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Heloísa Valente
Universidade Paulista
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sous le ciel de Paris: memory and nomadism of French song, in Brazil View project
Sous le ciel de Paris Memória e nomadismo da canção francesa no Brasil/Sous le ciel de Paris: memory and nomadism of French song, in Brazil View project
All content following this page was uploaded by Heloísa Valente on 22 February 2022.
PUC - SP
1995
2
Heloísa de Araújo Duarte Valente
PUC - SP
1995
3
comissão julgadora:
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5
Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio : Resumo.
6
Agradecimentos:
Ao meu orientador, Philadelpho Menezes, pela sua leitura atenta e esclarecedora; pela
sua solicitude, compreensão e principalmente pelas vozes poéticas, que possibilitaram
um alargamento da paisagem sonora deste texto.
A Ana Cláudia Mei Alves de Oliveira, minha primeira orientadora, leitora crítica e
amiga de todos os trópicos.
Agradecimentos especiais:
ao Grupo de Música da Puc - assim chamado sem nunca o ter sido de fato - pelo
animado intercâmbio de paisagens intelectuais e paixões:
à Anastácia, à Cássia, à Cleide, ao Ênio, à Helena, ao José Roberto, ao Lúcio e
especialmente à Lia e à Mônica , pelos toques e retoques.
7
Às vozes que falam em minha lembrança,
a voz-violino do Armando,
minha homenagem
À Lydia,
Ao Wagner,
8
Índice:
Prelúdio
1.1. Uma nova paisagem sonora toma conta dos grandes centros urbanos
1.2. Nova paisagem sonora, nova música do corpo
1.3. Símbolos: do Ruído Sagrado ao ruído de morte
1.1.Locus voci
1.2 Música e verbo
1.3.Ritmicidades
1.4.Desimportâncias
9
2. Performance (andante cantabile)
Considerações finais
Coda
Notas
Bibliografia
10
Prelúdio
“Eu quero cantar minha paisagem interior com a candura inocente de minha infância.”
Claude Debussy
Antes de mais nada, permito-me abrir estas páginas expondo de maneira sucinta
os caminhos pelos quais enveredei para realizar o estudo que pretendo desenvolver.
Para tanto, lançarei mão de uma narrativa extremamente pessoal, meio romanceada até,
condição necessária, contudo, para que as idéias a serem expostas posteriormente se
apresentem de forma contextualizada e coerente. Inicio, assim, com a história de meu
percurso intelectual.
Convivo com a música desde muito cedo. Mais particularmente, com a música
de concerto. Meu pai, violinista amador entusiasmado, levou-me a conhecer o timbre de
seu instrumento e também do piano. Acostumei-me ao vê-lo pegar à noite uma pilha de
partituras e se pôr a ensaiar peças de Bach, Kreisler, Beethoven... para tocar em dueto
aos sábados com o Prof. Aécio, diretor de escola que, nas horas livres, se dedicava à
composição e ao piano. Lembro-me claramente desses encontros. Eu permanecia em
silêncio, olhando e escutando. Percebia os ataques, entradas, levares, da capo e outras
indicações que ambos faziam por meio da fala ou de gestos. Sem dúvida estes foram os
meus primeiros passos para o aprendizado dessa linguagem particular.
11
terem sido de grande relevância na minha formação musical: uma introdução ao
repertório da música que abrange do período barroco ao romântico, todo o ritual de
comportamento na sala de concertos e, talvez o dado mais importante: a fruição da
música ao vivo, com a presença física do músico (o desenrolar do texto mostrará as
implicações que envolvem a execução ao vivo e mediatizada) .
À luz do dia, minha relação com a música foi marcada por uma regularidade que
me acompanhou por muito tempo: os Concertos do Meio-Dia da Rádio Eldorado e seu
prefixo de Pedro e o Lobo, de Prokofiev, ofereceram-me uma boa dose diária de
música. Por uma hora, obras compreendidas entre o Barroco e o Romantismo rompiam
o silêncio da rua, entrecortado volta e meia pelas locomotivas da Fepasa, que passavam
nos fundos da casa onde morava. Essa relação com a música mediatizada se repetia
muitas vezes à noite: entre os chiados da interferência na transmissão, meus pais se
entretinham com alguns trechos de ópera ou música de câmara, introduzidos pela
abertura da ópera Norma, de Bellini , e a gavota da Sinfonia Clássica, de Prokofiev.
Poderia aqui citar uma série de outros exemplos. Creio, porém, que estes já são mais
que suficientes para mostrar que todas essas experiências me ensinaram, sem qualquer
sombra de dúvida, que o ato de escutar, longe de ser uma atitude espontânea, exige
aprendizagem sistemática .
Comecei a estudar piano aos oito anos . Decisão tomada após ouvir a Fantasia-
Improviso de Chopin. Aprendi, então, um pouco da técnica do instrumento e da teoria
musical com uma professora particular e mais tarde num conservatório que hoje não
existe mais. Durante esse período, além de uma razoável leitura e pouca técnica
pianística, incorporei alguns conceitos, há muito ultrapassados (e que os conservatórios
insistem em preservar !). Apesar disso e de todo o incentivo do meio social, decidi
prosseguir meus estudos nessa área pouco promissora profissionalmente.
12
(hoje extinto) e Ars Viva de Santos, grupos vocais que tinham como objetivo a formação
e divulgação de um repertório da melhor música desconhecida, ou seja, a anterior à
Renascença e a posterior ao Romantismo.
A partir desse momento, minha simpatia desinteressada pela música vocal foi
tomando pouco a pouco o centro de minhas preocupações intelectuais. Passei, então, a
tomar aulas de técnica vocal. Enquanto cantava, prestava atenção à sonoridade, à
musicalidade dos idiomas, às possibilidades expressivas de que a voz é portadora... tudo
isso era enfatizado à medida que meu repertório de música vocal se ampliava, ou
conhecia personalidades como Carles Santos, Ula Wolf, Anna Maria Kiefer, nos
festivais de Música Nova, coordenados por Gilberto Mendes.
Na ECA, os diferentes cursos, ministrados pelos Prof. J. J. de Moraes, Olivier
Toni, Willy Corrêa de Oliveira, Ronaldo Bologna e Heloísa Zanni me levaram, cada um
a seu modo, a compreender a música como linguagem, situada historicamente,
obedecendo a leis estéticas. O Prof. Willy, mais especialmente, teceu paralelos entre
composição musical e Semiótica. Esta ciência que permeava o programa curricular das
disciplinas do curso básico da ECA, voltadas à comunicação não-verbal ou linguagens
não-verbais por excelência, foi-se configurando como absolutamente indispensável para
o prosseguimento dos meus estudos.
Estudar música vocal, no âmbito do meu campo de interesses, significava
escapar do disciplinar (musicologia, história da arte, fonoaudiologia etc.). Deveria eu
me apegar a uma abordagem mais ampla, globalizante. Foi quando optei por prosseguir
meus estudos no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da
PUC-SP. A partir desse momento, venho desenvolvendo pesquisa acerca da música
vocal e da musicalidade da voz. Mais precisamente falando, a voz vista dentro dos
parâmetros da linguagem musical.
1Ainda que a ligação entre linguagem musical e linguagem verbal não seja fenômeno constatado em
todas as culturas conhecidas, devemos ter em conta que grande parte da história da música do Ocidente é
vocal construída sobre textos literários e sacros.
13
vastíssimos e pólos de amplas discussões sobre o tema, encontram-se fora dos meus
domínios cognitivos e dos meus interesses intelectuais. Também não está nos meus
propósitos uma investigação no domínio da psicanálise, fonoaudiologia e áreas afins,
muito embora se tratem de disciplinas que estudam a voz, enquanto matriz da música
cantada, de modo bastante abrangente. Quando tomadas, estas ciências atenderão tão
somente às determinações impostas pelo objeto da pesquisa, em momentos muito
precisos. Posto isto, tentarei, a partir deste momento situar mais especificamente o tema
em questão. Por último, mais uma decupagem se faz necessária, esta em termos de
extensão do corpo de análise: Pretendo ater-me à voz no âmbito da cultura ocidental,
mais precisamente, européia. Quando elementos de outras culturas surgirem no texto,
isto se dará única e exclusivamente em função de determinado aspecto da cultura
ocidental, por exemplo: a influência do Oriente na obra de Cage e as consequentes
repercussões no tratamento estético-musical da voz.
2Apesar de encontrarmos entoações onomatopaicas na música (pelo menos desde a Idade Média),
devemos lembrar que a sua aceitação se deve, em grande parte, ao fato de estarem vinculadas a um
conteúdo descritivo (como ocorre com os madrigais), ação cênica (ópera), entre outros.
14
Todavia, estes novos elementos não serão as únicas interferências. Além destes,
desponta ainda uma questão de fundo da qual a música não poderá desvencilhar-se: as
conseqüências oriundas da revolução industrial e tecnológica
3Esta afirmação se justifica à medida que o campo de estudo em questão diz respeito à música de
concerto. No caso da música da comunicação de massa (música das mídias), a situação parece bastante
diferenciada. No entanto, uma discussão aprofundada, nesse patamar, escapa aos propósitos desta
pesquisa.
15
Para melhor elucidar esse problema, faz-se necessária uma investigação mais
minuciosa da voz na paisagem sonora e suas implicações no próprio desenvolvimento
da linguagem musical. Para tanto, dois autores serão fundamentais, dada a abrangência
e profundidade de sua obra: Murray Schafer, compositor, pesquisador em música e
teórico da paisagem sonora e Paul Zumthor, medievalista e filólogo, autor de vasta
literatura acerca das diversas gamas da oralidade. Embora atuando em campos distintos,
ambos compartilham uma qualidade comum: a de levar a análise dos seus objetos de
estudo às últimas consequências. Nesse sentido, elaboraram conceitos teóricos
consistentes, no que tange à voz e ao ambiente sônico, gerando, dessa maneira, matrizes
para tantos outros desdobramentos, além desta pesquisa que ora apresento.
É possível que, neste momento, meu prezado leitor se faça a pergunta: Por que
um trabalho em semiótica não vai buscar sustentáculos em suas próprias bases? Nesse
caso, faço minhas as palavras de Martinez: A quantidade de questões musicais que
permanecem à espera de tradução teórica torna evidente a necessidade de uma teoria
capaz de não apenas abranger os principais campos de análise semiótica musical mas
efetivamente esclarecer as diversas formas de semiose em música (Martinez,1991:7).
As possibilidades de uso da voz tanto como elemento expressivo, quanto construtivo, ao
que me parece, até o presente momento, enquadram-se nesse panorama 4.
Além disso, conexões entre ruído, silêncio, paisagem sonora e voz não foram
ainda estudadas à exaustão, muito embora haja autores que dão destaque a esses
elementos de maneira mais ou menos isolada: tal é o caso de Cage (1961), Attali (1977),
Moraes (1983), Wisnik (1989), para citar alguns nomes. Nesse caso, tais autores terão
suas idéias levantadas e discutidas, a fim de cercar o presente objeto de estudo de
maneira consistente e precisa.
4Trabalhos exaustivos como a tese de Tatit (1992) sobre a canção vêm reiterar que, no geral, a semiótica
da música, a maioria das vezes, se apoia em teorias de base linguística.
16
campo da música. Mais especificamente, estudarei a introdução do ruído como
construto na linguagem musical e seus desdobramentos: da ampliação do vocabulário
musical, que se iniciou com a euforia futurista de Russolo e Marinetti à simbologia do
ruído de morte, às vésperas da segunda guerra mundial.
5Esta afirmação é reiterada por Neves (1981), Tragtenberg (1991), entre outros.
17
O repertório selecionado, por força das circunstâncias corresponde, em sua
maioria, a um grupo de obras compostas na década de 1960, época em que, segundo
revela o próprio Gilberto Mendes, em sua tese de doutoramento, sua produção
preocupou-se com a experimentação na linguagem musical até os seus limites 6. No
entanto, o momento histórico em questão não deverá ser tomado como um dado em si,
já que se trata de uma pesquisa de interesse não musicológico, mas semiótico. Serão,
assim, arrolados exemplos de qualquer período da obra do compositor, desde que a
questão da voz, enquanto meio de expressão e/ou composição musical, mereça
tratamento diferenciado (é o caso de Tempo Tempo, por exemplo). Nossas
considerações terão como referência as partituras (manuscritas ou editadas), sejam elas
notadas sob a forma de partitura tradicional, sejam escritas sob a forma de instruções
escritas no código verbal (bula).
6Na tese de doutoramento Dos Mares do Sul à elegância pop/art déco: uma odisséia musical (ECA-USP,
1992) Gilberto Mendes descreve de modo claro e consistente seu processo de trabalho como compositor,
desde sua primeira obra até os dias atuais. As afirmações que fazemos acima são reiteradas pelo próprio
Gilberto Mendes.
18
Nota ao leitor:
Este texto tem como preocupação a voz musical: a sua performance, a sua
sonoridade. Trate-se de um texto escrito, um texto acadêmico que deveria, a
princípio, soar a cada palavra, a cada página; isto é, um texto para ser lido
com os olhos e com os ouvidos, como música.
Como as palavras não soam - a menos que por intermédio de uma audição
interior, de uma abstração - é necessário recorrer à memória auditiva e à
imaginação.
19
Parte I: Ruído, silêncio
20
1. Ruído (allegro vivace)
1.1. Uma nova paisagem sonora toma conta dos grandes centros urbanos.
21
A excitação pela continuidade, a polirritmia, a extensa gama de microtons, a
percussividade da máquina inspiraram o artista plástico italiano Luigi Russolo7 a criar,
na década de 1910, uma série de instrumentos, os entoa-ruídos (intonarrumori),
ancestrais dos geradores de frequência: crepitador, zumbidor, gotejador, sussurrador,
sibilador, trovejador, entre outros. A euforia de Russolo pela máquina manifestava-se de
forma exaltada: “O ouvido humano chegará no estágio em que os motores e máquinas
das nossas cidades industriais serão um dia conscientemente atonais e então todas as
fábricas serão transformadas numa orquestra intoxicante de ruídos” (Russolo, apud
Seincman, 1991:156). Para Marinetti, líder do movimento, nenhum homem seria capaz
de chegar à perfeição da máquina. Esta foi, sem dúvida, uma posição extremada que,
como veremos adiante, teve, mais tarde, algumas consequências funestas.
“Engrenagem veloz das rodas do trem com os dentes nascentes dos ruídos. As
rodas extraem da terra todos os ruídos que dormem na matéria. Sob a pressão do trem,
as rodas saltam, deslizam nas retas vibrantes, elástica do instante comovido. As
estradas percorridas pelos automóveis são rastros de ruídos globulares e de odores
espiralados. Esta 100 HP continua as cavernas do Etna” (Marinetti, apud Bernardini,
1980: 217).
7 Luigi Russolo (1885-1947) juntou-se a Marinetti em 1909. Constata que o ruído possui mais
harmônicos que o som periódico. Escreve a Arte dos Ruídos (1913). Os entoa-ruídos foram construídos
na década de 1910, como dissemos, em parceria com Ugo Piatti, na verdade, um conjunto de 21 ruidores,
obedecendo a 10 categorias. No entanto, esses esdrúxulos instrumentos seriam aperfeiçoados, 16 anos
mais tarde, com a criação do rumorarmônio, capaz de executar 12 timbres diferentes (murmúrios, serra
circular, zumbido de mosca, crepitação de motor etc.). Passado um certo tempo, cria o russolofone.
Apesar desses instrumentos terem motivado a composição de peças musicais especialmente concebidas
para si, tais instrumentos não nos legaram obras de maior importância (Moraes, 1983:37).
22
tarde, por Schaeffer, no Estudo das Ferrovias (o segundo da série Cinco estudos de
ruídos, 1948). Nesta peça, Schaeffer experimenta uma linguagem nova, da qual é
pioneiro - a música concreta. Sua obra encampa novos recursos, até então inconcebidos:
a possibilidade de filtrar o som, reproduzi-lo em velocidade diferente da execução
original, recortar e intercalar as tomadas de som etc.. Essa nova linguagem passa a
contar com novas técnicas que permitem ao compositor evidenciar e incorporar timbres
não raro inusitados, mas para as quais os futuristas de alguma forma já dirigiam sua
atenção: A sirene, a estridência da roda sobre os trilhos, os bufos em aceleração ou
retardamento... Em outras palavras, a música incorpora os novos sons que na estética
futurista não contavam com uma sistematização, senão uma gramática em estado
embrionário.
Uma análise crítica da evolução da paisagem sonora do Ocidente nos leva a crer
que ela vem se tornando cada vez mais barulhenta. Isto se deve aos motores, todo-
poderosos do mundo sônico: “O motor a combustão interna constitui hoje o som
fundamental da civilização contemporânea.(...) Nas sociedades industriais avançadas,
o cidadão médio pode, no decorrer de um mesmo dia, manobrar vários motores a
combustão interna (automóvel, motocicleta, caminhão, trator, gerador, cortador de
grama, utensílios motorizados etc.). Ele terá, várias horas por dia, o barulho nos
ouvidos” (Schafer, 1979:123). Como os motores a combustão interna, os motores
23
elétricos (que põem em funcionamento os diversos eletrodomésticos, como aspiradores
de pó, liquidificadores, ventiladores etc.) podem igualmente participar continuamente
do cotidiano desse mesmo cidadão médio, sujeitando-o a mais um outro barulho
intermitente. Ambos os tipos de motor compartilham de uma mesma característica
comum cuja importância é preciso destacar: são invariavelmente de baixa informação,
de alto índice de redundância8.“ Isso quer dizer que, a despeito da intensidade de suas
vozes, as mensagens que falam são repetitivas e, em última análise, aborrecidas ”
(Schafer, 1991:188).
8Apesar da amplidão que este conceito oferece, a partir da formulação pela Teoria dos Sistemas,
tomamos emprestado a sucinta definição de Paulo Neves, no domínio da Teoria da Informação, que é
justamente o que atende aos nossos propósitos:“ Redundância é uma medida de ordem, previsibilidade e
certeza na transmissão de uma mensagem enquanto que informação é a novidade e a incerteza” (Neves,
1984:37). Este assunto será retomado mais adiante, em conceitos de ruído e no último capítulo, onde
serão comentadas as obras de Gilberto Mendes
24
farfalhar de folhas de árvores, os ventos sibilantes, o movimento das marés em alto mar.
Ou ainda, em número reduzido, sons criados pelo homem, como as fontes. “O campo é
geralmente mais hi-fi que a cidade, a noite é mais hi-fi que o dia, o passado é mais hi-fi
que o presente.” (Schafer, 1979:69). Numa paisagem sonora hi-fi, a menor intervenção
sonora pode trazer mudanças de grande monta.
Nos dias de hoje, entretanto, essa buzina a que se refere Debussy em 1912
poderia considerar-se um elemento perdido na multidão de sons que constituem a
paisagem sonora de uma grande metrópole. Signo da época atual, o tráfego de veículos
constitui um ruído de fundo, contínuo, estabelecendo uma espécie de baixo ostinato10 na
9 A expressão audição clara é atribuída a Murray Schafer, designando “uma acuidade auditiva
excepcional, em particular para os sons do meio-ambiente” (Schafer, 1979:376). A audição clara é
condição essencial para o compositor e o músico, embora seja possível para qualquer indivíduo que
pratique exercícios de educação auditiva.
25
orquestração da cidade do final do século XX. Sendo assim, a descontinuidade só pode
ser experimentada, em breves períodos de tempo durante a madrugada - na calada da
noite - quando o número de veículos em circulação diminui sensivelmente, levando o
som à categoria de fenômeno isolado, objeto de escuta.
O cidadão deste final de século parece, contudo, ter-se habituado a esse moto
perpetuo, relegando o hábito de escutar ao de apenas ouvir11: o chiado palpitante dos
walkmen, entreouvidos (muitas vezes a contragosto) por aqueles que não compartilham
do aparelho, porém do mesmo espaço acústico, revela que há uma crescente tendência a
se ouvir maior quantidade de sons contínuos, sobretudo em um alto índice de decibéis.
da música de concerto, é famosa ária de Dido When I am laid, de Dido e Enéias, de Purcell. O ostinato é
também bastante utilizado no jazz e na música pop: Starway to heaven, de Led Zeppelin são apenas
alguns dos muitos exemplos possíveis.
11 Marcamos a distinção entre ouvir e escutar: Para ouvir, basta-nos que os ouvidos sejam capazes,
fisiologicamente, de captar o som; para escutar, é necessário que haja intenção deliberada, por parte de
quem ouve, em desejar captar o som. Os diferentes níveis de audição musical foram exaustivamente
estudados por Pierre Schaeffer. Para ele, estes níveis chegam a quatro: ouvir, escutar, entender - note-se
que em francês entendre traduz-se igualmente por entender e ouvir - e compreender (1966). Mais
recentemente, chamamos a atenção sobre as Maneiras de ouvir, estabelecidas por J. J. de Moraes (1985).
Em seu conciso texto, Moraes classifica a escuta musical em 3 níveis, a saber: 1- ouvir com o corpo; 2-
ouvir com o sentimento e 3- ouvir com o intelecto. Segundo o autor, estes níveis podem combinar-se ou
sobrepor-se; porém o segundo modo engloba o primeiro, assim como o terceiro engloba o primeiro e o
segundo. Lúcia Santaella (1986), de sua parte, elaborou uma classificação sob o escopo da teoria
peirceana, bem próxima à de Moraes, propondo, entretanto, a inversão do primeiro com o segundo nível,
além de tripartir cada um destes três níveis. Assim, temos: 1 - ouvir emotivamente (1.1. qualidade de
sentir incerto e vago; 1.2. comoção: movimentação orgânica; 1.3. emoção: nomeação de sentimento; 2 -
ouvir com o corpo (2.1. corpo tomado, característico da dança ritual; 2.2. música e corpo encontram-se
em contigüidade; 2.3. dança coreografada); 3 - ouvir intelectualmente (3.1. apreensão hipotética; 3.2.
apreensão dos elementos estruturais, leis; 3.3. apreensão da música como forma de pensamento, sistema).
26
A preferência pelos sons de baixa frequência é corroborada por um outro
componente. De acordo com o compositor e estudioso em tecnologias musicais Michel
Chion,
27
apenas para chamar a atenção sobre um fenômeno particularmente interessante que toca
a relação ouvido / voz, o efeito Lombard , que segundo Behlau e Pontes:
28
“Com a aceleração do tempo nas atividades humanas, os ritmos dos pés e das
mãos se mecanizam, para dar a concatenação antes de tudo rudimentar e ‘granulosa’
das primeiras ferramentas da revolução industrial, antes de chegar ao contorno da
tonalidade lisa, produto da eletrônica moderna. O poder de fusão dos sentidos torna
possível a transformação de certas turbulências da paisagem sonora em zumbidos que,
menos insuportáveis ao ouvido, têm virtudes pacificadoras” (Schafer, 1979:312).
