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DE CARVALHO
Ensaio sobre
os Fundamentos
da Moral
RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE ARTES LIBERAIS
& STELLA CAYMMI EDITORA, 1995
PRÓLOGO
Q
ue não existe regra moral universalmente válida;
que a moral se funda no hábito, na convenção ou
em escolhas pessoais arbitrárias; que os códigos
morais são inteiramente relativos às épocas, lugares e in-
teresses sociais; que a esfera dos valores é radicalmente
separada da dos fatos; que a moral é um artifício ideo-
lógico da classe dominante para manter os dominados sob
o império da repressão — eis algumas convicções forte-
mente amparadas pelo consenso ao menos implícito da
maioria dos intelectuais.
Repor essas convicções em dúvida é um empreendi-
mento que se defronta com maciça resistência. A opinião
majoritária da classe letrada exerce hoje sobre as consci-
ências um domínio mais tirânico que o dos papas da Re-
nascença: quando embirra com uma idéia, persegue-a e
reprime-a por todos os lados, sem lhe dar a menor chance
de se defender ou mesmo de se apresentar em público;
boicota sua discussão, veta a publicação de artigos e livros
a seu respeito, rejeita propostas de teses universitárias
que a tomem por assunto e envolve numa aura depreciati-
va os que se interessem por ela, tachando-os de ignorantes
descompassados com o estado atual dos conhecimentos.
3
2
Sto. Alberto Magno, Metafísica, Lib. II, Cap. XII, em Clemente Fernan-
dez, s.j., Los Filósofos Medievales. Seleccion de Textos, Madrid, B.A.C.,
1980, t. II, pp. 194-5.
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CURSO DE ÉTICA
Aula do dia 04 de outubro de 1994
(sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )
Na aula de hoje vamos passar para o item seguinte do
curso: os Fundamentos da Ética.
Como qualquer disciplina filosófica, a Ética não é uma
disciplina independente; não existe disciplina filosófica
independente, isto é contra a própria definição de filosofia.
Quando se fala de ²filosofia da linguagem², ²filosofia da
moral², ²filosofia da religião², elas não constituem disci-
plinas separadas. Em princípio, a filosofia é um discurso
único, em todos os seus aspectos. Não existe a menor pos-
sibilidade de fazer uma investigação filosófica sobre um
determinado assunto, independentemente da referência
aos princípios mesmos da filosofia; qualquer investigação
que você comece, sobre qualquer tópico que seja, o obri-
gará a voltar às questões fundamentais.
Por que isto é assim? Por que isto acontece na filosofia
e não acontece em outros setores do saber? Uma investi-
gação biológica, por exemplo, não supõe que cada biólogo
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ter uma visão mais justa do Vargas, porque ele também fez
o bem para milhões de pessoas e fez mal para meia dúzia
de importantes, esse é que é o problema; por exemplo, por
quê o Hitler foi tão odiado no mundo? Ele inventou de
perseguir logo os judeus; cada judeu tinha dez parentes
fora da Alemanha, e estes parentes tinham jornais, esta-
ções de rádio, etc, e logo o prestígio do cara foi para as cu-
cuias. Enquanto ele estava matando ciganos ninguém falou
nada, daí foi mexer em gente importante... Na União Sovié-
tica foi a mesma coisa; Stálin matou ucranianos e ninguém
falava nada; levaram muito mais tempo para perceber as
atrocidades do Stálin do que a do Hitler, e na verdade só
perceberam depois que o cara parou.
Os milicos aqui somente pisaram no calo da intelectua-
lidade, e de uma certa área da classe política. Então eles
nos parecem horríveis, mas visto só do ponto-de-vista
dessa classe. Eu acho ridículo atribuir tanta monstruosi-
dade a um regime que durante 20 anos matou 200 pesso-
as. Isso é efeito do ressentimento, você tem que aumentar
o tamanho do seu inimigo para não mostrar o tamanho da
sua covardia. Inclusive esse movimento militar daria para
ter sido parado no primeiro dia se tivesse seguido o Brizo-
la; por mais louco que seja o Brizola nós temos que reco-
nhecer que ele parou um movimento militar e ia parar ou-
tro, só que esses mesmos caras que sonegaram apoio a ele,
depois ficaram 20 anos pregando luta armada. Naquela
hora eles abdicaram da luta armada e depois eles quise-
ram comprar umas armas no exterior para fazer guerrilha
na Amazônia — mas, você está maluco? Se você abdicou
ali, daí você vai ter que esperar. Então a estratégia certa
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CURSO DE ÉTICA
Aula do dia 11 de outubro de 1994
( sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )
Nós começamos com a segunda parte que seria a Ética,
ou filosofia Moral propriamente dita. Hoje nós vamos situ-
ar isso aí no quadro dos vários tipos de códigos de condu-
ta possíveis.
