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O Princípio da Felicidade – Aula 01

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O Princípio da Felicidade – Aula 01


Prof. Luiz Gonzaga de Carvalho

Transcrição não revisada ou corrigida pelo professor.

Esta é a primeira aula de um curso, ao que parece, chamado Princípios da


Felicidade ou Introdução à Filosofia Moral. Um dos motivos para não nomeá-lo
logo “Introdução à Filosofia Moral” ou “Filosofia Moral” ou “O que é Filosofia
Moral?” é justamente porque a palavra “Moral” tem hoje um significado
completamente diferente do que ela tem em Filosofia Moral ou em qualquer
ambiente normal.

Antes de entrarmos no assunto mesmo, vamos só listar algumas das


dificuldades para tratar desse tema que é Moral. A primeira dificuldade é de raiz, de
fundamento. Existem certos temas anteriores ao estudo da Filosofia Moral que já são
mais ou menos ignorados do público. Por exemplo, as idéias de Bem e Mal. As
pessoas hoje em dia não gostam de usar as palavras “bem” e “mal”, elas acham que
isso é maniqueísta, que tudo é relativo, que tudo é mais ou menos, e não-sei-o-quê...
Você tem que explicar: “Mas não é possível você descrever a ação humana – sequer
descrever, muito menos explicá-la – sem usar as noções de bem e mal”. Hoje em dia
se costuma trocar as noções de bem e mal pela noção genérica de “valores”: valores
negativos ou positivos. Mas a palavra “valor” na verdade é muito menos adequada
para descrever o fenômeno de que se trata do que as palavras “bem” e “mal”. Então
essa é a primeira dificuldade: você tem que explicar às pessoas o que é Bem e Mal.

Para você explicar o que é Bem e Mal, você encontra outra dificuldade: Bem
era chamado, na filosofia medieval, um transcendental – um conceito transcendental
e um aspecto transcendental da realidade; então era considerado um transcendental
tanto no sentido lógico quanto no sentido ontológico. O que significa um
transcendental? Transcendental não significa necessariamente algo do outro mundo
(e me parece que “transcendental” também não significa muito hoje em dia... nós
temos que explicar cada palavra!). Note bem, a maior parte das coisas que você
estuda, as coisas naturais todas, pertencem a categorias; você as explica achando a
espécie de objeto a que a coisa estudada pertence, e a espécie você explica pelo
gênero, e assim por diante, até chegar numa categoria. Por exemplo, um homem é
um animal; um animal é um ser vivo; um ser vivo é uma substância; aí você chegou
em “substância”: é uma categoria suprema do pensamento. Não dá para pensar uma
idéia mais genérica do que substância, no sentido aristotélico (está subentendido
aqui que o pessoal sabe que estamos falando de substância no sentido das categorias
do Aristóteles). Mais longe do que isso não dá, você tem que captar a idéia de
substância – você pode descrevê-la, mas não pode defini-la por um gênero, por um

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conceito mais genérico.

Um conceito transcendental é um conceito que não pertence a uma categoria,


não está travado numa categoria. E isso é fácil de ver com as idéias de Bem e Mal,
por exemplo, porque Bem e Mal se aplicam a objetos de diversas categorias: um
homem mau pertence à substância, então existem substâncias boas e más; uma ação
injusta é uma má ação, que entra na categoria da ação; uma pintura, uma obra de arte
ruim, uma música ruim, entram em outra categoria, porque são as qualidades que
não são boas; um mau cheiro é mau, entra na categoria da qualidade; uma
desproporção: por exemplo, quando o sujeito é muito gordo ou muito magro,
gordura e magreza são quantidades, e há uma melhor e uma pior, uma boa e uma
má. Isso significa que os conceitos Bem e Mal são usados para diferenciar vários
tipos de atributos, nas diversas categorias, e também substâncias, que é o sujeito dos
atributos. Isso quer dizer o quê? Caramba, não dá para definir Bem e Mal dentro de
uma categoria.

Um outro sentido de transcendental – e também, nesse sentido, pelo menos a


palavra “bem” tem um sentido transcendental – é o sentido ontológico.
Transcendental no sentido ontológico é qualquer conceito, qualquer realidade que é
coextensa ao ser, à idéia de ser, à existência, ao que é, seja no sentido atual ou
possível. Há um ternário de transcendentais muito comum, que é unidade, verdade e
bondade (unum, verum, bonum): tudo que é, é um; tudo que é, é verdadeiro; tudo
que é, é bom. E esses três conceitos escapam ainda mais às categorias, porque o
próprio ser não pode ser definido numa das categorias, uma vez que cada uma das
categorias é justamente uma categoria de ser, de algo que é. Então, isso dificulta o
estudo da Moral hoje; existem certos elementos de ontologia difíceis de explicar, e
as pessoas têm uma grande dificuldade de usar as palavras “bem” e “mal”. Esse é o
primeiro problema.

O segundo problema do estudo da Filosofia Moral hoje é a atitude geral das


pessoas quando você vai ensinar algo. As pessoas valorizam muito hoje atitudes que,
como não são fáceis de definir, eu vou descrevê-las pelas palavras que as pessoas
usam hoje (escutem essas palavras destacadas e percebam a que eu estou me
referindo): “As pessoas precisam ser ‘questionadoras’, ‘críticas’, ‘céticas’...”; tudo
isso é muito valorizado, especialmente num ambiente de ensino ou de transmissão
racional de conhecimento. E Aristóteles já avisava, há mais de dois mil e trezentos
anos, que essa atitude é completamente infrutífera no estudo da ciência moral. Você
começa a descrever uma virtude, ou uma qualidade, e a pessoa já fala “Mas por que
isso é bom? Por que isso é melhor?” Deixe-me explicar uma coisa: a experiência
prova que todo mundo que é “questionador” nesses temas, é simultaneamente
ingênuo em relação às suas próprias preferências. Toda vez que você vai falar
abstratamente ou teoricamente de uma ação boa, um hábito bom, um costume bom,
a pessoa que questiona, bloqueia imediatamente – ao invés de tentar assimilar e
entender: “Vou ver a que esse sujeito se refere”. Ela é simultaneamente ingênua em
relação às preferências dela na ação, isto é, àquilo que ela, quando age, escolhe
como “bom” ou “mau”. É a coisa mais simples: a pessoa fala “Não sei o que é bom e
o que é mau, ninguém sabe isso bem!” ou “Não sei se isso que você está falando é
bom ou mau”, tem essa atitude questionadora, mas ela, quando vai comprar um
produto numa loja: “Mas isto está muito caro! É uma vergonha!”. Opa, a sua ação aí
reflete uma preferência, uma ordem de Bem e Mal. Há um preço que é bom e um

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preço que é mau; um preço que é preferível e outro que não; um que vem antes, na
ordem do querer, e outro que vem depois, na ordem do querer. Isso é a coisa mais
normal. Tudo o que nós vemos, que nós fazemos ou que as outras pessoas fazem,
aparece para nós sempre numa certa ordem em relação à nossa vontade; há umas
coisas que vêm antes, outras que vêm depois, umas que são melhores, outras que são
piores.

Aliás, já vale dizer: este é o primeiro e mais simples sentido das palavras
“bem” e “mal”. Bem e Mal se referem ao ser das coisas em relação à ordem da
vontade. Vontade tem uma ordem – há algo eu quero e algo que eu não quero, e um
está neste lado aqui, e o outro está naquele, e dessas coisas que eu quero, há uma que
eu quero mais e outra que eu quero menos. Deu para perceber que há uma ordem?
Vontade é uma ordem. Todo apetite, toda inclinação, é uma ordem, implica numa
ordem (não no sentido de um “comando”, mas de uma “hierarquia”, uma
“sequência”), implica em antes e depois, em cima e embaixo.

Pois bem, Bem e Mal são conceitos cujo primeiro sentido é em relação à ordem
do apetite ou inclinação; e isso todo mundo tem, porque isso é um fenômeno natural.
Você vê as cores, de umas você gosta e de outras você não gosta, e pronto; elas já
estão ordenadas numa seqüência, numa hierarquia; já existe aí uma ordem. E umas
são neutras, você não sente nem atração, nem aversão. Você ouve uns sons, uns você
sente: “Nossa, é uma melodia”, outros são meros ruídos, barulho. Você ouve as
vozes, umas são agradáveis, outras são desagradáveis. Isso é espontâneo; não é só
em nós, nos animais também. As palavras “bem” e “mal”, em primeiro lugar,
aparecem na nossa vida se referindo a essa ordem. Isso significa que você tem coisas
que você necessariamente considera boas e outras que necessariamente considera
más. Se você não tivesse isso, você seria completamente incapaz de decidir entre um
curso de ação e outro. Desde que você é criança seus pais falam “Vá fazer a lição!”,
e você ou vai, ou não vai, e baseado em quê? “Se eu não for, vou ficar de castigo, ou
vou ficar sem sobremesa, ou vou levar uma chinelada, e isso é mau. Se eu for, não
vai acontecer nada disso, e isso é bom”. É assim que você decide. Se você considera
que fazer a lição é mau, mas ser castigado por não fazê-la também é mau, você vai
pensar a ordem: “Qual é ‘mais mal’? Qual é pior?” E vai tentar evitar o pior e fazer
aquilo que é “menos pior”. Todo mundo tem isso.

O estudo de Moral implica numa atitude de profunda sinceridade. Quando o


sujeito começar a falar dessas coisas, ao invés de a pessoa travar a sua mente e usar
aquela listinha de idéias que ela tem na cabeça – “Não existe Bem e Mal”,
“Ninguém sabe”, “É muito difícil saber” – ela deve pensar o seguinte: “O que eu
realmente sinto em relação a isso? O que me parece que eu faria? Vou tentar
imaginar essa situação que o sujeito está descrevendo”, e ver o que vai surgindo
dentro de si. Veja bem, não é que sujeito tenha que ser perfeito, e cada vez em que
você descreve uma virtude, aparecem os mais maravilhosos sentimentos no seu
coração e em cada vez que você descreve um vício, aparece só o horror. Não é isso.
Mas o sujeito tem que perceber que realmente existe esse negócio de “preferências”,
e, mais ainda: as preferências se baseiam nas coisas, não em mim. O sujeito pode
falar “Não, cada um, cada um; cada cabeça, uma sentença!” – sim, “cada cabeça,
uma sentença” acerca de algo que não é a cabeça, meu filho! Se você gosta de morar
no campo, a preferência está na sua cabeça, mas o campo e a cidade, de fato, não
estão. A preferência é acerca de algo que não está na sua cabeça. Então, embora a

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preferência tenha surgido na sua cabeça, tem que haver alguma característica no
objeto – no campo ou na cidade – que despertou essa preferência. Dizer que a
preferência está na cabeça não é suficiente para explicá-la, porque na ausência de
objeto não surge nenhuma preferência. Qual era o seu alimento preferido antes de
nascer? Nenhum, pois você nunca tinha experimentado nada com sua língua. É o
mesmo que as pessoas estarem discutindo as obras de um pintor e lhe perguntarem
qual é a sua preferida, mas você nunca viu nenhuma: “Nenhuma! Não tenho
preferência nenhuma, não tenho nenhuma ordem aqui”; quando você conhecer as
pinturas, você pode preferir uma diferente da outra, porque alguma coisa você
captou naquela que lhe fez preferi-la – aí você terá que se explicar. Dizemos que a
preferência tem uma base objetiva, quer dizer: “Explique aí o que você está vendo
na coisa que lhe dá essa preferência, que fez você preferir esta aqui ao invés da
outra”.

Outra dificuldade é justamente a noção que as pessoas têm hoje do que é


Moral. Ao falar de Moral, a primeira coisa que elas pensam é um conjunto de
regrinhas, mandamentos, diretrizes universais fixas e claras de “faça isso, não faça
aquilo”. No entanto, Moral não é exatamente isso. Mandamentos são diretrizes
morais, é evidente, porque eles são princípios morais, porém eles não são princípios
da ciência moral: eles são princípios do comportamento moral, eles são as
expressões mais universais e mais abstratas, ou mais amplas, do que deve ser feito
ou não deve ser feito. É assim: você tem um conjunto de mandamentos? Ótimo. Se
for um conjunto de mandamentos bons, se forem mandamentos bíblicos, a sua vida
já é melhor, você já é uma pessoa melhor do que o sujeito que não segue nenhum
mandamento ou segue só o que dá na sua telha (a não ser que o que dê na sua telha
seja sempre só muito bom, o que normalmente não acontece). Se, por um lado, os
mandamentos, isto é, um conjunto de diretrizes universais, faz parte da Moral, eles
estão muito longe de constituir a essência da Moral. Porque a essência da Moral não
pode estar numa norma exterior.