“Todos os ruídos têm um sentido, todos são ritmados, fundem-se numa espécie
de grande respiração do trabalho comum no qual é inebriante tomar-se parte. Tão mais
inebriante quanto são os sentimentos de solidão. Só os ruídos metálicos, rolamentos
que giram, mordidas no metal; ruídos que não falam da natureza, nem de vida, mas da
atividade séria, mantida, ininterrupta do homem sobre as coisas. Fica-se perdido neste
grande rumor, mas, ao mesmo tempo, dominamo-lo porque sobre esta nota grave,
permanente e sempre em mudança, o que sobressai é o ruído da máquina que cada um
maneja. Não é possível sentir-se pequeno dentro de uma multidão, vem o sentimento de
indispensabilidade de cada um. As correias de transmissão, onde elas existem,
permitem que se beba com os olhos esta unidade de ritmo que todo o corpo sente
através dos barulhos e pela ligeira vibração de todas as coisas” (Weill apud Moraes,
1983:34).
A relação som / corpo, como vemos, não é neutra, de modo algum: nossa pele
está longe de ser a armadura que protege e isola o corpo ao contrário, somos
continuamente banhados pelas vibrações audíveis e inaudíveis. Além disso, o ouvido,
órgão que é capaz de captar aquelas vibrações entre 20 e 20 000 Hz, é exposto por
natureza. Não sendo dotado de qualquer espécie de tampa, é vulnerável: somente um
refinado mecanismo psicológico de abstração pode impedir a escuta12. Assim, não
parece difícil compreender que os movimentos do trabalho, anteriormente conformados
12 Com esta afirmação reiteramos o que dissemos anteriormente acerca dos níveis de escuta e apreciação
musical.
29
às dimensões dos membros, do ritmo cardiorrespiratório, dos passos ... todo o corpo
tenha passado a moldar-se aos ritmos da máquina, inclusive a voz, mesmo que esses
traços tenham vindo a apresentar-se de modo bastante discreto. Esse momento foi
brilhantemente fixado por Chaplin, em seu filme Tempos Modernos (1936).
O músico e ensaísta José Miguel Wisnik considera que o relógio não somente
interfere na música do corpo humano de forma bastante direta, como também os
diferentes tipos de relógio estimulam diferentes gêneros musicais e sua expressão
estética corporal, a dança. Em seu livro O Som e o Sentido (1989), Wisnik afirma que
“a história das danças é a história das horas” (1989:202): a marcação do tempo do
grande relógio de pêndulo está para a valsa, assim como os ponteiros do relógio de
pulso estão para o bolero (o bolero se dança com o pulso próximo ao ouvido do
parceiro) e o digital microcomputador para o break. Se as hipóteses de Wisnik são
verdadeiras ou não é fato ainda a ser verificado empiricamente. Em todo o caso, suas
observações não deixam de ser instigantes.
30
deve à escuta da batida regular do relógio mecânico, Szamozi afirma que foi a própria
música que criou a noção de tempo medido: “Foi na teoria e na prática de uma forma
musical unicamente ocidental, a música polifônica e suas notações medidas, que o
tempo métrico foi inventado, estudado e utilizado pela primeira vez na história”
(Szamozi, 1988:95). Ressalta o autor que, até o surgimento do relógio mecânico, não
havia o interesse em medir o tempo de forma tão precisa. Os relógios existentes serviam
para acompanhar o curso do tempo, o que significa, “(...) adaptar-se às fases de um
ambiente periodicamente mutável” (1988: 97). Os relógios passaram a medir o tempo
somente após a ideias de tempo mensurável haver sido estabelecida.
31
O crescimento do ruído urbano teve outras implicações como, por exemplo, a
necessidade da criação de leis específicas, visando controlá-lo. O que foi, de certo
modo, uma novidade, pois, de acordo com o ensaísta Jacques Attali, “(...) a repressão
aos ruídos e barulhos não era, antes da revolução industrial, objeto de nenhuma
legislação geral. O direito ao ruído era um direito natural, uma afirmação da
autonomia de cada um” (Attali, 1979:199).
Segundo o autor, tais leis não tinham como meta garantir e preservar o silêncio,
absolutamente; seu objetivo precípuo visava apenas poupar o operário de maiores
desgastes físicos, levando-o a uma maior produtividade no desempenho do trabalho
fabril. Contraditoriamente, a fábrica, fonte de ruído incessante, o próprio ambiente de
trabalho em que o operariado consumia horas de sua vida, parece não ter sido objeto de
maiores queixas ou reclamações.
13 Embora não se utilize dos instrumentos de quem estuda a semiótica, o pensamento de Schafer revela
preocupações características de quem estuda essa ciência. Esse aspecto confirmou-se por ocasião em que
pudemos entrevistar o autor (Schafer,1992), onde ele reconhece sua afinidade com a ciência dos signos,
embora não se dedique à sua aplicação direta em suas obras (composições ou escritos).
32
traduzir a idéia da seguinte maneira: enquanto o barulho não se impõe como um
existente de perfil claro e delimitado, o ruído não pode se caracterizar como signo, de
fato. Foi somente o crescimento abrupto do barulho que permitiu ao ruído ser percebido,
delineado, questionado, tornando-se objeto de discussão e polêmica. É somente a partir
desse instante que assume o estatuto de signo, assimilando uma concretude física e
simbólica.
Existe, ainda, um outro ruído, mais poderoso porque sua força ultrapassa a
dimensão do concreto, adquirindo um caráter simbólico de fato marcante em várias
culturas conhecidas: o Ruído Sagrado. Para Schafer, trata-se do som (ou barulho)
invulnerável a qualquer tipo de censura social justamente por passar despercebido. Sua
origem remonta as culturas mais antigas, estando presente até os dias de hoje. O Ruído
Sagrado estaria, em sua origem, ligado aos fenômenos naturais - trovão, erupção
vulcânica - interpretados como manifestação da cólera divina, dirigida ao homem ou aos
outros deuses, em combate.
14 Este autor é citado por vários outros, dentre os quais destacamos Schafer (1979) e Castarède (1991).
33
O Ruído Sagrado15, inicialmente concebido como manifestação divina,
deslocou-se das forças da natureza (mar, vulcão, trovão etc.) para o centro do poder
político, igreja, através dos sinos e dos tubos do órgão. Esse poder conseguiu
permanecer intato até que a revolução industrial do final do século XIX o tomasse. A
partir daí, o Ruído Sagrado penetrou definitivamente no mundo profano: máquinas a
vapor, altos fornos, caldeiras foram representantes ruidosos desse novo poder, porta-
vozes dos industriais. Anos mais tarde, o Ruído Sagrado transferiu-se para o locutor de
rádio e o aviador, cada qual com a propriedade de fazer mais barulho que seu
antecessor, barulho esse capaz de dominar um território cada vez mais extenso no
espaço acústico.
Deter o Ruído Sagrado não se restringe, como vimos, a fazer soar um grande
barulho; acima de tudo, deter o Ruído Sagrado - insistimos em frisar - é ter autorização
para fazer muito barulho sem por isso receber algum tipo de censura. Se esta ocorre, é
porque o poder político está em crise. A partir desse momento, o ruído deixa de ser
sagrado, adquirindo a feição de barulho a ser evitado e expurgado. De acordo com
Schafer, fatos mais recentes como a formação de uma consciência ecológica e a falência
econômica da Panam, por exemplo, não são mera coincidência; ao contrário, há de
alguma forma uma estreita relação causal entre ambas.
O desejo de dominação pelo barulho também pode ser saciado por indivíduos
isolados em grupo, pois fazer barulho é, antes de tudo, chamar a atenção. Assim sendo,
comícios, apresentações de rock, motocicletas que chispam com o escapamento aberto,
automóveis que desfilam com os alto-falantes do rádio em alta intensidade nada mais
são do que tentativas, geralmente bem sucedidas, de atingir esse objetivo, embora nem
sempre claro e consciente.
15 Na Bíblia, a gênese narra o nascimento do universo da seguinte maneira: No começo era o verbo, dizia
João; a presença de Deus foi inicialmente anunciada pela vibração potente de um som cósmico. No
espírito dos profetas, o fim dos tempos está igualmente de um ruído estarrecedor, mais terrível que o mais
34
sinal de protesto) por ocasião da campanha diretas-já, em 1984. Como estratégia mais
ou menos recente, têm-se verificado, nos últimos anos, a grande eficácia dos cortejos
automobilísticos laudatórios aos quais passou-se a denominar de carreatas (que,
contrariamente aos cortejos fúnebres, os veículos trafegam tocando um bloco sonoro de
buzinas) culminados pelos showmícios que, como o próprio nome indica, une num
mesmo ritual, o comício político, seguido de show de cantores solistas ou grupos
musicais adulados pela mídia. Dessa forma, o barulho percorre uma grande extensão do
espaço acústico da cidade, fixando-se, em seguida, num centro mítico (fazendo aqui um
paralelo com comportamentos tribais na esfera da cultura de uma sociedade de massa).
Na Arte dos ruídos (1913), Russolo conclama com exaltação que os ruídos
encontrariam seu modo de expressão total na guerra mecanizada. Aliás, a guerra consta
em destaque como um dos pontos básicos da Fundação e Manifesto do Futurismo:
“Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo - o militarismo, o
patriotismo, o gesto destruidor dos libertários, as belas idéias pelas quais se morre e o
desprezo pela mulhe .” E , mais adiante: “ - A arte, de fato, não pode ser mais que
violência, crueldade e injustiça” (Marinetti, apud Bernardini,1980: 34-36). Passou-se
pouquíssimo tempo até que a higiene tão sonhada por Marinetti fosse posta em prática:
tão logo, eclodiram a 1a. Guerra Mundial, a Guerra Civil Espanhola, entre outras. A
partir desse momento, a euforia pelo barulho ganharia outras conotações: ruído deixaria
de ser timbre, textura, que se obtém das máquinas da indústria, mas das máquinas de
guerra: fuzis, canhões, tanques. O Ruído Sagrado passaria, assim, a ser tutelado pelas
potências militares. Ruído deixaria nesse instante de ser manifestação de vida para
potente que tenham podido imaginar, mais inquietante que a mais formidável das tempestades, mais
horrendo que todos os trovões. (Schafer, 1979:48).
35
transformar-se numa ameaça iminente, não mais simbólica, de destruição e de morte 16.
Ruído é, pois, ameaça de morte. Controlado pelo poder - no caso militar - consegue
legitimar-se através da violência.
* *
16 Esse comentário nos leva imediatamente a uma associação imagética: não se trata de música; é um
quadro. Entretanto, podemos ouvir tudo claramente! Não será esse um dos motivos que terão endossado a
censura à Guernica? Cada tiro, cada explosão, cada grito de dor e de pranto parecem sobressair às
imagens, levando à uma escuta interiorizada. No que Picasso pintou transparece a não somente aquilo que
ele viu, como também ressoa o que ele ouviu. Nenhuma denúncia verbal poderia ser mais veemente,
tocante e audível.
36
circunscrita. Tomemos, como ponto de partida, as definições estabelecidas pelo
compositor e musicólogo H.J. Koellreutter (1990:115), a fim de recapitularmos uma
parte do que foi dito até agora bem como podermos avançar um passo na discussão que
tomaremos a seguir:
37
Esta segunda acepção de ruído apresentada por Koellreutter remete à evolução
da linguagem musical e à sua história. A inclusão, a partir do final do século XIX, dos
instrumentos de percussão de som indeterminado como a caixa-clara, o tom-tom, o
chicote, as castanholas, o triângulo, entre outros, favoreceu uma expansão do corpo da
linguagem musical. Ao se considerar o ruído como timbre, isto é, ao se tomar os sons
não-periódicos como musicais, a linguagem musical passou a contar com um novo
repertório, pleiteando, por conseguinte, uma nova sintaxe. De acordo com Seincman
(1991), esse período pode ser mapeado pelo surgimento das seguintes obras:
38
estruturas, mas também a integração de materiais novos (Alain apud Nattiez, 1987: 75).
Do acorde ruidoso da Sagração da Primavera à Sinfonia de um Homem Só de
Schaeffer, a Cidade, a Santos Football Music, a Asthmatour, de Gilberto Mendes, a
história da música deste século atesta a inclusão mais ou menos rápida de sons
considerados ruído, antimusicais, repudiados pela arte para o corpo da linguagem
musical.
Esta definição de ruído, neste trabalho, estará delimitada ao que se refira à voz
entoada. Mais particularmente falando, é nossa preocupação tão somente acompanhar a
inserção dos sons vocais, a princípio não considerados como musicais - e menos ainda
como pertencentes aos domínios da arte, como é o caso de gritos, bocejos, tosse entre
outros sons - no corpus da música vocal contemporânea.
Quanto aos outros animais podemos afirmar que, embora não sendo capazes de
discernir o conceito de barulho, são fisicamente afetados por ele, dentro de seu limiar
auditivo correspondente. O compositor e musicólogo F. B. Mâche (1983) acredita que,
ao contrário do que muito se tem afirmado, o canto dos pássaros sofre mudanças, o que
nos leva a crer que sejam afetados pela transformação da paisagem sonora. Neste caso,
o barulho poderia ter um papel relevante. Esta terceira acepção diz respeito, portanto, à
materialidade sonora do ruído (limite de tolerância do ouvido em decibéis).
39
Nesse sentido, as análises empreendidas normalmente debruçam-se no caráter
patológico em que o ruído (barulho) acarreta, ou ainda nos aspectos político-legislativos
com o objetivo de controlá-lo: proposição de estratégias preventivas, tomada de
medidas punitivas ou repressivas àqueles que produzem barulho em excesso. Dito isto,
gostaríamos de enfatizar, mais uma vez, que não se inscreve nos nossos objetivos
qualquer análise que tenha como meta o ouvinte como fim em si mesmo. Tampouco
ousamos propor alguma alternativa no domínio daquilo que se poderia chamar,
popularmente falando, de ecologia acústica. O ruído, no sentido de barulho, fica
reduzido à sua dimensão sígnica, isto é, como signo capaz de engendrar e sofrer
mudanças, especialmente na produção, interpretação e recepção da música (neste caso,
vocal).
Por último, vale frisar que é a esta acepção de ruído a que se refere Schafer,
quando discorre sobre o Ruído Sagrado. Trata-se do mesmo barulho, no seu sentido
figurado, metafórico, como vimos anteriormente, arraigado a uma simbologia profunda,
o Ruído Sagrado. Recapitulando, esse tipo de barulho passa a ser percebido como tal,
passa a ser escutado e não apenas ouvido, a partir do momento em que a sociedade toma
consciência do seu valor negativo.
40
Esta definição aproxima-se, em termos de conteúdo, da segunda acepção.
Entretanto, escapa do terreno musical propriamente dito, remetendo-se mais
particularmente à teoria da comunicação17. Esta teoria apresenta-se como uma das bases
deste trabalho, razão pela qual permitimo-nos estender mais longamente em sua
abordagem.
17 A fim de evitar outros equívocos de ordem conceitual entre teoria da comunicação e da informação,
permitimo-nos aqui reproduzir a observação de J. Teixeira Coelho Netto: “(...) embora se tenha falado
em Teoria Matemática da Informação ou Teoria Matemática da Comunicação, os campos da
comunicação e da informação, no quadro desta teoria, não se recobrem com exatidão embora se
recortem. Ainda que esta não seja uma distinção pacificamente aceita, há uma tendência no sentido de
encarar a Teoria da Informação como um estudo da estruturação da mensagem formalmente
considerada e a Teoria da Comunicação como o estudo do relacionamento mensagem-fonte-receptor. Em
outras palavras: a Teoria da Informação está centrada no código, enquanto que a Teoria da
Comunicação volta-se para o conjunto mensagem-homem; a Teoria da Informação trata do sistema
(conjunto de elementos e suas normas de combinação) do qual a Comunicação é o processo (sequência
de atos espaço-temporalmente localizados)” (1980:121). Nosso trabalho se apoia, portanto, em ambas as
teorias, uma vez que a mensagem pode implicar em mudanças no processo comunicativo, da mesma
forma que o processo comunicativo pode interferir no conteúdo da mensagem.
18 Definindo mensagem segundo os critérios estabelecidos por A. Moles, aqui retomados por J. Teixeira
Coelho Netto, “(...) a mensagem é um grupo ordenado de elementos de percepção extraídos de um
repertório e reunidos numa determinada estrutura” (1980:122)
41
Dessa forma, podemos grosso modo afirmar que todos os componentes do
processo comunicativo constituem uma tecitura de relações, em que cada elemento pode
afetar o outro, seja este elemento qual for (emissor, receptor, mensagem etc.). Além
disso, cada um desses elementos está sujeito a transformações, dentre elas, de ordem
histórica, perceptiva, entre outras.
19 Definimos código de acordo com J. Teixeira Coelho Netto: “um conjunto de signos e suas regras de
utilização. Sendo do conhecimento preliminar tanto do destinador quanto do destinatário da mensagem,
e apresentando-se como as regras do jogo, o código coloca-se como uma linguagem própria ao canal
específico que será utilizado e na qual deve ser traduzida a mensagem-objeto” (1980:140).
42
2. Intermezzo: Do ruído ao silêncio (scherzo)
O silêncio essencial é a morte: o corpo sem vida produz sons (ainda que
discretos), mas seus ouvidos não ouvem. Isso talvez explique, em certa medida, a
rejeição do homem ocidental pelo silêncio. Para fazer calar o silêncio e afastar a idéia de
morte, o homem ocidental se cerca de sons. O transcorrer dos séculos registra o ato de
cantar, individualmente ou em grupo como uma das formas mais espontâneas e
freqüentes nas mais diversas culturas: pontuando o ritmo do trabalho cotidiano,
embalando o sono dos bebês, curando e celebrando durante os mais variados rituais
mágicos ... enfim, uma lista interminável de exemplos poderia ser citada 20. O ato da
enunciação da voz engendra, simbolicamente, a presença de vida, uma vez que irrompe
- fisicamente - o silêncio mortal, banhando o ambiente de vibrações que, desde a vida
intrauterina constituem os sinais táteis de vida.
Neste século, o homem não somente pôde rodear-se dos sons musicais
produzidos pelo grupo social em que vive, como também pôde contar com outras
variantes, advindas dos novos meios de armazenamento e de difusão do som. Anos mais
tarde, com o surgimento da música eletroacústica, no decênio de 1940, incluiu-se a
possibilidade de geração de sons. Sabemos, entretanto que reprodução mecânica do som
tem, de fato, origem mais remota, datando do período que imediatamente sucedeu a
revolução industrial: são os carrilhões, os pianos mecânicos obedecendo ao princípio
construtivo da caixa de música e do realejo.
20 Razões como esta nos impelem a acreditar que elementos consolidados na cultura, como o provérbio,
muito comum em língua portuguesa, Quem canta, seus males espanta, têm uma raiz mais profunda.
43
linha telefônica, o teatrofone21. No entanto o primeiro aparelho a ganhar popularidade
foi o fonógrafo, projetado e elaborado por Thomas Edison (1877), inicialmente
concebido não para a multiplicação (a comercialização do invento foi logo em seguida
posta em prática), mas apenas para a conservação dos sons, mais especificamente, de
algumas vozes exemplares. E assim permaneceu seu uso até a década de 1910, até que
em 1915 fosse gravada a primeira sinfonia - a 5a. de Beethoven (Attali, 1977:150-154).
21 Traçando um paralelo com os dias de hoje poderíamos dizer que o teatrofone equivaleria às
apresentações em telão, bastante frequentes em casos de apresentações muito disputadas por um público
grande demais para o número de lugares disponíveis no teatro. O projeto do teatrofone foi adaptado, mais
tarde, a mais uma ideia comercial: a assinatura por telefone (Chion, 1994:15).
44
fitas pré-gravadas para uso comercial (E.U.A.);
1957 primeiros gravadores em 4 pistas;
1958 primeiras difusões regulares em estéreo; protótipo do circuito integrado; primeiros
discos comerciais em estéreo;
1960 aumento das rádios em freqüência modulada e dos rádios a pilha;
1963 sistema cassete compacto, pela Philips; auto-rádio;
1964 sintetizadores Moog, Buchla, Synket;
1965 sistema dolby de redução de ruído;
1968 fita em dióxido de cromo para uso comercial;
1971 primeiros discos comerciais quadrifônicos;
1972 primeiro protótipo do som digital (BBC);
1976 primeiras mesas de mixagem computadorizadas em estúdios de gravação;
1980 walkman, marca registrada pela Sony;
1981 disco compacto digital lançados pela Philips e pela Sony, com leitura a raio laser;
1986 computador possibilitando síntese de imagem e som por intermédio do computador,
o compact disc read only memory (CD Rom) pela empresa Microsoft.
Fontes : Attali, 1977; Davies apud Chopin, 1979; Chion,1994.
45
partir da década de 1930. Sua influência no meio social foi de tal monta a ponto de
suscitar inúmeros estudos de ordem sociólogica, histórica, semiótica 22.
O rádio pode ser considerado a primeira parede sonora do nosso século, pois
fecha o indivíduo no familiar, isolando-o do perigo. Nesse sentido, apresenta
semelhanças em comparação aos jardins medievais, dotados de fontes e pássaros,
circundando os castelos de modo a isolar o ambiente hostil da floresta. “O rádio tornou-
se o canto de pássaro do mundo moderno, a paisagem sonora ‘natural’, rejeitando as
forças inimigas vindas de fora” (Schafer, 1979:138).
Com o advento do transistor - que tornou o aparelho menos volumoso, mais leve
e, por conseguinte, portátil - o rádio assumiu o caráter de anjo da guarda acústico,
acompanhando o indivíduo onde quer que ele fosse. Dessa forma, a qualidade da
audição passou a desprezar a alta fidelidade: “O hábito de escutar transistores ao ar
livre muitas vezes em condições que reduzem a quase um a relação sinal/ ruído,
igualmente incitou a inclusão do ruído em certas músicas populares, agora registrado
diretamente sobre o disco, frequentemente sob forma de feed back eletrônico” (
Schafer, 1979:138).
22 Dentre esses estudos, no âmbito nacional, podemos citar: Ortriwano, G. (1985): A informação no
rádio: os grupos de poder e determinação dos conteúdos. São Paulo: Summus; Goldfeder, M. (1981):
Por trás das ondas da Rádio Nacional. Rio de Janeiro: Paz e Terra; Neves, P. (1985): Mixagem: o ouvido
musical do Brasil. São Paulo: Max Limonad. Mais recentemente, Nunes, M. (1993): O mito no rádio: a
voz e os signos de renovação periódica. São Paulo: Annablume.
