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CAPÍTULO UM

Os grãos quase graúdos da voz


Pontos e contracantos sobre a performance do canto

HELOISA DE A. DUARTE VALENTE

Para Jerusa Pires Ferreira, que me apresentou Paul Zumthor

Farinelli e Malibran: Uma dupla de sonhos


Objeto de estudo de várias áreas do conhecimento, a voz cantada é tema que figura
reiteradamente no âmbito dos estudos musicológicos. Marco-zero da história da
música, desde a Antiguidade – pelo menos no que diz respeito àquilo que se con-
vencionou denominar cultura ocidental – no correr dos séculos a voz cantada passou
por toda sorte de experimentos estéticos. Os compêndios de história da música con-
seguiram estabelecer uma sequência cronológica que serve de guia para a compre-
ensão das concepções estéticas que se revelaram dominantes e basilares no estabele-
cimento da linguagem musical. Os ícones que melhor caracterizariam cada período
têm sempre, como referências centrais, obras compostas para voz: das monodias
do cristianismo nascente aos dias de hoje, dos monges anônimos dos gelados mo-
nastérios medievais às prime donne do romantismo dos afamados teatros, incluindo,
ainda, experimentalistas dos cabarés literários mais radicais – muitos deles figuram
como marcos importantes na construção e na afirmação desse universo, ao mesmo
tempo inquietante e profício, quer para o melômano, quer para o pesquisador.
Não obstante os incontáveis esforços no sentido de se estabelecer uma linha
evolutiva (ainda que com fins didáticos), as aproximações teóricas permanecem
limitadas e parciais, pois não dão conta do amplo espectro que uma abordagem
adequada exige: múltipla, densa, mutante, a voz sofre mutações, em várias instân-

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cias logo são apreendidas e absorvidas pelo ouvinte como presença, na paisagem
sonora1 cotidiana. (Tornada familiar, rompe-se o impacto gerado pelo estranhamen-
to inicial).
Além do processo de adaptação razoavelmente rápido, concorre outra vari-
ável relevante: em tempos em que os registros sonoros não existiam, as mudanças
que advieram não podem ser conhecidas, a não ser hipoteticamente, por intermé-
dio de uma construção imaginária. Então, o que se pode afirmar a respeito dessas
vozes? Como teria sido a voz de Farinelli, que tanto maravilhou o rei da Espa-
nha? O que fazia Maria Malibran para que sua plateia reagisse embevecida em
entusiasmo e êxtase quase religioso? Se tentarmos conhecer algo sobre o passado
das vozes (e não apenas as célebres), os únicos indícios acessíveis serão as imagens
iconográficas (retratos de pessoas em atitude de fala, ou canto); ou ainda, os textos
escritos, concebidos para serem lidos silenciosamente ou em voz alta, descrevendo
tais personagens. São as poucas fontes remanescentes que podem sugerir vestígios
sobre os modos de proferição vocal. Ainda assim, tais informações que fornecem
serão, inevitavelmente, muito vagas. Mais uma vez, a voz desdenha das tentativas
de absorvê-la in toto...
Por vários motivos, a tarefa impõe dificuldades múltiplas e solicita persistên-
cia do pesquisador que se entrega à empreitada. Dentre tantos possíveis, destaco
este aspecto primordial e único: a voz cantada reúne num mesmo corpo instru-
mento, meio de execução e, em grande medida, o próprio receptor, que decodifica
e interpreta aquilo que lhe entra pelos ouvidos. Diferentemente de qualquer outro
instrumento musical, que responde a uma ação mecânica (fricção, sopro, percus-
são, etc.), o instrumento do qual a voz emana é instrumento de sopro, de origem
orgânica; como tal, engloba um conjunto de referenciais particulares da categoria 2;
por sua vez, estará sempre sujeito a oscilações de natureza múltipla. A partir daí,
podem-se fazer algumas observações: (1) o ser vivo em questão, é uma pessoa, dotada
de um sofisticado aparelho cognitivo, emotivo e psicomotor, que se desenvolveu
ao longo da filogênese; (2) o aparato vocal se relaciona com a história, que, por sua
vez, estabelece outros tantos marcos de referência, como as periodizações (e as ine-
vitáveis características que definem cada etapa), a cultura (os diversos códigos de
ordenação e funcionamento da sociedade); (3) não se pode desembaraçar a voz
daquele que canta3 de sua história de vida, permeada dos eventos que delinearam
a sua formação intelectual e afetiva – ocorrências de caráter individual ou coletivo
1 Por ser um conceito importante no referencial teórico desta pesquisa, antecipo a sua definição: trata-se de
um conceito criado pelo compositor canadense R. Murray Schafer (2001, p. 366), que designa todo e qualquer
ambiente acústico, não importando sua natureza. O estudo elaborado por Schafer revela que, sob o ponto de
escuta histórico, percebe-se um aumento na quantidade de ruídos presentes na paisagem sonora.
2 Ainda que um instrumento como o violino seja constituído de partes oriundas de seres vivos, e, portanto,
sujeitas a ações de ordem biológica (bolor, cupins, etc.), considere-se que tais componentes foram utilizados
quando o ser vivo já estava dissociado do corpo do qual fazia parte (árvore, crina do animal, etc.).
3 Aquele que ouve – o receptor – terá também papel importante no processo, como demonstra Zumthor (a ser
apresentado adiante).

