterie”, em Philosophiche Kultur, Gesammelte Essais, ed. J.
Habermas, Berlim, 1983 (original, Potsdam, 1923).

228
capítulo 6 - fenômenos sexuais

pressão. Assim é o ciúme de Swann ou do próprio Marcel, que


vive assombrado pela suspeita. Mas em todas as suas formas, o
ciúme é catastrófico. Por quê?
A pessoa ciumenta tipicamente não deseja possuir o que seu
rival possui, mas aboli-lo – abolir o prazer e o triunfo que exis-
tem sem ele. Ele é em grande parte indiferente a quaisquer van-
tagens e benefícios que possa obter, e abnegadamente persegue
a destruição da alegria do outro. Até que essa destruição seja re-
alizada, seu mundo está fora do lugar. É quase como se ele agis-
se por um senso de justiça – consigo mesmo e com o esquema
das coisas que ele via anteriormente. Esta “fúria pela ordem”
impessoal torna a inveja repulsiva. Ao mesmo tempo, o ciúme
sexual pode mover nossa compaixão, uma vez que a vítima do
ciúme sexual é também vítima do amor.
A primeira característica do ciúme, portanto, é envolver cer-
to grau de amor. E quanto maior o amor, maior será a inveja.
O ciúme é uma catástrofe sofrida apenas por aqueles que en-
traram na condição de “dependência ontológica” que existe no
amor erótico – a dependência de quem procurou, dentro e atra-
vés do desejo sexual, as consolações de uma intimidade perfeita.
Mas a causa da catástrofe não é a descoberta de que o amado
ama o outro, mas que deseja o outro. O desejo sexual do amado
é a característica fundamental do interesse da pessoa ciumenta,
e ele pode tolerar qualquer favorecimento concedido a seu rival,
salvo este. É possível ter ciúme até mesmo do encontro mais
casual (e, na verdade, especialmente do encontro mais casual)
bastando ter sido a ocasião do desejo. Não importa que seu
rival não seja amado. Também não importa que ele não exista,
que não seja mais do que a fantasia em cujo corpo os braços
do amado apertam na imaginação, quando fecham a realidade
sobre si mesmos. Claro que há um elemento de insanidade neste
ciúme de fantasmas. Mas não é mais do que um ponto distante
ao longo da estrada em que cada amante embarca, até que o
“monstro de olhos verdes” o aviste.
A explicação da catástrofe reside, creio eu, na mesma região
moral que explorei nas discussões anteriores sobre vergonha e
obscenidade: no confronto entre os elementos individualizantes
e os universalizantes do desejo. Embora o desejo sexual tenha
um objeto individualizado, ele está ligado ao interesse no sexo

229
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

do outro. No ato sexual, deixamos de ser meramente João ou


Maria, e nos tornamos os representantes dos atributos comuns
do nosso sexo. Além disso, isto é o que queremos. É verdade que
aquele que ama deseja que sua amada o queira como o indiví-
duo insubstituível e único que ele é, e ele deseja que este seja o
pensamento determinante que subjaz ao movimento do desejo
de sua amada. Ao mesmo tempo, porém, ele quer que sua ama-
da se foque em seu corpo, de forma a querê-lo como homem, ou
como mulher, como um exemplo de seu sexo: não como alguém
que poderia ter sido substituído neste ato por outro, mas sim
como primus inter pares, o melhor do grupo. Não é que seu
desejo seja transferível, mas sim que ele provoca um interesse
sexual que, pelo menos potencialmente, pode alcançar outros
objetos. Este elemento é essencial para a excitação sexual, e é
parte do que permite que João veja Maria “se entregar” à pai-
xão, “submetendo” sua individualidade ao seu impulso sexual,
que a “derrota”.
O curso feliz do amor limita esse conflito à noite, e assim o
esconde. O ciúme, por outro lado, revela-o à luz do dia, e assim
destrói o mundo do amante destruindo o mito de sua singula-
ridade. É ao ato de amor que ele recorre para a confirmação de
ser insubstituível; e quando o ato é envenenado pelo pensamen-
to de generalidades, sua existência fica comprometida. Aquilo
que é dado a ele poderia ter sido dado a outro exatamente da
mesma forma – até mesmo, o pensamento mais terrível de to-
dos, para outro que não seja amado. Pois quando o elemento do
desejo é superior, a traição é obsessora e repugnante. A ausência
de amor entre o casal culpado é uma das características mais
provocantes na gênese do ciúme, precisamente porque concen-
tra os pensamentos da vítima no corpo de seu rival. Quando o
Dr. Jivago descobre a verdade sobre a relação de Lara com o vil
Komarovsky, reconhece: “Eu só posso ter muito ciúme – ciúme
apaixonado, mortal – de alguém que eu desprezo e não tenho
nada em comum”. Tal ciúme – ao contrário do ciúme inspirado
por um amor rival – é naturalmente retrospectivo, ponderando
fervorosamente os episódios que precederam o presente caso.
Alguém com um “passado” entra em uma relação com as con-
dições para o ciúme já cumpridas, e seu caminho mais sensato é
freqüentemente o da ocultação. (A situação é comovente e con-
vincentemente descrita por Alphonse Daudet em Sapho.) Reve-
230
capítulo 6 - fenômenos sexuais

lar o passado, como Levin fez com Kitty quando lhe mostrou
seu diário (Anna Karenina, Parte IV, cap. 16), é presumir uma
tolerância rara no parceiro, e uma capacidade de suportar uma
dor terrível. (Deve-se dizer, no entanto, que existem diferenças
cruciais entre o ciúme sentido por homens e por mulheres. Vou
mostrar algumas dessas diferenças no Capítulo 9.)
Esta ascensão do desejo sexual nos pensamentos de ciúme
tem consequências importantes. Inclusive, através do ciúme, um
amante pode ficar repentinamente muito sensível à base física
de seu desejo. Milan Kundera, em A Valsa dos Adeuses, descre-
ve uma experiência familiar:
Ele tinha que olhar para o rosto de seu algoz, ele tinha que olhar
para o seu corpo, porque sua união com o corpo de Ruzena parecia
inimaginável e inacreditável. Ele tinha que olhar, como se seus olhos
pudessem dizer-lhe se os corpos deles eram de fato capazes de união.

No Ato II da Götterdämmerung, Brünnhilde encontra o in-


fiel, sem reconhecer Siegfried. Ele jura diante de todos que não
se aproveitou durante a noite que passou ao lado dela, e men-
ciona a espada que estava entre seus corpos. Enfurecida, Brün-
nhilde se volta contra ele:
Tu, mentiroso,
Herói enganoso,
Chama tua espada
Em palavra desonrada!
Conheço bem o corte que traz
E também a bainha em que jaz
Onde tão mansa
Na parede descansa.212

“Chama tua espada (...) / Conheço bem o corte que traz e


também a bainha em que jaz”. Suas palavras se referem à espada

212 Du listiger Held


Sieh’ wie du lüg'st!
Wie auf dein Schwert
du schlecht dich beruf’st!
Wohl kenn’ ich sein Scharfe,
doch kenn’ auch die Scheide,
darin so wonig ruh't an der Wand – NT.

231
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de Siegmund, e a música reforça a referência, lembrando-nos


que Siegmund e Siegfried (e, de outra maneira, Brünnhilde tam-
bém) são parentes de sangue. Foi Siegmund quem atentou pela
primeira de sua condição divina com a imagem de um amor
carnal; e é Siegfried quem ela deseja, a reencarnação de uma
devoção passada. E agora, vítima do amor mortal, ela une sua
admiração pela virilidade de Siegmund com sua submissão à de
seu filho, em uma imagem inconfundível do ato sexual. É a pro-
va final da condição mortal de Brünnhilde sentir a dor do amor
justamente em sua parte sexual.
Entre os filósofos que escreveram sobre o desejo, só Espinosa
parece ter atribuído importância ao fato de que os pensamentos
ciumentos sempre se voltam ao ato sexual, e permanecem mor-
bidamente nele. Em sua tentativa de explicar isso, usa palavras
que lembram a teoria escatológica da vergonha:
aquele que imagina que a mulher que ama se prostitui com outro,
não fica só entristecido pelo fato de que seu próprio desejo estar
prejudicado, mas, por ser forçado a unir a imagem da coisa amada
com as partes vergonhosas e de excrementos de seu rival, ele também
a rejeita.213

A teoria, é claro, não é mais plausível agora do que era na


discussão da vergonha. Mas tem o mérito de reconhecer o fenô-
meno nuclear do ciúme sexual, e sua característica mais difícil
de explicar.
Devido a esta característica, pensamentos ciumentos são fre-
qüentemente emocionantes. O amante ciumento vê constante-
mente revelada ante sua imaginação a cena de uma fantasia
sexual, em que a amada está cheia de desejo e, em seguida, se
entrega a outro. Ele prostitui sua amada em seus pensamentos,
que são invadidos, como os de Otelo, por uma sensação obs-
cena – pela percepção do ato sexual em seus termos corporais,
livres da circunstância do amor. O tormento de ciúme é também
emocionante. A fim de aumentar a fantasia, o amante ciumento
pode se tornar implacavelmente curioso. Ele pode querer saber
cada detalhe, até mesmo “qual foi a sensação”. Proust escreve
sobre Albertine: “Eu não queria saber apenas com que mulher
ela tinha passado a noite, mas que prazer específico isso repre-

213 Ética, livro 3, proposição XXXV.

232
capítulo 6 - fenômenos sexuais

sentava, o que se passava neste momento com ela”.214 E, depois


de um parágrafo de ruminações obsessivas sobre esse tema, ele
conclui:
No ciúme, precisamos provar alguns tipos e intensidades
diferentes de sofrimento antes de pararmos diante daquele que
nos parece conveniente. E o maior desafio quando se trata de um
sofrimento como esse é o de sentir que aquele de quem gostamos
prova do prazer com outros além de nós, dando a sensação de que
não somos capazes de dar, ou pelo menos não do jeito, imagem ou
atitude aquilo que, para ele, representa tudo, menos nós mesmos!215

É significativo que, no paroxismo do ciúme, Marcel tenha


chegado a pensar no ato sexual nestes termos universalizantes
– como uma questão de “sensações”, que podem ser mais bem
fornecidas por outro do que por ele mesmo. Isto não é mórbido.
É, antes, um reflexo das maquinações secretas do desejo, que o
ciúme desvia automaticamente na direção que nós tememos – a
direção do obsceno.
A referência a Albertine deixa clara a maior fonte da impos-
tura de Proust. Pois a experiência que ele acaba de descrever
não é a de ciúme do interesse de uma mulher em outra mulher,
mas sim o ciúme do interesse de um homem em outro homem.
Este é um tema a que devo retornar no Capítulo 10. Mas deve-
mos assinalar que o ciúme de um homem de relações lésbicas,
precisamente porque não envolve pensamentos “fálicos”, evita
muito da dor aflitiva do ciúme normal. Muitas vezes, é mais
fácil viver com o fato de sua esposa desejar uma mulher do que
com o fato de desejar um homem. O primeiro, ao contrário do
último, não o aflige com o pensamento de que justamente você
seja dispensável no seu papel sexual. Além disso, as diferenças
na estrutura do desejo do macho e da fêmea implicam diferenças
na estrutura do ciúme do macho e da fêmea. O paradigma que
estou descrevendo não deve, portanto, ser considerado como
uma representação exaustiva desse fenômeno complexo. Se o
ciúme fosse uma coisa simples e unitária, idêntico para ambos
os sexos, não seria possível Proust se entregar tão facilmente.

214 “Je n’aurais pas voulu savoir seulement avec quelle femme elle avait passé cette nuit-là, mais
quel plaisir particulier cela lui representait, ce qui se passait à ce moment-là en elle” – NT.
215 La Fugitive, Pléiade ed., p. 545-6.

233
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Em sua forma extrema, o ciúme leva ao assassinato. Mas


não o assassinato do rival como regra – e sim o da amada. O
rival é o mero instrumento substituível de um sacrilégio que
acontece dentro do corpo da amada. (Esses fatos são novamen-
te assinalados por Espinosa.)216 É para a amada que o amante
olha para confirmar sua existência, como o único representante
do objeto de desejo. Ao abolir a amada, ele abole a refutação
de si mesmo. Ele remove do mundo a prova secreta de sua ir-
realidade. Por isso, a vingança pelo ciúme (mesmo do ciúme
retrospectiva, como no Effi Briest de Theodor Fontane) muitas
vezes foi considerada uma questão de honra. Essa necessidade
está presente nas punições bárbaras por adultério em alguns
países mediterrânicos e islâmicos, e também, de forma sutil, na
desculpa legalmente sancionada de crime passionel. Não deve-
mos imaginar que essas punições, e essa desculpa (que aprova,
no final das contas, o empreendimento privado da punição), são
meramente arbitrárias. Pelo contrário, elas refletem a natureza
do ciúme sexual. É como se, no tormento da insegurança abso-
luta, o amante ciumento preferisse a certeza do luto aos terrores
flutuantes constantes de um amor ciumento. Assim a Hermione
de Racine convence Orestes a matar seu amado Pirro como a
única cura para um ciúme sufocante. E imediatamente cede à
tristeza, e a uma ira terrível contra o infeliz assassino, que não
tinha previsto que a indiferença de Hermione em relação a ele
nunca se transformaria em amor, mas em ódio.
Como vou apresentar no Capítulo 11, o poder do ciúme é
um dos fatos mais importantes a ter em conta na derivação da
moralidade sexual. Em um mundo onde as proibições sexuais
têm pouca força, não devemos nos surpreender que tantas pes-
soas se refugiem do ciúme evitando o amor. Pois onde existe
amor, a liberdade sexual paga o preço.

Dom-juanismo
Vou terminar este capítulo com um breve exame de três va-
riantes importantes na intencionalidade do desejo, todas fa-
miliares: dom-juanismo, tristanismo (como vou chamá-la) e
sadomasoquismo. É necessário fazer um levantamento desses

216 Ética, livro 3, proposição XXXV.

234
capítulo 6 - fenômenos sexuais

fenômenos, mesmo que só para mostrar que a análise feita da


intencionalidade sexual até então não é prescritiva, mas sim-
plesmente descritiva daquilo com que todos estamos familia-
rizados. Há fenômenos importantes – tais como as perversões
sexuais e a homossexualidade – que discutirei mais tarde, quan-
do tiver estabelecido um contexto mais amplo necessário para
abordá-las.
A divisão da paixão erótica na fidelidade que anseia pela
morte e no deleite inconstante de conquistas sucessivas é uma
prática literária comum. Stendhal identificou os dois polos como
Werther e Don Juan: Denis de Rougemont alterou esse pensa-
mento quando, sob a influência de Wagner, trocou Werther por
Tristão.217 Mas ambos os escritores estavam se referindo a va-
riedades de amor erótico. No que se segue, não descreverei o
amor, mas o desejo. Se existe uma divisão semelhante no amor,
deve ser descrito de forma independente.
O dom-juanismo é um fenômeno generalizado, cuja existên-
cia pode lançar dúvidas sobre muito do que eu disse a respeito
da intencionalidade individualizante do desejo. Ao descrever o
fenômeno, no entanto, devemos tomar cuidado com uma des-
crição muito simplista. O dom-juanismo não é satiromania –
não envolve a necessidade de constantemente saciar o “pilão
ardente” da luxúria. De acordo com Kierkegaard (seguindo
Mozart), o personagem de Don Juan é genuinamente erótico,
e não porque ele transfere suas atenções de indivíduo a indiví-
duo, mas, ao contrário, porque as concentra completamente no
indivíduo específico que está tentando seduzir.218 Seu persona-
gem está concentrado no ato de sedução, e é isso o que lhe dá o
encanto que desperta o desejo. O satiromaníaco, pelo contrário,
extingue o fogo que atiça, e não deseja tanto mulheres como
busca se masturbar em sua presença. (A satiromania envolve
uma falha grave da imaginação.) O dom-juanismo é, portanto,
o que mais consome tempo e o mais debilitante de todos os ví-
cios sexuais; ele requer a constante recriação da paixão, e com
ela as estratégias de sedução para um número ilimitado de obje-

217 Stendhal, De l’amour, livro II, cap. 59; Denis de Rougemont, Passion and Society, tr. M.
Belgion, ed. rev., Londres, 1956.
218 Søren Kierkegaard, “The Immediate Stages of the Erotic”, em Either/Or, tr. W. Lowrie,
Nova York, 1959, vol. I.

235
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

tos. O satiromaníaco, que se dirige a cada mulher concretamen-


te, mas apenas como um membro de sua espécie, é, portanto, o
oposto de Don Juan, que, embora deseje em certo sentido toda
feminilidade, somente a deseja como e quando concentrada na
forma e personalidade de cada mulher insubstituível.
Mas o que é essa força, então, pela qual Don Juan seduz? É o
desejo, a energia do desejo sensual. Ele deseja em cada mulher toda
a feminilidade, e é aí que reside o poder sensualmente idealizante
com que ele imediatamente embeleza e vence sua presa. A reação a
essa paixão gigantesca embeleza e desenvolve a mulher desejada, que
resplandece com uma beleza reforçada por reflexão. Como o fogo do
entusiasta, com um esplendor sedutor que ilumina mesmo aqueles
que estão em uma relação casual com ele, Don Juan transfigura em
um sentido muito mais profundo cada mulher, já que sua relação
com ela é essencial.219

Kierkegaard não entende o Don Juan como o repositório de


alguma irritação orgânica, mas como uma grande força espiri-
tual, uma energia sensual sem limites, uma criatura pródiga de
desejo. No entanto, cada mulher se dirige a ele como o objeto
presente de um impulso individualizante. Ele não é hipócrita
quando se dirige a Zerlina, por exemplo, com uma promessa de
casamento. No entanto, sua compreensão de casamento é um
produto excêntrico de seu atual frenesi. Seu desejo por Zerlina
é um movimento instintivo de simpatia, que o faz ver com os
olhos dela, e responder com a resposta dela, aceitando, por um
momento, o valor absoluto de um casamento que se consumará
e validará seu acesso ao desejo. É claro que, depois da sedução,
ele seguirá seu caminho. Mas, no momento, ele não sabe disso
– ele está embriagado, atencioso, totalmente focado nesta pes-
soa individual, cujo mundo se encontra aberto à sua frente. O
coração de Don Juan não é dividido ou enganoso, mas incons-
tante. Sua atenção está absolutamente envolvida, mas sempre
renovada por cada mulher com quem ele se depara, e seu obje-
tivo não é a excitação sexual ou o prazer físico, mas a conquista
– a invasão apaixonada de outro ponto de vista, obrigando-o a
submeter a sua encarnação à sua própria proeza corporal.
A vivacidade de Don Juan é uma parte do equipamento ne-
cessário do sedutor: sua imoralidade reside na sua capacidade

219 Ibid. p. 98-9.

236
capítulo 6 - fenômenos sexuais

de persuadir a vítima que a imoralidade não é nada mais do


que um pecadilho. (A mesma imoralidade é discernida por Se-
nancour na obscenidade.)220 Ao mesmo tempo, sua vivacidade
esconde uma profunda ansiedade, uma incapacidade para des-
cansar ou ser consolado, algo que é sugerido por Byron em uma
carta:
O meu tempo foi gasto violenta e agradavelmente; aos trinta e um,
tão poucos anos, meses, dias permanecem, que “carpe diem” não é
suficiente. Tenho sido obrigado a cortar até mesmo os segundos, pois
quem pode confiar no dia seguinte? Dia seguinte!? Hora seguinte,
minuto seguinte. Eu não posso me arrepender (apesar de tentar
freqüentemente) muito de nada que eu tenha feito, ou que eu tenha
deixado de fazer – Ai de mim! Estive ocioso, e com a perspectiva de
uma morte precoce, sem ter aproveitado cada instante disponível de
nossos agradáveis anos. Este é um pensamento amargo, e será difícil
me recuperar [do] desânimo a que esta idéia me lançou.221

O pensamento amargo contra o qual Don Juan irremediavel-


mente se rebela é o mesmo pensamento que contém a promessa
da consolação de Tristão: o pensamento da morte. Dom-juanis-
mo e tristanismo são respostas extremas a uma percepção de
que está na raiz da atração e do amor humanos: o pensamento
de nossa mortalidade. As medidas linhas de Herrick mostram
a verdadeira conexão entre a morte e o desejo. Elas também
mostram o erro pelo qual Don Juan e Tristão são igualmente
condenados:
Assim, enquanto o tempo passa, e nós apodrecemos,
Venha, Corinna minha, venha festejar; aproveitemos.

Tristanismo
O tristanismo é um dos mais intrigantes fenômenos sexu-
ais, e uma bela ilustração da catástrofe a que um ser racional
pode ser conduzido por sua racionalidade, e pelo conseqüente
compromisso a uma forma pessoal de união sexual. O amor de
Tristão por Isolda é implausível e obsessivo. Ele está preso pelas
garras de um feitiço que o liga a esta mulher e de que não pode

220 De l’amour, vol. II, p. 229-30.


221 Letters of Lord Byron, ed. Leslie Marchand, vol. 6, Londres, 1976.

237
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

se libertar. Ao mesmo tempo, parece não haver qualquer consu-


mação de seu desejo de morte – só isto lhe trará paz, pois (tal é
o entendimento) só isto fará com que Isolda seja sua. Claro, seu
amor por Isolda é um amor proibido e, portanto, não poderia
usufruir das formas normais de união. Mas Tristão ama Isolda
por essa mesma razão: é o caráter proibido de Isolda que faz
com que ele fique encantado. Mas este caráter proibido não é,
em si, mais do que um “objetivo correlativo”, por assim dizer,222
daquela noção de “pecado original” que, conforme mostrei, fre-
qüentemente jaz dormente no desejo. Tristão é, portanto, o tipo
de todos aqueles amantes para quem o reino do desejo sexual
é o reino do proibido. Embora seja necessário fornecer uma
expressão dramática disso no estado civil de Isolda, Tristão está
tão obrigado quanto Werther a uma situação que justifica o de-
sespero e futilidade que ele sentiria de qualquer forma. Outro
tipo de amor proibido foi descrito por Chikamatsu, nos Suicí-
dios de Amor em Sonezaki, e aqui também se pode ver que a
proibição amorosa não é senão um pretexto para o amor, e que
o obstáculo institucional à união não é mais que a representa-
ção dramática de um obstáculo que é parte integrante do dese-
jo. Tristão procura a morte, finalmente, pois seu desejo procura
a morte. E a morte é a realização do desejo, porque é o último
obstáculo à realização do desejo. Nas palavras de Freud, Tristão
está possuído por um élan mortel.
Tristão é a vítima de um projeto autodestrutivo, e busca sua
própria derrota. Como um projeto como este poderia ter sua
gênese no desejo sexual? Podemos entender facilmente como é
que o amante procura provar-se insubstituível aos olhos de sua
amada, e tenta subsumir seus pensamentos desejosos sob uma
idéia dominante de si mesmo como um centro transcendental
de atenção. Ao mesmo tempo, porém, ele experimenta seu pró-
prio desejo como uma esmagadora subordinação de si mesmo a
um imperativo corporal. E ele deseja o mesmo efeito em quem
ele ama. O significado erótico do ato sexual reside no seu aban-
dono. A ligação dos nossos órgãos sexuais com o domínio do
corpo dá uma pungência peculiar a esta experiência, em que
eu pareço ser superado pelo meu corpo, precisamente naquele

222 A expressão “objetivo correlativo” foi tirada de um ensaio de T. S. Elliot sobre Hamlet
(“Hamlet and his Problems”.), em The Sacred Wood, Londres, 1920.

238
capítulo 6 - fenômenos sexuais

momento que eu sou superado e invadido por você. É como se


você estivesse presente para mim no meu corpo, e me vencendo
justamente através do meu corpo.
Mas é claro que você não é o meu corpo, nem poderia ser.
O processo da minha superação tem todo o mistério e a ines-
crutabilidade do próprio corpo: é uma escuridão que brota de
dentro de mim e extingue a perspectiva que você se esforça para
entender. Eu desapareço, e você desaparece, no ponto de união.
Esta é a origem desse problema a que Francesca dá pungente
expressão no Inferno de Dante. E Francesca, como Tristão, está
envolvida em um amor proibido.
O exemplo de Francesca nos ajuda a discernir a verdadeira
fonte do projeto de Tristão. Seu desejo não é proibido por seu
caráter adúltero (que, como sugeri, é apenas o símbolo externo
de uma transgressão interna), mas porque comprometeu tudo
ao ato sexual. Ele se divorciou de todas as normas sociais, de
todas as formas de companheirismo que não esta, da união cor-
poral no “ato da escuridão”. O projeto do desejo ficou concen-
trado no ato sexual. Mas no ato sexual, o sujeito tristaniano
não encontra nada além do domínio do corpo, que o escraviza
exatamente quando ele seria mais livre. Ele começa a ansiar por
outra união mais completa, mais possessiva, com o objeto de
desejo. Ao mesmo tempo, porque o sujeito não olha para nada
além do ato sexual por sua idéia de uma união mais perfeita,
ele antecipa o cumprimento de seu desejo com outra supera-
ção, mas maior e irreversível, do eu pelo corpo. Por isso os seus
pensamentos tendem no sentido da morte. Na morte, o corpo
assume inteiramente e para sempre, seguindo um imperativo
material que não posso controlar. E ainda assim, eu que estou
morrendo.
Para entender esse pensamento, devemos refletir sobre como
uma pessoa é concebida após a morte. Ela permanece conosco
em pensamento; enterramos seu corpo, respeitamos tudo o que
pertence a ela, e honramos a sua memória. O triunfo do corpo
na morte parece, portanto, também uma espécie de vitória da
alma. O corpo é escondido e se deteriora, enquanto o eu perma-
nece inalterado como um objeto de sentimento interpessoal. O
amor é preservado no luto, e todas as outras atitudes interpes-
soais sobrevivem até, eventualmente, diminuírem com a lenta

239
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

subsidência da memória. Mas o eu persiste apenas como uma


idéia na mente do espectador. Após a morte, eu sou um objeto
intencional sem realidade material. E é esta existência imaterial,
está existência como uma mera “idéia”, que era minha antes do
nascimento, quando eu repousava, por assim dizer, escondido
no útero do tempo. Assim Tristão, afundando no torpor da sua
ferida, encontra consolo na escuridão que o oprime. Ele está
momentaneamente na condição de que veio, e para a qual deve
retornar:
Eu estava onde estive pela eternidade,
E pela eternidade estarei:
No vasto reino da noite universal.
Mas há um conhecimento que nos pertence:
Esquecimento divino, eterno, completo!223
[III.I]

A harmonia aqui está baseada em uma versão de tom menor


dos dois primeiros compassos da Liebestod: somente na impla-
cável cadência maior da Liebestod, quando este movimento em
direção à morte tornou-se mútuo, ele pode ser uma afirmação,
uma vez que só então faz a coisa que supera Tristão – sua morte
– também supera Isolda, e com o mesmo fim. Essa morte, que
os une espiritualmente, é o triunfo da alma sobre o corpo, ao
mesmo tempo em que é um triunfo do corpo sobre a alma, a
superação definitiva de tudo o que os amantes são individual-
mente. Assim, vemos que o objetivo sexual, uma vez separado
de todo projeto social de longo prazo, limitando-se, portanto,
ao ato sexual, deve ter lugar fora do fórum do eu, que agora
desaparece para sempre, trocando a realidade material da ação
por uma persistência ilusória enquanto memória.
De um único sentimento conturbado, surgem os dois con-
trastantes projetos de dom-juanismo e tristanismo. No primei-
ro, todo o esforço da imaginação é dedicado ao ato sexual, re-

223 Ich war, wo ich von je gewesen,


wohin auf je ich geh’:
im weiten Reich der Weltennacht.
Nu rein Wissen dort uns eigen:
göttlich ew’ges Urvergessen! – NT.

240
capítulo 6 - fenômenos sexuais

presentado como uma conquista. Eu me coloco no processo de


sedução, e o próprio ato sexual, quando alcançado, é o culmi-
nar desse processo, que a supera e, ao fazê-lo, remove o objetivo
do meu desejo. Eu não tenho mais uso para você. Qualquer
desejo posterior não será mais por você, mas por sua sucessora
e, se acontecer de você ser a sucessora (como num ponto Donna
Elvira, por um engano de identidade, torna-se sucessora de si
mesma), isso não é mais do que um acidente, como o refazer de
meus passos em um labirinto. Eu fujo da cena de conquista, evi-
tando a pergunta do que eu sou para você e você para mim no
ato sexual – pois essa pergunta, e sua resposta, pertencem ape-
nas ao processo de sedução que é o prelúdio para o meu retiro.
No tristanismo, o esforço da imaginação está similarmente
concentrado no ato sexual, mas é agora concebido como o úni-
co veículo de uma união espiritual na qual os participantes são
mutuamente superados. Eu procuro extinguir a luz que diferen-
cia nossas formas distintas, e que por isso nos divide. Apenas a
renúncia da existência corpórea pode cumprir um projeto que
não deseja nada mais do que a posse mútua no ato de amor. Só
então a sua individualidade deixa de me incomodar, quando
deixo de ser incomodado para sempre.
Tristão é um Don Juan mórbido – alguém que tenha perce-
beu a catástrofe de um desejo que não pode olhar ir além do ato
sexual. Ao invés de separar-se do objeto de desejo pela busca
constante de novidades, Tristão procura realizar no próprio ato
sexual o que não pode ser realizado sem renunciar aos requisi-
tos absolutos de desejo. Ele está obcecado com o conhecimento
de que seu desejo é pecaminoso (pois sua noção de que seu de-
sejo é proibido é uma premonição de sua natureza catastrófica),
e ainda assim não pode fazer nada para defender-se contra a
visão moral que corrói sua imaginação. Don Juan, que afas-
ta toda a moralidade – ou melhor, que adia seu encontro final
com a lei moral, até que ela finalmente o confronta na forma
inflexível de uma estátua224 – é capaz de cortar o seu desejo de
todo apego a longo prazo, e de transformar sua obsessão pelo
ato sexual em uma obsessão pela mulher. Para Tristão, há ape-

224 Cf. a caracterização freudiana desse episódio feita por Pierre-Jean Jouve, Le Don Juan
de Mozart, Paris, 1952.

241
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

nas uma mulher, e ela tem a característica da extinção total da


própria morte. Para Don Juan, existem infinitas mulheres, e em
cada uma delas, no entanto, ocorre a mesma ocasião de desejo.

Sadomasoquismo
Volto-me agora ao sadomasoquismo. A principal tarefa de
qualquer teoria do desejo deve ser explicar a presença no de-
sejo comum (ou seja, não pervertido) desses componentes que
foram descritos como “sadomasoquistas”. Devemos examinar
o sadomasoquismo como examinamos o dom-juanismo e o tris-
tanismo, com vista que mostre que partilha da intencionalidade
do desejo normal. Claro que, levados ao extremo, sadismo e
masoquismo podem destruir seu próprio conteúdo intencional,
e se tornarem pervertidos, à maneira da bestialidade. Mas o
comportamento que é pervertido somente quando levado ao
extremo não é, em si, pervertido. Quanto à forma pervertida de
sadomasoquismo, vou discutir isso com mais detalhes no Capí-
tulo 10.
Desde Krafft-Ebing, em sua célebre Psychopathia Sexualis, é
sugerido que o sadismo e o masoquismo estão intimamente re-
lacionados, tornando-se um lugar-comum adotar o termo “sa-
domasoquismo” para se referir a ambos os fenômenos. Houve
também uma tendência de procurar por algum instinto biológi-
co que os explicasse. Assim, Havelock Ellis, com sua erudição
característica, acumulou evidências dos rituais de “acasalamen-
to” de animais e do comportamento de corte dos povos primi-
tivos para sugerir que a origem do sadomasoquismo reside na
própria estrutura do impulso sexual.225 Para Ellis, o exemplo
paradigmático é a prática do “casamento por captura” – em
que uma mulher é perseguida por seus pretendentes e forçada a
ceder ao mais forte. Ele defende, com efeito, que tais “casamen-
tos” são parcialmente organizados pela “vítima” (como quando
a donzela quirguiz, armada com um chicote, foge a cavalo antes
de seus perseguidores). A garota, portanto, se submete apenas a
essa força que ela também deseja. A agressão do macho, e a sub-
missão da fêmea, aqui se combinam para cumprir um arquétipo
do encontro sexual: e a forma do arquétipo é o sadomasoquis-

225 Elis, Studies in the Psychology of Sex, vol. III.

242
capítulo 6 - fenômenos sexuais

mo. Ellis, Féré e outros fundadores da sexologia concordam na


idéia de que é a dor, e não a crueldade, que atua como o estímu-
lo ao sentimento sadomasoquista, e citam exemplos de animais
cuja atividade sexual permanece dormente até que seja estimu-
lada pela violência física.226 (Cornevin fala de um garanhão que
não ficava potente, mesmo quando diante de uma égua no cio,
a não ser que um chicote estalasse.)227 Tudo isso pode parecer
sugerir que estamos lidando com um tipo de proximidade sen-
sorial. E, de fato, a idéia apresentada por Ellis – que a dor é
em si um estimulante para a emoção sexual – depende de uma
análise do sentimento sexual como um impulso sensorial – uma
análise que não pode ser aceita, pelas muitas razões já expostas.
Na verdade, o próprio Ellis admite:
O masoquista deseja experimentar a dor, mas ele geralmente
deseja que seja infligida por amor; o sádico deseja infligir dor, mas,
em alguns casos, se não na maioria, ele deseja que ela seja sentida
como amor.228 [Por “amor”, aqui, leia “desejo”.]

Em outras palavras, o sadomasoquismo parece invadir e ex-


trair o seu carácter do âmbito das relações morais, e não do cam-
po da sensação física. Isto é surpreendentemente ilustrado pelos
estudos de casos coletados por Krafft-Ebing, em que todos envol-
vem um pensamento distintamente moral como o ponto focal do
desejo sádico ou masoquista: um pensamento de dominação ou
submissão.229 A própria iniciação de Sacher-Masoch talvez sirva
para ilustrar o que quero dizer. Um dia, quando criança, ele esta-
va brincando no quarto de uma condessa, uma parenta em cuja
casa estava. De repente, a condessa entrou com seu amante, e o
menino se escondeu em um armário, testemunhando os abraços
apaixonados do casal adulto. Dentro de instantes, o conde, se-
guido por dois amigos, entrou indignado no quarto, confrontou
o casal culpado e, avançando com raiva, hesitou quanto a quem
deveria agredir. Naquele momento, a condessa, com um golpe

226 Ibid., p. 137 et seq.; C. Féré, Revue de Medecine, 1900.


227 Charles Cornevin, Archives d’anthropologie criminelle, 1896, apud Elis, Studies in the
Psychology of Sex, vol. III, p. 137-8.
228 Ibid., p. 160.
229 Richard Freiherr von Krafft-Ebing, Psychopathia Sexualis, tr. (com o título The
Aberrations of Sexual Life) A. V. Burbury, Londres, 1951.

243
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

certeiro, fê-lo cambalear para trás, com sangue escorrendo de seu


rosto; tomando de um chicote, ela começou a expulsar todos os
três intrusos de seu quarto, criando uma oportunidade para a
fuga de seu amante. O conde voltou e, ao implorar de joelhos
pelo perdão de sua esposa, o menino se revelou. Ele foi arrastado
do armário e violentamente espancado pela Condessa, e expe-
rimentou um prazer que ele nunca mais conseguiu dissociar da
visão de seu poder majestoso, da sensação de seu casaco de pele,
e do cheiro de sua raiva. A partir desta experiência, derivaram
todas as paixões ardentes de A Vênus das Peles.
Nesse exemplo está encapsulada uma experiência familiar.
Uma pessoa se intromete no meu campo de relação com uma
súbita autoridade esmagadora, focando sobre si toda a força
da minha sexualidade. De repente, este é o objeto preferido; é
a ela que eu devo me render; ela é a única que merece minha
escravidão. E assim por diante. Certamente não é a dor ou a
crueldade, mas o que poderia, em outros contextos, ser visto
como crueldade, que é o fator operatório. E esta “crueldade”
não é outra coisa que não a punição – a mão viva de uma auto-
ridade cobiçada.
Ao mesmo tempo, há um desejo estranho de provocar e rece-
ber dor física, o que não pode ser explicado apenas em termos
morais. O masoquista não se limita a querer ser punido ou hu-
milhado; nem quer isso sempre. Para entender sua atitude em
relação à dor física, devemos olhar para a emoção do sádico.
Que faz o sádico ao infligir dor? (Uma pergunta sobre intencio-
nalidade.) Considere o torturador. Normalmente, supõe-se que
o torturador inflige dor porque gosta não apenas do espetáculo
do sofrimento do outro, mas também o fato de ser o responsá-
vel por isso. Sua atitude é essencialmente a de “eu estou fazen-
do isso a você”. Além disso, a vítima deve estar ciente da ação
do torturador. Não há alegria – ou pelo menos não a mesma
alegria – em torturar um animal, porque um animal não tem
noção do que está acontecendo com ele é um processo delibe-
rado causado por um ser responsável. O torturador quer que
sua vítima compreenda não só o que está acontecendo com ela,
mas a intenção com que é feito e o fato de que seu sofrimento é
desejado e apreciado pela pessoa que o inflige.

244
capítulo 6 - fenômenos sexuais

A tortura é, então, uma atitude interpessoal. O torturador vê


sua vítima como uma pessoa, deseja ser visto como tal, e procu-
ra aparecer na perspectiva de sua vítima de uma forma domina-
dora. A tortura é, portanto, particular aos seres racionais, e tem
uma profunda semelhança (não-intencional) com a brincadeira
de gato e rato. Não surpreende, portanto, que a tortura possa
assumir significado simbólico; ela pode ser usada como punição
e como moralidade gráfica.230
A pura tortura, no entanto, não é apenas uma punição. É
a tentativa deliberada de reduzir o outro através da dor, de
vencê-lo em seu corpo, de forçá-lo a renunciar a si mesmo por
amor ao seu corpo, e, assim, de persuadi-lo de sua encarnação.
Aqui está uma parte da descrição incomparável de Sartre do
fenômeno:
O espetáculo que é oferecido ao [torturador] é o de uma liberdade
que luta contra a expansão da carne, e que livremente escolhe ser
submersa na carne. No momento da abjuração, o resultado desejado
é atingido: o corpo é inteiramente carne, ofegante e obsceno; ele
mantém a posição que os torturadores deram a ele, não a que ele teria
assumido por si só; seus ligamentos o mantém como uma coisa inerte,
e, assim, ele deixou de ser o objeto que se move espontaneamente.
Na abjuração, a liberdade opta por ser inteiramente identificada
com este corpo; este corpo distorcido e decadente é a imagem mesma
de uma liberdade quebrada e escravizada.231

Temos que “o momento de prazer para o torturador é aquele


em que a vítima trai ou humilha a si mesma”.232 O desejo do
torturador é representar para si mesmo o espetáculo de uma
tragédia humana: mostrar a facilidade com que a perspectiva do
outro pode ser invadida e subjugada pela dor, humilhar o outro
obrigando o eu a se identificar com o que é não-eu, “decair” no
fluxo do sofrimento corporal. Cristo teve de ser crucificado, já
que era necessário superar seu espírito. Sua morte real teve de
ser precedida por outra morte, em que o espírito se rende à car-
ne e se identifica com sua humilhação, sob o olhar zombeteiro
daqueles que assistem suas contorções. Cristo ter gritado: “Meu

230 Ver M. Foucault, Surveiller et punir, Paris, 1975.


231 Sartre, Being and Nothingness, p. 404.
232 Ibid., p. 403.

245
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Deus, meu Deus, por que me desamparaste?” não desacredita


mais Sua divindade do que a Sua morte. Para ser totalmente
humano, totalmente encarnado, o espírito teve que se sujeitar a
tal “superação” final.
Na citação de Sartre, a palavra “torturador” não existe no
original; o termo usado é “sádico”. Para Sartre, o sadismo se-
xual é contínuo à tortura da cela prisional. Eu duvido que isso
seja necessariamente assim. No entanto, há uma espécie de sa-
dismo que é semelhante à tortura, em que o sujeito deseja apa-
recer como responsável pela dor nos olhos de uma vítima in-
defesa. Existiria algo no desejo sexual que criasse tal ambição?
Ao discutir os sorrisos e rubores, salientei que o papel destas
transformações como um foco de desejo deriva de sua capaci-
dade de transmitir a natureza corpórea de uma perspectiva au-
toconsciente. Nessas reações, o sujeito é totalmente ele mesmo
e também, no mesmo instante, idêntico ao seu corpo. Elas são,
portanto, os símbolos do “outro que foi convocado”. A dor é
semelhante em um aspecto: seus sintomas são involuntários, e
parecem “mostrar a verdade” sobre o outro que os sofre. Emily
Dickinson escreve:
Eu gosto de um olhar de agonia
Porque eu sei que é verdadeiro;
Os homens não fingem convulsão,
Nem simulam emoção.233

Obter a resposta da dor, e ao mesmo tempo aparecer dentro


da perspectiva do outro como o agente de seu sofrimento – isto
pode parecer um substituto para a troca de sorrisos de amantes.
Este pode ser o melhor que eu posso fazer, convencendo sua
perspectiva a mostrar-se na superfície do seu corpo, e lá tomar
conhecimento de mim. No ato de infligir dor, portanto, o sá-
dico também pode ansiar por aquele mesmo reconhecimento
corporal de sua própria encarnação que está no cerne do desejo
sexual. Ele “supera” o outro através da dor, e extorque o reco-
nhecimento que ele não pode obter por um sorriso. (Deve-se

233 I like a look of agony


Because I know it’s true;
Men do not sham convulsion,
Nor simulate a throe.

246
capítulo 6 - fenômenos sexuais

mencionar aqui que os sinais visíveis de agonia são difíceis de


distinguir dos de êxtase – um fato explorado por Bernini em sua
escultura de Santa Teresa. Ao criar estes sinais, o sádico lison-
jeia a si mesmo com um simulacro perfeito do Untergang sexual
de seu parceiro.)
Se o sadismo fosse só isso, dificilmente poderíamos escapar à
conclusão de que o sadismo é profundamente perverso: pois ele
parece indiferente ao prazer e à responsabilidade do outro, mal
reconhecendo sua existência como algo além de um “sofredor
de dor”. Mas é preciso distinguir o torturador do sádico. O
segundo aproveita os motivos do primeiro, mas só porque eles
se encaixam em uma estratégia de relação sexual. O verdadeiro
sádico não quer a dor do outro simpliciter. Ele quer que o outro
queira a dor infligida, e seja excitado por ela. Em outras pala-
vras, ele vê a dor como um intermediário no processo de exci-
tação mútua, e não como uma gratificação em si. Seu impulso
é uma versão estendida da mordida de amor, em que uma parte
causa à outra uma ferida que é tanto um sinal de afeição quanto
um convite ao desejo.
O masoquista, de maneira semelhante, deseja que a dor seja
vista como um elemento sexual, cujo fim é a excitação mútua.
O masoquista, por sua vez (supondo que ele tenha essa sorte),
deseja a dor, mas só porque este é um sinal de interesse do outro
nele, e porque, respondendo a esse interesse, ele se vê rumando
em direção ao desejo. (Cf. Antônio e Cleópatra: “como o belisco
de um amante, que dói, mas é desejado”.) A dor deve ser enten-
dida como um intermediário no processo de excitação. E ela
cumpre esse papel não só por causa de sua relação crucial com
o corpo, mas também porque é um veículo de idéias morais:
as idéias de dominação e submissão. Essas idéias formam uma
parte fundamental da compreensão comum do desempenho se-
xual. Por isso, o sádico e o masoquista, deixados aos cuidados
um do outro, por assim dizer, alcançam a excitação, não apesar
da dor, mas por causa dela.
Essa breve descrição do impulso sadomasoquista mostra que
é um caso especial do desejo sexual. Mas não explica por que
desejo escolheria tal canal. Várias explicações podem ser dadas
em função da necessidade biológica subjacente: essas explica-
ções estão sempre presente em Féré, Krafft-Ebing e Havelock

247
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Ellis. Mas fornecer uma explicação intencional – uma explica-


ção em função dos pensamentos dos participantes – é muito
mais difícil. O ponto de partida para qualquer explicação desse
fenômeno deve, creio eu, mencionar a idéia de inibição. A dor
permite ao casal sadomasoquista atravessar a barreira da inibi-
ção. Ela permite que eles façam o que de outra forma seria mui-
to embaraçoso: superar o outro, no ato do contato físico. A dor
torna-se o primeiro passo naquilo que é, eventualmente, uma
atividade de cooperação bastante normal, que, uma vez inicia-
da, começa a fluir nos canais familiares da satisfação sexual.
Assim, a propensão para a imposição e sofrimento da dor
física no ato de amor é raramente considerada perversa, en-
quanto a tendência para infligir e sofrer humilhação sexual é
quase universalmente condenada. O desejo de Von Sacher-Ma-
soch de ser espezinhado por senhoras vestindo peles não des-
perta mais do que uma leve curiosidade; diferente disso, sua
tentativa ardente (e eventualmente bem-sucedida) de convencer
sua esposa que ela deve, contra sua vontade, traí-lo com um
estranho (ocasião em que ele se dedicou com atenção especial
ao toalete dela, antecipando as deliciosas dores do ciúme que
se seguiriam a este ato proxenético) evoca os sentimentos mais
vívidos de desgosto. A busca da dor física no congresso sexual
em si não é uma perversão do desejo. Freqüentemente, não é
mais do que uma tentativa de construir a intencionalidade do
desejo em circunstâncias dificultadas pela inibição – pela bar-
reira que impede uma pessoa de ser “superada” por seu corpo
e, portanto, pelo outro que causa isto. Quando Sade descreve
o desejo pela dissolução do outro como o principal impulso
sexual, ele pode estar pensando em termos exagerados do pri-
meiro movimento do sadismo: a noção de que, já que não posso
confiar no seu sorriso, vou confiar no seu gemido. No entanto,
existe, na obsessão particular de Sade pela dissolução, algo mais
do que isso. Ele quer que o corpo do outro se dissolva em dor e
mutilação – e muitas das cenas horríveis descritas no Justine e
em outros lugares são cenas de simples assassinato.234 O motivo
aqui não é o desejo frustrado de manter o outro em, e através
de, seu corpo, mas a percepção obscena do corpo como carne

234 De Sade, La Nouvelle Justine, cap. I, é suficiente para demonstrar o ponto.

248
capítulo 6 - fenômenos sexuais

corrompida. A abolição do outro, ao invés de seu envolvimento


em um projeto cooperativo de desejo – esta é a intenção real
que supura nas páginas terríveis de Sade (cuja reputação literá-
ria é o resultado de nada mais do que a sua qualidade “proibi-
da”). O sadismo de Sade permanece bloqueado no momento da
dissolução, buscando sempre melhorá-la, embelezá-la com mais
novidades, para chegar lá, na aniquilação da vontade e prazer
do outro, a glória da liberação sexual. Por trás deste projeto
pervertido existe também um remanescente de tristanismo – no
sentido de que a união final requer a dissolução definitiva na
morte. Mas ele difere do tristanismo em sua postura obscena e
solitária: o outro é reduzido ao seu corpo, tornando-se o mero
instrumento do meu prazer; apesar de sua morte ser necessária,
eu sobrevivo a ele, vangloriando-me na liberação que a minha
violência me permitiu. Há uma completa indiferença em relação
ao outro, ou, se não indiferença, então terror de sua existência,
de sua capacidade de confrontar-me com suas exigências e com
a realidade moral de sua encarnação. Logo, eu devo aboli-lo.
O sadismo de Sade, portanto, é o sadismo mais deturpado, e
tem pouco ou nada em comum com os estratagemas sadomaso-
quistas anteriormente descritos. Apesar das tentativas de pensa-
dores como Bataille235 para encontrar a experiência nuclear da
sexualidade com este foco na dissolução (que Bataille descobre
justamente na vergonha e obscenidade), parece-me óbvio que a
sexualidade de Sade é totalmente desviada. Ela não tem nada
a nos dizer sobre os elementos do sadomasoquismo normal, e
muito menos sobre os elementos do desejo.
Neste capítulo, abordei alguns dos fenômenos e variantes do
desejo. Meu objetivo foi mostrar que a análise até agora feita
da intencionalidade do desejo mostra a unidade e a variedade
destes fenômenos, e os associa a uma condição humana comum.
Não há necessidade de olhar abaixo da superfície da consciên-
cia humana para entender a vergonha sexual, modéstia sexual,
obscenidade e ciúme, ou para entender como o desejo sexual
pode criar projetos tão peculiares como os do dom-juanismo,
tristanismo e sadomasoquismo. Tudo isso pode ser facilmente
explicado em função da estrutura consciente do desejo, como

235 Georges Bataille, L’Érotisme, Paris, 1957.

249
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

uma emoção interpessoal. Ao mesmo tempo, não podemos du-


vidar que o desejo está enraizado em instintos que compartilha-
mos com os animais, e agora temos de enfrentar o preconceito
moderno predominante, de que é através de uma teoria do ins-
tinto sexual que vamos entender todos os fenômenos a que me
referi. Também devemos considerar a teoria freudiana, que vê o
desejo adulto em função da sexualidade da criança. Ambas as
teorias têm pretensões científicas, e ambas apresentam um de-
safio feroz a tudo o que eu disse. Pois ambas tentam identificar
o fenômeno radical do desejo sexual fora do que é “dado” ao
sujeito, e ambas mostram-se corrosivas à idéia – que eu acredito
ser fundamental para a moralidade sexual – de que o desejo não
existe fora da experiência das pessoas.

250
CAPÍTULO 7
A CIÊNCIA DO SEXO

O tema deste capítulo é o sexo, concebido como um problema


científico. Até agora, a minha discussão manteve-se (cientifica-
mente falando) muito na superfície. Eu tentei descrever os fenô-
menos, mas não dei nenhuma explicação para eles. Poder-se-ia
pensar que pouco do que eu disse tem algum valor duradouro,
uma vez que não só precisa ser completado por um repertório
adequado de fatos científicos, mas também deve permanecer
vulnerável à redescrição – e, portanto, refutação – nas mãos de
qualquer ciência sexual desenvolvida. No Capítulo 1, dei razões
para ser cético diante de tal objeção. Mas agora devo lidar com
ela de forma mais completa. Examinarei duas abordagens que,
quer sucedam em ser científicas, quer não, pelo menos preten-
dem ser; quaisquer que sejam seus méritos, servem para nos
lembrar das tendências que uma ciência do sexo deve mostrar.
Discutirei a Sociobiologia e a psicologia freudiana, cada uma
das quais goza do privilégio de ter revolucionado o nosso pen-
samento sobre o comportamento sexual, e – justificadamente
ou não – de ter provocado uma revisão mais impactante em
nossas atitudes morais do que qualquer convulsão social ou
cruzada religiosa conseguiu acompanhar.

A biologia do sexo
Os homens são animais, e nenhuma de suas funções está
mais profundamente enraizada em sua natureza animal do que
a da reprodução sexual. É precisamente na experiência diária de
conduta sexual que a idéia de nossa “animalidade” aparece com
proeminência em nossos pensamentos. Nós podemos condenar
este ou aquele ato como “bestiais”, mas ao fazê-lo, geralmente

251
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

estamos cientes de sua semelhança esmagadora (pelo menos


quando julgados a partir de certo ponto de vista) com outros
atos que formam a modalidade comum de expressão sexual. E
quem poderia negar que, julgando do ponto de vista evolutivo,
o motor de base de todo esse elaborado ritual é a reprodução,
de um tipo que ocorre em todo o reino animal, e de acordo com
um ritmo que é comum a quase todas as criaturas que se envol-
vem nisto? É salutar refletir sobre as palavras de Montaigne:
Por um lado, a natureza nos conduz para isso, já que ela ligou
àquele desejo o mais nobre, útil e agradável de todos os seus atos;
mas por outro, ela nos permite fugir disso e difamá-lo como insolente
e de má reputação, a corar por ele e elogiar sua abstinência. Somos
ou não brutos por chamar o ato que nos torna brutais?236

Refletindo sobre essas observações, somos naturalmente ten-


tados a concluir que a nossa sexualidade (quando explorada no
nível “profundo” da ciência biológica) realmente “não é nada
além de” um fenômeno animal, obediente às leis exemplificadas
por cães, gatos e cavalos, modificada apenas pelo status evo-
lutivo particular da espécie humana. Dirão que o que descrevi
não é a realidade da conduta humana, mas apenas, por assim
dizer, uma auréola de pensamento e de ilusão que a cerca, e que
serve talvez para esconder dos ingênuos os fatos desconcertan-
tes da “verdadeira natureza humana”. E pensar que as minhas
descrições representam a natureza do desejo sexual é confundir
aparência com realidade, e ilusão prática com verdade teórica.
É impossível negar que há analogias estreitas entre o com-
portamento de animais e de humanos. Todos os movimentos da
sexualidade humana, desde cortejo e rivalidade, passando pela
modéstia, ciúme e união sexual, até a fidelidade conjugal e a dor,
têm seus análogos no reino animal, e a tentação de descrever o
comportamento animal antropomorficamente muitas vezes leva
à enorme sensação de identidade entre o nosso mundo e o mun-
do das espécies “inferiores”. Considere a seguinte descrição do
cortejo de aranhas (G. W. de Peckham):
Em 24 de maio, encontramos uma fêmea madura, e a colocamos
em uma das caixas maiores; no dia seguinte, colocamos um macho
com ela. Ele a viu enquanto ela estava perfeitamente imóvel, a doze

236 Montaigne, “Upon Some Verses of Virgil”, em Essays, tr. J. Florio, vol. 3, p. 192.

252
capítulo 7 - a ciência do sexo

polegadas de distância; o olhar parecia excitá-lo, e ele imediatamente


moveu-se na direção dela; quando distava cerca de quatro polegadas
dela, estacou, e então começou o mais notável espetáculo que
um macho amoroso poderia oferecer a uma fêmea admirada. Ela
olhou-o ansiosamente, mudando de posição de tempos em tempos
para que ele estivesse sempre a vista. Ele, levantando todo o seu
corpo de um lado endireitando as pernas, e baixando-o do outro,
dobrando os dois primeiros pares de pernas para cima e abaixo,
inclinou-se até quase perder o equilíbrio, que só pode manter
deslizando rapidamente para o lado rebaixado. O palpo, também,
deste lado foi girado para trás para corresponder à direção das
pernas mais próximas. Ele se moveu em um semicírculo por cerca
de duas polegadas e, em seguida, inverteu instantaneamente a
posição das pernas e circulou na direção oposta, gradualmente se
aproximando cada vez mais da fêmea. Ela, agora, corre em direção a
ele, enquanto ele, levantando seu primeiro par de pernas, estende-as
para cima e para frente como se tentasse segurá-la, mas, além disto,
recua lentamente. Uma e outra vez ele circula de um lado para o
outro, com ela olhando para ele com uma disposição mais suave,
evidentemente admirando a graça de suas travessuras. Isto é repetido
até que tenhamos contado cento e onze círculos feitos pelo pequeno
macho ardoroso. Agora ele se aproxima cada vez mais, e quando
está quase ao alcance gira loucamente ao redor dela, e ela se junta
e girar com ele em um labirinto vertiginoso. Mais uma vez, ele cai
para trás e retoma seus movimentos semicirculares, com o corpo
inclinado para cima; ela, cheia de emoção, abaixa a cabeça e levanta
seu corpo quase verticalmente; ambos se aproximam; ela se move
lentamente sob ele, ele rasteja sobre sua cabeça, e o acasalamento é
realizado.237

A descrição é encantadora. Também é, no sentido de Weber,


“encantada”: é uma descrição do mundo como parece para
aquele que ainda vê todo movimento em função das suas pró-
prias e internas apreensões do espírito humano. Mas por que
isso seria menos correto? E se precisamos – em prol da ciência
– submetê-la a um Entzauberung frio e cruel, por que não fa-
zer o mesmo com o comportamento humano? Na medida em
que é correto falar em “olhares”, “emoção”, “olhares meigos”,
“admiração”, “ardor”, “amorosidade”, e assim por diante, ao
descrever o cortejo de seres humanos, também, pode-se dizer, é

237 G. W. Peckham, apud Havelock Ellis, Studies in the Psychology of Sex, 3ª ed., Filadélfia,
1923, vol. III, p. 35.

253
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

correto usar esses termos para descrever o cortejo de aranhas.


Por outro lado, se não devemos usá-los para aranhas, também
não devemos (ao descrever outras variedades dos mesmos fatos
sociobiológicos) usá-los para humanos.
Mais tarde terei motivos para comparar a descrição “antro-
pomórfica” acima com o que poderíamos chamar de descrições
“simiomórficas”, ou mesmo “entomórficas”, do comportamen-
to humano oferecidas por sociobiólogos como E. O. Wilson e
Desmond Morris. E veremos, espero, a partir dessa compara-
ção, o elemento de falsidade de cada uma. Mas primeiro deve-
mos nos lembrar de que ponto minhas conclusões serão defen-
didas. A superfície das coisas humanas não é menos real por ser
superfície: o Lebenswelt é o mundo em que estamos situados,
e a forma com que nós o percebemos determina a natureza,
direção e razoabilidade de todos os nossos projetos. Mostrar
que esta ou aquela característica do Lebenswelt não sobrevive
à tradução no idioma de alguma ciência ainda não prova a sua
irrealidade – não mais, pelo menos, do que nós provamos a irre-
alidade das cores mostrando que elas podem ser explicadas em
função de uma teoria física que não se refere a elas.238 A direção
para a qual eu tenho me dirigido é a seguinte: o desejo sexual
e seus fenômenos concomitantes, apesar de estarem em impor-
tantemente enraizados em nossa condição biológica enquanto
seres que se reproduzem sexualmente, não são redutíveis a ne-
nhum aspecto da conduta humana que seja compartilhado com
os animais “inferiores”. O desejo, tal como o descrevi, é uma
espécie de artefato social, um padrão de resposta que é alcança-
do de forma cooperativa e, no caso normal, cooperativamente
apreciado. Poderia haver seres humanos sem essa resposta. Mas
se eles também seriam seres sociais pode ser posto em dúvida.
Na verdade, como vou mostrar, uma raça de seres sem desejo
sexual não teria uma vasta gama de respostas interpessoais. Eles
realmente seriam animais, pois não teriam o recurso (persona-
lidade) que faz com que nós descrevamos a nós mesmos como
mais do que simples animais. O esforço coletivo que transforma
os seres humanos em pessoas (que, por assim dizer, pinta esse
rosto no espaço em branco da natureza) também gera as condi-

238 Ver o Apêndice 2.

254
capítulo 7 - a ciência do sexo

ções para o desejo sexual. Eles fazem parte do mesmo processo,


sob dois aspectos distintos. A construção social do desejo, que
existe no nível da interação pessoal, deve ser descrita em pri-
meiríssimo lugar como o objeto de um entendimento intencio-
nal familiar e recorrente. A busca por profundos determinantes
biológicos daquilo que nós descrevemos pode nos afastar da
realidade fenomenal a ponto de perdermos o que ele se propu-
nha a explicar.
Essa declaração não vai silenciar o ativista científico, para
quem o primeiro passo significativo em qualquer investigação
científica é a redescrição dos fenômenos em termos que perten-
cem, ou se prestam, à teoria.239 Ele será rápido em apontar a in-
suficiência teórica de nossas descrições intencionais: na verdade,
chegamos perto de admitir algo metafisicamente duvidoso no
conceito que, em última análise, os inspira; o conceito do eu.
E ele vai defender que devemos, em qualquer caso, enfrentar a
“verdade real” da condição humana, sem as ilusões distrativas
do entendimento pessoal corriqueiro. Ele é o equivalente mar-
xista (na política) em relação à compreensão social como um
todo, que desnuda o véu da “ideologia” e revela (ou pelo menos
pensa que revela) a essência oculta da sociedade, que é a sua
base “material”. Ele vai declarar que o ônus é sempre do outro
lado, para mostrar que a superfície da conduta humana, como
revelada pela compreensão interpessoal, é algo mais do que uma
ilusão coletiva, algo mais do que uma mistificação dos fatos que
devem ser entendidos a partir de um ponto de vista fora deles.

Sociobiologia
A mais radical de todas as tentativas de ciência da conduta
sexual é a Sociobiologia, que, embora reconheça a existência de
fenômenos distintamente sociais, procura explicá-los em termos
evolutivos, mostrando sua relação funcional com a sobrevivên-
cia da espécie. Considere o ritual de acasalamento das aranhas,

239 Este é simplesmente um aspecto do que é por vezes conhecido como a teoria de “Quine-
Duhen”, que diz que observação e teoria são interdependentes; o que você observa só
é genuinamente observado quando a teoria garante essa observação. (Ver P. M. M.
Duhem, The Aim and Structure of Physical Theory, tr. P. P. Wiener, Princeton, 1954, e W.
V. Quine, Word and Object, Cambridge, Mass., 1975, p. 320.

255
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

descrito acima. Como poderíamos explicar tal fenômeno? Exis-


tem duas respostas para a pergunta. A primeira – a mecânica –
descreve como esse estímulo específico (a visão da fêmea) opera
para produzir esta resposta específica. A segunda – a etológica
– explica como as aranhas adquiriram e mantiveram um meca-
nismo desse tipo. As duas explicações são logicamente indepen-
dentes, apesar de que há esperança de serem complementares.
A primeira não é iminente: a ciência neurológica simplesmente
não avançou tanto. A segunda, no entanto, é mais fácil de prover
– ou, pelo menos, é mais fácil de começar. A teoria da evolução
darwiniana nos permite arriscar uma explicação geral de todos
esses fenômenos nos termos de sua funcionalidade. Nós explica-
mos a dança de acasalamento mostrando a função que ele exe-
cuta, no sentido de garantir a sobrevivência dos genes da aranha.
A teoria geral da seleção sexual emerge desse empreendimento.
A aranha capaz de dançar como a de Peckham é claramente
apta e ativa fisicamente; seus genes, preservados em sua prole,
contribuirão para a saúde e atividade de sua raça. Uma fêmea
que evita o fracote, portanto, melhora a dotação genética de seus
filhos. Tal idéia explica os combates entre machos que ocorrem
no momento do acasalamento, juntamente com uma série de
outros fatos bastante complexos. Nas palavras de E. O. Wilson:
A pura exibição epigâmica pode ser vista como uma disputa
entre a arte de vender e a resistência a ela. O sexo que corteja –
normalmente o macho – planeja investir menos esforço reprodutivo
na prole. O que ele oferece para a fêmea é majoritariamente a
evidência de que é totalmente normal e fisiologicamente apto. Mas
esta garantia consiste apenas em uma breve performance, de modo
que existem fortes pressões seletivas para que os indivíduos menos
aptos apresentem uma imagem falsa. O sexo cortejado – geralmente
a fêmea – vai, portanto, considerar fortemente vantajoso distinguir
entre o verdadeiro e o falso apto. Conseqüentemente, haverá uma
forte tendência para o sexo cortejado desenvolver timidez. Ou
seja, suas respostas serão hesitantes e cautelosas de uma forma que
exige ainda mais demonstrações, fazendo com que seja mais fácil
discriminá-los corretamente.240

240 Edward O. Wilson, Sociobiology, the New Synthesis, Cambridge, Mass., 1975, p. 320.
Um sumário legível das teorias sociobiológicas do sexo e da reprodução pode ser
encontrado em D. P. Barash, Sociobiology and Behaviour, 2ª ed., Londres, 1982, caps. 10
e 11.

256
capítulo 7 - a ciência do sexo

Dificilmente um exemplo tranquilizador para os cientistas


que desejam libertar suas descrições da linguagem antropo-
mórfica. E a fraqueza da explicação está mal disfarçada no uso
repetido da palavra “forte”. No entanto, o princípio é razoa-
velmente claro. Não só podemos explicar o ato sexual; tam-
bém podemos explicar fenômenos tão extraordinários como o
cortejo, a modéstia, o ciúme e a monogamia nos termos de sua
relação funcional com a necessidade impessoal do gene de se
perpetuar. O ciúme, por exemplo, garante que um animal esteja
menos propenso a dedicar sua vida pela perpetuação dos genes
do outro. E assim por diante. Um pequeno salto de imaginação
(ou melhor, o salto de uma pequena imaginação) nos leva para
o mundo humano. Quando o orgulho da juventude grega inu-
tilmente derrama seu sangue diante das muralhas de Tróia por
causa de uma mulher, não é o “mesmo” fenômeno do choque
de galhadas na disputa de uma fêmea? Se rejeitar a analogia en-
volve negar a aplicação da teoria darwiniana da evolução para
a sociedade, o filósofo pode estar relutante em cruzar espadas
com o sociobiólogo.
A Sociobiologia, no entanto, não esteve imune a críticas.
Por exemplo, há aqueles que se opõem à sua falta de rigor, e
em particular a sua incapacidade de dirigir-se à questão funda-
mental da Etnobiologia – a questão da determinação genética.
Até entendermos o mecanismo da evolução, dizem, devemos
ser cautelosos ao estender a teoria darwiniana a fatos cada vez
mais complexos. Sem uma resposta clara à pergunta “como?”,
essa extensão só nos compromete com explicações funcionais
cujo conteúdo talvez permaneça totalmente indeterminado. É
bastante evidente – sendo a generalidade da teoria darwiniana
verdadeira – que o comportamento disfuncional tenderá a desa-
parecer. Mas, dada como uma explicação da infinita variedade
de comportamentos que sobram, isso é trivial. Precisamos saber
que fatores adicionais encaminham o desenvolvimento nessa
direção ao invés daquela. No caso do comportamento social,
é uma grande e, até agora, indevida assunção que esses fatores
adicionais sejam genéticos.241

241 A incompletude inerente à explicação darwinista tem consequências importantes para


a filosofia de evolução: em particular, não está claro o que precisa ser adicionado à
análise darwiniana para fazer previsões não-triviais sobre a evolução das espécies. A

257
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Há também aqueles que criticam a Sociobiologia (e os antro-


pólogos sociais estão entre os mais veementes) por sua impetu-
osa descrição da sociedade humana, e por sua falta de sensibili-
dade em relação às diferenças entre a vida “social” dos animais
e a vida social do homem.242 Em particular, a conduta social hu-
mana não pode ser sensatamente comparada ao comportamen-
to de abelhas na colméia ou formigas no formigueiro porque ela
é mediada por, e responde a, uma concepção de si mesma.
Tais críticas, às quais retornarei em breve, não condenam o
empreendimento da Sociobiologia, mas a maneira impetuosa
com que saltou para suas conclusões. Afinal, nós somos seres
biologicamente determinados, cujos estados surgem dos pro-
cessos orgânicos que foram iniciados em nós na concepção e
que continuam a governar o que somos e fazemos. A atividade
mental é a atividade do cérebro, e o cérebro é tão obediente às
leis biológicas como todas as outras partes do corpo humano.
Como, então, podemos supor que a nossa mentalidade distin-
tamente humana nos isenta das leis que governam o resto da
natureza? A teoria da evolução e a ciência da genética podem
ainda estar em seus estágios infantis. Mas seu sucesso não pode
ser negado. Suponha que nós tenhamos que explicar uma carac-
terística complexa da sociedade humana – a monogamia, por
exemplo. Certamente, o primeiro passo será identificar sua fun-
ção etnológica. Feito isso, estamos pelo menos uma etapa mais
perto de fornecer a explicação mais satisfatória da sua existên-
cia (que será uma teoria da sua gênese). Aqui, novamente, está

maneira mais fácil de completar a explicação darwiniana é adicionar uma teoria do


desenvolvimento genético, e assumir que todos os recursos que contribuem para a
sobrevivência da espécie são eles próprios geneticamente determinados. Isto pode
ser expresso contenciosamente dizendo que o que importa não é a sobrevivência
da espécie, mas a sobrevivência do gene. O sociobiólogo normalmente toma esta
posição, e argumenta que o comportamento social, já que se adapta para assegurar a
sobrevivência da espécie, deve, portanto, ser determinado geneticamente. A conclusão é
totalmente injustificada por si só, e geralmente é sustentada por uma analogia de lógica
circular entre a sociedade humana e as “sociedades” de insetos, que não exibe nada
da adaptabilidade do comportamento humano. (Veja, por exemplo, E. O. Wilson, The
Insect Societies, Cambridge, Mass., 1971.) No mundo dos insetos, tudo é geneticamente
programado. E um cientista honesto falaria de pronto: e veja como é diferente do nosso
mundo!
242 Essa objeção foi feita, por exemplo, por Sir Edmund Leach em Social Anthropology,
Londres, 1982.

258
capítulo 7 - a ciência do sexo

o esboço especial de E. O. Wilson de como a parte funcional da


explicação pode proceder:
Os seres humanos, como grandes primatas típicos, se reproduzem
lentamente. As mães carregam os fetos por nove meses e depois são
sobrecarregadas com bebês e crianças pequenas que necessitam
de leite em intervalos freqüentes ao longo do dia. É vantajoso
que cada mulher do bando caçador-coletor garanta a lealdade de
homens que irão contribuir com carne e peles e compartilhar o
trabalho de criação dos filhos. É reciprocamente vantajoso que cada
homem obtenha direitos sexuais sobre as mulheres e monopolize
sua produtividade econômica. Se as evidências da vida da caça e
coleta foram corretamente interpretadas, o intercâmbio resultou na
quase universalidade da ligação em pares e a prevalência de famílias
extensas, com os homens e suas esposas formando o núcleo. Pode-se
razoavelmente postular que o amor sexual e a satisfação emocional
da vida familiar se fundamentam em mecanismos habilitadores na
fisiologia do cérebro que foram programados, em certa medida,
através do fortalecimento genético deste compromisso. E porque
os homens podem se reproduzir em intervalos mais curtos do que
as mulheres, a ligação em pares tem sido atenuada um pouco pela
prática comum da poligamia – a tomada de várias esposas.243

Embora possamos deplorar a imensa simplificação nessa des-


crição dos fatos (uma simplificação necessária, no entanto, para
o objetivo polêmico do autor), seria tão impetuoso argumentar
que tais explicações não podem ser verdade quanto assumir,
com o autor, que elas devem ser. Pois o comportamento sexual,
de que a sobrevivência da espécie depende, não pode ser deixa-
do aos caprichos da escolha individual. Qual o problema dessa
explicação ser verdadeira?
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que a própria ge-
neralidade da explicação a torna insensível às diferenças reais
entre os fenômenos explicados. Não se pode duvidar de que
o nosso comportamento é – em linhas gerais – geneticamente
determinado. Também não se pode duvidar de que o compor-
tamento geneticamente determinado sobrevive apenas quando
não é disfuncional. Se esses fatos fossem suficientes para resol-
ver os problemas filosóficos colocados pela natureza humana,
então esses problemas seriam resolvidos rapidamente. Mas

243 E. O. Wilson, On Human Nature, Cambridge, Mass., 1978, p. 139-40.

259
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

tudo o que podemos concluir é que o que quer que exista, existe
porque não é disfuncional: porém, o que faz com que isso seja
verdade, que este tipo de comportamento exista, aqui e agora?
A teoria não tem resposta.
Além disso, a teoria não consegue tocar no que é mais intri-
gante no comportamento humano. No mundo da natureza não
-humana, eventos e processos raramente apresentam problemas
para a nossa compreensão que não sejam resolvidos pela ex-
plicação científica – uma explicação em termos de causas. Mas
o mundo humano é rico em fenômenos que não podem ser in-
teiramente compreendidos apenas ao explicá-los, porque eles
próprios são formas de entendimento. Considere a matemática
– uma prática social que sem dúvida tem sua explicação genéti-
ca. O entendimento matemático não poderia ser gerado através
da Sociobiologia da matemática. Certas práticas matemáticas
(por exemplo, a de derivar cinco da soma de dois e dois) são
de fato geneticamente disfuncionais, e devem, portanto, desa-
parecer na prensa da competição evolutiva. Mas esse fato não
lança nenhuma luz sobre a natureza da verdade matemática.
Ele não mostra o que entendemos quando entendemos que dois
mais dois é igual a quatro. A explicação evolutiva de nossos
hábitos matemáticos depende do nosso entendimento prévio de
que dois mais dois é igual a quatro, e, portanto, não os elu-
cidam. Podemos explicar por que devemos ter adquirido esse
entendimento matemático; mas a explicação não nos diz o que
adquirimos. Para entender isso, devemos nos voltar para a ló-
gica e os fundamentos da matemática, que estão preocupados
com razões, e não causas, e que tentam estabelecer um padrão
de validade independente das leis empíricas.
Claro, a conduta sexual não é o mesmo tipo de coisa que o
raciocínio matemático. Mas é como a matemática ao envolver
um tipo de entendimento que não pode ser reduzido à explica-
ção causal, e que não é, por conseguinte, necessariamente ele-
vado pela explicação causal de sua própria existência. Nossa
compreensão interpessoal pode ser afetada pelo nosso conheci-
mento da Sociobiologia. Mas isso é um fato peculiar, que não
decorre simplesmente da Sociobiologia explicar o que somos.
Mais amplamente, não devemos aceitar que o termo “so-
cial”, usado por vezes para descrever o comportamento coo-

260
capítulo 7 - a ciência do sexo

perativo dos seres humanos, ou então a aglomeração instintiva


do rebanho, e até mesmo a unidade totalmente cimentada da
colmeia, seja usado de forma inequívoca. Como eu já observei,
o comportamento social dos seres humanos é mediado e trans-
formado por uma concepção de si mesmo. Ele pode estar enrai-
zado no instinto, mas não é redutível ao instinto, não só porque
exemplifica a aprendizagem, mas também porque envolve res-
posta racional. Em particular, envolve a cooperação, quando
uma pessoa se junta com outra, e age a partir de uma concepção
de si mesmo e do outro como reciprocamente envolvidos e mu-
tuamente responsáveis. A diferença entre a cooperação racional
e coesão instintiva – entre o homem e a formiga – é tão grande
que é bastante questionável que um único padrão de explicação
possa ser aplicado a ambos.244 Racionalidade, mesmo quando
vista em termos evolutivos, é a capacidade de inventar soluções
para problemas, de trabalhar individualmente uma resposta
que pode não estar contida na herança da espécie. O ser racio-
nal, portanto, adquire comportamento e crenças que não são
propriedade comum da espécie, e nem poderiam ser: em parti-
cular, ele adquire uma cultura, e sua individualidade e vontade
são mais sensíveis a esta cultura do que a qualquer imperativo
da espécie. Sem dúvida, a teoria da evolução pode explicar por
que temos essa capacidade (isto é, por que nos tornamos melhor
equipados para sobreviver com sua aquisição). Em virtude de a
possuirmos, nos elevamos acima do nível de “espécimes”, e gera-
mos uma nova ordem de comportamento, a ordem da História.

244 O sentido da diferença entre os dois padrões de atividade – o imposto por um programa
genético e o derivado dos atos criativos de cooperação racional – é responsável
pela distinção de Henri Bergson entre instinto e intelecto: Creative Evolution, tr. A.
Mitchell, Londres, 1911. Uma descrição impressionante dos complexos hábitos sociais
de abelhas foi apresentada por Karl von Frisch, The Dancing Bees, an Account of the
Life and Senses of the Honey Bee, tr. D. Ilse, Londres, 1954. O relato de Von Frisch
é discutido proveitosamente por Jonathan Bennett em Rationality, Londres, 1964.
Bennett mostra que a complexidade do comportamento das abelhas, apesar de notável,
não pode justificar sua descrição como uma linguagem; e sem linguagem não há nem
racionalidade, nem “cooperação” genuína, do tipo familiar no mundo humano.
É importante ressaltar que o comportamento dos animais superiores é diferente
dos insetos por exibir aprendizagem, e é, portanto, infinitamente adaptável para o
recebimento de novas informações. Os bergsonianos, que usam o termo “instinto” para
abranger tanto o comportamento dos insetos quanto certos tipos de comportamento
em animais superiores, ignoram esta distinção vital.

261
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A História é a ordem coletiva que nós mesmos fazemos, e que


traz a marca de nossa própria autoconcepção.
O comportamento racional, como todo comportamento, é
biologicamente causado. Mas isso não significa que ele tem de
ser explicado em termos de composição evolutiva da espécie. A
racionalidade nos dá a capacidade de modificar nossos dotes da
espécie, de maneiras que só podem ser previstas pelas leis que
governam a própria racionalidade. O erro principal da Socio-
biologia é considerar a sociedade como uma formação da espé-
cie: considerar que, por que somos, como espécie, socialmente
organizados, as sociedades humanas devem suas características
dominantes à implantação genética. Pelo contrário, a estrutura
da sociedade precisamente não é a da espécie. A sociedade é
o resultado da cooperação, e a cooperação é um ato racional,
mediada por um senso do eu e do outro enquanto seres respon-
sáveis e que atribuem razões. Ao explicar o comportamento so-
cial, estamos explicando as formas de entendimento intencional.
Alguns sociólogos acompanham Weber na crença de que essa
explicação deve ser de um tipo especial: ela deve envolver um
ato de participação no entendimento intencional que procura
explicar (um ato de Verstehen).245 Nesse caso, é difícil ver como
a teoria da evolução poderia ser alargada para abranger o com-
portamento social. No entanto, não é nada óbvio que Weber
tenha razão: o fato de que uma forma de comportamento é um
modo de entendimento não significa que ele deve ser explicado
por meio da própria compreensão que ele exemplifica. (Poderia
haver uma explicação causal do entendimento matemático, e
isso certamente não seria um pedaço da matemática.) Ao mes-
mo tempo, é evidente que uma teoria do comportamento social
deva incluir o entendimento intencional entre os seus dados.
E isso é precisamente o que a Sociobiologia parece incapaz de
fazer. Pois a Sociobiologia pretende explicar o comportamento
social como o resultado de processos que se manifestam em
toda a ordem evolutiva, mesmo por espécies que não têm enten-

245 Esse termo, introduzido às ciências sociais por Dilthey, e adotado por Weber, tem
o propósito de apreender um ato intelectual familiar, mas elusivo, por meio do
que compreendemos o comportamento e pensamentos dos outros através de uma
identificação parcial com seu ponto de vista. Ver o verbete Verstehen em meu Dictionary
of Political Thought, Londres, 1982.

262
capítulo 7 - a ciência do sexo

dimento intencional. Em outras palavras, ela pretende colocar o


entendimento intencional de lado, como uma mera adição a um
comportamento que pode existir sem ele e que pode ser explica-
do sem explicá-lo. Isto é para negligenciar o fato de que a com-
preensão intencional é constitutiva do comportamento social.
Para disfarçar esta dificuldade, a Sociobiologia iniciou uma
elaborada redescrição do comportamento humano, procurando
anular seu conteúdo intencional. As explicações oferecidas por
sociobiólogos invariavelmente começam a partir de um equí-
voco do que deve ser explicado. O “simiomorfismo” resultante
não é visto sem interesse: nas mãos de demagogos como Des-
mond Morris e Alex Comfort, revelou-se altamente destrutivo
das percepções morais humanas.246 Antes de considerar a socio-
biologia do sexo, é instrutivo nos referirmos à análise do socio-
biólogo de outra instituição social fundamental – a instituição
da propriedade. E. O. Wilson afirma que “a fórmula biológica
do territorialismo se traduz facilmente para os rituais da pro-
priedade moderna. Quando descrito por meio de generalizações
ausentes de ornamentos emocionais e fictícios, esse comporta-
mento adquire um novo aspecto” (grifo meu).247 Ele passa a dar
provas, sob a forma de uma citação do sociólogo Pierre van den
Berghe, cuja descrição de rituais de propriedade em Seattle mos-
tra exatamente o que esta “ausência de ornamentos emocionais
e fictícios” quer dizer – a ausência de tudo o que é distintamente
humano, de tudo o que faz com que o comportamento humano
seja difícil para um sociobiólogo explicar:
Antes de entrar em território familiar, convidados e visitantes,
especialmente se inesperados, passam regularmente por um ritual
de identificação, chamando a atenção, saudando os presentes e
pedindo desculpas por eventuais perturbações. Este intercâmbio
comportamental ocorre ao ar livre se o proprietário for encontrado
lá primeiramente, e é preferencialmente dirigido a adultos. Os filhos
dos proprietários, se encontrados primeiro, são questionados sobre
o paradeiro de seus pais. Quando nenhum proprietário adulto é

246 Estou me referindo a Desmond Morris, The Naked Ape, A Zoologist’s Study of the
Human Animal, Londres, 1967, e também a Alex Comfort, Sex in Society, 1950, ed.
Revisada em 1963, Londres, em que uma descrição completamente revista do ato
sexual é apresentada para mostrar seus prazeres em termos apetitivos.
247 On Human Nature, p. 109.

263
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

encontrado ao ar livre, o visitante normalmente vai até a porta da


habitação, onde ele faz um barulho identificador, quer batendo à
porta ou tocando um sino se a porta estiver fechada, ou, se a porta
estiver aberta, simplesmente usa a voz. O limiar normalmente só é
transposto após o reconhecimento e convite do proprietário. Mesmo
assim, os convidados só estão livres para entrar na sala de estar,
e costumam fazer pedidos adicionais para acessar outras partes da
casa, como um banheiro ou quarto.
Quando um visitante está presente, ele é tratado pelos outros
membros do clube [residência de férias] como uma extensão de seu
anfitrião. Ou seja, os seus privilégios limitados de ocupação territorial
abrangem apenas o território de seu anfitrião, e ele será responsável
por quaisquer transgressões territoriais dos hóspedes. (...) As crianças
também não são tratadas como agentes independentes, mas como
extensões de seus pais ou de um adulto “responsável” por eles, e as
transgressões territoriais de crianças, especialmente se repetidas, são
assumidas pelos pais ou responsáveis.
A estrada de terra que atravessa o terreno é livremente acessível a
todos os membros do clube, que podem usá-la para ter acesso a seus
lotes e para fazer caminhadas. A etiqueta obriga os proprietários a
cumprimentar uns aos outros quando se veem ao ar livre, mas os
proprietários não se sentem à vontade para entrar no lote do outro
sem algum ritual de reconhecimento. Este ritual é, no entanto, menos
formal e elaborado para entrar na parte aberta do que para entrar
nas casas.248

Uma bolsa de pesquisa que permite que alguém passe o verão


em um clube de férias e chame o diário resultante de “sociolo-
gia” claramente não deve ser menosprezada. É evidente, no en-
tanto, que o observador ou não tem humor ou é um alienado. A
realização da cortesia, pela qual uma pessoa entra em uma casa
apenas quando convidada pelo ocupante, é descrita em uma lin-
guagem apropriada para o ritual territorial das aves: “o limiar
normalmente só é transposto após o reconhecimento e convite
do proprietário”. O fato de as pessoas pedirem permissão antes
de usar o banheiro torna-se um aspecto peculiar da necessidade
de “pedidos adicionais para acessar outras partes da casa”. Al-
guns dos comportamentos só podem ser descritos em função de
um conceito moral que informa o entendimento intencional dos
participantes. O conceito é, então, colocado entre aspas para

248 Pierre van den Berghe, citado em Wilson, ibid., p. 109-10.

264
capítulo 7 - a ciência do sexo

indicar que, com o inevitável avanço da ciência sociológica, se-


remos capazes de dispensá-lo em breve. Assim, um adulto não é
responsável por uma criança, mas apenas “responsável.” A con-
versa é um “intercâmbio comportamental”, um discurso edu-
cado é um “ritual de reconhecimento”, um homem anunciando
a si mesmo “faz um barulho identificador”, e assim por diante.
Ao mesmo tempo, a descrição dada é tão reveladora do que
está acontecendo quanto uma descrição de uma conversa dada
por alguém que desconhece a língua e observa os interlocutores
pelo lado errado de um telescópio. Não é mais do que um olhar
superficial de um comportamento que, avaliado do ponto de
vista do significado, é inteligível para qualquer pessoa, embora
inteligível em outros termos que não esses – em termos de in-
tenção, cortesia, amizade, responsabilidade, reconhecimento de
si e do outro; em suma, em termos que, embora familiares ao
nosso entendimento intencional do mundo humano, resistem à
“tradução” para a língua da Sociobiologia.
Nada disso teria importância se os sociobiólogos simples-
mente admitissem sua ignorância. No entanto, eles não de-
monstraram qualquer disposição em fazê-lo. E. O. Wilson, por
exemplo, não hesita em tirar conclusões morais que, apesar do
distanciamento de tudo o que sabemos sobre a condição hu-
mana, são feitas com a plena confiança de alguém que está fi-
nalmente trazendo clareza científica a um mundo de confusão
atávica. Ele defende que “tudo o que podemos deduzir da histó-
ria genética do homem indica uma moralidade sexual mais libe-
ral, em que as práticas sexuais devem ser consideradas primeiro
como dispositivos unitivos e apenas em segundo lugar como
meio de procriação”. 249 Ele não só secretamente admite que a
conduta sexual não é determinada geneticamente e, portanto,
inexplicável por seu método; ele também mostra a extensão de
seu desrespeito à “ciência” que o orienta. Se for verdade que as
práticas sexuais são principalmente dispositivos unitivos, elas
devem inevitavelmente ser circunscritas por todos os medos e
ciúmes da afeição humana – e, portanto, atrairão para si uma
moralidade sexual “iliberal”, que vê valor na fidelidade, na mo-
déstia e na contenção, e perigo na dissipação promíscua. Se,

249 Ibid., p. 142.

265
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

por outro lado, as práticas sexuais são principalmente disposi-


tivos reprodutivos, poderíamos liberá-los de vez, simplesmente
desenvolvendo formas eficazes de criação impessoal, talvez no
modelo do Admirável Mundo Novo. O fato de que Wilson possa
extrair, de forma tão natural, precisamente a conclusão oposta
das implicações de suas observações “científicas” mostra, creio
eu, a natureza leviana da “ciência” de que ele as deriva.

Uma nota sobre Schopenhauer


A idéia de que o desejo sexual deve ser entendido em função
de estratégia impessoal e de longo prazo das espécies não é,
de modo algum, uma invenção da Sociobiologia. Schopenhauer,
em um ensaio espetacular anexado a O Mundo como Vonta-
de e Representação,250 deu voz à teoria com uma franqueza e
penetração psicológica que nenhum sociobiólogo foi capaz de
corresponder. Schopenhauer é interessante, também, em sua
tentativa de conciliar uma teoria “da espécie” de desejo sexual
com o reconhecimento da individualidade do objeto sexual. Ele
distingue amor de “impulso sexual”, argumentando que a “pai-
xão de estar apaixonado”
é dirigida a um objeto individual, e só a ele, e parece, por assim
dizer, como uma hierarquia especial da espécie. Pela razão oposta,
o mero impulso sexual é vil e ignóbil, porque se dirige a todos, sem
individualização, e se esforça por manter a espécies em função da
quantidade, com pouca consideração para a qualidade. [Cf. a teoria
dos rituais de acasalamento dos sociobiólogos dada anteriormente.]
Mas a individualização, e com ela a intensidade de estar apaixonado,
pode chegar a tão alto grau que, sem a sua satisfação, todas as coisas
boas do mundo – e até a própria vida – perdem seu valor.251

Como é que esta individualização pode ser explicada em ter-


mos das necessidades da espécie? Schopenhauer oferece uma
variedade de respostas. Em um ponto, ele parece sugerir que a
individualização do objeto de desejo é provocada pela individu-
alidade do seu produto – o novo eu que vai nascer a partir do
ato de união sexual. A união dos pais traz “precisamente esse

250 A. Schopenhauer, The World as Will and Representation, tr. E. J. F. Payne, Indian Hills,
Colorado, 1958, vol. II, cap. 44, “The Metaphysics of Sexual Love.”
251 Ibid., p. 549.

266
capítulo 7 - a ciência do sexo

indivíduo pelo qual a vontade-de-viver em geral, exibida em


toda a espécie, anseia”.252 Em outros pontos, claramente insa-
tisfeito com essa explicação fantástica e praticamente ininteli-
gível, Schopenhauer tenta dar uma caracterização funcional da
individualidade do objeto sexual. A paixão, diz ele, será “mais
poderosa quanto mais individualizada for;” 253 assim, centran-
do-se no indivíduo, a paixão ganha uma maior chance de re-
alizar os projetos da espécie. Ela supera a resistência que nós
(em nosso desgosto bastante razoável da idéia de que todo esse
negócio miserável seguirá de geração em geração) naturalmente
tendemos a oferecer às maquinações do desejo. (Novamente,
há uma analogia com a explicação do sociobiólogo do cortejo
e competição.) No entanto, é também uma idéia da metafísica
de Schopenhauer que o indivíduo é uma aparência efêmera e,
em certo sentido, ilusória. O que eu realmente sou não é o eu
individual, mas a vontade universal, que, embora se manifeste
em mim, sobrevive à minha destruição individual. E, uma vez
que o desejo sexual é uma manifestação da vontade, ele decorre,
em última instância, daquilo em mim que não é individualizado.
É, conforme Schopenhauer, a parte imortal em mim que anseia
se unir a você, e essa parte imortal é a vontade da espécie que,
como “coisa em si”, “livre do principium individuationis”,254 é
a soma e a dissolução de todos os agentes individuais.
O significado de Schopenhauer não é totalmente explicável
fora do contexto do seu sistema metafísico. No entanto, apesar
de suas vacilações, podemos ver aqui uma corajosa tentativa de
conciliar os fatos do desejo sexual – em particular, o fato de sua
intencionalidade individualizante – com uma teoria que dá o
devido destaque à natureza da nossa espécie e ao fato óbvio de
que a espécie tem interesses que podem ser frustrados por uma
ênfase exagerada sobre a santidade da alma individual. Além
disso, por trás da referência de Schopenhauer ao principium in-
dividuationis reside uma interessante teoria da individualidade.
De acordo com Schopenhauer, a idéia de existência individu-
al pertence exclusivamente ao mundo da “representação:” esta
é a forma como vemos o mundo, mas não como o mundo é

252 Ibid., p. 537.


253 Ibid., p. 537.
254 Ibid., p. 559.

267
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

“em si”. É precisamente quando eu olho para mim mesmo,


e tento compreender a individualidade que sou eu, que tomo
consciência da realidade interior, da coisa-em-si, que não é a
aparência, mas vontade. Isto, no entanto, não é, e não pode
ser, individualizado. Eu conheço isso em mim, mas o que eu
conheço não sou eu, nem você, nem ninguém. Somente no ato
de conhecer que parece ser, por um momento, um eu individual,
mas, em seguida, nem o conhecedor nem o conhecido podem,
mesmo naquele momento, reivindicar o título de forma inteligí-
vel. Daí que a ânsia pelo indivíduo, que se manifesta no desejo,
seja o surgimento de uma força ao mesmo tempo universal e im-
pessoal, que rege as nossas vidas com a lei imparcial da espécie
e dissolve nossa individualidade no próprio ato de união pelo
qual individualmente almejamos.
A Sociobiologia de Schopenhauer, que pretende ser fiel à fe-
nomenologia do desejo, apenas se salva por entrar nessas tur-
bulentas águas metafísicas. E mesmo que exista uma moralida-
de que flutua como uma névoa acima delas (uma moralidade
muito em desacordo com os entusiasmos de Edward Wilson e
Desmond Morris), sua correnteza metafísica é tão perturbada
que poucos podem se aventurar nela. Schopenhauer nunca hesi-
tou em pagar o preço mais alto possível por seus “insights” – o
preço de uma metafísica ininteligível. Mas não podemos arcar
com o custo, e nenhuma “ciência” do sexo, por mais sofisticada,
poderia seguir os passos de Schopenhauer. É salutar, portanto,
ver que preço foi pago pelas conclusões a que visa o sociobiólo-
go, e o que ele precisa atingir pela aplicação paciente da ciência
empírica.
Há, no entanto, duas lições a serem aprendidas com a So-
ciobiologia. Em primeiro lugar, não podemos ignorar o fato de
que somos animais, e que em nossa conduta sexual nos confor-
mamos às leis genéticas que governam a reprodução animal.
Por mais rude que a literatura existente da Sociobiologia seja,
a tese fundamental não pode ser rejeitada, e qualquer teoria do
desejo incompatível com ela deve ser imediatamente colocada
sob suspeita.
Em segundo lugar, a verdade científica da hipótese evolutiva
tem implicações relativas à intencionalidade do desejo. Agora que
sabemos os fatos da reprodução humana, o impulso irresistível

268
capítulo 7 - a ciência do sexo

do desejo parece-nos uma convocação: a demanda imperiosa


da futura geração a nascer se faz conhecida para nós no desejo.
Quando olhamos para nossos filhos, e quando olhamos para a
pessoa a quem desejamos, ouvimos a mesma exigência impla-
cável, e nos submetemos, no final, a um tipo de tirania impes-
soal. Em cada momento de nossas relações com aqueles a quem
amamos ou desejamos, somos abordados por algo além de nós
mesmos, como as multidões que pairam no limiar da existência
nos chamam com vozes confusas e suplicantes.
Na National Gallery, em Washington, há uma pintura de
Poussin da amamentação do infante Júpiter, em que a energia
inflada, imperiosa, egoísta do recém-nascido é retratada como
uma qualidade da carne. A criança suga o leite de cabra por
um chifre, e absorve, junto com ele, a energia de todos os que o
cercam. O rosto ansioso, confuso, da ninfa que segura o chifre
aos lábios do deus; a atenção fervorosa do pastor ordenha da
cabra; a fixidez vitrificada de seu companheiro, estupidificado
pela completa concentração do recém-nascido: tudo expressa
a tirania absoluta de uma nova vida sobre a vida existente,
do Deus que é todo futuro sobre o presente humano, que ab-
negadamente se exaure na nutrição de um poder que nunca
vai recompensar sua devoção. A ânsia que nos leva a submeter
à tirania de uma criança está prefigurada no desejo. Também
aqui somos altruístas, absortos, estupidificados por uma for-
ça que nos atrai inexoravelmente para outro ser humano. Na
convocação para o sacrifício, sentimos a premonição da morte;
pois só temos isto a fazer, a fim de nos tornarmos dispensáveis.
Estes aspectos da nossa situação “biológica” alimentam nossa
compreensão intencional, e – por mais que possamos embele-
zar nosso desejo com contos de fada kantianos – nós sabemos,
em nossos corações, que a coisa que nos supera em desejo fun-
ciona através do outro, mas não provém inteiramente dele. Por
isso, como Schopenhauer reconheceu, traímos a nós mesmos
no desejo e, se nos tornarmos furtiva, talvez seja para escapar
da nossa própria percepção.
Wagner alegou que a filosofia de Tristan und Isolde vem de
Schopenhauer. E podemos ver nas observações acima (por mais
afastadas que possam ser do ponto de vista de Schopenhauer que
influenciou Wagner) um canal para a explicação da melancolia

269
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de Tristão. Tristão ama uma mulher de quem seus filhos não


podem nascer. Em sua “escolha amorosa”, que é também um
destino, Tristão e Isolda se afastam da “vida da espécie”. Nada
justifica ou cumpre sua união, salvo a intensidade que a obriga.
Nenhuma nova vida zomba da apreensão mortal do desejo, e
o eu de Tristão perde-se olhando o eu de Isolda como se fosse
um poço sem fundo. A raça de Tristão morre com ele, extinta
pelo seu próprio desejo. O trabalho de sua autocriação foi em
vão, e quando ele fala em seu delírio ao Urvergessen255 a que sua
alma está destinada, não é Tristão quem fala, mas a semente de
Tristão, condenada por sua própria individualidade infrutífera
ao perpétuo nada.