46
deve, contudo, ser descontextualizado do período histórico em que viveu. Bartók foi não
somente um ouvinte diferenciado, de escuta sensível pela própria atividade que exercia,
de compositor. Mais que isso: Bartók foi importante no desenvolvimento da linguagem
musical como também um meticuloso pesquisador da música folclórica da Europa
central, registrando-a em gravações, transcrevendo-a em partituras. Essas características
dão-nos o aval de confiabilidade para as observações que enunciou, as quais permitimo-
nos reproduzir aqui:
Essa observação de Bartók revela uma ideia por certo inquietante, se traçarmos
um paralelo com os dias de hoje. A conquista progressiva da alta fidelidade sonora,
principalmente na última década, possibilita que um melhor resultado em termos de
qualidade acústica seja obtido justamente através da gravação, o som mediatizado - o
signo, enfim - ao invés do som produzido ao vivo, o objeto do signo.
23 Termo criado por Pitágoras e retomado por Pierre Schaeffer (1966), designando o som que é ouvido
sem se poder ver a fonte emissora do som. Corresponde, em certa medida, ao conceito de esquizofonia,
elaborado por R. Murray Schafer, como veremos a seguir.
47
No entanto, não era esse o tipo de preocupação que inquietava Bartók nas
primeiras décadas deste século. Em 1925, o advento da gravação elétrica veio a
substituir a mecânica, possibilitando até que cantores sem voz (designação do senso
comum de uma voz pouco potente) como Mário Reis tivessem vez 24, o que
representava, para a época, um grande passo na evolução tecnológica de então.
Bartók vai mais adiante: segundo o compositor, o rádio seria responsável pelo
processo de desritualização da música: “(...) a música radiofônica , em geral, se adéqua
à audição superficial da peça musical e, para tanto, a uma deplorável inconstância,
48
justamente porque é muito fácil girar o botão do rádio, ligá-lo e desligá-lo. Além do
mais, enquanto se ouve, podemos fazer mil coisas; falar, por exemplo” (Bartók, 1987:
231). Foi justamente se valendo dessa característica que a empresa Muzak conseguiu
erigir seu império de música-ambiente, da qual falaremos a seguir.
O advento do rádio provocou, ainda, a criação de uma fenda, uma cisão entre
erudito e popular. Se até o século XIX havia uma espécie de diálogo entre ambos os
domínios, as mídias serão responsáveis por esse rompimento. A vetorização da
programação, aliada ao sucesso do transistor - que tornou o aparelho de rádio acessível
a todos - especializou-se na difusão de um tipo de música de qualidade medíocre
(Damian, 1980: 48-49).
25 O rádio, na verdade, ultrapassa as clássicas funções de informação e entretenimento que lhe são
usualmente atribuídas. Estudos como o de Mônica R. F. Nunes revelam que o rádio atende a uma faceta
mítica, no sentido conferido por Mircea Eliade (1986), isto é, o mito como fornecedor de modelos para o
comportamento humano, conferindo significado e valor à existência. Sob esse ponto de vista, os
significantes míticos são urdidos em meio à materialidade do rádio (Nunes,1993:14).
49
Graças à fita magnética, a técnica de montagem26 passou aos estúdios de rádio,
organizando um moto perpetuo encabeçado pela intercalação de música popular e
propaganda. Com a programação em tempo integral, um elemento será estranho ao
rádio: o silêncio. Da mesma forma que a muralha que protegia o castelo de invasões, na
Idade Média, o rádio transforma-se em parede sonora (Schafer, 1979) que protege
contra os efeitos aterrorizastes do silêncio, companheiro de todas horas, seja sua
transmissão em freqüência modulada ou em ondas longas; seja o aparelho um imenso
console a válvula, seja ele o pequenino portátil walkman.
27 Empresa criada em 1922 com o objetivo inicial de vender música para telefone, desenvolveu-se na
década de 1940 com seus programas de música ambiente. Esses programas obedeciam a algumas
características: ausência da voz (acima de tudo a escrita sobre textos verbais), limitação dos níveis de
altura e de intensidade; classificação por gênero, tipo de agrupamento instrumental; duração média de
cada sequência em torno de 13 minutos, reunidas em séries de 8 horas. Esse tipo de música passou mais
tarde a ser aceito com entusiasmo pelos arquitetos, pois cobria os sons ambientais (máquinas em geral:
aquecedores, elevadores etc.) com um tipo de perfume acústico. (Attali, 1979:182; Schafer, 1979: 138-
145).
50
quando “a música não tem nada a fazer” (grifos do autor). Na tentativa de pôr em
prática a idéia, Satie preparou alguns slogans provocativos que afirmavam coisas tão
desconcertantes como:
“Música para cartórios, bancos, etc.... Não entre numa casa que não utilize a
‘Música de Mobília’. Não vá se deitar sem ter ouvido uma peça de ‘Música de
Mobília’, ou você dormirá mal. Quem não ouviu a ‘Música de Mobília’ não conhece a
felicidade”, entre outros (Satie, 1981:190) .
Em suma, a música de mobília era feita para ser ouvida e não escutada. Sua
estréia deu-se em 8 de março de 1920, na Galeria Barbazange (Paris), durante o
intervalo de um concerto. No entanto, a experiência foi não apresentou o resultado
esperado, mesmo Satie adotando estratégias como a colocação dos músicos distribuídos
em pontos diferentes. A falta de hábito do público e - de acordo com Milhaud, o charme
da música de Satie (Milhaud: 1949:127-130) teriam sido as principais razões28.
Enquanto projeto, entretanto, estava condenado ao abandono.
28 Milhaud que participou do evento, juntamente com Satie, relata o evento: “Uma notícia no programa
advertia o público que não devia dar maior importância aos ritornelos que seriam tocados durante o
intervalo aos lustres ou as cadeiras da galeria. Mas, contrariamente às nossas previsões, no mesmo
momento em que a música começou, os auditores se dirigiram rapidamente aos seus lugares. Satie gritou
em vão: ‘Falem, pois! Circulem! Não escutem!’ Eles escutavam, eles se calavam. Tudo deu errado”
(Milhaud, 1949:128).
51
Concebida como solução definitiva do conforto e bem-estar mental, essa
empresa recorreu a uma propaganda que imbuía, o quanto possível, o rigor científico
que garantia a sua eficácia: “aconselhada por cientistas / mais de 30 anos de pesquisa /
psicologicamente estudada”. Entre outros atributos, Muzak não exige nenhum trabalho
ou cuidado especial, por parte do consumidor: “nenhuma manutenção / você só precisa
girar um botão / cada dia um programa novo...” (Schafer,1979:143). Muitas vezes
irradia clássicos arranjados, de modo a “(...) tornar assimilável a grande música
distante do homem, que sempre possui caráter público, não privado. O homem de
negócios, que volta para a casa exausto, consegue digerir e até fazer amizade com os
clássicos ‘arranjados’29 ” (Adorno, 1980:176).
Se Muzak tem sua origem, em certo sentido, como uma apropriação capitalista
da música de mobília inaugurada por Satie, a própria empresa passou em seguida, a ser
substituída, em muitas situações, por seus sucessores: se Muzak é uma empresa que
difunde uma programação em circuitos fechados, muitas têm sido as estações de rádio,
em freqüência modulada a transmitir uma programação inspirada na estética (?!)
Muzak. Ou ainda, mais recentemente, vem-se utilizando a transmissão direta de
determinadas estações de rádio (as variantes rock pesado, música popular brasileira, de
concerto etc. - esta última geralmente desprezada) como música ambiente.
29 Na verdade, as considerações de Adorno vão bem mais longe. Quando os arranjos procuram atingir a
intimidade, são carregados de colorações (timbrísticas, acentos etc.). Esses matizes não são suficientes
para garantir a manutenção de um encantamento estético, pois os excertos acham-se desvinculados do
conjunto. Contrariamente, a instituição da monocromia numa peça policromática, como um trecho de
Wagner, possibilita ao ouvinte que não necessita acompanhar a peça musical com todos seus matizes,
52
as bem-casadas que ficaram bravas com o artigo desta Folha que dissertava sobre
métodos de apagar vestígios de traição dos mariposas durante as férias, os japoneses
têm um algo mais. Trata-se da estação de freqüência AM que se chama Rádio Álibi.
Para os mariposões de Osaka, essa estação oferece uma programação de 24 horas em
duas frequências: uma transmite ruídos de escritório, e a outra, barulho de trânsito.
Servem como álibis perfeitos para telefonemas às esposinhas, feitos de motéis
silenciosos. É só ligar o rádio ao fundo, fazer voz de cansado - coisa fácil naquela
situação - e explicar que o Matsumoto-san, aquele gordinho simpático, vai lhe deixar
em casa daqui a pouco” (Semler, 1994:2).
O utilitarismo sonoro criado por Muzak inspirou ainda outros subprodutos até
mesmo bizarros, como a sonorização de currais, a fim de facilitar a ordenha das vacas,
ou mesmo variantes de certa musicoterapia de duvidoso fundamento científico. As
experiências globalizantes, holísticas, preconizadas por correntes pós-pop como a
intitulada música da nova era (new age) ao que parece, devem alguns créditos a Muzak.
“abandonar-se tranquilamente ao som da melodia dominante, única e ininterrupta” (Adorno, 1980: 176-
177).
30 Não se confunda aqui esse tipo de música popular como música folclórica ou tradicional. A expressão
é aqui citada, desse modo, apenas como referência a um hábito já cristalizado. Na verdade, o adjetivo
popular é totalmente descabido. A então conhecida como música popular nada mais é que um gênero
criado por músicos e especialistas em marketing, com a finalidade de moldar um mercado de consumo,
53
revolta juvenil em domesticação, condensada no rock e no jazz (Attali, 1977:169). Dada
a amplitude da influência do jazz e do rock na paisagem sonora ocidental (senão até
vários segmentos do oriente como o Japão), vale a pena tomá-los como exemplo de
novo hábito de escuta, favorecido por aquilo que a Escola de Frankfurt designou
indústria cultural.
Nas décadas de 1930-40, o jazz será o gênero musical que contagiará não
somente os Estados Unidos como a Europa através dos discos, como também no rádio 31,
sobretudo após o advento do transistor. Com isso, as inúmeras Bi Bandas ganharão
sotaque internacional, seja nos Estados Unidos, na França ou no Brasil, tocando os
ritmos da moda, norte-americanos ou de outras proveniências, adaptadas ao padrão do
rádio comercial (1930: rumba; 1940: mambo; 1950: chá-chá-chá). Assim, é
compreensível encontrar no swing de Benny Goodman um certo parentesco com a
orquestra de tangos de Aníbal Troilo ou mesmo com os arranjos do nosso Pixinguinha,
ainda que gêneros de características próprias e distintas.
A semelhança a que nos referimos diz respeito, antes de mais nada, a um dado
padrão de instrumentação: massa instrumental, inclusão de instrumentos de metal,
baixo. O clarinete como instrumento adequado à improvisação melódica sola nos
swings de Goodman, como nos chorinhos de Abel Ferreira; o conhecido samba-
exaltação - dos quais o veterano Aquarela do Brasil parece ser o maior hit - ginga na
para uma música que se baseia no pulso rítmico, na repetição e na escuta linear. A esse tipo de música é
preferível intitulá-la música de massa, tal como o faz Wisnik (1989).
31 Um exemplo particularmente interessante encontramos no filme Radio Days (A era do rádio), em que
todo o filme nada mais é que um mosaico de sketches de reminiscências do diretor Woody Allen, ainda
garoto. O filme serve de exemplo de como o papel do rádio, na década de 1940, interferia no cotidiano da
vida das pessoas, programas preferidos de acordo com a faixa etária, sexo, entre outros.
54
bateria de escola de samba, impregnada em harmonia e arranjo de Big Band. A voz,
grande parte das vezes presente, optará por registros médios, mais próximos à tessitura
da fala cotidiana e do padrão de qualidade hi-fi acessíveis à época. No Brasil, esse
período ficará conhecido como época de ouro - na verdade,a fase áurea do rádio - época
em que o ouvido será a referência absoluta nesse meio de comunicação. Esse será um
dos motivos capitais que levarão a voz conhecer o estrelato: locutores e cantores
desempenham o mesmo papel que as divas da ópera do final do século passado,
adequados à sociedade de massa.
32 O compositor Maurício Kagel assinala a origem dessa expressão: “o termo ‘juke box’ apareceu
oficialmente para designar os primeiros consoles toca-discos públicos dentro dos quais se fazia deslizar
uma moeda; inspirado na expressão ‘juke houses’, que popularmente significa bordel.(The jukes é uma
gíria nova-iorquina utilizada correntemente no século XIX; nome fictício de família ou grupo de pessoas
depreciadas e desprezadas pelo restante da população)” (Kagel, 1983:174). Constatamos, assim que uma
boa fatia da música ‘auto-serviço’ mais antiga tem marcada conotação pejorativa.
33 O rock não constitui apenas um tipo de música. Transformado em estilo de vida, visão de mundo, esse
gênero musical veio apoiar-se num circuito bastante complexo: disco-rádio - automóvel- telefone
(Muggiati,1981:61-62), tornando fundamental e indispensável a figura do disc-jóquei, juiz supremo que
determinará os hits e os hábitos musicais, principalmente dos adolescentes, dentre os quais o ‘rock para
ser tocado no carro’ em muitos decibéis, evidentemente.
55
A década de 1960 pode ser considerada como o período em que se dá o apogeu
estético do disco em vinil de 33 rotações e 30cm de diâmetro, primeiro para a música de
concerto; depois para o rock. Alguns grupos de rock, como Pink Floyd (Ummagumma),
Beatles (Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band) criaram álbuns, verdadeiras obras,
dotadas de libreto, arranjos inusitados, novos timbres, entre outras novidades (Chion,
1994: 44-45). Elementos da música de concerto ou extra-européia são revisitados, sob a
forma de citação direta ou mesmo paródia, criando o que poderíamos chamar uma
concertização do pop. Nesse sentido, são fartos os exemplos legados pelos Beatles e
pelos grupos de rock progressivo34 (Yes, Genesis, Emerson, Lake and Palmer).
34 Apenas para citar alguns exemplos: o Yes Album, gravação do show ao vivo do grupo Yes, inicia com
a citação, por Jon Anderson , da primeira frase da Sagração da Primavera, de Stravinsky; Emerson, Lake
and Palmer desenvolveram leituras metalinguísticas (novos arranjos) do barroco à música contemporânea,
dois quais são exemplos o Allegro Barbaro, de Bartók, da 2a. Invenção a 2 vozes, de Bach. Nessa mesma
época, os grupos de rock pesado, tais como Uriah Heep, Led Zeppelin, Black Sabbath e sobretudo, Deep
Purple desenvolverão estilemas do barroco (marchas harmônicas, ornamentos).
56
Nos últimos tempos, encontramos, no âmbito nacional, um exemplo ainda mais
peculiar: o lançamento do disco do cantor Edson Cordeiro. Este cantor, de admirável
tessitura vocal, com equilíbrio na potência e no timbre, poderia trilhar seu caminho
artístico no domínio do repertório para contra-tenor. Entretanto, optou pela música
popular (no seu caso particular, inclui o tradicional, como Luiz Gonzaga e a música de
concerto). Numa das faixas do disco, o que encontramos ? Uma fusão de um rock dos
Rolling Stones (I can’t get no satisfaction) com a ária da Rainha da Noite (Der Hölle
Rache kocht in meinen Herzen35), da ópera A Flauta Mágica, de Mozart. Não é a
mistura disparatada, embora digna de comentários 36, o que nos chama a atenção, mas a
troca de papéis: a voz de barítono não é outra senão a voz feminina (?!) de Cássia Eller,
enquanto que o soprano coloratura que alcança o super-agudo, incomum mesmo na
maioria das mulheres é a voz masculina (?!) de Edson Cordeiro. O que nos parece
peculiar, neste exemplo, é que não estamos tratando da voz remodelada pelo
computador, ou outros recursos da eletroacústica, mas tão somente da voz naturalmente
emitida pelos cantores.
35 A tradução aproximada para o português é: uma cólera terrível consome meu coração.
36 A década de 1980 revelou-se, pelos vários exemplos colhidos, terreno fértil para a incorporação de
outras músicas no domínio da música de massas, sobretudo na intitulada MPB (música popular
brasileira). Após o efêmero sucesso (se chegou a tanto...) de músicos como Arrigo Barnabé, que incluía o
dodecafonismo weberniano em seus rocks, cresceu o número de músicos, principalmente cantores, a
incluir em seu repertório hits de décadas anteriores, peças folclóricas ou mesmo a chamada música
clássica. Os exemplos perdem-se em números: Vânia Bastos, Marisa Monte, Eduardo Dusek, entre muitos
outros. Caetano Veloso - que na Tropicália de tempos atrás reabilitou dramalhões como Coração
Materno, elevando-a do kitsch ao cult - lança, no final de 1994, um álbum com canções em língua
espanhola, muitas delas tidas, até pouco tempo atrás, como emblemas do mau-gosto. Essa tendência, que
mistura alhos com bugalhos, não raro envernizadas com nomes pomposos (releitura, por exemplo)
poderia considerar-se uma tentativa de abraçar toda a produção musical de todos os tempos, uma vez
tendo todos os meios nas mãos: partituras, filmes, regravações de discos em 78 rotações transcodificados
para o disco compacto ? Buscar alimento em novas fontes, dado o esgotamento da linguagem
desenvolvida até então? Ou ainda: recuperar de alguma forma um melodismo repelido e execrado pelo
pop? Até o presente momento, não encontramos pesquisas específicas sobre esse tema em particular.
Trata-se, ao nosso parecer, de um problema que merece maiores investigações, pois envolve diretamente
questões ligadas à estética, à recepção, à cognição.
57
A preocupação maior estará na marcação do ritmo e do ruído37. Na década de 1970, a
estética hippie-psicodélica opta pelo som difuso, de reverberação prolongada, pouco
definido: é bastante comum, nessa época, o uso de alavancas e pedais, funcionando
como abafadores ou prolongando a vibração das notas.
A música da década de 1980, por sua vez, distingue-se pelo surgimento de novas
tecnologias, que abalarão não somente os hábitos de escuta, como também os próprios
estatutos dos modos de ouvir. Referimo-nos a digitalização, ao som eletrônico, a
transformação da onda elétrica em onda computacional. Com o som digital, suprimiu-se
o ruído de fundo, uma vez que os sons reproduzidos nos alto-falantes são resultado de
leitura a raio laser e não do contato direto com o disco pela agulha. Assim sendo, o
atrito deixa de existir.
37 É interessante observar que a música de concerto passou, nessa época, por um processo de popização e
muzaquização: aos chamados clássicos populares nas versões de Ray Conniff, Paul Mauriat e outras
orquestras veio somar-se Valdo de los Rios, que acrescentava às peças sinfônicas do Barroco ao
Romantismo instrumentos de percussão, guitarras elétricas, marcando um ritmo de rock. Essa
metalinguagem, ao nosso ver, de qualidade criativa deplorável, deixou-nos algumas pérolas, como a
sinfonia no. 40, de Mozart, o 3o. movimento da 3a. sinfonia de Brahms, o concerto de Arranjuez, de
Rodrigo. Nesses (des-) arranjos, nota-se uma acentuação na bateria, em meio a reverberação nas cordas.
Versão muzak elevada ao mais alto grau da categoria kitsch. Na moda discoteca dos anos 70 a popização
dos clássicos encontrou uma nova versão: os n-volumes de Hooked on Classics, pot-pourri que unificava
em tonalidade e ostinato rítmicos temas os mais diversos da música sinfônica, de Mozart a Berlioz, de
Beethoven a Tchaikovsky. Estas divagações nos remetem inevitavelmente a o famoso texto de Theodor
W. Adorno (O fetichismo na música e a regressão da audição), em vários aspectos. Um deles é a
fetichização que é determinada pela criação de hits no repertório da música de concerto (para Adorno,
música séria): a seleção de repertório, determinada pelas editoras, pelas gravadoras, pelo rádio etc. “(...)
perpetua-se e termina num círculo vicioso fatal: o mais conhecido é o mais famoso, e tem mais sucesso.
Conseqüentemente é gravado e ouvido sempre mais, e com isto se torna cada vez mais conhecido. A
própria escolha das produções-padrão orienta-se pela ‘eficácia’ em termos de critérios de valor e
sucessos que regem a música ligeira ou permitem ao maestro de orquestra famoso exercer fascínio de
acordo com o programa(...)”(Adorno,1980:171). Nesse sentido, não é difícil perceber por que o
repertório a ser sacrificado nesses des-arranjos de Conniff a de los Rios é o mesmo que é adulado pelos
grandes nomes da regência orquestral. Outro aspecto a que se refere Adorno é a prática dos arranjos.
Nestes, as ideias originais são arrancadas de seu contexto original, formando um pot-pourri. Dilacera.
“Dilacera a unidade poliédrica de obras inteiras e apresenta apenas frases ou movimentos isolados e
conjugados, juntados artificialmente”. Uma outra faceta dos arranjos é o princípio da colorística,
principalmente quando se trata do julgamento equivocado de que a instrumentação original deve ser
atualizada, renegando, assim, toda a dinâmica do conjunto presente na obra original (Adorno,
1980:1775-176). A popização e a muzaquização têm, como princípios fundadores, justamente essas
características. É oportuno lembrar que o texto de Adorno, publicado em 1963, insere-se num período
histórico em que a Europa percebe a ascensão econômica norte-americana, que, em termos musicais, soa
através da música pop e do jazz. Para Adorno, o imperialismo sonoro seria controlado pelos meios de
comunicação de massa cuja interferência nos hábitos estéticos e perceptivos teria consequências danosas
e irreversíveis. Colocando os devidos pontos nos ii, esses fenômenos aos quais Adorno se dirigia com
ardor combativo ampliaram-se em suas dimensões. Se Adorno foi extremamente severo e radical no que
se refere ao jazz, no que diz respeito à música ambiente e sua forma de fruição nada mais apresentou
senão um juízo realista do problema.
58
A década de 1980 revela-se, então, como marco de uma conquista há muitos
anos almejada: a alta fidelidade, a hi-fi. A possibilidade de registrar e reproduzir uma
determinada fonte sonora, livre de toda e qualquer interferência. O som limpo, claro,
fiel à sua origem. Entretanto, ao nosso ver, essa crença é, em grande parte, equivocada.
Que a captação seja mais fidedigna à sua origem, isto é um fato indiscutível. Contudo, a
mediação, ou seja, as possibilidades de remodelação do som que tansitam entre a fonte e
o resultado final - o disco, o signo do objeto representado - determinam mudanças
radicais, a ponto de transfigurar, inevitavelmente, a recepção e o próprio estatuto da
obra. Esse será um dos aspectos que dirigiremos nossas atenções, no terceiro capítulo,
ao tratar da mediatização da voz, o que nos autoriza a interromper maiores comentários
neste momento.
