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LIA TOMÁS (Org.

SÉRIE PESQUISA EM MÚSICA NO BRASIL – VOLUME 6

FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

1ª edição

São Paulo
ANPPOM
2016
ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
EM MÚSICA

Diretoria 2015-2017
Sonia Regina Albano de Lima (UNESP), Presidente
Martha Tupinambá de Ulhoa (UNIRIO), 1ª Secretária
Fernando Lacerda Simões Duarte, 2º Secretário
Marcos Fernandes Pupo Nogueira (UNESP), Tesoureiro

Conselho Fiscal:
José Augusto Mannis (UNICAMP), Titular
Angela Elisabeth Luhning (UFBA), Titular
Sonia Ray (UFG), Titular
Lucyanne de Melo Afonso (UFAM), Suplente
João Gustavo Kienen (UFAM), Suplente
José Soares de Deus (UFU), Suplente

Editora de Publicações da ANPPOM


Marcos Holler (UDESC)
FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

SÉRIE PESQUISA EM MÚSICA NO BRASIL


VOLUME 6

ANPPOM
© 2016 os autores
FRONTEIRAS DA MÚSICA:
FILOSOFIA, ESTÉTICA, HISTÓRIA & POLÍTICA

CAPA:
XiloWeb (Verlaine Freitas)
Reproduzido sob permissão

FORMATAÇÃO E MONTAGEM
João Paulo Costa do Nascimento

Catalogação da Publicação
Ficha catalográfica preparada pelo Serviço de Biblioteca e
Documentação do Instituto de Artes da UNESP

F935 Fronteiras da música : filosofia, estética, história e política /


organizadora, Lia Tomás. São Paulo : ANPPOM, 2016.
472 p. - (Série Pesquisa em Música no Brasil; v. 6)

ISBN: 978-85-63046-05-5

1. Política. 2. Estética musical. 3. Filosofia da música.


4. História da música. I. Título.

CDD 780.1

ANPPOM
Associação Nacional de Pesquisa e
Pós-Graduação em Música
www.anppom.com

Printed in Brazil
2016
SUMÁRIO

Apresentação 05

Fronteiras entre música e filosofia

Expressividade e articulação formal na música 09


de Schönberg, segundo Theodor Adorno
Verlaine Freitas

Músicas sem fronteiras: música e antropologia - 22


Luciano Berio e Claude Lévi-Strauss; música e filosofia -
Wolfgang Rihm e Friedrich Nietzsche
Ivanka Stoianova

Alexander Scriabin: convergências e divergências 54


Marcos Mesquita

Prolegômena: Gadamer e a música como modelo 84


para as ciências interpretativas
Raimundo Rajobac

Corpo e sociabilidade na experiência musical: por 96


uma estética da heteronomia
Rainer Patriota

Etnicidade e antropofagia cultural: dois temas 112


recorrentes nos estudos da música brasileira
no exterior
Silvano Fernandes Baia

Fronteiras entre música, estética, história e política

Música e multissensorialidade à luz de três 130


abordagens filosóficas: Dewey, Merleau-Ponty
e Serres
Alexandre Siqueira de Freitas
O papel do charme na estética musical de 143
Vladimir Jankélévitch
Clovis Salgado Gontijo Oliveira

A concepção de obra musical em Ingarden 163


Glaucio Adriano Zangheri

Música 1941: crítica e história 176


Danilo Pinheiro de Ávila

A literatura e a música como formas de resistência 190


Estefânia Francis Lopes

Montagem da forma: a relação entre crítica 207


estética e crítica social na música popular
brasileira a partir do pensamento de Walter Benjamin
Guilherme de Azevedo Granato

Paralelismos entre música, antropologia e história 216


José Calixto Kahil Cohon

Em torno do inconsciente musical: a noção de 224


Formgefühl em Harmonielehre de Schoenberg como
operador de crítica à normatividade tonal
Igor Baggio

A estética hanslickiana no cinema 233


Jalver Bethônico / Rafael Sodré de Castro

Adès, para onde vão as notas? 250


Lucas Paolo Sanches Vilalta

Música e filosofia em Noites Florentinas de Heine 286


Marcos Branda Lacerda

Música e sacrifício 301


Luigi Antonio Irlandini

Apresentação do inapresentável, ocorrência e 324


presença da matéria no sublime musical de Lyotard
João Paulo Costa do Nascimento
SUMÁRIO