O uso corrente da palavra ética subentende que todo
mundo sabe mais ou menos do que se trata. Se voce per-
guntar para qualquer pessoa o quê é ética, o sujeito vai di-
zer que ética é voce proceder corretamente, é voce não
meter a mão no bolso dos outros, sobretudo no dinheiro
público, e vai supor que é uma idéia muito óbvia que não
necessita de maiores interrogações. No entanto, se nós fi-
zermos duas ou três perguntas voce vai ver que a idéia é
bastante problemática.
Primeiro nós vamos ter que perguntar o seguinte: se
ética consiste apenas nisso, ética quer dizer então ²cum-
prir as leis², então a ética, nesse caso, significa apenas o
²direito²; se voce não viola flagrantemente nenhuma lei
que está escrita, então voce está procedendo eticamente.
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Será que é isto o que o sujeito quer dizer? Ele vai dizer,
²Não, não é bem isso porque eu estou supondo alguma
coisa a mais; tem muitas coisas que não são criminosas
mas que são anti-éticas, que as pessoas não devem fazer².
Por exemplo, absolutamente nada impede que um sujeito
se prevaleça do fato de ocupar um cargo público para falar
de si mesmo o tempo todo; atribuir a si mesmo todos os
méritos da repartição que ele preside, ou do ministério
que ele dirige, etc, etc, ele pode se auto-promover o tempo
todo; não há uma lei contra a auto-promoção. Então, as
pessoas diriam que isso aí não é criminoso, mas é anti-
ético. Se isso aí é anti-ético então o que voce quer dizer
com ética é algo mais profundo, mais exigente do que o
mero cumprimento das leis. O quê que é esse ²algo mais²?
Aí o nosso interlocutor mostraria a sua total incapacidade
de explicar do quê se trata. Ele sabe que a exigência ética
vai um pouquinho além das leis mas ele não sabe definir
exatamente no quê consiste este ²pouquinho². Só por isso
nós já vemos que a idéia de ética é um pouco nebulosa.
Pelo fato de ser uma idéia nebulosa nós também pode-
ríamos perguntar: mas voce acha lícito, ético, voce cobrar
certos comportamentos das pessoas e, eventualmente,
acusá-las em público, caso elas não cumpram uma norma
nebulosa? Em que medida uma norma nebulosa pode exi-
gir um cumprimento claro e distinto? Se nós não sabemos
exatamente nem mesmo o quê que é ética, e quais são as
exigências éticas que estão vigentes, como é que nós pode-
ríamos cumpri-las, ou seja, como voce pode cumprir com
exatidão uma norma inexata e confusa?
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tão não precisa ter uma lei que proíba voce de se evadir da
Terra. Se precisa uma lei é porque voce tem a possibilida-
de de violá-la, e isso significa que esta condição que a lei
lhe prescreve não é inerente ao seu estado. É enquanto
membro de uma determinada coletividade, ou seja, en-
quanto voce tem uma qualidade que lhe foi implantada de
fora pelo Estado, enquanto portador desta qualidade, é
que voce é proibido de sair do Estado soviético; mas se te
pegam escapando pela fronteira, e te fuzilam, não foi a tua
cidadania soviética que foi fuzilada, foi voce inteiro.
Então nós vemos que tanto quanto nós vimos ambigui-
dade nos 10 Mandamentos, parece que qualquer código
jurídico tem uma ambiguidade terrível também. Esta am-
biguidade parte de que o pensamento político-jurídico
moderno considera que o indivíduo humano, real, concre-
to, deve responder plenamente por todos os deveres que a
sociedade lhe incumba, quer ele queira, quer não queira.
Essa foi uma das conquistas do pensamento democrático,
que nos libertou das opressões...
