Você está na página 1de 201

See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.

net/publication/341945823

Os cantos da voz : entre o ruído e o silêncio. ESTA É UMA VERSÃO ADAPTADA


DA PUBLICAÇÃO PARA O REPOSITÓRIO DA PUC-SP, DISPONÍVEL EM PAPEL.
O LIVRO ESTÁ ESGOTADO.

Thesis · June 2020

CITATIONS READS

0 194

1 author:

Heloísa Valente
Universidade Paulista
32 PUBLICATIONS   9 CITATIONS   

SEE PROFILE

Some of the authors of this publication are also working on these related projects:

sous le ciel de Paris: memory and nomadism of French song, in Brazil View project

Sous le ciel de Paris Memória e nomadismo da canção francesa no Brasil/Sous le ciel de Paris: memory and nomadism of French song, in Brazil View project

All content following this page was uploaded by Heloísa Valente on 22 February 2022.

The user has requested enhancement of the downloaded file.


ESTA DISSERTAÇÃO FOI DEFENDIDA NO DIA 17 DE
MAIO DE 1995, TENDO COMO PARTICIPANTES DA
BANCA: PHILADELPHO MENEZES NETO (ORIENTADOR),
LÚCIA SANTAELLA, JOSÉ MIGUEL WISNIK

FOI PUBLICACA PELA ANNABLUME (1999). ISBN-


10: 8574190772; ISBN-13: 978-8574190778

Encontrando-se esgotada, deixo à disposição o texto


original, apenas atualizando a ortografia.

Havendo interesse em citá-la nas páginas corretas,


de acordo com a publicação, queira entrar em
contato pelo e-mail: musimid@gmail.com
Heloísa de Araújo Duarte Valente

Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio

Mestrado : Comunicação e Semiótica

PUC - SP

1995

2
Heloísa de Araújo Duarte Valente

Os cantos da voz : entre o ruído e o silêncio

Dissertação apresentada como exigência


parcial para obtenção do título de Mestre em
Comunicação e Semiótica à Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo - PUC-
SP, sob orientação do Prof. Dr. Philadelpho
Menezes Netto.

PUC - SP
1995

3
comissão julgadora:
----------------------------------------
----------------------------------------
----------------------------------------

4
5
Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio : Resumo.

A história da música do século XX inicia-se com o desmantelamento do sistema


tonal. Sintoma mais evidente da ruptura de hierarquias no cerne da linguagem musical,
é igualmente o momento em que surgem os meios de captação, fixação e remodelagem
do som, primeiramente fonomecânica e, posteriormente, elétrica e eletrônica (rádio,
disco).
Nesse contexto a voz, enquanto instrumento musical, torna-se cada vez mais
complexa, sendo necessário criar outros níveis de análise: a voz não pode mais ser
observada apenas segundo o antigo paradigma - a viva voz - mas também segundo seus
desdobramentos em outros suportes, no domínio da mediatização técnica. Além do
mais, a voz musical de hoje inclui outros sons, outrora banidos do universo da arte
(gritos, cochichos, estalos de língua etc.).
Entretanto, a voz está condicionada à paisagem sonora de seu tempo e espaço.
No século XX, a paisagem sonora passa a ser mais ruidosa, com a introdução do ruído
industrial. O ruído, encarado como recurso expressivo (como os canhões na Abertura
1812, de Tchaikovsky) passa à condição de construto da composição musical, a ponto
de incentivar a composição de algumas obras importantes (Ionisation, de Varèse). Após
a 2a. Guerra Mundial, o entusiasmo pelo ruído cederá seu lugar ao silêncio, visto que o
silêncio está desaparecendo da paisagem sonora.
Essa situação nos apresenta um fato semiótico interessante: Se, no início do
século, o ruído funcionava como ruído, nos termos da Teoria da Informação, nos anos
pós-guerra ele se tornará redundância. Ao contrário, o mesmo silêncio que no início do
século representava redundância, também sob o ponto de vista da Teoria da
Informação, na segunda metade do século desempenha o papel de ruído na
comunicação estética.
O estudo da voz musical pleiteia uma pesquisa não apenas dos procedimentos
composicionais, mas também das transformações ocorridas na paisagem sonora, uma
vez que esta interfere diretamente nos modos de ouvir, pensar e compor música.

6
Agradecimentos:

À CAPES / Demanda Social, pelo apoio financeiro concedido.

Ao meu orientador, Philadelpho Menezes, pela sua leitura atenta e esclarecedora; pela
sua solicitude, compreensão e principalmente pelas vozes poéticas, que possibilitaram
um alargamento da paisagem sonora deste texto.

A Ana Cláudia Mei Alves de Oliveira, minha primeira orientadora, leitora crítica e
amiga de todos os trópicos.

E, por ordem alfabética:

Amálio Pinheiro, pelo estímulo incondicional no desenvolvimento do meu projeto de


pesquisa;
Françoise Escal (EHESS-Paris) pela leitura meticulosa e crítica, pela generosidade na
divulgação do seu saber;
Jerusa Pires Ferreira, voz esclarecedora que me iniciou no universo zumthoriano;
José Miguel Wisnik, pelas idéias originais que me induziram a escrever este texto;
Maria João Serrão (cantora), pelo pacto em compartilhar suas vozes comigo;
Maria Lúcia Santaella Braga, patronnesse da semiótica musical, por me fazer
encontrar em Peirce não apenas uma teoria, mas um modo de encarar muitas paisagens
do intelecto;
Mikhail Malt (IRCAM, Paris), pela leitura atenta e cuidadosa, não só em português;
R. Murray Schafer, pela entrevista concedida e, sobretudo, pela sua clariaudiência, sua
generosidade em compartilhar a paisagem sonora e intelectual.

Agradecimentos especiais:

à Edite e ao Júnior, amigos incondicionais e porta-vozes de outras vozes amigas.

ao Grupo de Música da Puc - assim chamado sem nunca o ter sido de fato - pelo
animado intercâmbio de paisagens intelectuais e paixões:
à Anastácia, à Cássia, à Cleide, ao Ênio, à Helena, ao José Roberto, ao Lúcio e
especialmente à Lia e à Mônica , pelos toques e retoques.

Agradecimento mais que especial

a Gilberto Mendes, por ter me dado a oportunidade, no momento exato, de reconhecer


na música a minha praia e, em Santos, a praia da minha música.

7
Às vozes que falam em minha lembrança,

vozes-signos, tão vívidas quanto as que outrora ouvia:

as vozes de ultramar do Albino, da Angelina e da Edith,

a voz de poeta do David,

a voz de tenor do Reinaldo,

a voz-violino do Armando,

minha homenagem

Ao Armando, meu pai, música primeira

que gostaria de ter lido este texto

À Lydia,

mãe dedicada, generosa, exemplo de amor, perseverança e coragem

Ao Wagner,

mais que companheiro de todas as horas,

razão de ser deste trabalho.

8
Índice:

Prelúdio

Parte I : Ruído, silêncio.

1. Ruído (allegro vivace)

1.1. Uma nova paisagem sonora toma conta dos grandes centros urbanos
1.2. Nova paisagem sonora, nova música do corpo
1.3. Símbolos: do Ruído Sagrado ao ruído de morte

Uma pausa necessária (1): conceitos de ruído, em música

2. Intermezzo: Do ruído ao silêncio (scherzo)

2.1.O ruído como proteção do silêncio


2.2.O som está no ar...
2.3. Paredes sonoras: Muzak
2.4. Trovadores eletrônicos
2.5. O passeante ouve

3. Silêncio (adagio sostenuto)

3.1. O nascimento da esquizofonia e a perda do silêncio


3.2. O silêncio transfigurado

Uma pausa necessária (2): conceitos de silêncio, em música

3.3. Da ausência de som ao antirruído

Parte II: Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio

1. Corpo (allegro moderato)

1.1.Locus voci
1.2 Música e verbo
1.3.Ritmicidades
1.4.Desimportâncias

9
2. Performance (andante cantabile)

2.1.A performance da voz cantada


2.2.O corpo cantante
2.3.A voz centrada no corpo
2.4.A voz esquizofônica

3. A voz na música contemporânea (presto)

3.1. Demolindo antigas fronteiras: a contribuição da poesia


3.2.A música contemporânea: entre o ruído e o silêncio

4. Tema com variações: A voz dos Mares do Sul: a música de Gilberto


Mendes (allegro con brio)

4.1. Gilberto Mendes: um compositor comprometido com o mundo


contemporâneo
4.2. Ouvivendo semioticamente algumas vozes:
O limiar do experimentalismo: nascemorre (1963)
A paisagem sonora urbana: Cidade Cité City (1964)
Um jogo de vozes: Santos Football Music (1965)
A Renascença revisitada: Motete em ré menor (1966)
A fala das desimportâncias: Son et lumière(1968)
Oralia: Asthmatour (1971)
Performance de fôlego e músculos: Ópera aberta (1976)
A pronúncia do silêncio secular: Tempo Tempo (1991)

Cadência (attaca subito)

Considerações finais

Coda

Notas
Bibliografia

10
Prelúdio

“Eu quero cantar minha paisagem interior com a candura inocente de minha infância.”
Claude Debussy

Antes de mais nada, permito-me abrir estas páginas expondo de maneira sucinta
os caminhos pelos quais enveredei para realizar o estudo que pretendo desenvolver.
Para tanto, lançarei mão de uma narrativa extremamente pessoal, meio romanceada até,
condição necessária, contudo, para que as idéias a serem expostas posteriormente se
apresentem de forma contextualizada e coerente. Inicio, assim, com a história de meu
percurso intelectual.

Convivo com a música desde muito cedo. Mais particularmente, com a música
de concerto. Meu pai, violinista amador entusiasmado, levou-me a conhecer o timbre de
seu instrumento e também do piano. Acostumei-me ao vê-lo pegar à noite uma pilha de
partituras e se pôr a ensaiar peças de Bach, Kreisler, Beethoven... para tocar em dueto
aos sábados com o Prof. Aécio, diretor de escola que, nas horas livres, se dedicava à
composição e ao piano. Lembro-me claramente desses encontros. Eu permanecia em
silêncio, olhando e escutando. Percebia os ataques, entradas, levares, da capo e outras
indicações que ambos faziam por meio da fala ou de gestos. Sem dúvida estes foram os
meus primeiros passos para o aprendizado dessa linguagem particular.

Também me recordo dos concertos da Orquestra Sinfônica de Santos - cidade


em que nasci e onde tenho passado a maior parte da minha vida. Como meu pai
participava da Orquestra, tinha praticamente uma cadeira cativa naquelas apresentações.
Havia também os concertos promovidos pelo Centro de Expansão Cultural que, na
época, trazia a Santos os mais prestigiados intérpretes. Não raras foram as apresentações
de artistas como Nelson Freire, Antônio Barbosa, Jacques Klein, o então existente Trio
Continental, além de nomes internacionais de grande destaque, como o Ars Antiqua de
Paris e muitos outros. Devo a esses concertos alguns elementos que hoje reconheço

11
terem sido de grande relevância na minha formação musical: uma introdução ao
repertório da música que abrange do período barroco ao romântico, todo o ritual de
comportamento na sala de concertos e, talvez o dado mais importante: a fruição da
música ao vivo, com a presença física do músico (o desenrolar do texto mostrará as
implicações que envolvem a execução ao vivo e mediatizada) .

À luz do dia, minha relação com a música foi marcada por uma regularidade que
me acompanhou por muito tempo: os Concertos do Meio-Dia da Rádio Eldorado e seu
prefixo de Pedro e o Lobo, de Prokofiev, ofereceram-me uma boa dose diária de
música. Por uma hora, obras compreendidas entre o Barroco e o Romantismo rompiam
o silêncio da rua, entrecortado volta e meia pelas locomotivas da Fepasa, que passavam
nos fundos da casa onde morava. Essa relação com a música mediatizada se repetia
muitas vezes à noite: entre os chiados da interferência na transmissão, meus pais se
entretinham com alguns trechos de ópera ou música de câmara, introduzidos pela
abertura da ópera Norma, de Bellini , e a gavota da Sinfonia Clássica, de Prokofiev.
Poderia aqui citar uma série de outros exemplos. Creio, porém, que estes já são mais
que suficientes para mostrar que todas essas experiências me ensinaram, sem qualquer
sombra de dúvida, que o ato de escutar, longe de ser uma atitude espontânea, exige
aprendizagem sistemática .

Comecei a estudar piano aos oito anos . Decisão tomada após ouvir a Fantasia-
Improviso de Chopin. Aprendi, então, um pouco da técnica do instrumento e da teoria
musical com uma professora particular e mais tarde num conservatório que hoje não
existe mais. Durante esse período, além de uma razoável leitura e pouca técnica
pianística, incorporei alguns conceitos, há muito ultrapassados (e que os conservatórios
insistem em preservar !). Apesar disso e de todo o incentivo do meio social, decidi
prosseguir meus estudos nessa área pouco promissora profissionalmente.

Diplomei-me em Licenciatura em Música (1982) e em Regência (1986) pela


Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo ( ECA-USP). Estes
cursos, apesar da má formação acadêmica - deficiência didática, descontinuidade nos
módulos dos cursos, falta de professores especialistas em várias disciplinas -
possibilitaram-me, entretanto, ingressar num mundo até então inusitado: a música
enquanto processo de significação; enquanto linguagem, portanto. Ainda, sua relação
com outras linguagens, principalmente a verbal. Foi justamente nessa época quando
cursava a graduação, que participei dos madrigais Klaus Dieter-Wolff , de São Paulo

12
(hoje extinto) e Ars Viva de Santos, grupos vocais que tinham como objetivo a formação
e divulgação de um repertório da melhor música desconhecida, ou seja, a anterior à
Renascença e a posterior ao Romantismo.
A partir desse momento, minha simpatia desinteressada pela música vocal foi
tomando pouco a pouco o centro de minhas preocupações intelectuais. Passei, então, a
tomar aulas de técnica vocal. Enquanto cantava, prestava atenção à sonoridade, à
musicalidade dos idiomas, às possibilidades expressivas de que a voz é portadora... tudo
isso era enfatizado à medida que meu repertório de música vocal se ampliava, ou
conhecia personalidades como Carles Santos, Ula Wolf, Anna Maria Kiefer, nos
festivais de Música Nova, coordenados por Gilberto Mendes.
Na ECA, os diferentes cursos, ministrados pelos Prof. J. J. de Moraes, Olivier
Toni, Willy Corrêa de Oliveira, Ronaldo Bologna e Heloísa Zanni me levaram, cada um
a seu modo, a compreender a música como linguagem, situada historicamente,
obedecendo a leis estéticas. O Prof. Willy, mais especialmente, teceu paralelos entre
composição musical e Semiótica. Esta ciência que permeava o programa curricular das
disciplinas do curso básico da ECA, voltadas à comunicação não-verbal ou linguagens
não-verbais por excelência, foi-se configurando como absolutamente indispensável para
o prosseguimento dos meus estudos.
Estudar música vocal, no âmbito do meu campo de interesses, significava
escapar do disciplinar (musicologia, história da arte, fonoaudiologia etc.). Deveria eu
me apegar a uma abordagem mais ampla, globalizante. Foi quando optei por prosseguir
meus estudos no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da
PUC-SP. A partir desse momento, venho desenvolvendo pesquisa acerca da música
vocal e da musicalidade da voz. Mais precisamente falando, a voz vista dentro dos
parâmetros da linguagem musical.

Se este preâmbulo é demasiado longo, é porque acredito serem esses elementos


informativos indispensáveis para a compreensão dos rumos pelos quais minha pesquisa
acabou por enveredar. Em outras palavras: embora discorrendo sobre a música vocal -
que a maioria das vezes é escrita sobre (ou concomitantemente a) textos lingüísticos 1,
optei por não avançar nos territórios da teoria literária e da lingüística que além de

1Ainda que a ligação entre linguagem musical e linguagem verbal não seja fenômeno constatado em
todas as culturas conhecidas, devemos ter em conta que grande parte da história da música do Ocidente é
vocal construída sobre textos literários e sacros.

13
vastíssimos e pólos de amplas discussões sobre o tema, encontram-se fora dos meus
domínios cognitivos e dos meus interesses intelectuais. Também não está nos meus
propósitos uma investigação no domínio da psicanálise, fonoaudiologia e áreas afins,
muito embora se tratem de disciplinas que estudam a voz, enquanto matriz da música
cantada, de modo bastante abrangente. Quando tomadas, estas ciências atenderão tão
somente às determinações impostas pelo objeto da pesquisa, em momentos muito
precisos. Posto isto, tentarei, a partir deste momento situar mais especificamente o tema
em questão. Por último, mais uma decupagem se faz necessária, esta em termos de
extensão do corpo de análise: Pretendo ater-me à voz no âmbito da cultura ocidental,
mais precisamente, européia. Quando elementos de outras culturas surgirem no texto,
isto se dará única e exclusivamente em função de determinado aspecto da cultura
ocidental, por exemplo: a influência do Oriente na obra de Cage e as consequentes
repercussões no tratamento estético-musical da voz.

Como já podemos observar de antemão, a abordagem das possibilidades


musicais da voz humana evoca uma série de problemas. Estes se ampliam
consideravelmente quando o cerne da questão se situa no período histórico
compreendido desde o final do século XIX . Algumas destas razões encontram-se no
desmantelamento do sistema tonal , sintoma mais evidente da ruptura de hierarquias na
música, dando lugar à modalidade, ao serialismo, às formas experimentais, aleatórias;
desprezo pelas grandes formas (sonata, fuga...); a introdução de outros meios de
produção e reprodução sonora (fonomecânica, elétrica e, posteriormente, eletrônica),
entre outros .

Nesse contexto, o estudo da voz enquanto instrumento musical cresce em


complexidade, demandando um maior número de níveis de interpretação: o antigo
paradigma - a viva voz - passa a ser considerado também a partir dos seus
desdobramentos: a voz gravada em fita magnética, manipulada por intermédio de um
sintetizador, decodificada e reprocessada por um computador (sampler). Além dessas
possibilidades, passam a fazer parte do universo da música cantada muitos sons vocais
outrora banidos pela cultura (bocejos, arrotos, estalos de língua, suspiros, tosse etc.),
fora do domínio da arte, portanto 2 .

2Apesar de encontrarmos entoações onomatopaicas na música (pelo menos desde a Idade Média),
devemos lembrar que a sua aceitação se deve, em grande parte, ao fato de estarem vinculadas a um
conteúdo descritivo (como ocorre com os madrigais), ação cênica (ópera), entre outros.

14
Todavia, estes novos elementos não serão as únicas interferências. Além destes,
desponta ainda uma questão de fundo da qual a música não poderá desvencilhar-se: as
conseqüências oriundas da revolução industrial e tecnológica

Surge, então, nesse instante, um elemento novo a ser levado em consideração: o


largo crescimento do ruído industrial, proliferante nos centros urbanos, após a segunda
revolução industrial. Este ruído - barulho - será um dos carros-chefe do Futurismo e das
estéticas das primeiras décadas do atual século. Essa nova postura estética trará para a
música, em particular, conseqüências definitivas: de mero recurso expressivo (como por
exemplo os canhões na Abertura 1812, de Tchaikovsky), o ruído ganha status de
elemento estrutural na composição.

Essa euforia entusiasmada pelo ruído-barulho perderá sua força, em grande


medida, após a 2a. Guerra Mundial. Isto não se deve somente à proliferação
desordenada do ruído em si, mas também pelo próprio fenômeno da guerra enquanto
manifestação sonora ensurdecedora e as marcas simbólicas que ela acabou por
engendrar. É a partir desse momento que encontraremos no centro das preocupações dos
músicos - os compositores, em particular - o silêncio. Pois, o silêncio está se perdendo a
cada dia 3.

Deparamos, assim, com um fato semiótico marcadamente relevante: Se nas


primeiras décadas deste século o ruído (barulho) em termos de teoria da informação,
exercia a função de ruído, no processo comunicativo, nos anos pós-guerra passou a
representar exatamente o seu contrário, ou seja, a redundância. Em contrapartida, a
linguagem musical ganha mais um novo elemento estrutural: o silêncio. O silêncio,
assim, então, passa a desempenhar o papel de ruído, no processo comunicativo.

O estudo da evolução da linguagem musical desse período não pleiteia somente


um averiguação dos processos composicionais, mas das transformações sofridas pela
própria paisagem sonora nessa mesma época. Em outros termos: o estudo da música
vocal cantada só poderá ser de fato profícuo se contextualizado às implicações
decorrentes da evolução da paisagem sonora, posto que afeta diretamente os modos de
ouvir, pensar e escrever (qualquer) música.

3Esta afirmação se justifica à medida que o campo de estudo em questão diz respeito à música de
concerto. No caso da música da comunicação de massa (música das mídias), a situação parece bastante
diferenciada. No entanto, uma discussão aprofundada, nesse patamar, escapa aos propósitos desta
pesquisa.

15
Para melhor elucidar esse problema, faz-se necessária uma investigação mais
minuciosa da voz na paisagem sonora e suas implicações no próprio desenvolvimento
da linguagem musical. Para tanto, dois autores serão fundamentais, dada a abrangência
e profundidade de sua obra: Murray Schafer, compositor, pesquisador em música e
teórico da paisagem sonora e Paul Zumthor, medievalista e filólogo, autor de vasta
literatura acerca das diversas gamas da oralidade. Embora atuando em campos distintos,
ambos compartilham uma qualidade comum: a de levar a análise dos seus objetos de
estudo às últimas consequências. Nesse sentido, elaboraram conceitos teóricos
consistentes, no que tange à voz e ao ambiente sônico, gerando, dessa maneira, matrizes
para tantos outros desdobramentos, além desta pesquisa que ora apresento.

É possível que, neste momento, meu prezado leitor se faça a pergunta: Por que
um trabalho em semiótica não vai buscar sustentáculos em suas próprias bases? Nesse
caso, faço minhas as palavras de Martinez: A quantidade de questões musicais que
permanecem à espera de tradução teórica torna evidente a necessidade de uma teoria
capaz de não apenas abranger os principais campos de análise semiótica musical mas
efetivamente esclarecer as diversas formas de semiose em música (Martinez,1991:7).
As possibilidades de uso da voz tanto como elemento expressivo, quanto construtivo, ao
que me parece, até o presente momento, enquadram-se nesse panorama 4.

Além disso, conexões entre ruído, silêncio, paisagem sonora e voz não foram
ainda estudadas à exaustão, muito embora haja autores que dão destaque a esses
elementos de maneira mais ou menos isolada: tal é o caso de Cage (1961), Attali (1977),
Moraes (1983), Wisnik (1989), para citar alguns nomes. Nesse caso, tais autores terão
suas idéias levantadas e discutidas, a fim de cercar o presente objeto de estudo de
maneira consistente e precisa.

Assim sendo, proponho-me dar um passo adiante nesse domínio cognitivo,


encampado em duas grandes partes. A primeira, está subdividida em três itens: 1- ruído,
barulho; 2- intermezzo e 3- silêncio.

No primeiro item, tratarei das relações dinâmicas que se estabelecem entre


modificação da paisagem sonora urbana e o crescimento das grandes metrópoles, a
partir dos primeiros decênios deste século; também as implicações dessa mudança no

4Trabalhos exaustivos como a tese de Tatit (1992) sobre a canção vêm reiterar que, no geral, a semiótica
da música, a maioria das vezes, se apoia em teorias de base linguística.

16
campo da música. Mais especificamente, estudarei a introdução do ruído como
construto na linguagem musical e seus desdobramentos: da ampliação do vocabulário
musical, que se iniciou com a euforia futurista de Russolo e Marinetti à simbologia do
ruído de morte, às vésperas da segunda guerra mundial.

Num segundo momento, segue um interlúdio (intermezzo), ensaio quase


independente, que objetiva delinear um panorama da paisagem sonora das grandes
cidades após a introdução das mídias, tecendo considerações sobre algumas mudanças
importantes que engendraram novos hábitos de escuta. Este intermezzo, como o próprio
nome sugere, procura construir uma ponte entre o primeiro e o terceiro itens.

No momento seguinte, dirigirei nossas atenções ao silêncio. Como sabemos, sua


concepção expandiu-se da Idade Média aos dias de hoje. Poderemos observar, ainda,
que se trata de um conceito intimamente atrelado ao de ruído, sofrendo mudanças
radicais, sobretudo após a segunda guerra mundial: o silêncio simbólico como resposta
ao silêncio de morte; o silêncio musical como solução para o excesso de ruído (barulho)
desponta como ruído. É mais precisamente a esse aspecto que dirigirei minha
investigação.

A segunda parte - também subdividida - terá a voz como centro de interesses. A


voz, tomada do universo sonoro-musical: as maneiras como ela passou a ser encarada
no final do Romantismo, mais precisamente, a partir dos primeiros anos do século XX.
A interferência dos meios de comunicação de massa, notadamente o rádio e o disco
terão papéis preponderantes na sua emissão (formas de impostação) e concepção
estética criando, assim, uma nova dimensão: a mediatização técnica. Acrescente-se que
outras vozes se agregarão a esta nova paisagem sonora da voz dita musical: a poesia
oral e, mais tarde, a poesia sonora.

Finalizando este trabalho tentarei expor, de maneira sucinta, como a relação


paisagem sonora / emissão vocal / composição musical se estabelece na música vocal
contemporânea. Para tanto, servir-me-ei de algumas peças de Gilberto Mendes. Minha
opção pelo compositor justifica-se não apenas por se tratar de um dos maiores
expoentes da música de concerto atual, sempre em constante atividade, como também
por ser um dos baluartes da música experimental em nosso país5.

5Esta afirmação é reiterada por Neves (1981), Tragtenberg (1991), entre outros.

17
O repertório selecionado, por força das circunstâncias corresponde, em sua
maioria, a um grupo de obras compostas na década de 1960, época em que, segundo
revela o próprio Gilberto Mendes, em sua tese de doutoramento, sua produção
preocupou-se com a experimentação na linguagem musical até os seus limites 6. No
entanto, o momento histórico em questão não deverá ser tomado como um dado em si,
já que se trata de uma pesquisa de interesse não musicológico, mas semiótico. Serão,
assim, arrolados exemplos de qualquer período da obra do compositor, desde que a
questão da voz, enquanto meio de expressão e/ou composição musical, mereça
tratamento diferenciado (é o caso de Tempo Tempo, por exemplo). Nossas
considerações terão como referência as partituras (manuscritas ou editadas), sejam elas
notadas sob a forma de partitura tradicional, sejam escritas sob a forma de instruções
escritas no código verbal (bula).

Concluindo o texto, apresentamos nossas considerações finais.

6Na tese de doutoramento Dos Mares do Sul à elegância pop/art déco: uma odisséia musical (ECA-USP,
1992) Gilberto Mendes descreve de modo claro e consistente seu processo de trabalho como compositor,
desde sua primeira obra até os dias atuais. As afirmações que fazemos acima são reiteradas pelo próprio
Gilberto Mendes.

18
Nota ao leitor:

Este texto tem como preocupação a voz musical: a sua performance, a sua
sonoridade. Trate-se de um texto escrito, um texto acadêmico que deveria, a
princípio, soar a cada palavra, a cada página; isto é, um texto para ser lido
com os olhos e com os ouvidos, como música.

Como as palavras não soam - a menos que por intermédio de uma audição
interior, de uma abstração - é necessário recorrer à memória auditiva e à
imaginação.

Convido, então, o leitor a esse exercício semiótico: a ouvir em cada som


como som e não apenas como conceito; a resgatar o caráter icônico da
oralidade. É por essa razão que coloquei as indicações musicais. Que cada
parte seja acompanhada como um movimento de uma sonata. Que cada
intérprete ou cada peça musical citada sejam ouvividos (tomando emprestado
o neologismo de Décio Pignatari).
Ou ainda: Que o leitor se sinta motivado a procurar as diversas
performances, seja ao vivo, em discos, em fitas de videocassete de todos os
nomes que cito. Talvez seja este, no final de contas, o maior objetivo deste
texto: dar voz à voz, dar música à palavra.

19
Parte I: Ruído, silêncio

20
1. Ruído (allegro vivace)

1.1. Uma nova paisagem sonora toma conta dos grandes centros urbanos.

“Aprendemos a associar o alaúde à Idade Média, o cantochão ao monastério, o tam-


tam ao selvagem, a viola da gamba aos trajes de corte. Como não esperar que a música
do século XX seja a das máquinas e das massas, do elétron e das calculadoras?”
Pierre Schaeffer

Nosso século é marcado, desde os primeiros anos, pela invasão do barulho:


máquina a vapor, locomotiva, serra elétrica, caldeira, automóvel, britadeira, motocicleta,
bate-estacas, avião a jato... Fato inédito, jamais presenciado, o funcionamento da
máquina não atendeu apenas à indústria crescente nos grandes centros urbanos.
Recebida com entusiasmo por um considerável número de intelectuais, a máquina trazia
embutida a ilusão de domínio humano sobre a natureza, resquício de um pensamento
positivista, aliado a um entusiasmo face aos avanços técnico-científicos de então. Tal é
o clima que toma conta do ocidente, nas duas primeiras décadas do século, sobretudo
após o advento do avião e do automóvel.

A máquina entusiasmou igualmente os artistas. Foi a mola propulsora do


Futurismo, “o primeiro grande movimento intelectual que serviu de modelo para
numerosas escolas artísticas e literárias na Europa” (Bernardini, 1980:11) e de outros
movimentos de vanguarda que lhe sucederiam. Podemos afirmar que o Futurismo foi
diretamente responsável pela instauração de uma sensibilidade nova, nas diversas
manifestações artísticas. Aliás, esta afirmação é proferida pelos pintores futuristas, em
seu manifesto técnico de 11 de abril de 1910: “Vocês nos creem loucos. Nós somos, ao
invés, os Primitivos de uma nova sensibilidade completamente transformada”
(Bernardini, 1980: 44).

21
A excitação pela continuidade, a polirritmia, a extensa gama de microtons, a
percussividade da máquina inspiraram o artista plástico italiano Luigi Russolo7 a criar,
na década de 1910, uma série de instrumentos, os entoa-ruídos (intonarrumori),
ancestrais dos geradores de frequência: crepitador, zumbidor, gotejador, sussurrador,
sibilador, trovejador, entre outros. A euforia de Russolo pela máquina manifestava-se de
forma exaltada: “O ouvido humano chegará no estágio em que os motores e máquinas
das nossas cidades industriais serão um dia conscientemente atonais e então todas as
fábricas serão transformadas numa orquestra intoxicante de ruídos” (Russolo, apud
Seincman, 1991:156). Para Marinetti, líder do movimento, nenhum homem seria capaz
de chegar à perfeição da máquina. Esta foi, sem dúvida, uma posição extremada que,
como veremos adiante, teve, mais tarde, algumas consequências funestas.

Entretanto, o futurismo foi diretamente responsável pela penetração do ruído, do


som considerado não-musical, no universo da linguagem musical, sendo mesmo
precursor da música eletroacústica que despontaria na segunda metade do século. A
partir daí um sem-número de corpos ou objetos sonoros - no dizer de Pierre Schaeffer
(1966) - dotados de uma vasta gama de sons, passaram a estimular os compositores a
explorá-los nas suas possibilidades timbrísticas. Observemos a seguinte descrição:

“Engrenagem veloz das rodas do trem com os dentes nascentes dos ruídos. As
rodas extraem da terra todos os ruídos que dormem na matéria. Sob a pressão do trem,
as rodas saltam, deslizam nas retas vibrantes, elástica do instante comovido. As
estradas percorridas pelos automóveis são rastros de ruídos globulares e de odores
espiralados. Esta 100 HP continua as cavernas do Etna” (Marinetti, apud Bernardini,
1980: 217).

Neste excerto, extraído d’A nova religião-moral da velocidade, de 1916,


podemos observar, em Marinetti, uma audição privilegiada e atenta a ponto de perceber
(ainda que com algumas das suas habituais hipérboles) muitas das sutilezas timbrísticas
que seriam exploradas musicalmente por Honegger, em Pacific 231 (1923) e, mais

7 Luigi Russolo (1885-1947) juntou-se a Marinetti em 1909. Constata que o ruído possui mais
harmônicos que o som periódico. Escreve a Arte dos Ruídos (1913). Os entoa-ruídos foram construídos
na década de 1910, como dissemos, em parceria com Ugo Piatti, na verdade, um conjunto de 21 ruidores,
obedecendo a 10 categorias. No entanto, esses esdrúxulos instrumentos seriam aperfeiçoados, 16 anos
mais tarde, com a criação do rumorarmônio, capaz de executar 12 timbres diferentes (murmúrios, serra
circular, zumbido de mosca, crepitação de motor etc.). Passado um certo tempo, cria o russolofone.
Apesar desses instrumentos terem motivado a composição de peças musicais especialmente concebidas
para si, tais instrumentos não nos legaram obras de maior importância (Moraes, 1983:37).

22
tarde, por Schaeffer, no Estudo das Ferrovias (o segundo da série Cinco estudos de
ruídos, 1948). Nesta peça, Schaeffer experimenta uma linguagem nova, da qual é
pioneiro - a música concreta. Sua obra encampa novos recursos, até então inconcebidos:
a possibilidade de filtrar o som, reproduzi-lo em velocidade diferente da execução
original, recortar e intercalar as tomadas de som etc.. Essa nova linguagem passa a
contar com novas técnicas que permitem ao compositor evidenciar e incorporar timbres
não raro inusitados, mas para as quais os futuristas de alguma forma já dirigiam sua
atenção: A sirene, a estridência da roda sobre os trilhos, os bufos em aceleração ou
retardamento... Em outras palavras, a música incorpora os novos sons que na estética
futurista não contavam com uma sistematização, senão uma gramática em estado
embrionário.

Estas considerações nos levam à ideia de que o desenvolvimento tecnológico e a


consequente industrialização dos grandes centros urbanos apresenta um saldo favorável,
no que diz respeito a um enriquecimento da nascente linguagem musical deste século.
Não nos cabe, entretanto, louvá-lo, ingenuamente, desprezando seu lado negativo: além
das implicações sociais da questão (a exploração do operariado, por exemplo), a
atividade industrial contribuiu para um sensível aumento do ruído - barulho -
transfigurando radicalmente a paisagem sonora dos centros urbanos.

A expressão paisagem sonora é atribuída ao compositor e pesquisador em


música R. Murray Schafer, que a define como campo de estudo acústico, qualquer que
seja ele. A expressão refere-se tanto a ambientes reais ou abstratos. Assim, são
exemplos de paisagem sonora uma composição musical, um programa de rádio, um
meio ambiente acústico (Schafer, 1979). Dado que a paisagem sonora é vinculada aos
processos sociocomunicativos, culturais, históricos, políticos, entre outros, está sujeita a
mudanças contínuas e constantes.

Uma análise crítica da evolução da paisagem sonora do Ocidente nos leva a crer
que ela vem se tornando cada vez mais barulhenta. Isto se deve aos motores, todo-
poderosos do mundo sônico: “O motor a combustão interna constitui hoje o som
fundamental da civilização contemporânea.(...) Nas sociedades industriais avançadas,
o cidadão médio pode, no decorrer de um mesmo dia, manobrar vários motores a
combustão interna (automóvel, motocicleta, caminhão, trator, gerador, cortador de
grama, utensílios motorizados etc.). Ele terá, várias horas por dia, o barulho nos
ouvidos” (Schafer, 1979:123). Como os motores a combustão interna, os motores

23
elétricos (que põem em funcionamento os diversos eletrodomésticos, como aspiradores
de pó, liquidificadores, ventiladores etc.) podem igualmente participar continuamente
do cotidiano desse mesmo cidadão médio, sujeitando-o a mais um outro barulho
intermitente. Ambos os tipos de motor compartilham de uma mesma característica
comum cuja importância é preciso destacar: são invariavelmente de baixa informação,
de alto índice de redundância8.“ Isso quer dizer que, a despeito da intensidade de suas
vozes, as mensagens que falam são repetitivas e, em última análise, aborrecidas ”
(Schafer, 1991:188).

As consequências da proliferação do ruído - o barulho - foram indubitavelmente


determinantes no que diz respeito aos modos de ouvir, pois promoveram uma mudança
perceptiva, decorrente de uma sensibilidade diferenciada cuja origem se encontra na
transformação da paisagem sonora, segundo Schafer, de hi-fi para lo-fi . A título de
elucidação, citamos as respectivas definições:

“hi-fi- abreviação do inglês high fidelity - alta fidelidade - indicando uma


relação sinal/ruído satisfatória.(...). Aplicado ao estudo da paisagem sonora, um meio-
ambiente hi-fi é aquele no qual os sons são distintamente percebidos, sem que haja
perturbação ou efeito mascarante;

lo-fi - abreviação de low fidelity - baixa fidelidade - indicando uma relação


sinal/ruído insatisfatória. Aplicado ao estudo da paisagem sonora, um meio-ambiente
lo-fi é aquele no qual os sinais são tão numerosos que acabam resultando em falta de
clareza ou efeito mascarante” (Schafer,1979:375).

Numa paisagem sonora hi-fi cada som é percebido na sua integridade,


nitidamente, mesmo à distância, de maneira tão clara que é possível reconhecer sua
origem. A paisagem sonora hi-fi está em via de extinção, uma vez que se caracteriza
geralmente pelos sons que constituem o mundo natural em seu estado primitivo: o

8Apesar da amplidão que este conceito oferece, a partir da formulação pela Teoria dos Sistemas,
tomamos emprestado a sucinta definição de Paulo Neves, no domínio da Teoria da Informação, que é
justamente o que atende aos nossos propósitos:“ Redundância é uma medida de ordem, previsibilidade e
certeza na transmissão de uma mensagem enquanto que informação é a novidade e a incerteza” (Neves,
1984:37). Este assunto será retomado mais adiante, em conceitos de ruído e no último capítulo, onde
serão comentadas as obras de Gilberto Mendes

24
farfalhar de folhas de árvores, os ventos sibilantes, o movimento das marés em alto mar.
Ou ainda, em número reduzido, sons criados pelo homem, como as fontes. “O campo é
geralmente mais hi-fi que a cidade, a noite é mais hi-fi que o dia, o passado é mais hi-fi
que o presente.” (Schafer, 1979:69). Numa paisagem sonora hi-fi, a menor intervenção
sonora pode trazer mudanças de grande monta.

Contrariamente, numa paisagem sonora lo-fi, as características são praticamente


antagônicas. Explica Schafer: “os sinais acústicos individuais se perdem na população
de sons. Um som nítido - um passo na neve, o sino da igreja no vale (...) desaparece no
barulho generalizado. A perspectiva desvanece. Num cruzamento, numa cidade
moderna, a distância é abolida, restando somente a presença. Há interferências em
todos os circuitos e, para que sejam percebidos, os sons corriqueiros deverão ser cada
vez mais amplificados” (Schafer, 1979: 69-70). A paisagem sonora lo-fi domina, a cada
dia que passa, não apenas as grandes cidades, mas todo o planeta. Uma das razões pode
atribuir-se à esquizofonia, da qual nos ocuparemos mais adiante.

A transição da paisagem sonora de hi-fi para lo-fi implica necessariamente num


embotamento da sensibilidade aos sons. Para evitar que isso aconteça, faz-se necessário
o treino auditivo perseverante e sistemático a fim de atingir a audição clara 9. Foi a
audição clara de Debussy que o levava a se queixar, em 1912: “A beleza do andante do
‘Concerto para violino de J.S. Bach é tal que, muito sinceramente, não sabemos onde
nos colocarmos, nem como nos comportarmos para sermos dignos de escutá-lo... A
buzina feroz do ônibus recolocou rapidamente as coisas no seu lugar de costume”
(Debussy, apud Damian, 1980: 17-18). Assim como Debussy, outros tantos ouvidos -
muitos anônimos - teriam estranhado a invasão do barulho.

Nos dias de hoje, entretanto, essa buzina a que se refere Debussy em 1912
poderia considerar-se um elemento perdido na multidão de sons que constituem a
paisagem sonora de uma grande metrópole. Signo da época atual, o tráfego de veículos
constitui um ruído de fundo, contínuo, estabelecendo uma espécie de baixo ostinato10 na

9 A expressão audição clara é atribuída a Murray Schafer, designando “uma acuidade auditiva
excepcional, em particular para os sons do meio-ambiente” (Schafer, 1979:376). A audição clara é
condição essencial para o compositor e o músico, embora seja possível para qualquer indivíduo que
pratique exercícios de educação auditiva.

10 O ostinato consiste na repetição regular e contínua de uma figura melódico-rítmica ou harmônico-


rítmica. Recurso composicional e expressivo praticamente universal, demonstra ter sido utilizado em toda
a história da música do ocidente, como na música de outras culturas (mesmo as de tradição oral). No caso

25
orquestração da cidade do final do século XX. Sendo assim, a descontinuidade só pode
ser experimentada, em breves períodos de tempo durante a madrugada - na calada da
noite - quando o número de veículos em circulação diminui sensivelmente, levando o
som à categoria de fenômeno isolado, objeto de escuta.

O cidadão deste final de século parece, contudo, ter-se habituado a esse moto
perpetuo, relegando o hábito de escutar ao de apenas ouvir11: o chiado palpitante dos
walkmen, entreouvidos (muitas vezes a contragosto) por aqueles que não compartilham
do aparelho, porém do mesmo espaço acústico, revela que há uma crescente tendência a
se ouvir maior quantidade de sons contínuos, sobretudo em um alto índice de decibéis.

Uma outra característica a se levar em conta é o fato do repertório - ao qual se


convencionou chamar de música popular - revela uma preferência pela utilização de
instrumentos que produzam sons graves. Essa escolha se explica, segundo Schafer, da
seguinte maneira: as ondas em baixa frequência propagam o som a uma distância mais
longa. “Menos sujeitas à difração, elas podem ainda contornar obstáculos e encher
plenamente o espaço. A localização da fonte sonora é mais difícil no caso dos sons de
baixa freqüência e a música que os favorece é, ao mesmo tempo, mais obscura em
qualidade e mais difusa no espaço. Ao invés de responder à fonte sonora, o ouvinte
parece afogar-se nela” (Schafer, 1979:169). Contrariamente, na música em alta
freqüência, cuja direção do som é clara, o espaço desempenha um papel importante: a
sala se adéqua ao espaço virtual da dinâmica. Esse tipo de música encontra seu apogeu
na música de câmara (Schafer, 1979: 170-171).

da música de concerto, é famosa ária de Dido When I am laid, de Dido e Enéias, de Purcell. O ostinato é
também bastante utilizado no jazz e na música pop: Starway to heaven, de Led Zeppelin são apenas
alguns dos muitos exemplos possíveis.

11 Marcamos a distinção entre ouvir e escutar: Para ouvir, basta-nos que os ouvidos sejam capazes,
fisiologicamente, de captar o som; para escutar, é necessário que haja intenção deliberada, por parte de
quem ouve, em desejar captar o som. Os diferentes níveis de audição musical foram exaustivamente
estudados por Pierre Schaeffer. Para ele, estes níveis chegam a quatro: ouvir, escutar, entender - note-se
que em francês entendre traduz-se igualmente por entender e ouvir - e compreender (1966). Mais
recentemente, chamamos a atenção sobre as Maneiras de ouvir, estabelecidas por J. J. de Moraes (1985).
Em seu conciso texto, Moraes classifica a escuta musical em 3 níveis, a saber: 1- ouvir com o corpo; 2-
ouvir com o sentimento e 3- ouvir com o intelecto. Segundo o autor, estes níveis podem combinar-se ou
sobrepor-se; porém o segundo modo engloba o primeiro, assim como o terceiro engloba o primeiro e o
segundo. Lúcia Santaella (1986), de sua parte, elaborou uma classificação sob o escopo da teoria
peirceana, bem próxima à de Moraes, propondo, entretanto, a inversão do primeiro com o segundo nível,
além de tripartir cada um destes três níveis. Assim, temos: 1 - ouvir emotivamente (1.1. qualidade de
sentir incerto e vago; 1.2. comoção: movimentação orgânica; 1.3. emoção: nomeação de sentimento; 2 -
ouvir com o corpo (2.1. corpo tomado, característico da dança ritual; 2.2. música e corpo encontram-se
em contigüidade; 2.3. dança coreografada); 3 - ouvir intelectualmente (3.1. apreensão hipotética; 3.2.
apreensão dos elementos estruturais, leis; 3.3. apreensão da música como forma de pensamento, sistema).

26
A preferência pelos sons de baixa frequência é corroborada por um outro
componente. De acordo com o compositor e estudioso em tecnologias musicais Michel
Chion,

“(...) certas frequências graves, em determinadas condições de intensidade


fazem ressoar o corpo do ouvinte pela co-vibração desenhando na ‘janela perceptiva’
de nosso ouvido uma imagem acústica, enquanto outras, em razão de sua intensidade
mais modesta e de sua frequências mais elevada, contentam-se em inscrever-se na
janela em questão. As primeiras desencadeiam, assim, percepções combinadas nos dois
níveis (localizada nos ouvidos, difundida no todo do corpo), enquanto as segundas
atingem somente os ouvidos” (Chion, 1993:89).

No caso particular da música mais recente, sobretudo aquela para walkman, a


utilização de sons graves é, segundo Chion, estilizada, uma vez que não tocam o corpo
como o fariam os baixos reais em forte intensidade: os baixos da estética sonora atual
têm o contorno nítido, com ataques secos e sem peso; os fones do walkman se prestam à
escuta gráfica e especialmente dos sons graves (Chion, 1993: 128). Em outra passagem,
acrescenta o autor que, mesmo as freqüências incapazes de atingir outras regiões do
corpo afora o crânio, por condicionamento ou memória tátil, podem despertar sensações
que seriam, a princípio, desencadeadas por estímulos de natureza física. Assim, por
exemplo, a audição da oitava sinfonia de Mahler, em um aparelho de som portátil, não
deixa de afetar fisicamente o ouvinte que já tenha tido a experiência estética prévia da
audição dessa mesma sinfonia ao vivo, ou em um aparelho de alta fidelidade acústica e
potência avantajada.

