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PITÁGORAS PARA ALÉM DO TEOREMA

O Pitagorismo é o tema que permeia


os capítulos desse livro. É fruto de uma
investigação que teve como ponto de
Sérgio Candido de Gouveia Neto
partida um projeto nacional de mem-
Pós-doutor em Educação Matemática pela bros do Grupo de Pesquisa História,
Universidade Estadual Paulista (Unesp) em A “questão pitagórica” pode sem dúvida ser equiparada à “questão Filosofia e Educação Matemática, HI-
2017. Doutor em Educação Matemática FEM, vinculado a diversas instituições
homérica”, a saber, um conjunto de indagações a respeito da vida e da do país. Em 2017, parte dos membros,
pela mesma universidade em 2015. Mestre
em Ciências pela Universidade de São Paulo obra desses personagens. Afinal, quem foi Pitágoras? Ele de fato existiu? em especial aqueles da cidade de Rio

PITÁGORAS
(USP) em 2006 e é Licenciado em Matemática Se sim, quais fatos tornaram a sua vida memorável? Teria ele sido um Claro - SP, concordaram em desenvol-
pela Universidade Federal de Rondônia ver um estudo sobre a utilização da
(2002). Atualmente é Professor Adjunto na
místico? Um cientista? Filósofo? Líder político? Charlatão? Talvez um
história na formação de professores.
Fundação Universidade Federal de Rondônia pouco de cada uma dessas coisas, sem que possa ser definido de modo Tal ideia se reestruturou para um pro-

PARA ALÉM DO TEOREMA


- Campus de Vilhena e Docente e orientador definitivo por uma única. Quais são os elementos fundamentais de cesso colaborativo a partir das discus-
do Programa de Pós-Graduação em Programa
de Pós-Graduação em Ensino de Ciências da sua doutrina? E como eles prevalecem na tradição posterior, com uma sões realizadas na disciplina Tópicos
Especiais em História da Matemática,
Natureza na Universidade Federal de Rondônia roupagem adequada aos seus próprios tempos?
– Campus de Rolim de Moura. do curso de Pós-graduação em Edu-
cação Matemática, ministrada nesse
O livro cobre aspectos artísticos e didáticos, científicos e filosóficos, ano pelo professor Sérgio Candido de
tendo sua utilidade assegurada tanto ao interessado em cultura geral e Sérgio Candido de Gouveia Neto Gouveia Neto.

Jean Sebastian Toillier


A cooperação se caracterizou, a princí-
no pitagorismo, como ao educador que aqui encontrará direcionamentos pio, pela escolha coletiva do tema da

Jean Sebastian Toillier (Orgs.)


Sergio Candido de Gouveia Neto
para lidar com Pitágoras e os pitagóricos com muito mais propriedade em (Orgs.) pesquisa histórica, ou seja, O Pitago-
suas aulas. rismo. O tema foi explorado por meio
dos seguintes subtópicos: Números fi-
gurados; Arquitetura e misticismo nu-
Prof. Dr. Gustavo Barbosa mérico; Matemática e Música; Núme-
ros amigos e perfeitos; Razão áurea;
Jean Sebastian Toillier Noções de Matemática pitagórica em
livros didáticos, e conceito de “pitago-
Docente da Universidade Estadual do Oeste do rismo”. Assim, a obra tem como obje-
Paraná (Unioeste), campus Cascavel, vinculado tivo discutir a presença de Pitágoras,
ao Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas do Pitagorismo e suas vertentes em
(CCET) e do Colegiado de Matemática.
diversos pontos da nossa cultura.
Doutorando em Educação Matemática pelo
Programa de Pós-Graduação em Educação Trata-se de uma obra que pretende
Matemática (Ppgem) da Universidade Estadual contribuir para a formação histórica do
Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp). futuro professor de matemática, além
Mestre em Educação Matemática pelo Ppgem de servir como uma fonte de consulta
da Unesp. para o professor de matemática.
PITÁGORAS PARA ALÉM DO
TEOREMA

Sérgio Candido de Gouveia Neto


Jean Sebastian Toillier
(Organizadores)
FUNDAÇÃO UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
FUNDAÇÃOUNIVERSIDADE
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FEDERAL DE RONDÔNIA
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Reitor Ari Miguel Teixeira Ott


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Márcio
Marli Secco
Lúcia Tonatto
MárcioZibetti
Secco
Marli Lúcia Tonatto
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Marli Lúcia Tonatto Zibetti
NatáliaIvo
Pedro Cristine Prado
Silveira Andretta
Pedro Ivo Silveira Andretta
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PITÁGORAS PARA ALÉM DO
TEOREMA

Sérgio Candido de Gouveia Neto


Jean Sebastian Toillier
(Organizadores)

Porto Velho - RO
© 2020 by Sérgio Candido De Gouveia Neto, Jean Sebastian Toillier (Organizadores)
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Comercial 4.0 Internacional.

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Vitoria Gonçalves Morão

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Fundação Universidade Federal de Rondônia (UNIR)
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central da UNIR

F981 Fundação Universidade Federal de Rondônia.

Pitágoras para além do teorema / organização Sérgio Candido de Gouveia Neto, Jean
Sebastian Toillier. - Porto Velho, RO: EDUFRO, 2020.

174 p.; il.

ISBN: 978-64-87539-36-2 (físico)


ISBN: 978-65-87539-29-4 (digital)

1. Matemática. 2. Arte. 3. Arquitetura. 4. História. I. Gouveia Neto, Sérgio Candido de.


II. Toillier, Jean Sebastian. III. Fundação Universidade Federal de Rondônia.

CDU 51:72

Bibliotecário Luã Silva Mendonça CRB 11/905


Sumário

7 PREFÁCIO

15 1. MÚSICA E MATEMÁTICA PITAGÓRICAS: SUAS


INFLUÊNCIAS NO MUNDO MUSICAL

35 2. A INFLUÊNCIA DA ESCOLA PITAGÓRICA


NA ARQUITETURA

71 3. UMA DIVINA PROPORÇÃO PARA OS PITAGÓRICOS

89 4. HISTÓRIAS SOBRE NÚMEROS PERFEITOS


E AMIGÁVEIS

115 5. OS NÚMEROS FIGURADOS: DAS ORIGENS


ÀS SUAS ATUAIS CONFIGURAÇÕES

145 6. OS PITAGÓRICOS EM LIVROS TEXTOS DA IDADE


MODERNA

159 7. SOBRE MÉDIAS PITAGÓRICAS E MÉDIAS NOS LIVROS


ESCOLARES DE MATEMÁTICA DO BRASIL (1900-1970)

173 SOBRE OS AUTORES


PREFÁCIO

A “questão pitagórica” pode sem dúvida ser equiparada à “questão


homérica”, a saber, um conjunto de indagações a respeito da vida e da obra
desses personagens. Afinal, quem foi Pitágoras? Ele de fato existiu? Se sim,
quais fatos tornaram a sua vida memorável? Teria ele sido um místico? Um
cientista? Filósofo? Líder político? Charlatão? Talvez um pouco de cada
uma dessas coisas, sem que possa ser definido de modo definitivo por uma
única. Quais são os elementos fundamentais de sua doutrina? e como eles
prevalecem na tradição posterior, com uma roupagem adequada aos seus
próprios tempos? Assim, encontramo-nos defronte ao desafio de estabele-
cer a “extensão de nosso conhecimento ou nossa ignorância a respeito de
Pitágoras e sua escola”1.
O nome de Pitágoras surge como um centro gravitacional em torno
do qual orbitam interrogações. No equilíbrio desse sistema, algumas dúvi-
das possuem periodicidade maior, e as vemos passar por nossos olhos com
maior frequência. Outras, mais distantes, é preciso esperar mais. Nessa
reflexão temporal, podemos questionar o que nos permite classificar algo
como pitagórico. Quais práticas e normas definem o pitagorismo? E, ainda,
quando empregamos esse substantivo, quem estamos considerando como
referencial? Seria o próprio sábio nascido em Samos, na região da Ásia
Menor, em meados do século VI a.C., ou seus seguidores das colônias ita-
lianas? Do primeiro quase nada se sabe além de duas vidas escritas em
período posterior, por Jâmblico (250 – cerca de 330) e Porfírio (233 – 309),
entre outros relatos.
Foi na região da Magna Grécia que, depois de muito viajar e conhe-
cer, Pitágoras se estabeleceu. A sua influência na organização social das
colônias por onde passou foi decisiva, uma vez que nelas floresceram dois
de seus maiores representantes ainda na Antiguidade: Árquitas de Tarento
(cerca de 428 – cerca de 350 a.C.) e Filolau de Crotona (cerca de 470

1
KAHN, C. Pitágoras e os Pitagóricos – uma breve história. Edições Loyola: São Paulo, Brasil,
2007, p. 17.
– cerca de 390 a.C.). Em certa medida, Platão pode ser considerado um
pitagórico. Em seus diálogos, elementos da doutrina pitagórica como a
imortalidade da alma, o misticismo dos números, a dicotomia par e ímpar,
a incomensurabilidade e alguma religiosidade dividem espaço com o mundo
das ideias. O Mênon, o Timeu, o Filebo e a República são alguns poucos
exemplos. A compreensão de diversas passagens matemáticas dos diálogos
passa obrigatoriamente pelo entendimento da matemática pitagórica de
Árquitas2, Filolau3 e outros dos quais falaremos a seguir.
Aristóteles faz menção na Metafísica (986a 22-26) aos “assim cha-
mados pitagóricos”4, e o uso da expressão é interpretado como uma ausência
de elementos que lhe permitissem distinguir Pitágoras de seus discípulos.
Mesmo para o Estagirita, que estava consideravelmente menos afastado no
tempo e no espaço do espectro de Pitágoras, sua figura já havia sido envol-
vida pelas lendas.
Muitos e muitos nomes de pensadores seguidores dessa doutrina
são de interesse para a história da matemática, como Hipócrates de Quios
(cerca de 470 – cerca de 410 a.C.), Teodoro de Cirene (465 – 398 a.C.,
representado no diálogo Teeteto, de Platão) e Nicômaco de Gerasa (cerca
de 60 – cerca de 120). Nessa esteira, encontraremos estratos fósseis do pita-
gorismo, seja no corpus de Euclides5, como no de Arquimedes6. A tradição
perdurou em Roma, como em Marco Túlio Cícero (106 – 43 a.C.), escritor
e orador que nos conta em suas Discussões Tusculanas (V 3.9)7 uma bela his-
tória atribuída a Pitágoras. Reza a lenda que Pitágoras afirmou que a vida

2
HUFFMAN, C. A. Archytas of Tarentum. Pythagorean, Philosopher and Mathematician
King.Cambridge: CUP, 2005.
3
______. Philolaus of Croton. Pythagorean and Presocratic. Cambridge: CUP, 1993.
4
ARISTÓTELES. Metafísica. V.III Texto grego com tradução ao lado. Tradução de
Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 27.
5
EUCLIDES. Os Elementos. Tradução e introdução de Irineu Bicudo. São Paulo: Editora
Unesp, 2009.
6
HEATH, T. L. (Org.). The Works of Archimedes. Edited in modern notation with introductory
chapters. Cambridge: CUP, 2010.
7
MARINONE, N. (Org.). M. Tullio Cicerone: Opere Politiche e Filosofiche. V.II Torino:
Unione Tipografico-Editrice Torinense, 1955, p. 444.

8
se assemelha aos jogos disputados na Grécia. Pode-se identificar três tipos
de pessoas: as que vieram para competir, em busca de glória e fama; as que
vieram para fazer negócios, e tudo o que lhes interessa é comprar e vender;
a última, e mais nobre, é a categoria do filósofo, que não persegue aplausos
nem lucro, mas como expectador observa atentamente o que acontece e
como acontece.
Uma “metamorfose ambulante” seria uma boa expressão para aludir
ao pitagorismo através dos tempos. A tradição moderna esmerou-se em
produzir uma bibliografia considerável em cada uma de suas características,
a mística, a política e a científica. Diante dessa multiplicidade de referências,
o leitor pode questionar se há a necessidade de mais um livro sobre o tema. A
resposta retumbante é um “claro que sim!”. Cada geração tem como desafio
reorganizar essa tradição e expô-la à luz de seus princípios historiográficos,
e respondendo às exigências de seu contexto social. Como no Grand Hotel
de David Hilbert, com seus infinitos quartos ocupados por infinitos hós-
pedes, sempre é possível acomodar um novo convidado. No caso do hotel
infinito, os hóspedes se mudam para o quarto adjacente, e o quarto liberado
não é um novo quarto. A diferença aqui é a construção de um novo quarto,
com móveis novos, cheirando a tinta fresca. Como citamos no início dessa
introdução, cada geração tem que se haver com a extensão de seu conheci-
mento ou ignorância a respeito de Pitágoras e sua escola. E cada uma delas
encontra respostas que são só suas. Sem mais delongas, o presente livro se
apresenta como um conjunto de respostas dadas por quem se preocupa
com o papel de Pitágoras no ensino da matemática e temas relacionados.
O primeiro artigo, de Carla Patrícia Ferreira dos Santos, nos leva a
um passeio dos primórdios do estudo teórico dos sons. A teoria musical
tem, como um de seus primeiros representantes, Aristóxeno (cerca de 375
­– cerca de 300 a.C.), que escreveu um tratado sobre o tema. Apenas frag-
mentos de sua Elementa harmonica8 chegou até nós. Elementos de razões
empregadas na música encontram-se também nos fragmentos de Árquitas,
e um compêndio completo de música é atribuído a Euclides, a Sectio Cano-

8
MACRAN, H. S. The Harmonics of Aristoxenus. Edited with translation notes, introduction
and index of words. Oxford: Clarendon Press, 1902.

9
nis9. Nessa obra, encontramos os intervalos fundamentais de que Carla nos
fala; a quarta, a quinta e a oitava. Enquanto aritmética e geometria lidavam
com objetos estáticos, a harmonia e a astronomia eram consideradas ciên-
cias matemáticas que lidavam com objetos em movimento, os astros celestes
e o ar, respectivamente. O desenvolvimento da teoria musical foi longo,
atraindo o interesse de Platão e Aristóteles. Os sucessivos aprimoramentos
culminaram com a escala musical na Idade Média, até o desenvolvimento
do logaritmo. Como auxílio didático, a autora nos fornece uma interpreta-
ção dos elementos musicais à luz de instrumentos modernos, como o violão
e o piano.
No capítulo segundo, o texto de Islenis Carolina Botello Cuvides nos
leva em uma viagem pela influência pitagórica na arquitetura. Antes que
se pergunte como isso é possível, lembremos de um dos elementos funda-
mentais da doutrina pitagórica: a harmonia. A relação entre notas musicais
passou a ser estudada a partir da modelagem fundamental de relações
matemáticas. O interesse musical aproxima matemática e estética, e as pro-
porções iniciais ultrapassam os limites do ouvido, encontrando justificativa
na razão. O conúbio entre esses dois mundos, o do logos (razão, propor-
ção, argumento, cálculo, relação, pensamento) e o do kalos (belo, admirável,
elegante, nobre, honorável, justo) tornou-se um fim em si, subsumido nas
demais atividades humanas. Desse modo, além da tradicional definição
como a arte de moldar e realizar espaços agradáveis às necessidades dos
homens, a arquitetura configura-se também como uma extensão dos prin-
cípios estabelecidos pela escola pitagórica. Remodelado inúmeras vezes ao
longo dos séculos, os elementos que classificamos “pitagóricos” encontram-
-se de tal forma enraizados na cultura, que muitas vezes é preciso um estudo
atento e disciplinado para trazê-los à tona. A influência da escola pitagórica
na arquitetura os fazem transparecer no trabalho de Vitruvio, arquiteto do
século I a.C., que conferiu estatuto disciplinar ao seu ofício, aproximando-a
das artes liberais. O elemento motivador para o estudo da matemática desse

9
BARBOSA, G. Euclides – Sectio canonis – apresentação e tradução. In: Revista Brasileira
de História da Matemática. v.18, n. 36, Edição Especial – Traduções. Disponível em http://
www.rbhm.org.br/index.htm. Acesso em: 13 abr. 2019.

10
capítulo encontra-se na polimatia gerada pela visão que Vitruvio tinha de
sua arte, e a influência que exerceu no período do Renascimento.
Na sequência, o quarto artigo, de autoria de Renata Caterine Gam-
baro Cleto da Silva, traz a lume o problema da incomensurabilidade, porém,
de uma perspectiva diferente. Sua linha de visão privilegia a tangência com
a arte, a exemplo do capítulo que o precede. Como o seu nome já diz, Uma
divina proporção para os pitagóricos trata de algo que representou um con-
trassenso à escola de Pitágoras, um entrave metafísico que repercutiu na
matemática. De fato, são equivocadas as tentativas de se compreender os
eventos que culminaram no que teria sido a primeira crise da matemática,
levando em consideração apenas a matemática. Se os pitagóricos “dizem
que as coisas são números”, segundo Aristóteles na Metafísica (1083b17)10,
como se definiria aquilo que não se enquadra como número? Posto de outro
modo: se tudo aquilo que é está em correspondência com os números e suas
qualidades, o que dizer da diagonal do pentágono, ou do quadrado, que
em sua relação com o lado da mesma figura mostra-se inefável? Devería-
mos simplesmente negar a sua existência? Mas como isso seria possível,
uma vez que o que não existe não pode sequer ser pensado, dito ou repre-
sentado? Como pano de fundo, temos a tese de Parmênides11, filósofo de
Eléia – colônia da Magna Grécia – ativo na primeira metade do século V
a.C.: o que é não pode não ser. Seu discípulo, Zenão, levaria ao extremo as
consequências desse princípio lógico, dando origem aos famosos parado-
xos a respeito do movimento, que por séculos atormentaram filósofos e
matemáticos. De modo semelhante, pelas mãos dos pitagóricos, um ente
geométrico penetrou no mundo da comensurabilidade e da razão mesma,
dando origem a um evento decisivo que exigiu dos gregos uma revisão de
suas bases do pensamento. Designada pelos gregos com o termo alogon,
literalmente sem logos, e por extensão inexprimível, incalculável, absurdo, a
anomalia é conhecida por nós como irracional. Durante milênios a huma-

ARISTÓTELES, Metafísica. V.III Texto grego com tradução ao lado. Tradução de


10

Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 633.


11
PARMÊNIDES. Da Natureza. Tradução, notas e comentários de José Trindade dos
Santos. São Paulo: Edições Loyola, 2002.

11
nidade vem atribuindo aos deuses o que ela é incapaz de compreender.
Abrigando-se em tal recurso, o matemático italiano Luca Pacioli (1445
–1517) justificou a chamada “razão áurea” como algo divino. Uma antiga
razão geométrica destituída de razão numérica, encontrada em Euclides, e
em monumentos e obras de arte ao longo da história, como nos mostra o
texto de Renata.
O quarto capítulo, Histórias sobre números perfeitos e amigáveis, de
Jean Sebastian Toillier, toma como princípio o misticismo aritmético dos
pitagóricos, para conduzir uma narrativa do desenvolvimento do estudo dos
números. Os números chamados perfeitos e amigáveis estão assim no núcleo
de uma discussão onde matemática e mito se fundem. Mas, afinal, quando
foi que essas formas de pensamento se divorciaram? E o que determina
tal afastamento? O poder dos mitos reside em sua capacidade educativa
aliada ao poder simbólico da linguagem metafórica. Na etimologia da pala-
vra grega mythos estão os significados palavra, discurso, estória, entre outros
que estão presentes também no logos. “Mitos não são mentiras; e também
não são histórias neutras. São modelos imaginativos, redes de símbolos
poderosos que sugerem maneiras particulares de interpretarmos o mundo,
moldando o seu significado”12. Os números e as figuras que são o objeto de
estudo da matemática deram vida ao cosmo pitagórico. Desse modo, na
aurora do pensamento grego, os entes matemáticos constituíram a narrativa
do real. A mesma civilização grega que entrelaçou o mito e a razão com o
cordão umbilical de sua linguagem decidiu em algum momento que eles
tinham que ser separados. O processo de afastamento foi lento e gradativo,
e recentemente aprofundado pelo século das luzes. Já antes disso, os núme-
ros passaram então a ser estudados em si e por si, sem os seus significados
existenciais, ainda na Antiguidade. Podemos pensar que parte do trabalho
de Euclides foi “exorcizar” a metafísica de sua ciência. Uma ciência dos
números foi erigida unicamente a partir de suas propriedades e relações
numéricas. Contudo, uma essência pitagórica manteve-se. Os princípios
da chamada teoria dos números: o par e o ímpar, os primos e os compostos,

12
MIDGLEY, M. A presença dos mitos em nossas vidas. São Paulo: Editora Unesp, 2014, p. 21.

12
os quadrados e as potências, e a comensurabilidade, permaneceram sendo
explorados e apurados ao longo dos séculos. Muitos nomes da História da
Matemática aparecem na relação que o autor do capítulo tece, ao lado de
resultados impressionantes. Uma parte importante dessa história é a litera-
tura epistolar da matemática que entra em cena, os registros de cartas como
documentos vivos da pesquisa.
O quinto capítulo, Os números figurados: das origens à suas atuais
configurações, de Débora Vieira de Souza, representa um complemento ao
anterior. O seu tratamento também considera a questão da mitologia dos
números no pitagorismo, porém sob as possibilidades de configuração geo-
métrica, e um passo em direção à consolidação do logos. Os números e as
figuras representam um afastamento das cosmogonias dos primeiros pen-
sadores. Tales de Mileto teria dito que tudo é água, algo compreensível para
uma mente astuta que observa o efeito das chuvas sobre o solo ou a rica
vida marinha do mediterrâneo. O seu diferencial está na identificação de
um elemento físico como origem das coisas. Seu discípulo Anaximandro
dá um importante passo em direção à abstração ao abrir mão dos elemen-
tos físicos para identificar como princípio do devir cósmico o apeiron, isto
é, um princípio “sem limite”. Tudo aquilo que é definido, limitado, deve
ter pertencido a um estado anterior em que não obedecia a tais atributos
materiais. Anaxímenes, por sua vez, identifica o princípio no ar. Para esse
filósofo, todas as coisas estão envolvidas pelo ar, e o processo de respiração é
o que permite a vida aos homens. Com Pitágoras, não é um elemento físico,
mas entes matemáticos como números e formas que explicam a natureza
e por que as coisas são como são. Às qualidades dos números, como par e
ímpar, são acrescentadas outras, como quadrado e triangular, e ainda mas-
culino e feminino. As regularidades dos números são acompanhadas por
regularidades geométricas. Segundo a perspectiva da autora, a construção
dos números figurados, apresentados em seu capítulo, auxilia no ensino da
matemática, como mostra o seu estudo.
Os pitagóricos em livros textos da idade moderna, de Arlete de Jesus
Brito, reflete sobre a transmissão do pitagorismo nos séculos XVI e XVII.
A filosofia grega teve boa parte absorvida pela religião católica e, depois,

13
pelo protestantismo. Por essa via, os princípios do pitagorismo passaram
a ser disseminados na educação escolar. Em meio às disciplinas ensinadas,
como o grego, a lógica, a ética e as ciências matemáticas, os livros didáti-
cos permitiram que ensinamentos considerados esotéricos, por gerações,
pudessem ser propagados. A seita se expandiu para muito além de onde
seus idealizadores jamais sonharam, e por meios que eles sequer podiam
imaginar. O pitagorismo, assim, tornou-se parte de um currículo, e encon-
trou nas escolas uma versão moderna de seu templo.
Por fim, Sobre médias pitagóricas e médias nos livros de matemática
escolares do Brasil, Sérgio Candido de Gouveia Neto analisa, como o seu
título diz, a aparição do pitagorismo nos livros escolares. Novamente, o
capítulo serve como uma continuação de seu anterior, respeitado o óbvio
salto temporal. A presença e a ausência do pitagorismo nos livros escola-
res têm variado ao longo dos anos. Tábuas pitagóricas, números figurados,
máximo divisor comum, mínimo múltiplo comum, números primos e ami-
gáveis eram diversificados ao sabor das diferentes propostas curriculares. As
mudanças, no que diz respeito às definições de médias, é um assunto que
chama a atenção do educador. Em comparação com as médias pesquisadas
por Nicômaco de Gerasa, os livros didáticos trazem alterações que respon-
dem aos interesses do avanço da ciência em nosso país.
Como o leitor pode perceber, o livro que ele tem em mãos cobre
aspectos artísticos e didáticos, científicos e filosóficos, tendo sua utilidade
assegurada tanto ao interessado em cultura geral e no pitagorismo, como ao
educador que aqui encontrará direcionamentos para lidar com Pitágoras e
os pitagóricos com muito mais propriedade em suas aulas.
Gustavo Barbosa

14
1. MÚSICA E MATEMÁTICA PITAGÓRICAS:
SUAS INFLUÊNCIAS NO MUNDO MUSICAL

Carla Patrícia Ferreira dos Santos

“A música é um exercício inconsciente de cálculos.”


Leibniz

Introdução

O objetivo deste capítulo é levar o leitor a passear desde a Grécia,


com o desenvolvimento dos estudos sobre a música e o som, até as influên-
cias deixadas pelos Pitagóricos na Antiguidade e no mundo que nos rodeia
hoje. Para tal viagem, serão necessários alguns conhecimentos históricos e
a distinção de termos musicais utilizados pelos gregos e os que a música
utiliza atualmente. Para isso, iniciaremos discorrendo um pouco sobre os
estudos realizados por Pitágoras e o Monocórdio e os Pitagóricos na Anti-
guidade, deixando em aberto ao leitor acreditar ou não nesses fatos, dado
que nunca foi encontrado por nenhum historiador tal instrumento, mas
as teorias Matemáticas, ditas desenvolvidas por esse grupo, permeiam o
mundo matemático e musical de forma a resolver e demonstrar os seus
resultados.
Segundo Zaleski (2013), os Pitagóricos tinham como base filosófica
que tudo no mundo poderia ser explicado por meio dos números e que,
dentro desse conhecimento, a Arte também poderia ser explicada por inter-
médio da Matemática. Nesse modo de classificar o conhecimento, a música,
que é hoje conhecida como uma forma de Arte, poderia ser assim explicada
também. Faremos, então, a primeira distinção entre a música como arte na
Antiguidade e atualmente.
No século VI a.C., na Grécia antiga, a música não era considerada
como uma disciplina participante do quadro das belas artes; isso mudaria
somente na Idade Moderna, pois até então era considerada uma das sete
Artes Liberais, pertencendo ao Quadrivium (Música1, Aritmética, Geo-
metria e Astronomia). Além do Quadrivium, havia o Trivium (Gramática,
Lógica e Retórica). Mas há controvérsias se a música pertencia realmente
ao Quadrivium, já que, de acordo com Cicero, ora a música se relacionava
com as matemáticas, ora com a gramática (DE ORATORE, I, 187 e III,
127, apud GILSON,1995, p.205 apud BRITO, 1999, p. 107)2. Outra ques-
tão em que devemos atentar é que disso decorre que a música não era vista
como uma arte servil, ou seja, algo que deveria ter destreza e habilidades
para ser desenvolvida, como, por exemplo, a pintura; portanto, a música era
algo teórico e não prático.
Nesse momento da história grega, foram perceptíveis as influên-
cias que a filosofia platônica exercia sobre a polis. Essa filosofia dividia o
mundo de duas formas: um mundo sensível (concreto) e um mundo inte-
ligível (mundo das ideias, raciocínio). Nesse contexto, esperava-se de um
filósofo/matemático elevar o pensamento de uma mera opinião a um pata-
mar científico3 que seria o caminho para conhecer a verdade. Os gregos
estavam preocupados em entender o “porquê” das coisas, e não o “como”;
acreditavam que a música exercia um poder moral sobre o homem, por isso,
inclusive, os filósofos Platão e Aristóteles defendiam o seu ensinamento:

Os gregos acreditavam que a música exercia um poder moral e ético


sobre o homem. Filósofos como Platão (428 a.C-348 a.C.) e Aristóte-
les (367 a.C.-347 a.C.) defendiam o seu ensinamento na formação do
cidadão livre. (BROMBERG; SAITO, 2017, p.35)

Nesse sentido, a música não só elevaria o espírito a uma experiência


em que fosse possível se esquecer das coisas terrenas, mas elevaria a alma
à essência das verdades eternas do mundo inteligível; e a ponte entre um
mundo e outro, acreditava-se, seria feita pelos números que estariam dire-

1
A palavra música em letra maiúscula significa a música como uma disciplina de estudo, a
qual abrange todas as vertentes de estudo dentro desse tema.
2
GILSON, E. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Editora Martins Fontes, -195.
3
Esta denominação “patamar científico” é atual e não própria da época, e vem no sentido de:
conjecturar ideéis e pensamentos.

16
tamente envolvidos com a harmonia, que, para os antigos gregos, poderia
significar movimento, ordem, beleza, conformidade ou, ainda, o que tem
tendência a ser afinado (agradável ao ouvido). Essa ideia de o número expli-
car a música, ou seja, de o número figurar como o mundo inteligível e a
música representar o mundo sensível, era fortemente defendida por Platão,
opinião da qual Aristóteles discordou posteriormente, pelo fato de separar
o número do mundo sensível. No entanto, havia uma concordância entre
esses dois filósofos quando se tratava da música como uma ferramenta guia
para os homens livres4. Nesse contexto histórico, tocar um instrumento era
visto como impróprio a um homem livre.
Dentre os filósofos matemáticos dessa época, daremos maior impor-
tância, como proposto neste livro, a Pitágoras e aos Pitagóricos. Acredita-se
que Pitágoras nasceu na Ilha de Samos, entre os anos de 570 – 500 a.C., e
que todas as práticas pitagóricas, dentre elas crer em um lado místico das
coisas, possivelmente fomentou a curiosidade desse filósofo por desvendar
e entender o porquê de um som ser “harmonioso” ao ouvido, o que fez com
que desenvolvesse um instrumento com o qual pudesse verificar suas con-
jecturas matemáticas.

A música por Pitágoras e suas implicações

Na Antiguidade, a música também era conhecida por harmonia e foi


classificada segundo duas tradições teóricas: a Pitagórica e a Aristoxênica5.
A denominação “médias harmônicas” teria sido atribuída por Arqui-
tas (428 a.C-347 a.C) ou por Filolaus (470 a.C-385 a.C) no século IV; antes
eram chamadas de média subcontrária (BOYER,1996 apud ABDOU-
NOUR, 1999, p.8)6. Para Pitágoras de Samos, a música poderia ser explicada
por meio de tais médias que associavam os intervalos musicais às razões de
números inteiros, as quais seriam 1:2, 2:3, 3:4 e 8:9. Essas razões produzi-

4
Eram considerados homens livres os cidadãos da polis, exceto mulheres e escravos.
5
Vide Bromberg e Saito (2017)
6
BOYER, C.B. História da Matemática. São Paulo: Editora Edgard Blücher, 1996

17
riam, em um instrumento conhecido como monocórdio, sons “consonantes”
e “dissonantes”.
A priori, precisamos esclarecer que os Pitagóricos nunca utilizaram os
termos “consonantes” e “dissonantes”, os quais surgiram somente na Idade
Média. Para os gregos, sons consonantes eram aqueles que correspondiam
às razões de intervalos, e hoje consonância (do latim consonare, que significa
soar junto) vem a agregar ideias, como: harmonia, acorde7. Já dissonante é o
contrário de um som consonante.
Aprofundando mais a doutrina pitagórica, encontramos a crença de
que tudo teria sido formado a partir da “unidade única”, ou seja, tudo acon-
teceria (surgiria) a partir dela, e sua relação para com tudo seria estabelecida
por meio de proporções. O sentido dessas proporções se tornará mais claro
ao longo do capítulo e das definições acerca dos termos musicais.
Segundo Bromberg e Saito (2017), a música é formada por um con-
junto de sons produzidos sucessivamente e silêncio, tudo isso organizado ao
longo de intervalos de tempo. Nesse sentido, os compositores Lulu Santos
e Nelson Motta foram enfáticos ao afirmar na canção “Certas coisas”, que
nós “somos feitos de silêncio e som” (SANTOS; MOTTA, 1984), então
seríamos nós feitos de música? Platão, em Timeu, afirma:

Quanto à voz e à audição, o raciocínio é mais uma vez o mesmo: os


deuses concederam-no-las pelas mesmas razões e com os mesmos fins.
Na verdade, foi com o mesmo fim que nos foi atribuída a fala, que tem
um papel fundamental na nossa interação; tudo quanto é útil à voz
no contexto da música, isso nos foi dado por causa da harmonia da
audição. Com efeito, para aquele que se relaciona com as Musas com o
intelecto, a harmonia, feita de movimentos congéneres das órbitas da
nossa alma, não é um instrumento para um prazer irracional – como
agora se julga ser – mas, em virtude de as órbitas da nossa alma serem
desprovidas de harmonia desde a geração, aquela foi concedida pelas
Musas como aliado da alma para a pôr em ordem e em concordância.
(TIMEU, 47C, 2011, p. 128).

7
Acorde: Conjunto de três ou mais notas que se ouve como se estivessem soando simulta-
neamente. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Acorde. Acesso em 19/02/18.

18
As musas citadas por Platão são: Calliope, Clío, Euterpe, Terpsí-
chore, Erato, Melpomene, Thalia, Polyhyminia e Urânia, as quais seriam as
filhas de Zeus, e cada uma, respectivamente, influenciava, segundo Oliveira
(2010, p.13), a Poesia Épica, a História, a Arte de tocar flauta, a Dança, a
Poesia Lírica, a Comédia, Hinos, Pantomima e Astronomia. Considerando
a citação feita por Platão, a audição humana, a voz e o raciocínio teriam
sido criados pelos deuses para que, por meio da música, deixássemos de ser
irracionais e passássemos a ser criaturas harmoniosas com nossa alma, isto
é, que usássemos o intelecto, a inteligência. Sobre a inteligência, Lysis (490
a. C.- 560 a. C), discípulo de Pitágoras, teria escrito os seguintes versos: [...]
“Sobre o teu corpo reine e brilhe a Inteligência/ Para que, te ascendendo ao
Éter fulgurante/ Mesmo entre os Imortais consigas ser um deus”. (SAN-
TOS, 2000, p.236).
O éter, para os Pitagóricos, seria a origem de todas as coisas e, dessa
forma, mais uma vez, agora por meio de Lysis, seria preciso inteligência,
que teria o sentido de conhecimento para atingir um patamar superior
(mundo inteligível), aqui figurado como um deus.
Historicamente, ainda houve um momento em que a música era uti-
lizada para explicar o universo e o movimento dos astros e como se fosse
um “se e somente se” matemático; a quantidade de planetas descobertos até
então chegou a influenciar, da idade Antiga até o Renascimento, a quanti-
dade de notas musicais que seriam adotadas como base da música europeia,
ou seja, uma escala8 musical de 7 notas. Eram conhecidos 7 planetas, basea-
dos na teoria geocêntrica de Aristóteles: Lua, Mercúrio, Vênus, Sol, Marte,
Júpiter e Saturno. Vale ressaltar que, em outros continentes e países, há um
conceito de escala diferente do europeu e, portanto, a quantidade de notas
musicais bases pode ser diferente; por exemplo, a música hindu possui 22
notas bases para suas escalas. A harmonia celeste teria influenciado Pitágo-
ras em seu conceito de Harmonia, a princípio, com os tetracordes (Dó, Fá,
Sol, Dó) e, após, com a escala de sete tons.

8
Escalas musicais são sequências ordenadas de notas. Por exemplo: dó, ré, mi, fá, sol, lá, si,
dó, repetindo esse ciclo. Disponível em http://www.descomplicandoamusica.com/escalas-
-musicais/. Acesso em 18/02/18.

19
É importante também ressaltar que alguns filósofos da época pos-
suíam métodos diferentes de Pitágoras para obtenção das escalas musicais.
Segundo Abdounour (1999), Pitágoras teria empregado um instrumento
chamado monocórdio e utilizado a quinta como base para encontrar outros
sons consonantes. Por intermédio dos estudos de Pitágoras, Arquitas cons-
truiu uma escala baseada nas médias harmônicas e aritméticas daquelas
encontradas anteriormente; já Erastóstenes (284 a.C-202 a.C.), baseou-se
nos estudos de Arestóxeno (360 a.C-300 a.C.) para obter os intervalos por
meio do cálculo de razões.
Sabe-se, hoje, que os três elementos musicais principais de uma
música são: melodia, harmonia e ritmo. Pereira (2013) disserta que melodia
é o estudo dos sons tocados separadamente em sequência. Um solo de um
instrumento de corda ou um canto podem ser exemplos de melodia. A
melodia é o estudo das combinações dos sons tocados simultaneamente.
Quando tocadas duas ou mais notas musicais ao mesmo tempo, constitui-se
uma harmonia. Já o ritmo é a parte da música responsável pela duração de
cada nota. Descartes definiria a harmonia como natural ao ouvido humano,
pois “tal característica cansaria menos o ouvido, já que, na onda resultante, o
número de pulsos a serem percebidos diminui em função das coincidências”
(ABDONOUR, 1999, p.6), ou seja, nossos ouvidos seriam naturalmente
voltados para sons harmoniosos.
O ritmo, para Arestóxeno de Tarento (360 a.C- 300 a.C), consti-
tuía uma ambiguidade: aquilo que se move e aquilo que não se move seria
um sistema organizado de duração, e essa definição é facilmente percebida
quando se ouve uma música. Bromberg e Saito (2017) relatam em seu livro
que podemos desconhecer o termo técnico ritmo, porém podemos senti-lo
de forma “natural”, desde que entendamos de duração de tempo. A respeito
de ritmo, podemos observar também que a fala, a forma de pronunciar a
palavra, pode influenciar no ritmo em relação à produção musical de cada
sociedade. Segundo Platão (BROMBERG; SAITO, 2017), o ritmo era
o tratamento dado às sequências silábicas. Da mesma forma, Aristóteles
acreditava que ritmo era o número da forma da palavra, portanto, um deter-
minado sotaque pode influenciar a duração de um acorde ou as modulações

20
de uma música. Mas o que são música e som? Você já parou para refletir
sobre essa simples pergunta?
A música, para Pitágoras, era os sons consonantes que poderiam
ser explicados por meio de médias harmônicas e médias aritméticas. Para
Nicômaco (I,3 I apud BRITO, 1999), a música era o estudo de números
relativos. Já para Agostinho (354-430), era “[...] a arte do bem ‘modular’,
isto é, do bem ‘medir o som’ considerando-se a altura e a duração (e a sua
relação com a harmônica e a rítmica), bem como ideia de movimento.”
(BROMBERG; SAITO, 2017, p.67). Para Cassiodoro (490 -581 d.C), “a
música é a disciplina que expressa os números, os quais intervêm no som”
(Etim, II, 24, e III, Prefácio apud BRITO, p.104, 1999)9, ou ainda “música
é a perícia na modulação existente no som e no canto” (ETIM, III, 15
apud BRITO, 1999, p.104 )10. Podemos também citar Boécio (480-524),
que dividiu sua definição de música em duas: Música Mundana e Música
Humana (BROMBERG; SAITO, 2017).
Tratava-se como música mundana a “música do universo”, que seria o
movimento dos planetas e funcionamento dos corpos celestes; como música
humana, o equilíbrio entre os sons graves e agudos de modo que, quando
consonantes, ligavam o racional e o irracional à alma; seria aquilo que une
os elementos do corpo. Tratando-se da definição de som, Platão, em Timeu,
afirmou que “o som era uma pancada infligida pelo ar e transmitida pelos
ouvidos, cérebro e sangue até a alma” (BRITO, 1999, p.66). Diante de todas
as definições para música e som, podemos perceber que se tratava realmente
de uma ferramenta para elevar o ser material ao mundo das ideias e percep-
tível pelos seres humanos.
Dadas as devidas apresentações acerca de alguns termos musicais,
retornamos a Pitágoras, pois tudo indicia que ele seria estudioso da har-
monia musical (a palavra harmonia aqui se refere à definição atual); para
isso realizou um experimento em um instrumento chamado monocórdio e
lançou mãos das razões harmônicas para explicar por que algo é harmônico.