Por isso que eu não acredito nessa estória de democra-
cia em hipótese alguma. A democracia é um conteúdo ide-
al, é um esquema ideal, tanto quanto o primeiro manda-
mento, e nunca é uma realidade; ao contrário, se a marcha
da história da democracia se caracteriza pelo alargamento
da faixa dos direitos do indivíduo, na mesma medida ela se
caracteriza pela ampliação do aparato repressivo, que é
necessário existir em defesa desses direitos. Portanto, se
eu crio mais uma nova lei, mais um novo tipo de crime, eu
tenho que criar um novo tipo de tribunal, com mais funci-
onários, mais polícia, etc, etc, portanto, o crescimento des-
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sempre vêm junto com a liberdade. Isto não tem nada uma
coisa que ver com a outra; democracia é uma forma de go-
verno, não tem nada que ver com a tua liberdade, é a for-
ma do poder que os outros exercem sobre voce. Isto não
pode, por definição, ter nada que ver com a tua liberdade.
A palavra liberalismo é muito confusa. Liberalismo na
essência, e na origem, é a defesa dos direitos do indivíduo.
O liberalismo político e o liberalismo econômico que se
fala hoje é outra coisa diferente, e que inclusive se faz em
prejuízo das liberdades do indivíduo.
Quando as pessoas dizem que a democracia amplia os
direitos do indivíduo e que ela aumenta a liberdade, etc,
etc, estão confundindo democracia com liberalismo. A de-
fesa da liberdade do indivíduo não é próprio da democra-
cia, mas é próprio do liberalismo, que não é a democracia
em geral, mas um tipo de democracia em particular.
O liberalismo consiste na base em, não em aumentar os
direitos dos indivíduos, mas ao contrário, em deter os
progressos do Estado na medida em que firmam a liber-
dade do indívíduo. Ora, o aumento da faixa de direitos é o
aumento do número de leis, e isso aí é profundamente an-
ti-liberal, porque cada nova lei implica um novo aparato
para garantir o seu cumprimento e assim o Estado vai
crescendo, crescendo, crescendo, e a autoridade cresce
cada vez mais na mesma medida em que crescem os nos-
sos direitos. Portanto, a designação de novos direitos é um
política essencialmente anti-liberal; o ideal do liberalismo
é que tenha o menor número de leis, sobre o menor núme-
ro de assuntos, ou seja, que a faixa de interferência da au-
toridade seja muito restrita, e que sobre a maior parte das
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Voltando um pouco atrás: na medida em que o Estado
reconhece limites à sua capacidade investigativa e puniti-
va, isso significa que a noção do lícito e do ilícito fica aí es-
treitada: os crimes devem ser punidos mas somente por
meios lícitos. Como é absolutamente impossível que todo e
qualquer meio investigativo e punitivo seja lícito, então é
claro que a lei penal não foi feita para ser cumprida, exceto
nos casos onde a investigação e a punição possam ser con-
sideradas também lícitas. Então é uma auto-limitação que
o Estado se coloca. Na hora que ele se coloca essa limita-
ção, ele se coloca também o seguinte problema: a diferen-
ça entre o crime que pode ser facilmente comprovado por
meios lícitos e aquele que não pode, é a diferença mera-
mente acidental, é uma sorte que o criminoso teve.
O fato do seu crime não poder ser materialmente averi-
guado por meios lícitos não faz com que ele deixe de ser
um crime. É aquela famosa situação que ficou a polícia
com o Al Capone; por quê tiveram que condenar o Al Ca-
pone por sonegação de imposto de renda? Porque o resto
não podia ser comprovado licitamente; isto não faz com
que ele deixe de ser um criminoso. Então isto significa que
a própria noção de um estado de direito implica conceder
ao criminoso o benefício da sorte. Ora, se nós negamos is-
to, significa que não haverá limites para a capacidade in-
vestigativa do Estado, ele pode revirar qualquer coisa, a
qualquer momento, de qualquer forma, e isto seria o tota-
litarismo — a democracia também não quer isto.
Veja o raciocínio que nós fizemos antes: a proclamação
de novos direitos é a ampliação da faixa de interferência
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CURSO DE ÉTICA
Aula do dia 25 de outubro de 1994
( sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )
Hoje nós vamos ver como é a autoconsciência e como e
por quê ela pode ser fundamento da moral ou da ética.
É da tradição da filosofia moderna tomar como ponto
de partida para o estudo da consciência a famosa sequên-
cia inicial das ²Meditações Metafísicas² de René Descartes,
onde ele, colocando em dúvida todos os conhecimentos
que dispõe, colocando em dúvida as suas percepções, suas
memórias, seus sentimentos, etc, etc, chega enfim à con-
clusão de que a única coisa que ele não pode duvidar é de
que está duvidando. E como duvidar é um pensar, é um
ato da mente, ele chega à conclusão de que o pensamento
não pode duvidar de si mesmo, ou seja, ele não pode duvi-
dar de que está duvidando na hora em que está duvidan-
do.