1.2. Nova paisagem sonora, nova música do corpo.

A gradual transformação da paisagem sonora urbana de hi-fi em lo-fi seria


responsável, ainda, por mudanças não somente nos ritmos corporais, como também na
entoação da fala. Dado que ouvido e voz estão diretamente ligados entre si (Tomatis:
1987; 1991; Castarède:1991), permitimo-nos, neste momento, recorrer à fonoaudiologia

27
apenas para chamar a atenção sobre um fenômeno particularmente interessante que toca
a relação ouvido / voz, o efeito Lombard , que segundo Behlau e Pontes:

“É a elevação automática da intensidade, na presença de ruído mascarante. A


competição sonora pode ser vocal, ocorrendo geralmente em famílias numerosas ou em
ambientes de trabalho com várias pessoas falando ao mesmo tempo, mas também pode
ser não-vocal, relativa a ruídos de máquinas elétricas e de trânsito na rua. Os
indivíduos com audição normal automaticamente elevam a voz e colocam seu aparelho
fonador sob tensão e esforço, o que deve ser minimizado pela redução dos ruídos
mascarantes e pelo monitoramento visual e proprioceptivo da voz” (Behlau e Pontes,
1988:20).

A ocorrência sistemática do efeito Lombard leva, muito provavelmente, a um


enrijecimento no fraseado musical da fala, empobrecendo-a, pois afeta também a
sensibilidade receptiva do órgão auditivo. Parece, assim, mais suscetível de ocorrer nas
paisagens sonoras em que o índice de barulho é mais alto e constante. Murray Schafer
endossa essa idéia, ao afirmar que o vínculo constante entre certas atividades cotidianas,
lúdicas ou profissionais e a qualidade da modulação da voz encontra muitas vezes casos
exemplares: não são poucos os pilotos do automobilismo que apresentam uma fala
pouco modulada e nasalada. O contato permanente com o som do motor em
funcionamento acaba interferindo no modo de ouvir e, consequentemente, no de falar
(Schafer, 1992). Isto pode ser compreendido da seguinte maneira: as máquinas
produzem via de regra, sons ritmados, sempre contínuos, que se propagam em linha
reta.

Um som em linha reta, diz Schafer (1979), é o eterno: ao contrário de um som


natural, que tem uma existência biológica, o som do gerador ou do ar condicionado tem
uma existência artificial. Cada vez que um ritmo ultrapassa os vinte ciclos, os impulsos
se fundem à massa sonora já existente. Dessa maneira, o ouvido capta essa paisagem
sonora, modulando sua fala segundo esse modelo mascarante.

A interferência que a paisagem sonora exerce no comportamento humano é


ainda mais ampla do que possa parecer a princípio. Observando um pouco mais de perto
as relações entre a industrialização do início do século e a dominação do ambiente
acústico pelo ruído, percebemos, numa análise mais cuidadosa, que a implantação da
máquina não criou apenas uma nova paisagem sonora, como também uma nova
dimensão do espaço corporal. Tomemos, mais uma vez, as palavras de Schafer:

28
“Com a aceleração do tempo nas atividades humanas, os ritmos dos pés e das
mãos se mecanizam, para dar a concatenação antes de tudo rudimentar e ‘granulosa’
das primeiras ferramentas da revolução industrial, antes de chegar ao contorno da
tonalidade lisa, produto da eletrônica moderna. O poder de fusão dos sentidos torna
possível a transformação de certas turbulências da paisagem sonora em zumbidos que,
menos insuportáveis ao ouvido, têm virtudes pacificadoras” (Schafer, 1979:312).

Entretanto, tais virtudes pacificadoras podem ganhar colorações bastante


antagônicas, se tivermos em conta os ouvidos sensíveis do músico que se põe face a
face com a máquina. Tais são as conclusões se levarmos em conta a experiência pela
qual passou Simone Weill, quando decidiu trocar , temporariamente, a atividade musical
por um emprego numa fábrica, por volta de 1930:

“Todos os ruídos têm um sentido, todos são ritmados, fundem-se numa espécie
de grande respiração do trabalho comum no qual é inebriante tomar-se parte. Tão mais
inebriante quanto são os sentimentos de solidão. Só os ruídos metálicos, rolamentos
que giram, mordidas no metal; ruídos que não falam da natureza, nem de vida, mas da
atividade séria, mantida, ininterrupta do homem sobre as coisas. Fica-se perdido neste
grande rumor, mas, ao mesmo tempo, dominamo-lo porque sobre esta nota grave,
permanente e sempre em mudança, o que sobressai é o ruído da máquina que cada um
maneja. Não é possível sentir-se pequeno dentro de uma multidão, vem o sentimento de
indispensabilidade de cada um. As correias de transmissão, onde elas existem,
permitem que se beba com os olhos esta unidade de ritmo que todo o corpo sente
através dos barulhos e pela ligeira vibração de todas as coisas” (Weill apud Moraes,
1983:34).

A relação som / corpo, como vemos, não é neutra, de modo algum: nossa pele
está longe de ser a armadura que protege e isola o corpo ao contrário, somos
continuamente banhados pelas vibrações audíveis e inaudíveis. Além disso, o ouvido,
órgão que é capaz de captar aquelas vibrações entre 20 e 20 000 Hz, é exposto por
natureza. Não sendo dotado de qualquer espécie de tampa, é vulnerável: somente um
refinado mecanismo psicológico de abstração pode impedir a escuta12. Assim, não
parece difícil compreender que os movimentos do trabalho, anteriormente conformados

12 Com esta afirmação reiteramos o que dissemos anteriormente acerca dos níveis de escuta e apreciação
musical.

29
às dimensões dos membros, do ritmo cardiorrespiratório, dos passos ... todo o corpo
tenha passado a moldar-se aos ritmos da máquina, inclusive a voz, mesmo que esses
traços tenham vindo a apresentar-se de modo bastante discreto. Esse momento foi
brilhantemente fixado por Chaplin, em seu filme Tempos Modernos (1936).

O tempo que se ouve

Talvez a primeira máquina a ser escutada de modo a interferir diretamente na


música do corpo tenha sido o próprio relógio mecânico, a partir do seu surgimento, no
século XIV. Relógios e barras de compasso são praticamente contemporâneos quanto à
sua origem. Isto porque o relógio mecânico é a primeira maneira de se dizer o tempo;
som absolutamente regular que pode ser ouvido. Os relógios anteriores a ele (a
ampulheta, de sol etc.) não podiam ser ouvidos, porque os sons produzidos eram
inaudíveis para o ouvido humano. Foi somente a partir do momento em que a marcação
do tempo se tornou audível que se estabeleceram as barras de compasso na música do
ocidente. A marcação do tempo favoreceu, por conseguinte, à coordenação: a exposição
de ideias, a notação, tudo, enfim, passou a ser proporcional: semibreve, mínima,
semínima... O mesmo sucedeu com o relógio, onde existe uma proporção exata em suas
subdivisões (Schafer:1992).

O músico e ensaísta José Miguel Wisnik considera que o relógio não somente
interfere na música do corpo humano de forma bastante direta, como também os
diferentes tipos de relógio estimulam diferentes gêneros musicais e sua expressão
estética corporal, a dança. Em seu livro O Som e o Sentido (1989), Wisnik afirma que
“a história das danças é a história das horas” (1989:202): a marcação do tempo do
grande relógio de pêndulo está para a valsa, assim como os ponteiros do relógio de
pulso estão para o bolero (o bolero se dança com o pulso próximo ao ouvido do
parceiro) e o digital microcomputador para o break. Se as hipóteses de Wisnik são
verdadeiras ou não é fato ainda a ser verificado empiricamente. Em todo o caso, suas
observações não deixam de ser instigantes.

O físico Géza Szamozi demonstra compartilhar, em grande medida, das idéias


de Schafer, vistas às avessas. Se Schafer afirma que o desenvolvimento da notação se

30
deve à escuta da batida regular do relógio mecânico, Szamozi afirma que foi a própria
música que criou a noção de tempo medido: “Foi na teoria e na prática de uma forma
musical unicamente ocidental, a música polifônica e suas notações medidas, que o
tempo métrico foi inventado, estudado e utilizado pela primeira vez na história”
(Szamozi, 1988:95). Ressalta o autor que, até o surgimento do relógio mecânico, não
havia o interesse em medir o tempo de forma tão precisa. Os relógios existentes serviam
para acompanhar o curso do tempo, o que significa, “(...) adaptar-se às fases de um
ambiente periodicamente mutável” (1988: 97). Os relógios passaram a medir o tempo
somente após a ideias de tempo mensurável haver sido estabelecida.

Segundo conjeturas do historiador Oswald Spengler, foi o relógio mecânico que


deu à Europa (e mais particularmente à Alemanha) o seu sentido de história e de
destino: “Entre os ocidentais, foram os alemães que inventaram os relógios mecânicos,
assustadores símbolos do tempo que escoa, cujos golpes sonoros que retinem dia e
noite as inumeráveis torres por sobre a Europa ocidental são talvez a expressão mais
gigantesca da qual tenha sido possível um sentimento histórico do universo” (Spengler
apud Schafer, 1979:87). Schafer salienta que tal associação não é fortuita: segundo o
autor, o cristianismo dá a ideias retilínea do tempo considerado como uma marcha
espiritual e verdadeira com um ponto de partida ( a Criação), um guia (Cristo) e uma
conclusão final (o Apocalipse); a marcação incessante do ritmo lembra o homem que
ele é mortal (Schafer,1979:87-88).

Se as conjecturas de Spengler são corretas ou equivocadas; se foi a barra de


compasso que determinou a invenção do tempo medido, como o quer Szamozi, ou,
contrariamente, se foi a audição do tempo regular que levou à fixação de barras de
compasso na música - estas são hipóteses que, ao que nos parece, não foram ainda
testadas de modo a determinar uma verdade científica. De todo o modo, é inegável que
o surgimento do relógio mecânico impôs um ritmo à vida social (contrariamente aos
ritmos biológicos e naturais, de um modo geral). Que ele tenha participado da criação da
métrica, na música do ocidente, é um outro tema que precisa ser discutido de forma
mais aprofundada.

1.3. Símbolos: do Ruído Sagrado ao ruído de morte.

31
O crescimento do ruído urbano teve outras implicações como, por exemplo, a
necessidade da criação de leis específicas, visando controlá-lo. O que foi, de certo
modo, uma novidade, pois, de acordo com o ensaísta Jacques Attali, “(...) a repressão
aos ruídos e barulhos não era, antes da revolução industrial, objeto de nenhuma
legislação geral. O direito ao ruído era um direito natural, uma afirmação da
autonomia de cada um” (Attali, 1979:199).

Segundo o autor, tais leis não tinham como meta garantir e preservar o silêncio,
absolutamente; seu objetivo precípuo visava apenas poupar o operário de maiores
desgastes físicos, levando-o a uma maior produtividade no desempenho do trabalho
fabril. Contraditoriamente, a fábrica, fonte de ruído incessante, o próprio ambiente de
trabalho em que o operariado consumia horas de sua vida, parece não ter sido objeto de
maiores queixas ou reclamações.

As primeiras leis antirruído visavam apenas a repressão da voz humana,


representada pelos diversos vendedores de rua. Os sons que se originavam dos centros
do poder político ou econômico, como o sino da igreja, a fábrica jamais sofreram, pelo
que se tem notícia, qualquer restrição. Uma avaliação quantitativa do ruído, veio a
generalizar-se somente a partir de 1928 quando o decibel, enquanto meio de avaliação
da pressão acústica passou a ser utilizado com maior frequência (Schafer,1979:103-
104;114).

Como podemos observar, ruído, nesse sentido, é um conceito sujeito a


interpretações onde grau de subjetividade é alto - mesmo ainda hoje, quando já se
conhecem, cientificamente, um dado de natureza psico-fisiológica de extrema
importância, ou seja, os limites do suportável para o ouvido humano.

As observações de Attali descrevem um aspecto social do problema. Schafer, de


sua parte, aponta para a questão propriamente semiótica (ainda que em nenhum
momento essa expressão tenha surgido nos seus textos) 13. Nesse sentido, podemos

13 Embora não se utilize dos instrumentos de quem estuda a semiótica, o pensamento de Schafer revela
preocupações características de quem estuda essa ciência. Esse aspecto confirmou-se por ocasião em que
pudemos entrevistar o autor (Schafer,1992), onde ele reconhece sua afinidade com a ciência dos signos,
embora não se dedique à sua aplicação direta em suas obras (composições ou escritos).

32
traduzir a idéia da seguinte maneira: enquanto o barulho não se impõe como um
existente de perfil claro e delimitado, o ruído não pode se caracterizar como signo, de
fato. Foi somente o crescimento abrupto do barulho que permitiu ao ruído ser percebido,
delineado, questionado, tornando-se objeto de discussão e polêmica. É somente a partir
desse instante que assume o estatuto de signo, assimilando uma concretude física e
simbólica.

Existe, ainda, um outro ruído, mais poderoso porque sua força ultrapassa a
dimensão do concreto, adquirindo um caráter simbólico de fato marcante em várias
culturas conhecidas: o Ruído Sagrado. Para Schafer, trata-se do som (ou barulho)
invulnerável a qualquer tipo de censura social justamente por passar despercebido. Sua
origem remonta as culturas mais antigas, estando presente até os dias de hoje. O Ruído
Sagrado estaria, em sua origem, ligado aos fenômenos naturais - trovão, erupção
vulcânica - interpretados como manifestação da cólera divina, dirigida ao homem ou aos
outros deuses, em combate.

De acordo com as cosmogonias mais antigas, a essência do ser humano é sonora.


Aliás, os mitos mais primitivos descrevem a criação do mundo através de
acontecimentos sonoros. É o que nos mostra Schneider14:

“O som, ou a palavra de Deus combinada com o sopro vital era considerada


como o primeiro e único elemento propriamente criador. Cada vez que a gênese do
mundo é descrita com precisão, um elemento acústico intervém no momento decisivo da
ação. No instante em que Deus manifesta a vontade de fazer nascer a si mesmo ou a um
outro deus, de fazer aparecer o céu e a terra ou o homem, ele emite um som. Ele expira,
suspira, fala, canta, grita, berra, tosse, expectora, soluça, vomita, troa ou toca um
instrumento musical. Em outros casos, ele se serve de um objeto material que simboliza
a voz criadora” (Castarède, 1991:30).

Essa idéia revela-se presente, segundo a autora, nas cosmogonias indiana,


chinesa; também em tribos indígenas da América, da Austrália, da África meridional
(Congo, Nigéria, Quênia, Tanzânia). Portanto, o som é “a voz, é o homem; o canto é a
alma ou o veículo da alma” (Castarède, 1991: 30-33).

14 Este autor é citado por vários outros, dentre os quais destacamos Schafer (1979) e Castarède (1991).

33
O Ruído Sagrado15, inicialmente concebido como manifestação divina,
deslocou-se das forças da natureza (mar, vulcão, trovão etc.) para o centro do poder
político, igreja, através dos sinos e dos tubos do órgão. Esse poder conseguiu
permanecer intato até que a revolução industrial do final do século XIX o tomasse. A
partir daí, o Ruído Sagrado penetrou definitivamente no mundo profano: máquinas a
vapor, altos fornos, caldeiras foram representantes ruidosos desse novo poder, porta-
vozes dos industriais. Anos mais tarde, o Ruído Sagrado transferiu-se para o locutor de
rádio e o aviador, cada qual com a propriedade de fazer mais barulho que seu
antecessor, barulho esse capaz de dominar um território cada vez mais extenso no
espaço acústico.

Deter o Ruído Sagrado não se restringe, como vimos, a fazer soar um grande
barulho; acima de tudo, deter o Ruído Sagrado - insistimos em frisar - é ter autorização
para fazer muito barulho sem por isso receber algum tipo de censura. Se esta ocorre, é
porque o poder político está em crise. A partir desse momento, o ruído deixa de ser
sagrado, adquirindo a feição de barulho a ser evitado e expurgado. De acordo com
Schafer, fatos mais recentes como a formação de uma consciência ecológica e a falência
econômica da Panam, por exemplo, não são mera coincidência; ao contrário, há de
alguma forma uma estreita relação causal entre ambas.

O desejo de dominação pelo barulho também pode ser saciado por indivíduos
isolados em grupo, pois fazer barulho é, antes de tudo, chamar a atenção. Assim sendo,
comícios, apresentações de rock, motocicletas que chispam com o escapamento aberto,
automóveis que desfilam com os alto-falantes do rádio em alta intensidade nada mais
são do que tentativas, geralmente bem sucedidas, de atingir esse objetivo, embora nem
sempre claro e consciente.

A consciência do poder pelo ruído enquanto elemento simbólico-persuasivo


encontra terreno fértil na propaganda política. Sabemos que Hitler atribuiu, ele próprio,
seu sucesso aos alto-falantes. No Brasil, são bastante conhecidos os famosos discursos
de Getúlio Vargas; mais recentemente, o barulhaço (momento preciso em que toda a
população deveria praticar qualquer tipo de barulho que estivesse ao seu alcance, em

15 Na Bíblia, a gênese narra o nascimento do universo da seguinte maneira: No começo era o verbo, dizia
João; a presença de Deus foi inicialmente anunciada pela vibração potente de um som cósmico. No
espírito dos profetas, o fim dos tempos está igualmente de um ruído estarrecedor, mais terrível que o mais

34
sinal de protesto) por ocasião da campanha diretas-já, em 1984. Como estratégia mais
ou menos recente, têm-se verificado, nos últimos anos, a grande eficácia dos cortejos
automobilísticos laudatórios aos quais passou-se a denominar de carreatas (que,
contrariamente aos cortejos fúnebres, os veículos trafegam tocando um bloco sonoro de
buzinas) culminados pelos showmícios que, como o próprio nome indica, une num
mesmo ritual, o comício político, seguido de show de cantores solistas ou grupos
musicais adulados pela mídia. Dessa forma, o barulho percorre uma grande extensão do
espaço acústico da cidade, fixando-se, em seguida, num centro mítico (fazendo aqui um
paralelo com comportamentos tribais na esfera da cultura de uma sociedade de massa).

Levando em conta as considerações acima podemos, de certo modo, atribuir a


uma não-percepção da relação ruído/poder uma série de equívocos. Senão tomemos o
caso exemplar do futurismo: encarando o desenvolvimento tecnológico como um bem
em si, esse movimento notável mostrou-se impregnado de idéias fascistas: no manifesto
inaugural de 20 de fevereiro de 1909 Marinetti prega, por exemplo, destruição sem
piedade das cidades veneradas, dos museus, bibliotecas etc.. Mais que o conteúdo das
idéias, a postura de Marinetti e de seus seguidores, sabemos, será apropriada pelo
fascismo: o tom de provocação, de insulto, a arrogância, a auto-estima elevada.

Na Arte dos ruídos (1913), Russolo conclama com exaltação que os ruídos
encontrariam seu modo de expressão total na guerra mecanizada. Aliás, a guerra consta
em destaque como um dos pontos básicos da Fundação e Manifesto do Futurismo:
“Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o
patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o
desprezo pela mulhe .” E , mais adiante: “ - A arte, de fato, não pode ser mais que
violência, crueldade e injustiça” (Marinetti, apud Bernardini,1980: 34-36). Passou-se
pouquíssimo tempo até que a higiene tão sonhada por Marinetti fosse posta em prática:
tão logo, eclodiram a 1a. Guerra Mundial, a Guerra Civil Espanhola, entre outras. A
partir desse momento, a euforia pelo barulho ganharia outras conotações: ruído deixaria
de ser timbre, textura, que se obtém das máquinas da indústria, mas das máquinas de
guerra: fuzis, canhões, tanques. O Ruído Sagrado passaria, assim, a ser tutelado pelas
potências militares. Ruído deixaria nesse instante de ser manifestação de vida para

potente que tenham podido imaginar, mais inquietante que a mais formidável das tempestades, mais
horrendo que todos os trovões. (Schafer, 1979:48).

35
transformar-se numa ameaça iminente, não mais simbólica, de destruição e de morte 16.
Ruído é, pois, ameaça de morte. Controlado pelo poder - no caso militar - consegue
legitimar-se através da violência.

Não obstante, o surgimento da máquina entusiasmou uma série de composições


no período compreendido entre os anos de 1920 e 1930, hoje sem maior relevância que
talvez se explique pela não sistematização de um código específico para a utilização
desses novos instrumentos. Hoje tem-se regularmente difundido Parade, de Eric Satie
(1916) em concertos e gravações. Esta obra emprega instrumentos ready made tais
como sirenes, máquina de escrever, garrafafone, como caricatura da era industrial,
segundo a concepção dadaísta de Satie e Cocteau, co-autor da peça. Das obras que se
firmaram no repertório da música de concerto, podemos citar Pacific 231, de Honegger
(1923), Balê mecânico, de Antheil (1926). O resultado mais interessante do período, no
entanto, surgiria em 1931, com Ionisation, de Varèse, composta para 37 instrumentos de
percussão de altura indeterminada, foi a primeira obra escrita unicamente para
percussão. Com Ionisation, ficou estabelecido que o parâmetro da altura (freqüência)
não seria mais uma conditio sine qua non da criação musical.

* *

Uma pausa necessária (1): conceitos de ruído, em música.

Como pudemos observar até o momento, o conceito de ruído é passível de um


considerável número de acepções. É necessário, pois, fazer uma pausa para observarmos
as diversas faces desse conceito e precisar o campo em que nossa pesquisa está

16 Esse comentário nos leva imediatamente a uma associação imagética: não se trata de música; é um
quadro. Entretanto, podemos ouvir tudo claramente! Não será esse um dos motivos que terão endossado a
censura à Guernica? Cada tiro, cada explosão, cada grito de dor e de pranto parecem sobressair às
imagens, levando à uma escuta interiorizada. No que Picasso pintou transparece a não somente aquilo que
ele viu, como também ressoa o que ele ouviu. Nenhuma denúncia verbal poderia ser mais veemente,
tocante e audível.

36
circunscrita. Tomemos, como ponto de partida, as definições estabelecidas pelo
compositor e musicólogo H.J. Koellreutter (1990:115), a fim de recapitularmos uma
parte do que foi dito até agora bem como podermos avançar um passo na discussão que
tomaremos a seguir:

1. “som indesejável; interferência (caráter subjetivo)”:

Inicialmente, tomemos esta primeira acepção. Trata-se, como o próprio autor


assinala, de uma definição de caráter subjetivo, o que significa, nos termos da teoria da
informação, que a definição de ruído (a mensagem) está relacionada ao repertório
particular do receptor da informação, ou, nos termos da semiótica, no intérprete.
Descartamos, neste estudo, esta forma de caracterizar o ruído, uma vez que nossas
preocupações se encontram no signo.

Nesse sentido, destaca-se um aspecto, para o qual precisamos estar atentos.


Sabemos que muitos dos sentidos conferidos aos signos são determinados pela cultura.
Por essa razão, dizer que um som é desagradável, aborrecido - indesejável, enfim -
significa, muitas vezes, estar emitindo um juízo de um determinado grupo social, para
os quais não nos faltam exemplos: aí se encontram desde os adoradores dos shows de
rock incapazes de perceber a potência das caixas acústicas acima de 130dB como
barulho (muito menos como som indesejável), até aqueles ouvintes que encontram
barulho nos Microcosmos de Béla Bartók. O estudo de um problema dessa natureza,
demandaria investigações de cunho sociológico, psicológico, entre outros. No entanto,
apesar de mais que oportuno, não se remete às questões que estudamos agora, pois, o
que se evidencia, neste momento, é o conceito de ruído no cerne do sistema musical,
isto é, no âmbito da música enquanto linguagem.

2.“Até o Futurismo e, mais precisamente, até Ionisation (1931) de Varèse, som


composto por vibrações não periódicas (a clássica definição de Helmholtz), geralmente
encarado como não-musical”:

37
Esta segunda acepção de ruído apresentada por Koellreutter remete à evolução
da linguagem musical e à sua história. A inclusão, a partir do final do século XIX, dos
instrumentos de percussão de som indeterminado como a caixa-clara, o tom-tom, o
chicote, as castanholas, o triângulo, entre outros, favoreceu uma expansão do corpo da
linguagem musical. Ao se considerar o ruído como timbre, isto é, ao se tomar os sons
não-periódicos como musicais, a linguagem musical passou a contar com um novo
repertório, pleiteando, por conseguinte, uma nova sintaxe. De acordo com Seincman
(1991), esse período pode ser mapeado pelo surgimento das seguintes obras:

1. Like a sick eagle (1909), de Ives: antecipa o microtonalismo sistematizado


por Haba em 1928;
2. Tiger (1912), de Cowell: primeira vez em que se usam clusters (cachos de
sons) de dez ou mais notas;
3. Cinco peças opus 10 (1913), de Webern: destaque para os instrumentos de
percussão.
4. Sagração da primavera (1913), de Stravinsky: criação do acorde ruidoso;
5. As coéferas (1915), de Milhaud: orquestra de percussão com voz declamada;
6. Parade (1917), de Satie: inclusão de sirenes, máquinas de escrever na
orquestra;
7. História de um soldado (1918), de Stravinsky: purismo rítmico e
instrumental, evidencia o esqueleto formal da peça;
8.O mandarim miraculoso (1919), de Bartók: temática urbana, ruídos,
sobreposições de dissonâncias;
9. Balê mecânico (1924), de Antheil: inclui na instrumentação dez pianos,
percussão, instrumentos elétricos, hélices de avião;
10. Sinfonia em mi (1927), de Tcherepin: scherzo apenas para percussão;
11. Concerto para percussão e orquestra (1930), de Milhaud: destaque
conferido à percussão;
12.Ionisation (1931), de Varèse, primeira peça composta unicamente para
instrumentos de percussão;
13. Sonata para dois pianos e percussão (1937), de Bartók: os pianos são
tratados como instrumentos de percussão.

Esta relação exemplifica, podemos dizer, a conhecida afirmação do musicólogo


Olivier Alain: a história da música não é apenas a transformação de formas e de

38
estruturas, mas também a integração de materiais novos (Alain apud Nattiez, 1987: 75).
Do acorde ruidoso da Sagração da Primavera à Sinfonia de um Homem Só de
Schaeffer, a Cidade, a Santos Football Music, a Asthmatour, de Gilberto Mendes, a
história da música deste século atesta a inclusão mais ou menos rápida de sons
considerados ruído, antimusicais, repudiados pela arte para o corpo da linguagem
musical.

Esta definição de ruído, neste trabalho, estará delimitada ao que se refira à voz
entoada. Mais particularmente falando, é nossa preocupação tão somente acompanhar a
inserção dos sons vocais, a princípio não considerados como musicais - e menos ainda
como pertencentes aos domínios da arte, como é o caso de gritos, bocejos, tosse entre
outros sons - no corpus da música vocal contemporânea.

3. “Barulho; som intenso o suficiente para causar danos no órgão auditivo ou


causar distúrbios de ordem psicológica”:

A terceira acepção de ruído, o barulho, põe em questionamento os usos das


fontes sonoras. Envolve, invariavelmente, a figura do intérprete (ou receptor) seja ele
humano ou ainda outro ser vivo. Note-se que, nesta acepção, barulho refere-se, mais
propriamente, aos aspectos neuro-fisiológicos do ouvido humano. Entretanto, não
podemos esquecer que o som é igualmente sensível pelo tato. O barulho atinge, dentro
dessa perspectiva, os deficientes auditivos profundos ou mesmo completamente surdos
(Sacks, 1989).

Quanto aos outros animais podemos afirmar que, embora não sendo capazes de
discernir o conceito de barulho, são fisicamente afetados por ele, dentro de seu limiar
auditivo correspondente. O compositor e musicólogo F. B. Mâche (1983) acredita que,
ao contrário do que muito se tem afirmado, o canto dos pássaros sofre mudanças, o que
nos leva a crer que sejam afetados pela transformação da paisagem sonora. Neste caso,
o barulho poderia ter um papel relevante. Esta terceira acepção diz respeito, portanto, à
materialidade sonora do ruído (limite de tolerância do ouvido em decibéis).

39
Nesse sentido, as análises empreendidas normalmente debruçam-se no caráter
patológico em que o ruído (barulho) acarreta, ou ainda nos aspectos político-legislativos
com o objetivo de controlá-lo: proposição de estratégias preventivas, tomada de
medidas punitivas ou repressivas àqueles que produzem barulho em excesso. Dito isto,
gostaríamos de enfatizar, mais uma vez, que não se inscreve nos nossos objetivos
qualquer análise que tenha como meta o ouvinte como fim em si mesmo. Tampouco
ousamos propor alguma alternativa no domínio daquilo que se poderia chamar,
popularmente falando, de ecologia acústica. O ruído, no sentido de barulho, fica
reduzido à sua dimensão sígnica, isto é, como signo capaz de engendrar e sofrer
mudanças, especialmente na produção, interpretação e recepção da música (neste caso,
vocal).

Por último, vale frisar que é a esta acepção de ruído a que se refere Schafer,
quando discorre sobre o Ruído Sagrado. Trata-se do mesmo barulho, no seu sentido
figurado, metafórico, como vimos anteriormente, arraigado a uma simbologia profunda,
o Ruído Sagrado. Recapitulando, esse tipo de barulho passa a ser percebido como tal,
passa a ser escutado e não apenas ouvido, a partir do momento em que a sociedade toma
consciência do seu valor negativo.

4. “Mistura composta de uma grande quantidade de sons cuja diferença é,


predominantemente, menor que os sons graves, ainda audíveis (16Hz)”:

Esta definição remete-se à própria Acústica. Trata-se, assim, de uma


classificação tecnicamente precisa, especificando numericamente a faixa de freqüência
em que o ruído pode ocorrer. Não será abordada em nosso estudo, uma vez que o
tratamento dado pela acústica como ciência física e natural não oferece maiores
subsídios para o desenvolvimento do tema em questão.

5. “Interferência de sinal (concepção retirada da eletrônica, adaptada à teoria


da comunicação)”:

40
Esta definição aproxima-se, em termos de conteúdo, da segunda acepção.
Entretanto, escapa do terreno musical propriamente dito, remetendo-se mais
particularmente à teoria da comunicação17. Esta teoria apresenta-se como uma das bases
deste trabalho, razão pela qual permitimo-nos estender mais longamente em sua
abordagem.

Toscamente falando, toda mensagem18 parte de uma fonte (emissor) para um


destino (receptor), através de um meio (canal). Espera-se que o receptor decodifique a
mensagem enviada pelo emissor, respondendo ao emissor através de elementos do seu
repertório, que é um outro repertório diferente do emissor (processo de retro-
alimentação ou feed-back). A mensagem enviada pela fonte será significante à
proporção que participar (mesmo que parcialmente) do repertório do receptor. Para isso,
é necessário que o repertório da fonte e do receptor sejam secantes, isto é, que haja
alguns elementos de intersecção entre eles, pois, a inexistência de elemento comum
impossibilita a comunicação da mensagem ao receptor, da mesma forma que conjuntos
idênticos reiteram o que já é conhecido pelo receptor, não lhe trazendo nenhuma
informação. “Casos de repertórios tangentes podem configurar uma situação em que o
receptor verá a mensagem como algo intrigante, portanto como algo a desvendar - e
com possibilidades de fazê-lo, pois existem alguns pontos de contato. A informação
estética freqüentemente apresenta-se como um caso de repertórios tangentes” (Teixeira
Coelho, 1980:124).

17 A fim de evitar outros equívocos de ordem conceitual entre teoria da comunicação e da informação,
permitimo-nos aqui reproduzir a observação de J. Teixeira Coelho Netto: “(...) embora se tenha falado
em Teoria Matemática da Informação ou Teoria Matemática da Comunicação, os campos da
comunicação e da informação, no quadro desta teoria, não se recobrem com exatidão embora se
recortem. Ainda que esta não seja uma distinção pacificamente aceita, há uma tendência no sentido de
encarar a Teoria da Informação como um estudo da estruturação da mensagem formalmente
considerada e a Teoria da Comunicação como o estudo do relacionamento mensagem-fonte-receptor. Em
outras palavras: a Teoria da Informação está centrada no código, enquanto que a Teoria da
Comunicação volta-se para o conjunto mensagem-homem; a Teoria da Informação trata do sistema
(conjunto de elementos e suas normas de combinação) do qual a Comunicação é o processo (sequência
de atos espaço-temporalmente localizados)” (1980:121). Nosso trabalho se apoia, portanto, em ambas as
teorias, uma vez que a mensagem pode implicar em mudanças no processo comunicativo, da mesma
forma que o processo comunicativo pode interferir no conteúdo da mensagem.

18 Definindo mensagem segundo os critérios estabelecidos por A. Moles, aqui retomados por J. Teixeira
Coelho Netto, “(...) a mensagem é um grupo ordenado de elementos de percepção extraídos de um
repertório e reunidos numa determinada estrutura” (1980:122)

41
Dessa forma, podemos grosso modo afirmar que todos os componentes do
processo comunicativo constituem uma tecitura de relações, em que cada elemento pode
afetar o outro, seja este elemento qual for (emissor, receptor, mensagem etc.). Além
disso, cada um desses elementos está sujeito a transformações, dentre elas, de ordem
histórica, perceptiva, entre outras.

Dentre essas alterações, destacamos a interferência no canal comunicativo, o


ruído. A princípio signo indesejável, por interferir fisicamente na inteligibilidade da
mensagem, pleiteia, por esse motivo, um certo grau de redundância. São os sons que
mascaram uma conversa, exigindo constante verificação do canal (redundância), é o
barulho que causa aborrecimento. Por estar quase sempre presente na comunicação, o
ruído acaba por funcionar como um telão de fundo sobre o qual as mensagens se
transmitem.

Existe, entretanto, um outro tipo de ruído, o ruído de código19 ou de repertório.


Este ruído favorece rupturas (como o próprio nome o atesta) no próprio código,
possibilitando mudanças estruturais no cerne da linguagem. Desse modo, o ruído pode
agir como fonte que alimenta a linguagem com elementos novos, aumentando a taxa de
originalidade na mensagem. No caso da música, o ingresso dos sons não-periódicos ao
conjunto dos sons musicais, no final do século passado e nas primeiras décadas deste
pode ser considerado um bom exemplo disso.

Em suma, a compreensão do ruído como interferência exige uma análise de


alguns - ou mesmo todos - fatores envolvidos no processo comunicativo. É mais
particularmente dentro dessa circunscrição que estudaremos o ruído, ainda que para
funcionar como ruído comunicativo assuma a forma de silêncio. Esclarecidos estes
pontos conceituais, cabe-nos agora retomar o que vínhamos discutindo até esta primeira
pausa.

19 Definimos código de acordo com J. Teixeira Coelho Netto: “um conjunto de signos e suas regras de
utilização. Sendo do conhecimento preliminar tanto do destinador quanto do destinatário da mensagem,
e apresentando-se como as regras do jogo, o código coloca-se como uma linguagem própria ao canal
específico que será utilizado e na qual deve ser traduzida a mensagem-objeto” (1980:140).

42
2. Intermezzo: Do ruído ao silêncio (scherzo)

2.1. O ruído como mascaramento do silêncio

O silêncio essencial é a morte: o corpo sem vida produz sons (ainda que
discretos), mas seus ouvidos não ouvem. Isso talvez explique, em certa medida, a
rejeição do homem ocidental pelo silêncio. Para fazer calar o silêncio e afastar a idéia de
morte, o homem ocidental se cerca de sons. O transcorrer dos séculos registra o ato de
cantar, individualmente ou em grupo como uma das formas mais espontâneas e
freqüentes nas mais diversas culturas: pontuando o ritmo do trabalho cotidiano,
embalando o sono dos bebês, curando e celebrando durante os mais variados rituais
mágicos ... enfim, uma lista interminável de exemplos poderia ser citada 20. O ato da
enunciação da voz engendra, simbolicamente, a presença de vida, uma vez que irrompe
- fisicamente - o silêncio mortal, banhando o ambiente de vibrações que, desde a vida
intrauterina constituem os sinais táteis de vida.

Neste século, o homem não somente pôde rodear-se dos sons musicais
produzidos pelo grupo social em que vive, como também pôde contar com outras
variantes, advindas dos novos meios de armazenamento e de difusão do som. Anos mais
tarde, com o surgimento da música eletroacústica, no decênio de 1940, incluiu-se a
possibilidade de geração de sons. Sabemos, entretanto que reprodução mecânica do som
tem, de fato, origem mais remota, datando do período que imediatamente sucedeu a
revolução industrial: são os carrilhões, os pianos mecânicos obedecendo ao princípio
construtivo da caixa de música e do realejo.

Em 1881, Clément Ader, pioneiro na aviação, apresentou em Paris um sistema


concebido para a retransmissão ao vivo das representações operísticas e teatrais por

20 Razões como esta nos impelem a acreditar que elementos consolidados na cultura, como o provérbio,
muito comum em língua portuguesa, Quem canta, seus males espanta, têm uma raiz mais profunda.

43
linha telefônica, o teatrofone21. No entanto o primeiro aparelho a ganhar popularidade
foi o fonógrafo, projetado e elaborado por Thomas Edison (1877), inicialmente
concebido não para a multiplicação (a comercialização do invento foi logo em seguida
posta em prática), mas apenas para a conservação dos sons, mais especificamente, de
algumas vozes exemplares. E assim permaneceu seu uso até a década de 1910, até que
em 1915 fosse gravada a primeira sinfonia - a 5a. de Beethoven (Attali, 1977:150-154).

Após o fonógrafo, os meios de registro, conservação e multiplicação do som


cresceram vertiginosamente. Para situar alguns exemplos importantes no que tange às
invenções e/ ou às obras, vale citar as seguintes datas de referência:

1887 Emile Berliner fixa os sons em disco e funda a Deutsche Grammophon;


1902 disco em 78 r.p.m.; em 1903 é vendido o primeiro milhão de discos com a gravação
de Caruso (Vesti la giuba);
1905-36 Bartók grava em fonógrafo cerca de 7 000 melodias folclóricas de 5 países;
1907 disco em 78 r.p.m., com 2 faces gravadas;
1913 entoa-ruídos (intonarrumori) de Russolo;
1919 primeira estação de rádio permanente (KDKA, Pittsburgh);
1920 1o. concerto em radiodifusão (Chelmsfold, 15/6);
1924 microfone de cristal (W. Schottky e E. Gerlach);
1925 alto-falante eletrodinâmico patenteado por C. Rice e E. Kellogg; 1os. discos
elétricos comerciais; invenção do microfone elétrico;
1926 primeiros filmes de curta-metragem sonoros (concertos, basicamente);
1929 toca-discos His Master’s Voice (disco em micro-sulcos, com capacidade de gravar
até 12 minutos de gravação em cada face);
1931 primeiras emissoras de televisão permanentes (E.U.A.); primeiras demonstrações do
disco 33-1/3 rpm LP; primeiros experimentos em som estereofônico (Blumlein;
EMI);
1933 rádio em frequências modulada (E. Armstrong);
1934 gravador Marconi-Stille (esse tipo de gravação em fita magnética, em comparação
ao disco da época oferecia vantagens, como melhor fidelidade sonora, maior
duração, possibilidade de apagar o sinal);
1939 difusões experimentais em som estereofônico (BBC);
1947 point contact transístor (J. Bardeen e W. Brattain);
1948 jonction transistor (W. Schockley); disco de vinil em micro-sulcos, em 33 rotações,
lançado pela Columbia para uso comercial ( permitindo a codificação em 2 sinais e,
portanto, a difusão estereofônica; gravador cassete (K7), por EMI / Ampex /
Rangertone; lançamento, por Pierre Schaeffer, da música concreta;
1949 disco em vinil em micro-sulcos, em 45 rotações, lançado pela RCA, mantendo as
mesmas características encontradas no de 33;
1950 gravador em 3 pistas, permitindo a gravação em canais separados; a manipulação
sobre pistas independentes possibilita a criação de um espaço acústico; primeiras

21 Traçando um paralelo com os dias de hoje poderíamos dizer que o teatrofone equivaleria às
apresentações em telão, bastante frequentes em casos de apresentações muito disputadas por um público
grande demais para o número de lugares disponíveis no teatro. O projeto do teatrofone foi adaptado, mais
tarde, a mais uma ideia comercial: a assinatura por telefone (Chion, 1994:15).

44
fitas pré-gravadas para uso comercial (E.U.A.);
1957 primeiros gravadores em 4 pistas;
1958 primeiras difusões regulares em estéreo; protótipo do circuito integrado; primeiros
discos comerciais em estéreo;
1960 aumento das rádios em freqüência modulada e dos rádios a pilha;
1963 sistema cassete compacto, pela Philips; auto-rádio;
1964 sintetizadores Moog, Buchla, Synket;
1965 sistema dolby de redução de ruído;
1968 fita em dióxido de cromo para uso comercial;
1971 primeiros discos comerciais quadrifônicos;
1972 primeiro protótipo do som digital (BBC);
1976 primeiras mesas de mixagem computadorizadas em estúdios de gravação;
1980 walkman, marca registrada pela Sony;
1981 disco compacto digital lançados pela Philips e pela Sony, com leitura a raio laser;
1986 computador possibilitando síntese de imagem e som por intermédio do computador,
o compact disc read only memory (CD Rom) pela empresa Microsoft.
Fontes : Attali, 1977; Davies apud Chopin, 1979; Chion,1994.

2.2 O som está no ar...

Podemos constatar, após a consulta da tabela acima, que o século XX é marcado


pela instauração do disco, do rádio e, poucos anos mais tarde, de seus derivados. A
invenção do fonógrafo, por Edison, possibilitou, pela primeira vez na história a escuta
de música afastada de seu local de produção, da sua origem. Esse fenômeno ao qual
Murray Schafer designará esquizofonia será responsável por modificações estruturais
não somente na percepção, como também nos hábitos de escuta. Dada a sua relevância,
trataremos do problema individualmente nas páginas seguintes. Assim sendo,
reservamo-nos, neste momento, a comentar alguns aspectos diretamente ligados à
apropriação desses novos meios.

Como acabamos de enunciar, o fonógrafo de Edison constitui-se como o


primeiro instrumento de audição musical longe de seu local de origem, seja esse local o
auditório de concertos, a igreja, o coreto da praça, ou qualquer outro. No entanto, sua
abrangência não pode considerar-se significativa, no que diz respeito ao número de
ouvintes potenciais beneficiários desse novo veículo. Nesse sentido, podemos afirmar
que o primeiro meio a atender um público numeroso encontra-se no rádio, sobretudo a

45
partir da década de 1930. Sua influência no meio social foi de tal monta a ponto de
suscitar inúmeros estudos de ordem sociólogica, histórica, semiótica 22.

Sendo assim, poupamo-nos desenrolar maiores comentários sobre o tema,


reservando nossas atenções tão somente ao que se refira às transformações da paisagem
sonora e modificações perceptivas sob um prisma semiótico. Ou, em outros termos:
como novos canais comunicativos ( rádio, toca-discos, walkman) interferem de modo
radical e definitivo nos hábitos de escuta da sociedade industrial deste século, mais
precisamente nas grandes metrópoles.

O rádio pode ser considerado a primeira parede sonora do nosso século, pois
fecha o indivíduo no familiar, isolando-o do perigo. Nesse sentido, apresenta
semelhanças em comparação aos jardins medievais, dotados de fontes e pássaros,
circundando os castelos de modo a isolar o ambiente hostil da floresta. “O rádio tornou-
se o canto de pássaro do mundo moderno, a paisagem sonora ‘natural’, rejeitando as
forças inimigas vindas de fora” (Schafer, 1979:138).

Com o advento do transistor - que tornou o aparelho menos volumoso, mais leve
e, por conseguinte, portátil - o rádio assumiu o caráter de anjo da guarda acústico,
acompanhando o indivíduo onde quer que ele fosse. Dessa forma, a qualidade da
audição passou a desprezar a alta fidelidade: “O hábito de escutar transistores ao ar
livre muitas vezes em condições que reduzem a quase um a relação sinal/ ruído,
igualmente incitou a inclusão do ruído em certas músicas populares, agora registrado
diretamente sobre o disco, frequentemente sob forma de feed back eletrônico” (
Schafer, 1979:138).

A participação do rádio nos hábitos cotidianos da vida moderna é inegável. É


talvez improvável que exista hoje um só indivíduo sequer que não possua um aparelho
em sua casa. Apesar disso, a implantação do rádio sofreu algumas resistências, por parte
dos intelectuais.

O compositor e pesquisador Béla Bártok tem um parecer desfavorável em


relação à música mediatizada tecnicamente. Seu parecer, a princípio apocalíptico, não

22 Dentre esses estudos, no âmbito nacional, podemos citar: Ortriwano, G. (1985): A informação no
rádio: os grupos de poder e determinação dos conteúdos. São Paulo: Summus; Goldfeder, M. (1981):
Por trás das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Neves, P. (1985): Mixagem: o ouvido
musical do Brasil. São Paulo: Max Limonad. Mais recentemente, Nunes, M. (1993): O mito no rádio: a
voz e os signos de renovação periódica. São Paulo: Annablume.

46
deve, contudo, ser descontextualizado do período histórico em que viveu. Bartók foi não
somente um ouvinte diferenciado, de escuta sensível pela própria atividade que exercia,
de compositor. Mais que isso: Bartók foi importante no desenvolvimento da linguagem
musical como também um meticuloso pesquisador da música folclórica da Europa
central, registrando-a em gravações, transcrevendo-a em partituras. Essas características
dão-nos o aval de confiabilidade para as observações que enunciou, as quais permitimo-
nos reproduzir aqui:

“A incisão em discos é em relação à música original, o que a conserva em latas


é em relação à fruta fresca: aqui há vitaminas, mas nas latas, não. A música
mecanizada é um produto de fábrica, enquanto que a música ‘viva’ é feita pelos
indivíduos vivos”. Sua opinião parte de um fundamento bastante plausível:
“Provavelmente, boa parte dos ouvintes de música radiofônica se acostuma aos timbres
deformados e perde a sensibilidade dos autênticos até chegar ao extremo de não
apreciar mais o som natural da música” (Bartók, 1987:232-235).

Essa observação de Bartók revela uma ideia por certo inquietante, se traçarmos
um paralelo com os dias de hoje. A conquista progressiva da alta fidelidade sonora,
principalmente na última década, possibilita que um melhor resultado em termos de
qualidade acústica seja obtido justamente através da gravação, o som mediatizado - o
signo, enfim - ao invés do som produzido ao vivo, o objeto do signo.