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que marcaram a sua existência, repercussões da educação no meio familiar, escolar,
etc. Em síntese, em contraposição a outros instrumentos musicais, esse leque de
variantes faz com que cada voz garanta a sua singularidade, a despeito de tantos
elementos semelhantes identificáveis entre um coro de tantas outras vozes.
Contraditoriamente, a voz demonstra notável plasticidade, ao adaptar-se a
quase todas as tecnologias que vêm e vão ao longo do tempo: justamente por reunir
instrumento e meio de expressão num mesmo corpo – o corpo humano – a voz
cantada é tubo de ensaio privilegiado para novos experimentos, tendo em conta
os hábitos perceptivos então em voga. Este conjunto de traços justifica, em certa
medida, porque muitas das criações artísticas (mas não somente elas) têm na voz
(cantada) um potencial abundante de possibilidades para criar o signo novo: por me-
canismos de desestabilização de regras e hábitos, de padrões de gosto e consumo
(ruídos comunicacionais), geram-se novos repertórios, comportamentos e formas de
apreciação estética.
Uma busca rápida de obras impactantes dos últimos cem anos atestará uma
quantidade considerável de obras experimentais, na música e na poesia, tendo como
material de base os vários sons e sonoridades produzidos pela voz: ambas as lingua-
gens agregaram manifestações até então inaceitáveis no campo da arte (soluções, tosse,
etc.); além disso, as vanguardas poéticas do século XX aproximar-se-iam da música ao
mesmo tempo em que a música foi igualmente incorporando elementos constituintes
da linguagem verbal. No campo da poesia, são alguns exemplos: os Poemas para gritar
e dançar (Pierre Albert-Birot, 1917-18); a Ursonate (Kurt Schwitters, 1922-27); a Música
verbal (Michel Seuphor, 1926); e as Palavras em liberdade (Marinetti, 1912).
Na música de concerto, o sprechgesang de Schoenberg alargaria os horizontes
da linguagem, de forma pioneira e radical, com o uso de sonoridades estranhas e
frequências inexistentes, até então, no vocabulário da música culta de origem euro-
peia daquela época. Desenhou-se, pois, uma nova estética, a da chamada neue musik.
Algumas dessas obras que seguiram tal estética tornaram-se balizas no desenvol-
vimento da linguagem musical do século XX: é o caso de Pierrot lunar, de Schoen-
berg (1912); Wozzeck (1917-22) e Lulu (1929-35), de Alban Berg; os Homenagem a Joyce
(1958), Círculos (1960), e Sequência III (1966), de Luciano Berio; Glossolalia (1960-61),
de Dieter Schnebel; os Mesósticos Re e Não-Re Marcel Duchamp e Merce Cunningham, de
John Cage (1971); mais recentemente, um grande número de obras de Léo Kupper,
muitas delas compostas em parceria com a cantora brasileira Anna Maria Kieffer
(Valente, 1999).

Gritos e sussurros
Dos primeiros instantes de vida, até a morte, a voz perpassa toda a existência huma-
na: através do pneuma, um complexo sistema – o sistema fonador – põe-se em funcio-

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namento, servindo para expressar sinais biológicos, sensações e sentimentos. A voz
guarda, inevitavelmente, as experiências de vida ou mesmo a ausência destas – das
frustrações, os desejos não realizados... Entre as formas mais extremas da expressão
vocal – os gritos e os sussurros – muitas variantes ocorrem. Talvez seja até correto
afirmar que o grito se aproximaria de uma existência mais biológica, de instinto
animal, enquanto que o sussurro se voltaria à cultura. O sussurro exige controle,
vigilância; é uma comunicação deliberada, com fins específicos; também restritiva,
uma vez que seleciona seus receptores em potencial. (Ainda que mera suposição,
esta reflexão é instigante...).
O grito denota a potência da voz, e é o som mais potente que o corpo pode
produzir de forma natural. Se houve, de fato, um grito primal que se fez músi-
ca, tal grito domesticou-se4, fixando sons em alturas (frequências), modulando-as em
melodias, por sua vez, resultantes da própria materialidade do som, gerada pela
série harmônica. Aos poucos as linhas melódicas adquiriram contornos precisos:
as longas frases em legato, incorporando melismas e ornamentos, exigiram fôlego
e resistência, tessitura ampla e muito controle, fazendo do corpo um instrumento
demasiadamente limitado para os seus propósitos expressivos. A extrapolação dos
parâmetros normais conduziu os virtuosi, as divas5 ao mundo privilegiado dos deu-
ses, através de um largo período sacrificial e de provações (as etapas de treinamento
técnico); e eles estremeceram o planeta, tornando-se legendários e adorados. A par-
tir do fim do século XIX, o surgimento da mediatização técnica cuidou de eternizar
essas vozes privilegiadas. Para além dos indícios hipotéticos – que nos permitem ou-
vir Farinelli e Malibran apenas pela imaginação – a voz tornou-se objeto de escuta e
análise em uma nova dimensão: a mediatização técnica (voltaremos a isto).
Ao mesmo tempo em que trouxe a possibilidade de fixar as vozes-mito, com
o passar do tempo a tecnologia também propiciou a guarda de vozes comuns, sem
maior interesse artístico, em registros caseiros. No campo daquilo que se conven-
cionaria chamar “canção popular”, o fio do tempo daria vez a potências mais mo-
destas, privilegiando, em várias situações, antes o que é dito através das palavras,
do que aquilo que é expresso por intermédio dos atributos da música. Vozes quase
sussurradas seriam impregnadas de outras instâncias simbólicas, especialmente
no domínio da música destinada ao circuito comercial. Mas também a obra mais
elaborada formalmente e de grande complexidade, avessa à audição sem esforço,
faria uso da experiência do silêncio. Sobretudo a partir da segunda metade do sé-
culo XX, os sussurros disputariam por seu lugar na paisagem sonora: de Pelléas et
Mélisande, de Débussy, a Charles Trenet, dos cantores da Bossa Nova aos apelos e
enunciações picantes, de conteúdo erótico, como o famoso hit de Serge Gainsbourg,
Je t’aime, moi non plus... (Valente, 1999).
4 O grito é voz inarticulada, algo que o homem partilha com os outros animais; opõe-se à linguagem verbal,
articulada. Isto pressupõe, sob o aspecto fisiológico, o uso de uma zona faringo-buco-nasal que, por sua vez,
depende de um aprendizado (Castarède, 1991, p. 132).
5 Estas particularidades não se limitam aos cantores, mas neles encontram um destaque considerável.