Música e cartesianismo 344


Flávio Silva

Uma estética do gosto: a ópera francesa do 371


século XVIII em Grandval, Bollioud-Mermet
e Blainville
Rodrigo Lopes

O músico prático no Compendium Musicae 386


de Descartes
Tiago de Lima Castro

A biografia de Francesco Geminiani (1687-1762) 397


e sua relação com a música inglesa no século XVIII
Marcus Held

A Metáfora da Coisa: inflexões heideggerianas 417


na canção de Gilberto Gil
Paulo Tiné

A (re)composição do material musical em 428


Musik für Renaissance-Instrumente
de Mauricio Kagel
Rafael Ramalhoso Alves

John Cage e Música Antiga: indeterminação 443


nas práticas composicionais e interpretativas
Renato de Carvalho Cardoso

Sobre os autores 453


Música e multissensorialidade à luz de três
abordagens filosóficas: John Dewey, Maurice
Merleau-Ponty e Michel Serres

ALEXANDRE SIQUEIRA DE FREITAS

uando criança, Orfeu não falava, nem cantava e muito


Q menos criava poemas e música. Incomodava-se
profundamente com o barulho que vinha do mundo e buscava
um lugar verdadeiramente silencioso. Inconformado, o futuro
músico e poeta, por meio de gestos, recorre a sacerdotisas e a
profetizas no templo de Delfos. Sibilas, Pítia e as Bacantes
fazem-no perceber que tal silêncio pleno não existe.
Confrontando-se com sua mudez, aconselham o jovem herói a
escutar os sons do próprio corpo, a pulsação, a respiração, os
soluços do desejo e, mais ainda, a atentar-se ao som do entorno,
aos gemidos de uma mãe em trabalho de parto, ao grito do
recém-nascido.

O ruído de fundo do mundo


É preciso que Orfeu abra todo o seu corpo ao “ruído de
fundo do Mundo, incessante, contínuo, no qual o translado [la
navette] tece a cadeia e a trama do tempo” (SERRES, 2011, p.
13). Na infância de Orfeu, narrada por Michel Serres em
Musique (2011, p. 9-47), antes de poder soltar a voz em
sonoridades intensas, de propagar a emoção pelas canções ou
pela linguagem, o jovem aprendiz teve de entrar em contato
com o caos do universo, com os ruídos que veem de toda parte.
Tinha que escutá-los na totalidade de sua pele, fazê-la vibrar
como um grande tímpano. Foi-lhe solicitado uma escuta
corporal, para além da especificidade do ouvido: à beira do
sentido. “Estar à escuta é sempre estar à beira do sentido, ou no
sentido de borda ou extremidade (...)” (NANCY, 2014, p. 19).
Esta borda, para Orfeu, é todo seu corpo. Sua pele abre-se ao
Música e multissensorialidade

barulho caótico das cidades, das batalhas, aos zumbidos e ao


tilintar sem sentido de seu próprio ouvido.
Todos os eventos sonoros, segundo o texto de Serres,
inscrevem-se nessa base comum, nesse ruído de fundo do
mundo. Criança, Orfeu penetrava as entranhas do caos sonoro
originário. Era preciso, no entanto, ir mais além, entender
melhor essa realidade, que ele conhecia sem conhecer: intuía.
Por isso, continua seu périplo, errando nas imediações do mar
Mediterrâneo, quando encontra, próximo ao monte Parnaso,
uma velha feiticeira, sábia e cheia de ressentimentos:
Mnemósine. É ela quem detém todas as lembranças do mundo
e quem mais entende do seu ruído de fundo. Titânide, filha de
Urano e Gaia, Mnemósine diz a Orfeu que, em meio ao caos,
existe uma ordem sutil para a qual é necessário atentar-se.
Nossos corpos reverberam sem cessar três ruídos de fundo
distintos, porém inextricavelmente misturados. O primeiro e
permanente: o ruído do mundo. Mais intenso e raro: aquele dos
vivos. E, finalmente, o ruído das sociedades, que busca sentido, 131
cegamente, por todo lado. “Essa tripla sucessão assegura uma
primeira grande harmonia nessa suntuosa desordem” (SERRES,
ibid., p. 15)1. A feiticeira da memória tece assim uma primeira
ordenação a esse estado sonoro inicial.
Na história de Orfeu, toda expressão intensa de som e
poesia é precedida por esta escuta ampliada. Seu canto
inscreve-se em um contexto mais amplo, indefinido, ainda que
passível de ser ordenado. “A qualidade penetrante e indefinida
de uma experiência é aquilo que vincula todos os elementos
definidos, os objetos dos quais temos consciência focal,
transformando-os em um todo.” (DEWEY, 2010, p. 350). Para
sua voz fluir potente, foi preciso Orfeu sentir o todo, extenso e
subjacente, contexto de qualquer experiência. Se persistisse na
busca pelo silêncio, sua sanidade estaria em jogo.
John Dewey trata desse contato inicial com o mundo, o
qual aproximamos com o ruído de fundo da narrativa do