A possibilidade de remodelar timbres, alturas, durações etc. confere ao


engenheiro de som, muitas vezes, o papel de professor de canto, deste ou daquele
instrumento, uma vez que a ele é atribuída a incumbência de corrigir falhas, tais como
emissão insatisfatória, má fixação das alturas (desafinação). O engenheiro de som
acaba, assim, por levar ao mundo novos signos, intérpretes excluídos de um corpo
humano, carnal. Uma nova variante acusmática23. Para melhor fundamentarmos nossas
ideais, basta-nos apenas lembrar os inúmeros programas de televisão ou mesmo shows
ao vivo onde cantores (ou outros músicos, se bem que o caso dos cantores seja mais
frequente) dublam suas próprias vozes ou mesmo cantam em play back.

23 Termo criado por Pitágoras e retomado por Pierre Schaeffer (1966), designando o som que é ouvido
sem se poder ver a fonte emissora do som. Corresponde, em certa medida, ao conceito de esquizofonia,
elaborado por R. Murray Schafer, como veremos a seguir.

47
No entanto, não era esse o tipo de preocupação que inquietava Bartók nas
primeiras décadas deste século. Em 1925, o advento da gravação elétrica veio a
substituir a mecânica, possibilitando até que cantores sem voz (designação do senso
comum de uma voz pouco potente) como Mário Reis tivessem vez 24, o que
representava, para a época, um grande passo na evolução tecnológica de então.

A passagem do gramofone para a vitrola significa a troca do funil pelo


microfone e a instalação de alto-falantes (eletricidade). Este passo seria bastante
importante para o desenvolvimento da mediatização musical. Todavia, para um
indivíduo de audição clara, como Bartók, esse progresso ainda deixava muito a desejar.
Em uma conferência realizada em 1937, queixa-se:

“O resultado (assim) obtido é incomparavelmente melhor, mas resulta, todavia,


insatisfatório. Antes de tudo, porque o microfone, quer dizer a membrana receptora,
ainda se revela insensível aos sons de frequência particularmente elevada e, assim,
não pode registrar certos harmônicos e o timbre de alguns instrumentos se altera. Em
segundo lugar, não se consegue reproduzir os limites extremos da dinâmica sonora,
como os ‘pianíssimo’ e ‘fortíssimo’. Há outro motivo de insatisfação: quando se deve
gravar várias fontes sonoras, na transmissão perdemos completamente a plasiticidade
do som” (Bartók, 1987: 226).

As condições de radiodifusão dessa época - a década de 1930 - teriam, para


Bartók, consequências desalentadoras no que toca a divulgação e fruição da música,
principalmente na música de concerto: “(...) a compreensão da música polifônica pelo
rádio é mais difícil que qualquer outra, a menos que se o ouvinte leia ao mesmo tempo
a partitura (...). A determinada distância, o som do rádio se transforma num grasnado e
num estrondo pestilento. Este fato não preocupa minimamente a gente desprovida de
bom gosto, que faz soar os aparelhos com as janelas abertas” (Bartók, 1987: 231).
Teria sido a existência de tantos ouvidos pouco exigentes uma das razões que levaram o
rádio ao sucesso tão rapidamente ? Registremos essa indagação para ser discutida num
momento futuro.

Bartók vai mais adiante: segundo o compositor, o rádio seria responsável pelo
processo de desritualização da música: “(...) a música radiofônica , em geral, se adéqua
à audição superficial da peça musical e, para tanto, a uma deplorável inconstância,

48
justamente porque é muito fácil girar o botão do rádio, ligá-lo e desligá-lo. Além do
mais, enquanto se ouve, podemos fazer mil coisas; falar, por exemplo” (Bartók, 1987:
231). Foi justamente se valendo dessa característica que a empresa Muzak conseguiu
erigir seu império de música-ambiente, da qual falaremos a seguir.

O advento do rádio provocou, ainda, a criação de uma fenda, uma cisão entre
erudito e popular. Se até o século XIX havia uma espécie de diálogo entre ambos os
domínios, as mídias serão responsáveis por esse rompimento. A vetorização da
programação, aliada ao sucesso do transistor - que tornou o aparelho de rádio acessível
a todos - especializou-se na difusão de um tipo de música de qualidade medíocre
(Damian, 1980: 48-49).

“Os programas de rádio devem ser analisados em profundidade, como um


poema épico ou uma composição musical, pois seus temas e seus ritmos refletem as
pulsões da vida”, diz Schafer. Longe de constituir uma emissão seriada de músicas ou
noticiários informativos, o rádio constitui-se numa linguagem própria, dotada, portanto,
de uma ordem interna, que organiza e estrutura seus conteúdos25. “Cada estação tem
sua própria pontuação e seus próprios métodos de reagrupamento de material no
interior de seus programas, como o discurso se organiza em frases ou em parágrafos”.
A programação radiofônica obedece a uma periodização: um conjunto de macro e micro
ciclos, distribuído ao longo do tempo, constrói um certo tipo de isorritmia que serve de
baliza para o ouvinte na sua orientação do tempo. Essa orientação se dá, em grande
medida, graças a alguns elementos repetitivos, verdadeiros leitmotiven, tais como a hora
certa, a alternância ‘x’ músicas/ intervalo comercial, somente para citar uns poucos
exemplos. (Schafer, 1979: 139; 320-321).

A linguagem radiofônica possibilitou também um novo tipo de escuta, capaz de


justapor elementos discrepantes entre si de forma articulada. Isso se deu especialmente
entre os decênios de 1930-40, época em que a programação radiofônica passou a tomar
o tempo do dia todo. Para Schafer, a cristalização dessa prática teria levado,
provavelmente a uma ruptura no sistema de valores das culturas.

24 Ainda que esta rima soe bizarra, o exemplo é digno de nota...

25 O rádio, na verdade, ultrapassa as clássicas funções de informação e entretenimento que lhe são
usualmente atribuídas. Estudos como o de Mônica R. F. Nunes revelam que o rádio atende a uma faceta
mítica, no sentido conferido por Mircea Eliade (1986), isto é, o mito como fornecedor de modelos para o
comportamento humano, conferindo significado e valor à existência. Sob esse ponto de vista, os
significantes míticos são urdidos em meio à materialidade do rádio (Nunes,1993:14).

49
Graças à fita magnética, a técnica de montagem26 passou aos estúdios de rádio,
organizando um moto perpetuo encabeçado pela intercalação de música popular e
propaganda. Com a programação em tempo integral, um elemento será estranho ao
rádio: o silêncio. Da mesma forma que a muralha que protegia o castelo de invasões, na
Idade Média, o rádio transforma-se em parede sonora (Schafer, 1979) que protege
contra os efeitos aterrorizastes do silêncio, companheiro de todas horas, seja sua
transmissão em freqüência modulada ou em ondas longas; seja o aparelho um imenso
console a válvula, seja ele o pequenino portátil walkman.

2.3. Paredes sonoras: Muzak

O sucesso e pregnância do rádio na vida cotidiana dos grandes centros urbanos


foi exemplar. Sendo assim, mentes atentas souberam explorar a idéia, lançando um
novo filão no mercado. A incorporação da música nas atividades da vida cotidiana
citadina levou à criação da música-ambiente, iniciada e sistematizada por Muzak 27,
principalmente a partir da década de 1940. Dada sua importância no que se refere aos
modos de perceber a música, permitimo-nos estender algumas linhas para comentá-la.

A música-ambiente parece ter dado seus primeiros passos no início do século,


quando Eric Satie, em um de seus atos de dessacralização da música como instituição
burguesa, experimentou pôr em prática aquilo que ele denominou música de mobília.
Preconizava, assim, a instituição de uma música “profundamente industrial”, para

26 A montagem é um procedimento cinematográfico segundo o qual duas imagens justapostas sugerem


uma terceira. Esse processo, inaugurado por Eisenstein, será comentado mais amplamente no último
capítulo, na análise da peça Santos Football Music, de Gilberto Mendes.

27 Empresa criada em 1922 com o objetivo inicial de vender música para telefone, desenvolveu-se na
década de 1940 com seus programas de música ambiente. Esses programas obedeciam a algumas
características: ausência da voz (acima de tudo a escrita sobre textos verbais), limitação dos níveis de
altura e de intensidade; classificação por gênero, tipo de agrupamento instrumental; duração média de
cada sequência em torno de 13 minutos, reunidas em séries de 8 horas. Esse tipo de música passou mais
tarde a ser aceito com entusiasmo pelos arquitetos, pois cobria os sons ambientais (máquinas em geral:
aquecedores, elevadores etc.) com um tipo de perfume acústico. (Attali, 1979:182; Schafer, 1979: 138-
145).

50
quando “a música não tem nada a fazer” (grifos do autor). Na tentativa de pôr em
prática a idéia, Satie preparou alguns slogans provocativos que afirmavam coisas tão
desconcertantes como:

“Música para cartórios, bancos, etc.... Não entre numa casa que não utilize a
‘Música de Mobília’. Não vá se deitar sem ter ouvido uma peça de ‘Música de
Mobília’, ou você dormirá mal. Quem não ouviu a ‘Música de Mobília’ não conhece a
felicidade”, entre outros (Satie, 1981:190) .

Em suma, a música de mobília era feita para ser ouvida e não escutada. Sua
estréia deu-se em 8 de março de 1920, na Galeria Barbazange (Paris), durante o
intervalo de um concerto. No entanto, a experiência foi não apresentou o resultado
esperado, mesmo Satie adotando estratégias como a colocação dos músicos distribuídos
em pontos diferentes. A falta de hábito do público e - de acordo com Milhaud, o charme
da música de Satie (Milhaud: 1949:127-130) teriam sido as principais razões28.
Enquanto projeto, entretanto, estava condenado ao abandono.

A música de mobília justificava-se, para Satie, como uma música para


“satisfazer as necessidades ‘úteis’. A Arte não se relaciona com essas necessidades. A
‘Música de Mobília’ cria vibração; não tem outro objetivo; ela preenche o mesmo
papel que a luz, o calor & o conforto sob todas as suas formas” (Satie,1981: 190).

É um tanto perturbador, entretanto, observar que a programação estipulada pela


empresa Muzak apresente tantas semelhanças em relação à música de mobília. Não
podemos precisar em que medida a empresa teria se inspirado no compositor.
Entretanto, se Satie visava um gesto criativo e crítico ante a sacralização da música de
seu tempo, não acreditamos que esses mesmos objetivos tenham sido a meta
fundamental de Muzak. “A música de entretenimento preenche os vazios de silêncio
que se instalam entre as pessoas deformadas pelo medo, pelo cansaço e pela docilidade
de escravos sem exigências.” (Adorno,1980:166). Esta, sim, parece ter sido a premissa
em que se baseou a empresa Muzak para se lançar ao mercado.

28 Milhaud que participou do evento, juntamente com Satie, relata o evento: “Uma notícia no programa
advertia o público que não devia dar maior importância aos ritornelos que seriam tocados durante o
intervalo aos lustres ou as cadeiras da galeria. Mas, contrariamente às nossas previsões, no mesmo
momento em que a música começou, os auditores se dirigiram rapidamente aos seus lugares. Satie gritou
em vão: ‘Falem, pois! Circulem! Não escutem!’ Eles escutavam, eles se calavam. Tudo deu errado”
(Milhaud, 1949:128).

51
Concebida como solução definitiva do conforto e bem-estar mental, essa
empresa recorreu a uma propaganda que imbuía, o quanto possível, o rigor científico
que garantia a sua eficácia: “aconselhada por cientistas / mais de 30 anos de pesquisa /
psicologicamente estudada”. Entre outros atributos, Muzak não exige nenhum trabalho
ou cuidado especial, por parte do consumidor: “nenhuma manutenção / você só precisa
girar um botão / cada dia um programa novo...” (Schafer,1979:143). Muitas vezes
irradia clássicos arranjados, de modo a “(...) tornar assimilável a grande música
distante do homem, que sempre possui caráter público, não privado. O homem de
negócios, que volta para a casa exausto, consegue digerir e até fazer amizade com os
clássicos ‘arranjados’29 ” (Adorno, 1980:176).

A funcionalidade Muzak é, pois, ainda hoje o digestivo nos restaurantes e ersatz


do analgésico no consultório do dentista; o calmante, na sala de espera. Além do mais,
Muzak disciplina a marcha de saída dos alunos em certas escolas; reconforta a
penitência de uma longa espera na linha telefônica ou numa interminável fila de
atendimento de uma repartição pública.

Se Muzak tem sua origem, em certo sentido, como uma apropriação capitalista
da música de mobília inaugurada por Satie, a própria empresa passou em seguida, a ser
substituída, em muitas situações, por seus sucessores: se Muzak é uma empresa que
difunde uma programação em circuitos fechados, muitas têm sido as estações de rádio,
em freqüência modulada a transmitir uma programação inspirada na estética (?!)
Muzak. Ou ainda, mais recentemente, vem-se utilizando a transmissão direta de
determinadas estações de rádio (as variantes rock pesado, música popular brasileira, de
concerto etc. - esta última geralmente desprezada) como música ambiente.

Em certas situações, ainda, a programação musical escolhida passa por um


arranjo diferente, a fim de atender a outros objetivos mais específicos. Em artigo
publicado em sua coluna Fax-Semler, no jornal Folha de São Paulo, o empresário e
articulista Ricardo Semler narra a estratégia utilizada por uma certa emissora japonesa,
a rádio Álibi, espécie de cruzamento entre a programação Muzak e a sonoplastia: “Para

29 Na verdade, as considerações de Adorno vão bem mais longe. Quando os arranjos procuram atingir a
intimidade, são carregados de colorações (timbrísticas, acentos etc.). Esses matizes não são suficientes
para garantir a manutenção de um encantamento estético, pois os excertos acham-se desvinculados do
conjunto. Contrariamente, a instituição da monocromia numa peça policromática, como um trecho de
Wagner, possibilita ao ouvinte que não necessita acompanhar a peça musical com todos seus matizes,

52
as bem-casadas que ficaram bravas com o artigo desta Folha que dissertava sobre
métodos de apagar vestígios de traição dos mariposas durante as férias, os japoneses
têm um algo mais. Trata-se da estação de freqüência AM que se chama Rádio Álibi.
Para os mariposões de Osaka, essa estação oferece uma programação de 24 horas em
duas frequências: uma transmite ruídos de escritório, e a outra, barulho de trânsito.
Servem como álibis perfeitos para telefonemas às esposinhas, feitos de motéis
silenciosos. É só ligar o rádio ao fundo, fazer voz de cansado - coisa fácil naquela
situação - e explicar que o Matsumoto-san, aquele gordinho simpático, vai lhe deixar
em casa daqui a pouco” (Semler, 1994:2).

O utilitarismo sonoro criado por Muzak inspirou ainda outros subprodutos até
mesmo bizarros, como a sonorização de currais, a fim de facilitar a ordenha das vacas,
ou mesmo variantes de certa musicoterapia de duvidoso fundamento científico. As
experiências globalizantes, holísticas, preconizadas por correntes pós-pop como a
intitulada música da nova era (new age) ao que parece, devem alguns créditos a Muzak.

2.4. Trovadores eletrônicos

Como vimos demonstrando ao longo destas páginas, a necessidade de se fruir


música em sua forma mediatizada é característica exclusiva deste século. Na verdade, a
música na sua forma mediatizada veio a tornar-se objeto de consumo somente a partir
do momento em que foi criado um mercado de música popular30. Nos Estados Unidos,
pólo de desenvolvimento da indústria do disco, esse gênero nascente nada mais foi que
produto da colonização negra, passada pelo crivo industrial norte-americano, sobretudo
no período pós-guerra. O boom econômico norte-americano transformou rapidamente a

“abandonar-se tranquilamente ao som da melodia dominante, única e ininterrupta” (Adorno, 1980: 176-
177).

30 Não se confunda aqui esse tipo de música popular como música folclórica ou tradicional. A expressão
é aqui citada, desse modo, apenas como referência a um hábito já cristalizado. Na verdade, o adjetivo
popular é totalmente descabido. A então conhecida como música popular nada mais é que um gênero
criado por músicos e especialistas em marketing, com a finalidade de moldar um mercado de consumo,

53
revolta juvenil em domesticação, condensada no rock e no jazz (Attali, 1977:169). Dada
a amplitude da influência do jazz e do rock na paisagem sonora ocidental (senão até
vários segmentos do oriente como o Japão), vale a pena tomá-los como exemplo de
novo hábito de escuta, favorecido por aquilo que a Escola de Frankfurt designou
indústria cultural.

O jazz é música de origem negra - ou afro-americana, de acordo com a


nomenclatura politicamente correta. Seu desenvolvimento, entretanto, será mestiço: a
apropriação branca criará um mercado standard para o ouvido do ocidente. Para o
compositor Gilberto Mendes, caracteriza-se como o período em que houve um perfeito
entrosamento entre os gêneros erudito e popular: o verdadeiro lied moderno, onde se
imbricam os estilemas dos românticos - processos harmônicos, cromatismos, saltos
intervalares - como Brahms, Schumann, Liszt, Rachmaninoff, Scriabin, Richard
Strauss, mais o jazz, a seu ver, “ a voz de uma nova alma urbana”, composta pelos
imigrantes judeus, imigrantes italianos e os ex-escravos negros (Mendes:1994:14-15).

Nas décadas de 1930-40, o jazz será o gênero musical que contagiará não
somente os Estados Unidos como a Europa através dos discos, como também no rádio 31,
sobretudo após o advento do transistor. Com isso, as inúmeras Bi Bandas ganharão
sotaque internacional, seja nos Estados Unidos, na França ou no Brasil, tocando os
ritmos da moda, norte-americanos ou de outras proveniências, adaptadas ao padrão do
rádio comercial (1930: rumba; 1940: mambo; 1950: chá-chá-chá). Assim, é
compreensível encontrar no swing de Benny Goodman um certo parentesco com a
orquestra de tangos de Aníbal Troilo ou mesmo com os arranjos do nosso Pixinguinha,
ainda que gêneros de características próprias e distintas.

A semelhança a que nos referimos diz respeito, antes de mais nada, a um dado
padrão de instrumentação: massa instrumental, inclusão de instrumentos de metal,
baixo. O clarinete como instrumento adequado à improvisação melódica sola nos
swings de Goodman, como nos chorinhos de Abel Ferreira; o conhecido samba-
exaltação - dos quais o veterano Aquarela do Brasil parece ser o maior hit - ginga na

para uma música que se baseia no pulso rítmico, na repetição e na escuta linear. A esse tipo de música é
preferível intitulá-la música de massa, tal como o faz Wisnik (1989).

31 Um exemplo particularmente interessante encontramos no filme Radio Days (A era do rádio), em que
todo o filme nada mais é que um mosaico de sketches de reminiscências do diretor Woody Allen, ainda
garoto. O filme serve de exemplo de como o papel do rádio, na década de 1940, interferia no cotidiano da
vida das pessoas, programas preferidos de acordo com a faixa etária, sexo, entre outros.

54
bateria de escola de samba, impregnada em harmonia e arranjo de Big Band. A voz,
grande parte das vezes presente, optará por registros médios, mais próximos à tessitura
da fala cotidiana e do padrão de qualidade hi-fi acessíveis à época. No Brasil, esse
período ficará conhecido como época de ouro - na verdade,a fase áurea do rádio - época
em que o ouvido será a referência absoluta nesse meio de comunicação. Esse será um
dos motivos capitais que levarão a voz conhecer o estrelato: locutores e cantores
desempenham o mesmo papel que as divas da ópera do final do século passado,
adequados à sociedade de massa.

Na década de 1950, desaparecem os discos em 78 rotações, dando lugar às juke-


boxes32 oferecia o consumo “auto-serviço” no menu de lanchonetes dos hits do
momento em discos em 45 rotações. Os compactos em 7 polegadas também têm um
destino definido: os jovens de menor poder aquisitivo. Cria-se um repertório de música
destinada à juventude branca, síncrese do desespero negro e da esperança branca: o rock
and roll (Attali, 1977:171). Uma vez estabelecido, esse gênero ganhará as massas na
década de 1960, sendo alimentado mais uma vez pelos negros, desta vez por aqueles
emigrados à Inglaterra - dos quais destaca-se o exemplo de Jimmy Hendrix.

O rock representará para a sociedade, a partir da década de 1960, como “a nova


canção de gesta da era espacial”, lugar privilegiado da expressão lírico-política do
público jovem, a novo filão ao qual se dirigem os vetores do mercado fonográfico.
(Muggiati,1981:105)33. Assim, poderíamos conjeturar que o som distorcido do alaúde
eletrônico do trovador- pop - a guitarra - representasse, em última instância, a
sublimação do grito de revolta negra, presente na raiz do rock, muito embora outros
fatores, como o aumento de ruído (barulho) na paisagem sonora urbana, ou mesmo o
conhecimento, por parte dos músicos-pop da música eletroacústica apresentem uma
justificativa plausível para a preferência pelos sons distorcidos e ruidosos .

32 O compositor Maurício Kagel assinala a origem dessa expressão: “o termo ‘juke box’ apareceu
oficialmente para designar os primeiros consoles toca-discos públicos dentro dos quais se fazia deslizar
uma moeda; inspirado na expressão ‘juke houses’, que popularmente significa bordel.(The jukes é uma
gíria nova-iorquina utilizada correntemente no século XIX; nome fictício de família ou grupo de pessoas
depreciadas e desprezadas pelo restante da população)” (Kagel, 1983:174). Constatamos, assim que uma
boa fatia da música ‘auto-serviço’ mais antiga tem marcada conotação pejorativa.

33 O rock não constitui apenas um tipo de música. Transformado em estilo de vida, visão de mundo, esse
gênero musical veio apoiar-se num circuito bastante complexo: disco-rádio - automóvel- telefone
(Muggiati,1981:61-62), tornando fundamental e indispensável a figura do disc-jóquei, juiz supremo que
determinará os hits e os hábitos musicais, principalmente dos adolescentes, dentre os quais o ‘rock para
ser tocado no carro’ em muitos decibéis, evidentemente.

55
A década de 1960 pode ser considerada como o período em que se dá o apogeu
estético do disco em vinil de 33 rotações e 30cm de diâmetro, primeiro para a música de
concerto; depois para o rock. Alguns grupos de rock, como Pink Floyd (Ummagumma),
Beatles (Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band) criaram álbuns, verdadeiras obras,
dotadas de libreto, arranjos inusitados, novos timbres, entre outras novidades (Chion,
1994: 44-45). Elementos da música de concerto ou extra-européia são revisitados, sob a
forma de citação direta ou mesmo paródia, criando o que poderíamos chamar uma
concertização do pop. Nesse sentido, são fartos os exemplos legados pelos Beatles e
pelos grupos de rock progressivo34 (Yes, Genesis, Emerson, Lake and Palmer).

Entretanto, é no elemento voz que se situam as diferenças mais discrepantes. As


gravações do início do século buscavam a voz potente, pois era ela a única que poderia
ser captada pela tecnologia de então. Por volta das décadas de 1930-40, ouvem-se vozes
potentes, mas já livres da tradição operística: é a era dos crooners, como Bing Crosby e,
posteriormente, Frank Sinatra.

A conquista da hi-fi no disco surgiu como um divisor de águas, dando lugar à


escuta de dois tipos de vozes antagônicas. Ao mesmo tempo que permitiu a audição
clara da voz da música de concerto, possibilitou o surgimento da voz andrógina, tais são
os casos Janis Joplin, David Bowie, Ian Anderson, Peter Gabriel, entre muitos outros.
Poderíamos até julgar essas vozes como versões renovadas dos castrati do período
barroco, se considerarmos que o bel canto na música pop se dá às avessas, em relação à
música barroca: enquanto que os castrati se empenhavam numa voz celestial, sobre-
humana, resultado de uma técnica vocal que consumia todas as horas de seus dias, os
cantores pop procuram a voz aculturada, o grito pré-histórico. Os cantores-pop
investem na personificação assexuada ou andrógina, através de sua caracterização geral
(indumentária, gesto, maquiagem etc.). Essa particularidade mantém-se presente nas
últimas décadas. Prince, Boy George, Michael Jackson, Madonna o justificam de modo
exemplar.

34 Apenas para citar alguns exemplos: o Yes Album, gravação do show ao vivo do grupo Yes, inicia com
a citação, por Jon Anderson , da primeira frase da Sagração da Primavera, de Stravinsky; Emerson, Lake
and Palmer desenvolveram leituras metalinguísticas (novos arranjos) do barroco à música contemporânea,
dois quais são exemplos o Allegro Barbaro, de Bartók, da 2a. Invenção a 2 vozes, de Bach. Nessa mesma
época, os grupos de rock pesado, tais como Uriah Heep, Led Zeppelin, Black Sabbath e sobretudo, Deep
Purple desenvolverão estilemas do barroco (marchas harmônicas, ornamentos).

56
Nos últimos tempos, encontramos, no âmbito nacional, um exemplo ainda mais
peculiar: o lançamento do disco do cantor Edson Cordeiro. Este cantor, de admirável
tessitura vocal, com equilíbrio na potência e no timbre, poderia trilhar seu caminho
artístico no domínio do repertório para contra-tenor. Entretanto, optou pela música
popular (no seu caso particular, inclui o tradicional, como Luiz Gonzaga e a música de
concerto). Numa das faixas do disco, o que encontramos ? Uma fusão de um rock dos
Rolling Stones (I can’t get no satisfaction) com a ária da Rainha da Noite (Der Hölle
Rache kocht in meinen Herzen35), da ópera A Flauta Mágica, de Mozart. Não é a
mistura disparatada, embora digna de comentários 36, o que nos chama a atenção, mas a
troca de papéis: a voz de barítono não é outra senão a voz feminina (?!) de Cássia Eller,
enquanto que o soprano coloratura que alcança o super-agudo, incomum mesmo na
maioria das mulheres é a voz masculina (?!) de Edson Cordeiro. O que nos parece
peculiar, neste exemplo, é que não estamos tratando da voz remodelada pelo
computador, ou outros recursos da eletroacústica, mas tão somente da voz naturalmente
emitida pelos cantores.

A música pop - nome que genericamente designará a canção de massa de fala


inglesa - contará com novos instrumentos, eletro-eletrônicos (guitarra, órgão e, mais
tarde, bateria) dotados de novas possibilidades timbrísticas, possibilidades de
sustentação dos sons, legato, maior intensidade. No entanto, parâmetros relevantes na
música de concerto são simplesmente ignorados (variações de dinâmica e andamento).

35 A tradução aproximada para o português é: uma cólera terrível consome meu coração.

36 A década de 1980 revelou-se, pelos vários exemplos colhidos, terreno fértil para a incorporação de
outras músicas no domínio da música de massas, sobretudo na intitulada MPB (música popular
brasileira). Após o efêmero sucesso (se chegou a tanto...) de músicos como Arrigo Barnabé, que incluía o
dodecafonismo weberniano em seus rocks, cresceu o número de músicos, principalmente cantores, a
incluir em seu repertório hits de décadas anteriores, peças folclóricas ou mesmo a chamada música
clássica. Os exemplos perdem-se em números: Vânia Bastos, Marisa Monte, Eduardo Dusek, entre muitos
outros. Caetano Veloso - que na Tropicália de tempos atrás reabilitou dramalhões como Coração
Materno, elevando-a do kitsch ao cult - lança, no final de 1994, um álbum com canções em língua
espanhola, muitas delas tidas, até pouco tempo atrás, como emblemas do mau-gosto. Essa tendência, que
mistura alhos com bugalhos, não raro envernizadas com nomes pomposos (releitura, por exemplo)
poderia considerar-se uma tentativa de abraçar toda a produção musical de todos os tempos, uma vez
tendo todos os meios nas mãos: partituras, filmes, regravações de discos em 78 rotações transcodificados
para o disco compacto ? Buscar alimento em novas fontes, dado o esgotamento da linguagem
desenvolvida até então? Ou ainda: recuperar de alguma forma um melodismo repelido e execrado pelo
pop? Até o presente momento, não encontramos pesquisas específicas sobre esse tema em particular.
Trata-se, ao nosso parecer, de um problema que merece maiores investigações, pois envolve diretamente
questões ligadas à estética, à recepção, à cognição.

57
A preocupação maior estará na marcação do ritmo e do ruído37. Na década de 1970, a
estética hippie-psicodélica opta pelo som difuso, de reverberação prolongada, pouco
definido: é bastante comum, nessa época, o uso de alavancas e pedais, funcionando
como abafadores ou prolongando a vibração das notas.

A música da década de 1980, por sua vez, distingue-se pelo surgimento de novas
tecnologias, que abalarão não somente os hábitos de escuta, como também os próprios
estatutos dos modos de ouvir. Referimo-nos a digitalização, ao som eletrônico, a
transformação da onda elétrica em onda computacional. Com o som digital, suprimiu-se
o ruído de fundo, uma vez que os sons reproduzidos nos alto-falantes são resultado de
leitura a raio laser e não do contato direto com o disco pela agulha. Assim sendo, o
atrito deixa de existir.

37 É interessante observar que a música de concerto passou, nessa época, por um processo de popização e
muzaquização: aos chamados clássicos populares nas versões de Ray Conniff, Paul Mauriat e outras
orquestras veio somar-se Valdo de los Rios, que acrescentava às peças sinfônicas do Barroco ao
Romantismo instrumentos de percussão, guitarras elétricas, marcando um ritmo de rock. Essa
metalinguagem, ao nosso ver, de qualidade criativa deplorável, deixou-nos algumas pérolas, como a
sinfonia no. 40, de Mozart, o 3o. movimento da 3a. sinfonia de Brahms, o concerto de Arranjuez, de
Rodrigo. Nesses (des-) arranjos, nota-se uma acentuação na bateria, em meio a reverberação nas cordas.
Versão muzak elevada ao mais alto grau da categoria kitsch. Na moda discoteca dos anos 70 a popização
dos clássicos encontrou uma nova versão: os n-volumes de Hooked on Classics, pot-pourri que unificava
em tonalidade e ostinato rítmicos temas os mais diversos da música sinfônica, de Mozart a Berlioz, de
Beethoven a Tchaikovsky. Estas divagações nos remetem inevitavelmente a o famoso texto de Theodor
W. Adorno (O fetichismo na música e a regressão da audição), em vários aspectos. Um deles é a
fetichização que é determinada pela criação de hits no repertório da música de concerto (para Adorno,
música séria): a seleção de repertório, determinada pelas editoras, pelas gravadoras, pelo rádio etc. “(...)
perpetua-se e termina num círculo vicioso fatal: o mais conhecido é o mais famoso, e tem mais sucesso.
Conseqüentemente é gravado e ouvido sempre mais, e com isto se torna cada vez mais conhecido. A
própria escolha das produções-padrão orienta-se pela ‘eficácia’ em termos de critérios de valor e
sucessos que regem a música ligeira ou permitem ao maestro de orquestra famoso exercer fascínio de
acordo com o programa(...)”(Adorno,1980:171). Nesse sentido, não é difícil perceber por que o
repertório a ser sacrificado nesses des-arranjos de Conniff a de los Rios é o mesmo que é adulado pelos
grandes nomes da regência orquestral. Outro aspecto a que se refere Adorno é a prática dos arranjos.
Nestes, as ideias originais são arrancadas de seu contexto original, formando um pot-pourri. Dilacera.
“Dilacera a unidade poliédrica de obras inteiras e apresenta apenas frases ou movimentos isolados e
conjugados, juntados artificialmente”. Uma outra faceta dos arranjos é o princípio da colorística,
principalmente quando se trata do julgamento equivocado de que a instrumentação original deve ser
atualizada, renegando, assim, toda a dinâmica do conjunto presente na obra original (Adorno,
1980:1775-176). A popização e a muzaquização têm, como princípios fundadores, justamente essas
características. É oportuno lembrar que o texto de Adorno, publicado em 1963, insere-se num período
histórico em que a Europa percebe a ascensão econômica norte-americana, que, em termos musicais, soa
através da música pop e do jazz. Para Adorno, o imperialismo sonoro seria controlado pelos meios de
comunicação de massa cuja interferência nos hábitos estéticos e perceptivos teria consequências danosas
e irreversíveis. Colocando os devidos pontos nos ii, esses fenômenos aos quais Adorno se dirigia com
ardor combativo ampliaram-se em suas dimensões. Se Adorno foi extremamente severo e radical no que
se refere ao jazz, no que diz respeito à música ambiente e sua forma de fruição nada mais apresentou
senão um juízo realista do problema.

58
A década de 1980 revela-se, então, como marco de uma conquista há muitos
anos almejada: a alta fidelidade, a hi-fi. A possibilidade de registrar e reproduzir uma
determinada fonte sonora, livre de toda e qualquer interferência. O som limpo, claro,
fiel à sua origem. Entretanto, ao nosso ver, essa crença é, em grande parte, equivocada.
Que a captação seja mais fidedigna à sua origem, isto é um fato indiscutível. Contudo, a
mediação, ou seja, as possibilidades de remodelação do som que tansitam entre a fonte e
o resultado final - o disco, o signo do objeto representado - determinam mudanças
radicais, a ponto de transfigurar, inevitavelmente, a recepção e o próprio estatuto da
obra. Esse será um dos aspectos que dirigiremos nossas atenções, no terceiro capítulo,
ao tratar da mediatização da voz, o que nos autoriza a interromper maiores comentários
neste momento.

2.5. O passeante ouve...

Os problemas citados acima se devem, em grande parte, à elaboração da


linguagem das rádios em frequência modulada, as FM, após o surgimento do rock. O
estabelecimento do rock, na década de 1960 coincidiu, como afirmamos anteriormente,
com o lançamento do LP (long-play) e do compacto de 7 polegadas, estes últimos
reservados apenas à venda do hit do momento. Mais que isso, a era do rock configura-
se com o estilo da rádio sustentada pelo disc-jóquei, pivô do esquema disco-rádio-
automóvel-telefone, que funciona assim: o ouvinte pede, ao disc-jóquei, pelo telefone,
para que toque a música “x”, música esta não raramente ouvida no interior de um
automóvel, que fulano oferece para beltrano. A insistência no tema automóvel no texto
das músicas destinadas aos adolescentes da época encontra aí uma justificativa
(Muggiati,1981:61-62).

Importante também é observar o papel desempenhado pelo disc-jóquei, a nosso


ver, herdeiro dos ensinamentos dos contrarregras, responsáveis diretos pela
expressividade na dramaturgia das radionovelas: “Sozinho à noite no aquário do seu
estúdio, o disc-jóquei manipula uma série de recursos e efeitos sonoros que dão ao
ouvinte a atmosfera de uma festa vibrante, com todo o calor de uma apresentação ao

59
vivo: aplausos, assobios, ruídos de pés dançando, copos de bebidas etc.. Os programas
de rock tomam conta das emissoras e até os noticiários e boletins meteorológicos são
integrados no clima das ‘festinhas de rock’n’roll’, transmitidos dentro do estilo
peculiar de cada disc-jóquei” (Muggiati,1981:62-63).

Esse modelo descrito por Muggiati, como podemos observar, passou por
algumas modificações, da década 1960 aos dias de hoje, como aumento na velocidade
na fala, inclusão de outros elementos sonoros, muitas vezes não existentes no universo
cotidiano, fazendo da emissão radiofônica um texto com aparente feição surrealista, não
somente pelo uso da técnica de montagem, como pela própria fragmentação dos
conteúdos internos. No entanto, o perfil geral mantém-se, ao nosso parecer, pouco
alterado: permanecem o domínio da programação pelo personagem criado pelo disc-
jóquei, vinhetas e outros emblemas que caracterizam o ritmo e o timbre da emissora,
entre outros.

A música de rock, assim como toda a descendência pop vai se esquadrinhar a


partir do texto verbal, a letra, mesmo nos casos em que a semântica apresente-se
desintegrada quase totalmente. Cada peça composta no sistema do studio rock “(...)
propõe que se ultrapasse mesmo a idéia de canção, desenvolvendo um tipo de
dramaturgia sonora feita de fragmentos de diálogo, de montagens, de superposições de
gravações diversas e de algumas manipulações eletroacústicas: neste caso, a forma é a
colagem” (Berio, apud Muggiati, 1981:67).

E o que mudou, do rock de duas ou três décadas atrás em relação ao pop de


hoje? A princípio, a valorização na marcação rítmica, mais propícia para a dança, com a
acentuação dos baixos, em boa parte graças às novas qualidades técnicas de registro e
reprodução do som. O intérprete de música pop dança ao mesmo tempo em que canta,
seja durante os espetáculos ao vivo, seja no vídeo-clip da tela de televisão. Essa dança
não é necessariamente a dança no seu sentido primeiro, coreografada, podendo mesmo
ser o simples movimentar-se no embalo rítmico. O (tele)ouvinte pode participar, ele
próprio da canção dançando; assim, a música se estende ao seu próprio corpo (Chion,
1994:89).

O panorama que enquadra a paisagem sonora do ouvinte de música instrumental


é bastante diverso, mais ainda quando se trata de uma peça de duração mais longa,
como um trecho de música de concerto. Nas estações de rádio cujo carro-chefe é a

60
música-ambiente, geralmente aquele tipo de música classificada como ligeira, a música
vocal está, geralmente, excluída. E por que isso acontece?

A presença da voz exige concentração; a música vocal exige atenção ao texto,


seja um lied, um trecho de ópera, ou mesmo o comentário feito pelo locutor (narração
do conteúdo do texto, notas sobre os intérpretes da obra etc.). Assim, não é de se
estranhar que emissoras que tenham como núcleo básico a música sinfônica opte, à
maioria das vezes, pelo repertório que se enquadre entre o barroco e o final do
romantismo. Essa escolha não é casual: trata-se do tipo de música inscrito no discurso e
na respiração humana. Antes ou depois desses períodos da história da música, a música
excede os limites usualmente estabelecidos pela fisiologia humana. Esse tipo de
programação musical visa o resgate de um certo relaxamento, equilíbrio, sem para tanto
exigir a concentração mental (Chion, 1993: 40-41).

Além das características acima, deve a música ainda obedecer a um alto grau de
previsibilidade. Não interpelando o ouvinte com a inserção de elementos que
representem o novo, a repetição serve como pano de fundo para conversa ou qualquer
outra atividade que não exija maior concentração mental. Assim se explica a aceitação
de Vivaldi (1678-1741): seus 600 opus, cheios de clichês, despontam como repertório
preferencial das mídias e das programações Muzak.

A década de 1980 se caracteriza pela proliferação do walkman, capacete acústico


que possibilita a escuta individualizada, instalada diretamente no corpo humano, colada
nos ouvidos 38. Em um grande número de casos, o walkman é um verdadeiro marca-
passo, no sentido literal do termo, dado que se presta não raramente um gênero de
música repetitiva, de pulso rítmico acentuado e constante, condicionando o próprio ato
de andar.

O advento do walkman coincide com o surgimento de alto falantes de sons


claros e definidos, capazes de cobrir um espaço maior no espectro sonoro, sobretudo
dos sons graves. Talvez seja essa ligação - a de escutar à proximidade dos ouvidos alto-
falantes de resposta mais precisa - uma razão que explique uma preferência pela música
de sons muito articulados, destacados, na década de 1980, dos quais a chamada house

38 O som passeante também apresenta outras variantes, modismos como o de transportar pelas ruas, sobre
os ombros, aparelhos de som compacto (micro systems), mais propriamente um acessório indumentário,
emblemático do rap. Um exemplo disso encontramos no personagem Rádio RAEM do filme Faça a coisa
certa (Do the right thing), de Spike Lee.

61
music é apenas um exemplo. No decênio seguinte, observa-se, pelo contrário, “(...) o
retorno nostálgico de um som menos duro, marcado pela redescoberta de valores e das
modas dos anos 60 e 70” (Chion, 1994:51).

As estações de rádio, sobretudo quando sintonizadas nos fones de ouvido do


walkman, ou nos alto-falantes do automóvel, envolvem o ouvinte (raramente atento à
programação), numa bolha protetora (simbólica!) que o leva a crer que não está só,
disperso na multidão:“(...) a música, no cotidiano de cada um, preenche hoje a função
que não poderia preencher antes da existência do rádio, da televisão e do disco:
notadamente, ela visa mascarar os barulhos da vizinhança e permite assim, assim
neutralizar essa intrusão. (...) A música tornou-se para seus usuários como uma
energia modulada, na qual são eles conectados com o fim de recarregar sua bateria
psíquica, e que possui a propriedade de poder se sobrepor ao mundo real e utilitário
sem para tanto nos arrancar dele, sem o desrealizar39” (Chion, 1993:85).

Poderíamos prosseguir esta análise encampando ainda os meios audiovisuais -


cinema, televisão, vídeo-clipe, vídeo-laser, sistemas de multimídia. Entretanto,
consideramos que essa empreitada ampliaria desnecessariamente o leque de linguagens
em que a música participa, sem, contudo, alterar nossas conclusões finais. Em outras
palavras, os modelos que citamos nos parece darem conta plenamente do que
pretendemos demonstrar.

O sucesso dos meios de reprodução sonoro-musical ultrapassa o resultado de


estratégias publicitárias bem elaboradas. Como atestam os exemplos arrrolados nestas
páginas, podemos concluir que esses meios, cristalizando-se em hábitos cotidianos,
passaram a configurar-se como uma nova necessidade, cuja origem estaria fundada em
outra necessidade (aparentemente?) oculta: a de se resguardar do silêncio. Para melhor
entender essa relação, faz-se necessário observar mais de perto uma outra face do
problema: o silêncio e suas metáforas, no âmbito da linguagem musical.

3. Silêncio (adagio sostenuto)

39 No texto francês original, déréaliser.

62
3.1. O nascimento da esquizofonia e a perda do silêncio.

“O silêncio dos espaços infinitos me assusta.”

Blaise Pascal

Essa foi a reação de Pascal ao imaginar, pela primeira vez, a infinitude do


espaço sideral, observado pelo telescópio de Galileu. O som não existe no vácuo. Sendo
onda de pressão, necessita de um meio material para se propagar. Esta é uma verdade
científica bem conhecida. No entanto, a ausência de som, o silêncio, em grau absoluto,
parece produzir em qualquer indivíduo o mesma sensação que produziu em Pascal. Na
verdade, a cultura do ocidente parece rejeitar o silêncio, atribuindo-lhe um caráter
negativo, pois, em última instância, “O silêncio essencial é a morte” (Schafer,
1991:71). Como recurso de superar a morte, o homem constrói sua própria paisagem
sonora circundante.

Além de poderoso símbolo de morte, ficar em silêncio significa excluir-se do


círculo comunicativo. Existe um provérbio na língua portuguesa que afirma: o falar é
prata; o calar é ouro. Sabemos o quanto é penoso nos mantermos no silêncio. Daí
talvez se tenha se criado essa analogia, cuja origem estaria, possivelmente, perdida na
bruma secular. Ao equiparar o valor dos metais preciosos o custo psíquico do silêncio,
quem formulou essa frase estaria, talvez, enunciando de forma profética - poderíamos
dizer - um dos valores mais caros à música desta segunda metade do século.

Para o compositor de hoje, o silêncio é primordial, porque ele está se perdendo


na paisagem sonora. Assim sendo, o silêncio é matéria-prima da música, um construto
tão importante como qualquer outro parâmetro, o que leva uma quantidade expressiva
dos compositores importantes da atualidade a considerarem-no como centro de suas
preocupações (sobre esse aspecto comentaremos mais adiante).

Se nos dias de hoje constatamos uma presença mais incisiva do barulho, isto não
quer dizer que, em contrapartida, no período pré-industrial, o silêncio fosse reinante.
Acreditar que o silêncio teria constituído a paisagem sonora predominante até o advento

63
da primeira ou da segunda revolução industrial representaria um equívoco ao qual
somente uma ignorância ingênua poderia dar crédito. Em outros termos: falar em
silêncio não passa, em última instância, de uma bela metáfora. Apenas para citar um
exemplo, basta lembrar que o comércio era realizado aos cantos e gritos dos
vendedores40. Havia muito barulho de vozes: mercadores das quatro estações, músicos,
mendigos. “Cada mercador, de fato, tinha seu grito. mais que as palavras, importava o
motivo musical e a inflexão da voz, transmitidos de pai para filho na profissão o que
indicava, a distância, a natureza do comércio” (Schafer, 1979:100). Estes mercadores
não se limitavam ao espaço aberto da rua. Durante apresentações de teatro e ópera, tais
comerciantes se infiltravam nos intervalos para vender seus produtos41.

O que diferencia mais propriamente o ruído pré-industrial do pós-industrial pode


resumir-se em dois aspectos principais. O primeiro deles é que a presença de sons
naturais e humanos foi sobrepujada pelos mecânicos e elétricos. O segundo é que a
mediatização introduziu a possibilidade de difusão sonora em massa. Esta, por sua vez,
teve como consequência inevitável a expansão da área da comunidade acústica.

Se até o final do século passado, o som que atingia o território mais amplo era o
sino da igreja, com o advento do rádio, o limite territorial passou a ser aquele até onde a
antena de retransmissão pudesse captar42. Segundo Murray Schafer (1991), a
distribuição dos sons, segundo sua fonte, durante os diferentes períodos históricos,
mudou sensivelmente:

40Os gritadores de rua retomaram sua voz, mais recentemente, por intermédio de Luciano Berio: The
cries of London para 6 ou 8 vozes (versões 1774 e 1976) é uma estilização dos gritos cantados pelos
camelôs londrinos. A partir dos textos originais, Berio recriou os gritos da velha Londres, dos abbagnate
sicilianos, a tradição de Dowland (Cries of London) e Jannequin (Les cris de Paris), numa escritura
madrigalesca, com enunciação contemporânea (Stoianova, 1985: 73).

41 Esse fato é comprovado pelas chamadas árias de sorvete, números da ópera de menor importância
dramática ou virtuosística, prevista (pelos compositores anteriores ao ápice do romantismo) justamente
para esses momentos em que a atenção à obra seria desviada para atrativos de outra natureza.

42 Schafer ressalta ainda que a amplitude sonora da música de concerto acompanhou, de certa forma, o
nível de barulho das cidades. Isso se comprova com o simples observar a orquestra sinfônica, de
Monteverdi a Mahler.