Ora, este sujeito, este ego de que fala o Descartes na
fórmula cogito ergo sum — penso, logo existo —, ou dito
de outro modo, o único conhecimento seguro que o ho-
mem tem é a respeito do seu próprio pensamento, esta
fórmula não se refere ao ego real do ser humano, mas a
um ego suposto, que seria o ego puramente pensante, ou
seja, supondo-se que eu pudesse colocar em dúvida as mi-
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Ele diz que isto não é mero raciocínio, mas que isto é
uma análise real que fez da sua experiência real. Mas eu
acho que não, porque na experiência real nós facilmente
veríamos que se nós colocássemos em dúvida — como ele
vai colocando sucessivamente — as sensações, as opini-
ões, os sentimentos, e as recordações, no fim não sobraria
ego algum! Para voce poder dizer ²penso, logo existo², vo-
ce não pode dizer isto exatamente na hora onde voce está
pensando a sua própria dúvida. Ele diz, ²penso, logo exis-
to², diz que esta sentença é verdadeira sempre no momen-
to em que a penso, mas verdadeira para quem? Cadê o su-
jeito? Se o sujeito reflete sobre o seu ato, se ele diz que es-
te ato é verdadeiro no instante em que ele pensou é por-
que se conservou na memória. Então, ele realmente não
fez a abstração da memória, e por quê ele não fez isso?
Simplesmente porque esta abstração é impossível, ou seja,
não é concebível o sujeito autoconsciente fora da memó-
ria. Este é o grande defeito do sujeito cartesiano, ele não é
um sujeito psicológico real, é um sujeito lógico. Claro, nós
compreendemos que o sujeito do conhecimento conside-
rado enquanto mero conceito lógico, não precisa ter me-
mória. Se voce simplesmente distingue entre sujeito e ob-
jeto, e o sujeito cognitivo enquanto meramente distinto do
objeto, não precisa ter memória. Mas um sujeito real que
de fato conhece não pode ser concebido sem a sua memó-
ria, um conhecimento que não seja retido, nem no momen-
to para além do instante mesmo onde ele nota o objeto,
este sujeito não tem conhecimento. Muito menos está em
condição de proferir uma sentença que julgue este conhe-
cimento como verdadeiro ou como falso, ou seja, este jul-
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víduo tem que ser responsável pelos seus atos, não porque
ele escolheu o Bem, não porque ele escolheu tal ou qual
sistema moral, e não por um impulso de ordem volitiva e
sentimental, não por um ²valor², mas por uma simples re-
alidade. Se o indivíduo existe como sujeito distinto de ou-
tros, se ele tem o seu mundo de recordações pessoais, e se
o seu senso de identidade é intransferível, então sua res-
ponsabilidade também é intransferível.
Veja como nós fomos parar longe desses mandamentos
morais das grandes morais públicas, morais sociais, como
por exemplo, os Dez Mandamentos. “Amar a Deus sobre
todas as coisas” é um princípio auto-evidente? É claro que
não, eu não poderia amar a Deus sobre todas as coisas se
eu não tivesse o princípio da responsabilidade muito antes
de saber desse tal de Deus. ²Amar teu próximo como a si
mesmo²; como é que eu poderia estabelecer uma compro-
porção entre eu e o outro se eu não tenho o meu próprio
princípio da responsabilidade? Na medida onde eu tenha
esta identidade, e onde eu me situo como centro de pers-
pectiva do meu mundo, é que eu posso supor, mais tarde,
que o outro também é um centro de perspectiva no seu
próprio mundo, e que existe uma espécie de encaixe entre
os dois mundos, existem pontos de interseção entre os
dois, nunca totalmente coincidentes, ou seja, nunca nin-
guém participa integralmente do meu mundo interior —
pode ser parcialmente. Eu entendo que posso comungar
de algumas experiências com algumas pessoas, mas difi-
cilmente na mesma posição, e eu entendo que essa inter-
seção nunca pode ser completa, porque senão eu teria que
me recordar dos atos do outro como se fossem meus, ou
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do sujeito não apenas é uma regra formal dos atos, mas ela
é o bem visado por estes mesmos atos. Quando o indiví-
duo cresce ele amplia o seu espaço vital, ou seja, amplia a
sua própria integridade, a sua própria unidade. Ele forta-
lece essa unidade na medida em que ele a amplia. Já dizia
Aristóteles: tudo aquilo que existe, tende a perseverar na
sua maneira de ser, ou seja, nós crescemos e nos desen-
volvemos para não morrer.