O inconsciente
A Sociobiologia oferece uma explicação para a “escuridão”
do desejo – para o fato de que eu estou preso por esta paixão
e conduzido por uma força que é mais forte do que eu, maior
do que eu, e de alguma forma misteriosa alheia a mim. Não é a
única explicação que foi dada para o fato de que o desejo sem-
pre parece exagerar o seu objetivo. Em O Banquete, Aristófanes
descreve a situação da seguinte forma:
Os parceiros não podem sequer dizer o que esperam um do
outro. Ninguém poderia imaginar que isto seja apenas uma relação
sexual, ou que só isso seria a razão pela qual cada um se alegra tão
avidamente na companhia do outro: obviamente, a alma de cada um
deseja algo mais que não pode expressar, e só revela o que deseja por
adivinhações ou obscuras insinuações.256

Aristófanes oferece sua famosa explicação cômica da natu-


reza enigmática do desejo: cada um de nós, diz ele, é corporal-
mente separado da sua outra metade, e é conduzido misteriosa-
mente por seu corpo a se unir com seu parceiro em falta.
A lenda de Aristófanes ilustra um dos temas perenes do dis-
curso erótico. Porque o objetivo do desejo é tão opaco para nós,

255 Neologismo cunhado por R. Wagner no seu Tristão e Isolda (Ato III). O prefixo “ur”
significa “antigo”, “original;” “vergessen” é um verbo que se traduz por “esquecer.”
“Esquecimento primitivo”, “desconhecimento primordial” e “desaparecimento” não são
traduções exatas, mas se aproximam da idéia que encerra o vocábulo – NT.
256 Platão, Banquete, 192c.

270
capítulo 7 - a ciência do sexo

e porque a satisfação imediata do desejo parece, em retrospecto,


uma recompensa tão inadequada pelo trabalho de persegui-lo, é
dado ao desejo um motivo inconsciente – um motivo que se ori-
gina fora do eu, na escuridão de natureza orgânica. O primeiro
tratado importante dedicado ao “inconsciente” – Philosophy of
the Unconscious de Eduard von Hartmann – também aborda a
questão de Aristófanes, perguntando “por que o instinto sexual
se concentra exclusivamente neste indivíduo e não em naquele”,
que é, de acordo com Hartmann, “a questão dos motivos deter-
minantes desta exigente seleção sexual”.257
Hartmann, baseando-se nos argumentos de Schopenhauer,
alega que a questão não pode ser respondida apenas por referên-
cia ao objetivo consciente do desejo: não há nada na intenciona-
lidade consciente que explique o “percurso do desejo” na união
e no amor. Portanto, Hartmann propõe uma intencionalidade in-
consciente como a única resposta possível à pergunta metafísica:
A natureza ilimitada da ânsia e do esforço surge, então,
precisamente da inefabilidade e incompreensibilidade de um
objetivo consciente, o que seria absurdo, não fosse um propósito
inconsciente a mola invisível deste poderoso aparelho de sentimento
– um propósito inconsciente de que só podemos dizer que a união
sexual desses indivíduos particulares deve ser o meio para a sua
realização. 258

Hartmann oferece uma descrição sagaz e vigorosa do desejo;


mas ele não é mais bem-sucedido do que Aristófanes ou Scho-
penhauer para explicar a sua intencionalidade. Sua conclusão
– que o propósito oculto de desejo é “fazer nascer tal indivíduo
que mais completamente represente a idéia da raça”259 – é tam-
bém a de Schopenhauer, e não promete uma explicação nem da
intencionalidade individualizante do desejo, nem de sua força
avassaladora. É amplamente instrutivo para nós porque mostra
a gênese de uma idéia moderna importante. Para Hartmann, o
inconsciente é um repositório de motivos que são constituídos
organicamente, e também, ao mesmo tempo, dotados de uma
intencionalidade distintamente pessoal.

257 Eduard von Hartmann, Phylosophy of the Unconscious, tr. W. C. Coupland, Londres,
1884, p. 223.
258 Ibid., p. 232.
259 Ibid., p. 238.

271
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Psicologia freudiana: o problema geral


O expoente mais importante dessa idéia foi Freud, que, como
os sociobiólogos, tinha esperança de fornecer uma teoria da na-
tureza humana e da sexualidade humana que poderia, eventual-
mente, receber uma base biológica. Essa inclinação para a biolo-
gia determinou grande parte do imaginário e da linguagem que
ele usou para formular suas idéias. As afirmações científicas das
teorias de Freud foram freqüentemente questionadas, e é justo
dizer que poucos as aceitariam agora nos termos em que foram
inicialmente propostas. No entanto, as teorias de Freud conti-
nuam a ser extremamente influentes, e são aceitas como algo
mais do que uma descrição fantasiosa. Quaisquer que sejam os
defeitos da apresentação do próprio Freud – que é amplamente
tida como flutuante, assistemática e cheia de metáforas – consi-
dera-se que suas teorias representam descobertas e explicações
genuínas de fatos outrora misteriosos. É importante examinar
essas alegações. Enquanto faço essas considerações, considera-
rei Freud não só pelo que ele mesmo escreveu, mas também por
sua influência. E apesar da falta de espaço para considerar os
escritos de seus discípulos, acredito que a substância de minhas
críticas será igualmente contrária às teorias sexuais de Melanie
Klein e, até certo ponto, às de Wilhelm Reich – possivelmente
os dois escritores psicanalíticos pós-freudianos mais influentes
sobre sexo.260 Freud e o freudismo adentraram de tal maneira
as formas modernas de pensar em sexo que o leitor pode ficar
pasmo ante minha afirmação de que Freud não era nem um
observador preciso nem um teórico plausível. No entanto, creio
que esta pretensão tanto seja verdadeira como de esmagadora
importância para qualquer pessoa preocupada em resgatar a
moralidade sexual do pântano para o qual as formas modernas
de pensar a seduziram.
A análise de Freud da sexualidade humana – feita de múltiplas
maneiras em vários períodos diferentes de sua vida – é fundada
numa metáfora da mente humana. Para Freud, a consciência é
um mero compartimento da mente, e a divisão entre processos

260 Melanie Klein, Envy and Gratitude, a Study of Unconscious Sources, Londres, 1957;
Wilhelm Reich, The Function of the Orgasm, 1968, tr. V. R. Carfagno, Nova York, 1973,
Londres, 1983.

272
capítulo 7 - a ciência do sexo

mentais conscientes e inconscientes é explicada em termos de


uma analogia dinâmica. A mente é estruturada por forças e bar-
reiras: estados mentais são empurrados para o inconsciente pela
repressão, e mantidos lá por defesa; ou então eles rompem essa
defesa e são elevados em uma crista de libido para o mundo da
ação. O consciente e o inconsciente denotam diferentes regiões
de um espaço interno, uma iluminada, a outra escura, e dentro
deste espaço grandes forças psíquicas lutam pela ascendência. A
região de luz é dominada pelo ego, ativamente engajada em se
defender do conteúdo do id. Nos ombros do ego, pouco visível,
mas sempre presente, está o “superego”, que é ao mesmo tempo
mestre e criação do ego que ele atormenta.
O valor científico da imagem depende se ela pode ser tradu-
zida em uma teoria da mente literal e explicativa. Os fenômenos
mentais poderiam ser atribuídos a uma explicação causal, de
forma que tornem tal descrição adequada (ou talvez um pouco
fantasiosa)? Alguém poderia, por exemplo, imaginar uma ver-
são neurofisiológica da teoria, que identifique as “forças”, “bar-
reiras” e “espaços interiores” em termos acessíveis à investiga-
ção empírica? É provável que Freud esperasse eventualmente
por tal tradução,261 e, de qualquer modo, não teria sido avesso a
isso. Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que o próprio imagi-
nário – de ego e id, de “força psíquica” e “resistência psíquica”
– desde a sua principal inspiração e seus freqüentes referências
a uma “química” subjacente da psique humana não foi acom-
panhada por nenhuma teoria séria. Quando confrontado com a
tarefa de dar sentido a algum fenômeno psicológico particular,
Freud usava o imaginário, e não como uma explicação provisó-
ria para alguma teoria que seria fornecida, mas como uma re-
presentação literal dos fatos. Por conseguinte, poder-se-ia dizer
(e de fato foi dito) que a metáfora de Freud não serve como te-
oria, mas como mito, e não dá sentido aos fenômenos humanos
da maneira que a ciência faz, mas da maneira que o mito faz:
contando histórias que revelam uma lógica consoladora no que
nos parece estranho e incontrolável.

261 O tipo exato de teoria por que esperava é matéria de disputa. Um candidato possível é
dado por Richard Wollheim, Sigmund Freud, Modern Masters, Londres e Nova York,
1971.

273
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Além disso, é duvidoso que a metáfora freudiana possa ser


traduzida e ainda manter o seu poder. Como mito, ela pertence
ao reino da compreensão intencional, proporcionando-nos uma
redescrição dos nossos estados mentais, em termos que ajustem
e corrijam nossas atitudes em relação a eles. Como teoria cien-
tífica, no entanto, ela deve sair do reino intencional, e assistir ao
que lhe está subjacente. Mas como ela poderia fazer isso e ainda
manter a idéia dominante de uma disputa entre ego, superego e
id? Ao mesmo tempo, essa idéia é altamente antropomórfica, e
retê-la é abrir a teoria para uma objeção séria. O ego é interpre-
tado como “observador interno” de seus estados mentais, um
inspetor cartesiano, protegendo-se do que ele não quer saber, e
examinando o que é permitido. A menos que ele aja para impedi
-los, os estados mentais são impulsionados das profundezas da
escuridão para o reino da visão. O ego, portanto, é visto como
uma espécie de agente, para quem o pronome “eu” é realmente
apropriado. Nós só podemos entender a idéia de um único e
mesmo estado mental que está ora “no” consciente, ora “no” in-
consciente por meio de alguma teoria do “observador interno”,
para quem as coisas são alternadamente reveladas e ocultas.
Os estados do inconsciente, não sendo observados por ele, não
são realmente seus – eles não estão “em sua mente”. A menos
que ele também seja dividido em uma seção consciente e outra
inconsciente, abrindo assim a perspectiva de um eterno mis en
abîme, sem nenhum observador final e, portanto, sem sujeito
da experiência em absoluto – deve ser verdadeiro, pelo menos,
que sua consciência e sua mentalidade são uma única e a mesma
coisa. Mas, então, imediatamente pode-se entender que tudo o
que nos leva a dizer que os estados mentais do ego são todos ne-
cessariamente conscientes pode nos levar a dizer o mesmo dos
nossos. Pois ele é uma reprodução exata da pessoa humana –
ele é o “homenzinho interior”, o verdadeiro agente de todos os
nossos atos e o destinatário real de todas as nossas impressões.
Não há outra maneira de manter a metáfora freudiana. Deve-
mos assumir que o ego seja uma pessoa, em guerra com alguém
que ele nunca pode ver, e que ele conhece apenas através do
efeito dessas “forças” pelas quais o id tenta subvertê-lo. Apenas
nesta hipótese é que podemos pensar nos processos inconscien-
tes como processos mentais: são mentais, porque podem a qual-
quer momento se tornar conscientes, no ego. Se descartarmos

274
capítulo 7 - a ciência do sexo

a metáfora, e dissermos que o “ego” não é um tipo de pessoa,


mas simplesmente uma “região” do espaço mental, perderemos
todas as razões para pensar que as forças “inconscientes” são
realmente mentais. Por que não dizer, agora, que eles são as
forças que influenciam o reino mental, embora não pertençam
a ele? Em particular, por que assumir (como Freud assume) que
eles mantêm, em sua forma “inconsciente”, a intencionalidade
particular da mente? Só se o fizerem que a explicação freudiana
tratar do que pretende explicar; pois a influência do inconscien-
te é (supostamente) a influência de um conteúdo intencional. E
ainda assim não há motivos para pensar que um conteúdo pos-
sa ser mantido nas regiões mais obscuras. Dado o fato evidente
de que nem eu nem o meu “id” podem se confessar a um estado
inconsciente, é difícil ver como tal conteúdo intencional poderia
ser atribuído de forma confiável.
Se nós descrevermos os processos “inconscientes” sem usar
idéias de conteúdo, a teoria de Freud deixa de resistir à tra-
dução para o idioma empírico. Ela dá lugar a uma idéia mais
comum e (pela perspectiva intencional) menos esclarecedora,
de que a mente responde a eventos e processos de que não tem
conhecimento, e que alguns desses processos podem ser cau-
sados por
​​ experiências que foram esquecidas. Para retornar
esta explicação ao seu esquema freudiano, devemos dizer que
o esquecimento era ao mesmo tempo “intencional” e, em certo
sentido, irreal (uma vez que pelo menos o id se lembra). Em
outras palavras, devemos ressuscitar a metáfora. Um relato ver-
dadeiramente científico – um que elimine a metáfora por com-
pleto – teria de dispensar toda essa linguagem. Mas também
dispensaria qualquer referência ao “inconsciente” e a qualquer
tentativa de atribuir intencionalidade a estados cujo conteúdo
não é representado no comportamento que os expressa.
Evidentemente, o conteúdo intencional pode ser atribuído a
processos, mesmo quando este conteúdo não puder ser expresso
pela coisa na qual ocorrem os processos (os estados mentais dos
animais, por exemplo). Mas a atribuição de conteúdo a eventos
no mundo natural é um exercício de entendimento intencional,
a que devemos naturalmente renunciar em favor de explica-
ções mecanicistas, se compreendermos a verdadeira causalida-
de das coisas. A explicação científica coloca todas as idéias de

275
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

conteúdo em perigo, e uma explicação que depende de tais


idéias não pertence à ciência, mas à compreensão intencional.
Freud tentou complicar a idéia do “eu”, já que isso ocorre em
nossos pensamentos diários sobre nós mesmos, a fim de trazer
para dentro da esfera da autocompreensão eventos e ações que
outrora estavam além dela. A teoria que justifica esta extensão
não é científica, mas mitológica. Talvez, por isso, o verdadeiro
critério de seu sucesso não seja explicativo, mas prático – em
que medida, por exemplo, alcança o sucesso terapêutico a que
se destina?262

Freud: a teoria específica


Suponhamos, porém, que podemos evitar essas acusações e
reconstruir a teoria freudiana eliminando todos os componen-
tes metafóricos. Tal empreendimento pode ser possível para as
partes da teoria que nos interessam – as partes que tratam da
psicologia do sexo. De qualquer forma, vale a pena examinar a
teoria da sexualidade de Freud em seus próprios termos, a fim
de descobrir se, curada de suas dificuldades filosóficas, pode,
pelo menos, fornecer uma descrição correta – talvez até mesmo
uma explicação – dos fenômenos sexuais. Vou mostrar que ela
não pode fazer nenhuma das duas coisas.
Os elementos da teoria de Freud não são fáceis de montar, e
a teoria mudou ao longo do tempo. Presumo que o seguinte es-
boço não seja uma distorção muito grande: as experiências se-
xuais estão enraizadas em um instinto, e “o instinto sexual é, em
primeira instância, independente de seu objeto”.263 Este instinto
é posteriormente identificado como uma força (a “libido”), re-
presentada como um princípio em desenvolvimento, que estru-
tura o comportamento sexual e o caráter emocional do sujeito.
O instinto sexual gradualmente adquire seus objetos, por um
processo de “fixação”, começando por várias excitações do cor-

262 Essa idéia funcionalista de mito é familiar aos escritos de Georges Sorel (especialmente
Réflexions sur la violence, Paris, 1908); sua aplicação à psicanálise parece estar implícita
na discussão de Wittgenstein em Lectures and Conversations on Aesthetics, Freud, and
Religious Belief, ed. C. Barret, Oxford, 1966.
263 “Three Essays on Sexuality” (1905), republicado pela Penguin Freud Library, vol. 7: On
Sexuality, ed. J. Strachey e A. Richards, Harmondsworth, 1977, p. 60.

276
capítulo 7 - a ciência do sexo

po, e passando para as circunstâncias que elas despertam. Entre


estas excitações estão as experiências sensoriais nas chamadas
zonas “erógenas” (ou “erotogênicas”), e as principais circuns-
tâncias de sua excitação precoce estão conectadas ao drama
familiar. A libido se desenvolve juntamente com uma resposta
em desenvolvimento às relações familiares, e os sentimentos de
uma criança em relação a seus pais exerce uma influência de-
terminante sobre o seu instinto natural pela gratificação sexual.
O “objetivo sexual” normal resultante do desenvolvimento da
libido é “a união dos órgãos genitais no ato conhecido como có-
pula, que leva a uma liberação da tensão sexual e a uma extin-
ção temporária do instinto sexual – uma satisfação”, acrescenta
Freud, “análoga à satisfação da fome”. 264 Às vezes, o instinto
vai “catexizar” outros objetos (como no fetichismo), ou vai ser
“sublimado”, que, para Freud, significa isolado por completo
do ato sexual, e transformado em uma atitude contemplativa
que dota o seu objeto com um nimbo moral. A perversão sexual
envolve dirigir o instinto sexual para um objetivo anormal.
Por vezes Freud tentou vincular sua teoria da libido e seu
desenvolvimento com uma teoria biológica geral dos instintos.
Assim, em um ponto que ele define um instinto como uma “re-
presentação psíquica de uma fonte de estímulo endossomática
que flui continuamente”,265 enquanto “a fonte de um instinto
é um processo de excitação que ocorre em um órgão, e o ob-
jetivo imediato do instinto reside na remoção desse estímulo
orgânico”.266 A excitação sexual é o resultado de “alterações
químicas”’ nas “zonas erógenas”,267 e o objetivo da atividade
sexual é, portanto, um regresso à normalidade pela reversão
dessas alterações (um exemplo do “princípio homeostático”).
Dois outros aspectos da teoria devem ser mencionados: o
conceito de repressão e a idéia da sexualidade infantil. Parece
implícito na abordagem de Freud que o desenvolvimento sexual
humano, não fosse pela repressão, seria semelhante ao desen-
volvimento sexual dos animais. Ou seja, ele rumaria em direção

264 Ibid., p. 61.


265 Ibid., p. 83.
266 Ibid., p. 83.
267 Vou discutir o significado desse termo adiante. Ver também a nota 273.

277
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

a um instinto reprodutivo generalizável, uma necessidade de co-


pular que poderia ser satisfeita como a fome, sem evocar qual-
quer emoção interpessoal. Com imagens caracteristicamente
hidráulicas, Freud fala que o instinto sexual é obstruído por
certas “represas mentais”; esses obstáculos ao livre fluxo do
instinto sexual são “aversão, vergonha e moralidade”268 – e ele
trata os três fenômenos como se fossem, de um ponto de vista
psicológico, pareados, diferentes espécies de inibição. Cada um
deles deve ser distinguido, no entanto, da força mais fundamen-
tal que os explicam – a repressão.
A idéia de repressão é complexa, e faz parte de uma teoria
que o próprio Freud nunca expôs de forma sistemática, e que só
recentemente começou a adquirir uma forma canônica.269 Deve-
mos distinguir a repressão primária (que ocorre na infância) da
repressão propriamente dita (o que ocorre mais tarde na vida).
A primeira garante que certas experiências infantis e traumas
submerjam no id; a segunda assegura que permaneçam lá. A
primeira é um processo, a segunda uma força. Ambas podem
ter mais ou menos sucesso, e ambas podem ser mais ou menos
fortes. Ao discutir a teoria, Freud tende a variar a metáfora,
misturando o hidráulico e o manifestamente biológico. Ele fala
do escudo “protetor”, que a “vesícula viva” erige contra estímu-
los externos, e a necessidade adicional de tal vesícula (o córtex)
se proteger dos estímulos destrutivos que a assaltam de dentro:
Um evento como um trauma externo obrigatoriamente provoca
uma perturbação em grande escala no funcionamento da energia
do organismo e coloca em movimento todas as medidas de defesa
possíveis. Ao mesmo tempo, o princípio do prazer é momentaneamente
silenciado. Não há mais qualquer possibilidade de impedir que
o aparelho mental seja inundado com grandes quantidades de
estímulo, e surge, então, outro problema – o problema de dominar
esses estímulos que invadiram o aparelho mental e aprisioná-los, no
sentido psíquico, para que possam ser eliminados.270

268 “Three Essays”, p. 94.


269 Ver especialmente a dolorosa reconstrução em Peter Madison, Freud’s Concept of
Repression and Defense, its Theoretical and Observational Language, Minneapolis, 1961.
270 S. Freud, Beyond the Pleasure Principle, edição padrão das obras de Freud, ed. J.
Strachey, Londres, 1955, vol. XVIII, p. 29-30.

278
capítulo 7 - a ciência do sexo

Assim ocorre a grande força “anticatexial” da repressão,


que serve para prender o estímulo invasor e forçá-lo para fora
da consciência. A citação mostra a extensão em que a teoria
manteve-se ligada à metáfora. Nós podemos aceitar, no entan-
to, que tem forte conteúdo empírico, e implica “sentenças de
observação” testáveis. (A teoria implica, por exemplo, que de-
terminados assuntos serão silenciados, ou “tabus”, e que certos
impulsos, nomeadamente o impulso sexual, serão sufocados
por hesitações.) Alguns filósofos (como Karl Popper e Ernst
Nagel)271 defenderam que a teoria freudiana não tem poder pre-
ditivo genuíno, uma vez que não implica qualquer observação
testável: mas eu não acho que essa objeção se sustente. A teoria
freudiana tem tanto termos teóricos quanto conteúdo empírico.
O problema é que a transição da primeira para a segunda passa
por uma metáfora ineliminável. Nisto ela difere de todas as te-
orias científicas genuínas, que contêm um núcleo de significado
que nos diz literalmente como as coisas são (apesar de modelos
e metáforas muitas vezes serem necessários para compreendê
-las). As forças e contra-forças, catexias e anticatexias da teoria
freudiana são descritas em termos irredutivelmente “psíquicos”
– não como processos fisiológicos, mas como ações mentais.
(Isto é o que se entende pela idéia de Freud de que as forças in-
vasoras devem ser “aprisionadas, no sentido psíquico, para que
possam ser eliminadas”.) Os conteúdos da mente são descritos
em linguagem intencional, na linguagem das aparências, embo-
ra denotem eventos e processos que (por causa da repressão)
não podem aparecer. Se tentarmos encontrar uma descrição
“mecânica” dessas forças – como as correntes, por exemplo, no
sistema nervoso – descobrimos que não podemos mais explicar
o que nos propúnhamos, referindo-nos a elas. As idéias funda-
mentais de “ego”, “id” e “superego” agora desaparecem. Tais
idéias não sobrevivem à tradução do idioma intencional para
a língua da ciência investigativa. Entre os processos fisiológi-
cos há organização, mas não há ego; força e contra-força, mas
nenhuma ação. As idéias de “defesa” e “repressão”, portanto,

271 Sir Karl Popper, Conjectures and Refutations, Londres, 1963, cap. 1, p. 34-5; Ernest Nagel,
“Methodological Issues in Psychoanalytic Theory”, em S. Hook (ed.): Psychoanalysis,
Scientific Method, and Philosophy, Nova York, 1959, p. 38-56.

279
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

desaparecem, e com elas a teoria que nos obrigou a ver essas


forças em termos mentais como respostas a uma ameaça.
Mais uma vez, podemos colocar a objeção de lado e assumir
que a teoria da repressão e da defesa tem todo o poder expli-
cativo que afirma. A fim de examinar a imagem resultante da
estrutura interna do desejo sexual, é preciso combiná-la com
a teoria freudiana da sexualidade infantil. Para Freud, a vida
sexual humana começa no peito e, a menos que impedida, apre-
senta um desenvolvimento contínuo durante toda a infância às
formas maduras de união sexual. Existem duas correntes neste
desenvolvimento – a “corrente afetiva da infância” e a “corrente
sensual da puberdade”. A sexualidade do adulto é um resul-
tado dos dois movimentos, de modo que se eles falharem em
convergir, “o resultado freqüente é que um dos ideais da vida
sexual, a focalização de todo desejo sobre um único objeto, será
inatingível”.272
Como essa observação indica, Freud estava ciente dos fatos
da sexualidade madura, e em vários ensaios (nomeadamente em
“The Tendency to Debasement in Love”)273 ele arriscou expli-
cações sobre alguns dos aspectos mais sutis da resposta sexual
humana, em termos que são nitidamente interpessoais, e que
estão ligados à teoria da sexualidade infantil por dogmas. No
entanto, Freud continuou convencido de que os fatos sociais do
apego sexual poderiam, em última instância, ser vistos como
consequências naturais de uma força instintiva.
As idéias centrais da teoria são duas: a libido e a zona eróge-
na. A libido é concebida como uma força que pode se juntar a
vários objetos, e que também tem um objetivo definido. A zona
erógena efetua o processo de ligação entre desejo e objeto, asso-
ciando o objeto com o alívio localizado que a libido tem como
objetivo. Obviamente a teoria resultante é uma caricatura do
desejo sexual conforme descrevi. No entanto, pode ainda ser
um relato preciso da base fisiológica subjacente do desejo; se as-
sim for, terá, obviamente, importantes consequências tanto para
a teoria do desejo quanto para a teoria da moralidade sexual.

272 Freud, “Three Essays” p. 119.


273 “On the Universal Tendency to Debasement in the Sphere of Love” (1912), em On
Sexuality, p. 243-60.

280
capítulo 7 - a ciência do sexo

Crítica: a libido
Parece-me que ambas as idéias centrais de Freud são incoe-
rentes. Devemos compreender a libido como instinto, que busca
a liberação da “tensão sexual” acumulada através de estímulos
sensoriais de alguma “zona erógena”, e ao mesmo tempo como
uma paixão, dirigida para um objeto, cujos objetivo e gratifica-
ção são inseparáveis ​​da concepção do sujeito de si mesmo, do
outro e da relação que os une. (Pois de que outra forma a proi-
bição do incesto seria vista como uma proibição da “liberação
sexual” com a mãe?) Freud menciona a analogia com a fome –
mas ou ele nunca passou fome, ou então (como ele certa vez ad-
mitiu parcialmente), nunca esteve familiarizado com o desejo.
Eu posso querer me sentar para jantar apenas com aqueles cuja
companhia eu aprecio, e isso certamente dará uma característi-
ca moral importante para os meus hábitos alimentares, e uma
razão para me abster até o momento certo. Mas minha atitude
em relação ao meu amigo, e em relação ao meu bife, são duas
coisas completamente distintas. Eu não busco a companhia do
meu amigo por fome, ou o bife por amizade; nem o meu prazer
pela companhia de meu amigo contém, como componente, o
meu prazer pelo bife. Estas duas atitudes díspares nunca pode-
riam se combinar em uma só, uma vez que suas estruturas in-
tencionais não são congruentes. A amizade é fundada nos pen-
samentos e crenças sobre meu amigo, e se manifesta no desejo
pela sua companhia. É uma atitude interpessoal que visa funda-
mentalmente a reciprocidade, e em que os pensamentos do eu
e do outro são integrantes ao objetivo. Por outro lado, o desejo
pelo bife não precisa envolver nenhuma concepção especial do
eu ou do bife (de que outra forma os animais sentiriam fome?).
Não é interpessoal; nem está fundado em qualquer pensamen-
to além do “aqui, diante de mim, está a comida”. O apetite
acalmado pelo bife poderia ter sido igualmente satisfeito por
qualquer outro objeto relevantemente semelhante, e o prazer de
comê-lo está em sensações localizadas que podem ser experi-
mentadas sem pensar. É inconcebível que esta estrutura inten-
cional possa realmente ser incorporada dentro daquela outra
estrutura que descrevi como amizade – nem mesmo no caso
imaginário, descrito no Capítulo 4, quando nada pode ser co-
mido além dos amigos.

281
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Para Freud, no entanto, a libido deve possuir ambas as for-


mas de intencionalidade. É inicialmente concebida no modelo
da fome – a busca de satisfações corporais que compartilhamos
com criaturas que não são pessoas, e que não tem nenhum ob-
jetivo que não a gratificação local. É esta “força” que, acredita
Freud, “invade” nossa vida pessoal, e ressurge na pessoa ma-
dura como desejo sexual. Mas como essa força pode adquirir a
estrutura intencional do desejo? Mais uma vez, Freud recorre à
metáfora, argumentando que a libido “catexiza” (besetze) um
determinado objeto, e por isso concentra a sua energia em uma
determinada direção. Às vezes, esse apego da libido ao objeto
é descrito como uma “incorporação” do objeto;274 por vezes,
diz-se que a libido é especialmente “adesiva”.275 Metáforas se-
melhantes foram utilizadas pelos discípulos de Freud, nomea-
damente por Melanie Klein em sua teoria do “objeto parcial”,
pelo qual a criança atribui suas inclinações sexuais ao peito.276
Mas o que essas metáforas significam? O que significa a libido
estar “apegada” a um objeto? É precisamente isto o que uma
teoria do desejo deve explicar.
Freud lida com o problema da seguinte maneira. Ele vê que a
tarefa principal da sua teoria é explicar como a libido generali-
zada (a “libido do ego”) da criança se transforma na “libido do
objeto” do verdadeiro desejo sexual.277 Isso acontece, de acordo
com Freud, quando “se concentra nos objetos, apegando-se a
eles ou abandonando-os, passando de um objeto para outro e, a
partir dessas situações, dirigindo a atividade sexual do sujeito,
que leva à satisfação, ou seja, à extinção parcial e temporária,
da libido”.278
Podemos ver nessa passagem a medida com que, quando
Freud deseja promover uma conclusão, ele começa por assumi
-la. Ele assume que a satisfação da libido consiste na extinção,
como na extinção da fome – e, assim, o objetivo da libido é
comparável ao da fome. E ele assume igualmente que a inten-

274 Por exemplo, na edição de 1915 dos “Three Essays”.


275 Ver, por exemplo, “Analysis Terminable and Interminable” (1937), em Collected Papers,
tr. J. Riviere, Nova York e Londres, 1924-50, Vol. V, p. 344.
276 Melanie Klein, Envy and Gratitude.
277 “Three Essays”, p. 139.
278 Ibid.

282
capítulo 7 - a ciência do sexo

cionalidade da libido é uma forma de “concentração” sobre um


objeto, e que “dirige a atividade sexual do sujeito”. Mas a ques-
tão era precisamente como ambas poderiam ser verdade. Como
é que uma força com a primeira característica (um objetivo ape-
titivo) também pode ter a segunda (uma intencionalidade eró-
tica)? Freud, sob o pretexto de uma teoria, contrabandeou sua
conclusão: que a libido – essa força essencialmente instintiva
– também pode ser exemplificada como um desejo por esta pes-
soa, e numa procura por esta pessoa. Mas isso é precisamente
o que os movimentos básicos da teoria de Freud nos dão razão
para duvidar. Pois aqueles movimentos situam a libido fora do
reino das atitudes interpessoais; permanece totalmente inexpli-
cável como essa força apetitiva poderia adquirir a intencionali-
dade de tal atitude, ou mesmo alguma outra forma de genuíno
direcionamento ao objeto, sem se desnaturalizar.
Se voltarmos agora para nossas críticas anteriores, podemos
ver mais claramente por que as metáforas de Freud eram neces-
sárias, se sua teoria aparentasse explicar o que se propõe expli-
car. A relação da libido ao seu objeto, enquanto concebida em
termos de uma idéia química de “adesão” ou “catexia”, deveria
explicar a intencionalidade sexual. Ela parece explicar a inten-
cionalidade sexual, no entanto, só porque a metáfora da “ade-
são” não é literal – só porque assumimos que seja uma idéia
de intencionalidade. Parece que podemos explicar a fixação de
um homem por essa mulher, que é como sua mãe, referindo-se
a uma libido que se desvinculou de um objeto e, em seguida,
“catexizou” outro. Mas no sentido “intencional” de “objeto”,
nenhum estado do desejo poderia fazer tal coisa. E se houver al-
gum impulso subjacente que “adere” agora a isso, depois àqui-
lo, então, a coisa aderida não é, por esta única razão, o objeto
intencional de qualquer estado particular da mente. (Pensar o
contrário é confundir relações materiais com intencionais: vide
Apêndice 2.) A maneira mais óbvia de tornar a metáfora da “ca-
texia” literal, em função da ativação imediata de centros nervo-
sos, priva-nos de todos os motivos para acreditar que a teoria
da adesão é também uma teoria da transferência intencional.
Mesmo que pudesse ser demonstrado que uma força instin-
tiva, respondendo à “libido” de Freud, anima a vida sexual das
pessoas, o próprio fato de que a estrutura intencional do desejo

283
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

impede que essa força a possua é suficiente para afastá-la da


eminência moral a que recentemente foi elevada. Em particular,
a metáfora hidráulica – a metáfora de uma maré ou onda de
sentimento, que é “represada”, “engarrafadas”, “bloqueada” e
“liberada” – este, o pensamento central da moralidade liber-
tária moderna (como exemplificado, por exemplo, na obra de
Reich e Norman O. Brown),279 deixa de ter qualquer influência
sobre a questão da conduta sexual. O fato de a minha libido
estar “engarrafada” não tem mais relevância para a questão se
é certo fazer amor com esta mulher diante de mim do que o
fato da minha adrenalina estar “engarrafada” para a questão
de saber se eu deveria estar zangado com ela. Pensar no desejo
sexual nestes termos é construir uma moralidade de desculpas,
mas sem uma lei moral.

Crítica: a zona erógena


Consideremos agora a segunda idéia dominante da teoria
da sexualidade infantil de Freud – a idéia da “zona erógena”.
O termo é tomado do francês – zones érogènes – e foi intro-
duzido pelo médico Ernest Chambard em 1881.280 Desde en-
tão, a “doutrina das zonas erógenas”, como Havelock Ellis a
chamava, teve sequência tanto dentro como fora do campo de
psicanálise, e é comparável, em sua influência e em seu charla-
tanismo, à alquimia, à frenologia e ao estruturalismo. A teoria
da zona erógena de Freud se baseia precisamente na mesma
confusão que sua teoria da libido. Acontece que essas zonas de-
vem ser tanto o lugar do prazer sexual – um prazer semelhante
(para Freud) a se coçar – e também, pela mesmíssima razão, o
lugar da excitação sexual, com a intencionalidade interpessoal
que isso implica. Freud tenta várias vezes definir a zona eróge-
na, mas as definições acabam tendo uma qualidade tautológi-
ca peculiar: elas só podem ser entendidas em termos de uma
idéia prévia de excitação sexual, e nunca são autoexplicativas.

279 Wilhelm Reich, The Function of the Orgasm; Norman O. Brown, Life Against Death,
Londres, 1959.
280 E. Chambard, Du somnambulisme, Paris, 1881. Ver a discussão em Havelock Ellis, “The
Doctrine of Erotogenic Zones”, Studies in the Psychology of Sex, vol. VII, Filadélfia,
1928, p. 111-20.

284
capítulo 7 - a ciência do sexo

A zona erógena é considerada um “aparelho subordinado aos


órgãos genitais e um substituto para eles”. 281 Em seguida, é dito
ser “uma parte da pele ou membrana mucosa em que estímulos
de certo tipo evocam um sentimento de prazer que possui uma
qualidade particular”.282 A referência à “qualidade especial” da
experiência (quando é uma “intencionalidade particular” que
tem de ser explicada) é uma reminiscência do relato de Hume
da relação entre impressões e idéias.283 É um índice claro do fato
de que Freud expressou o problema da sexualidade humana em
função da solução que ele defende. Sua “prova” posterior de
que o prazer da criança no peito é uma espécie de prazer erótico
repousa em um movimento meramente associativo – um desli-
ze da língua ou lábio. O lábio, diz ele, é uma “zona erógena”,
porque causa prazer de uma “qualidade especial”. O prazer de
sugar a mama também está localizado nos lábios. Ergo, é pra-
zer dessa “qualidade especial”, e, portanto, “sexual”.284 Se você
precisar de mais provas, Freud oferece a famosa, mas ainda não
notória, passagem:
Ninguém que tenha visto um bebê se afundando saciado no peito
e adormecendo com as bochechas coradas e um sorriso de felicidade
pode escapar à reflexão de que esta imagem persiste como um
protótipo da expressão de satisfação sexual mais tarde na vida. 285

(Por que, alguém pode perguntar, a expressão do bebê não é


o protótipo de um cochilo pós-prandial? Como disse Pope: “Em
tempestuoso instante, Bentley não navega / Em águas turvas;
repousa, então, no porto”:286 Dunciad.)

281 Freud, “Three Essays”, p. 84.


282 Ibid., p. 99.
283 A teoria de Hume de que uma “idéia” (ou seja, qualquer conteúdo mental intelectual)
é, e deve ser, o lembrete desvanecente de uma “impressão” aparece na Investigação sobre
o Entendimento Humano, 1748, seção 2. O efeito desastroso dessa teoria, que obliterou
a distinção entre processos sensoriais e intelectuais e que efetivamente removeu a
possibilidade de explicar a intencionalidade desses últimos, tem sido uma questão de
frequente comentário filosófico, desde que Kant a demoliu em The Critique of Pure
Reason (1781, 1787), tr. Norman Kemp Smith, Londres, 1929.
284 “Three Essays”, p. 125.
285 Ibid., p. 98.
286 “Where Bentley late tempestuous wont to sport / In troubled waters, but now sleeps in
port”.

285
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Se alguém protesta contra essa passagem de Freud, não é só


por causa de sua natureza totalmente espúria enquanto ciência
empírica, mas por causa de sua cegueira para distinções reais
nas coisas mesmas. O movimento intelectual é o seguinte: A é
notavelmente semelhante a B; B é mais primitivo do que A; por-
tanto, B mostra a essência de A. Só desta forma pode-se chegar
à conclusão de que o formigamento de certas membranas mu-
cosas constitui a experiência fundamental do sexo. As conclu-
sões absurdas a que tal raciocínio pode levar são bem ilustradas
na visão de Freud de que o olho é uma zona erógena. Pois, afi-
nal, não é o olho nossa fonte de prazer quando contemplamos
o objeto de desejo?287 Mas, como é imediatamente evidente, os
prazeres da visão não são prazeres da sensação, mas prazeres
da percepção. Eles têm precisamente essa dimensão epistêmica
que pertence à excitação sexual. Pensar que o prazer pela visão
de uma pessoa desejável está “no olho” (da mesma forma que
o prazer do bebê no peito está “na boca”) é cometer um grave
erro filosófico. É confundir percepção com sensação, e os pra-
zeres do entendimento com os prazeres da carne. No entanto,
de outra maneira, Freud está certo. O olho é o veículo da exci-
tação sexual, precisamente porque a excitação é uma condição
epistêmica: é um estado de alerta em relação ao outro, com
base na percepção de sua forma encarnada. Mas o olho não é,
como veículo de excitação, uma “zona de prazer”. É, antes, um
“canal de comunicação”, através do qual a intencionalidade da
excitação pode começar a fluir. O que faz do olho “erógeno”
é precisamente o que o impede de ser uma “zona” – um lugar
onde o prazer reside.
Tão grande é o apego de Freud ao conceito de zona erógena
que ele permite que as mãos também pertençam à categoria; de
fato, ele afirma em um ponto que é “provável que qualquer parte

287 Ibid., p. 130. É evidente que há uma distinção entre as sensações sentidas no olho e as
percepções sentidas pelo olho. Alguns filósofos dizem que a percepção não envolve,
e portanto não é uma forma de, sensação (e. g. D. M. Armstrong, Bodily Sensations,
Londres, 1962). Mesmo que discordemos disso, (ver, por exemplo, Christopher
Peacocke, Sense and Content, Oxford, 1983), devemos reconhecer que um prazer da
percepção é uma coisa radicalmente diferente de um prazer da sensação. Como T. de
Aquino persuasivamente defende, o primeiro pode incluir prazeres estéticos (prazeres
envolvidos no reconhecimento da beleza), enquanto o segundo não pode (Summa
Theologica, 1a, 2ae, 27, I) Vou discutir novamente esse ponto no Capítulo 8.

286
capítulo 7 - a ciência do sexo

da pele e qualquer órgão sensorial – provavelmente, na verdade,


qualquer órgão – pode funcionar como uma zona erógena”.288
Em outras palavras, esse prazer possuir uma “qualidade espe-
cial” – o prazer definitivo do impulso sexual – pode ser sentido
em qualquer parte! Se for assim, alguém pode ficar tentado a
acrescentar: “É porque na realidade ele não é sentido em parte
alguma”. Não é um prazer localizado, sensorial em absoluto,
mesmo que seja (em certos momentos e por determinadas ra-
zões) acompanhado por tais prazeres. É um prazer intencional,
que não deve ser caracterizado em termos de sensações, mas em
termos de uma postura intencional em direção ao objeto sexual.
A cegueira de Freud para o fato da intencionalidade – ou
melhor, sua redução da intencionalidade à “adesão” química
– dá origem às descrições mais implausíveis. O toque no ato
de amor é explicado em termos de sensações tácteis agradá-
veis;289 seu papel como instrumento de união e conhecimento
é totalmente ignorado. Na sublimação, aprendemos, a curio-
sidade sexual é “deslocada dos genitais para a forma do corpo
como um todo”.290 No entanto, é apenas a própria disposição
de Freud para acreditar que os órgãos genitais, como a “zona
erógena” primordial, são o verdadeiro foco do desejo que o leva
a acreditar que isso deve ser assim. A experiência comum su-
gere exatamente o oposto. A excitação, que se foca à primeira
vista em todo o ser do outro, gradualmente, e no curso da ex-
citação, muda de posição para os órgãos genitais. (E mesmo
isso é uma descrição que ninguém, no curso da excitação, reco-
nheceria como uma caricatura de sua experiência.) A teoria de
Freud exibe uma espécie de obsessão falocêntrica, que descreve
não os desejos dos adultos, mas apenas a curiosidade da crian-
ça. Ao descrever as cócegas infantis nos termos do desejo adul-
to, Freud tenta induzir a crença de que a curiosidade infantil
é realmente a principal raiz da conduta sexual. Mas a teoria
ainda não passa de um mito.
O propósito de Freud em introduzir os dois conceitos – da libi-
do e da zona erógena – é, portanto, demonstrar o que ele acredita

288 “Three Essays”, p. 157.


289 Ibid., p. 69.
290 Ibid.

287
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ser uma continuidade entre a sexualidade infantil e a adulta –


entre a “sexualidade” da sensação, como se poderia chamá-la, e
a sexualidade do desejo. De certa forma, ele reconhece que não
foi bem-sucedido. Pois ele introduz uma distinção entre duas
“correntes” no desenvolvimento sexual – a corrente “afetuosa”
da infância e a corrente “sensual” da puberdade. (Ver acima, p.
159.) Mas esta distinção é lançada nos mesmos termos hidráuli-
cos como o resto da teoria de Freud, e novamente não consegue
explicar a intencionalidade peculiar do desejo.

A voz freudiana
Tal é o caráter dos escritos de Freud – sua capacidade de
proclamar absurdos especulativos no tom de voz apropriado à
ciência meticulosa – e muitos escritores se dispuseram a aceitar
sua palavra, a adotar suas certezas factícias como próprias, e a
supor que o mistério do desejo foi resolvido por sua redescrição
de prazeres infantis como se fossem a verdadeira base da ânsia
do adulto. Os leitores dos trabalhos de Freud são constante-
mente lembrados de que “a ciência tem demonstrado”, que “as
evidências provam conclusivamente”, que “não há mais sombra
de dúvida”; e àqueles que questionam é dito que eles estão “re-
sistindo” a uma verdade desconfortável. O charlatão curioso é
“o médico”, e esses “pacientes” que se dão a liberdade de duvi-
dar de seu diagnóstico são encarados com piedade ou irritação,
e só dão cada vez mais provas de sua perturbação.291 Há uma
recusa quase gramatical de hesitação; as “observações” são re-
latadas como se tratassem de questões publicamente observá-
veis e incontestáveis como
​​ mudanças no clima ou migrações de
aves, enquanto sua linguagem é a da fantasia mais louca. O que
se segue não é atípico:
As catexias de objeto são abandonadas [na solução normal ao
complexo de Édipo] e substituídas pela identificação. A autoridade
do pai ou dos pais é introjetada no ego e forma o núcleo do superego,

291 Assim, entre os treze critérios básicos de “resistência” à análise, Madison (Freud’s
Concept of Repression and Defense, p. 69) lista os seguintes: “expressar uma oposição
intelectual à teoria da psicanálise com fundamentos científicos”; “experimentar
sensações desagradáveis durante a terapia”; e até “desenvolver um interesse teórico na
psicanálise e querer ser instruído na teoria pelo terapeuta”!

288
capítulo 7 - a ciência do sexo

extraindo sua severidade do pai, perpetuando a proibição contra o


incesto, assegurando, assim, o ego contra uma recorrência da catexia
de objeto libidinal. As tendências libidinais pertencentes ao complexo
de Édipo são, em parte, dessexualizadas e sublimadas, o que
provavelmente acontece com toda transformação em identificação;
elas são parcialmente inibidas em seu objetivo, e convertidas em
sentimentos afetuosos. Todo o processo, por um lado, preserva
o órgão genital, afasta o perigo de perturbá-lo; por outro lado, o
paralisa, tira dele sua função. Este processo introduz o período de
latência, que interrompe o desenvolvimento sexual da criança.292

A passagem é notável pela sua combinação de um tom in-


cessantemente assertivo com declarações do idioma extraordi-
nário do autor que resistem à tradução. Só alguém iniciado no
mito freudiano seria capaz de compreendê-las, e ainda assim
não saberia justificá-las – como justificar, por exemplo, a única
ocorrência de “provavelmente”, ou a absoluta certeza com que
declarações restantes são feitas. Bem pode Freud acusar o cético
de “resistência”: não há uma dose de resistência aqui também,
resistência à atividade de confirmação cooperativa que exigiria
a formulação de suas hipóteses em um idioma independente de
suas próprias conclusões?
A passagem, porém, introduz outro tema: um que quase
não apareceu em minha discussão anterior. Não só a percep-
ção do desejo adulto foi corrompida pela “infantilidade” de
Freud. Isso também aconteceu com nossa percepção da sexu-
alidade da criança. A criança já não é mais inocente aos nos-
sos olhos: pois os pequenos prazeres que a empolgam foram
redescritos em termos de estratégias, triunfos e humilhações
do desejo adulto. Longe de remover o estigma da vergonha da
sexualidade infantil, a influência de Freud a aumentou, preci-
samente por fundar o mito de que a criança é motivada por
formas (por mais “primitivas” que sejam) de excitação sexual,
ciúme sexual e desejo sexual – que cada menino secretamente
contempla o crime de Édipo.
Mas temos de reconhecer o poder das imagens de Freud – e
não é apenas um poder que nos dá nojo. Apesar (ou talvez por
causa) de sua base não científica, a teoria da sexualidade infan-
til (e, em particular, a idéia do pequeno Édipo, forçado por sua

292 New Introductory Lectures on Psychoanalysis, Nova York, 1933, p. 126-7.

289
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

dependência a um amor trágico) provou ser altamente persua-


siva. As pessoas se sentem irresistivelmente impelidas a ver sua
situação em termos que lhes são oferecidos por Freud. Vamos
tentar explicar por que isso acontece.
É necessário, agora, distinguir a teoria científica da psicanáli-
se da terapia associada a ela. A primeira é um fracasso, mas sua
falsidade e confusão não a impedem de exercer uma influência
importante sobre a prática terapêutica. Em um discurso escla-
recedor, Wittgenstein defende que, para Freud, o critério clínico
da “análise correta” não é tanto o sucesso da “cura” quanto a
aceitação, pelo paciente, da interpretação que lhe é oferecida, e
que contém, supõe-se, o segredo da sua cura.293 A aceitação do
paciente não deve ser meramente passiva: não deve ser do tipo
“suponho que você esteja certo”. Em vez disso, ele deve ser le-
vado a adotar a descrição do analista, de modo a ver o seu pró-
prio comportamento nesses termos: “Sim, isso é o que eu sinto”.
O paciente é como a pessoa que está à procura de uma palavra
(que poderia estar “na ponta da língua”) que acaba sendo ofe-
recida por outrem. Em seguida, ele usa a palavra oferecida com
total convicção: é impositiva para ele, a verdadeira expressão
“do que ele quis dizer”. O processo de descoberta aqui não é
como o do cientista; ao invés disso, ele tem toda a espontanei-
dade e urgência de uma decisão. O sujeito toma posse da pala-
vra sem questionar, e sabe imediatamente e incorrigivelmente
que isso é o que ele quis dizer.294 Ele não pode estar errado neste
julgamento; apenas não é sincero. (Cf. a discussão atribuição da
primeira pessoa no Capítulo 3.)
Da mesma forma, o paciente vem para ver, na descrição do
analista, uma confissão oferecida que ele assume e torna pró-
pria. A interpretação torna-se imperativa. Ele acredita com uma
espécie de certeza de primeira-pessoa que isso é o que ele sente.
Se o que ele diz como resultado da persuasão do analista é falso,
não é falso por ser errado, mas por não ser sincero. Freud ex-
plica este processo como “trazer para a consciência” um estado
que estava anteriormente inconsciente. Mas não há necessidade

293 Wittgenstein, Lectures and Conversations, p. 18.


294 Cf. John Casey, “The Autonomy of Art”, em Philosophy and the Arts, Royal Institute of
Philosophy Lectures, vol. VI, Londres, 1973.

290
capítulo 7 - a ciência do sexo

de dizê-lo. Pode-se igualmente chamá-lo de um processo de per-


suasão mental, em que a qualidade da experiência do paciente
é alterada. Pois o critério da existência de conteúdo latente ou
inconsciente é precisamente a (atrasada) disponibilidade da au-
toexpressão impositiva que é o critério da consciência. (Um es-
tado mental consciente é simplesmente um sobre o qual há um
ponto de vista de primeira-pessoa.)
A interpretação freudiana dos sonhos parece usar um cri-
tério similar de validade. O critério é que o sujeito está prepa-
rado para aceitar, e não da forma objetiva e hesitante de um
observador científico, mas da maneira imediata e impositiva da
perspectiva de primeira-pessoa. Como colocou Wittgenstein, o
analista convence o sujeito a “ressonhar seu sonho”. Ele é le-
vado a dizer: “Isso é o que eu realmente sonhei”. Se a análise
for “bem-sucedida”, o relatório resultante será uma expressão
sincera de uma memória (induzida). Os vários ensaios previstos
por Freud para a “resistência” durante a análise podem ser vis-
tos como indicativos de maneiras pelas quais uma redescrição
analítica da condição do paciente pode ou falhar em emergir ou
falhar em ser adotada pelo paciente como a expressão oficial de
seu estado mental.
A análise, naturalmente, não é uma coisa simples. Mas pare-
ce que o processo recém descrito ocorre no decurso da mesma,
e proporciona uma das suas principais fontes de autoridade.
Note primeiro que o processo em nada depende da verdade da
teoria “científica” que examinei – embora possa ser facilitado
pela disposição do paciente a acreditar na teoria. Note tam-
bém que o principal objetivo do processo não é fornecer uma
explicação do estado de espírito do paciente, mas induzi-lo a
alterá-lo, por entendê-lo de forma diferente. (A idéia do incons-
ciente claramente ajuda-o a fazer isso. É mais fácil adquirir uma
sensação dolorosa se você acreditar que você já a tem “incons-
cientemente”, pois assim você não tem culpa. A psicanálise tem
uma capacidade poderosa de dispensar absolvição por nossas
emoções criminosas.) Em outras palavras, a análise visa alterar
o entendimento intencional do paciente, proporcionando uma
“maneira de ver” alternativa. Ela ter sucesso nisso revela im-
portantes verdades sobre a natureza humana. Em particular, a
experiência precoce de amor dos pais parece ter uma influência

291
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

sobre o desenvolvimento sexual e sobre a escolha final do obje-


to sexual. Admitir isso é não admitir a teoria completa do com-
plexo de Édipo: é reconhecer apenas que a intencionalidade do
desejo não brota em nós sem preparo, mas é o resultado de um
processo e uma história que determinam sua direção.
A abordagem freudiana também toca em um grande proble-
ma na teoria do desejo: a proibição do incesto. Talvez não haja
melhor maneira de ver a divergência entre a teoria freudiana e
os cânones da investigação científica do que comparar a expli-
cação freudiana e a sociobiológica sobre o “tabu do incesto”.
O sociobiólogo explica isso como uma característica da espé-
cie. Uma raça que não tenha esse tabu vai se degenerar através
de cruzamentos internos; portanto, aqueles que o tiverem serão
preferencialmente dotados na luta pela sobrevivência. Tal expli-
cação ignora o conteúdo mental do sujeito. Ela não diz nada so-
bre o tipo preciso de aversão que ele sente em relação ao inces-
to. (Ele pode achar que é moralmente ultrajante, esteticamente
desagradável, simplesmente desagradável – ou o incesto pode
nunca cruzar sua mente como uma possibilidade real. Cada um
desses estados de espírito tem um bônus evolutivo.) A explica-
ção freudiana, em contraste, está preocupada inteiramente com
o conteúdo intencional da repulsa. Qual é o pensamento subja-
cente que nos afasta desse ato? Quem o proíbe, e por quê?
O legado da psicologia freudiana, então, não é uma ciên-
cia do sexo, mas uma espécie de “revisionismo intencional”. O
teste desta revisão será não a verdade da ciência subjacente,
mas o poder de persuasão do entendimento intencional que o
esconde. Em certa medida, é uma questão moral, o quão longe
nós devemos ser persuadidos a aceitar hábitos de pensamentos
que revêem, desta forma radical, a intencionalidade das nos-
sas respostas mais pessoais. O revisionismo de Freud é, creio
eu, mais prejudicial do que útil. Pois isso naturalmente leva a
uma confusão da experiência sexual, abolindo a barreira entre
a criança e o homem – a barreira da responsabilidade que nós
reconhecemos em todos os outros aspectos de nossa vida pesso-
al, e que também devemos, insisto, reconhecer aqui. Além disso,
Freud dá autoridade a uma idéia perigosa: a idéia de que a sexu-
alidade humana pertence às profundezas de nossa natureza or-
gânica. Ela permanece, por sua natureza interior, uma força das

292
capítulo 7 - a ciência do sexo

profundezas, contra a qual nos protegemos pela construção de


nossas “barragens mentais”, mas que está sempre pronta para
transbordar e nos invadir.
Desta imagem hidráulica surge uma visão particularmente
sedutora do impulso sexual humano. Ele é visto como amoral,
fora da esfera do sentimento e relação pessoais, um apetite que é
desviado do seu propósito interior pelas barreiras de vergonha.
Estamos encantados pela imagem hidráulica de uma maneira
que este “represamento” é intrinsecamente nocivo – como se
segurássemos tudo o que é mais viva em nós, dificultando o seu
desenvolvimento. Quando finalmente irrompe (que, de acordo
com a imagem, é uma questão de tempo), o faz de forma incon-
trolável e destrutiva.
A imagem é uma ilusão. O desejo sexual não é impedido
pela moralidade, mas criado por ela. A atenção para a superfície
humana, em que existe esse fenômeno, mostra que o desejo é es-
sencialmente interpessoal. Ele cresce com o artefato da persona-
lidade, e é moldado e nutrido por essas respostas interpessoais
– a vergonha entre elas – por meio de que nos desenvolvemos
de animais a seres sociais. A vergonha não impede o desejo, mas
apenas suas expressões perversas. E sem a vergonha não há nem
desejo nem qualquer outra forma de união pessoal – só cocei-
ras infantis, que são satisfeitas com facilidade, porque não tem
nada sério para satisfazer.295
Neste capítulo, considerei duas tentativas para uma ciência
do sexo. A primeira falha em lançar luz sobre a natureza do de-
sejo, porque suas explicações obliteram a distinção entre desejo
e instinto. A segunda consegue dar alguma luz, mas apenas na
medida em que revisa nossa compreensão intencional. Quando
a análise freudiana se curva para a ciência, ela se inclina demais.
O resultado é ingênuo, e também perigoso em sua suposição de
que a exploração do que está “escondido” é a exploração do
que realmente somos. Na medida em que as duas teorias perma-
neçam científicas, elas não têm nada a adicionar ao entendimen-

295 É interessante notar que, para a psicanálise, todos esses sentimentos morais são, em
última instância, sistematicamente descartados. Em uma influente e farisaica exposição
de moralidade psicanalítica, J. C. Flugel escreve: “O que chamamos de ‘impedimento
racional’ por parte do indivíduo é (...) outro substituto para tabu.” (Man, Morals and
Society, 1945; Peregrine Edition, Harmondsworth, 1962, p. 163.).

293
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

to intencional em que o desejo é fundado. E quanto mais adi-


cionarem, embelezarem ou sabotarem essa compreensão, maior
será sua falha em se estabelecer como ciência.
Podemos, portanto, pôr de lado a tentativa de resolver os
problemas que nos interessam através de uma ciência do sexo.
Só a Filosofia pode resolver esses problemas, e é à Filosofia que
precisamos nos voltar agora em nossa tentativa de lançar luz
sobre o principal entre eles: o problema do amor.

294
CAPÍTULO 8
AMOR

O tema deste capítulo é o amor erótico, que vou tentar descre-


ver primeiro em relação ao desejo, e depois em relação à vida mo-
ral do ser racional. A segunda parte da discussão será distribuída
ao longo dos capítulos seguintes. Como o assunto é delicado e
obscuro, não posso ter mais esperanças do que de fornecer dire-
trizes. E muito do que vou dizer dependerá de uma compreensão
de uma questão crucial que quase todas as análises tradicionais
da sexualidade falharam em responder ou em propor.
A questão é esta: qual é o lugar do desejo sexual no amor, na
amizade e na estima? Ou é uma parte do amor, caso em que o
amor erótico é muito proposital, e muito focado, para ser uma
forma de amizade; ou não é, caso em que o amor nunca é eróti-
co. Cada resposta dá razão para pensar que o amor erótico não
pode existir – nenhum estado de espírito que seja ao mesmo tem-
po uma forma de amor (em que o amor inclui amizade) e uma
forma de desejo. Na melhor das hipóteses, os dois estados po-
dem estar juntos, como presunto e ervilhas em um único prato.
Nesse caso, pode-se saboreá-las melhor, ou se for melhor para
você, tomá-las de forma independente. Esse foi o argumento de
Sócrates no Banquete de Platão, e que chamarei de “questão de
Platão”, em deferência à maneira inteligente com que Sócrates
primeiro a apresenta e depois a esconde. Devo argumentar, con-
tra Platão, mas de acordo com pelo menos uma tradição neopla-
tônica, que o amor erótico é uma forma de desejo e também uma
forma de amor. E vou dar razões para pensar que a tentativa de
separar os dois “componentes” é, em última análise, destrutiva –
não apenas desse amor, mas talvez também de todo amor.
A discussão da questão é especialmente difícil pelo mau uso
tradicional do termo “amor”, em particular por aqueles – os
295
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

expoentes do amor cortês – que fizeram dele o nome de sua di-


vindade principal. Assim, André Capelão, em sua obra seminal
De arte honeste amandi, define o amor assim:
O amor é um sofrimento inato derivado da visão e da excessiva
meditação sobre a beleza do sexo oposto, o que faz com que cada
um deseje acima de tudo os abraços do outro e, por comum desejo,
realizar todos os preceitos do amor no abraço do outro.296

Por “preceitos do amor” Capelão se refere ao que chamei de


“percurso do desejo”, e a definição é de fato uma definição do
desejo, que corresponde em quase todos os pontos com a defi-
nição que dei. Ao mesmo tempo, Capelão a usa para introduzir
uma discussão de amor. Assim, ele arbitrariamente introduz o
elemento do desejo em sua análise do amor cortês, primeiro
através da definição de amor em seus termos, e em seguida ao
ignorar a definição.
Ainda mais enganosos são os autores (e novamente os prin-
cipais agressores pertencem à tradição do amor cortês) que dei-
xam inteiramente de fora a referência ao desejo e distinguem o
amor erótico simplesmente por sua gênese peculiar – pelo fato
de que sua vítima está ferida pelo amor. Assim, na redescrição
convincente de Dante de seu encontro de infância com Beatriz,
nada distingue esse amor de qualquer outro, além do choque
implosivo do que está para acontecer. Não só o sujeito desse
amor é uma criança de nove anos de idade; o objeto também
o é. E o paroxismo é seguido imediatamente por uma servidão
mais exigente, e não à própria menina, mas ao amor tirano:
Nesse ponto eu realmente declaro que o espírito de vida, que
habita na câmara mais secreta do coração, começou a tremer tanto
que aparecia terrivelmente nos meus pulsos, e tremendo proferiu
estas palavras: Ecce Deus fortior me, qui veniens dominabitur mihi...
Daí em diante, passei a dizer que o Amor detinha domínio sobre
minha alma, que foi tão cedo entregue a ele, e ele começou a ter
sobre mim tanta segurança e tanto domínio, através do poder que a
minha imaginação que lhe concedeu, que fui obrigado a fazer todas
as suas vontades perfeitamente.297

296 Andreas Capellanus, The Art of Courtly Loving, tr. e ed. J. J. Parry, Nova York, 1941,
p. 28.
297 Dante, Vita Nuova, cap. 2.

296
capítulo 8 - amor

Uma criança ser abordada por sua voz interior em latim é, de


certa forma, a parte menos surpreendente da experiência. Dante
estava completamente certo em pensar que o aspecto mais sig-
nificativo do fenômeno é também o que é mais familiar: o fato
de que alguém é obrigado a amar pela simples visão da outra
pessoa. Apenas observar este fato, porém, não é dar nenhuma
explicação, quer da natureza erótica da paixão ou da nossa dis-
posição para descrevê-la como uma forma de amor.
A filosofia do amor cortês tem um motivo ideológico. E, des-
de o início da filosofia, o amor tem sido igualmente ligado à de-
voção religiosa, à redenção, ao casamento e à criação dos filhos,
por aqueles que desejavam unir suas excitações a alguma causa
“superior”. Para aqueles que consideram este “carácter ideo-
lógico” do amor implausível, ainda tem sido habitual, senão
justificar, pelo menos explicar, o problema do amor, descreven-
do-o como uma “paixão” cataclísmica. De Capelão a Denis de
Rougemont, a ênfase não tem sido sobre o amor erótico (amor
transformado pelo desejo), mas sobre a restrição apaixonada
de amor – amour-passion de Stendhal. Para Capelão, o amor só
existe na medida em que ele está escondido, proibido e furtivo.
Além disso, ele insiste, ele se alimenta de inveja, é destruído
pela exposição, e não pode existir entre marido e mulher. Assim
é o amor de Tristão e Isolda, tanto no romance medieval e no
drama musical de Wagner. Além disso, como de Rougemont co-
locou muito bem, o amor apaixonado continua a existir como
um mito recorrente na literatura ocidental, mas apenas na me-
dida em que novas interdições podem ser descobertas, colocan-
do obstáculos intoleráveis ​​ante ele – interdições que simulam
o poder e a autoridade da antiga lei contra o adultério. As in-
vocações mais poderosas do erōs na literatura moderna tratam
de incesto (Wagner, Musil em Der Mann ohne Eigenschaften),
de amor por uma ninfeta (Lolita), ou de um amor que já não
é tão proibido entre duas mulheres, ou dois homens (Proust,
Genet).298
Tais especulações, embora compreendam a massa escrita
sobre este assunto, são irrelevantes para a teoria do amor. A

298 Sobre esse tema, ver as exageradas teorias de Denis de Rougemont em Passion and
Society, tr. M. Belgion, edição revisada, Londres, 1956; e Comme toi-même, Paris, 1961,
tr. como The Myths of Love, por R. Howard, Londres, 1964.

297
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

paixão pode realmente exigir a interdição severa de um Rei


Marcos, ou da lei moral que ele personifica; mas isso é um fato
sobre a paixão, e não sobre o amor. Alguns, incluindo Denis de
Rougemont e C. S. Lewis (em The Allegory of Love), argumen-
taram que o amor apaixonado só existe localmente. Muitos vão
mais longe, subscrevendo a visão de que o “amor romântico”
foi inventado apenas em nome, e que, sendo ou não o resultado
do “Ovídio incompreendido”, não existia antes do século XII.
(J. Huizinga em O Declínio da Idade Média, e Bertrand Russell
em O Casamento e a Moral.) Eu duvido que isso seja verdade.
As literaturas japonesa e persa fornecem abundantes provas em
contrário; nossa própria literatura clássica também está reple-
ta dessas histórias – Orfeu e Eurídice, Dafne e Cloé, Dido and
Enéas, Haemon na Antígona de Sófocles e a apresentação alegó-
rica de Cupido e Psiquê de Apuleio – que são tão “românticas”
quanto qualquer coisa de Chaucer ou Boccaccio. Mas mesmo
que fosse verdade, só mostraria quão pouco o amour-passion é
relevante ao nosso assunto, e o quanto é uma restrição localiza-
da do amor, e não o amor mesmo. Se o amor entre mãe e filho
fosse proibido – como no Admirável Mundo Novo – também
seria um veículo da paixão mais conturbada. O interesse na pai-
xão é parte de uma tendência perigosa em supor que o exemplo
central de um fenômeno é aquele em que os seus efeitos são
mais vivos ou extremos. Esta busca pelo patológico também
é um desgosto nada filosófico pelo normal. É importante não
compartilhar, nem respeitar muito, a sua motivação intelectual.
O movimento romântico não inventou o amor erótico; mas in-
ventou a percepção corrupta do amor, que busca a essência do
amor na doença de amor, e pensa que a vermelhidão da febre é
o rubor da saúde.

A questão de Platão
O que dá tanta força à questão de Platão? O amor implica
todo o ser do amante, e deseja todo o ser da pessoa amada. A
encarnação do amado pode ser um objeto crucial de interesse do
amante, mas o amor não pode ser satisfeito nem com a contem-
plação, nem com a posse dessa encarnação no ato de desejo. A
redescrição mística dos dois fenômenos oferece a maneira mais
fácil de uni-los – como quando o neoplatônico descreve o objeti-

298
capítulo 8 - amor

vo de amor como “cópula espiritual”, 299 ou o objetivo do desejo


como “união física”. O amor tem um objetivo separado daquele
do desejo. O amor procura companheirismo, em que o bem-es-
tar mútuo será o propósito comum; é nutrido por conselhos e
conversas, presentes, carinho, lealdade e estima. Além disso, o
amor envolve dependência. Ele não é uma mercadoria que pode
ser recebida ora de um provedor, ora de outro. Amar é adquirir
uma necessidade do outro indivíduo, e desejar um abrigo lá, com
ele. Por isso, onde há amor, há também a certeza da dor.
A resposta de Platão para a questão é bem conhecida. O de-
sejo, acreditava ele, não podia ter lugar no amor. Pois desejo é
uma necessidade física, pertencente à natureza mais básica do
homem, um apetite corporal que nós compartilhamos com os
animais. Sua ligação com o amor é, na melhor das hipóteses,
acidental. O amor erótico é a forma peculiar de amor que pa-
rece ter nascido no desejo, mas que só pode permanecer amor
transcendendo ao desejo. A conclusão é extremamente parado-
xal, por duas razões. Em primeiro lugar, como pode o amor
erótico – a ligação pungente com a alma do outro, que contém,
para Platão, a premonição de todo o bem humano – começar
de uma origem tão básica? E, em segundo lugar, como pode o
desejo, por esse motivo, ser uma expressão de amor?
Platão respondeu a essas questões da seguinte maneira. Em
primeiro lugar, o amor erótico não surge do desejo, mas da per-
cepção da beleza do outro. A beleza é a forma visível de sua
alma imortal, que nos é revelada sensualmente precisamente
desta forma. Em segundo lugar, o desejo não é uma expressão
do amor, mas uma derrogação do amor, que impede o desen-
volvimento do amor, e que deve ser transcendido para o amor
sobreviver. O verdadeiro erōs existe apenas na conquista do de-
sejo. A atração sexual não é nada mais do que uma premonição,
que pode ser desviada para a luxúria, mas também ser refinada
em algo superior. E sua forma refinada – erōs – existe principal-
mente entre pessoas do mesmo sexo, pois só assim o sexo não
tem nada a ver com o seu objetivo. Essas duas respostas for-
mam, entre si, as premissas da mais influente de todas as teorias

299 Essa idéia é enfatizada por Abravanel (Leone Ebreo), The Philosophy of Love (Dialoghi
d’amore), tr. F. Friedburg-Seeley e J. H. Barnes, introdução por C. Roth, Londres, 1937,
p. 41.

299
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

do erótico, segundo a qual o amor é, por sua própria natureza,


definido no caminho da renúncia. O objetivo último do amor é
ou o amor intellectualis Dei – o amor intelectual de Deus – ou a
união espiritual com o outro em uma bem-aventurança que tem
muito em comum com a devoção religiosa (cf. Dante e Beatriz).
O desejo é somente um impedimento para tal amor, e pode ser
erroneamente interpretado como um sinal de amor, só porque o
confundimos com o senso de beleza.
O platonismo é o outro lado do kinseyismo. Ambos estão
baseados no mesmo engano sobre o desejo; o primeiro estende
uma carranca universal, o outro um sorriso universal, para uma
atividade que, na verdade, está integralmente vinculada à tota-
lidade de nossas escolhas morais para ser um objeto adequado
a qualquer dessas atitudes. Em cada caso, a descrição empo-
brecida do desejo torna impossível ver como o desejo pode ser
uma expressão, ou uma forma, de amor. (O mesmo também é
verdadeiro para a tradição agostiniana descrita no Capítulo 5.)
Mas com certeza, embora nem todo desejo expresse amor, al-
guns sim; e esta é uma parte importante da sua estrutura inten-
cional. Além disso, o platonismo, que se oferece para explicar
a natureza do amor erótico, na verdade não o faz. Todo amor,
para este ponto de vista, torna-se reduzido a uma única espécie,
e a peculiaridade do amor erótico consiste meramente em sua
origem – a percepção da beleza – uma origem, além disso, que a
teoria torna completamente ininteligível.
É útil comparar a teoria de Platão a outra, que também des-
creve o amor sexual como uma espécie de estado “composto”
da mente, em que a noção de beleza, o “apetite” sexual e uma
relação interpessoal são incongruentemente amalgamados. Esta
teoria é a de Hume:
É claro que esse carinho, em seu estado mais natural, é derivado
da conjunção de três impressões ou paixões diferentes, a saber: a
sensação agradável resultante da beleza; o apetite corporal pela
geração; e uma generosa bondade ou boa vontade.300

Hume, em seguida, tem o problema de explicar como a sen-


sação da beleza e o “apetite corporal pela geração” podem estar
relacionados. Seu argumento sofre com as limitações conhe-

300 D. Hume, Treatise of Human Nature, livro II, cap. 2, seção XI.

300
capítulo 8 - amor

cidas (transparentemente exibidas no trecho “impressões ou


paixões”) de sua psicologia filosófica. No entanto, é suficien-
temente curioso para merecer citação, mesmo que apenas para
mostrar quão misteriosos os fatos do amor se tornam quando
ao desejo sexual é dada a estrutura de um “apetite” corporal.
Hume começa dizendo que desejos paralelos podem “conectar-
se” mentalmente:
Assim, a fome pode ser considerada como a inclinação primária
da alma, e o desejo de lidar com a carne como secundário, uma vez
que é absolutamente necessário para a satisfação do apetite. Se um
objeto, pois, por quaisquer qualidades distintas, nos inclina a lidar
com a carne, naturalmente aumenta nosso apetite; pelo contrário,
o que quer que nos incline a manter nossos víveres à distância é
contraditório à fome, e diminui a nossa inclinação a eles. Agora, é
claro que a beleza tem o primeiro efeito, e a deformidade o segundo:
essa é a razão de o primeiro nos dar um apetite mais aguçado pelos
nossos mantimentos, e o último ser suficiente para enojar-nos diante
do prato mais saboroso, pela qual a culinária foi inventada. Tudo
isso é facilmente aplicável ao apetite pela geração. 301

A explicação geral é, naturalmente, um absurdo, implicando


que alguém com um interesse científico em excrementos está,
por essa razão, mais inclinado a ingeri-los. A aplicação particu-
lar é ainda mais absurda. Pois que sentido podemos dar a um
“pedaço apetitoso”, cuja preparação compete com sua falta de
beleza? Nenhuma idéia como essa poderia apreender a relação
especial entre o senso de beleza e o movimento do desejo. O
desejo é a homenagem à beleza, e o julgamento da beleza é uma
expressão do conteúdo intencional do desejo. Estes não são dois
estados de espírito, mas um. O mais intolerável de tudo, porém,
é a assimilação de desejo ao apetite – uma assimilação que de
fato exige esta análise “desagregada” do amor, mas que também
faz com que seja impossível representar o desejo como expres-
são do amor. Na visão de Hume, o desejo é tanto a expressão
do amor quanto a propensão a ferver e comer o amado. Pode
haver uma “conexão” entre os estados de espírito, mas apenas
no sentido de haver uma conexão entre uma dor no peito e o
pensamento de que eu devo parar de fumar. Ninguém imagina
que a dor expressa o pensamento, mesmo se (como pode acon-

301 Ibid.

301
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

tecer) seja causada pelo pensamento. Da mesma forma, o desejo


sexual, na análise de Hume, nunca poderia ser uma expressão
do amor, mesmo quando causada por ele.
Claramente, se seguirmos os passos de Platão e Hume, ja-
mais vamos estabelecer uma categoria coerente para o “amor
erótico” – amor que se exprime e é modificado pelo desejo. Va-
mos chegar ou à amálgama descrita por Hume ou ao mistério
revelado por Diotima a Sócrates, em que um mesmo amor, de
alguma forma, ascende a partir do desejo por meninos (pai-
derastein) à contemplação da própria beleza divina: auto to
thēīon kalon dunaito monoēīdes katidein.302 Esta beleza divina
é única e insubstituível; mas apenas porque é o universal hi-
postatizado, alheio ao tempo e à mudança. Por isso, o amor
erótico, para Platão, só é realizado ao deixar de ser o amor por
um ser humano.
A análise que ofereci do desejo sexual evita as dificulda-
des imediatas que confrontam Platão e Hume. No entanto, o
simples fato de que ambos, desejo e amor, têm uma intencio-
nalidade individualizada e interpessoal não é suficiente nem
para provar que o amor erótico pode existir (ou então deveria
provar a existência de ódio erótico, raiva erótica e assim por
diante), nem para mostrar como desejo se limita e se transfor-
ma no foco do amor, justificando a idéia do erōs como uma
espécie separada do mesmo. Temos de mostrar que o desejo
pode ser, por si só e em virtude do que é, uma expressão do
amor, e que o amor é modificado por essa mesma expressão.
Só então teremos feito uma descrição do erótico. Sem essa
descrição, estaremos um passo mais longe de uma moralidade
sexual, cujo contorno é determinado, conforme vou mostrar,
pelas necessidades de amor.

Níveis de amizade
Uma discussão sobre o amor erótico deve começar de uma
discussão sobre o amor. Mas “amor” é uma categoria incerta,
e uma sobre a qual teorias rivais da natureza humana, e mo-
ralidades rivais, apresentam suas reivindicações conflitantes.

302 Platão, Banquete, 211b-212a.

302
capítulo 8 - amor

No inglês shakespeariano, “amor” significa igualmente amor e


amizade, assim como a palavra philia em grego. E ainda assim,
há uma intuição duradoura – refletida na distinção entre erōs
e philia – que amor e amizade não são exatamente a mesma
coisa. Para esclarecer esta questão, portanto, devemos primeiro
examinar a estrutura intencional da amizade.
Em uma discussão famosa,303 Aristóteles distingue três tipos
de amizade, aquelas baseados na utilidade, no prazer e na virtu-
de. Para Aristóteles, e para muitos de seus sucessores, esta dis-
tinção não deriva de um estudo apenas da amizade, mas de uma
teoria da razão prática, que divide razões para a ação em três
tipos distintos (de grosso modo, o útil, o agradável e o bom).
Para os nossos propósitos, no entanto, a teoria da amizade pode
ser discutida independentemente da teoria maior.
O primeiro tipo de amizade, exemplificado nas relações
amigáveis entre as pessoas envolvidas em um empreendimento
comum, é de natureza circunscrita. Como diz Aristóteles, tais
amizades expiram tão logo o objetivo é cumprido (ou, se pa-
recem não expirar, é porque uma amizade de outro tipo surgiu
enquanto isso). Essa fragilidade é peculiar ao primeiro tipo de
amizade, que, na sua forma mínima, não precisa ser mais do
que cortesia comum. A amizade do segundo tipo é exemplifi-
cada no “companheiro alegre”, que é apreciado como Falstaff,
mas, como Falstaff, é rejeitado para coisas mais elevadas. É ten-
tador distinguir os dois tipos de amizade em termos kantianos:
o primeiro trata o outro como um meio, e o que ele contém de
“simpatia” pode ser visto como um caso especial de eficiência:
as pessoas ficam mais propícias, e os negócios são mais rapi-
damente realizados quando você se comporta de uma forma
amigável. Assim, “o interesse fala todas as línguas, e representa
todo tipo de personagem, inclusive o desinteressado” (La Ro-
chefoucauld).304 Se fôssemos rigorosos, poderíamos considerar
que isso seja amizade apenas em um sentido derivado – pois
carece de um elemento que é crucial para as amizades dos tipos
“superiores”: o elemento do “apreço”.

303 Aristóteles, Ética a Nicômaco, livro VIII.


304 “L’intérêt parle toutes sortes de langues, et jous toutes sortes de personages, même celui de
désintéressé” – NT.

303
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Mesmo assim, não é óbvio que a linguagem de Kant seja su-


ficientemente exata para distinguir o primeiro tipo de amizade
do segundo. Embora se possa dizer que o príncipe Hal tratou
Falstaff como um fim – pois riu com ele, e para ele, e procurava
sua companhia sem pensar no companheiro abstrato que seria
“tão bom quanto” – em outro sentido, ele tratou Falstaff como
um meio de prazer (como ele mesmo admite, na verdade, no so-
lilóquio que fecha a segunda cena do Henrique IV, Parte I). Daí
a velocidade com que rejeitou Falstaff, assim que o tempo para
diversão acabou. Falstaff imediatamente se tornou um velho
tolo para Hal, “o tutor e fomentador das minhas revoltas” (I
Henrique IV, V). Ao mesmo tempo, o propósito com que o prín-
cipe Hal abordou Falstaff foi, pelo menos em parte, um propó-
sito “imanente”. (Ver acima, Capítulo 5, p. 80-2.) A diversão de
Hal era diversão por, e não simplesmente por causa de, Falstaff.
Há um erro que prevalece na estética, tipificado pelas dia-
tribes de Collingwood contra a “arte do divertimento”305 e a
rejeição de Croce da estetica del simpatico,306 segundo as quais
atitudes como diversão, simpatia e assim por diante não podem
ter lugar na verdadeira apreciação da arte (ou a apreciação da
verdadeira arte). Estar interessado em alguma coisa “por uma
questão de diversão”, argumenta Collingwood, é estar interes-
sado nela por algo diferente dela; não se está interessado nela
“por ela mesma”, no sentido muito especial dessa frase que se
manifesta pelo interesse estético. O argumento é falacioso, é cla-
ro. Quando eu rio de alguma coisa, eu rio por causa dela, e não
pela própria risada. (Contraste comer.) A diversão é uma espé-
cie de interesse em um objeto “por ele mesmo”. Isso também é
verdade para o segundo tipo de amizade. E esta apreciação por
uma pessoa, embora seja “particular”, no sentido definido no
Capítulo 5, é também fundada em razões. Eu gosto de João por
suas qualidades, que são as razões de minha apreciação, assim
como eu desfruto uma obra de arte por suas qualidades, que
podem ser oferecidos como razões em uma avaliação. Assim,
eu gosto de João por seu temperamento, humor, boa índole ou
inteligência. Mas – se quisermos ser fiéis ao espírito ao invés da
letra da distinção de Kant – dificilmente podemos considerar

305 R. G. Collingwood, Principles of Art, Oxford, 1938, cap. V.


306 B. Croce, Aesthetic, 2ª ed., tr. D. Ainslee, Londres, 1923, cap. XII.

304
capítulo 8 - amor

esse tipo de amizade um caso de apreciar João como um fim


em si mesmo. (Cf. a descrição de Tolstói, em Anna Karenina, do
charme rapidamente esgotável, mas infinitamente renovável de
Oblonsky.) Parece haver casos de interesse em um homem “por
ele mesmo”, que ainda não merecem um rótulo tão digno. O
mínimo que se pode dizer é que a divisão tripartite de Aristóte-
les promete uma compreensão mais fina do que a dicotomia de
Kant – uma dicotomia que, de qualquer forma, já temos razão
para questionar.
Eu posso desfrutar o temperamento de João. Presumivel-
mente, também posso desfrutar suas virtudes. (Na verdade, o
temperamento faz parte da virtude.) Por que então Aristóteles
diferencia o caso especial de amizade fundada na virtude, como
a amizade de um tipo mais elevado? Uma resposta é que eu não
apenas desfruto a virtude do meu amigo; eu também a valorizo.
Alguém que simplesmente gostasse da virtude do outro não se-
ria classificado por Aristóteles em sua terceira categoria de ami-
gos. (Aquele que procurou a companhia do outro simplesmente
para rir de sua virtude certamente não é amigo. Nem a pessoa
que tem um interesse estético na virtude do outro: como Gilbert
Osmond em relação à virtude de Isabel Archer em Retrato de
uma Senhora, de James.) A terceira categoria de amigo distin-
gue-se pelo fato de que as qualidades consideradas interessantes
no amigo também são valorizadas. A amizade com base na va-
lorização do amigo é claramente diferente de amizade fundada
no desfrute dele. Se eu o valorizo por
​​ suas qualidades morais, o
que tenho por você não mera afeição, mas a atitude que apre-
senta na moral kantiana como “estima”.
Kant sem dúvida teria concordado com Aristóteles na dife-
renciação entre a amizade por estima e a amizade por prazer. E
ele teria argumentado que somente neste terceiro tipo de amiza-
de o outro é realmente tratado como um fim em si mesmo. Pois
apenas na atitude da estima eu faço reverência ao que, no meu
amigo, constitui a sua natureza como um fim, que é a sua razão,
conforme exibida em obediência à lei moral. Para os kantianos,
portanto, a distinção tripartite de Aristóteles deve ser recons-
truída nos seguintes termos: Em primeiro lugar, há a amizade de
utilidade, em que o outro é tratado como um meio. Em segundo
lugar, há a amizade que trata o outro como um meio de prazer,

305
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

e por isso mesmo, o aprecia “por ele mesmo”. Em terceiro lugar,


há a amizade que o trata como um fim em si mesmo, no sentido
positivo da expressão. Esta terceira amizade não se baseia no
prazer, mas na estima.

Amizade e estima
Eu proponho aderir à linguagem kantiana, apesar da sua fal-
ta de clareza e apesar da necessidade de alterar a dicotomia
de Kant no sentido sugerido por Aristóteles. A razão é esta: a
teoria moral de Aristóteles está redigida em termos objetivistas,
de modo que, quando ele fala do amor ao amigo por sua virtu-
de, ele tem qualidades muito específicas – coragem, sabedoria,
justiça e assim por diante – em mente, e acredita não só que
estas são as virtudes, mas também que todo ser racional instin-
tivamente as percebe assim.307 Embora Aristóteles esteja certo
(ver Capítulo 11), é falacioso assumir tal coisa. Além disso, sua
distinção entre os tipos de amizade não requer sua moralidade
objetivista. É suficiente distinguir as atitudes de prazer e estima
a fim de fazer a distinção. E isso não envolve nenhum compro-
misso com qualquer teoria objetivista moral.
Além disso, embora a linguagem kantiana esteja associada a
uma teoria que, por confundir distinções importantes, freqüen-
temente ameaça danificar nosso assunto, ela nos alerta imedia-
tamente para um problema central na teoria do amor. O diver-
timento (uma atitude que pode ser vista como ilustrativa do
segundo nível de amizade) é uma atitude particular. A estima,
no entanto, é universal. Eu não posso estimá-lo sem basear a
minha atitude em alguma qualidade que seja o objeto universal
da minha estima. (Daí a visão de Kant que estima é uma espécie
de reverência pela lei moral.) Mas se for assim, pode parecer
que a estima é menos restritivamente focada em seu objeto do
que o divertimento, menos claramente apreciativa do indivíduo
em quem o seu olhar atualmente repousa. (Deve-se notar aqui
que o contraste entre a “universalidade” das atitudes morais e a

307 A busca por uma teoria objetivista da virtude é vista agora sob alguma suspeita, por
razões como as que são dadas por Bernard Williams em Morality, Londres, 1973,
p. 69-76.

306
capítulo 8 - amor

“particularidade” do interesse estético é freqüentemente usado


para definir a distinção entre eles, e para esclarecer o sentido
de que um interesse estético é o interesse em um objeto “por si
mesmo”.)308 Por que, então, a amizade por estima é uma forma
de amizade, quando se baseia precisamente em uma atitude que
se destaca do indivíduo, e o respeita apenas pelas qualidades
que pode igualmente respeitar em outro?
Esta questão ocasionalmente incomodou Kant, que não ficou
nada feliz com uma teoria que parecia atribuir todo o amor
para a parte “patológica” do homem, e toda a estima para a
racional. Ele se viu lutando com uma questão análoga à de Pla-
tão, uma vez que ele desejava tanto unir esses estados de espí-
rito quanto insistir em sua distinção categórica.309 Vemos aqui
outra razão para desagregar a idéia do “objeto individual”. A
distinção aristotélica entre os tipos inferiores e superiores de
amizade corresponde a algo que todos nós instintivamente re-
conhecemos. E, ainda assim, seria sem sentido se o objeto de
estima não fosse verdadeiramente um indivíduo, mas apenas
o atributo universal que fornece uma boa razão para amá-lo.
Retornando brevemente a Platão: o que é mais intolerável na
revelação de Diotima a Sócrates é a sugestão de que o amor eró-
tico, que começa no cálido gozo do indivíduo humano, termina
na contemplação desapaixonada do universal divino. O amor
é transformado de uma paixão viva em uma reflexão abstrata.
Tal amor pode olhar com completa indiferença a destruição da
pessoa que originalmente o inspirou, e ainda manter-se íntegro.
Para Platão, o processo de ver valor no amado é o processo de
esquecê-lo em favor do valor universal que sua contingência só
pode esconder. O paradoxo platônico emerge, então, na teoria
da amizade. (Isto não deveria nos surpreender, uma vez que o
desejo sexual, assim como o divertimento, envolve um movi-
mento em direção à amizade por gozo. A questão de Platão
– como o desejo pode ser uma expressão do amor erótico – re-
fere-se a uma questão mais geral: Como a amizade por estima
pode ser uma forma de amizade?)

308 Ver S. Hampshire, “Logic and Appreciation”, em W. Elton (ed.), Aesthetics and Language,
Oxford, 1954.
309 I. Kant, Foundations of the Metaphisic of Morals, edição da Academia Prussiana, p. 399
et seq.

307
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Evidentemente, o verdadeiro amigo, que é valorizado por


suas virtudes, também é valorizado por si mesmo. Colocando
de outra forma: no ato de estimar suas virtudes, ele também
está sendo estimado. De que maneira essa estima é parte, e fun-
damento, da amizade? Em outras palavras, como entra e qua-
lifica uma atitude de afeição e prazer um objeto que é, de uma
forma não trivial, “indivídual”?
Devemos aqui introduzir uma noção que é crucial para a
teoria da virtude de Aristóteles – a noção de caráter. Certo tipo
de filósofo, quando indagado a respeito da definição de “cará-
ter”, pode dizer o seguinte: o caráter de um homem é a soma
das suas disposições para a ação intencional. Ações que são in-
voluntárias não resultam do caráter, nem aquelas que, embora
voluntárias, não expressam nenhuma disposição duradoura. O
objetivo desta definição é identificar o que o outro invariavel-
mente é, enquanto pessoa.
Como as discussões anteriores mostraram, essa definição fica
aquém do necessário. Se o nosso objetivo é focar na realidade
moral do outro, temos de lançar uma rede mais ampla. Pois,
como o próprio Aristóteles apontou, e como é assumido por
quase todos os códigos legais sensatos, nós somos culpados, e
também louvados, por nossas disposições para a ação involun-
tária. Estas também podem ser produto da educação, e também
podem ser corrigidas, em longo prazo, por uma compreensão
do que fazemos. (Apenas quando isso não é verdade – como no
caso da epilepsia, por exemplo – é que vamos reter todo louvor
e culpa.) Por outro lado, se o nosso objetivo é focar nessas ações
do outro que o revelam como ele é – que revelam a perspecti-
va a partir da qual ele age e sofre – novamente devemos pres-
tar atenção nas ações involuntárias. Como argumentei quando
considerei os sorrisos e os rubores, a conduta involuntária tem
aqui importância primordial.
No Capítulo 3, eu discuti duas características intimamente
ligadas, mas inicialmente distintas, de um indivíduo que for-
mam a base de sua existência como pessoa. As duas caracterís-
ticas são a disposição racional para modificar sua conduta em
resposta à razão, e a perspectiva de primeira-pessoa. A idéia da
pessoa individual, como um centro de ação, que age por si mes-
ma e sofre em si mesma, é composta por essas duas concepções,

308
capítulo 8 - amor

juntamente com a noção crucial da encarnação – da existência


no mundo, como uma entidade material entre outras. Podemos,
portanto, resumir o conceito de pessoa, como apresentado neste
trabalho, em três idéias complexas: responsabilidade, perspec-
tiva e encarnação. As conexões entre essas idéias são profundas
e obscuras, e é um propósito subsidiário deste trabalho para
lançar alguma luz sobre elas. Este propósito é favorecido ao
considerar uma característica das pessoas que já está implícita
nessas três idéias, mas que tem sido de interesse para os filósofos
recentes por razões mais específicas: a característica da durabi-
lidade. As pessoas se estendem no tempo, e o que eles estão em
um momento pesa sobre o que eles foram ou serão em outro.
Este fato é de fundamental importância para o entendimento
da ação racional. Um agente racional tem uma atitude especial
em relação à sua própria duração. As idéias de tempo, e de sua
própria extensão no tempo, formam parte do “dado” de sua ex-
periência.310 A atitude de “assumir responsabilidade” é revelada
igualmente na decisão e no remorso. Embora a nossa durabili-
dade enquanto pessoas depende de nossa durabilidade enquan-
to corpos, a “identidade pessoal” através do tempo não é, ao
que parece, redutível à continuidade corporal.311 Além disso, as
pessoas são essencialmente capazes de aprender, e de responder
a informações e argumentos recebidos do outro. Portanto, uma
pessoa se desenvolve de uma forma que pouco ou nada tem a
ver com o desenvolvimento de seu corpo. Por isso, paralela-
mente à idéia metafísica do eu, como um indivíduo distinto do
organismo corporal que ele habita, surge uma idéia metafísica
da autoidentidade – de nossa duração enquanto pessoas. Esta
idéia representa a nossa história em termos que não se aplicam
à história do nosso corpo, e implica que o eu e o corpo obede-
cem a diferentes leis de desenvolvimento.
Do ponto de vista da terceira-pessoa, nada é revelado de você
ou de sua perspectiva, salvo o que é exibido na sua encarnação.
O mesmo é verdade para sua “autoidentidade”: isso também

310 Essa ênfase na conexão entre a autoconsciência e um senso de identidade ao longo do


tempo é central a muitos dos argumentos de Kant em Critique of Pure Reason (1781,
1787), tr. Norman Kemp Smith, Londres, 1929.
311 Ver os argumentos agora familiares de Sidney Shoemaker em Self-Knowledge and Self-
Identity, Ithaca, 1963.

309
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

pode ser real para mim, só através de sua incorporação evidente


no mundo da ação.312 A maneira correta de entender a idéia de
“caráter” é, creio eu, em função da autoidentidade. Seu caráter
é o que perdura através da mudança, mas que ainda assim é
você, e que se desenvolve à medida que você se desenvolve. Ele
inclui disposições para a ação intencional, mas também aquelas
outras disposições em que sua natureza duradoura como um ser
responsável é revelada: imperícia, negligência, tibieza; energia,
melancolia e serenidade. Ele inclui a disposição de corar de ver-
gonha ou enrubescer de raiva, de sorrir com afeto ou rir com
alegria. Pois são todas revelações críticas de sua natureza como
um ser responsável, e todas, em sua continuidade dispositional,
criam para mim a sua presença encarnada e duradoura, o obje-
to real do meu desgosto ou afeto.
A amizade está crucialmente interessada “no que vem de-
pois”: nas surpresas e expectativas do companheirismo. Por
isso, a amizade é uma ligação com o que é durável no outro.
Quanto mais duradoura a amizade, mais duráveis as ​​ caracte-
rísticas em que está fundada. Além disso, a amizade é uma re-
lação interpessoal, que incide sobre a personalidade encarnada
do outro. Embora eu possa desfrutar da companhia de um ani-
mal, isso não é amizade em qualquer sentido normal do termo.
Um animal não pode ser meu conselheiro, o objeto de minha
pilhéria, o alvo de minhas piadas e observações – apesar de eu
poder preferi-lo. A amizade busca o eu do outro, e está ausente
quando não existe um eu para ser procurado. Segue-se que, em
ambos os tipos de amizade – a mais e a menos nobre – o caráter
deve ser o foco principal de atenção.
O tipo mais baixo de amizade, a amizade de gozo, é, como
o divertimento e o interesse estético, essencialmente individua-
lizante. Mas há um sentido em que ela deixa a verdadeira indi-
vidualidade do outro de lado, assim como faz a sexualidade da
vaga libido. Meu amigo é apreciado por aquilo que ele é. Mas
o que ele é por si mesmo praticamente não precisa entrar em
meus cálculos. Eu posso ter pouca preocupação com sua alegria
e bem-estar, e apenas um interesse casual em como ele prevê seu

312 Cf. a teoria de Merleau-Ponty do entendimento intencional dirigido à “encarnação” do


outro em Phenomenology of Perception, tr. C. Smith, Londres, 1962.