64
sons naturais sons humanos sons de utensílios e tecnologia

culturas primitivas 69 % 26 % 5%

culturas medieval,
renascentista e pré- 34 % 53 % 14 %
industrial

culturas pós- 9% 25 % 66 %
industriais

hoje 6% 26 % 68 %

(Schafer,1991: 128)

Essa tabela elaborada por Schafer43 nos sugere que uma superpopulação de sons
humanos estaria presente, nos dias de hoje, em algumas ilhas. A céu aberto, nas feiras
ou festejos populares, nos locais onde a tradição oral ainda mantém sua força unindo e
unificando a sociedade (a maioria das vezes, vilarejos onde resquícios da Idade Média
mantêm-se no transcorrer dos séculos). Nas grandes cidades, os sons humanos,
principalmente as vozes, estariam mais frequentes entre quatro paredes - curiosamente -
no centro do poder econômico mundial: as bolsas de valores e seus intrépidos corretores
realizando seus negócios aos gritos e gestos frenéticos. Por incrível que possa parecer
hoje, era justamente esse o limite da voz humana - o grito - até o surgimento do telefone
e do rádio, o que data de aproximadamente um século.

Com o advento do telefone e do rádio teve início aquilo que M. Schafer


denomina esquizofonia (squizo + phonos = som separado, fendido), neologismo que
designa o som que tem sua origem num local e sua audição em outro, longínquo:
“Desde a invenção dos equipamentos eletrônicos de transmissão e estocagem de sons,
qualquer som natural não importa quão pequeno seja, pode ser expedido e propagado
ao redor do mundo, ou empacotado em fita ou em disco, para as gerações do futuro.
Separamos o som da fonte que o produz” (Schafer, 1991:172). A instauração da
esquizofonia acarretou, no transcorrer deste século, em diversas mudanças de ordem
perceptiva, além de estabelecer mudanças substanciais e definitivas no modus vivendi
do homem que habita os centros urbanos. Sobre isto, porém, já discorremos
extensamente no interlúdio deste texto.

65
Se em períodos anteriores a música e o som, de um modo geral, eram produzidos
no local em que deveriam ser escutados, mesmo a distância, com o surgimento da
esquizofonia perdeu-se - como acaba de afirmar Schafer - a noção de origem: podemos
sintonizar uma aparelho de rádio sem, no entanto, saber de onde provêm os sons que
ouvimos. Os sons da voz, limitados à ressonância do crânio, passaram diretamente aos
alto-falantes44. Além do mais, a fixação do som em discos e fitas permitiu ao ouvinte
misturar repertórios de tempos e espaços dissemelhantes, prática que, até o século
passado, consistiria em justaposição inassimilável e absurda.

Na verdade, o desejo de romper com os limites de tempo e de espaço, em


música, não é recente. A transmissão da música instrumental à distância encontra-se
documentada em obras com a Phonurgia Nova, de Athanasius Kircher (1773). Na
prática, entretanto, recursos como efeitos de eco e reverberação, dinâmica, bem como
instrumentos, dotados de características específicas (como o sino da igreja católica)
nada mais visavam senão uma expansão do espaço acústico natural. No nosso século, a
tomada de poder político coincidiu com a tomada em punho dos alto-falantes. Como
citamos anteriormente, vale relembrar que foi o próprio Hitler afirmou, em 1938: “Nós
não teríamos conquistado a Alemanha sem o alto-falante 45” (Schafer,1979:134-135).

Apesar do tom patológico que o conceito de esquizofonia sugere, não podemos


subjugar os seus aspectos favoráveis46. Lembremos que o som - por constituir-se de
ondas de pressão - atinge não somente os ouvidos, mas também todo o corpo, através do
contato epidérmico. Isto quer dizer que a esquizofonia possibilita, em certa medida, a
experiência háptica, por intermédio de uma espécie de tatilidade mediatizada. Assim,
aproxima o ouvinte do distante no espaço, do distante no tempo, seja ele cronológico ou

43Aqui vale uma ressalva: ao nosso entender, aquilo que Schafer caracteriza como culturas pós-
industriais corresponde, na verdade, às culturas industriais; ainda, aquilo que o autor classifica como
hoje, diz repeito - aí sim - às culturas pós-industriais.

44 A preferência pelo microfone e pelos alto-falantes revela-se hoje, até por cantores de currículo
irretocável, como o tenor espanhol Plácido Domingo. Seriam suas razões apenas financeiras? Veja-se,
mais adiante, o protesto de Giuseppe di Stefano.

45 Essa referência é citada por Schafer (1979:135):‘Ohne Kraftwagen, ohne Flugzeg und ohne
Lautsprecher hätten wir Deutschland nicht erobert’, em: Hitler (1938-1939): Manual of the German
Radio.

46 É necessário frisar que ao tocarmos no problema da mediatização, não estamos pondo em julgamento
problemas pertinentes a um enfoque sociológico, como, por exemplo, a relação poder de consumo da obra
de arte em relação ao público potencial (do qual a ópera é um caso exemplar). Não nos interessa, em

66
mental. Favorece, em certa medida, não apenas a fixação de conhecimento lógico e
emotivo, como interfere na esfera dos conhecimentos já sedimentados, sobretudo os
afetivos.

A mediatização, sobretudo sonora, é muitas vezes a bomba relógio que detona a


eclosão das reminiscências, memórias em estado de disponibilidade, mas não no
presente imediato - e o que é uma reminiscência, senão a sensação ao mesmo tempo
forte e frágil, de uma presença na ausência?

Para Mc Luhan, a alta fidelidade nos discos pode conduzir à sinestesia: “A busca
do ‘som realístico’ pela hi-fi logo se misturou com a imagem da TV como parte da
experiência tátil. Pois a sensação de ter instrumentos executantes ‘na mesma sala em
que a gente’ é uma tentativa de unir o auditivo e o tátil numa fineza de acordes que
evoca, em grande parte, a experiência escultural. (...) Com a hi-fi, o fonógrafo enfrenta
o desafio tátil da TV”. (apud Muggiati, 1981:96-97). Para Mc Luhan, a hi-fi e seu
desenvolvimento lógico - o som estereofônico, em três dimensões, representam a
imersão do ouvinte num ambiente sônico, como um envelope acústico recuperando, de
certo modo, a memória sensorial da audição intrauterina47.

A abordagem da esquizofonia pleiteia uma análise mais acurada no campo da


mediatização. Suscita, como podemos observar, uma investigação mais ampla em vários
domínios, notadamente de ordem semiótica. Nesse sentido, dado que - se não nos
equivocamos - não foi ainda desenvolvida uma teoria da esquizofonia sob o prisma
semiótico, destarte os estudos de Chion (1993; 1994) - faz-se necessário servirmo-nos
de teorias subsidiárias, a fim de melhor nos aproximarmos do problema. Entretanto,
nossas especulações, para o momento, interrompem-se por aqui.

absoluto, discutir aqui questões dessa natureza. Limitemo-nos, portanto, ao estudo das transformações
ocorridas no signo e, consequentemente, na escuta.

47 Não necessariamente interessados nas relações psicanalíticas da audição, mas certamente preocupados
com novas maneiras de escutar e sentir o som estão os pesquisadores-compositores do INA-GRM
(Institut National de l’Audio-Visuel - Groupe de Recherches Musicales), encabeçados, no seu início, por
Pierre Schaeffer e, atualmente, por François Bayle. Com esse objetivo, criaram o acusmônio, aparelho
que possibilita, em sala especialmente preparada para tanto, a audição de músicas que exploram os
diferentes pontos de emissão, ressonância reverberação do som, não somente na sala de audição, como no
corpo do ouvinte. Vale lembrar que essas experiências são um desdobramento das pesquisas de Pierre
Schaeffer, iniciadas no final da década de 1940.

67
3.2. O silêncio transfigurado.

Como vimos reafirmando até agora, o mundo contemporâneo é dominado pelo


ruído, pelo barulho. Esse dado, que horroriza um bom número de cidadãos e algumas
vezes serve de bandeira de certas plataformas políticas, não pode ser encarado em tom
alarmante e apocalíptico. O barulho é - queiramos ou não - um construto da paisagem
sonora deste século. Medidas de controle e prevenção sejam tomadas, não acreditamos
que estas venham um dia a eliminá-lo, por maiores que sejam os esforços encampados
pelos ouvidos mais sensíveis que tanto se atormentam com ele.

Sendo assim, poderíamos considerar que o homem do século XX, a fim de se


proteger dos ruídos, teve sua audição embrutecida, sendo-lhe praticamente impossível a
clauriaudiência , de que nos fala Schafer ? Para Jean Michel Damian, uma boa parte da
música de hoje não é sequer perceptível. Segundo o autor, tornamo-nos incapazes de
perceber um som que se modifica discretamente. Se há dois séculos uma dissonância ou
modulação eram suficientes para emocionar até as entranhas, a sensação emotiva que a
audição musical de hoje pode despertar só é possível quando uma massa de decibéis é
posta em ação. Acrescenta ainda: mesmo presente em toda parte (em casa, no escritório,
nos espaços públicos) a música deixou de ser perceptível; a paisagem sonora tornou-se
um amálgama, uma balbúrdia generalizada (Damian, 1980: 18-19).

Mesmo assim, o silêncio ainda pode ser experimentado. O crescente nível de


ruído nas cidades e a possibilidade que nos é oferecida hoje de transportar o ruído para
locais onde ele em estado natural não existe - ou seja, a possibilidade de mediatização
do som, graças à esquizofonia - não impede as pessoas de buscarem o silêncio como
ilha de reflexão e descanso: santuários, igrejas, bibliotecas parece terem sido concebidos
para que o sussurro da voz da consciência pudesse ser ouvida. A meditação em voz
baixa só pode, igualmente, ser ouvida no silêncio.

Da mesma forma, a música também possui um invólucro de proteção,


possibilitando-a não somente de falar, como também a falar em voz baixa, isto é, em
piano. As salas de concerto, pode-se dizer, foram de certa forma criadas para proteger a
música dos eventos sonoros a ela não pertencentes. E a criação das salas tem uma outra
história, além daquela divulgada por alguns manuais de história da música, isto é, de

68
que as salas teriam surgido para a atender um novo público, a burguesia, nova
representante do poder econômico. Segundo Schafer, a origem da sala de concertos
estaria ligada também à mudança da paisagem sonora: o crescimento populacional e
industrial das cidades e o consequente aumento do nível de ruído impossibilitaram a
música de ser apreciada ao ar livre. Com isso, ganhou status de objeto raro passando a
ser consumida por um público pagante a portas fechadas.

A música do período clássico, anterior à era industrial, se compunha numa


paisagem sonora - diríamos, mais hi-fi, pelo menos em comparação com a paisagem
sonora de hoje. Isso explica a preferência aos sons agudos, sons estes mais favoráveis à
difração (contrariamente à paisagem sonora lo-fi). Por conseguinte, ouvir a música do
classicismo exige grande concentração:

“É por isso que o silêncio é a regra durante o concerto. Cada parte é


amorosamente colocada num relicário de silêncio, onde poderá ser examinada em seus
mínimos detalhes. (...) Esse período, único na história da escuta, produziu a música
mais intelectual que jamais fora criada. Contrasta intensamente com a música feita
para o ar livre, como a canção popular, que não pede a atenção ao detalhe, e que
introduz aquilo que poderia se chamar de escuta periférica, comparável à maneira em
que o olhar percorre suavemente uma paisagem agradável” (Schafer, 1979:171). Não é
por acaso, portanto, que a música de câmara, encabeçada pelo quarteto de cordas, tenha
encontrado, nesse período, o seu momento de expressão máxima.

A prática de preservar a música na redoma do silêncio iniciou-se no século


passado, persistindo ainda hoje, com algumas sérias ressalvas. No entanto tal prática
está delimitada a um território muito restrito: a música de concerto executada ao vivo.
Como vimos anteriormente, a implantação da audição mediatizada, exonerou a música
de concerto da participação ritualizada do ouvinte, em detrimento da música ambiente,
da muzaquização tão execrada por Bartók. Além do mais, os próprios conceitos de som
musical / ruído / silêncio seriam postos em cheque. Essas turbulências no cerne da
linguagem musical tiveram, grosso modo, três protagonistas principais: Claude
Debussy, Anton Webern e John Cage
*

* *

69
Uma pausa necessária (2): conceitos de silêncio, em música.

Da mesma forma que o conceito de ruído, o termo silêncio é passível de várias


acepções, de acordo com o enfoque específico atribuído pelas diferentes linguagens
(psicanalítica, retórica, acústica, entre outras). Em música, silêncio é portador de
múltiplos sentidos, que variam de acordo com a concepção estética do período histórico
a que se refere. Ou, dito de outro modo, o valor silêncio está estreitamente ligado à
evolução da linguagem musical.

Como poderemos observar a seguir, o conceito de silêncio é um valor que


obedece à função de recurso expressivo até o início do século XX. A partir dessa data e,
sobretudo, após a Segunda Guerra, o silêncio assume o papel de construto.

H. J. Koellreutter classifica o silêncio sob dois enfoques: o da linguagem


musical e o da teoria da comunicação. Por se tratar de distinções importantes no
contexto deste trabalho, tomamos, mais uma vez, suas definições a fim de tornar clara
nossa exposição:

1.“Meio de expressão. Recurso que tende a causar tensão, em conseqüência de


expectativa. Não se restringe exclusivamente à ausência de som. A Estética moderna
abandona a distinção tradicional entre som e silêncio, sendo que o som não pode ser
separado do espaço ‘vazio’ do som em que ocorre”:

Mais uma vez, saltamos do território da música propriamente dita, para


recorrermos a uma teoria subsidiária, a teoria da comunicação. Como meio de
expressão, o silêncio tem uma história da qual apresentaremos um sumário, mais
adiante. Quanto à tensão emotiva, sabemos que há sérios estudos a respeito, como os de
Imberty (1979). No entanto, preferimos deixar esta questão de lado para nos remetermos
exclusivamente ao que diz respeito à comunicação, que, como já afirmamos nos
conceitos de ruído, atende mais diretamente aos nossos propósitos.

A teoria da comunicação nos estipula que da mesma forma que é difícil


encontrarmos uma mensagem isenta de redundância, é praticamente impossível
encontrarmos uma forma, qualquer que seja ela, despojada de qualquer espécie de

70
periodicidade, interna ou exterior à forma. Citemos, para elucidar a questão, o
comentário de Teixeira Coelho:

“Do mesmo modo, deve-se observar que o ‘desejo de periodicidade’ do homem


é intenso, o que leva a uma situação na qual o número mínimo de repetições de um
elemento formal, necessárias para que o receptor se sinta autorizado a prever a
ocorrência do próximo, é bem baixo. Uma série de experiências tem demonstrado que
esse número varia ao redor de 5 ou 6, não superando muito essa marca. Isto significa
que uma estrutura repetida 3 ou 4 vezes pode colocar o receptor num estado de
expectativa tal que ele tentará dizer o que se seguirá” (1980:158).

O silêncio da expectativa, em música, pode ser pensado de vários modos. No


âmbito da canção para as massas, estrófica, o silêncio pode ser a cesura, a respiração
que antecede a retomada do refrão. Pode constituir-se, ainda como a suspensão
motivada por uma resolução de cadência (harmônica), tanto na esfera da música tonal
tradicional, tanto no caso em que a estabilidade do sistema tonal roça seu limiar de
ruptura. Nesse caso, enquadram-se tanto a canção estrófica, como uma forma contínua,
como Tristão e Isolda de Wagner, ou Pelléas et Mélisande, de Debussy. No plano da
música serial e, mais ainda, da música aleatória, a expectativa reside, antes de tudo, na
própria expectativa. A música serial nega a repetição, a redundância, mas de todo o
modo, pressupõe uma organização de um repertório pré-estabelecido, ainda que se trate
de obras que esgotem a liberdade da seleção, como os Modos de valores e de
intensidades, de Messiaen. A música aleatória, de sua parte, desdobra o leque de
possibilidades a um quase infinito.

Um som não pode ser separado do ‘vazio’ do som em que ocorre. Na verdade, o
silêncio não é vazio - daí as aspas de Koellreutter. O silêncio está para o som assim
como a tela está para o pintor. Serve de contraponto ao som, conferindo-lhe resistência.
Desse modo, não nos é possível ignorar a sua força.

O silêncio desempenha, ainda, um outro papel: ele serve de proteção ao ruído.


Os eventos musicais necessitam da proteção do silêncio para que possam garantir sua
existência ( Que sorte teria uma canção de ninar, não fosse a proteção do silêncio?)

O silêncio pode também agir como ruído. Nesse caso, afrontamos o avesso do
conceito de ruído, como vimos na primeira pausa necessária, ou seja: a ausência de som

71
pode funcionar como ruído de código. Nesse caso, não existe exemplo mais comentado
que a peça 4’33” , de John Cage (sobre o qual discorreremos mais adiante).

Murray Schafer lembra: “O silêncio é a característica mais cheia de


possibilidades da música. Mesmo quando cai depois de um som, reverbera com o que
foi esse som e essa reverberação continua até que outro som o desaloje ou ele se perca
na memória. Logo, indistintamente, o silêncio soa” (Schafer, 1991: 71).

É esta acepção de silêncio que merecerá maiores considerações, neste texto. No


entanto, vale a pena ressaltar a outra feição do silêncio para a qual chama a atenção
Koellreutter:

2. “Sensação causada por monotonia, índice alto de reverberação,


simplicidade, austeridade, delineamento etc....”:

Esta acepção do conceito de silêncio está estreitamente atada à idéia de


redundância. Para a teoria da comunicação, redundância é a reiteração do que foi
expresso, não importa em que linguagem (verbal, gestual, sonora etc.) a fim de garantir
a transmissão de uma mensagem. Um aumento na redundância significa, no processo
comunicativo, um aumento da previsibilidade, o que, na muitas vezes, significa uma
maior compreensibilidade da mensagem. Entretanto, a redundância ao seu grau máximo
pode não transmitir informação alguma, pois a mensagem não conterá nenhum elemento
novo a ser levado ao receptor.

A redundância musical expressa-se otimamente, por exemplo, no caso de uma


canção estrófica a que se pede a participação direta do receptor. Tal é o caso dos hinos
(cívicos, religiosos, esportivos etc.), dos repentes do nordeste brasileiro, dos jingles de
propaganda. Num grau elevado pode, muitas vezes a levar o receptor em estados de
transe ou êxtase. Nesse caso, situam-se muitas das músicas ritualísticas, sobretudo de
cunho místico-religioso, tais como os pontos de macumba ou os mantras do Tibete.

Do ponto de escuta da música contemporânea de vanguarda, podemos encontrar


na monotonia, na repetição redundante um recurso expressivo no quadro da música
minimalista. Esta, comenta Wisnik, “expõe os processos sonoros a nu, que parecem se
realimentar não da intervenção do artista, mas da sua própria lógica autônoma até

72
atingirem a entropia48”(1989:182). Os compositores que optam pela música
minimalista estão mais interessados no micro que no macro-cosmo da linguagem
musical. Para tanto, servem-se de esquemas harmônicos simples, de fórmulas rítmicas
fundadas numa pulsação pregnante, variações discretas nos elementos de base.

Muitas das músicas pop são concebidas de acordo com esse princípio: a de
recortar um elemento mínimo de base, de maneira a sobre ele compor (muitas vezes, de
improviso) a música. Isto pode ser observado com maior frequências, à medida que
surgem instrumentos capazes de trazerem prontas certas fórmulas, como por exemplo a
seqüência rítmica da bateria eletrônica, os acordes que compõem a harmonia etc.. Tais
músicas apelam pela marcação do tempo, através de uma fórmula rítmica. A marcação
rítmica, por sua vez, fixa o acompanhamento corporal. Música para ser ouvida antes
pelo tato que pelo intelecto. Talvez seja por essa razão que o ouvinte da música
extremamente repetitiva não encontre nesse tipo de música algo que poderia ser
classificado, a princípio, como monótono.

O silêncio enquanto monotonia estará isento de considerações mais


aprofundadas, neste trabalho.

Que a fala desta pausa necessária silencie a partir de agora, para voltar a falar
novamente à luz de um novo contexto: a entrada do silêncio como valor na paisagem
sonora contemporânea.

3.3. Os vários silêncios: da ausência de som ao anti-ruído:

“Encontrar tranqüilidade e silêncio no meio do barulho é uma disciplina”

48 No campo da informação, a entropia “(...) mede aquela parte da mensagem perdida, no processo de
passagem do emissor para o receptor, por uma série de razões dentre as quais a diferença nos próprios
repertórios. A mensagem transmitida deveria produzir um certo comportamento que, no entanto, não se
verifica; a diferença entre o comportamento visado e o obtido pode ser expresso pela entropia” (Teixeira
Coelho, 1980: 132).

73
John Cage

“O silêncio não existe. Sempre está alguma coisa acontecendo que produz
som.” Tal foi a conclusão a que chegou John Cage (Cage,1961:8), após tentar escutá-lo
no interior de uma câmara anecóica. Nessa cela que reduz a praticamente zero a
reverberação e a interferência sonora, Cage podia perceber dois sons nítidos: um grave
(o da circulação sangüínea) e um agudo (o sistema nervoso). O que significa que,
abstraída toda e qualquer fonte sonora, excluída toda e qualquer interferência, restam
sempre os sons do corpo, os sons que marcam o ritmo da vida; sons que, não isolados de
outros mais intensos, dificilmente podem ser percebidos. Ou, dizendo de outra maneira:
“A rigor, fisicamente e em termos absolutos, ele (o silêncio) não existe na biosfera (....)
O que chamamos costumeiramente de silêncio corresponde a uma infra-audição do
ruído” (Neves, 1984:13).

O valor conceitual de silêncio, aplicado à composição musical, é recente. Como


afirmamos anteriormente, tornou-se objeto de interesse de grande número de
compositores e artistas deste século, principalmente após a 2a. Guerra Mundial. Até o
final do século XIX, silêncio era sinônimo de ausência de som. Isto aparece até mesmo
nos métodos de solfejo: valores positivos (os sons, as notas) e valores negativos (as
pausas correspondentes). Isso não significa que o silêncio não tenha sido utilizado, em
outros tempos, como recurso altamente expressivo, como veremos adiante.

Então, o que é silêncio? Em primeiro lugar, não podemos falar de um silêncio,


mas de silêncios: silêncio na retórica, na psicanálise... Como vimos há pouco na pausa
necessária (2), silêncio hoje poderia ser caracterizado, em música, como ausência de
sons tradicionais ou, ainda, elemento estrutural na composição. Atuando como recurso
expressivo, causa tensão, em consequência de expectativa. Não se limita, portanto, à
antiga acepção de ausência de som. O conceito de silêncio, pois, expandiu-se, da mesma
forma como o de ruído.

Silêncio como recurso expressivo:

74
Sem avançar em maiores digressões teóricas - não pretendemos aqui estabelecer
um tratado sobre o silêncio - basta-nos, no momento, destacar que o silêncio como
recurso expressivo parece ter sido usado por toda a história da música. No caso da
música de concerto, guardaria as mesmas características gerais até o advento da técnica
dodecafônica, nas primeiras décadas deste século.

Resumidamente, poderíamos afirmar que a função mais conhecida e, de certa


forma, intuitivamente compreensível, é a de pontuação no fraseado. Isto parece claro em
praticamente toda música vocal escrita sobre textos verbais, sobretudo a música tonal,
onde o discurso lógico linguístico normalmente coincide com o discurso musical; e,
mais ainda, quando a prosódia do texto é respeitada (regra nem sempre observada), o
texto verbal integrado ao fraseado melódico.

A história da linguagem musical registrou ainda um outro gênero de silêncio


mais adequado à expressividade do discurso musical propriamente dito, recurso
eminentemente desenvolvido na música instrumental. Neste caso, representava o lapso
de tempo entre um som e outro e tinha, como função básica, separar os sons ou grupos
de sons um do outro, de modo a fazer com que suas relações entre si fossem realçadas.
Nesse sentido, a função do silêncio poderia estender-se à de elemento arquitetural: a
introdução ou interrupção do silêncio seria tanto para permitir a clareza numa estrutura
pré-determinada quanto o desenvolvimento orgânico de sua estrutura (Cage, 1961:22).

Percorrendo sumariamente a história do silêncio na música pré-dodecafônica,


poderíamos traçar o seguinte caminho:

No gregoriano, o silêncio visava um objetivo prático: o de não confundir o


fraseado litúrgico com a reverberação acústica dos claustros do mosteiro ou da capela,
pois, o que interessava nesse tipo música de era a compreensão da palavra, da
comunicação com o divino.

A partir da Renascença, o silêncio aparece deliberadamente como recurso


expressivo, encontrando seu lugar privilegiado nos madrigais, gênero vocal polifônico
que une estreitamente poesia e música. Silêncio como sussurro, as dimensões do piano
ao pianissimo; silêncio como pausa: cesura, breve respiração ou suspensão discreta no
interior do discurso; como fermata: interrupção às vezes abrupta, suspende o discurso
por um tempo indeterminado, gerando grande tensão expressiva, sobretudo quando se
trata da resolução de uma cadência... De modo que, ouvir a história do silêncio musical

75
significaria, antes de tudo, passar ao longo dos Livros de madrigais de Monteverdi, das
Partitas para violino desacompanhado de Bach, do Réquiem de Mozart, de todo
Beethoven, dos prelúdios de Chopin, dos poemas sinfônicos de Liszt, dos lieder de
Schubert e Schumann. Seria necessário reouvir as cadências não-resolvidas de Tristão...

Mahler encontrou na eloqüência do silêncio profundo uma força sem


precedentes. Quando ouvimos o coro final da sua oitava sinfonia - sub-titulada de Dos
Mil (1906-1907) - o sussurro do tutti em pianissimo do coro final acumula uma tensão
harmônica tal que não poderia se resolver de outro modo senão na grande cadência em
fortissimo, no tutti orquestral e o longo acorde com fermata. Seria preciso, após essa
obra, que surgisse Debussy, para que esta ordem fosse invertida.

Silêncio como construto:

O silêncio como valor musical parece ter surgido primeiramente com Debussy.
Em 1893, em uma carta ao compositor Ernest Chausson ele revelava, a propósito da 4a.
cena do 4o. ato de Pelléas: “Servi-me, espontaneamente, de um meio que me parece
bastante raro, ou seja, o silêncio (não ria), como meio de expressão e talvez a única
maneira de fazer valer a emoção de uma frase” (apud von der Weid, 1992:26).
Verifica-se aí o embrião do silêncio como valor musical que se desenvolveria em obras
posteriores, como La Mer. O silêncio, nesse contexto, a ser encarado como recurso que
favorece a clareza no colorido timbrístico e transparência na compreensibilidade tanto
do texto poético, quanto do fraseado musical, constitui algumas das preocupações
centrais da obra de Debussy. Essa preocupação já aparece nitidamente nas Chansons de
Bilitis (sobre poemas de Pierre Louys, compostas em 1897), onde a canção se afeiçoa
mais à declamação que ao bel canto.

Entretanto, é a ópera Pelléas et Mélisande, composta entre 1892 e 1902, que


implicará em mudanças mais radicais e profundas no código musical. Rompendo com a
ópera tradicional, ao se servir do recitativo, espécie de absorção do discurso falado à
melodia cantada, Debussy se servirá de outros recursos composicionais, tais como o

76
emprego de novas relações harmônicas estranhas à sua época, motivos melódicos
recorrentes, de modo a servir à palheta timbrística das vozes e dos instrumentos,
elementos que estruturam não somente a forma, como também engendram o conteúdo
dramático da obra (Moraes, 1983:105). As inovações de Debussy vão mais além: as
óperas de sua época consistem em tragédias em que, a maior parte das vezes, culmina
com uma morte trágica. Os personagens moribundos - quase sempre mulheres -
expressavam-se, via de regra, aos gritos. (Basta-nos, dentre tantos exemplos, lembrar de
Violeta, de La Traviata, de Verdi). A morte de Mélisande, protagonista feminina da
obra, morre em silêncio.

No entanto, a instituição do silêncio como elemento estrutural da música é


normalmente atribuída a Webern. Este parecer é reiterado por vários autores e
estudiosos em música, dentre os quais o compositor Pierre Boulez: “É no silêncio que
reside um dos escândalos mais irritantes da obra (de Webern). Uma das verdades mais
difíceis de pôr em evidência é que a música não é, de modo algum, apenas a ‘arte dos
sons’, mas que ela se define bem antes disso como um contraponto do som e do
silêncio” (apud von der Weid,1992:42). Em Webern, o silêncio se impõe como um
elemento primordial, indispensável para uma a elaboração de uma sonoridade renovada
que tinha, dentre outros objetivos, exonerar a escuta dos excessos herdados do
Romantismo em favor da nova estética serial49.

Ora, já é bastante conhecido que esta técnica surgiu, no âmbito da música de


concerto, como uma alternativa de rearticulação e renovação do código, dado o
esgotamento definitivo e inconteste das possibilidades do sistema tonal. É igualmente
bastante conhecido o fato de que dos compositores que empregaram a técnica serial,
Webern foi o mais radical até que Messiaen ampliasse a série para os valores, timbres e
ataques - veja-se Modo de valores e de intensidades (1951)50 e Boulez, formulasse,
décadas mais tarde, o serialismo integral.

49 Estética inaugurada por Schoenberg, em 1921 com o objetivo de eliminar da linguagem musical a
polarização e distensão, característicos da tonalidade. Para tanto, o primeiro princípio a ser seguido foi o
da série, ou seja, a distribuição das alturas (os 12 semitons da escala) de modo que cada uma delas só
pudesse ser repetida após a execução das outras 11. Daí o nome dodecafonismo - referência aos 12 sons
da escala. O desenvolvimento posterior do dodecafonismo foi o serialismo, técnica que estendia a série
não somente às alturas, mas também aos valores rítmicos, intensidades, modos de ataque. Compor
segundo essa técnica exige, da parte do compositor, um elevado rigor matemático.

50 O modo concebido por Messiaen agrupa 36 sons divididos em 3 séries dodecafônicas organizadas em
3 registros superpostos: 24 valores (durações), 12 ataques e 7 variações de intensidade (Paz, 1977: 342).

77
O que nos interessa em relação à música serial é o fato de que ela estabeleceu,
principalmente através da figura de Webern, uma nova idéia de tempo e espaço sonoros.
A serialização não somente das alturas, estendida às durações, isto é, aos valores
rítmicos, leva a música a uma nova dimensão, cuja origem estaria no conceito de espaço
da pintura concreta. Ao proceder desse modo, a composição imprime ao silêncio um
valor antes inusitado. Como afirma o compositor Juan Carlos Paz: “O ‘valor-som’,
condicionado ou dependente do ‘valor-silêncio’, recorre ao cálculo matemático puro, e
estabelece a forma e as normas de internas de uma composição, a base de um jogo e
uma integração desses valores puros em planos concretos, carentes de perspectiva”
(1977:343). A serialização dos valores rítmicos evoluiu para uma polifonia de durações.
Como conseqüência, não somente os valores-som, como os valores-silêncio passaram a
constituir matrizes da composição.

Dentro dessa perspectiva, o silêncio desponta como recurso bastante eficiente


para sua escritura instrumental atomizada, sintética, quase lacônica que lança mão de
recursos como pontilhismo, valores curtos, fragmentação da linha melódica, recursos
expressivos adequados ao tempo comprimido em que sua obra é concebida - “infra-
segundos de informação”, citando Augusto de Campos. A voz, tratada como um
instrumento, com saltos intervalares tão grandes como jamais houvera concebido o
canto tradicional, é acompanhada de timbres sutis, geralmente obtidos dos instrumentos
de corda em pianíssimo, tendência revelada anteriormente nos quartetos de Debussy e
Ravel (Paz,1977:153).

Destruindo radicalmente as relações de causa e efeito, em música, Webern


confere um novo sentido ao silêncio: “este não é mais a ruptura na continuidade da
evolução musical, mas colocado como ponto de partida de toda a ação musical; o
silêncio não sendo apenas um elemento negativo permitiu, dessa maneira, introduzir
um princípio de discontinuidade na linearidade temporal” (Bosseur, 1992:50).

No primeiro dos seus 31 opus, a Passacália, para grande orquestra, a


preocupação com o silêncio já se faz presente. Senão, evoquemos, a título de
esclarecimento, alguns dos procedimentos técnicos: a intensidade no limiar do
pianissimo, uso de surdinas, pizzicatto nas cordas, klangfabernmelodie (melodia de
timbres) exigindo, para ser percebida, clareza no acompanhamento; além das
convencionais indicações em idioma vernáculo e pausas. Sobre a estética weberniana, o
compositor Ernest Krenek fez um interessante comentário que, ao nosso ver, sintetiza a

78
sua obra: “Pela primeira vez em sua história, a música tornou-se tão despojada e
transparente que os seus elementos individuais pareciam flutuar, isolados, entre
apavorantes bolsas de ar de silêncio total” (apud Moraes, 1983:97).

Vários compositores importantes da atualidade, herdeiros da estética


weberniana, tomaram o silêncio como fundamento de sua criação artística, sem
necessariamente utilizar a técnica serial. São compositores que encontraram a
expressividade através das sonoridades que beiram o limite do inaudível. Para esses
compositores, a fraca intensidade possibilita a percepção de mudanças de timbres
complexos, o que é difícil em sons mais fortes (von der Weid, 1992:329). Dentre eles,
poderíamos destacar, Ligeti, Nono, Sciarrino. Percebemos na obra desses compositores
procedimentos diversos, cujo objetivo principal é a procura da expressividade do som
que beira o inaudível: o inaudível que reverbera discretamente no silêncio, incitando a
escuta focalizada sobre um mínimo de informação; a micropolifonia de uma textura
densa, em pianissimo, entrecortada por pausas.

Em resumo, podemos concluir que Webern inaugurou um novo tipo de música:


a música para ser escutada e não apenas para ser ouvida. Essa é, ao que tudo indica,
uma das preocupações centrais da história da música mais recente. Webern percebeu
que se a paisagem sonora urbana do nosso século proliferava em ruídos; que era preciso,
portanto, recuperar o silêncio, antes que ele se perdesse definitivamente. Talvez tenha
sido essa a maior lição que ele deixou para a posteridade. Além do mais - é preciso
destacar - a obra de Webern é contemporânea às duas grandes guerras mundiais. Para
superá-las, simbolicamente, seria necessário criar uma música anti-ruído; anti-morte,
portanto. Ou, ainda, quem sabe, dar voz ao silêncio dos mortos... Irônica e tragicamente,
Webern, que buscou incessantemente o silêncio, morreu, por engano com uma bala
disparada por um soldado americano, quando a guerra já havia terminado.

Como podemos perceber, o valor conceitual de silêncio, em música, sofreu


alguns abalos sísmicos de grande monta. Entretanto, o maior deles apareceria na década
de 1950, estremecendo não somente os conceitos de som e silêncio, como também os de
música e de arte. Essa reviravolta estrutural foi encabeçada por um nome tão conhecido
quanto polêmico, o do compositor norte-americano John Cage (1912-1992). Para
compreender melhor suas idéias e o contexto em que se inserem, vale a pena citar suas
palavras à letra:

79
“Se eu quero ‘a vida enquanto arte’, corro o risco de cair no estetismo, porque
tenho o ar de pretender impor alguma coisa, uma certa idéia da vida. Parece-me que a
música - ao menos tal como a encaro - não impõe nada. Ela pode ter como efeito
mudar nossa maneira de ver, fazer-nos olhar como sendo arte tudo que nos cerca. Mas
isso não é um fim! Eles são, simplesmente. Eles vivem. A música é esta vida dos sons,
esta participação dos sons na vida, que pode tornar-se - mas não voluntariamente -
uma participação da vida nos sons. Nela mesma, a música não nos obriga nada” (apud
Moraes, 1985: 48-49).

Antes de conhecer um pouco melhor o pensamento inquietante desse músico,


devemos situá-lo, mesmo que rapidamente: A década de 1960 inicia com atitudes
criativas de compositores que rompem com a quase ditadura do serialismo. Como
vimos, após a série dodecafônica (das alturas), uma boa parte dos compositores
importantes do pós-guerra vai se preocupar com a elaboração do serialismo integral o
que significa, no fim de contas, o esgotamento dos recursos oferecidos por essa técnica.
Compositores como Luciano Berio (1925), Iannis Xenakis (1922), Luigi Nono (1924-
1990) e Karlheinz Stockhausen (1928) procurarão novas saídas. Uma delas é a
indeterminação, que receberá o nome de música aleatória (álea, em grego, significa
acaso).

A introdução do fator acaso, em música, é normalmente atribuído a Cage. No


entanto, ele já estava, de certa forma, implícito no serialismo praticado por Boulez,
antes, portanto, da década de 1960. Quando um elemento é colocado à disposição da
manipulação numérica, o compositor perde o controle dos ínfimos detalhes de sua obra.
Também na música eletrônica, os compositores se deram conta de que os sons
complexos escapam à precisão absoluta, havendo sempre circunstâncias em que as
características do som só podem ser estabelecidas em termos de probabilidades
(Griffiths, 1987).

Sendo dessa maneira, esse tipo de música exige, incondicionalmente, o silêncio.


Se a determinação básica da obra é justamente o de não haver pré-determinação, tudo
poderá ocorrer, dentro dos limites de indeterminação pré-estipulados pela obra51. Assim,

51 Obviamente esta é uma apreciação um tanto grosseira que mereceria uma análise mais demorada. Os
níveis de aleatoriedade são tão numerosos quantas são as obras que a adotam. Entretanto, não entraremos
em detalhes no que se refere a esse problema. Existe uma margem de indeterminação quando a
composição se baseia no cálculo matemático ou cibernético, categoria que imprime à obra o desejo inicial

80
cria-se um outro silêncio, o silêncio do inesperado: o silêncio que nasce da sensação de
suspense e expectativa a que são induzidos tanto o intérprete (o músico) quanto o
ouvinte.

Após 4’33” (1952), de John Cage, o acaso é consumado de forma deliberada,


conferindo ao estatuto do silêncio uma mudança sem precedentes. Dilacerando a
hierarquia de música e de não-música, as cristalizadas oposições entre som musical /
ruído, ruído / silêncio viriam a sofrer um abalo estrutural. Para um maior
esclarecimento: Nessa obra, o músico (um instrumentista qualquer) delineia o gesto de
quem inicia a execução da peça. Este gesto, porém, mantém-se congelado, durante os
4’33” de duração da obra. O que ocorre, em última instância, é que o silêncio do músico
faz soar o silêncio do auditório, ou ainda os sons não-musicais (ruídos da platéia, do
exterior da sala).

Sob um outro ponto de vista (de escuta), essa peça representa a substituição da
produção sonora artificial - os sons produzidos pelo músico - pela natural, ou seja, a
paisagem sonora de fundo (Avron, 1978:124). Para Cage, os sons deveriam
simplesmente soar, sem se subjugarem à vontade do homem. Tais idéias parecem-nos
claras se atentarmos às palavras do próprio autor: “O compositor deve renunciar ao seu
desejo de controlar o som, retirar seu espírito da música e promover meios de
descoberta que permitam aos sons serem eles mesmos, ao invés de veículos de teorias
feitas pelo homem, ou expressão de sentimentos humanos” (apud Attali,1979:221).

Para Cage, compor música significa, então, escutar a natureza do som, isto
porque, segundo ele, qualquer som percebido pode ser tão interessante quanto uma peça
musical já composta. Em seu livro M. Writings ‘67 ‘72 Cage afirma que já em 1952
experimentava, com Morton Feldman (1926-1987), Christian Wolff (1934), Earle
Brown (1926) e David Tudor - a intitulada Escola de Nova Iorque - a criação de uma
música feita só de sons, livres de julgamento se eram ‘musicais’ ou não, sons livres de
memória e gostos, de relações fixas entre si (1972).

É dentro desse pensamento que se contextualiza e se insere uma grande parte da


obra de Cage. Composições com lance de dados, moedas, palitos de I-Ching justificam

do compositor. Num outro nível, a aleatoriedade é uma espécie de improvisação dirigida; aí, o intérprete
compartilha com o autor os resultados sonoros. Existe ainda um terceiro nível, aquele em que o
compositor não deixa nenhum registro por intermédio da notação musical, ou qualquer outra notação mais
específica. Desse modo, cabe ao intérprete realizar a obra. A autoria do compositor, nesse caso, reside no

81
a sua maneira zen-budista de encarar o mundo e, conseqüentemente, a música: a meta é
a despersonalização, o acaso e o modo de chegar a ele, pois, tanto na música como na
vida, todas as coisas são iguais, não havendo hierarquia. Dentro dessa perspectiva, Cage
é avesso a qualquer estética, como a qualquer julgamento de valor. Em suma, som
equivale a silêncio, a ruído ou a qualquer outra coisa.

Embora de características formais diametralmente opostas, encontramos na


música repetitiva uma espécie de descendência natural da música aleatória. Quando La
Monte Young estipula, na Composição no. 6 (1960), que “os executantes (em qualquer
número) se sentem no palco, olhem e escutem a platéia do mesmo modo que o público
olha e escuta habitualmente os executantes” , ou na Composição no.7 (1960) que um
intervalo de quinta seja mantido por um tempo indeterminado, ele não visa outra coisa
senão o rompimento com os hábitos adquiridos de espera, de surpresa ou variação de
efeitos sonoros (Avron, 1978131). Através do desenvolvimento gradual de elementos
mínimos - daí a denominação minimalismo - La Monte Young busca, assim como os
outros compositores que seguiram essa tendência (Terry Riley, Steve Reich e Philip
Glass) a transformação gradual e lenta através de variações minúsculas que se inserem
numa forma que se repete contínua e longamente.

Nesse sentido, a música repetitiva pede silêncio; silêncio que permita perceber
as sutis transformações pelas quais a forma primeira passa. Curiosamente, esse pólo
abissal de repetição contínua se entrecruza com seu extremo simétrico: a música serial,
demonstrando, como afirma Wisnik “(...) o fundo repetitivo e ao mesmo tempo
descentrado sobre o qual se move a música presente, e no qual se encontram as suas
formas mais opostas , dentre a diferenciação máxima e a indiferenciação” (1989:183).

Podemos, assim, concluir este capítulo com estas breves palavras. A música de
Webern, como vimos, pede silêncio para que as variações sutis e brevíssimas possam
ser expressas (e percebidas) como “um romance, num simples gesto; uma alegria, num
suspiro” - como um dia a sua obra se referiu a Schoenberg, isto é, dentro dos limites de
um tempo fugaz. Por sua vez, o silêncio que a música aleatória solicita visa, antes de
mais nada, situar o ouvinte no mar de virtualidades do acaso. Já a música repetitiva
necessita do silêncio de um tempo prolixamente longo para expor o ouvido à percepção
das variações, diluídas em formas infinitesimais.

projeto inicial. Esse problema será enfocado mais adiante, no quarto capítulo, razão que nos permite
limitar maiores exemplificações por aqui.

82
Ao longo destas páginas, vimos discorrendo sobre as transformações da
paisagem sonora deste século que já acena para o seu final. Pudemos, igualmente,
acompanhar algumas das transformações radicais transcorridas na paisagem da
linguagem musical. Ocupemo-nos, daqui por diante, das paisagens da voz, entre o ruído
e o silêncio.

83
Parte II: Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio

84
1. Corpo. (allegro moderato)

1.1. Locus voci

“Mas, desde já, lembremos que o ouvido surge como organizador essencial de todo o
mecanismo vocal. Sem ouvido, nada de canto.”
Alfred Tomatis

A experiência musical antecede o nascimento. Desde a vida intrauterina, o feto


tem sua iniciação - ainda que forma rudimentar - a alguns elementos fundamentais dessa
linguagem: certos ritmos, como batimentos cardíacos, frequências da voz que ressoam
no líquido amniótico. Aos 7 meses, o feto ouve e responde aos movimentos e estímulos
que sobrepujam a paisagem sonora intrauterina, através de movimentos. Contudo, os
ruídos externos são filtrados. Ainda no estágio fetal, a voz da mãe constrói a noção de
intervalo musical e consequentemente de espaço52: “a voz sobressai no ruído de fundo
intrauterino: a criança recebe por transmissão óssea mais baixa do espectro da voz da
mãe (parte que comportaria a frequência fundamental da voz). Essa voz poderia não
apenas ser ouvida, mas reconhecida entre outras devido à percepção do ritmo e da
entonação (em contrapartida, o timbre é bastante transformado pelas condições intra-
amnióticas)” (Castarède, 1991: 75).

Sabemos também que a emissão de um som vocal, qualquer que seja ele, põe em
vibração todo o nosso corpo - e não apenas o crânio e o tórax. Entretanto, a ressonância

52 Castarède endossa essa ideia e vai mais adiante: graças à audição o bebê estabelece, desde a vida fetal,
sua primeira ligação com o meio-ambiente. Trabalhos experimentais confirmados por outras formas de
conhecimento como a mitologia, a filosofia e psicanálise mostram que o espaço sonoro é o primeiro
espaço psíquico, antes mesmo do gesto e da mímica (Castarède, 1991:77). Embora a abordagem da voz (e
da audição) dentro das perspectivas da psicanálise e outras ciências não se enquadrem nas dimensões
deste trabalho, consideramos importante citar o depoimento da autora, fortemente apoiado por diversas

85
privilegia determinados pontos, que variam de acordo com o fonema e a altura
(frequências). Segundo o musicólogo Iegor Reznikoff, o feto consegue perceber as
vibrações que se situam na ossatura baixa da mãe, sendo capaz de distinguir não
somente a freqüência fundamental e sua quinta superior, como percebe os diferentes
pontos de ressonância.53

Para o recém-nascido, a voz da mãe é puro elemento de localização no mundo


circundante, antes e depois do nascimento. Esta voz, que constitui o primeiro elemento
sonoro de sua paisagem sonora doméstica conferirá ao bebê a capacidade de construir o
espaço físico e dele se apropriar, simbolicamente. Até esse momento, a audição parece
em nada diferir da animal, uma vez que exerce a função de alerta e defesa de sua
integridade física.