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A música “não quer dizer nada”, mas a canção “quer dizer alguma coisa”
A música não quer dizer nada – preconizou Stravinsky na sua Poética musical. Tal afir-
mação, tão incômoda, suscitou – e ainda suscita – reações desconcertantes. De fato,
a música, por ela mesma, diz o que a sua linguagem tem a dizer, especificamente:
frequências, ritmos, timbres, modos de ataque... Mas essa sua natureza particular
não a impede de ser portadora de sentidos externos a ela. Justamente pelo fato de
“não dizer nada” além de sons e silêncios, a música abre a possibilidade de vincular
sentidos – fenômeno que ocorre quando se estabelece uma convenção. E tais ocasiões
não são raras.
Munido desse potencial semântico que a cultura fez cristalizar, internalizado
intelectualmente, o compositor desenvolve (e constrói) o seu discurso particular,
de modo a dar ênfase, contradizer, ironizar, elogiar, negar a mensagem poética
que deseja colocar na voz de seu intérprete. Com esse amplo leque de codificações,
a música resultará num meio condutor de formas de sentimento (ódio, tristeza,
nostalgia, alegria, medo...), sensações (vertigem, calor, frio, sono, etc.), bem como
outras formas de comunicação intraorgânica e cinética (respiração, andamento da
caminhada, melodismo do choro, riso, interjeições...), além das informações de or-
dem cognitiva.
Quando atrelada ao código verbal que, por sua vez, é portador de uma men-
sagem específica compreensível, porque convencional, a música age como um meio
estimulante e catalisador no processo de comunicação do texto. Se o receptor não
consegue discernir o que enuncia o texto verbal, esta característica é potencializada
– o que atesta a importância da música nos processos comunicativos, bem como
suas consequências à comunidade de receptores. Em outros termos, a música tem
um papel fundamental, mesmo quando não composta ou selecionada para ser per-
cebida em primeiro plano.
Contudo, vale enfatizar que a voz antecede e ultrapassa a comunicação lin-
guística, da escrita e também a mais frugal e hodierna, a falada; ao veicular infor-
mações de outra ordem, ela se expande. Adverte o erudito Paul Zumthor:

A voz é uma coisa, isto é, que ela possui, além das qualidades simbó-
licas, que tudo mundo reconhece, qualidades, materiais não menos
significantes, e que se definem em termos de tom, timbre, amplitu-
de, altura, registro. (...) A língua é mediatizada, levada pela voz. Mas
a voz ultrapassa a língua. É mais ampla do que ela, mais rica. É evi-
dente, qualquer um constata em sua prática pessoal que, em alcance
de registro, em envergadura sonora, a voz ultrapassa em muito a
gama extremamente estreita dos efeitos gráficos que a língua utiliza.
Assim, a voz, utilizando a linguagem para dizer alguma coisa, se diz
a si própria, se coloca como uma presença. (Zumthor, 2005, p. 62-3)