Note bem: Moral, ou um mandamento, diz respeito a ações humanas. “Não


matarás”: não torça o pescoço do vizinho. Matar, torcer o pescoço do vizinho, são
ações humanas, e a moralidade, a realidade moral vai estar então no ato humano, na
ação humana, na atividade humana. E, de fato, é alguma característica de algumas
ações humanas que faz com que elas sejam morais, ou moralmente boas, e a
característica justamente contrária faz com que outras ações sejam más, moralmente
más, ou imorais. Mas a ciência moral (ciência no sentido de disciplina filosófica, e
não no sentido experimental, de laboratório, porque não dá para testar assuntos
humanos no laboratório; pois é evidente que o simples fato de estar preso num
laboratório já muda o comportamento do indivíduo, então não dá para explicar o que
seja a sua ação colocando-o num laboratório), é evidente que essa ciência, essa
disciplina é o estudo daquilo que na ação humana causa que ela seja boa ou má.
Como a causa da ação humana é a vontade humana – veja bem, isso é outro ponto:
observe bem que você age, então a causa da sua ação é você –, então a causa da
bondade ou maldade da sua ação tem que estar em você. Do mesmo jeito que você
cria a ação, do seu interior, você cria a maldade ou bondade da sua ação. Então
“moral” inclui realmente, e até principalmente, isso: como o homem produz na ação,
ou põe na ação, isto que a torna boa ou má? Resumindo, é um estudo muito mais de
causas internas do que de referências externas.

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Talvez as pessoas ainda lembrem que nos velhos tempos, antigamente, as


pessoas falavam da “moral e dos bons costumes”. Essas duas expressões vinham
juntas, justamente porque os bons costumes são o que corresponde ao que as pessoas
pensam que é Moral hoje. “Bons costumes” são o que em geral as pessoas fazem e
aceitam e que é bom, são a referência exterior que pode lhe ajudar a se direcionar
para uma ação boa ou má. Se você está cercado de boas pessoas, de pessoas de
caráter excelente, ou vive numa sociedade em que as pessoas têm bom caráter, têm
bons costumes, têm cultura, acontece o seguinte: o que essas pessoas geralmente
pensam, a maneira como elas geralmente avaliam a ação humana, é uma referência
para você, o que lhe ajuda a fazer o que é bom e não fazer o que é mau. Mas essa é
uma referência externa e, portanto, só pode ser auxiliar; não pode ser a causa
fundamental da bondade da ação, porque os bons costumes dos outros não decidem
o que eu faço – nem que seja um milhão de outros, nem que seja a sociedade inteira.
Você poderia entrar no primeiro grupo de franciscanos – onde estão São Francisco e
seus doze companheiros, tem o melhor exemplo lá! – e ser o sujeito que estraga
tudo, a maçã podre que apodrece o cesto. Os costumes dos outros não decidem as
suas ações. É por isso que se falava junto: “a moral e os bons costumes", como duas
coisas que se complementam. Elas se complementam, mas elas não têm realmente o
mesmo lugar na hierarquia da ação humana. Porque a “Moral” era considerada como
a causa fundamental, a causa ativa da bondade das ações, e os bons costumes, o seu
eco passivo na sociedade, a causa ocasional, que lhe ajudava a ter uma referência.

E hoje em dia, quando se fala de Moral – eu não tenho certeza ainda de como é
no resto do mundo, mas no Brasil, pelo menos – as pessoas pensam “bons
costumes”. Como no Brasil as pessoas não têm bons costumes, elas só têm maus
costumes – e isso é uma grande verdade – [ensinar] esse negócio de “bons
costumes” e “moral” fica mais difícil ainda, porque a "moral", isto é, os bons
costumes, os preceitos que os outros aceitam não são mais uma referência, são
apenas um instrumento para se apontar o dedo a um terceiro: “Olhem como ele faz
errado!” – então é simplesmente um princípio de acusação. O que seria “os bons
costumes" é só um corpo de leis que serve para você acusar os outros. Isso não tem
nada a ver com a moral, isso faz parte do mundo imoral. “Os bons costumes" fazem
parte do mundo moral, no sentido de uma causa auxiliar. Um conjunto de preceitos
que servem para acusar o outro não faz parte, de jeito nenhum!

E isso não faz parte, pelo seguinte motivo: primeiro, o objeto da Moral é um
objeto que não pode ser conhecido de maneira geral com a mesma clareza que os
objetos físicos. Até metafísica é mais clara do que moral. Por quê? Simples: por
causa da variedade das circunstâncias humanas internas e externas. Quer dizer, para
você fazer a mesma coisa certa, será de um jeito se você estiver num mosteiro, de
outro jeito se estiver na sociedade; e essa sociedade é o Brasil? É a Alemanha
nazista? Daí é mais ou menos parecido. São os Estados Unidos? Aí é diferente. É um
ambiente preconceituoso, ignorante e acusatório o tempo todo? Então [ali] é um jeito
[diferente] de agir.

Eu lembro de uma vez ter explicado isso numa aula há muitos anos atrás,
quando alguém levantou lá uma questão sobre a mentira. Eu falei que as pessoas não
devem mentir, que mentir é sempre errado, aí elas começaram a perguntar “Mas
você não pode imaginar uma situação em que seja certo?”. Entendi o ponto: “Eu
entendi: você está falando da diversidade da circunstância humana; e o que eu estou

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dizendo é que não mentir, em cada circunstância, é diferente”. Suponha que você
está na Alemanha nazista, tem um vizinho judeu, e então um dia você, saindo do
trabalho, vê que o pessoal está começando a pegar os judeus de sua cidade, botá-los
nuns caminhões estranhos para levar não se sabe aonde; aí você corre para casa e
avisa [ao vizinho]: “Vocês têm que fugir da sua casa, porque o pessoal está
prendendo todos os judeus. Eu sei que vocês são gente boa, eu conheço vocês há
mais de vinte anos”. O sujeito fala “Eu não tenho para onde fugir” e você responde
“Então se esconde na minha casa”. A família dele se esconde na sua casa e aí o
pessoal chega: “Estamos procurando o judeu que mora aqui ao lado, e parece que
não tem ninguém em casa. Você sabe onde eles estão?”. Você tem que
imediatamente dizer “Não tenho a menor idéia de onde eles estão” ou “Acho que
eles foram visitar uns parentes no interior” (inventa qualquer história). E isso não é
mentir, isso não é mentira. Isso não é mentira porque cada ação tem que ser
considerada no contexto completo da sua circunstância interior e exterior. Quando o
sujeito lhe perguntou “Você sabe onde os judeus estão?”, leia direitinho o que ele
disse: ele disse “Você sabe onde está esse judeu para que eu o prenda injustamente?”
O que ele perguntou, na verdade, foi: “Você vai me ajudar a prender injustamente
essa família de judeus que estava morando ao lado?” – ao que você tem que
responder com: “Não, eu não vou te ajudar”. Quando você responde "não" a esse
sujeito, você não está mentindo, isso não é mentira. Isso é a pessoa que pensa num
preceito, uma norminha formulada – "Você não pode mentir” – e pega aquela
fórmula e a aplica cegamente. Não é assim que funciona! O sujeito quando responde
“Não, não sei onde está o judeu” ou “Eu acho que ele foi para tal lugar” (e ainda
despista o cara) não está mentindo, ele está respondendo da maneira mais adequada
e verdadeira possível à intenção real daquele que fez a pergunta. Havia um cenário
real: ele conhecia aqueles judeus, ele viu que as pessoas estavam pegando e
prendendo judeus sem justificativa, e que era isso que o cara queria fazer quando
chegou e bateu na sua porta; e ele respondeu a este cenário real. Isso é Moral – o
resto é “bom costume”. Realmente é um bom costume geralmente não mentir; tome,
em geral, como regra a ideia "não mentir", mas a avaliação, a compreensão da
moralidade de um ato é impossível fora do seu contexto real.

Como esse contexto real não pode ser descrito de maneira suficiente
teoreticamente – você não pode ter uma teoria que abarca as modalidades
fundamentais da variação da circunstância humana – isso significa que o objeto da
Moral tem que ser entendido de maneira elástica e, portanto, de maneira
relativamente indefinida. É assim: o que é bom, o que é mal na ação? Há uma idéia
geral disso, que tem que ser elástica, ou seja, ser imprecisa. Dizer que uma ideia tem
que ser elástica é dizer que ela é imprecisa, sob certo aspecto, necessariamente. É
claro que, quando surge uma dúvida de um aluno durante uma explicação sobre
moral, sempre podemos dar um exemplo extremo. Exemplo extremo é fácil: basta
citar o ambiente comunista ou nazista, ou seja, um ambiente extremo em que as
diferenciações são extremas e a pessoa vai entender: “Caramba, o mesmo princípio
pode se apresentar, na superfície, pelo seu contrário, pela aparência contrária!”.

No entanto, nem toda circunstância humana implica extremos tão claros. Por
exemplo, um sujeito trabalha, está criando os filhos, dá esmola, ajuda os amigos e,
em algum momento, em alguma circunstância, essas diversas necessidades
econômicas vão entrar em conflito umas com as outras: a comida dos filhos, a ajuda
aos amigos, a vida intelectual e espiritual – você não pode se matar de trabalhar

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

porque senão você não consegue rezar, não consegue pensar, não consegue estudar
–, a necessidade de economizar, para tentar criar uma certa prosperidade... são várias
necessidades econômicas e, em algum momento da sua vida, uma vai conflitar com
a outra. “Eu tenho tanto de dinheiro. Ou eu ponho nisso ou naquilo, naquilo outro”.
Na maior parte das vezes, a questão não será muito grave, mas, em algum momento,
ela vai aparecer grave para você. E aí, o que é moral? O que é melhor? Qual é a
melhor ação? Moral é acerca disso – qual a melhor ação a se tomar. Não dá para
antecipar isso no estudo da moral. O que dá para fazer é ensinar: “Estruturalmente,
fundamentalmente, é assim que o dinheiro deve ser usado, etc...”, isto é, quais são as
direções potenciais do bom uso das riquezas, e uma certa hierarquia; e o sujeito
captar aquilo muito bem e tentar aplicar na sua vida. Isso significa que, em algum
momento, é muito possível que ele tenha que fazer, na letra, o contrário do que ele
aprendeu, e, em espírito, exatamente aquilo que ele aprendeu. É principalmente com
relação à Moral que o Cristo falou “A letra mata; é o espírito que dá a vida” (aliás,
ele falou isso num contexto se referindo à letra da lei, à letra das normas morais). Há
momentos em que cumprir isto [a letra da lei] à risca é violar a essência disto [de
praticar a melhor ação moral]. A ação humana é um campo em que acontece isso:
para permanecer fiel a uma realidade essencial, você tem que agir, na superfície, da
maneira contrária à que exemplifica aquele valor ou aquele princípio ou aquele bem.
Isso é uma das grandes dificuldades da ciência moral.