Ora, biologicamente nós estamos condenados a morrer,
porque a sequência dos nossos atos, num certo momento,
vai terminar. Porém, até o momento da morte este círculo
da responsabilidade se amplia, ele não declina. Isto é mui-
to importante, porque biologicamente nós temos um cres-
cimento e depois um declínio. Nós podemos imaginar in-
genuamente que a responsabilidade moral também vai
decrescer à medida que começa o declínio. Mas é o contrá-
rio, porque toda a sua vida anterior já foi vivida, todas as
consequências dos atos ainda estão aí e continuam se
acumulando dia-a-dia. Mais ainda: os meios de ação do
homem não decrescem com a velhice, mas podem ser am-
pliados. Se de fato eles decrescerem, é claro que a respon-
sabilidade diminuirá na medida exata da proporção, não o
grau de responsabilidade, mas a esfera de responsabilida-
de diminui. Mas, a integração da responsabilidade, o fato
dela estar conectada inseparavelmente a aquele sujeito,
isso não diminui, ou seja, até o instante da morte voce é
cada vez mais responsável, até pelo momento da morte,
até pelo que se faz na hora da morte. Por isso mesmo que
a religião cristã coloca o momento da morte como muito
importante, ali voce pode consertar ou estragar tudo o que
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das as suas culpas, até a última, por pequena que seja, por
potencial que seja.
A plena compreensão disto aqui talvez requeresse arti-
cular este curso com um outro curso que eu já dei, ou seja,
o ideal seria juntar todos os cursos num só, mas como não
consegui fazer isto até hoje, eu vou ter que dar um resumo
que é a definição do quê é a psique.
Onde voce tenha uma filosofia voce tem tudo emendado
com tudo, porque voce não vai refletindo as coisas por
partes. A possibilidade que voce tenha de isolar um pro-
blema em filosofia é muito pequena, para não dizer nula.
Eric Weil diz que é errado voce falar em filosofia moral,
filosofia política, etc, etc, não existe isso, são nomes que
voce vai colocar a um negócio que é filosofia só. A filosofia
tem um sentido orgânico por sua própria natureza. Então,
é claro que esta reflexão sobre a moral não está indepen-
dente de uma reflexão sobre o quê é a psique.
Para definir a psique eu parti de um método completa-
mente diferente do que eu disse aqui: eu parti do contras-
te entre a multiplicidade das definições de psique que an-
davam pelos psicólogos — que vão desde o Jung que diz
que tudo é psique, até o Skinner que diz que não existe
psique nenhuma — e contrastrei de um lado esta multipli-
cidade autocontraditória de definições da psique, com o
fato de que todos esses psicólogos, embora divirjam das
definições da psique, eles sabem reconhecer quando al-
gum fato psicológico aparece na sua frente. Ou seja, eles
sabem o quê é psique, mas eles não sabem dizer o quê é.
Dito de outro modo, parece que existe uma certa intuição
prévia do quê é o psiquismo, e que essa intuição funciona
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Ora, aquilo que nós dizemos que tem uma causa psíqui-
ca, não obedece a uma necessidade lógica, não obedece a
uma necessidade física e também não acontece por acaso.
Então, o psíquico é para nós um quarto tipo de causa.
Partindo disto aqui, eu continuei fazendo a análise da
intencionalidade, e quando o indivíduo diz que um evento
teve uma causa psicológica, o quê ele está querendo dizer
com isto? O quê ele está percebendo? Qual é o conteúdo
dessa percepção que ele tem? Quais seriam os caracteres
internos desta causa chamada psicológica?
A primeira coisa que nós entendemos é que a causa psi-
cológica só está em um indivíduo, ela não opera generica-
mente, como podem operar as necessidades física e lógica,
ou o acaso, mas só opera a partir de um indivíduo singular,
seja esse indivíduo humano ou não. Claro que causas psi-
cológicas similares podem agir em um, dois ou três indiví-
duos, só que enquanto uma causa está agindo num indiví-
duo ela, por si mesma, não pode operar sobre um outro.