9
ISIDORO. Etimologias. v I e II. Madrid: BAC, 1983.
10
ISIDORO.Etymologiarvm sive originvn. Oxford: Oxford University Press, 1911.

21
Podemos diferenciar o sentido de “experimento” realizado na Anti-
guidade por Pitágoras e o contexto de experimento na Idade Média, pois
“[...] tais como a escultura e a arquitetura foi principalmente através do
sentido da visão que as proporções puderam ser mais claramente evidencia-
das. Na música a noção de proporção podia ser percebida ‘auditivamente’”
(BROMBERG; SAITO, 2017, p.87); portanto, na Antiguidade os mate-
máticos se utilizavam do mundo sensível para suas conjecturas matemáticas,
o que mudaria na Idade Média, pois os matemáticos, que essencialmente
dissertavam acerca dos elementos musicais, diferentemente de Pitágoras,
já não estavam totalmente interessados na produção sonora, mas sim nos
objetos abstratos do mundo matemático.
Quando se trata da música como uma disciplina de estudo sepa-
rada das belas artes, “os Pitagóricos foram os únicos até Aristóteles a
fundamentar cientificamente a música” (ABDOUNOUR, 1999, p.4). Essa
fundamentação se iniciou por Pitágoras que, possivelmente, inventou o
monocórdio. Acredita-se que era um instrumento composto por uma corda
estendida entre dois cavaletes fixos, com um terceiro cavalete móvel colo-
cado sobre a corda para dividi-la (assemelha-se, de certo modo, a um violão
sem caixa acústica aberta e, utilizando um capotraste11, dividia-se a corda
da maneira que fosse necessária).
No início de seus experimentos, evidenciaram-se as relações entre
o comprimento da corda e a altura do som emitido. Isso remeteu ao con-
ceito de grave e agudo. Na Antiguidade, agudo era definido por um som
que “cortava” ou “picava”; grave, um som que “esmagava” ou “pressionava”
(BROMBERG; SAITO, 2017). O segundo passo do experimento con-
templou a relação entre o comprimento da corda e o tom musical emitido
por ela. Pitágoras observou que, ao pressionar a corda no ponto que equiva-
lia a 3/4 da corda estendida, o tom por ela produzido era uma quarta acima
do som da corda inteira; de mesmo modo, ao pressionar a corda no ponto

11
O capo, capotraste, trastejador ou “pestana fixa” é um dispositivo usado para encurtar as
cordas e assim tornar as notas mais agudas, em um instrumento de cordas como guitarra,
violão, bandolim ou banjo. Disponível em https://pt.wikipedia.org/wiki/Capo. Acesso em
19/02/18.

22
2/3, ouvia-se uma quinta acima, e 1/2, ouvia-se a oitava do som original.
Mas o que é oitava, quinta, tom? Pois bem, suponha que o comprimento da
corda seja de medida c:

• Tônica (tom base da escala) – razão , tamanho da corda c;

• Oitava – razão , tamanho da corda ;

• Quinta – razão , tamanho da corda ;

• Quarta – razão , tamanho da corda .

A partir dessas constatações, Pitágoras verificou quais intervalos


seriam consonantes (harmoniosos, como um acorde de violão) e estas fica-
ram conhecidas como Consonância Pitagórica. Agora, note que os únicos
números utilizados por Pitágoras na sua definição foram 1, 2, 3 e 4, o que,
para os pitagóricos, fazia todo o sentido segundo sua filosofia, pois para eles
os números mencionados geravam a perfeição; dentre eles, o número quatro
é o que mais se destaca, por ser o primeiro quadrado par, a origem de todo
o universo e todo o mundo material, segundo suas crenças.
Se você não conseguiu imaginar como era o Monocórdio feito por
Pitágoras e seu experimento, observe as figuras 1 e 2.

Figura 1 – Exemplo de Monocórdio

Fonte: Elaborado pela autora

23
Figura 2 – As divisões do Monocórdio no violão

Fonte: Elaborado pela autora.

Ainda existiu uma mística envolvendo a história dos martelos de


Pitágoras:

Segundo uma lenda contada por Guido D’Arezzo, no tratado sobre


música intitulado Micrologus, Pitágoras, ao ouvir os diferentes sons pro-
duzidos pelas batidas dos martelos numa oficina de ferreiro, percebeu
que estes propiciavam uma sensação agradável e tinham uma harmonia
entre si. Ele também teria notado que os valores dos sons poderiam ser
expressos por relações numéricas (proporções) e que, para sua surpresa,
os martelos que produziam os sons mais agradáveis (consonantes) pe-
savam 12, 9, 8 e 6 unidades de massa. (PEREIRA, 2013, p.20).

Em Brito (1999), podemos observar que os números 6, 8, 9 e 12


são relacionados com a escala pitagórica pelo fato de poderem ser obtidos
na teoria de tom, oitava, quinta e quarta e por suas propriedades diante
dos conceitos matemáticos de proporção, média aritmética12 e média
harmônica13, ou seja, tomando por denominador o número inteiro 12,

12
Média Aritmética = a+b/2
13
Média Harmônica = 2a.b/(a+b)

24
podemos obter um tom, uma oitava, uma quinta e uma quarta, a partir de
frações equivalentes:

Agora note que:

• A média Aritmética entre 6 e 12 é 9;


• A média Harmônica entre 6 e 12 é 8;

• Os números 6, 8, 9 e 12 formam uma proporção: .

Temos, ainda, que as notas são diferenciadas pelos intervalos de


oitavas e que elas apresentam certa semelhança em seus sons, apenas
diferenciando em um Dó, por exemplo, mais agudo, ou Dó mais grave.
Abdonour (1999) afirma que pode ser definida uma Classe de Equivalência
sobre a escala pitagórica e, quando falamos em classe de equivalência, nos
referimos matematicamente ao conceito definido por meio de uma relação
de equivalência: “Duas notas são equivalentes se diferirem em intervalo por
um número inteiro de oitavas” (ABDONOUR, 1999, p. 9). Devemos pro-
var as seguintes propriedades: Reflexiva, Simétrica e Transitiva. Traduzindo
o “enunciado”, matematicamente, temos:
Se duas notas musicais e são semelhantes, então:

• Reflexiva: Seja A uma nota musical, se

• Tomando temos que:

• Simétrica: Sejam e duas notas musicais semelhantes se


, então

. Logo,
temos que .

25
• Transitiva: Sejam notas musicais semelhantes se

• Por (1) e (2), temos:

• Assim:

Logo, pela propriedade reflexiva, simétrica e transitiva, temos que o


conjunto de notas equivalentes é uma Relação de Equivalência e, portanto,
faz todo o sentido enxergarmos a distribuição das notas na escala Pitagó-
rica como uma Classe de equivalência. Veja a mesma afirmação de maneira
mais prática, apresentada por Pereira (2013), por meio de sequências:
Fracionando em pedaços ainda menores uma corda de comprimento c.

• Oitavas: ;

• Quartas: ;

• Quintas:

Dessa forma, é fácil encontrar a fração que representaria uma quarta


mais aguda, ou seja, por exemplo, 3 oitavas acima:

Agora, caro leitor, se você ainda não acredita que todos esses cálculos
matemáticos e experimentos realizados por Pitágoras podem se tornar uma

26
harmonia (sons consonantes), convido-o a verificar pelo menos uma nota,
como o pensador de Samos fez há mais de 2500 anos:

• Pegue um violão, escolha uma corda qualquer dele; toque-a


sozinha e ouça o som; se possível, grave em algum dispositivo
para comparar com o novo som que irá obter;
• Agora coloque um capotraste ou aperte a mesma corda na 12ª
casa e toque-a novamente.
• A 12ª casa do violão é a metade do comprimento da corda e,
portanto, você ouvirá o som de uma oitava, a partir do tom que
escolheu;
• Se puder ouvir os dois sons ao mesmo tempo, perceberá a
harmonia que há entre os dois sons.

Desse mesmo princípio, do qual Pitágoras obteve os Tetracordes, foi


possível originar as outras notas musicais como conhecemos hoje.

A escala pitagórica

Sabe-se que a escala musical possui apenas quatro sons baseados nos
estudos de Pitágoras, que são DÓ, FÁ, SOL, DÓ (vide Tabela 1). A partir
dessas quatro notas, foi possível obter a Escala Diatônica de DÓ. Essa
escala possui 7 notas, incluindo a oitava, que a transforma numa sequência
de 8 notas musicais: DÓ1, RÉ, MI, FÁ, SOL, LÁ, SI, DÓ2. O número
anexo à nota significa a oitava à qual ela pertence, da seguinte forma: DÓ2,
é uma nota DÓ uma oitava acima da original, portanto, pertence à segunda
oitava, como definimos na seção anterior. Observe a Tabela 1:

Tabela 1 – Escala Pitagórica

Escala Pitagórica
Nota DO1 RE MI FÁ SOL LÁ SI DO2
Definição 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª
Fração c 3c/4 2c/3 1c/2
Fonte: Elaborada pela autora.

27
Desse modo, utilizaremos a mesma definição utilizada por Pereira
(2013, p.25), que se chama “o Ciclo das Quintas” e que, segundo o autor, é
um método usado mundialmente para obter notas anteriores ou posteriores
a uma nota dada.
Definição: Em termos de comprimento de corda, a quinta (ou quinta
justa) de uma nota musical qualquer é determinada por:

Partindo de uma nota DÓ1 com unidade de comprimento 1, pode-


mos calcular todas as demais notas pelo Ciclo das Quintas. Observe:

• A Quinta de DÓ1: .

• A Quinta de FÁ1: .

• A Quinta de SOL1: .

• Então

• A Quinta de RÉ1: .

• A Quinta de LÁ1:

• Então

• A Quinta de MI1:

Assim, analogamente, podemos obter outras notas em diferentes


oitavas (vide Tabela 2); de maneira mais clara, se iniciarmos a oitava em
DÓ2, a última nota da escala diatônica deverá ser DÓ3. Por intermédio
dos cálculos realizados anteriormente, conseguimos uma oitava completa,
conforme a tabela a seguir.

28
Tabela 2 – Fração do comprimento/ Escala Diatônica

Escala Pitagórica
Nota DO1 RE MI FÁ SOL LÁ SI DO2
Definição 1ª 2ª 3ª 4ª 5ª 6ª 7ª 8ª
Fração c 8c/9 64c/81 3c/4 2c/3 16c/27 128c/243 1c/2
Fonte: Elaborada pela autora.

Dessa forma, é possível transportar esse conhecimento matemático a


respeito da música para um violão14 .
Porém, conforme foi passando o tempo, e com o surgimento de
novos sons e instrumentos musicais, a escala Pitagórica já não era sufi-
ciente. Assim, na Idade Moderna surgiu a Escala temperada.

A escala temperada

Até a Idade Média, a escala Pitagórica era facilmente aceita, porém


alguns matemáticos da época notaram que havia diferenças entre os inter-
valos de DÓ para RÉ e de RÉ para MI. Foi desenvolvida, portanto, a Escala
Temperada, na qual seriam introduzidas, nesses intervalos, as novas notas
DÓ sustenido (DÓ#), que é a mesma coisa que RÉ bemol; FÁ sustenido
(FÁ #), que é a mesma coisa que Sol bemol (Solb); Sol sustenido (Sol#), que
é a mesma coisa que Lá bemol (LÁb) e, por fim, Lá sustenido (LÁ #), que
é mesma coisa que SI bemol (SI b). Quando afirmamos ser a mesma coisa,
dizemos que essas notas musicais possuem o mesmo som; o que as difere no
uso da nomenclatura “bemol” ou “sustenido” diz respeito à ascendência (da
nota mais grave para a mais aguda) ou descendência (da nota mais aguda
para a mais grave). Essas notas foram denominadas enarmônicas.
Essa nova escala já não era mais dividida por tons e sim por semi-
tons, e é dessa forma até os tempos atuais, ou seja, matematicamente
podemos entender que 1 tom = 2 semitons. Observe a escala temperada
em um teclado:

14
Vide Violão Pitagórico completo em Pereira (2013, p.27).

29
Figura 3 – A Escala Temperada

Fonte: Elaborado pela autora.

Entre a transição do uso da escala pitagórica para a utilização da


escala temperada, alguns teóricos apresentaram opiniões divergentes a
respeito da mudança, se ela realmente seria necessária e também matema-
ticamente bem definida.
Alguns estudiosos, como Giovani LanFranco (1582-1647), utiliza-
vam ambas as escalas; de acordo com Bromberg e Saito (2017), usavam a
escala Pitagórica para vozes e a escala temperada, em sentido ascendente,
para instrumentos; porém Gioseffo Zarlino (1517-1590) discordava do
uso da escala temperada: “[...] explicava que o músico, assim como o arit-
mético, deveria valer-se apenas dos números necessários e, assim sendo,
apenas de determinados sons, aqueles definidos de acordo com a sua teoria
pitagórica.” (BROMBERG; SAITO, 2017, p. 129).

30
É importante ressaltar que, no período histórico em que a escala
temperada estava sendo firmada no meio músico/matemático, surgiria,
também, o estudo dos Logaritmos. Segundo Pereira (2013, p.42), “a escala
temperada pode ser interpretada como uma escala logarítmica de base 2.”
Pois bem, para autores da época da Idade Média, como Vicenzo Galillei
(1520-1591), já não era primordial a efetividade da música prática das divi-
sões do monocórdio, pois o sistema temperado dividia uma oitava em doze
partes iguais e se utilizava da divisão do tom em dois semitons, como vimos
no início desta seção (vide Tabela 3). Assim sendo, utilizando a escala tem-
perada, teríamos o seguinte:

Tabela 3 – Escala Temperada

Escala Pitagórica
Nota DÓ1 DÓ# RÉ RÉ# MI FÁ FÁ# SOL SOL# LÁ LÁ# SI DO2

Fração 0 1/12 2/12 3/12 4/12 5/12 6/12 7/12 8/12 9/12 10/12 11/12 1

Fonte: Elaborado pela autora.

Atente nos expoentes da progressão geométrica associada à escala


temperada:

Temos atribuído a invenção dos logaritmos a John Napier (1550-


1617) que, a respeito de sua criação, citou: “Na medida das minhas
possibilidades, proponho-me a evitar as difíceis e aborrecidas operações do
cálculo, cujo tédio constitui um pesadelo para muitos dos que se dedicam
ao estudo da Matemática” (BARCO, 1997, p. 92) Dessa maneira, podemos
facilmente utilizar suas teorias para mostrar os intervalos de tons entre as
notas nas escalas temperadas.
Por exemplo: e, assim,
sucessivamente.
Um intervalo é definido, segundo Pereira (2013), como a divisão de
dois intervalos quaisquer. Pela tabela anterior, sabemos que de DÓ1 à nota

31
RÉ, há um intervalo de 1 tom. Observe a demonstração utilizando as pro-
priedades de logaritmo.

.
Logo, o intervalo é de 2 semitons, que é igual a 1 tom. De maneira
análoga, podemos comparar outros intervalos.
Neste momento, talvez você pergunte: Esse logaritmo é o mesmo
que aprendi na escola? Sim, é o mesmo! Uma matéria feita por Luiz Barco
à Superinteressante, em 1997, dizia que o “piano é uma tábua de logaritmos”.
Para fins de curiosidade, no artigo da mesma revista, lemos: “A intensidade
de um som, expressa em bels, é o logaritmo decimal (na base 10) de sua
intensidade física”. Portanto, mais uma vez, a Matemática influenciou a
música e vice-versa.
Ainda sob a influência da música pitagórica, podemos citar o ritmo
e a métrica (forma de se pronunciar as palavras na melodia), que assumi-
ram forte característica na música barroca no século XVIII, de forma que
foram resgatadas dos antigos as regras de retórica e linguagem: “[...] alguns
autores barrocos tentaram padronizar e classificar estes grupos métricos de
acordo com seus propósitos moral e estético, sob uma teoria que se chamou
Rhyhmopoeia” (BROMBERG; SAITO, 2017, p. 111). Também no século
XVIII, o matemático Joseph Saveur (1653-1716) declarou ter descoberto
uma ciência maior que a música, a ser chamada de acústica, mas, segundo
Bromberg e Saito (2017), ao contrário do que se pensa, esse não foi o fim da
música fundamentada pela matemática, ou seja, permaneceu o conceito de
som natural (produzido pela voz humana) e som instrumental (artificial),
como já era aceito na época.

32
Considerações finais

Por meio desse breve passeio da Matemática à Música e da Música


à Matemática, podemos observar o quanto a música era importante na
formação do cidadão da Antiguidade e como essas duas ciências, em conjunto,
poderiam convergir de modo a elevar o ser humano ao mundo das ideias,
segundo Platão. Nem sempre houve total concordância entre as opiniões
acerca da definição musical ou se ela pertencia ao Quadrivium ou ao Trivium,
mas uma coisa que pudemos evidenciar durante todo esse percurso foi que os
cálculos matemáticos de Pitágoras ou suas teorias não estavam errados, pois,
se estivessem, não poderiam ser aplicados no mundo material.
Em vários momentos, a música foi retratada como, de certa forma,
um remédio para a alma, para elevar o espírito. Quem nunca ouviu uma
música para relaxar? Será que é o som que produz em nós uma sensação
boa, ou seriam os números que, sem percebermos, nos remetem a isso?
Outro ponto importante que ressaltamos é o fato de a álgebra,
demonstrada por meio de classes de equivalência, poder explicar, como
vimos no item A música por Pitágoras e suas implicações, a construção das
outras notas musicais. Isso seria interessante para trabalhar em sala de aula
com alunos de graduação, os quais veriam, na prática, algo que muitas vezes
parece abstrato, assim como a música poderia ser trabalhada junto com os
logaritmos no ensino fundamental, tornando a matemática mais atrativa
aos alunos. A esse respeito, Barco (1997) afirma que, quando criança, não
gostava de matemática, não fazia sentido para ele, até o dia em que seus
irmãos apresentaram um artigo no qual havia a contextualização de loga-
ritmo e música. Quando todo aquele conteúdo foi assimilado, ele percebeu
o quanto poderia ser prazeroso estudar matemática. Seguindo esse raciocí-
nio, o experimento proposto neste capítulo seria um bom começo.
Para finalizar, Hawking (1988, p.32) escreve o seguinte: “Portanto,
caso se acredite que o universo não é arbitrário, mas sim governado por leis
definidas, será preciso, em última análise, combinar teorias parciais numa
outra, completa e unificada, capaz de descrever tudo no universo”. Num
momento da história da humanidade, a música se bastou como a teoria que
unificaria tudo, desde o movimento dos astros até nossos sons e silêncios.

33
Referências

ABDOUNUR, O. J. Matemática e Música: O pensamento analógico na construção de


significados. São Paulo: Editora Escrituras,1999.

BARCO, L. A matemática do som. Revista Superinteressante, v.119, ago. 1997,

BRITO, A. J. B. O Quadrivium na obra de Isidoro de Sevilha. 1999, 150f. Tese (Doutora-


do em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, Campi-
nas,1999.

BROMBERG, C.; SAITO, F. As matemáticas, o monocórdio e o número sonoro. São


Paulo: Livraria da Física, 2017.

HAWKING, S.W. Uma breve história do tempo: do Big Bang aos buracos negros.
Tradução de Maria Helena Torres. Rio de Janeiro: Rocco, 1988.

OLIVEIRA, G.M. Os Princípios Cosmológicos de Filolau e a Música. 2010, 101f. Dis-


sertação (Mestrado em Filosofia)- Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2010.

PEREIRA, M.C. Matemática e música: de Pitágoras aos dias de hoje. 2013, 91f. Disser-
tação (PROFMAT)- Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, 2013.

PLATÃO. Timeu-Crítias. Tradução de Rodolfo Lopes. Coimbra: [s.n.], 2011. ISBN 978-
989-8281-84-5.

SANTOS, M.P. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRASA, 2000.

SANTOS, L.; MOTTA, N. Certas coisas. Rio de Janeiro: Estúdio Transamérica, 1984.
Disponível em: https://www.vagalume.com.br/lulu-santos/certas-coisas.html. Acesso em
14 de abril de 2015.

ZALESKI, D.F. Matemática e Arte. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2013. (Coleção
Tendências em Educação Matemática).

34
2. A INFLUÊNCIA DA ESCOLA PITAGÓRICA
NA ARQUITETURA

Islenis Carolina Botello Cuvides

O princípio de todas as coisas é a mônada ou unidade; desta mônada nasce


a dualidade indefinida que serve como substrato material para a mônada,
que é sua causa; da mônada e da dualidade indefinida, surgem os núme-
ros; dos números, pontos; dos pontos, linhas; das linhas, figuras planas;
das figuras planas, corpos sólidos; de corpos sólidos, corpos sensíveis, cujos
componentes são quatro: fogo, água, terra e ar; esses quatro elementos são
trocados e transformados totalmente um no outro, combinando-se para
produzir um universo animado, inteligente e esférico. Diógenes Laercio
(1792, p. 194).

Introdução

Vários foram os arquitetos que, com base nos ensinamentos da Escola


de Pitágoras, contribuíram para a construção de cidades, templos, casas,
igrejas, mansões, jardins e hospitais. Alguns, com seus planos, e outros, com
suas obras arquitetônicas. Eles não só foram arquitetos, também foram
escultores, carpinteiros, pintores, em uma palavra: artistas. Mas de onde vem
a inspiração para criar essas belas construções? E o que pode ser definido
como formoso ou belo? Por que o que era perfeito para eles, ainda perma-
nece belo para nós em qualquer parte do mundo? Por que somos cativados
por edifícios como as pirâmides egípcias, a Muralha da China, o Partenon,
o Coliseu Romano, o Taj Mahal, a Igreja da Sagrada Família, a Catedral de
Notre-Dame, o Castelo de Santo Ângelo, o Museu do Amanhã, entre outros?
É preciso mergulhar na história da arquitetura e conhecer alguns de
seus pilares, para podermos encontrar algumas respostas para as anteriores
perguntas. Vale a pena antes observar ao leitor que neste capítulo apresenta-
remos um pouco da história da arquitetura, sem fazer necessariamente um
estudo historiográfico profundo.
Embora o objetivo do presente capítulo seja conhecer como foram
usados os conhecimentos desenvolvidos pela Escola Pitagórica, começare-
mos com uma aproximação do primeiro tratado conhecido da arquitetura
e, no transcorrer do capítulo, encontraremos como se destacam aque-
les conhecimentos pitagóricos com a tríade da arquitetura clássica,
solidez-utilidade-beleza.

Um início que não é a origem

De Architectura foi o primeiro tratado de arquitetura que tem chegado


até nós, escrito pelo arquiteto romano chamado Marco Vitrúvio Polião (90
a.C.- 20 a.C.), durante o império de Augusto (século I a.C.). O tratado
consta de dez livros que demonstram o profundo conhecimento do autor
sobre escritos anteriores gregos e romanos, hoje perdidos, e que descrevem
de maneira muito prática os métodos de construção e os materiais, assim
como apresentam ideias e especulações estéticas sobre os grandes princí-
pios de harmonia e simetria.
Embora seja um livro antigo, seus ensinamentos ainda são seguidos
em programas de arquitetura, e alguns de seus egressos conhecem ou já
ouviram falar do Vitrúvio; similarmente, isso acontece com Os Elementos
de Euclides, um livro que é de estudo, tanto nos programas de formação
de professores de matemática como dos matemáticos ao redor do mundo.
De Architectura Libri Decem expõe, sistematicamente, os aspectos que
devem ser conhecidos pelas pessoas que querem construir. No livro original
não se apresentam imagens, mas nas algumas traduções as têm colocado para
acompanhar as indicações que fez Vitrúvio e, assim, oferecer ao leitor melhor
ideia do que se descreve no Tratado. Justamente sobre a ausência das imagens,
Roth (1999) pondera que “alguns eruditos têm sugerido que os arquitetos
gregos não fizeram desenhos no sentido que os entendemos hoje, sugerindo
também que deviam trabalhar na obra em direto contato com os pedreiros e
que não deviam precisar de desenhos abstratos” (ROTH, 1999, p. 113).
A palavra arquiteto é de origem grega e seus componentes - arkhos
significa “chefe” e tekton, “construtor” ou “artesão”. De acordo com Platão,
em Politicus, os arquitetos não eram obreiros senão diretores de obreiros e,

36
consequentemente, possuíam conhecimento teórico e prático. Entretanto,
conforme Roth (1999), antigamente existiam arquitetos que eram também
sacerdotes, como Imhotep1 e Amenófis filho de Hapu (1440 a.C. - 1360
a.C.), ou faraós como Senemut (c. 1480 a.C. - 1458 a. C.)2.
De acordo com Raskin (1974), o arquiteto deve ser considerado
muito mais do que um mero desenhador de edifícios, por mais elegantes,
fascinantes e eficientes que possam ser. Como mencionamos anteriormente,
o arquiteto deve ter conhecimentos práticos e teóricos, tem que saber como
justificar suas propostas e ações, baseando-se em duas particularidades da
arquitetura: o significado e o significante. Segundo Vitrúvio (1997, p. 26):

Certamente, para todas as atividades e artes, mas especialmente para a


arquitetura, pertencem “o significado” e o “significante”. O significado é
a coisa proposta, da qual se fala; o significante é a evidência baseada na
lógica dos conceitos, com argumentos teóricos e científicos (VITRÚ-
VIO, 1997, p. 26).

Assim, o significado, o objeto e o significante são todos os argu-


mentos que pretendem responder ao objeto arquitetônico desenvolvido,
construído ou idealizado. Vitrúvio definia a arquitetura como uma ciência
adornada com numerosos ensinamentos teóricos e com diversas instru-
ções, que servem de opinião para julgar todas as obras que alcançam sua
perfeição por meio das outras artes. Por isso, ela é considerada como ciên-
cia e arte da construção feita por um sujeito que adquire o conhecimento
a partir de outras disciplinas, com o objetivo de criar o mais perfeito, belo
e eficiente edifício.

1
O primeiro arquiteto de quem se tem notícia é Imhotep (2655-2600 a.C.) que serviu como
arquiteto do faraó Zoser, aproximadamente entre os anos 2635 e 2595 a.C. Em uma estátua
de Zoser, aparecem seus títulos: “Chanceler do Rei do Egito, Doutor, Primeiro na linhagem
do Rei do Alto Egito, Administrador do Grande Palácio, Nobre hereditário, Sumo Sacerdo-
te de Heliópolis, Construtor, Carpinteiro-Chefe, Escultor-Chefe, e Feitor-Chefe de Vasos”.
2
A obra mais grandiosa de Senemut foi o Templo de Hatshepsut em Deir el-Bahri, que foi
construído na margem direita do Nilo, à entrada do Vale dos Reis.

37
Relevância de outras disciplinas em arquitetura

Por meio da leitura da obra de Vitrúvio, De Architectura, pode-se


ver a importância das várias ciências, as quais ele destaca como qualidades
de um arquiteto. Para Vitrúvio, um arquiteto deve ser engenhoso e incli-
nado ao trabalho, pois não é possível tornar-se um arquiteto experiente se
não se possui talento e não se tem conhecimentos teóricos, ou vice-versa;
o arquiteto deve ser instruído, hábil no desenho; competente em geome-
tria; leitor atento dos filósofos; entendido na arte da música; documentado
em medicina; ilustrado na jurisprudência; especialista em astrologia e em
movimentos do cosmos.
Vitrúvio lista várias qualidades e ciências (ver Figura 1) que um
arquiteto deve dominar ou conhecer, sem necessidade de ser um experto,
pois podem ser de utilidade no momento do desenho, planificação e cons-
trução do edifício.

Figura 1 – As ciências de que um arquiteto deve ter conhecimentos

Fonte: Elaborada pela autora tendo em conta a Vitrúvio (1997).

38
Por que são importantes essas diferentes disciplinas para a formação
do arquiteto e em seu trabalho? Dentro de seu tratado, Vitrúvio (1997) nos
responder essa questão ao destacar que:

• A arte do desenho permite que, por meio de reproduções gráficas,


o arquiteto possa criar uma imagem do trabalho que quer fazer;
• A geometria oferece múltiplas ajudas à arquitetura, ao facilitar a
prática pelo uso da régua e do compasso, com os quais facilmente
se fazem desenhos dos edifícios, por meio dos traçados de suas
linhas, seus níveis, suas esquadrias;
• A óptica propicia colocar corretamente os pontos de iluminação,
segundo a disposição concreta do céu3;
• Por meio da aritmética, são calculados os custos dos edifícios;
é mostrado o motivo das suas medições e, com o apoio e com
o método da geometria, são decifrados os difíceis problemas da
simetria.
• A história, frequentemente, é a fonte de abundantes adornos, os
quais devem responder ao motivo da obra, apoiada em argumentos
históricos.
• A filosofia aperfeiçoa o arquiteto, dando-lhe uma alma generosa,
para não ser arrogante, mas sim condescendente, justo, firme e
generoso, o que é o principal; na verdade, é impossível construir
um trabalho sem honestidade.
• A música permite ao arquiteto familiarizar-se com a ciência
matemática dos sons e, consequentemente, ser capaz de esticar
corretamente as bestas4, as catapultas e as máquinas de guerra.

3
De acordo com o discurso de Vitrúvio, seria a óptica geométrica. E.g.: Todos os esforços
devem ser feitos para garantir que todos os edifícios estejam perfeitamente iluminados. [...]
A altura das paredes comuns e as ruas estreitas são um inconveniente real para o brilho das
casas (VITRÚVIO, 1997, p. 157-158).
4
Arma antiga, composta por um arco e por um cabo muito tenso, com que se arremessavam
setas e pelouros. In Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013,
<https://www.priberam.pt/dlpo/besta> [consultado em 18-02-2018].

39
• É necessário que conheça medicina, em razão dos diferentes climas
– em grego climata – tanto da atmosfera como das localidades
ou áreas concretas, pois podem ser saudáveis ou prejudiciais,
precisamente pela qualidade de suas águas. Sem levar em conta
esses aspectos, não é possível construir uma casa saudável.
• A arquitetura diferencia-se da música, da pintura, ou da poesia,
pois se estabelece a partir de uma relação dono da casa « arquiteto,
na qual, com um contrato amparado pelas leis, se protegem ambas
as partes contra possíveis fraudes, sem qualquer tipo de decepção.
• Da astrologia5, o arquiteto conhece os pontos cardinais: leste,
oeste, sul e norte; e a estrutura do céu, os equinócios, os solstícios e
os movimentos orbitais das estrelas. Se a Astrologia for ignorada,
é absolutamente impossível conhecer a disposição e a estrutura
dos relógios.

Um dos objetos da investigação da matemática na antiguidade clás-


sica era a óptica. De acordo com Saito (2015), para Aristóteles, a óptica era
uma das ciências subordinadas e demonstrava seus teoremas recorrendo aos
princípios da geometria e da aritmética. Durante a Idade Média, os árabes
fizeram estudos sobre óptica, sobretudo o denominado “Pai da Óptica” Abú
Alí Al-Hasan Ibn Al-Haytam6 (965-1039), que criou lentes, espelhos, e
descobriu as leis de refração; foi o primeiro a descrever, exatamente, as par-
tes do olho humano e dar uma explicação científica do processo da visão.
Saito (2015) menciona que a óptica ainda não era uma “ciência da
luz”, e que o estudioso dela, naquela época, não só incursionava em aspectos
anatômicos, senão também em físicos, filosóficos e geométricos. Assim, o
fato de ser uma ciência ligada à matemática também estava unida a outras,
por isso se denominava como “a ciência mista” no século XVII.
É interessante como Vitrúvio não só aborda a importância de cada
uma das disciplinas anteriores, como também a relação entre elas. Por

5
Nesse período, não se tinha diferença entre a astrologia e a astronomia; com o advento do
telescópio e dos estudos de Kepler, Galilei e outros, no século XVII, elas se separaram.
6
Conhecido no Ocidente como Al-Haytam ou Alhazen.

40
exemplo, os aspectos interdisciplinares que há entre os astrólogos e os
músicos, quando nos descrevem a existência da afinidade das estrelas e das
sinfonias em relação aos quadrados e triângulos, em uma quarta e em uma
quinta; e, também, quando ressalta o trabalho dos geômetras com o tema
da visão que, em grego, se chama logos ópticos. Mais adiante, retomaremos
algumas dessas relações ao mostrar como o trabalho dos arquitetos pode ter
se embasado nos estudos da Escola Pitagórica.

Quais são as partes [essenciais] da arquitetura clássica?

A prática do desenho, como foi descrito pelo Vitrúvio, é moderna e


familiar, já que nos planos do andar (ichnographia), desenhados com régua
e compasso, incluem desenhos de elevações (ortographia), concebidos como
“uma imagem vertical da fachada”, e perspectivas (scaenographia) com som-
bras e planos laterais que se afastam para convergir em um ponto de fuga.
Da mesma forma, dentro dos elementos essenciais mencionados por
Vitrúvio, encontramos a solidez (depende da bondade dos fundamentos,
da eleição dos materiais e seu uso, que deve ser feito para a ordenação, dis-
posição e proporção adequadas entre todas as partes), a utilidade e a beleza
(conseguidas pela disposição correta das partes de um edifício de modo que
não causem nenhum obstáculo). Do anterior, Vitrúvio (1997) define esses
conceitos para esclarecer sua teoria da seguinte maneira:

• Ordenação (ordinatio) é o ajuste do tamanho das várias partes,


segundo seus diversos usos, que requer a devida consideração das
proporções gerais da estrutura: ela surge da dimensão (quantitas),
que os antigos gregos chamaram de ποσότης (quantidade). A
quantidade, por sua vez, é o estabelecimento de módulos retirados
dos elementos da própria obra e a execução agradável da obra
como um todo, com base nas partes individuais dos elementos.
• Disposição (dispositio) é a colocação adequada dos elementos e
o resultado correto do trabalho, de acordo com a qualidade de
cada um deles. A disposição é divisível em três cabeças que,
consideradas em conjunto, constituem o desenho: estas, por parte

41
dos gregos, recebem o nome de ἰδέαι (ideia): são chamadas de
ichnografia (plano geométrico), ortografia (elevação geométrica) e
cenografia (elevação perspectiva).
a) o plano geométrico requer o uso do compasso e da régua; com
eles vai-se formando o arranjo dos planos, que serão usados mais
tarde nas superfícies planejadas para o futuro edifício;
b) elevação geométrica é a elevação da frente, ligeiramente som-
breada, e mostrando as formas do edifício pretendido;
c) elevação perspectiva exibe a frente e um lado, recuado, devi-
damente sombreado, as linhas sendo desenhadas para os seus
próprios pontos de fuga.
• P roporção (eurythmia): é essa harmonia agradável entre as várias
partes de um edifício, que é o resultado de um acordo simples e
regular entre eles; a altura para a largura está para o comprimento
e cada um desses para o todo. É aquele que forma o conjunto de
todas as partes do trabalho, dando-lhes uma aparência bonita,
quando simetricamente a altura corresponde à largura, a largura ao
comprimento e em todo o conjunto brilha uma correspondência
adequada.
• Beleza (decor): Ela é encontrada naquele trabalho cujo todo e os
detalhes são adequados para a ocasião. Isso decore da circunstância,
do costume e da natureza.
• Uniformidade (symmetria): A uniformidade é a paridade das
partes umas para as outras; cada uma correspondendo com o seu
oposto, como na figura humana. Os braços, pés, mãos, dedos são
semelhantes e simétricos uns com os outros.
• Economia (distributio): A economia consiste em uma aplicação
devida e adequada dos meios oferecidos, de acordo com a
capacidade do empregador e a situação escolhida, cuidando que
as despesas sejam prudentemente realizadas.
Ao buscar a perfeição, os arquitetos deixaram um legado para todas
as gerações. Algo que seja completo, sem defeitos e que cumpra um propó-
sito, tal como propõe a ríade solidez-utilidade-beleza. Por isso é que Vitrúvio

42
busca a beleza mediante um sistema de proporções7 na arquitetura, as quais
são descritas no terceiro e quarto livro. Vitrúvio oferece as quantidades das
partes – porque não dá os números das medidas especificas – e as proporções
para construir as bases e colunas8 das ordens: a Dórica, a Jónica e a Coríntia9.

Alguns elementos visuais da forma arquitetônica: o círculo e o quadrado

Retomando a característica da arquitetura de usar outras discipli-


nas, destacamos a sua importância para realizar os desenhos ou planos,
e levá-los à prática na construção de edifícios. Dentro dos desenhos das
construções realizadas, contemplamos o uso de figuras geométricas, entre
elas: o círculo, o quadrado, o triângulo, o retângulo e outros polígonos. Do
mesmo modo, são utilizados corpos geométricos: a esfera, o cubo, prismas,
dodecaedros e outros.
Na arquitetura descrita por Vitrúvio e praticada no Ocidente até o
final da Idade Média, o círculo e o quadrado são símbolos primordiais. E,
dentro da filosofia da Escola Pitagórica10, o círculo era reconhecido por

7
Defina-se dizendo que proporção é o respeito de todo o trabalho com suas partes, e o que
as partes têm separadamente com a ideia do todo, de acordo com a medida de alguns deles.
Porque, como no corpo humano, há respeito ou relação entre o pé, a mão, o dedo e as outras
partes: então, nas obras perfeitas, um membro particular implica o tamanho do todo, por
exemplo: pelo diâmetro de uma coluna ou ao longo de um Tríglifo, o tamanho de um templo
é julgado (VITRÚVIO, 1997, p. 32).
8
Pilar ou elemento estrutural que serve para sustentar um arco, teto ou outras partes de um
edifício.
9
As denominações dórica, jônica e coríntia surgem precisamente da composição ou
estrutura de suas colunas. De acordo com Vitrúvio (1997), a ordem dórica era a mais antiga
e surge na região de Acaia e do Peloponeso; foi uma resposta à proporção do corpo humano,
especificamente do masculino, e se destacou nos edifícios por sua solidez e beleza. A ordem
jônica aparece na Grécia oriental, e, assim como a dórica, queria responder à proporção do
corpo humano, mas adaptando-a à esbelteza e delicadeza feminina, por exemplo, adornavam
suas frentes e fachadas com cimácios e festões, colocando-os como se fossem os cabelos e, ao
longo de todo o fuste, escavaram umas estrias, imitando as dobras das estolas usadas pelas
mulheres. A última ordem, a coríntia, imita a delicadeza de uma menina, porque, devido à
sua juventude, elas têm uma configuração composta de membros delicados e, através de seus
ornamentos, conseguem efeitos muito bonitos, é um estilo mais decorativo e trabalhado.
10
Embora o quadrado não seja mencionado nas obras de Laércio, Jâmblico, Platão como foi
feito para o círculo (e.g. se menciona expressões tais como: “o quadrado do número ...”, ou “a
duplicação do quadrado...”) é comum encontrar na literatura coloquial que era um elemento
esotérico da Escola Pitagórica, sendo isso um indício do que se atribui uma qualidade ao
quadrado que não pertence à Escola Pitagórica.