59
vivo: aplausos, assobios, ruídos de pés dançando, copos de bebidas etc.. Os programas
de rock tomam conta das emissoras e até os noticiários e boletins meteorológicos são
integrados no clima das ‘festinhas de rock’n’roll’, transmitidos dentro do estilo
peculiar de cada disc-jóquei” (Muggiati,1981:62-63).
Esse modelo descrito por Muggiati, como podemos observar, passou por
algumas modificações, da década 1960 aos dias de hoje, como aumento na velocidade
na fala, inclusão de outros elementos sonoros, muitas vezes não existentes no universo
cotidiano, fazendo da emissão radiofônica um texto com aparente feição surrealista, não
somente pelo uso da técnica de montagem, como pela própria fragmentação dos
conteúdos internos. No entanto, o perfil geral mantém-se, ao nosso parecer, pouco
alterado: permanecem o domínio da programação pelo personagem criado pelo disc-
jóquei, vinhetas e outros emblemas que caracterizam o ritmo e o timbre da emissora,
entre outros.
60
música-ambiente, geralmente aquele tipo de música classificada como ligeira, a música
vocal está, geralmente, excluída. E por que isso acontece?
Além das características acima, deve a música ainda obedecer a um alto grau de
previsibilidade. Não interpelando o ouvinte com a inserção de elementos que
representem o novo, a repetição serve como pano de fundo para conversa ou qualquer
outra atividade que não exija maior concentração mental. Assim se explica a aceitação
de Vivaldi (1678-1741): seus 600 opus, cheios de clichês, despontam como repertório
preferencial das mídias e das programações Muzak.
38 O som passeante também apresenta outras variantes, modismos como o de transportar pelas ruas, sobre
os ombros, aparelhos de som compacto (micro systems), mais propriamente um acessório indumentário,
emblemático do rap. Um exemplo disso encontramos no personagem Rádio RAEM do filme Faça a coisa
certa (Do the right thing), de Spike Lee.
61
music é apenas um exemplo. No decênio seguinte, observa-se, pelo contrário, “(...) o
retorno nostálgico de um som menos duro, marcado pela redescoberta de valores e das
modas dos anos 60 e 70” (Chion, 1994:51).
62
3.1. O nascimento da esquizofonia e a perda do silêncio.
Blaise Pascal
Se nos dias de hoje constatamos uma presença mais incisiva do barulho, isto não
quer dizer que, em contrapartida, no período pré-industrial, o silêncio fosse reinante.
Acreditar que o silêncio teria constituído a paisagem sonora predominante até o advento
63
da primeira ou da segunda revolução industrial representaria um equívoco ao qual
somente uma ignorância ingênua poderia dar crédito. Em outros termos: falar em
silêncio não passa, em última instância, de uma bela metáfora. Apenas para citar um
exemplo, basta lembrar que o comércio era realizado aos cantos e gritos dos
vendedores40. Havia muito barulho de vozes: mercadores das quatro estações, músicos,
mendigos. “Cada mercador, de fato, tinha seu grito. mais que as palavras, importava o
motivo musical e a inflexão da voz, transmitidos de pai para filho na profissão o que
indicava, a distância, a natureza do comércio” (Schafer, 1979:100). Estes mercadores
não se limitavam ao espaço aberto da rua. Durante apresentações de teatro e ópera, tais
comerciantes se infiltravam nos intervalos para vender seus produtos41.
Se até o final do século passado, o som que atingia o território mais amplo era o
sino da igreja, com o advento do rádio, o limite territorial passou a ser aquele até onde a
antena de retransmissão pudesse captar42. Segundo Murray Schafer (1991), a
distribuição dos sons, segundo sua fonte, durante os diferentes períodos históricos,
mudou sensivelmente:
40Os gritadores de rua retomaram sua voz, mais recentemente, por intermédio de Luciano Berio: The
cries of London para 6 ou 8 vozes (versões 1774 e 1976) é uma estilização dos gritos cantados pelos
camelôs londrinos. A partir dos textos originais, Berio recriou os gritos da velha Londres, dos abbagnate
sicilianos, a tradição de Dowland (Cries of London) e Jannequin (Les cris de Paris), numa escritura
madrigalesca, com enunciação contemporânea (Stoianova, 1985: 73).
41 Esse fato é comprovado pelas chamadas árias de sorvete, números da ópera de menor importância
dramática ou virtuosística, prevista (pelos compositores anteriores ao ápice do romantismo) justamente
para esses momentos em que a atenção à obra seria desviada para atrativos de outra natureza.
42 Schafer ressalta ainda que a amplitude sonora da música de concerto acompanhou, de certa forma, o
nível de barulho das cidades. Isso se comprova com o simples observar a orquestra sinfônica, de
Monteverdi a Mahler.
64
sons naturais sons humanos sons de utensílios e tecnologia
culturas primitivas 69 % 26 % 5%
culturas medieval,
renascentista e pré- 34 % 53 % 14 %
industrial
culturas pós- 9% 25 % 66 %
industriais
hoje 6% 26 % 68 %
(Schafer,1991: 128)
Essa tabela elaborada por Schafer43 nos sugere que uma superpopulação de sons
humanos estaria presente, nos dias de hoje, em algumas ilhas. A céu aberto, nas feiras
ou festejos populares, nos locais onde a tradição oral ainda mantém sua força unindo e
unificando a sociedade (a maioria das vezes, vilarejos onde resquícios da Idade Média
mantêm-se no transcorrer dos séculos). Nas grandes cidades, os sons humanos,
principalmente as vozes, estariam mais frequentes entre quatro paredes - curiosamente -
no centro do poder econômico mundial: as bolsas de valores e seus intrépidos corretores
realizando seus negócios aos gritos e gestos frenéticos. Por incrível que possa parecer
hoje, era justamente esse o limite da voz humana - o grito - até o surgimento do telefone
e do rádio, o que data de aproximadamente um século.
65
Se em períodos anteriores a música e o som, de um modo geral, eram produzidos
no local em que deveriam ser escutados, mesmo a distância, com o surgimento da
esquizofonia perdeu-se - como acaba de afirmar Schafer - a noção de origem: podemos
sintonizar uma aparelho de rádio sem, no entanto, saber de onde provêm os sons que
ouvimos. Os sons da voz, limitados à ressonância do crânio, passaram diretamente aos
alto-falantes44. Além do mais, a fixação do som em discos e fitas permitiu ao ouvinte
misturar repertórios de tempos e espaços dissemelhantes, prática que, até o século
passado, consistiria em justaposição inassimilável e absurda.
43Aqui vale uma ressalva: ao nosso entender, aquilo que Schafer caracteriza como culturas pós-
industriais corresponde, na verdade, às culturas industriais; ainda, aquilo que o autor classifica como
hoje, diz repeito - aí sim - às culturas pós-industriais.
44 A preferência pelo microfone e pelos alto-falantes revela-se hoje, até por cantores de currículo
irretocável, como o tenor espanhol Plácido Domingo. Seriam suas razões apenas financeiras? Veja-se,
mais adiante, o protesto de Giuseppe di Stefano.
45 Essa referência é citada por Schafer (1979:135):‘Ohne Kraftwagen, ohne Flugzeg und ohne
Lautsprecher hätten wir Deutschland nicht erobert’, em: Hitler (1938-1939): Manual of the German
Radio.
46 É necessário frisar que ao tocarmos no problema da mediatização, não estamos pondo em julgamento
problemas pertinentes a um enfoque sociológico, como, por exemplo, a relação poder de consumo da obra
de arte em relação ao público potencial (do qual a ópera é um caso exemplar). Não nos interessa, em
66
mental. Favorece, em certa medida, não apenas a fixação de conhecimento lógico e
emotivo, como interfere na esfera dos conhecimentos já sedimentados, sobretudo os
afetivos.
Para Mc Luhan, a alta fidelidade nos discos pode conduzir à sinestesia: “A busca
do ‘som realístico’ pela hi-fi logo se misturou com a imagem da TV como parte da
experiência tátil. Pois a sensação de ter instrumentos executantes ‘na mesma sala em
que a gente’ é uma tentativa de unir o auditivo e o tátil numa fineza de acordes que
evoca, em grande parte, a experiência escultural. (...) Com a hi-fi, o fonógrafo enfrenta
o desafio tátil da TV”. (apud Muggiati, 1981:96-97). Para Mc Luhan, a hi-fi e seu
desenvolvimento lógico - o som estereofônico, em três dimensões, representam a
imersão do ouvinte num ambiente sônico, como um envelope acústico recuperando, de
certo modo, a memória sensorial da audição intrauterina47.
absoluto, discutir aqui questões dessa natureza. Limitemo-nos, portanto, ao estudo das transformações
ocorridas no signo e, consequentemente, na escuta.
47 Não necessariamente interessados nas relações psicanalíticas da audição, mas certamente preocupados
com novas maneiras de escutar e sentir o som estão os pesquisadores-compositores do INA-GRM
(Institut National de l’Audio-Visuel - Groupe de Recherches Musicales), encabeçados, no seu início, por
Pierre Schaeffer e, atualmente, por François Bayle. Com esse objetivo, criaram o acusmônio, aparelho
que possibilita, em sala especialmente preparada para tanto, a audição de músicas que exploram os
diferentes pontos de emissão, ressonância reverberação do som, não somente na sala de audição, como no
corpo do ouvinte. Vale lembrar que essas experiências são um desdobramento das pesquisas de Pierre
Schaeffer, iniciadas no final da década de 1940.
67
3.2. O silêncio transfigurado.
68
que as salas teriam surgido para a atender um novo público, a burguesia, nova
representante do poder econômico. Segundo Schafer, a origem da sala de concertos
estaria ligada também à mudança da paisagem sonora: o crescimento populacional e
industrial das cidades e o consequente aumento do nível de ruído impossibilitaram a
música de ser apreciada ao ar livre. Com isso, ganhou status de objeto raro passando a
ser consumida por um público pagante a portas fechadas.
* *
69
Uma pausa necessária (2): conceitos de silêncio, em música.
70
periodicidade, interna ou exterior à forma. Citemos, para elucidar a questão, o
comentário de Teixeira Coelho:
Um som não pode ser separado do ‘vazio’ do som em que ocorre. Na verdade, o
silêncio não é vazio - daí as aspas de Koellreutter. O silêncio está para o som assim
como a tela está para o pintor. Serve de contraponto ao som, conferindo-lhe resistência.
Desse modo, não nos é possível ignorar a sua força.
O silêncio pode também agir como ruído. Nesse caso, afrontamos o avesso do
conceito de ruído, como vimos na primeira pausa necessária, ou seja: a ausência de som
71
pode funcionar como ruído de código. Nesse caso, não existe exemplo mais comentado
que a peça 4’33” , de John Cage (sobre o qual discorreremos mais adiante).
72
atingirem a entropia48”(1989:182). Os compositores que optam pela música
minimalista estão mais interessados no micro que no macro-cosmo da linguagem
musical. Para tanto, servem-se de esquemas harmônicos simples, de fórmulas rítmicas
fundadas numa pulsação pregnante, variações discretas nos elementos de base.
Muitas das músicas pop são concebidas de acordo com esse princípio: a de
recortar um elemento mínimo de base, de maneira a sobre ele compor (muitas vezes, de
improviso) a música. Isto pode ser observado com maior frequências, à medida que
surgem instrumentos capazes de trazerem prontas certas fórmulas, como por exemplo a
seqüência rítmica da bateria eletrônica, os acordes que compõem a harmonia etc.. Tais
músicas apelam pela marcação do tempo, através de uma fórmula rítmica. A marcação
rítmica, por sua vez, fixa o acompanhamento corporal. Música para ser ouvida antes
pelo tato que pelo intelecto. Talvez seja por essa razão que o ouvinte da música
extremamente repetitiva não encontre nesse tipo de música algo que poderia ser
classificado, a princípio, como monótono.
Que a fala desta pausa necessária silencie a partir de agora, para voltar a falar
novamente à luz de um novo contexto: a entrada do silêncio como valor na paisagem
sonora contemporânea.
48 No campo da informação, a entropia “(...) mede aquela parte da mensagem perdida, no processo de
passagem do emissor para o receptor, por uma série de razões dentre as quais a diferença nos próprios
repertórios. A mensagem transmitida deveria produzir um certo comportamento que, no entanto, não se
verifica; a diferença entre o comportamento visado e o obtido pode ser expresso pela entropia” (Teixeira
Coelho, 1980: 132).
73
John Cage
“O silêncio não existe. Sempre está alguma coisa acontecendo que produz
som.” Tal foi a conclusão a que chegou John Cage (Cage,1961:8), após tentar escutá-lo
no interior de uma câmara anecóica. Nessa cela que reduz a praticamente zero a
reverberação e a interferência sonora, Cage podia perceber dois sons nítidos: um grave
(o da circulação sangüínea) e um agudo (o sistema nervoso). O que significa que,
abstraída toda e qualquer fonte sonora, excluída toda e qualquer interferência, restam
sempre os sons do corpo, os sons que marcam o ritmo da vida; sons que, não isolados de
outros mais intensos, dificilmente podem ser percebidos. Ou, dizendo de outra maneira:
“A rigor, fisicamente e em termos absolutos, ele (o silêncio) não existe na biosfera (....)
O que chamamos costumeiramente de silêncio corresponde a uma infra-audição do
ruído” (Neves, 1984:13).
74
Sem avançar em maiores digressões teóricas - não pretendemos aqui estabelecer
um tratado sobre o silêncio - basta-nos, no momento, destacar que o silêncio como
recurso expressivo parece ter sido usado por toda a história da música. No caso da
música de concerto, guardaria as mesmas características gerais até o advento da técnica
dodecafônica, nas primeiras décadas deste século.
75
significaria, antes de tudo, passar ao longo dos Livros de madrigais de Monteverdi, das
Partitas para violino desacompanhado de Bach, do Réquiem de Mozart, de todo
Beethoven, dos prelúdios de Chopin, dos poemas sinfônicos de Liszt, dos lieder de
Schubert e Schumann. Seria necessário reouvir as cadências não-resolvidas de Tristão...
O silêncio como valor musical parece ter surgido primeiramente com Debussy.
Em 1893, em uma carta ao compositor Ernest Chausson ele revelava, a propósito da 4a.
cena do 4o. ato de Pelléas: “Servi-me, espontaneamente, de um meio que me parece
bastante raro, ou seja, o silêncio (não ria), como meio de expressão e talvez a única
maneira de fazer valer a emoção de uma frase” (apud von der Weid, 1992:26).
Verifica-se aí o embrião do silêncio como valor musical que se desenvolveria em obras
posteriores, como La Mer. O silêncio, nesse contexto, a ser encarado como recurso que
favorece a clareza no colorido timbrístico e transparência na compreensibilidade tanto
do texto poético, quanto do fraseado musical, constitui algumas das preocupações
centrais da obra de Debussy. Essa preocupação já aparece nitidamente nas Chansons de
Bilitis (sobre poemas de Pierre Louys, compostas em 1897), onde a canção se afeiçoa
mais à declamação que ao bel canto.
76
emprego de novas relações harmônicas estranhas à sua época, motivos melódicos
recorrentes, de modo a servir à palheta timbrística das vozes e dos instrumentos,
elementos que estruturam não somente a forma, como também engendram o conteúdo
dramático da obra (Moraes, 1983:105). As inovações de Debussy vão mais além: as
óperas de sua época consistem em tragédias em que, a maior parte das vezes, culmina
com uma morte trágica. Os personagens moribundos - quase sempre mulheres -
expressavam-se, via de regra, aos gritos. (Basta-nos, dentre tantos exemplos, lembrar de
Violeta, de La Traviata, de Verdi). A morte de Mélisande, protagonista feminina da
obra, morre em silêncio.
49 Estética inaugurada por Schoenberg, em 1921 com o objetivo de eliminar da linguagem musical a
polarização e distensão, característicos da tonalidade. Para tanto, o primeiro princípio a ser seguido foi o
da série, ou seja, a distribuição das alturas (os 12 semitons da escala) de modo que cada uma delas só
pudesse ser repetida após a execução das outras 11. Daí o nome dodecafonismo - referência aos 12 sons
da escala. O desenvolvimento posterior do dodecafonismo foi o serialismo, técnica que estendia a série
não somente às alturas, mas também aos valores rítmicos, intensidades, modos de ataque. Compor
segundo essa técnica exige, da parte do compositor, um elevado rigor matemático.
50 O modo concebido por Messiaen agrupa 36 sons divididos em 3 séries dodecafônicas organizadas em
3 registros superpostos: 24 valores (durações), 12 ataques e 7 variações de intensidade (Paz, 1977: 342).
77
O que nos interessa em relação à música serial é o fato de que ela estabeleceu,
principalmente através da figura de Webern, uma nova idéia de tempo e espaço sonoros.
A serialização não somente das alturas, estendida às durações, isto é, aos valores
rítmicos, leva a música a uma nova dimensão, cuja origem estaria no conceito de espaço
da pintura concreta. Ao proceder desse modo, a composição imprime ao silêncio um
valor antes inusitado. Como afirma o compositor Juan Carlos Paz: “O ‘valor-som’,
condicionado ou dependente do ‘valor-silêncio’, recorre ao cálculo matemático puro, e
estabelece a forma e as normas de internas de uma composição, a base de um jogo e
uma integração desses valores puros em planos concretos, carentes de perspectiva”
(1977:343). A serialização dos valores rítmicos evoluiu para uma polifonia de durações.
Como conseqüência, não somente os valores-som, como os valores-silêncio passaram a
constituir matrizes da composição.
78
sua obra: “Pela primeira vez em sua história, a música tornou-se tão despojada e
transparente que os seus elementos individuais pareciam flutuar, isolados, entre
apavorantes bolsas de ar de silêncio total” (apud Moraes, 1983:97).
79
“Se eu quero ‘a vida enquanto arte’, corro o risco de cair no estetismo, porque
tenho o ar de pretender impor alguma coisa, uma certa idéia da vida. Parece-me que a
música - ao menos tal como a encaro - não impõe nada. Ela pode ter como efeito
mudar nossa maneira de ver, fazer-nos olhar como sendo arte tudo que nos cerca. Mas
isso não é um fim! Eles são, simplesmente. Eles vivem. A música é esta vida dos sons,
esta participação dos sons na vida, que pode tornar-se - mas não voluntariamente -
uma participação da vida nos sons. Nela mesma, a música não nos obriga nada” (apud
Moraes, 1985: 48-49).
51 Obviamente esta é uma apreciação um tanto grosseira que mereceria uma análise mais demorada. Os
níveis de aleatoriedade são tão numerosos quantas são as obras que a adotam. Entretanto, não entraremos
em detalhes no que se refere a esse problema. Existe uma margem de indeterminação quando a
composição se baseia no cálculo matemático ou cibernético, categoria que imprime à obra o desejo inicial
80
cria-se um outro silêncio, o silêncio do inesperado: o silêncio que nasce da sensação de
suspense e expectativa a que são induzidos tanto o intérprete (o músico) quanto o
ouvinte.
Sob um outro ponto de vista (de escuta), essa peça representa a substituição da
produção sonora artificial - os sons produzidos pelo músico - pela natural, ou seja, a
paisagem sonora de fundo (Avron, 1978:124). Para Cage, os sons deveriam
simplesmente soar, sem se subjugarem à vontade do homem. Tais idéias parecem-nos
claras se atentarmos às palavras do próprio autor: “O compositor deve renunciar ao seu
desejo de controlar o som, retirar seu espírito da música e promover meios de
descoberta que permitam aos sons serem eles mesmos, ao invés de veículos de teorias
feitas pelo homem, ou expressão de sentimentos humanos” (apud Attali,1979:221).
Para Cage, compor música significa, então, escutar a natureza do som, isto
porque, segundo ele, qualquer som percebido pode ser tão interessante quanto uma peça
musical já composta. Em seu livro M. Writings ‘67 ‘72 Cage afirma que já em 1952
experimentava, com Morton Feldman (1926-1987), Christian Wolff (1934), Earle
Brown (1926) e David Tudor - a intitulada Escola de Nova Iorque - a criação de uma
música feita só de sons, livres de julgamento se eram ‘musicais’ ou não, sons livres de
memória e gostos, de relações fixas entre si (1972).
do compositor. Num outro nível, a aleatoriedade é uma espécie de improvisação dirigida; aí, o intérprete
compartilha com o autor os resultados sonoros. Existe ainda um terceiro nível, aquele em que o
compositor não deixa nenhum registro por intermédio da notação musical, ou qualquer outra notação mais
específica. Desse modo, cabe ao intérprete realizar a obra. A autoria do compositor, nesse caso, reside no
81
a sua maneira zen-budista de encarar o mundo e, conseqüentemente, a música: a meta é
a despersonalização, o acaso e o modo de chegar a ele, pois, tanto na música como na
vida, todas as coisas são iguais, não havendo hierarquia. Dentro dessa perspectiva, Cage
é avesso a qualquer estética, como a qualquer julgamento de valor. Em suma, som
equivale a silêncio, a ruído ou a qualquer outra coisa.
Nesse sentido, a música repetitiva pede silêncio; silêncio que permita perceber
as sutis transformações pelas quais a forma primeira passa. Curiosamente, esse pólo
abissal de repetição contínua se entrecruza com seu extremo simétrico: a música serial,
demonstrando, como afirma Wisnik “(...) o fundo repetitivo e ao mesmo tempo
descentrado sobre o qual se move a música presente, e no qual se encontram as suas
formas mais opostas , dentre a diferenciação máxima e a indiferenciação” (1989:183).
Podemos, assim, concluir este capítulo com estas breves palavras. A música de
Webern, como vimos, pede silêncio para que as variações sutis e brevíssimas possam
ser expressas (e percebidas) como “um romance, num simples gesto; uma alegria, num
suspiro” - como um dia a sua obra se referiu a Schoenberg, isto é, dentro dos limites de
um tempo fugaz. Por sua vez, o silêncio que a música aleatória solicita visa, antes de
mais nada, situar o ouvinte no mar de virtualidades do acaso. Já a música repetitiva
necessita do silêncio de um tempo prolixamente longo para expor o ouvido à percepção
das variações, diluídas em formas infinitesimais.
projeto inicial. Esse problema será enfocado mais adiante, no quarto capítulo, razão que nos permite
limitar maiores exemplificações por aqui.
82
Ao longo destas páginas, vimos discorrendo sobre as transformações da
paisagem sonora deste século que já acena para o seu final. Pudemos, igualmente,
acompanhar algumas das transformações radicais transcorridas na paisagem da
linguagem musical. Ocupemo-nos, daqui por diante, das paisagens da voz, entre o ruído
e o silêncio.