É engraçado que, poucos dias antes (ou talvez depois) de cometerem essa
imoralidade que foi usurpar a página de “Facebook” do meu pai, eu vi lá alguém
falando que se você tiver fé, você está livre de tormentos morais ou dilemas morais.
Eu pensei “Mas que opinião idiota! É evidente que você não tem a menor ideia do
que seja moral. Você pensa a Moral como um fariseu pensava, como um conjunto de
preceitos a serem seguidos literalmente em todas as circunstâncias, e então, é claro:
se você memorizar bem esses preceitos, e se acostumar e tiver um forte senso de
dever de que você tem que cumpri-los – aí você é um soldadinho em relação a eles,
e eles são suas regras de quartel – você não tem dilemas, é lógico; mas você também
não tem vida moral!”. Existe até um exemplo clássico, na história, de um sujeito que
Deus amava especialmente – era São Paulo – que fazia exatamente isso e,
literalmente, caiu do cavalo. Isso é impossível, mesmo para a melhor pessoa do
mundo. São Francisco num determinado momento teve um grande tormento sobre se
ele deveria continuar andando no mundo, ou se tornar eremita; e este é um dilema
moral, porque é um dilema acerca de qual o melhor rumo que a minha vida tem que
tomar e, portanto, quais as melhores ações que eu posso realizar. Quando a pergunta
é essa: “O que é o melhor que eu posso fazer, e o que é o pior?”, a pergunta é moral.
São Francisco não conseguia decidir, o que lhe atormentava muito, e ele foi
perguntar a um companheiro, mas não ficou contente com a resposta; depois
perguntou para outro; depois perguntou para Santa Clara; ele teve que perguntar a
uns três ou quatro para acalmar, apaziguar a sua alma e dizer “Está bem, eu farei
isto. Eu ainda não sei, mas vou acreditar que vocês estão inspirados por Deus”. Veja,
o mais santo dos santos teve dúvidas acerca da ação humana, da sua ação! A pessoa
pensa que dilema e tormento moral é só cumprir uma regra ou não cumprir uma
regra. É o cara que quer cumprir uma regra, mas ele está tentado a não cumprir...
isso é ridículo! Esse é o pensamento do sujeito comunista ou nazista: depois ele fala
“Não, eu só estava servindo à revolução, só estava cumprindo ordens!”. Quer dizer,
ele pegou uma lista de regras ali e diz “Eu só estava fazendo isso, cumprindo-as.
Como você pode agora dizer que é mau o que eu estava fazendo?” É justamente o

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

sujeito que não tem vida moral, que simplesmente introjetou os bons costumes, ou
os costumes chamados bons – porque “bons costumes” são os costumes da
sociedade, mas, se a sociedade só tiver costumes ruins, os “bons costumes” são um
monte de porcaria! Este sujeito introjetou os bons costumes como normas e acha que
isso é moralidade, que isso é moral. Não existe nada mais distante da Moral do que
isso, isso é antimoral! Mesmo quando os costumes são excelentes (vimos há pouco o
exemplo de São Paulo): vá ler a lista de costumes dos fariseus. As regras dos
fariseus eram todas ótimas! Se todo mundo fosse fariseu estrito, o mundo seria, no
mínimo, cem vezes melhor do que ele é hoje – é sério! Mas isso não torna nenhuma
pessoa boa. Bons costumes tornam a sociedade mais transitável para o homem bom,
mas não lhe dá moralidade nenhuma.

Moralidade é descobrir aí dentro o princípio que torna as ações boas, e usar


esse princípio para localizar: “Esta é a melhor ação, então farei esta aqui”. E você
pode, e é normal que em algumas circunstâncias – não em toda ação, claro, mas em
várias, no curso de sua vida – você tenha profundas dúvidas e tormentos: “Isso é o
melhor, ou não é o melhor? Isso é o melhor? Isso é o pior?” O máximo que a adesão
a uma religião, que a fé pode lhe dar é uma certa paz relativa ao seguinte: “Eu estou
tentando fazer o melhor aqui e, mesmo se eu errar, Deus vai me dar a graça de me
arrepender, de pedir perdão, e acabar indo para o Céu”. Isso sim. Tem um fundo de
paz porque tem um fundo de esperança na graça divina, no auxílio divino; mas esse
fundo de esperança é acompanhado de tormento em relação à decisão. Nem toda
decisão – este que é o ponto –, nem toda decisão é diretamente entre o Bem e o Mal.
Há decisões entre o melhor e o pior, e como nós não somos capazes de antecipar,
para o curso todo da nossa vida, todas as consequências das nossas ações, isso as
deixa mais temíveis ainda; a perspectiva de decidir é mais temível ainda.

Resumindo: quais são as condições para o estudo da moral? Moral é acerca do


que é felicidade ou do que é uma vida boa. Este é o primeiro tema. Segundo: Moral
é sobre você achar internamente, aí dentro, aquilo que torna a sua ação boa ou má,
melhor ou pior, e assim você decidir de acordo com isso. Isso implica no quê? Isso
significa que o tempo todo no ensino da moral, para ensinar o que é Moral
(resumindo: o tempo todo neste curso), eu terei que estar chamando você para que
traga à sua mente justamente: “O que eu faria aqui, o que eu prefiro aqui?” Com
sinceridade. Não pode ter atitude simplesmente crítica e questionadora, porque
assim você vai fechar os seus olhos, e quando você fechar os olhos para o que o
outro está descrevendo sobre a ação humana, imediatamente as suas preferências se
tornam um padrão universal. Você terá que ouvir e imaginar aquela situação para
você, aí evocar o que você faria, ou o que você acha que faria, ou como está
parecendo agora que você faria, e se uma coisa não bater com a outra, você fala
“Mas uma pessoa não poderia fazer assim?” Não precisa falar “Mas o que eu sinto é
isso” – também não é o objetivo criar um ambiente de confissão. [A pergunta correta
é] “Mas e se uma pessoa pensasse assim, nessa situação, não seria melhor?” Porque
o objetivo aqui é perceber a direção fundamental dos critérios de ação – se a direção
fundamental é boa ou má –, perceber uma certa hierarquia.

Num certo sentido, Moral é como uma árvore: a raiz da árvore da Moral é o
desejo de felicidade, é nós queremos ser felizes. (E eu vou mais adiante explicar o

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

que queremos dizer com “felicidade”). De um modo geral, todo mundo procura
felicidade. Se eu lhe perguntar “O que você prefere? A felicidade ou a infelicidade?”
A não ser que ou você queira fazer piadinha, ou imagine que eu quisesse fazer
piadinha com a pergunta, você dirá “A felicidade”. Esta é a raiz – é o desejo de
alcançar o melhor na vida. E há um tronco fundamental, que são as virtudes
fundamentais: cinco ou seis virtudes fundamentais, que são os hábitos internos que
têm o maior poder de tornar as ações boas ou más. E há os ramos, que são as
virtudes referentes a cada área da vida: o que é moral conjugal? Como o sujeito age
com a esposa, como a esposa age com o marido? O que é a moral com os filhos?
Como se educa os filhos? Como os filhos devem responder aos pais? E a moral no
trabalho – o que é fazer um negócio honesto? O que é a honestidade nos negócios?
O que deve ser feito e o que não deve ser feito? E assim por diante. Lá na ponta dos
ramos há os frutos: são as boas ações que você faz. E antes de nascerem os frutos, há
as folhas: elas são, num certo sentido, os preceitos e os bons costumes reais; você lê
os mandamentos, os conselhos evangélicos, os exemplos dos santos, e tudo isso
serve para amparar as coisas, para proteger, deixar o fruto na sombra. Mas a Moral
não nasce das folhas, ela nasce da raiz e do tronco.

Teremos aulas em que trataremos da Filosofia Moral propriamente dita: o que


são as virtudes, o que é felicidade etc. Já em outras aulas trataremos de: “Vamos
agora esquecer um pouquinho o aspecto das virtudes em geral, e pensar o seguinte:
no casamento, por que todo mundo divorcia? Por que os casamentos dão certo ou
dão errado? Qual é a virtude no casamento? Qual é o vício? Com os filhos, com os
pais, e assim por diante”. E em outras aulas, vamos pegar só um exemplo, um
preceito, e desdobrá-lo em circunstâncias humanas. Por exemplo, pegamos aqui o
exemplo de São Paulo e o de São Francisco; pegamos o preceito de que o sujeito não
deve mentir, que não é exatamente um mandamento, mas é um preceito geral; todo
mundo ouviu isso na infância, em algum momento, e se não existe realmente o
mandamento “não mentirás”, existe o “não prestar falso testemunho”, o que
subentende que, de maneira geral, você não deve mentir – mas, se acontecer, há este
limite último: pelo menos diante do juiz, não vá mentir. Isso é outra coisa que as
pessoas não entendem sobre os mandamentos: eles são limites extremos.

Voltando ao tema da filosofia moral. Uma vez que já explicamos quais são
mais ou menos as dificuldades (e eu sei que teremos que superá-las aula por aula),
eu já vou dizer isto, de uma coisa que será extremamente importante: o pessoal acha
engraçado que toda hora é perguntado “Está entendendo? Está compreendendo? Está
claro isso?”, mas isso não é simplesmente um vício de exposição, um vício de
linguagem, na verdade nós estamos tentando insistir em que o pessoal realmente
pergunte. O estudo é algo que tem que ser muito ativo, o estudante tem que estar
muito ativamente engajado no processo. É muito importante que vocês comecem a
levantar as dúvidas em cada momento. Eu sei que às vezes sou um sujeito um pouco
marcial, que parece bravo, e aí dá medo (Na verdade, me informaram isso muitos
anos atrás: eu fui dar uma aula em Curitiba, e quando eu entrei todo mundo ficou
quieto, e então alguém falou “É que você entra com uma cara de mau e aí dá medo”.
Eu pensei “Caramba, é mesmo? Eu nunca tinha notado isso!”). E pode ser que às
vezes eu responda “Não, isso não tem nada a ver” ou “Cala boca, burro!”, o que dá a
impressão que estamos fazendo aquilo de maldade, aí o aluno fica triste: “Caramba,
eu nunca progrido!”. Não pense assim, a sua pergunta é realmente importante, desde
que ela não seja mal intencionada. E como eu já sei que 80% das perguntas não

9
O Princípio da Felicidade – Aula 01

serão feitas, você tem que fazer pelo menos 20% ou 30% das perguntas que vêm na
sua cabeça, porque de repente elas vão ajudar outras pessoas que estão com
perguntas parecidas, mas não fizeram. Então, eu vou insistir mais uma vez, nessa
aula de introdução, para que o pessoal, no curso das aulas, faça pergunta para cada
coisa que tiver dúvida. Se aquela pergunta for excessiva nós diremos “Espere um
pouquinho que isso será respondido mais adiante” ou “Isso não tem como ser
respondido neste curso, você tem que ler alguma outra coisa ou fazer algum outro
curso”, não tem problema.

Então vamos voltar ao tema. Moral diz respeito, em primeiro lugar, a isto:
como é que eu levo uma vida boa? O que é uma vida boa? Se há um par de idéias
que podemos imediatamente associar à moral, como nós falamos, é “bem” e “mal”.
Todo mundo sabe isso. E, embora as pessoas hoje em dia tendam a ser relativistas ou
subjetivistas em relação a bem e mal, elas continuam tendo noções de bem e mal
como sempre tiveram; e porque elas são relativistas, em princípio, elas não se
perguntam “Por que eu penso que isso é bom ou que aquilo é mau? Por que o outro
pensa que aquilo é bom e aquilo outro é mal?” Então, temos de dizer [a essas
pessoas]: “ponha entre parênteses o seu relativismo, para você poder estudar o
assunto. Depois que estudar o assunto, quando chegar ao final do curso, você me diz
se ainda é a favor de relativismo ou não; até lá, você vai ter que observar o
fenômeno do Bem e Mal como ele surge na sua mente.” De qualquer maneira, uma
das primeiras coisas que aparece na nossa mente, quando falamos de moral, é Bem e
Mal. Está certo, mas é “bem” e “mal”, primeiro, no sentido de viver uma vida boa
ou viver uma vida ruim – e viver uma vida boa significa alcançar os melhores bens,
alcançar o que é bom.

A primeira pergunta a ser feita talvez seja justamente esta: qual é o melhor
Bem? Quais são os melhores Bens? O que é o melhor, o melhor de tudo? Qual é a
melhor vida? E existem várias alternativas para [responder] isso, algumas que são
lugares-comuns universais, algumas que são lugares-comuns próprios brasileiros – é
sério, [estes] são muito diferentes dos lugares-comuns universais.

Aristóteles, por exemplo, quando vai tratar deste tema na Ética, faz uma lista
das opiniões comuns. E [a primeira] é um lugar-comum que se aplica no Brasil –
quando falo isso, eu sei que já estou falando num tom de que é algo um tanto
desprezível, e faço isso porque eu começo a lembrar da forma como se pensa no
Brasil normalmente. Mas temos que ser muito honestos e pensarmos honestamente
quais são as primeiras coisas que aparecem na nossa cabeça. Aristóteles fala: “A
maior parte das pessoas diria que o prazer é o melhor bem, porque o prazer é bom
em tudo, não há nenhuma ocasião em que você tenha prazer e o prazer seja mau;
prazer é sempre bom, é o melhor bem”.