43
sua beleza: “das figuras sólidas a esfera é a mais linda: das planas o cír-
culo” (LAERCIO, 1792, p. 201). Segundo Hani (1998), o círculo ou esfera
representam a unidade ilimitada de Deus, a sua infinidade, a sua perfeição;
e, na ordem cosmológica, o círculo representa o céu, instrumento da ativi-
dade divina que rege a vida sobre a terra, enquanto a terra é representada
pelo quadrado (porque ela, de certa maneira, é “oferecida” à atividade do
céu). O quadrado ou cubo forma a base estável dessa unidade e é a imagem
da sua imutabilidade e da sua eternidade.
O tratado de Vitrúvio fala sobre o uso do círculo na construção dos
teatros e a implementação do compasso e da régua. No entanto, Geertman
(1980) encontrou que se aplicaram os círculos e arcos no desenho geomé-
trico das salas das casas de Pompéia e em elementos arquitetônicos mais
básicos da história da cultura persa, como em outras mais. De acordo com
Kuilman (2011), essas formas geométricas são particularmente proeminen-
tes nos lugares de culto (o fogo sagrado) do ‘chatar taq’ (quatro pilares): o
círculo, que conduz à cúpula, representa a aproximação ao universo e suas
conotações religiosas, e o quadrado, que leva ao altar, é a limitação da Terra,
criada no encontro oposto de duas linhas de cruzamento.
Não só a geometria, na arquitetura, toma elementos no espaço e no
plano; também há que se considerar as medidas, portanto, os números (que
representam as quantidades das partes) e seus significados, assim como as
proporções que cumpriram com uma ordem.
No primeiro tratado arquitetônico do Renascimento, De re aedifica-
toria11, de Leon Battista Alberti (1404-1472), além de destacar o círculo
como a forma para construir os templos ou igrejas, também listou cinco
figuras mais (o quadrado, o hexágono, o octógono, o decágono e o dode-
cágono), todas elas determinadas pelo círculo e como elementos essenciais
para o desenho de planos arquitetônicos.

11
Sobre a arte de construir.

44
A conexão dos números e as estruturas arquitetônicas

Nos diálogos de Platão e Timeu12, encontramos um dos elementos


da filosofia pitagórica, segundo o qual “a formação do mundo organizado
a partir dos quatro elementos obedece inevitavelmente à proporção, isto é, à
relação matemática. Como se tornará evidente, até o próprio demiurgo está
atido às imposições da proporção matemática” (PLATÃO, 2011, p. 100,
grifo nosso). Essa ideia da Escola Pitagórica foi criada com base no legado
de Anaximandro de Mileto, professor de Pitágoras, e dos estudos no Egito
e na Babilônia (PORFIRIO, 1987).
Precisamente, as proporções são apresentadas constantemente na obra
de Vitrúvio, o que as tornou presentes no jogo criativo e no trabalho do
arquiteto. Um exemplo de como os arquitetos têm consideração pela filosofia
pitagórica anteriormente mencionada está no desenho do Panteão de Agripa,
reconstruído por Públio Élio Trajano Adriano (76-138), em 126 d.C.
Segundo Joost-Gaugier (1998), Adriano era bem versado em arit-
mética e apaixonadamente interessado no Leste Grego; consequentemente,
poderia ter-se voltado para fontes pitagóricas para enfrentar o problema de
projetar seu novo Panteão. A continuação nos mostra alguns exemplos de
como foram implementadas algumas ideias pitagóricas.

1. O Panteão foi construído em torno de um eixo central, com


seu plano circular; sua orientação às quatro direções cardinais e
o caráter hemisférico de sua cúpula sugerem preocupações cós-
micas. Essas qualidades podem ser vistas como preocupações
pitagóricas, de acordo com Burkert (1972).
2. A rotunda, a parte central e mais importante do desenho, é domi-
nada pelo número um, conhecido pelos pitagóricos como unidade
ou mônada13, por causa de seu caráter indivisível e por ser o único
número perfeito no poder.

12
Pitagórico, de acordo com Jâmblico (1988).
13
Jâmblico (1988) explica a mônada como a mais autoritária dos números porque é o Sol
que governa.

45
3. Na cúpula gigante, abre-se o óculo14 que tem vinte e oito coste-
las que formam o cofre planetário, atingindo o cilindro de apoio
abaixo. Para os pitagóricos, vinte e oito era o número da Lua, pois
simbolizava o número de dias no mês lunar.
4. Correspondente à rotunda e às 28 costelas15, são cinco anéis arte-
sanais de cofres, sugerindo uma combinação muito incomum por
padrões antigos. O número cinco, a média aritmética proporcional
da Decad, de acordo com o Theon de Esmirna (c. 70 – c. 135)16,
também foi o primeiro número totalmente circular, conhecido por
meio de Aristóteles e de Anatólio de Laodiceia (início do século
III - 283) – ambos considerados pitagóricos – como o casal ou
número de casamento17, por ser a primeira combinação de ímpar e
par, 3 e 2, masculino e feminino (BURKERT, 1972, p. 467).

Ao continuar com a leitura da estrutura arquitetônica, contempla-


mos que é ordenada, bonita e simbólica ( JOOST-GAUGIER, 1998).
Do mesmo modo, poderíamos encontrar algumas pistas sobre o possível
uso das fontes pitagóricas, explicadas pela propagação do pitagorismo na
Antiga Roma.
A propagação do pitagorismo no mundo ocidental começou ao final
do primeiro século a. C. Sua difusão foi acompanhada por uma associa-
ção com as pseudociências, em particular a astrologia, a interpretação dos
sonhos e a adivinhação. Ao estabelecer-se no mundo romano, o pitago-
rismo tentou unir-se às tradições próprias. Foi assim que Marcus Manilius

14
Na arquitetura, é uma abertura ou janela de forma circular ou oval, cuja função é fornecer
iluminação.
15
Uma costela é um suporte vertical usado para alinhar, apoiar ou reforçar as longarinas.
16
Foi um filósofo, astrônomo e matemático grego, cujas obras foram fortemente influenciadas
pela Escola Pitagórica. Preservou-se seu trabalho “Sobre a matemática usada para a
compreensão de Platão”, uma compilação introdutória da matemática grega.
17
Temos que destacar que, para os Pitagóricos, o número um era um caso excepcional, sendo
ao mesmo tempo par ou ímpar, feminino e masculino, por isso não se tinha em consideração
a dupla 1 e 4.

46
(século I d.C.)18, em seu poema astronômico, introduziu ao mundo romano
os detalhes de signos zodiacais, influências no nascimento e horóscopos; e
Caio Júlio Higino (64 a.C. - 17 d.C.)19, em seu texto astronômico, ressaltou
a importância do Sol ao governar sobre o zodíaco. Essas noções pitagóricas
de ordem cósmica e harmonia universal foram atrativas para os imperadores
romanos que as adotaram em sua cultura, a tal ponto que se aproveitaram
disso para representar a si mesmos como deuses20.

Teorema de Pitágoras na arquitetura

Dentro das noções pitagóricas que têm servido à arquitetura para


medir alturas, encontrar pontos para colocar objetos nas estruturas e
aproveitar os espaços, está o teorema de Pitágoras. Embora esse teo-
rema seja apresentado nas salas de aulas como se tivesse sido criado por
Pitágoras de Samos, existem pesquisas de González (2008) e Santos (
2010), entre outras, que mostram que esse teorema era conhecido por
várias civilizações antigas, por exemplo, na cultura chinesa, persa, meso-
potâmicas e egípcia.
Precisamente dentro da utilidade da geometria na arquitetura, encon-
tramos indícios do uso do teorema de Pitágoras nos desenhos das construções
de edifícios, e o uso específico de ternas pitagóricas tradicionais21. Não se
tem encontrado uma fonte que especifique o uso do teorema por parte de
um arquiteto, mas encontramos estudos que falam das relações desse teo-
rema com as medidas de suas dimensões. Por exemplo, no plano do Templo
de Athena (NABERS; WILTSHIRE, 1980; HOLLOWAY, 1966), ou na
Basílica subterrânea na Porta Maggiore (SCHMELING, 1969).
Nabers e Wiltshire (1980) demonstraram que as três dimensões
básicas do Templo –comprimento, largura e altura – produzem dois triân-

Joost-Gaugier (1998) indica que Manilius, possivelmente, pertenceu à vertente pitagórica


18

porque demonstra domínio dos temas da escola.


19
Joost-Gaugier (1998, p. 33).
20
E.g. O imperador Nero foi representado como Apolo ou Hélios. (LEHMANN,
1945).
21
E.g. {2,3,4}, {5,12,13}, {7,24,25}, {8,15,27}.

47
gulos com base no teorema de Pitágoras22. Acompanhando as dimensões
modulares de Holloway (1966) para comprimento e largura, Nabers e Wil-
tshire construíram o triângulo pitagórico com uma diagonal de 26 módulos.
Vinte e seis módulos de quatro pés dóricos são iguais a 104 pés dóricos,
uma dimensão que é a soma dos números pitagóricos (10*10+4) =104).
O triângulo pitagórico citado é uma versão básica ou primitiva do
triângulo cuja terna é {5, 12, 13} multiplicado pelo fator de 8; assim, teríamos
a nova terna {40, 96, 104}, que constitui um triângulo cujo perímetro é 240
ou 10*24 pés dóricos.
Assim, um lado do triângulo mede 40 (ou ) pés dóricos,
outro lado 96 (ou 4*(1*2*3*4)), e sua hipotenusa
, (ou
(10*10+4)). Do anterior, podemos vislumbrar que a construção do Templo
não só estava relacionada com a ideia das ternas pitagóricas senão também
com a teoria numérica de Pitágoras, especificamente os tetraktys, pois cada
uma dessas medidas {40, 96, 104} pode-se escrever como a soma, produto
ou combinação dos números que expressam os tetraktys. Na seguinte seção
do capítulo, será desenvolvido com maior aprofundamento esse conceito.
Outro exemplo é a basílica subterrânea na Porta Maggiore, que tem
uma elaborada decoração de estuque23 nas abóbodas do cânion do navio e
onde seus corredores laterais retratam uma variedade de cenas, da mitologia
e da tragédia, que levaram alguns a interpretar a Basílica como o centro de
culto da seita neopitagórica (SOREN; SOREN, 1999).
Schmeling (1969) determinou que as dimensões da Basílica expres-
sam o teorema de Pitágoras; igualmente menciona o possível erro em seus
valores ao tomar as medidas, mas, de todas as seitas místicas, especifica-
mente os pitagóricos estavam interessados no misticismo numérico: 32 + 42
= 52, a fórmula de um triângulo retângulo. Com essas proporções em mente,
ele mediu a basílica e, levando em conta que as paredes da basílica não são
bastante retas, tomou valores aproximados.

22
O quadrado do comprimento da hipotenusa é igual à soma dos quadrados dos
comprimentos dos catetos.
23
Segundo Pinhal (1996), é a massa à base de cal, gesso, areia, cimento e água, usada no
revestimento de paredes e de forros.

48
Usando as dimensões do edifício encontradas nos desenhos em
escala de Goffredo Bendinelli (1923)24 e os dados oferecidos por Fornari e
Gatti (1918), Schmeling mediu, aproximadamente, do centro das paredes
para a parede oposta de comprimento e largura. Para a altura, usou um
segundo desenho da nave central de Bendinelli, dando as medidas: 11,75 m
de longo; 7,3 m de alto e 9,2 m de amplo.
Logo, do anterior se tem que verificar que 11,752 = 7,32 + 9,22. Daí,
7,32 + 9,22 = 137,93 e 11,752 = 138,0625. Assim, a quadratura desses núme-
ros deixa uma discrepância de apenas 0,1325 m2, o qual é um erro produzido
ao manipular números não exatos.

Um número perfeito: Tetraktys

O tratado De Architectura fala sobre vários números naturais, o que


acontece se se multiplicarem, quais serão suas substâncias individuais e
quais os seus nomes, se eles se juntarem, ou qual é o tipo de número deles.
Embora Vitrúvio não mencione a palavra “tetraktys”, ele menciona um
número ao qual dá o adjetivo perfeito:

Os autores antigos fixaram um número perfeito, que é chamado nú-


mero dez, pois é o número total dos dedos da mão; a partir da palma,
descobriram o pé. A Platão, parecia-lhe perfeito o número dez porque
somando cada uma das substâncias individuais – mônadas – se obtém a
dezena (VITRÚVIO, 1997, p. 39, tradução nossa)25.

Do anterior, podemos perceber que Vitrúvio tinha conhecimentos,


graças a “autores antigos”, mas não há referência específica aos pitagóri-
cos. No texto de Nicômaco, podemos encontrar claramente a associação do

24
Em Bendinelli (1923), fala-se sobre um ensaio escrito por Franz Cumont (1868-1947)
em 1918, onde se associa a basílica a um santuário, e fala-se que sua construção e utilização
do subsolo fora por parte de uma seita neopitagórica, na qual predominaram os cultos órfico
e dionisíaco.
25
Texto original: “Los autores antiguos fijaron un número perfecto, que es el llamado número
diez, pues es el número total de los dedos de la mano; a partir del palmo, descubrieron el
pie. A Platón le pareció perfecto el número diez, ya que sumando cada una de las sustancias
individuales – mónadas – se obtiene la decena”. (VITRÚVIO, 1997, p. 39).

49
tetraktys como uma descoberta de Pitágoras, assim como se tornou parte do
juramento dos membros da escola pitagórica26:

Diz-se que o próprio Pitágoras determinou as proporções numéricas


das concordâncias musicais fundamentais, uma afirmação que impli-
ca um conhecimento das proporções em geral; também foi dito que
a descoberta do tetraktys era dele, e foi comemorado pelo juramento
habitual dos irmãos pitagóricos, em vista de que os números figurados,
certamente números triangulares, quadrados e oblongos, eram conhe-
cidos nos primeiros dias (NICÔMACO, 1926, p. 18, tradução nossa)27.

Mais adiante, Nicômaco explica em que consiste o tetraktys: “A


tétrade é um quadrado, é produzido a partir de 2+2 e 2´2 e, há muito
tempo, foi reverenciado como potencialmente o dez, porque 1+2+3+4=10”.
(NICÔMACO, 1926, p. 105, tradução nossa) 28.

Figura 2 – O Tetraktys Pitagórico


● ●
● ● ●
● ● ● ●
Fonte: Elaborado pela autora.

Assim, o tetraktys (ver Figura 2) pode comparar-se com o número


perfeito do qual falava Vitrúvio, e do qual tínhamos indícios de que se

26
Atualmente o tetraktys está relacionado com o Compasso e Quadrado Maçônico. Ver
(KENNY, 2004, p. 8).
27
Texto original: “Pythagoras himself is said to have determined the numerical ratios of
the fundamental musical concords, a statement which implies a knowledge of the ratios
in general; the discovery of the tetraktys, too, was said to be his, and was commemorated
by the customary oath of the Pythagorean brethren, in view of which figurate numbers,
certainly triangles, squares and heteromecic numbers, were known in the earliest days”.
(NICÔMACO, 1926, p. 18).
28
Texto original: “The tetrad is a square, is produced from 2+2 and 2×2, and had long been
reverenced as potentially the decad, because 1+2+3+4=10” (NICÔMACO, 1997, p. 105).

50
referia ao mesmo objeto definido por Nicômaco. Deve-se citar, também,
que o tetraktys foi considerado parte do misticismo da Escola Pitagórica,
onde Hermes, Hephaestus, Heracles e Dionysus compartilharam a tétrade,
e onde, ao mesmo tempo, se contemplavam as proporções musicais que
estão contidas nela, chamando-a de “harmonia”. Da mesma forma, esse
número tinha o especial significado de representar todas as dimensões pos-
síveis (Figura 3).

Figura 3 – Dimensões a partir dos números do tetraktys

Fonte: Elaborada pela autora.

Na arquitetura românica, encontramos um exemplo de estrutura que,


aparentemente, se baseou na tetraktys: um templo na Grécia Antiga. Hollo-
way (1966) demonstrou que o desenho do Templo de Athena, em Paestum,
construído no final do século VI d.C., tinha um triângulo com dez pontos
em quatro linhas que expressam dez como a soma dos quatro primeiros
dígitos. Holloway mostrou que o plano do templo foi baseado em um
módulo de 4 pés dóricos de 0,328 m e que 10 módulos formaram a largura
interaxial29 do peristilo30, enquanto 24 módulos formaram seu compri-
mento. O desenho expressou a soma e o produto dos tetraktys: 1+2+3+4=10.
Além disto, na arquitetura do século XX, podemos encontrar outra
estrutura que, aparentemente, demonstra o uso de ideias pitagóricas, entre
elas o tetraktys: o Teatro Capitol de Melbourne, construído pelo casal

29
Segundo Höcker (2006), espaçamento interaxial é um termo técnico moderno que, na
arqueologia dos edifícios, denota a distância interaxial entre duas colunas. O espaço interaxial
era um subconjunto claramente definido das distâncias axiais, ou seja, as distâncias entre os
centros das quatro colunas de canto e, como tal, serviam como um dos parâmetros cruciais
de projeto na arquitetura do templo.
30
De acordo com Pinhal (1996), o peristilo é uma colunata ou série de colunas.

51
Walter Burley Griffin (1876-1937) e Marion Mahony Griffin (1871-
1961), em 1921. De acordo com Pont (2003), o teatro é um templo de pedra
ou santuário de caverna que é inserido através de um portal. Pont (2003)
menciona que os Griffins adotaram uma ideologia pitagórica secreta e
tentaram desenvolver uma nova síntese de estética musical e arquitetônica,
e o exemplo disso está no teto do Teatro Capitol, em Melbourne, mostrando
o tetraktys diretamente acima da tela do cinema.
Outra caraterística proeminente do Capitólio é a proporção do qua-
drado duplo (1:2), que é a proporção da próxima consonância importante,
a oitava ou o diapasão. Essa relação também determina o símbolo cósmico
cruzado, que é proeminentemente exibido na fachada principal, bem como
a subdivisão quadrangular ou o cortejo do cubo. Os Griffins impuseram
assim à fachada um ritmo percebido de sólido a vazio, na proporção de 6:8,
o que é equivalente a 3:4, a proporção que define o intervalo musical do
quarto. Os pitagóricos chamaram-no de diatessarão, o terceiro das conso-
nâncias fundamentais codificadas nos tetraktys.
É importante ressaltar que as proporções entre os números 1, 2, 3
e 4, números integrantes da tetraktys, estão presentes na arquitetura e, a
partir delas, construíram-se templos, igrejas e monumentos de diferentes
períodos ou estilos arquitetônicos, entre os quais se encontram o Romano,
Gótico, Renascimento, Barroco, Rococó, e Palladianismo. Para conhecer
com maior aprofundamento esses períodos ou estilos da arquitetura, e dizer
do conjunto de características que identificam a tendência artística de uma
época ou um autor, convidamos ao leitor fazer uma revisão dos autores
(CONWAY; ROENISCH, 2006; COLE, 2003; ALBERTI, 1582).

Proporções na arquitetura

No desenho arquitetônico antigo, predomina o padrão de propor-


ção sobre a medida (e.g. o desenho arquitetônico da Pompeia). Primeiro,
era preciso cumprir as proporções harmônicas e aritméticas e, depois, se
procedia a encaixar as partes por meio de um sistema metrológico. É preci-
samente por isso que Vitrúvio oferece recomendações para proporção, mas
raramente dá as dimensões específicas para as peças arquitetônicas.

52
Como nós lembramos, os métodos de desenho de Vitrúvio são base-
ados em sistemas modulares; no entanto, outro método de seu sistema
consiste no uso do Atrium, para o qual o autor recomenda a construção de
um retângulo adequado a partir da diagonal de um quadrado, pois, como
esse quadrado terá uma medida modular, seria possível estabelecer que a
medida de um lado do Atrium é vezes31 o lado do módulo, é dizer um
sistema baseado em . Portanto, houve desenhos com proporções entre
números irracionais e números naturais para esse período em que os irra-
cionais geraram grande comoção no mundo matemático, embora não tenha
tido o maior impacto na arquitetura, devido ao interesse do arquiteto por
ter uma ferramenta útil para seu trabalho.
Outro arquiteto que também utilizou as ideias pitagóricas foi Leon
Battista Alberti. Uma das caraterísticas, dentro da obra de Alberti, era uti-
lizar uma proporção que fosse mais agradável entre as amplitudes e alturas,
reduzindo a simetria à sinfonia e a harmonia do som a uma espécie de
harmonia à vista. Para Alberti, a música e a geometria têm algo em comum;
a música é geometria traduzida para o som e, na música, as mesmas harmo-
nias são sons audíveis que informam a geometria do edifício.
Segundo Wittkower (1958) e Scholfied (1958), Alberti foi o arquiteto
renascentista que mais aplicou a escala pitagórica no desenho de suas obras,
restringindo os comprimentos, larguras e alturas de seus quartos às razões
geométricas relacionadas à antiga escala grega, mostradas no Quadro 1.

Quadro 1– Razões geométricas relacionadas ao intervalo musical usadas por Alberti

Razão Intervalo musical


1:1 Uníssono
4:3 Quarto (diatessarão)
3:2 Quinto (diapente)
16:9 -
2:1 Oitava (diapasão)

31
Este sistema baseado em 2½ também é conhecido na literatura arquitetônica como corte
sagrado, e foi fundamentado na pesquisa de Carol e Donald Watts, que descobriram seu uso
no projeto da arquitetura doméstica de Pompéia, Herculano e Óstia. Watts e Watts (1987)
afirmam que o uso da fórmula pelo arquiteto romano representa uma “declaração filosófica”
sobre a quadratura do círculo.

53
Razão Intervalo musical
9:4 -
8:3 Décimo primeiro (quarto acima da oitava)
3:1 Décima segunda (quinta acima da oitava)
4:1 Décima Quinta (próxima oitava)
Fonte: (KAPPRAFF, 2001, p. 12)

De acordo com Jâmblico (1988), devido à interação com o monocór-


dio e influenciado pelo misticismo dos números naturais, especialmente os
quatro primeiros (tetraktys), Pitágoras descobriu as progressões aritméticas,
geométricas e harmônicas.
Alberti tinha experimentado que cordas com comprimentos de
razões 1:2 (os extremos 1 e 2), 2:3 (média harmônica de 1 e 2), e 3:4 (média
aritmética de 1 e 2) produziam combinações agradáveis de sons e constru-
íam uma escala dessas proporções.

As três médias formam uma progressão geométrica (mais adiante


voltaremos a essa questão), mas o que aconteceu com a média geométrica
entre e ½? Note que a média geométrica entre eles é que corres-
ponde exatamente ao Fá sustenido da escala cromática32.
Como é um número irracional, e por essa época não era aceito
pela escola pitagórica, utilizaram-se ciclos de quintas em lugar do irracio-
nal, e quando passavam à oitava, multiplicavam por 2 a longitude da corda,
para voltar à oitava original.
Dentro da filosofia pitagórica, as proporções tinham uma origem
mística, e é Platão quem nos descreve que estão relacionadas por um sis-
tema comum:

32
Para conhecer mais sobre a teoria musical, ver <https://eltamiz.com/elcedazo/2013/02/17/
musica-y-ciencia-10-desmenuzando-la-tonalidad/>. Acesso em 8 mar. 2018.

54
Daí que o deus, quando começou a constituir o corpo do mundo, o
tenha feito a partir de fogo e de terra. Todavia, não é possível que so-
mente duas coisas sejam compostas de forma bela sem uma terceira,
pois é necessário gerar entre ambas um elo que as una. O mais belo
dos elos será aquele que faça a melhor união entre si mesmo e aquilo
a que se liga, o que é, por natureza, alcançado da forma mais bela
através da proporção... Foi por isso que, tendo colocado a água e o ar
entre o fogo e a terra, e, na medida do possível, produzido entre eles a
mesma proporção, de modo a que o fogo estivesse para o ar como o ar
estava para a água, e o ar estivesse para a água como a água estava para
a terra, o deus uniu estes elementos e constituiu um céu visível e tan-
gível. Foi por causa disto e a partir destes elementos – elementos esses
que são em número de quatro – que o corpo do mundo foi engen-
drado, posto em concordância através de uma proporção (PLATÃO,
2011, p. 100).

Do anterior, encontramos que a constituição do corpo do mundo


está baseada em quatro elementos: fogo, ar, água, terra. E, interpretando as
palavras de Platão, teríamos a proporção múltipla:

Temos que , , ,e formam uma série geométrica sobre si

, onde os pontos indicam que a série pode ser conti-


nuada em ambas as direções.
Platão encontrou harmonia nos quadrados e cubos das proporções
duplo e triplo, partindo da unidade, assim que, para os números 2 (femi-
nino) e 3 (masculino), ambos primos, para e ; e para o caso
e geram duas sequências {1, 2, 4, 8 ...} e {1, 3, 9, 27 ...}, repre-
sentadas com a forma de uma lambda em trabalhos anteriores ao Platão.
1
2 3
4 9
8 27

55
A harmonia do mundo se expressa nos sete números 1, 2, 3, 4, 8, 9,
27, que contêm a secreta Eurythmia do macrocosmo e microcosmo pelo
igual. De fato, os quocientes entre esses números não só contêm todas
as consonâncias musicais, senão também a música inaudível dos céus e a
estrutura da alma humana (PLATÃO, 2011).
De lambda, temos obtido duas séries geométricas relacionadas com
a escala musical de Alberti, a da esquerda está baseada no diapasão (2:1).
A outra está formada pelas médias aritméticas de cada par sucessivo, res-
trito apenas a valores inteiros:

1 2 4 8 16 32 ....
3 6 12 24...

Observe que, embora cada número da segunda série seja a média


aritmética dos dois números que a sustentam na série superior, cada número
da série superior é a média harmônica do par de números que a sustenta a
partir de baixo. Além disso, cada série corta o outro na proporção 3: 2 e 4:
3 (o quinto e quarto musical). Isso pode ser continuado de novo e de novo
para formar séries geométricas sem fim, na razão 2: 1 da esquerda para
a direita, 3: 2 ao longo da diagonal esquerda, e 4: 3 ao longo da diagonal
inclinada à direita envolvendo apenas inteiros:

1 2 4 8 16 32...
3 6 12 24...
9 18 36 72...
27...

Assim é formado o lambda de Platão pelo limite dessas séries


geométricas.
Alberti (1582) estabelece as relações entre os intervalos musicais e
a geração de certos módulos, onde se constituem três planos: Planos curtos:
unidade (1:1), sesquialtera/quinta diapente (2:3), sesquitertia/quarta diates-
sarão (3:4). Planos médios: dupla unidade/oitava diapasão (1:2), sesquialtera
dobrada/diapente diapente (4:6:9), sesquitertia dobrada/diatessarão diates-

56
sarão (9:12:16). Planos longos: dupla sesquialtera /tripla unidade diapasão
diapente (3:6:9), dupla sesquitertia /diapasão diatessarão (3:6:8).
Seguidores de Alberti, como Andreas Palladio (1508-1580), basea-
ram sua arquitetura em uma revisão da escala pitagórica, que foi obra
do astrônomo Cláudio Ptolomeu (90-168). Assim mesmo, foi Palladio
quem teve influência até meados do XVIII, definindo sete formas bási-
cas (Figura 4), com as quais seria montado o tecido espacial do edifício
(ALMEIDA, 2005).

Figura 4 – Figuras básicas e proporções trabalhadas por Palladio

Fonte: Elaborada pela autora

Palladio usou três conjuntos diferentes de proporções para o dese-


nho de suas vilas e igrejas na Itália. Segundo Conway e Roenisch (2006),
eles foram baseados nas proporções aritméticas, geométricas e harmônicas,
e determinaram a relação entre a altura dos quartos, sua largura e com-
primento e os tamanhos relativos de diferentes salas. Conway e Roenisch
(2006) descrevem quais seriam essas proporções, assim como oferecem um
exemplo com cada uma delas.
Na proporção aritmética, o tamanho de um quarto poderia ser
baseado na relação entre os números 3:6:9. Isso é aritmética, desde que

57
9-6= 3 e 6-3=3. Assim, um quarto que mede 6 pés por 12 pés, com uma
altura de 9 pés, proporciona-se aritmeticamente.
Na proporção geométrica, o primeiro termo relaciona-se com o
segundo, como o segundo o faz com o terceiro. Assim, a relação entre os
números 4:6:9 é geométrica porque sua proporção geométrica é 2:3. Nós
poderíamos, então, ter um quarto medindo 4 pés por 9 pés com uma altura
de 6 pés, porque a largura do quarto é dois terços da altura, e a altura é dois
terços do comprimento.
Na proporção harmônica, a relação entre 6:8:12 está na diferença
proporcional entre o número maior e menor em cada par: 8-6=2, que é um
terço de 6; 12-8=4 que, por sua vez, é um terço de 12. Assim, a proporção
de um terço liga a largura (6), comprimento (12) e altura (8) de um quarto.

Proporção áurea na arquitetura

A arquitetura do Renascimento derivava da medida dos seres huma-


nos e era precisamente sua projeção externa, cuja caraterística provém do
legado vitruviano. De acordo com Vitrúvio, os escultores gregos estudaram
em profundidade as proporções do corpo humano, esculpindo suas obras
de acordo com uma proporção exata que os arquitetos empregaram em
templos e monumentos; essa proporção também é chamada proporção de
ouro, proporção divina, seção áurea ou dourada.
No entanto, temos a esclarecer que, nos tratados de arquitetura da
época, a seção áurea foi apresentada de maneira implícita. Para Vitrúvio:

O umbigo é o ponto central natural do corpo humano. De fato, se um


homem é colocado com a cara para cima, com suas mãos e seus pés es-
ticados, colocando o centro do compasso em seu umbigo e desenhando
uma circunferência, esta tocaria as pontas das duas mãos e dos dedos
dos pés. (1997, p.82, tradução nossa)33.

33
Texto original: “El ombligo es el punto central natural del cuerpo humano. En efecto, si
se coloca un hombre boca arriba, con sus manos y sus pies estirados, situando el centro del
compás en su ombligo y trazando una circunferencia, ésta tocaría la punta de ambas manos
y los dedos de los pies”. (VITRÚVIO, 1997, p. 82)

58
Dessa descrição, encontramos O Homem Vitruviano34 de Leo-
nardo Da Vinci (1452-1519), no qual ele estabeleceu uma conexão entre os
lineamentos da figura humana e a geometria. Como resultado, o desenho
renascentista está caracterizado pela experimentação com formas ideais,
geometrias ideais e proporções ideais.
A obra arquitetônica de Da Vinci é pouca, em um nível prático, mas
extensa e elaborada nos níveis teóricos. Um exemplo disso são os esboços
encontrados no Codex de Ashburnham, onde existem desenhos de planta
e elevação de igrejas circulares, incluindo uma com um espaço interior
rodeado por oito naves, sete delas idênticas e outra onde a entrada seria
encontrada, uma varanda e nove cúpulas, oito pequenas para cada um dos
navios e uma maior no espaço central.
Passando a um período mais moderno, encontramos outro exemplo
de estrutura que utiliza a proporção áurea: as janelas na Unité d’Habitation,
na Marselha de 1947. A obra, elaborada pelo arquiteto Charles-Édouard
Jeanneret-Gris (1887-1965), conhecido como Le Corbusier, mostra vários
tipos de formações, aparecendo o mesmo princípio de estrutura, dividido
de acordo com a proporção áurea, ou seja, contemplando o sistema modular
ou o módulo de ouro (LEOPOLD, 2005).
De acordo com Yilmaz (1999), dentro da arquitetura encontram-se
diferentes representações geométricas35 que são chave para a elaboração de
desenhos e estão associadas à proporção áurea (ver Figura 5). Na Figura 5
b), o retângulo CDEF se conhece como o retângulo de ouro, e a Figura 5
d) é conhecida como a espiral do retângulo de ouro.

34
Esse desenho acompanhava as notas feitas pelo artista por volta do ano 1490 num dos seus
diários. Atualmente se encontra na Accademia di Belle Arti de Veneza.
35
A Seção de Ouro é derivada de construções geométricas simples, feitas com o compasso
e a régua.

59
Figura 5 – Geração da seção áurea através de operações geométricas

Fonte: Elaborado pela autora

De acordo com um estudo elaborado pelo arqueólogo norueguês


Frederik Macody Lund (1863-1943), ao fazer a comparação entre as
plantas de várias catedrais góticas europeias, nelas se encontravam dois ele-
mentos constantes: o quadrado duplo e a seção áurea (LUND, 1921). Do
mesmo modo, também são encontrados em várias estruturas arquitetônicas
que, inclusive, foram criadas em períodos anteriores à escola pitagórica (por
exemplo, Stonehenge, a pirâmide de Quéops), que contêm a proporção áurea.
Uma propriedade importante dos retângulos áureos é que, quando
se justapõem da forma mostrada na Figura 6, a diagonal AD passa pelo
vértice G.

60
Figura 6 – Retângulos áureos

Fonte: Elaborado pela autora.

Precisamente, se a construção de um novo retângulo de ouro é repe-


tida com o retângulo cuja diagonal é AG, e assim por diante, a Figura 5 e)
é construída (ver Figura 7). Tente experimentar fazê-lo!

Figura 7 – Construção de retângulos de ouro simultâneos

Fonte: Elaborado pela autora.

61
Tentando construir nossos arcos antigos

Para conhecer um pouco mais do que fizeram os arquitetos em tem-


pos antigos e saber qual foi a geometria que utilizaram para decorar belos
templos, poderíamos nos acercar da matemática, e convidar os nossos estu-
dantes a cultivar a criatividade, apoiada da arquitetura antiga e moderna.
A ideia desta seção não é dar um curso de desenho gráfico, mas vis-
lumbrar a ferramenta que se encontra nessas construções para ligá-las com
as salas de aula de matemática. No livro de Narciso Sánchez (2011), encon-
tramos a geometria dos arcos, a guia para sua construção e o traçado de
vários arcos utilizados na arquitetura, durante diferentes épocas, na Espa-
nha. Assim, apresentaremos a continuação com 3 arcos, para que o leitor
mergulhe um pouco no mundo da arquitetura. Vale a pena esclarecer que os
passos para realizar essa construção foram tomados de Sánchez (2011), mas
as imagens foram elaboradas pela autora, utilizando o software Geogebra.

Arco Romano ou de ponto médio

Esse arco também é conhecido como formarete. É um arco de um


único centro localizado na linha de partidas, no eixo de simetria. É o arco
mais simples. Sua localização (ver Figura 8) deve ser levada em considera-
ção, para evitar o inconveniente causado pela luz excessiva.

Figura 8 – Construção de arco romano

Fonte: Elaborado pela autora

62
Procedimento de traçado:

Sejam A e B os começos. Determinamos a mediatriz do segmento


AB, para o que traçamos, com centro em B, um arco de raio r maior que
o ponto médio de AB. Repetimos o processo tomando a medida anterior,
desde o ponto A, obtendo os pontos 1 e 2 que, ao juntá-los, nos dá o ponto
O no segmento AB. Com centro em O e raio OA, traçamos um arco desde
A até B, obtendo o arco buscado.

Arco Canopial (conopial) equilateral ou flamígero

O arco canopial é muito baixo e com um entalhe no centro da chave,


o que o torna semelhante a um pavilhão ou cortina. De aparência islâmica,
o arco canopial (ver Figura 9) foi amplamente utilizado durante os séculos
XIV e XV na arquitetura gótica tardia36. Esse tipo de arquitetura também
foi conhecido como gótico flamejante, e do manuelino e, às vezes, é mos-
trado com pequenos elementos de decoração em sua parte mais alta.

Figura 9 – Construção de arco canopial equilateral

Fonte: Elaborado pela autora.

36
Ver CONWAY e ROENISCH (2006).

63
Procedimento de traçado:

Sejam A e B os pontos iniciais. Traça-se C, ponto de interseção da


mediatriz do segmento AB com ele. Tomando a medida AC, traça-se uma
circunferência com centro em A e raio AC, obtendo o ponto A’. Com cen-
tro em C e raio CA’ (2R1), traçamos uma semicircunferência sobre a qual
traçamos um triângulo equilátero com vértice no ponto C. Os lados desse
triângulo constituem os raios do arco. Com centro em C e raio R1 = CA (ou
raio R1 = CB), traçamos as seções inferiores do arco canopial. Com o centro
nos pontos C2 e C3, extremos da base do triângulo equilátero, desenhamos
os arcos superiores (com raio R1). Os centros C2 e C3 estão localizados sobre
linhas verticais que partem dos pontos iniciais do arco (A e B).

Gola com calcanhar invertido comprimido

A Gola é um molde composto por dois arcos que formam uma espé-
cie de “S” (ver Figura 10). Geralmente está localizado no capitel, embora,
como qualquer outro, possa ser encontrado no porão37.

Figura 10 – Construção de gola com calcanhar invertido comprimido

Fonte: Elaborado pela autora

37
Segundo Pinhal (1996), o capitel refere-se à parte superior, em geral esculpida, de uma
coluna; e o porão, ao pequeno espaço situado entre o solo e o primeiro pavimento de uma
casa.

64
Procedimento de traçado:

Está situado no basamento. Para a sua construção juntamos os pon-


tos A e B através de uma linha. Nós dividimos essa linha em quatro partes
iguais. Traçamos a mediatriz do segmento BC que corta o prolongamento
horizontal do listel superior, obtendo o ponto C2. A junção do ponto C com
o C2, em sua prolongação com a linha de partida, nos determina o ponto
C1. Para a construção do calcanhar invertido comprimido traçamos os arcos
correspondentes com centros em C1 e C2.
Estimado professor, essas três construções foram tomadas de um
livro por uma licença Creative Commons License Deed-Reconocimien-
to-No comercial 3.0 España, o que significa que, com esse tipo de licença,
você é livre para compartilhar, copiar, alterar ou criar e redistribuir o mate-
rial em qualquer meio ou formato, dando crédito corretamente aos autores,
indicando se foram feitas alterações e sem fazer uso do material com fins
comerciais. Portanto, você pode usá-lo sem problema na sala de aula de
matemática. Igualmente existem livros e sites online gratuitos que você
encontrou ao longo da leitura e que pode consultar para a questão que
propomos no presente capítulo, e aproximar-se aos conhecimentos mate-
máticos desenvolvidos pelos pitagóricos através da arquitetura.