1Esta e as próximas citações retiradas do livro “Musique”, de Michel


Serres, além daquelas provindas de “Fenomenologia da Percepção”, de
Maurice Merleau-Ponty”, foram traduzidas pelo autor deste artigo.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

aprendizado de Orfeu por Michel Serres. Para o pensador


estadunidense, tanto o artista quanto o espectador partem de
um estado de captação total, em que um todo qualitativo, ainda
não articulado, serve de substrato, base, para a inscrição de
uma experiência (DEWEY, 2010, p. 346-347). Vivenciamos as
coisas como partes de um todo maior inclusivo, quer estejamos
conscientes disso ou não. Orfeu sabia, sem saber. O fato de não
ser intelectualmente apreendido não significa a inexistência de
algo sentido e intuído com intensidade. Por ser tão completa e
disseminada, essa condição de possibilidade para experienciar
o mundo é, na maioria das vezes, subestimada. O ruído das
sociedades, com suas linguagens e ciências, encobre os ruídos
de fundo do mundo e dos vivos. É impossível, entretanto,
livrar-se da sensação de algo que está mais além, como Dewey
deixa explícito em seus escritos, convergindo com o
aprendizado de Orfeu. Por mais que expandamos nosso campo
de percepção e nos abramos às experiências, nunca
atingiremos esse todo, cujas margens diluem-se em um
132 expansão infinita. “Sem um contexto indefinido e
indeterminado, o material de qualquer experiência é
incoerente”. (2010, p. 351). O todo é sentido como expansão de
nós mesmos e dialoga ininterruptamente com o que a
inteligência distingue. Desta última depende a inteligibilidade
das coisas, mas não deve, por isso, descartar o pano de fundo
que sempre persistirá no que quer que seja: o contexto
indefinido e potente no qual inscrevem-se nossas vivências.
A síntese que se faz, a cada momento, entre as
especificidades e a totalidade das sensações é, contudo, sempre
inacabada, indefinidamente feita e desfeita ao longo do tempo.
Ainda assim, – recorrendo agora a Maurice Merleau-Ponty –
existe uma unidade como pressuposição no horizonte da
experiência (1945, p. 265). Na obra Fenomenologia da
percepção, de Merleau-Ponty, há um grande esforço que
consiste em identificar o núcleo de um “já” (déjà), chamado por
vezes de pré-história, que precede toda reflexão predicativa e
sobre o qual se estabelece a relação explícita que temos com o
mundo (LYOTARD, 1986, p. 57). O fenomenólogo francês incita
a busca por uma “camada primordial”, onde nascem as ideias e
as coisas. Para Orfeu, como músico e poeta, tal camada pode ser
caracterizada pelo conhecimento do persistente e incômodo
Música e multissensorialidade

ruído de fundo do mundo. “Toda percepção se dá em uma


atmosfera de generalidade e se apresenta como anônima.”
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 260). Quando vemos um objeto,
experimentamos também a existência de um ser que está além
do que vemos, segundo Merleau-Ponty. Esta e qualquer outra
sensação comporta um “germe de sonho ou de
despersonalização” e é, literalmente uma comunhão, uma
coexistência com aquilo que se está em contato (ibid.).
Portanto, não deveríamos dizer “eu percebo a cor azul” e sim
“percebo em mim a cor azul”. Além disso, uma experiência
nunca será absolutamente clara porque existe, entre minha
sensação e mim, a espessura de um saber originário, a camada
primordial e presente: o “já”.