Para que duas pessoas tenham a mesma motivação psico-
lógica é necessário que os mesmos fatos tenham aconteci-
do às duas, de maneira mais ou menos simultânea. Não é a
própria causa psicológica que atua num, que atua no ou-
tro, são vias diferentes, embora semelhantes.
Então, a causa psicológica é, primeiro, individual; se-
gundo, ela é co-extensiva à existência biológica, só existe
causa psicológica naquilo que é biologicamente existente,
morto não age psicologicamente e o inorgânico também
não; terceiro, nós vemos que onde há uma causa psicológi-
ca existe sempre uma continuidade de um antes e de um
depois, ou seja, quando um indivíduo age por algum moti-
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casa, mata meio mundo e ela acha que quem está correndo
perigo é ela!
Então o sujeito virou um idiota, ele está produzindo
efeito atrás de efeito, e ele está morrendo de medo, achan-
do que a vítima é ele. Mas ele não é a vítima, ele é o centro
agente! Quer dizer, voce já virou um centro agente, voce já
perdeu a medida, então às vezes é melhor voce ter muito
menos poder mas saber até onde a coisa está indo. Não
pode é cair na impotência total, voce ficar totalmente con-
templativo, só pode saber e não pode fazer nada. Daí é
grave...
Veja, eu sou radicalmente contrário a voce ensinar para
a criança, na escola, o princípio da ciência atual, porque
em quinze anos tudo é diferente, tudo o que aprendeu já
não vale mais. Voce tinha é que aprender é esses conceitos
básicos, aprender a parte filosófica mesmo; Platão tinha
razão: filosofia é educação; o resto voce aprende sozinho,
na hora!
Eu estudei muito pouco na minha adolescência, eu tinha
horror de estudar o que quer que fosse, eu só queria saber
de me divertir, ir a baile, namorar, e fiz muito bem... por-
que eu conservei a minha capacidade de aprender mais
tarde; eles levaram sete anos para me ensinar uma coisa
que, hoje, eu aprendo numa semana. Por exemplo, uma
língua que tentaram te ensinar em vão; se voce tiver uma
mente bem formada e decidir aprender a língua em um
mês, voce já sabe os fundamentos pelo menos. Então, para
quê valeu a pena gastar sete anos numa coisa que mais
tarde o sujeito poderia aprender muito melhor?
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CURSO DE ÉTICA
Aula do dia 01 de novembro de 1994
( sem correção do Prof. Olavo de Carvalho )
Refazendo, às avessas, o trajeto percorrido por nós, in-
do da conclusão ao começo, podemos partir daquele prin-
cípio que obtivemos, que é o princípio da responsabilidade
como uma evidência moral, de tipo apodíctica. Como que
nós chegamos a ele? Pelo método cartesiano: tentando du-
vidar e vendo a absoluta impossibilidade, primeiro, de o
ego cogitante se conceber a si mesmo como destituído de
memória porque, neste caso, ele não poderia se conceber
como sujeito de um pensamento discursivo — o pensa-
mento discursivo é aquele que, ao contrário da percepção
intuitiva, procede por etapas, ou seja, ele tem um antes e
tem um depois. Se esse famoso ego cogitante não tivesse
memória, entre a premissa e a conclusão do seu raciocínio
ele já teria se esquecido de si mesmo — ao invés de
dizer “Penso, logo existo”, ele diria “Penso, logo...”, ele teria
que voltar ao “Penso” novamente porque não poderia che-
gar à conclusão. Ou seja, a percepção humana do nexo en-
tre conclusão e premissa é uma ligação que se dá no tem-
po, o que subentende não só a memória mas já a identida-
de pessoal. Ou seja, o núcleo do ego cogitas não está bem
155
queles atos que Deus te perdoou, isto não quer dizer que
Ele apagou as consequências da ordem material.