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A voz que canta – e que se faz ouvir – também tem uma flexibilidade di-
nâmica: Emanando de um corpo, além de presença, a voz é fruto de sua cultura
e de sua história; recebe e imprime marcas de diferença, percepção, transmissão;
reciprocamente, ela inscreve os valores e referenciais que constituem, justamente, a
história e a cultura... A voz suplanta a função de mídia que permite a comunicação
– desde a sua forma mais primitiva e rudimentar àquela mais elaborada (as cria-
ções artísticas) –, por intermédio de sons emitidos por seres humanos6: o que a voz
pronuncia é um construto sígnico altamente sofisticado, que segue padrões técnicos e
visa a atender a determinadas expectativas de recepção.
Enquanto signo sonoro, aquilo que a voz transmite é decodificado de diver-
sas maneiras, tendo em conta o canal pelo qual circula a informação (ao vivo, me-
diatizado tecnicamente), a qualidade da atenção dirigida à fonte sonora (ouvida ou
escutada7), os aparatos que o transmitem. O grande Caruso8 tornou-se um ícone da era
mecânica do som mediatizado tecnicamente em virtude de seus dotes artísticos e
vocais, mas também devido às circunstâncias particulares à sua época. Não obs-
tante, muitos dos estudos sobre a voz cantada e a canção desprezaram, por razões
diversas, a presentidade da voz como elemento fulcral de suas análises. Em outros
tempos, anteriores ou posteriores àqueles em que se fez conhecer, nos palcos e nos
discos de antanho, haveria sido diferente... Caruso criou um modelo que definiu a
ele próprio e a todos que o sucederam (Valente, 2003).

Os estudos semióticos da canção precisam dar mais ouvido às vozes


Antes de prosseguir, é necessário frisar desde já: a música é a linguagem mais pre-
sente na paisagem sonora midiática, especialmente sob o gênero canção9, em virtu-
de da sua natureza híbrida. Por essa razão, e também pelo vínculo que o texto ver-
bal estabelece com outras áreas do conhecimento, a canção oferece várias fontes de
6 Considere-se que, ainda que se trate de vozes elaboradas eletroacusticamente, sempre haverá a voz humana
como marca de referência.
7 Convencionou-se estabelecer uma diferença entre o ato de ouvir (de natureza fisiológica) e o de escutar (de
natureza psicológica). Trata-se de uma distinção um tanto grosseira – há outras nuanças possíveis. Sirvo-me
dos dois vocábulos no intuito de estabelecer uma distinção entre a informação que se apreende com maior ou
menor atenção, por parte do receptor da mensagem poética.
8 Parto da suposição de que Enrico Caruso possa ter sido o único cantor cuja voz tenha sido convertida para
todas as tecnologias do som; senão todas, ao menos todas as dominantes. (Fica esta verificação em suspenso).
9 Por canção das mídias refiro-me à canção inserida numa gama de variedades que têm, como traço comum, o
fato de ter nascido no âmbito de uma sociedade já dominada pelos meios de comunicação de massas (as mídias)
ou, caso seja anterior ao advento do disco, sua versão mediatizada tenha-se tornado modelo para outras que
a sucederam; ou, ainda, a canção que, mesmo oriunda de outro contexto (árias de ópera romântica, cantigas
folclóricas, etc.) tenha-se adaptado aos padrões da canção concebida para o disco, atendendo a características
como duração, pouca variação de intensidade e andamento, instrumentação, etc. Ainda que a maioria das
canções midiáticas não resulte da leitura de uma partitura pré-existente, não se excluem dessa categoria aquelas
que tiverem, em sua base, o suporte escrito (Valente, 2003).

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informação, sendo esta uma das razões por ela vir sendo objeto de tantos estudos,
por uma vasta e crescente comunidade de pesquisadores. Uma pesquisa cuidadosa
a respeito do que vem sendo estudado sobre a voz cantada e, mormente, sobre a
canção, apontará para aproximações teóricas diversas que se esforçam no sentido
de analisá-la de maneira global e coesa; sobretudo quando se trata da canção midiá-
tica (ou: popular, de mercado, massiva – segundo o viés teórico adotado).
No que tange às abordagens teóricas de cunho semiótico, a academia brasi-
leira parece ter consagrado um nome: Luiz Tatit.10 Foi investigando novas formas
de pensar a canção, a partir do estudo de peças do repertório brasileiro mais antigo,
que Tatit chegou à questão central de suas preocupações teóricas: a entoação, ponto
de partida dos seus estudos teóricos: “a melodia natural da fala (...), algo que está na
base de composição e tratamento musical de todo cancionista em todos os tempos”.
De acordo com Tatit, diferentemente do que ocorre em outras modalidades da lin-
guagem musical, as melodias da canção popular “vêm da fala e não propriamente
de uma concepção musical”. Acrescenta: “O fato de a maior parte dos cancionistas
não ter formação musical só confirma essa hipótese” (Tatit, 2009).11 A partir dessa
noção básica, Tatit desenvolveu três categorias de classificação do perfil melódico:
figurativização, passionalização e tematização (Tatit, 1987). Acrescente-se que essas
categorias podem se mesclar e apresentar simultaneamente.
Não obstante a descoberta original e de utilidade para se averiguar aquilo
que Tatit denomina eficácia da canção, a perspectiva traçada pelo autor demonstra-
-se lacunar em vários aspectos. Uma das premissas da semiótica da canção por ele
desenvolvida é que canção é um signo composto por melodia e letra. (Vale lembrar
que, quase sempre, Tatit se reporta à canção popular brasileira e, quase sempre,
tonal). Não parece seguro que a aplicabilidade desses conceitos possa ser universa-
lizada a qualquer tipo de canção popular urbana. Em todo caso, um ponto parece
inconciliável: a função da harmonia. No entendimento do linguista, a harmonia é
uma “parte importante”.12 Ora, para quem tem como referência a linguagem musical,
certamente a harmonia, na canção tonal, é uma função, que se encontra presente
mesmo no canto a cappella. O tão conhecido e consagrado Samba de uma nota só (Tom
Jobim e Newton Mendonça) tem nos primeiros compassos da melodia uma nota
comum a uma série de acordes, que encadeiam em uma marcha harmônica. Sem
essa escuta dinâmica subentendida, a canção perde, justamente, o que tem de mais
10 Linguista, professor titular da FFLCH-USP, músico e compositor. Iniciou suas pesquisas sobre canção no
início da década de 1980, na mesma época em que fundou o grupo Rumo. Quanto à sua produção acadêmica,
pode-se verificar no sítio www.scholar.google.com.br uma quantidade extensa de citações a obras suas.
11 No entanto, parece questionável concluir que a criatividade dos compositores espontâneos, sem um aprendiza-
do formal, seja dispensável. Para Tatit, a formação musical não é necessária e, quando existe, “pouco acrescenta
à sua habilidade de compor canções. Nossos melhores cancionistas, os mais prolíficos, não conhecem – e não
precisam conhecer – música” (Tatit, 2009).
12 Foi assim que me respondeu, quando lhe perguntei sobre a função da harmonia, na mesa de debates da qual
participava, no XV Congresso da Anppom (Rio de Janeiro, 2005). A mesma afirmação foi reiterada, quando
indagado por uma conceituada musicóloga no Congresso Nacional de Semiótica, em Vitória, em 2007.