Música
Acabara, nosso herói, de abrir seu corpo aos ruídos que
precediam e condicionavam as vozes humanas. Antes de falar, 133
raciocinar, calcular, as profetisas o haviam ensinado a escutar o
vento, o som ritmado das marés, o ruído de fundo do mundo.
“Mas como passar do ruído à música?” – pergunta
Orfeu a Mnemósine.

Como Afrodite, mãe de toda beleza, nasce de um golpe de


espuma, emerge subitamente do mar caótico do barulho: a
Música. (...) Bem antes que a cabeça a transforme em voz, em
sentido e em língua, antes de pensar, de dizer e de significar,
seu corpo vibra com essa música, integrada por ele a partir
de todos os ruídos do mundo. (SERRES, 2011, p. 20 -21).

“Quem comporia tal música?” – insiste Orfeu. “Minhas


nove filhas” – responde Mnemósine. São as nove musas. Todas
juntas, na concepção de Michel Serres, fazem com que nasça a
música, primeira arte humana, sem a qual ninguém pode
acessar à beleza. Sendo difícil, delicada e perigosa tal empresa,
a feiticeira teve de agrupar suas filhas: primeiramente as
musas-música e, em seguida, as musas-línguas. O filósofo
francês apresenta o primeiro grupo composto por cinco musas.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

As duas primeiras, Políminia e Terpsícore, ligam-se mais


intensamente ao movimento do corpo e ao ritmo, como
elemento essencial da vida. Políminia, musa da pantomima,
toca percussão, reproduz, imita, acompanha. Terpsícore expõe
em sua dança todo o repertório de condutas corporais: mil
movimentos. “A dança inventa o corpo porque lhe dá
adaptabilidade.” (SERRES, 2011, p. 25). Vendo e ouvindo os
ritmos dessas musas, Orfeu busca compreender a cadência
cacofônica do mundo. As duas musas seguintes são mais
especializadas. Euterpe toca a flauta inventada por Pan, que
simboliza todos os instrumentos capazes de produzir sons.
Erato dirige o coral que reuni mil vozes em uma harmonia de
raros uníssonos e de acordes complicados. Temos então, por
enquanto, musas corporais e musas musicistas. A elas une-se a
poderosa Urânia, que compõe, calcula e contempla a harmonia
dos céus. Emerge a dimensão técnica. “Eu suavizo,
antecipadamente, todo o barulho do Mundo, para podermos
ouvir, sob a Grande Narrativa, uma imensa rapsódia.” (2011, p.
134 32). Urânia é musa do saber rigoroso, preciso e universal. As
quatro últimas musas são as responsáveis por fazer emergir as
significações. São as musas-línguas. Melpômene apresenta a
tragédia, Tália a comédia, Calíope a poesia épica e, finalmente,
Clio expõe a história e a mentira de seus heróis, completa
Serres (2011, p. 36).
Todas as linguagens, neste resumo das descrições do
filósofo, são precedidas pela música. Embora tenha cada uma
seus próprios atributos, todas juntas criaram a música, como
primeira manifestação humana de ordem expressiva e sonora.
“A música inventa a linguagem (...)” (2011, p. 25). Orfeu, antes
de falar, aprende com as musas a compor. Deu-se conta de que
as linguagens humanas poderiam impedi-lo de ouvir o ruído de
fundo do mundo. A música compreende as linguagens, mas as
linguagens não a compreendem. Ela acolhe os ruídos do mundo
e transforma-os em universais que precedem os discursos.
Antes de serem palavras, os sons eram tons, “variações
das sensações de dor e prazer, surpresas... ais e uis
melodicamente articulados... poemas arcaicos da invenção do
ser. Dias melodias da história humana”, disse José Carlos
Capinan, poeta, letrista, parceiro de inúmeros compositores da
música brasileira (2014, p. 10). O poeta reafirma a relação
Música e multissensorialidade

música-palavra como expressão complexa, “reconstituição dos


signos primais da expressão”, quando “as palavras eram apenas
sons ou quando deles não se haviam separado” (2014, p. 10).
A caracterização feita por Capinan do estágio inicial da
música como surpresa e variação de sensações converge com a
descrição da arte dos sons feita por Dewey e também por Jean-
Luc Nancy.

A música, portanto, tendo o som por veículo, expressa


necessariamente, e de maneira concentrada, os choques e as
instabilidades, os conflitos e resoluções que são as mudanças
mais dramáticas, impressas no pano de fundo mais
duradouro da natureza e da vida humana. (DEWEY, 2010, p.
416).