A voz da mãe desempenha, entretanto, um outro papel: se a memória auditiva do


bebê a conhece desde o estágio fetal54, o bebê recebe a voz da mãe como uma
identidade própria, inconfundível, inseparável. Essa impressão global soa nos ouvidos
do recém-nascido como pura música. Esta música estabelece o primeiro veio de
compreensão da linguagem verbal: o sentido captado na sua impressão geral, na sua
globalidade55. Em outros termos: a língua antes de ser recortada pela semântica56.

obras que cita, ao longo do seu trabalho, a fim de reiterar algumas das idéias que apresentaremos mais
adiante.

53 Iegor Reznikoff, L’universelle harmonie: trois études sur l’anthropologie et la consonance,


comunicação apresentada no ICMS-4 ( Fourth International Congres on Musical Signification). Paris, 13
de outubro de 1994. De acordo com Reznikoff, é o ouvido, quando percebe as as diferentes freqüências
sonoras (alturas) que constrói a noção de espaço no ser humano, e não o olho, ao contrário do que se tem
afirmado até agora.

54 A relação ouvido / voz vem sendo objeto de inúmeros estudos por parte do otorrinolaringologista e
foniatra Alfred Tomatis desde a década de 1950. Suas pesquisas revelam que as faculdades da audição
vão muito além do que se conhece nos meios acadêmicos: em pleno funcionamento desde a vida fetal, o
ouvido é responsável não somente pela audição propriamente dita e pelo equilíbrio, mas também pelo
aprendizado de línguas estrangeiras, assim como pelo canto.

55 O bebê balbucia a sua própria língua. Se, de acordo com as hipóteses de Chomsky, a predisposição
linguística é genética, é necessário um meio-ambiente linguístico para ativá-la. “Até os 6 meses o bebê
desenvolve um repertório de vocalizes que compreende todos os sons de todas as línguas humanas; de
outra parte, nos 6 meses seguintes, o bebê não produz sons além daqueles próprios à comunidade
linguística em que se encontra” (Castarède, 1991:74).

56Interessante é observar que em algumas patologias esse traço se mantém intato. Por exemplo, os
afásicos, seja do tipo receptivo ou global, incapazes de compreender a estrutura gramatical do discurso,
captam o sentido geral, graças à percepção de gestos, modulações da voz etc. (Sacks,1987:87).

86
À medida que a aprendizagem do código verbal se desenvolve, o caráter sonoro
da língua vai se tornando inconsciente, ou mesmo imperceptível, de modo que somente
situações não-eventuais podem resgatar novamente aquela impressão primeira da
língua: quando ouvimos um idioma estrangeiro desconhecido, a recitação de uma
poesia, ou mesmo uma peça musical onde a expressividade da voz é explorada de modo
incomum ou novo, “ a voz se desdobra, a voz desabrocha como voz” - para citar o
medievalista Paul Zumthor (1989).

Como podemos perceber, a música está presente desde os momentos primordiais


de nossas vidas. Dentre as linguagens sonoras, é a mais complexa que conhecemos. Tal
particularidade possibilita, em certa medida, que linguagens sonoras cuja gramática seja
menos desenvolvida tenham a música como referência teórica inicial, sobretudo quando
se tem em vista uma abordagem semiótica. Partindo desse pressuposto, podemos pensar
numa música da língua?

1.2. Música e verbo:

Atentemos, primeiramente, para as palavras de Mário de Andrade: “Mais do que


o significado especial das palavras, a entoação geral do idioma, a acentuação e o
modo de articular os vocábulos, o timbre das vozes é que representam os elementos
específicos da linguagem de cada povo” (Andrade, 1965:122). Tal afirmação parece
entrar em consonância com o pensamento de Bruno Kiefer, compositor e estudioso da
música: “Cada língua possui uma rítmica própria, uma rítmica geral, inconfundível
(...). Cada língua tem sua estrutura melódico-embrionária. Já existe nela, portanto, o
germe de uma música que expressa a alma do povo. É sintomático que, na antigüidade,
poesia e música eram inseparáveis.” (Kiefer,1987:44). A esta afirmação de Bruno
Kiefer, pode somar-se uma terceira, proferida pelo também compositor e músicólogo F.
B. Mâche57: “Cada língua contém, de fato, não somente uma musicalidade própria,

57 Estas afirmações foram proferidas por ocasião do simpósio Musique: Texte, promovido pelo IRCAM
(Paris), em 28 de janeiro de 1995. Mâche é criador de uma teoria ao mesmo tempo instigante e polêmica,

87
intuitivamente percebida por qualquer pessoa, mas também todo um sistema musical
potencial de sua fonética, sua agógica, sua entoação particular e, o trabalho do
compositor pode consistir em tornar explícita essa música latente.”

O que acabamos de observar representa, em última instância, a configuração dos


parâmetros básicos da linguagem musical. Através deles, podemos perceber as
características das diferentes línguas, falares regionais ou pessoais, estados emotivos
etc.

A fim de tornar mais clara esta exposição, citaremos alguns exemplos: o


parâmetro altura evidencia a inflexão melódica da frase (ascendência, descendência), o
registro vocal (os vários matizes entre o agudo e o grave); o timbre permite-nos
reconhecer as qualidades da voz (sexo, idade; emissão gutural, nasalada etc.); os modos
de ataque (maneira mais ou menos ligada de emitir o som) possibilitam perceber a
articulação fonética (clareza na pronúncia) e o contorno do fraseado, sob o aspecto da
textura; a intensidade controla as gradações de energia de emissão vocal, do sussurro
ao grito; a duração estabelece a maior ou menor brevidade na emissão do fonema, no
âmbito da palavra; da palavra, no âmbito da frase. Somem-se a estes referenciais muitos
outros, tais como andamento (a velocidade da fala), acento, pausa (silêncio) .

No entanto, música e língua são linguagens distintas. A música tem como única
referência concreta, como lei, a série harmônica; a língua é construída sobre signos já
existentes, convencionais. À luz da semiótica peirceana, a primeira é de predominância
icônica, enquanto a segunda é de predominância simbólica. Devido a essa característica,
é a música linguagem incapaz de expressar coisa alguma por si própria: seja uma
situação, um sentimento, um estado psicológico. Sobre isso é bastante conhecida a
afirmação de Stravinsky, que nos permitimos reproduzir aqui:

“Uma obra de um compositor é a corporificação dos seus sentimentos e, é


claro, pode ser considerada como expressando-os ou simbolizando-os - apesar de que a
consciência desse passo não diz respeito ao compositor. Mais importante é o fato de
que a composição é algo inteiramente novo para além do que pode ser chamado de os
sentimentos do compositor.(...) Uma peça musical é uma nova realidade. Em outro

dentro da qual música e língua têm uma origem comum, imersa no pensamento animal. Dentro dessa
perspectiva, a palavra é uma música especializada enquanto a música representa um pensamento geral. A
poesia se encontra num ponto de cruzamento entre os dois planos. É importante referenciar este autor,
pois trata-se de um dos maiores expoentes na atualidade que tem dentre seu centro de interesses, a
pesquisa da música vocal. Para isso, busca nas línguas antigas ou extintas material novo para suas obras.

88
nível, claro, uma peça musical pode ser ‘linda’, ‘religiosa’, ‘poética’, ‘doce’, ou tantos
outros adjetivos quantos ouvintes puderem encontrar para completá-los.”

Mas nesse momento não estaremos falando da música, mas tão-somente do


ouvinte, que poderá interpretar a música a sua maneira, de acordo com seu repertório
sígnico - ao qual acostumou denominar-se de visão de mundo, história de vida - ou
mesmo outras variantes como predisposição orgânica. “A expressão jamais foi a
propriedade imanente da música. (...) Se como é quase sempre o caso, a música parece
exprimir alguma coisa, é apenas uma ilusão e não uma realidade”. Este depoimento de
Stravinsky seria, anos mais tarde, sintetizado numa só frase: “A música expressa a si
mesma”. (Stravinsky apud Moraes, 1983: 183-185).

Há pouco afirmamos que o recorte semântico leva à perda da musicalidade


primordial da língua. “Para que a língua funcione como música, é necessário,
primeiramente, fazê-la soar e, então, fazer desses sons algo festivo e importante. À
medida que o som ganha vida, o sentido definha e morre” (Schafer, 1991:239-240). A
língua relega o caráter comunicativo, normativo, a expressivo. Estamos, pois, no
domínio da arte. Todavia, se música e língua não constituem um par de contrários,
inconciliáveis entre si, existe toda uma gama de gradações que permeia essas duas
linguagens. Senão vejamos o diagrama elaborado por Schafer, que cobre todos os
níveis, de um extremo polar ao outro:

MÁXIMO SIGNIFICADO

1. Estágio-fala deliberada, articulada, projetada

2. Fala familiar não-projetada, em forma de gíria, descuidada

3. Parlando fala levemente entoada, algumas vezes utilizada pelos


clérigos

4. Sprechgesang fala cantada (a curva de altura, duração e intensidade


assume posições relativamente fixas). Schoenberg
utilizava-se de trigramas para indicar sprechgesang.

89
5.Canção silábica uma nota para cada sílaba

6. Canção melismática mais que uma nota para cada sílaba. Na música do século
XVI sílabas únicas são freqüentemente abrandadas
através de toda a composição.

7. Vocábulos sons puros: vogais, consoantes, agregados ruidosos. canto


com a boca fechada, grito, riso, sussurro, gemido, assobio
etc..

8. Sons vocais manipulados pode-se alterá-los ou transformá-los completamente.


eletronicamente

MÁXIMO SOM
(Schafer, 1991: 240).

O painel que Schafer nos apresenta parece dar conta de todo e qualquer tipo de
proferição vocal. Entretanto, não podemos afirmar que o aparelho fonador seja
explorado na sua plenitude: acabamos por reduzir a quantidade de ruídos que podemos
emitir, a fim de reter somente aqueles que permitem uma melhor comunicação. Assim,
movimentos musculares da laringe e da respiração ou passam despercebidos ou são
mesmo desprezados (Rosolato, apud Escal:1979:20). Além disso, somem-se as
restrições perceptivas determinadas por uma modelização linguística que se inicia -
como vimos acima - na mais tenra idade.

A musicalidade de uma língua está atada, em maior ou menor grau, ao processo


de culturalização. No seu Ensaio Sobre a Origem das Línguas, J.J. Rousseau (1712-
1778) já levantava algumas considerações por certo instigantes 58. Tomemos suas
palavras à letra: Os sons simples saem naturalmente da garganta, permanecendo a boca
mais ou menos aberta. Mas as modificações da língua e do palato, que fazem a
articulação, exigem atenção e exercícios; não as conseguimos sem desejar fazê-las. (...)

58 Entretanto, suas hipóteses seriam contestadas por um contemporâneo seu, o violinista e filósofo
Michel-Paul-Guy de Chabanon (1730-1792), autor de Da música considerada pela música e suas relações
com a palavra, a língua, a poesia e o teatro (1785). Para ele, “(...) a música que desfigura as línguas,
conforme suas necessidades, sabe tornar em música qualquer língua” (apud Lévi-Strauss, 1993:98).

90
Em todas as línguas as exclamações mais vivas são inarticuladas. Os gritos e os
gemidos são vozes simples (Rousseau, 1978: 165).

Devemos esclarecer, neste momento, que a citação se insere no contexto do


pensamento naturalista, do qual Rousseau foi um dos expoentes. Segundo ele, num
passado remoto, o homem teria vivido em estado de natureza, onde música e palavra
constituiriam um todo indivisível, podendo o homem expressar suas paixões e
sentimentos plenamente: as línguas carregariam os acentos musicais, índices
vocalizados das paixões. O processo civilizatório, segundo o filósofo, teria acabado por
eliminá-los, conferindo à língua um caráter estritamente comunicativo. Por outro lado, a
música haveria perdido seu traço mais vital, orgânico, empobrecendo sua capacidade
expressiva. Tal hipótese o conduziu à extrema concepção de que certas línguas
serviriam para serem lidas e escritas (o francês, o alemão, o inglês, por exemplo),
enquanto outras, para serem cantadas (árabe, persa, italiano) (Fubini: 1971).

A ideia de língua enquanto portadora de uma musicalidade exclusiva teve como


consequência a formulação de uma nova hipótese: se a cada língua corresponde uma
musicalidade própria e as línguas são mais ou menos musicais entre si, então, seriam as
nações cuja língua soasse mais agradável ao ouvido (de acordo com o próprio
Rousseau) aquelas mais habilitadas a executar música 59.

Particularmente interessante é encontrar, num contexto histórico bastante


distinto, uma concepção bastante próxima à de Rousseau. É o que nos afirma, mais uma
vez M. Schafer: quanto mais civilizada a língua, tanto menor a quantidade de
exclamações e interjeições; mais plana é a curva melódica da fala. E por que isso ocorre
? Schafer explica esse fato a partir das conjecturas do linguista Otto Jespersen60: a
civilização avançada tenderia a moderar a paixão ou a expressão desta. Por conseguinte,

59 É conveniente ressaltar que o século XVIII foi palco de fervilhantes discusssões sobre a importância
da música enquanto forma de conhecimento. Se, de acordo com a filosofia cartesiana, a arte se
enquadrava num patamar inferior, a música deveria se situar no mais baixo deles, por não constituir
linguagem comunicativa (Fubini, 1971:16-17). Rameau, de sua parte, discordava radicalmente dessa
classificação, uma vez que reconhecia na música um caráter científico: a harmonia funda-se num
princípio natural (as leis matemáticas) e, portanto, racional e eterno. Pleiteava, assim, uma música para
ser compreendida e não apenas sentida (Fubini,1971:30-33).

60 Language: Its Nature, Development and Origin. Londres, 1959:419.

91
isto nos levaria igualmente a imaginar um homem primitivo de fala mais apaixonada
que a nossa, mais próxima do canto (Schafer,1991:235)61.

Entretanto, não nos parece possível estabelecer uma linha demarcatória clara e
nítida entre canto e entoação da fala: “ em povos como o chinês, por exemplo, cujo
idioma possui acento tônico semântico, ou como o persa e o árabe, cuja escala musical
se serve de quartos de tom ou medidas ainda menores como unidades de intervalo”
(Navarro Tomás, apud Tatit, 1982:32-33), o estabelecimento dos parâmetros carece de
precisão referencial. Em outros termos, para se efetuar uma classificação rigorosa, é
necessário verificar o seu sentido no âmbito de cada cultura, em particular62.

E a carne fez-se verbo...

Se este traçado tortuoso nos conduziu, até o momento, a uma reflexão sobre o
caráter musical da voz falada é oportuno, a partir deste momento, investigar o que
determina, em última instância, essa música, no próprio corpo do falante - uma vez que
o corpo reúne em si o executante e o meio de execução, simultaneamente.

Não são poucos os traços que constituem a voz, falada ou cantada. Dentre as
diversas abordagens que o passar dos anos vem nos legando, seja de ordem teórica ou
poética, é bastante frequente encontrar aproximações entre voz, língua (sobretudo
poesia) e música. Estas referências têm um fundamento interessante e nada fortuito,
pois, de fato, a música constitui um aspecto fundante na estrutura psico-fisiológica da
voz falada, tanto como da voz cantada.

De acordo com diversos estudiosos no assunto, dentre eles linguistas, fonólogos


e músicos, existe um elemento constante na enunciação vocal que determina uma
espécie de inflexão melódica ou variação de alturas, se optamos pela terminologia da

61 É importante lembrar que - como afirmamos anteriormente - a paisagem sonora sofreu mudanças
sensíveis, sobretudo nas cidades, onde o som em linha reta passou paulatinamente a orientar a audição e a
fala.

92
linguagem musical. Trata-se dos tonemas, traços entoativos localizáveis em
determinados pontos do discurso. A afirmação, a resignação e a constatação implicam
no movimento melódico descendente, enquanto contentamento, exclamação e surpresa
determinam o movimento melódico ascendente. É nessa medida que um ouvinte
ignorante de uma dada língua é capaz de captar algo da mensagem comunicativa, pois é
sensível à expressividade da enunciação (neste caso, o texto oral sempre prevalecerá
sobre o escrito).

De acordo com Tatit, autor de uma tese sobre a canção popular (1982) existe um
consenso entre diversos estudiosos no tema ao considerarem que o tonema descendente
seja utilizado por todas as culturas estudadas, quando da conclusão ou asseveração de
uma idéia. Isto coincide com o fato de haver uma distensão nas cordas vocais, no
momento em que a voz caminha para o grave (Tatit, 1986:33).

Observando o problema sob um outro ângulo, encontramos em Imberty (1979) o


relato pesquisas por ele realizadas no âmbito da psicologia experimental que lhe
permitiram concluir que “(...) a tensão ou, antes de mais nada, os esquemas de tensão e
relaxamento são constituídos a partir das representações psicomotoras e posturais,
sendo ligadas às emoções e sentimentos que as acompanham” (Imberty, 1979:137). Isto
vale dizer, nos termos da psicologia, que a entoação é motivada:

“Quando o tonema é descendente, ele implica numa mensagem fechada, não


pleiteando nenhum complemento ou resolução, portanto, ausência de espera e de
tensão; quando o tonema é ascendente, ele implica, ao contrário, numa mensagem
aberta, de preferência exclamativa ou de admiração, pressupondo, de qualquer
maneira, uma certa tensão psicológica” (Imberty, 1979: 143).

Ora, tais idéias fundam-se, a nosso ver, no conceito de propriocepção. Este


termo foi introduzido na neurologia por Sherrington, na década de 1890. Graças à
propriocepção, sentimos nossos corpos como pertencentes a nós mesmos. Oliver Sacks,
médico neurologista, define-a como “nosso sentido secreto, nosso sexto sentido -
aquele fluxo sensorial contínuo, mas inconsciente, das partes móveis do corpo
(músculos, tendões, articulações) pelo qual sua posição, tono e movimento são
continuamente monitorados e ajustados , porém de um modo oculto para nós, por ser
automático e inconsciente” ( Sacks, 1987: 51). Um pouco mais adiante, afirma o autor:

62 Uma exposição semelhante é desenvolvida por Zumthor (1989:128), conforme veremos mais adiante.

93
“A modulação da fala é normalmente proprioceptiva, governada por impulsos afluentes
de todos os órgãos vocais” (1987: 56). Isso nos leva a pensar que, muito possivelmente,
a enunciação e a entoação da fala são proprioceptivas. Assim sendo, poderíamos julgar
a voz cantada igualmente proprioceptiva?

De acordo com Imberty “(...) a expressividade da música cantada é percebida e


compreendida como uma transposição do sistema entoativo da linguagem verbal, e os
indivíduos fazem implicitamente referência a ela para ‘acompanhar’ o canto cujas
palavras não são compreendidas, mas que, pela própria presença destas, provoca
assimilações aos esquemas de tensões psicomotoras, na base das experiências
entoativas linguísticas. Essa compreensão parece independente do nível de educação
musical” (Imberty, 1979: 158).

Tatit, em sua obra citada anteriormente, atesta que: “Embora sempre com
suplemento emocional, a canção articula melodicamente as inflexões entoativas da
frase, à maneira de discurso lógico.” (Tatit, 1986: 40).

Resta-nos saber em que medida essa teoria pode ser aplicada, uma vez que os
exemplos apresentados por ambos os autores se referem à música tonal, escritas sobre
textos verbais. Porque a linguagem verbal é fundante, dada a sua sofisticação, ela
interfere nas semioses. Isto não significa, entretanto, que os outros códigos devam ser
carregados por ela. Partindo desse princípio, surgem algumas indagações, como por
exemplo: Até que ponto a aplicação dessa teoria poderia ser válida para a música não-
tonal? A canção sem palavras também se enquadraria nesse esquema? Caso afirmativo,
poderíamos conjeturar sobre a extensão desse conceito para toda e qualquer melodia
cantada (ou não)?

Para estas questões, nos parece, não existe, até o momento, uma teoria de
consenso nesse sentido, embora não seja pequeno o número de pesquisadores
investigando minuciosamente o problema 63. Assinalamos, todavia, nossa preocupação a
esse respeito.

63 Cf. D. Charles, R. Cogan, F. Escal, S. Hosokawa, J. J. Nattiez, N. Ruwet, entre muitos outros, além
dos autores citados ao longo do trabalho. Podemos ainda destacar as pesquisas realizadas por músicos,
como a cantora Cathy Berberian, L. Berio, L. Küpper, somente para citar alguns nomes.

94
1.3. Ritmicidades.

As aproximações entre corpo e música, como vimos, não são raras. De fato, é
bastante disseminada a idéia de que a música surge como uma espécie de transposição
metafórica dos ritmos corpóreos. Na verdade, as percepções rítmicas estão na base da
cultura.

Para o antropólogo Leroi-Gourhan, a sensibilidade da atividade visceral está


submetida aos ritmos: “A alternância dos tempos de sono e vigília, de digestão e
apetite, enfim todas as cadências fisiológicas constituem uma trama na qual inscrevem
toda a atividade” (Leroi- Gourhan, 1987: 88).

Estas idéias parecem dialogar com as de Ivan Bystrina, semioticista tcheco,


criador de uma teoria segundo a qual os processos comunicativos constituem códigos
que se estabelecem em níveis hierarquizados: 1) o hipo-lingüístico, responsável pelas
comunicações intra-orgânicas; 2) o lingüístico, que por sua vez, se edifica sobre o hipo-
lingüístico e, finalmente, 3) o hiper-lingüístico, que, em última instância, refere-se à
cultura. Explica Bystrina que essa superposição em camadas deve-se à sucessão do
surgimento filo-genético e histórico. Nesse sentido, a percepção dos ritmos intra-
orgânicos (vigília e sono, respiração etc.), bem como os do universo físico (os diferentes
ciclos da natureza) desempenham um papel fundamental na cultura humana. Desse
modo, a função das percepções rítmicas, movimentos rítmicos, sons rítmicos, fala
rítmica e a função dos ornamentos é, em última instância, a dissolução de tensões e
medos interiores, visando a reconstituição do equilíbrio psíquico (Baitello, 1991). É
necessário, entretanto, ressaltar: falar em recriação por intermédio único da percepção é
conclusão precipitada e simplista: estudos consistentes como o de Lenneberg 64 nos
levam a concluir que o corpo não é dotado de ritmos, mas de ritmicidades.

É sob esse ponto de vista que a música assume um papel importante. Ritmo e
emoção estariam, segundo Leroi-Gourhan, presentes mesmo nos primórdios da
humanidade, antes mesmo da codificação da língua: “As referências da sensibilidade
estética, no homem, têm como fonte a sensibilidade visceral e muscular profunda, a

64 LENNEBERG, (1967): Biological Foundations of Language New York: John Wiley.

95
sensibilidade dérmica, os sentidos olfato-gustativos, auditivos e visuais , enfim, a
imagem intelectual, reflexo simbólico do conjunto de tecidos de sensibilidade” (Leroi-
Gourhan, apud Castarède, 1991: 21).

Tomando por empréstimo as palavras de J. M. Wisnik : “A música traduz para a


nossa escala sensorial, através das vibrações perceptíveis e organizáveis das camadas
de ar, e contando com a ilusão do ouvido, mensagens sutis sobre a intimidade anímica
da matéria.(...) A música encarna uma espécie de infra-estrutura rítmica dos fenômenos
(de toda ordem). O ritmo está na base de todas as percepções, pontuadas sempre por
um ataque, um modo de entrada e saída, um fluxo de tensão / distensão, de carga e
descarga.” (Wisnik, 1989: 26).

No caso da música, poderíamos encontrar como expressão de ritmicidade


notadamente universal o uso de ritornellos : “O ritornello é o conteúdo propriamente
musical, o bloco de conteúdo próprio da música. O motivo do ritornello pode ser a
angústia, o medo, a alegria, o amor, o trabalho, a marcha, o território..., mas o
ritornello, é ele o conteúdo da música” (Deleuze e Guattari, apud Castarède, 1991:92).
Isto se deve ao fato de que o ritornello está presente, na vida, desde muito cedo. É um
elemento que está sempre se reafirmando, insistindo: Nos primeiros meses, é o refrão
que acalenta o sono do bebê, a repetição da fala da mãe, buscando copiar o seu modelo
de fala. A mãe, por sua vez, exercita a repetição no seu discurso, nos seus gestos (sinais,
movimentos de cabeça, olhares etc.).

O papel primordial da repetição é comunicativo e para tanto, se serve,


primordialmente, de repetições de motivos musicais, figuras essenciais das músicas do
mundo inteiro (Castarède, 1991:84). Não é de se estranhar que essa função seja
preenchida por formas representativas tais como a canção estrófica, o baixo ostinato ou
até mesmo o leitmotiv melódico, formas que atendem sobretudo a cultura de massa;
pois, na cultura de massa, a comunicação deve ser rápida e, portanto, o mais direta
possível. São os temas em baixo ostinato do Batman, da Pantera Cor-de-Rosa; é o
leitmotiv do 007, do Indiana Jones que pontuam a entrada em cena dos personagens ou
sua ação. Na propaganda (comercial, ideológica), na educação escolar, as canções
estróficas, normalmente escritas sobre textos rimados jogam no refrão a mensagem
principal, propositadamente intercalada. Constróem uma certa expectativa (a rima das
palavras, a resolução da cadência) que, através da repetição rítmica, apresenta uma
solução esperada (satisfatória).

96
A função rítmica assenta-se sobre um fundamento que a teoria da informação
explica objetivamente. Na relação originalidade / previsibilidade - que são os elementos
dosadores da informação transmitida de uma fonte (emissor) a um destinatário
(receptor) - a periodicidade tem uma função importante. Como ressalta Teixeira Coelho:
“A repetição de elementos significantes a intervalos ordenados (periodicidade) leva à
noção de ritmo, que por sua vez cria no receptor um estado de expectativa, condição
específica da previsibilidade. E quanto mais regular for o ritmo (repetição isócrona),
maior será a capacidade de previsão” (1980: 157).

1.4. Algumas desimportâncias.

As bases corporais que - em última instância determinam a musicalidade da voz


- são ainda mais amplas. Evidentemente, sua análise está longe de ser esgotada nas
dimensões deste estudo. Sendo assim, parece oportuno, neste momento, nos
debruçarmos sobre alguns elementos desimportantes, ou seja, aqueles elementos
importantes, muitas vezes discretos, porém propositadamente silenciados (Baitello,
1991). Mais precisamente, aqueles diretamente ligados à expressão estética da voz 65.
Como veremos no último capítulo, as desimportâncias podem, à luz de um compositor
atento, fornecer material substancioso para a composição (Son et lumière, Ópera aberta,
para citar algumas). Antes disso, observemos alguns exemplos bastante freqüentes.

A história da estética musical registra a ocorrência de procedimentos utilizados


simbolicamente como ornamentos, movimentos escalares descendentes (como, por
exemplo, os madrigalismos) quando da expressão da idéia de descida, perda de força;
contrariamente, o movimento ascendente quando da exaltação, subida - trate-se da
subida física ou psicológica, entre outros (Schafer, 1991:229-231). No caso particular da
música vocal sobre texto linguístico, em que normalmente ambos os textos se fundem, a
imitação entoativa da fala é incorporada na melodia , nossa sensibilidade pode exprimir-

97
se numa dimensão que ultrapassa a semântica verbal. Uma certa repetição de alguns
recursos expressivos, no entanto, têm sido bastante frequentes, ao longo dos anos, como
se houvesse se estabelecido uma certa universalização: temas como primavera, mulher,
pássaro têm-se traduzido, em música, pelo mesmo tipo de melisma ou arabesco
(Castarède,1991:92).

O surgimento desses signos simbólicos nos inclina a conjeturas, tais como:


teriam esses procedimentos, na sua origem mais remota, a propriocepção? Na
percepção intrauterina da ressonância dos intervalos, os mais graves soando em ponto
mais baixo da ossatura da mãe, e os agudos mais acima, como afirma Reznikoff? Ou
ainda: haveria algum tipo de relação entre a adoção das linhas melódicas ascendente ou
descendente e a simbologia da vertical, tão presente no universo da cultura humana?
Para melhor elucidar a pergunta, faz-se necessário abrir parênteses.

De acordo com alguns antropólogos conceituados, dentre os quais Mircea Eliade


e também outros estudiosos como Harry Pross, especialista em comunicação, é a altura
que simboliza a superioridade do homem, diferenciando-o do animal. Por isso, é signo
irresistível: estar no alto é dominar a horizontal66. Acima desta posição está o supremo
(Pross, 1989: 76-77). A posição superior determina a linha vertical, que, por sua vez,
divide em esquerdo e direito, criando um ponto de intersecção no horizonte: o local
sagrado. Assim temos, metaforicamente, todo um esquema de subdivisão e apropriação
do espaço físico pelo espaço simbólico.

A instituição do local sagrado cria, por conseguinte, a simbologia do centro:


quanto mais próximo do centro, mais próximo do sagrado e, por conseguinte, mais
próximo do poder (espiritual, político etc.)67, ou, em outras palavras: estar no palco
simboliza o ato de ocupar o centro mítico68 da sala de concerto. O palco representa o

65 Estão assim excluídos, em virtude da delimitação do estudo, uma abordagem que inclua a voz em suas
manifestações patológicas (loucura, por exemplo), muito embora constitua um campo fértil para análises
dentro do presente tema.

66 Lembremos que existe uma estreita associação metafórica entre a posição horizontal e a sepultura,
largamente estudada pela antropologia cultural.

67 Esse problema suscita uma discussão riquíssima que, por razões de delimitação não poderão aqui ser
abordadas. Gostaria apenas de apontar os escritos de Eliade (O mito do eterno retorno), Schafer (Le
Paysage Sonore) e Pross (Estructura Simbólica del Poder).

68 O centro mítico, centro do mundo parece presente tanto nas sociedades arcaicas como modernas:
campos esportivos, de guerra, praças etc.

98
centro mítico do ritual do concerto. No caso da execução de uma obra sacra, essa
posição pode até fazer as vezes do papel realizado simbolicamente pelo sacerdote.
Elementos enfatizadores, como recursos cênicos, efeitos de iluminação podem, em
grande medida, exercer papel fundamental na performance da obra como um todo69.

Citamos apenas alguns casos em que as desimportâncias podem ocorrer, com


maior ou menor frequência. Essas desimportâncias podem variar de acordo com a
cultura em questão, estética vigente, autor ou mesmo apresentar particularidades de uma
obra para outra. O quarto capítulo apresentará, a partir de exemplos da obra de Gilberto
Mendes, algumas desimportâncias in loco.

2. Performance (andante cantabile)

2.1. A performance da voz cantada

“A palavra sugere ao pensamento uma emoção que age sobre o corpo. E o


corpo ajuda a voz a encontrar a cor do som...”

Cathy Berberian

O medievalista-poeta Paul Zumthor (1912-1995) assim qualifica a voz: “A voz é


uma forma arquetípica no inconsciente humano, imagem primordial e criadora,

69 Um exemplo interessante, nesse sentido, encontra-se no Réquiem (1981), de Gil Nuno Vaz para coro
misto e declamador. A obra intercala seções cantadas e declamadas. À medida que a parte coral vai,
pouco a pouco inserindo ruídos na melodia do texto litúrgico, a declamada elimina as consoantes (ruídos)
do excerto do poema Transubstanciação, de Raul de Leoni. Na sua última seção (penúltima da peça) o
declamador entoa apenas vogais; na última seção (última da obra), coral pronuncia apenas consoantes e
pausas. O efeito da performance salienta-se uma vez que, além dos recursos expressivos cênicos e de
iluminação, o próprio tema, de cunho religioso incita a essa ênfase expressiva.

99
energia e configuração de traços que predispõem as pessoas a certas experiências,
sentimentos e pensamentos. (...) Através da voz, a palavra se torna algo exibido e
doado, virtualmente erotizado, e também um ato de agressão, uma vontade de
conquistar o outro, que a ela se submete, pelo prazer de ouvir” (1985:7-8). A voz é,
portanto, mais do que as palavras que são pronunciadas, mais que a qualidade do som
que sai da boca; é o corpo inteiro, caixa de ressonância que fala, emanando energia.

Primeiramente, tratar da expressão da voz supõe igualmente tratar da sua


execução. A voz humana é o único instrumento que se caracteriza por reunir num
mesmo corpo executante e meio de execução - seja do cantor, do ator, do contador de
histórias. Por essa razão, todos os elementos que concorrem à execução de uma obra
oral (encenação, ritmo, jogo da voz etc.) desempenham um papel importante. É
precisamente aí que se destaca o papel do corpo: “O que quer que evoque, por meios
lingüísticos, o texto dito ou cantado, a performance lhe impõe um referente global que é
da ordem do corpo. É pelo corpo que nós somos tempo e lugar: a voz o proclama,
emanação de nós.” (Zumthor, 1983: 149).

Ao mencionar o termo performance, Zumthor, enuncia, na verdade, um


conceito, muito caro à sua teoria da oralidade: performance define-se como “a ação
complexa pela qual a mensagem poética é simultaneamente transmitida e percebida,
aqui e agora” (Zumthor, 1983:32 ).

Ora, a combinação destes elementos (gesto, entoação da voz etc.) não se dá de


forma aleatória. Ao lançar mão desses recursos, o cantor / ator / contador estabelece, na
verdade, uma situação comunicativa que põe em ação interpretação, texto e ouvinte, o
que quer dizer, o emissor necessita da resposta do receptor, ou seja, o ouvinte exerce
função ativa que é indispensável na performance. Isto porque o ouvinte recria, de
acordo com seu repertório particular, o universo significativo que lhe é transmitido pelo
executante. Frisando a idéia, podemos mesmo afirmar que é justamente a participação
ativa do ouvinte um dos determinantes fundamentais da performance do executante.
Senão tomemos, a título de ilustração, alguns exemplos, muito embora extrapolem os
limites que nos propusemos abordar neste trabalho:

Tomando as ideias de Zumthor à letra, é necessário considerarmos inicialmente


um leque de níveis em que a performance é possível. Nesse caso, temos uma imensa
gama que inclui o teatro, as duplas de repentistas, o teatro de marionetes, o discurso de
palanque, a conferência científica, o show de rock, a ópera entre muitos outros - e, neste

100
caso, ainda nos restringimos a uma pequena amostragem que inclui apenas a viva voz,
natural ou mediatizada tecnicamente 70. Em todos esses exemplos, sabemos que o papel
da plateia é essencial. Sua interferência varia de acordo não somente com o intérprete,
como também com a própria natureza da obra a ser executada. Além disso, é oportuno
salientar que alguns fatores, como grau de abertura da obra, possibilidade de
improvisação, por exemplo, também estão envolvidos.

Voltando a nossa atenção para a oralidade mediatizada, a seguinte indagação


pode ser feita: se a presença física é eliminada, fica igualmente suprimida a
performance? Para Zumthor, a ausência da presença física e, consequentemente, do
peso, do volume do corpo é provavelmente a única dimensão da performance que
desaparece na mediatização técnica. Nesse sentido, deparamos com uma nova
modalidade de performance: a performance mediatizada, dispensando a presença física
do executante, separa o tempo de execução ao vivo do tempo de execução da
mediatização técnica. Nesse sentido, a mediatização técnica não pode encontrar
exemplo mais claro e perfeito que o disco (Zumthor, 1985:8). Em suma, o problema da
mediatização técnica diz respeito às particularidades da esquizofonia, comentada
largamente no Interlúdio deste texto.

Dado que a ação do executante é pontuada - em maior ou menor grau - ou


mesmo referenciada pela receptividade do ouvinte / espectador, é fácil de se
compreender o interesse de um ouvinte acompanhar com entusiasmo a narração de uma
história cujo enredo já conhece de antemão. São os casos bastante frequentes da criança
que pede para que alguém lhe conte uma história que já conhece de cor ou do adulto que
pede para alguém repetir uma piada. O diálogo mantido entre ambos pode, à medida que
o texto permite71, acarretar mudanças sensíveis na sua concepção geral da obra,
sobretudo nas obras em que não há registro oral72.

70 Zumthor distingue quatro níveis de oralidade: a primária, aquela que não mantém qualquer vínculo
com a escrita; a secundária, da qual a escrita é precedente, a oralidade se recompondo a partir dela; a
mista, que possibilita a coexistência de oralidade e escrita, porém a influência da segunda sobre a
primeira é “parcial, lenta e de efeito lento” e, por último, a mediatizada, a oralidade mediatizada
tecnicamente pelo rádio, televisão, discos etc.(Zumthor, 1985). Traçar uma combinação que tente
percorrer todos os níveis em que a oralidade é possível, através dos mais diferentes meios e linguagens
(teatro, música, cinema etc.) constituiria um inventário interminável, impossível de ser desenvolvido aqui.
No entanto, é particularmente interessante constatar que as paisagens da oralidade se ampliaram, talvez
não em quantidade, mas certamente em qualidade.

71 Considere-se que a obra pode ser inteiramente oral, como escrita. Tanto num caso como no outro, a
constituição mais rígida ou flexível da obra, pode permitir a improvisação, ou outras intervenções, de

101
Podemos então concluir que, longe de atuar como um mero acessório
circunstancial, a performance tem a faculdade de determinar outros elementos formais,
a ponto de, em certos casos, estabelecer a criação de um novo texto, isto porque a
função da voz ultrapassa de longe a comunicação linguística. Antes disso, poderíamos
dizer - tornando nossas as palavras de Zumthor - que “a língua transita por ela, voz,
cuja existência física se impõe a nós com a força de choque de um objeto material”
(1985:7).

Apesar de Zumthor remeter-se à poesia oral, acreditamos que esse mesmo


pensamento possa ser, analogicamente, aplicado à música escrita (partitura) e à sua
execução73, sobretudo naquelas em que o compositor deixou poucas indicações - seja a
música mais antiga (em que as partituras não apresentam, por diversas razões,
especificações rígidas), seja a música que despontou a partir da década de 1960, em que
muitas vezes não existe uma partitura convencional, mas as instruções expressas pelo
compositor (bula)

Teatro musical

modo a produzir modificações substanciais no texto original. No entanto, não podemos esquecer de
algumas exceções importantes. No âmbito daquilo que nos interessa mais diretamente, devemos salientar
que a música eletrônica, embora desempenhe uma performance, trata-se de um tipo diferenciado: o
intérprete são as caixas acústicas, geralmente colocadas no palco e, muitas vezes, em outros pontos da
sala de audição. A retroalimentação (para utilizar um termo da teoria da comunicação) não ocorre nesse
momento, a não ser que se considere a possibilidade de interação com a própria obra.

72 Dentre as muitas diferenças que existem entre a cultura oral e a escrita, há um aspecto importante para
o qual chama a atenção Zumthor que nos permitimos citar textualmente: “No universo da cultura oral, o
homem mantém contato direto com os ciclos da natureza, interioriza sua experiência da história, sem
contudo conceitualizá-la, concebe o tempo segundo esquemas circulares de perpétuo retorno e, por isso
mesmo suas ações são inevitavelmente determinadas pelas normas do grupo. Já o uso da escrita implica
na disjunção entre pensamento e ação, certa abstração que enfraquece o próprio poder da língua, a
predominância de uma forma linear de tempo, além de individualismo, racionalidade e burocracia” (1985:
4-5). Refletindo sobre essas considerações, podemos concluir que textos orais dirigidos a um grupo que
vive na sociedade oral têm resposta diferente daquela apresentada por um público letrado. A discrepância
de repertórios entre um e outro grupo tem raízes, portanto, na forma de pensamento, subjacente a cada
uma dessas culturas.

73 Evidentemente, não é preciso traçar uma generalização desmedida. Há de se convir, por exemplo, que
uma boa parte da música composta no século XX se esforça por apresentar uma partitura completa.
Compositores como Bartók preocuparam-se com a notação o mais detalhada possível (modos de ataque,
duração total da peça etc.) de modo a indicar rigorosamente a interpretação desejada. O problema da
performance apresenta outras particularidades que, neste momento não poderão ser avaliadas: é o caso,
por exemplo, da música eletrônica, onde a realização da obra é a sua própria execução, ou seja, não existe
a escritura do texto musical sobre um meio material (partitura) para depois ser lido e executado por um

102
Postas estas considerações de Zumthor, dirijamo-nos, neste momento, para um
outro tipo particular de performance, o teatro musical, concebido originalmente pelo
compositor Maurício Kagel (1931). Antes de tecer considerações sobre ela, convém-
nos, primeiramente, definir o que é teatro musical contemporâneo:

A noção de teatro musical parece ter tido início na década de 1950. Desde então,
vêm despontando variadas vertentes dessa concepção artística que tenta fundir, sob os
mais diferentes aspectos, teatro e música - se bem que, tal projeto já era praticado por
Wagner no final do século passado, quando elaborou a sua gesamtkunstwerk (obra de
arte total). Ação de luz e som, de Xennakis, ação musical, de Berio, teatro do corpo, de
Ferneyhough etc. surgem no âmbito dessa perspectiva.

Num sentido geral, o teatro musical nasce do desejo, por parte dos compositores,
de trazer o referencial da ação cênica para a música, no momento em que se dão conta -
como sucedeu com Maurício Kagel - das possibilidades expressivas do gesto, da ação
musical - da performance, enfim. Para dar uma idéia mais clara do que dizemos,
tomemos como exemplo a execução de um concerto para violino do período romântico.
Observando com atenção, verificaremos que, desde o erguer as baquetas do timpanista,
situado no fundo do palco, os mínimos movimentos de arco do violino solista, os gestos
do maestro expressam um movimento cênico, isto é, a ação cênica que caracteriza a
performance musical. Uma performance dessa natureza desempenha uma função
expressiva muito intensa.

Partindo dessa idéia, Kagel criou aquilo que denominou teatro musical, gênero
bastante freqüente em suas obras. “O teatro começa no momento em que um indivíduo
está consciente da intensidade da sua experiência no tempo, e que essa intensidade é
exprimível para ele; nesse momento preciso, o lado privado da experiência é traduzida
em comunicação cênica” (Kagel, 1983: 127).

A origem da capacidade cênica dos músicos remonta à própria história da


teatralidade imposta pelo gesto, o ato de tocar o instrumento. Contudo, isto só pôde
verificar-se, consolidando-se como verdade, a partir do momento em que, no final do

músico. Na música eletrônica o trabalho realizado pelo compositor já é a própria obra, realizada na fita
magnética, sem a intermediação de um intérprete (o músico).

103
século passado, começaram a ser divulgados estudos sobre doenças exclusivas aos
músicos (Kagel,1983: 131).

Esta teatralidade, já pode estar presente, entretanto, no interior da própria


partitura. Assim o provam compositores como Beethoven e Liszt: “Eles constroem um
estado religioso acústico e fazem, assim, um gênero teatral de seu misticismo pois,
fundamentalmente, uma experiência religiosa não necessita de uma comunicação
pública” (Kagel, 1983:126). Temos aí, portanto, um outro nível de performance, ainda
que em estado latente.

Tecnicamente falando, o teatro musical pode ser encarado de maneiras distintas:


como teatro musical e como teatro instrumental. Àquilo que Kagel normalmente
designa sob o título de teatro musical refere-se, via de regra, à música vocal,
principalmente à ópera, enquanto o teatro instrumental, como o próprio nome sugere,
refere-se à performance do músico instrumentista. Essa diferenciação entre ambos
justifica-se à medida que, apesar de partirem de princípios semelhantes, apresentam
formas diversas de comunicação, ou seja: exige-se do cantor uma adaptação física que
se condiciona não somente à sua capacidade física, ao domínio técnico, assim como a
adaptação a um papel; no caso da música instrumental, exige-se tão somente uma
acomodação, um desembaraço físico do músico em relação ao seu instrumento.

Retomando o início do parágrafo anterior, dizíamos que ambas as formas de


teatro musical74 compartilham de características comuns. Em primeiro lugar, devemos
ter claro que, diferentemente da obra cuja performance se realiza de forma mediatizada
pela técnica, a performance em uma sala de concerto conta com a participação do
elemento visual: um concerto é também para ser lido com os olhos. Partindo desse
pressuposto fundamental, podemos citar, sumariamente, alguns procedimentos comuns
ao teatro musical, seja ele instrumental ou vocal:

- o palco do teatro musical é diferente do palco do teatro tradicionalmente


concebido como tal: não possui cenário, iluminação especial ou qualquer elemento além
do espaço vazio; cabe ao músico, então, criar a vida cênica de sua performance. Ou
ainda:

74 Embora nos escritos de Kagel que consultamos não conste uma classificação que estipule uma
classificação entre as variantes do teatro musical - seja o teatro instrumental, seja o teatro vocal -
acreditamos que esta denominação possa ser analogicamente aplicada, quando tratarmos da performance
da música vocal por excelência.

104
- o movimento é o elemento de base, fazendo parte da composição musical; é
justamente o movimento que distingue uma obra de teatro musical de qualquer outra
(criando uma dimensão entre espaço musical e espaço real. Em suma, o teatro musical
se apropria, através do gesto, de um elemento muito caro à música contemporânea: o
espaço físico, o que significa, de certo modo, a ampliação do horizonte da música
(instrumental, sobretudo) para o domínio do campo visual.

Concluindo, o teatro musical contemporâneo pode ser entendido assim:

“Ele é um desdobramento da ópera e do teatro moderno. Ao mesmo tempo em


que remete ao passado longínquo da expressão humana, tem sido o espaço privilegiado
para a inclusão de todo o tipo de experimentação e inovação técnica. Sua constante
transformação exige o mesmo de criadores, performers e técnicos. Para o compositor,
por exemplo, são necessários conhecimentos nas áreas de estrutura textual, de
encenação (que se desdobra em diferentes campos como a cenografia, figurinos,
iluminação etc.), de movimento, de dança e de técnicas específicas relacionadas ao
performer, seja ele cantor, instrumentista, dançarino ou a combinação de todas essas
linguagens. Acrescentam-se, ainda, as possibilidades de manipulação de imagens
projetadas ou em movimento, como o vídeo, o cinema e a holografia” (Tragtenberg,
1991:75-76).

Este conjunto de características nos levam a concluir que o teatro musical


contemporâneo seja, talvez, o gênero mais complexo que reúna, simultaneamente, a
maior quantidade de linguagens (artísticas, acima de tudo), se considerarmos a
apresentação de uma obra ao vivo, com a presença física de executantes e plateia
portanto. O cinema, a outra linguagem artística que compartilha com o teatro musical a
possibilidade de abarcar, numa mesma obra, várias linguagens simultaneamente, não
conta com a presença física de quem produz a performance.