Considerações finais

Tendo-nos debruçados sobre as várias das noções matemáticas que a


escola de Pitágoras desenvolveu, e, em seguida, devido à sua expansão pelo
mundo ocidental, após a sua fusão com platonismo, vemos como suas ideias
influenciaram a Arquitetura. A proporção, conforme estipulada por Vitrú-
vio, foi a chave para respeitar a tríade solidez-utilidade-beleza, bem como a
base para procurar a perfeição em estruturas arquitetônicas.
Vitrúvio era um homem culto e experiente que contribuiu para a
arquitetura e para as gerações posteriores, tomando as ferramentas básicas
que foram transmitidas oralmente antes de seu período e as registrando,
assim como consignando seus conhecimentos obtidos em seu labor como

65
arquiteto. No entanto, não se trata apenas do Tratado de Vitrúvio; encon-
tramos mais tarde outros arquitetos que expandiram o conhecimento nessa
ciência e fizeram suas próprias contribuições, ou com base nos elementos
de vitruviano, ou fazendo comentários e dando-lhes novos elementos.
Embora a arquitetura esteja baseada na geometria para seus desenhos,
e outras áreas de matemática para o seu desenvolvimento, é interessante ver
como De Architecture não tinha imagens em seus livros, fato que poderia gerar
muita dificuldade em interpretar as indicações ou definições nele expostas.
Mesmo assim, os posteriores tratados foram sendo publicados até se torna-
rem livros com maiores e melhores indicações para as novas gerações38.
Para o leitor que tem conhecimento em arquitetura, este capítulo
pode ter poucos arquitetos citados, ou poucas estruturas dos diferentes
períodos arquitetônicos mencionados; porém, a ideia é convidar o lei-
tor, alfabetizado em arquitetura ou não, a conhecer e aprofundar sobre as
noções da escola pitagórica (teorema de Pitágoras, tetraktys, proporções,
raiz quadrada, proporção áurea) usadas por arquitetos ao longo da História
e entender que a arquitetura evoluiu em sua concepção de beleza e harmo-
nia. Ao mesmo tempo, convidamos o professor de matemática a utilizar
a história da arquitetura para introduzir diferentes objetos matemáticos
mencionados no presente capítulo.

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38
Por exemplo, La Archittetura de Sérlio; I quattro libri dell’architettura de Palladio, De re
aedificatoria de Alberti etc.

66
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69
70
3. UMA DIVINA PROPORÇÃO PARA OS
PITAGÓRICOS

Renata Caterine Gambaro Cleto da Silva

Introdução

Os Pitagóricos acreditavam que existiam relações entre a natureza e


os números. Desde então, temos o costume de olhar a natureza e procurar
relações dela com a matemática. Na Bíblia, encontramos tal visão, já que ali
observamos o seguinte dizer: “mas tudo dispuseste com medida, número e
peso” (Sb.11,20).
Segundo Pacioli (1509), Aristóteles (384 a.C.- 322 a.C) acreditava
que as matemáticas são fundamentos para chegar ao conhecimento de qual-
quer ciência, pois elas estão no primeiro grau de certeza. Para Pacioli (1509),
todas as artilharias foram fabricadas com a força dos números, medidas e suas
proporções. Ele observou ainda que, embora tivesse caído ao fim, Arquime-
des conseguiu defender, por muito tempo, a cidade de Siracusa do exército
romano, por conta de suas invenções que foram fruto de estudos matemáticos.
Para o autor, os romanos, em todas suas outras conquistas, foram
vitoriosos e expandiram seus territórios, pois, “preparavam engenheiros e
outros especialistas de terra e de mar, cuja suficiência não teria sido possível
sem as disciplinas matemáticas, ou seja, Aritmética, Geometria e Propor-
ções”. (PACIOLI, 1509, p.8).
Para Platão (428 a.C.– 347 a.C.), Aristóteles, Boécio (524 a.C.– 480
a.C.) e Isidoro (636 a.C.– 560 a. C.), as matemáticas eram compostas por
Aritmética, Geometria, Astronomia e Música e outras que dependiam dessas.
Porém, Pacioli (1509) as reduz a apenas três ou então a cinco, pois, ou se
considerava apenas Aritmética, Geometria e Astronomia – e as outras lhes
seriam subalternas – ou, utilizando-se a ideia de Platão, seria incluída a Música;
então, seriam Aritmética, Geometria, Astronomia, Música e Perspectiva, uma
vez que, se a Música agrada aos ouvidos, a Perspectiva agrada a visão e, para
ele, a visão é a primeira porta pela qual o intelecto entende e aprecia.
Mas, para Platão, na Geometria encontravam-se ocultas todas as
outras matemáticas, e ele negava o acesso de pessoas, em seu ginásio, que
não detinham tal conhecimento (PACIOLI, 1509).
Para Kepler (1571-1630), “A geometria possui dois grandes tesouros:
um é o teorema de Pitágoras; o outro a divisão de uma linha em extrema
e média razões. O primeiro, podemos comparar a uma medida de ouro; ao
segundo, podemos chamar de joia preciosa”. (HUNTLEY, 1985, p.35).
Desse modo, pretendemos analisar, neste capítulo, conceitos teóricos
de razão áurea e perceber as suas relações e desenvolvimento ao longo da
História, bem como trazer o que autores afirmaram a seu respeito e como
elas se relacionam com as ideias pitagóricas.

Razão Áurea: construção de um conceito

A razão áurea sempre despertou curiosidade em seus estudiosos, uma


vez que eles conseguiam encontrar a sua razão em elementos do mundo,
como na arquitetura, na arte, no corpo humano e na música. Alguns deles
são: o Parthenon (440-430 a.C), as pirâmides de Quéops (2560 a.C) no
Egito, as obras de Leonardo da Vinci (1452-1519), a sequência de Fibonacci
(1170-1250), a Catedral de Notre Dame (1163-1345), e as construções no
livro Timeu e Crítias, de Platão (360 a.C.).
Porém, Markowsky (1992) está convencido de que algumas das rela-
ções encontradas, ao longo da História, entre a razão áurea e o mundo são
falsas e, segundo o autor, “muito do que é apresentado sobre a razão áurea
na arte, arquitetura, literatura e estética é falso ou seriamente enganoso”
(MARKOWSKY, 1992, p.2, tradução nossa1).
Historicamente, a razão áurea tomou diversas denominações dadas
por diversos autores, filósofos, arquitetos e matemáticos. É conhecida tam-
bém por número de ouro, divina proporção, proporção áurea, golden ratio,
extrema e média razão e número phi ( ). Atualmente, a razão áurea é um
número irracional relacionado ao phi ( ), e acredita-se que os Pitagóricos
já pensavam na incomensurabilidade do número.

1
Much of what is presented about it in art, architecture, literature, and esthetics is false or
seriously misleading.

72
Markwosky (1992) afirma que muitos acreditam que os termos
“razão áurea” e “seção áurea” vêm desde a antiguidade. Porém, o termo
“seção áurea” apareceu no tempo de Leonardo da Vinci, e utilizar o adjetivo
áureo e o número phi é relativamente moderno, já que a razão áurea passou
a ser denotada pela letra grega apenas no início do século XX, pelo mate-
mático Mark Barr2 (1871– 1950), pois era a inicial do nome Phidias (480
a.C- 430 a.C), um famoso escultor grego, que fazia uso dessa razão em seus
trabalhos. Também Queiroz (2007) afirma que a denominação pela letra
grega foi feita no início do século XXI em homenagem ao arquiteto e
escultor Phidias, que foi o responsável pelo templo grego Parthenon.
Já Euclides (300 a.C), em “Os Elementos”, no livro VI, a respeito
de extrema e média razão, define que: “uma reta é dita estar cortada em
extrema e média razão, quando como a toda esteja para o maior segmento,
assim o maior para o menor” (EUCLIDES, 300 a.C., p.263).
Analisemos como cortar uma reta em extrema e média razão, utilizando
a demonstração de Euclides. Para isso, é necessário observar que Euclides
faz uso de um vocabulário próprio para suas demonstrações. Desse modo,
ao longo da demonstração, apresentaremos comentários em notas de rodapé
para que o leitor entenda o que significam alguns termos, podendo observar,
na Figura 1, como os segmentos são chamados durante as demonstrações.

Figura 1- Extrema e Média Razão

Fonte: Elaborado pela autora

2
James Mark McGinnis Barr

73
Assim,

Seja a reta finita3 AB; é preciso, então, cortar a reta AB em extrema e


média razão.
Fique descrito sob AB o quadrado BC4, e fique aplicado5 à AC o pa-
ralelogramo CD igual ao BC, excedente pela figura AD, semelhante6
ao BC7.
Mas o BC é um quadrado; portanto, também a AD é um quadrado. E,
como o BC é igual ao CD, fique subtraído o CE8 comum; portanto,
o BF9 restante é igual à AD restante. Mas também é equiângulo com
ela. 10Portanto, os lados, à volta dos ângulos iguais, dos BF, AD são in-
versamente proporcionais; portanto, como FE está para a ED, assim a
AE para a EB. Mas, por um lado, a FE é igual à AB, e, por outro lado,
a ED, à AE. Portanto, como a BA está para a AE, assim a AE para a
EB. Mas a AB é maior do que a AE; portanto, também a AE é maior
do que a EB.
Portanto, a reta AB foi cortada em extrema e média razão no E, e o
maior segmento dela é o AE; o que era preciso fazer. (EUCLIDES,
300 a. C. p.263)

Note que, se considerarmos e , como


, pois é quadrado, logo,

3
Quando Euclides usa o termo reta finita, ele está se referindo ao que conhecemos como
segmento de reta.
4
Euclides refere-se aos paralelogramos pelas suas diagonais, desse modo o quadrado ABHC,
o qual tem por diagonal BC.
5
Para esse passo veja proposição 29 de Os Elementos, página 262.
6
Semelhante para Euclides é a propriedade da figura; no caso, AD deverá ser um quadrado
já que BC é um quadrado.
7
Na proposição 29, do livro VI, Euclides demonstra como “À reta dada aplicar, igual à
retilínea dada, um paralelogramo excedente por uma figura paralelogrâmica semelhante à dada.”
(EUCLIDES, 300 a. C. p.262)
8
O paralelogramo ACFE
9
O paralelogramo BHFE
10
Proposição 23, do Livro VI de Os Elementos de Euclides ele diz que “Os paralelogramos
equiângulos têm entre si a razão composta das dos lados.” (EUCLIDES, 300 a. C. p.256)

74
. Pelo mesmo motivo,
Ainda observe que , então,
Segundo Euclides, temos que é o ponto em que corta o segmento

em extrema e média razão, dado que: .

Desse modo, , o que implica que:


Logo, .
Observe que , que é a média geométrica
dos segmentos .
Logo, .
Ainda observe que, se tomarmos , temos que
, ou seja, temos uma equação de segundo grau que facilmente
podemos resolver e encontrar o valor do segmento , o valor numé-
rico do número .

Assim,
Como trabalhamos com medidas de segmentos, e um segmento não

tem medida negativa, logo desprezamos o valor , visto ser um

valor negativo; então, temos, como valor numérico para o número , o valor

.
Porém, hoje em dia, normalmente utilizamos a construção do seg-
mento áureo por desenho geométrico, de modo diferente do que Euclides
propôs. Para tal construção, tomemos um segmento AB, como mostrado
na Figura 2 abaixo.

Figura 2

Fonte: Elaborado pela autora

75
Traçamos BD como a medida de metade do segmento de AB ( ),
de modo que BD seja perpendicular à reta AB, como na Figura 3.

Figura 3

Fonte: Elaborado pela autora

Traçamos AD. Então, com centro em D e raio DB traçamos um arco


cortando DA em E, como na Figura 4.

Figura 4

Fonte: Elaborado pela autora

Com centro em A e raio AE traçamos um arco cortando AB em C


como na Figura 5.

Figura 5

Fonte: Elaborado pela autora

76
Desse modo, AC é o segmento áureo de AB.

Então note que , e como o ângulo é reto,


logo estamos nas condições do Teorema de Pitágoras; desse modo,
, mas observe que , e

Portando,

Logo,
E como então é o segmento áureo de .
Luca Pacioli (1455-1517) chamava a razão áurea de “divina pro-
11

porção”, assim como Kepler, pois, para Pacioli (1509), a razão áurea era uma
manifestação de Deus, e ele encontrou algumas semelhanças para justificar
esse pensamento. Dentre elas, ele acreditava que as quatro afirmações a
seguir são suficientes: a primeira afirmação é que “ela é somente uma e
não mais e, não é possível atribuir-lhe outras espécies, nem diferenças. E
esta unidade é o supremo epíteto de Deus, segundo toda escola teológica e
também filosófica” (PACIOLI, 1509, p.12).
A segunda corresponde à Santíssima Trindade, como in Divinis,
em que existe uma mesma substância em Pai, Filho e Espírito Santo,
da mesma forma uma proporção desse tipo pode ser encontrada em três
termos. A terceira correspondência é que, como Deus, “não se pode defi-
nir, nem por nós pode ser entendido por palavras, da mesma maneira,
esta proporção não pode ser determinada por um número inteligível,

11
Luca Pacioli utiliza, como fontes teóricas, Os Elementos de Euclides, O Timeu de Platão,
as Obras de Vitrúvio, as ideias dos neoplatônicos florentinos e outras obras da Idade Média
para escrever seu livro publicado em 1509, De Divina Proportione.

77
nem ser expressa por quantidade racional, sendo sempre oculta e secreta”
(PACIOLI, 1509, p.12). A quarta é de que, assim como Deus não pode
mudar, “é tudo em tudo, e está em tudo em toda parte” (PACIOLI, 1509,
p.12), da mesma maneira a proporção, em toda quantidade “é a mesma e
sempre invariável” (PACIOLI, 1509, p.12).
Ainda pensando no misticismo envolvendo as matemáticas, Pacioli
(1509) utiliza-se do pensamento Platônico, de que cada elemento da natu-
reza correspondia a um poliedro regular. Assim, o fogo correspondia ao
tetraedro, a terra ao hexaedro, o ar ao octaedro, a água ao icosaedro, e a
quinta essência ao dodecaedro; e esse último não pode ser formado sem a
razão áurea. Desse modo, ele compara a necessidade de se utilizar a razão
áurea para formar esse poliedro, com[o] a necessidade de Deus para criar o
universo. Ainda observa, em seu livro, que todos os quatro poliedros podem
ser inscritos no dodecaedro, afirmando a esse fato “que Platão atribui ao
Dodecaedro a correspondência com o universo” (PACIOLI, 1509, p.16).
Segundo Almeida (2001), Proclus (412-485) atribuiu a Pitágoras a
descoberta da teoria dos irracionais e também afirmou ter ele descoberto
a teoria, colocando junto das figuras cósmicas, que se acreditava serem os
sólidos platônicos, “na mesma sentença em que atribui a Pitágoras a des-
coberta da teoria dos irracionais (ou proporções), também afirma que ele
descobriu colocando-o junto das figuras cósmicas” (ALMEIDA, 2001,
p.55). Para Almeida (2001), Platão deve ter copiado a forma do “colocando
junto” dos pitagóricos, uma vez que ela se encontra no Timeu e Crítias.
Miguel (1993), por sua vez, nos mostra que historiadores acredita-
ram, ora que a incomensurabilidade surgiu dos estudos do pentagrama, ora
que surgiu da diagonal de um quadrado; já os defensores, como Kurt von
Fritz (1945), de que a “descoberta de segmentos incomensuráveis [deve]
ter ocorrido através da comparação entre o lado e a diagonal de um pentá-
gono” (MIGUEL, 1993, p. 200), criticam o surgimento do irracional pela
diagonal do quadrado, pois dizem que a demonstração contém “sentenças
pequenas e concisas que não têm paralelo na literatura grega do V século a.
C.” (MIGUEL, 1993, p. 202).

78
Boyer (1974) comenta, também, que a demonstração exige um alto
grau de abstração, em que é questionável a possibilidade da descoberta da
incomensurabilidade pela diagonal do quadrado. Porém, ambos os estudos
acreditam que esse conceito era de conhecimento dos Pitagóricos.
Já segundo Huntley (1985), a apreciação pelos “mistérios” levou os
gregos antigos a atribuírem ao dodecaedro um significado especial, pois suas
doze facetas regulares correspondiam aos doze signos do zodíaco, assim con-
siderado um símbolo do Universo. Além do mais, os Pitagóricos observaram
que a medida de um dos lados do dodecaedro e o raio da circunferência que
circunscreve esse dodecaedro estão na razão áurea, como na Figura 6.
Desse modo, .

Figura 6

Fonte: Elaborado pela autora

Para a sociedade pitagórica, o pentagrama era considerado símbolo


da boa saúde. Alguns autores citam que esse seria o símbolo da sociedade
pitagórica, como Lucianus (120-185), para quem “o triplo triângulo entre-
laçado, o pentagrama, i.e., a estrela pentágono, foi usado pelos pitagóricos
como símbolo para reconhecimento entre os membros desta escola, e era
por eles chamados de boa saúde” (ALMEIDA, 2001 p. 58).

79
Porém, ainda há dúvidas sobre o fato de ele ser o símbolo da socie-
dade pitagórica. Existe até uma lenda sobre isto que diz: certa vez, um
pitagórico estava viajando e se adoentou; um homem, vendo sua situação
frágil, acolheu-o em sua casa e cuidou dele até sua morte. O homem que
estava acamado, no entanto, antes de falecer, pediu que o senhor que estava
cuidando dele fizesse tal símbolo em sua porta, que seus companheiros o
recompensariam pelos cuidados prestados quando o vissem.
Na construção do pentagrama, que alguns autores acreditam ser o
símbolo da sociedade pitagórica, é possível observar a existência da razão
áurea, e os Pitagóricos tinham tal conhecimento, por isso, a grande curio-
sidade e fascinação. Para isso, veja a Figura 7 a seguir, onde temos um
pentágono regular, circunscrito em uma circunferência de raio R.

Figura 7

Fonte: Elaborado pela autora

Observe, na Figura 8, que, se traçarmos segmentos de retas, ligando


os vértices do pentágono, teremos um pentagrama. Desse modo, traçamos
.

80
Figura 8

Fonte: Elaborado pela autora

Note que, na Figura 9, a interseção de com resulta no ponto


, e esse ponto corta o segmento em extrema e média razão. Do mesmo
modo, a interseção do segmento com resulta no ponto , que corta
o segmento em extrema e média razão, e assim os pontos e
com as mesmas propriedades.

Figura 9

Fonte: Elaborado pela autora

81
Além do pentagrama em que aparece o número de ouro, a sequência
de Fibonacci é um dos conceitos, na qual ele também aparece. Leonardo
de Pisa (1170-1250), nascido na cidade de Pisa, foi um matemático ita-
liano e, segundo Santos (2013), o nome Fibonacci foi dado pelo historiador
Guillaume Libri, em uma nota de rodapé, no livro Histoire des Sciences
Mathématique em Italie (1838). Para Santos (2013), a sua obra Liber Abacci,
publicada em 1202, continha um grande conhecimento sobre teoria de
números e da álgebra até sua época. Para ele, foi uma obra importante,
no que se refere à introdução do sistema de numeração indo-arábico na
Europa e ao desenvolvimento da álgebra e aritmética no mundo ocidental.
No livro, existe um problema conhecido como problema dos coelhos de
Fibonacci, sendo apresentado da seguinte forma:

Um homem pôs um par de coelhos num lugar cercado por todos os la-
dos por um muro. Quantos pares de coelhos podem ser gerados a partir
desse par em um ano se, suspostamente, todo mês cada par dá a luz um
novo par, que é fértil a partir do segundo mês? (SANTOS, 2013, p.30)

Fibonacci apresenta a resolução de que no mês um há apenas um


casal, no mês dois, ainda existe aquele casal apenas. No mês três há o casal
inicial acrescido de um casal de filhotes, ou seja, dois casais, no mês quatro
há o casal inicial, o casal de filhotes do mês anterior e mais um casal de
filhotes, portanto três casais. No mês cinco, existem os três casais do mês
anterior mais dois casais de filhotes, totalizando cinco casais.
Observamos que o número de casais em cada mês é igual ao número
de casais do mês anterior mais os filhotes que nasceram no mês em questão.
Consequentemente, ao final de 12 meses, haverá 144 casais.
Os valores de casais, de cada mês em sequência, formam o que
conhecemos como a sequência de Fibonacci, 1,1,2,3,5,8,13,21,34,55,89,14
4.... Assim, consideremos a sequência, onde .
Observe que essa sequência é uma sequência de recorrência, visto
que cada termo é definido como função de termos anteriores. Segundo
Santos (2013), Leonard Euler (1707 -1783) e Abraham de Moivre (1667-
1754) encontraram relações importantes entre a sequência de Fibonacci e
o número , que mais tarde foi estudada pelo matemático francês Jacques

82
Phillipe Marie Binet (1786-1856) e ficou conhecida como fórmula de
Binet, para a sequência Fibonacci. Porém, podemos observar que, a partir do
5º termo da sequência de Fibonacci, ao dividirmos o termo em questão com
seu antecessor obteremos números próximos ao valor do número . Assim:

Notemos que, ora esse valor fica maior que o número , ora esse
valor fica menor que o número considerando como o
número , contando apenas até a sétima casa decimal. Mas observamos
que as razões entre os termos e são aproximadas ao . De acordo
com Huntley (1985), qualquer sequência de inteiros em que a lei de forma-
ção seja “cada termo é a soma dos dois termos anteriores, quaisquer que
sejam os dois primeiros termos” (HUNTLEY, 1985, p.55), ou seja,
, a razão de termos sucessivos da sequência irá aproxi-
mar-se do número , Em outras palavras:

Não se sabe se Fibonacci tinha conhecimento dessa relação entre as


razões dos termos sucessivos de sua sequência e o número , ou se isso é
um estudo recente da sequência. Markwosky (1992), por exemplo, aponta
que, em algumas obras, como o Parthenon e as obras de Leonardo da Vinci,
consideram-se algumas partes da obra e se excluem outras, para que os
objetos pareçam estar em razão áurea.

83
O Parthenon, construído aproximadamente no século V a.C, em
uma montanha no centro da cidade de Atenas, chamada Acrópolis, era um
templo, para homenagear a deusa Atena. Apesar da ação do tempo, de con-
flitos e da poluição, ainda se encontra preservado, e é objeto de afirmações
acerca da razão áurea, que muitos autores afirmam existir em sua estrutura.
Markwosky (1992), no entanto, tece críticas, pois autores de textos
matemáticos não se incomodam em afirmar que o Parthenon está contido
em um retângulo de ouro, mesmo que, para fazer tal afirmação, descon-
siderem partes do monumento, e algumas delas ficam fora do retângulo.
“Embora incorpore muitos equilíbrios geométricos, seus construtores no
século V a.C. provavelmente não tinham conhecimento consciente da
razão de ouro”. (MARKWOSKY, 1992, p. 9, tradução nossa)12.
Ainda, as dimensões do Parthenon variam de fonte para fonte, já
que existem diferentes autores medindo diferentes pontos. Porém, segundo
Markwosky (1992), apesar de muitos estudiosos tentarem encontrar a razão
áurea nas estruturas do Parthenon, essa busca não deveria ser feita, já que,
naquela época na Grécia antiga, a arquitetura era um método empírico, em
que a experiência e a intuição tinham papel importante.

Com base em um pequeno número de textos antigos, foi feito um es-


forço para encontrar (em edifícios suficientemente bem preservados)
um sistema coerente de proporções baseado no número de ouro, pi (π),
ou nas proporções universais dos Pitagóricos. Quase sempre, quando
todas as medidas possíveis foram tomadas, algum sistema de figuras
geométricas ou algum denominador comum modular apareceu. No en-
tanto, a validade dessa pesquisa permanece incerta: é fácil superestimar
a importância de uma especulação arquitetônica. Não é improvável que
alguns arquitetos, na imitação de esculturas como Polycleitos, desejem
basear seus trabalhos em um sistema rígido de índices, mas seria erra-
do generalizar. No ambiente conservador da Grécia antiga, a atividade

12
Though it incorporates many geometric balances, its builders in the fifth century B.C.
probably had no conscious knowledge of the golden ratio.

84
arquitetônica foi uma prática empírica em que a experiência e a intui-
ção, ou seja, o “conhecimento profundo” desempenhou um papel im-
portante (MARKWOSKY, 1992, p. 9, tradução nossa).13

Além disso, muitos autores afirmaram que Leonardo da Vinci usou a


proporção áurea abundantemente em suas obras, porém, o entusiasmo dos
autores ao fazer tal afirmação se deve ao próprio Pacioli, que afirma ter feito
o convite para Leonardo Da Vinci ilustrar seu livro De Divina Proportione.
Entretanto, segundo Markwosky (1992), não há nenhuma indicação de que
Leonardo da Vinci tenha utilizado a razão áurea em suas biografias, como
as de Leonardo Da Vinci de Clark, Vallentin Vall e Zammattio e outros.
Markwosky (1992) vai além, ao afirmar que vemos muitos padrões
geométricos na natureza, arte, arquitetura, nos objetos diários, e que Da
Vinci procurou proporções para uma figura nesse padrão geométrico.

Ao olhar, vemos muitos padrões geométricos na natureza, arte, ar-


quitetura e até mesmo em coisas mundanas como mesas, cadeiras e
copos e pires. Um padrão muito especial que encontramos nas folhas
em torno das hastes de plantas, em conchas marinhas e no arranjo de
sementes de girassol é chamado de seção áurea. Leonardo da Vinci,
um dos maiores gênios de todos os tempos, procurou proporções para
a figura ideal em termos desse padrão geométrico. (MARKWOSKY,
1992, p.10, tradução nossa)14.

13
On the basis of a small number of ancient texts, an effort has been made to find (in
buildings sufficiently well preserved) a coherent system of proportions based on the golden
number, pi(π), or on the universal ratios of the Pythagoreans. Almost always, when all
possible measurements have been taken, some system of geometric figures or some modular
common denominator has come to light. However, the validity of this research remains
uncertain: it is easy to overestimate the importance of an architectural speculation. It is not
unlikely that some architects, in imitation of sculptures such as Polycleitos, should have
wished to base their works on a strict system of ratios, but it would be wrong to generalize.
In the conservative environment of ancient Greece, architectural activity was an empirical
practice in which experience and intuition, that is to say ‘mastery’, played a large part.
14
As we look about us, we see many geometric patterns in nature, art, architecture, and
even in such mundane things as tables, chairs, and cups and saucers. A very special pattern
that we find in leaves around the stems of plants, in seashells, and in the arrangement of
Sunflower seeds is called the golden section. Leonardo da Vinci, one of the greatest geniuses
of all times, stated proportions for the ideal figure in terms of this geometric pattern.

85
Uma obra de Leonardo da Vinci, utilizada para sustentar a afirmação
de que suas obras utilizam a razão áurea, é a pintura de São Jerônimo de
1483, em que se apresenta o acadêmico com um leão a seus pés. Alguns
especialistas acreditam que Da Vinci projetou a figura nas proporções
áureas, uma vez que um retângulo contorna a figura. “Essa abordagem teria
sido compatível com o ardente interesse do artista em matemática. Ele
sentia especial deleite no que descreveu uma vez como ‘recreações geomé-
tricas’. (MARKWOSKY, 1992, p.11, tradução nossa)15
A figura16 de St. Jerome, de Leonardo Da Vinci, nos mostra as falhas
nas afirmações sobre essa pintura; é certo, porém, que as pinturas de Leo-
nardo Da Vinci, como o Homem Vitruviano, contêm a razão áurea, visto
que foi criada nessas proporções para agregar ao livro de Pacioli.

[...] é suficiente para mostrar as falhas nas reivindicações sobre esta


pintura. A colocação do retângulo é um pouco arbitrária, pois o topo
não toca a cabeça. O retângulo é desenhado usando uma linha muito
grossa. Seu lado esquerdo é tangente a uma pequena dobra de tecido e
não toca o corpo de São Jerônimo em nenhum ponto. O braço direito
de São Jerônimo se estende bem além do lado esquerdo do retângulo
sobreposto. Finalmente, o conhecimento de Leonardo da Vinci com a
proporção divina data de seu encontro com Luca Pacioli, que ocorreu
13 anos depois de pintar São Jerônimo. (MARKWOSKY, 1992, p.12,
tradução nossa)17

15
Such an approach would have been in keeping with the artist’s ardent interest in
mathematics. He took Special delight in what he once described as ‘geometrical recreations’.
16
Observar figura em Markwosy, 1992, p.11. Disponível em: < https://www.goldennumber.
net/wp-content/uploads/George-Markowsky-Golden-Ratio-Misconceptions-MAA.pdf>
17
[...] is sufficient to show the flaws in the claims about this painting. The placement of
the rectangle is somewhat arbitrary since the top does not touch the head. The rectangle is
drawn using a very thick line. Its left side is tangent to a small fold of fabric and does not
touch St. Jerome’s body at any point. St. Jerome’s right arm extends well past the left side
of the superimposed rectangle. Finally, Leonardo da Vinci’s acquaintance with the divine
proportion dates from his meeting with Luca Pacioli, which occurred 13 years after he
painted St. Jerome.

86
Considerações Finais

Observamos que as relações existentes da razão áurea e o Parthenon,


a sequência de Fibonacci e as pinturas de Da Vinci, podem ter sido criadas
posteriormente à construção dessas obras, pelos estudiosos e autores que
se predispuseram a encontrar número, medida e peso em tudo que viam;
porém, podem ter sido criadas, utilizando a proporção áurea. Na verdade,
não há registros sobre isso, mas conseguimos perceber nas relações que,
realmente, existe um movimento para tentar descobrir se existem relações
dessas obras com a razão áurea. Notamos que a visão dos pitagóricos de que
tudo era número, medida e peso ainda sobrevive entre os estudiosos.
Observamos, ainda, que muitos dos conhecimentos quanto à razão
áurea vêm da época dos pitagóricos e modificaram-se durante a História.
Os sólidos platônicos, segundo Almeida (2001), não pertencem a Platão, já
que se tem conhecimento de que três dos cinco são de pitagóricos, a saber,
“o cubo, a pirâmide, e o dodecaedro, enquanto o octaedro e o icosaedro são
devidos a Taeteto” (ALMEIDA, 2001, p.59). A relação deles com a natu-
reza nos indica certo misticismo da sociedade pitagórica.
Observamos que a História serve como recurso pedagógico, pois trou-
xemos autores que afirmam considerações desconexas acerca de um mesmo
fato, mas buscamos “as significações conceituais e político-filosóficas que
estão na base do desenvolvimento orgânico desses fatos” (MIGUEL, 1993,
p. 209). Além do mais, como professores, podemos pensar em entender a
demonstração da razão áurea, feita por Euclides com os alunos, mostrando
a eles termos e diferenças de linguagem ao longo da História e, posterior-
mente, desafiá-los a pensar na construção da razão áurea de outra maneira.

Referências

ALMEIDA, M. C. Platão Redimido – A teoria dos números figurados na ciência antiga &
moderna. Curitiba, 2001.

BÍBLIA, A. T. Sabedoria. In: BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. Edição Pastoral: Antigo
e Novo Testamentos. Tradução de Ivo Storniolo e Euclides Martins Balancin. São Paulo:
Paulus, 2012. p. 847.

87
BOYER, C. B. História da Matemática. Tradução de Elza F. Gomide, Edgar Blucher. São
Paulo: Editora Universidade de São Paulo, 1974.

EUCLIDES. Os Elementos. Tradução e Introdução de Irineu Bicudo. São Paulo: Editora


UNESP, 600p. 2009.

FRITZ, K.V. The Discovery of Incomensurability by Hippasus of Metapontum. In: Annals


of Mathematics, v. 46, n. 2, abr. 1945.

HUNTLEY, H.E. A Divina Proporção. Tradução de Luís Carlos Ascêncio Nunes. Brasí-
lia. Editora Universidade de Brasília, 178p. 1985.

MARKWOSKY,G. Misconceptions about the Golden Ratio. The College Mathematics


Journal, v. 23, n. 1, p. 2-19, jan. 1992.

MIGUEL, A. Três estudos sobre História e Educação Matemática.1993. 274p. Tese


(Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação do Departamento de Metodologia de
Ensino, Universidade Estadual de Campinas. 1993.

PACIOLI, L. De Divina Proportione. Tradução e Comentários de Fábio Maia Bertato.


Coleção CLE, 2010.

QUEIROZ, R. M. Razão Áurea: A beleza de uma razão surpreendente. Trabalho apresen-


tado ao programa de Desenvolvimento Educacional. Universidade Estadual de Londrina.
Londrina, 2007.

SANTOS, G. V. Explorando a Matemática do Número φ, o Número de Ouro. 66p. 2013.


Dissertação (Mestrado em Matemática) - Programa de Pós-Graduação em Educação
Matemática em Rede Nacional, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho –
UNESP, Rio Claro, 2013.

88
4. HISTÓRIAS SOBRE NÚMEROS PERFEITOS
E AMIGÁVEIS

Jean Sebastian Toillier

Introdução

Os conceitos de números perfeitos e amigáveis foram desenvolvidos


pelos pitagóricos e ainda hoje são tratados por alguns matemáticos, uma
vez que sua teoria ainda é incompleta e está em busca de novos resultados.
Assim, para compreender aspectos de sua importância para o desenvolvi-
mento do pensamento matemático, principalmente no que diz respeito à
teoria dos números, apresentaremos, neste capítulo, como se deu a evolução
do conhecimento construído sobre esses temas.
Para que compreendamos o início do pensar sobre os números per-
feitos e amigáveis, de maneira breve, apontamos a noção de número que os
pitagóricos desenvolveram e como esse tratamento passou a ser feito. Na
sequência, apresentamos uma noção geral do que são os números perfeitos
e amigáveis e, em seguida, observamos seu desenvolvimento matemático
e místico. Expomos, ainda, outros estudos que foram possíveis com o
desenvolvimento das noções de números perfeitos e amigáveis, quer sejam
números sociáveis e números multiperfeitos. Por fim, trazemos algumas
considerações sobre nosso estudo bibliográfico e, também, das marcas do
pitagorismo para o desenvolvimento matemático, principalmente em rela-
ção à teoria dos números.

A noção de número para os pitagóricos

Os números são objeto de estudo da humanidade. Sempre se buscou


entender como eles surgiram, se foram associados com a escrita ou não,
suas formas de representação, suas propriedades e as operações possíveis de
serem realizadas. As inquietações sobre os números marcaram a filosofia
na Grécia Antiga durante alguns séculos, e seus estudos deixaram mar-
cas. Assim, um dos grupos que se preocupou no estudo do significado dos
números foram os pitagóricos.
Os pitagóricos tiveram origem por volta do século V a.C., na Grécia
Antiga, e esse grupo está vinculado à figura de Pitágoras de Samos, um
filósofo e matemático que organizou essa sociedade. Dentre as várias dis-
cussões realizadas por eles destaca-se o conceito de número.
A noção de número que é empregada comumente remete apenas às
quantidades de uma maneira abstrata, porém o sentido dado pelos pitagó-
ricos era mais amplo (SANTOS, 2000). “A palavra número vem do termo
nomos, que significa regra, lei, ordem (SANTOS, 2000, p. 111). O sentido
dado pelos pitagóricos vinha da palavra arithmós, aplicado como número
em um sentido genérico: “[...] vem do termo rythmós, do radical rhe, de
onde rhêo, do verbo rhein, que significa fluir” (SANTOS, 2000, p. 110).
Assim, da relação dessas palavras, conclui-se que “o fluxo da criação implica
o número” (SANTOS, 2000, p. 110).
O conceito de número passaria a ser algo que leva em conta, além dos
aspectos quantitativos abstratos, o sentido de essência verdadeira e eterna,
recaindo no sentido de criação de todas as coisas, de todo o universo do
qual fazemos parte (NICÔMACO, 1926). Para os pitagóricos, o número
apresentava-se carregado de aspectos existenciais, ou seja, de aspectos da
criação do mundo. Com isso, apontavam que tudo se originava do número,
começando pela unidade:
O princípio de todas as coisas é a unidade: e a dualidade procede
disso que é indiferente e depende, por princípio, da unidade que o causa.
Assim, a numeração vem da unidade e da dualidade indiferente. Dos núme-
ros vêm os pontos: destes, vêm as linhas: das linhas, as figuras planas: das
figuras planas, as sólidas; e destas, os corpos sólidos, cujos quatro elementos
consistem em fogo, água, terra e ar, que transcendem e giram através de
todas as coisas, e delas o mundo é engendrado, animado, intelectual, esfé-
rico, que se abraça no meio da esfera também esférica, e habita ao seu redor
(LAERCIO, 1972, p. 194, tradução nossa).

90
Assim, para os pitagóricos, a explicação da ordem e da harmonia
do mundo poderia ser feita com base nos números, uma vez que eles são a
natureza de tudo o que pode ser percebido (ROQUE, 2012).
Já o conceito quantitativo abstrato de número estava relacionado com
seus aspectos físicos e geométricos, uma vez que sua representação poderia
ser feita por pedras. Além disso, a organização dos primeiros números aju-
dava a compor entes mais amplos:

Para ilustrar o modo como os números se compunham, os pitagóricos


faziam uso de representações gráficas, procedendo da seguinte maneira:
o um é o ponto (.); o dois a linha (._.); o três a superfície (./) e o quatro
o volume (:). Dessa forma, os pitagóricos conseguiam demonstrar a
composição dos primeiros números que para eles originavam todo o
universo e alma das coisas (DUARTE; GONÇALVES; NÓBREGA,
2017, p. 103).

A soma desses primeiros números resulta em 10, fazendo que ele car-
regue uma simbologia especial, como o número da criação. Assim, a junção
dos 10 pontos formaria uma figura espacial, o tetraedro regular, tetractys,
que seria a fonte de tudo, o modelo de todas as coisas (SANTOS, 2000).
Dessa forma, os números dentro da caracterização pitagórica carre-
gavam esses vastos sentidos e suas propriedades passaram a ser estudadas
mais profundamente.

Números perfeitos e números amigáveis, primeiras considerações

Os pitagóricos interessaram-se por propriedades aritméticas dos


números e buscaram encontrar as características comuns entre eles ou entre
as propriedades que cada número carregasse. Algumas dessas características
estavam relacionadas com as ideias dos divisores de um número e, assim,
surgiram alguns conceitos, como, por exemplo, os números perfeitos e ami-
gáveis. Podemos afirmar que esse seria um princípio da teoria dos números.
Conforme Spencer (1995), por volta de meados do século VI a.C.,
Pitágoras (ou os pitagóricos) definiram as noções de números perfeitos e
amigáveis. Em relação aos números amigáveis, uma lenda muito comum

91
sobre o tema é descrita por Karlson (1961), a qual diz que, quando pergun-
tado sobre o que seriam amigos, Pitágoras respondeu que “alguém que é um
outro eu, como 220 e 284”. Como assim? Vamos explicar em linhas gerais o
que são números perfeitos e amigáveis, para que, depois, possamos discutir
profundamente a questão. Porém, antes disso, é necessária uma pequena
caracterização acerca de divisores próprios de um número.
Divisores próprios de um número positivo n são todos os divisores
inteiros positivos de n exceto o próprio n. Por exemplo, os divisores pró-
prios de 8 são 1, 2 e 4. Essa noção é importante para que possamos entender
o que são números perfeitos e amigáveis.
Os números perfeitos são caracterizados por serem aqueles cuja soma
de seus divisores próprios resultam no próprio número. Por exemplo, temos
o 6. Veja que seus divisores próprios são 1, 2 e 3. Conforme a definição
exposta acima, temos a soma 1 + 2 + 3 = 6, logo, 6 é um número perfeito.
Se escolhermos ao acaso alguns números, não será fácil encontrar
outros que carreguem essa característica. Existe apenas outro número per-
feito menor que 100, o 28, que tem como divisores próprios o 1, 2, 4, 7 e
14, cuja soma resulta em 28. Os números que não são perfeitos, que são a
grande maioria, recebem outras duas possíveis classificações: abundantes
ou deficientes.
Um número é dito abundante quando a soma de seus divisores pró-
prios excede o próprio número, como, por exemplo, o 18, cujos divisores
próprios são 1, 2, 3, 6 e 9, que somados resultam em 21. Já um número defi-
ciente é aquele cuja soma de seus divisores próprios é menor que o próprio
número. Por exemplo, o 15, que tem como seus divisores próprios 1, 3 e 5,
que somados resultam em 9.
Já o outro tipo de número que chamou atenção dos pitagóricos
foram os amigáveis ou “amigos”. Dois números são ditos amigáveis quando
a soma dos divisores próprios de um deles resulta no outro. Como exemplo
desses pares de números, temos o 220 e o 284, aquele citado por Pitágoras.
Veja que os divisores próprios de 220 são 1, 2, 4, 5, 10, 11, 20, 22, 44, 55 e
110, que, quando somados, resultam em 284. Já os divisores próprios de 284
são 1, 2, 4, 71 e 142, que, quando somados, resultam em 220.