A música tece sua trama a partir das descargas de


energia, da luta, do movimento. O frêmito, as particularidades e 135
contingências da vida expressas na música, segundo o
pensador, encontram-se entranhadas na natureza e são típicas
da experiência em suas constantes estruturais. O movimento da
grande estrutura da vida acontece em ritmos seculares,
enquanto o que capta nossos ouvidos são eventos súbitos e de
rápida mudança. (DEWEY, 2010, p 416).

(...) a escuta ocorre ao mesmo tempo que o evento sonoro,


disposição claramente distinta da da visão (para a qual, de
resto, também não há “evento” visual ou luminoso em um
sentido absolutamente idêntico ao termo: a presença visual
já ali está disponível antes que eu veja, enquanto a presença
sonora chega: comporta um ataque, como dizem os músicos e
os especialistas em acústica). (NANCY, 2014, p. 31).

As coisas visíveis não são, em si, perturbadoras, pois a


visão, como sentido da distância, nos liga ao que está longe. Ela
nos proporciona a cena na qual ocorre a mudança. Na audição,
o som vem de fora, mas é muito próximo e íntimo e o sentimos
por todo nosso corpo. O som relata mudanças e, dessa forma,
FRONTEIRAS DA MÚSICA

incita mudanças. “O som transmite o que é iminente, o que está


acontecendo como indicação do que provavelmente virá.”
(DEWEY, 2010, p. 417). E, ainda nas trilhas de John Dewey, a
iminência do som carrega sempre uma aura de indeterminação
e incerteza, por isso os sons criam condições favoráveis a
intensas agitações emocionais.
A dimensão imaterial da música, sua conexão imediata
com os afetos, assim como sua ligação íntima com os números,
na cultura ocidental, deu a ela status de arte liberal na Idade
Média e na Renascença. Inseria-se no chamado quadrivium, ao
lado da aritmética, da geometria e da astronomia. As artes
liberais gozavam de maior prestígio social em detrimento das
artes mecânicas ou servis, associadas às atividades manuais
(FREITAS, 2012, p. 45). Curioso notar que a música incluía-se
entre as artes liberais somente em sua forma idealizada, na
associação com os números, com a harmonia, na educação
musical no interior de uma ordem superior. Estaria, digamos,
136 sob a égide de Urânia, a musa dos astros. Em sua forma
instrumental e prática, porém, a música não era uma arte
liberal e não era sequer mencionada entre as artes mecânicas.
Sua presença instaurada como pensamento e memória
sobrepõe-se aos gestos instrumentais ou vocais, intimamente
conectados à dimensão temporal. A música real, com sua
sucessão de surpresas e de choques, tem, por séculos, algo de
incômodo. Sua nobreza levantava suspeitas.
Filhas da titânide que se liga à memória, as musas
criadoras da música frequentam tempos de todas as ordens,
nem sempre submetidas à linearidade. A música insere passado
e futuro no presente, lembranças e esperança, como nos
mostrou Santo Agostinho em suas Confissões (AGOSTINHO,
1996). Contrai, dilata, paralisa o tempo. “(...) eu não sei se a
Música segue ou produz o tempo...” (SERRES, 2011, p. 45).
Se como expressão ou linguagem a música é
predominantemente temporal, como sensação ela é, antes de
tudo, espacial. Toda sensação, no contato primordial com o ser,
é retomada de uma forma de existência indicada pelo sensível,
como coexistência de quem sente e do sensível (MERLEAU-
PONTY, 1945, p. 262). A música, embora não esteja no espaço
visível, ela o mina, o desloca, abala o chão daqueles que se
Música e multissensorialidade