Encerramos nossas considerações por aqui, para retomarmos novamente no


quarto capítulo, quando tomaremos um exemplo concreto: Son et lumière e Ópera
aberta, de Gilberto Mendes.

2.2. O corpo cantante.

105
Como vimos há pouco, a performance de um texto oral, seja qual for sua
origem, envolve diversos fatores. Sua análise pleiteia, por esse motivo, uma abordagem
individualizada e atenta de cada linguagem oral em particular. Entretanto, não é esse o
tema a que dirigimos nossas atenções. Interessa-nos, sobretudo, investigar a voz
cantada. Voltemos, então nossa atenção para as vozes da voz, compreendidas no âmbito
da linguagem musical.

Ao enunciarmos a expressão voz musical, um sem-número de exemplos vêm à


tona de imediato: de Caruso a João Gilberto, de Mick Jagger aos corais femininos
tradicionais da Bulgária... Se os traços que determinam uma voz-padrão variam de
acordo com a estética de cada época, cultura, entre outros aspectos, existe, em
contrapartida, um referencial praticamente invariável. Referimo-nos aos fundamentos
psico-fisiológicos e acústicos da emissão, ou em outros termos: como se canta. É sobre
isso que vamos tratar agora.

Aprendemos a cantar imitando. Ouvindo e vendo: o ato de cantar atividade


espontânea e natural é, longe do que possa aparentar à primeira vista, bastante
complexo. Envolve uma percepção e coordenação simultânea de postura, gesto,
respiração, escuta e emissão.

A voz não se apóia em nenhum outro instrumento. Aliás, desde os primórdios da


música ela se configura como o primeiro instrumento musical, servindo de referência
para os outros que lhe sucederam. “‘É o gesto vocal que dá o seu conteúdo mais
profundo à música: ele é o próprio ideal da música instrumental” (Rousseau, apud
Castarède, 1991:250). Na música barroca, por exemplo, os métodos de flauta, violino e
cravo buscavam uma imitação do fraseado, ritmo da voz cantada.

Por outro lado, o instrumento voz não dispõe, a princípio, de referências


externas a ela. Se nos dias de hoje existem aparelhos capazes de registrar os sons que
produz ou ainda os processos pelos quais produz os sons, trata-se de um instrumento
embutido no próprio organismo, não dispondo de teclas, chaves, trastes ou qualquer
outro elemento de localização. Cantar uma determinada freqüência significa, antes de
tudo, ouvi-la mentalmente75. Ao fazê-lo, nosso corpo - especialmente o aparelho

106
fonador - se predispõe para que o som mentalizado (e não outro) seja emitido. Aprender
a emitir a voz corretamente - a impostação - exige não somente a observação direta de
um modelo, como também a elaboração de uma série de metáforas ou aproximações
icônicas76.

A arte do canto pode-se dizer, fundamenta-se num paradoxo: ao mesmo tempo


em que se baseia na recuperação do natural, embotado pela culturalização77 - respiração,
relaxamento, ressonância, articulação, refinamento da audição etc. - é altamente
sofisticada, pois todos os processos devem ser tecnicamente dominados, de modo a
garantirem um resultado homogêneo e estável78. É esse domínio técnico, a virtuosidade,
que cria uma ilusão de facilidade na execução. Um cantor que domina tecnicamente sua
voz, parece brincar com ela. (E não é esse o verbo que algumas línguas utilizam, como
o inglês - to play- e o francês - jouer- por exemplo, quando se fala em executar uma
peça musical?) Se isso acontece, é porque o corpo todo está indissociavelmente
integrado na performance da música. É sobre isso mais particularmente que
discorreremos a seguir, deixando de lado uma desnecessária descrição dos métodos de
canto ou até a descrição pormenorizada do funcionamento do aparelho fonador.

O princípio do canto é a respiração: o controle da entrada e saída do ar. “Se a


respiração é mal colocada ou inibida, ela perturba o metabolismo, paralisa o

75 Isso não significa que o cantor possa ouvir sua própria voz realmente. Em determinadas situações, o
mecanismo de projeção (acústica) da voz não permite o cantor de ouvi-la, de fato. De qualquer modo, a
emissão vocal depende, antes de tudo, mais do ouvido que da laringe. Tal o prova os estudos realizados
pelo otorrinolaringologista e pesquisador Alfred Tomatis (1987; 1991).

76 Aqui , referimo-nos ao conceito elaborado por C. S. Peirce: um signo icônico representa seu objeto por
semelhança: 1- uma imagem, apresentando semelhança à qualidade da aparência do objeto que a imagem
representa; 2- um diagrama, representando relação das partes com o objeto, usando semelhanças análogas
com suas próprias partes; 3- metáfora: justaposição de dois ou mais signos, fazendo surgir relação de
semelhança entre elas. “O objeto do ícone, portanto, é sempre uma simples possibilidade, isto é, a
possibilidade do efeito de impressão que ele está apto a produzir ao exercitar nossos sentidos”. Por não
representar, senão formas e sentimentos, o ícone possui alto poder de sugestão. “É por isso que o
interpretante é uma mera possibilidade (qualidade ou impressão) ou, no máximo, no nível do raciocínio,
um rema, isto é, conjectura ou hipótese” (Santaella, 1985:83-84).

77 O ciclo respiratório, manifestação vital, perdeu sua espontaneidade, sendo observável apenas nos
bebês e, após algum tempo de vida, durante o sono. É inquietante observar que a respiração natural tem
sido forjada para o tórax, mesmo quando em posição deitada. Esse tipo de respiração presente em
algumas técnicas de canto tem aparecido com frequência em muitos métodos modernosos de ginástica.
Muito comum no treinamento militar, recebeu a conotação de virilidade. Teria essa ideia origem numa
possível associação metafórica entre o binômio armadura/ valentia ? Lançamos a hipótese para um
possível interessado em estudar o problema.

78 A fonoaudiologia prescreve os seguintes parâmetros da psicodinâmica vocal: respiração, altura,


extensão, intensidade, ressonância, articulação, velocidade e ritmo (Behlau e Pontes: 1988).

107
movimento, bloqueia a relação entre alto e baixo do corpo privando-o, assim, duma
comunicação real com a riqueza criativa do nosso inconsciente” (Hoppenot, apud
Castarède, 1991:110). A voz é, então, o resultado do equilíbrio entre a força do ar que
sai dos pulmões e a força muscular da laringe. Se houver desequilíbrio entre esse jogo
de forças, a voz estará sujeita a problemas patológicos.79

Na respiração abdominal (e não apenas diafragmática), o movimento da


inspiração une, sem ruptura de ritmo, o abaixamento do diafragma e da musculatura do
baixo-ventre e o afastamento do último par de costelas, móveis, aumentando a
capacidade de armazenamento de ar da caixa torácica. Este modo de respiração
possibilita um total relaxamento da musculatura do pescoço, permitindo à laringe sem
esforço desempenhar seu papel.

Do ponto de vista psicológico, esse tipo de respiração possibilita uma


comunicação entre a cabeça e o tronco, favorecendo a continuidade entre as partes.
Como podemos observar com bastante frequência, essa intercomunicação não se dá em
muitas pessoas (incluímos outros profissionais que necessitam do fôlego como atores,
oradores, esportistas etc.) que repartem o seu corpo em dois blocos, em uma a parte
inferior (sexual, digestiva, animal) e outra superior (cerebral, espiritual, social).
(Castarède,1991:110).

O ato respiratório põe em funcionamento a coluna de ar que percorre o tronco


até o nariz, ressoando até a cabeça, sem limite entre alto e baixo. E quando um som é
emitido, o corpo todo participa do gesto vocal. Se a demanda de energia é maior, “(...)
sentimos os músculos das coxas, das pernas e mesmo da planta dos pés, contra o solo
entrar em jogo. Cessada a emissão sonora, a corrente de energia desaparece 80”
(Pierlot, 1983:21).

79 A fonoaudiologia prescreve que o fluxo excessivo de ar resulta numa voz soprosa, enquanto que a
força muscular da laringe comprime o ar, tendo como consequência uma voz tensa (Behlau, e Pontes,
1988). No entanto, observamos que a cultura - principalmente a de massas - pouco se preocupa com a
saúde vocal. Basta-nos lembrar que as vozes vaporosas, sobretudo as femininas, emitidas na região grave,
são valorizadas por sugerirem sensualidade. As vozes forçadas, que mostram visivelmente a tensão
muscular do pescoço, também são aceitas com entusiasmo, principalmente as vozes masculinas que
procuram exprimir dureza de caráter e virilidade. Existe, para ambos os casos citados, melhores exemplos
que as canções gravadas por Marylin Monroe e a narração dos programas (radiofônicos ou televisivos) de
Gil Gomes? Estes são apenas dois casos, escolhidos a dedo, num universo vastíssimo.

80 Dentre os estudos relativos realizados a respeito da ressonância da voz, encontramos uma teoria no
campo da psicofonia, no mínimo curiosa. Associando as regiões de ressonância vocal às quatro oitavas do
esqueleto, estipuladas pela acupuntura (cabeça, tórax, bacia e pernas), tal teoria procura provar que a zona

108
No canto, o corpo é atravessado pela energia, pelo sopro da vida. Seu papel é o
de mediador, caixa de ressonância, passagem. As cordas ou, melhor dizendo, pregas
vocais81, exercem um papel quase passivo: recorrendo a uma analogia, poderíamos dizer
que elas se mantêm estendidas, tal qual uma vela se mantém em um barco em
movimento.

Outro elemento importante na colocação da voz é a obtenção do legato. Cantar


em legato significa pura e simplesmente, passar de uma nota à outra, sem que haja
qualquer ruptura. Cantar legato significa, a princípio, cantar vogais, timbres que
sustentam um som entremeado de outros timbres de breve duração, as consoantes. “As
vogais, como diziam os antigos humanistas rabínicos, são a alma das palavras, e as
consoantes, seu esqueleto.” (Schafer, 1991:224).

As diferentes vogais obtêm-se de acordo com a posição da língua e abertura da


boca, tendo seu timbre determinado pelas faixas de frequência conhecidas pelo nome de
formantes. Sabemos, de outra parte, que as frequências mais agudas têm como ponto de
ressonância o véu palatino. Para cantá-las, a boca precisa estar muito aberta, o que é
somente possível quando se canta na vogal que apresenta maior abertura, ou seja, o ‘a’.
(No entanto, o repertório vocal está farto de exemplos de música anti-vocal tanto do
ponto de escuta da fisiologia, quanto da acústica, o que aponta para uma falta de atenção
por parte de muitos compositores82).

Cantar legato, dizíamos, é cantar vogais; mais que isso, é projetar a voz,
levando-a, de um modo ou de outro a ocupar o espaço acústico. Ocorre que os textos

de vibração do corpo está associada ao estado de receptividade dos diferentes planos do corpo em relação
à faixa de vibração, isto porque cada oitava representa caracteres psicofisiológicos, a saber: cabeça: plano
cerebral e nervoso; tórax: plano afetivo e respiratório; bacia: plano vegetativo e sexual; pernas: plano
estático e rítmico. Assim, vibrações entre 522 a 1044 Hz vibram na cabeça; entre 261 e 522Hz, no tórax;
entre 130,5 e 261Hz, na bacia e, entre 65,2 e 130,5 nas pernas. A vibração em uma dada oitava representa
uma estimulação de um dos planos (Aucher, 1977). Não encontramos, até o momento, um comentário
qualquer sobre essa teoria que nos permitisse dialogar com o pensamento da autora.

81 Segundo a fonoaudiologia, aquilo que chamamos erroneamente de cordas vocais, deve ser designado
pela expressão pregas vocais, pois se trata, de fato, de pregas de musculatura.

82 Não somente os compositores, como tradutores e arranjadores. Um caso bastante comum é o da


sustentação de sons nasalados. Existe entoação mais abominável e angustiante que um longo melisma
sobre uma vogal nasal (mã-ã-ã-ãe), numa tradução direta e impensada do alemão para o português do
texto de uma cantata de Bach? Ou aquelas cançonetas consagradas pela mídia que insistem em finais de
versos rimando em notas longas palavras como coração/ perdão/ irmão? Exemplos, infelizmente, não
faltam. Aliás, sobre esse problema debruçou-se Mário de Andrade ([1936]1965) quando estudou, por
ocasião do Congresso Nacional de Língua Cantada (São Paulo, 1936) o problema da prosódia na canção
erudita brasileira.

109
verbais incluem consoantes. As vogais permitem a invenção melódica, enquanto as
consoantes articulam o ritmo. Para que a segmentação do fraseado se faça de modo
discreto, sem interferir na pronunciação do texto, deve o cantor lançar mão de recursos
técnicos que lhe permitam preservar a continuidade e integridade do seu discurso. A
projeção vocal deve, portanto, ter em conta aspectos técnicos como esse.

No entanto, de acordo com Roland Barthes, a projeção vocal desemboca numa


oposição de ordem estética entre articulação83 e pronunciação Esta observação, segundo
ele, já teria sido feita por Charles Panzéra, de certa maneira, quando o cantor prescrevia,
em suas aulas: “(...) a articulação é a negação do legato; ela quer dar a cada consoante
a mesma intensidade sonora, enquanto num texto musical uma consoante nunca é a
mesma: é preciso que cada sílaba, longe de ser oriunda de código olímpico dos
fonemas, dado em si e uma vez por todas, seja engastada no sentido geral da frase”
(Barthes,1984:228).

No entanto, ao parecer de Barthes, as observações de Panzéra não se remetiam


exclusivamente a uma postura estética, mas também ideológica, pois, “(...) articular é
mascarar o sentido de uma clareza parasita, inútil, sem que seja, por isso, luxuosa. E
essa clareza não é inocente; ela arrasta o cantor para uma arte perfeitamente
ideológica, da expressividade, da dramatização: a linha melódica quebra-se em
estilhaços de sentido, em suspiros semânticos, em efeitos de histeria. Pelo contrário, a
pronúncia mantém a coalescência perfeita da linha do sentido (a frase) e da música (o
fraseado)” (Barthes,1984:228).

Ora, estas preocupações dirigem-se quase que totalmente à música de concerto,


seja ela ópera, lied, ou o oratório sacro, quando todo o potencial da voz - os matizes
timbrísticos, de tessitura, de intensidade, de forma de atacar ou sustentar os sons - são
requisitados, a maioria das vezes, em sua plenitude. Se verificarmos atentamente a
história da música vocal, observaremos que cada estética particular fez muitas
exigências técnicas aos cantores, exigências que dirigiram sua tônica para um ou outro
parâmetro do som em primeiro plano. Assim, constatamos que, a ópera barroca

83 A entoação é apresentada como um ‘continuum’, sendo segmentada sempre que as cordas param de
vibrar, o que ocorre quando pronunciamos fonemas como /p/, /t/, /k/. No entanto, o ouvido tece a ligação,
encadeando um fonema ao outro, do mesmo modo que o olho encadeia as imagens do cinema. Esta
advertência nos é feita por Tatit, remetendo-se a Buyssens (1982:22)

110
solicitou, acima de tudo, a sustentação (a duração) e o salto intervalar (tessitura); a
ópera romântica, de sua parte, valorizou a potência (intensidade) e cor (timbre84).

A música do século XX, ao que mostram as mais diversas obras conhecidas,


necessitam do virtuosismo técnico; em alguns aspectos, até mais que em épocas
anteriores. A diferença reside no fato de que os referenciais estéticos não são mais os
mesmos. A voz do século XX rompeu com o legato, o som redondo, valores
inalienáveis do bel canto. Em contrapartida, incorporou sons vocálicos outrora banidos
do universo da arte (soluço, sussurro, tosse etc.85); ou, dito de outro modo, agregou o
ruído.

As outras músicas - a tradicional, a folclórica e a comercial (de massa) não


seguem necessariamente o mesmo caminho. As primeiras, por não exigirem o mesmo
grau de refinamento técnico que a música de concerto, conservam, via de regra,
características tais que se modificam muito lentamente; trata-se, sobretudo, de
sociedades de predominância oral. A impostação da voz não segue, igualmente, os
mesmos pressupostos. Basta-nos lembrar o timbre inusitado dos coros femininos da
Bulgária, os quartetos polifônicos masculinos da Sardenha, o cante jondo da Andaluzia
(Espanha), ou mesmo as canções camponesas de Trás-os-Montes (Portugal).

Quanto à canção comercial, podemos dizer que no seu início teve como
referência a voz impostada. Por volta da segunda metade do século, entretanto,
incorporou cada vez mais os sons guturais, o ruído (e o barulho). Música para ser
executada e ouvida através da mediatização técnica, a voz que canta essa música não
precisa - no que se refere à exigência da composição propriamente dita - da técnica
virtuosística, muito embora existam, no universo da música pop exceções bastante
interessantes como Freddy Mercury e Nina Hagen.

Contudo, o que nos interessa, neste capítulo, é o estudo da evolução do conceito


de voz musical. Nesse sentido, nossa referência primeira é a voz no âmbito da música

84 Queremos dizer, com isto, que a partir do Romantismo as vozes passaram a sofrer, cada vez mais,
subdivisões relativas ao timbre, principalmente as vozes mais agudas, como por exemplo o soprano:
lírico, dramático, ligeiro, soubrette, spinto.

85 Embora elementos orais tenham se verificado ao longo da história da música cantada, estes eram
geralmente concebidos musicalizados, isto é, como um fraseado. Um exemplo bastante conhecido, nesse
sentido, é a gargalhada na ária Vesti la giuba, da ópera I Pagliacci, de Leoncavallo.

111
de concerto, pois somente a música erudita tem compromisso inalienável com a
construção e reformulação da linguagem. Para conhecermos um pouco seu estado atual,
permitimo-nos levantar, primeiramente, seus antecedentes históricos, ainda que de
forma sucinta.

2.3. A voz centrada no corpo.

Neste momento, após todas essas reflexões, cabe-nos encontrar o lugar da voz
no panorama atual. Enquanto meio de comunicação com o sagrado, condição de acesso
do homem ao Todo-Poderoso, ao desconhecido, enfim - a voz permanece forte
elemento ritual através de fórmulas encantatórias verbalizadas, cantos (sobretudo em
grupo), seja nos cantos védicos, seja na liturgia da missa católica, seja nos rituais de
candomblé. Como elemento de socialização, a música cantada também se faz presente
nos mais diversos grupos, sofrendo transformações a rigor bastante sutis e lentas, como
acabamos de afirmar acima86: são as canções de trabalho, de ninar, de festejos
populares, dentre tantas outras.

A música cantada, encarada como linguagem artística do ocidente revela,


entretanto, características peculiares. Como pudemos observar anteriormente, o antigo
padrão voz musical, para ser cantada - se assim a podemos rotular - caiu por terra há
praticamente um século. Contudo, essa voz possui uma história a um só tempo curiosa e
fascinante que merece ser retomada. Senão tomemos alguns momentos históricos, nós
de entrecruzamento de concepções estéticas, a fim de poder compreender melhor o
destino da voz do século XX.

É importante salientar, em primeira instância, que a história da voz cantada está


diretamente atada à evolução da música como linguagem: do gregoriano à canção

86 É evidente que a entrada dos meios de comunicação de massa implicou em várias transformações. No
entanto, não gostaríamos de desviar nossas atenções para esse problema. Tomemos, como referência,
alguns casos em que a tradição oral ainda se mantém forte, mesmo apesar da esquizofonia.

112
trovadoresca, é a música composta sobre textos literários ou litúrgicos que constituem
os primeiros exemplos de complexificação da linguagem musical87.

Essa música que ressoa no coração da Idade Média emana de um corpo solitário,
o corpo do cantor. Sobre isso, chama a atenção o compositor e musicólogo André
Boucourechliev: “(...) o corpo monódico, solitário, responde a um meio-ambiente
solitário; seus locais são diversos, castelos ou monastérios. Aquele que lá canta está só
ou acompanhado por um grupo de monges aglutinados, cantando em homofonia” .

O mesmo corpo solitário também canta música profana: “No castelo, afastado
numa terra ainda despovoada, o troveiro é também solitário, corpo solitário ante o
senhor, ante a Dama de seus pensamentos, sonhando com a poesia e a música,
inventando uma e outra” (Boucourechliev, 1993: 127-128).

A trajetória seguida pela história da música europeia conduziu, então, a voz que
entoava os cantos sagrados entre as paredes do mosteiro ao coro da igreja católica;
laicizada e solista, a voz dominou as praças dos burgos e os castelos feudais, as salas de
música dos palácios cortesãos. Anos mais tarde, a voz transmutou-se do corpo solitário
para o corpo solista: submetendo-se a um refinamento técnico88, conduziu os seus
proprietários89 do anonimato absoluto para a glória fulgurante do estrelato. Referimo-
nos aos castrati90 e ao seu bel canto. Estamos, pois, no período Barroco. Façamos uma
pausa.

87A polifonia vocal apresenta dois aspectos importantes. De um lado, valorizou a voz, desenvolvida pela
técnica, a exigência oriunda de uma ornamentação cada vez mais rebuscada. O virtuosismo vocal, escrito
em vozes sobrepostas simultaneamente no tempo, levou os compositores da época a se interessarem mais
pelas manipulações estritamente sonoras, propiciando, assim, a elaboração dos elementos de base
necessários para a autonomia da linguagem musical. De outra parte, a sobreposição de vozes na polifonia
conduziu a uma progressiva incompreensibilidade do texto, negando, assim, a tradição oral. Estes fatores,
somados ao desenvolvimento da música instrumental levaram, gradualmente, a uma preterição da música
vocal até o advento da ópera, a partir do final do século XVI, quando os textos literários voltaram a tomar
o primeiro plano. Nesse caso, a polifonia foi totalmente abandonada, cedendo seu lugar à melodia
acompanhada e ao recitativo (Moraes, 1985: 101-102).

88Convém lembrar que a virtuosidade vocal é paralela ao aperfeiçoamento técnico da concepção dos
instrumentos musicais, em geral.

89 Essa personalização que aqui observamos nas vozes, pode-se dizer uma característica que se inicia no
período Barroco - vale lembrar que os violinos ditos de autor, como os Stradivari e Amatti surgiram nessa
época, conferindo ao instrumento não somente um timbre, mas também uma estirpe, uma identidade
própria, a não ser confundida com nenhuma outra.

90 O castrado é o homem cujos testículos foram extraídos, antes da puberdade e da mudança de voz. A
ausência da testosterona, hormônio responsável pelos caracteres sexuais masculinos, faz da voz desse
homem uma voz híbrida: “a laringe permanece próxima das cavidades de ressonância, próxima da

113
A porta de entrada dos castrati, eunucos-cantores, foi a de São Pedro. Embora
haja indícios da existência desses cantores na Península Ibérica desde o século VI, é no
ano de 1599, na figura do papa Clemente VIII (1592-1605) que são admitidos os dois
primeiros castrati-sopranos italianos no Coro Pontifical. A partir dessa data, o número
aumentaria vertiginosamente, até a substituição total dos falsetistas pelos castrados. Em
1625, já não havia um falsetista sequer na capela Sistina. A essa altura, a troca de
valores era tal que passou a ser considerada voz artificial a dos falsetistas e de voz
natural a dos eunucos.

Por trás do encantamento do papa com as vozes dos eunucos-cantores, subjazia


uma justificativa, uma frase proferida por São Paulo: “Como em todas as igrejas dos
santos, as mulheres estejam caladas nas igrejas; pois não lhes é permitido falar” (apud
Barbier, 1993: 17). As mulheres teriam sua revanche; falariam e cantariam. Porém
muito tempo mais tarde e fora da igreja91.

Daí iniciou-se o reino dos castrati, verdadeiros superstars de sua época,


iniciadores do mundo do espetáculo (aqui representado pela ópera), sobretudo na Itália.
Rivais declarados das prima-donas, superavam-nas na preferência não somente pelas
características anatômicas (maior capacidade toráxica), mas sobretudo pela reunião de
elementos outros bastante valorizados na época: ao mesmo tempo em que do ponto de
vista fisiológico, tinham o humor canalizado para a voz - pois não havia um duto de
saída - metafisicamente, viviam na eterna infância, em estado de graça. Por essas
razões, eram eufemisticamente denominados dessus, termo este que não faz referência
somente à tessitura das vozes (sopranistas, contraltistas), mas pelo fato de encontrarem-
se acima da vida mortal.

As vozes barrocas resultam de um treino espartano que, no fim de contas, não


visa outra coisa senão a exibição de um virtuosismo triunfante e artificioso,
dissimulando todo e qualquer esforço físico. O que interessa no malabarismo vocal do
castrado é a natureza privilegiada do cantor, assexuado como um anjo, mas que conduz
a voz para um gênero de sedução para a qual o corpo está privado. Floreios, saltos de

cavidade craniana, o que quer dizer que ela não desce como previsto, daí o timbre mais rico em
harmônicos, um vibrato fácil, uma grande tessitura. As cordas vocais, que alongam nos homens por
ocasião da puberdade, mantêm, nos castrados o tamanho das cordas vocais femininas” (Castarède,
1991:171).

114
oitava, tremoli, vibrato de cabrito ... saíram de uma voz mutilada, assexuada, levando ao
delírio os ouvidos da época. No fundo, a essência do bel canto não era outra senão
impor à música vocal uma série de técnicas de enunciação artificiais, as mesmas
impostas aos instrumentos, com a finalidade essencial de suprimir o ruído, a
aperiodicidade, as irregularidades do som.

No entanto, essa estética não perduraria ad infinitum. Podemos mesmo afirmar


que o declínio dessa estética se atribui, entre outros, a dois fatores bastante importantes.
Um deles foi a proibição da castração, na França, por parte dos enciclopedistas por
considerarem-na mutilação brutal92. Outro fator relevante encontramos na criação de
teatros populares: o novo público, permeável ao papel dos personagens, pleiteia vozes
tipificadas. Assim, os compositores passam, pouco a pouco, a descobrir as
particularidades das vozes masculina - o tenor - e a feminina - o soprano. Aos castrados
sucederão as divas. “Esse período de transição - o do bel canto - conserva ainda uma
parte da vontade mítica da época barroca e de sua ambigüidade sexual (cf. os travestis
de Mozart, de Rossini e de Gounod)” (Castarède, 1991:174). De todo o modo, os
castrados permanecerão cantando, só que restritos à igreja católica.

O percurso transcorrido pelo bel canto conduziu a voz a uma espécie de cisão
em dois pólos aparentemente divergentes a partir do Romantismo: o lied alemão e a
canção francesa de um lado; a ópera wagneriana e verista de outro. A essas duas
ramificações Barthes (1984) classificará como voz pronunciada e voz projetada. Sobre
isso já discutimos anteriormente. Entretanto, faz-se necessário retomarmos o tema a fim
de observá-lo sob um outro prisma.

A canção francesa e o lied constituem um gênero musical que opta pela forma
simples - a seccionada (estrófica), de duração que não estende os poucos minutos
necessários para descrever sentimentos ou sensações que, a princípio, fazem parte da
experiência de vida de qualquer um: os desejos secretos, as reminiscências nostálgicas,
o exílio da terra natal. “É o tempo da vida e das paixões que se desenrola graças à

91 No início do século XVIII, o papa Clemente XI simplesmente proíbe o canto das mulheres, onde quer
que seja, mesmo em casa. E mais: decreta que nenhuma mulher, casada, viúva ou solteira aprenda a
cantar ou tocar (Barbier, 1993:109-110).

92 Na verdade, a castração chocava o público francês e as vozes não convinham ao seu gosto, provocando
indiferença ou gargalhadas. A memorialista Sara Goudar protestava: “É humilhante, para o século
esclarecido que jamais houve, ver o estado deplorável a que estão reduzidas as óperas, principalmente as
italianas, onde o menor inconveniente seja ver Alexandres, Césares ou Pompeus decidir o destino do
universo com vozes de moças” (apud Barbier, 1993: 156).

115
magia da voz que as exprime numa totalidade fechada e recolhida, transformada em
obra de arte pela beleza: a música vive em nós, nós nos escutamos através dela. Ela
nos transporta a um outro tempo, fora do tempo cotidiano do relógio, do tempo social
das ocupações: o tempo privado das pulsações secretas da alma” (Castarède,1991:185-
186).

O universo singelo do lied não comporta distinções sexuais, de idade, de


nacionalidade. Por essa razão é que o lied pode ser cantado por qualquer voz, masculina
ou feminina, voz que se conforma ao limite modesto do corpo do cantor. É música para
ser pronunciada (Barthes, 1984:228). Some-se a isso o fato de que o texto literário,
geralmente confiado a poetas que trabalham em parceria com os compositores, têm uma
importância capital. Estes textos têm na voz o seu meio de expressão e no piano, o seu
comentador ideal93.

A ópera, em contrapartida, é um gênero de música em que a voz é projetada


(Barthes, 1984:228). A voz operística tem como pressuposto inicial cobrir um espaço
acústico bastante amplo. Assim, extrapola as dimensões do corpo, sobretudo no
Romantismo: “A música vocal indica as limitações biológicas e sobretudo psico-
sexuais da espécie humana, ao invés de exaltar a indeterminação, como ocorria em
séculos precedentes. Wagner94 e Verdi contribuíram fortemente para dar à voz sua
especificidade sexual. A voz canta a alegria ou a dor de um sujeito que tem um corpo
sexuado (...)” (Castarède, 1991:175).

A ópera é, pois, gênero dramático, que envolve enredo, ação cênica. Sua
gramática particular elabora, no que diz respeito à voz, uma série de símbolos - muitas
vezes modelos gerais que determinam não somente as diferenças sexuais, idade, classe

93 Gostaríamos de salientar a função do piano. Este deve reagir às mais sutis inflexões do sentido e clima
do texto, como um parceiro indispensável na interpretação (performance) da obra. Embora presentes em
Schubert (que em sua curta vida compôs 650 lieder) esta função do piano acentua-se em Schumann.

94 Não podemos esquecer que a ópera de Wagner se esboça sobre a estética da gesamkunstwerk (obra de
arte total). Segundo seus princípios, todos os elementos que compõem a obra estariam indissociavelmente
ligados, sem estabelecimento de uma hierarquia que privilegiasse um elemento em relação ao outro
(libreto, orquestra, encenação etc.). A ópera wagneriana é, pois, um espetáculo transcendente. Para a
apreciação e participação desse gênero de ritual estético, foi construído um templo. Bayreuth foi
concebido com o objetivo preciso de fazer com que o público fizesse da ópera uma espécie de ritual,
espetáculo a ser usufruído sem interferências, preparação para um envolvimento direto e ininterrupto
entre obra e seu receptor. Tudo que se vê é o palco; jamais a plateia. Evitam-se conversas, encontros
sociais nos intervalos. O espectador é levado a concentrar-se, promovendo um silêncio, que será
incorporado pela própria música que se iniciará a seguir.

116
social entre outros. Para citar alguns breves exemplos, tomemos a ópera romântica 95, em
que via de regra os papéis centrais (heróicos e jovens) são representados pelo tenor e o
soprano ( La Bohème: Mimi, Rodolfo; Tosca: Flora, Mário; Tristão e Isolda, idem);
vozes mais graves meio-soprano ou contralto (femininos) e baixo (masculinos) são
geralmente reservadas aos personagens mais velhos, patriarcas, marginalizados e
malditos, ou bruxos (Carmen: Carmen, de Bizet, meio-soprano; A Danação de Fausto:
Mefistófeles, baixo); o surgimento de vozes como o soprano soubrette para representar
mulheres arrumadeiras ou outros personagens de categoria social inferior.

Assim sendo, podemos afirmar que, entre outros aspectos, a ópera marca sua
referência central na tessitura, na amplitude da banda de frequência. Além destas
considerações, devemos ter em conta que o cantor de ópera segue, além da partitura,
imperativos outros determinados pela ação dramática: a expressão de sentimentos,
gestos que, em última instância, são determinados pelo personagem que ele representa.

A ópera desse período exigiu da voz muitos decibéis 96. A orquestra tendo
crescido em tamanho; como também tendo se ampliado as dimensões da sala de
concerto, a voz deveria ter a potência suficiente de dominar e cobrir o espaço acústico.
Tal observação se atesta facilmente através dos cantos-depoimentos de artistas que
atravessaram o século XIX passando seus vestígios em gravações realizadas no
transcorrer do século XX: Lili Lehann (1848-1929), Kirsten Flagstad (1895-1962),
Birgit Nilsson, divas wagnerianas; Zinka Milanov, Mario del Monaco, verdianos. Vozes
potentes que, lamenta o cantor Giuseppe di Stefano, não se ouvem mais. Os grandes
cantores de ópera estariam, sob o seu ponto de vista (escuta!), extintos. Isto porque a
primazia da técnica teria destruído a expressividade.

95 Optamos pela ópera romântica, uma vez que outros períodos como o barroco e o clássico essa
particularidade não se esboçava de modo tão claramente delineado. O papel dos castrati , como também
das mulheres, representando papéis masculinos, valeu-se dessa ambigüidade simbólica.

96 É interessante acrescentar as informações prestadas por Édouard Garde: a potência de uma voz é
independente de sua tessitura. Medida em decibéis, variam de 40 (voz de conversação normal) a 130
(vozes cantadas ultra-potentes). Senão atentemos para a seguinte classificação elaborada por Husson:
vozes de grande ópera: 120dB ou mais; vozes operísticas: 110 a 120dB; vozes de ópera cômica: 100 a
110dB; vozes de opereta: 90 a 100dB; vozes de concerto ou de salão: 80 a 90dB; vozes banais, ditas ainda
de microfone: menos de 80dB (Garde, 1970: 123). Ainda que estes dados estejam superados ou sejam
controvertidos (não há maiores referências sobre a pesquisa propriamente dita) a comparação em números
fornece uma aproximação mais concreta do problema que ora apresentamos.

117
Vissi d’arte ...

Giuseppe Di Stefano foi um expoente da ópera verista deste século, que pôde
exercitar sua arte tanto nos palcos como nos estúdios de gravação; mais ainda:
experimentou a gravação antes do surgimento do som digital, em sua época de
desenvolvimento galopante que coincide com a ascensão da música pop nas estações de
rádio e no mercado de discos. Assim sendo, parece-nos bastante oportuno conhecer
algumas das suas ideias, uma vez que expõem não somente elementos extraídos de sua
vivência particular, enquanto cantor de currículo internacional, como também pela
própria época em que se desenrolou sua carreira, que vem a ser justamente aquela em
que o disco passa a substituir, em grande medida, o espetáculo ao vivo.

De acordo com Di Stefano, a ópera do início do século tinha nos regentes a


expressão mais completa e fiel da ópera, pois, os regentes da velha-guarda (expressão
do autor) como de Sabata, Serafin, Toscanini mantiveram contato direto com os
compositores, o que lhes permitia conhecer integralmente a obra, a ponto de saber de
cor a partitura. Este domínio capacitava-os, entre outras minúcias, a escolher as vozes
mais adequadas para cada ópera, garantindo aos cantores uma segurança emotiva que
vinha a contribuir para um melhor desempenho vocal. O que ocorre atualmente,
segundo Di Stefano, é que os cantores de hoje são mutilados - entenda-se por mutilados
com voz pouco potente - dado que a preocupação dos regentes da atualidade não excede
a execução em tempo giusto.

Assim, as vozes de hoje não se desenvolvem como antigamente. Até mesmo as


fisionomias dos cantores mudaram:

“Há que se observar as mandíbulas, que são o índice exato da posição da boca,
quando alguém canta, sobretudo quando se trata de um tenor. Nós agarrávamos as
notas, arranhávamos essas notas: observem as mandíbulas de Gigli, as mandíbulas de
Caruso, de Schippa, demonstram que estes tenores cantaram por muitos anos de um
certo modo. A articulação da palavra e do som desenvolve também a face, também as
mandíbulas. Conforme se articula, as mandíbulas se movem de maneira distinta. Isto
acaba também por desenvolver os músculos faciais. Mesmo em detrimento do aspecto

118
do rosto. Mas são músculos: assim como os boxeadores têm bíceps, os lutadores têm
músculos, assim também os cantores têm uma articulação que pertence à sua técnica e
que desenvolve determinados rasgos na face. Observem, ao contrário, os rostos dos
tenores de hoje: até os signos exteriores ao crânio, da boca, já não mais estão lá.
Porque cantam de outra maneira. Será um modo de se protegerem, mas as vozes... 97”
(Di Stefano,1991:81).

É evidente que muitas das afirmações Di Stefano são discutíveis. Regentes que
só se preocupam com a marcação do tempo existem; contudo, não representam a regra
geral. Ao contrário, nunca houve tanto interesse, como nos últimos anos, em recuperar a
escuta do passado, no seu tempo real. Tampouco podemos afirmar que o conhecimento
da interpretação almejada pelo compositor seja hoje uma referência primordial,
indispensável, a menos que estejamos voltados para uma pesquisa muito específica
voltada para esse aspecto particular. Afirmar que não haja mais cantores com voz
potente parece um equívoco sério. Basta-nos lembrar de Plácido Domingo para que tal
sentença desmereça qualquer crédito.

Entretanto, as considerações de Di Stefano devem ser relativizadas. Trata-se,


como citamos anteriormente, de um cantor que tem na estética verista 98 a sua referência
primeira: “O verismo é o nível mais refinado e completo do canto moderno” (Di
Stefano, 1991:44). De acordo com Verdi, seu sumo pontífice, caberia ao cantor a maior
responsabilidade no todo da obra: atender antes ao poeta que ao maestro; ter
conhecimento de música e de técnica vocal suficientes de modo a poder emitir voz e
palavra com pronúncia clara e perfeita, o que permitiria, ao cantor poder cantar
guiado por seu sentimento, inspiração, incorporando nele próprio, cantor, o
personagem do drama a ser representado99.

97 Embora preocupado com outro aspecto mais específico, a regressão na audição musical, Adorno faz
um protesto bastante semelhante ao de Di Stefano, conforme veremos mais adiante.

98 O Verismo podemos dizer, aproximativamente, foi a vertente italiana do naturalismo literário do final
do século XIX. Tendo como epígono o romancista Giovanni Verga, encontrou na ópera de Verdi, Puccini
e sobretudo Mascagni (La cavalleria rusticana) e Leoncavallo (I Pagliacci) seu correspondente musical.
Como características particulares do verismo, encontram-se os temas provincianos, nem sempre isentos
de chauvinismo; o uso de de dialetos vivos, em resposta a uma imposição da língua toscana e da ideologia
do Rissorgimento.

99 Estas idéias são expressas pelo próprio Verdi, em suas cartas (1871) sumariadas por Giuseppe di
Stefano. Verdi confia, como já é largamente conhecido, toda a interpretação ao cantor, pois é na linha
melódica que se inscrevem e se expressam os conflitos e tensões dramáticas da sua ópera. É por isso que

119
Como podemos observar, as formulações de Di Stefano revelam-se coerentes
com a estética a que dedicou sua carreira artística. Se seu pensamento parece
ultrapassado em relação ao que se conhece hoje como voz musical, suas observações
permanecem frescas e vivas, uma vez que se trata como afirmamos anteriormente, de
alguém que testemunhou pessoalmente o crepúsculo do bel canto ao mesmo tempo que
presenciou e participou do desenvolvimento do registro fonográfico.

Além do mais, algumas das suas considerações bastante curiosas, poderiam


passar despercebidas a um observador leigo. Até que ponto precisariam os tenores de
hoje desenvolver certos músculos da face, da mandíbula, para poderem ser claramente
ouvidos e compreendidos, num teatro? Se, nos dias de hoje, observamos um
crescimento dos espetáculos que levam à cena grandes vozes operísticas cantando ao
microfone para uma platéia gigantesca, em estádios monumentais estariam se
extinguindo, por conta desse motivo, os atletas da voz? Ou ainda: dado que num estúdio
de gravação o engenheiro de som pode remodelar a voz em todos os seus aspectos,
dentre os quais altura, timbre e intensidade que necessidade prática exigiria, a princípio,
do cantor dedicar-se a esse tipo de condicionamento físico?

Se esse fato se comprova empiricamente, ou não, é tarefa que ainda está para ser
realizada. No entanto, podemos concluir que essa observação de Di Stefano aponta para
uma desimportância no domínio da voz cantada, desimportância essa que diz respeito a
possíveis transformações pelas quais a performance da voz estará passando, sobretudo
após a fixação da hi-fi nos meios captação, armazenamento e reprodução do som.
Acabamos de ouvir a fala de Di Stefano, cantor conceituado no domínio da ópera do
século XIX em pleno século XX. É tempo agora de observarmos o que os artistas deste
século têm a dizer sobre a música de seu tempo e sua arte. Como poderemos observar
mais adiante, a música contemporânea, assim como todas as artes, nestes últimos cem
anos, caracteriza-se pela ruptura e interpenetração de fronteiras, ampliando o corpus sua
linguagem. Nesse sentido, um caso, justamente o que ocupa o primeiro plano das nossas
preocupações intelectuais - a voz - vai sofrer mudanças estruturais, ao imbricar-se com
outras linguagens, sobretudo a poesia. Por essa razão permitimo-nos interromper nossas

muitas vezes (excetuando-se as últimas obras, Otello e Falstaff) o papel da orquestra é reduzido a um
acompanhamento banal, aos enfadonhos terzinati. Nesse sentido particular é que a ópera de Verdi
apresenta discrepâncias vertiginosas em relação à de Wagner. Para este último, todos os elementos da
ópera (libreto, cenário, canto, orquestração etc.) deveriam concorrer em igual nível de importância. Tal
foi o princípio da sua gesamtkunstwerk (obra de arte total), tema já bastante conhecido, sobre o qual
muito já se discutiu e que ainda tem muito a dizer.

120
discussões aqui para retomá-las mais adiante. Passemos neste momento, então, a
focalizar nossa escuta sob um outro ângulo: a voz mediatizada tecnicamente, ou, como a
designaremos a seguir, a voz esquizofônica.

2.4. A voz esquizofônica.

Não há idéia mais emblemática que associe a esquizofonia vocal que o


fenômeno Caruso. Ponto de confluência entre o apogeu da ópera verista e o advento do
disco, a voz de Caruso inscreveu-se nos cilindros e nos discos compactos com leitura a
raio laser, consolidando seu mito para - quem sabe? - a eternidade.

E por que falar de Caruso é tão importante? Em primeiro lugar, pela mitificação
edificada em torno da potência da sua voz, capaz de sensibilizar os ouvidos das mais
longínquas latitudes e longitudes. O repertório de Caruso se apoiava sobretudo, em
óperas veristas e canções napolitanas, tal como o fizeram seus sucessores, como
Beniamino Gigli e Mario Lanza, apenas para citar alguns exemplos. Caruso falava, pois,
diretamente aos sentimentos de seu povo (lembremos que a ópera verista procura
retratar, de algum modo, a vida cotidiana) estivesse esse povo na Itália ou emigrado em
outros redutos do planeta. Além disso, devemos salientar que a Itália era objeto de uma
fetichização (como ainda o parece ser hoje), fundada não apenas numa antiga tradição
artística e notadamente musical, mas também numa idéia de vida feliz e simples,
assentada numa natureza favorável às paixões, principalmente no sul, onde o
Mediterrâneo fornecia a moldura ideal100. Tal fetichização, em parte elaborada por
Rousseau, despertava a atenção e construía o imaginário do público mais diversificado
possível.

Caruso cantava para multidões, ao vivo, e sem microfone. Quando este surgiu,
não cuidou de amplificar sua voz, mas simplesmente de captá-la, a fim de fixá-la não
exatamente para um museu de vozes (como inicialmente pretendia Edison) mas para

100 Daí o sucesso nada casual de canzonettas como O sole mio e Torna a Surriento.

121
multiplicá-la e colocá-la à venda. E, por ter sido uma das primeiras vozes - vozes-mito -
a serem registradas, acabou por servir de modelo a esta nova linguagem - a performance
mediatizada tecnicamente - sem, contudo, se viciar aos trejeitos e gestos que esta
linguagem passou a imprimir nos cantores.

O surgimento da mediatização técnica alterou a paisagem sonora de maneira


radical, trazendo muitos sons novos, ao mesmo tempo em que extinguiu muitos sons
pré- existentes a ela, sobretudo os sons de menor intensidade. Não queremos com isto
julgar os méritos de tal transformação, a favor ou contra. Interessa-nos sobretudo realçar
as mudanças que essa nova paisagem sonora engendrou no domínio da voz cantada 101.
Nesse sentido, vale observar algumas das primeiras experiências pelas quais passou a
voz.

As primeiras vezes em que a voz passou pelas ondas elétricas do microfone


registram pouco traquejo no uso do novo medium. A voz falada não se apresenta de
forma espontânea: “Outrora, a amplificação da voz num espetáculo ou encontro estava
forçosamente associada a algo oratório, coletivo ou tonitruante. O nível sonoro não era
o único amplificado e encorpado, mas também o tom da voz, a distribuição do som”
(Chion, 1993:129-130). No entanto, os locutores, de um modo geral, souberam adaptar-
se rapidamente ao microfone, a uma performance que colocasse a voz num mais
adequado a fala espontânea, como o provam os programas realizados no interior dos
aquários das rádios.

Por motivos diversos, a voz também foi o instrumento (o medium) privilegiado


das primeiras gravações musicais. Não pelo fato de o microfone captá-la com maior
fidelidade sonora que a orquestra, como se tem afirmado. Apesar da desnaturalização do
timbre, a gravação da voz oferecia, em sua época nascente, maiores elementos de
identificação ao ouvinte: palavras, acento, sutilezas na articulação, efeitos vocais. No
caso dos instrumentos, não era possível registrar com precisão nuances dos modos de
ataque - o que era possível na música cantada sobre um texto linguístico. O que
significa, ainda que com todos os ruídos possíveis, reconhecia-se a voz de Caruso...

101 Para avaliar a interferência da paisagem sonora da mediatizada tecnicamente é necessário, no fundo,
praticar um difícil exercício de abstração. Se até em rincões desconhecidos ou mesmo em muitas
comunidades indígenas a televisão e o rádio estão presentes, não somente sob a forma Muzak, mas como
pontuação de muitas das atividades cotidianas, é praticamente impossível, nos dias de hoje, conceber
mentalmente uma paisagem sonora não-esquizofônica. Recriar uma paisagem sonora isenta de quaisquer
elementos esquizofônicos poderia, então, até constituir numa experiência interessante.