92
Na sequência, trataremos acerca de como se deu o desenvolvimento de
várias questões relacionadas aos números perfeitos e amigáveis, não apenas
resultados matemáticos e novas teorias descobertas, mas como, ao longo dos
anos, os números perfeitos tiveram representatividade em relação à religião.

Outros estudos matemáticos e místicos sobre os números perfeitos e


amigáveis

Tanto os números perfeitos como os amigáveis foram objeto de estu-


dos não somente dos pitagóricos, mas de vários outros matemáticos, o que
levou à descoberta de mais números que satisfazem essas relações, uma vez
que os pitagóricos conheciam pouco sobre eles.
O primeiro matemático conhecido por aprofundar os estudos sobre
os números perfeitos foi Euclides (século III a.C.). Apesar de comumente
as pessoas desavisadas acreditarem que as obras de Euclides continham
apenas geometria, o famoso autor utilizou entes geométricos para dissertar
sobre assuntos relativos à teoria dos números, por exemplo, questões de
números pares, ímpares, primos e operações matemáticas.
Na proposição 36 do Livro IX, Euclides apresentou a existência de
números perfeitos e provou a maneira de obtê-los por meio de represen-
tações geométricas. A proposição diz o seguinte: “Caso números, quantos
quer que sejam, a partir da unidade, sejam expostos, continuadamente, na pro-
porção duplicada, até que o que foi composto todo junto se torne primo, e o todo
junto, tendo sido multiplicado pelo último, faça algum, o produzido será perfeito”
(EUCLIDES, 2009, p. 349).
Dessa forma, tomemos um número
primo. Assim, pelo resultado de Euclides, temos que se , ele será
um número perfeito. Especula-se que nessa época eram conhecidos apenas
os quatro primeiros números perfeitos: 6, 28, 496 e 8128 (O’CONNOR;
ROBERTSON, 2003). Reparem que para esses quatro números conheci-
dos o resultado era válido:

• Para , temos
o Divisores próprios de 6: e

93
o
• Para , temos
o Divisores próprios de 28: e
o
• Para , temos
o Divisores próprios de 496:
o
• Para , temos

o Divisores próprios de 8128:


e

.
Para facilitar a compreensão das próximas passagens do texto,
transformaremos a escrita de Euclides para uma mais usual. Consi-
derando que , temos que se e
, é um número perfeito. Veja que, com essa forma,
os valores de expostos acima não se mantêm, mas lhes é adicionada uma
unidade. Assim, temos que:

• Para , temos ;
• Para , temos ;
• Para , temos ;
• Para , temos .

Esse resultado não é válido para qualquer valor de . Repare que,


para , temos que
A soma dos divisores próprios de 120 excede o número e, portanto,
ele não é um número perfeito. Em seus estudos, Euclides não definiu para
quais valores de seu resultado era válido.
Os resultados acerca dos números perfeitos voltaram a ser discutidos
anos mais tarde por Nicômaco de Gerasa (60 d. C.-120 d. C.), em sua obra

94
Introductio Arithmetica, na qual ele classificou os números em três classes:
perfeitos, abundantes e deficientes. Porém, suas classificações não estavam
relacionadas apenas ao caráter matemático, mas, também, aos aspectos esté-
tico e moral dos números (O’CONNOR; ROBERTSON, 2003).
Conforme Nicômaco (1926), pensar em um número abundante é
relacionar com o exagero, com o excesso, com os abusos. É imaginar a figura
de um animal que tenha dez bocas, por exemplo. Já um número deficiente
representa algo como a ausência, o defeito, as privações e a insuficiência.
Pode ser comparado a um animal que, em vez de ter dois olhos, tivesse
apenas um.
Enquanto os números abundantes e deficientes representavam
situações ruins e feias, os números perfeitos tinham como característica o
contrário. Sua relação estava com a igualdade, a beleza, a sintonia, algo que
pudesse regular a deficiência e o excesso (NICÔMACO, 1926).
Nicômaco (1926) também dissertou sobre informações matemáticas
acerca dos números perfeitos. Exemplificou os números abundantes, defi-
cientes e perfeitos, e apresentou os quatro primeiros números perfeitos: 6,
28, 496 e 8128. Além disso, Nicômaco afirmou cinco características acerca
dos números perfeitos, que se tornaram objeto de estudos por vários anos e
por muitos matemáticos (O’CONNOR; ROBERTSON, 2003):

• O n-ésimo número perfeito tem dígitos;


• Todos os números perfeitos são pares;
• Todos os números perfeitos terminam alternadamente em 6 e 8;
• O algoritmo de Euclides para geração de números perfeitos nos
dá todos os números perfeitos, ou seja, todo número perfeito terá
a forma , para , quando for primo;
• Existem infinitos números perfeitos.

Os resultados (1) e (3) já foram provados que não são verdadeiros,


como apresentaremos adiante. Já os itens (2), (4) e (5) ainda são questio-
nados e vários resultados foram desenvolvidos para demonstrar tais teorias,
tanto nos aspectos legítimos como ilegítimos dessas características levan-
tadas por Nicômaco.

95
As explicações feitas por Nicômaco em sua obra não foram ques-
tionadas por muito tempo, devido não apenas ao caráter matemático, mas,
principalmente, pelo aspecto religioso que suas afirmações carregavam, já
que a perfeição tratada por ele servia como justificativa para a criação do
mundo, em seis dias, e a do ciclo lunar, ou seja, o número de dias que a Lua
leva para circundar a Terra, que são 28 dias. Esses aspectos místicos em
torno dos números perfeitos ficarão cada vez mais intensos ao longo dos
próximos séculos.
Jâmblico (por volta de 283-330 d.C.) apresentou em seus escritos
que o par 220 e 284 era amigável, sem outros exemplos desses números
(PICKOVER, 2009), mas fez menção aos estudos realizados por Pitágoras
e à descoberta desse par. Também escreveu sobre os números perfeitos e
afirmou erroneamente que entre cada potência de 10 existiria um, e somente
um, número perfeito. Ainda, ressaltou o número 6 e todo o aspecto místico
ao redor dele desenvolvido pelas teorias pitagóricas e o relacionou com o
casamento, com a saúde e com a beleza (DICKSON, 1919).
O aspecto religioso em relação a esses números continuou sendo
afirmado com o passar dos anos. Santo Agostinho (354-430) falou da per-
feição do número 6 ao relacioná-lo ao momento de criação do universo
por Deus (DICKSON, 1919). Para ele, Deus criou o mundo em seis dias
para exemplificar a perfeição de seu trabalho. Anos mais tarde, Alcuíno de
Iorque (735-804), um monge da Nortúmbria, atual Grã-Bretanha, discorre,
em suas correspondências, sobre a criação do mundo e o número 6. Porém,
Noé, quando construiu sua arca, salvou 8 almas e delas toda a humanidade
foi gerada, ou seja, um número deficiente, pois a soma dos divisores pró-
prios de 8 é igual a 7 ( ). Assim, a humanidade passa a ter um
caráter de imperfeição em relação ao momento da criação.
Todas essas relações religiosas ocorreram dos estudos do Antigo Tes-
tamento da Bíblia Sagrada e não envolveram apenas os católicos cristãos,
mas também a comunidade judaica. Os judeus perceberam que na escrita
do Antigo Testamento várias eram as menções feitas aos números e que
essa seria uma forma de provar os atos de Deus. Philo de Alexandria (25
a.C. - 50 d.C.) foi um dos primeiros a relacionar a criação do mundo com o

96
número 6, algo que se manteve anos depois, como pudemos observar. Esses
eram argumentos importantes para mostrar que Javé era o verdadeiro Deus
(PICKOVER, 2009). Além disso, em uma passagem do livro de Gênesis
(Capítulo 32, versículo 14), Jacó deu ao seu irmão Esaú 220 cabras, o que,
para muitos teologistas, seria um sinal de prova de amizade, uma vez que
220 é um número amigável.
A importância dos números perfeitos ganhou status tão grande entre
os judeus que, durante o século XII, o rabino Josef ben Jehuda Ankin (1160-
1226) recomendou o estudo dos números perfeitos em seu livro Healing of
the Souls (Cura das Almas) (PICKOVER, 2009; DICKSON, 1919).
Os católicos também apontaram aspectos de perfeição relacionados
aos atos divinos. Por exemplo, no século XII, Alberto Magno (1200-1280)
relacionou o fato de 28 ser um número perfeito ao ciclo lunar, que é de 28
dias, como também o corpo místico de Cristo na Eucaristia surgir em 28
fases (PICKOVER, 2009).
O número 28 tem importância não apenas para a cultura católica,
mas, também, para o Islã. Existiam 28 profetas antes de Maomé, segundo
o Alcorão; e, além disso, os muçulmanos conectam as 28 mansões lunares1
com as 28 letras do alfabeto nas quais o Alcorão é escrito, o que, segundo o
matemático al-Burini (1048), seria uma relação entre o cosmos e a palavra
de Deus (PICKOVER, 2009).
Outro aspecto que chama atenção em relação à cultura árabe são
os números amigáveis e o misticismo ao redor deles. Por exemplo, Ibn
Khaldoum (1332-1406) relatou que havia uma busca por talismãs com os
números 220 e 284 para trazer a relação de amizade íntima ou de união
entre duas pessoas (DICKSON, 1919). Ibn el-Hasan (965-1040) e Ben
Kalonymos (1286-1328) utilizaram o conceito de números amigáveis na
astrologia (DICKSON, 1919).

1
O zodíaco é dividido em 12 signos com base no curso da Terra em torno do Sol, ao longo
de um ano. Já as mansões lunares caracterizam o curso da Lua através das estrelas fixas
durante um período de 28 dias. Dessa forma, as mansões lunares seriam como um zodíaco
lunar.

97
Por muito tempo, não existiram estudos matemáticos registrados
acerca das questões dos números perfeitos e amigáveis, mas, como exempli-
ficado anteriormente, esses conceitos ressoaram na cultura árabe. Uma das
prováveis causas de tal fato se deve ao contato que esse povo teve com as
obras gregas e com as possíveis produções dos povos do Mediterrâneo ao
longo dos séculos, já que essa região passou pelo domínio árabe. Os árabes
foram responsáveis pela tradução de muitas obras e, com isso, passaram a
ser objeto de estudo. Desse modo, tiveram contato com a obra Os Elementos,
de Euclides, e os números perfeitos e amigáveis voltaram a ser estudados
em seu caráter matemático.
Durante muito tempo, os resultados sobre os números perfeitos
demonstrados por Euclides, usando elementos geométricos, foram assumi-
dos como algo verdadeiro. No século IX, o árabe Thabit ibn Qurra (836-901)
fez estudos desses números, descobrindo importantes propriedades sobre
eles, principalmente com indicações de características para um número ser
considerado deficiente ou abundante (DICKSON, 1919). Além de Thabit,
ibn el-Hasan (965-1040), conhecido na forma latina de seu nome Alhazen,
provou em sua obra Tratado de análise e síntese que os números descritos
na forma , para , quando for primo, são real-
mente números perfeitos (O’CONNOR; ROBERTSON, 2009).
Ibn Ibrahim ibn Fallus (1194-1239) foi outro matemático árabe
que estudou a questão dos números perfeitos a partir da escrita de um
tratado baseado na obra Introdução à Aritmética de Nicômaco, na qual
aprofundou os conhecimentos matemáticos sobre esses números, apre-
sentando uma tabela com 10 números que eram supostamente perfeitos,
sendo que, desses, os sete primeiros estavam corretos (O’CONNOR;
ROBERTSON, 2003).
Os estudos sobre os números perfeitos não foram os únicos fei-
tos por Thabit ben Qurra, uma vez que se dedicou também aos números
amigáveis e trouxe um resultado para obter pares de números amigáveis,
algo que, até então, não havia sido descrito por ninguém. Vejamos a forma
elaborada por Thabit para a descoberta de pares de números amigáveis.

98
Sejam as equações

Se e forem números primos e , o par de números for-


mado por e serão números amigáveis.
Thabit realizou em seu trabalho a demonstração desses resulta-
dos usando como inspiração a prova feita por Euclides em Os Elementos
(HOGENDIJK, 1985), ou seja, utilizou elementos geométricos para repre-
sentação. Além disso, a própria escrita do resultado remetia à forma de
enunciação feita por Euclides.
Com esse resultado acerca dos números amigáveis é possível obter
alguns pares. Por exemplo, o par 220 e 284 é encontrado para . Além
disso, credita-se a Thabit ibn Qurra a descoberta do par 17296 e 18416,
obtido pela substituição de por 4, algo que durante muitos anos foi cre-
ditado à Pierre de Fermat (1607-1665), uma vez que Thabit não deixou
registrado em nenhum lugar o conhecimento desse par, mas conseguiu
deduzir uma fórmula para obtê-lo (HOGENDIJK, 1985).
Esse resultado proposto por Thabit consegue gerar vários pares de
números amigáveis, mas não é o responsável por gerar todos. Por exemplo, o
par 1184 e 1210, descoberto por Niccolò Paganini (1782-1840), no século
XIX, foge à regra expressa por Thabit (DICKSON, 1919). Porém, seu resul-
tado continua válido para alguns pares e foi generalizado anos mais tarde,
por Leonardo Euler (1707-1783). O que chama a atenção para o caso de
Thabit é a forma evoluída para a época em relação à aritmética utilizada por
ele, bem como a escrita desse seu resultado, uma vez que, naquele período,
a escrita algébrica não tinha o mesmo caráter que apresenta atualmente.
A evolução do estudo dos números amigáveis foi ocorrendo ao longo
dos anos. Marin Mersenne (1588-1648), Fermat e René Descartes (1596-
1650), durante trocas de correspondência, discutiram sobre maneiras de
obter esses pares de números.

99
Após Fermat apontar que Mersenne encontrou o segundo par de
números amigáveis 17296 e 18416 (o mesmo que Thabit, porém, anos
depois), Fermat apresentou em uma carta um método para obter pares
de números amigáveis2. Descartes também enviou para Mersenne outra
regra, que, segundo o próprio Descartes, tinha como conclusão os mesmos
resultados enviados por Fermat. Porém, quem recebeu o crédito da criação
da regra por muito tempo foi Descartes (DICKSON, 1919). Ambas as
regras tratavam de potências de 2 e foram feitas sem conhecer o trabalho
de Thabit.
O grande salto sobre a questão dos números amigáveis foi feito por
Euler, anos mais tarde, pois aprimorou os resultados de Thabit e demons-
trou os resultados do matemático árabe. Euler deixou a fórmula proposta
por Thabit em outra escrita, relacionando apenas com as potências de 2, o
que, de certo modo, ajudou na demonstração dos resultados. Vejamos:
Sejam , e
, para . Se e são primos,
é um par de números amigáveis.
Veja que, para e , o par obtido é 220 e 284.
Esse resultado encontrado por Euler é assumido até os dias atuais.
Assim como o de Thabit, ele também não gera todos os pares de núme-
ros amigáveis, mas Euler demonstrou que todos os pares que seguem as
condições expostas acima o são3. Porém, nem todos os pares de números
amigáveis são obtidos por uma lei geral. Em Escott (1946), é possível encon-
trar várias pequenas regras de separação de métodos feitas por matemáticos
com o passar dos anos para a descoberta desses números, pois existe uma
quantidade elevada de pares desses números. Por exemplo, apenas Euler
encontrou 59 pares. Abaixo trazemos uma lista dos números amigáveis
menores que 1.000.000 (Quadro 1).

2
Esse método é descrito em Dickson (1919, p. 40).
3
Algumas demonstrações simples e mais elaboradas acerca dos números amigáveis podem
ser encontradas em Yan (2004).

100
Quadro 1 – Lista dos pares de números amigáveis (a, b) menores que 1.000.000
A B A B A B
220 284 122.265 139.815 503.056 514.736
1.184 1.210 122.368 123.152 522.405 525.915
2.620 2.924 141.664 153.176 600.392 669.688
5.020 5.564 142.310 168.730 609.928 686.072
6.232 6.368 171.856 176.336 624.184 691.256
10.744 10.856 176.272 180.848 635.624 712.216
12.285 14.595 185.368 203.432 643.336 652.664
17.296 18.416 196.724 202.444 667.964 783.556
63.020 76.084 280.540 365.084 726.104 796.696
66.928 66.992 308.620 389.924 802.725 863.835
67.095 71.145 319.550 430.402 879.712 901.424
69.615 87.633 356.408 399.592 898.216 980.984
79.750 88.730 437.456 455.344 947.835 1.125.765
100.485 124.155 469.028 486.178 998.104 1.043.096
Fonte: Disponível em: <http://www.vaxasoftware.com/doc_eduen/mat/numamigos_eng.
pdf>. Acesso em: 18 de fev. 2018.

Além dos números amigáveis, Euler foi o responsável por vários


avanços em relação aos números perfeitos. Contudo, diferentemente da
questão dos números amigáveis que não apresentaram muitos estudos ao
longo dos anos, os números perfeitos receberam uma maior ênfase por
outros matemáticos.
Segundo O’Connor e Robertson (2009), no começo do Renasci-
mento, apenas os resultados apontados por Nicômaco eram conhecidos na
Europa, enquanto as publicações árabes sobre os números perfeitos eram
deixadas de lado. Assim, a proposição elaborada por Euclides mantinha o
foco principal e muitas afirmações foram construídas sobre elas, algumas
corretas, outras não. Por exemplo, Luca Pacioli (1447-1517) afirmou que
a fórmula elaborada por Euclides era correta para todo ímpar. Outra
relação importante foi feita por Charles de Bouvelles (1470-1553), que
afirmou que os números perfeitos são números triangulares4, quando, num
primeiro momento, não se falava sobre isso (DICKSON, 1919).

4
Um número é dito triangular quando ele é resultado da soma da sequência .
Por exemplo, 6 é um número perfeito, resultado de , assim como 28,
resultado de .

101
Em um manuscrito alocado na Biblioteca Nacional de Florença, na
Itália, e produzido entre 1456 e 1461, existe o primeiro registro encontrado
do quinto número perfeito, 33550336 (obtido da forma ),
porém a autoria dessa descoberta é desconhecida (DICKSON, 1919;
PICUTTI, 1989).
A descoberta do quinto número perfeito parece logo contradizer a
quinta afirmação feita por Nicômaco (“existem infinitos números perfei-
tos”), no entanto, ela demorou anos para ser demonstrada, o que só foi
possível ser feito no trabalho Utriusque Arithmetices, de 1536, escrito por
Huldarichus Regius (século XVI) (O’CONNOR; ROBERTSON, 2009).
Nele, Regius provou que o quinto número perfeito era 33550336, ou seja,
não tinha cinco algarismos, refutando a primeira propriedade de Nicômaco,
que afirmava que o n-ésimo número perfeito teria algarismos. Além desse
estudo, Regius mostrou um importante resultado sobre a proposição de
Euclides sobre os números perfeitos e trouxe a afirmação de que nem todo
número escrito da forma é um número primo, justificando com o
número .
O sexto número perfeito aparece pela primeira vez em um documento
que atualmente está na Biblioteca Apostólica do Vaticano (PICUTTI,
1989), datado de 1460. A autoria desse manuscrito é desconhecida, mas
é do mesmo autor do manuscrito em que está registrado o quinto número
perfeito. Dessa forma, conclui-se que, na Itália, nos meados do século XV,
já eram conhecidos o quinto e o sexto número perfeito (PICUTTI, 1989).
Com os estudos de Pietro Antonio Cataldi (1548-1626), em
1588 (PICKOVER, 1997), após uma grande lista de cálculos manuais,
em que apontava os divisores de vários números e alguns números pri-
mos (O’CONNOR; ROBERTSON, 2009), são apresentados o sexto
e o sétimo números perfeitos. Esses números são descritos na forma
e .
Com isso, caía a terceira afirmação feita por Nicômaco de que os números
perfeitos terminavam alternadamente em 6 e 8, já que o quinto e sexto
número terminam em 6. Cataldi ainda elaborou uma lista com vários
números que afirmava serem perfeitos e que, anos mais tarde, alguns deles
foram refutados.

102
Após esse período de avanços sobre os números perfeitos, começa-
ram a ser feitos estudos em outro caráter, já que o desenvolvimento de uma
matemática com maior rigor começou a existir. Com isso, figuras como
Descartes, Mersenne e Fermat, que já destacamos como responsáveis por
discutir sobre os números amigáveis, voltam à cena agora para tratar das
noções de números primos e de números perfeitos com base na troca de
várias correspondências entre eles.
Em uma das cartas escritas de Descartes para Mersenne, em 1638,
houve a discussão sobre a existência de apenas números perfeitos pares,
enquanto os ímpares, se existissem, deveriam ter a forma, onde deve-
ria ser um número primo (DICKSON, 1919). Em 1657, Frénicle de Bessy
(1605-1675) afirmou que a hipótese de Descartes estava correta e que o
número deveria ser escrito da forma .
Outra carta com discussões importantes foi escrita por Fermat para
Mersenne. Nela, Fermat traz alguns resultados obtidos em outras cartas
trocadas com Gilles Roberval (1602-1675):

Aqui estão três proposições que descobri, sobre as quais espero cons-
truir uma enorme estrutura. Os números abaixo estão em uma sequên-
cia de potências de dois subtraído um.
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
1 3 7 15 31 63 127 255 511 1023 2047 4095 8191
Chame-os de radicais de números perfeitos, porque quando eles não
são primos, eles os produzem. Coloque acima desses números na sua
progressão natural 1, 2, 3, 4, 5, etc., chamados seus expoentes. Depois
de fazê-lo, eu digo.

1. Quando o expoente de um número radical é composto, seu radical


também é composto. O 6, o expoente de 63, é composto, então eu
digo que 63 será composto.
2. Quando o expoente é um número primo, afirmo que seu radical me-
nos um é divisível pelo dobro do expoente. O 7, o expoente de 127, é
um primo, então eu digo que 126 é um múltiplo de 14.

103
3. Quando o expoente é um número primo, afirmo que seu radical não
pode ser dividido por nenhum outro número primo, exceto aqueles
que são maiores por um que um múltiplo que duplica o expoente...

Aqui estão três belas proposições que eu encontrei e demonstrei sem


dificuldade. Eu as chamarei de fundamentos da invenção de números
perfeitos. Não duvido que Frenicle de Bessy tenha chegado antes, mas
acabei de começar e, sem dúvida, essas proposições passarão como algo
encantador nas mentes daqueles que não se tornaram suficientemente
hipócritas nesses assuntos, e ficaria muito feliz se eu tivesse a opinião
de M. Roberval (O’CONNOR; ROBERTSON, 2003, sem página,
tradução nossa)5.

Após aprofundar seus estudos, Fermat chegou ao que hoje é conhe-


cido como Pequeno Teorema de Fermat, o qual demonstra que, para
qualquer primo e um integral não divisível por , temos que
é divisível por . Com isso, Fermat conseguiu provar alguns dos erros
cometidos por Cataldi ao supor a existência de alguns números perfeitos
(O’CONNOR; ROBERTSON, 2003).
Para se ter ideia da eficácia do método encontrado por Fermat, em
uma carta, Frenicle de Bessy questionou Fermat se existia um número

5
... here are three propositions I have discovered, upon which I hope to erect a great structure.
The numbers less by one than the double progression, like
1 2 3 4 5 6 7 8 9 10 11 12 13
1 3 7 15 31 63 127 255 511 1023 2047 4095 8191
let them be called the radicals of perfect numbers, since whenever they are prime, they
produce them. Put above these numbers in natural progression 1, 2, 3, 4, 5, etc., which are
called their exponents. This done, I say
• When the exponent of a radical number is composite, its radical is also composite.
Just as 6, the exponent of 63, is composite, I say that 63 will be composite.
• When the exponent is a prime number, I say that its radical less one is divisible
by twice the exponent. Just as 7, the exponent of 127, is prime, I say that 126 is a
multiple of 14.
• When the exponent is a prime number, I say that its radical cannot be divisible by
any other prime except those that are greater by one than a multiple of double the
exponent...
Here are three beautiful propositions which I have found and proved without difficulty,
I shall call them the foundations of the invention of perfect numbers. I don’t doubt
that  Frenicle de Bessy  got there earlier, but I have only begun and without doubt these
propositions will pass as very lovely in the minds of those who have not become sufficiently
hypocritical of these matters, and I would be very happy to have the opinion of M Roberval.

104
perfeito entre e . Ao assumir a hipótese de Euclides, de que
um número perfeito deveria ter a forma , onde é primo,
Fermat se pôs a analisar se é composto (O’CONNOR; ROBER-
TSON, 2003).
Com seus resultados em mãos, Fermat reduziu a sua prova em
demonstrar três itens:

Se é composto, é composto;
Se é primo, então é múltiplo de ;
Se é primo e é um divisor primo de , então é múlti-
plo de (O’CONNOR; ROBERTSON, 2003, sem página, tradução
nossa)6.

De posse desses
resultados, Fermat comprovou que
, ou seja, um número composto. Dessa
forma, não existe um número perfeito no intervalo de e .
Os resultados alcançados por Fermat fizeram que Mersenne desen-
volvesse uma teoria de que todo número escrito na forma seria
primo para e que para
nenhum outro valor superior a 257 ele não poderia provar, uma vez que
os cálculos levariam muito tempo (O’CONNOR; ROBERTSON, 2003).
Com base nos estudos de Mersenne, foi desenvolvida outra cate-
goria de números primos, os chamados primos de Mersenne. Esses
números são caracterizados por serem primos escritos da forma ,
onde é um número primo. Porém, nem todos os números que são gera-
dos pela fórmula feita por Mersenne são primos. Por exemplo, o número
não é um número primo, logo, não é um primo
de Mersenne. Entretanto, esse resultado foi muito importante para que, anos
mais tarde, Leonard Euler pudesse relacionar os primos de Mersenne com o
resultado desenvolvido por Euclides acerca dos números perfeitos.

6
(i) If n is composite, then 2n - 1 is composite.
(ii) If n is prime, then 2n - 2 is a multiple of 2n.
(iii) If n is prime, p a prime divisor of 2n- 1, then p - 1 is a multiple of n.

105
Em 1732, Euler determinou o oitavo número perfeito, que pode ser
escrito da forma , com um número primo de
Mersenne. Os outros sete números perfeitos também eram compostos por
números primos de Mersenne, cujos expoentes eram 2, 3, 5, 7, 13, 17 e 19
(PICKOVER, 2009).
Euler, em seus manuscritos, conseguiu realizar uma série de provas
em relação aos números perfeitos: todo número perfeito par deveria ter a
forma sugerida por Euclides, ou seja, . Assim, Euler con-
seguiu provar a quarta hipótese de Nicômaco, pelo menos para o caso dos
números pares. Já a questão acerca de todo número perfeito ter final 6 ou 8,
foi comprovada para todos os pares, porém não alternadamente, como afir-
mou Nicômaco. Por fim, em relação aos números perfeitos ímpares, Euler
analisou o resultado exposto por Descartes e validou sua tese. Além disso,
avançou na questão e afirmou que número perfeito ímpar deveria ter a forma
, com primo
Com o desenvolvimento da teoria feita por Euler, por muitos anos
não se chegou a novos resultados, uma vez que os cálculos eram exten-
sos e trabalhosos e havia desconfiança se seria possível encontrar números
maiores do que o oitavo número perfeito (O’CONNOR; ROBERTSON,
2003). Apenas 150 anos depois dos estudos de Euler é que o próximo
número perfeito foi descoberto por Édouard Lucas (1842-1891), em 1876,
que seria o número e que comprovava a hipótese de Mer-
senne, de ser um número primo de Mersenne.
Em 1883, o número perfeito foi comprovado ser
perfeito tanto por Ivan Pervushin (1827-1900) quanto por Paul Seelhoff
(1829-1896), que o fez de maneira independente do primeiro, três anos
depois. Isso possibilitou que muitos matemáticos passassem a defender a
ideia de que a lista das potências elaborada por Mersenne possuía algum
erro de interpretação ou grafia, uma vez que continha o 67 e o não
constitui um primo de Mersenne (O’CONNOR; ROBERTSON, 2003).
Os números perfeitos ímpares voltaram a ser objeto de estudo
quando James Joseph Sylvester (1814-1897), em 1888, afirmou que esse
tipo de número deveria ter pelo menos cinco divisores principais diferentes.

106
Benjamin Peirce (1809-1880) já havia demonstrado esse resultado de maneira
independente. Em 1913, Leonard Eugene Dickson (1874-1954) provou que os
distintos fatores primos de um número perfeito ímpar são finitos (YE, 2011).
O último resultado relevante sobre os números perfeitos ímpares foi
feito por Robbins, em 1972, ao afirmar que um número perfeito ímpar pode
ser divisível por pelo menos sete divisores principais diferentes (YE, 2011).
Porém, até hoje não existe nenhum número perfeito ímpar descoberto.
Em relação aos números perfeitos pares ao longo do século XX, com
o desenvolvimento da matemática computacional, foi possível a obten-
ção de vários novos valores e que comprovam os resultados de Euclides,
Mersenne e Euler. Segue um quadro com todos os números perfeitos des-
cobertos até o momento:

Quadro 2 – Lista dos números perfeitos descobertos

Ano da Número de
Rank Número perfeito Quem descobriu
descoberta dígitos
1 500 a.C. 21 × (22 – 1) = 6 1 Gregos antigos
2 500 a.C. 22 × (23 – 1) = 228 2 Gregos antigos
3 275 a.C. 24 × (25 – 1) = 496 3 Gregos antigos
4 275 a.C. 26 × (27 – 1) = 8126 4 Gregos antigos
5 1456 212 × (213 – 1) = 33550336 8 Anônimo
6 1588 216 × (217 – 1) = 8589869056 10 Pietro Cataldi
7 1588 218 × (219 – 1) = 137438691328 12 Pietro Cataldi
230 × (231 – 1) =
8 1772 19 Leonhard Euler
2305843008139952128
9 1883 260 × (261 – 1) 37 Ivan Mikheevich Pervushin
10 1911 288 × (289 – 1) 54 R. E. Powers
11 1914 2106 × (2107 – 1) 65 R. E. Powers
12 1876 2126 × (2127 – 1) 77 Édouard Lucas
13 1952 2520 × (2521 – 1) 314 Raphael M. Robinson
14 1952 2606 × (2607 – 1) 366 Raphael M. Robinson
15 1952 21.278 × (21.279 – 1) 770 Raphael M. Robinson
16 1952 22.202 × (22.203 – 1) 1.327 Raphael M. Robinson
17 1952 22.280 × (22.281 – 1) 1.373 Raphael M. Robinson
18 1957 23.216 × (23.217 – 1) 1.937 Hans Riesel
19 1961 24.252 × (24.253 – 1) 2.561 Alexander Hurwitz
20 1961 24.422 × (24.423 – 1) 2.663 Alexander Hurwitz

107
Ano da Número de
Rank Número perfeito Quem descobriu
descoberta dígitos
21 1963 29.688 × (29.689 – 1) 5.834 Donald B. Gillies
22 1963 29.940 × (29.941 – 1) 5.985 Donald B. Gillies
23 1963 211.212 × (211.213 – 1) 6.751 Donald B. Gillies
24 1971 219.936 × (219.937 – 1) 12.003 Bryant Tuckerman
Landon Curt Noll & Laura
25 1978 221.700 × (221.701 – 1) 13.066
Nickel
26 1979 223.208 × (223.209 – 1) 13.973 Landon Curt Noll
Harry L. Nelson & David
27 1979 244.496 × (244.497 – 1) 26.790
Slowinski
28 1982 286.242 × (286.243 – 1) 51.924 David Slowinski
Walter Colquitt & Luke
29 1988 2110.502 × (2110.503 – 1) 66.530
Welsh
30 1983 2132.048 × (2132.049 – 1) 79.502 David Slowinski
31 1985 2216.090 × (2216.091 – 1) 130.100 David Slowinski
32 1992 2756.838 × (2756.839 – 1) 455.663 David Slowinski & Paul Gage
33 1994 2859.432 × (2859.433 – 1) 517.430 David Slowinski & Paul Gage
34 1996 21.257.786 × (21.257.787 – 1) 757.263 David Slowinski & Paul Gage
35 1996 21.398.268 × (21.398.269 – 1) 841.842 GIMPS / Joel Armengaud
36 1997 22.976.220 × (22.976.221 – 1) 1.791.864 GIMPS / Gordon Spence
37 1998 23.021.376 × (23.021.377 – 1) 1.819.050 GIMPS / Roland Clarkson
38 1999 26.972.592 × (26.972.593 – 1) 4.197.919 GIMPS / Nayan Hajratwala
39 2001 213.466.916 × (213.466.917 – 1) 8.107.892 GIMPS / Michael Cameron
40 2003 220.996.010 × (220.996.011 – 1) 12.640.858 GIMPS / Michael Shafer
41 2004 224.036.582 × (224.036.583 – 1) 14.471.465 GIMPS / Josh Findley
42 2005 225.964.950 × (225.964.951 – 1) 15.632.458 GIMPS / Martin Nowak
GIMPS / Curtis Cooper &
43 2005 230.402.456 × (230.402.457 – 1) 18.304.103
Steven Boone
GIMPS / Curtis Cooper &
44 2006 232.582.656 × (232.582.657 – 1) 19.616.714
Steven Boone
GIMPS / Hans-Michael
45 2008 237.156.666 × (237.156.667 – 1) 22.370.543
Elvenich
46 2009 242.643.800 × (242.643.801 – 1) 25.674.127 GIMPS / Odd M. Strindmo
47 2008 243.112.608 × (243.112.609 – 1) 25.956.377 GIMPS / Edson Smith
48 2013 257.885.160 × (257.885.161 – 1) 34.850.345 GIMPS / Curtis Cooper
49 2016 274.207.280 × (274.207.281 – 1) 44.677.235 GIMPS / Curtis Cooper
50 2017 277,232,916 × (277,232,917-1) 46.498.850 GIMPS / Jonathan Pace

Fonte: http://clubes.obmep.org.br/blog/rank-dos-numeros-perfeitos/ e https://en.wikipedia.


org/wiki/List_of_perfect_numbers. Lista atualizada nos sites em 18 de fevereiro de 2018.

108
Alguns estudos decorrentes: números multiperfeitos e sociáveis

Os estudos sobre números perfeitos e amigáveis tornaram possí-


vel a criação de novas teorias sobre alguns tipos de números e, com isso,
que fossem aprofundados alguns tópicos relativos à teoria dos números.
Trataremos dois exemplos aqui: os números multiperfeitos e os números
sociáveis.
Os números multiperfeitos são uma classe de números que partiu
da classificação dos números perfeitos. Um número n é dito multiperfeito
quando a soma de seus divisores inteiros positivos (agora incluindo o pró-
prio número) resulta em um número , onde é um número natural.
Nesse caso, dizemos que a ordem de um número multiperfeito será .
A partir da definição exposta acima, podemos relacionar que todo
número perfeito é também multiperfeito de ordem 2. Por exemplo, tome-
mos o número 6. Os seus divisores são 1, 2, 3 e 6, que, quando somados,
resultam em 12. Como , dizemos que 6 é um número multiper-
feito de ordem 2.
Os estudos sobre os números multiperfeitos tiveram início nas
correspondências trocadas entre Mersenne e Descartes, em 1631 (ORE,
1976). Um dos números que chamou atenção deles foi o 120, que pode
ser classificado como um número multiperfeito de ordem 3, dado que a
soma dos seus divisores resulta em 360 (os divisores de 120 são 1, 2, 3, 4,
5, 6, 8, 10, 12, 15, 20, 24, 30, 40, 60 e 120, que, quando somados, resultam
em 360).
Assim como aconteceu com os números perfeitos e amigáveis, Fer-
mat também participou das discussões sobre essas teorias. Da mesma forma,
Frénicle também trocou correspondências com Mersenne. O objetivo das
cartas era o de discutir métodos para a obtenção de números multiperfeitos
e relacioná-los com as diferentes ordens possíveis.
O primeiro a propor um método foi Descartes, porém Frenicle
e Mersenne não acreditaram na eficácia do método elaborado por ele
(ZHOU, 2010). Em uma próxima correspondência, Descartes encaminhou

109
números que encontrou, além de afirmar que seu método poderia gerar
infinitos números multiperfeitos7.
A seguir, apresentamos um quadro com alguns números multiperfei-
tos, juntamente com a sua ordem (Quadro 3).

Quadro 3 – Exemplo de números multiperfeitos

Ordem Números multiperfeitos


2 6, 28, 496, 8128, ...
3 120, 672, 523776, 459818240, 1476304896, 51001180160
4 30240, 32760, 2178540, 23569920, ...
5 14182439040, 31998395520, 518666803200, ...
6 154345556085770649600, 9186050031556349952000, ...

Fonte: http://mathworld.wolfram.com/MultiperfectNumber.html (acessado em 18 de


fevereiro de 2018)

Outro tipo de números que foram descobertos em virtude dos


números perfeitos e amigáveis foram os sociáveis. Para entender melhor o
tema, pensemos da seguinte forma: os números perfeitos teriam ordem 1,
uma vez que, ao encontrarmos todos os divisores próprios de um número,
ao somarmos, eles retornam para o mesmo número, por exemplo, o 6 e o 28.
Já os números amigáveis teriam ordem 2, uma vez que os divisores próprios
de 220, quando somados, resultam em 284 e vice-versa. Com os números
sociáveis, a ordem de relação seria maior do que 2, ou seja, existiria uma
“corrente fechada”, na qual os elos seriam os números e cada elo estaria
relacionado com outros dois.
Para facilitar, vejamos um exemplo. Em 1918, Paul Poulet (1887-
1946) descobriu a seguinte corrente de números 12496→14288→15472→
14536→14264→12496 (PICKOVER, 2009). As setas representam que a
soma dos divisores próprios de 12496 resultam em 14288, que a soma dos
divisores próprios de 14288 resultam em 15472, e assim sucessivamente até
a corrente voltar para 12496.