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interessante e original, fazendo da obra uma cançoneta amorosa ordinária, sem
maior importância.
Não obstante as várias limitações13 que apresenta, talvez o sucesso dessa me-
todologia de análise da canção popular urbana resida na sua aplicabilidade ime-
diata através de “modelos” (moldes...). Ganhou a pronta simpatia e adesão quase que
imediata da academia brasileira, em várias instituições e departamentos, até mesmo
de música. Aplicamos-lhe mecanicamente, com o intuito de estudar as relações se-
mânticas entre “letra e melodia”.
Pelo que pude acompanhar em uma pesquisa transversal14, os últimos estu-
dos de Tatit tendem a outro enfoque: mais precisamente para a semiótica tensiva,
desenvolvida pelo semiólogo Claude Zilberberg, sucessor do consagrado lituano
Algirdas J. Greimas. Ao que parece, Tatit se preocupa com a impossibilidade de
analisar os conteúdos sensíveis concomitantemente aos inteligíveis, preconizados por
Greimas.15 Posto que a teoria do pensador lituano assenta-se sobre uma lógica bi-
nária, centrada na narratividade, a tensividade permitiria ampliar a abordagem a
um nível até então colocado em segundo plano. Esses novos esforços do linguista
atestam, em alguma instância, uma insatisfação com o instrumental de análise de
que dispõe e a procura de outros caminhos que possam atender outros aspectos
analíticos.

Os grãos quase graúdos da voz


Outro conceito que vem sendo utilizado com surpreendente frequência por muitos
pesquisadores é o de grão. O vocábulo foi instituído pela música eletroacústica, por
Pierre Schaeffer, designando um dos componentes morfológicos do som. Mais tar-
de, referindo-se à interpretação do lied, Roland Barthes explorou-o, tentando nele
encontrar o locus do corpo na performance musical, o ponto de fricção entre língua
e canto (1984, p. 221-4); e o termo começou a ser usado com cunho poético, como
13 Outro elemento analítico, de utilidade questionável, é a forma de transcrição em linhas paralelas, onde os
versos e palavras aparecem em linhas paralelas horizontais – na verdade, uma substituição ao convencional
pentagrama. Permite a visualização do arco melódico, à medida que coloca as alturas em posição equidistante
uma da outra. E a forma de usar é simples (cada espaço representa um semitom), mas a leitura é deveras dificul-
tosa... Ora, se a escrita musical se utiliza de cinco linhas e quatro espaços (mais linhas e espaços suplementares
adicionais superiores e inferiores), é no sentido de facilitar a leitura. Com a partiturização proposta por Tatit,
o reconhecimento de um intervalo melódico próximo, como uma terça, pede que os olhos recorram aos dedos,
para fazer a contagem dos intervalos. Outra lacuna nessa forma de representação é que aspectos como ritmo,
dinâmica e modos de ataque não são incluídos. Talvez seja porque, dentro dessa lógica, não passem de elemen-
tos secundários, “complementos”...
14 Procedi a uma consulta geral, pela busca direta de palavras-chave ligadas à área de pesquisa do autor, escri-
tos, trabalhos de alunos e seguidores, trechos de palestras gravados no sítio www.youtube.com.
15 Há de se fazer justiça: muitos consumidores da denominada semiótica discursiva se valem de um número
restrito de textos do teórico lituano, desprezando outros aspectos que poderiam trazer novas abordagens para
suas análises particulares.