122
Além do mais, a voz constituía o único instrumento cuja origem é reconhecível
diretamente, isto é, as diferenças entre um e outro cantor eram captadas pela
sensibilidade tosca dos fonógrafos de antanho (Chion, 1994). Nessa época, o músico ou
o cantor deveria colocar-se à frente do captador, um pavilhão de tamanho avantajado,
mas insuficiente para captar várias fontes sonoras ao mesmo tempo. Por essa razão,
captação do som de agrupamentos maiores, como a orquestra sinfônica, estavam
descartados. Esse problema pôde ser resolvido somente na década de 1920, quando o
advento da gravação elétrica veio substituir a mecânica.

O advento dos meios de captação, fixação e remodelagem do som exigiram


igualmente a voz potente, pois, razões estéticas postas de lado, os instrumentos capazes
de registrá-la encontravam-se, como vimos, em estágio rudimentar, não sendo capazes
de captar integralmente os sinais acústicos, além de marcar um ruído de fundo, um
chiado que só seria eliminado proximamente à década de 1950 com o estabelecimento
da estereofonia e do disco em microssulcos.

Isso também explica, de certa maneira, a tendência dos cantores da chamada


música popular - que não parece ter compromisso com a impostação operística - a
alimentar a voz em muitos decibéis102. Necessidade imposta pelas possibilidades
técnicas de uma determinada época, padrões estéticos, técnica vocal de cada um, várias
razões podem ser apontadas. O fato é que a voz continuou muito tempo impostada,
mesmo depois da conquista da hi-fi : caricaturas de árias de ópera ou das chamadas
canzonettas napolitanas aparecem em canções populares na voz de um Vicente
Celestino, em que a flexibilidade do fraseado e a pronunciação do texto - bastante
arrevesado, diga-se de passagem - se rompem em estilhaços de melodia, em lapsos de
sentido. É o que nos atestam algumas peças do cantor que ganharam popularidade
(Coração materno, O ébrio, Porta aberta...) Por outro lado, a voz esquizofônica
propiciou, também, o surgimento de um fetichismo que teria na voz do cantor um alto
representante. Em seu conhecido artigo sobre o fetichismo na música, Adorno protesta
contra essa situação:

102 É interessante observar que o surgimento do microfone não favoreceu o aparecimento de uma maior
quantidade de cantores sem voz. Pelo contrário, os cantores que souberam adequar a potência vocal ao
microfone, os crooners, como Bing Crosby, nos Estados Unidos; Orlando Silva e Sílvio Caldas, no Brasil,
é que tiveram maior aceitação pública.

123
“O campo que o fetichismo musical mais domina é o da valorização pública das
vozes dos cantores. O atrativo exercido por estes últimos é tradicional, bem como o é a
vinculação estreita do sucesso com a pessoa do cantor dotado de ‘bom material’.
Entretanto, nos dias de hoje, esqueceu-se que a voz é apenas um elemento material. Ter
boa voz e ser cantor são hoje expressões sinônimas para o vulgar apreciador
materialista da música. Em outros tempos exigia-se dos ases do canto, dos ‘castrati’ e
das primas-donas, no mínimo, alto virtuosismo técnico. Agora exalta-se o material em
si mesmo, destituído de qualquer função. É inútil perguntar pela capacidade de
exposição puramente musical. Nem sequer se espera que o cantor domine
mecanicamente os recursos técnicos. Requer-se tão-somente que sua voz seja potente
ou aguda para legitimar o nome do dono.” (Adorno, 1980:171).

Sem sombra de dúvida, a advertência de Adorno é oportuna e séria. Há, de fato,


nos dias de hoje há uma proliferação de estrelas - principalmente no universo da música
pop - de brilho efêmero, resultado antes de estratégias de marketing que de competência
artística; estrelas que não poderiam existir senão com o amparo de um eficiente
engenheiro de som na sua retaguarda.

Entretanto, a mediatização técnica é também responsável pela criação de artistas


de estúdio (se assim os podemos denominar). Da mesma forma que se criou uma
linguagem radiofônica (por exemplo, a radionovela), também se criou uma linguagem
discográfica. O pianista Glenn Gould, por exemplo, recusava-se a tocar em salas de
concerto. Ciente de que a acústica destas variava de uma para outra, modificando
incondicionalmente a sonoridade da peça musical, optou pelo estúdio de gravação,
capaz de determinar qualidades acústicas constantes (eco, reverberação etc.). O maestro
Herbert von Karajan também soube tirar proveito dos recursos oferecidos pelo estúdio
de gravação quando, por exemplo, escolhia a voz mozartiana (soprano lírico) de
Gundula Janowitz para interpretar papéis wagnerianos (soprano dramático). Com isto,
queremos apenas frisar que, ao contrário de classificações apocalípticas ou integradas
em relação à cultura das mídias, optamos por um julgamento mais objetivo e menos
inflamado do assunto, tal como o faz Santaella (1992)103.

103 Citamos textualmente a autora: “A hipótese que formulo é a de que o advento e o crescimento
constante e cada vez mais absorvente das mídias tendem, por si sós, a abalar as divisões estratificadas
entre cultura erudita, popular e de massas como campos perfeitamente separados e excludentes. Ao
contrário, quanto mais as mídias se multiplicam mais aumenta a movimentação e interação ininterrupta
das mais diversas formas de cultura, dinamizando as relações diferenciadas espécies de produção

124
Sobre as afirmações de Adorno, há pelo menos um outro aspecto que merece ser
destacado. Se no célebre texto o autor se remete mais propriamente à música de
concerto, isto não nos impede de estendermos nossas observações para um outro
domínio vizinho. Referimo-nos à música geralmente conhecida sob o nome de music
hall, gênero híbrido entre a música de concerto e a comercial. Esse gênero nasceu sob a
égide do microfone de amplificação e das caixas acústicas, dando origem aos crooners,
cantores que souberam com maestria dosar a impostação adequada de modo a não
provocar estridências ou distorções sonoras, tirando partido da reverberação. Essa
geração que normalmente falava em inglês teve vários representantes de renome, dos
quais um, que mantém sua chama incandescente até hoje: o americano Frank Sinatra.

Sinatra, poderíamos dizer, equivale ao Caruso da época do microfone e do disco


de vinil em microssulcos. Como tal, segue outros parâmetros: centraliza a emissão da
sua voz na região média da tessitura e não nas notas extremamente agudas e
sustentadas. Sinatra é barítono, voz que se classifica como intermediária entre o tenor
(aguda) e o baixo (grave). Para cantar, Sinatra não necessita de tanto esforço, tanto
malabarismo, como Caruso. Precisa de menos fôlego, consome menos energia. Pode
apresentar-se vestido de smoking e terminar a apresentação com elegância, sem ter
transbordado em suor. Sinatra representa a música da classe burguesa média ou alta,
mesmo que outros públicos o consumam. Sinatra é a voz da alta fidelidade, paisagem
sonora da metrópole (economicamente) bem sucedida.

A implantação da mediatização técnica também teve outras consequências: por


intermédio do disco e da radiodifusão propiciou a acolhida de outras vozes. Vozes
distantes, de culturas pouco conhecidas ou mesmo desconhecidas - vide as gravações
que Bartók realizou no interior da Hungria e dos países eslavos. O disco e o rádio
tornaram o mapa-múndi audível; a geografia do planeta pôde ser traçada através de
imagens sonoras, tão convidativas ao imaginário do cidadão comum quanto as vistas
retratadas nos cartões postais. Ampliou-se, portanto, não somente a visão, mas a
audição de mundo.

O rádio e o disco foram também responsáveis pela audição das obras que os
séculos anteriores produziram. Se em outros tempos era comum o hábito de ouvir

cultural. A multiplicação das mídias tende a acelerar a dinâmica dos intercâmbios entre as formas
eruditas e populares, eruditas e de massa, populares e de massa, tradicionais e modernas, etc.”
(Santaella, 1992:14).

125
música contemporânea - como o atesta um sem-número de pesquisas musicológicas - a
implantação do disco e do rádio necessitavam, para sua própria auto-sustentação e
sobrevivência, da criação de um repertório mais amplo, de modo a atender ao mercado
de uma indústria nascente, potencialmente destinada à onipotência imperialista, como se
pôde constatar décadas mais tarde. Esse levantamento de repertório, ainda que não fosse
a intenção primeira da indústria do disco, propiciou um estímulo à interpenetração de
informações sonoras de tempos passados. Em suma: o rádio e o disco possibilitaram,
pela primeira vez na história da música, a simultaneidade da escuta no tempo e no
espaço, a história e a geografia da música. Em outras palavras, diacronia e a
sincronia104.

Para citar alguns exemplos, tomemos a década de 1930, época em que o rádio e
o disco já se haviam estabelecido definitivamente, participando mais regularmente do
cotidiano citadino. Esse período nos guarda muitas vozes que se tornaram mitos sem
fronteiras no mundo, sejam as vozes potentes e projetadas como a de Beniamino Gigli,
sopranos lírico-ligeiros como Josephine Baker, barítonos que modulam a voz entre a
voz de peito e o sotto voce, como Carlos Gardel, a quase-fala de Mário Reis e Noel
Rosa.

Nos Estados Unidos, o cinema passava a falar, a cantar e a dançar, originando a


grande linhagem a dos musicais. Despontavam os crooners: vozes impostadas, mas não
projetadas como a de Bing Crosby poderia conviver com a emissão gutural de um Fats
Waller ... No Brasil, despontavam os cantores do rádio, a chamada época de ouro105.

104 No entanto, é prudente lembrar que a tentativa de abraçar tempo e espaço já era praticada no século
XIX, embora não lançando mão dos subterfúgios da esquizofonia. Nesse sentido, basta lembrar que, por
volta de 1830 Mendelssohn redescobria Bach, enquanto Liszt executava obras dos seus contemporâneos
europeus.

105 Muito se tem condenado, oralmente, ou por escrito, esse período da história musical do Brasil. Tais
críticas se fundam, geralmente, em pressupostos de ordem sociológica: a ascensão do rádio e a criação de
seus mitos - não somente os cantores, mas também os locutores, rádio-atores - estão estreitamente
vinculados à manipulação ideológica totalitária da ditadura da era Vargas. Quanto a isso, não nos
opomos. Que os textos das músicas estejam carregados de preconceitos, como O teu cabelo não nega, de
Lamartine Babo (mas como a cor não pega, mulata eu quero o teu amor), isso é um fato incontestável.
Porém, esse mesmo L. Babo é autor de outras canções de um lirismo profundo como Serra da Boa
Esperança ou satíricas como Canção para inglês ver, dotada de um humor inigualável, desmonta a língua
inglesa para reconstituí-la em seu aspecto icônico (aqui nos remetemos mais uma vez à categoria de C. S.
Peirce). No que diz respeito às vozes, aqueles que não conseguem ouvir a música, mas apenas as letras,
que nos desculpem! Os cantores do rádio da era Vargas, a grande maioria deles, irrepreensível, seja na
pronúncia, na impostação, na afinação, na interpretação. Com isto queremos dizer que Carmen Miranda
não fez sucesso no Brasil e nos Estados Unidos unicamente por razões políticas. A baiana estilizada deve
seu sucesso não a falsa baiana cesta de frutas, mas à sua performance como cantora.

126
No pedestal dos olimpianos da canção, o Rei da Voz, Francisco Alves -Chico Viola-
com sua potente e bem colocada voz de barítono conduziria seu cetro vocal até sua
morte trágica... À lista podemos acrescentar (para nos limitarmos aos exemplos
masculinos) o seresteiro Sílvio Caldas, o Caboclinho Querido; Orlando Silva, o Cantor
das Multidões... Paramos por aqui. Prosseguir a lista seria tarefa hercúlea, senão
interminável.

A voz virtual

Nos dias de hoje a tecnologia dispõe de recursos que lhe permitem recuperar os
primórdios da voz registrada, eliminando uma boa parte do ruído de fundo: uma
gravação arqueológica de Caruso nos é acessível dentro de padrões mais aceitáveis da
nossa moderna hi-fi. As intervenções da tecnologia de ponta ultrapassam, entretanto, o
velho sonho de aquilatar o que foi registrado em padrões hoje ultrapassados: essa
tecnologia dispõe de recursos para até mesmo fabricar vozes (ou outros sons): vozes
cujo conhecimento não passava, até pouquíssimo tempo atrás, de uma mera abstração,
uma conjectura no universo audível.

Esse caso pode ser ilustrado com o instigante exemplo da voz de Farinelli (Carlo
Broschi, 1705-1782), confeccionada a partir de técnicas de tratamento digital
desenvolvidas pelos pesquisadores do IRCAM (Institut de Recherche et Coordination
Acoustique / Musique, Paris) Philippe Depalle, Guillermo Garcia, Xavier Rodet e Boris
Doval, para o filme Farinelli, de Gérard Corbiau. No intento de ressuscitar a vida e a
voz do castrado que tanto furor causou na Europa do seu tempo, Corbiau teve o especial
cuidado de igualmente reconstituir o que teria sido essa voz, de que tanto se tem notícia,
mas da qual não podemos exercer nosso testemunho auditivo. Dado que a castração foi
proibida no século passado, não existe nenhuma gravação suscetível de fornecer
informações acústicas precisas: o último castrado, Alessandro Moreschi, falecido em
1922, deixou-nos alguns minutos de gravação em cilindros de cera (1902-1904) que não
nos permitem senão uma apreciação global dessa estética em extinção.

127
Dessa forma, os pesquisadores do Ircam tiveram de realizar gravações de vozes
que se assemelhassem ao que através da literatura, dos tratados técnicos e da gravação
de Moreschi se supõe ter sido a voz de castrado, no que diz respeito à tessitura, vibrato
e articulação, as vozes do contra-tenor Derek Lee Ragin e da soprano coloratura Ewa
Godlewska (Galliari, 1994:26). Em seguida, as duas vozes foram sintetizadas nota a
nota, a fim de homogeneizar ambos os timbres; tratamentos adicionais para efeitos para
a obtenção de notas longas, inexequíveis por cantores de hoje, entre outros foram
realizados numa etapa seguinte.

Esse recente exemplo, excitante e perturbador, torna nossa questão inicial ainda
mais complexa. Não se trata somente da voz mediatizada em suas múltiplas
possibilidades. Além dos exemplos já tradicionalmente conhecidos no âmbito dos
diferentes recursos de captação, fixação e remodelagem (manipulação) do som, estamos
diante de um novo signo que se impõe: a voz virtual, ou seja, a voz cuja origem deixa de
ter a origem em um corpo, podendo ser a síntese de muitos outros.

Um outro problema que aí vem somar-se é que as antigas gravações analógicas,


passadas para o sistema digital acabam por transformar a natureza da matriz original. O
advento do disco compacto e sua necessidade de impor-se num mercado amplo, trouxe
consigo, além da edição de títulos recentes, uma boa parte do repertório da música
anterior à alta-fidelidade. Assim, as antigas gravações analógicas em 78 rotações vêm
sendo submetidas a intervenções técnicas bastante sofisticadas cujo objetivo não é outro
senão reabilitar as vozes das divas e dos virtuosi do passado a fim de colocá-los à venda
para os novos ouvidos, mais exigentes em termos de alta-fidelidade e menos propensos
a um esforço de decifração da escuta. Os sons das gravações arcaicas não devem mais
ser conjeturados ou corrigidos, através da imaginação, mas ouvidos, límpidos e
cristalinos, livres de qualquer sujeira que a baixa fidelidade (lo-fi) nos legou: o chiado,
o pipocamento. A extinção do barulho representa, no fim de contas, uma ponte que
conduz o ouvinte diretamente no fio do tempo, sem qualquer ruído. Finalmente Caruso,
ressuscitado, canta em nossa casa...

Ao mencionarmos o termo ruído remetemo-nos, na verdade, a um conceito


clássico da Teoria da Informação. Explicamos: Já no momento em que o engenheiro de
som converte uma matriz analógica em digital, ele pratica o ruído pois, trata-se de
sistemas diferenciados no seu próprio fundamento, ainda que compatíveis. Num
segundo plano, quando o engenheiro consegue eliminar o ruído - o barulho: o chiado, o

128
pipocamento - na verdade, ele está estabelecendo um ruído no código da linguagem
fonográfica, que interfere diretamente no estatuto do signo. Assim, inaugura um novo
modo de ouvir, uma escuta de outrora que não poderá ser recuperada senão sob a forma
de um passado virtual, o ouvido de hoje que pretende ser o ouvido de ontem...

Ora, o tempo transcorrido não tem volta. A escuta tem uma história que lhe é
própria: ela se inscreve no corpo, através de formas selecionadas pela cultura e pela
história da sociedade. Está atada, portanto, às implicações da ontogênese e da
filogênese.

A volta em marcha-ré não é possível, mesmo através da aplicação da mais


avançada tecnologia. A tecnologia não pode, assim, ser mitificada. De modo que,
quando concordamos com o famoso dito: Gardel canta cada dia mejor - é porque
nossos ouvidos voltam-se, a cada escuta, para a singular performance de Gardel, a
riqueza de seus tangos. Sombras, nada mas.

129
3. A voz na música contemporânea (presto vivace)

3.1. Demolindo antigas fronteiras: a contribuição da poesia

“O nosso mundo bucal está em expansão”

Henri Chopin

Dizíamos, logo no início deste trabalho, que o século XX foi marcado pela
invasão do ruído. Expressão sonora da mecanização da vida cotidiana das grandes
metrópoles, foi o ruído responsável pelo aumento do barulho na paisagem sonora,
transfigurando-a de forma radical. Pudemos igualmente observar que este ruído-barulho
desempenhou, além deste papel, um outro: o ruído de código106, responsável pela
reconfiguração da linguagem musical. E essa reconfiguração não é exclusividade da
linguagem musical.

A arte, de um modo geral, foi também rearticulada em todas as suas formas de


linguagem. Senão vejamos: o período que tratamos contém as revoluções iniciadas por
Cézanne, na pintura e Mallarmé, na poesia. Esse período é também o momento da
consolidação da imagem (a fotografia) e da aparição da imagem em movimento
(cinema). É também o momento em que as artes começam não apenas a dialogar entre
si, como ocorria no Romantismo - vide os poemas sinfônicos de Liszt, as canções sem

106 Num panorama mais amplo, verificamos que o ruído de código estende-se às transformações da
própria concepção de mundo: a generalização do uso da eletricidade, a formulação da Teoria da
Relatividade e, posteriormente, da física quântica; mudanças abruptas no conceito de sociedade civil,
motivadas pela queda dos impérios coloniais e à ascensão ao poder político, pela primeira vez na história,
de regimes de orientação socialista são alguns dos fatos que constituem o telão de fundo do início deste
século.

130
palavras de Mendelssohn: as artes passam a se interpenetrar a ponto de, muitas vezes,
ser difícil estabelecer uma linha demarcatória entre elas.

Nesse caso, interessam-nos os experimentos e obras realizadas pelos poetas que


se preocuparam diretamente pela sonoridade da voz. Referimo-nos à poesia fonética,
letrista e sonora encabeçadas, respectivamente, pelos futuristas e dadaístas, Isidore Isou
e Henri Chopin. Passemos a um rápido comentário sobre o assunto.

Ao falarmos em poesia sonora voz referimo-nos, na verdade, a um


conglomenrado de experiências realizadas que designa, a princípio, “(...) toda espécie
de experimento com elementos passíveis de escuta de uma obra poética” (Menezes,
1992:9), tendo como característica não somente a existência a realização acústica, como
também o repúdio à escrita e às performances declamatórias tradicionais. Esta poesia
encampa, grosso modo, todo esse gênero de produção poética em dois grupos: a poesia
fonética e a sonora propriamente dita. A primeira é representada pela produção anterior
a década de 1950; a segunda, pela introdução dos meios eletroacústicos.

A poesia fonética tem início nos primeiros anos deste século. Surge
primeiramente com os poetas futuristas e dadaístas, com objetivo nítido de criar uma
linguagem fonética capaz de suplantar a comunicação social, isenta de toda e qualquer
carga semântica. Assim, são experimentadas todas as possibilidades do aparelho
fonador, desprovido do suporte de quaisquer outros meios expressivos. As orientações
variam de uma tendência estética para outra, bem como de autor para autor, sendo
difícil traçar um perfil geral que caracterize todos eles. Assim sendo, esboçaremos
apenas alguns traços que consideramos essenciais para a compreender os novos
paradigmas da voz.

No Dadaísmo, os experimentos percorrem desde o Valor da Voz, nela mesma


(sem a interferência de pontuação fraseado ou dicção) apregoado por Hugo Ball (1916),
os Poemas par Gritar e Dançar, de Pierre Albert-Birot (1917-1918) que jogam na
teatralidade o papel fundamental da performance, a poesia óptico-fonética de Raoul
Hausmann (1918-1966). Kurt Schwitters, de sua parte, realiza, a partir de um poema de
Hausmann, a sua Ursonate - sonata em sons primitivos (1922-1927), obra
grandiloqüente composta sobre a forma musical sonata, cujo material básico são os
fonemas estruturados de modo totalmente destituído de qualquer teor semântico. Dessa
época encontram-se ainda alguns experimentos tentando unificar poesia e música, como

131
é o caso da música verbal, de Michel Seuphor (1926), acompanhada por russolofone,
obra que, segundo Henri Chopin (1979), representa o prenúncio da poesia sonora.

Se o Dadaísmo procura dessacralizar a língua, através do humor e da ironia


fundados numa linguagem pré-verbal, o Futurismo ataca em outras frentes: na Rússia,
representada por Khlebnikov e Krutchenik, a criação do zaum, setor mais radical dessa
estética na Rússia, prega, igualmente, a criação de uma linguagem transmental
destituída de semântica, ao recuperar a língua dos loucos e os dialetos. Na Itália, busca-
se nas parole in libertà, tendência criada e desenvolvida por Marinetti, a utilização de
onomatopéias, reconstruindo a paisagem sonora da vida moderna. Tais onomatopéias
deveriam elaborar uma linguagem que incorporasse elementos sensoriais até então
desprezados pela literatura: “1. o ruído (manifestação do dinamismo dos objetos); 2. o
peso (faculdade de vôo dos objetos); 3. o cheiro (faculdade de espalhamento dos
objetos)” (Marinetti, in Bernardini, 1980:85)

Um outro movimento importante, dentro dessa linhagem, é o Letrismo,


encabeçado pelo romeno Isidore Isou algumas décadas mais tarde (1947). Tão radical
como o Dadaísmo, no que tange a experimentação acústica, essa estética apresenta uma
proposta política polêmica, ao ditar a criação de uma nova Europa, reconstruída a partir
da introdução de elementos de culturas aborígenes, tanto na música como na poesia.
Essa corrente poético-musical representa a última tendência em poesia antes do advento
da eletroacústica.

A poesia sonora também teve sua cota de participação, aliás muito importante,
no que diz respeito à ampliação do conceito de voz em termos estéticos. Surgiu no final
da década de 1940, muito proximamente aos experimentos de Pierre Schaeffer e Pierre
Henry com a música concreta, nos estúdios da ORTF, a Radio France (1948). Tomando
a voz em sua materialidade pura, explorada no seu aspecto sonoro, por intermédio da
manipulação dos recursos da eletroacústica, a poesia sonora conseguiu reunir um
conjunto de obras que poderiam ser encaradas como obras musicais107. Representada
sobretudo pelos franceses Henri Chopin, Arthur Pétronio, Bernard Heidsieck, François

107 Paul Zumthor assim caracteriza a gênese da poesia sonora: “o desejo do retorno ao oral, no âmbito
dos poetas; o desejo de retorno ao falado, no âmbito dos músicos” (Zumthor, in Menezes, 1992:139). A
diferença entre a poesia sonora e a música está, então, no método de cada uma dessas linguagens: a poesia
sonora tem como ponto de partida a voz extraída de seu uso cotidiano, tendo como referência o trabalho
realizado pelas vanguardas históricas (os foneticistas); a música concreta e eletrônica teriam como

132
Dufrêne, na década de 1950, acrescida de outros nomes na década seguinte (Pierre e Ilse
Garnier, o italiano Arrigo Lora-Totino, entre outros) tal movimento se utilizou da
mediatização técnica para compor suas obras.

O experimentalismo levado a cabo pela poesia e pela música também vai


contribuir para um esfacelamento das fronteiras entre as duas artes. Lembrando que uma
característica da arte do século XX em geral é justamente a tendência à eliminação de
fronteiras nos domínios artísticos, o que propiciou o surgimento da chamada arte
multimídia, podemos constatar que a música, de sua parte, também contribuiu para esse
novo redimensionamento. O conceito de voz musical, por exemplo, expandiu-se
consideravelmente. Para compreender essa evolução, é necessário efetuarmos uma
ruptura cronológica e retomarmos a situação em que a voz se encontrava no momento
em que surge o disco e que a ópera verista reinava absoluta. É preciso, pois, destacar o
trabalho realizado por Schoenberg.

3.2. A música contemporânea: entre o ruído e o silêncio.

Sprechstimme, Sprechgesang:

Como vimos, o período de transição que separa os séculos XIX e XX foi palco
de inúmeras mudanças praticamente em todos os domínios da vida social, científica e
artística. Na música, observamos a entrada dos meios de captação, fixação e
remodelagem do som; a voz de Caruso se propagando pelo mundo, difundindo a canção
napolitana e a ópera verista de Verdi e de seus seguidores. Ainda no continente europeu,
a França descobria o resto do mundo: Debussy escutava o Oriente e a Oceania, o
gamelan da ilha de Bali (Polinésia), incorporando novas noções de timbre nas suas
obras. A Alemanha triunfava igualmente com uma outra ópera, a grandiloquente

procedimento a organização dos sons vocais obedecendo a uma eufonia segundo critérios estabelecidos
pelo compositor (Menezes, 1992:14).

133
gesamtkunstwerk (obra de arte total) de Wagner, despertando paixões as mais diversas.
Desenvolvia-se uma corrente pós-romântica germânica (alemã, austríaca) representada
por Richard Strauss e Gustav Mahler. Se este incluía coro na segunda e na oitava
sinfonia para gigantesca orquestra, Strauss não ficava atrás: ambos compunham lieder
com acompanhamento orquestral, levando o desenvolvimento do cromatismo às últimas
consequências. A partir desses compositores, o sistema tonal se esgotaria, colocando-se
à beira de um abismo. Nesse intercurso, surge a figura de Arnold Schoenberg (1874-
1951).

Schoenberg foi justamente quem deu o último passo, verdadeiro salto em queda
livre para um outro universo sonoro-musical. Consciente dos rumos que tomava a
linguagem musical, resolveu interceder em seu destino, ao proclamar a entrada de um
novo sistema, não mais baseado na hierarquia de funções características do sistema
tonal (tônica/ dominante; consequentemente, repouso e tensão). Após sintetizar os
conhecimentos adquiridos com o cromatismo wagneriano (1896-1906), compõe obras
em linguagem atonal (1906-1923), onde destrói a harmonia tradicional, passeando por
um território mais amplo, livre das referências impostas pela estética vigente desde o
período barroco. Esse período teria consumado suas experiências mais radicais entre
1923 e 1933, época em que Schoenberg estabelece um novo marco na história da
música: o dodecafonismo, técnica que predispõe os sons em igual função entre si,
evitando, por conseguinte, o estabelecimento de polos de tensão. Se o dodecafonismo
representa a anulação completa e definitiva da tonalidade, experimentos anteriores
realizados por Schoenberg contribuiriam em grande medida para que o reino da
tonalidade fosse derrubado. É precisamente nesse particular que o tratamento da voz
terá um papel fundamental. Referimo-nos, pois, ao sprechgesang.

Sprechgesang traduz-se para o português como canto falado. Novidade absoluta,


foi uma das idéias mais importantes estabelecidas por Schoenberg. Se na música
cantada sempre houve a possibilidade de inserir textos falados108, jamais a fala foi
incorporada do modo como o prescreveu Schoenberg. Essa nova maneira de enunciar a
voz, já se encontra presente em obras como os Gurrelieder (Canções de Gurre,1910-
1911) e Die Glückliche Hand (A mão feliz, 1910). No entanto, é em Pierrot Lunaire
(Pierrô Lunar, 1912) que essa nova técnica aparece sistematizada, em toda a extensão

108 Vide diagrama elaborado por Murray Schafer, no início deste capítulo.

134
da obra. Sprechgesang que, para Schoenberg, se expõe de diversas maneiras:
Sprechstimme (voz falada), Sprechmelodie (melodia cantada), Sprechton (nota cantada)
... Essa classificação, que enuncia subdivisões de difícil diferenciação entre si,
envolvendo mesmo dificuldades de notação, atenderia antes de tudo à rítmica. É o que
afirma o compositor Florivaldo Menezes:

“Schoenberg desejaria que, respeitando-se a rítmica por ele escrita (tal como se
fosse mero canto), e observando que a fala abandona as alturas executadas pelas
vogais através de quedas ou ascensões (glissandi?), o executante não deveria
expressar-se através de uma fala ‘cantabile’, recorrendo à fala numa forma
eminentemente musical, mas que tampouco lembrasse o canto, nunca! (...‘deve-se
também nunca lembrar o canto’). E, concluindo, realçava que tampouco deveriam os
intérpretes recorrer ao conteúdo dos poemas para subtrair daí sua maneira de se
expressar musicalmente” (Menezes, 1987:96-97).

A voz emite, então, um canto-falado que não se apóia nas alturas fixas (as notas
musicais). Deparamos, por conta disso, com um ruído no código musical, ruído este que
será ampliado na versão final de Die Glückliche Hand (1910-1913), quando o
compositor acrescenta às formas de Sprechgesnag o canto (gesungen), o sussurrado
(geflüstert); sussurrado bem sonoramente (klangvoller geflüstert), sussurado sem
sonoridade (geflüstert tonlos); falado sonoramente (klangvoll gesprochen; gesprochen,
mit Klang), entre outros (Menezes, 1987: 99). Essas novas vozes que se impõem à voz,
atenderiam, ainda segundo Menezes, a uma necessidade de recuperação da
temporalidade, mantida por intermédio de uma certa linearidade discursiva, lição muito
bem aprendida e desenvolvida por um dos seguidores de Schoenberg, o austríaco Alban
Berg (1885-1935).

Para Berg, a declamação rítmica permite a preservação de todas as


características da estruturação musical absoluta, o que não é possível com o recitativo
tradicional (Berg, 1985:115). Isto se comprova em suas revolucionárias óperas, Wozzeck
(1917-1922) e Lulu (1929-1935). À parte diversos aspectos que constituem as inovações
estabelecidas pelo compositor (instrumentação, libretto, forma etc.), Berg se vale do
dodecafonismo de modo não tão ortodoxo como o de seu mestre ou seu colega Webern,
reintroduzindo as formas tradicionais (recitativo, por exemplo) nos moldes da estética
dodecafônica. A voz musical mantém-se, a rigor, dentro dos limites desses parâmetros
até que um novo experimentalismo venha a tomá-la de assalto, explorando-a não apenas

135
na sua materialidade in natura, como também através dos recursos oferecidos pela
eletroacústica.

Todas as vozes da voz:

O próximo marco que assinala um novo ruído no código musical, no que se


refere à voz, encontra-se na figura do italiano Luciano Berio (1925), um dos
compositores de sua geração, ao lado do francês Pierre Boulez (1925), do alemão
Karlheinz Stockhausen (1928) e do nosso Gilberto Mendes (1922), Berio é um dos
autores mais importantes de música vocal. Fundador, juntamente com Bruno Maderna
(1920-1973) do Studio de Fonologia em Milão, na década de 1954, onde permaneceu
até 1960, contou com a valiosa participação da cantora Cathy Berberian (1928-1983),
criadora e recriadora de vozes. Esse rico intercâmbio da parceria Berio / Berberian
resultou em obras fundamentais não apenas no repertório do compositor, como também
no repertório da música para voz, de um modo geral. Por essa razão, justamente,
tomaremos o compositor como referência obrigatória e constante a ponto de, muitas
vezes, citá-lo literalmente. Assim sendo, convém tomar como ponto de partida a
delimitação do que seja, para ele, voz musical:

“Considero a voz falada como um instrumento dentre outros. A partir do


Pierrot Lunaire de Schoenberg, a voz falada não é mais exterior à música”. Fala que,
de acordo com Berio, torna-se mais musical à medida que ganha o caráter de
virtuosidade:

“Tudo que chega ao nível da virtuosidade me interessa muito. Há virtuosi


absolutamente destacáveis - como os speakers do rádio ou da televisão, por exemplo,
que narram o jogo de futebol; eles falam muito rápido, não acompanhamos muito bem
e, ao mesmo tempo, todo o mundo entende. A colocação da voz, as articulações rápidas,
todos os aspectos mecânicos são muito interessantes. Pois eu acredito muito na
virtuosidade: ela permite a mudança de nível, o deslocamento das coisas do nível de

136
emissão banal ao da percepção transfigurada. Sobretudo quando a voz está ligada a um
controle de velocidade bastante excepcional(...)” (Berio, apud Stoianova, 1985: 72).

As obras de Berio opõem-se deliberadamente à tradição do bel canto italiano,


negando, dessa maneira, a técnica instrumental que suprime os ruídos e irregularidades
da emissão vocal, tal o mostram composições como Circles, Passagio, Omagio a Joyce,
Visage, Laborintus II. Dentre todos os exemplos talvez o mais conhecido seja a
Sequenza III (1966) para voz solista. Esta obra constitui um marco fundamental na
história da música vocal dos últimos decênios, tendo sido objeto de vários estudos 109.
Assim sendo, poupamo-nos de apresentar aqui sua análise, atendo-nos somente aos
aspectos que nos interessam diretamente, isto é, os novos parâmetros da voz. É preciso
ainda lembrar que a Sequenza- III, assim como outras obras de Berio, contou a valiosa
contribuição de Cathy Berberian, cantora que descobriu novas vozes da voz. Por essa
razão, constitui uma das obras de referência dos últimos tempos.

Para o próprio autor, o material de que Sequenza III é constituída não é outro
senão o próprio riso. O riso, como ação vocal cotidiana reorganizado de maneira
virtuosística, complexa, vale dizer, afastado de sua banalidade; o riso, segmentado em
suas múltiplas gradações, desenvolvido na escritura: estilizado, fixado em alturas
aproximadas; atacado em articulações rápidas, de modo a simular a articulação da fala.
A fixação de notas longas, em contrapartida, permite a percepção das ínfimas mudanças
de timbre, quando da passagem de uma vogal para outra. Também a transcrição do riso
em suas diversas manifestações (sorriso, gargalhada, riso nervoso etc.), guiadas não por
signos musicais (meio-forte, forte, piano), mas por comportamentos vocais (langoroso,
terno, tenso, sonhador...) permite à cantora engendrar gestos vocais que, em si mesmos
destituídos de qualquer referência trágica, contribuem, no seu conjunto, para a formação
de uma imagem trágica e desesperada (Berio, apud Stoianova, 1985:85). Dessa maneira,
a peça abre a possibilidade de exteriorizar emoções e afetos, sem a intermediação
desnecessária da língua.

A musicóloga Ivanka Stoianova assim define o gesto vocal proposto por Berio:
“O gesto enquanto intenção ou resíduo de um ato lingüístico com toda a complexidade
das cargas afetivas exteriorizadas define o jogo dirigido dos comportamentos vocais e

137
eletrônicos de uma matéria sonora não-verbal” (Stoianova, 1985: 8). Em outras
palavras, o gesto vocal em si determina uma performance que não se investe de um
conteúdo semântico de outra natureza.

Uma outra abordagem interessante da voz encontra-se nos Mesósticos110 de John


Cage, nos Re e não Re Marcel Duchamp do mesmo modo que nos Re Merce
Cunningham (1971) para voz não acompanhada e microfone. Compostos ao acaso, a
partir de livros diversos e anotações do bailarino e amigo pessoal Merce Cunningham,
todo esse material submetido a operações de I-Ching, resultaram em obras dotadas de
uma partitura-poema visual que inclui mais de 700 tipos de letra-set, cada letra devendo
ser executada por timbre, duração, intensidade e modo de ataque diferentes (quando
ainda não são compostos de silêncio absoluto). Ao declamador-cantor é conferida uma
larga faixa de criatividade e improvisação: na verdade, Cage impõe somente duas
restrições: 1- cada bloco não deve durar menos de 90 segundos; 2- o executante deve
executar no mínimo cinco unidades, o que quer dizer, a realização da obra poder ter a
duração compreeendida entre 7’30”e 3h 30’.

A voz também ampliou seus domínios a partir das pesquisas de Dieter Schnebel
sobre a Glossolalia111 (1959-1960). É o próprio Schnebel que explica no que consiste
essa obra: “Não escutamos as palavras como música porque tentamos compreender o
sentido. Se a música é tomada como linguagem, queremos escutar a música e não a
linguagem. Glossolalia é uma música que se situa entre apalavra e a música , não é
uma, nem outra” (Schenbel, apud von der Weid,1992:227). Outras obras, como
Maulwerke (Obras para Garganta, 1968-1974) destinam-se aos vários órgãos vocais,
onde o que é enfatizado é a origem da produção do som, ou seja, a música de todo o
aparelho fonador, explorado em cada região. Schnebel prossegue suas pesquisas nesse
sentido, compondo mais tarde Atemzüge (Respirações), onde a respiração imobiliza a
palavra até que a emissão de um grito de dor a resgate; Körper-Spreache (Linguagem do

109 Dentre eles, poderíamos citar Stoianova (1985): Luciano Berio: Chemins de la nouvelle musique;
Avron e Lyotard (1972): “‘A few words to sing’ Sequenza III”, in: Musique en jeu, no.2; Gagnard (1987):
La voix dans la musique contemporaine et extra-européenne.

110 O termo mesóstico deve ser entendido analogicamente como um acróstico em que a palavra-chave se
encontra não no início, mas no meio de cada verso.

111 Enunciados numa língua que não existe, presente nos estados de transe religioso, nos estados de
afasia aguda, ou mesmo nas brincadeiras infantis. Apesar de isentas de qualquer infra-estrutura gramatical
ou semântica essas não-línguas comunicam uma dada mensagem que pode ser compreendida.

138
Corpo, 1979-1980), uma visão retrospectiva do corpo humano e seus movimentos,
através de um silêncio que mate os sons; um assassinato sonoro (von der Weid,
1992:227).

A voz dos alto-falantes:

Existe, ainda, um outro panorama que se estendeu à voz musical: o da música


concreta e eletrônica112. Esse novo meio que propiciou uma nova performance vem
legando muitos frutos importantes. Desde as pioneiras obras de Pierre Schaeffer e Pierre
Henry, como Sinfonia para um Homem Só (1950), até Gesang der Junglinge (Canto dos
Adolescentes, 1956), de Karlheinz Stockhausen, o tratamento dado à voz por meio da
eletroacústica tem sido os mais diversos, variando de obra para obra. A partir desse
instante, a música aceita não somente a invasão do ruído, tão banido em toda história do
bel canto, como ainda inclui a mediatização técnica. Senão observemos a extensão que
adquire a voz quando tomada pela música eletrônica. É Christian Cloizier, co-fundador,
em 1970, do Grupo de Pesquisas Musicais de Bourges que afirma:

“A voz não é mais palavra ou canto; é tudo que sai da boca, tudo que é fraco
demais para sair e que se pode tomar por microfones de contato, é a voz natural no
espaço acústico, a voz sonorizada, a voz registrada, a voz ‘telefonada’, manipulada, a
voz conduzida por ondas, a voz dos outros povos, das outras culturas(...) . Essas vozes,
essas cores constituem nosso meio-ambiente sonoro permanente tomam corpo com a
nossa cultura. Não existe mais uma voz, mas vozes” (Clozier, apud Chopin, 1979: 277).

À voz na música contemporânea é, pois, conferida uma nova dimensão, que se


deve não somente ao desenvolvimento das vozes exploradas não somente no universo

112 Atualmente, designa-se esse gênero de música pela expressão música eletroacústica. Sua origem
partiu de dois pontos diferentes, simultaneamente. De um lado, dos experimentos de Pierre Schaeffer, nos
estúdios da Radio France, quando gravava, em fita magnética, objetos sonoros os mais diversos,
submetendo-os, em seguida, a processo de montagem: decupagem, filtragem de freqüências, mudança de
velocidade da fita magnética etc. Karlheinz Stockhausen, de sua parte, executava o mesmo trabalho, nos
estúdios da West Deutsche Rundfunk, mas utilizando como matéria prima sons obtidos por meio de

139
da música, como também na poesia sonora. Além dos casos já citados, é necessário
destacar o papel de artistas que concebem suas obras num campo flutuante entre poesia
e música, artistas que não poderiam ser classificados, a rigor, como músicos ou poetas.
Não raramente, atuam nos dois campos simultaneamente. Um caso é o belga Leo
Küpper. Desde 1965 pesquisando as novas possibilidades da expressão vocal (fonemas,
alofones, fonatomos, logatomos, micro-sons fonéticos), seu nome figura tanto no rol dos
autores de poesia sonora (Chopin,1979:273-274), quanto nos de Música Nova 113.

Um outro tratamento que atualmente é dado à voz é aquele que vem sendo
desenvolvido por meio da informática. São os programas que fundem a voz humana à
de outros instrumentos, filtram timbres, modos de ataque etc., capazes não apenas de
remodelar mas de criar novas vozes, vozes virtuais, como citamos no item anterior. Tais
projetos encontram-se em pleno desenvolvimento desde a década de 1970, em alguns
centros na França (IRCAM - Institut de Recherche et Coordination Acoustiques /
Musicales; GRM- Groupe de Recherches Musicales, Paris) na Alemanha (West
Deutsche Rundfunk, Colônia), nos Estados Unidos (Center of Computer Research in
Musics and Acoustics , Stanford, Califórnia) entre outros.

A música contemporânea de concerto pode, então, ser sinteticamente


caracterizada pela abolição de dualismos (som / ruído; som / silêncio; som melódico /
ruído; extremos de intensidade etc.). Marca-se também pela criação de novos signos
musicais, ruídos e suas mesclas (ruidismos); silêncio e tempo estabeleceram-se como
formas de percepção; diluição da harmonia e da melodia. Também se caracteriza pela
quebra de direcionalidade da leitura da partitura, dando lugar a gestalten (campos
sonoros) (Koellreutter, 1990).

Dentro desse panorama, os cantos da voz, principalmente a partir da década de


1960, vem-se ampliando de forma bastante difusa. Poderíamos, então, concluir este
capítulo sintetizando alguns dos procedimentos mais significativos, a fim de melhor
ilustrar essa abordagem:

geradores de frequências. Pouco tempo se passou até que ambas as técnicas passaram a ser utilizadas
concomitantemente. Hoje em dia, traçar uma subdivisão entre os dois procedimentos é atitude obsoleta.

113 Nesse caso, podemos citar nosso testemunho pessoal: Já tivemos a oportunidade de tomar algum
contato com Léo Küpper, em concertos realizados nos Festivais Música Nova, de Santos. Suas obras
vocais constituem um dos interesses maiores do compositor que, como ele próprio atesta, conta com a
participação ativa da cantora Anna Maria Kieffer.

140
- a introdução do ruído, aqui representado pelos sons anteriormente banidos do
universo da arte (arrotos, tosse, gritos) e pela voz mal colocada, isto é, sem a
impostação tradicional do bel canto;

- a utilização dos recursos da eletroacústica, que permite decompor o som vocal


em seus harmônicos, reorganizá-los; submetê-los ainda à sobreposição, aceleração ou
retardo, repetição, fragmentação, retrocesso etc.; inclua-se nesse item a recuperação do
ruído, banido do bel canto;

- o rompimento da integridade do texto lingüístico, muitas vezes fragmentado


com vistas a uma utilização meramente dos elementos fonéticos, sobretudo após a
introdução do pontilhismo serial; o rompimento semântico coincidindo, muitas vezes,
com uma escritura pontilhista da parte vocal, evitando o fraseado melódico tradicional;

- a eliminação da fronteira entre som vocal e signo linguístico, portador de


significação precisa, permitindo à música engendrar gestos (também vocais) como
expressão de afetos, subjacentes à expressão verbal;

- a voz extraída de seu uso cotidiano, banal, submetida a um tratamento musical


bem mais complexo, exigindo virtuosidade por parte do executante.

- a inclusão, na música, de expressões vocais não linguísticas (gritos, sussurros,


choro, riso etc.) despojados de seus valores afetivos e encarados como elementos
expressivos de uma linguagem musical de horizontes mais amplos (vide por exemplo, o
riso em Sequenza III, de Berio); também o inverso: expressões emotivas transportadas
diretamente para a linguagem musical (vide Eight Songs For a Mad King, de Peter
Maxwell Davies, peça composta em 1969).

Por último, poderíamos acrescentar o emprego recente, por parte de alguns


compositores, de uma escritura progressivamente mais complexa (Ferneyhough, por
exemplo) com o objetivo de criar uma tal tensão emotiva no executante, de modo a
obter, na dificuldade de execução, uma forma expressiva na performance da obra.

Iniciamos este tópico com a citação de uma frase do poeta Henri Chopin: “O
universo bucal está em expansão”. A esta frase poderíamos acrescentar: Não somente o
universo bucal, como áudio-vocal estão em expansão. A aceitação - ainda que difícil -
dos novos paradigmas em que a voz musical se desenvolve hoje está estreitamente atada
a uma nova paisagem sonora vocal que o ouvido, a duras penas, teve de assimilar.

141
Muitas propostas foram postas em prática pelos compositores, sobretudo nos anos pós-
guerra, época em que a eletroacústica vem somar-se aos procedimentos já existentes114.

Limitemo-nos, pois, a um nome que, se não se utilizou de todos as técnicas


elaboradas pela música contemporânea, pelo menos é autor de obras significativas no
âmbito das técnicas mais difundidas na contemporaneidade. Sem a pretensão de realizar
uma análise exaustiva de sua obra, propomo-nos tão-somente um passeio por algumas
obras vocais que ilustram satisfatoriamente o que comentamos ao longo deste trabalho.
Propomos uma viagem aos Mares do Sul, onde se encontra a música do compositor
Gilberto Mendes.