7
Não apresentaremos os métodos encontrados por Descartes e outras descobertas, uma vez
que se trata de formas trabalhosas e deveríamos aprofundar algumas explicações. Como
sugestão, os trabalhos de Dickson (1919) e Zhou (2010) discutem essas questões.

110
Na mesma época, Poulet encontrou uma corrente com 28 números
(Figura 1):

Figura 1 – Corrente de 28 números sociáveis

Fonte: Elaborado pelo autor a partir de Pickover (2009, sem página)

Em 1969, por meio de métodos computacionais aplicados a números


menores que 60.000.000, Henry Cohen encontrou mais sete correntes de
números sociáveis (SOCIABLE, 2013).

111
Considerações Finais

Ao longo da história, os conceitos acerca dos números perfeitos e


amigáveis ganharam destaque tanto no aspecto matemático quanto no
aspecto místico. Inicialmente, os dois aspectos caminhavam juntos, mas
apenas a partir do século XV é que o caráter matemático passou a receber
mais destaque.
Os avanços sobre as conceituações fizeram que estudos antigos,
como os de Euclides, fossem validados em sua grande parte, o que mostrou
a importância de seu trabalho não só para a geometria, mas também para a
teoria dos números.
Os estudos feitos por Descartes, Mersenne, Fermat e, principal-
mente, Euler, serviram como um grande avanço para a teoria dos números
e possibilitou, até mesmo, criar outras teorias, como, por exemplo, os núme-
ros multiperfeitos. Lembramos, ainda, que os três primeiros tratavam das
ideias matemáticas a partir de cartas, método que foi muito eficaz para o
desenvolvimento das ciências nesse período.
Apesar de um grande esforço dos matemáticos citados, pouco se
soube dos avanços que foram feitos pelos árabes, anos antes. O acesso que
eles tiveram às obras da Grécia Antiga possibilitou o desenvolvimento de
teorias que foram muito avançadas para a época, ao pensarmos na própria
forma de registro matemático e dos conceitos algébricos aplicados às solu-
ções geométricas, uma das marcas de Euclides.
Desde o século XX, os avanços dos estudos sobre os números perfei-
tos, amigáveis, multiperfeitos e sociáveis são notáveis, uma vez que, com o
advento da computação, houve uma facilidade muito grande para encontrar
novas soluções.
Com isso tudo, podemos perceber o quão profunda foi essa marca
deixada pelos pitagóricos e como as ideias acerca do conhecimento sobre os
números permaneceram e ainda geram estudos específicos. Além disso, o
misticismo ao redor dessa questão continuou e as suas marcas foram possí-
veis de perceber no cristianismo, no judaísmo e na cultura árabe. O conceito
de que antes tudo era número mudou muito, mas a busca por explicações e
pelo conhecimento continuou existente.

112
Referências

DICKSON, L. E. History of the Theory of Numbers: Divisibility and primality. Washin-


gton, USA: Carnegie Institution of Washington, 1919.

DUARTE, L. D.; GONÇALVES, H. H.; NÓBREGA, N. P. Tudo é número: uma análise


conceitual da ideia de número em Pitágoras. Revista Princípia, João Pessoa, n. 33, p. 99-
107, maio 2017.

ESCOTT, E. B. E. Amicable Numbers. Scripta Math, [S. l.], v. 12, p. 61-72, 1946.

EUCLIDES. Os Elementos. Tradução e introdução de Irineu Bicudo. São Paulo: UNESP,


2009.

HOGENDIJK, J. P. Thabit ibn Qurra and the Pair of Amicable Numbers 17296, 18416.
Historia Mathematica, n. 12, p. 269-273, 1985.

KARLSON, P. A Magia dos Números. Porto Alegre: Editora Globo, 1961.

LAERCIO, D. Los diez libros de Diógenes Laercio. Tomo II. Tradução de Josef Ortiz
Sanz. Madrid: Imprenta Real, 1972.

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NY: Macmillam Company, 1926.

O’CONNOR, J. J. ROBERTSON, E. F. Perfect Numbers. 2003. Disponível em <http://


www-history.mcs.st-andrews.ac.uk/HistTopics/Perfect_numbers.html>. Acesso em: 17 fev.
2018.

ORE, O. Number theory and its history. New York, USA: Dover Publications, 1976.

PICKOVER, C. A. The loom of God: tapestries of mathematics and mysticism. New York,
USA: Sterling, 2009.

PICUTTI, E. Pour l´histoire des sept premiers nombres parfaits. Historia Mathematica,
n. 16, p. 123-136, 1989.

ROQUE, T. História da Matemática: Uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Rio
de Janeiro: Zahar, 2012.

SANTOS, M. F. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRASA, 2000.

SOCIABLE numbers. 2013. Disponível em < https://mathlair.allfunandgames.ca/sociable.


php>. Acesso em: 29 mar. 2018.

SPENCER, D. D. Key Dates in Number Theory History: From 10,529 B.C. to the pres-
ent. Ormond Beach, Florida, USA: Camelot Publishing Company, 1995.

113
YAN, S. Y. 2500 Years in the Search for Amicable Numbers. Advances in Mathematics, v.
33, n. 4, ago 2004.

YE, S. Y. Odd Perfect Numbers. 2011. Disponível em: <http://online.sfsu.edu/meredi-


th/301/Papers/Term%20Paper_Ye_Final.pdf>. Acesso em: 29 mar. 2018.

ZHOU, Q. Multiply Perfect Numbers of Low Abundance. Thesis: PhD in Philosophy,


Waykato University, Hamilton, New Zealand. 145p, 2010.

114
5. OS NÚMEROS FIGURADOS: DAS ORIGENS
ÀS SUAS ATUAIS CONFIGURAÇÕES

Débora Vieira de Souza

“Tudo está arranjado segundo número.”


Pitágoras

Introdução

Os números podem estar arranjados de diferentes formas, por meio


de linguagens variadas. Uma delas pode ser feita pela representação visual,
com o uso de figuras.
Neste capítulo, convidamos o leitor a conhecer aspectos elemen-
tares sobre números figurados. Nosso propósito é possibilitar uma visão
geral sobre a configuração desses números, dos seus primórdios até suas
explanações nos dias atuais. Ressaltamos que, embora os tipos de lingua-
gens adotadas para representar esses números sejam distintos, a intenção é
propiciar uma compreensão de como os estudos desse assunto se desenvol-
veram ao longo dos séculos e como, ainda hoje, conceitos atrelados a eles
são abordados no ensino de Matemática.
Para explorar essas visões, destacamos interpretações pontuais sobre
a ideia de número e sobre a influência dos pitagóricos nesse contexto. Para
tanto, neste primeiro momento, propomos uma imersão em cenários pas-
sados, que retratam bases fundamentais atreladas à teoria dos números
figurados.

Um retorno às origens históricas

Aspectos relacionados à ideia de número e à formação do universo


e tudo o que nele se constitui, foram discutidos desde os primórdios da
história da humanidade. Abordagens como essas eram, por vezes, ligadas
a questões filosóficas, e preocupavam-se com reflexões acerca de princípios
éticos, morais e políticos, em que a compreensão de números sempre se
mostrou relevante.

A palavra número vem de numerus (em latim), que, por sua vez, vem
de nomos, lei, norma (em grego). Corresponde-lhe, no grego, a palavra
arithmós. Esta vem do termo rythmós, do radical rhe, de onde rheo, do
verbo rhein, que significa fluir. Há um parentesco entre número e ritmo,
portanto. Há uma analogia, em cujo logos ambos se identificam. O
fluxo da criação implica o número (SANTOS, 2000, p. 110).

Nesse sentido, Oliveira (2010) afirma que arithmós é um conceito


fundamental para o entendimento da filosofia do pitagorismo, o qual signi-
fica também: cálculo, soma, quantidade, ritmo. E, mais:

Dizia Pitágoras, o que é confirmado por todos os pitagóricos poste-


riores, que o arithmós era ‘Khyma ex monadon synkeimenon’, ou seja,
a série móvel, que jorra (que flui) da mônada [...]. Arithmós é, assim,
algo das coisas móveis, das coisas que conhecem mutações de quais-
quer espécies [...]. Há arithmós (número), onde há geração e corrupção,
onde há aumento e diminuição, onde há alteração, onde há movimento
(transladação). Todas as coisas finitas, portanto, que constituem a série
das coisas criadas, são números, têm números (SANTOS, 2000, p. 110,
grifos do autor).

Essas afirmações retratam que o número fazia parte de tudo o que


se constituía. Na visão dos pitagóricos, “o número não é apenas a medida
do quantitativo pela unidade, mas é, também, a forma, como proporciona-
lidade intrínseca das coisas, e pode ser tomado, como realmente o é, sob
diversas modalidades” (SANTOS, 2000, p. 111). Nesse sentido, a unidade
é compreendida como um postulado pitagórico, que representa a oposição
entre o limite e o ilimitado.
Santos (2000, p. 92) cita, em seus estudos, um fragmento no qual
afirma que “Arquitas e Filolau dão, indiferentemente, à unidade o nome de
mônada, e à mônada, o nome da unidade. A maior parte das vezes acres-

116
centam à palavra mônada que não é a primeira, e que é posterior à mônada
em si e à unidade”. O autor esclarece que há uma mônada primeira, a qual
é transcendente a todas as coisas, que diz respeito à mônada em si, o ser
único, que tem sua própria razão de ser; é o que é, e está ligada ao pensa-
mento superior. A unidade serve como um momento de contrastes – tensão
e aproximação – entre dois gêneros de realidade.
Nessas interpretações, todas as coisas que nos cercam têm o seu
número, que é o arithmós, ou a sua ordem, a sua essência, e é essa conclusão
que sustenta o argumento de que todo conceito é número. Ou seja, o número
está muito além do quantitativo e a constituição e movimentação da natu-
reza e do universo, por exemplo, compõem-se de diferentes ciclos.

Os números para os pitagóricos não são apenas quantidades, mas quali-


dades porque são símbolos, segundo Jâmblico na teologia dos números.
O número um (1) é a Mônada, a unidade, a verdade imutável, o mascu-
lino-feminino, a semente, Zeus, a vida, a essência, o amigo e a ordem. O
número dois (2) é a Díade, o indefinido, a diferença, a mutabilidade, o
nascimento, o crescimento, o ilimitado, o movimento, Erato, Isis, Rhea,
o impulso e o fluxo. O número três (3) é a Tríade, a proporção, a har-
monia, o casamento, a paz, Hecate, a perfeição e a amizade. O número
quatro (4) é a Tétrade, a natureza da mudança, Hércules e a chave da
natureza (OLIVEIRA, 2010, p.70).

Para complementar a compreensão relativa a essas ideias, Oliveira


(2010) faz referência a Aristóteles, destacando que há uma relação de per-
feição na combinação desses números. Para isso, a formação do número dez
é dada como exemplo:

Segundo Aristóteles, os pitagóricos dizem que: “(...) como o número


dez parece ser perfeito e parece compreender em si toda a realidade dos
números, eles afirmavam que os corpos que se movem no céu também
deviam ser dez (...)”1. Ele está se referindo à tetractys, símbolo pitagórico

1
A respeito do dez, Oliveira (2010) traz como referência os escritos de A5, 986a8, contidos
em Metafísica, de Aristóteles.

117
formado por dez pontos arranjados no formato de um triângulo, sendo
a base formada por quatro pontos, a segunda camada por três, a terceira
por dois e aponto por um, representando, portanto, a soma dos quatro
primeiros números inteiros cujo resultado é dez (1 + 2 + 3 + 4 = 10),
número importantíssimo para Pitágoras (OLIVEIRA, 2010, p. 68).

A descrição anterior pode ser representada pelo modo a seguir


(Figura 1):

Figura 1 – A Tetractys


● ●
● ● ●
● ● ● ●
Fonte: Elaborada pela autora

Ainda a respeito desse número, Oliveira (2010) observa que a década,


como também era chamada, servia de base para o sistema numérico do
Ocidente e que também representava o princípio de renovação cíclica, pois,
após o dez, inicia-se a contagem a partir dele (10 + 1 = 11, 10 + 2 = 12, e
assim por diante). Nesse número, há representação da ordem dos cosmos2
e de outros aspectos: as faculdades humanas, as consonâncias musicais3, os
princípios para a formação das figuras geométricas e outros conhecimentos
esotéricos envolvendo os números e suas simbologias.
Lendas e misticismo também estavam atrelados à compreensão de
certos números. Segundo Boyer (1974, p. 39), o “número sete, por exemplo,
era objeto de especial respeito, presumivelmente por causa das sete estrelas
errantes, ou planetas, das quais a semana se derivou”. Ainda conforme esse
autor, várias civilizações antigas abordaram questões associadas à numero-
logia, ao místico. Investigações como essas estavam associadas à geometria,
a qual também era chamada a ciência dos corpos celestes. Nesse sentido, essa

2
A palavra cosmos é de origem grega e é entendida aqui como um todo ordenado, organizado.
3
Relações complementares sobre música e pitagorismo podem ser encontradas no segundo
capítulo deste livro: Música e Matemática Pitagóricas: suas influências no mundo musical.

118
ciência “teria sua origem na aritmética e seu objeto seria as figuras formadas
pelas conjunções zodiacais. Sua relação com a aritmética e com a música
estaria embasada na astrologia, na teoria dos números figurados e na arit-
mologia” (BRITO, 1999, p. 103)4.
O termo aritmologia é relativo aos estudos sobre numerologia. De
acordo com Brito (1999), há compreensão de que os pitagóricos se desta-
cam como os primeiros a trabalhar no desenvolvimento de uma alegoria
numérica associada a esse termo, mas vale ressaltar que não há uma origem
única desse tipo de sistematização. Segundo a autora, Filon de Alexandria
(século I) realizou a primeira forma sistemática de aritmologia da exegese
bíblica judeu-alexandrina, a qual ficou conhecida em seu tratado chamado
Sobre os números.
Outra expressão usada no estudo dos números, do ponto de vista
místico, refere‑se à gematria. Brito (1999) explica que essa palavra diz res-
peito a um sistema criptográfico no qual são atribuídos valores numéricos às
letras, e complementa essas ideias, destacando que seus estudos originários
foram na Grécia antiga. Nesse contexto, as letras e os números poderiam ter
representações idênticas. Alfa , por exemplo, representaria tanto uma
letra do alfabeto quanto um número.
Os estudos sobre a aritmologia e a gematria colocam-se como reve-
ladores de sabedoria, de acordo com Brito (1999). Segundo a historiadora,
até a própria Bíblia traz alguma passagem relacionada a essa afirmação.
Conhecimentos como esses são relacionados à teoria dos números
figurados e essa, por sua vez, teve grandes contribuições dos pitagóricos.
Como explanamos anteriormente, os números destacavam-se como
relevantes em contextos variados. Desde os babilônios já havia considera-
ções de que os movimentos nos céus estavam relacionados com medidas
numéricas. Explicações racionais que eram ligadas à formação do universo
também eram desejadas por filósofos como Tales de Mileto e Heráclito de
Éfeso. Para o primeiro, por exemplo, o princípio que deu origem ao mundo
era a água e, para o segundo, a base de tudo era o fogo. E a busca por enten-
4
O trabalho intitulado The tradition of Greek Arithmology, de Frank Egleston Robbins
(1921), traz estudos mais aprofundados a respeito da história da aritmologia.

119
dimentos como esses estava ligada à reprodução de figuras geométricas no
universo (BRITO, 1999).
A esse respeito, a autora afirma que o fato de poder expressar inter-
valos musicais por meio de razões numéricas, e que as trajetórias dos astros
que resultavam da composição de movimentos circulares e não de movi-
mentos irregulares, como antes se pensava, foram fatos que levaram os
membros da escola pitagórica a acreditarem que todas as explicações perti-
nentes ao universo poderiam ser dadas por meio dos números e das formas
geométricas, assim como as relações existentes entre ambos.
Desse modo, apresentamos um cenário geral que contempla desde
as origens históricas até as configurações atuais dos números figurados, o
qual está atrelado à visão de que tudo é arranjado ou construído, segundo o
número – o princípio formador de todas as coisas. Para tanto, inicialmente,
abordaremos estudos sobre esses números na visão do pitagorismo e de um
importante estudioso chamado Nicômaco de Gerasa (60 – 120 d. C.), o
qual era neopitagórico.

A contribuição dos pitagóricos na teoria dos números figurados

A fundação da escola pitagórica está atrelada ao nome de Pitágoras,


que Boyer (1974) afirma ter sido filósofo, místico, profeta, além de ser um
dos grandes colaboradores no desenvolvimento do conhecimento matemá-
tico. Segundo embasamentos históricos, Pitágoras nasceu em Samos, uma
ilha localizada em Dodecaneso. Boyer observa que houve dificuldade para
caracterizar a figura de Pitágoras, pois a chamada escola pitagórica era uma
sociedade secreta e os trabalhos ali desenvolvidos eram compartilhados
entre todos, e as descobertas realizadas eram atribuídas à escola, e não a um
membro específico.
Roque (2012) retrata duas visões acerca do homem Pitágoras: uma
dada por Jâmblico, que viveu entre os séculos III e IV da Era Comum, e
outra, dada por Proclus. Jâmblico publicou obras relacionadas a Pitágoras
e às suas contribuições à matemática, e no Catálogo dos Geômetras, de Pro-
clus, constam os maiores indícios de que houve um matemático chamado
Pitágoras. No entanto, segundo Roque (2012), isso é questionável, pois em

120
outros estudos, como os de Eudoxo (408 – 355 a. C.) e Aristóteles (384
– 322 a. C.), há menção apenas aos pitagóricos, não há nada particular rela-
cionado a um homem chamado Pitágoras.
Nosso olhar volta-se para os números figurados, elementos de impor-
tante discussão no campo da matemática e da filosofia, desde os primórdios
da civilização. Nesse sentido,

A matemática atribuída a Pitágoras é a aritmética de pontinhos [...],


mas não se sabe ao certo se ela é uma criação de um matemático cha-
mado Pitágoras, de integrantes de uma escola antiga chamada pitagó-
rica (mas não de Pitágoras), ou dos neoplatônicos e neopitagóricos da
Antiguidade, como Jâmblico e Nicômaco (ROQUE, 2012, p. 105).

A ideia de número e as concepções de que seria constituído de tudo


o que há no universo desenvolveu o entendimento de que a origem dos
números se dava pela aglomerações de unidades5, iniciando os primeiros
estudos sobre a teoria dos números figurados.
Como pontuamos em seções anteriores, arithmós era algo fundamen-
tal na compreensão do universo. De acordo com Boyer (1974), por meio
dos pitagóricos, entende-se que a aritmética pode ser considerada como
uma disciplina intelectual, que ia além de um estudo técnico, envolvendo,
também, o conhecimento filosófico. Foram esses estudiosos que fizeram da
aritmética “uma base para a unificação de todos os aspectos do mundo que
os rodeava” (BOYER, 1974, p. 39). Esse historiador, assim como Roque
(2012), descreve que a aritmética da escola pitagórica é definida por meio da
configuração de pontos, a qual também é chamada de unidade sem extensão.
O pitagorismo compreendia que questões relativas à natureza
admitem uma explicação universal para as coisas, que pode simbolizar
a totalidade do cosmos. Para os pitagóricos, tudo poderia ser entendido
pelos números e eles afirmavam que o mundo era formado, antes de qual-
quer coisa, por um “arranjo bem-ordenado e tal ordem se baseia no fato de

5
De acordo com Szabó (1978, p. 257), “numbers, however, are defined as multitudes
composed of units”, ou seja, são interpretados como aglomerações de mônadas.

121
que as coisas são delimitadas e podem ser distinguidas umas das outras”
(ROQUE, 2012, p. 104).
A partir dessas referências, é possível compreender o quanto a afir-
mação de que “tudo é número” era fortemente defendida pelos pitagóricos;
afinal, tudo se amparava na organização natural do universo e de tudo o que
nele se constitui.
Os princípios (arkhai) – no sentido de origens do número e de tudo e
de todas as coisas, são o Mesmo e o Outro – ou a “qualidade de ser a mesma
coisa ou de ser outra coisa” (SANTOS, 2000, p. 121) correspondem a uma
definição associada à interpretação de números puros, que constituem a
matéria da aritmologia.
Roque (2012) afirma que os pitagóricos não possuíam, de fato, uma
noção de número puro e, ainda assim, são vistos como os primeiros a consi-
derar o número do ponto de vista teórico e não apenas prático.
Segundo a autora, as teses pitagóricas não faziam nenhuma separa-
ção entre número e corporeidade, nem entre seres corpóreos e incorpóreos.
Para eles, os objetos matemáticos, que conhecemos hoje como entes abs-
tratos, não eram assim compreendidos, pois suas configurações estavam
atreladas às noções concretas e espaciais.
Os números figurados da escola pitagórica referiam-se a elementos
discretos, estavam ligados à organização de pedrinhas, e se constituíam por
meio de uma multiplicidade de pontos que não eram matemáticos.
Sendo assim, a estruturação dos números partia das compreensões a
respeito de números pares e ímpares. Os pitagóricos, nas palavras de Boyer
(1974), tinham o número Um como o gerador de todos os outros números,
e também o consideravam o número da razão. Isso porque, de acordo com
fragmentos de textos de Filolau, citados por Santos (2000), o Um é enten-
dido como unidade, monas, e representa o princípio de todas as coisas; ele é
o Ser Supremo do pitagorismo:

O Um é o Ser Supremo, Deus. Este está acima dos contrários acima do


limitado e do ilimitado. O limite aproxima as coisas ao Um mas não o
atinge, e é pela ilimitação que se produz a série inferior. Deus é a causa

122
das causas, a causa primeira de todas as coisas, e ultrapassa em dignida-
de a todas elas (SANTOS, 2000, p. 89).

Além dessa interpretação do número Um, os membros da comu-


nidade pitagórica também consideravam outros números: os ímpares e os
pares. Para eles, os ímpares representavam números masculinos e os pares
eram vistos como femininos.
O dois, por exemplo, era tido como o primeiro número par feminino,
o número da opinião. Assim como os demais números pares, ele represen-
tava o limitado. Já o número três é o primeiro ímpar masculino verdadeiro,
que se associa às relações harmônicas. Ele e os demais ímpares representa-
vam o ilimitado.
Ampliando essas ideias, exemplificamos a formação do número
cinco, o qual representa o número do casamento, dado pela união dos pri-
meiros números verdadeiros masculino e feminino:

Os pitagóricos entendiam que o ímpar e o par existiam antes de qual-


quer coisa. Da união de ambos, ou seja, desse casamento, surgiu o Um,
que não representa um número. ‘O Um é ao mesmo tempo par e ímpar,
ser bissexuado a partir do qual os outros números se desenvolveram. O
par e o ímpar são elementos dos números e na conjugação limitado-ili-
mitado está a oposição cósmica primordial por trás do mundo, expresso
em números’ (ROQUE, 2012, p. 105).

Desse modo, a partir dessa configuração, todos os demais números


teriam sido gerados a partir do Um. Ou seja, não havia uma configura-
ção que, necessariamente, descrevia as mesmas relações internas. Existiam
peculiaridades distintas para essas formações e, com isso, era possível pensar
na teoria dos números figurados.

Um ponto gera as dimensões, dois pontos determinam uma reta de di-


mensão um, três pontos não alinhados determinam um triângulo com
área de dimensão dois, e quatro pontos não coplanares determinam
um tetraedro com volume de dimensão três; a soma dos números que
representam todas as dimensões é, portanto, o adorado dez (BOYER,
1974, p. 39).

123
Esse trecho retrata como os números eram atrelados às dimensões
geométricas e, novamente, trazemos o dez, como o número da perfeição,
uma representação sagrada, pois representava o número do universo, o qual
incluía a soma de todas as possíveis dimensões geométricas.
Baron (1985, p. 16) também descreve, em sua obra, o quanto essas
concepções geométricas estavam ligadas à interpretação da matéria e da
formação do universo.

Eles chamaram um ponto de um, uma reta de dois, uma superfície de


três, e um sólido de quatro. O somatório de pontos gerava retas, o de
retas, superfícies e o de superfícies, sólidos; com os seus um, dois, três e
quatro eles poderiam construir o universo!

As questões envolvendo geometria, disposição dos números e ideias


associadas à verdade e perfeição, estão muito atreladas às concepções pita-
góricas. Na sequência, apresentamos mais explanações relativas à teoria dos
números figurados, agora, na perspectiva do neopitagórico Nicômaco de
Gerasa.

Nicômaco de Gerasa

A compilação de estudos a respeito dos números figurados, como


uma teoria, está associada ao nome de Nicômaco de Gerasa, em sua obra
Introductio Arithmeticai (100 d. C.). Segundo indícios, esse livro é um dos
poucos documentos históricos que contêm uma ampla abordagem a res-
peito dos números figurados, tanto é que seus princípios foram utilizados
como um manual na Antiguidade, que também se estendeu à Idade Média.
Aliás,

[...] tanto na obra dos primeiros pitagóricos e dos neopitagóricos, o es-


tudo dos múltiplos, submúltiplos, proporções e números figurados tam-
bém estava presente nos textos sobre aritmética da Idade Média [...].
Os números figurados estão presentes na obra de Nicômaco (livro II),
fonte de Boécio. Porém, nela, eles são apresentados na parte destinada
ao estudo da geometria (BRITO, 2007, p. 132).

124
Nicômaco foi um dos membros do grupo dos neopitagóricos. Não
se sabe muito sobre sua vida. Ele não era visto como um matemático
propriamente dito. Baron (1985, p. 132) afirma que essa obra, Introdução à
Aritmética, “nos forneceu a melhor e mais completa descrição dos números
figurados”.
Brito (2007) reforça que os membros da escola pitagórica se preocu-
pavam em criar convenções que acomodassem o universo com essa teoria
qualitativa dos números, o que permitiu que, tanto a aritmética quanto a
aritmologia, estivessem embutidas nas teorias pitagóricas.
Considerar esses aspectos revela a importância da obra de Nicômaco
(1926), o qual, a partir do Capítulo VI, do livro II, demonstra o interesse
de seus escritos. O filósofo afirma que, primeiramente, se deveria pesquisar
e observar conhecimentos pertinentes aos números lineares, planos e sóli-
dos, e cúbicos e esféricos, equilátero e escaleno, dentre outros, pensando
também em tijolos, vigas etc., e tais exemplos estão todos associados a uma
Introdução Geométrica.
Segundo Duarte, Gonçalves e Nóbrega (2017, p. 2), “a escola pita-
górica no início utilizava o para realizar a representação gráfica dos
números, criando a ideia de que a unidade , em seguida, se passou a
fazer o uso de pontos (.) para demonstrar essa teoria”.
Segundo Duarte, Gonçalves e Nóbrega (2017), a escola pitagórica
utilizava o , inicialmente, para realizar a representação gráfica dos núme-
ros, criando a ideia de que a unidade era igual a 1 ( ). Em seguida, ela
passou a fazer o uso de pontos (.) para demonstrar essa teoria.
E, notadamente, é assim que o Capítulo VI da Introdução à
Aritmética se inicia. Nicômaco (1926) descreve que certas convenções
devem ser realizadas, não por natureza, mas segundo critérios dados pelo
homem. Conforme o autor, a escrita de uma unidade seria representada
por um alfa (α), o qual é o número um. Duas unidades, lado a lado, que já
representam uma série de alfas, indica o sinal para 2. Ao dispor três alfas
em uma linha, a representação corresponde ao três; já quatro em uma
linha representam o quatro, e assim sucessivamente. O autor descreve que
esse tipo de notação envolve a disposição dos números planos e sólidos e
pode ser vista como:

O número 1: α
O número 2: α α
O número 3: α α α
O número 4: α α α α
O número 5: α α α α α

Segundo Nicômaco (1926):

A unidade, então, ocupando o lugar e o caráter de um ponto, será o iní-


cio de intervalos e de números, mas não ele próprio um intervalo ou um
número, assim como o ponto é o início de uma linha, ou um intervalo,
mas não é linha ou intervalo. Na verdade, quando um ponto é adicio-
nado a um ponto, ele não aumenta, pois quando uma coisa não dimen-
sional é adicionada a outra coisa não dimensional, não terá dimensão;
como se alguém examinasse a soma de nada adicionado a nada, o que
faz nada [...]. A unidade, portanto, é adimensional e elementar, e a di-
mensão primeiro é encontrada e vista em 2, depois em 3, depois em 4
e em sucessão nos seguintes números; a dimensão é que é concebida
entre dois limites (NICÔMACO, 1926, p. 237, tradução nossa)6.

Por isso, para Nicômaco, a unidade não é dimensional. Assim, cha-


ma-se linha, à primeira dimensão, a qual é estendida em uma direção. No
caso de abordar duas dimensões, dá-se o nome de superfície, porque pode
ser estendida em duas direções. Quando essa extensão ocorre em três dire-

6
Originalmente: “Unity, then, occupying the place and character of a point, will be the
beginning of intervals and of numbers, but not itself an interval or a number, just as the
point is the beginning of a line, or an interval, but is not itself line or interval. Indeed, when a
point is added to a point, it makes no increase, for when an non-dimensional thing is added
to another non-dimensional thing, it will not thereby have dimension; just as if one should
examine the sum of nothing added to nothing, which makes nothing [...]. Unity, therefore,
is non-‑dimensional and elementary, and dimension first is found and seen in 2, then in 3,
then in 4 and in sucession in the following numbers; for dimension is that is conceived of
as between two limits”.

126
ções, ou seja, em três dimensões, ela é nomeada como sólido e apresenta
profundidade, largura e comprimento.
Para melhor compreensão, ampliaremos essas temáticas por meio de
enfoques abordados no livro II, de Nicômaco (1926), a respeito da formação
dos números figurados planos, a saber: os números triangulares, quadrados,
pentagonais, hexagonais, e seus sucessores. Para tanto, utilizaremos diferen-
tes representações, dentre elas, a representação visual.
Os números triangulares
Nicômaco de Gerasa descreve que um número triangular, quando
analisado em unidades, apresenta-se em formato triangular, em que suas
peças se dispõem por meio de formas regulares, sendo ao mesmo tempo
triangulares e equiláteras. Essas peças são dispostas em um plano do
seguinte modo: 3, 6, 10, 15, 21, 28 e, assim, sucessivamente.
Segundo o autor, um número triangular é obtido a partir da série
natural do número 3, a qual é composta em uma linha pela adição contínua
de números sucessivos, um a um. Assim, desde o início dessa disposição,
ocorrem sucessivas combinações e adições de outro termo à soma e, então,
os números triangulares na ordem regular vão sendo completados. Da
série natural 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, ..., 15, por exemplo, toma-se o primeiro
termo e obtém-se o número triangular que é potencialmente o primeiro:
2 + 1 = 3.
Dessa forma, a representação gráfica é dada por duas unidades
lado a lado, que é definida abaixo de uma unidade e o número três,
que é interpretado como um triângulo. Logo, quando, nessa formação,
adicionamos o 3, obtemos, então, o 6, que é considerado o segundo
número triangular. Novamente, o número que se segue naturalmente é
4, o qual, ao ser adicionado e colocado abaixo do anterior, gera o número
triangular 10. Sucessivamente, são adicionadas 5 unidades, depois 6, e
todos os números em ordem são adicionados de forma regular, sendo
que cada triângulo formado consistirá dos números correspondentes à
sequência natural para produzi-los. Vejamos a representação gráfica
desses procedimentos (Quadro 1):

127
Quadro 1 – Os números triangulares
Número triangular Representação gráfica

1

Unidade


3 ●●
Adiciona-se 2 à unidade


●●
6
●●●
Adiciona-se 3 à formação anterior


●●
10 ●●●
●●●●
Adiciona-se 4 à formação anterior


●●
●●●
15
●●●●
●●●●●
Adiciona-se 5 à formação anterior

Fonte: Elaborado pela autora

Os números quadrados

Seguindo as considerações da obra de Nicômaco, temos as represen-


tações dos próximos números figurados, os quais são chamados de números
quadrados. Nesse caso, as figuras em destaque são os quadrados e todas as
suas representações numéricas são números equiláteros. Como exemplo,

128
temos: 4, 9, 16, 25, 36, 49, 64, 81, 100 e assim por diante. Tais números,
assim como os números triangulares, respeitam certa regularidade em sua
formação, e seus lados progridem de acordo com a série natural.
De acordo com a regularidade, o lado do quadrado dito como poten-
cialmente primeiro, 1, é o 1; o lado de 4 é o 2, é na verdade o primeiro; o
lado correspondente ao 9 é o 3, interpretado como o segundo; o de 16, é 4, o
qual é tido como o terceiro; o quinto número figurado é o 36, representado
pelo lado 6 e, assim, sucessivamente.
Outra forma de se obter esse número figurado pode ocorrer se a
série natural se estender a uma linha aumentando por 1, ou seja, a formação
não mais se dará através de sucessivas somas adicionadas aos números em
ordem, mas em relação a todos aqueles de modo alternado, respeitando a
organização dos números ímpares. Assim, 1 é potencialmente o primeiro
quadrado; a soma de 1 com 3, representa o segundo que, na verdade, repre-
senta o primeiro número quadrado; a terceira formação representa, na
verdade, o segundo número quadrado é e dado pela soma de 1 com 3 com
5; a quarta formação, dada pela soma de 1, 3, 5 e 7, resulta na verdade no
terceiro número quadrado e, assim, sucessivamente. Observe essas repre-
sentações no quadro 2 a seguir:

Quadro 2 – Os números quadrados


1 4 9 16 25

● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●
● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●
1 ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ● ●
1+3 ● ● ● ● ● ● ● ● ●
1+3+5 ● ● ● ● ●
1+3+5+7
1+3+5+7+9

Fonte: Elaborado pela autora

Na disposição numérica observada (Quadro 2), podemos perce-


ber outras relações matemáticas envolvidas. Por exemplo, a configuração

129
formada foi construída pela somatória dos n primeiros números ímpares.
Veja:

...
Esses números recebem o nome de quadrados perfeitos, ou seja:


...
A esse respeito, pode-se notar também ser possível determinar a raiz
quadrada de cada um desses números:

Em discussões posteriores, realizaremos considerações complemen-


tares sobre os números quadrados. Sequencialmente, vamos abordar ideias
relativas aos números pentagonais.

130
Os números pentagonais

Os números pentagonais, como o próprio nome sugere, são repre-


sentados como uma figura plana que assume a forma de um pentágono
equilateral. Como exemplos, temos: 1, 5, 12, 22, 35, 51, 70 e assim por diante.
Considerando-se 5 como o primeiro número pentagonal listado, encon-
tramos 2, como o lado desse pentágono; 3 representa o lado do segundo
número pentagonal, representado por 12; 4 é o lado da próxima figura, dada
pelo 22; 5, o lado da figura que sucede 22 e, assim, sucessivamente.
Nicômaco descreve que, de modo geral, cada lado da figura contém
tantas unidades quanto os números que foram adicionados para se formar
o pentágono indicado, e é a série aritmética natural estabelecida em uma
linha que irá definir essa formação.
A unidade representa, potencialmente, o primeiro pentágono. Já o
5, formado pela combinação de 1 mais 4, representa o segundo; 12 indica
o terceiro, o qual se constitui da adição de 7 à figura anterior, sendo que 3
corresponde ao seu lado. Veja as representações a seguir (Quadro 3):

Quadro 3 – Os números pentagonais

1 5 12 22


Fonte: Elaborado pela autora

A formação dos demais números pentagonais ocorre de modo que


sejam adicionadas unidades, uma após a outra, dadas pela diferença de 3
unidades. Observe (Tabela 1):

131
Tabela 1 – A formação dos números pentagonais

Número pentagonal Formação


1 1
5 1+4
12 1+4+7
22 1 + 4 + 7 + 10
51 1 + 4 + 7 + 10 + 13
70 1 + 4 + 7 + 10 + 13 + 16
92 1 + 4 + 7 + 10 + 13 + 16 + 19
117 1 + 4 + 7 + 10 + 13 + 16 + 19 + 22
Fonte: Elaborado pela autora

Essa configuração, representada na Tabela 1, mostra o que destaca-


mos anteriormente, por meio de figuras. Após o 1, os próximos números
pentagonais são gerados pela união de outros pontos. Como exemplo,
destacamos a quarta representação, dada pelo número 22. Para formá-lo,
foi colocado primeiro um ponto e, posteriormente, quatro, depois sete e,
por último, dez pontos. As figuras posteriores seguiriam lógicas similares,
conforme indicamos na Tabela 1. Vejamos na sequência como ocorre a for-
mação dos próximos números figurados.

Os números figurados posteriores

Os próximos números figurados, como os hexagonais e os hepta-


gonais, por exemplo, são apresentados em séries que seguem o mesmo
processo. Pode-se perceber que, em cada número triangular produzido pela
admissão na soma, por exemplo, os números diferem em 1 e não passam
sobre nenhuma série. No caso dos números quadrados, sua formação foi
feita adicionando-se os termos que diferem em 2 unidades e há separação
entre elas. Com o pentágono ocorre de modo semelhante, e são adicio-
nados termos semelhantes com uma diferença de 3, separando-se dois
lugares. Seguindo essa mesma lógica, Nicômaco descreve que a formação
dos números hexagonais possui, como números base, aqueles que diferem

132
de 4 e são separados por três lugares na série e, ao serem somados, de modo
sucessivo, produzem os hexágonos. Nesse sentido, a sequência 1, 5, 9, 13,
17, 21, e assim sucessivamente, produz os números hexagonais 1, 6, 15, 28,
45, 66, e assim por diante.
No caso dos heptágonos, os processos são análogos, o que resulta na
formação dos números heptagonais 1, 7, 18, 34, 55, 81, 112, 148, dentre
outros.
A sequência que embasa a formação dos números octogonais respeita
uma diferença de 6 unidades e, conforme a obra analisada, essa variação é
observada na constituição total do número descrito. Pode-se verificar que
há uma regra que constitui a formação dos números figurados. Os números
raízes ou números bases de qualquer polígono diferem em 2 unidades a
menos que o número de ângulos do polígono analisado. Por exemplo, no
triângulo, que possui três ângulos, a sequência raiz difere em 1 unidade,
que é dada por 1; no quadrado, essa diferença é 2 unidades; no pentágono,
3 unidades; de 4, no hexágono; 5, no heptágono, e assim por diante; esse
aumento sempre ocorre de forma semelhante. Observe:

Tabela 2 – A formação das sequências

Números Número raiz Sequência base formada


Triangulares 3–2 =1 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, ...
Quadrados 4–2 =2 1, 3, 5, 7, 9, 11, 13, ...
Pentagonais 5–2 =3 1, 4, 7, 10, 13, 16, 19, ...
Hexagonais 6–2 =4 1, 5, 9, 13, 17, 21, 25, ...
Heptagonais 7–2 =5 1, 6, 11, 16, 21, 26, ...
Octogonais 8–2 =6 1, 7, 13, 19, 25, 31, ...
Fonte: Elaborado pela autora

Pode-se notar que, para dar continuidade à formação da Tabela 2,


seguindo a regra referente à descoberta do número raiz, é possível obter,
então, a sequência base que forma os próximos números figurados. Seguem,
na seção posterior, mais algumas considerações a respeito da construção
desses números.