83
Parte II: Os cantos da voz: entre o ruído e o silêncio
84
1. Corpo. (allegro moderato)
“Mas, desde já, lembremos que o ouvido surge como organizador essencial de todo o
mecanismo vocal. Sem ouvido, nada de canto.”
Alfred Tomatis
Sabemos também que a emissão de um som vocal, qualquer que seja ele, põe em
vibração todo o nosso corpo - e não apenas o crânio e o tórax. Entretanto, a ressonância
52 Castarède endossa essa ideia e vai mais adiante: graças à audição o bebê estabelece, desde a vida fetal,
sua primeira ligação com o meio-ambiente. Trabalhos experimentais confirmados por outras formas de
conhecimento como a mitologia, a filosofia e psicanálise mostram que o espaço sonoro é o primeiro
espaço psíquico, antes mesmo do gesto e da mímica (Castarède, 1991:77). Embora a abordagem da voz (e
da audição) dentro das perspectivas da psicanálise e outras ciências não se enquadrem nas dimensões
deste trabalho, consideramos importante citar o depoimento da autora, fortemente apoiado por diversas
85
privilegia determinados pontos, que variam de acordo com o fonema e a altura
(frequências). Segundo o musicólogo Iegor Reznikoff, o feto consegue perceber as
vibrações que se situam na ossatura baixa da mãe, sendo capaz de distinguir não
somente a freqüência fundamental e sua quinta superior, como percebe os diferentes
pontos de ressonância.53
obras que cita, ao longo do seu trabalho, a fim de reiterar algumas das idéias que apresentaremos mais
adiante.
54 A relação ouvido / voz vem sendo objeto de inúmeros estudos por parte do otorrinolaringologista e
foniatra Alfred Tomatis desde a década de 1950. Suas pesquisas revelam que as faculdades da audição
vão muito além do que se conhece nos meios acadêmicos: em pleno funcionamento desde a vida fetal, o
ouvido é responsável não somente pela audição propriamente dita e pelo equilíbrio, mas também pelo
aprendizado de línguas estrangeiras, assim como pelo canto.
55 O bebê balbucia a sua própria língua. Se, de acordo com as hipóteses de Chomsky, a predisposição
linguística é genética, é necessário um meio-ambiente linguístico para ativá-la. “Até os 6 meses o bebê
desenvolve um repertório de vocalizes que compreende todos os sons de todas as línguas humanas; de
outra parte, nos 6 meses seguintes, o bebê não produz sons além daqueles próprios à comunidade
linguística em que se encontra” (Castarède, 1991:74).
56Interessante é observar que em algumas patologias esse traço se mantém intato. Por exemplo, os
afásicos, seja do tipo receptivo ou global, incapazes de compreender a estrutura gramatical do discurso,
captam o sentido geral, graças à percepção de gestos, modulações da voz etc. (Sacks,1987:87).
86
À medida que a aprendizagem do código verbal se desenvolve, o caráter sonoro
da língua vai se tornando inconsciente, ou mesmo imperceptível, de modo que somente
situações não-eventuais podem resgatar novamente aquela impressão primeira da
língua: quando ouvimos um idioma estrangeiro desconhecido, a recitação de uma
poesia, ou mesmo uma peça musical onde a expressividade da voz é explorada de modo
incomum ou novo, “ a voz se desdobra, a voz desabrocha como voz” - para citar o
medievalista Paul Zumthor (1989).
57 Estas afirmações foram proferidas por ocasião do simpósio Musique: Texte, promovido pelo IRCAM
(Paris), em 28 de janeiro de 1995. Mâche é criador de uma teoria ao mesmo tempo instigante e polêmica,
87
intuitivamente percebida por qualquer pessoa, mas também todo um sistema musical
potencial de sua fonética, sua agógica, sua entoação particular e, o trabalho do
compositor pode consistir em tornar explícita essa música latente.”
No entanto, música e língua são linguagens distintas. A música tem como única
referência concreta, como lei, a série harmônica; a língua é construída sobre signos já
existentes, convencionais. À luz da semiótica peirceana, a primeira é de predominância
icônica, enquanto a segunda é de predominância simbólica. Devido a essa característica,
é a música linguagem incapaz de expressar coisa alguma por si própria: seja uma
situação, um sentimento, um estado psicológico. Sobre isso é bastante conhecida a
afirmação de Stravinsky, que nos permitimos reproduzir aqui:
dentro da qual música e língua têm uma origem comum, imersa no pensamento animal. Dentro dessa
perspectiva, a palavra é uma música especializada enquanto a música representa um pensamento geral. A
poesia se encontra num ponto de cruzamento entre os dois planos. É importante referenciar este autor,
pois trata-se de um dos maiores expoentes na atualidade que tem dentre seu centro de interesses, a
pesquisa da música vocal. Para isso, busca nas línguas antigas ou extintas material novo para suas obras.
88
nível, claro, uma peça musical pode ser ‘linda’, ‘religiosa’, ‘poética’, ‘doce’, ou tantos
outros adjetivos quantos ouvintes puderem encontrar para completá-los.”
MÁXIMO SIGNIFICADO
89
5.Canção silábica uma nota para cada sílaba
6. Canção melismática mais que uma nota para cada sílaba. Na música do século
XVI sílabas únicas são freqüentemente abrandadas
através de toda a composição.
MÁXIMO SOM
(Schafer, 1991: 240).
O painel que Schafer nos apresenta parece dar conta de todo e qualquer tipo de
proferição vocal. Entretanto, não podemos afirmar que o aparelho fonador seja
explorado na sua plenitude: acabamos por reduzir a quantidade de ruídos que podemos
emitir, a fim de reter somente aqueles que permitem uma melhor comunicação. Assim,
movimentos musculares da laringe e da respiração ou passam despercebidos ou são
mesmo desprezados (Rosolato, apud Escal:1979:20). Além disso, somem-se as
restrições perceptivas determinadas por uma modelização linguística que se inicia -
como vimos acima - na mais tenra idade.
58 Entretanto, suas hipóteses seriam contestadas por um contemporâneo seu, o violinista e filósofo
Michel-Paul-Guy de Chabanon (1730-1792), autor de Da música considerada pela música e suas relações
com a palavra, a língua, a poesia e o teatro (1785). Para ele, “(...) a música que desfigura as línguas,
conforme suas necessidades, sabe tornar em música qualquer língua” (apud Lévi-Strauss, 1993:98).
90
Em todas as línguas as exclamações mais vivas são inarticuladas. Os gritos e os
gemidos são vozes simples (Rousseau, 1978: 165).
59 É conveniente ressaltar que o século XVIII foi palco de fervilhantes discusssões sobre a importância
da música enquanto forma de conhecimento. Se, de acordo com a filosofia cartesiana, a arte se
enquadrava num patamar inferior, a música deveria se situar no mais baixo deles, por não constituir
linguagem comunicativa (Fubini, 1971:16-17). Rameau, de sua parte, discordava radicalmente dessa
classificação, uma vez que reconhecia na música um caráter científico: a harmonia funda-se num
princípio natural (as leis matemáticas) e, portanto, racional e eterno. Pleiteava, assim, uma música para
ser compreendida e não apenas sentida (Fubini,1971:30-33).
91
isto nos levaria igualmente a imaginar um homem primitivo de fala mais apaixonada
que a nossa, mais próxima do canto (Schafer,1991:235)61.
Entretanto, não nos parece possível estabelecer uma linha demarcatória clara e
nítida entre canto e entoação da fala: “ em povos como o chinês, por exemplo, cujo
idioma possui acento tônico semântico, ou como o persa e o árabe, cuja escala musical
se serve de quartos de tom ou medidas ainda menores como unidades de intervalo”
(Navarro Tomás, apud Tatit, 1982:32-33), o estabelecimento dos parâmetros carece de
precisão referencial. Em outros termos, para se efetuar uma classificação rigorosa, é
necessário verificar o seu sentido no âmbito de cada cultura, em particular62.
Se este traçado tortuoso nos conduziu, até o momento, a uma reflexão sobre o
caráter musical da voz falada é oportuno, a partir deste momento, investigar o que
determina, em última instância, essa música, no próprio corpo do falante - uma vez que
o corpo reúne em si o executante e o meio de execução, simultaneamente.
Não são poucos os traços que constituem a voz, falada ou cantada. Dentre as
diversas abordagens que o passar dos anos vem nos legando, seja de ordem teórica ou
poética, é bastante frequente encontrar aproximações entre voz, língua (sobretudo
poesia) e música. Estas referências têm um fundamento interessante e nada fortuito,
pois, de fato, a música constitui um aspecto fundante na estrutura psico-fisiológica da
voz falada, tanto como da voz cantada.
61 É importante lembrar que - como afirmamos anteriormente - a paisagem sonora sofreu mudanças
sensíveis, sobretudo nas cidades, onde o som em linha reta passou paulatinamente a orientar a audição e a
fala.
92
linguagem musical. Trata-se dos tonemas, traços entoativos localizáveis em
determinados pontos do discurso. A afirmação, a resignação e a constatação implicam
no movimento melódico descendente, enquanto contentamento, exclamação e surpresa
determinam o movimento melódico ascendente. É nessa medida que um ouvinte
ignorante de uma dada língua é capaz de captar algo da mensagem comunicativa, pois é
sensível à expressividade da enunciação (neste caso, o texto oral sempre prevalecerá
sobre o escrito).
De acordo com Tatit, autor de uma tese sobre a canção popular (1982) existe um
consenso entre diversos estudiosos no tema ao considerarem que o tonema descendente
seja utilizado por todas as culturas estudadas, quando da conclusão ou asseveração de
uma idéia. Isto coincide com o fato de haver uma distensão nas cordas vocais, no
momento em que a voz caminha para o grave (Tatit, 1986:33).
62 Uma exposição semelhante é desenvolvida por Zumthor (1989:128), conforme veremos mais adiante.
93
“A modulação da fala é normalmente proprioceptiva, governada por impulsos afluentes
de todos os órgãos vocais” (1987: 56). Isso nos leva a pensar que, muito possivelmente,
a enunciação e a entoação da fala são proprioceptivas. Assim sendo, poderíamos julgar
a voz cantada igualmente proprioceptiva?
Tatit, em sua obra citada anteriormente, atesta que: “Embora sempre com
suplemento emocional, a canção articula melodicamente as inflexões entoativas da
frase, à maneira de discurso lógico.” (Tatit, 1986: 40).
Resta-nos saber em que medida essa teoria pode ser aplicada, uma vez que os
exemplos apresentados por ambos os autores se referem à música tonal, escritas sobre
textos verbais. Porque a linguagem verbal é fundante, dada a sua sofisticação, ela
interfere nas semioses. Isto não significa, entretanto, que os outros códigos devam ser
carregados por ela. Partindo desse princípio, surgem algumas indagações, como por
exemplo: Até que ponto a aplicação dessa teoria poderia ser válida para a música não-
tonal? A canção sem palavras também se enquadraria nesse esquema? Caso afirmativo,
poderíamos conjeturar sobre a extensão desse conceito para toda e qualquer melodia
cantada (ou não)?
Para estas questões, nos parece, não existe, até o momento, uma teoria de
consenso nesse sentido, embora não seja pequeno o número de pesquisadores
investigando minuciosamente o problema 63. Assinalamos, todavia, nossa preocupação a
esse respeito.
63 Cf. D. Charles, R. Cogan, F. Escal, S. Hosokawa, J. J. Nattiez, N. Ruwet, entre muitos outros, além
dos autores citados ao longo do trabalho. Podemos ainda destacar as pesquisas realizadas por músicos,
como a cantora Cathy Berberian, L. Berio, L. Küpper, somente para citar alguns nomes.
94
1.3. Ritmicidades.
As aproximações entre corpo e música, como vimos, não são raras. De fato, é
bastante disseminada a idéia de que a música surge como uma espécie de transposição
metafórica dos ritmos corpóreos. Na verdade, as percepções rítmicas estão na base da
cultura.
É sob esse ponto de vista que a música assume um papel importante. Ritmo e
emoção estariam, segundo Leroi-Gourhan, presentes mesmo nos primórdios da
humanidade, antes mesmo da codificação da língua: “As referências da sensibilidade
estética, no homem, têm como fonte a sensibilidade visceral e muscular profunda, a
95
sensibilidade dérmica, os sentidos olfato-gustativos, auditivos e visuais , enfim, a
imagem intelectual, reflexo simbólico do conjunto de tecidos de sensibilidade” (Leroi-
Gourhan, apud Castarède, 1991: 21).
96
A função rítmica assenta-se sobre um fundamento que a teoria da informação
explica objetivamente. Na relação originalidade / previsibilidade - que são os elementos
dosadores da informação transmitida de uma fonte (emissor) a um destinatário
(receptor) - a periodicidade tem uma função importante. Como ressalta Teixeira Coelho:
“A repetição de elementos significantes a intervalos ordenados (periodicidade) leva à
noção de ritmo, que por sua vez cria no receptor um estado de expectativa, condição
específica da previsibilidade. E quanto mais regular for o ritmo (repetição isócrona),
maior será a capacidade de previsão” (1980: 157).
97
se numa dimensão que ultrapassa a semântica verbal. Uma certa repetição de alguns
recursos expressivos, no entanto, têm sido bastante frequentes, ao longo dos anos, como
se houvesse se estabelecido uma certa universalização: temas como primavera, mulher,
pássaro têm-se traduzido, em música, pelo mesmo tipo de melisma ou arabesco
(Castarède,1991:92).
65 Estão assim excluídos, em virtude da delimitação do estudo, uma abordagem que inclua a voz em suas
manifestações patológicas (loucura, por exemplo), muito embora constitua um campo fértil para análises
dentro do presente tema.
66 Lembremos que existe uma estreita associação metafórica entre a posição horizontal e a sepultura,
largamente estudada pela antropologia cultural.
67 Esse problema suscita uma discussão riquíssima que, por razões de delimitação não poderão aqui ser
abordadas. Gostaria apenas de apontar os escritos de Eliade (O mito do eterno retorno), Schafer (Le
Paysage Sonore) e Pross (Estructura Simbólica del Poder).
68 O centro mítico, centro do mundo parece presente tanto nas sociedades arcaicas como modernas:
campos esportivos, de guerra, praças etc.
98
centro mítico do ritual do concerto. No caso da execução de uma obra sacra, essa
posição pode até fazer as vezes do papel realizado simbolicamente pelo sacerdote.
Elementos enfatizadores, como recursos cênicos, efeitos de iluminação podem, em
grande medida, exercer papel fundamental na performance da obra como um todo69.
Cathy Berberian
69 Um exemplo interessante, nesse sentido, encontra-se no Réquiem (1981), de Gil Nuno Vaz para coro
misto e declamador. A obra intercala seções cantadas e declamadas. À medida que a parte coral vai,
pouco a pouco inserindo ruídos na melodia do texto litúrgico, a declamada elimina as consoantes (ruídos)
do excerto do poema Transubstanciação, de Raul de Leoni. Na sua última seção (penúltima da peça) o
declamador entoa apenas vogais; na última seção (última da obra), coral pronuncia apenas consoantes e
pausas. O efeito da performance salienta-se uma vez que, além dos recursos expressivos cênicos e de
iluminação, o próprio tema, de cunho religioso incita a essa ênfase expressiva.
99
energia e configuração de traços que predispõem as pessoas a certas experiências,
sentimentos e pensamentos. (...) Através da voz, a palavra se torna algo exibido e
doado, virtualmente erotizado, e também um ato de agressão, uma vontade de
conquistar o outro, que a ela se submete, pelo prazer de ouvir” (1985:7-8). A voz é,
portanto, mais do que as palavras que são pronunciadas, mais que a qualidade do som
que sai da boca; é o corpo inteiro, caixa de ressonância que fala, emanando energia.
100
caso, ainda nos restringimos a uma pequena amostragem que inclui apenas a viva voz,
natural ou mediatizada tecnicamente 70. Em todos esses exemplos, sabemos que o papel
da plateia é essencial. Sua interferência varia de acordo não somente com o intérprete,
como também com a própria natureza da obra a ser executada. Além disso, é oportuno
salientar que alguns fatores, como grau de abertura da obra, possibilidade de
improvisação, por exemplo, também estão envolvidos.
70 Zumthor distingue quatro níveis de oralidade: a primária, aquela que não mantém qualquer vínculo
com a escrita; a secundária, da qual a escrita é precedente, a oralidade se recompondo a partir dela; a
mista, que possibilita a coexistência de oralidade e escrita, porém a influência da segunda sobre a
primeira é “parcial, lenta e de efeito lento” e, por último, a mediatizada, a oralidade mediatizada
tecnicamente pelo rádio, televisão, discos etc.(Zumthor, 1985). Traçar uma combinação que tente
percorrer todos os níveis em que a oralidade é possível, através dos mais diferentes meios e linguagens
(teatro, música, cinema etc.) constituiria um inventário interminável, impossível de ser desenvolvido aqui.
No entanto, é particularmente interessante constatar que as paisagens da oralidade se ampliaram, talvez
não em quantidade, mas certamente em qualidade.
71 Considere-se que a obra pode ser inteiramente oral, como escrita. Tanto num caso como no outro, a
constituição mais rígida ou flexível da obra, pode permitir a improvisação, ou outras intervenções, de
101
Podemos então concluir que, longe de atuar como um mero acessório
circunstancial, a performance tem a faculdade de determinar outros elementos formais,
a ponto de, em certos casos, estabelecer a criação de um novo texto, isto porque a
função da voz ultrapassa de longe a comunicação linguística. Antes disso, poderíamos
dizer - tornando nossas as palavras de Zumthor - que “a língua transita por ela, voz,
cuja existência física se impõe a nós com a força de choque de um objeto material”
(1985:7).
Teatro musical
modo a produzir modificações substanciais no texto original. No entanto, não podemos esquecer de
algumas exceções importantes. No âmbito daquilo que nos interessa mais diretamente, devemos salientar
que a música eletrônica, embora desempenhe uma performance, trata-se de um tipo diferenciado: o
intérprete são as caixas acústicas, geralmente colocadas no palco e, muitas vezes, em outros pontos da
sala de audição. A retroalimentação (para utilizar um termo da teoria da comunicação) não ocorre nesse
momento, a não ser que se considere a possibilidade de interação com a própria obra.
72 Dentre as muitas diferenças que existem entre a cultura oral e a escrita, há um aspecto importante para
o qual chama a atenção Zumthor que nos permitimos citar textualmente: “No universo da cultura oral, o
homem mantém contato direto com os ciclos da natureza, interioriza sua experiência da história, sem
contudo conceitualizá-la, concebe o tempo segundo esquemas circulares de perpétuo retorno e, por isso
mesmo suas ações são inevitavelmente determinadas pelas normas do grupo. Já o uso da escrita implica
na disjunção entre pensamento e ação, certa abstração que enfraquece o próprio poder da língua, a
predominância de uma forma linear de tempo, além de individualismo, racionalidade e burocracia” (1985:
4-5). Refletindo sobre essas considerações, podemos concluir que textos orais dirigidos a um grupo que
vive na sociedade oral têm resposta diferente daquela apresentada por um público letrado. A discrepância
de repertórios entre um e outro grupo tem raízes, portanto, na forma de pensamento, subjacente a cada
uma dessas culturas.
73 Evidentemente, não é preciso traçar uma generalização desmedida. Há de se convir, por exemplo, que
uma boa parte da música composta no século XX se esforça por apresentar uma partitura completa.
Compositores como Bartók preocuparam-se com a notação o mais detalhada possível (modos de ataque,
duração total da peça etc.) de modo a indicar rigorosamente a interpretação desejada. O problema da
performance apresenta outras particularidades que, neste momento não poderão ser avaliadas: é o caso,
por exemplo, da música eletrônica, onde a realização da obra é a sua própria execução, ou seja, não existe
a escritura do texto musical sobre um meio material (partitura) para depois ser lido e executado por um
102
Postas estas considerações de Zumthor, dirijamo-nos, neste momento, para um
outro tipo particular de performance, o teatro musical, concebido originalmente pelo
compositor Maurício Kagel (1931). Antes de tecer considerações sobre ela, convém-
nos, primeiramente, definir o que é teatro musical contemporâneo:
A noção de teatro musical parece ter tido início na década de 1950. Desde então,
vêm despontando variadas vertentes dessa concepção artística que tenta fundir, sob os
mais diferentes aspectos, teatro e música - se bem que, tal projeto já era praticado por
Wagner no final do século passado, quando elaborou a sua gesamtkunstwerk (obra de
arte total). Ação de luz e som, de Xennakis, ação musical, de Berio, teatro do corpo, de
Ferneyhough etc. surgem no âmbito dessa perspectiva.
Num sentido geral, o teatro musical nasce do desejo, por parte dos compositores,
de trazer o referencial da ação cênica para a música, no momento em que se dão conta -
como sucedeu com Maurício Kagel - das possibilidades expressivas do gesto, da ação
musical - da performance, enfim. Para dar uma idéia mais clara do que dizemos,
tomemos como exemplo a execução de um concerto para violino do período romântico.
Observando com atenção, verificaremos que, desde o erguer as baquetas do timpanista,
situado no fundo do palco, os mínimos movimentos de arco do violino solista, os gestos
do maestro expressam um movimento cênico, isto é, a ação cênica que caracteriza a
performance musical. Uma performance dessa natureza desempenha uma função
expressiva muito intensa.
Partindo dessa idéia, Kagel criou aquilo que denominou teatro musical, gênero
bastante freqüente em suas obras. “O teatro começa no momento em que um indivíduo
está consciente da intensidade da sua experiência no tempo, e que essa intensidade é
exprimível para ele; nesse momento preciso, o lado privado da experiência é traduzida
em comunicação cênica” (Kagel, 1983: 127).
músico. Na música eletrônica o trabalho realizado pelo compositor já é a própria obra, realizada na fita
magnética, sem a intermediação de um intérprete (o músico).
103
século passado, começaram a ser divulgados estudos sobre doenças exclusivas aos
músicos (Kagel,1983: 131).
74 Embora nos escritos de Kagel que consultamos não conste uma classificação que estipule uma
classificação entre as variantes do teatro musical - seja o teatro instrumental, seja o teatro vocal -
acreditamos que esta denominação possa ser analogicamente aplicada, quando tratarmos da performance
da música vocal por excelência.
104
- o movimento é o elemento de base, fazendo parte da composição musical; é
justamente o movimento que distingue uma obra de teatro musical de qualquer outra
(criando uma dimensão entre espaço musical e espaço real. Em suma, o teatro musical
se apropria, através do gesto, de um elemento muito caro à música contemporânea: o
espaço físico, o que significa, de certo modo, a ampliação do horizonte da música
(instrumental, sobretudo) para o domínio do campo visual.