Outro [lugar-comum] – e esse não é um lugar-comum no Brasil, são


pouquíssimas as pessoas que pensam assim no Brasil – é a honra. Veja bem, no
Brasil há um lugar-comum que é diferente da honra: a fama. Mas existe uma
diferença entre a honra e a fama. A honra é um tipo de fama que gera admiração
pessoal, um tipo de opinião que as pessoas têm de você, mas ligada a você mesmo e
que lhe valoriza diante delas; já fama é o seguinte: você pode fazer palhaçada e ficar
famoso só fazendo palhaçada. Ora, existem bandidos famosos, bandidos célebres,
não é? No entanto, eles não têm honra diante das pessoas. Ninguém fala “Olhe, o

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

grande assassino!” Então, fama é um lugar-comum no Brasil – quando as pessoas se


perguntam quais são as melhores coisas, fama muitas vezes está na lista. Não é um
lugar-comum entre os famosos: eles antes costumam reclamar muito da fama, o que
é um indício de que talvez esse negócio de fama não seja tão “cem por cento”
quanto estamos pensando.

Prosseguindo, [Aristóteles diz]: “Outros, logo depois que sugerem a honra, se


corrigem e falam ‘Não, a honra só diante dos homens bons’ ou ‘ser famoso entre os
homens bons, pelas minhas qualidades’”, e continua: “Essa pessoa parece que
valoriza mais a virtude, as suas qualidades, que são admiradas pelos homens bons,
como o melhor bem”. Em seguida: “Outros dizem que é uma vida de contemplação,
de sabedoria, de conhecimento”.

Note que ele foi da opinião mais popular para a menos popular, em números,
porque isso é uma prática comum de qualquer exercício dialético: se você quer saber
o que é uma coisa, qual é a opinião geral das pessoas sobre isso? Depois procure
localizar a opinião dos sábios ou dos especialistas. Nessa lista de opiniões você vai
encontrar pistas acerca de qual é a correta. Então, depois de mencionar todas essas
opiniões, ele menciona mais uma e comenta “Algumas pessoas bem idiotas e burras
pensam isso” – ele fala assim mesmo! – “algumas pessoas bem incompetentes
pensam isto, mas eu já vou refutar isto em duas linhas, porque é evidente que não é:
riquezas. É evidente que não é, porque você nunca adquire riquezas, nunca acumula
dinheiro, para guardá-lo! Dinheiro só é precioso quando você não tem; quando você
tem, você imediatamente dá um jeito de gastá-lo. Então, é evidente que isso não
pode ser o bem supremo – porque um bem que é usado só para obter um outro não é
supremo, é secundário”. Acontece que riqueza é um lugar-comum no Brasil. Na
verdade, dos lugares-comuns no Brasil, só um é mais ou menos natural. Os lugares-
comuns do Brasil: prazer... Veja bem, eu sei que algumas pessoas dirão “Não! Não é
o prazer, é ser certo, é ser [um cidadão]...” – hoje em dia é ser “bom cidadão”, a
“cidadania” entrou também – mas isso está tão baixo, assim como a riqueza, que é
difícil de refutar! “Cidadania”: pois bem, você não sabe que todos os nazistas, os
torturadores no Gulag, eram bons cidadãos? Então esse é seu modelo, cidadania é
isso aí, filho!

Então no Brasil é o seguinte: prazeres, cidadania, fama (e não honra!


Pouquíssimas pessoas no Brasil têm noção exata de honra, elas têm uma noção de
fama, isto é, virar a Xuxa; virar um herói, elas nem acreditam muito que isso exista),
riquezas e saúde. Também isso [saúde] é muito comum. Depois que discutimos meia
hora sobre o que é bom e o que é melhor, a conclusão final é sempre: “O que
importa é ter saúde!”. Mais adiante nós vamos discutir esses lugares-comuns
próprios do Brasil.

Eu diria que fora o prazer – que é um lugar-comum universal, uma opinião


muito comum e quase que natural, que é um indício de que tem alguma ligação com
o que é o melhor –, todos os outros lugares-comuns no Brasil estão muito abaixo do
domínio da refutação, são muito, muito inferiores. É muito fácil mostrar que,
primeiro: riqueza e fama são externos a você, eles não lhe qualificam, eles não são
vida. Fama é vida, a vida do sujeito que lhe admira; a vida dele, não a sua – a sua é,
sei lá, ser palhaço no circo, ser apresentadora de programa infantil. Logo, elas não
podem ser o melhor bem, que define uma vida boa, porque elas não são realmente

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

constituintes da vida, elas são externas à vida. É evidente que esses bens podem ser
auxiliares à vida boa, mas eles não podem ser eles mesmos o bem que é a vida boa.
Na verdade, toda vez que a pessoa fala “fama”, “saúde”, “riquezas”, ela está se
referindo ao seguinte: “Essas parecem ser grandes causas de prazer”. A riqueza,
porque você compra tudo que é gostoso, a fama porque as pessoas vêm lhe dar
beijinho, aí você pega todos os beijinhos que quiser, e o mesmo para a saúde: se
você estiver doente, tudo o que é prazeroso fica desprazeroso. Na verdade, essas são
tentativas toscas de encontrar qual é a principal causa de prazer, e é por isso que elas
estão bem abaixo. Quer dizer que a pessoa não entendeu a pergunta. Era melhor ter
respondido “o prazer”, pois seria mais verdadeira, porque essas outras coisas são
boas tendo em vista o prazer.

É interessante que, de todas essas, as únicas que Aristóteles lista é a honra. Ele
não menciona a fama, porque esta não era um lugar-comum. Quer dizer, você é
célebre porque anda plantando bananeira ou anda na corda bamba; ele nem
considerava isso como uma possibilidade. A honra, sim – as pessoas lhe acharem um
cara muito legal, muito sábio, muito virtuoso, muito corajoso, muito importante –
essa ele acha ser um lugar-comum entre os gregos, essa ele considera como uma
opinião razoável. Ele só menciona as riquezas porque ela [a opinião] estava
começando a surgir [na época], mas ele realmente a menciona em separado e fala “É
evidente que essa é uma opinião minoritária de pessoas que não pensaram muito”.
Economizar dinheiro – diz ele – é uma das maiores causas de sofrimento na vida, é
uma das coisas mais difíceis de fazer e que sempre rende menos do que você queria.
Juntar dinheiro é horrível, todo mundo sabe disso. Enriquecer, segundo ele, é uma
tremenda causa de infelicidade, em geral, o processo de enriquecimento é difícil, e é
um processo de autocontrole terrível; e as pessoas não gostam de autocontrole, é
evidente. Ele continua: “No momento mesmo em que você adquire a riqueza, você
quer usá-la para outra coisa: para comprar prazer, ou honra, ou fama, ou
conhecimento, ou saúde, imediatamente”. Então, é evidente que a riqueza, além de
ser trabalhosa, é um bem instrumental, um bem para adquirir outra coisa.

Diante desta lista – o prazer, a virtude, a honra, e a contemplação –, é bem


difícil dizer qual é o melhor, ou qual é o principal, ou se algum deles é totalmente
principal sobre os outros. O que eu quero dizer com “é difícil”? Não é difícil pensar
“O homem é feito assim, etc. etc. e, portanto, a contemplação é melhor” ou
“portanto, a virtude é melhor” ou “portanto, este outro é melhor”. Não é tão difícil
ter essa teoria, ter uma hipótese fundamental. Difícil é realmente sentir uma dessas
coisas como sendo realmente a principal. E veja bem: em moral, “ir desenvolvendo a
teoria” e “ir sentindo que as coisas são daquele jeito” têm de caminhar juntos –
senão o aluno não está aprendendo a ciência.

Vamos seguir numa outra direção. Essa questão de bom e de mau é um tipo de
ordem, de hierarquia, de série: há o bom, o melhor, o melhor ainda, há o mau, o não
tão mau, o pior. Essa ordem ou série sempre se aplica ao mesmo tipo de fenômeno.
Em que sentido? Tem a cor de que eu mais gosto e a cor de que eu menos gosto.
Não é assim: há a cor de que eu mais gosto e, contrastando com ela, apenas o som de
que eu menos gosto. Sempre, se há a cor de que eu mais gosto, há a cor de que eu
menos gosto (e o mesmo vale para o som). É evidente que em se tratando de gostar
de cor, não estamos querendo dizer que esta cor seja melhor – digamos, o amarelo é
melhor do que o verde, melhor do que o branco, ou melhor do que o marrom –, mas

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

a sequência ou ordem existe nas duas coisas: tanto naquilo que é bom quanto
naquilo de que eu simplesmente gosto.

Vamos pensar assim: há músicas boas e músicas ruins, músicos bons e músicos
ruins, casas boas e casas ruins, pedreiros bons e pedreiros ruins, alimentos bons e
alimentos ruins, cozinheiros bons e cozinheiros ruins. O que queremos dizer com
isso? Na linha “cozinheiro”, há bons e ruins. Na linha “alimento”, há alimentos bons
e alimentos ruins. Na linha “musico”, o mesmo. E Assim por diante. Quando você
diz que um pedreiro é bom e outro é ruim, mais ou menos o que você quer dizer?
Simples: tendo dois pedreiros e lhes dando o mesmo material e o mesmo projeto, um
faz uma casa boa, o outro faz uma casa ruim; um faz uma casa melhor, o outro faz
uma casa pior. Você não diz que o sujeito é um pedreiro ruim porque ele torce para
o Palmeiras; porque ele torce para o Palmeiras, você pode dizer que ele é um
torcedor ruim, que ele escolheu o time errado, ele não tem discernimento; ou por
vários motivos: ele foi mal educado, foi a educação do lar. Mas de qualquer modo,
isso não faz dele um mau pedreiro.

O mesmo para um músico ruim: ele não é um músico ruim porque ele enche a
cara, até porque está cheio de músico bom por aí que enche a cara, que vive bêbado
– aliás, ele é melhor quando está bêbado! Esse é um tipo de exemplo de que a
história é abundante. Então, não é porque ele esteja embriagado que ele é um músico
ruim, ele é um músico ruim porque quando você dá a mesma canção para dois
cantarem, esse canta mal e o outro canta bem.

Cada ente é bom ou mal de acordo com uma coisa específica que ele faça bem
ou mal. Por exemplo, o cantor interpreta uma canção: é no ato de interpretar bem ou
mal uma canção que se define se ele é um bom ou mau cantor, e não no ato de
dormir mais ou menos, ou beber mais ou menos. O mesmo vale para o pedreiro: eu
não quero saber o quanto você bebe, o quanto você dorme, se você bate na sua
esposa ou não, isso não lhe qualifica como pedreiro (isso lhe qualifica em outras
áreas, com certeza, mas não como pedreiro); essa também é uma área comum em
que nós podemos falar de embriaguez, embora geralmente isso dificulte o trabalho
do pedreiro mais do que o do cantor. Parece que a bebida tem um efeito diferente
sobre o cantor e sobre o pedreiro, esta é uma questão para ser analisada em outro
momento.

Isso não é assim só com as pessoas ou as profissões. Isso também é assim por
exemplo, com os órgãos [do corpo]: eu não digo que meu olho é ruim porque ele é
incapaz de ouvir, porque ele é surdo. Eu só digo que meu olho é ruim porque diante
do mesmo objeto, sob a mesma luz, eu não enxergo e os outros enxergam. Se uma
coisa é boa ou ruim, isso é geralmente determinado no exercício da sua operação
própria. Parece que cada coisa e cada profissão está ordenada a um certo fim, tem
um propósito que lhe é próprio. Do mesmo jeito é com cada órgão. Então a mão não
é ruim se ela não servir para enxergar, mas se ela não servir para agarrar. Se minha
mão é fraca, é uma mão ruim, porque ela não consegue segurar as coisas; mas se ela
consegue segurar, ela é uma mão boa. O fígado: sei lá o que o fígado faz, mas deve
haver alguma coisa que ele faz, e por esta ele é julgado. O estômago: há um bom
estômago e um mau estômago. O mesmo quando falamos de um bom alimento e um
mau alimento: o alimento tem que nutrir e gerar uma certa satisfação sensorial; nós
dizemos que é bom o alimento que nutre e gera um certo prazer, e é mal aquele que

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

ou não nutre ou não gera prazer, ou não faz nenhum dos dois. Isso vale até para
coisas que são, num certo sentido, más. Por exemplo, o veneno: o bom veneno é
aquele que mata de vez! Aquele que só tonteia é um veneno ruim. Para cada coisa,
nós avaliamos se ela é boa ou má na sua operação e vemos em que grau ela atinge o
propósito daquela operação.