entregam, “como uma tripulação sacudida na área de uma


tempestade” (MERLEAU-PONTY, 1945, p. 271). Logo, de acordo
com o viés observado, a música modula o tempo e o espaço. Por
qualquer viés, entretanto, a potência de sua ação é irrefutável.
A música antecede as linguagens, como percebeu
Orfeu, inclusive a linguagem matemática e das ciências: ela
“conta por meio de números sem nome”. (SERRES, 2011, p. 44).
Quando liberta de definições adquiridas com o contato da fala,
possibilita a retomada de uma qualidade passional primordial,
com alto grau de desvinculação de objetos e de acontecimentos
particulares, observou Dewey (DEWEY, 2010, p. 419). Orfeu
toma o material bruto, o ruído do mundo, tria, tece conexões,
ordena, reconfigura e o converte em um veículo intensificado e
concentrado, construtor de experiências.
Na apresentação de Serres, o aprendizado de Orfeu foi
uma descida ao inferno do caos aleatório dos ruídos para, em
seguida, com ajuda das musas, emergir como músico, expert
em cantos, palavras e razões. Salvo de todo mal, vem suavizar a 137
cólera e o desamor dos humanos. A música é caracterizada por
Serres como interseção (coloca em contato ciência rigorosa e
caos), encarnação (transita por corpos e instrumentos),
completude (depositório de equivalentes sonoros antecessores
das linguagens), origem, reunião e universal (SERRES, 2011, p.
45). “A Música não é um saber, e sim um poço por onde
despontam todas as invenções possíveis. Assim, a filosofia.”
(SERRES, 2011, p. 45.).
Embora liberta do inferno, a música pode sempre
retornar ao caos de onde saiu. Persistem, como partes
integrantes da experiência, os ruídos de fundo propostos por
Serres, neste texto associados ao “contexto indefinido e
indeterminado” de Dewey e a “atmosfera de geralidade”, o “já”
sempre presente na fenomenologia de Merleau-Ponty2.

2 Essa associação entre os três filósofos foi sugerida primeiramente na


tese de doutorado: FREITAS, Alexandre Siqueira de. Ressonâncias,
Reflexos e confluências: três maneiras de conceber os encontros entre
as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do século XX. Cf.
Referências Bibliográficas.
FRONTEIRAS DA MÚSICA

Multissensorialidade
Como vimos, o aprendizado de Orfeu abriu-se a uma
escuta corporal, transformando a pele de todo seu corpo em
um grande tímpano, sensível ao mínimo movimento de ondas
sonoras. Tais pequenos movimentos constituem, de algum
modo, uma comunicação entre um lado perceptivo e um lado
motor. John Dewey afirma que as conexões dos tecidos
cerebrais com o ouvido são maiores que as de qualquer outro
sentido e, ainda, as ligações da audição com todas as partes do
organismo fazem com que o som tenha mais reverberações e
ressonâncias que qualquer outro sentido (DEWEY, 2010, p. 416
e 419). Os órgãos dos sentidos atuam, em um primeiro
momento, como instrumentos de excitação corporal ou
“tentáculos” por meio dos quais tocamos o mundo, para utilizar
um termo de Dewey (DEWEY, 2010, p. 352). Os sentidos, no
entanto, não são a própria percepção, como fica claro no
pensamento desse pensador. Tampouco na compreensão de
138 Merleau-Ponty, na qual cada sentido é um pequeno mundo no
interior do grande, que é a percepção. Embora o pensamento
objetivo – sobre o qual funda-se a ciência, no seu entendimento
mais específico e difundido – propague a crença em uma certa
autonomia sensorial, a fenomenologia crê no sentir como
comunhão com o mundo e modalidade de existência. Seria
impossível desconectar do corpo uma experiência de um só
órgão, pois a percepção é sempre uma síntese inscrita em um
esquema corporal feito de equivalências e transposições. Não
existe pureza sensorial, já que o corpo inteiro comunica-se com
o mundo e seus objetos. O que existe são certas “vocações de
registros sensoriais”:

Ao mesmo tempo em que essa unidade/totalidade do


sensível aparece para o sentinente, a especificidade, a
vocação de cada registro sensorial não é negada. Pensa-se o
corpo inteiro como engajado no funcionamento de um dos
sentidos – o surdo pode ter perdido o uso de seus órgãos,
mas seu corpo continua investido da dimensão sonora, ele
não deixa de escutar o mundo, não é totalmente surdo.
(CAZNOK, 2008, p. 129).
Música e multissensorialidade

O som, na sua “impureza”, evoca densidades, texturas,


luminosidades, talvez sabores e odores. O saber científico, no
pensamento de Merleau-Ponty, perturba nossas experiências
reais, pois não se trata, por exemplo, de um vago exercício de
abstração pensar no quanto o ruído de um automóvel pode nos
dizer sobre a dureza do chão ou a desigualdade do calçamento
da estrada (1945, p. 276).
Os músicos, vale lembrar, são completamente
habituados a ouvir expressões que fazem menções a outros
sentidos na condução de suas escolhas interpretativas: sons
doces, secos, leves, pesados, brilhantes, fechados, abertos etc.
Aqueles mais ligados às músicas contemporâneas e
eletroacústicas, que enfocam o timbre, podem acrescentar
ainda: sons rugosos, estriados, lisos, densos, nuvens de sons
etc. O vocabulário musical está repleto de alusões sinestésicas,
que são bem mais que simples metáforas.