133
Ampliando algumas ideias

Algumas considerações em relação à formação dos números figura-


dos podem ser ampliadas. Nicômaco observa, por exemplo, que cada figura
quadrada, ao ser dividida de modo diagonal, forma dois triângulos suces-
sivos. Como se pode identificar, 1, 3, 10, 15, 21, 28, 36, 45 ... representam
os números triangulares, e 1, 4, 9, 16, 25, 36, ... dizem respeito aos números
quadrados. Sendo assim, ao acrescentar dois triângulos consecutivos, sem-
pre teremos um quadrado, e desse podem-se obter dois triângulos.
Se ocorrer a união de um triângulo com um quadrado, temos a for-
mação de um pentágono. A figura triangular 1, ao ser unida ao quadrado
4, constitui o pentágono 5; o próximo triângulo, representado por 3, ao ser
associado a 9, que é o quadrado posterior, forma o pentágono 12; já o pró-
ximo, 6, adicionado ao quadrado 16, gera o próximo pentágono que é 22;
logo, a adição de 10 e 35, gera 35; e assim sucessivamente.
Segundo a obra Introdução à Aritmética, se os triângulos forem adi-
cionados aos pentágonos, respeitando procedimentos análogos ao anterior,
hexágonos serão formados e, novamente, os mesmos triângulos, ao serem
adicionados a esses últimos, formarão heptágonos em ordem, e os octogo-
nais serão formados após os heptagonais e assim por diante, até onde se
queira ampliar.
Observe a sucessão dos números figurados:

Tabela 3 – A sucessão dos números figurados

Triangulares 1 3 6 10 15 21 28 36 45 55
Quadrados 1 4 9 16 25 36 49 64 81 100
Pentagonais 1 5 12 22 35 51 70 92 117 145
Hexagonais 1 6 15 28 45 66 91 120 153 190
Heptagonais 1 7 18 34 55 81 112 148 189 235
Fonte: NICÔMACO (1926)

134
Ao analisar a Tabela 3, é possível perceber que os quadrados podem
ser obtidos por meio da soma dos triângulos que ocupam o mesmo lugar
da série. Veja:

- O quadrado 16 é formado pela união dos triangulares 10 e 6;


- O quadrado 81 constitui-se pela união dos triangulares 45 e 36;

E assim por diante.


A formação dos pentágonos também respeita uma regra, o que pode
ser verificado na Tabela 3. A soma dos quadrados que estão acima deles, no
mesmo lugar da série, adicionados aos triângulos elementares que estão em
uma posição anterior à série considerada, ou seja:

- O pentágono 5 forma-se pela soma dos quadrados 4 mais o triân-


gulo 1;
- O pentágono 22 é formado pela união do quadrado 16 mais o
triângulo 6 (que está na posição anterior à série analisada);
- O pentágono 70 forma-se pela união do quadrado 49 mais o triân-
gulo 21;
- O pentágono 145 forma-se pela união de 100 com 45, os quais
representam, respectivamente, o quadrado e o triângulo.

E assim sucessivamente.
De modo similar, os hexágonos são formados, respeitando-se a soma
entre o pentágono que está na posição acima, na mesma série, e o triângulo
que ocupa a posição anterior à série analisada. Observe:

- O hexágono 15 constitui-se da união do pentágono 12 e do triân-


gulo 3;
- O hexágono 28 constitui-se da união do pentágono 28 e do triân-
gulo 6;

E assim por diante.


Com isso, nota-se que o triângulo é um elemento essencial desses
polígonos, tanto em figuras quanto em números.

135
As representações atuais dos números figurados

Mediante as explanações realizadas, pode-se observar como a cons-


tituição dos números figurados estava associada aos aspectos geométricos e
à formação de sequências numéricas.
Reiteramos o que Roque (2012, p. 104) pontua: “os números figu-
rados dos pitagóricos eram constituídos de uma multiplicidade de pontos
que não eram matemáticos e que remetiam a elementos discretos”. Ou seja,
a linguagem dos pitagóricos designava cada combinação de modo distinto,
com ligações particulares.
Nos dias atuais, no ensino regular, o estudo dos números figurados
continua sendo importante. Roque (2012), por exemplo, descreve que a
sequência dos números triangulares 1, 3, 6, 10, 15 e 21, de ordem n = 1, 2, 3,
4, 5 e 6, está associada ao estudo atual de progressão aritmética, comumente
abordada na primeira série do Ensino Médio, em escolas de Educação
Básica. Segundo a autora, esse número triangular de ordem n é dado por:

.
No caso dos números quadrados, algebricamente, a configuração de
, por exemplo, é dada por , o que é válido
para os próximos termos da sequência.
A formação das configurações dos números figurados que geram
essas sequências, de acordo com o ponto de vista dos pitagóricos, estava
ligada às observações visuais e era bem distinta da aritmética que é praticada
hoje. Roque (2012) destaca que os pitagóricos tiravam diversas conclusões
aritméticas, por meio da visualização. A esse respeito, pode-se mencionar
a afirmação de que todo número quadrado corresponde à soma de dois
números triangulares sucessivos, o que pode ser descrito, atualmente, pela
relação:

Baron (1985) também reforça o quanto a escola pitagórica teve


importância na interpretação de uma figura como um numeral. De modo

136
análogo a Roque (2012), a autora observa que os pitagóricos usavam a ideia
de gnomon7, o que corresponde à “porção da fronteira dos números quadra-
dos e retangulares nos dois lados em forma de L” (BARON, 1985, p.17).
Observe a Figura 2:

Figura 2 – Números quadrados e retangulares

● ● ● ● ● ● ● ● ●
● ● ● ● ● ● ● ● ●
● ● ● ● ● ● ● ● ●
● ● ● ● ● ● ● ● ●

Fonte: Elaborada pela autora

Oliveira (2010), em seu trabalho, também faz referência às interpre-


tações da Figura 2. Segundo ele, a prática de representar os números através
de um agrupamento de unidades, por meio de bolinhas, era algo recorrente
para os membros da escola pitagórica. As marcas ou traços na forma de
gnomon geravam figuras geométricas.

Quando a série dos números ímpares era colocada ao redor de uma uni-
dade na forma de gnomon, o resultado era sempre uma figura quadrada,
portanto permanece sempre a ‘mesma’. Quando a série de números pa-
res era colocada da mesma maneira, a relação entre os lados das figuras
geradas (retângulos) era sempre diferente (OLIVEIRA, 2010, p. 59).

Na linguagem moderna, essas representações, indicadas na Figura 3,


podem ser interpretadas, respectivamente, pelas seguintes relações:

7
Segundo Baron (1985, p.17), “um gnomon tinha originalmente a forma retangular som-
breada ao longo da superfície de um relógio solar”. A autora ressalta que, depois de certo
tempo, essa palavra foi associada ao significado de perpendicularidade, e seu uso estendeu-se
para descrever alguns instrumentos utilizados para traçar ângulos retos, como o esquadro
de um carpinteiro.

137
Ou ainda, pode-se verificar que:

...

Esses são alguns exemplos de interpretações que poderiam ser


realizadas sobre números figurados no contexto do ensino brasileiro, utili-
zando-se embasamentos históricos referentes ao pitagorismo, em especial
quando se trata da formação de professores de Matemática.
Possíveis enfoques relativos ao contexto da escola pitagórica e aos
números figurados podem encaminhar visões distintas, contribuindo com a
compreensão de abordagens atuais:

É possível distinguir pelo menos três funções diferentes para essas enti-
dades, sobre as quais as doutrinas pitagóricas foram construídas: desig-
navam posição ou ordem; determinavam uma forma espacial (números
figurados); e, finalmente, exprimiam razões distintas que permitiam
compreender as leis naturais (ROQUE, 2012, p. 108).

Embora diversas questões ligadas à compreensão de leis naturais não


sejam conectadas com a matemática em nossa realidade, como ocorria com
os pitagóricos, ainda assim prevalecem aspectos direcionados à ordem, à
formação de sequência e ao uso de figuras, e tais ideias podem ser explora-
das no contexto acadêmico.
A fim de exemplificar interpretações e utilização dos números figu-
rados na educação básica, vamos utilizar um recorte da proposta curricular
de matemática e suas tecnologias, elaborados pela Secretaria de Educação
do Estado de São Paulo8 (SÃO PAULO, 2011). Para analisá-lo, segue o
Quadro 4:

8
Isso porque a autora já lecionou neste Estado e o programa serviu como base para as refe-
rências aqui mencionadas.

138
Quadro 4 – Conteúdos e habilidades na 1ª série do Ensino Médio

Conteúdos – 1º bimestre Habilidades


Números e sequências: - Saber reconhecer padrões e regularidades em
- Conjuntos numéricos sequências numéricas ou de imagens,expressando-as,
- Regularidades numéricas sempre que possível, matematicamente.
por meio da abordagem de - Conhecer as características principais das
sequências progressões aritméticas e geométricas, como: termo
- Progressões aritméticas e geral, soma dos n primeiros termos, entre outras.
progressões geométricas - Saber aplicar o estudo de progressões, aritmética e
geométrica, em diferentes contextos.
- Compreender o significado da soma dos termos de
uma PG infinita (razão de valor absoluto menor
que 1) e saber calcular a soma em alguns contextos,
físicos ou geométricos.

Fonte: Elaborado pela autora

Por meio do Quadro 4, podemos observar a relevância do estudo de


padrões e regularidades acerca de sequências numéricas e figuras. É possível
verificar como tal tema é aplicado ao estudo de progressões e ao uso de gene-
ralizações, tudo já no início do Ensino Médio. É importante salientar que
o conhecimento dessa temática é exigido em diferentes avaliações externas,
associadas aos conteúdos vistos na Educação Básica. Tomemos como exem-
plos questões da Olimpíada Brasileira de Matemática das Escolas Públicas
(OBMEP)9 e uma questão do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM)10.
Vejamos três questões (1, 2 e 3) relacionadas com essas avaliações:

9
De acordo com o novo regulamento que consta no site da OBMEP (http://www.obmep.
org.br/regulamento.htm), essa olimpíada, a partir de 2017, também será direcionada a estu-
dantes de escolas privadas. Segundo as normas, podem participar alunos do 6º ao 9º ano do
Ensino Fundamental e alunos do Ensino Médio, de Escolas Públicas municipais, estaduais
e federais, e Escolas Privadas, bem como aos respectivos professores, escolas e secretarias de
educação.
10
O Enem foi criado em 1998 e tem como objetivo avaliar o desempenho dos alunos ao final
da escolaridade básica. Atualmente, o Enem vem sendo utilizado como critério de seleção
para o ingresso em diferentes universidades e também na concorrência de bolsas de estudos,
como o Programa Universidade para Todos (ProUni).

139
Questão 1 – Essa questão refere-se ao Banco de Questões da OBMEP (2010) e
será apresentada no Quadro 5.​

Quadro 5 – Questão da OBMEP

O famoso matemático grego Pitágoras chamou de números triangulares os números


obtidos pela soma dos primeiros números inteiros maiores que 0. Por exemplo, 1, 3, 6 e
10 são números triangulares:

A Figura 3 ilustra a motivação para a utilização do nome números triangulares.


Figura 3: A sequência que deu origem aos números triangulares

● ● ●
● ● ● ● ● ●
● ● ● ● ● ● ● ● ● ●
1 1+2=3 1+2+3=6 1 + 2 + 3 + 4 = 10
A sequência de números triangulares continua com 1 + 2 + 3 + 4 + 5 = 15,
1 + 2 + 3 + 4 + 5 + 6 = 21, etc.
Quantos são os números triangulares menores do que 100?
Fonte: Elaborada pela autora a partir da OBMEP (2010)

Questão 2 - Essa questão será apresentada no Quadro 6.

Quadro 6 – Questão da OBMEP

Sobre uma superfície plana são dispostos palitos iguais formando figuras, como mostrado
na Figura 4.
Figura 4 – Formação de figuras com palitos

Contando os palitos de cada uma dessas figuras e denotando por an o número de palitos
da n-ésima figura, encontra-se:
 a1 = 3,
 a2 = 9,
 a3 = 18, …
Determine, nesse caso, o valor de a 100.
Fonte: Elaborada pela autora a partir de OBMEP (2006)

140
Questão 3 – Essa questão será apresentada no Quadro 7.

Quadro 7 – Questão do ENEM

Ronaldo é um garoto que adora brincar com números. Numa dessas brincadeiras,
empilhou caixas numeradas de acordo com a sequência conforme mostrada no esquema
a seguir.
1
1 2 1
1 2 3 2 1
1 2 3 4 3 2 1

Ele percebeu que a soma dos números em cada linha tinha uma propriedade e que, por
meio dessa propriedade, era possível prever a soma de qualquer linha posterior às já
construídas.
A partir dessa propriedade, qual será a soma da 9ª linha da sequência de caixas empilhadas
por Ronaldo?
a) 9 b) 45 c) 64 d) 81 e) 205

Fonte: Elaborada pela autora a partir do BRASIL (2010).

Todos esses exemplos de questões, expostas nos quadros 5, 6 e 7,


retratam como diferentes abordagens relacionadas ao estudo dos números
figurados podem se apresentar no contexto de avaliações atuais. As duas
primeiras questões fazem parte de um banco de questões preparatórias
para a OBMEP. Nelas, encontramos algumas referências ligadas, direta
ou indiretamente, ao modo como a configuração desses números tem se
apresentado. Particularmente, a segunda questão não questiona, de forma
objetiva, padrões de sequências, como aqui foi explorado; no entanto, pode-
-se observar por meio da imagem que tal disposição dos palitos envolve
uma sequência de pontos caracterizada por 3, 6, 10, ..., fato que está dire-
tamente relacionado à união dos palitos e, intuitivamente, à configuração
realizada na Figura 3, do Quadro 5.
A terceira questão (Quadro 7), retirada de uma das provas do
ENEM, explora conhecimentos sobre o estudo de sequências numéricas, as
quais estão associadas ao entendimento de números quadrados.

141
Esses exemplos ilustram a relevância da compreensão de números
figurados em nossa realidade educacional. Chiconello (2013) observa que
os livros didáticos abordam pouco ou quase nada o estudo de temas liga-
dos a números figurados e sequências numéricas. Nas palavras do autor, no
contexto brasileiro, esses materiais se restringem à explanação de progres-
sões aritmética e geométrica, bem como raras aplicações, as quais são feitas
através da manipulação de alguns exercícios ou problemas.
Dessa forma, em consonância com esse autor, ressaltamos que há
escassez de temáticas que envolvem os números figurados, tanto na Educa-
ção Básica como nas universidades. Por isso, a contribuição deste trabalho
volta-se também à formação de professores que lecionam Matemática, em
especial no que tange conhecimentos referentes à História da Matemática.

Considerações finais

Este capítulo buscou resgatar conhecimentos a respeito dos núme-


ros figurados a partir de bases históricas fundamentais. Seus referenciais
tiveram como intenção propiciar visões gerais acerca da origem desses
números, amparadas, principalmente, em princípios pitagóricos, e foram se
ampliando até chegar a suas compreensões atuais.
As primeiras reflexões traçaram ideias sobre a formação do universo,
a criação de lendas e misticismo, e a compreensão dos números do ponto
de vista da escola pitagórica. Posteriormente, por meio de fontes histó-
ricas distintas, houve a necessidade de relacionar fundamentações básicas
de números com a aritmética e a geometria, tanto é que, na sequência,
Nicômaco de Gerasa foi destacado como o compilador da obra mais com-
pleta que trata dos números figurados.
Sendo assim, uma descrição dos números figurados planos foi rea-
lizada com o intuito de detalhar as ideias pertinentes às suas formações e
composições. Esse detalhamento mobilizou reflexões acerca do uso e de
aplicações dos números figurados nos tempos atuais. Nesse sentido, perce-
be-se que esses números se fazem bem presentes em grades curriculares da
Educação Básica, notando-se, também, que diferentes avaliações retratam

142
como essa temática é relevante. Se tudo isso ainda o é, faz-se necessário
refletir sobre os motivos que levam à pouca abordagem desse assunto nas
salas de aula, do ensino regular à educação universitária.
Atualmente, não encontramos muitos referenciais acadêmicos que
tratam do ensino ou da aprendizagem dos números figurados, mesmo
observando-se ser um tema frequente em determinadas avaliações. Há
menores índices, ainda, de estudos que o explanam sob as perspectivas da
História da Matemática.
Dessa forma, nesse estudo, buscamos compilar uma abordagem geral,
das bases originárias a algumas concepções atuais, de como tais números
podem se apresentar, de modo que reflexões acerca desse conhecimento
possam emergir, principalmente quando se trata da formação e atuação do
professor de Matemática no ensino regular. O pitagorismo não ficou no
passado, ele está e se faz presente em diferentes linguagens, em distintas
visões. Contemplá-lo sob a interpretação dos números figurados é uma das
infinitas possibilidades de ver como essas configurações podem ser arranja-
das em contextos e momentos variados.

Referências

BARON, M. E. Curso de história da matemática: origens e desenvolvimento do cálculo.


Tradução de José Raimundo Braga Coelho, Rudolf Maier e Maria José M. M. Mendes.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1985.

BOYER, C. B. História da matemática: tradução: Elza F. Gomide. São Paulo: Editora da


Universidade de São Paulo, 1974.

BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacio-


nais Anísio Teixeira. Exame Nacional do Ensino Médio. Brasília, DF, 2010. Disponível
em: <http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2010/AZUL_Domin-
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BRITO, A. de J. Matemática na Idade Média: entre o místico e o científico. Revista Bra-


sileira de História da Matemática Especial, especial n. 1, p. 127-141, 2007. Disponível em:
<http://rbhm.org.br/issues/RBHM%20-%20Festschrift/13%20-%20Arlete%20-%20final.
pdf>. Acesso em: 2 nov. 2017.

BRITO, A. J. B. O Quadrivium na obra de Isidoro de Sevilha. 1999. 150f. Tese (Douto-


rado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade Estadual de Campinas, 1999.

143
CHICONELLO, L. A. Números figurados e as sequências recursivas: uma atividade
didática envolvendo números triangulares e quadrados. 2013. 86f. Dissertação (Mestrado
Profissional) – Universidade Federal de São Carlos, 2013.

DUARTE, C. L.; GONÇALVES, H. H.; NÓBREGA, N. P. Tudo é número: uma análise


conceitual da ideia de número em Pitágoras. Revista Principia, João Pessoa, n. 33, p. 99-
107, maio, 2017.

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NY: Macmillam Company, 1926.

OBMEP. OLIMPÍADA BRASILEIRA DE MATEMÁTICA DAS ESCOLAS PÚBLI-


CAS. 2006. Disponível em: < http://www.obmep.org.br/bq/bq2006.pdf >. Acesso em: 16
dez. 2017.

OBMEP. OLIMPÍADA BRASILEIRA DE MATEMÁTICA DAS ESCOLAS PÚBLI-


CAS. 2010. Disponível em: <http://www.obmep.org.br/bq/bq2010.pdf>. Acesso em: 16
dez. 2017.

OLIVEIRA, G. M. Os princípios cosmológicos de Filolau e a música. 2010. 101f. Disser-


tação (Mestrado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo,
2010.

ROQUE, T. História da matemática: uma visão crítica, desfazendo mitos e lendas. Rio de
Janeiro: Zahar, 2012.

SANTOS, M. F. dos. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRASA, 2000.

SÃO PAULO. Ministério da Educação. Secretaria da Educação. Currículo do Estado de


São Paulo: Matemática e suas tecnologias. São Paulo: SE, 2011. 72 p.

SZABÓ, A. The beginnings of Greek mathematics. Translation of Anfänge griechischen


Mathematik. Budapest: Akadémiai Kiadó, 1978

144
6. OS PITAGÓRICOS EM LIVROS
TEXTOS DA IDADE MODERNA

Arlete de Jesus Brito

Nos meios escolares, aprendemos a conectar automaticamente o


nome de “Pitágoras”, ao famoso “teorema” e à “matemática”. Tal conexão está
relacionada a uma tradição escolar difundida, principalmente, pelos livros
didáticos de matemática. Como veremos neste texto, essa tradição remonta
às mudanças sociais ocorridas no início da Idade Moderna, como, por exem-
plo, a invenção da imprensa que possibilitou o mercado de livros didáticos,
à ascensão da classe burguesa e à importância que ela conferia ao trabalho.
Conforme podemos observar pelos testemunhos que temos sobre
eles em obras antigas, como, por exemplo, no texto Vida Pitagórica, escrito
por Jâmblico (245-325), a atuação de Pitágoras e de seus seguidores, na
Antiguidade, ia muito além da matemática. Nesse livro, o autor aponta para
a atuação política, religiosa e filosófica dos pitagóricos e apresenta ao leitor
uma extensa lista de nomes de membros da comunidade – ou seita, como
denomina Cornelli (2010) – pitagórica, dentre os quais podemos verificar a
participação de 17 mulheres. Porém, como observa Jâmblico, é provável que
o nome de muitos outros membros nos sejam desconhecidos.
Pela lista de nomes de pitagóricos encontrada no Vida Pitagórica,
percebemos que o pitagorismo se disseminava por diversas cidades gregas,
como, por exemplo, Crotona, Metaponto, Eléa, Tarento, Síbaris, Cartagena,
Siracusa, Cirene, Corinto, Atenas1 etc. Nessas regiões, os pitagóricos difun-
diam um ideal de vida ascética, pregavam a imortalidade e reencarnação
da alma, defendiam o vegetarianismo e a comunhão entre amigos. Ao ser
aceito na comunidade pitagórica, o novo membro partilhava todos os seus
bens com os demais membros, o que significava que suas posses materiais

1
A Grécia antiga abrangia várias cidades que atualmente pertencem a outros países, como,
por exemplo, Siracusa, situada na Itália.
não pertenceriam mais à família do recém-admitido na comunidade de
sábios. É provável que esse seja um dos motivos para que parte das pessoas
dos locais em que os pitagóricos se instalavam os rechaçasse e até mesmo
os perseguisse (cf. JÂMBLICO, 1818; CORNELLI, 2010).
Apesar disso, os ideais pitagóricos resistiram por séculos, para além
da sociedade grega da Antiguidade e Platão (sec. IV a.C.), teve papel
importante para a difusão de tais ideias, inclusive por meio de textos que
descrevem diálogos supostamente ocorridos entre Sócrates e pitagóricos
como Timeu e Menon2. Por exemplo, em Timeu é exposto um modo de
se compreender a formação do universo embasada na forma e no número.
Segundo esse texto, a partir da sequência 1, 2, 3, 4, 8, 9 e 27, teriam sido for-
madas notas musicais que seriam inerentes aos astros celestes. O conjunto
dos sons de todos os astros era o que se denominava por “harmonia das
esferas”3. Timeu e outros escritos de Platão foram utilizados pela filosofia
cristã tanto na Antiguidade Tardia, quanto nos primeiros séculos da Idade
Média, como se pode observar pela obra de Santo Agostinho (sec. IV) e a
de Isidoro de Sevilha (sec. VII).
No entanto, conforme aponta Cornelli (2010) deve-se considerar
que a noção de “pitagorismo” é construída historicamente. Ou seja, trata-se
de uma categoria histórica, elaborada por meio dos diversos textos sobre
aqueles filósofos gregos, em diferentes épocas, tiveram e têm a sua dispo-
sição, e pelo modo como tais textos são socialmente interpretados. Assim,
por exemplo, Zeller, em seu livro de 1855 (cf. CORNELLI, 2010), conside-
rava como fonte privilegiada sobre os pitagóricos a obra de Aristóteles (sec.
IV a. C.). Por meio da leitura positivista que fez dela, divulga, no século
XIX, a famosa asserção que os pitagóricos defendiam: “tudo é número”.

2
Segundo o catálogo de nome de pitagóricos, inserido no livro de Jâmblico (1818), Timeu e
Menon foram pitagóricos provenientes de Crotona e viveram no séc. IV a.C.
3
Para maiores detalhes sobre a teoria musical pitagórica, sugerimos o capítulo de Carla
Patrícia Ferreira dos Santos, neste livro.

146
Considera também os textos de Filolau4 e, devido a isso, cita a doutrina
pitagórica da harmonia, do fogo central e da teoria das esferas. Coloca-se
contra a ideia de que o pitagorismo teria raízes nas filosofias orientais e des-
preza a dimensão política da Koinonía (comunhão) pitagórica. Também de
matiz positivista, já no início do século XX, seria o texto de Diels (cf. COR-
NELLI, 2010) que realiza a crítica sobre a historiografia anterior acerca da
atuação daqueles filósofos antigos. Diels utiliza o catálogo dos pitagóricos
encontrado em Jâmblico e, como Zeller, exclui de sua versão histórica a
atividade política e religiosa dos seguidores de Pitágoras.
Com o advento da História Nova, obras de outros historiadores,
como as de Cornford (1922) e de Minar (1942), buscaram integrar política,
religião e ciência em suas versões sobre a comunidade pitagórica (cf. COR-
NELLI, 2010). Para Cornelli (2010), haveria um modo de viver, ou seja,
um bios pitagórico baseado na comunhão de bens, na teoria da imortalidade
da alma (metempsicose), no desenvolvimento de teorias matemáticas e no
uso destas para uma explicação do funcionamento do universo. É necessá-
rio ressaltar que, para aqueles filósofos gregos, a aritmética, a geometria, a
música e a astronomia faziam parte de um mesmo corpo de conhecimentos,
conhecido durante a Idade Média, como quadrivium. A aritmética seria o
estudo dos números em repouso, a música, dos números em movimento,
enquanto a geometria seria o conhecimento das formas em repouso, e a
astronomia, das formas em movimento.
Algo observável é como a quantidade de textos acerca dos pita-
góricos se multiplica, no decorrer da história. Zeller (cf. CORNELLI,
2010) observa que, com o passar dos tempos, as fontes sobre os pitagóri-
cos, ao invés de diminuírem, aumentaram, e aponta neopitagóricos, como
Nicômaco de Gerasa (sec. I), Porfírio (sec. IV) e Jâmblico, como persona-
gens fundamentais para que isso ocorresse e também para a construção e
difusão de um conceito de “pitagóricos”.

4
Filolau de Crotona foi pitagórico e viveu entre os séculos V e IV a. C. Defendia que a Terra
estaria em movimento ao redor de um fogo central, que não seria o Sol, mas um astro não
visível pelo lado habitado da Terra. Entre tal fogo central e a Terra haveria uma antiterra.
Assim, juntamente com o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, o número
de corpos celestes seria dez, número que os pitagóricos consideravam perfeito.

147
O neopitagorismo floresceu em Alexandria entre os séculos I a.C. e
IV d.C. Compunha-se por um misticismo numérico pitagórico, pelo estoi-
cismo5, pela aceitação de alguns pontos do aristotelismo e por uma releitura
das ideias platônicas. Nicômaco, em sua Aritmética, realizou uma exposição
sobre a composição das “coisas” baseada na junção das ideias platônicas
com um misticismo numérico, segundo o qual, tudo no mundo teria uma
fundamentação numérica. Conforme Nicômaco:

Algumas das coisas, então – ambas, aquelas assim propriamente cha-


madas [a essência] e aquelas que simplesmente têm o nome [as que
existem no mundo sensível] – são unificadas e contínuas, por exemplo,
um animal, o universo, uma árvore, etc., que são propriamente e pecu-
liarmente chamadas de “magnitudes”; outras são descontínuas, lado a
lado organizadas e quando acumuladas são denominadas “multitudes”,
como uma pessoa, um coro, etc. Sabedoria, então, deve ser considerada
o conhecimento dessas duas formas (NICÔMACO, 1926, p. 183, tra-
dução nossa)6.
Tudo na natureza que tem sido arranjado por um método sistemático
no Universo parece em ambos, tanto em suas partes como no todo, ter
sido determinado e ordenado de acordo com o número, pela previsão e
mente daquele que criou todas as coisas; por um padrão que foi fixado,
como um rascunho preliminar, pelo domínio do número preexistente
na mente do criador do mundo, Deus (NICÔMACO, 1926, p. 189)7.

5
O estoicismo foi uma escola filosófica grega fundada por Zenão de Cício. Era um sistema
integrado pela lógica, pela física e pela ética, mas foi essa última que teve maior influência na
tradição filosófica, inclusive na cristã. O ideal dessa filosofia seria o viver em harmonia com a
natureza, dominando as paixões e suportando sofrimentos até atingir a completa indiferença
perante os acontecimentos. ( JAPIASSÚ; MARCONDES, 1996).
6
Things, then, both those properly so called and those that simply have the name, are some
of them unified and continuous, for example, an animal, the universe, a tree, and the like,
which are properly and peculiarly called ‘magnitudes’ ; others are discontinuous, in a side
by-side arrangement, and, as it were, in heaps, which are called ‘multitudes,’ a flock, for
instance, a people, a heap, a chorus, and the like. Wisdom, then, must be considered the
knowledge of this two forms. (NICÔMACO, 1926, p. 183)
7
All that has by nature with systematic method been arranged in the universe seems both
in part and as a whole to have been determined and ordered in accordance with number, by
the forethought and the mind of him that created all things ; for the pattern was fixed, like a
preliminary sketch, by the domination of number preexistent in the mind of the world-cre-
ating God (NICÔMACO, 1926, p. 189)

148
Para Nicômaco, assim como para os primeiros pitagóricos, a arit-
mética não seria um estudo de cômputos numéricos8, mas uma parte da
filosofia voltada ao estudo das propriedades e relações numéricas. A ela esta-
ria subordinado o estudo da música, das formas (geometria) e dos corpos
celestes (astronomia). Assim, no livro I, da obra Aritmética, esse neopitagó-
rico expõe os conceitos, classificações e propriedades dos números. No livro
II, a geometria nos é apresentada de um ponto de vista aritmético, por meio
dos números figurados e das relações entre eles.
Após Nicômaco, pensadores como Porfírio e Jâmblico, tanto quanto
Santo Agostinho, amalgamaram o neopitagorismo e o neoplatonismo, de
modo a formar a filosofia de base verificada em textos cristãos, durante
a maior parte da Idade Média. Esses conhecimentos serviram de contra-
ponto aos dogmas da escolástica, já no início da Idade Moderna, quando o
advento da imprensa, o acesso aos textos gregos antigos, tanto em suas tra-
duções árabes quanto latinas, e um novo modo de organização econômica
e social possibilitaram a pessoas da Europa, em inícios da Idade Moderna,
o acesso a conhecimentos da Antiguidade. Assim, verificamos em obras
de vários pensadores modernos a referência a conceitos ligados ao pita-
gorismo. Vejamos alguns exemplos de textos do século XVII, em que se
encontram noções pitagóricas.
René Descartes (1596-1650), em carta enviada para o orientalista
e matemático Jacob Golius9 (1596-1667), escrita em 16 de abril de 1635,
refere-se à teoria da metempsicose e da reminiscência socrática. Leibniz
(1646-1716), já no final do século XVII, toma emprestado dos pitagóricos
a ideia de mônada. Galileu Galilei (1564-1642) em O Ensaiador (1623) nos
relata que seu oponente, Sr. Sarsi, teria utilizado a autoridade dos pitagóri-

8
O ramo do conhecimento que se dedicava ao estudo das operações numéricas e ao uso dos
números em situações práticas era conhecido, entre os gregos da Antiguidade, por logística.
9
Jacob Golius (1596-1667) nasceu nos Reinos Germânicos. Foi para Leyden (1612) estudar
matemática. Em 1618, registrou-se também no estudo de línguas arábicas. Após o retorno,
em 1629, de uma viagem que realizou à Síria, tornou-se professor de matemática e de língua
árabe, na universidade de Leyden. Foi Golius quem apresentou o problema da extensão a
quatro retas do teorema de Pappus a Descartes, que o resolveria no apêndice Geometrie, do
Discurso do Método (1637).

149
cos para alicerçar suas argumentações sobre a natureza dos cometas, mas é
o próprio Galileu quem expressa claramente ideais pitagóricos ao afirmar:

Talvez considere a filosofia como um livro de fantasia de um homem,


como a Ilíada e Orlando Furioso, livros em que a coisa menos importante
é a verdade daquilo que apresentam escrito. Sr. Sarsi, a coisa não é assim. A
filosofia encontra-se escrita neste grande livro que continuamente se abre
perante nossos olhos (isto é, o universo), que não se pode compreender
antes de entender a língua e conhecer todos os caracteres com os quais está
escrito. Ele está escrito em língua matemática10 (GALILEU, 1996, p. 46).

Foi também na Idade Moderna que novas religiões cristãs emergiram,


a partir da Reforma Protestante. Nos meios burgueses protestantes, o acesso
ao conhecimento e suas aplicações ao trabalho estavam relacionados a uma
moral que objetivava a salvação, no Juízo Final. É nesse contexto que Amós
Comenius (1592-1670) elaborou seu livro para alfabetização de crianças,
o qual recorria a palavras do cotidiano infantil apresentadas por meio de
desenhos. É no Desenho do Mundo – Orbis Pictus (1657) – que encontra-
mos Pitágoras como exemplo de moral a ser seguida. No capítulo Filosofia
Moral, Comenius afirma: “A vida tem um caminho, ou duas vias, como
está subentendido na carta Y. de Pitágoras: 1. sobre o lado esquerdo, um
espaço estreito; 2. sobre o lado direito, [...]. Aquele pertence aos vícios, este
à virtude” (COMENIUS, 1887, p. 136). Tal passagem de Comenius pro-
vavelmente é derivada do texto de Jâmblico ou de textos que se remetem a
ele. Em seu livro, Vida Pitagórica, Jâmblico apresenta Pitágoras como uma
pessoa que, devido a uma educação esmerada e também a seu modo de ser
pretensamente divino, teria desenvolvido uma conduta moral norteada por
piedade, disciplina, quietude e serenidade, por um modo de vida transcen-
dentemente bom, por firmeza de espírito e por um corpo submisso à razão.
Ainda segundo aquele autor, Pitágoras, em suas preleções, teria exortado os
jovens a cultivar a aprendizagem de tais valores morais ( JAMBLICO, 1818).

10
Há que se ressaltar uma diferença básica entre o que afirma Galileu e as ideias pitagóricas,
pois, para Galileu, a matemática se configura como uma linguagem que expressaria as
verdades do universo, enquanto, para aqueles sábios gregos, o universo seria constituído por
números, ou seja, pela junção de mônadas que seriam unidades.

150
Nos primeiros séculos da Idade Moderna, a matemática ganhou
proeminência, não apenas por suas aplicações práticas, mas principalmente
porque tais aplicações possibilitavam à classe burguesa disseminar um dis-
curso sobre a utilidade do conhecimento e sua importância para o trabalho
e, por consequência, questionar o velho modo de vida contemplativa da
nobreza e de setores da Igreja Católica. Tais setores ainda tinham por base
os ensinamentos da escolástica aristotélica, cujo conteúdo de ensino reser-
vava uma minúscula parte à matemática (cf. BRITO, 2012; BRITO, 2014).
Assim, a matemática fez parte da rede de discursos de poder que buscavam
fundamentar as práticas sociais burguesas. Essa rede foi inserida na educa-
ção escolar para participar da formação daqueles que dariam continuidade
ao projeto social burguês.
A relação entre o ensino de matemática e a apologia ao conheci-
mento útil está presente, por exemplo, em textos de Joaquim Jungius11
(1587 – 1657). Quando se tornou reitor do Ginásio de Hamburgo, Reinos
Germânicos, em 1629, esse pensador realizou um discurso, intitulado Sobre
a Utilidade Propedêutica Da Matemática Para o Estudo da Filosofia – Über
Den Propëdeutischen Nutzen Der Mathematik Für Das Studium Der Philoso-
phie – em que defendia o ensino de matemática às crianças e adolescentes
e se opunha a conceitos provindos dos ensinamentos da escolástica, con-
forme observamos no trecho a seguir:

Pois, a criança e o adolescente jovem não desprezam e descobrem os


números e as figuras, as quais admiram, exploram e com as quais se
deleitam [...], ao contrário dos adultos cujo intelecto está ocupado com
a quinta essência do céu, com a matéria eterna sublunar, com o mo-
vimento inteligente das órbitas, com qualidades ocultas ( JUNGIUS,
1629, p. 103, tradução nossa)12.

11
Joaquim Jungius (1587 – 1657) era luterano e nasceu em Lübeck, Reinos Germânicos.
Formou-se matemático e médico em Rostock e obteve o título de doutor em Pádua. Com
seu amigo Johann Adolf Tassius (1585 – 1654) fundou, em 1622, da Sociedade Ereunética,
que tinha aproximações com o movimento Rosacruz.
12
Puer itaque aut adolescentulus vilia haec non fastidiet, invenient in numeris, in figuris
quod miretur, quo delectetur, quod rimetur, [...] contra adultioribus quorum intellectus iam
quinta coeli essential, materia sublunarium aeterna, intelligentiis orbium motricibus, occul-
tis qualitatibus ( JUNGIUS, 1629, p. 103).

151
Nessa retomada da importância da matemática para a educação, con-
ceitos pitagóricos e neopitagóricos voltaram a ter proeminência, inclusive
em livros textos utilizados em Ginásios Acadêmicos protestantes.
A necessidade de formar pessoas imbuídas dos ideais burgueses – e
também dos protestantes – foi uma das razões da criação dos Ginásios Acadê-
micos, Akademishe Gymnasium, nos Reinos Germânicos. O primeiro Ginásio
Acadêmico era católico e foi fundado pelos jesuítas, em 1552, na região do
Tirol. O primeiro Ginásio protestante foi criado em 1556 em Estrasburgo
e, segundo Schubring (2002), era um novo tipo de instituição que tinha por
intuito ensinar novos idiomas e o conhecimento filosófico de então aos alu-
nos que já dominavam o latim. Em tais ginásios, o ensino estava dividido em
classes, mas elas não eram as mesmas em todos eles. No Ginásio Acadêmico
protestante luterano de Hamburgo, fundado em 1613, havia classes de grego,
hebraico, lógica, filosofia natural, ética, física e matemáticas. Abordaremos, a
seguir, conteúdos de alguns dos livros textos utilizados nesses ginásios.
Entre os séculos XVI e XVII, na Europa, houve um grande aumento
de livros textos publicados com o intuito de serem utilizados na educação
escolar. Podemos considerar que tal incremento, nesse período, foi possi-
bilitado, entre outros fatores, pela maior rapidez na impressão dos livros,
circulação maior de dinheiro, abertura de um mercado consumidor de
mapas e livros impressos, além do pressuposto protestante de que todos,
independente de serem homens ou mulheres, deveriam saber ler. É nesse
contexto que foram impressos livros utilizados no Ginásio de Hamburgo,
como, por exemplo, o Geometria Empírica.
Na abertura do posfácio de seu livro Geometria Empírica (1630), Jungius
cita o neoplatônico Proclus (sec. V), segundo o qual, “aqueles que desprezam
o conhecimento da disciplina matemática têm uma degustação mínima do
prazer que ela proporciona” ( JUNGIUS, 1630, p. 35)13. Em outro trecho, para
certificar a utilidade dessa área de conhecimento, Jungius assevera:

[...] aqueles que comentam as disciplinas matemáticas para além da


mesmice, falam de Erastótenes, dos martelos de Pitágoras, da pomba

Traduzido de “Qui disciplinarum Mathematicarum cognitionem contemnunt, voluptares,


13

quae in ipsis sunt, minime degustarunt”.