Para então sabermos o que é uma vida boa, a primeira coisa que nós temos que
nos perguntar é justamente: “Qual seria o propósito da vida?” É lógico que quando
falamos de vida boa, nós estamos falando, pelo menos em Moral, de uma vida
humana boa; não queremos saber como se torna boa a vida dos anjos ou a das
minhocas, porque isso não é problema nosso. Em Moral estamos tratando de como a
vida humana fica boa. Se a pergunta “Qual é o bem principal?” é complicada, a
pergunta “Qual é o propósito principal da vida humana?” também é complicada
porque é muito difícil de captar (“Caramba, ninguém me explicou isso antes”).

Vamos pensar um pouquinho: o pedreiro bom é o que faz uma casa boa, o
cantor ou músico bom é o que interpreta bem uma canção. Mas antes de haver a
canção boa ou a casa boa, há o processo pelo qual ele realiza aquilo. Um cantor pode
realizar o processo de cantar bem uma musica só pensando? Não vai sair som
nenhum. Então, não só a música tem um propósito – a canção, a obra interpretada –,
como ela tem um processo, uma operação que é realizada para chegar àquele
resultado. O mesmo vale para a casa: o pedreiro bom não a construiu por
mentalização – houve um processo, uma série de operações. Repare que essas
operações, em cada categoria, são diferentes. As ações pelas quais o cantor
interpreta bem a canção são completamente diferentes das ações pelas quais o
pedreiro realiza a obra boa (Embora muitas vezes cantarolar o ajude a fazer isso... há
alguma coisa entre música e pedreiro). Para julgar se o pedreiro é bom ou mau, o
melhor jeito é ver o resultado: se o resultado é bom ou mau, a casa é boa ou é má; e
a casa, por sua vez, pode ser julgada por certos critérios bem fáceis. O mesmo para a
canção, para o cantor: “Cante aí, deixe-me ouvi-lo”, e vejamos o resultado. O
mesmo para a mão: agarrar. O mesmo para o fígado: “figadar” (alguma coisa ele faz
lá... Eu não entendo nada de “figadologia”, mas tenho certeza de que ele faz algo
que é diferente do estômago e que é diferente do cérebro, e que um fígado bom é
julgado de acordo com “Pelos frutos os conhecereis”). No caso, o propósito do
pedreiro é a edificação; o propósito do cantor é a canção [interpretada]; o propósito
do fígado é alguma coisa desconhecida (provavelmente algum médico saiba,
espero); o propósito de cada um desses é mais ou menos fácil de alcançar, com a
exceção do fígado, que é um mistério... Mas quando o propósito é difícil de alcançar,
como no caso do fígado ou da vida humana, o que fazer?

Não podemos ir tão longe. Note que, num extremo, o ponto de partida da boa
edificação é o pedreiro. Como saber se o pedreiro é bom ou mau? Olhando o outro
extremo, o ponto de chegada, o produto, o resultado – eu analiso o resultado e assim
eu fico sabendo. Mas neste caso o resultado também é difícil de alcançar, de
entender. O que é o bem supremo da vida, o propósito da vida? Difícil... Então nós
teremos que dar uma olhada no “meio”. Como podemos olhar o meio? É simples:
como já explicamos, as operações que o pedreiro realiza para produzir uma casa boa
são diferentes das operações que o cantor realiza para interpretar bem uma canção.
Essas operações são características ou típicas; as do pedreiro são preparar o terreno,
medir as coisas, preparar o cimento, misturar o cimento com areia, assentar os

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

tijolos; e as do músico – não me pergunte como é que ele faz aquilo porque esta
parte da operação é misteriosa para mim, eu sou um tremendo desafinado, não tenho
a menor idéia de como se faz isso. E o mesmo se dá com o fígado: puxa vida, eu não
sei qual é o propósito do fígado, vamos ver o que ele faz; aí veremos que ele realiza
certas reações químicas, coisas assim. Ele tem uma operação própria. E agora temos
um ente misterioso: o ser humano, que tem um propósito. Ponto de partida: o
homem; ponto de chegada: propósito da vida humana. Caramba, ambos são difíceis
de explicar: como um homem é bom ou mal; e, para saber se ele é bom ou mal, eu
precisaria saber o propósito, mas eu não sei o propósito.

Qual é a pista para o propósito? Em cada coisa a pista para o propósito são as
operações características: o que é aquilo que esta categoria de ser faz que as outras
categorias não fazem? O que é aquilo que o pedreiro faz que o músico não faz, o
sapateiro não faz, o engenheiro não faz? Assim nós teremos a nossa primeira pista.
No caso do ser humano, é por isso que as pessoas perguntam “Qual é o sentido da
vida humana? Qual é o propósito da vida humana?”, e aí ficam falando “Não, a vida
não tem sentido” ou “Não, cada um, cada um” – mas acho que elas não fizeram um
estudo desse assunto, porque quando você quer saber o propósito de uma coisa, você
olha o que essa coisa faz que as outras não fazem, pois é isso o que a diferencia e a
põe na pista do propósito próprio dela. É evidente que o propósito próprio de uma
coisa não pode ser obtido pelo meios próprios de outra coisa. É lógico que a
afinação e tudo o mais que o cantor precise para cantar bem não o ajudam a ser bom
pedreiro, não o ajudam a fazer casas boas; nunca você vai produzir uma casa boa
com os meios que lhe tornam um bom cantor. Se os meios não indicam direta e
completamente o propósito, no entanto, eles têm uma afinidade com o propósito. Por
quê? Porque eles produzem o propósito. São os instrumentos – e eu não estou me
referindo ao violão ou gaita – que o cantor usa para interpretar bem uma canção a
causa da boa interpretação. São os instrumentos – e eu não estou me referindo à pá,
à colher e ao nível – que o pedreiro usa que produzem a boa casa. Não no sentido de
instrumentos exteriores e auxiliares, porque uma coisa não necessariamente precisa
de instrumentos exteriores e auxiliares para produzir algo. O pedreiro usa os
instrumentos auxiliares e exteriores como auxiliar dos seus instrumentos interiores –
dos seus métodos. O mesmo vale para o cantor: ele pode pensar “Se colocar um
violãozinho e uma gaita nessa música, vai ficar melhor a interpretação”, mas isso é
auxiliar. Se o sujeito não sabe cantar, você pode pôr trezentas gaitas no meio, e o
máximo que vai acontecer é disfarçá-lo cantando, é você não ouvi-lo cantando – e
isso não torna a sua interpretação boa, mas a anula. É a mesma coisa com o ser
humano: se nos perguntamos qual é o propósito da vida humana, comecemos então a
se perguntar o que é típico do ser humano fazer que os outros entes não fazem?

É verdade que, para sabermos isso, precisamos ser um pouco livres de certos
preconceitos modernos. Porque a primeira coisa mais evidentemente característica
do homem, das operações que o homem realiza, de tudo o que o homem realiza e
que os outros seres na natureza não realizam, é a liberdade. Essa é a primeira
característica: as ações do homem são livres, a liberdade de operação é uma
característica humana. Se a pessoa tem dúvida de que o ser humano seja livre, essa é
uma questão prévia ao nosso estudo de filosofia moral. O estudo de Filosofia Moral
subentende o conhecimento de que a pessoa humana é livre. Um pouco antes de
começarmos essa aula, um grupo de pessoas propôs a mim a organização de um
curso sobre a constituição humana, onde estudaríamos o que é vontade, o que é

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

sentimento, o que é escolha, e nesse curso seria bem explicada a questão da


liberdade humana. (Se bem que foi dada uma aula – na verdade, uma conversa com
o meu irmão – sobre esse assunto, que ele pôs no “Youtube”, que já serve, pelo
menos, como base sobre essa questão da liberdade.) 1 Mas vejamos o seguinte: cada
vez que você age – lembre isso –, você poderia não agir, você poderia escolher
“Não, não vou fazer isso”. Por exemplo, já faz uns vinte minutos que eu estou
sentido calor, porque o aquecedor aqui está no máximo, e eu estou pensando “Tenho
que tirar essa blusa!”, e não tirei porque tenho que ficar explicando as coisas aos
alunos. Então vamos fazer uma pausa para eu tirar a blusa e já voltamos.
[INTERVALO]

Então, cada ação nossa nós podemos escolher: “Vou fazer, não vou fazer”.
Antes eu estava escolhendo “Não vou tirar a blusa, porque, sei lá, vai parecer que o
professor está fazendo strip-tease na frente dos alunos”, e estava me sentido mal
(Mas agora, como estamos só gravando a aula e o pessoal que está assistindo já me
conhece bem, eu pude pausar e tirar na frente de vocês – não peguem essa frase
isolada e entendam outra coisa!). Então a primeira característica é a liberdade.

Nós não vamos nos estender muito aqui na teoria da liberdade, em como o ser
humano é livre, mas basicamente essa liberdade se baseia no fato de sermos capazes
de determinar, mandar, comandar para nós mesmos uma ação a partir de uma
fórmula racional abstrata. Nem tudo – na verdade, nada do que fazemos – é
completamente ordenado pela circunstância, pela informação direta. Você recebe
informação e pode pensar o que é melhor, o que é pior, o que é vantajoso, o que é
prejudicial, o que é gostoso, o que é desagradável, o que vai acontecer depois... A
liberdade existe por causa disso, porque o comando último depende de uma fórmula
racional abstrata. Nós não queremos dizer com isso uma fórmula racional realmente
inteligente, muito menos uma fórmula verdadeira. O sujeito pode agir e decidir com
base em opiniões perfeitamente idiotas (isso é muito comum, não sei se vocês já
repararam). No entanto, é uma fórmula racional, é uma opinião; não é só um
sentimento de momento, não é só a impressão dos sentidos imediata. A opinião ou a
razão então é sempre a última instância na mente humana, e, portanto, você pode
fazer isso. Isso significa que dirigir a ação de maneira racional e livre é justamente
uma das principais características da ação humana, que nos diferencia do cachorro,
do fígado, da mão. A minha mão não é racional, eu sou racional. Ela abre e fecha de
acordo com a minha opinião. Ela não pode decidir, não pode parar e pensar: “Não,
eu tenho uma opinião diferente!”. Se eu falo “Feche agora” ela não vai responder
“Mas eu acho que é melhor ficar aberta, por causa disso e disso... E você é um
opressor capitalista!”, e sentir que ela é oprimida, e criar consciência de classe – ela
não pode criar consciência de classe, porque consciência de classe é uma opinião. O
cachorro também: ele não tem opinião, ele tem preferências, diferentemente da mão.
Mas essas preferências vão aparecendo para ele em cada circunstância, e ele decide
diretamente de acordo com aquelas preferências naquele momento, ele não consulta
uma instância abstrata na sua mente, que pode pôr um limite à preferência de
momento. Nós podemos.

Vamos um pouco mais longe. A ação livre, isto é, a ação dirigida pela
inteligência, é a mais característica operação humana, e isso é a pura verdade. Não
1
Essa aula já foi transcrita e está intitulada simplesmente como “Metafísica”.

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

importa se você pensar “O propósito da vida, o melhor bem, é o prazer”, pois qual
será o melhor jeito de obter prazer? Por meio de uma ação pensada. Se você seguir
só cegamente essa preferência e falar “Cara, o negócio é o prazer!”, daqui a pouco
você vai estar se entupindo de drogas, e vai morrer. Você seria um hedonista, um
epicurista, que acredita que a coisa mais importante é o prazer. Os epicuristas não
eram uns idiotas chapadões – nem eles eram assim, é só hoje em dia que isso passa
por forma de vida normal –, eles pensavam “Você tem que pensar racionalmente
qual é a melhor maneira de otimizar os prazeres, senão você é apenas um cachorro.
Um cachorro tem menos prazer do que você, porque ele é burro”. Se o seu objetivo
na vida for o prazer, ainda assim você provavelmente estará orientando e
selecionando a sua busca por prazer por meio de fórmulas racionais. Primeiro, você
está escolhendo livremente que para você o prazer é o principal; segundo, você está
elaborando racionalmente um jeito de obter prazer, ou seja, você não atira às cegas.
O mesmo se você decidir que é a saúde [o propósito], ou que é a riqueza ou a fama
(essas coisas bem idiotas): ainda assim, se você parar para pensar, você vai falar “A
melhor maneira de obter isso é orientar racionalmente as minhas ações, é criar uma
ordem de ‘Não faça isso, porque assim você vai perder dinheiro, faça aquilo, que
você vai ganhar dinheiro’ ou ‘Não faça isso, porque você vai ficar doente, faça
aquilo para ter mais saúde’”, dependendo do seu propósito. Essa é a nota humana
por excelência, o que nos diferencia dos órgãos, dos animais, de todas as outras
coisas naturais. Até mesmo com as profissões: quem tem uma profissão, quem sabe
uma arte ou ofício, age segundo fórmulas que lhe parecem razoáveis, senão ele não
obtém resultados consistentes. É claro que sempre há aquele sujeito incompetente
que dá sorte, mas se você testá-lo numa série, um teste depois do outro, você vai ver
que era só sorte, que ele não sabe o que está fazendo. Então, pouco importa se o
sujeito está pensando o objetivo mais nobre ou o mais baixo: em todos eles, a
característica mais humana é a orientação racional. Essa é, de fato, a nossa operação
característica.

