Você está na página 1de 183

OLAVO

DE CARVALHO

Ensaio sobre
os Fundamentos
da Moral






















RIO DE JANEIRO


INSTITUTO DE ARTES LIBERAIS
& STELLA CAYMMI EDITORA, 1995




PRÓLOGO



Q

ue não existe regra moral universalmente válida;
que a moral se funda no hábito, na convenção ou
em escolhas pessoais arbitrárias; que os códigos
morais são inteiramente relativos às épocas, lugares e in-
teresses sociais; que a esfera dos valores é radicalmente
separada da dos fatos; que a moral é um artifício ideo-
lógico da classe dominante para manter os dominados sob
o império da repressão — eis algumas convicções forte-
mente amparadas pelo consenso ao menos implícito da
maioria dos intelectuais.
Repor essas convicções em dúvida é um empreendi-
mento que se defronta com maciça resistência. A opinião
majoritária da classe letrada exerce hoje sobre as consci-
ências um domínio mais tirânico que o dos papas da Re-
nascença: quando embirra com uma idéia, persegue-a e
reprime-a por todos os lados, sem lhe dar a menor chance
de se defender ou mesmo de se apresentar em público;
boicota sua discussão, veta a publicação de artigos e livros
a seu respeito, rejeita propostas de teses universitárias
que a tomem por assunto e envolve numa aura depreciati-
va os que se interessem por ela, tachando-os de ignorantes
descompassados com o estado atual dos conhecimentos.
3

Como quem não é visto não é lembrado, os argumentos


em favor da idéia também vão sumindo de circulação, até
que pareçam jamais ter existido. Então os tempos estão
maduros para que ela possa ser reapresentada, agora co-
mo mera relíquia histórica, como uma antiga e curiosa su-
perstição que um dia foi derrubada pelo progresso do co-
nhecimento. Como já ninguém se lembra das razões que a
sustentavam, a idéia condenada se torna cada vez mais
difícil de compreender e termina por adquirir mesmo, re-
troativamente, a aparência de uma indefensável esquisiti-
ce dos antigos: embalsamada como patrimônio histórico,
tornou-se tão inofensiva quanto uma múmia de museu, em
cima da qual a administração colou o rótulo tranquilizan-
te: “Superada”. O leigo, o estudante imaturo, o popular in-
culto, sentem uma verdadeira satisfação íntima ao ler des-
se rótulo, que os faz imaginarem-se superiores àquilo que
desconhecem, como portadores que são do privilégio cul-
tural de haver nascido depois de algo que não têm a me-
nor idéia do que seja. Eis como o esquecimento, o torpor
que distancia as idéias e as torna incompreensíveis é ele-
vado à categoria de um progresso da inteligência.
Condenar idéias por “erradas”, “falsas” ou “heréticas”,
como o faziam os antigos inquisidores, é uma medida mui-
to mais branda e menos danosa do que sepultá-las como
“superadas”. A esfera do verdadeiro e do falso pertence ao
domínio da discussão, e a idéia supostamente falsa sempre
pode, amanhã ou depois, descobrir argumentos que a rea-
bilitem. Mas o “superado”, enquanto oposto ao “atual” e ao
“vivo”, é um carimbo fatal que exclui uma idéia do campo
dos debates, privando-a daquele interesse mínimo sem o
4

qual é impossível alguém voltar a pensá-la, compreendê-


la, defendê-la ou mesmo atacá-la inteligentemente. E en-
tão já não é preciso discuti-la ou refutá-la no plano lógico,
pois ela sucumbiu sob o peso do argumento cronológico:
sua própria exclusão do temário em debate funciona como
um Ersatz de refutação, mais eficaz, psicologicamente, do
que uma refutação autêntica. Uma vez sobreposto a uma
idéia, o rótulo “superada”, como uma lápide, faz com que
as pessoas lhe passem ao largo, desviando os olhos com
aquela mistura de desgosto e falsa compunção que se tem
diante dos cadáveres de desconhecidos, e com aquela von-
tade de mudar rapidamente de assunto que se sente
quando alguém começa a falar da morte.
Foi assim que o público leigo, deixando-se guiar pela
opinião majoritária dos intelectuais de ofício — uma clas-
se em crescimento vertiginoso e composta em proporção
cada vez maior de chansonniers e de jornalistas semiletra-
dos —, veio a acreditar piamente que pereceram esmaga-
das sob uma montanha de argumentos decisivos certas
idéias que, na verdade, jamais foram discutidas: apenas
esquecidas de propósito. Foi assim que a população estu-
dantil das nossas universidades veio a acreditar que a Re-
nascença liquidou com Aristóteles, quando na verdade um
aristotelismo estrito só surge na Renascença; que Kant
derrubou para sempre a metafísica escolástica, quando na
verdade ele nem sequer a conheceu; que a linguística mo-
derna provou a arbitrariedade do signo verbal, quando na
verdade ela a tomou por mera hipótese de trabalho e se
esqueceu de voltar a discuti-la depois; que a ciência mo-
derna provou a ineficácia da astrologia, quando na verda-
5

de a primeira e única pesquisa científica que se fez a res-


peito provou antes sua eficácia; que a teoria da evolução
refutou para sempre o criacionismo, quando na verdade
uma coisa não tem nada a ver com a outra; e assim por di-
ante, numa sucessão infindável de mentiras tolas que pas-
sam pelas mais puras verdades pela simples razão de que
as alternativas contrárias foram esquecidas e a ninguém
mais ocorrem os argumentos em sua defesa.
A ausência de um fundamento objetivo nas regras mo-
rais é uma dessas mentiras tolas que ninguém ousa con-
testar ou sequer discutir, sob pena de ver-se condenado, a
priori, como alguém comprometido com crenças arcaicas
— bem toleradas, aliás, a título de mera preferência subje-
tiva, mas situadas fora do contexto intelectual “sério”. Em
qualquer universidade deste país — e em muitas pelo
mundo a fora —, o estudante que se atreva a pautar sua
conduta por alguma regra moral explícita ( excluindo, é
claro, a moral que não ousa dizer seu nome e que se oculta
sob o disfarce do “politicamente correto” ), se verá ridicu-
larizado, marginalizado, tratado na melhor das hipóteses
como um débil mental, na pior como um perigoso reacio-
nário fascista. O relativismo, o ceticismo ou mesmo o imo-
ralismo militante consideram-se as únicas atitudes ade-
quadas a um homem de cultura.1
1
Como se explica então que os intelectuais, os acadêmicos, os professores
de ciência social, os pensadores políticos e, de modo geral, os porta-vozes
do relativismo moral tenham desempenhado um papel de proa nas recen-
tes campanhas moralizantes que levaram ao impeachment de um presiden-
te e à cassação dos mandatos de umas dezenas de parlamentares? Fenôme-
no assombroso, cuja esquisitice os observadores se omitiram prudentemen-
te de assinalar, não encontro maneira de explicá-lo senão pela conjunção de
três correntes de causas:
6

Por essas razões, aquele que pretenda apresentar uma


defesa da objetividade e universalidade dos princípios
morais deve preparar-se menos para lutar com argumen-
tos e refutações, do que para enfrentar a indiferença e a

1ª No plano mais imediato, a intelectualidade esquerdista, que imagina


lutar por causas populares e sempre se roeu de ciúmes ante a escandalosa
afeição do povo pelo grosso moralismo da direita, se cansou de curtir seu
complexo de rejeição e decidiu roubar o discurso do adversário, combatê-lo
com suas próprias armas. O sucesso da nova retórica deveu-se a dois fato-
res: 1º: Ela dispensa a adesão preliminar do ouvinte a um pathos ideológico
que para muitas pessoas é repelente, e funda o discurso da esquerda em
sentimentos comuns e correntes. 2º: Hoje em dia todo político de direita
tem argumentos imbatíveis contra o socialismo, mas nem todos têm uma
explicação razoável para a origem de suas fortunas pessoais: é mais fácil
combatê-los no campo policial do que no ideológico.
2ª Num plano um pouco mais amplo e recuado, essa mudança foi
grandemente ajudada pela adesão maciça dos intelectuais esquerdistas à
estratégia revolucionária de Antônio Gramsci, que, rotulando como “Esta-
do ético” uma das etapas decisivas da conquista do poder pelos comunistas,
facilitou o emprego da linguagem dupla em que a disputa ideológica assume
as aparências de um combate pelo bem e pela moral, enganando sobretudo
a classe média.
3ª Mais ao fundo ainda, encontra-se a velha aspiração do esquerdismo
materialista, de roubar do cristianismo a bandeira das virtudes morais. O
ateu de alma pura, contrastado com os crentes perversos, é um lugar-
comum da literatura esquerdista desde Voltaire. Numa fase mais avançada
do combate ideológico, o ateu esquizóide de inteligência superior é apre-
sentado como um santo leigo. Na última etapa, a religião já deixou de ser
uma influência viva no cotidiano, e a referência a ela torna-se desnecessária:
o combate agora é contra o resíduo moral deixado pela religião evanescen-
te; agora trata-se portanto de mostrar que o cético moral, o relativista moral,
o imoralista mesmo, podem ser melhores, na esfera da prática, do que os
adeptos da moral. O novo herói é imoralista em teoria, mas moral nos atos,
subentendendo-se naturalmente que toda defesa explícita de valores morais
está afetada irremediavelmente de hipocrisia.
Digo mais algumas coisas sobre isto em A Nova Era e a Revolução Cul-
tural ( Prefácio da 2ª edição, Cap. II e Apêndices ), O Imbecil Coletivo (
Prólogo e Cap. 8 ), O Jardim das Aflições ( Introdução ).
7

estranheza de um público que não deseja sequer discutir


com ele porque não tem a menor idéia de sobre que ele
está falando. Ou seja, além do trabalho lógico e dialético de
demonstrar sua idéia, ele terá de desempenhar o esforço
retórico de chamar a atenção sobre ela e tornar crível que
alguém possa estar falando seriamente a respeito dela
sem ser movido a isto por nenhuma idiossincrasia mórbi-
da, por ignorância do atual estado da questão ou por fana-
tismo iletrado.
Este esforço, para mim, é demasiado. Um filósofo pode
debater com outros filósofos, pode refutar as bases lógicas
de idéias correntes ou mesmo tentar influenciar a opinião
das multidões quanto a um ou outro assunto. Mas não po-
de, por si, remover o peso imenso de dois séculos de pre-
conceitos, sobretudo quando se consolidaram naquele
amálgama cinza-chumbo de torpores e repulsas, a que se
dá o nome de indiferença hostil ou agressividade passiva, e
que se expressa mediante uma teimosa e surda recusa de
atenção.
Com frequência o mensageiro moral desespera-se ante
a frieza da indiferença. Daí a tentação de abalar, de escan-
dalizar, de sacudir os cadáveres e surrá-los para que des-
pertem:

Me preguntas, mi buen amigo, — pergunta-se a si
mesmo Miguel de Unamuno no pórtico de sua Vida de Don
Quijote y Sancho — si sé de una manera de desencadenar
un delirio, un vértigo, una locura cualquiera sobre estas
pobres muchedumbres ordenadas y tranquilas que nacen,
comen, duermen, se reproducen y mueren. ¿No habrá un
8

medio, me dices, de reproducir la epidemia de los flagelan-


tes o la de los convulsionarios?

Mas isso de nada serve. A recusa de atenção, a surdez
voluntária, não nasce apenas — ou sempre — do matri-
mônio que a rotina celebra entre a má-vontade e a burrice:
ela é muitas vezes a expressão de um extremo cansaço in-
telectual, de um estado de abatimento em que a mente,
vencida pelo acúmulo de contradições insuperáveis, já não
tem motivação para o esforço de compreender. É o estado
de alma do cético que foi vencido por suas próprias obje-
ções e, já não crendo no poder de conhecer a verdade, não
só desiste de continuar a buscá-la mas rejeita-a com des-
dém quando ela mesma vem se oferecer como um dom
gratuito. Esse estado de alma é tão disseminado e arraiga-
do na nossa intelectualidade, que ele constitui o tema do
que é talvez o melhor poema longo já escrito neste país: “A
máquina do mundo” de Carlos Drummond de Andrade. É
triste ver que esta obra-prima do épico — a única que
produzimos neste século — é no fim das contas a apologia
de uma derrota, o relato de uma iniciação às avessas onde
o caminhante espiritual nada encontra, ao fim da sua jor-
nada, senão o seu próprio cansaço e desengano. Se os poe-
tas, como penso, antecipam os movimentos da alma cole-
tiva, “A máquina do mundo”, que é de 1950, não anuncia
senão, junto com a decadência do próprio Drummond,
acelerada desde então, a mediocrização irreversível da in-
teligência nacional, que — com as notabilíssimas exceções
de um João Guimarães Rosa, de um Osman Lins, de um
Mário Ferreira dos Santos — não fez outra coisa nas últi-
9

mas quatro décadas senão afastar-se cada vez mais dos


grandes temas do espírito e do destino, para encerrar-se
na platitude de um reivindicacionismo social cada vez
mais imediatista e redundante, no diletantismo linguístico
mais masturbatório, na idealização masoquista da insigni-
ficância cotidiana e, last not least, na deleitação perversa
com o abjeto e o humilhante.
Longe de mim a pretensão de vencer, à força de argu-
mentos filosóficos, um mal tão profundo, uma tão vasta
epidemia. Longe de mim a ambição de desencadear a ver-
tigem coletiva que despencasse a nossa classe letrada das
falsas alturas do indiferentismo, para arrojá-la no chão
onde o crente se contorce em dores e busca, entre agonias,
o caminho da salvação.
Tudo o que posso fazer é expor humildemente, a quem
os deseje conhecer, os argumentos filosóficos pelos quais
creio que o indiferentismo, o ceticismo e o relativismo não
são inevitáveis; que podemos escapar deles pela via da ra-
zão natural e sem qualquer apelo aos direitos da fantasia
subjetiva, à crença em verdadeiras ou falsas revelações,
aos dogmas de uma autêntica ou fingida religião.
Os argumentos filosóficos, bem sei, têm pouca ou ne-
nhuma força persuasiva ante as almas rombudas que só
sentem aquilo que as sacuda e as fira fisicamente. Mesmo
os intelectuais, entre nós, limitados por uma formação cul-
tural quase que exclusivamente literária e política, têm
alguma dificuldade para acompanhar as sutilezas da de-
monstração filosófica e, quando a acompanham, não se
sentem persuadidos por ela, porque não lhes fala em ima-
gens plásticas que os façam enxergar na tela da fantasia o
10

que a inteligência só colheu sob a forma impalpável da


abstração.
Não posso persuadir a todos. Consolo-me relendo esta
triste confissão de um mestre da pedagogia — Sto. Alberto
Magno2:

Ainda que o homem, enquanto homem, seja só enten-
dimento, este, no homem em seu desenvolvimento natu-
ral, é arrastado pela imaginação, pelos sentidos e por ou-
tras forças corporais que não o deixam contemplar em
sua pureza a teoria da verdade. Assim, uns, se não lhes
demonstramos por meio de figuras matemáticas as coisas
que lhes dizemos, não lhes dão seu assentimento. Estes
são aqueles em que a força da imaginação prevalece so-
bre o entendimento. Não crêem senão naquilo que são
capazes de imaginar... Outros, que têm o entendimento
completamente voltado para os sentidos, não aceitam na-
da se não lhos mostramos com exemplos através dos sen-
tidos. Os que estão acostumados às ficções dos costumes,
consentem que citemos como testemunho um poeta que
tenha forjado essas ficções.
Em contrapartida, os que estão acostumados a estudos
filosóficos querem em tudo o que ouvem uma certeza, ou
de evidência imediata, ou de demonstração. A outros,
afeitos à vulgaridade e à ignorância, lhes parece triste e
árida a certeza filosófica, seja porque, não tendo estuda-
do, não são capazes de entender sua linguagem, ignoran-
do a eficácia do aparato silogístico, seja por carência ou
defeito da razão e do engenho. Com efeito, uma verdade

2
Sto. Alberto Magno, Metafísica, Lib. II, Cap. XII, em Clemente Fernan-
dez, s.j., Los Filósofos Medievales. Seleccion de Textos, Madrid, B.A.C.,
1980, t. II, pp. 194-5.
11

que se obtenha com certeza pela via silogística é de tal


condição que não pode facilmente alcançá-la quem não
estude, e está totalmente incapacitado para ela quem seja
de curtas miras.”

Em suma: para persuadir a todo mundo, seria necessá-
rio utilizar uma pluralidade de meios de que nem mesmo
um gênio universal dispõe em igual medida, e dos quais,
além disso, muitos são em si inaptos a dar conta de certas
verdades que, uma vez rebaixadas ao nível de entendi-
mento do ouvinte tacanho e preguiçoso, perdem ipso facto
seu valor e sua significação e se tornam caricaturas de si
mesmas. Se há verdades elevadas, são aquelas que só po-
dem ser adquiridas por quem humildemente faça o esfor-
ço de se elevar até elas.
O poder humano de mostrar e demonstrar é limitado.
De um certo ponto em diante, o observador é que tem de
se mexer para enxergar o que já ninguém pode lhe mos-
trar. A mais bela ilustração desta exigência é o famoso so-
neto de Rilke, “Torso arcaico de Apolo”, onde o poeta co-
meça por descrever no presente do indicativo a perfeição
física do deus grego, com uma objetividade visual parnasi-
ana, mas na última linha interrompe abruptamente a des-
crição, como se percebesse de súbito a inutilidade de
prosseguir, e exclama ao leitor, no imperativo: Du musst
dein Leben ändern. Na esplêndida tradução de Manuel
Bandeira: “Força é mudares de vida.” Ou seja: se queres
apreender algo da perfeição de Apolo, torna-te antes tu
mesmo mais perfeito. Sim, a beleza, física ou moral, não
pode ser objeto de pura contemplação passiva, pois para
contemplá-la no exterior é preciso já trazê-la um pouco
12

dentro de si como força agente que impele e direciona o


olhar, fazendo do conhecimento um reconhecimento.
Esta é a precondição sem a qual é inútil o estudo da fi-
losofia moral e, logo, a leitura deste livro. Ele pode trazer a
demonstração cabal de suas afirmativas, mas a mera vera-
cidade lógica não se transformará em persuasividade psi-
cológica, a prova dialética não se transformará em evidên-
cia intuitiva, a concordância intelectual não se transforma-
rá em comprometimento entusiástico da vontade e do sen-
timento, senão nas almas daqueles que entrem na leitura
movidos pelo intenso desejo da verdade. E o desejo da
verdade é, desde logo, uma atitude moral. Neste sentido,
terá razão parcialmente o relativista ao afirmar que todo
princípio moral se assenta numa decisão prévia da vonta-
de. Apenas, ele se engana ao supor que a decisão e o arbí-
trio são as únicas fontes da validade do princípio moral e
que este não tem em si nenhum fundamento próprio e in-
dependente. Pois não é o princípio moral que depende da
nossa vontade: nós é que não podemos, sem vontade, che-
gar a compreender que ele não depende de nós, que ele
vale por si, que ele traduz uma verdade universal e que só
nos cabe aceitá-lo como aceitamos a evidência das monta-
nhas, do sol, da dor, da morte e de tudo o que a vida nos
impõe como inapelavelmente real.
Sem pretensão, portanto, de mudar psicologicamente o
leitor, mas advertindo-o de que sem uma disposição psico-
lógica prévia minhas demonstrações jamais deixarão de
parecer-lhe abstratas e vazias — e não por culpa delas —,
abandono doravante todo esforço de persuasão retórica e
influência maior sobre o povo, retiro-me para a esfera
13

mais cerrada da demonstração filosófica e advirto que,


dentro desse domínio restrito, bastam para aplacar a dú-
vida cética e afastar toda tentação relativismo moral as
seguintes providências:
1ª Refutar as objeções clássicas de Kant contra a objeti-
vidade do conhecimento moral, das quais derivam, confes-
sadamente ou não — como veremos —, todos os argu-
mentos das modernas ciências humanas em favor do rela-
tivismo moral.
2ª Estabelecer, mediante uma crítica do conhecimento,
seguindo os passos arquetípicos da dúvida cartesiana e da
epokhé fenomenológica, o solo firme e inabalável de algum
princípio moral auto-evidente, caso exista.
3ª Deduzir dele, se encontrado, algumas regras morais
universalmente válidas, e desafiar meus eventuais contra-
ditores a apontar alguma civilização, ou época, ou povo, ou
tribo por mais minúscula que seja, onde essas regras te-
nham sido declaradas inválidas, na teoria ou na prática.
4ª Demonstrar, num retorno à discussão com Kant, que
a moral assim construída não é meramente formal, como
poderia parecer à primeira vista, e sim material, isto é, de-
finidora de bens e males reais e não só dos esquemas lógi-
cos do raciocínio moral em geral.
4ª Exemplificar, mediante a discussão de algumas ques-
tões morais concretas, a aplicabilidade ilimitada e fecunda
dessas regras.
Esse é o plano do presente livro, com a ressalva de que
as etapas 1ª e 2ª dessa discussão aparecerão invertidas —
primeiro Descartes, depois Kant. Com isto evitarei ter de
14

voltar a Kant após ter largado a discussão com ele e, em


vez disso, quando o enfrentar será de uma vez por todas.
Esse plano deve parecer magro e raquítico aos olhos
dos que, “não compreendendo a eficácia do aparato silo-
gístico”, esperassem algo mais vigoroso e eloquente da
parte de um autor que se propõe refutar o relativismo.
Mas, alto lá!, não me propus de maneira alguma extirpar o
relativismo de todas as cabeças, e sim apenas demonstrar
que ele é absurdo. Uma vez feito isto, não posso impedir
que o leitor ou quem quer que seja opte em seguida no-
vamente pelo absurdo, agora de maneira consciente e as-
sumida, movido por aquele orgulho que renitentemente
abdica da primogenitura por um prato de lentilhas. Ape-
nas rogo aos céus que isto não ocorra, e desejo ao leitor
aquele auxílio direto do Espírito, que, para além da certeza
intelectual que podemos alcançar pela razão humana, tem
o condão divino de tornar a verdade amável.


Rio, outubro de 1994.

OLAVO DE CARVALHO








15






CURSO DE ÉTICA


Aula do dia 04 de outubro de 1994
(sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )



Na aula de hoje vamos passar para o item seguinte do
curso: os Fundamentos da Ética.
Como qualquer disciplina filosófica, a Ética não é uma
disciplina independente; não existe disciplina filosófica
independente, isto é contra a própria definição de filosofia.
Quando se fala de ²filosofia da linguagem², ²filosofia da
moral², ²filosofia da religião², elas não constituem disci-
plinas separadas. Em princípio, a filosofia é um discurso
único, em todos os seus aspectos. Não existe a menor pos-
sibilidade de fazer uma investigação filosófica sobre um
determinado assunto, independentemente da referência
aos princípios mesmos da filosofia; qualquer investigação
que você comece, sobre qualquer tópico que seja, o obri-
gará a voltar às questões fundamentais.
Por que isto é assim? Por que isto acontece na filosofia
e não acontece em outros setores do saber? Uma investi-
gação biológica, por exemplo, não supõe que cada biólogo
16

tenha de refundar, de recomeçar a Biologia desde os seus


fundamentos. Ele simplesmente prossegue. Em qualquer
investigação científica o investigador prossegue, partindo
do princípio de que os conhecimentos adquiridos até a sua
entrada em cena são válidos, e de que ele vai acrescentar
algo a um discurso que já vinha sendo desenvolvido antes
dele. Em filosofia nunca se faz isto, cada filósofo, de certo
modo ao menos, começa tudo de novo. Alguns autores ex-
plicam isto dizendo que a filosofia é um tipo de conheci-
mento “não-acumulativo”, um tipo de conhecimento no
qual não se pode falar que exista um “progresso” — ao
contrário da ciência. A ciência procederia por acumulação,
cada nova descoberta fundamentada e considerada legíti-
ma sendo como um tijolo que se acrescentasse a um muro
em construção. Alguns, metaforicamente, dizem que a ci-
ência “constrói para cima” e a filosofia “constrói para bai-
xo”, no sentido dos fundamentos.
Essas explicações são tentativas de comparar coisas
perfeitamente incomparáveis. Em primeiro lugar, um co-
nhecimento científico só é válido na medida em que possa
ser expresso numa linguagem socialmente válida e uni-
forme — igual para todos — e expressa sob a forma de
sentenças chamadas leis, que enunciam certas relações
mais ou menos constantes; sejam leis de necessidade, se-
jam leis de probabilidade, fórmulas enfim, que expressam
certas relações, ou constantes e necessárias, ou então pro-
babilísticas, entre fenômenos. Toda a finalidade da ciência
é chegar a essas leis, que em princípio expressariam sinte-
ticamente blocos inteiros de fenômenos análogos. Se a ci-
17

ência não chega a essas fórmulas, então o resultado dela é


nulo.
Também pressupõe-se, na atividade científica, que es-
sas fórmulas serão compreendidas de maneira uniforme
por todas as pessoas que as ouvirem ou lerem. Se você
toma qualquer lei científica, por exemplo, a teoria da gra-
vidade, o entendimento que há de ter dela terá de ser
igualzinho ao de um outro. Há na ciência uma espécie de
uniformização da percepção coletiva. Não existe, em ciên-
cia, o problema da interpretação; quando ele surge, é con-
siderado um requisito pré-científico para a prática da ci-
ência. Em princípio, as ciências pretendem chegar a essas
leis, ou invariantes, expressas em fórmulas fixas, e este es-
forço supõe como base uma interpretação unívoca. Por-
tanto, esta é uma atividade que só faz sentido quando de-
senvolvida socialmente, coletivamente, e quando facilmen-
te comunicável mediante uma aplicação mais ou menos
mecânica de uma tabela de significados: uma lei científica
que fosse de difícil comunicação, que cada indivíduo preci-
sasse retrabalhá-la interiormente para captar-lhe um sen-
tido oculto, não seria propriamente uma lei científica.
Por outro lado, nas artes, por exemplo, na poesia, pouco
importa que cada sujeito entenda a poesia diferentemente.
Na verdade, não há duas cabeças que entendam exatamen-
te igual, por exemplo, a Divina Comédia de Dante, e isto
não diminui a importância e o valor da obra. A diferença
que tem de ser buscada é a seguinte: se você buscar com-
parar filosofia e ciência como práticas sociais, você chega a
uma sequência infindável de paradoxos. Se fôssemos defi-
nir a filosofia em face da ciência, tal como acabamos de
18

explicá-la, teríamos de dizer que a filosofia não existe, que


ela é uma pseudociência, porque nunca chega a essas fór-
mulas consensualmente admitidas. Ou então teríamos de
dizer que a filosofia é um tipo muito especial de atividade
científica. Uma outra saída seria dizer que a filosofia não
visa propriamente a obter conhecimento, mas que ela é
uma atividade de aprimoramento da própria linguagem
científica — esta é a saída da escola analítica: a filosofia
seria a análise do discurso científico. Mas, ainda assim, não
vejo nenhum sentido em definir uma atividade que existe
anteriormente, uma atividade muito mais antiga, por uma
atividade mais nova, quer dizer: muito antes de que se
constituisse a ciência tal como a admitimos universitaria-
mente hoje, já existia a filosofia; por que a filosofia, tendo
existido com dois milênios de antecedência, deveria ter de
ser definida em função de uma atividade posterior? É a
mesma coisa que dizer que tudo o que se fez com o nome
de filosofia antes do surgimento da ciência seria totalmen-
te indefinível, ou não teria um sentido próprio, ou que se
tratava de uma atividade cega e inconsciente. Esta defini-
ção retroprojetiva já é inadequada na base. Se tenho de
esperar que aconteça uma coisa posterior para saber o
quê aconteceu antes, a própria atividade de narrar se tor-
na impossível: uma História das filosofias anteriores ao
surgimento da ciência seria apenas uma pré-História, e
por outro lado as filosofias posteriores a esse momento,
também não tendo se tornado científicas de repente e de
uma vez, mas aos poucos, também cairiam no domínio da
pré-História, e a verdadeira História da filosofia só come-
çaria por volta do século XIX, com as filosofias que se as-
19

sumiram como modeladas pela ciência moderna. Comte


seria mais puramente filósofo do que Platão e Aristóteles.
Para piorar ainda mais as coisas, a idéia de ciência se for-
mou aos poucos dentro do próprio debate filosófico, de
modo que o modelo externo que define a filosofia teria pa-
radoxalmente nascido daquilo que define.
Em segundo lugar, você vê que a prática científica, onde
quer que a encontre, é uma atividade social; ela tem um
lugar na sociedade; ela é sempre feita em equipe; e pelo
simples fato de nenhum cientista ter de recomeçar a in-
vestigação desde o começo, mas partir sempre do ponto
onde deixaram a questão os seus antecessores e contem-
porâneos, você vê que não é uma atividade individual. Ela
é uma atividade feita pela sociedade e que visa a aumentar
o patrimônio de conhecimentos que será transmitido à
geração seguinte. É só você perceber que em filosofia isso
não acontece, para ver que as duas atividades não são fa-
cilmente comparáveis entre si.
Uma filosofia que não legue à geração seguinte nenhum
conhecimento consensualmente admitido, nem por isto
deixa de ser aceita como uma filosofia interessante ou va-
lorosa, isto é, ela não tem esta finalidade de deixar como
resultado da sua atividade certas fórmulas que todos te-
nham de admitir na geração seguinte. Então ela não tem a
função social da ciência, ela ocupa um outro lugar. Que lu-
gar?
Procure em todas as sociedades existentes — naquelas
onde existiu filosofia, naturalmente — e verá que não exis-
te nenhum lugar social determinado para a filosofia. Todas
as demais atividades — ciência, Arte, Religião, têm cada
20

qual uma função social bastante clara. Às vezes não tão


fácil de definir mas, de qualquer modo, um lugar delimita-
do, um lugar realmente existente. A ciência ou a Religião
exercem uma função de regulação social, são fontes de va-
lores, de princípios, que são admitidos por toda a socieda-
de e que funcionam como parâmetros até para o julga-
mento das ações individuais. Com a filosofia isso jamais
acontece. Não houve em nenhuma sociedade um lugar de-
finido e estável para a atividade filosófica. As únicas tenta-
tivas de fixar esse lugar ocorreram a primeira na escolás-
tica e a segunda na URSS; e o único resultado foi que, uma
vez operada a fixação, a filosofia que se colocou nesse lu-
gar já não era mais filosofia: era teologia, era direito, era
religião, era ideologia, era alguma outra coisa, mas não fi-
losofia.
Ora, se o filósofo não tem uma função social definida, ou
seja, se ele pode trocar de função social à vontade, isto
significa que a função social que a filosofia exerce não é im-
portante para a sua definição.
A filosofia pode ser, por exemplo, uma atividade margi-
nal, como era a de Sócrates, e nem por isto deixa de ser
filosofia. Ela pode ser uma atividade anexa à investigação
científica, como é para muitos filósofos hoje. Ela pode ser
uma atividade ligada à moral pública e à ideologia política,
e em outros casos pode também não ser. Ela pode ser uma
atividade oficial, desenvolvida sob a proteção do Estado,
como era, por exemplo, no tempo do idealismo alemão, e
pode ser uma atividade subterrânea e proibida, obrigada a
refugiar-se em sociedades secretas, como ocorreu em cer-
tos países islâmicos.
21

Ora, uma função humana que pode ocupar qualquer lu-


gar na sociedade e até mesmo não ocupar nenhum, é claro
que não pode ser definida pela sua função social, que a de-
finição desta atividade não depende da sua posição na so-
ciedade. Entretanto, não podemos dizer o mesmo a respei-
to da Arte; e muito menos podemos dizer o mesmo a res-
peito das chamadas ciências.
Então, vemos que, primeiro, não temos como definir a
filosofia por comparação com a ciência, mas também não
temos como defini-la pela sua função social; entendemos
que a função social da filosofia é perfeitamente irrelevante
para a sua definição. De qualquer modo, qualquer que seja
a função social do filósofo, mesmo que ele não tenha ne-
nhuma, o fato é que a filosofia é uma certa atividade inte-
rior que alguns homens praticam — isto é o mínimo que
temos de admitir como um dado. Também, esta atividade,
em todos os casos, visa a uma certa ordenação, subordina-
ção e coordenação de conhecimentos.
Suponhamos que chegássemos a uma ordenação de co-
nhecimentos, a uma organização do sistema de conheci-
mentos que fosse considerada socialmente válida, ou seja,
que conseguíssemos encontrar os primeiros princípios de
todos os conhecimentos, ordenar, em função deles, todo o
conhecimento que a humanidade possui, deduzir daí nor-
mas de conduta na vida pública e privada, e coordenar em
função deles as últimas finalidades do homem — isso seria
uma filosofia total, uma filosofia global. Se uma filosofia
global deste tipo fosse possível, e já tivesse sido alcançada
em algum lugar, essa filosofia seria obrigatória para todos
os seres humanos. Ou seja, se as descobertas filosóficas, se
22

a investigação filosófica tivesse o tipo de validade que têm


as descobertas científicas, seria possível haver uma filoso-
fia que fosse obrigatória para todos os seres humanos. Ela
abrangeria, por assim dizer, numa única enciclopédia, to-
dos os conhecimentos possíveis — conhecimentos teóri-
cos e práticos — e conteria já em si as normas de conduta
que seriam obrigatórias para todos. É fácil você perceber
que isto é totalmente utópico. Seria o conhecimento defi-
nitivo e absolutamente fundamentado a respeito de tudo o
que existe ( se bem que não extensivamente, mas só inten-
sivamente ). É claro que um conhecimento deste só existe,
para o homem, sob a forma de uma aspiração individual,
nunca de uma atividade social. A filosofia total que se reali-
zasse socialmente seria um monstro totalitário; mas esse
monstro totalitário é utópico, pois nenhuma tirania conse-
gue tiranizar tudo: há sempre uma margem de liberdade
ao menos interior que resiste, por definição. Se a filosofia
pudesse chegar a realizar-se completamente, encontrar os
fundamentos do conhecimento, sistematizar todos os co-
nhecimentos existentes, e em seguida, deduzir deles até as
normas de conduta, se ela pudesse chegar a fazer isto, e
torná-lo válido para todos os homens, teríamos encontra-
do as leis universais a que todos os homens teriam que se
curvar, e o filósofo seria nada menos que uma espécie de
“eixo do mundo”, e todo mundo teria de obedecê-lo.
É claro que essa coordenação de todos os conhecimen-
tos só existe como uma necessidade, uma aspiração legí-
tima na alma do indivíduo; socialmente isto não existe nem
pode existir, e se existisse seria um terror. Quem é que
precisa da coordenação de todos os conhecimentos? A so-
23

ciedade humana? É claro que não; a sociedade humana


não precisa ter todos os conhecimentos coordenados,
porque para ela basta o quantum de coordenação e de sis-
tematização necessários para resolver os problemas práti-
cos de cada geração; na geração seguinte o problema já
será totalmente outro. Suponham que chegássemos à or-
ganização perfeita. Na geração seguinte já poderiam ter
acontecido coisas novas que mudassem totalmente o pa-
norama e que criassem para esta geração subsequente ne-
cessidades completamente diferentes das nossas. Só quem
necessita — e necessita maximamente — de coordenação e
de unidade dos conhecimentos em sentido universal e abso-
luto é o indivíduo humano concreto.
Então, chego à conclusão que a filosofia não é uma ati-
vidade socializável; ela pouco tem a ver com a organização
social do conhecimento, mas tem a ver com a necessidade
que o indivíduo humano tem de coordenar e hierarquizar
seus conhecimentos para o seu uso privado. Por que o indi-
víduo necessita disto? Porque ele tem uma unidade biológi-
ca, ele tem a unidade de um corpo — coisa que a sociedade
não tem. A sociedade pode ser composta de um número
indefinido e variável de corpos, de geração para geração. O
número de componentes da sociedade pode aumentar ou
diminuir: pode haver uma guerra que mate metade de um
país e nem por isto o país deixa de existir; do mesmo mo-
do, a população pode duplicar de uma geração para a ou-
tra, e nem por isto o país mudou de identidade. Mas o in-
divíduo humano não é assim, ele tem um só corpo; ele não
pode ter dois, três corpos ou meio corpo.
24