310
capítulo 8 - amor

próprio destino. Suas razões não precisam ser razões para mim,
e sua autoimagem pode ser algo com que eu não consigo me
identificar.
Esta é a base real do contraste sentido entre as formas mais
e menos elevadas de amizade. Embora essa amizade mais eleva-
da esteja fundada na atitude universal da estima, com foco no
caráter do outro, ela se envolve intimamente com sua existência
individual como um ser autoconsciente. Vamos retornar breve-
mente à teoria da virtude de Aristóteles. Aristóteles afirmou que
a distinção real entre a virtude e o vício não é entre as ações,
mas entre os caracteres a partir dos quais as ações surgem. O
que admiramos no outro não é a ação (que poderia ser igual-
mente realizada por uma base ou motivo indiferente), mas a
virtude expressa nela. A virtude é uma disposição, caracteriza-
da por um motivo específico; virtudes e vícios são semelhan-
tes na medida em que, ao atuar a partir deles, agimos a partir
de, e revelamos a, nós mesmos. A marca distintiva da virtude é
que as ações feitas por motivações virtuosas são ações em que
o elemento racional não foi dominado; ele prevalece. Na ação
virtuosa, eu sou o criador do que é feito, mesmo que minha
motivação derive de minha existência encarnada e emocional,
e não por iniciativa de alguma lei moral kantiana. Assim, posso
ser dominado pelo medo, mas não pela coragem; pela raiva,
mas não pela justiça – e assim por diante. Somente o homem
vicioso é repetidamente dominado por suas paixões; o homem
virtuoso, ao contrário, exprime-se nelas e por elas, como exige a
razão. A idéia aristotélica de virtude, acredito, é a idéia de uma
disposição na qual a ação racional está em ascensão, e através
da qual é cumprida. (Isso se assemelha a visão de Kant, de que
minha estima por você se deve à liberdade “transcendental” re-
velada em sua razão prática.)
Se isso estiver certo (e vou elaborar melhor esse argumento
Capítulo 11), então a estima é mais verdadeiramente focada no
ser individual do que o gozo. Pois a estima procura o centro da
atividade, que é ao mesmo tempo o locus de sua responsabilida-
de e o sinal da sua perspectiva. E a sua virtude não é algo exter-
no ao seu próprio senso do que você é e do que você pretende.
Pelo contrário, é sua própria essência, a origem de todas essas
razões que você apresenta a si mesmo na determinação do valor

311
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de tal ou qual curso de ação, a conveniência desta ou daquela


resposta. Assim, o meu interesse em sua virtude é um interesse
no seu caráter no sentido mais profundo e mais íntimo: é um
interesse no que define você, tanto para você mesmo quanto
para mim.
Podemos ver agora como resolver a dificuldade que encon-
tramos anteriormente. A forma mais nobre de amizade está de
fato interessada precisamente na individualidade insubstituível
do outro – no eu, obediente à razão, definido por seu caráter
duradouro, através do qual aprendizagem e responsabilidade
afirmam os seus próprios princípios peculiares de desenvolvi-
mento. O respeito instintivo que eu sinto em relação à virtude
se expressa em minha afeição por você. Não há nenhum obstá-
culo no caminho dessa transformação, pois ambas as atitudes
se concentram no que você realmente é. De fato, a estima con-
centra-se mais na sua autoidentidade do que o divertimento, e,
portanto, dá origem a uma afeição mais profundamente pessoal
do que jamais poderia surgir do gozo.
Claro, existem diferenças entre a mera estima e a amizade.
Eu posso estimar alguém por quem não tenho sentimentos
amistosos. A forma superior de amizade envolve uma concen-
tração adicional no indivíduo – o desejo pelo bem-estar dele,
juntamente com o desejo familiar e complexo por uma recipro-
cidade de motivos que já encontramos no desejo sexual. Não
obstante, a estima tem um papel a desempenhar na fundação e
transformação da intencionalidade da amizade, que tem como
resultado deixar de ser um mero desejo de companhia por pra-
zer. Estimamos o outro por causa de características que nós va-
lorizamos, e nas quais ele é revelado como agente responsável.
Nós confiamos a ele, por estimá-lo, uma confiança peculiar – a
confiança que ele é, e será, fiel a si mesmo. Procuramos confiar
nele, recebendo uma garantia adicional de continuidade na mu-
dança. Em suma, ao representar diante de mim o espetáculo de
um ser motivado por si mesmo, a pessoa estimável promete re-
denção da inferioridade da minha condição. Ele tem autoridade
sobre mim, pois nele eu vejo a força e a convicção expressivas
do triunfo da razão. Por isso eu instintivamente tendo a me
identificar com ele, a me sentir ameaçado pelo que o ameaça, e
consolado pelo que o consola. Seu raciocínio torna-se meu. Esta
é o insight apreendido na crença de Aristóteles de que a amizade

312
capítulo 8 - amor

por virtude é de uma espécie diferente da amizade por prazer. O


insight ressurge na teoria kantiana de que a estima confere ao
seu objeto uma autoridade peculiar – a autoridade da razão; e
está presente também na idéia de Sartre de que o amor procura
a liberdade do outro e procura tornar-se um com essa liberdade.
(Todas essas idéias são formas de dissimular a ilusão fundamen-
tal do ser humano, que o que você é para mim é dado por sua
“autoidentidade”.)
Nenhuma amizade real é baseada puramente no gozo ou
puramente na estima. Sempre há uma mistura de elementos, e
a amizade superior seria incompleta se não se participasse do
gozo que caracteriza a inferior. As duas formas de amizade de-
finem correntes distintas, mas entrelaçadas de intencionalidade,
e toda amizade real pode ser vista como uma mistura idiossin-
crática das duas. Pode-se ver prenunciada aqui a base moral
de outra distinção – a distinção entre comédia e tragédia. O
personagem cômico é exibido como o objeto natural da ami-
zade por prazer, e o personagem trágico como o objeto natural
da amizade por estima. O personagem cômico pode ser humi-
lhado sem abolir nossa afeição por ele, mas ele não pode ser
tragicamente descartado sem, ao mesmo tempo, superar nossa
capacidade de encontrar lógica no drama. (Assim, a morte de
Falstaff nos é mostrada apenas através dos solecismos morais
da Senhora Quickly (Henry V, II.iii).) O sofrimento trágico de
um personagem cômico é nojento; nossos sentimentos ficam in-
dignados com a demanda de simpatizar com esse personagem
em uma situação que ele não tem virtude para suportar. Nossa
atenção é arrancada do significado dramático, e dirigida para o
sofrimento em si: isso é a única coisa que nos interessa agora,
e com uma força horrível. Lessing famosamente defendeu em
Laocoonte que a poesia não é competente, diferente da pintura,
para representar de forma estética o horror da dor humana.313
Seja isso verdade ou não, é difícil conceber um retrato dramáti-
co de um personagem cômico sujeito a um sofrimento terrível
que pudesse ter tanto sucesso quanto Rafael e Ticiano tiveram
sucesso ao dar forma estética para o esfolamento de Marsias.
E um personagem que se apropria de um sofrimento trágico
que não pode realmente sentir – ou que sente apenas na forma

313 G. Lessing, Laocoon, 1766, cap. IV.

313
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

egocêntrica do sentimentalista – pode parecer quase uma farsa,


como Hjalmar Ekdal em O Pato Selvagem.
O personagem trágico, representado sempre como o objeto
natural de uma amizade maior, é derrubado por uma “falha”
trágica. Este defeito, que (como a luxúria de Falstaff) seria in-
conseqüente em um personagem cômico, é o eco de uma an-
siedade que habita cada amizade séria. Sabemos que, ao dotar
outro com a autoridade que deriva da nossa estima por ele, nós
ultrapassamos o limite de qualquer justificação possível. Sabe-
mos que – neste ou naquele particular – ele vai nos enganar pro-
fundamente; e, ao fazê-lo, ele ameaça o que prometemos, atra-
vés dessa amizade, nos tornar. A queda do herói trágico é uma
espécie de expiação oferecida à amizade – um castigo exemplar
mostrado para todos os que ameaçam as ilusões transcenden-
tais de que a amizade se alimenta. Talvez seja isso o que Scho-
penhauer tinha em mente, ao argumentar que o herói trágico
expia o pecado original – o pecado da própria existência.314

A intencionalidade da amizade
Qual é o objetivo de amizade? Ou não tem nenhum objeti-
vo? Tenho defendido que a amizade contém duas correntes de
intencionalidade – a derivada do gozo e a derivada da estima.
Nenhuma dessas atitudes tem uma finalidade transcendente,
embora haja, talvez, um propósito “imanente” envolvido no
prazer. Na amizade, no entanto, há um objetivo – o de recipro-
cidade – que transforma essas atitudes em projetos duradouros.
O objetivo é novamente imanente: ele não pode ser especificado
sem fazer referência essencial ao objeto imediato de interesse,
o próprio amigo. Mas ele dota a amizade com um caráter mais
“proposital” do que podemos encontrar no gozo ou na estima.
Eu posso sofrer da completa ilusão transcendental que descrevi
como a consequência natural da estima, e conferir ao outro a
tarefa de redimir a contingência de minha existência. E ainda
assim eu posso não ser “amigo” dele. Assim, toda uma nação
pode sentir que seu destino está inseparavelmente ligado a um
redentor. As pessoas podem estar dispostas a morrer a seu co-
mando; elas podem sofrer por sua morte, e amargura por sua

314 A. Schopenhauer, O Mundo como Vontade e Representação, vol. I, livro 3, seção 51.

314
capítulo 8 - amor

traição. Mas isso não seria amizade. Torna-se amizade somente


quando inserido no contexto da reciprocidade. Eu não desejo só
tornar minhas as razões do meu amigo; eu quero que ele faça o
mesmo com as minhas razões.
Este desejo por reciprocidade é familiar à análise que dei do
desejo. Mas deve ser distinguido de outro elemento, um ele-
mento que distingue a amizade superior da inferior. Ambas as
formas de amizade envolvem prazer na companhia do outro,
juntamente com um desejo pelo prazer recíproco. Mas só a
amizade mais elevada inclui o desejo do bem-estar do outro,
juntamente com o desejo de que este desejo seja retribuído. Eu
posso ser em grande parte indiferente ao destino do meu “bom
companheiro”. Mas eu não posso ser indiferente ao destino do
meu “verdadeiro amigo”. Embora eu possa sentir falta do meu
companheiro, e ansiar pelo seu retorno, isso não é necessaria-
mente a expressão de um estado de espírito que informa minhas
relações com ele enquanto está ao meu lado. Eu não necessaria-
mente mostro consideração por ele, ou o incluo no meu racio-
cínio prático como incluo o meu verdadeiro amigo. É por esta
razão que as pessoas às vezes se recusam a aceitar o tipo inferior
de amizade como um exemplo “verdadeiro”. A espécie superior
de amizade, pensa-se, inevitavelmente transforma a vida e o ca-
ráter do homem que a sente, forçando-o a considerar a existên-
cia e bem-estar do outro. É necessariamente altruísta, da mesma
forma que a amizade de Montaigne por Boétie:
Nossas mentes estiveram tão intrinsecamente unidas, consideram-
se uma a outra com uma afeição tão fervorosa, e com tal afeição
descoberta e certa, mesmo para as profundezas do coração e
entranhas de ambos, que não só o conheço tão bem como a mim
mesmo, que preferiria (verdadeiramente) confiar nele sobre qualquer
assunto meu, do que em mim mesmo. Que nenhum homem compare
qualquer das amizades comuns a esta.315

Amor e amizade
Mas isso nos leva ao amor. Pois não é essa a descrição cor-
reta da afeição de Montaigne para Boétie? Montaigne mesmo
afirma que só pode haver um verdadeiro amigo, apoiando a sua

315 Montaigne, Ensaios, livro I, cap. XXVII.

315
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

afirmação com argumentos que podem igualmente ser aplica-


dos na defesa da monogamia sexual. A implicação disso, e de
muitas descrições semelhantes, é que o amor é o ponto limitan-
te da amizade – o ponto em que a maior união de interesses é
alcançada.
Contra isso, devem-se colocar os autores que discerniram no
amor um princípio que conflita com a amizade. La Rochefou-
cauld, por exemplo, afirma que o amor (pelo qual ele significa
o amor erótico) muitas vezes parece mais próximo do ódio do
que da amizade. Isso é uma característica especial do amor eró-
tico, ou é característico de todo o amor? Ou La Rochefoucauld
está exagerando?
Nenhuma explicação filosófica das muitas coisas que foram
chamadas de amor pode ter esperança de alcançar o tipo de or-
dem que toda a filosofia deve buscar. Nem o uso comum, nem o
artifício literário poupados do paradoxo de descrever as paixões
humanas, e nenhuma teoria jamais poderia ser produzida sem
ser imediatamente objetada com fundamento nesta ou naquela
experiência real ou imaginária. No que se segue, portanto, vou
postular uma norma que chamarei de “amor” basicamente por-
que justifica a dificuldade sofrida em nome do amor, mas que de
modo algum corresponde a tudo o que todo escritor quis dizer,
ou gostaria de ter dito, ao utilizar essa descrição.
Considere-se, em primeiro lugar, o amor descrito por Mon-
taigne: o amor entre amigos, que buscam a companhia do outro
não por causa do erōs, mas por si só. A amizade por estima se
torna amor tão logo a reciprocidade se torna comunhão: isto
é, tão logo toda distinção entre os meus e os seus interesses é
superada. Seus desejos são, então, razões para mim, exatamente
da mesma maneira, e na mesma medida, que os meus desejos
são razões para mim. Se eu me oponho aos seus desejos, é da
maneira que eu me oponho aos meus próprios, por um senso
do que é bom ou certo em longo prazo. O simples fato de que
você quer algo entra no fórum do meu raciocínio prático com
todo o caráter imperativo de um desejo que já é meu. Se eu não
posso dissuadi-lo, devo aceitar o seu desejo, e decretar no meu
coração “que isso seja feito”. Pois dissociar-me é retirar meu
amor: assim, tal amor é alimentado pela estima, que me leva
a ter confiança de que o que você quer, eu também vou querer.

316
capítulo 8 - amor

Contraste o colapso trágico do amor, como entre Macbeth e


Lady Macbeth, quando a consciência cada vez mais recusa sua
sanção. Existem graus nisso, é claro. Eu posso me dissociar de
alguns de seus desejos, e até certo ponto. Mas só é assim porque
há graus de amor. A tendência do amor é para a identidade de
interesses descrita por Montaigne. Minha demanda por sua vir-
tude é a demanda de que, na identificação com você, eu não en-
tre em conflito comigo mesmo. Você deve ser o que eu endorso.
Assim, aquele que ama visa bem do outro, apenas na maneira
em que ele visa o seu próprio bem. Esta idéia do bem de uma
pessoa não pode ser descrita simplesmente. Talvez voltemos no-
vamente à teoria de tripartite de Aristóteles da razão prática,
e façamos uma divisão preliminar entre os bens: entre o útil,
o agradável e o virtuoso (o que é bom em si). Eu quero tudo
isso para mim, e também para o meu amigo; mas na medida
em que entram em conflito com minhas ambições para mim
mesmo, também entram em conflito, em meu raciocínio, com
meu amigo. Assim como, no meu caso, o meu sentimento do
que eu deveria ser e fazer é constantemente equilibrado contra
os meus desejos e interesses, e tende, em longo prazo, para uma
vida de compromissos incômodos com os requisitos vacilantes
de utilidade e prazer , assim também, no caso do meu amor por
você, minha concepção de bem para você é o resultado de um
compromisso oscilante entre reivindicações concorrentes.
Este objetivo do amor – que é uma continuação e conclusão
do objetivo da amizade – não é um projeto extinguível, para
ser cumprido e deixado de lado. Pelo contrário, é parte do que
eu sou. Já não posso contemplar sua cessação mais do que eu
posso contemplar a cessação do meu próprio raciocínio prático,
com base na presente apreensão dos meus interesses e valores.
Enquanto eu amar, não posso ter planos para a extinção do pro-
pósito do amor; ter tais planos é ter deixado de amar. Por isso,
a morte de alguém amado exige pesar. Não é apenas que o nos
acontece em tal ocasião, como quando ficamos alegres depois
de beber uma garrafa de vinho; é, sim, que devemos sentir pesar.
O pesar é uma espécie de morte em si: é a resposta a uma cala-
midade percebida, em que a base de sua ação lhe é de repente
despojada, e só se pode ansiar impotente pelo seu retorno. A
amizade, ao contrário do caso especial de amizade que é o amor,

317
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

só pode exigir que eu fique triste com a morte do meu amigo. O


pesar é mais do que tristeza. É um estado de deficiência, em que
ambos, pensamento e intenção, são prejudicados fatalmente.
É evidente, a partir da análise acima, que o amor não pode
prescindir de informações. O amante é implacavelmente curio-
so para saber das tristezas, alegrias e desejos de sua amada, que
lhe dizem respeito como se fossem seus. Por isso, o amor procu-
ra companheirismo – o “estar com” o outro, em que o que ele
pensa, sente e deseja “não precisam ser ditos” – uma vez que
podem ser percebidos imediatamente em seu rosto e gestos. Se
estou separado de alguém que amo, estou impaciente para me
reunir com ele, para que a minha fome epistêmica possa ser
saciada. Essa fome não é apenas pelo conhecimento proposicio-
nal: é também pela proximidade imaginativa e imediata com a
mentalidade do outro, que vem de olhar para o seu rosto e ouvir
a sua voz. Assim, todo amor compartilha, de certa forma, essa
ênfase na encarnação do outro que domina o amor que brota
do desejo.

O amor erótico
Tenho argumentado que a amizade por estima pode se tornar
amor: ao fazê-lo, adquire as características distintivas do amor:
o desejo de “estar com” o outro, sendo confortado por sua pre-
sença corporal, e a “comunhão de interesses” que corrói a dis-
tinção entre os meus interesses e os seus. O amor envolve uma
transição (como diria Martin Buber)316 do eu e ele para o eu e
tu. Duas consequências se seguem. Em primeiro lugar, apesar
de a amizade se desenvolver naturalmente em amor, ela não faz
isso inevitavelmente: portanto, pode haver amizade sem amor.
Em segundo lugar, o amor pode surgir de alguma outra forma.
Portanto, devemos levar a sério a possibilidade de que possa
haver amor sem amizade. O amor cresce não só de amizade,
mas também de companheirismo. Casamentos arranjados não
tem menos amor do que casamentos por paixão – na verdade,
fundados em uma aceitação do destino, eles são menos freqüen-
temente dilacerados pelo sonho de uma liberdade irreal. A co-
munhão que une marido e mulher em tal casamento pode unir

316 Martin Buber, I and Thou (1922), tr. R. G. Smith, Nova York, 1958.

318
capítulo 8 - amor

companheiros em perigo, colegas de trabalho em uma empresa


comum, e mil outros que foram aproximados por circunstân-
cias além de seu controle imediato. Não havia necessidade de
Durkheim mostrar que a “solidariedade” é tão multifacetada
como a comunhão humana, que pode existir sem um propósito
comum, ou que nunca é mais forte do que quando não tem ne-
nhum propósito além de si mesma.
Mas o amor que responde ao destino cresce, em certo senti-
do, a partir do nada. Nenhuma qualidade, nenhuma realização,
nenhuma virtude no objeto precisa inspirar os primeiros mo-
vimentos de consideração. É suficiente que ele esteja lá, outro
corpo humano morno, preso ao meu lado numa situação que é
nossa. Qual a necessidade de haver, neste caso, amizade ou esti-
ma? E o que é amor erótico, se não apenas uma resposta a um
destino infligido – o destino do desejo?
Esta peculiaridade na gênese do amor levou alguns autores a
negar que o amor tenha a estrutura da amizade – e, em particu-
lar, a negar que ele envolve razões. McTaggart defende que essa
emoção brota de um sentimento de união puro e imediato com
outro eu. Por isso, embora o amor possa surgir por causa de
certas qualidades do amado, nunca é mantido por causa dessas
qualidades. O amor pode sobreviver às qualidades que primeiro
o inspiraram, e não se funda na crença na persistência delas,
como o medo se funda em uma crença na persistência do peri-
go. Assim, o amor é “mais independente do que qualquer outra
emoção das qualidades da substância pela qual é sentido”,317 e
é isso que explica por que “uma causa trivial pode determinar a
direção do amor intenso. Pode ser determinado pelo nascimen-
to na mesma família, ou pela infância na mesma casa. Pode ser
determinado pela beleza física, ou pelo desejo puramente se-
xual. E, no entanto, isso pode ser tudo que o amor pode ser”.318

317 J. M. E. McTaggart, The Nature of Existence, Cambridge, 1927, vol. II, cap. 41, p. 151. Uma
análise parecida é feita por Max Scheler, The Nature of Sympathy, tr. P. Heath, Londres,
1954, p. 121: “Nada mostra melhor [que o objeto do amor é de uma “particularidade
não especificada”] do que a perplexidade extraordinária que vemos como consequência
de pedir às pessoas que deem ‘razões’ para o seu amor.” E cf. Montaigne, “Of Friendship”
(Essays, livro I, no. XXVII, tr. John Florio): “Se um homem me instar a dizer o porquê
de eu amá-lo, sinto que isso não possa ser dito, a não ser pela resposta: porque era ele,
e porque era eu mesmo.”
318 McTaggart, The Nature of Existence, p. 152.

319
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A teoria de McTaggart tem um motivo metafísico, que é mos-


trar o amor como uma abordagem à “individualidade pura” de
outra “substância”. Como vimos, um estado de espírito pode
ter tal “intencionalidade individualizante”, e ainda assim envol-
ver razões – como no interesse estético. McTaggart parece negar
isso, mas apenas porque seu argumento se concentra na causa
do amor e ignora sua estrutura intencional. É verdade, em certo
sentido, como observa McTaggart, que o amor pode proporcio-
nar a sua própria justificação. Mas isso é precisamente porque
o amor é faminto de razões, procurando sempre para uma jus-
tificativa em seu objeto, e pisando sempre em areias movediças.
Considere o amor com que o erótico está mais vitalmente
conectado: o amor por uma criança e, em particular, pelo seu
próprio filho. Neste caso, é evidente que normalmente o amor
precede a amizade. É este corpo – frágil, dependente e imatu-
ro, em que uma alma cresce visivelmente – que desperta minha
emoção. Eu quero estar com ele, apreciá-lo, e todos os seus in-
teresses são os meus interesses. Meu filho me obriga a amar,
muito antes de despertar minha amizade ou minha estima. No
momento em que tais emoções interpessoais são possíveis, já
estou preso pelo amor. Não que eu amasse apenas o seu corpo.
Desde o início, meu amor estava condicionado à idéia de uma
vida distinta, e distintamente pessoal, expressa por esse corpo e
crescendo com ele. Eu amei a encarnação do meu filho, mas não
seu corpo. E ainda assim esta encarnação proporciona também
o fundamento do meu amor. Eu amo o sorriso do meu filho,
seus olhos, seu rosto; eu amo a sua energia e caráter; eu tenho
orgulho dele, e não consigo acreditar quando alguém além de
mim fala com franqueza de suas imperfeições.
É um fato bruto que tal amor nos prenda mais intensamente
(mesmo se não mais profundamente) do que o amor que nasce
da amizade. Tais fatos “brutos” são fatos sobre a nossa con-
dição bruta: eles nos lembram de que somos animais, regidos
pelas exigências implacáveis da​​ carne.
O amor erótico, como o amor pelas crianças, é compelido
pela encarnação de seu objeto. Podemos reter, como Chaucer
nos diz, a nossa “livre escolha”, mesmo no encontro com o ob-
jeto de desejo. Pode até ser que, em algum sentido, a nossa capa-
cidade de sofrer precisamente essa compulsão é – como era para

320
capítulo 8 - amor

Dante e Boccaccio – a mais alta expressão da nossa liberdade


original. Mas também é verdade que estamos sujeitos ao amor
erótico, e que a nossa liberdade sofre o impacto de uma necessi-
dade externa. O amor erótico não é experimentado como uma
decisão, mas como um destino. A esperança do moralista tra-
dicional tem sido resgatar a liberdade humana dessa situação –
para restaurá-la a si mesma, mostrando-nos como transformar
o amor erótico em uma expressão da virtude. Este é o motivo
por trás da defesa de Kierkegaard do casamento:
[o primeiro amor] é a união de liberdade e necessidade. O indivíduo
sente-se atraído pelo outro indivíduo por um poder irresistível, mas é
precisamente nisto que fica consciente de sua liberdade.319

Por meio de seu elogio do casamento (que é na verdade mui-


to mais tedioso do que o elogio da paixão sensual que o prece-
de, e que tem o objetivo de combater),320 Kierkegaard defendeu
a teoria encapsulada na grande invocação do voto de amor de
Chaucer. A liberdade ainda pode ser mantida, tais pensadores
afirmam, contanto que a expressão do amor seja retida até que
possa ser liberada em um compromisso de toda uma vida.
É bom lembrar as razões de Platão para suspeitar do erōs. O
desejo, em virtude de sua fixação pelo corpo do outro, parece
limitar-se ao que é finito, temporal e sensorial – à “encarnação
individual”. O desejo, assim, desafia a natureza essencial da ra-
zão, que é a ligação apenas ao que é universal, infinito e alheio
ao espaço e ao tempo. O destino do homem é transcender o
erótico, descartando neste ato de transcendência o elemento de
desejo. No entanto, amar é amar um indivíduo. É só na sua
encarnação que o indivíduo é revelado, e só em sua encarnação
que ele pode ser conhecido individualmente. Para o amor ser
um ato de livre escolha, teria primeiro que ser resgatado desse
apego ao que é imediato e concreto. O amor só poderia obede-
cer à razão se tivesse a estrutura da estima, e só teria a estrutura
da estima se viesse da estima. O amor erótico, que incide sobre
a encarnação do outro, não é, portanto, uma resposta racional,

319 S. Kierkegaard, Either/Or, tr. W. Lowrie, Nova York, 1959, vol. II, p. 46.
320 O vol. 1, ostensivamente preocupado com o estilo de vida “estético”, contém o pungente
“Diário de um Sedutor”, a que o vol. 2, preocupado com o estilo de vida “ético”, oferece
um tipo de resposta em uma análise tranquila e solene do casamento.

321
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mesmo que seja uma resposta que só os seres racionais podem


experimentar.
No entanto, o amor erótico, como qualquer outro amor, en-
volve razões. É verdade que no amor erótico posso me alegrar
com suas falhas, que podem ser, para mim, o precioso sinal de
sua dependência, o emblema de uma vida ao meu lado. No en-
tanto, temos de ter cuidado em como entendemos esses senti-
mentos. Em um de seus finos protestos contra a normalidade
humana, Nietzsche nos exorta a desprezar os nossos amigos
para, assim, melhor amá-los.321 O verdadeiro significado de tal
exortação é abolir a amizade por estima e substituí-la pelo erōs.
Pois, laços de parentesco à parte, só o amor erótico pode sobre-
viver à consciência da depravação do outro sem cair naquela
amizade mais fraca, mais vacilante, a partir da qual nada sé-
rio pode ser construído. Ao mesmo tempo, esta não é a forma
mais feliz de amor erótico. Na medida em que é querido, o é
por uma abundância de desejo. Assim, quando os anti-heróis
de Genet exaltam os vícios de seus amantes, o efeito é de uma
sensualidade suprema, fora do alcance da emoção humana nor-
mal. Curiosamente, no entanto, sua sensualidade é representada
como uma espécie de virtude moral, que, através de uma admi-
ração invertida pelo que os outros desprezam, torna-se um ato
de desafio contra a norma moral:
[Culafroy] amava Alberto por sua covardia. Diante desse vício
monstruoso, os outros eram pálidos e inofensivos, e poderiam ser
contrabalançados por qualquer outra virtude, inclusive pela mais
bela. (...) Abolir este vício – por exemplo, pela sua negação pura e
simples – era impensável, mas destruir seu efeito humilhante seria
fácil amando Alberto por sua covardia. Sua degradação era certa se
ela não embelezasse Alberto; mas ela o poetizava. Talvez por causa
dela, Culafroy se reaproximara dele. A coragem de Alberto não o
surpreendeu, nem deixou indiferente, mas em vez disso ele descobria
outro Alberto, mais homem que deus. Descobria a carne. [Nossa
Senhora das Flores].

Podemos ver nesta passagem uma peculiar inversão da mito-


logia do “amor apaixonado”, em que tudo é negado, salvo o que
“supera” o objeto do desejo: a qualidade de Alberto enquanto

321 F. Nietzsche, The Will to Power, tr. W. Kaufmann e R. J. Hollingdale, ed. W. Kaufman,
Nova York, 1967, no. 964.

322
capítulo 8 - amor

carne. Isso reflete o desejo de Genet de construir um “amor to-


talmente invertido”: o amor em que todos os valores da comu-
nidade, e em especial aqueles que negam a validade da paixão
homossexual, são sistematicamente negados. No entanto, nessa
negação mesma há uma reafirmação do valor. É verdade que o
amor de Genet parece focado no vício, mas assim é a sua estima.
Seu amor, como sua estima, é um exercício do que Sartre chama
de “la morale du Mal:” 322 uma tentativa de reconstruir, através
dessa paixão essencialmente erótica que a sociedade nega, o in-
verso de um amor normal. O amor invertido de Culafroy é de
fato moralizado em uma espécie de estima invertida.

Tensões no amor
O amor erótico parece, portanto, desafiar as exigências da
razão unicamente para influenciar a razão para seu próprio
ponto de vista. (É por isso que McTaggart diz que o amor é “a
sua própria justificação”.) O amor “moralisa” seu objeto para
que esteja em conformidade com um ideal. Quando o objeto
não pode ser moralizado de acordo com o antigo ideal, o amor
favorece um novo ideal – até mesmo um invertido – a fim de
que seu objeto pode pareça digno de sua atenção. O amor traz
a estima em sua órbita, muitas vezes fazendo com que ela passe
por caminhos desconhecidos.
No amor à primeira vista, portanto, o outro é visto como
uma “presença moral total”. O desejo é experimentado como
uma exigência moral, e também como um direito moral, que
parecem preceder, na imaginação, o primeiro encontro. A ex-
periência é apreendida nas palavras de Florizel para Perdita, no
Conto do Inverno (IV. III):
O que fazes
Melhoras a cada vez. Quando falais (querida),
Gostaria que o fizésseis sempre: Quando cantais,
Gostaria que comprásseis e vendêsseis assim; ao dardes esmolas,
Ao rezardes, ao dirigirdes vossos negócios,
Que estivésseis sempre a cantar. Quando dançais, gostaria que
fosses

322 J. P. Sartre, Saint-Genet, comédien et martyr, Paris, 1955.

323
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Uma onda no Mar, para que não fizésseis


Nada além disso: sempre em movimento, sempre a mesma;
Sem qualquer outra Função. Cada um de vossas ações,
(Tão singular, em cada particular)
Coroa o que fazes, como nos feitos presentes,
Tornando-as todas Rainhas.323

O poeta exprime a sensação do ser amado suspensa diante


de mim, inefavelmente lá, no feixe do meu desejo. Ela está sere-
na – “sempre em movimento, sempre a mesma” – e ainda assim
absorta em suas ações. E neste momento toda sua natureza e
seu caráter estão concentrados – na compra e venda, na doação
de esmolas, na ordenação dos seus assuntos, e também na dan-
ça e no canto. A linguagem aqui é a linguagem do desejo, que
acaricia seu objeto com uma ternura palpitante:
Quando dançais, gostaria que fosses
Uma onda no Mar, para que não fizésseis
Nada além disso: sempre em movimento, sempre a mesma.

Ao mesmo tempo, o pensamento encapsula o mistério da en-


carnação de Perdita – “tão singular, em cada particular” – e a
insinuação de uma vida moral que é inteiramente dela. É difí-
cil encontrar uma melhor representação do caminho em que o
amor, quando expresso no desejo, concentra-se sobre na presen-
ça corporal do outro.
É o desejo, e não o amor, o que dá esta sensação imediata da
necessidade do outro para mim. Mas o desejo transforma toda
a percepção do objeto – o coração, assim como o olho, é obriga-
do a obedecer. (Assim, Guinevere, quando se levanta para sair,
leva consigo “os olhos e o coração” de Lancelot: Chrétien de
Troyes, Lancelot, II. 3987-9). A experiência do “amor à primei-
ra vista” não é nada mais nem menos do que a experiência de
um desejo intenso, que obriga através da personificação física

323 What you do / Still betters what is done. When you speake (Sweet) / I’ld have you do it
ever: When you sing, / I’ld have you buy, and sell so: so give Almes, / Pray so: and for
the ord’ring your Affayres / To sing them too. When you dance, I wish you / A wave o’th
Sea, that you might ever do / Nothing but that: move still, still so: / And owne no other
Function. Each your doing, / (So singular, in each particular) / Crownes what you are
doing, in the present deeds, / That all your Actes, are Queens.

324
capítulo 8 - amor

do outro. Ele se torna amor imediatamente, mas apenas porque


é assim interpretado. O sujeito, vivamente consciente da nature-
za pessoal do objeto, é levado a pensar sempre pela perspectiva
do que é prefigurado nas formas diante dele – como Perdita é
prefigurada a Florizel. Segue-se a “idealização” do objeto do
desejo. O amante lança suas ambições em forma moral; pois só
isso justifica essa sensação de que ele precisa estar unido com a
pessoa à sua frente. A atratividade física do outro é vista como
uma expressão da sua virtude – seu “coração consciente”, que
“brilha em seu rosto”, nas palavras de Byron (Don Juan, CVI) –
e o amante começa a moralizar o seu desejo. O desejo torna-se,
para ele, uma maneira de apreciar o mérito real e imaginário de
sua companheira. Assim é concebido o estratagema secreto da
valorização do outro, de modo a melhor desejá-lo. O amante
pode até mesmo (no caso extremo) se enganar pensando como
Platão, que o desejo não é o significado dessa experiência em
absoluto, que visa, pelo contrário, a alguma coisa infinitamen-
te superior. Tal pensamento também pode ser útil, ao conceder
uma permissão secreta ao desejo.
Oh Platão! Platão! Você abriu a estrada,
Com suas confusas invenções, a mais
Condutas imorais pela oscilação fantasiada
Que seu sistema dissimula sobre o descontrole
Dos corações humanos, do que toda a longa série de
Poetas e romancistas: – Você é um chato,
Um charlatão, um barrete – e foi,
Na melhor das hipóteses, apenas um intermediário.324
[Don Juan, CXVI]

324 Oh Plato! Plato! You have paved the way,


With your confounded fantasies, to more
Immoral conduct by the fancied sway
Your system feigns o’er the controlless core
Of human hearts, than all the long array
Of poets and romancers: – You’re a bore,
A charlatan, a coxcomb – and have been,
At best, no better than a go-between – NT.

325
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Stendhal – em uma imagem enganosa – descreve essa mora-


lização do desejo como uma “cristalização:” a pessoa só tem
que pensar em uma virtude a fim de vê-la instantaneamente no
rosto e na conduta do outro.325 (Como se alguém mergulhasse a
imagem do amado em um líquido super-saturado, e a retirasse
com uma centelha brilhante a envolvesse completamente.) O
processo pode ser mais apropriadamente descrito como um tipo
de interpretação. Assim como você vê sentido na obra de arte
que você ama, da mesma forma você vê sentido nos seus gestos
de amados. Aquilo que concentra sua atenção no corpo do ou-
tro também o perturba com a sensação de que esta experiência
deve ter um significado, que deve ser moralmente significativa.
O desejo obriga você a encontrar valor em seu objeto, e, assim,
“a vê-lo como” a encarnação da virtude.
Como o exemplo de Genet mostrou, o processo de interpreta-
ção ocorre de duas maneiras. Um crítico, ao atribuir significado
a uma obra de arte, vê a experiência estética como qualificada
por seu significado. Ele também vê o significado como qualifi-
cado pela experiência. Nenhum significado é criticamente sig-
nificativo, a menos que possa entrar na experiência estética.326
Por isso, o conteúdo moral de uma obra de arte é sempre des-
crito, pela crítica persuasiva, em termos adaptados à sua repre-
sentação estética – é um conteúdo que só pode ser plenamente
apreciado ato de atenção estética. Da mesma forma, o amante
experimenta as virtudes de sua amada como se cobertas pelas
vestes do desejo. Elas vestem, em sua mente, uma forma corpó-
rea, como se ele pudesse beijá-las e abraçá-las. Assim, Cleópatra
evoca, em sua homenagem às virtudes de Antônio, a beleza de
seu corpo e a presença sexual que foi a ocasião de seu desejo
(Antônio e Cleópatra, V.ii):
Suas pernas abarcam o Oceano, com suas mão o ergue
Adorno do mundo: sua voz digna
Com a harmonia das esferas, aos amigos falava:
Mas querendo amedrontar e agitar o Orbe,

325 Stendhal, De l’amour, Paris, 1891, livro I, cap. 2: “il suffit de penser a une perfection pour
la voir dans ce qu’on aime.”
326 Defendi essa tese em detalhes em The Aesthetics of Architecture, Londres, 1979,
caps. 5-9.

326
capítulo 8 - amor

Ele era um trovão atordoante. Por sua generosidade,


Não houve mais inverno. Era sempre Outono,
Que crescia a cada colheita: Em seus êxtases,
Como os golfinhos, mantinha o dorso
Sobre o elemento em que vivia.327

(O primeiro fólio tem “Antônio” no lugar de “Outono” – o


que é, de certa forma, mais expressivo, mesmo que um pouco
absurdo).
Assim, tal como o desejo é moralizado em amor, o amor é
desmoralizado, por assim dizer, em desejo. Isto explica as prin-
cipais características do amor cortês. A queixa do amante cortês
para sua amada envolve sempre uma homenagem estendida à
sua virtude, e a declaração de uma lealdade que irá justificar o
amor dela. O poeta convida a amada primeiro a amá-lo. Mas
ele, então – na sua linguagem e no movimento de seus versos –
implora por seu desejo, como uma sequência a, e uma expressão
de, um amor que ela não pode recusar. Assim, o amante chega
ao ponto em que a amada declina, aquele, santificando o seu
desejo ligando-o à virtude, esta, humanizando sua virtude reves-
tindo-a de desejo. Frauendienst é principalmente uma estratégia
cooperativa, para gerar o maior desejo e, em seguida, para pre-
encher esse desejo com a maior virtude, gerando assim o maior
amor. É o desejo do poeta que inicia o processo, e o desejo tem
suas origens na compulsão que o supera com a visão da forma
do outro. Mas esta forma é compreendida pelo poeta em termos
de suas possibilidades espirituais. Louvando a amada, ele exige
dela a ordem moral que transformará essas possibilidades em
realidade, justificando seu amor. Ele, então, de posse da virtude
dela, justifica, e assim permite, o seu desejo. Como Cavalcanti,
em sua famosa canzone, “Donna mi priegha”:
Ele foi criado
e tem sensato
nome
Da alma, o costume
Do coração, a vontade

327 Defendi essa tese em detalhes em The Aesthetics of Architecture, Londres, 1979,
caps. 5-9.

327
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Vem da forma vista que se entende


Que se torna
Possível no intelecto.328

“Ele (o amor) é criado, e tem um nome sensorial, extrai seu


traje da alma e sua vontade do coração; vem de uma forma
vista, entendida de forma a incluir o espírito latente (intelletto
possibile)”. Os termos são escolásticos, e não é fácil de entender
os alcances superiores do pensamento de Cavalcanti. Mas é cla-
ramente uma tentativa neoplatônica para “decompor” o nó do
amor erótico, e dar uma descrição metafísica da interpenetra-
ção entre amor e desejo. A experiência nuclear é o corpo visto,
e visto como uma encarnação: a revelação do “espírito latente”.
Desejo não implica amor; mas fornece um motivo para amar
– e este fato é crucial para a compreensão da intencionalida-
de do desejo. O “apaixonar-se” não deve ser visto como uma
transição da ausência de amor para a presença do amor, mas
sim como a aquisição súbita deste motivo. Sua autoestima exige
que você ame, de modo que, ao ser superado pelo outro, você
pode acreditar ter preservado sua liberdade interior. Nesse caso
(e de acordo com Robert Solomon),329 o amor tem o caráter de
uma decisão. Ao chamar a nossa paixão de amor, comprome-
temo-nos com o que faz disso amo (e, portanto, “amor” é uma
“palavra política”, de acordo com Solomon).330 As metáforas
com que embelezamos nossa paixão também a transforma: elas
se esforçam para ser literais, de modo que você se torne minha
vida, meu coração, minha felicidade, em virtude do fato de eu
descrevê-lo assim.
Falar de “decisão” aqui, no entanto, também é uma metáfora:
uma tentativa de apreender em palavras algo que está além de
nosso horizonte intelectual. Somos “atraídos” para o amor pela
misteriosa transparência de um corpo humano, e se idealizar-

328 A quebra das linhas, expondo a rima interna, deve-se a Ezra Pound: ver Hugo Kenner
(ed.) The Translations of Ezra Pound, Londres, 1953, em que a canzone está impressa
em uma tradução adornada. Pound faz outra tradução, mais bela e pessoal, no Canto
XXXVI. [Egli è creato / e a sensato / nome / D’alma chostume / di chor voluntade / Vien
da veduta forma che s’intende / Che’l prende / nel possibile intelletto – NT].
329 Robert Solomon, Love: Emotion, Myth and Metaphor, Nova York, 1981, esp. p. 48.
330 Ibid., p. 5.

328
capítulo 8 - amor

mos a pessoa que está lá encarnada, é porque nós idealizamos a


nós mesmos. Tudo o que tem para nós a marca do destino é mo-
ralizado numa expressão do espírito. Aos nossos olhos, como
aos olhos dos nossos amantes, nós somos self-made men.331 A
presença corporal daquele a quem desejamos se reveste de sig-
nificados espirituais para nós, de modo que seu fascínio – que,
na verdade, é irresistível – vai parecer o fascínio da virtude. O
corpo desejável do outro parece, mais do que um ataque à nossa
liberdade, o apelo da virtude para a nossa estima. Falamos de
lábios “macios”, expressões “ternas”, olhos “inocentes”, uma
boca “apaixonada” e assim por diante; e enquanto algumas des-
sas descrições prenunciam as delícias de fazer amor, outras tra-
zem a marca do amor. Encontramo-nos, no início do desejo, já
vendo o corpo do outro em termos que sugerem a possibilidade
de uma união plenamente justificada. E isso é o que faz o nosso
amor parecer uma decisão.

Amor e indolência
O amor, em todas as suas formas, envolve um desejo pelo
bem do outro. Mas eu também estou implicado nesse bem;
identifico-me com ele, e ajo para garanti-lo, como se também
fosse o meu. Implícito neste motivo está o desejo primordial
de estar com você, aproveitando sua companhia, reconhecido
por você como parte do seu bem, como você é reconhecido por
mim como parte do meu. Por isso, meu projeto é intrinseca-
mente autolimitante. Meu desejo pelo seu bem é limitado pelo
meu desejo de estar com você, e por ser visto por você como
objeto de um amor igual. Esta é a variante dupla, por assim
dizer, de uma autolimitação que existe dentro de meus próprios
projetos egoístas. Todos esses projetos são limitados pelo que
La Rochefoucauld chamou de “la paresse” – pelo desejo de não
ser perturbado e de estar à vontade comigo mesmo, possuindo
e possuído por mim mesmo, de acordo com as condições co-
nhecidas e existentes. O amor só é inteligível pela suposição de
que ele também tem um estado de “descanso”: um “estar com”
indisputado, em que eu sei que você sabe que eu sei que você

331 Expressão atribuída a Benjamin Franklin, que pode ser traduzida, grosso modo, por
“homem que se fez por conta própria” – NT.

329
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

sabe que nenhum de nós espera do outro mais do que ele pode
dar de bom grado.
O amor é, portanto, essencialmente “interessado”, e mais do
que nunca quando é desinteressado. Se surgir um conflito entre
o seu bem e o nosso companheirismo, eu posso sacrificar o se-
gundo em prol do primeiro apenas renunciando ao ponto de re-
pouso que dá sentido à nossa união. Na autodefesa – que neste
caso significa a defesa da nossa autoconstrução compartilhada
– posso destruir o seu bem. Eu posso lutar contra sua carreira,
suas amizades, sua atividade – tudo, enfim, que lhe dá a chance
de viver feliz sem mim. (Isto é o que Blake quer dizer com o
amor “alegra-se quando é o outro prejudicado”.332)
Assim, como já vimos, eu posso me alegrar com suas falhas,
uma vez que podem ser o sinal de sua dependência. Ao mesmo
tempo, estas falhas devem ser toleráveis para mim. Eu posso fi-
car satisfeito que outros as achem desconcertantes; mas mesmo
no amor erótico eu devo ser capaz de considerá-las não como
grandes falhas morais, mas como pontos fracos, e como quali-
dades que valorizem você para mim. Pois eu preciso ser capaz
de aceitar suas fraquezas como parte do meu raciocínio prático.
Eu posso dar subsídios para a sua preguiça, seu egoísmo, sua
falta de refinamentos essenciais. Pois estas falhas não o colocam
fora do raciocínio com que conduzo minha vida. Mas posso dar
subsídios para a sua covardia, sua maldade, seu caráter, diga-
mos, sendo um assassino ou estuprador?
A resposta é certamente “não”. Mas é um “não” qualificado.
Se eu não posso perdoar o seu vício, então ele deve inevita-
velmente corroer meu amor por você, uma vez que apresenta
cálculos que não podem entrar no meu raciocínio como entram
no seu. (Aquele que ama livremente e felizmente um criminoso
é sempre capaz de ser ele mesmo um cúmplice no crime.) Se isso
não parece ser assim, é por causa da tensão que está contida
dentro do projeto do amor. Meu desejo de estar com você pode
ter se formado hábitos e vínculos que são muito resistentes para
ser facilmente quebrados. No caso do amor erótico e filial, a
relação sempre tem esse caráter inevitável. Em tais casos, o con-
flito entre amor e estima – ou melhor, entre a necessidade de

332 “Joys in another’s loss of ease” – NT.

330
capítulo 8 - amor

estar com você e a necessidade de “incorporar” os seus proje-


tos – pode ser grave, e não pode ser resolvido sem dor. O amor
erótico, como o amor maternal, pode gerar um conflito interno
feroz. E aqui também, onde o amor batalha com a estima, o
amor pode predominar.
As mesmas considerações explicam o fenómeno do “ódio
amoroso”. Este não é um fenômeno mais surpreendente do que
a ódio de si mesmo: o conflito que resulta quando a minha na-
tureza é recalcitrante aos meus propósitos. No amor – e espe-
cialmente no amor de um tipo erótico ou filial – existe um nú-
cleo de apego que se assemelha a meu apego a mim mesmo: algo
dado, inquestionável, enraizado na minha “condição empírica”​​
como animal moribundo. Minha devoção a você se alimenta de
uma idéia de ajuda mútua. Mas meu apego permanece, mesmo
quando ele entra em conflito com a sua desobediência à minha
idéia para seu bem. Eu, então, me rebelo contra a compulsão
intolerável desta ligação; mas ela prevalece, e, sendo forçado a
viver em intimidade com ela, eu inevitavelmente começo a odiá
-la e desejar sua destruição. Assim, acontece com frequência que
o amor erótico, que começa na idealização do amado, torna-se
uma decepção sistemática. Por causa do apego contra o qual
luta em vão, esta decepção parece mais ódio do que amizade.

O curso do amor
No Capítulo 4, afirmei que a intencionalidade do desejo se-
xual, como a intencionalidade de qualquer outra atitude social,
envolve várias fases distintas de desenvolvimento, ou “momen-
tos”, para usar o termo hegeliano. O objetivo inicial – união
sexual – deve ser definido em função do “o curso do desejo”.
O projeto posterior que emerge deste objetivo – a intimidade
sexual – é um dos quais dei uma descrição implícita. Mas eu
disse pouco sobre a realização do desejo: sobre a condição que
responde ao desejo, como a vingança e a raiva respondem ao
arrependimento. Eu sugeri, no entanto, que este “momento” da
intencionalidade deveria ser descrito em termos normativos. Ao
delinear a realização de um estado de espírito, recomenda-se
um projeto de longo prazo que vai resolver as tensões e satis-
fazer os desejos e necessidades auxiliares surgidos na expressão
da estrutura intencional básica. É evidente que eu já comecei a
331
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

identificar esse projeto como amor erótico. O amor erótico for-


nece ao amante a justificação de seu desejo e, se for retribuído,
a paz interior que recompensa a dificuldade do desejo. O amor
erótico é, no entanto, como o desejo, no ponto em que o seu
objetivo deve ser descrito em função do seu “curso”.
Pode-se descrever o curso do amor como uma espécie de “au-
toconstrução mútua”, algo parecido com a maneira do curso do
desejo ser uma “excitação mútua”. Eu quero que você seja dig-
no do meu amor, por trás da qual está o deseja mentiras, sempre
me forçando. E eu também quero ser amável, de modo que você
retribua o meu carinho. Começamos, então, a jogar um jogo
cooperativo de autoconstrução. Eu o identifico como algo total-
mente livre, totalmente responsável, cujos estados, incluindo o
seu desejo, expressam a “autoidentidade” imaculada que é sua.
E eu procuro adquirir a seus olhos a mesma integridade que eu
atribuo a você. Em virtude desta empresa mitopoética, nosso
foco um no outro ganha um tipo especial de coerência. Tudo
o que você faz, faz para os meus olhos, buscando adquirir pela
reflexão a unidade, virtude e integridade que você atribui ine-
lutavelmente a mim. Assim, na metáfora comum, nos tornamos
“envolvidos”. Eu construo a mim mesmo sobre uma concepção
da sua perspectiva, e sua continuidade transcendental, da qual
tudo o que é espírito em você flui. Eu não posso perder você de
vista; eu preciso da experiência renovada de sua encarnação.
Essa percepção é o alimento de um mito necessário, e qualquer
coisa que o ameace ameaça minha existência. (Daí as palavras
de Milton, discutidas anteriormente, “pois os sorrisos da Razão
fluem, e são do amor alimento”).333
Tais considerações ajudam a explicar a particular impotên-
cia de quem sofre de amor erótico. Tudo o que ele é e quer
tem depende da cooperação do outro. Com essa cooperação, ele
tem tudo; sem ela, nada. Amor não correspondido é, portanto,
desesperado, e amor interrompido pela morte é trágico. Esses
fatos refletem uma característica do amor humano que pode-
ria ser chamada de “nupcialidade”.334 O amor humano envolve

333 “Smiles from reason flow, and are of love the food” – NT.
334 O papa João Paulo II falou sobre a nupcialidade do corpo humano (Love and
Responsability, 1960, tr. H. J. Willetts, Londres, 1981) Suas palavras têm origem em
Max Scheler, apesar de não ter encontrado a passagem específica.

332
capítulo 8 - amor

uma tendência inevitável de procurar e estar com o outro, de


envolver o destino do outro completamente e inseparavelmente
com o dele. O amor não busca uma promessa de afeto, mas um
voto de lealdade. Os votos são mais do que promessas: eles en-
volvem a rendição completa do seu futuro ao presente projeto,
uma declaração solene de que o que se é agora, ser-se-á sempre,
não importando quaisquer circunstâncias imprevisíveis. Esta é
a substância do voto de Ferdinando para Miranda:
Como espero
Por dias tranquilos, bela prole, e vida longa,
Com tal amor como agora, as cavernas sombrias,
O lugar mais oportuno, a sugestão mais forte
Nossos piores gênios podem, jamais dissolver
A minha honra em luxúria.335
[A Tempestade, IV. I]

Nem sempre os amantes embarcam em sua própria mitogra-


fia, nem necessariamente imaginam que seus votos impetuosos
devem ser interpretados literalmente. Muitas vezes, mesmo no
mais poderoso fluxo de amor, um homem se distancia de suas
próprias ilusões, reconhecendo a impossibilidade intrincada do
mito mandatório a que está sujeito. Mas ao fazer isso, ele só
confirma o compromisso que está no cerne do amor, enquanto
lamenta o fato de que permanecerá insatisfeito. W. H. Auden
apreendeu a experiência em linhas que merecem citação, uma
vez que, enquanto parecem negar o que eu disse nesta seção, na
verdade confirmam isso elaboradamente, pondo a nu as reco-
nhecidas impossibilidades a que o próprio amor nos impele:
Deite sua cabeça sonolenta, meu amor,
Humana no meu braço sem fé;
Tempo e as febres queimam
A beleza individual de

335 As I hope
For quiet days, faire issue, and long life,
With such love as ‘tis now, the murkiest den,
The most opportune place, the strongest suggestion
Our worser Genius can, shall never melt
Mine honor into lust – NT.

333
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Crianças pensativas, e a sepultura


Prova a efêmera criança:
Mas em meus braços até o raiar do dia
Deixe a criatura vivente deitar,
Mortal, culpada, mas para mim
Inteiramente belo.
Alma e corpo não têm limites:
Para os amantes quando se deitam sobre
Sua tolerante inclinação encantada
Em seu desmaio comum,
Grave é a visão que Venus envia
De simpatia sobrenatural,
Amor e esperança universal;
Enquanto uma visão abstrata acorda
Entre as geleiras e as rochas
O êxtase sensual do eremita.
Certeza, fidelidade
Na soada da meia-noite
Como as vibrações de um sino.336

336 Lay your sleeping head, my love,


Human on my faithless arm;
Time and fevers burn away
Individual beauty from
Thoughtful children, and the grave
Proves the child ephemeral:
But in my arms till break of day
Let the living creature lie,
Mortal, guilty, but to me
The entirely beautiful.
Soul and body have no bounds:
To lovers as they lie upon
Her tolerant enchanted slope
In their ordinary swoon,
Grave the vision Venus sends
Of supernatural sympathy,
Universal love and hope;
While an abstract insight wakes
Among the glaciers and the rocks
The hermit’s sensual ecstasy.
Certainty, fidelity
On the stroke of midnight pass Lay your sleeping head, my love,

334
capítulo 8 - amor

A existência deste voto – que é um vetor oculto na intencio-


nalidade do amor – ajuda a fornecer mais explicações sobre o
ciúme. Podemos ver por que o ciúme é uma expressão de amor,
mesmo que não se concentre no amor do outro, mas em seu
desejo. O desejo envolve os primórdios da intencionalidade ex-
clusiva que é transformada, no meu próprio entusiasmo fictício,
no projeto do amor. Eu construo a mim mesmo sobre esse amor
e sobre a idéia de sua lealdade recíproca. Por isso, fico com-
prometido pela descoberta de que este processo, tão necessário
para mim, não é necessário para você. Você não justifica o seu
desejo em função de um eu ideal. Eu, então, me sinto traído, já
que meu amor por você envolvia o pensar em você preso por
um voto.
O curso do amor verdadeiro talvez não corra suavemente.
Mas isso não é o curso do desejo. O amor tende a aumentar
com o tempo, enquanto o desejo tende a secar. O curso do amor,
portanto, leva por si só ao estado a que os platônicos nos reco-
mendam. Por fim, o desejo é substituído por um amor que não
é mais erótico, mas fundado em confiança e companheirismo.
O problema do desejo está no seu término. Como impedir um
terceiro de iniciá-lo de novo, como impedir que o amor calmo

Human on my faithless arm;


Time and fevers burn away
Individual beauty from
Thoughtful children, and the grave
Proves the child ephemeral:
But in my arms till break of day
Let the living creature lie,
Mortal, guilty, but to me
The entirely beautiful.
Soul and body have no bounds:
To lovers as they lie upon
Her tolerant enchanted slope
In their ordinary swoon,
Grave the vision Venus sends
Of supernatural sympathy,
Universal love and hope;
While an abstract insight wakes
Among the glaciers and the rocks
The hermit’s sensual ecstasy.
Certainty, fidelity
On the stroke of midnight pass
Like vibrations of a bell – NT.

335
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

da união nupcial seja destruído pela turbulência de um novo


desejo. Não só como, mas se. Essa questão, que é uma questão
fundamental da moralidade sexual, deve permanecer sem res-
posta por enquanto.

A expressão do amor no desejo


Voltemos, em vez disso, à questão mais fundamental. Como
pode o desejo ser uma expressão de amor, e de que maneira o
amor é modificado pelo desejo? Nós já dissemos algo em res-
posta à segunda parte da pergunta, mas ainda precisamos dizer
algo mais específico em relação à primeira.
O termo “expressar” é ambíguo.337 Ele pode significar “escla-
recer”, “dar evidência de” ou “manifestar”. Neste sentido, um
grito pode expressar dor, assim como o silêncio pode expressar
raiva. Alternativamente, pode significar “apreender” ou “trans-
mitir”. Neste sentido, o comportamento expressa, em virtude de
seu poder comunicatvo, um estado de espírito – de encarná-lo
e revelá-lo para o outro. Isso é algo mais do que dar evidência:
é parte da constituição do estado mental no comportamento.
Precisamos considerar não se o desejo fornece evidências de
amor – pois, por si só, não creio que o faça – mas se os gestos
característicos do desejo podem ser “repletos de amor”, da mes-
ma forma que uma melodia pode estar “repleta de dor” ou um
discurso “repleto de raiva”.
Um restante de puritanismo pode nos convencer de que, en-
quanto o amor for compatível com o desejo, e talvez reforça-
do por isso, não será, no entanto, expresso através dele. Para
algumas pessoas, é estranhamente embaraçoso misturar desejo
e amor tão intimamente, e grande parte da linguagem “medici-
nal” da educação sexual moderna e da literatura do kinseyismo
pode ser vista como uma expressão desse constrangimento.338
Mas quem pode duvidar da sinceridade de Heloisa, que coroa
sua expressão de um amor ainda cálido por Abelardo com a
expressão de um desejo igualmente quente?

337 Ver Virgil C. Aldrich, Philosophy of Art, Englewood Cliffs, 1963, cap. I.
338 Ver a crítica devastadora da literatura de educação sexual, e de sua ideologia anti-amor,
em Thomas Szasz, Sex: Facts, Frauds and Folies, Oxford, 1981.

336
capítulo 8 - amor

Deus sabe que nunca procurei nada em você, exceto você mesmo;
eu queria simplesmente você, e nada seu. Não pretendi a nenhum
vínculo nupcial, nenhuma parte do casamento, e não eram meus
próprios prazeres e desejos que procurei satisfazer, como você bem
sabe, mas os seus. O título de esposa pode parecer mais sagrado ou
solene, mas mais doce para mim será sempre a palavra amante, ou,
se você me permitir, concubina ou prostituta.339

Pope, em sua brilhante transformação da carta de Heloisa,


imita esta passagem conscientemente, até que encontra a pala-
vra crucial. Sua paráfrase para transmitir o sentido de Heloisa
nesta única palavra o ocupa por oito linhas:
Nem imperatriz de César eu me dignaria a ser;
Não, faça-me amante do homem que eu amo;
Se há ainda outro nome mais livre,
Mais apaixonado, do que amante, faça-me isso para ti!
Oh estado feliz! quando as almas atraem umas às outras,
Quando o amor é liberdade, e a natureza, lei:
Tudo, então, está completo, possuindo, e possuída,
Nenhum desejo vazio deixado reinante no peito:
Até pensamentos se encontram, antes que os lábios se partam,
E cada desejo terno jorra mútuo do coração.
Isto certamente é felicidade (se há felicidade sobre a terra)
Que uma vez sorriu para Abelardo e para mim. 340

Curiosamente, a palavra de Heloisa sobrevive mal na rima


da linha onde deveria ter ocorrido. Talvez Pope tivesse pensado
nisto:

339 The Letters of Héloise and Abelard, ed. e tr. Betty Radice, Harmondsworth, 1974, p. 113.
340 Not Caesar’s empress would I deign to prove;
No, make me mistress of the man I love;
If there be yet another name more free,
More fond, than mistress, make me that to thee!
Oh happy state! when souls each other draw,
When love is liberty, and nature, law:
All then is full, possessing, and possess’d,
No craving void left aking in the breast:
Ev’n thought meets tought, ere from the lips it part,
And each warm wish springs mutual from the heart.
This sure is bliss (if bliss on earth there be)
And once the lot of Abelard and me – NT.

337
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Oh estado feliz! Ser prostituta do meu amante,


E amor em liberdade, pela lei da natureza.341

As palavras de Heloise não são palavras de irreverente au-


toengano, mas a verdade crua sobre uma experiência em que
amor e desejo estavam inseparáveis, sendo o segundo a expres-
são final do primeiro. Como isso é possivel?
Pode-se dizer que não há nenhum problema aqui. Pois, afinal,
o desejo não se expressa em olhares, carícias e beijos, e não pode
estar “repleto de amor” exatamente da maneira que nossas pala-
vras são repletas de amor? Mas o problema é mais profundo do
que isso sugere. Olhar, acariciar e beijar são ações voluntárias,
e podem estar repletas de amor, porque o próprio agente pode
transmitir amor nelas. Tais ações podem ter toda a estrutura da
comunicação intencional; eu posso olhar para você com a inten-
ção que você reconheça o meu amor, reconhecendo que essa é a
minha intenção. O desejo sexual, no entanto, não é voluntário,
e sua principal expressão – a excitação sexual – não é um ato
intencional. É algo sofrido, e não algo feito. Se o desejo sexual
pode se tornar uma expressão de amor apenas ao ser expresso
por gestos voluntários que não são específicos ao desejo, então a
pergunta de Platão permanece. Pode-se argumentar que os ges-
tos transmitem amor por si só, não em virtude de, mas apesar
de, sua associação com o desejo. Daí a condenação agostiniana
se concentra sempre na mácula da excitação sexual, em que sou
superado pelo meu corpo, e minha vontade é posta de lado.
A resposta à pergunta de Platão pode ser encontrada, no en-
tanto, precisamente na natureza da excitação. Um beijo ou uma
carícia podem se tornar uma expressão de amor através do ca-
ráter epistêmico que partilha com a excitação sexual. Embora
sejam ações voluntárias, beijos e carícias também são respostas
ao pensamento da perspectiva do outro. Ao beijá-lo, eu impri-
mo em sua carne o sinal dos meus bons sentimentos por ele,
e o prazer reside na sensação imediata de que ele me percebe
assim. Por um momento, num relance, carícia ou beijo de amor,
a nossa separação é extinta, e as nossas perspectivas são inva-
didas pela sensação do desejo do outro. De forma semelhante,

341 Oh happy state! To be my lover’s whore,


And love in liberty, by nature’s law – NT.

338
capítulo 8 - amor

a experiência da excitação pode extinguir todas as forças que


nos dividem, de modo que, nesta experiência, os seus objetivos
e interesses também são meus.
Para ver como isso acontece, é instrutivo nos voltarmos no-
vamente para a estética. O interesse estético, ao mesmo tempo
em que se baseia na experiência sensorial, é prerrogativa dos
sentidos “cognitivos” – do olho e do ouvido.342 Estes sentidos
nos apresentam experiências cuja qualidade sensorial está inse-
paravelmente ligada a um conteúdo epistêmico. Os prazeres do
paladar, tato e olfato – pelo menos aqueles que compartilhamos
com os animais – têm um grande componente sensorial. Os pra-
zeres do olho e do ouvido, no entanto, são prazeres intencionais
– prazeres da contemplação. Daí “o olho não se farta de ver,
nem o ouvido se enche de ouvir”.
A literatura de amor elogia a visão do amado como símbolo
de sua presença sensorial. O filósofo neoplatônico renascentis-
ta Leone Abravanel argumenta que os sentidos da visão e au-
dição – ao contrário dos sentidos “inferiores”, cujos prazeres
derivam de nossa natureza animal – servem aos interesses do
indivíduo, e não aos da espécie. Estes sentidos são os veículos
de conhecimento e compreensão; os sentidos mais baixos, no
entanto, são os veículos de desejo. Abravanel reconhece neste
contraste uma dificuldade fundamental para a filosofia do amor,
e por isso responde ecoando a pergunta de Platão.343 Se o amor
sexual fosse baseado apenas na visão, não haveria dificuldade
em compreender a união entre amor e desejo. Seria um caso es-
pecial de a unidade intencional que constitui o núcleo do prazer
estético. Quando ouço melancolia na música, um pensamento
toma forma auditiva para mim, e ao mesmo tempo se acomoda
às restrições intencionais da audição: isto, para mim, é o som da
melancolia. Apenas dessa maneira, conforme o neoplatônico,
a visão de meu amado transmite e restringe o meu pensamen-
to sobre ele. Eu o vejo como ele mesmo, e o compreendo em
função do que vejo. Por isso, o meu amor pode reverberar na
minha experiência, assim como a minha experiência mostra o
pensamento dele.

342 Eu discuto essa questão em Art and Imagination, Londres, 1974, cap. 9.
343 Abravanel, The Philosophy of Love, p. 53.

339
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

No entanto, o desejo sexual não é uma questão de visão


exclusivamente. Seus êxtases pertencem ao tato, paladar e ol-
fato. Convocar esses sentidos “inferiores” é falar ou escrever
desejosamente:
Quão doce é o teu amor, minha irmã, minha esposa,
Quão melhor que o vinho é o teu amor!
E o cheiro dos teus unguentos do que toda sorte de especiarias!
Teus lábios, ó minha esposa, são como o favo de mel,
Mel e leite estão sob tua língua:
E o cheiro de tuas vestes é como o cheiro do Líbano. (...)
O meu amado pôs a mão no buraco
[“da porta” (na Versão Autorizada do Rei Jaime), mas não no
hebreu]
E meu coração estremeceu por ele.
Eu me levantei para abrir ao meu amado:
E de minhas mãos pingava mirra,
E meus dedos, com líquida mirra,
Nas alças da fechadura.
[as duas últimas palavras são, sem dúvida, da Versão Autorizada]
[Cântico dos Cânticos, 4: 10-11, 5: 4-5]344

Essa concentração de imagens degustativas, olfativas e tá-


teis cria uma sensação inebriante de Untergang do corpo em
desejo, e do verdadeiro significado de “sensualidade”. Ao
mesmo tempo, a distinção familiar – mas, na verdade, ex-
tremamente obscura – que tenho ensaiado, entre os sentidos
cognitivos e os não-cognitivos, nos permite entender o que é

344 How fair is thy love, my sister, my spouse,


How much better is thy love than wine!
And the smell of thine ointments than all spices!
Thy lips, O my spouse, drop as the honeycomb,
Honey and milk are under thy tongue:
And the smell of thy garments is like the smell of Lebanon….
My beloved put his hand by the hole
And my bowels were moved by him.
I rose up to open to my beloved:
And my hands dropped with myrrh,
And my fingers with liquid myrrh,
Upon the handles of the lock – NT.

340
capítulo 8 - amor

exigido pelo presente inquérito. A questão de Platão seria


respondida desde que pudéssemos mostrar que a unidade do
pensamento e da experiência que ocorre em prazer estético
também pode ocorrer nas experiências táteis do desejo. Pode
a experiência do contato sexual ser um veículo do amor, da
mesma forma que a visão do amado é um veículo do amor?
Posso experimentar em meus órgãos sexuais a mesma síntese
de experiência e pensamento que experimento na percepção vi-
sual? E essa unidade pode servir para unir o meu prazer com
meu amor por você, vinculando-as no mesmo nó íntimo que
une o meu prazer estético por uma obra de arte com minha
apreensão de seu conteúdo moral?
A resposta, creio eu, é sim. A expressão não depende da ex-
periência de alguém expressá-la, mas na experiência do outro a
quem sua expressão é dirigida. Essa experiência pode ser rece-
bida como uma expressão do amor do outro – o amor pode ser
sentido nela, como pode ser sentido em seus olhos ou ouvidos
em sua voz? (Cf. o problema de expressão na estética: mostrar
que a música expressa emoção, por exemplo, é mostrar, não
que o compositor é capaz de colocar sua emoção no trabalho,
mas que o ouvinte é capaz de ouvi-la )345 Se a experiência sexual
pode ser recebida como uma expressão de amor, também pode
ser usada pelo amante para expressar seu amor, já que ele pode
transmitir o seu amor por ela. Isso por si só torna a experiência
em um veículo do amor. A experiência da excitação sexual –
que é a pré-condição essencial do prazer sexual – cumpre este
requisito. A excitação é uma forma de abertura à sua perspec-
tiva (cf. as palavras da Sulamita citadas acima). O amor pode
ser sentido na experiência de excitação, de modo que o amor se
torna a excitação, como o amor se torna a carícia, o beijo ou o
olhar. Isso é o que se entende por ternura: o amante acaricia e
beija sua amada, pretendendo, assim, produzir a percepção do
amor. Essa ternura é um fim em si. O gesto expressivo é uma
revelação do que eu sou e quero dizer, e como tal, é completo.
Tudo o que posso fazer é repeti-lo – o que pode ser exatamente
o que você deseja:

345 Procurei esclarecer essa questão em “Understanding Music”, em The Aesthetic


Understanding, Londres, 1983.

341
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Dê-me mil beijos, então uma centena,


Em seguida, mais mil, em seguida, uma segunda centena,
Em seguida, ainda outros mil, e depois, mais uma centena.346

O beijo de amor, tão pateticamente evocado por Cátulo,347 é a


resolução do conflito no desejo. Aqui o projeto do desejo termina.
Esta ternura é tanto um resultado natural do desejo, e por
isso, tão obviamente crucial na formação de nossos sentimen-
tos morais, que reagimos com choque à sugestão de que ele
poderia estar ausente. Ao mesmo tempo, a sua ausência é um
poderoso objeto de pensamentos obscenos. Pois abolir ternu-
ra é criar a imagem de um desejo impessoal puro, uma pura
luxúria, que ao enfatizar a vida da espécie nos protege das pe-
rigosas intimidades do amor. Tais pensamentos obscenos es-
tão prefigurados em uma imagem altamente significativa da
cultura popular – a espiã, que tenta criar uma armadilha para
o herói (James Bond), e cujo ardil deve ser contornado, mes-
mo no ato sexual. O perigo total que os parceiros apresentam
um para o outro nega qualquer possibilidade de ternura. Faz
uma clareira em torno do desejo, exibindo-o em toda a sua im-
pessoalidade imperiosa. Para aqueles que não têm uma séria
compreensão da excitação sexual, essa fantasia não descreve a
perversão, mas a norma do desejo. Para essas pessoas, a pergun-
ta de Platão existe em sua forma mais intransigente, como uma
barreira intransponível entre “luxúria e amor”. Esta é uma das
mais importantes consequências das teorias do desejo defen-
didas pelos sexólogos freudianos e kinseyanos, resumidos nas
seguintes palavras do neofreudiano Theodor Reik:
o sexo é um instinto, uma necessidade biológica, originário
do organismo, ligado ao corpo. (...) Pode ser localizado nos
órgãos genitais e em outras zonas erógenas. O seu objetivo é o
desaparecimento de uma tensão física. Ele originalmente não tem
objeto. Depois, o objeto sexual é simplesmente o meio pelo qual a
tensão é aliviada.

346 [N.T.] da mihi basia mille, deinde centum,


dein mille altera, dein secunda centum,
deinde usque altera mille, deinde centum.
347 As linhas de Cátulo foram imitadas por José II: “Centum basia centies, / Centum basia
millies, / Mille basia millies, / Et tot millia millies, / Quot guttae siculo mare, / etc.” Essa
passagem foi citada em Anatomy of Melancholy, parte III, seção 2 de Robert Burton.

342
capítulo 8 - amor

Nenhuma destas características pode ser encontrada no amor .


(...) [Amor] não é uma necessidade biológica, porque há milhões
de pessoas que não o sentem e muitos séculos e padrões culturais
em que é desconhecido. Não podemos citar quaisquer secreções
internas ou glândulas específicas que sejam responsáveis ​​por isso. O
sexo originalmente não tem objeto. O amor certamente tem. É uma
relação emocional muito definida entre um Eu e um Você.348

Platão pode ter merecido as acusações desdenhosas de Byron:


mas quão mais perniciosas têm sido as respostas puritanas à
pergunta de Platão, exemplificadas de forma tão vívida nessa
passagem.

Beleza
Duas características do amor erótico o distinguem da ami-
zade: a sensação de compulsão, e o foco absoluto na natureza
física do outro. Ambas essas características contribuem para o
desejo, e ambas são, por sua vez, modificadas pelo “curso do
amor” – pelo projeto de autoconstrução. Os componentes do
amor erótico estão em tão íntima relação um com o outro que
os atributos físicos do outro são “moralizados” no próprio ato
de percebê-lo. E a compulsão do desejo também é moraliza-
da; eu sinto isso como um movimento de simpatia para com o
amigo cujo calor eventualmente acabará por me consolar. La
Rochefoucauld tem uma máxima cínica, que não há nenhuma
mulher cujo mérito sobrevive à sua beleza. Seu ponto não é que
o mérito de uma mulher consiste em sua beleza, mas sim que ele
persiste apenas enquanto outros se dão ao trabalho de obrigá-la
a exibi-lo, e que eles só vão fazer isso enquanto puderem ver seu
mérito em seu semblante.
É um hábito universal empregar a idéia de beleza para des-
crever essa confluência intrincada de atrações. Será que este uso
do termo envolve um emprego do mesmo conceito que está en-
volvido na avaliação da arte? Vale a pena dizer alguma coisa em
resposta a essa pergunta. É necessário rejeitar todas as tentati-
vas de uma análise “realista” do belo – uma análise que utilize
o adjetivo “belo” para denotar uma propriedade do objeto que
é corretamente assim descrito. Nenhuma análise assim poderia

348 Theodor Reik, Of Love and Lust, Nova York, 1957, cap. 1.

343
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

fazer jus ao papel do termo “belo” na avaliação, considerando o


alcance de sua aplicação, ou às “condições de sinceridade” que
governam seu uso.349 “Belo” não é um termo descritivo, mas
expressivo, cuja principal função é a de designar um item como
o objeto de um determinado tipo de interesse. Em outras pala-
vras, as regras que regem o uso de “belo” não se referem às con-
dições materiais do objeto descrito, mas à estrutura intencional
do estado de espírito expressado. (O mesmo também deve ser
dito de alguns outros adjetivos – notadamente termos “afetivos”
como “comovente”, “nojento”, “excitante” etc.) O “belo” seria
genuinamente ambíguo se fosse habitualmente utilizado para
transmitir estados de espírito incongruentes. Por outro lado, se-
ria unívoco se os vários estados de espírito transmitidos por
ele tivessem uma estrutura intencional comum. É evidente que
a segunda hipótese seja a preferida, dada a tendência univer-
sal para usar os termos “belo”, “beaultiful”, “beau”, “bello”,
“schön”, “gözel”, “krásný”, “piȩkny” e assim por diante, igual-
mente para o objeto de prazer estético e para o objeto de desejo.
Já sugeri (Capítulo 5, pp. 86-7) que o “belo” é o objeto pró-
prio de qualquer atitude que é atenciosa, intransferível e imedia-
ta. O interesse estético e o desejo sexual correspondem a essas
condições. Mas, pode-se objetar, se a semelhança é só essa, difi-
cilmente poderia compensar a enorme diferença entre interesse
estético e desejo. O primeiro é sem propósito, o segundo propo-
sital; o primeiro não tem restrição de objeto, o segundo é inter-
pessoal. Defender que as três características estruturais comuns
são fundamento suficiente para um conceito unificado de beleza
é certamente diminuir a importância da categoria resultante.
No entanto, vimos que existe outra semelhança que, somada
a essas três, explica suficientemente a necessidade de um concei-
to unitário do belo. Embora o desejo sexual não seja baseado
em razões, presta-se a, e normalmente faz parte de, outra atitude
– o amor erótico, que é. O amor erótico vê sentido na aparência
do outro, e busca fundamentar a sua existência no sentido que
vê, ao mesmo tempo em que mantém o imediatismo do desejo.
Apenas o que é revelado na sua aparência pode alimentar a
minha emoção. É o significado que eu ouço em suas palavras e

349 Tentei defender essa afirmação em Art and Imagination, partes I e II.

344
capítulo 8 - amor

tom de voz, e que brilha em seus movimentos e características,


que fornece a base para os meus sentimentos eróticos. Isso se
assemelha exatamente ao caso do interesse estético, que é tanto
imediato quanto fundado em razões, e que procura justificar-se
em termos de um “significado revelado” que pode ser ouvido ou
visto no objeto estético. (Por isso que os principais objetos de
interesse estético são obras de arte, já que obras de arte convi-
dam a uma percepção interpretativa.)
Isso é apenas um esboço. Mas ele aponta o caminho para
importantes conclusões. Em particular, podemos sugerir que o
amor erótico, como o interesse estético, é essencialmente ava-
liativo. O objeto da avaliação em questão não é o caráter do
outro, concebido abstratamente, mas a forma de encarnação
concreta desse caráter em uma estrutura humana individual,
o conjunto unido, no aqui e agora da presença corporal, das
perspectivas e das responsabilidades que constituem a pessoa
autoconsciente. O amor erótico é, portanto, a lembrança mais
viva de que nós existimos como centros de valor aqui e agora,
na condição de mortalidade. Este reconhecimento é, como o
próprio amor erótico, exigido de nós, e nós inevitavelmente nos
rendemos a ele. O objeto do erōs tem uma tutela única sobre
nós. Sem ele nós apreciaríamos menos vividamente a premissa
fundamental da moral: que o repositório de valor infinito, que
é o indivíduo, não existe em alguma supraesfera platônica, mas
aqui na carne. Essa coisa infinitamente preciosa, na verdade, é o
animal: é idêntica ao corpo frágil que tem carrega os atributos
humanos que eu admiro.
Esta experiência da encarnação, sob o regime rigoroso de
amor erótico, em certa medida, ecoa em nossa experiência da
bela fragilidade das crianças. Mas só no amor erótico é que se
torna claro para mim que é precisamente o agente moral em
você o objeto da minha atenção para a sua forma encarnada.
Essa experiência está na raiz de nossa admiração pela estru-
tura humana. Sem essa admiração, ninguém poderia perceber
o verdadeiro horror do assassinato, da tortura e do estupro.
Defender com razões as sentenças que condenam esses crimes
é ficar sempre aquém de sua verdadeira atrocidade. Só na ex-
periência do amor erótico que esta atrocidade é revelada para
nós, e transformada em uma parte imutável de nossas intuições

345
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

morais. Essa é a razão principal, eu acredito, por que devemos


finalmente rejeitar tanto a visão kantiana, que nos pede para
ver o erōs fora da área do verdadeiro respeito, quanto à visão
platônica, que não vê o valor no indivíduo encarnado, mas no
universal desencarnado. Se minha intuição está certa, o erótico
é fundamental para uma compreensão completa do que signifi-
ca para as pessoas ser “fins em si mesmas”.

Novos problemas
Tudo o que eu disse a respeito do “curso do desejo” e do
“curso do amor” depende de uma idéia de normalidade. Eu des-
crevi uma norma de conduta humana e, naturalmente, alguém
dirá que não tenho direito a esse conceito de “normalidade” –
mesmo que eu tenha me comprometido a um modo de pensar
que, nestes tempos iluminados, é moralmente inaceitável. Devo,
portanto, tentar justificar a idéia de normalidade sexual, e dar
uma base filosófica genuína a um conceito que eu acredito que
não podemos evitar em nossa compreensão diária de conduta
sexual – o conceito de perversão. Vou me dedicar a este tópico
no Capítulo 10.
Mas há outro problema mais urgente e que agora deve ser
confrontado. Pode admitir-se que, ao vincular o desejo sexual e
o amor erótico, eu resolvi o problema de Platão. Mas só através
da criação de outro problema, igualmente grave, sobre a natu-
reza do próprio sexo. Eu situei o desejo tão firmemente no reino
do interpessoal para fechar a lacuna entre desejo e amor. Mas,
ao fazer isso, eu abri outra lacuna, entre desejo e sexo, entre o
projeto da união sexual e o ato progenitor. O que o sexo tem a
ver com a intencionalidade do desejo na minha análise? Eu fiz
do desejo uma parte do amor, apenas por descrevê-lo em termos
que fazem pouca ou nenhuma referência ao impulso procriador.
Por isso, talvez o que Platão quis dizer ainda pode estar correto.
Ainda é um problema, entender como a nossa natureza como
seres sexuais – com impulsos, sensações e equipamentos sexuais
– entra no funcionamento do desejo. Só se entendermos que é
possível, finalmente, fechar a lacuna entre o mundo “espiritual”
das atitudes interpessoais e o mundo “animal” do organismo
humano: a lacuna entre o eu e o corpo. É para este problema
que vamos nos voltar.
346
CAPÍTULO 9
SEXO E GÊNERO

Os homens se reproduzem sexualmente e, biologicamente


falando, a reprodução é a função do ato sexual. Essa platitude
tem enormes consequências para o nosso assunto e duas serão
de especial importância para nós. Em primeiro lugar, às vezes
é dito que a função reprodutora do ato sexual faz parte de sua
natureza enquanto ato.350 Daí que o desempenho sexual separa-
do de suas consequências reprodutivas – como na relação sexu-
al homossexual e na que utiliza métodos contraceptivos – é um
ato diferente, intencionalmente e talvez também moralmente,
do ato sexual aliado à sua função biológica. De acordo com
esse ponto de vista, a reprodução não é apenas biológica, mas
também uma característica espiritual do ato sexual.
No presente capítulo, também vou considerar outro pensa-
mento relacionado sugerido pelo destino biológico do desejo
humano. É evidente que há coisas que não são pessoas, que
não têm nem autoconhecimento, nem responsabilidade, que
também se reproduzem sexualmente, e que são, portanto, obri-
gadas por quaisquer necessidades que as induzem a se envolver
no ato da cópula, e são recompensadas por qualquer prazer que
acompanha sua atividade. Nós certamente devemos estar sujei-
tos aos mesmos impulsos e prazeres que governam as atividades
reprodutivas dos outros seres sexuais. Por que isso não é o fato
básico da experiência sexual? Pode haver atitudes interpessoais
do tipo que descrevi – atitudes de amor e desejo, ligadas por
algum processo cultural para o impulso básico de copular. No
entanto, é o impulso o fundamental, e o que revela a realidade
de nossa condição.

350 Ver G. E. M. Anscombe, “Contraception and Chastity”, em The Human World, vol. II
(1972).
347
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Esse é o teor residual do que chamei de “questão de Platão“.


A objeção levanta, em sua forma mais ampla, o tema geral da
relação entre nossa vida erótica como pessoas e nossa vida se-
xual como animais. Surge, portanto, mais uma vez a questão
controversa da encarnação: como pode uma única e mesma coi-
sa ser tanto uma pessoa e em animal?
Há de fato uma base biológica para a nossa conduta sexual;
mas vou rejeitar a insinuação de que ela fornece o núcleo da ex-
periência sexual. A melhor maneira de compreender a posição
que vou defender é em termos de uma analogia. Uma árvore
cresce no solo, de onde tira o seu sustento, e sem a qual não
seria nada. E não seria quase nada para nós se também não se
espalhasse na folhagem, nas flores e nas frutas. De forma seme-
lhante, a sexualidade humana cresce do solo do impulso repro-
dutivo, de onde tira a vida, e sem o qual não seria nada. Além
disso, não seria nada para nós, se não prosperasse de forma
pessoal, revestindo-se com a flor e folhagem do desejo. Quando
entendemos uns aos outros como seres sexuais, não vemos a
terra que está escondida sob as folhas, mas as próprias folhas,
de maneira que a questão da animalidade só é inteligível porque
adquiriu uma forma pessoal. Animal e pessoa são, no fundo,
inextricáveis, e assim como o fato da existência sexual crucial-
mente qualifica a nossa compreensão um do outro como pesso-
as, a nossa existência pessoal torna impossível compreender a
sexualidade em termos “puramente animais”.

Sexo e gênero
Conduzi toda a discussão até este ponto sem mencionar expli-
citamente o sexo – ou seja, o fato da diferenciação sexual. O lei-
tor pode razoavelmente se perguntar o que o sexo tem a ver com
a atitude interpessoal que estou descrevendo. É claro, o desejo se-
xual não ocorre apenas entre pessoas de sexo diferente: uma aná-
lise do desejo sexual que não poderia ser estendida à homossexu-
alidade seria ridícula em si e também totalmente ineficaz como
base para um julgamento moral coerente. É certamente uma das
questões vitais da moralidade sexual: se a relação homossexual
é moralmente distinguível da heterossexual. Se a primeira não
for uma expressão do desejo, será difícil ver em que termos essa
questão pode ser colocada, para não dizer respondida.
348
capítulo 9 - sexo e gênero

Mesmo na homossexualidade, no entanto, o fato da diferen-


ciação sexual é uma parte proeminente, e imóvel, da experi-
ência. O homossexual deseja o outro (em primeira instância)
como homem; o homossexual deseja o outro (em primeira ins-
tância) como mulher. Claro que existem complexidades aqui:
eu posso, por exemplo, desejá-lo como homem, mas apenas na
condição de que você também finja ser mulher. Não obstante,
as complexidades não são diferentes daquelas ligadas às vidas
sexuais de heterossexuais. É parte integrante tanto da experiên-
cia heterossexual quanto da homossexual que o objeto é um ser
sexual, e um representante do sexo particular que lhe pertence.
É somente nesta hipótese que os fenômenos do amor homosse-
xual tornam-se inteligíveis.
Tais pensamentos já nos alertam para uma distinção vital –
entre os conceitos material e intencional da sexualidade. O con-
ceito material da sexualidade é o conceito de uma divisão entre
espécies naturais – a divisão, na maioria dos casos, entre macho
e fêmea. No sentido material, é para a ciência determinar o que
é ser homem ou mulher, e descrever as características biológicas
e funcionais da união sexual. Neste sentido, é claro que desco-
brimos muito sobre a sexualidade; de fato, pode-se dizer que
ninguém sabia tanto sobre ela até um século atrás.
No sentido intencional, por outro lado, as pessoas sabiam
tanto antes da revolução darwiniana quanto depois dela. (Na
verdade, eles provavelmente sabiam mais.) O conceito intencio-
nal da sexualidade é de uma divisão perceptível dentro do mun-
do dos fenômenos, que incorpora não só as formas observáveis​​
distintas do homem e da mulher, mas também as diferenças na
vida e comportamento que nos fazem seletivamente responder a
elas. Vou me referir a esta distinção intencional como àquela en-
tre os gêneros masculino e feminino – dando, assim, um uso res-
peitável para um termo que tem uma história de má reputação.
Em adição ao conceito de gênero, é também importante ter
em conta as diferentes concepções e ideais associados
​​ a ele. Na
medida em que você e eu distinguimos o masculino e o feminino
nos objetos imediatos de experiência, e identificamos os mesmos
exemplos centrais de cada um, compartilhamos um conceito de
gênero. Mas você pode associar com esse conceito uma varieda-
de de crenças sobre homens e mulheres que eu rejeito; nesse caso,

349
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

temos concepções diferentes dessa distinção. Da mesma forma,


eu posso ter um ideal de conduta masculina – ou de conduta
feminina – que seja repugnante para você. E nós dois podemos
discordar em nossas concepções e ideais, embora concordemos
não só em nossa posse do conceito de gênero, mas também em
nossa posse do conceito de sexo. Podemos até ter concepções
idênticas sobre sexo – aceitando o mesmo conjunto de análises e
teorias científicas sobre a distinção real entre mulher e homem.
A separação do conceito, concepção e ideal é familiar aos filó-
sofos. Mas é importante referir-se a isso desde o início, antes de
entrar em um terreno repleto de perigos morais e intelectuais.
A falha na distinção de sexo e gênero – distinguir a base ma-
terial da superestrutura intencional – é responsável por muitas
confusões interessantes, e em particular pela tentativa já popu-
lar de identificar um caráter masculino e um feminino, e associar
esses caracteres às diferentes condições fisiológicas do homem e
da mulher. Assim, Otto Weininger, escrevendo em 1903, tentou
dar uma teoria biológica abrangente da distinção moral entre
homem e mulher, deixando bem claro o tom com que o faz por
suas observações relativas à “mulher emancipada”:
A emancipação, como a quero discutir, não é o desejo por uma
igualdade externa em relação ao homem, mas a questão de real
importância para a mulher, o desejo profundo de adquirir o caráter
do homem, de alcançar a liberdade mental e moral dele, de atingir os
reais interesses e poder criativo dele. Afirmo que o elemento feminino
real não tem nem o desejo nem a capacidade de emancipar-se neste
sentido. Todas aquelas que estão se esforçando para esta verdadeira
emancipação, todas as mulheres que são verdadeiramente famosas e
tem evidente capacidade mental, à primeira vista de um especialista
revelam alguns dos caracteres anatômicos do sexo masculino,
alguma semelhança física a um homem. Essas chamadas “mulheres”,
que foram admiradas no passado e no presente pelos defensores dos
direitos da mulher como exemplos do que as mulheres podem fazer,
têm quase sempre sido o que descrevi como formas sexualmente
intermediárias.351

Poucos atualmente desejariam expressar-se nos termos de


Weininger. Ainda assim, ele dá um exemplo interessante de uma
teoria global da sexualidade, que tenta reunir todo o fenômeno

351 Otto Weininger, Sex and Character, English edition, Londres, 1903, p. 65.

350
capítulo 9 - sexo e gênero

moral do gênero a uma base biológica. Confrontado com o fato


óbvio de que a divisão moral está longe de ser absoluta, Wei-
ninger é forçado a acreditar que os casos difíceis de gênero são,
por isso mesmo, casos difíceis de identidade sexual, inteligíveis,
no entanto, à “primeira vista de um especialista”. A própria im-
plausibilidade da teoria de Weininger deve alertar-nos para a
verdadeira distinção entre sexo e gênero – e também para o
caráter inconstante de nossas concepções de ambos, que clara-
mente mudaram muito desde 1903, tornando o pensamento de
que uma mulher famosa, por essa razão, necessariamente tem
um temperamento masculino, bem como uma “sexualidade in-
termediária”, muitíssimo improvável.
Proponho, no que se segue, explorar o conceito de gênero,
e mostrar o seu lugar na focalização da experiência da união
sexual. Tem-se dito que as distinções de gênero são inteiramente
arbitrárias, e podem tanto ser abolidas ou construídas, depen-
dendo das convenções sociais, preconceitos e propósitos ideoló-
gicos da pessoa que as faz. Em todo caso, essa é uma reivindica-
ção freqüente de feministas, bem como de certos expoentes da
“liberação gay”. Para esses pensadores, não há tal coisa como
uma distinção “natural” do gênero, mesmo que haja uma dis-
tinção natural entre os sexos. Às vezes, a linguagem em que esta
tese é expressa pode confundir a questão, usando “sexo” para
significar “gênero” – como na seguinte passagem:
não há sexo ou sexualidade natural (a única coisa que poderia
concebivelmente ser chamada de “natural” é a reprodução da
espécie, mas também se corre o risco de abstrair da cultura e
essencializar – naturalizando – alguma organização social particular:
a reprodução pode ser natural; mães e pais nunca são). Não há sexo
ou sexualidade natural; a sexualidade não é uma entidade absoluta e
eterna no princípio de um ser humano subjacente – ela simplesmente
não existe. Ou melhor, sua única existência é como uma construção
específica, uma definição específica do sexual.352

Mas o que o escritor quer dizer, nesta evocação de “uma


construção específica, uma definição específica”, é o que eu que-
ro dizer com gênero, ao contrário do que eu chamei de “sexo”.
(Sexo é o fato material subjacente que o escritor resume na com-

352 Stephen Heath, The Sexual Fix, Londres, 1982, p. 145.

351
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

plicada referência à reprodução.) O tom da passagem indica a


profundidade do sentimento pelo qual é motivado. É evidente
que esta é uma questão provocadora. As feministas têm interes-
se em provar que as distinções de gênero são arbitrárias, e talvez
elimináveis. Assim como certos defensores da homossexualida-
de, que desejam discutir, com Guy Hocquenghem, que a própria
descrição de certo desejo como “homossexual” é a expressão de
uma posição ideológica, e que, na verdade, o desejo não é nem
homossexual nem heterossexual, mas meramente pessoal.353 O
elemento “homo” ou “hetero” é imposto por nossas divisões de
gênero, e não pode ser inteligível de forma independente.

Construção de gênero
O gênero denota, no meu uso, uma classificação intencional:
uma ordem provocada na realidade pela nossa maneira de ver
e responder a ela. Mas neste caso, também somos o objeto de
nossa classificação, e temos um grande interesse nos fatos que
registra. Por conseguinte, a existência da classificação muda a
coisa descrita: nós adaptamos a realidade à nossa percepção,
justificando, assim, o entendimento intencional expresso nela.
O fenômeno percebido através do conceito de gênero é tam-
bém, em certa medida, o produto desse conceito.
O termo “gênero”, portanto, beira a ambiguidade – ou, pelo
menos, tem dois níveis semânticos. Ele expressa o conceito que
informa nossa compreensão intencional de sexo; ele também
denota o artefato que construímos em resposta a esse entendi-
mento, e pelo qual enfeitamos, exageramos ou escondemos nos-
sa natureza sexual. Nesse caso, parodiando Frege, o sentido não
se limita a determinar a referência; ele também a modifica. No
que se segue, portanto, usarei o termo “gênero” para designar
tanto uma maneira de perceber as coisas quanto uma caracte-
rística artificial particular da coisa percebida (sua “construção
de gênero”).
Existem outros conceitos que pertencem à nossa compreen-
são intencional que tem o efeito de mudar a realidade à qual
eles são aplicados. Um desses é o conceito de pessoa. Ao ver-nos

353 Guy Hocquenghem, Le Désir homosexual, Paris, 1972, p.12.

352
capítulo 9 - sexo e gênero

como pessoas, também nos motivamos a ser pessoas – a nos


reconstruirmos de acordo com as exigências de uma percepção
fundamental. Vou sugerir que não podemos entrar nessa “cons-
trução pessoal” sem também passar pela construção de gênero.