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referência elegante16 ao igualmente elegante Barthes. Perdeu, assim, o sentido ori-
ginal; da precisão conceitual, estabelecida pelo seu compatriota Pierre Schaeffer,
esvaziou-se seu sentido deslocando-o para pormenor, pequeno detalhe. Aproveitando
esse desvio semântico derrisório e de consequências perturbadoras, aproveito a
ocasião para levantar uma rápida observação que não costuma figurar nas análises.
Ao discorrer sobre o tema, o pensador francês demonstra algumas preocupa-
ções relevantes. No seu entender existe, no canto, um conflito ideológico e estético
que se estabelece entre a projeção e articulação e pronúncia. Tal observação, segun-
do ele, já teria sido feita pelo cantor Charles Panzéra, de certa maneira, quando
prescrevia, em suas aulas:

a articulação é a negação do legato; ela quer dar a cada consoante a


mesma intensidade sonora, enquanto num texto musical uma con-
soante nunca é a mesma: é preciso que cada sílaba, longe de ser
oriunda de código olímpico dos fonemas, dado em si e uma vez por
todas, seja engastada no sentido geral da frase. (apud Barthes, 1984,
p. 228)

E ainda:

articular é mascarar o sentido de uma clareza parasita, inútil, sem


que seja, por isso, luxuosa. E essa clareza não é inocente; ela arrasta
o cantor para uma arte perfeitamente ideológica, da expressividade,
da dramatização: a linha melódica quebra-se em estilhaços de sen-
tido, em suspiros semânticos, em efeitos de histeria. Pelo contrário,
a pronúncia mantém a coalescência perfeita da linha do sentido (a
frase) e da música (o fraseado). (Barthes, 1984, p. 228)

Tais observações parecem coerentes para o lied, já que seu universo singelo
não comporta distinções sexuais, de idade, de nacionalidade. Por essa razão é que
o lied pode ser cantado por qualquer voz, masculina ou feminina; voz esta que se
conforme ao limite modesto do corpo do cantor. O lied é música para ser pronuncia-
da, insiste Barthes (1984, p. 228). Some-se a isso o fato de que os textos literários,
geralmente confiados a poetas que trabalham em parceria com os compositores,
são de importância capital, e têm na voz o seu meio de expressão e no piano o seu
comentador ideal. Já a ópera, em contrapartida, é de outra natureza: para cobrir
um extenso espaço acústico, pede que a voz seja projetada (Barthes, 1984, p. 228).
Ademais, a voz operística tem como pressuposto inicial cobrir um espaço acústico
bastante amplo.
No entanto, tais prerrogativas apontadas por Barthes não seriam válidas para
16 Aqui se inclua toda a carga simbólica atribuída a uma gama de signos de origem francesa, portadores da
ideia de requinte, luxo, atenção ao pormenor.

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todos os gêneros musicais cantados. São numerosos os exemplos em que a articu-
lação enfatizada, o ruído consonantal, é justamente o elemento expressivo funda-
mental e, às vezes até, a razão de ser da obra. Os exemplos vêm de toda espécie de
música, de natureza tão diversa, como o cabaré alemão e o hard rock, o tango e o rap...
As asperezas e os grãos arenosos são, de fato, o que constroem o élan da performance...

Performance, mais que um conceito de base


O domínio da voz cantada, em suas várias formas de manifestação se desdobra
em possibilidades múltiplas e, insolente, furta-se a reducionismos. Felizmente, ou-
tras abordagens têm surgido, trazendo suas contribuições parciais. Nesse ponto, a
teoria que vem se demonstrando mais consistente é aquela desenvolvida por Paul
Zumthor, criador de conceitos relevantes que possibilitam a elaboração de novas
perspectivas para a abordagem da voz cantada, em dimensões amplas e ambiciosas,
ainda que este não fosse o foco principal de suas preocupações teóricas. Fui a ele
apresentada por Jerusa Pires Ferreira, já há duas décadas. De pronto, suas ideias
me estimularam a ponto de jamais tê-lo deixado à parte nas minhas referências bi-
bliográficas. Mais que isso, os pressupostos teóricos elaborados por Zumthor cons-
tituem a base para o desenvolvimento dos meus projetos de pesquisa.
Contrariamente a vários autores disseminados nos cursos que se dedicam
ao estudo da canção e demais esferas da música para voz, Zumthor não deixou ne-
nhuma metodologia específica ou esquema analítico, a ser aplicado de modo direto e
automático – o que representa, a um só tempo, um desafio e uma atividade criativa.
Para desenvolver sua teoria, Zumthor embrenhou-se em outros campos do conhe-
cimento, tais como a acústica, a medicina (os estudos de Tomatis, por exemplo), a
psicanálise, a mitologia comparada, a fonética, a linguística (análise do discurso,
teoria da enunciação), semiótica, sociologia das culturas populares (2007, p. 9-10).
Dentre os conceitos seminais legados pelo autor, destaca-se o de performance.
Extremamente complexo, abarca várias áreas do conhecimento: fonologia, músi-
ca, antropologia, acústica, dentre tantos outros. Ao contrário do que prega o senso
comum, o conceito de performance envolve um processo comunicativo que leva em
conta a função de transmissão da mensagem, mas não apenas ela: a recepção da
mensagem poética, as condições de transmissão, os referenciais do espaço físico:
“A performance é ação complexa pela qual a mensagem poética é simultaneamente,
aqui e agora, transmitida e percebida. Locutor, destinatário, e circunstâncias17 (...)
se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis” (Zumthor, 1997, p. 33).
17 Zumthor denomina circunstâncias aquilo que, em geral, se entende por contexto, tendo como referência o fato
poético. As circunstâncias são elementos que situam o texto no espaço e no tempo: “Ora, as circunstâncias mo-
dalizam, localizam, dão colorido a essa veracidade. Até certo ponto, elas as engendram. Donde sua importância
na recepção da obra e nos julgamentos suscitados por esta (...)” (Zumthor, 1993, p. 251).