139
A percepção sinestésica é a regra e, se nós não a percebemos,
é porque o saber científico desloca a experiência e nós
desaprendemos a ver, ouvir e, em geral, sentir, para deduzir
de nossa organização corporal e do mundo, tal qual o
concebe o físico, aquilo que devemos ver, ouvir e sentir.
(MERLEAU-PONTY, 1945, p. 275).

Para a fenomenologia, todos somos potencialmente


sinestetas, pois admite-se “uma unidade primordial do sentir e
uma indiferenciação também primordial do sensível (...)”
(CAZNOK, 2008, p. 132).
Outras áreas do saber aludem também a existência de
uma sinestesia generalizada. Desde convincentes insinuações –
como as do artista e professor Julio Plaza quando sugere a
existência de leis neuropsicológicas que suscitam a conexão de
sentidos (PLAZA, 2003, p. 60) – até todo o histórico das últimas
décadas de pesquisas neurocientíficas que associa fatos
artísticos e multissensorialidade, por vezes inseridos no
território da neuroestética, da neurociência cognitiva das artes
FRONTEIRAS DA MÚSICA

ou, de maneira geral, em recentes estudos das interseções


entre arte e tecnologia3.
Dewey, sem negar a vocação sinestésica da percepção,
observa que – no interior do permanente diálogo entre a
especificidade dos órgãos dos sentidos e a unidade da
percepção do mundo – os objetos artísticos acentuam a
especialização de um sentido. Segundo ele, pelo fato de as
obras de arte atuarem por meios específicos, como faz a música
com os sons, a estrutura especial de um sentido assume a
liderança no encaminhamento da percepção e reduz a sensação
de dispersão difusa (2010, p. 356). A arte toma um material
bruto e, mediante seleção e organização, transforma-o em um
veículo intensificado e concentrado para construção de uma
experiência (2010, p. 420). Supõe-se, no entanto, que, embora o
autor fale de experiência artística como um todo, essas
considerações reportem-se às modalidades artísticas que
endereçam-se a sentidos precisos, como a pintura ou a música.
140 Em outras práticas, como teatro, cinema, artes literárias ou em
formas artísticas mais recentes, como performances ou
instalações, a consideração de Dewey sobre a condução da
percepção por um sentido em especial deve ser vista com
algum cautela4.
A “qualidade penetrante e indefinida”, em todo caso,
persiste nos objetos artísticos e em nossas relações com eles. A
percepção inscreve-se na “atmosfera de generalidade” e a
unidade dos sentidos é, para Merleau-Ponty, somente a
expressão formal de uma contingência fundamental: o fato de
estarmos no mundo (1945, p. 266). Tanto a unidade dos
sentidos, quanto suas especificidades são ambas verdades com
o mesmo estatuto, são mundos particulares inseridos no
mundo mais amplo de nossa experiência integrada (1945, p.
266).

3Cf. LEOTE, R. Multisensorialidade e Sinestesia: Poéticas Possíveis?.


4 Os textos organizados na obra “Arte como experiência”, de John
Dewey, foram escritos ente 1925 e 1953. Portanto, há alguma chance
de que os capítulos estudados (“A substância comum das artes” e a “A
substância variada das artes”) tenham sido escritos antes do
surgimento de certas modalidades artísticas já incorporadas na
contemporaneidade.
Música e multissensorialidade

Na compreensão de Merleau-Ponty, reflexões mais


profundas, incluindo aquelas provindas das ciências, tornam
obscuro o que achávamos claro. Ouvir, ver, sentir são palavras
probleméticas. Por isso, Orfeu, no seu aprendizado, é convidado
a voltar sua audição – na verdade, todo o seu corpo – para os
sinais mais fundamentais desse nosso mundo. Sinais que, na
narrativa de Serres, precedem toda linguagem humana.
Vibra o corpo de Orfeu. Ele assim o sente, e “a sensação
é, literalmente, uma comunhão” (1945, p. 257). Quando doou
seus ouvidos, o sensível apossou-se de todo o seu corpo e todo
ele vibrou à maneira dos “ruídos de fundo do Mundo”.