Feminismo kantiano
No decorrer da discussão, vou me opor expressamente à
imagem filosófica por trás das causas consideradas acima. Vou
descrever esta imagem na sua forma mais clara, como a teoria
do gênero do “feminismo kantiano”. De acordo com esta teo-
ria, o que eu sou realmente e fundamentalmente, para mim e
para outros, é uma pessoa. Minha natureza enquanto pessoa es-
tabelece, completa e exclusivamente, todas as minhas reivindi-
cações para ser tratado com consideração, e é a verdadeira base
de toda reação interpessoal em relação a mim. Embora eu seja
encarnado, ser assim é, por assim dizer, o instrumento da mi-
nha “realização” no mundo público da emoção pessoal. Minha
personalidade é distinta da sua forma corporal, e é o verdadeiro
locus dos meus direitos, meus privilégios, meus valores, minhas
escolhas e – usando o termo kantiano – minha “liberdade”. Ca-
racterísticas do meu corpo, que distinguem o meu corpo do seu,
não podem dar motivos razoáveis para qualquer julgamento a
respeito da minha natureza enquanto pessoa. Se eu sou aleija-
do, ou negro, ou bonito, sou tanto pessoa quanto você, que é
“saudável”, branco e feio. A categoria “pessoa” é uma unidade:
há apenas um tipo de coisa que cai sob ela, e as distinções entre
as pessoas são simplesmente distinções entre propriedades pes-
soais acidentais – distinções expressas e reveladas em escolhas
livres. Não há distinção real entre o masculino e o feminino, ex-
ceto na medida em que a liberdade humana foi dobrada em cer-
tas direções, por quaisquer pressões sociais, de modo a ter duas
formas contrastantes. As distinções de gênero não podem estar
na natureza das coisas. Pois, apesar de poder haver dois tipos
de corpos humanos o masculino e o feminino, não pode haver
dois tipos correspondentes de pessoa humana. Isso significaria
atribuir essas distinções corporais à “liberdade” das pessoas que
dividem, assim como o racista atribui a cor da pele ou a raça do
outro à sua responsabilidade. Embora o negro escravizado vista
o caráter induzido por sua escravidão, ele é, em si mesmo, algo

353
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

independente das condições sociais que o produziram. Dizer


que ele veste a sua personalidade por natureza – como na defesa
aristotélica da escravidão – é dizer que sua distinção fisiológica
de seu mestre branco é o sinal exterior de uma identidade mo-
ral distinta. O feminista kantiano defende que é tão absurdo e
perverso supor que as pessoas sejam fundamentalmente mascu-
linas ou femininas quanto serem fundamentalmente escraviza-
das ou livres. As diferenças naturais que existem são meramente
corporais – a diferença entre o masculino e o feminino, entre o
caucasiano e o negro. Todas as diferenças de personalidade são
o resultado de condições sociais que, porque são o produto da
escolha, podem também ser alteradas livremente.
Esse argumento – a que foi dado eloqüente expressão nos
últimos anos por Simone de Beauvoir354 – é inegavelmente atra-
ente. Eu o apresentei no que talvez seja sua forma mais popu-
lar, como corolário do imperativo categórico, expresso nos ter-
mos da noção kantiana de liberdade. No entanto, ele pode ser
reexpresso na linguagem do meu argumento anterior, da seguin-
te forma: a distinção entre os sexos situa-se na natureza das
coisas e, embora possa haver casos de mudança de sexo, a di-
visão básica entre masculino e feminino é uma entre dois tipos
naturais distintos. O tipo “pessoa” não é, no entanto, um tipo
natural, e divisões dentro do tipo natural “animal humano” não
implicam divisões no tipo “social” “pessoa”. Pelo contrário. O
tipo “pessoa” deve sua existência à nossa noção de que os seres
humanos são iguais em relação à sua racionalidade, e que a
posse desse atributo é suficiente para fundar um padrão distinto
de resposta em relação a eles. O tipo “pessoa” varia indiferente-
mente em todos os seres com capacidade para resposta racional,
e as características “profundas” da pessoa – a posse de uma

354 Simone de Beauvoir, Le Deuxième Sexe, Paris, 1949, tr. Como The Second Sex por H. M.
Parshley, Londres, 1953:
Agora, o que sinaliza peculiarmente a situação da mulher é que ela – um ser livre e
autônomo como todas as criaturas humanas – encontra-se, no entanto, vivendo em
um mundo onde os homens a obrigam a assumir o estado do Outro. Eles propõem
estabilizá-la como objeto e condená-la à imanência, já que sua transcendência deve
ser ofuscada e para sempre transcendida por outro ego (consciência) que é essencial
e soberano. O drama da mulher está nesse conflito entre as aspirações fundamentais
de todo sujeito (ego) – que sempre considera o eu essencial – e as compulsões de uma
situação em que ela é o não-essencial. [Penguin edn, p. 29]

354
capítulo 9 - sexo e gênero

perspectiva de primeira pessoa, e da atitude em relação à ação


que chamei de responsabilidade – são exemplificadas por cada
espécime, ou pelo menos são possuídas igualmente por homens e
mulheres. Assim, não há nenhuma inferência a partir da distinção
sexual dentro do tipo natural “ser humano” para a distinção de
gênero dentro do tipo social “pessoa”. Este último é artificial,
variável e, de toda forma, não essencial, enquanto o primeiro é
natural, imutável e essencial à natureza das coisas que o exibem.
Existem outros tipos de feminismo, e se eu escolhi discutir a
variedade kantiana, é apenas por conta de sua pureza intelectu-
al, e sua conseqüente capacidade de exibir o que está realmente
em jogo, e não porque é intrinsecamente plausível. A posição
feminista kantiana, afirmo, deve ser criticada em três aspectos.
Primeiro, ela atribui um papel implausível para o conceito de
gênero. Em segundo lugar, não consegue considerar seriamente
o fato da encarnação: ele está em guerra com a verdade de que
nós somos nossos corpos e, ao separar inteiramente a liberdade
pessoal do destino biológico, é enganada por uma ilusão trans-
cendental. Finalmente, o feminismo kantiano deixa de reconhe-
cer que, no sentido de que as distinções de gênero são “artifi-
ciais”, o mesmo ocorre com a pessoa humana.

O papel do gênero
O feminista afirma que conceitos de gênero não têm validade
fora das atitudes que servem para transmitir. Não há nenhum
fato material sobre gênero, apenas distinções de atitude que po-
dem ser redesenhadas a qualquer momento. Colocando de ou-
tra forma: a idéia de gênero é puramente intencional; ela não se
envolve nem com a distinção material entre os sexos, nem tem
qualquer finalidade explicativa que nos levaria a atribuir uma
realidade independente para a divisão que ela registra.
Isso seria plausível apenas se a profunda divisão entre ho-
mem e mulher (a divisão de tipo natural) fosse de tal ordem
que não interferisse em nosso entendimento intencional. Assu-
mir que não interfere é, no entanto, falacioso. Os antifeministas
afirmam que a distinção entre homem e mulher determina res-
postas distintas aos dois tipos naturais, e que nós empregamos
conceitos de gênero para concentrar essas respostas nas caracte-
rísticas relevantes de seus objetos. Para o feminista, a distinção

355
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de sexo está oculta, da mesma maneira que a distinção entre


ônix e pórfiro está oculta. As duas pedras podem parecer mui-
to diferentes, como também podem parecer muito semelhantes.
Estamos interessados em ​​ sua semelhança e, portanto, as classi-
ficamos juntas, apesar da grande distinção de tipo natural. Da
mesma forma, o feminista argumenta, homens e mulheres, con-
siderados como pessoas, podem parecer muito semelhantes, ou
podem parecer muito diferentes. Depende de nossos interesses.
Se quisermos, podemos reconstruir o mundo social, de modo
que os dois sexos pareçam igualmente como pessoas. E em tal
mundo, não teremos nenhum uso para o conceito de gênero.
O antifeminista vai argumentar, no entanto, que o sexo é mais
aparente do que sugere, e que, por isso, nossas concepções de
gênero não encarnam apenas uma tentativa de projetar nossas
atitudes, mas de entender a constituição interna da realidade.
Elas são sensíveis aos fatos profundos sobre o homem e a mulher,
de uma forma que o conceito de “mármore ornamental” não é
sensível aos fatos profundos sobre as pedras. Mesmo se não tiver-
mos conhecimento da ciência do sexo, podemos ainda ser sensí-
veis aos fatos do sexo. E uma das nossas respostas a estes fatos é a
formação de um conceito de gênero. Em certa medida, portanto,
nossas concepções de gênero podem registrar os fatos subjacen-
tes da diferenciação sexual. Na verdade, se não o fizessem, seria
difícil ver como poderíamos descrevê-las como concepções de gê-
nero. Elas só o podem ser tão somente se pretendem distinguir
o homem da mulher, e o masculino do feminino, em termos que
transmitam o conteúdo intencional de respostas que não teriam
sentido a não ser para a distinção subjacente do sexo.
É difícil determinar a priori qual destes pontos de vista está
correto. O melhor que podemos fazer é estudar, em primeiro lu-
gar, o que pode ser verdade a respeito da capacidade do sexo in-
terferir em nossa experiência sexual, e em segundo lugar, o que
é verdadeiro da própria experiência – e, em particular, como a
distinção entre homem e mulher é vista.

Homem e mulher
É amplamente reconhecido que a distinção biológica entre
os sexos não é tão absoluta na realidade como tende a ser em
nossos pensamentos. Enquanto sexualidade não é exatamente

356
capítulo 9 - sexo e gênero

uma questão de grau, existe uma escala em que característi-


cas masculinas e femininas podem ser graduadas. Há também
casos que não podem ser colocados nessa escala: casos como
hermafroditismo, em que as características de ambos os sexos
são exibidas, e “neuterismo”, em que nenhum dos sexos surge
adequadamente, e a criatura não é dotada de nenhum órgão
reprodutivo, ou só possui órgãos atrofiados, incapaz de realizar
qualquer ato sexual real. A existência destes casos leva-nos a
uma idéia de normalidade sexual – do homem ou da mulher,
em quem tudo o que é relevante para a função reprodutiva tam-
bém está perfeitamente adaptado a ela. Esta maneira de ver o
sexo é tão natural, e se baseia em fatos que são tão vívidos e
interessantes para nós, que não seria surpreendente descobrir
que permeiam nossas concepções de gênero. No gênero também
reconhecemos características masculinas e femininas, e casos
ambíguos ou intrigantes que parecem desafiar a classificação.
Reconhecemos também uma escala de masculino e feminino –
embora, como argumentarei abaixo, seja uma escala diferente
de outras polaridades. Finalmente, nossas idéias de gênero es-
tão saturadas com uma concepção de normalidade que, embora
corresponda apenas em parte à idéia de normalidade sexual,
contém uma referência essencial, se não para a função do ato
sexual, pelo menos para a natureza do desejo.
Muito mais importante do que a escala sexual, no entanto,
é a própria distinção sexual. Homens e mulheres diferem na
sua aparência física e nas suas capacidades corporais. Eles se
desenvolvem de acordo com um ritmo diferente, e parecem pos-
suir diferentes aptidões intelectuais.355 Há lições a serem tiradas
sobre a constituição genética de homens e mulheres a partir da
observação de que eles são tão distintos socialmente. Homens
e mulheres diferem em suas habilidades, em suas energias e na
sua abordagem dos problemas práticos. Mas em nada que eles
diferem tanto como nas suas disposições e experiências sexuais.
Pois as mulheres podem engravidar; e seus corpos têm um ritmo
e um destino que são condicionados pelo fato do parto.

355 Algumas das evidências para essa afirmação – ardentemente discutida, por exemplo,
por Anne Oakley em Sex, Gender and Society, Londres, 1972 – estão reunidas em Sex
and the Brain, Londres, 1983, por Jo Durden-Smith e Diane de Simone. As autoras
chamam atenção para a extrema censura, e para a mania quase universal de censura,
exercida pelas feministas a fatos cientificamente estabelecidos.

357
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Do ponto de vista genético, a distinção entre os sexos é uma


característica profunda, determinada nas primeiras fases de de-
senvolvimento fetal por um mecanismo dos cromossomos. De
mil maneiras, o desenvolvimento do sexo masculino é minucio-
samente diferente do desenvolvimento do sexo feminino, e po-
demos esperar que essas diferenças sobrevivam em disposições
duradouras e hábitos biologicamente determinados. Mas quais
são as implicações para a nossa idéia de gênero? Abordemos
um elemento da Sociobiologia a priori. A luta incansável do
gene para se perpetuar, que – de acordo com o sociobiólogo – é
a causa primordial da união sexual, é favorecida pelo compor-
tamento distinto no masculino e no feminino. O macho ajuda a
seus genes na medida em que fecunda as fêmeas, e garante que a
sua própria prole tenha uma melhor chance de sobrevivência do
que os seus concorrentes. A fêmea perpetua seus genes na medi-
da em que ela é fecundada, e é capaz de alimentar sua prole. Os
genes do macho são beneficiados, pois, pela sua determinação
em reivindicar uso sexual exclusivo das mulheres a quem ele
fecundou, enquanto os genes da mulher são beneficiados por
sua determinação de assegurar a cooperação duradoura de um
macho forte e confiável para a manutenção de sua vida e para
o apoio de sua prole. Essas duas funções não são incompatíveis
– na verdade, elas formam, para o sociobiólogo, a realidade
material verdadeira que está na base do contrato de casamen-
to. Mas ele indica que as ambições genéticas do sexo masculi-
no e feminino seriam favorecidas por disposições psicológicas
distintas. Façamos uso de um pouco de licença imaginativa, e
tentemos descrever, a partir de premissas sociobiológicas, as dis-
posições psicológicas do homem e da mulher que seriam mais
favoráveis para a perpetuação de seus genes. Podemos criar a
seguinte imagem:
O homem é ativo na busca de mulheres; ele não limita as suas
atenções a apenas uma mulher, mas se move inquieto depois de
novas conquistas, e tenta excluir os outros homens do desfrute
desses favores. Além disso, seu ciúme tem um foco peculiar. Ele
não fica tão aflito pela tentativa de outros homens de ajudar e
apoiar a sua mulher quanto pela tentativa de se unirem a ela
sexualmente. Na verdade, é o pensamento dela copulando com
outro que causa nele o maior ultraje. (Nosso sociobiólogo ima-

358
capítulo 9 - sexo e gênero

ginário não ficaria surpreso pela tribo [descrita por Buffon]356


que fechava a vagina da solteira com um anel, e que, no matri-
mônio, substituía esse anel por outro que poderia ser aberto,
mas somente com uma chave que era guardada pelo marido.)
Ao mesmo tempo, ele tem disposição de prover para ela, e de
procurar comida e abrigo que facilitarão a alimentação de seus
filhos.
A mulher não é ativa na busca de homens, mas modesta e
distante. Ela garante, assim, que ela só pode ser obtida à custa
de esforço e determinação, garantindo que seus genes se uni-
rão com o mais forte genitor disponível, aumentando, assim,
suas chances de sobrevivência. Uma vez possuída, ela faz o seu
melhor para suprir as necessidades do homem, prendendo-o a
ela, para que possa desfrutar os frutos da sua proteção durante
os tempos vindouros. Ela tem ciúmes de outras mulheres, mas
seu ciúme não se concentra tanto no ato sexual – desde que
seja realizado num espírito de indiferença – como nas relações
duradouras que ameaçam a sua própria proteção. Ela fica mais
aterrorizada com a idéia de que o amor de seu homem possa ser
seduzido para longe dela do que pelo pensamento dele copulan-
do com outra. Para evitar esse temor, ela oferece confortos para
ele que o manterão nesse lar em comum.
A disparidade entre as exigências genéticas do homem e da
mulher está refletida também – de acordo com o retrato imagi-
nário que eu estou oferecendo – na estrutura do desejo masculi-
no e feminino. O homem será atraído para as características na
mulher que prometem uma prole saudável e um parto fácil. Ele
ficará tocado por sua juventude, vitalidade e feições agradáveis;
por sua prontidão para a vida doméstica, e por sua modéstia.
Ele irá valorizar a castidade, e até mesmo a virgindade: os arau-
tos de seu próprio triunfo genético. E ele vai tentar conquistá-la
por uma demonstração de força e competência.
Ela, no entanto, vai responder ao homem que prometer a
maior proteção para sua prole. Ela se impressiona menos por
sua juventude do que pelo seu poder. Tudo o que promete segu-
rança é capaz de despertar o seu afeto, e até mesmo um homem
muito mais velho pode excitá-la, desde que haja, em seu olhar,

356 “De la puberté”, 1749, em L’Histoire naturelle (seleções, ed. J. Varloot, Paris, 1984, p. 87).

359
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

seu cheiro, sua conversa ou seus modos, as virtudes necessárias


de um pai. O olhar autoritário, a ação resoluta, o gozo con-
fiante de preeminência social: todas essas qualidades serão tão
importantes aos olhos da mulher como sua juventude, frescor e
vitalidade são importantes aos olhos de um homem. Ao mesmo
tempo, ela não vai ficar indiferente ao caráter físico de um ho-
mem, e – como ele – será afastada por deformidades evidentes,
e pelos sinais de decadência intelectual ou emocional.
Claro, estamos esticando a imaginação além dos limites da
probabilidade para supor que seres humanos reais se compor-
tariam assim. Se a Sociobiologia implica que eles o fazem, tan-
to pior para a Sociobiologia. Aliás, a Sociobiologia dificilmente
pode deixar de sugerir tal implicação. Pois ela está comprome-
tida com a visão de que o comportamento reprodutivo deve ser
explicado funcionalmente, em termos da sua capacidade para
promover a propagação dos genes daqueles que se dedicam a
isso. Além disso, não é apenas a Sociobiologia a culpada por
esta descrição horrenda da diferença entre homem e mulher.
Parece ser uma idéia herdada da literatura amorosa, de Teócrito
a D. H. Lawrence. Quase todos concordam em distinguir o de-
sejo masculino do feminino, o ciúme masculino do feminino, e o
amor masculino amor do feminino, das formas já sugeridas no
meu fragmento de Sociobiologia a priori. Tantum imaginatio
potuit suadere malorum!
Suponhamos, porém, que tal quadro – que apresentei no es-
quema mais amplo – fosse fiel à nossa condição biológica, e às
disposições psicológicas que estão enraizadas na mesma. Será
que isso não teria as maiores implicações imagináveis para
​​ nos-
sas idéias de gênero? Em particular, isso não iria sugerir que a
concepção tradicional de gênero, segundo a qual os homens e
mulheres têm diferentes características, emoções, e papéis sociais
e domésticos, não é nem um acidente biológico nem uma super-
fluidade social? Talvez até refutasse a visão de que as distinções
de sexo foram criadas “para a conveniência do macho”, e “à
custa da mulher”, por uma sociedade em que os homens têm
sido particularmente dominantes? (Se não pensamos que refuta
essa opinião, temos de explicar por que os homens têm sido tão
dominantes. Nós, então, seremos forçados a supor exatamente
o tipo de diferenciação biológica que estamos questionando.)

360
capítulo 9 - sexo e gênero

É certamente verdade que, até recentemente, quase todos os


que escreviam sobre sexo reconheceram uma diferença de ten-
dência, e uma diferença de foco, entre o desejo masculino e o
feminino, e muitos tentaram explicar isso em termos parecidos
com o que ofereci nesse fragmento de biologia a priori. Talvez
essa citação de Senancour baste como exemplo:
A beleza das mulheres não se sustenta além da metade da vida,
como a força dos homens; o tempo do amor será mais curto para
elas, e ainda será abreviado por interrupções, algumas freqüentes,
outras consideráveis. Como consequência, a imaginação do homem
supõe com frequência a posse de várias mulheres. Provocado por
uma grande necessidade de movimento, e se sentindo destinado a
viver em diferentes circunstâncias, ele diz a si mesmo que formará
uniões conforme a instabilidade de sua fortuna. Mas uma mulher
limita-se de bom grado a uma só união.357

A explicação é débil. E muitos duvidam do fato explicado.


Na verdade, é cada vez mais proibido afirmá-lo, e um escritor
que se atreve a fazê-lo pode ser recebido com uma enxurrada
de abuso intolerante.358 Felizmente, não é necessário para o meu
argumento afirmar ou negar a conclusão que Senancour defen-
de. É necessário apenas para reconhecer que não haveria nada
de surpreendente se o desejo masculino e o feminino mostras-
sem diferenças claras de tendência e estrutura.

Encarnação
Neste ponto, o leitor pode razoavelmente objetar que não
estou reconhecendo uma de minhas próprias premissas per-
sistentemente reafirmada: que o intencional e o material são
conceitualmente distintos, e que o primeiro é determinado, na
melhor das hipóteses, apenas por nossa concepção do segundo.
Por que a nossa concepção de gênero não pode tomar qualquer
forma exigida pelo nosso entendimento moral, sem levar em
conta a verdade científica relativa à diferenciação sexual? Pois,
afinal, essa “verdade” é uma “descoberta” relativamente recen-
te – talvez até mesmo uma invenção recente – e está mais para
um pedido de desculpas cientificista por uma ideologia velha do
que para uma base científica de uma nova.

357 E. P. de Senancour, De l’amour, Paris, 1834, vol. I, p. 72-3.


358 Ver acima, nota 344.

361
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Embora haja algum vigor nessa objeção, já sugeri que ela não
consegue ser totalmente convincente. Nossas concepções de gê-
nero são permeáveis ​​às nossas concepções de sexo, e os fatos do
sexo são suficientemente importantes, e suficientemente vívidos,
para causar um impacto indelével na nossa experiência. Reco-
nhecemos a divisão biológica entre homem e mulher, e é ressur-
gente em nossas percepções. Mas também reconhecemos outras
distinções, não tão obviamente biológicas, que percebemos em
conjunto com a realidade biológica. É uma parte integrante da
experiência do desejo sexual que consideramos o sujeito como
oprimido, naquele momento, pelo seu sexo. É esta condição
corporal que vem para a superfície, e que toma o comando.
E, neste momento, tudo o que está associado a sua existência
como um ser sexual – desde seu tom de voz ao seu papel social
– é recolhido em sua sexualidade e faz parte dela. O gênero é
um prelúdio social sofisticado; quando a cortina sobe, o que é
revelado não é o gênero, mas o sexo.
Não há dúvida de que nós nunca somos tão revelados como
animais do que no ato sexual. A realidade física do corpo é
exposta neste ato, e se torna objeto de exploração e curiosida-
de. Precisamente as partes que distinguem os sexos assumem o
significado mais esmagador. Nossa percepção da base animal
da nossa existência é, portanto, trespassada pelo nosso conheci-
mento da diferenciação sexual. Todas as nossas tentativas para
elaborar ou diminuir a distinção, para dar-lhe identidade social
e moral, para resgatá-la do estigma do “meramente animal”,
acabam confirmando o fato derradeiro – que nossa natureza
como animais encarnados é revelada precisamente na fisiologia
que nos divide. Na rendição final ao desejo, nós experimenta-
mos nossa natureza encarnada; nós sabemos, então, a “verda-
de” do gênero: que, como criaturas encarnadas, somos insepa-
ráveis ​​do nosso sexo.
A experiência da encarnação no desejo sexual é, então, uma
das respostas radicais que são focadas pelo nosso conceito de
gênero. O que acontece no ato sexual impõe sobre nós um sen-
tido de nossa “identidade de gênero”, enquanto nos obriga
a experimentar a encarnação do gênero no sexo. Ao mesmo
tempo, muito pouco da distinção de gênero observada poderia
ser explicada por “referência retroativa” ao ato sexual. Nossa

362
capítulo 9 - sexo e gênero

percepção de gênero é sensível à nossa experiência da relação


sexual, mas está longe de ser determinada por ela. Se os papéis
adotados pelo homem e pela mulher no ato sexual parecem ex-
plicar a distinção social de gênero, isto é, em parte, porque o ato
sexual é realizado sob a influência de uma concepção de gênero.
No ato sexual, eu não só experimento a encarnação do meu eu,
mas também a encarnação de um “tipo moral”.
Qual, então, é a origem dessa “espécie moral?” Claramente,
as pessoas tentam sinalizar seu sexo em seu comportamento so-
cial, e sinalizar a sua aptidão para o desejo. As diferenças bási-
cas entre os sexos – cabelo, pele, voz, forma e movimento – são
redimidas de sua arbitrariedade ao serem representadas como
partes integrantes de uma condição moral. Desta forma, tanto a
criação do gênero e seu enraizamento no sexo tornam-se partes
de um empreendimento social comum.
Esse exercício é, de fato, “culturalmente determinado”. Mes-
mo que as distinções de gênero sejam consequências, em certo
sentido, naturais – talvez até inevitáveis – da
​​ nossa experiência
de encarnação sexual, não se segue que há alguma distinção
única de gênero, que toda sociedade deve tentar construir ou
obedecer. A universalidade do gênero é, no entanto, confirmada
pela evidência de antropólogos, cujas descobertas foram resu-
midas nos seguintes termos por Margaret Mead:
Em todas as sociedades conhecidas, a humanidade tem elaborado
a divisão biológica de trabalho freqüentemente de formas muito
remotamente relacionadas com as diferenças biológicas originais
que forneceram as pistas originais. Diante do contraste de forma
e função corporal, os homens construíram analogias entre o sol e a
lua, noite e dia, bem e mal, força e ternura, constância e inconstância,
resistência e vulnerabilidade. (...)
(...) Não sabemos de nenhuma cultura que tenha dito, de forma
articulada, que não existe diferença entre homens e mulheres, exceto
na forma como eles contribuem para a geração seguinte.359

A construção social de gênero também não está confinada


aos heterossexuais. Embora a concepção do homossexual, tanto
de seu sexo e de seu gênero, inevitavelmente reflita suas predi-
leções, ele é tão ativo na afirmação de seu gênero como qual-

359 Margaret Mead, Male and Female, Nova York, 1950; Harmondsworth, 1962, p. 30-1.

363
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

quer heterossexual. De fato, podemos concordar com Hocquen-


ghem360 que, se não fosse pelo gênero, a homossexualidade seria
ininteligível. A tese da “efeminação” do homossexual, que já foi
extremamente popular, especialmente entre aqueles que dese-
javam, como Weininger, dar uma teoria biológica do compor-
tamento homossexual, agora é justamente repudiada. Embora
haja homossexuais que cultivam os hábitos e costumes do sexo
oposto, eles são a exceção e não a regra, e de qualquer forma
raramente vão além de um estado de teatralidade transparente,
projetado para chamar a atenção, ao mesmo tempo e muitas
vezes em um único gesto, tanto para sua postura como repre-
sentante de um sexo, e à sua realidade como membro do outro.
Não devemos nos surpreender, portanto, diante do sofisticado
esforço de construção de gênero exibido pelo homossexual,
cuja consciência de seu próprio sexo é ampliada por sua própria
atração por ele. (Considere, por exemplo, o ethos “sol e aço” de
Mishima.)361 Mas o processo que o homossexual exibe quando
mais desenvolvido é exibido também pelo resto da humanidade.
O artefato do gênero não é apenas para ficar à mostra. Ho-
mens e mulheres desenvolvem caracteres distintos, virtudes
distintas, vícios distintos e papéis sociais distintos. A consciên-
cia moderna está menos disposta a admitir esses fatos do que
Aristóteles, por exemplo, ou Hume.362 No entanto, não se pode
negar que, o que quer que homens e mulheres devem fazer, eles
têm persistentemente conspirado para criar uma eficaz “divisão
do trabalho moral”, com as virtudes e aptidões atribuídas a
um sexo complementadas – o que não significa imitada – pelo
outro. Por isso, muitas vezes foi decidido que uma disposição
pode ser uma virtude em um sexo, e um vício – ou um atributo
neutro – no outro. O caso da castidade – mencionado nesta co-

360 Guy Hocquenghem, Le Désir homosexuel.


361 Yukio Mishima, Sun and Steel, tr. J. Bester, Londres, 1971. Ver também a descrição
do desejo homossexual na obra de Mishima Forbidden Colours, tr. A. H. Marks, Nova
York, 1968.
362 A distinção entre as virtudes masculinas e femininas é obviamente bem mais velha
que Aristóteles. Hume distingue essas virtudes no Tratado da Natureza Humana, livro
III, cap. 2, seção XII. No entanto, como ele considera as virtudes em que homens e
mulheres mais diferem (castidade e coragem) como virtudes “artificiais”, é possível
que concordasse com a reivindicação feminista de que as virtudes podem ter sido
construídas da mesma forma para ambos os sexos.

364
capítulo 9 - sexo e gênero

nexão por Hume – talvez seja demasiado emotivo para suportar


consideração. Um exemplo mais suportável é o da fofoca. Isto é
considerado por muitas pessoas como uma extensão inofensiva
e até justificável do desejo da mulher de quebrar as barreiras
da privacidade e criar um mundo social comum, bloqueando
os caminhos secretos à violência e imoralidade. A mesma dis-
posição, no entanto, é freqüentemente considerada como o ví-
cio mais escandaloso em um homem – como um paradigma de
“efeminação”, igualado à disposição para fugir de inimigos ou
abandonar a esposa e os filhos.
Como já observei, no entanto, esta prática de “construção
de gênero” pode muito bem ser “culturalmente determinada”.
Se Margaret Mead for digna de confiança,363 há sociedades em
que a fofoca é considerada uma prerrogativa masculina, e em
que às mulheres são atribuídos os árduos deveres do trabalho
organizado, a fim de que os homens fiquem livres para descan-
sar na sombra, discutindo as grandes preocupações do destino
humano e as trivialidades do lar. O ponto importante não é se
uma concepção particular de gênero é um universal humano,
mas se o conceito de gênero é assim: se os seres humanos devem
experimentar o mundo de acordo com esta fratura artificial. O
argumento que apresentei sugere que, pelo menos, falta algo
essencial para a experiência do sexo sem ele. Sem gênero, o sexo
deixa de desempenhar um papel na encarnação humana, e o ato
sexual, longe de ser libertado da “mera animalidade”, é, no final
das contas, separado da sua interpretação moral mais natural.

Encarnação e construção de gênero


Nossa encarnação não é mais “natural” do que os fenômenos
que se expressam nela. É um resultado do processo social que
nos transfigura de animais em pessoas. Por isso, a encarnação
expressa as compulsões e escolhas que esse processo envolve.
Assim como ligamos nossas atitudes interpessoais à nossa reali-
dade física, assim como refazemos o corpo para que ele seja um
veículo mais eficaz dos significados que é instruído a revelar. O

363 Margaret Mead, Coming of Age in Samoa, Nova York, 1927. As descobertas de Margaret
Mead foram vigorosamente, senão cruelmente, questionadas por Derek Freeman,
Margaret Mead and Samoa, Cambridge, Mass., 1983.

365
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

exemplo mais marcante disso é dado pelo vestuário, que drama-


tiza a sexualidade do corpo no ato de ocultá-lo. O sexo está es-
condido, para que ele possa ser revelado como gênero. Homens
e mulheres são capazes de perceber o outro sexualmente nos
véus que escondem seu sexo. Assim, o pensamento mais ousado
da natureza sexual do outro pode repousar tranquilamente em
uma percepção de suas roupas, como quando Herrick transfor-
ma sua percepção desejosa por Julia:
Quando em sedas minha Julia passa,
Então, (penso) como flui docemente
A liquefação de suas roupas. 364

A representação do corpo com as roupas que o cobrem é cor-


respondida, na arte ocidental, por uma representação recíproca
das roupas no corpo. Anne Hollander persuasivamente mostrou
que a tradição da pintura erótica ocidental, em que a forma nua
fornece o objeto de um interesse contínuo e contemplativo, re-
presenta o corpo como “despido” – ou seja, sem as roupas que
“pertencem” a ele.365 É uma tradição, em termos de Kenneth
Clark, do despido ao invés do nu.366 Os pintores conseguem isso
freqüentemente, acrescenta Hollander, representando o corpo
em função das formas e movimentos das peças de vestuário que
foram retiradas dele. Daí é apreendido, em uma única imagem
visual, tanto o corpo desejável e o processo de revelação que o
descobre. O corpo despido (desnuda) é o registro visível de uma
transação sexual.
As roupas, até certo ponto, perderam essa função representa-
tiva. Mas a função não se perdeu. Em vez disso, foi transferida
para o próprio corpo. Através de levantamento de peso, banho
de sol, massagem e dieta, a pessoa moderna tenta expressar seu
gênero em seu corpo, alcançar uma encarnação direta, sem a
mediação de roupas – para estabelecer diante de nossos olhos a
identidade viva de sexo e gênero de uma forma que não esconde
nada do sexo. O resultado admite muitos comentários morais.

364 When as in silks my Julia goes,


Then, then (me thinks) how sweetly flows
The liquefaction of her clothes – NT.
365 Anne Hollander, Seeing Through Clothes, Nova York, 1978.
366 Kenneth Clark, The Nude, Study of the Ideal Form, Nova York, 1956.

366
capítulo 9 - sexo e gênero

Vamos simplesmente apontar a enorme perda de liberdade im-


plicada quando a encarnação sexual precisa ser atingida por
meios tão dolorosos. Quão mais leve seria revestir-se do gênero
ao vestir-se com roupas!
Defendi que as distinções de gênero são artificiais, mas ape-
nas na forma que as pessoas são artificiais. Ao mesmo tempo,
admiti que elas são mais variáveis, e mais facilmente alteradas,
do que muitas outras características em que nossas idéias de
personalidade estão enraizadas. Portanto, surge inevitavelmente
a questão da justificação. Como deve ser construída a distinção
de gênero? O restante deste livro dá não mais do que uma res-
posta implícita e discutível a essa pergunta. Compreendê-la, no
entanto, é necessário para se ter alguma idéia do processo de
construção de gênero. Devemos identificar as ocasiões precisas
de mudança; pois serão os lugares onde justificação importa.
A distinção entre homem e mulher é uma distinção de esfera,
de atividade, de papel e de respostas; é também uma distinção
dentro da estrutura do desejo. Nós podemos lutar contra essas
distinções; podemos querer remodelá-las, ou mesmo destruí-las
completamente. Mas elas existem, e não poucos filósofos tira-
ram conclusões extraordinárias que dependem, para sua plau-
sibilidade, de nossa aceitação das identidades de gênero como
naturais. Veja Hegel:
A mulher – a eterna ironia no coração da comunidade – muda pela
intriga o fim universal de governo em um fim privado, transforma
a sua atividade universal no trabalho de um indivíduo específico,
e perverte a propriedade universal do Estado em uma posse e
ornamento para a família. Assim, ela se vira para ridicularizar a
solene sabedoria da maturidade, que, morta para meros particulares
(prazer, satisfação e atividade real), se preocupa somente com o que é
universal; ela faz chacota dessa sabedoria ante a malícia da juventude
devassa, como algo indigno de seu entusiasmo. Ela defende como a
coisa mais valiosa a força da juventude – do filho, senhor da mãe de
que o fez nascer, do irmão, como o homem igual à irmã, do jovem,
através de quem a filha se liberta da dependência, para encontrar a
satisfação e a dignidade da vida de esposa.367

367 G. W. F. Hegel, The Phenomenology of Spirit (1807), ed. J. Hoffmeister, Hamburg, 1952,
seção 475 (tradução minha).

367
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A qualidade encantatória da observação de Hegel é indicativa


do fenômeno ao qual ele se refere: nós construímos a distinção
entre o masculino e o feminino, em parte, ao alinhar a distinção
de sexo com distinções de uma ressonância semelhante: interno
e externo, público e privado, passivo e ativo, e mesmo (para He-
gel) “subjetivo e objetivo”. Não estamos lidando com uma dada
polaridade dentro da experiência humana, mas com uma “síntese
de opostos”, cuja qualidade adversária é nossa própria invenção.
A visão de Hegel sobre as mulheres é exagerada, para di-
zer o mínimo. No entanto, está certa em um particular, que é
que as distinções de gênero deverão ser explicadas, em parte,
em termos políticos. Somos educados no gênero como somos
educados na personalidade, por instituições que criamos e sus-
tentamos coletivamente. E em épocas de alta civilização, este
esforço de construção de gênero é reforçado no reconhecimento
intuitivo que a energia nervosa da sociedade – sua capacidade
de sustentar esse elaborado artifício – é dependente da excita-
ção criada na união entre os sexos.368
O princípio é bem ilustrado pela educação dos sexos na ida-
de de ouro da França. O convento na França do século XVIII
servia de escola, retiro, asilo, hotel e point de repère, um lugar
de oração e de fofocas, de devoção, educação e facilidades so-
ciais para a dama aristocrática.369 Em tal época, a educação da
mulher, como a do homem, era um exercício de exagero (o tipo
de exagero que tornou, posteriormente, a visão de Hegel sobre a
questão uma explicação profunda de algo completamente fami-
liar). Cada traço feminino foi resgatado da natureza e reconsti-
tuído como artifício, como o rubor é refeito com blush. O efeito
foi tornar a feminilidade em uma propriedade da vontade, mas
de modo algum de uma vontade livre. (E o mesmo aconteceu
com a masculinidade.)

368 Ruskin, em um folheto fervoroso e sentimental, defende a educação separada para


homens e mulheres, em termos que traem essa excitação em cada conjuntura:
“A beleza perfeita do rosto de uma mulher só pode consistir na paz majestosa
fundada na memória de anos felizes e úteis, – cheia de doces registros; e da
junção disso com uma infantilidade ainda mais majestosa, que ainda está cheio de
mudanças e promessas; – sempre aberta – modesta e brilhante, com a esperança
de coisas melhores a serem ganhas e agraciadas” (Sesame and Lilies, Londres,
1865, seção 71).
369 Ver Edmond et Jules de Goncourt, La Femme au 18ᵉ siècle, Paris, 1862.

368
capítulo 9 - sexo e gênero

Em tais épocas um enorme sacrifício é feito por uma ques-


tão de gênero: o sacrifício envolvido em trocar o conforto de
uma existência totalmente privada pelo perigo emocionante de
exibição. Ao entregar-se à representação, o aristocrata liberta a
sua vida da mácula do utilitário. O ideal de gênero que ele traça
em um esboço decorativo é um ideal estético. Homem e mu-
lher tornam-se objetos de contemplação, seu ser e aparência são
totalmente absorvidos na tarefa única da encarnação sexual.
Os précieuses ridicules de Molière só são ridículos porque seu
gênero tornou-se uma questão de politesse. Eles deixaram de
exibir em seu gênero a finitude real, urgente e trágica de seu ser.
O gênero, para eles, não é mais um princípio vivo. O verdadeiro
aristocrata também representa seu gênero, mas apenas porque
representa sua vida.
Não obstante, a representação é auxiliar à atividade real da
existência, um modelo a ser imitado, uma renderização cômica
de nosso trágico alvoroço para a extinção. A exibição do aristo-
crata deve, portanto, encontrar o seu significado em outro lugar,
em um mundo circundante que não participar dela. O resto da
humanidade saqueia o guarda-roupa de disfarces aristocráticos –
para ser um verdadeiro cavalheiro ou uma verdadeira dama, mes-
mo que apenas uma vez. As futilidades aristocráticas, portanto,
fornecem um modelo para o cortejo comum, em que cada parte
se esforça por exagerar sua utilidade e atratividade para o outro,
representando a complementaridade perfeita de seus modos.
Mas o disfarce se desgastou. Em uma civilização aristocrá-
tica, a exibição do gênero invade toda a vida de quem toma
parte nela. Pois suas vidas são públicas, vividas a portas abertas,
através de que peticionários, caçadores de escândalos, políticos
e prostitutas são constantemente acolhidos e dispensados. As-
sumir o fardo de uma vida pública apenas por uma questão de
exibição não é mais possível. A minoria privilegiada que uma
vez fez esse sacrifício trocou toda a esperança de repouso por
uma vaga promessa de alegrias fugazes. E suas ligações naufra-
garam no recife de méchanceté que cerca a ilha de Cítara. Não
há mais as condições em que as pessoas podem voluntariamente
se comprometer a passar por essa existência perigosa. Audá-
cia, esnobismo, desprezo pelo “comum” – todas essas respostas
existem, agora, em formas que são dolorosamente teatrais.

369
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Sem a glória da exibição, o trabalho da construção do gênero


é um trabalho pesado, cujas recompensas parecem obscuras e
inconclusivas. Ao mesmo tempo, há um momento crucial – o
momento do cortejo – quando a necessidade de representar e de
concentrar o gênero em um ato demonstrativo ainda é sentida
com toda a sua urgência tradicional. O casal de namorados ain-
da precisa ser “proposital sem propósito”, e, portanto, ainda se
veste e dança, apesar da dança, como tantas outras coisas, ter
se retraído para si mesma, tornando-se um exercício meramente
“privado”.
A dança social tradicional difere radicalmente da vibração
sem forma do corpo que chamam agora de dança. Cada bai-
larino tinha que obedecer a formação, e de tempos em tempos
mudar de parceiros, de modo a dançar com alguém que ele não
escolheu. Ele deve limitar seus gestos sedutores para essas pe-
quenas nuances que são ainda mais agradáveis por sua seme-
lhança com os sorrisos e toques inocentes da dança. O entusias-
mo está num movimento coordenado, em que uma habilidade
compartilhada fornece a base para um prazer comum. Em tal
dança, o motivo sexual é neutralizado precisamente para que
a construção do gênero seja intensificada. O jovem casal que
entra na dança com desejo em suas almas o esconde ou revela
como faria em qualquer outro congresso social. A dança não é
um prelúdio para a união sexual, mas um batismo na primavera
criativa de gênero, em que cada um refresca sua encarnação e a
expõe ao mundo. Essa dança é uma expressão suprema da nos-
sa racionalidade, e também parte integrante da educação moral.
Além disso, ela nos mostra algo que a cultura aristocrática de
exibição oculta: que a construção de gênero é um prazer, e tal-
vez um dos maiores prazeres que conhecemos.
O ato de se arrumar é naturalmente associado à dança e,
como a dança, seu “propósito” é despropositado, disponível
para qualquer pessoa, seja qual for a sua idade, sexo, aspecto
e desejo. É uma atividade de exibição social que impõe unifor-
midade, a fim de permitir divergências interessantes da norma.
(Assim, Philippe Perrot argumenta, na sequência de uma idéia
familiar a Saussure, que na moda, como na linguagem, o signi-
ficado é produzido não pelas semelhanças, mas pelas diferenças

370
capítulo 9 - sexo e gênero

que geram.)370 Já que a moda é um dispositivo de construção de


gênero tão importante, não pode ser preterida sem nenhum co-
mentário: o que vou dizer, no entanto, não faz justiça ao assunto.
A moda é uma atividade de cooperação, pela qual homens e
mulheres – e especialmente as mulheres – tentam fazer do gê-
nero algo novo e surpreendente. O significado da moda reside
quase inteiramente na construção de gênero. Uma nova moda
remodela e revitaliza a verdade universal do gênero, criando um
modelo que pode ser compartilhado. A moda mostra o que é co-
mum a todas as mulheres, permitindo que sua individualidade
brilhe a partir do esquema do seu gênero, como a coisa que é
verdadeiramente desejada. Assim, uma moda nunca é esquemá-
tica: é completada com a integralidade da vida humana; pres-
creve uma aparência total, um vocabulário total de expressões
e gestos, uma comunidade de amigos e rivais, um conjunto de
recursos e ações comuns – até mesmo uma linguagem própria.
E todas essas coisas são expressamente efêmeras, encapsulando
em sua breve glória a evanescência da própria vida. Porque a
moda é uma ação humana tão evidente, uma reconstrução de-
liberada do corpo, ela serve como um desafio coletivo ao nosso
destino, um gesto de revolta contra a lei implacável da encar-
nação. Aquilo que está fora de nosso controle – o organismo,
seu sexo e o anseio procriador que se esconde lá – é recuperado
como uma realização consciente, um gesto alegre atirado no
rosto dos deuses. A moda perfura a opacidade do corpo, e supe-
ra sua estranheza. O mais estranho ou surpreendente não está
mais no rosto e nos membros, mas nas roupas e modos – ou
seja, naquilo que podemos alterar, o que traz a marca de “algo
feito”. Por isso as modas devem mudar constantemente, preci-
samente para renovar a realidade imutável de gênero.
O trabalho de construção de gênero ainda é feito na moda –
embora, como comentei anteriormente, a moda agora não afeta
só as roupas, mas também o próprio corpo. O trabalho conti-
nua inabalável, às vezes exagerando a distinção entre os sexos
– às vezes (como agora) estreitando-a, de modo que as únicas
distinções reais residam no próprio corpo, que é cuidadosamen-
te delineado por roupas bem ajustadas.

370 Philippe Perrot, Les Dessus et dessous de la bourgeoisie, Paris, 1980.

371
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A moda novamente nos lembra da medida a que o gênero


chega, não só através da educação e da segregação, mas também
através da representação. É precisamente na representação que
nossas necessidades e percepções sociais mais profundas são ar-
ticuladas. Alterar as distinções de gênero é aprender jogos dife-
rentes. À questão de saber se devemos fazer isso, ofereço apenas
uma resposta implícita. É importante lembrar, no entanto, que a
energia liberada quando o homem e a mulher se unem é propor-
cional à distância que os divide quando estão separados.

Tipos pessoais
O resultado da construção de gênero é que percebemos o
Lebenswelt como sujeito a uma grande divisão ontológica. Não
só existe uma distinção intencional entre pessoa e coisa, há
outra entre o masculino e o feminino, que é inicialmente uma
distinção entre pessoas. Mas esta segunda divisão ontológica,
enquanto ele extrai seu sentido de nossa compreensão das pes-
soas, não se limita à esfera pessoal. Pelo contrário, alcança toda
a natureza, apresentando-nos com um masculino e um femini-
no em tudo. Um salgueiro, uma coluna coríntia, um noturno
de Chopin, uma torre gótica – em todos eles pode-se receber
a intimação corporificada da feminilidade, e alguém que não
consiga entender essa possibilidade é alguém com percepções
empobrecidas. Assim, o mundo intencional reflete de volta para
nós a divisão ontológica que exemplificamos. Nós absorvemos
e reabsorvemos as idéias do masculino e do feminino, como
conteúdos intencionais, já impressas com a marca da sexualida-
de humana e do desejo humano. O gênero torna-se, assim, uma
característica inevitável do nosso mundo, não menos real por
ser de nossa própria criação.
Embora o gênero seja um artefato, é também, em outro sen-
tido, uma característica tão natural do Lebenswelt como a pró-
pria pessoa humana. Nenhuma pessoa pode facilmente se abs-
ter de pensar em si mesmo como “de” um determinado sexo, e
de racionalizar esse pensamento em uma concepção de gênero.
A experiência de encarnação sexual, que compromete e desvia
tanto os nossos projetos, obriga-nos a ter consciência do nosso
sexo como um canal através do qual fluem vontade e consciên-
cia. O gênero é o conceito segundo o qual o sexo entra na nossa
vida, dando uma forma persistente e fundamentada a projetos

372
capítulo 9 - sexo e gênero

de outra forma incipientes. É difícil evitar esta forma de iden-


tificação, uma vez que é difícil evitar o impulso que me leva a
me ver em termos sexuais. Meu desejo sexual não decorre de
alguma parte acidental de mim, mas do meu eu. Por isso, eu
não penso no meu corpo, mas em mim mesmo, como de um
determinado tipo sexual. Por mais que eu possa alienar o meu
eu “interior” de atributos, vejo como é difícil aliená-lo deste.
Mesmo aquelas puras “perspectivas de primeira-pessoa” – os
deuses que se movem em esferas transcendentais – são iden-
tificados nos termos de seus gêneros. A religião mais abstrata
atribuirá um gênero ao seu deus: não o fazer é pôr em causa
todo o estilo da agência de Deus. (Assim, o Deus do Islã tem um
gênero, apesar de sua natureza totalmente desencarnada; e este
gênero é explicitado, mesmo quando o Alcorão é traduzido em
uma linguagem livre de gênero, como o turco.)
Se o feminismo kantiano estivesse correto, seria impossível
pensar em mim como um homem, e não como uma pessoa com
o corpo de um homem. No entanto, é precisamente para o eu
que atribuímos a característica que tem o testemunho mais es-
magador da nossa condição encarnada. A confirmação pode ser
encontrada em um caso em que a princípio pode parecer para
refutar essa afirmação – o caso da “mudança de sexo”. A idéia
de que o gênero é um artefato é tão convincente – e tão imóvel é
o preconceito humano de que o sexo não é nada além de gêne-
ro – que a teoria surgiu do sexo, também, como um artefato.371
Basta fazer alguns ajustes à constituição física do corpo, e qual-
quer criança poderia ser educada indiferentemente como um
menino ou uma menina: a relatividade social de seu gênero é
equivalente à relatividade social de seu sexo. Tais idéias são um
absurdo biológico.372 Mas isso não as impediu de serem extre-

371 A questão da relação entre sexo e gênero foi utilmente discutida no julgamento de
Ormrod J. em Corbet v. Corbet [1970] 2 All E. R. I, 33-51, o caso de divórcio precipitado
pela decisão de April Ashley de se “tornar” a mulher que já se sentia ser. Como o
juiz aponta, a distinção é de considerável importância legal, já que muitas questões
adjudicáveis exigiam que os gêneros das partes fosse determinado, diferente do sexo.
(Passaportes, por exemplo, devem ser claros a respeito do gênero.) Ver também as
torturas sentimentais de Jan Morris em Conundrum, Londres, 1974.
372 Ver, genericamente, Robert Gray e Bruce McEwen, Sexual Differentiation of the
Brain, Cambridge, Mass., 1980, e, particularmente, John Money e Mark Schwartz,
“Biological Determinants of Gender Identity Differentiation and Development”, em J.
B. Hutchinson (ed.), Biological Determinants of Sexual Behaviour, Nova York, 1978.

373
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mamente influentes, ou de alimentar a fantasia de que cada pes-


soa pode ter um “sexo verdadeiro”, o que é desmentido pela sua
forma corporal, mas que se revela em sua própria concepção de
seu gênero. O paciente da mudança de sexo não passa por esta
operação perigosa para mudar o seu “sexo verdadeiro”, mas
para mudar o seu corpo, adaptando-o ao sexo que é realmente
seu. Em outras palavras, ele identifica seu sexo pelo seu gênero,
e seu gênero, não pelo seu corpo, mas pela sua concepção de si
mesmo. Ele sente que seu corpo pertence a um tipo a que ele
próprio não pertence. É por este motivo que as operações de
mudança de sexo são desejadas tanto por aqueles que se sub-
metem a elas quanto é justificada por aqueles que as executam.
Não existe exemplo mais vívido da determinação humana para
triunfar sobre o destino biológico em razão de uma idéia moral.
Uma conclusão similar é sugerida pelo caso de hermafrodi-
tismo, como registrado pelo patético Herculine Barbin.373 A se-
xualidade de Mlle. Barbin sofreu mudanças genuínas, causando
a angústia mais intolerável na mente da vítima, levando-a final-
mente ao suicídio. A incerteza espiritual, que cresce a partir da
incerteza biológica, mostra o drama intenso de uma alma indi-
vidual conforme tenta encaixar uma idéia necessária de gênero
em um atributo aparentemente flutuante de sexo. As reflexões
de Herculine Barbin mostram, de fato, o quão longe um ser hu-
mano vai – até mesmo ao ponto de perder de vista a sua própria
existência – para espiritualizar suas partes íntimas e reunir o
atributo do sexo dentro de uma concepção pessoal.
É tentador concluir, portanto, que há uma distinção real de
gênero: a de que “homem” e “mulher” denotam dois tipos de
pessoa, cuja distinção biológica é recolhida em uma divisão de
tipos. Isto é anunciado, pelo menos, pelos nossos hábitos de
autoidentificação, e em particular por nossa identificação de
nós mesmos em, e através de, nosso gênero. Ao mesmo tempo,
pode-se concluir que, como as distinções de gênero não são dis-
tinções entre tipos naturais, mas entre tipos “fenomenológicos”,
não pode haver sentido na idéia de uma distinção real. Uma vez
que estes tipos foram, em algum sentido, criados por nós, como

373 As memórias recentemente descobertas de Herculine Barbin foram publicadas,


traduzidas por R. McDougall com uma introdução de Michael Foucault, pela Harvester
Press, Brighton, 1980.

374
capítulo 9 - sexo e gênero

podemos falar de uma “essência real” que une tudo o que está
incluído por eles? Nesse caso, qual é o conteúdo da nossa cren-
ça de que homens e mulheres são dois tipos de pessoa?
Superficialmente, essa pergunta é fácil de responder. Nós só
temos que nos referir à analogia com qualidades secundárias.
A distinção entre vermelho e verde é uma distinção objetiva,
mesmo que seja, nas palavras de Colin McGinn, “subjetiva-
mente constituída”.374 É a natureza dos objetos em si que nos
leva a perceber alguns como vermelhos e alguns como verdes. A
distinção entre os objetos da experiência é aqui tão real como
a distinção entre as experiências. Estabelecer uma “distinção
real” de gênero, portanto, seria suficiente para mostrar que a
nossa experiência das pessoas contém o gênero como parte de
seu conteúdo.
Mas a questão tem outro componente menos superficial, um
que levou à referência a uma “essência real” de cada tipo pes-
soal. O feminista kantiano pode aceitar que as distinções de
gênero são inevitáveis – ou pelo menos escapáveis somente a
um custo intolerável – e afirmar que também são inerentemente
triviais. Tais distinções não tocam de forma alguma na realida-
de moral das próprias pessoas. Certamente não existe tal coi-
sa como uma “essência real” dos homens,
​​ distinta da “essência
real” das mulheres, sendo que os termos “homem” e “mulher”
designam dois tipos de pessoa.
Mas aqui encontramos o que é talvez a mais séria objeção
ao feminismo kantiano, que, precisamente no sentido em que o
gênero é um artefato, também o é a pessoa humana. É inevitável
que os seres humanos, em condições sociais, se desenvolvam em
pessoas, e sejam descritos uns pelos outros em termos pessoais.
Por isso, todos os seres humanos devem possuir um conceito da
pessoa. As concepções da pessoa, no entanto, variam de cultu-
ra para cultura e de tribo para tribo. Da mesma forma, todos
os seres humanos em condições sociais inevitavelmente se de-
senvolvem em homens e mulheres, e descrevem uns aos outros
por meio dessas categorias. Por isso, todos os seres humanos
possuem um conceito de gênero. Mas as concepções de gênero
variam de lugar para lugar e de tempos em tempos. E é plausível

374 Colin McGinn, The Subjective View, Londres, 1983.

375
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

supor que os dois processos caminham lado a lado: que a evolu-


ção da pessoa, e sua adequação a um gênero, são dois aspectos
de uma única história.
Tipos artificiais podem ter “essências reais”. É uma proprie-
dade essencial de uma pessoa ter uma perspectiva de primei-
ra-pessoa. É uma característica peculiar da teoria kantiana da
moralidade atribuir a natureza moral de uma pessoa inteira-
mente a modificações de duas de suas propriedades essenciais
– liberdade e razão. Mas há razões para se estar insatisfeito
com a visão kantiana: em particular, ela negligencia a terceira
propriedade essencial da pessoa humana – a da encarnação – e
deixa de reconhecer que existem qualidades morais que envol-
vem essencialmente a nossa encarnação, como o calor do co-
ração e a vivacidade. Todas essas qualidades pertencem, para
Kant, meramente ao aspecto empírico da natureza humana e
não ao núcleo racional. A filosofia kantiana deve dizer o mesmo
do gênero. No entanto, isto parece ser igualmente implausível.
Em primeiro lugar, há uma nítida disposição para considerar o
gênero como uma propriedade essencial: para considerar verda-
deiras mudanças de gênero, ao contrário de mudanças de sexo,
como “transubstanciações”, em que um indivíduo é abolido e
substituído por outro. Isso é tão plausível quanto supor que
Zeus poderia seduzir Callisto aparecendo como a caçadora Dia-
na, como poderia seduzir Leda aparecendo como um cisne. A
transformação de gênero do primeiro caso é uma barreira para
a imaginação na mesma medida que a transformação de espécie
do segundo. O outro ser um homem, digamos, é inseparável de
sua existência como pessoa, e embora eu às vezes possa entreter
na imaginação o pensamento dele pertencer ao outro sexo, a
possibilidade deste pensamento é precisamente o que é excluído
por todas as minhas respostas interpessoais normais em relação
a ele. É um pensamento essencialmente “literário”, assim como
o que afligiu Bloom bêbado na zona de prostituição.
Eu não tenho nenhum argumento para a conclusão de que o
gênero é uma propriedade essencial de tudo o que o possui: tais
argumentos são sempre difíceis de produzir, e sempre inconclu-
sivos. Mas, mesmo sem que essa forte conclusão, certamente
podemos aceitar que o gênero é uma propriedade moralmente
significativa de tudo o que o possui e, portanto, que a posição

376
capítulo 9 - sexo e gênero

feminista kantiana, que bane o gênero para a periferia da liber-


dade humana, está enganada. Pois é precisamente a existência
do gênero que serve para unir a nossa natureza sexual à vida
moral que cresce dela. O gênero – na minha analogia – é o
tronco pelo qual a flor e a folhagem do desejo são alimentadas.
Entender isso é rejeitar tanto a alegação feminista quanto a res-
posta à pergunta platônica.

A questão de Platão e a raiz do desejo


Dada a existência do gênero, já não podemos supor que o
ato sexual entre os seres humanos seja o mesmo ato realizado
por animais. Cada característica do ato sexual, até a sua pró-
pria fisiologia, é transformada por nossa concepção de gênero.
Ao fazer amor, estou sendo um homem conscientemente, e esse
empreendimento envolve toda a minha natureza, e procura con-
cretizar-se nos movimentos do ato em si. Embora o homem que
entra em uma mulher, ou a mulher que abriga um homem, es-
teja satisfazendo um desejo primitivo, e experimentando quais-
quer sensações e palpitações que possam acompanhar o cum-
primento desse desejo, isso não é uma descrição “do que estão
fazendo” no ato de amor. Mesmo se estiverem perfeitamente
conscientes do processo – e é de se supor que os seus pensamen-
tos são abundantes em fantasias que os dirigem constantemente
para a fonte de seu prazer físico – não é o processo físico, descri-
to como tal, o que constitui o objeto da sua intenção. Eles estão
com a intenção de “fazer amor”, isto é, de se unir como seres
sexuais em uma experiência guiada pelo conceito de gênero. É o
“homem se unindo com a mulher”, em vez de “o pênis entrando
na vagina”, o que foca sua atenção. O último episódio é enten-
dido simplesmente como um “momento” no primeiro caso, que
fornece o seu contexto indispensável.
Em razão disso, o desempenho físico, ao se tornar uma ação
humana, é retirado de sua circunstância biológica. É adaptado
às exigências morfológicas do desejo sexual, sendo reconstitu-
ído nos termos do gênero. O exercício prazeroso da cópula é
moralizado pelo conceito de gênero, e transformado em algo
distintamente humano, assim como o exercício prazeroso de
pular e saltar é moralizado pela idéia da dança. Os animais po-
dem pular e saltar e sentir o prazer correspondente. Mas eles
377
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

não podem dançar, pois não podem perceber seus movimentos


na forma exigida pela dança – como coisas importantes em si
mesmas. Por isso, embora possam experimentar o prazer de pu-
lar, eles não podem experimentar o prazer de dançar. Nem, por
razões semelhantes, eles podem experimentar o prazer do sexo,
em que os movimentos da cópula encarnam uma idéia moral
de pertencimento a um sexo, e não estão envolvidos apenas por
impulso, mas por causa do que eles significam.
No entanto, nas palavras de James Thurber – o sexo é neces-
sário? Quero dizer, é necessário que o desejo sexual, com sua in-
tencionalidade interpessoal peculiar, nos conduza precisamente
a esta situação? Claro, não devemos chamá-lo de desejo sexual
se habitualmente e normalmente se expressa de alguma outra
forma. Mas isso é apenas uma questão verbal. O que há na in-
tencionalidade do desejo que exige o seu apego ao ato sexual?
A introdução do sexo no desejo não ocorre sem as mais lon-
gínquas consequências. Em particular, introduz um elemento de
universalidade no objeto de desejo. Ele ou ela é desejado como
homem ou como mulher, e é desse pensamento que surge gran-
de parte da fenomenologia do desejo – um ponto que já tentei
ilustrar ao discutir vergonha e inveja. A universalidade em ques-
tão não é, no entanto, a do sexo, mas a do gênero. O outro não
aparece para mim, até mesmo no ato sexual, como o animal nu,
mas como uma pessoa, vestida com os atributos morais de seu
gênero. Ao desejá-lo, eu o vejo como essencialmente encarna-
do, e seu corpo como essencialmente animado; a lacuna entre a
alma e o corpo é preenchida para mim pelo meu desejo. É difícil
imaginar essa unidade absoluta no objeto intencional resultante
de um motivo não sexual. A união interpessoal que culmina no
nadar juntos, caminhar juntos, conversar juntos, não se con-
centra na realidade do corpo da forma que o ato sexual faz.
É só quando beijos e carícias tornam-se parte do objetivo da
união interpessoal, e a verdadeira fonte de prazer, que somos
forçados a ver o corpo do outro como realmente dele, e a ver o
contato com seu corpo como o contato com ele. O desejo sexual
deve, portanto, envolver atividades tais como beijar e acariciar
para cumprir o seu objetivo fundamental. É certamente óbvio,
portanto, que a culminação natural destas atividades – o ato
sexual – deva estar incorporada no conteúdo intencional do de-
sejo. O desejo explora e confirma nosso conceito de gênero, ao

378
capítulo 9 - sexo e gênero

recusar-se a aprovar a separação entre uma pessoa e seu corpo.


O ato sexual é, biológica e intencionalmente, o culminar de um
processo de intimidade física, em que uma pessoa se une a outra
através de seu corpo. Nenhuma das nossas funções corporais é
tão bem equipada para esta união como a função sexual, desde
que o sexo seja percebido sob o aspecto do gênero – percebido,
em outras palavras, como um atributo individual, em vez de
como um fato meramente biológico.
Assim, temos grande dificuldade para enxergar o verdadeiro
desejo sexual entre peixes e outras criaturas que se reproduzem
sexualmente, mas sem contato sexual. O carapau fêmea pode
depositar um ovo que depois é fertilizado e guardado por um
macho. Mas o que, nesta ação solitária, tem o aspecto de dese-
jo? Não só o contato físico, mas qualquer mutualidade conce-
bível foi expulsa do processo sexual, que em consequência não
pode ser visto, por qualquer esforço imaginativo, como uma
forma de desejo. Quão mais fácil é ver o desejo na cópula de
cães, ou mesmo na de insetos. (Por isso, não importa o que mais
seja, a inseminação artificial não é adultério.)
Parece, portanto, que, desde que o sexo seja visto como gêne-
ro, há uma adequação intrínseca que une o ato sexual à atitude
interpessoal do desejo. Assim, tal como a intencionalidade do
desejo se enraíza nos prazeres do congresso sexual, uma idéia
de sexo entra no conteúdo intencional do desejo, determinando
o “tipo de coisa” que é seu objeto. O indivíduo sempre será
procurado sob o signo de seu gênero, como uma instância de
um tipo sexual.

Beleza e gênero
Vale a pena voltarmos neste momento para a discussão da
beleza. Quase tudo no mundo pertence a algum tipo, cujos mo-
delos parecem bonitos para nós. Há belas canetas, cavalos, pe-
dras, nuvens, casas, demonstrações e sons. Há também belos
caracteres e almas – ou seja, pessoas cujos atributos morais não
apenas elogiamos, mas também contemplamos com emoção
agradável. Isto levanta a questão de saber se “belo” é um adjeti-
vo “atributivo”375 no sentido dado por Geach. A proposição de

375 P. T. Geach, “Good and Evil”, em P. Foot (ed.), Theories of Ethics, Oxford, 1967.

379
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

que “x é bonito” não precisa ser estendido em “x é bonito como


um f”, a fim de ser plenamente inteligível. Ao mesmo tempo, em
um nível menos gramatical, o belo é tão atributivo como o útil e
o bom. O julgamento sincero da beleza depende sempre de uma
compreensão do tipo de coisa que é julgada. O que é bonito em
um cavalo pode não ser bonito em uma perdiz, e James pode
ser bonito como um cavalo, mas profundamente feio como um
enfeite de jardim.
Esta “relação tipológica” na idéia de beleza talvez não sur-
preenda. É um pouco mais surpreendente, no entanto, descobrir
que, no caso de pessoas, a beleza é relativa não à personalidade,
mas ao gênero. Você é bonito como homem ou como mulher,
mas não – como regra – como pessoa. A referência a “pessoas
bonitas” geralmente é entendida de forma inclusiva (abrangen-
do homens bonitos e mulheres bonitas) ou como uma referência
a qualidades morais, ao invés de físicas. As pessoas não pos-
suem alguns atributos – beleza pessoal – independentes de sua
beleza ou feiúra como um membro de seu sexo. É verdade que
falamos livremente de uma “criança bonita”, ou seja, não le-
vantamos a questão do seu sexo. Mas isso é porque o seu sexo
não se desenvolveu a ponto de considerarmos adequado ter in-
teresse por ele. Assim que o sexo se torna proeminente, nossos
juízos de beleza humana respondem imediatamente ao conceito
de gênero. Uma pessoa fisicamente bonita é bela como uma mu-
lher ou um homem, e sua beleza é completamente qualificada
pelos atributos distintivos do seu sexo. Claro que há homens de
beleza feminina, e mulheres de beleza masculina – mas nossa
própria disposição em descrevê-las indica que atribuímos bele-
za, mesmo nesses casos, a uma idéia de gênero, e não podemos
percebê-la em outros termos.
Já argumentei que o conceito de beleza é unívoco – que a
sua aplicação ao objeto de contemplação estética e ao objeto
de desejo não envolve nenhuma ambiguidade real. Por isso, não
devemos ficar surpresos ao descobrir que os tipos de beleza hu-
mana correspondem aos tipos de desejo humano: em particular,
eles exemplificam a mesma divisão do objeto de acordo com o
gênero. Ao “enraizar-se” no sexo, o desejo também eleva o sexo
de seus propósitos animais, e o incorpora em uma idéia moral
de gênero. É essa idéia que encontra a sua “encarnação sensu-

380
capítulo 9 - sexo e gênero

al” – usando a expressão de Hegel376 – na experiência da beleza


humana.
É difícil resumir em termos simples as muitas idéias con-
densadas em nossa experiência do corpo humano – as emo-
ções que nos levam a ver o corpo humano como de um modo
especialmente luminoso entre os objetos de nossa experiência.
Mas é observando, acariciando e delineando a forma huma-
na que chegamos a compreender toda a riqueza da companhia
humana. Sem essas experiências, todas as visões de bem-aven-
turança celeste ficariam gravemente empobrecidas. Maomé foi
ridicularizado muitas vezes por povoar seu paraíso com mu-
lheres desejáveis, e por nos convidar a ansiar por suas carícias.
Mas certamente ele estava respondendo a um instinto natural e
saudável, que encontra na contemplação de um belo corpo não
só o estímulo ao desejo, mas também a satisfação de uma ânsia
mais profunda. Ansiamos, na verdade, justificar o corpo huma-
no, dar razões para o nosso sentimento de que esta é a imagem
de Deus. E neste anseio está expresso nosso conhecimento real
de que somos os nossos corpos e que eles são nós.
E a “questão de Platão”? Meu argumento implica que procu-
rar pelas raízes da experiência sexual na função biológica é in-
frutífero. Não é olhar para a base de nossas percepções sexuais,
mas abaixo dessa base. O gênero, então, dá lugar ao sexo. Mas
o conceito de sexo não descreve, por si só, os contornos de nos-
sa Lebenswelt. Tudo sobre a nossa atividade sexual, incluindo
o próprio ato de amor, é recolhido em nossas percepções inter-
pessoais. Embora seja verdade que o desejo está enraizado no
sexo, o sexo, por sua vez, atinge o seu verdadeiro florescimento
no desejo, e somente lá, em seu telos, a sua essência é revelada,
como um fenômeno no mundo da experiência humana, e como
um objeto daquela compreensão intencional pela qual damos
sentido ao nosso mundo.
No decurso da discussão para essa conclusão, reconheci a
existência de distinções de gênero como características reais do
nosso universo interpessoal. As distinções de gênero incorporam
ambas as distinções artificial e socialmente determinadas que
surgem entre os sexos, e também as distinções natural e biologi-

376 Lectures on Aesthetics, tr. T. M. Knox, Oxford, 1974, Introdução.

381
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

camente determinadas que condicionam a superfície percebida


da conduta humana. O enraizamento do desejo no sexo leva
também ao enraizamento do gênero, e ao enriquecimento da dis-
tinção biológica com elementos morais inatos. Se devemos rees-
crever esses elementos, embelezá-los ou reduzi-los são questões
que merecem atenção. Mas não se deve pensar que a decisão
aqui é simples, ou que qualquer recomendação em particular
seja prontamente atendida ou totalmente compreendida. Além
disso, as distinções de gênero vão refletir as estruturas separadas
do desejo masculino e feminino. Na medida em que estas es-
truturas têm suas raízes nas distinções natural e biologicamente
determinadas, é fútil e perigoso mexer com elas. Parte da função
das nossas concepções de gênero reside na necessidade de aceitar
as diferenças biológicas subjacentes, erguê-las do reino do desti-
no animal, e dignificá-las com os trajes da moralidade.

Homossexualidade e gênero
Todas as características de nossa percepção sexual a que me
referi neste capítulo, da crua distinção de tipos biológicos ao
ponto alto da contemplação estética, servem para enfatizar não
só a distinção entre os sexos, mas também a alteridade do ou-
tro sexo e a familiaridade do próprio. O feminismo kantiano
tende a assumir – com Simone de Beauvoir – que apenas um
sexo percebe o outro em termos de sua “alteridade”.377 Naquela
mesma observação, no entanto, é revelado o reconhecimento
secreto de que o homem é tanto o “outro” para a mulher como
a mulher é o “outro” para o homem. O homem é o “outro” cuja
alteridade reside em sua “criação” da alteridade da mulher. Se
o feminismo kantiano estivesse certo, seria impossível pensar
em homens, como uma classe, envolvidos nesta supostamente
falsa representação e na sua ação opressiva associada. Apenas
pessoas individuais – que por acaso são do sexo masculino –
podem ser responsáveis por tal crime. Mas, por hipótese, a sua
masculinidade, não sendo uma característica de sua personali-
dade, não teria nenhum papel a desempenhar na sua respon-
sabilidade. Nesse caso, nunca poderíamos dizer que a divisão
do mundo em gêneros, e a construção de um mito do “outro”

377 Jacques Casanova de Seingalt, Mémoires, Paris, 1930, vol. 2, cap. I.

382
capítulo 9 - sexo e gênero

sexo, foi obra dos homens ou resultado do domínio masculino.


Resumindo, se as afirmações dos feministas kantianos fossem
verdade, o feminismo kantiano seria falso.
Para o feminista kantiano, o enracinement da pessoa no solo
da atividade animal é um fenômeno único, exemplificado igual-
mente pelo homem e pela mulher. Uma mesma pessoa pode ter
raízes em qualquer solo. Se fosse assim, não poderia haver nenhu-
ma diferença moral entre o desejo homossexual e o heterossexual.
O sexo do corpo seria irrelevante para as emoções interpessoais
que são exibidas nele; especificamente esta pessoa pode ter tido
especificamente este desejo, seja qual for seu sexo. Caso contrá-
rio, devemos dizer que o desejo não é, afinal, uma atitude inter-
pessoal, mas simplesmente um resíduo de experiência corporal,
indicando não a pessoa, mas o seu destino biológico, na forma de
prazer sensorial e dor sensorial. Em outras palavras, o feminismo
kantiano tem consequências morais radicais. Ou ele nega a dis-
tinção moral entre desejo heterossexual e homossexual – e, jun-
to com ela, a idéia de uma “normalidade” sexual em resposta à
nossa natureza como seres que se reproduzem sexualmente – ou
então ele nos obriga a aceitar a visão platônica do desejo como
“meramente animal”. Nenhuma das alternativas é aceitável.
Casanova conta a história de seu encontro com Bellino, um
cantor castrato que ele acredita ser um homem, mas a quem
deseja imediatamente, na hipótese incerta de ser uma mulher.
Bellino vai jantar com trajes femininos, e Casanova olha para
ele com desejo, observando que “ma nature vicieuse me faisait
trouver une douce volupté à le croire d’un sexe dont j’avais be-
soin qu’il fut”(grifo meu).378 Ao mesmo tempo, Casanova sente
dentro de si uma profunda repulsa em relação ao amor homos-
sexual; quando ele descobre que Bellino é homem, ele continua
a pensar nele com desejo, mas apenas como a mulher que ele
já tinha imaginado que Bellino fosse. E então, por fim, ele des-
cobre que Bellino é mulher, e corre para consumar seu desejo.
Isso, certamente, é uma descrição precisa do papel do gênero
na gênese do desejo. Para o feminista kantiano, o problema de
Casanova era inteiramente artificial: ele poderia ter desejado
a Bellino com esse exato desejo, acreditando ainda que ele era
homem. Mas o desejo de Casanova foi extinto por esse pensa-

378 Ver a citação de Simone de Beauvoir na nota 352.

383
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

mento: ele já não podia desejar a Bellino como acreditava que


ele fosse, mas apenas como ele pensava que era.
No entanto, não é fácil dar uma explicação completa para a
angústia de Casanova. Por que ele hesita tanto ante o limite do
desejo homossexual? Vou concluir com uma breve sugestão, a
que eu voltarei no capítulo seguinte.
O fato é que, porque vivemos em um mundo estruturado
pelo gênero, o outro sexo é sempre, em certa medida, um mis-
tério para nós, com uma dimensão de experiência que podemos
imaginar, mas nunca interiormente saber. Ao desejarmos a união
a ele, estamos desejando nos misturar com algo que é profun-
damente – talvez essencialmente – diferente de nós mesmos, e
que nos leva a experimentar um caráter e uma interioridade
que nos desafiam com a sua estranheza. (Esse é, naturalmente,
o tema predominante dos romances de D. H. Lawrence: e em O
Arco-Íris, pelo menos, Lawrence vindica sua visão.)
Isto pode dar a entender que existe uma distinção entre de-
sejo homossexual e heterossexual. O heterossexual se aventura
com uma pessoa cujo sexo o confina dentro de outro mundo.
O homossexual une-se com um indivíduo que não se encontra
além do fosso que separa o mundo dos homens do mundo das
mulheres. Por isso, o homossexual tem uma familiaridade inte-
rior peculiar com o que seu parceiro sente. Sua descoberta da
natureza sexual de seu parceiro é a descoberta de que ele conhe-
ce. Como Verlaine, ele pode se divertir com isso, saboreando a
duplicidade de uma única experiência:
E você se regozija, pequeno,
Porque eis que tua bela gália,
Ciosa também de ter sua hora,
Logo, logo, infla, cresce,
Enrijece... Céu! a gota, a pérola,
Mensageiro, venha brilhar
Na cavidade rósea: engoli-la,
Eu, eu devo abandoná-lo
O meu flui.379

379 Et tu te rejouis, petit,


Car voici que ta belle gaule,
Jalouse aussi d’avoir son role,

384
capítulo 9 - sexo e gênero

Ou, de forma mais explícita, numa prosa terrível:


Ao dar, dou-me. A mesma tempestade, a mesma agitação.
Nunca se tem isso com um homem, sua experiência tão escon-
dida como a minha. Mas duas mulheres têm os mesmos nervos.
O toque mais insignificante do meu dedo em seus clitóris escon-
dido como uma pérola em suas dobras alerta sua extremidade,
e o meu próprio pulsa como se estivesse sendo tocado por uma
mão. [Kate Millet, Flying]
Podemos extrair alguma conseqüência moral desta disseme-
lhança entre o desejo heterossexual e o homossexual? Em par-
ticular, esta é a verdadeira base da freqüente (errada ou não)
condenação da homossexualidade? Para discutir essa questão,
precisamos nos armar com um conceito de perversão sexual.

Vite, vite, gonfle, grandit,


Raidit… Ciel! la goutte, la perle
Avant-courriere, vient briller
Au meat rose: l’avaler,
Moi, je le dois, puisque deferle
Le mien de flux – NT.

385
CAPÍTULO 10
PERVERSÃO

Falar de perversão sexual é repulsivo tanto para aqueles que


a vêem como uma ameaça a suas práticas sexuais, quanto para
aqueles que acreditam que depende de um conceito desacredi-
tado de normalidade. Há algo a ser dito sobre a idéia de “nor-
malidade” sexual, além de registrar uma dupla confusão – entre
o desejo sexual humano e a “tumescência” animal, e entre as
normas da existência biológica e as obrigações da vida moral?
Certamente, obras contemporâneas sobre o tema da perversão
têm mostrado pouca consciência do que está em jogo. Freud,
por exemplo, descreve como pervertido qualquer impulso se-
xual diverso do objetivo “biologicamente normal” da união
sexual – ou seja, o objetivo que, em circunstâncias favoráveis,
leva à procriação.380 Logo, todos os atos que não envolvem ou
tendem para a inserção do pênis em uma vagina feminina são,
para Freud, “anormais”, e a disposição para realizá-los uma
“aberração”, “depravação” ou “perversão”. Freud se abstém de
tirar conclusões morais desta descrição, consciente da fragili-
dade moral do conceito expresso nela. Nesse caso, poder-se-ia
dizer que ele não introduziu realmente um conceito de perver-
são, mas meramente um conceito de variedade. Pois não é parte
da natureza humana ir além do repertório limitado de conduta
que é instilado em nós por nossos instintos símios? Em outras
palavras, não é a “anormalidade” de Freud precisamente o que
é normal em seres como nós?
Claramente, a primeira tarefa para qualquer teoria da per-
versão é analisar a idéia de normalidade. Esta idéia tem um

380 Ver “Three Essays on Sexuality” (1905), reimpresso na Penguin Freud Library, vol. 7:
On Sexuality, ed. J. Strachey e A. Richards, Harmondsworth, 1977, especialmente o
no 1, “The Sexual Abberations.”
387
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

lugar importante na ciência biológica, o que nos permite estabe-


lecer uma distinção vital sem a qual o conceito de uma espécie
seria de valor explicativo duvidoso: a distinção entre o normal
e o médio. Suponha que todos os leões tenham sido afetados
por uma praga que fez com que perdessem suas jubas. O leão
mediano, então, não teria juba. Mas o leão normal continuaria
a possui-la – apesar de perder o privilégio da existência. Em
tais circunstâncias, todos os leões existentes seriam anormais.
O leão normal é aquele que tipifica a natureza leonina – aquele
que vive, floresce e esmorece de acordo com as leis da sua espé-
cie. O conceito de uma espécie já é definitivo, por conseguinte,
de uma norma biológica.
Se nossa idéia de normalidade sexual é regida pelo pensa-
mento biológico, vamos de fato concordar com Freud em limi-
tar o desempenho sexual normal ao ato da cópula heterossexu-
al simples, juntamente com seus preliminares e consequências.
Nesse caso, teremos de descrever muitos atos que ocorrem na-
turalmente e espontaneamente entre casais heterossexuais como
anormais. A felação, por exemplo, e a cunilíngua, têm ambas
imenso significado simbólico, e não podem ser excluídas do li-
rismo natural do beijo. Considere essa passagem de Thomas
Carew sobre a cunilíngua:
E, onde a região bela se divide
Em dois caminhos lácteos, meus lábios deslizam
por aquelas vielas suaves, vestindo conforme
Um trato na neve impresso para os amantes;
Daí escalando o inchado Apenino
E passando ao teu bosque de flores,
Onde vou destilar todos aqueles doces violados
Através do alambique de amor, e com habilidade alquímica
Da massa misturada, um bálsamo soberano deriva,
E trago essa grande elixir para a tua colmeia.381
[‘A Rapture’]

381 And, where the beauteous region doth divide


Into two milky ways, my lips shall slide
Own those smooth alleys, wearing as I go
A tract for lovers on the printed snow;
Thence climbing o’er the swelling Appenine

388
capítulo 10 - perversão

Claro que a felação ou a cunilíngua realizada de forma iso-


lada do resto do ato de amor – por alguém que vê nisso o único
meio de expressão sexual – é um ato muito diferente da felação
conduzida “no curso” do desejo normal. E também é verdade
que essa união do rosto – símbolo da perspectiva autoconscien-
te – com o órgão sexual – símbolo do domínio máximo do cor-
po – tem um significado moral que muda o sentido de nossos es-
tratagemas sexuais. No entanto, excluir esses atos do exercício
normal do desejo somente por essas razões é privar a idéia de
normalidade de qualquer significado verdadeiramente humano.
Na verdade, pode-se razoavelmente recusar o uso do concei-
to de perversão da atividade animal. Considere o coito anal –
uma prática certamente não desconhecida no reino animal, seja
entre macho e fêmea, ou entre macho e macho. Tal fenômeno
certamente não exige explicação especial, e certamente nenhu-
ma explicação em termos de “perversão” de um instinto. Um
animal desejar inserir seu membro neste orifício em particular
– ou mesmo em qualquer orifício – é profundamente previsível,
dada a sua propensão para inseri-lo no orifício que é seu lar
“natural”. Pois do ponto de vista da percepção animal, os dois
orifícios são iguais: quentes, passivos, desdentados e cheirando
à “vida da espécie”. Não é sequer necessário assumir a existên-
cia de um engano para explicar esta sodomia “natural”.
É somente quando consideramos a relação humana que estes
passatempos inocentes dos animais começam a exigir explica-
ção especial. Pois a relação sexual humana é mediada e expres-
siva de uma concepção de si mesmo. Por isso, exige explicação
em termos intencionais. Práticas que não estão disponíveis para
os animais – práticas que envolvem fantasias elaboradas, como
podolatria – estão disponíveis para o ser humano. E as camba-
lhotas inocentes dos animais aqui se tornam tão suscetíveis a
julgamento quanto as práticas exóticas que o engenho humano
empregou para adornar o ato sexual. Para o sociobiólogo, não
pode haver nada de anormal no seguinte comportamento, que,

Retire into thy grove of eglantine,


Where I will all those ravished sweets distill
Through love’s alembic, and with chemic skill
From the mixed mass one sovereign balm derive,
Then bring that great elixir to thy hive – NT.

389
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

em uma interpretação, mostra a preocupação exemplar de um


conjunto de genes pelos recursos necessários para a sua sobrevi-
vência. Imagine, no entanto, um conceito de perversão que não
se aplique a seu equivalente humano!
O louva-a-deus é praticamente o único inseto com o pescoço; a
cabeça não se junta imediatamente ao tórax, o pescoço é longo e
flexível, dobrando-se em todas as direções. Assim, enquanto o macho
a enlaça e fecunda, a fêmea vira a cabeça para trás e calmamente
come seu companheiro com prazer. Aqui um está sem cabeça, outro
está desaparecido até o tórax, e seus restos mortais ainda agarram a
fêmea que o está devorando em ambas as extremidades, recebendo
de seu esposo, simultaneamente, os prazeres ac mensa ac thoro,
cama e mesa, de seu marido. O duplo prazer só termina quando a
canibal atinge a barriga: o macho cai em pedaços e a fêmea acaba
com ele no chão. Poiret testemunhou uma cena talvez ainda mais
extraordinária. O macho salta em uma fêmea e vai copular. A fêmea
vira a cabeça, olha para o intruso, e o decapita com um golpe de
sua pata-serra, uma maravilhosa foice dentada. Sem desconcerto, o
macho se prepara, se posiciona e faz amor como se nada anormal
tivesse acontecido. O acasalamento ocorreu, e a fêmea teve a
paciência de esperar o fim da operação antes de terminar o café da
manhã do casamento.382

Simplificando a questão, o que é biologicamente “normal”


é regido pelas exigências da espécie. Mas isto pode não ser a
conduta “normal” para um ser racional ou compatível com ele.
As normas de conduta racional e as normas da atividade animal
podem de fato ser totalmente incomensuráveis. Por exemplo, é
concebível que toda a atividade sexual casual possa ser descrita
como pervertida. Platão certamente chegou perto de descrever
a relação heterossexual normal de tal forma. E escritores pos-
teriores – São Paulo e São Jerônimo entre eles – estavam incli-
nados a pensar o mesmo de qualquer atividade sexual pelos
motivos a que já me referi.
Há, no entanto, uma forte tradição – representada em sua
forma mais grave nos ensinamentos da Igreja Católica Romana
– que reconhece que o conceito de perversão somente pode ser

382 Rémy de Gourmont, The Natural Philosophy of Love, tr. Ezra Pound, Londre, 1926, nova
edição, 1957, p. 91-2 (originalmente Essai sur l’ instinct sexuel, Paris, 1904). Recentes
pesquisas sugerem que essa característica particular dos hábitos de acasalamento do
louva-a-deus não é natural, mas um resultado da observação de entomólogos lascivos.

390
capítulo 10 - perversão

legitimamente aplicado à conduta de um ser racional, e que tam-


bém defende que ela é explicada em termos do processo animal
de reprodução biológica. A tradição foi recentemente defendida
por Elizabeth Anscombe, cujo argumento é mais ou menos o
seguinte.383 O ato sexual normal é intrinsecamente gerador. Este
fato é um dado sobre o qual está fundada a intenção daqueles
que fazem amor (no caso normal), porque o caráter generativo
do ato pertence à sua natureza, constitui parte da “descrição
segundo a qual” se destina. Não que o ato normal seja sempre a
expressão da intenção de ter filhos; mais que isso, é a expressão
de uma intenção de realizar um ato intrinsecamente gerador. E
isso corrige o caráter moral da ação: é isso que a relação sexual
normal é, do ponto de vista moral. Todas as outras formas de
relação sexual são, portanto, essencialmente desviadas; e, Ans-
combe acrescenta, condenáveis em virtude do seu desvio.
É justo dizer que poucos filósofos acharam o argumento de
Anscombe satisfatório.384 Parece ter como consequência que
não só a relação sexual contraceptiva, mas também a relação
sexual heterossexual com alguém infértil é desviada (e também
condenável) da mesma forma, e pela mesma razão, que a relação
homossexual: um resultado que é extremamente contraintuiti-
vo, mesmo para alguém que acredita que os três tipos de relação
sexual são moralmente errados. Além disso, o argumento, se
válido, implicaria que o ato sexual realizado por pessoas igno-
rantes dos fatos da reprodução humana é intrinsecamente des-
viado, enquanto os atos homossexuais realizados na esperança
equivocada de induzir uma gravidez em um homem talvez não
sejam. Agora, é igualmente verdade que o nosso conhecimento
das consequências do que fazemos é uma parte importante do
nosso ato – porque modifica as nossas intenções e também por-
que muda a descrição do ato. E é certamente verdade que nossa
disposição em separar a atividade sexual da reprodução trouxe
uma vasta, e moralmente significativa, mudança no projeto de
fazer amor. É certo que práticas que eliminam a possibilidade

383 G. E. M. Anscombe, “Contraception and Chastity”, em The Human World, vol. II


(1972).
384 Ver as respostas ao artigo de Anscombe de P. Winch, B. Williams e M. Tanner, em ibid.
A controvérsia foi discutida por Jenny Teichman, “Intention and Sex”, em C. Diamond
e J. Teichman (eds), Intention and intentionality, Brighton, 1979.

391
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de novas e esmagadoras responsabilidades pessoais surgirem


de um ato podem mudar a natureza moral desse ato. (Germai-
ne Greer defendeu, vagamente, mas de forma admissível, que a
contracepção induziu a uma “desmistificação” generalizada do
corpo humano.)385 Mas usar tais idéias como a única base para
a complexa moralidade da conduta sexual, e assumir que elas
geram uma idéia de “normalidade” útil na descrição e explica-
ção do comportamento sexual humano, é sustentar um argu-
mento moral muito complexo em um suporte conceitual muito
frágil. Quaisquer que sejam as conclusões sobre a moralidade
dos atos “inférteis”, elas devem depender de suposições mais
amplas sobre a natureza humana, e não podem ser derivadas da
intencionalidade flutuante das relações sexuais inférteis.
Temos de olhar em outros lugares, também, para uma análise
da “norma” da conduta sexual. Pois é altamente dubitável que
uma teoria que implique que a contracepção é uma perversão,
talvez tão pervertida como a bestialidade ou a necrofilia, nos
permita captar o que é repelente nesses últimos vícios. Podemos
derivar um conceito de perversão que alcança esse fim, susten-
tado por bases tão objetivas quanto as que usamos para a idéia
do biologicamente normal? Como já enfatizei ao longo deste
trabalho, a natureza humana é dupla: somos, a um só tempo,
animais e pessoas racionais. E é bastante claro que, em mui-
tos de seus empregos, a razão determina as normas que regem
a sua própria atividade. Para muitas das atividades da razão
– lógica, matemática, inferência científica e assim por diante –
claramente não há espaço para a sugestão de que essas normas
são “subjetivas” de uma forma que as normas da biologia não
são. No entanto, as coisas se tornam imensamente mais com-
plexas quando nos dirigimos não ao argumento racional, mas
à natureza do ser racional em si. O ser racional é um ser pesso-
al, caracterizado não só pela sua capacidade de raciocinar, mas
também por sua posse de uma perspectiva de primeira-pessoa,
responsabilidade, e a rica vida emocional interpessoal que acar-
retam. Há lugar para uma idéia séria de normalidade, que irá
distinguir aqueles que florescem de acordo com as leis dessa
existência “pessoal” daqueles que não o fazem?

385 Germaine Greer, Sex and Destiny, Londres, 1984, p. 101.

392
capítulo 10 - perversão

Na tentativa de dar uma resposta afirmativa a essa pergunta,


vou seguir um caminho trilhado por Aristóteles em sua Ética a
Nicômaco (e em outros lugares). Vou tentar elaborar uma teo-
ria da natureza humana que seja suficientemente rica para dar
razões para distinguir as variedades florescentes das em declí-
nio. No presente capítulo, vou me limitar a uma discussão sobre
a normalidade inerente no desejo sexual. No capítulo seguinte,
vou incorporar minhas observações em uma teoria mais ampla
da virtude humana, que irá mostrar, espero, que a abordagem
aristotélica a estas questões conseguiu fornecer a base objetiva
para o que é, na verdade, uma doutrina moral.
A pessoa humana é um artefato humano, o produto da in-
teração social que ela também produz. Ela só pode existir nas
condições que permitam o surgimento de uma perspectiva em
primeira-pessoa – em outras palavras, somente quando ligada
às práticas linguísticas públicas que dão sentido ao conceito de
“eu”. Ela é, portanto, um ser social por natureza, não apenas
no sentido de ser feito para a sociedade, mas no sentido mais
forte de ser feito pela sociedade. Por isso, devemos contar entre
os seus motivos mais importantes as atitudes interpessoais que
expressam seu reconhecimento de sua natureza social. Como
mostrarei melhor no próximo capítulo, essas atitudes não são
apenas necessárias para nossa felicidade; elas também são cons-
titutivas de nossa existência pessoal. Uma pessoa que não as tem
está, em um sentido real, “despersonalizada”. Em outras pala-
vras, essas atitudes são elementos da natureza humana normal,
e a falta delas é desviante. (Se houver alguma base para a idéia
de um “psicopata”, está nesta falta de resposta interpessoal.)
É este fato que torna útil a introdução de um conceito de per-
versão em nossa descrição do desejo humano. O desejo sexual
envolve a disposição e o direcionamento de apelos animais para
um objetivo interpessoal, e para uma realização interpessoal. É,
além disso, um motivo poderoso e absorvente. Nossos projetos
de vida se fundem nele, e são pouco capazes de colocar obstácu-
los em seu caminho. Daí pensarmos no desejo sexual ao mesmo
tempo como uma força animal que nos ultrapassa e uma escolha
pessoal cuja direção exprime a nossa vontade. No desejo, nós
experimentamos a unidade da nossa natureza animal e pessoal, e
nossa noção de que o primeiro é regido por uma norma objetiva

393
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

transmite-se à nossa percepção do segundo. Eu acredito que o


conceito de perversão que explique a noção de que a perversão
está moralmente contaminada também é o que tem o maior
valor explicativo: o conceito que descreve como pervertidos to-
dos os desvios da unidade das relações animal e interpessoal.
Podemos, intencionalmente ou não, separar o desejo sexual de
sua intencionalidade interpessoal e reconstituí-lo em termos im-
pessoais e puramente “corporais”. Isto não é apenas um caso
de maus modos: não é como o hábito do comedor voraz que,
vencido pela compulsão animal pelo alimento que está diante
dele, ignora a presença de seu companheiro, e se transforma em
um porco numa calha. No desejo sexual, o companheiro tam-
bém é o objeto do que se sente, e o que é feito é feito para ele. O
fracasso completo ou parcial de reconhecer, dentro e através do
desejo, a existência pessoal do outro é, portanto, uma afronta,
tanto para ele quanto para si mesmo. Além disso, ao divorciar a
conduta sexual do impulso de responsabilidade e cuidado, nós
removemos da esfera das relações pessoais a principal força que
nos impele à união com os outros, a aceitá-los e a comprometer
nossas vidas por eles. Em outras palavras, nós removemos o que
há de mais profundo em nós mesmos – nossa vida – da nossa
transação moral, e a afastamos para um reino que está livre da
soberania de uma lei moral, um reino de prazer curioso, no qual
o corpo é soberano e obsceno. Esta, creio eu, é a característica
estrutural mais importante da perversão, e a que justifica a con-
denação moral do desejo pervertido, além de introduzir uma
distinção que facilita a explicação da sua natureza.
Antes de ilustrar essas observações, vale a pena distinguir
a teoria prefigurada nelas conforme dada por Thomas Nagel
em seu artigo sobre a perversão sexual.386 Apesar das sugestões
feitas por Nagel concordarem em linhas gerais com o que eu es-
crevi, elas diferem em um detalhe crucial. Nagel considera que a
perversão envolve “versões truncadas ou incompletas da confi-
guração completa”.387 Em outras palavras, a perversão tem que
ser vista como uma limitação ou distorção do desenvolvimento
sexual. Como Nagel descreve esse desenvolvimento em termos
da natureza interpessoal do desejo, sua sugestão é muito próxi-

386 Thomas Nagel, “Sexual Perversion”, em Mortal Questions, Cambridge, 1979.


387 Ibid., p. 48.

394
capítulo 10 - perversão

ma da minha. No entanto, a referência a um “desenvolvimen-


to” natural introduz um elemento estranho. Pode-se igualmente
dizer que o impulso sexual se desenvolve naturalmente da ma-
neira que eu chamei de pervertida. É até mesmo possível dizer
que algumas formas de perversão sejam versões plenamente re-
alizadas, e de nenhuma maneira truncadas, do impulso sexual.
A característica importante não é a sua natureza “potencial”
e “não realizada”, mas sim a realização bem-sucedida de um
divórcio entre o animal e o pessoal: a sua divisão bem-sucedida
entre nossa existência pessoal e a força que mais poderosamen-
te expressa o fato de que estamos vivos. (Assim, sua leitura da
filosofia moral de Kant, que parece defender tal divisão, levou
D. H. Lawrence, em uma carta, a condenar Kant como “um dos
maiores pervertidos”.)
Como Nagel salienta, no entanto, uma perversão não é um
ato, mas uma disposição – em outras palavras, um motivo a
partir do que as ações ocorrem. Muitas pessoas consideradas
normais experimentaram, de vez em quando, novidades se-
xuais: apenas a aquisição de uma disposição pode justificar o
julgamento de que um desejo particular seja pervertido. Pois
apenas em tal caso podemos ver uma viragem fundamental do
impulso sexual de seu objetivo normal da união com o outro.
Somente em tal caso é adequado considerar que a direção e
foco do desejo sexual mudaram. (Compare o amante que, num
acesso de paixão, morde sua amada, com o amante cujo prazer
sexual é totalmente focado neste ato.)
Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que as pessoas não
vêem facilmente o seu comportamento sexual como uma sequ-
ência de atos isolados. Pelo contrário, qualquer encontro pode
parecer “revelador” de uma inclinação de outra forma oculta.
Uma pessoa raramente cede “apenas uma vez” e não pensa mais
nisso. Um encontro particular, que envolve as alturas da excita-
ção sexual, pode reverberar através da vida, reunindo para si o
significado de cada anseio posterior. A experiência foi gravada
por Cavafy, em um poema intitulado “One Night:”
E ali, naquela cama simples, ordinária,
Eu tinha o corpo do amor, eu tinha os lábios,
Os deliciosos lábios vermelhos de embriaguez,
Lábios vermelhos de tamanha embriaguez que agora,

395
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Enquanto escrevo – depois de tantos anos –


Na minha casa solitária, eu estou bêbado de novo.388

O poeta não tinha um corpo humano particular, mas o “corpo


do amor” (to sōma tou erōtos), e a experiência não tem nenhum
detalhe além de sua embriaguez (methē), e os lábios vermelhos,
que vigorosamente nos arrastam pelos versos até o ponto em
que a embriaguez retorna (methō xana). Esta “emoção reco-
lhida em ansiedade” é homenagem presente a um desejo que
encontrou seu objetivo. Sempre, no encontro sexual voluntário,
o ato absorve e perturba o agente, e fornece a motivação e o
desejo de sua própria repetição. Se não fosse assim, Anna Kare-
nina não teria razão para temer Vronsky, nem para avisá-lo que,
se ela fracassasse, não haveria volta.
Para ilustrar o que quero dizer, vou considerar alguns exem-
plos-padrão de desejo sexual que foram chamados de “perver-
tidos”, e perguntar se, e, em caso afirmativo, como mereceram
esse rótulo. Considerarei bestialidade, necrofilia, pedofilia, sa-
dismo, masoquismo, homossexualidade, incesto, fetichismo e
masturbação. Apesar de todos terem sido freqüentemente con-
denados como imorais, nem todos são ainda considerados per-
vertidos, e nem todos são condenados em qualquer lugar, ou
pelo mesmo motivo. Todos, no entanto, devem ser examinados,
já que ilustram os principais problemas que devem ser enfrenta-
dos por qualquer tentativa de derivar uma moralidade da con-
duta sexual.