Agora vamos pensar o seguinte: a operação racional é suficiente? Digamos: a


ação ser guiada só pela opinião. Opinião é racional, porque ela se expressa em
conceitos; e ela não é só sobre uma coisinha, ela é geral: se alguém tem a opinião
“Casa de madeira é melhor do que casa de tijolo” ou “Casa de tijolo é melhor do que
casa de madeira”, ele não está se referindo a “esta casa”, mas a um gênero inteiro – a
opinião se refere a muitos. Ser guiado só pela opinião é suficiente para ter a melhor
vida, para ter uma vida boa? Não. É suficiente para ter uma vida relativamente
humana. É muito fácil ver que, se suas opiniões forem todas furadas, você não vai
levar uma vida boa. Por exemplo, na sua frente há um abismo, mas ele está coberto
por um paninho; se você tiver a opinião de que não há um abismo ali, e você pisar
ali, você vai cair e morrer. E você não pode falar, quando estiver chegando lá no
fim: “Pelo menos eu segui a minha opinião!”. É muito idiota o sujeito que fala “Eu
errei, mas sempre errei seguindo a minha opinião!”. O que ele quis dizer é que, se
você for obrigado a sempre seguir a opinião do outro, isso também não é uma vida
boa. Não faz parte da vida boa ser forçado a seguir a opinião do outro; viver sob
obediência é uma causa de sofrimento, isso é fato, porque a liberdade faz parte da
característica humana. Como já explicamos, aquilo que é característico na operação
de um ser certamente faz parte dos meios pelos quais ele alcança o seu propósito, e o
ser que alcança seu propósito da melhor maneira, ou o melhor propósito, é o mais
feliz, é o melhor. Logo, é certo que faz parte da vida boa o mais amplo exercício de
liberdade, porque liberdade faz parte da operação característica humana. O sujeito

17
O Princípio da Felicidade – Aula 01

que é sempre obrigado a alguma coisa na base da ameaça não tem como ter a melhor
vida. Por outro lado, se ele não tiver essa pressão externa, se ele realmente for livre
para seguir a sua opinião, mas sistematicamente erra na opinião, ele levou a melhor
vida? É óbvio que não.

Então aí entra um terceiro elemento: não basta que a ação seja livre, guiada
pela opinião ou pela razão. É preciso que a razão esteja mais ou menos reta, isto é,
que ela acerte. Claro que “a melhor vida” não significa necessariamente aquela
absolutamente melhor, mas aquela que está na direção melhor. Na vida
absolutamente melhor, o sujeito teria que ser totalmente livre, sempre, sem nenhum
constrangimento, e sempre acertar nas suas opiniões acerca do que é o melhor,
sempre tomar as decisões melhores; é lógico, essa seria a melhor vida, a mais
excelente, a suprema. Mas digamos assim: quanto mais você acertar livremente,
melhor será a sua vida; e acertar não somente quanto ao meio, como também quanto
ao fim; porque não adianta você acertar quanto a uma coisa e errar quanto a outra.
Por exemplo, ele acertou que: “Essa é a mulher que eu quero!” – é a mulher que ele
quer –, mas se engana quanto ao meio, e ele não a conquista. Não adiantou muito.
Ele escolheu livremente aquela mulher, ele acertou na escolha – “Realmente, esta
mulher é perfeita para você” – mas errou no método, e então ela reage: “Com esse
mané eu não quero casar! Não dá. Sai pra lá!” Não adiantou! O sujeito tem que
acertar com relação ao fim e ao meio de cada ação, e fazê-lo livremente. Se ele
conseguir acertar em relação ao fim, ao meio, e fazê-lo livremente, você sabe:
“Caramba! Assentou-se um tijolinho na ‘vida boa’”. É evidente que para cada ação
feita assim, livre, certa com relação ao propósito – este era bom mesmo e o sujeito
sabia disso –, certa com relação ao meio e através da qual o sujeito conseguiu
alcançar o fim almejado, saberemos que constituiu-se, tornou-se realizado um
componente da vida boa, e esta ação melhorou a vida do sujeito. É claro que se ele
fizer só uma ação como essa na vida, dificilmente ele terá levado uma vida boa,
porque a quantidade conta neste caso. Mas se ele geralmente acertar, se ele mais
acertar do que errar – livremente –, teremos que dizer que esse sujeito levou uma
vida melhor, mais “boa” do que “má”. Se ele acertar muito – sempre considerando o
“livremente” que está incluído – sem constrangimento, esse sujeito levou uma vida
boa.

Nesse ponto, nesse estágio, é importante vocês perceberem isto: como é melhor
agir livremente do que agir constrangido. Não é muito difícil perceber isso. Eu sei
que talvez vocês já sejam pessoas bem “educadas” e saibam: “Mas, às vezes, é
melhor ser constrangido a fazer algo que é certo do que errar sozinho!”, ou seja, não
é sempre que é melhor errar por conta própria do que acertar pela opinião do outro;
realmente, às vezes, é melhor acertar pela opinião do outro. Mas a verdade é que as
duas coisas são meio boas. A liberdade, mesmo quando você erra, tem um
pouquinho de bem e um pouco de mal; e o constrangimento, quando a coisa é certa,
tem um pouco de mau e um pouco de bem. Não se deve confundir. Como ambas as
coisas são constituídas de bem e mal, às vezes será melhor uma, às vezes será
melhor a outra – é lógico, pois são duas coisas mistas. Não estou perguntando aqui
sobre as alternativas mistas, eu estou perguntando sobre os componentes puros:
liberdade e constrangimento dentro da mesma categoria. Veja bem, isto é sobre a
opinião que é certa. É melhor eu chegar a ela e realizá-la livremente ou sob coação?
Livremente!

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

Agora, esqueça a liberdade e vamos julgar a opinião. Então o elemento


“coerção” [que procede] da opinião do outro não existe aqui. Em termos absolutos, é
melhor ter uma opinião certa ou errada? Pense bem, em termos concretos... Você vai
a um restaurante cujo cardápio só tem comida que você não conhece, porque é um
restaurante, sei lá, tailandês (foi a primeira que me ocorreu, porque é uma coisa que
eu não experimentei, por não gostar muito de comida oriental); mas, pensando bem,
como nós sempre vemos em filmes um restaurante tailandês em algum lugar, não
serve... Vamos mudar para sudanês! Quem já comeu comida sudanesa? Ninguém, só
os sudaneses! Então, digamos que você esteja no meio do Sudão e só há comida
sudanesa no cardápio, e você pensa “Eu não sei o gosto de nada disso”. Você vai ter
que escolher uma. Você olha, vê o nome, e pelo nome você tem que formular
alguma opinião: “Eu tenho a impressão de que talvez isso seja bom, pela lista de
ingredientes...” – você tem que opinar acerca do que não sabe pelo que você sabe.
Então você formulou a sua opinião e fez o pedido; aí chegou a comida, você come e
ela é horrível. Quer dizer, a sua opinião estava errada, ela foi totalmente livre e
estava errada. E o seu companheiro que está do outro lado da mesa também não
sabia nada, também chutou, mas chutou outra comida, e experimentou: “Delicioso!”
Então, o que é melhor aí? Viram como não é algo difícil? Quando se fala de
“opinião”, “pensamento”, “razão” etc. a pessoa começa a pensar num monte de
fantasmas na sua cabeça: “Mas a filosofia, a sabedoria...” – não, cara, menos...

O problema é o seguinte: “Essa comida é gostosa ou ruim? Eu devo convidar


essa menina para sair ou não? Eu devo me casar com essa mulher ou não? Eu devo
aceitar esse emprego ou não?” Você tem que formular uma opinião para decidir!
Deu para perceber como esse negócio de liberdade e opinião é o constituinte mais
característico da vida humana? É a coisa mais típica que nós fazemos, e nós fazemos
isso o tempo todo. É a operação mais natural da vida humana. E novamente: acertar
na opinião é melhor do que errar. A opinião certa é melhor do que a opinião errada;
é um fato. Também, como já falamos, se você não souber [algo] e o outro lhe impor
uma opinião, aí vai depender. Quando o outro lhe impõe a opinião, você perde a
liberdade. Você precisa ver o que você ganha em troca. Dependendo do que você
ganha em troca e da circunstância, pode ser melhor obedecer ou pode ser melhor
errar sozinho. Depende do que está em jogo realmente.

Este é outro ponto: a opinião precisa ser certa não apenas com relação ao fim,
mas também com relação ao meio. Como assim com relação ao fim e ao meio?
Agora temos um outro problema: você está num restaurante e, na hora de pedir a
comida, lembra mais ou menos o nome tal como estava no cardápio, pois este já foi
tirado da mesa, e agora o garçom está só esperando você falar. Aí você fala algo
impreciso, algo “mais ou menos”. Ou digamos que não havia cardápio, você só tinha
um nome na sua cabeça. Então, não basta você acertar que a comida é boa, você
precisa também acertar o nome – porque falar o nome ao garçom é o meio para a
comida chegar a você. Se você falar o nome errado, ele pode trazer outra coisa.
Você pode não conseguir aquilo que você queria, mesmo já sabendo que aquilo era
bom. Então a opinião é com relação ao fim e ao meio da ação.

Isso significa que nós podemos definir a operação característica do ser humano
como a atividade livre e sábia. A palavra “sábia” aqui não significa sabedoria
profunda e búdica, não precisa ser tudo isso; é sábia no que diz respeito àquela
atividade, quer dizer, a que acerta o fim (o propósito), a que acerta o meio e a que

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

acerta noutro fator – o terceiro – que ainda não tínhamos mencionado antes: toda
ação tem custo, toda ação exige esforço. Por exemplo: você pediu a comida, acertou
o nome, a comida era boa, mas ela era cara demais. O seu dinheiro valia mais do que
ela, o que foi perdido valia mais do que o que foi ganho. Essa é a terceira coisa que
tem que estar certa na opinião. Quando você, em relação a um tipo de atividade
qualquer, habitualmente, costumeiramente acerta nesses três pontos, você é chamado
propriamente “sábio” naquela atividade.

Portanto, quando dizemos “atividade livre e sábia”, trata-se de uma atividade


na qual habitualmente você acerta que o propósito é bom e o alcança; que o meio
usado é o mais adequado; e que aquilo que é perdido vale menos do que aquilo que é
ganho. Essa é a atividade mais característica do homem. Antes de chegarmos ao
propósito da vida humana, vamos estudar justamente isto, pois Moral é estudar isto:
o que torna a atividade livre e sábia, o que faz com que as minhas escolhas sejam
livres e sábias, sejam maximamente humanas. Assim, se a maior parte da minha
atividade for livre e sábia, é evidente que eu terei levado uma vida boa. Qualquer
que seja o nome do propósito da vida humana, eu o terei atingido, porque é isto
mesmo que me dará o senso de qual é o bem principal da vida humana. É o hábito de
avaliar, para cada tipo de atividade, o bem que é obtido, o meio pelo qual se alcança
e o bem que é perdido, [é este hábito] que me dará um senso geral que, quando
aplicado à vida humana como um todo, vai me dizer qual é o bem principal da vida
humana, como ele é obtido e o que é perdido para obtê-lo. Antes de eu ter esse
conhecimento e esse hábito em várias atividades, é impossível que eu tenha esse
hábito em relação à vida como um todo.