152
voadora de Archytas, da determinação da quantidade de ouro na coroa
de Hierão, as roldanas e a cochlea de Arquimedes, o Athos de Dinocra-
tis, as esferas armilares e sextantes de Tycho e o louvável telescópio de-
senvolvido por Galileu ( JUNGIUS, 1630, posfácio, tradução nossa)14.

Nessa passagem, Jungius faz referência aos estudos de Arquimedes


e aos de Erastótenes, ao suposto experimento com martelos para o estudo
da harmonia musical, de Pitágoras, à invenção de um suposto mecanismo
voador em forma de pássaro, atribuído ao pitagórico Arquitas de Tarento
(sec. V a.C.) e à cidade que teria sido construída sobre o monte Athos pelo
pitagórico Dinocrates (sec. IV a.C.). Ou seja, Jungius invoca feitos supos-
tamente atribuídos aos pitagóricos para comprovar a grandeza e utilidade
da matemática e, ao fazer isso, divulga uma ideia de que estudos dos pita-
góricos estariam voltados às questões práticas.
Antes de Jungius, Petrus Ramus15 (1515-1572) escreveu o livro I
da obra Das Escolas Matemáticas – Scholarum Mathematicarum, livro texto
bastante usado nos meios educacionais protestantes. Nessa obra, Ramus, a
partir da leitura do livro do neoplatônico Proclus, afirmava que os pitagóri-
cos Leo, Hermotimus, Arquitas, Eudoxo, além do próprio Pitágoras, teriam
sido nobilíssimos inventores da matemática (cf. RAMUS, 1599). Segundo
ele, a matemática seria uma arte de utilidade popular, “[...] a aritmética é
tratada nos negócios, as dimensões da terra se conhece graças à geometria
e tem seu lugar nobre na teologia pelo mérito de cultivar o profetizado”
(RAMUS, 1599, p. 42)16. Apesar de se referir várias vezes, em sua obra, a
Pitágoras e a outros pitagóricos, sua geometria e a aritmética não seguem
aquela encontrada nos Elementos de Euclides, nem a obra do neopitagórico
Nicômaco de Gerasa. Em vez disso, Ramus fornece ao leitor uma aborda-

14
Qui Mathematicas disciplinas commendant, eorumalius mesolabium Eratosthenis, alius
malleos Pythagorae, alius columbam volantem Archytae, coronam auream Hieronis, polys-
pasta et cochleas Archimedis, alius Dinocratis Athon, alius armillas et sextantes Tychonicos,
aut telescopium Galilaei laudibus extollit ( JUNGIUS, 1627, posfácio).
15
Petrus Ramus é o nome latinizado do filósofo francês calvinista Pierre de la Ramée.
Traduzido de “Arithmeticam tractandae mercaturae, Geometria dimetiendae terrae gratia,
16

& a nobis suo loco theologia illa pro merito suae divinitatis excoletur”.

153
gem prática dos conhecimentos matemáticos com algoritmos das operações
aritméticas e discussões sobre a geometria como “arte de bem medir”.
Diferentemente da aritmética de Ramus, na encontrada no livro
Compêndio de Aritmética Empírica (1626) – Arithmeticae Empiricae Com-
pendium, de Johann Adolf Tassius (1585 – 1654), professor de matemática
do Ginásio Acadêmico de Hamburgo – apesar de as quatro operações arit-
méticas serem citadas, seus algoritmos não são abordados. O livro inclui
em seus conteúdos definições similares às da obra de Nicômaco de Gerasa,
iniciando-se pela definição de número. A definição de número no livro de
Tassius assemelha-se àquela apresentada no livro de Nicômaco, como se
pode constatar abaixo:

Número é a adição de outros números, ou a adição de mais de dois nú-


meros entre si, visto que a partir da unidade os números são feitos, ou
seja, todos constam de unidades (TASSIUS, 1683, p. 1, tradução nossa)17.
Número é uma multitude limitada ou a combinação de unidades ou o
fluxo da quantidade feita de unidades; e a primeira divisão do número
é em pares e ímpares (NICÔMACO, 1926, p. 190, tradução nossa) 18.

O segundo capítulo do livro do professor de matemática do Ginásio


Acadêmico de Hamburgo inicia-se com a definição de números pares e
ímpares que recorrem à noção de medida, pois Tassius afirma que núme-
ros pares são aqueles que podem ser medidos de forma binária, e ímpares
seriam os demais. Já Nicômaco define pares como aqueles que podem ser
divididos em duas partes iguais, sem que sobrem unidades, e ímpares aque-
les cuja divisão em duas partes faz restar uma unidade. Nicômaco ainda
esclarece que essa concepção é a ordinária da doutrina pitagórica.
A seguir, as obras desses dois autores definem números parmente
par, imparmente ímpar e imparmente par, no entanto, tais definições não

17
Numerus numero addi, sive duo pluresve numeri inter si addi dicintur, cum ex ijis fit unus
numerous, qui totidem constat unitatibus (TASSIUS, 1983, p. 1).
18
Number is limited multitude or a combination of units or a ftow of quantity made up
of units; and the and the first division of numbers is even and odd (NICÔMACO, 1926,
p. 190).

154
usam os mesmos termos. Por um lado, Tassius continua a recorrer à ideia
de medida em tais definições, por exemplo, afirma que 24 é um número
imparmente par, pois pode ser medido tanto por 4 e 8, quanto por 3. Nesse
compêndio de aritmética são dados exemplos das séries de números par-
mente pares (2, 4, 16, 32 etc.) e imparmente pares (6, 10, 14 etc.). Por outro
lado, Nicômaco explica tais números pela multiplicação dos fatores que os
resultam, por exemplo, a multiplicação de números, a partir da unidade, por
razão 2, resulta em uma sequência de números parmente pares. Deve-se
observar que, ao contrário dos escritos de Nicômaco de Gerasa e de textos
da Idade Média, tais como os de Isidoro de Sevilha e Boécio (sec. V), as
séries exemplificadas no livro de Tassius não se iniciam pelo 1.
A seguir, apresentam-se, em forma de teoremas, as propriedades de
tais números, mas, enquanto Tassius se atém à análise da adição, subtração e
multiplicação entre esses diferentes tipos de números, a obra de Nicômaco
realiza uma análise das sequências numéricas resultantes de tais números,
indicando as relações entre elas. Ao fim dessas partes, ambos os textos defi-
nem números primos e números compostos. Deve-se observar que, a partir
dessas definições, o neopitagórico utiliza o termo “medir” para se referir à
divisão entre números. Nicômaco apresenta o crivo de Eratóstenes para a
determinação de primos, enquanto Tassius propõe a elaboração do crivo em
um problema, mas sem citar sua denominação.
Os textos seguem com definições muito próximas de número perfeito.
Tal número é comparado com os superabundantes e com os deficientes, ou
seja, aqueles cuja soma dos divisores próprios é maior que o número e aqueles
em que essa soma resulta em um número menor, respectivamente. O Com-
pêndio de Aritmética afirma que todos os números perfeitos são pares e os
exemplifica com os oito números perfeitos conhecidos até então. Na época de
Nicômaco, os números perfeitos conhecidos eram apenas 6; 28; 496 e 8128.
Porém, no capítulo XVI do livro I, o neopitagórico nos apresenta uma forma
de obter os demais números perfeitos. Conforme é exposto em capítulo ante-
rior, tal método foi confirmado por Euler, no entanto, deve-se ressaltar que
por meio dele só são obtidos os números perfeitos pares.
Outro conceito abordado em ambos os livros é o de divisor comum,
denominado por Nicômaco de medida comum. Ambos os autores inserem

155
essa discussão naquela sobre dois números serem ou não primos entre si.
Tassius afirma que divisor comum ou medida comum é aquela que é comum
a dois números, sendo o máximo divisor comum o maior número entre
todos os divisores comuns. O método das subtrações sucessivas é apresen-
tado ao leitor como um teorema sobre o tema, sem exemplos numéricos.
Nicômaco expõe tal método e o exemplifica pela determinação entre o divi-
sor comum entre 23 e 45: subtraindo 23 de 45, resta 22. Então, se subtrai 22
de 23 e a diferença é 1, portanto, eles são primos entre si. Outro exemplo
usado pelo neopitagórico é a determinação do divisor comum entre 21 e 49:
deve-se subtrair 21 de 49, o resto é 28. Em seguida, se subtrai novamente
21 de 28, o resto é 7. Então, se subtrai 7 de 21, quantas vezes for possível e
o resto é zero. Portanto, 7 é o maior divisor comum entre os números e eles
não são primos entre si.
Na obra de Euclides, a discussão sobre a existência ou não de uma
medida comum a outras duas está relacionada ao conceito de comensura-
bilidade entre segmentos, pois, se tal medida comum existe, os segmentos
serão comensuráveis, inclusive se os números que expressam as medidas
forem primos entre si. Em caso contrário, eles são incomensuráveis, como,
por exemplo, a medida do lado e a da diagonal de um quadrado. No entanto,
nem Tassius nem Nicômaco abordam a questão da comensurabilidade em
seus textos.
Após essas partes, os dois livros diferem, pois, enquanto o elaborado
na Antiguidade Tardia envereda por uma discussão sobre múltiplos e sub-
múltiplos, o da Idade Moderna segue analisando razões e proporções.
Portanto, concluímos que a matemática pitagórica se fez presente,
em livros didáticos, tanto pela exaltação de sua importância para aplicações
práticas, quanto por conceitos e modos de apresentação de tais conceitos
desenvolvidos por aqueles filósofos.
Assim, percebemos que a necessidade de se formar pessoas dentro
da ideologia burguesa ocasionou uma mobilização, em textos para o ensino
da matemática do século XVII, de referências a Pitágoras e aos pitagóricos.
Tais referências buscavam atestar, segundo a autoridade daqueles filósofos
gregos, a importância da utilidade prática desse ramo do saber, o que ia ao

156
encontro do discurso da superioridade do trabalho em relação à vida con-
templativa. É Comenius, em sua Didática Magna (1657), quem nos diz que
nas escolas não se deveria tratar

[...] senão daquelas coisas que são solidamente úteis para a vida presen-
te e para a vida futura; mais ainda para a vida futura. (Nesta terra, com
efeito, devem aprender-se, segundo o aviso de S. Jerônimo, precisamen-
te aquelas coisas cujo conhecimento continuará no céu) (COMENIUS,
2006, p. 251).

Nesse contexto, se formou uma noção de Pitágoras e dos pitagóricos


não apenas como filósofos gregos, mas como autoridades a serem seguidas
tanto no que tange à produção de uma matemática prática que desvendava
o universo, quanto como referência moral.
Desde então, o ensino de matemática tem participado da educação
formal de crianças e adolescentes. Afirma-se que o ensino dessa disciplina
objetiva não apenas fornecer um instrumental teórico útil à vida diária das
pessoas, mas também formar maneiras de raciocinar – o que nós professores
chamamos de “pensar matematicamente”. Currículos e materiais didáticos
reafirmam a utilidade dessa área do conhecimento sem, no entanto, revelar
que a relação matemática-utilidade é histórica. A atual importância que se
dá à matemática nas avaliações internacionais não surgiu do acaso; ela se
insere em uma história do papel que a matemática tem desempenhado no
desenvolvimento do capitalismo, história essa que passa pelo ensino dessa
área nos ginásios acadêmicos do século XVII.
Entendemos que a reflexão sobre os caminhos pelos quais a mate-
mática se tornou um objeto de ensino escolar e a análise dos elos históricos
que ela manteve, e ainda mantém, com outros discursos de poder podem
colaborar para que professores reavaliem algumas crenças sobre ela – como,
por exemplo, que saber matemática é vocação ou que aqueles que aprendem
matemática são mais inteligentes que os outros – e a tornem realmente útil
na vida de seus alunos, para que tenham uma atuação cidadã na sociedade.

157
Referências

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rie Philosophique J. Vrin. 1969.

BRITO, A. J. O ensino de matemática no século XVII: entre a religião e as disputas políti-


co-econômicas. Revista Zetetiké, Campinas, v. 20, n.38, p.11-35, jul./dez. 2012,.

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Edição Bilíngue latim/alemão. In MEYER, A. (ed) Festschrift der Hamburgischen Uni-
versität: Beiträge zur Jungius-Forschung. Hamburg: Paul Hartung Verlag, 1929.

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NY: Macmillam Company, 1926.

RAMUS, P. Scholarum mathematicarum libri unus et triginta. Francofurti: Claudium


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TASSIUS, A. Arithmeticae empiricae compendium. Zacharie Hertelli: Hamburg, 1683.

158
7. SOBRE MÉDIAS PITAGÓRICAS E MÉDIAS NOS
LIVROS ESCOLARES DE MATEMÁTICA DO
BRASIL (1900-1970)

Sérgio Candido de Gouveia Neto

“Somos todos Pitagóricos”


(RIZEK, 2000)

Introdução

No prefácio do livro Pitágoras e o tema do número, de Mário Ferreira


dos Santos (SANTOS, 2000), o professor Ricardo Rizek divide a pater-
nidade do pensamento ocidental entre Parmênides, Platão e Pitágoras;
ao último, é atribuído o papel de pai de toda nossa arte, principalmente a
musical, pois Pitágoras teria contribuído para a teoria musical. Para Santos
(2000), é mais do que isso, já que a “ciência moderna é mais pitagórica do
que foi em qualquer tempo” (p. 71). Contudo, é importante notar que a
ciência moderna separa o número das coisas, diferentemente dos pitagóri-
cos, que consideravam o número como parte das coisas.
Santos (2000) também chama a atenção para a questão de que o
pitagorismo passou por diversos estágios e recebeu contribuições das mais
diversas origens. De uma maneira geral, isso corrobora a observação do filó-
sofo alemão Eduard Zeller (cf. CORNELLI, 2011) de que, com o passar
do tempo, as fontes sobre o pitagorismo aumentam em vez de diminuir, já
que há muitas interpretações e elas acabam tornando-se fontes também.
Assim, de acordo com Cornelli (2011), Zeller pôde concluir que a doutrina
pitagórica, conhecida atualmente, é mais neopitagórica do que aquela rece-
bida pelos testemunhos antigos. Se entendermos o pitagorismo como uma
categoria construída historicamente, como mostra Cornelli (2011), pode-
mos compreender o porquê de ele estar tão presente na nossa cultura, uma
vez que está a todo momento sendo construído e reconstruído, servindo a
diversas finalidades.
Conforme vimos nos capítulos anteriores, o pitagorismo espalhou
suas raízes na música, na arquitetura, nas ciências e no meio escolar. De
acordo com Brito – capítulo anterior –, a Matemática ganhou proemi-
nência a partir do advento da burguesia no século XVII, principalmente
quando os burgueses buscaram nessa ciência um discurso que justificasse
suas aplicações. Essa retomada foi carregada de conceitos pitagóricos e
neopitagóricos, principalmente nos livros de textos escolares dos séculos
XVI e XVII.
Assim, pretendemos estender esta análise para os livros escolares de
matemática do Brasil, nos primeiros setenta anos do século XX1, e realizar
uma discussão sobre as definições e o conceito pitagórico das médias (arit-
mética, geométrica e harmônica) ao longo dos anos. Para tal, consultamos
os livros destinados ao ensino escolar brasileiro do século XX (aritmética
e geometria), que fazem parte do acervo dos repositórios do Grupo de
Pesquisa História e Educação Matemática (Hedumat) da Universidade
Federal Fluminense, coordenado pelo professor Bruno Alves Dassie, e o
do Grupo de Pesquisa em História da Educação Matemática (Ghemat),
coordenado pelo professor Wagner Rodrigues Valente.
Dentre os diversos temas pitagóricos e neopitagóricos, conforme já
demostrado nos demais capítulos, a escolha pelas médias surgiu das dis-
cussões realizadas no grupo de estudo sobre o pitagorismo. Numa das
apresentações que realizamos, discutimos como termos Pitagóricos apare-
ciam e desapareciam dos livros de Matemática destinados ao ensino escolar,
tais como a Tábua de Pitágoras, os números figurados, a ideia de máximo
divisor comum, mínimo múltiplo comum, números primos, amigáveis etc.
Na apresentação, chamou-nos a atenção o caso das médias, principalmente
pelas mudanças das definições e posições do tema dentro do currículo,
como assunto de aritmética no início do século XX e, atualmente, como

1
A opção por esse recorte temporal é em função do banco de dados de livros consultado
por nós, os quais disponibilizam, em sua maioria, livros publicados desde o século XIX até
a década de 1970, do século XX.

160
um tópico de estatística. Nesse sentido, questionamos como a noção de
média mudou ao longo do tempo e, principalmente, dentro do currículo de
Matemática escolar brasileiro.
Assim, o presente capítulo tem como objetivo fazer uma análise do
conceito de médias, inicialmente em um texto Pitagórico antigo, como o de
Nicômaco, o qual estabelece as médias por meio dos conceitos de propor-
ções. Posteriormente, estenderemos as diversas mudanças das definições de
médias, contidas nos livros de Matemática Escolar do Brasil, nos primeiros
setenta anos do século XX.

Das proporções em Nicômaco aos diversos conceitos de médias nos


livros de Matemática Escolar do Brasil

No capítulo XXII, livro II, do seu Introduction to Arithmetic, Nicômaco


de Gerasa assim se pronuncia sobre os casos especiais de proporções:

As primeiras três proporções, que são reconhecidas por todos os anti-


gos, Pitágoras, Platão e Aristóteles, são as aritméticas, geométricas e
harmônicas; e há outras três subcontrárias a elas, que não têm nomes
próprios, mas são chamadas, em termos mais gerais, de quarta, quinta e
sexta formas. Depois disso, os modernos também descobriram quatro
outras, constituindo o número dez, o que, de acordo com a visão de
Pitágoras, é o mais perfeito possível. De acordo com esse número, de
fato, não há muito tempo, as dez relações foram observadas para tomar
seu número apropriado, as chamadas dez categorias, as divisões e for-
mas das extremidades de nossas mãos e pés, e inúmeras outras coisas
que devemos pôr no lugar apropriado (NICÔMACO, 1926, p. 266,
tradução nossa)2.

2
Te first three proportion, then, which are acknowledge by all ancients, Pitágoras, Plato, and
Aristósteles, are the arithmetic, geometric, and harmonic; and there are three others subcon-
trary to hem, which do not have names of their own, but are called in more general terms
the fourth, fifth, and sixth forms of mean. After which the moderns discover four others as
well, making up the number ten, hich, according to the Pitágoras view, is the most perfect
possible. It was in accordance with this number indeed that not long ago the ten relations
were observed to take their proper number, the so-called ten categories, the divisons and
forms of the extremities of our hands and feet, and countless other things which we shall
notice in the proper place. (NICÔMACO, 1926, p. 266).

161
Para Nicômaco, as proporções eram dez, sendo que as três principais
seriam a aritmética, a geométrica e a harmônica. Ele analisa a relação entre
essas proporções e o comportamento delas em relação aos seus termos:

[...] uma coisa que todos os escritores anteriores também observaram,


as razões entre os termos menores são maiores, em comparação com
aqueles entre os termos maiores. Será mostrado que, na proporção
harmônica, pelo contrário, as proporções entre os termos maiores são
maiores que entre os menores3, por isso a proporção harmônica é sub-
contrária à aritmética, e a geométrica está no meio delas, por assim
dizer, entre os extremos, essa proporção tem os índices entre os termos
mais amplos e aqueles entre o menor igual, e vimos que o igual está
no meio entre o maior e o menor. [...] (NICÔMACO, 1926, p. 269,
tradução nossa)4.

Em nossa análise dos livros de matemática destinados ao ensino nas


escolas brasileiras, encontramos uma discussão semelhante sobre as médias
aritméticas e geométricas na obra Noções de Arithmetica – para uso das esco-
las primárias, de F. Marcondes Pereira5, publicado em 1905, pela Editora
Aillaud e Cia, Paris:

[...] Média differencial ou meio arithmetico – é o meio de uma equidi-


fferença contínua. Diz-se que uma equidifferença é contínua, quando
os seus meios ou os seus extremos são eguaes; assim: 8 – x = x – 4. O

3
O tradutor da obra de Nicômaco mostra um exemplo: Na série 1, 2, 3, comparando a razão
dos termos menores (1,2) com os termos maiores (2,3) – 2:1 > 3:2. Em comparação com os
termos de uma progressão harmônica 3,4,6 temos 4:3 < 6:4. A proporção geométrica ocupa
o meio entre a proporção aritmética e harmônica. Assim, dado 1,2,4 – 2:1=4:2
4
[...] a thing which all previous writers also have noted, the rations between the smaller
terms are larger, as compared to those between the greater terms. It will be shown that in
the harmonic proportion, on the contrary, the ratios between the greater terms are greater
than those between the smaller, for this reason the harmonic proportion is subcontrary to
the arithmetic, and the geometric is midway them, as it were, between extremes, for this
proportion has the ratios between the greather terms and those beween the smaller equal,
and we have seen that the equal is in the middle ground between the great and the less.
(NICÔMACO, 1926, p. 269).
5
Sobre o professor F. Marcondes Pereira, sabemos que ele era engenheiro civil e ‘Lente’ de
Aritmética e Álgebra do Liceu do Ceará.

162
valor do meio ou média diferencial é: 8+4=2x ou 2x=12, donde x =
12/2=6. Logo, a média Arithmetica entre duas quantidades – é igual à
semi-somma (metade da somma) dos extremos. Ou, se é extremo, como
na equidifferença: x – 2 = 8 – x, temos: 2x=10, donde x=5, o valor de x é
então a semi-soma dos meios (PEREIRA, 1905, p. 121).

Pereira (1905), continuando as discussões sobre as proporções, define


assim a média geométrica:

[...] Média proporcional ou meio geométrico – é o meio – desconhe-


cido – de uma proporção contínua, isto é, que tem os dois meios ou
os dois extremos eguaes. Exemplo: a proposição 18:x::x:2 é contínua
e x é a média proporcional entre os extremos 18 e 2. Determina-se o
seu valor pela propriedade fundamental: 18.2=x.x ou 36 = x2, donde x
= =6. Logo, a média proporcional entre duas quantidades (18 e 2)
é egual à raiz quadrada do produto dessas quantidades (PEREIRA,
1905, p. 122).

Novamente, em outro livro publicado quase na mesma época, em


1910, pela Typografia do Jornal do Commercio, a Arithmetica Elementar, de
Antonio Monteiro de Souza6, apresenta uma definição muito próxima para
as médias aritméticas e geométricas:

[...] Em toda a equidifferença contínua7, o meio differencial é igual


à metade da somma dos extremos (média aritmética) [...] (SOUZA,
1910, p. 152).
...
[...] Em toda a proporção contínua o meio proporcional é igual à raiz
quadrada do produto dos extremos [...] (média geométrica) (SOUZA,
1910, p. 152).

6
Antonio Monteiro de Souza foi diretor e lente de Matemática Elementar do Ginásio
Amazonense e cursos anexos, no Estado do Amazonas.
7
Para Souza (1910), “equidifença contínua é aquella em que os meios são iguais” (p. 150).

163
Além de as médias proporcionais aparecerem em assuntos de arit-
mética, elas estavam presentes como tópicos dos livros de geometria, e é o
caso, por exemplo, do ponto contido no livro Curso Completo de Matemá-
tica Elementar, de Liberato Bittencourt, publicado em 1922, pelas Oficinas
Gráficas do Ginásio de Santos. Em seu livro, há dois pontos em que ele
trata das médias proporcionais. No capítulo denominado Teoria da Seme-
lhança, há o seguinte teorema:

Teorema: a perpendicular ao diâmetro, por um ponto qualquer da cir-


cunferência, é média proporcional entre os segmentos que ela determi-
na sobre o diâmetro.
Seja AD perpendicular ao diâmetro BC. Tracemos AB e AC: o triân-
gulo BAC será rectângulo em A, sendo AD a respectiva altura. Ter-se-
-á, portanto:

ou =m.n (BITTENCOURT, p. 111, 1922).

Esse Teorema foi usado posteriormente para abordar o seguinte


problema:

1º Problema: achar a média proporcional entre duas rectas dadas.

Sejam m e n as rectas dadas. Sobre a recta AX, tomem-se as distâncias


BD=m e DC=n e sobre BC, como diâmetro, construa uma circunfe-
rência: a perpendicular ao diâmetro, AD, será a média proporcional
pedida. Porque a perpendicular ao diâmetro é média proporcional entre
os segmentos por ele determinados. (BITTENCOURT, p. 115, 1922,
grifo do autor).

Nos dois pontos, ele utilizou a imagem de um triângulo inscrito numa


circunferência para tratar a questão da média proporcional (Figura 1).

164
Figura 1 – Imagem do livro Curso Completo de Matemática Elementar, de Liberato
Bittencourt, para tratar sobre as médias proporcionais

Fonte: Bittencourt (1922)

A proporção harmônica foi abordada nesses livros como parte inte-


grante da geometria. Isso aparece, por exemplo, na terceira edição do livro
Elementos de Geometria, de André Perez y Marin e Carlos Francisco de
Paula, publicado em 1912, pela Companhia Editora Melhoramentos. No
item 123, a proporção harmônica é assim definida:

Proporção harmônica – Quando dois pontos, taes como M e M’, di-


videm o segmento AB de tal modo que os segmentos additivos são
proporcionaes aos subtractivos, diz-se que elles dividem harmonica-
mente o segmento AB, ou que são conjugados harmônicos em relação
a AB. [...] chama-se proporção harmônica e escreve-se commumente
da seguinte forma:

(PEREZ y MARIN; PAULA, p. 66, 1912).

165
Nota-se, assim, que essas definições de médias proporcionais e pro-
porção harmônica são muito diferentes daquelas presentes no texto de
Nicômaco. Contudo, percebe-se uma ausência de discussões ou de apli-
cações para a proporção harmônica8 do ponto de vista aritmético, já que
há semelhanças entre as definições de médias – aritméticas e geométricas
– contidas nesses livros e as acepções presentes no texto de Nicômaco.
Outra questão a ser observada é que as discussões sobre as médias
aritméticas e geométricas aparecem nos capítulos que tratam das razões
e proporções ou em tópicos que antecedem os assuntos de regra de três
e regra de juros simples, como na Arithmetica Elementar, por exemplo, de
Antônio Monteiro de Souza (SOUZA, 1910).
Apesar disso, esses livros que analisamos apresentam outra definição
para média aritmética, que se tornará mais presente em publicações poste-
riores de outros autores. Souza (1910), por exemplo, define a regra do termo
médio:

[...] O termo médio entre dois números é o quociente da somma desses


dois números dividida por 2, entre três, o quociente da somma dos três
divididos por 3; entre quatro, o quociente da somma dos quatro dividi-
da por 4 e assim por diante. Portanto:
Regra: para achar o termo médio entre dois números ou mais núme-
ros divide-se a sua somma pelo número deles (SOUZA, 1910, p. 170,
destaque do autor).

Semelhante ao caso das médias aritméticas e geométricas, essa


definição de termos médios aparece como aplicações em assuntos de mate-
mática comercial e financeira, como no seguinte problema para resolver,
proposto no livro: “[...] Uma pessoa comprou 8 kg de farinha a 800 réis, 5
a 400 réis e 12k a 300 réis; qual o preço médio de 1 kilograma?” (SOUZA,
1910, p. 171).

8
Dados três números a, b e c, a média harmônica é o número de membros dividido pelas

somas dos inversos dos números a, b e c, ou seja, MH =

166
Em outros livros de anos posteriores, essa definição de termo médio
apareceu junto à média proporcional (geométrica). O livro de Zanello,
Aritmética primária, publicado em 1941, pela Companhia Editora Nacio-
nal, representa tal questão:

Médias – média aritmética ou simplesmente média de dois ou mais


números é o quociente da divisão da soma desses números pelo seu
número. Assim, a média aritmética dos números 6; 8; 0,4 e 2,6 é:

=
Denomina-se proporção contínua aquela cujos meios são iguais. Ao
meio de uma proporção contínua chama-se média proporcional ou mé-
dia geométrica entre os dois extremos. Assim, para a proporção =
é contínua e 6 é a média proporcional ou média geométrica entre os
extremos 4 e 9. (ZANELLO, 1941, p. 195, destaque do autor).

Entretanto, mesmo havendo uma mistura de definições, elas conti-


nuam como aplicações de assuntos de matemática comercial e financeira.
Já não é o caso de livros publicados na década de 1950, analisados neste
ensaio, nos quais o conceito de média aritmética passou a ser uma aplicação
da estatística, como uma medida de posição. O livro Matemática e Estatís-
tica – para os Institutos de Educação e Escolas Normais, de Osvaldo Sangiorgi
(1956, p. 227), é um exemplo disso:

Médias aritméticas simples. Chama-se média aritmética de uma sé-


rie de valores ao quociente da divisão da soma desses valores pelo seu
número. Indicando os diversos valores (n) que uma variável x da série
pode assumir por: x1, x2, x3, ..., xn e, por Ma a média aritmética, temos:
(SANGIORGI, 1956, p. 227).

Consultamos outros livros de Sangiorgi e não encontramos nenhuma


definição de média, principalmente aquelas relacionadas ao Movimento da
Matemática Moderna (MMM). Além dos livros de Sangiorgi, disponibi-
lizados no banco de dados on-line de livros do Ghemat, examinamos obras
de autores que, de alguma forma, estavam relacionados ao MMM. Assim,

167
por exemplo, textos que continham o termo “matemática moderna”, ou
mesmo de autores conhecidos como participantes do MMM, caso de Lucí-
lia Bechara; Manhúcia Limberman e Anna Franchi. Em nenhum deles
continha o assunto de ‘médias’.
Contudo, fica a questão: como foi trabalhado o assunto sobre as
médias (aritmética, geométrica e harmônica) nas escolas brasileiras durante
as décadas de setenta e oitenta do século XX, se as principais referências
bibliográficas não abordaram o tema? No entanto, é possível que tais tópicos
tenham sido apropriados ou delegados ao desenho geométrico, muito embora
não tenhamos analisado os livros de desenho geométrico daquele período.
Mais recentemente, a média aritmética passou a constar como
assunto nos Parâmetros Curriculares Nacionais de Matemática de primeira
à quarta série (BRASIL, 1997), isto é, na parte relativa ao tema transversal
meio ambiente e na parte relativa ao tratamento da informação (estatística),
em que o objetivo é “obtenção e interpretação de média aritmética” (BRA-
SIL, 1997, p. 59). Assim:

A compreensão dos fenômenos que ocorrem no ambiente – poluição,


desmatamento, limites para uso dos recursos naturais, desperdício – terá
ferramentas essenciais em conceitos (médias, áreas, volumes, proporcio-
nalidade, etc.) e procedimentos matemáticos (formulação de hipóteses,
realização de cálculos, coleta, organização e interpretação de dados esta-
tísticos, prática da argumentação, etc.). (BRASIL, 1997, p. 27).

Na Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Ensino Médio,


documento mais recente, o tópico sobre média está na parte de probabili-
dade e estatística, na Unidade Curricular I: “Utilizar a média, a mediana e
a amplitude para descrever, comparar e interpretar dois conjuntos de dados
numéricos obtidos nas pesquisas realizadas pelos estudantes, em termos de
localização (centro) e dispersão” (BRASIL, 2016, p. 570).
Entretanto, isso não significa que o tema das médias (aritmética,
geométrica e harmônica) tenha sido abandonado. As médias ainda estão
presentes nos livros didáticos de Matemática, principalmente a média arit-

168
mética, com aplicações, sobretudo, no campo do tratamento da informação
(ANJOS; GITIRANA, 2008), mas isso é outra história...
Ressaltamos que este estudo tratou de um olhar macro sobre o tema
das médias, contidos nos livros destinados ao sistema escolar brasileiro, ao
longo de quase 70 anos, o que constitui uma limitação do trabalho. Dessa
forma, estudos mais detalhados fazem-‑se necessários para analisar como
a questão das médias foi tratada, por exemplo, em modalidades de ensino
(ginasial, comercial, industrial etc.).
Dessa forma, será possível traçar cenários de mudanças sobre o ensino
das médias em diversas modalidades de ensino. As discussões realizadas
neste texto dão uma amostra da potência de estudos nesse sentido: das
médias proporcionais (aritmética, geométrica e harmônica) em Nicômaco,
notou-se uma modificação, para servir a outras finalidades como a estatís-
tica. As médias proporcionais (aritmética e geométrica) estão presentes nos
livros de Matemática escolar brasileira, mas de maneira bem diferente do
formato tratado por Nicômaco.
Assim, é interessante ressaltar a ausência da média harmônica nos
livros de Matemática destinados ao sistema escolar, do ponto de vista
aritmético. O exemplo que apresentamos mostra uma definição sobre pro-
porção harmônica, como parte da geometria. Por que a matemática escolar
do Brasil não trabalhou a média harmônica do ponto de vista da aritmé-
tica? Por que a opção pelas médias aritméticas e geométricas apenas? Não
conseguimos responder essas questões aqui, mas as deixamos como oportu-
nidade de pesquisa para outros trabalhos.
De uma forma geral, ao que parece, há sempre um retorno aos
temas pitagóricos no ensino ou mesmo na cultura como um todo, o que
explica, em parte, o destaque dos conceitos, principalmente aqueles rela-
cionados à ideia de que tudo é número e de que tudo, ou quase tudo, pode
ser explicado pela Matemática. Em 2017, percebemos isso claramente no
tema da Semana Nacional de Ciência e Tecnologia de 2017: “A Mate-
mática está em Tudo”. Assim, a temática coaduna-se com a concepção de
Santos (2000), de que ciência moderna é mais pitagórica do que o foi em
qualquer tempo.

169
Referências

ANJOS, D.; GITIRANA, V. Exploração do conceito de média em livros didáticos das séries
finais do ensino fundamental. In: II – SIPEMAT – Simpósio Internacional de Pesquisa
em Educação Matemática, 2008, Recife. Anais do II SIPEMAT – Matemática formal e
Matemática não-formal, 20 anos depois: sala de aula e outros contextos, 2008.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Cur-


riculares Nacionais: Matemática. Brasília: MEC, 1997. 142p.

BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Brasília:


MEC, 2016. 652p.

BITTENCOURT, L. Curso completo de Matemática Elementar - Geometria. Santos:


oficinas gráficas do Ginásio, 1922.

CORNELLI, G. O Pitagorismo como categoria historiográfica. Coimbra, Portugal: Cen-


tro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 2011.

NICÔMACO. Introduction to Arithmetic. Translated into English by Martin L. D’Ooge.


NY: Macmillam Company, 1926.

PEREIRA, F. M. Noções de Arithmetica para uso das escolas primárias – Estudo prático
e Indutivo. 2.ed. Fortaleza: Editor Militão Bivar. Paris:Typografia Aillaud e Cia, 1905.

PEREZ Y MARIN, A.; PAULA, C.F. Elementos de Geometria. 2.ed. Companhia Edito-
ra Melhoramentos de São Paulo, 1912.

RIZEK, R. Prefácio. In: SANTOS, M. F. Pitágoras e o tema do número. São Paulo: IBRA-
SA, 2000.

SANGIORGI, O. Matemática e Estatística – Para os Institutos de Educação e Escolas


Normais. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956. 252p.

SOUZA, A. M. Arithmetica Elementar. 4.ed. Rio de Janeiro: Typografia do “Jornal do


Commercio”, 1910. 182 p.

ZANELLO, H. Aritmética Primária. 3.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1941.

170
[...] A “questão pitagórica” pode sem dúvida ser equiparada à “ques-
tão homérica”, a saber, um conjunto de indagações a respeito da vida e da
obra desses personagens. Afinal, quem foi Pitágoras? Ele de fato existiu? Se
sim, quais fatos tornaram a sua vida memorável? Teria ele sido um místico?
Um cientista? Filósofo? Líder político? Charlatão? Talvez um pouco de
cada uma dessas coisas, sem que possa ser definido de modo definitivo por
uma única. Quais são os elementos fundamentais de sua doutrina? E como
eles prevalecem na tradição posterior, com uma roupagem adequada aos
seus próprios tempos?
[...] O livro ... cobre aspectos artísticos e didáticos, científicos e filo-
sóficos, tendo sua utilidade assegurada tanto ao interessado em cultura geral
e no pitagorismo, como ao educador que aqui encontrará direcionamentos
para lidar com Pitágoras e os pitagóricos com muito mais propriedade em
suas aulas.
Prof. Dr. Gustavo Barbosa

171
SOBRE OS AUTORES

Carla Patrícia Ferreira dos Santos


Mestranda em Matemática no Programa de Pós-Graduação em Mate-
mática do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus Rio Claro;
Professora do Estado de São Paulo. Licenciada em Matemática pela FAAL
– Faculdade de Administração e Artes de Limeira.

Islenis Carolina Botello Cuvides


Doutoranda em Educação Matemática pelo Programa de Pós-Gradua-
ção em Educação Matemática da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (Unesp), Rio Claro – SP. Mestre em Educação Matemá-
tica (2013) e Licenciada em Matemática pela Universidade Industrial de
Santander (UIS), Colômbia (2011). Tem experiência na área de Educação
Matemática, atuando principalmente nos seguintes temas: Matemática,
História, Formação Docente e Professores de Matemática.

Renata Caterine Gambaro Cleto da Silva


Mestranda em Educação Matemática no Programa de Pós-Graduação em
Educação Matemática do Instituto de Geociências e Ciências Exatas da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus
Rio Claro. Durante a Graduação em Licenciatura em Matemática na Unesp,
Campus Rio Claro, foi bolsista BAAE-I; foi bolsista no Programa Institu-
cional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid); e foi bolsista Núcleo de
Ensino, no qual trabalhou com formação de professores de Matemática.

Jean Sebastian Toillier


Docente da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), campus
Cascavel, vinculado ao Centro de Ciências Exatas e Tecnológicas (CCET)
e do Colegiado de Matemática. Doutorando em Educação Matemática
no Programa de Pós-Graduação em Educação Matemática (Ppgem) da
Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp), Campus
de Rio Claro. Mestre em Educação Matemática pelo Ppgem da Unesp,
Campus de Rio Claro.

Débora Vieira de Souza


Doutoranda em Educação Matemática no Programa de Pós-Graduação
em Educação Matemática do Instituto de Geociências e Ciências Exa-
tas da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (Unesp),
Campus Rio Claro. Mestre em Ensino de Ciências e Matemática pelo Ins-
tituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, Campus de São Paulo.

Arlete de Jesus Brito


Livre docente em História e Educação Matemática pela Universidade
Estadual “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP). Atua como professora no
departamento de Educação do Campus de Rio Claro e nos programas de
pós-graduação em Educação Matemática e em Educação, nessa mesma
Universidade.

Sérgio Candido de Gouveia Neto


Pós-doutorado em Educação Matemática – Universidade Estadual Paulista
(Unesp-Rio Claro) (2017), Doutor em Educação Matemática – Univer-
sidade Estadual Paulista (Unesp-Rio Claro) (2015), Mestre em Ciências
– Universidade de São Paulo (USP) (2006), Licenciado em Matemática –
Universidade Federal de Rondônia (2002). Professor Adjunto na Fundação
Universidade Federal de Rondônia – Campus de Vilhena. Tem experiência
na área de Educação Matemática, atuando principalmente nos seguintes
temas: História da Educação Matemática; História da Matemática; For-
mação docente, Culturas, Saberes, Práticas e Diversidade da Amazônia.

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