Então, este princípio revela a nossa prisão ao mundo do
espaço-tempo, revela a nossa ausência de uma liberdade
absoluta. Ele mesmo limita a nossa liberdade severamen-
te, ou seja, nós podemos ter alguma liberdade a partir do
momento onde aceitamos isso, se rejeitamos, perdemos
toda a liberdade. É justamente por este princípio ser ines-
capável que eu o considero o começo, a origem de todo
senso da realidade. Se nós começamos a entender que nós
estamos num mundo real é na hora que nós entendemos
que nossos atos não se apagam. Isso pode demorar um
pouco para nós percebermos, mas um dia voce percebe
que aquilo que voce fez foi voce mesmo quem fez. Quantas
vezes em criança nós não desejaríamos inventar seres
imaginários para que eles fossem os responsáveis pelos
nossos atos? Quantas vezes nós desejaríamos, quando es-
tamos com algum problema, acordar sem ele, como se fos-
semos uma outra pessoa? Eu acho que existe uma revolta
permanente do ser humano contra esta realidade, e os fi-
lósofos não são outra coisa senão seres humanos e são
porta-vozes, às vezes, das paixões humanas mais baixas
possíveis. E o desejo de escapar da realidade é uma coisa
que nos persegue e que todos nós temos, às vezes, um mo-
tivo para tentar fazê-lo.
A negação maciça deste princípio universal da moral
aparece de fato quando essa negação se estende em dema-
siado, se torna não apenas uma moda, mas quase que um
dado do senso comum de toda uma época e de uma socie-
dade — isso aí assinala uma grave estado de patologia
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que está contra ele, acha que o diabo é ele. É assim que o
rosto do demônio aparece em todos os homens de boa-
vontade neste mundo. É neste sentido que o Cristo falou,
“Não resistais ao Mal”; ou seja, voce deve combater o Mal,
mas não muito, apenas na medida do estrito necessário.
[ Aluno: de preferência em voce mesmo... ]
Mas sem sombra de dúvida! Claro! É o mais difícil, mas
de certo modo é o que está ao nosso alcance, todos nós
podemos melhorar, porque todos nós somos responsáveis
pelos nossos atos.
No entanto, quando voce vê uma situação como essa de
hoje que nós vivemos, particularmente no Brasil, onde a
pregação de reformas sociais, dar ajuda aos pobres, etc,
etc, funciona como um sucedâneo de consciência moral, de
modo que o sujeito que prega essas coisas sente que ele é
bom, e na mesma medida em que ele sente isso ele está
dispensado de deveres morais.
Então, nós estamos numa época onde a consciência mo-
ral está completamente descentrada. O quê é o “sujeito
ético” hoje? É o sujeito que ataca as injustiças, dos outros;
desde que voce denuncie as injustiças dos outros voce está
totalmente dispensado de qualquer obrigação moral. Isso
significa que a conduta pública, a conduta da coletividade,
tem milhões de fiscais, que não são capazes de fiscalizar a
sua própria conduta.
Por um lado, isto é exigir demais de um ser humano;
nenhum de nós pode ser responsável pelo rumo que a so-
ciedade toma, nenhum de nós tem poder para mudá-la,
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curar julgar cada vez menos, porque cada vez mais ele vai
sabendo como isto é difícil e como isto tem implicações.
Portanto, a evolução do indivíduo não é dele abarcar
cada vez mais a cidade, o país, as sociedades inteiras e o
mundo, dentro da esfera do seu julgamento mas, ao con-
trário, deve restringir esse julgamento até chegar ao ponto
onde ele possa ser plenamente responsável pelos seus
próprios atos e por suas próprias palavras.
É claro que injustiças quando são flagrantes elas devem
ser denunciadas de algum modo, mas não é possível que
esta seja a atividade moral predominante, como é hoje.
Isso aí já mostra que existe uma perversão.
Então, uma coisa que me parece muito clara é que, se-
gundo o princípio de responsabilidade, incumbe muito
mais a nós fiscalizar os nossos próprios atos ou, no máxi-
mo, aqueles do grupo a que nós mesmos pertencemos, o
nosso próprio grupo de referência, a nossa família, o nosso
grupo profissional, do que os outros. Ao passo que o que
acontece hoje é que parecem existir certos grupos de pes-
soas que são incumbidos de funcionar como a consciência
alheia — os intelectuais, os letrados, etc — a eles incumbe
fiscalizar e denunciar toda a coletividade. Eu digo que não,
me parece ao contrário, me parece que essas pessoas de-
veriam fiscalizar o seu próprio grupo. Por exemplo, o pes-
soal reclama por quê eu faço tanto a crítica dos intelectu-
ais? Ora, eu estou lá! Eu também escrevo, eu também falo,
e como diz o I Ching, voce tem que, primeiro, “castigar a
sua própria cidade”; eu não sou banqueiro, não sou capita-
lista, não sou milico, não sou marajá... se houver muita ne-
cessidade, talvez até algum dia eu vá fiscalizar a moralida-
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