105
Como vimos há pouco, a performance de um texto oral, seja qual for sua
origem, envolve diversos fatores. Sua análise pleiteia, por esse motivo, uma abordagem
individualizada e atenta de cada linguagem oral em particular. Entretanto, não é esse o
tema a que dirigimos nossas atenções. Interessa-nos, sobretudo, investigar a voz
cantada. Voltemos, então nossa atenção para as vozes da voz, compreendidas no âmbito
da linguagem musical.
106
fonador - se predispõe para que o som mentalizado (e não outro) seja emitido. Aprender
a emitir a voz corretamente - a impostação - exige não somente a observação direta de
um modelo, como também a elaboração de uma série de metáforas ou aproximações
icônicas76.
75 Isso não significa que o cantor possa ouvir sua própria voz realmente. Em determinadas situações, o
mecanismo de projeção (acústica) da voz não permite o cantor de ouvi-la, de fato. De qualquer modo, a
emissão vocal depende, antes de tudo, mais do ouvido que da laringe. Tal o prova os estudos realizados
pelo otorrinolaringologista e pesquisador Alfred Tomatis (1987; 1991).
76 Aqui , referimo-nos ao conceito elaborado por C. S. Peirce: um signo icônico representa seu objeto por
semelhança: 1- uma imagem, apresentando semelhança à qualidade da aparência do objeto que a imagem
representa; 2- um diagrama, representando relação das partes com o objeto, usando semelhanças análogas
com suas próprias partes; 3- metáfora: justaposição de dois ou mais signos, fazendo surgir relação de
semelhança entre elas. “O objeto do ícone, portanto, é sempre uma simples possibilidade, isto é, a
possibilidade do efeito de impressão que ele está apto a produzir ao exercitar nossos sentidos”. Por não
representar, senão formas e sentimentos, o ícone possui alto poder de sugestão. “É por isso que o
interpretante é uma mera possibilidade (qualidade ou impressão) ou, no máximo, no nível do raciocínio,
um rema, isto é, conjectura ou hipótese” (Santaella, 1985:83-84).
77 O ciclo respiratório, manifestação vital, perdeu sua espontaneidade, sendo observável apenas nos
bebês e, após algum tempo de vida, durante o sono. É inquietante observar que a respiração natural tem
sido forjada para o tórax, mesmo quando em posição deitada. Esse tipo de respiração presente em
algumas técnicas de canto tem aparecido com frequência em muitos métodos modernosos de ginástica.
Muito comum no treinamento militar, recebeu a conotação de virilidade. Teria essa ideia origem numa
possível associação metafórica entre o binômio armadura/ valentia ? Lançamos a hipótese para um
possível interessado em estudar o problema.
107
movimento, bloqueia a relação entre alto e baixo do corpo privando-o, assim, duma
comunicação real com a riqueza criativa do nosso inconsciente” (Hoppenot, apud
Castarède, 1991:110). A voz é, então, o resultado do equilíbrio entre a força do ar que
sai dos pulmões e a força muscular da laringe. Se houver desequilíbrio entre esse jogo
de forças, a voz estará sujeita a problemas patológicos.79
79 A fonoaudiologia prescreve que o fluxo excessivo de ar resulta numa voz soprosa, enquanto que a
força muscular da laringe comprime o ar, tendo como consequência uma voz tensa (Behlau, e Pontes,
1988). No entanto, observamos que a cultura - principalmente a de massas - pouco se preocupa com a
saúde vocal. Basta-nos lembrar que as vozes vaporosas, sobretudo as femininas, emitidas na região grave,
são valorizadas por sugerirem sensualidade. As vozes forçadas, que mostram visivelmente a tensão
muscular do pescoço, também são aceitas com entusiasmo, principalmente as vozes masculinas que
procuram exprimir dureza de caráter e virilidade. Existe, para ambos os casos citados, melhores exemplos
que as canções gravadas por Marylin Monroe e a narração dos programas (radiofônicos ou televisivos) de
Gil Gomes? Estes são apenas dois casos, escolhidos a dedo, num universo vastíssimo.
80 Dentre os estudos relativos realizados a respeito da ressonância da voz, encontramos uma teoria no
campo da psicofonia, no mínimo curiosa. Associando as regiões de ressonância vocal às quatro oitavas do
esqueleto, estipuladas pela acupuntura (cabeça, tórax, bacia e pernas), tal teoria procura provar que a zona
108
No canto, o corpo é atravessado pela energia, pelo sopro da vida. Seu papel é o
de mediador, caixa de ressonância, passagem. As cordas ou, melhor dizendo, pregas
vocais81, exercem um papel quase passivo: recorrendo a uma analogia, poderíamos dizer
que elas se mantêm estendidas, tal qual uma vela se mantém em um barco em
movimento.
Cantar legato, dizíamos, é cantar vogais; mais que isso, é projetar a voz,
levando-a, de um modo ou de outro a ocupar o espaço acústico. Ocorre que os textos
de vibração do corpo está associada ao estado de receptividade dos diferentes planos do corpo em relação
à faixa de vibração, isto porque cada oitava representa caracteres psicofisiológicos, a saber: cabeça: plano
cerebral e nervoso; tórax: plano afetivo e respiratório; bacia: plano vegetativo e sexual; pernas: plano
estático e rítmico. Assim, vibrações entre 522 a 1044 Hz vibram na cabeça; entre 261 e 522Hz, no tórax;
entre 130,5 e 261Hz, na bacia e, entre 65,2 e 130,5 nas pernas. A vibração em uma dada oitava representa
uma estimulação de um dos planos (Aucher, 1977). Não encontramos, até o momento, um comentário
qualquer sobre essa teoria que nos permitisse dialogar com o pensamento da autora.
81 Segundo a fonoaudiologia, aquilo que chamamos erroneamente de cordas vocais, deve ser designado
pela expressão pregas vocais, pois se trata, de fato, de pregas de musculatura.
109
verbais incluem consoantes. As vogais permitem a invenção melódica, enquanto as
consoantes articulam o ritmo. Para que a segmentação do fraseado se faça de modo
discreto, sem interferir na pronunciação do texto, deve o cantor lançar mão de recursos
técnicos que lhe permitam preservar a continuidade e integridade do seu discurso. A
projeção vocal deve, portanto, ter em conta aspectos técnicos como esse.
83 A entoação é apresentada como um ‘continuum’, sendo segmentada sempre que as cordas param de
vibrar, o que ocorre quando pronunciamos fonemas como /p/, /t/, /k/. No entanto, o ouvido tece a ligação,
encadeando um fonema ao outro, do mesmo modo que o olho encadeia as imagens do cinema. Esta
advertência nos é feita por Tatit, remetendo-se a Buyssens (1982:22)
110
solicitou, acima de tudo, a sustentação (a duração) e o salto intervalar (tessitura); a
ópera romântica, de sua parte, valorizou a potência (intensidade) e cor (timbre84).
Quanto à canção comercial, podemos dizer que no seu início teve como
referência a voz impostada. Por volta da segunda metade do século, entretanto,
incorporou cada vez mais os sons guturais, o ruído (e o barulho). Música para ser
executada e ouvida através da mediatização técnica, a voz que canta essa música não
precisa - no que se refere à exigência da composição propriamente dita - da técnica
virtuosística, muito embora existam, no universo da música pop exceções bastante
interessantes como Freddy Mercury e Nina Hagen.
84 Queremos dizer, com isto, que a partir do Romantismo as vozes passaram a sofrer, cada vez mais,
subdivisões relativas ao timbre, principalmente as vozes mais agudas, como por exemplo o soprano:
lírico, dramático, ligeiro, soubrette, spinto.
85 Embora elementos orais tenham se verificado ao longo da história da música cantada, estes eram
geralmente concebidos musicalizados, isto é, como um fraseado. Um exemplo bastante conhecido, nesse
sentido, é a gargalhada na ária Vesti la giuba, da ópera I Pagliacci, de Leoncavallo.
111
de concerto, pois somente a música erudita tem compromisso inalienável com a
construção e reformulação da linguagem. Para conhecermos um pouco seu estado atual,
permitimo-nos levantar, primeiramente, seus antecedentes históricos, ainda que de
forma sucinta.
Neste momento, após todas essas reflexões, cabe-nos encontrar o lugar da voz
no panorama atual. Enquanto meio de comunicação com o sagrado, condição de acesso
do homem ao Todo-Poderoso, ao desconhecido, enfim - a voz permanece forte
elemento ritual através de fórmulas encantatórias verbalizadas, cantos (sobretudo em
grupo), seja nos cantos védicos, seja na liturgia da missa católica, seja nos rituais de
candomblé. Como elemento de socialização, a música cantada também se faz presente
nos mais diversos grupos, sofrendo transformações a rigor bastante sutis e lentas, como
acabamos de afirmar acima86: são as canções de trabalho, de ninar, de festejos
populares, dentre tantas outras.
86 É evidente que a entrada dos meios de comunicação de massa implicou em várias transformações. No
entanto, não gostaríamos de desviar nossas atenções para esse problema. Tomemos, como referência,
alguns casos em que a tradição oral ainda se mantém forte, mesmo apesar da esquizofonia.
112
trovadoresca, é a música composta sobre textos literários ou litúrgicos que constituem
os primeiros exemplos de complexificação da linguagem musical87.
Essa música que ressoa no coração da Idade Média emana de um corpo solitário,
o corpo do cantor. Sobre isso, chama a atenção o compositor e musicólogo André
Boucourechliev: “(...) o corpo monódico, solitário, responde a um meio-ambiente
solitário; seus locais são diversos, castelos ou monastérios. Aquele que lá canta está só
ou acompanhado por um grupo de monges aglutinados, cantando em homofonia” .
O mesmo corpo solitário também canta música profana: “No castelo, afastado
numa terra ainda despovoada, o troveiro é também solitário, corpo solitário ante o
senhor, ante a Dama de seus pensamentos, sonhando com a poesia e a música,
inventando uma e outra” (Boucourechliev, 1993: 127-128).
A trajetória seguida pela história da música europeia conduziu, então, a voz que
entoava os cantos sagrados entre as paredes do mosteiro ao coro da igreja católica;
laicizada e solista, a voz dominou as praças dos burgos e os castelos feudais, as salas de
música dos palácios cortesãos. Anos mais tarde, a voz transmutou-se do corpo solitário
para o corpo solista: submetendo-se a um refinamento técnico88, conduziu os seus
proprietários89 do anonimato absoluto para a glória fulgurante do estrelato. Referimo-
nos aos castrati90 e ao seu bel canto. Estamos, pois, no período Barroco. Façamos uma
pausa.
87A polifonia vocal apresenta dois aspectos importantes. De um lado, valorizou a voz, desenvolvida pela
técnica, a exigência oriunda de uma ornamentação cada vez mais rebuscada. O virtuosismo vocal, escrito
em vozes sobrepostas simultaneamente no tempo, levou os compositores da época a se interessarem mais
pelas manipulações estritamente sonoras, propiciando, assim, a elaboração dos elementos de base
necessários para a autonomia da linguagem musical. De outra parte, a sobreposição de vozes na polifonia
conduziu a uma progressiva incompreensibilidade do texto, negando, assim, a tradição oral. Estes fatores,
somados ao desenvolvimento da música instrumental levaram, gradualmente, a uma preterição da música
vocal até o advento da ópera, a partir do final do século XVI, quando os textos literários voltaram a tomar
o primeiro plano. Nesse caso, a polifonia foi totalmente abandonada, cedendo seu lugar à melodia
acompanhada e ao recitativo (Moraes, 1985: 101-102).
88Convém lembrar que a virtuosidade vocal é paralela ao aperfeiçoamento técnico da concepção dos
instrumentos musicais, em geral.
89 Essa personalização que aqui observamos nas vozes, pode-se dizer uma característica que se inicia no
período Barroco - vale lembrar que os violinos ditos de autor, como os Stradivari e Amatti surgiram nessa
época, conferindo ao instrumento não somente um timbre, mas também uma estirpe, uma identidade
própria, a não ser confundida com nenhuma outra.
90 O castrado é o homem cujos testículos foram extraídos, antes da puberdade e da mudança de voz. A
ausência da testosterona, hormônio responsável pelos caracteres sexuais masculinos, faz da voz desse
homem uma voz híbrida: “a laringe permanece próxima das cavidades de ressonância, próxima da
113
A porta de entrada dos castrati, eunucos-cantores, foi a de São Pedro. Embora
haja indícios da existência desses cantores na Península Ibérica desde o século VI, é no
ano de 1599, na figura do papa Clemente VIII (1592-1605) que são admitidos os dois
primeiros castrati-sopranos italianos no Coro Pontifical. A partir dessa data, o número
aumentaria vertiginosamente, até a substituição total dos falsetistas pelos castrados. Em
1625, já não havia um falsetista sequer na capela Sistina. A essa altura, a troca de
valores era tal que passou a ser considerada voz artificial a dos falsetistas e de voz
natural a dos eunucos.
cavidade craniana, o que quer dizer que ela não desce como previsto, daí o timbre mais rico em
harmônicos, um vibrato fácil, uma grande tessitura. As cordas vocais, que alongam nos homens por
ocasião da puberdade, mantêm, nos castrados o tamanho das cordas vocais femininas” (Castarède,
1991:171).
114
oitava, tremoli, vibrato de cabrito ... saíram de uma voz mutilada, assexuada, levando ao
delírio os ouvidos da época. No fundo, a essência do bel canto não era outra senão
impor à música vocal uma série de técnicas de enunciação artificiais, as mesmas
impostas aos instrumentos, com a finalidade essencial de suprimir o ruído, a
aperiodicidade, as irregularidades do som.
O percurso transcorrido pelo bel canto conduziu a voz a uma espécie de cisão
em dois pólos aparentemente divergentes a partir do Romantismo: o lied alemão e a
canção francesa de um lado; a ópera wagneriana e verista de outro. A essas duas
ramificações Barthes (1984) classificará como voz pronunciada e voz projetada. Sobre
isso já discutimos anteriormente. Entretanto, faz-se necessário retomarmos o tema a fim
de observá-lo sob um outro prisma.
A canção francesa e o lied constituem um gênero musical que opta pela forma
simples - a seccionada (estrófica), de duração que não estende os poucos minutos
necessários para descrever sentimentos ou sensações que, a princípio, fazem parte da
experiência de vida de qualquer um: os desejos secretos, as reminiscências nostálgicas,
o exílio da terra natal. “É o tempo da vida e das paixões que se desenrola graças à
91 No início do século XVIII, o papa Clemente XI simplesmente proíbe o canto das mulheres, onde quer
que seja, mesmo em casa. E mais: decreta que nenhuma mulher, casada, viúva ou solteira aprenda a
cantar ou tocar (Barbier, 1993:109-110).
92 Na verdade, a castração chocava o público francês e as vozes não convinham ao seu gosto, provocando
indiferença ou gargalhadas. A memorialista Sara Goudar protestava: “É humilhante, para o século
esclarecido que jamais houve, ver o estado deplorável a que estão reduzidas as óperas, principalmente as
italianas, onde o menor inconveniente seja ver Alexandres, Césares ou Pompeus decidir o destino do
universo com vozes de moças” (apud Barbier, 1993: 156).
115
magia da voz que as exprime numa totalidade fechada e recolhida, transformada em
obra de arte pela beleza: a música vive em nós, nós nos escutamos através dela. Ela
nos transporta a um outro tempo, fora do tempo cotidiano do relógio, do tempo social
das ocupações: o tempo privado das pulsações secretas da alma” (Castarède,1991:185-
186).
A ópera é, pois, gênero dramático, que envolve enredo, ação cênica. Sua
gramática particular elabora, no que diz respeito à voz, uma série de símbolos - muitas
vezes modelos gerais que determinam não somente as diferenças sexuais, idade, classe
93 Gostaríamos de salientar a função do piano. Este deve reagir às mais sutis inflexões do sentido e clima
do texto, como um parceiro indispensável na interpretação (performance) da obra. Embora presentes em
Schubert (que em sua curta vida compôs 650 lieder) esta função do piano acentua-se em Schumann.
94 Não podemos esquecer que a ópera de Wagner se esboça sobre a estética da gesamkunstwerk (obra de
arte total). Segundo seus princípios, todos os elementos que compõem a obra estariam indissociavelmente
ligados, sem estabelecimento de uma hierarquia que privilegiasse um elemento em relação ao outro
(libreto, orquestra, encenação etc.). A ópera wagneriana é, pois, um espetáculo transcendente. Para a
apreciação e participação desse gênero de ritual estético, foi construído um templo. Bayreuth foi
concebido com o objetivo preciso de fazer com que o público fizesse da ópera uma espécie de ritual,
espetáculo a ser usufruído sem interferências, preparação para um envolvimento direto e ininterrupto
entre obra e seu receptor. Tudo que se vê é o palco; jamais a plateia. Evitam-se conversas, encontros
sociais nos intervalos. O espectador é levado a concentrar-se, promovendo um silêncio, que será
incorporado pela própria música que se iniciará a seguir.
116
social entre outros. Para citar alguns breves exemplos, tomemos a ópera romântica 95, em
que via de regra os papéis centrais (heróicos e jovens) são representados pelo tenor e o
soprano ( La Bohème: Mimi, Rodolfo; Tosca: Flora, Mário; Tristão e Isolda, idem);
vozes mais graves meio-soprano ou contralto (femininos) e baixo (masculinos) são
geralmente reservadas aos personagens mais velhos, patriarcas, marginalizados e
malditos, ou bruxos (Carmen: Carmen, de Bizet, meio-soprano; A Danação de Fausto:
Mefistófeles, baixo); o surgimento de vozes como o soprano soubrette para representar
mulheres arrumadeiras ou outros personagens de categoria social inferior.
Assim sendo, podemos afirmar que, entre outros aspectos, a ópera marca sua
referência central na tessitura, na amplitude da banda de frequência. Além destas
considerações, devemos ter em conta que o cantor de ópera segue, além da partitura,
imperativos outros determinados pela ação dramática: a expressão de sentimentos,
gestos que, em última instância, são determinados pelo personagem que ele representa.
A ópera desse período exigiu da voz muitos decibéis 96. A orquestra tendo
crescido em tamanho; como também tendo se ampliado as dimensões da sala de
concerto, a voz deveria ter a potência suficiente de dominar e cobrir o espaço acústico.
Tal observação se atesta facilmente através dos cantos-depoimentos de artistas que
atravessaram o século XIX passando seus vestígios em gravações realizadas no
transcorrer do século XX: Lili Lehann (1848-1929), Kirsten Flagstad (1895-1962),
Birgit Nilsson, divas wagnerianas; Zinka Milanov, Mario del Monaco, verdianos. Vozes
potentes que, lamenta o cantor Giuseppe di Stefano, não se ouvem mais. Os grandes
cantores de ópera estariam, sob o seu ponto de vista (escuta!), extintos. Isto porque a
primazia da técnica teria destruído a expressividade.
95 Optamos pela ópera romântica, uma vez que outros períodos como o barroco e o clássico essa
particularidade não se esboçava de modo tão claramente delineado. O papel dos castrati , como também
das mulheres, representando papéis masculinos, valeu-se dessa ambigüidade simbólica.
96 É interessante acrescentar as informações prestadas por Édouard Garde: a potência de uma voz é
independente de sua tessitura. Medida em decibéis, variam de 40 (voz de conversação normal) a 130
(vozes cantadas ultra-potentes). Senão atentemos para a seguinte classificação elaborada por Husson:
vozes de grande ópera: 120dB ou mais; vozes operísticas: 110 a 120dB; vozes de ópera cômica: 100 a
110dB; vozes de opereta: 90 a 100dB; vozes de concerto ou de salão: 80 a 90dB; vozes banais, ditas ainda
de microfone: menos de 80dB (Garde, 1970: 123). Ainda que estes dados estejam superados ou sejam
controvertidos (não há maiores referências sobre a pesquisa propriamente dita) a comparação em números
fornece uma aproximação mais concreta do problema que ora apresentamos.
117
Vissi d’arte ...
Giuseppe Di Stefano foi um expoente da ópera verista deste século, que pôde
exercitar sua arte tanto nos palcos como nos estúdios de gravação; mais ainda:
experimentou a gravação antes do surgimento do som digital, em sua época de
desenvolvimento galopante que coincide com a ascensão da música pop nas estações de
rádio e no mercado de discos. Assim sendo, parece-nos bastante oportuno conhecer
algumas das suas ideias, uma vez que expõem não somente elementos extraídos de sua
vivência particular, enquanto cantor de currículo internacional, como também pela
própria época em que se desenrolou sua carreira, que vem a ser justamente aquela em
que o disco passa a substituir, em grande medida, o espetáculo ao vivo.
“Há que se observar as mandíbulas, que são o índice exato da posição da boca,
quando alguém canta, sobretudo quando se trata de um tenor. Nós agarrávamos as
notas, arranhávamos essas notas: observem as mandíbulas de Gigli, as mandíbulas de
Caruso, de Schippa, demonstram que estes tenores cantaram por muitos anos de um
certo modo. A articulação da palavra e do som desenvolve também a face, também as
mandíbulas. Conforme se articula, as mandíbulas se movem de maneira distinta. Isto
acaba também por desenvolver os músculos faciais. Mesmo em detrimento do aspecto
118
do rosto. Mas são músculos: assim como os boxeadores têm bíceps, os lutadores têm
músculos, assim também os cantores têm uma articulação que pertence à sua técnica e
que desenvolve determinados rasgos na face. Observem, ao contrário, os rostos dos
tenores de hoje: até os signos exteriores ao crânio, da boca, já não mais estão lá.
Porque cantam de outra maneira. Será um modo de se protegerem, mas as vozes... 97”
(Di Stefano,1991:81).
É evidente que muitas das afirmações Di Stefano são discutíveis. Regentes que
só se preocupam com a marcação do tempo existem; contudo, não representam a regra
geral. Ao contrário, nunca houve tanto interesse, como nos últimos anos, em recuperar a
escuta do passado, no seu tempo real. Tampouco podemos afirmar que o conhecimento
da interpretação almejada pelo compositor seja hoje uma referência primordial,
indispensável, a menos que estejamos voltados para uma pesquisa muito específica
voltada para esse aspecto particular. Afirmar que não haja mais cantores com voz
potente parece um equívoco sério. Basta-nos lembrar de Plácido Domingo para que tal
sentença desmereça qualquer crédito.
97 Embora preocupado com outro aspecto mais específico, a regressão na audição musical, Adorno faz
um protesto bastante semelhante ao de Di Stefano, conforme veremos mais adiante.
98 O Verismo podemos dizer, aproximativamente, foi a vertente italiana do naturalismo literário do final
do século XIX. Tendo como epígono o romancista Giovanni Verga, encontrou na ópera de Verdi, Puccini
e sobretudo Mascagni (La cavalleria rusticana) e Leoncavallo (I Pagliacci) seu correspondente musical.