Então, como o corpo tem essa unidade biológica e a


unidade da consciência individual é coextensiva à unidade
temporal e espacial do corpo, a necessidade de uma coe-
são, de organização e hierarquia dos conhecimentos é uma
necessidade que existe prioritariamente para a consciên-
cia individual e não para a sociedade, ao menos numa me-
dida comparável. A filosofia atende a uma necessidade que
poderíamos dizer biológica, e não sociológica. O indivíduo
humano necessita de coerência, de coesão, de ordem, não
só nos seus pensamentos mas entre os pensamentos e as
ações, pelo simples fato de que ele tende a refletir, ele pre-
cisa refletir no mundo do seu pensamento a unidade do
seu ser biológico.
Ora, a sociedade não tem unidade biológica; ela só ne-
cessita de um tipo de unidade, de coesão provisória do ti-
po prático, funcional e convencional. A sociedade necessita
da unidade que tem uma “organização”, e não um “orga-
nismo”. Quê é uma organização? É tomar elementos díspa-
res e fazê-los funcionarem de maneira análoga à de um
organismo — mas somente análoga, não idêntica. E analo-
gia, não se esqueçam, é uma mistura de semelhança e dife-
rença. Há por exemplo uma certa analogia entre a estrutu-
ra e funcionamento de uma empresa e a estrutura e funci-
onamento do corpo humano, mas é somente uma analogia.
A empresa jamais vai chegar a ter aquela unidade biológi-
ca, unidade substancial, do corpo humano de cada um de
seus funcionários; ela não chega a isto, nem precisa. E se
chegasse seria um horror, porque os vários órgãos ou
componentes jamais poderiam ser destacados dela, ou se-
ja, você poderia entrar na firma mas não poderia sair nun-
25

ca mais. Agora: no nosso corpo não é assim, se você arran-


car o coração ou o fígado o corpo morre. Os vários órgãos
que compõem o corpo humano são inseparáveis, mas os
órgãos e elementos que constituem a sociedade não são
inseparáveis. A organização é apenas uma forma menor e
metafórica de organismo. Então, entre organização e or-
ganismo, a sociedade, por mais organizada que seja, ja-
mais chegará a ter a unidade do corpo humano. Se chegas-
se, seria o totalitarismo perfeito, onde cada indivíduo es-
taria ali tão bem integrado quanto um órgão no seu corpo.
Este é um ideal que é inatingível, e graças a Deus é inatin-
gível, porque se fosse atingível seríamos menos que abe-
lhas, menos que cupins.
O totalitarismo perfeito seria a organização total da so-
ciedade, ou seja, nenhum aspecto da sociedade escaparia
da organização, não haveria aspectos antagônicos. No cor-
po humano não pode haver elementos antagônicos porque
senão você morre, então tudo precisa funcionar sinergi-
camente para o benefício do corpo. E a sociedade, precisa
disto? É claro que não, porque como disse Jesus Cristo, “o
sábado foi feito para o homem, e não o homem para o sá-
bado”, ou seja, as instituições foram feitas para o homem,
e não o homem para as instituições. A sociedade e as insti-
tuições, não podendo ter o tipo de organicidade coesa que
tem o corpo humano, necessitam, no entanto, de uma coisa
que se chama “organização”, que representa o mínimo de
organicidade necessário à consecução de certos fins práti-
cos. A organização da religião, da ciência, ou da arte, de
todo conhecimento socialmente admitido, serve para isso.
26

Por exemplo, a sociedade não precisa ter uma lei que


seja totalmente perfeita; ou que seja totalmente coerente
com a sua organização econômica; ou que seja totalmente
coerente com as finalidades a que a sociedade aspira; bas-
ta que ela tenha a lei que, para aquela geração que coloca o
problema, pareça satisfatória, mesmo que tenha incoerên-
cias. A geração seguinte pode mudar a lei, ampliá-la, adap-
tá-la ou revogá-la. Por exemplo, qual é o país do mundo
que melhor se organizou democraticamente? Não são os
Estados Unidos? Ora, é fácil você perceber que nos Esta-
dos Unidos a democracia só sobrevive na medida em que
ela coexiste com elementos aristocráticos que estão pre-
sentes desde a fundação do país e que, embora não decla-
rados por todo mundo, são um dos pilares da democracia.
São essas velhas famílias de políticos que estão lá e man-
dam naquilo faz duzentos anos, e, teoricamente, isto é con-
tra o princípio democrático, mas na prática isto é uma das
bases do funcionamento do sistema americano. Se você
retirar esse elemento aristocrático, que ideal e logicamen-
te é antagônico ao conceito democrático, o sistema cai e
vem em seu lugar um totalitarismo qualquer. Então, curio-
samente, é um democracia que se fundamenta num pé
aristocrático, ela tem uma perna democrática e uma perna
aristocrática. Ora, se a organização real do país é assim,
meio democrática, meio aristocrática, por que isto não é
declarado na Constituição americana? Porque não é ne-
cessário que as leis, a Constituição, e a ideologia vigente,
reflitam totalmente a realidade das relações humanas.
Basta que a reflitam numa medida que o povo mesmo con-
sidere satisfatória em face de seus objetivos práticos do
27

momento. Tudo o que é coletivo é feito na base do provi-


sório e relativo, é para resolver o problema até um certo
ponto; não é preciso nem a perfeição, nem a coerência,
nem a unidade de um corpo humano. Se num sistema há
milhares de instituições contraditórias, absurdas, e o povo
não obstante está satisfeito, o sistema funciona... Por
exemplo, os aztecas não viveram durante séculos acredi-
tando que era preciso matar uma pessoa por dia porque
senão o Sol não sairia no dia seguinte? Eles achavam que
havia uma conexão causal entre o sacrifício humano e o
movimento do Sol: se parasse o rito, parava o Sol. Eles
acreditavam nesta besteira, e no entanto, socialmente, pa-
ra os fins de preservação da sociedade, funcionava.
Ora, o indivíduo humano não pode funcionar assim; o
indivíduo humano não pode agir como se ele fosse dois,
três ou quatro pessoas diferentes. Se acontece isto, dize-
mos que ele está esquizofrênico; que ele parou de funcio-
nar. Quer dizer que a cota de incoerência que o indivíduo
admite, ou que ele pode suportar, é muito menor do que a
sociedade pode suportar.
A filosofia é uma atividade cognitiva desempenhada pe-
lo indivíduo humano, para atender à sua aspiração, e à sua
necessidade de coerência, sentido e propósito. Isto nada
tem a ver essencialmente com a organização social do co-
nhecimento, embora haja relações entre as duas coisas. Eu
diria que as ciências, a religião, etc., nascem de necessida-
des sociais criadas pelas decisões anteriores e pelo estado
de coisas resultante, e a filosofia nasce de uma necessida-
de biológica do indivíduo real.
28

Por exemplo, um indivíduo que vivesse sozinho numa


ilha não precisaria de governos, instituições, etc., etc., mas
de filosofia ele precisaria, e talvez até mais do que nós; e
ele há de ter alguma. Por exemplo, ele pode pensar: “Por
quê eu estou aqui sozinho?”, “Por que isto me aconteceu?”.
Ele tentará achar um sentido, um princípio de explicação
para o conjunto da sua situação. Ora, buscar a coerência
para o conjunto da situação é a própria filosofia.
Então, tentar definir a filosofia pelas demais atividades
cognitivas, de origem social, é uma confusão de planos; é
uma metabasis eis allo genos, é uma confusão de camadas
lógicas. Qualquer atividade que tenha uma raiz diretamen-
te biológica independe de determinações sociológicas,
embora estas possam afetá-la mais tarde e ser afetadas
por ela. Por exemplo, a necessidade de sono não tem uma
raiz sociológica, mas biológica; portanto, qualquer que se-
ja a organização social a pessoa tem a necessidade de
dormir. É ridículo você tentar encontrar uma explicação
para o sono em instituições sociais, porque ele deriva de
uma necessidade que é co-extensiva ao organismo huma-
no — onde houver organismo humano, ali há a necessida-
de do sono. Seja esta necessidade essencial ou acidental, o
fato é que ela é universal, ela está presente em todos os
seres humanos. As necessidades que a filosofia atende são,
por assim dizer, do organismo psícofísico do indivíduo
humano concreto, e não desta ou daquela sociedade.
As necessidades que são de origem sociológica não po-
dem ser atendidas pelo indivíduo de maneira alguma. Por
exemplo, nós nos juntamos e decidimos alugar uma casa e
morar lá. Imediatamente surge a necessidade de uma re-
29

gulação das necessidades, e esta regulação não pode ser


atendida por nenhum dos indivíduos isoladamente e sim
só pela colaboração de todos. Mesmo a submissão de to-
dos a um só requereria uma colaboração entre os subor-
dinados. Existe alguma lei ou norma social que basta o in-
divíduo criá-la e ele mesmo atendê-la? Não, isso só pode
ser resolvido na interação dos vários. Por exemplo, você
pode jogar pingue-pongue só com você mesmo? Não pode.
Então a necessidade da ordenação do jogo surge da rela-
ção entre dois indivíduos, e não do organismo de um de-
les. Quer dizer que as necessidades sociológicas são especí-
ficas, elas não são redutíveis às biológicas. A sociedade não
pode organizar o indivíduo, filosoficamente falando, tanto
quanto a filosofia não pode organizar a sociedade. São ne-
cessidades diferentes; existem necessidades que são ine-
rentes à vida humana, biologicamente considerado; são
inerentes ao organismo psícofísico individual, concreto:
eu, você, ela, etc. Esta necessidade existe independente-
mente da situação social. Do mesmo modo, existem neces-
sidades que provêm da organização social e que são inde-
pendentes dos indivíduos que a compõem. Considere uma
organização social mínima, por exemplo, a família: basta
que o pai cumpra o papel de pai somente consigo mesmo?
Não, ele tem que cumpri-lo em relação à mulher e ao filho,
senão não funciona. Então, essas necessidades não surgem
do organismo psícofísico humano como tal mas da relação
entre vários. Então essas necessidades só existem onde
existe mais de um.
Mas — pode-se perguntar — o homem não é um animal
gregário? Sim, porém mais que gregário ele é um animal
30

vivente. Biologicamente o homem existe como indivíduo,


como corpo, e este corpo nunca se confunde com o de ou-
tro; nem se funde nem se confunde, quer dizer, quando eu
como, nem por isso vocês ficam alimentados, e quando eu
não como, nem por isso vocês sentem fome. Então essas
coisas não são transferíveis. Quando digo que uma neces-
sidade é inerente ao corpo humano é porque ela não é
transferível para um outro indivíduo, mas quando digo
que ela nasce de uma relação e se funda numa relação sig-
nifica que ela não pode ser atendida dentro do âmbito de
um só corpo humano isolado. Conheço poucas distinções
tão rigorosas como esta.
Por exemplo, a religião tem um aspecto de culto públi-
co, a palavra liturgia significa “trabalho público”, várias
pessoas se reúnem para um fim religioso. Quando Jesus
Cristo disse: “Quando dois ou mais estiverem reunidos em
Meu nome, Eu estarei presente”, Ele não disse: ²Quando
um de vós estiver pensando em Mim, Eu estarei lá presen-
te”. Ele se referia, portanto, à liturgia ou culto público.
Então, as leis, as instituições, a ética social, etc., tudo
isto só existe em função da relação entre seres humanos, e,
mudando os seres humanos, vão mudar as relações, evi-
dentemente. O simples aumento do número de pessoas já
determina mudança nas relações. Por exemplo, aqui você
tem um pai que trabalha, tem a mãe, e tem o filhinho pe-
queno; depois o casal tem vinte filhos, e os filhos ficam
grandes, e continua o pai trabalhando indefinidamente
para sustentar toda aquela gente que fica em casa sem fa-
zer nada! Não tem sentido, não é? Quer dizer, o simples
aumento do número de membros da família e a passagem
31

do tempo já mudam as relações. Por aí você vê como essas


relações dependem do número e da interação entre os se-
res humanos; elas não são concebíveis, nem muito menos
são resolvíveis na escala do indivíduo sozinho. Do mesmo
modo que as necessidades que estão no indivíduo não po-
dem ser resolvidas pela relação. O exemplo mais simples
são as necessidades biológicas elementares: fome, sono,
etc. Quando você está com sono você se contenta com que
os outros durmam e você fique acordado? O sono é uma
necessidade que só está em você, e ela só pode ser atendi-
da em você mesmo. Não adianta um outro resolver.
Por outro lado, existem necessidades que nascem da
relação humana e que só podem ser resolvidas na esfera
das relações humanas, não podem ser resolvidas na escala
de um só. Por exemplo, o casamento: você pode casar com
você mesmo, fazer amor com você mesmo, engravidar a si
mesmo e parir-se a si mesmo sendo ao mesmo tempo seu
pai, sua mãe e seu filho?
Então, isso aí é toda uma linha de fatos e de conheci-
mentos que não tem nada a ver com a outra linha que é
das necessidades do indivíduo humano. É por isso mesmo
que a tentativa de definir a filosofia em função da ciência é
uma absurdidade. Elas atendem a funções completamente
diferentes.
Entretanto, existe uma área de interseção, como exis-
tem áreas de interseção em quase tudo, porque o ser hu-
mano é um só em natureza; aqui percebemos que existe
uma diferença funcional entre o indivíduo enquanto orga-
nismo, e enquanto ele está metido em relações, mas é o
mesmo indivíduo que existe biologicamente e que se colo-
32

ca em relações: aqui está fulano que se casou com fulana;


podemos examinar o fulano em si mesmo ou enquanto ca-
sado, mas quando ele é em si mesmo, ele é o mesmo que
existe como sujeito das relações; a separação é de momen-
tos e de funções — não é uma separação ontológica.
O filósofo russo Soloviev dizia que todas as atividades
cognitivas são sociais, só a filosofia é individual. Tudo o
que eu disse até agora é uma tentativa de provar esta
afirmação de Soloviev.
É claro que existem interseções; existe um aspecto bio-
lógico das instituições, do mesmo modo que as instituições
influem sobre os organismos. Assim também existe uma
área de interseção entre a filosofia e essas outras áreas do
conhecimento; elas se afetam mutuamente. Mas afetar-se
mutuamente é uma coisa, e ser a mesma coisa, é outra.
Se essas atividades não apenas visam a finalidades dife-
rentes mas são desempenhadas em planos, níveis de reali-
dade totalmente diferentes, então você tem de defini-las,
não uma pela outra, mas cada uma em si mesma, de acor-
do com a sua função própria. Isto também significa que
não tem jeito de você definir uma nos termos da outra. Por
exemplo, quando você diz que a ciência é um conhecimen-
to acumulativo e a filosofia é um conhecimento não-
acumulativo, esta frase não tem sentido, não quer dizer na-
da. Os historiadores das idéias frequentemente recorrem a
esse expediente, porque você pode falar num progresso
científico, mas não num progresso filosófico, ou seja, a ci-
ência que veio depois é considerada “melhor” do que a que
existia antes, mas a filosofia, não. Por exemplo, a física de
Einstein é melhor do que a de Newton, é mais completa,
33

mais coerente, etc., etc.; mas a filosofia de Jean-Paul Sartre


ou Michel Foucault não é melhor que a de Platão. Daí se
conclui que existe um progresso científico mas não existe
um progresso filosófico, no sentido de que existe uma
acumulação na ciência e não existe uma acumulação na
filosofia — mas essa comparação não faz sentido. A acu-
mulação supõe uma transmissão social do conhecimento,
mas não há propriamente uma transmissão social da filo-
sofia, mas somente dos meios externos e auxiliares do filo-
sofar, assim como não há transmissão social da alimenta-
ção; aquilo que eu como, só alimenta o meu organismo, e
morre por ali mesmo; o que há é uma transmissão social
dos meios de alimentar-se, o que é coisa diferente. Aquilo
que eu entendo, o conhecimento filosófico que adquiri, fica
em mim mesmo. Eu posso transmitir os resultados dele,
mas não ele mesmo. Ao passo que na ciência só o que inte-
ressa são os resultados, as conclusões finais. Você pode
entender hoje a física de Newton seguindo um percurso
lógico inteiramente diferente do que Newton seguiu; você
não tem de fazer os mesmos raciocínios de Newton, ao
contrário, você encontra novas e melhores demonstra-
ções, e novas e melhores ilustrações da física de Newton.
Você não precisa repetir toda a associação de idéias mais
ou menos fortuita que levou Newton à descoberta disto ou
daquilo; só interessa a lei, que é o produto final. Uma vez
descoberta a lei, existem milhares de outras demonstra-
ções possíveis da mesma lei. A reflexão interiorizante não
é necessária.
Mas se estou dizendo que a filosofia é uma atividade de
coordenação de conhecimentos, entendo que só posso co-
34

ordenar os conhecimentos que eu possuo, ou seja, esta é


uma atividade que é essencialmente desempenhada no
interior do indivíduo. Posso eventualmente ensinar um
outro indivíduo a fazer a mesma coisa, mas se eu transmi-
tir somente os resultados da minha reflexão, não terei en-
sinado filosofia: ensinei as conclusões, mas as conclusões
respondem às perguntas que eu coloquei, e quem disse
que ele colocou as mesmas perguntas?
Partindo do princípio de que não existem dois indiví-
duos que tenham exatamente as mesmas experiências,
não existem dois indivíduos que tenham o mesmo conhe-
cimento filosófico, porque eu conheço umas coisas e você
conhece outras, eu tenho que coordenar os meus conhe-
cimentos, e você os seus. Em ciência, o essencial do conhe-
cimento científico é transmitido e transmissível; em filoso-
fia só o acidental, o periférico, é transmissível.
Por outro lado, podemos dizer que não existe um pro-
gresso em filosofia: é evidente que existe, porque há certos
problemas esquemáticos que mais ou menos todo mundo
coloca, e, com relação a estes, frequentemente um filósofo
abrevia um bom pedaço da reflexão para os seus sucesso-
res; você encontra parte do problema resolvida. Mas os
problemas que um outro filósofo resolveu são somente
uma parte daqueles que você quer resolver. Mesmo que
você absorva totalmente a filosofia de um outro, como Sto.
Tomás de Aquino absorveu a de Aristóteles, isso não re-
solve o problema dele — Sto. Tomás tinha uma série de
problemas novos, colocados pelo fato de que nesse ínte-
rim, entre Aristóteles e ele, tinha surgido o Cristianismo,
que já existia desde 1300 anos e do qual Aristóteles não
35

tivera o menor conhecimento. É por isso que cada filósofo


tem que recomeçar tudo de novo.
Você pode dizer que existe um progresso em filosofia
na medida em que você diz que existe um progresso dos
meios de fazer a reflexão, e isto é evidentemente acumula-
tivo. Mas este progresso não é no mesmo sentido do pro-
gresso científico, porque o progresso científico significa
que há certos problemas que você não precisa colocar
mais, porque eles estão resolvidos. Em filosofia, significa
apenas que os problemas resolvidos vão lhe tomar menos
tempo, mas vão tomar tempo de qualquer maneira, por-
que os assuntos nos quais você não pensou não podem fa-
zer parte da sua coordenação de conhecimentos, portanto
você vai ter de pensar em todos, ou melhor: em todos
quantos possa. A obra de um filósofo simplesmente abre-
via o nosso trabalho mas nunca no sentido em que o pro-
gresso da ciência abrevia a investigação científica seguin-
te. Por exemplo, para você tirar pleno proveito de uma
descoberta científica feita dois séculos atrás, basta que vo-
cê conheça a sua conclusão e a tome como verdadeira, e
ela representará uma das bases da sua investigação; mas
em filosofia você não pode fazer isto. Em primeiro lugar,
porque quem está colocando o problema da ordenação
dos conhecimentos é você; se você toma o resultado obti-
do por um outro como líquido e certo, significa que aquele
problema não foi para você um problema; você não pro-
blematizou aquilo. Ora, se você não problematizou, você
não tem a certeza pessoal, você tem uma certeza delegada,
você acredita nisso porque fulano falou. É evidente que
esse é um padrão de certeza muito frágil, que socialmente
36

basta, mas individualmente não. Mais cedo, mais tarde,


você vai voltar a colocar aquele problema, por mais que
você acredite na solução dada por Aristóteles, Leibniz ou
Heidegger.

Não é verdade que até mesmo pessoas religiosas fre-
quentemente questionam as bases de sua fé? Se até a fé
que você tem em Deus você questiona, por que não iria
questionar a que você tem num filósofo de dois séculos
atrás? Então, a tendência normal e natural do filósofo é
problematizar tudo de novo, até ele encontrar uma coe-
rência, uma organização que satisfaça à pergunta que ele
mesmo colocou. A resposta que um outro deu a tal ou qual
problema pode ser análoga à minha, nunca idêntica. Isso
significa que não existe sequer como articular socialmente
essas duas atividades — como pretendia Comte.
Comte pretendia que existisse a filosofia como coorde-
nação de conhecimentos, mas como coordenação social-
mente produzida e aprovada, isto é, haveria as várias fa-
culdades de ciências e em cima uma faculdade de filosofia
que coordenaria aquele conhecimento todo. Primeiro que
uma coordenação social do conhecimento é utópica, não
existe; segundo, a sociedade não tem necessidade disto,
ela tem necessidade apenas de uma coordenação prática
que vale para o prazo de uma geração; terceiro, se essa
coordenação for feita simultaneamente por várias cabeças,
será feita só parcialmente por cada cabeça e não será co-
ordenação alguma. Esta coordenação e unificação só pode
ser feita dentro do indivíduo.
37

Por outro lado, a coordenação também é feita apenas


para uso do indivíduo, e para ajudar parcialmente outras
coordenações semelhantes que virão a ser feitas por ou-
tros indivíduos. Isto significa que a filosofia só participa da
organização social do conhecimento de uma maneira mui-
to indireta.
Mas, assim como posso encarar a filosofia como se fosse
uma ciência, e sob muitos aspectos ela é porque muito do
que ela descobre acaba tendo utilidade científica, eles
também podem tentar encarar as ciências como partes ou
aspectos de uma filosofia, e elas não deixarão de sê-lo, na
medida em que demonstrações científicas podem ser in-
corporadas numa doutrina filosófica; mas são só compara-
ções e analogias, interseções, na melhor das hipóteses, e
não se pode tomar essas interseções de territórios e as
analogias como se fossem identidades.
Do mesmo modo, as relações entre filosofia e Religião;
vai haver uma zona de interseção porque o ser humano é
o mesmo, a realidade é uma só, e aquilo de que se ocupa a
Religião ocupará o filósofo também parcialmente.


Se vocês entenderam isso, vocês entendem como é pro-
blemático o assunto da Ética; também você vai entender
que uma ética social e uma ética filosófica, ou uma filosofia
moral, não se colocam num mesmo plano.
Uma ética social visa a estabelecer certos tipos de rela-
ções, certos comportamentos padronizados, que são con-
siderados suficientes para atender à demanda de uma de-
38

terminada geração, e que na geração seguinte já pode ser


outra coisa completamente diferente.
De outro lado, você vê que a filosofia moral só surge na
medida onde um indivíduo reflete sobre esta ética social. A
filosofia moral já é uma atividade de segunda instância,
quer dizer, partindo de que existe uma ética social, de que
as pessoas têm certos costumes, normas, etc, etc, na medi-
da em que o indivíduo se põe a refletir sobre isto para en-
contrar o padrão de coerência que o satisfaça como indiví-
duo, aí você tem uma filosofia moral.
É claro que como o ²sábado foi feito para o homem, e
não o homem para o sábado², as reflexões do filósofo aca-
bam influenciando a ética social evidentemente. Por
exemplo, se numa certa geração um filósofo descobre in-
coerências intoleráveis num sistema ético, muito prova-
velmente este sistema acaba tendo a sua credibilidade
abalada, e na geração seguinte já se propõe outras tantas
reformas.
Podemos lançar a seguinte pergunta: existe alguma éti-
ca social que possa satisfazer inteiramente às demandas
de coerência do filósofo? Não e nunca; não é possível.
Mesmo porque o filósofo pode colocar certos problemas
morais que nem existem para a sociedade dele em particu-
lar, mas que existem para o ser humano em geral. Uma éti-
ca social visa somente a regular as ações dos membros de
uma sociedade e não da sociedade vizinha. Para o filósofo,
ao contrário, as duas sociedades existem igualmente, e são
termos de uma comparação. Por exemplo, as ²Cartas Per-
sas², de Montesquieu, é o relato de uma viagem imaginária
de um nobre persa que percorre a Europa e vai observan-
39

do com muita estranheza os costumes locais, e comparan-


do com os costumes da Pérsia. Li um livro análogo, mais
real, escrito por um viajante da Tunísia, chamado A Euro-
pa vista por olhos mussulmanos. Coisas que para o europeu
parecem normais e parecem ser até normativas, de vali-
dade universal, para aquele sujeito pareciam muito exóti-
cas, muito esquisitas. Por exemplo, os cuidados ocidentais
com cachorros e a repugnância islâmica pelos cachorros;
uma vigora numa sociedade, a outra na outra sociedade, e
as pessoas de uma sociedade podem passar a vida inteira
sem conhecer os costumes da outra e não vai fazer a me-
nor diferença. Uma sociedade não tem por que levar em
conta os costumes da vizinha, mas para o filósofo esses
dois costumes são pontos de comparação, porque ele vai
buscar um padrão que satisfaça à sua necessidade de coe-
rência. Acontece que a necessidade de coerência de um
indivíduo se fundamenta em princípios universais, ao me-
nos idealmente universais, como idealmente universais
são os princípios da Lógica e da Ontologia.
Então, veja que incrível: a filosofia é uma atividade que
busca a coerência do ponto-de-vista do indivíduo, mas que
essa coerência tem que ter validade universal. Isto signifi-
ca que todos os homens têm que aceitar, em todas as soci-
edade, em todas as épocas? Não. Isto significa que ela terá
que ser válida para a variedade das épocas e das socieda-
des. Por exemplo, se o indivíduo encontra um princípio
universal qualquer — por exemplo, o princípio de identi-
dade —, isto significa que esse princípio de identidade é
válido para todas as épocas e todos os lugares; ele não
desmente a variedade das expressões humanas, mas ele é
40

válido dentro dessas variedades. Então veja que diferença:


a ética social, os conhecimentos socialmente admitidos,
eles só têm que ser válidos para uma sociedade e uma
época, mas ali dentro eles têm que ser aceitos uniforme-
mente por todos; ao passo que o tipo de conhecimento que
se encontra na filosofia têm que ser válidos para todos os
seres humanos independentemente da sua variedade. Veja
a enorme diferença de planos que existe de um desses co-
nhecimentos para o outro.
Repetindo. Você pega uma determinada norma moral,
como por exemplo, ²cachorro só fora de casa²; esta norma
não é universalmente válida; ela não tem fundamentos ra-
cionais universais; ela não resiste a um exame lógico: não
há mais razões para você colocar o cachorro dentro de ca-
sa do que existe para você colocá-lo fora de casa; os argu-
mentos a favor de uma dessas opções se equivale às da
outra. Do mesmo modo, como por exemplo uma sociedade
proíbe o divórcio e outra aceita; existem argumentos a fa-
vor e argumentos contra, e nenhum deles é inteiramente
satisfatório. Então, a sociedade que adota o divórcio, e
aquela que o proíbe, não está proclamando uma lei uni-
versal, mas uma lei que só vale para aquele momento e
lugar; ela é relativa. Essas leis relativas no entanto têm
uma validade geral, isto é, elas valem para todos os mem-
bros da coletividade e são obrigatórias para eles. Ora, os
princípios da filosofia moral, uma vez encontrados, eles
têm que ser universais. Mas se são universais como é que
você vai fazer com que todos os homens se curvem a eles?
Só se o filósofo virar um governante universal. Isto signifi-
ca que os conhecimentos, os princípios morais universais
41

que o filósofo encontra têm que, de alguma maneira, já ser


válidos para toda a humanidade, e têm que ser compatí-
veis com essa variedade de morais possíveis. Essas várias
morais relativas, se uma delas atenta diretamente contra
algum princípio universal, ela está totalmente errada; ela
não tem como se justificar de maneira alguma. Por exem-
plo, uma moral que atribuísse sistematicamente a um in-
divíduo a responsabilidade pelas ações dos outros; ela es-
taria violando um princípio lógico, portanto, um princípio
da Ontologia, e ela não teria validade alguma sob aspecto
algum. Porém, a norma social que proíbe, por exemplo, o
divórcio para seus membros, não está atentando contra
nenhum princípio universal; ela é compatível com os prin-
cípios universais, embora ela mesma não seja universal, só
tem validade para aquele momento e lugar.
No antigo mundo romano havia um princípio de contro-
le da natalidade que era o seguinte: a família escolhia se o
filho que nasceu iria viver ou não. Portanto, era conside-
rado perfeitamente lícito se você não quisesse o filho, jo-
gá-lo no lixo, e ele morria. Isso era considerado válido na-
queles termos.
Para a sensibilidade cristã moderna isto é considerado
chocante. Mas você não pode dizer que isto, em si mesmo,
viola algum princípio universal, filosoficamente demons-
trável. Mas se disser, ²Isto viola os 10 Mandamentos...²,
mas eles não conheciam os 10 Mandamentos... É que nós
tomamos os 10 Mandamentos como se fossem universais,
e no entanto não são. A nós nos parece horrível, mas...

42

[ troca de fitas — durante a troca foi feita uma pergunta a


respeito do Imperativo Categórico ]

Imperativo categórico é algo, segundo Kant, que você
tem que acreditar mas que você não pode provar. O prin-
cípio é exatamente o contrário, o princípio é uma coisa au-
to-evidente. Por exemplo, me parece que o segundo man-
damento do decálogo é auto-evidente; quando ele diz
²Ama teu próximo como a ti mesmo², só pode não fazer
isso se você conseguir inventar um jeito e provar que você
é essencialmente melhor do que o outro, mas isto é muito
difícil, não é? Se são membros da mesma espécie, em prin-
cípio, não há nenhuma razão para que você seja melhor
tratado que o outro, quer dizer, a igualdade dos seres hu-
manos parece que é um princípio universal, facílimo de
você perceber como evidente. Tanto que as várias desi-
gualdades que são propostas, elas são continuamente
questionadas, mas esta igualdade fundamental nunca nin-
guém questionou; só se o sujeito provar que ele pertence a
uma outra espécie, por exemplo, ele diz, ²Eu não sou hu-
mano, eu sou um deus²; a própria desigualdade prova isto
de uma certa maneira porque por toda parte onde surge
uma diferença social muito grande, há uma tendência de
fundamentá-la na base da alegação de uma herança divina.
Por exemplo, no patriciado romano todos acreditavam se-
rem descendentes de deuses; César dizia com a maior ca-
ra-de-pau que ele era descendente da deusa Vênus e ele
estava sendo sincero e as pessoas ainda acreditavam na-
quilo. Então, se ele tinha um tratamento diferenciado é
porque havia uma diferença específica; o quê que prova
43

isso? Prova que dentro da mesma espécie não há diferen-


ça.

[ Aluno: é o direito divino? ]

Não, o princípio do direito divino não é diferença de es-
pécie. Tanto que o princípio da monarquia absoluta dura
muito pouco tempo; é muito difícil segurá-la. Mas você vê
nesses impérios que duraram milênios sempre se atribui
ao monarca, ou à casta governante, uma diferença de es-
pécie, então eles não são gente, são deuses, ou são anjos,
são qualquer coisa diferente. É o resultado de uma aplica-
ção errônea de um princípio certo, mas o princípio da
igualdade humana é auto-evidente. Os motivos de diferen-
ça não são evidentes, eles podem ser até verdadeiros em
certos casos; eu acho que é empiricamente evidente você
ver que um sujeito como São Francisco de Assis é muito
melhor do que Hitler, qualquer idiota percebe isto. Então,
existe uma diferença imensa, mas a diferença é acidental,
não é essencial. Mas a diferença que existia entre César e
os ²civis romanus² comum é uma diferença, não acidental,
mas essencial, pertencem a espécies diferentes, um é des-
cendente de deuses e o outro é gente.
A identidade humana é uma só em todo lugar, mas as
diferenças são variadas. E elas mesmas, na hora em que
elas se afirmam, estão afirmando o princípio da identidade
da espécie humana. Se um indivíduo diz que ele tem o di-
reito de mandar em você porque ele é descendente de
deuses, ele está querendo dizer que se ele fosse um huma-
no como você, nós teríamos o mesmo direito; se eu tenho
44

a mais é porque pertenço a outra espécie. Então você vê


que mesmo na afirmação da desigualdade está fundamen-
tada a igualdade.
A identidade da espécie humana não é uma evidência
lógica, é uma evidência empírica; não é tão universal
quanto a evidência lógica. Em Ética nada vai ser assim,
porque pelo próprio objeto de estudo da Ética — que são
as ações humanas — não poderia ter uma universalidade
lógica como você tem na própria lógica. Então, se houver
princípios morais, a evidência deles não é assim uma evi-
dência de primeiro plano como a da lógica, elas dependem
da experiência. Mas você pode dizer que todo ser humano
é igual até prova em contrário; o sujeito pode provar que
ele não é humano, que ele é um extra-terrestre, que é des-
cendente dos deuses, etc, e se ele provar então ele está au-
tomaticamente fora. Mas enquanto não houver uma prova
suficiente em contrário ele é gente.
Me parece que isso aí é um princípio auto-evidente e
que onde isso for violado você pode dizer que houve um
erro. César estava errado ao dizer que ele era descendente
da deusa Vênus? Moralmente eu não tenho como provar
que ele estava errado; eu posso é provar cientificamente,
mas a filosofia moral, em si mesma, não pode dizer que ele
estava errado. Se ele achava que era descendente de Vê-
nus, e os outros aceitavam, então está certa a diferencia-
ção de tratamento. Cientificamente nós podemos dizer,
por exemplo, que Vênus era estéril, que ela não teve
filhos — principalmente porque ela não existiu. Então,
houve uma premissa científica errada, da qual se tirou
45

uma conclusão que logicamente está certa. Foi um erro de


avaliação da realidade.
Por outro lado, você pode justificar diferenças de tra-
tamento para seres humanos em função de motivos aci-
dentais, socialmente relevantes, como é o caso do direito
divino dos reis. Ele não é um tipo diferente, ele é um ser
humano, mas está investido de uma certa autoridade por-
que ele representa a própria subsistência do corpo social.
Então você confere a ele certos direitos que não chegarão
aos pés dos direitos de um faraó.
Veja, a evidência só existe para a consciência individual,
esta é a grande tragédia humana. Só o indivíduo, no isola-
mento da sua consciência, é que pode conhecer a verdade
universal, a sociedade não pode, porque esta verdade uni-
versal só se revela no ato da evidência, por exemplo,
quando eu percebo que A=A. Eu não posso obrigar uma
sociedade a inteligir isto, a sociedade não pode ter um ato
intuitivo, porque o ato intuitivo é um ato simultâneo, ins-
tantâneo. Ora, se você tem dez cabeças, você já vai ter dez
atos intuitivos diferentes, em momentos diferentes. Então,
o conhecimento social depende da intercomunicação, e o
ato intuitivo pessoal não tem comunicação. Por exemplo,
uma intuição sensível; eu estou vendo vocês aqui, estou
vendo agora, não é que estou me comunicando a mim
mesmo através de uma linguagem X ou Y que eu estou
vendo vocês. Se chego lá na esquina e vou contar isto para
um outro, eu dependo da linguagem, que já é um código
social do qual o sujeito pode não participar, ele pode não
entender a minha língua por exemplo, ou ele pode inter-
pretá-la diferentemente. Por isso mesmo é que não existe
46

intuição social; não existindo isto não existe evidência pa-


ra a sociedade e portanto não existe verdade para a socie-
dade. Só existe a verdade no sentido convencional, aquilo
que em média todo mundo admite como verdade, mas é
uma verdade em segundo plano e muito vagabunda na
maior parte dos casos.
Então, só quem tem condição de julgar a ética social,
inclusive em termos da sua veracidade, é o indivíduo hu-
mano. Por outro lado, ele é só um indivíduo, ele não tem
poder para impor aquilo a toda a sociedade. Se ele fosse
impor, como é que ele teria que fazer? Ele teria que trans-
formar o objeto da sua intuição numa sequência de juízos,
de afirmações, ele teria que dizer isto para as outras pes-
soas. Na hora que ele fez isto, o conhecimento que ele que-
ria transmitir perdeu a sua autoridade na mesma hora,
porque não é evidente! É evidente só para ele! Eu acho que
essa é a raiz de todos os problemas humanos: a evidência
não é transmissível. Ela é repetível, mas o seu conteúdo
não é transmissível porque, para cada um, só é evidente
aquilo que ele intuiu, na hora em que ele intuiu — ele po-
de esquecer dois minutos depois. Até para você transmitir
para si mesmo no dia seguinte pode haver problemas; na
hora que você percebeu estava evidente, no dia seguinte
você não tem mais aquela evidência e só tem uma recor-
dação vaga, e você tenta remontar aquilo e não consegue.
Se você não tem autoridade nem sobre si mesmo como é
que vai ter sobre a sociedade inteira?
Por exemplo, um juiz não julga em função de uma evi-
dência, ele julga em função de um código admitido, ele não
precisa nem sequer entender o processo; isto é terrível,
47

não é? Ele julga em função de um papel que ele está de-


sempenhando e que delimita lá uma série de funções e o
que ele fizer dentro destas funções será considerado legí-
timo, por aberrante que seja. O juiz não precisa nem mes-
mo concordar com a lei que ele aplica; então ele vai agir
contra a sua própria evidência, ele vai fazer o raciocínio
partindo das premissas dessa lei, mas se ele não concorda
com essas leis como é que aquilo poderia ser evidente pa-
ra ele?
Então, vocês não podem esquecer, tudo o que é social, é
puro mecanicismo, funciona por automatismo, quer dizer,
você baixa lá uma lei e aquilo vai ser aplicado de maneira
rigorosamente mecânica, contrariando às vezes todas as
evidências humanas. É por isso que todo e qualquer co-
nhecimento social, norma social, tem que ser compensado
pela consciência individual. Por isso que o juiz, quando
julga, não leva em conta somente a lei, mas ele tem que
levar em conta a sua consciência também, para que as coi-
sas se complementem.
Se nós pudéssemos reduzir a filosofia a uma ciência, a
reflexão pessoal deveria coincidir sempre com o conheci-
mento socialmente admitido. Ora, mas se essa coincidên-
cia pudesse acontecer, se isto fosse possível isto seria ne-
cessário, porque todas as consciências seriam iguais e ja-
mais teria havido problema algum; o problema nem mes-
mo teria sido colocado. Portanto, esta possibilidade é ab-
surda. São dois planos completamente diferentes, não tra-
tam da mesma coisa, não olham o mesmo objeto, não têm
a mesma finalidade, e sobretudo não são conhecimentos
que têm o mesmo sujeito. O sujeito do conhecimento cien-
48

tífico é a coletividade; o sujeito da filosofia é a consciência


humana individual; e o sujeito da filosofia moral também é
a consciência individual. Como nós somos, ao mesmo tem-
po e inseparavelmente, indivíduos e membros de uma so-
ciedade, nós temos que ²dar uma no cravo e outra na fer-
radura² o tempo todo! Eu olho um assunto, ora como cien-
tista, ora como filósofo, ora como homem de religião. Do
mesmo modo, o juiz olha os fatos do processo, ora com os
olhos do código, ora com os seus próprios olhos.
O código tem validade geral, serve para todos os mem-
bros da coletividade, e os conteúdos de consciência dele
têm uma validade individual para ele, e uma validade uni-
versal apodíctica. Na hora onde os problemas que surgem
na ordem universal, percebido pelo indivíduo singular, en-
tram em choque com o geral, por exemplo, eu, juiz, ao
aplicar uma determinada lei, percebo que esta lei é incoe-
rente; se ela é incoerente ela viola um princípio do Direito
que é o de que não existem deveres impossíveis — se uma
coisa é impossível, não é um dever. Então, aí eu estou co-
locado numa situação extremamente desconfortável por-
que, por um lado, a sociedade me nomeou para que eu
aplicasse aquela lei, por outro lado, eu percebo que aquela
lei é impossível de ser aplicada, e eu não estou na posição
de legislador, não estou no legislativo, eu estou no judiciá-
rio.
Porém, às vezes um juiz pode até exercer uma função
legislativa em casos extremos. Ele pode, ele mesmo, se ne-
gar a cumprir aquela lei se ele conseguir demonstrar a im-
possibilidade, porque os princípios de direitos são admiti-
dos como universais e auto-evidentes. Eles são superiores
49

a qualquer lei. Mas se você pega uma determinada lei e


você demonstra que ela viola um princípio do direito, essa
lei não é revogada automaticamente, mas ela fica sem efei-
to — se houver uma jurisprudência que acaba acumulan-
do, e pode forçar até uma mudança da lei.
É por isso que a dimensão filosófica nunca acaba; onde
quer que haja o exercício da função intuitiva por uma
consciência individual, você está filosofando. Qualquer ad-
vogado, na medida em que ele está fazendo aquilo, como
ser consciente, como membro da espécie humana, e não
apenas como membro desta sociedade em particular, ele
está filosofando. Do mesmo modo, quando você julga o co-
nhecimento científico da tua geração, não em função dos
parâmetros de validade científica ali admitidos, mas em
função de uma necessidade universal de coerência, de va-
lidade, você está filosofando. E isto todo mundo faz; não
existe nenhum ser humano que viva sem ciência, religião,
filosofia, etc, etc; todo mundo tem isso. No entanto, você
tentar definir essas atividades umas pelas outras não dá
porque não é praticamente o mesmo sujeito que as exerce.
É o mesmo sujeito fisicamente considerado , quer dizer, é o
mesmo sujeito que é juiz e ele mesmo que filosofa sobre o
direito, mas não é o mesmo sujeito lógico; ele aplica a lei
enquanto membro de uma coletividade, delegado por ela
para exercer uma função, mas não é enquanto tal que ele
filosofa sobre a lei, e sim enquanto membro da espécie
humana, ou seja, é no exercício de uma outra função. Aqui
eu sou juiz, mas aqui eu sou eu mesmo, enquanto indiví-
duo, e portanto investido, por um lado, da sua total falta
de poder — porque o indivíduo não tem poder sobre a so-
50

ciedade —, e por outro lado, da autoridade universal do


ser consciente que conhece a verdade; é assim que ele jul-
ga a lei. Somente o indivíduo humano é que pode julgar as
instituições, o conhecimento científico; ele é o represen-
tante de Deus na Terra, ele é o representante da Verdade.
Se a verdade só existe para a consciência individual, então
só o indivíduo conhece a verdade. Se só ele conhece a ver-
dade, só ele que pode julgar. Por outro lado, se ele já não
está fazendo isso mais como indivíduo, ele perdeu a sua
autoridade. Por isso é que eu sou contra a idéia do rei-
filósofo, do Platão; a partir da hora em que o filósofo se
tornasse rei, e baixasse as suas leis, aquilo que para ele foi
uma evidência apodíctica, ele transforma aquilo em lei e
legisla sobre todo mundo; ele já não está fazendo mais isto
na condição de filósofo e sim de rei. Portanto, não é a ver-
dade intuitiva que ele proclamou, e sim, o signo verbal de-
la, que só é evidente para ele, não é evidente para os ou-
tros. Então, o filósofo não pode ser rei, e o rei não pode ser
filósofo; ele pode ser um ex-filósofo, na melhor das hipóte-
ses.