Bestialidade
A menos que vítima de delírios, a pessoa que copula com
um animal está consciente, em primeiro lugar, que este ato não
pode ter, para o animal, a importância que tem para ela, e, em
segundo lugar, que o animal não pode fazer nenhuma exigência
moral dele, não pode sentir nem vergonha nem constrangimen-

388 And there, on that ordinary, plain bed,


I had love’s body, I had the lips,
The delicious red lips of drunkenness,
Red lips of such drunkenness that now,
As I write – after so many years –
In my lonely house, I am drunk again – NT.

396
capítulo 10 - perversão

to, não pode assumir responsabilidade e não tem comprome-


timento pessoal. A pessoa bestial pode não consentir com os
pensamentos que tentei transmitir – ela pode não reconhecer,
por exemplo, que os animais não podem ser excitados –, mas
vai saber que o que está fazendo com este animal não poderia
ser feito com a mesma mentalidade a outro ser humano. Ou se
não souber disso, é porque já aboliu a distinção entre o animal
e o humano. Em uma das descrições mais impressionantes da
bestialidade – o relato de Ovídio do desejo de Pasífae pelo touro
– o poeta reconhece, de fato, que a distinção entre o animal e o
humano foi momentaneamente abolida. Pasífae, observando os
hábitos sexuais naturais de seu senhor, fica com ciúme da vaca
que se oferece para ele no campo, e desdenhosamente fala de
sua crença tola de ser mais bonita do que ela:
Olha como ela brinca diante dele na mata:
E ela acredita, tolamente, que se faz decorosa. 389
[Ars Amatoria, 315-16]

Em sua fúria, Pasífae ordena que a vaca transgressora seja


arrancada do rebanho e submetida, de forma imerecida, a um
falso sacrifício. A descrição de Pasífae no altar, segurando exul-
tante nas mãos as entranhas de sua rival imaginária, transmite
uma imagem penetrante do absurdo do desejo de Pasífae, que
não só a levou a considerar um touro, mas toda a espécie a que
ele pertence, em termos pessoais, e a atribuir a uma vaca res-
ponsabilidade humana, sem o que esse ciúme e essa exaltação
seriam incoerentes.
Pode-se dizer que, precisamente porque Pasífae converteu
seu amante de animal para pessoa, seu desejo não é mais bes-
tial. O desejo verdadeiramente bestial permanece preso na no-
ção da natureza meramente animal de seu objeto. Para a pessoa
verdadeiramente bestial, o ciúme seria impossível, assim como
a vergonha diante do objeto de desejo. Todo o “problema” do
desejo desaparece de sua mente pela abolição das condições que
o criam. Aqui está tanto o apelo da bestialidade quanto a verda-
deira fonte da repulsa comum que inspira. A pessoa bestial se vê
como vê o objeto de desejo: um “mero” animal, atuando em um

389 Aspice, ut ante ipsum teneris exulted in herbis:


Nec dubito, quin se stulta decree putet.

397
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

reino onde nenhuma idéia moral perturba os sentidos, um reino


em que a consciência incapacitante da perspectiva do outro foi
removida. Este reino, em que a responsabilidade não está mais
gravada na estrutura intencional da experiência, é mais seguro
do que o mundo humano. Quem o penetra não é perturbado
pelo sagrado, e não sofre as aflições pelo conhecimento de que,
ao unir seu corpo com o do outro, comprometeu o seu ser.
Mas é precisamente na perda desse “problema” que ele se
mostra ofensivo. Seu ato é uma “poluição” – uma violação da
santidade do corpo. Seu ato é abominável, e não apenas porque
nega a intencionalidade interpessoal do desejo, mas, especifica-
mente, porque faz isso por ser obsceno. Ele priva o corpo do
espírito que o distingue, e troca o problema da relação sexual
humana pelo prazer curioso de uma glândula palpitante. O ato
sexual perde seu significado e é reduzido a um espasmo da carne.
A bestialidade oferece, de fato, um paradigma da perversão:
do ato sexual fora da corrente de união interpessoal, e ao mes-
mo tempo envenenado por um pensamento obsceno. Note que
há dois aspectos relacionados ao fenômeno: a perda de inten-
cionalidade interpessoal e a obscenidade. A perversão ilustra o
verdadeiro perigo moral da obscenidade, que, por poluir o ato
sexual, o inutiliza como uma forma de união pessoal. Todo pen-
samento e toda emoção param no ato em si e no corpo como
revelado no ato: desafiador, desalmado e decadente. O corpo se
torna opaco para a pessoa incorporada nele, e toda união com
ele deve, portanto, contornar o congresso sexual e estabelecer-se
em outros termos. As condições para a geração do amor erótico
foram destruídas. (Por isso a vergonha, que proíbe a percepção
obscena, é o escudo de amor.)
O desejo bestial não pode, portanto, ser uma expressão de
amor. É, no máximo, acessório ao amor. Pois, embora os ho-
mens possam amar os animais, eles não podem amá-los através
do desejo.390 Se parecem fazê-lo, é porque, como Pasífae, passa-

390 Féré faz uma análise interessante do que ele chama de “zoofilia”, o amor pelos animais
que, embora não uma perversão em si, pode preceder o desenvolvimento do desejo
bestial. A implicação é que, nesse caso, o desejo surge do amor (C. Féré, Evolution
and Dissolution of the Sexual Instinct, 2ª ed., Paris, 1904, p. 181). Essa implicação
também aparece em J. R. Ackerley, My Dog Tulip, Londres, 1956. Mas, como Ackerley
deixa claro, o desejo só foi possível porque o cão é inteiramente percebido em termos
pessoais.

398
capítulo 10 - perversão

ram a acreditar que o objeto de desejo é também uma pessoa.


A lenda em que Zeus disfarçou-se como um cisne a fim de satis-
fazer o seu desejo por Leda não é uma lenda de amor humano.
Nem Zeus poderia ter satisfeito, através desta metamorfose, o
desejo que o moveu. Seu desejo era induzir o amor por ele, e,
assim, causar excitação. Mas se Leda acreditava que a criatura
que a estava montando era um cisne, é ridículo pensar que o seu
desejo era também uma forma de amor. Se ela amava o cisne,
não foi através de seu desejo, mas apesar dele. Talvez seja esse o
motivo por que Yeats descreve a cena como um estupro:
Um golpe súbito: as grandes asas ainda a bater
Acima da garota a vacilar, a acariciar suas coxas
As teias sombrias, com o bico prendendo sua nuca,
Ele segura seus seios contra seu peito.
Como podem aqueles dedos vagos e amedrontados
Empurrar a glória emplumada de suas coxas fraquejantes?391

Esse distanciamento do amor erótico é uma marca de toda


perversão. E na bestialidade há o mais nítido rompimento entre
as possibilidades emocionais que estão diante da pessoa e a vida
de expressão sexual através da qual ele poderia tê-las focado.
Esse rompimento também fornece uma pista para a expli-
cação da bestialidade. A bestialidade é um tipo de deficiência
moral, um medo confrontar a perspectiva do outro, um medo
de ser sexualmente conhecido. Este receio não é nada fácil de
descrever: mas é uma ocorrência comum, e todos nós, em certa
medida, estamos familiarizados com ele.

Necrofilia
Pode-se aplicar exatamente a mesma explicação ao caso
em que o “objeto” de desejo (se é que pode ser assim descrito)
não é nem animal nem pessoa, mas a relíquia morta de ambos.

391 A sudden blow: the great wings beating still


Above the staggering girl, her thighs caressed
By the dark webs, her nape caught in his bill,
He holds her helpless breast upon his breat.
How can those terrified vague fingers push
The feathered glory from her loosening thighs? – NT.

399
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

De certa forma, a necrofilia mostra o processo de perversão em


seu auge, com a separação absoluta entre o impulso sexual e
a emoção interpessoal causada pela morte, e pela conseqüente
extinção da perspectiva do outro. Além disso, a morte torna o
corpo opaco: é repulsivo para nós, assim como é repugnante
quando obscenamente percebido. Seu calor e vitalidade desa-
pareceram, e não resta nada além de carne, cujo destino é a
decadência. A união com este corpo polui o corpo que o toca e
o torna obsceno. Ele também polui o corpo do morto, pois exi-
be obscenamente o que ainda devemos perceber, se pudermos,
como a imagem de uma alma humana. (Por isso a necrofilia
costumava ser chamada de “profanação de cadáver”.)392
Diz-se que Jaime I, quando caçava, ordenava que os veados
recém-abatidos fossem abertos para que ele pudesse inserir seu
membro nas entranhas ainda quentes. É difícil dizer se este ato
é mais ou menos pervertido do que a prática habitual do necró-
filo, que gasta suas energias em um corpo humano. Mas deve-
mos registrar que esse necrófilo, em certo sentido, deseja uma
pessoa. No entanto, é uma pessoa extinta, que não tem noção
alguma do que está acontecendo com seu corpo. Mais uma vez,
é necessário distinguir a verdadeira necrofilia de seu falso si-
mulacro. Um amante desesperado naturalmente abraça o corpo
de sua amada e dá beijos naquela que não tem vida para rece-
bê-los. A agonia da dor pode ir mais longe, em resposta ao que
Keats descreveu como “amor; gelado – morto de fato, mas não
destronado”: 393
Em secreta ansiedade levaram para casa,
E, então, o prêmio era todo de Isabel:
Ela acalmava os selvagens cabelos com escova dourada,
E ao redor da céla sepulcral de seus olhos
Uma guarnição de cílios apontava; a lama manchada
De lágrimas, frias como o gotejar de um poço,
Ela secava: – e ainda escovava, e continuava

392 Essa expressão [“corpse prophanation”] é usada por Henry Spencer Ashbee (“Pisanus
Fraxi”); ver Peter Fryer (ed.), Forbidden Books of the Victorians, Londres, 1970
(bibliografia de literatura erótica de H. S. Ashbee).
393 “Love; cold – dead indeed, but not dethroned” – NT.

400
capítulo 10 - perversão

A suspirar o dia todo – e ainda beijava e chorava.394


[Isabella, LI]

Mas é evidente que tal paixão é a sobrevivente patética de


um desejo impossível de satisfazer, e somente é pervertida, se
é que podemos chamá-la assim, na imaginação de quem a vê
dessa forma. Na verdadeira necrofilia, o sujeito quer que o ou-
tro não exista – ele pode chegar ao ponto de se alegrar com sua
inexistência. Pois a remoção da perspectiva do outro é uma con-
dição necessária do desejo do necrófilo. O abraço do necrófilo é
uma versão segura do beijo roubado, em que todo o perigo da
descoberta foi neutralizado. (Daí a necrofilia estar prefigurada
nas relações sexuais com uma pessoa drogada ou sonolenta: cf.
Die Marquise von O de Kleist.)
O apelo da necrofilia, como o da bestialidade, reside em li-
bertar-se da ansiedade do conhecimento pessoal. No entanto, o
necrófilo não é necessariamente bestial: ele pode não querer ver
o outro como um animal; pode desejar que o outro mantenha
as marcas distintivas da humanidade, para satisfazer-se com um
corpo que poderia ter respondido com um desejo pessoal. Ele
é, então, capaz de desfrutar do fantasma da satisfação sexual,
soprando no corpo do outro a vida imaginária que, fruto de sua
vontade, não lhe oferece obstáculos, nem apresenta qualquer
perspectiva que não a sua.
Podemos ver uma distinção importante emergindo no rei-
no da perversão sexual, entre a perversão que é mediada por
um objeto fantasioso e da perversão que não é. A segunda – a
perversão “pura” – envolve a total abolição do outro, sendo,
por essa mesma razão, difícil de entender. Pois qual o prazer
em uma necrofilia pura que não pode ser melhor e menos ver-
gonhosamente satisfeito com um gibão de couro? É a necrofi-
lia “impura” a que melhor se encaixa em nossa noção do que

394 In anxious secrecy they took it home,


And then the prize was all for Isabel:
She calm’d its wild hair with a golden comb,
And all around each eye’s sepulchral cell
Pointed each fringed lash; the smeared loam
With tears, as chilly as a dripping well,
She drench’d away: – and still she comb’d, and kept
Sighing all day – and still she kiss’d and wept – NT.

401
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

“apronta” o necrófilo. Podemos entender o seu ato, chegando


até a vê-lo como um substituto para a relação humana, no qual
o sujeito preenche a lacuna entre sua ação e seu significado com
fantasias da excitação do outro. Assim, ele restaura imaginati-
vamente algo da intencionalidade do desejo. Ao mesmo tempo,
seu corpo, envolvido em um ato sexual despersonalizado, mos-
tra a separação entre o interpessoal e o sexual, que é a marca do
desejo pervertido e o foco natural da percepção obscena.

Pedofilia
A necrofilia é a forma mais absoluta de perversão, em que a
existência do outro é considerada uma ameaça para o envolvi-
mento sexual. Em outras perversões, o outro não é mais deseja-
do como ausente, mas de forma diminuída. O caso paradigmá-
tico é a pedofilia, em que o outro não é desejado apesar do fato
de ser uma criança, mas porque é uma criança. Há um instinto
natural em valorizar o que é jovem, e desafogar nossos desejos
no que é fresco e belo. O pedófilo, no entanto, não dirige sua
atenção a um “ser humano jovem”, mas a uma “criança”. A
diferença aqui é paralela à entre sexo e gênero. A idéia do in-
fantil pertence à compreensão intencional, não à material. Ela
guarda nossa noção de que a vida da pessoa está dividida em
dois episódios, uma o prelúdio da outra. A criança é a criatura
– por mais fisicamente desenvolvida que esteja – cuja natureza
pessoal ainda não está formada, que não pode suportar o peso
das respostas interpessoais e, em particular, que é considerada
apenas parcialmente responsável pelo que diz e faz. A criança é
o prelúdio da pessoa, e com uma criança a plena reciprocidade
não é possível nem desejável. Na ternura do desejo, é natural
desejar proteger o outro como se protege uma criança. Mas esse
sentimento não é mais que uma premonição da privacidade fi-
nal da ligação sexual, e de sua realização doméstica – sua reali-
zação à parte do mundo:
Árvore tu és
Musgo tu és,
Tu és como violetas ao vento.
Uma criança – tão longe – tu és,

402
capítulo 10 - perversão

E tudo isso é loucura para o mundo.395


[Ezra Pound, “A Girl”]

Quando a infância do outro desempenha um papel constitu-


tivo no desejo, o desejo é desviado de seu objetivo interpessoal.
Como o homem bestial e o necrófilo, o pedófilo não pode se
entregar ao pleno desafio da perspectiva do outro, limitando
suas atenções àquilo que pode controlar.
Seria um engano, no entanto, pensar que a pedofilia é uma
única coisa. O pedófilo pode de fato se comover pela persona-
lidade informe do objeto de seu desejo. Mas ele também pode
se comover por uma emoção mais sutil. Há, em todas as nossas
relações com as crianças, uma disposição de considerar a crian-
ça como “inocente” – inocente dos motivos poluídos que regem
a vida dos adultos. Nós vemos as crianças de duas maneiras
incompatíveis. Por um lado, elas são pré-morais, incapazes de
errar porque são também incapazes de acertar. Por outro, são
“inocentes”, agindo sempre por motivos puros que justificam o
nosso louvor. A verdade é simples: as crianças são parcialmente
morais, agindo às vezes de maneira correta, e às vezes da for-
ma errada, mas nunca com total responsabilidade por aquilo
que fazem. Esta é uma verdade que costumamos esquecer. Ao
vermos a criança como inocente, somos coniventes com nosso
próprio desejo de torná-la assim. Nós a protegemos dos maus
motivos por supor que ela não os pode ter.
Um dos ingredientes mais importantes nesta idéia de inocên-
cia é o do despreparo sexual. Por razões que examinarei mais
detalhadamente no próximo capítulo, a nossa percepção do de-
senvolvimento sexual envolve uma imagem de “iniciação”. Esta
imagem às vezes ganha realidade objetiva em uma cerimônia,
conduzida porventura por um padre. Mas, mesmo na ausência
de tais cerimônias, a imagem persiste, desempenhando um papel
importante na concepção tradicional do casamento, e também
na forma moderna menos institucionalizada de compromisso.

395 Tree you are


Moss you are,
You are violets with wind above them.
A child – so high – you are,
And all this is folly to the world – NT.

403
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Procuramos alinhar a divisão entre virgem e não virgem com


aquela entre criança e adulto, e, mesmo que este alinhamento
não tenha uma justificação irrevogável, ele nos leva a estabe-
lecer, como um princípio legal, que a relação sexual não deve
ocorrer antes da “idade de consentimento”. Esta ficção jurídica
indica a idade da responsabilidade, a idade em que a pessoa está
completa.
A iniciação sexual abole a inibição que adia o hábito da rela-
ção sexual. Nós desejamos que a iniciação não ocorra antes do
término da “idade da inocência”, pois desejamos que a expres-
são sexual seja contida até que possa existir como uma resposta
interpessoal. Nossa percepção da inocência moral da criança
está, portanto, combinada com uma poderosa interdição: não
despertar na criança um interesse nestas coisas, que são proi-
bidas para ela. Esta interdição – que os freudianos chamam de
“tabu” – é algo mais do que um preconceito irracional. E é
precisamente isso o que provoca o maior êxtase no pedófilo,
que busca reviver a experiência da criança de coisas proibidas,
tentando recriar a emoção de descobri-las. Ele reencena a curio-
sidade primitiva, quando certas partes do corpo, certas pala-
vras, certas ações, possuíam uma qualidade mágica de prazer
proibido, e quando a “revelação” da excitação sexual era an-
tecipada na “depravação” do jogo sexual. Embora elementos
desta lascívia sobrevivam na vida adulta, tornando-se uma fon-
te de humor e de gestos pelos quais algumas pessoas superam
os embaraçosos prelúdios ao desejo, não hesitamos em chamar
o adulto cujos impulsos sexuais permanecem fixados no mun-
do da “depravação” infantil de pervertido – apesar da criança,
que vive nesse mundo, não o ser. O adulto olha a partir de uma
perspectiva madura que esse mundo não pode conter – a pers-
pectiva daquele que sabe. Sua curiosidade é um “conhecimen-
to”, uma familiaridade com ações cuja depravação ele deseja
preservar sob a forma de uma percepção obscena. Para o ser
responsável, não há depravação no ato sexual, apesar de poder
haver pecado. A busca pela depravação é simplesmente outra
maneira de recusar se envolver responsavelmente no encontro
sexual, enquanto saboreia a opacidade obscena do corpo.
A “descoberta” freudiana da sexualidade infantil não tem ne-
nhuma relevância real para análise dada a respeito da pedofilia.

404
capítulo 10 - perversão

É verdade que as crianças sentem impulsos sexuais, e ligam es-


ses impulsos a este ou àquele objeto de afeição. Mas a emoção
resultante não pode ter a estrutura intencional do desejo. Uma
criança pode ser sexualmente excitada por um adulto, e pode
obter prazer sexual. Mas o resultado não vai ser o desejo pelo
adulto, nem vai expressar conhecimento, ou mesmo consenti-
mento, em relação ao desejo do adulto. O sentimento da criança
pode, no decorrer do tempo, se transformar em desejo com seu
amadurecimento enquanto pessoa. Mas o desejo estará enve-
nenado pela memória de sua origem. Assim como o desejo de
Lara por Komarovsky em Dr. Jivago, ele será sentido como uma
compulsão, uma profanação, uma “infâmia”, e, portanto, como
um obstáculo à realização sexual.

Sadomasoquismo
Como já tratei no Capítulo 6, o sadomasoquismo deve ser
entendido como uma parte relativamente normal do cânone
das possibilidades sexuais, em que uma relação moral inteligí-
vel entre semelhantes encarna num ato sexual. No entanto, o
sadomasoquismo também tem a sua forma pervertida. Aqui, a
perversão não consiste tanto no fracasso de enfrentar o outro
como pessoa, mas na incapacidade de reconhecê-lo como tal.
Para compreender a natureza perversa do sadismo, é preciso
entender o caráter moral da escravidão, da qual é uma encar-
nação sexual.
Só os seres racionais podem ser escravizados, e apenas os
seres racionais escravizam. O cavalo doméstico é treinado em
hábitos não naturais de conformidade, mas, depois de tê-los ad-
quirido, ele existe normalmente dentro desses limites, não sendo
vítima de qualquer injustiça, nem objeto de nenhum abuso.396
A escravidão é uma solução específica para o problema do con-
flito humano. Ao conferir domínio estável a uma das partes e
subjugar a outra, oferece uma resposta única e inequívoca às

396 Cf. as descrições de Céline do comportamento dos cavalos na guerra: “os cavalos têm
muita sorte, pois apesar de suportarem a guerra assim como nós, não pedimos sua
anuência ou seu credo” [les chevaux ont bien de la chance eux, car s'ils subissent aussi
la guerre, comme nous, on ne leur demande pas d'y souscrire, d'avoir l'air d'y croire]
(Voyage au bout de la nuit, Paris, 1952, p. 45).

405
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

questões da escolha coletiva.397 Em uma famosa passagem, He-


gel defende que a escravidão é a primeira resolução de algo que
ele chamou de “luta de vida ou morte”398 com o outro. Esta luta
de vida ou morte resulta da necessidade do eu de se afirmar
diante dos outros, e de obrigá-los a reconhecer sua liberdade.
Sem esse reconhecimento, Hegel argumenta, o eu está essencial-
mente incompleto, não está “seguro de si” – não possui o senso
de sua realidade objetiva como um agente livre e estimável no
mundo público. Ao resolver a luta de vida ou morte median-
te uma prova de força, um lado ganha o poder de eliminar a
vida do outro. Mas matar o outro é destruir a possibilidade de
obrigar o reconhecimento buscado – é renegar precisamente a
segurança que era o objetivo de conflito. Por isso, o vencedor
deve se contentar em escravizar os vencidos. Ao confrontá-lo
diariamente com as demandas incontestáveis de sua vontade, o
senhor obriga o reconhecimento do escravo.
Este projeto, de acordo com Hegel, é essencialmente parado-
xal. Precisamente no ato da escravização, o senhor abandona
o poder de obter o que deseja. Pois o que ele deseja é não po-
der cru, mas liberdade, e num sentido específico e “positivo”’399
deste termo, segundo o qual a liberdade pressupõe certo tipo
de existência social. A liberdade, neste sentido, não é simples-
mente a capacidade de obter o que se deseja; é a capacidade de
valorizar o que se pode obter, e encontrar nisso a confirmação
da própria importância como um ser racional. No entanto, nem
toda ordem social pode conferir essa liberdade àqueles que per-
tencem a ela. Considere a “liberdade” gozada pelos habitantes
do Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, que podem ob-
ter tudo o que desejam, e que diferem de nós somente nisto: os
seus desejos, implantados neles por aqueles que buscam contro-
lá-los, não acrescentam nada à sua vida moral. Eles não conse-
guem dizer se é digno ou indigno, sábio ou tolo, possuí-los ou
realizá-los. Em tais desejos, o eu do agente não está envolvido:

397 Os “paradoxos da escolha coletiva” são muitos e distintos – abrangendo desde aqueles
que surgem da procura por uma “função de bem-estar social”.
398 Ver G. W. F. Hegel, The Phenomenology of Spirit (1807), tr. A. V. Miller, Oxford, 1977, B.
IV. A, seções 178-196.
399 Ver a distinção de Sir Isaiah Berlin entre as liberdades positiva e negativa em “Two
Concepts of Liberty”, em Four Essays on Liberty, Oxford, 1969.

406
capítulo 10 - perversão

satisfazê-los não é nem se expressar em um ato de autorrealiza-


ção, nem exercitar a liberdade que é própria da nossa natureza
racional. A percepção de si mesmo como presente em seus dese-
jos e confirmada através deles requer um tipo específico de con-
texto social – aquele em que um senso de validade pode formar
a base da autoestima.
A escravização do outro o torna incapaz de fornecer este
contexto e esta validade. Precisamente por ser obrigado a res-
peitar, o escravo deixa de respeitar. O senhor, faminto por re-
conhecimento, clama por isso tiranicamente; sem isso, ele tem
o poder, mas nenhuma autoridade, e a obediência servil do es-
cravo não é mais que uma lembrança irritante do vazio moral
encoberto pelo seu poder. Ao mesmo tempo, liberado da neces-
sidade de trabalhar para seu sustento, o senhor goza de outro
tipo de liberdade: liberdade da necessidade. Mas esta liberdade
é a liberdade do consumidor, que busca em vão por aquilo que
lhe garanta o valor de suas ações, e cuja gratificação sempre
desaparece no momento em que o alcança.
Para entender o problema do senhor, devemos entender tam-
bém o problema do escravo. Hegel argumenta que só podemos
fazer isso se primeiro entendermos dois componentes fundamen-
tais do mundo humano: o trabalho e o medo da morte.400 (Tive a
necessidade, no trecho seguinte e nos anteriores, de parafrasear
radicalmente.) É da natureza da atividade racional possuir uma
finalidade ou propósito, e procurar mudar o mundo de modo
a realizar esse propósito. O fim último de todo ser racional é a
construção do eu – de uma entidade pessoal reconhecível, que
floresce de acordo com sua própria natureza autônoma, em um
mundo que cria em parte. O meio para este fim é o trabalho,
no sentido mais amplo do termo: a transformação das matérias
-primas da realidade nos símbolos vivos das relações humanas.
Ao se envolver nessa atividade, o homem imprime no mundo,
em linguagem, cultura e até produtos materiais, as marcas de
sua própria vontade, e passa a ver a si mesmo refletido no mun-
do, um objeto de contemplação, e não meramente um sujeito
cuja existência é obscura para todos, incluindo ele mesmo. Só
neste processo de “impressão” que o homem pode alcançar a

400 Fenomenologia do Espírito.

407
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

autoconsciência, pois é apenas se tornando um objeto reconhe-


cível publicamente (um objeto para os outros) que um homem
se torna um objeto de conhecimento para si mesmo. Só então
ele pode começar a ver a sua própria existência como uma fonte
de valor, pela qual assume a responsabilidade de suas ações, e
que cria as condições em que ele lida com outras pessoas que
são livres como ele. (O “trabalho” é, no final das contas, o meio
para nossa encarnação.)
Não é meu objetivo neste trabalho dar crédito a essas idéias,
apesar de que muito do que eu disse, se verdadeiro, deve ser
suficiente para torná-las atraentes. Observe que há duas teses
distintas contidas lá: em primeiro lugar, a tese defendida no
Apêndice 1, de que a autoconsciência é criada por uma prática
pública compartilhada equivalente à língua, e pelas formas de
vida implícitas nisso. Em segundo lugar, a tese abordada em
vários pontos deste trabalho, de que a maior expressão da au-
toconsciência está na projeção de relações de responsabilidade
que ligam o eu presente ao eu futuro, e ambos ao mundo obje-
tivo que eles afetam e transformam. Segundo Hegel, o poder do
senhor não pode equivaler à liberdade, uma vez que não contém
nenhum envolvimento ativo com o mundo. O mestre tem ape-
nas uma noção diminuída de sua própria realidade como um
agente responsável. Ao escravo, por outro lado, não falta essa
noção. Pelo contrário, ele se torna cada vez mais ciente disso, e
ciente, também, do uso injusto que lhe priva do poder de fazer
por si mesmo o que ele tem os recursos mentais e físicos, tanto
para realizar quanto para valorizar, pelo outro. Por necessidade,
portanto, o escravo deve passar a se ressentir de sua posição,
enquanto o mestre deve deixar de encontrar valor no domínio
que tanto gosta. O primeiro adquire o desejo de derrubar o po-
der que o oprime; o segundo perde a vontade de mantê-lo. Sua
relação contém as sementes de seu próprio colapso. E, conforme
se desenvolve, a contradição interna gradualmente explode sua
relação instável ​​em pedaços, colocando o escravo no lugar do
mestre, e o mestre no do escravo. Assim, precisamente pelo tra-
balho que lhe é exigido, o escravo alcança a capacidade para a
liberdade interior; e pelo próprio poder que ele exerce, o mestre
perde todo o senso de valor e, com isso, a liberdade interior que
é concedida ao escravo. O escravo encarna a si mesmo, enquan-
to o mestre torna-se sujeito ao seu corpo.
408
capítulo 10 - perversão

O resultado dessa “dialética” – este vai e vem de poder entre


o senhor e o escravo – é, de acordo com Hegel, a eventual “su-
peração” da contradição que os une. A relação de escravidão
transcende a uma relação entre iguais, em que os parceiros dei-
xam de tratar uns aos outros como meios, e começam a se tratar
como fins em si mesmos. Então, por fim, no surgimento de uma
relação “ética”, a contradição é resolvida. Cada um agora tem
plena liberdade – o poder de exercê-la, e o reconhecimento so-
cial que faz seu exercício valer a pena. O “reconhecimento” que
levou ao conflito original exige apenas esta resolução: é isto – o
reconhecimento da autonomia pessoal e dos direitos individuais
do outro – que confere verdadeiro reconhecimento ao que foi
buscado. Assim, Hegel defende a tese de que a verdadeira liber-
dade e a verdadeira realização exigem obediência à lei moral e,
em particular, ao axioma fundamental em que a moralidade é
fundada – o “respeito pelas pessoas” kantiano.
O argumento de Hegel é expresso sob a forma quase-para-
bólica da “dialética”. Mas sua força é inegável. Em todas as
relações humanas, parece haver tanto um elemento de confli-
to – um desejo de obrigar o outro a dar o que se quer – e uma
compulsão para o acordo, para o reconhecimento mútuo de que
somente o que é dado pode ser genuinamente recebido. Todas
as relações que negam a realidade ética do contato humano
negam também o valor que é desejado nele, e constituem um
afastamento da existência verdadeiramente pessoal. Todas essas
relações mostram uma diminuição na responsabilidade pessoal,
e na existência pessoal, daqueles que se dedicam a elas.
É, portanto, parte da nossa natureza como pessoas que nos-
sas relações para com o outro devam tender naturalmente no
sentido que Hegel indica – no sentido do respeito mútuo, em
que cada um deseja que o outro mude somente através de seu
próprio consentimento, e em que a troca de razões tenha pre-
cedência sobre o uso de força. Podemos agora transferir esse
pensamento para o caso do sadomasoquismo. Aqui também
há um paradoxo intrínseco na posição do senhor (do sádi-
co). Ele deseja possuir o outro, mas também ser reconhecido
pelo outro como uma pessoa e aceito como tal. Sem esse reco-
nhecimento – sem a percepção de si mesmo como um objeto
na perspectiva do outro – os estratagemas de seu desejo são

409
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

autodestrutivos, e ele poderia muito bem se resolver com um


boneco ou um cadáver. Para se tornar algo para o outro, e para
forçar o reconhecimento que não foi concedido livremente, ele
recorre ao sofrimento. Através da dor que causa, ele passa a
contar na perspectiva do outro. Esta estratégia tem, creio eu,
tanto um desenvolvimento normal quanto um anormal. No
normal, o aspecto da dor infligida e suportada incorpora-se no
jogo amoroso dos parceiros, transcendendo por isso. Ele ganha
uma força simbólica no tumulto físico do ato sexual, e o maso-
quista, por querer essa dor, redime o sádico da culpa de infringi
-la. Ambos podem ter prazer no desejo do outro sem reduzir o
outro a um mero instrumento do desejo. Neste curso “normal”,
o impulso sadomasoquista é incorporado em uma relação inter-
pessoal, e então transcendido na afirmação do respeito mútuo.
Na forma pervertida de sadomasoquismo, no entanto, o ele-
mento da escravidão permanece sem transcender. O ato sexual
expressa uma relação perene de escravidão moral. A forma ex-
trema de sadismo é indiferente ao consentimento do outro, e
vê o encontro sexual como um consentimento completamente
externo, reduzindo o outro a um estado de servidão em que
sua existência como um ser livre é sistematicamente negada.
Realmente, esta negação é uma parte essencial do objetivo do
sádico. Tanto o sádico como sua vítima estão unidos em um
relacionamento que é essencialmente “pré-pessoal”, da mesma
forma que o senhor e o escravo hegelianos. Por isso, o desejo é
vivido como uma saída da esfera interpessoal para outro campo
muito mais sombrio. O sadismo é pervertido na medida em que
visa abolir o objeto do desejo pessoal do ato sexual e substituí
-lo por um manequim condescendente. A vítima é apagada da
intencionalidade do sádico e substituída por uma fantasia con-
cebida pelo próprio sádico. O sádico, como o necrófilo, o pedó-
filo e o estuprador, só pode aceitar o outro nos termos ditados
por ele mesmo. Em um sentido significativo, ele cria o outro no
ato sexual, escrevendo sobre a tabula rasa de seu corpo as linhas
de um drama secreto. O corpo do outro é o meio para realizar
uma cerimônia privada. Através da dor, o sádico procura ani-
mar este corpo, tornando-o obediente à fantasia com a qual ele
o “anima”. Mas a dor somente pode produzir a recusa bruta em
reconhecer o direito do tirano, o olhar nulo de ressentimento,

410
capítulo 10 - perversão

que Sartre percebe nos olhos mortos do Natal de Faulkner.401


Assim, o projeto do sadismo, ao negar o outro, nega a si mes-
mo, e no final é deixado sem nada, apenas com a contemplação
obscena do triunfo do corpo.
Observações semelhantes aplicam-se ao masoquismo, que,
como o sadismo, pode existir de forma pervertida ou não.
Freud descreve o masoquismo como o “sadismo voltado contra
si mesmo”.402 A descrição é plausível, embora talvez não mais
plausível do que a descrição do sadismo como o “masoquismo
voltado contra si mesmo”. O desejo de escravizar o corpo do
outro pode ser igualado pelo desejo do outro de ver seu próprio
corpo exatamente nesses termos. De igual modo, o desejo de ser
visto como o causador da dor pode ser acompanhado pelo dese-
jo de ver o algoz como “além da moralidade”, uma criatura nas
garras de um frenesi destrutivo, uma espécie de máquina puni-
tiva, como a criada pelo oficial na Colônia Penal de Kafka. Isso
explica o caráter dominante das obscenidades do sadomaso-
quismo, em que as partes do corpo, como se fossem arrancadas
pela dor, tornam-se pedaços isolados de carne, acompanhados
por um deleite terno pela sensação dolorosa neles contido. H.
S. Ashbee, o colecionador vitoriano de curiosidades pornográ-
ficas, cita uma interessante descrição de Vênus Escola Mistress:
A máquina representada no frontispício a este trabalho foi
inventada para a Sra. Berkley açoitar cavalheiros na primavera de
1828. Ela é passível de ser aberta a uma extensão considerável,
movendo o corpo a qualquer ângulo desejável. Há uma impressão
nas memórias da Sra. Berkley representando um homem nessa
máquina completamente nu. Uma mulher está sentada em uma
cadeira exatamente sob ela, com o peito, barriga e pelos expostos:
ela está manipulando seu embolon, enquanto a Sra. Berkley está
chicoteando seu traseiro.403

A psicologia detalhada do sadomasoquismo é, naturalmen-


te, muito mais complicada do que eu pode mostrar aqui. Há
freqüentemente um aspecto de punição: a punição do sádico

401 J.P. Sartre, Being and Nothingness, tr. Hazel E. Barnes, Nova York, 1956, p. 406.
402 S. Freud, “Instincts and their Vicissitudes”, 1915, e “The Economic Problem of
Masochism”, 1924, em Collected Papers, tr. J. Riviere, Nova York e Londres, 1924-50,
vols. II e IV.
403 Fryer, Forbidden Books of the Victorians, p. 24.

411
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ao outro por não retribuir seu desejo ou por não representar


com sinceridade o papel que o sádico criou para ele; o desejo
do masoquista pela punição, que lhe alivia a carga de um desejo
condenável. O masoquista pode realmente receber os golpes do
chicote como uma espécie de “permissão” – uma garantia de
que ele está pagando aqui e agora por sua transgressão sexual,
e que as reivindicações da consciência foram satisfeitas. Mais
uma vez, Ashbee fornece uma útil ilustração:
O medo e a vergonha haviam desaparecido: era como se eu
estivesse rendendo minha pessoa aos abraços de um homem a quem
eu amava tanto que eu antecipava seus desejos mais selvagens. Mas
nenhum homem estava em meus pensamentos; Martinet era o objeto
de minha adoração, e eu senti através da vara que eu compartilhava
suas paixões... Quando as varas mudaram, eu continuei a pular e
gritar, pois ela gostava disso, mas – acreditem ou não – eu via minha
nudez com os olhos dela, e exultava com a alegria lasciva que o meu
açoite da minha carne proporcionava a ela.404

No entanto, tal masoquismo – completamente saturado por


uma idéia moral – está longe de ser obviamente pervertido. A
menina tem pensamentos lascivos, mas eles não são pensamen-
tos obscenos: pelo contrário, eles fazem parte de uma doação
erótica sincera de si mesma para o outro. Nesses exemplos, ve-
mos a reciprocidade que pode surgir entre sádico e masoquista.
A concentração não é no corpo e seu sofrimento, mas na idéia
moral do castigo. Esse sadomasoquismo é o caso extremo do
sadomasoquismo “normal” – o “beliscão amoroso” – que des-
crevi no Capítulo 6.
Não faltam ao sadomasoquismo pervertido intimidades e pe-
tits soins. Mas são intimidades e cuidados de desprezo e ódio.
A pessoa que realmente deseja o sofrimento do outro, e para
quem isso não é apenas um jogo erótico, está em guerra com a
verdade que percebe nos olhos de sua vítima, a verdade de que
o outro não vai – e não pode – ser refeito de acordo com os
desejos de seu algoz. O verdadeiro sádico procura se apropriar
da carne do outro, recriá-lo através da dor, esculpir de sua ma-
téria complacente o objeto perfeito de posse. E tal atitude – que
transgride as leis mais fundamentais da moralidade – não pode

404 Ibid., p. 178.

412
capítulo 10 - perversão

ter fim. Como o sadismo retratado nos romances de Sade, leva


irresistivelmente ao assassinato, somente sendo contido por ti-
midez ou força.
As formas “benignas” de sadomasoquismo, assim como as
formas transgressivas, mostram o funcionamento do paradoxo
hegeliano – o paradoxo da servidão. Elas também mostram, po-
rém, que esse paradoxo é uma característica normal da condi-
ção humana. Qualquer relação humana pode entrar em colapso
em uma relação de servidão, e assim perder a dimensão ética
através da qual ela pode ser resolvida. Comentando sobre o ar-
gumento de Hegel, Robert Solomon descreve o caso normal de
ansiedade entre aqueles que amam:
Cada pessoa gostaria de ter certeza da aprovação da outra, mas
ter essa certeza do outro já é perder a noção do outro como um juiz
independente. Eu quero que você diga “eu te amo”, mas a última
coisa que eu gostaria de fazer é pedir isso a você, e muito menos
forçá-lo a tanto. Eu quero que você diga livremente, e não porque eu
quero ou espero que você faça. Mas então, você sabe que eu quero
que você diga isso, e eu sei que você sabe que eu quero que você diga
isso. Então você diz; e eu acabo não acreditando em você. Você disse
isso porque queria? Ou para não ferir meus sentimentos? E por isso
fico com raiva, exigente, e sua reação é, com razão, ficar irritado ou
defensivo, até que eu finalmente provoco exatamente o que temia o
tempo todo, uma explosão de abuso. Mas então eu fico realmente
magoado; você começa a se desculpar. Você busca o perdão; eu
hesito. Você não tem certeza se eu vou dizer ou não: eu não tenho
certeza se você é sincero ou não, mas digo: “Eu te perdoo”. Você
quer saber se eu realmente estou perdoando você ou se apenas estou
tentando não ferir seus sentimentos, e, por isso, você ficar ansioso,
irritado, e assim por diante.405

Esse resumo familiar de impasses familiares serve para nos


lembrar da onipresença da transição hegeliana em nossas vi-
das – a transição da relação ética à relação de servidão, e do
cativeiro de volta à liberdade mútua. Sempre neste limite, en-
caramos os dois lados, e, tanto em nossa vida sexual como em
nossos encontros do dia-a-dia, podemos pender em qualquer
direção. O que chamei de forma “normal” de sadomasoquismo
é uma estratégia destinada a corrigir um desequilíbrio perigoso,

405 Robert Solomon, In the Spirit of Hegel, Oxford, 1983, p. 448-9.

413
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

compreender a ameaça da servidão e conquistá-la por meio da


representação. A forma pervertida, no entanto, envolve o co-
lapso da relação pessoal e a incorporação do ato sexual em um
exercício de aniquilação mútua.

Homossexualidade
Uma resposta moderna comum à sugestão de que a conduta
homossexual é pervertida é rejeitá-la como parte de uma ideo-
logia extinta. O desejo homossexual, diz-se, assim como o dese-
jo heterossexual, pode existir tanto da forma pervertido como
da normal, e se for pervertido, o será nas mesmas circunstâncias
e pelas mesmas razões que o desejo heterossexual. Pois a única
diferença reside no fato de que, enquanto no amor heterossexu-
al os parceiros são de sexos diferentes, no amor homossexual
eles são do mesmo sexo. E como é possível que isso tenha tanta
importância, sendo que o padrão de normalidade não deriva de
nossa natureza enquanto animais, mas de nossa natureza como
pessoas?
No entanto, apesar de essa conclusão ser plausível, é neces-
sário reconsiderar o argumento que leva a ela. Pois este argu-
mento confunde sexo e gênero. A homossexualidade vem sendo
considerada um fenômeno distinto porque as pessoas têm re-
conhecido e considerado moralmente significativa a disposição
de desejar aqueles que são do mesmo sexo. O masculino e o
feminino denotam dois tipos distintos de pessoa, e a experiência
do gênero desempenha um papel significativo na determinação
do conteúdo intencional do desejo. O desejo homossexual pode
reter a intencionalidade interpessoal que é normal para nós;
mas ainda pode haver uma diferença moral entre as condutas
homossexual e heterossexual. A posição correta, creio eu, é esta:
talvez a homossexualidade não seja, por si só, uma perversão,
embora possa existir de formas pervertidas. Mas é significativa-
mente diferente da heterossexualidade, de uma forma que expli-
ca, em parte – mesmo que isso não justifique – o julgamento tra-
dicional da homossexualidade como uma perversão. Digo isto
com grande incerteza, e sabendo que pode ser recebido como
um ultraje. Meu objetivo, no entanto, não é condenar, mas elu-
cidar – e se a verdade é desconfortável, esta não será a única
ocasião de ser assim.
414
capítulo 10 - perversão

O ensino tradicional católico romano condena a homossexu-


alidade e a declara pervertida, pelo menos em parte por causa de
sua esterilidade procriadora. Esta reversão a uma idéia “bioló-
gica” de perversão é, como já argumentei, totalmente insatisfa-
tória, mesmo que mostre uma diferença de caráter moral entre
as relações sexuais do homem e da mulher e as relações sexuais
entre dois homens ou duas mulheres. A referência à procriação
é melhor entendida como uma espécie de atalho para uma con-
cepção complexa, e parcialmente institucional, do compromisso
humano, em que o ato sexual ganha seu significado moral pelo
seu papel na formação de laços conjugais e filiais. É fácil encon-
trar uma explicação nestes termos para a hostilidade em rela-
ção à conduta homossexual. O sociobiólogo pode argumentar
(mais uma vez, com o apoio vívido de Schopenhauer)406 que os
atos homossexuais são condenados por causa da ameaça que
representam para a sobrevivência dos genes que os compelem.
Mas o “porque” aqui é meramente causal, e explicar não é ne-
cessariamente justificar. A questão é se podemos distinguir o
conteúdo intencional do desejo homossexual do heterossexual,
de modo a justificar o juízo de que o primeiro tem um caráter
moral diferente, e talvez também justificar o juízo de que di-
verge da normalidade das relações interpessoais em direcção à
obscenidade.
No último capítulo, argumentei que a divisão entre os se-
xos tem – quando interpretada sob o aspecto do gênero – certa
qualidade misteriosa. Considera-se que o outro sexo tem um
“domínio moral”: uma esfera de ações, emoções e respostas que
lhe são peculiares, e que o define como um “tipo moral”. E no
ato sexual, os sexos se confrontam através de uma experiência
que é opaca ao seu questionamento, envolvendo as percepções
e estratagemas que são indissociáveis da​​ identidade de gênero
do sujeito que as possui. Ao despertar o sentimento sexual do
outro, você assume a responsabilidade por uma transformação

406 A. Schopenhauer, The World as Will and Representation, tr. E. J. F. Payne, Indian
Hills, Colorado, 1958, vol. II, pp. 565-6. Uma reviravolta interessante ao argumento
do sociobiólogo foi apresentada por Michael Levin, que defende que a anormalidade
genética do ato homossexual também deve ser uma fonte de infelicidade – mesmo
quando não reconhecida como tal – assim como nosso fracasso em fazer exercícios é
uma fonte de infelicidade: “Why Homosexuality is Abnormal”, The Monist, 1984.

415
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

cujo funcionamento interno é, em um sentido importante, in-


cognoscível para você. O seu próprio gênero, que é parte de seu
hábito de autoidentificação, é vivido de maneira completamente
familiar para você. Ele tem uma presença em primeira-pessoa em
você, e seu funcionamento interno é apropriado por sua pers-
pectiva em primeira-pessoa. Você age, sente e responde como
uma mulher ou como um homem. Esta apropriação do gênero
é imposta a você mais fortemente no ato sexual e no contexto
circundante do desejo. Justamente quando mais compelido a
ver a si mesmo como uma mulher ou como um homem, você
é confrontado com o mistério do outro, que o encara do outro
lado de um fosso moral intransponível. O que você está desper-
tando no outro é algo com que você não tem familiaridade al-
guma: você o está submetendo a uma força de que você não tem
consciência de primeira-pessoa, e que ainda forma e transforma
as responsabilidades do outro, com a mesma energia imperiosa
que o desejo que rege você. O respeito pelo outro requer uma
delicadeza peculiar de negociação: cada um tenta expressar em
suas palavras e gestos sua preparação para assumir a responsa-
bilidade pelos efeitos dessa coisa desconhecida – ou então ele
continuaria a ser, pelo menos em parte, indiferente à liberdade
do outro, e indiferente às responsabilidades de um laço pessoal.
A observação foi feita em termos diretos por Michelet, em seu
elogio exagerado da virtude feminina:
...a dupla religiosa [o homem e a mulher], em que cada um
desempenha um papel diferente e extremamente delicado, cada um
temendo ferir o outro. Pois eles não têm conhecimento comum do
quanto eles realmente estão de acordo um com o outro. Daí esse
sentimento trêmulo, essas hesitações cheias de ansiedades, aquele
debate suave entre duas almas que, na realidade, são apenas uma.407

A abertura do eu para o mistério do outro gênero, tomando


a responsabilidade por uma experiência que não compreende
completamente, é uma característica da maturidade sexual, e
um dos motivos fundamentais que levam ao compromisso. Esta
exposição a algo desconhecido só pode se resolver, finalmente,
em um voto mútuo. Apenas em um voto cria-se a confiança que
protege os participantes da ameaça da traição. Sem a experi-

407 Jules Michelet, La Femme (1859), ed. Thérèsa Moreau, Paris, 1981, p. 286.

416
capítulo 10 - perversão

ência fundamental da alteridade do parceiro sexual, um com-


ponente importante no amor erótico está, portanto, em perigo.
Para o homossexual, que conhece intimamente em si mesmo a
generalidade que encontra no outro, pode haver uma sensação
diminuída de risco. A saída do eu pode ser menos aventureira,
e a ajuda do outro menos necessária. É aberto ao homossexual
tornar-se menos vulnerável e​​ a oferecer menos apoio, justamen-
te porque não o necessita.
Eu não estou sugerindo que tal observação é universalmente
válida. No entanto, pode haver uma ausência significativa de
parceria homossexual desse aspecto do amor erótico que pode
ser resumido como a “força do destino” – a sensação de que se
está sendo obrigado a colocar todo o ser em risco. Um socio-
biólogo naturalmente vai dizer que isto não é nada mais (nem
menos) do que o reflexo na consciência do desejo de procria-
ção – da lei da “vida da espécie”, que submete nossas escolhas
individuais às necessidades imperiosas de nossos genes. (E aí
também está a verdade parcial da doutrina católica.) Mas isso
não altera o fato de que a compreensão intencional não pode
ignorar o elemento de mistério, e de perigo, que envolve a união
heterossexual.
Ao mesmo tempo, deve-se reconhecer que a homossexuali-
dade feminina e a masculina são significativamente diferentes,
assim como o desejo masculino e feminino são diferentes. A
necessidade de uma parceria duradoura tem precedência nos
sentimentos de uma mulher sobre o imediatismo da excitação
sexual (ou melhor, a excitação sexual tende a ser inseparável
da sensação de dependência), enquanto o impulso masculino
para novos encontros pode levar à promiscuidade em uma es-
cala notável. A natureza “esvoaçante” da pederastia grega é lin-
damente transmitida pelos poemas inclusos na Musa Puerilis
de Estratão, e em particular nos de Meleagro, que lamenta que
seus olhos (paidōn kunes – “cães de caça de meninos”) traem
repetidamente sua alma rumo à armadilha de Afrodite. Em sua
descrição incomparável do encontro sexual entre M. de Char-
lus e Jupien, Proust mostra a realidade dramática de um dese-
jo que não conhece restrição interna, estando apenas sujeito a
uma imensa interdição externa. Os dois parceiros reconhecem
as necessidades um do outro imediatamente, observam apenas

417
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

a etiqueta necessária para esconder o seu desejo mútuo, reali-


zar sua união, e se separarem, tudo enquanto se tratavam com
indiferença, desprezo ou, na melhor das hipóteses (no caso de
Jupien), curiosidade (Sodoma e Gomorra).408 A possibilidade de
tal encontro é, creio eu, reforçada pelo sentimento de que ne-
nhuma barreira divide um do sexo do outro, de que o desejo
do outro já é conhecido intimamente e está próximo da reali-
zação quanto o próprio. Isto, combinado com a predação natu-
ral do homem, constitui o perigo inerente à homossexualidade
masculina, e é uma das principais razões para a sua interdição
tradicional. Também explica em parte a atitude grega em rela-
ção à homossexualidade masculina. Conforme ilustrado pelas
ânforas, o componente fálico é mais proeminente no apelo do
erōmenos, um fato muito apreciado por Sir Kenneth Dover em
seu livro trivial sobre o assunto.409 E em um poema, Meleagro se
delicia com a visão de cinco meninos servindo a um único pênis
latejante (n.º 95 de Estratão).
O caso da homossexualidade feminina é notavelmente di-
ferente – pelo menos na medida em que foi registrado com
sensibilidade. Não há a mesma ênfase nos órgãos sexuais e no
momento da excitação sexual; ao contrário, há uma sensação
extremamente comovente, e muitas vezes de desamparo, de es-
tar à mercê do outro. A lésbica sabe que ela deseja alguém que
tipicamente não fará esses avanços que são característicos de
um homem, mesmo que ela queira; e ela nem pode fazer esses
avanços sem comprometer a identidade de gênero que (como
ela quer acreditar) é fundamental à sua própria atração. Ela
só pode esperar, e desejar, e rezar para os deuses com o fervor
conturbado apreendido por Safo em seu hino a Afrodite: poiki-
lothron athanat’ Aphrodita.
Comparar a passagem de Proust com o poema de Safo é reu-
nir obras tão díspares em estilo e significado a ponto de lançar
dúvidas sobre qualquer conclusão que pode ser tirada dessa
comparação. No entanto, as duas obras contêm, da forma mais
intensa possível, a destilação de duas experiências complemen-
tares. Na primeira, o desejo sexual é revelado como uma força

408 Pléiade ed., Paris, 1954, vol. 2, p. 601-13.


409 Sir Kenneth Dover, Greek Homossexuality, Londres, 1978.

418
capítulo 10 - perversão

imperativa, suprimido apenas por barreiras sociais, avançando


rapidamente rumo à sua satisfação assim que essas barreiras se-
jam quebradas. Na outra, uma hesitação interior, uma sensação
de que toda a personalidade, arriscada no desejo, leva ao apelo
por intervenção divina, que vai semear as sementes do amor. Se
há alguma verdade na atitude tradicional acerca da homosse-
xualidade, é parcialmente a seguinte: o impulso promíscuo do
primeiro desses desejos é neutralizado e volta-se contra si mes-
mo quando é posto em contato com o segundo. E as hesitações
internas que envenenam o segundo são eliminadas pelo contato
com a insistência do primeiro. Pensamentos como esse têm sido
a ortodoxia através dos tempos: se verdadeiros, sinalizam um
elemento importante no desejo heterossexual, que é a sua “com-
plementaridade”. O desejo dirigido para o outro gênero não
provoca seu simulacro, mas seu complemento. O desejo mascu-
lino evoca a lealdade que neutraliza seu impulso vagabundo; o
desejo feminino evoca o desejo de conquistar que supera suas
hesitações. Muitas vezes, é claro, esta complementaridade pode
ser recriada, seja momentaneamente, na representação, ou per-
manentemente, entre membros do mesmo sexo. (Para sinalizar
isso, Genet descreve o seu sofrimento invertido no gênero fe-
minino e usa o gênero masculino para os rudes criminosos que
excitam sua lealdade autoindulgente.)
Enfatizei a natureza parcialmente artificial do desejo, e defen-
di que as distinções de gênero, embora necessárias, são também
construídas socialmente. A construção destas distinções não é,
porém, arbitrária, mas faz parte de uma tentativa de compre-
ender a distinção biológica entre os sexos, pois isso afeta e é
revelado no comportamento social. É impossível estabelecer, via
argumento filosófico, que as distinções de gênero que conhece-
mos são também inevitáveis. É impossível descartar a possibili-
dade de que qualquer recurso “masculino” do desejo e qualquer
recurso “feminino” possam desaparecer sem perder a tendência
fundamental para a união com o outro sexo. Por isso, sempre
será possível argumentar que a “complementaridade” a que
acabo de me referir é um fenômeno arbitrário ou desvanecente,
e que, conforme desaparece, o impulso do desejo heterossexual
se aproximará cada vez mais daquele do desejo homossexual.
Mas se isso acontecer, outra mudança também deve acontecer
junto com ela: “o declínio no sentimento do sexo”. O fato da
419
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

diferença sexual torna-se cada vez menos importante conforme


o desejo perambula livremente pelos dois tipos sexuais. A idéia
da indistinguibilidade moral dos desejos homossexual e hete-
rossexual é possível graças à evaporação gradual das distinções
de gênero, e à construção de uma nova ordem de desejo, em que
o que se busca no desejo não é o complemento, mas o simulacro
do sentimento presente.
Há um argumento cristão tradicional contra a homossexu-
alidade que não a condena pelo insulto que ele oferece à fe-
cundidade, mas justamente pela violação de um princípio de
“complementaridade”. Para esta visão, a “impureza” das rela-
ções homossexuais está (de acordo com um eminente teólogo
protestante):
Na recusa das diferenças e no triunfo da não-diferenciação, ou seja,
na desordem. Agora, a diferença sexual (...) coroa a ação criadora
de Deus: a criação do mundo culmina na criação do homem como
homem-e-mulher. O casal, assim, experimenta em sua carne a ordem
de diferenciação que estrutura o mundo. (...) [Por isso] a sexualidade
deve ser vivida pelo homem e pela mulher como o próprio significado
de toda diferenciação, isto é, reconhecida como uma convocação
para um relacionamento que é organizado e criativo, como um
chamado às armas contra a ameaça constante de desordem e caos,
cuja forma mais insidiosa é a confusão dos sexos.410

O relato é bem liberal com metáforas, e implica uma meta-


física da criação que não é de maneira alguma fácil de aceitar.
Pode-se objetar que legitimamente a “complementaridade” dos
dois sexos não é um reflexo de alguma ordem natural subja-
cente, mas um artefato humano cuidadosamente construído.
As pessoas têm percebido uma ameaça na aceitação fácil dos
costumes homossexuais, mas não ao homossexual em si, e sim
para as instituições da união heterossexual, que foram erigidas
sobre compromissos sutis e oposições cuidadosamente reforça-
das. Mesmo que essa ameaça exista, no entanto, ela não oferece
nenhuma base para o julgamento de que o desejo homossexual
seja pervertido. Por mais que se queira extrair alguma implica-
ção moral dela, não podemos expressá-la através de uma con-
cepção tão simples.

410 Eric Fuchs, Sexual Desire and Love, tr. M. Daigle, Cambridge e Nova York, 1983
(original: Le Désir et la tendresse, Genova, 1979), p. 216.

420
capítulo 10 - perversão

Na melhor das hipóteses, o argumento da complementari-


dade acusa a presença de uma falha no conteúdo do desejo ho-
mossexual – um desequilíbrio que, se deixado sem correção,
ameaça o curso do amor. A homossexualidade só pode ser con-
siderada pervertida se o ato homossexual for intrinsecamente
despersonalizado ou intrinsecamente obsceno.
É inegável que muitas pessoas vêem os atos homossexuais
dessa maneira. O que os horroriza não é tanto o destino des-
se desejo (seu afastamento de um ideal de complementaridade)
quanto a qualidade carnal do ato que o satisfaz: o contato exci-
tado entre duas mulheres ou dois homens. Além disso, esta per-
cepção não está centrada em nenhum ato particular – sodomia,
por exemplo – em que as partes do corpo são usadas de formas
não usuais.411 O beijo apaixonado entre homens é o suficiente
para provocá-la: a obscenidade é vista na excitação da carne
por seu próprio tipo sexual.
Mas a homossexualidade é realmente pervertida do mesmo
modo que a bestialidade e necrofilia? A bestialidade e necrofilia
são objetos genuínos da percepção obscena: não perceber esses
atos como obscenos é interpretá-los mal. É ter uma experiência
aberrante, tanto da encarnação humana quanto do corpo em
si – uma experiência em que a tensão entre eles não é mais re-
conhecida. (Essa tensão não é reconhecida pela ciência natural
mais plausível do homem; por isso, a pessoa que se engana a
respeito da sexualidade humana freqüentemente se gaba de que
a sua é a visão verdadeiramente científica: ele até pode estar
certo em relação a isso, mas completamente errado em se gabar
disso.)
Existe alguma coisa no ato homossexual que seja o objeto
genuíno da percepção obscena? Uma resposta positiva a essa
pergunta deve se basear, creio eu, na estranheza do outro gêne-
ro – no fato de que a excitação heterossexual é a excitação por
algo totalmente diferente de si mesmo, e enquanto carne. No

411 Michael Levin, “Why Homosexuality is Abnormal”, tenta defender a “anormalidade”


do ato homossexual sugerindo que os participantes estão usando seus órgãos sexuais
para fins que não deveriam ter – e oferece uma teoria de funcionalidade para explicar
sua posição. O resultado não só é absurdo por si só, mas também profundamente
enganador, dando a entender que o caráter moral da sodomia homossexual não difere
em nada da heterossexual.

421
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ato heterossexual, pode-se dizer, eu saio do meu corpo rumo ao


outro, cuja carne é desconhecida para mim; enquanto no ato
homossexual eu permaneço bloqueado dentro do meu corpo,
narcisicamente contemplando no outro uma excitação que é o
espelho da minha. Essa é apenas uma sugestão, e certamente
está longe de ser uma prova. No entanto, ela se conecta com
um argumento-chave do capítulo anterior: o argumento de que
as distinções de gênero desempenham um papel constitutivo no
ato sexual e fornecem parte da “descrição segundo a qual” o ato
é realizado. Não é possível supor que a revisão radical da per-
cepção de gênero exigida pelo ato homossexual vai deixar o ato
inalterado e, em particular, que vai deixar inalterada a relação
percebida dos participantes com seus corpos. Igualmente, não é
possível supor o oposto, e em particular, que a percepção alte-
rada envolve uma transição no sentido da obscenidade. Claro,
a percepção obscena de atos homossexuais tem sido uma parte
importante da nossa cultura: mas isso nem a justifica, nem a
condena. A verdadeira questão é: o que rege esta percepção? E
é uma questão que desafia uma resposta simples.

Incesto
Há muitas explicações psicológicas para o que se tornou co-
nhecido como o “tabu do incesto”. Curiosamente, no entanto,
as duas mais populares – a da psicologia freudiana e a do socio-
biólogo – estão em plena contradição. Para o sociobiólogo, os
propósitos da seleção sexual só podem ser cumpridos em uma
espécie que olha além do seu “círculo genético” em busca de
um parceiro para acasalar. Há um valor de sobrevivência ligado
à aversão ao incesto; no longo prazo, portanto, ele irá emergir
como um traço psicológico dominante. Para o freudiano, no en-
tanto, o tabu do incesto, longe de expressar uma aversão inata,
é uma reação adquirida a um desejo inato. O tabu é a interio-
rização de um édito parental, e mascara anseios proibidos que
– na vida sexual do adulto maduro – encontram expressão em
uma forma purificada, quando o pai ou a mãe são recriados na
figura de um substituto permitido. A teoria de Freud é prefigu-
rada por Paley, que – em uma das poucas tentativas existentes
de dar uma base filosófica para a moralidade sexual comum –

422
capítulo 10 - perversão

vê a proibição do incesto como uma precaução necessária con-


tra as más consequências de um desejo avassalador.412
Todas essas teorias não têm importância para nós. Devemos
novamente lembrar a distinção entre explicação e justificação,
e o poder do pensamento moral para romper não apenas as leis
sociais, mas também as biológicas. Se os parceiros se amam, e
realizam seu amor no ato sexual: o que, pergunta o moralista
romântico, pode estar errado? O ato de amor é uma questão de
responsabilidade individual; é-se responsável perante o parcei-
ro, e não aos seus genes. Então, onde está a culpa? E que justifi-
cativa poderia existir para condenar o incesto como perversão?
Uma mera convenção social – mesmo que apresentada como
uma lei da natureza – não é páreo para a força do amor. Como
é fácil, portanto, tomar o partido de Wotan contra a enfurecida
“lei moral” do incômodo Fricke:
O que de tão mal fez esse par
que a primavera uniu no amor?
A magia amorosa os encantou:
quem resistiria à força do amor?413

No entanto, devemos lembrar uma das características vitais


da situação do par a quem Wotan se refere. Eles haviam sido
separados à força na infância, e desde então experimentaram
grande infelicidade em sua relação com o mundo “normal” – o
mundo das convenções sociais, que é regido pela lei de Fricke.
Biologicamente, eles são de fato irmão e irmã, mas não social-
mente. Na verdade, eles não sabem a princípio que são parentes
de sangue. No lugar do laço de fraternidade doméstico, eles têm
apenas o vínculo do “reconhecimento” mútuo. Suas circuns-
tâncias tornam inevitável que o seu reconhecimento acabe se
tornando um olhar de amor. No relance amoroso, uma pessoa
se submete ao seu destino como o sujeito da emoção erótica. A
relação moral de irmão e irmã foi destruída, e seus fragmentos
reconstruídos numa forma erótica. O resultado é um incesto so-
mente num sentido abstrato – um sentido que não tem qualquer
influência imediata sobre nossas intuições morais.

412 William Paley, Moral and Political Philosophy, 1785, livro III, parte III, cap. 5.
413 Was so schlimmes schuf das Paar, / das liebend einte der Lenz? / Der Minne Zauber
entzückte sie: / wer nüsst mir der Minne Macht?

423
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Por outro lado, devemos considerar um caso que tem todo o


caráter moral do incesto, sem qualquer risco para os genes das
pessoas envolvidas: o caso do enteado e o padrasto ou madras-
ta. Talvez a maior de todas as tragédias do amor erótico – Fedra
de Racine – dá testemunho do horror com que essa união pode
ser considerada. A própria Fedra não tem dúvida da correta
descrição de sua paixão:
Fui eu quem, sobre este filho casto e respeitoso,
Ousei lançar um olhar profano, incestuoso.414

E o que dá credibilidade a esta descrição é a reação de Hipó-


lito à paixão de sua madrasta, que o ofende e aterroriza, preci-
samente como a paixão de alguém a quem ele deve lealdade de
um tipo diferente e incompatível. Também não é apenas o vín-
culo de casamento entre Fedra e Teseu que cria esse sentimen-
to – mesmo que a paixão de Fedra fosse meramente adúltera.
Há uma qualidade moral adicional contida nela, em virtude da
relação familiar entre os parceiros. É a consciência dessa rela-
ção e seu significado que Hipólito expressa em sua vergonha.
Uma vergonha semelhante, superada e redobrada pelo desejo, é
a de Lara, no início de Doutor Jivago, que luta em vão contra
seus sentimentos por Komarovsky, o amante de sua mãe, cuja
sedução parece quase uma intrusão tão grande na inocência do-
méstica quanto à intrusão de Fedra nas emoções honrosas de
Hipólito.
A característica importante desses casos também está presen-
te no caso normal do “verdadeiro” incesto: a violação de um
laço doméstico. Nesta violação, a natureza moral do incesto
é revelada. Quando um pai (ou padrasto) seduz a jovem que
cresceu sob seus cuidados, ele realmente viola a lei de Fricke: a
lei do lar. Ele destrói a relação filial existente e sobrepõe outra
sobre suas ruínas, que é incompatível com ela. Em outras pa-
lavras, ele viola, pelo seu desejo, as responsabilidades que são
essenciais ao amor dos pais.
A ameaça representada pelo incesto é uma ameaça para os
membros da família e também para a própria concepção do

414 C’est moi qui, sur ce fils chaste et respectueux,


Osai jeter un oeil profane, incestueux – NT.

424
capítulo 10 - perversão

agregado familiar como um lugar de cooperação aberta entre


pessoas cujas relações são determinadas pelo simples fato de
sua coexistência. É um gesto de rejeição aos penates, e a dissolu-
ção efetiva do vínculo que mantém a família unida: o vínculo de
piedade. As obrigações do sentimento erótico surgem do exercí-
cio da escolha – da “escolha do amor” pelo qual nos unimos ao
objeto de desejo. Elas não são laços de piedade, mas de obriga-
ção pessoal. Os laços de piedade que as substituem na família
têm como característica central o fato de que serem escolhidos.
Embora talvez você tenha escolhido ter um filho, sua obrigação
para com ele não foi escolhida no decorrer de suas relações.
Na verdade, precedia a existência dele; não foi mais escolhido
do que as obrigações recíprocas dele a você, que o carregou e
alimentou. Este não é o lugar para explorar as peculiaridades
lógicas e morais do vínculo de piedade. Basta dizer que a única
filosofia moderna que se dirigiu com alguma seriedade à impor-
tância da família no desenvolvimento do animal político – a de
Hegel415 – dá evidência esmagadora para pensar que a vida pri-
vada do indivíduo deve ser formada em torno de uma ou outra
forma de “piedade natural”.
E o incesto – é uma perversão? Se for, pode-se argumentar
que não é uma perversão do ato sexual, mas da relação fami-
liar. Pois o incesto é construído sobre uma relação interpessoal
pré-estabelecida que é de fato incompatível com ele. Ele só pode
ser expresso ao destruir a mais sagrada de todas as responsabi-
lidades que oneram a vida do ser racional. O seu impacto sobre
a vida pessoal de quem o pratica é, portanto, essencialmente
negativo. Ele destrói a relação interpessoal que existe entre eles,
e não oferece nenhum compromisso em seu lugar. Ele funciona
essencialmente contra o desenvolvimento do sentimento pesso-
al, e na medida em que ele floresce, simultaneamente envenena
o lar e impede sua dissolução: pois o pai que está apaixonado
por sua filha vai sentir ciúme a cada impulso do desejo sexual
entre sua filha e outro homem.
Por conta disso, o caso é distinto daquele da pedofilia (a filha
pode ser desejada apenas quando adulta, e apenas enquanto
adulta), e ao mesmo tempo análogo à pedofilia. Trata-se de uma

415 G. W. F. Hegel, The Philosophy of Right, tr. e ed. T. M. Knox, Oxford, 1942.

425
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

intrusão na inocência de pelo menos uma das partes, e da rela-


ção que até então prevalecia entre elas. Mesmo se hesitarmos
em considerar o incesto pervertido, o seu objeto não é um obje-
to próprio de desejo. Algo de intenso valor pessoal, neste caso, é
ameaçado pelo desejo. A ameaça se estende além dos indivíduos
em questão para toda a instituição da família. Se o incesto for
um crime, também será um crime político – aquele cuja proli-
feração ameaça uma mudança fundamental na base da ordem
política. Aqueles que acolhem o incesto também podem acolher
esta mudança na ordem política. Mas, como vou sugerir no Ca-
pítulo 12, eles estão errados.
Se essa teoria procede, o incesto é uma perversão apenas num
sentido atenuado. A ameaça que ele apresenta para as relações
interpessoais é circunstancial, e não reside no ato em si. Em par-
ticular, o incesto não tem qualquer referência essencial à percep-
ção obscena. Mais uma vez, no entanto, devemos notar que a
moralidade comum é contrária a essa sugestão. As linhas supra-
citadas de Racine atestam o fato de que o incesto é considerado
obsceno em si mesmo: Fedra sente que polui o corpo casto de
Hipólito pelo próprio fato de seu desejo. Pessoas que viveram
juntos em intimidade doméstica sentem uma repulsa peculiar
com o pensamento de contato sexual entre eles – quase toda
intimidade entre eles pode parecer natural e consoladora, salvo
a intimidade que procede da excitação. O pensamento de união
sexual é, para eles, estranho e repugnante. (Cf. Dominique, de
Fromentin – um romance sobre o amor de primos: “para mim,
a própria idéia de se casar com alguém que eu conhecia desde
bebê é tão absurda quanto a de casar duas bonecas”.) O caso
não é diferente daquele da homossexualidade, em que se prevê
e antecipa um perigo moral e por uma percepção de sua obsce-
nidade – uma percepção, no entanto, que não é necessária em
absoluto para a coisa percebida.
Esta percepção surge sempre que um membro de uma família
é forçado a sustentar no pensamento o desejo sexual por outro.
Talvez a tragédia de Hamlet resulte de tal pensamento, precipi-
tado pela percepção do desejo de sua mãe. A transferência de
sua paixão, do pai (que tem a autoridade moral de um fantasma
sem corpo) para um homem de carne, desperta em Hamlet a
sensação de que o corpo dela está poluído. Ele a confronta com

426
capítulo 10 - perversão

esta percepção, descrevendo sua vida “com o suor rançoso de


uma cama costurada, / Costurada com corrupção; fazendo carí-
cias e amor / Sobre o chiqueiro desagradável”. Sua própria car-
ne aparece obscenamente – pois é sua carne, corrompida pelo
ato que a engendrou:
Oh, que esta carne tão tão sólida derretesse,
Explodisse e evaporasse em nebilna!416

O Quarto “avançou” (presumivelmente “corrompeu”)417


para “sólido”: uma leitura que coloca Hamlet, neste primeiro
monólogo, firmemente dentro do raio de percepção obscena. E
é com essa percepção que posteriormente enfrenta Ofélia, voci-
ferando contra a mulher dentro dela, forçando-a a ver o corpo
dela em termos despersonalizados (“é uma bela coisa para se
pensar entre as pernas de uma donzela”).418 A carne de Ofélia é
corrompida pelas diatribes de Hamlet, e – antes que ela a puri-
fique na água que a extingue – ela também, em sua loucura, dá
expressão a estranhas obscenidades.
O veneno do pensamento de Hamlet mostra a história na-
tural e a catástrofe da obscenidade, e a necessidade absoluta,
contida em cada laço de piedade, de proibir sua imagem. Pode-
se não concordar com a interpretação freudiana da peça, como
um drama encoberto de incesto, e ainda assim reconhecer a ver-
dade contida nela: que o incesto introduz na vida da família o
“verme invisível” da percepção obscena.

Fetichismo
A elevada tragédia do incesto é, até certo ponto, balanceada
pela comédia inferior do fetichismo – a mais inofensiva e diver-
tida de todas as perversões, e aquela que (a menos que combi-
nada com alguma intenção de ferir ou humilhar os outros) pode
mais seguramente ser deixada à discrição do indivíduo. É prati-
camente desnecessário dizer que o fetichismo é uma perversão

416 Oh that this too too solid Flesh would melt,


Thaw and resolve it self into a Dew! – NT.
417 “Sallied” e “sullied” – NT.
418 “Faire thought to ly between Maid’s legs” – NT.

427
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

– pois o que poderia ser mais distante de um objeto pessoal que


um sapato, uma bolsa ou um sutiã? Mas é precisamente esse
afastamento do fetiche do objeto normal de desejo que lança
dúvidas sobre a idéia do fetichismo ser pervertido. Parece mais
alguma outra coisa do que uma forma pervertida de desejo se-
xual. Para o fetichismo parecer com desejo sexual em absoluto,
precisamos contar uma história elaborada. A atividade (seja ela
qual for) que envolve o fetiche deve estar ligada por algum elo
inteligível à atividade da relação sexual. As teorias do fetichis-
mo são, em sua maior parte, teorias do “elo perdido”. E elas se
dividem em dois tipos principais: causal e simbólico. De acordo
com a teoria causal, o fetiche ganha seu poder por associação.
Por exemplo, algumas ocasiões verdadeiras de desejo (reconhe-
cíveis como tal por critérios normais) envolveram o fetiche de
alguma forma interessante ou dramática: em seguida, o sujeito
sente o despertar da excitação sexual através da mera contem-
plação do fetiche, consciente ou inconscientemente, evocando a
cena de seu emprego anterior. (Dessa forma, Sacher-Masoch, se
acreditarmos nele, ficava particularmente emocionado pelo ca-
saco de pele da senhora que o excitava por espancá-lo quando
criança, e, posteriormente, emocionava-se de forma semelhante
por casacos de pele, estivesse ou não cobrindo uma senhora, e
independente dessa senhora estar disposta a discipliná-lo.)
De acordo com a teoria simbólica, o fetiche adquire seu po-
der não por estar associado à atividade sexual, mas sim porque
a simboliza ou representa. O fetiche está para o objeto de dese-
jo, nesta teoria, um pouco como a imagem religiosa está para o
santo o ou deus que é adorado. Não é, em si mesmo, o objeto de
desejo mais do que a imagem é o objeto de adoração. Ele serve
para direcionar a atenção e focar o sentimento para o verdadei-
ro objeto de desejo, que pode ser fornecido por algum episódio
sexual antigo ou imaginário de um tipo totalmente normal.
A diferença entre as duas teorias não é sempre observada.
Assim, a teoria freudiana da substituição – segundo a qual os
objetos de sensação sexual podem ser substituídos uns pelos
outros e o desejo se apega, através de alguma carga emocional,
a objetos novos e peculiares – é uma forma de teoria causal. Ela
tenta explicar como o sentimento sexual sobrevive através das
mudanças mais extraordinárias sofridas pelo objeto. É apresen-

428
capítulo 10 - perversão

tada por Freud e por muitos de seus seguidores, no entanto,


como uma teoria simbólica, segundo a qual o fetiche é um sím-
bolo de algo mais, que é o verdadeiro objeto de desejo. O sim-
bolismo é “inconsciente”, mas isso não altera o fato de que é, no
entanto, uma forma de simbolismo.
A consequência da teoria simbólica é que o fetichismo não é
pervertido, ou não da maneira que sua forma ostensiva sugere.
Pois isso implica que o fetiche não é o objeto de desejo. O obje-
to de desejo, de acordo com esta teoria, não é o próprio fetiche,
mas sim um objeto de fantasia. Ao acariciar o sapato, estou aca-
riciando, na minha fantasia, a mulher que o veste, e minha ex-
citação sexual é direcionada a ela, assim como a minha emoção
ao ler um romance erótico é dirigida para a cena descrita, ou
talvez para alguma pessoa particular contida nessa cena. Agora,
é inegável que a forma assumida pela representação fetichista é
peculiar. Mas se o propósito do fetiche é puramente simbólico,
o fetiche não é o objeto da paixão sexual que evoca.
Só a teoria causal dá uma imagem clara da qualidade per-
vertida do fetichismo. E é essa teoria que foi sugerida quando
o termo “fetiche” foi originalmente emprestado da descrição
da religião primitiva.419 Supõe-se que o próprio fetiche religio-
so possui poderes sobrenaturais que são empunhadas por meio
dele. O fetiche é mais uma encarnação que uma representação.
Da mesma forma, o sapato em si possui a magia sexual que
atrai o fetichista. Ele acaricia o sapato porque deseja acariciá-lo,
e porque ele encontra seu prazer lá.
No entanto, apenas um ser com o poder do simbolismo pode
obter esse prazer. No período de acasalamento, veados esfre-
gam as partes sexuais contra troncos de árvores, chegando até
ao orgasmo. Ninguém chamaria isso de impulso “fetichista” ou
pensaria no tronco de árvore como o objeto de um desejo sexu-
al. É apenas a pessoas que o impulso por se esfregar contra um
tronco de árvore poderia ter tal significado. A razão é óbvia: a
excitação do veado em nada depende de seu conhecimento de
que ele está se esfregando contra uma árvore. A excitação do

419 Charles de Brosses, Du Culte des dieux fetiches, Paris, 1970. O termo começou a adquirir
seu significado distintamente moderno na obra de Kant Religion within the Limits of
Reason Alone (1973), tr. T. M. Greene e H. H. Hudson, Chicago, 1934, livro 4, parte 2,
seção 3.

429
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

fetichista, ao contrário, depende do pensamento de que isto em


suas mãos é um sapato (e a própria palavra pode ser dita sem
fôlego quando ele a profere). Vemos aqui uma semelhança es-
trutural com a conduta sexual normal, o que poderia nos levar
a descrever o impulso do fetichista como o do desejo sexual,
e, portanto, como perversão. Pois ele parece se concentrar no
sapato “por ele mesmo”, com exatamente o mesmo tipo de in-
tencionalidade individualizante, e até mesmo uma paródia da
ternura, que as pessoas normais direcionam para seus amantes.
Se for esse o verdadeiro caráter do fetichismo, no entanto,
não há dúvida de que a teoria causal, apesar de estar certa no
principal, fica muito aquém de explicar o prazer do fetichista.
Do ponto de vista da intencionalidade, toda a atividade está
agora envolta em mistério. O que o fetichista está fazendo com
o sapato se torna totalmente estranho para nós e totalmente
opaco. E talvez isso seja tudo o que a mera filosofia pode dizer.

Masturbação
A discussão acima nos leva a uma forma familiar, e ampla-
mente praticada, de liberação sexual: a masturbação, acompa-
nhada, via de regra, pela fantasia sexual. A masturbação existe
em duas formas: a primeira é aquela em que se alivia de um
período de isolamento sexual, e é-se guiado por uma fantasia
de cópula; a outra é aquela em que a masturbação substitui o
encontro humano, e talvez o torne impossível, reforçando o ter-
ror humano, e simplificando o processo de gratificação sexual.
Em uma perspectiva plausível, apenas a segunda poderia ser ra-
zoavelmente descrita como pervertida, pois somente a segunda
mostra um afastamento do impulso sexual da união interpesso-
al – um afastamento, no entanto, que ocorre sob a pressão de
fantasias de união sexual.
Para entender esta segunda forma de masturbação, devemos
olhar um pouco mais de perto o tema da fantasia sexual. Eu es-
crevi de forma um pouco vaga sobre a “representação” do obje-
to sexual. A fim de compreender a operação da fantasia sexual,
no entanto, é necessário distinguir representação de substituição.
Algo que parece ser uma representação pode na verdade ser um
substituto. Por exemplo, alguém que quer satisfazer sua curiosi-
dade em relação à aparência de Sophia Loren pode se contentar

430
capítulo 10 - perversão

com um simulacro de cera. Esse objeto seria, para ele, um subs-


tituto perfeito. Outra pessoa, que não quis simplesmente ver a
forma estática da senhorita Loren, mas também observar seus
movimentos, exigiria um dispositivo mais complexo – um holó-
grafo, por exemplo. Mas ela também poderia ficar satisfeita com
um substituto. Outra, que desejava a senhorita Loren, não iria se
contentar com nada menos do que a mulher em pessoa.
Na fantasia sexual, um objeto é representado, muitas vezes
por meio de uma imagem. Mas o objetivo é aproximar um subs-
tituto tanto quanto possível do objeto ausente: mas um substi-
tuto que não apresente perigo. (Daí a necessidade do necrófilo
pelo corpo morto do outro, um corpo que não pode mais recu-
sá-lo) A fantasia sexual se alimenta de modos de representação
que são mais como substituições do que representações propria-
mente ditas: fotografias (que mostram o que realmente aconte-
ceu); vídeos; visões pelo buraco da fechadura; ou simplesmente
imagens mentais. A arte erótica séria, que lida com sugestões
e pela interposição de pensamento entre audiência e objeto, é
hostil aos substitutos. Ela se preocupa em excitar uma partici-
pação imaginativa em uma situação genuinamente erótica, mas
não em apresentar objetos de fantasia para gratificação sexual.
A resposta da arte erótica é uma identificação imaginativa com
a atividade sexual do outro. Por isso, embora, em certo sentido,
ela envolva a invocação da fantasia, a fantasia é controlada pelo
meio artístico e dá continuidade a – e dá um exemplo de – um
sentimento sexual genuíno. Em particular, o perigo do encontro
sexual não é de forma alguma minimizado: mesmo sendo ima-
ginário, também pode ser apresentado de forma realista.420
Quando os críticos distinguem a arte erótica da pornografia,
eles muitas vezes têm alguma distinção em mente, como as entre
representação, que é destinada à imaginação criativa e ligada
por um princípio de verdade, e substituição, que é destinada à
fantasia sexual e vinculada apenas pela exigência de poder de
gratificação. A última sempre atenta contra as propriedades de
arte, enquanto a primeira pode permanecer obediente a elas.421

420 Já discuti essa questão de forma mais aprofundada em “Fantasy, Imagination and the
Screen”, em The Aesthetic Understanding, Londres, 1983.
421 Ibid.

431
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Pode-se, de alguma maneira, também distinguir os pensamen-


tos do masturbador “normal” daqueles do “pervertido”. Este
último utiliza representações expurgadas de seu desafio ima-
ginativo, e de todos os perigos e dificuldades que cercam o en-
contro sexual.422 A atividade sexual do masturbador “normal”
é, principalmente, uma recriação da memória ou da imaginação
do ato para o qual o seu corpo tende. O masturbador “perverti-
do”, por outro lado, usa imagens como substitutas para a coisa
real: representações realistas do corpo humano, expurgadas dos
perigos e dificuldades da alma humana. Assim, Kant considera a
masturbação como o arquétipo de toda perversão, precisamen-
te porque ela substitui o verdadeiro objeto de desejo por uma
fantasia que é autocriada e, portanto, obediente à vontade:
A luxúria é vista como não natural se o homem afetado por ela
não é excitado por seu objeto real, mas por sua imaginação deste
objeto, e isso de uma maneira contrária à finalidade do desejo, já que
ele mesmo cria seu objeto.423

As fantasias desse masturbador não são pessoais, mas cor-


póreas, talvez explicitamente fálicas. Elas apresentam a carac-
terística estrutural de obscenidade. Elas existem precisamente
para facilitar a gratificação sexual sem o problema do encontro
humano, afastando o sujeito das dores e recompensas do desejo
interpessoal, no sentido de uma alternativa que – apesar de fácil
em si mesma – exibe a característica definitória da perversão.
Mas se os pensamentos do masturbador “pervertido” são
obscenos, também o é o ato de masturbação, mesmo no caso
“normal”. Pois a masturbação envolve uma concentração no
corpo e seus prazeres curiosos: mesmo quando ela própria não
uma “perversão”, não pode ser testemunhada sem um senso de
obscenidade. (Diz-se que o cínico Diógenes se masturbou em
público, da mesma forma que comia em público, argumentando
que, se não há mal em comer, o ato não pode mudar o seu ca-
ráter moral simplesmente porque outras pessoas o estão obser-
vando.424 Em um sentido, Diógenes estava certo: mas o que não
pode ser testemunhado sem percepção obscena é obsceno em si.

422 Ver R. A. D. Grant, “The Politics of Sex”, Salisbury Review, I (2), 1982.
423 Kant, Metaphysic of Ethics, Prussian Academy edition, parte II, pp. 423-4 (tr. por M. J.
Gregor como The Doctrine of Virtue, Nova York, 1964, pp. 87-8).
424 Diogenes Laércio, VI, 2, 46.

432
capítulo 10 - perversão

O caráter moral de nossos atos privados pode ser determinado


pela experiência de quem nunca os deve observar.)
Assim, quando a masturbação se intromete no ato sexual,
ela tem justamente aquele caráter gélido que nos afasta da per-
versão. Imagine a mulher que brinca com seu clitóris durante
o coito. Tal pessoa afronta seu amante com a exibição obscena
de seu corpo e, percebendo-a assim, o amante percebe sua pró-
pria irrelevância. Ela se torna repugnante para ele, e seu desejo
pode se extinguir. O desejo da mulher é satisfeito à custa do
desejo de seu amante, e nenhuma união real pode ser alcançada
entre eles. A obscenidade incipiente da masturbação ameaça a
intencionalidade do desejo, e nos traz constantemente à beira
da perversão. Por isso, é totalmente natural para nós perceber
nossa própria carne como “território proibido”, como a carne
de nossa família. (Esse é o pensamento por trás da educação
tradicional de crianças nos modos da “higiene moral”, e, por
mais risível que sua literatura pode agora parecer para nós, com
suas histórias sinistras de morte prematura e sobrevivência do-
entia, não devemos descartar a intuição moral sobre a qual foi
fundada.)

Castidade
O breve resumo acima, de determinados casos-padrão de
perversão, ou o que por vezes acusado de ser perversão, levan-
ta duas questões importantes. Em primeiro lugar, a castidade
é uma perversão? Em segundo, a perversão é necessariamente
repreensível?
A verdadeira castidade não é uma perversão – pois ela não
envolve a deflexão do desejo de seu objeto pessoal, mas quer a
superação do desejo ou o controle de sua expressão manifesta.
A alma impura pode ser incapaz de realizar o ato sexual. Ele
pode, como Klingsor, ainda viver no mundo do desejo, moti-
vado por ele em tudo, mas frustrado em sua solidão. A verda-
deira castidade envolve a devoção a projetos que não exigem
desejo – um distanciamento do desejo, não negando sua natu-
reza interpessoal, mas proibindo seu poder motivador. Isso não
precisa destruir o desejo: na verdade, a sabedoria popular e a
moralidade popular convidam-nos a vê-lo como um prelúdio

433
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

importante ao desejo, e a condição normal da pessoa que não


tem genuíno apego ao outro. O desejo pode, no final, ser supe-
rado, ou “sublimado” (uma descrição que, no entanto, sugere
explicações que são, na melhor das hipóteses, controversas);
mas não é pervertido por um processo que tem precisamente
como objetivo salvaguardar a sua intencionalidade interpessoal
e livrá-lo de obscenidade. Esta é, creio eu, a maneira correta de
entender a castidade – ou, se preferir, a “verdadeira” castidade,
em oposição à falsa castidade de Klingsor. A castidade é um
projeto destinado a conter o impulso sexual e a protegê-lo con-
tra os abusos obscenos, de modo que toda a intencionalidade
do desejo possa crescer com ela e, no devido tempo, ser liberada
em direção ao seu objetivo e realização. A castidade também
pode, em certos casos, ser um fim em si mesmo. Mas nesse caso
ela nunca é obviamente admirável, a não ser como resultado de
um voto: ou seja, a menos que seja um ato de renúncia que é o
inverso e a imagem do voto de amor, e que tem os seus próprios
problemas e êxtases. Então, na verdade, a castidade é o espelho
claro da vida erótica, e como a castidade de Santa Teresa, tão
agudamente retratada na escultura de Bernini, ela se mostra em
um êxtase que é a forma mais intensa de encarnação.
Agora deve estar claro que nossa discussão chegou ao cerne
dos problemas da moralidade sexual, e nada mais pode ser dito
sobre a perversão – se é condenável ou inofensiva – até que os
fundamentos da moralidade sexual tenham sido estabelecidos.

434
CAPÍTULO 11
MORALIDADE SEXUAL

O tema deste capítulo é de tamanha importância que meu


tratamento deve, inevitavelmente, limitar-se às primeiras suges-
tões. Espero que aqueles que não concordem com as minhas
conclusões pelo menos encontrem, nos argumentos de apoio,
um procedimento para refutá-las. Meu propósito não é forne-
cer uma filosofia abrangente da moral, mas mostrar como um
relato plausível de raciocínio moral pode, quando combinado
com a teoria anterior de desejo sexual, levar a uma moralidade
sexual intuitivamente convincente.
A moralidade, no seu significado fundamental, é uma con-
dição sobre o raciocínio prático. É uma restrição sobre razões
para a ação, que é sentida pela maioria dos seres racionais e que
é, além disso, uma consequência normal da posse de uma pers-
pectiva de primeira-pessoa. A moralidade deve ser entendida,
portanto, em termos de primeira-pessoa: em termos de raciocí-
nios que levam à ação.
Nossa vida é limitada pelo que é proibido, e realizada pelo
que é valioso. A filosofia kantiana, que subsume ambos esses fa-
tos sob a idéia de dever, tem tido enorme apelo, em parte porque
impõe uma estrutura coerente e unificada sobre o pensamento
moral, e em parte porque mostra o pensamento moral como
uma consequência necessária da atividade racional, e uma ex-
pressão da perspectiva de primeira-pessoa que define a nossa
condição. É agora evidente, no entanto, que a tentativa de Kant
em derivar a moralidade do imperativo categórico, e o imperati-
vo categórico a partir da perspectiva de primeira-pessoa (a pers-
pectiva que impõe para nós a idéia de uma “liberdade transcen-
dental”), tem poucas chances de sucesso. Para Kant, a simpatia
que sentimos pelo virtuoso, e as emoções benevolentes que nos
435
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

levam a fazer o que a virtude ordena, não são expressões ge-


nuínas da moral, mas apenas “determinações empíricas”, que
se intrometem no reino da razão prática apenas para desviá-la
de seus propósitos categóricos. Muitos rejeitaram inteiramen-
te a teoria de Kant por conta disso, enquanto outros tentaram
modificá-la, reinterpretando o imperativo categórico quer como
um tipo especial de pensamento contido dentro das emoções
morais,425 quer como um tipo de emoção normativa, que talvez
possa crescer a partir da simpatia humana, mas que espalha sua
carga por todo o mundo humano.426 Essas alterações da visão
de Kant retêm o que eu acredito ser a sua idéia central: que o
raciocínio moral expressa a visão de nós mesmos que nos é im-
posta pela nossa existência como pessoas, e por nossa interação
com outros de nossa espécie. O raciocínio moral é o reconheci-
mento formal das restrições impostas a nós por nossas atitudes
interpessoais, a partir das quais, por sua vez, deriva nossa exis-
tência como pessoas.
A posição expressa na última frase deve muito a Kant, e mui-
to a Hegel e Bradley.427 Há também outro princípio central da
teoria de Kant, que deve ser aceito próximo de sua forma ori-
ginal: a idéia de que razões morais fecham a mente do sujeito
para cursos alternativos de ação. Independente de analisarmos
este “fechamento da mente” como um tipo de força interior,428
como uma propriedade interna de razões morais,429 como o re-
sultado de uma “barreira à informação”,430 ou talvez como uma

425 Ver John McDowell, “Reason and Virtue”, The Monist, 1979, e “Are Moral Requirements
Hypothetical Imperatives?”, Proceedings of the Aristotelian Society, Supplementary
Volume, 1978.
426 R. Scruton, “Attitudes, Beliefs and Reasons”, em J. Casey (ed.), Morality and Moral
Reasoning, Londres, 1971.
427 I. Kant, Critique of Pratical Reason, 1788, tr. L. W. Beck, Chicago, 1949; G. W. F. Hegel,
Phenomenology of Spirit (1807), tr. A. V. Miller, Oxford, 1977; F. H. Bradley, Ethical
Studies, Oxford, 1876.
428 Cf. a visão de Hare de que os imperativos morais são parcialmente distintos por sua
qualidade de “sobreposição” – R. M. Hare, Freedom and Reason, Oxford, 1963, cap. 9,
pp. 168 et seq.
429 McDowell, “Reason and Virtue”; ver também Mark Platts, “Moral Reality and the End
of Desire”, em M. PLatts (ed.), Reference, Truth and Reality, Londres, 1980.
430 A sugestão foi feita por Armatya Sen, “Informational Analysis of Moral Principles”, em
Ross Harrison (ed.), Rational Action, Cambridge, 1979.