Como características particulares do verismo, encontram-se os temas provincianos, nem sempre isentos
de chauvinismo; o uso de de dialetos vivos, em resposta a uma imposição da língua toscana e da ideologia
do Rissorgimento.
99 Estas idéias são expressas pelo próprio Verdi, em suas cartas (1871) sumariadas por Giuseppe di
Stefano. Verdi confia, como já é largamente conhecido, toda a interpretação ao cantor, pois é na linha
melódica que se inscrevem e se expressam os conflitos e tensões dramáticas da sua ópera. É por isso que
119
Como podemos observar, as formulações de Di Stefano revelam-se coerentes
com a estética a que dedicou sua carreira artística. Se seu pensamento parece
ultrapassado em relação ao que se conhece hoje como voz musical, suas observações
permanecem frescas e vivas, uma vez que se trata como afirmamos anteriormente, de
alguém que testemunhou pessoalmente o crepúsculo do bel canto ao mesmo tempo que
presenciou e participou do desenvolvimento do registro fonográfico.
Se esse fato se comprova empiricamente, ou não, é tarefa que ainda está para ser
realizada. No entanto, podemos concluir que essa observação de Di Stefano aponta para
uma desimportância no domínio da voz cantada, desimportância essa que diz respeito a
possíveis transformações pelas quais a performance da voz estará passando, sobretudo
após a fixação da hi-fi nos meios captação, armazenamento e reprodução do som.
Acabamos de ouvir a fala de Di Stefano, cantor conceituado no domínio da ópera do
século XIX em pleno século XX. É tempo agora de observarmos o que os artistas deste
século têm a dizer sobre a música de seu tempo e sua arte. Como poderemos observar
mais adiante, a música contemporânea, assim como todas as artes, nestes últimos cem
anos, caracteriza-se pela ruptura e interpenetração de fronteiras, ampliando o corpus sua
linguagem. Nesse sentido, um caso, justamente o que ocupa o primeiro plano das nossas
preocupações intelectuais - a voz - vai sofrer mudanças estruturais, ao imbricar-se com
outras linguagens, sobretudo a poesia. Por essa razão permitimo-nos interromper nossas
muitas vezes (excetuando-se as últimas obras, Otello e Falstaff) o papel da orquestra é reduzido a um
acompanhamento banal, aos enfadonhos terzinati. Nesse sentido particular é que a ópera de Verdi
apresenta discrepâncias vertiginosas em relação à de Wagner. Para este último, todos os elementos da
ópera (libreto, cenário, canto, orquestração etc.) deveriam concorrer em igual nível de importância. Tal
foi o princípio da sua gesamtkunstwerk (obra de arte total), tema já bastante conhecido, sobre o qual
muito já se discutiu e que ainda tem muito a dizer.
120
discussões aqui para retomá-las mais adiante. Passemos neste momento, então, a
focalizar nossa escuta sob um outro ângulo: a voz mediatizada tecnicamente, ou, como a
designaremos a seguir, a voz esquizofônica.
E por que falar de Caruso é tão importante? Em primeiro lugar, pela mitificação
edificada em torno da potência da sua voz, capaz de sensibilizar os ouvidos das mais
longínquas latitudes e longitudes. O repertório de Caruso se apoiava sobretudo, em
óperas veristas e canções napolitanas, tal como o fizeram seus sucessores, como
Beniamino Gigli e Mario Lanza, apenas para citar alguns exemplos. Caruso falava, pois,
diretamente aos sentimentos de seu povo (lembremos que a ópera verista procura
retratar, de algum modo, a vida cotidiana) estivesse esse povo na Itália ou emigrado em
outros redutos do planeta. Além disso, devemos salientar que a Itália era objeto de uma
fetichização (como ainda o parece ser hoje), fundada não apenas numa antiga tradição
artística e notadamente musical, mas também numa idéia de vida feliz e simples,
assentada numa natureza favorável às paixões, principalmente no sul, onde o
Mediterrâneo fornecia a moldura ideal100. Tal fetichização, em parte elaborada por
Rousseau, despertava a atenção e construía o imaginário do público mais diversificado
possível.
Caruso cantava para multidões, ao vivo, e sem microfone. Quando este surgiu,
não cuidou de amplificar sua voz, mas simplesmente de captá-la, a fim de fixá-la não
exatamente para um museu de vozes (como inicialmente pretendia Edison) mas para
100 Daí o sucesso nada casual de canzonettas como O sole mio e Torna a Surriento.
121
multiplicá-la e colocá-la à venda. E, por ter sido uma das primeiras vozes - vozes-mito -
a serem registradas, acabou por servir de modelo a esta nova linguagem - a performance
mediatizada tecnicamente - sem, contudo, se viciar aos trejeitos e gestos que esta
linguagem passou a imprimir nos cantores.
101 Para avaliar a interferência da paisagem sonora da mediatizada tecnicamente é necessário, no fundo,
praticar um difícil exercício de abstração. Se até em rincões desconhecidos ou mesmo em muitas
comunidades indígenas a televisão e o rádio estão presentes, não somente sob a forma Muzak, mas como
pontuação de muitas das atividades cotidianas, é praticamente impossível, nos dias de hoje, conceber
mentalmente uma paisagem sonora não-esquizofônica. Recriar uma paisagem sonora isenta de quaisquer
elementos esquizofônicos poderia, então, até constituir numa experiência interessante.
122
Além do mais, a voz constituía o único instrumento cuja origem é reconhecível
diretamente, isto é, as diferenças entre um e outro cantor eram captadas pela
sensibilidade tosca dos fonógrafos de antanho (Chion, 1994). Nessa época, o músico ou
o cantor deveria colocar-se à frente do captador, um pavilhão de tamanho avantajado,
mas insuficiente para captar várias fontes sonoras ao mesmo tempo. Por essa razão,
captação do som de agrupamentos maiores, como a orquestra sinfônica, estavam
descartados. Esse problema pôde ser resolvido somente na década de 1920, quando o
advento da gravação elétrica veio substituir a mecânica.
102 É interessante observar que o surgimento do microfone não favoreceu o aparecimento de uma maior
quantidade de cantores sem voz. Pelo contrário, os cantores que souberam adequar a potência vocal ao
microfone, os crooners, como Bing Crosby, nos Estados Unidos; Orlando Silva e Sílvio Caldas, no Brasil,
é que tiveram maior aceitação pública.
123
“O campo que o fetichismo musical mais domina é o da valorização pública das
vozes dos cantores. O atrativo exercido por estes últimos é tradicional, bem como o é a
vinculação estreita do sucesso com a pessoa do cantor dotado de ‘bom material’.
Entretanto, nos dias de hoje, esqueceu-se que a voz é apenas um elemento material. Ter
boa voz e ser cantor são hoje expressões sinônimas para o vulgar apreciador
materialista da música. Em outros tempos exigia-se dos ases do canto, dos ‘castrati’ e
das primas-donas, no mínimo, alto virtuosismo técnico. Agora exalta-se o material em
si mesmo, destituído de qualquer função. É inútil perguntar pela capacidade de
exposição puramente musical. Nem sequer se espera que o cantor domine
mecanicamente os recursos técnicos. Requer-se tão-somente que sua voz seja potente
ou aguda para legitimar o nome do dono.” (Adorno, 1980:171).
103 Citamos textualmente a autora: “A hipótese que formulo é a de que o advento e o crescimento
constante e cada vez mais absorvente das mídias tendem, por si sós, a abalar as divisões estratificadas
entre cultura erudita, popular e de massas como campos perfeitamente separados e excludentes. Ao
contrário, quanto mais as mídias se multiplicam mais aumenta a movimentação e interação ininterrupta
das mais diversas formas de cultura, dinamizando as relações diferenciadas espécies de produção
124
Sobre as afirmações de Adorno, há pelo menos um outro aspecto que merece ser
destacado. Se no célebre texto o autor se remete mais propriamente à música de
concerto, isto não nos impede de estendermos nossas observações para um outro
domínio vizinho. Referimo-nos à música geralmente conhecida sob o nome de music
hall, gênero híbrido entre a música de concerto e a comercial. Esse gênero nasceu sob a
égide do microfone de amplificação e das caixas acústicas, dando origem aos crooners,
cantores que souberam com maestria dosar a impostação adequada de modo a não
provocar estridências ou distorções sonoras, tirando partido da reverberação. Essa
geração que normalmente falava em inglês teve vários representantes de renome, dos
quais um, que mantém sua chama incandescente até hoje: o americano Frank Sinatra.
O rádio e o disco foram também responsáveis pela audição das obras que os
séculos anteriores produziram. Se em outros tempos era comum o hábito de ouvir
cultural. A multiplicação das mídias tende a acelerar a dinâmica dos intercâmbios entre as formas
eruditas e populares, eruditas e de massa, populares e de massa, tradicionais e modernas, etc.”
(Santaella, 1992:14).
125
música contemporânea - como o atesta um sem-número de pesquisas musicológicas - a
implantação do disco e do rádio necessitavam, para sua própria auto-sustentação e
sobrevivência, da criação de um repertório mais amplo, de modo a atender ao mercado
de uma indústria nascente, potencialmente destinada à onipotência imperialista, como se
pôde constatar décadas mais tarde. Esse levantamento de repertório, ainda que não fosse
a intenção primeira da indústria do disco, propiciou um estímulo à interpenetração de
informações sonoras de tempos passados. Em suma: o rádio e o disco possibilitaram,
pela primeira vez na história da música, a simultaneidade da escuta no tempo e no
espaço, a história e a geografia da música. Em outras palavras, diacronia e a
sincronia104.
Para citar alguns exemplos, tomemos a década de 1930, época em que o rádio e
o disco já se haviam estabelecido definitivamente, participando mais regularmente do
cotidiano citadino. Esse período nos guarda muitas vozes que se tornaram mitos sem
fronteiras no mundo, sejam as vozes potentes e projetadas como a de Beniamino Gigli,
sopranos lírico-ligeiros como Josephine Baker, barítonos que modulam a voz entre a
voz de peito e o sotto voce, como Carlos Gardel, a quase-fala de Mário Reis e Noel
Rosa.
104 No entanto, é prudente lembrar que a tentativa de abraçar tempo e espaço já era praticada no século
XIX, embora não lançando mão dos subterfúgios da esquizofonia. Nesse sentido, basta lembrar que, por
volta de 1830 Mendelssohn redescobria Bach, enquanto Liszt executava obras dos seus contemporâneos
europeus.
105 Muito se tem condenado, oralmente, ou por escrito, esse período da história musical do Brasil. Tais
críticas se fundam, geralmente, em pressupostos de ordem sociológica: a ascensão do rádio e a criação de
seus mitos - não somente os cantores, mas também os locutores, rádio-atores - estão estreitamente
vinculados à manipulação ideológica totalitária da ditadura da era Vargas. Quanto a isso, não nos
opomos. Que os textos das músicas estejam carregados de preconceitos, como O teu cabelo não nega, de
Lamartine Babo (mas como a cor não pega, mulata eu quero o teu amor), isso é um fato incontestável.
Porém, esse mesmo L. Babo é autor de outras canções de um lirismo profundo como Serra da Boa
Esperança ou satíricas como Canção para inglês ver, dotada de um humor inigualável, desmonta a língua
inglesa para reconstituí-la em seu aspecto icônico (aqui nos remetemos mais uma vez à categoria de C. S.
Peirce). No que diz respeito às vozes, aqueles que não conseguem ouvir a música, mas apenas as letras,
que nos desculpem! Os cantores do rádio da era Vargas, a grande maioria deles, irrepreensível, seja na
pronúncia, na impostação, na afinação, na interpretação. Com isto queremos dizer que Carmen Miranda
não fez sucesso no Brasil e nos Estados Unidos unicamente por razões políticas. A baiana estilizada deve
seu sucesso não a falsa baiana cesta de frutas, mas à sua performance como cantora.
126
No pedestal dos olimpianos da canção, o Rei da Voz, Francisco Alves -Chico Viola-
com sua potente e bem colocada voz de barítono conduziria seu cetro vocal até sua
morte trágica... À lista podemos acrescentar (para nos limitarmos aos exemplos
masculinos) o seresteiro Sílvio Caldas, o Caboclinho Querido; Orlando Silva, o Cantor
das Multidões... Paramos por aqui. Prosseguir a lista seria tarefa hercúlea, senão
interminável.
A voz virtual
Nos dias de hoje a tecnologia dispõe de recursos que lhe permitem recuperar os
primórdios da voz registrada, eliminando uma boa parte do ruído de fundo: uma
gravação arqueológica de Caruso nos é acessível dentro de padrões mais aceitáveis da
nossa moderna hi-fi. As intervenções da tecnologia de ponta ultrapassam, entretanto, o
velho sonho de aquilatar o que foi registrado em padrões hoje ultrapassados: essa
tecnologia dispõe de recursos para até mesmo fabricar vozes (ou outros sons): vozes
cujo conhecimento não passava, até pouquíssimo tempo atrás, de uma mera abstração,
uma conjectura no universo audível.
Esse caso pode ser ilustrado com o instigante exemplo da voz de Farinelli (Carlo
Broschi, 1705-1782), confeccionada a partir de técnicas de tratamento digital
desenvolvidas pelos pesquisadores do IRCAM (Institut de Recherche et Coordination
Acoustique / Musique, Paris) Philippe Depalle, Guillermo Garcia, Xavier Rodet e Boris
Doval, para o filme Farinelli, de Gérard Corbiau. No intento de ressuscitar a vida e a
voz do castrado que tanto furor causou na Europa do seu tempo, Corbiau teve o especial
cuidado de igualmente reconstituir o que teria sido essa voz, de que tanto se tem notícia,
mas da qual não podemos exercer nosso testemunho auditivo. Dado que a castração foi
proibida no século passado, não existe nenhuma gravação suscetível de fornecer
informações acústicas precisas: o último castrado, Alessandro Moreschi, falecido em
1922, deixou-nos alguns minutos de gravação em cilindros de cera (1902-1904) que não
nos permitem senão uma apreciação global dessa estética em extinção.
127
Dessa forma, os pesquisadores do Ircam tiveram de realizar gravações de vozes
que se assemelhassem ao que através da literatura, dos tratados técnicos e da gravação
de Moreschi se supõe ter sido a voz de castrado, no que diz respeito à tessitura, vibrato
e articulação, as vozes do contra-tenor Derek Lee Ragin e da soprano coloratura Ewa
Godlewska (Galliari, 1994:26). Em seguida, as duas vozes foram sintetizadas nota a
nota, a fim de homogeneizar ambos os timbres; tratamentos adicionais para efeitos para
a obtenção de notas longas, inexequíveis por cantores de hoje, entre outros foram
realizados numa etapa seguinte.
Esse recente exemplo, excitante e perturbador, torna nossa questão inicial ainda
mais complexa. Não se trata somente da voz mediatizada em suas múltiplas
possibilidades. Além dos exemplos já tradicionalmente conhecidos no âmbito dos
diferentes recursos de captação, fixação e remodelagem (manipulação) do som, estamos
diante de um novo signo que se impõe: a voz virtual, ou seja, a voz cuja origem deixa de
ter a origem em um corpo, podendo ser a síntese de muitos outros.
128
pipocamento - na verdade, ele está estabelecendo um ruído no código da linguagem
fonográfica, que interfere diretamente no estatuto do signo. Assim, inaugura um novo
modo de ouvir, uma escuta de outrora que não poderá ser recuperada senão sob a forma
de um passado virtual, o ouvido de hoje que pretende ser o ouvido de ontem...
Ora, o tempo transcorrido não tem volta. A escuta tem uma história que lhe é
própria: ela se inscreve no corpo, através de formas selecionadas pela cultura e pela
história da sociedade. Está atada, portanto, às implicações da ontogênese e da
filogênese.
129
3. A voz na música contemporânea (presto vivace)
Henri Chopin
Dizíamos, logo no início deste trabalho, que o século XX foi marcado pela
invasão do ruído. Expressão sonora da mecanização da vida cotidiana das grandes
metrópoles, foi o ruído responsável pelo aumento do barulho na paisagem sonora,
transfigurando-a de forma radical. Pudemos igualmente observar que este ruído-barulho
desempenhou, além deste papel, um outro: o ruído de código106, responsável pela
reconfiguração da linguagem musical. E essa reconfiguração não é exclusividade da
linguagem musical.
106 Num panorama mais amplo, verificamos que o ruído de código estende-se às transformações da
própria concepção de mundo: a generalização do uso da eletricidade, a formulação da Teoria da
Relatividade e, posteriormente, da física quântica; mudanças abruptas no conceito de sociedade civil,
motivadas pela queda dos impérios coloniais e à ascensão ao poder político, pela primeira vez na história,
de regimes de orientação socialista são alguns dos fatos que constituem o telão de fundo do início deste
século.
130
palavras de Mendelssohn: as artes passam a se interpenetrar a ponto de, muitas vezes,
ser difícil estabelecer uma linha demarcatória entre elas.
A poesia fonética tem início nos primeiros anos deste século. Surge
primeiramente com os poetas futuristas e dadaístas, com objetivo nítido de criar uma
linguagem fonética capaz de suplantar a comunicação social, isenta de toda e qualquer
carga semântica. Assim, são experimentadas todas as possibilidades do aparelho
fonador, desprovido do suporte de quaisquer outros meios expressivos. As orientações
variam de uma tendência estética para outra, bem como de autor para autor, sendo
difícil traçar um perfil geral que caracterize todos eles. Assim sendo, esboçaremos
apenas alguns traços que consideramos essenciais para a compreender os novos
paradigmas da voz.
131
é o caso da música verbal, de Michel Seuphor (1926), acompanhada por russolofone,
obra que, segundo Henri Chopin (1979), representa o prenúncio da poesia sonora.
A poesia sonora também teve sua cota de participação, aliás muito importante,
no que diz respeito à ampliação do conceito de voz em termos estéticos. Surgiu no final
da década de 1940, muito proximamente aos experimentos de Pierre Schaeffer e Pierre
Henry com a música concreta, nos estúdios da ORTF, a Radio France (1948). Tomando
a voz em sua materialidade pura, explorada no seu aspecto sonoro, por intermédio da
manipulação dos recursos da eletroacústica, a poesia sonora conseguiu reunir um
conjunto de obras que poderiam ser encaradas como obras musicais107. Representada
sobretudo pelos franceses Henri Chopin, Arthur Pétronio, Bernard Heidsieck, François
107 Paul Zumthor assim caracteriza a gênese da poesia sonora: “o desejo do retorno ao oral, no âmbito
dos poetas; o desejo de retorno ao falado, no âmbito dos músicos” (Zumthor, in Menezes, 1992:139). A
diferença entre a poesia sonora e a música está, então, no método de cada uma dessas linguagens: a poesia
sonora tem como ponto de partida a voz extraída de seu uso cotidiano, tendo como referência o trabalho
realizado pelas vanguardas históricas (os foneticistas); a música concreta e eletrônica teriam como
132
Dufrêne, na década de 1950, acrescida de outros nomes na década seguinte (Pierre e Ilse
Garnier, o italiano Arrigo Lora-Totino, entre outros) tal movimento se utilizou da
mediatização técnica para compor suas obras.
Sprechstimme, Sprechgesang:
Como vimos, o período de transição que separa os séculos XIX e XX foi palco
de inúmeras mudanças praticamente em todos os domínios da vida social, científica e
artística. Na música, observamos a entrada dos meios de captação, fixação e
remodelagem do som; a voz de Caruso se propagando pelo mundo, difundindo a canção
napolitana e a ópera verista de Verdi e de seus seguidores. Ainda no continente europeu,
a França descobria o resto do mundo: Debussy escutava o Oriente e a Oceania, o
gamelan da ilha de Bali (Polinésia), incorporando novas noções de timbre nas suas
obras. A Alemanha triunfava igualmente com uma outra ópera, a grandiloquente
procedimento a organização dos sons vocais obedecendo a uma eufonia segundo critérios estabelecidos
pelo compositor (Menezes, 1992:14).
133
gesamtkunstwerk (obra de arte total) de Wagner, despertando paixões as mais diversas.
Desenvolvia-se uma corrente pós-romântica germânica (alemã, austríaca) representada
por Richard Strauss e Gustav Mahler. Se este incluía coro na segunda e na oitava
sinfonia para gigantesca orquestra, Strauss não ficava atrás: ambos compunham lieder
com acompanhamento orquestral, levando o desenvolvimento do cromatismo às últimas
consequências. A partir desses compositores, o sistema tonal se esgotaria, colocando-se
à beira de um abismo. Nesse intercurso, surge a figura de Arnold Schoenberg (1874-
1951).
Schoenberg foi justamente quem deu o último passo, verdadeiro salto em queda
livre para um outro universo sonoro-musical. Consciente dos rumos que tomava a
linguagem musical, resolveu interceder em seu destino, ao proclamar a entrada de um
novo sistema, não mais baseado na hierarquia de funções características do sistema
tonal (tônica/ dominante; consequentemente, repouso e tensão). Após sintetizar os
conhecimentos adquiridos com o cromatismo wagneriano (1896-1906), compõe obras
em linguagem atonal (1906-1923), onde destrói a harmonia tradicional, passeando por
um território mais amplo, livre das referências impostas pela estética vigente desde o
período barroco. Esse período teria consumado suas experiências mais radicais entre
1923 e 1933, época em que Schoenberg estabelece um novo marco na história da
música: o dodecafonismo, técnica que predispõe os sons em igual função entre si,
evitando, por conseguinte, o estabelecimento de polos de tensão. Se o dodecafonismo
representa a anulação completa e definitiva da tonalidade, experimentos anteriores
realizados por Schoenberg contribuiriam em grande medida para que o reino da
tonalidade fosse derrubado. É precisamente nesse particular que o tratamento da voz
terá um papel fundamental. Referimo-nos, pois, ao sprechgesang.
108 Vide diagrama elaborado por Murray Schafer, no início deste capítulo.
134
da obra. Sprechgesang que, para Schoenberg, se expõe de diversas maneiras:
Sprechstimme (voz falada), Sprechmelodie (melodia cantada), Sprechton (nota cantada)
... Essa classificação, que enuncia subdivisões de difícil diferenciação entre si,
envolvendo mesmo dificuldades de notação, atenderia antes de tudo à rítmica. É o que
afirma o compositor Florivaldo Menezes:
“Schoenberg desejaria que, respeitando-se a rítmica por ele escrita (tal como se
fosse mero canto), e observando que a fala abandona as alturas executadas pelas
vogais através de quedas ou ascensões (glissandi?), o executante não deveria
expressar-se através de uma fala ‘cantabile’, recorrendo à fala numa forma
eminentemente musical, mas que tampouco lembrasse o canto, nunca! (...‘deve-se
também nunca lembrar o canto’). E, concluindo, realçava que tampouco deveriam os
intérpretes recorrer ao conteúdo dos poemas para subtrair daí sua maneira de se
expressar musicalmente” (Menezes, 1987:96-97).