[Aluno: sua crítica ao Gramsci é que ele propõe justamente
a verdade coletiva, não é? ]

O Gramsci só admite a verdade coletiva; o sujeito do co-
nhecimento, para ele, é a coletividade histórica; o que é de
um primarismo... é só você ver, por exemplo, o sujeito do
conhecimento é a classe; então se existe um sujeito essen-
cial do conhecimento — que é a classe — e existe um su-
jeito acidental, que são os indivíduos, então, acidentalmen-
51

te pode acontecer que o sujeito essencial apreenda a men-


sagem, e o acidental , não.
Há o sujeito primordial do aprendizado e um sujeito
secundário. Para mim o sujeito primordial é o indivíduo, e
secundariamente, a classe; mesmo porque a classe pode
mudar — entram e saem alunos. Por exemplo, eu dou uma
aula aqui e, um sujeito entende, os outros, não; então o in-
divíduo aprendeu, e a classe não aprendeu nada. Imagine a
hipótese contrária: a classe aprendeu, embora nenhum
dos alunos aprendesse nada! Isto é tão absurdo que não dá
nem para começar a raciocinar; só um cérebro doente, ali-
enado, que não tem consciência de si.
Então, se é assim, você pode pegar os seus escritos e
jogá-los todos fora, porque o sujeito que os escreveu é a
classe proletária, ela não precisa de Gramsci de maneira
alguma. Ele nega a si mesmo: se a classe proletária, para
saber de tudo isso aí, precisa ler os escritos de Gramsci, é
porque quem sabe disso é Gramsci e não a classe! Então
jogue tudo fora porque ela vai descobrir sozinha, melhor
do que você. Isso é o que se chama, em Retórica, de argu-
mento-suicida, é o argumento que se ele for válido ele nega
o próprio indivíduo que o defende. Por exemplo, um judeu
que fosse adepto do nazismo. Epicuro defendia que os pais
deviam abandonar os filhos; ele falou isto com o filósofo
estóico Epicteto, o qual respondeu: ²Eu acho que o seu pai
deveria ter praticado isso com você...²; assim como o abor-
to, eu também sou favorável ao aborto, sobretudo ao abor-
to de quem defende o aborto... se o princípio do aborto é
válido então aqueles que miraculosamente escaparam do
exercício deste direito, adquirem retroativamente um di-
52

reito sobre os outros? Por quê não o aborto a posteriori?


Poderíamos abortá-los agora mesmo... Se há uma coisa
que é logicamente indefensável é o aborto. O negócio é o
seguinte: o aborto é o direito de matar quem lhes incomo-
da. Como é mais fácil matar o pequenininho indefeso do
que o grande, você prefere isso.
Veja, entre a teoria e a prática existe um abismo, mas
nós somos este abismo — isto é importante; nós temos
as duas dimensões: dimensão contemplativa ( teoria ) e
dimensão prática. Você não precisa se preocupar por arti-
cular a teoria e a prática porque elas se articulam sozi-
nhas. O que você não pode fazer é levar a teoria à prática.
A teoria não se destina a ser levada à prática, ela se desti-
na a mostrar a você um conjunto de relações possíveis. Na
hora que você vai passar para a prática, você já passou pa-
ra outro plano. Por exemplo, um arquiteto vai conceber
um edifício; ele tem que conceber a estrutura completa do
edifício num único ato intuitivo. Agora, como é que ele vai
construir? Não é tijolo por tijolo?
É claro que você é remotamente guiado por aquela vi-
são do todo, mas o próprio procedimento da prática é in-
verso. O pessoal confunde teoria, prática e técnica.
A técnica é um intermediário entre a teoria e a prática.
A técnica é uma organização do conhecimento, mas não
um organização lógica; quando você passa da teoria para a
técnica você já perdeu o nexo lógico, porque o que unifica
os vários conhecimentos numa técnica é apenas a finali-
dade prática a que visa. Então, essa finalidade prática
exerce na técnica a mesma função coerenciadora que a ló-
gica exerce na teoria. Qual é o padrão de perfeição lógica?
53

É a coerência. Tire a coerência e coloque a funcionalidade:


você transformou a teoria numa técnica. Mas, daí, você
tem que dizer adeus à lógica, porque uma técnica pode ser
consituída de conhecimentos heterogêneos, conhecimen-
tos não-redutíveis a uma unidade teórica — e não é para
reduzir, porque se você tentar reduzir, aí que você vai in-
troduzir uma confusão miserável. Mas as pessoas imagi-
nam ingenuamente que você tem uma teoria e depois na
prática você vai fazer igualzinho, é claro que não. Inclusive
porque o mundo em que nós vivemos é composto de con-
tradições, às vezes para você obter uma coisa você tem
que fazer força no sentido contrário. Por exemplo, a mu-
lher que quer conquistar o sujeito, ela finge que não está
ligando para ele, ela mostra uma indiferença superior; Pa-
ra quê? Para afastar o sujeito? Não, é para atrair. Então, o
mundo é dialético. Herbert Spencer dava o seguinte exem-
plo: você pega uma placa de cobre que está torta e você
tenta desentortar; se você bate no lugar que está torto, fica
mais torto ainda; então você bate no lugar que não está
torto, daí ela indireita. No mundo tudo é assim, não pode
ter a passagem lógica da teoria para a prática, porque são
mundos incomensuráveis. O mundo da teoria é um mundo
considerado como um conjunto, como uma totalidade;
mas nós nunca vivemos na totalidade do mundo, nós vi-
vemos só num pedacinho e num momento. É claro que vo-
cê não pode dispensar a teoria, mas você não pode dispen-
sar, em primeiro lugar, porque a teoria ao invés dela visar
à prática, ela visa à sua conservação — este é que é o pon-
to. A teoria unifica os conhecimentos na alma do indiví-
duo, e isto permite que ele continue existindo, que ele te-
54

nha o domínio de si; a teoria visa ao domínio do indivíduo,


e não ao domínio da realidade. Para passar para a prática
você tem que introduzir um monte de incoerências, e a
prática vai ser geradora de novos problemas, novas ques-
tões, e daí você vai ter que teorizar de novo porque senão
você se desarticula. A imersão total do indivíduo na práti-
ca acaba por desorientá-lo, portanto ele tem que voltar
para a teoria; não para reorientar a prática, mas para reo-
rientar ele mesmo! A teoria e a prática são necessidades
legítimas, cada uma em si mesmas. Agora, quando você
começa, como Gramsci, Karl Marx, etc, etc, a querer teori-
zar a prática, ou praticizar a teoria, o resultado é o ²Arqui-
pélago Gulag²; essa idéia já é monstruosa em si, e tudo
aquilo que é monstruoso teoreticamente acaba sendo
monstruoso na prática também.

Voltando ao ponto: uma filosofia moral visa encontrar
os fundamentos universais da moralidade e fornecer ao
indivíduo pensante, consciente, os meios dele julgar as éti-
cas sociais, e criticá-las. Neste sentido, o filósofo pode
exercer, não uma função diretiva, porque para isso preci-
saria conceber a ética correta e implantá-la, passá-la à prá-
tica, só que ele não poderia fazer isso como filósofo, nem
como indivíduo auto-consciente, mas sim no exercício de
uma função pública; mas ele pode exercer como filósofo,
uma função crítica. Ele não pode criar uma nova moral,
mas ele pode exercer uma função crítica que, por assim
dizer, compense e equilibre os defeitos mais evidentes e
mais graves da moral vigente. Ele não pode inventar uma
moral totalmente nova, mas ele pode consertar um pou-
55

quinho a que está aí. Eu acho que a pretensão deve ser, no


máximo, essa aí.
Dentro deste curso eu não posso formar uma nova ética
brasileira, fazer um novo ²Movimento pela Ética², porque
daí eu seria um neo-Betinho; mas eu posso, num ponto ou
no outro: onde a incoerência desses movimentos viola, ul-
trapassa aquela quantidade natural e normal de incoerên-
cia que existe entre teoria e prática, e ela começa a entrar
numa incoerência suicida, que é uma incoerência interna
da própria prática e começa a visar a objetivos auto-
contraditórios. Haver uma certa incoerência entre teoria e
prática não tem problema, mas haver uma incoerência
dentro da própria prática é muito grave, porque você está
se esforçando por coisas contrárias e provavelmente não
vai obter nenhuma delas e, sim, vai obter uma terceira que
é o resultado indesejado das suas ações.
Esse resultado indesejado às vezes pode ser benéfico,
como nós vimos no caso da nossa própria campanha pela
ética. Se dissesse para os fundadores da campanha: como
resultado dessa campanha toda, daqui a cinco anos vai ser
eleito um tal de Fernando Henrique Cardoso, que não vai
falar de ética, vai falar de um tal de Plano Real, e tudo isso
vai ser esquecido; você quer isso? Claro que não ia que-
rer...
Na cabeça das pessoas, a eleição do Fernando Henrique
não é uma consequência da campanha pela ética, mas his-
toricamente, me parece o óbvio. Esse movimento não é a
única causa histórica — é o princípio de Max Weber, uma
causa vai operar mas ela vai cruzar com outras causas que
você nem tinha pensado. Nós poderíamos reduzir aqui a
56

duas: o povo está cansado da corrupção? Só na medida


onde disseram para ele que essa corrupção o prejudica
pessoalmente. A conexão lógica é muito remota, porque
se você somar tudo o que os corruptos roubaram e dividir
entre todos os brasileiros uniformemente, dava R$ 600,00
para cada um. Com esse dinheiro dá para você dar de en-
trada num barraco no Morro Dona Marta, e continuar pa-
gando por cinco anos..., quer dizer que o que foi roubado é
absolutamente insignificante.

[ Aluno: fizeram isso também com a dívida externa brasi-
leira... ]

A dívida externa é um negócio irreal, todo mundo sabe;
dívida externa não precisa pagar não. Quando o Dr. Delfim
dizia que ²dívida não se paga, se administra², ele sabia o
que estava falando. Por exemplo, a Inglaterra tem uma dí-
vida externa desde a revolução do Cronwell, e nem pensa
em pagá-la.
O capitalismo é dívida; as pessoas não entenderam ain-
da. Tudo se faz com dívida. O capitalismo tem isso de geni-
al: ele consegue fazer a falta de dinheiro funcionar como
um capital; se não fosse isso não existiria capitalismo.
A diferença entre capitalismo e feudalismo é que no
feudalismo a riqueza material é a propriedade da terra e
do que está nela; o capitalismo inventou a riqueza irreal,
quer dizer, a riqueza puramente lógica, só tem existência
lógica, não tem riqueza material, e por isso mesmo que
funcionou. O capitalismo não é materialista, ele é total-
mente idealista, a riqueza é puramente ideal.
57

O papel é um documento que lhe assegura um direito


teórico que você teria a um dinheiro que você jamais vai
ver na sua mão, mas que vai te dar uma série de possibili-
dades de você fazer a mesma coisa com outras pessoas.
O capitalismo é o engano universal, é a trapaça univer-
sal, mas que de fato enriqueceu muito a humanidade no
seu todo, embora ele tenha criado níveis de miséria sur-
preendentes.
A mim me parece que a economia feudal era mais raci-
onal e mais sensata, pelo menos não havia tanta miséria e
não havia tanta diferença, porque a diferença entre um
sujeito pobre e um rico era um diferença humanamente
concebível: o rico tinha um castelo, um monte de cavalos,
era uma coisa que dava para você contar, dava para você
ver. E o dinheiro do Daniel Ludwig, onde vai parar isso aí?
Além disso, ele é avaliável? Não é, ele não exerce poder
somente sobre um patrimônio de x, ele exerce poder sobre
muito mais!
Então, o homem conseguiu inventar a riqueza imensu-
rável, e transportou essas pessoas a uma esfera realmente
divina. Nós hoje entendemos que a simples posse de di-
nheiro pode dar a uma pessoa direitos que você não reco-
nhece a nenhum ser humano. O Michael Jackson não pode
transar com os menininhos e depois pagar uma grana para
o pai? Veja se em qualquer outra civilização uma ofensa
dessas poderia ser paga em dinheiro? Isto é inconcebível
para toda a humanidade; é um crime hediondo, mas, com
grana no bolso, o crime hediondo se torna, de certo modo,
até ²elegante²...
58

Quer dizer, o sujeito ter dinheiro no bolso acaba dando


a ele certas possibilidades de ação que escapam do que é
humanamente concebível a uns séculos atrás. Então, nós
conseguimos criar uma casta de deuses. E se vier o socia-
lismo?
Bom, a forma de riqueza do capitalismo é mais abstrata
e transportável do que a riqueza feudal, que era a terra.
Mas a forma de riqueza do socialismo, que é a influência
política, esta é mais transportável ainda, porque é total-
mente mágica, e não tem nem jeito de você contabilizá-la.
Como é que você faz para saber o quanto de prestígio o
sujeito tem no Comitê Central? Nem toda a matemática do
mundo pode quantificar uma coisa dessas. Também é um
bem que pode ser suprimido de repente sem que você sai-
ba! Foi o que aconteceu com os fundadores da revolução
socialista, o sujeito tinha um prestígio imenso e, de repen-
te, ele não tinha mais nenhum. Então é uma moeda mais
evanescente ainda, e isto que permite que um certo grupo
cometa monstruosidades imensas sem problema nenhum.
O capitalismo é monstruoso, mas o socialismo conse-
guiu ser mais; daí a conta que eu sempre faço que, soman-
do as vítimas de duas guerras mundiais, vítimas da AIDS,
de desastres aéreos, de terremotos, de doenças cardíacas e
de desastres de trânsitos durante o século XX, não chega à
metade das vítimas do socialismo. Então qual foi o grande
flagelo do século XX? É o socialismo, é claro! Mas tem gen-
te que diz que foi apenas um erro acidental, um erro de
percurso, ²vamos tentar outra vez...²; eu digo, não, pelo
amor de Deus! ²Ah, mas agora nós vamos fazer democra-
cia...², mas se esse treco for democrático vai ser pior ainda;
59

já pensou você fazer todas essas atrocidades, mas com a


aprovação de todo mundo? Você não poderia nem jogar a
culpa no Stálin...

[ Aluno: no final do seu livro ²A Nova Era e a Revolução
Cultural², você deixa uma ponta de esperança de votar no
Lula...]

O partido do Lula era um partido trabalhista como
qualquer outro. É evidente que esse liberalismo só é
aguentável na medida onde você tem um forte movimento
trabalhista ou socialista, que segura o excesso dele. Do
mesmo modo, só dá para aguentar esses socialistas por-
que, graças a Deus, nós estamos num regime capitalista.
Eu acho que o segredo é segurar essas duas forças e deixar
que elas vão competindo, alternando; se perguntarem qual
é a minha política, eu não sei, eu sou um “vira-casaca rota-
tivo” por convicção: às vezes eu voto na esquerda, às vezes
eu voto na direita. Eu não sou um sujeito doutrinário, eu
tento votar naquilo que é bom, não no que é bom teorica-
mente, mas no que é bom naquele momento.
Eu acho que hoje em dia a esperança do Brasil reside na
direita, assim como residia na esquerda a uns tempos
atrás, e pode virar amanhã ou depois. Somente quem fazia
alguma coisa para desmontar aquela ditadura era o pesso-
al da esquerda; se bem que quem acabou fazendo a coisa
decisiva não foram eles. Durante vinte anos só votei em
gente da esquerda e acho que fiz muito bem, embora ti-
vesse muito sujeito que não prestasse. Mesmo depois de
sair do Partido Comunista, eu perguntava para eles em
60

quem era para votar? Era importante fortalecer aqueles


sujeitos naquele momento.

[ Aluno: mas a esquerda nunca chegou ao poder exata-
mente... ]

A esquerda está no poder desde o fim da ditadura. É
que o pessoal não faz as contas; o nome da esquerda muda
e o pessoal pensa que agora é direita. Ora, faça a lista dos
ministros que teve desde o tempo do Sarney, pelo menos
metade deles eram ex-guerrilheiros, gente comprometida
até o pescoço. Por exemplo, o pessoal que governa São
Paulo é todo de esquerda. É que as pessoas acham ingenu-
amente que a coisa só está na mão da esquerda na hora
que mudar radicalmente. Eu digo, não, aqui eles acham
que eles são muito diferentes dos outros, mas não são, en-
tão eles chegam ao poder e não muda nada. Só que eles
não tiram conclusão nenhuma disso aí.
As pessoas não entendem como é que se forma um re-
gime comunista; as pessoas acham que o Lula vai estatizar
tudo... mas só se for louco, nem Lênin fez uma coisa des-
sas, não é assim que se faz o comunismo.
Todo esse nosso debate está muito centrado em torno
de certos estereótipos bocós, que não correspondem abso-
lutamente a nada; até esse negócio de estatização versus
privatização não significa absolutamente nada . Se o pró-
prio Lula subisse lá ele ia ter que seguir um programa de
privatização, talvez muito mais acelerado do que está ago-
ra; qualquer um teria que fazer isso. Qual é a resistência
que se oferece a isso? Não é uma resistência ideológica, é o
61

próprio corporativismo; se 60% da economia brasileira


está na mão do Estado, como é que você vai entregar de
repente? É quase impossível. Não precisa ter nem mesmo
uma resistência deliberada, é a própria complexidade da
coisa. Como é que você faz para desmontar esses comple-
xos imensos da burocracia? Ninguém vai fazer isso do dia
para a noite, então tanto faz.
Veja, a chamada revolução de 64 não feita para defen-
der a iniciativa privada? Esse era o discurso deles, eles
eram privatistas. Foram os que mais estatizaram, porque
eles foram levados pela própria mecânica do Estado. Na
hora em que eles baixaram a repressão, calaram a boca de
todo mundo, eles eliminaram as próprias forças sociais
que poderiam ajudá-los, e eles ficaram na mão da burocra-
cia estatal. Sobrou o quê? Milico e burocracia; então a bu-
rocracia vai ganhar... porque você não pode pegar todos os
oficiais do Exército e colocar na burocracia. Então os mili-
cos vão ficar sempre em minoria, e o Estado vai ²comê-
los² e eles vão fazer exatamente o que a burocracia quer
que façam. Eles precisariam ter um movimento civil,
mesmo que fosse um movimento de esquerda, para eles
terem alguma retaguarda política; mas não tinham... Tanto
não tinham retaguarda política que até hoje as pessoas fa-
lam mal deles, e falam mal em coisas absolutamente injus-
tas porque, por exemplo, a taxa de miseráveis era de 47%
em 1964, e quando saiu o Geisel era de 23%; foi o governo
que mais fez pelos miseráveis, nem Getúlio Vargas fez isto.
Quando é que isto vai ser reconhecido? Bom, vai ser reco-
nhecido quando o ressentimento da classe intelectual com
a ditadura acabar. Assim como, hoje em dia, nós podemos
62

ter uma visão mais justa do Vargas, porque ele também fez
o bem para milhões de pessoas e fez mal para meia dúzia
de importantes, esse é que é o problema; por exemplo, por
quê o Hitler foi tão odiado no mundo? Ele inventou de
perseguir logo os judeus; cada judeu tinha dez parentes
fora da Alemanha, e estes parentes tinham jornais, esta-
ções de rádio, etc, e logo o prestígio do cara foi para as cu-
cuias. Enquanto ele estava matando ciganos ninguém falou
nada, daí foi mexer em gente importante... Na União Sovié-
tica foi a mesma coisa; Stálin matou ucranianos e ninguém
falava nada; levaram muito mais tempo para perceber as
atrocidades do Stálin do que a do Hitler, e na verdade só
perceberam depois que o cara parou.
Os milicos aqui somente pisaram no calo da intelectua-
lidade, e de uma certa área da classe política. Então eles
nos parecem horríveis, mas visto só do ponto-de-vista
dessa classe. Eu acho ridículo atribuir tanta monstruosi-
dade a um regime que durante 20 anos matou 200 pesso-
as. Isso é efeito do ressentimento, você tem que aumentar
o tamanho do seu inimigo para não mostrar o tamanho da
sua covardia. Inclusive esse movimento militar daria para
ter sido parado no primeiro dia se tivesse seguido o Brizo-
la; por mais louco que seja o Brizola nós temos que reco-
nhecer que ele parou um movimento militar e ia parar ou-
tro, só que esses mesmos caras que sonegaram apoio a ele,
depois ficaram 20 anos pregando luta armada. Naquela
hora eles abdicaram da luta armada e depois eles quise-
ram comprar umas armas no exterior para fazer guerrilha
na Amazônia — mas, você está maluco? Se você abdicou
ali, daí você vai ter que esperar. Então a estratégia certa
63

era do velho Partido Comunista: tem que ser pacífica e por


vias políticas. Você vai levar 30 anos para fazer uma coisa
que podia ter feito em 3 dias...
Eu acho que as pessoas que fazem isso demonstram a
sua total cegueira política, e pior, não assumem a respon-
sabilidade histórica da sua omissão. Eu mesmo participei
da ala do Marighella e nunca me lembrei de fazer essa
pergunta: por quê vocês não apoiaram o Brizola quando
ele falou? A resposta seria: nós não apoiamos o Brizola
porque senão ia subir ele e não nós. Então quer dizer que
para não subir ele vocês entregaram isto aqui na mão dos
milicos durante 20 anos e agora querem que a gente vá
dar a nossa vida numa guerrilha?! Numa hora dessas não
importa quem vai subir no poder, importa é que tem um
golpe militar e que tem que pará-lo de qualquer jeito. Aí
você faz aliança com todo mundo.
Mas, comunista sempre foi assim, ele prega a democra-
cia em certos momentos — quando interessa para ele. Na
Espanha foi a mesmíssima coisa, ao invés de haver uma
união para parar o Francisco Franco, ao contrário, eu acho
que havia mais combate entre comunistas e anarquistas
do que contra o Franco. Não interessava aos comunistas
parar o Franco, interessava eles tomarem o poder — parar
o Franco é só uma etapa. Resultado, o Franco ficou lá 30
anos. Hoje, depois que eu vi o que é o comunismo, eu acho
o Franco um grande homem. Pensa bem, se não tivesse
tido aquela guerra toda a Espanha seria comunista; ²Ah,
mas o Franco matou um monte de pessoas...², ora, faça a
conta! Se é questão de número de mortos, o Franco perde
evidentemente! Pelo princípio do mal menor, o quê que
64

você prefere, um vampiro ou um capeta? Eu prefiro o


vampiro, pelo menos o vampiro dorme de dia e só traba-
lha à noite...

[ Retornando ao tema da ética ]

Só pode aspirar a uma validade universal, ou seja, subir
à esfera de poder fazer um julgamento moral o indivíduo,
contanto que deste julgamento moral não resulte uma
sentença a ser aplicada efetivamente na prática sobre as
pessoas.
Deus é sábio, ele dá o conhecimento a quem não pode
aplicá-lo, porque se pudesse seria um horror. Eu não vejo
idéia mais monstruosa do que essa do rei-filósofo, porque
todos os tiranos foram reis-filósofos; Hitler era um rei-
filósofo, cheio de doutrina na cabeça; Stálin, outro cheio de
doutrina na cabeça. Se fossem pessoas pragmáticas e to-
talmente sem caráter — como Roosevelt — não teriam
feito nenhum mal a ninguém. Roosevelt não tinha nem
uma única convicção pessoal, então ele deixava as pessoas
terem as que quisessem. É claro que é melhor um gover-
nante assim. Por isto votei em Fernando Henrique.
O filósofo exerce uma função crítica e para cortar ex-
cessos, só. É uma espécie de fiscalização. Mas não é que ele
vá inventar uma outra ética social para corrigir o mundo,
mas somente manter as coisas dentro de certos limites
que não violem a integridade da consciência humana.
A ética social tem que legislar sobre muita coisa e o in-
divíduo humano pode conhecer a verdade absoluta mas só
sobre pouca coisa; então evidentemente ele pode procla-
65

mar aquilo e pode reclamar. Mas, se ele tentar extender,


partindo desta evidência ele tentar criar um sistema que
regule, daí ele não consegue.
Por isto mesmo quando nós fazemos este tipo de coisa
nós não estamos tentando fazer uma oposição ao movi-
mento da ética, mas esclarecer certos absurdos para que
as pessoas possam ter um julgamento verdadeiro da coisa,
e eventualmente, aconselhar os que estão muito entusi-
asmados com a ética a não irem com tanta sede ao pote.
Na verdade, nós nem precisamos aconselhar porque a
própria Providência Divina já se encarregou de aconselhar
as pessoas e dirigi-las neste sentido. Eu acho que a eleição
do Fernando Henrique é um exemplo disto.

















66





CURSO DE ÉTICA


Aula do dia 11 de outubro de 1994
( sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )


Nós começamos com a segunda parte que seria a Ética,
ou filosofia Moral propriamente dita. Hoje nós vamos situ-
ar isso aí no quadro dos vários tipos de códigos de condu-
ta possíveis.

O uso corrente da palavra ética subentende que todo
mundo sabe mais ou menos do que se trata. Se voce per-
guntar para qualquer pessoa o quê é ética, o sujeito vai di-
zer que ética é voce proceder corretamente, é voce não
meter a mão no bolso dos outros, sobretudo no dinheiro
público, e vai supor que é uma idéia muito óbvia que não
necessita de maiores interrogações. No entanto, se nós fi-
zermos duas ou três perguntas voce vai ver que a idéia é
bastante problemática.
Primeiro nós vamos ter que perguntar o seguinte: se
ética consiste apenas nisso, ética quer dizer então ²cum-
prir as leis², então a ética, nesse caso, significa apenas o
²direito²; se voce não viola flagrantemente nenhuma lei
que está escrita, então voce está procedendo eticamente.
67

Será que é isto o que o sujeito quer dizer? Ele vai dizer,
²Não, não é bem isso porque eu estou supondo alguma
coisa a mais; tem muitas coisas que não são criminosas
mas que são anti-éticas, que as pessoas não devem fazer².
Por exemplo, absolutamente nada impede que um sujeito
se prevaleça do fato de ocupar um cargo público para falar
de si mesmo o tempo todo; atribuir a si mesmo todos os
méritos da repartição que ele preside, ou do ministério
que ele dirige, etc, etc, ele pode se auto-promover o tempo
todo; não há uma lei contra a auto-promoção. Então, as
pessoas diriam que isso aí não é criminoso, mas é anti-
ético. Se isso aí é anti-ético então o que voce quer dizer
com ética é algo mais profundo, mais exigente do que o
mero cumprimento das leis. O quê que é esse ²algo mais²?
Aí o nosso interlocutor mostraria a sua total incapacidade
de explicar do quê se trata. Ele sabe que a exigência ética
vai um pouquinho além das leis mas ele não sabe definir
exatamente no quê consiste este ²pouquinho². Só por isso
nós já vemos que a idéia de ética é um pouco nebulosa.
Pelo fato de ser uma idéia nebulosa nós também pode-
ríamos perguntar: mas voce acha lícito, ético, voce cobrar
certos comportamentos das pessoas e, eventualmente,
acusá-las em público, caso elas não cumpram uma norma
nebulosa? Em que medida uma norma nebulosa pode exi-
gir um cumprimento claro e distinto? Se nós não sabemos
exatamente nem mesmo o quê que é ética, e quais são as
exigências éticas que estão vigentes, como é que nós pode-
ríamos cumpri-las, ou seja, como voce pode cumprir com
exatidão uma norma inexata e confusa?
68