Observe o pedreiro: se, por um lado, o propósito geral da arte do pedreiro é


construir uma boa edificação, esse propósito é alcançado por inúmeras operações,
como misturar a massa (existe um bom misturar da massa, porque existe uma boa
massa); assentar os tijolos (existe um bom assentar dos tijolos); preparar o terreno e
assim por diante. Para ele se tornar um bom pedreiro é preciso que, sendo aprendiz,
alguém faça por ele o seguinte: “Eu não vou lhe ensinar nada sobre fazer uma casa
boa. Fica quieto aí. Eu vou lhe ensinar a misturar a massa, a fazer uma massa boa; a
preparar o terreno; a cavar um buraco”. Só depois de aprender várias dessas
operações é que ele começa a ter uma visão de conjunto de como essas diversas
atividades se articulam para produzir uma casa boa; aí ele começa a ter uma idéia da
arte de pedreiro.

Com a vida humana é a mesma coisa. “Eu quero entender o propósito da vida
humana” – meu filho, primeiro você terá que se acostumar a vários tipos de
atividade livre e sábia. Como se escolhe um emprego de maneira livre e sábia?
Como se administra o dinheiro de maneira livre e sábia? Como se varre a casa de
maneira livre e sábia? Como se trata a esposa de maneira livre e sábia? Cada uma
dessas coisas. Então, depois que você tiver uma boa ideia de várias dessas coisas, e o
hábito – e note bem, “boa idéia” não é só algo mental, porque a “boa ideia mental”
não ajuda em nada. Imaginem se eu tivesse começado essa aula simplesmente
falando “A atividade mais característica humana é a atividade livre e sábia e,
portanto, a Noral é toda sobre a atividade livre e sábia – liberdade e sabedoria”. Não
iria adiantar muito. Porque cada uma dessas palavras tem um significado muito
“mental”. Mas quando vamos falando: “A opinião é o seguinte: você tem que abrir
um cardápio e formular uma opinião acerca de qual comida você acha que vai ser

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

boa” – [o aluno pensa] “Ah, isso eu já fiz! Entendi!”. Essa experiência está lá dentro.
Portanto, nessa experiência de observar uma atividade típica, uma ação que se
repete, e observar crescer a liberdade e a sabedoria naquela linha de ação, depois
numa outra linha de ação, depois numa outra linha de ação, depois de um tempo dá
para começar a ter uma ideia geral do conjunto, e entender qual é a melhor vida, e
entender, portanto, qual é o propósito da vida.

Esse é outro ponto importante: já dizia Aristóteles, sobre Moral, que ninguém
deve estudar ciência moral só para entender do assunto. Se você vier aqui com esse
propósito, literalmente eu vou lhe bater até você sair. É assim que Aristóteles tratava
os alunos que tinham uma atitude de “Vejamos, o que é melhor? O que é pior? O
que é lícito? O que é ilícito?” – “Saia daqui”. O único motivo decente para se
aprender ciência moral é para se tornar melhor, melhorar a si mesmo. Essa é que é a
verdade. Essa é uma ciência que é prejudicial quando ela é só teorética; ela só vai
servir para torná-lo aquele sujeito que fala “Você não deve fazer isso, você não deve
fazer aquilo, você não deve fazer aquilo outro...” Quer dizer, o sujeito que aprende
isso só na teoria é um homem mau, se torna uma pessoa pior. Então faz parte dos
deveres do professor explicar ao aluno “Isto aqui você tem que aprender, e não é
aprender para depois praticar. O processo de aprendizado é aprender a praticar”. Isso
ela tem em comum com as artes. É como pensar assim: “Agora eu vou lhe falar da
teoria da arte do pedreiro”. Cara, você vai não vai fazer nenhum casa boa com a
teoria da arte do pedreiro. Não é assim que se aprende, mas assim: “Venha aqui e
misture a massa...” Na ciência moral, é muito importante isso.

E em segundo lugar, temos que o tempo todo lembrar isto: “Eu estou
procurando princípios e métodos pelos quais eu posso tornar a minha atividade livre
e sábia” (e não para dizer se o outro está fazendo certo ou errado). É lógico que é
justamente isto que lhe ensina a tornar a sua atividade mais livre e mais sábia o que
lhe dá um senso bem mais exato de quando o outro estiver fazendo uma coisa certa
ou errada. Mas não é para isso que ela existe – não desvie, não perverta a ciência.
Porque a circunstância interna e externa do outro, na vida humana, é muito
diversificada. Sto. Tomás é explícito ao dizer – e isto já vou dizer ao pessoal
cristãozinho, catoliquinho – que o juízo de cada ação deve ser deixado sempre à
prudência de cada um. Esse é o real juízo das coisas, é assim que funciona
realmente.

Já que citamos Sto. Tomás – citaremos vários santos e mostraremos seus


exemplos, porque quando queremos entender uma qualidade é sempre mais fácil
entendermos quando temos um exemplo do melhor –, vamos já dar mais esta nota,
para que ninguém, mais tarde, lá quando chegarmos à quinta ou à sexta aula, no final
do curso, me digam que eu propus uma coisa e fiz outra. Embora a maior parte dos
exemplos e dos autores que vão conduzir nossa investigação e nosso ensino aqui
sejam todos cristãos, nós não vamos ensinar uma moral especificamente cristã. A
maior parte (noventa por cento, pelo menos) de nossas posições morais que serão
ensinadas aqui estarão em algum lugar, no universo da opinião, entre Platão e
Aristóteles. Às vezes vamos favorecer, para alguma questão moral, a posição de
Aristóteles e, às vezes, a de Platão. Por quê? Simplesmente porque essa é a nossa
opinião. E em questão de Moral não adianta ficar ensinando uma coisa que você não
entenda; não adianta eu falar para vocês tudo em que eu acredito. Isso não vai
ensinar nada – se quiser isso, vá ler o catecismo, meu filho, lá tem tudo em que você

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

deve acreditar. Em termos de ensinamento moral, eu tenho que agir assim: “Minha
opinião concreta sobre essa questão me parece estar mais próxima disto do que
daquilo”. E nós realmente não vamos apontar o dedo para o outro: “A sua está mais
próxima daquele outro do que deste aqui”. Não é que Aristóteles e Platão tenham
opiniões muito diferentes sobre moral, é num ponto ou outro em que eles divergem e
me parece que ora é melhor a posição do Aristóteles, ora a do Platão. Assim, nós
vamos ensinar o que, num certo sentido, é a moral desses filósofos. Não é
especificamente cristã: nós não vamos realmente falar para vocês “Há este
mandamento, e há esta lei aqui”, porque não estamos ensinando teologia moral, não
é esse o nosso propósito. Nós nem entendemos tanto de Teologia Moral para ficar
dando curso sobre isso, e, sinceramente, eu só vou dar cursos de coisas em que eu
tenha muito interesse, de coisas nas quais eu goste de ficar pensando muito tempo. E
não somente isso – esse é o primeiro critério, para dar um curso, que é: “Eu fiquei
pensando nisso, porque isso é legal pra caramba”. O segundo é: “Eu pensei o
bastante e eu acho que cheguei a certas conclusões, e posso realmente lhe dar
alguma opinião razoável sobre o assunto”. Eu até penso em muitas questões de
teologia moral, é um assunto interessante. Mas eu não sei se eu poderia ensinar isso
melhor do que só dizer “Vá lá ler o livro”.

O segundo motivo para isso é o que acontece quando você começa a falar
muito dessas coisas. Eu admito que foi um erro que eu já cometi. O primeiro curso
que eu dei foi um curso de Introdução à Cosmologia e Astrologia no Rio de Janeiro,
eu tinha 27, 28 anos; e depois de mais ou menos um ano dando o curso, um dia,
conversando com meu pai em particular, ele me falou “Filho, eu só tenho um
conselho para lhe dar quanto a cursos: vá muito devagar com o pessoal, não suba
muito, que não funciona”. E eu respeitei o conselho porque, em primeiro lugar, ele
já dava aula há mais de vinte anos, mas eu realmente não entendi. Eu pensava “Você
vai ensinando assim, pá, pá, pá! Verdade é verdade, você está chegando a ela ou não
está!” É que eu não conhecia muito a circunstância geral do Brasil, a maneira como
realmente o brasileiro reage e pensa ao que você ensina. Depois de uns anos, vários
alunos meus estavam sofrendo de catoliquite e viviam de acusar um ao outro de
heresia, e de acusar a mim também! Eu falei “Caramba, como é que eles já sabem
tão rápido essas coisas? Não é tão simples assim!” Eu não tinha percebido isto: que
estava ensinando uma coisa, e o sujeito simplesmente pegou aquilo, aderiu a um
grupo, formalizou um conjunto de atitudes; ele entrou num quartel. Realmente
naquela época eu não sabia isso; hoje em dia eu percebo isso muito claramente e
vejo o quanto isso faz parte, por exemplo, do diagnóstico da situação política do
Brasil. O sonho do brasileiro, a sua aspiração na vida, é entrar num quartel cheio de
regras para tudo. E é por isso que o Brasil vai cair numa tirania total, por isso que
vai virar Cuba ou a União Soviética – porque a primeira coisa que o cara faz quando
você começa a esclarecê-lo é se oprimir e usar isso para oprimir os outros!

E isso, no ensino de Moral, como já falamos, é muito perverso. Não é assim.


Moral é um negócio para se educar e é um negócio de diretrizes, de orientação, não
um negócio de regra. É para você perceber que, quando eu ajo, quando eu tomo
decisões, em todas as minhas decisões, em todas as minhas ações, eu tenho que
formular uma opinião, e as melhores ações, aquelas que me causam a máxima
felicidade, em que eu me dou bem, em que, quando eu as lembro, eu falo ‘Nossa,
que legal que eu fiz isso!’, é quando a ação foi livre e a opinião foi acertada naqueles
três pontos: no bem que eu queria obter (aquilo era um bem mesmo, eu acertei que

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

era bom); no meio que eu tive que aplicar para conseguir o bem (e o consegui); e no
seu custo, menor do que o bem obtido. A melhor coisa na vida é isso! Pensem bem,
observem isto – como a melhor coisa na vida é acertar nisso. São essas ações, essas
atividades. Moral, ciência moral é isso: quais são os meios pelos quais o sujeito
obtém isso. Há muito pouco de regra aqui. Porque regra não torna ninguém livre!
Dã! Há muito de ajudar o sujeito a acertar nas suas opiniões e a ter força para não
seguir uma coisa constrangida quando livremente alcançou uma coisa melhor, e a
discernir quando a sua incerteza indicar que a opinião do outro é mais razoável e
então você deve obedecer ao outro. É aprender essas coisas. Resumindo: é aprender
que as suas ações se tornem cada vez mais atividade livre e sábia. Isso é moral, e
isso não tem nada, nada, nada a ver com virar para o outro e falar “Você tem que
fazer assim, assim, assim, assim!”.

Primeiro, que isso em geral é imoral, sabia? É errado. Ficar falando ao outro o
que ele tem que fazer não é uma atividade livre e sábia, é uma atividade idiota. Pode
até ser livre, você pode até estar fazendo isso porque você gosta, mas ela é insensata,
ela erra em diversas coisas. Primeiro, no propósito: dirigir o outro, mandar no outro.
Geralmente, esse propósito é mau. Segundo: se você falar ao outro o que ele tem que
fazer, geralmente ele não faz, então é porque você não sabe, você errou no método.
Terceiro: para convencer, persuadir ou forçar o outro, você tem que fazer um esforço
e perder alguma coisa. Ou tem que bater nele – aí você perde a sua amizade –, ou
ficar horas conversando, persuadindo, explicando, e assim você gasta toda a sua
energia para o outro fazer uma coisa certa na vida. Deu para perceber? Noventa e
nove por cento das vezes em que você diga para o outro o que fazer é imoral, porque
em noventa e nove por cento das vezes você vai errar, primeiro, ou na coisa a ser
obtida – não era isso que ele tinha que fazer; você errou porque não está na vida dele
–, segundo, ou errar no método, porque você não convenceu o outro – esses bedéis,
quantas vezes convenceram alguém? Nunca. Então é óbvio que é uma ação idiota, se
o sujeito nem acerta nos meios para conseguir –, ou, terceiro caso, você acerta nos
dois, mas os meios empregados têm um custo tão grande que geralmente não valeu à
pena – você perdeu mais do que o que todos ganharam. Isso é mais ou menos o
contrário da atividade moral. Quanto mais você fizer isso, mais imoral você ficará,
menos você terá uma vida boa. Pense bem, pense nessa circunstância, pense em cada
vez em que na sua vida você quis convencer o outro de algo que ele não queria; você
diria que essas foram as melhores ações da sua vida, aquelas mais felizes? Que o que
mais melhorou a sua vida foram as vezes em que você sentia que você tinha que
convencer ou que queria muito convencer o outro? Não, essas geralmente são as
ações mais frustrantes da vida. Como isso pode ser moral, se é uma das coisas que
geralmente pioram a vida?