A voz emite, então, um canto-falado que não se apóia nas alturas fixas (as notas
musicais). Deparamos, por conta disso, com um ruído no código musical, ruído este que
será ampliado na versão final de Die Glückliche Hand (1910-1913), quando o
compositor acrescenta às formas de Sprechgesnag o canto (gesungen), o sussurrado
(geflüstert); sussurrado bem sonoramente (klangvoller geflüstert), sussurado sem
sonoridade (geflüstert tonlos); falado sonoramente (klangvoll gesprochen; gesprochen,
mit Klang), entre outros (Menezes, 1987: 99). Essas novas vozes que se impõem à voz,
atenderiam, ainda segundo Menezes, a uma necessidade de recuperação da
temporalidade, mantida por intermédio de uma certa linearidade discursiva, lição muito
bem aprendida e desenvolvida por um dos seguidores de Schoenberg, o austríaco Alban
Berg (1885-1935).
135
na sua materialidade in natura, como também através dos recursos oferecidos pela
eletroacústica.
136
emissão banal ao da percepção transfigurada. Sobretudo quando a voz está ligada a um
controle de velocidade bastante excepcional(...)” (Berio, apud Stoianova, 1985: 72).
Para o próprio autor, o material de que Sequenza III é constituída não é outro
senão o próprio riso. O riso, como ação vocal cotidiana reorganizado de maneira
virtuosística, complexa, vale dizer, afastado de sua banalidade; o riso, segmentado em
suas múltiplas gradações, desenvolvido na escritura: estilizado, fixado em alturas
aproximadas; atacado em articulações rápidas, de modo a simular a articulação da fala.
A fixação de notas longas, em contrapartida, permite a percepção das ínfimas mudanças
de timbre, quando da passagem de uma vogal para outra. Também a transcrição do riso
em suas diversas manifestações (sorriso, gargalhada, riso nervoso etc.), guiadas não por
signos musicais (meio-forte, forte, piano), mas por comportamentos vocais (langoroso,
terno, tenso, sonhador...) permite à cantora engendrar gestos vocais que, em si mesmos
destituídos de qualquer referência trágica, contribuem, no seu conjunto, para a formação
de uma imagem trágica e desesperada (Berio, apud Stoianova, 1985:85). Dessa maneira,
a peça abre a possibilidade de exteriorizar emoções e afetos, sem a intermediação
desnecessária da língua.
A musicóloga Ivanka Stoianova assim define o gesto vocal proposto por Berio:
“O gesto enquanto intenção ou resíduo de um ato lingüístico com toda a complexidade
das cargas afetivas exteriorizadas define o jogo dirigido dos comportamentos vocais e
137
eletrônicos de uma matéria sonora não-verbal” (Stoianova, 1985: 8). Em outras
palavras, o gesto vocal em si determina uma performance que não se investe de um
conteúdo semântico de outra natureza.
A voz também ampliou seus domínios a partir das pesquisas de Dieter Schnebel
sobre a Glossolalia111 (1959-1960). É o próprio Schnebel que explica no que consiste
essa obra: “Não escutamos as palavras como música porque tentamos compreender o
sentido. Se a música é tomada como linguagem, queremos escutar a música e não a
linguagem. Glossolalia é uma música que se situa entre apalavra e a música , não é
uma, nem outra” (Schenbel, apud von der Weid,1992:227). Outras obras, como
Maulwerke (Obras para Garganta, 1968-1974) destinam-se aos vários órgãos vocais,
onde o que é enfatizado é a origem da produção do som, ou seja, a música de todo o
aparelho fonador, explorado em cada região. Schnebel prossegue suas pesquisas nesse
sentido, compondo mais tarde Atemzüge (Respirações), onde a respiração imobiliza a
palavra até que a emissão de um grito de dor a resgate; Körper-Spreache (Linguagem do
109 Dentre eles, poderíamos citar Stoianova (1985): Luciano Berio: Chemins de la nouvelle musique;
Avron e Lyotard (1972): “‘A few words to sing’ Sequenza III”, in: Musique en jeu, no.2; Gagnard (1987):
La voix dans la musique contemporaine et extra-européenne.
110 O termo mesóstico deve ser entendido analogicamente como um acróstico em que a palavra-chave se
encontra não no início, mas no meio de cada verso.
111 Enunciados numa língua que não existe, presente nos estados de transe religioso, nos estados de
afasia aguda, ou mesmo nas brincadeiras infantis. Apesar de isentas de qualquer infra-estrutura gramatical
ou semântica essas não-línguas comunicam uma dada mensagem que pode ser compreendida.
138
Corpo, 1979-1980), uma visão retrospectiva do corpo humano e seus movimentos,
através de um silêncio que mate os sons; um assassinato sonoro (von der Weid,
1992:227).
“A voz não é mais palavra ou canto; é tudo que sai da boca, tudo que é fraco
demais para sair e que se pode tomar por microfones de contato, é a voz natural no
espaço acústico, a voz sonorizada, a voz registrada, a voz ‘telefonada’, manipulada, a
voz conduzida por ondas, a voz dos outros povos, das outras culturas(...) . Essas vozes,
essas cores constituem nosso meio-ambiente sonoro permanente tomam corpo com a
nossa cultura. Não existe mais uma voz, mas vozes” (Clozier, apud Chopin, 1979: 277).
112 Atualmente, designa-se esse gênero de música pela expressão música eletroacústica. Sua origem
partiu de dois pontos diferentes, simultaneamente. De um lado, dos experimentos de Pierre Schaeffer, nos
estúdios da Radio France, quando gravava, em fita magnética, objetos sonoros os mais diversos,
submetendo-os, em seguida, a processo de montagem: decupagem, filtragem de freqüências, mudança de
velocidade da fita magnética etc. Karlheinz Stockhausen, de sua parte, executava o mesmo trabalho, nos
estúdios da West Deutsche Rundfunk, mas utilizando como matéria prima sons obtidos por meio de
139
da música, como também na poesia sonora. Além dos casos já citados, é necessário
destacar o papel de artistas que concebem suas obras num campo flutuante entre poesia
e música, artistas que não poderiam ser classificados, a rigor, como músicos ou poetas.
Não raramente, atuam nos dois campos simultaneamente. Um caso é o belga Leo
Küpper. Desde 1965 pesquisando as novas possibilidades da expressão vocal (fonemas,
alofones, fonatomos, logatomos, micro-sons fonéticos), seu nome figura tanto no rol dos
autores de poesia sonora (Chopin,1979:273-274), quanto nos de Música Nova 113.
Um outro tratamento que atualmente é dado à voz é aquele que vem sendo
desenvolvido por meio da informática. São os programas que fundem a voz humana à
de outros instrumentos, filtram timbres, modos de ataque etc., capazes não apenas de
remodelar mas de criar novas vozes, vozes virtuais, como citamos no item anterior. Tais
projetos encontram-se em pleno desenvolvimento desde a década de 1970, em alguns
centros na França (IRCAM - Institut de Recherche et Coordination Acoustiques /
Musicales; GRM- Groupe de Recherches Musicales, Paris) na Alemanha (West
Deutsche Rundfunk, Colônia), nos Estados Unidos (Center of Computer Research in
Musics and Acoustics , Stanford, Califórnia) entre outros.
geradores de frequências. Pouco tempo se passou até que ambas as técnicas passaram a ser utilizadas
concomitantemente. Hoje em dia, traçar uma subdivisão entre os dois procedimentos é atitude obsoleta.
113 Nesse caso, podemos citar nosso testemunho pessoal: Já tivemos a oportunidade de tomar algum
contato com Léo Küpper, em concertos realizados nos Festivais Música Nova, de Santos. Suas obras
vocais constituem um dos interesses maiores do compositor que, como ele próprio atesta, conta com a
participação ativa da cantora Anna Maria Kieffer.
140
- a introdução do ruído, aqui representado pelos sons anteriormente banidos do
universo da arte (arrotos, tosse, gritos) e pela voz mal colocada, isto é, sem a
impostação tradicional do bel canto;
Iniciamos este tópico com a citação de uma frase do poeta Henri Chopin: “O
universo bucal está em expansão”. A esta frase poderíamos acrescentar: Não somente o
universo bucal, como áudio-vocal estão em expansão. A aceitação - ainda que difícil -
dos novos paradigmas em que a voz musical se desenvolve hoje está estreitamente atada
a uma nova paisagem sonora vocal que o ouvido, a duras penas, teve de assimilar.
141
Muitas propostas foram postas em prática pelos compositores, sobretudo nos anos pós-
guerra, época em que a eletroacústica vem somar-se aos procedimentos já existentes114.
142
4. Tema com variações (allegro con brio)
143
“Não sou propriamente um compositor de música politicamente engajada, como
o foram Hans Eisler, Cornelius Cardew. Mas sou uma pessoa politicamente engajada.
E minha música, sempre que tomo uma posição política, reflete essa atitude” (Mendes:
1994).
Acreditamos estas razões serem suficientes para justificar nossa opção pelo
compositor. Entretanto, como o que nos interessa aqui é apresentar alguns exemplos
concretos dos pontos analisados ao longo destas páginas, limitaremos nossa exploração
a esses aspectos particulares, deixando as partituras falarem por si próprias. Nossa tarefa
consistirá, assim, em interferir com alguns comentários à margem ou mesmo no interior
da própria partitura.
144
serialismo integral, da não-periodicidade, da não-discursividade; do aleatório na
construção formal. É igualmente a porta de entrada do gesto e da ação (performance)
como teatro musical.
145
Sobre poema concreto de Augusto de Campos, partitura-roteiro em homenagem a Nino
Rota, incluindo instrumentos convencionais (cantores solistas, piano, caixa, prato,
contrabaixo) e não-convencionais (à falta de denominação mais adequada ): toca-discos,
gravador, máquinas de escrever, de calcular, televisor, enceradeira, aspirador de pó,
liqüidificador etc..
Trata-se, pois, de um teatro musical, tal como foi teorizado por Kagel, nas
páginas anteriores. O exemplo pode aqui melhor ser observado a partir da própria
partitura - na verdade, uma série de instruções dispostas através da própria linguagem
verbal, compreensível mesmo por um não-músico. No entanto, é obra que, para ser
executada, se não necessita de uma formação musical bem desenvolvida, pelo menos
necessita de uma experiência prévia nessa linguagem: o exercício de coordenação,
execução e escuta assim o exigem.
146
Outra obra marcante de G. Mendes, no que toca a experimentação. Tal como
nascemorre, esta obra conta com os dados que caracterizam a música da segunda
metade deste século: o som concreto (as narrações esportivas), o som orquestral
desprovido de melodias, a participação do público, o teatro musical, a importância do
espaço como construto musical.
Mostramos, no intermezzo deste texto que entre 1930 e 1940 o rádio passou a
transmitir programas durante todo o dia. Justapondo elementos inteiramente diversos
entre si, de modo estranho, cômico ou provocante acabando por constituir uma unidade
fragmentária diluindo, mesmo, valores culturais. Essa concatenação, elaborada através
de um processo de montagem pode ser encontrada, de certa maneira nesta peça de G.
Mendes.
115 As atuais narrações de futebol no rádio não aceleraram o andamento (se optamos pela terminologia
musical) desde a época em que a narração de Geraldo José de Almeida foi registrada. O que mudou
verdadeiramente, na narração irradiada nas ondas do rádio foi a inclusão da propaganda, no transcorrer do
próprio tempo do jogo e não somente nos intervalos. As intervenções constituem-se geralmente de spots
podendo até incluir um jingle (canção publicitária).
147
observações dos comportamentos mais recentes da torcida do time de futebol e que,
segundo instruções da própria partitura, podem sofrer modificações em cada montagem
(performance).
Também conhecido como Beba Coca Cola, é uma das raras peças de vanguarda
pertencente ao repertório de uma boa parte dos corais brasileiros. G. Mendes dá a essa
peça um tratamento especial à voz, incluindo sonoridades ainda hoje banidas do
universo estético-musical da nossa cultura: arroto, glissando com voz nasalada, falas
estridentes - “como o pato Donald” - além da ação cênica .
148
O Motete em ré menor é, na sua essência, “(...) um salto do pregão renascentista
ao pregão moderno, o jingle publicitário para a rádio-tevê” (Mendes, 1994:102).
Trata-se de uma peça exclusivamente vocal, sem a inclusão de sons de outra natureza
afora aqueles executados pela voz. No entanto, essa voz é encarada de diversos modos.
Embora demarcada melodicamente pelo acorde ré-fá-lá-mi bemol, ainda circunscrita ao
pentagrama, metricamente restrita, com blocos rítmicos de seis compassos com os
tempos 3-2-2-2-2-1, a quantidade de vozes que despontam é bastante rica e
diversificada: ondulação melódica, sons aspirados, um bocca chiusa (boca fechada) que
ataca um glissando da região mais aguda à mais grave; a entoação “grotesca, irritada,
rabujenta (como o Pato Donald), arranhando na garganta” por parte de um tenor;
outra voz de tenor cacarejada; e mais outra “aflita, como quem diz: Cuidado!”,
conforme indica textualmente a partitura. E mais: sopranos, contraltos e baixos devem
transformar o som musical em algo semelhante ao ruído provocado pela ânsia de
vômito, seguido do som (ao vivo ou gravado) de um arroto (indicação A, da partitura).
Ora, estes sons não são outros senão aqueles que sempre foram banidos da arte.
É bom lembrar que, até o século XX, era objetivo da arte vocal dissimular e encobrir o
ruído. O que o Motete em ré menor põe em primeiro plano são justamente esses sons.
Observando a partitura, nota-se que o arroto, o som mais abominável de todos aparece
em destaque culminando uma cadência em solo. O som desprezível levado a primeiro
plano faz dele um elemento extremamente desimportante. Concluindo, um breve teatro
musical, após uma pseudo-finalização da peça (indicação B, da partitura) arremata a
peça com o discurso falado (clo-a-ca).
Para manequim feminino e dois fotógrafos masculinos; som de piano gravado e fita
magnética, luz de flashes fotográficos.
149
de coexistir num mesmo signo, isto é, a partir da prescrição de algumas orientações, o
intérprete pode recriar a obra à sua maneira. Em Son et lumière observamos duas
seqüências básicas que se intercalam: 1- a da movimentação desordenada por parte da
manequim (pianista) que, momentaneamente dá a impressão de parar para a pose
fotográfica; 2- a imobilização dos três intérpretes, seguida do pontilhismo luminoso em
contraponto ao bloco sonoro que é executado.
Para vozes e percussão (pandeiro, maracas, crótalos) e ação teatral, sobre texto de
Antônio José Mendes.
150
Quadro I: desenvolvimento sobre o motivo ar, o leitmotiv de toda a peça.
Exploração dos suspiros, em fôlego lento em som grave; estalos de língua, batendo nos
dentes anteriores; bocejos.
Quadro XI: cantada, jingle; aqui a voz é cantada de acordo com o seu padrão
tradicional.
É interessante observar que os sons produzidos pelo corpo - que, muitas vezes
confundem-nos com sons eletroacústicos - contribuem para sugerir ao ouvinte uma certa
paisagem sonora onomatopaica: os diversos estalos de língua são um signo icônico da
água corrente de um rio; as palmas fazem lembrar vôo de pássaros. Sobrepondo-se a
essa ambiência, sobrepõem-se os outros sons: bocejos, suspiros, exclamações,
entrecortados e pontuados pelos crótalos, maracas e pandeiro.
Esta curtição de voz e músculos como o próprio G. Mendes a designa é uma das
suas obras mais discutidas. Homenagem a Umberto Eco e sua Obra Aberta, esta peça
151
conserva o título italiano, a fim de manter a duplicidade semântica. Trata-se de um
contraponto em duas partes (já que não podemos utilizar a expressão habitual a duas
vozes), escreve G. Mendes no cabeçalho da partitura-bula.
O halterofilista, de sua parte, exibe seu imenso tórax, seus músculos (também
forte símbolo de virilidade, é bom lembrar) que se desenvolvem graças à sustentação de
um peso - ou melhor - massa, utilizando a nomenclatura correta da física. Tal como o
cantor, o halterofilista é resultado de esforço.
152
A Ópera Aberta é, pois, uma peça que tem como tema uma sátira ao trabalho de
bastidores empreendido pelo músico-atleta sob a forma de uma paródia, uma vez que,
tudo aquilo que mostra é, tão-somente o exercício, a ginástica, representado pelos
vocalizes que entrecortam as árias de ópera. Em outras palavras, evidencia as
desimportâncias do trabalho do cantor (e do músico virtuose, de um modo geral) sob a
forma de um teatro musical.
116 Expressões coloquiais como dizer que alguém tem peito não teriam alguma analogia com a idéia de
virilidade, decorrente de um fôlego que se armazena no tórax - fonte de energia, portanto - a ponto de
deixá-lo inflado?
153
Como o Motete em ré menor, Tempo Tempo é uma obra composta apenas para
vozes, sem interferência de outros timbres, mesmo produzidos pelo próprio corpo. Não
nos estenderemos aos comentários sobre utilização da voz, performance etc., uma vez
que consideramos os exemplos arrolados acima suficientes para esse tipo de ilustração.
O que nos remete a Tempo Tempo é o silêncio, como ele é trabalhado por G. Mendes.
Primeiramente, é importante ressaltar que esse tempo a que se refere o texto, não
é o tempo cronológico do relógio, mas o tempo cíclico, ligado ao pensamento mítico 117,
estruturado num caráter eterno e imutável do mundo. Nesse sentido, único exemplo na
Bíblia hebraica de uma visão cíclica do tempo está no Eclesiastes: “O que foi e o que há
de ser; e o que foi feito é o que foi feito; e não há nada de novo sob o sol” (Szamozi,
1988: 74-75).
117 Para maiores esclarecimentos sobre esse tema, consulte-se O mito do eterno retorno, de Mircea
Eliade (1988). Lisboa: Edições 70.
118 A harmonia modal existe quando a escala utilizada - haja quantas notas houver - baseia-se numa nota
principal, a tônica sobre a qual gravitam todas as outras. Na escala modal não existe a função de
dominante que, no mundo tonal é o que exerce tensão; ou, quando existe essa tensão, ela é muito fraca,
não provocando polarização. É por essa razão que a audição da modalidade causa a impressão de uma
circularidade temporal, recorrente, conduzindo a escuta a um não-tempo, ou mesmo de um tempo virtual
(Wisnik, 1989:71). Para os ouvidos habituados à escuta da tonalidade, esse tipo de música pode
considerar-se monótono. No entanto, é bastante cativante e envolvente se estivermos imersos nela. É o
tipo de música que caracteriza o mundo pré-capitalista, mantendo-se presente até hoje em algumas
culturas: é o caso da música tradicional do Extremo Oriente, do cante jondo flamenco.
Discos:
154
consonantes, inibindo qualquer tensão harmônica (como é de praxe no sistema tonal); a
intercalação de blocos microtonais (D, E) por tempo indeterminado funciona como
suspensão, lugar de todos os sons e (simbolicamente, diríamos) de todos os tempos.
155
Cadência (attaca subito)
Considerações finais:
Essas são apenas algumas das razões que justificam a ampliação das fronteiras
da linguagem musical. Primeiramente, aceitando e incorporando o ruído; anos mais
tarde, abraçando o silêncio - porque o silêncio está desaparecendo da paisagem sonora
contemporânea. Nesse contexto, a voz teria mesmo de ampliar suas fronteiras,
esbarrando muitas vezes em domínios vizinhos (poesia, cinema, teatro). A voz passou,
assim, a conhecer não somente o ruído e o silêncio, como também a mediatização
eletroacústica e informática, ganhando a simultaneidade espaço-temporal, ou mesmo
virtual.
156
entretanto, não gera ruído no canal, reiterando o silêncio da redundância, da repetição
(como afirmamos no item conceitos de ruído).
Finale presto
Iniciamos estas páginas com uma breve narrativa, meio romanceada, de nossa
paisagem sonora da infância. Gostaríamos, assim, de concluir este texto, com nosso
depoimento pessoal, um balanço do tempo-espaço, sugestão - quem sabe? - a ser aceita
e executada pelo nosso caro leitor ou quem quer que se disponha a esse exercício,
muitas vezes insólito. Tal como um flâneur baudelairiano, concluímos estas páginas
com nosso testemunho auditivo. Abandonamos o discurso acadêmico; retomamos a
primeira pessoa do singular.
157
canções? As entoações do período pré hi-fi ? Para quem o desaparecimento de tudo isso
significaria, de fato, uma perda?
Certamente, essas perdas não serão integrais, porque os signos deixam sempre,
de algum modo, perpassar suas desimportâncias que falam e atuam como performance
de um ruído infinitesimal, marca nítida da presença, mesmo quando da sua ausência.
Dentro desse contexto, podemos estar certos de que a voz, ao vivo ou mediatizada, tem -
e ao que tudo indica terá sempre - o seu lugar reservado na paisagem sonora.
158
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SACKS, O. (1987): O homem que confundiu sua mulher com um chapéu. Rio de
Janeiro: Imago .
----------------- (1989): Vendo vozes - uma jornada pelo mundo dos surdos. Rio de
Janeiro.
SATIE, E. (1981): Écrits -reunis, établis et présentés par Ornella Volta. Paris:
Éditions Champ Libre.
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SCHAEFFER, P. (1966): Traité des objets musicaux. Paris: Seuil.
SEMLER, R. (1991): “As noivas de outubro”, in: Folha de São Paulo, 23 de outubro.
------------ (1982): Por uma semiótica da canção popular. São Paulo: tese (mestrado)
FLCH-USP.
WISNIK, J. M. (1989): O som e o sentido - uma outra história das músicas. São
Paulo: Companhia das Letras; Círculo do Livro.
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------------------- (1983): Introduction à la poesie orale. Paris: Editions du Seuil.
Revistas:
Cidade (1964)
Son et lumière (1968)
Atualidades Kreutzer 70 (1970)
Objeto musical -homengagem a Marcel Duchamp ((1972)
Pausa e menopausa (1973)
Poema de Ronaldo Azeredo (1973)
Der Kuss,- homenagem a Gustav Klimt (1976)
Opera aberta (1976)
Ir alten weib (1978)
Vai e vem (1969)
Nascemorre (1963). Nova Iorque: Southern Music Pub. e Washington: Pan American
Union .
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Cidade (1964)
Nascemorre (1963). Nova Iorque: Southern Music Pub. e Washington: Pan American
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Moteto em ré menor (Beba Coca Cola ) (1966). São Paulo: Editora Novas Metas.
Manuscritos :
Asthmatour (1971)
Enigmao (1984)
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NASCEMORRE
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