Examinando esse conceito de ética nós vemos que por


um lado ele se distingue das leis ou das normas jurídicas.
Por outro lado, nós podemos perguntar: o comportamento
ético de que voces falam, exige da parte do sujeito uma
boa intenção interior? Por exemplo, se um governante
cumpre todas as leis e procede eticamente em todas as
coisas, mas ele visa exclusivamente em tudo o seu próprio
benefício — ele só não rouba porque isto pode trazer risco
—, ele está procedendo eticamente? Aí então o nosso in-
terlocutor também já não saberia o que dizer, mas nós
vemos que aí está implícito a idéia de que o conceito de
ética também se distingue de uma moral interior. Então, o
que se quer dizer com ética não se identifica, nem com as
leis, as normas jurídicas, e nem por exemplo com os Man-
damentos de Deus, que são mandamentos de ordem inte-
rior. Voce vê que os dois primeiros mandamentos do decá-
logo não se referem a atos, mas se referem a intenções;
quando ele diz, ²Amar a Deus sobre todas as coisas², então
o quê que eu preciso fazer para esse Deus? Eu devo man-
dar flores para ele todo dia? Como é que eu devo manifes-
tar este amor? Voce vê que a própria pergunta não tem
cabimento... um mandamento se refere a uma atitude. Co-
mo é que nós vamos saber se um sujeito ama a Deus ou
não? Não vamos saber, jamais saberemos isto, só Deus é
quem sabe se ele é amado ou abominado por este sujeito,
ou se ele lhe é simplesmente indiferente. Portanto, este é
um mandamento que se refere à vida interior.
O segundo mandamento, mesmíssima coisa: ²Ama teu
próximo como a ti mesmo²; quanto que eu me amo a mim
mesmo? Quanto e como, só eu mesmo sei. Eu mesmo acho
69

que nunca cumpri este mandamento porque eu nunca gos-


tei muito da minha pessoa; várias vezes eu me perguntei
qual é a razão suficiente da minha existência neste mundo.
Se eu posso pensar isso a meu próprio respeito, muito pior
ainda pensarei dos outros, e, pior ainda, eu acho que todo
mundo pensa como eu também. Dificilmente nós encon-
traremos uma pessoa que tenha realmente algum amor
por si mesmo. O amor por uma pessoa implica que voce
goste dela como ela é e como ela está, e no caso extremo
de um amor muito intenso, implica uma certa visão da
perfeição do outro, achar que o outro é imelhorável. Como
é que eu poderia dizer isto de mim mesmo? Voce diz isto
porque voce está vendo a pessoa só por fora, se ver os
pensamentos dela... então, nesse caso, parece que é mais
fácil voce gostar de um outro do que de voce mesmo. Mais
ainda, por quê que as pessoas buscam o amor umas das
outras? É simples, porque elas não se suportam; nós preci-
samos de alguém que diga para nós que nós somos baca-
nas, bonzinhos, etc, porque se ninguém disser isso nós não
acreditamos. Isso aí só para mostrar como este manda-
mento interior é complexo.
Se ele é complexo, Deus que não é nenhum idiota, não
nasceu ontem, sabe que voce não vai cumprir, nem o pri-
meiro mandamento, nem o segundo. Portanto, o espírito
destas normas não é que voce as cumpra, mas de que voce
as tome como um parâmetro, um modelo de perfeição pe-
lo qual voce mede o estado em que voce está. É mais ou
menos como um termômetro; ele tem uma gradação que
vai de 0o até, digamos, 95o; isto não quer dizer que voce
jamais vá ter 95o de febre e nem vai ter temperatura zero;
70

aquilo é uma escala para voce simplesmente saber quanto


voce está, e voce vai oscilar entre mais ou menos 35o e 41o
e não vai passar disso, porque se for para baixo ou para
cima voce morre.
Então, entre a total rejeição de Deus e o extremo amor a
Deus, nós não vamos ficar nem num nem noutro; ninguém
rejeita completamente Deus, e nem ninguém o ama des-
vairadamente. Essas duas coisas parecem ser impossíveis
para o homem. Por exemplo, nós podemos odiar comple-
tamente a Deus? Não, porque para odiá-lo nós temos que
reconhecer que Ele existe; se nós odiamos nós não pode-
mos sequer ser ateus. Se voce for ateu e falar mal de Deus,
então voce está falando mal de um treco que não existe. O
próprio ódio a Deus representaria um reconhecimento da
Sua existência, e já livrou o sujeito do ateísmo.
Por outro lado, se voce decretasse que Deus inexiste
completamente, se voce é um ateu perfeito, então voce não
pode ter ódio. Quer dizer que um perfeito inimigo de Deus
não existe, nem mesmo o capeta é um perfeito inimigo de
Deus.
Então, no ponto mais baixo do amor a Deus nós não po-
demos chegar; no ponto mais alto, só se voce virar Deus,
daí voce vai gostar Dele tanto quanto Ele gosta de si mes-
mo — até isso também não dá. Então voce vê que esta
primeira norma é utópica, que nos ultrapassa para baixo e
para cima. Basta isso para voce entender que esta não é
uma norma de obediência obrigatória, por incrível que pa-
reça. O primeiro mandamento que Deus deu já não é obri-
gatório; obrigatória é uma norma explícita que tem uma
medida clara que distingue o seu cumprimento do seu
71

não-cumprimento. Por exemplo, se numa escola, o profes-


sor manda voce fazer uma lição de casa, se voce não faz,
voce sabe que voce não cumpriu aquela ordem, não existe
nenhuma ambiguidade nisso aí. Mas, a norma de amar a
Deus sobre todas as coisas tem, não apenas uma, mas uma
infinidade de ambiguidades. Portanto, ela é o que nós po-
demos chamar uma norma idealística, que se destina a
funcionar para voce como um parâmetro de perfeição
possível.
Porém, enquanto parâmetro de perfeição ela é dada
como obrigatória — veja que coisa sutil. Esta norma não
pode ser obrigatória no seu conteúdo literal porque não
sabemos precisamente o quê é amar a Deus — porque
Deus também não nos disse. Por outro lado, se ela não é
literalmente para ser cumprida, mas se ela é apenas um
parâmetro de perfeição, este parâmetro também não é só
para seu autoconhecimento, ou só para constar, mas ele se
coloca como uma obrigação, ou seja, o sentido do primeiro
mandamento é: voce tem a obrigação estrita de procurar
saber o quê é amar a Deus e tender nesta direção na medi-
da em que voce o compreenda. Veja que esta norma não
tem um sentido estático como tem, por exemplo, a do sinal
de trânsito: quando aparece o vermelho quer dizer que
não é para voce ultrapassar, é para voce parar; não existe
gradação. Mas, o primeiro mandamento coloca para voce
um ideal inatingível, estabelecendo ao mesmo tempo que
voce deve tender na direção daquele ideal — isto é o que
nós chamamos de norma ideal.
Do mesmo modo, o amor ao próximo; a noção de amar
ao próximo como a ti mesmo, pode tanto corrigir, median-
72

te um exame, uma reflexão à tua conduta, vendo que voce


exigiu do próximo o que voce não seria capaz de cumprir,
como por exemplo em geral muitas mães fazem com os
filhos. Todas as mães que eu conheço exigem dos filhos
coisas que elas jamais poderiam fazer, por exemplo, ²Sen-
te aí e fique quieto!², ora, voce já viu uma mulher sentar e
ficar quieta? Não, então ela não pode, mas a criança de três
aninhos pode... Quando voce exige do outro o que voce não
pode cumprir, voce está descumprindo o segundo man-
damento, porque voce não está sendo igual e justo.
Por outro lado, voce pode também corrigir, por esta
conduta, o ódio, o desprezo, a rejeição que voce tem de si
mesmo. Veja, os depressivos não amam? Amam, e isto
quer dizer que eles gostam dos outros mais do que gostam
de si. O fato do sujeito depressivo ter uma namorada é
porque ele gosta dela; se ele conseguisse se ver a si mes-
mo durante um minuto com os olhos com que ele a vê, ele
veria que ele está sendo injusto consigo mesmo.
Então, tentar se ver — não se ver com os olhos dos ou-
tros porque na verdade é quase impossível —, mas se ver
com os mesmos olhos seus com que voce vê os outros,
pode ser uma maneira de voce corrigir a sua conduta para
com o outro, ou corrigir a sua imagem e as suas relações
com voce mesmo.
Aí também não existe uma medida exata que distinga o
quê é a obediência, da desobediência — esta aqui é tam-
bém uma norma ideal.
Se nós vamos mais adiante nos Mandamentos nós va-
mos encontrar alguns que são bastante claros e que se re-
ferem a condutas. Por exemplo, ²Não prestar falso teste-
73

munho²; não existe a menor dúvida quanto ao que seja is-


to. Então voce vê que os Dez Mandamentos começam com
duas normas ideais e se prolongam, como que numa gra-
dação, que vai indo para desde a norma ideal até a norma
material explícita.
É claro que as interpretações que se dão correntemente
a isto são terrivelmente inexatas, na quase totalidade dos
casos; eu acho que o que é mais mal interpretado, geral-
mente pelo povão, e que eu nunca vi explicado de uma
maneira correta — nem em livro de teologia — é o famoso
²Não cobiçar a mulher do próximo². O quê é isso, é não de-
sejá-la? Ora, o desejo é um movimento espontâneo instin-
tivo, que aparece na sua cabeça sem que voce possa fazer
nada contra. Por outro lado, o quê significa esta palavra, ²a
cobiça², ou a concupiscência? Existe uma diferença muito
grande entre desejar uma coisa e cobiçá-la; o desejo é me-
ramente passivo e reativo, é uma coisa que aparece em
voce, ao passo que a cobiça implica um trabalho intelectu-
al, por assim dizer, de ²bolar² esquemas para obter o que
voce quer. A cobiça começa no instante em que o desejo se
intelectualiza, se torna autoconsciente e onde voce começa
a fazer esquemas para obter aquilo que voce quer. Se Deus
tivesse escrito ²Não desejar a mulher do próximo², seria a
hora de fechar a Bíblia e dizer adeus, porque Ele estaria
querendo o impossível. A mulher, casou, ela não muda de
status, não muda de aparência, então não há sinais biológi-
cos visíveis do estatuto de mulher casada. Se dissesse que
a mulher, quando casa, no mesmo instante ela pára de
emitir as feromonas que pudessem atrair outros machos,
então a natureza teria corrigido biologicamente esse pro-
74

blema e, aliás, ele nem existiria. Mas, ela casa, e os fero-


monas continuam voando para tudo quanto é lado e con-
tinuam atraindo quem não deve. Então, desejar a mulher
do próximo é natural, normal, mas desejá-la é uma coisa e
cobiçá-la é outra. Quer dizer que existe uma passagem de
nível aí. Na verdade eu já procurei alguma explicação disto
e nunca achei qual seria a diferença entre o desejo e a co-
biça.
De qualquer modo, os oito mandamentos restantes são,
em geral, mais claros do que os dois primeiros, e Jesus
Cristo, para complicar ainda mais a coisa, diz somente es-
ses dois são essenciais, ou seja, não precisava ter dez, bas-
tava ter os dois primeiros. Ele diz que quem cumprir estes
dois primeiros mandamentos, cumpriu toda a lei. Então,
para não ter que decorar os 10 Mandamentos, voce vai de-
corar só os dois primeiros e cumpri-los, e se voce pensa
que aí a coisa simplifica, ela complicou formidavelmente
porque se trata de normas ideais que ninguém no mundo
pode dizer se voce está cumprindo ou não, e às vezes nem
voce pode.
A norma ideal atua sobre o indivíduo de uma maneira
diferente do que atua a norma explícita, a norma material.
A norma material regula a sua conduta de uma maneira
verificável, por exemplo, ²Não prestar falso testemunho²,
então voce acusou um sujeito de uma coisa que voce não
sabe, ou de uma coisa que ele não fez, isso aí é fácil de per-
ceber se o indivíduo agiu assim ou não; mas, ²Ama teu
próximo como a ti mesmo², não dá para ninguém conferir,
e voce mesmo ficará em dúvida; portanto esta norma age
no indivíduo de uma maneira dinâmica, ela age como um
75

anzol que te puxa para a frente; ela age como um pólo de


atração ao qual voce tende; isto aqui é o característico de
todas as morais interiores, não existe nenhuma moral inte-
rior que possa ser constituída de normas materiais —
²norma material², não no sentido do Kant; quando eu digo
norma material é no sentido de norma explícita, a norma
que proíbe um determinado tipo de ato, ou determina este
tipo de ato.
As normas ideais não determinam ato nenhum, elas de-
terminam idealmente o conjunto da conduta, interna e ex-
terna, para uma certa direção que jamais será atingida. O
característico de morais interiores é que são sempre com-
postas de normas ideais. A palavra ideo significa imagem,
como uma imagem celeste que te atrai e em cuja direção
voce vai, mas voce não vai atingi-la materialmente, só ide-
almente.
A norma ideal tem uma função atrativa e dinâmica, e
ela não pode funcionar para o julgamento da sua conduta;
é muito difícil julgar a conduta a partir da norma ideal, so-
bretudo julgá-la de fora. Isso significa que a norma ideal
funciona dentro da psique de uma maneira — por assim
dizer — hormonal, ela procura um certo movimento numa
certa direção. Quanto mais voce meditar essa norma e
quanto mais voce quiser cumpri-la, parece que ela remexe,
revivifica toda a vida psíquica. Por exemplo, se voce conti-
nuamente tiver em vista o segundo mandamento, voce ve-
rá que gradativamente os seus atos e os seus julgamentos
adquirirão uma certa inteligibilidade maior, porque voce
se acostuma a olhar as coisas desde dois pontos-de-vista, o
seu e o do outro. Também, gradativamente, voce vai per-
76

cebendo que aquelas zonas que existem dentro de voce e


que lhe parecem tão íntimas e tão inacessíveis a todos os
olhares externos, na verdade são iguaizinhas às que têm
dentro do outro; voce vai vendo que voce não é tão oculto
quanto parece. Então, uma certa ilusão do isolamento da
nossa psique, ela vai se dissipando; voce vai vendo que to-
dos aqueles segredos e crimes que voce esconde, que voce
não ousa contar para ninguém, todos têm um igualzinho, e
às vezes até materialmente o mesmo.
A prática contínua desse segundo mandamento eu acho
que é uma condição sine qua non para qualquer conheci-
mento de ordem psicológica. Se eu parto do princípio de
que existe uma diferença específica entre eu e o outro, eu
não vou entender o outro nunca. Só é possível voce chegar
a alguma compreensão do outro partindo do princípio de
uma similitude essencial, e de que as diferenças que exis-
tem entre voce e uma outra pessoa são acidentais. Se são
acidentais elas poderiam ser explicadas e ser — por assim
dizer — neutralizadas, por um simples jogo de propor-
ções: sabendo que voce é essencialmente idêntico a uma
outra pessoa, voce pode comparar, por exemplo, a educa-
ção que voce teve, com a que o outro teve; a sua idade,
com a idade do outro; a sua conformação anatômica e fisi-
ológica, com a do outro; e assim por diante. Voce pode es-
tabelecer as comparações e diferenças secundárias porque
voce atinou com a identidade essencial, senão não seria
possível a comparação. Quer dizer que qualquer possibili-
dade de conhecimento da psique alheia voce funda eviden-
temente no segundo mandamento. Como esse conheci-
mento também é inesgotável, então nós vemos que o ideal
77

a que tende o segundo mandamento também é inesgotá-


vel, ou seja, não há limites, voce não pode dizer ²Agora eu
já amo o próximo...². O próprio fato de voce já dizer isto,
de voce já estar satisfeito com a cota de amor ao próximo
que voce tem, já seria um descumprimento porque voce
diria isto mas não diria ²Eu já estou de saco cheio de ser
amado pelo próximo, não quero mais...²; se voce chegou a
este ponto voce tem que admitir que os outros também
podem chegar. Voce afirmar que já cumpriu o segundo
mandamento é auto-contraditório, e toda norma ideal tem
esta característica, voce nunca pode dizer que a cumpriu;
voce está sempre, por definição, abaixo dela porque ela
não funciona como uma balança, com dois pratos no mes-
mo nível, mas ela funciona como um anzol que te puxa pa-
ra cima.
Por outro lado, se essas normas são assim, vamos ver
no outro extremo, como é que funciona a norma jurídica.
Dá a impressão que é exatamente o contrário, porque a
norma jurídica é material, explícita, ela proíbe claramente
alguma coisa, ou determina claramente também alguma
coisa. Se voce pegar o Código Penal voce vai ver que ele é
constituído de uma série de retratos típicos de condutas
consideradas ilícitas; não é possível o Código Penal des-
crever crime por crime, ele só pode descrever tipos de
condutas criminosas. Portanto, este elemento de tipicidade
é muitíssimo importante.
Mas na hora onde nós dizemos isto, nós já vemos que a
coisa complicou, porque se o Código Penal não descreve
crimes, mas tipos de crimes, ele está descrevendo meras
idéias, e não condutas reais. Então, nós podemos chegar
78

aqui à seguinte e estarrecedora conclusão: será que as leis


que estão no Código Penal também são meras figuras ide-
ais que não se destinam a serem cumpridas? Que estão aí
somente para nos mostrar uma direção a que nós deverí-
amos tender? A resposta é sim; as leis, por definição, não
se destinam a serem aplicadas — isto é fundamental. Por
quê que isto é assim? Eu sei que parece uma coisa escan-
dalosa o que eu estou dizendo, mas a análise fria do pro-
blema nos leva exatamente a esta conclusão.
Uma lei é uma ordem genérica, dada a toda uma comu-
nidade humana simultaneamente. Sendo assim, nós não
podemos dizer a cada um quais as condutas reais e con-
cretas que ele deve evitar. Nós só podemos esquematizar
figuras típicas de atos possíveis, supondo-se que estes atos
não foram cometidos ainda. No momento em que se baixa
uma lei, e que se proíbe uma determinada conduta — co-
mo a posse sexual mediante fraude — voce pegou um es-
quema de conduta típica e disse, ²Doravante, quaisquer
atos humanos que estejam para esta conduta, tal como a
espécie está para o gênero, são criminosos.² Então, existe
um gênero, ou tipo de conduta do qual as várias condutas
reais estão para ele, como a espécie está para o gênero; ou
como os exemplares estão para a espécie.
Aí é que surge realmente o maior problema, é saber se
uma conduta, esta conduta...

[ troca de fitas — uma parte dos comentários se perdeu ]

A expressão ²estar enquadrado² significa que existe
uma imensa margem de erro, porque nenhuma conduta
79

humana, nenhuma coincidirá jamais perfeitamente com o


tipo, ou seja, o crime é uma abstração, ele não é uma reali-
dade. Mais ainda, se o crime é uma abstração, a lei criminal
só visa, dentro da conduta do indivíduo, não a sua globali-
dade, mas uma certa semelhança que este ato pode ter
com outros atos. Por exemplo, se o P.C. Farias vai para a
cadeia é porque em certos momentos, certos aspectos da
conduta dele coincidiram esquematicamente com certos
aspectos de outras condutas, as quais na sua globalidade
formam o tipo da conduta criminosa.
É o instante, é a interseção; quer dizer, a sua conduta é
criminosa se existe uma interseção — nunca uma perti-
nência completa — entre ela e um tipo abstrato de condu-
ta denominada ilícito, ou criminoso. Basta isso para voce
ver que a tipificação do crime, sendo uma das operações
mais difíceis, porque todos os problemas da teoria do co-
nhecimento entram aí novamente, para voce tipificar uma
conduta, saber se ela é criminosa ou não, nesta operação,
voce já está subentendendo que um ser real, uma conduta
real, um ato real humano, coincide suficientemente com
um determinado tipo.
Mas existe, além disso, um segundo problema: quando
voce delineia as condutas típicas, não se trata, nunca, de
condutas materiais, de atos reais, feitos por indivíduos re-
ais, mas simplesmente por indivíduos considerados como
membros de uma determinada comunidade. Ora, a condi-
ção de membros de uma comunidade não é um condição
inerente materialmente ao ser; por exemplo, existem con-
dutas que são consideradas criminosas num lugar e não
são num outro. A posse sexual mediante fraude, por
80

exemplo, está no Código Penal brasileiro e não está em ou-


tros códigos. Por outro lado, nós podemos ver que pode
acontecer dos próprios códigos serem auto-contraditórios
em certos pontos, ou durante certos momentos enquanto
não são reformados. Então, mesmo que a gente conside-
rasse o código em si mesmo, a gente vê que ele já implica
em problemas lógicos internos. Em segundo lugar, ele não
fala de nenhum ente real, mas do ente considerado sob
uma determinada categoria. Por exemplo, o direito admi-
nistrativo; ele versa sobre atos de funcionários públicos.
Não é enquanto indivíduo real e concreto que aquele sujei-
to teve esta ou aquela conduta ilícita, mas somente na me-
dida em que ele é funcionário público. Ora, a condição de
funcionário público não pode ser inerente ao indivíduo,
ela tem que ser conquistada mediante concurso ou favore-
cimento ilícito, e não sei de outra maneira que se possa
obter. É também uma condição que ele pode perder a
qualquer momento. No entanto, quando o indivíduo é pu-
nido, ele não é punido na sua condição de funcionário pú-
blico ou de membro da coletividade, mas ele é punido in-
teiro. Por exemplo, vamos supor um artigo do Código Pe-
nal soviético: a tentativa de sair do país era considerado
um crime contra o Estado, e era punido com pena de mor-
te. Ora, voce só podia se evadir do Estado soviético en-
quanto cidadão do Estado soviético, ou seja, fisicamente é
impossível voce ser cidadão do Estado soviético, essa con-
dição não é inerente à sua condição física; tanto não é ine-
rente que voce pode materialmente passar pela fronteira,
senão voce não poderia. Por exemplo, nós não podemos
nos evadir da condição terrestre a não ser pela morte, en-
81

tão não precisa ter uma lei que proíba voce de se evadir da
Terra. Se precisa uma lei é porque voce tem a possibilida-
de de violá-la, e isso significa que esta condição que a lei
lhe prescreve não é inerente ao seu estado. É enquanto
membro de uma determinada coletividade, ou seja, en-
quanto voce tem uma qualidade que lhe foi implantada de
fora pelo Estado, enquanto portador desta qualidade, é
que voce é proibido de sair do Estado soviético; mas se te
pegam escapando pela fronteira, e te fuzilam, não foi a tua
cidadania soviética que foi fuzilada, foi voce inteiro.
Então nós vemos que tanto quanto nós vimos ambigui-
dade nos 10 Mandamentos, parece que qualquer código
jurídico tem uma ambiguidade terrível também. Esta am-
biguidade parte de que o pensamento político-jurídico
moderno considera que o indivíduo humano, real, concre-
to, deve responder plenamente por todos os deveres que a
sociedade lhe incumba, quer ele queira, quer não queira.
Essa foi uma das conquistas do pensamento democrático,
que nos libertou das opressões...
Por isso que eu não acredito nessa estória de democra-
cia em hipótese alguma. A democracia é um conteúdo ide-
al, é um esquema ideal, tanto quanto o primeiro manda-
mento, e nunca é uma realidade; ao contrário, se a marcha
da história da democracia se caracteriza pelo alargamento
da faixa dos direitos do indivíduo, na mesma medida ela se
caracteriza pela ampliação do aparato repressivo, que é
necessário existir em defesa desses direitos. Portanto, se
eu crio mais uma nova lei, mais um novo tipo de crime, eu
tenho que criar um novo tipo de tribunal, com mais funci-
onários, mais polícia, etc, etc, portanto, o crescimento des-
82

comunal do poder acompanha, necessariamente, a ampli-


ação da faixa dos direitos.
Agora, se voce pegar um índio do Alto Xingu, antes da
chegada dos portugueses, ele não tinha direito a coisa ne-
nhuma, mas também não tinha nenhum Estado em cima
dele para ficalizá-lo. Ele não tinha direitos, ele tinha possi-
bilidades reais, que eu acho bem melhor, porque o direito
é algo que um ser humano tem que lhe garantir, e a possi-
bilidade simplesmente está dada aí na realidade, ou seja,
são meios de ação, são poderes que o indivíduo tem.
Ora, um direito que não equivale a um poder significa o
quê? Nada! Por exemplo, o cidadão brasileiro tem ²direito
à educação², mas no entanto ele tem o poder de adquiri-
la? É claro que não, porque o poder é um conceito real;
poder é uma potência, por exemplo, nós temos a potência
de falar, potência de se locomover, etc, etc, e não precisa
ninguém nos garantir isso aí; isso são possibilidades que
não nos vêm de fora, mas que nos são inerentes, são pode-
res reais. Agora, os direitos não, os direitos são possibili-
dades de poderes que são garantidos por um terceiro, e
que se o terceiro falhar, o nosso direito foi para as cucuias.
Portanto, a mais famosa bandeira democrática, que é a
progressiva ampliação dos direitos, é um estelionato. Se
dissesse que a democracia ampliou os poderes do indiví-
duo humano, aí seria uma grande coisa, não é? Mas ela
aumenta somente os nossos direitos, ou seja, o direito é
um poder que um terceiro tem sobre voce, sempre assim.
Então, tudo isso aí é um vasto estelionato ideológico; as
pessoas acreditam que a ampliação da democracia é a am-
pliação da liberdade e que os conceitos de democracia
83

sempre vêm junto com a liberdade. Isto não tem nada uma
coisa que ver com a outra; democracia é uma forma de go-
verno, não tem nada que ver com a tua liberdade, é a for-
ma do poder que os outros exercem sobre voce. Isto não
pode, por definição, ter nada que ver com a tua liberdade.
A palavra liberalismo é muito confusa. Liberalismo na
essência, e na origem, é a defesa dos direitos do indivíduo.
O liberalismo político e o liberalismo econômico que se
fala hoje é outra coisa diferente, e que inclusive se faz em
prejuízo das liberdades do indivíduo.
Quando as pessoas dizem que a democracia amplia os
direitos do indivíduo e que ela aumenta a liberdade, etc,
etc, estão confundindo democracia com liberalismo. A de-
fesa da liberdade do indivíduo não é próprio da democra-
cia, mas é próprio do liberalismo, que não é a democracia
em geral, mas um tipo de democracia em particular.
O liberalismo consiste na base em, não em aumentar os
direitos dos indivíduos, mas ao contrário, em deter os
progressos do Estado na medida em que firmam a liber-
dade do indívíduo. Ora, o aumento da faixa de direitos é o
aumento do número de leis, e isso aí é profundamente an-
ti-liberal, porque cada nova lei implica um novo aparato
para garantir o seu cumprimento e assim o Estado vai
crescendo, crescendo, crescendo, e a autoridade cresce
cada vez mais na mesma medida em que crescem os nos-
sos direitos. Portanto, a designação de novos direitos é um
política essencialmente anti-liberal; o ideal do liberalismo
é que tenha o menor número de leis, sobre o menor núme-
ro de assuntos, ou seja, que a faixa de interferência da au-
toridade seja muito restrita, e que sobre a maior parte das
84

condutas humanas a autoridade nada tenha a dizer. O ide-


al do liberalismo é aumentar o território daquelas condu-
tas que não são nem lícitas nem ilícitas, mas que são con-
sideradas irrelevantes. Por exemplo, se o homem casa com
uma mulher, gorda ou magra, preta ou branca, feia ou bo-
nita, isso é considerado irrelevante. Porém, na medida on-
de aumentam os direitos isso amanhã ou depois, poderá
não ser mais irrelevante, porque já existem leis severas
contra o preconceito racial, e nos Estados Unidos já exis-
tem leis contra o preconceito contra gordos... Isso quer di-
zer que se amanhã ou depois houver um número excessi-
vo de mulheres gordas solteiras, o Estado interferirá. Isto
significa que a proclamação de novos direitos é simples-
mente o progresso da tirania, onde o Estado, a pretexto de
corrigir a natureza humana, e tornar os indivíduos melho-
res, ele vai se tornando um monstro cada vez mais desco-
munal e incontrolável. Este crescimento do Estado é base-
ado na ilusão de que as leis existem para serem cumpri-
das. Isto aqui é a maior mentira que algum estadista já fa-
lou, as leis não existem para serem cumpridas, porque se
existissem para serem cumpridas nós teríamos que en-
tender que toda e qualquer conduta tipicamente ilícita de-
veria ser punida sempre em todos os casos. Ora, isto, além
de ser uma impossibilidade prática manifesta, ainda impli-
caria, e só poderia ser aplicado, na medida onde o Estado
tivesse o poder de averiguar todas as condutas humanas.
Se todos os crimes devem ser punidos, todas as possibili-
dades de crimes devem ser investigadas. Parem para pen-
sar nas consequências disto... onde quer que haja uma
suspeita de crime é obrigatório investigar em todos os ca-
85

sos. Isso aí significa ampliar também desmesuradamente o


poder investigativo do Estado. Ora, como fazer isto, e pre-
servar o mínimo de liberdade sem o qual o cidadão não
pode respirar? Para isto mesmo é que o Estado moderno,
prevendo a sua própria tendência ao crescimento desme-
surado e querendo, de certo modo, se vacinar contra si
mesmo, ele distingue também entre meios lícitos e ilícitos
de investigar e de punir o crime. Porém, é fácil voce perce-
ber que essas duas exigências são auto-contraditórias: se
todos os crimes devem ser punidos, mas se existem meios
ilícitos de investigar que o Estado se proíbe, isso significa
que o Estado se proíbe de investigar um montão de cri-
mes. Por exemplo, o famoso ²sigilo bancário²; ele é uma
auto-limitação que o Estado se coloca, para que no intuito
de punir os crimes ele não atravesse a fronteira da liber-
dade do indivíduo.
Pela simples existência de limites à capacidade investi-
gativa do Estado nós vemos que nem todos os crimes de-
vem ser punidos, ou seja, devemos punir os crimes que
puderem ser comprovados por meios lícitos apenas. Ora,
se existe isto, significa que a lei penal não existe para ser
cumprida, porque ela mesma se coloca impedimentos ao
seu próprio cumprimento.
Entre o crime que pode ser averiguado por meios lícitos
e aquele crime cuja prova só poderia ser obtida por meios
ilícitos a diferença é de uma mera coincidência. Isso signi-
fica que, quando o Estado admite limites à sua capacidade
investigativa, ele admite, no mesmo ato, limites à sua ca-
pacidade punitiva. Isso significa que o território dos cri-
mes abrangerá sempre e necessariamente uma área maior
86

do que a da capacidade investigativa e punitiva do Estado


— isto é assim e necessariamente assim. Portanto, quando
se diz que a lei penal existe para ser cumprida se está sim-
plesmente mentindo. Ela é uma norma ideal tanto quanto
os 10 Mandamentos.
Ora, uma norma ideal não pode ser cumprida se não
existe algum modelo pelo qual voce se paute. Por exemplo,
o Cristo exemplificou com o seu modelo vivente o quê que
é o amor ao próximo, e Ele diz literalmente que a perfeição
do amor ao próximo é morrer pelos seus amigos. Então,
nós entendemos que se queremos cumprir o segundo
mandamento nós devemos cumpri-lo até o extremo limite
da morte, a partir daí não podemos mais, ou seja, além da
minha morte o quê que eu vou poder oferecer às pessoas?
Então, a perfeição do amor ao próximo é um limite prati-
camente inatingível, mas é um limite determinado.
Do mesmo modo, nós poderíamos perguntar: qual é o
modelo que dá o limite do cumprimento das leis penais?
Se a lei não é para ser cumprida literalmente em todos os
casos, ela tem que ser cumprida até certo ponto; qual é
esse ponto? E daí nós vemos que a discussão de qual é es-
se ponto depende de uma decisão quanto a função moral
do próprio Estado, da própria autoridade. Se nós dissés-
semos que a autoridade tem uma função educativa e pe-
dagógica, que ela tem o dever de elevar moralmente os
membros da comunidade, que ela tem o dever de impeli-
los à perfeição, então é claro que o limite do cumprimento
das leis se amplia formidavelmente, ou seja, o Estado de-
verá levar a investigação dos crimes até o extremos limite
onde todo e qualquer mau exemplo fique banido da visão
87

popular — é mais ou menos o que se entende hoje. Ou se-


ja, não se deve deixar nenhum crime impune para não dar
mau exemplo. Isso entende uma função educativa e peda-
gógica do Estado. Por exemplo, uma deserção numa guer-
ra; voce não pode dar o mau exemplo, então cada um que
fugir voce tem meter uma bala na cabeça dele na frente de
todos os outros; voce não pode admitir exceções. Mas é
claro que a autoridade de um comandante de pelotão du-
rante uma batalha é uma autoridade discricionária, ele é a
única autoridade, ele tem realmente o poder de vida e
morte. Quer dizer que qualquer sargento de exército, du-
rante uma guerra, pode decretar a morte de um dos seus
soldados no campo de batalha e voce não tem tribunal ao
qual recorrer. A autoridade militar em guerra é um caso
particular, onde toda essa discussão que nós estamos fa-
zendo perde todo e qualquer sentido.
Em Roma, durante o período da República Romana, não
existia a noção de autoridade pessoal; nenhum indivíduo
como tal tinha autoridade, toda autoridade era coletiva,
era colegiada: autoridade do Senado, autoridade dos juí-
zes, etc, etc. Só havia uma situação onde se tinha poder
pessoal, é quando se mandava um exército para uma guer-
ra no exterior e se nomeava um comandante. Este coman-
dante tinha o título de Imperator ; ele tinha um poder de
império sobre os seus soldados, mas só sobre os soldados.
Quando voltava do campo de batalha, o general se despia
do seu título de Imperator na porta da cidade, e ele volta-
va a ser um magistrado como os outros. É disso aí que
surge o golpe militar que gerará o Império Romano, por-
que um dia, um desses generais, que tinha ficado muito
88

tempo no campo de batalha, se acostumou com esse negó-


cio de ser Imperator , e quando voltou, tomou a cidade e
disse: ²Agora eu sou Imperator aqui dentro!²; essa é a ori-
gem do Império Romano. Esta tentação se chamou, daí pa-
ra diante, o ²cesarismo²; é a tentação que um milico tem
de ter sobre a vida civil o mesmo tipo de autoridade que
tem o comandante de um exército no campo de batalha, ou
seja, de transferir para a vida civil, não o regulamento mi-
litar em geral, mas o regulamento militar de tempo de
guerra. É claro que isso facilita as coisas formidavelmente,
o Imperator não precisa ter lei, não precisa absolutamente
nada, ele faz o que lhe der na cabeça. Se coincidir de voce
ter um Imperator de gênio e de bom-caráter, tudo irá bem,
como de fato foi tudo bem durante o governo de César.
Mas, daí morre César e tem lá um sucessor que vai dizer
que ele é um ²césar² também, e daí segue-se a famosa ²Vi-
da dos 12 Césares² que voces podem ler em Suetônio, que
é o protótipo da obra pornô; é um dos livros mais horripi-
lantes que alguém pode ler, e eu acho que todo brasileiro
envolvido na luta pela Ética devia ler para ver o quê que é
bom para tosse. Por exemplo, um desses ²césares², Calígu-
la, era um homossexual ativo, e ele gostava de transar com
os menininhos, só que ele preferia que os castrasse antes...
As pessoas falam mal dos governantes de hoje, e quan-
do eu li esse livro, eu pensei: voce pega um tirano do sécu-
lo XX, um Fidel Castro, um Francisco Franco, um Stálin,
nenhum deles fez isto, Hitler não fazia isto... algo mudou
na humanidade, não é?
Se voce disser que 2.000 anos de Cristianismo não
abrandaram a maldade humana, voce está mentindo, por-
89

que abrandou mesmo. Não tem nenhum governante, por


mais sanguinário — veja, o poder que tinha Stálin era mui-
to maior do que o de César ou de Calígula evidentemente;
se ele quisesse capar metade da Rússia ele capava e nin-
guém ia falar nada. Por quê que ele não fez isto? Porque
ele não era tão perverso assim.
Quando as pessoas mostram um ódio dos seus gover-
nantes, dos seus tiranos, eu sempre recomendo ler este
livro para ver o quê que os caras faziam. Voce acaba
achando que Stálin, Mao Tsé-Tung, até que não eram pes-
soas assim tão más...
É claro que brutalidades podem acontecer mas, não
cometidas diretamente pelo tirano; uma característica dos
tiranos do século XX é ter geralmente assessores que são
muito piores do que eles, e que cometem abusos que eles
mesmos não cometeriam e que frequentemente os escan-
dalizam. Stálin quando soube que o poeta Pasternak tinha
sido preso, ele que tinha lido Pasternak, disse: ²Não to-
quem mais nessa criatura angelical!²; ora, isso é uma deli-
cadeza de alma, não é? Hitler tinha um médico judeu que
havia salvado a mãe de Hitler quando ele era adolescente;
Hitler mandou botar esse médico alemão para fora da
Alemanha, deu-lhe uma passagem para Nova York — isso
também é uma delicadeza de alma... imaginem Calígula
fazendo essas coisas...
Isso aí mostra o abrandamento da alma humana por
2.000 anos de Cristianismo, quer dizer, para alguma, para
alguma coisa funcionou. Imaginem se retirasse do nosso
subconsciente todo o peso dessas exigências cristãs o quê
que não daria para um Stálin ou um Hitler fazer hoje?
90


Voltando um pouco atrás: na medida em que o Estado
reconhece limites à sua capacidade investigativa e puniti-
va, isso significa que a noção do lícito e do ilícito fica aí es-
treitada: os crimes devem ser punidos mas somente por
meios lícitos. Como é absolutamente impossível que todo e
qualquer meio investigativo e punitivo seja lícito, então é
claro que a lei penal não foi feita para ser cumprida, exceto
nos casos onde a investigação e a punição possam ser con-
sideradas também lícitas. Então é uma auto-limitação que
o Estado se coloca. Na hora que ele se coloca essa limita-
ção, ele se coloca também o seguinte problema: a diferen-
ça entre o crime que pode ser facilmente comprovado por
meios lícitos e aquele que não pode, é a diferença mera-
mente acidental, é uma sorte que o criminoso teve.
O fato do seu crime não poder ser materialmente averi-
guado por meios lícitos não faz com que ele deixe de ser
um crime. É aquela famosa situação que ficou a polícia
com o Al Capone; por quê tiveram que condenar o Al Ca-
pone por sonegação de imposto de renda? Porque o resto
não podia ser comprovado licitamente; isto não faz com
que ele deixe de ser um criminoso. Então isto significa que
a própria noção de um estado de direito implica conceder
ao criminoso o benefício da sorte. Ora, se nós negamos is-
to, significa que não haverá limites para a capacidade in-
vestigativa do Estado, ele pode revirar qualquer coisa, a
qualquer momento, de qualquer forma, e isto seria o tota-
litarismo — a democracia também não quer isto.
Veja o raciocínio que nós fizemos antes: a proclamação
de novos direitos é a ampliação da faixa de interferência
91

do Estado. Portanto, existe uma contradição entre demo-


cracia e liberalismo, e voce dizer democracia-liberal é co-
mo dizer quadrado-redondo. Se o indivíduo é realmente
liberal — não no sentido do liberalismo econômico de ho-
je, mas no sentido que tinha no século passado —, ele re-
almente não é democrata. E se ele é democrata, ele quer
aumento de direitos, e portanto, o aumento da capacidade
investigativa e punitiva do Estado.
Democracia-liberal é um conceito auto-contraditório,
mas ele é uma realidade de certo modo, porque é esta luta
que define as chamadas ²democracias ocidentais². Se voce
estudar a história dos Estados Unidos e da Inglaterra, voce
vai ver que é uma constante luta entre o desejo de procla-
mar novos direitos e o desejo de limitar a interferência do
Estado; então voce vai ²dando uma no cravo e outra na
ferradura² o tempo todo, e é este jogo que constitui pro-
priamente a história das democracias liberais. Mas ele não
é um conceito de luta, é um conceito dialético, é auto-
contraditório, é um conceito de luta, é um conceito dinâ-
mico.
Como hoje em dia no Brasil todo mundo é a favor da
democracia, por isto mesmo, para fazer um equilíbrio, eu
sou contra; eu sou a favor do liberalismo e contra demo-
cracia; eu acho que não deve haver direito a nada, eu acho
que o Estado não deve investigar nada, e que o Estado não
deve ter poder nenhum. ²Ah, então voce é um troglodita,
voce é um índio!²; bom, na presente situação, eu acho que
alguém tem que fazer este papel. Como ninguém faz, eu
me ofereço gentilmente... eu sou contra todas as leis, con-
tra todos os direitos, não quero ter direito a nada porque
92

não quero que ninguém tenha que me garantir os meus


direitos. Eu gostaria que os meus direitos fossem co-
extensivos com os meus poderes, ou seja, eu tenho o direi-
to de fazer tudo o que eu possa fazer. Claro que existem
limites interiores: eu posso matar a minha mãezinha? Não,
não posso; existe um limite interior, eu não tenho este po-
der realmente.
A idéia mesma de democracia, quando voce diz que é
um governo popular, quer dizer que todos então vão ter
que participar disso de alguma maneira. Como não é pos-
sível a participação literal de todos, então voce cria a de-
mocracia representativa, através de um representante. Na
hora que voce coloca lá o representante voce tem que limi-
tar também os seus direitos e deveres, mas para isso voce
tem que ter uma autoridade que o fiscalize, quer dizer, é o
famoso problema da fiscalização do poder legislativo. Esta
idéia é auto-contraditória, esta é a idéia da fiscalização da
fiscalização da fiscalização....da fiscalização, porque se vo-
ce já nomeou um representante como é que voce vai fisca-
lizá-lo, diretamente? Não, não dá, só através de outro re-
presentante.
Quando se diz que quem tem que fiscalizar o legislativo
é a sociedade civil, mas, a sociedade civil inteira?! Homem,
mulher, velho, criança, todo mundo?! Não é possível! É a
sociedade civil através de seus representantes! Então voce
tem que fazer um sub-parlamento para fiscalizar o parla-
mento, e daí a corrupção sai de um para o outro... então a
noção é auto-contraditória, ou voce confia no seu repre-
sentante, ou não confia. Este é um conceito absolutamente
93

paranóico; ou o representante tem confiabilidade, ou não


tem.