Isto, sim, é um princípio moral: o homem moral apenas diz ao outro o que
fazer quando isso é de sua suprema responsabilidade, quando está obrigado
interiormente pelos princípios. É a sua responsabilidade: “Se o outro fizer errado, a
culpa é minha, eu vou me ferrar”. O homem moral, o homem feliz, é aquele que só
diz ao outro o que fazer nesse caso, é aquele que evita essa circunstância ao máximo,
é aquele que deixa o julgamento da ação para a prudência de cada um. Por quê?
Simples: porque este homem é mais feliz, a vida dele é melhor. Moral é isto, é algo
para a vida ficar melhor. Sempre lembre essa regra. E observe: “Quando eu fiz isso
na minha vida, foi horrível”. Sempre que você decide falar ao outro o que fazer, é a
pior coisa, pois ou você perde a sua amizade, ou você ganha a sua inimizade, ou dá

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

um trabalhão desgraçado, e, às vezes, acontece tudo isso e você ainda errou! Aí você
percebe: “O que ele tinha que ter feito era outra coisa, eu dei um conselho
totalmente errado para ele!”. O homem moral foge disso, foge de dizer ao outro o
que fazer, porque isso é horrível; dá muito trabalho, não compensa e, se você errar,
agora você deve “tanto” para o outro!

Eu já sei que algum bom cristão poderá dizer “Mas e a correção fraterna?”.
Você não ouviu o que eu falei há pouco sobre a questão da circunstância da vida, a
circunstância concreta? A regra geral é você fugir de dizer ao outro o que ele deve
fazer. Realmente, essa é a regra geral. Esse é o conselho dos sábios e dos santos.
Porém, “Não fugir de fazer isso quando é da sua responsabilidade” também é o
conselho deles. Então sempre considere, antes de levantar uma objeção: “Será que
essa objeção já não está integrada no que foi falado?”. Levante uma objeção, faça
uma pergunta se você estiver sentindo a questão realmente, e não se for apenas para
dizer “Mas, veja bem, existe o dever da correção fraterna”. Com o dever da
“correção fraterna”, aposto que você dedurava seu irmão quando ele fazia alguma
coisa errada, dedurava o colega de classe quando ele fazia alguma coisa no momento
em que o professor virava as costas, Sr. “correção fraterna”! E a solidariedade
fraterna?!

Voltando, só para recapitular a primeira aula, porque isto aqui é o alicerce da


ciência moral. Para dizer se uma coisa é boa ou má, a melhor maneira é observar
qual o seu produto, qual o término da sua operação, o resultado da sua operação
característica; se esse resultado for bom ou mau, nós dizemos que a coisa é boa ou
má. Para o cantor, a canção interpretada; para o pedreiro, a edificação; para o fígado,
seja lá o que for que ele faça, e assim por diante. Quando esse propósito é difícil de
ser compreendido, observe, no entanto, qual é a atividade característica, porque é
pela atividade característica de uma coisa que ela produz também o seu resultado
característico. Esta é regra geral. Por meio dessa regra nós conseguimos delinear o
assunto principal da ciência moral: trata do Bem e Mal na vida humana, da vida boa
ou da vida ruim. E nós vimos que a atividade mais característica do homem – o que
ele faz de mais típico – é a liberdade e a sabedoria, a capacidade de agir livremente
de acordo com uma opinião reta. E lembrem que “opinião reta” implica pelo menos
três elementos aqui (na verdade, há um quarto, que vamos acrescentar depois, que é
só um detalhamento): acertar quanto ao propósito, ou seja, que a coisa que você
queira obter e esteja pensando que é boa – bem, se você quer obter, você já está
pensando que é boa –, [que esta coisa] seja boa mesmo; que o meio que você esteja
pensando que é bom para obtê-la seja bom mesmo, isto é, sirva para obtê-la; e que
aquilo que é perdido valha realmente menos, que seja pior do que aquilo que é
obtido. Portanto, a atividade livre e sábia, em toda vida humana – e você observa
isso na sua vida –, é a maior causa de felicidade. Dentre tudo o que você faz, quando
se faz algo livremente e se acerta nesses três pontos, isso é algo que sempre o faz
pensar “Puxa vida, que bom que eu fiz isso! Como essa ação foi boa!” Quando você
lembra dela: “que bom que eu fiz assim!” E quando outra pessoa lhe ouve a respeito
[da ação]: “Eu fiz assim, por causa disso, aí eu alcancei aquilo” – “Cara, que bom
que aconteceu isso!”. Pode reparar que essa é uma boa ação.

O primeiro assunto da Moral então é justamente este: quais são os meios pelos
quais eu torno a minha atividade livre e sábia? Primeiro, os meios intrínsecos;
depois, os meios auxiliares. O que quero dizer com isso? Como o pedreiro: ele usa a

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

pá, a colher, o nível, o prumo etc., que são os instrumentos auxiliares, mas ele tem
um hábito interno que o guia sobre como se deve usar cada um desses instrumentos.
Então, há os instrumentos auxiliares, que são os externos, e há os instrumentos
intrínsecos, fundamentais. Devemos já dizer: Virtude são os hábitos que tornam a
atividade livre e sábia. E é por isso que virtude sempre foi universalmente
considerada – no mínimo, pelas pessoas educadas – como um dos grandes
candidatos ao melhor bem que há na vida, porque é uma das maiores causas de
felicidade. Como já vimos, a atividade livre e sábia é uma das maiores causas de
felicidade; ora, os hábitos que facilitam a atividade livre e sábia, ou a liberdade e a
sabedoria na atividade, evidentemente estão entre os maiores bens.

Se nós definimos com sucesso o nosso quadro geral ou o nosso assunto


fundamental, eu acho que isso é suficiente como introdução. Vamos lembrar
novamente que nós vamos, para desenvolver esse tema, usar de três instrumentos
fundamentais, três tipos de aula. Às vezes uma aula vai centrar mais em um, outra,
às vezes, em outro. Três elementos de explicação: o primeiro é o estudo do que é a
virtude e quais os diversos tipos de virtude, quais são as virtudes fundamentais; o
segundo é o estudo dos exemplos e preceitos; e o terceiro, não essas virtudes
fundamentais e gerais, mas quais são as aplicações, os ramos e campos da vida, e
quais são as virtudes próprias daqueles campos, tais como a vida conjugal, a vida de
patrão, a vida de empregado, a vida de pai, a vida de filho – cada uma dessas coisas
é uma área da vida, é uma atividade, e ali você tem que tomar decisões o tempo
todo. E se você tem que tomar decisões, existe a possibilidade de essas decisões
serem livres e sábias, e se existe essa possibilidade, existe a possibilidade de formar
um hábito que facilite a liberdade e a sabedoria nessa atividade, para que ela se torne
uma causa de felicidade para você, ao invés de uma causa de infelicidade. Às vezes,
é importante explicar aquelas virtudes fundamentais que são aplicadas a toda
atividade humana, às vezes é preciso direcionar e focar: “Mas quais são as virtudes e
qualidades próprias desta atividade aqui?” Do mesmo jeito que, às vezes, o pedreiro
que está ensinando o aprendiz fala “Não, meu filho, nós fazemos assim, senão o
telhado vai cair” – e aí ele está falando da finalidade geral, que é fazer a casa boa –,
e às vezes ele fala “Olhe, nós misturamos a massa assim, senão ela vai ficar
grudenta”, e aí ele está falando desse ramo em particular. Do mesmo jeito, ao tratar
de Moral, você às vezes trata das virtudes gerais e fundamentais que vão se aplicar a
toda a vida, às vezes trata das virtudes particulares que se aplicam apenas a algum
tipo de atividade particular, e às vezes trata dos exemplos e preceitos que ilustram
cada uma dessas virtudes em exercício, no ato.

Isso deve ser suficiente para uma aula de introdução, e espero que vocês façam
esse curso porque, sinceramente, esse é um dos meus assuntos prediletos de toda a
vida. É muito legal! Realmente aprender moral, no sentido verdadeiro, é a melhor
coisa que existe. Porque, como falamos, é sobre felicidade e infelicidade, e – é sério
– felicidade é a melhor coisa que existe. É um dos assuntos que mais dá gosto de
ensinar. A princípio, eu tive bastante conflito; já faz mais de um ano que me pediram
pela primeira vez “Você não quer dar um curso de moral?” – “Eu quero, é meu
assunto predileto!”. Mas eu já estava marcado por essa experiência com o aluno
brasileiro, que logo parte para o “Moral; Deus; o inferno; etc.”, entra numa Igreja e
pega uma lista de regras e começa a bater em si mesmo e nos outros. O sujeito não
entendeu. Não é sobre isso, isso não é o ponto da vida. Pense bem, se essa atividade
está lhe deixando honestamente mais feliz – honestamente. Não! Honestamente,

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O Princípio da Felicidade – Aula 01

quando você faz uma coisa errada, [até mesmo] esta coisa pode causar mais
felicidade do que isso [aquela atitude], porque ela é uma coisa muito errada, e uma
coisa “só um pouco errada” vai causar menos infelicidade do que isso [aquela
atitude] que você fez. Essas pessoas vivem uma vida miserável, elas realmente não
entenderam o que é a vida. Realmente não entenderam. Elas não entenderam o
seguinte: as outras pessoas que conversam com a pessoa moral e que convivem com
ela vêm e perguntam-lhe “Como é que faz isso?” Elas vêm perguntar! Não fique
passando regras para elas, porque não funciona assim. [A pessoa moral] é quem foge
dessa parte: “Como é que se faz isso?” –“Ah, reze bastante”. [A pessoa moral] é
assim: as pessoas que vivem perto dela é que vêm lhe perguntar; a pessoa moral
nunca precisa ficar passando regras para ninguém. É muito raro. E as outras pessoas
percebem: “Olha como está dando certo! Como está bom aquilo!” É o contrário,
porque, como já falamos, é uma forma vital. Vida é algo que vem de dentro para
fora, não algo que é irradiado para você, é algo que irradia de dentro de você para os
seus membros. E Moral é a mesma coisa.

Então, eu tive muito receio, mas eu acho que comecei a pegar o jeito [no
ensino disso]. Um dos pontos em que eu vou insistir muito é: se o sujeito começar a
levantar muito a questão religiosa, com sutilezas da Moral religiosa, eu vou falar
para ele não me encher o saco, porque eu já sei o que vai acontecer; ele quer aderir a
algo, aderir a um credo, mas não vai dar certo, pois eu não estou aqui para isso,
porque Moral não se aprende assim. O sujeito que, lá na Idade Média, queria ficar
santo já sabia as regras, já cumpria as regras – todo mundo cumpria os mandamentos
na Idade Média, isso era um lugar-comum. O pessoal era super-piedoso. Quando ele
queria ser santo e feliz e ter a melhor vida, ele não ia perguntar quais eram as regras,
não era assim que ele iria aprender. Mas eu sei que é assim, hoje em dia. O pessoal
que frequenta muito a igreja começa a ficar chato; todo mundo é “certinho”.
Caramba, o que aconteceu? Isso não é Moral, vocês estão ficando piores!

Vamos enfatizar aqui os aspectos fundamentais da Moral, especialmente da


Moral filosófica de Sócrates, Platão e Aristóteles. E vou dizer: eu não sei, mas eu
acho que eles acertaram em noventa por cento dos casos. E os outros dez por cento,
eu não tenho certeza que eles erraram, eu estou só dando o desconto pela
imperfeição humana! Não estou garantindo que eles erraram!

Acho que isso seja suficiente para uma aula de introdução. Na próxima aula,
começaremos a desdobrar um pouquinho mais essa definição de atividade livre e
sábia, a definição de virtude, e depois entrar em algum ramo específico, em alguma
atividade específica.

Transcrição: Tomás Pereira de Carvalho, Carlos Augusto G. Nascimento

Revisão: Ageu Marinho

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