436
capítulo 11 - moralidade sexual

mera cegueira, ainda parece evidente que ele exista, e essa é


uma das características mais marcantes do ser moral. Porque o
ser moral é racional, há certas alternativas de ação que ele não
pode considerar. Se Kant estiver certo, é a própria racionalidade
do homem que o leva a fechar sua mente para ações para as
quais mil razões prudenciais podem ser dadas.
Como essas restrições tão extraordinárias no raciocínio
prático serão justificadas, e quais? Para Kant, o problema da
moralidade se coloca sempre a partir, e dentro, da perspectiva
imediata de primeira-pessoa, em resposta à pergunta “por que
eu deveria fazer isso?” Sair desse ponto de vista é perder a pers-
pectiva a partir da qual as perguntas práticas devem ser feitas e,
conseqüentemente, perder a esperança de respondê-las. A ques-
tão do que fazer ou é meu ou não é de ninguém, e o significado
da resposta categórica – a resposta encarnada em um dever – é
que ela se dirige a mim como agente, e também reivindica uma
validade que transcende tudo o que é meramente meu. Assim,
para Kant, o padrão de validade no raciocínio moral deve ser
interno a ele: ele deve, ao mesmo tempo, fornecer um motivo
para eu agir, e também estabelecer uma lei universal.
Kant estava ciente das enormes dificuldades que afligem esse
ponto de vista. Parece impossível obter um padrão de validade
que é também, ao mesmo tempo, uma razão de primeira-pessoa
para a ação. Se houver tal padrão, em seguida, pela sua própria
universalidade, deverá evitar qualquer menção de mim; nesse
caso, como ele pode ter a força motivadora exigida por uma
genuína razão de primeira-pessoa? Por outro lado, se é essa a
razão – uma razão que me motiva – sua pretensão de validade
universal deve ser posta em dúvida. Esse conflito surge em um
nível metafísico, na divisão entre o eu transcendental e o eu
empírico. O primeiro é uma espécie de ego abstrato, liberado
dos constrangimentos da existência concreta, e sem o princi-
pium individuationis que nos permita identificá-lo com um “eu
empírico”. É o eu empírico que deve agir, e somente o eu trans-
cendental que pode ouvir as instruções. A sua não-relação (na
verdade, a rigorosa impossibilidade de relação entre eles) forne-
ce um obstáculo inamovível à ética kantiana.
O conflito surge também no nível do raciocínio prático em
si, entre o motivo que me conduz aqui e agora, e que cresce das

437
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

minhas circunstâncias empíricas, e a pretensão de validade que,


porque deve abstrair de tudo o que é meramente meu uma lei
universal, retira de mim as circunstâncias que motivam a minha
ação. O conflito decorre das exigências contraditórias de abs-
tração e concreção – cujos requisitos são que eu seja removido
das minhas circunstâncias, e que eu me identifique com elas.
Kantianos modernos, como Rawls em sua obra Uma Teo-
ria a Justiça, encontram algum equivalente da mesma objeção.
Rawls, por exemplo, afirma que “o eu é anterior aos fins que
são afirmados por ele”,431 o que significa que nossos valores e
objetivos pertencem às nossas circunstâncias individuais (pode-
se dizer empíricas), e não podem, portanto, ser considerados
por qualquer teoria da justiça que seja universalmente aplicada.
A teoria correta da justiça deve atingir o seu padrão por abstra-
ção – peneirando as características que distinguem as pessoas
umas das outras, de forma a aproximar a posição hipotética em
que os agentes não têm outra base para sua escolha que não o
fato da própria escolha. (Este procedimento, em que quase tudo
o que importa para uma pessoa é descontado, é parte do que
Rawls entende por “equidade”.) O seletor abstraído que ocupa
a “posição original” de Rawls ainda é um eu, que retém o que
for necessário livremente para estabelecer um “contrato social”
com seres semelhantemente “desprivilegiados”. Como Micha-
el Sandel argumenta,432 no entanto, isso é supor exatamente a
mesma visão metafísica que se supõe pela ética kantiana: a visão
de um eu puramente noumenal, que, ao se desapegar de todas
as restrições empíricas, ainda pode ter, através de sua razão, o
motivo para escolher. Ao abstrair meus valores, meus objetivos
diários e preferências de tudo o que constitui a minha condi-
ção contingente, eu também abstraio das circunstâncias do meu
ato – e, em particular, dos desejos e interesses que inicialmente
levantaram para mim a questão da ação.
A abordagem de Kant é a mais bela e profunda de todas
as teorias que tentam encontrar a base da moralidade na pers-
pectiva de primeira-pessoa, e seu fracasso deve servir como um
alerta. Devemos, acredito, seguir o caminho desses filósofos –

431 John Rawls, A Theory of Justice, Oxford, 1971, p. 560.


432 Michael Sandel, Liberalism and the Limits of Justice, Cambridge, 1982.

438
capítulo 11 - moralidade sexual

principalmente Aristóteles – que buscaram pelos fundamentos


da razão prática em primeira-pessoa fora da situação imediata
do agente. O principal oponente de Kant – Hume – era um
desses filósofos. Mas seu ceticismo, e sua caricatura grotesca da
mente humana, fazem dele uma autoridade duvidosa. Eu pro-
ponho, como os predecessores de Hume, Shaftesbury e Hutche-
son, um retorno às intuições filosóficas de Aristóteles, renovan-
do-as para as necessidades de uma perspectiva moral moderna.
A fraqueza da posição kantiana reside na sua atribuição de
uma “força motivadora” para a razão – em sua negação do prin-
cípio de Hume de que a razão por si só não pode ser um motivo
para agir.433 A posição aristotélica não tem nenhum compromis-
so com a idéia de uma “razão prática pura”. Ela reconhece que
o raciocínio prático termina na ação somente porque começa no
desejo. O “silogismo prático” tem uma premissa prática, e para
o agente com desejos malignos, nenhuma razão será suficiente,
por sua pura força como uma razão, para torná-lo bom.434
Pode parecer que, a partir de uma premissa tão realista sobre
a natureza do raciocínio prático, apenas o subjetivismo moral
poderia emergir. Pois a premissa sugere que o raciocínio prático
não muda os desejos do agente, mas apenas os percebe, e, por-
tanto, só pode se preocupar com os meios, e nunca com os fins.
E, de fato, do ponto de vista imediato de primeira-pessoa – do
ponto de vista dos meus motivos presentes – tal conclusão é
inevitável. No entanto, há também o ponto de vista de longo
prazo, e é o traço distintivo da ética aristotélica que faz deste
ponto de vista o centro de sua argumentação. Ele desenvolve
uma espécie raciocínio de terceira-pessoa que, embora contenha
sua própria afirmação incontestável à validade, também pode
ser aplicado por cada agente a si mesmo, tornando-se prático
transformando os desejos do agente.
O modelo para esse raciocínio é a prática da educação moral.
Ao educar uma criança, não fico somente preocupado com o
que ela faz, mas com o que sente e com seu caráter emergen-

433 Eu trato dessa sugestão em maiores detalhes no Apêndice de The Meaning of


Conservatism, 2ª ed., Londres, 1984.
434 Sobre a estrutura do silogismo prático, ver G. E. M. Anscombe, Intention, Oxford, 1957,
§§ 33-5.

439
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

te. Sentimento e caráter, que fornecem os motivos dela, deter-


minam o que ela vai fazer. Ao moldá-los, moldo sua natureza
moral. Eu sei que os desejos do meu filho, se ele for racional,
determinarão o seu comportamento – porque eu conheço a ver-
dade consagrada no silogismo prático de Aristóteles, segundo o
qual a ação racional é a realização do desejo. Além disso, eu sei
que o meu filho (em circunstâncias normais)435 tem razões para
ser racional, pois nenhum outro dom pode compensar a falta
deste. Por isso eu devo, se eu me preocupo com ele, dedicar-me
igualmente à educação de sua razão e de seus desejos.
Claro que, dada a sua atual natureza infantil, eu não posso
facilmente convencê-lo a mudar na direção desejada: somente
seu amor e minha autoridade podem provocar nele a disposi-
ção a fazer de bom grado aquilo que está em seus interesses
de longo prazo. No entanto, ao contrário dele, eu tenho uma
visão geral de sua vida futura. Vejo que há uma razão para ele
ter alguns desejos em vez de outros, mesmo que ele não possa,
nesse momento, apreciar este fato. O que, então, me guiará em
sua educação moral?
Devemos notar que o silogismo prático, que decorre das cir-
cunstâncias concretas de ação, não pode ser antecipado. Eu não
posso resolver agora os problemas práticos específicos que irão
onerar a existência do meu filho. No entanto, posso antecipar,
de um modo geral, as dificuldades que qualquer ser racional
deve encontrar no caminho da vida, e posso considerar o ca-
ráter que pode gerar satisfação. Envolver-se em tais reflexões é
invocar uma idéia de felicidade, ou eudaimonia.
A estratégia de Aristóteles, na Ética a Nicômaco, não é fácil
de entender, e está aberta a muitas interpretações. A estratégia
que proponho pode ou não pode ser idêntica à de Aristóteles;
pelo menos, é inspirada por Aristóteles e leva a conclusões se-
melhantes. Eu sugiro que a invocação da felicidade de Aristó-
teles, como o fim definitivo da conduta humana, está essencial-
mente correta. A felicidade é a única resposta final à pergunta:
“por que fazer isso?”; a resposta que sobrevive ao conflito com
qualquer interesse ou desejo rival. Ao nos referirmos à felicida-
de, não nos referimos à satisfação de impulsos, mas à realização

435 Há circunstâncias anormais e imprevisíveis, em que se podem ter boas razões para ser
irracional; ver abaixo, p. 263-4.

440
capítulo 11 - moralidade sexual

da pessoa. Todos nós temos razão em querer esta realização, e


nós a queremos razoavelmente, quaisquer que sejam os nossos
outros desejos e circunstâncias. Na educação moral, só isso é
certo: que a criança deve ser feliz e, portanto, qualquer dispo-
sição essencial para a felicidade é uma disposição que ela tem
razão para adquirir.
Mas o que é a felicidade? Kant a rejeitou por considerá-la
uma idéia vazia: a felicidade, dizia, simplesmente significa a ge-
neralidade dos desejos humanos: significa coisas diferentes para
pessoas diferentes, e não oferece nenhum motivo coerente por
si só. Seguindo Aristóteles, no entanto, proporei uma idéia de
felicidade como uma espécie de “florescer”. Um jardineiro que
cuida da planta tem razão ao querer que ela floresça. A planta
que não floresce tende à não-existência. O florescer pertence ao
ser da planta, e cuidar da planta é para cuidar para que floresça.
Como uma planta que floresce quando tem o de que neces-
sita, meu filho também floresce quando tem o que é necessário
para ele. Agir com o fim de florescer é sempre agir em con-
formidade com o que é razoável, uma vez que agir de outra
forma é destruir a possibilidade de ser movido pela razão em
absoluto. Do ponto de vista dos pais, portanto, devo assegurar
pelo menos isso para o meu filho. Neste ponto, as moralidades
teológica e secular tendem a divergir. Alguns dizem que o ho-
mem só floresce pela proximidade com Deus, e somente quando
ele anda nos caminhos de Deus. Outros dizem que ele floresce
aqui e agora, de acordo com uma lei própria. Vou defender a
segunda opinião, mas chegaria às mesmas conclusões, penso eu,
se optasse pela primeira – embora por uma rota mais indireta.
Obviamente, meu filho não é uma planta; nem é simplesmen-
te um tipo de animal. Por isso, resta determinar o que “flores-
cer” significa no seu caso. Esta é exatamente a mesma pergunta
que a questão sobre a sua natureza. Pois florescer é a atividade
de sua essência: é o emprego bem-sucedido dessas capacidades
que são essenciais ao seu ser. (Uma essência é o que não pode
ser perdido sem deixar de ser.) O próprio Aristóteles define eu-
daimonia como “uma atividade da alma de acordo com a virtu-
de”,436 e mais uma vez considero instrutivo segui-lo.

436 Aristóteles, Ética a Nicômaco, 1098b.

441
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Meu filho é essencialmente (mas também apenas potencial-


mente) um ser racional ou pessoa. Ele pode florescer ou declinar
como tal, e seu potencial para sê-lo pode não ser realizado: ele
pode crescer como um mero animal, uma instância do homo
faber, criado por algum lobo gentil. Supondo, no entanto, que o
seu potencial para conduta racional seja realizado; o que cons-
titui, em seguida, seu florescimento? Podemos dividir a resposta
a essa pergunta em duas partes: saúde e felicidade. A saúde é o
estado em que floresço como animal; felicidade é o estado em
que floresço como pessoa. E é uma característica importante da
dependência ontológica da pessoalidade – da sua necessidade
de encontrar encarnação numa vida animal – que a saúde seja
uma condição tão importante da felicidade. Mas a saúde não é
tudo; a felicidade exige que floresçamos como seres racionais.
Devemos exercer nossas capacidades racionais com sucesso: te-
mos que nos realizar como pessoas, através das decisões que
orientam nossas vidas.
É claro que, se eu tiver razões para fazer alguma coisa, tenho
razões para ser bem-sucedido no que faço. Mas o sucesso não
é apenas uma questão de escolher os meios adequados para os
meus fins; é também uma questão de acertar na escolha do fim
em si. Conseqüentemente, há uma distinção entre virtude (que
envolve a disposição de fazer escolhas apropriadas de fins) e
habilidade (que envolve o domínio dos meios usados para rea-
lizá-los). Esta é a origem da distinção aristotélica entre aretē e
technē.
A virtude é a disposição para escolher as alternativas de ação
que contribuam para a minha felicidade: que me façam florescer
como um ser racional. Ao educar o meu filho, estou educando
seus hábitos, e é claro, portanto, que eu sempre terei razões para
inculcar o hábito da virtude, e não pelo meu bem, mas pelo bem
dele. Pelo menos, é assim na medida em que aceitamos que a mi-
nha principal preocupação é o que importa para ele, no futuro
para o qual ele se destina. Ao mesmo tempo, eu não vejo a vir-
tude apenas como um meio: ela consiste na escolha certa de fim.
Considere a amizade. Dizer que uma ação foi feita por ami-
zade já é descrever um fim. De fato, há um sentido em que não
pode haver um fim posterior que ainda seja compatível com este
motivo. Dizer que eu agia amigavelmente em relação a João

442
capítulo 11 - moralidade sexual

pela vantagem que eu esperava ganhar dele quer dizer que eu


não era movido por amizade. No entanto, pode-se justificar tan-
to a disposição geral para a amizade (que Aristóteles não foi o
único a acreditar ser uma das recompensas da virtude) quanto
a amizade individual para João, apontando para as conexões
entre essas disposições e a felicidade da pessoa que as possui.
Assim, não há contradição em dizer que uma pessoa valoriza o
que ele faz (quando atua por amizade) como um fim, e que há
também outra razão para fazê-lo, ou seja, que esse é o caminho
para a felicidade.
A virtude, como a amizade, é uma disposição para a ação
intencional. É a disposição de querer o que é justificado ou ra-
zoável, em face do impulso natural de agir a despeito da ra-
zão. Considere a virtude clássica da coragem. Todos os seres
humanos têm enraizados na sua natureza animal dois instintos
rivais: o de agressão e o de medo. No caso de uma ameaça,
um instinto instiga a atacar, e o outro a fugir. O conflito entre
eles pode se resolver sem um cálculo fundamentado, puramente
com base em seus pontos fortes. Ao mesmo tempo, no entanto,
o ser racional quer fazer o que comanda a razão. Em particular,
ele quer ter em conta os imperativos “incondicionais” que os
kantianos muito bem enfatizam como as verdadeiras formas de
constrangimento moral. Ele quer fazer o que ele julga ser certo
ou honroso, mesmo diante do medo mortal. Ter essa disposição
é ser (até certo ponto) corajoso.
Note que esta disposição de querer fazer o que é certo em
face do perigo é uma disposição para agir por uma razão. Ela
supera o instinto de medo, mas não como o instinto de agressão.
Como defende John Casey,437 a coragem não entra na situação
como um desejo competindo com outros. Ela entra através de
uma decisão, que não é equilibrada contra o medo como uma
força contra a outro, mas que desconta o medo como um fator
irrelevante para o presente curso de ação. O homem corajoso
não atiça sua raiva contra o seu medo, tornando-se um campo
de batalha de humores conflitantes. Ele age em desafio ao medo:
sua ação não é a vitória de uma força, mas a conquista de todas

437 John Casey, “Human Virtue and Human Nature”, em J. Benthal (ed.), On Human
Nature, Londres, 1973.

443
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

as forças, a subjugação da natureza animal. A ação resultante


é, portanto, atribuída a ele, brotando da sua natureza como
um ser racional. Há, é claro, as falsas virtudes: a imprudência
do homem furioso, que pode ser confundida com coragem; a
mesquinhez e amor-próprio do homem pudico, que podem ser
tomadas por temperança. Há aquelas circunstâncias em que:
O que era paciência, em uma ninharia endurece
Raiva amarga é o fim da coragem que não estremece,
os estandartes de teia de aranha, as bandas estridentes
e os feridos guerreiros de bronze dormentes.438
[Geoffrey Hill, The Mistery of the Charity of Charles Péguy]

Mas essas não são circunstâncias da virtude, mas do vício


que imita a virtude, e em que a virtude decai.
A doutrina da média de Aristóteles revelou-se, a este respeito,
especialmente confusa. Pode parecer que a virtude é uma dispo-
sição para escolher um curso de ação entre dois extremos. Mas
o curso de ação entre os dois extremos ditadas pelo medo e pela
raiva não é um curso de ação: é um estado paralisado de inércia,
que pode de fato afligir um animal, mas que não tem nada que
ver com os motivos da pessoa corajosa. A média é simplesmente
o que a razão ordena, apesar do impulso do medo e raiva.
É evidente que a virtude é uma parte da realização racional.
Pois, sem a disposição de querer o que é razoável, não há tal
coisa como um exercício da razão. E enquanto isto pode pare-
cer uma afirmação bastante trivial, é, no contexto, longe de ser
trivial. Porque se eu tenho razões para querer algo, tenho razões
para adquirir as disposições que me permitam cumprir esses ob-
jetivos. Eu, portanto, tenho uma razão para adquirir coragem
– e talvez outras virtudes também. Além disso, vou tentar incul-
car estas disposições em meu filho, uma vez que, quaisquer que
sejam seus desejos, sua realização em longo prazo dependerá da
aquisição dos hábitos que impedem sua frustração. E esses há-
bitos vão restringir seus desejos, de modo que ele vai aprender
a querer o que é razoável.

438 “Patience hardens to a pittance, courage / unflinchingly declines into sour rage, / the
cobweb-banners, the shrill bugle-bands / and the bronze warriors resting on their
wounds” – NT.

444
capítulo 11 - moralidade sexual

Esse esboço da estratégia aristotélica nos permite tirar uma


conclusão interessante. O raciocínio que justifica um determi-
nado curso de educação moral pode sustentar e justificar os
presentes fins da conduta, mesmo quando parecem implicar dor
e desastre para o agente. Considere o homem corajoso na ba-
talha: ele irá se expor ao risco e poderá morrer como resultado
disso; o covarde, por outro lado, escapa com vida e perspecti-
vas futuras. De que forma o homem corajoso é mais racional?
Como pode ser racional fazer conscientemente aquilo que leva à
extinção da vida e da razão? A resposta é óbvia. Tanto o homem
covarde quanto o corajoso agem de uma forma que é, do ponto
de vista imediato de primeira-pessoa, inteiramente racional. O
primeiro quer salvar a si mesmo e age em conformidade com
isso; o segundo deseja fazer o que é certo e honrado, e também
escolhe o curso apropriado para esse fim. A questão de qual
finalidade é correta não deve, no entanto, ser resolvida a partir
de uma reflexão sobre o momento presente, nem deve depender
de suas razões em primeira-pessoa para a ação: os seus motivos
presentes. Ela só pode ser resolvida ensaiando novamente os
argumentos do educador moral. Estes argumentos existem na
estrutura geral de uma vida racional, e não na ocasião especí-
fica da escolha. Está mais nos interesses do ser racional ter a
disposição da coragem do que estar à mercê do medo. O ponto
de vista do educador moral justifica a disposição que, nas cir-
cunstâncias peculiares da batalha, sujeita o agente a um perigo
mortal. Na medida em que há uma justificação racional dos fins
da conduta, é o homem corajoso, e não o covarde, que age em
conformidade com a razão, mesmo se ele morrer.
Eu posso tomar a mesma visão global da minha própria na-
tureza e fortuna assim como faço com meu filho, e me esforçar
para inculcar em mim mesmo essas virtudes que eu gostaria que
ele tivesse. Este esforço é, naturalmente, necessariamente enfra-
quecido pela urgência de desejos presentes; mas ele vai sempre
se envolver com um dos meus desejos – o desejo de ser feliz. A
educação moral é importante, uma vez que, apesar de ter pou-
co controle sobre o meu próprio temperamento corrompido,
ainda posso controlar o temperamento informe do meu filho.
Por mais desesperada que seja minha própria situação, por mais
afundado no vício que eu esteja, eu ainda posso julgar a misé-
ria da minha condição e procurar garantir que os outros não
445
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

compartilham dela. Para o aristotélico, a verdadeira questão da


moralidade não é se eu, aqui e agora, posso ser convencido a
mudar meu curso, mas se há razões para que outros, que podem
ainda ser corrigidos, devam alterar o deles.
A abordagem aristotélica oferece esperança para aqueles que
procuram por uma moralidade secular da conduta sexual. Ela
não só coloca na vanguarda do pensamento moral a prática
crucial através da qual a moralidade sexual surge – a prática da
educação moral; ela também dá cogência a proibições e priva-
ções – algo que uma moralidade secular parece incompetente em
fazer de outra forma. Assim, da mesma forma como o sacrifício
do homem corajoso na batalha pode ser visto como extrema-
mente razoável, também poderíamos justificar práticas peculia-
res como a castidade, a modéstia e a hesitação sexual. Embora
elas bloqueiem o caminho para o prazer presente, e pareçam,
do ponto de vista imediato de primeira-pessoa, totalmente irra-
cionais, ainda podem ser justificadas em função da disposição
de que brotam. Pode ser do interesse em longo prazo do agente
racional adquirir esse tipo de controle sobre seus impulsos se-
xuais. Assim, Sidgwick considerou que a função da moralidade
sexual era dupla: a manutenção de uma ordem social que se
acredita ser mais propícia para a continuação próspera da raça
humana, e “a proteção dos hábitos de sentimento em indivíduos
geralmente considerados mais importantes para sua perfeição
ou sua felicidade”.439 Poderíamos interpretar a segunda dessas
funções como aquela a que a estratégia aristotélica é dirigida.
(A primeira dificilmente faz parte da moralidade, mesmo que
seja um desdobramento previsível do comportamento moral
que os nossos genes serão os beneficiários finais.)
A fim de resolver a questão, se qualquer uma dessas coisas
é verdade, temos de voltar à idéia de felicidade ou satisfação
subjacente à estratégia aristotélica. Realização significa aqui re-
alização da pessoa, e, para descrevê-la, devemos nos aprofun-
dar um pouco mais nas regiões obscuras do eu. Ou seja, temos
de tentar dar sentido na perspectiva de primeira-pessoa, assim
como é revelada no raciocínio prático. Pois é nisto – a caracte-
rística definitória das pessoas – que a realidade da realização

439 Henry Sidgwick, The Methods of Ethics, Londres, 1879, 7ª ed., 1907, p. 359.

446
capítulo 11 - moralidade sexual

humana será encontrada. O pensamento de uma pessoa é pen-


samento autoconsciente, expressando uma concepção racional
do mundo e de seu lugar dentro dele; sua ação é a ação auto-
consciente, decorrente da razão prática. O “eu” é um nome para
esses pensamentos e sentimentos distintos, e daqui em diante
vou me referir à “autorrealização” para denotar a realização do
ser racional – o ser com uma perspectiva de primeira-pessoa.
No Capítulo 3, referi-me a duas características intimamente
relacionadas da perspectiva de primeira-pessoa: acesso privile-
giado e responsabilidade. Ambas foram bastante invocadas na
discussão subseqüente, e a primeira está até certo ponto repre-
sentada no Apêndice 1. Ao lidar com a realização racional, no
entanto, estamos mais preocupados com a segunda característi-
ca, que define a relação da pessoa com o seu próprio passado e
futuro. A responsabilidade denota um padrão de pensamento e
sentimento pelo qual uma pessoa se durante todo o período de
tempo que é a sua “vida”. Derek Parfit argumenta que a iden-
tidade pessoal não deveria ter importância no nosso raciocínio
prático: o que importa, ou deveria importar, para ele, é outra
coisa, que tem sido confundida com a identidade por causa de
uma ilusão metafísica.440 No que segue, vou mostrar que, do
ponto de vista de primeira-pessoa, é precisamente a identidade
que importa, pois é em virtude de um pensamento de autoiden-
tificação que minha razão prática se envolve com o futuro. Tal-
vez este pensamento seja uma ilusão. Mas, como vimos, muitas
outras coisas que informam nossa visão em primeira-pessoa de
nós mesmos também o são.
Vou começar introduzindo o “eu mínimo”. Esta é uma cria-
tura que tem comando suficiente da linguagem, e em particular
do caso em primeira-pessoa, para obedecer as regras da auto-
atribuição a respeito de seus atuais estados mentais. A diferen-
ça entre animalidade e individualidade é única e não admite
graus: ou uma criatura apreende autoatribuição, ou não, e as
condições de apreendê-la são bastante rigorosas. No entanto,

440 D. Parfit, Reasons and Persons, Londres, 1984. Parfit dá a entender que os critérios para
a identidade pessoal ao longo do tempo são inatingíveis, e também desnecessários.
Argumentos muito similares foram usados (e.g. por Hume, Tratado da Natureza
Humana, livro I, cap. 4, II) para mostrar que os critérios para a identidade de qualquer
objeto ao longo do tempo são inatingíveis, e igualmente desnecessários.

447
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

a transição – que pode ser descrita, em linguagem hegeliana,


como a transição de objeto para sujeito – é constituída de certos
estágios ou “momentos”. Aquilo que começa na autoatribuição
conduz à intenção e à responsabilidade – ao “eu máximo” que
se projeta para frente e para trás no tempo, e vive de acordo
com a lógica de uma biografia humana.
Como vimos, o eu mínimo já é o repositório de autoridade.
Sua voz não é a do observador, mas a expressão de seu presente
estado mental. Ele tem uma autoridade única e insubstituível
em todas as questões relacionadas com a sua própria condição
mental. Por isso, ele pode revelar-se aos outros, e também es-
conder-se deles. Ele pode fingir, assim como pode ser honesto.
Ele também pode argumentar e ensinar. Tudo isso cria, como
já afirmei, o fundamento da existência interpessoal, proporcio-
nando respostas e reações distintas, e o sujeito e o objeto des-
sas respostas e reações são criaturas com o ponto de vista de
primeira-pessoa.
Vamos considerar, agora, as várias atitudes que o eu mínimo
pode ter em relação ao seu passado e futuro. É claro que, sem
uma concepção de minha identidade através do tempo, muitos
dos meus estados mentais seriam simplesmente incompreensí-
veis para mim. Eu não posso atribuir a mim mesmo crenças
de caráter teórico, ou crenças morais, sem também supor que
eu aguente tempo suficiente para que tais crenças façam dife-
rença no meu comportamento. Uma mônada instantânea, que
tão logo nasce para o mundo é retirada dele, não tem tempo
para crenças sérias, e na medida em que nós nos vemos como
criaturas teóricas e questionadoras, nessa medida, devemos ine-
vitavelmente pensar em nós mesmos igualmente duradouros no
tempo. O eu mínimo existe plenamente no presente, portanto,
somente ao afirmar sua identidade ao longo do tempo. Ele atri-
bui a si mesmo tanto um passado e um futuro, e embora possa
estar enganado nesta atribuição (como ele pode, talvez, estar
enganado em qualquer afirmação de identidade ao longo do
tempo)441 é parte de sua natureza fazê-lo. Na base desta atribui-

441 O argumento de Hume (Tratado da Natureza Humana, livro I, cap. 4, II) procura mostrar
que as afirmações de identidade ao longo do tempo sempre vão além da evidência
que temos para criá-las. A consideração subjacente ao argumento de Hume (de que
há somente conexões contingentes entre eventos em momentos distintos) também

448
capítulo 11 - moralidade sexual

ção de autoidentidade, o eu presente pode assumir uma varieda-


de de atitudes do passado e do futuro.
Considere, por exemplo, o remorso. Se eu digo sinceramen-
te: “Eu estou arrependido pelo que aconteceu”, não só afirmo
minha identidade com uma pessoa precedente, como também
incorporo as ações e omissões dessa pessoa em minha própria
prestação de contas presente em relação ao mundo – meu senso
presente de dívidas e responsabilidades. O caso deve ser con-
trastado com a afirmação sincera “lamento o que aconteceu”,
que é mais como uma declaração de desejo, e não faz nenhuma
referência essencial, quer para a minha própria existência pré-
via, quer para a minha responsabilidade presente.
Agora, claramente é possível sentir arrependimento ou re-
morso por uma única e mesma ocorrência: uma pessoa que
nunca sentiu nada mais forte do que arrependimento teria uma
atitude diferente em relação ao seu passado de alguém que tam-
bém sentiu remorso. Suponha que João desejou a morte de Lú-
cia e, em busca desse desejo, fez com que Lúcia morresse. Em
retrospectiva, João pode refletir sobre o que aconteceu e dizer:
“Lamento a morte de Lúcia; além disso, eu vejo que ela morreu
como resultado direto do meu desejo que isso acontecesse: o
meu desejo foi a causa real de sua morte”. Se isso for tudo, é
claro que João está se dissociando de seu passado de alguma
forma. Ele está supondo que ele, o eu presente, não é responsá-
vel pelas ações de seu eu anterior, da mesma forma que o cava-
lheiro em O Judeu de Malta, que relata que aconteceu em um
país estrangeiro, e além disso, a moça está morta.
O caso de João deve ser contrastado com o de Haroldo que,
percebendo que seu próprio desejo pela morte de Lúcia também
foi a causa de sua morte, é acometido por remorso. (Quando
João diz: “O meu desejo causou a morte dela”, Haroldo diz:
“Eu causei a morte dela” – e a intrusão do “eu” no centro do
pensamento é a marca da responsabilidade.) O próprio senti-
mento de remorso contém um afirmação da unidade com o eu
anterior – a sensação de que suas ações pertencem a mim, e

subjaz muitos dos argumentos oferecidos por Parfit. Alguns filósofos sustentaram
que há alguns juízos de identidade ao longo do tempo que não podem estar errados –
especificamente, certos tipos de reivindicações mnemônicas de primeira-pessoa. Ver S.
Shoemaker, Self-Knowledge and Self-Identity, Ithaca, 1963.

449
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

formam a base da minha responsabilidade presente. O remorso


liga o eu presente ao seu passado, em uma ligação autocons-
ciente. Ele constitui uma ligação interna, cuja força depende jus-
tamente da capacidade presente de senti-lo. Neste sentimento,
o eu mínimo se amplia, enriquecendo seu conteúdo mental com
uma sensação vívida de sua própria duração.
Suponha que Haroldo, tendo expressado o seu remorso, conti-
nue a dizer: “mas, claro, eu não tenho nenhuma intenção de evi-
tar ou me abster de tais coisas no futuro; o que tiver de ser, será”.
Devemos imediatamente duvidar da sinceridade de sua expres-
são anterior de sentimento. Assumir a responsabilidade por seu
passado é também projetar essa responsabilidade para o futuro.
Sentir remorso é adquirir um motivo para abster-se. Com efeito,
no caso normal, o remorso envolve algo como uma decisão: a
convicção de que, no futuro, as coisas vão ser de outra forma.
No entanto, assim como um ser autoconsciente pode ter ati-
tudes distintas em relação ao seu passado, também pode ter
atitudes distintas em relação ao seu próprio futuro. Sua visão
sobre o futuro varia entre dois polos contrastantes – que po-
demos chamar, após a discussão seminal de Hampshire,442 de
prever e decidir. Ele pode ver a si mesmo no futuro apenas como
o veículo de forças impessoais que agem por intermédio dele,
mas não a partir dele, ou então como um agente insubstituível,
que dá origem às ações de sua autoria. Como muitos filósofos
argumentaram, a intenção envolve um tipo de certeza sobre o
futuro. Ao decidir, eu reivindico agora a um evento futuro, e na
medida em que eu sou sincero, devo estar certo de que irá ocor-
rer. Uma expressão na forma “eu pretendo fazer isso, mas não
sei se vou” não pode ser sincera – a menos que equivalha a não
mais do que a admissão de que eu posso mudar de idéia.
Imaginem agora alguém que nunca tomou decisões: o caso
extremo da pessoa preditiva. Nós nunca poderíamos afetar o
que ele vai fazer simplesmente argumentando com ele: nenhuma
mudança na sua visão do mundo vai introduzir uma decisão
para alterá-lo e, portanto, nada que dissermos a ele poderá nos
dar motivos para pensar que ele vai fazer uma coisa ao invés de
outra. (Afinal, suas predições não são melhores que as nossas.)

442 S. Hampshire, Thought and Action, Londres, 1956, cap. 3.

450
capítulo 11 - moralidade sexual

Não podemos tratá-lo como tendo qualquer autoridade especial


a respeito de sua conduta futura, nem nosso desejo de influenciar
o seu comportamento terá sucesso por consultar os seus interes-
ses expressos. Se vamos realmente nos envolver com o seu futuro,
é somente direcionando-o em direção a ele, independentemente
de qualquer plano expresso, intenção ou vontade. Assim como
ele vê a si mesmo no futuro como o veículo impotente de forças
impessoais, devemos tratá-lo como tal: como um meio pelo qual
as forças buscam expressão, e não como um “fim em si mesmo”.
Então, se ele se vê como um objeto, também devemos fazê-lo.
(Aí começa uma prova de um argumento hegeliano e marxista
fundamental, que a alienação do eu é alienação do outro.)
O exemplo nos mostra como a autoconcepção do eu míni-
mo pode ser enriquecida. Na aquisição de uma atitude decisiva
para o seu próprio futuro, como na aquisição de uma atitude
responsável em relação ao seu próprio passado, o eu mínimo
deixa de ser meramente um veículo para a transmissão de forças
impessoais e torna-se, em vez disso, um sujeito ativo, cuja rela-
ção com o mundo é de liberdade. Ele agora pertence ao lugar
onde anteriormente estava um observador. No entanto, há mais
nessa transição do que a passagem da predição para a decisão.
Ele poderia fazer essa transição apenas com algumas decisões,
e sobre assuntos sem importância. Isso por si só não gera o
sentido pleno da responsabilidade pelo seu próprio futuro que é
exigido do agente racional maduro. A pessoa verdadeiramente
decisiva também raciocina sobre o futuro, e toma para si no
presente a tarefa de sua vida restante.
Como podemos caracterizar este ser totalmente responsável?
Uma sugestão é supormos que ele não apenas tenha desejos,
mas também se coloque numa relação crítica em relação a eles.
Suponhamos que ele exerça a crítica fundamentada dos desejos,
selecionando aqueles cuja influência ele gostaria que prevale-
cesse. Alguns filósofos consideraram, portanto, que devemos
caracterizar o agente racional como o possuidor de desejos de
“segunda ordem”.443 Ele deseja algumas coisas, e deseja desejar

443 A sugestão tem origem em H. Frankfurt, “Freedom of the Will and the Concept of a
Person”, Journal of Philosophy, vol. 68 (1971), p. 5-20, e é muito bem explorada por D.
C. Dennett, em “Conditions of Personhood”, em A. O. Rorty (ed.), The Identities of
Persons, Los Angeles, 1976.

451
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

outras. Mas, novamente, seria estranho, e incompleto, se isto


fosse visto pelo próprio agente como simplesmente outra pe-
culiaridade pessoal, que ele não só deseja saúde, por exemplo,
mas também deseja desejá-la. Por que esse novo desejo seria
suficiente para mudar sua imagem de si mesmo daquela de algo
que agia sob a vontade de um agente que assume total respon-
sabilidade pela sua vida futura?
O que é necessário, creio eu, não é uma nova ordem de dese-
jos, mas uma nova concepção do objeto de desejo – uma con-
cepção que atribui ao objeto uma importância específica, acima
e além do fato de ser desejada. Em suma, o sujeito deve não só
desejar o objeto, mas vê-lo como desejável. Ele deve atribuir-lhe
uma reivindicação sobre o seu desejo, para que se torne certo
desejá-lo. Ele deve perceber o objeto de desejo não só sob o as-
pecto de desejo, mas também de valor.
Muitos filósofos defendem que os valores não são proprieda-
des objetivas das coisas, mas corantes subjetivos, ou (mais co-
mumente) artefatos humanos.444 Tais argumentos são irrelevan-
tes para o nosso propósito. Eles também tendem a se basear em
suposições peculiares: ninguém nunca pensou que um templo
é irreal por ser um artefato. Não importa que os valores sejam
artefatos: o que importa é que algo vital para a autoconsciência
é omitido por aqueles que falham em construí-los. Se existem
regras (como supôs Kant) que nos constrangem a construir os
nossos valores de acordo com um determinado padrão, é uma
questão filosófica que podemos não ser capazes de responder.
Mas, na medida em que temos motivos para buscar a autocons-
ciência em sua forma mais plena – e assim ampliar os domínios
da subjetividade além daqueles ocupado pelo eu mínimo – te-
mos razão em produzir valores. Um mundo sem valores é aquele
em que toda a atividade tem um final, mas nenhuma atividade
tem uma finalidade. Considere a diferença entre o homem que
deseja x, que ele valoriza, e o homem que apenas deseja x. Este
último pode satisfazer seu desejo sem nenhum senso de melho-
rar o seu destino. Ele tinha um desejo; agora ele foi abolido e,
se tiver sorte, vem a quietude. O primeiro homem, no entanto,

444 Ver, por exemplo, J. L. Mackie, Ethics, Inventing Right and Wrong, Harmondsworth,
1977.

452
capítulo 11 - moralidade sexual

tinha um desejo e, ao aboli-lo, obtém algo de valor – algo que


mexe com sua sensação de bem-estar. Seu destino melhorou sig-
nificativamente; se não tivesse melhorado, isto significaria uma
mudança em seus valores.
Reconhecer o objeto de desejo como desejável é atribuir ao
desejo um novo papel na deliberação. Ao perseguir o que ele
tem de desejável, o agente não está apenas envolvido no cálculo
de meios, mas também na escolha racional dos fins. É esse tipo
de deliberação que permite que o eu presente incorpore seu pró-
prio futuro em seu raciocínio prático, de modo a perseguir não
apenas o que deseja atualmente, mas também o que é propício
para sua satisfação.
Se os valores são artefatos, é a partir do material da emoção
interpessoal que eles são construídos. Considere a emoção do
orgulho. Alguém que, após a obtenção do objeto de desejo, se
sente orgulhoso dele, mostra, assim, que ele o considera desejá-
vel. O pensamento característico de tal pessoa é que obter esse
objeto lhe dá crédito. Este pensamento cresce a partir da inte-
ração pessoal que nos leva constantemente a comparar as ações
daqueles que nos rodeiam com a nossa. No orgulho, assim como
no remorso, o eu é visto de fora, como um entre muitos objetos
sociais, definido em parte por sua relação com a espécie. Está
implícita nestas emoções a idéia de uma comunidade racional –
o “Reino dos Fins” kantiano a que todos os seres racionais, por
natureza, pertencem.
Parece plausível supor, portanto, que o eu mínimo avança
para a responsabilidade pelo seu passado e futuro apenas am-
pliando sua perspectiva, de modo a confrontar-se como o objeto
de atitudes interpessoais, um membro da classe de seres que po-
dem ser louvados, responsabilizados e criticados. Vamos agora
colocar a questão aristotélica: seria melhor para o meu filho ser
um eu mínimo ou um eu “ampliado?” Seria melhor para ele, em
geral, evitar o sentido de responsabilidade que faz com que ele
responda agora pelo seu passado e futuro, ou adquiri-lo? A res-
posta, creio eu, é evidente. Antes de qualquer conhecimento das
circunstâncias particulares do seu futuro, certamente devo que-
rer inculcar nele a faculdade da escolha, e a perspectiva sobre si
mesmo que permita que ele não só deseje coisas, mas também
encontre satisfação na sua obtenção. Pois sem tais dons, não é

453
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

concebível que meu filho floresça de acordo com a sua natureza


– que é a de uma pessoa racional.
Porém isso significa que também devo desejar preparar meu
filho para as relações interpessoais, e inculcar nele as disposições
– orgulho, remorso, admiração, desprezo – que estão envolvidas
na construção de um conceito do desejável. O eu “máximo”,
além de adquirir este conceito, também deve lhe dar o lugar
necessário no raciocínio prático para garantir uma ligação ativa
com seu passado e seu futuro. Finalmente, ele deve aprender a
ver como desejável somente aquilo que, em condições humanas
gerais, é a ocasião de realização. Quando ele aprender isso, ele
aprendeu a virtude.
Esse breve esboço levanta, é claro, tantas perguntas quantas
responde. Mas basta sugerir uma maneira de sair do impasse
apresentado pela ética kantiana: uma forma de contornar os
paradoxos do caso de primeira-pessoa, mantendo a intuição
kantiana fundamental que a razão prática é construída sobre
um conceito do eu e de sua liberdade. A estratégia aristotéli-
ca nos apresenta uma visão sobre o eu de um ponto de vista
externo a ele, e depois deriva conclusões – que, pelo menos a
princípio, são de validade universal – relativas ao bem-estar
do que ele observa. Acredito que essa estratégia nos dá uma
intuição importante sobre os fundamentos da moralidade. Ela
implica que a perspectiva em primeira-pessoa é realizada so-
mente quando o mundo é visto em termos de valor. Sobre o
princípio aristotélico, que to telos phusis estin (o fim é a es-
sência), poderíamos dizer que a moralidade pertence à nature-
za do eu. O argumento também implica que a construção da
perspectiva de primeira-pessoa acontece precisamente através
do exercício de respostas interpessoais – através de uma pers-
pectiva de terceira-pessoa em desenvolvimento sobre as ati-
tudes dos outros, que nos leva a percebê-los e a nós mesmos
como pertencentes a uma única espécie moral, distinta pela
“individualidade”445 que torna essa percepção disponível. O
edifício do eu é a construção de um contexto social, no qual
o eu toma o seu lugar ao lado do outro, como sujeito e obje-
to das atitudes universais de louvor e culpa – as atitudes que

445 “Self-hood” – NT.

454
capítulo 11 - moralidade sexual

encapsulam a realidade do “respeito pelas pessoas”. Assim, a


perspectiva aristotélica que nos levou a buscar as razões da mo-
ralidade na perspectiva de terceira-pessoa do educador moral
nos leva de volta para o sujeito kantiano, como o locus da exis-
tência moral.
Temos agora que tentar aplicar a estratégia aristotélica ao
objeto deste livro, e perguntar se existe tal coisa como virtu-
de sexual e, em caso afirmativo: o que é, e como é adquirida?
Claramente, o desejo sexual, que é uma atitude interpessoal
com consequências de longo alcance para a maioria daqueles
que são unidos por ela, não pode ser moralmente neutro. Pelo
contrário, é na experiência do desejo sexual que ficamos mais
vividamente conscientes da distinção entre impulsos virtuosos
e viciosos, e mais vividamente cientes de que, na escolha entre
eles, a nossa felicidade está em jogo.
A estratégia aristotélica nos ordena a ignorar as condições
atuais da vida de qualquer pessoa particular e olhar apenas
para as características permanentes da natureza humana. Sabe-
mos que as pessoas sentem desejo sexual; que sentem o amor
erótico, que pode crescer a partir do desejo; que podem evitar
esses dois sentimentos, por dissipação ou contenção. Há algo a
ser dito sobre o desejo, a não ser que se insere no âmbito geral
da virtude da temperança, que nos ordena a desejar somente o
que a razão aprova?
A primeira e mais importante observação a ser feita é que
a capacidade para o amor em geral, e para o amor erótico em
particular, é uma virtude. No Capítulo 8, tentei mostrar que
o amor erótico envolve um elemento de autorreforço mútuo;
ele gera uma sensação de valor insubstituível, tanto do outro e
de si mesmo, e das atividades que os ligam. Receber e dar este
amor é conseguir algo de valor incomparável no processo de
autorrealização. É ganhar a mais poderosa de todas as garantias
interpessoais; no amor erótico, o sujeito se torna consciente de
toda a realidade de sua existência pessoal, não só aos seus pró-
prios olhos, mas aos olhos do outro. Tudo o que ele é e valoriza
ganha sustento do seu amor, e cada projeto recebe um signifi-
cado além do momentâneo. Tudo o que existe para nós como
mera esperança e hipótese – o apego à vida e ao corpo – alcan-
ça, sob o governo do erōs, o aspecto de uma certeza radiante.

455
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Ao contrário dos olhares frios de aprovação, admiração e orgu-


lho, o olhar de amor vê valor precisamente naquilo que é a fon-
te de ansiedade e dúvida: na existência meramente contingente,
meramente “empírica”, da carne, a existência que não escolhe-
mos, mas a que estamos condenados. É a resposta à condição
decaída do homem – seu Geworfenheit.446
Para receber o amor erótico, no entanto, uma pessoa deve
ser capaz de oferecê-lo: ou se não puder, o amor dos outros será
um tormento para ela, pedindo-lhe o que não pode fornecer, e
dirigindo contra ele a fúria de um direito negado. Por isso, é
inquestionável que temos razão em adquirir a capacidade para
o amor erótico, e se isso significa conduzir nossos impulsos se-
xuais para certa direção, será essa a direção da virtude sexual.
Na verdade, o argumento dos dois últimos capítulos implicou
que o desenvolvimento do impulso sexual rumo ao amor pode
ser impedido: existem hábitos sexuais que são viciosos precisa-
mente por neutralizar a capacidade de amar. A primeira coisa
que se pode dizer, portanto, é que todos nós temos razões para
evitar esses hábitos e educar nossos filhos para não os possuir.
Pode-se objetar que nem todo amor é feliz, que há muitos –
Anna Karenina, por exemplo, ou Fedra – cuja capacidade de
amar foi a causa de sua derrocada. Mas devemos nos lembrar
da estratégia aristotélica. Ao estabelecer que a coragem ou a
sabedoria são virtudes, o aristotélico não argumenta que a pos-
se destas virtudes obrigatoriamente vantajosa em qualquer cir-
cunstância particular. A parábola de Derek Parfit, adaptada de
T. C. Schelling,447 mostra adequadamente o que está em jogo:
Suponha que um homem invada minha casa e ordene que eu
abra o cofre para ele, dizendo que, se eu não cumprir, ele vai
atirar nos meus filhos. Ele me ouviu telefonar para a polícia, e
sabe que, se deixar qualquer um de nós vivos, seremos capazes
de dar informações suficientes para prendê-lo se ele levar o que

446 “Ser-lançado” – o termo de Heidegger para a condição em que o agente confronta pela
primeira vez o mundo objetivo (Being and Time, tr. J. Macquarrie e E. S. Robingson,
Nova York, 1962). OP termo descreve a situação do agente enquanto percebido: antes
de assumir responsabilidade pela minha existência, meu ser tem uma qualidade de
arbitrariedade que me aflige com ansiedade.
447 Parfit, Reasons and Persons, pp. 12-13, extraído de T. C. Shelling, Strategy of Conflict,
Cambridge, Mass., 1960.

456
capítulo 11 - moralidade sexual

está no cofre. É claro que é irracional, nestas circunstâncias,


abrir o cofre – uma vez que não vai proteger nenhum de nós
– e não o abrir também, pois faria com que o ladrão matasse
meus filhos, um por um, para me convencer de sua sinceridade.
Suponha, no entanto, que eu possua uma droga que faça com
que eu me torne completamente irracional. Eu engulo a pílula,
e berro: “Eu amo meus filhos, portanto mate-os;” o homem me
tortura e eu lhe imploro para que continue; e assim por diante.
Nestas circunstâncias alteradas, meu agressor é impotente para
obter o que quer e sua única alternativa é fugir antes da polícia
chegar. Em outras palavras, nesse caso, é interessante ao sujeito
ser irracional: ele tem esmagadoras razões circunstanciais para
ser irracional, assim como Anna Karenina tinha uma razão cir-
cunstancial esmagadora para ser incapaz de amar. Claramente,
no entanto, seria um absurdo, por estes motivos, inculcar o há-
bito da irracionalidade em nossos filhos; realmente, nenhuma
razão poderia ser dada, na falta de conhecimento detalhado do
futuro de uma pessoa, para a aquisição de tal hábito. Na me-
dida em que razões podem ser dadas agora, para o cultivo des-
te ou daquele estado de caráter, elas devem justificar o cultivo
da racionalidade antes de tudo – pois como posso florescer de
acordo com a minha natureza como um agente racional se não
sou nem menos racional?
Da mesma forma, não é o drama pessoal em particular, mas
a generalidade da condição humana que determina a base da
moralidade sexual. Tragédia e perda são resultados raros, mas
necessários a um processo que todos nós temos razão para
suportar. (Na verdade, é parte do sentido da tragédia divorciar
em nossa imaginação o certo e o bom do meramente pruden-
cial: definer o valor da vida contra o valor da mera sobrevi-
vência.) Queremos saber, com antecedência a qualquer expe-
riência particular, que disposições uma pessoa deve ter para
ter sucesso na expressão do desejo sexual e para ser realizado
em seus esforços sexuais. O amor é a realização do desejo e,
portanto, o amor é o seu telos. A vida de celibato também
pode ser realizada; mas, pressupondo a verdade geral de que
a maioria de nós tem um poderoso, e talvez esmagador, desejo
de fazer amor, é do nosso interesse garantir que o amor – e não
alguma outra coisa – seja feito.

457
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

O amor, conforme tenho defendido, é propenso ao ciúme,


e o objeto de ciúme é definido pelo pensamento do desejo do
amado. Porque o ciúme é uma das maiores catástrofes psíqui-
cas, envolvendo a eventual ruína de ambos os parceiros, uma
moralidade baseada na necessidade de amor erótico deve pre-
venir e eliminar o ciúme. É no mais profundo interesse humano,
portanto, que formamos o hábito de fidelidade. Este hábito é
natural e normal; mas também é facilmente quebrado, e a tenta-
ção de quebrá-lo está contida no próprio desejo – no elemento
de generalidade que nos tenta sempre a experimentar, a verifi-
car, a nos separar daquilo que é muito familiar no interesse da
emoção e risco. O desejo virtuoso é fiel; mas o desejo virtuoso
é também um artefato, tornado possível por um processo de
educação moral que nós, na verdade, não compreendemos em
sua complexidade.
Se essa observação estiver correta, uma seção inteira da mo-
ral sexual tradicional deve ser mantida. A realização do de-
sejo sexual define a natureza do desejo: to telos phusis estin.
E a natureza do desejo nos dá o nosso padrão de normalidade.
Há enormes variedades de conduta sexual humana, e de mora-
lidade do “senso comum”: algumas sociedades permitem ou in-
centivam a poligamia, outras olham com indiferença para a re-
lação sexual antes do casamento, ou vêem o próprio casamento
como nada mais que um episódio em uma relação preexistente e
que talvez sobreviva a ele. Mas nenhuma sociedade, e nenhuma
moralidade de “senso comum” – nem mesmo, ao que parece, a
moralidade de Samoa448 – olha favoravelmente para a promis-
cuidade ou a infidelidade, a menos que influenciada por uma
doutrina de “emancipação” ou “liberação” que depende, para
fazer sentido, das próprias convenções que desafia. Quaisquer
que sejam as formas institucionais da união sexual humana, e
seja qual for o leque de parceiros autorizados, o desejo sexual
em si é inerentemente “nupcial”: ele envolve concentração na
existência encarnada do outro, que conduz através da ternura
para o “voto” de amor erótico. É uma observação notável a
civilização que mais tem tolerado a instituição da poligamia – a
islâmica – ter também, na sua literatura erótica, produzido as

448 Ver novamente as críticas feitas a Margaret Mead por Derek Freeman, Margaret Mead
and Samoa, Cambridge, Mass., 1983.

458
capítulo 11 - moralidade sexual

mais intensas e comoventes celebrações de amor monogâmico,


precisamente através da tentativa de capturar, não a instituição
do casamento, mas o dado humano do desejo.449
A nupcialidade do desejo sugere, por sua vez, uma história
natural do desejo: um princípio de desenvolvimento que define
o “curso normal” da educação sexual. “A maturidade sexual”
envolve a incorporação do impulso sexual na personalidade,
tornando assim o desejo sexual em uma expressão do próprio
sujeito, mesmo que seja, no calor da ação, uma força que tam-
bém o supera. Se a abordagem aristotélica para estas coisas é
tão plausível quanto eu acho que é, o hábito virtuoso também
terá o caráter de um “meio”: vai envolver a disposição para
desejar o que é desejável, apesar dos impulsos concorrentes de
luxúria animal (em que a intencionalidade do desejo pode ser
demolida) e de frigidez receosa (em que o impulso sexual é im-
pedido por completo). A educação é dirigida ao tipo especial de
temperança que se revela ora como castidade, ora como fide-
lidade, ora como desejo apaixonado, de acordo com o “julga-
mento correto” do sujeito. Ao querer o que é considerado de-
sejável, a pessoa virtuosa quer também o que pode ser amado,
e o que pode, portanto, ser obtido sem mágoa ou humilhação.
A virtude é uma questão de grau, raramente atingida em sua
perfeição, mas sempre admirada. Porque a educação sexual tra-
dicional tem buscado a virtude sexual, vale a pena resumir as
suas características mais importantes, a fim de ver o poder da
idéia subjacente a ela e que a justifica.
A característica mais importante da educação sexual tradi-
cional está resumida na linguagem antropológica como a “éti-
ca de poluição e tabu”.450 A criança foi ensinada a considerar
seu corpo como sagrado, e como sujeito à poluição por engano
ou uso indevido. A sensação de poluição não é de nenhuma
maneira um efeito colateral trivial do “encontro sexual ruim”:
pode envolver um nojo penetrante de si mesmo, do corpo e de
uma situação, tal como experimenta a vítima de estupro. Esses

449 Cf. a poesia de amor de Hafiz, de Omar Khayam, e dos poetas Diwan; e também os
contos de fidelidade amorosa nas Mil e Uma Noites.
450 Ver Mary Douglas, Implicit Meanings, Londres, 1975, e Purity and Danger, Londres,
1966, para um estudo sobre o fenômeno do nojo e poluição entre tribos africanas.

459
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

sentimentos – que surgem do nosso “medo do obsceno” – ex-


pressam a tensão contida dentro da experiência da encarnação.
A qualquer momento, podemos nos tornar um “mero corpo”, ​​
o eu afastado de sua encarnação, e sua habitação saqueada. A
idéia radical mais importante da moralidade pessoal é que eu
estou no meu corpo, não (usando a imagem de Descartes) como
um piloto num navio, mas como um eu encarnado. Meu corpo
é idêntico a mim, e a pureza sexual é a garantia preciosa disso.
A pureza sexual não proíbe o desejo: ela simplesmente ga-
rante o status do desejo como um sentimento interpessoal. A
criança que aprende “hábitos feios” destaca seu sexo de si mes-
mo, colocando-o fora de si como algo curioso e estranho. Sua
fascinada escravização pelo corpo também é um definhamento
do desejo, uma dispersão de energia erótica e uma perda de
união com o outro. A pureza sexual sustenta o sujeito do desejo,
fazendo-o presente como um eu no ato mesmo que o supera.
O significado espiritual extraordinário concedido à “pureza”
sexual tem, naturalmente, as suas explicações sociobiológicas
e psicanalíticas. Mas qual, exatamente, é o seu significado, e as
pessoas estão certas ao valorizá-la? No Parsifal, de Wagner, é
dado exclusivamente ao “tolo puro” o poder de curar a terrível
ferida que é o sinal físico da “poluição” sexual de Amfortas. Só
ele pode resgatar Kundry, a mulher “caída”, cuja licença sexual
é tão resistente à sua personalidade penitente, que deve ser con-
finado em outro mundo, do qual ela retém apenas uma tênue
e horrorizada consciência. Esse outro mundo é um mundo de
prazer e oportunidade, um mundo da “permissão”. Ele é gover-
nado, no entanto, pelo eunuco impuro Klingsor, cujo domínio
é uma espécie de escravidão. Wagner encontra o sentido da re-
denção cristã na castidade do tolo, que o leva a renunciar aos
frutos de um desejo impuro pela salvação do outro. Parsifal li-
bera Amfortas do jugo da “magia”, do “feitiço” que tenta o Rei
Roger de Szymanowski para uma vã apoteose.451 Parsifal é o
arauto da paz e da liberdade em um mundo que foi escravizado
pela magia do desejo.

451 Acredito que Rei Roger seja uma importante expressão de certa visão do erótico, que é
visto essencialmente como externo à sociedade, clandestino, ininteligível e subversivo.
Eu discuti essa ópera e seu significado em “Between Decadence and Barbarism: the
Music of Szymanowski”, em M. Bristiger, R. Scruton e P. Weber-Bockholdt (eds.), Karol
Szymanowski in seiner Zeit, Munique, 1984, p. 159-78.

460
capítulo 11 - moralidade sexual

Os símbolos assombrosos desta ópera devem seu poder a


sentimentos que são profundos demais para serem simplesmen-
te descartados como artefatos estéticos. Mas qual é o seu signi-
ficado para as pessoas que vivem sem a proteção da religião? A
resposta não deve ser encontrada no sentimento religioso, mas
no sentimento sexual. A redenção puramente humana que nos é
oferecida no amor é dependente, em última análise, do reconhe-
cimento público do valor da castidade e do sacrilégio envolvido
em um impulso sexual que vagueia livre do impulso controla-
dor de respeito. A “poluição” da prostituta não vem do fato de
ela se vender, mas dela se oferecer àqueles a quem odeia ou des-
preza. Esta é a “ferida” da falta de castidade, que não pode ser
curada em solidão por aquele que sofre, mas somente pela sua
aceitação em uma ordem social que contém o impulso sexual
no reino das relações íntimas. A pessoa casta sustenta o ideal de
inocência sexual, dando forma honrosa para a castidade como
um modo de vida. Através de seu exemplo, torna-se admirável,
e não tolice, ignorar os sussurros de um desejo que não traz ne-
nhuma intimidade ou realização. A castidade não é uma política
privada, seguida por um indivíduo sozinho por causa de sua paz
de espírito. Ela tem um significado mais amplo e mais generoso:
ela tenta atrair outros em cumplicidade, e sustentar uma ordem
social que limita o impulso sexual para a esfera pessoal.
A castidade existe em duas formas: como um papel ou po-
lítica declarado e reconhecido publicamente (a castidade do
monge, padre ou freira), ou como uma resolução privada, um
reconhecimento da moralidade que está adormecida no desejo.
Assim, Hans Sachs, em Die Meistersinger, que tem a oportuni-
dade de realizar seu desejo, escolhe renunciar a ele, sabendo que
ele não será retribuído. Sachs é amado e admirado pela solidão
irrepreensível que faz dele propriedade de todos. Ele é o contra-
forte de Nuremberg, cujas satisfações são satisfações públicas,
precisamente porque a sua própria semente não foi semeada.
Sua contemplação melancólica e livresca das trivialidades do
homem genitor é, em certo sentido, um suspiro de profundidade
genética: a espécie está viva neste suspiro, assim como o indiví-
duo morre nele. Em outro sentido, no entanto, sua melancolia
é a afirmação suprema da realidade das alegrias dos outros: o
reconhecimento de que o desejo deve ser silenciado, a fim de
que outros possam prosperar em seus próprios desejos.
461
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A criança foi tradicionalmente educada para alcançar a satis-


fação sexual apenas através da castidade, que é a condição que
a rodeia ao entrar no mundo adulto – o mundo dos compromis-
sos e obrigações. Ao mesmo tempo, ele foi incentivado a refletir
sobre certos “objetos ideais” do desejo. Estes, apresentados a ele
sob o aspecto de uma beleza física idealizada, não eram apenas
bonitos, mas eram também dotados dos atributos morais que
os preparavam para o amor. Esta dupla inculcação de hábitos
“puros” e amor “ideal” pode parecer, em face disso, indigna do
nome da educação. Não é, ao invés disso, como o adestramento
de um cavalo ou um cão, que arbitrariamente proíbe algumas
coisas e promove outras, sem oferecer nenhum motivo sequer?
E não é a marca distintiva da educação se envolver com a na-
tureza racional do seu destinatário, e não apenas moldá-lo com
indiferença à sua própria compreensão do processo? Por que,
em suma, essa educação moral não é como uma transferência
para a esfera sexual – como Freud gostaria – desses mesmos
processos de interdição que nos treinam para deixar de defecar
em nossas fraldas, e começar a fazê-lo em um vaso de porcelana?
A resposta é clara. O culto da inocência é uma tentativa de
gerar conduta racional, incorporando o impulso sexual para a
atividade individual do sujeito. É uma tentativa de impedir o
impulso, até o momento de se juntar ao projeto interpessoal que
conduz à sua realização: o projeto de união com outra pessoa,
que é procurado não apenas pelo corpo, mas pela pessoa que é
este corpo. Inocência é a disposição para evitar encontro sexual,
a não ser com a pessoa a quem se pode desejar totalmente. As
crianças que perderam sua inocência adquiriram o hábito da
gratificação através do corpo somente, em um estado de dese-
jo parcial ou truncado. Sua satisfação é alheia às condições de
realização pessoal e vagueia de um objeto a outro sem nenhuma
tendência a se ligar a qualquer um deles, perseguida o tempo
todo por um senso de domínio obsceno do corpo. A “depra-
vação dos inocentes” é tradicionalmente considerada um dos
delitos mais graves, e que causa males genuínos para a vítima.
O dano em questão não era físico, mas moral: o enfraqueci-
mento do processo que prepara a criança para entrar no mundo
do erōs. (Assim, a Lolita de Nabokov, que passa com rapidez
da provocação infantil a um interesse experimentado do ato

462
capítulo 11 - moralidade sexual

sexual, encontra, no final, um casamento sem paixão, e morre


sem conhecimento do desejo.)
O pessoal e o sexual podem se divorciar de muitas maneiras.
A tarefa da moral sexual é uni-los, sustentando, assim, a inten-
cionalidade do desejo, e preparando o indivíduo para o amor
erótico. A moralidade sexual é a moralidade da encarnação: a
postura que se esforça para nos unir com nossos corpos, preci-
samente naquelas situações em que nossos corpos têm priori-
dade em nossos pensamentos. Sem essa moralidade, o mundo
humano está sujeito a uma divisão perigosa, um abismo entre
o eu e o corpo, à beira do qual todas as nossas tentativas de
união pessoal vacilam e desaparecem. Por isso, o foco principal
da moralidade sexual não é a atitude perante os outros, mas a
atitude em relação ao seu próprio corpo e seus usos. O seu ob-
jetivo é salvaguardar a integridade da nossa encarnação. Con-
sidera-se que só sob esta condição podemos inculcar qualquer
inocência no jovem ou fidelidade no adulto. Esses hábitos são,
no entanto, apenas uma parte da virtude sexual. A moralidade
tradicional combinou seu louvor deles com uma condenação de
outras coisas – em particular dos hábitos de luxúria e perversão.
E não é difícil encontrar a razão para estas condenações.
A perversão consiste precisamente em um desvio do impulso
sexual de seu objetivo interpessoal, ou rumo a algum ato que
é intrinsecamente destrutivo para as relações pessoais e valores
que encontramos neles. A “dissolução” da carne, um elemento
que o Marquês de Sade considerava extremamente importante
no objetivo sexual, é de fato a dissolução da alma; as perversões
descritas por Sade não são tanto tentativas de destruir a carne
da vítima quanto de livrar seu corpo do seu significado pessoal,
de arrancar, com o sangue, a perspectiva rival. Isso acontece, de
uma forma ou de outra, em toda perversão, que pode ser des-
crita simplesmente como o hábito de encontrar uma liberação
sexual que evita ou anula o outro, obliterando sua encarna-
ção mediante a percepção obscena de seu corpo. A perversão
é narcisista, muitas vezes solipsista, envolvendo estratégias de
substituição, que são intrinsecamente destrutivas para o sen-
timento pessoal. A perversão, portanto, prepara-nos para uma
vida sem realização pessoal, em que nenhuma relação humana
atinge fundamento na aceitação do outro, já que essa aceitação
é fornecida pelo desejo.

463
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A luxúria pode ser definida como o desejo sexual genuíno


de que foi excluído o objetivo do amor erótico, e em que tudo
o que tende para esse objetivo – ternura, intimidade, fidelidade,
dependência – é reduzido ou obstruído. Não precisa haver nada
de pervertido nisto. Na verdade, o caso especial da luxúria que
apresentei sob o título de donjuanismo, em que o projeto de
intimidade é constantemente abreviado pela fuga em direção
a outro objeto sexual, é um dos nossos paradigmas de desejo.
No entanto, a condenação tradicional da luxúria está longe de
ser arbitrária, e o contraste associado entre luxúria e amor está
longe de ser uma questão de convenção. A luxúria é também
um hábito, que envolve a disposição de ceder ao desejo sem
levar em conta qualquer relação pessoal com o objeto. (Dessa
forma, todas as perversões são formas de luxúria, embora a lu-
xúria não seja uma perversão por si só.) Naturalmente, todos
nós sentimos os sussurros da luxúria, mas a rapidez com que
atos sexuais tornam-se hábitos sexuais, e o efeito catastrófico
de um ato sexual que não pode ser lembrado sem vergonha ou
humilhação, dá-nos razões fortes para resistir a ela, razões que
Shakespeare transmitiu com estas palavras:
O desgaste do espírito em um momento de vergonha
É ação da luxúria; e, até a ação, a luxúria
É perjura, assassina, sanguinária, culpada,
Selvagem, extrema, rude, cruel, desleal,
Logo desfrutada, porém, mas logo desprezada,
Passada a razão, logo esquecida,
Maldita razão, como isca lançada
Para enlouquecer a presa;
Insano perseguindo, e possuído;
Tido, tendo, e querendo ter, extremo;
Delícia ao provar, e já provada, a tristeza;
Antes, uma ansiada alegria; por trás, um sonho;
Todos disso bem sabem, embora ninguém se lembre bem
De descartar o paraíso que a este inferno o homem conduz.452

452 Th'expence of Spirit in a waste of shame


Is lust in action, and till action, lust
Is perjur'd, murdrous, blouddy, full of blame,

464
capítulo 11 - moralidade sexual

Além da condenação da luxúria e da perversão, no entanto,


algumas partes da educação sexual tradicional parecem travar
uma espécie de guerra contra a fantasia. É inegável que a fanta-
sia pode desempenhar um papel importante em todas as nossas
obras sexuais, e até mesmo o amante mais apaixonado e fiel
pode, no ato de amor, ensaiar a si mesmo em outras cenas de
abandono sexual diferentes daquela em que está envolvido. No
entanto, há uma verdade no contraste (familiar, em uma versão,
de acordo com escritos de Freud)453 entre fantasia e realidade,
no sentido de que a primeira, de algum modo, destrói a segun-
da. A fantasia substitui o resistente e real mundo objetivo por
outro flexível – e que, na verdade, é a sua finalidade. A vida no
mundo real é difícil e constrangedora. Acima de tudo, é difícil e
constrangedora no confronto com outras pessoas, que, por sua
própria existência, fazem exigências que podemos ser incapazes,
ou não termos vontade, de atender. É necessária muita força,
como a força do desejo sexual, para superar o constrangimento
e autoproteção que nos protegem dos encontros mais íntimos. É
tentador nos refugiarmos em substitutos, que não nos envergo-
nham nem resistem ao impulso de nossos desejos espontâneos.
O hábito cresce, na masturbação, de criar um mundo compla-
cente ao desejo, em que os objetos irreais se tornam o foco de
emoções reais, e as emoções em si são incompetentes para par-
ticipar na construção de relações pessoais. A fantasia bloqueia
a passagem para a realidade, tornando-a inacessível à vontade.
Mesmo que a fantasia possa ser superada ao ponto de se
envolver no ato de amor com o outro, um perigo peculiar
permanece. O outro fica velado por substitutos; ele nunca é

Savage, extreame, rude, cruell, not to trust,


Injoyd no sooner but dispised straight,
Past reason hunted, and no sooner had,
Past reason hated as a swollowed bayt,
On purpose layd to make the taker mad:
Mad in pursuit and in possession so,
Had, having, and in quest to have, extreame,
A blisse in proofe, and prov'd, a very woe,
Before a joy proposd, behind, a dreame,
All this the world well knowes, yet none knowes well
To shun the heaven that leads men to this hell – NT.
453 “Formulations Regarding the Two Principles in Mental Functioning” (1911), em
Collected Papers, tr. J. Riviere, Nova York, 1924-50, vol. IV.

465
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

totalmente ele mesmo no ato de amor; nunca é claramente ele


que eu desejo, ou ele quem possuo, mas sempre um objeto com-
posto, um corpo universal, do qual ele é apenas um entre uma
infinidade potencial de instâncias. A fantasia preenche os nossos
pensamentos com um sentido do obsceno, e o orgasmo deixa
de ser a posse do outro para se tornar o gasto de energia em
seu corpo despersonalizado. As fantasias são de propriedade
privada, de que posso dispor ao meu bel prazer, sem qualquer
responsabilidade em relação ao outro a quem eu abuso através
delas. O outro, na verdade, não é de interesse intrínseco para
mim, e serve apenas como minha oportunidade de prazer in-
dividual. Para o fantasista, o parceiro ideal é a prostituta, que,
como pode ser comprada, resolve de uma vez o problema moral
apresentado pela presença do outro na cena de liberação sexual.
A conexão entre a fantasia e a prostituição é profunda e im-
portante. O efeito da fantasia é “mercantilizar” o objeto de de-
sejo, e substituir a lei de relação sexual entre pessoas pela lei do
mercado. O sexo em si pode, então, ser visto como uma merca-
doria:454 algo que buscamos e obtemos de forma quantificável,
e que vem em uma variedade de modelos: na forma de uma
mulher ou um homem; na forma de um filme ou um sonho; na
forma de um fetiche ou um animal. Na medida em que o ato
sexual é visto desta forma, parece moralmente neutro – ou, na
melhor das hipóteses, impessoal. Críticas a esse ponto só dirão
respeito aos perigos para o indivíduo e seu parceiro deste ou da-
quele modelo sexual: pois alguns trazem doenças e desconfor-
tos de que outros estão livres. O ato mais inofensivo e higiênico
de todos, sobre este ponto de vista, é a masturbação, estimulada
por quaisquer obras de pornografia necessárias para acender o
desejo por ela em quem não tem imaginação. Esta justificação
para a pornografia já foi, de fato, recentemente apresentada.
Como já mostrei, no entanto, a fantasia não coexiste confor-
tavelmente com a realidade. Ela tem uma tendência natural para
se realizar: para refazer o mundo à sua própria imagem. O pu-
nheteiro inofensivo com uma câmera pode a qualquer momen-
to se transformar no estuprador desesperado com uma arma.

454 Uma crítica excêntrica e politizada, mas bastante perceptiva, dessa “comoditização” do
sexo pode ser encontrada em Stephen Heath, The Sexual Fix, Londres, 1982.

466
capítulo 11 - moralidade sexual

O “princípio de realidade” que regula o ato sexual normal é um


princípio do encontro pessoal, que nos ordena a respeitar a outra
pessoa e, também, a santidade de seu corpo como a expressão
tangível de outro eu. O mundo da fantasia não obedece a regra
alguma, e é governado por mitos e ilusões monstruosos que es-
tão em guerra com o mundo humano – as ilusões, por exemplo,
em que as mulheres desejam ser estupradas, em que crianças
são despertadas para dar e receber o mais intenso prazer sexual,
em que a violência não é uma afronta, mas uma afirmação de
um direito natural. Todos esses mitos, construídos na fantasia,
ameaçam não só a consciência do homem que vive por eles, mas
também a estrutura moral de seu mundo circundante. Eles tor-
nam o mundo inseguro para ele e para o outro, e fazem com
que o sujeito olhe para todos não como fins em si mesmos, mas
como meios disponíveis para seu prazer privado. Em seu mundo,
o encontro sexual foi “fetichizado”, para usar o termo marxista
adequado,455 e toda outra realidade humana foi envenenada pelo
sentido da dispensabilidade e substituibilidade do outro.
É um pequeno passo da preocupação com a virtude sexual
a uma condenação da obscenidade e da pornografia (que é a
sua forma impressa). A obscenidade é um ataque direto ao sen-
timento de desejo e, portanto, à ordem social que se baseia no
desejo e que tem o amor pessoal como seu objetivo e realização.
Não há dúvida de que a consciência normal não pode permane-
cer mais neutra em relação à obscenidade do que em relação à
pedofilia e ao estupro (o que não quer dizer que a obscenidade
também deva ser tratada como um crime). Portanto, não sur-
preende que a educação moral tradicional envolva censura de
material obsceno, e dê uma grande ênfase à “pureza de pensa-
mento, palavra e ação” – uma ênfase que agora é recebida com
ironia ou deboche.
A educação sexual tradicional era, apesar de seus exageros
e imbecilidades, mais fiel à natureza humana do que a cultu-
ra libertária que a sucedeu. Considerando sua sabedoria e suas
deficiências, podemos entender como ressuscitar uma idéia de
virtude sexual de acordo com os requisitos gerais do argumento

455 Karl Marx, Capital, trs. S. Moore e E. Aveling, ed. F. Engels, Londres, 1887, vol. I, parte
I, cap. I, seção 4.

467
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de Aristóteles que apresentei neste capítulo. O ideal da virtude


continua sendo o da “integridade sexual”: de uma sexualidade
que está totalmente integrada na vida de afeto pessoal, e em que
o eu e sua responsabilidade estão nuclearmente envolvidos e
indissoluvelmente ligados aos prazeres e paixões do corpo.
A moralidade sexual tradicional foi, portanto, a moralida-
de do corpo. A moralidade libertária, pelo contrário, baseou-se
quase inteiramente em uma visão kantiana do sujeito huma-
no, desprovido de qualquer laço moral coerente com seu corpo.
Centrando-se em uma idéia de respeito puramente pessoal, e
sem atribuir nenhum lugar distinto para o corpo em nosso es-
forço moral, o kantiano inevitavelmente tende à moral permis-
siva. Nenhum ato sexual pode estar errado meramente em vir-
tude de seu caráter físico, e as idéias de obscenidade, poluição
e perversão não têm aplicação óbvia. Sua atitude em relação à
homossexualidade está convenientemente resumida nesta pas-
sagem de um panfleto Quaker:
Nós não vemos nenhuma razão para que a natureza física do ato
sexual deva ser o critério para decidir a moralidade ou não de um
ato. Um ato que (por exemplo) expressa verdadeira afeição entre
dois indivíduos e dá prazer a ambos, não nos parece pecaminoso pela
única razão de ser homossexual. Os mesmos critérios parecem aplicar-
se tanto ao relacionamento heterossexual quanto ao homossexual.456

Tais sentimentos são a oferta padrão das moralidades libe-


rais e utilitaristas do nosso tempo. Por muito que simpatizemos
com suas conclusões, não é possível aceitar o raciocínio super-
ficial que leva a elas, e que ignora o grande enigma metafísico
a se destina toda a moralidade sexual: o dilema da encarnação.
Lawrence afirma que “o sexo é você”, e oferece umas péssimas,
mas reveladoras, linhas a respeito:
E não traga das profundezas, com obscena e bisbilhoteira mente,
Cutucando e forçando, e quebrando seu ritmo freqüente
Quando deixado só, enquanto vira e se revira dormente.457

456 A. Heron (ed.), Towards a Quaker View of Sex, Londres, 1963, citado em Ronald
Atkinson, Sexual Morality, Londres, 1965, p. 148.
457 And don’t, with the nasty, prying mind, drag ir out from its deeps
And finger it and force it, and shatter the rhythm it keeps
When it is left alone, as it stirs and rouses and sleeps – NT.

468
capítulo 11 - moralidade sexual

Se nada justifica a condenação da “obscena e bisbilhoteira


mente” de Lawrence, é o oposto do que ele supõe. O sexo “dor-
me” na alma precisamente porque, e nessa medida, foi enterra-
do lá pela educação. Se o sexo é você, é porque você é o produto
dessa educação, e não apenas sua vítima. Ela o dotou com o que
chamei de “integridade sexual”: a capacidade de estar em seu
corpo no momento exato do desejo.
O leitor pode estar relutante em me acompanhar na crença
de que a moralidade tradicional é amplamente justificada pelo
ideal de integridade sexual. Mas se aceitar o principal teor do
meu argumento, certamente deve perceber que a ética da “libe-
ração”, longe de prometer a liberação do eu da escravidão hos-
til, anuncia a dissipação do eu na fantasia sem amor: o desgaste
do espírito, em um momento de vergonha.

469
CAPÍTULO 12
A POLÍTICA DO SEXO

O desejo sexual é um artefato social. Como a linguagem, e


como a moralidade, nasce das relações sociais entre os seres
humanos, e acrescenta a essas relações uma estrutura e uma
firmeza próprias. Não se segue disso, no entanto, que o desejo
sexual é “meramente convencional”, ou não faz parte da “na-
tureza” humana. Pois alguns artefatos são naturais aos seres
humanos: em particular, todos aqueles que advêm diretamente
da existência social e que formam a base para a construção da
personalidade. Poderíamos, de fato, imaginar um ser humano
“fora da sociedade”, mas esse homo faber não seria um fenô-
meno natural, mas uma aberração – uma criatura em que o
potencial humano normal foi paralisado ou destruído. O homo
faber não teria desejo sexual ou moralidade. Ele, portanto, não
seria uma pessoa – ou, pelo menos, ele seria uma pessoa apenas
in potentia, como um feto ou uma criança recém-nascida. Uma
das nocivas fantasias rousseaunianas (e não a menos nociva)
que dominou o pensamento moral de nossa época é a crença de,
livrando-se das “convenções” da “sociedade”, o homem atinge
a “libertação” sexual: ele retorna a um estado de desejo puro e
inocente, imperturbável pelo conflito entre inocência e conheci-
mento. Se o meu raciocínio estiver certo, não há sentido algum
na idéia de que a satisfação sexual ou o desejo sexual estão
localizados fora da sociedade, em um estado de natureza a que
devemos, no ato sexual, retornar. Pelo contrário, fora da socie-
dade não há nada de especialmente humano, e todos os valores
são anulados.
O desejo sexual é um artefato tão natural quanto a pessoa
humana. Talvez pudesse haver seres humanos sem essa respos-
ta. Mas o esforço coletivo que pinta nosso rosto no branco da
471
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

natureza também gera desejo como um dos elos fundamentais


entre pessoas encarnadas. O edifício da personalidade e da cons-
trução de desejo é o mesmo processo, concebido sob diferentes
aspectos. Não há desenvolvimento sexual humano normal que
evita o dilema do desejo, assim como não há desenvolvimento
normal como pessoa que evita a aquisição de um “gênero”. As
pessoas são essencialmente desejosas, e o desejo é essencialmen-
te pessoal.
Sendo assim, porém, temos todas as razões para temer a cor-
rupção do desejo. Qualquer perda ou perversão generalizada
desta característica envolve uma ameaça à pessoa humana. A
desintegração sexual acarreta desintegração pessoal, e a perda
do desejo implicará a eliminação gradual do rosto humano da
natureza, que é coberta por ele. A “mera” natureza nos confron-
ta, então, em toda a sua impessoalidade sem sentido. O medo
desse resultado, e o reconhecimento de que isso já pode estar
ocorrendo, é um dos impulsos por trás tanto da fenomenologia
humanista de Husserl e crítica social e cultural de escritores
como Eliot, Lawrence e Leavis. Para o fenomenólogo, o sen-
tido458 pertence apenas ao mundo vivido. Não é uma carac-
terística do mundo “objetivo” da ciência natural, mas do Le-
benswelt com o qual lidamos em nossos pensamentos e ações
espontâneos. O valor é uma parte do sentido e, junto com o
valor, a obrigação. Nosso senso de obrigação irradia no mun-

458 Eu uso “sentido” aqui como uma tradução do alemão Sinn (e do tcheco smysl)
para captar o que Husserl e Patočka consideravam o verdadeiro objeto das ciências
“humanas”. O termo tem muitos sentidos técnicos. Meu uso não deve ser confundido
com aqueles que pertencem à filosofia da linguagem (e.g. o uso de Frege de Sinn),
apesar de poder haver razões independentes para pensar que o significado linguístico
é um caso especial do que eu quero dizer por sentido. Tenho em mente o significado
de “sentido” como em “o sentido da vida”, em que o sentido da vida é, pelo menos
parcialmente, distinto do propósito da vida. Na tradição inglesa, o estudo desse tipo
de sentido foi considerado assunto para o crítico literário, e não para o filósofo. Há,
realmente, considerável semelhança entre a idéia husserliana da tarefa da Filosofia e
concepção de Leavis da crítica cultural. Ao negar que possam existir duas culturas, e que
a ciência pode ser uma cultura, Leavis defende a prioridade e autonomia do Lebenswelt,
e a necessidade de acercar-se dele com interesses e ferramentas conceituais diferentes
daqueles da explicação científica. (Ver F. R. Leavis, Nor Shall my Sword, Londres, 1973.)
O estudo do crítico não é explanatório, mas comparativo; ele envolve uma tentativa de
discernir o significado, para agentes moralmente motivados, dos trabalhos do homem
e da natureza.

472
capítulo 12 - a política do sexo

do com uma “numinosidade” peculiar, que Rudolf Otto chama


de “santa”,459 e a que vou me referir, em termos ligeiramente
menos tendenciosos, como “sagrada”. O sentido está incorpo-
rado no dado, uma vez que é inseparável das concepções em
que o mundo é apreendido. Ao mesmo tempo, como defendem
os husserlianos como Heidegger e Patočka, o sentido pode ser
perdido: o Lebenswelt, então, desmorona, e persiste apenas de
forma fragmentada.460 Ameaçados, então, pelo confronto não
mediado com um mundo meramente “objetivo”, vemos nossa
existência como sujeitos comprometida ou negada.
O tema é, naturalmente, mais velho do que a fenomenologia,
e mais velho também que a moderna crítica literária e cultural.
Ele deve rastreado à Crítica da Razão Prática de Kant, onde é
apresentado como o tema da incomensurabilidade entre a nossa
visão de nós mesmos como seres livres, em um mundo que está
“aberto para a nossa ação”, e nossa visão de nós mesmos como
parte da natureza, subservientes às leis da causalidade que só a
ciência pode conhecer. Neste trabalho, tenho lidado com um fe-
nômeno que está na intersecção desses dois pontos de vista, que
pode ser visto ora como o vínculo “individualizante” que liga
uma pessoa à outra em uma relação de responsabilidade, ora
como o resultado de impulsos corporais que operam de acordo
com as leis sem sentido do mundo natural. A “integridade se-
xual” que recomendei como o verdadeiro ideal da virtude pode
ser vista como um baluarte contra a visão “objetiva” e “sem
sentido” de nós mesmos. Tire esse bastião e nada permanece no
espetáculo da sexualidade humana além de uma visão cômica
de uma escravização trágica, em que a alma humana é “instru-
mentalizada” pelo corpo, e o ato sexual é uma questão apenas
de técnica. O verdadeiro significado do “kinseyismo” encontra-
se nisto: é o dispositivo pelo qual o ato sexual é devolvido à
natureza e destituído do seu significado. É o dispositivo atra-
vés do qual tudo o que é “interno”, “subjetivo”, “valoroso” em
nossa experiência sexual é descartado. É uma marca da nossa

459 Rudolf Otto, The Idea of the Holy, tr. J. W. Harvey, Oxford, 1923.
460 Ver o estudo de Heidegger sobre preocupação (Sorge) e ansiedade (Angst), em Being
and Time, tr. J. Macquarrie e E. S. Robinson, Nova York, 1962. O trabalho relevante
de Patočka é Dvě Studie o Masarykovi, Toronto, 1980. Infelizmente, ainda não foi
traduzido para o inglês.

473
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

alienação em estarmos freqüentemente tentados a ver a descri-


ção resultante de nossos atos, e não como absolutamente falsos,
mas como profundamente verdadeiros.
Como já mencionei, muitos escritores e filósofos têm procu-
rado a solução para esta perspectiva “alienada”, “reificada” ou
“fetichizada” pela recomendação do estado de natureza. Mar-
cuse, Fromm, Reich, Norman O. Brown e inúmeros outros mo-
ralistas desencantados viram o caminho para uma sexualidade
redescoberta na ética da “liberação” – no abandono do vestu-
ário social.461 Como Rousseau, eles não propõem a selvageria,
mas uma civilização “superior” chamada estado “natural”: uma
nova sociedade baseada na associação livre, preferencialmente
sem instituições, sem leis, sem quaisquer restrições que não as
que vinculam dois adultos em consentimento um ao outro pela
livre promessa.
Essa busca por um significado fora da sociedade – ou em
uma sociedade do futuro que nem entendemos concretamente,
nem sabemos como começá-la – é apenas outra expressão da
alienação que condena, e uma tentativa de vestir a perspectiva
do indivíduo alienado com os atributos da virtude. A alienação
torna-se profecia, e aqueles que ainda procuram a sua consola-
ção são vistos meramente como escravos das instituições impu-
ras que apoiam. Na verdade, porém, não há caminho de volta
para a integridade sexual que não envolva o cuidado das insti-
tuições, e a tentativa de restaurar à ordem social real as marcas
concretas de uma moralidade pública. Só isso pode impregnar
o mundo do homem com um significado que é maior que seus
propósitos imediatos, permitindo-lhe encontrar a si mesmo
como sujeito, sem estar ameaçado pela falta de sentido de um
mundo meramente objetivo. A moralidade sexual deve, portan-
to, ter seu aspecto político, e – mesmo que seja impossível ou
perigoso formular a política do sexo como um programa – não
podemos completar a descrição do desejo sem rever a natureza
e a função das instituições sexuais.

461 H. Marcuse, Eros and Civilization, A Philosophical Enquiry into Freud, nova ed., Boston,
Mass., 1966; Erich Fromm, The Art of Loving, Nova York, 1960; Wilhelm Reich, The
Function of the Orgasm, 1968, tr. V. R. Carfagno, Nova York, 1973, Londres, 1983; The
Sexual Revolution, Londres, 1951; e Norman O. Brown, Life Against Death, Londres,
1959.

474
capítulo 12 - a política do sexo

É fato inegável que as instituições sexuais mudaram, e po-


dem até mesmo ter entrado em um estado de crise. O destino
das instituições políticas é apenas um aspecto do destino das
pessoas, e o destino das pessoas é inseparável da história das
instituições que as formam e alimentam. A erosão do ponto de
vista integrado, da perspectiva de longo prazo, da responsabi-
lidade individual não apenas para o aqui e agora, mas para o
passado e o futuro de si mesmo e da ordem social a que se per-
tence – estes são os fatos. E esses fatos são igualmente pessoais
e políticos nas suas implicações. O reconhecimento da interde-
pendência entre o indivíduo e as instituições da polis tem sido o
principal tema do pensamento político conservador desde Aris-
tóteles até os tempos modernos, e tem sido uma característica
distintiva do conservadorismo moderno – intencionalmente ou
não – tentar encontrar sua imagem de ordem política e governo
legítimo numa percepção da natureza das relações domésticas
e do vínculo erótico que se encontra sob elas.462 Neste capítulo,
farei poucas e breves observações que vão mostrar por que essa
tentativa é importante, e por que ela pode dar ao conservado-
rismo uma fundação política mais segura do que seus críticos
supõem.
O ser humano necessita da estrutura social que vai sustentar
tanto o desejo quanto o amor que se desenvolve a partir dele.
Por sua vez, isso requer que vivamos em condições que favore-
çam a visão de longo prazo das coisas – a visão que nos permite
viver além do reino do “eu mínimo”, e afirmar a responsabili-
dade pelo passado e futuro no qual as nossas preocupações se
estendem. No amor, assim como no ódio, nós nos regozijamos
com a visão um do outro como seres unificados e transcenden-
tais, cuja identidade e atividade são regidas por princípios di-
ferentes dos que regem a identidade e a unidade do corpo. Ao
mesmo tempo, identificamos o eu “transcendental” com o eu
“empírico”, e vemos o corpo como idêntico ao núcleo puro da
atividade que define a perspectiva de cada pessoa, e que per-

462 O ataque de Aristóteles às idéias de Platão sobre matrimônio, propriedade privada e a


educação infantil é o ancestral de uma tradição do pensamento conservador, de acordo
com o qual a lealdade política surge, em última instância, dos vínculos domésticos. O
mestre dessa linha de pensamento é Hegel, em The Philosophy of Right, tr. e ed. T. M.
Knox, Oxford, 1942.

475
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

manece infinitamente livre, infinitamente capaz e infinitamente


culpável. O objeto amado que abala essa ilusão – que age sem
consistência, sem integridade e como se impelido pelo seu corpo
independentemente do sua eu – confunde e destrói nosso amor.
Nós preferiríamos que ele fosse infiel, para que pudéssemos odi-
á-lo, a seus pensamentos e sentimentos estarem além do alcance
humano, sem exibir padrão ou ordem indicativos de além de
um eu mínimo persistente. Existe, no entanto, uma permanente
necessidade pública de criar as condições de ação responsável
e as expectativas que nutrem nosso senso de nós mesmos como
responsáveis não
​​ só pelas nossas ações presentes, mas pela nossa
vida como um todo, e capazes de projetar essa responsabilida-
de àqueles que encontramos. Temos razão, em outras palavras,
para criar o eu máximo, que media todas as nossas relações. O
eu máximo não existe no estado de natureza, só na sociedade, e
é sustentado por costumes, hábitos e crenças que são facilmente
destruídas e que destruímos imprudentemente.
A capacidade de se espalhar no tempo, e de responder agora
pelo passado e pelo futuro, é o que Patočka chamou de “histori-
cidade” (dějinnost).463 Em tempos de crise, argumenta Patočka,
o homem experimenta o desaparecimento de suas ligações his-
tóricas. Ele não encontra o mundo público em que o “cuidado
da alma” é um reconhecido estado do ser: sua polis só pode
existir interiormente.464 O mundo público, em seguida, contém
apenas os aspectos técnicos de rotina do “cotidiano” (každoden-
nost) – uma vida da qual o significado foi expurgado, e em que
o único valor importante é a própria vida, a tarefa complexa de
sobrevivência diária. Em resposta a isso, o homem pode se refu-
giar na exultação. Ou seja, ele pode excitar-se em uma espécie
de frenesi dionisíaco, em que toda consciência de sua situação
é destruída. Pois é mais fácil fechar a mente para o Lebenswelt
do que confrontar sua forma fraturada e ver através da fratura
a realidade sem sentido do cotidiano. A exultação pode assumir
muitas formas, mas sua forma caracteristicamente moderna é a

463 Ver J. Patočka, Kacírské eseje o Filosofii Dejin (Ensaios Heréticos sobre a Filosofia da
História), Munique, 1980, tr. Erika Abrams, Essais Hérétiques, Paris, 1980.
464 Ver J. Patočka, Platon a Evropa (palestras privadas de 1973), Praga, 1973. Este é um
texto saamizdat, que foi traduzido para o francês por Erika Adams como Platon et
L’Europe, paris, 1983.