[ Aluno: como é que voce classificaria a idéia de governo
paralelo, que uma vez voce disse que foi uma coisa inte-
ressante que houve na Inglaterra? ]

O governo paralelo é um costume que se tem na Ingla-
terra e que se tentou copiar aqui, e que é o seguinte: na
hora em que voce escolhe um governo — o governo lá é
votado pelo Parlamento a pedido do Rei ou Rainha — en-
tão eles elegem lá um governo e compõem um Gabinete,
com um chefe do Gabinete, um Primeiro-Ministro e os vá-
rios ministros. Simultaneamente, os partidos que estão na
oposição também nomeiam um responsável para cada
uma dessas áreas, de maneira que ele fiscalize o seu simi-
lar. Então voce tem um pseudo-ministro da agricultura,
que é um especialista em agricultura, que está lá julgando
e criticando o ministro oficial. E eventualmente, com isso,
corrigindo e melhorando o programa do próprio partido
para que, no caso deste partido subir ao poder na eleição
seguinte, ele possa fazer melhor do que o seu antecessor.
A idéia é muito boa e tentou ser imitada aqui pelo PT;
quando o Collor foi eleito eles fizeram lá um grupo de fis-
calizadores. Mas não funcionou; eu nunca vi um único
pronunciamento deles; eu acho que é porque o Gabinete
oficial não fez nada, então o outro também não... ele não
tinha muito o que criticar, não é?
Mas é claro que tudo isso aí acontece por causa das con-
tradições inerentes à idéia mesma de democracia. Por quê
94

as contradições? Porque qualquer forma de regime que


voce invente tem auto-contradições, porque a vida huma-
na tem contradições, nada vai funcionar perfeitamente
bem nunca.
Então, a democracia também as têm, e uma delas é que
a democracia direta é impossível, e a indireta tende a se
tornar cada vez mais indireta. Por exemplo, todo mundo
diz, ²Fiscalize o seu deputado²; voce não pode fiscalizá-lo,
é absolutamente impossível, porque para fiscalizá-lo voce
precisaria se informar. Então o fato é que na hora em que
voce o nomeou, voce entregou algo para ele, se ele agir
mal voce está lascado, voce não tem a menor maneira de
averiguar.
Eu tenho em casa, todo o noticiário e todas as transcri-
ções e depoimentos da última CPI — de uma CPI! —, a pa-
pelada vai até o teto! E depois que eu estudei isso — e es-
tudei mesmo — eu cheguei à conclusão que ninguém sabia
o que estava se passando na CPI, nem os próprios mem-
bros, porque é absolutamente impossível! Esta quantidade
de papel, não é que eles não leram isto durante a CPI, eles
não leram durante toda a duração de suas vidas, e nem vão
ler! Olha que eu estou falando só das transcrições e dos
noticiários, eu não estou falando dos documentos apresen-
tados; só o que apreenderam de documentos do homem
da Odebrecht — Aílton Reis — dá para lotar esta sala!
Quem é que leu tudo isso? Ninguém.
Eu constatei, por exemplo, uma coisa fantástica, que
ninguém sabe até hoje — é um segredo que estou publi-
cando aqui para voces. O José Carlos Alves dos Santos, que
foi o primeiro que depôs, foi interrogado sobre dois tipos
95

de esquemas criminosos: o primeiro seria o das subven-


ções sociais, e o segundo o das empreiteiras. A respeito do
primeiro ele confirmou porque ele participava e recebia
dinheiro, e deu os nomes de todo mundo; a respeito das
empreiteiras ele falou dezoito vezes: ²Não sei de nada, não
vi nada, ouvi falar apenas que existe². No dia seguinte a
imprensa nacional inteira noticiou que ele tinha confirma-
do os dois crimes... Então a testemunha nega que sabe e
sai publicado que ele confirmou o crime, e ninguém fala
nada, por quê? Porque ninguém leu o depoimento dele.
Eu te garanto que li, linha por linha, e quando mais eu
lia mais eu ficava estarrecido. Isso, um depoimento no
meio de cinqüenta e tantos que foram prestados, cada um
com 100 páginas. Claro que isso aí, mais os noticiários,
sem contar os documentos, ultrapassa a capacidade de lei-
tura de qualquer daqueles membros; o sujeito não leu esse
volume de papéis nem sequer em obras de sub-literatura!
Veja, as pessoas que voce nomeou para isso, e que voce
paga uma quantia razoável para eles trabalharem para is-
so, não conseguem abarcar os assuntos sobre os quais ele
têm que legislar. Ainda vão querer que o pobre eleitor leia
tudo isso e julgue o procedimento dos seus deputados?!
Não, então é evidente que tudo isso aí se decide mais ou
menos no escuro e na base do sorteio. É errado que seja
assim? Não, não é errado, é humano.
Se com investigações tão nebulosas, tão imprecisas, tão
vagas, como é que as punições poderiam ser rigorosas,
claras, explícitas e sem dúvida alguma? Não é possível. Isto
quer dizer que se um monte de deputados, tidos como
criminosos, estão impunes, é por um mecanismo de auto-
96

equilibração do Estado; o Estado se torna frouxo e toleran-


te tendo em vista a inexistência de meios de investigação,
ou seja, o Estado está sendo justo. Se é para punir com ri-
gor, é necessário apurar com rigor; não sendo isso possí-
vel, então nós vamos ter que fazer um acordo de só punir
alguns, porque tudo isto afinal de contas foi feito apenas
para contentar a opinião pública.
Uma outra coisa que também me impressionou na CPI
era que todos os crimes descobertos, eram descobertos
antes pela imprensa, e depois iam parar lá na CPI. Portan-
to, a verdadeira autoridade investigativa era a imprensa, e
a CPI tentava simplesmente acompanhar a velocidade da
imprensa e não conseguia!
Mas veja que essas aparentes falhas da justiça não são
falhas, preste bem atenção que isto é um mecanismo de
auto-equilibração, que permite que no meio dessa confu-
são se faça, não justiça, mas o mínimo de injustiça. E o mí-
nimo de injustiça é o padrão de justiça que é alcançável
pelo homem.
Eu vejo no fundo de toda essa confusão brasileira uma
imensa sabedoria. Eu acho que a coisa funciona assim,
porque dentro da condição de impossibilidade prática de
uma investigação lícita, e de uma conclusão clara sobre os
fatos, é melhor deixar tudo no meio-termo, e punir alguns
de maneira branda só para aplacar a opinião pública, por-
que é simplesmente disto que se trata, e não de fazer justi-
ça. Ou seja, a ²pizza² é uma grande virtude brasileira; se
não fosse isso, estaríamos todos na cadeia, um por um.
Veja, voce ²bancar² em cima de deputadinhos ou funci-
onariozinhos corruptos para voce posar como uma ima-
97

gem da lei e como um baluarte da moralidade, eu acho que


isso aí me parece parte da palhaçada nacional, do grotesco
nacional. Eu gostaria de ver é alguém, tendo esta pose de
Sepúlveda Pertence, de Junqueira, bancar o magistrado
implacável na frente do banditismo armado; isso ninguém
faz.
O Brasil tem lá os seus méritos e deméritos; entre os
deméritos voce tem esta coisa da propensão ao fingimen-
to, que é uma coisa que todos os observadores estrangei-
ros já notaram, esse dom histriônico, sobretudo nas nos-
sas camadas superiores. Da classe média alta para cima
todo mundo é um farsante que finge ser alguma coisa que
ele nem sequer pretende ser, porque tão logo convidado a
fazer exatamente aquilo que ele está fingindo que vai fa-
zer, ele corre.
A imitação faz parte do aprendizado, voce imita certas
virtudes na medida em que quer adquiri-las, mas o carac-
terístico deste tipo de imitação é que a imitação é a finali-
dade em si, o sujeito não pretende realmente ser aquilo,
ele só quer que os outros pensem que ele é aquilo. No fun-
do, isso aí é uma falta de consistência interior, são pessoas
que não sabem ter solidão e não têm consciência moral
própria. Então eles não querem ser nada na frente deles
mesmos; tudo o que é feito sem espectador para eles não
tem graça, é um aspecto de dependência, de carência afe-
tiva; todo mundo precisa ser confirmado por uma platéia,
senão não funciona.
Quando voce tem uma conduta realmente séria, as pes-
soas simplesmente não acreditam. Quando o indivíduo age
de uma maneira muito íntegra, correta, cumpre os seus
98

deveres, com o risco próprio, ninguém nem percebe, e o


simples fato da conduta ser séria, ser real, parece que
quebra um pouco a regra do jogo. A regra do jogo é de
uma encenação, ou seja, aja um pouquinho assim na nossa
frente só para a gente ver e te aplaudir e confirmar, mas
não faça mais do que isso, porque senão perde o caráter
lúdico.
Esse ludismo nacional é o que foi testemunhado pelo
pintor Iberê Camargo, que morreu a pouco tempo numa
amargura tremenda, e que o último quadro dele era uma
espécie de paródia da Mona Lisa: era uma idiota que ria de
si mesma. Foi o seu último quadro e ele disse: ²Isto é o
Brasil². É um país onde tudo é feito meio de brincadeira,
esta é que é a nossa grande tragédia. Mas, por outro lado,
eu não vejo muito como sair disso, porque para o indiví-
duo deixar de levar uma vida caricatural, deixar de ser
uma caricatura de gente, e passar para uma vida mais sé-
ria, não é fácil. A quantidade de sofrimento e desilusão que
um indivíduo precisa para isso é muito grande; imagina
um país inteiro então.
Por exemplo, existem muitas situações onde voce não
pode ser sério, voce só pode representar; esse caso da CPI,
por exemplo, é um. Não há a mais mínima condição de in-
vestigar seriamente essas coisas. Por outro lado voce está
sendo pressionado para investigar. Então, voce fica numa
posição onde voce tem que representar algo que voce não
é. Um episódio que aconteceu quando entrevistamos o
Evandro Lins e Silva, e nós perguntamos para ele: ²O se-
nhor não acha que no discurso contra o Collor o senhor
‘carregou um pouco demais na mão’, o senhor não exage-
99

rou um pouco?² Ele disse: ²É, eu reconheço que fiz isto,


que eu falei talvez mais do que devia, que eu fui muito vio-
lento demais; porém, veja a minha situação, eu estava co-
mo um advogado contratado por todos os inimigos do
presidente. Se eu fosse ‘dar moleza’ eles iam desconfiar é
de mim, e daí acabar sobrando para mim!², isto dito pelo
Evandro Lins e Silva, que é um sujeito que não é um palha-
ço, não é um histrião, é um homem sério — quer dizer, sé-
rio dentro da medida brasileira.
Então voce ataca o outro com virulência, não porque
voce esteja com ódio dele, mas porque voce está com me-
do de um terceiro; isto é o típico da conduta histriônica,
onde voce afeta uma emoção que voce não tem. Há um sé-
rie de advogados, magistrados, etc, todos querendo brin-
car de Marco Túlio Cícero, ou seja, é o cara que vai denun-
ciar conspirações. Mas, não é isso realmente o que está se
passando, o papel que está sendo desempenhado não cor-
responde ao mapeamento real das forças.
A facilidade com que o brasileiro absorve certos papéis
supostos e os desempenha, falseando completamente a
situação, é uma coisa de deixar um historiador maluco,
porque é difícil voce saber realmente o quê se passou;
existe uma cota de disfarce muito grande.
Também o fato de ser um povo que tem pouca reta-
guarda histórica, poucas experiências vividas em comum;
o Brasil é uma sociedade muito dispersa, então voce não
tem uma espécie de memória nacional conjunta, só tem
memórias regionais, e mesmo assim de curta duração. A
própria famosa falta de memória, as pessoas apagam o
100

passado, as pessoas desconhecem a história do Brasil, e


quando a conhecem, não se sentem ligados a ela.
Então, esse fundo histriônico que tem no Brasil sempre
tem que ser levado em conta na discussão de qualquer si-
tuação. Fazem quinze anos que eu não vejo um debate pú-
blico que coincida realmente com a distribuição das forças
do problema; nunca o que está sendo discutido é o pro-
blema que está interessando, ou que está realmente em
jogo.





















101


CURSO DE ÉTICA


Aula do dia 25 de outubro de 1994
( sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )


Hoje nós vamos ver como é a autoconsciência e como e
por quê ela pode ser fundamento da moral ou da ética.

É da tradição da filosofia moderna tomar como ponto
de partida para o estudo da consciência a famosa sequên-
cia inicial das ²Meditações Metafísicas² de René Descartes,
onde ele, colocando em dúvida todos os conhecimentos
que dispõe, colocando em dúvida as suas percepções, suas
memórias, seus sentimentos, etc, etc, chega enfim à con-
clusão de que a única coisa que ele não pode duvidar é de
que está duvidando. E como duvidar é um pensar, é um
ato da mente, ele chega à conclusão de que o pensamento
não pode duvidar de si mesmo, ou seja, ele não pode duvi-
dar de que está duvidando na hora em que está duvidan-
do.
Ora, este sujeito, este ego de que fala o Descartes na
fórmula cogito ergo sum — penso, logo existo —, ou dito
de outro modo, o único conhecimento seguro que o ho-
mem tem é a respeito do seu próprio pensamento, esta
fórmula não se refere ao ego real do ser humano, mas a
um ego suposto, que seria o ego puramente pensante, ou
seja, supondo-se que eu pudesse colocar em dúvida as mi-
102

nhas recordações, qual é o conteúdo desse ego de que fala


Descartes? Seria o ego momentâneo, aquele ego que so-
mente existe no ato de duvidar. Porém, pergunto eu: se na
sequência dos conteúdos que Descartes vai excluindo está
incluída a memória, o quê significa ego a essa altura? Se eu
faço a abstração da minha memória, como é que eu posso
garantir que eu pensei? Que estória é essa de ²cogito ergo
sum²? Cadê o sujeito deste ato de pensar? Então, nós ve-
mos que o ego a que se refere Descartes seria um ego am-
putado da sua própria continuidade histórica. Portanto,
esse ego não existe. Então a gente percebe que esta frase
de Descartes, longe de representar o resultado de uma
análise psicológica real que ele tenha feito sobre uma ex-
periência efetiva — como ele pretende fazer — ela é na
verdade apenas um truque de lógica. Ele obtém esse ego,
não pelo exame efetivo do que se passa dentro dele en-
quanto sujeito real na hora em que pensa, mas apenas pela
análise lógica de um sujeito ideal onde se voce cortar dele,
as sensações, a memória, etc, etc, vai sobrar apenas o su-
jeito abstrato. O problema é que, se voce amputou a me-
mória, como é que voce vai saber que é voce quem pensa?
Existe sujeito sem memória?
Descartes está buscando o conhecimento seguro. No
livro ²Meditações Metafísicas², ele, primeiro, começa por
uma narrativa mais ou menos autobiográfica de que tudo
o que ele estudou na vida parece duvidoso, que não há co-
nhecimentos seguros; então ele tenta reconstruir a ciência
desde bases seguras, e ele propõe este caminho da dúvida
metódica, ou seja, vamos colocar tudo em dúvida para ver
o quê fica de pé no final.
103

Ele diz que isto não é mero raciocínio, mas que isto é
uma análise real que fez da sua experiência real. Mas eu
acho que não, porque na experiência real nós facilmente
veríamos que se nós colocássemos em dúvida — como ele
vai colocando sucessivamente — as sensações, as opini-
ões, os sentimentos, e as recordações, no fim não sobraria
ego algum! Para voce poder dizer ²penso, logo existo², vo-
ce não pode dizer isto exatamente na hora onde voce está
pensando a sua própria dúvida. Ele diz, ²penso, logo exis-
to², diz que esta sentença é verdadeira sempre no momen-
to em que a penso, mas verdadeira para quem? Cadê o su-
jeito? Se o sujeito reflete sobre o seu ato, se ele diz que es-
te ato é verdadeiro no instante em que ele pensou é por-
que se conservou na memória. Então, ele realmente não
fez a abstração da memória, e por quê ele não fez isso?
Simplesmente porque esta abstração é impossível, ou seja,
não é concebível o sujeito autoconsciente fora da memó-
ria. Este é o grande defeito do sujeito cartesiano, ele não é
um sujeito psicológico real, é um sujeito lógico. Claro, nós
compreendemos que o sujeito do conhecimento conside-
rado enquanto mero conceito lógico, não precisa ter me-
mória. Se voce simplesmente distingue entre sujeito e ob-
jeto, e o sujeito cognitivo enquanto meramente distinto do
objeto, não precisa ter memória. Mas um sujeito real que
de fato conhece não pode ser concebido sem a sua memó-
ria, um conhecimento que não seja retido, nem no momen-
to para além do instante mesmo onde ele nota o objeto,
este sujeito não tem conhecimento. Muito menos está em
condição de proferir uma sentença que julgue este conhe-
cimento como verdadeiro ou como falso, ou seja, este jul-
104

gamento que ele faz é um julgamento reflexivo, ele faz um


julgamento sobre o ato do pensar, ele pensa sobre o pen-
sar. Mas como que eu posso pensar sobre o que pensei se
eu não me lembro mais de ter pensado? Então, a abstração
que ele faz da memória é uma abstração falsa, ela não exis-
te, ela pode ser apenas suposta logicamente, mas ela não
pode ser operada mentalmente. Eu posso dizer para mim
mesmo que estou tentando raciocinar fora da minha me-
mória, mas eu posso apenas dizer, eu não posso efetiva-
mente fazer isso, porque senão não posso completar a fra-
se, porque eu não me lembraria mais de como a comecei.
Portanto, aí nós vemos que o limite da dúvida cética es-
tá um pouco aquém do que colocou Descartes. Na hora
que ele chegasse a duvidar da memória ele teria que parar
aí, porque eu não posso colocar em dúvida a minha memó-
ria. Ela pode falhar às vezes, eu posso duvidar da eficiência
dela às vezes, mas eu não posso fazer de conta que não a
tenho; eu não posso sequer fazer de conta de que não
creio nela.
Ele confundiu voce duvidar de algumas recordações
com voce duvidar da memória mesma. Para voce colocar a
memória em dúvida voce precisa se lembrar de como voce
começou este pensamento, ou seja, a atividade reflexiva
reflete um objeto, e onde está conservado este objeto? Es-
tá conservado na memória; sumiu a memória, sumiu o ob-
jeto da reflexão. É evidente que a auto-análise que Descar-
tes faz é uma auto-análise falsa, por esse aspecto.
Em segundo lugar, quando ele diz que, se ele duvida ele
não pode duvidar de que duvida, então ele não está com-
preendendo direito o quê é dúvida, porque a dúvida é um
105

estado de alternância, não existe um estado positivo de


dúvida, do mesmo jeito que existe um estado positivo de
crença. Ao contrário, a dúvida não é um estado, mas ela é
uma alternância entre um sim e um não. Se voce tem dois
pensamentos que se contradizem e voce não consegue pa-
rar nem um nem o outro, se voce não consegue nem admi-
tir completamente o sim, e nem aceitar completamente o
não, é aí que voce diz que está em dúvida. Por exemplo,
²eu creio que esta parede é cinzenta²: é um estado positi-
vo, no sentido que é real e que este pensamento que eu
penso neste momento tem um conteúdo identificável e
unívoco; se eu digo que esta parede é ²cinzenta ou azul²,
então eu não consigo me deter completamente nem no
pensamento de que é cinzenta e nem de que ela é azul, ou
seja, os dois pensamentos se sucedem, vem um e vem o
outro, e nenhum dos dois me oferece um ponto de apoio
onde eu possa me fixar; é justamente esta alternância que
eu chamo de dúvida.
Ora, por quê existe esta alternância? Se existem dois
pensamentos contraditórios, e se eu não creio em nenhum
dos dois, então eu não tenho dúvida alguma, eu afastei o
problema. Se eu creio completamente nos dois, então eu
tenho uma contradição mas não tenho o estado de dúvida.
Frequentemente nós temos idéias contraditórias, ou
seja, nós cremos em coisas contraditórias, só que nós não
percebemos que são contraditórias. Então, creio positiva-
mente que sim e creio positivamente que não, às vezes até
ao mesmo tempo. Aí também não há dúvida, há pura e
simples contradição lógica. O quê é a dúvida? A dúvida
significa que cada um dos pensamentos alternativos é par-
106

cialmente objeto de crença, ou seja, é parcialmente afir-


mado e parcialmente negado, ele é pensado e em seguida é
substituído pelo seu contrário. Isto significa que eu não
afasto completamente nenhum dos pólos da dúvida. Ora,
se existe um sim e um não, na hora que eu penso o sim, na-
quele momento eu estou acreditando que sim; porém eu
também acredito no contrário daquilo e eu percebo que
existe uma contradição. Ou seja, a dúvida é uma consciên-
cia de uma contradição.
Se dos dois pólos da dúvida eu não creio nem um pouco
nem num nem no outro, eu não tenho dúvida alguma. Por-
tanto, a dúvida implica algo de crença. Ora, no momento
em que creio, eu estou negando o estado de dúvida. Por-
tanto, a dúvida não é um estado positivo, mas é um estado
de crença alternada em verdades contraditórias. Então, se
não existe um estado positivo de dúvida eu não posso di-
zer que estou em dúvida, porque a cada momento sucessi-
vo eu estou na crença contraditória, eu estou apenas per-
cebendo uma contradição entre duas tendências de cren-
ças opostas, ou seja, não é possível na verdade voce duvi-
dar de alguma coisa sem, na mesma hora, voce duvidar de
que duvida. O estado de dúvida não é algo onde eu possa
me instalar e dizer, ²estou em dúvida², como se diz ²estou
com frio², ou como digo ²creio². Então, como é que eu não
posso duvidar de que duvido? E justamente porque eu du-
vido de que duvido, que eu tenho alguma dúvida. Se eu
não duvidasse da própria dúvida não teria dúvida alguma,
ou seja, a dúvida implica, de certo modo, a sua própria ne-
gação. Então, eu duvido mas eu creio, e na hora em que
creio eu estou negando a dúvida; é justamente por isso
107

que o estado de dúvida é tão desconfortável. Se ele fosse


um estado positivo, como o estado de crença, o estado de
tristeza, o estado de esperança, como qualquer estado psi-
cológico, então eu poderia me instalar nele e dizer ²estou
assim ou assado², mas a dúvida é justamente voce não po-
der estar naquele estado nem mais um minuto. Portanto,
voce duvida porque voce duvida de que duvida, e em se-
guida, duvida de que duvida, e assim por diante.
Por um lado, eu vejo que Descartes duvida daquilo que
é indubitável, e ele crê naquilo que é duvidoso, ou seja, ele
crê que o estado de dúvida existe, e por outro lado, ele crê
que é possível voce duvidar de um pensamento que teve
fazendo abstração da sua própria memória. Ora, se eu não
me lembro de ter pensado que 2 + 2 = 5, eu não posso du-
vidar deste mesmo pensamento porque eu não me lembro
de ter tido pensamento algum. Portanto, o limite extremo
da análise do eu cognoscente é a memória; nós não pode-
mos nos conceber sem memória em hipótese alguma. Não
posso me conceber realmente, mas posso conceber ideal-
mente, ou seja, posso supor, como um mero conceito lógi-
co do puro eu cognoscente, do qual abstraio a memória.
Por exemplo, eu posso supor um eu que não tem nenhuma
memória anterior e que está recebendo o primeiro impac-
to do primeiro dado do mundo exterior. Faço de conta que
o eu humano é uma tábua rasa, uma folha em branco, no
qual depois que voce nasce, os primeiros dados dos senti-
dos põem uma primeira marca; mas isto é uma suposição,
isto é um conceito que eu inventei, e que eu só posso obter
por uma montagem idealizada, eu não posso obter isso
por análise da experiência real, porque em nenhum mo-
108

mento eu vou encontrar dentro de mim esta experiência


real, qualquer dado que eu veja que entrou, eu vejo que ele
já se combina com outros dados anteriores.
Uma coisa é voce fazer a análise da experiência real, e
outra coisa é voce fazer uma construção lógica. É claro que
a tábua rasa, o eu sem experiência anterior é uma mera
construção lógica, e não um dado da experiência; como se
diz hoje, é um constructo lógico, é uma obra de arte que
voce faz, voce inventa aquele sujeito, que é uma folha em
branco e voce pode até argumentar e dizer que o ser hu-
mano é realmente assim, mas voce não pode, em nenhum
momento, encontrar isto na análise da experiência real.
Se eu não posso fazer abstração de nenhuma experiên-
cia, então não posso falar de mim mesmo sem memória.
Mesmo porque, que diferença faz eu ser eu, ou eu ser um
outro, se eu não tenho memória?
Vamos supor que eu tenha uma amnésia; se eu digo que
sou eu que tenho amnésia, é porque a amnésia não é total,
é parcial. Mesmo a amnésia tem um limite; a amnésia não
apaga a memória, apaga recordações; é a diferença que
existe entre voce apagar um programa e voce destruir um
computador. Se voce apagou todos os dados, ainda vai so-
brar a estrutura material, o hardware, o qual se define por
um conjunto de esquemas que admite x programas. Então,
no mínimo, no mínimo, isto teria que sobrar no fundo da
sua análise.
Eu estou dizendo que nenhuma análise da experiência
cognitiva real pode passar deste limite da memória; eu
não posso me conceber a mim mesmo como destituído de
memória, nem por um instante que seja. Posso me conce-
109

ber destituído de quase todas as recordações; por exemplo,


posso me lembrar de que quando pequenininho eu não
sabia disto ou daquilo porque isto ou aquilo estavam au-
sentes do conteúdo da minha memória. Mas não posso me
conceber como destituído de memória, porque a memória
é a capacidade de reter, não é o conteúdo retido. Então,
por mais longe que eu recue na análise de mim mesmo
sempre terei memória.
Ora, se eu sempre tenho memória, se o limite da minha
auto-análise cartesiana é a memória, e não o puro sujeito
cognitivo, isso significa que fazem três séculos que a filo-
sofia da consciência tomou o rumo errado, porque todo
mundo que faz filosofia da consciência parte do princípio
de que a análise cartesiana está certa de algum modo, de
que ela é um bom ponto de partida. O próprio Edmund
Husserl faz isto; ele acredita que pela análise do sujeito
cognoscente nós podemos chegar a alguma coisa. Ora, uma
coisa é voce fazer a análise do sujeito cognoscente real, e
outra coisa é a do sujeito cognoscente suposto, ou seja,
idealizado; eu suponho um sujeito cognoscente em geral,
que não seria eu, seria o sujeito cognoscente filosófico —
por assim dizer —, e o analiso. Mas é evidente que a análi-
se que eu posso fazer dele não é uma análise psicológica, é
uma mera análise lógica. Existe uma grande diferença en-
tre voce analisar um conceito de sujeito, e voce analisar um
sujeito real. Então, eu creio que durante três séculos toda a
filosofia da consciência toma este rumo terrível de fazer
análise psicológica de um sujeito lógico, de um sujeito que
não existe.
110

Ora, o sujeito humano real não pode se conceber um


único instante sem memória. Outra coisa, pior do que isto:
eu sei que as minhas memórias são minhas, ou seja, que
não são as de outras pessoas. Por exemplo, quando eu era
pequeno um cachorro me mordeu; eu sei que a recordação
que o cachorro tem não é a mesma que eu tenho, porque
eu fui mordido, e não ele; ele foi quem mordeu. Ou seja, na
hora em que eu me identifico como objeto da ação de um
outro, na mesma hora eu sei que me recordo daquele ato
diferentemente do que ele se recorda. Se eu sei que existe
uma diferença entre voce fazer uma ação e voce padecê-la,
no mesmo ato, eu sei que a recordação não é feita desde o
mesmo ponto-de-vista por quem fez a ação e por quem
padeceu a ação. Eu não poderia, quando o meu irmãozinho
me toma um brinquedo, sequer reclamar, porque eu não
saberia se foi ele quem tomou o meu brinquedo ou eu que
tomei o brinquedo dele; eu não sei se eu devo reclamar ou
se, ao contrário, ele é que deve reclamar de mim. Ou seja,
por mais que voce recue, voce encontrará sempre no ser
humano, no mínimo, no mínimo, em estado rudimentar, a
noção de memória e de recordação pessoal e intransferí-
vel; intransferível, no sentido de que se o meu irmãozinho
me bateu, eu me lembro de ter apanhado, e não de ter ba-
tido.
Isto quer dizer que, por longe que eu recue na minha
análise de mim mesmo, eu só me concebo como sujeito de
meus atos e como sujeito autoconsciente de atos passados.
Eu nunca vou poder fazer abstração disto aqui, e se eu fi-
zer, eu estou saindo de um sujeito real e passando para
um sujeito lógico.
111

Para a ciência moral, isto aqui tem consequências abso-


lutamente formidáveis. Nós podemos dizer que o sujeito
autoconsciente de seus atos passados, o sujeito dotado de
recordação dos seus atos passados, ele é um limite inferior
para aquém do qual eu não posso ir. Em nenhum momen-
to eu posso realmente fazer abstração de que eu ajo e de
que eu me recordo dos meus atos, sem que eu imediata-
mente transfira a minha análise do sujeito real para o su-
jeito meramente lógico. Ora, o sujeito meramente lógico,
sendo um constructo lógico ele não é uma pessoa humana,
portanto ele não age, portanto ele não tem vida, portanto
ele não tem biografia, e portanto a moral não diz respeito
a ele. O sujeito lógico não pode fazer nada de certo nem de
errado, mesmo porque ele não existe; o sujeito lógico é
mais ou menos assim como a Ö-2 — não posso imputar a
ela nenhuma ação maligna nem benigna, sob espécie al-
guma.
Então, nós vemos que o sujeito de que fala a Ética ou a
Moral é o sujeito humano real. Ora, este sujeito humano
real é o verdadeiro resíduo final da análise cartesiana. É
claro que não foi ele que Descartes encontrou, mas que nós
encontramos nesta análise — se é que ela está certa.
Quanto mais eu recuo para dentro de mim, buscando
qual é o meu verdadeiro núcleo real que existe dentro de
mim, eu não posso, em momento algum, fazer abstração
de que eu sempre agi e sempre me recordei de algum ato
meu. Se eu fizer abstração disto eu saí do plano da minha
historicidade pessoal, saí do plano do concreto e entrei no
plano do sujeito lógico-abstrato. Como não faz sentido nós
fazermos uma moral para um sujeito lógico-abstrato, en-
112

tão, evidentemente não é disto que nós estamos falando,


nós estamos falando do sujeito humano real.
Quando nós, em filosofia, nós falamos de um sujeito
cognoscente frequentemente os dois sentidos da palavra,
o sentido concreto-psicológico e o sentido abstrato, pura-
mente lógico, aparecem confundidos, ou seja, todos os atos
cognitivos que nós atribuímos ao sujeito cognitivo são
atos reais de um sujeito psicológico real, e este sujeito não
apenas é sujeito dos atos cognitivos, mas é sujeito de um
montão de atos não-cognitivos: o próprio ato de andar, de
respirar, de dormir, e assim por diante. Se ele se esqueces-
se de todos os seus atos não-cognitivos ele não poderia
fazer ato cognitivo algum porque ele perderia o senso de
sua própria continuidade. Memória, continuidade, sujeito,
ego, tudo isto, são noções que não são separáveis — só
abstratamente —, nós podemos separar para fins de análi-
se, mas não quer dizer que estas coisas existam separa-
damente.
Qual é a primeira conclusão? Qual é a primeira lei da
moralidade? Ninguém pode dizer que não é autor de seus
atos - isso é como um princípio moral absoluto. ²Cada um
é autor de seus atos², eis a primeira lei da moralidade; a lei
é apodíctica. Compreender, admitir esta lei como univer-
salmente verdadeira não depende de nenhuma opção mo-
ral prévia. Por isso mesmo que eu acredito que existe a
Moral como ciência independente de qualquer opção —
opção, ou seja, um ato de vontade, onde voce adere a uma
moral cristã, adere a uma moral budista, adere à moral
gramsciana, a qualquer moral —, hoje em dia é tido quase
como uma verdade óbvia e evidente de per si que a Moral
113

não tem fundamento cognitivo e que é impossível uma es-


colha que fixe um valor inicial. Eu estou acabando de de-
monstrar aqui que não é assim, nós podemos encontrar
pelo menos um valor moral que não decorre de uma esco-
lha moral, mas decorre de uma análise da constituição do
sujeito mesmo. O indivíduo é autor de seus atos e pode-
mos dizer que ele não tem o direito de negar que é autor
de seus atos porque tão logo o faça ele não pode estar
mais raciocinando. Se existe algum fundamento para o co-
nhecimento, neste mesmo momento onde ele funda o
princípio do conhecimento, voce fundou o princípio da
moralidade na mesma hora. E este princípio é a continui-
dade da identidade pessoal através dos atos e das recor-
dações.