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Ademais, a presença do corpo na performance é notória – quer na sua versão
ao vivo, quer mediatizada tecnicamente. O corpo é parte essencial da performance,
mídia primária, ou seja: voz, gestos, vestimenta e adereços, maquiagem, lembra o
comunicólogo Vicente Romano (1984; Valente, 2003).18 Nesse sentido, desenvolve-
-se também a pesquisa de Christian Marcadet, especialista no estudo das diversas
modalidades do gênero canção, ao abordar a teatralidade do cantor em cena (2008).
Outro aspecto importante a levar em consideração na análise semiótica da
voz cantada diz respeito às condições espaciais, quer na performance ao vivo, quer
na mediatizada tecnicamente. Nesse caso, considerem-se não apenas a distribuição
de canais ou a posição em cena, mas também efeitos de reverberação, eco, filtros,
microfonia – que acabam por diferenciar o timbre e os modos de ataque. Também
o arranjo e a instrumentação denotam as escolhas estéticas do compositor ou de
outros atores envolvidos no processo (engenheiro de som, produtor, tecnologia em
voga, etc.). Ao fim e ao cabo, o uso sistemático desses elementos que se transfiguram
num som próprio, acabam sendo assimilados pelos receptores como padrão estético
(Delalande, 2007, p. 53).19
Dentre as diferentes modalidades de performance, saliente-se a mediatizada tec-
nicamente. Nesta, o momento da interpretação não coincide, necessariamente, com
a sua recepção. Caracteriza-se por uma escuta esquizofônica (Murray Schafer, 2001).
Como o vocábulo sugere, a performance mediatizada necessita de aparatos técnicos
para a emissão da mensagem e também para a emissão e recepção, simultaneamen-
te. Lembra Zumthor que, muito embora as características gerais da performance ao
vivo sejam preservadas, alguma coisa escapa: “aquilo que se perde com os mídia – e
assim necessariamente permanecerá, é a corporeidade, o peso, o calor o volume real
do corpo, do qual a voz é apenas expansão” (Zumthor, 2000, p. 19).
Outro aspecto interessante a respeito da performance mediatizada é que os
registros sonoros revelam elementos importantes, presentes no fonograma. Quan-
to à emissão vocal, é possível apreender traços diversos apenas a partir da escuta
(Fonagy, 1983). Nesse sentido, é particularmente interessante o conceito de mímica
vocal, proposto pelo foniatra Ivan Fonagy na década de 1970: é a gesticulação facial
executada ao se pronunciar os fonemas, capaz de ser percebida pela escuta sem o
acompanhamento pela visão: “Durante a aquisição da fala, a criança deve adivinhar
as posições dos órgãos fonadores tão somente pela escuta dos sons produzidos, a
18 Assim sendo, também objetos que servem de extensão às extensões do corpo (bengalas, óculos, próteses, etc.)
desempenham papel fundamental na performance, e jamais podem ser desconsiderados. A cegueira, a paraplegia
desempenham papel que não pode ser negligenciado: se, em um ou outro caso, não há alteração significativa
na forma de emissão de sua voz, de outra parte, no ato da recepção ao vivo, a cadeia de reações da audiência
será marcante. Em relação à idade e ao condicionamento físico, passa-se algo similar: aí sobram cantores-atletas,
acelerados e saltitantes, enquanto os mais idosos tendem aos movimentos mais discretos.
19 Entre dois extremos polares, encontram-se os gêneros que se serviram do (re)aproveitamento de equipamen-
to reciclado, de sucata, criando, a partir daí, novas formas composicionais e expressivas; em outro extremo, a
sala de concertos, como ressonância dos palácios imperiais e a excelência no acabamento dos objetos.

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fim de produzir, de sua parte, sonoridades adequadas. (...) Parece que os adultos
não são menos capazes disso”, afirma o autor (Fonagy, 1983, p. 51-5). Tal aptidão
desenvolve-se desde a infância.
Além dos desdobramentos das investigações acerca da performance, ainda
resta muito a ser comentado, estudado, problematizado acerca da voz cantada e
muitos desdobramentos que ficarão irremediavelmente à espera de novas abor-
dagens.20 Há contribuições importantes que ainda não foram devidamente assi-
miladas, como a abordagem inovadora de Gil Nuno Vaz (2007) a partir da teoria
dos sistemas, que merece um estudo cuidadoso; ou mesmo o conceito de arte social
total, proposto por Christian Marcadet (2007).21 De modo muito especial, enfatizo
as contribuições que a psicoacústica, a fonologia e todos os estudos referentes à
ação vocal podem trazer para os estudos da performance, sobretudo quando anali-
sados os aspectos socioculturais.