114 Referimo-nos aos diversos ismos: neoclassicismo, politonalismo, microtonalismo, serialismo,


minimalismo, música aleatória.

142
4. Tema com variações (allegro con brio)

A voz dos Mares do Sul: a música de Gilberto Mendes.

4.1. Gilberto Mendes: um compositor comprometido com o mundo


contemporâneo.

Gilberto Mendes (1922) é, sem a menor sombra de dúvida, um dos mais


importantes compositores da música contemporânea brasileira. Pioneiro, no país, no
domínio da música aleatória, concreta, microtonal. Orientado inicialmente para o
nacionalismo - escola dominante na ocasião de sua formação musical, passou a ser
considerado como um dos expoentes da vanguarda musical brasileira a partir da obra
coral nascemorre (1963), sobre poema concreto de Haroldo de Campos.

Compositor mais importante do Grupo Música Nova pelo conjunto de suas


obras, sofreu influência direta do grupo dos concretistas paulistas (com quem mantinha
contato), da escola de Darmstadt (Boulez, Stockhausen, Pousseur), além dos centros de
pesquisas eletroacústicas (Paris, Colônia, Karlsruhe). Como destaca o musicólogo José
Maria Neves, a adesão de Gilberto Mendes ao Grupo Música Nova “(...) reflete-se na
adoção de princípios composicionais já totalmente liberados de técnicas tradicionais,
dentro da postura experimental que valoriza a aleatoriedade, a eletroacústica, a
percepção pluri-sensorial da obra de arte” (Neves, 1981:165-166).

Consciente da situação sócio-político-cultural do mundo em que vive, sua obra


atesta, por intermédio de pitadas de humor cáustico, uma crítica aberta à sociedade de
consumo, aos valores burgueses, à postura de políticos de cepas as mais diversas. Sua
postura revela de modo sutil e transparente, como já o demonstra o título de diversas
obras (Mamãe eu quero votar, Vila Socó, meu amor), seu engajamento político. Na
partitura de O último tango em Vila Parisi, encontramos o seguinte depoimento:

143
“Não sou propriamente um compositor de música politicamente engajada, como
o foram Hans Eisler, Cornelius Cardew. Mas sou uma pessoa politicamente engajada.
E minha música, sempre que tomo uma posição política, reflete essa atitude” (Mendes:
1994).

Um outro aspecto importante na obra de G. Mendes reside na liberdade criativa,


jamais submetida à obtenção de cargos oficiais, ou à participação de concursos. Músico
incansável, idealizador e responsável pelo Festival de Música Nova, desde a sua criação,
parece um dos raros compositores da vanguarda experimental que, em momento algum
de sua carreira, abandonou o seu trabalho.

Acreditamos estas razões serem suficientes para justificar nossa opção pelo
compositor. Entretanto, como o que nos interessa aqui é apresentar alguns exemplos
concretos dos pontos analisados ao longo destas páginas, limitaremos nossa exploração
a esses aspectos particulares, deixando as partituras falarem por si próprias. Nossa tarefa
consistirá, assim, em interferir com alguns comentários à margem ou mesmo no interior
da própria partitura.

Antes de iniciar nossa apreciação, é necessário um esclarecimento: as peças


selecionadas pertencem, a sua maioria, à década de 1960. Tal escolha não significa uma
preferência por esse período em particular. Entretanto, é precisamente a época em que
não apenas Gilberto Mendes, como também todas as vanguardas européia e americana
exercitaram a experimentação até as últimas conseqüências.

4. 2. Ouvivendo semioticamente algumas vozes

O limiar da experimentação: nascemorre (1963):

Sobre poema concreto de Haroldo de Campos, obra composta sobre estruturas


aleatórias, microtons, tendo como meios de expressão octeto vocal, instrumentos de
percussão, fita magnética (opcional) e duas máquinas de escrever.

nascemorre é, como afirmamos anteriormente, uma obra pioneira. É um dos


marcos, na história da música do nosso país, de introdução dos paradigmas do

144
serialismo integral, da não-periodicidade, da não-discursividade; do aleatório na
construção formal. É igualmente a porta de entrada do gesto e da ação (performance)
como teatro musical.

O aspecto que chama a atenção, logo de imediato, é a inexistência de alturas


fixas (as notas musicais), mas somente a fixação de faixas de freqüência, que devem se
aproximar da tessitura normalmente utilizada pela fala. Assim sendo, toca diretamente
no problema da notação: a obra tendo sido composta a partir de blocos microtonais
exige uma escritura diferenciada, verdadeiros gráficos e diagramas que possibilitem a
execução prevista pelo compositor. O pentagrama tradicional, neste caso, torna-se
totalmente insuficiente e obsoleto.

A introdução do ruído como elemento estrutural é evidente quando observamos


não apenas a função das maracas e bongôs, como também das batidas de pés e as
máquinas de escrever (conforme demonstra a partitura anexa).

A estruturação do poema de Haroldo de Campos é a fonte geradora de todos os


elementos estruturais da peça, como lembra o próprio Gilberto Mendes: “estruturas
temporais (medidas de 1,2,4 ,e 6 ou 1,3,6 e 9 tempos = sílabas) estatístico-polífonas de
elementos sonoros (consoantes) ou periódico-polífonas (vogais); estruturas direcionais
(estereofonia = direção visual das linhas da poesia) e do crescendo e decrescendo”
(Mendes, 1994: 77).

Quanto às possibilidades expressivas da voz, havemos de notar as 4 formas de


emissão, altamente contrastantes em intensidade; em especial, o som aspirado em
fortissimo. Além disso, a exploração fonética, especialmente da consoante d à qual o
autor pede uma inclusão de um n (vide a 2a. página de instruções gerais). Ouvindo e
reouvindo algumas músicas populares, surge-nos uma indagação: esse d que nasce de
um n parece bastante comum em alguns boleros mexicanos, como por exemplo de Los
Panchos. Até que ponto esse fonema idealizado por G. Mendes estaria isento de tal
influência ?

A paisagem sonora urbana: Cidade Cité City (1964):

145
Sobre poema concreto de Augusto de Campos, partitura-roteiro em homenagem a Nino
Rota, incluindo instrumentos convencionais (cantores solistas, piano, caixa, prato,
contrabaixo) e não-convencionais (à falta de denominação mais adequada ): toca-discos,
gravador, máquinas de escrever, de calcular, televisor, enceradeira, aspirador de pó,
liqüidificador etc..

Nesta obra, além de empregar diretamente ruídos presentes na sociedade


industrial, os chamados - ready made - G. Mendes dá um tratamento especial à voz:
entoada, dublada, gravada; enunciada em idiomas diversos (português, inglês e francês);
pertencente a estilos de época e estéticas os mais variados (The Beatles, Roberto Carlos,
gregoriano). São exploradas as amplas possibilidades da voz (operística, espirro,
assobio) e do corpo (estalos de dedos, correria), tudo envolvido num contexto cênico, ou
melhor: instrumentos, gestos, cenários constituem um todo inseparável, onde as partes
não são dispostas hierarquicamente.

Trata-se, pois, de um teatro musical, tal como foi teorizado por Kagel, nas
páginas anteriores. O exemplo pode aqui melhor ser observado a partir da própria
partitura - na verdade, uma série de instruções dispostas através da própria linguagem
verbal, compreensível mesmo por um não-músico. No entanto, é obra que, para ser
executada, se não necessita de uma formação musical bem desenvolvida, pelo menos
necessita de uma experiência prévia nessa linguagem: o exercício de coordenação,
execução e escuta assim o exigem.

A observação da partitura anexa ilustra claramente no que consiste o teatro


musical, culminado num insólito happening-cadencial na última parte (no.68), quando o
regente / gerente (regerente) transforma-se em... guarda de trânsito!

Santos Football Music (1965):

Para orquestra sinfônica, fitas magnéticas com a gravação de narração de partida de


futebol, charanga e plateia.

146
Outra obra marcante de G. Mendes, no que toca a experimentação. Tal como
nascemorre, esta obra conta com os dados que caracterizam a música da segunda
metade deste século: o som concreto (as narrações esportivas), o som orquestral
desprovido de melodias, a participação do público, o teatro musical, a importância do
espaço como construto musical.

Mostramos, no intermezzo deste texto que entre 1930 e 1940 o rádio passou a
transmitir programas durante todo o dia. Justapondo elementos inteiramente diversos
entre si, de modo estranho, cômico ou provocante acabando por constituir uma unidade
fragmentária diluindo, mesmo, valores culturais. Essa concatenação, elaborada através
de um processo de montagem pode ser encontrada, de certa maneira nesta peça de G.
Mendes.

A montagem, como citamos anteriormente, foi primeiramente introduzida no


cinema por Serguei Eisenstein: “duas sequências de um filme, quaisquer sejam elas,
combinam-se inevitavelmente, quando as aproximamos, em um conceito novo,
revestem-se de uma nova qualidade, nascida dessa justaposição” (Eisenstein, apud
Schafer,1979:139). Estética que nasceu da possibilidade de recortar e colar
primeiramente o filme cinematográfico e, posteriormente, a fita magnética, no caso
particular da música eletroacústica.

Tal procedimento foi utilizado por Gilberto Mendes na composição de Santos


Football Music, principalmente no manuseio da fita magnética, na verdade, o registro
da narração de uma partida de futebol, na voz de Geraldo José de Almeida. Há de se
notar que tal gravação, apesar de suas três décadas de existência, não pode ser
considerada um elemento que faz da composição uma obra datada115.

A participação das torcidas, nos últimos vinte anos tem-se padronizado,


reiterando um comportamento tribal: uniformes, os chamados gritos de guerra, canções
diversas etc.. Desse modo, a torcida - que atua como elemento formal em Santos
Football Music - pode ganhar um colorido diferenciado, se interpretada de acordo com

115 As atuais narrações de futebol no rádio não aceleraram o andamento (se optamos pela terminologia
musical) desde a época em que a narração de Geraldo José de Almeida foi registrada. O que mudou
verdadeiramente, na narração irradiada nas ondas do rádio foi a inclusão da propaganda, no transcorrer do
próprio tempo do jogo e não somente nos intervalos. As intervenções constituem-se geralmente de spots
podendo até incluir um jingle (canção publicitária).

147
observações dos comportamentos mais recentes da torcida do time de futebol e que,
segundo instruções da própria partitura, podem sofrer modificações em cada montagem
(performance).

Tratamento especial dedicado à voz: conforme podemos observar nas instruções


de execução, são faladas / cantadas desde motivos melódicos (A), vogais isoladas
(obedecendo a fonética latina, inglesa ou alemã - A), a fala à meia-voz (C), entoação
característica de um protesto verbal (D), ruídos de qualquer natureza (I), além de
expressões comuns aos gritos de guerra (interjeições: mais um / goal!). Neste último
caso, a exploração de alguns fonemas (SSSSS, MMMMM).

A Renascença revisitada: Motete em ré menor (1966):

Coro a cappella, sobre poema concreto de Décio Pignatari.

Também conhecido como Beba Coca Cola, é uma das raras peças de vanguarda
pertencente ao repertório de uma boa parte dos corais brasileiros. G. Mendes dá a essa
peça um tratamento especial à voz, incluindo sonoridades ainda hoje banidas do
universo estético-musical da nossa cultura: arroto, glissando com voz nasalada, falas
estridentes - “como o pato Donald” - além da ação cênica .

O sucesso dessa composição de G. Mendes - como o próprio compositor admite,


seu maior sucesso, assegurando a inclusão de seu nome em dicionários de música
contemporânea - permite-nos traçar um breve comentário acerca do texto polêmico de
Décio Pignatari: O poema de Décio Pignatari é um clássico da poesia concreta. Coca
Cola foi publicado em Noigandres 4, 1958, juntamente com o plano piloto para a
poesia concreta. Ao contrário de algumas interpretações equivocadas, o poema se
inspirava na pulsação dos luminosos em todo o mundo, anunciando o produto. Isto foi
difícil de ser compreendido desse modo por parte de um vasto público não- esclarecido.
(Franchetti,1993:20). Entretanto, esse equívoco perdurou por bastante tempo,
dificultando mesmo a edição da partitura (Mendes, 1994:107).

148
O Motete em ré menor é, na sua essência, “(...) um salto do pregão renascentista
ao pregão moderno, o jingle publicitário para a rádio-tevê” (Mendes, 1994:102).
Trata-se de uma peça exclusivamente vocal, sem a inclusão de sons de outra natureza
afora aqueles executados pela voz. No entanto, essa voz é encarada de diversos modos.
Embora demarcada melodicamente pelo acorde ré-fá-lá-mi bemol, ainda circunscrita ao
pentagrama, metricamente restrita, com blocos rítmicos de seis compassos com os
tempos 3-2-2-2-2-1, a quantidade de vozes que despontam é bastante rica e
diversificada: ondulação melódica, sons aspirados, um bocca chiusa (boca fechada) que
ataca um glissando da região mais aguda à mais grave; a entoação “grotesca, irritada,
rabujenta (como o Pato Donald), arranhando na garganta” por parte de um tenor;
outra voz de tenor cacarejada; e mais outra “aflita, como quem diz: Cuidado!”,
conforme indica textualmente a partitura. E mais: sopranos, contraltos e baixos devem
transformar o som musical em algo semelhante ao ruído provocado pela ânsia de
vômito, seguido do som (ao vivo ou gravado) de um arroto (indicação A, da partitura).

Ora, estes sons não são outros senão aqueles que sempre foram banidos da arte.
É bom lembrar que, até o século XX, era objetivo da arte vocal dissimular e encobrir o
ruído. O que o Motete em ré menor põe em primeiro plano são justamente esses sons.
Observando a partitura, nota-se que o arroto, o som mais abominável de todos aparece
em destaque culminando uma cadência em solo. O som desprezível levado a primeiro
plano faz dele um elemento extremamente desimportante. Concluindo, um breve teatro
musical, após uma pseudo-finalização da peça (indicação B, da partitura) arremata a
peça com o discurso falado (clo-a-ca).

O som das desimportâncias: Son et lumière (1968):

Para manequim feminino e dois fotógrafos masculinos; som de piano gravado e fita
magnética, luz de flashes fotográficos.

Como podemos observar na partitura, trata-se de uma obra bastante aberta,


conceito elaborado por Umberto Eco, designando uma pluralidade de sentidos possíveis

149
de coexistir num mesmo signo, isto é, a partir da prescrição de algumas orientações, o
intérprete pode recriar a obra à sua maneira. Em Son et lumière observamos duas
seqüências básicas que se intercalam: 1- a da movimentação desordenada por parte da
manequim (pianista) que, momentaneamente dá a impressão de parar para a pose
fotográfica; 2- a imobilização dos três intérpretes, seguida do pontilhismo luminoso em
contraponto ao bloco sonoro que é executado.

O que nos chama a atenção nesta peça é o elemento desimportância. Muito


embora não tenha a voz dentre os instrumentos, acreditamos que este exemplo deva ser
incluído, uma vez que ressalta um elemento importante da performance: a pose, o gesto
que, a princípio, estaria excluído da execução, mas que, no final de contas, exerce um
papel extremamente importante, embora muitas vezes não percebido claramente. Ao se
utilizar dos fotógrafos - e o fato de a pianista ter de ser mulher e não homem - as
implicações simbólicas inerentes ao vedetismo feminino destacam-se plenamente.

De um certo modo, Son et lumière corresponde à peça 4’33” de Cage, à medida


que faz sobressair da música tudo o que justamente não é música, mas que está atrelado
a ela, uma vez que se enraíza na performance.

Oralia : Asthmatour (1971):

Para vozes e percussão (pandeiro, maracas, crótalos) e ação teatral, sobre texto de
Antônio José Mendes.

Metalinguagem da propaganda, incluindo um jingle no final, explora


intensamente os sons respiratórios, vocais e bucais: estalidos de língua no céu da boca,
nos dentes, gargarejos, inspiração, dispnéia asmática ... além, é claro, da enunciação
característica do discurso publicitário. Esta obra oferece, assim, um material abundante
para a abordagem do ruído - produzido pelos instrumentos de percussão, pelas palmas,
estalos de dedos e, sobretudo, pelo modo especial em que são trabalhados os ruídos da
boca e da voz, alguns utilizados de modo bastante peculiar. Senão apontemos alguns:

150
Quadro I: desenvolvimento sobre o motivo ar, o leitmotiv de toda a peça.
Exploração dos suspiros, em fôlego lento em som grave; estalos de língua, batendo nos
dentes anteriores; bocejos.

Quadro II: os estalidos modulam para o céu da boca.

Quadro V: gargarejos em alturas diferentes; inspiração imitando a dispinéia


asmática;

Quadro VI a VIII: aparelho para dispnéia (bombinha).

Quadro IX: falado (imitando a linguagem da propaganda); estalidos de língua:


junto aos dentes incisivos, aos molares e junto ao céu da boca.

Quadro X: falado dramaticamente (teatro musical), acrescido de elementos


cênicos. Retomada aos estalidos dos quadros I e II.

Quadro XI: cantada, jingle; aqui a voz é cantada de acordo com o seu padrão
tradicional.

Quadro XII: falado, imitando a emissão afetada das garotas-propaganda.

É interessante observar que os sons produzidos pelo corpo - que, muitas vezes
confundem-nos com sons eletroacústicos - contribuem para sugerir ao ouvinte uma certa
paisagem sonora onomatopaica: os diversos estalos de língua são um signo icônico da
água corrente de um rio; as palmas fazem lembrar vôo de pássaros. Sobrepondo-se a
essa ambiência, sobrepõem-se os outros sons: bocejos, suspiros, exclamações,
entrecortados e pontuados pelos crótalos, maracas e pandeiro.

Performance de fôlego e de músculos: Ópera Aberta (1976):

Para cantora e halterofilista

Esta curtição de voz e músculos como o próprio G. Mendes a designa é uma das
suas obras mais discutidas. Homenagem a Umberto Eco e sua Obra Aberta, esta peça

151
conserva o título italiano, a fim de manter a duplicidade semântica. Trata-se de um
contraponto em duas partes (já que não podemos utilizar a expressão habitual a duas
vozes), escreve G. Mendes no cabeçalho da partitura-bula.

Na verdade, diríamos, antes disso, que se trata de um contraponto a dois corpos.


Como afirmamos anteriormente, existe, em um número significativo escolas de canto,
uma tendência a aplicar uma técnica que desenvolve a respiração toráxica, dividindo,
desse modo, o corpo em pedaços ou zonas. Tais técnicas transformam o tórax uma
espécie de armadura de músculos, capazes de armazenar a maior quantidade de ar
possível, de modo a garantir à cantora a emissão de sons longos ... e de preferência
agudos, por bastante tempo (lembremos que os sons agudos exigem uma boa
sustentação muscular que depende do fôlego), que nada mais é que a marca
emblemática do virtuosismo vocal que caracteriza a sua performance. O corpo da
cantora assume, desse modo, posturas muito semelhantes àquelas adotadas pelo
treinamento militar: a cantora exibe o seu fôlego, que se acumula no tórax enrijecido. Se
considerarmos o intérprete masculino, esses fatores são exponenciados, devido
principalmente às dimensões avantajadas da caixa toráxica masculina em relação à
feminina116.

O halterofilista, de sua parte, exibe seu imenso tórax, seus músculos (também
forte símbolo de virilidade, é bom lembrar) que se desenvolvem graças à sustentação de
um peso - ou melhor - massa, utilizando a nomenclatura correta da física. Tal como o
cantor, o halterofilista é resultado de esforço.

A Ópera Aberta estrutura-se segundo essa dualidade. De um lado, o virtuosismo


que se obtém da tensão do fôlego, sonoro e tonitruante; do outro, o virtuosismo dos
músculos, tensos, num quase-silêncio (salvo os gemidos durante o levantamento dos
halteres). A esse quadro insólito poderíamos mesmo designar como uma espécie de
triunfo do corpo sobre seus limites naturais, corpos estes transformados em objetos de
desejo e contemplação. O cantor, o haterofilista adotam uma postura narcísica em
relação à sua arte e, acima de tudo, à sua técnica, à sua virtuosidade: “a cantora de
ópera é, antes de tudo, uma enamorada da própria voz” e “o halterofilista é um
enamorado do seu próprio corpo” (Mendes, 1994:141).

152
A Ópera Aberta é, pois, uma peça que tem como tema uma sátira ao trabalho de
bastidores empreendido pelo músico-atleta sob a forma de uma paródia, uma vez que,
tudo aquilo que mostra é, tão-somente o exercício, a ginástica, representado pelos
vocalizes que entrecortam as árias de ópera. Em outras palavras, evidencia as
desimportâncias do trabalho do cantor (e do músico virtuose, de um modo geral) sob a
forma de um teatro musical.

Nesse sentido, vale acrescentar à teoria de Kagel o comentário do compositor


Rodolfo Coelho de Souza a propósito da Ópera Aberta:

“A partitura de Ópera Aberta é apenas um roteiro condensado de uma


representação, no qual a música é pretexto e fio condutor... A maior diferença entre o
teatro musical e o teatro convencional é que este último tem como fio condutor um
argumento lógico, um enredo. O teatro musical não tem enredo verbalizado, e é
articulado analogicamente, e não logicamente, resultando em situações absurdas. O
que nos prende em Ópera Aberta é o jogo de semelhanças, analogias e contrastes que
percebemos no protótipo da cantora e do halterofilista. É pela analogia dos gestos e
dos conteúdos por eles representados que é possível a Gilberto Mendes criar um clima
onírico e delirante, de humor e sátira, sem para isso necessitar de um enredo... Desta
análise conclui-se que prevalecem, na sua estruturação, as operações por
‘condensação’ de signos. A Ópera Aberta só tem sentido porque fundimos
analogicamente as figuras do halterosolista e da vocafilista... A técnica consiste,
portanto, em dirigir nossa atenção psíquica para a forma de signo, em vez de seu
sentido (deslocamento) e deixar que a associação analógica crie novas relações
inesperadas entre os significados (condensação)” (Souza, apud Mendes, 1994: 143).

O silêncio secular: Tempo Tempo (1991):

Para coro a cappella.

116 Expressões coloquiais como dizer que alguém tem peito não teriam alguma analogia com a idéia de
virilidade, decorrente de um fôlego que se armazena no tórax - fonte de energia, portanto - a ponto de
deixá-lo inflado?

153
Como o Motete em ré menor, Tempo Tempo é uma obra composta apenas para
vozes, sem interferência de outros timbres, mesmo produzidos pelo próprio corpo. Não
nos estenderemos aos comentários sobre utilização da voz, performance etc., uma vez
que consideramos os exemplos arrolados acima suficientes para esse tipo de ilustração.
O que nos remete a Tempo Tempo é o silêncio, como ele é trabalhado por G. Mendes.

Primeiramente, é importante ressaltar que esse tempo a que se refere o texto, não
é o tempo cronológico do relógio, mas o tempo cíclico, ligado ao pensamento mítico 117,
estruturado num caráter eterno e imutável do mundo. Nesse sentido, único exemplo na
Bíblia hebraica de uma visão cíclica do tempo está no Eclesiastes: “O que foi e o que há
de ser; e o que foi feito é o que foi feito; e não há nada de novo sob o sol” (Szamozi,
1988: 74-75).

Ora, a idéia de ciclo, em música, é associada a maioria das vezes a


repetitividade, a circularidade que encontra sua analogia com a harmonia modal 118 e as
formas minimais, repetitivas (Wisnik, 1989). Isto é apresentado, na peça de G. Mendes,
pela defasagem temporal de duas notas (lá-si) logo no início (B), no desenvolvimento
(C), onde solistas e coro se desencontram propositadamente e no final (F), quando se
desenha uma harmonia em movimento oblíquo, utilizando apenas intervalos

117 Para maiores esclarecimentos sobre esse tema, consulte-se O mito do eterno retorno, de Mircea
Eliade (1988). Lisboa: Edições 70.

118 A harmonia modal existe quando a escala utilizada - haja quantas notas houver - baseia-se numa nota
principal, a tônica sobre a qual gravitam todas as outras. Na escala modal não existe a função de
dominante que, no mundo tonal é o que exerce tensão; ou, quando existe essa tensão, ela é muito fraca,
não provocando polarização. É por essa razão que a audição da modalidade causa a impressão de uma
circularidade temporal, recorrente, conduzindo a escuta a um não-tempo, ou mesmo de um tempo virtual
(Wisnik, 1989:71). Para os ouvidos habituados à escuta da tonalidade, esse tipo de música pode
considerar-se monótono. No entanto, é bastante cativante e envolvente se estivermos imersos nela. É o
tipo de música que caracteriza o mundo pré-capitalista, mantendo-se presente até hoje em algumas
culturas: é o caso da música tradicional do Extremo Oriente, do cante jondo flamenco.

Discos:

Madrigal “Ars Viva” - Regente : Klaus Deter-Wolff


Gilberto Mendes: Madrigal “Ars Viva”, Regente: Roberto Martins e Caio Pagano,
piano EMI-ODEON
Surf, Bola na Rede, um Pente em Instambul e a Música de Gilberto Mendes- vários
intérpretes. Gravadora Eldorado / Chroma Filmes (CD 7124).

154
consonantes, inibindo qualquer tensão harmônica (como é de praxe no sistema tonal); a
intercalação de blocos microtonais (D, E) por tempo indeterminado funciona como
suspensão, lugar de todos os sons e (simbolicamente, diríamos) de todos os tempos.

Além do mais, devemos atentar pelo papel que desempenha a dinâmica: do


pianissimo (sem som, apenas com o movimento dos lábios) ao fortissimo da parte B
(expirado), construindo um fluxo e refluxo de intensidade que compõem, musicalmente
a ideia de ciclo.

Note-se, ainda, que o texto do Eclesiastes, segundo Haroldo de Campos, é


também minimalista e repetitivo, no sentido em que a palavra tempo é repetida à
exaustão (A), ao mesmo tempo em que as frases são extremamente curtas. No
fragmento D, a expansão da palavra (teeeeeeeeee-mmmmmmm-po) por tempo
indeterminado, em legato vem reiterar essa idéia, expansão de um ostinato que sintetiza
toda a obra. As pausas (silêncios) são transportadas diretamente ao fragmento C,
também de forma minimal, isto é, utilizando apenas duas notas (lá-si) pelos solistas aos
quais se juntam os blocos microtonais.

155
Cadência (attaca subito)

Considerações finais:

No decorrer destas páginas preocupamo-nos em traçar um percurso sucinto que


a voz cantada seguiu. Tomamos, mais efetivamente, a voz enquanto instrumento da
chamada música de concerto. Pudemos verificar que sua história foi a filtragem do
ruído e sua posterior recuperação. Quanto ao silêncio, este foi a princípio um dado
natural, até que o ruído da indústria o ameaçasse de extinção. Por conseguinte, a arte se
encarregou de recuperá-lo como elemento construtivo, mais propriamente a partir do
pós-guerra.

Essas são apenas algumas das razões que justificam a ampliação das fronteiras
da linguagem musical. Primeiramente, aceitando e incorporando o ruído; anos mais
tarde, abraçando o silêncio - porque o silêncio está desaparecendo da paisagem sonora
contemporânea. Nesse contexto, a voz teria mesmo de ampliar suas fronteiras,
esbarrando muitas vezes em domínios vizinhos (poesia, cinema, teatro). A voz passou,
assim, a conhecer não somente o ruído e o silêncio, como também a mediatização
eletroacústica e informática, ganhando a simultaneidade espaço-temporal, ou mesmo
virtual.

No entanto, essas mesmas observações não cabem integralmente à massa das


músicas de massa (Wisnik, 1989). Se do mesmo modo que a música de concerto, a
música comumente chamada de popular conheceu a mediatização eletroacústica e
informática, do ponto de escuta da paisagem sonora podemos dizer que esse tipo de
música não adotou outra postura, senão a de acompanhar o nível crescente de barulho.
Em outros termos: Enquanto a estética contemporânea filtra o ruído (o barulho), tendo
como elemento construtivo o silêncio - ou melhor: ruído, se optarmos por uma análise
no âmbito da teoria da comunicação - a música de consumo, dita popular, é composta
sobre o ruído (barulho) mais intenso, o barulho que constitui a tela de fundo da
paisagem sonora dos grandes centros urbanos. Do ponto de vista da comunicação,

156
entretanto, não gera ruído no canal, reiterando o silêncio da redundância, da repetição
(como afirmamos no item conceitos de ruído).

A paisagem sonora, dissemos, é dinâmica: está em permanente mutação.


Constatamos ao longo destas páginas a invasão progressiva do ruído provocado pelas
indústrias, pela mecanização em geral, o barulho mecânico, enfim, sons responsáveis
por uma orquestração diferenciada, impondo um ostinato, uma nota pedal na harmonia
das grandes cidades. Não tocamos, entretanto, na transformação da paisagem sonora
motivada pela própria mudança dos músicos que executam essa imensa sinfonia; muito
menos das vozes desses músicos.

Finale presto

Iniciamos estas páginas com uma breve narrativa, meio romanceada, de nossa
paisagem sonora da infância. Gostaríamos, assim, de concluir este texto, com nosso
depoimento pessoal, um balanço do tempo-espaço, sugestão - quem sabe? - a ser aceita
e executada pelo nosso caro leitor ou quem quer que se disponha a esse exercício,
muitas vezes insólito. Tal como um flâneur baudelairiano, concluímos estas páginas
com nosso testemunho auditivo. Abandonamos o discurso acadêmico; retomamos a
primeira pessoa do singular.

Se a paisagem sonora está mudando, uma das variantes da paisagem sonora


humana é justamente a voz. Não só da minha vida pessoal, mas na própria história da
minha cidade, Santos. Aquela segunda língua paralela dos imigrantes, principalmente
portugueses, está desaparecendo gradualmente e por completo, juntamente com o
Albino, a Angelina, a Edith, meus avós. Vozes que representavam e apresentavam uma
cultura, um modo de viver, uma visão de mundo. Nostalgia? Talvez, em certa medida.
Não sei se traço um juízo de valores precipitado. No entanto, é preciso vislumbrar os
ventos que conduzirão as paisagens sonoras futuras e, de certo modo, estudar o destino
que tomarão aquelas que hoje se fazem presentes.

Se a cultura seleciona os textos que serão memorizados ou esquecidos, cabe


então perguntar: Que rumos tendem a tomar as paisagens sonoras em desaparecimento?
A quem interessaria recuperar as vozes do passado? Ou os ditados populares? As

157
canções? As entoações do período pré hi-fi ? Para quem o desaparecimento de tudo isso
significaria, de fato, uma perda?

Certamente, essas perdas não serão integrais, porque os signos deixam sempre,
de algum modo, perpassar suas desimportâncias que falam e atuam como performance
de um ruído infinitesimal, marca nítida da presença, mesmo quando da sua ausência.
Dentro desse contexto, podemos estar certos de que a voz, ao vivo ou mediatizada, tem -
e ao que tudo indica terá sempre - o seu lugar reservado na paisagem sonora.

158
Bibliografia

ADORNO, T. W. (1973): “Musica y tecnica hoy”, in: El arte en la sociedad


industrial, trad. M.T. La Valle. Buenos Aires: R. Alonso Ed..

----------------------- (1980): “O fetichismo na música e a regressão da audição”, in: Os


pensadores.São Paulo: Abril Cultural .

ANDRADE, M. (1965): Aspectos da música brasileira. São Paulo: Livraria Martins.

ATTALI, J. (1977): Bruits. Paris : Presses Universitaires de France .

AUCHER, M.L. (1977): L’homme sonore. Paris: Epi.

AVRON, D. e LYOTARD, J.F. (1971): “A few words to sing ‘Sequenza III”, in:
Musique en jeu, nº 2. Paris: Seuil.

AVRON, D. (1978): L’appareil musical. Paris: union Générale Éditions.

BAITELLO, N.(1991): Fundamentos da semiótica da cultura. Anotações do curso,


promovido pela Associação Brasileira de Semiótica / Regional São Paulo.

BARBIER, P História dos castrati. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.(1993)

BARRAUD, H. (1975): Para compreender as músicas de hoje. São Paulo:


Perspectiva; Edusp.

BARTHES, R. (1987): Mitologias. São Paulo: Difel .

------------------- (1984): O óbvio e o obtuso . Lisboa: Edições 70.

BARTOK, B. (1987): “Música mecanizada”, in: Escritos sobre música popular.


México: Siglo Veintiuno.

BAUDELAIRE, C.(1991): Escritos sobre a arte.São Paulo: Edusp; Imaginário.

BAYER, F.(1987): De Schoenberg à Cage: essai sur la notion d’espace dans la


musique contemporaine. Paris: Klincksieck.

BEHLAU, M. S. e PONTES, P. A. L. (1988): Princípios de reabiblitação vocal nas


disfonias.São Paulo: Instituto da Laringe.

BENJAMIN, W. (1986): Obras escolhidas: magia e técnica, arte e política. São


Paulo: Brasiliense .

BERNARDINI, A. F. (org.) (1980): O futurismo italiano - manifestos .São Paulo:


Perspectiva .

BISTRYNA, I. (1989): Semiotik der Kultur. Tübingen: Stauffenberg, trad. Norval


Baitello Jr..

159
BLANCHARD, G. (1983): Images de la musique de cinéma.Paris: Edilig, col. Média
thèque.

BOSSEUR, D. e J.Y. (1993): Révolutions musicales - la musique contemporaine


depuis 1945. Paris: Minerve.

BOSSEUR, J.Y. (1992): Vocabulaire de la musique contemporaine. Paris: Minerve.

BOUCOURECHLIEV, A. (1982): Stravisnky. Paris: Fayard.

-------------------------------- (1993): Le langage musical. Paris: Fayard.

BOULEZ, P. (1972): A música hoje. São Paulo: Perspectiva.

CAGE, J. (1961): Silence. Middletown, Conn. .

CAMPOS, H. (org.) (1977): Ideograma: lógica, poesia.São Paulo: Cultrix.

CHION, M. (1993): Le promeneur écoutant - essais d’acoulogie. Paris: Éditions


Plume.

--------------- (1994): Musiques: médias et technologies. Paris: Flammarion.

CHOPIN, H. (1979):Poésie sonore internationale. Paris: Jean-Michel Place.

CLEMENT, C. (1993): A ópera ou a derrota das mulheres. Rio de Janeiro: Rocco.

COELHO NETTO, J. J. (1980): Semiótica, informação e comunicação. São Paulo:


Perspectiva.

COSTA, M. (1995): O sublime tecnológico. São Paulo: Experimento.

DI STEFANO, G. (1991): El arte del canto. Buenos Aires: Javier Vergara

ESCAL, F. (1979): “Paroles, voix, musique”, in :Degrès , nº 18.

-------------- (1979): Espaces sociaux, espaces musicaux. Paris: Payot

-------------- (1984): Le compositeur et ses modèles. Paris: PUF.

-------------- (1990): Contrepoints: littérature et musique. Paris: Klincksieck.

-------------- (1996): Aléas de l’oeuvre musicale. Paris: Hermann.

FERREIRA, L. P. (org. )( 1988): Trabalhando a voz - vários enfoques em


fonoaudiologia. São Paulo: Summus.

FRANCHETTI, P.(1992):Alguns aspectos da poesia concreta. Campinas: Editora da


Unicamp.

FRIDMAN, R .(1988): El nacimiento de la inteligencia musical. Buenos Aires:


Editorial Gadalupe.

GAGNARD, M. (1987): La voix dans la musique contemporaine et extra-


européenne.Paris: Van de Velde.

GRIFFITHS, P. (1987): A música moderna - uma história concisa e ilustrada de


Debussy a Boulez. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed..

160
IAZZETTA, F. (1993): Música: processo e dinâmica.São Paulo: Annablume.

IMBERTY, M. (1979): Entendre la musique .Paris:Bordas .

-------------------(1981): Les écritures du temps -tome II Paris: Bordas.

KAGEL, M. (1983): Tam Tam. Paris: Christian Bourgois Éditeur.

KIEFER , B.(1987): Elementos da linguagem musical . Porto Alegre: Movimento.

KOELLREUTTER, J.J. (1990): Terminologia de uma nocva estética da música.


Porto Alegre: Movimento.

LANGER, S. (1980): Sentimento e forma. São Paulo: Perspectiva.

LEVI-STRAUSS, C. (1987): “Mito e música”, in: Mito e significado. Lisboa: Edições


70.

-------------------------- (1993); Regarder, écouter, lire. Paris: Plon.

LOTMAN, I. (org. )(1981): Ensaio de semiótica soviética. Lisboa: Horizonte.

MÂCHE, F. B. (1983): Musique, mythe, nature ou les dauphins d’Arion. Paris:


Klincksieck.

MC LUHAN, M. (1988): Os meios de comunicação como extensões do homem.São


Paulo:Cultrix .

MARZ, M. L.(1990): Vozes da voz . São Paulo :tese (mestrado). PUC-SP .

MEDAGLIA, J. (1988): Música impopular. São Paulo: Global .

MENDES, G. (1994): Uma odisséia musical: dos mares do sul à elegância pop/art
déco. São Paulo: Edusp/ Giordano.

MENEZES, F (1987): Apoteose de Schoenberg. São Paulo: Nova Stella/ Edusp.

MENEZES, P. (1991): Modernidade e pós-modernidade: experimentalismo


vanguarda poesia. São Paulo : tese (doutorado ) PUC-SP.

-------------------- (1995): A crise do passado. São Paulo: Experimento.

-------------------- (1995): Apontamentos sobre a presença da religiosidade na cultura


das novas tecnologias. (Ms). Trabalho preparado para o Compos

MILLAUD,D. (1949): Notes sans musique. Paris: R. Julliard.

MORIN, E.(1969): Cultura de massas no século XX - o espírito do tempo . Rio de


Janeiro :Forense.

MORAES, J. J.(1983): Música da modernidade - origens da música do nosso tempo.


São Paulo :Brasiliense.

------------------- (1985): O que é música. São Paulo: Brasiliense.

MUKAROVSKI, J. (1981): Ensaios de estética e semiótica da arte. Lisboa: Estampa.

161
NATIEZ, J. J. (1987): Musicologie générale et sémiologie. Paris: Jean-Christian
Bourgois.

NEVES, J. M.(1981): Música contemporânea brasileira. São Paulo: Ricordi


Brasileira .

NEVES, P. (1984): Mixagem - O ouvido musical do Brasil. São Paulo: Max Limonad.

NUNES, M. (1993): O mito no rádio - a voz e os signos de renovação periódica. São


Paulo: Annablume.

OLIVEIRA, W. C.(1979): Beethoven - proprietário de um cérebro. São Paulo:


Perspectiva.

PAZ, J. C. (1976): Introdução à música do nosso tempo. São Paulo :Duas Cidades.

PEIXOTO, F. (1985): Ópera e encenação. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

PIERLOT, J. (19983): Chant - le libre geste vocal. Paris: Denoël.

PIGNATARI, D. (1981): Informação, linguagem, comunicação. São Paulo: Cultrix.

POUSSEUR, H. e BUTOR, M.(1982): “O livro e a música”, in: BARTHES, R. et allii:


Escrever... Para que? Para quem? Lisboa: Edições 70.

PROPP, W. (1992): Comicidade e riso. São Paulo: Ática.

PROSS, H. (1980): Estructura simbólica del poder. Barcelona: Gustavo Gili.

QUINTEIRO, E. A.(1989): Estética da voz - uma voz para o ator. São Paulo:
Summus.

RUUD, E. (org. ) (1991): Música e saúde. São Paulo: Summus.

RUSSOLO, L. (1986): The art of noises, trad. B. Brown. Nova Iorque: Prendago Press.

RUWET, N. (1972): Langage, musique, poésie. Paris: Seuil.

SACKS, O. (1987): O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Rio de
Janeiro: Imago .

----------------- (1989): Vendo vozes - uma jornada pelo mundo dos surdos. Rio de
Janeiro.

SANTAELLA, L. (1980): “Apontamentos para a questão do ícone”, in: Produção de


linguagem e ideologia. São Paulo: Cortez .

-------------------------- (1985): O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense .

-------------------------- (1986): “Modos de recepção da música” Quinto programa da


série: O universo sonoro de ...., transmitido pela Rádio Cultura, São Paulo, em
15 de agosto.

SATIE, E. (1981): Écrits -reunis, établis et présentés par Ornella Volta. Paris:
Éditions Champ Libre.

162
SCHAEFFER, P. (1966): Traité des objets musicaux. Paris: Seuil.

SCHAFER, R. M. (1979): Le paysage sonore. Paris: J. C. Lattès.

------------------------ (1992): O ouvido pensante .São Paulo: Edunesp.

SEINCMAN, E. (1991): “Tradição, vanguarda, na música futurista italiana”, in:


Revista da USP, nº 9 (março-abril). São Paulo: Edusp.

SEMLER, R. (1991): “As noivas de outubro”, in: Folha de São Paulo, 23 de outubro.

STEINER, G. (1988): Linguagem e silêncio - ensaios sobre a crise da palavra. São


Paulo: Companhia das Letras.

STOCKHAUSEN K. (199O): “Entrevista a J. Jota de Moraes”, in: Revista de Música


v.1, nº1. São Paulo: ECA-USP.

STOIANOVA, I. (1985): Luciano Berio: chemins en musique (La Revue Musicale).


Paris: Richard Masse.

STRAVINSKY, I. e CRAFT, R. (1984): Conversas com Igor Stravinsky. São Paulo:


Perspectiva.

SZAMOZI, G. (1988): Espaço e tempo: as dimensões gêmeas. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar.

TARCHA, C. (1992): “A visão caleidoscópica de ‘O pente de Istambul’ de Gilberto


Mendes”, in :Revista de Música: São Paulo: Escola de Comunicações e Artes,
vol3, nº 1 (maio).

TATIT, L. (1986): A canção: eficácia e encanto. São Paulo: Atual.

------------ (1982): Por uma semiótica da canção popular. São Paulo: tese (mestrado)
FLCH-USP.

TOMATIS, A. (1987): L’oreille et la voix. Paris: Laffont.

------------------- (1991): L’oreille et le langage. Paris: Seuil.

TRAGTENBERG, L. (1991): Artigos musicais. São Paulo: Perspectiva.

VALENTE, H. (1992): “O ouvido pensante de R. Murray Schafer”, in: Cruzeiro


Semiótico. Lisboa: Associação Portuguesa de Semiótica.

------------------- (1996): “Entrevista a Eero Tarasti”, in: Face - Revista de semiótica e


comunicação.

VON DER WEID, J. N. (1992): La musique du XX e siècle - de Debussy à


l’informatique. Paris: Hachette.

WIENER, N. (1984): Cibernética e sociedade - O uso humano de seres humanos.


São Paulo: Cultrix .

WISNIK, J. M. (1989): O som e o sentido - uma outra história das músicas. São
Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro.

ZUMTHOR, P. (1982): Le discours de la poésie orale, in: Poétique, nº 52, novembro.


Paris: Éditions du Seuil.

163
------------------- (1983): Introduction à la poesie orale. Paris: Editions du Seuil.

------------------- (1989): “Entrevista a Philadelpho Menezes”, in: Face- Revista de


semiótica e comunicação, vol. II, nº São Paulo: Educ.

OUTROS DOCUMENTOS CONSULTADOS:

Revistas:

ARTÉRIA - Santos Revista . Santos :Secretaria Municipal de Cultura, ano I - nº.1.


FACE - Revista de Semiótica e Comunicação. São Paulo: Educ.

MUSIQUE EN JEU: Paris: .Editions du Seuil .:nº. :3 , 4 (1971); 9 (1972); 14(1974)


;24 (1976); 28 ,29 (1977); 32 (1978).

CADERNOS DE MÚSICA: São Paulo: ECA/USP; Sociedade Brasileira de Música


Contemporânea, especialmente nº 5 , 7 , 8, 9.

SEMIOTICA. Amsterdã: Mouton de Gruyter, especialmente nº. 66 -1/3 1987.

Partituras da obra de Gilberto Mendes:

Editadas pelo SDP (Serviço de Difusão de Partituras da ECA-USP) :

Cidade (1964)
Son et lumière (1968)
Atualidades Kreutzer 70 (1970)
Objeto musical -homengagem a Marcel Duchamp ((1972)
Pausa e menopausa (1973)
Poema de Ronaldo Azeredo (1973)
Der Kuss,- homenagem a Gustav Klimt (1976)
Opera aberta (1976)
Ir alten weib (1978)
Vai e vem (1969)
Nascemorre (1963). Nova Iorque: Southern Music Pub. e Washington: Pan American
Union .

CADERNOS DE MÚSICA: São Paulo: ECA/USP; Sociedade Brasileira de Música


Contemporânea, especialmente nº 5 , 7 , 8, 9.

SEMIOTICA. Amsterdã: Mouton de Gruyter, especialmente nº. 66 -1/3 1987.

Partituras da obra de Gilberto Mendes:

Editadas pelo SDP (Serviço de Difusão de Partituras da ECA-USP) :

164
Cidade (1964)

Son et lumière (1968)

Atualidades Kreutzer 70 (1970)

Objeto musical -homengagem a Marcel Duchamp ((1972)

Pausa e menopausa (1973)

Poema de Ronaldo Azeredo (1973)

Der Kuss,- homenagem a Gustav Klimt (1976)

Opera aberta (1976)

Ir alten weib (1978)

Vai e vem (1969)

Nascemorre (1963). Nova Iorque: Southern Music Pub. e Washington: Pan American
Union .

Santos Football Music (1965) . Brasília: Sistrum Edições Musicais

Moteto em ré menor (Beba Coca Cola ) (1966). São Paulo: Editora Novas Metas.

Manuscritos :

Asthmatour (1971)

Enigmao (1984)

Poema sobre um quadro de Orlando Marcucci (1976)

Tempo tempo (1991)

Era uma vez uma vala (1993)

165
NASCEMORRE

166
167
168
169
170
171
172
173
174
175
176
177
178
179
180
181
182
183
184
185
186
187
188
189
190
191
192
193
194
195
196
197
198
199
200

View publication stats

Você também pode gostar