[ Aluno: isso é uma coisa boa para voce entender a culpa,
não é? ]

A culpa é inerente ao sujeito; onde existir sujeito, existe
culpa. Quem não tem consciência culpada não tem consci-
ência nenhuma: isto é uma mera extensão do princípio da
responsabilidade. Voce tem culpa porque voce fez alguma
coisa que voce já não quer mais ter feito, porque voce não
aprova inteiramente o teu passado. Se voce aprovasse in-
teiramente o teu passado, isso significa que o teu desen-
volvimento temporal segue uma linha inteiramente lógica;
se voce só age logicamente, então voce nunca vai dizer,
²não deveria ter feito aquilo que fiz². Acontece que o de-
senvolvimento temporal real não é lógico. Portanto, voce,
após ter feito, diz que ²não deveria ter feito², ou seja, voce
114

mesmo nota alguma incoerência. Ora, isso aí é fatal, o ser


humano não pode escapar disso aí; na hora em que voce
diz ²não deveria ter feito², voce já está culpado; quem é o
juiz? É voce mesmo; quem é a vítima? É voce mesmo;
quem é o autor do crime? É voce mesmo.
Essa responsabilidade se constituiria inicialmente co-
mo meramente pessoal, ²eu sei que fiz aquilo que fiz², ²eu
sei que agora não gosto daquilo que fiz, preferia ter feito
outra coisa²; então sou eu mesmo que estou julgando, ou
seja, não há a menor necessidade de haver nem uma esco-
lha prévia do valor moral, nem de haver um código moral
exterior que lhe diga o que é certo e o que é errado, por-
que isso aí é inerente à constituição mesma da consciência
humana.
Então, vamos nomear: o primeiro princípio da morali-
dade chama-se princípio da responsabilidade, e ele é uma
decorrência da constituição mesma do sujeito.O princípio
da responsabilidade decorre da identidade pessoal.
Muita gente, na Antropologia atual, diz que a identidade
pessoal não existe, que ela é fruto da introjeção de um pa-
pel social. Mas eu não poderia introjetar papel social al-
gum se eu não me recordasse dele. Por exemplo, está aqui
o meu irmãozinho mais novo e, então, papai e mamãe me
tratam como sendo o irmãozinho mais velho que não deve
bater no pequenininho; como eles me tratam insistente-
mente assim eu acabo por acreditar que eu sou realmente
o irmãozinho mais velho — isto é a introjeção de um papel
social. Há toda uma escola antropológica que acredita que
a identidade pessoal é um papel social; eu digo, não, a
identidade pessoal é uma pré-condição para a aquisição de
115

qualquer papel social, porque se as pessoas me tratam du-


as vezes da mesma maneira, se elas me situam duas vezes
no mesmo papel, como é que eu sei que é o mesmo papel?
E como é que eu sei que aquilo é comigo? Se eu fui punido
duas vezes pelo mesmo erro, então eu começo a introjetar
o papel do sujeito que é responsável por aquele ato em
particular. Mas para poder fazer isso eu já preciso ter a
identidade pessoal e a aceitação de que os meus atos são
meus. Então isso aí é como se fosse um a priori , ou seja, a
aquisição de qualquer norma de comportamento só é pos-
sível porque existe um princípio de identidade pessoal in-
terior, e esse princípio de identidade pessoal se funda na
memória e na diferença que existe entre a vivência de um
ato produzido por voce e de um ato padecido por voce.
Não existe a menor possibilidade de que eu, tendo sido
mordido pelo cachorro, me recorde de ter mordido o ca-
chorro! Não existe a menor possibilidade de eu, tendo caí-
do da cama, me recordar de que a cama caiu em cima de
mim. Quer dizer, a recordação vem junto com uma noção
muito correta da posição do sujeito em relação ao objeto;
ninguém confunde entre sujeito e objeto.
Com isso eu quero dizer que a noção de sujeito e objeto
é inerente à constituição mesma da consciência, por mais
que voce recue ela está lá pelo menos em modo latente.
Claro que ela não se atualiza o tempo todo, por exemplo,
um bebê pequeno vive entre névoas nas quais, na maior
parte do tempo, a noção de sujeito e objeto é indiferente,
mas não quer dizer que ele já não tenha a aptidão para
distinguir entre essas coisas. Por exemplo, ele distingue
entre ele e a mamadeira, ou entre ele e o seio da mãe, tan-
116

to que quando o seio da mãe falta ele reclama; se ele


achasse que o seio da mãe é inerente a ele, jamais sentiria
falta. Na hora em que o bebê chora porque está com fome,
é porque ele sabe que a comida não está na barriga dele.
Isso quer dizer que mesmo um bebê pequeno já tem esta
noção de sujeito e objeto, ele já sabe que algo lhe falta, e
que este algo não está nele. Ou então, algo mais elementar,
por exemplo, se voce sente frio é porque algo lhe falta.
Também se voce não se lembra como é sentir calor, voce
não sente frio algum, não é? Se não há contraste entre o
momento onde está com calor e o momento onde está com
frio, que frio voce vai sentir?
Portanto, não adianta tergiversar sobre este ponto, a
identidade humana é inerente ao sujeito, mas a percepção
desta identidade pode ser atrapalhada em seguida, ou seja,
pode haver um distúrbio na evolução da identidade. Mas, é
claro que os distúrbios não explicam absolutamente nada,
nós não podemos nos basear na idéia de que um sujeito
ficou esquizofrênico para dizer que todos nós somos es-
quizofrênicos.
Se nós entendemos direitinho o quê é a autoconsciên-
cia, então entendemos que o princípio da responsabilida-
de é um princípio universal, e que ele não depende de ser
aceito ou não, porque ele já está aceito. Quando voce recu-
sa a responsabilidade é porque voce já a aceitou antes; vo-
ce só pode recusar a responsabilidade que voce aceitou.
Quando a criança diz que não foi ela que fez aquilo que fez
é porque ela sabe que foi ela que fez. Quando o teu irmão
te bate, voce não precisa mentir para a tua mãe e dizer que
117

voce não bateu nele; voce só precisa mentir quando voce


sabe que foi voce que bateu.
Portanto, essa mentira exige uma reflexão sob o passa-
do, e existe uma grande diferença entre a atitude da crian-
ça que chora porque o irmão bateu nela, e a do irmãozinho
que diz que não foi ele que bateu: o sujeito que apanhou,
sabe que apanhou; e o sujeito que bateu, quer fazer de
conta que não foi ele que bateu; mas ele não pode fazer
isto sem uma reflexão, ao passo que o choro daquele que
apanhou não requer reflexão alguma.
Outra coisa: se o sujeito mente e diz que não foi ele que
fez, algum motivo ele tem. É porque ele espera uma puni-
ção, ele espera uma consequência negativa daquilo que
fez; se não esperasse ele não negaria. Isso significa que is-
so aí exige uma reflexão, e uma reflexão muito complexa,
que só é possível se ela for fundada na autoconsciência e
na admissão da responsabilidade.
Um sujeito só pode se isentar de uma responsabilidade
que de certo modo ele já aceitou e já admitiu. Então, ele,
primeiro admite, e em seguida a renega, por um ato refle-
xivo, porque se nem um único momento ele sentiu que foi
ele que bateu no irmãozinho, nem mesmo na hora mesma
em que estava batendo, então, evidentemente, não se trata
de um sujeito humano, mas de uma máquina de bater. Se
na hora mesma que eu estou lá batendo no sujeito eu não
sei que sou eu que estou batendo, então não se pode falar
de análise da consciência porque aí não há consciência al-
guma. E uma máquina que fosse assim inconsciente, não
pode ser concebida nem mesmo na escala animal, porque
um cachorro quando está brigando com um outro cachor-
118

ro, ele morde o outro cachorro, ele não morde qualquer


coisa — pé de mesa, parede, pedra —, ele sabe qual é o
objeto do seu ataque, e ele persevera atacando o mesmo.
Agora, o cão hidrófobo não é assim, ele não ataca continu-
amente o mesmo objeto, ele morde qualquer coisa, por-
tanto já não existe aquela motivação psicológica, é um me-
canismo fisiológico. Então, a diferença entre um cachorro
que está bravo, atacando um outro, e um cão hidrófobo
que morde qualquer coisa que lhe apareça na frente, e que
morde a esmo, é a diferença entre um ato que tem um
fundo psicológico e outro que já não tem, o outro é uma
mera reação fisiológica, na qual não se pode mais falar re-
almente de um sujeito.
Por mais longe que nós recuemos, nós vemos que o li-
mite de um sujeito é o limite da recordação dos seus pró-
prios atos; não existe sujeito sem a recordação de um ins-
tante atrás, de ter feito algo, e de uma identidade que se
manteve entre o ato anterior e a reflexão de agora. Aí nós
encontramos esse primeiro princípio da moralidade que
denominamos de princípio da responsabilidade. Podemos,
então, deduzir algumas coisas dele.
Se nós anunciamos assim: ²Ninguém pode dizer que
não fez o que fez², voce pode dizer mas não pode admitir
como verdade. Nós também entendemos uma outra coisa,
que à medida que aumenta o volume das nossas recorda-
ções, atender a este princípio pode se tornar mais proble-
mático, porque existe um desgaste da memória. Entre
memória e recordação existe uma diferença: a memória é
a capacidade de recordar, e a recordação é o ato que pro-
move esse retorno da imagem.
119

Todo mundo sabe que não existe somente a memória


mas existe o esquecimento. Se não existisse o esquecimen-
to também não poderia existir memória, porque a memó-
ria é seletiva por sua própria natureza, ela não guarda tudo
uniformemente, ela guarda o que parece significativo, e
significativo a um sujeito. Então, veja que a noção de sujei-
to supõe uma memória, mas parece que a noção de memó-
ria também supõe um sujeito. Aí nós temos que formar
uma síntese que se chama memória pessoal, a memória é
irredutívelmente pessoal, ela está irredutivelmente ligada
a um sujeito em particular, não existe memória anônima.
Então, sendo a memória seletiva por sua própria consti-
tuição, ela só pode funcionar na base do esquecimento do
que pareça irrelevante, desde o ponto-de-vista deste sujei-
to tomado como origem de todos os atos, e como centro de
todos os atos praticados pelos outros sujeitos em torno.
Eu sou o sujeito que produz os meus atos, e os atos alheios
são todos dirigidos a mim, ou seja, tudo o que se passa no
mundo, tudo o que os demais seres humanos e coisas fa-
zem, fazem a mim. Isso me parece bastante claro, não é?
Mesmo aquilo que aparentemente nada tem a ver comigo
está dirigido a mim, por exemplo, se duas pessoas estão
brigando, elas não estão brigando comigo, mas estão bri-
gando diante de mim, ou seja, aquilo que não se passou
diante de mim eu não sei; tudo aquilo que eu sei, é comigo.
Ora, se tudo o que se passa, se passa comigo, só existe um
princípio que me permite selecionar o quê que eu vou re-
ter e o quê que eu vou desprezar: esse princípio é o meu
próprio interesse; eu retenho aquilo que me parece ter a
ver comigo de uma maneira mais significativa, mais inten-
120

sa, mais profunda, e mais direta. E o resto? Eu apago. Por


exemplo, se passou um mosquitinho voando no ar, ele
passou diante de mim, é algo que a mim aconteceu — per-
ceber o mosquito; é claro que o mosquito não voou para
mim, claro que ele não estava se exibindo para mim, mas
ele estava voando diante de mim. Então, ver o mosquito
naquele momento é algo que aconteceu a mim, ou seja, nós
somos o centro de produção dos nossos atos e o centro de
convergência de tudo quanto passa no mundo — cada ser
humano é exatamente isto.
Então, não existem acontecimentos que a gente possa
dizer que são impessoais; acontecimentos impessoais são
acontecimentos que não se passaram para nenhum sujeito
e são radicalmente desconhecidos. Todo e qualquer even-
to que não seja um conhecimento personalizado para ne-
nhum ser humano é para nós o inexistente.
Existe evidentemente uma gradação de interesses que
toma cada um de nós como o centro do mundo e que vai
escalonando os acontecimentos conforme a sua prioridade
ou posterioridade, em relação a este centro de interesse
que sou eu mesmo. Portanto, o esquecimento está na raiz
mesma da memória, porque a memória é perspectivista
por sua própria natureza, a memória tem um centro que é
esse sujeito agente e padecente e tudo nela se articula to-
mando isso aí como centro de perspectiva, portanto exis-
tem graus de proximidade e afastamento na constituição
mesma da memória. Toda memória tem um centro, e o
centro é cada um de nós.
Se, pela sua própria natureza, a memória então implica
esta seleção e hierarquização, e se, por outro lado, o vida
121

humana não tem interrupção — prossegue ininterrupta-


mente, até quando voce está domindo —, a entrada de in-
formações é incessante, e a saída também, está continua-
mente entrando e saindo. Mas, ao mesmo tempo onde eu
tenho a memória e tenho uma identidade pessoal, eu tam-
bém estou existindo no tempo, ou seja, eu também cresço,
eu também mudo, e mudo sem a minha intenção — isto é
fundamental! Uma criança cresce, não porque ela quer
crescer, mas porque ela comeu. Ela não comeu na intenção
de crescer, ela comeu na intenção de satisfazer a fome;
como resíduo involuntário e impensado desta alimenta-
ção, ela cresce, e à medida que ela cresce, ela adquire mais
força agente.
Ora, esse crescimento se dá à margem da nossa consci-
ência, ou seja, nós não estamos conscientes de que esta-
mos crescendo e de que nossa força está aumentando e de
que os atos que provém de nós para fora são em número e
impacto crescente sobre o ambiente em torno. Ou seja, se
eu, quando tinha dois anos, batia no meu irmãozinho de
um ano, eu posso tentar fazer o mesmo quando eu tenho
dez anos com um outro irmãozinho que ainda está com
um ano; eu não percebi que a minha força aumentou, eu
não percebi que eu estou agindo mais sobre os outros; por
quê eu não percebi? Porque este crescimento se dá à mar-
gem de nós, ele é um fato da natureza que nos é imposto
— por assim dizer —, de fora, ele não provém de nós; nós
não somos autores do nosso crescimento.
Assim, como o nosso crescimento se passa à margem da
nossa consciência, muitas outras transformações da nossa
estrutura existencial básica se dão à margem dessa cons-
122

ciência, ou seja, são transformações por que nós passa-


mos, pelas quais não somos responsáveis, porque não fo-
mos nós que as fizemos, e que no entanto, nos serão impu-
tadas em suas consequências. Se eu fiquei mais forte à
medida que cresci, eu não sou responsável por isto, por-
que não foi eu que me fiz ficar mais forte, foi a alimenta-
ção: meu pai e a minha mãe me alimentaram bem, e eu fui
crescendo direitinho e fiquei mais forte; portanto, as mi-
nhas porradas tem um impacto maior sobre o meio-
ambiente do que tinham antes, e aquilo que achavam uma
gracinha quando eu tinha dois anos, começam a achar um
desastre quando eu tenho dez anos.

[ Aluno: e se voce faz exercícios físicos com o intuito de
ficar mais forte? ]

Bom, daí é consciente; é um ato. Mas mesmo que voce
não o faça voce vai crescer de qualquer modo, por um me-
canismo da natureza que se desenvolve à margem da sua
vontade e da sua consciência. Claro que voce pode querer
crescer, mas não quer dizer que voce perceba claramente
o encaixe de causa e efeito entre a sua vontade e o cresci-
mento; o garoto pode pensar que seria bom ele ser o mai-
or, o mais forte, etc, etc, mas isso não quer dizer que ele vá
produzir este crescimento por si mesmo.
Ora, todas essas transformações pelas quais nós pas-
samos e que são incorporadas ao nosso modo de ser, à
nossa revelia, elas se incorporam à nossa pessoa como
meios de ação, ou seja, os nossos meios de ação são cres-
centes. Note bem: esses meios vão sendo aglomerados à
123

nossa pessoa, vão sendo grudados em torno da nossa


consciência, sem que nós percebamos. E à medida que vo-
ce vai dispondo de mais meios as suas ações têm mais
consequências, e voce será responsabilizado por essas
consequências — responsabilizado, agora não por voce, e
sim pelos outros. E os outros têm muita razão de fazer isto
porque ele não se lembram de terem cometido os nossos
atos.
Então, por exclusão, nós entendemos que certos atos e
certas consequências indesejadas de nossos atos são de
nossa responsabilidade, não porque nós nos lembremos
disto aqui, mas porque o meio-ambiente nos recorda dis-
to; são os outros que dizem para nós esta parte ignorada
da nossa história, por exemplo, meu pai e minha mãe per-
ceberam que eu cresci e eles me avisam disto e dizem,
²voce não é mais uma criancinha pequena²; eu não percebi
ter mudado, mas eles perceberam.
Esta parte da nossa história que nos é revelada pelos
outros se incorpora a nós como uma espécie de segundo
escalão, segundo plano da responsabilidade. Isto começa a
fazer uma espécie de tecido externo da nossa pessoa, pelo
qual nós também temos que nos responsabilizar. Por quê
nós temos? Porque ninguém mais vai se responsabilizar...
Ou seja, quando eu como, não é a minha mãe ou pai que
cresce e engorda, então, eles não podem ser responsabili-
zados pelo fato de que eu fiquei mais forte, porque quem
ficou fui eu e portanto as minhas ações têm um impacto
mais pesado sobre o mundo exterior. A consciência moral
vai se formar, em primeiro lugar, dos atos que eu, por mim
mesmo e por minha própria vontade, me lembram de ter
124

feito; segundo, dos dados que são imputados a nós por um


meio exterior.
É evidente que nesse processo de imputação de respon-
sabilidade pode haver erros — podem acidentalmente
me acusarem de coisas que eu não fiz —, porém isso aí é
uma fatalidade, não há como escapar desta coisa. E se por
um acaso me acusam de algo que não fiz, como é que eu
sei que isto é uma injustiça? É porque eu me lembro das
coisas que fiz, ou seja, a injustiça só existe em função do
princípio de responsabilidade; a noção mesma de injustiça
seria absolutamente impossível se eu não tivesse o princí-
pio da responsabilidade. É porque eu me lembro de ter
feito o que fiz que sei que não fiz aquilo que não fiz, e se
por acaso me acusam disto eu sei que não sou eu o sujeito
daquela história, eu sei que estou entrando aí no papel de
um outro, estão querendo vestir em mim a figura de um
personagem que não sou eu, e por quê eu sei disto? Por-
que sei que eu sou eu.
Então, nós podemos tirar daí um segundo princípio. Se
nós temos como um princípio da moral, o princípio da
responsabilidade, nós temos como o segundo, o princípio
da absorção progressiva da responsabilidade imputada: à
medida que eu cresço, me desenvolvo, e adquiro novos
meios de ação, e tenho que assumir a responsabilidade
pelos atos que, embora eu não me lembrando diretamente
de os ter feito, me são recordados coerentemente pelo
meio-ambiente e pelos outros. E isto é um processo cres-
cente.
Nós já temos aí, então, dois princípios que são absolu-
tamente independentes de qualquer opção moral. O indi-
125

víduo tem que ser responsável pelos seus atos, não porque
ele escolheu o Bem, não porque ele escolheu tal ou qual
sistema moral, e não por um impulso de ordem volitiva e
sentimental, não por um ²valor², mas por uma simples re-
alidade. Se o indivíduo existe como sujeito distinto de ou-
tros, se ele tem o seu mundo de recordações pessoais, e se
o seu senso de identidade é intransferível, então sua res-
ponsabilidade também é intransferível.
Veja como nós fomos parar longe desses mandamentos
morais das grandes morais públicas, morais sociais, como
por exemplo, os Dez Mandamentos. “Amar a Deus sobre
todas as coisas” é um princípio auto-evidente? É claro que
não, eu não poderia amar a Deus sobre todas as coisas se
eu não tivesse o princípio da responsabilidade muito antes
de saber desse tal de Deus. ²Amar teu próximo como a si
mesmo²; como é que eu poderia estabelecer uma compro-
porção entre eu e o outro se eu não tenho o meu próprio
princípio da responsabilidade? Na medida onde eu tenha
esta identidade, e onde eu me situo como centro de pers-
pectiva do meu mundo, é que eu posso supor, mais tarde,
que o outro também é um centro de perspectiva no seu
próprio mundo, e que existe uma espécie de encaixe entre
os dois mundos, existem pontos de interseção entre os
dois, nunca totalmente coincidentes, ou seja, nunca nin-
guém participa integralmente do meu mundo interior —
pode ser parcialmente. Eu entendo que posso comungar
de algumas experiências com algumas pessoas, mas difi-
cilmente na mesma posição, e eu entendo que essa inter-
seção nunca pode ser completa, porque senão eu teria que
me recordar dos atos do outro como se fossem meus, ou
126

seja, eu teria que recordar de minha mãe me dando de


mamar como se eu estivesse dando de mamar a ela. Qual-
quer bebê pequeno percebe a diferença disto, tanto que
quando ele fica com fome não é ele quem levanta e vai ao
fogão esquentar a mamadeira para dar à mãe dele, mas
exatamente o contrário. Se ele espera que a mãe lhe dê a
mamadeira é porque não existe uma interseção completa.
Esses pontos de contato entre os eus são muitíssimo
complicados, e eu não poderia jamais chegar a compreen-
der o outro como um ser humano independente de mim se
eu não tivesse inicialmente construído o meu mundo me
tomando como centro, ou seja, um certo egocentrismo in-
fantil é uma condição sine qua non para poder haver o de-
senvolvimento de uma consciência moral. O indivíduo tem
que ser egocêntrico até que ele tenha um domínio sufici-
ente deste seu mundo, até que ele complete — por assim
dizer — um certo senso de identidade, até que ele tenha
firmeza do seu senso de identidade.
Então nós entendemos de certo modo que algumas vir-
tudes morais, que mais tarde são louvadas pelos sistemas
morais, elas nascem precisamente dos seus contrários:
nós entendemos que não poderia existir um altruísmo se
não existisse um egocentrismo inicial. Para que eu possa
vir a ser um altruísta é necessário que eu possa compre-
ender a egocentricidade do outro, para que eu compreen-
da que o outro é constituído da mesma maneira que eu. Só
que isto é muito complicado, e isto só será possível na me-
dida onde prosseguindo nessa evolução da autoconsciên-
cia, o indivíduo completa, a um certo momento, a conste-
lação das pessoas que ele conhece, das pessoas com que
127

ele convive, e tendo distribuído cada um nos seus devidos


papéis — papéis que desempenham com relação a ele —,
ele pode até se dar ao luxo de tentar representar este qua-
dro desde um outro ponto-de-vista. Por exemplo, ao invés
de eu desenhar esta sala desde o ponto-de-vista que eu
estou vendo efetivamente e desde o ponto onde eu estou
sentado, eu posso representá-la desde o ponto-de-vista de
cada um de voces. Porém, eu só posso fazer isso se eu ti-
ver, primeiro, muita certeza da minha perspectiva. Por is-
so que Santo Agostinho fala que as virtudes são feitas das
mesmas matérias que os vícios, por exemplo, o egocen-
trismo é a raiz de muitas virtudes.
A idéia das virtudes surgirá em função do próprio de-
senvolvimento da autoconsciência e como um desenrolar
normal do princípio da absorção da responsabilidade im-
putada. Deste princípio nós podemos deduzir uma outra
consequência que é a de que essa absorção é crescente, e
nunca decrescente. À medida que eu tenho mais recorda-
ções eu vou compreendendo, cada vez de uma maneira
mais nítida, quais são as ações que eu cometo sobre os ou-
tros, e qual é o impacto dessas ações. Aos poucos é que eu
vou adquirindo a medida de até onde as minhas ações vão
em suas consequências. Chega a um ponto onde o sujeito é
capaz de conceber, por exemplo, ²Eu não vou surrar o meu
filho porque não quero que ele tenha más recordações de
mim²; ora, voce lá sabe se ele vai se recordar disso aí? Vo-
ce não sabe, mas voce supõe que sim; supõe que daqui a
20 anos ele poderá conservar aquela recordação. E voce já
preliminarmente e previamente absorve esta responsabi-
lidade que poderá lhe ser imputada no futuro. Ou seja, a
128

absorção de responsabilidade é crescente, e não somente


é crescente, ela vai evoluindo gradativamente da respon-
sabilidade real, efetiva, para a responsabilidade potencial.
Na medida em que se desenvolve a sua faculdade conjec-
tural, a sua possibilidade de voce conjecturar sobre conse-
quências possíveis — e não consequências imediatas —
mas um pouco mais remotas, até consequências longín-
quas, o dever humano é muito claro: voce acaba tendo que
se responsabilizar por tudo o que possa decorrer das suas
ações, até o limite extremo da sua capacidade de conceber
essas consequências.
Portanto, o indivíduo humano passará, desde a pura e
simples recordação de seus atos passados, até à compre-
ensão que abarcará a totalidade das consequências possí-
veis de seus atos, mesmo que esses atos não cheguem a se
manifestar. Claro que voce não pode se responsabilizar
pelas consequências do que voce não fez, mas essas con-
sequências são meramente possíveis e a abstenção do ato
que voce considera mau é uma absorção de responsabili-
dade imputada meramente possível e totalmente imani-
festável.
Colocados os dois primeiros princípios, da responsabi-
lidade e o da absorção da responsabilidade imputada daí
se segue necessariamente toda a Moral, porque o resto é
simples dedução lógica. A ampliação da memória traz ne-
cessariamente a ampliação das possibilidades de combi-
nação: quanto mais elementos voce tem na sua memória,
mais voce pode combiná-los de uma maneira ou de outra.
Portanto, o círculo da sua imaginação também vai se am-
pliando, na medida em que ele se amplia até o limite do
129

seu próprio desenvolvimento, até onde voce é capaz de


supor o prolongamento das suas ações. Pode chegar a um
ponto onde voce compreenda que cada ato seu terá modi-
ficado a história do universo; por exemplo, até que eu dis-
sesse estas palavras, neste momento, estas palavras não
faziam parte da história do universo; este ato que eu estou
fazendo agora, não é somente em mim que ele não existia;
por insignificante que seja o ato, eu o acrescentei ao mun-
do do qual ele não fazia parte, e eu posso dizer que a partir
deste momento a história do universo já está alterada pelo
meu ato.

[ Aluno: isso aí não vem de encontro a uma aula que voce
deu sobre o Lebensraum? ]

O Lebensraum — espaço vital — é um conceito inven-
tado por um psicólogo judeu, Kurt Lewin, que é a esfera
que voce concebe como a dos seus atos possíveis, ou seja,
até onde eu posso agir. Por exemplo, neste momento estou
dando esta aula e eu suponho que posso exercer alguma
influência sobre as suas cabeças; mesmo que o sujeito não
concorde com nenhuma palavra, ele terá sido afetado pelo
que eu falei, quer dizer, o sujeito já está modificado por
aquilo. Então, eu sinto que tenho esta capacidade, mas sin-
to perfeitamente que não tenho a menor capacidade de,
enquanto estou dando aula aqui, influenciar o porteiro que
está lá na entrada da casa; ele está lá perfeitamente indife-
rente ao que estou falando aqui.
A cada momento da tua vida voce tem uma certa medi-
da de até onde as consequências dos teus atos podem ir, e
130

isso aí é que Kurt Lewin chama de espaço vital. Portanto, a


ampliação do espaço vital amplia o círculo da responsabi-
lidade possível.
Então, a cada momento da nossa vida nós temos uma
noção do nosso espaço vital. Pode haver até um estreita-
mento do espaço vital, por exemplo, quando voce chega a
um lugar onde voce é um desconhecido, quando voce não
tem ligações pessoais. Aí realmente voce não pode agir so-
bre quase ninguém, o seu raio de ação é insignificante. À
medida que voce vai estabelecendo ligações seu raio de
ação vai ampliando, e a responsabilidade imputada tam-
bém vai aumentando, e a responsabilidade imputada pos-
sível também vai aumentando.
Então, primeiro princípio, o da responsabilidade; se-
gundo princípio, o da absorção de responsabilidade impu-
tada; e terceiro princípio, o da responsabilidade crescente;
nenhum ser humano pode escapar disso aí. Isso aí não de-
pende de moral budista, não depende de moral cristã, não
depende de coisa nenhuma; não depende nem mesmo do
tal de ²direito natural²; isto aqui é uma exigência ontológi-
ca, é da constituição mesma da consciência humana. Isto
não está nem na natureza nem na força da natureza, isto
não tem nada que ver com natureza e cultura; isto vem da
constituição da existência mesma, da forma de existência
do ser humano.
É claro também que todas as morais historicamente
existentes nada valeriam se elas não se apoiassem nesses
três princípios, que elas desconhecem. Quando o próprio
Deus manda amá-Lo sobre todas as coisas, Ele já está su-
pondo que aquele sujeito com o qual Ele fala tem o princí-
131

pio da responsabilidade, tem o princípio da absorção da


responsabilidade imputada, e tem o princípio da respon-
sabilidade crescente, senão não adiantaria absolutamente
nada. Portanto, aquém do primeiro mandamento, voce
tem o mandamento -1, -2 e -3, e são os verdadeiros man-
damentos básicos que estão pressupostos nos próprios
mandamentos divinos. Nós podemos dizer que esses man-
damentos na verdade são mais divinos até do que os dez
que foram enunciados; estes foram os dez que Deus anun-
ciou no monte Sinai, mas muito antes disso, muito antes
até de Moisés existir, Deus já havia baixado a lei da res-
ponsabilidade, da absorção da responsabilidade imputada,
e da responsabilidade crescente.
Por quê Deus fez isto? Porque Deus é um só; nós pode-
mos dizer que o princípio da responsabilidade emana di-
retamente da unidade do real, não existem duas realida-
des, o real é um todo contínuo, não existem hiatos, não
existem pedaços de irrealidades no meio, estes pedaços de
irrealidade existem apenas como suposição nossa. É a
mesma coisa que dizer que não existe um Nada, só o que
existe é o que existe, só o que existe é a realidade, e esta
realidade é uma só; se fosse duas nós teríamos que supor
um hiato entre elas, uma zona de nada entre essas duas
realidades.
Ora, se a realidade é uma, tudo o que existe, existe sob a
forma de unidade, é o famoso princípio de Dunns Scot, ²o
Um e o Uno se convertem mutuamente², — ens et unum
convertuntur — o ente ( o real ) e o uno se convertem mu-
tuamente, ou seja, são o mesmo conceito, no fundo, são
duas maneiras de dizer a mesma coisa,
132

Tudo o que existe, existe sob a forma de unidade; se for


cortado em dois não existe mais como tal, existe como
elemento de outra coisa.
A realidade é una e ela é composta de unos, ou seja,
existem gradações de unidades: uma unidade absoluta e
várias unidades relativas.
Ora, enquanto sujeito de atos morais o ser humano tem
que ser concebido como unidade absoluta — este é que é o
ponto —, embora nossa unidade seja relativa. Nossa uni-
dade é relativa porque nós não existimos como uma ne-
cessidade absoluta, senão isso significaria que a nossa
existência seria meramente relativa, e portanto a nossa
unidade também. Porém, como sujeito dos seus atos, ou
seja, como fonte da qual emanam os atos, para o micro-
cosmo constituído por estes atos, o ser humano é uma
unidade absoluta; ele é o sujeito total e global de todos os
seus atos, internos e externos, e dos atos meramente pos-
síveis também. Os seus atos meramente possíveis são pos-
síveis para voce e para mais ninguém, portanto, eles exis-
tem como potência sua, e não do outro. Portanto, é lá
mesmo que eles estão.
Eu tenho a impressão que voce pode, se quiser, deduzir
daí todo um sistema moral. O que se poderia alegar contra
esta moral é que ela é uma moral formal — no sentido
kantiano —, ou seja, teoricamente parece que ela não indi-
ca bens nem males precisos, mas apenas ela dá uma fórmu-
la esquemática na qual todos os atos devem se encaixar.
Porém esta impressão é falsa, esta não é uma moral for-
mal, esta é uma moral material: ela indica um bem muito
claro, e este bem é a própria unidade do sujeito. A unidade
133

do sujeito não apenas é uma regra formal dos atos, mas ela
é o bem visado por estes mesmos atos. Quando o indiví-
duo cresce ele amplia o seu espaço vital, ou seja, amplia a
sua própria integridade, a sua própria unidade. Ele forta-
lece essa unidade na medida em que ele a amplia. Já dizia
Aristóteles: tudo aquilo que existe, tende a perseverar na
sua maneira de ser, ou seja, nós crescemos e nos desen-
volvemos para não morrer.
Ora, biologicamente nós estamos condenados a morrer,
porque a sequência dos nossos atos, num certo momento,
vai terminar. Porém, até o momento da morte este círculo
da responsabilidade se amplia, ele não declina. Isto é mui-
to importante, porque biologicamente nós temos um cres-
cimento e depois um declínio. Nós podemos imaginar in-
genuamente que a responsabilidade moral também vai
decrescer à medida que começa o declínio. Mas é o contrá-
rio, porque toda a sua vida anterior já foi vivida, todas as
consequências dos atos ainda estão aí e continuam se
acumulando dia-a-dia. Mais ainda: os meios de ação do
homem não decrescem com a velhice, mas podem ser am-
pliados. Se de fato eles decrescerem, é claro que a respon-
sabilidade diminuirá na medida exata da proporção, não o
grau de responsabilidade, mas a esfera de responsabilida-
de diminui. Mas, a integração da responsabilidade, o fato
dela estar conectada inseparavelmente a aquele sujeito,
isso não diminui, ou seja, até o instante da morte voce é
cada vez mais responsável, até pelo momento da morte,
até pelo que se faz na hora da morte. Por isso mesmo que
a religião cristã coloca o momento da morte como muito
importante, ali voce pode consertar ou estragar tudo o que
134

voce fez antes, ou seja, até a maneira de morrer pode ser


importante. Portanto, o declínio biológico não contradiz o
princípio da responsabilidade crescente.
Por outro lado, eu espero que fique claro que esta inte-
gridade do sujeito, que é o caminho natural e crescente do
ser humano, não é uma mera regra formal, mas ela já é
uma clara indicação de um bem. Os seus atos são imputa-
dos a voce de uma maneira crescente e isto é para o seu
próprio bem, é voce mesmo que quer isto, é voce mesmo
que precisa disto. Daí nós podemos tirar uma série de con-
sequências de ordem psicológica.
Nós entendemos que a repressão da consciência moral,
a repressão da culpa, quando nós não aceitamos as conse-
quências dos nossos atos, todo mundo sabe que a repres-
são da culpa traz consequências lesivas para o homem, ele
perde capacidade de ação, porque ele se divide, até o limi-
te da esquizofrenia. Isso aí é a experiência universal da
psicanálise, onde ela trata de recordar o quê voce fez, re-
contar a sua história e fazer voce, de alguma maneira, ab-
sorver a culpa que voce repelia. Nesse sentido, é muito
correta a observação do grande psicólogo Igor Caruso de
que, o que é reprimido em nós não é o desejo, mas a culpa,
ou seja, é a própria consciência moral que é reprimida. O
desejo nem sempre é desagradável, mas a culpa é.
Este crescimento e integração crescente da responsabi-
lidade é frequentemente um processo doloroso, mas é um
processo que, se abandonado, ele implica a renúncia á
própria existência, ele já é uma ²morte² do ser humano.
Portanto, nós temos aí uma consequência de moral prática
das mais relevantes: é do seu máximo interesse assumir to-
135

das as suas culpas, até a última, por pequena que seja, por
potencial que seja.
A plena compreensão disto aqui talvez requeresse arti-
cular este curso com um outro curso que eu já dei, ou seja,
o ideal seria juntar todos os cursos num só, mas como não
consegui fazer isto até hoje, eu vou ter que dar um resumo
que é a definição do quê é a psique.
Onde voce tenha uma filosofia voce tem tudo emendado
com tudo, porque voce não vai refletindo as coisas por
partes. A possibilidade que voce tenha de isolar um pro-
blema em filosofia é muito pequena, para não dizer nula.
Eric Weil diz que é errado voce falar em filosofia moral,
filosofia política, etc, etc, não existe isso, são nomes que
voce vai colocar a um negócio que é filosofia só. A filosofia
tem um sentido orgânico por sua própria natureza. Então,
é claro que esta reflexão sobre a moral não está indepen-
dente de uma reflexão sobre o quê é a psique.
Para definir a psique eu parti de um método completa-
mente diferente do que eu disse aqui: eu parti do contras-
te entre a multiplicidade das definições de psique que an-
davam pelos psicólogos — que vão desde o Jung que diz
que tudo é psique, até o Skinner que diz que não existe
psique nenhuma — e contrastrei de um lado esta multipli-
cidade autocontraditória de definições da psique, com o
fato de que todos esses psicólogos, embora divirjam das
definições da psique, eles sabem reconhecer quando al-
gum fato psicológico aparece na sua frente. Ou seja, eles
sabem o quê é psique, mas eles não sabem dizer o quê é.
Dito de outro modo, parece que existe uma certa intuição
prévia do quê é o psiquismo, e que essa intuição funciona
136

mais ou menos da mesma maneira em pessoas que têm


conceitos diferentes a respeito do quê é psique.
Juntando as várias definições de psique dadas pelos
psicólogos, no meio de toda a sua contradição, eu procurei
tirar a raiz comum, ou seja, o quê nenhuma dessas pessoas
nega.
Qual é a circunstância na qual se fala de que um ato é
psicológico? Em que contexto, em que sentido se fala isto
aqui? Se fala na hora de explicar a causa de um fato, voce
diz que um fato teve uma causa psíquica, teve uma origem
psíquica. Em primeiro lugar, como gênero, a psique é um
tipo de causa que nós atribuímos ao que acontece. Por
exemplo, se estoura um pneu de automóvel nós não dize-
mos que foi uma causa psíquica, mas se alguém pega um
canivete e estoura o pneu de um outro, tanto o Jung quan-
to Skinner, diriam que isso é um fenômeno psicológico.
Portanto eles sabem que é psicológico, eles dizem coisas
diferentes mas não existe muita diferença entre os psicó-
logos que têm doutrina diferente, na prática tanto do coti-
diano quanto da prática clínica.
Se a psique, para todo mundo, é algum tipo de causa,
em quê ela se distingue dos outros tipos de causa? Em
primeiro lugar se fala de graus de causa; quando dizemos
que existe uma conexão entre uma causa e um efeito, nós
entendemos que por um lado existem as causas de ordem
necessária, ou seja, quando um efeito se segue necessari-
amente, por exemplo, quando voce soma 2+2, necessaria-
mente vai dar 4. Tudo aquilo que é absolutamente neces-
sário faz parte da idéia de necessidade lógica, mas além
desta necessidade, existe um outro tipo que é a necessida-
137

de física, por exemplo, o fato de que os organismos nas-


çam, cresçam e se desenvolvam, declinem e morram, isto
não acontece por uma necessidade lógica, mas acontece
por uma conjunção de fatores, ou seja, dentro de um certo
âmbito, que seria a existência nesse mundo físico, as coi-
sas têm que nascer, crescer, se desenvolver, declinar e
morrer. A necessidade que faz com que isto aconteça não é
uma necessidade de mesmo tipo que faz com que 2+2 dê
4. Não seria inconcebível um mundo onde os organismos
continuassem existindo indefinidamente; nós não conhe-
cemos nenhum assim, mas isso é concebível; entretanto
não é concebível um universo onde 2+2 dê 5. Do mesmo
modo que nós dizemos que é impossível que 2+2 dê 5, di-
zemos que é impossível um burro voar. Nós entendemos
que a impossibilidade de 2+2 dar 5 não é do mesmo tipo
da impossibilidade de um burro voar, porque a impossibi-
lidade do burro voar pode ser eventualmente revogada,
por meios mecânicos, ou por uma variação da gravidade,
ou por uma evolução biológica que crie asas nos burros, e
assim por diante. Nós entendemos que por pesada que se-
ja essa necessidade física ela não é absoluta, então nós
chamamos isto de necessidade relativa.
Além da necessidade lógica e da necessidade física, ou
seja, além da necessidade absoluta e da necessidade rela-
tiva, nós compreendemos que existe uma outra coisa que
se chama acaso, que é quando não há necessidade alguma,
ou quando aquilo que acontece poderia não ter aconteci-
do, mas aconteceu por uma conjunção de causas inumerá-
veis, ou seja, o acaso é uma causa indefinida, não é nem fí-
sica nem lógica.
138