Toda sensação comporta um germe de sonho ou


despersonalização, como o experimentamos por este tipo de
estupor em que ela nos coloca quando vivemos
verdadeiramente em seu plano. (1945, p. 260).

141
A fenomenologia de Merleau-Ponty, os ensinamentos
de Dewey e o percurso de Orfeu, na narrativa de Serres, são
como convites para retornarmos às experiências primordiais,
acolhermos o aparente caos instalado no seio de nossa
percepção e renovarmos a cada “agora” nossas experiências, de
todas as naturezas.

Referências bibliográficas
AGOSTINHO. Confissões. Col. Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural,
1996.
CAPINAN, J.C. Vinte canções de amor e um poema quase desesperado.
Salvador: Caramurê, 2015.
CAZNOK, Y. B. Música: entre o audível e o visível. São Paulo: Unesp,
2008.
DEWEY, J. Arte como experiência. São Paulo: Martins Fontes, 2010.
FREITAS, A. S. de. Ressonâncias, reflexos e confluências: três maneiras
de conceber as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do
FRONTEIRAS DA MÚSICA

século XX. Tese (Doutorado em Artes/Música. Universidade de São


Paulo e Paris-Sorbonne (cotutela). São Paulo, Paris, 2012. Disponível
em: http://www.e-sorbonne.fr/sites/www.e-orbonne.fr/files/theses/
Siqueira_De_Freitas_Alexandre_2012_these_0.pdf

LEOTE, R. Multisensorialidade e Sinestesia: Poéticas Possíveis?.


Revista Ars. vol. 12, n. 24, 2014, p. 44-61.
LYOTARD, J.-F. La phénoménologie. Paris: PUF, 1986.
MERLEAU-PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris:
Gallimard, 1945.
NANCY, J-L. À escuta. Belo Horizonte: Edições Chão de Feira, 2014.
PLAZA, J. Tradução intersemiótica. São Paulo: Perspectiva, 2003.
SERRES, M. Musique. Paris: Le Pommier, 2011.

142
Sobre os Autores

Alexandre Siqueira de Freitas é pianista, professor da área de


Artes na Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). Doutor
em Artes/Música pela Universidade de São Paulo e pela
Universidade Paris-Sorbonne (cotutela), sob orientação de
Eduardo Monteiro (USP) e Michèle Barbe (Paris-Sorbonne). Foi
articulista cultural do site da revista Carta Capital e é autor do
livro Rencontre des arts (Harmattan, 2015).

Clovis Salgado é graduado em Música e Filosofia (Faculdade


Santa Marcelina - Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia),
Mestre em Música (Texas Christian University) e Doutor em
Estética e Teoria da Arte (Universidad de Chile). Atua como
professor assistente e pesquisador na Faculdade Jesuíta de
Filosofia e Teologia, em Belo Horizonte. Além de seus trabalhos
acadêmicos, dirigidos sobretudo à Filosofia da Música, ao
pensamento de Vladimir Jankélévitch, às poéticas noturnas e às
interseções entre Mística e Estética, vem desenvolvendo
projetos ligados à formação de público e à arte-educação.

Danilo Ávila é mestrando em História e Cultura Social no PPG


em História da UNESP/Franca. Atualmente desenvolve a
dissertação "Hans Joachim Koellreutter: uma experiência de
vanguarda nos trópicos? (1939-1951)", com financiamento da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo.
Membro do Grupo de Estudos Culturais da UNESP (GECU).

Estefânia Francis Lopes é mestranda na área de Literaturas


Africanas de Língua Portuguesa, junto ao Programa de
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da
Universidade de São Paulo. Formada no curso de Letras na
mesma Universidade, com atuação profissional na área de arte-
educação.

Flavio Silva estudou piano com Milton Lemos, Hans Graff, Alda
Caminha e Homero de Magalhães. Bolsista do governo francês
de 1968 a 1971, permaneceu em Paris até 1974 estudando
musicologia e etnomusicologia no Institut de Musicologie, no
Musée des Arts et Traditions Populaires e na Faculté de

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