476
capítulo 12 - a política do sexo

política revolucionária: a extinção de todos os escrúpulos, todo


o cuidado, no tumulto de um propósito incompreendido. Esta
é a substituição final, insensata, da “moralidade de metas” no
lugar da “moralidade de sentido”.465 Para nós, disse Patočka,
a historicidade envolve a aquisição do que a pessoa exultada
também adquire – uma separação entre o eu presente e a vida
cotidiana. Mas é uma separação conquistada não à custa da
consciência, mas através da consciência. Por isso, não se trata
da perda, mas do ganho do “cuidado da alma”, que existe na
polis ideal.
Para Patočka, o retorno da exultação segue dois caminhos
bem conhecidos: a filosofia, que nos ensina a cuidar da alma
através do amor pela verdade; e a polis, que nos rodeia com as
instituições pelas quais o significado é perpetuado no mundo
público. A viragem de Patočka à filosofia foi resultado de seu
desespero diante do Estado moderno – um desespero que, nas
suas circunstâncias, pode ter sido justificado.466 Mas a filosofia
é uma busca da minoria. Ela é capaz de trazer conforto para o
intelectual e neutralizar sua perigosa propensão para a exulta-
ção, mas não tem significado real para o homem comum. Senti-
do, para a humanidade comum, encontra-se em um confronto
constante com o sagrado. E nesse confronto, o homem ensaia a
ilusão transcendental, de que sua existência pessoal no mundo
só é possível porque ele não é do mundo.
Na Crítica da Razão Prática, Kant defendeu que as verdades
da religião podem ser justificadas através do exercício da razão
prática, e não da teórica, evitando o confronto das escrituras
com a teologia racional que ele fez na primeira Crítica. A maio-
ria dos comentaristas não está satisfeita com essas “provas con-
cretas” da existência de Deus, mas muitos sentem que carregam
uma sugestão profunda quanto à natureza da crença religiosa.
A sugestão, creio eu, é esta: a perspectiva em primeira-pessoa
impõe hábitos de entendimento intencional. Nós vemos o mun-

465 Dvě Studie o Masarykovi, pp. 83 et seq.


466 Patočka morreu em 1977, após um interrogatório brutal da polícia secreta tcheca. Esse
interrogatório foi consequência de sua posição como representante da Carta 77. Visto
pelo resto do mundo como um movimento em prol dos “direitos humanos”, a Carta 77 é
melhor compreendida vista de dentro, como uma exigência para o reestabelecimento da
ordem política, e não coercitiva, nos países sujeitos à tirania impessoal do comunismo.

477
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

do como “aberto à ação”; encontramos espaço no mundo para


o eu e suas obras, e vemos a nossa liberdade refletindo uma
ordem real de eventos. Perceber o mundo “sob o aspecto da li-
berdade”, porém, é percebê-lo em termos sacrais. Pois o mundo
carrega a marca da vontade, e está, portanto, aberto a ela.
Para o homem primitivo, esse sentimento de pertencimento
é inquestionável. A própria natureza tem vontade; seus movi-
mentos são os movimentos dos espíritos, que habitam as árvo-
res e as águas como nós habitamos nossos corpos. Em todos os
lugares à sua volta, o homem primitivo encontra a realidade da
encarnação e da ordem da ação. Sua própria encarnação não é
mais intrigante para ele do que a encarnação das perspectivas
que olham para ele com olhos hostis ou protetores de cada
bosque e matagal. De uma maneira similar, no entanto, a cren-
ça em uma ordem transcendental permite que pessoas menos
primitivas sustentem o sentido vital de pertencimento. O mun-
do que de outro modo os oprime com sua ordem meramente
causal, e que ameaça esmagar suas pequenas tentativas de vida
responsável, torna-se amigável e submisso. Os homens são re-
dimidos de seu Geworfenheit, e restaurados à ilusão transcen-
dental de que sua felicidade depende. Crendo que a alma é
imortal, fora da natureza e em relação eterna com a ausência
de perspectiva de primeira-pessoa de Deus, eu ganho seguran-
ça moral. Assim como Kant notou, esta segurança não vem do
fato de Deus nos ordenar a ser bons, mas a partir da noção que
a nossa identidade transcendental e liberdade não são ilusórias,
mas reais. O mundo se abriu para o sujeito; sua objetividade
férrea foi quebrada.
Na polis ideal, portanto, a religião sempre teve seu lugar, e
levava consigo a luz do sagrado. Ninguém teve sucesso em pla-
nejar uma maneira melhor de dar substância aos votos humana
e aos valores humanos do que a crença em uma ordem trans-
cendental, e na presença eterna dos mortos. Mas uma crença
só pode sobreviver enquanto estivermos persuadidos por ela, e
sem a crença, o exercício da virtude pode aparecer oco ou vão.
A restauração do significado, que Patočka procurou na filoso-
fia, é mais fácil através da religião, e com o declínio da religião
(ainda que temporário) as instituições da polis parecem estar
em um terreno menos sólido.

478
capítulo 12 - a política do sexo

É evidente que, embora possa haver razões para a crença em


Deus e na imortalidade, eles não são as causas normais des-
sas crenças (um fato que certos filósofos considerariam como
descrédito das afirmações de fé e da doutrina).467 A fé religiosa
é o resultado de práticas sociais – rituais, cerimónias, costu-
mes – que preenchem o vácuo no coração de coisas com um
significado transcendental. A natureza abomina o vácuo, e o
esvaziamento de significados religiosos não esvaziou o mundo
da superstição. O “desencanto” descrito por Weber468 de fato
ocorreu; mas no lugar das idéias religiosas, nosso mundo nos
apresenta as superstições absurdas da exultação – a crença no
“progresso”, na utopia, na “libertação” e em uma redenção
puramente secular (através de sexo, política ou psicanálise) do
fardo do pecado original. Essas crenças também não são mais
causadas pelas razões que as apoiam do que pelas crenças da
antiquada religião, e alguém pode ser perdoado por pensar
que, em comparação, ambas são espiritualmente vazias e mo-
ralmente incompetentes. No entanto, elas surgem, quase inevi-
tavelmente, de uma condição social em que costume, cerimônia
e deferência não são mais a norma.
A “restauração do sagrado” pode ser uma esperança política,
mas não pode ser uma tarefa política: torná-lo uma é arriscar o
cataclismo mais violento e o colapso das instituições políticas
liberais. Mas é necessário extrair a moral dessas breves refle-
xões e enfrentar a – talvez intragável – verdade que contêm. A
experiência do sagrado é, como sugeri, um componente funda-
mental em nossa noção do mundo como “aberto à ação”, como
contendo em si a marca da perspectiva em primeira-pessoa pela
qual vivemos. A perda dessa experiência ameaça a vida do su-
jeito, e o Lebenswelt em que é capaz de reconhecer a si mesmo.
Em particular, ameaça o padrão de pensamento que identifiquei
como parte integrante da educação moral tradicional, e que se
foca numa concepção de “inocência sexual”. A percepção da

467 Ver as observações sobre a gênese da crença moral em G. Harman, The Nature of
Morality, Nova York, 1977, e os dogmas gerais do “realismo científico” expostos por J. J.
C. Smart em Philosophy and Scientific Realism, Londres, 1966.
468 O termo usado por Weber é Entzauberung. Ver Wissenschaft als Beruf, tr. como “Science
as a Vocation”, em From Max Weber, ed. e tr. H. H. Garth e C. Wright Mills, Londres,
1947.

479
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

criança como inocente, da virgem como sacrossanta, do abuso


sexual como uma “poluição” – esses “sobreviventes” da ética
de “poluição e tabu” – também são as nossas experiências mais
imediatas do sagrado, e são ameaçados pelo desaparecimento
dos costumes e rituais pelos quais a idéia do sagrado se susten-
ta. Como bem poderia ter perguntado Yeats
Como, senão nos costumes e na cerimônia,
Nascem a inocência e a beleza?469

A perda da inocência não é um problema de indivíduos, mas


de instituições e costumes e, ao perceber o dano infligido a es-
ses artefatos sociais, vemos a verdadeira medida em que a mo-
ralidade sexual tem sido posta em causa. Simultaneamente, a
integridade sexual é uma condição de relações estáveis entre
​​ os
que amam, e da fundação da fecundidade alegre de que depende
a continuidade social. Tornou-se moda lamentar a depreciação
da fecundidade e a ascensão de costumes sexuais que endossam
e até celebram a esterilidade como um bem humano.470 Mas é
mais importante ver o que está faltando a uma sociedade em
que o vínculo do desejo foi tornado frágil e impermanente pela
perda da inocência. Tal sociedade está ameaçada, e não mera-
mente na sua continuidade, mas em sua própria existência, pela
alienação sexual de seus membros. Na medida em que essa alie-
nação é um índice de declínio institucional, a moralidade sexual
inevitavelmente requer uma política de instituições sexuais.
“Ordem social espontânea” é uma ilusão, alimentada pelos
contos de fadas de antropólogos e pelas fábulas de Adam Smi-
th e Friedrich von Hayek.471 A “mão invisível” que direciona
o nosso bem-estar coletivo não é o resultado espontâneo da
cooperação humana, mas o elaborado artefato de séculos de
instituições. O amor erótico é como a propriedade privada em

469 How but in custom and ceremony


Are innocence and beauty born? – NT.
470 Esse lamento aparece de forma mais prolixa e florida no trabalho de Germaine Greer,
Sex and Destiny, Londres, 1983.
471 Adam Smith, The Wealth of Nations, 1776. As visões de Hayek vêm, em parte, de
Ludwig von Mises, Socialism, 1923, mas têm um caráter filosófico distinto, que pode
ser visto mais claramente em Law, Legislation and Liberty, Londres, 1973-9, vol I: Rules
and Order, 1973.

480
capítulo 12 - a política do sexo

muitas coisas: em sua proximidade com o eu, na sua exclusivi-


dade e na nova dimensão de liberdade que se abre para aqueles
que estão vinculados por ele. Mas ele não é um presente da
natureza mais do que a propriedade privada é um “direito na-
tural”: ambos são produtos das instituições que os sustentam, e
ambos distribuem seus benefícios não como direitos, mas como
conquistas e privilégios. Se quisermos garantir a sobrevivência
deles, não é suficiente deixar seu futuro à “ordem social espon-
tânea” dos neoconservadores. Temos de manter as instituições
que os protegem, e que podem não ser o desdobramento de
todo o ordenamento social a todo o tempo. Numa sequência
a este volume, vou examinar a natureza das instituições mais
detalhadamente. A seguir, darei apenas um esboço cru.
Ao enfatizar o papel do sagrado na polis ideal, fiz uma gran-
de demanda institucional. Em particular, dei a entender que a
integridade sexual vai florescer em uma sociedade em que as
instituições religiosas e costumes também florescem e mantêm
sua autoridade. E minha discussão implicou muito mais sobre
o caráter da sociedade civil na polis virtuosa. A sociedade civil,
no entanto, não é nada sem o Estado, que é a sua forma “reali-
zada”.472 O Estado protege e ratifica as instituições da socieda-
de civil, dotando-as de personalidade legal e moral. Ao lançar
sobre todos os arranjos sociais o manto protetor da soberania
e da lei, elimina a arbitrariedade do costume e do acordo. As-
sociações como a família, o clube, a empresa, o governo e o
próprio Estado deixam de ser meros contratos entre pessoas
privadas para fins próprios e se tornam entidades reconhecíveis
– pessoas artificiais, com direitos, deveres e responsabilidades,
que apresentam um rosto inteligível ao mundo e podem ser en-
tendidas em termos pessoais. Ao associar-se com esses coletivos,
o indivíduo expande sua capacidade de ação, e adquire tam-
bém uma imagem expandida de si mesmo, como um portador
de funções e papéis. Nenhuma sociedade civil pode persistir
de forma estável, a menos que essas entidades coletivas se tor-
nem instituições, com personalidade, autonomia e capacidade
de manter sua condição presente, e de adquirir uma história e
uma identidade próprias. Uma das principais funções do Estado

472 Esse pensamento é hegeliano: tentei traduzi-lo em uma linguagem política aceitável em
The Meaning of Conservatism, 2ª ed., Londres, 1974.

481
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

é fornecer o quadro jurídico e político em que essa transação


pode ocorrer. E ao fazê-lo, o Estado é inevitavelmente seletivo,
fornecendo proteção para algumas instituições (por exemplo,
para a família), e a removendo de outras (por exemplo, do exér-
cito privado).
O liberalismo é a filosofia natural do mundo “dessacraliza-
do”. Para a consciência liberal, as obrigações não nos rodeiam
no Lebenswelt, mas são criadas por nossas escolhas individuais.
“Não há”, disse Hobbes, “nenhuma obrigação para qualquer
um que não surja de algum ato de sua própria autoria”.473 Por-
tanto, não pode haver nenhuma obrigação entre mim e você
sem um acordo que nos una. Com um pouco de esforço, muitos
arranjos sociais podem ser visto nesses termos, como as “asso-
ciações de voluntários”, decorrentes do consentimento comum,
e das expectativas comuns, dos seus membros. Ao mesmo tem-
po, no entanto, há algo extremamente artificial na maneira li-
beral de ver as coisas, mesmo quando formuladas da maneira
sofisticada de Rawls, que vê as obrigações da sociedade civil
fundadas não num contrato real, mas num contrato hipotéti-
co.474 Os homens não participam de uma associação porque
necessariamente buscam um acordo com os membros existen-
tes, mas também porque não têm escolha, ou porque procuram
ser parte da própria associação, como uma entidade que é algo
mais do que uma promessa mútua. As pessoas são dilatadas e
libertadas pela associação, precisamente porque as associações
transcendem suas capacidades de “concordar com os termos”.
E as duas mais importantes de todas as associações humanos
– a família que nos nutre, e o Estado que nos governa desde o
nascimento até a morte – não são, e nem podem ser, fundados
em um “contrato social”.475

473 Thomas Hobbes, Leviathan, II.


474 John Rawls, A Theory of Justice, Oxford, 1971. Uma crítica pertinente dessa idéia
foi feita por Ronald Dworkin, “The Original Position”, em Norman Daniels (ed.),
Reading Rawls, Oxford, 1975, republicado como o cap. 6 de Taking Rights Seriously,
Londres, 1977.
475 Ver Hegel, The Philosophy of Right. O contraste essencial, em termos de qual visão
hegeliana da ordem política será expressa, é entre piedade e justiça. A primeira, que
consiste na habilidade de aceitar e contrair obrigações que nunca foram escolhidas, é
denunciada pela consciência liberal como mera superstição. Eu defendi a piedade em
Meaning of Conservatism.

482
capítulo 12 - a política do sexo

Não deveríamos nos surpreender, portanto, se em cada con-


juntura importante na associação civil – cada ponto em que uma
decisão de associação deve ser feita – encontramos não apenas
as associações, mas instituições. As pessoas adoram e oram jun-
tas, mas através da instituição da igreja ou da mesquita; elas
competem e brincam, mas através de clubes e sociedades locais;
elas aprendem e ensinam, mas através de estabelecimentos de
ensino que exercem a mais vasta influência sobre aqueles que os
freqüentam. E sua união sexual também parece ansiar por sua
realização institucional – para a forma publicamente reconhecí-
vel pela qual é ampliado em algo diferente de um acordo mútuo.
Essa forma é o casamento, que impõe no vínculo de amor
erótico o acordo não contratual e pio do lar. O casamento é
um endosso público da paixão que separa os amantes de seu
entorno. É a aceitação pública da sua privacidade exclusiva.
Ao entrar em um casamento, eles fazem mais do que trocar
promessas: eles passam juntos a uma condição que não é da
sua própria concepção, e que contém os depósitos de inúme-
ras experiências anteriores de intimidade. O casamento, como
toda instituição que vale a pena, é também uma tradição – um
modo suave de lidar com a experiência – que tem sido passada
de geração em geração e, na passagem, desgastado lentamente
na forma exigida pela natureza humana. Ele tem uma história
ligada a ele: seus aspectos cômicos e trágicos são uma parte
familiar da cultura popular; suas dificuldades e alegrias podem
ser antecipadas e, portanto, compartilhadas; ele tem o respeito e
a compreensão dos outros. Mais ainda, ele se traduz em formas
legais e se esforça para reconstituir em direitos legais as muitas
e misteriosas obrigações que decorrem de proximidade domés-
tica. Em muitas sociedades, um casamento é uma “pessoa jurí-
dica” em si, com uma autonomia e responsabilidade que não
são as dos parceiros. Se há uma “idéia ética do casamento”,476
encontra-se pelo menos parcialmente nesta subsunção do vín-
culo “meramente privado” de amor sob leis que são abertas,
discutíveis e sujeito de direito moral e legal.
A cerimônia de casamento é, portanto, uma das mais im-
portantes cerimônias humanas, e que marca uma transição de

476 A frase é de Kierkegaard: ver Either/Or, tr. W. Lowrie, Nova York, 1959, vol. II.

483
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

um estado de existência para outro. Nesses momentos, é-se


confrontado com sua fragilidade e dependência. Como no mo-
mento da morte e do nascimento, ele é assediado pelo temor.
Este sentimento é um reconhecimento do sagrado: da intrusão
no mundo humano de obrigações que não podem ser criadas
por um ato de escolha, e que, portanto, exigem um significado
transcendental. O sagrado é “a subjetividade dos objetos” – a
apresentação, nos contornos das coisas do dia-a-dia, de um sig-
nificado que vê “de mim para mim”. Fora da muda objetividade
do mundo circundante, uma voz de repente me chama, com um
comando claro e inteligível. Ela me diz quem eu sou, e me man-
da entrar no lugar que foi guardado para mim. No casamento,
eu “suporto” uma obrigação que antecede a minha escolha, e
que reside no esquema das coisas. Não surpreende, portanto,
que o casamento seja um “sacramento” religioso, comparável
aos sacramentos do batismo e da extrema-unção. A participa-
ção universal das religiões nos casamentos dos crentes é um
testemunho da percepção compartilhada desta qualidade sagra-
da. E como todos os assuntos sagrados, o casamento apresenta
diferentes aspectos para o participante e para o observador. O
sagrado é um conceito pessoal, que aparece no entendimento
intencional da pessoa que participa de certa prática social. Do
ponto de vista científico, no entanto, não existe essa realidade
do sagrado. Na melhor das hipóteses, há, em linguagem antro-
pológica, um “rito de iniciação”, em que a transição de uma
pessoa de um estado da existência social para outro é confirma-
da pela participação em massa da tribo.477
A fim de compreender o vínculo matrimonial em seu signi-
ficado político completo, é necessário distinguir a cerimônia
de casamento da instituição que é criada por ele. A primeira é
uma tentativa de incorporar, de forma publicamente inteligível,
a experiência de uma obrigação sagrada. Ela representa o casa-
mento como um ponto de transição, que, diferente da morte, es-
tabelece uma nova vida neste mundo para aqueles que passam
por ela. “Apreender / O ponto de intersecção do intemporal /

477 Estudos antropológicos significativos dos “ritos de iniciação” incluem M. Fortes e G.


Evans-Pritchard, African Political Systems, Oxford, 1940; e J. Beattie, Other Cultures,
Londres, 1964.

484
capítulo 12 - a política do sexo

no tempo, é uma ocupação para o santo”,478 escreveu Eliot. Seu


sentimento, no entanto, era herético. Este ponto de intersecção
é apreendido em cada experiência do sagrado. O matrimônio,
como Eliot nos lembra, é um “sacramento digno e cômodo”, e
se todo casamento verdadeiro anseia pela cerimônia, é a fim de
registrar esse fato, e para confirmar a apreensão das coisas sa-
gradas, tornando-as elementos de conhecimento e preocupação
públicos.
A instituição do casamento é, contudo, algo mais do que a
cerimônia com a qual começa. E é tão necessário para o Es-
tado juntar-se à instituição quanto é para a igreja participar
de seu início. Pois o casamento é uma realidade moral e legal,
que traz seu significado das duas formas mais fundamentais de
amor humano: amor erótico e amor entre pais e filhos. Ambos
os amores têm a sua história natural; ambos variam da intensi-
dade da paixão para a serenidade da garantia diária. Mas am-
bos exigem o reconhecimento não só daqueles que estão vin-
culados a eles, mas do mundo circundante, que pode ameaçar
a sua exclusividade, ou se rebelar contra o privilégio injusto
que todo o amor contém. Se o casamento sobrevive é porque
as pessoas buscam o reconhecimento público para suas intimi-
dades. Só uma instituição que impõe uma única e invariável
obrigação a todos os que escolhem participar dela pode criar
este reconhecimento público, tornando claro que o significado
da ação individual não deve ser encontrado no desejo particular
que a incitou, mas no costume público que lhe dá forma. Por
isso o vínculo do casamento, mesmo no estado secular, tem um
significado “transcendental” – um significado que não pode ser
resumido em termos de contrato ou consentimento. As obriga-
ções do casamento não são contratadas entre os parceiros, mas
impostas pela instituição, que se esforça para traduzir de forma
articulada o aumento constante de novas responsabilidades en-
tre aqueles que o contraíram juntos. A maior ameaça para o ca-
samento – como, aliás, para todas as instituições que permitem
o alargamento do espírito humano – é a “ideologia contratual”:
a visão de que ninguém pode ser vinculado a não ser que tenha
consentido. Quem, quando confrontados com a doença fatal da

478 “To apprehend / The point of intersection of the timeless / With time, is an occupation for
the saint” – NT.

485
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

esposa, pode justificar o divórcio com o fundamento de que essa


não era uma eventualidade que ele tinha previsto, ou um dever
que ele tinha aceitado de bom grado? É claro que é verdade
que uma pessoa “assume a responsabilidade” pela vida da outra
no casamento. Mas este “assumir a responsabilidade” não pode
ser resumido em uma promessa. Pois seus termos não podem
ser dados, nem seus deveres preditos. É assim que a transição
da paixão privada para a instituição pública dá substância ao
“voto” do amor erótico. Refazer o casamento como um con-
trato pessoal, com condições e termos, é aboli-lo, ameaçando
tanto as obrigações que ele protege quanto o estado de espírito
que se atreve a enfrentá-las. (Por isso as sentenças dos tribunais
eclesiásticos, que liberam as partes avinculo matrimonii, não
são liberações de um “contrato de casamento”, mas as declara-
ções de que nunca existiu um casamento.) O mundo do “con-
sentimento adulto”, o mundo refeito em conformidade com o
“contrato social” da iluminada consciência liberal é, em última
análise, um mundo muito tímido para o amor.
Pode-se dizer que, se as obrigações do amor são privadas, elas
não precisam de nenhuma instituição pública para protegê-las.
Mas argumentar dessa forma, creio eu, é cometer um erro sério
sobre o caráter da sociedade civil. É de supor que as relações
sociais podem simplesmente se sustentar sem a cumplicidade
do mundo social. Pelo contrário, a existência social é “existên-
cia sob observação”. Ela envolve atividades que nos colocam
sempre diante dos olhos curiosos, invejosos ou apologéticos
dos outros. O próprio sentido moral surge do hábito de voltar
para nós os mesmos olhos que dirigimos às outras pessoas. Seus
olhos em nós acabam direcionando nossos próprios olhos. E se
desenvolvemos a capacidade para o voto de amor é porque nós
nos vemos refletidos nessa observação pública, como objetos de
julgamento que não podem fazer exceções em seu próprio favor,
e que devem viver a vida da forma que é oferecida. Essa pressão
pública sobre o indivíduo torna-se suportável pelo casamento,
que instrui os outros a desviar o olhar e a criar a legitimidade
de uma vida vivida em particular. A divisão entre o público e
o privado cria o privado pela criação do espaço em que os ou-
tros são excluídos. Ao fazer isso, ela resolve a ansiedade dialé-
tica dos amantes, que desejam constantemente ter a certeza do
amor, mas que não podem exigi-la. (Cf. a passagem de Robert
486
capítulo 12 - a política do sexo

Solomon, citada na p. 238.) O casamento acaba com essa inqui-


sição, e preenche o silêncio resultante com uma resposta tácita.
Talvez seja desnecessário contrastar a condição infeliz do
adúltero, que deve ter secretude em todas as suas obras e para
quem a privacidade exigida pelo amor é uma rara conquista,
que mal começa a ser aproveitada e já é ameaçada pela des-
coberta. No entanto, não é apenas o adúltero que está nesta
situação. O elemento de generalidade em nossos sentimentos
sexuais – o elemento que nos leva a olhar para as pessoas como
“parte do jogo” – leva a uma curiosidade sobre a vida sexual
dos outros, e a um ciúme nascente, que só pode ser extinto pelo
fechamento das portas. O casamento, que é a exclusão legítima,
cria segurança e interioridade peculiares entre os amantes. Um
filósofo já escreveu sobre “o doméstico” como uma “categoria
fenomenológica” à parte.479
Stani, uma personagem do Der Schwierige de Hofmannsthal,
profere o comentário escandaloso que as mulheres são de dois
tipos: aquelas com quem você se casa e aquelas a quem você
ama.480 Há muitas razões para o casamento além do amor; por
que, então, o casamento não polui o amor com considerações
que não são dignas dele? O casamento tem um significado econô-
mico e também um significado reprodutivo. O casamento pode
ser um meio para outra coisa, e não ser valorizado por nenhuma
razão intrínseca. O amor, porém, nunca é um meio, e contém sua
virtude intrinsecamente. Em comparação com o casamento – le
ron-ron monotone du pot-au-feu conjugale, como Sardou o des-
creveu – o adultério parece mais emocionante, e normalmente
mais puro: como o era para os expositores medievais da ética do
amor cortês.481 Pode até parecer que apenas o adultério é digno
dos transportes mais elevados de amor erótico, uma vez que ape-
nas o adultério pode mostrar que é somente o amor que cria as
suas obrigações, e não a moralidade externa de uma instituição
pública poluído pelos fins e necessidades dos outros.

479 E. Husserl, Die Krisis der europäishen Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie, ed. W. Biemel, Haia, 1976.
480 Cf. Demóstenes, Against Naicea: “mantemos as senhoritas pelo prazer, as concubinas
pelo cuidado diário com nossa pessoa, e as esposas pelos filhos legítimos, e pela guarda
fiel do lar”.
481 Ver Capítulo,* e especialmente a obra de Capelão lá referida.

487
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Essa justificação tristaniana do adultério também é, no en-


tanto, um apelo pela aceitação pública do casamento, como a
base necessária para esses prazeres proibidos. O adúltero troca
a segurança pela excitação, e a intimidade por uma exposição
precária à inveja e à dor. O desejo do adúltero é maior, assim
como o desejo de comida é maior no faminto. O valor do matri-
mônio não se encontra, no entanto, na intensificação do desejo,
mas em sua realização. O casamento cria as condições objetivas
para a gênese do desejo, e se o desejo às vezes se desvia para o
proibido e o infrutífero, isso só é possível porque há um curso
normal que sustenta suas intensidades rebeldes.
É um pequeno passo da instituição do casamento à proprie-
dade privada. A relação erótica exclusiva luta pelo seu território
exclusivo; pelo direito de fechar a porta. Dentro desse territó-
rio, tudo é “compartilhado”, e uma vez que apenas o que é de
propriedade privada pode ser compartilhado privativamente, a
esfera do matrimônio e da família é um de propriedade privada.
Mais ainda, a propriedade da casa (no sentido amplo de “pos-
se”, seguindo o conceito desenvolvido no direito) é a proprie-
dade de uma participação nos meios de produção. A casa não é
apenas um “meio de consumo”, como os marxistas nos querem
fazer crer. É um lugar de trabalho coletivo, onde as coisas não
são apenas consumidas, mas feitas para o consumo. Produtos
agrícolas podem ser cultivados e vendidos; tapetes e roupas po-
dem ser costurados e bordados; a casa em si pode ser melhorada
e passada adiante. Em suma, a casa tem uma tendência natural
para se realizar como capital, e o fará até após a morte dos pais,
a menos que algum sistema político existente impeça a transi-
ção de residência para mercado. Por isso, como Hegel escreveu:
A família, como pessoa, tem sua existência externa real na
propriedade; e é só quando esta propriedade assume a forma de
capital que ela se torna a encarnação da personalidade substancial
da família.482

Essa passagem serve para nos lembrar de uma verdade pro-


funda e importante. As instituições do mundo em que nascemos
têm a aparência de artifícios políticos; elas podem parecer, sob
o impacto desta ou daquela teoria revolucionária, não ser mais
do que fases transitórias da condição histórica do homem. Mas

482 The Philosophy of Right, seção 169.

488
capítulo 12 - a política do sexo

essa aparência também pode estar enganada. Pode ser que a


natureza humana, que nos ordena a amar, nos imponha as ins-
tituições religiosas, civis e legais que abundavam em toda parte
no mundo, até que intelectuais exultantes decidiram que chega-
ra a hora de dispensá-las. Nenhum relato do amor erótico será
politicamente inocente ou politicamente neutro. E será o maior
erro de um sistema político ignorar as exigências do amor. Este
erro foi cometido, creio, pelos comunistas do século XIX, em
sua demanda por uma sociedade sem relações de exclusividade
entre pessoas ou entre pessoas e coisas: uma espécie de dança da
morte, realizada por eus numênicos indistinguíveis.
Este livro termina, porém, com a defesa do casamento. Tudo
o que eu disse sobre outras instituições não é mais que uma
sugestão, e deve aguardar argumentos mais sólidos. No lugar
deles, vou oferecer apenas um gesto. Muitas mudanças sociais
e políticas têm varrido o mundo da apreensão das coisas sagra-
das: a rejeição do costume e da cerimônia; a conversão de casa-
mento em um contrato anulável; o relaxamento das leis que go-
vernam a conduta sexual e a obscenidade; o declínio da fé e da
santidade. Conforme essas alterações têm efeito, o resultado da
experiência do amor erótico se torna perigoso e incerto. Nossa
responsabilidade retrocede cada vez mais do terreno confuso da
experiência sexual, ameaçando até anulá-la de desejo.
Assim, pode-se dizer, a minha capacidade de refletir de forma
neutra e filosófica sobre a natureza deste fenômeno talvez já
seja um indicativo de seu declínio: do fato de o desejo não ter
mais a importância para nós que fez com que os homens tentas-
sem escondê-lo na poesia ou superá-lo através da oração. O que
nós entendemos de nossa condição pode também ser transmiti-
do por nós no ato de compreensão. Porque não era para termos
conhecimento de tal coisa; nós fomos feitos apenas para ser
sujeitos a seu comando. Nenhum fenômeno, talvez, ilustre mais
profundamente o grande enunciado poético de Hegel:
Quando a Filosofia pinta o cinza de cinza, então uma parcela de
vida envelheceu. Pois o cinza da Filosofia não pode ser rejuvenescido,
mas apenas entendido. A coruja de Minerva estende suas asas
somente com o recolhimento do crepúsculo.

Por outro lado, já faz um século e meio desde que Hegel es-
creveu essas palavras, e a vida continua.

489
EPÍLOGO

Em um trabalho recente, Michel Foucault faz a seguinte


pergunta:
Por que o comportamento sexual, e por que as atividades e
prazeres que pertencem a ele, são objeto de uma preocupação
moral? Por que essa preocupação ética, que, pelo menos em certos
momentos, em certas sociedades, ou em certos grupos, parece ser
mais importante do que a atenção moral dada a outros domínios
igualmente fundamentais para a vida individual e coletiva, tais como
o fornecimento de provisões, ou a realização de deveres cívicos?
(...) Por que essa “problematização”? E depois de tudo, é a tarefa
de uma história do pensamento, em contraste com a história do
comportamento ou das representações, definir as condições em que
o ser humano “problematiza” o que ele é, o que faz, e o mundo em
que vive.483

Foucault supõe que sua pergunta é uma questão histórica.


Ele assume que podem existir sociedades em que esta “proble-
matização” do sexual não ocorreu. Defendi, entretanto, que po-
deria não haver nem excitação, nem desejo, nem os prazeres que
pertencem a eles, sem a presença, no próprio coração dessas res-
postas, dos escrúpulos morais que os limitam. O que Foucault
assume ser um fato histórico não o é, mas sim em uma verdade
a priori que diz respeito à pessoa humana. Nenhuma história
do pensamento pode mostrar que a “problematização” da expe-
riência sexual é peculiar a certas formações sociais específicas:
é característica da experiência pessoal em geral e, portanto, de
todo ordenamento social genuíno.
Ao mesmo tempo, minhas conclusões não são de forma al-
guma moralmente neutras. Nem expressam intuições comuns

483 Michel Foucault, L’Usage des plaisirs, Paris, 1984, p. 16.


491
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

a todas as pessoas e a todos os momentos. Em certo sentido, o


meu método foi descritivo: estive preocupado em analisar uma
característica de nossa compreensão intencional. Mas os con-
ceitos que eu considerei transformam a experiência de quem
os aplica. Além disso, eles são permeáveis aos
​​ sentimentos mo-
rais que crescem dentro de nossa cultura e que focam nossas
atividades de maneiras historicamente variáveis. Inevitavelmen-
te, a minha análise incluiu um grande componente prescritivo.
Como eu ofereci o que é, na verdade, uma defesa do “casamen-
to burguês”, vou certamente provocar a acusação de que mi-
nhas conclusões não podem ser válidas fora das circunstâncias
históricas que as engendraram. Isso certamente seria dito pelos
historiadores que vêem a “burguesia” como uma categoria so-
cial distinta.
Não vou responder à acusação, exceto para dizer que meus
exemplos foram extraídos da literatura grega e latina, da cava-
laria medieval e da moralidade do século XIX, da literatura da
corte do Japão e das páginas decadentes do fin-de-siècle francês.
Eu expressamente variei entre o máximo de articulações de ex-
periência sexual quanto pude, e minha última defesa da ordem
“burguesa” destina-se a ser aplicada a qualquer sociedade civi-
lizada – toda sociedade em que a pessoa humana pode emergir
como um fenômeno distinto. Basta rejeitar a história escolar
do Manifesto Comunista (uma história a que Foucault se mos-
tra obstinadamente apegado)484 para sobrar pouca substância
à alegação de que minha ordem social preferida é a burguesa.
O mesmo pode ser dito da ordem defendida por Aristóteles na
Política, por Shakespeare em Conto do Inverno e Medida por
Medida, por Homero, Chaucer, Dante e Hesíodo; por Langland,
Goldsmith, Thackerary e Dickens; por Joyce, Conrad e Lawren-
ce – em suma, por todo escritor que tenha visto o telos natural
do desejo na criação de uma unidade moral entre as pessoas. Há
filosofias “não-burguesas” do desejo. Mas o principal exemplo
– o dado por Platão – foi o alvo de meus argumentos por toda
parte. E se a sociedade burguesa é a resposta a Platão, vive la
bourgeoisie!

484 Ver Roger Scruton, “Thinkers of the Left: Michel Foucault”, Salisbury Review, I (3),
1983, reimpresso em Thinkers of the New Left, Londres, 1985.

492
APÊNDICES
I. A PRIMEIRA PESSOA

A fenomenologia envolve, para nós, duas idéias radicais. Uma


delas é a exploração do Lebenswelt. A outra é a tentativa de for-
necer uma descrição puramente “intencional” da experiência,
que não faz suposições sobre o mundo “objetivo” e que registra
o conteúdo imediato da autoconsciência.485 No Capítulo 1 evitei
a segunda idéia, e contornei os problemas gerados pela tentati-
va de Husserl – nas Meditações Cartesianas e em outros lugares
– de combinar uma teoria do “sujeito transcendental” com um
endosso do método da dúvida de Descartes. Meu propósito foi,
primeiro, relacionar o meu argumento a idéias que ganharam
considerável circulação, e em segundo lugar, acalmar qualquer
ansiedade relativa à incompetência da filosofia analítica, quer
para discutir as complexidades da experiência individual, quer
para resolver os “problemas fenomenológicos” gerados pela
tentativa de descrevê-la. Em seguida, encapsulei minhas obser-
vações relativas à primeira-pessoa dentro dos limites impostos
por um ponto de vista em terceira-pessoa. Em particular, consi-
derei a perspectiva em primeira-pessoa como uma propriedade
publicamente reconhecível e socialmente gerada das criaturas
que usam linguagem, cujo significado moral e metafísico não
está contido em algum reino exclusivamente “subjetivo”, mas
na realidade evidente de prática linguística. Esta perspectiva de
primeira-pessoa indica que não há mistério na condição huma-
na. Esses fenomenólogos que revelam um mistério são vítimas
de uma ilusão; eles criaram o que pensam ter descoberto.

485 As duas idéias são tratadas separadamente por Husserl em seu trabalho. Ver
especialmente Die Krisis der europäischen Wissenschaften und die transzendentale
Phänomenologie, ed. W. Biemel, Haia, 1976, parte 3, seção 34: “Exposition des Problems
einer Wissenschaft von der Lebenswelt.”
493
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Neste Apêndice 1, darei uma exposição mais técnica da filoso-


fia que subjaz meu tratamento do caso da primeira-pessoa. Esta
filosofia não é necessária para a compreensão do meu argumento,
mas é importante para aqueles que desejam ponderar as consequ-
ências metafísicas dos pontos de vista apresentados no corpo do
texto. Vou me preocupar em expor o que eu chamarei de “ilusão
da primeira-pessoa”. Esta é a visão em que a qualidade essen-
cial de cada estado mental está no que é imediatamente “dado” à
consciência: no que é apreendido pelo sujeito, no momento da ex-
periência, e que não pode ser compreendido por qualquer obser-
vador simplesmente do ponto de vista de uma perspectiva de “ter-
ceira-pessoa”. A qualidade essencial de uma sensação encontra-se
no “como se sente”, ao invés de em qualquer circunstância física
que causa ou evidencia isso. A qualidade essencial de uma crença
encontra-se em um conteúdo “dado” que o sujeito apreende no
ato de crer. E assim por diante. Por esse ponto de vista, a qualida-
de essencial do desejo sexual estaria no que é “dado” à perspectiva
de primeira-pessoa. Por isso, não poderia haver questionamento
sobre a natureza do desejo sexual que não fosse, no final, um in-
quérito sobre como é como se submeter a ele ou desfrutá-lo.
Mas como eu deveria responder à pergunta “como é?” Ou
seja, como devo responder a isso recorrendo apenas ao que é
dado a mim? Não há palavras que pareçam suficientes para
apreender a realidade da questão; na verdade, no final, as pa-
lavras falham. Só a experiência mesma parece capaz de conter
uma resposta. A descrição filosófica – descrição sobre a qual
se poderia encontrar uma análise do sujeito humano e de sua
posição no mundo – não parece necessária nem possível. “Saber
como é” é compartilhar uma experiência: é ter ultrapassado a
condição de observador, para quem pode existir, efetivamente,
o “conhecimento por descrição”, que capta uma verdade em
palavras, à condição de sujeito, para quem o dado é inseparável
da experiência em si. Nenhuma descrição pode me levar da pri-
meira das condições para a segunda. O melhor que pode fazer
é estimular minha imaginação, permitindo-me, se não conhecer,
pelo menos imaginar “como é”. Mas este “imaginar como é”
é em si uma experiência, não tanto em termos de informação,
mas que pode ser expressa em palavras.486 Ou melhor, pode ser

486 Sobre isso, ver meu Art and Imagination, Londres, 1974, caps. 7 e 8.

494
apêndices - i. a primeira pessoa

expressa em palavras – mas apenas metaforicamente. Quanto


menor o conteúdo intelectual de uma experiência, mais o ca-
ráter metafórico de sua descrição em primeira-pessoa torna-se
proeminente – como é evidenciado, por exemplo, na descrição
do vinho, ironicamente registrada por Evelyn Waugh num diá-
logo absurdo entre adolescentes bêbados:
“(...) É um vinhozinho tímido, como uma gazela”.
“Como um leprechaun”.
“Salpicado, numa tapeçaria campestre”.
“Como uma flauta na água parada”.
“(...) É um velho sábio”.
“Um profeta em uma caverna”.
“(...) É um colar de pérolas num pescoço branco”.
“Como um cisne”.
“Como o último unicórnio”.487
[Brideshead Revisited]

O recurso final de um escritor que deseja transmitir a expe-


riência para o inexperiente é a poesia – a linguagem da imagi-
nação. Na poesia, no entanto, as palavras são torcidas para a
tarefa de transmitir não apenas informações, mas uma experi-
ência individual que, dependente ou não de informações, nunca
poderia ser reduzida a elas.
Estados intelectuais da mente são menos obviamente “feno-
menológicos”. Parece pouco plausível falar de “como é acredi-
tar em p”, ou supor que há um aspecto subjetivo da crença que
é apreendida por esta frase. Claro que um pensamento pode
levar uma penumbra de emoção. Há, por exemplo, essa penum-
bra no pensamento da imperfeição humana – uma sensação de
mudança imutável e constância inconstante – que dá sentido

487 “(...) It is a little, shy wine, like a gazelle.”


“Like a leprechaun.”
“Dappled, in a tapestry meadow.”
“Like a flute by still water.”
“(...) And this is a wise old man.”
“A prophet in a cave.”
“(...) And this is a necklace of pearls on a White neck.”
“Like a swan.”
“Like the last unicorn” – NT.

495
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

às palavras de alguém que duvida que saiba como é ter esse


pensamento. A dúvida pode desaparecer assim que a metáfora
apropriada é fornecida:
Que estação, que castelo!
Que pilastra sem defeito!488

No entanto, a necessidade de metáfora não é ditada pelo pen-


samento, mas pela experiência. Imagine alguém dizendo: “Eu
sei como é acreditar que o cloro é um elemento, mas eu não pos-
so imaginar como seria acreditar que o cloro é um composto”.
Que diferença ele poderia ter em mente, que não a diferença
evidente no conteúdo? No entanto, mesmo as crenças, defen-
dem os fenomenólogos, devem ser entendidas subjetivamente. É
apenas para a primeira-pessoa que o conteúdo de uma crença é
imediatamente conhecido, e só subjetivamente que este conteú-
do é afirmado, em um ato mental que deve ser estudado em sua
manifestação “interior”. Tal estudo será tanto um estudo sobre
o “dado”, com igual necessidade de embelezamento metafórico,
como o estudo do aspecto “interior” da experiência.
Alguns filósofos, motivados por Husserl, têm procurado re-
solver o que eles entenderam ser o estado defeituoso da lingua-
gem natural: que ela pode falar do “dado” subjetivo apenas em
termos metafóricos. Eles tentaram desenvolver uma linguagem
de tecnicalidades filosóficas, que apreende a essência “interior”
do pensamento e da experiência, o núcleo subjetivo que per-
manece quando toda referência externa foi “suspensa”.489 O
resultado tem sido ou uma linguagem técnica cujo campo de
referência não pode ser especificado, ou então um novo tipo de
metáfora – exemplificada nas obras fenomenológicas de Hei-
degger e Sartre – que já apareceu ao longo deste trabalho. Isso
não é só verdadeiro por uma questão de fato; também é verda-
de, acredito, por uma questão de necessidade. Não há verdades
literais de “fenomenologia pura”, e, portanto, não é nenhuma

488 “O saisons, O chateaux! / Quelle ante est sans default!” – NT.


489 Essa “suspensão” (epochē), pela qual toda referência a objetos externos é descontada na
descrição de um estado mental, forneceu, para Husserl, um dos principais elementos
na análise fenomenológica. Ver o seu Ideas, General Introduction to Phenomenology,
1913, tr. W. R. Boyce Gibson, Londres, 1931.

496
apêndices - i. a primeira pessoa

deficiência da linguagem ser incapaz de apresentá-las. Pensar de


outra forma é sofrer da ilusão da primeira-pessoa.
Não são apenas os fenomenólogos que sofreram dessa ilu-
são. Ela forneceu o pensamento fundamental de muitas teorias
filosóficas, incluindo a teoria cartesiana da mente, as teorias em-
pirista e positivista do conhecimento (por exemplo, a concepção
construtivista da realidade exposta por Carnap em A Estrutura
Lógica do Mundo),490 e o conceito de Husserl da consciência
como uma “estrutura noética” puramente imanente, que con-
tém a chave para tudo o que pode ser conhecido de um mundo
objetivo que é “constituído... puramente dentro do ego trans-
cendental”.491 Para todas essas teorias o mundo se torna, nas
palavras de Husserl, “um problema universal de egologia”.492 A
ilusão da primeira-pessoa é, assim, a elaboração filosófica, e a
transformação em teoria metafísica, da “ilusão transcendental”
que assombra nossas emoções interpessoais.
É a Wittgenstein, creio, que devemos o argumento que des-
trói essa ilusão – destrói mostrando que o que parece mais certo
para a sua vítima é justamente o que ela tem mais motivos para
duvidar. O argumento contra a possibilidade de uma linguagem
privada teve muitos intérpretes e aplicações. Eu não estou su-
gerindo que a versão que irei expor representa as intenções de
Wittgenstein ou as mais longínquas das muitas consequências
decorrentes de suas observações. Meu interesse no argumento
é puramente em sua validade, e, embora eu acredite que cor-
responda a grande parte do sentido dado por Wittgenstein nas
Investigações Filosóficas, §§ 243 et seq., não é de grande impor-
tância que este ou aquele comentarista interprete essas seções de
forma diferente. Consignarei a uma nota toda discussão mais
aprofundada do sentido dado por Wittgenstein.493

490 Rudolf Carnap, Der logische Aufbau der Welt, Berlim, 1928.
491 E. Husserl, Cartesian Meditations, tr. D. Cairns, Haia, 1960, reimpresso em 1969, p. 52.
492 Ibid., p. 53.
493 As interpretações do argumento de Wittgenstein incluem:
O argumento é dirigido contra a possibilidade de uma “definição ostensivamente
privada” (G. E. M. Anscombe, em uma conversa, e A. J. Kenny, em Wittgenstein,
Londres, 1973).
O argumento conclui que eu não posso me referir a “sensações privadas”, mas somente
às circunstâncias públicas ligadas a elas. (Essa interpretação é familiar a muitos dos

497
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

O argumento começa a partir da idéia de conhecimento em


primeira-pessoa. Eu tenho acesso privilegiado aos meus atuais
estados de consciência. Eu sei, imediatamente, incorrigivelmen-
te, certamente, de vários fatos sobre minha condição atual – que
estou com dor, por exemplo. Este acesso privilegiado não se es-
tende além do momento presente. Por isso, posso cometer erros
sobre minha consciência passada e futura. Pela mesma razão,
posso cometer erros em qualquer juízo de minha condição atual
que envolve alguma hipótese sobre o passado ou o futuro. Por

primeiros críticos – ver os artigos em O. R. Jones (ed.), The Private Language Argument,
Londres, 1971.)
O argumento é o corolário de uma tese maior sobre a linguagem e, em particular, da
visão que foi conhecida como “antirrealismo”, segundo a qual o significado de uma
sentença não é determinado pelas condições de sua veracidade, mas pelas condições
de suas afirmações justificadas. (S. Kripke, Wittgenstein on Rule-Following and Private
Language, Oxford, 1982, na linha de M. Dummett, Truth and Other Enigmas, Londres,
1978, Prefácio, esp. p. XXXIV—XXXVII.)
A segunda interpretação me parece completamente equivocada. No início do argumento,
Wittgenstein coloca a questão: “Como as palavras se referem às sensações?”, e oferece
“uma sugestão” como resposta. Todo o teor do argumento é dirigido à conclusão de
que, porque nós de fato nos referimos às sensações, elas não podem ser “privadas”.
A terceira interpretação já foi criticada por mim em outra ocasião (num artigo sobre
a obra de Kripke, Mind, vol. XCII (1984), p. 592-601). Parece-me que o argumento
de Wittgenstein não depende do antirrealismo e, se dependesse, seria tão implausível
quanto o antirrealismo. A primeira interpretação é de difícil compreensão, já que
parece não dizer o que dos “processos internos” que tornam sua “ostensão” impossível.
Entretanto, é possível que o meu argumento seja compatível com essa interpretação.
O argumento começa na seção 243, onde se faz uma suposição de que as sensações
sejam objetos “imediatamente privados”. Segue-se daí que a suposição está errada,
e que as sensações não são conforme descritas nesta seção. Wittgenstein prossegue
afirmando que as palavras se referem sim às sensações, e dá uma sugestão de como
isso acontece. A sugestão imediatamente o obriga a examinar as peculiaridades do caso
da primeira-pessoa, já que essas peculiaridades indicam que sua sugestão pode estar
errada. Ele defende (seções 246-50) que o caso da primeira-pessoa foi mal interpretado
por seu oponente, favorecendo falaciosamente o “objeto privado”. Ele chega a
considerar o fato evidente que podemos falar de duas pessoas tendo a mesma sensação,
e oferece sugestões sobre o funcionamento do jogo linguístico público de “identidade”
que mostra como isso acontece. Ele, então, na seção 256, introduz o argumento da
linguagem privada, em suas várias versões. O argumento da seção 258 (o argumento
diário) parece-me fraco, e aberto às objeções feitas por Ayer e outros. (Ver os artigos
em Jones, The Private Language Argument.) Mas é só um gesto, e o argumento retorna
mais forte e devastador na seção 288 – e em sua versão subsequente que esbocei. As
seções intermediárias fornecem as observações básicas para sustentar uma teoria da
publicidade dos sentidos, que vão dar lugar ao caso das palavras sensíveis. Na minha
interpretação, fui muito influenciado pelas conversas com Malcolm Budd.

498
apêndices - i. a primeira pessoa

exemplo, eu posso estar enganado em pensar que estou aman-


do, com inveja ou desesperado. Meu privilégio de primeira-pes-
soa não se estende mais do que a minha consciência presente.
Minha crença de que eu estou com dor é certa, incorrigível e
também imediata, sem base em nenhuma observação da minha
própria condição. Seguindo Wittgenstein, tomarei as sensações
como os paradigmas de tais “objetos de conhecimento imedia-
to”. Deve-se lembrar de que este é somente um dispositivo de
conveniência, e o que eu vou dizer se aplica também a qual-
quer outro conteúdo consciente. Em particular, será aplicado
ao conteúdo imediato de pensamento e às estruturas “noéticas”
associadas, que são os objetos preferidos de análise para a feno-
menologia de Husserl.
A ilusão da primeira-pessoa surge da seguinte maneira. Mi-
nha consciência imediata da minha dor contrasta com a crença
mediata, falível e hipotética que tenho a respeito da sua. Existe
uma assimetria epistemológica entre as consciências em primei-
ra e terceira pessoas. Por isso – supõe-se – apesar de eu poder
conhecer minhas sensações, não posso realmente conhecer as
suas. Suas sensações são acessíveis a você, mas não a mim. As-
sim, uma sensação é um item essencialmente “privado”, algo
com uma essência “interior” ou “fenomênica” que não é revela-
da a ninguém além do sujeito. O episódio “interior” é contras-
tado com toda manifestação “exterior”. A “sensação em si” não
é publicamente identificável e é, portanto, diferente de qualquer
coisa que é identificável. Em particular, é distinta de todas as
condições do corpo e de cada item de comportamento por meio
de que a sensação pode encontrar “expressão”. Podemos resu-
mir a ilusão, portanto, nos seguintes termos:
Uma sensação é um “objeto privado” – aquele cuja natureza
e existência estão ligadas apenas contingentemente a qualquer
estado de coisas “publicamente identificável”, e cuja natureza
“interior” é, portanto, cognoscível apenas para o sujeito. Por
“objeto”, quero dizer “objeto de conhecimento” ou “objeto de
referência”. Eu não quero dizer que o objeto privado é um “par-
ticular reidentificável”, em vez de, digamos, uma propriedade,
um estado, um evento ou um processo. Um “objeto privado”
é um item sobre o qual apenas uma pessoa pode ter conheci-
mento genuíno – um item cujos recursos não são revelados a
ninguém a não ser a ela.

499
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

É necessário explicar o termo “publicamente identificável”.


Um item é publicamente identificável se mais de uma pessoa
puder obter provas suficientes da sua existência e propriedades.
“Suficiente” aqui significa suficiente para estabelecer uma regra
de referência, de tal modo que, usando essa regra, qualquer pes-
soa pode se referir ao item e saber exatamente a que estava se
referindo. (Dei aqui uma condição necessária, e não uma condi-
ção suficiente, para a “identificabilidade pública”, já que nada
mais é necessário.) Assim, qualquer objeto físico é publicamente
identificável, como também o são as mudanças e processos que
ocorrem em objetos físicos. Entidades teóricas também são pu-
blicamente identificáveis, mesmo que apenas possam ser obser-
vadas através de seus efeitos.
A demolição da ilusão da primeira-pessoa prossegue mos-
trando que nenhum objeto privado poderia ser um objeto de
conhecimento, uma vez que não há tal objeto que possa ser
referido. É útil começar – como Wittgenstein começa – com a
pergunta “como as palavras se referem a sensações?” (a estraté-
gia é mostrar que nós nos referimos a sensações, que não pode-
mos nos referir a objetos privados e, portanto, que as sensações
não são objetos privados). A fim de responder a nossa pergunta,
devemos desconsiderar o caso da primeira-pessoa, que é apenas
um caso especial de uso da linguagem sensível, e prestar atenção
à utilização de terceira-pessoa de termos como “dor”. Como
poderíamos estabelecer, em uma linguagem natural, uma práti-
ca de comunicação em que o termo é usado de forma referível?
A primeira condição que tal prática deve atender é a da trans-
missibilidade. Deve ser possível ensinar um novato a praticá-la,
e isso significa que deve ser possível corrigi-lo publicamente
quando ele cometer erros. Se a prática é de referência, segue-se
imediatamente que os itens referidos devem ser publicamente
identificáveis. Pois deve ser possível ao professor saber – dentro
dos limites normais de erro – quais as circunstâncias referidas
a se obter. Se ele não pode saber isso, ele não pode saber se o
aluno está procedendo corretamente ou não. Nesse caso, tudo o
que parecer certo para o aluno estará certo. Que é apenas outra
maneira de dizer que não há mais de uma verdadeira regra de
referência, colocando restrições independentes sobre o uso de
palavras do aluno. O que quer que suas palavras possam fazer
nestas circunstâncias, referir não é uma delas.

500
apêndices - i. a primeira pessoa

Portanto, se deve haver um uso genuíno e transmissível em


terceira-pessoa da linguagem sensível, temos de ligar palavras
como “dor” às circunstâncias identificáveis publicamente
​​ que
regem a sua aplicação. Wittgenstein tende a descrever essas cir-
cunstâncias como a “expressão natural” da sensação. Mas não
há necessidade de antecipar a questão (nem o fez Wittgenstein)
sobre a forma como estas circunstâncias serão finalmente des-
critas. A “expressão da sensação” pode ser entendida tanto pelo
professor quanto pelo aluno como o “sinal” de algo mais. Desde
que o “algo mais” seja publicamente identificável, pode ser aqui
entendido como o verdadeiro objeto de referência. (Este “algo
mais” pode, por exemplo, ser um processo no sistema nervoso.)
Supondo que tal linguagem sensível apareça. Como, então,
entendemos sua utilização em primeira-pessoa? No Capítulo
3 dei uma indicação de como o caso da primeira-pessoa pode
ser explicado de forma consistente com a visão de que o uso da
terceira-pessoa da linguagem sensível é anterior. Grosso modo,
defendi que o privilégio da primeira-pessoa é um recurso grama-
tical da linguagem pública – uma sombra lançada na língua pelo
fato de que os falantes podem ocasionalmente aplicar predicados
mentais a si mesmos. Esta função gramatical é gerada por e no
decurso de uma prática na qual as palavras sensíveis são utiliza-
das principalmente para descrever a condição de outras pessoas.
“Mas eu não posso estar errado; não significa nada duvidar se
estou ou não com dor!” – Isso significa que se alguém disser: “Eu
não sei se o que tenho é uma dor ou outra coisa”, devemos pensar
que ele não sabe o que a palavra “dor” significa.494

A base teórica para a observação de Wittgenstein pode ser


encontrada acima, no Capítulo 3. Aqui, devemos nos preocu-
par com duas consequências importantes: em primeiro lugar, o
privilégio da primeira-pessoa é um desdobramento do “jogo de
linguagem” público com palavras como “dor”. Em outras pa-
lavras, meu acesso privilegiado não é a “objetos particulares”,
mas a coisas como dores, onde a palavra “dor” é entendida em
seu sentido linguístico público, como referente a um fenômeno
publicamente identificável.

494 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, tr. G. E. M. Anscombe, Oxford, 1952,


seção 288.

501
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Em segundo lugar, ao atribuir sensações para mim (no senti-


do linguístico público de “sensação”), eu não preciso, de acordo
com Wittgenstein, de nenhum “critério de identidade”, nenhum
critério que me diga que eu estou usando a palavra “dor” como
eu sempre a uso para me referir à dor. O meu entendimento
da palavra garante a sua referência – mas apenas porque a sua
referência é publicamente inteligível e publicamente ensinada.
Com base nessa premissa complexa, podemos construir um
argumento contra o “objeto privado” de uma forma correspon-
dente ao procedimento de Wittgenstein nas seções seguintes ao
§243 das Investigações Filosóficas. Parece-me que o argumento
é persuasivo, e inerentemente muito mais plausível do que qual-
quer argumento que possa ser dado para a existência de objetos
particulares. Tem a seguinte estrutura geral:
(1) Como as palavras se referem a sensações? A resposta
dada acima implica que as sensações (no sentido linguís-
tico público do termo) são publicamente identificáveis.
(2) Suponha que existam “objetos particulares”. Em segui-
da, segundo (1), eles não seriam sensações (no sentido
comumente entendido deste termo).
(3) No entanto, poderíamos nos referir a “objetos particula-
res?” Se pudéssemos, seria impossível para você refutar
minha afirmação de que isto, que eu tenho agora, é um
desses objetos.
(4) Nós não podemos nos referir a objetos privados numa
linguagem pública, pois nenhum objeto privado pode,
nestas circunstâncias, ser identificado por uma regra de
referência transmissível.
(5) Também não podemos nos referir a eles em uma lingua-
gem privada, pois tal linguagem não é uma possibilidade
coerente.
(6) Também não existe qualquer outro meio de se referir a
eles.
(7) Portanto, o objeto privado não é um objeto de referência
possível.
As três etapas cruciais neste argumento – (4), (5) e (6) – po-
dem ser desenvolvidas extensivamente, e podem muito bem
ocupar um tratado cada uma. Mas eu acredito que uma expo-

502
apêndices - i. a primeira pessoa

sição relativamente breve será suficiente para mostrar sua plau-


sibilidade inerente.
O passo (4) é o objeto do célebre argumento de Wittgenstein
sobre o besouro na caixa:
Se eu digo para mim mesmo que é só pelo meu próprio caso que
eu sei o que a palavra “dor” significa – o mesmo não vale para outras
pessoas também? E como eu posso generalizar a partir de um caso
de forma tão irresponsável?
Agora alguém me diz que ele sabe o que é dor apenas a partir de
seu próprio caso!
– Suponhamos que todo mundo tivesse uma caixa com algo nela:
chamaremos esse algo de “besouro”. Ninguém pode olhar dentro
da caixa de outra pessoa, e todo mundo diz que sabe o que é um
besouro apenas com base no seu besouro. – Seria perfeitamente
possível que todos tivessem algo diferente em suas caixas. Pode-
se até imaginar que essa coisa mudasse constantemente. – Mas
suponha que a palavra “besouro” tivesse um uso na linguagem
dessas pessoas. Então não poderia ser utilizada como o nome de
uma coisa. A coisa na caixa não pertence ao jogo linguístico em
absoluto; nem mesmo como uma coisa: pois a caixa pode até estar
vazia. – Ninguém pode “criar divisões” a partir da coisa na caixa;
ela é anulada, seja o que for.
Ou seja: se interpretarmos a gramática da expressão da
sensação conforme o modelo de “objeto e designação”, o objeto é
desconsiderado por ser irrelevante.495

A fim de não se deixar enganar pela imagem, é preciso lem-


brar que na frase “ninguém pode olhar dentro da caixa de outra
pessoa”, esse “pode” significa “pode ​​logicamente”. Além disso,
a última frase, que possibilita muitas interpretações, é direta-
mente pertinente ao nosso tema enquanto “objeto” (Gegens-
tand) for entendido da maneira implícita no parágrafo anterior
– no sentido do que chamei de um “objeto privado”, cognoscí-
vel somente ao sujeito. O argumento parece estabelecer que tais
objetos são, pela sua própria natureza, irrelevantes para a apli-
cação de qualquer termo referencial em uma linguagem pública.
O uso correto desse termo não poderia depender da presença ou
ausência de um objeto privado, que, portanto, “é desconsidera-
do por ser irrelevante”. O objeto privado não pertence à regra

495 Ibid., seção 293.

503
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

que rege o uso (e, portanto, o significado) de qualquer sentença


projetada para se referir a ele, e, portanto, “um nada serviria
tão bem quanto algo sobre o qual nada pode ser dito”.496
Das respostas a este argumento, duas merecem especial con-
sideração, uma vez que expressam dúvidas que têm raízes filo-
sóficas profundas, e que não dependem da rejeição da principal
premissa do argumento da linguagem privada (a premissa de
que o privilégio da primeira-pessoa não é um fenômeno priva-
do, mas público). A primeira resposta497 diz o seguinte: é verda-
de que a regra que rege o uso de um termo em uma linguagem
pública deve ser publicamente inteligível e, portanto, aplicável​​
em circunstâncias publicamente identificáveis. Mas isto é um
estrangulamento, não na referência de tal palavra, mas em seu
sentido. E é certamente possível para um termo com um sentido
público ter uma referência privada. Não reconhecer essa pos-
sibilidade é ignorar uma distinção que, desde Frege, é uma das
pedras angulares da análise filosófica.498
A objeção é mal concebida, pelo seguinte motivo. Suponha
que nós aceitemos a distinção de Frege, e também que a re-
gra que rege o uso de uma palavra governa diretamente não a
sua referência, mas o seu sentido. Daí não se segue que não há
limites colocados por essa regra na referência do termo. Pelo
contrário, se o termo em si é referencial – se ele é designado a
distinguir algo na realidade – então seu sentido deve determinar
a sua referência. O sentido de um termo, conforme Frege, é o
“percurso” para a sua referência e, por conseguinte, não pode
ser especificada de tal forma que a referência se torne irrele-
vante para a sua utilização.499 No exemplo de Wittgenstein, o
besouro (ou objeto privado) poderia não existir – ainda pode
ser correto usar a palavra que supostamente se refere a ele. Mas

496 Ibid., seção 304.


497 Essa é a resposta, e.g., de Don Locke, em Myself and Others, Oxford, 1963.
498 G. Frege, “On Sense and Reference” (irritantemente retraduzido como “On Sense and
Meaning”), The Philosophical Writing of Gottlob Frege, tr. e ed. P. T. Geach e M. Black,
Oxford, 1952.
499 Ver a discussão em M. Dummett, Frege, Philosophy of Language, Londres, 1973.
Dummett interpreta a idéia de um “percurso” referencial em termos epistemológicos,
i.e., como um procedimento para descoberta do referente de um termo. Isso claramente
não é necessário. Ver D. C. Dennett, “Beyond Belief ”, em A. Woodfield (ed.), Thought
and Object, Essays on Intentionality, Oxford, 1982.

504
apêndices - i. a primeira pessoa

se é assim, o sentido dado não é uma rota para essa referência.


E o exemplo é claramente de aplicação geral, o que implica que
nenhuma palavra com um sentido público poderia ter uma refe-
rência particular. Mesmo se algo privado ocorrer toda vez que a
palavra é usada, a palavra não se refere (na linguagem pública)
a essa coisa privada. O objeto privado simplesmente é desconsi-
derado por ser irrelevante.
A segunda objeção levanta questões de grande complexidade,
e terei de me contentar com um mero esboço de uma resposta. A
regra para o uso da palavra “besouro”, conforme essa objeção,
não é uma regra determinando a verdade de afirmações como
“Há um besouro na minha caixa”. É uma regra determinando
a sua “correção” ou “assertividade”, uma regra enquadrada no
contexto do que é conhecido500 como uma teoria “antirrealista”
do significado. É simplesmente um fato geral sobre a linguagem
pública ficar aquém de garantir a referência a tais entidades
como o besouro, e não um fato específico sobre sua nature-
za “privada”. Pois nenhuma regra em uma linguagem pública
pode realmente ser ligada a uma idéia de referência; o melhor
que podemos fazer é estabelecer condições para a assertividade
ou correção de nossas frases.
No entanto, suponha que aceitamos os fundamentos dessa
acusação – que o objetivo fundamental de uma regra de uso
consiste em estabelecer normas não de verdade, mas de asserti-
vidade. Isso não pode realmente perturbar a conclusão do argu-
mento, o que é que, apesar de podermos falar em uma linguagem
pública sobre coisas publicamente identificáveis, não podemos
falar sobre objetos privados nessa linguagem. O antirrealismo
implica simplesmente que devemos dar aqui uma nova inter-
pretação à palavra “sobre”, uma interpretação que não esteja
baseada na idéia de correspondência com a realidade, mas na
idéia de assertividade. Mas essa reinterpretação passará atra-
vés de toda a linguagem, e será absorvida, por assim dizer, na
própria estrutura do enunciado público. Não faz nenhuma dife-
rença real para qualquer argumento particular, sobre qualquer
tipo particular de coisa. Portanto, não faz nada para mudar a
validade da conclusão de que as afirmações em uma linguagem

500 Ver Dummett, Frege, Philosophy of Language, e Kripke, Wittgenstein on Rule-Following.

505
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

pública podem ser sobre o que é publicamente identificável, mas


não sobre objetos particulares. O antirrealismo altera apenas a
interpretação geral e metalinguística de nossas sentenças e sua
suposta ligação com o mundo. Para os nossos propósitos, tal
teoria é irrelevante.
Além disso, parece-me extremamente tendencioso passar da
opinião de que, no aprendizado de línguas, aprendemos “regras
de correção”, à conclusão de que, portanto, é a correção, e não a
verdade, que é a idéia semântica primária. Certamente, compre-
endemos as “regras de correção” só porque respondemos a elas
como às regras de um empreendimento comum (ou jogo de lin-
guagem); e o propósito desse empreendimento não é estabelecer
um acordo com os outros, aconteça o que acontecer, mas infor-
mar-se mutuamente sobre uma realidade independente. (Claro
que talvez não pudéssemos fazer isso, a menos que o acordo –
sobre utilização, julgamentos, “formas de vida” – fosse a condi-
ção normal.) Uma regra como a mencionada no caso do besouro
na caixa deve ser vista como parte de uma tentativa de ligar a
linguagem com a realidade. A pergunta era: ela poderia também
ligar a linguagem da forma requerida (da maneira “referencial”)
a um objeto privado? E a resposta foi que não poderia.
Mas isso nos leva ao argumento da linguagem privada. Pode
ser arguido que podemos, no entanto, nos referir a objetos par-
ticulares em uma linguagem concebida especialmente para esse
fim, contanto que abandonemos a exigência de que a linguagem
deva ser publicamente inteligível. Pelo menos eu, o inventor e
usuário da língua, poderia saber o que quero dizer; e isso é su-
ficiente. Para mim, pelo menos, o “objeto privado” não “é des-
considerado por ser irrelevante”. Pois eu posso, por assim dizer,
ver que ele está lá.
Vários argumentos foram propostos na literatura recente, ba-
seados mais ou menos em escritos posteriores de Wittgenstein,
para a conclusão de que tal “linguagem privada” é impossível.
Ao apresentar esses argumentos, não desejo rejeitar os outros
que foram propostos. Pelo contrário, vou defender uma con-
clusão que muitos consideraram persuasiva, por muitas razões
diferentes (mas relacionadas).
Neste Apêndice, e no Capítulo 3, afirmei a natureza autorres-
ponsável do “caso da primeira-pessoa”. A garantia – que torna

506
apêndices - i. a primeira pessoa

absurdo para mim questionar se estou com dor agora – é-me


conferida pela gramática de nossa linguagem pública. Ela tam-
bém cria a ilusão da primeira-pessoa; a ilusão de que, no meu
próprio caso, algo é “dado” para mim, que só eu posso saber.
Este recurso especial da linguagem pública deve ser visto como
um epifenômeno, uma consequência “gramatical” da extensão
para o meu caso de predicados aprendidos no fórum público,
onde são regidos pelo ponto de vista de terceira-pessoa. Não
se pode supor que tal recurso vai sobreviver à destruição das
condições que tornam a linguagem inteligível publicamente. Se
removermos essas condições, portanto, devemos exigir proce-
dimentos para a aplicação dos predicados de nossa linguagem,
as regras que especificam as condições em que as palavras refe-
renciais são corretamente aplicadas. Segundo o idioma de Wit-
tgenstein: se nós “anularmos o jogo de linguagem normal com
a expressão de sensação”, vamos precisar de um “critério de
identidade”, algo que informe o usuário da língua privada que
ele realmente está se referindo, como pretendia, a um objeto
privado: “e então a possibilidade de erro existe”.501
Em outras palavras, a garantia que rege as minhas atribuições
de primeira-pessoa na linguagem pública, e que sustenta minha
afirmação de saber imediatamente e incorrigivelmente que isto
que eu sinto agora é uma dor, não pode garantir minha afirma-
ção de que isso, que agora me confronta, é um objeto privado.
Eu posso estar errado em pensar assim. Pois, afinal, esta “priva-
cidade” não é uma propriedade ostentada pelo objeto: não é um
recurso “imediato” de algo que está ligado apenas contingente-
mente ao mundo dos objetos públicos. O caráter “cartesiano”
de um objeto não é “dado” à “consciência”. (Também não é
correto assumir essa “consciência” – que é, afinal, uma palavra
da nossa linguagem pública, obediente às condições que foram
“ab-rogadas” – indica a relação entre quem fala a linguagem
privada e o objeto que ele pretende descrever.)
Vamos supor que quem fala a língua privada tem o direito,
por qualquer motivo, de assumir que algo ocorre sempre que
ele usa o sinal “S”. Ele deseja que o sinal se refira a um objeto
privado. Ele deve, portanto, ter alguma garantia de que isso que

501 Investigações Filosóficas, seção 288.

507
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ocorre é tal objeto. Que garantia que ele pode obter? Como ele
pode testar sua hipótese, que isto, que agora o confronta, não é
publicamente identificável?
A tentação é de responder o seguinte. Quem fala essa língua,
que está familiarizado diretamente com essa coisa, está em posi-
ção de saber que é privada. Pois ele é capaz de saber algo sobre
essa presente ocorrência (por exemplo, que ela ocorre). E isso
já não é mais do que está publicamente disponível? O objeto,
portanto, já não é privado, ou pelo menos, por assim dizer, tem
partes privadas?
A resposta é não. O máximo que está implícito é que agora
parece que ele está diante de um objeto privado. A hipótese de
que ninguém mais pode saber sobre ele é uma hipótese a que ele
não tem direito. Pois este fato (se é que é um fato) não é “dado”
a ele. Pelo contrário, não é mais do que uma especulação filo-
sófica e, além disso, uma que não pode ter fundamentos con-
cebíveis. A tentação é dizer que ele pode simplesmente saber,
sem provas, que este é um objeto privado. Mas é uma tentação
que deve ser combatida. Mesmo se nós permitirmos que algo
é “dado” ao usuário linguagem privada, não podemos inferir
que a coisa é um objeto particular. Pelo contrário, os únicos
exemplos plausíveis de que dispomos do que é “dado” – sensa-
ções, pensamentos, experiências – são fenômenos publicamente
identificáveis, que descrevemos sem problemas numa linguagem
pública. Dada a revogação das condições normais que regem o
“acesso privilegiado”, não podemos supor que nada está garan-
tido para o usuário da linguagem privada pela sua noção de que
agora é a ocasião de usar a palavra “S”. O que lhe parece certo
é certo. Mas isso significa que a regra que ele parece seguir não
é mais do que a aparência de uma regra.
Parece que estamos sendo forçados à conclusão de que quem
fala a linguagem privada não terá êxito em estabelecer uma nor-
ma de referência. A suposição de que a palavra “S” indica um
objeto privado continua a ser, para ele, uma mera suposição que
poderia ser verdadeira ou falsa sem fazer qualquer diferença
para a sua prática linguística. Nem ele nem ninguém podem ter
a menor razão para pensar que ele está se referindo a um objeto
privado. E aqui somos tentados a concordar com Wittgenstein,

508
apêndices - i. a primeira pessoa

que “uma roda que pode ser girada, mas que nada se move com
ela, não faz parte do mecanismo”.502
Nossa estratégia agora pode ser concluída passando para o
estágio (6) do argumento: a proposição de que não há nenhuma
língua em que objetos particulares podem ser referidos. Apenas
uma curta consideração é necessária para confirmar isso. Uma
linguagem é pública enquanto suas regras de referência identifi-
quem seu objeto de maneiras acessíveis a mais de um. Não im-
porta se apenas uma pessoa efetivamente fale essa língua.503 Se
o campo de referência for publicamente identificável, a lingua-
gem é publicamente transmissível. Uma linguagem que não é
publicamente transmissível deve ser uma língua cujo campo de
referência não pode ser publicamente definido. E tal língua cai-
ria sob a mesmíssima crítica que levantei contra as linguagens
privadas – a crítica de que, nestas circunstâncias, não foi pos-
sível estabelecer uma regra de referência. Além disso, a tentati-
va de se referir a um objeto privado será sempre equivalente à
tentativa de estabelecer uma linguagem privada. Assim, dada a
impossibilidade dessa tentativa, podemos concluir que nenhum
objeto privado pode ser referido.
Mas, alguém dirá, você já não se referiu aos objetos particu-
lares ao longo do mesmo argumento que pretendia negar que
isso era possível? Do que mais você estava falando? Como você
pode negar não só a existência, mas, por assim dizer, a própria
verbalização de algo? Como você pode formular a proposição
de que certo tipo de coisa não pode ser referido sem, ao mesmo
tempo, se referir a ele?
Há algo opressivamente hegeliano sobre essa objeção, que
argumenta que é impossível traçar limites para a referência, já
que todas as tentativas de traçar esses limites acabam por es-
tendê-los. Ao mesmo tempo, a objeção nos lembra de que os
nossos argumentos sobre referência não são tanto linguísticos
como são epistemológicos: eles não dizem respeito ao que pode
ser dito, mas ao que pode ser pensado. Devemos, aqui, passar

502 Ibid., seção 271.


503 Pace, e.g., A J. Ayer (“Can There be a Private Language?”, em Jones, The Private Language
Argument), que afirma que a prova de Wittgenstein, se válida, impediria Robinson
Crusoé de aprender sua língua no isolamento.

509
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

de Wittgenstein ao seu predecessor, Kant, cujo “idealismo trans-


cendental” se deparou com precisamente a mesma dificuldade
e precisamente pelas mesmas razões. Kant tentou traçar limites
não explicitamente para nossos poderes de referência, mas para
a compreensão (da faculdade de julgar). Mas a diferença entre
Kant e Wittgenstein está na ênfase. Um julgamento, para Kant,
é o que pode ser verdadeiro ou falso: o que pretende declarar
um fato, ou referir-se ao mundo. Assim, uma exploração dos
limites da compreensão humana, no sentido de Kant, é também,
por isso mesmo, uma investigação sobre os limites da referência.
A teoria de Kant pode ser resumida da seguinte forma. Te-
mos conhecimento de fenômenos, que são “objetos de experi-
ência possível”, ou seja, objetos conhecidos por nós, e que, por
conseguinte, estão em conformidade com as nossas capacidades
mentais. Esses objetos devem satisfazer determinadas condições
a priori. Em particular, devem estar situados no espaço e no
tempo, e devem exemplificar as categorias, incluindo as catego-
rias de substância (o que implica que os objetos da experiência
também subsistem) e de causa (o que implica que nada existe
que não seja o efeito de alguma outra coisa). Os fenômenos
incluem as entidades teóricas postuladas pela ciência natural,504
objetos conhecidos por nós apenas por inferência a partir de
seus efeitos,505 e os objetos do cotidiano com os quais temos
contato físico. Todos esses objetos estão presos pelas condições
previstas na idéia de “experiência possível”. A compreensão hu-
mana não pode avançar além dessas condições, e a tentativa
de pensar fora delas é repleta de paradoxos. Suponha que hou-
vesse um objeto inacessível à experiência – um objeto que não
entre em nenhuma relação empírica com nenhum observador
possível, e que, portanto, não está de acordo com as categorias.
Tal objeto seria inacessível à compreensão; nenhum julgamento
pode ser feito sobre ele. Seria, em termos kantianos, um “nú-
meno”: algo cuja existência e natureza não tem correlato na
experiência humana, e que poderia não entrar em nenhuma re-
lação causal com nada que podemos observar. Para tal objeto,

504 I. Kant, Critique of Pure Reason, (1781, 1787), tr. N. Kemp Smith, Londres, 1929, A 442
(B 470).
505 Ibid., A 496 (B 524).

510
apêndices - i. a primeira pessoa

poder-se-ia muito bem aplicar o dito Wittgenstein, que um nada


serviria tanto quanto algo sobre o qual nada pode ser dito.
É evidente que há uma semelhança muito importante entre
as conclusões de Kant e as de Wittgenstein. O argumento de
Kant implica que só podemos nos referir a objetos se eles forem
“objetos de experiência possível “ (no sentido amplo dado a
essa frase pela teoria detalhada das categorias). O argumento
de Wittgenstein implica que só podemos nos referir a objetos se
eles forem “publicamente identificáveis”. Estas duas restrições à
referência são muito semelhantes, se não idênticas. Wittgenstein
completa um argumento já sugerido em “A Refutação do Idea-
lismo” e “Os Paralogismos da Razão Pura” na primeira Crítica.
Ele chega à extraordinária conclusão que o item postulado por
tantos filósofos como o mais imediatamente conhecido de todos
os fenômenos empíricos – o “objeto privado” da epistemologia
cartesiana e empirista – não é um fenômeno em absoluto, mas
um númeno, sobre o qual nada inteligível pode ser dito.
Retornemos agora à objeção. Devemos responder da manei-
ra sugerida por Kant, que argumentou que o conceito do nú-
meno era legítimo apenas em seu emprego negativo. Pode ser
usado para traçar um limite para a compreensão, mas não para
superar este limite. Empregar o conceito de forma positiva é
empregar uma “idéia da razão”, levando inevitavelmente ao pa-
radoxo e autocontradição. No uso negativo do conceito de um
númeno, não fazemos afirmações sobre o que existe, mas ape-
nas dizemos: este caminho não leva a lugar nenhum. O mesmo
ocorre com o conceito de um objeto privado. O argumento que
dei mostra que qualquer aplicação do conceito de um objeto
privado, a fim de identificar um item no mundo, não será mais
do que a aplicação aparente de um conceito (ou a aplicação
de um conceito aparente). Não há nenhuma maneira de usar a
idéia de um objeto privado para denotar algum constituinte da
realidade. Tudo o que se pode dizer é que essa idéia – a idéia
de uma coisa, estado, evento ou processo cognoscível, em prin-
cípio, apenas para uma pessoa – não tem aplicação. Dizer isso
mesmo não significa aplicar o conceito, mas recusar-se a aplicá
-lo, como Kant (em seus momentos mais consistentes) recusou-
se a aplicar o conceito de um númeno.

511
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A referência a Kant nos lembra de outro problema – o das


entidades abstratas e matemáticas. Uma das razões para a teoria
peculiar de Kant da matemática, como a descrição de “formas
de sensibilidade” a priori, era evitar a conclusão de que entida-
des matemáticas, como números, são númenos. Nós certamente
nos referimos aos números. E ainda assim eles parecem estar
fora do espaço e do tempo, e não tem relações causais com o
mundo dos fenômenos. Na verdade, eles não têm relações cau-
sais quaisquer. É claro, é o fato de que eu coloquei três maçãs,
e não duas, sobre a balança que a fez balançar. Mas isso não é
uma conquista causal peculiar ao número três. Pois de que for-
ma o número três em si foi afetado por essa mudança? E não é
estranho, e contra todas as nossas intuições sobre a causalidade,
que um objeto participe na mudança e, ainda assim, seja eterna-
mente imune a ela? Além disso, por que dizemos que o número
três causou a mudança, e não o número seis – pois havia seis
meias maçãs na balança? (E assim por diante, com todos os
números.) Essas considerações, e as relacionadas, sugerem que,
se os números são entidades independentes genuínas, eles não
estão “conforme as categorias”, e não são “objetos de experiên-
cia possível”.
Mas esses fatos – apesar de terem causado um problema evi-
dente para Kant – não causar um problema para o argumento
da linguagem privada. Poies eles não implicam que os números
e outros objetos matemáticos não são “publicamente identifi-
cáveis”. Pelo contrário, é a tentativa de compreender como as
entidades de matemática podem ser identificadas como objetos
de referência em uma linguagem pública, que motivou muita
da filosofia da matemática, e em particular as teorias “constru-
tivistas” desenvolvidas por Brouwer e aceitas parcialmente por
um Wittgenstein tardio.506 A idéia da identificabilidade pública
é mais ampla do que o conceito kantiano de um “fenômeno”.
Para um item ser publicamente identificável, basta que exista
um processo em que um professor possa saber (dentro dos li-

506 Não há dúvida de que a obra Remarks on the Foundations of Mathematics (ed. G. H.
von Wright, R. Rhees e G. E. M. Anscombe, tr. G. E. M. Anscombe, Oxford, 1956)
mostra que Wittgenstein foi parcialmente persuadido pela abordagem construtivista.
Eu acredito que ele foi motivado não por uma teoria “antirrealista” geral do significado,
mas pelo desejo de considerar as peculiaridades da verdade matemática – em especial,
seu caráter a priori e necessário.

512
apêndices - i. a primeira pessoa

mites normais de erro) que um aluno está se referindo a esse


objeto, ao invés de outro, ou a nenhum objeto em absoluto.
Além disso, o que quer que sejam, os números não são ob-
jetos privados. Como todas as entidades abstratas, eles existem
como um problema dentro do reino de referência pública. Eles
são publicamente identificáveis – disso temos a certeza. Mas
não sabemos como. Eles não podem afetar a validade do ar-
gumento que dei, e pode ser reemersos em segurança na sua
existência problemática.
***
O resultado da discussão deste Apêndice é este. O caso da
primeira-pessoa, com seu acesso privilegiado e a perspectiva
que surge dele, é um fenômeno publicamente identificável. Ele
não cria, nem testemunha, um reino “interior” distinto. Não
existe um “sujeito transcendental”, nem um “ego cartesiano”,
nem uma “essência interior”, que possa fornecer o objeto de
uma investigação puramente fenomenológica. Quaisquer que
sejam as peculiaridades do caso da primeira-pessoa, elas podem
não podem sustentar a ilusão de que eu sei algo sobre mim que
me torna, em princípio, inacessível a você.
As consequências ontológicas são enormes. Não só temos de
abandonar a visão cartesiana da mente; também somos, creio
eu, inevitavelmente levados em direção à visão de que a men-
te, como qualquer objeto de referência, é publicamente iden-
tificável. É, portanto, uma parte da natureza, e se quisermos
expressar esse pensamento na (enganosa) linguagem moderna,
diremos que a mente é uma coisa física.507 Para nós, no entanto,
o interesse pelo argumento não é tanto ontológico como meto-
dológico. Pois isso implica que não pode haver uma “fenome-
nologia pura”. A tentativa de apreender a essência de um estado
mental, concentrando-se em sua manifestação em primeira-pes-
soa, está fadada ao fracasso. Além disso, a ilusão da primeira
-pessoa – a ilusão de que o que eu sou para mim, eu não sou,
e nunca poderei ser, para você – não tem fundamento. É uma
ilusão de que sou inevitavelmente presa. Mas também não é
mais que uma “idéia da razão”, que me representa como algo
que eu não posso ser, seja para o outro, seja para mim mesmo.

507 Ver o Apêncice 2.

513
II. INTENCIONALIDADE

As leis da física que governam o comportamento dos átomos


e os movimentos das estrelas governam também a conduta dos
seres racionais. E ainda:
O ser ainda está encantado por nós; em cem
Lugares continua a ser uma fonte – um jogo de pura
Força, que não toca ninguém, que não se ajoelha e admira.
Palavras ainda vão suavemente para em direção ao indizível.
E a música, sempre nova, de pedras palpitantes
Constrói no espaço inútil seu lar piedoso.
[Rilke, Sonetos a Orfeu, II]508

Este encantamento – revelado a nós na constante sugestão de


coisas sagradas – não pertence ao mundo da ciência física, mas
ao Lebenswelt, que nós mesmos construímos através de nos-
sas ações combinadas. O “realista científico” só vê um mundo
desencantado; e o que ele vê é real. Mas na realidade também
fazemos nosso lar e, ao fazê-lo, nós damos o significado que
falta ao mundo da ciência. Tentei apresentar o funcionamento
deste “entendimento intencional” na criação de uma importan-
te experiência humana. Mas nada que eu disse tem a menor
intenção de contradizer a ontologia “fisicalista”, ou de sugerir
que a realidade humana desafia as leis da natureza. No Apên-
dice anterior, ataquei a persistente superstição de que a existên-

508 Being is still enchanted for us; in a hundred


Places it remains a source – a play of pure
Powers, which touches no one, who does not kneel and wonder.
Words still go softly forth towards the unsayable.
And music, always new, from palpitating stones
Builds in useless space its godly home – NT.
515
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

cia de um ponto de vista “subjetivo” refuta a visão de mundo


científica. Uma compreensão adequada do que se entende pela
tese de que o mental é “publicamente identificável” nos levará
em direção ao fisicalista, em direção à visão de que somos os
organismos em que estamos encarnados. Como argumentei em
vários pontos, essa verdade constantemente invade nosso senso
moral, e nos obriga a reconhecer que o significado e o valor não
estão na supraesfera platônica, mas aqui e agora, nestes olhos,
nestas palavras, neste rosto e neste corpo.
Eu me baseei em uma compreensão bastante intuitiva de
“intencionalidade”, um termo utilizado para designar o “dire-
cionamento” dos estados mentais, e substituí essa compreensão
intuitiva por um esboço de teoria. Meu propósito é duplo: em
primeiro lugar, dissipar a impressão de que a intencionalidade
cria um obstáculo para o tipo de fisicalismo que assumi; em se-
gundo lugar, analisar a “compreensão intencional”. Muitos dos
meus argumentos já são conhecidos da literatura recente, e vou
resumi-los da forma mais breve possível. Eu novamente apre-
sento um estudo de terceira-pessoa do caso da primeira-pessoa
(um pouco do que Dennett chamou de “heterofenomenolo-
gia”).509 Mas essa ênfase na terceira-pessoa ainda vai permitir a
conclusão de que o Lebenswelt é parcialmente constituído por
nossas atitudes e poderes.
O conceito de intencionalidade foi reintroduzido na filosofia
da mente por Brentano, que argumentou que:
todo fenômeno mental é caracterizado pelo que os escolásticos da
Idade Média chamaram de inexistência [Inexistenz] intencional
(e também mental) de um objeto [Gegenstand], e que poderíamos
chamar, embora não de forma inequívoca, de referência a um
conteúdo, uma direção sobre um objeto (pelo qual não estamos
entendendo a realidade, neste caso) ou objetividade imanente.510

A obscuridade desta passagem combina com sua extrema he-


sitação. Ela é ainda agravada pela descrição de Brentano da in-
tencionalidade como a marca que distingue os fenômenos men-

509 D. C. Dennett, “Beyond Belief ”, em A. Woodfield (ed.), Thought and Object, Essays on
Intentionality, Oxford, 1982.
510 F. Brentano, Psychology from an Empirical Standpoint, 2ª ed., ed. Oskar Kraus, Leipzig,
tr. A. C. Rancurello, D. B. Terrell e L. L. McAlister, Londres, 1973, livro II, cap. 1, seção
5, p. 88-9. (Eu fiz uma pequena modificação na tradução.)

516
apêndices - ii. intencionalidade

tais dos fenômenos físicos, sendo estes últimos descritos não


como características objetivas do mundo natural, mas como
aparências. Em edições posteriores de Psychology from an Em-
pirical Standpoint, Brentano descreveu a intencionalidade como
uma propriedade da “atividade mental”, e a caracterizou como
uma espécie de “referência mental”.511 Mas em nenhum lugar
de seus escritos fica realmente claro que propriedade ele tinha
em mente.
A obscuridade de Brentano foi herdada por seu pupilo Hus-
serl, cujo método de “redução fenomenológica” deveria isolar
o componente intencional (ou “estrutura noética”) de cada es-
tado da mente, “suspendendo” toda referência ao mundo ma-
terial.512 Por este método, Husserl afirmou que há importantes
e intrincados “problemas fenomenológicos” – problemas rela-
tivos à “direção” ou “referência” de nossos estados mentais.
Outros filósofos – notadamente Merleau-Ponty e Heidegger
– fizeram adições substanciais a esses problemas.513 Mas nem
Husserl nem os seus discípulos mostraram sobre o que tratam
esses problemas, ou por que temos de resolvê-los a fim de obter
uma compreensão da mente humana. Pois, em todo caso, assu-
miu-se que nós sabemos exatamente o que está sendo referido
como o “objeto” de um estado mental, e precisamente o que se
entende por palavras como “de”, “sobre”, “para”, na descrição
dos pensamentos e respostas humanos.
A questão ficou ainda pior pela tentativa de encontrar, na dis-
cussão de Brentano, um “critério do mental”. Entre os filósofos
analíticos, esta tentativa teve uma inclinação peculiar. Supôs-se
que não deveríamos procurar uma propriedade do mental em
si, mas do mental conforme descrito. Procura-se por um recurso
gramatical de sentenças referentes a estados mentais. Por exem-

511 Ibid., Observações Complementares, p. 271 et. seq., Ver também a Introdução à segunda
edição da obra de Brentano (incluído como um pós-escrito ao texto inglês), por Oskar
Kraus, seção esp. II, p. 373 et seq.
512 Ver E. Husserl, Ideas, General Introduction to Phenomenology, 1913, tr. W. R. Boyce
Gibson, Londres, 1931.
513 Mas, como Wittgenstein assinala em seu pertinente Anotações sobre as cores (Remarks
on Colour, ed. G. E. M. Anscombe, tr. L. L. McAlister e M. Schattle, Oxford, 1977), “não
há tal coisa como a fenomenologia, apesar de existirem problemas fenomenológicos”
(seção 53).

517
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

plo, foi sugerido que os “contextos mentais” (contextos em que


algum item mental é identificado) sempre incluem um termo que
ocorre sem referência, ou com uma referência oblíqua ou distor-
cida. Assim, se João acredita que F(a), e a = b, parece não se seguir
que João acredita que F(b). Essa propriedade de contextos, como
“John acredita que...”, “John acha que...”, e assim por diante,
é uma propriedade das próprias crenças e pensamentos apenas
no sentido em que estes elementos são (ou, mais interessante,
devem ser) referidos de tal maneira. Brentano argumentou que
“[o objeto imanente] sendo um objeto (...) é apenas o correlato
linguístico da pessoa pensando que o tem como objeto”,514 im-
plicando, assim, que o recurso “gramatical” da intencionalidade
é secundário. Os filósofos analíticos, em geral, tendem a torná-lo
primário, entendendo que a “referência mental” é inescrutável
até ser apreendida na linguagem, e que o que é mostrado como
verdadeiro de cada identificação genuína de um “objeto mental”
deve ser verdadeiro a respeito do próprio objeto.
Pensou-se nesta concentração na gramática para cumprir
uma função filosófica útil. Se puder ser demonstrado que con-
textos empregados em referência a processos físicos não preci-
sam possuir “intencionalidade”, enquanto contextos emprega-
dos em referência a processos mentais devem possuí-la, então
(espera-se) este seria um argumento eficaz contra qualquer te-
oria que sustentasse que as declarações mentais são traduzíveis
em declarações equivalentes sobre o mundo físico.515 (O beha-
viorismo é uma dessas teorias.) Pode até ser um tipo de argu-
mento contra as teorias fisicalistas que são menos abertamente
“reducionistas” do que o behaviorismo – que não defendem
uma equivalência lógica entre as descrições físicas e mentais,
mas apenas uma identidade de referência.
Um momento de reflexão mostra a futilidade desta esperan-
ça. Suponha que alguém alegue ter chegado a uma definição
satisfatória de “intencionalidade” como um termo que denota
alguma propriedade possuída por todos os contextos, e apenas
a esses, que se referem a itens mentais. O que nos diz que a de-

514 F. Brentano, The True and the Evident, ed. O Kraus, tr. R. Chisholm, Londres, 1966, p.
78.
515 Ver R. Chisholm, em H. N. Castañeda (ed.), Intentionality, Minds and Perception,
Detroit, 1967.

518
apêndices - ii. intencionalidade

finição é satisfatória? O teste usual é que ela deve se encaixar


exatamente em nossa noção anterior do mental: diz-se que a
propriedade definida pertence a todos os contextos, e apenas a
esses, em que um item mental é identificado. Em outras palavras,
o procedimento é extensional. A última requisição, entretanto, é
uma prova de que os itens mentais devem ser identificados em
contextos intencionais.
Não obstante, mesmo que tal prova possa ser dada, é difícil
visualizar o que se segue. Donald Davidson, por exemplo, de-
fendeu a tese (que ele explicitamente associa com a teoria kan-
tiana dos pontos de vista rivais, “empírico” ​​e “transcendental”,
sobre a nossa própria mentalidade) que identificar um objeto
como mental é identificá-lo na “linguagem intencional” – lin-
guagem que resiste à tradução para o discurso da ciência físi-
ca.516 Ainda assim, ele afirma, o que se segue não é a natureza
“não-física” dos itens mentais, mas o caráter “anômalo” das
descrições mentais: sua inutilidade na formulação de leis cau-
sais. Não podemos concluir que não há alguma outra maneira
de se referir a itens mentais de modo a identificá-los como o
objeto de leis causais. De fato, Davidson argumenta, deve haver
leis causais regendo a interação entre o mental e o físico, de for-
ma que os eventos mentais devam ser identificáveis desta outra
maneira. Para Davidson, portanto, a tese da “intencionalidade
do mental” fornece um argumento a favor de algum tipo de
monismo, e não contra. Além disso, Dennett e outros têm ar-
gumentado517 que poderiam existir máquinas que são “sistemas
intencionais”, cujo comportamento pode ser eficientemente (se
é que não finalmente) explicado pela referência a atitudes pro-
posicionais. Isso sugere que pode haver verdadeiras leis causais,
cuja declaração envolve o uso da linguagem “intencional”, e
cujo objeto consiste em processos puramente físicos (e, mais do
que isso, inorgânicos).
A moral de tais argumentos é simples. Devemos nos abster de
extrair quaisquer conclusões gerais, quer sobre o estado ontoló-
gico dos itens mentais, quer sobre a perspectiva epistemológica

516 D. Davidson, “Mental Events”, em Essays on Actions and Events, Oxford, 1980.
517 D. C. Dennett, “Intentional Systems”, Journal of Philosophy, vol. 68 (1971), reimpresso
em Brainstorms, Brighton, 1978.

