Para mim, uma das conquistas mais admiráveis da filosofia grega, corroborada
e aprofundada pelo cristianismo, foi a consciência da individualidade. Há,
pelo menos desde Sócrates, uma instância na qual todas as outras vozes se
calam porque são deixadas para fora no umbral da intimidade, reduto radical
“conquistado” ao longo do tempo. Apenas em posse deste reduto um homem
pode falar em próprio nome, sendo o autor verdadeiro da própria vida. Falar
em nome dos outros, do partido, da instituição, da classe profissional ou do
professor, é o arremedo de conversação que nos restou, depois de sucessivas
investidas contra a realidade da intimidade e a inviolabilidade ontológica da
substância humana: a pessoa criada, irrepetível. Por maiores que sejam os gritos
É inevitável, para mim, terminar dizendo isto: a palavra autor (auctor) é latina
e significa aquele que expande. Era usada pelos romanos para se referir a grandes
generais que conquistavam novas terras para o Império. Eram verdadeiros autores.
Ou seja: ter a posse de si é descobrir novas terras dentro da realidade pessoal,
expandindo a própria vida, revivendo o espanto platônico diante do novo que se
avista. É um movimento dirigido, consciente e intenso de mais vida, mais vida,
mais vida.
E como fazer isso?
Para relatar a história de minha vida, devo recuar alguns anos. Se me fosse
possível, deveria retroceder ainda mais, à primeira infância, ou mais ainda, aos
primórdios de minha ascendência.
Os poetas, quando escrevem suas obras, costumam proceder como se
fossem Deus e pudessem abranger com o olhar toda a história de uma vida
humana, compreendendo-a e expondo-a como se o próprio Deus a relatasse,
sem nenhum véu, revelando a cada instante sua essência mais íntima.
Não posso agir assim, e os próprios poetas não o conseguem. Minha história
é, no entanto, para mim, mais importante do que a de qualquer outro autor,
pois é a minha própria história, e a história de um homem — não a de um
personagem inventado, possível ou inexistente em qualquer outra forma, mas
a de um homem real, único e vivo. Hoje sabe-se cada vez menos o que isso
significa, o que seja um homem realmente vivo, e se entregam à morte sob o
fogo da metralha a milhares de homens, cada um dos quais constitui um ensaio
único e precioso da Natureza. Se não passássemos de indivíduos isolados, se
cada um de nós pudesse realmente ser varrido por uma bala de fuzil, não haveria
sentido algum em relatar histórias. Mas cada homem não é apenas ele mesmo; é
também um ponto único, singularíssimo, sempre importante e peculiar, no qual
De alguma forma, quero neste capítulo esclarecer por que Ortega afirmou
que o homem é “o romancista de si mesmo, original ou plagiário”. O que tentarei
fazer em seguida é demonstrar porque somos os grandes historiadores da
própria vida e como fazer para interpretar a si mesmo de maneira a entender o
É feliz quem sabe. Não qualquer saber, mas antes de tudo, o que se refere
a si mesmo. Novamente pergunto: quem quer aquilo que diz querer? Quem
está dizendo que foi infeliz na infância? Quem está afirmando não servir para
relações amorosas duradouras e fiéis? Quem está lendo este livro? Quem está
interessado em sua história pessoal?
É tudo radicalmente pessoal – ou ao menos deveria ser.
Não existe felicidade genérica.
Não existem seres em geral. O mesmo Julián Marías disse nunca ter
encontrado um ser humano, mas apenas um homem ou uma mulher. No mundo,
a espécie apresenta-se de duas formas bem distintas e referentes uma à outra: é
uma das instalações, chamada condição sexuada. Muito além da sexualidade, é
um dos configuradores da forma concreta de alguém. Estar no mundo é estar
como varão ou como mulher e não há terceira opção.
Portanto, a felicidade – assunto pessoal – também deve assumir matiz
específico. Deve haver um desdobramento do programa vital masculino, outro
do feminino; do contrário, aceitaríamos a homogeneização da criação, o que
nos parece inverossímil. Comecemos pela instalação, ou condição sexuada, do
varão.
Há uma cobrança pela virilidade no varão: ele exige de si mesmo as virtudes
que considera indispensáveis a um homem. Contudo, esta exigência seria
injustificada se prescindisse da mulher. A condição sexuada do varão atualiza-se
quando em oposição à da mulher (e vice-versa). Assim, a busca pela virilidade
deve acontecer em razão da mulher, pelo entusiasmo que a mesma provoca no
varão. Também na oposição – ou disjunção polar – entre varão e mulher é que
surge a necessidade de segurança: do varão, apesar de toda insegurança que
“A vida inteira que podia ter sido e que não foi.” Este é o verso mais terrível.
E comprovo-o, infelizmente, em meu trabalho: ouço todo tipo de lamentações
e, inclusive, algo do tipo. As pessoas me dizem que não são quem elas queriam
ser; que não fazem o que deveriam fazer; que não cumprem com seus destinos.
Estando diante delas, escutando atentamente seus testemunhos, penso: está aí;
uma vida inteira que podia ter sido e que não foi. A depender da idade do aluno,
o verso torna-se literal.
Lembro-me da primeira vez que li O Retrato do Brasil, de Paulo Prado.
Num ensaio sobre a formação da sociedade brasileira e suas características mais
impressionantes e talvez deprimentes, a primeira frase foi a que me impactou (e
que jamais esqueci): numa terra radiante vive um povo triste. Para mim, era uma
espécie de diagnóstico do meu povo. Prado dá as indicações de que tínhamos
tudo para “dar certo” como país. E, por obra das características que ele aponta
(como cobiça e inveja), não realizamos. Tornamo-nos outra coisa. Ao invés de
felicidade pela posse do que verdadeiramente somos, a tristeza do não-ser. Tão
desanimador quanto o diagnóstico é a solução dada pelo historiador: pôr tudo
abaixo. Começar tudo de novo. Apagar a trajetória coletiva até então.
Sabemos que isso não é possível. Muito menos na dimensão pessoal: nenhum
de nós pode passar a borracha na própria história ou voltar no tempo e editá-la.
Afinal, o que é a morte? É uma realidade, sem dúvidas. Mas, que tipo de
realidade? A mais horrenda, dolorosa e inevitável? Ou há algo de belo e desejável
neste derradeiro encontro que todo homem está sujeito a viver?
Julián Marías, homem que viveu o bastante para poder escrever um grande
e emocionante livro de memórias, pensara constantemente sobre a morte. Por
isso foi possível a Rafael Hidalgo Navarro compilar os escritos de Marías que
tratavam deste tema específico. O trabalho de Navarro veio a público sob o
título Julian Marías y la Muerte, em homenagem ao filósofo espanhol de quem
me considero, atrevidamente, um discípulo.
No livro de compilações encontram-se parágrafos profundos, e percebe-se
que ao longo de toda a sua trajetória intelectual Julian Marías não se furtou ao
dever de todo filósofo, segundo Platão ou Montaigne: pensar sobre a própria
morte. A perspectiva de Marías sobre esta realidade é a mesma empregada em
suas decisivas obras: se necessariamente terei que morrer, quem serei quando isto
vier a acontecer? A que estarei me dedicando? Em que estarei comprometido,
respondendo fielmente?
A máxima pergunta: quais projetos seguirão sendo meus após a morte? De