Ora, aquilo que nós dizemos que tem uma causa psíqui-
ca, não obedece a uma necessidade lógica, não obedece a
uma necessidade física e também não acontece por acaso.
Então, o psíquico é para nós um quarto tipo de causa.
Partindo disto aqui, eu continuei fazendo a análise da
intencionalidade, e quando o indivíduo diz que um evento
teve uma causa psicológica, o quê ele está querendo dizer
com isto? O quê ele está percebendo? Qual é o conteúdo
dessa percepção que ele tem? Quais seriam os caracteres
internos desta causa chamada psicológica?
A primeira coisa que nós entendemos é que a causa psi-
cológica só está em um indivíduo, ela não opera generica-
mente, como podem operar as necessidades física e lógica,
ou o acaso, mas só opera a partir de um indivíduo singular,
seja esse indivíduo humano ou não. Claro que causas psi-
cológicas similares podem agir em um, dois ou três indiví-
duos, só que enquanto uma causa está agindo num indiví-
duo ela, por si mesma, não pode operar sobre um outro.
Para que duas pessoas tenham a mesma motivação psico-
lógica é necessário que os mesmos fatos tenham aconteci-
do às duas, de maneira mais ou menos simultânea. Não é a
própria causa psicológica que atua num, que atua no ou-
tro, são vias diferentes, embora semelhantes.
Então, a causa psicológica é, primeiro, individual; se-
gundo, ela é co-extensiva à existência biológica, só existe
causa psicológica naquilo que é biologicamente existente,
morto não age psicologicamente e o inorgânico também
não; terceiro, nós vemos que onde há uma causa psicológi-
ca existe sempre uma continuidade de um antes e de um
depois, ou seja, quando um indivíduo age por algum moti-
139

vo psicológico é em função de algo que vinha lhe aconte-


cendo e que se prolonga no ato. Então, uma certa histori-
cidade é inerente à causa psicológica. Ora, a causa lógica
não é histórica, 2+2 é 4 não porque antes fosse 3, e nem
porque depois vai ser 5. Então o tempo está onde estiver
causa psicológica.
Onde existe tempo, existe a continuidade do sujeito; só
existe causa psicológica onde há continuidade do mesmo
sujeito psicológico. Mas essa continuidade não é de tipo
lógico, porque o indivíduo pode agir incoerentemente com
seu procedimento anterior. Se ele age incoerentemente
com o seu procedimento anterior isso não significa que
houve uma ruptura de sujeito, mas simplesmente que a
situação anterior lhe oferecia três, quatro ou dez alterna-
tivas, algumas coerentes com o procedimento anterior,
outras incoerentes, e ele foi por uma delas. Porém, embora
não haja coerência lógica entre o antes e o depois, existe
sempre uma conexão qualquer, por exemplo, se voce nega
o seu procedimento anterior, se voce nega a sua escolha
anterior, voce não se desvinculou dela; se voce estava indo
para frente e decidir ir para trás, o sujeito que veio para
trás é o mesmo que estava indo para frente, ou seja, voce
voltou atrás no tempo, não existe ação contraditória neste
sentido, ela vai num sentido e depois ela volta, ela se con-
tradiz no tempo, havendo continuidade do sujeito.
Nós entendemos que onde a ação possa ser explicada
unilateralmente pela necessidade lógica, pela necessidade
física, ou pelo acaso, nós não temos causa psicológica al-
guma. Portanto, a causa psicológica é a introdução de um
outro elemento; esse elemento é individual, é histórico, é
140

co-extensivo com a continuidade do sujeito, e tem com os


atos anteriores, tem com o passado, uma relação que pode
ser de continuidade lógica, de descontinuidade lógica, de
oposição, de contradição, de complementação, pode ter
qualquer relação lógica, não relação de consequência lógi-
ca, como uma dedução, pode ter essa entre outras, a pró-
pria contradição é uma relação lógica; mais ainda, nada
determina se o ato seguinte será logicamente coerente,
logicamente incoerente, com o anterior, exceto o próprio
sujeito.
Então, entendemos que se a causa psicológica é co-
extensiva com o próprio indivíduo, só existe causa psico-
lógica onde somente aquele indivíduo seja causa do que
está fazendo. Se algum outro elemento fora dele for causa,
então esta causa não é psicológica mais; por exemplo, se
eu te dou um empurrão e voce cai, esse seu ato de cair não
é psicológico, mas o meu ato — o empurrão — foi psicoló-
gico! Também, por exemplo, quando voce põe o dedo na
direção do olho do sujeito e ele psica, este psicar não é
psicológico, é um reflexo, porque ele foi causado pela so-
matória de um ato externo com um reflexo que já estava
montado interiormente em voce.
Porém, em seguida de eu te ter empurrado, colocado o
dedo na direção do teu olho, voce tem alguma reação per-
sonalizada, ou seja, voce pode ficar intimidado, pode ficar
bravo, irritado, pode não ligar — nada determina isto. En-
tão é por acaso? Não, porque isto não é por sorteio; existe
um ponto onde somente aquele indivíduo decide o quê vai
fazer. Então, só podemos dizer que existe um ato psicoló-
gico onde existe um fundo de liberdade no sujeito. O quê
141

significa esta liberdade? Significa que ele é causa. Então,


psicológico é a potencialidade que certos entes têm de ser
a única causa de seus atos. Por exemplo, vamos supor um
cachorro deitado no chão e eu me aproximo dele; ele pode
continuar deitado e não ligar para mim, ele pode abanar o
rabo, ele pode ficar bravo, ele pode sair correndo, e pode
ser que o mesmo cachorro, em diferentes momentos, te-
nha cada um desses procedimentos, por isso existe um
elemento psicológico neste ato, este elemento é irredutível
a qualquer causa fora dele; mesmo a história anterior dele
não explica completamente aquele ato, porque a história
anterior somente limita o número de atos possíveis — li-
mita, mas não determina qual ato que ele vai fazer. A situ-
ação anterior lhe dá um repertório de possibilidades —
quatro, cinco, seis, ou dez —, e aquele indivíduo, seja hu-
mano ou não, tem uma margem de manobra, ele introduz
um elemento, que nós podemos dizer criador, um elemen-
to imprevisto, e é isto mesmo que é psicológico.
Deste curso de psicologia, sugiria um outro curso —
que eu não dei ainda — que seria o de psicopatologia,
porque onde voce tem a definição da psique voce tem a
definição da patologia psíquica também. A patologia psí-
quica é simplesmente o estreitamento da psique, ou seja,
atos que poderiam ser psíquicos, passam a ser determina-
dos por causas não-psíquicas. Então, o elemento de neces-
sidade física, de necessidade lógica, o elemento de acaso,
vai aumentando, ele vai estreitando a psique.

Voltando ao nosso curso de Ética, se houve estreita-
mento da psique, houve estreitamento da responsabilida-
142

de. Mas é evidente que isto é um mal, tanto que ninguém


quer isto, porque isto é perda da sua própria identidade.
Isto pode acontecer como um resultado indesejado, im-
premeditado, das suas ações, e inclusive, o nível de con-
tradição no qual o ser humano vive é tal e tão confuso — a
vida humana é tão vasta e tão variada — que pode aconte-
cer que aquilo que num certo momento serviu para con-
servar a integridade da sua psique, no instante seguinte se
volta contra ela: é o que se chama por exemplo em psica-
nálise, as defesas.
Defesa é voce tampar a consciência para ela não perce-
ber algo que naquele momento é forte demais; mas essa
defesa pode criar um reflexo que impeça voce de perceber
aquilo eternamente. Então voce criou uma ruptura, voce
criou para voce mesmo uma impossibilidade de tomar
consciência de alguma coisa. Esta impossibilidade pode
ter, num momento, te defendido, mas se conservada um
minuto para além do instante em que aquilo é útil, é que
se torna lesivo, e depois voce tem que fazer psicanálise
para desmontar as defesas. Todo psicanalista sabe que o
homem doente tem mais defesas do que o homem são. Por
exemplo, uma certa vulnerabilidade à crítica, às vezes o
neurótico não tem; ele apagou tão bem a sua capacidade
de se sentir magoado, ou de se sentir decepcionado consi-
go mesmo, até que ele não absorve mais aquele gênero de
informações — isso aí, de fato, o neurótico tem muito mais
do que uma pessoa sã. O indivíduo são é mais maleável,
mais plástico, e tem mais liberdade do que o neurótico.
Mas essa liberdade é a liberdade da coisa viva, enquanto
voce está vivo voce está mudando, portanto voce não pode
143

garantir a coerência integral de tudo o que voce vai fazer.


O sujeito perfeitamente coerente é louco, é um Robespier-
re: voce tem a lógica, bota duas viseiras, e vai só naquela
direção.
A coerência que é exigida do ser humano não é uma co-
erência lógica, é uma coerência existencial, uma coerência
biográfica, é a mesma coisa que dizer uma coerência bio-
lógica e não, lógica. É a coerência de uma história e não a
coerência de uma dedução lógica. É um coerência tempo-
ral, é uma história que voce está inventando e desempe-
nhando ao mesmo tempo, e que idealmente será uma his-
tória com começo, meio e fim.
Para isso nós teríamos que entrar num outro lado que
seria o tema predileto do Ortega y Gasset que é a estrutura
da vida humana, a vida como biografia, a qual posso dizer
que neste ponto da dedução eu a incorporo, eu a encaixo
aqui. Tudo que o Ortega y Gasset — sobretudo o seu discí-
pulo Julián Marias — fala sobre esse elemento biográfico
do ser humano, a sua historicidade pessoal, eu acho que
tudo aquilo é verdade, e pode ser incorporado neste peda-
ço aqui.

Onde existe lesões da memória, existe uma restrição da
liberdade humana também. É o caso do eletrochoque; o
sujeito leva um, dois, três eletrochoques, ele está lascado,
ele não consegue remontar a historicidade pessoal, então
a margem de manobra vai diminuindo, e com isso aumen-
ta a interferência de causas não-psíquicas, por exemplo,
causas de ordem reflexa; um monte de automatismos re-
144

flexos que age num doente mental é impressionante! E


agem por si mesmas, sem perguntar nada para ele.

A absorção completa e crescente da responsabilidade é,
não só o caminho do Bem, mas é o caminho da saúde men-
tal. Eu acredito muito que a noção de saúde mental tenha
um fundo ético, um fundo moral; eu digo que um homem é
um ser moral não porque ele quer, não por uma livre esco-
lha — como diz Jean-Paul Sartre —, mas é porque é, ele
não tem essa liberdade de não escolher, ele não tem a li-
berdade de não responder por seus atos. Voce tem a liber-
dade de fazê-lo mas não de continuar a ser livre; voce tem
até a liberdade de abdicar da liberdade, mas voce não po-
de abdicar dela e continuar a possui-la ao mesmo tempo. O
preço da liberdade é a eterna vigilância...

[ Aluno: tem gente que usa o recurso de ²pirar² quando
não consegue arcar com alguma responsabilidade...]

²Pirar² só vai dar dois trabalhos: além de voce ter que
enfrentar o problema que surgiu, voce vai ter que enfren-
tar o problema da ²piração² também. E se voce não en-
frentar, alguém vai ter que enfrentar por voce. Na medida
em que começam os outros a assumir as responsabilida-
des pelos teus atos, voce é retirado da esfera humana. Re-
tirado, atualmente, e não potencialmente. Se o sujeito ²pi-
rou², nós ainda reconhecemos nele a potência humana. Is-
to significa que teoricamente ele pode recuperar, mas é só
teoricamente porque, na prática, eu nunca vi isso aconte-
cer. Passado um certo limite, ²babau²...
145

Daí voce tira o conjunto da Ética teórico-prática, mas


tira conclusões incríveis para a esfera da psicologia práti-
ca, da própria psicoterapia, etc, etc. O que nos restaria fa-
zer seria tirar eventualmente algumas conclusões disto
aqui para a ética social. Claro que estas conclusões não
podem ser diretas, ou seja, não cabe a nós aqui, tendo es-
boçado os princípios da Ética, deduzir como é que deve ser
organizada a sociedade humana. Em primeiro lugar por-
que existem bilhões de maneiras possíveis de organizar e
todas elas devem estar mais ou menos certas; nenhum in-
divíduo tem a capacidade para julgar todas as éticas soci-
ais, julgar tudo o que a humanidade pensou até hoje e di-
zer que o certo é assim e que o errado é aquilo, isso não
tem o menor cabimento. Porém, existem algumas exigên-
cias de ordem universal que devem ser formuladas a qual-
quer ética social, ou seja, o limite que elas não podem
transpor, o limite onde o legislador público, mesmo que
seja portador de uma lei revelada, mesmo que seja um
profeta, não pode transgredir, que é o limite justamente
desses três princípios. Se Moisés, quando trouxe as tábuas
da lei, do alto do monte Sinai, trouxesse onze leis, e a dé-
cima-primeira infringisse o princípio da responsabilidade,
o princípio da absorção da responsabilidade imputada e o
princípio da responsabilidade crescente, ela estaria auto-
maticamente revogada na mesma hora, ou seja, nem Deus
poderia obrigar o homem a fazer isto porque seria auto-
contraditório, e se anularia a si mesma.
Então, qualquer moral social tem que, em primeiro lu-
gar, prestar satisfação a esses três princípios; qualquer
uma que viole qualquer desses princípios ela não precisa
146

nem ser combatida porque simplesmente ela não será le-


vada à prática, será aquela coisa que todo mundo fala mas
ninguém vai fazer. Já existiram muitas morais sociais que
trouxeram aos seres humanos obrigações impossíveis e
nessas situações as pessoas vão fazer de conta que cum-
prem aquelas obrigações, mas não vão cumprir e, logo, lo-
go, a coisa fica abolida.
Agora, esse ²logo, logo² pode demorar um pouco, por
exemplo, a moral bolchevique não foi cumprida, mas du-
rante 80 anos as pessoas fingiram que cumpriram, e deu
um trabalho desgraçado.... Mas isso aí é uma neurose cole-
tiva evidentemente, ficou todo mundo louco.
Essas morais são teoricamente absurdas e praticamen-
te inviáveis, mas o ser humano tem a opção de levar uma
vida falsa se quiser, ele tem a opção de abdicar da liberda-
de, tem a opção de ²pirar², e disso aí nenhuma filosofia do
mundo vai nos livrar. Todos os filósofos gostariam que as
pessoas fossem todas coerentes e que, como diz Platão,
²Verdade conhecida, verdade obedecida²; sim, isto está
muito certo, porém, que sentido teria esta frase se eu já
estivesse automaticamente obrigado a reconhecer a ver-
dade, se eu não tivesse o poder de mentir? Não teria senti-
do algum. Faz sentido Platão dizer isto porque nós temos a
possibilidade de desobedecer à verdade, ou seja, esta pos-
sibilidade de desobedecer à verdade é um dos fundamen-
tos do próprio dever de obedecê-la. Portanto, não tem jei-
to de voce tornar as pessoas racionais para sempre, isso
também seria autocontraditório.
A incoerência, a ²piração², a propensão contínua que o
ser humano tem de jogar a liberdade pela janela, de abdi-
147

car da verdade, de abdicar da própria vida, isto tem es-


candalizado os filósofos, mas eu acho que já está na hora
deles aprenderem que isso aí não tem conserto e não pode
ter. Agora, tem aquele negócio, periat mundus, fiat philoso-
phia — que pereça o mundo, mas que se realize a filosofia
—, essa é a filosofia do Robespierre, ²A minha filosofia es-
tá certa, dane-se o mundo; que morra o mundo mas isso aí
tem que ser feito!² Eu acho que é o contrário, toda filosofia
que impõe isto está revogada automaticamente.
A filosofia não é uma filosofia por partes, e também não
é uma coisa completa no sentido de que voce quer abarcar
tudo; ela abarca tudo porque tem um centro. Toda filosofia
é sistêmica e orgânica por sua própria natureza. Hoje em
dia muitos professores de filosofia vão dizer que o tempo
do sistema filosófico já passou, etc, etc; talvez já tenha
passado o tempo de voce escrever sistemas filosóficos, en-
tão voce só escreve sobre temas específicos. Mas esta re-
flexão sobre temas específicos contém implicitamente to-
da uma organização, ou seja, toda filosofia sobre qualquer
coisa ela é sobre tudo, mesmo que o sujeito não goste, por
uma inclinação pessoal, de dar um tratamento sistêmico
como, por exemplo, a Suma Teológica de Santo Tomás de
Aquino — voce põe lá os princípios e voce vai desenvol-
vendo desde o universal, etc, etc —, ou como Hegel. Então,
o sujeito vai partir de problemas particulares, mas, impli-
citamente, o sistema já está dado ali, e não tem como es-
capar disso aí. Se a realidade é uma, se o filósofo reflete
inclusive sobre si mesmo, e se esse ²si mesmo² é um só, se
a mistura dele está encaixada, organicamente conectada,
148

como é que ele vai escapar do sistema antigo? Não tem


como escapar...
Este curso de psicologia eu dei a dois anos atrás; quan-
do eu estava dando o curso, esta moral já estava implícita
lá, embora eu não tenha falado nada. E na hora em que eu
estou dando aqui os elementos de psicologia, que só men-
cionei por coincidência, por causa de uma pergunta, ele
estão imbricados aqui dentro; não tem como escapar disso
aí.

[ Aluno: as ciências então seguiriam o caminho contrário,
que é sobre objetos particularizados, ou pelo menos defi-
nidos assim? ]

Não, eu parto do princípio de que as ciências não exis-
tem. O que existe é o seguinte: na hora onde, pela reflexão
filosófica, voce conseguiu delimitar um certo campo, pro-
visoriamente, e voce conseguiu estabelecer critérios e mé-
todos para aquele campo, de modo que o restante da in-
vestigação daquilo possa, durante algum tempo, seguir
uma linha mais ou menos pré-determinada, é isso que nós
chamamos de ciência. Essas estabilizações são provisórias.
O quê são seres? Seres são cristalizações parciais e
momentâneas da investigação filosófica. Para mim não
existe ciência, só existe filosofia. Nas ciências, na hora que
voce conseguiu esclarecer alguns conceitos então voce
tem um campo e um método, e esse método pode depois
continuar sendo aplicado sem necessidade de uma nova
reflexão sobre seus fundamentos durante algum tempo.
Tão logo aquele campo vai se integrando e se expandindo,
149

ele chega num certo limite, e daí a questão dos fundamen-


tos daquele conhecimento voltam a ser colocados.
Então, a ciência se estabiliza como cristalizações tem-
porárias, depois elas voltam a ser dissolvidas dentro do
mar da filosofia.
Essa coisa de falar filosofia e ciência isso é bobagem,
ciência é filosofia, evidentemente. Ela é apenas um aspecto
mais fácil e, por assim dizer, até mais ²mecanizável² da
investigação filosófica, mas parcialmente. Por exemplo,
todo aquele imenso esforço que eu fiz a respeito da Astro-
caracterologia é para conseguir estabilizar um certo cam-
po e permitir que ele seja pesquisado de uma maneira uni-
forme, para a gente poder adquirir o tipo de certeza lógica
sobre aquilo.
Se voce conseguir fazer aquilo, bom, aquilo prossegue,
voce tem um campo, tem um método, tem um critério, bas-
ta aplicar e vai até um certo ponto; daqui a pouco o negó-
cio ²embanana² e voce tem que discutir tudo de novo, por
mais bem organizada que seja a ciência.
A Física, por exemplo, delimita um campo, e cria um
método e um critério, e vai progredindo; daí é um beleza,
porque é uma descoberta atrás da outra, voce não precisa
mais recolocar os fundamentos, voce pode investigar os
fatos. É uma maravilha voce poder lidar com os fatos, mas
para lidar com eles voce primeiro precisa criar todo um
arcabouço de conceito; daí a pouco quando esses fatos
começam a aumentar eles começam a contradizer os pró-
prios fundamentos. Então, voce tem que refluidificar aqui-
lo dentro da experiência filosófica. Eu acho que existe uma
continuidade perfeita entre uma coisa e a outra; é uma
150

pulsação que vai para as ciências e que volta para a filoso-


fia, e isso sempre foi assim. Então, o próprio fato de querer
demarcar essas modalidades de conhecimento como se
estivessem num mesmo plano eu acho uma bobagem, não
leva a nada, só cria mais dificuldades.

[ Aluno: é fácil voce perceber quando que uma ciência está
precisando voltar para seus fundamentos? ]

Sim, é fácil de perceber, porque o negócio vira uma ²sa-
lada², os caras começam a descobrir coisas onde uma não
bate com a outra; mas isso demora...
Veja, não pode existir conhecimento científico definiti-
vo, por definição, porque a delimitação que voce faz de um
campo, tem que ser provisória, ela é feita só para fins prá-
ticos porque nenhum campo está perfeitamente delimita-
do nunca. Voce delimita de acordo com o que voce sabe da
relação entre esse campo de conhecimento e os outros.
Mas basta voce ficar sabendo mais alguma coisa em qual-
quer um dos outros campos isso já repercurte aqui e já
embaralha tudo. Então, são organizações provisórias; toda
e qualquer ciência, não só o conhecimento que ela produz
é provisório mas o esquema mesmo de conhecimento que
constitui aquela ciência também é provisório.
O sujeito confunde o que é a eficácia prática com o que
é clareza teorética. É aquela estória do Maguila: ²Qual é a
sua estratégia?², e ele, ²Meter a porrada na cara do sujei-
to...²; na prática funciona, mas se voce perguntar para o
Maguila por quê a porrada dele funciona, por quê ela é efi-
caz, ele não precisa ter a menor idéia, basta dá-la! A partir
151

da hora que ele descobriu esta conexão de causa e efeito


ele sabe que dando uma porrada no nariz do sujeito, ele
quebra e pronto!
É um mundo muito primtivo esse que confunde a efici-
ência técnica com a clareza teorética. Uma coisa não tem
nada que ver com a outra: voce saber fazer uma coisa, não
quer dizer que voce saiba a conexão dela com todas as ou-
tras. Se fosse assim, ninguém nunca poderia chegar a sa-
ber nada; uma criança para dar uma respirada precisaria
saber a fisiologia da respiração, mas para ela saber a fisio-
logia da respiração ela precisaria já estar respirando, en-
tão não ia dar!
A técnica visa a produzir fatos, e não a explicá-los. Ela
pode produzir inclusive — e na realidade ela produz —
coisas ainda mais inexplicáveis! Fatos complicam o ambi-
ente humano, quanto mais fatos acontece, mais complica-
do fica, ou seja, quanto mais efeitos voce produz menos
voce está entendendo o quê está se passando. Às vezes o
sujeito se abstém de produzir fatos para a coisa não ir
muito além da zona que ele compreende, senão vira um
aprendiz de feiticeiro — é um pouco o que acontece hoje.
Voce começa a produzir fatos, um atrás do outro, e voce
não sabe mais até onde vão as consequências do que voce
fez. É por isso que o sujeito ser muito poderoso é um pro-
blema, porque às vezes ele não sabe até onde vão as con-
sequências dos seus atos. O sujeito fica o ²grandão-bobo²,
ele acha que ele é um fraquinho.. é como a vaca que vai se
coçar no muro e derruba o muro; ou então um mosquito
pica a vaca, ela sai aterrorizada, derruba a cerca, derruba a
152

casa, mata meio mundo e ela acha que quem está correndo
perigo é ela!
Então o sujeito virou um idiota, ele está produzindo
efeito atrás de efeito, e ele está morrendo de medo, achan-
do que a vítima é ele. Mas ele não é a vítima, ele é o centro
agente! Quer dizer, voce já virou um centro agente, voce já
perdeu a medida, então às vezes é melhor voce ter muito
menos poder mas saber até onde a coisa está indo. Não
pode é cair na impotência total, voce ficar totalmente con-
templativo, só pode saber e não pode fazer nada. Daí é
grave...
Veja, eu sou radicalmente contrário a voce ensinar para
a criança, na escola, o princípio da ciência atual, porque
em quinze anos tudo é diferente, tudo o que aprendeu já
não vale mais. Voce tinha é que aprender é esses conceitos
básicos, aprender a parte filosófica mesmo; Platão tinha
razão: filosofia é educação; o resto voce aprende sozinho,
na hora!
Eu estudei muito pouco na minha adolescência, eu tinha
horror de estudar o que quer que fosse, eu só queria saber
de me divertir, ir a baile, namorar, e fiz muito bem... por-
que eu conservei a minha capacidade de aprender mais
tarde; eles levaram sete anos para me ensinar uma coisa
que, hoje, eu aprendo numa semana. Por exemplo, uma
língua que tentaram te ensinar em vão; se voce tiver uma
mente bem formada e decidir aprender a língua em um
mês, voce já sabe os fundamentos pelo menos. Então, para
quê valeu a pena gastar sete anos numa coisa que mais
tarde o sujeito poderia aprender muito melhor?
153

Quando eu era adolescente, as únicas coisa que me in-


teressavam eram as coisas que diziam respeito diretamen-
te à vida humana real, às coisas onde havia dramaticidade,
problema humano: por quê as pessoas ficavam infelizes;
por quê as pessoas brigavam; isso aí realmente me inte-
ressava, mas isso não era ensinado. Pergunto eu: existe
alguma coisa mais importante do que isso? Então eu esta-
va interessado na única matéria que de fato interessa, e na
única que continua igual desde aquele tempo até hoje. En-
tão, eu sou muito grato a dois ou três professores que fala-
ram disto; por exemplo, no curso de História, eventual-
mente alguma decisão que algum personagem teve que
tomar e teve que ser explicada psicologicamente, nesta
hora eu acordava do meu sono letárgico e me interessava
pela coisa.
E vejo que isso aí conservou porque eu tinha um pro-
fessor que falou muito sobre a Revolução Francesa e ele se
detinha nesses momentos de decisão dos grandes perso-
nagens, e eu me lembro dessas aulas até hoje. Mas só des-
sas...










154



CURSO DE ÉTICA


Aula do dia 01 de novembro de 1994
( sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )


Refazendo, às avessas, o trajeto percorrido por nós, in-
do da conclusão ao começo, podemos partir daquele prin-
cípio que obtivemos, que é o princípio da responsabilidade
como uma evidência moral, de tipo apodíctica. Como que
nós chegamos a ele? Pelo método cartesiano: tentando du-
vidar e vendo a absoluta impossibilidade, primeiro, de o
ego cogitante se conceber a si mesmo como destituído de
memória porque, neste caso, ele não poderia se conceber
como sujeito de um pensamento discursivo — o pensa-
mento discursivo é aquele que, ao contrário da percepção
intuitiva, procede por etapas, ou seja, ele tem um antes e
tem um depois. Se esse famoso ego cogitante não tivesse
memória, entre a premissa e a conclusão do seu raciocínio
ele já teria se esquecido de si mesmo — ao invés de
dizer “Penso, logo existo”, ele diria “Penso, logo...”, ele teria
que voltar ao “Penso” novamente porque não poderia che-
gar à conclusão. Ou seja, a percepção humana do nexo en-
tre conclusão e premissa é uma ligação que se dá no tem-
po, o que subentende não só a memória mas já a identida-
de pessoal. Ou seja, o núcleo do ego cogitas não está bem
155

onde Descartes o colocou, mas está colocado um pouqui-


nho para trás.
Quando ele diz que não pode duvidar de que duvida nós
somos obrigados a discordar, porque nós vimos que a dú-
vida é um estado de alternância entre duas certezas con-
traditórias. Portanto, a dúvida não é propriamente um es-
tado no qual voce possa estar, permanecer, ela é um mo-
vimento e não um estado — seria antes um não-estado.
Ora, esta continuidade de consciência significa que voce
responde por aquilo que voce pensou como autor daque-
les pensamentos, ou seja, voce distingue o que foi produ-
zido por voce mesmo, o que é ato seu, e o que voce recebe
pronto do mundo. Se eu digo que “Eu penso”, ou que “Eu
pensei”, eu sei que aquele pensamento é obra minha
mesmo — não como os objetos do mundo exterior que se
oferecem a mim de uma maneira autônoma e independen-
te —, os meus pensamentos não são autônomos, eles exis-
tem na medida em que eu os penso, e só existem quando
eu os penso, portanto eu sei que eu sou o autor deles.
Daí é que nós tiramos essa idéia de que a consciência e
a responsabilidade pelos próprios atos estão ligadas de
maneira inseparável. Não é possível nenhuma consciência
de nada sem esta pré-condição da responsabilidade pelos
próprios atos, ou seja, voce assumir que voce fez aquilo
que fez, que voce pensou aquilo que pensou, que voce
imaginou aquilo que imaginou, que sentiu o que sentiu,
que quis o que quis.
Daí, eu acho que encontramos um chão para baixo do
qual nós não podemos ir; não há nenhum meio de prosse-
156

guir esta análise mais um pouco, isso se impõe como um


muro intransponível.
Então, nós encontramos junto com o princípio cognitivo
básico — o ego cogitans — um princípio moral. Note bem,
todas as refutações que se fizeram do ego cogitans mais
tarde só foram possíveis porque Descartes se esqueceu
deste detalhe: se ele tivesse percebido esta inseparabili-
dade entre consciência e memória, e entre memória e res-
ponsabilidade pessoal, ele teria realmente encontrado o
princípio apodíctico, irrefutável, inderrubável, de todo e
qualquer conhecimento.
Então, o verdadeiro princípio do conhecimento é este: a
consciência humana, individual, acompanhada, e na ver-
dade constituída de uma responsabilidade pelos próprios
atos, sobretudo pelos atos interiores. É precisamente nisto
que consistem aquelas velhas sentenças, como por exem-
plo de Santo Agostinho quando diz que, “a verdade habita
no interior do homem”, ou seja, o primeiro princípio que
nós podemos descobrir como verídico — e é o princípio de
toda verdade —, é o princípio da sua própria responsabi-
lidade pelos seus pensamentos, voce sabe que voce existe,
voce sabe que voce pensou, e voce não pode se conceber
nem independente de tempo — pode até se conceber in-
dependente de espaço, fazendo abstração dos sentidos,
mas independente de tempo, não. Quando voce toma co-
nhecimento desta continuidade básica que voce chama de
sua própria biografia, aí voce encontrou um chão abaixo
do qual voce não pode passar de maneira alguma.
Então, o primeiro princípio cognitivo é, ao mesmo tem-
po, o primeiro princípio moral, e nós entendemos que as-
157

sumir a responsabilidade pelos próprios pensamentos é a


condição sine qua non de qualquer conhecimento, até de
nós podermos continuar este mesmo raciocínio. Fora dis-
so, não apenas nenhuma discussão é possível, como ne-
nhuma comunicação humana é possível, ou seja, se eu co-
meço a minha frase e ao terminá-la já não sei que sou eu
quem está falando então nós entramos no reino da fanta-
sia macabra, e este é um princípio que nenhum cético, por
mais radical que seja, pode negar seriamente.
Ora, se o primeiro princípio da ordem do conhecimento
é, em si mesmo, um princípio moral, isso significa que a
moral tem um fundamento objetivo, tanto quanto qual-
quer outro conhecimento. Uma vez tendo formulado este
princípio da responsabilidade, nós podemos verificar que
ele está presente em todos os sistemas morais, os mais di-
versos e os mais antangônicos possíveis; não existe ne-
nhuma possibilidade de que em algum recanto deste
mundo tenha surgido uma comunidade na qual se consi-
derasse que as pessoas são sistematicamente irresponsá-
veis por seus atos, e que os atos de um sujeito devam ser
sistematicamente atribuídos a outro. Esta é uma hipótese
na qual nenhum ser humano jamais acreditou nem acredi-
tará jamais. Basta voce perceber isso para voce entender
que esse princípio da responsabilidade é logicamente ne-
cessário e é, por assim dizer, extensivamente universal,
nunca houve quem o negasse.
Mas se isso é assim tão óbvio, de onde surgem tantas
dúvidas a respeito da objetividade do conhecimento mo-
ral? Hoje, em qualquer faculdade, voce vai receber tonela-
das de relativismo como se fosse uma verdade sacrossan-
158

ta, inabalável, ou seja, todos os sistemas morais são relati-


vos, todas as morais estão condicionadas a determinadas
situações sociais, são uma mera expressão da vida política.
Eu digo que não; isso aí, mesmo que voce supusesse um
Robinson Crusoé, um sujeito totalmente isolado, ainda es-
te estaria obrigado por este princípio moral.
Então, contrastando, de um lado, a evidência do que nós
obtivemos, e o estado geral de negação desta evidência,
nós vemos que temos aqui um problema, uma coisa inex-
plicável: como é possível que uma coisa tão auto-evidente
seja tão sistematicamente negada. Eu acho que ela é nega-
da justamente pelo seu próprio caráter inelutável, voce
não pode lutar contra este princípio, e por isso mesmo ele
se impõe a voce como um peso, que te esmaga, e há mo-
mentos onde voce desejaria que isto não fosse verdade.
Em que momentos? Naqueles momentos onde voce não
deseja responder pelos seus atos, não deseja responder
pelo seu passado, não deseja responder pela sua própria
biografia, ou seja, na hora em que voce mais se odeia. Co-
mo é muito fácil do homem se odiar, como é muito fácil
dele ter errado muito e ele desejar suprimir todo o seu
passado e começar do zero, é justamente nessas horas que
ele tenta negar a objetividade do conhecimento moral pa-
ra poder, junto com ela, negar a própria continuidade da
sua identidade, ou seja, eu desejaria não ter sido aquele
que fez tal ou qual coisa, eu desejaria começar do zero. É a
hora que nós percebemos que nós nunca começamos do
zero, que não existe “começar do zero”, que o passado, as
consequências dos seus atos estão todas aí —, mesmo da-
159

queles atos que Deus te perdoou, isto não quer dizer que
Ele apagou as consequências da ordem material.
Então, este princípio revela a nossa prisão ao mundo do
espaço-tempo, revela a nossa ausência de uma liberdade
absoluta. Ele mesmo limita a nossa liberdade severamen-
te, ou seja, nós podemos ter alguma liberdade a partir do
momento onde aceitamos isso, se rejeitamos, perdemos
toda a liberdade. É justamente por este princípio ser ines-
capável que eu o considero o começo, a origem de todo
senso da realidade. Se nós começamos a entender que nós
estamos num mundo real é na hora que nós entendemos
que nossos atos não se apagam. Isso pode demorar um
pouco para nós percebermos, mas um dia voce percebe
que aquilo que voce fez foi voce mesmo quem fez. Quantas
vezes em criança nós não desejaríamos inventar seres
imaginários para que eles fossem os responsáveis pelos
nossos atos? Quantas vezes nós desejaríamos, quando es-
tamos com algum problema, acordar sem ele, como se fos-
semos uma outra pessoa? Eu acho que existe uma revolta
permanente do ser humano contra esta realidade, e os fi-
lósofos não são outra coisa senão seres humanos e são
porta-vozes, às vezes, das paixões humanas mais baixas
possíveis. E o desejo de escapar da realidade é uma coisa
que nos persegue e que todos nós temos, às vezes, um mo-
tivo para tentar fazê-lo.
A negação maciça deste princípio universal da moral
aparece de fato quando essa negação se estende em dema-
siado, se torna não apenas uma moda, mas quase que um
dado do senso comum de toda uma época e de uma socie-
dade — isso aí assinala uma grave estado de patologia
160

moral. Se nós podemos medir o estado da consciência do


povo pela sua expressão numa vida intelectual, no que di-
zem os letrados, isso aí assinala quase que uma crise es-
quizofrênica, ou seja, uma ânsia de fugir da realidade, uma
ânsia de cada um não ser ele mesmo, uma ânsia por uma
mutação súbita que, num estalo, nos transfigure e coloque
dentro de nós uma outra vida.
Algumas religiões dizem que vai acontecer exatamente
isso: nós morreremos e seremos ressuscitados — recon-
vocados — para uma nova vida num corpo já incorruptí-
vel, que não vai estragar mais, não vai ter doença — isto é
o que as religiões nos prometem, mas, após a morte. Esta
promessa pode parecer maluca, porém, mais maluca ainda
é quando ao invés de situá-la numa outra vida voce a situa
nesta, ou seja, nós seremos todos transfigurados repenti-
namente e estaremos livres do peso de nossos atos, esta-
remos livres de nossa horrenda biografia, estaremos livres
de nossas culpas, e estaremos livres de todo o efeito acu-
mulado daqueles atos errados que fizeram da nossa vida a
desgraça que é, e todas as possibilidades nos serão devol-
vidas novamente como se num baralho se tivesse embara-
lhado as cartas e distribuído de novo e o jogo vai começar
tudo novamente em pratos limpos. Ora, prometer isto pa-
ra esta vida é franca maluquice; acreditar nisso numa ou-
tra vida pode ser maluquice, mas nesta vida é mais ainda.
A opção que nós temos é entre as filosofias religiosas
que nos prometem esta maluquice para outra vida, e as
filosofias agnósticas, que nos prometem para esta. Então,
nós estamos no total desespero!...
161

Eu acho mais sensato jogar esta possibilidade para uma


outra vida, porque esta aqui nós já conhecemos e já vimos
que isto nunca acontece. Por exemplo, voce chegar ao ban-
co e descobrir que o seu saldo bancário cresceu sozinho;
ele deixou de obedecer àquela lógica dos depósitos e reti-
radas que voce foi fazendo ao longo do tempo e que redu-
ziram seu saldo agora a -1 — voce quer que algo aconteça,
uma mudança repentina. Essa ânsia do maravilhoso quan-
do projetada nesta vida é um puro e simples desejo da
morte, ou seja, é um desejo de morte e transfiguração; é
isto mesmo que leva as pessoas a negarem esse princípio
da realidade.
Aí nós teríamos dois caminhos. Um seria este da plena
aceitação das condições da vida onde nós estamos, a co-
meçar pela aceitação desse princípio: quem fez meus atos
fui eu, somando todos um a um, dá no que deu, dá no esta-
do presente e não em outra coisa, não há nenhuma possi-
bilidade de mudar isso num relance e daqui para diante eu
vou continuar existindo no tempo e, pior ainda, a cada dia
que passa estou cometendo mais atos e eles vão se acumu-
lar e os seus efeitos vão continuar se empilhando numa
torre cada vez mais alta, cada vez mais pesada, de modo
que a cada dia eu tenho menos possibilidades, a cada dia a
esfera do que eu posso fazer se estreita, e o meu horizonte
vai ficando cada vez mais estreito, mais estreito, até o
momento onde não passa mais nada e eu morro. Um dos
caminhos é aceitar plenamente isto, e esta plena aceitação
da morte é, curiosamente, o que nos dá coragem de viver.
Existe a outra alternativa, que é viver na esperança de
uma transfiguração momentânea que me devolverá, já
162

agora na idade adulta, todas as possibilidades e a inocên-


cia infantil, ou seja, eu terei a inocência de uma criança
junto com os poderes de um adulto. Todas as pessoas que
vivem nesta esperança querem viver totalmente sem cul-
pas, querem viver sem ter que responder pelo seu passado
e vivem nos prometendo um amanhã melhor.
Ora, a promessa de um amanhã melhor é o leitmotiv da
história ocidental nos últimos duzentos anos. Mas em du-
zentos anos já se passaram muitos “amanhãs”, já houve a
Revolução Francesa, a Revolução Russa, a Revolução Chi-
nesa, o Nazismo, o Fascismo, tudo isso aí foi por um “ama-
nhã melhor”, e o que mais me espanta não é que as multi-
dões acreditem nisso; o que mais me espanta é que as
multidões não acreditam muito nisso, quem acredita nisso
são os intelectuais! Se voce ver nos últimos duzentos anos,
essa camada intelectual aderiu sistematicamente a erros
que o bom-senso comum da população teria rejeitado, ou
seja, por quê as pessoas mais letradas, que mais estudam,
são as que mais facilmente aderem a promessas bobas? O
quê será que há na cabeça humana que o sujeito, quanto
mais estuda, mais burro fica? Se não fossem os intelectuais
não teria havido toda essa promessa democrática da Revo-
lução Francesa; não teriam havido as revoluções, não teria
havido uma série de coisas que um dia nos foram uma
condição para o progresso. Mas eu acho que o progresso
teria havido de qualquer maneira; talvez não por essas
mutações súbitas e, ademais, todas as mudanças sociais e
políticas dos últimos duzentos anos só levaram a um re-
sultado que nós conhecemos perfeitamente bem, que é
aquele que se resume na fórmula “aumento dos direitos e
163

diminuição das possibilidades”, ou seja, voce tem mais di-


reitos abstratos e tem menos possibilidades de ação reais.
Também, no sentido de uma democracia, de uma “li-
berdade” civil e jurídica cada vez maior e, ao mesmo tem-
po, um aumento sem precedentes do poder dos Estados,
das empresas, etc, etc, que hoje desfrutam sobre o ser hu-
mano de um domínio que nenhum dos tiranos da antigui-
dade jamais ousou sonhar. Pense bem, Átila, o Huno, ima-
ginava que ele podia, mediante um decreto, obrigar ir à
guerra todas as pessoas que não quisessem? Nunca pen-
sou nisto; iam à guerra, com Átila, o Huno, os hunos que
queriam ir à guerra. Hoje não, hoje está lá um moleque
sentado em casa, chega uma convocação de serviço mili-
tar, e ele tem que ir. O serviço militar obrigatório se uni-
versalizou depois da Revolução Francesa; é uma monstru-
osidade que foi inventada ali; a coisa mais tirânica que po-
de existir é voce obrigar um sujeito a morrer contra a sua
vontade. Então, todos os Estados do mundo, com exceção
daqueles poucos que abdicaram disto, têm este direito; e
mesmo quando voce não tem o serviço militar obrigatório
regular, voce o tem em tempo de guerra. De maneira que,
se abolirem o serviço militar obrigatório isto também não
significará uma grande conquista porque em caso de guer-
ra ele será reestabelecido da noite para o dia. Isto significa
que todos os Estados democráticos que respeitam os direi-
tos do homem, etc, etc, todos exercem este direito sobre
todos os seres humanos, e isto não causa suficiente escân-
dalo porque as pessoas já se acostumaram com isto.