519
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

que devemos manter sobre eles, a partir da premissa de que


alguns deles, ou todos eles, são identificados em contextos “in-
tencionais”. Ao mesmo tempo, a intencionalidade apresenta um
problema insolúvel para a filosofia da mente e para a tentativa
de mapear a relação entre o mundo e nossa resposta a ele de um
ponto de vista que não é o do próprio sujeito. Assim, vou es-
boçar uma teoria daquilo que Brentano chamou de “referência
mental”,518 e que os filósofos mais recentes chamam por vezes
de “representação mental”.519
A definição de Brentano refere-se à “inexistência intencional
de um objeto” – a existência de um objeto interno ao “ato men-
tal”. Isto tem sido comumente interpretado da seguinte forma:
há itens mentais que têm objetos, de modo que (a) não se segue
que haja qualquer objeto “real” fora da mente; (b) se houver
tal objeto tão real, então não se pode concluir que ele é o que
parece ser, ou parece ser como é; (c) o “objeto interno” pode ser
indeterminado – em outras palavras, pode não haver um obje-
to particular, mas apenas um objeto de uma espécie particular.
Assim, se eu temo um leão, não se segue que há um leão que eu
temo, ou que o leão que eu temo é como parece ser (talvez esteja
ferido e incapaz de avançar), ou que haja qualquer leão particu-
lar a que o meu medo seja dirigido (posso ter sido aconselhado
para ter cuidado, uma vez que existem leões nas redondezas).
Se traduzirmos essa sugestão em uma definição de contextos
intencionais – em vez de uma caracterização dos itens descri-
tos neles – descobrimos que há uma forte semelhança entre a
intencionalidade e o conceito de não-extensionalidade (ou “in-
tensionalidade”) do lógico.520 Não-extensionalidade significa
uma falha da extensionalidade, ou seja, da lei que a extensão de
uma expressão complexa é determinada pela extensão de suas
partes, de forma que a referência de “o pai de João” é comple-
tamente determinada pela referência de “João” e a referência de
“o pai de”. “João” refere-se a um homem, e “o pai de” a uma
função que mapeia cada pessoa a seu pai. Essas duas regras
nos permitem compreender indefinidamente muitas expressões

518 Psychology from an Empirical Standpoint, Observações Complementares.


519 Ver, por exemplo, Colin McGinn, The Character of Mind, Oxford, 1982.
520 Ver W. Kneale, “Intensionality and Intentionality”, Aristotelian Society Supplementary
Volume, vol. XLII (1968).

520
apêndices - ii. intencionalidade

referenciais em inglês: por exemplo, “o pai do pai do pai de


João” – por isso, não precisamos lamentar, como fez Scott em
The Antiquary, que o idioma inglês não tenha termo exato para
esta relação a que tantas vezes precisamos referir.
Sob a influência de Frege, a “lei da extensionalidade” foi con-
siderada uma pedra angular da lógica, e seu colapso é visto com
preocupação. Desenvolvimentos na semântica da linguagem na-
tural, em lógica modal e na lógica da “intencionalidade” são,
portanto, muitas vezes envolvidos numa tentativa de descartar a
não-extensionalidade como um fenômeno meramente “superfi-
cial”, ou de fornecer uma semântica para contextos intensionais
em uma metalinguagem puramente extensional.521 O ancestral
da primeira dessas empresas é a própria teoria de Frege, que
tentou mostrar que o fracasso da extensionalidade em contextos
como “João acredita que..” é apenas aparente. O efeito de tais
contextos é mudar a extensão dos termos que ocorrem dentro
deles. Os termos não denotam a sua referência normal, mas sua
referência “oblíqua”, que é seu sentido normal.522 A sugestão de
Frege é hoje considerada insatisfatória;523 na verdade, é cada vez
mais aceito que a lei de extensionalidade não nem é verdadeira,
nem um fundamento necessário da análise semântica.524
Ainda assim, a sugestão está associada a um importante in-
sight. Frege afirmou que a extensão (Bedeutung) é um conceito
unitário, que se aplica igualmente aos termos singulares, a com-
plexas expressões referentes, a predicados e relações, e às sen-
tenças como um todo. A extensão de uma sentença, de acordo
com Frege, é um valor de verdade. Só essa tese (à primeira vista,
contraintuitiva) é compatível com uma teoria unificada da ex-
tensionalidade, que irá mostrar apenas como é que a concessão
de extensões às partes de uma sentença leva a uma interpreta-

521 Daí a emergência da semântica de “mundos possíveis” na teoria da lógica modal. Ver G.
E. Hughes e M. J. Creswell, An Introduction to Modal Logic, Londres, 1968, p. 75-80.
522 G. Frege, “On Sense and Reference” (retraduzido como “On Sense and Meaning”), The
Philosophical Writing of Gottlob Frege, tr. e ed. P. T. Geach e M. Black, Oxford, 1952.
523 Por exemplo, a identidade de sentido não permite substituição em contextos como
“João acredita que...” Se João é ignorante da identidade de sentido entre “p” e “q”, ele
pode acreditar em p, e ainda assim não acreditar em q.
524 Ver Martin Davies, Meaning, Quantification and Necessity, Themes in Philosophical
Logic, Londres, 1981.

521
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ção do todo. A fim de entender o que é correto na tese de Frege,


temos de ver a extensão não em termos de uma idéia intuitiva
de referência, mas em termos de substitutividade. A teoria da
extensão é a teoria da substituição salva veritate, e a teoria da
intensionalidade é a teoria da falha de substituição.
A prova da tese de Frege procede da seguinte forma. Nós
primeiro definimos extensionalidade. C( ) (onde a lacuna é pre-
enchida por um termo singular) é extensional se e somente se
obedecer à seguinte lei:
(a = b) → (C(a) ≡ C(b)).
Por várias razões que não nos dizem respeito,525 o “→” aqui
deve denotar uma relação mais forte do que implicação ma-
terial. Neste caso, a falha de extensionalidade é o que Quine
chamou de “opacidade referencial”.
C’ ( ) (onde a lacuna é preenchida por um predicado), é ex-
tensional se e somente se obedecer à seguinte lei:
(x) (F(x) ≡ G(x)) → (C’ (F) ≡ C’(G)).
C” ( ) (onde a lacuna é preenchida por uma sentença) é ex-
tensional se e somente se obedece à seguinte lei:
(p ≡ q) → (C” (p) ≡ C” (q)).
Poderíamos estabelecer que estas três condições definem três
aplicações do mesmo conceito, mostrando que necessariamente
se satisfazem juntas. É óbvio, em primeiro lugar, que todo con-
texto que é extensional para sentenças também é extensional
para predicados e expressões referenciais. (Suponha que C( ) é
extensional para sentenças. Então se p ≡ q, C(p) ≡ C(q); mas se
a = b, F(a) ≡ F(b); portanto, “a” pode ser substituído por “b” em
C( ) salva veritate.) Também é o caso em que contextos que são
extensionais para termos singulares são extensionais para sen-
tenças. O resultado pode ser provado de múltiplas maneiras,526
mas talvez seja mais simples apresentar da seguinte forma:

525 Ver C. Lewy, Meaning and Modality, Cambridge, 1976, cap. 1.


526 Ver, por exemplo, a crítica devastadora de A. Church da obra de Carnap, Introduction to
Semantics em Philosophical Review, vol. LII (1943), e o trabalho de W. V. Quine, “Ways
of Paradox”, em Ways of Paradox and Other Essays, Nova York, 1966. Church e Quine

522
apêndices - ii. intencionalidade

Primeiro, nós assumimos que o contexto C (F( )) é extensio-


nal para termos singulares, isto é, que se C(F(a)) e a = b, então
C(F(b)). Também assumimos que C( ), permite a substituição
de equivalentes lógicos, isto é, que se C(p) e p ≡ q, então C(q).
Suponhamos agora que:
(1) C(p).
Agora toda proposição é logicamente equivalente à pro-
posição de que seu valor de verdade é idêntico à verdade.
Conseqüentemente:
(2) p ≡ (vv de p = V).
Portanto:
(3) C(vv de p = T).
Pegue qualquer proposição q, tal que p ≡ q. Então:
(4) vv de p = vv de q.
Como C é extensional para termos singulares, (4) nos permi-
te substituir em (3), obtendo-se:
(5) C (vv de q = T).
Mas, repetindo o argumento para (2):
(6) (vv de q = T) ≡ q.
Assim, por (5), (6) e a suposição que C ( ), permite a substi-
tuição de equivalentes lógicos:
(7) C(q).
Em outras palavras, extensionalidade para termos singulares
implica extensionalidade para sentenças, desde que possamos
assumir a substituibilidade dos equivalentes lógicos. Esta hipó-
tese foi questionada por aqueles que desejam rejeitar a visão de
Frege (freqüentemente apoiados por versões do argumento aci-

não escolheram valores de verdade, mas conjuntos como seu objeto de referência
singular, evitando a suspeita de favorecerem Frege pela assunção de que valores de
verdade são “objetos”.

523
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

ma) segundo a qual as sentenças se referem aos seus valores de


verdade, da mesma forma que os nomes se referem a objetos.527
Mas ela pode ser aceita com a finalidade de estabelecer uma
teoria de contextos intensionais, explicando uma idéia intuitiva
de substitutividade cujos limites estamos tentando corrigir.
Voltemos agora à propriedade da intencionalidade, interpre-
tada, de forma moderna, como uma propriedade dos contextos
em que os itens mentais são identificados. Três propriedades
foram apontadas como definitórias dessa propriedade, e uma
inspeção mostra que correspondem bem de perto às três idéias
intuitivas acima mencionadas como implicado pela própria dis-
cussão de Brentano:
(A) Não-extensionalidade (em todas as três formas). (Condi-
ção (b) acima).
(B) A falta de compromisso com a existência. Nem a sentença
completa C(a), nem a sua contraditória implicam que há algo,
ou que não há nada, a que a expressão objetiva “a” se aplica.
(Condição (a).)
(C) Indeterminação do objeto. Por exemplo, se eu procurar
por um homem honesto, talvez não haja nenhum homem ho-
nesto particular que eu esteja procurando. (Contraste com “eu
conheci um homem honesto”.) (Condição (c).)
Essas características são chamadas de “critérios” de intencio-
nalidade. Mas isso não pode significar que são meras indicações
de uma propriedade que não identificam completamente, pois
de que outra forma podemos identificar a propriedade? Assim,
(A), (B) e (C) devem ser tomadas ou como condições necessárias
separadamente (suficientes conjuntamente), ou como condições
suficientes separadamente, ou como o que Mackie chamou de
condições INUS.528

527 A “semântica situacional”, que rejeita a idéia que sentenças refiram valores de verdade,
rejeita também o princípio de que equivalentes lógicos podem ser substituídos salvo
denotato: ver Jon Barwise e John Perry, Situations e Attitudes, Cambridge, Mass., 1983.
Entretanto, isso não afeta a questão de se eles podem ser substituídos salva veritate,
nem tocando, por isso, na discussão da intencionalidade.
528 J. L. Mackie, “Causes and Conditions”, em Ernest Sosa (ed.), Causation and Conditionals,
Oxford, 1978. [N.T.] INUS, partes insuficientes (I) mas não-redundantes (N) de uma
condição que é, em si mesma, desnecessária (U) mas suficiente (S) para a ocorrência do
efeito.

524
apêndices - ii. intencionalidade

(A), (B) e (C) são características de contextos que “tratam um


objeto” no sentido gramatical. Diz-se que a expressão objeto
identifica o “objeto intencional” do item mental referido pelo
contexto completo como um todo. Assim entendido, é eviden-
te que a intencionalidade, se usada para refletir as proprieda-
des dos estados mentais obliquamente indicadas por Brentano,
sempre envolverá a não-extensionalidade. A falibilidade huma-
na sempre assegurará que a substituição de equivalentes exten-
sionais não pode ser permitida em uma descrição do conteúdo
de nossos pensamentos.
Quine argumenta que, em geral, não é legítimo quantificar
em contextos opacos.529 De: eu acredito que F(a), por exemplo,
não é possível inferir que: (Ǝx) (eu acredito que F(x)). Pois na
sentença quantificada, a “descrição segundo a qual” o objeto de
crença é apresentado não serve mais para identificá-lo. Daí que
contextos opacos não obedeçam a lei: F(a) ≡ (Ǝx) (x = a . F(x)),
como pode ser visto por inspeção.
Claro, as coisas não são tão simples como isso implica. Pois
há também crenças de re, crenças cujo conteúdo deve ser espe-
cificado em relação a algum item existente “fora da mente”. Em
outras palavras, existem crenças que são corretamente relatadas
da seguinte forma: (Ǝx) (João acredita que F(x)). Além disso,
tem-se argumentado que o conteúdo de alguns pensamentos
simplesmente não pode ser especificado sem essa “quantifica-
ção”.530 Vou deixar de lado esses casos por enquanto e me con-
centrar apenas em exemplos de “inexistência” indiscutível.
O argumento de Quine sugere uma explicação da condição
(C) em função da condição (A): pois (C) parte imediatamente da
falha da quantificação em contextos intensionais. Pode-se tam-
bém pensar que a mesma consideração serviria para explicar
(B) – a falta de compromisso com a existência. Se isso ocorrer,
imediatamente temos um resultado útil, ou seja, que, se (A), (B)
e (C) são separadamente condições necessárias para a intencio-
nalidade, elas todas se reduzem a uma: (A). Em outras palavras,

529 Ver “Reference and Modality” em From a Logical Point of View, 2ª ed., Cambridge,
Mass. 1961.
530 Ver David Kaplan, “On Quantifying in”, em D. Davidson e J. Hintikka (eds.), Words and
Objections, Dordrecht, 1969; H. Putnam, “The Meaning of ‘Meaning’”, em Philosophical
Papers, vol. II: Mind, Language and Reality, Cambridge, 1975.

525
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

a intencionalidade é simplesmente intensionalidade. No entan-


to, esta conclusão é muito precipitada. (B) não apresenta a exi-
gência de que a quantificação deva falhar, mas a exigência mais
forte de que não deve haver nenhum compromisso com a exis-
tência. Por exemplo, a quantificação em “É necessário que F(a)”
geralmente não é admissível, uma vez que a verdade desta frase
pode depender da “descrição segundo a qual” a é apresentado.
Por outro lado, a frase, mesmo na sua leitura de dicto, implica
que (Ǝx) (x = a). O mesmo vale para alguns contextos mentais.
De “João sabe que F(a)”, não se pode deduzir que “(Ǝx) (João
sabe que F(x))”, embora se possa inferir que “(Ǝx) (x = a)”.
Alguém pode objetar que, no caso de contextos psicológicos,
tais como “João sabe...”, “João percebe...”, existe uma afirma-
ção oculta de duas proposições, e apenas uma delas é sobre o
conteúdo de um item mental. Quando eu digo que João sabe
que F(a), eu quero dizer que existe um ato mental de João re-
lacionado à proposição de que F(a), e que F(a) é verdadeiro. O
componente psicológico no que eu digo não tem compromisso
com a existência, e aqui a indiferença para com a existência faz
parte do fracasso da quantificação. Por conseguinte, é discutível
que as três condições ainda em vigor se reduzam a uma. Pelo
menos, esta é a sugestão que vou considerar ao dar a análise
mais plausível da intencionalidade.
A análise desenvolve uma teoria de “preposicionais” – es-
tados mentais como crença, com um “conteúdo representacio-
nal”, ou “pensamento” (no sentido de Frege) – que pode ser
verdadeira ou falsa. Qualquer contexto utilizado para identifi-
car tais atitudes irá incluir (explícita ou implicitamente) algu-
ma sentença em discurso indireto (seja oratio recta ou oratio
obliqua),531 projetado para apreender o conteúdo mental. E o
discurso indireto leva a uma falha da extensionalidade, uma vez
que relata um enunciado que não afirma. O valor de verdade do
relato não depende nem do valor de verdade da sentença relata-
da, nem da extensão de qualquer termo contido nele. As teorias
modernas de intencionalidade, por conseguinte, centram-se na

531 A teoria oratio recta tem origem em R. Carnap, The Logical Syntax of Language, tr. A.
Smeathon, Londres, 1937, p. 240 et seq. A teoria oratio recta para contexto mental pode
ser expressa em função da noção de P. T. Geach de “dizer com o coração;” ver Mental
Acts, Londres, 1957, p. 79 et seq.

526
apêndices - ii. intencionalidade

idéia de uma atitude proposicional, e explicam a intencionali-


dade da linguagem mental em função da intensionalidade do
discurso indireto.
Existem dois grandes obstáculos para o desenvolvimento de
tal teoria. Em primeiro lugar, existem contextos intencionais
que não parecem conter, mesmo implicitamente, qualquer cláu-
sula sentencial: “John pensa em...”, por exemplo, que é comple-
tado por um termo singular, não implica nada sobre qualquer
proposição que esteja “diante da mente de João” no ato de pen-
sar. Em segundo lugar, o conteúdo dos nossos estados mentais
parece não depender apenas do que está “perante a mente”.
Também pode depender do jeito que o mundo é, e, portanto,
ser inadequadamente apreendido por uma linguagem puramen-
te intensional. Esta possibilidade é ilustrada pelas propriedades
semânticas dos indexicais, nomes próprios e termos de “tipos
naturais”. O exemplo mais freqüente citado da dificuldade
que estes termos apresentam para as teorias de “representação
mental” é o caso de Putnam da “Terra gêmea”.532 Existe um
planeta (Terra gêmea) que é o mais próximo possível de uma
duplicata da nossa terra, contendo réplicas de todas as pessoas,
coisas, lugares e eventos na Terra, mas com uma diferença: em
vez de H2O, há outra substância XYZ, normalmente indistin-
guível em todas as suas propriedades observáveis da água, mas
quimicamente distinta. Os habitantes da Terra gêmea chamam
essa substância de “água”, e minhas crenças sobre a água são
exatamente espelhadas pelas crenças do meu correlato da Terra
gêmea a respeito de XYZ. Mas enquanto minhas crenças são
sobre a água, as dele não são, e apesar de estarmos ambos no
estado psicológico que, naturalmente, seria expresso na afirma-
ção da frase “A água é H2O”, minha crença é verdadeira e a
dele é falsa. Tais exemplos (que são naturalmente imensamente
contenciosos em quase todos os particulares) têm sido dados
para sugerir que o conteúdo de uma atitude proposicional pode
variar com as circunstâncias circundantes, precisamente porque
o sentido dos termos que ocorrem na sentença que identifica
essa atitude é determinado pela sua referência. Como, então,
podemos explicar a representação mental, e o significado da pa-

532 Putnam, “The Meaning of ‘Meaning’”.

527
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

lavra fundamental “sobre”, unicamente em função do conteúdo


da mente do sujeito? E como podemos apreender esse conteúdo
no discurso indireto?
Ambas as dificuldades se ligam a um dos problemas subja-
centes a este livro: o problema da “intencionalidade individu-
alizante”. O que há no pensamento de João que o torna um
pensamento sobre um indivíduo – sobre Maria, por exemplo?
Como, em particular, a intencionalidade individualizante de
atitudes como amor e desejo é considerada? Alguns filósofos
arguem – com a força de exemplos como o de Putnam – que o
componente individualizante de um pensamento pertence a ele
em virtude de uma relação real com algo fora da mente. O que
faz do pensamento de João um pensamento sobre Maria e não
sobre a “Maria gêmea” é o fato de ser causado pela própria Ma-
ria. Ao estabelecer precisamente qual indivíduo é “alvo” de um
ato mental, portanto, devemos adotar a perspectiva de terceira
-pessoa, de modo a olhar para fora do conteúdo mental “dado”.
O mesmo ocorre com desejo e amor. Gareth Evans apresen-
ta um caso imaginário de um homem apaixonado por uma de
duas gêmeas idênticas.533 Não há nada “na mente”, de acordo
com Evans, que faça desse amor o amor por uma gêmea e não
pela outra. Mesmo se Deus olhasse na mente do sujeito, Ele não
poderia dizer, a partir da informação contida ali, qual das gême-
as é o objeto das afeições do homem. A resposta está disponível
apenas do ponto de vista de terceira-pessoa. Nas palavras de
Putnam, em tais casos, “o mundo assume”, e conclui a tarefa
que nossa atividade mental apenas inicia – a tarefa de focar em
um item individual na realidade.
Na minha discussão sobre desejo, salientei a importância dos
pensamentos individualizantes. Também sugeri que a crença de
que nossos pensamentos sejam suficientes, em virtude do seu
conteúdo, para individualizar seus objetos pode ser uma ilusão.
Na verdade, no entanto, não importa se é assim. Pode ser que
aceitemos a visão de Putnam, que o caráter individualizante de
um pensamento pertença a ele em virtude de uma “relação real”
com um indivíduo existente. Alternativamente, pode ser mais

533 Gareth Evans, “The Causal Theory of Names”, Aristotelian Society, Supplementary
Volume, vol. XLVIII (1973), p. 187-208.

528
apêndices - ii. intencionalidade

plausível concordar com seus adversários (como Searle)534 que


um pensamento pode ser intrinsecamente “particular”. A teoria
da intencionalidade como uma forma de representação é com-
patível com qualquer uma delas.
A resposta para as dificuldades acima não será encontrada
rejeitando a teoria do “discurso indireto” da intencionalidade,
mas refinando-a. Primeiro, o discurso indireto pode identificar
algo menos do que um enunciado completo – como quando eu
digo, por exemplo, que Miguel mencionou João. Em segundo
lugar, os termos utilizados para descrever o objeto de tal dis-
curso indireto também podem ser utilizados referencialmente.
Suponha que eu diga que Miguel mencionou João; posso pres-
supor que John existe? E, se João é o prefeito de Kensington,
posso pressupor que Miguel mencionou o prefeito de Kensing-
ton? Claramente, há a tentação de negar ambas as implicações
e, portanto, admitir a “intencionalidade” das descrições não-
sentenciais do discurso indireto. Há também, no entanto, a ten-
tação de afirmar ambas as implicações, justamente por causa
das razões enfatizadas por Putnam. É uma questão de constru-
ção. Podemos, por exemplo, acreditar que os nomes próprios
– mesmo no discurso indireto – propagam um halo semântico
peculiar aos contextos em que ocorrem. Por exemplo, podemos
acreditar que os nomes ocorram sempre com alcance máximo
em cada frase.535 Nesta leitura, a sentença deve ser reescrita: “É
verdade sobre João que Miguel o mencionou”. “João” ocorre
nessa frase com uso referencial normal: a sentença implica tanto
que João existe, e (se João for o prefeito de Kensington) que o
prefeito de Kensington foi mencionado por Miguel. Dar esta
interpretação é simplesmente dizer que sempre que eu uso um
nome próprio para relatar o conteúdo do enunciado de outrem,
eu também uso esse nome para me referir ao seu portador.
A frase “Michael se referiu a João”, assim interpretada, de-
sempenha duas funções separáveis: (a) refere-se a Miguel, e
também a João; (b) refere-se a um enunciado de Miguel, e afir-
ma que ele se refere a João. Se eu quisesse apenas relatar o enun-
ciado de Miguel, eu deveria dizer “Miguel mencionou alguém

534 Ver J. R. Searle, Intentionality, Oxford, 1983, p. 62 et seq.


535 M. Dummett, Frege, Philosophy of Language, Londres, 1973, apêndice ao cap. 5.

529
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

a quem chamou de João” – ou até mesmo “Miguel mencionou


‘João’” – a partir de que não se conclui nem que João existe,
nem que Miguel mencionou o prefeito de Kensington. O relato
do discurso de Miguel, portanto, cria um contexto opaco, ape-
sar de que, no ato de relatá-lo, eu posso fazer uma referência
que, por assim dizer, apaga a opacidade.
As mesmas considerações comandam minha descrição de
Miguel, não como menção, mas como pensar em, ou desejar,
João. Estes contextos também, apesar de não-sentenciais, são
intensionais para termos singulares. E mais uma vez eles pare-
cem admitir duas construções. Poderíamos querer dizer que o
contexto “João está pensando em..”. tem um compromisso com
a existência; ou poderíamos querer negar isso. O que diremos
dependerá das propriedades semânticas do termo encerrado no
contexto. Se o termo é um nome próprio, e se os nomes sempre
possuem alcance máximo, ele será usado referencialmente aqui,
como em todo lugar. No entanto, qualquer que seja a inten-
cionalidade que o contexto possui, ele a possui em virtude dos
fatos que explicam a intensionalidade do discurso indireto – a
saber, que os relatos de uma referência a x não necessariamente
se referem a x.
A segunda dificuldade deve ser abordada com um espírito se-
melhante. Como Colin McGinn argumentou,536 a nossa atribui-
ção de conteúdo para o estado psicológico dos outros envolve
duas atividades separadas. Desejamos tanto explicar o compor-
tamento em termos da estrutura interna dos estados mentais
que o obrigam, quanto avaliar esses estados mentais de acordo
com os cânones exigentes do verdadeiro e do falso. Daí, vemos
crenças tanto como os estados mentais que se expressam na
conduta e como itens com condições de verdade referenciais.
Nós não devemos nos surpreender, portanto, por exemplos
como o da Terra gêmea. Como McGinn coloca, devemos espe-
rar “que as crenças possam ter as mesmas condições de verdade
e um papel explicativo diferente, e o mesmo papel explicativo
acompanhado por diferentes condições de verdade”.537 E o fato
importante sobre representações – o fato que explica o seu pa-

536 Colin McGinn, “The Structure of Content”, em Woodfield, Thought and Object.
537 Ibid., p. 211.

530
apêndices - ii. intencionalidade

pel explicativo e a intensionalidade da linguagem usada para


relatá-las – é a sua falibilidade: portanto, “não pode acontecer
que algum estado de uma criatura seja qualificado como uma
representação e ainda logicamente ter garantia de representar a
realidade corretamente”.538
Devemos esperar, portanto, que os contextos utilizados para
relatar atitudes proposicionais divirjam de algumas maneiras
previsíveis do paradigma da intensionalidade. Particularmente,
devemos esperar que eles freqüentemente carreguem um com-
promisso com a existência, apesar da opacidade dos contextos
em que ocorrem os termos relevantes. Este compromisso, longe
de refutar, na verdade confirma a teoria de que a intencionali-
dade é um caso especial do enunciado indireto.
Recentes teorias da “representação mental” consideraram
duas amplas questões. Em primeiro lugar, há uma análise uni-
tária de todos os estados representacionais? Particularmente,
pode uma única explicação ser fornecida para a “intenciona-
lidade da percepção” e a intencionalidade de crença?539 Em se-
gundo lugar, pode haver representação mental sem linguagem?
A segunda questão é de particular importância para aqueles
que desejam providenciar uma teoria de terceira-pessoa da in-
tencionalidade. Alguns filósofos, partindo da premissa de que
pensamentos só podem ser individualizados através de suas ex-
pressões linguísticas, estão céticos à visão de que pensamentos
podem ser atribuídos a animais mudos. A representação, dizem
eles, é uma propriedade da linguagem, e dos estados mentais
apenas na medida em que eles também são expressos na lingua-
gem.540 Outros tomaram a posição oposta, defendendo que a
linguagem só é representacional se tiver um uso representacio-
nal, o que significa um uso na expressão de um estado mental
representacional.541 Como indiquei no Capítulo 3, a oposição
entre essas duas visões pode não ser tão clara quanto parece.
Mas, qualquer que seja sua conclusão, podemos assumir, para
este Apêndice, que a representação mental e a representação na

538 Ibid., p. 212.


539 Essa questão é discutida por C. Peacocke em Sense and Content, Oxford, 1983.
540 Essa parece ser a linha escolhida por Donald Davidson em vários ensaios, e.g. “Thought
and Talk”, em S. Guttenplan (ed.), Mind and Language, Oxford, 1975.
541 Para uma defesa vigorosa dessa posição, ver J. R. Searle, Intentionality.

531
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

linguagem são um fenômeno único, que pode ser examinado


em ambas as formas. Além disso, não há obstáculo ao estudo
de terceira-pessoa da intencionalidade: pelo contrário, nós só
precisamos estudar o comportamento dos termos em contextos
intencionais, evitando assim as complexas contorções mentais
envolvidas na “suspensão” de Husserl. E o fenômeno da inten-
cionalidade não nos fornece qualquer razão para rejeitar uma
teoria fisicalista da mente.
Podemos agora nos voltar para a idéia de entendimento
intencional, que tem desempenhado um papel importante no
argumento deste livro. A abordagem em primeira-pessoa dos
fenomenólogos ganhou plausibilidade da disparidade sistemá-
tica entre dois tipos de enunciado: a enunciação do agente e a
enunciação do observador. O agente, cuja linguagem é proje-
tada para concentrar e orientar a sua atividade em relação ao
mundo, emprega classificações que são totalmente estranhas ao
pensamento do observador. A linguagem do observador é a lin-
guagem da ciência, dedicada à tarefa de explicação e previsão,
e que emprega conceitos teóricos que podem revisar profun-
damente nossas maneiras habituais de pensar. Portanto, pode-
se supor que o Lebenswelt – o mundo como apresentado ao
agente – possa ser estudado apenas do ponto de vista de pri-
meira-pessoa. No entanto, já mostrei que essa suposição está
equivocada. Não só é impossível levar a cabo a desejada descri-
ção de primeira-pessoa (a descrição que permanece quando o
mundo objetivo foi “suspenso”); ela é também desnecessária. O
Lebenswelt é tanto um objeto público, e tão suscetível à descri-
ção de terceira-pessoa, como é o mundo da ciência.
No entanto, surge uma dificuldade. Como, pode-se pergun-
tar, pode haver uma lacuna entre o Lebenswelt real e o aparente.
O Lebenswelt não é uma realidade independente: ao contrário,
é construído pela nossa maneira de entendê-lo. Como, então,
podemos aplicar-lhe os conceitos de verdade e de referência?
Com o que, na aplicação de tais conceitos, a nossa representa-
ção mental será comparada?
Para responder a essa pergunta, devemos nos voltar nova-
mente para o caso das “qualidades secundárias”.542 Defende-se

542 Estou em dívida com a discussão das qualidades secundárias em C. McGinn, The
Subjective View: Secondary Qualities and Indexicals, Oxford, 1983. Ver p. 123.

532
apêndices - ii. intencionalidade

que, num sentido importante, qualidades como a cor são atri-


buídas aos objetos por aqueles que as percebem. A teoria da
cor explica por que as coisas aparecem coloridas para criaturas
com certas capacidades perceptivas, sem mencionar a cor como
uma característica independente da realidade. No entanto, en-
quanto, do ponto de vista científico, nenhum objeto é realmente
vermelho ou verde, os objetos podem, todavia, ser correta ou
incorretamente classificados como vermelhos ou verdes. O tes-
te para algo ser vermelho está indelevelmente marcado com a
condição epistemológica daqueles que o aplicam: no entanto,
ele é publicamente acessível, publicamente transmissível e pu-
blicamente aplicável. Por conseguinte, pode ser mal aplicado.
Por isso, quando, falando de Miguel, digo que ele enxerga o
livro como vermelho, ou pensa que vê, eu deixo espaço para a
possibilidade de um “defeito de representação”. O que eu digo
permite a possibilidade da má aplicação de Miguel dos testes
para vermelhidão: assim, ao descrever como ele vê as coisas, eu
uso um predicado de cor vinculado a uma cláusula intensional.
As coisas realmente são coloridas, mesmo que nada tenha
cor. Podemos cometer erros sobre as cores, apesar do fato de
que a cor é essencialmente “para” nós, e sua existência depen-
de de nossa capacidade de percebê-la. O paradoxo se dissolve
uma vez que vemos que nossas atribuições de cor realmente não
conflitam com as descobertas da ciência. Pois a ciência simples-
mente permanece em silêncio a respeito das cores dos objetos, e
nenhum de nossos juízos de cor precisa nos levar a um conflito
sério com a verdade científica. A este respeito, os nossos juízos
de senso comum sobre as qualidades secundárias são mais se-
guros do que aqueles sobre as qualidades primárias, que são
constantemente revistos sob o impacto da descoberta científica
– como quando aprendemos que as coisas comuns não são sóli-
das como pensávamos.
O caso das qualidades secundárias é familiar aos filósofos
analíticos. Estão um pouco menos familiarizados com os casos
que abordei neste trabalho, em que as propriedades são indivi-
dualizadas por classificações que atravessam as fronteiras sen-
soriais e científicas em resposta a imperativos práticos e emocio-
nais. Considere novamente o conceito do mármore ornamental.
Parece que há uma distinção real entre mármores ornamentais e

533
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

outros tipos de pedras. As pessoas podem cometer erros no seu


uso desta classificação, erroneamente acreditando, por exemplo,
que um determinado pedaço de pedra pode ser usado para fins
ornamentais. Ao mesmo tempo, a ciência não reconhece uma
distinção das pedras entre mármores ornamentais e o resto.
O processo é semelhante em relação às qualidades secundá-
rias. Emprega-se uma classificação que não compete com as em-
pregadas pela ciência das pedras. As respostas que são focadas
nessa classificação são dirigidas para a superfície do mundo, e
não contêm qualquer hipótese explicativa que chegue às pro-
fundezas. Ao mesmo tempo, esse processo é significativamente
diferente das qualidades secundárias. A classificação “verme-
lho” é relativa à experiência sensorial, e registra uma distinção
que pode ser observada por qualquer criatura com a capacidade
sensorial necessária. A classificação “mármore ornamental” é
relativa a um padrão altamente complexo de respostas, ativida-
des e sentimentos. Ela denota uma discriminação que está além
da competência de todas as criaturas, exceto as mais sofistica-
das. A classificação serve para concentrar atividades que fazem
parte de nossas vidas como seres racionais e que não existem na
vida dos animais.
Tais classificações levantam uma questão importante para a
teoria da intencionalidade – a pergunta: o que vem primeiro,
crença ou atitude? Considere o medo – uma atitude mental que
partilhamos com os animais. O medo é como muitos estados
mentais: possui um “objeto formal”.543 Existe uma crença ca-
racterística sobre a qual o medo é fundado, a crença de que o
objeto pode causar algum dano. Assim, entende-se que todos os
objetos do medo devem satisfazer certa descrição: “nocivida-
de”. É evidente, porém, que o medo não costuma criar a crença
de que algo pode causar danos, e muito menos é constituído por
ela. Alguém pode pensar num objeto que lhe cause mal sem te-
mê-lo. Este ponto óbvio pode ser obscurecido pela falha em dis-
tinguir o elemento formal do próprio objeto do medo. O objeto
formal é dado pela descrição sob a qual algo deve ser represen-
tado para ser temido – é o que pode ser temido. O objeto pró-

543 Para uma explicação desse termo, ver A. J. Kenny, Action, Emotion and Will, Londres,
1963, p. 189.

534
apêndices - ii. intencionalidade

prio não é o que pode ser temido, mas o que é certo, adequado
ou justificado temer. O nocivo é o objeto formal do medo; seu
objeto é o pavoroso. Justificar a descrição “pavoroso” é justifi-
car o medo: não é só justificar uma crença, mas toda a resposta,
e, em particular, o padrão de atividade que a exprime.
A confusão entre objetos formal e próprio leva muitos – in-
cluindo Sartre544 – a considerar as emoções como um tipo de
juízo. O medo, em seguida, transforma-se no reconhecimento
do pavoroso, a ansiedade no reconhecimento do angoissant, o
prazer no reconhecimento do divertimento, e assim por diante.
Começa a parecer como se nada sobrasse da emoção além deste
ato (reconhecidamente apaixonado) de avaliação. A caracterís-
tica de um objeto formal é que alguém pode pensar que algo
seja uma instância dele, e ainda assim não sentir nenhuma incli-
nação para a emoção que ele parcialmente identifica. O objeto
formal é dado por uma descrição que fica aquém da encarnação
das características emocionais peculiares que serve para focar.
Se alguém perguntasse o significado da classificação “pavo-
roso”, portanto, não seria suficiente oferecer as condições de
verdade de uma crença: esta classificação deve ser entendida em
termos da emoção que ele celebra, e não em termos de alguma
crença em que a emoção está fundada. Colocando a coisa mais
diretamente: justificar a descrição “x é pavoroso” é dar razões
de ordem prática, e não teórica. Não é justificar uma classifica-
ção, mas uma resposta. A resposta vem em primeiro lugar e, em
seguida, a classificação é explicada em termos dela. Creio que
este fato seja extremamente importante para a compreensão da
intencionalidade das emoções morais.545 Ele também é relevante
para a consideração do amor, do desejo e das outras atitudes
interpessoais. Tais atitudes, porque têm pessoas como seu ob-
jeto, são “famintas por justificação”. O sujeito se sente julgado
a seus próprios olhos por suas paixões e amores, e procura se
apresentar, através destas atividades, como digno da simpatia e
respeito de todos que possam desafiá-los. Amor e desejo, por-
tanto, são inevitavelmente mediados e disciplinados por con-

544 J. P. Sartre, Sketch for a Theory of Emotions, tr. P. Mairet, prefácio por Mary Warnock,
Londres, 1962.
545 Já defendi esse ponto em “Attitudes, Beliefs and Reasons”, em J. Casey (ed.), Morality
and Moral Reasoning, Londres, 1971.

535
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

cepções do amável e do desejável – classificações subordinadas


às vicissitudes da nossa vida emocional e às exigências da razão
prática.
Mesmo tais classificações, no entanto, podem atravessar o
fosso entre aparência e realidade. É essencial para a razão práti-
ca que pensemos que suas pretensões são objetivamente vincu-
lantes, e este pensamento indispensável ressurge nos conceitos
e classificações que têm o raciocínio prático como sua base. O
amável e o desejável são distinguidos em nosso pensamento des-
de o mero aparentemente amável e o mero aparentemente dese-
jável. Mas mesmo estas classificações criam o risco do fracasso
epistemológico. João pode ser enganado em seu julgamento que
Maria é amável, de modo que o relato verdadeiro de que ele se
alegra na natureza amável dela não implica nada sobre a natu-
reza de Maria, e certamente não que ela seja amável ou bonita,
confiável e agradável (assumindo que a última descrição é coe-
xtensiva a “amável”).
Voltando agora aos nossos mármores, podemos tirar as se-
guintes conclusões preliminares:
(1) A classificação “mármore ornamental” encarna certo
“entendimento intencional”. Ou seja, indica uma “simi-
laridade percebida”, que pode não ser o índice de nenhu-
ma semelhança material profunda entre as substâncias
descritas.
(2) A similaridade percebida é importante para nós, uma
vez que se situa no ponto de intersecção de várias ações,
emoções e respostas que coletivamente atribuem um
papel interessante em nossas vidas para os mármores
ornamentais.
(3) As novas classificações emergem dessas ações e emoções
que não denotam sua fundação na crença, mas em suas
ocasiões justificadas.
(4) Estas novas classificações não expressam crenças, mas
emoções e atividades, e a razão prática que lhes serve
de suporte. Não obstante, elas reforçam as classificações
mais literais mencionadas em (1), adicionando uma nova
dimensão de autoridade para a “similaridade percebida”
que lhes está subjacente. Assim, a classificação “orna-

536
apêndices - ii. intencionalidade

mental” – que é conseqüente do hábito de ornamento –


presta apoio à semelhança percebida que guia a mão do
escultor e do arquiteto. Em si mesma, no entanto, é uma
classificação instável, denotando não uma qualidade se-
cundária, mas, na melhor das hipóteses, uma qualidade
ou aspecto “terciário”,546 sem qualquer realidade inde-
pendente das respostas mutáveis que o regem.
As respostas interpessoais também apresentam essa intencio-
nalidade multifacetada. Isso pode levar alguém a duvidar do
conteúdo independente das classificações exibidas por elas. Por
exemplo, um filósofo poderia argumentar – seguindo uma su-
gestão feita por Strawson547 – que atitudes interpessoais como
ressentimento, culpa, perdão e gratidão, longe de serem funda-
das sobre a crença de que os outros são responsáveis por ​​ suas
ações, são elas próprios o verdadeiro fundamento para a classi-
ficação de atos “responsáveis”. Esta classificação não precede,
mas segue, as atitudes “reativas” que são endossadas ​​por ela,
da mesma forma que as classificações de “amável” e “pavoro-
so”. Um filósofo pode ir mais longe (no espírito daqueles que
consideram a idéia da pessoa como um conceito “forense”)548 e
argumentar que a classificação que parece ser mais fundamental
para as nossas respostas interpessoais – a classificação de certos
fenômenos naturais (e talvez também sobrenaturais) enquanto
pessoas – não deve ser considerada como a fundação, mas como
a consequência dessas respostas em que ela aparece proeminen-
te. O fundamento principal para tal argumento seria este: que
uma criatura sem respostas interpessoais realmente não vê o
mundo contendo pessoas. Para ele, o mundo da natureza não é
mais do que o mundo da natureza, e embora contenha animais
complicados e desajeitados que oferecem obstáculos especiais
para suas estratégias, não contém pessoas mais do que o mundo
do cavalo contém santidade ou virtude.

546 Entre as qualidades terciárias, incluo aspectos, qualidades emocionais (a tristeza de


uma paisagem), qualidades afetivas (ser tocante, deprimente e assim por diante),
e qualidades estéticas. Para uma teoria das qualidades terciárias, ver meu Art and
Imagination, Londres, 1974, parte II.
547 P. F. Strawson, “Freedom and Resentment”, em Freedom and Resentment and Other
Essays, Londres, 1974.
548 A expressão e a idéia vêm de John Locke, Ensaio sobre o Entendimento Humano, livro
II, cap. 27, §26: “Pessoa (...) é um termo forense que apropria ações e seus méritos.”

537
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

A autoridade para tal visão pode novamente ser encontra-


da nos escritos de Kant, que defendeu que os seres humanos
são pessoas por serem tratados de certa maneira (ou seja, como
fins, e não como um meio apenas); em outras palavras, os seres
humanos são pessoas relativamente a uma determinada capa-
cidade que temos de responder a elas. Se tal coisa fosse verda-
de, deveríamos esperar que a característica da “compreensão
intencional” das respostas interpessoais fosse ainda mais frágil
do que a envolvida na atribuição de qualidades secundárias, e
ainda mais suscetível de ser varrida da superfície das coisas pela
atarefada higiene da ciência natural. No entanto, tal visão é ex-
tremamente implausível. Pelo menos o núcleo do nosso concei-
to de pessoa pode ser separado das respostas que o expressam, e
ligado ao mundo independentemente. Pois este núcleo consiste
nas duas propriedades relacionadas do privilégio e responsabi-
lidade da primeira-pessoa – as propriedades que eu reuni sob o
título de “perspectiva de primeira-pessoa”. E, embora possa ser
natural, e talvez até inevitável, para uma criatura com tal pers-
pectiva responder interpessoalmente a outros membros de sua
espécie, esta não parece ser uma questão de necessidade lógica.
A perspectiva de primeira-pessoa é a base do sentimento inter-
pessoal, mas não o compele logicamente.
Ao mesmo tempo, no entanto, o argumento deste livro im-
plicou que há uma teoria metafísica peculiar adormecida em
nossas atitudes interpessoais. Como as respostas estéticas en-
raizadas na classificação de pedras, as atitudes interpessoais se
erigem sobre a “similaridade percebida” que as fundamenta,
e introduz, através de sua própria fome por justificação, no-
vas camadas de compreensão intencional. Algumas dessas ca-
madas – como o conceito do sagrado discutido no Capítulo
12 – são historicamente condicionadas e susceptíveis a doença
e decadência. Outras são características mais permanentes do
Lebenswelt, como o eu transcendental ou alma, que ressurge
sempre em nossos amores, ódios e desejos. Este conceito, como
o do sagrado, é indispensável para o florescimento e concreti-
zação de uma ilusão metafísica. Se for assim, então o entendi-
mento intencional a partir do qual o Lebenswelt é construído
possui uma enorme falha metafísica. Não é apenas que vemos
o mundo coberto de qualidades secundárias – qualidades que a

538
apêndices - ii. intencionalidade

ciência repudia como insubstanciais. Nós também o vemos em


termos que não têm, porque não poderiam ter, nenhuma apli-
cação genuína.
Mais uma vez, no entanto, não devemos considerar que esse
fato viciou a análise anterior da intencionalidade. Embora exis-
tam camadas defeituosas em nosso entendimento intencional,
ainda há uma diferença na realidade entre os objetos que podem
e os que não podem sustentar as ilusões transcendentais que
são construídas sobre eles. Portanto, há exatamente a mesma
possibilidade aqui como em outros lugares da falta de corres-
pondência entre o estado interior e realidade exterior. E é essa
possibilidade que gera a “inexistência intencional” do objeto de
amor e desejo.
Meu argumento tendeu à conclusão de que os conceitos ex-
postos por nossa compreensão intencional (e, portanto, o Le-
benswelt que esses conceitos ajudam a criar) são muito mais
complexos do que muitas vezes se supõe, e dão origem a proble-
mas que não podem ser resolvidos pela investigação científica.
Isso me faz voltar para as observações de abertura deste livro.
Há, de fato, as perguntas que a ciência é incompetente para
responder. E estas perguntas – as questões de filosofia e crítica –
estão mais perto de nós, e são mais importantes para a nossa fe-
licidade, do que qualquer das questões da ciência natural. Uma
dessas questões tem sido o objeto deste livro, e ao respondê-la
pelo método da “análise conceitual”, não descrevi apenas con-
ceitos, mas uma forma de vida.

539
ÍNDICE ONOMÁSTICO

A
Abelardo, Pedro 336, 337
Abravanel (Leone Ebreo) 299, 339
Ackerley, J.R. 398
Aldrich, Virgil C. 336
Anscombe, G.E.M. 77, 78, 83, 84, 144, 146, 147, 347, 391, 439, 497, 501,
512, 517
Apuleio 298
Aristófanes 270, 271
Aristóteles 19, 33, 37, 65, 68, 87, 105, 210, 303, 305, 306, 308, 311, 312,
317, 364, 393, 439, 440, 441, 443, 444, 468, 475, 492
Armstrong, D.M. 286
Ashbee, H.S. 400, 411, 412
Ashley, April 373
Atkinson, R. 468
Auden, W.H. 333
Ayer, Sir Alfred J. 498, 509

B
Barash, D.P. 256
Barbin, D.P. 374
Barwise, Jon 524
Bataille, Georges 249
Baudrillard, Jean 223
Beattie, J. 484
Beauvoir, Simone de 354, 382, 383
Bennett, J.F. 70, 193, 261
Bergson, Henri 199, 261
Berlin, Isaiah 406
Bernini, Gianlorenzo 246, 434
Blake, William 161, 330
Boccaccio 16, 298, 321

541
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Bradley, F.H. 153, 436


Brentano, Franz 516, 517, 518, 520, 524, 525
Brosses, Charles de 429
Brouwer, L.E.J. 512
Brown, Normam O. 284, 474
Bruant, Aristide 210
Buber, Martin 318
Budd, M.J. 76, 498
Buffon, George Louis Leclerc 20, 359
Byron, George Gordon 237, 325, 343

C
Capellanus, Andreas 296
Carew, Thomas 388
Carlyle, Thomas 203, 388
Carnap, Rudolph 497, 522, 526
Casanova de Singalt, Jacques 382, 383, 384
Casey, John 11, 143, 290, 436, 443, 535
Cavafy, C.P. 395
Cavalcanti, Guido 16, 327, 328
Chambard, Ernest 284
Chaucer, Geoffrey 16, 193, 194, 298, 320, 321, 492
Chikamatsu 155, 238
Chisholm, R.M. 518
Church, Alonzo 522
Clark, Sir Kenneth 169, 366
Cleland, John 198
Collingwood, R.G. 148, 304
Comfort, Alex 263
Conrad, Joseph 492
Cornevin, Charles 243
Courbet, Gustave 218
Creswell, M.J. 521
Croce, Benedetto 146, 148, 304
Céline, Louis Ferdinand 405

D
Dante, Alighieri 16, 100, 185, 187, 239, 296, 297, 300, 321, 492
Daudet, Alphonse 230
Davidson, Donald 69, 70, 519, 525, 531
Davies, Martin 521
Demóstenes 487
Dennett, D.C. 20, 80, 451, 504, 516, 519
Descartes, René 66, 89, 165, 172, 460, 493

542
índice onomástico

Dickens, Charles 492


Dickinson, Emily 246
Dilthey, Wilhelm 19, 25, 29, 262
Dryden, John 139, 228
Duhem, P.M.M. 255
Dummett, Michael 115, 498, 504, 505, 529
Durden-Smith, Jo 357
Durkheim, Émile 319
Duval, A. 207
Dworkin, Ronald 482

E
Eliot, T.S. 472, 485
Ellis, Havelock 9, 102, 201, 202, 203, 219, 242, 243, 247, 253, 284
Engels, Friedrich 31, 467
Estratão 417, 418
Evans, Gareth 77, 170, 484, 528

F
Faulkner, William 411
Ferrero, G. 207
Flugel, J.C. 293
Fontane, Theodor 234
Fortes, M. 484
Foucault, Michel 60, 245, 374, 491, 492
Frankfurt, H. 451
Freeman, Derek 365, 458
Frege, Gottlob 45, 115, 352, 472, 504, 505, 521, 522, 523, 526, 529
Freud, Sigmund 10, 41, 94, 112, 203, 238, 272, 273, 275, 276, 277, 278,
279, 280, 281, 282, 283, 284, 285, 286, 287, 288, 289, 290, 291,
292, 387, 388, 411, 422, 428, 462, 465, 474
Frisch, Karl von 261
Fromentin, Eugene 426
Fromm, Erich 474
Fryer, Peter 400, 411
Fuchs, Eric 420
Féré, C. 9, 242, 243, 247, 398

G
Garibaldi, Giuseppe 226, 227
Geach, P.T. 379, 504, 521, 526
Goldsmith, Oliver 492

543
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Goncourt, Edmond e Jules de, 368


Grant, R.A.D. 11, 31, 47, 432
Gray, Robert 373
Greer, Germaine 392, 480

H
Hafiz 459
Hampshire, Sir Stuart 82, 149, 307, 450
Hare, R.M. 142, 436
Harman, G. 479
Harris, Frank 212
Hartmann, Eduard von 271
Hayek, F.A. von 27, 151, 480
Heath, Stephen 167, 319, 351, 466
Hegel, G.W.F. 15, 89, 117, 141, 177, 178, 367, 368, 381, 406, 407, 408,
409, 413, 425, 436, 475, 482, 488, 489
Heidegger, Martin 26, 29, 89, 456, 473, 496, 517
Herrick, Robert 237, 366
Hesíodo 492
Hill, Geoffrey 444
Hobbes, Thomas 482
Hocquenghem, Guy 352, 364
Homero 492
Hughes, G.E. 521
Hume, David 285, 300, 301, 302, 364, 365, 439, 447, 448
Husserl, Edmund 18, 19, 25, 29, 32, 33, 472, 487, 493, 496, 497, 499,
517, 532
Huxley, Aldous 56, 406
Héloise 337

I
Ingres, J.A.D. 207

J
James, Henry 106, 142, 143, 144, 200, 305, 342, 378, 380
Jerônimo, São 390
José II 342
Jouve, Pierre-Jean 241
Joyce, James 492

544
índice onomástico

K
Kafka, Franz 411
Kant, Immanuel 15, 17, 19, 28, 29, 74, 75, 85, 88, 89, 90, 95, 124, 125,
126, 143, 146, 149, 153, 155, 157, 159, 160, 161, 162, 166, 169,
171, 174, 178, 180, 222, 228, 285, 304, 305, 306, 307, 309, 311,
376, 395, 429, 432, 435, 436, 437, 438, 439, 441, 452, 473, 477,
478, 510, 511, 512, 538
Kaplan, D. 525
Keats, John 100, 101, 400
Kenny, A.J. 77, 497, 534
Khayam, Omar 459
Kierkegaard, Sören 141, 235, 236, 321, 483
Kleist, Heinrich 185, 401
Kneale, William 66, 520
Kolnai, Aurel 185, 203
Krafft-Ebing, Richard Freiherr von 9, 10, 242, 243, 247
Kraus, Oscar 516, 517, 518
Kripke, Saul 19, 20, 81, 115, 165, 498, 505

L
Laclos, Chanderlos de 198
Langland, William 492
Lawrence, D.H. 198, 210, 360, 384, 395, 468, 469, 472, 492
Leavis, F.R. 472
Leopardi, Conde Giacomo 192, 214
Lessing, Gottfried 313
Levin, Michael 231, 415, 421
Lewis, C.S. 298
Locke, Don, 20, 63, 537
Locke, Don 504
Lombroso, L. 207

M
Mackie, J.L. 452, 524
Madison, Peter 278, 288
Mann, Thomas 44, 158, 297
Maomé 381
Marcuse, Herbert 474
Marx, Karl 31, 37, 224, 467
Masaccio 201
Maupassant, Guy de 212, 213

545
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

McDowell, John 77, 170, 436


McEwen, Bruce 373
McGinn, Colin 375, 520, 530, 532
McTaggart, J.M.E. 319, 320, 323
Mead, Margaret 363, 365, 458
Meleagro 417, 418
Merleau-Ponty, Maurice 98, 310, 517
Michelet, Jules 416
Millet, Kate 385
Milton, John 99, 332
Mises, Ludwig von 480
Mishima, Yukio 364
Molière, J.B. 369
Money, John 373
Montaigne, Michel de 203, 252, 315, 316, 317, 319
Morris, Desmond 254, 263, 268
Morris, Jan 373
Mozart, W.A. 156, 158, 235, 241
Musil, Robert 198, 297
Mélinaud, Camille 207

N
Nabokov, V. 462
Nagel, Ernest 279
Nagel, Ernest 45, 47, 48, 88, 113, 118, 167, 182, 394, 395
Nietzsche, F. 322
Norman Malcolm 77

O
Oakley, Anne 357
Ormrod, Senhor Justiça Sir Roger 373
Ovídio 48, 298, 397

P
Paley, William 422, 423
Parfit, Derek 91, 111, 447, 449, 456
Parmênio 223
Peacocke, Christopher 286, 531
Peckham, G.W. 252, 253, 256
Perrot, Philippe 370, 371
Perry, John 524

546
índice onomástico

Platts, Mark 436


Platão 15, 16, 17, 60, 125, 270, 295, 298, 299, 300, 302, 307, 321, 325,
338, 339, 341, 342, 343, 346, 348, 377, 381, 390, 475, 492
Pope, Alexander 285, 337
Popper, Sir Karl Raimund 279
Porter, Peter 199
Pound, Ezra 16, 328, 390, 403
Poussin, Nicolas 54, 269
Proust, Marcel 232, 233, 297, 417, 418
Putnam, Hilary 19, 20, 525, 527, 528, 529

Q
Quine, W.V. 23, 63, 255, 522, 525
Quiros y Llanas Aguilaniedo, B. de 223

R
Racine, Jean 234, 424, 426
Rafael 313
Rawls, John 438, 482
Reich, Wilhelm 272, 284, 474
Reik, Theodor 342, 343
Restif de la Bretonne, Nicolas 205, 206
Rilke, Rainer Maria 515
Rochester, Earl de 214, 218
Rougemont, Denis de 235, 297, 298
Rousseau, Jean-Jacques 177, 474
Rudolf Otto 473
Ruskin, John 368
Russell, Bertrand 298
Réage, Pauline 224

S
Sacher-Masoch, Leopold 243, 248, 428
Sade, Marquês de 137, 248, 249, 413, 463
Safo 418
Sandel, Michael 438
Santo Agostinho de Hipona 16, 102, 107, 188, 190, 200
Sardou, Victorien 487
Sartre, Jean-Paul 15, 45, 46, 50, 57, 89, 90, 104, 113, 123, 141, 174, 175,
176, 177, 178, 179, 180, 181, 187, 189, 192, 212, 245, 246, 313,
323, 411, 496, 535

547
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Saussure, Ferdinand de 370


Scheler, Max 209, 319, 332
Schelling, T.C. 456
Schopenhauer, Arthur 15, 54, 89, 107, 141, 192, 266, 267, 268, 269, 271,
314, 415
Schwartz, Mark 373
Searle, J.R. 47, 70, 71, 529, 531
Senancour, Étienne Pivert de 219, 220, 237, 361
Shaftesbury, Terceiro Duque de 439
Shakespeare, William 47, 205, 464, 492
Shoemaker, Sidney 77, 170, 309, 449
Sidgwick, Henry 446
Simmel, Georg 221, 222, 227, 228
Simone, Diane de 354, 357, 382, 383
Smart, J.J.C. 479
Smith, Adam 480
Solomon, Robert 328, 413, 487
Sorel, Georges 276
Stendhal 220, 227, 235, 297, 326
Sterne, Lawrence 198
Strawson, Sir Peter F. 50, 148, 159, 164, 165, 537
Szasz, Thomas 102, 336
São Paulo 390
São Tomás de Aquino 16, 286
Sócrates 218, 295, 302, 307
Sófocles 152, 298

T
Tanner, M.K. 391
Teichman, Jenny 77, 391
Teócrito 360
Thompson, E.P. 224
Ticiano 313
Tolstói, Leo 305

V
Van den Berghe, Pierre 263, 264
Verlaine, Paul 216, 384

W
Wagner, Richard 225, 235, 269, 270, 297, 460
Waugh, Evelyn 495

548
índice onomástico

Weber, Max 29, 224, 253, 262, 460, 479


Weininger, Otto 350, 351, 364
Wicksteed, P.H. 225
Williams, Bernard 105, 165, 306, 391
Wilson, E.O. 189, 254, 256, 258, 259, 263, 264, 265, 266, 268
Winch, Peter 391
Wittgenstein, Ludwig 31, 32, 74, 78, 80, 81, 276, 290, 291, 497, 498, 499,
500, 501, 502, 503, 504, 505, 506, 507, 508, 509, 510, 511, 512,
517
Wollheim, Heinrich 273

X
Xenofonte 218

Y
Yeats, W.B. 139, 213, 216, 399, 480
Young, Wayland 211, 218

549
ÍNDICE REMISSIVO

A
adjetivos 344
adultério 234, 297, 379, 487, 488
alimentação 123, 359
amizade 132, 150, 151, 162, 188, 200, 225, 265, 281, 295, 302, 303, 304,
305, 306, 307, 308, 310, 311, 312, 313, 314, 315, 316, 317, 318,
319, 320, 322, 331, 343, 442, 443
amor 9, 10, 15, 16, 17, 18, 28, 30, 34, 38, 47, 48, 52, 53, 60, 90, 96, 99,
101, 109, 110, 111, 112, 114, 115, 117, 120, 122, 124, 125, 126,
127, 128, 135, 136, 137, 139, 140, 143, 144, 145, 146, 147, 148,
149, 150, 152, 154, 155, 156, 159, 160, 161, 162, 172, 177, 178,
179, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 188, 190, 194, 195, 196, 206,
207, 209, 210, 211, 213, 219, 220, 222, 223, 225, 226, 227, 229,
230, 232, 234, 235, 237, 238, 239, 241, 243, 245, 247, 248, 259,
266, 271, 284, 287, 290, 291, 294, 295, 296, 297, 298, 299, 300,
301, 302, 303, 306, 307, 313, 315, 316, 317, 318, 319, 320, 321,
322, 323, 324, 325, 327, 328, 329, 330, 331, 332, 333, 335, 336,
337, 338, 339, 340, 341, 342, 343, 344, 345, 346, 347, 349, 359,
360, 361, 377, 381, 383, 388, 389, 390, 391, 395, 396, 398, 399,
400, 414, 417, 419, 421, 423, 424, 425, 426, 427, 434, 440, 444,
455, 456, 457, 458, 459, 461, 462, 463, 464, 465, 466, 467, 469,
475, 476, 477, 480, 483, 485, 486, 487, 489, 528, 535, 539
amor cortês 296, 297, 327, 487
amor erótico 9, 15, 16, 60, 135, 136, 147, 154, 156, 226, 229, 235, 295,
296, 297, 298, 299, 300, 302, 307, 316, 318, 319, 320, 321, 322,
323, 328, 330, 331, 332, 343, 344, 345, 346, 398, 399, 417, 424,
455, 456, 458, 463, 464, 480, 483, 485, 486, 487, 489
animais 16, 38, 40, 51, 58, 59, 61, 62, 63, 65, 66, 67, 72, 73, 75, 87, 90,
93, 100, 109, 119, 126, 130, 144, 156, 171, 193, 194, 196, 198, 200,
210, 216, 242, 243, 250, 251, 252, 254, 258, 261, 268, 275, 277,
281, 293, 299, 320, 339, 348, 362, 365, 377, 380, 389, 392, 393,
397, 398, 414, 531, 534, 537
animação sexual 54, 55
antirrealismo 498, 505, 506
551
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

análise conceitual 18, 19, 59, 539


apetite 53, 54, 57, 58, 113, 118, 122, 124, 125, 126, 133, 134, 185, 194,
206, 281, 293, 299, 300, 301
argumento da linguagem privada 498, 504, 506, 512
arrependimento 131, 136, 215, 331, 449
arte erótica 101, 217, 218, 431
atitudes interpessoais 50, 90, 107, 108, 109, 125, 142, 151, 152, 153, 170,
171, 174, 180, 184, 239, 283, 346, 347, 365, 393, 436, 453, 535,
537, 538
atitudes proposicionais 519, 531
autoconstrução 330, 332, 343
autoengano 73, 75, 82, 338
autoidentidade 84, 309, 310, 312, 313, 332, 449
autoidentificação 78, 133, 166, 374, 416, 447
autonomia 409, 472, 481, 483
autorrealização 154, 407, 447, 455
açougue 21

B
beijo 38, 39, 40, 99, 209, 338, 341, 342, 388, 401, 421
beleza 107, 145, 174, 219, 223, 236, 286, 296, 299, 300, 301, 302, 319,
326, 333, 343, 344, 361, 368, 379, 380, 381, 462, 480
bestialidade 50, 51, 57, 126, 177, 242, 392, 396, 397, 398, 399, 401, 421

C
caráter 17, 20, 23, 42, 44, 46, 53, 54, 67, 74, 95, 97, 98, 99, 123, 131,
134, 149, 150, 157, 159, 161, 162, 163, 169, 191, 193, 202, 206,
226, 238, 239, 276, 288, 308, 310, 311, 312, 314, 315, 316, 320,
324, 328, 330, 338, 345, 350, 351, 353, 360, 384, 391, 405, 411,
415, 421, 424, 430, 432, 433, 439, 440, 448, 457, 459, 468, 480,
481, 486, 495, 507, 512, 519, 528
carícia / carícias 34, 43, 45, 46, 48, 49, 50, 53, 135, 175, 182, 338, 341,
378, 381, 427
casamento 15, 59, 119, 122, 190, 236, 242, 297, 318, 321, 337, 358, 390,
403, 424, 458, 459, 463, 483, 484, 485, 486, 487, 488, 489, 492
caso de primeira-pessoa 454
castidade 433
cheiro 157, 244, 340, 360
ciúme 34, 161, 228, 229, 230, 231, 232, 233, 234, 248, 249, 252, 257,
289, 335, 358, 359, 360, 397, 425, 458, 487
classificação 20, 21, 22, 23, 24, 30, 41, 66, 67, 352, 357, 534, 535, 536,
537, 538
complementaridade 369, 419, 420, 421
conatus 66

552
índice onomástico

concupiscência 188
conservadorismo 35, 475
constrangimento 100, 200, 201, 208, 210, 227, 336, 396, 443, 465
construção de gênero 352, 353, 364, 365, 367, 368, 370, 371, 372
contracepção 392
contrato social 438, 482, 486
coprofilia 215
coprofobia 215
coqueteria 227, 228
coragem 306, 311, 322, 364, 443, 444, 445, 456
cortejo 38, 252, 253, 254, 257, 267, 369, 370
crime passionel 234
culpa 28, 32, 100, 101, 110, 124, 202, 291, 308, 410, 423, 454, 537
cunilíngua 388, 389
curiosidade 19, 58, 129, 130, 153, 199, 208, 248, 287, 362, 404, 418, 430, 487
curso do amor 331, 332, 335, 343, 346, 421
curso do desejo 127, 189, 331, 332, 335, 346

D
“dado” 32, 167, 180, 250, 309, 494, 496, 507, 508, 528
dança 256, 324, 370, 377, 378, 489
deformidade 301
democracia 134
desejabilidade 144
desejo sexual 9, 10, 13, 15, 17, 18, 27, 28, 33, 34, 35, 38, 50, 60, 61, 73,
92, 94, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 105, 110, 112, 113, 114, 115, 117,
118, 121, 122, 123, 124, 126, 127, 131, 132, 133, 134, 136, 141,
143, 149, 151, 152, 153, 154, 155, 156, 157, 159, 160, 175, 176,
177, 180, 191, 193, 194, 196, 211, 212, 216, 227, 229, 231, 238,
246, 247, 249, 250, 252, 254, 255, 266, 267, 280, 282, 284, 289,
293, 295, 301, 302, 307, 312, 331, 338, 340, 344, 346, 348, 362,
373, 377, 378, 379, 387, 393, 394, 395, 396, 418, 425, 426, 428,
429, 430, 435, 455, 457, 458, 459, 464, 465, 471, 494
desejo vicário 158
Deus 16, 18, 34, 62, 102, 111, 120, 163, 168, 169, 172, 184, 189, 190,
191, 193, 245, 269, 296, 300, 337, 373, 381, 420, 441, 477, 478,
479, 528
dialética 53, 166, 178, 409, 486
dinheiro 221, 222, 223, 225
divertimento 304, 306, 307, 310, 312, 535
dom-juanismo 234, 235, 237, 240, 242, 249

E
economia de mercado 151, 224

553
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

educação 124, 215, 308, 336, 368, 370, 372, 433, 439, 440, 441, 445,
446, 458, 459, 462, 465, 467, 469, 475, 479
emoção 22, 24, 25, 30, 31, 34, 43, 58, 93, 96, 97, 128, 129, 142, 155, 181,
183, 189, 200, 207, 216, 243, 244, 246, 249, 253, 278, 319, 320,
322, 341, 344, 353, 379, 396, 398, 400, 403, 404, 405, 423, 429,
436, 453, 458, 495, 535
enamoramento 226, 227
encantamento 515
encarnação 46, 47, 49, 50, 55, 56, 57, 58, 96, 97, 98, 100, 104, 105, 106,
107, 108, 109, 110, 111, 112, 123, 125, 127, 129, 130, 132, 137,
139, 157, 158, 175, 176, 177, 184, 187, 188, 189, 191, 192, 193,
194, 196, 197, 199, 207, 208, 215, 216, 236, 245, 246, 249, 298,
309, 310, 318, 320, 321, 324, 326, 328, 332, 345, 348, 355, 362,
363, 365, 366, 367, 369, 370, 371, 372, 376, 380, 405, 408, 421,
429, 434, 442, 460, 463, 468, 478, 488, 535
ensinamento Quaker 468
entendimento intencional 29, 31, 34, 59, 106, 129, 172, 215, 255, 262,
263, 264, 265, 275, 291, 292, 293, 310, 352, 355, 477, 484, 515,
532, 536, 538, 539
entendimento tácito 151
ereção 38, 102, 103, 107, 212
escravidão 117, 193, 224, 244, 353, 354, 405, 406, 409, 410, 460, 469
essência 20, 30, 37, 59, 60, 65, 75, 129, 146, 155, 163, 164, 165, 169,
170, 178, 180, 186, 221, 222, 255, 286, 298, 311, 375, 381, 441,
454, 496, 499, 513
essência individual 163, 164, 165, 169, 180, 186
Estado 110, 367, 477, 481, 482, 485
estima 28, 39, 87, 143, 159, 161, 162, 178, 186, 226, 295, 299, 305, 306,
307, 308, 311, 312, 313, 314, 316, 318, 319, 320, 321, 322, 323,
329, 330, 331
estupro 17, 55, 177, 204, 345, 399, 459, 467
eu 9, 17, 25, 28, 30, 39, 41, 45, 46, 47, 48, 49, 50, 55, 56, 65, 68, 73, 74,
75, 76, 77, 78, 79, 80, 81, 82, 83, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 93, 94,
95, 96, 97, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 106, 107, 108, 111, 113, 116,
117, 118, 119, 120, 121, 122, 123, 125, 127, 128, 129, 132, 137,
141, 142, 143, 144, 145, 148, 149, 151, 152, 153, 154, 155, 157,
158, 160, 165, 166, 167, 168, 169, 170, 171, 172, 173, 175, 176,
177, 178, 179, 180, 182, 183, 184, 186, 187, 188, 192, 194, 196,
197, 199, 200, 201, 204, 205, 206, 209, 214, 215, 226, 227, 229,
230, 235, 237, 238, 239, 240, 241, 244, 245, 246, 248, 249, 250,
251, 254, 255, 261, 262, 266, 267, 268, 270, 271, 274, 275, 276,
279, 281, 284, 290, 291, 292, 296, 301, 304, 305, 308, 309, 310,
311, 312, 314, 315, 316, 317, 318, 319, 320, 328, 329, 330, 331,
332, 333, 335, 337, 338, 341, 343, 344, 345, 346, 349, 350, 351,
353, 354, 355, 359, 363, 373, 376, 378, 384, 393, 394, 395, 396,
406, 407, 408, 410, 411, 412, 413, 414, 416, 417, 418, 421, 422,

554
índice onomástico

424, 426, 434, 436, 437, 438, 440, 441, 442, 443, 444, 445, 446,
447, 448, 449, 450, 451, 452, 453, 454, 456, 457, 459, 460, 463,
466, 467, 468, 469, 472, 475, 476, 477, 478, 481, 484, 486, 489,
492, 494, 496, 497, 499, 501, 502, 503, 506, 507, 512, 513, 515,
520, 524, 525, 526, 529, 530, 533, 538
eu transcendental 28, 89, 90, 94, 95, 125, 180, 215, 437, 538
excitação 18, 34, 37, 38, 39, 40, 42, 43, 44, 45, 46, 48, 49, 50, 51, 52, 53,
54, 55, 56, 57, 58, 59, 60, 61, 93, 95, 96, 97, 103, 108, 112, 117,
118, 127, 130, 131, 132, 133, 136, 160, 175, 182, 183, 184, 187,
188, 189, 190, 191, 195, 198, 200, 211, 214, 216, 217, 221, 230,
236, 247, 277, 284, 286, 287, 289, 332, 338, 339, 341, 342, 368,
395, 399, 402, 404, 417, 418, 421, 422, 426, 428, 429, 488, 491
excitação sexual 37, 39, 42, 43, 44, 52, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 61, 95, 96,
112, 117, 188, 190, 191, 214, 216, 230, 236, 277, 284, 286, 289,
338, 341, 342, 395, 404, 417, 418, 428, 429
excremento 192, 215
experiência estética 37, 155, 159, 161, 228, 326
explicação científica 26, 133, 260, 275, 472
explicação funcional 31
exposição indecente 135
extensionalidade 520, 521, 522, 523, 524, 525, 526

F
falácia naturalista 60
família 319, 367, 424, 425, 426, 427, 433, 481, 482, 488
fantasia 44, 135, 177, 224, 229, 232, 288, 342, 374, 410, 429, 430, 431,
432, 465, 466, 467, 469
felação 388, 389
felicidade 27, 87, 155, 285, 328, 337, 393, 440, 441, 442, 443, 446, 455,
478, 539
feminismo 353, 355, 373, 375, 382, 383
feminismo kantiano 353, 355, 373, 375, 382, 383
Fenomenologia 18, 117, 407
fetiche religioso 429
fetichismo 277, 396, 427, 428, 429, 430
fidelidade 21, 119, 120, 235, 252, 265, 334, 458, 459, 463, 464
fisicalismo 516
flerte 227
fornicação 18
fotografia 108
fraqueza de vontade 82
futebol 130, 131, 134, 136

G
gravidez 215, 391

555
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

H
haecceitas 163
harém 225
hermafroditismo 357, 374
historicidade 476, 477
história 31, 41, 53, 59, 60, 61, 69, 89, 90, 94, 110, 121, 161, 207, 212,
224, 261, 262, 265, 292, 309, 349, 376, 383, 427, 428, 459, 475,
476, 481, 483, 485, 491, 492
homem e mulher 34, 350, 355, 356, 360, 362, 367
homossexualidade 235, 348, 349, 352, 364, 385, 396, 414, 415, 417, 418,
419, 420, 421, 426, 468
humor 264, 304, 404

I
idealismo transcendental 510
idealização 226, 325, 331
identidade dos indiscerníveis 168
identidade pessoal 111, 309, 447
ideologia 31, 255, 336, 361, 414, 485
Iluminismo 108
“imanente” 159, 304, 314
imperativo categórico 125, 126, 127, 178, 354, 435, 436
incesto 281, 289, 292, 297, 396, 422, 423, 424, 425, 426, 427
inconsciente 44, 113, 270, 271, 273, 274, 275, 290, 291, 429
indexicais 170, 527
indivíduos 62, 63, 64, 88, 91, 109, 111, 120, 127, 159, 164, 170, 172, 193,
194, 195, 256, 271, 426, 446, 468, 480
indolência 329
inibição 248, 278, 404
iniciação 243, 403, 404, 484
inocência 32, 47, 100, 101, 189, 202, 403, 404, 424, 426, 461, 462, 463,
471, 479, 480
insanidade 84, 229
instinto 9, 10, 101, 127, 157, 174, 193, 202, 242, 250, 261, 271, 276, 277,
278, 281, 293, 342, 381, 389, 402, 443
instituições 35, 37, 68, 93, 109, 111, 368, 420, 474, 475, 477, 478, 479,
480, 481, 482, 483, 485, 488, 489
integridade sexual 468, 469, 473, 474, 480, 481
intelecto 261, 328
intencionalidade 25, 27, 31, 32, 41, 45, 48, 49, 50, 51, 52, 53, 54, 55, 56,
57, 58, 59, 60, 61, 66, 70, 72, 97, 98, 99, 104, 108, 112, 115, 117,
121, 122, 123, 125, 127, 130, 131, 132, 133, 136, 137, 141, 145,
146, 151, 152, 154, 155, 156, 157, 158, 160, 161, 172, 174, 177,
180, 182, 195, 197, 202, 206, 211, 216, 217, 218, 221, 226, 228,
234, 235, 242, 244, 248, 249, 267, 268, 271, 275, 282, 283, 284,

556
índice onomástico

285, 286, 287, 288, 292, 302, 312, 313, 314, 320, 328, 331, 335,
346, 378, 379, 392, 394, 398, 402, 410, 414, 430, 433, 434, 459,
463, 516, 517, 518, 519, 520, 521, 524, 525, 526, 527, 528, 529,
530, 531, 532, 534, 535, 537, 539
intencionalidade epistêmica 55, 61
intensionalidade 520, 522, 526, 527, 530, 531
intenção 21, 28, 43, 47, 48, 56, 61, 70, 71, 76, 82, 83, 84, 85, 155, 170,
181, 182, 189, 212, 218, 228, 244, 248, 265, 318, 338, 377, 391,
427, 448, 450, 451, 515
intimidade 135, 136, 167, 183, 210, 215, 227, 229, 331, 379, 426, 461,
464, 483, 488
intuição 159, 169, 303, 346, 433, 454
irracionalidade 84, 457

K
Kama Sutra 115
kinseyismo 300, 336, 473

L
lar 226, 359, 365, 389, 424, 425, 483, 487, 515
Lebenswelt 25, 26, 27, 28, 29, 32, 33, 62, 87, 173, 254, 372, 381, 472,
473, 476, 479, 482, 493, 515, 516, 532, 538, 539
lei 28, 67, 105, 126, 213, 241, 268, 284, 297, 298, 305, 306, 311, 337,
338, 371, 394, 409, 417, 423, 424, 437, 438, 441, 466, 481, 520,
521, 522, 525
lei de ferro da oligarquia 126
liberalismo 482
liberdade metafísica 90, 193
libido 125, 273, 276, 277, 280, 281, 282, 283, 284, 287, 310
linguagem 10, 32, 33, 40, 47, 48, 69, 70, 71, 73, 75, 76, 83, 84, 85, 86, 90,
94, 113, 126, 155, 168, 176, 179, 189, 198, 209, 210, 211, 225, 257,
261, 264, 272, 275, 279, 288, 304, 306, 324, 327, 336, 351, 354,
370, 371, 373, 407, 447, 448, 459, 471, 472, 481, 484, 493, 495,
496, 497, 498, 500, 501, 502, 503, 504, 505, 506, 507, 508, 509,
512, 513, 518, 519, 521, 527, 531, 532
livre de razões 143, 146
lodo 192, 214
louva-a-deus 390
luxúria 93, 132, 135, 147, 177, 190, 191, 196, 218, 220, 235, 299, 314,
333, 342, 432, 459, 463, 464, 465

M
masculino e feminino 349, 354, 357, 358, 359, 382, 417

557
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

Masters and Johnson Report 10


masturbação 18, 38, 58, 396, 430, 432, 433, 465, 466
matemática 260, 262, 392, 512
menstruação 215
mistério 10, 22, 30, 31, 73, 108, 137, 158, 184, 193, 194, 199, 239, 288,
302, 324, 384, 416, 417, 430, 493
mito 223, 230, 273, 274, 276, 287, 289, 297, 332, 333, 382
moda 112, 370, 371, 372, 480
modéstia 34, 47, 53, 101, 190, 200, 201, 202, 204, 207, 208, 211, 217,
219, 220, 249, 252, 257, 265, 359, 446
moralidade 17, 31, 33, 58, 108, 126, 153, 159, 162, 189, 192, 196, 215,
234, 241, 245, 250, 265, 268, 272, 278, 280, 284, 293, 302, 306,
336, 348, 376, 382, 392, 396, 409, 411, 412, 422, 426, 433, 434,
435, 437, 438, 446, 454, 455, 457, 458, 460, 461, 463, 468, 469,
471, 474, 477, 480, 487, 492
morte 57, 106, 110, 133, 191, 213, 226, 235, 237, 238, 239, 240, 242,
245, 249, 269, 313, 314, 317, 318, 332, 400, 406, 407, 433, 449,
482, 484, 488, 489
mudança de sexo 354, 373, 374
mármores ornamentais 22, 24, 533, 534, 536
música 67, 154, 232, 339, 341, 515

N
narcisismo 182
necessidade 24, 27, 33, 61, 68, 88, 91, 120, 122, 125, 132, 133, 156, 160,
162, 191, 192, 193, 195, 215, 221, 234, 235, 247, 249, 257, 264,
278, 290, 299, 306, 319, 321, 324, 330, 331, 342, 343, 344, 361,
370, 382, 406, 407, 408, 417, 427, 431, 442, 458, 472, 476, 496,
501, 538
necrofilia 55, 392, 396, 400, 401, 402, 421
neuterismo 357
ninfomania 53
nojo 200, 202, 216, 289, 459
nomes próprios 115, 527, 529
normalidade 32, 110, 197, 277, 322, 346, 357, 383, 387, 388, 389, 392,
393, 414, 415, 458
númeno 510, 511

O
objeto formal 142, 534, 535
obscenidade 57, 197, 198, 199, 206, 211, 217, 218, 224, 229, 237, 249,
398, 415, 421, 422, 426, 427, 432, 433, 434, 467, 468, 489

558
índice onomástico

ódio 10, 31, 52, 109, 110, 112, 143, 177, 234, 302, 316, 331, 412, 475
olhar 34, 45, 46, 47, 48, 64, 90, 93, 96, 97, 100, 103, 122, 124, 128, 135,
173, 175, 176, 182, 201, 202, 204, 205, 206, 207, 216, 219, 231,
241, 244, 245, 246, 249, 253, 265, 306, 307, 318, 338, 341, 359,
360, 381, 392, 410, 423, 424, 430, 455, 456, 486, 487, 503, 528
órgãos sexuais 15, 38, 41, 52, 61, 102, 108, 130, 190, 198, 202, 203, 204,
206, 211, 212, 213, 215, 216, 217, 238, 341, 418, 421
orgasmo 45, 112, 113, 133, 134, 135, 175, 429, 466
orgulho 43, 53, 85, 257, 320, 453, 454, 456

P
paixão 16, 28, 97, 100, 116, 141, 156, 177, 193, 200, 214, 226, 227, 230,
235, 236, 266, 267, 270, 281, 297, 298, 307, 318, 321, 323, 328,
395, 401, 424, 426, 429, 463, 483, 485, 486
pecado 189, 190, 191, 192, 193, 198, 199, 216, 238, 314, 404, 479
pecado original 187, 190, 191, 192, 193, 199, 216, 238, 314, 479
pedofilia 396, 402, 403, 404, 425, 467
pensamento 15, 24, 25, 27, 31, 37, 40, 42, 43, 45, 46, 48, 49, 50, 55, 58,
68, 69, 71, 72, 73, 74, 88, 95, 99, 101, 104, 105, 115, 116, 118, 119,
120, 121, 122, 124, 125, 127, 129, 132, 134, 141, 154, 155, 157,
158, 161, 162, 167, 170, 171, 174, 176, 177, 184, 187, 190, 191,
199, 200, 204, 205, 206, 208, 212, 227, 230, 233, 235, 237, 239,
243, 251, 252, 281, 284, 292, 301, 302, 318, 324, 325, 328, 338,
339, 341, 347, 351, 358, 359, 366, 372, 376, 378, 383, 388, 398,
409, 423, 426, 427, 429, 431, 433, 435, 436, 446, 447, 449, 453,
458, 467, 471, 475, 479, 481, 491, 495, 496, 497, 499, 513, 526,
528, 529, 532, 536
pensamentos individualizantes 119, 158, 186, 195, 196, 528
persona 67
personalidade jurídica 68, 109
perspectiva de primeira-pessoa 91, 95, 102, 106, 107, 175, 184, 186, 198,
291, 308, 376, 392, 435, 438, 446, 447, 454, 478, 493, 494, 538
perversão 32, 52, 216, 248, 277, 342, 346, 385, 387, 389, 390, 392, 393,
394, 395, 398, 399, 400, 401, 402, 405, 414, 415, 423, 425, 426,
427, 430, 432, 433, 434, 463, 464, 465, 468, 472
pesar 213, 317, 318
pessoas 15, 26, 28, 30, 31, 47, 51, 58, 59, 61, 62, 66, 67, 68, 71, 86, 87, 88,
91, 93, 94, 95, 99, 105, 109, 110, 111, 118, 122, 123, 131, 132, 144,
153, 155, 159, 165, 170, 175, 179, 183, 188, 193, 200, 202, 203, 216,
218, 226, 234, 250, 254, 264, 282, 283, 290, 299, 303, 309, 314, 315,
319, 336, 342, 343, 346, 347, 348, 349, 353, 354, 356, 363, 365, 367,
369, 372, 375, 379, 380, 382, 391, 392, 395, 404, 408, 409, 414, 420,
421, 424, 425, 429, 430, 432, 436, 438, 441, 442, 446, 455, 460, 461,
465, 466, 472, 475, 478, 481, 482, 483, 485, 486, 487, 489, 492, 498,
499, 501, 503, 527, 534, 535, 537, 538

559
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

piedade 288, 425, 427, 482


pontos coordenados 164
“por si mesmo” 150, 175, 176, 307
pornografia 431, 466, 467
prazer 18, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 46, 51, 54, 61, 72, 99, 129,
130, 132, 133, 134, 135, 136, 155, 161, 174, 177, 179, 182, 183,
194, 198, 200, 204, 205, 206, 211, 213, 229, 232, 233, 236, 244,
245, 247, 249, 278, 281, 284, 285, 286, 287, 303, 304, 305, 306,
308, 312, 313, 314, 315, 317, 338, 339, 341, 344, 347, 367, 370,
377, 378, 383, 390, 394, 395, 398, 401, 404, 405, 410, 429, 430,
446, 460, 466, 467, 468, 487, 535
prazer curioso 129, 134, 135, 211, 394, 398
privado 9, 56, 74, 234, 367, 368, 370, 467, 482, 483, 486, 498, 499, 500,
502, 503, 504, 505, 506, 507, 508, 509, 511
propriedade privada 466, 475, 480, 481, 488
propriedades essenciais 148, 163, 376
prostituição 220, 222, 223, 224, 225, 376, 466
prótese peniana 102
pureza 204, 213, 355, 460, 467
puritanismo 126, 336
público 33, 56, 353, 368, 406, 432, 461, 476, 477, 483, 485, 486, 498,
501, 502, 504, 505, 507, 532

Q
qualidades secundárias 24, 375, 532, 533, 534, 538
quantificação 525, 526

R
racionalidade 68, 71, 72, 94, 95, 237, 261, 262, 354, 370, 437, 457
racionalismo 27, 66, 108
raiva 28, 30, 41, 84, 87, 93, 124, 131, 133, 136, 139, 140, 151, 152, 154,
182, 200, 243, 244, 302, 310, 311, 331, 336, 413, 443, 444
razão prática 83, 89, 125, 303, 311, 317, 436, 439, 447, 454, 477, 536
reciprocidade 48, 50, 127, 128, 131, 136, 176, 181, 182, 221, 281, 312,
314, 315, 316, 402, 412
referência 25, 65, 76, 77, 80, 106, 115, 116, 120, 121, 142, 163, 164, 165,
167, 187, 206, 210, 211, 212, 232, 233, 267, 271, 275, 285, 296,
314, 346, 352, 357, 362, 375, 380, 395, 415, 426, 449, 496, 499,
500, 501, 502, 504, 505, 508, 509, 510, 511, 512, 513, 516, 517,
518, 519, 520, 521, 522, 523, 527, 530, 532
religião 27, 33, 34, 373, 429, 461, 477, 478, 479
remorso 85, 186, 309, 449, 450, 453, 454
representação mental 70, 71, 520, 527, 531, 532

560
índice remissivo

repressão 273, 277, 278, 279, 280


responsabilidade 34, 51, 67, 83, 84, 85, 86, 87, 90, 91, 94, 95, 97, 101,
105, 109, 110, 124, 126, 171, 179, 180, 208, 247, 265, 292, 309,
311, 312, 347, 353, 355, 382, 392, 394, 397, 398, 403, 404, 408,
409, 415, 416, 423, 447, 448, 449, 450, 451, 452, 453, 456, 466,
468, 473, 475, 476, 483, 486, 489, 538
ressentimento 84, 143, 144, 410, 537
riso 55, 56, 98, 100, 185, 199
ritos 484
rosto 22, 46, 47, 98, 102, 103, 107, 108, 183, 184, 194, 201, 202, 217,
218, 219, 227, 231, 244, 254, 269, 318, 320, 325, 326, 368, 371,
389, 471, 472, 481, 516
rubor / rubores 98, 99, 100, 101, 102, 103, 246, 298, 308, 368

S
sagrado 32, 337, 398, 459, 477, 478, 479, 480, 481, 484, 485, 538
satiromania 235
saúde 256, 298, 442, 452
sedução 38, 137, 156, 235, 236, 241, 424
seleção sexual 256, 271, 422
sensação 34, 39, 40, 41, 42, 43, 49, 54, 55, 57, 72, 73, 101, 102, 113, 124,
142, 152, 158, 175, 204, 210, 212, 215, 217, 218, 227, 232, 233,
243, 244, 252, 286, 288, 291, 300, 324, 325, 326, 338, 340, 343,
411, 417, 418, 419, 426, 428, 449, 450, 453, 455, 459, 494, 495,
498, 499, 501, 502, 503, 507
sensualidade 322, 340
sentido 22, 27, 30, 31, 38, 40, 44, 49, 51, 55, 59, 64, 65, 67, 68, 69, 70,
72, 73, 76, 77, 78, 79, 82, 85, 98, 102, 103, 106, 109, 119, 120, 123,
128, 131, 133, 134, 141, 142, 144, 147, 150, 151, 152, 154, 159,
163, 175, 180, 184, 187, 191, 192, 196, 201, 207, 213, 214, 218,
222, 223, 224, 231, 236, 239, 249, 253, 256, 261, 267, 273, 275,
278, 279, 283, 287, 301, 303, 304, 306, 307, 310, 311, 312, 319,
320, 326, 330, 336, 337, 341, 344, 349, 350, 352, 355, 356, 362,
363, 372, 374, 375, 379, 381, 389, 393, 400, 405, 406, 407, 409,
410, 416, 422, 423, 426, 431, 432, 442, 446, 451, 453, 457, 458,
460, 461, 465, 466, 467, 471, 472, 473, 474, 476, 477, 478, 486,
488, 492, 496, 497, 501, 502, 503, 504, 505, 510, 511, 518, 521,
525, 526, 527, 533
seres humanos 28, 31, 37, 58, 61, 66, 67, 68, 82, 95, 109, 113, 198, 222,
253, 254, 259, 261, 354, 360, 365, 375, 377, 443, 471, 538
sexo 13, 28, 53, 59, 108, 112, 124, 128, 191, 199, 200, 201, 210, 212,
223, 224, 225, 229, 230, 251, 256, 263, 268, 272, 276, 286, 292,
293, 294, 296, 299, 342, 343, 346, 348, 349, 350, 351, 352, 354,
356, 357, 358, 360, 361, 362, 363, 364, 365, 366, 368, 370, 371,
372, 373, 374, 376, 378, 379, 380, 381, 382, 383, 384, 402, 414,
415, 418, 419, 460, 466, 468, 469, 474, 479

561
desejo sexual - uma investigação filosófica roger scruton

sexualidade infantil 42, 129, 277, 280, 284, 288, 289, 404
significado 18, 20, 22, 24, 39, 40, 48, 50, 54, 61, 70, 77, 81, 87, 96, 102,
129, 130, 147, 159, 174, 176, 181, 182, 184, 185, 192, 193, 194,
206, 209, 211, 223, 238, 245, 265, 267, 277, 279, 313, 322, 325,
326, 340, 344, 345, 362, 369, 370, 371, 388, 389, 395, 398, 402,
415, 418, 420, 424, 429, 435, 437, 455, 460, 461, 463, 472, 473,
474, 476, 477, 478, 479, 484, 485, 487, 493, 498, 504, 505, 512,
515, 516, 527, 535
silogismo prático 439, 440
simiomorfismo 263
sistemas intencionais 519
sociedade civil 481, 482, 486
Sociobiologia 251, 255, 257, 258, 260, 262, 263, 265, 266, 268, 270, 358,
360
sodomia 389, 421
sorriso 47, 55, 99, 100, 102, 103, 185, 226, 246, 248, 285, 300, 320
substantivos contáveis 63, 65
substantivos incontáveis 64
substância 65, 66, 88, 89, 105, 145, 158, 166, 167, 180, 206, 272, 319,
320, 333, 478, 486, 492, 510, 527
sujeira 202, 203

T
tabu 205, 210, 292, 293, 404, 422, 459, 480
tarefa da Filosofia 472
temperamento 304, 305, 351, 445
temperança 444, 455, 459
teologia 111, 150, 163, 209, 477
tipos funcionais 20, 21, 24
tipos ideais 224, 225
tipos naturais 21, 23, 354, 355, 374, 527
Tipos pessoais 372
tortura 244, 245, 246, 345, 457
trabalho 10, 11, 16, 17, 19, 37, 47, 58, 69, 70, 76, 82, 90, 126, 130, 148,
178, 183, 190, 191, 203, 221, 225, 227, 259, 270, 271, 309, 319,
341, 343, 363, 364, 365, 367, 370, 371, 392, 407, 408, 411, 473,
480, 488, 491, 493, 496, 522, 533
tragédia 90, 115, 116, 245, 313, 426, 427, 457
tristanismo 234, 237, 240, 241, 242, 249
típico 63

U
união 10, 34, 35, 58, 61, 103, 113, 125, 128, 131, 133, 134, 136, 137,
139, 140, 160, 175, 181, 184, 187, 190, 191, 193, 194, 195, 213,
214, 220, 221, 227, 231, 237, 238, 239, 241, 249, 252, 266, 268,

562
índice remissivo

270, 271, 277, 280, 287, 293, 299, 300, 316, 319, 321, 329, 330,
331, 336, 339, 346, 349, 351, 358, 361, 368, 370, 378, 379, 384,
387, 389, 394, 395, 398, 400, 417, 418, 419, 420, 424, 426, 430,
433, 458, 460, 462, 463, 483

V
valores 21, 59, 222, 317, 323, 353, 438, 452, 453, 463, 471, 478, 523, 524
vergonha 34, 100, 189, 190, 200, 201, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208,
209, 211, 213, 216, 217, 219, 220, 224, 229, 232, 249, 278, 289,
293, 310, 378, 396, 397, 398, 412, 424, 464, 469
vergonha verbal 209
Verstehen 29, 262
vida 15, 16, 17, 24, 25, 30, 32, 40, 47, 59, 61, 62, 66, 67, 68, 70, 72, 88,
97, 102, 107, 109, 110, 119, 136, 137, 143, 193, 195, 196, 205, 206,
207, 212, 214, 225, 227, 257, 258, 259, 266, 269, 270, 272, 278,
280, 282, 283, 285, 292, 295, 296, 315, 317, 320, 321, 322, 324,
328, 330, 333, 342, 348, 349, 358, 359, 361, 367, 369, 371, 372,
377, 387, 389, 392, 393, 394, 395, 399, 400, 401, 402, 403, 404,
406, 408, 413, 417, 422, 425, 427, 434, 435, 440, 442, 445, 447,
451, 452, 455, 457, 461, 463, 465, 468, 472, 476, 477, 478, 479,
484, 486, 487, 489, 491, 506, 534, 536
vida mental dos animais 40
virgindade 192, 359
virtude 9, 74, 83, 86, 115, 120, 134, 148, 165, 170, 212, 217, 219, 261,
302, 303, 305, 306, 308, 311, 312, 313, 317, 319, 321, 322, 325,
326, 327, 328, 329, 332, 336, 338, 364, 391, 393, 416, 424, 436,
441, 442, 443, 444, 447, 454, 455, 456, 459, 463, 467, 468, 473,
474, 478, 487, 528, 530, 537
vontade 20, 41, 44, 52, 54, 57, 82, 85, 89, 98, 99, 102, 106, 107, 137, 143,
151, 169, 173, 176, 188, 190, 191, 193, 204, 212, 213, 248, 249,
261, 264, 267, 268, 300, 327, 328, 329, 338, 368, 372, 393, 401,
406, 407, 408, 432, 451, 452, 465, 478
voto de amor 321, 434, 486
vício 189, 311, 322, 323, 330, 364, 365, 444, 445

Z
zonas erógenas 42, 277, 284, 342
zoofilia 398

563
Este livro foi impresso pela Gráfica Daikoku.
O miolo foi feito com papel chambrill avena
80g, e a capa com cartão triplex 250g.

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