À guisa de conclusão: De como Les Luthiers me fizeram


compreender a neue musik de Gilberto Mendes
Há vários anos, tive a oportunidade de participar, como cantora, do Madrigal Ars
Viva, importante grupo coral da cidade de Santos, notável por oferecer concertos da
melhor música anterior à Renascença, além da contemporânea. Em certa ocasião,
ensaiando a obra nascemorre (1963), de Gilberto Mendes, sobre poema de Haroldo de
Campos, deparei com uma observação do compositor, constante na segunda página
das instruções gerais da partitura: o /d/ deveria ser pronunciado subentendendo-se um
/n/. Seguindo as orientações do maestro Roberto Martins, creio haver conseguido
a emissão vocal a contento. Não imaginaria, de forma alguma, que tal associação se
repetiria por outras vias, tempos depois.
Vasculhando o repertório do grupo argentino Les Luthiers, deparei com o
reiterativo Bolero, op. 62.22 Ao perceber que os versos “Iremos tomados de la mano/
Iremos bajo el cielo de verano” expressavam, na voz de Daniel Rabinovich, justamente
o fonema /n/ prolongado, antecedendo todas as palavras e iniciadas por /d/ ou /t/ –
hábito bastante comum na enunciação vocal de cantores de boleros mexicanos (ou
identificados como tais) como, por exemplo, o Trio Los Panchos, Los Tres Ases...
A paródia caricata do gênero, através de uma exacerbação de seus estilemas, havia
20 Registre-se, ainda, o estudo de Falbo (2010), no intuito de estabelecer novas reflexões, norteado pelos concei-
tos de performance e vocalidade, de acordo com Zumthor. Outros autores que não podem aqui ser comentados,
mas nem por isso devem ser esquecidos, tais como Félix Guattari e Gilles Deleuze, Mikhail Bakhtin, dentre
muitos outros.
21 Marcadet apoia-se no conceito de fato social total de Marcel Mauss. Por fato-canção, Marcadet designa a mani-
festação de qualquer natureza, seja ela de ordem social, artística, semiótica, econômica, jurídica, ética ou outra
em relação direta com os acontecimentos do domínio-disciplina das canções (2007).
22 A obra, de 1971, é de autoria de Jorge Marona e Carlos López Puccio.

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desempenhado uma função didática importante: havia eu, enfim, compreendido as
intenções de Gilberto Mendes em seu nascemorre, graças a um elemento de origem
performática distinta: a partitura era incapaz de detalhar a pronúncia das palavras,
a maneira de enfatizá-las, destacá-las; os acentos específicos e modos de ataque...
(Contudo, esta relação entre o cantar do bolero e nascemorre não me parece ter ocor-
rido na mente do compositor, perguntei-lhe posteriormente).
A partir desse exemplo extremo, parece acertado acreditar que um estudo
amplo acerca da performance pode trazer contribuições importantes para a compre-
ensão da voz cantada em suas múltiplas dimensões. Mais que isso: a performance é
viés analítico ainda pouco explorado, que oferece um manancial de novas aborda-
gens. Sob o aspecto musical, inúmeros componentes incluem variáveis importantes,
dentre os quais vale enfatizar:
• as formas de emissão vocal: técnica, estilo, mímica vocal;
• a gestualidade: condicionada à vestimenta, mobilidade física do in-
térprete;
• as condições de transmissão: ao vivo, com ou sem intervenção ele-
troacústica;
• paisagem sonora: uma análise global do meio ambiente acústico, que
envolve dentre outros: o espaço acústico em seu aspecto físico (local
descampado ou, no caso de fechado, as dimensões da sala, materiais
usados nos revestimentos); o espaço geográfico (cidade, campo) e geofí-
sico (condições meteorológicas, nível de umidade, calor ou frio);
• as condições socioculturais, a história de vida do intérprete e do re-
ceptor (idade, instrução, familiaridade ou distanciamento com a estéti-
ca ou o repertório em análise);
• no caso da performance mediatizada: as próprias mídias, seus usos e
potencialidades expressivas.
Como dito no início deste texto, todo o estudo que se possa ser desenvolvi-
do resultará inevitavelmente parcial: a voz brinca matreiramente com aquele que
pretende dominá-la: são os pequenos sortilégios que, a cada tentativa de análise,
impõem barreiras, oferecem resistência, lançam novos enigmas, debochando – pa-
rece, até – daquele que se incumbe a infindável tarefa de estudá-la... Longe de serem
esgotadas, as vozes cantantes constituem uma paleta ampla e plena de matizes:
entre todos os gritos do rock pesado e o sussurro mais inaudível de um acalanto,
muitas notas ainda ficarão por se escutar e muito ainda à voz resta a dizer... É tare-
fa primordial construir e utilizar instrumentos diferenciados para poder escutá-las
com clareza, em seus traços mais discretos e quase desimportantes – como certos
fonemas do Bolero, op. 62, de Johann Sebastian Mastro Piero – e da experimental
por excelência nascemorre...

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Referências
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