164

[ Aluno: uma vez voce disse que o cristianismo, de certa


forma, melhorou a humanidade
nos últimos dois mil anos... ]

Eu acho que melhorou a moral pessoal dos governantes.
Mas que influência o cristianismo teve nos últimos duzen-
tos anos? Nada, sua influência foi decrescente nos últimos
trezentos ou quatrocentos anos. Na mesma medida em
que ele decresce, surge essa espécie de cristianismo leigo,
que tenta realizar o Céu na Terra, que tenta transfigurar a
ordem das coisas; por exemplo, o quê é o sonho da revolu-
ção? Não é amanhecer num outro estado? De repente, mu-
dou tudo! Voce veja que em todas as revoluções, a todas
elas se segue um estado de euforia onde as pessoas se sen-
tem libertas de todos os entraves. É claro que logo em se-
guida vem o amargo despertar, como aconteceu na União
Soviética com o famoso caso da Alexandra Kolontai, que
era uma teórica da libertação sexual, e que, tão logo veio a
revolução socialista, os caras que seguiam a Alexandra
acharam que tinha chegado também a liberação sexual e
começou a maior “gandaia”. Daí, Trotsky mandou acabar
com a festa e matar todos de uma vez, porque este sabia
que a revolução não é exatamente isto, eles tinham uma
noção do tempo.
Entre os revolucionários existem dois tipos de pessoas:
existem aquelas que acreditam na transfiguração, e exis-
tem aquelas que sabem que aquilo é um abismo, e que
querem o abismo! Um Lênin, um Trotsky, jamais se enga-
naram a respeito do quê seria uma revolução, eles têm
perfeitamente idéia de que aquilo será um esforço imenso
165

e um sacrifício de milhões de pessoas para um resultado


perfeitamente medíocre, porque todos os resultados de
todas as revoluções sempre foram medíocres. Na maior
parte dos casos o resultado é perda, como por exemplo, a
perda dos direitos, a perda da liberdade.

[ Aluno: é como se fosse uma espécie de profecia? ]

Com um Lênin e um Trotsky? Eles são agentes do desti-
no, agentes do Mal. Eles não têm ilusões, mas eles estão
perfeitamente identificados com aquilo e, no fundo, gos-
tam. Além disso, o mal é para os outros e não para eles. Daí
eles morrem e, como disse Gurdjieff, “eu vos deixo em
maus lençóis”; Lênin também, fez a revolução, morreu lo-
go depois, e deixou todo mundo na mão do Stálin.
Se nós vemos todas essas grandes mudanças revolucio-
nárias e perguntamos, “Mas o quê efetivamente resultou
disso aí?”, resultou a proclamação de direitos —, mas o
quê significa um direito sem a possibilidade de exercê-lo?
Por outro lado, resultou sempre na instalação de novas
formas de poder que os antecessores nem ousavam so-
nhar! Por exemplo, uma coisa que hoje em dia todo mundo
acha normal é o imposto de renda, ou seja, é o Estado saber
de toda a sua vida econômica. Ora, a humanidade viveu
milênios e milênios sem que ninguém jamais pensasse
numa coisa dessas, que alguém devesse saber quanto voce
ganhou ou deixou de ganhar. Ninguém pensou que fosse
obrigado a pagar um imposto pelo fato de residir num ter-
ritório, então o imposto não passa de uma partilha de des-
166

pesas; mas que isso deva ser feito às custas de um controle


total por meio de uma declaração...
E assim nós vamos perdendo direitos; o próximo que
nós vamos perder é o sigilo bancário — ele vai desapare-
cer. Na prática, ele já não existe, porque qualquer moleque
acessa o computador do seu banco e descobre tudo. Quan-
do voce não tem mais os meios materiais de defesa do di-
reito, ele está suprimido.
Atualmente, nos Estados Unidos, existe a experiência de
o Estado começar a controlar o comportamento das pes-
soas nas suas relações diretas, relações interpessoais. Por
exemplo, com essa estória de “assédio sexual”, o Estado
legisla sobre olhares, sobre toques, sobre o tom da fala, e
ninguém percebe que isso é uma monstruosidade, que ha-
ver uma lei sobre isso já é uma monstruosidade. Eu acho
que é intolerável voce viver num planeta onde alguém re-
gula para onde voce deve olhar e como deve olhar, ou o
tom que voce deve falar. E, no entanto, eles já começaram
a discutir isto...
Então, o resultado desses duzentos anos de revolução
democrática é a instalação da tirania completa, que legisla
não apenas sobre aquilo que é de interesse comum, mas
sobre a vida privada de cada indivíduo. Quantos séculos
de experiência a humanidade vai precisar ter nesse cami-
nho para ela entender que o único mal que existe mesmo é
o que se chama “revolução”? Qualquer revolução incorpo-
ra o Mal, qualquer uma, em qualquer sentido, ou seja,
qualquer idéia de mudança radical do estado geral de coi-
sas traz consigo o Mal. Nós podemos fazer uma analogia
com o desenvolvimento do corpo humano: tudo aquilo que
167

é orgânico não cresce “aos trancos e barrancos”, não passa


por mutações súbitas, mas vai por uma lenta acumulação,
como se fosse uma cuidadosa adaptação. Voce estuda os
processos de desenvolvimento e crescimento de qualquer
planta, qualquer animal, e voce vê que isso não é feito por
revoluções, e é por isso mesmo que dá certo. Agora, há
coisas que acontecem por revoluções, por exemplo, as mu-
tações biológicas, quando acaba uma espécie e surge ou-
tra. A evolução animal parece ter-se processado assim:
havia lá x espécies e, de repente, acontece uma catástrofe e
aparecem novas espécies completamente diferentes. Ora,
que isso fosse bom para as espécies extintas é muito duvi-
doso, não é? “Ah, mas foi um progresso, uma evolução...”,
sim, mas não para aqueles. Veja, um ser humano leva nove
meses para ser feito; quanto tempo leva para voce estran-
gulá-lo?
Outra coisa, a idéia de que voce deva combater o Mal —
é uma das piores idéias que existem na cabeça humana.
Por quê? Porque nós não concebemos nem o Bem na sua
inteireza, quanto menos o Mal, ou seja, nós percebemos
algumas formas de Mal, que são aquelas que nos tocam, e
nós começamos a perseguir e as projetamos nos seus pro-
tagonistas. Por exemplo, fulano é a encarnação do Mal e é
esse aí que nós temos que liquidar. Talvez até tenhamos
razão nisso aí, por exemplo, a repulsa pelo capitalista, di-
zendo que ele é a encarnação do Mal, porque ele vive da
mais-valia, porque ele explora o trabalho do operário, o
capitalismo tem uma lógica perversa, etc, etc, tudo isso é
pura verdade, porém, este é o mal a que estas pessoas fo-
168

ram sensíveis, mas este é o único mal? Não, deve existir


um outro mal.
Por exemplo, se ao invés de nós analisarmos o movi-
mento da História em termos econômicos, nós analisar-
mos pelas influências das idéias e da cultura, nós podemos
perguntar se o verdadeiro sujeito agente dessas transfor-
mações foi realmente a classe burguesa ou se foram os in-
telectuais. O quê teriam podido todos esses burgueses sem
os Voltaire, os Rousseau, etc, etc? Absolutamente nada. Na
própria formação da classe, quem é que dá ao burguês a
idéia de que ele pode exercer novas e mais complexas e
mais perfeitas formas de poder? É um intelectual que as-
sopra isso na orelha dele. Portanto, nós podemos ver que
os intelectuais são o Mal também. Tanto quanto nós po-
demos dizer que ignorantes e as massas passivas são o
Mal, porque é nelas que se assenta todo o poderio tirânico.
Não existiria nem uma tirania se o povo fosse desobedien-
te, mas como a maioria obedece a tirania adquire o poder,
então, são elas que são o Mal.
Ou seja, o Mal pode ser visto de muitos ângulos, e todos
nós participamos dele de alguma maneira. Agora, na me-
dida onde nós absolutizamos aquela forma de mal a que
nós somos sensíveis, a personificamos em certas pessoas,
e acreditando que destruíndo estas nós vamos resolver o
problema, nós nos esquecemos que do outro lado um ou-
tro está fazendo a mesma coisa. E ele está vendo o Mal em
nós. É assim mesmo que todas as pessoas de boa-vontade,
que querem acabar com o Mal no mundo, acabam só ven-
do diabos por toda a parte — tem diabo escondido debai-
xo da cama, tem diabo no banheiro, etc, etc —, e o outro,
169

que está contra ele, acha que o diabo é ele. É assim que o
rosto do demônio aparece em todos os homens de boa-
vontade neste mundo. É neste sentido que o Cristo falou,
“Não resistais ao Mal”; ou seja, voce deve combater o Mal,
mas não muito, apenas na medida do estrito necessário.

[ Aluno: de preferência em voce mesmo... ]

Mas sem sombra de dúvida! Claro! É o mais difícil, mas
de certo modo é o que está ao nosso alcance, todos nós
podemos melhorar, porque todos nós somos responsáveis
pelos nossos atos.
No entanto, quando voce vê uma situação como essa de
hoje que nós vivemos, particularmente no Brasil, onde a
pregação de reformas sociais, dar ajuda aos pobres, etc,
etc, funciona como um sucedâneo de consciência moral, de
modo que o sujeito que prega essas coisas sente que ele é
bom, e na mesma medida em que ele sente isso ele está
dispensado de deveres morais.
Então, nós estamos numa época onde a consciência mo-
ral está completamente descentrada. O quê é o “sujeito
ético” hoje? É o sujeito que ataca as injustiças, dos outros;
desde que voce denuncie as injustiças dos outros voce está
totalmente dispensado de qualquer obrigação moral. Isso
significa que a conduta pública, a conduta da coletividade,
tem milhões de fiscais, que não são capazes de fiscalizar a
sua própria conduta.
Por um lado, isto é exigir demais de um ser humano;
nenhum de nós pode ser responsável pelo rumo que a so-
ciedade toma, nenhum de nós tem poder para mudá-la,
170

portanto, nenhum de nós é diretamente responsável por


ela — nem mesmo os homens que exercem o poder —,
ninguém é pessoalmente responsável. Mas cada um é res-
ponsável por seus atos e, sobretudo, por aqueles atos que
reverberam sobre os outros, ou seja, é muito menos im-
portante eu condenar injustiças do que eu evitar de colo-
car as pessoas no sentido de uma ação injusta. Ora, o con-
denar injustiças é certamente eu me arriscar a fazer isto,
porque na medida em que eu as condeno publicamente, eu
estou impelindo as pessoas a que combatam esses homens
injustos. Mas, eu examinei a coisa com cuidado suficiente?
Ora, se para julgar essas pessoas nós precisássemos
examinar as questões com cuidado suficiente isto daria
um trabalho medonho, e haveriam duas razões para o in-
divíduo perguntar, “Mas por quê eu devo examinar esta
questão? Não é melhor eu permanecer à margem dela?”
Parece que esta pergunta ninguém faz e, ao contrário, o
que nós vemos são milhares de pessoas que estão louqui-
nhas para julgar o próximo, com uma avidez de julgar, de
condenar, etc, etc. Será que isso é normal? Será que isso é
ético? Será que isso é uma verdadeira sanidade moral, ou
será que nós não estamos entrando numa perfeita inver-
são do que seria moralidade? Ou seja, julgar incumbe a
quem? Incumbe àquele sujeito que, por força dos aconte-
cimentos, foi posto na condição de ter que arcar com esta
obrigação terrível!
O número de pessoas que aparece para participar de
concurso de juiz já me parece anormal. Porque juiz deve-
ria ser uma função da qual todo mundo fugisse e que de-
veria ser por sorteio, ou seja, voce foi sorteado para juiz e
171

agora vai ter que julgar e a responsabilidade é tua! Quem é


que pode querer uma coisa dessas? Todos os que querem
o salário e a autoridade de juiz. Mas, além dos juízes voce
tem, todos os promotores, tem todos os tribunos públicos,
tem os deputados, tem todos os jornalistas, todos os radia-
listas, toda intelectualidade..., mas quantas pessoas que es-
tão louquinhas para arcar com essa tremenda responsabi-
lidade, da qual um homem sensato foge!
Por exemplo, um filho meu briga com o outro e chega
acusando o irmão e eu estou louquinho para julgar?! Não,
eu podendo pular fora, eu pulo! Esta é uma reação normal
humana. O meu pai, que era advogado, dizia que o juiz, na
maior parte dos casos, procura dar uma sentença inócua:
não ajudo ninguém, não prejudico ninguém, muito menos
a ele mesmo. Se puder decidir por decurso de prazo, se
puder arquivar, se puder passar para outra instância, ele
vai fazer! Isto mostra que o mesmo sujeito que está louco
para ser juiz, está louco para deixar de ser. Ele está louco
para constar como juiz e não para exercer isso aí efetiva-
mente.
Então, não é possível voce fundar uma ética social na
base de combater as injustiças. Combater as injustiças faz
parte da moral, sem dúvida, mas como uma coisa muito
derivada e muito secundária, e nunca como um centro. Is-
to nós podemos concluir de cara, porque se voce entendeu
aquele princípio da responsabilidade, o princípio da ab-
sorção da responsabilidade imputada e o princípio da res-
ponsabilidade crescente, longe de expandir a área do seu
julgamento, o homem, ao contrário, deve restringir e pro-
172

curar julgar cada vez menos, porque cada vez mais ele vai
sabendo como isto é difícil e como isto tem implicações.
Portanto, a evolução do indivíduo não é dele abarcar
cada vez mais a cidade, o país, as sociedades inteiras e o
mundo, dentro da esfera do seu julgamento mas, ao con-
trário, deve restringir esse julgamento até chegar ao ponto
onde ele possa ser plenamente responsável pelos seus
próprios atos e por suas próprias palavras.
É claro que injustiças quando são flagrantes elas devem
ser denunciadas de algum modo, mas não é possível que
esta seja a atividade moral predominante, como é hoje.
Isso aí já mostra que existe uma perversão.
Então, uma coisa que me parece muito clara é que, se-
gundo o princípio de responsabilidade, incumbe muito
mais a nós fiscalizar os nossos próprios atos ou, no máxi-
mo, aqueles do grupo a que nós mesmos pertencemos, o
nosso próprio grupo de referência, a nossa família, o nosso
grupo profissional, do que os outros. Ao passo que o que
acontece hoje é que parecem existir certos grupos de pes-
soas que são incumbidos de funcionar como a consciência
alheia — os intelectuais, os letrados, etc — a eles incumbe
fiscalizar e denunciar toda a coletividade. Eu digo que não,
me parece ao contrário, me parece que essas pessoas de-
veriam fiscalizar o seu próprio grupo. Por exemplo, o pes-
soal reclama por quê eu faço tanto a crítica dos intelectu-
ais? Ora, eu estou lá! Eu também escrevo, eu também falo,
e como diz o I Ching, voce tem que, primeiro, “castigar a
sua própria cidade”; eu não sou banqueiro, não sou capita-
lista, não sou milico, não sou marajá... se houver muita ne-
cessidade, talvez até algum dia eu vá fiscalizar a moralida-
173

de dessa gente, mas por enquanto eu estou falando daque-


les que me são afins de alguma maneira.
Quando nós fazemos isso, nós vemos que nessa área
dessas pessoas que são os porta-vozes das denúncias, aí
existe mais imoralidade do que em qualquer outra parte,
aí o descumprimento do dever é norma geral, e a cumpli-
cidade deles entre si é uma coisa medonha, ou seja, existe
um pacto de que ninguém jamais denuncie a vacuidade, ou
a falsidade do que quer que o outro tenha feito. Quem
acompanha a produção intelectual brasileira vê que o pes-
soal não tem a menor idéia de que tem um dever a cum-
prir. Eles acham que o dever deles é denunciar os outros e
realmente vivem em função disto, e isto apazigua as suas
consciências completamente, ou seja, enquanto eu estou
denunciando os males eu estou do lado do Bem. Isto é
porque o observador ingênuo acredita que qualquer pes-
soa que fique indignada com o Mal é porque deve ser bom,
mas se voce assistir um dos inúmeros filmes que foram
feitos sobre Al Capone compreenderá que ninguém fica
mais indignado com o Mal do que o homem mau. Por
exemplo, se alguém trai, ninguém fica mais revoltado do
que o bandido — ele devia achar normal, mas não acha.
Então, eu não creio que a indignação com o Mal seja a
marca do bom. O Mal deveria, em primeiro lugar, te entris-
tecer, porque aquele que padeceu o mal, tanto quanto
aquele que o fez, pertencem à mesma espécie que voce,
são todos seres humanos, e isso depõe contra todos nós de
alguma maneira. Em segundo lugar, além de nós partici-
parmos do mal de alguma maneira, ainda existe este fator
que nós não podemos nos iludir, de que nós, ficando con-
174

tra o Mal, melhoramos de algum modo; a sua revolta con-


tra o Mal não lhe torna bom, ao contrário, quanto mais Mal
voce vê, quanto mais Mal te acontece, sobretudo na infân-
cia e adolescência, e mais revoltado voce fica, pior voce
fica! Isso não é a experiência universal?
Quem diz que eu ficar indignado com o Mal mostra que
eu sou bom? Ao contrário, mostra que eu sou mau tam-
bém, e que eu estou muito contente de poder ter encon-
trado um pior do que eu, para eu poder falar mal dele e me
sentir aliviado de algum modo.
É claro que se cada comunidade, se cada grupo respon-
sável por alguma coisa, ficalizasse a si mesmo e souber fa-
lar palavras duras para si mesmo quando for o caso, aí as
coisas andariam um pouco melhor. Então, eu não posso
acreditar nesta função auto-atribuída da intelectuali-
dade que é a de fiscalizar todos os demais. Mas que ela
tem a função de fiscalizar a si mesma, é óbvio que todo ser
humano tem, e todo grupamento humano também tem.

Uma coisa que me ficou por esclarecer aqui é, qual seria
a diferença entre moral, no sentido em que eu estou falan-
do aqui, moral essencial, moral universal, e as várias éticas
sociais?
Não vou ter muito tempo para mexer nisto, mas o as-
sunto pode ser resumido rapidamente com a seguinte dis-
tinção: todas as éticas sociais, ou seja, aquelas normas que
são aceitas por uma comunidade inteira para regrar o
comportamento de todo mundo, elas se aproximam menos
disto aqui que eu estou definindo como moral do que da
norma jurídica. Não há nenhuma possibilidade de voce
175

distinguir formal e logicamente entre o que são as normas


de uma ética social e normas jurídicas, porque a norma
jurídica se caracteriza sempre pela bi-lateralidade, ou seja,
voce está obrigado a isto na medida em que um outro está
obrigado a x ou y. É neste equilíbrio entre os deveres e as
obrigações que reside a essência da norma jurídica. Ao
passo que as normas morais propriamente ditas — que
são estas que nós estamos tratando —, são aquelas que
são inerentes ao ser pelo simples fato dele existir e inde-
pendentemente de qualquer relação que qualquer outro
tenha com ele. Nós vimos que, por exemplo, essa idéia da
responsabilidade pelos seus próprios atos, mesmo que
não haja ninguém perante quem voce responder, voce
continua respondendo. Pelo simples fato de voce continu-
ar pensando, de voce continuar a responder pelos pensa-
mentos já pensados. Ou seja, eu não poderia sequer racio-
cinar se eu não aceitasse esse princípio da responsabilida-
de; por mais sozinho que eu esteja, por mais destituído de
laços, vínculos, relações, etc, eu não vou escapar deste
princípio que é inerente à própria condição humana.
Agora, e as obrigações, por exemplo, que regulam a mo-
ral sexual? É só voce falar de moral sexual que voce já fa-
lou de relações. Que obrigação eu posso ter, que ética se-
xual eu posso ter de mim para comigo mesmo? Me parece
um pouco estranho, não é?
Só se for a ética dos masturbadores... mas, mesmo as-
sim, a masturbação implica uma referência a um outro,
que está ausente, por acidente, mas que voce preferia que
estivesse ali. Então, nem mesmo o chamado “vício solitá-
rio” é solitário...
176

Então, voce vê que toda essa esfera abrangida pela ética


social é a esfera das relações humanas, e na ética social o
princípio que regula é o mesmo que regula as normas ju-
rídicas, que é o princípio da bi-lateralidade. A única dife-
rença que existe, neste caso, entre as normas morais e as
normas jurídicas é o tipo de sanção, o tipo de castigo que
existe quando voce falha. Por exemplo, uma simples nor-
ma de polidez a que voce falhe, implica um castigo, voce
será malvisto pelas pessoas, elas não vão mais gostar de
voce, então está aí um castigo. Claro que é menos grave do
que aquele castigo que é inflingido pelo Estado para aque-
le que infringir uma norma jurídica — o Código Penal, por
exemplo —, mas em essência é a mesma coisa. Agora, a
norma moral, não. A norma moral não depende de bi-
lateralidade.
Então, nós podemos juntar toda a ética social dentro de
uma esfera de raciocínios morais de tipo bi-lateral, ou seja,
baseado na proporcionalidade de direitos e obrigações. Ao
passo que a moral é a esfera das obrigações absolutas e
intrínsecas.
Para encerrar o nosso raciocínio, é aí mesmo que nós
vemos a extrema imoralidade de uma situação onde o Es-
tado, que é feito de uma somatória de bilateralidades, co-
meçar a querer interferir na esfera das obrigações intrín-
secas e na esfera das intenções humanas — como acon-
tece hoje nos EUA.
Ora, suponha por exemplo, que nas relações homem-
mulher, que tudo aquilo que demarca para nós uma boa
conduta, uma conduta correta entre homem e mulher, su-
177

ponha o quê aconteceria se tudo isto fosse regulamentado


e fiscalizado pelo Estado.
Por exemplo, a sua mulher engorda, vira um bagulho, e
voce não quer mais transar com ela, perdeu a graça. Mas
isto é uma indelicadeza, é uma maldade, e voce ainda gos-
ta dela, então pela ternura que voce sente por ela voce
“puxa o tesão”; o tesão não aparece direito, mas vai por
outro caminho. Esta é uma saída que nos permite ter uma
conduta correta numa situação um pouco estranha como
essa.
Imagine se normas desse tipo forem regulamentadas
pelo Estado — sim, porque nos EUA voce já não pode dizer
que o sujeito é gordo senão voce é processado. Mas muito
mais grave do que chamar um sujeito de gordo é voce dei-
xar de transar com a sua mulher porque ela é gorda, é um
ato odioso de discriminação, e se o Estado pode regula-
mentar as suas palavras, muito mais ele poderá regula-
mentar os seus atos.
Quer dizer que se voce considerar ofensivo chamar um
sujeito de gordo, muito mais ofensivo é voce agir perante
ele desta ou daquela maneira por ele ser gordo. Então ima-
gine que em situações como esta, ou os olhares entre pa-
trão e empregada, etc, etc, acabem sendo efetivamente to-
dos regulamentados pelo Estado. Toda conduta correta
será trasferida da esfera daquilo que nós estamos deno-
minando moral, para a esfera jurídica. E isto é o fim da
moral; isto é o fim do Bem como tal; isto é o fim da consci-
ência moral humana. Ninguém precisa ter mais consciên-
cia moral porque o Estado já regulamentou tudo e a in-
178

cumbência de ter consciência moral é da delegacia de polí-


cia.
Isto é o que eu gostaria que as pessoas pensassem
quando, por exemplo, elas lutam pelos direitos da mulher,
ou pelos direitos da criança, etc, etc. É evidente que quan-
to mais direitos, por exemplo, uma esposa tiver em relação
ao marido, ou vice-versa, quanto mais direitos estiverem
explicitados em lei, mais a esfera da convivência pessoal
será regulamentada desde fora por um delegado de polí-
cia, por um juiz, por uma burocracia, e isto é impossível de
acontecer sem o total empobrecimento das relações hu-
manas. Ou seja, as pessoas ficarão carregadinhas de direi-
tos, mas não ousarão se aproximar umas das outras — is-
so é o que já acontece nos EUA —, e isto é uma monstruo-
sidade moral sem par.
Eu gostaria de terminar esse assunto dizendo que os
EUA tiveram uma grande missão neste mundo. Eu acho
que eles estavam aí só para acabar com o comunismo; já
acabaram com o comunismo, e agora já começaram a falar
demais e eu tenho a impressão que eles se sobreviveram a
si mesmos, e que com esse tipo de coisa eles estão per-
dendo completamente o pouco de autoridade moral que
lhes restava. Um país como nosso, ao invés de copiar essas
coisas dele, ao contrário, nós temos que ter uma atitude
muito crítica e não aceitar esse tipo de coisa, porque eles
não sabem para aonde estão indo e portanto não sabem
para aonde estão nos levando.
Mas, ao contrário disso, o que a gente vê é que, acostu-
mados a copiar os americanos porque eles estavam na
vanguarda disto ou daquilo, nós também os estamos
179

acompanhando quando eles estão indo para o buraco! Não


é porque nós os acompanhamos na técnica ou na legisla-
ção democrática, etc, etc, que nós também devemos acom-
panhá-los quando eles começam com o suicídio de todas
as relações humanas, que é o que eles estão fazendo.
Graças a Deus, a nossa falta de seriedade nos impedirá
de acompanhar essas maluquices americanas “a ferro e
fogo”. Isso é uma perda total do senso comum da capaci-
dade lógica; voce achar que é possível conciliar a liberação
sexual com as suscetibilidades da pudicícia de mulheres
protestantes — isso é um absurdo, ou uma coisa ou outra!
Ou voce vai para a liberação sexual, ou vai para essa legis-
lação, as duas coisas ao mesmo tempo não dá!
Veja, nos EUA, em Washington, a rua dos cinemas por-
nôs fica em frente à Casa Branca. Isso para mim parece o
símbolo da América, quer dizer, se o Presidente sair es-
condido dali às 3 horas da manhã basta ele atravessar a
rua para ir a um cinema pornô, mas ele não pode olhar
torto para a secretária.
Num recorte que me deram ontem, havia uma notícia
de que nem todas as pessoas são favoráveis a essa legisla-
ção sobre o assédio sexual e que tem até um sujeito fazen-
do o maior sucesso nos EUA, fazendo conferências de ci-
dade em cidade sobre a importância que tem em voce
abraçar as pessoas... Mas, meu Deus do céu!, num país on-
de é preciso dizer isto..., ele alega razões psicológicas, mé-
dicas, testes que mostram que voce abraçar uma pessoa
faz bem para o ego dele!... Meu Deus, num país onde é pre-
ciso uma argumentação científica para um negócio desses
é porque chegou às raias da debilidade mental!
180

Isto já tem uma certa herança inglesa; pessoas que mo-


raram na Inglaterra me contam que lá se voce começa a
afagar muito uma criança voce já é considerado um per-
vertido, mesmo que seja seu próprio filho! Mas, um povo
que pensa uma coisa dessas é um povo perverso.
Um dos sujeitos mais autoconfiantes que eu já conheci
na minha vida, que tinha uma coragem extraordinária, foi
um editor político da revista Isto É. Ele sempre enfrentou
muitas dificuldades e sempre se saiu bem, nunca pergun-
tou para ninguém o quê devia fazer e sempre foi para fren-
te que nem um rojão. Então, um homem autônomo está ali.
Eu sempre me perguntava qual era o segredo desse cara, e
quando conheci a família dele é que entendi isso aí. Quan-
do ele me apresentou o pai e a mãe, o pai carregava o filho
no colo — aos 35 anos! —, e o chamava de “papai”, com
um orgulho imenso! Carregava aquele homem no colo co-
mo se fosse um bebê, o cobria de beijos e falava “meu fi-
lho...”; aquele homem estava realmente orgulhoso do filho!
E a mãe também o cobria de carinhos... Então era esse o
segredo! Gostavam do filho... Mas na Inglaterra seriam
considerados perversos, e nos EUA muito mais.
Então, oitenta por cento da problemática moral que es-
tá discussão hoje vem dos EUA, e é uma problemática bas-
tante artificial que não é para ser levada a sério em si
mesma. Ela se torna séria como um fenômeno, mas não no
seu conteúdo. Sério é que as pessoas acreditem nisso! É
uma ameaça, na verdade.
Mas enquanto nós pudermos rejeitar esta coisa eu acho
que devemos rejeitar. Como se nós já não tivéssemos pro-
181

blemas suficientes, ainda vamos ter que nos preocupar


com isto?
O problema aqui é que a exigência moral que esses ca-
ras estão colocando é mais pesada do que qualquer moral
religiosa que o mundo jamais concebeu. Mais ainda, ela
não é apenas uma moral, é uma jurisprudência, é um sis-
tema jurídico, ou seja, vai haver castigo mesmo.
Quando eu estive lá nos EUA, em 1986, já havia um co-
meço disso aí. Eu conheci muitas famílias americanas onde
uma ou duas tinham filho; o resto não era família, eram
casais. Um mundo onde as pessoas não tem filhos é um
mundo infantilizado, as pessoas vivem só para si mesmas.
É um mundo onde é normal um homem de 50 anos se
preocupar só com suas necessidades afetivas... ele quer se
preencher..., é toda uma problemática que eu tinha aos 14
anos de idade! Não estão preparados para essa idéia de
que a vida é insatisfação; por exemplo, a famosa lei do sa-
crifício, que a vida é um sacrifício, que a vida é perda con-
tínua. Nós vamos ver pelo próprio princípio da responsa-
bilidade crescente que a vida é uma perda progressiva, é
um estreitamento de possibilidades, e é justamente daí
que o que vai diminuindo no seu poder, é o que vai au-
mentando na sua capacidade de amar seu semelhante, até
chegar ao fim, à coroação, à perfeição do amor que diz o
Cristo, “morrer por seus amigos”; esse é o destino de todo
ser humano. Mas parece que esse pessoal não está prepa-
rado não, eles acham que a vida é autorealização, ou seja, é
para cada um se realizar a si mesmo, cuidar bastante de si
até o último dia, se carregar no colo como se fosse um be-
bê e não se deixar ficar insatisfeito um único minuto. Mas
182

isso é um mundo horroroso! É um mundo de bebês, que


manipulam foguetes, que soltam bombas... é um mundo
muito perigoso, não é?
Outro problema também é que só quem tem filho é o
pessoal que está chegando agora: porto-riquenho, cubano,
etc, etc, o qual chega lá disposto a quê? A desfrutar desses
direitos mais ainda! O sujeito diz, “Agora eu cheguei na
América, agora eu vou deitar e rolar!”; esses é que vão fi-
car mais insuportáveis ainda.
Bom, uma coisa é certa, nós não temos que ouvir mais
um “a” do que o americano fala, eles endoidaram, então
vamos deixar eles falando. Chega de imitar os americanos.

[ Aluno: e os intelectuais americanos, têm algum peso lá? ]

Não, nunca pesaram nada. Nos EUA voce se tornar um
intelectual é a coisa mais fácil. Primeiro, por causa de to-
das as facilidades materiais; segundo que, agora, cada vez
mais, eles só ensinam para voce só aquilo que voce quer
aprender, ou seja, o ensino não é para voce melhorar, é
para voce alcançar um patamar superior, o ensino é para
confirmar a voce aquilo que voce já é; é para dizer a voce
que voce já tem razão em tudo, que voce já sabe tudo e que
voce é divino e maravilhoso. Assim, de facilidade em faci-
lidade, voce chega à universidade, tira lá o seu PhD e es-
creve livros. Se voce fala um monte de asneiras ninguém
vai te cobrar, se voce erra completamente não faz diferen-
ça. É o exemplo do Paul Kennedy, que escreveu “Ascenção
e Queda das Grandes Potências”; o sujeito profetizou cál-
culos de cinco séculos sobre o orçamento militar america-
183

no e concluiu que, fatalmente, dentro de dez anos os ame-


ricanos cairiam e a União Soviética subiria à situação de
potência dominante. Cinco anos depois, acaba a União So-
viética — ninguém cobrou do sujeito isso aí. Logo em se-
guida, ele já publicou um novo livro sobre o século XXI!
Não foi demitido da universidade, ninguém reclamou, en-
tão quer dizer que pode falar o que quiser...
Então, os EUA produzem um monte de desocupados
com a finalidade de profetizar sobre as coisas, tem lá o
Hermann Khan, o Alvin Toffler, Capra, e são pagos para
isso. Não é para prestar atenção, simplesmente. Eles não
têm a menor idéia nem do que já está acontecendo, quanto
mais do que vai acontecer.
O único homem sério que havia nessa área era o Kissin-
ger, o que ele falou que ia acontecer, aconteceu. Mas não é
que ele profetizou, ele fez acontecer. Ninguém me tira da
cabeça que esse negócio de acabar com a União Soviética
foi americano quem fez, a CIA chegou lá, comprou todo
mundo, acabou com a KGB e acabou com a União Soviética.
E quem “bolou” isso aí foi o Kissinger — então esse cara
sabe o que fala. Mas em compensação ele fala muito pou-
co...

Você também pode gostar